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Iniciação aos conceitos fundamentais da Filosofia de Heidegger.

(por Francisca Rutigliano)

I
Uma primeira abordagem do conceito de coisa

Para quem está se iniciando no estudo do Pensamento de Heidegger é mister angariar uma
boa compreensão dos conceitos cunhados pelo Pensador para articular e sustentar a sua
perspectiva do Ser. Mas, de partida, é preciso saber que quando falamos aqui em “conceitos” não
temos em vista os conceitos enquanto unidades lógicas representantes da multiplicidade formal e
concreta das coisas tomadas enquanto dados em geral. Bem antes, conceito significa aqui apenas
um complexo problemático obtido da apreciação dos prismas estruturais abertos na manifestação
de um fenômeno (ocorrência), seja ele material ou formal, num contexto existencial. Do mesmo
modo, quando indicamos “cunhados pelo Pensador” não estamos supondo que o Pensador que
cunha tais conceitos se afigure enquanto um agente (Sujeito) do conhecimento que age
formulando-os a partir de Princípios radicados em si mesmo e através da simples contemplação da
coisa pretendida para sua especulação, sem consideração ao meio e à história nos quais a coisa
visada se manifesta, em sua lida com ela. E, por fim, se fazemos referência à “sua perspectiva”, não
concebemos a perspectiva senão enquanto o lugar aclarado da clareira, isto é, da abertura através
da qual a coisa recebe luz para sua manifestação, e na qual o Pensador se encontra instante e, assim,
exposto a tal manifestação. Este lugar, que se instala através da história e dos modos de ser de seus
povos, constitui para o Pensador o fundamento de sua compreensividade própria do Ser. Portanto,
não estamos aqui assentados no plano de nenhuma Consciência para contemplar seus supostos
atos.
Com estas observações presentes, podemos seguir cautelosamente o movimento próprio
do Pensamento de Heidegger e tentar conceder uma perspectiva prévia dos conceitos fundamentais
de sua Filosofia.
Como em Filosofia nunca um conceito aparece isolado, mas muito antes já articulado em
um aparelho conceitual e, mais ainda, sempre regido por um centro, parece muitas vezes que
embora tenhamos anunciado a abordagem de um conceito não logramos senão tratar, a maior
parte do tempo, de outro. Isto se dá justamente porque os conceitos arrastam consigo o seu centro
e porque o todo problemático do qual ele pretende ser a unidade já se estende em sua cadeia de
reportações a outras zonas de conceitos que se lhe avizinham para lhe fornecerem a sua
consistência concreta e plena. Em função disto, é bom que se diga de partida que o centro que rege
o aparelho conceitual da Filosofia de Heidegger é a dobra de Ser e Tempo, no interior da qual
gravitam todos os conceitos; e, porque quando falamos de conceito estamos falando sempre de
Pensamento, o que gravita em meio a esta dobra é, em última instância, o próprio Pensamento, o
qual só se exprime no discurso de um Pensador enquanto manifestação da resposta do Ser ele
mesmo – resposta acatada por ouvidos diligentes (por pares), para um todo de questões de uma
época que assinalam para a urgência de sua consideração adequada. Eis porque nenhum conceito
filosófico se articula sem reporto necessário a esta dobra, que chamaremos aqui provisoriamente
apenas de Ser – considerando justamente o caráter puramente iniciatório de nosso Estudo –
nenhum Pensamento se dá fora do Ser.
Assim que, quando procuramos abordar, por exemplo, o conceito de coisa, temos já sempre
que trazê-lo à questão implicado na problemática da Subsistência e da não-Subsistência. Por que?
Porque a Subsistência constitui a determinação clássica do Ser de todo desde a Antiguidade grega.
E, na medida em que procuramos fazê-lo por respeito à perspectiva da Filosofia de Heidegger,
precisamos trazer o conceito à vista implicado na problemática da Utensilidade, porquanto este
conceito constitui a primeira determinação heideggeriana do Ser da coisa em termos de não-
Subsistência.
Estabelecendo o contraste bem fundado dos dois conceitos da coisa, veremos que ambos
implicam diretamente o fenômeno existencial o qual Heidegger esquematizou no conceito ser-no-
mundo. E porque o Ser de todo dá lugar ao Pensamento, este todo conceitual, aqui implicado, deve
se orientar finalmente pelo fenômeno primário que caracteriza o Pensamento, qual seja, a
“Compreensão do Ser”.
Tomamos acima o exemplo do conceito de coisa para mostrar a implicação contextual dos
conceitos em geral. Mas o fizemos ainda, porque o conceito de coisa é um conceito mediador
exemplar para a abordagem do Ser, seja que este esteja visado apenas na perspectiva da entidade
da coisa, isto é, de um suposto teor essencial dela, seja que o Ser esteja sendo pretenddido
justamente no sentido de “centro gravitacional da problemática do ente” qualquer que ele seja, e,
assim se imponha enquanto questão por respeito a si mesmo no tocante ao seu caráter de centro.
Falando assim não pretendemos confundir o movimento compreensivo do estudioso que se
encontra ainda tateando no terreno da Filosofia de Heidegger. Por que então aludimos agora às
duas perspectivas do Ser – o Ser enquanto entidade do ente e o Ser enquanto centro gravitacional
de todo? Já o fizemos antes implicitamente, quando indicamos a Subsistência e a Utensilidade
enquanto duas determinações do Ser. Fazemo-lo para deixar visível desde o início que o estudioso
de Heidegger se move sobre a vereda de dois Princípios para o Pensamento – um estabelecido e o
outro em vias de preparo – e que ele precisará necessariamente tomar uma mesma direção num
percurso, contudo, paralelo ao caminho do primeiro Princípio – digamos que ele terá que trilhá-lo
