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Literatura & Intertextualidade

Luiz Eduardo Amaro


Ludmilla Fonseca
(Organizadores)
Literatura & Intertextualidade
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Literatura & Intertextualidade

1ª Edição

Luiz Eduardo Rodrigues Amaro


Ludmilla Carvalho Fonseca
(Organizadores)

Cabo Frio
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa e Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Literatura & Intertextualidade/ Luiz Eduardo Rodrigues


Amaro; Ludmilla Carvalho Fonseca (Organizadores). –
Cabo Frio: Mares, 2016.
247 p.
ISBN 978-85-5927-020-4
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura I. Título.

CDD 801.95
CDU 82

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Rua das Pacas, s/n. Qd 51/Lt 2431. Nova Califórnia.
CEP 28927-530. Cabo Frio, RJ.
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Apresentação .................................................................................................. 9

PARTE I - Subjetividades, representação da realidade e intertextualidade


..................................................................................................................19

O sujeito nos retratos de Caio Fernando Abreu e Oscar Wilde .....................21

Ficção e história: tensões e aproximações ....................................................56

Das raízes aos ramos: Helder Macedo em diálogo amoroso com a tradição
......................................................................................................................72

Aspectos intertextuais da obra V de Vingança, de Alan Moore ...................99

Falso x verdadeiro – nas fronteiras da ficção .............................................120

Intertextualidade em O dom do crime ........................................................142

PARTE II - Questões de gênero e intertextualidade ..............................165

Personagens femininas míticas, lendárias e históricas presentes no romance


Noites no circo ............................................................................................167

Sobre Shakespeare, Veríssimo e Travestilidade: relações intertextuais entre


Noite de reis e a Décima segunda noite ....................................................189

Tecendo mulheres: Diálogo Literário entre Lucinda Persona e Marina


Colasanti .....................................................................................................211

Literatura e intertextualidade: representação do feminino em recriações da


obra Chapeuzinho Vermelho......................................................................235

Sobre os autores .........................................................................................244


Apresentação
Literatura e Intertextualidade, os textos dialogam1

Luiz Eduardo Rodrigues Amaro (UNESP/CAPES)


Ludmilla Carvalho Fonseca (UNESP/FAPESP)

A Literatura é uma das mais caras artes produzidas pela


engenhosidade humana. Desde as primeiras manifestações literárias
até a complexidade dos romances modernos, como os de Dostoiévski,
sua natureza social carregou consigo a visão de um povo, em um
tempo e espaço geográfico definidos. O literário é também registro,
manifesta-se como produto da relação do eu com o outro, dentro do
social. No entanto, não é um registro qualquer, como uma nota de
rodapé de um livro ou um comunicado aleatório em um jornal, ele é
circunscrito em uma natureza particular: a artística.
A Literatura pode representar, por esse viés, os
comportamentos de um povo, refletir sobre as ideologias de uma
sociedade em um determinado recorte temporal, responder às
inquietações da alma humana, utilizando, inclusive, técnicas de outras
artes, como a Psicologia e a Astrologia, a exemplo de Fernando Pessoa.
Ela pulsa, vibra, sugere, aponta, revela, conversa consigo
mesma, com a realidade, com o humano. Ela mexe com o bicho da

1
As informações sobre os trabalhos foram recolhidas diretamente dos resumos dos
autores, bem como das inserções críticas de leitura, feitas pelos organizadores do
presente volume.

-9-
terra tão pequeno, reverbera nas cordas dos violões que choram,
envenena-se devido às rixas de duas famílias rivais, nas bocas das
criaturas que vivem em outras eras ou sussurra nos morros dos ventos
uivantes. Os textos literários interagem entre si e com os leitores, de
forma a levá-los, muitas vezes, para regiões desconhecidas, nunca
dantes navegadas em suas mentes e espíritos, para novos lugares e
povos. A literatura pode refratar sociedades.
Cada arte possui a sua especificidade. A matéria-prima da
Música, por exemplo, é o som e o ritmo; das Artes Cênicas, o
movimento e as expressões; da Escultura, as formas e as texturas; da
Literatura é a palavra, trabalhada artisticamente, expressada e
ressignificada em seus vários aspectos sonoros, sintáticos, sêmicos,
ideológicos e simbólicos. Ela é a arte da expressão escrita,
potencializada pela cultura, inventividade, tradição e história humana.
Trata-se de um tesouro linguístico.
Uma obra de arte carrega em si várias vozes sociais, ideologias,
construções de sentido e estrutura orientadas para uma expressão
particular, que o escritor escolhe para provocar determinados efeitos
estéticos, representativos de uma realidade. Essa relação entre o
objeto artístico e o escritor e, posteriormente, entre a obra e o leitor
também é uma forma de diálogo. Como postulou Bakhtin, que enfatiza
pelo outro a construção do eu, em uma resposta responsável
(BAKHTIN, 1992, p. 196), a obra de arte, que possui vozes sociais, traz
em si a alteridade do leitor e, portanto, há uma construção dialógica
em sua apreciação.

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É notório que exista uma influência do autor real em seu
narrador e personagens. O acabamento estético dar-se-á pelo
distanciamento deles, que é necessário para que haja um excedente
de visão e, dessa forma, eles se tornem autônomos e suas vozes
possam coexistir, como acontece nos romances de Dostoiévski. Da
mesma forma, a relação dialógica entre as vozes do leitor com as vozes
da obra só se torna efetivamente produtiva quando acontece a
exotopia, ou seja, quando o leitor consegue se ver de forma
diferenciada e não coincidente com a visão que tinha antes desse
acréscimo, promovido pela leitura da obra e sua consciência. É dentro
desse movimento frenético de retroalimentação que se dá a
construção do sentido por meio da polifonia contida na obra. As vozes
dos outros, que conversam com as vozes nossas. Os textos dos outros,
que conversam com outros textos e com nosso próprio repertório. A
obra, imersa em um mar de outros textos, estabelece uma relação com
aquelas que a precederam, formando uma tradição literária, cujo
legado cultural revelará, invariavelmente, a própria sociedade em que
foram geradas.
Alusões, citações, paráfrases, pastiches, traduções, paródias e
outros tipos de referências, que promovem as reiterações e
atualizações de sentido, fazendo os textos conversarem entre si,
fazem parte do conceito de intertextualidade.
A teoria foi elaborada pela semioticista Julia Kristeva,
baseando-se no dialogismo proposto por Mikhail Bakhtin. O
pressuposto teórico consiste na ideia de que “todo texto é uma

- 11 -
absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos”
(KRISTEVA, 1974, p.62), um verdadeiro “mosaico de citações”, cujo
intuito é a produção de um novo sentido.
Há inúmeros exemplos da reabsorção de textos de uma obra
por outra. Para ilustramos essa ideia, tomemos o caso do famoso
poeta Luís Vaz de Camões: dentre tantas intertextualidades, que
existem em Os Lusíadas, percebemos, já na Introdução da epopeia, o
diálogo com A Eneida de Virgílio, pelo verso “Arma virunque cano,
Troiae qui primus ab oris” (As armas e o varão canto, quem primeiro
das plagas de Troia), do romano, com “As armas e os barões
assinalados, que da Ocidental praia lusitana”, do português. Em
momento histórico posterior, Mensagem, de Fernando Pessoa,
dialogará com o épico de 1572, em uma óbvia alusão do “Monstrengo”
com o “Adamastor” camoniano. A voz da Eneida em Os Lusíadas e d’Os
Lusíadas em Mensagem.
Feitas as considerações teóricas, vamos às estruturais. Para
uma melhor didática do presente volume, separamos as análises em
dois grandes blocos temáticos. A primeira parte, Subjetividades,
representação da realidade e intertextualidade, aborda aspectos
relativos à construção do sujeito, da identidade, as relações entre o eu
e o outro (dialogismo), bem como aspectos representativos da obra,
que ajudam no entendimento de uma sociedade, o que acontece nas
distopias e nos épicos. A intertextualidade funciona como um recurso
eficiente na produção de sentido, que se liga à tradição literária. Nessa
parte da antologia, o leitor encontrará pensamentos que versam sobre

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a relação autor-obra, realidade-ficção, reabsorção de sentido, o
“confronto” entre a narrativa histórica e a literária. A intertextualidade
permeia todos esses trabalhos críticos.
O primeiro chama-se O sujeito nos retratos de Caio Fernando
Abreu e Oscar Wilde, de Letícia Gonçalves Ozório Silva, que aborda
aspectos da “intertextualidade entre o conto “Retratos”, do livro O
Ovo Apunhalado (2012), de Caio Fernando Abreu, e o romance O
Retrato de Dorian Gray (2009), de Oscar Wilde”, em que “analisa o
processo de reconhecimento dos personagens por meio da
representação no objeto retrato. Em ambos os textos, o sujeito passa
a ter consciência de sua identidade quando ele é retratado e encara a
reveladora imagem. Assim, relação entre o eu e o outro se torna
conturbada quando o outro (o espelho metafórico) é transformado
pelo tempo”. Comparativamente, a análise reconhece “a
intertextualidade nos textos, analisando a constituição da identidade
no conto de Abreu e no romance de Wilde, além de apontar as
mudanças nos sujeitos trazidas pelos retratos e destacar o papel da
imagem no processo de reconhecimento do sujeito”.
Ficção e história: tensões e aproximações, de Elder Ferreira
Santos, “apresenta uma discussão a respeito das tensões existentes
entre a narrativa histórica e a narrativa literária ao longo do tempo,
bem como as possíveis semelhanças existentes entre uma área de
saber e outra, ou seja, as relações dialógicas e intextertextuais entre
essas áreas de produção de saber”, utilizando principalmente os

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seguintes teóricos: Weinhardt (2002), Bernardi (2010); Pasavento
(1990) e Borges (2010).
Das raízes aos ramos: Helder Macedo em diálogo amoroso com
a tradição de Mariana Braga “procura investigar como a obra ficcional
de Helder Macedo estabelece diálogos com a tradição literária
ocidental e, em especial, a camoniana. Publicado em 2013, o romance
Tão longo amor, Tão curta a vida serve como objeto de estudo,
partindo de seu título como ponto de interseção imediato com a
poesia de Camões”. Esse texto é pontualmente interessante para as
pessoas que trabalham com a relação do autor real com a obra, pois
ele sugere relações entre as escolhas do autor e a sua produção
literária, bem como o diálogo com a tradição.
Em Aspectos intertextuais da obra V de Vingança, de Alan
Moore, cuja autoria pertence a Luiz Eduardo Rodrigues Amaro, o
crítico procura utilizar “principalmente os ensinamentos de Kristeva,
Fiorin, Bezerra e Discini” para explicitar “a intertextualidade da obra”
no intuito de “compreendê-la no contexto e sugerir as devidas
significações”. Um texto útil para quem deseja aprender como a
intertextualidade funciona “mecanicamente” na produção de sentido,
promovendo a concatenação das ideias e a ressignificação da obra
matriz com a obra em leitura, em um novo diálogo.
Já o texto Falso x verdadeiro – nas fronteiras da ficção, de
Lucianne Michelle de Menezes, trabalha as “relações entre a realidade
e a ficção”, como bem aponta o título, considerando os “aspectos-
chave para o fazer literário: a mímesis, a intertextualidade, as noções

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de originalidade e as fronteiras entre autoria e narração. A obra O falso
mentiroso (2004), de Silviano Santiago, suscita reflexões sobre essas
temáticas, por um viés irreverente e humorístico: as contradições e
paradoxos que promovem a criação de diferentes versões para uma
mesma realidade. E, embora esta seja ficcional, ainda assim está
embasada naquilo que a sustenta: as experiências reais”. Esse texto
“analisa o referido romance de Santiago, buscando explicitar os modos
pelos quais a ideia de “falso versus verdadeiro” delimita-se como eixo
narrativo”. Ele trabalha aspectos importantes do tema e também
aborda a multiplicidade da linguagem “em um amálgama inusitado e
bem-humorado, reúne tradição e contemporaneidade”, segundo a
própria autora.
Finalizando esse bloco, Intertextualidade em O dom do crime,
de Rogério de Souza Cruz, trabalha com o hibridismo contido na obra,
bem como os intertextos, majoritariamente com a obra de Machado
de Assis, mas também cita outras, como O primo Basílio, de Eça de
Queirós, a fim de mostrar a representação por meio dos recursos
intertextuais. A análise de Helena, em comparação à Capitu, é
particularmente interessante.
A segunda parte, Questões de gênero e intertextualidade, tem
como foco reunir trabalhos que demonstram a relação entre a
discussão de gênero e os procedimentos de intertextualidade. Para
tanto, os textos que compõem esta parte enfocam a opressão sofrida
pelas mulheres submetidas ao patriarcado; a contestação do papel
que elas exercem na sociedade diante dessa submissão; a superação

- 15 -
dos sistemas simbólicos de dominação masculina; e por fim, as
estratégias que elas almejam para negar as lógicas de sujeição. Os
trabalhos enfocam o grau de controle que os homens exercem sobre
as mulheres em diferentes épocas, como ele foi se modificando, e
como a mulher foi buscar superar essas relações disciplinares.
No capítulo intitulado Personagens femininas míticas,
lendárias e históricas presentes no romance Noites no circo, Ludmilla
Fonseca apresenta essas personagens referenciadas por Angela
Carter, através do procedimento intertextual da alusão. O trabalho
está organizado em duas partes. Na primeira, é feita a apresentação
da obra e de elementos abordados pela autora que permeiam a
condição existencial do ser mulher. Na segunda, são identificadas as
personagens míticas, lendárias e históricas comparadas às
personagens femininas que constituem a trama narrativa. No
romance, é possível perceber as estratégias de resistências que as
personagens utilizam para enfrentar a violência de gênero e a
opressão patriarcal, almejando constituírem seus territórios
selvagens.
No texto Sobre Shakespeare, Veríssimo e Travestilidade:
relações intertextuais entre Noite de reis e a Décima segunda noite,
Giovane de Souza e Caio Gomes propõem uma “análise das relações
intertextuais entre Noite de Reis, comédia de William Shakespeare, e
A décima segunda noite, romance de Luís Fernando Veríssimo”. Para
tanto, elencam “a teoria da paródia proposta por Linda Hutcheon, a
fim de que seja evidenciada a transcontextualização paródica realizada

- 16 -
pelo romance contemporâneo, especialmente em relação às questões
de travestilidade e de gênero, tal como apresentadas pelas
personagens”.
Já no capítulo Tecendo mulheres: diálogo literário entre Lucinda
Persona e Marina Colasanti, Paula Esteves discute “acerca do diálogo
literário entre as duas escritoras em seus respectivos contos Tricô e A
Moça Tecelã, com um olhar acentuado para a representação da
mulher, através do posicionamento das personagens e sua estreita
relação com a ação de tecer, que é determinante na constituição da
imagem das mulheres nestas narrativas. Rememorando a relação com
a tradição grega pela obra clássica Odisseia, de Homero, por meio da
personagem Penélope, demonstrando, pela análise dos textos, que há
uma transformação no que diz respeito à condição e ao
comportamento da mulher. Percebe-se, por meio deste cotejo de
textos, a possibilidade de maior compreensão dos contos, de seu valor
estético e a comunhão entre as produções literárias de tempos e
espaços diferentes”.
Em Literatura e intertextualidade: representação do feminino
em recriações da obra Chapeuzinho Vermelho, escrito por Paola Gross
e Jordana Steindorff, as autoras buscam “estabelecer ligações
intertextuais entre os contos Chapeuzinho Vermelho, de Charles
Perrault, Fita Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa, e o filme A Garota
da Capa Vermelha, dirigido por Catherine Hardwicke, demonstrando
de que forma as figuras femininas são representadas, convergindo ou
divergindo entre cada produção”.

