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Sobre a boniteza de ser professor

Pensar a Educação em Pauta – um jornal para a educação brasileira.


Disponível em: https://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/sobre-a-boniteza-
de-ser-professor/

Júlio Emílio Diniz Pereira*


21 de novembro de 2019

Eu não me lembro exatamente quando eu disse para os meus pais que eu queria ser professor da
educação básica. Porém, eu me recordo bem as expressões de preocupação em seus rostos
quando eu lhes disse isso a primeira vez. Eu ainda era criança e não era capaz de compreender o
motivo daquela preocupação. E todas as vezes que eu tocava no assunto, eles desconversavam.
À medida que eu crescia e que a certeza em ser professor da educação básica em mim
aumentava, a minha mãe resolveu usar uma estratégia diferente: tentar me convencer que eu
podia fazer Medicina – o sonho dela¹ – e “dar aulas” no ensino superior. O fato de ter sido um
estudante que tirava boas notas e que estava sempre entre os melhores alunos da turma² só fazia
aumentar a preocupação dos meus pais em relação à minha escolha profissional. Na opinião
deles, seria um desperdício enorme eu me tornar um professor da educação básica. Para eles, eu
deveria fazer “algo melhor”: um curso de Medicina, de Direito ou de Engenharia. Aliás, este era
um sentimento compartilhado por várias outras pessoas que me conheciam: avôs, avós, tios, tias
– alguns deles/as professores/as da educação básica! – e até mesmo entre os meus próprios
professores do colégio!

Paulo Freire disse certa vez que estranhava este comportamento das classes mais abastadas da
sociedade brasileira: exigiam que seus filhos tivessem bons professores, mas não queriam que
seus filhos se tornassem professores. Pois, isto era exatamente o que se passava com a minha
família.

Quando, finalmente, chegou a hora de escolher um curso para prestar o vestibular, a estratégia da
minha mãe deu certo: optei por Medicina. Apesar de ter me esforçado bastante para ser aprovado
no vestibular, 2,5 pontos (dois pontos e meio!) me separaram da área da Saúde para sempre.
Fiquei em quinto excedente. Os quatro candidatos colocados à minha frente foram chamados.
Parafraseando Cazuza, parece que o meu destino estava mesmo traçado na maternidade.

No ano seguinte, eu resolvi enfrentar os meus pais e tomei a decisão de prestar o vestibular para
um curso que oferecesse a modalidade de Licenciatura. Estava determinado: eu queria ser
professor da educação básica!

Eu tinha certeza que queria ser professor da educação básica, mas não estava seguro professor
“de quê” eu gostaria de ser. À princípio, eu gostava de todas as matérias da escola. Saía bem em
todas elas. Usei, então, o seguinte raciocínio para escolher o curso: como eu havia me preparado,
no ano anterior, para prestar o vestibular para Medicina, eu aproveitaria parte dessa preparação
para prestar o vestibular para um curso de uma área afim.Optei por Ciências Biológicas.
Resultado: fui aprovado em 1º lugar!³

Na época, o vestibular para o curso de Ciências Biológicas era único para ambas as modalidades:
Bacharelado e Licenciatura. A opção entre uma ou outra modalidade deveria ser feita apenas ao
final do quinto semestre – sem ser assumido formalmente, este era o tempo que o Instituto de
Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG) julgava suficiente para
convencer alguém com o perfil parecido com o meu a optar pelo Bacharelado. Você passava
cinco semestres no ICB/UFMG ouvindo comentários positivos sobre o Bacharelado e críticas à
Licenciatura, para, então, optar “livremente” entre uma ou outra modalidade. Aquelas pessoas
que, mesmo assim, insistissem em fazer Licenciatura, eram rotuladas como incapazes de seguir a
carreira acadêmica. A lógica velada era a seguinte: iriam para a Licenciatura apenas os que “não
deram certo” no Bacharelado. O destino destes (assumido como uma punição!) seria mesmo a
escola básica!
Pois, o 1º lugar do vestibular daquele ano entrou para esse curso já decidido sobre qual
modalidade fazer:a Licenciatura!E não foi convencido do contrário depois de passar dois anos e
meio (olha o 2,5 aí de novo!) no ICB/UFMG. Logo que iniciei o curso, percebi que a opção
consciente do 1º colocado no vestibular pela Licenciatura foi recebida como uma verdadeira
heresia dentro do ICB. Eu fui o único entre os meus colegas de turma que entrei para o curso com
a certeza de que queria ser professor da educação básica. Muitos diziam que optaram pelo curso
de Ciências Biológicas para fazer Engenharia Genética – era o que estava na moda na época e o
que dava mais status no curso. Ouvi dos professores desse curso, desde o encontro de recepção
dos calouros, que a missão do ICB/UFMG era formar cientistas (ou seja, para eles, o ICB não teria
compromisso com a formação de professores da educação básica. “Isto é lá com a Faculdade de
Educação!”, repetiam insistentemente).

