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PROSA PORTUGUESA E LUSÓFONA CONTEMPORÂNEA

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As décadas de 60-70

 O romance português das décadas de 1960 e 1970 reflete de um modo indireto a realidade social e política portuguesa,
atravessada por um intenso efeito de contestação e desconstrução das instituições dominantes do Estado Novo, de fortíssima
crítica à situação de Guerra Colonial (1961-1974), de crítica à situação económica do país, de reprovação da ausência efetiva
das liberdades fundamentais.
 O romance português opera uma autêntica revolução formal e ideológica
 Contestando as categorias tradicionais da composição clássica do romance
 subvertendo as unidades de tempo e de espaço,
 autonomizando a categoria de tempo da de espaço
 substituindo a ação e a intriga pela reflexão subjetiva e ensaística do narrador ou das personagens.
(apud Real, Miguel, O Romance Português Contemporâneo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 2012.)

 Marcadas pela consciência da crise humanista e cultural, a literatura e as outras artes iniciam uma viragem importante na
concepção da representação.
 Criam-se novas modalidades de narrativa que, se por um lado têm afinidades com correntes existentes noutras literaturas (a
francesa, a norte e a latino-americanas), por outro lado manifestam uma identidade portuguesa: uma maneira própria de sentir,
de intervir e de estar no mundo e na literatura.
 Ao longo dos anos 60 sobressai uma prática de variados experimentalismos (confluência de elementos diversos).

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 as obras experimentalistas integram uma tonalidade existencialista, ou uma lógica surrealista na construção do discurso e na
linguagem,
 outras, inseridas no patamar do realismo social têm caraterísticas evidentes de experimentalismo na narrativa e na linguagem,
como ainda de pensamento existencialista se mostram sensíveis a problemáticas sócio-políticas.
 O perspetivismo narrativo ganha uma nova e quase absoluta legitimidade: todas as narrativas refletem pontos de vista, tudo é
perspetiva sintática e semântica e, portanto, todas as estruturas narrativas são legítimas.
 se tudo é perspetiva e se tudo se iguala a tudo, então narrador, espaço, tempo, ação, personagens entrecruzam-se
labirinticamente, confundindo-se mutuamente, deixando no ar a ideia de tudo ser romance porque tudo é texto.
(apud Real, Miguel, O Romance Português Contemporâneo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 2012.)

Urbano Tavares Rodrigues (n. 1923-2013) - escritor prolífico, considerado um dos maiores autores portugueses contemporâneos.
 A sua escrita reflete o diálogo entre a consciência individual e a social, com o objetivo de fazer o indivíduo capaz de
reconhecer a sua identidade política no interior da sociedade.
 Frequentemente de ambiente cosmopolita, os seus textos tratam situações em que o amor, a solidão, o sentido da vida, o medo,
a morte, a responsabilidade e a culpa, são problemas centrais que claramente ligam Urbano a um pensamento de raiz
existencialista.
 temas como o incesto, o ciúme, conflito de gerações, aventuras amorosas, são os contextos onde aflora a consciência de uma
sociedade e de uma cultura em crise, a procura de uma ética fundamental, a atitude fortemente hedonista e erótica, tão
presentes na sua obra.
 As suas personagens - visão do mundo, inconformista e crítica, veio de um realismo social que o autor nunca abandonou.

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 preocupação social → predilecção por ambientes sociais desprivilegiados, na identificação dos narradores com esses
ambientes, na sua má consciência social e política, com a consequente culpabilização própria e o sentido da responsabilidade
individual e coletiva.
 A temática da sua obra:
 A denúncia das condições de vida dos oprimidos
 A esperança no projeto coletivo
 O drama da irremediável solidão do indivíduo e o sem-sentido da vida que o «acaso e o absurdo desgovernam» (Violeta
e a Noite).
 O autor recorre com frequência a situações-limite para encenar esses temas:
o a excepcional «vaga de calor» que transforma tudo e todos, potenciando a subversão da rotina e da sua falsa ordem
o a ngustiante viagem de Hélio, alegórica travessia de um espaço exterior e interior, em Filipa nesse Dia
o o suicídio, a doença, a eutanasia.

 A escrita – objeto de tematização na obra de Urbano que cada vez assume a auto-devoração como limite último da criação.
 O seu próprio percurso: os escritores «alimentam-se da vida e das pessoas que se lhes revelam ou que eles adivinham,
misturam, trituram, até se devoram a si próprios» (Violeta e a Noite)
(História da Literatura Portuguesa. As Correntes Contemporâneas, dir. Óscar Lopes, Maria de Fátima Marinho,vol.7, Lisboa, Publicações
Alfa, 2002.)