- 17 -
Desse modo, os capítulos que constituem essa parte do volume
buscam estreitar a relação entre os estudos de gênero e os
procedimentos da intertextualidade, partindo do pressuposto de que
é de suma importância estudar as matrizes de pensamento, os temas
e os aspectos culturais que uma obra pode legar à outra. Destaca-se,
ainda, a importância das pesquisas que demonstram essa relação
entre os textos de autoria feminina ou aqueles ligados a outras
questões de gênero. Essa segunda parte dá possibilidades de poder
refletir sobre o vasto campo que ainda pode ser explorado, ampliando
as fronteiras da abordagem intertextual aos estudos de gênero.
Literatura e Intertextualidade traz uma seleta de textos
interessantes e ricos, como mostramos durante essa apresentação,
que colaboram para o aprendizado e incentivam o pensamento crítico
daqueles que os leem. A presente antologia da Editora Mares é uma
colaboração para o estudo dessa temática e também uma intrigante
viagem nas possibilidades analíticas que a intertextualidade promove
nos cérebros curiosos.
Os organizadores.

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PARTE I - Subjetividades, representação da

realidade e intertextualidade

- 19 -
- 20 -
O sujeito nos retratos de Caio Fernando Abreu e Oscar
Wilde

Letícia Gonçalves Ozório Silva

Introdução
O conto "Retratos", de Caio Fernando Abreu, pertence ao livro
O ovo apunhalado (2012)2 e relata a história de um personagem (não
nomeado) que, ao passar pela praça próxima do seu apartamento é
abordado por um desenhista que ali vivia junto com uma comunidade
alternativa e que se oferece para fazer um retrato dele.
Posteriormente, o artista, personagem que também não é
apresentado por um nome, propõe que o possível cliente tenha mais
seis retratos desenhados, para poder ver como fica o seu rosto no
período de uma semana, e tem a oferta aceita.
Ao longo dos dias combinados, o “modelo” percebe que, a cada
retrato realizado, seu rosto aparece na tela com aspecto mais feio,
cansado e velho. Com isso, ele começa a apresentar um
comportamento inquieto e agressivo, diferente do usual. Além disso,
passa a refletir sobre as coisas que lhe incomodam, como os defeitos
das pessoas de seu cotidiano e, até mesmo, com o aspecto do dia, o

2
ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2012.

- 21 -
que o faz ter outra visão do mundo ao seu redor, muito negativa e
obscura.
Com o tempo, a curiosidade pelo último retrato cresce, e a
ansiedade toma conta do personagem, fazendo com que ele perca o
sono. Sua vida então passa a girar em torno daquela sequência de
retratos que ele tanto anseia descobrir o fim. Porém, no dia previsto,
para o último retrato ser feito, o desenhista não aparece. O cliente o
procura desesperado e as pessoas da comunidade afirmam jamais tê-
lo visto. Por conta disso, ele entra em um estado de surto e, depois de
tanto procurar, acaba em um bar, deprimido e divagando.
O romance O Retrato de Dorian Gray (2009)3 de Oscar Wilde,
por sua vez, trata de Dorian Gray, um rapaz que chama a atenção por
sua beleza extraordinária, seu jeito cativante e caráter ameno. Por
esses atributos, o jovem desperta o interesse de Basil Hallward, um
pintor que encontra em Dorian a inspiração para sua produção
artística e produz um retrato do rapaz que considera a melhor obra de
sua vida. Diante do perfeito quadro, Dorian deseja permanecer jovem
e belo como no dia em que foi pintado e que, ao invés dele, o retrato
envelheça, o que de fato acaba acontecendo na história.
Com o passar dos anos, Dorian se corrompe, tornando-se uma
pessoa má e fria, cometendo atos imorais e ilegais. Dessa forma, seu
retrato fica cada vez mais horrendo. Por conta disso, ele resolve

3
WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Martin Claret, 2009.

- 22 -
escondê-lo do mundo. No entanto, Dorian acaba, no fim da narrativa,
irritando-se com a situação e destrói o retrato. Após esse ato, ele
morre e toda a aparência física degradada, retida no retrato por anos,
se transfere para o seu cadáver. Como coloca Eagleton em O problema
dos desconhecidos: um estudo da ética (2010)4: “Representar diante
de um espelho envolve uma espécie de regressão infinita, ou mise en
abîme, uma vez que a Gestalt no espelho sorri, o qual, por sua vez, é a
deixa para outro sinal aprovador de deleite vindo da imagem refletida
e assim por diante”5. Tal regressão de Dorian não aconteceu, nesse
sentido há uma inversão nessa relação/aceitação que faz com que o
personagem não se identifique, não encontre seu infinito, mas faz com
ele rejeite tal representação, pois não se imagina assim degradado, e
vai para um caminho contrário ao do desejo de se representar diante
do retrato (espelho). O retrato passa a ser então um objeto escondido.
É importante ressaltar que a literatura não é estática, ela é viva,
movimenta-se e é esse movimento que proporciona a possibilidade de
dialogar constantemente consigo mesma através de textos que
retomam, citam, transformam e releem outros textos anteriores,
geralmente textos consagrados na literatura, como os cânones. É
justamente esse diálogo que constitui o que chamamos de
intertextualidade.

4
EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 p.12
5
Ibid, p.16

- 23 -
A noção de intertextualidade permite lançar sobre o conto
“Retratos” e o romance O Retrato de Dorian Gray um olhar crítico a
respeito da aproximação dos dois textos. Uma vez que a literatura é a
sua própria matéria-prima, pois se constrói a partir de sua própria
repetição, a reconstrução do personagem Dorian no conto “Retratos”
trata-se de uma nova maneira encontrada para falar sobre o mesmo
assunto (a busca pela identidade). O público leitor para qual Abreu
direciona a sua obra não é o mesmo para o qual Wilde direcionava a
sua: os tempos e as ideias mudaram, mas apesar da nova mentalidade,
alguns conflitos nunca abandonam o homem.
Este trabalho pretende explorar a intertextualidade existente
entre o conto "Retratos" e o romance O Retrato de Dorian Gray, tendo
como interesse de análise a identidade dos sujeitos, descoberta a
partir da representação dos retratos, e para tal, é preciso recorrer a
teóricos da psicologia e da sociologia como Lacan, Freud, Foucault,
entre outros. Para associar um texto ao outro, será utilizado o método
comparativo devido a proposta de explorar as semelhanças e verificar
as divergências entre as narrativas. A análise consiste em aplicar esse
aparato teórico na leitura dos textos de Wilde e Abreu, considerando
que este reconstrói a obra daquele, trazendo uma releitura do
personagem Dorian na pele de um homem da pós-modernidade
também em busca de respostas acerca de si próprio, e dentro disso
atentar para a constituição do sujeito, visto que em ambos os textos
percebe-se uma crise de identidade e uma relação do que chamamos

- 24 -
de eu (a figura idealizada do sujeito) com o outro (a revelação de um
novo sujeito com características que fogem do ideal).

O papel da imagem na constituição do eu


Na Antiguidade, a imagem ainda não era entendida como um
procedimento físico e sim como uma espécie de aparição, quase uma
materialização de um objeto ou ser por meio da aparência. A imagem,
então, seria extremamente ligada ao erro, à incerteza, ao “quase-ser”.
A visão, por sua vez, é o elemento capaz de distinguir o verdadeiro e o
falso, o que é e o que não é.
A partir daí, em seu livro intitulado Um olhar a mais: ver e ser
visto na psicanálise (2004)6, Quinet traz diversas perspectivas sobre a
imagem e a visão, a começar pela de Platão, que defendia que o olhar
jamais atinge o objeto e o mundo visível se torna, assim, impossível de
ser decodificado completamente através da nossa visão. René
Descartes, criador do método cartesiano, que se baseava no ceticismo
e no questionamento de todas as coisas, acreditava que a visão não é
o objeto, e sim uma imagem dele, de forma que Quinet explica que “a
imagem é a rainha da visão, e reina sobre o visível. A imagem é
também rainha do engano, da ilusão, pois faz existir o que não existe,
deforma, transforma, elude”7.

6
QUINET, Antônio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 2004.
7
Ibid, p.126

- 25 -
É perceptível que a questão do erro e do engano ganha
notoriedade nas concepções apresentadas, abrindo caminho para
estabelecer uma relação com o imaginário. A palavra imaginário vem
do latim imaginari, que significa “constituir uma imagem mental de
determinada coisa”, que deriva de imago (imagem, representação) e
vem da mesma raiz de imitari (copiar, imitar, fazer parecido). Partindo
dessa análise etimológica, é possível compreender o pressuposto que
imaginar seria idolatrar ou admirar a figura de um corpo, e não o corpo
propriamente dito. O imaginário, segundo a psicanálise, não fica
restrito à imaginação, ele vai além: trata-se da constituição ou
identificação com o semelhante de forma especular, que pode resultar
em paixão ou rejeição agressiva8.
A imagem é responsável por dar forma ao outro e fazê-lo
parecer inteiro, além de atribuir ao eu um ideal, um objeto de desejo
a ser alcançado, e se comparado à imagem do outro, e este se torna
semelhante ou rival. Por isso a imagem é um dos mais importantes (se
não o mais) elementos nas relações humanas, visto que ela é fator
extremamente influente na constituição da identidade, não obstante
que reina na imaginação e no campo dos sonhos. Apesar disso, é
indispensável lembrar que “o mestre é o significante: para cada sujeito
ele irá estruturar a forma da imagem que mascara e envolve o real do
olhar”9.

8
Ibid, p.125
9
Ibid, p.127

- 26 -
Neste viés, é passível de menção o mito de Narciso, que retrata
o encontro do eu com o outro semelhante. A mãe de Narciso consultou
o adivinho Tirésias quando seu filho era um recém-nascido para saber
quão longa seria a vida do menino. O adivinho disse que a criança
alcançaria a velhice desde que jamais se conhecesse, ou seja, jamais
visse sua própria imagem, pois era dotado de extrema beleza. Muitas
jovens se apaixonaram por ele, mas obtiveram de Narciso apenas o
desdém. Eis que um dia, quando o belo rapaz se debruçou à beira de
um lago para matar sua sede, viu sua imagem refletida e confundiu
com outro corpo, assim se apaixonou pelo seu próprio reflexo e
morreu.
Narciso é um ser que exemplifica a importância dada à imagem,
que foi falada até aqui. Toda sua essência volta-se para o visual e para
a beleza, pois são esses fatores que o tornam objeto de desejo e de
paixão dos que estão a sua volta. Até o momento em que vê seu
reflexo, Narciso não tem noção do poder de sua imagem. Quando ele
se depara com a projeção, pensa ser outra pessoa e tem despertado o
desejo pelo domínio do outro, que é feito pelo imaginário. No caso de
Narciso, o imaginário foi o responsável pela admiração da imagem do
corpo do outro, da paixão como produto disso, e da identificação, visto
que é a partir da existência do outro que o eu passa a existir.
A narrativa da mitologia grega deu origem ao termo
narcisismo, que Paul Näcke definiu pela primeira vez em 1899 como
sendo uma conduta em que o indivíduo tem seu próprio corpo como

- 27 -
objeto de desejo sexual10. No entanto, foi Freud no ensaio “Introdução
ao Narcisismo” (1914)11 que desenvolveu o conceito. Segundo o “pai
da psicanálise”, o sujeito inicialmente passa por uma fase primordial
da libido onde ele tem energias autoeróticas. Na sequência, essa fase
é sucedida pela fase onde o surgem as “energias internas do Eu”, ou
seja, até o momento não existia nada que pudesse se comparar ao eu,
tratava-se de um conjunto vazio, mas quando surgem essas pulsões
voltadas para o eu, começa o processo de formação desse eu baseado
na busca por uma imagem ideal que possa atribuir ao corpo uma
unidade imaginária.
Do mesmo modo acontece na formulação de Lacan, conhecida
como “O estádio do Espelho”12, que também tem como base a
constituição do eu através da imagem. Dos seis aos dezoito meses de
idade, a criança tende a passar por um processo de formação da
imagem. Até então ela não tem consciência de sua imagem como
totalidade, mas apenas de fragmentos do seu corpo, o que compõe a
primeira fase do estádio do espelho. Na segunda fase, ao se deparar
com a sua imagem num espelho, a criança passa a perceber sua
própria imagem unificada e a reconhecer como representação visual

10
NÄCKE, Paul. Kritisches zum Kapitel der normalen und patho- logischen Sexualititt.
In: Arch. Psychiat.Nervenkrankh, 1899 apud FREUD, 2010 p.12
11
FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo - Obras Completas Volume 12
Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916).
São Paulo: Editora Schwartz, 2010.
12
LACAN, Jacques . O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

- 28 -
de si mesma. Chega-se então ao ponto já mencionado: o sujeito passa
a constituir-se como o eu (que se tratava até o momento de uma
unidade vazia ou fragmentada) a partir da identificação com a imagem
prefigurada do outro, ou do espelho nesse caso. Como explica Quinet:

O eu é portanto constituído por esta imagem que


se corporifica: corpo unificado, corpo em sua
totalidade, em suma, corpo humano. Com efeito, o
eu, segundo Freud, é, antes de tudo corporal. A
percepção visual do corpo constitui a base do
imaginário e da identificação especular. A unidade
do eu é, portanto, imaginária.13

Porém, se as imagens não são as coisas, paira uma


complexidade na constituição do sujeito através do espelho: se ele se
constitui através da imagem que é refletida, aquela imagem não é
essencialmente o sujeito, como já dito, é apenas uma projeção. Por
isso encara-se o eu do espelho como o outro, o intruso que disputa o
lugar no imaginário com o eu, que é tido como o eu ideal com o qual é
preciso associar-se, mesmo que ele fuja ao ideal do eu que foi
construído pelo imaginário. Nas palavras de Eagleton: “No campo do
imaginário, portanto, não fica claro se eu sou eu mesmo ou um outro,
se estou dentro ou fora de mim, atrás ou diante do espelho”14. É
justamente essa complexa e bipolar relação que causa o desconforto
e a insatisfação do homem: quando o outro não é uma idealização,

