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Caminho dos ascetas:

iniciação à vida espiritual


Tito Colliander
Conteúdo:
1. Decisão inicial e perseverança
2. A insuficiência das forças humanas
3. A horta do coração
4. Um combate silencioso e invisível
5. A renúncia de si mesmo e a purificação do coração
6. É preciso extirpar o desejo do gozo
7. É necessário transferir ao cristo o amor por nós mesmos
8. É necessário estar sempre vigilante contra as repetidas ofensivas do inimigo
9. A vitória sobre o mundo
10. Os pecados dos outros e os nossos
11. O combate interior é apenas um meio a serviço de um fim
12. A obediência
13. Progresso e profundidade
14. Humildade e vigilância
15. A oração - I
16. A oração - II
17. A oração - III
18. A oração - IV
19. A sobriedade do corpo e do espírito, condição da oração
20. O jejum
21. É preciso evitar o exagero
22. Do uso das realidades materiais
23. Os momentos de escuridão
24. A respeito de Zaqueu
25. A oração de Jesus
26. A pérola de alto preço

1. Decisão inicial e perseverança


e queres salvar tua alma e conseguir a vida eterna, sacode o teu torpor, faz o sinal
da cruz e diz: «Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.»

Não se obtém a fé pela reflexão, mas pela ação. Não são as palavras e a
especulação que nos ensinam quem é Deus, mas a experiência. Para deixar entrar o ar
fresco, é preciso abrir a janela; para bronzear a pele, é preciso expor-se ao sol. Para
adquirir a fé, é a mesma coisa; como dizem os santos Padres, não se chega ao objetivo,
permanecendo confortavelmente sentado, esperando. Imitemos o filho pródigo: "Partiu,
então, e foi ter com o pai" (Lc 15:20).

Qualquer que seja o peso e o número de cadeias que te acorrentam à terra, nunca é tarde
demais. Não é sem motivo que está escrito que Abraão tinha setenta e cinco anos
quando partiu; e os operários da undécima hora receberam o mesmo salário que os que
trabalharam desde a manhã.
E também, nunca é excessivamente cedo. Nunca é cedo demais para apagar um
incêndio na floresta. Gostarias de ver tua alma devastada e queimada?

No batismo, recebeste a ordem de te lançares num combate invisível contra os inimigos


da tua alma. Põe mãos à obra. Há bastante tempo, usas de subterfúgios. Mergulhado na
negligência e na preguiça, desperdiçastes um tempo precioso. Só te resta recomeçar do
princípio, porque lamentavelmente deixastes que se empanasse a pureza que recebestes
no batismo.

Começa, pois, a trabalhar desde já, sem demora. Não adies a tua decisão para hoje à
noite, para amanhã, para mais tarde, "quando eu tiver terminado o que preciso fazer
agora." Um atraso pode ser fatal.

Não; é agora, no mesmo instante de tomar a decisão, que deves mostrar pelos teus atos,
que te despedistes do teu velho "eu" e que acabas de começar uma vida nova, à procura
de um novo objetivo, seguindo novos caminhos. Levanta-te, pois, corajosamente, e diz:
"Senhor, concedei-me que comece agora. Ajudai-me!" Porque, acima de tudo, tens
necessidade da ajuda de Deus.

Persevera em tua decisão, e não olhes para trás. Que o exemplo da mulher de Ló te sirva
de lição: ela se transformou em coluna de sal, por ter olhado para trás (cf. Gn 19:26).
Abandonastes o homem velho: não retomes o que é desprezível. Como Abraão, ouviste
a voz do Senhor que te disse: "Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, para o
país que te mostrarei" (Gn 12:1). De agora em diante, é nesse país que se deve
concentrar toda a tua atenção.

2. A insuficiência das forças humanas


Dizem os santos Padres, todos a uma só voz: "A primeira coisa que deves inculcar no
espírito é que nunca, de modo algum, te deves apoiar em ti mesmo. O combate que vais
enfrentar é extraordinariamente árduo, e as forças humanas, sozinhas, são de todo
insuficientes para conduzi-lo. Se confias em ti mesmo, serás derrubado de imediato, e
perderás toda a vontade de continuar a luta. Só Deus te pode dar a vitória, segundo o teu
desejo."

Para muita gente, a decisão de não colocar em si mesmo a confiança é um sério


obstáculo, que os impede de começar uma vez por todas. É necessário perseverar, sob
pena de abandonar qualquer esperança de ir mais longe. Com efeito, como poderá um
homem receber conselhos, formação e ajuda, se pensa que conhece tudo, pode tudo, e
não tem necessidade alguma de conselhos? Através de semelhante muro de suficiência,
nenhum raio de luz consegue passar. "Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e
inteligentes na sua própria opinião!" (Is 5:21); e São Paulo nos dá este conselho: "... não
vos deis ares de sábios" (Rm 12:16). O reino dos céus foi revelado aos pequeninos, mas
continua oculto aos sábios e aos doutores (cf. Mt 11:25).

Devemos, portanto, nos despojar dessa confiança imoderada que temos em nós mesmos.
Muitas vezes, ela está arraigada em nós tão profundamente, que já nem percebemos o
domínio que exerce sobre nosso coração. O nosso egoísmo, a preocupação com a nossa
pessoa, o amor próprio, são precisamente as causas de todas nossas dificuldades, de
nossa falta de liberdade interior na provação, de nossas contrariedades, de nossos
tormentos da alma e do corpo.

Olha um pouco para ti mesmo, e verás a que ponto estás aprisionado pelo desejo de dar
prazer ao teu "eu," e somente a ele. Tua liberdade está presa pelos laços estreitos do
amor por ti mesmo; assim, és balançado ao acaso, como um cadáver inconsciente, da
manhã à noite. "Agora, estou com vontade de beber," "agora, estou com vontade de
sair," "agora estou com vontade de ler o jornal." A cada instante, teus próprios desejos
te conduzem como por meio de uma rédea; e, se algum obstáculo se coloca no caminho,
imediatamente perdes a calma, sob o efeito da contrariedade, da impaciência ou da
cólera.

Se sondares as profundezas de tua consciência, descobrirás as mesmas coisas. O


sentimento de desagrado que experimentas, quando alguém te contradiz, possibilita
facilmente essa verificação. Vivemos, assim, como escravos. Mas "... onde se acha o
Espírito do Senhor, aí está a liberdade" (2Cor 3:17).

Que proveito poderás encontrar em gravitar assim, constantemente, em torno do teu


"eu"? Não nos ordenou o Senhor que amássemos ao próximo como a nós mesmos, e que
amássemos a Deus acima de todas as coisas? Mas, nós o fazemos? Não estamos, ao
contrário, sempre ocupados em pensar no nosso bem-estar?

Convence-te, pois, de que nada de bom pode vir de ti próprio. E se algum pensamento
desinteressado despertar em ti, podes estar certo de que não vem de ti, mas que deriva
da Fonte da Bondade, e que foi depositado em ti; é um dom daquele que dá a vida. Do
mesmo modo, o poder de fazer passar ao ato esse bom pensamento, não vem de ti, mas
te é concedido pela Santíssima Trindade.

3. A horta do coração
A vida nova, que acaba de começar, tem sido muitas vezes comparada à de um
agricultor. O solo que ele cultiva é um dom de Deus, como as sementes, o calor do sol,
a chuva e a força que faz crescer os legumes. Mas o trabalho lhe foi confiado.

Se o agricultor quiser obter uma colheita abundante, deve trabalhar de sol a sol, escavar,
afofar a terra, regar, podar, pois suas culturas são ameaçadas por muitos perigos que
comprometem a colheita. Deve trabalhar sem descanso, estar sempre alerta, sempre
preparado para o que der e vier, sempre pronto a intervir. E apesar de tudo isso, afinal
de contas, a colheita depende inteiramente do tempo e dos elementos, isto é, de Deus.

A horta que nos dispusemos a cultivar, e pela qual devemos velar, é o nosso próprio
coração; a colheita é a vida eterna.

Ela é eterna porque não é medida pelo tempo e pelo espaço; não está ligada às
circunstâncias exteriores. É a vida verdadeira, uma vida de liberdade, de amor, de
misericórdia e de luz. Não tem nenhum limite, e por isso é eterna. É uma vida espiritual,
que transcorre numa esfera espiritual. É uma nova dimensão da existência. Começa
neste mundo e não tem fim. Nenhuma autoridade terrestre tem poder sobre ela, e a
descobrimos no fundo do coração.
"Persegue-te a ti mesmo, diz santo Isaac, o Sírio, e teu inimigo será derrotado só pela
tua aproximação. Faze a paz contigo, e contigo farão a paz o céu e a terra. Esforça-te
para entrar na tua cela interior, e verás a morada celeste, pois elas são a mesma e única
coisa: penetrando em uma, contemplarás também a outra. A escada do Reino está em ti,
escondida no teu coração. Se te desfizeres do fardo de teus pecados, descobrirás em ti o
atalho que tornará possível a tua ascensão."

A morada celeste, de que fala o santo, é um outro nome da vida eterna. Também é
chamada Reino dos céus, Reino de Deus, ou simplesmente Cristo. Viver no Cristo, é
viver na vida eterna.

4. Um combate silencioso e invisível


Agora, que sabemos onde se deve travar o combate que acabamos de começar, e o que
está em jogo, resta-nos compreender por que o chamam "combate invisível." É que ele
se desenvolve inteiro em nosso coração, em silêncio, bem no fundo de nós mesmos.
Esse particular também é importante, e os santos Padres insistem sobre ele com
veemência: "Conserva os lábios bem fechados sobre o teu segredo!" Se abrirmos a porta
durante um banho de vapor, o calor vai-se embora, e o tratamento perde a eficácia.

Assim pois, não fales a ninguém da tua recente decisão. Não digas nada da tua nova
vida, nem das experiências que fazes, ou daquilo com que, um dia, esperas ser
favorecido. Deves tratar disso só entre Deus e ti, exclusivamente. A única exceção deve
ser teu pai espiritual.

O silêncio é necessário, porque falar com facilidade de seus próprios assuntos só pode
incitar à preocupação consigo mesmo, além de alimentar a confiança em si. Ora, são
tendências que devem ser reprimidas, antes de tudo. Graças ao silêncio, cresce a nossa
confiança naquele que vê o que está escondido; graças ao silêncio, falamos àquele que
ouve sem necessidade de palavras. Procura apenas dirigir-te a ele; é nele que deve estar
a tua confiança. Estás ancorado na eternidade, e na eternidade, toda palavra emudece.

De agora em diante, deverás pensar que tudo o que te acontece, importante ou não, te é
enviado por Deus, para ajudar-te no teu combate Só ele sabe o que te é necessário, e o
que te falta no momento presente: adversidade ou prosperidade, tentação ou queda.
Nada acontece por acaso; não há nenhum acontecimento do qual nada tenhas que
aprender. Deves compreender bem isso, desde já, pois é assim que aumentarás a tua
confiança no Senhor, que escolhestes seguir.

Os santos nos dão ainda um outro conselho para a caminhada: considera-te uma criança
que apenas começa a falar, e que esteja dando os primeiros passos. Toda a tua sabedoria
segundo este mundo, e todo o teu conhecimento, não têm utilidade para o combate que
te espera; tampouco te servem a situação social e os bens. Tudo o que se possui, e que
não é empregado no serviço do Senhor, é um fardo; um conhecimento do qual o coração
não partilhe é astéril e, logo, nocivo, uma vez que é pretensioso. Chamam-no "ciência
simples," porque é desprovido de calor e não alimenta o amor. Deves, pois, abandonar
toda a tua ciência, e tornar-te ignorante, para seres sábio. Deves tornar-te pobre para
seres rico, e fraco para seres forte.
5. A Renúncia de si mesmo e a purificação do coração
Desarmado, fraco e desprovido de poderes, empreende a mais difícil das tarefas: vencer
teus próprios desejos egoístas. É exatamente isso a "perseguição de si mesmo" de que
depende, finalmente, o resultado do teu combate; pois, enquanto a tua vontade egoísta
dominar, não poderás dizer ao Senhor com coração puro: "Que seja feita a tua vontade."
Se não te podes desfazer da tua própria grandeza, não poderás abrir-te à verdadeira
grandeza. Se te agarras à própria liberdade, não poderás tomar parte na verdadeira
liberdade, que é o reino de uma única vontade.

O mais profundo segredo dos santos é este: não procures a liberdade, e a liberdade te
será dada.

A terra não produzirá senão cardos e espinhos, diz a Escritura. É com o suor do seu
rosto, com muito sofrimento, que o homem deve cultivá-la. Esta terra é o homem
mesmo, sua própria natureza. Os santos Padres aconselham a começar pelas coisas
pequenas; pois, como diz Santo Efrém, o Sírio, como poderias apagar um grande
incêndio antes de aprender a abafar um fogo de pequenas proporções? Se queres ser
capaz de resistir a uma paixão violenta — dizem os santos Padres — abate os pequenos
desejos. Não creias que se possa separá-los uns dos outros: eles se prendem como os
elos de uma corrente, como as malhas de uma rede.

Por isso, de nada serve atacar os vícios principais e os maus hábitos que te opõem forte
resistência, se ao mesmo tempo não te esforças por vencer as pequenas fraquezas
"inocentes": pequenas gulas, tentação de falar, curiosidade, hábito de se meter nos
assuntos dos outros. Todos os nossos desejos, de fato, grandes ou pequenos, têm o
mesmo fundamento: o nosso hábito constante de satisfazer apenas a nossa própria
vontade.

