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OSWALD DUCROT ·

Os artigos reunidos neste


livro foram escritos entre
1968 e 1984. Retomados e
atualizados pelo autor,
dão um testemunho vivo
da consttução e da
evolucão da semântica
lingü {stica de Oswald
r;- Ducrot: desde a relação
N
da pressuposição com
~
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co
')'IZER E O DITO, O
os atos de fala, à
argumentação como um
predicado lingü (stico
da linguagem, até a

~ !I I I liiiU II I teoria polifônica da


enunciação.
9788571 1~0029
Pontes
,.
O DIZER
E O DITO

. Prof. Dra. Sulemi Fabiano Campos


LETRAS UFRN
OSWALD DUCROT

O DIZER
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
E O DITO
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Revisão Técnica da Tradução:
Eduardo Guimarães
Ducrot, Oswald.
D89d O dizer e o dito I Oswald Ducrot ; revisão técnica da
tradução Eduardo Guimarães. - Campinas, SP : Pontes,
198:Z.
(Linguagem/ crítica)
Bibliografia.
ISBN 85-7113-002-7
1. Linguagem - Filosofia 2. Lingüística 3. Semântica
I. Título. II. Série. ..
CD0>-401
-410
87-1898 -412

lndices para catálogo sistemático:


1. Linguagem : Filosofia 401
2. Lingüística 410
3. Semântica : Lingüística 412 1987
Copyright © 1984 by Oswald Ducrot
Título Original: Le Dire et le Dit
Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela PONTES EDITORES
Capa: João Baptista da Costa Aguiar
íNDICE
Coordenação Editorial: Ernesto Guimarães
Revisão: .Adagoberto Ferreira Baptista
Ernesto Guimarães

Prefácio 7

I -PRESSUPOSIÇÃO E ATOS DE LINGUAGEM


I. Pressupostos e Subentendidos: a Hipótese de uma
Semântica Lingüística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
II. Pressupostos e Subentendidos (Reexame) . . . . . . . . 31
III. A Descrição Semântica em Lingüística . . . . . . . . . . 45
IV. Estruturalismo, Enunciação e Semântica . . . . . . . . . 63
V. As Leis de Discurso ... . . .... . ...... ) . . . . . . . . 89
PONTES EDITORES II - ENUNCIAÇÃO
R. Dr. Quirino, 1230 VI. Linguagem, Metalinguagem e Performativos 109
Telefone: (0192) 33-2939 VII. A Argumentação por Autoridade .... . ..... . ... 139
Campinas - SP VIII. Esboço .de uma Teoria Polifônica da Enunciação .. 161

Bibliografia 2'19

1987
Impresso no Brasil
PREFACIO

Neste livro foram reunidos textos escritos desde 1968. Os cinco


capítulos da primeira seção e os dois primeiros da segunda retomam,
com modificações mais ou menos significativas, mas essencialmente
formais, artigos publicados em diversas revistas, e das quais algumas
não são mais acessíveis. O último capítulo, ao contrário, embora
tenha como ponto de partida trabalhos anteriores, pode ser consi-
derado como um texto "novo". Procuro apresentar nele uma teoria
geral da enunciação, que constitui o quadro no qual trabalho atual-
mente.
Gostaria de poder dizer que estes diferentes textos têm uma
unidade ao mesmo tempo temática e teórica. Quanto ao primeiro
ponto, creio poder assegurá-lo sem muita dificu}dade. Por um lado,
são sempre as mesmas noções que reaparecem nos oito capítulos da
·coletânea: o conceito de pressuposição, por exemplo, objeto do pri·
meiro texto, é ainda retrabalhado nas últimas páginas do último.
Por outro lado, estas diversas noções têm entre si um ponto comum,
que motiva o título geral do livro: trata-se sempre do que, no sen-
tido de um enunciado (no "dito"), diz respeito à aparição deste
enunciado (seu "dizer").
Tenho mais escrúpulos em pretender que os oito textos possuam
uma unidade teórica , já que não há nenhuma dúvida - e eu o sub-
linho explicitamente na maior parte dos capítulos - que os traba-
lhos aqui reunidos se contradizem largamente uns aos outros: sua
leitura é, pois, pouco recomendável para as pessoas para quem a re-
tratação intelectual comporta um risco severo de depressão.

7
Para resumir em algumas palavras a origem destas contradições, Mas espero também, mergulhando a teoria dos atos de lingua-·
diria que elas se devem a uma progressiva reviravolta na minha ati- gem em uma concepção polifônica da enunciação, ser fiel a uma
tude diante da filosofia da linguagem anglo-americ~na. Tendo partido inquietação pessoal, que talvez explique, por outro lado, as distor-
de Strawson, Austin e Searle, cuja leitura foi a base de todas as mi- ções às quais submeti a filosofia da linguagem quando supunha so-
nhas pesquisas, e de quem eu unicamente contava aplicar as idéias mente aplicá-la. Esta inquietação, que, segundo penso, está na base
em lingüística, fui levado a abandonar a maioria de suas teses. do estruturalismo em semântica lingüística, é o de dar à alteridade
- para retomar uma expressão da qual Carlos Vogt e eu nos temos
Esta infidelidade - que é ao mesmo .tempo uma infidelidade a servido freqüentemente - um "valor constitutivo". Ao mesmo tem-
mim mesmo - é particularmente visível quando se comparam as po, a teoria dos atos de linguagem, tal como a compreendi, e a teoria
duas seções do livro . Na primeira, o ponto de contato do dizer no da polifonia fundam o sentido sobre a alteridade. No que concerne
dito está fundamentado antes de tudo na idéia de ato de linguagem: à teoria dos atos de linguagem, ela funda o sentido de um enunciado
se o sentido de um enunciado alude à sua enunciação, é na medida nas relações que este estabelece entre sua enunciação e um certo
em que o enunciado é ou pretende ser a realização de um tipo par- número de desdobramentos "jurídicos" que esta enunciação, segundo
ticular de ato de linguagem, o ato ilocutório. Todo meu esforço, nos ele, deve ter. No que concerne à teoria da polifonia, ela acrescenta
textos da segunda seção, visa, ao contrário, ultrapassar a noção de a esta alteridade, por assim dizer "externa", uma alteridade "inter-
ato ilocutório. Tendo mostrado, no capítulo sobre os performativos, na" - colocando que o sentido de um enunciado descreve a enun-
que sua utilização implica uma confiança cega na linguagem (consi- ciação como uma espécie de diálogo cristalizado, em que várias vozes
derada como sendo a melhor metalinguagem para descrever a si mes- se entrechocam. A possibilidade permanece, aliás, aberta para que
cada uma destas vozes seja ela própria, por sua vez, a representação,
ma), procuro - este é o objeto dos dois últimos capítulos - des-
a colocação em cena de um diálogo, possibilidade à qual alude, sem
cobrir no sentido dos enunciados um comentário da enunciação muito
ser capaz de explorar, a última seção do último capítulo.
mais fundamental que aquele que se expressa .na realização dos atos
ilocutórios: estes aparecem como um fenômeno segundo, derivado a Duas observações relativas à organização da coletânea.
partir de uma realidade mais profunda, a saber, a descrição do dizer 1 . A ordem na qual os textos são apresentados é um compro-
como uma representação teatral, como uma polifonia. misso entre o cuidado histórico e um cuidado temático. Aproximei
os textos que tratavam do mesmo tema, ou temas aparentados -
Certamente não vou terminar meu prefácio com esta declaração ordenando-os a partir de uma antigüidade decrescente.
de incoerência: cedendo a um movimento psicológico difícil de evi- 2 . Serão encontradas nos pés de páginas duas espécies de nota.
tar, vou sublinhar que a reviravolta que ostentei é o signo exterior Ás primeiras, indicadas por números, são as que faziam parte dos
de uma fidelidade oculta. Fidelidade, primeiro, ao que me parece textos originais. As outras, indicadas por asteriscos, são comentários
ser a intuição profunda dos filósofos em quem me if!spirei: para sus- feitos a propósito destes textos, no momento em que organizei a
tentar isto, é suficiente sustentar que sua insistência ~obre os atos de coletânea *. Elas assinalam, principalmente, as diferenças terminoló-
linguagem não diz respeito fundamentalmente a um interesse pela gicas e as contradições teóricas entre os trabalhos apresentados neste
atividade realizada através da língua 1 , mas por esta possibilidade que livro**.
tem a fala de falar de seu próprio acontecimento, possibilidade que
* As notas de tradução serão também indicadas com asterisco, colocando-se
se faz aparecer indiretamente quando se interpreta um enunciado co- ao final da nota a indicação N. do T. (N. do T .).
mo a realização de um ato ilocutório. ** Os exemplos utilizados para as análises serão, em geral, traduzidos para o
português. Só não o serão os trechos de textos, tais como os retirados de
1. De fato, eles descrevem esta atividade de uma maneira um tanto ingênua, romances e peças de teatro, bem como certos exemplos relativos a análises
deixando-se "cair na armadilha" da linguagem e suas "Vérités de la Palice", que não seriam facilmente transpostas para o português, a não ser com o
como diria M. Pêcheux. risco de afetar o conjunto da análise. (N. do T.)

8 9
I
Pressuposição
e atos de linguagem
Capítulo I

PRESSUPOSTOS E SUBENTENDIDOS*
A HIPóTESE DE UMA SEMÂNTICA LINGÜÍSTICA

Quando um lingüista declara que um determinado enunciado **


da língua que ele estuda possui tal significação (descrita com o amú-
lio de um enunciado sinõnimo desta mesma língua ou de uma outra),
ele freqüentemente tem a impressão de registrar um dado, de cons-
tatar um fato. Na realidade, os únicos dados que a experiência lhe
fornece concernem, não ao próprio enunciado, mas às múltiplas ocor-
rências possíveis deste enunciado, nas diversas situações em que é.
utilizado: à medida em que compreendo uma língua, sou capaz de
atribuir significados produzidos hic et nunc. Mas, decidir qual é a
significação do enunciado, fora de suas ocorrências possíveis, implica
ultrapassar o terreno da experiência e da constatação, e estabelecer
uma hipótese - talvez justificável, mas que, de qualquer forma preci- ·
sa ser justificada 1 • Acreditar que seja possível evitar essa dificuldade,

* Este· texto, publicado no n. 0 4 de Langue. Française de 1969, é o primeiro


onde utilizo sistematicamente a noção de "lei de discurso". Objetar-lhe-ia
presentemente (cf. Cap. II) que o qualificativo "pressuposto" refere~se à
natureza de um elemento semântico veiculado pelo enunciado, enquanto o
qualificativo "subentendido" caracteriza a forma pela qual um elemento se-
mântico é introduzido no sentido. Por outro lado pare~me que, através
.. das leis de discurso, introduzi a águia: ' no ninho da lingüística e gostaria
que o uso dessa noção seja mais controlado do que o é atualmente (cf.,
Cap. V e Anscombre & Ducrot, 1983, Cap. III).
N. do T . A metáfora "águia no ninho" foi uma adaptação da metá-
fora original "Le loup dans la bergerie", pois "bergerie", que significa lugar
onde são guardados os carneiros, não tem equivalente em Português.
** Os. termos "sentido", "significação", "enunciado" não possuem, neste texto,
os valores exatos fixados nos § 4-7 do Cap. VIII.
1 . Para ser rigoroso, seria necessário precisar que mesmo em um contexto
definido, a descrição de uma significação tem maiores implicações do que

13

..._______________ --
apoiando-se em uma especte de expenencia imagmarta que consiste ção ao qual devem convergir todas as análises de detalhe possíveis
em tentar representar o efeito casual do enunciado, caso este fosse de serem realizadas atualmente.
produzido fora do contexto, é enganar-se a si mesmo: uma ocorrência
Quanto a dizer que existe, para a língua L, uma descrição se-
fora de contexto não passa de · uma ocorrência produzida em um
mântica lingüística possível, é formular uma hipótese bem precisa so-
contexto artificialmente simplificado, e não é absolutamente neces-
bre a organização a ser dada à descrição semântica de L. Manter o
sário que a significação constatada nessas condições possibilite com-
esquema precedente significa que a descrição semântica se constituirá
preender as significações registradas em contextos naturais.
de um conjunto extremamente heterogêneo, heteróclito mesmo. Com
Mas, se a decisão de atribuir uma descrição semântica a cada efeito, aí deverão ser abrigados, além dos conhecimentos habitual-
enunciado isolado baseia-se em uma hipótese que não encontraria mente chamados de lingüísticos, um certo número de leis de ordem
apoio em nenhuma evidência, ainda assim ela deve ser formulada. O
psicológica, lógica ou sociológica, um inventário das figuras de estilo
fato de não poder justificá-la não significa que seja injustificável. Pen-
empregadas pela coletividade que fala a língua L, com suas condi-
samos, ao contrário, que hipóteses desse tipo constituem a condição
necessária para a existência de uma descrição semântica especifica- ções de aplicação, em suma, informações referentes às diferentes uti-
mente lingüística das línguas naturais. Antes de procurar estabelecer lizações da linguagem nessa mesma comunidade. Caso contrário, como
o que poderia ser uma tal descrição semântica língüística, explicite- dar conta do fato de que, em certas circunstâncias, o enunciado Que
mos o que deve ser esperado da descrição semântica de uma língua L. tempo bom! possa ser dotado de um valor aproximadamente equiva-
Entendemos qtie esta consiste em um conjunto de conhecimentos que lente a Que tempo feio!, e, em outras circunstâncias, ser compreen-
permitem prever, frente a um enunciado A de L, produzido em cir- dido como Não temos muita coisa a dizer um ao outro, etc. Diante
cunstâncias X, o sentido que esta ocorrência de A tomou neste con- de fatos deste gênero e percebendo que uma frase qualquer pode ser
texto. levada a veicular não importa qual significação, lingüistas como F.
Brunot renunciaram à esperança de uma descrição semântica das lín-
guas naturais, pois seria preciso prever, para cada enunciado, a infi-
nidade de significações decorrentes da infinidade de contextos possí-
veis e, ao mesmo tempo, seria preciso acumular no retângulo, através
Descrição Semântica do qual representamos a descrição semântica, informações empresta-
de L das a quase todas as ciências. Se desejarmos, entretanto, evitar este
pessimismo e tentar colocar um pouco de ordem na descrição semân-
I
Sentido de A em X
tica, uma hipótese que parece vantajosa é a que está, implícita ou
explicitamente, em toda a semântica lingüística.
ESQUEMA Trata-se de considerar que o retângulo acima desenhado deve ser
.. dividido em dois compartimentos principais. Um primeiro componen-
Embora, presentemente, a realização deste programa para toda e qual- te, isto é, um conjunto de conhecimentos (descrição semântica lin-
quer língua possa parecer ficção científica, isto não deve impedir güística de L ou, abreviadamente, componente lingüístico) atribuiria
considerá-la como um objetivo legítimo e mesmo necessário, em dire- a cada enunciado, independentemente de qualquer contexto, uma cer-
ta significação. Exemplificando: a A, corresponde a significação A'.
uma simples constatação, pois a própria escolha da fórmula que auxiliará Caberia ao segundo componente (o componente retórico), consideran-
a descrever a significação já exige que se faça abstração de certos matizes
considerados não-pertinentes, e a validade desta abstração constitui uma do a significação A' ligada a A e as circunstâncias X nas quais A é
hipótese e exige uma justificação. produzido, prever a significação efetiva de A na situação X.

14 15
X componente lingüístico uma postura relativamente sistemática, at In-
A tegrando um pequeno número de regras gerais suscetíveis de interfe-
l. rir e de combinar seus efeitos de acordo com relações previsíveis. Por
outro lado, cabe apontar que as leis utilizadas no componente retó-
Componente 1 : rico serão justificáveis, independentemente de seu emprego na des-
descrição semântica crição semântica, e poderiam ser autenticadas, por exemplo, pela psi-
lingüística cologia geral, pela lógica, pela crítica literária, etc. É unicamente atra-
vés de tais demonstraçÇ)es que tornaremos plausível a hipótese · de uma
descrição semântica lingüística das línguas naturais - hipótese esta
A' totalinente arbitrária.

~ DISTINÇÃO ENTRE PRESSUPOSTO E SUBENTENDIDO

Tentaremos esboçar essa demonstração, mantendo-nos no inte-


Componente 2:
Componente retórico rior de um domínio muito lirp.itado. Tratar-se-á de distinguir dois
tipos de efeitos de sentido e de mostrar que é interessante descrever
um deles a partir do componente lingüístico, enquanto o outro exige
a intervenção do componente retórico. Considerem-se os enunciados
Sentido de A no seguintes:
contexto X (1) Se Pedro vier, Jacques partirá.

ESQUEMA 2 (2) Jacques não despreza vinho.


(3) Jacques continua fumando.
A hipótese incorporada a este esquema pressupõe que as circuns- (4) Pedro deu pouco vinho a Jacques.
tânciall da enunciação são mobilizadas para explicar o sentido real de
uma ocorrência particular de um enunciado, somente depois que uma Na maior parte dos contextos imagináveis, uma pessoa, ao ou-
significação tenha sido atribuída ao próprio enunciado, independen- vir (1), concluirá que a vinda de Pedro desencadeia a partida de Jac-
temente de qualquer recurso ao contexto. ques, da qual é a condição suficiente e também necessária, isto é,
que a partida de Jacques está subordinada à vinda de Pedro. Com
Para justificar esta hipótese de forma definitiva, seria necessário, efeito, o indivíduo que enunciasse (1) seria considerado bastante
em primeiro lugar, construir efetivamente os dois componentes (para anormal ou mesmo mentiroso se, ao fazê-lo, não pensasse que:
uma língua, pelo menos), mas nã,p nos encontramos nesse estágio.
Entretanto, se pudermos mostrar que uma descrição semântica orga- (la) Se Pedro não vier, Jacques não partirá.
nizada com base Jl.O segundo esquema pode ser mais satisfatória do Caso contrário seria necessário explicitar que, de qualquer for-
que o seria, caso mantivéssemos 6 primeiro, seria possível, desde já, ma, Jacques provavelmente partiria. É, sem dúvida, este costume lin-
conferir-lhe uma certa verossimilhança. Acreditamos que uma tal des- güístico que dificulta, aos que se iniciam em matemática, distinguir
crição se aproximaria, com melhores condições, do resultado final as condições necessárias das condições suficientes.
desejado (a explicação dos efeitos de sentido constatados de fato), ao
mesmo tempo que o abordaria de forma mais natural. Para salientar Por outro lado, no que concerne ao enunciado (2), é difícil de
este segundo ponto, séria necessário mostrar que é possível atribuir ao aí não perceber a afirmação:

16 17
(2a) Jacques gosta muito de vinho. - pois possui esta propriedade de subsistir quando (4) é transfor-
mado em pergunta ou em negação, ao mesmo tempo que também
Para evitar que o ouvinte chegue a essa conclusão, o locutor
resiste à subordinação (cf. Pedro deu pouco vinho a Jacques, embora
seria obrigado a tomar precauções que acabariam por entulhar seu
lhe tivesse solicitado bem mais).
enunciado, advindo daí falta de fluência, cuja conseqüência seria,
aliás, a de reforçar o efeito de sentido que o locutor desejou suprimir Poder-se-ia procurar em vão, nos subentendidos que tomamos
através das referidas providências. por exemplo, características semelhantes as dos pressupostos. Assim,
construa-se, a partir de (1), a pergunta Será que Jacques partirá, caso
A propósito do enunciado (3), é quase inevitável concluir que
Pedro venha?. Percebe-se que nesse caso a indicação (la) não sub-
não apenas Jacques fuma atualmente, mas que já antigamente ele
siste: "Se Pedro não vier, Jacques não partirá". Quanto a (2), em
fumava. Acrescentemos, pois, ao conteúdo do (3) a indicação:
virtude de sua forma negativa, dificilmente pode ser submetido aos
(3a) Jacques fumava antigamente. testes da negação e da interrogação, mas basta que lhe seja acres-
centada uma oração subordinada para que seja perceptível que o elo
Enfim, o enunciado (4) indica, ao mesmo tempo, que Pedro deu de subordinação incide precisamente sobre a indicação (2a): "Jacques
vinho a Jacques e que, ao fazê-lo, não foi generoso. Justificaremos, gosta muito de vinho". Tal fato indica que não se trata de uma
mais adiante, a diferença entre estes dois elementos semânticos, mas, pressuposição. Em síntese, o fenômeno de pressuposição parece estar
no presente momento, nos limitaremos a anotar o primeiro: em estreita relação com as construções sintáticas gerais - o que
(4a) Pedro deu vinho a Jacques. fornece uma primeira razão para tratá-lo no componente lingüís- ·
tico on~e, evidentemente, deveria ser descrito o valor semântico des-
Presentemente, defender-se-á agora a tese de que existe uma di- sas coristruções. O mesmo argumento não pode ser empregado, tra-
ferenca entre as indicações (la) e (2a) por um lado, as quais chama- tando-se dos subentendidos, pois a relação com a sintaxe é bem mais
remo; de subentendidos, e as indicações (3a) e (4a), que denominare- difícil de aparecer.
mos pressupostos. Um primeiro critério que permite esta classificação
deriva do comportamento muito particular assumido pelos pressupos- Como, então, caracterizar o subentendido de forma positiva?. Um
tos no momento em que o enunciado que os veicula é submetido a primeiro traço observável consiste no fato de que existe sempre para
certas modificações sintáticas, tais como a negação ou a interrogação. um enunciado com subentendidos, um "sentido literal" do qual tais
Ducrot (1968, p . 38-41 e 46-48) mostra que os pressupostos de um subentendidos estão excluídos. Eles parecem ter sido acrescentados.
enunciado continuam a ser afirmados pela negação deste enunciado Se, após afirmar que Jacques não despreza vinho, sou acusado de
ou por sua transformação e!I! pergunta. Assim, em todas as suas maledicência, sempre poderei proteger-me por trás do sentido literal
ocorrências imagináveis, os enúnciados Será que Jacques continua fu- de minhas palavras e deixar a meu interlocutor a responsabilidade
mando?, e E falso que Jacques continua fumando continuam man- da interpretação que delas faz. E, aliás, desta possibilidade de reti-
tendo, tal como o faz (3), que Jacques fumava antigamente. Observe- rada que advém toda a vantagem do enunciado (2) em relação à
se ainda que, quando (3) é introdu~do a título de proposição ele- afirmação direta de (2a) . De acordo. com uma expressão familiar, o
mentar em uma , frase complexa (por exemplo, Pedro continua fuman- subentendido permite acrescentar alguma coisa "sem dizê-la, ao mesmo
do, ainda que o médico lhe tenha proibido o cigarro), o elo de subor- tempo em que ela é dita". Apesar de algumas analogias, a situação
dinação - no presente caso, a conexão - não se refere ao elemento é bastante diferente para o· pressuposto. Este pertence plenamente ao
pressuposto (3a), mas apenas ao resto do conteú~o de (3), que cha- sentido literal. Seria muito fácil demonstrá-lo, tomando o exemplo (4)
mamos de conteúdo posto, ou seja, afirma-se que Jacques fuma atual- que perde toda significação ou, mais exatamente, toda capacidade
mente. E, aliás, este comportamento particular frente à negação, à informativa se seu pressuposto (4a) não for admitido. O enunciado
interrogação e à subordinação que nos autoriza a distinguir, no sen- (3) é ainda mais interessante, pois nele o posto "Jacques fuma atual-
tido global de (4), o elemento (4a) - "Pedro deu vinho a Jacques" mente", pode ser compreendido e aceito mesmo que seu pressuposto

18 19
"J;1cques fumava antigamente" não seja admitido. Isto não impede que terior refletir sobre o referido enunciado. Ao contrário, o pressuposto
este pressuposto seja concebido, no ato de discurso, como inerente ao e, co~ mais razão ainda, o posto apresentam-se como contribüições
próprio enunciado. Se meu interlocutor puder provar-me que Tacques próprias do enunciado (mesmo que, no caso do pressuposto, esta
nunca fumou, não disponho de nenhum recurso para isentar-me de contribuição se restrinja à lembrança de um conhecimento passado).
minha responsabilidade e ser-me-á muito difícil não reconhecer meu Eles se apresentam como se tivessem sido escolhidos concomitante-
erro. Certamente o pressuposto não pertence ao enunciado da mes- mente ao enunciado e empenham, a seguir, a responsabilidade daquele
ma forma que o posto. Contudo, também ele lhe pertence - em- que escolheu o enunciado (mesmo que, no caso do pressuposto, o
bora isso ocorra de· um outro modo. locutor tente partilhar esta responsabilidade com o ouvinte, disfarçando
Para descrever este estatuto particular do pressuposto, seria pos- o que diz sob a aparência de uma crença comum). Entregando, pois, a
sível dizer (cf. Ducrot, 1968, p. 40) que ele é apresentado como uma pesquisa dos pressupostos ao componente lingüístico - que trata do
evidência, como um quadro incontestável no interior do qual a con- próprio enunciado, sem considerar suas condições de ocorrência
versação deve necessariamente inscrever-se, ou seja, como um ele- enquanto os subentendidos seriam previstos por um componente re-
mento do universo do discurso. Introduzindo uma idéia sob forma de tórico - que leva em conta as circunstâncias da enunciação - fa-
pressuposto, procedo como se meu interlocutor e eu não pudéssemos zemos justiça a um certo sentimento ou, pelo menos, a uma certa
deixar de aceitá-lo. Se o posto é o que afirmo, enquanto locutor, se pretensão dos falantes. Esta é uma segunda razão - que, aliás, seria
o subentendido é o que deixo meu ouvinte concluir, o pressuposto bastante insuficiente, caso fosse considerada isoladamente - para
é o que apresento como pertencendo ao domínio comum das duas distinguir estes dois componentes.
personagens do diálogo, como o objeto de uma cumplicidade funda- Dissemos que o subentendido só toma seu valor particular ao
mental que liga entre si os participantes do ato de ~omunicação. Em opor-se a um sentido literal do qual ele mesmo se exclui. Como, nes-
relação ao sistema dos pronomes poder-se-ia dizer que o pressuposto sas condições, julga-se que o ouvinte deva descobri-lo?. É preciso que
é apresentado como pertencendo ao "nós", enquanto o posto é rei- isto ocorra através de um procedimento discursivo, isto é, através de
vindicado pelo "eu", e o subentendido é repassado ao "tu". Ou, ainda, uma espécie de raciocínio. Mas, a esse propósito, uma objeção poderá
se as imagens temporais forem preferidas, é possível dizer que o ser feita: sobre o que este raciocínio pode fundar-se?. Pois, se a ope·
posto se apresenta simultaneamente ao ato da comunicação, como se ração consiste em retirar do enunciado as conclusões nele implicadas,
tivesse surgido pela primeira vez, no universo do discurso, no mo- é difícil de compreender como o locutor poderia rejeitar a responsa-
mento da realizacão desse ato . O subentendido, ao contrário, ocorre bilidade do subentendido: à medida que o subentendido fosse dedu-
em momento pos,terior a esse ato, como se tivesse sido acrescentado zido do sentido literal, não seria possível, ao mesmo tempo, reivin-
através da interpretação do ouvinte; quanto ao pressuposto, mesmo dicar esse sentido literal e recusar as conseqüências que ele acarreta.
que, de fato, nunca tenha sido introduzido anteriormente ao ato de Basta, aliás, por um mome11to, considerar os dois exemplos de su-
enunciação (como se o ouvinte não soubesse, antes da formulação do bentendido que utilizamos para verificar que não decorrem, de forma
enunciado (3), que Jacques fumava antigamente), ele procura sempre alguma, do sentido literal dos enunciados que os veiculam. No caso
situar-se em um passado do conhecimento, eventualmente fictício, ao de (1), seria mesmo necessário um erro muito grosseiro de raciocínio
qual o locutor parece referir-se. (a confusão entre um julgamento e sua recíproca) para deduzir do
enunciado - o qual estabelece uma condição suficiente - seu suben-
Através destas metáforas, que tentam descrever como o posto,
o pressuposto e o subentendido são vivenciados na experiência da tendido habitual - que sugere uma condição necessária. E nada
comunicação, uma profunda opo::!ição se estabelece entre os dois pri- autoriza a considerar o ilogismo como um princípio explicativo dos
meiros, por um lado; e o terceiro, por out~o. Ocorre que o suben- fatos de língua.
tendido reivindica a possibilidade de estar ausente do próprio enun- Na realidade, é possível colocar, na origem dos subentendidos,
ciado e de somente apat:ecer quando um ouvinte, num momento pos- um procedimento discursivo perfeitamente compatível com as leis da
20 21
lógica (embora ela ofereça apenas uma verossimilhança e nenhuma Chegar-se-ia a uma conclusão análoga, analisando o exemplo (1).
certeza) e que permite, por outro lado, compreender que o locutor Observe-se, inicialmente, que o ouvinte, em geral, tende a supor úteis
possa recusar-se a assumir sua responsabilidade. Para tanto, basta co- todas as precisões contidas nas mensagens que lhe são dirigidas. Ele
locar, na base deste procedimento, não apenas o próprio enunciado, supõe, de alguma forma, que o locutor observa, na escolha de seu
mas sua enunciação, ou seja, o fato de que o enunciado é utilizado enunciado, uma espécie de lei de economia. Se é afirmado, a propó-
em um momento determinado em circunstâncias específicas. O racio- sito de uma pessoa, que ela gosta de romances policiais, o ouvinte
cínio do ouvinte poderia então explicitar-se por uma fórmula tipo: se inclina-se a concluir, para justificar a precisão trazida pela palavra
alguém julga que é adequado dizer-me isso é, sem dúvida, porque "policiais", que ela gosta pouco, ou menos, de outros romances. Pois,
pensa aquilo. Retomemos nossos exemplos, iniciando pelo enunciado se gostasse igualmente de todos os romances, qual seria a utilidade
(2): Jacques não despreza vinho. Embora possamos facilmente cons- em acrescentar essa determinação, considerando que seu interesse por
tatar aqui um caso particular de litotes, não basta alegar a existência · romances policiais se deduziria, a título de- caso particular, de seu
dessa figura para obter ipso-jacto a explicação desejada, pois existem interesse geral pelos romances. Pela mesma razão, ao dizer que al-
muitos enunciados que, praticamente, nunca subentendem sua própria guém está de bom humor pela manhã, sugiro que o mesmo não lhe
ampliação. "Folheei este livro, "Algumas pessoas estavam lá", "Não ocorre durante o resto do dia. Certo ou errado, o ouvinte procede
me oponho a encontrar Pedro" subentendem apenas em casos excep- como se o locutor lamentasse suas palavras. A partir desta constata-
cionais que li o livro, que havia uma multidão ou que desejo encon- ção geral, é possível explicar sem muita dificuldade o subentendido
trar-me com Pedro. Na realidade, o ouvinte procura por uma litotes de (1). Assinale-se, inicialmente, sem no entanto demonstrá-lo aqui,
apenas quando a utilização de um enunciado mais forte apresentaria que o se em muitas línguas difere bastante da relação lógica de impli-
alguma coisa deslocada, inconveniente, repreensível. Se X e X' con- cação: sua função primeira é de solicitar ao ouvinte que faça uma
sistem em dois enunciados situados sobre uma mesma escala de sig- certa hipótese, que se coloque frente a uma certa eventualidade, no
interior da qual, a seguir, uma certa afirmação é apresentada e ex-
nificação 2 , se o segundo distingue-se do primeiro unicamente porque
pressa na oração principal. Após essa explicitação podemos retornar
ele ocupa um grau superior desta escala, e se, por outro lado, uma
a nosso exemplo. Para que (1) seja utilizado, anuncia-se a partida de
regra de conveniência se opõe ou parece opor-se ao emprego de X', Jacques somente após ter solicitado ao interlocutor que elabore a hipó-
o ouvinte, ao ouvir X, tende a interpretá-lo como X'. No caso de (2), tese prévia da vinda de Pedro. No entanto, se Jacques devesse partir
haveria certa maledicência ou, melhor, alguma brincadeira tradicio- de qualquer forma ou, simplesmente, se ele devesse partir mesmo que
nal estaria simulando uma certa maledicência no enunciado direto Pedro não viesse, por que subordinar o aviso de sua partida à lem-
Jacques bebeu muito. É por essa razão que temos a tendência, ao brança da chegada de Pedro? . Dito de outra forma: ou é inútil, para
ouvir (2), de tomá-lo como substituto de (2a). O raciocínio do ouvinte afirmar a partida de Jacques, vislumbrar a eventualidade apresentada
(raciocínio que pode, aliás, como no exemplo de que nos ocupamos, na subordinada condicional ou, então, é preciso que esta eventuali-
tornar-se quase automático e cristalizar-se em uma espécie de institui- dade seja indispensável à afirmação colocada na principal. Se meu
..
ção) deve então ser reconstituído como segue: Meu interlocutor não
tinha o direito de dizer (2a); assim, se ele disse (2), que representa
interlocutor insistiu em subordinar a enunciação da partida à enun-
ciação da vinda e se, por outro lado, julga-se que ele não fala em vão,
o enunciado admissível que mais se aproxima de (2a), existem possi- posso concluir, com certa verossimilhança, que para ele o evento da
bilidades de que tenha pensado (2a). Trata-se, de fato, de um racio- partida está subordinado ao da vinda. Tanto nesse exemplo, como no
cínio, mas baseado, pelo menos, tanto sobre a enunciação quanto precedente, um raciocínio. - realizado sobre o ato da enunciação -
sobre o conteúdo enunciado. pode ser considerado o responsável pelo subentendido.
2. Isso remete à suposição de que a língua comporta tais escalas, ou seja, que Contrariamente a certas aparências, o mesmo não ocorre com o
pelo menos alguns de seus paradigmas são graduados. pressuposto. A repartição do conteúdo de um enunciado em posto e

22 23
pressuposto possui efetivamente esta arbitrariedade característica dos ciado, bem como aos fenômenos sintáticos gerais, um produto do com-
fatos de língua, e não pode ser justificada por nenhum raciocínio. Cer- ponente lingüístico . O subentendido, ao contrário, resulta de uma
tamente, pautando-nos pelo bom senso, se afirmamos que Jacques deu reflexão do destinatário sobre as circunstâncias de enunciação da men-
a Pedro somente uma pequena quantidade de vinho, somos obrigados sagem e deve ser captado, através da descrição lingüística, ao final
a pressupor que Jacques deu vinho. Mas, compare-se (4) a (4'): de um processo totalmente diferente, que leve em conta, ao mesmo
(4') Pedro deu um pouco de vinho a Jacques. tempo, o sentido do enunciado e suas condições de ocorrência e lhes
aplique leis lógicas e psicológicas gerais.
Também neste novo enunciado afirma-se que uma certa quan-
tidade foi oferecida e que esta quantidade é pequena. Mas, contra- A ANTERIORIDADE DO PRESSUPOSTO
riamente ao que ocorre com (4), aqui as duas indicações não são mais
dissociáveis. Submetendo (4') às transformações negativa e interroga- Em nossa opinião, os argumentos que acabam de ser apresenta-
tiva, ambas são negadas ou questionadas por· inteiro 3 • O destinatário dos justificam nossa decisão de átribuir a dois componentes diferen-
do enunciado (4) não tem, assim, nenhum motivo (a não ser seu co- tes da descrição semântica o cálculo dos pressupostos e dos subenten-
nhecimento da língua) para nele descobrir o pressuposto (4a), pois didos. Mas o esquema 2 apresenta maiores implicações, pois sugere
os mesmos motivos o levariam a descobrir este mesmo · pressuposto que a descoberta dos pressupostos, a cargo do componente lingüís-
·em (4'), onde ele não se encontra como tal. tico, é anterior àquela dos subentendidos. Para legitimá-lo totalmente,
O mesmo poderia ser dito a propósito do exemplo (3). O bom seria preciso, pois, mostrar ainda que o conhecimento dos ele~entos
semânticos pressupostos é um pré-requisito necessário à pesqutsa dos
senso, nesse caso, também sugere que, para afirmar que alguém conti-
nua a fumar é preciso, logicamente, que já o fizesse anteriormente. subentendidos e que os pressupostos encontram-se entre os dados que
Mas, assim como ocorreu em (4), a repartição do posto e do pressu- devem ser fornecidos à entrada do componente retórico.
posto, ainda aqui, decorre da arbitrariedade lingüística. Para con- Tomemos, como primeiro exemplo, o enunciado:
vencer-se, basta imaginar um verbo, de fato inexistente, em portu-
guês, mas totalmente possível, que determinaria o que continuar pres- (5) Se Pedro tivesse vindo, Jacques teria partido.
supõe, e inversamente. Chamemos esse verbo de pertinuar. Jacques Na maior parte de suas ocorrências, ele veicula as três infor-
pertinua a fumar pressuporia, então, que Jacques fuma atualmente e mações que seguem:
colocaria, a título de informação nova, que o faz há muito tempo.
Jacques pertinua a fumar?. Manteria, como uma evidência, que Jac- (5a) A vinda de Pedro implicava a partida de Jacques.
ques fuma e indagaria se isso é um hábito ou uma novidade. Ou, (5b) Pedro não veio .
ainda, Jacques não pertinua a fumar negaria o fato de que Jacques
seja um fumante inveterado, ao mesmo tempo que reconheceria que (5c) Jacques não partiu.
ele fuma atualmente. A existência possível deste verbo imaginário, Por outro lado,. fica claro que os elementos semânticos (5a), (5b)
bem como a existência real de r:.m ·pouco, I!lOStra que a detecção e (5c) têm estatutos muito diferentes. Reconhecer-se-á, sem dificul-
de pressupostos não está ligada a uma reflexão individual dos falan-
dade, em (5a) um conteúdo posto. Já no que diz respeito a (5b), ele
tes, mas está inscrita na língua. Esta é uma nova razão para conferir
um estatuto radicalmente diferente ao subentendido e ao pressuposto. possui todas as características que atribuímos aos p~essupostos. Veri-
Esta diferença pode ser representada caso a descrição semântica seja ficar-se-á, sobretudo, que resiste à interrogação e à negação. Em
dividida em dois componentes - o lingüístico e o retórico. Parece, compensação, o mesmo não ocorre com (Se), que pode desaparecer
I .
com efeito, .razoável fazer do pressuposto, ligado ao próprio enun- com a interrogação. Assim, (5') Será que, se Pedro tivesse vindo, Jac-
ques teria partido? - pode freqüentemente ser empregado em um
3. A propósito de peu (pouco) e de un peu (um pouco), ver Martin (1969). contexto em que os dois interlocutores sabem que Jacques partiu.

24 25
Nesse caso, (S') toma aproximadamente o mesmo valor de Será que, subentendidos. Uma última análise - que tomamos emprestada, mo-
mesmo que Pedro tivesse vindo, Jacques teria partido? - enunciado dificando-a ligeiramente, a um estudo sobre pouco e um pouco [peu
que afirma sempre (estaríamos tentados a dizer: pressupõe) a partida e un peu] * - buscará ressaltar essa necessidade.
de Jacques. Trata-se, nesse caso, de uma diferença muito clara entre
Seja o enunciado:
(S') e (S). Quando se acredita na partida de Jacques, não é possível
empregar (S); conseqüentemente, esse último enunciado quase nunca (6) Tivemos pouca sorte.
é equivalente a "Mesmo que Pedro tivesse vindo, Jacques teria par- Em um certo número de situações, o ouvinte perceberá nele o
tido". O elemento semântico (Se), geralmente presente em (S), mas seguinte subentendido:
ausente em (S') - transformação interrogativa de (S) - não pode,
pois, passar por um pressuposto. Da mesma forma, ele . não pode ser (6a) Não tivemos absolutamente nenhuma sorte.
considerado como posto e colocado sobre o mesmo plano de (Sa) , (6) será, então, considerado um simples substituto, educado e
pois não decorre do sentido literal de (5). Caso objetemos à pessoa fleugmático, de (6a). Este efeito de sentido não parece, inicialmente,
que empregou (5) que Jacques partiu, ela poderá sempre defender-se, colocar nenhuma dificuldade. Basta reconhecer aí o produto de uma
alegando que nunca disse o contrário. Este critério permite-nos reco- litotes muito banal, que leva a ler em um enunciado fraco um enun-
nhecer em (Se) um subentendido absolutamente clássico. ciado mais forte, ao qual se oporiam certas coerções sociais. Da mes-
ma forma, poder-se-á explicar, generalizando, que pouco, seguido de
Uma vez estabelecido o estatuto dos três elementos semânticos
um adjetivo, serve muito freqüentemente para disfarçar uma negação
geralmente veiculados por (5), resta-nos mostrar como o subenten-
(cf. "pouco trabalhador", "pouco interessante", etc) .
dido (Se) é produzido a partir dos dois outros, o que justificaria o
fato de confiarmos ao componente lingüístico a descrição de (Sa) e Contudo, a situação revela-se mais complicada quando um pa-
(Sb) e, ao componente retórico, que leva em consideração os resul- ralelo entre (6) e (7) é estabelecido:
tados oriundos do componente lingüístico, apenas a descrição do su- (7) Tivemos um pouco de sorte.
bentendido (Se). Para fazê-lo, necessitaremos inicialmente, desta lei
Novamente, e em numerosos casos, aparece um subentendido do
de economia que já foi empregada anteriormente para explicar o tipo:
subentendido de (1). Já que o locutor entendeu só poder falar na
partida de Jacques, considerando a hipótese da vinda de Pedro, o (7a) Tivemos muita sorte.
ouvinte tem algum motivo para concluir que aquela partida está su- Como no caso precedente, é natural recorrer a uma litotes para
bordinada a essa vinda. É exatamente o mesmo raciocínio que havía- explicar este novo efeito de sentido . Da mesma forma, não será difí-
PlOS considerado como responsável pelo subentendido de (1) . O fato cil compreender que um pouco, seguido de um adjetivo, serve fre-
novo no presente caso é que (5) pressupõe (Sb): "Pedro não veio". qüentemente para dissimular uma afirmação embaraçosa (cL, "um
Se este pressuposto for combinado com a idéia de que a vinda de pouco preguiçoso", "um pouco enfadonho", etc). Fica, no entanto, por
Pedro é necessária à partida de<~Jacques, é natural concluir que Jac- explicar que o efeito de litotes é diametralmente oposto no caso de
ques não partiu, o que constitui exatamente o subentendido, cuja ex- pouco e no de um pouco, pois ela conduz a primeira expressão em
plicação buscávamos. direção à negação, levando a segunda a reforçar a afirmação. Dispo-
mos, assim, de duas expressões que marcam uma quantidade fraca,
Se, por um lado, o exemplo que precede mostra bem que a de- ocorrendo, no entanto, que esta mesma quantidade torna-se, por ve-
terminação dos subentendidos leva em conta um conhecimento pré- zes, o signo de uma ausência e, em outras, ao contrário, mostra-se o
vio dos pressupostos, por outro lado, ele ainda não salienta que estes signo de uma quantidade mais importante.
pressupostos devem ser reconhecidos como tal e distinguidos dos ele-
mentos postos, antes que o componente retórico possa dar conta dos * Este estudo, de 1970, foi retomado em Ducrot (1972, Cap. Vll).

26 27
Se lembrarmos o que foi dito mais acima a propósito de pouco e Desta longa anális~,_ reteremos que as leis "psicológicas", cons-
de um pouco, uma solução mostra-se possível. Dissemos que o enun- titutivas, juntamente com outras, do componente retórico, serão de-
ciado (4) -Pedro deu pouco vinho a Jacques- veicula, como pres- terminadas ma,is facilmente se o conteúdo dos enunciados apresenta-
dos nesse componente já tiver sido anteriormente analisado ·em ele-
suposto, que Pedro deu vinho e, como posto, indica que uma pe-
mentos semânticos postos e pressupostos. Em lugar de propor duas
quena quantidade de vinho foi oferecida. Em troca, (4') -Pedro deu
leis diferentes de litotes para dar conta dos efeitos de sentido opostos
um pouco de vinho a Jacques - tem como posto a existência desta produzidos por (6) e (7), um dirigindo-se para a afirm,aç~o e ~ outro
niesma quantidade, que é apenas presstfposta em (4). Resta-nos, pre- para a negação, poderemos contentar-nos com uma umca let - o
sentemente, para obter a explicação desejada, reformular a lei de que não só é mais económico, mas parece mais nat.u:_al ~: Entreta~to,
litotes de tal forma que ela se refira unicamente aos conteúdos pos- para isso, é preciso que o fenômeno da pressupos1çao Ja te~a stdo
tos, excluindo-se os pressupostos. Ela estipularia que, para exprimir desvelado a partir dos dados lingüísticos submetidos a esta le1. É uma
de {orma atenuada a significação de uma frase A, pode-se utilizar razão. a mais para pensar que a determinação dos pressupostos de-
uma frase B, cujo conteúdo posto (e não o conteúdo pressuposto) é corre de uma análise não apenas diversa daquela que descobre os
menos forte do que o de A. Se assim é, a expressão um pouco de, subentendidos, mas que também a precede.
que tem como posto a existência de uma certa quantidade (fraca),
tende a insinuar a existência de uma quantidade mais forte. Em PRESSUPOSTOS E INTERSUBJETIVIDADE
sentido contrário, a expressão pouco cujo posto é a limitação, deverá,
Permitam-nos, para terminar, indicar uma das conseqüências, em
quando interpretada como litotes, sugerir uma ausência total. Uma
uma teoria lingüística geral, da distinção do pressuposto (fato de lín-
formulação um pouco diversa deste mesmo resultado levaria a afir-
gua) e do subentendido (fato de fala). Costuma-se pensar, e isto pode
mar, considerando-se unicamente os conteúdos postos, que, na língua,
parecer natural, que a confrontação dos indivíd~os através da lin~~­
pouco e um pouco não pertencem à mesma categoria semântica: uma
gem - da qual a polêmica é um exemplo. partlcular e, talvez, pnvt-
decorre da categoria da restrição, enquanto a outra, da categoria da
afirmação: legiado - é antes de mais nada um fato de discurso~ um e~unciad?,
enquanto tal, (isto é, independentemente de seu emprego) nao estana
Categoria da Restrição investiâo de nenhuma função polêmica, ou, mais geralmente, inter-
Categoria da Afirmação
subjetiva, específica. É unicamente a enunciação do enunciado, sua
Muita sorte Absolutamente nenhuma sorte escolha em uma situação particular, que lhe conferiria tal valor.
Sorte Nenhuma sorte A es.ta concepção pode-se objetar facilmente a existência, na
Um pouco de sorte língua, de todo um vocabulário polêmico: as palavras injuri~sas o.u
Pouca sorte
simplesmente pejorativas não podem ser descritas sem fazer .m.ter_vlt
uma espécie de "função erística ", que constitui seu traço distl~tivo
Tal como a apresentamos levaq,do em conta a diferença entre
em relação às palavras "neutras" correspondentes. Mas trata-se, {mal-
posto e pressuposto - a lei de litotes aplica-se apenas no interior
mente, de um fenômeno localizado que, se o desejarmos, podemos con-
de cada uma destas duas categorias e conduz um termo a subentender
siderar marginal e secundário. Uma objeção muito mais impol;'tante
um termo superior da mesma categoria. Conseqüentemente, as ex-
é sugerida pela existência do sistema dos pronomes, cujas implicações
pressões pouca sorte e um pouco de sorte, embora sendo dotadas
globahnente de conteúdos semânticos equivalentes, não repartem o * Atualmente teria enormes restrições em justüicar um modelo .porque ele
posto e o pressuposto da mesma forma, o mesmo ocorrendo com a representa ~s fatos de forma "natural" ou "intuitiva". A intuiçã~ pode serv~
lei de litotes que, aplicada a estas expressões, produzirá subentendi- p~a apreender os dados, mas não lhe compete julgar a relaçao entre tats
.dos diametralmente diferentes. dados e a teoria.

28 29
intersubjetivas foram sublinhadas por Benveniste, e que acaba por
projetar as relações do discurso no próprio interior dos paradigmas da
língua.
E a uma conclusão semelhante 'que deveria conduzir a distinção
entre pressuposto e subentendido, pois a repartição do conteúdo dos Capítulo II
enunciados em elementos semânticos postos - cuja responsabilidade
é endossada pelo locutor - e em elementos semânticos pressupostos
- cuja responsabilidade o locutor partilha com o ouvinte - detém,
antes de mais nada, uma função polêmica. Quando se tenta definir PRESSUPOSTOS E SUBENTENDIDOS
a pressuposição que, conforme procuramos mostrar, não responde a (REEXAME) *
nenhuma necessidade lógica, é-se levado a considerar que ela possi-
bilita aprisionar o ouvinte em um universo intelectual que ele não
escolheu, mas que lhe é apresentado como coextensivo ao próprio Gostaria de apresentar aqui uma espécie de autocrítica (ou, para
diálogo. Esse universo não pode mais ser negado nem questionado sem empregar uma expressão academicamente melhor vista, um reexame),
que o referido diálogo seja rejeitado em sua totalidade. Agora, se o explicando por que abandonei, ou melhor, desloquei a oposição que
pressuposto, diferentemente do subentendido, não é um fato de retó- eu estabelecia, a partir de um artigo publicado com esse título em
rica ligado à enunciação, mas inscreve-se na própria língua, é pre- 1969, entre "pressupostos" e "subentendidos"**. Espero, ainda assim,
ciso concluir que a língua, independentemente das utilizações que introduzir aqui e ali, nesta confissão, algumas palavras de lingüística.
dela podem ser feitas, apresenta-se, fundamentalmente, como o lugar
Não posso partir de uma definição do pressuposto e do suben-
do debate e da confrontação das subjetividades. tendido, pois isto seria supor resolvido o problema que é o meu aqui:
(Tradução: Freda Indursty) é justamente a uma definição que eu quero chegar. Tudo que posso
fazer, inicialmente, é dar um exemplo que servirá de xeferência a
seguir. Para maior facilidade, tomarei um exemplo muito conhecido.
Imaginemos um enunciado da frase Pedro parou de fumar. Diremos
que este enunciado ** 1' :
a) Põe que Pedro não fuma atualmente.
b) Pressupõe que ele fumava anteriormente.
Por outro lado, se esse enunciado é destinado a relembrar a um
fumante inveterado sua covardia, pode ser que ele veicule subenten-
didos como "Com um pouco de coragem, pode-se chegar lá" , "Pedro
tem mais força de vontade que você" . . . etc.

* Este capítulo retoma, com ligeiras modificações, o texto de uma confe-


rência feita em Lyon, em maio de 1977, texto publicado em Estratégias
discursivas, Presses Universitaires de Lyon, 1978, p. 33-43.
** Artigo retomado no Cap. I.
*** As palavras "frase" e "enunciado" têm aqui a acepção exposta detalhada-
mente no Cap. VIII § 3-6. A frase é uma entidade gramatical abstrata,
e o enunciado é uma realização particular da frase. O sentido é o valor
semântico do enunciado, a significação, o valor semântico da frase.

30 31
Suporei que meu exemplo foi suficiente- para lembrar que tipo é a tese que eu vou reexaminar - a oposição pressuposto-subentendi-
de fenômeno remete ao pressuposto e qual ao subentendido. Mediante do reproduziria a distinção dos dois níveis semânticos, o da signifi-
essa suposição, posso abandonar as pr~li~nares e <:>meçar a expor cação (frase) e o do sentido (enunciado): pressuposto e subentendido
0
que eu chamarei de "concepção antiga das r~laçoes pressuposto- se opõem pelo fato de não terem sua origem no mesmo momento
subentendido, quer dizer, aquela que vou reexammar. de interpretação.
A idéia central era que os pressupostos suscitados por um enun- Essa tese é explicável - senão justificável - por diversas ra-
ciado estão determinados, e determinados unicamente,. t:ela frase da zões. Em primeiro lugar, é necessário lembrar por que o pressuposto,
qual este enunciado é a realização. Essa tese se subdivide em duas na literatura filosófica, é geralmente descrito como uma condição de
proposições: emprego. Em outras palavras, toma-se como característica fundamen-
tal do pressuposto a seguinte observação. Se o enunciado E contém
1 . A significação da frase pode implicar a existência, no se~ti~o
o pressuposto X e, se, na situação na qual E aparece, não se verifica
de seus enunciados, deste ou daquele pressuposto (esta proposiÇao,
X, tem-se a impressão, não propriamente de uma falsidade, mas de
eu a mantenho - com algumas reservas). uma anomalia, de um emprego fora de propósito. Então é bem evi-
2. Todos os pressupostos que aparecem no sentido do enunciado dente que as condições de emprego só podem caracterizar a frase:
estão já previstos na própria significação da frase (é esta segunda referem-se às circunstâncias, que possibilitam ou impossibilitam que
proposição, sobretudo, que discuto). a frase se transforme em enunciado. Não haveria nenhum sentido em
falar das condições de emprego do enunciado, já que o próprio enun-
Em resumo, o pressuposto, de acordo com a "concepção antiga", ciado é um emprego. Resulta disso que o pressuposto pertence antes
se transmite sempre da significação para o sentido. Poder-se-ia mes- de tudo à frase: ele é transmitido da frase ao enunciado na medida
mo dizer que ele está escrito na significação se não se d~vesse levar em que esse deixa entender que estão satisfeitas as condições de
em consideração certas especificações que estão necessanamente au- emprego da frase do qual ele é a realização. De minha parte, tendo
sentes da frase (cf., no meu exemplo, a especificação do tempo no seguidamente criticado a definição do pressuposto como condição de
qual se situa o fato pressuposto: é passado, mas em relação a qual emprego, deveria ser pouco sensível a esse tipo de motivações; mas,
presente?). Inversamente, o subentendido ' se caracteriza pelo ~ato d: de fato, mesmo criticando esta definição, não era fácil livrar-se de
que, sendo observável em certos enunciados ?e uma fr~se, nao esta todas as implicações que ela comporta e nas quais a noção de pres-
marcado na frase. Essa situação do subentendido se exphca pelo pro- suposição estava, por assim dizer, envolta (por vezes é complicado
cesso interpretativo do qual ele provém. Para mim, com efeito, ele é comer o bombom sem o papel).
sempre gerado como resposta a perguntas do tipo: "Por que o locutor
disse o que disse?", "O que tornou possível sua fal~?" .. ~m outras Um segundo tipo de considerações levaria à tese que eu quero
palavras, uma condição necessária (mas, certamente, msuficiente) pa- colocar em questão. Trata-se dos critérios utilizados classicamente
ra que um enunciado E subentenda X, é que X apareça cor.?o .uma para deduzir o fenômeno da pressuposição. Sabe-se que se tratam, an-
explícação de sua enunciaçã.p. Se, no meu exemplo de referencia, o tes de tudo, da negação e da interrogação. Os pressupostos de uma
enunciad~ "Pedro parou de fumar" subentende ")! possível parar", asserção são conservados quando essa asserção é transformada em
é na medida em que admite que uma das razões que levaram ~ pro- negação ou em interrogação (dizendo-se "Pedro deixou de fumar",
duzir esse enunciado era o desejo de comunicar essa observaçao ao mantém-se que ele fumava anteriormente). Deverá ter sido notado
destinatário. Então, se o subentendido é resposta a uma pergunta so- que acabo de empregar a expressão "os pressupostos de uma asser-
bre as condições de possibilidade da enunciação, é bem evidente que ção". Trata-se de uma hipocrisia ou, em termos lingüísticos, de uma
só pode aparecer no momento dessa enunciação, e que. conseqüente- neutralização, para evitar ter que escolher entre as expressões "frase
mente depende do próprio enunciado: pertence ao sentido sem estar assertiva" e "enunciado assertivo". Se agora deixo de lado essa hipo-
antecipado ou prefigurado na significação. Assim - pelo menos essa crisia, a expressão que devo escolher é incontestavelmente "frase".

32 33
Não faz nenhum sentido falar de transformações negativas ou inter- consolar. Enfim, não tenho necessidade, para atingir um objetivo per-
rogativas feitas a partir da realidade instantânea que é o enunciado. locutório, de me apresentar como pretendendo esse fim; posso con-
Essas transformações só podem afetar o ser abstrato atemporal, infi- solar sem apresentar minhas palavras como consoladoras, enquanto
nitamente reprodutível, que é a frase: uma formulação cuidadosa não posso interrogar sem dar a entender ao mesmo tempo que inter-
dos critérios clássicos seria: pfira que a frase P pressuponha X, é rogo. Parece-me, então, incontestável que há, no perlocutório, uma
necessário que todos os enunciados de P veiculem X e que X esteja
relação privilegiada entre o ato e a fala: é constitutivo do ato ilocutó-
contido também em todos os enunciados das frases interrogativas e
rio atribuir à fala um poder intrínseco.
negativas construídas a partir de P. Eu pude me livrar facilmente mais
acima do argumento inferido, em favor da "teoria antiga", a partir Mas esse fato, que não discutirei, levou-me a tirar uma conclusão
de uma definição da pressuposição como condição de emprego - bastante discutível, a introduzir a idéia de que o agente de um ato
já que rejeito essa definição. Será muito difícil livrar-me do argu-
ilocutório atribui à própria frase que pronuncia o poder que· reivin-
mento inferido da negação e da interrogação, pois se trata aqui de
dica somente, em realidade, para sua enunciação dessa frase: passei,
fatos incontestáveis que constituem uma das mais sólidas motivações
em outras palavras, da idéia de que o ilocutório reivindica uma efi-
para a noção de pressuposição.
cácia enquanto fala, para a idéia de que ele se apóia numa eficácia
Antes de tomar posição sobre esse ponto, passo a um terceiro própria das palavras, quer dizer, do material utilizado na fala . O que
tipo de considerações, relacionado à noção de ato ilocucional. Por di- leva a concluir que o ilocutório está, por definição, inscrito na fra-
ferentes razões, fui levado (e isso, ao menos, não lamento) a descre- se. Se se lembrar que apresento a pressuposição como um ato ilo-
ver a pressuposição como um ato de fala , mais precisamente como
cutório, vê-se como a concepção do ilocutório, da qual acabo de falar,
um ato ilocutório, análogo ao de interrogação, de ordem, de asserção,
constitui uma terceira via que conduz à conclusão que gostaria de
etc. Ora, por ouro lado, eu estava, na época, inclinado a caracterizar
o ilocutório, por oposição ao perlocutório, por sua inerência à frase. colocar em questão aqui. Foi-se levado a colocar o poder pressuposi-
Partia de uma definição do ilocutório - que não tenho nenhuma cional na frase, e a pensar que ele é transmitido da frase ao enun-
intenção de abandonar - de acordo com a qual realizar um ato ilo- ciado. Em oposição, os subentendidos seriam colocados no mesmo
cutório é apresentar suas próprias palavras como induzindo, imedia- plano que o perlocutório e ligados às circunstâncias da enunciação.
tamente, a uma transformação jurídica da situação: apresentá-las, por Isso traz conseqüências um pouco paradoxais. Suponhamos que eu
exemplo, como criadoras de obrigação para o destinatário (no caso utilize, para pedir-lhe que feche a janela, a frase interrogativa "Pode
da ordem ou da interrogação), ou para o locutor (no caso da pro- fechar a janela?". Fica claro que o pedido não está, nesse caso, ins-
messa). Não se pode interrogar se não se atribui ao que se diz o poder crito na frase. Ele só pode ser um subentendido produzido por um
imediato, pelo fato mesmo de ser dito, de fazer cair em falta o desti- mecanismo interpretativo do tipo: "Ele me pede para dizer se sou
natário no caso em que ele não efetue uma das condutas catalogadas capaz de fechar a janela. Ora, ele sabe bem que sim. Então, quer,
como respostas. Insisto nas três palavras imediato, jurídico e apre-.
dessa forma, me lembrar que eu sou capaz disso. A única razão que
sentar, utilizadas anteriormente.. são essenciais para distinguir o ilo-
pode tê-lo levado a fazer o que fez é o desejo que eu utilize essa ca-
cutório do perlocutório. Se realizo um ato perlocutório, como o de
pacidade". Donde concluiu-se finalmente que a pergunta, sendo ma-
consolar, o efeito que espero neste caso para minha fala pode ser
um efeito muito indireto, ligado a um encadeamento causal muito nifestação de um desejo, deve ser compreendida como um pedido.
complexo (consolo X de seus males, contando-lhe os de seu amigo Já que é produzido como subentendido, este pedido deverá, na lógica
Y, que são ainda maiores). O efeito perlocutório não é, pois, neces- da concepção da qual falo, ser descrito como perlocutório. Chega-se
sariamente imediato. Por outro lado, o perlocutório pode não ter assim a dizer - coisa que agora creio totalmente inaceitável - que
nenhum aspecto jurídico; posso consolar X sem pretender por isso um mesmo tipo de ato pode ser realizado tanto de forma ilocutória
que ele deva, utilizando esse verbo em sentido muito amplo, deixar-se como perlocutória (de acordo com a frase utilizada para realizá-la).