13
QUINET, op. cit, 2004, p.128-129
14
EAGLETON, op.cit.2010 p.17

- 29 -
objeto de desejo ou admiração, ele é um estorvo, um peso, objeto de
rejeição.
Quando o sujeito constitui sua imagem unificada e passa a ter
uma identificação visual e imaginária, passa também a perceber que
está sob os olhares do mundo. Eis que pode surgir o que Quinet15
chama de “mancha”, um sinal que evidencia ou deforma a imagem,
encarada negativamente devido a sua função de destacar o sujeito,
fazer com que ele seja olhado e que sua presença seja alarmada no
campo escópico (área de visão dos outros, de vigilância e olhares).
Em seu livro Vigiar e Punir (2000)16, Foucault explana sobre a
questão do olhar que vigia, falando primeiramente de como a
sociedade lida com a “mancha”, exemplificando com a exclusão que
foi feita com as pessoas acometidas de lepra no século XVII e o rígido
esquema disciplinar traçado pelas autoridades para combater pestes:
cada bairro e rua tinha seu representante, este tinha o controle da vida
de todas as pessoas moradoras do local e as fiscalizava
incessantemente para que se alguém saísse de sua casa fosse punido.
Assim se estruturou a sociedade, principalmente a partir do século XIX,
separando os adequados dos inadequados, isolando os “doentes”, e
demarcando cada indivíduo a partir de traços classificatórios para

15
QUINET, op.cit 2004, p.130
16
FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: Nascimento da Prisão. Trad. Raquel
Ramalhete. 23a Ed. Vozes - RJ, 2000

- 30 -
poder vigiá-los e modificá-los melhor, e dessa forma, nada perturbar
as expectativas criadas pelo poder.
Ainda nesta obra, Foucault traz um importante conceito
baseado no projeto de uma penitenciária estrategicamente
desenvolvido por Jeremy Bentham que consistia em uma construção
de um prédio em forma anelar, onde no interior desse círculo ficavam
os presos distribuídos individualmente em celas, e ao centro, uma
torre com vigias que, devido à localização privilegiada e ao sistema de
iluminação bem elaborado, conseguiam ter uma visão plena de cada
um dos detentos. Esse modelo estrutural poderia ser aplicado em
diversas instituições que tem como fundamento a disciplina, como
escolas, por exemplo. Segundo Foucault, toda a estrutura do
panóptico foi elaborada com o intuito de fazer com que o detento
tivesse a consciência de que em todo o momento estava sendo
vigiado, e assim, submeter-se ao poder maior e obedecer às regras
impostas. Assim, a disciplina seria estabelecida sem pressão, sem
violência e sem repetição: o poder maior reinaria através da
consciência dos internos sobre o que é permitido ou não sob os
olhares da vigilância.17
O grande conceito trazido por Foucault, através desses
exemplos, é o que ele chama de “sociedade disciplinar”. Todos os
métodos citados, incluindo em âmbito maior a disciplina, são

17
Ibid, p.162-170

- 31 -
mecanismos do poder para manipular a sociedade afim de que todos
sigam regras impostas pelos maiores detentores de poder. Voltando-
se para o foco central do estudo, o sujeito evita a mancha, já que ela o
põe em destaque. O sujeito se encontra sobre o olhar panóptico da
sociedade, tendo que jogar conforme as regras do poder e não
podendo desviar sua conduta por ter a consciência de que, de alguma
forma, está sendo vigiado em todos os momentos. Assim como no
panóptico, ele não vê quem o vigia, mas sabe que existe alguém
fazendo.
A ideia de sociedade escópica, trazida por Quinet18, baseia-se
no conceito antecedente de sociedade disciplinar proposto por
Foucault, porém sob o olhar da psicanálise. Ambas as definições
podem ser aplicadas à sociedade atual, onde a imagem exerce
extrema importância, já que nela, para se constituir como eu, o sujeito
deve ser visto pelo outro, estar sobre olhares de terceiros.

A presença do outro: da descoberta ao repúdio


Complexo, impactante e peculiar. Esses adjetivos servem para
caracterizar tanto os escritores Wilde e Abreu como se aplicam
também às suas respectivas produções literárias. O inglês Wilde viveu
e publicou suas obras durante a era Vitoriana19, notoriamente

18
QUINET, op.cit. 2004, p. 150
19
Período condizente ao reinado da Rainha Vitória no Reino Unido que durou de
1837 até 1901.

- 32 -
conhecida pelos fortes princípios morais, preconceitos e proibições
severas que regiam a sociedade. O autor foi um dos nomes mais
importantes do movimento literário que ficou conhecido como
esteticismo que pregava a supervalorização da beleza e da arte, o que
se desviava dos valores morais predominantes, pois estes se voltavam
para a supervalorização da fé e da disciplina.
Todorov, em A Beleza Salvará o Mundo (2011)20 conta sobre a
experiência trágica de Wilde que, no auge de sua participação na alta
sociedade de Londres e do seu reconhecimento literário em vida, foi
acusado em tribunal pelo pai de seu amante Lorde Alfred Douglas
(também conhecido como Bosie) por práticas imorais com rapazes, já
que a homossexualidade era considerada como crime nessa época.
Wilde então foi condenado a dois anos de prisão, além de sofrer forte
repúdio, perdendo o seu prestígio no seu meio social.
Abreu também escreveu e viveu em contextos conturbados.
Logo no começo da sua vida literária, encarou a ditadura militar que
vigorou entre 1964 e 1985, silenciando a voz dos brasileiros com uma
forte censura às artes. O Estado tentava se manter no controle da
produção intelectual para que músicos, escritores, pintores, etc. não
questionassem o poder dominante. Callegari, escreve na biografia de
Abreu intitulada Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor

20
TODOROV, Tzvetan. A beleza salvará o mundo: Wilde, Rilke, Tsvetaeva: os
aventureiros do absoluto. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011.

- 33 -
irremediável (2011) 21 que, após se exilar um tempo na Europa, quando
Abreu retornou ao Brasil descobriu ser portador do vírus HIV, o que
era motivo de discriminação, visto que nessa época a doença ainda era
pouco conhecida e sofria forte preconceito e repressão por ser
equivocadamente associada à homossexualidade pelo fato de que a
maior disseminação da doença, na época, se dava na comunidade gay.
A respeito disso, Bessa, em Os Perigosos (2002)22, explica que os
homossexuais tiveram suas identidades rotuladas pelos discursos da
sociedade e até mesmo da medicina: “os homossexuais eram
solitários, depressivos, dependentes de drogas estimulantes,
“promíscuos”, etc. Na verdade, a identificação desse tipo na mídia
tinha a função clara de apontar e condenar, levando às mais diversas
formas de opressão e perseguição"23.
A breve explanação sobre o contexto no qual os autores das
obras analisadas estavam inseridos se faz importante para a
compreensão de suas obras, uma vez que buscaram retratar essa
realidade, assim, é comum, nessas obras, temáticas como privação de
sonhos e desejos, de repressão à sexualidade e, principalmente, a falta
de liberdade para expressar publicamente a essência do ser. A partir
dessas temáticas, tem origem uma em especial: a busca pela
identidade.

21
CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável.
São Paulo: Seoman, 2008.
22
BRESSA, Marcelo. Os perigosos. Aeroplano: Rio de Janeiro, 2002.
23
Ibid, p.110

- 34 -
Embora mais de um século separe a publicação de O Retrato de
Dorian Gray (publicado originalmente em 1839) e O Ovo Apunhalado
(publicado originalmente em 1962), onde se encontra o conto
“Retratos”, como já mencionado nesse trabalho, o fato da literatura
não ser estática permite que ela dialogue consigo mesmo através de
textos que fazem referência entre si, que se completam ou que
renovam um ao outro, e por conta disso é possível afirmar que as
narrativas em questão estabelecem uma relação mútua de sentido,
pois o conto de Abreu traz diversas referências indiretas ao romance
de Wilde, principalmente no que se diz respeito à construção dos
personagens, de modo que é possível pensar no conto como uma
perspectiva atual do romance, onde ele abarca questões já presentes
em Wilde como a constituição da identidade e o peso do julgo social,
mas também devolve ao romance novas posições através de rumos
tomados pelo personagem do conto que não foram tomados por
Dorian.
Em outras palavras, no conto “Retratos”, Abreu reconstrói o
personagem consagrado de Wilde através da figura de um homem,
aparentemente sério, que veste terno e gravata e trabalha duro em
um escritório para receber seu salário mediano, enquanto Dorian é um
jovem da aristocracia inglesa, único herdeiro de seu rico avô e que
passa seus dias em festas e eventos da alta sociedade. Assim, traçando
uma linha de aproximação entre os personagens, busca-se aqui as
diferenças e as semelhanças que os rondam, entendendo que o texto

- 35 -
produzido por Abreu tenha em sua maior referência o romance de
Wilde. Uma referência que proporciona uma nova leitura das obras,
num processo circular de diálogo entre elas, ou seja, “Retratos” lê O
retrato de Dorian Gray e vice-versa.
O protagonista do conto “Retratos” (que não é nomeado) e
Dorian apresentam suas identidades reveladas através do retrato. A
partir daí ocorre um processo de reconhecimento do eu através do
“espelho”, como já propôs Lacan24: a imagem refletida (o outro) é,
realmente, o núcleo da constituição desse eu. Assim, pode-se dizer
que a profundidade e a contradição são, de fato, características dos
sujeitos tratados aqui, não mais fixamente rotulados como bons ou
ruins sob o molde do sujeito moderno, descrito por Hall como aquele
de identidade unificada e coerente25, mas sim tratado como um sujeito
complexo, ora narcisista, ora inseguro, ora agressor, ora vítima, ou
seja, um eu em construção e múltiplo em suas possibilidades.
No conto “Retratos”, a não nomeação do personagem já
remete a um possível conflito de identidade. Uma identidade ainda
não definida. Logo no início da história, personagem principal cita o
fato de ter assinado uma circular de moradores para retirar um grupo
de pessoas que ficava na praça em frente ao prédio, entretanto, afirma
não se incomodar realmente com elas, o que reforça a ideia da
ausência de uma personalidade definida, já que, de certa forma, apoia

24
LACAN, op.cit. 1998. p.97
25
HALL, op.cit. 2002 p.23

- 36 -
atitudes com as quais não concorda. Este fato corrobora certa “apatia”
do personagem no momento de não se opor à vontade da maioria e,
consequentemente, ser aceito por ela. Outra passagem que deixa
explícita a preocupação do personagem com a vontade e a aceitação
da maioria é quando ele pensa em chamar o morador da praça para
jantar em sua casa, mas se depara com empecilhos impostos pelas
regras de convenção social, uma vez que levar outro homem para seu
apartamento não seria bem aceito pelos vizinhos preconceituosos,
ainda mais sendo esse homem participante do grupo que os
moradores do prédio queriam expulsar:

Acho que sente fome. Pensei em convidá-lo para


comer comigo, mas desisti. Os vizinhos não
gostariam. Nem o porteiro. Além disso, o
apartamento é muito pequeno e está sempre
desarrumado porque a empregada só vem uma vez
por semana26

Em O Retrato de Dorian Gray, o personagem principal, Dorian,


apresenta-se inicialmente como um rapaz de personalidade amena e
sutil e de aparência extremamente agradável que o faz ser admirado
e exaltado por todos. Dorian possui tudo aquilo que as pessoas
desejam: juventude e beleza inabaláveis, além de dinheiro e boa
posição social, porém ele não se dá conta de que possui todas essas

26
ABREU, op.cit 2012 p.52

- 37 -
características relativamente importantes em seu meio até que Lord
Henry Wotton chama-lhe à atenção para o poder de sua aparência:

— Porque o senhor possui uma juventude


admirável e a juventude é a única coisa desejável.
— Eu pouco me incomodo.
— Pouco se incomoda... agora. Para mim, a Beleza
é a maravilha das maravilhas. Só os sujeitos
acanhados não julgam pela aparência. O
verdadeiro mistério do mundo é o visível, nunca o
invisível... Sim, Mr. Gray, os Deuses lhe foram
favoráveis. Mas o que os Deuses dão tornam a
tomar depressa27

Assim como no conto de Abreu, o personagem em questão não


tem, aparentemente, uma personalidade forte e bem definida o que
faz com que chegue a ser influenciado pelas ideias de terceiros, pois,
no momento em que Lord Henry Wotton instiga Dorian a refletir sobre
sua juventude, este começa a olhar sua beleza de outra forma,
chegando ao ápice quando Basil lhe mostra o quadro finalizado. O
rapaz tem o quadro como uma projeção de sua identidade, então se
comove diante de tanta formosura e deseja ficar jovem para sempre
como a sua imagem.
Dorian é, portanto, um ser visual: para ele, a imagem é o fator
mais importante e decisivo da sua vida e então se rende aos benefícios
de ser jovem e belo, ligando sua identidade à sua aparência e essa
passa a ser, portanto, a identidade idealizada que Dorian acredita ser

27
WILDE, op.cit. 2009, p.31

- 38 -
a real porque a situação lhe é favorável. Nesse aspecto, Dorian se
aproxima do personagem de “Retratos” que preza pela aceitação da
sociedade no qual ele está inserido e, para tal, o seguimento de
padrões por ela estabelecido é o mais importante dos fatores: a
sociedade avalia o indivíduo como sendo adequado ou não segundo o
que é visível aos seus olhos (a imagem, a representação, enfim, as
aparências no geral).
Em “Retratos”, a partir do momento em que o personagem
passa a ser desenhado pelo artista, ele se depara com uma figura de si
próprio que não conhecia (o outro) e ele nota que, a cada retrato, seu
rosto está mais feio, velho e com uma expressão mais pesada do que
estava acostumado a ver no espelho. Inicialmente, ele se nega a
acreditar que o que vê seja realmente sua imagem retratada. Isso faz
com que ele, no decorrer da narrativa, torne-se intranquilo diante dos
retratos pintados. É perceptível que, depois que estes começam a ser
feitos, o personagem passa a ter um comportamento diferente do
anterior, pois em sua alienação ao mundo a sua volta, começa a
reparar nos aspectos negativos de diversas coisas como o céu
cinzento, o clima estranho, os defeitos de seu chefe, de suas colegas
de trabalho, etc. Passa, enfim, a ter atitudes que não lhe eram comuns
como, por exemplo, um sinal de inconformismo que se percebe no
fato de não ir ao trabalho e não se importar com o que os seus vizinhos
do prédio pensam a respeito de suas atitudes.