É, portanto, a vontade própria que deve ser condenada à morte. Desde o pecado original,
nossa vontade está exclusivamente a serviço do nosso próprio "eu." Assim, o objetivo
do combate é a morte da vontade própria. É preciso começar sem demora, e prosseguir
na luta sem descanso. Tens vontade de fazer uma pergunta? Não a faça! Tens muita
vontade de tomar duas xícaras de café? Toma apenas uma! Tens a tentação de olhar pela
janela? Não olhes! Tens desejo de visitar alguém? Fica em casa.

Isso é perseguir a si mesmo. Através desse meio, com a ajuda de Deus, faz-se calar a
voz ruidosa da própria vontade.

Talvez te perguntes se isso é realmente necessário. Os santos Padres respondem com


outra pergunta: Crês mesmo que seja possível encher um vaso com água pura, sem
despejar primeiro a água suja que nele se encontra? Ou gostarias de receber um hóspede
amado, num quarto abarrotado com toda espécie de velharias e de objetos postos de
lado? Não. "Todo o que tem esperança de ver o Senhor tal como ele é, purifica-se a si
mesmo," diz o apóstolo São João (1Jo 3:3).

Purifiquemos, pois, o nosso coração! Joguemos fora todas as velharias empoeiradas que
aí se acumulam; lavemos o chão com escova, limpemos os vidros e abramos as janelas,
para que o ar e a luz entrem no quarto, onde queremos fazer um santuário para o
Senhor. Troquemos enfim de roupa, para que o nosso velho cheiro de bolor já não fique
em nós, e para que não sejamos lançados fora (cf. Lc 13:28). Eis o nosso labor de cada
dia e de cada instante.

Fazendo isso, estaremos apenas cumprindo o que o Senhor nos ordenou por seu santo
apóstolo Tiago: "... santificai os vossos corações" (Tg 4:8). Pede-nos o apóstolo Paulo:
"... purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito" (2Cor 7:1). Diz o Cristo:
"Com efeito, é de dentro do coração dos homens que saem as intenções malignas:
prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, malícia,
devassidão, inveja, difamação, arrogância, insensatez. Todas estas coisas más saem de
dentro do homem, e são elas que o tornam impuro" (Mc 7:21-23). Por isso, ele exorta
assim os fariseus: "... limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior
fique limpo!" (Mt 23:26).

Pondo em prática esse preceito de começar pelo interior, devemos ter presente em nosso
espírito que não é, de modo algum, por nós mesmos, que purificamos o nosso coração.
Não é para a satisfação pessoal que limpamos e polimos o quarto de hóspedes, mas sim
para que o nosso hóspede se sinta bem. Nós nos perguntamos: "Será que vai achá-lo a
seu gosto? Irá ficar?" Todo o nosso pensamento é para ele.

Depois nos retiramos, ficamos em segundo plano, sem esperar resposta.

Como explica Nicétas Stéthatos, existem para o homem três estados: o homem carnal,
que quer viver para o próprio prazer, mesmo em detrimento dos outros; o homem
natural, que deseja agradar ao mesmo tempo a si mesmo e aos outros; o homem
espiritual, que quer agradar só a Deus ainda que seja em detrimento de si próprio.

O primeiro está abaixo da natureza; o segundo está conforme à natureza; o terceiro está
acima da natureza: é a vida no Cristo.

O homem espiritual pensa espiritualmente; sua esperança é ouvir um dia os anjos se


alegrarem "... por um só pecador que se converte" (Lc 15:10), um pecador que não é
outro senão ele mesmo. Que sejam esses os teus sentimentos; trabalha animado por essa
esperança, pois o Senhor nos deu este preceito: "... deveis ser perfeitos como o vosso
Pai celeste é perfeito" (Mt 5:48), e "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua
justiça" (Mt 6:33).

Não te concedas repouso algum, nenhuma trégua, até que tenhas condenado à morte
essa parte de ti mesmo que provém da natureza carnal. Toma a resolução de descobrir
em ti toda manifestação do homem animal, e de persegui-lo implacavelmente. "Pois a
carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito contrárias à carne" (Gl 5:17).

Mas se temes tornar-te justo a teus próprios olhos, trabalhando para a tua salvação; se
temes ser vencido pelo orgulho espiritual, examina-te a ti mesmo, e diz que aquele que
teme tornar-se justo a seus próprios olhos, é cego. Porque não vê que ele é justo a seus
próprios olhos.

6. É preciso extirpar o desejo do gozo


A Escritura diz que apenas um pequeno número encontra o caminho estreito que conduz
à vida; e que nos devemos esforçar para entrar no caminho estreito, "... pois eu vos digo
que muitos procurarão entrar e não conseguirão" (Lc 13:24).

Devemos procurar a causa exatamente na repugnância que temos em nos perseguir.


Dominamos, talvez, os vícios mais graves e mais perigosos, mas paramos por aí.
Deixamos as nossas pequenas fantasias se desenvolverem livremente, como bem
entenderem. Não cometemos roubos nem trapaças; porém, os mexericos são a nossa
delícia. Não nos embriagamos, mas abusamos do chá ou do café. Nosso coração
continua repleto de desejos. As raízes não foram extirpadas, e nós vagamos ao acaso na
floresta virgem que cresceu no solo fértil da ternura que sentimos por nós mesmos.

Ataca de frente essa ternura para contigo, pois é ela a raiz de todos os males de que
sofres. Se não tivesses tanta piedade por ti mesmo, perceberias imediatamente que és tu
que fazes a tua própria infelicidade, porque te recusas a compreender que os males que
te acontecem são, na realidade, uma coisa boa. A ternura por ti mesmo te escurece a
vista. Só tens compaixão por ti; conseqüência: teu horizonte é muito estreito. Teu amor
é prisioneiro de ti mesmo. Liberta-o, e já não serás infeliz.

Renuncia às tuas nocivas fraquezas e à tua insaciável sede de bem-estar; ataca-as por
todos os lados! Condena à morte o teu apetite de prazer. Não lhe deixes ar para respirar.
Sê rigoroso para contigo; recusa a teu "eu" carnal as migalhas de prazer que ele reclama
obstinadamente. Pois o hábito se fortifica pela repetição dos atos; morre, porém, se não
for alimentado.

Mas, toma muito cuidado para não fechar ao mal a porta principal, deixando entreaberta
a porta dos fundos, por onde ele poderá esgueirar-se, com habilidade, sob outra forma.

De que serviria, por exemplo, dormir no chão, se, ao mesmo tempo, procurasses a
satisfação em banhos quentes? Para que deixar de fumar, se dás livre curso ao desejo de
tagarelar? Qual o benefício de não tagarelar, se lês romances cativantes? E de que
servirá abster-te de ler, se deixas em liberdade a imaginação, e te deixas embalar por
doces devaneios?

Tudo isso não passa de diferentes formas de uma só e única realidade: a insaciável sede
de satisfazer tua necessidade de gozo.

Precisas decidir-te a extirpar o simples desejo de possuir objetos agradáveis, de


experimentar um sentimento de bem-estar, de ter conforto. Deves aprender a amar as
contrariedades, a pobreza, o sofrimento, as privações. Deves aprender a seguir os
preceitos do Senhor: não dizer coisas inúteis, não se vestir com excessivo
aprimoramento, obedecer sempre à autoridade, não olhar uma mulher com
concupiscência, não ter acessos de cólera, etc... Todos esses preceitos nos foram dados
para que os pratiquemos; não para que nos comportemos como se eles não existissem.
Senão, eles não nos teriam sido impostos pelo Deus de misericórdia.

"... Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo" (Mt 16:24): o Senhor confia,
assim, na vontade de cada um ("se alguém quer") e ao esforço pessoal ("negue-se a si
mesmo").
7. É necessário transferir ao Cristo o amor por nós
mesmos
"Se sairmos de nós mesmos, o que encontraremos?" pergunta o bispo Teófano, o
Recluso. E ele próprio dá, imediatamente, a resposta: "Encontramos Deus e o próximo."
Essa é a verdadeira razão pela qual a negação de si mesmo é uma condição — e a
principal — que deve ser cumprida por quem procura a salvação no Cristo: é assim que
o centro de gravidade de nosso ser se pode deslocar de nós para o Cristo, que é, a um só
tempo, Deus e nosso próximo.

Isso significa que toda a solicitude, todo o cuidado, todo o amor que prodigalizamos a
nós mesmos é, pois, sem que percebamos, completa e naturalmente transferido para
Deus e, por ele, para o nosso próximo. Só então é que poderás fazer o bem de modo que
"... não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique em
segredo" (Mt 6:3-4).

Até que isso se realize, não será possível estar "... repletos de todo conhecimento e em
grau de vos poder admoestar mutuamente" (Rm 15:14), de modo real, não apenas
material. Todas as nossas tentativas nesse sentido são deformadas na base, porque são
"nossas" e procedentes do nosso desejo, de nos agradar. É particularmente necessário
compreender bem isto; senão, corremos o risco de nos desviar com facilidade, entrando
pelo caminho de um pretenso devotamento aos outros e em obras bem intencionadas,
mas que nos conduzem inevitavelmente ao lodaçal de nossa própria satisfação.

Por conseguinte, não te ocupes demais com vendas de caridade, reuniões de obras
assistenciais e de outras atividades semelhantes. A agitação, sob todas as suas formas, é
um temível veneno. Sonda o teu coração, examina-te com cuidado, e reconhecerás que
muitas dessas atividades em que parece que nos doamos aos outros, procedem, na
realidade, da necessidade de atordoar nossa consciência; sua verdadeira origem é a
nossa invencível tendência de procurar o que nos agrada e nos satisfaz (cf. Rm 15:1).

Não; o Deus de amor, de paz e de total sacrifício não pode estar onde se procura a
própria satisfação, no barulho e na agitação, mesmo sob nobres pretextos. Este é um
princípio de discernimento: se a paz do teu espírito se perturba; se estás desanimado ou
um pouco irritado, porque uma razão qualquer te obrigou a renunciar a uma boa obra,
para a qual tinhas projetos, isso mostra que a sua origem era equívoca.

Talvez te perguntes: por quê? Os homens que têm experiência da vida espiritual
responderão que os obstáculos e as oposições exteriores só podem atingir os que não
entregaram a Deus a própria vontade. É impensável que Deus tenha pela frente um
obstáculo. Ora, um ato realmente desinteressado não é "meu," mas sim de Deus; nada
pode impedir a sua realização. São apenas os meus próprios projetos, meus próprios
desejos — estudar, trabalhar, descansar, comer, prestar serviço ao meu próximo — que
podem ser contrariados por circunstâncias exteriores. Então, eu me entristeço. Mas, para
quem descobriu o caminho estreito que conduz à vida, isto é, a Deus, só resta um
obstáculo possível: sua própria vontade pecadora. Se quer fazer alguma coisa, mas não
pode levá-la a bom termo, por que se entristecerá? Aliás, ele já não faz projetos (cf. Tg
4:13-16).
Mas este é um outro segredo dos santos.

Não te iludas. Um cristão deve "... andar como ele (Cristo) andou" (1Jo 2:6), ele, que
jamais procurou a sua vontade (cf. Jo 5:30), mas nasceu sobre a palha, jejuou quarenta
dias, passou longas noites em oração, curou doentes, expulsou demônios, não tinha
onde pousar a cabeça, e finalmente foi cuspido, flagelado e crucificado.

Pensa, o quanto estás longe dele! Pergunta continuamente a ti mesmo: Passei uma única
noite velando e orando? Jejuei um só dia? Expulsei um único demônio? Deixei-me
insultar e bater sem resistir? Realmente crucifiquei a minha carne (cf. Gl 5:24)?
Renunciei a buscar a minha vontade?

Tenhas sempre presente, tudo isso, em teu espírito.

Por que é necessário negar-se a si mesmo? Porque aquele que verdadeiramente se negou
a si mesmo já não se perguntará: Sou feliz? Estou contente? Tais perguntas não se
colocarão mais diante de ti, se de fato tiveres negado a ti mesmo. Com efeito, fazendo
isso, terás ao mesmo tempo abandonado todo desejo de procurar a tua satisfação
própria, na terra ou no céu.

Essa vontade obstinada de encontrar a própria satisfação, é a causa da inquietação e da


divisão da tua alma. Abandona-a e luta contra ela: o resto te será dado sem esforço.

8. É necessário estar sempre vigilante contra as


repetidas ofensivas do inimigo
As primeiras vitórias sobre ti mesmo devem ter, para ti, valor de sinal: agora estás no
bom caminho. Mas não te consideres virtuoso; apenas agradece a Deus, pois foi ele que
te deu força; não te alegres em demasia, mas apressa-te em prosseguir na tua estrada.
Senão, o demônio vencido reerguerá a cabeça e te pegará pelas costas. Lembra-te do
mandamento que os israelitas tinham recebido de Deus, para te servir de lição: "...
Quando tiverdes atravessado o Jordão, em direção à terra de Canaã, expulsareis de
diante de vós todos os habitantes da terra. (...) aqueles que deixardes dentre eles se
tornarão espinhos nos vossos olhos e aguilhões nas vossas ilhargas" (Nm 33:51-52,55).

A aparente importância dessa vitória sobre ti mesmo conta pouco. Pode-se tratar de
suprimir o cigarro da manhã, ou até de uma coisa — à primeira vista tão insignificante
— como não voltar a cabeça ou evitar uma troca de olhares. O que importa não é o que
se vê de fora. As pequenas coisas podem ser grandes, e as grandes, pequenas.

Mas, é preciso estar sempre à espera de uma nova fase do combate. Deves estar sempre
pronto. Não há tempo para descansar.