34 35
Resta agora avaliar as motivações que acabo de desenvolver em A aplicação ao problema da pressupos1çao é imediato. Se esta
favor da "concepção antiga" (ainda assim as duas últimas, pois a é um ato ilocutório como os outros, seria bastante surpreendente que
primeira foi eliminada no próprio momento de sua apresent~ç3o). ~o­ fosse o único a ser ligado à frase. E necessário, então, admitir que
meço pelo argumento inferido das relações entre pressupos1çao e llo- pode aparecer ao nível mesmo do enunciado e até mesmo sob forma
cutório. Na verdade, formulei-o de um modo que já deixava ver as de subentendido. Haveria pressuposições subentendidas, como há pe-
dificuldades que ele suscita. Inicialmente, ele repousa sobre um des- didos subentendidos .
lizamento de sentido entre duas proposições. Uma, que me parece Volto ao meu exemplo de partida. Disse que se pode enunciar
indiscutível, seria: "Fazer um ato ilocutório é apresentar sua enun- "Pedro deixou de fumar", a fim de fazer notar ao interlocutor que
ciação como eficaz". A outra proposição, bem mais discutível, se Pedro tem mais força de vontade que ele. " Pedro tem mais força de
enuncia: "Fazer um ato ilocutório é utilizar palavras providas de efi- vontade que você" é, então, um subentendido que numerarei (1) . Mas
cácia intrínseca". Esse é o deslizamento inerente à expressão "o po- há, nesse caso, um outro subentendido que numerarei (2), e que é
der das palavras" . Tratam-se de palavras consideradas como entidades "Parar de fumar é prova de força de vontade", sendo o subenten-
abstraías, elementos do léxico (em inglês, type), ou de suas ocorrên- dido (2) necessário para a aparição do subentendido ( 1). Suponhamos
cias (em inglês, token), elementos do discurso?. Não nego que exis- agora uma interpretação do enunciado que lhe dê por objeto decla-
tak sistemas sociais, sistemas jurídicos, sistemas de crenças que sa- rado fazer ao interlocutor essa espécie de reprimenda que constitui
cralizam, por assim dizer, a palavra (considerada como "type") e lhe o subentendido (1). Nessa interpretação, o subentendido (2) funciona
atribuem um poder próprio. Mas não há nenhuma razão para que como um pressuposto. Por um lado, é dado como impossível de ser
essa forma particular do ilocutório seja o protótipo, o modelo. Aliás, colocado em dúvida, pois sua contestação impediria até que se pu-
compreende-se facilmente como se produz esse desliz.amento. Supo- desse ler no enunciado do subentendido (1), do qual supus que sua
nhamos que a realização de uma frase P dê ao locut9r L um certo comunicação é sustentada pelo objeto do enunciado. Mas, por outro
poder sobre uma situação S. Tudo que mudou entre o· momento no lado, o subentendido (2), sendo um elemento essencial do sentido
qual L não tinha esse poder e o momento no qual ele tem, é que ele do enunciado, não aparece como seu objeto: o locutor não se coloca
empregou P. Tende-se a concluir que o poder está localizado em P. como tendo procurado comunicar uma apreciação geral sobre os fu-
De fato, obedece à realização de P na situação S. Mas como S ~á mantes. Veja-se a idéia que quero ilustrar: a noção de subentendido
está lá e não depende do locutor enquanto tal, tende-se a esquecê-la. não designa um ato de fala particular. Ela envia a um processo par-
Uma segunda razão leva a duvidar dessa concepção de ilocutó- ticular de codificação ou decodificação, no fim do qual aparecem
rio, razão que se liga a uma conseqüência assinalada ainda agora: todas as formas de atos ilocutórios, notadamente a pressuposição.
com uma tal concepção, um mesmo tipo de ato, um pedido por exem-
Passo agora a uma outra motivação sobre a qual disse há pouco
plo, pode ser realizado de modo ilocutório ou perlocutório (se ele
que estava na origem da "concepção antiga". Tratava-se do fato de
foi produzido de modo indireto, por subentendido). Mas isso é ina-
que o pressuposto era descoberto pelos critérios de negação e inter-
ceitável se se admite a definição que propus para ilocutório, e em
rogação, e que esses critérios só podem afetar as frases e não os enun-
virtude da qual qualquer pedidg é ilocutório: ela se apresenta crian-
ciados. Ora, resulta que fui, cada vez mais, levado, não a recusar
do desde sua aparição, por sua aparição, uma certa forma de obri-
os critérios, mas a constatar que têm uma aplicabilidade relativamen-
gação para o destinatário.
te restrita (poucas frases podem ser negadas ou interrogadas). Em
Se lhe é retirada essa característica, o pedido não é mais um compensação, um outro critério, cada vez mais importante, surgiu, o
pedido, mas um esforço para fazer agir alguém de um certo modo. do encadeamento. Se uma frase pressupõe X, e um enunciado dessa
Chego então à conclusão de que o valor ilocutório de um enunciado frase é utilizado em um encadeamento discursivo, por exemplo, quan-
pode não estar marcado na frase que serve para realizar o ato. De
do se argumenta a partir dele, encadeia-se com o que é posto e não
fato, não há mesmo nenhum tipo de ato ilocutório que não seja, ao
com o que é pressuposto. Esta formulação, que deveria ser refinada
menos alguma vez, realizado dessa forma indireta.
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e matizada, é suficiente para fazer aparecer o traço que, no meu o que se põe é que acompanhei Pedro, e o que está pressuposto é
ponto de vista atual, é o mais importante. Esse critério que pode, sua viagem. Graças a essa extensão da noção de pressuposição, e
como os "critérios clássicos" ser empregado para frases, diferente- utilizando um critério relativo aos enunciados, é possível suprimir um
mente daqueles, segue tendo sentido, quando se trata de enunciados paradoxo freqüentemente assinalado a propósito da "teoria antiga":
(é necessário, nesse caso, modificar um pouco sua formulação). Quan- quando se aplicava a discursos, portanto a enunciados, obrigava a
do não se pode transformar, negativamente ou interrogativamente, recusar o título de "pressuposto" a elementos que, de fato, compor-
um enunciado, pode-se encadear a partir dele. Pode-se, então, per- tavam-se exatamente como os pressupostos reconhecidos através dos
guntar, levando em conta uma série de enunciados, "a partir de que critérios tradicionais e marcados na frase .
se faz o encadeamento?". E chamarei "pressupostos" de um enun-
ciado às indicações que ele traz, mas . a partir das quais o enunciador N.B. Uma tal definição de pressuposição permite melhor situar
não quer (quer dizer, faz como se não quisesse) fazer recair o enca- as pesquisas que desenvolvemos, Jean-Claude Anscombre e eu, sobre
deamento. Trata-se de indicações que se dão, mas que se dão à mar- a argumentação. Consideram-se pressupostos, em um enunciado, o
gem da linha argumentativa do discurso. Se se admite essa concepção, que é trazido pelo enunciado, mas não de forma argumentativa, en-
é possível reconhecer como pressupostos, ao nível do enunciado, ele- tendendo por isso que não se apresenta como devendo orientar a
mentos semânticos que, nas teorias clássicas, não teriam direito a esse continuação do discurso (insisto sobre a palavra apresentar, essencial,
rótulo - pois não é possível descobri-los, ao nível de frases por para mim, na teoria da argumentação ou da pressuposição, como
meio de critérios tradicionais. Um exemplo. Consideremos a frase: também o é, já o disse anteriormente, na definição do ilocutório) .
Dizendo Você está quase atrasado, pressuponho que você não esteja
Fui à Alemanha com Pedro. atrasado: isso significa que o reconheço, mas a continuação que
f, impossível, aplicando os critérios aplicáveis às frases, atribuir- proponho a nosso discurso não diz respeito ao fato de que você não
lhe pressupostos do tipo "Fui à Alemanha" ou "Viajei com Pedro" . está atrasado; diz respeito ao fato de que você estava na iminência
Pois nenhum desses elementos se mantém necessariamente pela nega- de atrasar-se.
ção ou interrogação. Isso aparece facilmente no caso do critério da Tendo admitido, pelo que precede, qu~ há dois modos de defi-
negação. Pois a frase Não fui à Alemanha com Pedro pode ser utili- nir a pressuposição, seja a nível do enunciado, seja a nível da frase,
zada tanto em contextos nos quais o locutor anuncia que não foi à é necessário perguntar-se que relação pode existir entre essas defini-
Alemanha (enquanto que Pedro foi) , quanto em contextos nos quais ções. Elas são mesmo compatíveis?. Não vou desenvolver esse ponto.
anuncia que, quando foi à Alemanha, não viajou com Pedro. (Encon- Indicarei, ainda assim, para subentender que refleti sobre o proble-
trar-se-ia uma situação semelhante para um grande número de frases ma, que tipo de solução imagino. A idéia central é a seguinte. Se
assertivas, cujo conteúdo informativo é múltiplo) . Parece-me, entre- uma frase, em virtude dos critérios clássicos, pressupõe X, todos os
tanto, conveniente dizer que os enunciados da frase tomada como enunciados também o pressupõem, quando lhes é aplicado o critério
exemplo pressupõem, tanto um como o outro, os dois elementos que novo, o do encadeamento. Isso não implica, evidentemente, que, se
distingui; é conveniente na medida em que esses dois elementos, em um enunciado, em virtude desse critério, pressupõe X, a frase, da
um enunciado dado, jamais se apresentam da mesma forma, com o qual ele é a realização, pressupõe igualmente X a partir dos critérios
mesmo peso, com a mesma função. Ora, é possível dizer isso, se se clássicos. Essa situação nada tem de surpreendente se a pressuposi-
utiliza a noção de encadeamento. Quando o tipo de continuação que ção for considerada como um ato ilocutório. Pois é o que se passa
persigo para meu enunciado diz respeito ao comportamento de Pedro com todos os outros atos ilocutórios. Tomemos o caso da interroga-
na Alemanha, ou à possibilidade que ele teve de realizar essa viagem, ção. Há critérios sintáticos, aplicáveis às frases, que permitem definir
o que está posto é que levei Pedro e o que está pressuposto é minha algumas como interrogativas (cf. "Que fez Pedro esta manhã?") . Por
viagem à Alemanha. Inversamente, se pretendo continuar sobre mi- outro lado, se se define a interrogação ao nível do enunciado pela
nha possibilidade de ter ido à Alemanha, sobre o que lá fiz ou vi, obrigação de responder que pretende impor ao destinatário, é-se

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levado a considerar como interrogativos enunciados que realizam fra- modo de continuar o discurso. Que ela possa ser marcada a partir
ses que não o são (assim, certos enunciados de "Gostaria muito de do nível da frase confirma, então, no que tange à língua, no sentido
saber o que Pedro fez esta manhã", são interrogações). E basta, para ~ais tradicional do termo, a idéia de que a utilização polêmica da
assegurar a compatibilidade das duas definições, que os enunciados hnguagem não se acrescenta à língua - em virtude de alguma lei de
de uma frase interrogativa sejam todos interrogações. É exatamente discurso ligada à natureza humana. Isso confirma a idéia de que a
isso o que ocorre com a pressuposição. pragmática não é um suplemento da semântica, isso confirma, pois, a
concepção segundo a qual a língua seria um instrumento intrinseca-
Pode-se levar ainda mais longe a analogia entre a pressuposição mente polêmico. Eis por que, aliás, tenho podido ter tão pouco pudor
e os atos ilocutórios "clássicos". Já que exagerei ao dizer que todos na confissão que acabo de fazer. Só se confessam voluntariamente pe-
os enunciados de uma frase interrogativa são interrogações, que pre- cados que se consideram veniais. Ora, a autocrítica que apresentei
tendem criar para o destinatário uma obrigação de responder. De me parece deixar intacta e, mesmo em realidade, confirma a idéia,
fato, existem vários usos da frase interrogativa em que sua função não essencial para mim, de uma língua consagrada à interacão dos indi-
é perguntar. Para que seja justificado, apesar disso, que se continue víduos. '
a chamar a frase de "interrogativa", basta que esses usos se expli-
quem a partir de um valor interrogativo primitivo (o que se faz facil- Falta-me mostrar como se articulam as noções de subentendido
mente no caso das interrogações ditas "retóricas", cujo valor de e de pressuposto na concepção que acaba de ser defendida. Dois pon-
obrigação se deve justamente ao fato de que elas pretendem obrigar tos me parecem claros, caso se admita o que precede. Inicialmente,
o destinatário a responder, apesar de a resposta ser evidente; igual- que essas noções devem ser distinguidas. A pressuposição é um ato.
mente, tentei, antes, derivar certos pedidos a partir de um valor inter- Pois o que se pressupõe é o que os filósofos da linguagem, como
rogativo fundamental da frase que os veicula). Ora, ocorre exatamen- Searle, chamam de uma "proposição" (poder-se-ia também falar de
, cont eu'do ") . o que se subentende, ao contrário, é um ato. Subenten-
te o mesmo com a pressuposição. Uma frase marcada para pressupor
X pode muito bem ser empregada, retoricamente, em um enunciado de-se que se afirma, coloca em questão, pergunta, ou mesmo pressu-
que não a pressupõe, mas, por exemplo, a expressa. (B . de Cornulier põe este ou aquele conteúdo. Mas essa distinção não pode ser con-
apontou numerosos exemplos desse fenômeno: diz-se "Lamento não siderada como uma oposição. As noções, com efeito, não estão situa-
poder publicar seu artigo" para expressar que não se pode publicá-lo, das no mesmo nível. Para mim, a pressuposição é parte integrante
enquanto que, de acordo com a estrutura da frase, dever-se-ia pres- do sentido dos enunciados . O/ subentendido, por sua vez, diz respeito
supô-lo, pois lamentar, assim como saber, alegrar-se, etc. são verbos à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário.
"factivos", que pressupõem que sua subordinada é verdadeira). Aqui Suponhamos que você admite - por consideração a mim - que o
ainda as relações entre os pressupostos da frase e os do enunciado sentido de um enunciado é a maneira pela qual o enunciador apre-
confirmam a qualificação da pressuposição como ato ilocutório. senta seu ato de enunciação, a imagem que pretende impor ao desti-
natário de sua enunciação *, a imagem que pretende impor ao des-
Suponhamos, agora, que se pergunte para que servem nesta rees- tinatário de sua fala (o sentido de um enunciado é, por exemplo, a
truturação da teoria pressuposici~nal, os critérios "clássicos" (a nega- pretensão manifesta de obrigar o destinatário, no momento mesmo
ção, a interrogação e o encadeamento quando ele é definido a pro- da enunciação, a fazer esta ou aquela coisa, a crer nesta ou naquela
pósito de frases). Direi que eles indicam quais frases são, por assim proposição, a continuar o diálogo nesta ou naquela direção - ou,
dizer, pressuposicionalmente marcadas (como há aquelas que são mar-
cadas pela interrogação). Vê-se, assim, a conseqüência dessa hipó- *A diferen?a entre a concepção do sentido trabalhada aqui e aquela do Cap.
tese para uma teoria geral da atividade lingüística. Tal como a carac- VITI, destmada a abrigar a noção de polifonia, refere-se a que, no presente
artigo, a enunciação, antes mesmo de ser descrita no sentido do enunciado
terizei, no nível do enunciado, a pressuposição aparece como uma é definida como um ato, e é a natureza desse ato que. o sentido especificaria:
tática argumentativa dos interlocutores; ela é relativa à maneira pela No Cap. VIII, ela é somente definida como acontecimento: sua eventual
qual eles se provocam, e pretendem impor-se uns aos outros, um certo descrição como ato do locutor decorre do sentido.

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o que vem a ser o mesmo, a não continuá-lo nesta ou_ naquela outra). tação sobre o próprio conteúdo da informação dada. Continuará, por
A pressuposição é, então, um elemento do sentido - se se considera exemplo, por um pois que deduzirá as conseqüências da melhora do
o sentido como acabo de propor, como uma espécie de retrato da índice: "A política do governo começa, pois, a produzir seus frutos"
enunciação. Dizer que pressuponho X, é dizer que pretendo obrigar (exprimo essa possibilidade dizendo que a "modalidade" é, aqui,
o destinatário, por minha fala, a admitir X, sem por isso dar-lhe o argumentativamente transparente). E, contudo, o locutor eximiu-se de
direito de prosseguir o diálogo a propósito de X. O subentendido, ao sua responsabilidade, atribuindo-a a "alguns". É esse processo que
contrário, diz respeito à maneira pela qual esse sentido é manifesta- ilustra o subentendido: para dizer alguma coisa, faz-se o outro dizer
do, o processo, ao término do qual deve-se descobrir a imagem que o que se disse.
pretendo lhe dar de minha fala .
(Tradução: Ana Maria Guimarães, Eleni Jacques Martins)
Dito isso, a distinção das duas noções não impede que haja um
ponto comum ao pressuposto e ao subentendido (é esse ponto comum
que tento ressaltar, na "teoria antiga", construindo dois modos de
implícito). Deve-se à possibilidade dada ao locutor, nos dois casos,
de se retirar, por assim dizer, da fala. Na pressuposição, essa retirada
se deve ao fato de que a informação pressuposta é colocada à mar-
gem do discurso. O locutor não pode ser atacado por isso, já que o
diálogo posterior não deve referir-se a ela (quando falo do diálogo
posterior, falo daquele que é projetado pelo enunciado que contém
o pressuposto, isto é, do diálogo "ideal", oferecido por si mesmo, e
:;;;,,,: não, evidentemente, do diálogo que o continua efetivamente na
"i realidade).
Ora, chega-se a um resultado análogo, por um caminho total-
mente diferente, mediante o subentendido. Disse que o subentendido
é construído como resposta à pergunta "Por que ele falou desse mo-
do?" . Em outras palavras, o locutor apresenta sua fala como um enig-
ma que o destinatário deve resolver. O sentido, que é sempre, para
mim, um retrato da enunciação, é então um retrato cuja responsa-
bilidade o locutor deixa ao destinatário, processo quase explícito na
expressão "Eu não o obrigo a dizer" (o locutor parece aceitar, sem
lhes dar origem, os subentendidos decifrados pelo destinatário). Per-
guntar-me-ão como é possível aceitar a interpretação do outro, a ima-
gem que ele constrói do ato de enunciação, sem assumir a sua res-
ponsabilidade - o que é necessário para que se possa falar de sen-
tido subentendido. Tudo o que posso dizer é que a linguagem ofe-
rece exemplos freqüentes dessa atitude, certamente muito hipócrita.
Este é o caso quando se modaliza uma asserção por meio de uma
indicação de fonte ("De acordo com alguns, o próximo índice de
preços será claramente encorajador") . Toda a astúcia do procedimen-
to consiste em que o locutor pode continuar apoiando sua argumen-

42 43
Capítulo III

A DESCRIÇÃO SEMÂNTICA
EM LINGÜíSTICA

A IDÉIA DE SEMÂNTICA SINT AGMÁ TICA

Quando um lingüista se coloca como objetivo fazer a descrição


semântica de uma língua particular, qual tarefa fixa ele a si mesmo?.
Até mais ou menos 1950, a resposta, muito evidente para ser for-
mulada explicitamente, consistia quase sempre em assimilar semân-
tica e estudo do léxico. O semanticista, nesta perspectica, era aque-
le que tentava definir o sentido das palavras. Certamente os desen-
I~~ ,

·· ··: volvimentos da lingüística podiam levar a algumas modificações nesta


11;;
definição, mas tratava-se de modificações relativamente superficiais.
.. "', ,,'
, , .. 11
Assim, a crescente desconfiança diante da noção de palavra podia
conduzir a tomar por objeto unidades lingüisticamente menos discutí-
veis, os signos mínimos, chamados "monemas" ou "morfemas". Por
outro lado, na medida em que já se pedia freqüentemente ao gramá-
11
tico fixar o valor de certos morfem_as particulares, chamados grama-
ticais" (preposições, conjunções, marcas de tempo, de pessoa, etc), a
semântica propriamente dita ficava freqüentemente limitada ao estudo
11
dos "radicais", algumas vezes chamados de morfemas lexicais" ou
"bases". Enfim, tornava-se cada vez mais evidente que um elemento
lingüístico não devia ser estudado isolado, mas somente em relação
com os outros: a semântica se orientava, portanto, para o estudo das
oposições entre palavras vizinhas, tais como elas se manifestam no
interior dos "campos" nocionais, de maneira a fazer aparecer o recor-
te particular que cada língua opera no interior destes campos. Estas
diversas modificações conservavam, contudo, o caráter essencialmente

* Texto publicado, sob este mesmo título, no Journal de Psychologie, n.0 " 1-2,
1973, p. 115-133

45
-- ---

paradigmático reconhecido à semântica. Descrever um termo era sem- i_dealmente, calcular - o efeito desta palavra nos discursos em -ue
pre atribuir-lhe uma certa significação que ele possuiria abstração fei- e empregada. Para voltar ao exemplo de continuar d , q
descreve t b · d' ' ever-se-a ao
ta de seu emprego no discurso, significação que ele se contentaria de - r es e ver o, m tear o diferente destino que receb '
gaçao as duas m. · d'tcaçoes
- ~ue .nós distinguimos. (Se.ndo em na ne-
dado ue
"apresentar como contribuição" nos discursos em que aparecesse. Cer-
tamente para descobrir esta significação o método empregado con- c- . -- Isto se ve facilmente - est-ao nesta mesma sttua-
outros verbos .q
sistia antes de tudo em examinar certos enunciados de que ele faz dao, o ma!s ~Imp!es será atribuir uma marca particular a cada uma,
parte. Mas a significação, uma vez encontrada, devia poder ser for- /s duas mdtcaçoes, e .formular, na parte geral da descricão semân-
mulada sem referência ao emprego do termo, a seu papel na frase. tca, um_a regra que dtga que as indicações dotadas de •uma certa
marca sao conservadas na negação) 1.
A esta concepção justapôs-se, duas décadas depois (e de acordo,
notadamente, com a grat11ática gerativa), uma concepção sintagmá- 1 Um segundo exemplo será apresentado mais rapidamente (pois
tica da descrição semântica das línguas. O que fundamenta esta nova evanta problemas que nenhuma teoria semântica pode resolver no
perspectiva é a observação de que uma descrição da palavra em si momento atual). Descrever a palavra portuguesa ainda seria segundo
mesma dificilmente permitirá compreender a contribuição que ela nos parece , dar. uma
. regra que pernuta
. prever os efeitos de' sentido
fornece ao valor semântico global dos enunciados dos quais ela par- que produz a mtrodução deste advérbio numa frase. O que torna o
ticipa: não se vê com facilidade como reconstruir o sentido da frase
probdlema extremamente complexo é a diversidade destes efeitos se-
a partir da significação das palavras, se esta última é considerada
deles:o os contextos em que a pa1avra aparece. Recordemos alguns
gun
como um todo em si que não faz já referência à sua introdução pos-
sível em ~nunciados.
Tomemos um exemplo elementar. Seja o verbo português conti- , - Pedro é ainda maior que Paulo (ainda introduz 'd " .
lo e grande"), a 1 eta. "Pau-
nuar. Não i difícil ver que ele contém pelo menos as duas idéias:
"fazer uma ação" e "tê-la feito antes". Mas isto não basta para fazer Eu ainda não lhe respondi ("eu lhe responderei"),*
prever que numa frase negativa, somente a primeira destas duas idéias
é negada, a segunda estando pelo contrário mantida (não continuar Você ainda está atrasado ("você esteve atrasado antes"),
'• '
.,,, . significa "ter feito antes e não fazer mais"). Ou, para dizer a mesma - Esta garrafa ainda está meio vazt'a ("Esta'-se ~~&~
coisa em termos estruturalistas clássicos, continuar, no campo semân- cher a garrafa")**,
tico que é o seu, opõe-se ao mesmo tempo a cessar e a começar. Mas
acontece que na negação é somente a primeira oposição que é con- - Esta garrafa ainda não está meio vazia ("Está-se em vt'as de
cernida: não continuar é quase equivalente a cessar, mas não a esvaziá-la") ,
começar. - Esta garrafa ainda está meio cheia ("Está-se em . d
Tais fatos, fáceis de serem multiplicados, mostram que é difícil ziá-la "), VIas e esva-
deduzir o sentido do enunciade a partir do sentido das palavras, se
este já não é descrito em relação à função da palavra no enunciado, 1 . As noções, bem conhecidas atualmente de
truídas, entre outras razões , posto e ~ressuposto foram cons-
e que uma semântica paradigmática não pode em nenhum caso dis- semânticas que desaparecem ~ ~=~:la:arcar _respecti~amente as indicações
pensar uma semântica sintagmática. Daí a tendência atual em cons- * Esta descrição , , que sao mantidas na negação.
. so e exata porque o exemplo estud d ,
truir em conjunto a semântica sintagmática. Nesta nova perspectiva, merra pessoa. No caso geral uma f "X . a ~ e uma frase pa pri-
a descrição de uma palavra (supondo que seja desejável descrever mente que o locutor entrevê , no mo rase amda nao fez Y" implica so-
semanticamente as palavras, o que não é a priori necessário) não é que X faça y (cf. Martin , 1983 m:onto) em que fala, a eventualidade de
fazer a correspondência desta palavra a uma certa noção; é antes ** Este exemplo e os que se se' ' P- ·
- estudados
(1973, Cap. XIII). guem sao detalhadamente em Ducrot
fazer a indicação de uma regra que permita prever - ou mesmo,

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46
- Est~ garrafa ainda não está meio cheia ("Está-se em vias de Algumas precisões ainda, a fim de evitar os malentendidos. Nós
enchê-la") 2 • não quisemos de maneira nenhuma dizer que o semanticista deveria
A descrição semântica de uma palavra deve, portanto, ser consi- atribuir uma descrição a cada uma das palavras ou morfemas da lín-
derada como uma função matemática que produz valores diferentes gua, descrição que seria apresentada como uma regra que permitisse
(neste caso, os efeitos de sentido) de acordo com os argumentos (neste calcular seu efeito num enunciado. É possível que o cálculo do sen-
caso, os contextos) que se lhes são associados. Nós temos, nos pará- tido do enunciado deva, em certos casos pelo menos, tomar por ponto
grafos precedentes, tomado emprestado a G. Guillaume a expressão de partida segmentos mais vastos do que a palavra. É possível mesmo
"efeito de sentido". E, de fato, Guillaume não cessou de insistir na que o semanticista deva se fundamentar não na sucessão das pala-
idéia de que o sentido da palavra devia permitir compreender os efei- vras ou dos morfemas no enunciado perceptível, mas numa estrutura
tos de sentido produzidos por seu emprego contextuai. Mas, em dois subjacente. O ~bjeto das con~iderações precedentes era mostrar que,
pontos pelo menos, a posição defendida aqui se opõe aos princípios rr:esm? se a ~~tdade de base e a palavra, sua descrição, numa semân-
guillaumianos habituais. O sentido de uma palavra, para nós, não é ttca smtagmatl~a, toma a forma de uma regra que permite prever 0
nada além do meio de previsão do efeito de ·sentido - como a fun- ~alor do enunctado total. O que caracteriza a semântica sintagmática
ção matemática não é nada além do que colocar em correspondência e dar-se ela por tarefa prever a significação dos enunciados e não
argumentos e valores. Para Guillaume, ao contrário, esta previsão não descrever o sentido das palavras - a descrição das palavras ;adenda
é senão uma justificação suplementar, que confirma uma determina- ~ertamente intervir como uma etapa eventual num processo geral de
ção do sentido obtida por uma espécie de intuição direta. Por outro mterpretação dos enunciados.
lado, o que chamamos de "efeito de sentido" de uma palavra não
é necessariamente o sentido que ela toma num contexto, ou as mo- O MÉTODO DE SIMULAÇÃO
düicações que lhe traz o contexto, pois é bastante arbitrário deter-
/ ...
·.:: minar no interior de um enunciado dado, qual é o sentido que pos- . Em nossa .apresentação geral da semântica sintagmática, temos
suem aí, tomadas uma a uma, as palavras de que ele é formado . detxado proposttadamente sem explicação as palavras enunciado e
Em outras palavras, não nos parece de maneira nenhuma evidente con~exto. Por enunciado seria preciso entender a frase, no sentido gra-
que o sentido global do enunciado possa ser considerado como a m~tt.cal ~o teri_Do, ou o ato de enunciação particular?. Isto acaba por
t;::
soma das significações, mesmo contextuais, das diferentes palavras. O extgtr a mvestlgação do que entendemos ao falar do contexto de uma
que chamamos o efeito de sentido contextuai de uma palavra é, por- palavra. Seria seu ambiente numa frase, ou então seria preciso incluir
tanto, somente a mudança produzida neste contexto pela introdução no contexto da. palavra todo . o conjunto de fenômenos sócio-psicoló-
cos que determmam sua apanção num ato de enunciação particular?.
desta palavra, isto é, a modificação pela qual esta palavra é respon-
Conforme se adotasse uma ou outra destas interpretações, chegar-se-ia
sável no sentido global do enunciado 3 • a duas concepções muito diferentes da semântica sintagmátíca e um
dos objetos principais deste artigo seria levar, ao final, a e~colher
2. Notar que teremos o efeito inverso com já: entre elas.
já meio vazia ~ "está-se em v.\as de esvaziar"
já meio cheia ~ "está-se em vias de encher". , ~ara bem colocar o problema, um longo desvio nos parece ne-
3. Seria preciso, aliás, notar em que ordem as diferentes palavras são introdu- cessano, e sobretudo uma reflexão sobre o método de trabalho ado-
zidas no enunciado. Considere-se: Francisco ainda não comeu. Há pelo me- tad~ geralmente .em semântica sintagmática. Este método é uma adap-
nos duas possibilidades: 1) que este enunciado seja formado por introdução
de ainda em Francisco comeu, depois da negação em Francisco ainda comeu; t~çao do. pr~~edtmento de simulação que comanda quase toda a ati-
2) que haja de início introdução da negação em Francisco comeu, depois vtdade ctenttftca desde Descartes e, no domínio lingüístico, os traba-
de ainda em Francisco não comeu. A segunda solução nos parece de fato lhos da gramática gerativa. Ele consiste em organizar a pesquisa de
necessária, se se quer que a negação e o ainda desta frase obedeçam às acor?~ com duas .etapas teoricamente sucessivas. A primeira - etapa
regras gerais que governam estas palavras. empmca - constste em isolar e em observar certos fenômenos que

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devem se produzir na natureza independentemente do observador. A fenômeno "importante", revelador dos mecanismos profundos da ati-
segunda, consiste em construir ou imaginar uma máquina (material ou vidade lingüística (o que não é de maneira nenhuma evidente). Por
abstrata) suscetível de reproduzir estes fenômenos. Esta imitação da outro lado, e sem deixar o domínio das hipóteses externas, o lingüista
natureza por uma construção artificial tem por objeto fornecer hipó- deverá tomar, a cada momento de seu trabalho de observação, deci-
teses sobre o processo escondido que comanda o fenômeno observado: sões particulares que concernem à aplicação de seus conceitos gerais
supõe-se - pelo menos provisoriamente - que existam na natureza ao detalhe dos fenômenos. Tal seqüência de palavras deve ser consi-
mecanismos análogos a estes que se devem introduzir na máquina, ou, derada como agramatical, ou somente como bizarra, a polissemia
de maneira mais geral, que a produção natural do fenômeno com- deste enunciado deve ser considerada como uma verdadeira ambigüi-
porte os mesmos momentos que se devem distinguir na sua reprodu- dade, índice de duas estruturas diferentes, ou deve-se admitir somente
ção. ~ fácil ver que toda gramática gerativa obedece a este modelo. que o enunciado em questão tem uma significação vaga, pouco deter-
Observa-se de início certas competências dos sujeitos falantes: reco- minada, suscetível de receber no uso diversas especificações (situa-
nhecer uma infinidade de seqüências de morfemas como frases gra- ção que é quase a regra na língua ordinária)? . Todas estas decisões,
maticais, descobrir para algumas dentre elas ambigüidades, etc. Em nós as chamamos de hipóteses externas, neste sentido de que elas são
seguida, constrói-se uma máquina abstrata (a gramática gerativa, con- logicamente 5 anteriores à construção da máquina. Uma vez que ser-
cebida como conjunto de regras formais) suscetível também ela de vem para determinar o objeto que a máquina deve imitar, elas não
distinguir o gramatical do não-gramatical (na medida em q~e engen- podem mais, uma vez tomadas, serem rediscutidas sob o pretexto
dra somente o gramatical), suscetível de marcar certos enunc1ados co- de que elas tornariam difícil o trabalho de simulação. Elas permi-
mo ambíguos (na medida em que engendra cada um deles de várias tem julgar o mecanismo fabricado para lhes ser adequado, e não o
maneiras diferentes), etc. Enfim, apresentam-se as devidas particula- inverso *.
ridades que foram incorporadas à máquina (por exemplo, o agenc~a­
É preciso, portanto, distinguir cuidadosamente estas hipóteses da-
mento sucessivo de regras sintagmáticas e de regras transformaclO-
quelas que chamaremos "internas", e que são relativas à própria cons-
nais) como caracterizando o processo mental que comanda a atividade
dos sujeitos falantes (o sujeito falante, também ele, operaria sucessi- trução da máquina. Estas hipóteses são feitas cada vez que se decide
vamente por regras sintagmáticas e transformacionais) •
4 introduzir aí tal ou tal mecanismo ou proceder, na simulação dos
fenômenos, segundo tais ou tais etapas. Assim, os chomskianos foram
Assim caracterizada, uma pesquisa fundamentada sobre a simu- levados à hipótese de que a gramática gerativa comporta dois con-
lação nos parece levada a fazer dois tipos de hipóteses, que é impor- juntos de regras formalmente diferentes, as regras sintagmáticas e as
tante distinguir. De início, hipóteses "externas", relativas à fase em- regras transformacionais, e que as últimas intervêm somente depois
pírica de observação. Todo mundo sabe que uma observação não da ação das primeiras. Ou ainda Chomsky propôs, por volta de 1964,
poderia ser teoricamente inocente, que ela implica sempre um começo a hipótese de que as regras transformacionais são desprovidas de
de descrição: ela implica pelo menos que os fatos observados tenham impacto semântico (duas frases cujas derivações diferem somente
sido subsumidos a conceitos, e ela supõe, portanto, a adequação destes no que diz respeito às transformações aplicadas são sinônimas). Ao
conceitos, considerados como ..extraindo dos fenômenos somente seus
caracteres pertinentes. 5 . Nós dizemos "logicamente" porque no encaminhamento efetivo da pesquisa,
acontecerá freqüentemente que observações novas sejam suscitadas pelos
Assim o lingüista gerativo é levado desde o início a supor que progressos do modelo simulador. Mas, as decisões tomadas nestas observa-
a repartição dos enunciados em gramaticais e não-gramaticais é um ções não devem ser justificáveis, independentemente do modelo.
* Na seqüência, fomos levados, J-C Anscombre e eu, a tomar consciência
4 . Seria preciso fazer a restrição de que o processo mental em questão é, do fato de que as hipóteses internas implicam (é seu "custo teórico") hipó-
na ortodoxia chomskiana, o da competência e não da performan:e, co~ teses externas (cf. Anscombre-Ducrot, 1983, Cap. IV, § 1). Em Ducrot e
todas as dificuldades ligadas à idéia de um processo mental que nao sena ai. (1980, Cap. 1) este custo teórico, uma vez que permite uma nova visão
performance efetiva. dos fatos, é dado como o interesse principal das hipóteses internas.

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contrário das precedentes, estas são decisões essencialmente revogáveis.
é mais limitada. Trata-se de saber se esta hipótese deve ter, no qua-
Seu abandono significa somente que se reprograme o plano anterior
dro geral de uma tarefa de simulação, o estatuto de hipótese externa.
da máquina, porque chegou-se à conclusão de que este ou aquele de
Deve ser ela utilizada na fase empírica, e comandar a observação, ou
seus aspectos ia contra o objetivo buscado, ou então complicava inu-
somente na fase construtiva, e comandar a explicação dos fatos?. Es-
tilmente a realização deste objetivo. E, de fato, durante a curta his-
p~r:mos poder mos.trar .que, mesmo assim limitada, e apesar de sua
tória da teoria gerativa, a maior parte das hipóteses internas feitas
fetçao um pouco btzantma, o debate não é sem propósito.
iniCialmente foram ou modificadas ou abandonadas, sem que isto em
nada pudesse fundamentar uma crítica da teoria em si mesma: com
O VALOR SEMÂNTICO DOS ENUNCIADOS B UMA
efeito, as hipóteses externas não mudaram, isto é, os chomskianos HIPOTESE EXTERNA?
sempre guardaram a mesma imagem da realidade a imitar.
Voltemos · agora à semântica sintagmática, e vejamos que tipo Admitir por ponto de partida empírico que os enunciados em
de hipóteses, externas e internas, ela pode ser levada a fazer. Qual si mesm?s, ~ora de qualquer contexto, têm uma significação, é dar-se
é, pois, o fato que ela tem a observar e que ela deve tentar reprodu- como prtmet~a tarefa observar e descrever esta significação. A segun-
zir?. B aqui que aparece a divergência essencial à qual o começo deste da tarefa sena construir a máquina capaz de associar aos enunciados
parágrafo fazia alusão. Pode-se tomar por fato inicial que os sujeitos os sentidos que os sujeitos falantes, na experiência, devem lhes atri-
que falam uma língua são capazes de atribuir um sentido aos atos buir (nós empregamos indiferentemente, neste ponto de nossa expo-
de enunciação realizados com a ajuda desta língua. Eis aí a hipótese sição, as palavras "sentido" e "significação"). A descoberta do sen-
externa segundo a qual nós trabalhamos. Em outras palavras, o que ~id~ sen~o assim considerada como o produto de uma observação, 0
nós tomamos por dado, por objeto de observação, é a maneira pela ~mco metodo possível para conformar-se a ela será uma espécie de
qual os enunciados (ou ainda "frases", as duas palavras vão ser toma- Introspecção artificial. O lingüista se representa um enunciado tentan-
das como sinônimos neste artigo *) são interpretados nas situações do fazer abstração de todas as situações possíveis em que ele poderia
particulares em que são empregados. Mas uma segunda ·atitude é ser empregado; tapando assim os olhos e os ouvidos a todo contexto
igualmente possível, que nos parece caracterizar o enfoque dos se- eventual suscetível de alterar a pureza do sentido, ele anota as idéias
manticistas americanos que trabalham atualmente no quadro da gra- que o enunciado em questão desperta uma vez que ele foi gracas a
mática gerativa. Ela consiste em escolher por hipótese externa a idéia e~ ta ginástica particular, "colocado fora de contexto". Alg~ém pode-
de que os enunciados, em si mesmos, têm um sentido. Admite-se, r a pensar que esta descrição faz a caricatura da concepção que criti-
portanto, como um fato empírico, observável, que os sujeitos falantes, ca~~s: Alegar:se-á que não é necessário colocar-se nesta situação
por seu simples conhecimento da língua, fazem corresponder uma arhftc~al que e a ausência de situação e que é suficiente, para obter
significação às frases, independentemente de qualquer contexto de o senttdo que possui em si mesmo um enunciado, resgatar o que é
enunciação. comum a todas. as significações registradas nas ocorrências particula-
res deste enu~ct~do. Mas a dificuldade é que não se encontra sempre
Antes de discutir esta posição, recordemos em que termos pre-
:Ien;t~nto s~ma~ttco comum aos diferentes empregos. Se o enunciado
tendemos colocar o problema. Nãt':l se trata de investigar se a hipó- e uttltzado tromcamnte, não subsistirá sem dúvida neste emprego mais
tese em questão é ou não válida: naquilo que nos diz respeito, acre- nada do sentido que ele possa ter quando. é tomado a sério . Ou
ditamos tanto quanto os chomskianos que ela é inevitável. A questão ainda, se ele é utilizado por simples conveniência (Como vai?. Foi
gentil ter vindo) , nem o locutor nem o ouvinte lhe atribuirão, um só
* O que se chamou "enunciado" ou "frase", neste artigo de 1973, é o que eu
chamo atualmente (cf. Cap. VIII) "frase". O que se chamou "enunciação" momento, o valor que ele teria em empregos literários. E mesmo, se
ou "ato de enunciação", é ora (por exemplo, no presente parágrafo) o damos a alguém uma informação que, com toda certeza, ele já possui
que eu chamo hoje "enunciado", ora (cf. parágrafo de conclusão) o que eu (tendo portanto a simples finalidade de lhe fazer saber que se está
entendo agora por "enunciação".
a par da situação), o que há de comum entre a significação observável
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nesta ocorrência do enunciado e a de outras ocorrências realmente . . ~a~os t~n~ar aplicar o método que chamamos de "introspecção
informativas?. Não queremos dizer - e aí está o ponto importante artlftctal . Ehmmemos, portanto, qualquer referência a uma situação
- que os diferentes valores contextuais do enunciado não se expli- de enunciação eventual, e perguntemo-nos qual conteúdo semântico
cam no final das contas por um valor fundamental constante, trans- é veiculado, nestas condições, por um enunciado no imperativo. A
formado, desfigurado, até anulado em seguida pelas circunstâncias de única solução consiste - parece-nos - em colocar que ao dizer a
enunciacão. O que queremos dizer é que este valor constante e extra- alguém Trabalhe! exprime-se o desejo ou a vontade que se tem de
context~al não pode ser observado no interior dos valores contextuais, vê-lo trabalhar. Mas torna-se difícil em seguida encontrar uma dife-
em que seria simplesmente associado a outras nuances. Se tem~s ~e rença entre o imperativo Trabalhe! e modos assertivos como Eu de-
qualquer maneira que observar, é preciso observar nesta _exper~enc1a sejo (ou eu gostaria) que você trabalhe (trabalhasse). Ora, esta dife-
estranha e completamente artificial, que constitui a cons1deraçao de
renç! é e~senc~al se ~onsidera~os o ~apel efet~vo representado pela
um enunciado fora de situação. Resta agora ver por que achamos pe- fala . P01s o Imperativo permtte reahzar um tlpo particular de ato
rigosa uma tal forma de introspecção. a ordem, isto é, sua enunciação transforma ipso facto a situacão d;
Em Ducrot (1972, p. 128-131) encontramos diversos exemplos destinatário: ao colocar este numa alternativa jurídica inexistente para
de falsificações às quais conduz a vontade de observar o sentido dos ele ant~s dtst~: obedecer-desobedecer. Em outras palavras, qualquer
enunciados (a propósito de mesmo e mas). A idéia geral é de que cer- que seJa a atitude que ele decida adotar face à ordem dada esta
tos enunciados não poderiam receber uma descrição satisfatória se deverá sempre, daí em diante, ser introduzida em uma das duas' cate-
não é feita referência à sua enunciação eventual, referência impossí- gor!as, obe~iência ou desobediência: se ele faz a ação em questão,
vel de ser vista enquanto se está empenhado em considerar estes tera obedectdo, se ele não a faz, terá desobedecido com todas as con-
enunciados fora de todo ato de enunciação (quando dizemos que sua seqüência~ vinculadas a uma e a outra destas quauficações (submissão
descrição é, neste caso, insatisfatória, entendemos que a descrição ou. agressao). Em compensação tal alternativa não é necessária de-
assim obtida mesmo se ela se conforma aos dados da experiência que pots de um enunciado indicativo como Eu quero que você trabalhe.
foi artificial~ente instituída, é desprovida de qualquer valor expli- Certamente, não é impossível, em certos contextos, em que as vonta-
cativo, isto é, que ela não permite compreender, em seguida, o efeito des de alguém tornam-se ordens, interpretar como um mando a indi-
real destes enunciados em atas de enunciação particulares). Um ou- cação de_u~a :ont,~de. Mas outra~ interpretações que consistem em
tro exemplo vai ser desenvolvido aqui, e talvez tenha um alcance to~ar o mdtcattvo ao pé da letra são também possíveis, o que per-
mais geral. Tratar-se-á daquilo que se pode chamar os "marcadores mt_te . respostas como Eu também, eu gostaria de trabalhar ou Você
de atas de fala". Certos morfemas indicam qual ato (mais exatamen- v~t _ftcar de~e_pcionado. Parece-nos, portanto, impossível explicar a efi-
te, retomando o termo de Austin, qual ato ilocutório) é realizado cac~a espectflca do imperativo na fala se este não é descrito, desde
quando se utiliza o enunciado em que eles se encontram. Assim, por o mvel da língua, c~mo permitindo o cumprimento de um ato jurídic~
exemplo para os marcadores de interrogação (entonação ascenden- que transforma a situação do destinatário, introduzindo nela deveres
te:?) ou ' de ordem (o imperativo). Assim, também para certos " pa1a- an~~s inexistentes. Uma descrição semântica do morfema "imperati-
vrões", tais que sua enunciaçãO é considerada como uma afronta para vo , se ela se pretende explicativa, deve conseqüentemente se apre-
sentar como um artigo de código (no sentido jurídico do termo)
aquele que é objeto dela 6 •
6. Nós dizemos afronta e não simplesmente ofensa. A ofensa não constitui, * Eu diria ho!e: "o ~apel ~ue a palavra pretende desempenhar". Do mesmo
segundo nos parece, um ato ilocutório, isto é, uma transfor~ação juri~~ca modo, :u n~o fal~1a mais, como o fiz neste início de parágrafo, de trans-
da situação dos interlocutores, mas somente uma transformaçao real (flSlca formaçoes ligadas a !ala, mas daquelas que ela pretende criar. Este é um
ou psíquica). O específico da afronta - nu~a sociedade ~ue. conhece este dos pont_os em relaçao aos quais eu me separo agora da filosofia da lin-
ato (e as sociedades ocidentais modernas tem uma tendenc1a, frequente- guage~ mglesa qu:, como toda filosofia que se respeita (isto é, em termos
mente lastimada na literatura reacionâria, a aboli-la) - é colocar a vítima pascahanos, ~ue nao .se envergonha de si mesma) procura descrever 0 que
se passa efetivamente.
numa alternativa jurídica: vingar-se ou ser desonrado.

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estipulando as conseqüências que o emprego deste morfema produz. Se
as noções de obediência e de desobediência desaparecessem de nossa componente, que cha~amos "lingüístico" (abreviadamente, C.L.), faz
coletividade, o valor de Eu quero não seria tocado, mas o valor atual correspond.e r ao :~uncrado uma significação. Depois um segundo com-
do imperativo tornar-se-ia incompreensível, da mesma maneira que o p~nente, drto retonco ~C~R.), ca~cula, a partir da significação do enun-
desaparecimento do dever de vingança e de reparação retira atual- crado e de uma descnçao da situação, o sentido da enunciação (no
mente sua significação específica daquilo que se chamava outrora ~~e ~e. seg~~: reservamos a palavra "sentido" para a enunciacão e
"afronta". Sigmficaçao para o enunciado) . Chega-se pois ao seguinte esq~e~a:

Ora, uma descrição do enunciado que comporta, como parte in-


tegrante, a indicação de certas transformações introduzidas por uma Enunciado E
enunciação na situação de discurso não poderia ser o produto de uma Situação S
observação em que o enunciado seria considerado em si mesmo, inde-
pendentemente de qualquer contexto de fala possível. Se ela pode
l
Componente
aparecer é, ao contrário, como conseqüência de um estudo dos em-
lingüístico
pregos efetivos do enunciado, e como uma tentativa de explicação de
certos fatos constatados a propósito destes empregos. Conseqüente-
mente - é esta a conclusão que gostaríamos de tirar de todo este
desenvolvimento - se a semântica escolhe por hipótese externa a idéia
Descrição
1
Significação de E
de que os enunciados têm um sentido, se ela decide portanto con- semântica
duzir a observação de acordo com esta hipótese, ela é levada neces-
sariamente a desconhecer a originalidade de certos termos (por exem-
plo, do morfema "imperativo"). Para fazer justiça a esta originali-
l
dade, é preciso, ao contrário, considerar o sentido do enunciado como
uma construção do semanticista, destinada a fazer compreender os
efeitos reias do enunciado em situação. A crença de que os enuncia-
dos têm uma significação, se se mantém esta crença, não é mais uma Sentido de E em s
hipótese externa guiando a observação, mas uma hipótese interna per-
mitindo a explicação. ESQUEMA 3

O VALOR SEMÂNTICO DOS ENUNCIADOS,


HIPóTESE INTERNA
Um esquema ?orno este pode causar surpresa, depois de tudo o
Em diversas publicações
..
propusemos construir a descrição se- que a~aba de ser dito . contra os semanticistas chomskianos e a manei-
mântica de uma língua de acordo com a hipótese que vai se seguir, ra pe a qu~l eles atnbuem um valor semântico ao enunciado Não
cujas relações com a tese que acaba de ser apresentada gostaríamos fanamos
. . nos~ exatamente
. o que lhes reprovamos? . A u'nr·ca d'f .
I erença
de mostrar. Nós consideramos a descrição semântica de uma língua C_21Ja unport:ncra nos resta mostrar, é a seguinte. O esquema em ues~
como uma máquina suscetível de fazer corresponder a cada enuncia- tao, s: ele e o d~ .uma máquina destinada a simular a atividade .!ter-
ção (isto é, a cada emprego de um enunciado em uma situação) o pretattva d~s SUJeitos falantes, implica somente, por hipótese externa
sentido que os sujeitos falantes, de fato, atribuem-lhe. Mas esta pro- que . estes sa~ capazes de atribuir um sentido aos atos d~ enuncia ã~
dução do sentido, nós · a subdividimos em duas etapas. Um primeiro reahzado~ .drante dele.s. :e esta hipótese que guiará o trabalho çde
observaçao. os fatos drante dos quais o Iingüista adotará a atitude de
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observador, serão os atos de enunctaçao, e as interpretações que os máquina. Notar-se-á, inicialmente, que a introdução da incerteza do
sujeitos falantes devem lhes atribuir. (Observemos, aliás, que esta locutor na significação complicaria de maneira considerável o compo-
idéia sobre a qual trabalhamos é, ela mesma, bastante discutível: po- nente lingüístico. Com efeito, desejaríamos que a descricão de enun-
der-se-ia muito bem rejeitar admitir uma hipótese externa como esta, ciados mais complexos como Se A ou B, então C se apoiasse sobre
e sustentar que o ato de enunciação se presta tão pouco quanto o a de enunciados mais simples como A ou B. Acontece que o elemento
enunciado à observação semântica direta . O que exigiria, ou que se "incerteza" desaparece muito freqüentemente quando se trata dos
recuasse ainda mais o momento de observação, ou que se abando- enunciados condicionais (imagina-se muito bem que alguém diga "Pe-
nasse o método de simulação). Quanto à hipótese de um valor semân- dro veio. Ora, se Pedro ou Paulo veio, isso é mau sinal"). No caso
tico vinculado ao enunciado enquanto tal, fazemos dele uma hipótese em que gostaríamos de produzir o elemento "incerteza" desde o C. L.,
interna, escolhida somente porque ela nos parece facilitar a constru- seria portanto preciso prever um mecanismo, bastante complicado,
ção de conjunto da máquina. Resulta daí que a atribuição de tal ou para anulá-lo nas condicionais. E mesmo se fosse confiada ao C. R.
tal significação a este ou aquele enunciado não terá que ser motivada esta tarefa, seria preciso de qualquer maneira que o c. L. tivesse um
por uma observação direta deste enunciado, mas pelas vantagens que dispositivo para prever que a relação condicional não incide sobre a
ela comporta quando se explicam os efeitos de sentido produzidos incerteza no mesmo sentido em que incide sobre a alternativa (a fim
por este enunciado. de evitar que Se A ou B tenha por significação "Se um dos dois é
verdadeiro e se o locutor ignora qual deles").
Um exemplo de aplicação. Suponhamos que temos que descrever
os enunciados do tipo A ou B. Uma dificuldade, entre muitas outras Este primeiro tipo de argumentação (que incide no C. L.) é, por
de que não falaremos, está ligada ao fato de que o emprego de enun- outro lado, corroborado por uma pesquisa que diz respeito ao C. R.
ciados desta forma implica quase sempre a indicação "O locutor não Por razões completamente independentes, o C. R. deve com efeito
sabe se é A ou se é B que é verdadeira" (ou "se os dois são verda- - segundo nos parece - comportar uma lei, que chamamos "lei de
deiros", no caso de um ou inclusivo). Com efeito, seria um pouco exaustividade", de acordo com a qual, num certo tipo de circunstân-
equivocado, sabendo que só Pedro veio (ou que Pedro e Paulo vie- cias, o emprego de um enunciado E implica a idéia de que o locutor
ram) anunciar Pedro ou Paulo vieram. Esta observação - sobre a não está em situação de utilizar um enunciado E' de significação
qual insistiram os filósofos ingleses da Escola de Oxford - nós a mais. fo!te: está-se obrigado a dar as informações mais fortes de que
consideramos como resultante de uma observação dos atos de fala nos se dtspoe. Parece-nos, por outro lado, totalmente possível e razoável
quais intervêm os enunciados em questão: sua validade é, portanto, intr~du.z~r d~sde o C. L. um procedimento de avaliação que apresenta
para nós uma hipótese externa, que não podemos mais rediscutir na a.s st~mftcaçoes de. A, de B, e de A e B como mais fortes que a signi-
construção da máquina. Pelo contrário, impomos à máquina a tarefa ftcaçao da alternahva A ou B. Apoiando-se sobre estes dados torna-se
de produzir uma descrição que lhe seja de acordo. O problema que possív~l então. q~e. o C. R., utilizando a lei de exaustividade: preveja,
subsiste para nós é saber em que etapa de seu funcionamento a má- ~. partir d'~ stgniftca~ão de A ou B, que não comporta o elemento
quina produzirá este elemento semântico (que chamaremos, para abre- I~certeza , um sentido da enunciação A ou B, no qual encontrar-
viar, "incerteza do locutor") . .Particularmente, nós nos perguntaremos se-ta este elemento - uma vez que o locutor de A ou B deva con-
se a incerteza do locutor deve ser mencionada desde o nível da signi- fessar que ele não está em situação de dizer mais.
ficação (isto é, se a consideramos como vinculada ao enunci.a do). A
decisão a ser tomada aqui constitui uma hipótese de uma ordem CONCLUSÕES
diferente; segundo nossa terminologia, é uma hipótese interna.
Esperamos que este último exemplo tenha mostrado que a distin-
Para justificar a solução escolhida não recorreremos, portanto, a ção das hipóteses externas e internas não é uma pura sutileza termi-
uma observacão semântica do enunciado (procedimento criticado há nológica. Considerar a atribuição de um valor semântico ao enunciado
pouco), mas ·a considerações relativas à organização de conjunto da (significação) como uma simples hipótese interna, é conceder-se, .na

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59
prática do trabalho, uma liberdade que, de outra maneira, seria injus- valÕres próximos. Se, por exemplo, Eu gostaria pode ser sentido como
tificável. Vê-se que a significação do enunciado torna-se uma pura o equivalente de uma ordem, nós nos damos conta deste fato ao nível
noção operatória, que o lingüista constrói de acordo com as necessi- do C. R. Este deve de todo modo comportar uma "lei de utilidade"
dades de seu empreendimento global. Uma comparação retirada da em virtude da qual o ouvinte está autorizado, em nossa coletividade
gramática gerativa tornará talvez menos estranha esta idéia (trata-se lingüística, a procurar por que o locutor disse o que disse, e a inter-
tão somente - deve-se insistir neste ponto - de uma comparação). pretar o ato de fala em relação à sua motivação provável: é esta lei
O estatuto metodológico que damos à significação do enunciado é que faz com que o enunciado indicativo A lâmpada da cozinha quei-
finalmente bastante parecido àquele da estrutura profunda em gramá- mou possa, em certas circunstâncias fáceis de imaginar, ser utilizado
tica gerativa. A existência de uma estrutura profunda diferente da e compreendido como o equivalente atenuado de uma ordem "Troque
estrutura superficial é, para o chomskiano, não o resultado de uma a lâmpada". A mesma lei explica que o enunciado Eu gostaria que
observação direta, mas uma decisão imposta pela construção efetiva você trabalhasse, descrito ,ao nível da significação como a manifesta-
de gramáticas gerativas (segundo nossa terminologia, é uma hipótese ção de um estado psicológico, possa tomar, ao nível do sentido, um
interna). Daí resulta que, para determinar a estrutura profunda de valor análogo àquele de uma ordem (aliás, fica aberta a questão de
um enunciado particular, o sintaticista não se contenta em observá-lo saber se se trata de analogia ou de identidade, e se o ato de fala pode
e de descrever a impressão ou a intuição lingüistica que ele tem dele: ser exatamente o mesmo quando ele é marcado no enunciado e quan-
ele escolhe como estrutura profunda, para cada frase, aquela que é do ele é tributário das circunstâncias da enunciação). Para resumir,
a mais vantajosa para que a gramática possa atingir seus objetivos considerar o valor semântico extra-contextuai como uma construção
gerais. t a mesma atitude que adotamos, mutatis mutand'is, face à explicativa e não como um dado de observação permite reintroduzir
significação (o que não quer dizer, certamente, que nossa "significa- neste valor uma boa parte da atividade de fala, por exemplo, os fenô-
ção" seja a estrutura profunda dos chomskianos, mas somente que menos de pressuposição *. Segundo Husserl, a colocação' entre parên-
ela desempenha o mesmo papel metodológico). teses do mundo no Cogito não exclui, mas pelo contrário revela, a
·~~· ~
relação do pensamento com o mundo. Utilizando, de maneira sem
I 1::,: Esta liberdade dada ao semanticista no que concerne à determi-
~,!:
..... dúvida abusiva, esta terminologia, nós diremos que a colocação entre
,..
1 .' ' nação da significação dos enunciados tem por outro lado uma conse- parênteses das situações particulares - implicada pela constituição
..........•·:·',1 qüência no que concerne à natureza da significação. Não sendo mais de um C. L. que trabalha sobre os enunciados tão somente - não
1:.,.
I
obrigado a observar a significação, o língüista não está limitado a esta exclui o reconhecimento de uma relação essencial entre o enunciado
introspecção fora de contexto que qualificamos de artificial. Em con- e sua enunciação.
seqüência disto, torna-se legítimo para ele introduzir, na própria sig-
nificação do enunciado, referências à enunciação, com a condição de Uma última conseqüência, que concerne às relações entre a se-
que sejam referências ao fato geral da enunciação, e não a esta ou mântica lingüística e o estruturalismo, pode agora ser assinalada. Sa-
aquela situação de fala. Em compensação, fazer a representação do be-se que o renascimento das pesquisas semânticas em lingüística, des-
enunciado fora de contexto seria proibir-se, não somente de caracte- de uma quinzena de anos, está muito ligado ao desenvolvimento da
rizá-lo em relação a empregos Rfirticulares, mas também em rela.ção gramática gerativa, e que esta é apresentada, por outro lado, como
ao fato de que ele é destinado a ser utilizado. Na nossa perspectiva, iinti-estrutural. Suponhamos que se entenda por estruturalismo lin-
nada impede, pois, de descrever o imperativo, desde o nível da signi- güístico o reconhecimento de uma originalidade profunda da língua,
ficação, da maneira sugerida mais acima, como a marca de um ato a idéia de que seus elementos não poderiam ser definidos em termos
jurídico que transforma ipso facto as relações entre os interlocutores, extra-lingüísticos, a idéia, portanto, de que existe, no sentido em que
colocando portanto uma diferença essencial entre Trabalhe! e Eu gos-
taria que você trabalhasse. A distinção dos dois componentes permi- * ~a época em que eu escrevia este artigo, como o reproduzido no Cap. I, eu
tiria mesmo responder a esta objeção, bastante plausível, de que, em sttuava toda pressuposição na significação fora de contexto. Agora eu só
numerosas circunstâncias, os dois enunciados acabam tendo de fato ligo à signüicação certas pressuposições ( cf. Cap. n) . '

61
Merleau-Ponty falava de um primado da percepção, um primado da
língua, esta sendo irredutível àquilo que não é ela. Neste sentido da
palavra "estruturalismo"; a semântica lingüística nos parece poder
ser profundamente estruturalista. Os desenvolvimentos precedentes le-
vam de fato à conclusão de que certas frases (as frases imperativas,
por exemplo) não poderiam ser descritas sem referência à atividade
Capítulo IV
lingüística. É impossível atribuir uma significação aceitável a um
enunciado imperativo (sublinhamos que se trata do enunciado e não
da enunciação) sem precisar qual ação, isto é, qual transformação do
mundo, está arbitrariamente ligada ao emprego deste enunciado. Não ESTRUTURALISMO, ENUNCIAÇÃO
se pode, portanto, dizer que o enunciado tem um valor definível em E SEMÂNTICA *
termos extra-lingüísticos (como comunicação de um conhecimento
sobre o mundo, por exemplo) que explica em seguida a atividade de
fala. Bem pelo contrário, o valor do enunciado não poderia desde o Através das correções, transformações e desenvolvimentos que a
início ser definido de outro modo a não ser em relação ao ato de teoria semântica apresentada em Dire et ne pas Dire 1 conheceu, um
empregá-lo. Introduzindo estas idéias - emprestadas largamente à fi- tema permaneceu constante e eu gostaria de reformulá-lo aqui antes
losofia analítica inglesa ~ no interior da técnica lingüística, fica con- de confrontá-lo com algumas observações e reflexões que dizem res-
firmada - cremos nós - a tese de uma originalidade absoluta da peito aos atas de linguagem. A descrição semântica de uma língua,
ordem lingüística em semântica. Isto significa introduzir a idéia de considerada como conjunto de frases ou de enunciados, não só não
um estruturalismo semântico, menos fundamentado sobre os conteú- pode ser acabada, como não pode ser empreendida de forma siste-
dos comunicados do que sobre as relações intersubjetivas ligadas à mática, se não mencionar, desde o início, certos aspectos da atividade
sua comunicação, um estruturalismo do jogo lingüístico. lingüística realizada graças a essa língua.
(Tradução: Rosa Attié Figueira) Se utilizarmos, para exprimir tal tese, a terminologia saussuriana
tradicional, seremos levados a afirmar, por exemplo, que uma lingüís-
tica da língua é impossível se não for também uma lingüística da fala .
Cumpre, no entanto, precaver-se para que esta reformulação - cômo-
da e aparentemente inteligível - não repouse num deslize de sentido.

* Este capítulo retoma, com algumas modificações de forma, um artigo pu-


blicado em Poétique, 33, fevereiro de 1978, p. 107-125. Como nos capítu-
los I e III deste livro, os termos "frase" e "enunciado" são aqui sinônimos,
e mais ou menos equivalentes ao que chamo hoje "frase". O "enunciado" de
minha terminologia atual (apresentada no capítulo Vill) corresponde ao
que é chamado aqui "ocorrência de frase" e algumas vezes "enunciação".
Notar-se-á, ainda, que este artigo não distingue as noções de "alocutário" e
de "destinatário", distinção utilizada em Ducrot et al. (1981), e que está
ligada à teoria da polifonia apresentada nessa obra e aqui mesmo, Capí-
tulo VIII.
1 . Encontramos uma amostra deste trabalho de autocrítica em um artigo de
1978, retomado aqui no Cap. II. As insuficiências teóricas de Dire et ne
pas Dire foram evidenciadas principalmente por Ebel-Fiola (1974) e Henry
(1977).