- 39 -
O novo posicionamento do personagem de Abreu, diante dos
fatos, faz parte do seu eu que está sendo revelado através do outro (os
retratos) e mostra que ele está conseguindo se libertar do peso do
julgamento da sociedade, representada no conto pelos vizinhos que
criticam suas atitudes. Quinet28 define esta sociedade como
escópica29, que valoriza a imagem e a transparência, vigiando seus
integrantes através do olhar panóptico30 que se sente em todas as
partes, e que está presente, nas instituições, com seu caráter
disciplinar e totalitário.
Em Wilde, essa desconstrução da imagem acontece quando o
conjunto de características que fazem Dorian ser idealizado é desfeito
no momento em que o personagem passa a ter atitudes consideradas
ruins como abandonar sua noiva Sibyl e humilhá-la a ponto da moça
cometer suicídio. Com isso, o retrato misteriosamente se altera,
deixando, gradualmente, a imagem pintada mais degradada
visualmente de acordo com a intensificação das atitudes ruins
cometidas por Dorian. Este também tem seu comportamento
modificado depois que o retrato passa a mostrar um Dorian

28
QUINET, op.cit. 2004 p.272
29
O termo escópico foi usado primeiramente por Freud para definir a “pulsão
escópica”, que diz respeito à pulsão de ver e ser visto. Nesse sentido, uma sociedade
escópica é aquela em que o olhar exerce fundamental importância. O olhar exercido
por essa sociedade seria, então, ligado ao modelo panóptico descrito por Focault,
que mantém seu integrante sempre a vista para que possa ser vigiado
continuamente.
30
FOCAULT, op.cit. 2000 p.163

- 40 -
corrompido: ele se rende às leviandades, pratica coisas ruins que
atingem terceiros e não sente culpa alguma, tendo seu egoísmo
amparado e justificado pelas ideias de Lord Henry Wotton, chegando
ao clímax do comportamento egoísta e louco quando assassina seu
próprio amigo Basil. Nesse sentido, o retrato (o outro) revela a sua
verdadeira essência ao eu. O eu, seria então uma representação
idealizada do sujeito que é abalada quando se depara com o outro, o
estranho, a representação real não idealizada.
A imagem deformada do retrato é fortemente repudiada por
Dorian que se recusa a aceitar que a pessoa ilustrada no quadro é ele,
uma vez que o belo jovem supervaloriza a imagem idealizada porque
além de ela ser socialmente aceita, é também o objeto de desejo e
adoração dele mesmo: como no mito de Narciso, Dorian, por certo
viés, ignora o sentimento alheio e faz tudo em nome de seu amor pela
sua própria imagem. Em contrapartida, o retrato na parede representa
tudo o que Dorian não mostra aos outros, pois ele passa a ter
consciência de que o que há na pintura é o que Quinet chama de
mancha31 no espetáculo narcisista, ou seja, uma falha que denuncia o
que há por trás da imagem e revela o que o espelho não mostra, e no
romance é representada pela imagem deformada que denuncia os
desvios de conduta do rapaz. Quando Dorian se dá conta disso, ele
procura esconder a obra de arte em um cômodo isolado.

31
QUINET, op.cit 2004, p.136-137

- 41 -
Mais do que esconder o quadro, o personagem protagonista
esconde sua velhice através do “pacto” feito. Também esconde seu
verdadeiro eu ao realizar os atos impuros longe do olhar da sociedade
escópica, como o fato de as pessoas não saberem de seu
relacionamento com Sibyl e de que ele foi a causa da morte dela. A
não repercussão do assassinato de Basil, pelo motivo de Dorian ter
conseguido acabar com o cadáver e todas as provas do crime, também
é um ato indigno.
Percebe-se então que ambos os personagens têm suas
trajetórias divididas em antes e depois de serem retratados. No conto,
o personagem se mostra inicialmente introspectivo, sem
posicionamento crítico sobre o mundo que o rodeia, porém muito
preocupado com o julgamento alheio. Quando passa a ser retratado,
passa também a ver os defeitos do mundo e das pessoas. Ele não se
importa mais com o que vão pensar, apenas segue seu desejo por ter
sido retratado. É através da sequência de tais imagens desenhadas que
ele começa a ver quem realmente é, e como esse eu aparenta
desagradável aos seus olhos.
Dorian, por sua vez, tem uma personalidade sutil de início, mas
quando é retratado por Basil, lamenta-se profundamente diante da
incapacidade de permanecer sempre jovem e belo. Ele deseja que essa
eterna juventude seja possível. É a primeira mudança marcada pelo
retrato: o despertar de sua vaidade inconsequente e sem limites

- 42 -
O sujeito do conto é uma vítima da sociedade. Calado,
desanimado e oprimido, o personagem é fruto da sociedade
repressora e da ideologia dominante, que impõe um “molde” de como
deve ser e agir. A série de retratos o faz perceber sua situação e sua
identidade real é exposta em sua face fazendo com que ele se veja sua
vida se perdendo. O desespero por ver, a cada dia, um novo retrato, e
o fascínio pelo misterioso rapaz que o desenha, representa a ânsia pela
salvação, pois estes dois elementos estão ligados à descoberta de sua
essência, sua identidade real, ainda que ela não seja agradável, é
libertadora.
No romance, Dorian, é uma vítima de si mesmo. Quando se
rende ao exacerbado amor próprio, ele está irremediavelmente
afastado de sua identidade inicial. A vaidade é o seu ponto crucial, pois
Dorian é amado por sua beleza e não quer perder isso. O próprio pintor
do quadro é um agente de adoração, pois motivado pela beleza do
rapaz, ele a produziu em imagem perfeita na tela. O retrato é o
instrumento que não permite que o personagem minta para si mesmo.
Ele pode ocultar sua aparência e seu caráter duvidoso para todos,
exceto para ele mesmo, uma vez que, na narrativa, as ações imorais e
ilegais praticadas movimentam as mudanças graduais no retrato.
Assim sendo, Dorian talvez seja o principal agente impulsionador da
descoberta da identidade que não o agrada. Diferentemente, no conto
de Abreu, os retratos movimentam a narrativa. O personagem assume
posturas diferentes (aqui já citadas), conforme vai tendo

- 43 -
conhecimento do outro, representado pelos retratos, até que passa a
ser conduzido pela busca do próximo desenho, o desejo da descoberta
é o que move o enredo.
Ao se depararem com algo até então desconhecido, os
personagens em questão apresentam uma rejeição da imagem
descoberta. Em “Retratos”, o personagem, ao constatar que o
segundo retrato está com aparência pior que a do primeiro, associa a
imagem destes com a do espelho da portaria de seu prédio que,
segundo ele, “deforma as pessoas”. Com isso, subentende-se uma não
aceitação daquele eu exposto pelo retrato. Nos dias seguintes, ele cola
os retratos na parede de seu quarto e analisa-os até que esta ação lhe
cause insônia. O quarto é um local extremamente pessoal que remete
à intimidade. O fato de o personagem levar os retratos, para o seu
espaço individual, representa que ele foi tocado no âmago. A não
aceitação caminha para um fim, em “Retratos”, quando o personagem
declara que o desenhista tentou amenizar a situação no primeiro
desenho, mas, depois que o conquistou como cliente, resolveu
retratá-lo tal como era.
Em certo momento da história, Dorian cobre o retrato com um
tecido. Essa passagem salienta a máscara que o personagem Dorian
preferia usar ao invés de admitir sua verdadeira essência. Houve
tentativas de praticar ações boas com a intenção de mudar o retrato,
mas, por não ser algo espontâneo, acabou por ser inútil. Dorian
assassina o seu amigo pintor Basil, por atribuir a culpa do tormento de

- 44 -
sua vida ao quadro que ele lhe deu de presente. Inconformado e
cansado dos problemas trazidos pelo quadro, Dorian decide por
acabar com o retrato, apunhalando-o com uma faca e o que resta na
narrativa é o grito final e o corpo velho e irreconhecível de Dorian,
estirado no chão com a faca no peito. Nas palavras de Eagleton, “No
campo do imaginário, portanto, não fica claro se eu sou eu mesmo ou
um outro, se estou dentro ou fora de mim, atrás ou diante do
espelho”32
O retrato era a parte real de Dorian, que repudiou essa ideia
até o fim e por se recusar a ver o retrato como parte fundamental
diretamente a ele ligada, teve como consequência acabar consigo
mesmo: a partir do momento em que destrói o retrato, acaba com a
sua representação do verdadeiro “eu”, a parte essencial do todo.
O conto de Abreu, por sua vez, termina com uma incógnita: o
rapaz que lhe desenhava os retratos não aparece para produzir o tão
aguardado sétimo e último desenho e, misteriosamente, os habitantes
da praça afirmam jamais terem visto, por ali, alguém com a descrição
compatível. O personagem principal então entra em desespero e
acaba em um bar, bebendo e analisando os retratos, quando afirma:
“E de repente descobri que estou morto”33. A morte do personagem,
nesse caso, não é física, pois simboliza o fim do sujeito denunciado
pelos retratos, sujeito introspectivo e oprimido. A ausência do último

32
EAGLETON, op.cit. 2010, p. 17
33
ABREU, op.cit. 2012, p.58

- 45 -
retrato propõe algo em branco, um espaço vazio a ser preenchido pelo
próprio personagem. É a oportunidade da reconstrução, da
modificação, do aperfeiçoamento. Essa oportunidade não acontece
com Dorian pelo fato dele ser o estopim da sua própria destruição,
enquanto o personagem do conto é o fruto de uma sociedade
autoritária.
Constata-se, enfim, que os sujeitos se caracterizam como
sujeitos heterogêneos, pois apresentam uma identidade múltipla,
ainda em fase de constituição, devido ao fato de se depararem com o
outro eu que reflete uma imagem com a qual eles não se identificam.
As diferenças encontradas, entre os objetos, se devem à ideia de que
Abreu reconstrói o personagem de Wilde sob o contexto dos tempos
ditatoriais no Brasil, atribuindo ao personagem características que o
contextualizam nesse cenário proposto. Cada obra, reciprocamente,
completa e dá sentido à outra. “As obras literárias nunca são simples
memórias – reescrevem as suas lembranças, influenciam os seus
precursores, como diria Borges. O olhar intertextual é então um olhar
crítico: é isso que o define”34. Ao deixar subentendido o desfecho de
seu personagem, o autor lhe dá uma nova chance, o que nos leva
talvez a pensar o que aconteceria se Dorian tivesse uma chance de
modificar o seu retrato.

34
JENNY, op.cit. 1976, p.10

- 46 -
A relação com os agentes secundários da narrativa
A fim de não restringir a análise apenas aos personagens
principais da narrativa, reconhecendo que a constituição do eu não se
dá apenas a partir de processos interiores individuais, mas também
através da relação com outros elementos influentes na construção da
subjetividade, destaca-se aqui um desses elementos que pode ser
considerado extremamente relevante no decurso do sujeito: a relação
com os autores dos retratos.
Em O Retrato de Dorian Gray, o pintor Basil Haward é a porta
de entrada para todos os fatos extraordinários que acontecem na vida
do adolescente pacato e sutil Dorian. Basil viu no jovem uma
inspiração para as suas obras e depositava em sua beleza angelical a
esperança de encontrar um elemento diferencial para seus quadros,
sentimento perceptível na fala do próprio pintor a respeito de Dorian:
“a única pessoa que empresta à minha arte o encanto que ela pode
possuir”.
Basil é, na narrativa, a primeira pessoa que reconhece o
encanto e a beleza do rapaz, e assim, representa os primeiros passos
da trama que caminham para a consagração da identidade inicial de
Dorian como “o belo”. Porém o sentimento de Basil não fica restrito à
relação artista/inspiração. No decorrer da trama, existe uma sugestão
de uma paixão platônica e homossexual de Basil por Dorian. Em
nenhum momento chega a ser explícito, mas existem especulações a
respeito da obra que dizem que o texto original escrito por Wilde teve

- 47 -
que ser remodelado para se adequar às imposições morais daquela
época. Apesar disso, na versão publicada, Wilde procura tratar essa
questão com muita sutileza até mesmo estilística e deixa
subentendidas em passagens como a que Basil descreve para Henry o
efeito que Dorian causa nele desde o primeiro contato:

Estava, pois, no salão havia dez minutos,


conversando com damas maduras enfeitadas
exageradamente, ou com fastidiosos acadêmicos,
quando subitamente notei que alguém me
observava. Voltei-me e, pela primeira vez, vi Dorian
Gray. Ao encontrarem-se os nossos olhos, senti-me
empalidecer. Curiosa sensação de terror apoderou-
se de mim. Compreendi que estava diante de
alguém cuja simples personalidade era tão
fascinante que, se me abandonasse a ela,
absorveria a minha natureza inteira, a minha alma
e até a minha própria arte. Não queria nenhuma
influência exterior na minha vida. Você já sabe,
Harry, que sou independente por natureza. Fui
sempre senhor de mim mesmo; pelo menos, tinha-
o sido sempre, até o dia do meu encontro com
Dorian Gray.35

Basil era apaixonado pela pureza de Dorian e por isso sofreu


quando percebeu que Lord Henry Wotton estabeleceu uma
aproximação muito grande com o rapaz a ponto de influenciá-lo com
suas ideias e converter o jovem ao hedonismo, fazendo com que ele
tivesse o prazer como a força motriz da vida e o buscasse

35
WILDE, op.cit. 2009 p.17

- 48 -
inconsequentemente. O pintor chega a confessar o amor e o
sofrimento a Dorian:

Dorian, desde o momento em que o conheci, sua


personalidade teve sobre mim a mais
extraordinária influência. Minha alma, cérebro e
poder ficaram dominados por você. Para mim, você
se converteu na encarnação visível desse ideal
invisível que nos persegue a nós, artistas, como um
sonho estranho. Foi devoção o que senti por você.
Tive ciúmes de todas as pessoas com quem você
falava. Queria você só para mim. Só era feliz
quando estava com você. Quando longe de mim,
você se mantinha presente em minha arte...36

Dorian, por sua vez, não nutria por Basil o mesmo sentimento.
Tudo em sua vida girava em torno de si. Quando Basil o pintou, Dorian
passou a ter por ele uma amizade, um carinho muito grande por ele
ter sido o agente revelador de sua beleza através do quadro.
Uma leitura que permite ser feita a respeito da relação entre
Basil e Dorian é a de que o pintor viu em Dorian atributos divinos, além
de sua beleza física percebida por todos. Basil viu qualidades tão
excepcionais que, muitas vezes, só os olhos de um apaixonado
conseguem enxergar. O amor faz com que as pessoas enxerguem o
objeto amado com qualidades hiperbólicas, assim como Basil viu a
beleza e a pureza daquele rapaz ainda adolescente. Nesse sentido,
Basil tomou Dorian como a sua mais eficaz fonte de inspiração e

36
WILDE, op.cit. 2009 p.140

- 49 -
transmitiu toda a sua paixão naquele retrato que alcançou a perfeição.
Porém, Dorian se entregou à perversão mundana e não correspondeu
mais ao seu impecável retrato. Este, então, passou a mostrar a Dorian
a dimensão do seu desvio, o quanto ele se afastava das virtudes que
teve um dia. Em outras palavras, no processo de consolidação da
identidade, o quadro perturbou o eu de Dorian apresentando-o ao
outro em que ele se transformara.
No conto de Abreu, percorre-se o trajeto inverso: o retratado
tem uma paixão platônica por quem faz os retratos, ou seja, um rapaz
desenhista que está acampado na praça em frente ao prédio onde
mora o personagem principal. Durante o desenrolar da narrativa,
pode-se perceber o sentimento gradual que o personagem principal
tem em relação ao desenhista de seus retratos: no primeiro dia trata-
o como se fosse apenas mais um daquela comunidade; no segundo dia
já passa a reparar em detalhes como a posição das mãos e em especial
o sorriso, que introduz a paixão que ele sente pelo pintor: “De vez em
quando erguia os olhos e sorria para mim. Achei estranho porque
nunca ninguém sorriu para mim – nunca ninguém sorriu pra mim
daquele, jeito quero dizer”37 e a partir do quarto dia já começa a se
preocupar com relação ao lugar onde o rapaz dorme, o que ele come,
a possibilidade dele estar sentindo frio, a ponto de não conseguir
dormir e trabalhar normalmente e só ter a sensação de bem-estar