 Situados na linha de um realismo ético, em que transpare sempre a revolta contra a opressão e o obscurantismo, os seus
romances mobilizam uma pluralidade de conhecimentos (psicanálise, filosofia, sociologia) e informações (o profundo
conhecimento de certos ambientes, hábitos, tradições, aspirações) que se vão atualizando na construção de intrigas que
transmetem de maneira convincente o sentimento daquilo que já foi vivido, experimentado, conhecido.

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José Cardoso Pires (1925-1998) publica O Delfim em 1969, consensualmente reconhecido como o seu melhor romance e um dos
mais belos romances escritos em língua portuguesa na segunda metade do séc. XX.

 A abertura do romance é fabulosa pela revelação de um universo formal radicalmente diferente do praticado em Portugal:

a. Ausência de um narrador fixo, substituído por um processo narrativo de construção testemunhal dos factos;
b. Ausência de factos absolutos, totalmente conhecidos, substituídos pelo perspetivismo narrativo;
c. A introdução do parêntesis nas primeiras linhas, com abrupta interrupção da narrativa para se apresentar um facto de memória,
indiciando ser a narrativa mais composta de anotações, observações, versões, perspetivas, do que de factos esclarecidos.

 Cruzamento de uma pluralidade de perspetivas ou versões testemunhais, criando propositadamente um labirinto de


interpretações
 O Delfim evidencia a decadência do Portugal rural e a emergência dos «camponeses-operários» presentes no romance, isto é,
da acelerada industrialização do país na década de 60.
 Narrativa que avança fragmentariamente, entrecruzando, e por vezes fundindo, as três dimensões do tempo, subvertendo assim
a cronologia realista
 o romance foi classificado pelo autor como «obra aberta», no sentido do romance voluntariamente inacabado, já que se
desconhece a causa da morte da esposa do protagonista, Tomás Manuel da Palma Bravo, engenheiro, o «undécimo», o
«delfim», herdeiro da casa da Gafeira e do vasto território da Lagoa.
 O Regedor afiança não ter havido crime, mas a infertilidade do casal Palma Bravo – simbolizando simultaneamente o
bloqueamento da dinastia familiar latifundiária e o bloquamento político e social do regime – e a infidelidade da esposa com o
criado mestiço e maneta Domingues, indiciam o assasínio desta pelo marido. Assim terá acontecido? Não terá assim
acontecido? A resposta será dada pelo leitor e não pelo narrador.
(apud Real, Miguel, O Romance Português Contemporâneo, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 2012.)

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 O Delfim - obra de construção muito complexa. Um escritor de Lisboa vem à Gafeira - aldeia perto do mar, onde tem o seu
amigo engenheiro, o Delfim, que tem mulher (Maria das Mercês) e um criado maneta – para aí registar as memórias da
terra e de quem nela vive ou viveu. É uma aldeia que tem, dominante, um lago – ilha de vida e de morte, mistério e centro
mítico do lugar.
 Este escritor anota elementos num Caderno de Apontamentos que lhe servirão, diz, para escrever um romance. Mas uma
viragem rápida acontece na terra: adultério da Maria das Mercês, assasínio do criado por Maria das Mercês, suicídio desta
ao lado da lagoa, entrada do engenheiro, sem se saber bem como, num círculo de crime. Nada disto é claro, porém. Tudo se
sabe por partes e até ao final de forma incompleta e ambígua.
 a narrativa não é tanto o contar desta história ou das memórias do narrador; é antes o contar da forma como a história se
escreve.
 Há uma encenação do ato de escrita, com elementos que sugerem rigor documental (recurso ao caderno de apontamentos, a
jornais, a informações de testemunhas), → efeito de verosimilhança.
 Não existe omnisciência do narrador
 a escrita ponteia-se pelo cruzamento de perspetivas, vindas de muitos lados.
 Sempre há o olhar e o ouvido do narrador e os das personagens: atentos em simultâneo à realidade plural, descrevendo-a
assim multifacetada, narrando em ziguezagues – de um tempo para outros, de um lugar para muitos mais, do olhar de uma
personagem para outro.
 o próprio narrador - a mudança constante de uma atividade para outra – da escrita à caça, à escrita da caça (caça real e caça
policial), da observação/invenção à consulta de testemunhos (ficcionais) ao seu registo, em grande medida irónico –
reflete-se na composição não sequencial do tecido narrativo.
 Este dá a impressão de «um jogo cheio de regras» que se descobrem não à superfície mas nos subterrâneos do texto.