62 63
Pois a opostçao língua-fala tem, em Saussure, duas funções. Uma,
tinção metodológica deve ser projetada sobre o dado segundo um tra-
metodológica, corresponde à distinção clássica entre o objeto construí-
çado diferente daquele proposto por Saussure.
do pelo pesquisador e o dado do qual este objeto deve fornecer uma
explicação. É com referência a tal sentido que a "língua" pode ser, Poder-se-ia exprimir a mesma idéia de outra maneira - isto é,
nas linhas anteriores, apresentada como um conjunto de frases ou de por subversão de outros conceitos - reivindicando que a enunciação
enunciados, pois a própria noção de frase ou de enunciado é uma seja introduzida no interior do enunciado. Novamente, uma fórmula
construção (não se observa uma frase, mas apenas uma ocorrência que, tomada ao pé da letra, é contraditória e deve ser acompanhada
de frase) e alguns lingüistas esperam poder, a partir dela, contribuir de certas especificações (mesmo, e sobretudo, se corresponder à moda
para a explicação dos fatos de linguagem observados na vida cotidia- atual e puder ser recebida com generosidade). Pois cada ato de enun-
na. Ora, Saussure emprega o mesmo par de palavras para uma outra ciação constitui um acontecimento único, que implica um locutor par-
distinção, que se poderia chamar material, e que é, desta feita, inte- ticular, enquanto que o enunciado (a frase) permanece, por definição,
rior ao dado, dado de que ela opõe duas regiões (o deslize torna-se invariável através da infinidade de atos de enunciação de que pode
claro quando Saussure compara as relações entre a língua e a fala às ser o objeto. Construir a noção de enunciado é, pois, necessariamente,
que existem entre uma partitura e sua execução por um músico: a fazer abstração dessa infinidade de empregos, e não é de forma algu-
partitura é, tanto quanto sua execução, um dado observável). ma evidente que a fórmula introduzir a enunciação no enunciado não
seja um puro e simples absurdo. Se, no final das contas, ela se justi-
A língua constitui-se, então, de algumas relações - observáveis
fica, impõe-se ver que sua justificação implica certas escolhas.
ou por introspecção, ou por uma espécie de estudo distribucional -
entre os elementos da linguagem. Quanto aos fatos de fala, são outros Primeiramente, devemos aceitar distinguir as condições particula-
dados observáveis, a saber, os acontecimentos históricos que são os res, sempre novas, da enunciação produzida hic et nunc, e o fato geral
diversos atos de comunicação efetivamente realizados. Ora, é em rela- da enunciação, idêntico através da diversidade dos atos efetivamente
ção a esta segunda oposição que utilizamos em nossos slogans a pa- realizados. Somente graças a essa distinção, isto é, se admitirmos que
lavra "fala". Queremos dizer que o objeto teórico "língua" não pode o ato de fala individual se funda num esquema geral da atividade
't;.• '
ser construído sem fazer-se alusão à atividade de fala. Assim, para lingüística - confronto entre um locutor e um destinatário vistos co-
........'~~:1.: i'
!,
que cheguemos a nos exprimir em termos saussurianos, devemos utili- mo tal - , torna-se possível caracterizar o enunciado relativamente à
·~ ,. ' zar ao mesmo tempo as duas oposições em que aparece o par língua- enunciação. Isto significa, então, que o substituímos no esquema geral
fala, de modo a tomar emprestado um termo. à primeira oposição e o da enunciação: descrevemo-lo como especificando, de certa forma, o
outro à segunda. papel de seus locutores e destinatários eventuais; como atribuindo-
t:: ..
lhes, no sentido teatral do termo, certos empregos.
Se se pode considerar esse deslize como algo mais que um jogo
Mas, uma segunda decisão parece ainda necessária para que haja
de palavras, é porque, quer em Saussure quer em qualquer outro
sentido em afirmar a presença da enunciação no enunciado. É neces-
I : lingüista, as duas oposições não são, nem podem ser, absolutamente
sário precisar que este enunciado, cuja descrição semântica implica
independentes. A oposição metodológica produz a oposição material
um recurso à enunciação, constitui um elemento da língua (no senti-
projetando-se no interior de mfi de seus termos, a fala, e nela ope-
do metodológico do termo), isto é, uma entidade criada pelas neces-
rando uma separação entre duas categorias de fenômenos. Alguns, que ·
sidades da explicação, e não um dado observável. Suponhamos o con-
manifestem diretamente, e de modo "puro", por assim dizer, o objeto
trário. Admitamos que o valor semântico do enunciado seja um objeto
teórico, são chamados, num sentido novo do termo, a * língua, e ou-
de observação, suscetível de ser atingido quando um "native speaker"
tros, explicáveis somente de modo indireto e através da introdução
se pergunta que idéias desperta nele certa seqüência de palavras con-
de fatores estranhos, a *fala. Nossa tese é que a língua (como objeto
sideradas fora de toda utilização possível. É claro que, nesse caso, tal
teórico) deve conter uma referência àquilo que para Saussure cons-
observação (que chamei alhures "introspecção artificial") não pode
titui a *fala. O que significa dizer, no final das contas, que a dis-
fazer nenhuma alusão à enunciação, já que a sua própria possibilidade
64
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supõe tenha-se feito abstração dela. Se tomarmos, pois, ·o enuncia- lizando conceitos que foram justamente elaborados para dizer o
do como um dado observável, o ponto de vista que deveremos ado- contrário do que pretendo dizer, gostaria de propor uma formula-
tar para observá-lo excluirá inevitavelmente a enunciação. É por isso, ção mais direta, que consiste em duas proposições: de um lado, a
certamente, que alguns acham absurdo que se ponham no enunciado semântica lingüística deve ser estrutural. E, de outro, o que funda-
marcas de atos de fala; que se fale, por exemplo, de enunciados de menta o estruturalismo em matéria de significação deve levar em
ordem, de interrogação, de pergunta ... etc. Na verdade, dizem eles, conta a enunciação.
um enunciado não ordena, não interroga, não pede, mas é sim um
Ser estruturalista, no estudo de um domínio qualquer, é definir
enunciador, e num certo sentido sua posição é incontestável, na me-
os objetos deste domínio uns em relação aos outros, ignorando volun-
dida em que chamam de enunciado esse elemento que se pode des-
tariamente aquilo que, na sua natureza individual, se defina apenas
tacar, por abstração, do ato de enunciação do qual participa, e que,
em relação aos objetos de outro domínio. Admite-se, assim, que algu-
considerado de modo isolado, fica evidentemente esvaziado de todo
mas de suas relações mútuas não são uma conseqüência da sua natu-
poder pragmático. Mas, na realidade, os lingüistas que introduzem mar-
reza, mas que elas a constituem. Tal atitude significa, no fundo dar
cas de atos nos enunciados - e mais adiante tentarei mostrar que é
~pl~caç~o- ~recisa e clara a uma idéia que, na sua forma mais ~eral,
preciso fazê-lo - não consideram os enunciados como fragmentos de e tao d1flcd de_ captar e ao mesmo tempo tão pouco contestável que
enunciação (aquilo que sobra depois de suprimida a situação do dis- s~ tende a trata-la por preterição. É a idéia, evidente desde que nos
curso), mas como entidades operatórias, postuladas para atender às d1sponhamos a considerá-la, de que um objeto só pode ser descrito
necessidades da descrição semântica e justificadas apenas por que per- em r~lação a outros objetos, e que não há, se tomarmos as palavras
2
mitem explicar o dado, isto é, o uso efetivo da linguagem • E se ao pe d~ letra, nenhum sentido em visualizá-lo "em si mesmo". (0
introduzirmos nos enunciados marcas pragmáticas, isso não será o re- que habitualmente se entende, quando se diz que uma coisa foi con-
sultado de uma observação: o importante é que semelhante introdução siderada "em si mesma", quando um fonólogo, por exemplo, critica
mostre ter valor explicativo. os foneticistas por definirem os sons da língua "em si mesmos" é
que ela foi ~aracte~iz~da relativamente a objetos diferentes daqu:les
Procurando formular em outras terminologias atuais a tese aqui com. os qua1s deseJanamos relacioná-la.) Este papel constitutivo da
apresentada, poder-se-ia dizer que a semiótica (entendida no sentido a~tenda~e, vagamente admitido por todos, e por isso mesmo esque-
de Benveniste, como um estudo dos sistemas de signos) não pode Cido, fo1 posto em evidência por Platão, que o formulou de modo
constituir-se sem incluir uma semântica (estudo dos empregos de sig- p.aradoxal. Num. t:xto do s.ofista, em que passa em revista as "catego-
nos). Ou ainda, recorrendo à distinção neopositivista entre pragmá- nas fundamentais da reahdade - o Movimento, o Repouso, o Mes-
tica e semântica, diríamos que certos aspectos da pragmática devem mo, o Ser e o Outro - Platão mostra que o Outro tem um estatuto
ser integrados na semântica, e que não pode haver, entre as duas pes- particular, pois não se situa ao lado das categorias precedentes mas
quisas, uma ordem de sucessão linear 3 • Mas em vez de continuar uti- nelas. "Da essência do Outro, diremos que ela circula através de
todas, pois se cada uma delas, individualmente, é diferente das outras
não o é em virtude de sua própria essência, mas de sua participaçã~
2. O problema é que continua difícil não projetar a distinção enunciado-uso
no próprio interior do dado, istó' é, do uso. E, nesta projeção, a pesquisa
de um correspondente para o enunciado leva a isolar um objeto empírico, na natureza do Outro" 4 • Quanto ao estruturalismo, este consiste em
o * enunciado (como a língua de Saussure se projeta, no interior da fala, tomar essa tese geral como aplicável no interior de domínios parti-
em *língua). Num artigo de J. C. Anscombre e O. Ducrot, "L'Argumen- culares; em crer, por exemplo - tal o fundamento da fonologia - ,
tation dans la langue" (publicado em junho de 1976, no n. 0 42 de Langages, que um som elementar de uma ·Jíngua pode ser definido em relacão
consagrado à Argumentação), o que se chama aqui de "enunciado" é assi-
milado ao "enunciado-tipo" da literatura anglo-saxã, e o "*enunciado" ao aos outros sons dessa mesma língua, sendo tal som, portanto, cot;sti-
"enunciado-ocorrência". tuído por sua situação no interior da língua.
3. Esta tomada de posição relativamente à oposição semântico-pragmática é
apresentada nas primeiras páginas do artigo citado na nota anterior. 4 . Le Sophiste, 255e, trad. de L. Robin, edição da Pléiade.

66 67
Se quisermos, de outro lado, que o parti pris estruturalista leve irredutível, proibindo-a de fundar-se num outro nível de realidade,
a algo mais que a exercícios escolares, tendo no máximo, valor de Saussure estabelece, a um só tempo, a legitimidade e a necessidade de
ilustração, cumpre precisar que, para definir um objeto, escolhem-se procurar nela própria o princípio de sua racionalidade.
apenas certas relações que o ligam aos objetos do mesmo domínio. De-
vemos então mostrar que as relações retidas para a definição dos ter- Como aplicar este princípio à semântica lingüística?. De um modo
mos individuais permitem compreender, e mesmo deduzir, uma parte, negativo, é claro que estaremos nos antípodas do estruturalismo quan-
ao menos, das outras relações observadas no interior do domínio. Se do tomamos como descrição semântica de um enunciado ou de uma
todas as relações recebessem valor de definição, ou se não impusésse- enunciação sua tradução numa metalinguagem semântica universal, a
mos às relações retidas para as definições, que dessem conta das de- qual pretenderia ser a "língua interior" que o pensamento, segundo
mais, ~ empenho seria tão desinteressante quanto inatacável 5 • Para Santo Agostinho, fala a si mesmo, e que seria comum a todos os ho-
voltar à fonologia, a única coisa que pode fundá-la é que a sua carac- mens. Tratar-se-ia, nesse caso, de descrever as significações construí-
terização dos sons de uma língua como fonemas, vale dizer, a partir das e veiculadas pelas línguas naturais a partir de um outro conheci-
das relações de comutação que entre eles existe, permite explicar ou- mento do mundo, aquele que implica, como toda linguagem, a meta-
tras relações como, na percepção, ou, ainda, suas transformações no linguagem utilizada. O que se recusa aqui não é, pois, o recurso a
decorrer da evolução histórica. De maneira mais geral, quando isola- uma representação formal, que me parece necessária, mas a idéia de
mos determinado conjunto de fenômenos para submetê-los a um estu- que tal representação formal possa ser, no sentido comum da palavra,
do estrutural, postulamos que suas relações internas podem, ao menos uma linguagem cujas fórmulas possuam significação própria. O que
em parte, deduzir-se umas a partir das outras. Supomos, então, ser se recusa é que a escolha de uma fórmula F para descrever um enun-
possível conferir ao domínio estudado uma certa inteligibilidade, sem ciado ou uma enunciação E possua significação análoga a de E -
que seja necessário abandoná-lo e vinculá-lo a um outro campo de mas mais clara, e destituída de qualquer ambigüidade eventual. Numa
experiência. Tipicamente estrutural, sob este ponto de vista, é o estu- perspectiva estruturalista, as representações formais dos enunciados
do da percepção proposto pela "psicologia da forma" - na medida não podem ser chamadas de "linguagem" a menos que se dê, ao ter-
em que ela recusa descrever e explicar a percepção a partir de um mo, o sentido que tomou nas matemáticas - onde se trata apenas de
conhecimento prévio do mundo. Essa atitude Merleau-Ponty a desig- um jogo de símbolos sobre os quais puderam-se definir r~gras de cál-
~1 culo explícito. E se traduzirmos um enunciado por uma fórmula, isso
~I~~ nava como a crença no "primado da percepção". Se quisermos em-
~:: : ;:
preender uma pesquisa estrutural em lingüística, faz-se necessário, nada tem a ver com a tradução de uma frase francesa por uma frase
pois, admitir, no mesmo sentido, um "primado da linguagem", isto é, portuguesa, tradução que se funda na presumida equivalência de sua
uma independência, parcial ao menos, dos fenômenos de que ela é significação. Só há semântica estrutural quando se recusa, a priori,
r: :::
o lugar. Isso justificará que definamos, umas em relação às outras, buscar "equivalentes" para as significações Iingüísticas.
as "entidades" de que tratarmos, e que esperemos destas definições Para caracterizar, agora de modo positivo, a pesquisa estrutural
:: : internas primitivas o esclarecimento de outras relações observadas no em semântica lingüística, apontarei algumas formas possíveis, sem pre-
mesmo domínio. É por isso que se pode colocar, na base do estrutu- tender a exaustividade e sem nenhuma preocupação de motivar a mi-
ralismo em matéria de linguagem, o princípio saussuriano do arbitrá- nha escolha final. Trata-se apenas de pôr em evidência, por contraste,
rio lingüístico, princípio geral de que o arbitrário do signo é somente o que é específico nessa escolha. Uma variante distribucional consis-
uma aplicação particular. Atribuindo à ordem lingüística um caráter tiria em tomar como domínio de estudos, como campo empírico, o
conjunto dos enunciados de uma língua e definir çada um deles, do
5. Para ilustrar, em lingüística, estas duas deformações do estruturalismo, po- ponto de vista semântico, a partir de suas relações de coocorrência
deríamos citar, de um lado, o distribucionalismo integral, que procura re-
gistrar a totalidade dos ambientes possíveis para uma unidade, e, de outro,
com os outros nos discursos reais de que esta língua é o meio. A sig-
a álgebra glossemática, que se detém em certas relações bem definidas, mas nificação de um enunciado, aos olhos da lingüística, consistiria, então,
sem ao menos tentar mostrar o caráter explicativo dessa redução. numa espécie de representação condensada das associações de que ele

68 69
é suscetível no uso (indicado quais são os seus ambientes e que outros
enunciados têm os mesmos ambientes que eles). Uma dificuldade teó- de situação, as determinações ideológicas). A utilidade, para não di-
rica suscitada por esse programa - independentemente dos proble- zer a necessidade, desse empenho parece-me incontestável, sobretudo
mas técnicos que sua realização apresente - diz respeito aos corpus quando se trata de estudar, através das relações de coocorrência entre
do discurso a ser utilizado para caracterizar os enunciados. Se acei- enunciados, as associações estabelecidas entre certas palavras cujo
tarmos qualquer discurso, não importando sua proveniência, sem acei- valor não pode ser separado de suas implicações sócio-políticas ("liber-
tar a limitação a um corpus homogêneo, não é evidente que os resul- dade", "revolução", "trabalho", "capital", etc.) Mas é claro também
tados obtidos tenham uma relação, ainda que a mais distante, com que não chegaremos a caracterizar por este caminho - isto é, através
o que habitualmente entendemos por significação; tampouco é evi- das ocorrências dos enunciados a que pertencem - construções ou
dente que tenham aquele valor explicativo mínimo sem o qual, como morfemas cujo valor permaneça idêntico, quaisquer que sejam as
dissemos acima, o estruturalismo se reduz a um jogo. Pois a caracte- ideologias que os utilizem. É o caso de todos os elementos lingüísti-
rização semântica de um enunciado deveria, ao menos, ajudar a ex- cos que constituem a ossatura interna do enunciado; por exemplo, os
plicar os atos de enunciação de que é objeto. Por que foi ele empre- elementos tradicionalmente catalogados como gramaticais (artigos,
gado por um determinado locutor em determinadas circunstâncias?. tempo, preposições, conjunções, etc.), os marcadores das modalidades
Por que sua enunciação foi seguida de tal outra?. Por que desencadeou (afirmações, ordem, pergunta, etc.), ou ainda os advérbios que mar-
uma determinada resposta? ... Certamente é verossímil que a utiliza- cam atitudes do falante em relação ao que ele diz (mesmo, mas, tam-
ção do enunciado E na situação S seja motivada pelas associações es- bém, quase, apenas, etc). Suponhamos, por exemplo - esquemati-
tabelecidas entre E e outros enunciados E', E" ... , em certas situa- zando - , que encontremos no corpus ligado à ideologia A enuncia-
ções precedentes S1, S2 ... , como é também verossímil que ela seja dos como Ele é generoso, mas revolucionário, e, no corpus ligado à
compreendida por referência a tais associações. Mas parece bem arbi- ideologia B, Ele é generoso e mesmo revolucionário, enquanto que
trário fazer intervir, para cada emprego de E, todas as situações em nenhum par de adjetivos jamais é, num mesmo corpus, ligado ora por
que ele apareceu, mesmo aquelas que o locutor e o ouvinte ignoram mas, ora por mesmo. Seria pouco esclarecedor dizer que mas e mesmo
e não podem imaginar. têm valores diferentes nos corpus A e B, a pretexto de terem distri-
buições diferentes. A descrição inversa parece mais interessante e
Eis, segundo me parece, o tipo de dificuldade que conduziu M. consiste em admitir que sua significação não muda: mas liga, em to-
Pêcheux e sua equipe 6 a restringir a pesquisa distribucional a corpos dos os casos, duas determinações apresentadas como tendo orienta-
homogêneos, e, mais precisamente, a compostos de textos produzidos ções argumentativas opostas, e mesmo, duas determinações que vão
nas mesmas condições. Nesse caso, não se procura mais fornecer uma no mesmo sentido, e a segunda, mais longe, nesse sentido, que a pri-
descrição do enunciado E em geral, mas desse enunciado enquanto meira 7 • As diferenças de distribuições encontradas quando se muda
integrado num corpus particular. Assim, embora o dado empírico a de corpus testemunhariam então relações específicas que existem, em
ser descrito seja ainda (como em toda pesquisa distribucional) o enun- cada corpus, entre as palavras generoso e revolucionário. Daí esta pri-
ciado, e não a atividade individual de enunciação·, sua descrição - meira conclusão (que Pêcheux sem dúvida admitiria, atribuindo o fe-
isto é, a indicação de seu funciopamento no discurso - mantém-se nômeno ao que ele chama "a independência relativa da língua"): O
no interior de um conjunto de textos bem determinados, retidos por- semantismo de mas ou de mesmo não está ligado a uma ideologia par-
que respondem à mesma pergunta e porque o fazem no mesmo qua- ticular - de forma que nos privaríamos de certas possibilidades ex-
dro ideológico. A pesquisa semântica visa, portanto, a dizer que enun- plicativas se os descrevêssemos em relação a um corpus ideologica-
ciados têm contextos análogos num tipo determinado de situação de mente delimitado. Mas uma segunda conclusão se acrescenta: a signi-
fala, parecendo, por isso, ter a mesma função, incluindo no conceito ficação de mas e de mesmo também não pode ser captáaa num estudo
6. Sobre esses trabalhos, -ver, por exemplo, o n. 0 37 de Langages (março 1975), 7. Sobre a noção de orientação argumentativa, ver Ducrot, (1973, Cap. XIII)
assim como Pêcheux (1969) e (1975). e Anscombre e Ducrot (1976) .

70 71
distribucional de conjunto que misture corpus ideologicamente hetero- poderia ser seu equivalente, já que faria alusão, ou a ela (e não seria
gêneos. Senão encontraríamos, para a maior parte dos pares de adje- mais uma promessa, mas o comentário de uma promessa passada), ou
tivos, tanto o conectivo mas como o conectivo mesmo. Vemo-nos, en- a si própria (e seria, então, uma segunda promessa, diferente da pri-
tão, diante de duas expressões que, de um lado, não são suscetíveis meira). Poder-se-ia até mesmo generalizar a observação, que permite
de uma análise semântica distribucional, e que, de outro, devem ser definir um traço característico do ato ilocut6rio. Se "A" designar um
semanticamente definidas, se quisermos interpretar os resultados das certo tipo de ato, e se esse tipo de ato for de natureza ilocutório
análises de corpus parciais. E preciso, pois, submetê-las a uma semân- (promessa, ordem, interrogação ... ) , então uma enunciação E não po-
tica não-distribucional. Resta saber se esta pode ainda pretender-se derá realizar A senão fazendo alusão a si mesma: E faz referência a
estrutural. E enquanto E seja um A. O que fornece uma "espécie" de critério
A versão de estruturalismo que utilizo na semânti_ca lingüística para desambigüizar, do ponto de vista ilocutório, uma enunciacão
poderia ser chamada, escolhendo um rótulo destinado a desagradar, que recorre a um enunciado ilocutoriamente ambíguo. Dizendo· E~
"um estruturalismo do discurso ideal". Tentarei caracterizá-lo e de- virei, X realizou uma asserção ou uma promessa?. Na realidade, nin-
pois mostrar como ele se liga ao que foi apresentado, no começo deste guém, nem mesmo X, tem competência para responder a semelhante
capítulo, com a ajuda de slogans que possuem uma virtude publicitá- pergunta. Mas isso não impede que a pergunta seja semanticamente
ria ("introduzir a fala na língua, a enunciação no enunciado"). Esta pertinente, pois não se pode pretender compreender a enunciação de
concepção se distingue logo de início das pesquisas distribucionais, já Eu virei sem escolher ao mesmo tempo um desses dois valores (ou,
que toma como todo empírico não mais o enunciado (que será intro- eventualmente, um outro, de natureza semelhante), e não podemos,
duzido em seguida, a título de objeto construído), mas o ato individual por isso mesmo, realizá-la sem reconhecer que fizemos tal escolha. Por
de enunciação. Se é estrutural, ela o é na medida em que propõe que outro lado, é possível precisar o que está implicado em cada uma
o domínio da enunciação exige, ao menos num certo nível, uma des- das possibilidades concorrentes. Dizer que X fez uma promessa, por
crição autônoma (arbitrária no sentido de Saussure) que revele em si exemplo, é dizer que ele apresentou sua enunciação como sendo, para
uma inteligibilidade interna. ele, a origem de uma obrigação nova. :e dizer que se apresentou como
Isto, primeiramente, porque é essencial a todo ato de enunciação assumindo uma obrigação pelo fato de sua presente enunciação. Don-
de esta primeira conclusão: o aspecto ilocutório da atividade da fala
ser, para retomar uma expressão de Benveniste, "auto-referencial". De
forma que há sempre, pelo menos, um ato de enunciação ao qual so- confere-lhe uma referência necessária a si mesma 9 e permite, desde
mos necessariamente remetidos quando queremos compreendê-lo, e já, reconhecer-lhe o "primado" indispensável para seu estudo es-
trutural.
esse ato é ele próprio. Isso se torna mais claro se retomarmos a aná-
lise proposta por Searle para a promessa 8 : a promessa tem como Aprofundando essa relação estabelecida entre o estruturalismo e
traço constitutivo pôr o enunciador na obrigação de fazer aquilo com o estudo da enunciação, vemos aparecer uma segunda relação, que
que se comprometeu. Algumas precisões são, no entanto, necessárias explica a expressão "discurso ideal" utilizada mais acima. Eu disse,
pois é fácil perdermo-nos nessa formulação. Ela poderia querer dizer retomando Searle, que não se poderia descrever uma enunciação como
que quando X promete Y, o i!entido de sua enunciação é: "X está uma promessa sem dizer que ela acrescenta ao locutor uma obrigação
obrigado a fazer Y". Mas, em tal caso, não se trataria mais de uma nova, a de cumprir seus compromissos. Mas uma precisão, aqui, é
promessa: tratar-se-ia de uma afirmação (mais exatamente, do conteú-
do de um afirmação). Na realidade, não há nenhum equivalente se- 9. Poder-se-ia mesmo dizer que o ilocutório é o fundamento da auto-referên-
mântico possível para a enunciação de X, pois ela contém, de modo cia. Isso . inverteria a ordem estabelecida por Benveniste quando explica o
performativo pela auto-referência (cf. Benveniste 1966, Cap. XXI e XXII)*.
essencial, uma alusão a si própria. E a si própria que ela apresenta
* Se mantenho sempre, contra Benveniste, que o ilocutório em geral, e não
como fonte de obrigações, de sorte que nenhum outro ato de fala somente o performativo, implica a sui-referência, encontrar-se-á no Cap.
VIII uma concepção das relações ilocutório/sui-referência muito mais com-
8. Cf. Searle (1969, Cap. III e VTII). plexa que a apresentada aqui.

72 73
ainda indispensável e me levará, talvez, a distanciar-me· de Searle (a colocado na alternativa de cumprir seus compromissos ou tornar-se
recusar, em todo caso, as conclusões do capítulo VIII de Searle, 1969). perjuro. E a criação dessas alternativas é inseparável dos atos de fala
Pois nada autoriza a moralizar, e a sustentar que aquele que prome- realizados.
teu é obrigado a manter a promessa. Digo apenas que apresentar à Um terceiro grau é ainda possível nesta caracterização estrutural
pessoa sua enunciação, como uma promessa,. é aprese~tar-se como da enunciação. Eu quis mostrar que se deve descrever a enunciação,
obrigada - o que não implica ainda que seJamos obngados. Tudo de um lado, em relação à sua própria realização, e, de outro, em
quanto se pode dizer é que, no momento em. ~ue se pro~ete,_ des~o­ relação aos prolongamentos jurídicos que ela se atribui no futuro
bra-se um universo no qual nos tornamos su]eltos de obngaçoes un- imaginário de que é origem. Resta ver que tais prolongamentos
prescindíveis. Mas não cabe ao lingüista dizer se esse universo aberto abertos pela fala são eles próprios, freqüentemente, da ordem da
pelo ato da fala deve ser identfcado com o mundo real. Em outros fala. Com efeito, entre as ficções nascidas do discurso e constitu-
termos não há nenhuma contradição em manter, ao mesmo tempo, tivas de seu sentido, há também o discurso ulterior, que ele apresenta
que X' prometeu e que X não é obrigado . Nenhuma contradição t~m­ como sua continuação obrigatória. De que modo descrever, por exem-
bém da parte de X em dizer Prometi, mas no fundo nada me obnga. plo, uma interrogação, sem dizer que ela pretende obrigar o destina-
E nem mesmo penso que se possa condená-lo por contradição se, no tário a falar, por sua vez - e a falar de um modo determinado (dada
momento em que disser Eu prometo, pensar mas isto não me com- uma pergunta, só um certo tipo de enunciado pode ser considerado
promete com nada. Contraditório seria dizer, no mesmo ato de fala, como trazendo-lhe resposta)?. Ora, ainda aqui, permanecemos na or-
dando a segunda proposição como complemento da primeira. dem da pretensão e do discurso fictício. Pois muitas perguntas perma-
O poder que tem o ato da fala de engendrar um mundo ideal e necem sem resposta- o que é ótimo. Mas elas não são perguntas a
não ser porque exigem uma resposta. No mesmo espírito, tentei des-
de fazer leis para esse mundo, talvez o compreendamos mais facil-
crever a pressuposição como um ato de fala, caracterizado pelo modo
mente no exemplo da ordem - cuja relativização lingüística pode
segundo o qual ele rege o discurso ulterior, impondo-lhe um quadro
parecer menos escandalosa que quando se trate da promessa. Pois. a
e excluindo certas alternativas. Mais recentemente, pesquisas sobre a
ordem também tem como traço constitutivo apresentar-se como cna- argumentação na língua (cf. Nota, 7) levaram a introduzir na des-
dora de obrigação, com a diferença de que aqui a obrigação concerne crição semântica dos enunciados (e, a fortiori, das enunciações), indi-
ao destinatário: a fala de que ele é o objeto, encarrega-o de um dever cações sobre o tipo de conclusão a tirar das informações que eles vei-
(se ele não fizer o que lhe foi ordenado, sua atitude se torna, na culam. A diferença semântica mais clara entre Ele ganha quase 1.000
lógica da enunciação realizada, desobediência, e obediência, em ~aso cruzados e Ele ganha apenas 1.000 cruzados concerne ao tipo de en-
contrário) . Mas ninguém negará, agora, que o dever permanece mte- cadeamento permitido a partir da informação quantitativa dada pelo
rior ao mundo aberto pela enunciação . Do fato de que X tenha dado locutor. Suponhamos, então, que você responda Que escândalo! - e
uma ordem a Y, felizmente não resulta que Y deva obedecer. E não que o seu discurso continue o meu, isto é, conforme-se com as orien-
vejo nenhuma contradição no fato de X pensar e dizer que Y não é tações que escolhi - o escândalo em questão será, então, completa-
obrigado a obedecer. Simplesruente, o Y que permanece livre não é o mente diferente nos dois casos: o que o terá escandalizado, se eu
destinatário enquanto tal, vale dizer a personagem do ato de fala, disser quase, é o muito, e, se eu disser apenas, é o pouco. Vemos, uma
mas a pessoa, exterior a esse ato, que foi o seu objeto. Ainda aqui vez mais, por que o estruturalismo aqui apresentado faz referência a
a enunciação possui um sentido definível no interior do mundo um "discurso ideal": não se trata de descrever a fala de X pelas con-
"ideal" de que é origem, e não na realidade histórica em que se clusões que ele deveria tirar enquanto destinatário escolhido por X.
insere (o que deixa intacta a necessidade de dar-lhe uma interpre- Muitas das dificuldades da semântica lingüística se devem ao fato de
tação histórica). Nesse mundo ideal, o destinatário é atingido por uma se distinguir mal o destinatário - personagem da comédia ilocutória
situação jurídica nova, caracterizada pela alternativa obediência-deso- - do receptor real da mensagem. Uma pesquisa distribucional con-
bediência, ou, se se tratar de uma promessa, é o locutor que se vê cerniria ao segundo e caracterizaria o discurso pelas reações que o

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acompanharam. Mas a variante estruturalista de que falo nã<? considera
Na medida em que a significação concerne ao explicativo, o lin-
senão o primeiro - este outro em relação ao qual o discurso ganha
güista é livre, contanto que chegue, graças a ela, a explicar o dado,
sentido, mas .que é, ao mesmo tempo, uma projeção, a uma só vez
para construí-la como deseje, sem ser coagido por uma preocupaçãQ
constitutiva e constituída.
de adequação observacional imediata. Foi usando desta liberdade que
Falta agora ligar a forma de estruturalismo definida há pouco e introduzi, na caracterização semântica do enunciado, a indicação de
as fórmulas um tanto exageradas apresentadas no começo. Por que um certo tipo de utilização enunciativa que me parece estar a ele
seríamos levados, uma vez tomada a decisão de descrever a atividade ligado de modo bastante próprio (mesmo se, nas suas ocorrências em-
ilocutória a partir de si mesma, a reintroduzir a fala na língua, e a píricas, o enuncfado for, freqüentemente, objeto de utilizações total-
enunciação no enunciado?. Uma questão de método, primeiramente, mente diferentes). Não trataremos aqui do que concerne ao valor
que desenvolverá certas indicações das páginas iniciais. A concepção argumentativo (cf. Nota, 7), mas apenas das marcas relativas aos atas
estrutural que acaba de ser proposta concerne aos atos de enunciação, ilocutórios "clássicos". Assim, o enunçiadb Pedro parou de fumar?
isto é, ao dado lingüístico; para mim, aos fatos. Embora a apresentação comportaria, pelo menos, um marcador de interrogação, aplicado ao
escolhida para tais fatos seja ampla e conscientemente problemática, conteúdo [Pedro não fuma] e um marcador de pressuposição, aplica-
as hipóteses que lhe são incorporadas dizem respeito ao que alhures do ao conteúdo [Pedro fumava]. (Note-se que os colchetes, embora
chamei "as hipóteses externas" 10: s~o elas que comandam e infor- contendo, na falta de melhor, enunciados da língua natural, represen-
mam a observação, e não devem ser confundidas com as "hipóteses tam entidades construídas, e seriam substituídos, numa apresentação
internas" que o lingüista é levado a fazer quando procura explicar mais rigorosa da teoria, por fórmulas de um cálculo simbólico: tudo
fatores, vale dizer, construir uma máquina capaz de simulá-los. Con- o que se deve reter das indicações informais çiadas aqui é que o
sidero como uma hipótese interna atribuir ao enunciado uma reali- conteúdo, objeto do ato de interrogação, no enunciado Pedro parou de
dade semântica. Assim fazendo, supomos, de um lado, que enuncia-
fumar?, é principalmente aquele que é objeto da afirmação em Pedro
ções diferentes podem ser enunciações do mesmo enunciado; que há,
não fuma.) O problema agora será justificar a intr<;>dução de marcas
por exemplo, uma realidade lingüística única, subjacente a todas as
emissões vocais habitualmente transcritas pela seqüência de letras "O de atos na caracterização semântica do enunciado, justificando, ao
tempo está ótimo". E, por outro lado, admitimos - o que é ainda mesmo tempo, o funcionalismo que ela implica, pois essas marcas
menos evidente - que a imensa variedade de sentidos que aparece atribuídas ao enunciado constituem-lhe, no sentido tradicional da pa-
nestas múltiplas ocorrências pode ser engendrada a partir de uma lavra, a "função", ao mesmo tempo distinta dos múltiplos papéis que
única significação atribuída ao próprio enunciado, levando-se em con- o enunciado pode desempenhar em suas ocorrências efetivas, e os
ta as diferenças de situação (notar-se-á que cada ocorrência pode ter explica.
vários sentidos, segundo a pessoa - locutor, destinatário, ouvinte -
Um pouco de autocrítica faz-se aqui necessária, para rejeitar um
que a interpreta; se que cada uma dessas pessoas pode eventualmente
tipo de justificação mais ou menos explicitamente sugerida em Dire
visar a vários sentidos diferentes, se imaginar várias representações
possíveis da situação). Ao con!rário dos procedimentos distribucionais, et ne pas Dire. Com efeito, deixo aí entender que se uma enunciação
que tomam como fato observável a recorrência de um enunciado úni- E, utilizando um enunciado e, realiza o ato iloc1.1tório A, é porque e
co através de uma variedade de empregos, o enunciado, para mim, está marcado por A. Esta tese significa identificar duas distinções que,
diz respeito às construções operatórias, isto é, ao objeto: parece-me embora sendo correlatas, não o são de manéira tão simples. Eu iden-
útil, para a explicação dos enunciados empíricos, postular, atrás de tificava a oposição austiniana do ilocutório e do perlocutório e a opo-
sua diversidade, uma unidade semântica que chamo "a significação do sição entre o valor pragmático ligado ao enunciado (valor que eu
enunciado". fazia engendrar por um "componente lingüístico" que trabalha unica-
mente a partir do enunciado), e o valor por ele recebido de sua utili-
10 . Çf, aqui mesmo Cap. III. zação numa dada situação (valor calculado por um "componente

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retórico" que conhece, ao mesmo tempo, a situação e a significação enunctaçao realizar o ato ilocutório A é uma coisa que não prova,
lingüística do enunciado). Eu parecia, assim, admitir duas implicações: entretanto, que o enunciado empregado seja lingüisticamente consa-
ilocutório ~ inscrito no enunciado (calculado pelo "componente grado a A no sentido em que uma fórmula mágica é consagrada a
uma certa prática).
lingüístico ").
perlocutório ~ ligado à situação (calculado pelo "componente retó- E, no entanto, mesmo se renunciarmos a identificar as noções de
rico"). ato ilocutório e de ato marcado no enunciado, continuará a ser ne-
cessár~o. se é que acreditamos (hipótese externa) na existência de uma
Semelhante decisão levava a dizer, por exemplo, que, se um atividade ilocutório na enunciação, introduzir, na descrição dos enun-
enunciado marcado pela interrogação (Você quer abrir a janela?) foi ciados, certas marcas de atas (o que significa tomar como hipótese
utilizado como uma ordem, reconhecível apenas graças à situação de interna que o enunciado comporta alusões a certos tipos de atas rea-
discurso deve ele ser perlocutório (seria ilocutório, ao contrário, ti- lizados na sua enunciação, ou ainda, que a língua deve ser caracteri-
vesse sido dado através de um imperativo como Abra a janela!). Se- zada relativamente a certas formas de ação, cujo lugar é a fala). Dei-
ríamos então levados a distinguir, para um mesmo tipo de ato (a or- xarei de lado os argumentos de técnica lingüística mostrando que um
dem), duas r;alizações possíveis, uma ilocutório e outra ~erlocutó~io. grande número de morfemas, componentes do enunciado, deve ser
Conseqüência inadmissível, pois toda ordem é n~cessa~t~mente. ilo- descrito em relação àquilo que fazemos quando empregamos os enun-
cutório. Dizer que uma enunciação realiza um ato tlocuton? ~utv~e ciados (conectivos proposicionais como pois ou já que podem ligar,
a dizer que ela se apresenta como modificando, por sua propna exts- não só o conteúdo das proposições mas também, e segundo regras
tência, a situação jurídica dos interlocutores. Mas é bem isso o que bem definidas, os atas realizados quando os enunciamos: Venha, pois
está implicado quando interpretamos um enunciado, qualquer que ele eu tenho o direito de lhe dar ordens. E certos advérbios 11 qualificam
seja, como uma ordem. Daí toda enunciação, desde que t~mad~ ~orno o fato de dizer e não apenas a coisa dita: é o caso de francamente e
uma ordem, ser dotada, por isso mesmo, de um valor tlocutono. É sinceramente, por oposição a com sinceridade, lealmente, como pode
verdade que quando utilizamos, para ordenar, uma frase interrogativa ser visto comparando francamente, é um idiota!, frase bastante possí-
do tipo Você quer abrir a janela?, torna-se sempre possível um mal- vel, com esta, bem mais estranha, Com sinceridade é um idiota!).
entendido; o destinatário pode interpretar a enunciação, ou fingir in- Com efeito, tais argumentos mostram apenas que certos segmentos de
terpretá-la, como uma simples pergunta, e até mesmo responder a ela enunciados têm o poder de permitir, quando utilizados, uma referên-
como tal (Não, eu estou com muito frio) - negando-lhe qualquer cia a atas de enunciação precedentes ou posteriores . Semelhante re-
pretensão de obrigar alguém a abrir a janela. Mas apesar disso, se for sultado não é, seguramente, negligenciável, nem em si mesmo, nem
vista como ordem, é a título ilocutório que recebe tal valor: supomos para a tese que aqui propomos. Com efeito, ele obriga a repercutir
que o enunciador fez de sua fala a origem de uma obrigação para o no enunciado a propriedade que tem o discurso de se tomar como
destinatário. Em outros termos, a classificação ilocutório versus per- objeto e de se comentar ao longo do seu próprio desenvolvimento, já
locutório concerne não apenas às ocorrências de atas mas, de modo que certos morfemas, que devem ser descritos no nível do enunciado,
mais geral, aos tipos de atas. Aborecer, desesperar, humilhar, são só podem sê-lo se indicarmos o tipo particular de sua relação com a
sempre (ao menos na nossa c~letividade lingüística) compo~tamentos enunciação 12 • Mas isto ainda não basta para legitimar o ponto de
perlocutórios, enquanto que prometer, interrogar, ordenar, dtzem sem-
pre respeito ao ilocutório. Ora, está empiricament~ ~omprovad~, como 11 . Há, pois, três incidências possíveis para um advérbio. Ele pode relacionar-
vimos, que uma grande variedade de atas ilocutonos se reahza co_:n se com um constituinte do conteúdo do enunciado (Pedro falou franca-
mente); com o conteúdo tomado em sua totalidade (Felizmente, Pedro
a ajuda de um mesmo enunciado (enunciado que, entretanto, nao falou), ou com o ato de enunciação (Francamente, Pedro falou muito
pode ser marcado ao mesmo tempo para todos estes atos). Uma dada bem).
12. E essencial, para a demonstração, que não seja o caso de todos os mor-
* Esta autocrítica está apresentada com detalhe no Cap. II. femas, e que a alusão à enunciação se faça, para um dado morfema,

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vista que desenvolvo, pois o estruturalismo de que falei não consiste tivo independente). Tal demonstração não pode ser feita aqui em por-
apenas em dizer que as enunciações aludem umas às outras, mas em menor. Posso, apenas, para dar uma idéia, indicar, como amostra,
dizer que cada uma alude a si mesma, e ao "mundo ideal" nascido alguns momentos que deveriam fazer parte dela.
de sua própria existência. O conceito central, aqui, é o de auto~refe­
rência. Correlativamente, se desejarmos fazer repercutir no objeto Suponhamos que tivéssemos de mostrar, por exemplo, que não
construído "língua" o estruturalismo relativo à fala, será preciso ins- se poderia tomar como valor fundamental da frase interrogativa A?
crever, no enunciado, não apenas uma alusão geral à enunciação, mas, (onde a interrogação é marcada pela inversão ou pela entonação) uma
para cada enunciado, uma alusão ao poder particular que .possui sua negação atenuada, que poderia também exprimir-se por enunciados
própria enunciação. Em outros termos, será preciso introduzir, na não-interrogativos como Pode ser que não-A ou Não é certo que A.
descriÇão semântica dos enunciados, a indicação de atas de fala bem Para fazê-lo, apontaremos numerosos empregos em que o enunciado
definidos (a saber, os atas ilocutórios austinianos, ordem, interroga- interrogatiyo não pode ser substituído por enunciados assertivos que
ção, asserção ... ), pois se a sua enunciação é auto-referencial, ela o é exprimam uma negação desse tipo. Experimente o leitor, então, pedir
n~ medida em que realiza tais atos. o jornal dizendo ao jornaleiro, em vez de "Você tem O Estadão?",
"Pode ser que você não tenha O Estadão" ou "Não é certo que você
A caracterização ilocutória dos enunciados estaria imediatamente
tenha O Estadão". É verdade que podemos recorrer a "Você não tem
justificada se pudéssemos escolhê··los de forma que tivessem uma úni-
O Estadão", mas com a condição de acrescentar-lhe a entonação inter-
ca utilização ilocutória; se pudéssemos, por exemplo, definir "frases
interrogativas" às quais correspondessem, no uso, só atas de interro- rogativa (que, aliás, permitiria empregar da mesma forma a frase po-
gação. Nesse caso, com efeito, não se vê bem como explicar a regu- sitiva "Você tem O Estadão"). De onde eu concluirei que, se há um
laridade observada no nível do emprego, senão atribuindo-a a uma parentesco incontestável entre a negação e a interrogação, os carac-
propriedade arbitrária do enunciado (nem mais, nem menos arbitrá- teres que elas têm em comurri não explicam o emprego da interroga-
ria que os outros componentes de sua significação). Mas a situação ção para pedir.
é bem diferente e vemo-nos, com freqüência, obrigados a reconhecer, Depois de ter criticado, com argumentos deste gênero, a atribui-
como um só e único enunciado, uma seqüência de morfemas que ser- ção de um valor fundamental não-pragmático à interrogação, cumpre
ve para perguntar, pedir, negar, afirmar, marcar uma hesitação, etc.
agora escolher um valor pragmático. Por que supor, por exemplo, que
Minha argumentação não pode, portanto, ser senão indireta. Consiste esse valor seja antes a pergunta do que o pedido?. Mostraremos, então,
em mostrar que os valores não-interrogativos são deriváveis de um que, quando a frase interrogativa serve para pedir, ela é submetida a
valor interrogativo posto, por hipótese, como fundamental, quando certas restrições, inexplicáveis, se o pedido for sua função primeira.
não podemos fazer o inverso, sem tomar como fundamental uma mo- Seria, assim, bastante estranho dizer ao jornaleiro "Você tem O Esta•
dalidade não-pragmática - por exemplo, uma forma atenuada de dão?", se o jornal se encontrasse bem diante de nossos olhos, nas
negação 13 - e dela derivar todos os valores pragmáticos (compreen- prateleiras. Seria bastante fácil explicar tal fenômeno se a frase utili-
de-se que as expressões podemos, não podemos devem ser entendidas zada, antes de servir para pedir, servisse para interrogar, e conser-
de modo relativo, pois nesse domfnio tudo é possível: dizer q~~ uma vasse certas condições de emprego características da pergunta. Ao
derivação é impossível significa simplesmente dizer que ela obrigaria contrário, a explicação poderia ser bem delicada se a fórmula fosse
a postular regras criadas especialmente para ela e sem poder explica- considerada, desde o início, como um pedido (neste caso, ela seria
particularmente natural se soubéssemos que o jornaleiro tem condição
segundo regras definidas. Assim, podemos mostrar que a possibilidade de de satisfazer o pedido.)
uma relação com a fala deve ser inserida na estrutura semântica do mor-
fema, e não ser-lhe automaticamente sobreposta pelo fato empírico da O último momento da demonstração consistiria em derivar efeti-
enunciação. vamente o emprego da fórmula interrogativa, visando a um pedido, de
13. :É a escolha que fez, por exemplo, Moignet (1966, p. 49-66). seu ,emprego fundamental como pergunta. Neste caso, haveria poucos

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problemas, ao menos no exemplo aqui estudado, se lembrássemos 2) uma tendência correlativa de perguntar por que o locutor dis-
a definição dada para o ato de interrogar: para mim, é essencial que se o que. disse;
o ato de interrogar pretenda impor ao destinatário, pela sua própria 3) a possibilidade, para o destinatário, de fazer o seguinte racio-
realizacão, a obrigacão de responder. Admitamos, por outro lado, que cínio: a finalidade de perguntar não pode ser A (saber); ora, se sua
exista,· em nossa c;letividade, aquilo que chamei uma "lei de dis- finalidade fosse B (pedir), ele teria feito uma pergunta; logo sua
curso" 14 (a filosofia americana da linguagem diria, como Grice, uma finalidade era B (não se trata, evidentemente, de uma dedução logica-
"lei conversacional") que estipula que o ato da fala não deve ser o mente necessária, mas do raciocínio "certas coisas se passam como se
seu próprio fim, e sim ser sempre o meio de um fim que lhe é exte- P, Logo P", que funda todas as induções da vida cotidiana, e algumas
rior (daí as perguntas do tipo Por que você diz isso?). Neste caso~ é outras);
inevitável que o jornaleiro de nosso exemplo, tendo de interpretar
uma pergunta, procure a razão pela qual seu ~terlocutor quer fazê-lo 4) a tendência de interpretar um ato de fala, por antecipação,
dizer se recebeu O Estadão. E, na medida em que a situação torne como o signo daquele que deve supostamente continuar (ainda aqui,
improvável que se trata apenas de curiosidade, não será absurdo com- trata-se de um mecanismo semiológico bastante geral, que faz inter-
preender o interesse como uma manobra preliminar que serve de pretar o que precede como signo do que se segue).
prefácio para um pedido posterior. Tal previsão, aliás, não é. ~ifícil Será possível compreender muitos discursos sem pôr em ação
de ser feita se o pedido ou a ordem não forem apenas a descnçao de estes princípios?
desejos ou de vontades, mas a imposição de obrigações. Ora, acon-
tece que estas obrigações não se dão como condicionais: "Dê-me O Notar-se-á que o esquema explicativo aqui esboçado repousa
Estadão!" não é sinônimo de "Dê-me O Estadão, se é que você o constantemente, quer se trate do ato derivado (pedido) quer do ato
tem". Portanto, na medida em que elas se apresentam como absolu- primitivo (pergunta), na concepção jurídica do ilocutório apresentada
tas e à falta de um princípio mágico-filosófico do tipo "Você deve, acima (a própria enunciação dando-se como fonte de uma modificação
log~ pode", é fácil imaginar que procuramos saber, antes de pedir ou nos direitos e nos deveres dos interlocutores). Não fosse assim, a ex-
de ordenar, se a satisfação é possível. Eu resumo. O destinatário está plicação dada como exemplo não poderia preencher a função que
na presença de um enunciado interrogativo, quando o fim almejado lhe é destinada no interior deste trabalho: pôr em relação aquilo que
não pareça ser simplesmente o de obter uma resposta. Por outro lado, chamei de uma concepção estrutural da enunciação( inspirada, talvez ..
ele sabe que um pedido é suscetível de motivar uma pergunta breve. muito livremente, em Austin e Searle), e a decisão, de ordem técnica, ::!
;.•• c
y ,I
I
Pode então, com certa verossimilhança, compreender a pergunta como de inserir na descrição semântica do enunciado marcas relativas a sua ,,~ lj
' ')
a prhneira fase de um processo de pedido, e, por antecipação, inter- enunciação. Por tal razão, insistirei ainda uma vez neste ponto, ten- ., ·ll
:- l
pretá-la como sendo aquilo que ela prepara (e o locutor, por ~ua ;~z, tando explicar um outro emprego derivado da interrogação, e cha- ·~ I
prevendo o valor que será atribuído à sua pergunta pelo destmatllno, mado interrogação "retórica".
pode pretender dar-lhe efetivamente tal valor). Em seus Príncipes de Littérature 15 , Batteux a classifica entre as
Justificar esta derivação seria, antes de tudo, mostrar que os m:- "figures touchantes", e observa que se emprega no "style vehément":
canismos interpretativos utilizados são, de qualquer forma, necessa- visa a "tenir en haleine" o ouvinte, "en le forçant d'écouter et de
rios na teoria da comunicação lingüística. Foram supostas: prendre l'impression" (cf. Quem te pôs no mundo, quem te alimen-
tou, quem te embalou?). Ora, este efeito coercivo da interrogação,
1) a existência, em nossa sociedade, de uma concepção utilita-
quando utilizada para afirmar, ou mais exatamente, lembrar, explica-
rista do ato da fala, sempre tomado como o meio de um fim;
se facilmente se partirmos da descrição ilocutória, segundo a qual o
14 . Distinguiremos as regras que concernem à realização dos atos de fala, e ato de interogar comporta a pretensão de obrigar o destinatário a
que, portanto, as regulamentam de fora, da "deontologia" interna ao ato,
e constitutiva de seu sentido, de que falei acima. 15 . Tomo IV da edição de 1824, p. 106.

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responder. Neste caso, é preferível que a pergunta tenha ,l.lPl ar de lar aquilo que se disse. Suponhamos, em compensação, que o ato pos-
"forçar" o interlocutor, e, na medida em que a resposta as pergun- sa permanecer ilocutório, ainda que derivado (que é a posição aqui
tas seja evidente, de forçá-lo a ir no sentido fixado por quem fala, ilustrada 18); ·não haverá, então, mais necessidade de atribuir aos
a participar de seu movimento argumentativo. Tanto estudando o enunciados (considerados como fórmulas} uma eficácia independente,
emprego retórico da interrogação, como estudando seu empr~go na já que a eficácia pertence agora aos atos de enunciação (e com a con-
pergunta, vemos aparecer um elo entre as duas esc~lhas que ft~em~s, dição, ainda, de manter-se no "espaço ideal" de que cada um pre-
primeiro no nível da observação, o segundo no ruvel da exphcaçao. tende ser a origem) . Passamos de uma sacralização da palavra a uma
0
sacralização da fala. Tal concepção, que parece bem atual, é atestada
1 tomar a auto-referência como característica da atividade de
pelos usos mais comuns da língua. Compreender uma enunciação E
fala (o. que, para mim, é o fundamento da noção de il~cutório, e, ao
A
como realizando o ato ilocutório A (asseverar, pedir, interrogar . ..
mesmo tempo, do estruturalismo em matéria de semantlca); etc.) é pensar que a ela se atribui o poder mágico de criar uma situa-
2 . derivar os a tos de fala efetivamente realizados de a tos de fala ção jurídica nova. E em vez de perguntar se ela realmente criou ou
previstos no enunciado. não essa. situação - o que diz respeito à casuística - encontramo-nos
~ verdade que não posso provar que a primeira escolha imp~ica agora diante de uma série de questões de ordem empírica. Conside-
rava o locutor sua fala como realizando A?. Compreenderam-na assim
logicamente a segunda. Mas espero ter mostrado que podem apotar-
o destinatário e os ouvintes?. Em caso afirmativo, admitiram eles a
se uma na outra. pretensão do locutor e aceitaram o jogo que lhes era oferecido?. A
Gostaria ainda, antes de terminar, de assinalar duas ~nseqüê~­ descrição lingüística pode servir para suscitar tais questões, mas seria
cias da autocrítica antes esboçada, e que era destinada a mtroduztr absurdo pedir-lhe que as resolvesse.
a idéia de ato ilocutório derivado e, a partir daí, tornar possível a
Minha última observação diz respeito às relações entre pressu-
análise dos empregos da interrogação.
postos e subentendidos. Freqüentes vezes eu os opus como duas for-
Uma primeira conseqüência concerne às relações entre a teori~ mas de implícito das quais uma (o subentendido) se manifesta a par-
do ilocutório e a crença no poder das palavras. Se pensarmos que so tir de uma reflexão sobre as condições de enunciação, enquanto a
é ilocutório um ato inscrito no enunciado (concepção, implicitament~ outra (o pressuposto) seria inscrito no enunciado - já que é carac-
favorecida na versão original de Vire et ne pas Vire, deveremos atn- terístico do enunciado Pedro continua a fumar dar a informação 'rPe-
buir aos enunciados, considerados como fórmulas,, e indepe~~ente­ dro fumava". e dá-la de modo implícito, bem diferente do esta'tuto
mente de sua enunciação, uma eficácia especial. D.a1 .uma especte d~ assertivo atribuído à informação explícita "Pedro fuma atualmente".
concepção mágica da linguagem: a própria matena~tdad~ do. que e Mas, ao mesmo tempo, eu descrevia, e continuo a fazê-lo, a pressu-
dito traria em si um poder sagrado 1 1!.; Embora t~ slt~aç~o ~eJa pr~­ posição como um tipo particular de ato de fala ilocutório, como um
vavelmente atestada na História, ela n?o tem senao eXIstencta _margi- certo modo de propor regras para o discurso posterior. Manter ao
nal e indireta nas sociedades ditas modernas. Somos, en~ã~, obn?~dos, mesmo tempo estas duas teses não apresentava nenhum problema, pois
assim que apresentamos esta idéia, a acumular as restnçoes, extgmdo eu dava justamente como característica do ilocutório sua inscrição no
condições sociais suplementares para a realização efetiva dos atos (cf.
Benveniste, que pesquisa em que condições a fórmula Declaro aberta 18 . E apenas "ilustrada", pois não foi minha intenção tratar todos os proble·
a sessão abre realmente a sessão 17). Isto significa, no essencial, anu- mas levantados por esta decisão. Fica, por _exemplo, para ser caracterizada
a derivação que leva ao ilocutório (fazer uma pergunta para pedir), em
16 . E o que P. Bourdieu critica em Austin (Cf. Bourdieu, 1975) . oposição àquela que leva ao perlocutório (fazer uma pergunta para em-
17. Embora a concepção literal do ilocutório aqui criticada não seja a de baraçar). Por outro lado, seria preciso distinguir os casos em que a
Austin (ao contrário), a pesquisa austiniana sobre as "condições de~ feli· interpretação pode manter, ao mesmo tempo, o ato primitivo e o ato deri-
cidade" dos atos de fala, parece-me ligada de fat.o a esta concepçao, e vado ("Você tem O Estadão?") , e aqueles em que o ato primitivo sé
perde o essencial de seu objeto quando dela nos descartamos. apaga ("Você pode abrir a janela?").

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Qual será então, a sorte, nesta revtsao teórica, da noção de su-
interior do enunciado. Mas a situação muda bastante se admitirmos,
bentendido?. Servirá para designar os efeitos de sentido que aparecem
de um modo geral, um ilocutório nascido da enunciação. ~ pres~~po­
na interpretação quando refletimos sobre as razões de uma enunciação,
sição teria, então, um estatuto excepcional entre os atos 1~ocutor10s :
perguntando por que o locutor disse o que disse, e quando considera-
seria 0 único a ter um elo necessário na sintaxe do enunctado.
mos tais razões de falar como partes integrantes do que foi dito. To-
É isto 0 que me leva, agora, a renunciar à forma de oposiç~o dos os exemplos clássicos de subentendido entram nessa categoria.
estabelecida antes entre pressuposição e subentendido *. No ~ue dt_Z Também entram os atos ilocutórios derivados, e, entre outros, os pe-
respeito à pressuposição, é preciso dar-lhe o estatuto geral do tlocuto- didos derivados da interrogação, de que tratamos acima. Mas também
rio. Ela pode ser marcada no enunciado (é o caso dos pressupostos introduziremos aqui os pressupostos não inscritos no enunciado (isto
de que normalmente se ocupam os lingüistas; p~r e:emplo, aquele é, em sentido estrito, "não lingüísticos") cuja possibilidade acabo de
que introduz 0 verbo continuar), mas pode tambem nao a~ar:cer se- mencionar. Um ato de pressuposição poderá, então, ser subentendido
não numa interpretação fundada nas condições de ,enunctaça~. ~sto da mesma forma que um pedido. Não se exclui, enfim, que uma indi-
permite reconhecer como pressuposto um grande numero de t~d~ca­ cação semântica pressuposta no nível do enunciado apareça, no nível
ções, cujo estatuto semântico está intuitivamente bastante proxtmo da enunciação, como o objeto, por exemplo, de uma afirmação (cf.
daquele dos pressupostos clássicos, com a dif~re~ça de. que sua pro- uma utilização humorística do enunciado O rei da França é sábio pa-
dução é determinada pelas condições de enunctaçao: asstm, entre uma ra afirmar, de modo figurado, mais precisamente conotativo, que
infinidade de exemplos, certos empregos de João comeu o chocolate existe de fato um rei na França 20 • Toda uma retórica da pressuposição
pressupõem que alguém comeu o chocolate (se a frase for dia para teria lugar aqui, para mostrar como utilizamos um enunciado que
revelar 0 responsável e não para anunciar o fato globalm:_nte); O que pressupõe X a fim de dizer X. Penso, por exemplo, em uma publi-
define a pressuposição, em geral, nesta nova apresentaçao, e ,o que cidade na qual uma agência européia de viagens anuncia suas férias .,
eu chemei de "lei de encadeamento". A informação pressuposta e apre- nas Bahamas sob o título "Férias nas Bahamas não apenas econômicas,
sentada como não devendo ser o tema do discurso ulterior, mas ape- mas também inesquecíveis". O enunciado utilizado pressupõe "As
nas 0 quadro no qual ele se desenvolverá. (Assim, . dizendo .Pedro férias nas Bahamas são econômicas". Ora, para um público europeu,
continua a fumar, ou, nas condições de emprego actma prectsad~s, esta é a informação principal, muito mais paradoxal que o caráter
1oão comeu o chocolate, os temas discursivas que l~~s proponho_ sao, inesquecível das férias. Deste modo, o que é pressuposto no enunciado
respectivamente, 0 vício atual de Pedro e a culpabthdade de Joao, e será compreendido como objeto de afirmação. A astúcia do slogan
não 0 modo como Pedro fumava antes, nem o roubo do chocolate. consiste em que o conteúdo afirmado não o seja diretamente, mas
Dessa forma, excluí as eventuais réplicas: E por isso que Pedro estava
doente no ano passado ou Será preciso comprar outro chocolate (o X, se A e a negação de A co~tiverem a indicação X". A pretensa defini-
que não significa, é bom lembrar, que tais encadeamentos sejam inve- ção não é, na verdade, mais do que uma regra operatória escolhida no
momento de constituir as descrições semânticas dos enunciados. O que a
rossímeis, imorais ou anormY!is, e nem mesmo que o locutor pense que justifica é uma verificação muito geral de que se pode fazê-lo quando se
eles não se produzirão 19 .) comtrói essa descrição. Percebe-se, com efeito, que se temos fundamento
para explicar os empregos de um enunciado A, em introduzir na sua des-
crição um pressuposto X, também o temos, na maioria das vezes, se qui-
* Cf. Cap. II. sermos explicar os empregos de não-A, em introduzir este mesmo X na
Nesta nova forma da teoria, os critérios habituais da pressuposição (resis- descrição de não-A. O "critério" da negação atua sobre tal coincidência,
19 · tência à negação e à interrogação) servem somente para apontar os ..pres- observada quando se busca explicar, no nível dos enunciados, enunciações
supostos ligados ao enunciado, aqueles que devem ap~~ece~ desde o com- de A e de não-A.
ponente lingüístico". E, refletindo bem, é a melhor utihzaçao~ que _po~em~s 20. Cf. Ducrot (1966).
fazer deles. Seja, com efeito, a definição clássica "A pressupoe a mdtcaçao

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apenas de forma derivada e a partir de um enunciado marcado para
pressupô-lo. Isso ilustra ainda - desta vez através de uma palinódia
- o tema que o presente trabalho pretendeu comentar. Trata-se de
relacionar duas afirmações à primeira vista muito distantes, mas que
constituem, a meu modo de ver, duas formulações da mesm,a idéia.
Uma propõe a possibilidade de um estudo estrutural do aspecto ilo- Capítulo V
cutório e sui-referencial dos atos que são aí realizados. A outra con-
sidera necessário, para construir uma semântica lingüística com valor
explicativo, introduzir na descrição dos -enunciados uma referência a
este aspecto ilocutório da fala. AS LEIS DE DISCURSO *
(Tradução: Carlos Vogt,
Rodolfo Ilari,
Rosa Attié
Figueira) Passados dez anos, a noção de "lei de discurso" (ou, segundo a
terminologia de Grice (1975) "máxima conversacional") exerce, em
semântica lingüística, um papel essencial. Inicialmente, eu gostaria de
explicitar, de um ponto de vista metodológico, uma concepção de pes-
quisa semântica que torna necessário o recurso às "leis de discurso ".
Em seguida, apresentarei duas maneiras diferentes de utilizar estas
leis, cada uma destas utilizações implicando uma orientação particular,
mais precisamente, uma avaliação particular do aspecto pragmático
dos fatos Iingüísticos.
Para descrever uma concepção do trabalho semântico que impõe
o recurso às noções, estreitamente interligadas, de subentendido e de
lei de discurso (ver Cap. 1), é necessário recordar, de início, a distin-
ção entre frase, considerada como uma entidade lingüística abstrata,
idêntica a si mesma em suas mais diversas ocorrências, e enunciado,
que é a ocorrência particular, a realização hic et nunc da frase (Ans- :s
,.
combre-Ducrot (1979) propõem uma distinção suplementar entre fra-
se e enunciado-tipo, mas no presente estudo tal distinção suplementar
é desnecessária). Por outro lado, é preciso distinguir o enunciado, que
é o objeto produzido pelo locutor tendo escolhido empregar uma
frase, e a enunciação, entendida como a ação que consiste em produ-
zir um enunciado, isto é, dar a uma frase uma realização concreta.
Por uma escolha terminológica arbitrária, chamarei de "significação"
ao valor semântico atribuído à frase; e "sentido" àquele atribuído ao

* Publicadoinicialmente, sob o mesmo título, em Langue Française n.o 42,


maio de 1979, p. 21-33.

