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5 A sexualidade £ COMUM OUVIR QUE A PSICANALISE EXPLICA A VIDA Psiquica, em todas as suas manifestacdes, das mais simples até as mais complicadas, pela sexualidade. “Tudo é sexual!” seria seu axioma. A leitura de Freud, por menor que seja, afasta-se desse cliché pansexua- lista no qual um Carl Gustav Jung, seu antigo disct- pulo, se comprazia com seus arquétipos sexuais ime- moriais. Primeiramente, a sexualidade freudiana nao se reduz as praticas sexuais observaveis, aqui- lo que se realiza no encontro de corpos na cama. Ela jamais se apresenta em seu estado bruto, isolavel em laboratério, mas é inseparavel de uma ficcdo, de uma “teoria sexual” — expressao freudiana que designa as teorias que as crian¢as constroem para explicarem os enigmas da concepgao, do nascimento e da diferen- ga dos sexos. Além disso, 0 sexual se distingue do genital. Freud destruiu a crenca em uma sexualidade unificada sob a primazia da genitalidade e que visa reprodu¢ao que a expressdo “instinto sexual” credita ao mundo animal. A definicdo freudiana é mais am- pla: “Em psicandlise, o termo sexualidade comporta um sentido bem mais amplo, ele se afasta totalmen- te do sentido popular. [...] Nés consideramos como pertencentes ao dominio da sexualidade todas as ma- nifestagdes de sentimentos afetuosos decorrentes da 37 fonte das emogoes sexuais primitivas. [...] Servimo- nos da palavra sexualidade atribuindo-lhe o sentido ampliado da palavra alema lieben (‘amar’) [...],” escre- ve Freud, em 1910. Acrescenta, em 1920: “[...] que nos seja permitido lembrar a todos aqueles que, de sua altura, lancam um olhar de desprezo sobre a psicana- lise, o quanto a sexualidade alargada pela psicanalise se aproxima do Eros do divino Platao [...]”” Da mesma maneira, ele corrigira um erro que lhe atribuimos 38 muito frequentemente: se o sonho é a realizacao de um desejo, é erréneo acrescentar que esse desejo tem sempre um contetido sexual ou que ele remonta ex- clusivamente as pulsdes sexuais. Em suma, nem tudo é sexual e se resume ao genital. Por serem sujeitos falantes, para homens e mu- Iheres, a sexualidade apresenta dificuldades. Nao é 0 encontro acabado entre o fio e a agulha. A relacao problematica com a sexualidade nao é uma eventu- alidade para os homens e as mulheres. E um dado do qual ninguém escapa. A pedra fundamental da descoberta da psicandlise se aloja neste ponto: a sexu- alidade nao é jamais o que é. Existe uma subjetivacio problematica do sexo anatémico para os seres falantes que nds somos. A ideia de uma sexualidade natural, como se observa nos animais, com seu ritmo, seus pe- riodos, sua sistematizaco, sua fixacao instintiva re- petitiva, é um mito — frequentemente uma pastoral em que cada um saberia como fazer com seu corpo sexuado e com o do(a) parceiro(a). Esse mito fascina. Em uma carta a Ernest Jones, Freud anota: “Qualquer um que prometa 4 humanidade liberd-la das provas do sexo sera acolhido como heréi, deixemos que ele fale — qualquer que seja a besteira que ele despeje”. O sexual freudiano é psiquicamente traumdtico e é sob essa forma que prioritariamente ele se encontra. Por traumatica é necessdrio entender uma experién- cia vivida e que provoca uma excita¢ao tao forte que nenhuma elaboracao pode tratd-la e, assim, perturba 33 duradouramente a gestao da energia psiquica. Para os principios de prazer e de constancia que condicionam 0 equilibrio psiquico, o trauma é inassimilavel. Deve- se atribuir, entio, a psicandlise um pessimismo radical sobre o sexo — uma nova maneira de declinar a mal- dicdo que se abate sobre ele? De forma alguma. Para abordar o sexual, Freud inventa o conceito de pulsao (Trieb) e acrescenta o de libido, definida como forca (ou energia) pela qual a pulsdo se manifesta na vida psiquica. Com esses conceitos, a sexualidade hu- mana é pensada como jamais havia sido anteriormente: 40 ela nado é mais una e nao nasce com a puberdade no momento da maturagao dos érgaos genitais mascu- linos e femininos. A referéncia 4 unica sexualidade normal (= a uniao das partes genitais no acasalamen- to heterossexual) nao explica nada. O critério nor- mal/anormal nao é pertinente para a pulsio. Com Freud, a sexualidade se encontra desnaturalizada. Ela é humana e, portanto, problematica, por se con- frontar com o inassimilavel. Uma prova disso sao as “aberragées sexuais” (desvios em relacdo ao objeto ou ao objetivo sexuais), que constituem as perver- s6es, tal como Freud as nomeia nos Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905-1925) — elas