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 o apelo ao «Jogo do olhi vivo» de que falam duas das personagens (escritor e padre) é também, o apelo que o texto faz ao
leitor para que tire as ilações (deduções) sempre deixadas em suspenso pelo narrador/autor.
 Curiosamente, a certa altura e de forma inesperada, o fulcro do narrado move-se e as personagens trocam de papeís: os
comparsas passam a ser os protagonistas. Ou seja, o suicídio da mulher depois do assassinado o criado, a derrota do delfim,
mostram-se como derrota do poder vigente.
 E é o povo que, a partir de então se torna senhor do centro: é que a lagoa – fulcro de tudo – fica na posse do povo; por isso,
este festeja a tragédia dos delfins, em orgia de enguias e de caça, com o sabor do poder e da apropriação nas mãos.
 Estamos perante uma viragem, política afinal, que o livro implicitamente diz.
 A linguagem de Cardoso Pires é fortemente imaginativa, cheia de alusões, metáforas, gerando constantes ambiguidades
significativas e atravessada por um sentido de humor e uma ironia culta e inteligente.
(História da Literatura Portuguesa. As Correntes Contemporâneas, dir. Óscar Lopes, Maria de Fátima Marinho,vol.7, Lisboa, Publicações Alfa, 2002.)

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Dinis Machado, O que diz Molero, 1977.

 O que diz Molero é uma das mais marcantes experiências literárias da década de 70.
 O propósito de encenar vários estratos de um dizer aglutinados na procura de uma «palavra-origem» é viabilizado pela própria
intriga: as personagens, Austin e Mister DeLuxe analisam (e interpelam) um relatório redigido por Molero sobre um outro
texto, a «obra poética do rapaz» intitulada «Angel Face».
 Molero é a mediação, o lugar de intercepção
 de dois mundos: o burocrático-jurídico e o popular
 de duas funções: a inquiridora e a estética presença-ausente de uma tentativa de comunicação que atravessa sucessivas
esferas e patamares.

 O produto textual é a escrita de escritas, jogo de reflexos, de reenvios, num texto saturado de referências, de remissões e de
cumplicidades estéticas e culturais, percurso vertiginoso pelo munda da linguagem e do intertextual.
 Fortemente marcado por uma riqueza imagética, por um poder de visionação e por uma vertente lúdica.

 O que diz Molero propõe um novo caminho para o discurso romanesco, uma velocidade e um modo novos de utilizar a
palavra, de desmontar a história e os mecanismos da criação. (História da Literatura Portuguesa, op. Cit.)

 a narrativa desenvolve-se a partir do diálogo entre duas personagens, Mister Deluxe e Austin, sobre o que diz uma outra
personagem ausente, Molero, num relatório sobre um rapaz.

 A análise feita pelos dois interlocutores do relatório de Molero sobre a vida e sobre o livro escrito pelo rapaz, Angel Face, é o
ponto de partida para a multiplicação de comentários, digressões, histórias contadas pelos interlocutores, por Molero ou pelo
rapaz, numa estrutura em mise en abîme, que implica, ao longo dos três níveis locutórios, o contínuo diferido sobre o que é
dito, contado, pensado ou feito, por uma multiplicidade de outras personagens fixadas no imaginário do rapaz.

 estrutura mirabolante

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 um livro sobre o que duas personagens dizem sobre o que diz Molero num livro sobre um rapaz, na verdade, menos sobre o
rapaz do que sobre o que disseram ou fizeram personagens que marcaram a infância e existência do rapaz: os pais do rapaz,
uma tia louca, o Vampiro Humano, o Descoiso, o Zuca, Evaristo, Leduc, o Eremita das Mãos Frias, Cláudio, etc.

 Apesar do encaixe dos discursos, cada um dos níveis desenvolve a sua autonomia e liberta-se do hipotexto que o gera: é assim
que o relatório de Molero se encontra anotado a lápis pelo próprio Molero e constitui, para além do seu esforço mimético de
registo, reconstituição, explicação da obra do rapaz, a oportunidade de tecer considerações pessoais de vária ordem, de se
divertir com pormenores subsidiários, de compor alguns trechos que acusam uma "forma sofisticada de nausée (p. 64);

 ao mesmo tempo, os dois interlocutores que recebem a avalancha de mitos culturais, de dúvidas, de pensamentos, vão sendo
possuídos por um sentimento de saturação das aquisições humanas e tomando, a pouco e pouco, consciência, como
aspersonagens de Beckett, de uma condição humana absurda ("a gente nem sabe do que as pessoas são capazes para iludirem
a ausência de um sentido para a vida, para escaparem à miséria ou ao peso dos outros", p.61).