Além disso, ainda uma vez, permanece em silêncio. Que ninguém saiba o que se passa
em ti. Trabalhas para o Ser invisível. Que teu trabalho seja invisível. Os santos nos
dizem que, se jogarmos migalhas em torno de nós, elas serão avidamente recolhidas
pelos pássaros enviados pelo diabo. Fica sempre alerta contra a vanglória: de um
bocado, ela pode devorar o fruto de muitos trabalhos.
Por isso, os Padres aconselham discernimento no agir. De dois males, escolhe o menor.
Se estás sozinho, escolhe o que há de mais humilde; mas se alguém te observa, toma um
caminho intermediário, para atrair a atenção o menos possível. Fica o mais escondido e
despercebido que puderes; que seja esta a tua regra em qualquer circunstância. Não fales
de ti mesmo; não contes como dormiste, o que sonhaste, o que te aconteceu; não dês tua
opinião sem que a peçam; não faças confidências sobre tuas preocupações e cuidados.
Tais assuntos de conversa só te podem incitar a te ocupares excessivamente de ti
mesmo.

Não mudes nada na tua casa, no teu trabalho, nem nas outras coisas. Lembra-te de que
não há lugar, nem ambiente, nem qualquer circunstância exterior, que não seja própria
ao combate que empreendeste. A única exceção seria uma ocupação que favorecesse
diretamente os teus vícios.

Não procures situações nem títulos importantes; quanto mais humilde for o teu estado e
mais te puseres a serviço dos outros, mais livre serás. Fica satisfeito com a tua condição
atual. Não tenhas pressa de fazer valer os teus conhecimentos e o teu saber-fazer. Evita
observações; não digas: "Assim não, nem assim... Faz assim, e deste outro modo." Não
contradigas ninguém, não discutas com ninguém, deixa que os outros sempre tenham
razão. Não prefiras nunca a tua vontade à dos outros. Isso te ensinará a difícil arte da
submissão e, ao mesmo tempo, da humildade. Ela é indispensável.

Recebe as advertências sem recriminações. Dá graças quando és desprezado, esquecido,


ignorado. Porém, não cries ocasiões de humilhação: elas te serão fornecidas ao longo do
dia, à medida que delas necessitares. Às vezes se notam pessoas que conservam sempre
a cabeça baixa e forçam situações para se colocarem em último lugar. Então, talvez
digas: "Como ele é humilde!" Mas o verdadeiro humilde tem a arte de não se deixar
notar. O mundo não o conhece (1Jo 3:1). Para o mundo ele é, o mais das vezes, "um
zero."

Quando Pedro e André, Tiago e João largaram as redes e seguiram Jesus, o que
pensaram os companheiros que eles abandonavam à beira do lago? Para estes, os outros
discípulos não existiam mais; tinham ido embora. Não hesites, não temas desaparecer,
tu também, longe "desta geração adúltera e pecadora." Que desejas ganhar: o mundo, ou
tua alma? (cf. Mc 8:34-38). Ai de vós, quando todos vos bendisserem! (cf. Lc 6:26).

9. A vitória sobre o mundo


São Basílio, o Grande, disse: "Não nos podemos aproximar do conhecimento da
verdade, com o coração inquieto." Por isso nos devemos esforçar para evitar tudo o que
agita o nosso coração, tudo que é causa de falta de atenção, de super excitação, tudo o
que desperta as paixões ou nos torna ansiosos. Na medida do possível, devemos nos
libertar do barulho, da agitação e da inquietação que se produzem por objetos sem
importância. Pois, quando servimos ao Senhor, não nos devemos "inquietar e agitar por
muitas coisas," mas lembrar sempre que "uma só é necessária" (Lc 10:41-42).

Para tomar banho, é preciso despir-se. O mesmo acontece com o nosso coração: ele
deve ser libertado de todos os revestimentos exteriores deste mundo, para que possa ser
atingido por Aquele que deve purificá-lo. Os raios benfazejos do sol só poderão agir
sobre a pele, se esta a eles se expuser a descoberto. Assim é também com a virtude
salutar e vivificante do Espírito Santo.

Portanto, deves despir-te. Recusa a ti mesmo — mas sem que seja excessivamente
visível — tudo o que causa gozo e prazer, bem-estar e distração; tudo o que diverte ou
satisfaz aos olhos, aos ouvidos, ao paladar e aos outros sentidos. "Quem não está a meu
favor, está contra mim" (Mt 12:30). Despoja-te, dia após dia, de tuas necessidades e de
teus hábitos, no campo das relações sociais; faze-o calma e refletidamente, sem rupturas
por demais bruscas, mas, no entanto, de maneira radical. Elimina pouco a pouco tudo o
que puderes dos laços que te prendem ao mundo exterior: convites, concertos, recepções
e, de modo geral, "tudo o que há no mundo — a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas — ", pois tudo isso "não vem do Pai,
mas do mundo" (1Jo 2:16), e combate contra nossa alma.

O que é, pois, o mundo? Não o imaginemos uma realidade exterior e tangível, que
carrega a marca do pecado. O mundo, diz São Macário do Egito, é a cortina de chamas
que circunda o coração e fecha o acesso à árvore da vida. O mundo é tudo aquilo a que
estamos apegados e que nos traz satisfações terrenas; é o que, em nós, "não conheceu a
Deus" (cf. Jo 17:25).

Nossos desejos e impulsos fazem parte do mundo. Santo Isaac, o Sírio, enumera-os:
atração pelas riquezas; propensão a acumular e a apropriar-se de todos os tipos de
objetos; inclinação para os gozos sensíveis; desejo de ser objeto de honras, de onde
procede a inveja; desejo de dominar os outros e de se fazer escutar; orgulho da glória e
do poder; preocupação por ser admirado e amado; sede de louvores; preocupação com o
bem-estar do corpo. Todas essas coisas provêm do mundo; elas se associam contra nós
para nos enganar e nos conter em pesadas correntes.

Se queres libertar-te, examina-te com a ajuda dessa lista e vê claramente contra o que
tens de lutar para te aproximares de Deus. Pois ".. a amizade com o mundo é inimizade
com Deus. Assim, todo aquele que quer ser amigo do mundo torna-se inimigo de Deus"
(Tg 4:4). Os largos horizontes só se descobrem aos olhos se abandonarmos os vales
estreitos, com as ocupações e os prazeres que lhe são próprios. "Ninguém pode servir a
dois senhores" (Mt 6:24); é impossível permanecer, ao mesmo tempo, no vale e nas
alturas.

Para poderes subir com maior facilidade, e para te aliviares o mais rapidamente possível
do teu pesado fardo, faz a ti mesmo, com freqüência, perguntas como esta: "Não é para
o meu próprio prazer, mais do que para o dos outros, que vou a esse concerto, ou ao
cinema? É crucificar a minha carne, ir a essa festa? É vender tudo o que tenho, fazer
essa viagem de recreio ou comprar esse livro? É tratar duramente o meu corpo e reduzi-
lo à servidão (1Cor 9:27), deitar-me para ler? Essa lista de perguntas pode ser
modificada ou aumentada, em função dos teus hábitos e da relação deles com o modo de
viver que o Evangelho prescreve. E lembra-te de que "quem é fiel nas coisas mínimas, é
fiel também no muito, e quem é iníquo no mínimo, é iníquo também no muito" (Lc
16:10). Não temas o sofrimento: ele é que te ajudará a sair desse vale estreito em que
vives nos desejos da carne, satisfazendo as vontades da carne e dos pensamentos
condenáveis (cf. Ef 2:3).
Faze a ti mesmo essas perguntas, sem descanso. Mas, faze-as apenas a ti. Jamais, em
caso algum, nem mesmo em pensamento deves fazê-las em relação aos outros. No
mesmo instante em que fizeres uma pergunta desse gênero a respeito de alguém, te
erigirás em juiz, e por isso tu mesmo serás julgado. Serás despojado do que tinhas
ganho com teus esforços. Tinhas dado um passo à frente, mas acabas de dar dez para
trás. Então, tens mesmo razão de chorar por tua obstinação, pela queda dos teus
progressos e por teu orgulho.

10. Os pecados dos outros e os nossos


Agora tomaste consciência da tua miséria, da tua pobreza, da tua propensão para o mal;
por isso clamas ao Senhor, como o publicano: "... Meu Deus, tem piedade de mim,
pecador!" (Lc 18:13). E acrescentas: "Sou mesmo bem pior que o publicano, pois não
consigo deixar de olhar o fariseu com desprezo; meu coração se enche de orgulho e diz:
‘Eu vos dou graças, porque não sou como ele!' "

Mas — dizem os santos — quando verificares as trevas do teu coração e a fraqueza da


tua carne, perderás toda a vontade de julgar o teu irmão. Para além da tua própria
escuridão, verás então brilhar a luz celeste em todas as criaturas, que resplandecem com
o seu reflexo; pois, não poderás mais notar os pecados dos outros, uma vez que os teus
são tão grandes. Com efeito, quando procurares com ardor a perfeição, é que vais
começar a descobrir a tua imperfeição. Somente quando tiveres visto o quanto és
imperfeito, é que a perfeição te será acessível. Portanto, a perfeição sai da fraqueza.

Só então conseguirás o que santo Isaac, o Sírio, prometeu aos que se perseguem a si
mesmos: "E teu inimigo fugirá, só porque te aproximas."

De que inimigo o santo fala aqui? Evidentemente, daquele que tomou, um dia, a forma
de serpente e que, desde então, excita em nós o descontentamento, a insatisfação, a
impaciência, a precipitação, a ira, a inveja, o medo, a ansiedade, o ódio, o abatimento, a
indolência, a tristeza, a dúvida, e tudo o que envenena a nossa existência e se enraíza em
nosso amor próprio e em nossa auto piedade.

Como poderá, pois, querer que os outros lhe obedeçam, aquele que verifica, com o
sofrimento profundo inspirado pelo amor, que ele jamais obedece a seu Mestre? Como,
então, poderá ele perturbar-se, impacientar-se, irar-se, se as coisas não se passam de
acordo com seus desejos? Esse homem acostumou-se, por uma longa prática, a não
desejar mais nada, e — como explica o abade Doroteu — a quem já não tem desejos
tudo acontece segundo os próprios desejos. Sua vontade ajustou-se, exatamente, à de
Deus, e ele obtém tudo o que pede (cf. Mc 11:24).

Poderá sentir inveja aquele que, bem longe de querer elevar-se, está consciente de suas
próprias deficiências, e pensa que os outros, mais do que ele, merecem estima e
consideração? Poderá sentir medo, angústia ou ansiedade, quem, como o ladrão
crucificado, vê em tudo o que lhe acontece apenas o justo salário de seus atos (cf. Lc
23:41)? A negligência o abandona, porque ele descobre em si mesmo os seus menores
traços e persegue-a sem cessar. O abatimento desaparece; pois, como poderá ser
derrubado, quem se mantém constantemente prostrado em espírito? Doravante, seu ódio
se voltará, inteiro, para o mal que está nele, e que o impede de ver claramente o Senhor;
ele odeia a sua própria vida (cf. Lc 14:26). Esse homem não é mais atingido pela
dúvida, pois experimentou e viu quanto o Senhor é bom (cf. Sl 34:8); só o Senhor o
sustenta. Seu amor se dilata sem cessar e, com ele, a fé. Ele colhe o fruto da humildade.
Mas tudo isso só se encontra no caminho estreito, e são poucos os que o encontram (cf.
Mt 7:14).

11. O combate interior é apenas um meio a serviço de


um fim
Ao te desfazeres das cadeias exteriores, tu te livras igualmente dos laços interiores.
Quando te libertas das preocupações de fora, teu coração também fica livre dos
sofrimentos de dentro. Por conseguinte, o rude combate, que és obrigado a travar, não
passa de um meio: como tal, não é nem bom, nem mau; os santos o têm muitas vezes
comparado a um tratamento médico. Embora seja muito penoso sujeitar-se a ele, não
deixa de ser um simples meio de recobrar a saúde.

Lembra-te sempre de que não realizas nada de virtuoso, esforçando-te para te


dominares. De fato, que virtude há em tomar pá e picareta para tentar sair de uma
galeria subterrânea, onde se tenha caído por falta de atenção? Não é natural, pois,
utilizar as ferramentas entregues por alguém de fora, para escapar dessa atmosfera
sufocante e tenebrosa? O contrário não seria pura estupidez?

Essa parábola te pode ensinar a sabedoria. As ferramentas são os instrumentos da


salvação, os mandamentos do Evangelho, os santos sacramentos da Igreja, que foram
postos à disposição de cada cristão por ocasião do santo batismo. Sem uso, não terão
nenhum proveito. Porém, utilizados com discernimento, permitirão que abras o caminho
para a liberdade e para a luz.

"... é preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus" (At 14:22).
Devemos, como o homem preso no subterrâneo, renunciar a descansar, a dormir, a
aproveitar os prazeres da vida; como ele, devemos permanecer alertas e utilizar, da
melhor forma, todos os instantes que os outros homens passam dormindo, ou ocupados
com ninharias. Não devemos largar a pá e a picareta, que representam a oração, o jejum,
as vigílias, e todas as outras atividades pelas quais pomos em prática tudo quanto o
Senhor nos ordenou (cf. Mt 28:20). E, se nosso coração encontra dificuldade em aceitar
tal disciplina, devemos empregar toda a força de vontade para obrigá-lo a se sujeitar, se
quisermos realizar nosso propósito.

Que recompensa terá nosso prisioneiro? Pode-se dizer que terá alguma recompensa?