Como eu estava convicto de que queria ser professor da educação básica, comecei,desde o
segundo semestre do curso, a “dar aulas”. Entrei para o maior programa de extensão da UFMG: o
Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos (PROEJA) em que os professores eram
alunos dos diversos cursos de Licenciatura da Universidade. Aqui eu tive importantes lições sobre
o que é ser professor, o que é ensinar, o que é uma aula. Aprendi que escola é um projeto em
permanente construção; que ela tem que ter a cara dos sujeitos que dela participam: no nosso
caso, jovens e adultos trabalhadores em processo de reescolarização. Aprendi que a docência é
sempre coletiva; construímos coletivamente sobre o que e como ensinar, tomamos decisões
conjuntas sobre o que fazer e também avaliamos coletivamente. Aprendi que os estudantes não
são sujeitos passivos no processo de ensino-aprendizagem. Pelo contrário! Os/As meus/minhas
alunos/as do PROEJA me ensinaram, por meio das estórias que insistiam em contar em sala de
aula, a vê-los como seres humanos de direitos, a nota-los como sujeitos de conhecimento
(sujeitos cognoscentes), a enxerga-los em suas especificidades econômicas e socioculturais, a
inseri-los ativamente nos processos de ensino-aprendizagem e, talvez, o mais importante: eles me
ensinaram a boniteza de ser professor.

Não há porque eu descrever esse processo, se Paulo Freire o fez tão bem por meio de sua
extraordinária capacidade de síntese e de sua incomparável sensibilidade. Eu prefiro, obviamente,
cita-lo:

“A prática educativa como processo do conhecimento e não como processo de


transmissão do conhecimento é uma coisa linda, porque enquanto o educando começa
a conhecer o objeto proposto, o educador reconhece o objeto no processo de
conhecimento que o educando faz, quer dizer, no fundo é um ciclo de conhecer, que
inclusive confirma o conhecimento. Esse processo é de uma indiscutível boniteza”
(FREIRE, 2004, p. 175).

A partir do sexto semestre do curso, passei a frequentar a Faculdade de Educação (FaE) da


UFMG na condição de aluno da Licenciatura. Chegara a hora de fazer as tão aguardadas
disciplinas pedagógicas do meu curso! A minha identificação com aquele espaço foi imediata.
Tratava-se de um prédio de um único piso – diferente do ICB que era verticalizado e fisicamente
hierarquizado (enquanto a Bioquímica ocupava um enorme espaço do quarto andar, a Botânica se
espremia em uma única ala do primeiro piso!). O prédio da FaE, apesar de provisório e pequeno,
era claro, naturalmente iluminado, quente – não apenas em razão das altas temperaturasna
primavera e no verão, mas também graças ao calor humano que fazia daquele lugar um espaço
humanizante; humanizado. O ICB, ao contrário, era sombrio (não havia aproveitamento da luz
solar), frio (em qualquer época do ano) e, principalmente, frio nas relações humanas.