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enunciado, isto é, o conjunto de ates de fala (entendidos estes como Vamos mais longe. O estudo de diálogos efetivos mostra que o
"ates ilocutórios") que o locutor pretende realizar através de sua encadeamento de réplicas se funda, geralmente, rpenos sobre o que foi
enunciação: o sentido do enunciado constitui assim uma representa- dito pelo locutor do que sobre as intenções que, segundo o destina-
ção parcial da enunciação pelo enunciador. O sentido de um enuncia- tário, teriam levado o locutor a dizer o que disse. Responde-se, por
do é que o enunciador afirma X, ordea Y, pressupõe Z, etc.* Esta exemplo, a "Parece que este filme é interessante" (p) com "Eu já
concepção não exige, aliás, que cada enunciado tenha um único sen- o vi" (q), porque se supõe, por exemplo, que p é dito a fim de
tido. Pode-se admitir para o mesmo enunciado um grande número de propor a ida ao cinema para ver o filme, e que q dá um motivo para
leituras diferentes, cada uma delas uma imagem possível da enuncia- não ir. Se se admite que estas intenções fazem parte do sentido, tem-
ção: segundo uma, o locutor, falando, se apresenta ao destinatário co- se uma razão a mais - considerando-se que a determinação depende
mo lhe dando uma ordem; segundo outra, como lhe endereçando um das circunstâncias da fala - para admitir que o sentido não se deduz
pedido, etc. diretamente da significação. A isto se acrescenta, enfim, o problema
Suponhamos agora que a descrição lingüística de uma língua dos ates de fala derivados (ou, segundo a expressão de Searle (1975)
deva permitir explicar por que tal enunciado, em tal situação de dis- "atos de fala indiretos "). Tenho definido o sentido do enunciado como
curso, é susceptível de diferentes sentidos que, efetivamente, podem- um conjunto de atos de fala. Mas sabe-se que uma mesma frase pode
lhe ser atribuídos. É claro que estes sentidos não são previsíveis uni- servir para realizar atas de fala bem diferentes: uma frase gramati-
camente a partir da significação da frase utilizada. Tem a ver com calmente assertiva (por exemplo, "Faz frio") pode servir para afirmar,
diferentes fatores. De início, tem a ver com o fato de que o valor recordar, reprovar, cumprimentar, fazer um pedido, suplicar, etc. É
referencial do enunciado e, por conseqüência, as informações que ele necessário, então, conhecer não só a frase mas a situação em que ela
dá, dependem do ambiente no qual ele é empregado - já que é o é empregada para saber o que fez aquele que a enuncia.
ambiente que permite dar um referente às expressões dêiticas (eu, tu, Para que as constatações precedentes conduzam à idéia de "leis
ele, aqui, agora, etc.). É por esta mesma razão que Anscombre e eu de discurso" , é necessário aceitar algumas decisões suplementares. A
denominamos "a instanciação das variáveis argumentativas". Enun- primeira é a de utilizar, para explicar o sentido do enunciado, uma ·
ciando a frase "Faz bom tempo, mas estou com os pés machucados", descrição semântica que seria atribuída previamente à frase, ou, na
o locutor apresenta o bom tempo como um argumento possível para minha terminologia, uma "significação". Imagina-se, então, um pro-
uma conclusão r oposta àquela que ele tira do fato de estar com os cesso de interpretação do enunciado que comportaria duas etapas
pés machucados. Mas só a situação (tanto intelectual e afetiva quanto sucessivas: a primeira iria da frase à significação, e a segunda da sig-
física) permite determinar qual é este r, instanciando-o. Mais geral- nificação ao sentido. Somente a segunda etapa levaria em consideração
mente, as línguas comportam operadores cuja função .é agir sobre um as circunstâncias da fala, a primeira sendo, por definição, indepen-
universo de discurso para extrair dele tais ou tais elementos. Assim, dente. Este é o processo que freqüentemente tenho procurado esque-
o restritivo "não ... senão" [em francês, "ne ... que"] presente em matizar ao falar de um componente "retórico" que, considerando a
"Eu não tenho senão vinho" [/e n'ai que du vin] significa, segundo o situação de discurso, a faria agir sobre os resultados obtidos previa-
universo de discurso em que opeya a restrição, "Eu não tenho outra mente de um componente "lingüístico" destinado a descrever as fra-
bebida alcoólica", ou "Eu não tenho bebidas não-alcoólicas", ou ain- ses. Se se pensa - o que não é aliás necessário para justificar a cons-
da "Eu não tenho nada para comer". Ora, a frase em si não indica trução desta 'maquinaria' - que ela representa, ao menos em suas
as possibilidades visadas pelo locutor no momento em que produz o grandes linhas, a atividade de interpretação real, é-se levado a uma
enunciado, negado com a restritiva "não ... senão". dupla hipótese sobre esta atividade. De um lado, que a situação não
opera diretamente sobre a frase, mas somente sobre a significação
* A teoria polifônica apresentada no capítulo VIII não situa os atos de fala da frase. De outro lado, que ela não opera sobre o valor que possam
diretamente no sentido. O que se coloca em primeiro lugar no sentido são ter os morfemas tomados isoladamente, mas sobre o resultado produ-
as qualificações da enunciação ligadas aos atos. zido por sua combinação sintática no interior da frase.

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Mas o recurso às leis de discurso implica uma segunda decisão, ~~z n~ interpretação. Ele conteria leis do tipo: -Suponha que um su-
relativa desta vez ao modo como se concebe a significação e, por con- Jeito mterpretante I tenha que compreender o enunciado E de uma
seqüência, o trabalho do componente "retórico". Observe-se, em efei- frase F numa situação que se representa como S (S é a imagem, para
to, a extrema heterogeneidade de funções atribuídas à situação. Quan- I, da situação de enunciação). Suponha, por outro lado, que E, na
do se trata do valor referencial ou argumentativo, a situação tem sim- situação I, tenha por "sentido literal" ser a afirmação de um fato Ft.
plesmente uma função de especificação. É a própria frase que implica Suponha, enfim, que segundo a representação S da situação de dis-
que "aqui" deve designar o lugar da fala, ou que as duas proposições curso o locutor se represente Ft como evidentemente ruim e evidente-
p e q, numa estrutura "p mas q", devem uma autorizar a outra de- mente imputável ao destinatário D de E. Então I interpretará E como
sautorizar a mesma conclusão. O papel do componente retórico con- uma reprovação endereçada a D." A segunda decisão de que falava
siste, então, em procurar na situação os elementos susceptíveis de é: entã~, a ~e admitir um "sentido literal" que, constituindo-se a par-
preencher os espaços vazios inscritos na significação da frase, fazendo ~.Ir ~a. Sit,~açao e como _tal próprio do enunciado, seria por assim dizer
isto segundo as instruções encontráveis nesta significação. Em termos extgido , dada esta Situação, pela significação da frase. Isto forma-
matemáticos, a significação é, neste caso, uma função, a situação de ria uma primeira camada do sentido, a que se juntariam, em seguida,
discurso é seu argumento, e a interpretação "retórica" consiste em dfversos_efeitos_de ~entido - determinados por razões gerais que não
calcular o valor da função quando aplicada ao àrgumento. Quando, tem mais relaçao direta com os caracteres específicos da significação
ao contrário, se trata dos dois outros tipos de influência situacional da frase.
de que falei, é muito menos evidente que a própria frase exija seu
complemento. Pode-se dizer, por exemplo, que a significação de "Faz Um~ _terceira_ decisã?, senão necessária, ao menos habitual quan-
frio" contenha uma instrução precisa, que imponha interpretar seu do se utilizam leis de dtscurso, é a de fazer do "sentido literal" 0
enunciado, em tais circunstâncias como um elogio, em tais outras co- objeto de um compromisso do locutor, de considerá-lo então como
mo uma advertência, etc?. Não pretendo, aliás, que um tal movimento ~ru:te daquilo que é comunicado. Esta formulação deve, aliás, ser rela-
s~)a impossível e creio mesmo que seria interessante tentá-lo sistema- tivizada se se admite, como propus acima, que um mesmo enunciado
ticamente. Mas em todo o caso, o recurso às leis de discurso implica possa ser interpretado de diferentes maneiras, igualmente justificáveis
que se tome uma decisão de sentido inverso: não se considera mais, e entre elas o lingüista não tem escolha, mas deve explicá-las relacio~
no que concerne aos efeitos de sentido, a significação como uma fun- nan~o-as _com as_ diferentes !magens que o interpretante pode fazer
ção ou seja, em termos fregeanos, como uma entidade não saturada da situaçao de discurso. Revista em função desta restrição, a decisão
que demandaria ser saturada por levar em conta as circunstâncias da de que falei consiste somente em dizer que ao interpretar um enun-
fala. ciado se atribui sempre ao enunciador a intenção de se apresentar
como realizando os a tos constitutivos do "sentido literal". Quanto
Admite-se, então, que o componente retórico não se limite sem- aos outros atas que se considera como pertencentes ao sentido quer
pre a executar um cálculo a partir de uma função e de um argumento dizer, à descrição da enunciação constituída pelo enunciador 'é ne- 'i :~~
que lhe seriam fornecidos, mas que ele constitui ele próprio, por
cessário dizer que eles se acrescentam aos primeiros sem os a~ular-. '·-
assim dizer, uma função, tomando por argumentos de um lado a si-
tuação de discurso, e de outro lado a significação. Mas precisamente, . Uma vez tomada esta terceira decisão, a intervenção das leis de
vemo-lo dividido em dois subcomponentes. Um primeiro subcompo- discurso se faz do seguinte modo. Admite-se - quarta decisão _
nente faria todo o trabalho de instanciação referencial e argumenta- que a coletivida?e l~ng~iísti:a no interior da qual se desenrola 0 pro-
tiva, e produziria um primeiro esboço do sentido - chamemo-lo, para cesso de comumc~ao Impoe ao ato de enunciação algumas normas
abreviar, de "sentido literal". Quanto ao segundo subcomponente, ope- que chamo de "leis de discurso". Para citar uma das leis menos con~
raria sobre dois argumentos (no sentido lógico-matemático deste tem- trovertidas, admite-se que, ao menos na sociedade moderna ocidental
po). De um lado sobre o "sentido literal" e de outro lado sobre as é, ~ecessário, quando s~ pretende fornecer informações a um destina~
circunstâncias da enunciação - que interviriam, assim, uma segunda tano sobre um determmado assunto, dar-lhe, entre as informações de

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que se dispõe, aquelas que se crêem as mais importantes para o des- bom estado da sede da fazenda: apenas mostrei até agora que sua
tinatário; em todo o caso, não se pode sonegar-lhe uma informação enunciação permite uma tal conclusão. Para retomar uma distinção
mais importante do que aquelas que lhe são fornecidas, exceto se formulada por Récanati, (1978), eu simplesmente mostrei que um
uma outra lei interdite dar esta informação mais importante. A isto enunciado "deixa entender" que estão satisfeitas as condições de o
chamo "lei da exaustividade" e ela corresponde aproximadamente à tornar legítimo, mas isto não significa ainda que o locutor a dê a en-
"máxima de quantidade" de Grice (1975) . Quando um administra- tender intencionalmente", e ainda menos que ele o faça objeto de um
dor de uma fazenda informa ao proprietário os acidentes ocorridos ato de fala análogo à afirmação, à interrogação, etc., ou seja, que ele
com seus bens, não tem o direito de se limitar a anunciar a morte de procure fazer o destinatário reconbecer sua intenção de dar a enten-
um animal se, além disso, toda uma parte da sede da fazenda pegou der o que o enunciado deixa entender (ou, utilizando aqui uma céle-
fogo - a menos que haja uma lei especial regulando as comunica- bre análise da Grice 0957) que ele "significa" isto para o desti-
ções entre o proprietário e o administrador que interdite a este falar natário).
da sede da fazenda ou falar de fogo.
Eu me contentaria em assinalar este último problema, extrema-
Juntemos agora uma quinta hipótese, segundo a qual um inter- mente complexo, e em mencionar duas direções segundo as quais se
pretante suponha, para compreender um enunciado, que o locutor poderia tratá-lo. É possível, de um lado, propor um ato de fala espe-
está, na medida do possível, cumprindo, quando realiza sua enuncia- cífico que seria o ato de subentender. Este seria o ato que o admi-
ção, as leis que regulamentam a tomada da palavra na coletividade nistrador da fazenda realizaria, em nosso exemplo, aplicando-o a um
lingüística a que pertence. Já que (cf. decisão n .0 3) os atos indicados conteúdo do tipo "Não há outras desgraças". Para descrever este ato,
no "sentido literal" do enunciado são sempre dados como realizados poder-se-ia fazer uso da noção de "significação atestada" (Ducrot,
no momento de sua enunciação, Ó interpretante suporá, então, que o 1972, cap. I), de que este ato seria um caso particular. Empregando
locutor tinha o direito de realizar estes atos. Ora, acontece que esta uma interjeição (de dor, por exemplo), atesta-se aquilo que se sente:
suposição geral de legitimidade dos atos "literais" implica suposições faz-se como se a emissão da interjeição resultasse diretamente do so-
particulares relativas à situação social, física ou psicológica, daquele frimento, fosse dele arrancada. Na comunicação do ato de manifestar
que falou e a suposição produz, então, toda uma série de informações seu sofrimento, o significante é assim ele mesmo um ato, o ato fônico
que não estão contidas no "sentido literal" em si. Apliquemos este de "produzir" uma interjeição, e o significado atestado é o sofrimen-
princípio ao caso do proprietário da fazenda. Ele suporá (enquanto to. Do mesmo modo, quando se trata do ato de subentender, o signi-
interpretante do discurso que lhe é endereçado) que seu administra- ficante seria ele mesmo constituído por um ato, a saber, o ato de
dor, informando a morte de um animal, obedeceu à regra de exausti- enunciação tal como descrito no "sentido literal". Quanto ao signi-
vidade e que, portanto, ele não tinha conhecimento de qualquer ca- o
ficado, seria caráter de legitimidade deste ato, decorrendo do fato
tástrofe m&ior; daí se pode concluir, se se admite que o administrador de estar de acordo com as leis de discurso e de satisfazer as condições
está ao corrente do que se passa na sede da fazenda, que nada há de impostas por tais leis. Realizando uma certa enunciação, que eu re-
anormal com a sede. Deste modo, o administrador fazendo com que presento, por exemplo, como afirmação (segundo o "sentido literal"
sua enunciação se apresente, em virtude do sentido literal do enun- de meu enunciado), eu atesto que cumpri as condições exigidas para
ciado, como a afirmação da morte de um animal, leva aqueles que fazer esta afirmação. Se este fosse o mecan,ismo do subentendido,
terão de interpretar a mensagem (entre outros, o proprietário) a con- então o subentendido estaria relacionado a uma característica geral
cluir que tudo o resto na fazenda está bem. "Ufa!. Nada ocorreu além da ação humana, que tende a se apresentar como justificada ou, em
disso!" todo o caso, que temos a tendência a percebê-la como pretendendo
Mas uma nova etapa deve ser transposta. Descrevi o sentido (lite- estar justificada.
ral ou não) como a indicação de um conjunto de atos de fala. Ora, Um segundo tipo de solução consiste, ao contrário, em pensar
eu não posso dizer que o administrador praticou o ato de afhmar o o fato do subentendido não como um ato de fala, isto é, como um

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elemento do sentido, mas como um modo de produção do sentido, co- quando. se de~e. decidir se tal fenômeno será descrito por meio de
mo um modo de manifestação dos atos de fala. O interesse desta solu- regras smtagmatlcas ou regras transformacionais. Se, por metáfora se
ção (de que me sirvo num artigo de 1978, retomado aqui no Cap. II) comparasse a significação à "estrutura profunda" e o sentido à :, es-
é que ela permite admitir a realização, sob a forma do subentendido, trutura superficial" , dir-se-ia que as leis de discurso exerceriam o
de todo o ato de fala, qualquer que ele seja, não só do ato de afirma- mesmo papel metodológico que as transformações.
ção ou semelhantes, mas também do pedido, da ordem, da promessa, Até agora apresentei o recurso às leis de discurso como uma
da pressuposição, etc. É impossível discutir aqui os problemas encon- decisão metodológica geral, e assinalei em seguida, no interior deste
trados quando se pretende explicar efetivamente como um ato pode, quadro, ~lgumas decisões particulares a tomar quando se quer prati-
sendo "não-literal", ter o caráter "aberto", "declarado" que é o pró- car o metodo de uma forma ao mesmo tempo sistemática e empirica-
prio do ato ilocutório . Explicar isto seria resolver o problema dos atos me~te a~eitável. Gostaria de mostrar, agora, uma outra escolha que,
derivados ou "indiretos", problema que está no centro de múltiplas no mtenor deste quadro, não advém mais, parece-me, de critérios de
discussões atuais . Em todo o caso, a posição que se escolher, qualquer adeq.uação ou de sistematici,?ade. Trata-se da interpretação a dar à
que seja, a propósito desta questão constitui, em meu quadro de hi- duahdade postulada entre o sentido literal" e o sentido derivado por
póteses relativas à problemática das leis de discurso, uma sexta deci- meio e leis de discurso.
são, inevitável quando se quer compreender as interpretações possí-
veis dos enunciados (seus sentidos) a partir das frases que os reali- Defini estas leis como normas impostas à enunciação isto é ao
zam, mas sem se ater apenas nas marcas presentes nestas frases . emprego de frases, à produção de enunciados. Não result~ disso ' em
boa lógica, que as realidades semânticas anteriores à acão das lels de
Gostaria que as seis decisões enumeradas fizessem aparecer a discurso (significação e "sentido literal") não contenham já indica-
função metodológica das leis de discurso. Esta função exige que, para ç?es_ relativas àquilo que se pode fazer quando se realiza uma enun-
explicar o sentido do enunciado, se opere com uma significação pré- ciaçao: de ~ato: não há contradição ao se admitir, ao mesmo tempo,
via da frase. O recurso às leis permite manter o valor explicativo da que. a r~ahz~çao de uma enunciação é criadora de valores novos,
significação sem a sobrecarregar de todas as nuances localizáveis na ~evidos as leis de ~i~curso, e defender que o material lingüístico uti-
observacão dos enunciados. A liberdade do lingüista, nesta estratégia, lizado. d~ve ~e defmrr (talvez se defina somente) em relação à sua
não é Íimitada senão por três imperativos. Em primeiro lugar, dar enunctaçao vrrtual. Entretanto, mesmo que haja alguma necessidade
conta do sentido, considerado como um dado efetivo, deixando de para este .movim~nto, há ?e fato uma tendência, ou tentação, de tor-
lado a ajuda de hipóteses denominadas "externas" (cf. Anscombre- nar o mais possivel as leis de discurso responsáveis por aquilo que
Ducrot, 1979, Cap . III), diferentes das hipóteses "internas", utilizadas no sent~d~, é pragmático, ou em outras palavras, por aquilo que é
para prever tal sentido. Em segundo lugar, agir de modo que o cál- caractenstlco do ato de enunciação. Elas permitiriam assim colocar
culo da significação das frases possa se operar de modo tão sistemá- um nível semântico fundamental do qual seriam ou ex~luídos 'ou redu-
tico quanto possível a partir de sua estrutura sintática e lexical (o z.idos ao mínimo absolutamente indispensável as indicações· pragmá-
que se torna mais fácil, dado que esta significação é mais "pobre"). tica~ - que, ao menos para o essencial, seriam acrescentadas a um
Em terceiro e último lugar,4tão utilizar senão leis de discurso razoá- sentido litera1 tão "abstrato" quanto possível.
veis, que não sejam inventadas apenas para 'alívio' do lingüista. Isto
implica que elas devem operar de um modo bastante geral, aplican- . Uma escolha inversa pode, no entanto, ser feita e consiste em
do-se a tipos de sentido muito diversos e, ao mesmo tempo, que elas mtrodu~ir, a. p:agmá:ic~ desde o nível fundamental, isto é, integrando-a
se justifiquem independentemente das simplificações que permitem, o desde o tnlCIO a semantlca (segundo a expressão que Anscombre-Ducrot
que leva a relacioná-las seja às exigências da comunicação, seja às 1976, p. 8, retomam de A. Culioli). E isto de modo sistemático. Nã~
tendências da coletividade lingüística que se estuda. Ter-se-á reconhe- se trata de co~c.eder aqui ou ali, na significação das frases, algumas
cido nesta necessária dosagem um problema análogo (na sua estru- mar~as pragmatlcas, mas de organizá-la como um conjunto de ins-
tura, não em seu conteúdo) àquele .que se põe em gramática gerativa truçoes que servem para determinar, uma -yez conhecida a situação

97
96
de discurso, o valor de ação pretendido pela enunciação. A inter- :n~e~rab~!xo,
p
::x custa Cz$ 10,00" que é literalmente um argu-
caro ' pode tornar-se argumento para "barato" Al
mdorfe~as (por exemplo em francês 'quand même' · em portugu. ~u.ns
venção das leis de discurso não teria por função "pragmaticizar" uma
A

semântica inicialmente sem relação com a ação, mas ela poderia ser- a assim') • es am-
vir para atualizar e, eventualmente, para modificar uma pra·gmática . . servem para colocar em ação esta lei: dizendo "X
amda
favo d assim Cz$ 10
.' 00" f custaa
az-se sempre como se se argumentasse
fundamental das frases concebidas como instrumentos para a inte-
ração dos interlocutores. Este é o papel que sempre atribuí às leis de baix~. o caro - amda que se reconheça Cr$ 10,00 como um preço
discurso: meu objetivo, utilizando-as, é de implantar uma pragmática
" ,Out~o exemplo. Para nós, as frases "A é tão alto quanto B"
primitiva, distinta dos efeitos pragmáticos secundários. Num artigo de
1969 (Cap . I deste livro), por exemplo, elas me permitem separar dois
tipos de implícitos, os pressupostos que, a esta época, eu sustentava
.1~ macs alto do que B" têm a mesma orientacão, oposta àquela d:
" e m:nos ~to 1 do que B". Pode-se prever, e~tão, sendo dado que
como necessariamente inscritos na significação das frases, e os suben- t mes:no ~e J~nta sempre a enunciados coorientados, que se encon-
tendidos, considerados como um produto das leis de discurso . Se, ade- re so o pnmetro dos encadeamentos:
mais, a pressuposição é vista como um instrumento pragmático, como ( 1) A é tão alto quanto B e mesmo mais alto.
um meio dado ao locutor para obrigar o destinatário a continuar o (2) A é tão alto quanto B e mesmo menos alto .
diálogo numa certa direção mais do que noutra (no sentido do verbo
"brigar" tal como aquele em que a pergunta "obriga" o perguntado a O segundo encadeamento, no entanto, aparece em alguns diálogos :
um certo tipo de comportamento qualificado de resposta) , então o X: - Parece que A é muito alto.
recurso às leis de discurso evidencia, no interior da língua, concebida
como um sistema de frases, um dispositivo regulador do debate inter- y: - Não, ele é tão alto quanto B, e mesmo menos alto.
subjetivo. Nada a mudar, deste ponto de vista, quando fui levado a ~ar~ exppldicar este fato, eu distinguirei de início dois tipos de refu-
admitir em 1978 (cf. Cap. II) que a pressuposição, como todo o ato açao. o e-se tentar demonstrar que o outro está errado
de fala, pode ela mesma ser derivada por meio de leis de discurso, o tringir a retificar o que ele disse substituindo um : odu se res:
qu f " . , ' enuncia o seu (e
que significa que ela pode ser subentendida: o recurso às leis serve 0" . ~')a~ o mac~ equivalente ao alemão "sondem" e ao espanhol
para isolar as pressuposições primitivas, o que é ainda afirmar uma smo, : , enunciado retificador pode, então, ou ser de orientacão
pragmática fundamental. contrarta aquela do enunciado que retifica ou ser da m :
tação e n t . • esma onen-
. ' es e caso, ser mais forte ou menos forte · "A á - ,
Esta é a mesma estratégia que Anscombre e eu utilizamos nas fna;
y ela
d está quente/gelada/fresca"
. · No que concerne
. ~a ,n~o esta
a replica de
pesquisas sobre a argumentação. Nossa tese é que uma orientação
argumentativa é inerente à maior parte (ao menos) das frases: sua e 'do eu terce·
escrevena . . que segue a N-ao como uma retlficacao
r o enunciado . . -
significação contém uma instrução como "enunciando esta frase, apre- Iro }P?· substttumdo um enunciado menos forte ("A / tã~
sento-me como argumentando em favor de tal tipo de conclusão". Ora, ~~o ,quan.to Bl ~: no contexto de nosso diálogo, menos forte do que
acontece que um enunciado pode ser apresentado, de fato, para uma ,.., e mwto a to - tudo sendo um argumento para a altura de A)
.c neste momento que faco inte . 1.d .
conclusão oposta àquela que ileixa prever, segundo nós, a frase em- de fraqueza. "" b tit . • rvu uma et e discuro, variante da lei
pregada. Assim, nós temos razões para descrever as frases X custa Y m :d su s Uir um argumento forte por outro argumento no
(onde Y é um preço) como orientadas para uma conclusão do tipo esmo senti
sentid · o, "mas
É mais. fraco ' pode 1evar a dar um argumento em
esqui b "o mverso. por tsso que em "A nao - esqwa . mutto
. bem. ele
X é caro. Entretanto, enuncia-se freqüentemente "X custa 10 cruza-
a em ' .o segundo enunciado será visto como um ar ur~ento
dos" para mostrar que X é barato. Nós explicamos este fato por uma
"lei de fraqueza" (loi de faiblesse) , dizendo que se um enunciado, ~~~a qu~hdad~s
as e~qu.iador ~e
de A, e permite encadear '~Ele não
tomado em seu "sentido literal" é um argumento, mas argumento ~ enu~~~a~~ "-; Isto. se~a I~possivel se o antecedente fosse apenas
reconhecido como fraco, para uma conclusão r, ele pode ser dado se tornar obrigató;:;;:ra ~% ~~~fe:~o~~~~ ,;:mjeongtoe,?esta lei ~odde
: o enuncia o
como argumento para não-.r. Então, se se considera Cz$ 10,00 como
99
98
virtude de um princípio de perf A .qut' e~uivalena, geralmente, em
"A esquia somente bem" que substitui bem por um muito bem atenua- estando num estado de necessidade . .
do, servirá sempre para argumentar contra as qualidades de esquiador zer um ato de pedido· assinal:;::~a _na? se f~la.por nada") a fa-
de A). Aplicando-se esta lei à réplica de Y, compreende-se que o enun- a fazer uma pergunta,' etc. propna cunosidade equivaleria
ciado "A é tão alto . .. " seja lido como argumento a favor da baixura
seja a forma que ela tome Gost . aqUI esta po~Içao, qualquer que
de A, e que a qualificação "menos alto" possa ser em seguida intro- Não tenho a intenção de discutir . . -
duzida por "mesmo". Isto não impede que a frase seja, de início, um
que se faz aí das leis de . disc ana . somente de Ilustrar a utilização
argumento a favor da altura, e serve a este título para retificar a urso, mstrumento poderoso (
po de mesmo reprovar, como às transform - , . e que. se
afirmação de X. por ser excessivamente poderoso). Um ~ço~s da gramatica ~erativa,
Desenvolvi este exemplo para mostrar que as lei de discurso, já Cornulier (1978) Em T . pnmeiro exemplo, retrrado de
. ana Ise por mtm efetuada (Duc t 1972 C
que elas tomam em consideração, por definição, o fato da enunciação, VI )' atribuo como função fundamental . - ro ' . • ap.
podem se aplicar a valores semânticos que, desde aí, concernem a cês] permitir um "ato de sup~ . _ , p ~a conjunçao. se [ st, em fran-
este fato . Certamente, introduzindo valores argumentativos na signi- gine tal ou tal situa ão siçao . e e-s~ ao destmatário que ima-
ficação, descreve-se, desde aí, as frases relativamente ao que se faz faz-se uma asserçã: u:n: ~:a vez q~e se estiver nesta situação fictícia,
com elas enunciando-as. Mas o ato de as enunciar efetivamente, na tagens de tal propo~ta é que e;l~g;yao , ~m~ ordem, etc. Uma das van-
medida em que as leis de discurso o regulam, vai produzir valores de enunciação" por oposição ao ": c?n a. o. qu~ se tem chamado "se
segundos, valores que, também do ponto de vista argumentativo, tor- cativo em (1) Se fizer calor ele ir: :mph.cativo <~,em-se um se-impli-
nam o sentido do enunciado imprevisível a partir apenas da frase. em (2) Se fizer calor há ' . a a praza, ~ um se de enunciação"
Nesta perspectiva, o recurso às leis de discurso permite ao lingüista existência de cerveja 'à hi;~;:s~ad:a !:ladetra. (2) não subordina a
introduzir a pragmática desde o nível da significação - e isto a des- da existência de ce . . c or, mas apresenta a asserção
peito das muitas variações pragmáticas possíveis ao nível do sentido. "Eu te falo para o r;:~~ ~= gel~~ei~ como justif.i~ada pela hipótese:
quadro fictício para a fala ~~~terlo ma _vez admitido que se põe um
Mas também se utilizam as leis de discurso com uma intenção quadro tanto possa se relacionar co~ na~ ~ausa estranheza que este
oposta: a fim de purificar a significação de toda pragmática ou, sen- quanto com a pertinência de praticar oo p;ópo ri~ss:tvoerdado em ~eguida,
e asserçao
do mais moderado, de localizar a pragmática num setor bem definido
Cornulier (1978) mostra no entanto . .
trusão da pragmática no int~rior da • Aqu~ se pode evitar esta in-
da significaÇão, que conteria deste modo uma região puramente se-
nível profundo, de um modo ura sema?t~c~ e descreve o se, no
mântica. Esta posição moderada consiste em reduzir, no nível funda-
que constrói, com duas pro o~ - mente logico, como um conectivo
mental, as indicações pragmáticas à simples especificação de tal ou
ão nova verdaXei~~o;;~da antecedente e a conseqüente,
tal "força ilocutória" atribuídas às frases: o conteúdo a que se apli-
cam estas "forças" teria um caráter estritamente informativo e cons- uma proposiç_
que a conseqüente ' . . e que se cumpra a condição de·
tituiria aquilo que os lógicos denominam de "proposição". Descrever- ràmbém. De fato ~eJa verdadetra sempr~, que a antecedente o seja
se-iam, assim, as frases "Esquiar é fácil" e " Esquiar é fácil"? como . ' que surpreende no se de . - , ,
aplicando a força ilocutória seja~da asserção, seja da pergunta, à pro- enunciando
. I a frase total (2) da-se
, . enunciaçao
a mesma mformação qu ed que
.
posição " Esquiar é fácil" (ou melhor "a facilidade de esquiar", para simp esmente com sua conseqüe t "h' . e se ana
isto se deduz se se admite: ne a cerveJa na geladeira" . Ora,
não introduzir subrepticiamente a asserção na proposição). Quanto à
atitude radical, ela não admitiria, na significação, qualquer força ilo- a) que a significação fundame~tal d
cutória (ou, o que é a mesma coisa, ela não reconheceria senão uma, cordado aqui (implicação); e se comporta o valor lógico re-
a asserção) . A significação conteria somente instruções para construir,
b) que o locutor e 0 d f t ' 10
fazer calor e não co:S~~~:a:- t e ( ) crêem na possibilidade de
uma vez dada uma situação de fala, um "sentido literal" reduzido à · d 2
simples descrição de um fato. Seriam as leis de discurso que interpre- encher a geladeira de cerveja~s e eventual calor capaz de, por si,
tariam estas descrições como atos: se descreveria a si mesmo como
101
100
c) que uma lei de discurso ordena que se assevere somente aquilo Quanto à observação que tinha levado Anscombre a introduzir
a arg.umentatividade na significação mesma de tão . . . quanto . . .
sobre o que se está seguro.
[auss~ . .. que], não é difícil de resolver uma vez que (3) tenha sido
Admitamos, em efeito, que (2) tenha, em virtude de sua signi- descnto como :undamentalmente compatível com uma situação em
ficação, as condições de verdade fixadas por (a). Face a (b), é neces- que A fosse ma1s alto que B. Pois é claro, se se admite esta descricão
sário então saber, para se estar seguro sobre a verdade de (2), que que (3) não seria razoavelmente utilizado senão para mostrar 'a aitur~
a cerveja está na geladeira. Não se pode, então, em virtude de (c), de A (ou uma conclusão dedutível desta altura) e não para mostrar
asseverar (2) sem deixar entender que se tem esta convicção, convicção a pequena altura de A (nem uma conclusão dedutível desta pequena
que também a simples asserção da conseqüente comunicaria. De sorte altur~). De fato, por menor que B seja, a asserção de (3) não estabe-
que, para compreender o fenômeno estudado, não é necessário colo- lecena senão um limite inferior, e algum limite superior, à altura de
car na significação de se uma alusão a um ato de fala como a supo- A. Ela poderia, então, permitir uma conclusão de altura relativa a
sição: a enunciação não pode ser levada em conta senão no momento A (se se pensa que B é alto, ou ao menos suficientemente alto para
em que as lejs de discurso derivam o sentido efetivo a partir do alguma tarefa) , mas nenhuma conclusão de baixa altura (mesmo que
"sentido literal". se considere B baixo).
Um segundo exemplo, para ilustrar a mesma linha de pensamen-
. Observ~-sea manobra permitida pelas leis de discurso. Ela con-
to. Anscombre (1975) descreve o comparativo de igualdade como con-
~tste em. assmal~r a uma fras~ uma significação fundamental do tipo
tendo, em sua própria significação, um elemento argumentativo. Se-
mformattvo ~ nao argumentativo (mais geralmente, não pragmático) ,
gundo ele, descrever a frase mas que ~xp~t~a a_ fu~ção argumentativa de seus enunciados. E, quan-
(3) A é tão alto quanto B ~o esta ~tgruftcaçao mformativa está em contradição com o sentido
mfo.rmat~vo. habitualmente veiculado pelos enunciados, supõe-se que
é indicar que seus enunciados, de um lado asseveram a igualdade de
altura de A e B, e de outro lado servem de argumentos a conclusões a dtvergencta se deva à intervenção de uma lei de discurso no mo-
análogas àquelas que se tira de A é alto (ou, mas eu não o diria, mento da enunciação (aqui, a lei da exaustividade). Esta manobra
' 2•
~I '~ •I
.....
B é pequeno). Esta descrição faz intervir a argumentação na signi- nã.o é~ ~liás, senão um caso particular da estratégia geral que sustenta,
ficação e é, então, típica de uma pragmática "integrada". Mas Fau- e JU~ttftca do ponto de vista do método, o recurso às leis de discurso.
connier (1976) demonstra que se pode dar conta dos fatos tratados J:?er~v~ndo o sentido numa etapa posterior àquelas que fornecem a !

por Anscombre dando ao comparativo de igualdade uma significação stgmftcação, depois do "sentido literal", é possível explicar fatos apa- :> • '
puramente semântica, desde que se exija mais das leis de discurso do rente~ente contraditórios, ligando-os tanto aos resultados dos primei- i '
:J.
, I
!
que gostaria de fazê-lo Anscombre. Basta dizer que (3) é "literalmen- ros calculas quanto àqueles do último. O problema que resta é expli- - il
car este deslocamento. Em meu segundo exemplo, trata-se de saber :::- '.
te" destinada à asserção de uma proposição do tipo "A tem uma
~orqu: a ativ~dade de argumentar levaria em consideração o "sentido
altura igual ou superior àquela de B" .
hteral , antenormente à sua modificação pelas leis de discurso . Cer-
Para explicar que, de ~bito, o sentido deste enunciado é asse- tamente, compreende-se bem que um operador gramatical, por exem-
verar a igualdade de alturas, utiliza-se a lei da exaustividade: se se plo uma conjunção de subordinação, utilizado para constituir frases
que~ informar da altura de A, e se se sabe que A é mais alto do que complexas a partir de frases simples, opera sobre as significacões e
B, não se deve contentar-se em asseverar a proposição, bastante mais não sobre os sentidos (cf. Ducrot, 1972, p. 137), mas é bem ~enos
ampla, e por isso menos informativa, que aparece, segundo Fauc?n-
c~mpreensív~l que uma atividade de fala como a argumentação, que
nier no "sentido literal" de (3). De sorte que um locutor que satba
poe e~ func:onamento enunciados, esqueça o valor semântico que os
quais as alturas de A e B, respectivamente, deixa entender, enuncian-
do (3), que A não tem uma altura superior, mas somente igual àquela enunctados tem com base em leis de discurso, e vá desenterrar seu
"sentido literal", depois de calculado seu sentido.
de B.
103
102
Meu assunto não é, entretanto, discutir aqui as análises que tomo Mas me parece de todo possível, e também justificável trabalhar
como exemplo (a descrição de Fauconnier é discutida em detalhes na hi?ótese inversa. Considerar-se-ia como uma imperfeiçã~ acidental
em Anscombre-Ducrot, 1978), mas asinalar uma problemática. Quero das lmguas o fato de que seus predicados tenham condições de ver-
mostrar que mesmo trabalhando no quadro metodológico fornecido dad: m~l d7,finid~s. Atitude que conduz a qualificar estes predicados
pela11 leis de discurso, reencontra-se uma alternativa fundamental (a d.e flmdos , detxando entender que eles visam, sem o alcançar, o
pragmática é primitiva ou derivada?) e que a escolha, nesta alterna- ngor dos predicados lógicos. Nestas condições, não é absurdo pensar
tiva, não pode mais se apoiar sobre critérios metodológicos de ade- que os operadores governam a estrutura semântica geral da frase
quação aos fatos ou de sistematicidade. Se temos que escolher (o "agem como se" os predicados estivessem logicamente definidos. Ist~
mais interessante não é, aliás, escolher mas explicitar as teses em con-
torna razoável pesquisar um domínio de significação "pura", donde
fronto e suas implicações empíricas) , esta escolha se referirá a uma
toda a consideração pragmática é excluída - a pragmática não apa-
concepção geral da língua. Assim, se se trabalha na perspectiva de
uma pragmática integrada, é que se decidiu levar a sério os aspectos recendo senão num segundo momento, ligado à intervenção das leis
"não lógicos" das línguas, entendo-se por isso tudo o que, nelas, não de ~iscurso. É ainda possível, admitindo-se a primeira hipótese, de
se deixa definir bem em termos de condições de verdade, por exem- constderar que a segunda exprime uma tendência efetiva que coman-
plo, a expressão "não se deixa definir bem" de minha última frase , da a evolução das línguas modernas (tendências logicizantes, diz Ben-
em geral, os predicados utilizados na vida cotidiana, para os quais veniste) ou, ao menos, que detennina a imagem que as sociedades
não temos condições de verdade nitidamente assinaláveis. Não vejo modernas se dão de suas próprias línguas. Tudo o que gostaria de
como, por exemplo, seria suscetível de verificar ou de falsificar um mostrar aqui e que estas diversas escolhas teóricas são compatíveis
enunciado como com o quadro metodológico fornecido pelas leis de discurso e podem
nele se expressar. Aliás, eu não estou seguro se se pode pedir mais,
(4) Este trabalho é fácil para Pedro.
em semântica lingüística, aos quadros metodológicos utilizados: eles
Para mim, este a-logicismo é fundamental; as línguas têm outras fun- fundam um modo de expressão científica ou, se se quiser, uma retó-
ções além de veicular informações (não estou, aliás, seguro que o rica científica, e permitem explicitar as escolhas teóricas subjacentes
verbo "informar" tenha um sentido tão claro que possa ser utilizado mas não as justificar. '
numa teoria lingüística, ou seja, para falar da linguagem). A função
primeira da língua (isto é, para ser honesto, a função que me inte- OBSERVAÇÃO I - Sobre o conceito de sentido literal. Falei, neste
ressa) é oferecer aos interlocutores um conjunto de modos de ações texto, de "sentido literal" (entre aspas), noção inevitável desde que se
estereotipadas que lhes permitam representar e se impor mutuamente faça engendrar o sentido efetivo por leis de discurso - trata-se, então
de co!oc~.r ~ q~estão "Por que o locutor disse o que disse?": "o qu~
papéis: entre estes modos de ação convencionais, preexistentes a seu
emprego pelos sujeitos falantes, eu situo as virtualidades argumenta-
ele dzsse e a tsto que denomino de "sentido literal". Mas este con-
tivas, constitutivas, para mim, da significação. (Assim, a frase (4), di-
ceito não recobre o conceito de sentido literal, se o entendemos como:
fícil de descrever do ponto d6> vista informativo, se deixa descrever
pela influência argumentativa que lhe é reconhecida; pode-se definir - ou esta utopia que seria um sentido do enunciado determinado so-
um conjunto de conclusões tais que se admite apresentar em seu favor mente pela significação da frase, fora de situação;
um enunciado de (4), e outros para os quais (4) não é admissível,
ou não se admite senão a título de exceção). Esta escolha me leva a - ou . bem um sentido do enunciado que, sendo dada a situação,
atribuir uma pragmática à frase, ou mesmo de a descrever de um serta necessário, incontestável, enquanto que o sentido figurado
seria somente possível.
modo puramente pragmático: o papel das leis de discurso é, então,
de mostrar como esta pragmática virtual se concretiza e se diversi- A diferença entre os dois conceitos se vê, notadamente, no problema
fica segundo a situação de enunciação. dos atos de fala:

104 105
a) A significação da frase raramente especifica um ato de fala deter-
minado (ordem, pedido, etc.) mas somente um tipo de ato. Que
se pense o quanto é vaga a marca gramatical "imperativo". Em
outras palavras, o ato de fala marcado na frase é coisa düerente
do ato decodificado na interpretação do enunciado - mesmo nu-
ma interpretação direta, "literal" (em meu sentido de "literal") e
que não recorre às leis de discurso. Um trabalho de especificação
é já necessário para passar do ato marcado ao ato "literal" (como
quando se trata de instanciar variáveis dêiticas ou argumentativas) .
b) A situação que serve a esta especüicação não é, ela própria, qual-
quer coisa de fixo. Não só porque diferentes interpretantes a vêem
de modo diferente, mas porque um mesmo interpretante não pode
fazer intervir, de uma vez, todos os componentes que ele se re-
presenta como a situação. Ele extrai alguns elementos com ajuda
dos quais ele constrói, pela especificação da significação, um pri-
meiro sentido que, em conseqüência e na seqüência desta escolha,
exerce um papel de "sentido literal". Depois, ele faz agir sobre
este, outros componentes que, reunidos às leis de discurso, engen-
dram um segundo sentido. A hipótese geral das leis de discurso
implica que a interpretação segue sempre esta ordem, mas ela não
implica que o conhecimento da situação permita determinar, para
cada caso particular, o que será "literal" e o que será o segundo II
sentido - pois isto dependerá da ordem segundo a qual o inter-
pretante faz intervir os componentes situacionais. Enunciação
OBSERVAÇÃO II - Sobre a expressão "Componente Lingüístico".
Eu denomino de "retórico" o componente que põe em funcionamento
as leis de discursos, e "lingüístico" aquele que decodifica a frase. Esta
denominação não deve deixar entender que as leis de discurso sejam
estranhas ao código lingüístico. Tanto mais que se tem posto em evi-
dência (Anscombre, 1977, p. 31 e ss; cf. também o que digo aqui a
propósito de "ainda assim" [quancJ même] ou somente [seulement] e
em Ducrot, 1972, p. 135, a propósito de "au moins") marcas lingüís-
ticas que favorecem ou bloqueiam, na interpretação do enunciado, o
funcionamento de tal ou tal lei. Se a entonação for integrada à frase,
estas marcas assumem uma importância ainda maior, atestando a mul-
tiplicidade de alusões intralingüísticas às leis de discurso.
(Tradução: João Wanderlei Geraldi)

106
Capítulo VI

LINGUAGEM, METALINGUAGEM
E PERFORMATIVOS *

Este capítulo tem dois objetivos. O primeiro é o de discutir um


dos conceitos fundamentais da "filosofia da linguagem", aquele do
enunciado performativo explícito, ou, por abreviação, do ·performa-
tivo. Freqüentemente admite-se à primeira vista que se trata de uma
noção conceptualmente clara e que, por outro lado, é evidentemente
susceptível de ser aplicada a fatos empíricos; cuida-se, então, sobretu-
do de inventariar os performativos, de explicar sua existência, ou de
determinar .as conseqüências de sua existência para a filosofia da lin-
guagem. Procurarei, ao contrário, mostrar o caráter problemático des-
sa noção. Não considero evidente que o conceito de performativo
possa ser definido de maneira rigorosa, e menos ainda que ele cor-
responda a fenômenos empíricos. Nesta crítica, vou me servir de uma
tese já apresentada de modo esporádico em Ducrot (1972, p. 73-74,
1975, p. 84-86, 1980, p. 50-55) e elaborada de modo detalhado e
sistemático em Anscombre (1980, p. 115-123). Esta tese da "ilusão
performativa", que a princípio me parecia ser uma explicação da
performatividade, apresenta-se-me agora como um questionamento do
próprio conceito.
Meu segundo objetivo, mais geral, é o de denunciar a confusão,
freqüerite em lingüística semântica, sobretudo neste particular na prag-
mática (e freqüentemente, mea culpa, em meus próprios trabalhos),
entre a linguagem que se estuda e a metalinguagem utifizada para
estudá-la. Confusão que se deve à necessidade, nesses domínios de

* Este capítulo retoma, com algumas adições e correções, um artigo publicado


no n. 0 3 dos Cahiers de linguistique française (Universidade de Genebra,
1981, p. 5-34), artigo este que desenvolve uma comunicação feita no pri-
meiro colóquio de pragmática de Genebra (março 1981) .

109
pesquisa pouco formalizados, de utilizar, para descrever uma língua, de conhecimentos. É isto que leva, por exemplo, na prática efetiva da
as mesmas palavras e as mesmas estruturas sintáticas pertencentes à linguagem, a interpretar, p or vezes, a estrutura gramatical sujeito-
língua que é o objeto de investigação. Assim o filósofo da linguagem predicado como a atribuição de propriedades a um objeto - dando
é obrigado a empregar, para falar da atividade lingüística, os termos assim uma aparência de justificação a esta teoria, difundida através
utilizados a seu respeito na conversação diária. Ele se serve, por de toda a história da gramática, que Serrus (1933) a denominou "o
exemplo, dos verbos prometer, ordenar, permitir, etc., introduzindo- paralelismo lógico-gramatical". Daí não é inteiramente artificial re-
os nas mesmas construções gramaticais que os sujeitos falantes em- presentar-se o significado das palavras como tendo o mesmo estatuto
pregam (alguém promete, ordena, permite, etc.). Ora, o lingüista não de um conceito científico 1 (tentarei adiante descrever, em detalhe, o
pode a cada momento definir o valor que atribui, enquanto lingüista, procedimento utilizado nesta conceptualização da língua, procedimen-
em sua linguagem científica, a estas expressões da vida corrente. Por to que é, por outro lado, bem mais geral e tem muitos outros empre-
outro lado, é compreensível que deixe de fazê-lo: estando ele próprio gos: trata-se, a meu ver, da delocutividade, tipo de derivação desco-
à vontade em sua própria língua, e dirigindo-se a pessoas que, como berto por Benveniste mas do qual ele não pôde ver todo o alcance.
ele, manejam-na com grande desembaraço, tem como evidente que ele Admitindo-se, pois, minha análise, introduzir as palavras da língua
sabe o que diz quando se serve, enquanto lingüista, das mesmas pala- na metalinguagem, supondo para elas uma significação de tipo con-
vras que não lhe criam embaraço enquanto sujeito falante. Mas isto ceituai, isto não é afinal de contas senão retomar por sua conta um
é esquecer que estas palavras, empregadas em um discurso teórico, procedimento cuja possibilidade está inscrita na linguagem (na medida
recebem, em conseqüência disso, um estatuto de conceitos teóricos em que esta conhece a delocutividade) e cuja realização corresponde
que não tinham no uso cotidiano. De tal maneira que o lingüista, não a uma exigência "Iogicizante" das civilizações servidas pela maior
somente utiliza a língua de todo mundo, mas deve, ao utilizá-la, dar- parte das línguas atuais.
lhe por função designar conjuntos, relações lógicas, atribuições de
Uma última observação, antes de entrar nos detalhes. Se coloco,
propriedades aos objetos, papel que não é necessariamente o seu na
lado a lado no mesmo estudo, considerações sobre os performativos
origem. E a situação torna-se ainda mais preocupante quando se trans-
e sobre as relações entre linguagem e metalinguagem é - talvez já
fere para este emprego científico da linguagem ordinária (emprego
se tenha tido a fineza de duvidar disto - porque considero os dois
quase sempre artificial) o sentimento de uma evidência que se expe-
temas ligados. Tentarei mostrar que a aceitação incondicional da no-
rimenta em seu emprego não científico. Sob pretexto de que o sujeito
ção de performativo se deve a uma confusão cometida pelos lingüis-
falante francês sabe empregar o verbo prometer, procede-se como se
tas entre as palavras que eles estudam e as palavras das quais eles
o lingüista, empregando a mesma palavra em uma atividade de des-
se servem, confusão prefigurada aliás na própria língua, na medida
crição científica, onde cada palavra deve designar um conceito bem
em que ela é o lugar de uma derivação delocutiva, conceptualizando
delimitado, soubesse também empregá-la - ainda que lhes atribua
as palavras que estão à disposição do sujeito falante.
uma função totalmente diferente.
Por mais condenável que seja, a confusão em que incorre o lin- LINGUAGEM E METALINGUAGEM
güista pode, por outro lado, ew uma larga medida, justificar-se (e não
somente por sua quase-necessidade). E que a linguagem ordinária Suponhamos que um locutor - que, por discrição, chamarei L
incorre constantemente nesta mesma confusão (entendamos por tal -diga a respeito de uma pessoa P: "P é inteligente". Um lingüista,
que alguém incorre nessa confusão no uso ordinário da linguagem).
A razão disso está em que a linguagem não pode ser considerada 1. Sabe-se que Benveniste foi levado a falar de uma tendência "logicizante"
que seria também inerente às línguas modernas, e que é contrária a certos
independentemente da cultura da qual é o veículo, e no interior da
aspectos de sua estrutura semântica profunda. É esta tendência, segundo
qual ela se desenvolve. De tal maneira que, numa civilização em que ele, que leva a ver no comparativo uma comparação de quantidades, fazen-
a noção de verdade assume um valor central, os sujeitos falantes são do abstração de seu valor intersubjetivo fundamental. Cf. Benveniste, 1948,
propensos a ver a linguagem como um meio para a formulação e troca p. 126, e Ducrot-Vogt, 1979, p. 324.

110 111 .
z, observando este interessante acontecimento, decide anotá-lo em uma competência razoavelmente assegurada para perceber que inten-
suas fichas. Para tanto, deve escolher pelo menos uma dentre as duas ções podem ser servidas ou desservidas quando se emprega inteligente
descrições seguintes, que pertencem, na utilização que aqui se faz, à em tal ou tal contexto, isto não implica, felizmente, em admitir que
metalinguagem da lingüística, ainda que ambas sejam construídas com esta palavra possui um conteúdo conceptual claro. E, entretanto, o
termos da linguagem ordinária: que admite Z quando, para descrever em sua metalinguagem a fala
de L, retoma, de modo consciente, a palavra que L havia utilizado.
(1) L disse: "p é inteligente".
A confusão em que Z incorre, se ele opta pela transcrição (2),
(2) L disse que P é inteligente. não é todavia sem razão. E que ela é, numa certa medida, cometida
A primeira transcrição não coloca muitos problemas considerá- por todo locutor no uso ordinário da linguagem. Porque o relato (2),
veis, pelo menos se se precisa que o verbo dizer aí significa: pro- que censurei no lingüista Z, bem poderia ter sido feito por qualquer
nunciar palavras. Basta admitir, quando muito, a concepção do dis- espectador da enunciação de L - e ninguém se atreveria a contestá-
curso relatado (Cap. VIII § 11) segundo a qual uma expressão entre lo: considera-se quase sempre como totalmente correto, na conversa-
aspas designa as palavras das quais se compõe: pode-se estimar então ção corrente, relatar em estilo indireto um discurso do qual se foi
que ( 1) descreve fielmente o acontecimento do qual Z foi testemunha testemunha, contentando-se com transformar em "proposições com-
(o contrário é que seria surpreendente, pois que eu mesmo apresentei pletivas" as "proposições principais" do locutor original (com alguns
este acontecimento, há poucas linhas, por meio de palavras utilizadas ajustes para os tempos, os pronomes e os dêiticos, mas sem modifi-
por Z na transcrição ( 1), tomando como evidente que uma fala pode car o vocabulário) 2 • Certo, o fato de que este modo de relato seja
ser fielmente representada por uma seqüência de palavras). admitido na vida de todo dia não significa que um lingüista, buscan-
do a verdade científica, possa aceitá-lo (o predicado "verdadeiro" da
:h no caso de (2) que as dificuldades se tornam flagrantes. Elas linguagem científica correspone, pelo menos é o que se espera, a cri-
se devem ao fato de que o verbo dizer não é aí seguido de uma cita- térios mais severos que a apreciação "é verdadeiro" da linguagem
ção, mas de uma completiva. Dizer deve então, nesse caso, significar .ordinária). Mas deve haver aí razões para que, na opinião comum,
alguma coisa como "afirmar", "asseverar" - tendo por objeto o
um relato do tipo (2) seja geralmente tido por legítimo - mesmo que ~ t
! , •
l
ato designado por estes verbos, não um enunciado, mas uma entidade
intelectual abstrata, que os lógicos denominam "proposição" ou "con-
isto não me pareça de forma alguma evidente. ~ •
I ,..
~
.
j

teúdo". Segundo o lingüista Z, o locutor L está assim comprometido Para melhor evidenciar o problema, citarei em primeiro lugar
'.
G I
com a verdade de uma proposição: L sustentou que P possui uma exemplos em que, mesmo no uso mais ordinário da linguagem, o re- I l
certa propriedade, ou ainda, ele sustentou que P pertence a um certo I •
lato indireto parece um pouco estranho. Suponhamos que L tenha l l
conjunto, o conjunto das pessoas inteligentes. O problema se deve, dito "Eu prometo vir". Seria surpreendente o relato "L disse que :} I .
nesse caso, ao fato de Z utilizar, para designar esta propriedade ou prometia vir". Objetar-me-iam talvez que esta extravagância tem uma
este conjunto, o adjetivo inteligente, que não é mais, em (2) , colocado
explicação estilística: ela se baseia no fato de que existe um relato
entre aspas como ocorre em (11, Não se trata mais, então, de uma ex-
mais simples ("L prometeu vir"), que seria preferível geralmente por
pressão da metalinguagem designando uma expressão da linguagem,
mas de uma expressão da linguagem incorporada à metalinguagem. meras razões de economia. Vou então tomar um segundo exemplo,
De tal maneira que o lingüista Z deve utilizar a palavra inteligente em que semelhante tipo de abreviação é impossível. Se L, surpreso
por sua própria conta. Ele deve reivindicá-la como um conceito cien- com o que seu interlocutor acabou de dizer, replica-lhe "Confesso
tífico, provida de um valor teórico claro, e designando efetivamente
2. Ao observar esta possibilidade freqüente de transpor, ao preço de algumas
seja uma propriedade, seja um conjunto. Constrangimento algo repug- modificações sintáticas, o estilo direto em estilo indireto, não pretendo,
nante, e que deveria destruir em todo homem de bem a vocação lin- muito ao contrário, que o estilo direto seja, como dão a entender muitas
güística. Que se tenha, enquanto falante habitual ~ língua portuguesa, vezes os gramáticos clássicos, a origem do estilo indireto.

112
\ 113
estar estupefato", não se poderia aqui recorrer ao relato abreviado e delocutiva produz para o adjetivo uma segunda significação, a qual
dizer "L confessou estar estupefato". Ora, neste caso, não se recor- designa uma propriedade, aquela que é supostamente pertencente aos
reria mais ao discurso indireto, pois ele aí seria um pouco estranho objetos X a respeito dos quais se argumenta dizendo "X é inteligen-
também na transcrição "L disse que confessava estar estupefato". te". É o mesmo tipo de derivação que leva a construir o traço de
último exemplo, muito conhecido. Há muitas circunstâncias em que caráter "ser um você-me-viu", que se supõe pertencer, entre outras,
um "Eu te amo" dito por L a L' dificilmente poderia ser relatado às pessoas que dizem a cada instante "Você me viu fazer isto, você
sob a forma "L disse a L' que o amava" (exemplo que mostra até me viu fazer aquilo?". Nos dois casos trata-se da construcão de uma
que ponto Alain, na Ecole des femmes, ato II, cena 3, não tinha propriedade a partir de um discurso. Uma vez que esta d~rivação foi
razão ao sustentar "La femme est en ·effet le potage de l'homme"; possível, ela permite que se releia, que se reinterprete, o enunciado
pois a declaração "J'aime le potage" se deixa relatar facilmente sob declarativo "p é inteligente" como uma afirmação, como atribuindo
a forma "L a dit qu'il aimait le potage"). O que sugerem estes três a P uma qualidade, aquela que justifica precisamente a argumentação
exemplos, é que o relato indireto de um enunciado declarativo não de que este enunciado é fundamentalmente portador. Donde, final-
parece legítimo, na própria linguagem ordinária, a não ser que este mente, as possibilidades de relato em estilo indireto: a proposição
completiva, que deve ser compreendida como atribuição de proprieda-
enunciado satisfaça certas condições, e sobretudo se ele se presta a
de, parece nesse caso corresponder exatamente àquela que se acha no
fazer uma afirmação, a atribuir, por exemplo, uma propriedade ou
discurso original, uma vez que esta suportou a releitura delocutiva.
uma ação a um objeto - o que não é necessariamente o caso.
O que censuro em Z, quando ele faz o relato (2), é então de
Volto agora ao meu ponto de partida. L disse "P é inteligente", haver tomado como conquista o resultado desta releitura: dito de
e ninguém, no uso cotidiano da linguagem, faz objeção ao relato (2) outro modo, ele operou, enquanto lingüista, a derivação delocutiva da
"L disse que P é inteligente". Isto mostra que há uma tendência para qual a linguagem é a sede, e integrou o produto a seu discurso cien-
se ver na declaração de L uma afirmação atribuindo a P uma certa tífico. Ele fez, a seu modo, e sem ter disso consciência, o que fazem
propriedade, e é esta propriedade que é expressa na proposição com- os sujeitos falantes - quando o que devia era descrever o que eles
pletiva de (2). Donde se poderá concluir que os sujeitos falantes têm fazem, levando-os a tomar consciência disso. Pretendendo dizer qual
também - ai de mim! - tendência para representar a inteligência propriedade L atribui a P, Z leva a sério a pretensão que tem L,
como uma propriedade, tendência que o lingüista Z retoma por sua quando ele utiliza a palavra inteligente, de se referir a uma proprie-
conta e à qual confere até uma espécie de consagração ao introduzir dade real. Mais interessante seria, parece-me, desmascarar esta pre-
o adjetivo inteligente numa metalinguagem com pretensão científica. tensão. Para tanto, seria mais correto dizer que L atribui uma pro-
priedade a P, mas, em vez de pretender indicar em que esta consiste
Poderia Z agir de outro modo - descrevendo o que se passa - porque espero que ela não consista em nada absolutamente - , é
efetivamente na atividade lingüística da qual ele deve dar conta?. É necessário fazer ver a partir de qual atividade de argumentação ela
aqui que se aplica o conceito de delocutividade. Vou propor que se foi produzida. Para mim, a existência de uma propriedade "inteligên-
admita que o enunciado "P é inteligente" não constitui, ao nível pro-
cia" é uma destas miragens produzidas pela derivação delocutiva
fundo, uma afirmação - quer dizer que ele não serve fundamental-
quando ela opera nos discursos. Que esta miragem tenha uma função
mente para sustentar que uma certa proposição (no sentido lógico do
termo) está de acordo com a realidade. Neste nível profundo, a des- na prática ordinária da fala, que ela seja sobretudo origem, e con-
crição de semelhante enunciado pode ser puramente argumentativa dição de possibilidade, dos relatos em estilo indireto, ou, de um modo
(no sentido que se dá a este termo na teoria da argumentação na lín- mais geral, que ela fundamente a crença segundo a qual a fala ex-
gua; cf. notadamente Ducrot, 1973, Cap. XIII, ou Anscombre-Ducrot, prime "proposições" (no sentido lógico do termo), isto não deveria
1976): deve-se indicar unicamente o tipo de conclusões em favor das ser justificativa para que o lingüista atribua a semelhante miragem
quais ele' pode ser apresentado. Numa etapa ulterior, uma derivação a consistência, a espessura, de um conceito científico.