37
ABREU, 2012, p.51

- 50 -
quando está por perto do desenhista.
De fato, o homem engravatado desenvolve uma paixão pelo
pintor e cada vez mais tem a necessidade de encontrá-lo. O desenhista
talvez esteja ligado aos retratos que vêm mudando a sua forma de se
ver e de ver o mundo, pois ao mesmo tempo em que ele é o
responsável pelos desenhos que servem de espelho para denunciar
um outro que está se degradando, ele representa também a vontade
da mudança que esta denúncia desperta.
A ânsia e a necessidade pelos próximos retratos não são
separadas em nenhum instante da ânsia de ver o retratista de novo
porque ele significa para o personagem retratado, um intermediário
entre a busca e as respostas a respeito de sua identidade.
Em “Retratos”, o personagem do desenhista fica subentendido
como um ser irreal. Logo no começo sugere-se uma espécie de
“proteção-de-não-se-sabe-quem” sobre a comunidade em que vivia o
artista de rua: “Falaram-me no elevador que alguém muito importante
deve protegê-los. Achei engraçado: parecem tão desprotegidos”.38 Em
seguida, o mistério acerca do rapaz aumenta devido ao não
conhecimento de seu nome, pois o próprio desenhista não deixa claro:
“O meu nome não são letras nem sons — ele disse —, o meu nome é
tudo o que eu sou”39; a falta de características corriqueiras continua a
aparecer quando questionado sobre o frio que fazia, o jovem responde

38
Ibid. p.50
39
Ibid. p.52

- 51 -
“não esse mesmo frio que o senhor sente”40. Por fim, a evidência mais
importante que dá a entender o traço quimérico do personagem é o
seu final enigmático. Sem muitas explicações dadas na narrativa, no
dia reservado para desenhar o último e esperado retrato o desenhista
simplesmente não é encontrado. Desesperado, o homem que tanto
aguardava, procurou em todos os lugares possíveis e ao perguntar do
rapaz aos habitantes da praça, estranhamente, todos afirmaram nunca
ter visto alguém com aquela descrição morando por ali.
A construção do personagem, através da fantasia, propõe que
o agente criador dos retratos seja, na verdade, um ser irreal ou
imaginário, o qual não se conhece a origem, mas é possível deduzir a
sua função como responsável pelo processo de identificação do
homem retratado: após uma fase de rejeição da figura especular (no
caso os retratos com aparência desagradável), ele preocupa-se com o
outro que lhe é apresentado feio, velho, abatido, cansado e triste.
Desfaz-se então da sua alienação ao mundo, passa a ser atento a ele,
tendo a oportunidade de ser quem realmente é sem se preocupar com
as convenções sociais. O jovem artista de origem desconhecida,
portanto, foi enviado com o intuito de lhe conceder a libertação e abrir
seus olhos para que pudesse enxergar talvez a sua identidade.
Nesse sentido, em O Retrato de Dorian Gray, o quadro é um
elemento fabuloso que tem vida própria. A sua função também é de
espelho, porém o outro que ele acarreta não tem o mesmo objetivo

40
Ibid. p.54

- 52 -
libertador. O outro, nesse caso, serve de tormento para o eu
idealizado, visto que Dorian está preso em seu próprio narcisismo,
entregue ao hedonismo exacerbado e não quer ser libertar, porém não
gosta de encarar a imagem que foge a sua idealização narcísica de
beleza.

Considerações Finais
Certa vez, o poeta modernista Abgar Renault lamentou dizendo
que “Nada nos resta, tudo já foi dito”, o que refletia muito bem o
sentimento de esgotamento criativo durante sua época. Abreu já
inserido no contexto pós-moderno foge a esse pessimismo e serve
como reflexo de seu momento: ele mexe com o leitor através da
atualização de sentimentos já conhecidos; ele fala de amor, de
decepção, da busca pela identidade, de tristeza e outras temáticas já
bastante exploradas, porém de uma forma nova, levando em
consideração que os leitores também são outros, o mundo é outro. É
justamente isso que o autor gaúcho fez ao recriar o personagem
consolidado de Wilde. Abreu bebeu na fonte de um escritor que
chocou a sociedade de sua época para também chocar a sua. Em
“Retratos”, o autor recria o trajeto do reconhecimento da identidade,
trazendo um personagem que carrega marcas da vivência em uma
sociedade opressora, não mais a inglesa vitoriana, e sim a brasileira
ditatorial, porém que também carrega o peso do julgamento e das
imposições que lhe impedem de exercer a essência do ser, e vive a
aparência.

- 53 -
As visões da psicologia e da sociologia acerca do sujeito e da
formação da identidade contribuíram para conceber esse sujeito
dentro dos textos. No romance, Dorian é um rapaz com um eu ideal
(bonito, rico, todos o admiravam), mas no momento em que se torna
uma má pessoa, o seu retrato sofre graduais deformações, e é nesse
ponto em que ele se depara com o outro e não o aceita, repudia-o e
tenta destruí-lo motivado pela sua vaidade e a supervalorização de sua
imagem. No conto, o personagem inicialmente também possui um eu
ideal (quieto, alheio ao mundo, não sofria por sentir, estava em sua
zona de conforto) e os retratos que o desenhista da praça faz dele
denunciam aos poucos uma imagem degradada e sofrida, ou seja, o
outro que ele repudia e tenta mudar. Os elementos irreais de ambas
as narrativas, como o retrato com vida própria e o desenhista e sua
arte misteriosos, servem como recursos usados pelos narradores para
passar a mensagem principal do texto, visto que eles são os itens
reveladores da verdade, os espelhos.
Em suma, conclui-se que os sujeitos de “Retratos” e de O
Retrato de Dorian Gray não são bons, nem maus, pois não se prendem
a dicotomias e a padrões pré-estabelecidos, ora são x ora são y,
complexos em suas subjetividades, situados no entre-lugar. Porém,
nas narrativas, ainda se encontram em fase de identificação diante do
espelho (retrato), o que não é algo fora do normal, visto que constitui
uma fase do desenvolvimento do homem, como coloca Lacan41.

41
LACAN, op.cit. 1998, p.97

- 54 -
Referências

ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&PM, 2012.

BESSA, Marcelo. Os perigosos: Autobiografias e AIDS. Aeroplano: Rio


de Janeiro, 2002.

CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor


irremediável. São Paulo: Seoman, 2008.

EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos: um estudo da


ética. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FOCAULT, Michael. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Trad. Raquel


Ramalhete. 23a Ed. Vozes - RJ, 2000

FREUD, Sigmund. Introdução ao Narcisismo - Obras Completas


Volume 12 Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e
outros textos (1914-1916). São Paulo: Editora Schwartz, 2010.

LACAN, Jacques. “O estádio do espelho como formador da função do


eu”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

NÄCKE, Paul. Kritisches zum Kapitel der normalen und patho- logischen
Sexualititt. In: Arch. Psychiat.Nervenkrankh, 1899.

QUINET, Antônio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004.

TODOROV, Tzvetan. A beleza salvará o mundo: Wilde, Rilke,


Tsvetaeva: os aventureiros do absoluto. Rio de Janeiro: DIFEL, 2011.

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Martin Claret,


2009.

- 55 -
Ficção e história: tensões e aproximações

Eider Ferreira Santos42

“História e ficção: onde termina uma e começa a


outra? Em que a história contada pelos
historiadores difere das histórias contadas pelos
ficcionistas? É cada vez mais difícil responder com
segurança a questões desse tipo” (COUTO, 1994:
4).

Há uma infinidade de considerações a respeito das afinidades


e/ou disparidades existentes entre a Literatura e a História. Para
alguns não há como negar as correspondências entre as duas,
considerando que desde sempre ambas têm sido narrativas
fundamentais para explicitar e explicar o real através de um único
instrumento, a linguagem. Para outros, não há como estabelecer
semelhanças entre a ciência histórica e a Literatura uma vez que, para
os mesmos, uma é totalmente comprometida com a realidade, e a
outra, totalmente comprometida com a ficção como veremos a seguir.
A partir de Weinhardt (2002), podemos perceber que há uma
infinidade de pontos de vista a respeito das semelhanças e diferenças
entre os discursos histórico e ficcional. Para ela, durante muito tempo

42
Mestrando do programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB)

- 56 -
História e Literatura foram vistas da seguinte maneira: a primeira
como invejável para o ficcionista por este não dispor do recurso da
objetividade, proporcionada pelos documentos para alcançar a tão
desejada verdade. Por outro lado, o historiador, também pôde em
algum momento ter invejado o ficcionista “por seu aparente
descompromisso com o mundo que cria”. Percebe-se, então, que “a
crença na transparência da referencialidade da história e na
neutralidade do discurso científico era incontestável, desprezando-se
ou fingindo-se ignorar as sombras que turvavam essa translucidez”
(WEINHARDT, 2002, p. 106).
Todavia, as discussões a respeito dessa temática não param por
aí. Outros estudiosos buscaram também trazer suas contribuições
sobre o papel da História e da Literatura, a exemplo de Frye e Barthes,
ambos trazidos por Weinhardt (2002). O primeiro definia o trabalho
do ficcionista como o de meta-historiador, “cujo trabalho é dedutivo,
impondo uma forma, em função do qual escolhe, enquanto que o
método do historiador é indutivo, a forma sucedendo a pesquisa”.
Frye defendeu ainda que o processo de criação verbal do historiador
era limitado, enquanto que o ficcionista podia ter uma liberdade maior
em seu processo criativo. Seu principal interesse estava em
demonstrar onde se centrava a diferenciação na imitação realizada
pelos dois discursos.
Com o passar dos anos, esta noção de objetividade como
elemento essencial da narrativa histórica e a subjetividade como

- 57 -
própria da narrativa literária, começa a ser deixada de lado, como
podemos perceber a partir de Bernardi (2010). Segundo ele, o papel
do historiador é o de descobrir e descrever o que ocorreu no passado,
mas realizando esta tarefa com ciência e arte, pois afinal, os
acontecimentos narrados pelo mesmo sofrem a interferência deste e
é, ao mesmo tempo, um ato de "criação ou expressão poética";
defende ainda que os acontecimentos narrados pela história, mesmo
que venham dos chamados fatos, não há como estes mesmos eventos
não passarem pelo crivo da imaginação para que possam se desenrolar
de forma coerente. Contudo, faz isso com ressalvas uma vez que
acredita que

O processo de produção da História requer


procedimentos importantes tais como observação,
seleção, pesquisa e construção de uma narrativa,
os quais não podem ser considerados tais quais os
processos de criação de uma obra literária. É
verdade que não há garantias peremptórias de que
um documento escrito, pintado, esculpido,
gravado etc. seja verdadeiro ou de que a
apropriação que o historiador faça deles seja a
correta. Mas à História cabem operações
específicas de construção e tratamento dos dados,
produção de hipóteses, crítica e verificação de
resultados, validação da adequação entre o
discurso do conhecimento e seu objeto e
elaboração de uma escrita que compactuem com
os leitores no sentido de estabelecer uma relação
na qual o público sabe-se recebedor de um
discurso que busca um factual histórico que, se não
verdadeiro, é verossímil em relação às provas
documentais apresentadas pelo pesquisador. Na

- 58 -
ficção, contudo, o pacto estabelecido é diferente e
o público não se vê na posição de construir um
quadro de verdade, mas, sim, de aceitar a
imaginação do autor e a sua própria (BERNARDI,
2010, p. 35).

Assim, percebemos que, para Bernardi (2010), mesmo que o


historiador escreva de forma literária, ele não escreve Literatura, afinal
o historiador está ligado a fatos concretos, bem como a fatos
singulares, ao tempo que vai realizando conexões dentro de um
enredo histórico pretendido pelo mesmo. Contudo, podemos
perceber que o caráter objetivo que sempre foi atribuído à narrativa
histórica começa a ser deixado de lado, uma vez que, como vimos,
inicia-se uma discussão que reconhece nas narrativas históricas a
presença de “expressão poética”. Entretanto, ainda atribuía-se à
História uma posição de superioridade com relação à Literatura.
Como vimos, ainda que as duas áreas de conhecimento aqui
discutidas representem a realidade experienciada pelas sociedades
humanas, para alguns teóricos, considerá-las como iguais significaria
uma heresia, apesar de ambas representarem os eventos, buscando
explicá-los, para confirmar, negar ou ultrapassar as verdades
existentes. É necessário considerar, entretanto, que a Literatura pode
significar uma importante fonte de informações, inclusive para
historiadores, sobre determinados acontecimentos da nossa
sociedade, como afirma Pesavento:

- 59 -
Mas o que vemos hoje, nesta nossa
contemporaneidade, são historiadores que
trabalham com o imaginário e que discutem não só
o uso da literatura como acesso privilegiado ao
passado- logo, tomando o não-acontecido para
recuperar o que aconteceu!- como colocam em
pauta a discussão do próprio caráter da história
como uma forma de literatura, ou seja, como
narrativa portadora de ficção! (PESAVENTO, 2006,
p.2).

Assim sendo, a opinião de Pasavento (1990) é de que a


Literatura é sim uma fonte de informações para o historiador, mas
interessando-o apenas a representação nela contida. Contudo, ela não
é lida pela história de maneira literal, sendo vista como uma
reapresentação do mundo. Sobre esta questão, a autora afirma que,
se a Literatura não pode ser lida de forma literal, a História também
não é passível de uma leitura literal, visto que esta última também
comporta uma representação do real e, por consequência, a atribuição
de um sentido. Neste caso,

A história se reveste numa função de criação, ao


selecionar documentos, compor um enredo,
desvendar uma intriga, recuperar significados.
Estaríamos, pois, diante da presença da
ficcionalidade no domínio do discurso histórico,
assim como da imaginação na tarefa do
historiador. Não há dúvida que o critério de
veracidade não foi abandonado pela história, assim
como seu método impõe limites ao componente
imaginário. O historiador continua tendo
compromisso com as evidencias na sua tarefa de
construir o real, e seu trabalho sofre o crivo da

- 60 -
testagem e da comprovação, mas a leitura que se
realiza de uma época é um olhar entre os possíveis
de serem realizados. Decorre daí que o critério de
verdade poderia ser substituído, na história, pelo
de verossimilhança, pois sua tarefa é construir uma
representação plausível daquilo que teria ocorrido
um dia. Por outro lado, pode-se dizer que o
discurso literário, consagradamente tido como o
campo preferencial de realização do imaginário,
comporta, também, a preocupação da
verossimilhança. A ficção não seria, pois, o avesso
do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os
limites de criação e fantasia são mais amplos do
que aqueles permitidos ao historiador
(PESAVENTO, 1990, p. 117).

