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GONÇALVES, José Reginaldo Santos.

A
RETÓRICA DA PERDA. OS DISCURSOS DO
PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL . RIO
DE JANEIRO: UFRJ/IPHAN, 1996.

Resenha por
Elizabete R. de C. Martins
Professora Assistente – PROUB/FAU-UFRJ.
Doutoranda EHESS – Paris
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/
PROURB/UFRJ.

No final deste século, as proposi- transformação em “Áreas de Proteção


ções pertinentes ao tratamento das cidades Ambiental e Cultural” — APACs. Estas susci-
voltam à questão da Requalificação dos taram, ou deveriam tê-lo feito, a “antiga”
lugares públicos, onde se desenvolvem as questão do tratamento de espaços “pa-
práticas sociais cotidianas. Podemos citar, trimoniais”, já que a heterogeneidade de
como exemplo, o caso concreto dos proje- suas conformações, históricas ou tipológicas,
tos destinados aos diferentes bairros “for- dentre outras, indica naturalmente que seus
mais” da cidade, incluindo também aque- tratamentos devam ser individualizados,
les cuja pretensão é a de se transformarem geradores, portanto, de metodologias espe-
de “informais” em “formais”, tal como a que cíficas — cada área é uma área. Isso nos
se apresenta nas tão conhecidas favelas do induz à busca do conhecimento apro-
Rio de Janeiro. Com isto, tornaram-se usuais fundado das intenções que permearam
estudos minuciosos, que buscam a continui- todo o processo de estruturação e constru-
dade morfológica da cidade, apagando-se ção do nosso tão polêmico, complexo e
os diferentes “refrães” da tabula rasa contraditório Patrimônio Nacional.
desencadeada no início deste século por E, para o aprofundamento da ques-
Pereira Passos. O século iniciou-se com a tão, A Retórica da Perda, de José Reginaldo,
destruição, mas finaliza com a recuperação. constitui bibliografia essencial, pois, como
Neste “avanço” reflexivo, preocu- indica o próprio subtítulo, ele aborda esta
pações especiais recaem sobre o tratamen- interpretação dos discursos dos idea- 117
to dos fragmentos da cidade que, na déca- lizadores do patrimônio brasileiro, identifican-
da de oitenta, se particularizaram com sua do-os como intelectuais e exibindo suas
concepções de “identidade” e “memória” — Quem tem autoridade para di-
durante o processo, quando arquitetavam zer o que é e o que não é patrimônio cultu-
a construção que frutificaria no Patrimônio ral brasileiro?
Cultural Brasileiro como tradução da ima- — Quem tem autoridade para
gem da nação. O autor é cientista social, preservá-lo?
doutor em antropologia pela Universidade — Como esta autoridade é cultu-
da Virgínia e é a partir de sua tese, num lon- ralmente constituída?
go processo de amadurecimento, que foi Perseguindo seu objetivo, no segun-
gerado A Retórica da Perda. do capítulo — A Identificação do Brasil —,
O fio condutor de sua diretriz teóri- ele mostra como os intelectuais responsáveis
ca é a definição de que as construções pela criação do patrimônio cultural identifi-
discursivas são consideradas como“atos”, o caram a representação da nação brasilei-
que lhe permite contextualizar a maneira ra, o que faz, elegendo, dentre estes intelec-
como estes intelectuais, ao definirem “iden- tuais, os dois nomes indicados para imple-
tidades” e “memórias” para a nação, fazi- mentação das políticas que visavam à iden-
am-no segundo determinados códigos tificação da nação: Rodrigo Melo Franco de
socioculturais, com“propósitos pragmáticos Andrade e Aloísio Magalhães. Explora as
e políticos”, por ele definidos como “estra- diferentes estratégias discursivas desta inven-
tégias de objetificação cultural”, para, en- ção cultural, explicitando como “o Brasil é
tão, logo a seguir, usar a idéia de Kenneth objetificado de certo modo e segundo de-
Burke das“telas terminológicas”. O autor não terminados propósitos” por estes “guardiães
somente descortina o processo, como tam- desse patrimônio”. Contrapondo, portanto,
bém assinala as conseqüências deste pro- a veracidade das estratégias, esclarece suas
cedimento, ou invenção cultural, “em ter- utilizações para “autenticar a existência do
mos de práticas sociais”, ou em termos de Brasil”.
“ação simbólica”. Subdividido em seis ca- No terceiro capítulo — A Apropria-
pítulos, é um livro com extensa bibliografia ção da cultura nacional — identifica-se o
de referência. modo como eram percebidos e “apropria-
O primeiro capítulo — O Patri- dos” os bens indicados para salvaguarda
mônio cultural e narrativas nacionais — é patrimonial, que se constituiriam na imagem