114 115
Antes de evidenciar que a noção de performativo está ligada à do sociólogo, o que permite assimilar "nutritivo" e NUTRITIVO.)
mesma miragem, darei, muito rapidamente, um segundo exemplo mos- Falta mostrar que ao valorizar o nutritivo, P valoriza ao mesmo tem-
trando como a delocutividade favorece a passagem subreptícia da lin- po a SUBSTANCIA. A passagem parece-me operar, no texto de Bour-
guagem à metalinguagem, exemplo fornecido, desta feita, por uma dieu, pelo seguinte raciocínio: "P, para falar de uma refeição nutri-
pesquisa sociológica. Numa passagem (p. 221-222) de La distinction, tiva, qualifica-a de "substancial" (e este emprego da palavra "subs-
Bourdieu compara o modo como o alimento e o ato de comer são tancial" seria mesmo seu valor "primeiro" - admitamos!). Valori-
tratados nas classes ditas "populares" (por abreviação P) e nos meios zando o nutritivo, é então a SUBSTANCIA que P valoriza." Nota-se
abastados aspirando à distinção (por abreviação A). Segundo ele, a que semelhante raciocínio supõe uma passagem da palavra " substan-
oposição entre os dois tipos de vida pode ser recolocada "a partir da cial", tal como aparece no francês cotidiano para qualificar uma refei-
oposição entre a forma e a substância: num caso, o alimento é rei- ção abundante, ao termo filosófico SUBSTANCIA - pass.agem que
vindicado na sua condição de substância nutritiva. ( . . . ) A substância entristeceria Spinoza: o sociólogo introduz a linguagem ordinária em
- ou a matéria - é aquilo que é substancial, no primeiro sentido sua metalinguagem, supondo que as palavras têm o mesmo sentido
de alimento. É o ser contra o parecer, a natureza ("É natural") e a sob pretexto de .que elas são materialmente aparentadas.
naturalidade, a simplicidade (com toda: a franqueza, sem afetação, sem
Assim fazendo, o sociólogo não me parece muito diferente do
cerimônia), contra as complicações, as aparências ... ". Se me permito
lingüista Z de agora há pouco: constatando que L disse: "P é inteli-
truncar o texto de Bourdieu para daí extrair e destacar (com uma
gente", Z acreditava poder transcrever "L disse que P é INTEL!-
intencional má-fé) o ponto preciso que me parece contestável, é que
GENTE". E a explicação me parece da mesma ordem nos dois casos.
meu objetivo não é o de discutir a conclusão geral defendida em
O sociólogo supõe que sua palavra SUBSTANCIA exprime o que o
La distinction, nem mesmo aquela, mais limitada, apresentada no
locutor original quis dizer referindo-se a uma refeição substancial.
parágrafo de onde retirei minha citação. O que me interessa é o tipo
Ora, o sociólogo não pretende, certamente, que o ·conceito filosófico
de argumento utilizado nestas linhas que pretendo comentar.
esteja, etimologicamente, na origem da palavra da linguagem ordiná-
Uma tese é aí, em primeiro lugar, apresentada, segundo a qual a ria. E o termo científico SUBSTANCIA que aparece como produto
oposição entre P e A, no que concerne sua visão da atividade de co- - e produto conforme o processo da delocutividade - a partir dos
mer, é um caso particular, ou uma conseqüência, da oposição entre empregos de todo dia. Faz-se com que ela designe um tipo de reali-
os conceitos gerais de SUBSTANCIA e de FORMA. Se transcrevo dade, aquela que se supõe justificar as enunciações "É substancial"
estas duas palavras em caracteres maiúsculos, é para assinalar que observadas no locutor ingênuo, enunciações em que não se trata cer-
pertencem na medida em que servem para formular a tese de Bour- tamente de conter um julgamento de verdade, mas de exprimir um
dieu, logo na sua primeira ocorrência no interior de minha citação certo tipo de apreciação favorável. Este movimento é ainda mais claro
- à linguagem científica de que se serve o sociólogo para descrever quando Bourdieu utiliza a palavra técnica NATUREZA para designar
a realidade. Elas exprimem conceitos tomados à tradição filosófica os valores reconhecidos por P (palavra colocada em paralelo com o , '
ocidental, donde se supõe que possuem uma inteligibilidade intrínseca termo filosófico SER tomado em sua oposição tradicional a PARE-
suficiente para esclarecer o daelo empírico ao qual são aplicadas. Co- CER). Para justificar sua tese, observa ele, com efeito, que freqüen-
mo ter certeza, agora, de que estes conceitos correspondam exata- temente P, para fazer o elogio de alguém, diz "É natural", expressão
mente aos fatos, e, por exemplo, de que o estilo de vida de P se ca- colocada entre aspas no própria texto de La distinction. Ora, esta
racteriza efetivamente pela valorização da SUBSTANCIA?. O argu- observação só pode constituir um argumento quando se lê no enun-
mento dado (em todo caso aquele que aparece na minha citação) é ciado de P o mesmo conceito de NATUREZA de que se serve o
que P considera como a qualidade essencial visada nos alimentos o sociólogo. E ainda assim, visto que P não leu os filósofos, é o con-
-fato de que sejam nutritivos. (Para simplificar, vou supor que esta ceito teórico que ele precisa construir sobre os modos de falar ordi-
palavra "nutritiva", que advém da linguagem utilizada por P, designa nários, fazendo como se o termo técnico de NATUREZA designasse
um conceito bastante claro para que possa figurar na metalinguagem a propriedade supostamente responsável pelas apreciações "É natural"

116 117
comuns na vida corrente. Ainda um rodeio dessa delocutividade su- fica Dz requerendo que a asserção de L se refira ao ato mesmo cons-
breptícia que fabrica as noções teóricas da metalinguagem com as tituído pela produção de E: o que o locutor afirma, dizendo E, é
que a enunciação de E é uma amostra do tipo de ato designado por
locuções da linguagem.
"A". Idéia que tenho manifestado algumas vezes dizendo que o pro-
Entre os exemplos sociológicos que acabo de analisar e o relato nome eu, num performativo, designa - fato excepcional na língua
lingüístico em estilo indireto estudado no início, vejo apenas uma - o locutor enquanto tal *, quer dizei:', não o personagem que tem,
diferenca. O lingüista Z utiliza uma delocutividade já efetiva no uso entre outras, a propriedade de ser o locutor de E, mas o locutor de E,
diário da fala, uso que conduz por si próprio a uma releitura de "P considerado em sua atividade mesma de produção de E. Tem-se então
é inteligente" como a asserção de uma proposição, isto é, como a que recorrer àquilo que chamei em Ducrot, 1980 (2.a ed., p. 300),
atribuição de uma pseudo-propriedade, a inteligência. O que explica "sui-referência sintática". Não é absolutamente suficiente, mas é em
de uma só vez a existência do discurso indireto na linguagem e que todo caso necessário que se admita Dz ou Da, para sustentar, como
este discurso possa muitas vezes servir, sem escândalo aparente, para geralmente se faz, que o locutor do performativo "Eu A" realiza a
relatar "nos próprios termos" uma enunciação. Por outro lado, a me- ação A pelo fato mesmo de que ele afirma tê-la realizado: a informa-
talinguagem sociológica de meu segundo exemplo ultrapassa o uso ção que ele dá sobre uma de suas ações presentes (ou, no caso de
ordinário da língua. Ele opera, diretamente, a derivação delocutiva, Da, sobre a ação que constitui sua própria enunciação) permite-lhe
fabricando os conceitos técnicos de SUBSTÂNCIA e de NATUREZA realizar esta ação.
a partir de empregos em que estas palavras são utilizadas para outros
Na medida em que a definição D1 está incluída nas duas seguin-
fins. Mas, nos dois casos, vê-se uma metalinguagem com pretensão
tes, acompanhada de exigências suplementares, é sobretudo de D1 que
científica se formar, diretamente ou não, a partir de enunciações da
vou tratar; seu caráter problemático se estenderá a fortiori a Dz e a
linguagem- a metalinguagem dando a ilusão de designar coisas, pro-
Da. Lembro o que nela é essencial: L produz E para realizar um ato
priedades ou noções que não têm outra existência, de fato, senão de
ilocucional do tipo daqueles designados por "A" em "Eu A". Se nos
ser o suporte imaginário de discursos homônimos. ativermos à forma superficial de D1, o signo "A" aí aparece somente
A PERFORMATIVIDADE duas vezes e, nos dois casos, ele é colocado entre aspas. Tem-se en- t
tão a impressão de que o lingüista Z, ao formular D1, não deve nunca ! ,
Resta-me mostrar que a noção de enunciado perjormativo explí- ;1
empregar "A" por sua própria conta. Ele se contenta, ao que parece,
cito (é a ele, repito, que me refiro quando emprego, por abreviação,
a palavra perjormativo), noção que passa por ser uma das aquisi- em mencionar uma expressão utilizada por L, sem ser obrigado a se ~t
ções menos problemáticas da filosofia da linguagem, é um efeito da pronunciar sobre o caráter válido ou ilusório do conceito designado
mesma passagem metalingüística de que acabei de falar. Suponha-
mos que um locutor L produza um enunciado E, realização parti-
por "A".
Na verdade, porém, se se observa de perto, percebe-se que há na I '
l
cular de uma frase de forma gramatical declarativa que associa, ao lógica de D1 uma terceira ocorrência do signo "A", mas que está
presente do indicativo, o pronome-sujeito "eu" e um predicado "A" oculta. Com efeito, para assimilar o ato realizado por L e o ato de-
designando um ato ilocucional, por exemplo, "prometer vir". Por signado pela ocorrência da expressão "A" em "Eu A", Z deve decidir
convenção, denomino "Eu A" o resultado desta associação - aqui, qual é o ato realizado por L. E isto, deve fazê-lo por sua própria
a seqüência "Prometo vir". Segundo a definição D1, a mais simples, conta, utilizando seus próprios conceitos. Por outro lado, ele deve
E é um performativo se L a produziu para realizar um ato ilocucional aplicar ao ato particular realizado por L uma noção geral que faz
do tipo daqueles designados por "A" no enunciado "Eu A". Uma parte de seu arsenal conceptual de lingüista, e da qual ele afirma em
segunda definição Dz, mais complexa, requer ainda que L, produ- seguida que é idêntica à noÇão designada pela expressão "A" quando
zindo E, afirma que ele realiza precisamente um ato desse tipo. E L a pronunciou.
D 2 que está subjacente à fórmula habitual "O locutor realiza a ação
que afirma realizar". Ainda mais estrita é a definição Ds, que especi- * Sobre esta noção ver o § 12 do Cap. VIII.

119
118
Um exemplo, somente a título de ilustração. Solicitado a com- A semelhança entre as duas situações aparece mais claramente
parecer a uma reunião, L acaba por ceder aos pedidos dos amigos: ainda se se comparam as justificações que podem, num caso como no
"Prometo que vou". De modo típico, seu enunciado parece, em vir- outro, autorizar o procedimento teórico de Z. Para dar a impressão
tude de Dt, merecer a qualificação de performativo. Tomemos por de desculpar Z (uma dessas desculpas que antecedem a condenação)
"A", com efeito, "prometer ir". Este sintagma verbal parece clara- por empregar o relato em e!{ilo indireto, aleguei que este relato é
mente designar, no enunciado de L, um tipo de atos ilocucionais. geralmente admitido na vida c'orrente, sobretudo se seu autor utiliza,
Por outro lado, o lingüista Z parece ter toda a razão de dizer que L para indicar o que L disse, as mesmas expressões de que L se serviu
acaba de realizar u~ ato desse tipo, um desses atos, então, que desig- para dizê-lo. De tal modo que não se saberia recusar ao lingüista Z
na a expressão "A" de seu enunciado. Mas vê-se imediatamente neste a mesma dose de seriedade teórica que se reconhece na conversação
exemplo o que implica, do ponto de vista da metalinguagem, a apli- diária. Ora, a mesma desculpa é possível para o Z do último exem-
cação de D1. Para assimilar o ato de L àqueles designados pela ex- plo. Se se pergunta ao "homem da rua" o que teria feito L ao dizer
pressão francesa "prometer vir", tal como é empregada no discurso "Prometo vir", é bem provável que se tenha a resposta "L prometeu
de L, é necessário que Z tenha um conceito teórico PROMETER VIR vir". Em outros termos, admite-se geralmente utilizar, para relatar o
aplicável, segundo ele, ao ato realizado por L, e que ele julgue, por que L fez, o mesmo verbo prometer que ele empregou em seu enun-
outro lado, análogo àquele que L tinha no espírito quando escolheu ciado. O lingüista pode então (sem razão, a meu ver) permitir-se
as palavras que pronunciou (insisto no fato de que a analogia que este relato para concluir que o enunciado original de L era perfor-
aqui está em questão é uma analogia entre conceitos, entre signifi- mativo no sentido de D1. Mas ele deve, para tanto, admitir, entre
cados: pouco importa o significante que Z utiliza, em sua metalin- outras coisas, que L empregava o verbo prometer com o mesmo valor
guagem, para denotar o tipo de ato ilocucional no qual ele classifica semântico que possui este verbo no relato. Não vejo senão dois argu-
a enunciação de L). mentos possíveis para esta identificação .
A situação de Z me parece, pois, uma vez descartadas certas Antes de tudo, ela serve para explicar que o relato "L prometeu"
diferenças superficiais, perfeitamente análoga, quanto ao fundo, àque- é tido geralmente- por exato. Admitamos, com efeito, a identidade dos
la em que já se colocava L no início de minha exposição, quando o valores semânticos, e suponhamos, ainda, que L, em seu enunciado,
problema era o de relatar o discúrso "P é inteligente". Ao escolher afirmava realizar o ato de prometer, entendendo por tal o mesmo ato
a transcrição "L disse que P é inteligente", Z produzia, a título pes- do qual se diz que ele o realizou quando fez o relato "L prometeu".
soal, por uma decisão sua, um conceito teórico INTELIGENTE que Tomemos, por outro lado, como aceito este princípio, muitas vezes
lhe permitia relatar o conteúdo da asserção suposta de L. A única sustentado na filosofia da linguagem, de que afirmando realizar um
diferença é que, assim fazendo, ele empregava efetivamente em seu ato ilocucional, quer dizer, um ato sobre a realidade da qual nada
discurso uma palavra metalingüística explícita p<tra significar este se pode ocultar nem dissimular, realiza-se ipso facto este ato. Nada
conceito. No caso do enunciado de promessa, ao contrário, descrito mais surpreendente nesse caso no fato, à primeira vista estranho, de
como satisfazendo à definição Dt, um artifício sintático permite evi- que o mesmo significante prometer, produzido por L, permita tam-
tar este emprego explícito: Z s~ contenta com dizer que L realizou bém relatar com exatidão o ato de L. E uma conseqüência necessária
o mesmo tipo de ato que aquele designado no seu enunciado. Mas a do princípio - contanto que se tenha admitido que o verbo tem
identificação dos dois tipos de ato, aquele que é designado e aquele não somente o mesmo significante, mas o mesmo significado nos dois
que é ralizado, não é evidentemente possível senão no caso de Z casos, e que ele é, a partir do enunciado original, o predicado de
possuir um conceito genérico para representar o ato realizado. Este
uma afirmação.
conceito genérico, instrumento teórico indispensável para a aplicação
de Dt, é o conceito metalingüístico PROMETER VIR, conceito que A este argumento indireto, para sustentar que o prometer de
ele compara em seguida àquele ao qual a expressão "prometer vir" "Eu prometo" e aquele do relato "Ele prometeu" têm o mesmo sig-
está supostamente remetendo no enunciado de L. nificado, pode-se acrescentar um segundo, muito mais direto. Porq1;1e

120 121
esta identidade, acabo de mostrá-lo, que pode contribuir para expli- de fato nos enunciados. Não se vê, nesse caso, porque ele tomaria por
car a exatidão geralmente recoJ1hecida em um tal relato, é ademais dinheiro à vista, no que concerne às palavras, as "intuições" subtraí-
confirmada pelos sujeitos falantes quando são interrogados com sufi- das ao sujeito falante . A semântica da palavra releva da explicação,
ciente habilidade e com insistência. Pode-se obter · deles que digam ·e a explicação entra na esfera de liberdade do lingüista . Volto a meu
que o verbo prometer é, nos dois casos, empregado com o mesmo exemplo. Mesmo que se possa mandar dizer a L que ele empregou
sentido: assim L, que, aparentemente, passa por autoridade na maté- prometer com o mesmo sentido dado a este verbo no relato "L pro-
ria, declarará talvez ter dado ao verbo, no seu enunciado da pro- meteu", isto não obriga, e sequer autoriza, o lingüista a afirmar uma
messa, o mesmo valor que as testemunhas que descrevem sua enun- tal identidade.
ciação dizendo "L prometeu".
Resta agora o primeiro argumento citado há pouco. Consiste ele
Faz-se mister agora perguntar o que valem esses dois argumen- em sustentar que a identidade dos significados explicaria porque se
tos, e sobretudo se Z, que visa a ciência, pode se contentar com os toma habitualmente por exato o relato que utiliza significantes idên-
mesmos. No que se refere ao segundo, a resposta me parece eviden- ticos. Como já disse, não discutirei o princípio que está na base desta
temente negativa. Certo, os semanticistas admitem geralmente que os explicação, princípio segundo o qual afirmar que se realiza um ato
sujeitos falantes conhecem o sentido de seus enunciados. De minha ilocutório deve significar a realização deste mesmo ato. O que quero
parte, em todo caso, certo ou errado, sempre tive isto como uma das fazer, é indicar uma outra possibilidade de explicação, fundada sobre
"hipóteses externas" que me têm servido para estabelecer os "fatos" esta mesma delocutividade que me serviu para dar conta dos relatos
de que procuro dar conta: os fatos, para mim, são as interpretações em estilo indireto. Parto da suposição de que o enunciado "Eu A"
que os membros de uma comunidade lingüística dão aos enunciados não comporta de início a afirmação de que o locutor realiza um ato
ilocutório (de modo idêntico, "P é inteligente" não é, de incio, a
produzidos na sua língua, especialmente aquelas que os locutores,
afirmação de que P possui uma certa propriedade). Mas, o fato de
qÜando falam, atribuem aos enunciados que produzem, e a tarefa da que esta fórmula seja convencionalmente ligada à realização de um
teoria semântica, tal como a compreendo, é a de explicar sistemati- certo ato ocasiona uma transformação semântica. do verbo "A", que
camente esses fatos. Mas decidir que uma tal palavra particular, em passa a significar "fazer o tipo de ato que se faz, entre outros meios,
tal enunciado, tem tal ou tal valor, isto não releva, da minha perspec- ao dizer "Eu A" (de modo idêntico, o adjetivo inteligente passa a sig-
tiva, das hipóteses externas, mas das hipóteses "internas", daquelas nificar a propriedade responsável, acredita-se, pelo elogio "P é inte-
que o lingüista imagina para explicar os "fatos"'". (Não é todavia ligente") . Apliquemos esta teoria ao meu exemplo. Se se admite o
necessário que o sentido do enunciado - realidade concreta - seja mecanismo que expus, o verbo prometer não designa, no enunciado
calculado diretamente a partir do sentido que as palavras de que ele "Eu prometo", nenhum ato ilocutório. Mas a utilização feita deste
é feito possuam quando nele aparecem: proponho antes explicar o verbo em tais enunciados vai ocasionar uma modificação de seu sen-
sentido do enunciado a partir da significação global da frase - enti-
dade gramatical abstrata - que ele realiza, e é esta significação da
tido. Ele poderá vir a designar esse tipo de ato ilocutório realizado, .'
notadamente, ao dizer "Eu prometo". Nada mais surpreendente então
frase que calculo a partir do .yalor semântico das palavras - ele-
mentos do léxico - das quais ela' é composta; cf. Ducrot et al., 1980, do que o fato de que se pretenda descrever a enunciação "Eu pro-
p. 7-30). Mesmo que se tratasse de uma palavra concreta que aparece meto" de L dizendo "L prometeu", com repetição do verbo que L
no enunciado ou, e com maior razão, de uma palavra abstrata, ele- empregou (é o mesmo processo que permite, a meu ver, no relato em
mento da frase, a determinação de seu valor semântico pertence ao discurso indireto, retomar o "P é inteligente" de L sob a forma "L
lingüista. O único constrangimento que se pode impor ao lingüista é disse que P é inteligente"). A exatidão habitualmente reconhecida no
que chegue, ao fim de seu cálculo, a dar conta do sentido reconhecido relato, quando este recorre ao mesmo significante prometer utilizado
para realizar o ato original, se explica assim sem que se tenha que
* Cf. Cap. III. fazer intervir alguma identidade dos significados.

122 -123
Esta diferença fundamental dos significados não impecle, por ~u­ ~m. co~struir, ~o menos neste ponto, a metalinguagem científica por
tro lado, uma vez operada a transformação semântica do verbo pro- mutaçao da lmguagem ordinária. E necessário assim postular que
meter, de reinterpretar com o novo sentido a ocorrência da palavra esta última, não somente possui, para falar dela mesma, uma meta-
em "Eu prometo" . E esta leitura, tornada possível pela derivação de- linguagem interior, mas que esta metalinguagem seja adequada· a seu
locutiva, que permite extrair dos sujeitos falantes esta declaração, bas- objeto. Notadamente, é necessário admitir que as palavras da meta-
tante favorável à filosofia da linguagem, "Eu faço o que disse fazer", linguagem interior à linguagem têm por significados os conceitos, no
declaração em que se acredita ouvir, muitas vezes, a voz da "intui- sentido científico do termo, vale dizer, que elas correspondam às exi-
ção" (de modo idêntico, os sujeitos falantes não contestam se se lhes gências que uma teoria deve impor a seu vocabulário. Hipótese esta
informa que dizendo "P é inteligente" eles atribuíram a P a proprie- bem problemática. Mais do que transfigurar em metalinguagem da
dade de inteligência - porque se julga justamente que a palavra ciência a metalinguagem da linguagem, o papel da lingüística me pa-
inteligente veio, por derivação delocutiva, para designar uma proprie- rece somente o de descrever esse discurso sobre a língua que é pró-
dade). Não procurarei aqui demonstrar a hipótese que acabo de es- ria à língua. Se os cientistas recusam-se a empregar, para falar do
quematizar, e que foi desenvolvida, por exemplo, em Ducrot, 1977, mundo, os significados da linguagem ordinária, por que aceitariam
e Anscombre, 1980. O importante, do meu ponto de vista, é que ela eles, para falar da linguagem, os · significados da metalinguagem or-
possa explicar a validade geralmente reconhecida no relato "L pro- dinária?
meteu". Se uma tal explicação é possível, com efeito esta validade
Esta confiança a priori na virtude metalingüística da linguagem
vem a ser um argumento bem fraco para concluir que L tenha dado,
- confiança que reprovo em Z, e em muitos outros filósofos da lin-
em seu enunciado "Eu prometo", ao verbo prometer o mesmo sentido
guagem - aparece ainda mais claramente se se adota a hipótese de-
("realizar o ato ilocutório de promessa") que ele possui no relato .
locutiva que propus há pouco, se se recusa a identificar, do ponto
Admitamos todavia esta identidade. Ela não autorizaria ainda a de vista semântico, o prometer do "Eu prometo" inicial e aquele do
Z a concluir que o enunciado de L era um performativo no sentido "L prometeu". Dir-se-á então que Z opera por sua própria conta, vale
de D1. Porque Z deve além disso supor que o relato "L prometeu", dizer, no interior de sua metalinguagem, a derivação delocutiva que
não somente é tido por válido na conversação cotidiana, mas é efeti- atua espontaneamente na linguagem. Ele constrói um conceito PRO-
vamente válido. É necessário, então, que Z faça seu esse relato, quer METER significando "fazer a ação que se pode fazer, na conversação
dizer, de um lado, que ele transforme em uma tese metalingüística corrente, ao dizer "Eu prometo". "PROMETER" é, aqui, sinônimo do
"L PROMETEU", e, de outro lado, que dê seu acordo a esta tese. verbo português "prometer" no segundo sentido, que este recebeu
Este é o primeiro ponto que, para mim, se apresenta essencialmente em conseqüência de uma derivação delocutiva interna à linguagem.
como problema. Porque exige-se de Z que ele incorpore à sua metalin- Como negar nesse caso que L, ao dizer "Eu prometo", fez o ato de
guagem técnica as palavras da linguagem ordinária que designam os PROMETER?. Se Z decide além disso que a palavra prometer, no
atos de fala, e que as incorpore não tanto no que concerne aos seus enunciado de L, tinha por sentido PROMETER, quer dizer, o segundo
significantes (o que seria insignificante) mas no que concerne aos seus sentido de prometer, se então Z opera a mesma releitura da qual os
significados. Permito-me insistir sobre este ponto. Para concluir que sujeitos falantes se tomam habitualmente culpados, nada mais im-
L fez a ação mencionada em seu enunciado "Eu prometo", Z argu- pede de aplicar ao enunciado de L a definição D1, e de nela desco-
menta: "L disse Eu prometo. Ora, é legítimo relatar a enunciação de brir um performativo. Mas, é necessário ver que, para fazê-lo, Z teve
L sob a forma L prometeu, dando o mesmo sentido, nos dois casos, de construir sua metalinguagem por imitação das derivações consti-
ao verbo prometer". Mas, para concluir daí, como o quer D1, que o tutivas da linguagem ordinária. O que reconduz ao problema geral
"PROMETEU" de Z tem o mesmo sentido que o "prometo" de L, que indiquei a propósito da palavra inteligente, e do qual mostrei, há
é necessário admitir que este "PROMETEU" é sinônimo do "prome- pouco, que é suscitado pela noção de performativo, mesmo que não se
teu" utilizado no relato feito em linguagem ordinária. O que implica recorra à delocutividade e que se admita uma i<;lentidade semântica

124 125
inicial entre o verbo prometer de " Eu prometo " e aque1e d e "Ele desse verbo em (1) - o que induziria a classificar (1) na categoria
prometeu". Esta noção implica sempre que o lingüista retome por s~a dos performativos tal qual a define Dt. A situação é, entretanto, menes
conta ou as representações que a língua se faz dela mesma, ou entao simples. Porque acontece que a palavra portuguesa "permitir" com-
os processos através dos quais ela constitui seu vocabulário. Penso porta pelo menos um outro sentido, que se pode parafrasear ora por
que seria preferível que ele procurasse descrever e explicar essas re- "possibilitar", ora por "não impedir". E este sentido que ela possui
presentações e esses processos. na maior parte dos empregos - e eles são numerosos - que tenho
feito desde o início deste capítulo (cf. "Esta hipótese permite expli-
ALGUNS "PERFORMATIVOS" car . . . ) . . É também o sentido que ela tem nos empregos "concretos"
do tipo "A goteira permite que a água escorra" ou "Sairei se o
Tenho, até aqui, somente tentado tornar claras certas conseqüên- tempo o permitir". Não há, por outro lado, nenhuma razão para se
cias teóricas que imJ2licam uma definição um pouco rigorosa do per-
considerar esta acepção, muito próxima da etimologia latina e cons-
formativo, mesmo se se contenta com a formulação mais sóbria, Dt.
tantemente presente na história da palavra em português, como deri-
Agora queria, num exame mais empírico, colocar em dúvida que u~a
tal definição possa se aplicar a fenômenos reais, que ela possa servir vada a partir da acepção "ilocutória" ou "quase jurídica" que tenho
para referir um conjunto não vazio de fatos. Se se tomou consciência considerado antes de tudo. De tal modo que nenhum argumento filo-
do que implica teoricamente Dt , deve-se, para lhe fazer correspond~r lógico pode autorizar a decidir qual destas acepções está presente no
um enunciado particular "EU A", produzido por um locutor L, admi- enunciado ( 1) de L.
tir que L realizou um certo tipo de ato ilocucional, cientificamente Para escolher, é necessário indagar qual dos dois sentidos pos-
definido na metalinguagem, e que esse tipo de ato constitui o signifi-
síveis do verbo explica melhor a função de (1), que é a de dar uma
cado do predicado "A" empregado por L. Antes de qualquer di~cu.s~ão
autorização. Ora, noto que é comum dar uma autorização por meio
é necessário então precisar como o lingüista decidirá o que signiftca
de fórmulas como:
"A" em "Eu A". Se se concorda comigo - como já solicitei - que
a atribuição de um valor semântico às palavras (aquelas da frase ou (2) Eu não me oponho a que você ...
aquelas do enunciado) releva de um procedimento explicativo, é ne-
(3) Eu te deixo livre de ...
cessário que a interpretação dada a "A" em "Eu A" sirva para com-
preender o efeito global desse enunciado: é necessário notadamente Dito de outro modo, é habitual, para autorizar, apresentar-se a si
que ela possa dar conta do ato realizado graças a ele. O que então mesmo como não colocando obstáculo ao projeto do destinatário. Não
devo mostrar, é que uma leitura de "A" conforme as exigências de procurarei aqui formular a lei de discurso que aparece em (2) e (3).
D 1 não contribui para explicar porque se faz algo ao dizer "Eu A" . O importante, para o que quero mostrar, é que ela existe. E, se ela
existe, é suficiente ao mesmo tempo para explicar o valor ilocutório
Meu primeiro exemplo diz respeito ao verbo permitir. Suponha- de (1), supondo-se que o verbo "permitir" aí possui, não seu sentido
mos que L diga a seu filho: jurídico, mas a segunda acepção que indiquei, "não impedir". Nesse
" caso, a derivação delocutiva é que teria produzido a acepção jurídica
( 1) Eu permito que você vá ao cinema.
"realizar o ato que se pode realizar, entre outros meios, pela forma
Chamemos, em nossa metalinguagem, "PERMITIR X" o tipo de convencionalizada Eu te permito". Seguramente, uma vez operada esta
ato realizado por L, e descrivamo-lhe como o compromisso assumido derivação, pode-se, se se quiser, reler o verbo utilizado na fórmula
de não punir o destinatário, ou simplesmente de não considerar como dando-lhe o novo sentido. Mas esta releitura não tem que ser levada
falta sua se ele faz X . Acontece que esta definição corresponde tam- em conta para explicar a eficácia ilocutória da fórmula, eficácia que
bém aproximadamente a um dos sentidos do verbo português "permi- se explica de um modo muito mais geral a partir do sentido não jurí-
tir". Donde a tentação de pensar que esse é precisamente o sentido dico. Ninguém, penso, teria a idéia de ver um performativo nos

127
126
enunciados do tipo de (2) "Eu não me oponho a .. . "· É mesmo um nhum lugar atestado (que eu saiba) pela construção "Sujeito + orde-
3
dogma que um enunciado negativo não pode ser performativo • Por nar + objeto indireto no dativo", quer dizer, por aquela. que é reali-
que então procurar um performativo em (1)? zada na fórmula Eu te ordeno. Para responder às objeções desse tipo
(suscitadas somente a propósito de um reduzidíssimo número de ver-
Encontrar-se-ão numerosos outros exemplos nos estudos citados bos ditos "performativos "), recorrerei à noção de marcadores de deri-
no início deste capítulo e exemplos muito mais significativos, muito vação ilocut6ria, tal qual está desenvolvida em Anscombre, 1977,
mais imediatamente favoráveis à minha hipótese. Gostaria apenas de Anscombre, 1980, e Roulet, 1980. Rapidamente esquematizada, esta
tratar aqui de alguns casos aparentemente. de~favoráveis, e~ que ~e noção se baseia na idéia de que certas particularidades lexicais, sintá-
é particularmente tentado a ler o verbo pnnc1pal do enunc1ado ca?- ticas ou entonacionais têm por função indicar ao destinatário que é
didato à performatividade com o sentido ilocutório que assegurana necessário, para compreender o enunciado em que elas aparecem, rea-
esta performatividade. Uma palavra antes a propósito do verbo orde- lizar uma lei de discurso, e que não se deve ater-se a uma interpre-
nar. Qual é seu sentido em tação direta (assim, as expressões E; belo, E; lindo, sendo fundamental-
(4) Eu ordeno que vás ao cinema. mente expressões laudatórias, devem ser lidas através de uma "lei da
ironia" que as transforma em críticas 4 ). Esta noção de marcador de
Para que (4) seja performativo, é necessário supor que ordenar nest~ derivação ilocut6ria, que tem o interesse lógico de alojar na língua
caso signifique "dar uma ordem". Leitura que é certax;nente a ?r~­ (na medida em que ela própria contém esses marcadores) uma refe-
meira a se manifestar no espírito. Se, por outro lado, admite-se a hlpo- rência às leis retóricas que comandam o discurso, pode se aplicar ao
tese delocutiva, é necessário atribuir ao mesmo, em (4), um sentido
problema do verbo ordenar. Dir-se-á que a construção sintática "orde-
diferente, não ilocutório, do tipo "colocar em ordem", sentido no qual
ele não é mais empregado em francês atual, mas que subsiste entre- nar + objeto indireto no dativo" indica que é necessário, para inter-
tanto no particípio-adjetivo ordenado ou no nome de. ~ge.nte. de~i;a.do pretar a fórmula primitiva, simular uma lei geral do discurso. Esta lei,
(o ordenador de uma cerimônia). Que haja, na consc1enc1a. hn~1st~c~ largamente atestada por outro lado, faz com que um enunciado de-
dos falantes de língua portuguesa, um parentesco entre esta s1gnif1- clarativo em que o locutor pretende dispor de uma certa maneira os
cação e a noção "dar uma ordem", isto é atestado, por exemplo, pelo fatos e gestos de seu alocutário, assuma o valor ilocutório de uma
verbo dispor, que quer dizer por sua vez "colocar de um certo modo" ordem endereçada a este mesmo alocutário. Uma vez operada esta
(dispor as flores num vaso) e "decidir" (o rei dispõe). A hipótese de- derivação - ilocut6ria - e quando a fórmula é convencionalizada
locutiva exige que a significação "colocar em ordem" seja primeira, na função imperativa, uma nova derivação - delocutiva, e que recai
que ela intervenha na fórmula Eu te ordeno, instrumento convencio- sobre as palavras - transforma a significação do verbo ordenar dan-
nal do ato de comandar, e que o verbo tenha recebido em seguida do-lhe o valor "dar uma ordem", que ele tem atualmente de uma
somente uma significação ilocutória, por alusão à eficácia de que é forma dominante e através da qual se relê geralmente a fórmula
dotada sua enunciação na fórmula. primitiva.
Uma tal explicação suscita, entretanto, uma objeção sintática, as- Um outro contra-exemplo possível, que devo também a Récanati.
sinalada por F. Récanati, objeçã"o que não é aquela imaginada para o Suponhamos que L produza o enunciado:
verbo permitir. É que o sentido "colocar em ordem" não é em ne- ·
(5) Eu te digo obrigado.
3 . Este dogma é algumas vezes apresentado como uma generalização empí-
rica: "constatar-se-ia" que os performativos não são jamais negativos. De 4. O sentido fundamental é atestado, por exemplo (cf. Ducrot et al., 1980,
fato é uma conseqüência da definição do performativo (que se escolha p. 120) pelo fato de que pode fazer alusão a este sentido respondendo
D 1' 'D2 ou D 3 ). Para que "A" designe a ação feita ao dizer. "Eu , A", é "Mas sim" a "1?. lindo" para marcar seu desacordo com o que diz de fato
1
necessbio que "A" designe uma ação, o que é geralmente 1mposs1ve se o enunciado : o "sim" marca esse desacordo, indicando um acordo com o
"A" é negativo (ver, no anexo, uma exceção, o verbo permitir). sentido fundamental.

128 129
E difícil não sustentar que L realizou o ato de dizer obrigado. As para ordenar e para permitir nos parágrafos precedentes. Em primeiro
definições D1 e mesmo Dz parecem, pois, aplicar-se de modo neces- lugar, convencionalização da fórmula Eu te digo "Obrigado" na sua
sário. L, de um lado, realizou um ato ilocutório, DIZER OBRIGADO, função de agradecimento. Depois, por delocutividade, construção de
e, de outro lado, o que ele afirmou em seu enunciado é precisamente um~ expressão verbal dizer obrigado tendo o sentido de agradecer e
que ele realizou este ato. Como negar que se tenha, nesse caso, um destgnando a ação realizável, entre outros meios, ao enunciar Eu te
performativo incontestável (sobre cujo modelo se pode, por outro digo "Obrigado". Logo, nada mais impede de reinterpretar a fórmula
lado, construir outros, substituindo obrigado por merda, bosta, até c~r:_vencional lendo aí esta expressão, o que leva a aplicar-lhe a defi-
logo, . . . etc.)? ~tçao D1. Mas nenhum dado lingüístico impõe fazê-lo. Fazê-lo con-
Aqui ainda, entretanto, tenho a impressão de que a aparente Siste, da parte do lingüista, em levar a sério e em dotar de um esta-
evidência do fenômeno performativo se deve a uma confusão. Com tut? ~ientífico, os resultados da delocutividade - ainda que fosse
efeito, o que significa o predicado metalingüístico DIZER OBRIGA- mats mteressante, a meu ver, evidenciar o processo do qual eles
provêm 6 •
DO, com a ajuda do qual o lingüsta Z comenta a ação de L?. Não
se trata certamente do conceito "empregar a fórmula Obrigado!". Com De um modo mais geral, enfim, queria indicar uma dificuldade
efeito, este mesmo predicado metalingüístico que caracteriza (5) apli- inerente a toda aplicação da definição D1, mesmo no caso em que ela
car-se-ia igualmente se L tivesse utilizado uma outra fórmula, por parece col~car _ll_lenos problemas, quer dizer, naqueles casos em que
exemplo, "Eu te sou muito reconhecido", que não comporta a palavra ~e tem _mats diftculdade para descobrir a significação primeira, não
Obrigado. O que Z afirma de L, é então simplesmente que ele fez tlocut~rta que, segundo a hipótese delocutiva, o verbo principal do
o ato de agradecer. Será evidente, nesse caso, que este ato seja o signi- enunctado aparentemente performativo deveria possuir. Tive de admi-
ficado da expressão dizer obrigado empregada em (5)?. Que uma tal tir, por exemplo, que ordenar, por razões sintáticas, não entra em
atribuição de sentido seja possível, não posso negá-lo, na medida em meu esquema senão ao preço de algum artifício. O verbo impedir é
que, a meu ver, o lingüista dispõe de uma grande liberdade na inter- ainda mais difícil de tratar pela delocutividade, porque não se vê
pretação das palavras, que faz parte de seu procedimento explicativo claramente como ele poderia, na fórmula
e não poderia ceder a uma pretensa "intuição" dos sujeitos falantes. (6) Eu te impeço de ...
Tudo o que quero mostrar, é que há outras possibilidades.
significar outra coisa que "dar a ordem de ... ". Confesso não ter no
Notadamente, pode-se compreender (5) nele colocando Obrigado caso de impedir, nenhuma solução positiva, nem mesmo nenhum ~rti­
entre aspas: Eu te digo "Obrigado" *. Seria necessário admitir então fício a_ propor:_ mas posso dar uma razão para refutar a solução per-
uma lei de discurso em virtude da qual um locutor, ao se representar formattva, razao que, por outro lado, pode se estender, mutatis mu-
ele mesmo enunciando a palavra Obrigado, realiza o ato de agradecer tandis, a maior parte dos outros verbos.
(uma lei diferente, mas de mesma natureza, pretende que, ao se apre- Lembro, em primeiro lugar, que o lingüista Z é tentado a descrever
sentar a si mesmo como desolado, se possa realizar o ato de se des-
o ato realizado habitualmente por meio de (6). Trata-se, com efeito,
culpar 5 ) . Isto posto, pode-se imaginar o mesmo processo que propus
(sobre este ~ont~, ver aqui mesmo, Cap. VIII, § 12). L agradece pelo fato
* Em francês Je te dis "Merci". Em português não seria possível ver as rela- de que ele 1magma uma cena onde ele mesmo, visto desta vez como per-
ções históricas e a delocutividade entre obrigado e agradecer, tal como em sonagem do mundo, pronuncia a palavra "Obrigado". Neste capítulo fiz
francês entre merci e remercier. No entanto, para os limites da presente abstração desta questão, e não mais distingo o par enunciador-destinatário
argumentação, a tradução do exemplo não traz dificuldades. (N. do T.) do par iocutor-alocutário, distinção apresentada primeiramente em Ducrot
5. Uma descrição exata desta lei de discurso (e daquelas consideradas para et ai., 1980, Cap. 1.
explicar ordenar e permitir) deveria fazer intervir a distinção entre o lo- 6. Para _Eu te disse Bosta ou Eu te disse Merda, a fórmula inicial deve ser
cutor enquanto tal (L), considerado em seu ato de produção do enunciado, descnta como Eu te disse "Bosta" \'Merda"), e o ato DIZER BOSTA
e o personagem do mundo do qual o locutor é uma instanciação particular (MERDA) realizado, entra na categoria INSULTAR GROSSEIRAMENTE.

130
131
do ato designado pelo conceito IMPEDIR da metalinguagem, e Z que L, por sua fala, tenha efetivamente obtido este resultado, e que
deve dizer o que ele próprio, enquanto lingüista, entende por tal. as coisas interditas são por esse fato impossíveis ou ilegítimas. Isto
Certo se se tratasse da noção impedir interna à língua, se, por exem- equivaleria, da parte de Z, a atribuir às palavras uma eficácia intrín-
plo, z fosse um redator de jornal relatando os ~atos e .dito~ .de L,
ele teria o direito de se apoiar sobre este conhectmento tmphctto da
seca, e então a assumir, por sua conta, uma concepção quase mágica
da fala. Que os sujeitos falantes manifestem por diversos motivos
língua que presumimos uns dos outros; seria mesmo um pouco pe- uma tal concepção, e que queiram descrevê-la, estou pronto a reco-
dante de sua parte tentar uma definição, "porque tod? mundo sabe nhecê-lo, mas o problema é justamente o de descrevê-la sem dividi-la
que significa impedir (se assim não fosse, poder-se-ta _e~pregar .a é isto que a noção de performativo torna imposísvel. A rigor, el~
0
palavra?)" . Mas zé um homem razoável, é mesmo um s~b:o, .e sena implica um lingüista que adote, sem se dar conta, o partido d~ lo-
muito cômodo ter as pretensões da ciência sem suas extgenctas. cutor - o que não é necessariamente seu papel.

Em que consiste então o ato de IMPEDIR e~ett_:ado por ~eio Os poucos exemplos que tenho examinado conduzem assim à
de (6)?. Para mim, trata-se de apresentar sua enuncta_çao com~ cnan- mesma tese que minha reflexão teórica sobre a noção de performa-
do por ela mesma no destinatário a obrigação de ~a? 3azer tsto ou tivo. Para admitir esta noção e para colocá-la em prática, faz-se ne-
aquilo. Pode-se seguramente preferir uma outra deftmçao, mas o es- cessário decalcar a metalinguagem sobre a linguagem. Em outros ter-
sencial no meu entendimento, é que ela deverá sempre começar por mos, é necessário impor ao lingüista que ele identifique sua descrição
uma fÓrmula análoga a "L apresenta sua enunciação como ... ". Ora, científica de uma língua àquela que conteria, nos seus significados,

0
verbo impedir, tal como é empregado em (6), não pode s~r _parafra- as palavras que constituem o vocabulário desta língua. O que exige,
seado desta maneira. L não diz que ele apresl!nta sua enunctaçao como ou que se tenha os significados das palavras por noções de caráter
criando. . . . O que ele diz, é que sua enunciação cria efetivamente científico, ou então que se contente conscientemente, à maneira de
esta ou aquela obrigação para o destinatário. Acusa~-~:_-ão, talvez, conceitos teóricos, com os valores semânticos das palavras, valores
(tem-se feito isto muitas vezes) de empregar, na deftmçao dos atos sempre fluídos, e que quase sempre não consistem mesmo em repre-
sentações, em descrições. Ou então que se recuse que a fala seja em
ilocutórios uma nocão quase jurídica de obrigação. Mas o mesmo
problema ~ubsiste se', por exemplo, substitui-se "c:iar obrigaçõe~" p~r
primeiro lugar um meio de conversação, de troca, de confrontação, ou
"impedir". Endereçando ao destinatário o enunctado (6), L n~o dtz
que se limite a conversar a seu respeito. Não há dúvida de que há,
~m muitas línguas, uma tendência para querer ultrapassar a tagare-
que ele apresenta sua fala como impedindo. . . C: que ele dtz ~su­
pondo-se que ele diga alguma coisa), é que ela tmpede ~a realtda-
lice, tendência que Benveniste chama "logicizante". E a delocutivida-
de. . . Sua enunciação não diz pretender este poder, ela at pretende. de contribui para tornar possível a sua. conceptualização. Mas, o que
Em outros termos, se se limita a definir IMPEDIR, não se tem a P?~­ rejeito na teoria da performatividade, é o fato de sublimar esse pro-
sibilidade de ver neste conceito o significado do verbo de (6). Dift- cedimento intralingüístico e fazer dele a origem dos conceitos e dos
culdade que se reencontra a propósito de}odos os v~rbo,~ ditos "P.erf?~­ conhecimentos do lingüista.
mativos". Nenhum, em seus empregos performattvos , pode stgnift: A teoria performativa se assemelha, por isso, ao modo de pensar
car "pretender ... ". Ora, o '!tie se faz, com tais empregos, não e muito mais banal e muito menos facilmente evitável (porque mais
senão pretender. subreptício) que examinei na primeira parte. Ele consiste, repito-o,
t a mesma conclusão, quando se examina a situação por outro em descrever sistematicamente os enunciados declarativos como asser-
ângulo, vale dizer, se se observa em primeiro lugar o que L "diz ções, que atribuiriam propriedades ou ações a objetos e que, por esse
fazer" e que se pergunte em seguida se Z pode admitir que L o tenha fato, seriam a representação de estados de coisas. Nos dois casos, o lin-
feito. o que L diz fazer (se ele "diz" alguma coisa - o que eu coloco güista se deixa levar pelo jogo que ele deveria denunciar. 1! que ele
justamente em dúvida), é tornar uma certa ação impossível ou il~g~­
se sente, por vezes, muito à vontade na linguagem, e se satisfaz muito
prontamente com as palavras da tribo.
tima. Mas z não vai ao ponto, pelo menos é o que espero} de admttlr
133
132
De .que tipo seria esta explicação, no quadro das teses apresen-
ANEXO ta_das ac1ma?. Seria necessário procurá-la nos fenômenos de constru-
çao delocuhva
- A do ' 1 se uma·
. vocabulário · O relato "L A" e' posstve
O Relato dos Atos Ilocutórios
e~o1uçao semantica produziu uma nova significação para a expres-

Gostaria de terminar com uma nota menos negativa no que se sa~ verb~l que aparece em "Eu A" e a levou a significar "fazer a

1
refere à performatividade. Não somente porque a "descoberta" dos ~ç~o rea~tza da, notadamente~ por meio da fórmula Eu A". E 0 relato
performativos, por seu caráter espetacular, dirigiu a reflexão contem- e ImpossJve se esta evolução não ocorreu.
porânea para os atos de linguagem. Mas, sobretudo porque ela des- .. Queria. somente indicar aqui que esse último caso é mais fre-
cortina ao lingüista um campo de pesquisas empíricas que subsiste quente
mesmo se se contesta a noção. Pois um fato intralingüístico perma-
r do que parece
'1 ' mesmo
. quando a fórmula "Eu A" serve para
rea 1~ar um ato 1 ocutóno convencionalizado. Se não é sempre per-
nece incontestável: para relatar certas enunciações portuguesas no cephvel, é qu: se tem a tendência de tomar por atos ilocutórios só
presente do indicativo, do tipo "Eu A", é considerado legítimo, no o~·Aato.s ~ue ~ao nomeados no léxico da língua (o que é uma conse-
uso ordinário da fal, dizer "L A", entendendo por tal um enunciado quencta 1med1at~ d~ confusão entre linguagem e metalinguagem). Três
no passado, tendo por predicado "A" e em que "L" designa o lo- e~emplos. O pnme1ro, sobre o qual não insistirei, já foi mencionado
cutor de "Eu A". Os enunciados "Eu permito", "Eu prometo" se ha pouco, m~s para outros fins. E aquele do verbo confessar, tal como
deixam assim relatar como "L permitiu", "L prometeu", ainda que apare~e em Confesso estar estupefato". Este enunciado dificilmente
"Eu como" não possa nunca dar lugar ao relato "L comeu" (salvo se deiXa relatar sob a forma "L confessou estar estupefato". Parece-
em certos casos de estilo indireto livre, que estão certamente, a meu me que ele releva, portanto, do mesmo tipo enunciativo que "Eu con-
ver, em relação com os fenômenos precedentes, mas que são, contudo, ~esso haver mata~o o rei da I~glaterra ", o qual pode ser relatado por
bem distintos). ~ confessou. . . . Se se adm1te a noção de performatividade, defi-
Tem-me acontecido freqüentemente apresentar esses fatos como mda s~g~ndo J?~· e que se coloca na origem desse tipo de relato, é
uma conseqüência da performatividade, definida, conforme D2 ou Ds, nec:ssano adm~tlf que o segundo enunciado e somente ele é perfor-
pelo slogan "Realiza-se uma ação pelo fato de que se declara realizá- mahvo, o que mtroduz entre os dois enunciados uma diferença fun- ..,t
la". Se com efeito, na declaração "Eu prometo", há, cada vez, um
ato de promessa e a afirmação de que se realiza precisamente este
damental difícil de justificar.
' .
,
Como segundo exemplo tomarei o repetir de : r
ato, se, de outro lado, esses dois elementos estão indissoluvelmente
ligados, compreende-se que seja considerado admissível, para relatar (7) Eu te repito que Pedro não está lá.
grosseiramente a declaração, dizer simplesmente que ato foi feito.
Seri~ consid:rado como completamente inexato relatar (7) sob a for-
Certamente está claro, depois do que acabei de sustentar ao longo
m~ L repetm que Pedro não estava lá". E que repetir não recebeu
desta exposição, que eu não posso mais manter uma tal explicação.
(amd~) a sig~ficação "fazer o tipo de ato realizado por meio de
Nem D1, nem, por uma razão ainda mais forte, D2 e Ds são mais,
para mim, aplicáveis a fatos reais: a ação que está em questão em enunciado~ analog?_s a (7)", mas significa somente "fazer (ou dizer)
"Eu A" não é aquela que está em questão no relato "L A". Mas este alguma .coisa que Ja se tenha feito (ou dito)" . O que não impede que
questionamento da performatividade deixa intacto o fato a explicar. (~) realiZe um ato bem particular, aquele de apresentar uma enuncia-
E continua sendo ainda importante, mesmo se se recusa empregar o çao como a reativação de uma afirmação precedente da qual se de-
termo "performativo", inventoriar, como fez Roulet, as expressões c~ara que se continua a assumir a sua responsabilidade. Que este ato
verbais que permitem o relato abreviado "L A". De tal modo que é n~o tenha nome em francês, isto não significa que ele não exista e
necessário encontrar para este relato uma nova explicação, diferente nao deva ser inventariado na metalinguagem.
daquela, puramente verbal no meu modo de entender, que lhe dá a
último exemplo, o enunciado negativo:
noção de performatividade.
135
134
==-;=- •• =

(8) Eu não te prometo vir.


enunciado. Não se pode no interior
odmesm~ ae
'
11
Impossível, de um modo geral, relatar (8) por L não me prometeu
mar em que ela consist;, não se
é encarregado de fazer afirma õet uma :nunciação, afir-
e senao fazer ve-Ia. Aquele que
para tanto, ele deve ter constr~ído ~:rs:es;espeito, é ~ lingüista, m:s,
vir". Ainda mais claramente que (7), (8) realiza, entretanto, um ato
ilocutório preciso, fácil mesmo de definir em termos jurídicos: "pre- se ~ontentar
com explorar a linguagem de =~ ::talmguf~gem e nao
tender eximir sua responsabilidade no caso em que não se realizasse quats ela não se destina. para ms para os
urna certa ação que o destinatário deseja". Acontece simplesmente que
este ato não pode ser designado pela expressão negativa não prome- Resposta a uma Resposta
ter. O que nada tem a -yer, entretanto, com o caráter negativo desta
expressão. Com efeito, a ob'ec- dada acima. para dtzer
A explicação
pender · obngado,
· e destinada a res-
(9) Eu não te permito vir. senvolvida n~st~e~a~~t:r~an_çOJs Récanati, ~nter.iores à conferência de-
p ~ , • ~.por sua vez dtscuttda em Récanati 1981
serve para realizar um ato particular, o de impedir. Ora, acontece · 136 • que ve a1 duas dtftculdades principais. · ' '
que este ato, ao menos em francês corrente, pode ser designado pelo
entreu~~e~u~~b~i~~;~~~ p~~sívelb ~·
sintagma não permitir. Donde a possibilidade do relato "L não me De um lado, Récanati indica
.segundo ele, "mais plausível",
gado, p~ssagem que não se fundamenta na existênct'a d.e umeatzf~r-o uln -
permitiu vir". Vê-se então que a diferença entre os relatos possíveis
para (8) e para (9) está ligada a um deslocamento na evolução se-
Eu te dtgo "Ob · d , orm a
mântica das expressões verbais que intervêm nos enunciados. Se se se-ia de uma ext:~s~oo dees~~d~~~=o e~tã~ à ~elocutividade. Tratar-
quer, mesmo assim empregar a noção de perforrnativo, dever-se-ia
as. ex~ressões verb~is que descrevem u:og::~e~;;:;n~~ ~er:!~i~as
:::u;~~g::d:~;rou um ges~o preciso (fazer executar simult~n:
dizer que somente (9) é performativo, e isto seria introduzir entre
os dois enunciados uma diferença intrínseca que, parece-me, nada
justifica: suá única diferença se deve à história lexical dos predicados "ação, mais va ( o uma rota~ao em relação ao outro)' depois, urna
'f ga aquela de nao fazer nada) , susceptível de s
m estar por este gesto. Do mesmo rn d , . e ma-
. ~ o, segundo Recanatt, a ex-
contidos neles.
pressão que estudamos te .
Mostrei neste anexo duas razões que podem impedir o relato verbal reciso .na em pnrnetro lugar designado um gesto
abreviado L A" . De um lado, o ato ilocutório realizado ao dizer
11
(= diz~r "Obrfu~ ~?,~stste e.rn pronunciar a palavra "Obrigado !,
"Eu A" pode não ser lexicalizado por meio do verbo "A". De outro· que este gesto p~~e o~a~if~~f;I,s, por extensão, o ato de agradecer,
lado, ele não pode não ser lexicalizado de nenhum modo. Nos dois
casos, os enunciados "Eu A" não podem evidentemente nada afirmar
Que _:sta ~erivação seja possível, não posso evidentemente ne á-
no que concerne sua própria enunciação. Mas a mesma coisa é ver-
lo, mas nao veJo porque considerá-la mais "plausível" d .g
dadeira (é esta em todo caso a tese defendida em minha exposição) ção delocutiva. o " , , que a enva-
quando o relato abreviado é possível, vale dizer, quando a delocuti- uma pref ~ . u a pa1avra plaustvel serve somente para disfarcar
11
vidade lexicalizou sob a forma de A" a ação feita por meio de "Eu · ilhanca 1ogtca
erencta pessoal em verosstrn , . ou a plausibilid,
A" . Porque, mesmo se o significante é idêntico, o significado do ver- e, na
d, 1 d explicação de um f t d , '. '
a o, eve-se a Circunstância de que o fato a-
bo "A " difere na fórmula e no relato. De tal maneira que jamais, ~u;:r ata o por um ~r~cesso geral do qual ele seria um caso parti-
segundo penso, um enunciado afirma em que consiste, do ponto de I. Ora, a delocuhvtdade me parece um processo de derivacão tão
vista ilocutório, sua enunciação. Certamente, ele a mostra. Mas, desde gera quanto aquele ao qual Récanati faz alusão. ,
que se distinguiu linguagem e metalinguagem, percebe-se que a qua-
lificação ilocutória da enunciação pelo locutor escapa do domínio do O _segundo argumento de Récanati é que ele vê mal or
expressao Eu te digo "Obrigado'· " ' na pnmeua p que a
. . etapa da derivação
que este pode descrever: ele não pode senão representá-la. :eassim,
creio, para toda qualificação da enunciação contida no sentido do que eu postulo, teria tido o mesmo efeito que a expressao
- Obngado!.
.

137
136
Ou melhor, o único modo, segundo Récanati, de compreender esta
equivalência funcional é o de admitir o seguinte princípio geral, que
justamente eu rejeito: declarar que se faz um ato (no caso, declarar
que se diz "Obrigado!") equivale, no que concerne aos atos de lin-
guagem, a realizá-lo (aqui, a dizer "Obrigado!") . Responderei sim- Capítulo VII
plesmente, utilizando observações de J. C. Anscombre, que, se existe
semelhante princípio geral, ele deveria permitir também substituir
Muito obrigado! por Eu te digo "Muito obrigado!", Bom dia! por Eu
te digo "Bom dia!", Porco! por Eu te digo "Porco!", Perdão! por Eu
te digo "Perdão!", Salve! [salut] por Eu te digo "Salve!" []e te dis A ARGUMENTAÇÃO POR AUTORIDADE *
Salut!"]. Ora, para os quatro primeiros destes pares, a substituição
é impossível, e, no último caso, ela não pode ser feita senão no fim
de um encontro, em forma de encerramento, mas não no início, em As pesquisas concernentes à argumentação que J.C. Anscombre
forma de abertura: enquanto que se diz Salve! [Salut!] tanto para e eu temos ~esenvo.lv.i~o visam a mostrar que ela nem sempre é
iniciar uma conversa como para se despedir, Eu te digo "Salve!" [Je acrescentada as possibihdades semântico-pragmáticas inscritas na lín-
te dis "Salut!"] não pode servir senão para se despedir. Poder-se-ia gua: oco_:re, ao con:rário, que, para descrever determinada expressão
multiplicar os exemplos. Eles tornam pouco "plausível", a meu ver, c.onstruçao ou. tornew, faz-se preciso indicar as restrições argumenta-
te
atribuir a uma lei geral o fato de que declarar X e declarar Eu digo tiva~ que ela Impõe aos enunciados em que aparece. Assim, a signifi-
"X" são equivalentes. caçao do morfema pouco deve, em nossa opinião, conter instrucões
As expressões do tipo Eu te digo "X" não são, então, a meu ver, que ~ermitam prever a orientação dos enunciados em que figur;, e,
criadas pela exploração automática de um modelo geraL Trata-se, especialmente, que esta orientação será inversa, na mesma situação
antes, de fórmulas criadas localmente, e explicáveis caso por caso. de fala, a de um enunciado que somente se diferencie do primeiro
Constituiu-se, pela realização do ato de agradecimento, a fórmula pela substituição de um pouco a pouco 1 •
ritual Eu te digo "Obrigado!", atribuindo ao fato de se apresentar . h este tema que irei, mais uma vez, ilustrar. Mas, em lugar de
pronunciando a palavra obrigado o valor de um ato de agradecimento. partir de uma expressão ·da língua para mostrar que lhe é inerente
Mas, se a enunciação da palavra simples e da fórmula permite de desem~enhar certo papel argumentativo no discurso, partirei de um
fato realizar o mesmo ato ilocutório, o de dizer-obrigado, isto não ~e.camsmo argumentativo freqüentemente observado no discurso e
implica que enunciar Eu te digo "Obrigado!" seja um outro modo de Irei mostrar que, sob uma de suas formas pelo menos, ele tem uma
dizer "Obrigado!" (no sentido em que enunciar Eu te prometo é um ancoragem lingüística: o que entendo por isso é que ele não somente
modo de prometer). utiliza disposit~vos constitutivos do organismo gramatical, mas que os
., (Tradução: Marco Antônio Escobar) desdobra: reah~ando,. assim, uma espécie de virtualidade da língua.
O mecamsmo discursivo em questão é a argumentação por autoridade
da qual darei, primeiramente, uma definição bem ampla, recorrend~

* Confe.rência apres~ntada
em Lyon, a 25 de outubro de 1980, e publicada
em. L Arg~mentat1on,Presses Universitaires de Lyon, 1981, p. 9-27.
1 · ~a1s precisamente, nós construímos a hipótese de que o valor argumenta-
tivo ~o~ morfemas_ determina o da frase de que são constitutivos, e que
este último determ~a, por sua vez, levando em conta a situação de fala,
o valor argumentativo de seus enunciados.

