Você está na página 1de 4

A vanguarda e seus limites

(Gullar, Ferreira. Indagações de hoje. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989, pp. 17-25)

Para falar das experiências de vanguarda, em qualquer de seus aspectos, é necessário, antes de mais nada,
tentar definir o que se entende por vanguarda artística. Eu mesmo já procurei demonstrar, num livro
publicado em 1969 (Vanguarda e subdesenvolvimento), que esse conceito não tem validez universal. Ou
seja, o que é tido como vanguarda em Nova York ou Paris não é obrigatoriamente vanguarda no Rio de
Janeiro ou em Recife. Que pretendia eu com essa afirmação? Pretendia deslocar a discussão desse
problema do plano puramente estético-formal para situá-lo histórica e socialmente. Se é verdade que o
caráter internacional da cultura contemporânea coloca num mesmo plano de atualidade as diferentes
manifestações nacionais de cultura, não é menos certo que, em cada país, em cada região, a experiência
de vida e os problemas concretos que agem sobre essa experiência exigem do escritor e do artista um
modo específico de lidar com a matéria artística e formulá-la: o novo nasce da relação concreta com a
vida e as formas estéticas, e não do mero transplante de idéias e formas nascidas noutro contexto e
determinadas por outras necessidades.

Mas não é esse o conceito usual de vanguarda. O conceito usual não leva em conta o caráter específico
das diferentes culturas nacionais ou regionais e concebe o processo literário e artístico como uni
fenômeno regido unicamente por contingências estéticas. Mesmo quando admite sobre de a ação de
Sitores extraliterários, vê o fenômeno da vanguarda como expressão universal, um avanço da experiência
eslética da humanidade. Isso ,possivelmente ocorre em alguns casos, mas é altamente duvidoso que tudo
o que se intitula de vanguarda atinja de fato tal significação. Outro pressuposto implícito nesse conceito é
o de que a arte e a literatura só avançam pela ruptura abrupta das formas, e somente as obras que
apresentam tal ruptura podem merecer o título de obras de vanguarda. O conceito pressupõe também um
desenvolvimento preestabelecido desse processo de ruptura e assim se delineia uma história especial da
literatura e da arte que elege determinados autores como os únicos condutores do processo estético,
deixando de lado todos os demais como artistas de segunda categoria. Faz-se assim uma releitura da
história da arte que desconhece a complexidade de relações que a criação artística estabelece com a época
em que surge, o seu peso efetivo na vida cultural e social, para reduzi-la muitas vezes a meros caprichos
formais ou a experimentos de real interesse mas que se circunscrevem num limitado âmbito de indagação.
Tal conceito de vanguarda peca particularmente por sua visão estreita e pobre, além de sectária, e que não
resiste a um aprofundamento da análise do fenômeno estético e mesmo das próprias obras efetivamente
inovadoras que os teóricos da vanguarda costumam eleger como bandeira. No caso brasileiro, por
exemplo, procura-se reduzir a obra de Oswald de Andrade a uma pequena parte dela, a uma fase que ele
próprio renegaria mais tarde: a fase pau-brasil. Por outro lado, procura-se isolar essa fase de seu contexto
histórico e das influências exógenas que atuaram sobre o autor. Não resta dúvida que a influência de
Blaise Cendrars sobre Oswald foi decisiva e que não se entenderá plenamente a curva de sua linguagem
poética sem estudar essa influência. Mas isso complica demais as coisas e perturba a tese que se pretende
defender a qualquer preço. O mesmo ocorre com a obra de James Joyce, que não pode ser explicada sem
as condicionantes nacionais e biográficas que a crítica européia pôs à mostra mas que aqui no Brasil
nunca foram levadas em conta. E a razão é simples: a tese da vanguarda formalista tem que excluir as
determinações nacionais e regionais do fenômeno literário, para apresentá-lo como produto da pura
evolução das formas. E por que isso? Porque esses teóricos da vanguarda concebem a história da
literatura e da arte como independente da história social e querem apresentar o fenômeno estético como
pura expressão da universalidade que se expressaria unicamente na evolução das formas. Desse modo,
eles se podem arvorar como a vanguarda do próprio pensamento estético cuja verdade essencial captaram
e decifraram. Essa visão simplificadora é, no meu entender, uma visão colonizada. Esses teóricos se
fazem donos do que lhes parece ser o que há de mais moderno na experiência estética estrangeira (dos
países desenvolvidos, claro) e se apresentam diante de nós como os luminares do conhecimento literário.
Só que a sua vião da vanguarda é provinciana e simplificada, porque de segunda mão. Provinciana e
simplificada porque aprendida pela rama, no nível da aparência, do experimento estético isolado do
contexto complexo em que nasceu. Abrir mão dessa simplificação implicaria descer ao plano da realidade
em que se situa toda experiência humana, a experiência estética inclusive, que tem que ser entendida
como prática social e histórica, e não como a sacação surpreendente de alguns gênios isolados, produtos
da excentricidade e do acaso.