Vê-se a partir disso que, no entendimento de Pesavento, a


produção do conhecimento pela História e pela Literatura são válidas
em ambos os casos, mas cada uma preservando suas formas de narrar,
ao mesmo tempo em que percebe semelhanças entre uma área de
saber e outra especialmente no que se refere ao modo de criação,
diferenciando-se apenas em um único aspecto, o lugar de fala.
Sobre esta mesma questão, Borges (2010) afirma que a
Literatura é uma forma de expressão artística da sociedade e, como
tal, é cheia de historicidade, podendo ser um importante instrumento
documental na pesquisa histórica, desde que um percurso
metodológico seja perseguido e que dê condições de refletir sobre as
condições de produção, o lugar onde se produziu, as intensões e o
produto, afinal, “se todo documento é monumento, cabe ao
historiador desvelar como foi construído, a linguagem utilizada, a

- 61 -
finalidade da edificação e suas intencionalidades (BORGES, 2010,
p.95).
No campo do conhecimento histórico, essas relações com
outras formas de produção são importantíssimas, afirma a autora,
uma vez que “noções de leitura, linguagem, representação, prática,
apropriação, intertextualidade, dialogismo, dentre outras” (BORGES,
2010, p. 96) dão condição de entender como uma determinada
realidade cultural é construída em diferentes lugares. É preciso
problematizar os sentidos existentes, sejam eles literários ou de outros
objetos simbólicos. Assim, no que tange à produção literária, ela
afirma que:

No universo amplo dos bens culturais, a expressão


literária pode ser tomada como uma forma de
representação social e histórica, sendo testemunha
excepcional de uma época, pois um produto
sociocultural, um fato estético e histórico que
representa as experiências humanas, os hábitos, as
atitudes, os sentimentos, as práticas, as
inquietações, as expectativas, as esperanças, os
sonhos e as questões diversas que movimentam e
circulam em cada sociedade e tempo histórico
(BORGES, 2010, p. 98).

Podemos perceber, a partir do anteriormente exposto, que a


Literatura dialoga com a realidade de múltiplas maneiras, pautando-
se no critério da verossimilhança e, como tal, “é uma prova, um
registro, uma leitura das dimensões da experiência social e da
invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas sociais, de

- 62 -
modo geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos de forma
particular” (BORGES, 2010, p. 99).
Já não se pode distinguir História e Literatura como sendo uma,
a representação do real; e a outra, como um discurso totalmente
ficcional. Borges (2010), ao levar em consideração as discussões de
Chartier, afirma que:

Essa distinção tem sido ofuscada pela


“evidenciação da força das representações do
passado propostas pela Literatura”, como do
teatro dos séculos XVI e XVII, e do romance do
século XIX, que se apoderaram do passado,
deslocando para a ficção literária o registro de fatos
e personagens históricos e colocando situações
que foram reais ou apresentadas como tais. Além
disso, a Literatura se apropria não só do passado,
como também de documentos e das técnicas da
disciplina histórica, como o dispositivo de criar o
“efeito de realidade” (BORGES, 2010, p. 99).

Do mesmo modo, Pomian (2003) afirma que toda e qualquer


obra traz em seu conteúdo “alguma coisa de real ou de fictício”. No
caso específico das narrativas históricas, é “impossível, de fato,
reconstruir a dimensão visível do passado e sua dimensão vivida sem
fazer apelo a ela” (POMIAN, 2003, p. 36), à ficção. Ainda que o
conteúdo narrado pela história traga em si exatidão e fidelidade, na
visão da autora não o é suficiente para responder todas as questões
referentes ao fato narrado, restando, pois recorrer a “ficção como
paliativo das insuficiências”.

- 63 -
Ainda no que tange à ficção, Pomian (2003) também defende
que ela vem a ser benéfica na produção do conhecimento, uma vez
que a mesma conduz a “recolocar em questão os conhecimentos
adquiridos, que acreditavam incontestáveis”, suscitando
“controvérsias que podem se tornar fecundas”. Desse modo,

em todos esses casos, acontece de ocorrer um


impulso à pesquisa de novos fatos, que darão
origem, assim, a novas constatações, válidas
porque obtidas por meio de procedimentos de
reprodução, mas geneticamente devedoras das
ficções (POMIAN, 2003, p. 43).

Pautando-se nessa discussão, percebemos que a construção


literária institui o lugar em que a História se reconstrói pelo fio da
ficção, pois a Literatura pode ser vista como uma forma de transpor a
realidade e, como tal, pode significar uma fonte de estudos para o
entendimento dos eventos sociais. É preciso, entretanto, que ela seja
lida de forma adequada, em razão de seu caráter heterogêneo, mas
que pode trazer em si, muitas vezes, elementos que acabaram sendo
esquecidos e/ou deixados de lado por outras formas de narrar a
sociedade.
Dessa maneira, é preciso problematizar o texto literário, uma
vez que ele tem se apresentado como um lugar de manifestação dos
eventos sociais, para que o conhecimento possa ser produzido não
apenas sobre o crivo de um único olhar. É preciso, fundamentalmente,
buscar compreender as linhas que interligam ficção e realidade e de

- 64 -
que modo o texto literário e a narrativa histórica estabelecem
conexões ou não entre si ou com outras áreas de produção do saber.
Segundo Silva (2010), essas relações entre Literatura e História
são perfeitamente possíveis. O mesmo traz inúmeros exemplos de
diálogos estabelecidos por historiadores entre essas duas áreas de
saber. Segundo ele, por volta do século XIX, a escrita da História
encontrou na Literatura uma mola propulsora para se desenvolver,
uma vez que muitos historiadores voltaram suas atenções para as
narrativas literárias com o objetivo de melhor entender e comunicar
“a trama dos fatos históricos”, a exemplo de Augustin Thierry,
historiador francês que reconheceu como legítimas as relações de
troca entre as narrativas históricas e de ficção ao utilizar uma obra
literária como objeto de estudo e, ao mesmo tempo, reconheceu nela
uma obra-prima e, em seu autor, “alguém a quem se deveria admirar
pela compreensão que demonstrava ter do passado” (SILVA, 2010, p.
11).
Outro pesquisador que viu na Literatura uma parceira dos
estudos históricos. Segundo Silva (2010), foi o historiador Peter Gay.
Este reconheceu as vizinhanças entre o campo histórico e literário a
ponto de afirmar que a História é uma arte durante boa parte do
tempo.
A partir da década de 1980, houve um crescimento
considerável no número de trabalhos que demonstravam essas
relações de troca entre História e Literatura, inclusive no Brasil, afirma

- 65 -
Silva (2010). A consequência desse processo foi a ampliação do campo
de investigação histórica que dialogava ainda mais com a Literatura e
com outras áreas afins. Assim,

A partir da iniciativa dos historiadores da cultura,


originaram-se alguns dos trabalhos mais
significativos voltados para as relações entre
história e Literatura. Tomada em múltiplos
sentidos, a Literatura converteu-se em objeto de
investigação histórica [...]. Os compromissos com
procedimentos narrativos que aproximam a escrita
da história da escrita de ficção alcançaram notáveis
níveis de elaboração e refinamento em trabalhos
de historiadores de oficio que decididamente
buscaram intensificar o diálogo entre os dois
campos (SILVA, 2010, p. 14-15).

Tais relações entre essas áreas ampliam-se ainda mais no início


do século XXI. Silva (2010) demonstra esta realidade através de
trabalhos como de Sidney Chalhoub, Machado de Assis, historiador,
onde o mesmo faz uma leitura das obras de Machado de Assis,
utilizando-as como documento histórico. Segundo o autor, este
romancista tem sido um dos mais utilizados no que se refere às
relações entre História e Literatura.
Vemos, pois, que na visão de Silva (2010), o diálogo entre a
narrativa histórica e a narrativa literária é uma realidade possível a
ponto de defender que “uma leitura literária da história, assim como
uma leitura histórica da literatura, se impõe como recursos que se
complementam” (2010, p. 29).

- 66 -
Do mesmo modo, Fortunato e Andrade (2009) afirmam que é
sim possível que História e Literatura possam manter relações entre si
de modo que seus saberes possam vir a entrelaçar-se, sem que ocorra
uma hierarquia desses saberes, onde nem a ciência subjuga a arte e
nem a arte subjugue a ciência. “É importante tentar compreender
como essas duas formas de apreensão da realidade se constituem,
examinando suas aproximações e distanciamentos e delimitando seus
saberes produzidos” (FORTUNATO; ANDRADE, 2009, p. 113-114).
Ainda para esses autores, antes de qualquer hierarquização
dessas áreas do saber é preciso levar em consideração que elas se
aproximam uma vez que ambas são “instâncias que estão carregadas
de interesses, sejam de seus autores, sejam dos lugares que ocupam
suas respectivas instituições de saber” (FORTUNATO; ANDRADE, 2009,
p. 116). Além disso, tanto a narrativa histórica quanto a narrativa
literária estão ambas carregadas de relações de poder/ saber.
Assim, para Fortunato e Andrade (2009), mesmo a História e a
Literatura sendo campos distintos de produção do saber, não há como
desconsiderar as relações e cruzamentos existentes entre uma e outra.
Pensar desse modo “abre espaço para despertar o insuspeitado e o
inesperado do ‘real’, por meio de novas reinvenções e leituras
possíveis acerca do que chamamos realidade” (FORTUNATO;
ANDRADE, 2009, p. 118).
Estas relações entre as áreas do conhecimento ganham força
quando observamos as considerações de Borges (2010) ao afirmar que

- 67 -
“o literato não cria nada a partir do nada”, sem que o mesmo
estabeleça contatos com a sociedade e tudo que ela abarca. Assim, “a
Literatura, como testemunho histórico, é fruto de um processo social
e apresenta propriedades específicas que precisam ser interrogadas e
analisadas, como qualquer outro documento” (BORGES, 2010, p. 103).
Esta problematização das áreas da produção do saber, especialmente
no que se refere à Literatura, é necessária, pois a linguagem literária
deve ser investigada na sua pluralidade, de modo que os diversos
sentidos existentes venham a ser considerados, mas sem deixar de
manter as relações necessárias com os eventos sócio-históricos.
Podemos ainda perceber no texto Literário um lugar onde se
“constrói certa história da cultura e do social, institui uma memória em
prejuízo de outras, podendo ser considerada como um dos lugares de
memória de uma coletividade” (BORGES, 2010, p. 106). Por isso, a
mesma autora afirma que

Recorrer a esse tipo de documento possibilita-nos


acessar um imaginário social, pensado tanto como
qualquer coisa imaginada quanto como um
conjunto de imagens variadas acerca da existência
em sociedade, colhendo informações, muitas vezes
não encontradas em outras fontes ou perdidas por
tantas, como aquelas referentes as formas de agir,
de pensar e sonhar, de sentir e relacionar etc.
própria de um tempo, de um lugar e de um grupo
social (BORGES, 2010, p. 106).

- 68 -
Assim, as contribuições aqui trazidas foram apresentadas com
a finalidade de problematizar os eventos históricos e literários, uma
vez que é possível uma aproximação entre a narrativa histórica e a
narrativa literária, não no sentido de igualá-las, mas com objetivo de
uma completar a outra para que os eventos sociais abordados por
ambas possam ser melhor compreendidos.
Desse modo, a partir dos aspectos anteriormente observados,
podemos perceber nas narrativas literárias grande fonte de
informação no entendimento da história da nação, por isso mesmo,
parceira da História enquanto disciplina, não por comungar das
mesmas ideias, mas por problematizar sentidos que podem vir a
ajudar a esta, bem como também a outras áreas de conhecimento que
desejem entender esses mesmos eventos a partir de outro olhar, o
olhar da narrativa ficcional, uma vez que a mesma abre espaço para
pensar o insuspeitado ou o pouco tematizado, mas que merecem ser
problematizados.

- 69 -
Referências

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História e Ficção: Heródoto um Mensageiro Trágico. Belo Horizonte,
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- 70 -
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Editora UFPR, p. 105-120.

- 71 -
Das raízes aos ramos: Helder Macedo em diálogo amoroso
com a tradição

Mariana Braga

Os clássicos não são lidos por dever ou por respeito


mas só por amor (Ítalo Calvino).

Por que ler Helder Macedo à luz de Camões?


Com o objetivo de elucidar o modo como a obra ficcional de
Helder Macedo recupera a tradição, em especial a camoniana,
apresentarei alguns dados biográficos relativos à carreira do escritor,
que nos encaminharão a perceber como o autor contemporâneo
desde cedo esteve em diálogo amoroso com o poeta maneirista.
O nome Helder Macedo vem a público pela primeira vez em
1957, impresso na capa do pequeno volume de poemas intitulado
Vesperal, publicado pelas edições Folhas de Poesia em Lisboa. Este
reaparece cinco anos depois em Das fronteiras, seguido por outro
conjunto de poemas, intitulado Poesia (1969), cujo segundo volume
sairá dez anos depois. Como obra poética, publica ainda Viagem de
inverno (1994), e as coletâneas Viagem de inverno e outros poemas
(2000) e Poemas novos e velhos (2011). Nesse meio tempo, em 1975,
Helder Macedo inicia sua transição entre as fronteiras do discurso,
publicando, no campo da crítica literária, a análise Nós, uma leitura de
Cesário Verde, Do cancioneiro amigo (1976), Do significado oculto da

- 72 -
Menina e Moça (1977), Contemporary Portuguese Poetry (1978),
Camões e a viagem iniciática (1980), Cesário Verde: o romântico e o
feroz (1988), Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no
Renascimento português (1998), escrito em parceria com Fernando
Gil, Trinta leituras (2007) e Obras de Bernadim Ribeiro (2010).
Somente na década de 90, Helder Macedo passa a ser
conhecido também como ficcionista, através do romance Partes de
África (1991) e, sucessivamente, de Pedro e Paula (1998), Vícios e
virtudes (2000), Sem nome (2005), Natália (2009) e Tão longo amor,
Tão curta a vida (2013). Embora sua carreira como romancista tenha
sido iniciada tardiamente, o autor já teria se aventurado pela prosa
literária na década de 60, quando, então, partira para a Inglaterra,
porém os tempos de censura do Estado Novo português impediram
que qualquer editor publicasse seus manuscritos em Portugal, de
modo que o levantar de cortinas de sua estreia como ficcionista foi
forçosamente adiado. Em 2013, em conferência no II Congresso
Internacional da Faculdade de Letras da UFRJ (CIFALE), Helder Macedo
reitera o que já havia explicado em entrevista a Carlos Pinto Coelho
em 199143: após o fim da ditadura salazarista e da destituição de
Marcelo Caetano, não foi mais de seu interesse publicar os textos que

43
COELHO, Carlos Pinto. “A voz de Helder Macedo pela mão de Carlos Pinto Coelho”.
In: RIBEIRO, Margarida Calafate et alii. A primavera toda para ti – homenagem a
Helder Macedo. Lisboa: Presença, 2004.