A recompensa será o seu próprio labor; ela consiste no amor que ele sente em si mesmo
pela liberdade, na esperança e na fé que o fizeram tomar nas mãos as ferramentas. À
medida que ele trabalha, aumentam a esperança, o amor e a fé: quanto mais ativo for e
menos esforço desperdiçar, mais aumenta a sua recompensa. Ele se considera um
prisioneiro entre outros prisioneiros; a seus próprios olhos, ele não se separa de seus
companheiros: é um pecador entre os pecadores, nas entranhas da terra. Porém,
enquanto os outros, resignados e sem esperança, dormem ou jogam baralho para passar
o tempo, ele avança e trabalha. Encontrou um tesouro, mas escondeu-o de novo (cf. Mt
13:44); ele leva, escondido dentro de si, o Reino de Deus, isto é, o amor, a fé, a
esperança de chegar um dia ao ar livre, fora. No momento, sem dúvida, ele só entrevê a
liberdade como num espelho (cf. lCor 13:12), mas em esperança já está livre: "Pois
fomos salvos em esperança" (Rm 8:24). No entanto, o Apóstolo acrescenta: "e ver o que
se espera, não é esperar," para compreendermos melhor o alcance do que precede. Com
efeito, quando o prisioneiro obtém a liberdade e a vê face a face, não é mais um
prisioneiro entre os outros, sobre a terra. Ele se encontra, então, no mundo da liberdade,
daquela liberdade na qual Adão fora criado, e que nos foi restituída no Cristo.

Como o prisioneiro, já somos livres em esperança; mas a realização de nossa salvação


situa-se para além de nossa vida terrena. Só então poderemos dizer definitivamente:
"Estou salvo!" De fato, o mandamento de ser perfeito como nosso Pai celeste é perfeito
(cf. Mt 5:48), não pode ser plenamente cumprido no homem enquanto permanece neste
mundo. Logo, por que nos foi dado? Os santos respondem: Para que possamos começar
desde já o nosso trabalho, mas tendo diante dos olhos a eternidade.

A liberdade é o objetivo do homem; porém, ele não a pode dar a si mesmo, nem recebê-
la do seu próximo; ele só a obterá em Deus, diz o bispo São Teófano.

Na verdade, o convite à liberdade toma esta forma: "Arrependei-vos!" E o Senhor nos


dirige este chamado: "Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso
fardo e eu vos darei descanso" (Mt 11:28). De que cansaço se trata? Daquele que se
sofre para assegurar a própria felicidade temporal? E qual é esse fardo? O dos cuidados
e preocupações terrenas? De modo nenhum, respondem os santos. Por isso o Senhor diz
ainda: "Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim — de mim, que jamais pensei
em meu bem-estar temporal, nem levei o peso dos cuidados deste mundo, durante a
minha vida na terra."

Mas, o que obterão os que sofrem por sua salvação e que se cansam sob o peso da
oposição do mundo, interior e exteriormente ao mesmo tempo? Qual será a parte
atribuída aos que tomam sobre si mesmos o jugo do Cristo, que vivem como ele viveu,
e que aprendem, não dos homens, nem dos anjos, nem dos livros, mas do Senhor
mesmo? Que são instruídos por sua própria vida, pela luz e pela ação, no fundo de si?
Que podem dizer, também eles: sou doce e humilde de coração, não me tenho em alta
conta, nem ao que posso dizer ou fazer? Todos estes encontrarão o repouso para sua
alma. Irão recebê-lo do próprio Senhor. Ficarão livres das tentações, dos sofrimentos,
das humilhações, do desânimo, da ansiedade, e de tudo o que perturba o coração do
homem.

Essa é a interpretação de São João Clímaco (Escada, Degrau 25,4). Ao apresentá-la, ele
fala de cristão para cristão. Pois a um coração recriado pela graça, a experiência revela,
cada dia mais, que o jugo do Cristo é leve para os que o amam.

Mas "... aquele que perseverar até o fim, esse será salvo" (Mt 10:22), e não os
desanimados e negligentes. A promessa do Senhor não é para eles.

Portanto, não devemos jamais nos cansar. Sejamos firmes, inabaláveis, fazendo
incessantes progressos na obra do Senhor, cientes de que a nossa fadiga não é vã no
Senhor (lCor 15:58). Uma vez que começamos, não deixemos nunca de realizar as obras
de uma sincera conversão. Parar seria recuar.

12. A obediência
A obediência é outro instrumento indispensável, na luta contra a própria vontade.
Segundo são João Clímaco, a obediência é a condenação à morte dos membros do nosso
corpo, em benefício da vida do espírito. Ela é ainda a sepultura da vontade própria, e a
ressurreição da humildade (Escada, Degrau 3:3).

Lembra-te de que, livremente, te deste ao Senhor como escravo; a cruz que levas no
pescoço te deve recordar isso. É através dessa escravidão, que chegarás à verdadeira
liberdade. Mas, pode um escravo ter vontade própria? Ele deve aprender a obedecer.

Talvez perguntes: A quem devo obedecer? Os santos respondem: obedece aos teus
dirigentes (cf. Hb 13:17). Mas continuas: Quem são os meus dirigentes? Onde
encontrarei um, quando é hoje tão difícil descobrir um dirigente autêntico? A isso,
respondem os santos Padres: a Igreja o providenciou. Desde o tempo dos apóstolos, ela
nos deu um mestre que supera a todos os outros, e que nos pode alcançar em toda parte,
onde quer que estejamos, e em qualquer circunstância. Quer moremos na cidade ou no
campo, quer sejamos casados ou solteiros, pobres ou ricos, esse mestre está sempre
conosco, e sempre temos ocasião de obedecer-lhe. Queres conhecer o seu nome? É o
santo jejum.

Deus não precisa do nosso jejum. Nem tem necessidade da nossa oração. Ele é perfeito,
nada lhe falta, e não pode precisar de coisa alguma que nós, suas criaturas, possamos
oferecer-lhe. Nada temos para lhe dar; mas, diz São João Crisóstomo, ele aceita que lhe
apresentemos as nossas ofertas, para nossa própria salvação.

A maior oferenda que poderemos apresentar ao Senhor, somos nós mesmos; e, só o


poderemos fazer, abandonando a ele nossa vontade. Aprendemos isso pela obediência; e
aprendemos a obedecer pela prática. A melhor maneira de praticar a obediência é a que
a Igreja nos fornece ao prescrever dias e períodos de jejum. Ela nos diz, então, de certo
modo, como Deus a Adão: "... Podes comer de todas as árvores do jardim; mas do fruto
da árvore que está no meio do jardim, não comerás" (Ge 2:16, 3:3).

Além do jejum, temos outros mestres a quem devemos obedecer. Nós os encontramos a
cada passo, nas pequenas coisas de nossa vida cotidiana: basta sabermos reconhecer a
sua voz. Tua mulher diz que deves levar a capa impermeável; faz o que ela deseja, e
estarás praticando a obediência. Um dos teus colegas de trabalho te pede que vás com
ele até um ponto do caminho; acompanha-o, e estarás praticando a obediência. Sentes
que uma criança precisa que se ocupem dela e que lhe façam companhia: faze o que
podes, e estarás praticando a obediência. Um noviço, no mosteiro, não terá mais
ocasiões que tu, na tua casa, de praticar a obediência. E outro tanto encontrarás no
trabalho e nas relações com teus vizinhos.

A obediência derruba muitas barreiras. Conseguirás a liberdade e a paz, à medida que


teu coração praticar a não-resistência. Mostra-te obediente, e cercas de espinhos abrir-
se-ão diante de ti. Então, o amor terá lugar para se dilatar. Por meio da obediência,
aniquilarás o orgulho, o espírito de contradição, a pretensa sabedoria e a teimosia, que te
aprisionam numa grossa carapaça. Enquanto estiveres aninhado nela, não poderás
encontrar o Deus de amor e de liberdade.

Habitua-te, pois, a alegrar-te, quando se te apresenta uma ocasião de obedecer. É


absolutamente inútil procurar criá-la; poderias cair, então, num servilismo artificial, e
desviar-te, deleitando-te na tua própria virtude. Não tenhas dúvida de que encontrarás
tantas ocasiões de obedecer quantas forem necessárias; e serão exatamente aquelas de
que precisas. Se notares que deixaste escapar uma ocasião, censura-te por essa
negligência. Agiste como um marinheiro que não aproveitaste um vento favorável.

13. Progresso e profundidade


Depois das noções elementares e ainda exteriores que precedem, chegamos agora ao
combate que se trava nas profundezas de nosso ser. Quando se descasca uma cebola,
retiram-se, uma após outra, as peles que a recobrem; finalmente se chega ao coração do
bulbo, de onde sai o talo para a luz. Quando chegares ao teu quarto interior, é que
perceberás a morada celeste, pois elas são uma única coisa, segundo Santo Isaac, o
Sírio.

Quando te esforçares por penetrar no teu quarto interior, ali perceberás, além do teu
rosto verdadeiro, aquilo que Santo Hesíquio chama de face escura dos etíopes, isto é, os
pensamentos maus. São Macário do Egito compara-os a uma serpente escondida em teu
coração, e que feriu os órgãos mais vitais da tua alma. Se mataste essa serpente, diz ele,
podes orgulhar-te de tua generosidade diante de Deus. Porém, se não a mataste, prostra-
te com humildade, como um pobre pecador, e ora a Deus, pois o inimigo está sempre
oculto, à espreita.

Mas, como poderíamos começar a luta, uma vez que nem mesmo penetramos em nosso
coração? Ficamos à porta; mas é preciso bater, com o jejum e a oração, como nos
recomendou o Senhor: "... batei e vos será aberto" (Mt 7:7). Bater é agir. Se
permanecermos firmes na palavra do Senhor, na pobreza, na humildade, e em tudo o
que nos prescreve o Evangelho; se dia e noite batermos à porta de Deus, então,
poderemos obter o que procuramos. Quem quer sair do cativeiro e das trevas, deve
entrar na liberdade por essa porta. Ali, diz São Macário, receberá a liberdade espiritual,
e poderá alcançar o Cristo, Rei celestial.

14. Humildade e vigilância


Aquele que empreende o combate interior necessita, a todo momento, de quatro coisas:
humildade, grande vigilância, vontade de resistir e oração. Trata-se de vencer, com a
ajuda de Deus, os "etíopes dos pensamentos," expulsando-os pela porta do coração e
esmagando seus nenês contra a rocha (cf. Sl 137:9).

A humildade é uma condição prévia, pois o homem orgulhoso é eliminado do combate,


uma vez por todas. A vigilância é necessária para reconhecer imediatamente os
inimigos, e para conservar o coração livre dos vícios. A vontade de resistir deve estar
presente assim que o inimigo seja reconhecido. Porém, visto que "... sem mim, nada
podeis fazer" (Jo 15:5), a oração é o trunfo mais importante, do qual depende todo o
combate.

Um rápido exemplo te ajudará a compreender: através da vigilância, percebes um


inimigo que se aproxima da porta do teu coração: és tentado a pensar mal de um de teus
irmãos. Sem demora, fica alerta a tua vontade de resistir, e afastas a tentação. Mas, no
último instante, és assaltado por um pensamento de amor-próprio: "Escapei, graças à
minha vigilância!" E tua vitória aparente se torna uma terrível derrota. A humildade
soçobrou.

Se, ao contrário, abandonares a teu Senhor todo o combate, já não terás razão de estar
contente contigo mesmo, e continuarás livre. Notarás bem depressa que não há arma
com mais poder do que o Nome do Senhor.

Esse exemplo mostra que o combate deve ser travado sem descanso. As sugestões más
penetram em nós como uma rápida torrente, e é preciso barrar a estrada com grande
rapidez. São os "... dardos inflamados do Maligno" (Ef. 6:16), de que fala o apóstolo; e
eles chovem, sem cessar, sobre nós. Sem cessar, também, por conseguinte, devemos
clamar ao Senhor. "Pois o nosso combate não é contra o sangue nem contra a carne, mas
contra os Principados, contra as Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de
trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestes" (Ef 6:12).

O combate se inicia pela sugestão, conforme explicam os santos. Vem depois a relação,
quando penetramos mais no que a sugestão nos deu. A terceira fase é o consentimento, e
a quarta é o pecado cometido exteriormente. A passagem de uma para a outra, dessas
quatro fases, pode ser instantânea; mas também é possível que elas se sucedam como
tantos outros degraus, o que permite distingui-las. A sugestão bate à porta, como um
vendedor ambulante que oferece a sua mercadoria. Se o deixarmos entrar, ele começa
com a sua lábia, e é difícil livrar-se dele, mesmo percebendo que sua mercadoria não
vale nada. Vem o consentimento, e finalmente a compra, muitas vezes a contragosto.
Deixamo-nos vencer por um enviado do Maligno.

A respeito da sugestão, disse Davi: "A cada manhã eu farei calar todos os ímpios da
terra" (Sl 101:8), pois "em minha casa não habitará quem pratica fraudes" (ibid. 7).
Sobre o consentimento, disse Moisés: "Não farás aliança nenhuma com eles" (Ex
23:32). O primeiro versículo do Salmo l fala da relação, segundo a interpretação dos
Padres: "Feliz o homem que não vai ao conselho dos ímpios." De fato, é muito
importante resistir aos inimigos "às portas" (Sl 127:5), sem deixá-los entrar.

Mas pode acontecer que seja numerosa a multidão que se comprime diante da porta;
sabemos também que "... o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz" (2Cor 11:14).
Por isso nos advertem os santos Padres: que conservemos o coração puro de qualquer
sugestão, sensação ou imaginação, sejam de que natureza forem. Com efeito, não está
em nossas mãos separar as sugestões más das boas: só o Senhor o pode. Devemos, pois,
abandonar tudo nele com confiança,sabendo que "... se Iahweh não guarda a cidade, em
vão vigiam os guardas" (Sl 127:1).

