Você está na página 1de 5

Anpuh Rio de Janeiro

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ


Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ
CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380

A dinastia de Avis e a realeza do século XV

Almir Marques de Souza Junior - UFF

O inicio da dinastia de Avis é marcado pela revolução de 1383 e a posterior eleição de D. João I
como rei de Portugal pelas Cortes de Coimbra, dois anos depois. Trata-se de um período politicamente
conturbado da história portuguesa. A crise havia se instaurado quando o falecido rei D. Fernando lega,
em testamento, a regência do reino à sua viúva, D.Leonor. Ela, que já não gozava da simpatia popular,
mostra-se ainda favorável aos interesses se Castela dentro do reino, o que acaba por lhe gerar uma
grande oposição. Justamente em 1383 esta oposição ferrenha à rainha tomou corpo de uma revolta na
qual os setores urbanos passam a ter um papel político determinante no curso dos acontecimentos. Com
o agravo da insurreição, que dentro em pouco tomou todo o reino, a rainha, em fuga, opta por pedir
auxilio ao rei de Castela, para que este a ajudasse a recuperar o controle da regência do reino.
A fuga da rainha e a iminente invasão castelhana criam todo um clima de comoção entre a
população portuguesa que, pressionando a Câmara do Conselho, consegue proclamar o Mestre de Avis
como “regedor e defensor do reino”. Além do apoio desta massa popular, o Mestre ainda contava com
o suporte de grande parte do clero, principalmente baixo clero, e de nobres segundogênitos que viram
na revolução um chance de ascensão ao poder. Com a crescente popularidade do Mestre de Avis, aliada
às suas vitórias na luta contra os castelhanos, não tarda para que Dom João seja aclamado rei de
Portugal durante as Cortes de Coimbra de 1385, poucos meses antes da sua principal vitória contra o
exército invasor em Aljubarrota.
Uma das grandes características que marca da Revolução de Avis é o seu confronto com a alta
nobreza do reino português, principalmente no que se refere à substituição dos membros de uma
aristocracia tradicional, que possuía estreitos laços com a monarquia castelhana, por outros homens
cuja linhagem não era tão ilustre e tradicional. Junto a eles, a “arraia miúda”, por outro lado, se mostrou
fundamental para o sucesso do movimento de revolução, ganhando reconhecimento como nova força
política dentro do reino, sendo incorporada nos mecanismos de poder e administração – como os
Concelhos – e passando a ter suas demandas assimiladas pela própria realeza. É preciso ressaltar que a
participação destes “miúdos” não se fazia no sentido de uma busca por igualdade, mas sim em função
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2

da defesa de seus próprios interesses dentro da sociedade portuguesa, buscando, quando possível,
galgar a uma estripe social mais elevada1.
O rei, por sua vez, mesmo após ter sua autoridade consolidada, precisou lidar com a ameaça de
proliferação dos senhorios, por parte da nova nobreza. Esta estratégia se mostrava de primordial
necessidade uma vez que a centralização do poder poderia se ver ameaçada com a grande concentração
territorial nas mãos de poucas famílias, conforme foi o caso de Nuno Álvares, que, em 1393, contava
com uma extensa rede de vassalos que era capaz de mobilizar um exército paralelo ao do rei2.
Mas o monarca já não se encontrava tão dependente da nobreza quanto em outrora. Sua
superioridade era garantida neste, momento, não apenas pelo maior domínio territorial, mas também
pelo controle da fiscalidade dos principais núcleos urbanos fazendo com que a principal fonte de
riqueza do reino venha agora da cidade e não mais do campo3. Vemos então em fins do século XIV e
inicio do XV, durante o reinado do Mestre de Avis, uma maior complexificação da função régia,
principalmente no que tange a manutenção da paz através do exercício da justiça, afirmando assim o
poder legislador dos reis sobre os demais senhorios e caminhando, graças a isso, para a transformação
das realezas em verdadeiros Estados administrativos e burocráticos.
Com a elevação de D.João, filho bastardo do rei D.Pedro, ao trono, a nova dinastia de Avis se
vê, desde seu inicio, confrontada com a difícil tarefa de produzir um discurso que a legitime. Este
discurso sobre a realeza será oriundo do próprio paço régio, o que quer dizer que utilizaremos o
conceito de denominado pela professora Vânia Fróes como Discurso do Paço4. Ele consiste em um
enunciado discursivo cujo principal lugar de produção é o palácio régio e busca traçar para Portugal
uma identidade própria que gira em torno da figura do rei, ao mesmo tempo em que concede ao
monarca e ao reino um ar de sacralidade.
O Discurso do Paço, no caso de D. João I, é produzido com base num modelo messiânico,
tentando mostrar o rei como o “messias de Lisboa”. Esta atitude busca, neste sentido, reforçar uma
concepção providencialista do poder, aonde a legitimidade do monarca decorre do caráter predestinado
da sua missão. É com esta mentalidade que Fernão Lopes, em suas crônicas, apresenta o rei e a nova
dinastia avisina como anunciadores de “novos tempos” para Portugal.