A visão da literatura e da arte como evolução meramente formal é falsa. E não se pretenda acusar-me de
desconhecer a identidade de forma e conteúdo, para ocultar o caráter formalista dessa concepção que aqui
denuncio. Forma e conteúdo constituem uma unidade dialética, de modo que seria impossível, na prática,
separá-los. Se isso nos conduz à inevitável conclusão de que toda forma tem conteúdo e que, por isso, não
teria sentido falar de uma vanguarda formalista, respondo que o conteúdo não é o mesmo nem qualitativa
nem quantitativamente em todas as formas. Quando se fala de vanguarda formalista, naturalmente não se
pretende dizer que os experimentos formais ditos de vanguarda sejam pura forma vazia. Mas seria mero
sofisma escamotear o fato de que certos experimentos formais, por excluir os enlaces da linguagem
estética com a realidade concreta, aproximam-se de meros jogos verbais. A relação da linguagem com a
realidade objetiva e subjetiva se dá através dos elementos constitutivos do discurso, que não se limitam às
palavras mas implicam a estrutura discursiva que elas constituem e que ao mesmo tempo as constitui. A
eliminação das conexões em que se apóia essa estrutura ou a sua violentação além de determinado limite,
se não exclui do texto todo e qualquer "conteúdo" - o que seria impossível -, pode no entanto abstratizá-lo
e obscurecê-lo a tal ponto que praticamente o anula. Se a afirmação de que "toda forma tem conteúdo" for
usada para valorizar todo e qualquer experimento estético, então deve ser usado igualmente para colocar
num mesmo nível de significação toda e qualquer obra de arte: não se poderia dizer, por exemplo, que os
romances de Dostoievski têm qualitativamente mais conteúdo e significação que os de Cassandra Rios.

É igualmente destituída de verdade a tese segundo a qual o processo estético obedece a uma evolução
formal linear que determina, pelo aparecimento da obra nova, o envelhecimento ou a obsolescência
instantânea das demais obras e modos de realização. Sob a ótica desse evolucionismo primário seria
impossível explicar o surgimento de um Éluard ou de um Renê Char depois de Mallarmé, ou de um
Faulkner depois de James Joyce. Qual a explicação possível para os vanguardistas, senão a de que Éluard
e Char significam um retrocesso no curso da história literária? Do mesmo modo, têm que desconhecer o
gênio de Faulkner e a importância de sua obra romanesca para continuar afirmando que Finnegan's Wake
é o ponto de chegada inevitável da evolução da linguagem ficcionista moderna. Mas tudo se torna mais
compreensível se se abandona essa visão estreita e sectária para ver a obra de Joyce e a de Faulkner como
expressões de personalidades geniais atuando em épocas e contextos culturais específicos. Só a
convergência de fatores subjetivos e objetivos, individuais e sociais, imprevistamente combinados, pode
explicar a ocorrência da obra literária. Naturalmente, o poder de irradiação de obras como a de Joyce e
Faulkner modifica o curso histórico da literatura, ou melhor, determina rumos novos no curso da criação
literária. Mas tão imprevisível quanto o surgimento de tais obras é a conseqüência de sua ação sobre os
autores contemporâneos ou futuros. Nem sempre o desdobramento mais fecundo de uma experiência
estilística é o seu seguimento imediato que aparentemente a continuaria. Muitas vezes o próprio
radicalismo inerente à experiencia inovadora a conduz a um beco sem saída, ao mesmo tempo que aponta
para veios outros, ricos e inexplorados, que o inovador radical deixou de lado mas revelou. Por isso
mesmo é que não se pode valorizar a criação literária simplesmente em termos de audácia inovadora, que
na maioria dos casos não é nem audácia nem inovação. Sobretudo hoje, quando a vanguarda, em certos
meios, tornou-se uma espécie de aval para experimentalismos inconseqüentes, enquanto se nega atenção a
busca difícil e demorada da forma que revela o aprofundamento da expressão.

