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Votar porquê, listas de turno, atesta a debilitada saúde do

regime. Que dizer, de resto, quando alguns

votar para quê?


OPERACIONAL Na mesa dos seus fundadores se juntam ao coro do
de montagem da Take 2000, conformismo nas ocasiões em que revisi-
a produtora que faz os filmes tam as memórias? «Se soubesse o que sei
dos seus tempos de antena
hoje, não teria feito o 25 de Abril», desaba-
Nuno conta os dias, Raul não quer confundir-se com o rebanho fou, impávido e sereno, Otelo Saraiva de
e até um abstencionista crónico admite protestar... nas urnas. Carvalho, no mais recente aniversário da
Histórias de quem vai desafiar a indiferença. De cruz. revolução, por entre alguns elogios a Sala-
POR MIGUEL CARVALHO
zar e a indignação geral dos companheiros
de levantamento militar.

N
O vírus da desilusão contagia, pelos
as últimas presidenciais, o vividos como «uma oração familiar», re- vistos. «Nunca umas eleições serviram
eurodeputado Rui Tavares, cordou o filho na sua coluna no Público. para tão pouco, nunca a desinformação
do Bloco de Esquerda, voltou Quem olha para os números da absten- e a alienação foram tão grandes como
a enternecer-se com a «magia ção ao longo de 37 anos de democracia dirá hoje», escreveu Marinho Pinto, bastoná-
cívica» do momento em que o seu pai, que a magia se foi perdendo e os cravos rio da Ordem dos Advogados, no JN, des-
mesmo movendo-se numa cadeira de murcharam, à boleia de ilusões várias e gostoso com a falta de alternativas nestas
rodas, chegou à mesa de voto. Demorou cinismos acumulados. Nas últimas legisla- eleições. «Tudo ficará na mesma, depois
uma eternidade para rabiscar a cruz no tivas, há dois anos, mais de 40% dos eleito- delas», proclamou, garantindo que não
boletim e dobrá-lo, mas Rui não trocaria res ficaram em casa, o que, segundo os ana- votará no domingo.
aquele tempo por nenhum outro. Indiferente ao reportório de desistên-
O pai tinha já 45 anos e cinco filhos cias e indiferenças, há, todavia, quem viva
quando viveu o 25 de Abril de 1974. Um Há dois anos, mais estes dias com a ansiedade da primeira
velho, chorando, atirou-lhe: «Achei que
já não chegava a ver este dia.» Por isso, a
de 40% dos eleitores vez, fiel a um ritual adquirido quando a
derrota era certa ou disposto a abdicar do
cada cerimonial cumprido desde então, ficaram em casa. abstencionismo militante para lavrar, no
a mãe diz o que sempre diz nesses dias:
«Custou muito conquistar isto, tantos
Alguns notáveis podem segredo da cabina de voto, o seu protesto.
Três exemplos de quem vai a votos…vo-
anos sem votar, etc.». Frases e episódios agora fazer o mesmo... tando.

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RAUL SAMPAIO «Dizer que todos os políticos são iguais é conversa de reacionário. Devemos tentar escolher os mais sérios e honestos»

'Querem ser guiados de família talvez expliquem. «Dois tios


foram deportados para os Açores com a
pessoas. Dizem mesmo em quem devem
votar», garante. Ele, que comprou e co-
como carneiros?' chegada do Salazar. Quando ouço dizer
que era preciso outro, dá-me náuseas!»,
lecionou «para cima de mil e tal livros»,
sempre a contar tostões, ofereceu-os to-
Raul Sampaio reage ele, lembrando tempos de perse- dos, «encadernados», ao PCP, para que
guições e miséria. «Trabalhei desde os 13 outros os pudessem ler.
89 anos, Reformado
anos e o dinheiro que dava em casa não Outrora «muito aguerrido», Raul Sam-
chegava. Passava-se fome à mesma.» paio vive agora a sua reforma de forma
Procurem-no pelas manhãs, na Confei- Raul Sampaio andou por uma fábrica de mais pacata, claro, mas ainda desejoso de
taria Bezerra, em Famalicão, que ele é tecidos, no Porto, pelo antigo Colégio Ca- sobressaltar os indiferentes: «Os que não
quase da mobília. Bom contador de histó- milo Castelo Branco, mas foi ao volante de votam deixam-se guiar como carneiros.
rias, autêntica memória viva, este velho umas famosas carrinhas da Gulbenkian É isso que querem?», desafia. Ele, pelo seu
republicano e comunista conversa com que escreveu as melhores páginas da sua lado, recusa abdicar de um direito «que
todos sem sectarismos e não há quem vida. «Levava livros a todo o distrito e tanto custou a conquistar». Votará «en-
desrespeite o seu percurso cívico. «Vo- aproveitava para meter a papelada con- quanto houver fome e desigualdades» e os
tei sempre, sempre! Até no Humberto tra o regime dentro deles. A PIDE chegou portugueses precisarem de ser «mais li-
Delgado, mas o fascismo falseou tudo», a ir lá a casa, mas safei-me. Os padres é vres. O que seria deste País sem leis e sem
desabafa. Raul Sampaio lembra-se de ir que não gostavam nada da biblioteca iti- homens para governar o Estado?», ques-
aos comícios «do contra» desde os 17 ou nerante, não queriam o povo instruído», tiona, recusando a retórica do deixa andar.
LUCILIA MONTEIRO

18 anos, em Braga, na Trofa, onde calhas- atira. Ainda hoje, diz ele, «é assim». Vai-se «Dizer que são todos iguais é conversa de
se, ouvir Armando Bacelar e Lino Lima, por essas aldeias minhotas «e ouve-se os reacionário. Devemos sempre tentar es-
figuras míticas da oposição. Os genes padres a meterem coisas na cabeça das colher os mais sérios e honestos.»

