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Iniciação aos conceitos fundamentais da Filosofia de Heidegger

V
(Por Francisca Rutigliano)

O Mundo visto a partir da mundaneidade e da mundificação do Mundo.

Heidegger aborda o fenômeno do Mundo sob duas perspectivas complementares.


Em “Ser e Tempo” e nos ”Problemas fundamentais da Fenomenologia” – esta última Obra
escrita para esclarecer “Ser e Tempo” – o fenômeno do Mundo é apresentado na perspectiva
da mundaneidade. O que significa abordar o Mundo pelo viés da mundaneidade? Significa
inquirir acerca da essencialidade do Mundo, isto é, do teor de sua verdade própria, ou ainda,
inquiri-lo por respeito ao seu “o que” – o que é o Mundo – ; isto dito em termos platônico-
aristotélicos: ao seu “eidos”. Considerando que este “o-que” do Mundo não se determina nos
termos da Ideia de um ente subsistente exposto para categorização e descrição de seus supostos
predicados reais – o Mundo não é uma Coisa – esta pergunta acerca de sua essencialidade deve
se voltar para os fatores existenciais que formam os momentos estruturais de sua ascendência
e, só neste sentido, de sua concretude.
O Mundo é um fenômeno de ascendência, assim como a physis grega, à diferença que
a ascendência dele não tem o seu fundamento em si mesmo, mas no vivente que ocorre (o
Dasein) e que subsiste (os animais, as plantas) nele. Heidegger oscila em atribuir Mundo ao ente
com forma distinta daquela do Dasein. Anteriormente a “Ser e Tempo”, em suas leituras de
Aristóteles e Platão, ele atribuiu espontaneamente Mundo aos animais, um mundo
inteiramente independente da inserção do Dasein nele. Por exemplo, o Filósofo compreendia
que Aristóteles atribuía à phoné o modo insigne de orientação dos animais em seu mundo.
Portanto, o Mundo precedia, então, ao fenômeno do logos. A partir de Ser e Tempo (aqui
Heidegger nega de todo o Mundo aos animais), o Filósofo oscila até estabelecer uma diferença
de grau entre o ter-mundo do Dasein e do ente de configuração distinta a dele.
Esta oscilação de Heidegger não se deve a nenhum antropomorfismo do Pensador, mas
antes à dificuldade concreta para avaliar a amplitude da compreensão do Ser, a constituição
própria da mundaneidade do Mundo. Anteriormente a “Ser e Tempo”, Heidegger contemplava
o Mundo na perspectiva da Vida de todo – daí que ele se situasse inteiramente afinado com a
perspectiva de Aristóteles acerca do papel cumprido pela phoné dos animais para a orientação
deles no seu Mundo cotidiano. A partir de “Ser e Tempo”, contudo, Heidegger tende a
contemplar o Mundo enquanto um fenômeno de significação conformativa, aberto pelo próprio
Ser do Dasein em vista de seu poder-ser factício. Em vista disto, o Filósofo deve negar o Mundo
aos animais compreendendo que Mundo é um fenômeno consequente da não subsistência de
um ente, o qual tem como encargo o seu Ser não subsistente para viabilizar a ele mesmo
enquanto mundo. O animal não forma mundo precisamente porque a sua orientação em seu
mundo é uma repetição do contexto de condutas atinente à sua ancestralidade e, neste sentido,
o animal pode ser contemplado enquanto um ente subsistente orientado pela própria
subsistência de sua espécie. Em vista disto é que Heidegger atribuirá, posteriormente a “Ser e
Tempo”, ao animal uma “pobreza” de mundo; pobreza não tem aqui um sentido depreciativo,
significa apenas que o animal não tem Mundo para erigir e afundar, o seu mundo é sempre o
mesmo, e as mudanças desse mundo são em geral impostas de fora pela interferência do Dasein
nele; quando há alterações climáticas radicais que alteram o próprio DNA de uma espécie e gera
nela mudanças comportamentais, estas não se dão com a participação deliberativa dos animais
individuais.
Mas o que se passa com o Mundo quando concerne a um ente que tem o seu Ser não
subsistente por ser? Para compreendê-lo bem precisamos estabelecer um vínculo entre o
sentido de Mundo suposto anteriormente a “Ser e Tempo” (quando Heidegger atribui Mundo
ao animal), o sentido suposto nesta Obra (onde o Filósofo nega de todo o Mundo ao animal), e
o sentido final suposto por Heidegger no Tratado “Os conceitos fundamentais da Metafísica –
Mundo - finitude - solidão” (quando então o animal aparece portador de Mundo, ainda que de
um mundo pobre).
Em Ensaio anterior, nesta sequência de Ensaios, mostramos como Heidegger, lendo
Aristóteles, compreendeu que o homem, enquanto ser-no-mundo, se distinguia do animal por
se constituir de modo maximamente político. Vimos agora que, posteriormente a “Ser e