139
138
o arrazoado por autoridade"*. Mas, para melhor precisar essas esco-
a conceitos particularmente imprecisos. Dep?is: tenta~d-o distingu~r:
lhas, devo recordar certos conceitos, necessários para sua explicação
para estes conceitos, diferentes acepções posstvets, seret levado ~ d:~ (sobre esses conceitos, veja-se, por exemplo, Ducrot et al. (1980) e,
. . dois tipos de argumentação por autoridade, que passar;.l,
aqui mesmo, o Cap. VIII).
tmg~u a estudar mais detalhadamente. Um deles me parece _anco-
segutda, , t"d dado mais acima a esta expressao; o Servir-me-ei, primeiro, da distinção estabelecida por Wittgens-
ado, na hngua no sen 1 o .
r t é um proc:dimento acrescentado: os meios lingüísticos ao.s quats tein no Tractatus e utilizado, ao mesmo tempo, pela teoria literária
ou ro - . plt'cam de modo algum, a utilização argumentativa que desde Henry James e pela filosofia da linguagem ordinária, entre os
recorre nao 1ffi •
dois sentidos possíveis do verbo dizer, que chamo asseverar (ou di-
deles se faz . zert) e mostrar (ou dizer2). A primeira noção corresponde a sagen,
Em primeiro lugar, portanto, uma caracterização geral. Eu dir:i to tell, to sczy, e a segunda, a vorweisen, to show. Quando alguém faz
'l' a propósito de uma proposição P, um argumento e uma afirmação, por exemplo, quando X afirma "vai fazer bom tem-
que se u t1 tza,
autoridade, quando, ao mesmo tempo: po amanhã", ele dá pelo menos duas espécies de indicações, de natu-
1 . indica-s-e que p já foi, é atualmente, ou poderia ser objeto reza totalmente diferente. Retomando o critério aristotélico, pode-se
caracterizar a segunda pelo fato de que não ·é apresentada como sus-
de uma asserção; cetível de apreciação em termos de verdade (ou de falsidade), Assim,
Apresenta-se este fato como se valorizasse a proposição P, X não imagina que se lhe possa responder: "~ verdadeiro (falso);
2. como se lhe ajuntasse um peso par- você asseverou (não asseverou) que vai fazer bom tempo". ~ isso que
como se a reforçasse,
quero expressar quando digo que os comentários do enunciado sobre
ticular.
- - essitam especialmente sua enunciação (esta descrição que, para mim, constitui o sentido do
Duas expressões nesta caractenzaçao nec . . - enunciado) não são objeto de uma asserção (dizer1), mas de um
'd Prt'meiro o "indica-se" da primeua condtçao. Em dizer2: eles são mostrados. Quanto à primeira indicação, aquela que
ser escIarec1 as. • . p? C · t' ·a
que consiste esta indicação de uma asserção relativa. a . . ons~ m diz respeito ao bom tempo, esta sim é objeto de uma asserção, que
ela mesma em uma outra asserção que se:ve. para, mforma;, so re ~ é dita1. E é ela que, de fato, pode ser julgada em termos de verdade
asserção de p' um interlocutor que se supoe tgnora-la o,~ te-la es?,u~ (ou de falsidade): "~ verdadeiro (falso); vai fazer (não vai fazer)
'd ? Ou tal indicação consistiria apenas em fazer como se bom tempo". Ao enunciar "vai fazer bom tempo amanhã", diz2 que
c1 o ·· imular essa asser- ele diz1 que o dia seguinte será bonito.
fosse objeto de uma asserção, em representar, em s . -
ção? A seguir seria necessário precisar melhor, na segunda con,?tçao, Qualquer que seja a sua natureza, um enunciado comporta sem-
.. - :, dar valor forca peso,. Que significa "reforçar uma
as expressoes • • ' d f' · e pre, em minha opinião, um dizer2. Um enunciado interrogativo diz2
. - p? ~ em termos de verdade que se deve e mlt esse r - que sua enunciação obriga a pessoa a quem a questão é endereçada
propostçao · · d p? o em termos de
forco, como um aumento de verossimilhança e . .. u- 1. a respondê-la. Um enunciado de ordem ou de pedido diz2 que sua
ar ~mentacão, como uma autorização, até uma obngaçao ~e, c~nc uu enunciação obriga (com modalidades diferentes em cada um dos dois
g t' de, p? A segunda formulaÇão nada tem de contradttono, des- casos) a pessoa a quem tais atos são endereçados a adotar certo com-
a par u ·· ~ · · lado
de que se admita que uma proposição, elemento sema~tlco vetcu portamento. O mesmo acontece com uma interjeição (Bom!) ou uma
. d , constituída em parte ou na totahdade, por um exclamação (como o dia está bonito!). Elas dizem2 que sua enunciação
pe1o enuncta o, e ' · - se
valor argumentativo: então, é realmente a própria propost7ao que
* Por falta de um sinônimo mais adequado em português, decidi traduzir rai-
reforça quando se obriga o interlocutor a tirar dela determma.das con- sonnement par C~utorite por arrazoado por autoridade. Isto porque o termo
clusões. Segundo a escolha que se fizer, dentre as alternativas que raciocínio tem uma conotação demasiado lógica (mais apropriado à demons-
acabo de evocar, dever-se-ão distinguir pelo meno~ duas f~r~a.s de tração, na acepção de Perelman) e não me parece indicado para designar
um tipo de argumentação, que constitui uma atividade interativa (N do T.).
argumentação por autoridade, que denomino autorzdade pohfomca e
141
140
foi diretamente produzida, "arrancada", por uma emoção ou uma recusa dessa asserção Ora - 1
buído~ ao mesmo ser. ~ ' ; ~ aro que estes dois atos não são atri-
percepção: elas servem para mostrar a fala como forçada. E esta (pessoa à al . ver a e que a recusa é atribuída ao locutor
caracterização que dão à fala não é apresentada pelo locutor sus- alguém u':u do eu remete), -~as a asserção recusada é atribuída a
cetível de apreciação em termos de verdade ou de falsidade, como , . q po e ser o alocutano, um terceiro determin d
suscetível de acarretar uma resposta do tipo ~~~ falso, você apenas publica: a enunciacão do locutor é . . a. o, ou a voz
mente atri'b 'd , ' pois, por ass1m dtzer, parcial-
finge falar por emoção". ~ neste sentido que eu disse algumas vezes UI a a uma personagem dif d 1
um enunciador (no mesmo sentido erente e e, e que é somente
(cf. Ducrot, 1972, p. 18) que a interjeição "átesta" a realidade da
emoção que declara. Realmente, na medida em que ela se apresenta ;~~::::ia enu~ciação a diferentes e;:r~~:a;e~~~~rod~r~a:~~~;~~e~:~
- sem admitir, neste ponto, qualquer contestação - como resul- . que ' para zombar das pretensões de seu ami
tante desta emoção, ela pretende constituir por si mesma uma prova, di~a, numa espécie de raciocínio por absurdo· "Já que go !· ~e
assim como a fumaça é prova de fogo (ao passo que uma asserção tu o, você pode me dizer que bicho vai dar" *. N t vocXe sa e
é ao mes t f . es e caso (que
somente apresenta a enunciação como engaj~ndo seu autor com rela- , . . ~o empo, alante e locutor) faz ouvir, numa e~uncia ão
ção à verdade da proposição asseverada, mas não como prova desta que reivmdxca como sua, a voz de y asse d ç
Exprimirei esse fato d' d . veran o que ele sabe tudo.
verdade). xzen o que o enunciado, embora dando X como
O segundo instrumento teórico do qual me servirei é a distinção autor _ ( = locutor) • atn'bUI,. no entanto, a y ( =
· d da enunciação
entre locutor e enunciador. Denomino "locutor de um enunciado" ao cxa or da asserçao de onisciência) uma assercão que X - enun-
como u • nao assume
autor que ele atribui à sua enunciação. No momento em que se admite ciação sp:Ía~~ar~·éc;~~::;á~e1,ada como efetuada na própria enun-
que o enunciado mostra (diz2) em que consiste sua enunciação, ele
pode fazê-lo, entre outras coisas, apresentando-a como obra de alguém
que se considera ter pronunciado as palavras de que ele se compõe. A AUTORIDADE POLIFONICA **
Este autor pretendido da enunciação é o ser a quem fazem referên-
cia o eu e as marcas de primeira pessoa (salvo no discurso relatado t . ~ primeir~ forma de argumentação por autoridade da qual gos-
em estilo direto). Muitas vezes (sobretudo na conversação oral), mas ana e fala~ e a que chamarei autoridade polifônica". 1! esta ue
11

nem sempre, ele pode ser identificado com o falante, isto é, com a me parece duetamente inscrita na língua. Seu mecanismo al q
porta duas etapas. ger com-
pessoa que, "efetivamente", produz o enunciado.
Do locutor eu quero distinguir os enunciadores. Acabo de dizer a) O locutor L mostra um enunciador (que pode ser ele mesmo
que a enunciação - tal como a apresenta o enunciado - aparece ou outra pessoa) asseverando uma certa proposição p E
como a realização de diversos atos, por exemplo, atos ilocutórios ____ ou_t_ras palavras, ele introduz em seu discurso uma vo; q=
11
(asseverar, prometer, etc.). Chamo enunciadores" às personagens que
* A expressão usada por Ducrot é "D .,
são apresentadas pelo enunciado como autores destes atos. Todo o fica dizer (adivinhar) os três primeir~:n;~/e ~rele dans l'ordre", que signi-
paradoxo - que denomino conforme a expressão de Bakhtin, "poli-
fonia" - prende-se ao fato de que os enunciadores não se confun-
~a::::·m~m1~ não temos essa ~xpressã~c~d~:~::ca~'~:'id;u::~=ri::
** - Jvr~, mas com sentido semelhante (N. do "T.).
dem automaticamente com o locutor. Se um enunciador é assimilado Nas versoes ultenores da teoria lif' . - . .' ,
apresentado como autor da enuncf - omca, nao digo mais que o locutor é
ao locutor, isto se dá em virtude de uma identificação particular, e
a identificação pode do mesmo modo assimilar tal ou qual enuncia- acentuar a diferença entre locutor :ç~~i::r:s (~~m~a~es~áv;/10) aDfim de
mo modo não digo mais qu . · · • · o mes-
dor com outras personagens que não o locutor, por exemplo, com o a asserçã~, mas que se supõ: o~:n:nec~ado~ r~aliza~ a_tos ilocutários, como
alocutário. Assim, admito que um enunciado negativo (por exemplo, me seu ponto de vista sua art~d unc~açao atnbutda ao locutor expri-
"Eu não virei") apresenta sua enunciação como a realização de dois Mas isso não nos im'pede d; e, :ua posrção (cf. Cap. VIII, § 14 e ss.) .
sente capítulo. man er, mutatis mutandis, as teses do pre-
atos, respectivamente, a a&.serção de que a pessoa que fala virá, e a

142 143
- , forçosamente a sua -'- responsável pela asserção de
nao e d o dizer que nao
!· ble *, por não introduzir esta última expressão nenhuma alusão ne-
cessária ao discurso de outro. B preciso, ainda, observar que a exis-
Ao dizer que esta asserção é mostra a, quer , '1 tência da asserção marcada por RI parait é apenas mostrada e não
é ela mesma objeto de uma asserção: sua presença e ana oga
absolutamente, asseverada. Para mim, é isto que explica a impossibi-
a dos atos de promessa, de ordem ou de pe~gunta nos enun·
lidade de encadear sobre ele. Assim, não se dirá "Há sempre otimis-
ciados promissivos, imperativos ou interrogativos. tas: assim, parece que vai fazer bom tempo", coordenação que, em
b) L apóia sobre esta primeira asserção uma s.eg~da asserçã~, contraposição, se tornará perfeitamente compreensível ao substituir-se
relativa a uma outra proposição, Q, o que slgmhca duas ~. y parece por tem gente que diz, disseram-se, ou ainda, alguns preten-
sas. De um lado, que o locutor se identifica com o suJel o dem. Os enunciados em que entram estas três últimas expressões po-
E de outro lado que ele o faz fundamentan· dem, com efeito, servir para asseverar que há quem assevere que vai
que assevera Q · , ' p Q fato de
do·se em uma relação entre as proposições e ' no 1 , fazer bom tempo: elas possibilitam a asserção de uma asserção. O
. - de p torna necessário ou em todo caso egl· que formularei ainda dizendo que, neste caso, elas dizem2 o dizert
que a a dm1ssao ' d con
tima, admitir Q. Em outros termos, te~do to~a o como . de um dizer1. Pode-se, então, encadear com relação àquilo que é obje-
senso que p acarreta Q , o locutor se da a pa~tl: d~ uma ass~- to de asserção (dizer1) principal, objeto este que diz respeito à exis-
-o de p o direito de asseverar Q : a eXlstencla mostra a tência de asserções da proposição expressa na completiva V ai fazer
ça ' d t ·m uma asser- bom tempo. Quanto ao enunciado Parece que vai fazer bom tempo,
(dita2) de uma asserção de p fun amena, assl ' -
ão de Q, sendo esta ligação garantida por uma ~elaçao entre ele se limita, do mesmo modo que o enunciado simples Vai jazer bom
ç . d d p e Q Isto pode ser esquematizado do se- tempo, a indicar uma asserção relativa ao tempo que vai fazer, ele
as propne a es ·
guinte modo: diz2 um dizer1 cujo objeto é o tempo, e é somente com relação ao
Ponto de partida: asserção (mostrada) de p por X tempo, objeto deste dizer1, que se pode coordenar. A única diferença
entre o enunciado simples e aquele introduzido por Parece é que o
Ponto de chegada: asserção (mostrada) de Q por y enunciador da asserção, no primeiro caso, é geralmente identificado
Garantia: P - -) O ao locutor, ao passo que é necessariamente diferente deste no se-
gundo caso 2.
y identifica-se a L, X não necessariamente.
Ainda que a asserção introduzida por parece não seja assumida
Para ilustrar este movimento, imaginemos o discurso: pelo locutor1, mas mostrada como a de um enunciador estranho, ela
(1) Parece que vai fazer bom tempo: nós deveríamos sair. constitui, no discurso ( 1), o ponto de partida de um raciocínio e serve
para justificar uma outra asserção, a da proposição Q expressa pelo
. A utilizacão de parece no primeiro dos dois enunciad~s que segundo enunciado, asserção que, desta vez, é assumida por L. N::.
constituem est~ discurso serve, com efeito, para mo~trar e~uncladores
.ção p expressa pela completiva vat fazer bom * Tanto Il parait como Il semble traduzem-se, em português, por parece.
asseverand o a Proposl _ . .
esma mostraç'âo de uma asserçao feita por tercenos E. esta a razão que me levou a manter as expressões no original. Talvez
tempo (N B
· · A m d' · 1 * se pudesse, na maioria dos casos, traduzir O· il semble que . . . por parece-me
ode ser também marcada por certos empregos do con !ClOna ' n?- que, na minha opin.ião (N. do T.).
p t'l 'omalístico· "Giscard teria encontrado Marchats 2. P. Bange me fez notar um ponto comum a parece e a certas modali-
tadamente no es 1 o J · .
. , Antilhas") É justamente esta a d1ferença se- dades como talvez, provavelmente, ou, ainda, ao "condicional do discurso
antes de sua vlagem as . 1 . 11 m relatado": eles não podem ser objeto de uma negação. Trata-se, parece-me,
mântica essencial em francês entre as modalidades I paralt e se -
de uma propriedade geral das modalidades que permitem "mostrar" a fonte
de uma asserção. E. de ~e observar, sob este ponto de vista, que o "il
* Mantenho, em português, o termo condiciona\:~e~~r ::ta~era:::os;;t:!: parait" do francês clássico não era, por um lado, indicador de fonte (mas
tuído na N.G.B. por futuro do presente, por . - (N do T ) um equivalenta do atual ii semble) e que, por outro lado, podia ser negado.
mente de um tempo verbal, mas de um modo de enunctaçao . . .

145
144
. . . . e L se identifica apenas com o enunciad~r Uma extensão ainda mais radical da noção da autoridade poli-
minha termmologla, dlrel qu mite falar de argumentaçao fónica consistiria agora - contento-me em assinalar esta possibilida-
do segun~o enunciado. ~ isto ~u~ ~=s:~~enha o papel de uma auto- de - em introduzir nela todos os encadeamentos conclusivos, mes-
por autondade: o enunclador d' é suficiente para justificar que L, mo aqueles em que quem assevera P parece identificado a L. Consi-
'd d sentido de que seu tzer f d dere-se por exemplo.
n a e no . d d Q fundamentando-se no ato e
or sua vez, se torna enuncla or e , a'vel a de Q Pode-se notar,
P . r
que a verdade de p tmp lCa ou
torna prov
-
.
do L o seu autor tem por (3) Vai fazer bom tempo: deveríamos sair.
. ssercão de p mesmo nao sen '
asslm, que _a a ,. - ' a eficácia suplementar: ela não aparece Admitindo-se a concepção da descrição semântica utilizada des-
efeito dar a propost~a~ .P
mais apenas como dmgtda g_
u:: umentativamente para Q - orientação
p Q _ mas aparece como
de o início deste capítulo, o primeiro enunciado de (3) mostra sua
enunciação como uma asserção da proposição P, ao mesmo título que
.t , mera relaçao entre e
que diz respel o a. 'lizável em favor de Q: o fato de que nas coordenações (1) e (2). Evidentemente há algo de específico em
um argumento efettvamente utl . m dos privilégios essenciais (3). E que nele o enunciador da primeira asserção não é identificado
tenha sido afirmada l~e . conf:re, asstm: ç~es verdadeiras, o direito de com uma personagem distinta de seu locutor L: geralmente mesmo,
reconhecidos pelos logtctstas a~ p~o~osl pelo menos no discurso dito "sério" (e é esta, aliás, a definição que
constituir a base de uma inferencta . . darei a este discurso), ele identifica-se com L. No entanto, para que
ue acabo de dizer a propósito de parece devena ·esta diferença permitisse opor radicalmente o discurso (3) aos dois
Penso que o q . d talvez que apresentam a mesma
ser estendido às modahda es dcomlo , h b't.tual em um discurso, tirar precedentes, seria preciso que E se identificasse com a mesma pes-
· mente para oxa : e a ' soa que é identificada ao enunciador E da asserção mostrada no se- ·
propried ad e, 1ogtca 1 - e seriam justificadas somente se
de talvez p as mesmas cone usoes qu gundo enunciado de (3), isto é, ao asseverador de Q. Sem dúvida, na
se admitisse a verdade de P. hipótese de um discurso "sério", E', que assevera Q, é identificado
ao locutor - chamemo-lo L' - do enunciado em que sua asserção
Assim: aparece. Mas a assimilação de L e L' não me parece tão evidente.
(2) Talvez faça bom tempo: deveríamos sair. Realmente, embora se trate do mesmo indivíduo físico, e, igualmente,
. . d de ue se admita ser o bom tem- da mesma personagem social, trata-se, na verdade, enquanto locuto-
(ao passo que não se dma, es q . ós não devería- res respectivos dos dois enunciados, de dois seres diferentes, e não
- . "Talvez faca bom tempo. n
po uma razao para satr, , . d s Talvez p no uso lingüís- é natural estender à atividade lingüística os critérios de identificação
. , · to apesar de os enunc1a o ' psico-sociais *. O problema - que desejo somente assinalar - é ine-
mos srur - e ts 'bTd de de não-P quan-
tico habitual, deixarem entender tanto a posst 1 1 a vitável no momento em que se introduz em lingüística a teoria dos
to a de P) . . atos de fala. Esta obriga, como efeito, a dizer que nenhum enunciado
· b ' centes a (1) e a (2), sena é expressão direta de uma proposição P: Jamais P é mostrado, nem
Para assimilar os mecamsmos su Ja " t , "diz ")
. . l p exprime (ou melhor, mos ra ' z ditoz. O que é mostrado é a asserção de P. Por conseguinte, concluir
prectso dtzer que ta vez _ tribuída a um enunciador do
reão de p mas uma as§erçao a . 'f' do enunciado em que se faz a asserção de P a verdade de uma pro-
uma asse , , . . N-o se trataria mais de tdentl tear o posição Q, baseando-se no fato de que a verdade de P acarreta a de
qual o locutor L se dtstancla. a al mas fisicamente distinta de L:
:e
enunciador com u.ma. pers?~agem uma ersonagem virtual, talvez,
o enunciador sena t.dentlli~dtcaddo d L (cf as expressões Poder-se-ia
Q, é deslizar da asserção da proposição P à sua verdade, é fazer
como se ela fosse verdadeira pelo simples fato de ter sido afirmada,
aliás a uma certa vutua a e e . . ou, pelo menos, tomar a asserção como uma espécie de substituto da
. ' que ... , Eu seria tentado a dizer que· · · ). verdade. Movimento que se encontra no fundo mesmo do que chamei
dtzer
umentativo das proposições (ainda de-
3. Sobre a distinção entre o va~o~. a~'~) e o ato de argumentar a partir dele, * Na terminologia do Cap. VII (§ 12), dir-se-ia que pode haver aí dois L,
nominado "conteúdo argumen a lV C IV) mesmo quando há apena,s um À·
. exemplo , Anscombre-Ducrot (1983, ap.
ver, por .

147
146
!idades de se enganar quando diz1 P. O fundamento do arrazoado é,
.. . " o rocedimento é, sem dúvida, mais sen- assim, uma espécie de implicação entre· a proposição segundo a qual
autoridade poliforuca .
Il dp .sto é quando quem assevera
. . 'vel no caso e parece, t ' 1 X assevera P e a própria proposição P.
síve1' mats vtst ' . . te diferente daquele ao qua se
Q é assimilado a um ser mt~ramen trutura continua fundamental- A propósito do arrazoado por autoridade, tal como acabo de
assimila quem assevera Q. d as a :~ identidade psico-social é atri- esquematizá-lo, formularei uma tese, T - e todo o restante deste ca-
mente ana'1oga ' mesmo quan o uma . locutores aos quais se 1'tgam pítulo consistirá em justificá-la: T. Num discurso, da proposição X
buída aos dois asseveradores, pot~ o~ , . m ao outro. assevera que P não se pode concluir a. proposição P, quando estas
permanecem, enquanto locutores, trre uttvets u duas proposições são apresentadas separadamente, a não ser quando
a primeira proposição (X assevera que P) é objeto de uma asserção
O ARRAZOADO POR AUTORIDADE (dizer1); a conclusão é impossível se X assevera que P é apenas mos-
t ção por autoridade correspon- trada (dita2). Em outras palavras, a premissa de um arrazoado por
Esta segunda forma de dargument a -o que os novos filósofos do autoridade, em um discurso seguido, deve ser a asserção de uma asser-
modo de emons raça
de, parece-me, ao . t bém Pascal, atribuem aos esco- ção, e não a simples mosJração de uma asserção.
século XVII, os cartestanos, como. ammpatível com a existência, no
, . condenam como mco 1 Uma primeira justificação de T reutilizará a análise de parece
lasttcos, e que mite elo menos com re a-
indivíduo, de uma faculdade que lhe .P:esm; ~verdadeiro do falso. (= ii parait) apresentada maisacima. Comparemos os dois encadea-
ção a certos problemas, separar po~ dstd olifônica distinguirei duas mentos:
Do mesmo modo que para a a~ton a e p ' (4) Disseram-me que João viria. Penso, pois, que ele virá.
etapas no arrazoado por autondade: .
d. ) um enunciador E asseverando (dt- (5) *Parece que João virá. Penso, pois, que ele virá.
a) O locutor L mostra ( tzz (d' ) que p Cumprida -
onagem X assevera tZ1 · O asterisco colocado diante de (5) não assinala, sem dúvida, que
zendoJ) que uma pers . - su !ementar de que L se identifica com
como é usual - a condtçao lp - d (a) dizendo "L assevera que se trata de um discurso verdadeiramente impossível, mas que tal dis-
E d e simplificar a forrou açao e • . d curso exigiria condições de emprego bem particulares, muito mais
' po e-s - p X" A primeira asserção é dtta2, a segun a,
há uma asserçao de . p~r , . d't No discurso que manifesta estas particulares, em todo caso, do que aquelas em que se pode encon-
que é objeto da pn~etra, e 1 aJ. tanto como um enunciador, mas trar (4) . Esta diferença causa dificuldades na medida em que as infor-
duas asserções, X .n~o apare~e, ur:.r objet~ da realidade, a quem se mações vinculadas pelo primeiro enunciado de (4) e pelo primeiro
como um ser em~mco, com p X pode não ser especificado enunciado de (5) são perfeitamente idênticas. Nos dois casos, indica-
atribui esta propnedade de asseverar . rticular podendo eventual- se que alguém anunciou (disse1) a vinda de João . Para explicar a
ou, ao contrário, ser uma personagem pa to exig'ido para' a segunda
, io L Quanto ao momen quase impossibilidade de (5), utilizarei a descrição apresentada mais
mente:_ ser o. pro~r , . ele é necessariamente anterior ao da asser- acima, segundo a qual os enunciados do tipo "Parece que P", embora
asserçao (cuJO ob]eto e P) , , b' t ) já que esta relata o que fez X
façam alusão a uma asserção de P, apenas mostram essa asserção (dan-
ção principal (da qu~l e:a e o J~ u~ 'a asserção realizada por X seja
(anterioridade que nao tmpede q tical é o presente (como em do-lhe, de outro lado, por foQte, um enunciador diferente do locutor) .
expressa por um verbo cui,? tempo grama Ou melhor, a primeira parte de (5) constitui diretamente uma asser-
"Aristóteles afirma que P ). . ção da vinda de João: o fato de o locutor se distanciar de tal asserção
· t em asseverar (dt- por meio de parece que não impede que ele a mostre, que a faça
b) A segunda etapa, para ~u~;i~~~· ~~~:~:ma asserção de P
reviver, ou ainda a represente, e seria inexato dizer que ele a relata,
zerl) p (em o~tdros terx:no.sia;o eao locutor). Para tanto, ele se funda- anuncia, assevera: a cena lingüística se revela aqui como cena teatral,
por um enuncta or asslffil d t'sta sua situacão ou sua com-
, · de que X ' ten o em v menos tem • poucas probab't-
menta na 1.d eta no sentido de Brecht, diferente tanto do relato como da identificação.
petência, não se pode enganar' ou, pe1o '
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Admitindo-se esta descrição de Parece ( = i1 parait), a tese T
d:ncia semâ~~ca: e~ .virtude de o primeiro e o segundo enunciado
explica imediatamente a estranheza de (5): a asserção que nela repre- d., ~ada sequencta dtzerem a mesma coisa". Pois é perfeitamente
senta o papel de premissa não é objeto de uma asserção e não difere posstvel fazer com que eles tenham valores bastante diferentes e
da asserção de conteúdo idêntico que lhe é dada como conclusão a pode-s~ mesmo introduzi.r entre eles uma diferença que tornaria c~m­
não ser pela identidade da fonte. Ao contrário, o que confere certa preenstvel uma. eventual mferência de um a outro. Suponhamos, assim,
verossimilhança a (4) é que a asserção de que se parte, feita, por que X .tenha dtto: O tempo está bom" (asserção de P). Seria, então,
um agente. indeterminado, é ela mesma asseverada, dita1, e pode, a
conventente que Y retomasse, repetisse, essa asserção, apresentando-a
tal título, sem contradizer às estipulações de T, servir de àntecedente como sendo de X, e se fundamentasse, a seguir, nesta opinião de x
no arrazoado por autoridade, tal como o esquematizei. para asseverar P por sua vez e por sua conta:
Esta primeira justific~ção de T conduz imediatamente a uma
Y: *- Ah, o tempo está bom?. Então, de acordo, o tempo está
segunda. Pois a mesma razão que impede a coordenaÇão (5), razão bom.
que não se prende à fonte da primeira asserção mas apenas a seu
estatuto de asserção mostrada, deve também tornar impossíveis as . O mesmo movimento teórico é possível com já que. Pode-se ima-
coordenações em que o antecedente e o conseqüente são materialmen- g:nar, .por exemplo, que Y retome, introduzindo-a por já que, a asser-
te idênticos. como, por exemplo, os encadeamentos (6) e (7): çao felt~ ~or X,_ e que ele se baseie nela, em seguida, para expressar
·uma optntao análoga:
pois I Y; *- Já que o tempo está bom, tudo bem, de acordo, o tempo
(6) *Vai fazer bom tempo, ~ vai fazer bom tempo.
{ está bom.
porque J
. Se~ü.ências deste tipo são ainda mais verossímeis (do ponto de
portanto I ~sta teonco) quando se recorda que os encadeamentos com então ou
(7) *Vai fazer bom tempo, ~ vai fazer bom tempo. Ja que servem, freqüentemente, para retomar as asserções do interlo-
{
então J cutor, como, por exemplo, no caso da autoridade polifônica:
X: - O tempo está bom
Efetivamente, nestes discursos, em que o enunciado antecedente
é idêntico ao conseqüente, a asserção que serve de ponto de partida Y: · _ {Ah, o tempo está bom?. Então, vamos sair!
possui, ao mesmo título que a asserção derivada, o caráter de um Tudo bem, vamos sair, já que o tempo está bom.
ato mostrado: T explica, pois, que não são encontradas coordenações
deste tipo. . Aq~i, o "O te,~po está bom" de Y é equivalente, em conteúdo
mformattvo, a um Você me diz que o tempo está bom". Ora, posto
Para mostrar que a impossibilidade -de (6) e (7) não é evidente, nesta_ for~a d:senvolvida, ele tornaria efetivamente possível a ex-
é preciso notar, primeiramente, que ela não pode ser atribuída apenas pressao dtscurstva do arrazoado por autoridade. Cf. "Tudo bem, de
à redundância da forma lingüística utilizada, redundância que a lín- aco_rdo, c~m o t~mpo "está bom, já que você me diz que o tempo
gua francesa aceita com bastante freqüência (" Quand je mange, je está bom , ou amda Você me diz que o tempo está bom?. Tudo
mange", dizia amavelmente Claudel a uma vizinha de mesa, desejosa bem, de acordo, o tempo está bom".
de falar sobre poesia com o Mestre; ou ainda: "Si c'est comme ça,
c'est comme ça") *. Ela não se deve também a uma simples redun- O que torna anormais os exemplos (6) e (7) é pois justamente
a. restrição cuja existência é objeto da tese T. E. a~orm~, no enun-
* Sem dúvida isto é também comum em português, nenhuma estranheza em ctado que s~rve de antecedente a este tipo de raciocínio, que a fala
"Quando estou comendo, estou comendo", ou em "É assim porque é assim" de outro seJa apenas mostrada (mesmo que ela seja mostrada como
(N. do T.) .
sendo a fala de outro): ela deve ser objeto de uma asserção.

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A impossibilidade da segunda réplica de X deve-se a uma con-
(N B Não há nenhuma dúvida de que é possível trans~redir a
dição de emprego de pois [= car] (Cf. Ducrot et al, 1980, p. 47),
. a e~ llcitada em T - mas sempre ao preço ~e uma ~~tta ano-
::~ia:lo que acontece em "O homem é, pois, m1serável, Ja que ele
segundo a qual esta conjunção não pode introduzir uma asserção cujo
enunciador se identifique com o alocutário. No caso mais simples,
o é" de Pascal, que comentei em Ducrot, 1980, p. 33).
em que não se apresentan1 outros enunciadores virtuais a não ser o
Para dar a T uma terceira justificação, comparei os encadea- locutor e o alocutário, pois deve introduzir uma asserção cujo enun-
Dlentos (8) e (9): ciador é o locutor, isto é, que o locutor faz por sua própria conta.
Aqui seria preciso, pois, que X afirmasse a Y já que havia afirmado
(8) *Vai fazer bom tempo, pois eu te asseguro. o bom tempo a Y, o que é bem estranho, pois Y, por força das cir-
(9) Vai fazer bom tempo, já que eu te asseguro. cunstâncias, já o sabe, e o sabe exatan1ente pelas mesmas razões pelas
quais X, de sua parte, o sabe (a saber, a enunciação precedente de
Ainda aqui, o asterisco com que brin~o (8) nã? _significa:au: X). X, não pode, pois, endereçando-se a Y, fazer esta asserção por sua
. "b"l"d d total mas simplesmente - 1Sto é suflc1ente p própria conta, ele só pode repetir o saber de seu interlocutor, sem
1mposs1 1 1 a e • A • • 1 r
_ que (8) exige uma insistenc1a entoac10na pa - se apoiar em motivos de crença que lhe sejam próprios. (Note-se que
t
nha argumen açao- d (8)?
ticular que (9) não exige. Como, pois, explicar a est:,anheza e ~~ X teria podido dizer a Y "Vai, com certeza, fazer bom tempo, pois
Notar-se-á primeiro, que os enunciandos da forma Eu te as~egu eu o assegurei a Pedro", desde que se suponha que Y estava ausente
que p" sã~ suscetíveis de duas leituras pragmaticamente bem ~~feren­ quando X falou com Pedro: neste caso, X faz, para Y, uma asserção
tes. Para facilitar a exposição, vou chamar X ao locutor del E~ ~e que Y não poderia fazer por si mesmo).
.p" (ao qual o pronome eu se refere) e y ao a ocutano
asseguro que Resta agora a segunda interpretação de "Eu te asseguro que P",
(aquele a que faz referência o tu). em que se trata simplesmente de um enfático de asserção de P. ~ a
p" tese T que explicará, então, que esta leitura não pode ocorrer. Com
Na primeira leitura, o enunciado "Eu te asseguro que_ com:
orta a asserção de que X assegura a y que P, asserção CUJO tema e efeito, a asserção de P na segunda parte do encadeamento seria so-
p d" de X Na segunda a fórmula Eu te asseguro serve apenas mente mostrada (como acontece no enunciado afirmativo não-enfá-
O 1SCUrSO · ' l nder O tico "Vai fazer bom tempo"). O arrazoado por autoridade tomaria,
de reforce à asserção da completiva, o que eva a co~pre~
assim, por premissa, uma asserção mostrada, representada, dita2 - o
conjunto, do enunciado como uma asserção de P, asserçao CUJO te~a
que é impossível de acordo con1 T.
é um dos objetos ou acontecimentos de que se fala e~!· Pa_ra m.lm,
a impossibilidade de (8) deve-se ao fato de que restnçoes dtferentes Esta demonstracão não seria certamente suficiente, se eu não
interdizem uma e outra dessas interpretações. pudesse, tendo dado conta do asterisco de (8), explicar por que é
possível, em contraposição, o encadeamento (9), que difere de (8)
A primeira, com efeito, segundo a qual X afirmaria. que ele
apenas pela substituição de pois por já que:
bom tempo a y supõe que X já tenha anunctado este
assegura o ' - · Com esta
b tempo a y fazendo alusão a essa asserçao antenor. . , (9) Vai fazer bom tempo, já que eu te asseguro .
. om t - (8 ) cristalizaria um diálogo lingüisticamente 1mposs1vel
mterpre açao, Assim como para (8), a tese T interdiz, evidentemente, a intro-
como: dução em (9) da leitura em que a expressão "Eu te asseguro que P"
X: _ Vai fazer bom tempo. é uma fórmula de asserção de P. Sou, portanto, levado a estabelecer
que é a primeira leitura desta expressão que intervém nos enuncia-
Y: - Você acredita? dos com já que. O que é efetivamente compatível com a descrição
X: - *Mas sim, vai fazer bom tempo, pois eu te asseguro que apresentei para já que, conjunção perfeitamente suscetível de
introduzir uma asserção cujo enunciador é o alocutário, uma asserção
( = te assegurei).
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que 0 locutor não realiza ele mesmo no momento ?a equnciação. tinente· é a origem enunciativa que Y, em seu próprio discurso, dá
Donde a possibilidade de que .X.. uma vez tendo afumado o bom a essa asserção: ela não deve ser apresentada como proveniente de X.
tempo a Y, lembre a Y este acontecimento (a asserçã? do b?m tempo),
O estudo da argumentação por autoridade permite precisar me-
que Y, evidentemente, também conhece. O que expnmo dtzendo que,
lhor este ponto. O que acontecerá, com efeito, na situação que me
no discurso de X, Y é o enunciador da asserção que es.tabelece que
serve de exemplo de referência, se Y fundamentar explicitamente sua
X assevera a Y que P. asserção de P na autoridade de :x;, apoiando-a sobre um raciocínio
Resumindo: se (8) é pouco admissível, é porque se choca com T do tipo "X o disse; portanto é verdade"?. Para ligar a assercão de P
numa das leituras de Eu te asseguro e, na outra, que é compatível à conclusão "Vamos sair", Y usará pois ou já que?. Desta vez~ os fatos
com T, com as regras pragmáticas de pois. (9), por sua vez, é pos~í­ respondem sem muita ambigüidade: trata-se claramente de uma situa-
vel porque a pragmática de já que autoriza a leitura à qual T nao ção de emprego de pois. Assim:
se opõe. (11) Tudo bem, devemos sair, pois vai certamente fazer bom
A explicação que precede se fundament~ em u~a descrição ~e tempo, já que você o diz.
pois segundo a qual este conectivo só pode mtro?uz1_r uma ~sserça~ (N. B. O que me interessa em (11), em um primeiro momento,
que não seja "feita" pelo alocutário, no caso mais. s1mples, _e pre~I­ é a conjunção que introduz a asserção do bom tempo ( = P), por-
so que ela seja "feita" pelo próprio locutor, ou, na ~mha termmologia, tanto, o pois. Não me ocupo, neste momento, do já que utilizado para
que o locutor seja, ao mesmo tempo,_ o seu enu~ciador .. Ora, ocorre introduzir a premissa do arrazoado por autoridade).
que o estudo do arrazoado por autondade permite prec1sar esta no-
ção, que permanece bem indefinida, e _d:!imitar um P?uc? ~elho:_ o Tudo se passa, assim, como se a asserção obtida a título de con-
conceito "ser enunciador de uma asserçao . Uma das prmcipais razoes clusão do arrazoado por autoridade tivesse por origem o próprio lo-
empíricas que me haviam levado a este conceito é, efetivan:ente, uma cutor, como se o locutor fosse o enunciador. Do ponto de vista da
observação relativa a pois. Eu havia partido da observaçao de que língua, ela tem as mesmas propriedades que teria se se ' apoiasse em
não se pode introduzir uma retomada por meio de pois. Se X anuncia uma dedução ou uma observação, enfim, em uma diligência pessoal.
a y que vai fazer bom tempo, Y não pode encadear "Tudo bem, de- Em outras palavras, para a língua são coisas totalmente diferentes
"retomar" a asserção de outro - o que se deve fazer por meio de
vemos sair, pois vai fazer bom tempo" , enquanto já que[= puisque]
já que, Cf. (10) -- e fazer por conta própria uma asserção à qual
estaria aqui perfeitamente adequado: se dá por fundamento a asserção de outro - o que se faz por inter-
(10) Tudo bem, devemos sair, já que vai fazer bom tempo. médio de pois, Cf. (11).

O que, então, havia-me chocado e~a a impo~s~bilidade de e~pri­ Que significa, então, este ato de "retomar", compatível com já
mir esta restrição em termos de conhecimento prev10 e, menos amda, que e incompatível com pois?. O que é que faz, em (10), o locutor
de pressupostos. A formulação a seguir, por exemplo, seria totalmente que retoma, após já que, a previsão de bom tempo feita pelo alocutá-
inexata: "Y não pode introduzir pqr meio de pois a asserção de uma rio, e que tira dela diretamente a conclusão de que se deve passear?.
proposição p cuja verdade já é conhecida ou admit~da ~or seu inte;- Em que seu ato difere daquele do locutor de (11) que, utilizando um
locutor X". A prova: se, na situação que acabo de unagmar, Y, apos pois, apóia primeiro, sobre a previsão do alocutário, uma previsão
anúncio de bom tempo feito por X, for ele mesmo até a janela e, pessoal análoga à primeira quanto ao conteúdo, e depois tira deste
0
vendo um céu sem nuvens, chegar, por sua própria conta, à mesma julgamento pessoal a mesma conclusão que o locutor de (10) havia
previsão já expressa por X, poderá muito bem responder a este: "Tudo baseado diretamente na palavra de outro?. O estudo apresentado na
bem, devemos sair, pois vai (efetivamente) fazer bom tempo, c~mo primeira parte desta exposição sugere uma resposta. O que, em (10),
você disse". O importante não é, portanto, o que X pensa relativa- é ~ostrado (dito2) após já que, é uma asserção cujo enunciador
mente ao conteúdo P da ass.erção introduzida por pois: o que é per- é diferente de L, e L, segundo o mecanismo geral da autoridade

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asserção; ela é suficiente, no entanto, para dar à proposição que X
polifônica, tira dela uma conclusão da qual ele mesmo se.~~ enuncia·
disse1 P a mesma eficácia argumentativa que se L a assumisse di-
dor (embora não seja o enunciador do argumento). ~~~tt~d~-~e e~ta
retamente.
análise, a expressão "L retoma a fala de seu alocu.tano stgmflca . L
faz de seu alocutário o enunciador de um ato CUJO suporte ma~enal O fato de que as duas formas de argumentação por autoridade
continua sendo, no entanto, a enunciação de L" . A retomada mtro- podem combinar-se, como acabo de mostrar, não deve dissimular que
duzida em (10), por já que não se distingue, pois, fundamentalmente, são profundamente diferentes. O arrazoado por autoridade constitui
do par~ce que analisado no início de minha exposição. um tipo de demonstração entre outros, e deve ser catalogado ao lado
Em (11), em contraposição, encontra-se ~ e~emplo ~e ar~azoa­ do raciocínio por recorrência, da indução e do raciocínio por analogia,·
do por autoridade. Para simplificar as referenc~as, de~1g?are1 por num inventário de tipos de prova reconhecidos como válidos em dada
"A" "B" e "C" os três segmentos de que (11) e constltUldo: época, em determinada coletividade intelectual. Parte-se do fato "X
' disse1 que P" e, com base na idéia de que X ("que não é nenhum
(11) Tudo bem, devemos sair (A), pois certamente vai fazer
tolo") tem boas probabilidades de não ter-se enganado ao dizer o
bom tempo (B), já que você o diz (C). que disse, conclui-se da verdade ou verossimilhança de P. A fala de
Chamarei p a proposição segundo a qual vai fazer bom tempo, X, fato entre outros fatos, é assim tomada como índice da verdade
veiculada simultaneamente por B e pelo o anafórico de C. O que é de P. É por isso que esta fala, como o estabelece a tese T, deve ser
mostrado no segmento C é a asserção do fato de ter o alocutário asse- ela mesma apresentada como o conteúdo de uma asserção: só se pode
verado P. De conformidade com o mecanismo comum do arrazo~do concluir a partir de um fato quando se dá a este fato o estatuto de
por autoridade, a asserção deste fato serv:, em. seguida,. para ~utor~~r objeto, suscetível de ser considerado do exterior, de ser afirmado e,
a asserção de P, mostrada em B, asserçao CUJO enunc~ador e asstml- eventualmente, negado. Como toda forma de prova, um arrazoado
lado ao locutor. A partir daí, L pode tirar a conclusao apresentada por autoridade pode, além do mais, ser recusado. Ou se considera
em A sem fazer intervir roais nenhuma argumentação por autoridade que, em geral, a palavra de um homem não prova nada, ou sustenta-se
(ou, roais exatamente, fazendo intervir apenas a a~toridade ~oli!ô­ que X, em particular, em se tratando de certo ponto particular, pro-
nica entendida no sentido ampliado que propus no fmal da pnmetra vavelmente deva ter-se enganado.
seção, e que consiste em recorrer à autoridade das próprias afir-
Mas a situação é bem diferente no caso da autoridade polifônica.
mações).
Não se trata mais, então, de uma forma discursiva particular, mas
Anoto, a propósito deste exemplo, um ~ltimo problem~, desta
vez, 0 já que que liga C e B. Qual é o enunc1ador da asserçao_mos- do próprio fundamento do encadeamento discursivo. Ela consiste, re-
trada em C, isto é, da asserção segundo a qual houve asser~~o de cordo, em introduzir na fala, em nela mostrar, dizer2, representar a
p pelo alocutário?. Na medida em que C é introduzido p~r u~ Ja que, asserção de uma proposição e, depois, encadear sobre essa asserção
devo admitir, tendo em vista a descrição feita dessa con]unçao, que a como se encadearia sobre a própria proposição considerada como ver-
asserção mostrada em C não é a de L, mas de ~m outro personagem: dade. Ora, parece-me bem impossível agir de outro modo: por mais
no caso 0 alocutário. O que ma. leva a prec1sar, no esquema que que nos esforcemos, não faremos jamais aparecer no discurso a pró-
apresen;ei para o arrazoado por autoridade, que o. ~nunciador da pria verdade de uma proposição, mas somente as asserções das .quais
premissa não é necessariamente o locutor. Isto se venft~a obs:rva~do ela pode ser objeto. A este título, o recurso à autoridade polifônica
que esta premissa pode assumir a forma Parece que ~ = ll parmt] ( Eu é coextensiva a toda argumentação. Simplesmente, ele é visível de
penso que vai fazer bom tempo: parece com efelto, que Pedro ? modo particular, e paradoxal, no caso, sobre o qual insisti especial-
disse"). O arrazoado por autoridade, que faz passar de C e B, esta, mente, em que o locutor se distancia explicitamente (Cf. parece que
pois, sobreposto àquele que chamo "autoridade ~olifônica" . o. lo-
[ = il parait que]) do enunciador em cuja asserção ele fundamenta
cutor L conclui da verdade de P a partir da asserçao de que X d1sse1
.suas conclusões.
p ( = arrazoado por autoridade). Mas L não é ele próprio autor desta
157
156
Uma vez estabelecida esta distinção, entre um procedimento fa- quando no século XVII se pretendeu criticar esta prática retórica,
cultativo e uma necessidade constitutiva da fala, resta verificar quais ela foi representada como um arrazoado por autoridade do tipo "Aris-
os seus pontos de cantata. Com relação a este ponto, uma sugestão. tóteles disse que P; portanto, P". Raciocínio cujo absurdo é, então,
Poder-se-ia considerar o arrazoado por autoridade como uma espécie fácil de mostrar - exibindo ~ criticando sua premissa oculta "Aristó-
de explicação e, por isso mesmo, de racionalização, da autoridade teles não se engana jamais", particularmente insustentável no mo-
polifônica, no mesmo sentido em que as comparações expostas no dis- mento em que a ciência moderna colhia seus primeiros sucessos. Mas,
curso ("Seus cabelos são negros como a noite") desenvolvem associa- aceitando-se as análises que acabo de apresentar, ver-se-á que há um
ções inerentes à própria significação das palavras em determinada certo artifício na interpretação da retórica escolástica como arrazoado
coletividade lingüística (como dizem poeticamente os semanticistas, o por autoridade. Pois trata-se, antes, de uma forma particular de auto-
lexema "noite" comporta o traço conotativo "negrume"). Vale a mes- ridade polifônica, condição de todo discurso: pode-se deplorar que
ma operação do domínio da argumentação por autoridade. Tem-se, de ela tenha optado por fazer ouvir esta voz e não aquela, mas isto não
início, um mecanismo lingüístico fundamental, a autoridade polifônica, muda nada com relação à necessidade que todo discurso tem de pôr
aplicação direta do que Ducrot-Vogt ( 1979) denominam "alteri- em cena outro discurso. O que sugere a este respeito a noção benve-
dade constitutiva", ou ainda da derivação delocutiva de Benveniste, nistiniana de delocutividade é que o discurso segundo, mesmo quan-
que permite ler uma asserção como o próprio fato que ela assevera, do retoma um discurso anterior, não consiste em mero relato. Ele
quer dizer, ver afinal aparecer o mundo através do discurso que se cria uma realidade original: pelo fato mesmo de dizer2 que alguma
faz sobre ele. O arrazoado por autoridade pode, então, ser conside- coisa já foi ditai, diz-sei alguma coisa de novo 4 •
rado como uma espécie de exposição discursiva desse mecanismo: pelo (Tradução: Ingedore G. Villaça Koch)
fato de alguém haver asseverado uma proposição, arrogamo-nos o di-
reito de nós mesmos a asseverarmos, isto é, de apresentarmos como
o reflexo de um estado de coisas .
A passagem da primeira forma de argumentação por autoridade
à segunda é, em minha opinião, a mesma que realizaram os filósofós
racionalistas do .século XVII, quando denunciaram, na filosofia esco-
lástica, um perpétuo arrazoado por autoridade. Na verdade, a prá-
tica dos escolásticos lembra sobretudo a autoridade polifônica. Eles
atribuem a Aristóteles e aos textos sagrados justamente aquilo que
desejam dizer (o que é exatamente o movimento do parece que ou
do condicional de prudência dos jornalistas). :É que os cânones argu-
mentativos da época impunham que, quando se quisesse valorizar uma
proposição, ela fosse apresentada como uma reformulação de uma
fala de Aristóteles e de uma fala da Bíblia, aparecendo a convergên-
cia da antigüidade e da religião como necessária para dar peso a um
discurso moderno, válido apenas na medida em que fosse represen-
tante. (Permito-me, aliás, sugerir que, nas demonstrações filosóficas
atuais, a referência aos grandes filósofos tem praticamente a mesma 4. A primeira aparição, na lingilistica moderna, do conceito de delocutividade
função : há teses que um locutor não pode apresentar a· não ser que encontra-se em Benveniste (1966, Cap. XXVIII). A interpretação deste con-
ceito à qual me refiro está em Anscombre (1980, p. 115 e ss.), em Ducrot
lhes dê como enunciadores Platão, Descartes, Kant e os demais). Mas, 0980, p. 48) e em Svidar~Iskandar (1979, Cap. 1).

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Capítulo VIII

ESBOÇO DE UMA TEORIA POLIFôNICA


DA ENUNCIAÇÃO

I . O objetivo deste eapítulo é contestar e, se possível, substituir


- um postulado que me parece um pressuposto (geralmente implíci-
to) de tudo o que se denomina atualmente "lingüística moderna",
termo que recobre ao mesmo tempo o comparativismo, o estrutura-
lismo e a gramática gerativa. Este pressuposto é o da unicidade do
sujeito falante. Parece-me, com efeito, que as pesquisas sobre a lin-
guagem, há pelo menos dois séculos, consideram como óbvio - sem
sequer cogitar em formular a idéia, de tal modo ela se mostra evi-
dente - que cada enunciado possui um, e somente um autor.
Uma crença análoga durante muito tempo reinou na teoria lite-
rária, e não foi questionada explicitamente senão a partir de uns cin-
qüenta anos, notadamente depois que Bakhtine elaborou o conceito
de polifonia. Para Bakhtine, há toda uma categoria de textos, e nota-
damente de textos literários, para os quais é necessário reconhecer
que várias vozes falam simultaneamente, sem que uma dentre elas
seja preponderante e julgue as outras: trata-se do que ele chama, em
oposição à literatura clássica ou dogmática, a literatura popular, ou
ainda carnavalesca, e que às vezes ele qualifica de mascarada, enten-
dendo por isso que o autor assume uma série de máscaras diferentes.
Mas esta teoria de Bakhtine, segundo meu conhecimento, sempre foi
aplicada a textos, ou seja, a seqüências de enunciados, jamais aos
enunciados de que estes textos são constituídos. De modo que ela
não chegou a colocar em dúvida o postulado segundo o qual um enun-
ciado isolado faz ouvir uma única voz.
~ justamente a este postulado que eu gostaria de me dedicar.
Para mostrar até que ponto ele está ancorado na tradição lingüística,

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chamarei a atenção rapidamente para uma pesquisa americana, que,
admitida ~ priori como um dado de bom senso: "não se pode, em
no próprio momento em que está para abandoná-lo, reestabelece-o
u~ enunciado que se apresenta como próprio, éxprimir um ponto de
in extrimis, como se se tratasse de um dogma intocável. Trata-se do vista que não seja o próprio".
estudo de Ann Banfield (1979), sobre o estilo indireto livre. Rom-
pendo com a descrição habitual de estilo indireto livre como uma das Os es.tudo~ de Banfield sobre o estilo indireto livre foram recen-
formas do discurso relatado, Ann Banfield vê nele a expressão de um temente .discutidos em detalhe por Authier (1978) e Plénat (1975).
ponto de vista, que pode não ser o da pessoa que é efetivamente, l E.stes dOis estudos colocam em dúvida os dois princípios "um enun-
empiricamente, o autor do enunciado, e ela emprega o termo "sujeito c~ado - u~. sujeito de consciência" e "se há um locutor, ele é, idên-
de consciência" para designar a fonte deste ponto de vista. Mas, alcan- tico ao SUJei~o de con~ciência" . Minha própria teoria da polifonia,
çando este ponto, quer dizer, o momento em que uma pluralidade de que deve mutto aos dois autores que acabo de citar, visa a construir
sujeitos poderia ser introduzida no enunciado, Banfield formula dois. um quadro geral onde se poderia introduzir sua crítica a Banfield
princípios que descartam a ameaça. Ela coloca inicialmente que, para quadro_ que constitui ele mesmo, digo-o desde já, uma extensão (bas~
um dado enunciado, só pode haver um sujeito de consciência, colo- tante hvre) à Iingüística dos trabalhos de Bakhtine sobre a literatura.
cando de imediato no domínio do anormal os exemplos que fariam
aparecer uma pluralidade de pontos de vista justapostos ou imbrica- II. Gostaria, inicialmente, de definir a disciplina - chamo-a
dos. E em seguida, para tratar os casos em que o sujeito de consciên- "pragmática semântica", ou "pragmática Iingüística" - no interior da
cia não é o autor empírico do enunciado, diz que não há locutor ~ual situ~m-se minhas pesquisas. Se se toma como objeto da pragmá-
nestes enunciados. Certamente não censurarei Banfield - muito ao tlc;a .a açao hu~ana em geral, ó termo ~&m~tlca ga língua~ pode
contrário - por distinguir o locutor, ou seja, o ser designado no servi~ p~ra designar, neste conjunto de investigações, as que dizem ...,.
enunciado como seu autor (através, por exemplo, de marcas da pri- respeito a ação humana realizada pela linguagem, indicando suas con-
meira pessoa), e o produtor empírico, ser que não deve ser levado dições e seu alcance. O problema fundamental, nesta ordem de estu-
em conta por uma descrição lingüística preocupada somente com indi- ~os, ~ s~ber porque é possível servir-se de palavras para exercer uma
cações semânticas contidas no enunciado. O que censurarei em Ban- mfluencia, porque certas palavras, em certas circunstâncias são dota-
field é a motivação que a leva a esta distinção, a saber, o cuidado das de eficácia. E o problema do centurião do Evangelho, 'que se es-
em manter a qualquer preço a unicidade do sujeito falante, já que p~nta por p~der dizer a seu criado venha! ", e o criado vem. E taro-
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este mesmo cuidado - depois de tê-la levado a fazer abstração do bem a questao tratada por Bourdieu (1982), questão que está, na ver-
produtor empírico (posição que é também a minha) - vai levá-la a ~ad~,. no domínio da sociologia, e sobre o qual o lingüista, enquanto
decisões que gostaria de evitar. Quando o sentido de um enunciado !mg~1sta, tem pouca coisa a dizer - exceto se ele crê em um poder
comporta a indicação incontestável de um locutor (atestada pela pre- mtrmseco do verbo.
sença de pronomes de primeira pessoa) mas que, no entanto, o enun-
ciado exprime um ponto de vista que não pode ser identificado a~ Mas, uma vez colocado de lado este problema, resta um outro,
do locutor - por exemplo, quando alguém tendo sido chamado de ~ue me parece, este sim, propriamente lingüístico, e que faz parte
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imbecil, responde "Ah, eu sou Üm imbecil, muito bem, você vai ]t!.stamente do que chamo pragmática lingüística". Não se trata mais
ver .. . " - Banfield é obrigada a excluir estas "retomadas" do cam- do que se faz quando se fala, mas do que se considera que a fala
po do estilo indireto livre considerando-as um dos modos do discurso seg~ndo Q.. Eróprio enunci~ Í@. Utilizando um enunciado interr~
relatado (descrevendo o "eu sou um imbecil" do discurso precedente g~t~vo, pretende-se obrigar, pela própria fala, a pessoa a quem se
como um "você diz que eu sou imbecil"). Graças a tais exclusões, ela dmge a adotar um comportamento particular, o de responder, e, do
pode formular um princípio segundo o qual, quando há um locutor, mesmo modo, pretende-se incitá-lo a agir de uma certa maneira se
este é necessariamente também o sujeito de consciência, princípio que se recorr~ a_ um imperativo, etc. O ponto importante, a meu ve;, é
que esta !?citação para agir ou esta obrigaç&o de responder são dadas
não tem outra justificativa, a meu ver, senão salvar uma unicidade
como efeJtos da enunciação. O que generalizarei dizendo que todo
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enunciado traz consigo uma qualificação de sua enunctaçao, qualifi- aqui, pelo menos quando se admite que as três palavras que a cons-
cação que constitui para mim o sentido do enunciado. O objeto da tituem são escolhidas para produzir a mensagem total, e que a ocor-
pragmática semântica (ou lingüística) é assim dar conta do que, se- rência da palavra Pedro, por exemplo, não se justifica pelo simpl~
gundo o enunciado, é feito pela fala. Para isto, é necessário descrever desejo de pronunciar o nome de Pedro. Mas é também o caso para
~ sistematicamente as imagens da enunciação que são veiculadas pelo a própria palavra Pedro, na medida em que o aparecimento dos fo-
enunciado. nemas que a compõem é motivado somente pelo desejo de formar d
nome completo Pedro. Para evitar ter de considerar esta ocorrência
III. Para levar a bom termo esta descrição, parece-me necessá- de Pedro como um enunciado, deve-se, então, acre~centar à coesão,
rio estabelecer e depois manter (mesmo se isto custa um pouco) uma uma segunda condição, que chamarei "independência". Uma seqüên-
distinção rigorosa entre " o enunciado" e a " frase". O que eu chamo cia é independente se sua escolha não é imposta pela escolha de um
(
- "frase" é um objeto teórico, entendendo por isso, que ele não per- conjunto mais amplo de que faz parte. O que exclui imediatamente a
tence, para o lingüista, ao domínio do observável, mas constitui uma palavra Pedro tal como aparece na seqüência analisada.
invenção desta ciência particular que é a gramática. O que o lingüista
pode tomar como observável é o enunciado~ considerado como a ma- Alguns exemplos. Quando, para incitar à temperança uma pes-
- nifestação particular, como a ocorrência hic et nunc de uma frase. soa muito gulosa, se lhe recomenda "Coma para viver!", o coma não
Suponhamos que duas pessoas diferentes digam "faz bom tempo" , ou constitui um enunciado, porque é escolhido somente para produzir a
que uma mesma pessoa o diga em dois momentos diferentes: encon- · mensagem global: o sujeito falante não deu primeiro o conselho "co-
tramo-nos em presença de dois enunciados diferentes, de dois obser- ma!" ao qual teria acrescentado em seguida a especificação "para
v4veis diferentes, observáveis que a maior parte dos lingüistas expli- viver" . Mas se a mesma seqüência serve para aconselhar a um doente
cam decidindo que se trata de duas ocorrências da mesma frase de sem apetite a comer pelo menos alguma coisa, o coma deve ser com-
uma língua, definida como uma estrutura lexical e sintática, e da qual preendido como um enunciado, assumido pelo sujeito falante, e refor-
se supõe que ela é subjacente. çado em seguida por um segundo enunciado que traz um argumento
para apoiar o conselho dado. Comparemos Ós dois diálogos:
Dizer que um discurso, considerado como um fenômeno obser-
vável, é constituído de uma seqüência linear de enunciados, é fazer a A: O Pedro, a gente não tem visto muito.
hipótese (" hipótese externa", no sentido definido no Cap. III) de B: Mas como!. Eu o vi esta manhã. A propósito, ele acaba de
que o sujeito falante o apresentou como uma sucessão de segmentos comprar um carro.
~ em que cada um corresponde a uma escolha "relativamente autôno-
ma" em relação à escolha dos outros. Direi, então, que um intérprete, A: Eu acho que Pedro está com problemas de dinheiro neste
para segmentar em enunciados um dado discurso, deve admitir que momento.
esta segmentação reproduz a sucessão de escolhas "relativamente au- B: Mas como!. Eu o vi esta manhã. Ele acaba de comprar um
tônomas" que o sujeito falante julga ter efetuado. Dizer que u.m dis- carro.
curso constitui um só enunciado é, jnversamente, supor que o sujeito
falante o apresentou como o objeto de uma única escolha. No primeiro diálpgo, o Eu o vi esta manhã atende à condição de
independência. Não se pode admitir que B tenha primeiro procurado
Falta precisar agora a noção de "autonomia relativa" da qual dar a conhecer que ele tinha encontrado Pedro, mensagem que tem
acabo de me servir. Ela está, para mim, na satisfação simultânea de uma função por si só, já que foi suficiente replicar ao que dissera A .
.duas condiç()es, de coesão e de independência. Há coesão em um No segundo diálogo, ao contrário, o segmento Eu o vi esta manhã é
segmento se nenhum de seus segmentos é escolhido 'p or si mesmo, quer dado só como uma preparação destinada a tornar mais confiável a
dizer se a escolha de cada constituinte é sempre determinada pela informação que vem em seguida, e escolhida em virtude da decisão
escolha do conjunto. :B o caso de uma seqüência como Pedro está de fornecer esta informaÇão .. Não há, então, a independência exigível

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de um enunciado (o conectivo a propósito, que aparece no primei- entidades abstratas, as frases, em que cada·· uma é suscetível de ser
ro diálpgo e que seria impossível no segundo, tem entre suas fun- manifestada por uma infinidade de enunciados. Fazer a gramática de
ções, exatamente, marcar a dualidade dos enunciados - mesmo quan- uma língua é especificar e caracterizar as frases subjacentes aos enun-
do ele serve para mascarar hipocritamente que o sujeito falante que- ciados realizados através desta língua.
ria, desde o início, "dizer" o segundo enunciado).
Insisto na idéia de que a separação entre a entidade observável
N.B.- Esta definição do enunciado pela autonomia relativa, ela e a entidade teórica não diz respeito a uma diferença empírica entre
própria fundada no duplo critério de coesão e independência, leva a estas duas entidades, em que uma seria de ordem perceptiva e a outra
duvidar que se possa segmentar em "texto" em uma pluralidade de de ordem intelectual, mas a uma diferença de estatuto metodológico,
enunciados sucessivos. O que se chama "texto" é na verdade, habi- que é, pois, relativo ao ponto de vista escolhido pela pesquisa: para
tualmente, um discurso que se supõe ser objeto de uma única escolha, um historiador da gramática, a frase, tal como a concebe um dado
e cujo fim, por exemplo, já é previsto pelo autor no momento em ·gramático, é um observável, enquanto que para este gramático ela
que redige o começo (característica que leva Barthes (1979) a negar seria. um princípio explicativo. Por isso não seria possível fundamen-
que um diário íntimo possa constituir num texto). Assim, um poema tar-se em critérios intuitivos, em uma espécie de "sentimento lingüís-
dificilmente poderá aparecer como algo diferente de um enunciado tico ", para decidir se vários enunciados realizam ou não a mesma
único se for caracterizado, ao modo de Jakobson, pela enumeração de frase: a mera identificação das frases mobiliza, ao contrário, uma
um paradigma cujos diferentes elementos estão dispersos ao longo do teoria.
desenvolvimento sintagmático. Conclusão idêntica, no que diz respei-
Ilustrarei esta idéia com um exemplo escolhido em virtude de
to a uma peça de teatro se se admite, de acordo com a tese de A.
seu aspecto paradoxal, e relativo a um problema teórico assinalado
Reboul-Moeschler (1984), que ela traz, ao lado da fala que as per-
no capítulo VI. Segundo Anscombre e eu, não é possível realizar um
sonagens se dirigem umas às outras, uma fala do autor ao ptíblico.
ato de linguagem pelo simples fato de se declarar explicitamente rea-
Porque esta segunda fala, que constitui a linguagem teatral propria-
lizá-lo. Ora F. Récanati objetou-nos que se pode efetuar o ato de
mente dita, manifesta escolhas cuja expressão pode estender-se em
dizer obrigado* através da fórmula "Eu te digo obrigado", ou seja,
uma larga seqüência única, e em todo caso ir muito além das répli-
cas das personagens. Um exemplo elementar é fornecido pelo que afirmando que se realiza este ato. Para responder a esta objeção, que
visa a identificar, em certos casos, o que os medievais chatl1avam·
Larthomas (1980, p. 316), chama as "dialogias cruzadas". Cléante -e
actus exerçitus e actus designatus, nossa única sol1,1s;ão era sustentar
seu criado Covielle se lamentam separadamente, no ato III, cena 9,
que o predicado que intervém na fórmula '"Eu te dÍgo obrigado" é di-
do Bourgeois Gentilhomme, de suas decepções amorosas, mas suas
ferente do que designa o ato de agradecer [remercier]. Assim, para
réplicas, autônomas se se considera o diálogo entre as personagens,
estão ligadas do ponto de vista da linguagem teatral. Cf. Çléante: Que nós, o primeiro valor da fórmula é Eu te digo "obrigado": tratar-se-ia,
de !armes j'ai versées à ses genoux!" - Covielle: "Tant de seaux para o sujeito falante, de~é apresentar pronunciand<p.""Obrigado!".
d'eau que j'ai tirés du puits pour elle", etc *. Tese que conduz a dizer que os enunciados transcritos "Digo obriga-
do!" podem resultar de duas frases diferentes. Uma comporta o pre-
IV. Assim definido - como fragmento de discurso - , o enun- dicado [dizer "obrigado"] significando pronunciar a palavra "Obriga-
ciado deve ser distinguido da frase, que é uma construção do lingüis- do!". Ela aparece no diálogo:
ta, e que permite dar conta dos enunciados. Na base da ciência lin-
güística h~; com efeito, a decisão de reconhecer nos enunciados rea- - A a B: Vamos, diga obrigado a C!
lizados hic et nunc, todos diferentes uns dos outros, um conjunto de * Em Português não há entre abrigado e agradecer as relações existentes
(históricas, derivação delocutiva) entre merci e remercier em francês. Mas
* Cléante: "Quantas lágrimas derramei em seus joelhos!" - Covielle para . a argumentação aqui desenvolvida a tradução não traz maiores difi-
"Tantos baldes d'água tirei do poço para ela", etc. (N. do T.). culdades. (N. do T.)