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'Estou ansioso
pela estreia…'
Nuno Ferreira
18 anos, Estudante

Veste uma T-shirt com os dizeres Prima-


ry Instincts. Ouve Muse, é fã de AC/DC e
vai a concertos de bandas de garagem,
ali para os lados de Lavra, em Matosi-
nhos. É devoto da saga cinematográfi-
ca de Harry Potter e já leu O Perfume,
romance do alemão Patrick Suskind,
«bem melhor do que o filme». Em casa,
a política é servida às refeições sempre
em grande alvoroço. O pai «anda todo NUNO FERREIRA «Os jovens interessam-se. Podem é não gostar da forma de fazer política»
virado para o Passos Coelho». Ele, po-
rém, inclina-se para a concorrência di-
reta. «Precisamos de um líder e Sócra- de criticar, mas se não votam perdem para poder trabalhar. Mas para P.M., an-
tes não é mau. Há atitudes com as quais o direito a fazê-lo», afirma, contunden- tropólogo de formação e desempregado
não concordo, mas ele não pode fazer te. «Às vezes, ouço dizer que é preci- há poucos meses, isso está longe de ser
tudo sozinho», justifica. so outro Salazar… Pelo amor de Deus! líquido «num País onde tudo parece con-
O que faz de Nuno Ferreira um jovem Por muito que se justificasse ter alguém taminado pela política».
diferente? como ele em termos económicos, seria As suas desilusões começaram no en-
Para já, ele anda «ansioso com a es- um erro tremendo, uma barbaridade. sino secundário, em Vila Flor. Guerre-
treia» do próximo domingo, 5. Votará Ponto final, parágrafo.» avam-se duas listas para a associação
pela primeira vez, nestas legislativas e de estudantes e «a grande polémica era
conta os dias até lá, pois sente-se «dese-
joso de contribuir para o futuro do País. 'Para votar contra o o nome que se ia dar ao jornaleco da
escola»: A Fonte ou Bô eram as opções.
Se não tivermos essa noção, vamos ser
sempre pequeninos e manter os mes-
sistema, há opções' O candidato da lista apoiada pela APU
(precursora da CDU), convidou P.M. a
mos problemas», justifica. Será ele, por P.M. integrar o futuro executivo com a «pas-
isso, um ser estranho à sua geração? 37 anos, Desempregado
ta» do Desporto. «Gostei da conversa
«Não me parece. De uma forma geral, e senti-me envaidecido, na minha pe-
os jovens até se interessam. Podem não Daria a cara e o nome se estivesse na posi- quena importância. Mas descobri que
gostar desta forma de fazer política, ção de garantir que, num futuro próximo, ele tinha feito a mesma promessa a uns
mas isso é outra história», observa. não dependerá de influências políticas 20 ou 30 colegas só para ganhar votos.
Entre os seus colegas da turma de Ci-
ências e Tecnologias não falta debate.
Até uma aula de Química já foi subver-
tida pela discussão à volta da saída do
primeiro-ministro e das ideias de uma
certa oposição. «Assusta-me que a di-
reita queira privatizar o ensino. Mes-
mo não tendo idade para votar, alguns
dos meus amigos têm a noção de que, se
isso acontecer, não poderão continuar a
estudar. É negar um direito a muitas fa-
mílias desfavorecidas», crê, dando mais
uma achega: «Talvez se justifiquem al-
gumas privatizações. A TAP, por exem-
plo. Mas apenas se isso contribuir para
o bem público», adverte.
Embora compreenda «o choque emo-
cional e a frustração» das gerações mais
LUCILIA MONTEIRO