Em contrapartida, depende de nós ficarmos vigilantes para que não surja nenhum
pensamento vil em nosso coração (cf. Dt 15:9); para que ele 'não se transforme num
mercado onde uma multidão heterogênea se agita num contínuo tumulto, de maneira
que se torna impossível reconhecer o que se passa. Ladrões e malfeitores podem, então,
encontrar-se ali; mas os anjos da paz, em vão os buscarias. A paz e o Senhor da paz
fogem de um lugar assim.

Por isso, ele nos disse por seu apóstolo: "... santificai os vossos corações" (Tg 4:8); e ele
próprio nos adverte: "Atenção, e vigiai" (Mc 13:33). Pois, se ele vier e encontrar
impuros os nossos corações, e nós mesmos adormecidos, dirá: "... não vos conheço!"
(Mt 25:12). A hora dessa vinda é sempre iminente: se não for no momento presente,
será no seguinte; e se não for no seguinte, será agora. Porque, como o Reino dos céus, a
hora do julgamento está sempre presente em nosso coração.

Assim, pois, se o guarda não vigiar, o Senhor também não vigiará; mas se o Senhor não
vigia, o guarda vigia em vão. Por conseguinte, vigiemos à porta do nosso coração, mas
sempre chamando o Senhor, incessantemente, para que nos ajude.

Não olhes para o lado do inimigo. Não te ponhas jamais a discutir com ele, porque não
conseguirás resistir. Devido à sua experiência milenar, ele sabe exatamente como
proceder para te abater de imediato. Porém, fica no meio do campo de batalha do teu
coração, e dirige para o alto o teu olhar. Assim, o teu coração será protegido de todos os
lados ao mesmo tempo. O Senhor mesmo enviará os seus anjos para guardar-te, à direita
e à esquerda, impedindo que sejas atacado pelas costas.

Em outras palavras, quando fores perseguido pela tentação, não te deves deter para
examiná-la, refletir, pesar prós e contras. Agindo assim, já maculas teu coração, perdes
tempo; já é uma vitória para o inimigo. Ao contrário, volta-te sem demora para o Senhor
e diz: "Senhor, tende piedade de mim, pecador!" Quando tiveres retirado os teus
pensamentos da tentação, o Senhor virá.

Nunca fiques seguro de ti mesmo. Não formes jamais no teu espírito uma boa resolução
deste gênero: "Oh, sim! Vou fazer tudo muito bem!" Nunca tenhas confiança em tuas
próprias forças, para resistir a uma tentação, seja ela qual for, grande ou pequena. Pensa,
ao contrário: "Tenho certeza de que cairei, quando ela vier." A confiança em si é um
aliado perigoso. Quanto menos te apoiares nela, mais seguro estarás. Reconhece que és
fraco, totalmente incapaz de resistir à menor insinuação do demônio. E então espantado,
descobrirás que não podes absolutamente nada. Visto que farás do Senhor o teu refúgio,
poderás imediatamente proclamar que "a desgraça jamais te atingirá" (Sl 91:10).

A única desgraça que pode acontecer a um cristão é o pecado.

Se te sentes amargurado por teres caído, de um modo ou de outro; se te censuras


duramente e se multiplicas as resoluções de "nunca mais recomeçar," é sinal certo de
que estás no caminho errado: isso provém do fato de que tua autoconfiança se sente
ferida.

Quem não confia em si mesmo, fica profundamente surpreso de não ter caído mais
baixo, e se sente cheio de reconhecimento. Agradece a Deus por lhe ter enviado, a
tempo, o socorro sem o qual ele teria sido completamente esmagado. Levanta-se
rapidamente, e começa a oração por um triplo "Deus seja louvado!"

Uma criança mimada fica muito tempo chorando, quando cai. Procura atrair uma
manifestação de simpatia, uma carícia que a console. Mas tu, não sejas pretensioso;
pouco importa se sofres. Ergue-te e recomeça o combate. É normal que se fira aquele
que luta. Só os anjos não caem nunca. Mas roga a Deus que te perdoe e não permita que
sejas novamente surpreendido.

Não sigas o exemplo de Adão, jogando a culpa em tua mulher, ou no demônio, ou em


qualquer outra causa exterior. A causa da tua queda está em ti mesmo: enquanto o
Mestre estava fora de casa, deixaste os ladrões e os malfeitores entrarem e pilharem
tudo à vontade. Roga a Deus que isso não se repita.

Perguntaram a um monge: "Que fazeis aqui, no mosteiro?" Ele respondeu: "Caímos e


nos levantamos, caímos e nos levantamos, caímos e nos levantamos outra vez."

De fato, em tua vida, poucos minutos se passam sem que caias pelo menos uma vez.
Então, ora para que Deus tenha piedade de ti.

Ora para obter perdão e graça; suplica, como o pode fazer um criminoso condenado à
morte, e lembra-te de que é somente pela graça que fomos salvos (cf. Ef 2:5). Não
podes, de modo algum, reivindicar a libertação e a graça como algo que te é devido.
Considera-te um escravo fugido que, prostrado diante de seu senhor, suplica que o
poupe. Essa deve ser a tua oração, se queres seguir a doutrina de Santo Isaac, o Sírio, e
"abandonar o fardo interior de teus pecados, para descobrir, dentro de ti mesmo, o
atalho que sobe, tornando possível a ascensão."

15. A oração - I
Do que precede, conclui-se que a oração é o primeiro e, sem comparação, o meio mais
importante que devemos empregar no combate. Aprende a orar, e vencerás todas as
Potências do mal que possam, algum dia, te assaltar.

A oração é uma das asas que nos erguem para o céu; a outra é a fé. Com uma asa só,
não se pode voar: a fé sem a oração é tão vã quanto a oração sem a fé. Mas, se tua fé é
frágil demais, é bom clamar: "Senhor, dai-me a fé!" É muito raro essa oração não ser
atendida. O grão de mostarda, como disse o Senhor, torna-se uma grande árvore.

Quem quer receber sol e ar, abre as janelas. Seria ridículo ficar por trás das cortinas
fechadas e queixar-se: "Não há luz; não há nem um pouco de ar!" Essa imagem mostra
o papel da oração: o poder de Deus e a sua graça estão sempre e em toda parte ao
alcance de cada um de nós; porém, só podemos receber a nossa parte se a desejamos e
se agimos conforme esse desejo.

Sem a oração, não esperes encontrar o que procuras A oração é o início e o fundamento
de todo esforço para Deus. É ela que faz brilhar o primeiro raio de luz, que te faz sentir
antecipadamente o gosto do que procuras, e que desperta o desejo de progredir.

A oração é, segundo São João Clímaco, o fundamento do mundo. Um outro santo


comparou o universo a um globo, que deve a sua estabilidade à Igreja que ali está
implantada; mas a própria Igreja é sustentada pela oração.

A oração é uma troca e um encontro entre a humanidade e Deus. É a ponte pela qual o
homem passa para além do seu "eu" carnal e de suas tentações; e acede ao verdadeiro
"eu" espiritual e à liberdade. Ela é a muralha contra todas as desordens, a arma contra a
dúvida; acaba com a tristeza e contém a ira. A oração é um alimento para a alma e uma
luz para o espírito; consegue para nos, já neste mundo, uma parte da alegria que virá.
Para aquele que ora verdadeiramente, a oração é a sentença, o tribunal, o trono de Juiz;
antecipa o julgamento final para agora, para o momento presente, no fundo do coração.
A oração e a vigilância são a mesma e única coisa, pois é em companhia da oração que
deves ficar à porta do teu coração. Olhos bem abertos percebem imediatamente a menor
modificação que se produza em seu campo de visão; assim acontece com o coração que
ora sem cessar.

Na aranha se encontra outro exemplo: ela fica no meio da teia, ouve a menor mosca que
venha prender-se nela, e mata-a. Assim também, a oração deve ficar, como sentinela, no
meio do teu coração: ao menor estremecimento que revele a presença de um inimigo,
ela o mata.

Abandonar a oração, é desertar do posto quando se está de guarda. A porta fica, então,
aberta às hordas devastadoras, e os tesouros que se acumularam são entregues à
pilhagem. Os ladrões não precisam de muito tempo para fazer o seu trabalho: a ira, por
exemplo, pode destruir tudo num instante.

16. A oração - II
O que precede esclarece que, quando os Padres falam de oração, não estão se referindo
a orações ocasionais, nem às orações da manhã e da noite, nem das que se fazem antes
das refeições; para eles, oração é sinônimo de oração perpétua; de vida de oração.
Tomaram ao pé da letra a ordem "... orai sem cessar" (1Ts 5:17).

Compreendida desse modo, a oração é a ciência das ciências e a arte das artes. O artista
trabalha com argila, tintas, palavras ou sons; na proporção de seu talento, ele lhes
confere harmonia e beleza. A matéria com a qual o homem de oração trabalha, é viva, é
a própria natureza humana. Por meio da oração, ele a modela, dando-lhe harmonia e
beleza. É ele o seu primeiro beneficiário, mas, por seu intermédio, essa transfiguração
se estende a muitos outros.

O cientista estuda as coisas criadas e as aparências; o homem de oração se eleva até o


Criador de todas as coisas. Ele se interessa, não pelo calor, mas pelo Princípio do calor;
não pelas funções vitais, mas pela Origem da vida; não pelo seu próprio "eu," mas por
Aquele que lhe dá a consciência do seu "eu," pelo seu Criador.

O artista e o cientista devem fazer muitos sacrifícios e muitos esforços para chegar à
maturidade da sua arte ou de seu saber, e jamais atingem toda a perfeição que
ambicionam. Se esperassem sempre a inspiração para se porem a trabalhar, nunca
poderiam aprender nem mesmo os rudimentos de sua profissão. É necessária ao
violinista uma prática perseverante, para se iniciar nos segredos de seu instrumento tão
delicado. Façamos a mesma coisa; quanto mais delicado ainda é o coração humano!

"Chegai-vos para Deus e ele se chegará para vós" (Tg 4:8). Cabe a nós, pôr mãos à obra.
Se dermos um passo para ele, dará dez para nós — ele que, avistando o filho pródigo,
que vinha ainda longe, encheu-se de compaixão, correu e lançou-se-lhe ao pescoço,
cobrindo-o de beijos (cf. Lc 15:20).

É preciso, pois, que te decidas, uma vez por todas, a dar os primeiros passos, ainda
inseguros, para Deus, se realmente queres aproximar-te dele. Que não te perturbe a falta
de jeito, no início do caminho da oração. Não cedas ao respeito humano, à indecisão,
aos risos zombeteiros dos demônios que tentam convencer-te de que teu comportamento
é ridículo, de que teu disígnio é uma bobagem que não passa de fruto da tua imaginação.
Não há nada que o Inimigo tema tanto quanto a oração.

Na criança, o desejo de ler aumenta à medida que ela progride no aprendizado da


leitura; quando aprendemos uma língua estrangeira, é tanto maior o prazer que sentimos
falando-a, quanto melhor a dominamos. O prazer aumenta com o progresso. O
progresso vem pela prática. A prática se torna mais fácil com o progresso. O mesmo se
pode dizer da oração. Não esperes, pois, nenhuma inspiração extraordinária, para pôr
mãos à obra.

O homem foi criado para orar, como o foi para falar e para pensar. Mas ele foi mais
especialmente criado para orar, pois "Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no
jardim de Éden para o cultivar e o guardar" (Gn 2:15). E onde encontrarás o jardim de
Éden, a não ser em teu coração?

Como Adão, deves chorar sobre o Éden perdido pela tua intemperança. Estás vestido de
folhas de figueira e com uma túnica de pele (cf. Gn 3:21), que são a tua condição
mortal, com suas paixões. Entre ti e a estreita entrada do atalho que leva à árvore da
vida, interpõem-se as tenebrosas chamas dos desejos terrenos; e somente aos que
venceram esses desejos é concedido "comer do fruto da árvore que está no paraíso de
Deus" (Ap 2:7). Adão infringiu só um mandamento de Deus, e tu, como diz Santo
André de Creta, tu os transgrides todos, cada dia e a cada momento. Das profundezas de
teu estado de pecado, e de teu endurecimento, tua oração deve elevar-se para ganhar as
alturas.

Muitas vezes, um criminoso endurecido não tem consciência de sua culpa; é próprio do
endurecimento. É esse o teu caso. Mas, que não te assuste o endurecimento do teu
coração: a oração o abrandará, pouco a pouco.

17. A oração - III


Quando decidimos começar regularmente a oração da manhã, nós o fazemos, em geral,
não porque já tenhamos uma certa facilidade natural para orar, mas sim com a
finalidade de conseguir alguma coisa que ainda não possuímos. Ora, quem possui uma
coisa, corre o risco de se preocupar, com medo de perdê-la; e quem não a possui ainda,
fica ansioso por consegui-la. Por isso, deves começar a praticar a oração, sem nada
esperar de ti mesmo, sem procurar "chegar a alguma coisa."
Se tens a possibilidade de um quarto só teu, podes seguir ao pé da letra, e
tranqüilamente, as indicações do Manual de Orações:

"Quando acordas, antes de começar o dia, coloca-te respeitosamente diante de Deus,


que tudo vê. Faz o sinal da cruz e diz: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
Amém."