 Adaptada ao teatro por Nuno Artur Silva, em 1996, tudo nesta narrativa apontava com efeito para a sua encenação:
o a indeterminação do tempo histórico, remetido para momentos da vida e da infância do rapaz, impunha como balizas temporais
precisas um tempo do discurso que coincide com o início e o fim do diálogo entre Austin e Deluxe;
o a redução do espaço a um cenário onde se situam os interlocutores, mesmo se evocador de outros espaços por onde passou o
rapaz;
o o alucinante encaixe de narradores (um narrador conta o que duas personagens contam sobre o que Molero conta sobre o que o
rapaz conta), que em última análise põe em causa a existência de uma voz narrativa em benefício de múltiplas interpretações e
mediações no acesso à realidade;
o a ausência de uma intriga, reduzida ao "enigma" sobre o rapaz constituído por Molero ou às várias histórias contadas;
o a eliminação de capítulos, substituídos por espaços brancos que marcam as pausas da conversa, antes de ser relançada por uma
associação de ideias, de palavras, ou pelo desfolhar do relatório;
o o facto de todas as personagens só existirem enquanto suportes de um discurso, que versa sobre personagens que se encontram
fora do discurso, porque as suas histórias são diferidas por outro discurso;
o e, em suma, o facto eminentemente teatral de o conteúdo de O Que Diz Molero se resumir a palavras ditas, fixadas oralmente
num tempo presente ou reportadas a um tempo passado, em discurso direto ou indireto.

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 A narração comunga, com efeito, das caraterísticas estilísticas usadas por Molero no relatório, nomeadamente, "o fascínio da
oralidade, a linguagem solta, pretensamente feérica, elaboradamente descuidada, a cantata do vocábulo popular, a
envolvência rítmica, a construção sincopada, musical, [...]a prosa festiva, galopante de frases que geram frases e que
repescam outras, abrindo ou fechando janelas sobre a narrativa" (p. 144). Por esse triunfo da oralidade e por "uma imagística
ligada ao mundo da marginalidade cultural do Ocidente", pelo reflexo de uma "mitologia vivida da conotação
cinematográfica [...], uma poesia do quotidiano feérico de uma capital de segunda mão em matéria de imaginário onde todas
as "imagens"dos outros se volvem em mitos caseiros de prodigiosa dinâmica pícara", e pelo êxito com que foi recebida,
Eduardo Lourenço vê nesta obra um indício das novas relações entre texto contemporâneo e cultura, ou, pelo menos, um
exemplo representativo do relevo assumido por "uma nova cultura" que já não recebe da modelação escolar os seus tópicos
decisivos" (cf.LOURENÇO, Eduardo - O Canto do Signo, Lisboa, 1994, p. 281).

 O Que Diz Molero compõe a história do Homem contemporâneo, situado num tempo posterior à rutura entre linguagem e
realidade (operada por "Erculano", quando inaugurou a espera da "palavra-resumo, também palavra-origem, ou palavra-
madrugada, [...] a palavra-espelho de um Narciso feito de negações sucessivas, ignorando tudo o que estivesse além de si
mesmo" (p. 89), submerso por todos os discursos recebidos ao longo da história e para quem a palavra, carregada com tantos
sentidos, parece já não ter sentido nenhum que não o da sua impotência.

 o relatório fala não do rapaz mas "da outra parte da verdade que se escapa [...], fala da vida que se esconde em cada ser, do
fluido em que essa vida continuamente se perde e reencontra, esse universo privado de sensações subtis que perseguimos e
que nos perseguem [...], o relatório omite tudo o que ele, Molero, não sabe, apenas entrevê às vezes no seu emaranhado de
notas, de observações, de ideias, de associações de ideias, ficando, de qualquer modo, e para sempre, a certeza de que falta
uma parte vital dessa vida, a sua substância mais alada [...], o relatório é apenas um esforço orientado numa linha
eminentemente superficial (...)", p. 65). Austin, Mister Deluxe, Molero ou Rapaz; O Que Diz Molero, Relatório, ou Angel
Face, o eu é o outro e é o mesmo, estilhaçado, igual e diferente do que cria, igual e diferente da imagem construída pelos
outros, real e ficcional.
(O Que Diz Molero in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2019. [consult. 2019-03-08 14:27:09]. Disponível na
Internet: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$o-que-diz-molero)

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