velhas, Nuno reage, com alguma relu-


tância, ao incumprimento dos deveres
cívicos. «Os portugueses têm o vício

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OPINIÃO Pedro Norton

Aquilo magoou-me e defraudou as mi-


nhas expectativas», conta. Ganhou a
lista contrária, a do Bô, que afinal tam-
Importam-se que desabafe?
A
bém só publicaria o jornal uma única
vez. «Depois de votar, perguntei-me: o minha semana foi particu- trar o pretexto certo para nos fazer sair.
que é que estou a entregar a estes gajos larmente aziaga. Se é que A margem de erro é nenhuma. E o pre-
com esta cruzinha no papel? Senti-me podemos chamar aziago a texto pode, ainda assim, ser dado pelos
ridículo», confessa ele, que até anda- um encontro mais imediato gregos.» E assim entramos, de rompan-
ra entusiasmado com a campanha das com a Realidade, essa senhora de repu- te, no terreno da política. A contestação
renhidas presidenciais de 1986 entre tação duvidosa que daria tanto jeito não social, já sabíamos, vai aumentar para
Soares e Freitas. «A minha consciência cumprimentar. Mas passo a explicar. níveis inimagináveis. As tensões vão
política começou aí.» Por razões diferentes, em eventos e lo- surgir de todos os lados e de onde me-
P.M. nunca votou, é um abstencionista cais diferentes, «tropecei» em algumas nos se espera. Não há espaço, não há
crónico. «Foi sempre uma opção cons- personalidades (chamemos-lhes assim tempo, para grandes divergências polí-
ciente. Não sou daqueles que vai para a para não violar a famosa Chatham House ticas, muito menos é tolerável o luxo da
praia ao domingo e está-se a borrifar», Rule) que me habituei a considerar e que, politiquice espúria.
justifica. Até hoje, sentiu-se desencon- nas matérias que para aqui importam, Chamem-me pessimista. Mas é esta
trado com as opções existentes no espa- sabem muito bem, demasiado bem, do a dimensão da nossa tragédia. Imagi-
ço partidário «e o descalabro a que che- que falam. E retive três expressões que nar que a coisa vai lá, já a partir de dia
gámos. Vivemos num pântano, de tanga, tenho usado, com um sucesso assusta- 5, com uma simples mudança de atores,
e pintamos um País maravilhoso», iro- doramente eficaz, para perder o sono imaginar que não é aterradoramente
e pôr a leitura em dia até altas horas da urgente mudar o paradigma das lide-
Um abstencionista madrugada.
«O ajustamento que temos pela fren-
ranças e da governação, imaginar que o
Estado pode continuar capturado por
crónico pode, desta te é o mais violento de que há memória interesses particulares e parciais mais
vez, participar, ‘porque na história recente do País.» Dir-me-ão
que não se trata propriamente de uma
ou menos inconfessáveis, imaginar que
podemos continuar agarrados a direitos
há opções para votar revelação. Mas, por vezes, o mensageiro adquiridos e a um passado de pequenos
contra o sistema’ é mais importante que a própria mensa- corporativismos, imaginar que a respos-
gem. Seja como for, nunca é demais su- ta possa não passar por cada um de nós e
blinhar: a violência do que nos espera é que o tempo não reclama que saiamos
niza. A vida não lhe deu uma perspeti- difícil de conceber, mesmo para os que,
va mais animadora. «Quando trabalhei de entre nós, têm a presunção de não ser
numa câmara, senti o que significa uma analfabetos funcionais em matéria de
mudança de partido numa autarquia: as economia e de viver bem informados.
jogadas, os interesses, a incapacidade de Para início de conversa, para início de Não há espaço, não há
gerir». Aí conheceu um vereador que é semana, não estávamos mal.
hoje deputado. «Como é que este tipo «A hipótese de sairmos do euro não tempo, para grandes
vai para o Parlamento se é um autênti-
co asno? Quantos não haverá como ele,
é apenas uma hipótese académica.»
Admitir a hipótese, confessar que não
divergências políticas,
desses que andaram a colar cartazes e é uma bizarria de finlandeses mais ou muito menos é tolerável
foram parar a uma lista?», interrogou-se,
à época.
menos radicais, é, desde logo, admitir a
hipótese de desistir do mais extraordi-
o luxo da politiquice
Para P.M., o voto foi confiscado. De- nário projeto de paz de que há memória espúria
fine-o como «um meio para que outros na Europa. Mas é obviamente também
alcancem os fins deles», mas reconhe- admitir a hipótese de condenar Portugal
ce ser «um pouco utópico» sonhar com a um enorme retrocesso civilizacional. da letargia cívica em que adormecemos,
candidatos «capazes de abdicar do bem É admitir condenar Portugal a um iso- é condenar-nos a andar para trás.
pessoal em nome do coletivo». Nos últi- lacionismo e a um obscurantismo eco- Infelizmente, e por muito que me es-
mos anos, porém, sente-se cada vez mais nómico, financeiro e cultural. É, mais force, não vejo sinais de que assim não
tentado «a dar um contributo, a parti- angustiante ainda, admitir a hipótese de seja. Nem nas lideranças políticas, nem
cipar». Olha até com simpatia para al- deixar aos nossos filhos e aos filhos des- nas lideranças económicas, muito me-
gumas propostas, à esquerda e à direita, tes, um Portugal bem pior do que aquele nos nas máquinas partidárias e na so-
e, no domingo, talvez quebre uma tra- que – apesar de tudo – nos caiu em sorte. ciedade civil, seja lá o que isso for. Per-
dição. «Mas quero fazê-lo apenas para Haverá maior sentimento de fracasso? doem-me se vos deixo deprimidos mas
manifestar o meu protesto. E, para votar Cereja em cima do bolo: «Para mui- estava mesmo a precisar de desabafar.
contra o sistema, há opções.» tos decisores europeus, só falta encon- Para a semana estou melhor.

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