Tempo”, Heidegger interpreta o animal como portado de um mundo pobre – procuramos
esclarecer o sentido próprio desta atribuição de pobreza ao mundo do animal. Com estas duas
perspectivas diante dos olhos, a do Dasein enquanto um ente maximamente político e do animal
como portador de um mundo pobre, podemos abordar o sentido de Mundo suposto em “Ser e
Tempo”.
Como aludimos acima, Mundo, em “Ser e Tempo”, é suposto enquanto um fenômeno
de significação conformativa. Por que fazemos questão de predicar tal significação? Para
destituí-la de partida de uma configuração meramente lógica de articulação de símbolos. O
Mundo é compreendido em “Ser e Tempo” enquanto Significatividade, Dito segundo os
esquemas adotados nesta Obra: a Significatividade é visada, aqui, enquanto um Todo de
conformidade aberto ao procedimento considerativo do Dasein (se... então) com o ente, regido
existencialmente “por-motivo-de seu poder-ser”, no modo factício de um permanente “para-
que” junto ao um “com-que”. Isto dito de forma não esquemática: O MUNDO É UM TODO
CONSTITUÍDO ENQUANTO POSSIBILIDADE E SENTIDO, ERIGIDO CONSTANTEMENTE POR
MOTIVO DA VIABILIZAÇÃO DE UMA EXISTÊNCIA ORIGINARIAMENTE COEXISTENTE A SER
PERMANENTEMENTE POSSIBILITADA, NO MODO DO INTENTO HABILITADO PELO EMPREGO
CONCERNENTE. Mundo, portanto, não é lugar espacial algum; é antes configuração histórica de
existência – daí Heidegger definir o Mundo enquanto espiritual. Qual é o primado da
mundaneidade deste Mundo espiritual? Que outro seria senão a compreensão do Ser? É este o
Mundo que o animal não tem por si mesmo, ou que contrasta com o Mundo pobre do animal.
Sobre o primado da compreensão do Ser, o Mundo espiritual se erige e se afunda
alterando suas configurações de sentido e as configurações deliberativas que formam as feições
do Dasein ele mesmo, enquanto o vivente que com-porta o logos, o qual não é nada de outro
que a com-preensividade com o Todo. Tal com-preensividade caracteriza a segunda perspectiva
do Mundo desde a qual Heidegger aborda o Mundo, qual seja, a de sua mundificação (o fazer-
se mundo do Mundo).
O Mundo é agora inquirido não propriamente por respeito ao seu o-que (a
Significatividade), visado na perspectiva dos fatores existenciais determinantes dos momentos
estruturais de sua ascendência, mas pela possibilidade a mais originária de constituição deste o-
que, pelo seu Princípio (dito em alemão, Anfang). A mundificação do Mundo, quem responde
por ela é o segundo Heidegger. Aqui, o Filósofo se coloca para aquém do o-que do mundo aberto
para a lida preparadora, no interior da qual o Dasein se orienta num mundo sempre já
configurado na forma da sua circunspecção ocupada.
A com-preensividade com o Todo, a qual dizemos que detém o sentido essencial do
logos, deve significar que a compreensão do Ser se distingue inteiramente do reporto
convencional Sujeito-objeto. Não se trata de forma alguma da captação (captura) de um Sujeito
(predador) a um objeto subsistente captável (capturável). Não se trata de nenhum suposto ato
intelectivo de ponência (formatação interior) de um suposto Outro (exterior) subsistente. A
com-preensividade, a qual caracteriza o modo próprio de mundificação do Mundo, é um
fenômeno de refração de quatro clareiras inseparavelmente implicadas: a Terra, o Céu, os
Deuses e os Mortais. Isto é o que Heidegger procura fundamentar a partir de seu breve Ensaio
“A Coisa”. A Terra é a consignatária do Ser; o Céu, o provedor de suas imagens ilimitadas para o
Entre de Céu e Terra; os Deuses, os acenos para a orientação dos Mortais em movimento
interino sobre a Terra e sob o Céu; e os Mortais os tomadores das medidas próprias para o seu
próprio morar construtivo (poético) sobre a Terra. No resguardo do Ser, demonstrado pela Terra
ao se apresentar e se afirmar enquanto consignatária; no provimento do Céu, exposto em suas
mudanças (tempo) figuradas em espetáculos; nos acenos dos Deuses para o que é e o que não
é Sagrado; na tomada de medida dos Mortais; nesta refração quaternária de luminosidade, em
que todos são sustentando, ao mesmo tempo, cada um em seu Ser próprio, mundifica-se o
Mundo enquanto invólucro para todas as coisas. Tal mundificação é o sentido o mais originário
da compreensão do Ser, que não é outro que a própria com-preensividade essencial de Um e
Todo.
É do ponto de partida da compreensão do Ser, portanto, da com-preensividade com o
Todo, que podemos contemplar a determinação própria do Dasein enquanto Da-sein, isto é,
Lugar de sustentação no vão da cisão de Ser e Tempo.

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