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- B a C: Você foi muito gentil. ciação a noção de ato - a fortiori, não mtroduzo, pois, a noção de
- A a B: Não, diga obrigado! um sujeito autor da fala e dos atos de fala. Não digo que a enuncia-
ção é o ato de alguém que produz um enunciado: para mim é sim-
A outra frase, cujo predicado [dizer - obrigado] significa a rea- plesmente o fato de que um enunciado aparece, e eu não quero tomar
lização do ato de agradecer [remercier] aparece em: partido, no nível destas definições preliminares, em relação ao pro-
- A a B: Vamos, diga obrigado a C! blema do autor do enunciado. Não tenho que decidir se há um autor
e qual é ele.
- B a C: Você foi muito gentil.
Para tornar menos estranha minha noção de enunciação (o que
- A a B: Ainda bem! não é, aliás, nem necessário nem suficiente para legitimá-la), assina-
larei simplesmente que expressões muito banais fazem às vezes alusão
Estes dois diálogos de forma nenhuma provam, insisto neste pon-
a um conceito da mesma ordem. Suponhamos que eu relate a vocês
to, que nos encontramos diante de duas frases distintas: certamente
uma conferência que tenha assistido e durante a qual um certo X
ficam explicados se tal dualidade for admitida, mas poder-se-ia-deCidir
interveio para fazer uma pergunta ao conferencista. É possível que
q4e há neste caso duas utilizações diferentes de uma mesma frase. Se
eu comente o fato dizendo-lhes, por exemplo: "Esta intervenção me
escolhemos, Anscombre e eu, dar a estes diálogos um valor discrimi-
surpreendeu muito". Meu enunciado pode ser compreendido de diver-
natório [discriminante] é porque, de uma maneira geral, nossa tese
sas maneiras. O que eu qualifiquei de surpreendente pode ser o pró-
sobre a performatividade nos obriga a supor que há na língua dois
prio conteúdo das palavras de· X, o que ele diz. Pode ser também o
predicados diferentes [dizer "Obrigado"] e [ dizer-obr_igado] o ..que
desempenho apresentado por X, as qualidades intelectuais, morais,
torna plausível, em contrapartida, que enunciados "Digo Obrigado"
articulatórias que ele apresentou ao falar. Mas pode tratar-se igual-
possam ser a manifestação de duas frases distintas. (Este exemplo é
mente do acontecimento enunciativo que presenciei (portanto a enun-
discutido nas pp. 122; 123 e 130).
ciação, no sentido definitivo acima): eu estou surpreso por tal dis-
V. Da frase e do enunciado distinguirei ainda "a enunciação". curso ter podido se dar, seja porque não é habitual, na sua forma ou
Três acepções pelo menos podem ser atribuídas a este termo. no seu teor, seja, simplesmente, porque normalmente nenhuma inter-
venção é tolerada em conferências deste tipo. (0 que precede não im-
Ele pode primeiramente designar a atividade psico-fisiológica im- plica de modo nenhum, de minha parte, a idéia bizarra - e espero
plicada pela produção do enunciado (acrescentado-lhe eventualmente que não me tenha sido imputada - que um enunciado possa apa-
o jogo de influências sociais que a condiciona). Este não é o tipo de recer por geração espontânea, sem ter na sua origem um sujeito fa-
problemas que considero como meus - o que não implica, é claro, lante que procura comunicar alguma coisa a alguém, este algo sendo
nenhuma desvalorização de tais problemas, mas somente a hipótese precisamente o que denomino o sentido. Mas acontece que tenho ner
de que os meus podem ser tratados separadamente. Em uma segund;i cessidade, para construir uma teoria do sentido, uma teoria do que é
acepção, a enunciação é o produto da atividade do sujeito falante, comunicado, de um conceito de enunciação que não encerre em si,
quer dizer, um segmento de discu!so, ou, em outros termos, o que desde o início, a noção de sujeito falante).
· acabo de chamar "enunciado" (tal é o sentido dado à palavra enun-
ciação nos capítulos I, III e IV). É, pois, com uma terceira acepção VI. Em correlação com a oposição da frase e do enunciado, devo
que ficarei. o que designarei por este termo é o acontecimento cons- agora introduzir a diferença entre a significação e o sentido - espe-
tituído pelo aparecimento de um enunciado. A realização de um cificando que escolho estas duas últimas expressões de modo absolu-
· enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dado existência tamente arbitrário, sem me referir a seu emprego na linguagem ordi-
a alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá nária ou na tradição filosófica. Quando se trata de caracterizar seman- )
... mais depois. É esta aparição momentânea que chamo "enunciação". ticamente uma frase, falarei de sua "significação", e reservarei a ~""'
Ressaltar-se-á que não faÇo intervir na minha caracterização da enun- palavra sentido para a caracterização semântica do enunciado. ~.,..:
lt " •

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Entre o sentido e a significação ha para mim, ao mesmo tempo, uma no lugar sobre o qtJal o locutor fala e que pode freqüentemente, mas
diferença de estatuto metodológico e uma diferença de natureza. De nem sempre, ser o lugar de onde ele está falando. Do mesmo modo,
estatuto metodológico porque, no trabalho do lingüista semanticista, o a significação de uma frase no presente do indicativo prescreve ao
sentido pertence ao domínio do observável, ao domínio dos fatos: o interpretante determinar um certo período - que pode ser de dura-
fato que temos de explicar é que tal enunciado tem tal(is) sentido(s), - ção bãstante diversa, mas deve incluir o momento da enunciação -
ou seja, que ele é suscetível de tal (is) interpretação(ões). O que não e relacionar a este período a asserção feita pelo locutor.
implica, espero que seja desnecessário acrescentar, que tomaremos este
fato semântico por um dado, fornecido por uma intuição ou um sen- A natureza instrucional da significação aparece nitidamente quan-
timento imediatos: como todo fato científico, ele é construído através do nela se introduzem, como Anscombre e eu fazemos sistematica-
de hipóteses - simplesmente as hipóteses constitutivas do fato de- mente, "variáveis argumentativas". Um exemplo de variável argumen-
vem ser distinguidas das hipóteses explicativas destinadas a dar conta tativa um pouco diferente daquelas (mas e mesmo) com que temos
dele. ~ justamente dessas hipóteses explicativas que resulta a signi- apresentado a noção: a descrição sem&ntica das frases francesas con-
ficação da frase. Para dar conta de modo sistemático da associação tendo o morfema trop *. Que se diz quando, a propósito de um objeto
"observada" entre sentidos e enunciados, escolho associar às frases O, enuncia-se uma frase do tipo O est trop P ·u onde O é uma des-
realizadas pelos enunciados um objeto teórico etiquetado "significa- crição do objeto e onde P é um adjetivo exprimindo uma propriedade,
ção". A manobra me parece interessante na medida em que suponho a P-idade?. Sem pretender ser exaustivo, direi que tal enunciado tem,
possível formular leis, de um lado para calcular a significação das entre outras características, a de ser refutativo (sobre os diferentes
frases a partir de sua estrutura léxico-gramatical, e de outro lado para modos da refutação ver Moeschler, 1982). Seu autor se apresenta co-
prever, a partir desta significação, o sentido dos enunciados. mo considerando uma proposição r, e como refutando-a através des-
te enunciado, que tende, então, para uma conclusão não - r. E
Independentemente mesmo desta diferença metodológica, estabe- ele apresenta como razão decisiva contra r o fato de que O ultrapassa
leça, entre o sentido e a significação, uma diferença de natureza. um certo grau D de P-idade, abaixo do qual se poderia ainda, ou
Quero assim fincar pé contra a concepção habitual segundo a qual mesmo, em certos casos, se deveria admitir r: o grau D aparece assim
o sentido do enunciado é a significação da frase temperada por alguns como um limite argumentativo. O que, nesta descrição, ilustra minha
ingredientes emprestados à situação de discurso. Segundo esta con- concepção da frase, é o caráter de variável argumentativa que pos-
cepção, se encontrariam pois, no sentido, de um lado a significação e sui a conclusão r. Uma frase do tipo O est trop. P, não estaria dizen-
de outro os acréscimos que lhe trazem a situação. Por mim, recuso do qual é o r contestado por tal ou tal de seus enunciados, mas ela
- sem que possa aqui justificar tal recusa - fazer da significação apresenta um aviso, quando se vai interpretar um enunciado desta
uma parte do sentido. Prefiro representá-la como um conjunto de frase, para se procurar que r determinado o autor do enunciado tinha
instrucões dadas às pessoas que têm que interpretar os enunciados da em mente. A significação da frase não constitui, pois, um conteúdo
frase, ·instruções que especificam que manobras realizar para associar intelectual, ou seja, objeto de uma comunicação possível. Certamen-
um sentido a estes enunciados. Conhecer a significação da frase por- te ele atribui a P-idade de O um grau excessivo, mas não há excesso
tuguesa subjacente a um enunciado "O tempo está bom" é saber o por si mesmo. ~ somente em relação a uma certa conseqüência argu-
que é necessário fazer, quando se ~stá em presença deste enunciado, mentativa que aí pode haver excesso, e a frase não estaria dizendo
para interpretá-lo. A significação contém, pois, por exemplo, uma qual é esta conseqüência; tudo o que diz a frase é que é necessário
instrução solicitando que se procure de que lugar fala o locutor, e determinar se se quer constituir o sentido do enunciado, ou seja, se
que se admita que este afirma a existência de tempo bom neste lugar se quer descobrir o "algo" que o sujeito falante busca comunicar. Nes-
de onde está falando. O que explica que um enunciado do tipo "o
te caso ainda, o sentido não aparece, portanto, como a adição da
tempo está bom" não pode ter por sentido que está fazendo tempo
bom em qualquer parte do mundo, mas significa sempre que faz * Muito, demasiado. (N. do T.)
bom tempo, em Grenoble, ou em Paris, ou em Waterloo, etc, ou seja, ** O é muito (dernàsiado) P. (N. do· T.)

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significação e de alguma outra coisa mas como uma construção reali- na medida em que é impossível substituir, no seu interior, uma defi-
zada, levando em conta a situação de discurso, a partir das instruções nição tão pouco precisa de um ato ilocutório qualquer, pela expressão
"especificadas" na significação. "ato A". Admitamos, por exemplo, a título de definição, que ordenar
seja "apresentar sua enunciação como obrigando o outro a fazer algu-
VII. Em que consiste este sentido do enunciado, que o lingüista ma coisa" . Como sustentar, então, que o sentido do enunciado Jussi-
gostaria de explicar a partir da significação da fras:?. ~ conce~ção de vo, o que é comunicado ao interlocutor, é que o sujeito falante faz o
sentido sobre a qual fundamento meu trabalho nao e, propnamente ato de ordenar, a saber, que ele "apresenta sua · enunciação como
falando, uma hipótese, suscetível de ser verificada ou falseada, mas obrigando .. . "?. O sentido do enunciado é simplesmente que a enun-
resulta sobretudo de uma decisão que justifica, unicamente, o traba- ciação obriga. . . Quando um sujeito falante faz um ato ilocutório,
lho que ela torna possível. Ela consiste em considerar o senti~o como o que ele faz saber ao interlocutor é que sua enunciação tem tal ou
- uma descrição da enunciação. O que o sujeito falante comumca atra- tal virtude jurídica, mas não que a apreSente como tendo esta vir-
vés de seu enunciado é uma qualificação da enunciação deste enun- tude *. O semanticista, que descreve o que o sujeito falante diz de
ciado. Idéia paradoxal na aparência, já que supõe que toda enuncia- sua enunciação no enunciado, não pode, pois, introduzir em suas
cão faz através do enunciado que veicula, referência a si mesma. Mas descrições do sentido a indicação de um ato ilocutório, mas uma ca-
~sta auto-referência não é mais ininteligível que aquela que todo livro racterização da enunciação vinculada ao enunciado, e que leva a com-
faz a si mesmo, na medida em que seu título, parte integrante do li- . preender porque o sujeito falante pode efetivamente, ao produzir o -
vro (como o enunciado é um elemento da enunciação), qualifica o enunçiado; realizar o ato. Vê-se, por isso. porque chamo "pragmáti- >.~
livro como um todo. Nem mais ininteligível também que a expressão cas." minhas descrições do sentido dizendo que o sentido é algo que c.,~
pela presente (inglês: hereby) que, inserida em uma carta ("Solicito- se comunica ao interlocutor: estas descrições são pragmáticas na me-
vos pela presente que . .. "), serve para qualificar a função da carta dida em que levam em conta o fato de que o sujeito falante realiza
tomada na sua totalidade. ato's, mas realiza estes atos transmitindo ao interlocutor um saber - "'
Darei mais à frente alguns detalhes sobre as indicações forneci- que é um saber sobre sua própria enunciação. Para fixar a termino-
das pelo enunciado relativamente às fontes da enunciação (indica- logia, direi que interpretar uma produção lingüística consiste, entre
ções contidas, segundo meu ponto de vista, no sentido d.o enunciado), outras coisas, em reconhecer nela atos, e que este reconhecimento se
já que é o objeto próprio de uma concepção polifônica do sentid~ faz atribuindo ao enunciado. um sentido, que é um conjunto de indi-
- mostrar como o enunciado assinala, em sua enunciação, a superpost- cações sobre a enunciação.
ção de diversas vozes. Mas gostaria, primeiro, para ilustrar a idéia O estudo da argumentação fornecerá um segundo exemplo da
que o sentido do enunciado é uma representação da enunciaçã~ de maneira pela qual o sentido pode apresentar a enunciação. Anscombre
indicar outros aspectos desta representação. Dizer que um enunct~do e eu temos sustentado freqüentemente que o efeito, em uma frase, de
possui, segundo os termos da filosofia da linguagem, uma força ilo- morfemas como quase, apenas, pouco, um pouco, etc, é de impor cer-
cutória, e para mim dizer que ele atribui a sua enunciação um poder tas restrições sobre o potencial argumentativo dos eventuais enuncia-
"jurídico", o de obrigar a agir (no ..caso de uma promessa ou ~a dos desta frase .. Imaginemos assim uma situação de discurso em que
ordem), o de obrigar a falar (no caso da pergunta) , o de tornar hclto os interlocutores aceitam· um lugar comum geral (um topos no sen-
o que não era (no caso da permissão), etc. Ter-se-á, talvez, notado tido de Aristótel~s), no qual quanto mais alguém ganha, menos sua
uma diferença entre esta formulação e a que dei em momentos ante- situação é digna de piedade, e inversamente. Se, neste quadro ideo-
riores e que era mais fiel à letra de Austin. Eu dizia que um enun- lógico, se quer incitar o interlocutor a ter piedade de um certo A, não
ciado que serve para realizar um ato ilocutário A (por exemplo, orde-
nar) tem por sentido indicar que o sujeito falante realiza o ato A. por * Esta .mesma observação foi utilizada, no capítulo 6, para uma crítica do
meio deste enunciado, de modo que A é exibido no próprio enunctado conceito de performativo explícito. Aqui ela serve para discutir, de uma
destinado a realizá-lo. Esta formulação parece-me agora muito livre, maneira geral, as relações entre o sentido e o ilocutório.

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se recorrerá ao enunciado de uma frase como "A ganha quase X e um ·torneio exclamativo (Como Pedro é inteligente!). Como descre-
cruzados por mês", por mais baixa que seja a soma X cruzados -
ver o que distingue semanticamente seus enunciados dos enunciados
enquanto que o argumento seria adequado substituindo quase por
que, através de frases indicativas, trazem grosso modo as mesmas in-
apenas. Para generalizar esta observação, atribuímos às frases com a
expressão quase X a seguinte propriedade: para que um de seus enun- formações (Eu estou muito contente, isto não tem nada de extraordi-
ciados possa servir para argumentar para uma certa conclusão r (aqui nário, Pedro é muito inteligente)?. A tradição lingüística possui os ter-
r é "E necessário ter piedade de A") , é necessário que o topos que mos "expressão" e "representação" para opor estas duas formas de
fundamenta a argumentação implique que uma quantidade superior a comunicação. Mas o que se quer dizer exatamente quando se diz que
X fornecerá razão melhor que X para se admitir r. Ora, no meu o autor de uma exclamação, "expressa" o que ele sente?. Para definir
exemplo, o topos em questão quer, ao contrário, que quanto mais o esta noção, tem-se contentado habitualmente em falar de um efeito de
ganho aumenta, menos a situação é digna de pena - o que impede, "vivacidade": a expressão, segundo Bally, é a linguagem da vida, do
então, de se utilizar um quase. sentimento, e não a do pensamento. Para explicar melhor a intuição
Tal como acaba de ser formulado, meu exemplo é, no entanto, que leva os gramáticos a isolar estes torneios "expressivos", utilizarei
muito discutível, e é justamente sua discussão que fará surgir a con- a. concepção de sentido e de enunctação que me serviu para o ilocutó-
cepção semântica que defendo nesta exposição. O que é contestável no e a argumentação.
é dizer que, na situação imaginada, é proibido utilizar um quase para
. Que diferença há entre· exclamar "Como Pedro é inteligente!" e
incitar o interlocutor à piedade. Já que é claro que, muito freqüen-
afirmar "Pedro é muito inteligente"?. Trata-se, para mim, do modo
temente ao contrário, se a soma de X cruzados é suficientemente bai-
xa, o enunciado "A ganha quase X cruzados" poderá apresentar a efi- pe~o ~ual o s~jei~o falante, em um certo caso e no outro representa a
cácia desejada, pode ser até que não tenha a forma canônica "A propna enunc1açao que está realizando. Ao dizer "Pedro é inteligen-
ganha apenas X cruzados". Eu não deveria dizer que com este enun- te ", po de-se apresentar a enunciação como resultando totalmente de
ciado não se poderia incitar à piedade, mas que não é possível apre- uma escolha, ou seja, da decisão tomada de fornecer uma certa infor-
sentar-se como procurando justificar a piedade, ou ainda, na minha mação a propósito de um certo objeto. Com "Como Pedro é inteli-
terminologia, como argumentando neste sentido. A argumentação, com gente!", .ela é _dad~, ao. c~ont.rário, como motivada pela representação
efeito, muito diferente do esforço de persuasão, é para mim um ato d~ste objeto: e a mtebgenc1a mesma de Pedro que parece levar a
público, aberto, não pode realizar-se sem se denunciar enquanto tal. d1ze~" Como P~dro é inteligente!". (No caso das interjeições, um
Mas isto é dizer que um enunciado argumentativo apresenta sua enun- s~ntu~ento, sofnmento, prazer, espanto, etc. serve de relé entre a
ciação como levando a admitir tal ou tal conclusão. Se, pois, se admi- s1tua?ao e a. enunciação; A interjeição Ah! se dá como provocada pela
te que o aspecto argumentativo de um enunciado faz parte de seu alegna sent1da no momento em que o locutor experimenta um certo
sentido (o que me parece tanto mais difícil de evitar que este aspecto, fato, como um efeito da alegria: a alegria "explode" nela).
eu o mostrei a propósito de quase, é utilizado em relação à frase), Um~ objeção possível se fundamentará sobre o fato de que as
chega-se à mesma conclusão à qual Jevaria o estudo do ilocutório: o exclamatlv~~ servem c~m freqüência na conversação para responder
sentido é uma qualificação da enunciação, e consiste notadamente em p~rgunta~: O que voce pensa do Pedro?- Como ele é inteligente!".
atribuir à enunciação certos poderes ou certas conseqüências. Ja me fo~ ressaltado ~ue ~esmo certas interjeições, como Xi!, podem
ter tambem esta funçao : Como vão indo as coisas? - Xi!". o pro-
Terceiro exemplo: as frases exclamativas - entendendo por isso blema está em que a resposta, enquanto tal, deve apresentar-se como
tanto as interjeições (Ah!, X i!) *, quanto as exclamativas "completas" resultado de uma decisão, á de dar seqüência a pergunta que a ante-
que apresentam, ao mesmo tempo, um tipo de descrição da realidade cede - .o que parece incompatível com a natureza aqui atribuída à
exclamativa que, segundo penso, descreve, ao contrário a enunciacão
* Os exemplos em francês são (iHIC!, BOF! (N. do T.) como "escapada" [échappée] ao seu autor. ' •

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Para resolver esta contradição, distinguirei o tema e o propósito pendentemente daquilo que se diz dela. Ora, o sujeito falante que co-
das respostas. O tema (no meu exemplo, as qualidades e defeitos de munica 'p or seu enunciado que sua enunciação é tal ou tal poderia
Pedro) é aquilo sobre que a resposta deve incidir para poder satisfa- representar a enunciação como independente do enunciad<;> que a carac-
a
zer exigência de resposta que constitui a pergunta. o propósito é teriza: o enunciado é, ele próprio, uma parte da enunciáção - com-
o que se diz concernente ao tema (o fato de Pedro ser inteligente). parável deste ponto de vista, já propus esta imagem, ao título e à
Se o ato de resposta implica uma decisão do sujeito falante, a de indicação do autor que, na capa de um romance, não poderia "asse-
submeter-se ao ato de interrogação realizado por seu interlocutor, esta verar" que é escrito por Flaubert e se chama Mádame Bovary, já que
decisão diz respeito à escolha do tema, e é deste ponto de vista que estas indicações dadas no livro fazem parte do livro. Isto não signi-
a resposta se dá como "escolhida". Mas, uma vez aceito o tema, o fica, aliás, que elas não podem ser falsas (nada impede de se atribuir
propósito pode aparecer como imposto ao sujeito falante pela rep~e­ a um livro no próprio livro, um autor que não é o seu) mas que se
sentação que é feita do tema. Para obedecer as regras da conversaçao, dão como infalseáveis, já que não são destacáveis da realidade que
ele escolhe responder ao tema proposto pelo interlocutor, mas a forma qualificam. Dá-se o mesmo, para mim, com o que é dito, no sentido
particular de sua resposta não resulta mais (ou é sobretudo dada de um enunciado, sobre a enunciação do enunciado. Na medida em
como não resultando mais) da escolha, e como imposta, ao contrário, que o enunciado e seu sentido são veiculados pela enunciação, as
pelo estado de coisas que se relata: decide-se responder, mas, para propriedades jurídicas, argumentativas, causais, etc, por eles atribuí-
responder, "deixam-se falar" seus sentimentos. A enunciação é, pois, das a ela, não poderiam ser vistas como hipóteses feitas a propósito
ainda, descrita, como uma reação motivada pela representação de uma da enunciação, mas como a constituindo. Certamente ninguém está
situação (é o específico da exclamação), mas o fato de se representar obrigado a acreditar que a enunciação apresentada por seu enunciado
esta situação - que é o tema da pergunta e da resposta - é dado como obrigando tem como efeito real obrigar, mas esta colocação em
como o produto de uma decisão conversacional (o que está vinculado dúvida não aparece, no enunciado, como uma possibilidade a ser con-
à própria noção de resposta). siderada: -
Esta solucão implica distinguir dois grupos nas interjeições. Al- N .B. 1 - Para caracterizar este estatuto particular do sentido,
gumas, como Xi!, são compatíveis com a idéia de que a representação tenho, em trabalhos anteriores (por exemplo em Ducrot, e outros,
da situação é decidida pelo sujeito falante (e elas podem assim apre- 1980, Cap. I, e aqui mesmo Cap. VII) utilizado o conceito de "mos-
sentar-se como respostas), outras (como Ah!) exigem que esta repre-
trar" que, em filosofia da linguagem, opõe-se ao conceito de "afir-
sentação surja inopinadamente (e não podem aparecer em respostas).
mar" [asserter] ou de "dizer". E comparava o modo pelo qual o enun-
Mas tanto para umas como para outras, e também para as exclama-
tivas completas, o enunciado comunica uma qualificação de sua enun- ciado "mostra" a enunciação, à maneira pela qual a interjeição mos-
ciação, dada como efeito do que ela informa. E esta qualificação da tra o sentimento que expressa. Esta comparação parece-me agora
fala por sua causa faz parte do sentido da enunciação, como sua inaceitável na medida em que mostrar o sentimento pela interjeição
qualificação através de seu poder jurídico ou de seus prolongamentos (isto é, disse-o mais acima, como causa da enunciação) não constitui
senão ~ma possibilidade particular da caracterização da enunciação
argumentativos.
pelo enunciado, e, pois, uma forma particular do sentido e isto colo-
VIII. Uma última especificaÇão no que concerne ao sentido do cará um problema teórico complicado, o de ter aí o protótipo de todo
- enunciado, antes de abordar o problema do sujeito da enunciação, ou
este discurso sobre a enunciação que constitui para mim o sentido.
mais exatamente do sujeito da enunciação tal como se apresenta no A nova concepção que acabo de apresentar é inspirada em Berren-
interior do sentido do enunciado. Esta representação da enunciação donner (1981, p. 127 e ss) .
que constitui o sentido do enunciado, e que só através dela ele pode
falar do mundo, não é objeto de um ato de asserção. Para que ele N.B. 2 - Minha decisão de não considerar o sentido (descrição
seja afirmado, é necessário que um sujeito se apresente como garan- da enunciação) como afirmar pelo enunciado é uma das razões que me
tindo que o que diz corresponda a uma realidade considerada inde- levam a recusar a teoria dos performativos explícitos, e notadamente

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a idéia segundo a qual se pode realizar um ato pelo fato de se afir- tado: "Quando você pergunta Quem veio?, seu enunciado comporta
mar explicitamente realizá-lo. Daí minha análise de Dizer-obrigado * o pre~suposto que alguém veio. Então, segundo você, ele serve para
no começo deste capítulo e no Cap. VI. realizar um ato de pressuposição. Mas é impossível, porque todo mun-
do sabe que o enunciado Quem veio? serve para realizar um ato de
IX . Uma vez apresentado o quadro geral do qual acabo de indi- perguntar. Se o ato realizado é a pergunta, não pode ser a pressupo-
car as características principais, posso ir ao tema próprio deste capí- sição." Vê-se de · imediato que a objeção repousa no princípio segun-
tulo, que é, relembro, criticar e ~ub~~ituir a te~ria da unicida?: ~? do o qual o enunciado deve, ser caracterizado por um único ato ilo-
sujeito da enunciação. E esta teona, um enunciado - um suJelto cutório. Certamente faço agora certas reservas à noção de um ato de
que permite empregar a expressão "o sujeito", ?ressupondo c~mo uma pressuposição, ou, pelo menos, nós o veremos, eu a apresento dife-
evidência que há um ser único autor do enunciado ,e responsav~l ~pe~o rentemente da época de Vire et ne pas Vire *. mas o que me orienta
que é dito no enunciado. Então, se não se tem escrupul~ ou rehcencia nesta retratação não é certamente o receio de dever admitir, se hou-
para empregar esta expressão, é porque sequer se coglta colocar em ver um ato ilocutório de pressuposição, a existência de vários atos
dúvida a unicidade da origem da enunciação. ligados a um só enunciado. Ao contrário, divido ainda mais que
Quais são as propriedades deste sujeito?. Primeiro ele é dotado anteriormente a atividade ilocutória em uma pluralidade de elemen-
de toda atividade psico-fisiológica necessária à produção do enuncia- tos pragmáticos disjuntos.
do. Assim dizer que um certo X é o sujeito do enunciado "O tempo Além da produção física do enunciado e a realização dos atos
está bom': dito em um certo momento, num certo lugar, é atribuir a ilocutórios, é habitual atribuir ao sujeito falante uma terceira pro-
X o trabalho muscular que permitiu tornar audíveis as palavras o priedade, a de ser designado em um enunciado pelas marcas da pri-
tempo está bom; e é atribuir-lhe também a atividade intelectual s~~­ meira pessoa - quando elas designam um ser extra-lingüístico: ele
jacente - formação de um julgamento: escolha d~s. palavras, uhh- é, neste caso, o suporte dos processos expressos por um verbo cujo
zação de regras gramaticais. Segundo atnbuto do suJ:ltO: ser o a~tor, sujeito é eu, o proprietário dos objetos qualificados por meus, é ele
a origem dos atos ilocutórios realizados na produçao do enu~~1ad~ que se encontra no lugar denominado aqui. . . Considera-se como
(atos do tipo da ordem, da pergunta, da asserção, etc.). O suJeito e óbvio que este ser designado por eu é ao mesmo tempo o que produz
aquele que ordena, pergunta, afirma, etc. Para voltar ao exemplo pre- o enUI).ciado, e também aquele cujo enunciado expressa as promessas,
cedente, dir-se-á que o mesmo X que produziu as palavras O . tempo ordens, asserções, etc. Certamente chocamo-nos neste caso com con-
está bom é também aquele que afirmou o bom tempo. Na medida em tra-exemplos do discurso relatado em estilo direto, onde muito fre-
que uma só pessoa é o produtor do enunciado, ~erá ne~essário .admi- qüentemente o pronome eu não refere a pessoa que o pronuncia. Mas,
tir que há uma só pessoa na origem dos ato~ ilocutónos re~hzados para eliminar este contra-exemplo, basta recorrer a uma concepção do
através dele. Vai-se, aliás, freqüentemente mais longe nesta via e se discurso relatado direto (criticado aqui mesmo no § XI) segundo a
pretende - ou sobretudo pretende-se como evidente,--:- que c~da qual as ocorrências que aparecem entre aspas não referem seres extra-
enunciado realiza um só ato ilocutório (donde a especie de escan- lingüísticos, mas constituem a simples menção de palavras da língua.
dalo que resulta da existência dos atos indiretos). Uma tal suposição Assim, o eu de Pedro disse "eu venho" designaria uma entidade gra-
não é certamente necessária para admitir que há uma só origem para matical, o pronome de primeira pessoa; e o enunciado global signifi-
a atividade ilocutória realizada através de um enunciado, mas ela .é, caria somente que Pedro empregou este pronome, seguido da palavra
em todo caso, suficiente para justificar esta tese. portuguesa venho.
Seja dito entre parêntesis, a crença na unicidade do ato ilocutó-
* A concepção desenvolvida em Dire et ne pas Dire é a do artigo de 1969
rio é uma das razões que levaram muitos filósofos da linguagem a retomado no primeiro capítulo. A concepção a que cheguei, a partir da
repelir [repousser] como francamente levia~a a c~ncepção da pressu- idéia de polifonia, fundamenta-se no "reexame" realizado em um trabalho de
posição desenvolvida em Dire et ne pas Dzre. E ~sto ?orque falo ?e 1977 (cf. aqui mesmo, Cap. II), mas se situa numa perspectiva totalmente
um ato il~cutório de pressuposição. A que se tem 1mediatamente Ob]e- diferente.

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Admitamos, provisoriamente, esta concepção do discurso rela- mas. Todo trapeiro, uma vez ou outra, ouviu em um refúgio, ao ama-
tado direto. E tão evidente que as três propriedades de que acabo de nhecer, um diálogo como o que segue. A alguém que tenha impru-
falar são, nos outros tipos de discurso, atribuídas a um ser único?. dentemerrte afirmado não ter pregado os olhos à noite, um compa-
Que possa ser assim, quando se trata de enunciados simples, produzi- nheiro fe.s ponde amavelmente: Pode ser que você não tenha dormido,
dos em contextos simples, não procurarei discutir (eu não penso que mas, de qualquer forma, você, roncou solenemente". O autor, no sen-
se possa me censurar por utilizar aqui, sem definição, uma noção tão tido físico, deste enunciado não poderia ser visto como responsável,
pouco clara que a de simplicidade: não a utilizo com efeito para esta- ao mesmo tempo, pelas duas afirmações que aí são feitas uma depois
belecer minha própria tese, mas para fazer uma concessão a meus da outra. Se parece razoável atribuir-lhe a segunda, não se poderia
adversários - o que poderia exprimir - se, recorrendo à termino- fazer o mesmo com a primeira, a que é corrigida pelo "mas .. . " E
logia que introduzirei daqui a pouco, dizendo que o enunciador do é deste modo para um grande número de empregos de mas, notada-
que eu digo aqui não é assimilável ao locutor enquanto tal). Como mente para aqueles que entram nos enunciados de estrutura "Pode
exemplo de enunciado simples em um contexto simples, tomemos a ser p mas q" (o que eu digo aqui de mas, e o faço de passagem,
réplica "Na semana passada, eu estava em Lyon", utilizada para res- constitui uma certa modificação na descrição que J. C. Anscombre e
ponder à pergunta "Onde você estava na semana passada?". Não há eu temos dado freqüentemente para mas, descrição que modificamos
dificuldade em atribuir à mesma pessoa as três propriedades consti- atualmente introduzindo-a na nossa teoria da polifonia) 1 •
tutivas do sujeito falante. Se representamos por "L" o indivíduo a
X . E esta teoria da polifonia que vou agora apresentar de uma
quem a pergunta é endereçada e que articula a resposta, é L que é
maneira positiva, depois de ter mostrado as dificuldades da concepção
designado por eu (é de L que se diz que estava em Paris) e é ainda
L que assume a responsabilidade do ato de afirmação veiculado pelo "unicitária" à qual ela se opõe. Para isto desenvolverei certas indi-
enunciado. cações que se podem encontrar no primeiro capítulo de Les Mots du
Discours, corrigindo-as em alguns aspectos.
Mas, desde que se emprega um enunciado, mesmo simples, em
um diálogo um pouco mais complexo, a tese da unicidade começa a Relembrei há pouco que o sentido de um enunciado, para mim, ,...
apresentar dificuldade. Por exemplo, quando há uma retomada (em é a descrição de sua enunciação. Em que consiste esta descricão?. '""(.
um sentido muito largo deste termo, e que não Implica nem repetição Tenho assinalado alguns de seus aspectos mencionando as indic~ções
literal, nem paráfrase) . L, a quem se censurou por ter cometido um argumentativas e ilocutórias, assim como as relativas às causas da
erro, retruca: "Ah! eu sou um imbecil; muito bem, você não perde fala. Estas indicações, de que falei para levar a compreender o que
por esperar!". L é aqui ainda o produtor das palavras e é ele igual- entendo por "descrição da enunciação", são, na verdade, secundárias
mente que é designado pelo eu. Mas a responsabilidade do ato de em relação às indicações mais primitivas que estão pressupostas por
afirmação realizado no primeiro enunciado não é certamente L que tudo que se pode dizer sobre os aspectos ilocutório, argumentativo e
assume - já que justamente L tem a imodéstia de o contestar: ao expressivo da linguagem. Trata-se de indicações, que o enunciado
contrário, L o atribui a seu interlocutor I (mesmo que I não tenha, apresenta, no seu próprio sentido, sobre o (ou os) autor(es) even-
de · fato, falado de bobeira. Mas s&>mente feito uma censura que, se- tual(ais) da enunciação. Certamente quando defini a nocão de enun-
gundo L, implica em boa lógica para I, a crença na imbecilidade de L). ciação tal como a utilizo enquanto lingüista que descreve ·a linguagem, -
recusei-me explicitamente, de aí . introduzir a idéia de um produtor
Assim, pois, desde que haja uma forma qualquer de retomada da fala: minha noção é neutra em relação a tal idéia. Mas não se
(e nada é mais freqüente que a retomada na conversação), a atribui-
ção das três propriedades a um sujeito falante único, torna-se proble- 1. No que diz respeito aos enunciados de estrutura "Certamente p mas q"
mática - mesmo quando se trata de um enunciado sintaticamente ver o final do § XVlll. Eles apresentam um acordo sobre a verdade de p:
mas. ~xcluem to~a _tomada de posição argumentativa de p. Não poderei
simples. A demonstração é ainda mais fácil com enunciados comple- exphcttar a opostçao destas duas noções senão depois de ter no § XII
xos, por ex_emplo, com enunciados constituídos através da conjunção analisado o conceito do locutor distinguido L e À· ' '

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dá o mesmo com esta descrição da enunciação que é con~titutiva do abaixo-assinado e, em situação "normal", da assinatura. Mas, desde tr'?
sentido dos enunciados - a que é constitutiva do que o enunciado que eu tenha assinado, aparecerei como o locutor do enunciado (lem- /'
quer dizer e não mais do que o lingüista diz. Ela contém, ou pode bro que considero "enunciado" uma...ocorrência particular da fra.§_~~ t .)
conter, a atribuição à enunciação de um ou vários sujeitos que se- Por um lado me responsabilizarei por ele - e o próprio enunciado,
riam sua origem. A tese que quero defender aqui é que é necessário uma vez assinado, indicará que assumi esta responsabilidade. Por
distinguir entre estes sujeitos pelo menos dois tipos de personagens, outro lado, serei o ser designado pelas marcas da primeira pessoa,
os enunciadores e os locutores; apresentarei primeiro a noção de serei quem autoriza seu filho a fazer isto ou aquilo. Tenho assinado,
"locutor". a administração da escola poderá me dizer: "O s.e nhor nos mandou
um documento em que autoriza seu filho a ... "
Se falo de locutores - no plural - não é para cobrir os casos
em que o enunciado · é referido a uma voz coletiva (por exemplo, Um parêntesis a este propósito, sobre o papel da assinatura. Para
quando um artigo tem dois autores que se designam coletivamente que serve a assinatura?. Base<j.ndo-me em trabalhos de Christian Plan-
por um nós). Visto que, neste caso, os autores pretendem constituir tio, considerarei dupla sua função. Em primeiro lugar, ela serve algu-
uma só pessoa moral, falante de uma única voz: sua pluralidade apre- mas vezes para indicar quem é o locutor, o ser designado pelo eu e
senta-se fundida em uma personagem única, que engloba os indivíduos a quem é imputada a responsabilidade do enunciado. Mas este papel
diferentes. O que me motiva o plural é a existência, para certos enun- é acessório e circunstancial, somente: ela o realiza só quando é legí-
ciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados como distintos e vel (o que não é de forma nenhuma necessário: Cf. os riscos que
irredutíveis. Assim, nos fenômenos de dupla enunciação (§ XI), prin- servem muitas vezes para assinar) e quando o texto que a precede
- cipalmente no discurso relatado em estilo direto. Por definição, enten- não contém indicação do locutor (indicação que é dada, no meu
do por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado, ªpr~ exemplo, desde que a fórmula "abaixo-assinado ... " tenha sido preen-
sentado como seu responsá_yel, ou seja, como alguém a quem se deve chida). A segunda função, essencial, é a de assegurar a identidade
imputar a responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o pro- entre o locutor indicado no texto e um indivíduo empírico, e a assi-
nome eu e as outras marcas da primeira pessoa. Mesmo que não se natura realiza tal função em virtude de uma norma social que exige
leve em conta, no momento, o discurso relatado direto, ressaltar-se-á que a assinatura seja "autêntica" (meu filho não tem o direito de
que o locutor, designado por eu, pode ser distinto do 'ftutor empmco assinar por mim), entendendo por isto que o autor empírico da assi-
do enunciado, de seu produtor - mesmo que as duas personagens natura deve sei- idêntico ao ser indicado no sentido do enunciado,
coincidam habitualmente no discurso oral. Há de fato casos em que, como seu locutor. Na conversação oral cotidiana, é a voz que realiza
de uma maneira quase evidente, o autor real tem pciuca relação com as duas funções da assinatura. Por um lado ela pode servir para dar
o locutor, ou seja, com o ser, apresentado, no enunciado, como aquele a conhecer quem é o locutor, ou seja, quem é designado pelos mor-
a quem se Q.eve atribJ.tir -ª-!esponsabilidade da ocorrência do enun- femas de primeira pessoa (Cf. os diálogos "quem está aí?" - "Eu").
ciadó. E, por outro lado, ela autentica a assimilação do locutor a um indi-
Suponha que meu filho me traga uma circular da escola, em que víduo empírico particular, aquele que produz efetivamente a fala.
está escrito: "Eu, abaixo-assinado~... autorizo meu filho a[ . .. ]. As- Como no caso da assinatura, é, aliás, uma norma social que torna
sinado . . . " Só terei pessoalmente que escrever meu nome no branco possível esta segunda função, a norma impedindo "contradizer" a voz
que segue a expressão abaixo-assinado (a menos que meu filho tenha .de qualquer outra pessoa.
tido a cortesia de fazê-lo por mim) e assinar (a menos que meu filho Não somente o locutor pode ser diferente do sujeito falante efe-
tenha tido a imprudência de fazê-lo ele mesmo). Ora, é claro que não tivo, mas pode ser que certas enunciações, tal como são descritas no
sou o_au..!Q_r em:Qírico_ do texto~autor, aliás, difícil de identificar: é o sentido do enunciado, não apareçam como o produto de uma subjeti-
diretbr, sua secretária, a secretária da educação, etc?. Quando mui to vidade individual" (é o caso dos enunciados que Benveniste chama
corro o risco de ser o autor da ocorrência de meu nome depois de "históricos", enunciados caracterizados pelo fato de não veicularem

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nem marca explícita, nem indicação implícita de primeira pessoa, não dente no discurso relatado em estilo direto. Se Pedro diz "João .!lle.
atribuindo, pois; a nenhum locutor, a responsabilidade de sua enun- disse: eu virei", como analisar, no que concerne ao locutor, o discurso
ciação). Vê-se porque escolhi uma definição da enunciação que não de Pedro tomado na sua totalidade?. Encontram-se aí duas marcas de
contenha nenhuma alusão a uma pessoa que fosse seu autor, nem primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, não se
mesmo a uma pessoa a quem fosse endereçada - já que é essencial pode ver aí dois enunciados sucessivos, o segmento João me disse
para mim que a enunciação, na · medida em que ela é o tema do não pode satisfazer a exigência de independência contida na minha
sentido, o objeto das qualificações contidas nos sentidos, não seja vis- definição de enunciado: ele não se apresentaria como "escolhido por
ta, enquanto objeto destas qualificações, como devendo ter necessaria- si mesmo" . Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado único
mente uma fonte e um alvo. Quero poder dizer que a existência de apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo
uma fonte e de um alvo estão entre as qualificações que o sentido assimilado a Pedro e o segundo a João. Assim, é possível que uma
- atribui (ou não) à enunciação. Assim poderei descrever as "enuncia- parte de um enunciado imputado globalmente a um primeiro locutor
ções históricas" como não comportando, no seu sentido, nenhuma seja, entretanto, · imputado a um segundo locutor (do mesmo modo
menção a sua origem - entendendo por isso, não que o sentido des- que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato
tes enunciados atribui a origem de sua enunciação a alguma subjetivi- o relato que lhe fez um segundo narrador).
dade superindividual, mas simplesmente que ele não diz nada sobre
Esta possibilidade de desdobramento é utilizada não somente pa-
sua origem, que não exibe nenhum autor de sua fala.
ra dar a conhecer o discurso atribuído a alguém, mas também para
Se eu fizesse intervir um autor na minha definição de enuncia- produzir um eco imitativo (A: "Eu não estou bem" - B: "Eu não
ção, a existência deste autor se tornaria um tema das qualificações estou bem; não pense que você vai me comover com isso"), ou para
contidas no sentido, ou seja, sua especificação seria uma das tarefas apresentar um discurso imaginário ("Se alguém me dissesse vou sair,
necessárias da semântica do enunciado, uma das questões que o sen- eu lhe responderia ... ") . É ela também que permite organizar um
tido devet:ia responder, e deveria imaginar, então, que o enunciado teatro, no sentido próprio, no interior de sua própria fala, pergun-
histórico dá a estas questões uma resposta de ordem metafísica. Pre- tando e respondendo (procedimento freqüentemente utilizado por cer-
firo poder dizer simplesmente que ele deixa na sombra a origem de tas personagens de Moliere, Sosie por exemplo, que na cena I, do
sua enunciação, e isto me é possível na medida em que esta origem primeiro ato do Amphitryon, se representa contando a batalha de
não é um tema necessário das indicações semânticas, mas uma das Alcmene, organizando assim um teatro dentro do teatro). O mesmo
características que . podem atribuir (ou não) à enunciação. Se, utili- desdobramento do locutor permite ainda a alguém fazer-se o porta-
zando com alguma liberdade uma palavra de Jakobson, denomina-se voz de um outro e empregar, no mesmo discurso, eus que remetem
"embrayeur" o aspecto da realidade extra-lingüística relativa às indi- tanto ao porta-voz, quanto à pessoa da qual é porta-voz. Quando, em
cações interiores ao sentido (quer dizer, situada na junção do lingüís- T!lrtarin sur les Alpes, Pascalon, atemorizado pelas imprecações de
tico e do extra-lingüístico), direi que é a enunciação tal como a defini Excourbanies (" Outrel "), as faz acompanhar pela fórmula hipócrita
- abstração feita, pois, do sujeito falante - que é o embrayeur das [tarasconnaise] " ... que vous me feriez dire", o locutor da fórmula
indicações semânticas: a existência
., eventual de uma fonte responsá- pronunciada por Pascalon, quer dizer, a pessoa designada por me, é
vel pela enunciação depende só destas indicações. a que praguejou "Outre! ", a saber, Excourbanies. O que não impede
XI . Sustentei mais acima que a presença de marcas da primeira Pascalon de, no mesmo discurso, empregar eus que designam ele
pessoa apresenta a enunciação como imputável a um locutor, assimi- mesmo.
lado à pessoa à qual remetem. Este princípio deve receber certas Em lugar de considerar o relato em e.stilo direto (abreviado RED)
nuances a fim de dar conta da possibilidade sempre aberta de fazer como um cas() particular de dupla enunciação, ele é descrito com
_ aparecer, em uma enunciação atribuída a um locutor, uma enunciação freqüência de modo isolado, independentemente dos fenômenos que
atribuída a um outro locutor. E isto que se vê de uma maneira evi- classifiquei na mesma categoria - deixa em seguida tomá-lo como

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modelo quando se trata de caracterizar estes outros fenômenos, vistos mente subordinados - o que não é mais extravagante que atribuir-
como sendo formas truncadas, desviantes, até anormais. Esta prática lhe propriedades jurídicas, argumentativas ou causais de que falei
leva a dar ao RED uma imagem que me parece às vezes banal e de mais acima. Certamente do ponto de vista empírico, a enunciação é ...
forma nenhuma evidente, e a desfigurar por ricochete os fatos que ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado...__,.
procedem também, segundo penso, da dupla enunciação: eles apare- dá dela é a de uma troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia,...->
cem como uma cópia de má qualidade, feita a partir de um original das falas. Não há paradoxo neste caso senão se se confunde o lo-
cutor - que para mim é uma ficção discursiva - com o sujeito
já desbotado.
falante - que é um elemento da experiência. Esta tese tem conse-
Se, de fato, contrariamente ao que proponho, considera-se sepa- qüências quando se trata de descrever o relato em estilo direto, se
radamente o RED, duas particularidades se impõem logo de início. este é visto no interior da categoria geral da dupla enunciação. Segu-
A primeira, que ele tem por função informar sobre um discurso efe- ramente manterei que ele visa informar sobre um discurso que foi
tivamente realizado [tenu] . A outra, que ele contém em si mesmo os efetivamente realizado. Mas nada mais obriga a sustentar que as ocor-
termos de um discurso suscetível de ser realizado [tenu] por um lo- rências colocadas entre aspas constituem uma menção que designam
cutor djlerente daquele que faz o relato. A aproximação destas duas entidades lingüísticas, aquelas que foram realizadas no discurso ori-
observações conduz facilmente à idéia - em geral admitida sem dis- ginal. Pode-se admitir ao contrário que o autor do relato, para infor-
cussão - de que o RED procura reproduzir na sua materialidade as 1,1lar sobre o discurso original, coloca em cena, dá a conhecer uma
palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer o fala que ele supõe, simplesmente, que ela tem alguns pontos comuns
discurso. O que se expressa, por exemplo, recorrendo à noção lógica com aquela sobre a qual ele quer informar seu interlocutor. A verda-
de menção. Para um lógico, uma ocorrência particular de uma palavra de do relato não implica, pois, se o RED é um caso particular de
constitui uma menção quando seu autor não a utiliza para significar dupla enunciação, uma conformidade material das falas originais e
o sentido desta palavra mas para significar a própria palavra, consi- das falas que aparecem no discurso daquele que relata. Já que este
derada como uma entidade lingüística. Este é o caso nos exemplos não visa necessariamente a uma reprodução literal., nada impede, por
sempiternos do tipo "Mesa tem quatro letras" onde a ocorrência da exemplo, que, para dar a conhecer os pontos importantes da fala ori-
palavra mesa serve para designar este elemento da língua portuguesa ginal, ele coloca em cena uma fala muito diferente, mas que dela
que é a palavra mesa. O mesmo se daria no RED. A parte final da conserva, ou mesmo acentua, o essencial (pode-se, no estilo direto,
seqüência Pedro disse: "estou contente" (a que está entre aspas) de- relatar em dois segundos um discurso de dois minutos: Em uma pala-
signaria simplesmente uma frase da língua, e o sentido global da se- vra, Pedro me .disse "eu tenho o suficiente"). A diferença entre estilo
qüência seria que Pedro pronunciou esta frase, produzindo um enun- direto e estilo indireto não é que o primeiro daria a conhecer a forma,
ciado. Relatar um discurso em estilo direto seria, pois, dizer que o segundo, só o conteúdo. O estilo direto pode também visar só o
palavras foram utilizadas pelo autor deste discurso. Quanto aos outros conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a
fenômenos que classifiquei na rubrica "dupla enunciação", (os ecos, conhecer uma fala (ou seja, uma seqüência de palavras, imputada a
os diálogos internos, os monólogos, o apagamento do porta-voz em um locutor) . .f. suficiente, para ser exato, que este manifeste efetiva-
relação à pessoa que ele faz falar),. tudo isto não seria senão uma mente certos traços salientes da fala relatada (por isso os .historiado-
forma enganosa do RED - enganosa seja porque ele não se reconhe- res antigos, e boa parte dos historiadores modernos, não têm escrú-
ce como tal, seja porque o discurso que se pretende relatar jamais pulos de reescrever os discursos que relatam). Porque o estilo direto
se deu, ou foi realizado em termos diferentes. implica fazer falar um outro, atribuir-lhe a responsabilidade das falas,
isto não implica que sua verdade tenha uma correspondência literal,
De minha parte, prefiro caracterizar primeiro a categoria toma-
termo a termo.
da na sua totalidade, e direi que ela consiste fundamentalmente em
uma apresentação da enunciação como dupla: o próprio sentido do XII. Já que o locutor (ser do discurso) foi distinguido do sujeito
enunciado atribuiria à enunciação dois locutores distintos, eventual- falante (ser empírico), proporei ainda distinguir, no próprio interior

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,, da noção de locutor, o "locutor enquanto tal" (por abreviação atividade oratória. Não se trata de afirmações auto~logiosas que ele
., "L") e_o locutor_ef!_~nto ser do mundo (".\"). L é o responsável pode fazer de sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afir-
pela enunciação, considerãdo unicamente enquanto tendo esta pro- mações que podem ao contrário chocar o ouvinte, mas da aparência
priedade . .\ é uma pessoa "completa", que possui, entre outras pro- que lhe confere a fluência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha
priedades, a de ser a origem do enunciado - o que não impede que das palavras, os argumentos (o fato de escolher ou de negligenciar
L e .\ sejam seres de discurso, constituídos no sentido do enunciado, tal argumento pode parecer sintomática de tal qualidade ou de tal
e cujo estatuto metodológico é, pois, totalmente diferente daquele do defeito moral). Na minha terminologia, direi que o ethos está ligado
--11 sujeito falante (este último deve-se a uma representação "externa" da a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele
fala, estranha àquela que é veiculada pelo enunciado). Para fazer apa- se vê dotado [affublé] de certos caracteres que, por contraponto, tor-
recer esta distinção, retomarei primeiro o exemplo das interjeições tal na esta enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia
como foram descritas há pouco. Digo que uma interjeição apresenta dizer de si, enquanto objeto da enunciação, diz, em contrapartida,
sua enunciação como motivada [déclenchée] pelo sentimento que ex- respeito a À, o ser do mundo, e não é este que está em questão na
pressa. Isto implica que este sentimento é apresentado não somente parte da retórica de que falo (a distância entre estes dois aspectos do
por meio, mas através da enunciação de que é a origem pretendida. locutor é particularmente sensível quando L ganha a benevolência de
Ao dizer Ai de mim! ou Ah! * colore-se sua própria fala de tristeza seu público pelo próprio modo como humilha À: virtude da autocrí-
ou de alegria: se a fala dá a conhecer estes sentimentos, é na medida tica). N.B. -A teoria da construção do orador por sua fala é explo-
em que é, ela própria, triste ou alegre. A alguém que se contenta em rada por Declercg ( 1983) para análise do teatro de Racine.
dizer "Estou muito triste" ou "Estou muito alegre", pode-se even·
A distinção de L e .\ me permitirá precisar minha posição a res-
tualmente fazer notar que ele não tem a aparência, tomando-o na sua
peito dos "performativos explícitos", tese à qual fiz alusão no § 4
atividade de fala, nem triE"te nçm alegre. Isto porque o sentimento,
(trata-se do que Récanati (1981) Cap. IV, chama a "conjectura de
no caso dos enunciados declarativos, aparece como exterior à enun-
Ducrót") . A expressão "performativos explícitos" - que não quero
ciação como um objeto da enunciação, enquanto que as interjeições o
retomar por minha conta - dá a entender que é possível efetuar
situam na própria enunciação - já que esta é apresentada como o
um ato ilocutório pe.lo simples fato de se ·asseverar explicitamente
efeito imediato do sentimento que ela expressa. Direi, pois, que o
que se efetua tal ato:· Seja, por exemplo, o ato de desejar (augurar),
ser a quem se atribui o sentimento, em uma int~rjeição, é L, o locutor
consistindo em assumir o que um outro deseja, ou mesmo, na medida
l !visto em seu~ngajamento enu_ncitati~; E é a À, ao contrário, que ele em q,ue se atribui ao ato de desejar uma eficácia empírica, em con-
é atribuído nos enunciados declarativos, isto é, ao ser do mundo que,
tribuir verbalmente para sua satisfaçãp. Para efetuar este ato, parece
entre outras propriedades, tem a de enunciar sua tristeza ou sua ale-
suficiente afirmar que se o realiza. É o que parece ser feito quando
gria (de um modo geral o ser que o pronome eu designa é sempre . .\,
se diz "Eu te desejo boas férias", se desejar significa aqui "realizar
mesmo se a identidade deste À só fosse acessível através de seu apa- o ato ~e desejar". Para mim, ao contrário,. desejar, nesta fórmula,
recimento como L). significa.. primeiro "desejar", no sentido psicológico do termo. Dizen-
Uma outra ilustração da diStinção .\-L, desta feita retirada da do "primeiro", considero que este sentido está na origem de seu
retórica, e para a qual me apoiarei em Le Guem (1981). Um dos yalor de ação, e assegura à fórmula a possibilidade de realizar este
segredos da persuasão tal como é analisada a partir de Aristóteles papel. Se a fórmula permite o ato de desejar, é porque ela é asserção
é, para o orador, dar de si mesmo uma imagem favorável, imagem de um desejo, em um contexto em que o objeto deste desejo é o su-
que seduzirá o ouvinte e captará sua benevolência. Esta imagem do cesso do interlocutor. Seguramente uma evolução semântica levou o
orador é designada como ethos. É necessário entender por isso o verbo desejar [souhaiter] a tomar, por derivação delocutiva o valor
caráter que o orador atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua "efetuar o ato que pode ser efetuado, pirncipalmente, dize~do a al-
guém "Eu te desejo . .. " ["fe te souhaite ... "]. E, uma vez que esta
* No original Hélas! CHIC! (N. do T.) . derivação foi produzida, tornou-se possível reler a fórmula, dando a

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desejar [souhaiter] este novo sentido, o que leva a ver aí a asserção através da qualificação da enunciação. Que a consideracão de uma
da realização de um ato. Mas não é esta asserção que está na origem fórmula tenha a eficácia necessária para a realizacão do. ato de de-
da eficácia pragmática da fórmula.
sejar, é o ~ue o enunciado mostra sobre a enun~iação, e o sujeito
N.B. - Récanati objetou a esta explicação que o verbo desejar ~este_ ato nao pode ser senão o locutor visto no seu papel de locutor,
[souhaiter], acompanhado de um dativo, não pode significar senão a Isto e, como o responsável pelo enunciado. Mas quando a asserção
realização do ato de desejar [souhait], e nunca o desejo. Mas encon- contida ne_sta fórmula, e que concerne ao mundo, toma como objeto
tram-se de fato desejar [souhaiter], puramente psicológicos e, no en- o ser p~tlcular do mundo que, entre outras propriedades, tem a de
tanto, acompanhados de um dativo. Assim, em O Avarento, cena 7, ser L, e de À que se trata: L pertence ao comentário da enunciacão
do ato III, Cléante diz a Marianne, que deve, segundo os projetes de feita globalmente pelo sentido, À pertence à descricão do mundo f;ita
Harpagon, tornar-se sua sogra: "C'est un titre que je rie vous souhaite pelas ~sserçõ~s in,~erior:~ ao, se,ntido. O que é ca;acterístico dos per-
point" (no sentido de "dont je ne désire pas qu'il devienne Ie vôtre "). formativos, ditos exphcltos , e que as asserções sobre À são aí utili-
Tudo o que se pode dizer é- que a presença de um pronome dativo zada~ para mostrar as modalidades segundo as quais a enunciação é
de segunda pessoa com o verbo "psicológico" desejar [souhaiter], foi considerada por L.
particularmente freqüente, por razões fáceis de compreender, quando
. XIII: !á ~ssinalei uma primeira forma de polifonia, quando assi-
este verbo foi utilizado nas fórmulas usadas para realizar o ato de n~le~ ~. existenci:' de dois locutores distintos em casos de "dupla enun-
desejar [souhait]: em seguida, o segundo verbo desejar [souhaiter]
Ciaçao - fenomeno que se torna possível pelo fato de o locutor
afetado, por delocutividade, pelo valor "realizar o ato de desejar",
ser um ser de discurso, participando desta imagem da enunciacão
adquiriu a possibilidade de uma combinação com o dativo como ca- fornecida pelo enunciado. A noção de enunciador me permitirá des-
racterística sintática - o que reforça em conseqüência, a tendência crever uma segunda forma de polifonia bem mais freqüente. No
em crer estar este verbo presente na fórmula.
:xempl~ do eco ton:~do há pouco, alguém pronunciara as palavras
Se resumi aqui a crítica da performatividade apresentada com "Eu n~o estou bem , e uma segunda pessoa as retomara por um
detalhe no capítulo VI, é porque a distinção À-L permitirá uma me- Eu nao estou bem: Não creia que você vai me comover com isso"
lhor formulação dela. Se concordarmos, com efeito, que o verbo ~perando no seu discurso em desdobramento do locutor (cujo índic~
desejar [souhaiter] da fórmula "Eu desejo ... " ["Je souhaite ... " ] e .. a mudança de referente do pronome eu). Mas é ainda mais fre-
é utilizado primeiro para uma asserção de ordem psicológica, é ne- quente que se. encontre em um discurso a voz de alguém que não
cessário dizer que seu sujeito, o pronome eu [je], remete a À: não é te~ha a~ propnedades •que atribuí ao locutor. Na cena 1 do ato I de
enquanto locutor que se experimenta o desejo, mas enquanto ser do ~ntanmcus, Agrippine ironiza os propósitos de sua confidente AI- ·
mundo, e independentemente da asserção que se faz dele. Por outro bme, que atribui à virtude o comportamento independente de Néron.
lado, o ato de desejar, que não existe senão na fala em que se realiza, Agrippine:
pertence tipicamente a L: L realiza o ato de desejar afirmando que À
desejà. :g ao reler a fórmula atribuindo ao verbo desejar [souhaiter] Et ce même Néron, que Ia vertu conduit.
seu segundo sentido que se· &levado ao mesmo tempo a compreender Fait enlever Junie au milieu de la nuit.
o Eu [/e] como uma designação de L, ou seja, do sujeito do ato de
desejar. Trata-se de uma espécie de ilusão retroativa, devida ao fato . E claro que este enunciado, e particularmente a relativa é des-
de a fórmula ter sido dotada de uma eficácia ilocutória - mas que tmado a exprimir não o ponto de vista de Agrippine, mas o de 'Albine
não explica esta eficácia. ap~es~ntado como ridículo. E claro também que todas as marcas d~
pr~erra pessoa, na fala de Agrippine, designam a si mesma e me
Vê-se como esta tese sobre os performativos se liga à diferença ~bngam,_ pois, a identificá-la ao locutor (se, nos versos que cftei, se
que fiz entre. a mostração da enunciação, que constitui globalmente mtrod~ziss~ ,uma marca de primeira pessoa, por exemplo um "sans
o sentido, e as diferentes asserções sobre o mundo que se realizam me prevemr , o me remeteria também a Agrippine). Donde a idéia

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de que o sentido do enunciado, na representação que ele dá da enun-
que mostra como significativo o fato de as personagens falarem e se
ciação, pode fazer surgir aí vozes que não são as de um locutor.
comportarem de tal ou tal modo. De uma maneira análoga, o locutor,
Chamo "enunciadores" estes seres que são considerados como se ex-
responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a enuncia-
pressando através da enunciação, sem que para tanto se lhe atribuam
dores de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua
palavras precisas; se eles "falam" é somente no sentido em que a
posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este
enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição,
ou aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (o enun-
sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras.
ciador é então atualizado), seja simplesmente porque escolheu fazê-los
Para defini~ a noção de enunciador, tenho por vezes (Cf. Ducrot aparecer, e que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que ele
e outros, 1981, Cap. I) dito que eles são os sujeitos dos atos ilocutó- não se assimile a eles (a existência discursiva que lhes é dada assim,
rios elementares, entendendo por isso alguns atos muito gerais mar- o fato de que alguém assume uma certa posição, dá importância a
cados na estrutura da frase (afirmação, recusa, pergunta, incitação, esta posição, mesmo para aquele que não a leva na própria conta:
desejo [augúrio], exclamação). Definição que é, pobre de mim, difí- há, aliás, uma outra importância possível para um conteúdo lingüísti-
cil de introduzir na teoria de enunciação que acabo de propor. Para c.o, .lig~do às .palavras cujo valor intrín~~l de fixar ou
mim, com efeito, realizar um ato ilocutório é, de uma maneira geral, hm1tar. ) . Sena mesmo possível ~ev~ais longe o paralelo: como o
"apresentar sua enunciação como obrigando ... " - e é ao sujeito :nun~ia~or não é responsável p~materi~ling~ico utiliz,ado, que
falante que reservei, na presente exposição, a realização dos atos e atnbmdo ao locutor, do mesmo modo não se vê atribuída à perso-
ilocutórios: escolhendo um enunciado, ele "apresenta sua enunciação nagem de teatro a materialidade do texto escrito pelo autor e dito
como obrigando ... ". Na medida em que a existência de um enun- pelos atores. Se, por exemplo, em Les jemmes Savantes, Moliére e os
ciador pertence à imagem que o enunciado dá da enunciação, seria ateres se expressam em verso, é evidente que as personagens repre-
necessário, para .atribuir os atos ilocutórios ao enunciador, dizer: "o sentadas falam habitualmente em prosa. E quando em dado momento
enunciado atribui à enunciação a propriedade de ser apresentada por a personagem Trissotin recita versos, isto deve ser incllçado por uma
um enunciador como 1) a sua, 2) obrigando .. . ". Mas esta fórmula dicção particular do ator e, da parte do autor, por uma forma de
é muito pouco inteligível. Vê-se, mal, principalmente, como a enun- verificação particular. 1
ciação poderia ser atribuda a um enunciador enquanto este último,
Devo sublinhar que a aproximação da dupla locutclr/ enunciador
diferentemente do locutor, não se define em relação à ocorrência de
e da dupla autor + ater/personagem diz respei~o som~nte ao papel
palavras (não se lhe atribui nenhuma palavra, no sentido material do
qu~ desempenham as duplas nestes modos de cJmunic~ção que são
termo). Incapaz para o momento de suplantar estas dificuldades no
quadro de uma construção teórica, eu me contentarei com compara- a hnguagem teatra! e a l~g~a.gem não-teatral: elel têm, !segundo pen-
so, a mesma funçao semwlog1ca. Suponhamos agora qu se deixe de
ções, primeiro com o teatro, depois com o romance.
lado este ponto de vista semicilógico e que se descreva o que se passa
Direi que o enunciador está para o locutor assim como a per- na cena, não mais como um modo de c · çao es ecífico, mas
sonagem está para o autor. O autor coloca em cena personagens que, como uma utilização, entre outras, da linguagem ordinária, do mesmo
~m relação ao que chamei no '§ 3, a partir de Anne Reboul, uma modo que na conversação ou no discurso político. Será necessário,
,;primeira fala", exercem uma ação lingüística e extralingüística, ação então, considerar as personagens, já que elas são os referentes dos
que não é assumida pelo próprio autor. Mas este pode, em uma "se- eus pronunciados na cena, como os locutores - o autor e os ateres
gunda fala", dirigir-se ao público através das personagens: seja por aparecendo desta vez como sujeitos falantes. É a mesma distinção,
que se assimila a esta ou aquela pelo próprio autor ,.Mas este pode, na linguagem ordinária, do locutor e do sujeito falante que a torna
em uma "segunda fala", dirigir-se ao público através das persona- apta à utilização particular que faz dela o teatro: o próprio do tea-
gens: seja porque se assimila a esta ou aquela que ele parece fazer tro, relação à narrativa pura, isto é, à narrativa sem diálogo relatado
seu representante (quando o teatro é diretamente didático), seja por-
em estilo direto, é que a função semiológica de enunciador é neste
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caso preenchida por um ser, a personagem, que, no que diz respeito sado - ou que ele dá uma forma lingüística ao que ele foi levado
ao emprego feito da linguagem ordinária, é um locutor - de modo a viver ou a constatar - em certas narrativas no presente.
que um sujeito falante, ator de sua posição, pronuncia os eu que
Insistirei, sobretudo, em uma segunda diferença entre o narrador
remetem a Don Diegue, senhor espanhol. E muito mais, a possibili-
e o autor, diferença ligada à primeira. Trata-se de sua relação com
dade de uma dupla enunciação (Cf. § 11) ligada à distinção do su-
o tempo. Em seu estudo sobre o tempo gramatical, Weinrich (1964)
jeito falante e do locutor, explica por que o mesmo ser, na cena, pode
ressalta que os romances de antecipação são sempre escritos em um
algumas vezes falar ao mesmo tempo como personagem e enquanto
tempo gramatical do passado - o importante para mim é que aliás
representante da personagem, fazendo, por exemplo, comentários sobre
somente possam sê-lo. Escrevendo hoje um romance sobre o ano
seu papel: em uma paródia do Cid, o representante de Don Diegue
2000, nada me impede de começar: "A cette époque la France était
pode, no próprio interior da peça, lastimar-se que seu companheiro,
un terrain vaque que se disputaient ... " Vê-se nisto, por vezes, uma
ao esbofeteá-lo, tenha tido a mão pesada, assim se distinguiria:
extravagância ou um paradoxo, sob o pretexto que o autor, mesmo
1 . O ator X, sujeito falante; escrevendo no passado, não procura dissimular que fala de seu fu-
turo. Mas o paradoxo desaparece desde que se tenha distinguido autor
2. Um primeiro locutor, para o qual reservo o termo de. " intér-
e narrador. Porque o tempo gramatical utilizado pode muito· bem não
. prete", definido pelo fato de ter tal papel particular, e que pode dizer
tomar como ponto de refrência o momento em que o autor escreve,
eu enquanto titular deste papel.
mas aquele em que o narrador relata, e o autor, vivendo em 1985,
3. Um segundo locutor, a personagem vivida pelo "intérprete", pode imaginar um narrador, vivendo no ano 3000, que relata o que
personagem que se designa igualmente a si mesmo por eu)*. se passou no ano 2000.
XIV. A teoria da narrativa apresentada em Genette (1972) me Esta distinção do narrador (equivalente literário de meu "lo-
fornecerá uma segunda comparação para procurar fazer compreender cutor") e o autor (correspondendo ao que chamei o "produtor efe-
minha distinção do locutor e do enunciador. Com efeito, . esta teoria tivo", e exterior à narrativa como o produtor é exterior ao sentido do
faz aparecer na narrativa dois tipos de instâncias narrativas, corres- enunciado) permite mesmo - é a terceira diferença que assinalarei
pondendo sob muitos aspectos ao que chamei, no estudo da linguagem - fazer realizar o ato de narração por alguém de quem se diz, ao
ordinária, "locutor" e "enunciador". O correspondente do locutor é mesmo tempo, que ele não existe ou não existe mais. Se para escrever
o narrador, que Genette opõe ao autor da mesma maneira que opo- é necessário existir, isto não é necessário para narrar. Por isso a
nho o locutor ao sujeito falante empírico, isto é, ao produtor efetivo possibilidade das narrativas em primeira pessoa e nas quais se relata
do enunciado. O autor de uma narrativa (romancista ou novelista) a morte da personagem designada por esta prim~ira pessoa, como no
representa, segundo Genette, um narrador, responsável pela narrativa filme de Wilder, Sunset Boulevar, filme narrado por uma persona-
e que tem características bem diferentes daquelas que a história lite- gem que é, no entanto, assassinada pouco antes do fim. A existência
rária ou a psicologia da criação romanesca devem reconhecer ao autor. empírica, predicado necessário do autor, pode ser recusada ao narra-
.
Assinalo três, das quais ' só a primeira é desenvolvida por Genette. dor. Na medida em que este é . um ser fictício, interior à obra, seu
papel se aproxima do que atribuí ao locutor - que para mim é um
Esta primeira característica, sobre a qual passo rapidamente, diz ser do discurso, pertencente ao sentido do enunciado, e resultante
respeito à atitude do narrador em relação aos acontecimentos relata- desta descrição que o enunciado dá de sua enunciaÇão.
dos. Enquanto o autor imagina ou inventa estes acontecimentos, o
narrador os relata, entendendo por isso, por exemplo, ou que ele Ao enunciador igualmente posso fazer corresponder um dos pa-
reproduz lembranças (supostas) - no caso de uma narrativa no -pas- péis propostos por Genette. Vou colocá-lo em paralelo com o que
Genette denomina às vezes "Centro de perspectiva" (o "sujeito de
* Em francês Ducrot usou "comédien", que traduzi por ator, e "acteur'', que consciência" dos autores americanos), ou seja, a pessoa de cujo pon-
tradUzi por intérprete. (N. do T.) to de vista são apresentados os acontecimentos. Para distingui-h do