"Depois de ter invocado assim a Santíssima Trindade, fica em silêncio por alguns
instantes, para que teus pensamentos e teus sentimentos se libertem das preocupações
deste mundo. Em seguida, recita, sem pressa e de todo coração: Ó Deus, tende piedade
de mim, pecador."
Vêm depois as outras orações, começando pela do Espírito Santo, da Santíssima
Trindade, e o Pai Nosso, que precedem o conjunto das orações da manhã. É melhor ler
apenas algumas, tranqüilamente, do que lê-las todas, com pressa.

Essas orações são fruto da experiência que a Igreja acumulou ao longo dos séculos.
Através delas, entras na vasta comunhão do Povo de Deus em oração. Não estás
sozinho; és uma célula no Corpo da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Pela recitação
dessas fórmulas, aprenderás também a constância e a paciência, necessárias, não apenas
para o corpo, mas também para o coração e o espírito, para que se fortaleça a tua fé.

A verdadeira oração é aquela em que o espírito e o coração se põem em uníssono com


as palavras; a atenção é, pois, indispensável. Não deixes que teus pensamentos fiquem
vagando; recolhe-os continuamente e, cada vez que te deixas levar para longe de tua
oração, volta ao ponto em que a deixaste Poderás recitar o saltério da mesma forma.
Aprenderás assim a praticar a perseverança e a vigilância na oração.

Quem fica diante de uma janela aberta, ouve os ruídos de fora; não pode ser de outra
forma. Mas, ele pode, ou não, prestar atenção às palavras que chegam até ele; isso
depende da sua vontade. O homem em oração é constantemente solicitado por um fluxo
de pensamentos forasteiros, de sentimentos e de impressões. Conter o fastidioso
desenrolar desse filme interior, é tão impossível quanto impedir o ar de circular num
cômodo cuja janela esteja aberta. Mas depende de cada um prestar atenção nisso, ou
deixar de prestar. Dizem os santos ser esse um aprendizado que só se faz pela prática.

Quando oras, teu "eu" deve calar-se. Não ores para que se realizem os teus desejos
terrenos; mas dizes: "Que seja feita a tua vontade" Não te sirvas de Deus como de um
mandatário. Fica calado, e deixa a oração falar.

Segundo São Basílio, tua oração deve conter quatro elementos: adoração, ação de
graças, confissão dos pecados e pedido de salvação.

Não te preocupes com teus próprios interesses e não ponhas a oração a seu serviço; mas,
"busca em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas te serão
acrescentadas" (Mt 6: 33).

Aquele que procura fazer a própria vontade, e cuja oração não coincide, pois, com a
vontade de Deus, encontrará muitos obstáculos no caminho, e cairá incessantemente nas
emboscadas do Inimigo. Ficará descontente, irascível, infeliz, hesitante, impaciente ou
inquieto; e quando o espírito se encontra nesse estado, ninguém pode permanecer em
oração.

A oração daquele que tem alguma queixa contra seu próximo é impura. Só podemos e
devemos dirigir censuras a uma única pessoa: a nós mesmos. Sem a auto-acusação, a
oração será tão vã quanto se, dentro de nosso coração, censurássemos outra pessoa.

Não te preocupes por sentires sequidão em ti. A chuva vivificante vem do alto, e não de
teu solo ingrato, incapaz de produzir mais do que sarças e espinhos. Aliás, não esperes
"estados de oração" extraordinários, êxtases, enlevos ou outras experiências em que
encontrarias tua própria satisfação. Não se ora para procurar prazer. "Entristecei-vos,
cobri-vos de luto e chorai (...) Humilhai-vos diante do Senhor e ele vos exaltará" (Tg
4:9-10). Pensa no que és e suplica ao Senhor que tenha piedade de ti. O resto depende
dele.

18. A oração - IV
A oração não deve cessar quando terminamos as orações da manhã. Trata-se agora de
manter presente a oração ao longo do dia, apesar da diversidade e da complexidade de
nossas ocupações cotidianas.

O bispo Teófano, o Recluso, aconselha aos principiantes que escolham um versículo


curto do saltério, apropriado às suas necessidades; por exemplo, "Senhor, apressa-te em
socorrer-me," ou "Criai em mim um coração puro" ou "Bendito és tu, Senhor," etc. O
saltério oferece uma grande quantidade dessas orações mais ou menos curtas. Durante
todo o dia, podemos guardar no espírito essa oração, e repeti-la com a maior freqüência
possível, seja mentalmente, seja em voz baixa ou, melhor ainda, em voz alta, se
estivermos sozinhos e se ninguém nos ouvir. No ônibus ou no elevador, no trabalho ou à
mesa, tanto quanto possível, retoma-se a oração e fixa-se a atenção no conteúdo das
palavras. Assim passa o dia, até a noite, quando se arruma um momento de
tranqüilidade para ler a oração da noite no Manual de Orações, antes de deitar.

E essas orações curtas também servem para os que não gozam de isolamento suficiente
para recitar as orações ordinárias da manhã e da noite. De fato, elas nos podem
acompanhar sempre e por toda parte. Em casos assim, a solidão interior supre a ausência
de solidão exterior.

A repetição freqüente é importante. É por repetidas batidas de asas que o pássaro se


eleva acima das nuvens; o nadador tem de reproduzir inúmeras vezes o mesmo
movimento, para chegar ao objetivo desejado. Mas, se o pássaro pára de voar, deverá
contentar-se em permanecer nos nevoeiros da terra; e o nadador que pára, corre o risco
de perecer no abismo ameaçador que o espreita.

Faz, assim, a tua oração, hora após hora, dia após dia, perpetuamente. Mas ora com
simplicidade, sem ênfase, sem complicações, sem fazeres a ti mesmo todo tipo de
perguntas: "Não vos preocupeis com o dia de amanhã" (Mt 6:34). Quando chegar o
momento, a resposta te será dada.

Abraão partiu sem perguntar: "Como é a terra que me vais mostrar? O que me espera
lá?" Simplesmente "... partiu, como lhe disse Iahweh" (Gn 12:4). Faz como ele. Abraão
tomou todos os bens que tinha reunido (ibid. 5). Imita-o também nisso; leva contigo, na
viagem, todo o teu ser; não deixes para trás nada que possa reter uma parte da tua
afeição, na terra que deixaste.

Noé levou cem anos para construir a arca, peça por peça. Faz a mesma coisa; constrói
peça por peça, com toda a paciência, em silêncio, dia após dia, e não te preocupes com
os que te cercam. Lembra-te: Noé, no seu tempo, estava sozinho no mundo e "... andava
com Deus" (Gn 6:9), isto é, na oração. Pensa também na dificuldade, na escuridão, no
mau cheiro em que ele deve ter vivido no interior da arca, antes de poder sair para o ar
livre e erguer um altar ao Senhor. O ar puro e o altar, tu os descobrirás em ti, diz São
João Crisóstomo, mas só, quando concordares em passar pela mesma porta estreita por
que passou Noé.
Também como Noé, faz "tudo o que Deus te ordenou" (Gn 6:22), e constrói "com
orações e súplicas" (Ef 6:18) o barco que possibilitará que passes do teu "eu" carnal e
dos teus interesses, múltiplos e egoístas, para a plenitude do Espírito. Quando o Único
vem ao nosso coração, diz são Basílio, o Grande, a multiplicidade desaparece. Teus dias
passam, então, numa grande sensação de plenitude, sob a proteção daquele que tem a
plenitude do universo em suas mãos.

19. A sobriedade do corpo e do espírito: condição da


oração
Quando nos entregamos à oração dessa maneira, é importante não dar plena liberdade
ao corpo. Santo Isaac, o Sírio, diz que uma oração em que o corpo não esteja
desconfortável e o coração aflito, permanece embrionária, sem alma. Ela leva em si o
germe da autoconfiança e do orgulho, que conduzem o nosso coração a crer que
fazemos parte, não apenas dos "chamados," mas também dos "poucos escolhidos" (Mt
22:14).

Não confies nesse tipo de oração, pois é a raiz de muitas ilusões. Como teu coração
continuou apegado à carne, teu tesouro também continua a ser de ordem carnal; e,
enquanto acreditas, talvez, que atinges o céu, consegues apenas o que também é carnal.
A alegria que sentes carece de pureza e se traduz de modo exuberante; tens urgência de
falar, sentes vontade de catequizar e converter os outros, sem teres sido chamado pela
Igreja a exercer o ofício de mestre. Interpretas a Escritura conforme a tua mentalidade
carnal, e não consegues suportar que te contradigam; defendes apaixonadamente o teu
ponto de vista. Tudo isso porque te esqueceste de disciplinar o corpo e, por isso, de
humilhar o coração.

A verdadeira alegria é tranqüila e estável; por isso, o apóstolo nos ordena: "Ficai sempre
alegres" (1Ts 5:16). Ela resulta de um coração que derrama lágrimas sobre o mundo e
sobre si mesmo, porque todos se desviaram da luz que não se apaga. A verdadeira
alegria se consegue através das lágrimas. Por esse motivo, está escrito: "Bem-
aventurados os aflitos" (Mt 5:5), e: "... Bem-aventurados vós, que agora chorais,"
mortificando o "eu" carnal, "porque haveis de rir" pelo "eu" espiritual (Lc 6:21). A
verdadeira alegria é reconfortante, uma alegria que brota, não só do conhecimento de
nossa própria fraqueza, mas também da misericórdia do Senhor; e ela não precisa de um
riso ruidoso para se expressar.

Pensa ainda nisto: quem se apega às coisas da terra, pode encontrar alegria, mas também
agitação, inquietação e aflição; seu espírito se expõe a contínuas flutuações. A "alegria
do teu Senhor" (Mt 25:21), ao contrário, é estável, porque Deus é imutável.

Portanto, vigia a tua língua e disciplina o teu corpo, através do jejum e de uma vida
austera. A tagarelice é o grande inimigo da oração. Por isso, deveremos dar contas de
toda palavra inútil (Mt 12:36). Quando queremos manter limpo um apartamento,
procuramos impedir que entre a poeira da rua. Preserva teu coração das tagarelices e dos
mexericos sobre os acontecimentos do dia.

"... Notai como um pequeno fogo incendeia uma floresta imensa. Ora, também a língua
é um fogo" (Tg 3:5-6). Porém, sem ar, a chama se apaga. Deixa também sem ar as tuas
paixões, e elas se extinguirão pouco a pouco. Se sentes inflamar-se a tua ira, cala-te, e
não deixes que ela transpareça Fala dela somente a Deus. Assim apagarás a mecha que
acabou de se acender. Quando te perturbas pelos erros dos outros, segue o exemplo de
Sem e de Jafé, e cobre-os com o manto do silêncio (Gn 9:23); assim sufocarás o desejo
de julgar, antes que as chamas subam. O silêncio está pronto para ser preenchido com a
oração atenta, como um vaso vazio para se encher de água.

Porém, quem quiser praticar a arte da vigilância espiritual, não é só da língua que deve
cuidar. Deve cuidar de si mesmo (Gl 6:1), minuciosamente, e estender a solicitude às
profundezas do seu ser. Nessas profundezas, descobrirá imensos espaços interiores,
onde se agita um grande número de lembranças, imaginações, pensamentos, que devem
ser reprimidos. Não despertes uma lembrança que poderá cobrir de lama a tua oração;
não revolvas as impressões que antigos pecados deixaram em ti. Não sejas "como o cão
que torna ao seu vômito" (Pr 26:11). Não deixes que a tua memória se demore em fatos
que poderiam reanimar teus maus desejos; não permitas que tua imaginação divague. O
baluarte preferido do demônio é exatamente a nossa imaginação. Por meio dela, ele nos
atrai para a "relação," isto é, a discussão com ele; daí, para o consentimento e para o
pecado em ato. Ele semeia a incerteza e a agitação entre os teus pensamentos; ele te
sugere todo tipo de raciocínios, de provas, de perguntas vãs e de respostas que damos a
nós mesmos. Opõe, a isso tudo, a palavra do salmista: "Afastai-vos de mim, perversos,
eu vou guardar os mandamentos do meu Deus" (Sl 119,115).

20. O jejum
Um jejum proporcional às tuas forças favorecerá a vigilância espiritual. Não se pode
meditar as coisas de Deus com estômago muito cheio, dizem os mestres espirituais. Para
um amigo da boa mesa, os segredos menos misteriosos da Santíssima Trindade, se
assim se pode dizer, permanecem escondidos. O Cristo nos deu o exemplo com seu
longo jejum; quando venceu o demônio, saía de um jejum de quarenta dias. Gostarias de
consegui-lo com menor sacrifício? Depois, só depois, "... os anjos de Deus se
aproximaram e puseram-se a servi-lo" (Mt 4:11). Para te servir, eles também esperam.

O jejum refreia a tagarelice, diz São João Clímaco (Escada, Degrau 14:34). Ele te fará
misericordioso e disposto a obedecer; destrói os pensamentos maus e elimina a
insensibilidade do coração. Quando o estômago está vazio, o coração é humilde. Quem
jejua ora com espírito sóbrio, ao passo que o espírito do intemperante é repleto de
imaginações e de pensamentos impuros.

O jejum é uma maneira de exprimir o amor e a generosidade; através dele, sacrificam-se


os prazeres da terra, para obter as alegrias do céu. Uma parte excessivamente grande de
nossos pensamentos é açambarcada pela preocupação com a subsistência e com os
prazeres da mesa; gostaríamos de nos libertar dessa preocupação. Assim, o jejum se
mostra como uma etapa do caminho da libertação, e um aliado indispensável na luta
contra os desejos egoístas. Ao lado da oração, o jejum é um dos mais preciosos dons
concedidos aos homens, caro a todos os que fizeram a experiência.

