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Rumo ao fundo do poço

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26 de março de 2021

Fernando Pureza

Em seu livro Tea War: a History of Capitalism in China and India, Andrew Liu procura
demonstrar como as relações pré-capitalistas foram constitutivas da indústria do chá –
e abre com isso uma nova perspectiva de análise sócio-histórica para o capitalismo.

Em 2004, o historiador Walter Johnson publicou seu artigo “The pedestal and the veil”,
se propondo a repensar as relações entre capitalismo e escravidão a partir do Sul dos
Estados Unidos. Nele, Johnson lançou uma provocação aos marxistas que não passou
desapercebida: se o casaco de Marx, referenciado nos primeiros capítulos de O Capital,
fosse feito de algodão – e não de linho – a nossa forma de conhecer o capitalismo seria
completamente diferente. Dessa forma, pairava a acusação de que Marx olhara para o
capitalismo apenas em uma etapa muito específica da produção; o algodão que era
industrializado nas fábricas de Lancashire passava por um circuito global de exploração
da mão-de-obra no século XIX que era plenamente capitalista, ainda que pautado por
relações de trabalho escravo e outras formas de trabalho coercitivas. Esse argumento
pode ser visto na obra de Sven Beckert, Empire of Cotton e até então pareceu restrita
àquela que era a mais proeminente indústria global até o advento da indústria
automobilística. É nesse sentido que o livro de Andrew Liu, Tea War, joga luz a uma
possibilidade mais ampla: e se toda a indústria capitalista global não fosse ela mesma
pautada por essas relações pré-capitalistas em sua cadeia produtiva? E se o que
chamamos grosseiramente de “pré-capitalista” não carregasse consigo toda a
potencialidade do regime de acumulação comum ao capital, só precisando de um estímulo
adequado para se converter em relação capitalista efetivamente?

Para Liu, o estímulo não é outro senão a competição capitalista, pois é ela que irá realizar
o que a socióloga Beverly Silver chamou de “corrida rumo ao fundo do poço”. A entrada
do capital em cena força, de forma incontornável, empresas e trabalhadores a competirem
entre eles – e a única forma possível de competição é reduzindo os custos com o trabalho.
Para as empresas, isso significa reduzir ao máximo a demanda por trabalho vivo. Para os
trabalhadores, significa se submeter a piores salários, sobrecarga nas jornadas de trabalho
e deterioração completa das condições de seu ofício. Mas em suma, o ímpeto pela
competição seria o fator determinante para entender o capitalismo – o que ajudaria a
explicar também por que relações não capitalistas foram (e ainda são) tão comuns na
história do capitalismo.

Chá e a formação do capitalismo global

No século XVIII, o chá totalizava 60% de todas as exportações da China. O maior


comprador, contudo, era a Inglaterra. Muito já se disse de como estimulantes não-
europeus como o café, o chá, o tabaco e o açúcar foram cruciais para a modernização da

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Europa, mas pouco se falou sobre como o chá entrou nessa equação. A perspectiva de Liu,
por sua vez, retoma inicialmente os tempos da dinastia Qing (1649 – 1911), quando a
balança comercial chinesa tornou a região a maior acumuladora de prata do planeta. A
demanda por chá acelerou esse processo e garantiu a hegemonia econômica chinesa na
Ásia até o início do século XIX.

Usualmente a narrativa mais comum para a perda da hegemonia chinesa concentra-se no


imperialismo britânico e na Guerra do Ópio (1839 – 1842), mas ao olhar para o chá,
Andrew Liu propõe uma narrativa mais complexa. Afinal, a produção de chá da China
seguiu constante e era uma importante fonte de renda, concentrada em especial no
cohong, a guilda de mercadores de Cantão que tinha a permissão do império para
negociar com os ingleses. Mesmo com a entrada do ópio e os primeiros tratados
humilhantes impostos sobre a China, a demanda por chá seguiu sendo alta e os ingleses
tiveram de buscar outras saídas para evitar a dependência chinesa. Tratava-se, sem
dúvida, de uma indústria doméstica, camponesa, mas a alta demanda dos ingleses gerava
um retorno importante para a população rural de Huizhou, a principal região produtora
de chá na China.

Procurando evitar o monopólio chinês, mercadores ingleses da Companhia das Índias


Orientais levam mudas de chá para replantá-las na Índia, cada vez mais subjugada pelo
imperialismo britânico. A província de Assam, na Bengala controlada pelos ingleses,
acabou sendo escolhida para ser o laboratório do chá. E embora o solo e o clima de Assam
guardasse algumas semelhanças com a montanhosa Huizhou, os ingleses perceberam que
o chá chinês era superior ao indiano. O processo de trabalho chinês era, em última
instância, bastante rudimentar. Carregava consigo uma mistura de elementos tradicionais
com lógicas modernas, como, por exemplo, o controle do tempo da produção do chá por
meio da queima de palitos de incenso, de tal forma que o tempo da queima ditava o tempo
da produção.