Formar professores da educação básica não podia mesmo ser a missão daquele prédio frio,
sombrio e verticalizado. Não seria ali que alguém aprenderia sobre a boniteza de ser professor.
Isto deveria acontecer em um espaço humano, humanizado, culturalmente diverso, naturalmente
iluminado (ecologicamente sustentável) e horizontalizado (inclusive, nas relações humanas!). Ao
escrever sobre o que ele chamou de “educação democrática”, Paulo Freire, mais uma vez,
explicita a boniteza do processo educacional:

“Quando nós pensamos em uma situação educacional nós talvez possamos descobrir
que em toda a situação educacional, além dos dois lados, dos dois polos, estudantes e
professores, há um componente mediador, um objeto de conhecimento, a ser ensinado
pelo professor e a ser aprendido pelos estudantes. Esta relação é, para mim, mais
bonita quando o professor tenta ensinar o objeto, a que nós podemos chamar de
conteúdos do programa, de uma forma democrática. Neste caso, o professor faz um
esforço sincero para ensinar o objeto que ele ou ela supostamente já conhece e os
estudantes fazem um esforço sincero para aprender o objeto que eles ainda não
conhecem. Entretanto, o fato de que o professor supostamente sabe e que o estudante
supostamente não sabe não impede o professor de aprender durante o processo de
ensinar e o estudante de ensinar o processo de aprender. A boniteza do processo é
exatamente esta possibilidade de reaprender, de trocar. Esta é a essência da educação
democrática” (FREIRE, 2009, p. 26; grifo meu).

Logo depois que concluí a Licenciatura em Ciências Biológicas, comecei a lecionar no ensino
fundamental e médio de escolas públicas e particulares de Belo Horizonte. Ali, a boniteza de ser
professor se confirmava em algumas situações e em alguns momentos, principalmente, aqueles
em que eu estava em contato direto com os meus alunos pré-adolescentes e adolescentes.
Porém, também fui apresentado a algumas “feiuras” do magistério que eu ainda não conhecia.

Era muito difícil para mim permanecer na sala dos professores durante o recreio, por exemplo.
Ouvia indignado comentários negativos dos meus colegas sobre os alunos e que eu
definitivamente não concordava com eles. Aprendi com a minha experiência no PROEJA a
valorizar as potencialidades dos nossos alunos em vez de trabalhar com a lógica do “déficit”;
aprendi também por meio daquela experiência que todos os seres humanos, independente da sua
condição econômica, social, cultural, física ou mental, são capazes de aprender. Eu preferia,
então, passar o recreio com os meus alunos no pátio da escola a ficar ali escutando aquelas
afirmações pejorativas e, muitas vezes, preconceituosas sobre os alunos. E o pior, aquela minha
atitude era considerada “antiprofissional” por alguns dos meus colegas.Além disso, o intervalo e a
sala dos professores tinham se transformado em um verdadeiro mercado persa. Vendia-se de
tudo! Calcinhas, sutiãs, cosméticos etc. Os meus colegas justificavam aquilo dizendo que
precisavam complementar a renda, pois, o salário de professor era muito baixo. Ao ouvir aquilo, a
primeira pergunta que fiz aos meus colegas foi a seguinte: “Mas, vocês não são sindicalizados?
Por que não nos organizamos e lutamos coletivamente para a melhoria das nossas condições de
trabalho e salariais?” Alguns deles, depois de testemunharem tantos anos de falta de
compromisso dos nossos governantes com a educação e de verem as condições laborais e de
salário se deteriorarem ao longo do tempo, olhavam para mim com um olhar de desesperança e
de desilusão.

Eu estou convencido de que o capitalismo explora o compromisso dos professores com os nossos
alunos – afinal, são eles que realmente nos importa! –, o idealismo desses profissionais em querer
contribuir para a construção de um mundo melhor eos valores morais de muitos deles (que não
coincidem com os valores dominantes das sociedades capitalistas: o materialismo,o consumismo
e a ostentação) para pagá-los indignamente. Aliás, o capitalismo, que também é essencialmente
machista, explora o fato de o magistério ser hoje exercido majoritariamente por mulheres para
pagá-las indignamente4. O problema é que, infelizmente, muitas/os professoras/es competentes e
comprometidas/os estão deixando o magistério em razão dessas condições de trabalho e salariais
indignas.

Outra coisa que me incomodava bastante no magistério era o excesso de burocracia e o aumento
gradativo do controle sobre o trabalho docente.A supervisora da escola me obrigava a fazer
coisas que nem ela mesma sabia justificar o porquê daquilo. Por que desconfiavam tanto da
gente? Quando teríamos políticas públicas que partissem de uma relação de confiança com os
professores em vez de tamanha falta de credibilidade?