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narrador, Genette diz que o narrador é "quem fala", enquanto que o entender o suspiro_de um enunciador a quem ele é, para retomar o
centro de perspectiva é "quem vê". E cita numerosos exemplos em que disse sobre a exclamação e a expressividade, "arrancado" pela
que os dois papéis não podem ser atribuídos a um ser único. Assim, situação. Ora este enunciador, que deve assistir a cena descrita, que
em A la Recherche du Temps Perdu, ocorre que o narrador apre- deve vivê-la, é evidentemente distinto do narrador que não tem ne-
senta acontecimentos que relatam uma visão que não pode ser nem a nhuma razão para se impacientar ou exclamar.
sua, no momento em que narra a história, nem a de um indivíduo Segundo indício de uma subjetividade que não é a do narrador,
designado por eu [je], ou seja, do ser em que era no momento em a metáfora que fecha o enunciado: "lex deux berges ( ... ) filerent
que vivia a história: a visão relatada pelo narador é assim às vezes comme deux larges rubans que l'on déroule". Para ver as chalupa~
a de Swan ou de Charlus, e isto mesmo que o narrador seja identifi- "se derouler", é necessário observá-las de um lugar muito particular,
cado, através da primeira pessoa, a uma outra personagem da narra- a coberta da popa do navio. Deste lugar com efeito, e somente daí,
tiva. Esta situação me parece próxima da que procurarei descrever, no de um lado se vêem os dois cais de uma só vez, e de outro, está a
nível do enunciado, dizendo que o locutor apresenta uma enunciação vista rio abaixo obstruída pela ilha Saint-Louis e a ilha de la Cité,
de que se declara responsável - como exprimindo atitudes de que estes cais "se alongam" à medida que o navio se distancia das ilhas.
pode recusar a responsabilidade. O locutor fala no sentido em que Como, exatamente depois da passagem que analisei, o narrador apre-
o narrador relata, ou seja, ele é dado como a fonte de um discurso. senta Fredéric Moreau olhando Paris, da popa do navio, é quase auto-
Mas as atitudes expressas neste discurso podem ser atribuídas a enun- mático atribuir-lhe, numa leitura retroativa, a visão das chalupas que
ciadores de que se distancia - como os pontos de vista manifestados se desenrolam e, voltando um pouco mais no texto, a impaciência do
na narrativa podem ser sujeitos de consciência estranhos ao narrador. enfin. Vê-se, espero, neste exemplo, quanto estão próximas a noção
Para ilustrar esta relação entre o enunciador e o centro de pers- de enunciador e a de centro de perspectiva: elas servem para fazer
pectiva, comentarei as primeiras linhas de L'Éducation Sentimentale, aparecer no enunciado um sujeito diferente não somente daquele que
consagradas à saída do navio que vai subir o Sena, a partir de Paris, fala de fato, [romancista/ sujeito falante], mas também daquele de
levando a bordo Fredéric Moreau: "Le 11 septembre 1840, Vers six que se diz que fala [narrador/ locutor].
heures du matin, la vil/e - de - montereau, pres de partir, fumait XV. Primeiro exemplo, destinado a mostrar a pertinência lin-
à gros tourbillons devant le quai saint-Bernard". Segue uma descri- güística da noção de enunciador: a ironia. Darei dela uma descrição
ção do cais que se pretende absolutamente "objetiva" e faz surgir, inspirada de perto no artigo, muito importante para mim, de Sperber-
com o auxílio de uma confusão de notações isoladas, os encontrões Wilson (1978) e pelo capítulo 5 de Berrendonner. (1981). Freqüente-
[bousculades] e a animação geral que precedem a partida. Descrição mente a ironia é tratada como uma forma de antífrase: diz-se A para
que é interrompida pelo enunciado que vou comentar com detalhe: levar a entender não- A , sendo considerados idênticos o responsá-
"Enfin, le navire partit; et les deux berges, peuplées de magasins, de vel por A e o por não-A. Neste caso se trataria de uma figura,
chantiers e d'usines, filerent comme deux larges rubans que l'on dé- modificando um sentido literal primitivo para obter um sentido deri-
roule".
..
Encontro neste enunciado pelo menos duas marcas que trazem
vado (como o litotes transforma um sentido "um pouco" literal em
um sentido "muito" derivado) , a única diferença é que a transforma-
à tona a presença de uma personagem que não é o narrador (por co- ção irônica é uma inversão total. Sperber e Wilson rejeitam esta con-
modidade, suporei que há aqui um narrador - o que está longe de cepção figurativa. Para eles, um discurso irônico consiste sempre em
ser evidente). A primeira é o enfin, que não serve somente para assi- fazer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas evidentemente
nalar que um certo acontecimento é o termo de um desenvolvimento absurdas, a fazer, pois, ouvir uma voz que não é a do locutor e que
cronológico (como se encontraria em Pedro chegou, depois João e sustenta o insustentável. É possível que minha apresentação da tese
enfim [enfin] Paulo). Ele tem além disso um valor exclamativo: é a de Sperber e Wilson seja um pouco infiel, na medida em que substi-
interjeição de alguém que vê terminar uma longa espera: ele dá a tuí sua expressão original "mencionar um discurso" pela expressão

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"fazer ouvir uma voz". Se fiz esta substituição é porque o termo milação do enunciador ao alocutário que torna esta ironia agressiva):
"mencionar" me parece ambíguo. Ele pode significar que a ironia é faço-os sustentar, na presença de Pedro, que Pedro não está presente.
uma forma de discurso relatado. Ora, com este sentido do verbo
mencionar, a tese de Sperber e Wilson não é de modo nenhum admis- Para ilustrar melhor minha concepção, gostaria agora de aplicá-
sível, já que não há nada de irônico em relatar que alguém sustentou la a um exemplo menos artificial (ou, sobretudo, que o artifício seja
um discurso absurdo. Para que nasça a ironia, é necessário que toda independente do meu cuidado ao expor minha teoria). Trata-se de uma
marca de relato desapareça, é necessário "fazer como se" este discur- "anedota", citada e analisada em Fouquier, 1981. Em um restaurante
so fosse realmente sustentado, e sustentado na própria enunciação. de luxo, um freguês sentou-se à mesa tendo como única companhia
Esta é a idéia que procuro deixar dizendo que o locutor "faz ouvir" seu cachorro, um pequeno teckel. O gerente vem estabelecer uma
um discurso absurdo, mas que o faz ouvir como o discurso de um conversação e elogia a qualidade do restaurante: "o senhor sabia que
outro, como um discurso distanciado. nosso mestre é o antigo cozinheiro do rei Farouk?" -"muito bem!"
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diz simplesmente o freguês .. O gerente, sem desanimar : e o nosso
Minha tese - mais exatamente, minha versão da tese Sperber- despenseiro é o antigo despenseiro da corte da Inglaterra. . . Quanto
Wilson - se formularia facilmente através da distinção do locutor a nosso pasteleiro, nós trouxemos o do imperador Bao-Dai:". Diante
e dos enunciadores. Falar de modo irônico é, para um locutor L, apre- 11
do mutismo do freguês o gerente muda de conversa: O senhor tem aí
sentar a enunciação como expressando a posição de um enunciador. um belo teckel". Ao que o freguês responde: "Meu teckel, senhor, é
Posição de que se sabe por outro lado que o locutor L não assume a um antigo São-Bernardo". Para descrever esta resposta no quadro que
responsabilidade, e, mais que isso, que ele a considera absurda. Mes- propus, é necessário admitir que o freguês, tomado como o locutor L,
mo sendo dado como o responsável pela enunciação, L não é assimi- expressa por um enunciador, assimilado ao gerente, a opinião, sobre
lado a E, origem do ponto de vista expresso na enunciação. A dis- o passado do teckel. Uma análise mais detalhada deveria precisar o
tinção do locutor e do enunciador permite assim explicitar o aspecto que marca, aqui, a assimilação do enunciador e do alocutário: uma
paradoxal da ironia colocado em evidência por Berrendonner: de um marca, entre outras, seria a identidade de estrutura semântica entre
lado, a posição absurda é diretamente expressa (e não mais relatada) a enunciação irônica e as que o gerente realizara antes por sua pró-
na enunciação irônica, e ao mesmo tempo ela não é artibuída a L, já pria conta. Ou seja, na minha terminologia, de modo sério (enten-
que este só é responsável pelas palavras, sendo os pontos de vista dendo por isso que, locutor das enunciações, ele se assimilava tam-
manifestados nas palavras atribuídos a uma outra personagem, E. bém a seu enunciador). Dizer que a resposta do freguês é irônica é
Para distinguir a ironia da negação - de que falarei em seguida - dizer, entre outras coisas, que é necessário, para interpretá-la, assimi-
acrescentarei que é essencial à ironia que L não coloque em cena um lar a duas pessoas diferentes a locutor da enunciação e o enunciador
outro enunciador, E', que sustentaria o ponto de vista razoável. Se L que se expressa nesta enunciação.
deve marcar que é distinto de E, é de uma maneira totalmente dife-
rente, recorrendo, por exemplo, a uma evidência situacional, a ente- Nos dois exemplos que precedem, o enunciador é assimilado a
nações particulares, e também a certos torneios especializados na iro- uma pessoa precisa e, nos dois casos, ao alocutário. Mas a assimilação
nia como "Que ótimo! ", etc. ., pode envolver alguém diferente do alocutário, como é o caso na auto-
ironia, quando se zomba de si mesmo. Eu lhes havia dito que cho-
Anunciei-lhes, ontem, que Pedro viria me ver hoje, e vocês se veria hoje, e faz um tempo ótimo, o que me leva a zombar de minha
recusaram a acreditar. Posso hoje, mostrando-lhes Pedro efetivamente competência metereológica: mostrando-lhes o céu azul, observo "Vo-
presente, lhes dizer de modo irônico: "vocês vêem, Pedro não veio cês vêem bem, está chovendo". O enunciador ridículo é aqui assi-
me ver". Esta enunciação irônica de que assumo a responsabilidade milado a mim mesmo, o que parece contradizer a descrição da ironia
enquanto locutor (é a mim que o me designa), apresento-a como a proposta há pouco. De fato, a solução é imediata desde que se aceite
expressão de um ponto de vista absurdo, absurdidade de que não sou a distinção de L e de À (Cf. § 12). O ser a quem L, responsável pela
o enunciador podendo até mesmo, neste caso, serem vocês (é esta assi- enunciação, é só por ela, assimila o sujeito enunciador do ponto de

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vista absurdo é À, o metereologista ignorante que se meteu a prever semântico completo, suscetível de ser comunicado. Notadamente, a
o tempo sem ser capaz. Mas justamente L, enquanto é responsável frase já deveria indicar quem é o responsável pelas posições nela ex-
pela enunciação, e escolhe o enunciado, não escolhe agir como mete- pressas, responsável que não poderia ser o locutor, aquele que é de-
reologista: o que ele faz é um ato de zombaria, e isto apresentando signado pelo eu. Se o enunciado, realizado em uma situação dada,
uma previsão realizada por um enunciador de que se distancia no implica uma outra imputação, isto seria como reflexo da significação.
interior de seu próprio discurso (mesmo se deve identificar-se a ele De minha parte, fiz a escolha oposta. Partindo do fato de que a sig-
no mundo). Por isso, o interesse estratégico da auto-ironia: L tira nificação nunca poderia, de modo nenhum, constituir plenamente uma
proveito das besteiras de À, proveito de que À se beneficia em segui- interpretação (antes, ela não especificaria quem é efetivamente o lo-
da, como conseqüência, já que L é uma de suas múltiplas figuras. cutor), postulei que seria necessário ver nela somente um conjunto
Aliás, não é necessário que o enunciador absurdo seja assimilado de instruções para a interpretação de seus enunciados: não há por-
a alguém precisamente. O essencial é que seja claro que o locutor não tanto, mais nenhuma razão para querer que estipule quem é o respon-
assume nenhuma das posições expressas em seu enunciado. Poder- sável pelos pontos de vista. "t suficiente que ela marque o lugar de
se-ia, penso eu, definir o humor como uma forma de ironia que não tal responsável (que chamo "enunciador"), ao mesmo tempo em que
considera ninguém em particular, no sentido em que o enunciador marca o lugar de um locutor, responsável pela enunciação, e que ela
ridículo não tem identidade especificável. A posição claramente insus- exija do interpretante encontrar, para constituir o sentido, os indiví-
tentável que o enunciado supostamente manifesta aparece por assim duos a quem imputar estas responsabilidades - especificando even-
dizer "no ar", sem sustentação. Apresentado como o responsável por tualmente certas restrições para realizar esta imputação. Escolhendo
uma enunciação em que os pontos de vista não são atribuídos a nin- indivíduos diferentes para estes dois papéis, não se reencontra um
guém, o locutor parece então exterior à situação de discurso: defi- valor semântico já constituído: constitui-se um, talvez inabitual, mas
nido pela distância que estabelece entre si e sua fala, ele se coloca que não é nem mais nem menos "conforme a língua" que a interpre-
fora de contexto e adquire uma aparência de desinteresse . e desen- tação 11 séria" habitual. Certamente não é, no discurso irónico, ao nível
voltura. da língua, que se atribuem os dois papéis a atares diferentes, mas
XVI. Recorrendo, para expor a distinção do locutor e do enun- não é princípio a este nível que se faz, no discurso sério, sua atri-
ciador, ao fenômeno da ironia, expus-me à censura de ter pecado con- buição a um único ator.
tra Saussure, e confundido língua e fala. "A ironia, me dirão, é tipi- A esta primeira resposta, que não faz senão explorar, sem pro-
camente um destes jogos que a fala permite, mas que são subversões curar justificá-la, minha concepção da frase e da significação, acres-
ou, pelo menos, deformações da estrutura da língua. Do ponto de centarei um argumento mais empírico, ou, mais exatamente, mais dire-
vista da língua, é necessário admitir, no exemplo anterior, que é o tamente ligado a fatos de experiência (sem ser, é claro, imposto por
freguês, ou seja, o indivíduo designado pela primeira pessoa, que se
eles), argumento que buscarei no fenômeno da negação. Ninguém
responsabiliza pela afirmação sobre o teckel e que é seu sujeito falan-
contestará que a negação é um 11 fato de língua", inscrito na frase
te, ao mesmo tempo locutor e enunciador. Se se considera, que ela
deve de fato ser atribuída ao gerente, é o efeito de uma inversão, alte- (sendo raramente o caso no que diz respeito à ironia) . Ora, parece-me
rando depois o dado propriamente lingüístico, inversão análoga. a do interessante, para descrever a negação, recorrer à distinção do locutor
jogo infantil (Eu, eu serei a mamãe, você, você será o bebê)". e do enunciador. Propus efetivamente, em Les Mots du Discours, des-
crever um enunciado declarativo negativo, por exemplo, "Pedro não é
Para responder as objeções deste tipo, observarei primeiro que gentil", como a apresentação de dois atas ilocutórios distintos. O pri-
elas repousam sobre uma concepção da frase (elemento da língua) meiro, A1, é uma asserção positiva relativa à gentileza de Pedro, o
diferente da que propus no início. O que lhe dá uma aparência de outro, A2, é uma recusa de A1. Ora, é claro que A1 e A2 ~ão podem
evidência é que se decidiu ver na significação da frase algo que pa- ser imputados ao mesmo autor. Geralmente, o enunciador de A2 é
reça tanto quanto possível a uma interpretação, ou seja, a um valor assimilado ao locutor, e o de A1 a uma personagem diferente do

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locutor, que pode ser tanto o alocutário quanto um terceiro. O locutor tria, assinalarei somente as condições de emprego da expressão ao con-
L que assume a responsabilidade do enunciado "Pedro não é gentil" trário. Depois de um enunciado negativo "Pedro não é gentil", pode-
coloca em cena um enunciador E1 que sustenta que Pedro é gentil, se encadear "ao contrário, ele é insuportável". A que o segundo enun-
e um outro, Ez, ao qual L é habitualmente assimilado, que se opõe a E1. ciado é "contrário"?. Não ao primeiro tomado na sua totalidade, mas
Esta tese de Les Mots du Discours, sou obrigado a retomá-la ao ponto de vista positivo que este, segundo penso, nega e veicula ao
agora, em outros termos, já que não posso mais atribuir aos enuncia- mesmo tempo. Ora; esta possibilidade de encadeamento é excluída se
o primeiro enunciado é positivo. Não se terá nunca "Pedro é gentil.
dores um ato ilocutório como a afirmação - não estando .o s enuncia-
Ao contrário, ele é adorável". Muito bem, dizendo "Pedro é gentil" ,
dores ligados a nenhuma fala. Torna-se necessário, então, compreen-
deixo entender geralmente que alguém acreditou ou declarou que ele
der A1 e Az, não como atos, mas como pontos de vista opostos. No
não o era, mas não posso fazer alusão à atitude deste enunciador
entanto, o essencial da descrição permanece. Sustento, pois, que a
virtual, para opor-me a ele através de ao contrário. Do que se pode
maior parte dos enunciados negativos (explicarei mais à frente porque concluir que tal enunciador tem uma presença e um estatuto diferente
digo somente "a maior parte") faz aparecer sua enunciação como o no enunciado positivo e no enunciado negativo. E minha teoria da
choque de duas atitudes antagônicas, uma, positiva, imputada a um negação dá conta desta diferença colocado que, no segundo caso, o
enunciador E1, a outra, que é uma recusa da primeira, imputada a Ez. lugar deste enunciador já está marcado na frase - cuja significação
impõe que seja personalizado, mesmo de forma vaga - no momento
Mesmo supondo admitido o que acabo de dizer na negação, não
em que se interpreta o enunciado.
resulta ainda que a língua conhece a distinção do locutor e do enun-
ciador, e que esta distinção deva ser introduzida na significação das A esta análise, retomada de trabalhos anteriores, gostaria de
frases negativas. Isto, pois, pode-se me objetar que descrevi somente acrescentar algumas observações. Primeiro precisar em que se trans-
um efeito da negação na fala, perceptível certamente no sentido dos forma, no quadro da concepção polifônica, minha antiga distinção
enunciados negativos, mas que não deve nada a sua estrutura lingüís- entre negação polifônica e negação descritiva (Cf. Ducrot, 1972, p. 38,
tica. Este efeito se deve, acrescentar-se-á, a uma lei de discurso geral, Moeschler, 1982, Cap. 1). Chamava "descritiva" a negação que serve
segundo a qual, toda vez que se diz algo, imagina-se alguém que para representar um estado de coisas, sem que seu autor apresente sua
pensaria o contrário e ao qual se se opõe. Lei que se aplica muito fala como se opondo a um discurso contrário. (Exemplo: N pergun-
bem aos enunciados positivos: dizendo-lhe "Pedro é gentil", suponho tou a Z, que acabara de abrir as janelas, como estava o tempo, e Z
geralmente que têm alguma razão para não acreditar nisto, de modo responde "não há nenhuma nuvem no céu". Ou ainda, N, que não
que uma resposta indelicada habitual consiste, de sua parte, em me conhece Pedro, pergunta a Z o que pensa dele, e Z afirma "ele não
responder "Mas eu nunca disse o contrário" - o que parece mostrar é inteligente". Os dois enunciados poderiam ser parafraseados, sem
que meu enunciado apresentava um enunciador, diferente do locutor, perda de sentido, por enunciados positivos "o céu está absolutamente
e que supunha que Pedro não é gentil. Como não se pode, neste caso, limpo" e "Pedro é um imbecil"). E eu opunha a esta negação a nega-
apresentar no interior da frase uma marca qualquer deste enunciador, ção "polêmica", destinada a opor-se a uma opinião inversa - que
não há nenhuma razão, me dirão, .para supor que o morfema não, na seria o caso se os dois enunciados negativos precedentes replicassem
frase negativa, marca a presença de um enunciador distinto do lo- afirmações de N, "devia haver ainda algumas nuvens no céu " e
cutor: ele marca somente, como o signo de negação nas línguas lógi- "Creio que Pedro é inteligente".
cas, a inversão de uma proposição em sua contraditória.
Hoje distingo três tipos de negação. As duas primeiras corres-
.h necessário, pois, que eu mostre, para justificar minha tese, uma pondem a uma subdivisão da antiga "negação polêmica" .
dissimetria entre enunciados afirmativos e negativos, e faça ver que 1 . Chamo "metalingüística" uma negação que contradiz os pró-
uma afirmação é apresentada na negação de uma maneira mais fun- prios termos de uma fala efetiva à qual se opõe. Direi que o enun-
damental que a negação na afirmação. Entre os signos desta dissime- ciado negativo responsabiliza, então, um locutor que enunciou seu

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positivo correspondente. E esta negação_.. metalingüística" que permite, Minha segunda observação élirá respeito aos fenômenos de pola-
por exemplo, anular os pressupostos do positivo subjacente, como é o ridade negativa. Sabe-se que, em um grande número de línguas, cer-
caso em "Pedro não parou de fumar; de fato, ele nunca fumou na sua tas ~xpressões não podem ser inseridas em um enunciado afirmativo,
vida". Este "não parou de fumar", que não pressupõe fumava antes", mas somente em um enunciado morfológico, ou semanticamente ne-
só é possível como resposta a um locutor que acaba de dizer que gativo. Tal é o caso de fazer grande coisa, levantar um dedo para aju-
Pedro parou de fumar (e, de outro lado, exige que se explicite o ques-
dá-lo, e, em francês, pour autant, etc. Estes fatos parecem colocar em
tionamento do pressuposto anulado sob a forma, por exemplo, de um
xeque minha descrição da negação polêmica, .q ue leva a ler a afirma-
"ele nunca fumou na sua vida"). E igualmente neste quadro da refu-
ção sob a negação: a afirmação subjacente ao enunciado " Pedro não
tação de um locutor contrário que a negação pode ter em lugar de
seu efeito habitual "de abaixamento" um valor de elevação. Pode-se' fez grande coisa" não constitui de fato um enunciado português pos-
dizer "Pedro não é inteligente, ele é genial", mas somente, como res- sível. Vê-se imediatamente, no entanto, (tenho a presunção de supô-
posta a um locuto,; que tenha efetivamente qualificado Pedro de inte- lo) que a objeção não afeta nossa hipótese - na medida em que o
ligente. elemento positivo que considero subjacente ao enunciado negativo não
é um enunciado (isto é, uma seqüência de palavras), imputável a um
2 . Reservo agora o termo "polêmico" para a negação cuja aná-
locutor, mas uma atitude, uma posição tomada por um enunciador
lise relembrei há pouco, e digo que ela corresponde "a maior parte
dos enunciados negativos". Neste caso, o locutor de "Pedro não é .tendo em vista um certo conteúdo, quer dizer, uma entidade semân-
inteligente", assimilando-se ao enunciador E2 da recusa, opõe-se não tica abstrata. Quando falo de uma proposição subjacente a "Pedro
a um locutor, mas a um enunciador E1, que coloca em cena no seu não fez grande coisa", não se trata de uma proposição gramatical, ·
próprio discurso, e que pode não ser assimilado ao autor de nenhum mas de uma proposição no sentido lógico, ou seja, de um objeto de
discurso efetivo. A atitude positiva à qual o locutor se opõe é interna pensamento, da opinião segundo a qual Pedro teria muito o que fazer.
· ao discurso no qual é contestada. Esta negação "polêmica" tem sem- Uma vez refutada esta objeção, resta explicar o fato, bastante
pre um efeito rebaixador e mantém os pressupostos.
bizarro, e de qualquer modo fortemente contrário aos princípios de
3. Como terceira forma de negação, retomo minha antiga idéia uma economia saudável, que certas expressões são utilizadas somente
de negação descritiva, conservando, aliás, seu nome. Acrescentando, em um contexto negativo. Mas é necessário ver, que a fórmula "ser
simplesmente, que a considero como um derivado delocutivo da ne- utilizada em um contexto negativo" pode recobrir duas "idéias, bas-
gação polêmica. Se posso descrever Pedro dizendo "ele não é inteli- tante diferentes. A primeira que assimila a polaridade negativa às
gente", é porque lhe atribuo a propriedade que justificaria a posição diversas "dependências" fonéticas ou sintáticas que impedem tal som
do locutor no diálogo cristalizado subjacente à negação polêmica: ou tal morfema de "combinar-se" a tal outro som ou morfema . Em
dizer de alguém que ele não é inteligente, é atribuir-lhe a (pseudo) termos de gramática gerativa, poderia falar de um "traço contex-
propriedade que legitimaria opor-se a um enunciado que tivesse afir- tuai" [-Aff.] que pertenceria, por exemplo, às expressões grande
mado que ele é inteligente. A delocutixidade tem, neste caso, o mesmo coisa, em português, ou pour autant, em francês, e que interditaria
s.ua inserção em um contexto afirmativo. Compare-se, a este respeito,
efeito que no exemplo analisado em Anscombre (1979): dizer que
pour tant e pour autant. A ambos seriam atribuídos os mesmos "tra-
Pedro é um matuvu é atribuir-lhe o (pseudo) traço de caráter que o
ços inerentes", e principalmente o mesmo valor semântico de oposição
leva a colocar eternamente a questões "M'as-tu vu?" (Na origem, tra- (o de cependant). A diferença seria simplesmente que o enunciado
ta-se mesmo, como Anscombre mostrou, de uma alusão a um gracejo modificado por pour antant deve ser negativo. De modo que "Pierre
bem preciso, feito contra certos atores acusados de pergt.intarem, é grand" pode ser seguido por "Mais il n'est pas fort pourtant", por
constantemente "M'as tu vu dans Le Cid?", "M'as-tu vu dans Don "Mais ii n 'est pas fort pour autant", por "Mais il est faible pourtant",
Juan?", etc). e não por "Mais il est faible pour antant" .

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Há, todavia, uma segunda solução - que não quero justificar usager". O redator, ao redigir o último enunciado, pensava, sem dú-
aqui por ela mesma, e da qual mostrarei somente que ela é facilmente vida, em opor-se a um enunciador que do primeiro teria concluído
formulada na teoria polifônica da negação. Ela consiste em dizer que pela irresponsabilidade dos usuários.
pour p.utant tem o mesmo valor semântico que de ce fa.it, pour cette
raison, ou ainda (se se quer levar em consideração a noção de grau Se minha análise das expressões de pplaridade negativa é aceita,
ligada a autant) cela suffit a faire conclure. Pour autant aparece assim se é levado a ver nela a manifestação, e uma espécie de cristalização
como um conectivo de consecução (e não mais de oposição), mas a gramatical, de uma tendência bastante geral que atribui como funcão
conclusão que introduz é a de um enunciador ao qual o locutor se a certas expressões marcar um ponto de vista do qual se assinala,· ao
opõe: sua polaridade negativa não consiste em uma restrição combi- mesmo tempo que não é o do locutor. Esta tendência não se observa
natória que imporia associar-lhe somente um enunciado negativo; ela somente nos enunciados negativos. Ela opera igualmente na ironia,
diz respeito à colocação em cena pelo locutor de um enunciador Et que pode também ela, recorrer a construções específicas. O que não
de que o locutor se distancia, e que completa um movimento conclu- é aliás de espantar, já que apresentei para a negação e a ironia des-
sivo recusado pelo enunciador E2 ao qual o locutor se assimila. Gene- crições bastante próximas. Sua diferença principal é que, na ironia, a
ralizando esta idéia, proporei considerar as expressões de polaridade recusa do enunciador absurdo é diretamente executada pelo locutor
negativa como as marcas de um ponto de vista rejeitado, ponto de (e ligada a sua entonação a suas caretas, ao fato de que chama a
vista que o locutor declara inadmissível no próprio momento em que atenção para os elementos da situação que exigem imediatamente o
coloca em cena o enunciador que o sustenta. ponto de vista apresentado, etc), enquanto que na negação, a recusa
se dá através de um outro enunciador colocado em cena pelo locutor
N.B. 1.- Objetar-me-ão que o enunciado A, mais non- B pour
e ao qual este, na maioria dos casos, se assimila. Ora, há que se res-
autant não refuta somente o movimento dedutivo que leva de A a B,
saltar que, na ironia, a escolha de certas palavras (escolha, relembro,
mas sugere fortemente a falsidade de B - ainda que os fatos não
imputada ao locutor) tem como valor quase convencional marcar a
sejam totalmente nítidos. Minha resposta é que o uso ordinário da
repugnância do locutor pelo ponto de vista de um enunciador que
língua - e esta é uma das características da argumentação na lingua-
., ele apresenta - e que apresenta sem opor-lhe um ponto de vista con-
gem - não distingue bem "negar a coisa concluída" e "negar o mo-
corrente. E. o caso de expressões francesas, como C'est du propre!,
vimento de conclusão": em todo caso, um procedimento argumenta-
C'est du folí! {analisadas em Ducrot e outros, 1980, p. 120); fazendo
tivo muito utilizado, quando se trata de invalidar um movimento aparecer um enunciador que aprectana de modo favorável o estado
conclusivo, consiste em mostrar a falsidade da proposição concluída. de coisas do qual se fala, estas expressões marcam que o locutor tem
N.B. 2. - Se pour autant exige combinar-se com um morfema a opinião inversa. Poder-se-ia falar a seu respeito de "polaridades
irônicas".
negativo ou uma expressão de valor grosseiramente negativo, não é,
já o disse, em virtude de uma restrição sintática, mas porque este De modo mais geral ainda, observa-se que a maior parte das co-
morfema ou esta expressão implicam a apresentação e a refutação letividades ideológicas possuem expressões que não podem ser apli-
de um enunciador que adota a.,atitude positiva. Esta análise deixa cadas a um certo tipo de objeto sem que esta aplicação seja denun-
prever que se encontrará pour autant quando a presença deste enun- ciada ao mesmo tempo como absurda. Encontrei assim, em um artigo
ciador, sem pertencer ao próprio sentido do enunciado, tal como re- do Le Monde, este resumo de um discurso do presidente Carter:
sulta das instruções ligadas à significação da frase, é simplesmente "Pour Carter, la démocratie est une panacée". A própria escolha da
considerada pelo locutor no mome~to em que fala. E. o que aparece, p~lavra panacée faz surgir o desacordo do jornalista com o ponto de
por exemplo, neste trecho de um artigo de Le Monde: "La R.A.T.P. vtsta relatado (o de Carter). Isto porque, no mesmo contexto ideoló-
demande un renforcement desmesures de sécurité dans le métro. Pour gico, se deveria considerar como quase analítico o enunciado negativo
"La démocratie n'est pas une panacée", já que o enunciado positivo
autant une action efficace releve aussi de la resppnsabilité de chaque
correspondente "La démocratie est une panacée", já é dado como
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evidentemente inadmissível: a negação tem duplo emprego com a uti- mesma função, vendo-se o sistema de lugares comuns que nos servem
lização da palavra panacéia. Na terminologia apresentada neste artigo, habitualmente de referência, que "você é infantil!").
é necessário dizer que o locutor, empregando esta palavra, já marca
que se opõe. ao enunciador ao qual atribui uma crença na virtude uni- Minha terceira e última observação visa somente a tornar evi-
versal da democracia: redundante, a negação é impossível de ser dente uma alternativa teórica colocada pelo que precede, sem que eu
tenha os meios de resolvê-la. O problema aparece quando se considera
refutada.
um enunciado ao mesmo tempo irônico e negativo. Z considerou que
Gostaria, enfim, de assinalar que este mesmo fenômeno de pola- poderia terminar seu artigo a tempo, Z, ao apresentá-lo a N, comenta
ridade ideológica de que falei a propósito de enunciados _declarativos ironicamente:· "Você vê, não terminei o artigo a tempo". Há pelo me-
negativos é reencontrado em certos empregos dos imperativos nega- nos duas soluções para analisar este último enunciado no quadro da
tivos. Para mostrá-lo, devo primeiro estender aos segundos a des- teoria polifônica apresentad~ aqui. A primeira seria analisá-lo como
crição que propus para os primeiros - limitando-me, aliás, aos casos . qualquer enunciado negativo dizendo que seu locutor coloca em cena
em q'ue o imperativo negativo solicita ao interlocutor que não realize dois enunciadores, E1 e Ez. Et, assimilado à personagem do locutor
uma ação que ele pretende fazer ou já começou a fazer. O enunciado na sua primeira conversa com N, prevê a conclusão do artigo no pra-
traz, então, à cena, segundo penso, pelo menos dois enunciadores. O zo. Ez, assimilado a N nesta mesma conversa, coloca em dúvida esta
primeiro, E1, descreve a ação que está questão, e que é o tema do certeza, dúvida que torna absurda a situação da segunda conversa.
enunciado (apresentado, às vezes, além disso, como legítima ou em A ironia global do enunciado se deveria, então, a que L não se assi-
todo caso motivada, Cf. Ducrot e outros, 1980, p. 128). Quando Z mila a nenhum dos enunciadores, ou seja, na minha terminologia, a
diz a N "Não me abandone!", E1 representa, seja como um possível que nenhum deles é atualizado (sublinho com efeito que a persona-
pretendido, seja como o já iniciado, a partida de N; a situação evoca- gem a que E1 é assimilado é um protagonista da primeira conversa:
da por E1 sendo aquela que constatariam ou anunciariam os enuncia- não é, portanto, L responsável pela enunciação que surgiu na segun-
dos declarativos positivos você me abandonará ou você me abandona da conversa, mas A, o ser histórico do qual L é somente o último
correspondendo ao imperativo negativo não me abandone!. Quanto a avatar). L, produtor de um diálogo que retoma em eco uma conversa
E 2 , ao qual o locutor tem a inabilidade de assimilar-se, ele solicita a anterior, não está investido, pois, em nenhuma destas personagens que
anulação da partida evocada por E1 (encontrar-se-á uma análise do faz falar, o que corresponde bem a minha definição de ironia.
mesmo tipo para os enunciados interrogativos em Anscombre-Ducrot,
Um ponto, ao menos, nesta análise, deixa-me insatisfeito. O
1981, p. 17).
enunciador ridículo Ez seria assimilado à personagem N da primeira
Ora, acontece freqüentemente que as palavras utilizadas para conversa, àquela que, num momento, colocou em dúvida as certezas
impedir uma ação, ao mesmo tempo que descrevem esta ação, fazem- de Z. Ora, pode-se pensar que não é isto que é colocado em causa
na aparecer como inaceitável. Suponhamos, continuando a triste his- diretamente. Isto porque à posição ridícula é a que consistiria, na
tória de Z e de N, que N respondesse a Z: "Não seja criança!": o segundq conversa, ao momento, pois, em que Z entrega o artigo, para
comportamento que se censura em Z (não aceitar a separação) é, de
negar sua capacidade de terminá-lo: Ez é, então, assimilado ao N desta
saída, apresentado por N como infantil, quer dizer, em um certo nível
segunda conversa. Mas então o enunciador Et, ao qual Ez se opõe
de lugares comuns, como evidentemente ridículo e digno da reprova-
absurdamente, deveria ser também assimilado a um protagonista da
ção dos sábios . Falarei, pois, ainda, da polaridade negati~~-ideol~gi~~
e, por conseqüência, de um discurso redundante, analttlco ate, Ja segunda conversa, ou seja, a Z no momento em que apresenta o artigo.
que a própria maneira pela qual o locutor N formula a situação evo- Ora, para Z, no momento em que entrega o artigo, é difícil distan-
cada por E1 torna necessário que N se assimile ao enunciador Ez que ciar-se de L, o locutor do enunciado irônico - o que não está muito
a ele se opõe (o caráter redundante do imperativo negativo é clara- de acordo com minha definição da ironia, definição que excluí a assi-
mente visto, se se supõe que "não seja criança I" tem exatamente a milação de qualquer enunciador ao locutor enquanto tal.

208 209
Mesmo que esta dificuldade possa ser superada, parece-me inte- XVII. A distinção do locutor e do enunciador, que acabo de
ressante imaginar, para descrever o enunciado negativo irônico, uma utilizar para tratar da ironia e da negação, fornece, de um modo
solução bastante diferente. Em lugar de situar todos os enunciadores mais geral, um quadro para situar em lingüística o problema dos atos
no mesmo plano, nós os colocaríamos em dois níveis diferentes. No de linguagem. Retornemos à metáfora teatral do § ·13. Para dirigir-se
primeiro nível se situaria um enunciador Eo, enunciador ridículo assi- a seu público, o autor (que corresponde, nesta metáfora, ao locutor)
milado a N no momento da segunda conversa. E o absurdo de N con- coloca em cena as personagens (correspondentes aos enunciadores) .
sistirá, não mais somente em refutar uma asserção de Z relativa ao Fazendo isto, ele tem, como assinalei, duas maneiras diferentes de
término do artigo, mas a colocar em cena, em um segundo nível, dois "dizer alguma coisa". Primeiro pelo fato de assimilar-se, neste mo-
enunciadores E1 e E2, protagonistas de uma troca negativa completa. mento, a tal personagem de quem se faz porta-voz. Assim, no teatro
E1, assimilado a Z no momento da entrega do artigo, constataria que de Moliere, têm-se freqüentemente certas declarações de personagens
tinha sido concluído, e E2, ao qual Eo (é, portanto, indiretamente N) secundárias, apresentadas como sábias, por declarações do próprio
se assimilaria, recusaria esta afirmação. E1, nesta perspectiva, não autor que daria através delas seus próprio ponto de vista. Uma leitura
corre o risco de ser assimilado a L, pois ele próprio é uma construção tradicional do Misanthrope pretende, por exemplo, que seja Moliere
de Eo. Vê-se a diferença em relação à solução precedente. O ridículo que, por atrás de Philinte, declara:
atribuído a N não é mais o de negar uma evidência mas, o de imagi-
nar, no momento da entrega do artigo, uma troca completa na qual La parfaite raison fuit toute extrémité
um enunciador E2 teria como papel negar a evidência sustentada por Et veut que 1'on soit sage avec sobriété.
um enunciador razoável E1, de que Eo (assimilado a N) é também o
(Não me importa saber o que pretende esta leitura: o essencial
encenador. O que se reprova, então, em N, não é adotar diretamente
é que ela seja possível). De uma maneira arbitrária chamarei " primi-
( = enquanto E2) uma das posições, a recusa, implicadas pelo enun- tivas" estas falas que o autor dirige ao público assimilando-se a uma
ciado negativo, mas de desempenhar, enquanto Eo, as duas atitudes, personagem.
afirmação e recusa, para assumir, ainda Eo, o que justamente, na situa-
ção, é insustentável. Mas o autor pode dirigir-se ao público de uma maneira bastante
diferente - e, sem dúvida, teatralmente mais satifatória. Quando os
O problema teórico levantado por esta segunda solução é que ela contemporâneos de Moliere denunciavam Don Juan como uma peça
implica a possibilidade de subordinar enunciadores uns aos outros ímpia, o que eles reprovavam no autor não era ter feito Don Juan
(subordinação comparável ao encaixe que segundo Bal (1981), pode seu porta-voz, censura fácil de rejeitar na medida em que Moliere
reunir as diferentes focalizações de um texto). O que poderia compro-
cuidou de acentuar o aspecto inaceitável da personagem. A censura
meter, parcialmente, pelo menos, a oposição que estabeleci entre lo-
essencial era a de ter confiado a defesa da religião a Sganarelle, per-
cutor e enunciador: o enunciador se aproxima perigosamente do lo-
sonagem grotesca, e grotesca na medida exatamente em que a defende.
cutor se ele tem, como este último, o poder de colocar em cena enun-
ciadores. Mas por outro lado, ao se dar a liberdade de subordinar O que constitui a impiedade de Moliere é o fato de ter colocado em
sem fim enunciadores a enunciadores, dispensa-se de postular, na base cena Sganarelle e tê-lo feito dizer o que disse. Moliere fala ao público
do sentido, os "conteúdos", objetos das atitudes emprestadas aos enun- através de Sganarelle, mati não de maneira como lhe fala através de
ciadores, e que representariam diretamente a realidade. Os "conteú- Philinte: o instrumento de sua fala, aqui, é a existência dada a uma
dos" poderiam sempre ser considerados como os pontos de vista de personagem, e o ridículo da personagem faz parecer ridícula a tese
enunciadores de grau inferior. Vantagem importante se se quer che- que sustenta (de uma maneira simétrica, se poderia dizer, igualmente,
gar a dizer que as "coisas" de que parece falar o discurso são elas que Moliere ataca a religião pelo fato de que ele faz Don Juan atacá-
próprias a cristalização de um discurso sobre outras coisas, resolvíveis la, personagem sob muitos aspectos prestigioso, mesmo se seus aspec-
por seu turno em outros discursos. tos negativos aconselhassem não assimilá-lo ao autor). Chamarei

210 211
"derivadas" as falas desta segunda categoria, aquelas que o autor en- resse em saber se alguém é ou não capaz de fazer alguma coisa (neste
dereça, não mais pela mediação de suas personagens, mas pelo próprio caso, se o jornaleiro está ou não em condições de vender a Folha)
fato de representar S\laS personagens, pela escolha que faz delas. não tem sentido, em certas situações, senão se se quer pedir-lhe para
realizá-la neste caso, pedir-lhe o jornal)". Vê-se imediatamente que
Ora, vou mostrar que esta classificação, estabelecida a propó-
é difícil conciliar (1) e (2). Para obter, como pretende (2), uma deri-
sito da linguagem teatral, tem um análogo na linguagem cotidiana.
vação do pedido a partir da pergunta através de uma lei de discurso,
Quando se diz que um enunciado manifesta um ato, pode-se querer
é necessário admitir que a enunciação realizou efetivamente um ato
dizer duas coisas. Primeiro, pode tratar-se dos atos que uma persona-
de pergunta. Ora, é justamente isso que é negado em (1).
gem, identificada com o locutor, realiza pelo fato de que este locutor
é assimilado a tal, ou tal enunciador: tais atos serão chamados "pri- Distinguindo locutor e enunciador, abre-se o caminho para uma
mitivos" (como é "primitiva" a fala atribuída a Moliere pelo fato de solução, da qual indicarei somente as linhas gerais e mantendo-me no
que ele é assimilado a sua pesonagem Philinte). Em seguida chamarei caso particular que me serviu de exemplo. Direi que uma frase inter-
"derivado" de um ato realizado pela personagem identificada ao lo- rogativa dá, em virtude de sua significação, as duas instruções seguin-
cutor, se este ato está ligado ao fato de que o locutor, enquanto res- tes aos ouvintes que devem construir o sentido dos enunciados desta
ponsável pelo enunciado, escolheu colocar- em cena tal ou tal enun- frase:
ciador- mesmo se ele não for assimilado a nenhum deles (da mesma
maneira, etiquetei "derivada" a fala atribuída a Moliere pelo fato a) estes enunciados devem fazer aparecer um enunciador que
de colocar em cena Sganarelle e Don Juan - embora ele não seja exprime sua dúvida no que concerne à proposição sobre a
assimilado a eles). Terminarei este capítulo mostrando alguns exem- qual incide a interrogação;
plos em que se vê se superporem estes dois tipos de atos. b) quando este enunciador é assimilado ao locutor, a expr,essão
Começarei pelos atos chamados, a partir de Austin, "ilocutórios". da dúvida deve ser relida como uma pergunta, ou seja, a
Um dos grandes problemas que eles levantam se deve à possibilidade enunciação deve ser descrita como obrigando o alocutário a
de serem realizados de duas maneiras diferentes. Primeiro, de uma ma- responder.
11
neira dita primitiva" ou di reta", através de frases que são mais ou
11

A partir deste valor da frase, pode-se prever duas possibilidades


menos especializadas para sua realização (assim, far-se-á um pedido no que concerne aos atos ilocutórios ligados à enunciação. Haverá
pelo enunciado de uma frase imperativa, dizendo, por exemplo, a um tanto um ato "primitivo" de pergunta, quanto um ato "derivado" -
jornaleiro: Me dê a Folha! , . Por outro 1ad o, de manetra
11 . lldenva
. da ,
que pode ser, entre outros, um ato de pedido. Volto à frase "Você
ou indireta", com frases que parecem especializadas para atos dife-
11

tem a Folha?". Em virtude de (a), seus enunciados apresentam um


rentes (pode-se pedir a Folha ao jornaleiro pelo enunciado de uma enunciador que expressa sua dúvida quanto ao jornaleiro ter exem-
frase interrogativa como "Você tem a Folha?") . plares da Folha. Se este enunciador pode ser assimilado ao locutor,
A segunda possibilidade, é, do ponto de vista teórico, mais em- ou seja, se se pode atribuir a ele, enquanto escolheu o enunciado, a
baraçosa. Com efeito, (1) parece, freqüentemente, artificial dizer que intenção de expressar a dúvida, então o enunciado deve ser, em vir-
o locutor realizou efetivamente o ato, para o qual a frase é especiali- tude de (b), visto como uma pergunta (realizada de maneira "primi-
'zada (ato do qual às vezes se diz que a frase é "marcada" para ele); tiva", "di reta"). Este seria claramente o caso se o enunciado apa-
seria. artificial, no meu exemplo, dizer que o comprador fez uma per- recesse numa pesquisa sobre a distribuição da imprensa. Suponhamos
gunta ao jornaleiro. Mas, ~o mesmo tempo, (2) pretende-se geral- em compensação que não se possa atribuir ao locutor a intenção àe
mente derivar o ato efetivamente realizado (neste caso o pedido) a que falei (é o caso se a frase é pronunciada por um eventual cliente),
partir do ato "marcado" na frase (neste caso, a pergunta) através de e, pois, que não se possa assimilá-lo ao enunciador. A frase, então, não
~a lei ·d e discurso como "o fato de realizar um ato de pergunta obriga mais a compreender o enunciado como uma pergunta. Mas
mostra que se .tem interesse em saber a resposta. Ora, mostrar inte- isto não impede de fazê-lo servir para um outro ato ilocutório. Isto

212 213
porque o próprio fato de colocar em cena um enunciador, expressan- tando, o propósito do teckel, uma posição absurda. E esta apresenta-
do sua incerteza, pode aparecer em virtude de uma lei de discurso, ção que permite ao freguês, locutor da réplica, realizar um ato deri-
como servindo para fazer uma pergunta. O locutor "representa" a vado de zombaria, do qual se beneficia enquanto locutor: ele se apre-
dúvida - no sentido em que Moliere, por intermédio de Sganarelle senta como inteligente, desprendido, agradável, divertido, etc. O enun-
"representa" um certo modo de defender a religião - e por esta re- ciado irônico (diferentemente do enunciado negativo), na medida em
presentação revela uma outra intenção. que não niostra nenhum enunciador ao qual_ o locutor possa ser assi-
milado, não serve para realizar nenhum ato primitivo - particulari-
Vê-se a diferença entre esta concepção e a concepção habitual,
dade que deveria ser introduzida na definição geral da ironia.
segundo a qual a lei de discurso transforma um ato "primitivo" do
locutor, em um outro ato de locutor, dito, então "derivado" - o Segundo exemplo, o da conjunção mas. Desde muito J. C. Ans-
que supõe, contra a evidência, que o ato "primitivo" é efetivamente combre e eu descrevemos os enunciados do tipo "p mas q dizendo
realizado pelo locutor. Na minha concepção atual, a lei de discurso que o primeiro segmento (p) é apresentado como um argumento para
deriva o ato indireto atribuído ao locutor a partir da colocação em uma certa conclusão (r), e o segundo para a conclusão inversa. Mas
cena, pelo próprio locutor, de um enunciador do qual se distancia; este quadro geral, que mantemos, admite um grande número de casos
ora, esta colocação em cena, ligada à frase, permanece um fato incon- particulares bastante diferentes. Isto principalmente nos casos em que
testável, mesmo se o locutor não é assimilado ao enunciador. pé introduzido por um certamente. Vocês me propõem irmos esquiar,
e eu recuso seu convite respondendo "certamente o tempo está bom,
N.B.- No Cap. IV, que retoma um artigo antigo em que utilizo
mas estou com um problema nos pés". O emprego de certamente me
a concepção habitual dos atos indiretos, diz-se que a frase interroga-
serve aqui para atribuir a vocês, uma argumentação do tipo "O tem-
tiva não serve fundamentalmente para a expressão de uma incerteza,
po está bom, devemos ir esquiar", argumentação que vocês podem
mas é marcada para a realização de um ato ilocutório primitivo de
não ter formulado explicitamente, mas eu lhes credito ao mesmo tem-
pergunta. Certamente sou levado agora a abandonar esta maneira de
po em que a rejeito através do contra-argumento "estou com proble-
ver - já que (a) situo a expressão de uma incerteza na própria signi-
ma nos pés". Anscombre e eu descrevemos os enunciados deste tipo
ficação da frase, e que (b) subordino o ato primitivo de pergunta à
.dizendo que eles colocam em cena -dois enunciadores sucessivos, Et
assimilação do locutor e do enunciador. Mas esta mudança não afeta
e Ez, que argumentam em sentidos opostos, o locutor se assimilando a
o argumento que tiro, neste Cap. IV, dos atos ilocutórios. Permanece
E2, e assimilando seu alocutório a E1. Embora o locutor se declare
que a significação da frase interrogativa, de um lado, não comporta a de acordo com o fato alegado por Et, ele se distancia, no entanto, de
asserção de uma incerteza, e, de outro, faz mais que expressar tal
E1: ele reconhece que faz bom tempo, mas não o afirma por sua
incerteza: é-lhe inerente prever uma possível descrição da enunciação própria conta. Ora, tal distinção é imposta pela significação da frase,
como criando uma obrigação de resposta - no caso em -que o locutor e, mais precisamente, pelo emprego de certamente, impossível se o
e o enunciador são assimilados. Permanece-se, pois, no "estruturalis- locutor se assimila ao enunciador asseverando p. Eu peço a vocês
mo do discurso ideal": o valor semântico de uma entidade lingüística para me descreverem seus esquis, que não conheço. Vocês poderão
..
é sempre definido em relação à continuidade que se pretende dar. me responder "Eles são compridos, mas leves", ainda que fosse . bi-
zarro, na mesma situação, anunciar-me: "eles ~ão certamente compri-
XVIII . A distinção dos atas primitivos (realizados pela assimi-
dos, mas leves". E que certamente marcaria, de sua parte, um acordo
lação do locutor e do enunciador) e dos atos derivados (que o locutor
tardio com a asserção de outra pessoa, atitude que não corresponde
realiza por colocar em cena enunciadores expressando sua própria ati- bem ao que peço a vocês, a saber, fazer uma descrição. Aqui ainda é,
tude) extrapola o domínio do que se chama habitualmente "ilocutó- pois, útil, para descrever a frase, quer dizer, a entidade lingüística,
rio". Retomo primeiro o exemplo da ironia de que me servi há pouco. supor que ela distingue entre o locutor e o enunciador, e comporta,
O freguês, na réplica, apresenta o gerente do restaurante (no sentido entre suas instruções, diretivas para determinar, no momento em que
em que Moliere apresenta Sganarelle defendendo a religião) susten- se interpreta o enunciado, a quem se deve atribuir estes papéis.

214 215
A partir desta distinção, aparece uma distinção como corolário, Assim, no nível dos enunciadores, não há, pois, o ato de pressupo-
que concerne aos atos realizados: Disse que o enunciado complexo sição. Mas o enunciado se presta, entretanto, para realizar este ato,
"certamente o tempo está bom, mas estou com problemas nos pés", de um modo derivado, na medida em que faz ouvir uma voz coletiva
cuja responsabilidade global é atribuída ao locutor X, coloca em cena denunciando os erros passados de Pedro. A pressuposição entraria,
dois enunciadores. O primeiro argumento a favor de esquiar, dizendo assim, na mesma categoria dos atos de zombaria e concessão.
que faz bom tempo. Mas o locutor se assimila a um segundo enuncia-
dor, ao que argumenta contra a saída planejada, ainda que o primei- Espero ter mostrado, a partir destes três exemplos, o que a ana-
ro seja assimilado a outra pessoa, talvez, por exemplo, ao alocutário. logia, ou a metáfora teatral pode fornecer ao estudo estritamente lin-
Isto não impede que se realize um ato de linguagem tanto na primeira güístico. Dizendo que o locutor faz de sua enunciação uma espécie
parte do enunciado quanto na segunda. Na segunda, realiza-se um ato de representação, em que a fala é dada a diferentes personagens, os
"primitivo", ato de afirmação, e, mais particularmente, de afirmação enunciadores, alarga-se a noção de ato de linguagem. Não há mais
argumentativa. O que se faz, na primeira, é um ato derivado, que nenhuma razão para privilegiar aqueles que são realizados de maneira
chamo "ato de concessão": ele consiste em fazer ouvir um enunciador "séria" (pela assimilação do locutor a um enunciador), e se pode
argumentando no sentido oposto ao seu, enunciador do qual se dis- considerar como igualmente "normais" aqueles que são realizados pela
tancia (dando-lhe, no caso, pelo menos das concessões introduzidas própria escolha dos enunciadores, aqueles que são realizados enquanto
por certamente, uma certa forma de acordo). Deste ato tira-se proveito encenadores da representação enunciativa. Nem num caso nem no
do mesmo modo que do ato de zombaria de que acabo de falar. Gra- outro se fala de modo imediato, mas sempre com a mediação dos
ças a sua concessão, é possível construir-se a personagem de um ho- enunciadores.
mem de espírito aberto, capaz de levar em consideração o ponto de N.B. 1. - Este tratamento da pressuposição permite precisar o
vista dos outros: todo mundo sabe que a concessão é, entre as estra- estatuto pragmático das nominalizações: que engajamento pessoal está
tégias de persuasão, uma das mais eficazes, essencial em todo caso, implicado pela utilização, como sujeito gramatical de um enunciado,
ao comportamento dito "liberal". ·· de um grupo nominal do tipo "a degradação. da situação" ou "a me-
lhoria do nível de vida". Antes, dispondo só dos conceitos de afir-
Meu último exemplo é relativo aos fenômenos de pressuposição mação e de pressuposição, teria respondido que se pressupõe que a
que podem ser tratados melhor, espero, do que tenho feito até aqui, situação se degrada ou que o nível de vida melhora. Resposta que
no quadro da polifonia e da concepção "teatral" dos !'ltos, de lingua- levanta dificuldades porque se pode continuar o discurso negando a
gem. Seja o mais tradicional dos enunciados com pressupostos: "Pedro realidade destes fatos : assim, "A melhoria do nível de vida é uma
parou de fumar". Em Dire et. ne pas Dire, propunha .ver neste caso a pura invenção do governo". Diria agora que o característico da no-
realização pelo locutor de dois atos, um de pressuposição, relativo ao minalização é. fazer aparecer um enunciador, ao qual o locutor não
pressuposto "Pedro fumava anteriormente", e outro de asserção, rela- está assimilado, mas que é assimilado a uma voz coletiva, a um SE.
tivo ao posto "Pedro não fuma atualmente". Eu o descreverei hoje Quando à inclusão do locutor neste SE, o fenômeno sintático da no-
de um modo um pouco diferente. Diria que ele apresenta dois enun- minalização não diz nada a respeito, nem positiva nem negativamente.
ciadores, E1 e E2, responsávf(j.s, respectivamente, pelos conteúdos, pres- Se, por tal ou tal razão exterior à frase, fica claro que o locutor faz
suposto e posto. O enunciador E2 é assimilado ao locutor, o que per- parte do SE, obter-se-á um ato derivado de pressuposição, mas isto
mite realizar um ato de afirmação. Quanto ao enunciador E1, aquele não é senão uma possibilidade entre outras.
segundo o qual Pedro fumava anteriormente, ele é assimilado a um
certo SE *, a uma voz coletiva, no interior da qual o locutor está loca- N.B. 2. - Destas observações sobre o ato de pressupor resulta,
lizado (utilizo neste ponto as idéias de Berrendonner, 1981, Cap. II). ainda, quanto é necessário distinguir - como propus na secção XII
- entre o locutor enquanto tal (L) e o locutor enquanto ser do mun-
* Traduzimos aqui o ON francês. Este SE, então, é relativo à forma de inde- do (À). Acabo de dizer, com efeito, que quando há pressuposição,
terminação. assimila-se um dos enunciadores a um SE, no interior do qual o

216 217
locutor está localizado. Objetar-me-ão que a pressupos1çao torna-se,
11
nesta concepção, um caso particular das afirmações que chamei pri-
mitivas", quer dizer, daquelas que são realizadas pela assimilação do
locutor e de um enunciador. Para responder, é necessário especificar
que o locutor integrado ao SE não é L, o locutor enquanto tal, mas >..,
ou seja, um ser considerado existente fora do discurso (mesmo se for
BIBLIOGRAFIA
identificável somente por seu papel de L no interior do discurso). O
que significa que o conteúdo pressuposto não é mais levado em conta ANSCOMBRE, J. C.- "11 était une fois une princesse aussi belle que
na escolha do enunciado (escolha imputada a L). bonne", Semantikos, n.0 1, pp. 1-28, 1975.
11

Explico, assim, que dizendo ~~Pedro parou de fumar", não se -----. La problématique de l'illocutoire dérivé", Langage et
apresenta como afirmando, na sua fala atual, que Pedro fumou antes. Société, 2, pp. 17-41, 1977.
11
Simplesmente representa-se esta crença no interior de seu discurso, -----. La délocutivité générali:sée", Recherches linguistiques,
e se lhe dá como sujeito, entre outras pessoas, o indivíduo que estava Université de Paris VIII, 8, pp. 5-43, 1979.
e está ainda fora de sua enunciação. Do que resulta esta característica -----.
11
Voulez-vouz dériver avec moi?", Communications, 32,
da pressuposição: Assumindo a responsabilidade de um conteúdo, não pp. 61 -124, 1980.
se assume a responsabilidade da asserção deste conteúdo, não se faz ---~-. & DUCROT, O.- L'argumentation dans la langue" ,
11

desta asserção o fim pretendido de sua própria fala, (o que implica Langages, 42, pp. 5-27, 1976. Reeditado em Anscombre-Ducrot,
a impossibilidade, definidora, para mim, da pressuposição, de enca- 1983.
dear com os pressupostos). 11
-----. & . Echelles implicatives, échelles argu-
{Tradução: Eduardo Guimarães) mentatives et lois de discours" , Semantikos, n.0 2 e 3, pp. 30-43,
1978. Reeditado em Anscombre-Ducrot, 1983.
11
-----. & . Lois logiques et lois argumentatives ",
Le Français moderne, pp. 347-357, 1978, pp. 35-52, 1979. Reedi-
tado em Anscombre-Ducrot, 1983.
11
- - - - -. & . lnterrogation et argumentation", Lan-
gages, 52, pp . 5-22. Reeditado em Anscombre-Ducrot, 1983 .
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