Você está na página 1de 4

14 Maio 2021

Karma e libertação
.media

Os pensadores frequentemente estiveram divididos


entre liberdade e necessidade. Como pensar que se é
ao mesmo tempo dependente das leis naturais e
responsável por seus atos?

Texto: Jacques ETOUNDI ATEBA Imagem: Pixabay CC0

Um dos vocábulos comumente utilizados nas literaturas esotéricas atuais é a palavra


“karma”, popularizada na linguagem cotidiana, onde suplantou a palavra “destino”.
Ela mesma, durante muito tempo, serviu de explicação e mesmo de justificativa às
ações tomadas e aos acontecimentos vivenciados pelos indivíduos e pela humanidade.

Assim, ao invés de dizer “foi o destino que quis”, tornou-se tendência dizer “é o seu
karma”.

Ao que remete realmente esse modismo que parece nos colocar em uma trama
existencial de ações e reações mecânicas? Mas, acima de tudo, que haveria de
libertador nessa visão predeterminada e o que dizer do livre-arbítrio?

Derivada do sânscrito, a palavra karma significa “ação em todas as suas formas”, mas
também a consequência dos atos, a resultante das consequências boas e más a
serem sofridas devido a atos do passado e que determinam as encarnações
sucessivas.

Nesse sentido, ela não faz somente alusão à retribuição das ações, mas à sua
maturação. Segundo essa acepção, não haveria intervenção divina no desenrolar dos
acontecimentos, mas um amadurecimento natural das ações nas suas consequências.
Diante disso, a humanidade busca constantemente melhorar seu karma, analisando
suas ações, praticando bons atos, a fim de sair definitivamente do círculo de mortes e
renascimentos (samsara) e alcançar a libertação final chamada de Moksha ou Nirvana.

Para a mística hindu, como para outras correntes ocultas, existiria uma espécie de
fatalismo na medida em que “o que tiver que vir, virá”, pouco importam as
aspirações, os esforços, preces e atos do homem.

A lei do karma surge, assim, como a lei mais poderosa do universo, regulando,
fustigando, punindo e recompensando as boas e as más ações. É nesse nível de
determinismo que reside a complexidade de uma percepção kármica relativamente
alienante da existência humana. Qual seria de fato a margem de manobra dos seres
humanos num determinismo feito de leis inalienáveis e incorruptíveis? Se tudo parece
escrito com antecedência, se o ser humano não é senão o simples executor de uma
estrutura existencial assim condicionada, o que lhe restaria fazer para encontrar a sua
salvação?

Isso parece ainda mais contraditório quando lemos na linguagem sagrada Jesus
respondendo ao centurião: “Será feito a ti conforme tua fé” (Mt 8:13). Essa
dispensação crística também estaria em harmonia com a ideia do livre-arbítrio, na
qual o indivíduo deve escolher seu caminho e definir seu tempo, suas ferramentas e
seus métodos.

Na realidade, os pensadores metafísicos frequentemente estiveram divididos entre a


liberdade e a necessidade. Como pensar que se é ao mesmo tempo dependente das
leis naturais e responsável por seus atos?

Vários futuros são possíveis?

Se praticamente houver unanimidade sobre o condicionamento do momento, sobre o


local de nascimento, sobre a importância da família que nos acolhe, os debates
voltam-se mais para assumir o controle de sua vivência, de suas experiências, ações,
conquistas e frustrações.

Para os cabalistas modernos, o termo “karma” designa uma série de provas que
alguém escolhe para si mesmo antes do nascimento, sendo o objetivo da vida passar
por essas provas, e o restante, parte do livre-arbítrio, podendo ser vivenciado como o
indivíduo desejar.

De acordo com as abordagens teosóficas e antroposóficas, o karma refere-se à lei de


retribuição ou lei de causa e efeito.

A crença de que o indivíduo pode, a todo momento, realizar atos que modificarão o
curso de seu destino, tem ganhado terreno.

Essa possibilidade de “criar seu destino” a cada instante da vida parece interessar
mais aos pesquisadores modernos. De fato, entre as numerosas ofertas de
desenvolvimento pessoal, eles são convidados a explorar os confins de sua
personalidade, nos aspectos conscientes, inconscientes e subconscientes, para serem
mestres de seu destino, ou ainda para expandir sua consciência e adquirir maior
domínio sobre si mesmos.

A filosofia transfigurística parece também orientar para um programa de auto-franco-


maçonaria baseado no conhecimento do átomo centelha do espírito, cujo despertar
renova tanto os aspectos internos como os externos do microcosmo, e que deve
tomar as rédeas de nossa vida.

Ora, que livre construção seria concebível se não existisse a possibilidade de escapar
ao determinismo kármico?

Supondo que a própria salvação esteja planejada com antecedência e que seria
suficiente para ativar o seu "karma positivo", isso resultaria em alguns serem dotados
da possibilidade de escapar, e outros de serem imediatamente condenados pelo seu
pesado karma. Essa visão parece não apenas incomum, mas indefensável e
insuportável para uma consciência preocupada com o destino da humanidade
sofredora.

Muitas possibilidades parecem se apresentar diante da consciência individual e


coletiva, e a cada instante de nossa vida haveria uma escolha a fazer. Em tal
percepção, qualquer ideia, qualquer desejo, qualquer ato que o ser humano realiza,
individual e coletivamente, atualiza a trama de seu destino, que não será um caminho
linear, mas uma teia complexa de caminhos virtuais, sendo possível a cada ser
modificar o curso de sua vida e a dos outros.

Enquanto permanece no plano horizontal da vida terrestre, o ser humano está sob a
égide do destino que o conduz e o maltrata, mas assim que ele se liberta dessa
dependência fatal, tudo que ele vive acontece para sua elevação e a dos seus
familiares.

A Fraternidade Universal traz a este mundo um remédio, a Lei do Amor, à qual todo
ser humano pode se religar e, assim, escapar da prisão kármica natural.

Tentar por si mesmo apaziguar seu karma mediante “boas ações” poderia suavizar
suas penas e permitir viver uma vida aceitável no plano natural, mas não ofereceria
um resultado libertador durável. Para se tornar digno de receber esse dom divino,
trazido pelos “Irmãos Maiores”, o candidato aos mistérios divinos, que até então
esteve sob o domínio kármico da alma natural, deve despertar sua alma divina,
construir para ela uma veste de luz graças à qual ela escapará de Nêmesis, a deusa
de olhos vendados que simboliza o karma.

Pela qualidade da alma, tudo mudará; ele entrará em um círculo de vida virtuoso,
evoluindo de magnificência em magnificência. O que não significa forçosamente que
já não enfrentará obstáculos e dificuldades inerentes à vida na matéria.

Com um “novo” olhar, ele verá as circunstâncias e acontecimentos de sua vida


transformados em “aceleradores de consciência” que, mais tarde, serão elevados ao
estado paradoxal de “pedra de construção” para a sua libertação e da humanidade.

Você também pode gostar