Quando jejuamos, sentimos crescer o nosso reconhecimento para com Deus, que deu ao
homem o poder de jejuar. O jejum dá acesso a um mundo de cuja existência mal
suspeitas. Todos os pormenores da tua vida, tudo o que se passa em ti e ao teu redor, é
visto sob uma nova luz. O tempo que passa será utilizado de um modo novo, rico e
fecundo. Durante as vigílias, a modorra e a confusão dos pensamentos dão lugar a uma
grande lucidez de espírito; ao invés de nos revoltarmos contra o que nos contraria, nós o
aceitamos calmamente, na humildade e na ação de graças; problemas que pareciam
graves e complexos, resolvem-se por si mesmos, com a mesma simplicidade do
desabrochar da corola de uma flor. A oração, o jejum e as vigílias são a maneira de
bater à porta que desejamos ver abrir-se.

Os santos Padres muitas vezes consideraram o jejum uma medida de capacidade: se


jejuamos muito, é que amamos muito; e se amamos muito, é que muito nos foi perdoado
(cf. Lc 7:47). Aquele que jejua muito, receberá muito.

No entanto, os santos Padres recomendam que se jejue com medida: não é preciso
impor ao corpo uma fadiga excessiva, pois a própria alma se prejudicaria com isso.
Tampouco é preciso começar a jejuar muito de repente; todas as coisas exigem uma
adaptação, e cada um deve levar em conta a própria compleição e as próprias
ocupações. Evitar alguns tipos de alimentos seria condenável: toda alimentação é um
dom de Deus. Contudo, é prudente abster-se dos alimentos que causam moleza ou que
só servem para deleitar o gosto: pratos muito condimentados, carnes, álcool, etc...
Quanto ao resto, pode-se comer de tudo o que é barato e fácil de encontrar. Para os
Padres, jejuar com medida significa, no entanto, fazer uma única refeição por dia,
refeição essa suficientemente leve, para evitar a saciedade.

21. É preciso evitar o exagero


A experiência demonstra que o pianista que toca com excessivo ardor, ou o escritor que
escreve depressa demais, é vítima de cãibras. Desanimado, sem poder fazer nada, vê-se
de repente obrigado a interromper o trabalho, ele que, um minuto antes, estava tão
entusiasmado. E a inação expõe a muitas influências más.

Esse exemplo contém uma lição para ti. O jejum, a obediência, a austeridade de vida, a
atenção, a oração, constituem um conjunto de práticas necessárias, mas não passam de
práticas. E, toda prática deve ser empregada com naturalidade, calmamente, levando em
conta a medida das próprias forças (cf. Lc 14:28-32), evitando qualquer exagero. "...
Levai, pois, uma vida de autodomínio e de sobriedade, dedicada à oração" (1Pd 4:7),
recomenda-nos o apóstolo Pedro e, por ele, o Senhor mesmo.

É possível embriagar-se com outra coisa que não seja o álcool. Igualmente perigosa é a
auto-exaltação, que provoca excessiva confiança em si mesmo, e a atividade apressada
que dela resulta. Animados por um zelo sem reservas, que se traduz por exageros e falta
de comedimento, semeamos assim, no terreno da vida espiritual, o que cremos serem
sacrifícios. Mas os frutos que colhemos são duvidosos: tensão excessiva, impaciência
quanto aos defeitos do próximo, justificação própria. Trata-se, pois, de "... não se
desviar, nem para a direita, nem para a esquerda" (Dt 5:32), e de não ter nem a mais
leve confiança em si mesmo.

Se não vemos em nós frutos abundantes de amor, de paz, de alegria, de moderação, de


humildade, de simplicidade, de retidão, de fé e de paciência, é vão todo o nosso
trabalho, como nos previne São Macário do Egito. Devemos trabalhar para a colheita,
mas essa colheita é a obra do Senhor.
Fica, pois, atento a ti mesmo e usa de discernimento. Se notares que te tornas irritadiço
e exigente para com os outros, diminui um pouco o peso do teu fardo. Se procuras
examinar a conduta dos outros, dar-lhes lições, dirigir-lhes observações, estás no
caminho errado: quem renuncia verdadeiramente a si mesmo, não tem nada a censurar
nos outros. Se achas que as pessoas que te cercam, ou as circunstâncias exteriores, te
incomodam e te constrangem, é porque ainda não compreendeste em que consiste o teu
trabalho: tudo o que, à primeira vista, parece constranger-te, na realidade te é dado
como ocasião de aceitar os outros, de ser paciente e de obedecer. Um homem humilde
não pode ser constrangido pelos outros: pode apenas constranger. Passa, pois,
despercebido, evita tomar a dianteira, esconde-te. Entra no teu quarto e fecha a porta
(Mt 6:6), mesmo quando és obrigado a permanecer no tumulto de uma companhia
numerosa. E quando, às vezes, isso se torna demasiadamente difícil de suportar, sai, vai
a qualquer lugar, contanto que possas ficar só; clama de toda a tua alma ao Senhor para
que te ajude, e ele te ouvirá.

Considera-te como uma roda, dizia o staretz Ambrósio. Quanto mais de leve a roda toca
a terra, mais ela gira e avança com facilidade. Não penses nas coisas terrenas, não fales
delas, não te preocupes com elas mais do que o necessário. Mas lembra-te também de
que, se uma roda fica inteiramente no ar, não pode girar.

22. Do uso das realidades materiais


Somos feitos de alma e de corpo; não podemos fazer abstração dessa dualidade em
nosso comportamento. Por conseguinte, usa as realidades materiais. O Cristo conhece a
nossa fraqueza, e empregou, como meios, por nossa causa, palavras e gestos, saliva e
lama. Por nossa causa, quis que seu poder vivificante se comunicasse pela orla de sua
veste (cf. Mt 9:20, 14:36), pelos aventais e lenços que haviam tocado o corpo de Paulo
(cf. At 19:12), e até pela sombra do apóstolo Pedro (cf. At 5:15).

Assim, ao longo de tua dura peregrinação pelo caminho estreito, apóia-te em todas as
coisas terrenas como em um bastão, utilizando-as para te lembrares de Deus: que a
brancura da neve e a limpidez do céu, o olho colorido da mosca e o calor do fogo, e
todas as criaturas que teus sentidos percebem, te lembrem o Criador. Mas, recorre
principalmente aos meios que a Igreja te oferece para "entregar teus membros a serviço
da justiça para a santificação" (Rm 6:19). Antes de qualquer outra coisa, a Santa
Comunhão do Senhor; mas também os outros mistérios e sacramentos, e as Santas
Escrituras. A Igreja também te oferece os santos ícones da Mãe de Deus, dos Anjos e
dos Santos, a oração feita diante deles, as velas e as lâmpadas, a água benta, o brilho do
ouro, o canto. Recebe tudo isso com agradecimento, para tua edificação e consolo,
benefício e progresso, enquanto prossegues o teu caminho rumo a um objetivo mais
distante.

Não temas a manifestação exterior do amor que tens pelo teu Senhor misericordioso e
cheio de amor; beija a cruz e os ícones; enfeita-os com flores. Se apenas impedíssemos
que se exprimisse exteriormente o mal que está em nós, a nossa boa vontade poderia
respirar livremente. Se recebêssemos com amor o que nos é dado por amor, a atividade
do nosso amor se tornaria mais ampla e mais poderosa; e é exatamente esse o objetivo
de nossos esforços. Quanto mais copioso é um rio, mais se alarga a sua embocadura.
Utiliza o teu próprio corpo como um auxiliar no teu combate. Submete-o e torna-o
independente dos caprichos do homem velho. Faz com que ele partilhe os teus
sentimentos de compunção: se queres aprender a humildade, torna humilde o teu
próprio corpo e inclina-o para a terra. Ajoelha-te, com o rosto em terra, tantas vezes
quantas puderes, quando estás só; mas levanta-te logo, pois toda queda é seguida de
nossa elevação no Cristo.

Faz muitas vezes o sinal da cruz: é uma oração sem palavras. Em alguns instantes, sem
estar sujeito à lentidão da palavra, ele exprime a tua vontade de participar da vida do
Cristo e de crucificar a tua carne; de aceitar, sem murmurar, tudo o que te envia a
Santíssima Trindade. Por outro lado, o sinal da cruz é uma arma contra os espíritos
maus: utiliza freqüentemente essa arma, atento ao que fazes.

Para construir uma casa, é necessário montar uma estrutura. Só um homem forte não
precisa de apoio externo. Mas, serás um homem forte? Não serás, antes, um fraco entre
os fracos? Será que és mais que uma criança?

23. Os momentos de escuridão


Ora o céu está nublado, ora claro; depois se torna novamente chuvoso. Assim é também
a natureza humana. É sempre de se esperar que, de quando em quando, as nuvens
cubram o sol. Os próprios santos conheceram momentos, dias e semanas de escuridão.
Diziam então que "Deus os havia abandonado," para fazê-los tomar verdadeiramente
consciência da radical pobreza que vivem quando são entregues assim, a si mesmos, e
privados de apoio. São inevitáveis esses momentos de escuridão, em que tudo parece
sem sentido, absurdo e vão, em que a gente é importunada pela dúvida e tentações. Mas,
até eles podem ser proveitosamente utilizados.

O melhor meio de não se deixar abater durante esses dias sombrios, é seguir o exemplo
de Santa Maria do Egito. Durante quarenta e oito anos, ela morou no deserto, para além
do Jordão; quando as tentações se abatiam sobre ela, e a lembrança da sua vida de
pecado em Alexandria, solicitava que ela renunciasse à permanência voluntária no
deserto, lançava-se ao solo, clamava a Deus, pedindo ajuda, e só se levantava quando
seu coração voltava a ser humilde. Os primeiros anos foram penosos. Muitas vezes ela
teve de ficar nesse estado por longos dias. Mas, após dezessete anos, chegou o tempo do
descanso.

Em períodos assim, permanece calmo. Não te deixes persuadir a freqüentar mais a vida
social, nem a procurar uma diversão. Não tenhas piedade de ti mesmo; procura apenas o
conforto de clamar ao Senhor: "Vem livrar-me, ó Deus! Iahweh, vem de pressa em meu
socorro!" (Sl 70:2); "... estou fechado e não posso sair" (Sl 88:9), e outros apelos
semelhantes. Aliás, só dele poderás esperar ajuda verdadeira. Procurando um conforto
aleatório, não vás perder toda a tua colheita. Isola-te do que está ao teu redor. Ergue a
cabeça: agora tua paciência e constância são postas à prova. Se suportares essa prova,
agradece a Deus, que te deu força. Se sucumbires, levanta-te prontamente, pede perdão,
e diz a ti mesmo: "O que tenho, é o que mereço!" Pois a própria queda foi a tua punição.
Contaste demais contigo mesmo, e agora vês aonde isso te levou. Fizeste uma
experiência: não te esqueças de dar graças.
24. A respeito de Zaqueu
Como Zaqueu, subiste numa árvore para ver o Senhor (cf. Lc 19). Não o fizeste nem
apenas em espírito, nem usando unicamente as faculdades intelectuais. És um ser
humano, provido de corpo: por isso, como Zaqueu, empregaste o vigor dos teus
membros e as realidades terrenas para te elevares do solo. E, se agiste assim, com
inteligência e discernimento, levando em conta o peso do teu corpo e a medida das tuas
forças, mas sem medo de parecer ridículo, tiveste a felicidade de subir suficientemente
acima da agitação da multidão — isto é, dos teus impulsos terrenos — para captar, por
um momento, o olhar do Senhor, que te procurava.

Tu mesmo o verificas: desde que tomaste mais consciência da tua própria escuridão, já
não és tão atraído quanto antes pelas distrações e pela vida social; percebeste, como
num relâmpago, o teu homem interior, tal como é na realidade. Talvez tenhas a
impressão de que teu coração se assemelhasse, até agora, a uma casca de noz sacudida
pelas ondas, sem alvo, nem piloto. Agora, a viagem tem um objetivo, e isso é
importante. Todavia, continuas a ser a mesma casquinha de noz, perdida no oceano
deserto; se navegaste convenientemente, agora percebes, pela primeira vez, a que ponto
o teu barco é frágil e minúsculo.

Basta que manifestemos nossa boa intenção — diz o arcebispo Teofilacto da Bulgária
— para que o próprio Senhor seja constantemente o nosso guia. Jesus disse a Zaqueu:
"... desce depressa — isto é, humilha-te — pois hoje devo ficar em tua casa" (Lc 19:5).
"tua casa," aqui, pode-se interpretar como "teu coração." Está bem, diz o Senhor, subiste
numa árvore e realizaste uma parte de teus desejos terrenos, porque desejavas ver-me.
Querias estar em condições de me perceber quando passasse em teu coração. Mas agora,
apressa-te em te humilhar, ao invés de ficares aí, pensando que estás melhor colocado
que os outros; pois é no coração do humilde que devo habitar. "Ele desceu
imediatamente e recebeu-o com alegria" (Lc 19:6).

Zaqueu, chefe dos publicanos, recebe, portanto, o Cristo E a primeira coisa que faz é
renunciar a todos os seus bens. Pois, sem demora, dá a metade deles aos pobres; e o
resto é logo distribuído, certamente, para restituir o quádruplo do que havia extorquido.
"... Ele também é um filho de Abraão" (Lc 19:9): ele ouviu a voz do Senhor e
imediatamente deixou o seu país e a casa do seu pai (cf. Gn 12:1), onde o egoísmo e as
paixões reinavam como senhores.