Visando modernizar a produção, os teóricos britânicos estabeleciam contratos de


“trabalho livre” para os indianos, que migravam de diferentes partes de Bengala para
Assam. Contudo, a migração era sazonal e muitos dos trabalhadores indianos se
recusavam a permanecer por muito tempo na produção do chá. Liu mostra que
estratégias como chamar famílias inteiras de indianos para a região, ou mesmo contratar
mulheres para o trabalho nas plantações, acabavam afastando ainda mais a Inglaterra da
produtividade chinesa.

O ponto de virada entre os teóricos liberais do período acaba sendo a Revolta dos Cipaios
(1857). A produtividade chinesa era maior que a indiana e a qualidade da bebida, por sua
vez, era respaldada pelos consumidores britânicos. Mas diante da revolta generalizada na
Índia, os teóricos britânicos passaram a defender o trabalho forçado de presos e muitos
deles passaram a ser convocados forçosamente para atuar nas plantações de chá. O
trabalho de homens e mulheres presos pelo governo colonial do Raj Britânico passa a se
tornar essencial para o salto qualitativo da indústria de chá indiana. Já em 1870 a Índia
supera a China em exportações de chá – e nas décadas seguintes, as Índias Holandesas

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(atual Indonésia), Ceilão (atual Sri Lanka) e Japão passam a ultrapassar a China. No final,
a competição intercapitalista se dissemina, ao passo que as condições de trabalho na
indústria do chá pioram aceleradamente.

A ascensão do chá indiano é marcada pela emergência generalizada dos coolies no


continente asiático (mas não só). Essa força de trabalho que englobou milhares de
indianos e chineses é composta basicamente por homens que se submetiam a contratos de
trabalho que beiravam à escravidão. Com a promessa de um salário que pudesse sustentar
suas famílias, muitos descobriam depois que entravam em esquemas de endividamento e
encarceramento que, por sua vez, submetia os trabalhadores à formas coercitivas de
extração do trabalho. Empregados nas construções da era dos Império, os coolies
tornaram-se a principal força de trabalho das migrações internas indianas,
constantemente ameaçados com as crises de subsistência ou com a prisão. É precisamente
nesse contexto de trabalho cativo e coercitivo que o chá indiano ultrapassa o chá chinês
em produtividade.

O ganho na produtividade é acompanhado por intensa propaganda que ataca a produção


chinesa de chá, acusando-a de anti-higiênica e arcaica. Até meados do século XX, a China
veria a demanda pela bebida encolher cada vez mais das suas exportações.

Corrida ao fundo do poço

Conforme os intelectuais britânicos eram acusados de burlar os princípios básicos do


liberalismo, beneficiando-se de um trabalho “não-livre”, havia cínicas declarações
alegando que os indianos ainda não estavam preparados para a “liberdade” tal como os
europeus. Dessa forma, o trabalho prisional assumia sua dupla natureza: por um lado, era
essencial para a acumulação de capital das grandes empresas britânicas. Por outro, servia
como justificativa ideológica para o imperialismo se perpetuar no subcontinente indiano,
afinal, enquanto não soubessem “o valor da liberdade”, os indianos não deveriam ser
tratados tal como os homens brancos e europeus, que podiam dispor de contratos de
trabalho livre e assalariado.

Somente na década de 1930, diante da pressão do Congresso Nacional Indiano, a


legislação foi modificada e o trabalho prisional foi revisto. Mas nesse quase um século de
colonização dos ingleses, ele efetivamente havia sido vital para a indústria do chá indiana
que não apenas era lucrativa, ela agora tornara o chá vindo da China uma mercadoria de
ínfimo valor.

E quanto mais depreciado era o valor do chá chinês, pior eram as condições de trabalho e
de vida dos camponeses. Os antigos mercadores, que compravam chás das famílias rurais,
se converteram em verdadeiros agiotas, que faziam empréstimos antevendo valores
irreais para a venda do chá. Contudo, quando a entrega da mercadoria era feita, o preço
do chá chinês seguia em queda, o que fazia com que famílias inteiras de camponeses
entrassem numa espiral de dívidas. Presos por esse sistema de endividamento, eles sequer
podiam parar de plantar chá, tornando-se presa fácil de um sistema de especulação
financeira que dependia precisamente das formas tradicionais e rudimentares de
trabalho.

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Assim, tanto Índia quanto China viram, por meio da indústria do chá, seus trabalhadores
se tornarem cada vez mais pauperizados e descartáveis pela lógica do capital. Mas o
descarte jamais poderia ser completo: o enrijecimento de relações pré-capitalistas de
trabalho era precisamente o que permitia a acumulação de capital na era dos Impérios e
que sustentou de forma direta o poderio global da Europa por mais de um século. A
“corrida para o fundo do poço” se acentuava. E é precisamente nesse contexto que tanto o
nacionalismo chinês quanto o nacionalismo indiano formaram intelectuais propensos a
discutir o chá pelo prisma da necessidade de instituir o trabalho livre.