por fora.
Por respeito ao Princípio metafísico do qual partiu o Pensamento clássico, em fase de
consumação no Ocidente, o estudioso terá que proceder a um movimento em sentido retroativo, é
todo um curso de volta para situar-se no contexto histórico da verdade do Ser; quanto ao novo
Princípio, em vias de preparo, este “novo” será encontrado precisamente no curso paralelo do
percurso de volta pelo Pensamento metafísico. Este “novo” Princípio ele mesmo se consumará a
partir do contra-curso do Pensamento na Metafísica, porque o “novo” não é outro que o “velho
Princípio” preterido em privilégio do que prevaleceu. O novo Princípio sempre esteve na aurora do
Pensamento para dar partida a este, mas, permaneceu oculto a ele. Por quê?
A questão do Ser está sempre implicada numa conexão necessária com a questão da
verdade. Quando inquirimos, o que seja o Ser, perguntamos, mesmo sem tê-lo claro, pelo que seja
a verdade do Ser e, mais radicalmente, pelo que seja o Ser da verdade.
Se Heidegger diz que na aurora do Pensamento o Ser foi apreendido em termos de
presentidade, visada na auto-constância manifestada na physis, ele está dizendo, ao mesmo tempo,
que o Ser foi apreendido em sua verdade na perspectiva da pura e simples manifestação do ente –
assim a verdade ela mesma foi concebida na perspectiva da presentidade, da desocultação. Alétheia
(ἀλήθεια), como se diz verdade em grego, significou nos primórdios da questão do Ser:
desocultação. Contudo, o que Heidegger aponta é que na própria estrutura da palavra alétheia já
reside a indicação, no prefixo, de uma negação ela mesma copulativa. A-létheia: a desocultação é
uma negação da ocultação (léthes) (I); portanto, na origem da desocultação, da presença, reside
tácita uma ocultação primária.
Para ser consequente, o Pensamento teria que ter acolhido a verdade com toda sua
ambivalência. Mas tal não ocorreu e o Pensamento tomou o seu Princípio da presentidade, isto é,
da desocultação. A ocultação co-constitutiva da desocultação permaneceu desconsiderada até ser
inteiramente velada. Neste velamento reside o esquecimento e o sequente abandono do Ser. Em
que sentido? No sentido em que a presentidade foi visada pela constância deposta sobre as coisas
presentes. O Ser tornou-se presença constante dos supostos caracteres constitutivos (reais) das
coisas. E nestes termos, o Ser foi reduzido à condição de mera entidade do ente. E, por extensão, a
verdade foi reduzida à condição de mera concordância da coisa (suposta enquanto Sujeito), com
seus predicados, concordância que se estenderá ao reporto entre juízo (predicador) e coisa
(predicada) – onde a coisa perde a sua posição de Sujeito para o juízo. Aqui radica a determinação
do Ser enquanto Subsistência.
O que é uma coisa?
Na perspectiva acima, uma coisa é um fato subsistente portador de características
verificáveis e passíveis de atribuições formais. Esta primeira perspectiva do Ser da coisa, a
Subsistência, se inaugura no mundo grego a partir do comportamento preparador do Dasein, por
respeito a sua contemplação do ente da physis (φύσις) – A Physis está aí desde si mesma, desde
sempre à disposição.
Heidegger, pela primeira vez na história da Filosofia, abala esta concepção consolidada,
trazendo a história da coisa à tona e indicando um outro sentido mais originário de sua apreensão,
qual seja, a Utensilidade, cujo sentido não radica de modo algum na subsistência da coisa num
espaço ele mesmo suposto enquanto subsistente, mas antes no manuseio imediato com ela num
todo de conformidade previamente compreendido. Heidegger demonstra que um martelo jamais
poderia ser apreendido enquanto coisa-martelo através de sua mera contemplação; unicamente
numa lida orientada por respeito à necessidade de sua utilização é que o martelo vem à luz
enquanto instrumento-coisa, e inclusive, as suas propriedades materiais só podem ser
corretamente precisadas na própria lida: um martelo é mais ou menos pesado em função da
necessidade imediata que ele está atendendo – isto significa que a experiência com o peso não
deriva de uma medida estabelecida e conhecida, mas sim, na experiência de emprego da coisa
pesada.
A Utensilidade esgota o Ser da coisa? Não, na medida em que ela e o próprio Todo de
conformidade em que se encontra recebe o seu Ser de um contexto mais amplo, que Heidegger
apreende enquanto Quaternidade (II). Esta aqui constitui o Todo estrutural-existencial desde o qual
é possível o fenômeno de significação (mundificação) que o Filósofo denominou ser-no-Mundo
(Heidegger o compreendeu posteriormente a “Ser e Tempo”). A Quaternidade constitui o fenômeno
de refração que implica Terra e Céu, Deuses e Mortais entre si e concede a cada qual o seu sentido
próprio a partir de sua determinação desde os outros e sobre cada um dos outros. – Mas da
Quaternidade falamos aqui agora apenas para indicar o âmbito originariamente transcendente do
Ser; o que importa, provisoriamente é deter o sentido da Utensilidade da coisa, para distinguir o seu
Ser sob uma perspectiva livre daquela da Subsistência.
Paramos hoje por aqui. Já há muito que refletir. Ressaltamos apenas que “Ser e Tempo” é a estrela
polar que deve nortear todo o estudo de Heidegger.

Notas.
I Embora o sentido corrente da palavra grega λήϑη (léthe) signifique esquecimento, Heidegger a
toma por respeito ao caráter essencial do esquecimento ele mesmo: a ocultação – o que está
esquecido está oculto.
(II) Cf. “A Origem da Obra de Arte” e “A coisa”, para verificar a abordagem de Heidegger do teor
próprio da coisa e do sentido da Quaternidade.

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