1
COELHO, Antônio Borges. O Tempo e os Homens: Questionar a História, volume III. Caminho, coleção universitária.
2
MARQUES, A. H. Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa. Editorial Presença. 1987.
3
ACCORSI JÚNIOR, Paulo. Do Azambujeiro Bravo à mansa oliveira Portuguesa: Prosa civilizadora da corte do rei
D.Duarte (1412-1438). Dissertação de Mestrado. Uff.
4
FRÓES, Vânia. Teatro Como Missão e Espaço de Encontro Entre Culturas. Estudo comparativo entre teatro português e
brasileiro do século XV-XVI. In: Actas do Congresso Internacional de História – Missão Portuguesa e Encontro entre
Culturas. VIII. Universidade Católica Portuguesa. Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos
portugueses. Braga. Fundação Evangelização e Cultura. 1993.p.189.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3

Fernão Lopes, redige, então, com base nestes preceitos a Crónica de D. João I, durante o
reinado de D. Duarte. A produção deste cronista se enquadra no esforço de propaganda da realeza deste
“discurso do paço”, já que em suas crônicas ele procura legitimar uma concepção de poder através de
sinais da providencia divina que se associam ao curso dos acontecimentos, levando, assim, ao advento
da nova dinastia encabeçada pelo Mestre de Avis.
É importante ressaltar aqui que esta leitura do suposto messianismo de D. João I, empregada
pelo cronista se trata de uma construção da memória dos reis e do reino feita muito posteriormente aos
fatos narrados. É através da crônica de D.João I que se constrói a figura do messias de Lisboa, graças
ao empenho de Fernão Lopes na construção deste mito. Para isso, o cronista insere em seu texto uma
série de elementos para-religiosos que realçariam o papel do Mestre de Avis no desenrolar dos
acontecimentos posteriores a 1383.
Um destes elementos que Fernão Lopes usa é o resgate de referências do Novo Testamento ao
insinuar uma identificação de D. João com Cristo, de Nuno Álvares com São Pedro e dos chefes
militares que aderiram à causa de Avis como os apóstolos. Aliado a isso, vemos que se concede a Nuno
Álvares e seus companheiros a missão de pregar pelo reino o chamado “evangelho português”5.Para
entender os elementos religiosos contidos neste “evangelho português” é preciso nos lembrar que neste
fim de século XIV a cristandade se encontrava dividida pelo grande cisma do Ocidente. O evangelho,
dentro desta conjuntura, se mostrava como uma referência à fidelidade ao papa Urbano VI, considerado
“legítimo”, em oposição ao antipapa apoiado por Castela.
A associação da causa de D.João I com a defesa do pontificado do papa romano permitiu a sua
apresentação, através da Crónica, como um salvador, cujo papel era redimir o povo português do
domínio do Anticristo, que era identificado na figura do rei de Castela, apoiado pelo papa de Avinhão.
Entretanto, este “evangelho português” não possuía somente elementos religiosos. Fernão Lopes
também procurava associar aqui a idéia de defesa do próprio reino, fazendo com que a causa dessa
defesa do reino se beneficiasse pela proximidade com a causa da defesa de Urbano VI6.
Um efeito semelhante a idéia de defesa do reino também era alcançado com a equiparação da
guerra contra os mouros com a guerra contra Castela. Fernão Lopes mostra tanto mouros como
castelhanos como “inimigos da terra”. A guerra contra Castela assume, assim, no relato, um importante
papel na estruturação de um sentimento de pertencimento dos portugueses em relação ao reino.
Proclamada a paz com os castelhanos em 1411, a coesão social que o conflito possibilitava passa a ser
configurada através da guerra contra o muçulmano. É ainda dentro desta perspectiva de combate contra