Zaqueu descobriu que um coração que recebe o Cristo deve esvaziar-se de todo o resto;
deve dar tudo o que possui de riquezas injustamente adquiridas: "... a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas" (1Jo 2:16). Ele
compreendeu que quem é rico neste mundo, é pobre no mundo que virá; pois, ser rico
materialmente é ser espiritualmente pobre, segundo São João Crisóstomo. Com efeito,
se o rico não fosse tão pobre, não procuraria ser tão rico.

Assim como é impossível unir a saúde à doença, é também impossível conciliar o amor
e a posse, declara Santo Isaac, o Sírio. Pois, quem ama o próximo, abandona
incondicionalmente tudo o que possui: essa é a natureza do amor. Mas, sem amor, é de
todo impossível entrar no Reino de Deus. Zaqueu também verificou isso.
Quanto menos se possui, mais a vida se simplifica. Todo supérfluo é rejeitado, e o
coração se recolhe em seu centro. Pouco a pouco, o homem interior se esforça por
penetrar no seu quarto mais interno, em que se encontram os degraus que sobem até o
céu.

Também a oração se torna, assim, mais simples. As orações se reúnem ao redor do


centro do coração e ali penetram. E nessas profundezas, descobre-se a única oração
verdadeiramente necessária: o pedido de misericórdia.

O que pode desejar um pecador, e o primeiro deles (cf. lTm 1:15), senão que o Senhor
tenha piedade dele? Terá alguma coisa para lhe oferecer? Será que tem forças, vontade,
segurança, que lhe sejam próprias? Poderá empreender alguma coisa por si mesmo?
Poderá saber alguma coisa? Será que pode compreender, apreender alguma coisa, ele,
que nada tem de próprio, nada que possa chamar de seu?

Ele nada tem, pois o pecado não tem existência positiva; o pecado não é mais que
privação, opacidade, recusa. É aí que se encontra o pecador: nesse nada.

Ele se vê assim; e, quanto menos possui, mais rico é Porque o quarto vazio, que está no
seu coração, transborda, não de bens transitórios, mas da plenitude da vida eterna, da
sua luz e de suas certezas: o amor e a misericórdia. E isso, porque o Senhor é o hóspede
da sua casa.

Mas, como .pode o pecador merecer a vinda do Senhor? Como pode apenas imaginar
que o Senhor queira olhar para ele, mergulhado nas suas trevas? É inútil esforçar-se
para se purificar, combater e trabalhar, seguir os mandamentos do Evangelho, velar,
jejuar, procurar de todas as maneiras sacrificar-se pelo Senhor; apesar de tudo isso, ele
sucumbe ao mau humor e à ira, à falta de amor e à preguiça, à impaciência e à
ingratidão, e a todos os vícios imagináveis. Como pode esperar que o Senhor venha a
semelhante morada?

Por isso, ele ora nestes termos: "Senhor, tem piedade, tem piedade de mim, pecador;
pois, na verdade, tentei fazer o que estava prescrito, para te servir. Trabalhei o campo do
meu coração, cujo cuidado me tinhas confiado, e aí guardei os animais (cf. Lc 17:7-10).
Mas, sou apenas o teu humilde servo, e sem ti nada posso fazer. Assim, tem piedade de
mim e enche-me da tua graça."

Pela ação da sua liberdade, ele aumenta a fé (cf. Lc 17:5); e, pela oração, obtém as
energias necessárias para agir. Então, ação pessoal e oração unem-se com laços
estreitos, até que suas águas se misturem completamente, e que a ação pessoal se torne
oração, e a oração se torne o nosso agir. É o que os santos chamam de atividade
espiritual, Oração do Coração, ou Oração de Jesus.

25. A Oração de Jesus


O abade Isaías disse que a Oração de Jesus é um espelho para o espírito e uma lâmpada
para a consciência. Também a compararam a uma voz tranqüila, ressoando numa casa
perpetuamente: todos os ladrões que tentam entrar, fogem ao perceber que alguém está
acordado. A casa, é o coração; os ladrões, as sugestões más. A oração, é a voz de quem
está montando guarda. Porém, aquele que vela, já não sou eu; é o Cristo.
A atividade espiritual encarna o Cristo na nossa alma. Ela implica uma contínua
lembrança de Deus: ele permanece escondido em ti, na tua alma, no teu coração, na tua
consciência: "Eu dormia, mas meu coração velava" (Ct 5:2). Ainda que eu esteja
dormindo, ou deva ocupar-me de outra coisa, meu coração continua fixo na oração, isto
é, na Vida Eterna, no Reino dos céus, no Cristo. As raízes do meu ser estão firmemente
plantadas no solo que as alimenta.

O meio de chegar a essa oração é a invocação: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem
piedade de mim, pecador." Repete-a em voz alta, ou apenas mentalmente, com
tranqüilidade, devagar; mas com atenção, com o coração tão livre quanto possível de
tudo o que não se harmonize com ela. Não apenas as inquietações terrenas não se
conciliam com essa invocação, mas também toda preocupação ou qualquer esperança de
ouvir uma resposta; toda visão interior, a impressão de sentir alguma coisa, os
devaneios românticos, as perguntas curiosas e o jogo da imaginação. A simplicidade é
uma condição indispensável, bem como a humildade, a sobriedade do corpo e do
espírito e, de modo geral, tudo o que implica o combate invisível.

Os principiantes, em particular, devem estar vigilantes contra tudo o que se assemelhe à


mais ligeira tendência ao misticismo. A Oração de Jesus é uma atividade, um esforço
prático, e um meio que possibilita o acolhimento e o emprego dessa força que se chama
Graça de Deus — sempre presente nos batizados, embora escondida — para que ela
produza fruto. A oração faz frutificar essa força em nossa alma; ela não tem outro
objetivo. É um martelo que quebra uma carapaça. O martelo é duro, e seus golpes
machucam. Abandona qualquer idéia de suavidade, de enlevo, de vozes celestiais; só
um caminho leva ao Reino de Deus: é o da Cruz. Ficar suspenso, crucificado a uma
árvore, é um horrível suplício. Não esperes nada mais.

Crucificaste o teu corpo, pregando-o firmemente a um gênero de vida simples e


uniforme, impondo a ti mesmo uma estrita disciplina. A atividade mental e a
imaginação devem ser, também elas, vigiadas com rigor. Prega-as fortemente com as
palavras da oração, a Santa Escritura, a leitura dos Salmos e das obras dos santos
Padres, onde todas essas coisas estão prescritas. Não permitas que tua imaginação voe
para um lado e para outro, à vontade. As idéias que entusiasmam não passam, em geral,
de fugas estéreis para o mundo das ilusões. Quando teu pensamento já não está, de
modo útil, ocupado pelo trabalho, chama-o de volta à oração.

Toma cuidado para que tua imaginação e teu pensamento te obedeçam com tanta
docilidade quanto um cão bem adestrado. Não permitas que ele fique saltando ao teu
redor, latindo; que fuce nas latas de lixo, nem que role no regato. Assim, também deves
ter sempre a possibilidade de trazer de volta os pensamentos e a imaginação; e deves
fazê-lo inúmeras vezes, a cada instante. Se não o fizeres, diz Santo Antão, serás
semelhante a um cavalo montado sucessivamente por vários cavaleiros, sem descanso, e
que acaba caindo, exausto e coberto de espuma.

Se bates com muita força sobre a casca de uma noz, poderás quebrar também a noz. É
necessário agir com precaução. Não comeces com pressa a Oração de Jesus. Não te
apresses em te servir dela; e, mesmo depois, continua a dizer as tuas outras orações. Não
fiques por demais ansioso. Não creias que, por ti mesmo, possas dizer com atenção um
único "Senhor, tem piedade." Tua oração será necessariamente intermitente. Continuas
a ser homem; apenas "... os anjos nos céus vêem continuamente a face de meu Pai que
está nos céus" (Mt 18:10). Tu, ao contrário, tens um corpo terreno, que reclama o que
necessita. Não julgues ter perdido tudo se, no início, esqueceres de orar por algumas
horas, ou até durante um dia ou mais. Faz tudo com naturalidade e simplicidade: és um
marinheiro sem experiência, que se ocupou de outra coisa com tanta ansiedade, que se
esqueceu de prestar atenção ao vento. Assim, nada esperes de ti mesmo. Mas não
contes, tampouco, muito com os outros.

A concentração é uma coisa; a distração, outra A oração tornará o teu pensamento vivo
e claro. Então, as coisas ficarão em ordem. As pessoas que oram vêem tudo o que as
cerca, notando e observando cada coisa; mas a perspicácia desse olhar vem da oração,
que derrama sobre tudo a sua luz penetrante.

Nosso espírito é ativo quando a pureza reina dentro de nós. Enquanto procurarmos
estender no coração, esse reino do desapego, nosso ser espiritual continuará a crescer.

A oração produz a paz interior, uma tranqüila calma na tristeza, o amor, o


reconhecimento, a humildade. Se, ao contrário, estiveres tenso e agitado, em estado de
exaltação ou de desânimo; se sentes abatimento, amargura, ou desejo excessivo de ação;
se estás mergulhado num sentimento de êxtase ou na embriaguez dos sentidos, como a
que se sente escutando música; se tens a impressão de contentamento e de euforia que te
torna "contente contigo mesmo e com o mundo todo," estás no caminho errado. Fizeste
repousar demasiadamente o teu edifício sobre ti mesmo. Toca em retirada e volta a
reprovar-te; esse deve ser sempre o ponto de partida de toda verdadeira oração.

O anjo de luz sempre traz a paz; essa paz que os demônios das trevas querem perturbar
a todo custo. É nisso, dizem os santos Padres, que é possível reconhecer os poderes
maus, e distingui-los dos bons.

26. A pérola de alto preço


Desprovido de todo conhecimento, incapaz de qualquer bom pensamento e de qualquer
boa ação, sem memória do passado e sem vontade para o futuro; tão inútil quanto um
trapo velho, tão insensível quanto as pedras do caminho; desagregando-te como um
cogumelo carunchado nos bosques, destinado à morte como um peixe arremessado à
margem; derramando lágrimas por tua miserável condição, começarás a orar diante do
Todo-poderoso, teu Juiz e teu Criador, teu Salvador e teu Mestre, o Espírito de verdade
e o Dispensador de vida. Como o filho pródigo, balbuciarás das profundezas de tua
fraqueza: "... Pai, pequei contra o céu e contra Ti; já não sou digno de ser chamado teu
filho (Lc 15:21); Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador."

Conheces tua fraqueza, e estás diante do Todo-poderoso, como um grão de pó. Mas, do
fundo da tua miséria, sentes crescer em ti o amor pelos outros homens, porque eles
foram criados pelo Senhor e recebem sua luz. Ele, cuja essência é insondável, cuida
deles; e isso basta para que estejas pronto a sacrificar tudo por eles.

E acontece então uma coisa estranha: quanto mais desces às profundezas do teu coração,
mais te elevas acima de ti mesmo. As condições exteriores de tua vida permanecem
idênticas: lavas a louça, cuidas dos filhos, vais trabalhar, recebes o salário e pagas os
impostos. Cumpres, como todo mundo, o que faz parte da tua vida exterior, pois não é
possível abandoná-lo. Mas, renunciaste a ti mesmo. Abandonaste uma coisa, para
obteres outra.

"Se possuo a ti, que poderei ainda desejar sobre a terra?" (cf. Sl 73:25). Nada, responde
São João Clímaco, senão orar sem cessar e unir-me a ti, no silêncio. Os outros são
escravos das riquezas, das honrarias, ou do desejo de adquirir bens materiais; meu único
desejo é unir-me a Deus.

A oração, com tudo o que ela implica de renúncia a si mesmo, tornou-se tua única razão
de viver; a parte mais real de tua existência. Andar com Deus (cf. Gn 6:9) é doravante a
única coisa que, para ti, possa ter valor diante de todos os acontecimentos do céu e da
terra. Para quem leva o Cristo em si, deixou de haver morte, doença e aflição neste
mundo. Esse já entrou na vida eterna, e vê tudo sob essa luz.

Dia e noite, a semente celestial brota e cresce em teu coração, sem saberes como. A
terra do teu coração produz primeiro o caule, depois a espiga, depois o grão que enche a
espiga (Mc 4:27-28).

Os santos falam do que chamam de luz sem ocaso. É uma luz que brilha, não para os
olhos exteriores, mas no coração de quem não cessa de caminhar na pureza e na
inocência. Ela faz as trevas recuarem de pronto, e nos encaminha invencivelmente rumo
ao dia pleno. Sua característica é ser sempre mais pura. É a Luz da Eternidade, que não
conhece crepúsculo e que já brilha através do véu do tempo e da matéria. Aliás, os
santos nunca dizem que essa luz lhes foi dada; afirmam apenas que ela só é concedida
aos que purificaram o coração através do amor pelo Senhor, no caminho estreito que
escolheram livremente.

O caminho estreito não tem fim: é um caminho eterno (Sl 139:24). Cada passo que se dá
é um começo. Aí, o presente inclui o futuro, o dia do julgamento; o presente inclui o
passado: a criação. Pois o Cristo está presente em toda parte, sem estar ligado, pelo
tempo, ao céu e ao inferno simultaneamente. Quando chega aquele que é o Um,
desaparece toda multiplicidade, mesmo no tempo e no espaço. Tudo se reúne e se torna
simultâneo, nas profundezas do teu coração. Encontraste, então, o que procuravas: a
profundidade, a altura e a largura da cruz; o Salvador e a salvação.

Assim, pois, se queres salvar a tua alma e ganhar a vida eterna, recomeça a sacudir
incessantemente o teu torpor, a fazer o sinal da cruz e a dizer: "Concede-me, Senhor,
que comece bem, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, Amém."

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