O trabalho livre como teleologia e como ficção

Nesse contexto, Liu mostra que a virada do século XX viu a busca pelo trabalho livre
tornar-se uma constante para os intelectuais indianos e chineses que olhavam para o chá
e para a soberania nacional. As narrativas moralizantes sobre os maus tratos a homens e
mulheres nas plantações de Assam e os relatórios técnicos de agrônomos para aumentar a
produtividade das plantações de chá em Huizhou convergiam em um ponto: a superação
do atraso, das precárias condições de trabalho, do estatuto colonial, passava
necessariamente pela implementação de um trabalho livre assalariado, nos moldes
vislumbrados pela economia política clássica. Assim, a emancipação dos coolies e de seus
contratos de trabalho coercitivos, bem como o fim da “escravidão por dívidas” dos
camponeses chineses, eram demandas imediatas para superar o atraso decorrente do
imperialismo.

Liu reforça que essa não era uma posição propriamente anticapitalista. Abolir o capital
não estava no horizonte desses teóricos, mas sim regularizar a questão do trabalho e
eliminar, assim, a herança pré-capitalista. O trabalho livre convertia-se, assim, em utopia
alcançável, uma espécie de telos para intelectuais chineses e indianos. Andrew Liu
referencia nessa discussão dois importantes teóricos marxistas, Jairus Banaji e Moshe
Postone, para destacar que esse telos nada mais era do que uma persistente ficção que
condiciona o imaginário político dos séculos XX e XXI; em última instância, o trabalho
assalariado nunca foi livre, ele nunca se converteu efetivamente em um contrato entre
livres partes nas quais uma vende e a outra compra uma força de trabalho como se fosse
uma mercadoria qualquer.

O alcance da utopia do trabalho livre assalariado chegou até mesmo aos marxistas do
século XX, que passaram a defender “revoluções burguesas” que libertariam campo e
cidade das suas amarras “semi-feudais”. Referendada pela ortodoxia soviética, essa
modalidade de etapismo vinha carregada da ideologia da economia política – o trabalho
livre assalariado se convertia assim em etapa primordial para as revoluções se tornarem
efetivamente emancipatórias.

E, ainda assim, eram utópicas em especial porque o capitalismo nunca constituiu um


sistema em que o trabalho assalariado pudesse prescindir da mão-de-obra coagida ao
redor do mundo – em especial de homens e mulheres que não fossem brancos, bien sur.
As chamadas “revoluções burguesas” podem ter criado as condições jurídicas para que o

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trabalho assalariado fosse percebido como “livre”, mas isso não significa que elas
conseguiram abolir a necessidade das diferentes formas de trabalho cativo e coercitivo ao
redor do globo.

De fato, a proibição do tráfico de escravos pelos ingleses em 1831 não impediu a burguesia
industrial britânica de comprar algodão produzido pelos escravos do sul dos Estados
Unidos (ou do Nordeste brasileiro, cuja escravidão ainda perduraria até 1888). O trabalho
forçado de milhões de coolies nas plantações de chá de Assam, que ofendia a sensibilidade
dos liberais britânicos, seguiu sendo indispensável para o consumo de chá na velha
Inglaterra vitoriana. No século XXI, o consumo global de chocolates depende ainda de
trabalho em condições análogas à escravidão nas plantações de cacau da Costa do Marfim.
E nem falemos da extração de cobalto no Congo, minério vital para a produção de
tecnologias avançadas como smartphones e notebooks.

Quanto maior a demanda pela mercadoria, mais o capital precisa garantir que o preço
pela mão-de-obra envolvida na sua produção se mantenha baixo. A competição era a
melhor arma para isso, mas ela não dependia necessariamente de formas capitalistas de
trabalho para ocorrer. Para debelar o monopólio chinês do chá, não bastava que os
ingleses construíssem grandes plantações na Índia. Era preciso aumentar a produtividade
do trabalho e superar a China – e isso só foi possível graças ao trabalho coercitivo de
coolies e prisioneiros. Com maior produção e uma força de trabalho sendo empurrada
para a miséria, os chineses logo viram essa disputa empurrar o seu próprio campesinato à
miserabilidade.

Algodão, chá, cacau, cobalto… o circuito histórico das mercadorias no capitalismo


continua demonstrando que ele depende do trabalho não-livre para se efetivar. A
perspectiva que Andrew Liu traz acaba, por sua vez, renovando uma passagem de Marx
no próprio Capital: “o trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de
pele negra é marcado a ferro”. E ainda hoje estamos a espera desse momento.

Fernando Pureza, professor do Departamento de História da Universidade Federal da


Paraíba, gremista, canceriano e marxista. Especialista em História Social, com ênfase em
História Moderna e Contemporânea.

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