5
LOPES, Fernão. Crónica de D. João I. Barcelos. Livraria Civilização, 1990. Cap. 160.
6
SARAIVA, Antônio José. O Crepúsculo da Idade Média em Portugal. Lisboa. Gradiva. p.171-172.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4

um suposto inimigo que se encontra, pelo menos dentro do espaço das mentalidades, o processo de
expansão em direção à África e a própria conquista de Ceuta.
Alem do “evangelho português”, na Crónica de D.João I, Fernão Lopes traz uma alegoria do
tempo e da história que ele apresenta como sendo o advento de uma “sétima idade”7. Esta idéia é um
resgata uma concepção da história humana em seis períodos capitais, presentes nas obras de Beda e de
Eusébio de Cesaréia, mas o cronista acrescenta livremente uma sétima idade, que se inicia no tempo do
mestre de Avis e deveria perdurar até o fim dos tempos, garantindo assim, a estabilidade do reino
português frente a seus inimigos. É esta nova idade que marcaria o inicio de novos tempos governados
pela nova dinastia8.
Após quase 50 anos de governo, D. João I morre em 1433, sendo sucedido por seu filho, D.
Duarte. D. Duarte reinou em Portugal de 1433 a 1438. Ao subir ao trono já tinha 42 anos, mas contava
com uma ampla experiência administrativa uma vez que vinha associado ao governo de seu pai desde
14129. D. Duarte foi um dos personagens centrais no que diz respeito à produção de uma literatura e de
uma memória da dinastia de Avis, além de ser um dos principais teóricos e juristas do seu período10. A
imagem que temos do rei Duarte é a de um rei culto e letrado, um pensado, um homem muito
ponderado em suas decisões e que desempenhou um papel fundamental na construção da imagem régia
da nova dinastia. É D. Duarte que nomeia Fernão Lopez como cronista mor do reino, após este ter
trabalhado por anos como seu escrivão.
Apesar de suas supostas qualidades, a historiografia associa freqüentemente o reinado de D.
Duarte à frustrada campanha de conquista do Marrocos, que culminou na derrota dos portugueses em
Tânger, ficando o infante D. Fernando prisioneiro dos mouros. Mas é preciso relembrar, antes de tudo,
que foi sobre o governo de D. Duarte que se iniciou, de forma mais expressiva, a expansão marítima.
Foi quando se discutiu internacionalmente a posse do arquipélago das Canárias e foi quando se efetivou
a passagem do cabo Bojador.
Contudo, logo após o desastre de Tanger, durante uma epidemia de peste o rei D. Duarte morre,
em 1438, legando em testamento a regência do reino nas mãos de sua viúva D. Leonor, até que seu
filho, D. Afonso V, atingisse a maioridade. Mais uma vez a regência de uma rainha não foi vista com
bons olhos pelos por grande parte da nobreza de terra. A rainha gozava de muito pouca popularidade e

7
Ibid. Cap 163.
8
Ibid. Cap.163. p.350.
9
D Duarte é associado ao governo em 1412, quando D. João I se retira para dedicar-se pessoalmente aos preparativos da
invasão de Ceuta.
10
FERREIRA, Roberto Godofredo Fabri. O novo tempo e a origem dos novos tempos – a construção do tempo e da
temporalidade nos primórdios da dinastia de Avis (1370 a 1440). V. 2. Tese de doutorado, UFF, Niterói, 2003, p. 251.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5

os concelhos consideraram até uma possível repartição do poder entre a rainha e o infante D. Pedro,
irmão de D. Duarte11. Só que, depois de uma rebelião em Lisboa contra D. Leonor, todo país parecia
apoiar o infante D. Pedro. Não demorou para no ano seguinte, durante as cortes de 1439, o infante fosse
finalmente nomeado regente.
A obra cuja autoria também é atribuída ao Infante D. Pdero, o livro da Virtuosa Benfeitoria,
continua seguindo o estilo de prosa característica da dinastia de Avis, com seu caráter pedagógico-
moralístico, servindo também como um manual para os governantes. Este estilo perpassará a regência
do infante D. Pedro, chegando até os reinados de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel, às portas do
século XVI.

11
No regimento do reino de 1438.

Você também pode gostar