E é natural que isso aconteça quando se troca a indagação da complexidade pela simplificação do
fenômeno estético. O homem é histórico e tudo o que ele cria também o é. Ele não cria do nada e nem
consegue nunca situar-se fora da cultura. Ele cria em condições dadas, e dadas pela história que o
antecedeu. O poeta não inventou a língua que fala e com a qual escreverá seus poemas. Ela está carregada
de passado, de história e é a partir dessa herança que o poeta produzirá o novo, que não é outra coisa
senão produto da própria vida. A tentativa de superar a história é uma necessidade inerente à arte, que
quer fundar o permanente; mas supor que isso se faz pelo puro e simples abandono das formas usuais e
pela introdução arbitrária de formas extravagantes é um equívoco adolescente. A superação da forma
velha só se dá por sua assimilação e transformação, o que implica ruptura profunda e superação efetiva do
passado. Mas é, sem dúvida, mais fácil criar o paletó de três mangas e apresentá-lo como obra inovadora.
Ora, o paletó de ,três mangas nunca foi feito pelo fato de que as pessoas têm apenas dois braços.

Mas não se pode discutir a questão da vanguarda apenas em termos de teorias e conceitos, como se ela a
isso se reduzisse. A vanguarda é um fenômeno real e, mesmo, um dos mais significativos da arte do final
do século XIX e começo deste século. Reflexo das profundas transformações por que passou a sociedade,
a partir da Revolução Industrial, os movimentos de vanguarda expressam no campo das artes a crise de
uma visão de mundo e a necessidade de renovação e progresso que o dinamismo social impõe. Esses
movimentos repercutiriam no Brasil na segunda década do século e também aqui determinariam a
renovação das formas artísticas. A Semana de Arte Moderna, que se tornou o marco histórico dessa
renovação, sofreu a influência da vanguarda européia mas a refletiu da maneira possível a um meio
cultural e social diverso do europeu. Isso determinou a relativa originalidade das manifestações
modernistas, mais ingênuas que a dos pioneiros europeus. E é um outro exemplo do caráter contraditório
do processo cultural na absorção das novas idéias e novas formas: a visão altamente sofisticada e crítica
da arte européia de vanguarda estimulou no sentimentos nativistas e a valorização do cotidiano e do
pitoresco. Desse modo, no campo da pintura, por exemplo, a tendência abstratizante do cubismo, do
futurismo e do dadaísmo inverteu-se e propiciou o surgimento de uma pintura figurativa que só veio a se
esgotar na década de 50, quando a Bienal de São Paulo pôs os jovens artistas brasileiros em contato com
os desdobramentos que a vanguarda histórica européia sofrera na própria Europa. Só então as questões de
fundo implícitas nas obras dos pioneiros penetraram a problemática estética brasileira.