nao sao praticas animais ou monstruosas. Ao contrario, sio plenamente humanas, e a linguagem moral (religio- sa, ideoldgica, juridica) que as coloca fora das normas quer crer em uma natureza humana legitimada por uma transcendéncia presente em toda eternidade. Freud insiste nisso (e suas formulagées, hoje, sao ainda radicais): “Por motivos estéticos, gostarfamos de poder imputar essa aberragao, assim como outras graves aber- rag6es da pulsao sexual, aos doentes mentais”; “mas isso nao é possivel. A experiéncia mostra que os disturbios da pulsao sexual observados nestes ultimos nao sao diferentes daqueles dos saudaveis, qualquer que seja sua raga ou sua condicao.” As neuroses integram as perversées: “Nenhum ser saudavel deixa provavelmente de adicionar a fi- nalidade sexual normal um suplemento qualquer, 41 que podemos qualificar de perverso, e esse traco geral basta, por ele mesmo, para denunciar 0 absurdo de um emprego reprovador do termo perversio.” Freud nao diz que perversio e neurose (os “que se portam bem”) sao equivalentes. Ele afirma que a pulsdo sexual, enquanto tal, nao esta submetida ao critério normal/anormal e que a distincéo neurose/ perversao é um efeito da luta entre a pulsdo sexual e algumas resisténcias psiquicas — “E permitido supor que essas forcas participem da relegacao da pulsdo aos limites estimados como normais [...]”. A referéncia constante as perversées nos Trés ensaios... é crucial para definir a sexualidade humana. Sem elas, a sexu- alidade dita normal é incompreensivel, exceto quando é imaginada como submetida a procriagao — “Veri- fica-se sem esforgos que a sexualidade normal emer- ge de algo que existiu antes dela [...]”. As perversées, dissociando o objeto e a finalidade e recompondo-os de miltiplas maneiras (as inversdes, as pedofilias, as transgressGes anatémicas, os fetiches, as fixagdes com finalidades sexuais preliminares, etc.), isolam os com- ponentes de toda sexualidade humana. Ha “conex4o’, diz Freud, entre as perversées e a sexualidade normal! Como os conceitos de pulsao e de libido desvirtuam a sexualidade pensada como finalidade, visando a repro- ducao? Por que, para a psicanilise, nao existe uma sin- tese sexual — uma pulsao total? A pulsao sexual nao é um bloco incindivel e nao é proveniente nem do arcaico nem do primordial. Ela ¢ uma montagem, uma bricola- gem, um conjunto de diversos elementos heterogéneos 42 — tal como um circuito, uma aparelhagem. Jacques La- can vai compard-la a uma “colagem surrealista’, sem pé e sem cabe¢a. Imaginemos um dinamo ligado a uma tomada de gas ativando uma pluma de pavao que faz cécegas no ventre de uma mulher. O mecanismo, sob a pressdo do movimento, se transforma: a boca da dama torna-se uma tomada de gas e um sobre de ave aparece. Bela comparacao que tira a pulsao de uma imagem de Epinal, na qual tudo é¢ liso, habitual e pré-formatado. Efetivamente, Freud isola os elementos da pulsao: 1) A presséo, que é 0 fator motor — “um pedaco da ati- vidade”; 2) A meta, que é sempre a satisfacao, levando ao apaziguamento da excita¢ado; 3) O objeto, que é em que ou por onde a pulsao visa 4 sua meta — “E 0 que existe de mais varidvel na pulso, ele nao lhe é origina- riamente ligado”; 4) A fonte, entendida como 0 proces- so somatico localizado em um 6rgio. Cada um desses elementos pode sofrer transformacées, ter um destino especifico. Nada é preestabelecido quanto ao uso da pressao; é um estado bruto, pronto para o tratamento psiquico. Os meios de atingir a meta (= a satisfa¢ao) sdo miltiplos; eles podem derivar, suspender-se, com- binar-se, alterar-se, ser ativos ou passivos. Se 0 objeto nao esta ligado originariamente a pulsao, entdo ela é radicalmente diferente do instinto, pois este, por sua vez, funde meta e objeto. O objeto pode mudar, ser substituido, em qualquer momento do destino pul- sional. Pode ser um objeto estranho ou uma parte do proprio corpo. Quanto a fonte, ela pode-se agarrar em nao importa qual parte (interior ou exterior) do corpo vivo, sem se preocupar com o genital. 43 Nao existe sexualidade monolitica. Apenas mon- tagens pulsionais desse tipo podem inscrever o sexual no inconsciente: “[...] elas sio numerosas, oriundas de fontes organicas multiplas, manifestam-se primeira- mente de forma independente umas das outras e ape- nas tardiamente sao reunidas em uma sintese mais ou menos completa. A meta que cada uma delas perse- gue é a obtencao do prazer do érgao.”’ Essas descricées explicam em que a pulsao freu- diana é parcial — sempre parcial em relacao 4 fina- lidade bioldgica; em que a satisfagao aqui esta ndo centrada e ligada a uma zona erégena auténoma — qualquer érgio pode desempenhar esse papel. Esse parcial é definitivo? A resposta de Freud é sim. Nao é possivel encontrar uma sintese, uma to- talizacao dos elementos esparsos da pulsao? Nao. A Metapsicologia distinguira o campo pulsional e aque- le do amor, que, por sua vez, cria, efetivamente, uma unidade, uma maneira de unir o dispar. O amor nao é pulsional. Ele vem do Eu e é narcisico, pode certa- mente ligar-se “intimamente 4 atividade das pulsées sexuais posteriores’, mas pertence a esse campo em que se trata de se amar por meio do outro, em que existe reciprocidade entre amar e ser amado. O cam- po pulsional, por sua vez, é pura atividade — 0 Eu est4 excluido disso. A sexualidade é, portanto, parcial, perversa. O amor faz sonhar com uma sintese, enfim, possivel... mas ele nao depende do sexual! Freud man- tém a heterogeneidade dos dois campos. 44 Uma consequéncia clinica: “A crianga tem suas pulsées e suas atividades sexuais desde 0 inicio, ela as traz ao mundo consigo e é delas que procede [...] o que chamamos de sexualidade normal do adulto” Por isso, Freud define a crianga como um perverso po- limorfo. Essa expressao foi mal utilizada. Tomaram-na como a afirmagao de que a crianga era um depravado precoce, um perverso (no sentido das praticas perver- sas dos adultos), e a moral é ofuscada com isso. Uma tese assim nao poderia ser aceita como geral. Entre- tanto, ela apenas tira consequéncias da caracteristica parcial, polimorfa, da pulsao; a inocéncia infantil esta perdida. Com isso, as criticas nao cessaram. Era ne- cessario restaurar a inocéncia. A sexualidade infantil seria uma inven¢ao de Freud — um forcamento seu. 45 A prova? Os adultos nao se lembram disso. O es- quecimento é justamente uma prova. A amnésia in- fantil sobre o sexual deve ser relacionada com o in- consciente e com a instancia recalcadora do Eu. Ela é mesmo bastante instrutiva, pois nos permite compre- ender o que é recalcado na neurose — “Sem amnésia infantil, nado haveria amnésia histérica”, reconhece Freud, Entre as manifestagées da sexualidade infantil, distingue-se, por exemplo, o sugar (e 0 autoerotismo), do qual ele faz um “modelo”. A suc¢éo voluptuosa aparece no recém-nascido e pode-se manter até a fase adulta. Ela consiste em uma repeti¢ao ritmica com a boca de uma succao desvinculada de uma finalidade alimentar. O sugar nao provém de uma fome no apa- ziguada. Essa atividade implica o labio, a lingua, ou qualquer outra parte do corpo que se atinja, inclusive o dedao do pé. Frequentemente, uma preensio é agre- gada a isso, com uma insisténcia ritmica simultanea do lébulo ou de uma parte do corpo de uma outra pessoa. Essa suc¢ao, por sua satisfacdo sexual, leva ao sono e mesmo a uma forma de orgasmo, ja que as partes sen- siveis de um corpo, entre elas, os érgaos genitais, po- dem, por fric¢4o, se associar a isso. O sugar, portanto, se abre para a masturbacao. Incidindo sobre as partes do préprio corpo, o sugar é autoerético. Como ele é constituido? Ele é alimentado pela procura de um pra- zer ja vivido — aquele da mamada no seio materno, na qual a zona erégena eram os labios da crianga. Essa satisfagao do sugar se apoia na satisfacdo anterior da necessidade alimentar, que, em seguida, é transposta. 46 Alias, a crianga, depois de sua mamada, manifesta uma satisfacdo sexual que servira de protétipo a qualquer outra satisfagao. Freud ira até escrever: “Mamar 0 seio da mae torna-se o ponto de partida de toda a vida se- xual, o modelo jamais atingido de toda a satisfacdo se- xual posterior [...]”. A vantagem de escolher partes do corpo é libertar a crianga do mundo exterior que ela domina mal. Quais consequéncias para a vida futura? 47 Se essa fixac4o nessa satisfacao perdura, o adulto gos- tard de beijar, beber ou fumar. Se o recalque intervém, entao a repulsa quanto a alimentagao se convertera em um vomito histérico. Esse curto exemplo demons- tra trés caracteristicas da vida sexual infantil: ela se constréi pelo apoio em uma fungao corporal vital; nao conhecendo nenhum objeto sexual constituido no ex- terior, ela é autoerdtica; sua meta sexual esta limitada a uma tnica zona erégena fora da primazia genital. As pervers6es e a vida sexual infantil permitiram a Freud, por intermédio da desmontagem da pulsao, es- tabelecer que o inconsciente nao inscreve nada quan- to a ser masculino ow a ser feminino. O inconsciente nao escreve a diferenca entre os sexos. A pulsio é definitivamente parcial!

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