O fato de o magistério poder ser exercido por pessoas que não têm compromisso com a profissão,
as más condições laborais e de salário, bem como o excesso de burocracia e de controle sobre o
trabalho docente são elementos que contribuem para a docência perder a sua boniteza intrínseca
e essencial. Mais uma vez, me identifico com as palavras de Paulo Freire:
“Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor
da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber
que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais
necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já
não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não
desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e
desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar” (FREIRE, 2011, p. 145; grifos
meus).

Todos os questionamentos colecionados ao longo da minha graduação e durante os anos iniciais


da minha experiência docente me levaram precocemente para o mestrado em Educação, na
FaE/UFMG. No mesmo ano que eu defendi a minha dissertação, eu prestei o concurso para
professor efetivo e me tornei docente da instituição que eu havia me identificado tanto com ela
ainda enquanto aluno da Licenciatura. Eu havia me tornado, muito precocemente, um formador de
professores! A partir de então, a minha responsabilidade era formar novos professores da
educação básica5. E o meu desafio passava a ser: mostrar para os meus alunos de Licenciatura a
boniteza de ser professor da educação básica sem, obviamente, esconder as “feiuras” que às
vezes fazem a profissão perder um pouco do seu brilho.
Em 2018, completei 25 anos que leciono na Faculdade de Educação da UFMG. Hoje, os meus
estudantes de Licenciatura já fazem estágio com professores da educação básica que foram
meus alunos na Universidade!E esta é sem dúvida outra boniteza do magistério: contribuir com a
formação humana de seres humanos e, ao nos tornarmos melhores seres humanos, contribuir
com a construção de um mundo melhor – mais justo, mais humano e mais fraterno. Ou, para
terminar, como bem escreveu Paulo Freire:

“…quanto melhor a educação trabalhar os indivíduos, quanto melhor fizer seu coração
um coração sadio, amoroso, tanto mais o indivíduo, cheio de boniteza, fará o mundo
feio virar bonito” (FREIRE, 2007, p. 36; grifo meu).

REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: UNESP, 2004.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. Indaiatuba: Vila das Letras, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Solidariedade. Indaiatuba: Vila das Letras, 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

¹Minha mãe queria, na verdade, que eu me tornasse um neurocirurgião. Porém, em razão da minha completa falta de
destreza nas mãos, eu brincava com ela que eu poderia, para satisfazê-la, fazer Geologia e me especializar em pedras
nos rins (sic).
²Além disso, eu sempre fui um aluno bastante crítico e questionador ao longo da minha trajetória escolar – queria saber
o porquê de fazer certas atividades na sala de aula, o porquê de aprender certos conteúdos, me indignava com
decisões autoritárias tomadas pela direção da escola etc. – o que me fez deixar o ensino médio com os rótulos de
“aluno problema” e “líder negativo”. Obviamente, eu nunca aceitei esses rótulos.
³
Com a pontuação que eu obtive nesse novo concurso, eu passaria em 35º lugar no curso de Medicina da UFMG
naquele ano. Meus pais não se opuseram (explicitamente) à minha opção e me apoiaram durante a graduação –
inclusive com a compra de livros caros que o curso demandava – mas, no fundo, mantinham as esperanças de eu pedir
transferência para Medicina nos anos subsequentes.
4
Paulo Maluf, quando era governador de São Paulo nomeado pelo governo militar, disse, em 1981, uma frase infeliz e
extremamente sexista: “Professora não é mal paga, é mal casada”. Essa afirmação, mesmo que não repetida em
público por muitos governantes atuais, provavelmente continua a povoar a mente de muitos deles por estes não se
comprometerem com políticas de melhoria salarial das/dos docentes. Ignorantes, mal sabem eles que uma boa parte
das professoras da educação básica no Brasil são chefes-arrimo de família.
5
Quando me tornei formador de professores, eu tinha apenas cinco anos de experiência como professor da educação
básica. Sempre achei muito pouco. Porém, em razão da diversidade de experiências docentes e da intensidade com
que eu vivi essas experiências, eu costumo parafrasear Juscelino Kubitscheck e dizer que estes foram, na verdade,
“cinquenta anos em cinco”.
*Doutor em Educação pela Universidade do Estado de Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos (2004), e Professor
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista de produtividade em pesquisa
do CNPq (Nível 2).

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