Mas nem por isso a vanguarda que se formou então no Brasil tornou-se fiel seguidora da Europa. A
pintura concreta que se fazia em São Paulo radicalizava a proposta dos concretistas suíços, reduzindo-a a
esquemas de formas seriadas. No Rio, essa mesma proposta derivou para uma valorização do espaço e da
matéria pictórica que desembocaria no neoconcretismo. Os poetas concretistas paulistas assumiram o
mesmo radicalismo dos pintores, dando preponderância, na construção dos poemas, aos elementos
visuais, enquanto os poetas do Rio valorizaram a palavra subjetiva, o espaço da página e partiram para os
poemas espaciais. A crítica brasileira reconhece hoje a contribuição inovadora da arte neoconcreta, que
antecipou de quase uma década manifestações que viriam a ocorrer na arte européia. Mas essa
antecipação não se teria dado sem o radicalismo dos paulistas e sem as limitações que, sobretudo no
campo das artes plásticas, tornariam tecnicamente inviável seguir os passos dos suíços. De qualquer
modo, deve-se reconhecer que tanto a arte concreta brasileira como a arte neoconcreta, gerada aqui, são
desdobramentos da vanguarda européia que, a partir do último pós-guerra, ganhou amplitude mundial. A
diferença entre esses movimentos de vanguarda mais recentes e o Modernismo de 22 é que eles já não são
repercussões tardias do que ocorria nas metrópoles, mas expressões de uma mesma atualidade. Isso se
deve, entre outros fatores, ao desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes bem como ao
surgimento de um mercado de arte em escala internacional, estimulador das Bienais e outros certames
responsáveis pelo intenso intercâmbio estético entre os países. Talvez por isso, no âmbito literário, os
movimentos de vanguarda, carentes do mesmo suporte comercial e promocional, não tenham atingido
igual amplitude nem a mesma vertigem desagregadora que os caracterizou no âmbito das artes plásticas.
É neste campo que a vanguarda reflete, mais que em qualquer outro, a crise do sistema econômico e
ideológico dominante no Ocidente. Se, na literatura, o fator ideológico predomina como acionador da
desagregação das formas, nas artes plásticas atua de maneira decisiva a transformação da obra de arte em
mercadoria Certamente, o livro não escapa a essa condição, mas ela não é nele tão evidente quanto nas
obras de um pintor. A pintura tornou-se um dos grandes campos de investimento capitalista neste século.
E essa comercialização intensa influi sobre a própria linguagem da arte, que ou procura ajustar-se às
exigências do mercado ou tenta negar-se a elas. E embora em países como o Brasil só recentemente tenha
surgido um mercado de arte, já de há muito os artistas brasileiros haviam aderido a tendências estéticas
derivadas daquela problemática aqui inexistente.

Esse é, no entanto, um fenômeno freqüente e inevitável. As formas ideológicas e estéticas costumam


transplantar-se para contextos culturais distintos daqueles que as geraram. Essa transferência se dá
preponderantemente dos centros hegemônicos de cultura para a periferia, e aí muitas vezes sufocam ou
retardam o desenvolvimento de formas autônomas de pensamento e criação estética. Essa autonomia não
deve ser entendida como a aspiração a uma cultura nacional pura, surgida não se sabe de que fontes
incontaminadas, mas como o produto de um ajustamento maior da cultura à sociedade em que nasce, ou
seja, de um esforço crítico que detenha o processo de colonização cultural e ao mesmo tempo estabeleça a
identidade do homem com o seu próprio universo. Esse universo não está limitado pelas fronteiras
geográficas mas tampouco exclui os elementos concretos que constituem o tecido cultural específico de
cada realidade regional e nacional. A alienação cultural consiste na perda de contato com esses elementos
e na aceitação da novidade importada como se ela fosse a própria expressão da contemporaneidade. O
conceito de vanguarda, como expressão de uma evolução cultural que desconhece a especificidade das
culturas, induz a essa aceitação e, portanto, trabalha contra a busca de identidade cultural nos países
periféricos.

A busca da identidade cultural não deve ser entendida como produto de sentimentos nacionalistas. Toda
arte, toda cultura aspira à universalidade e, por isso mesmo, realiza a superação do que é meramente
particular, regional, nacional ou internacional. Essas categorias, de fato, ocultam a universalidade
presente em toda experiência humana e que é função da arte revelar. Mas essa superação não se dá em
abstrato, pela exclusão teórica desses fatores ou pela eleição de um deles como expressão do universal, e
sim pela alquimia mesma da elaboração estética, cuja matéria é a própria vida - contraditória e inovadora.
[Conferência no II Congresso da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
outubro de 1982]

Você também pode gostar