inteiramente dedicado ao desenvolvimen- da cultura nacional. Este capitulo é dedica-
to do campo conceitual, que, por sua vez, do à reafirmação da dualidade destes olha-
se subdivide em cinco partes, procedimen- res ou intenções de apropriação: “Ao ex-
to usual nos demais capítulos. Nessas cinco plorar o modo como as narrativas de Rodrigo
partes deste capítulo, ele expõe, passo a e Aloísio descrevem as políticas oficiais de
passo, sem“hermetismos”, as noções empre- preservação, focalizo o papel da apropria-
118 gadas na construção global da obra. É tam- ção enquanto estratégia concebida para
bém neste capítulo que coloca as principais se contrapor ao que, nesse contexto narra-
questões: tivo, representa dispersão e destruição da
cultura nacional”. tora, a cada descobrimento do Brasil. “Por
No quarto capítulo — A Retórica da um lado, eles redescobrem uma cultura bra-
Perda — assinala que estes discursos se sileira como uma entidade preexistente,
estruturavam tendo em vista a presença coerente e contínua; mas por outro, desde
constantemente “dramatizada” das perdas que objetificam a nação como uma inter-
dos bens de valor cultural, que ameaçam a minável busca, suas redescobertas do Bra-
estabilidade da identidade da nação. Inter- sil, simultaneamente, são e não são”.
preta as políticas de preservação como No último capítulo — Os usos da
“performances alegóricas”, mostrando no objetificação cultural —, ele retoma do pri-
discurso de Rodrigo de Melo Franco o desa- meiro a noção de objetificação, desta vez
parecimento de monumentos, sítios históri- com a preocupação de expor um viés mais
cos e objetos “relíquias”; há, nele, um elen- “prático”. Sem intenção conclusiva, que
co de termos utilizados para criticar enfati- não é seu propósito, pois instiga à continui-
camente as renovações urbanas, e atribui- dade de outras pesquisas, porém no senti-
se à“indiferença da população” a culpa por do de deixar seu próprio registro: “minha
tal situação. Em contraposição, no discurso expectativa foi a de deslocar o foco dos
de Aloísio Magalhães, a “perda” atrelava- debates, muitas vezes centrados em cate-
se ao avanço tecnológico entendido como gorias objetificadas, como as de “cultura”,
agente nivelador e homogeneizador, que se “sociedade”, “nação” e “história”, para as
pretende universal e que elimina, portanto, estruturas narrativas, ou para as “telas
as diferenças culturais que fazem a riqueza terminológicas” (Kenneth Burke) por meio
de uma nação. “O patrimônio histórico e das quais essas noções se transformam em
artístico” nacional, no discurso de Rodrigo, fatos sociais”.
os “bens culturais”, no discurso de Aloísio, A contribuição do livro de José
jamais poderiam ser concebidos como frag- Reginaldo não se restringe somente ao
mentos, se não fossem classificados previa- aprofundamento do tema Patrimônio Cultu-
mente como parte de uma totalidade dis- ral, mas sobretudo se destaca pela contri-
tante no espaço ou no tempo. Essa totali- buição teórica e metodológica extrema-
dade, no entanto, somente existe enquan- mente significativa para o aprofundamento
to uma promessa sempre adiada e jamais de reflexões no campo da arquitetura e ur-
cumprida”. E, no mote das perdas, nos dis- banismo. Na atualidade, o “discurso” foca-
cursos patrimoniais, encontra-se a origem do liza os projetos de Requalificação pública
título da obra. dos espaços cotidianos. A contribuição da
No quinto capítulo— Redimindo a análise“descentralizada”, proposta por José
Nação : O Brasil em busca de sua identida- Reginaldo, certamente muito enriquecerá as
de — ele desenvolve a idéia de que a per- pesquisas calcadas nos aspectos morfo-
da extremamente enfatizada nestes discur- lógicos e tipológicos dos espaços de estu- 119
sos aparece como sustentação da idéia, do. A adição diferenciada “objetificando”
quase “messiânica”, da “esperança” reden- os discursos oficiais em contraposição aos
não oficiais, entendidos como“fatos sociais”
cria um novo espectro de estudos que per-
seguem a linha analítica dos aspectos
socioculturais. As partes enquanto fatos so-
ciais sublinharão suas diferenças e des-
cortinarão a heterogeneidade da forma
material que se traduz na cidade. Esta, pois,
será entendida não somente sob o aspecto
frio de sua forma material, mas também será
aquecida com o casamento de seu par
imprescindível — a forma social.“A cidade,
mais do que um conceito de análise, é sem
duvida uma categoria da prática social”,
escreveu Marcel Roncayolo.
Um caso a pensar!

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