- 73 -
havia escrito cerca de dez anos antes e que lhe pareceram juvenis.
Brinca, ainda, bastante ao estilo de mordaz ironia de sua escrita:

Como tal... eu... quando voltei a escrever ficção já


tinha cometido o pecado original de escrever um
primeiro mau romance. Geralmente os escritores
publicam seu primeiro mau romance, e depois
passam a vida a arrepender-se. Eu tenho uma
dívida enorme à censura política, porque nunca
publiquei esse livro. [Risos.]44

Partes de África foi, portanto, o primeiro – bom – romance


publicado por Helder Macedo. Romance cuja epígrafe nos recebe com
versos do soneto “Correm turvas as águas deste rio”, de Luís Vaz de
Camões: “Tem o tempo sua ordem já sabida; / o mundo, não”. Não
será, pois, inocentemente que nosso escritor, e tampouco o
reconhecido crítico camoniano, escolherá a voz do poeta como mote
inicial de sua trajetória nesse gênero da escrita. Ainda em Partes de
África, e considerando aqui que é nesta obra que o caráter
autobiográfico de toda a narrativa helderiana vindoura mais se
acentua, o narrador de Helder Macedo torna explícita sua admiração
por seus grandes mestres em meio a ponderações a respeito da
verossimilhança do próprio romance de onde fala e, por extensão, do
processo de construção de todo o seu trabalho como escritor:

44
Helder Macedo em conferência no II Congresso Internacional da Faculdade de
Letras da UFRJ (CIFALE), 3 de setembro de 2013

- 74 -
A questão é que não basta tornar a verdade
inverossímil [...] ou transformar uma
inverossimilhança noutra, como eu teria tentado
fazer no romance que não escrevi. O que é preciso
é misturar tudo, ou, pelo menos, como eu aqui,
fazer o que se pode. Porque conseguir, em
português, só o Camões e o Machado de Assis
(MACEDO, 1999, p. 249).

Para Cleonice Berardinelli, e com ela concordo, é já naquele


primeiro encontro paratextual que Helder Macedo elege aquele que
será o “patrono” (BERARDINELLI, 2002, p. 19) não apenas de seu
romance de estreia, como de toda a sua obra ficcional. É, de fato,
significativo que um autor que se tornou nada econômico em matéria
de epígrafes – os romances que se seguem apresentam no mínimo três
epígrafes cada – tenha dado a Camões tal lugar de destaque. Parece-
me que, assim como na estrutura de um poema épico pressupõe-se
que o poeta faça invocações às musas, pedindo-lhes inspiração para
cantar e espalhar por toda a parte suas histórias de armas e barões
assinalados, são os poetas – em verso e prosa – que Helder Macedo
traz a si em seus romances, através das citações em epígrafes e de
tantas outras referências. Se n’Os Lusíadas o poeta cria suas próprias
musas do rio Tejo, à semelhança das nereidas, e delas cobra auxílio em
seu novo “engenho ardente” (CAMÕES, 1980, p. 54), Helder Macedo
faz dos autores eleitos suas Tágides recriadas, quando se apropria de
suas palavras. Ao trazê-los à baila não apenas no paratexto, mas nas
linhas e entrelinhas de seus romances, o autor, além de pegar-lhes

- 75 -
emprestada a força da tradição, confere-lhes uma nova força literária.
Revitaliza-os como sujeitos e objetos de seu canto. Transforma-os,
portanto, em musas próprias habitantes de sua “biblioteca interna”45,
que o autor invoca, mobiliza e eterniza, inscrevendo-os no corpo de
seu texto tanto no âmbito do enunciado quanto no da enunciação.
Claro está que a profícua carreira acadêmica do professor e
ensaísta Helder Macedo indubitavelmente contribuiu para que este
compreendesse e tivesse domínio sobre a tradição das palavras. E faz-
se necessário, neste ponto, definir o conceito de tradição com o qual
trabalharei neste artigo. Para isso, cito uma passagem de T. S. Eliot em
“Tradição e talento individual”:

A tradição é de significado muito mais amplo. Não


pode ser herdada, e se a quisermos, tem de ser
obtida com árduo labor. Envolve, em primeiro
lugar, o sentido histórico, o qual podemos
considerar quase indispensável a quem continue a
ser poeta para além de seus vinte e cinco anos. E o
sentido histórico compreende uma percepção não
só do passado, mas da sua presença; o sentido
histórico compele o homem a escrever não apenas
com a sua própria geração no sangue, mas também
com um sentimento de que toda a literatura
europeia desde Homero, e nela a totalidade da
literatura da sua pátria, possui uma existência
simultânea e compõe uma ordem simultânea. Esse
sentido histórico [diacrônico], que é um sentido do
intemporal bem assim como do temporal, e do

45
SILVA, Edson Rosa da. “Da ilusão à alusão: o olhar do pintor e do escritor sobre a
realidade”. Apresentado na IV Semana de Estudos Neolatinos da UFRJ, em setembro
de 2001.

- 76 -
intemporal e do temporal juntos, é o que torna um
escritor tradicional. E é, ao mesmo tempo, o que
torna um escritor mais agudamente consciente do
seu lugar no tempo, da sua própria
contemporaneidade (ELIOT, 1962, p. 2-3).

Helder Macedo articula em sua leitura-escrita o lastro da


tradição adquirido com árduo labor, conquistado por anos de
dedicação aos estudos de literatura portuguesa, juntamente com o
talento inovador que confere originalidade à obra de quem acredita
que um texto só deve ser publicado, e preferencialmente escrito,
“quando [o autor] sente que tem alguma coisa ligeiramente diferente
a dizer daquilo que tenha sido dito”46. Seu agudo sentido crítico e
histórico permite que nosso escritor tenha a percepção autocrítica de
sua própria obra e de como dela são indissociáveis os vestígios de toda
a tradição literária europeia. De modo que Helder Macedo escolhe
participar ativamente desse grande jogo literário, transformando sua
literatura em um mosaico espelhado cujas peças incrustadas se
refletem umas nas outras num efeito de abismo, cujas margens se
confundem, posto que, bom cirurgião que é, dispensa as cicatrizes-
aspas num jogo erótico-canalha de velamento e desvelamento
barthesiano. Ao modo daquela criança de que nos fala Antoine
Compagnon em O trabalho da citação, que, depois de crescida, se
mantém nostalgicamente no “segundo tempo da escrita”

46
Helder Macedo em conferência no II Congresso Internacional da Faculdade de
Letras da UFRJ (CIFALE), 3 de setembro de 2013.

- 77 -
(COMPAGNON, 2007, p. 11), em que recorta, junta e recompõe
membros transplantados de corpos seus e alheios reorganizando-os
num livro de bricolagem. Ou, ainda, a coincidir com a concepção de
poesia que nos apresenta T. S. Eliot: “um todo vivo de toda a poesia já
escrita” (ELIOT, 1962, p. 6).
A teoria do mosaico como fazer narrativo aparece em Partes de
África – “Faço por isso voto solene de que irei trazendo para este meu
mosaico todos os pedaços necessários para nariz, olhos, dentes,
orelhas, boca, só que não obrigatoriamente nesta ordem e nem
sempre pertencentes ao reflexo fictício do mesmo rosto” (MACEDO,
1999, p. 40) – e reaparece sob novo molde em seu segundo romance,
Pedro e Paula, nas palavras do narrador sobre os quadros pintados
pela personagem-título Paula:

o segredo [...] que tinha de estar lá para não ser


notado mas precisava de estar, era que por detrás
das cores e das texturas queria que houvesse o que
ela sabia serem pedaços de corpos fluidos a
desarticularem-se e a reorganizarem-se em novas
combinações, lábios, ventres, dedos, dorsos, seios,
uma espécie de plasma fértil (MACEDO, 1999, p.
193).

Tais metáforas fazem saltar-me à lembrança os mosaicos


humanos compostos por Angelo Musco, artista italiano
contemporâneo cujos projetos consistem em fotografar milhares de
pessoas nuas, individualmente ou em grupos pequenos, à frente de ou
deitadas sobre um fundo verde (chroma key). O artista, então, através

- 78 -
de um programa de computador, compõe enormes painéis, utilizando
os corpos conectados uns aos outros, de modo a formarem, em macro
escala, imagens de penas, de ovos, de colmeias, etc. Vem-me à
lembrança mais especificamente seu projeto Cortex, em que o artista
utiliza os corpos humanos, fotografados em seu estúdio nos Estados
Unidos, para criar imagens de florestas repletas de árvores. Proponho
uma breve leitura do painel composto por Angelo Musco como
ilustração do modo como Helder Macedo se apropria da tradição
europeia em sua escrita ficcional.

(MUSCO, Angelo. “Iride 2”)


- 79 -
Ao primeiro olhar, a imagem em escalas de cinza nos revela
uma floresta, um caminho espiralado de árvores que deixam escapar
feixes de luz por entre as copas e que direcionam nosso olhar para o
centro. Atemo-nos por mais um instante e percebemos que a floresta
é composta inteiramente por milhares de corpos nus conectados,
entrelaçados pelas mãos, pelas pernas, pelos dorsos, eroticamente
dispostos de modo a não aparecerem as genitálias, porém, ou talvez
por isso, deixando-nos uma sensação de fertilidade latente a percorrer
das raízes às copas das árvores. A aparente aleatoriedade da
disposição de cada corpo é, entretanto, minuciosamente posicionada
pelo artista para que cada peça forme a imagem inteira do mosaico.
Há, assim, camadas visíveis de corpos articulados entre si e outras
camadas de centenas de corpos cuja presença intuímos por detrás dos
outros ou escondidos pelo jogo de luz e sombra: “Corpos fluidos a
desarticularem-se e a reorganizarem-se” (MACEDO, 1999, p. 193).
Vejamos o que está escrito sobre o projeto Cortex no site de
Angelo Musco:

The symbolism of trees and their various parts has


been used to communicate many aspects of life-
strength, fertility, community, security,
interconnection, historical roots, and ancestry.
Trees convey the idea of being rooted and an
ongoing relationship with nature. [...] Man’s
interconnectivity is made tangible in the Cortex
Project as each body is literally interwoven with

- 80 -
another, thus creating not only the bark, branches
and tree trunks but also an emotional cortex that
feeds and nourishes47.

O sentido comunitário, as raízes históricas e a ancestralidade


parecem se unir à força vital e fertilidade criativa, formando uma
conjuntura análoga à do sentido histórico somado ao talento
individual do sujeito da escrita, que proporcionam a criação de
mundos literários os quais Helder Macedo compõe em seus romances,
em que cada corpo, cada pedaço de corpo, novo ou antigo, original ou
pertencente à tradição, se articula junto aos outros formando novas
imagens, gerando novas criações. Obra cujo todo pode ser visto como
uma peça inteira em macro escala, porém que, se aproximarmos a
lente, percebemos como uma trama enredada de fios narrativos
herdados, revisitados, rearticulados em infinitas novas imagens. Cada
par de corpos é, simultaneamente, a ruptura da fisicalidade individual
e o elo da continuidade que os une em um todo inteiro.
“[...] este livro não é sobre mim mas a partir de mim”
(MACEDO, 1999, p. 221), afirma o narrador helderiano em Partes de
África. Assim se faz presente a tradição em sua obra ficcional, em que

47
Disponível em: http://www.angelomusco.com. [O simbolismo das árvores e suas
variadas partes tem sido usado para comunicar muitos aspectos da força vital,
fertilidade, comunidade, segurança, interconectividade, raízes históricas e
ancestralidade. Árvores transmitem a ideia de serem enraizadas e em ininterrupta
relação com a natureza. [...] A interconectividade do homem torna-se tangível no
projeto Cortex, a medida em que cada corpo está, literalmente, entrelaçado com o
outro, criando, assim, não apenas a casca, ramos e troncos, mas também um córtex
emocional que alimenta e nutre.]

- 81 -
mesmo quando o autor não escreve necessariamente sobre Camões,
é a partir dele que a aventura da escrita se inicia. De modo que Helder
Macedo faz uma viagem de amor, de busca pelo conhecimento, em
um corpo a corpo textual com a lírica e a épica camonianas.

Do texto bíblico ao soneto


Tão longo amor, Tão curta a vida (2013), cujo título é a
transposição quase sem modificações dos versos finais do soneto
“Sete anos de pastor”, estabelece diálogo imediato com a obra do
poeta, trazendo mais uma renovação dos votos de Helder Macedo a
Camões. Se cada escritor, entretanto, carrega consigo a tradição de
seus próprios antepassados e a cada um cabe a responsabilidade da
ruptura que possibilita um recomeço, como Camões afirma sua
originalidade perante os seus clássicos?
Em comemoração ao centenário da morte de Luís Vaz de
Camões, Helder Macedo publica, em 1980, Camões e a viagem
iniciática, livro constituído em sua primeira edição de duas partes já
anteriormente publicadas cujas versões amplificadas foram postas,
então, em conjunto: a primeira dedicada à lírica do poeta, e a segunda,
à épica. Nele, o ensaísta afirma que “A aceitação da experiência como
base de um conhecimento que prefere ‘verdades’ a ‘Verdade’ [...]
tornou Camões num dos primeiros poetas europeus que pode
apropriadamente ser descrito como ‘moderno’” (MACEDO, 2013, p.
13). Parece-me que o sentido de modernidade a que o crítico se refere

- 82 -
está afinado ao apontado por Otávio Paz em Os filhos do barro, de
acordo com o qual o moderno não estaria vinculado apenas à ideia de
novidade, mas sim caracterizado pela sua heterogeneidade (PAZ,
1984, p. 18). De modo que, ao ter consciência de seu pertencimento
às tradições neoplatonista e judaico-cristã, Camões pode transformá-
las a seu modo em sua poesia, sem a pretensão de instaurar assim um
novo cânone incontestável, mas criticando e interrogando seu status
quo. Nas palavras de Helder Macedo, “Camões encheu as garrafas
antigas com vinho novo” (MACEDO, 2013, p. 15).
Sabendo que o soneto camoniano que inspirou o título do
romance de Helder Macedo é, por sua vez, uma reformulação de um
episódio da Bíblia, vejamos em quais aspectos “Sete anos de pastor”
se aproxima e se afasta da passagem localizada no livro “Gênese”.
Nela, a ação narrativa se inicia depois que o pastor Jacó, filho
de Isaac, tendo despertado o ódio de seu irmão Esaú por lhe ter
roubado o direito à benção paterna que a primogenia lhe conferia,
parte fugido a Padã-Arã para abrandar a fúria de seu irmão e desposar
uma filha de Labão. Chegando à região, encontra a pastora Raquel em
um poço aonde fora dar água ao rebanho de seu pai, e imediatamente
se apaixona pela beleza da moça. Jacó, então, é acolhido por Labão,
ficando em sua casa por um mês até que este lhe pergunta: “Acaso
porque és meu parente, servir-me-ás de graça? Dize-me que salário
queres” (Gn, 29:15). Ao que o pastor responde: “Eu te servirei sete
anos por Raquel, tua filha mais nova” (Gn, 29:18). Dito isso, o acordo

- 83 -
é feito e, após sete anos de serviços prestados, que, segundo o texto
bíblico, pareceram-lhe dias posto que seu amor era tão grande, Jacó
cobra que Labão cumpra sua parte. Acontece que o patriarca de Padã-
Arã tinha outra filha que não Raquel: Lia, que, além de menos bonita
do que a irmã, era mais velha, e, portanto, segundo os costumes da
região, deveria se casar antes. Sem comunicar ao genro, Labão conduz
Lia, ao invés de Raquel, a Jacó, com quem este se deita. Pela manhã,
vendo que havia sido enganado, o pastor se indigna com o pai das
moças, que lhe propõe um segundo acordo: “Acaba a semana com
esta, e depois te darei também sua irmã, na condição que me sirvas
ainda sete anos” (Gn, 29:27). Aceitando o novo ajuste, ao cabo de uma
semana, Jacó se une também a Raquel e fica em casa de Labão para
lhe prestar o tempo de serviço determinado. Seguem-se ao segundo
casamento intrigas envolvendo o desprezo de Jacó pela sua primeira
esposa, a inveja que esta sentia de sua irmã, a esterilidade de Raquel
e a fertilidade de Lia decorrentes, respectivamente, de castigo e
benção divinas. Dentre tantas outras querelas familiares
desencadeadas pela disputa entre as irmãs pelo marido.
Façamos, agora, uma leitura do soneto camoniano:

Sete anos de pastor Jacó servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando-se com vê-la;

- 84 -
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: - Mais servira se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!48

O que Camões nos apresenta é um recorte da narrativa bíblica


no qual seleciona os aspectos mais potencialmente líricos da trama.
São deixados em elipse os pormenores do contrato matrimonial
firmado entre os dois homens, como ter sido Jacó quem
primeiramente propôs os sete anos de servidão em troca de receber a
amada como salário, ou os costumes de Padã-Arã que motivaram
Labão a enganar o genro, ou até mesmo a frustração exasperada que
Jacó deixa transparecer ao perceber o engodo na passagem bíblica –
“Que me fizeste? Não foi por Raquel que te servi? Por que me
enganaste?” (Gn, 29:25) – enquanto no soneto o pastor parece
inquebrantável mesmo em sua tristeza. É omitida também a cláusula
do segundo contrato em que Jacó já poderia estar junto de Raquel
como marido passada apenas uma semana deitando-se com Lia, e não
somente depois de outros sete anos, como o soneto faz parecer.
O poeta opta também por um corte temporal bastante
específico, de que exclui tanto o desenrolar da história do protagonista

48
CAMÕES, Luís de. “Sete anos de pastor”. In: Sonetos.

- 85 -
para chegar até ali, quanto a sequência de acontecimentos posteriores
ao desejado casamento. Assim, não ficamos sabendo pelos versos
camonianos que Jacó havia traído a confiança de seu irmão e de seu
pai e que, por isso, fugira para Padã-Arã, buscando um casamento que
agradasse a seu progenitor, e que a justiça divina o fizera ser enganado
por Labão. E sequer sabemos que, afinal, Jacó ficara com as duas irmãs
e que sua preferência se alternará entre elas – e entre suas respectivas
escravas – a depender de qual estará fecunda ou estéril de acordo com
a vontade de seu Deus. Camões escolhe minuciosamente o momento
da narrativa em que o desejo de Jacó por Raquel se encontra mais
pungente, antes de sua concretização e de seu declínio.
Sobre a relação entre a tradição e o talento individual de cada
artista, Eliot escreve: “Estar apenas em concordância [com a tradição]
seria para a obra nova não estar de todo em concordância: não seria
nova, não seria, portanto, uma obra de arte” (ELIOT, 1962, p. 4). Desse
modo, é na transfiguração do texto bíblico pelas mãos do poeta que o
soneto camoniano perpetua a narrativa da mitologia judaico-cristã
através de sua metamorfose e, ao mesmo tempo, assegura seu
estatuto de obra de arte perante seus contemporâneos e as próximas
gerações.

Do soneto ao romance
Tomando o título do romance de Helder Macedo como ponto
de interseção imediato com a obra camoniana, veremos a partir daqui

- 86 -
como Tão longo amor, Tão curta a vida dialoga não apenas com o
soneto “Sete anos de pastor”, mas também com outras questões e
aspectos presentes na lírica e na épica do poeta.
Publicado em 2013 por Helder Macedo, o narrador do romance
é um escritor português que vive em Londres, e, certa noite, recebe a
inesperada visita de um antigo conhecido, de que se diz “tão amigo
quanto é possível ser a partir de certa idade” (MACEDO, 2013, p. 12).
Victor Marques da Costa, seu leitor e compatriota diplomata,
parecendo inquieto e assustado, e com a manga da camisa suja de
sangue, começa a divagar sobre variadas questões: sua carreira,
Portugal, seus pais e sua criação, questões filosóficas, literárias e
musicais. Conta-lhe sobre a temporada em que viveu na Alemanha
oriental, sobre sua relação com Otto, funcionário da embaixada, e com
a cantora de ópera Lenia Nachtigal, alemã, possivelmente filha de
Otto, com quem tem um relacionamento romântico e musical até o
momento da queda do Muro de Berlim, quando ela o abandona e
“atravessa a desbloqueada Porta de Brandenburgo para o outro lado
da sua vida” (Idem, p. 50). Conta-lhe ainda de seu recente encontro
com uma mulher desconhecida, ou não reconhecida, em um teatro em
Londres, duas décadas após os referidos acontecimentos na
Alemanha, e alega ter sido por ela sequestrado, não se sabe bem se de
forma consensual ou não. O narrador, que começava então a escrever
um novo romance, deixa-o de reserva e retoma as histórias
inconclusivas de Victor Marques da Costa para lhes preencher as

- 87 -
lacunas, já que este apareceu de repente em sua casa “a oferecer-se
como personagem [...] a querer que eu [o narrador-personagem] fosse
uma espécie de autor fantasmático da sua vida” (Ibidem, p. 78).
O texto de Helder Macedo pode ser dividido em dois planos
principais. No primeiro, a ação consiste na interação entre o narrador
e Victor Marques da Costa: a visita inesperada, o relato do
personagem – feito, entretanto, de modo indireto pela voz do
narrador – e seu encontro final, em que se discute o modo como o
escritor tratou de compor o mosaico de inconclusividades
anteriormente apresentado, ou seja, o que compõe o segundo plano.
Neste, portanto, o narrador resgata as personagens do passado de
Victor Marques da Costa, na Alemanha Oriental, e desenvolve suas
histórias até que se unam ao presente do primeiro plano narrativo. A
saber: após atravessar a Porta de Brandenburgo em direção à
Alemanha Ocidental, às vésperas do natal de 1989, Lenia Nachtigal
segue para Paris, onde, após uma confusão com quartos de hotel,
conhece a brasileira Lenia Benamor, filha do “brasileiro-turco da
Palestina” (MACEDO, 2013, p. 99) Almir Benamor. Devido às suas
viagens de inverno, Lenia Nachtigal adoece. A pneumonia a impede de
voltar a cantar, e ela, enfraquecida, passa a morar com os Benamores,
com quem vive uma espécie de triângulo incesto-amoroso, primeiro
em Paris, depois em Londres. Otto, com quem estabelecem contato
por um tempo, morre em Jerusalém. Anos depois, é Lenia Benamor

- 88 -
que vai a Lisboa às voltas com a possibilidade de um encontro
romântico com Victor Marques da Costa.
Pensando, pois, no título do romance, me amparo na leitura de
Teresa Cristina Cerdeira para começar a percorrer este caminho de
amor e morte:

No contexto deste novo romance, Tão longo amor,


Tão curta a vida, para fazer jus à proposta de que
não há eternidade sem metamorfose, o verso de
Camões será menos uma confissão de amor
desmesurado (longo), a não caber nos precários
limites humanos da vida sempre curta – nas
palavras de Jacó por Raquel – do que uma
angustiada consciência da finitude, que lança o
sujeito da escrita numa busca falida ao se descobrir
incapaz de reparar com o amor a evidência da
morte que o espreita, anulando aquele júbilo vital
que parecia sobreviver, tant bien que mal, nos
enredos dos seus romances anteriores (CERDEIRA,
2014, p.204-205).

A consciência da finitude e a incapacidade do protagonista


Victor Marques da Costa de aplacar a morte com o amor parecem levá-
lo a buscar outra possibilidade de eternização, através do texto
literário. Personagem histórica ou não, é sua construção – ou
reconstrução – literária que lhe garantiria a continuação da existência
ou, ainda, a própria existência que o texto lhe conferiria.
Se, porém, n’Os Lusíadas – como nos conta o poeta e como o
ensaísta Helder Macedo expõe em Camões e a viagem iniciática –,
Vasco da Gama não tinha consciência da importância do canto, que se

- 89 -
sobrepunha inclusive à da navegação, para, em certa medida, mantê-
lo vivo e espalhar seus feitos, cinco séculos depois, Victor Marques da
Costa já a tem, de modo que é o próprio personagem que pede para
ser escrito. Tal qual Vasco da Gama, o protagonista do romance de
Helder Macedo é “um herói sem musas próprias, incapaz por si só de
dar significação aos seus atos” (MACEDO, 2013, p. 52); não possui a
voz necessária à construção de um discurso direto. Assim, recorre ao
narrador, batendo em sua porta no meio da noite e se lhe oferecendo
como personagem.
O protagonista parece saber que, se “sem ‘Virgílios’ e
‘Homeros’ não poderia haver ‘pios Eneias nem Aquiles feros’” (Idem),
se “sem um Camões não continuará a ter havido um Vasco da Gama”
(Idem), então, sem um Helder Macedo, jamais poderá existir um Victor
Marques da Costa. Ou, ainda, jamais poderá continuar a existir um
Victor Marques da Costa, sendo o texto, portanto, a alternativa
buscada pelo personagem, para além do amor falido – ou da falência
de sua busca – para driblar a morte que o espreita.
Para Cerdeira, a inabilidade de viver o amor desmesurado que
o título do romance parecia prometer, colocaria o protagonista no
lugar de “um Jacó que traiu o soneto porque não soube servir por
Raquel, conformando-se com Lia” (CERDEIRA, 2014, p. 206). Um Jacó
que nem sequer sabe quem é Raquel e quem é Lia, acrescento. Ou,
ainda, que busca, noite após noite, em diversas Lias, a ausência
materializada de Raquel. Desse modo, o recorte da narrativa

- 90 -
helderiana não poderia ser o mesmo que o dos versos de Camões. Se,
naqueles, o poeta narra a vivência de um desejo ainda à espera de ser
saciado, aqui Helder Macedo começa a narrativa depois do declínio do
desejo, quando o sujeito já se encontra frustrado pelo desenrolar de
seu estranho namoro e pela incapacidade de viver a eternidade
amorosa. In medias res, portanto.
À semelhança da estrutura épica, em Tão longo amor, Tão
curta a vida, o suposto herói chega à narrativa já no meio de sua
trajetória. Ao abrirmos a primeira página, deparamo-nos com o
diálogo já em curso entre o narrador e o protagonista: “’O fato é que
sempre tive mais dúvidas do que certezas’. ‘Tem a certeza?’”
(MACEDO, 2013, p. 11). Nos primeiros dez capítulos, Victor Marques
da Costa, por intermédio da voz do narrador e com intervenções em
discurso direto, conta a história de sua vida e de seus relacionamentos
inconclusivos até o momento em que chega à casa do escritor, ou seja,
ao ponto de convergência entre o tempo do enunciado e o tempo da
enunciação. O protagonista, então, se ausenta, e o narrador assume
sozinho os próximos dez capítulos, completando as lacunas deixadas
pelo amigo diplomata. Cada um cumpre, portanto, seu ciclo de dez
cantos, e os dois capítulos restantes, compostos basicamente por
diálogo em voz direta e indireta, servem como espécie de pós-escrito
em que os dois personagens se reencontram e discutem as soluções e
rumos literários que o narrador fez Victor Marques da Costa e seus
afetos seguirem.

- 91 -
Em seus Estudos camonianos, Cleonice Berardinelli afirma que
é a voz do Poeta que aparece disfarçada sob a dos demais narradores
da epopeia, como o Velho do Restelo ou Vasco da Gama, de modo que
os excursos não servem somente para informar sobre o ser dos
actantes, mas também sobre o ser do próprio Poeta (BERARDINELLI,
2000, p. 40-43). Em Tão longo amor, Tão curta a vida, a voz de Victor
Marques da Costa é também a voz transposta do próprio narrador-
personagem. Desse modo, o narrador de Helder Macedo utiliza o
personagem como um duplo de si mesmo, para, além de
complementá-lo nas histórias inconclusas como em um jogo de
espelhos, pensar metanarrativamente seu texto através dos diálogos
que estabelecem.
A autoconsciência narrativa e as reflexões acerca da literatura
são possibilitadas pela sua bagagem como leitor e estudioso e estão
presentes em toda a obra de Helder Macedo, aparecendo, entre
outras formas, através do imbricamento das instâncias narrativas
personagem-narrador-autor. Para observarmos como tal processo
ocorre em Tão longo amor, Tão curta a vida, façamos uma breve
retomada do conceito clássico de parábase, introduzido por
Aristófanes em suas peças por volta de 400 a.C., que, quando utilizado
de forma permanente no processo de criação artística, dá origem a
obras de arte construídas sob o princípio da ironia romântica, ou seja,
do profundo e incessante questionar ou, ainda, autoquestionar,
metaficcional, de modo a visitar o quiasmo ficção-realidade,

- 92 -
repensando a ficção enquanto realidade e, como desdobramento, a
realidade enquanto ficção.
A parábase era, portanto, o momento em que o coro das
antigas comédias gregas se desligava da ação dramática e transmitia
ao público a palavra do dramaturgo, em uma interação sério-jocosa
com a plateia. Assim, o coro veiculava a metalinguagem crítica, que o
comediógrafo inseria na trama das ações. O momento da parábase
servia ao autor e ao público como processo de auto-irrisão e de pensar
crítico sobre questões práticas e teóricas da peça em si, da
dramaturgia e da arte em instâncias mais amplas, além de despertar a
atenção da plateia para a ficcionalidade da ação ali desenvolvida. Já na
arte narrativa, voltando especificamente, portanto, à arte literária, é o
narrador que assume a função crítica da parábase. Em Tão longo amor,
Tão curta a vida, o narrador de Helder Macedo se apresenta
explicitamente como tal e chama constantemente a atenção do leitor
para a sua presença, para que a consciência se sobreponha à ilusão. A
insistente intromissão do narrador no texto narrado assegura, ou ao
menos procura proporcionar, o esfacelamento da ilusão ficcional e a
desconstrução irônica da motivação realista. Além disso, Helder
Macedo insere dados autobiográficos em sua obra, de modo que se
embaralhem as instâncias narrador e autor, além da instância
personagem, posto que este narrador participa também como actante
no romance.

- 93 -
Em sua tese de doutorado, Capelas imperfeitas: o narrador na
construção da literatura portuguesa do século XXI, Paulo Ricardo Kralik
Angelini afirma que a inserção de dados biográficos do autor na obra,
característica que permeia a literatura de Helder Macedo – vide Partes
de África, Vícios e Virtudes, Pedro e Paula, etc. –, “visa a um
embaralhar de expectativas: um possível autor empírico incorporado
como narrador, manipulando conscientemente seus personagens (e
por eles sendo manipulado), e, consequentemente, seus leitores”
(ANGELINI, 2008, p. 116), e ainda reporta em seu texto o comentário
do escritor: “O disfarce autoral serve para solicitar a cumplicidade do
leitor, que acompanha o escritor no próprio processo da escrita. Uma
piscadela de parte a parte” (Idem).
Assim, o autor se dobra sobre sua obra e sobre si mesmo,
colocando-se como narrador, como personagem, se pluralizando:

A minha única preocupação é não estar sempre a


escrever o mesmo livro sobre a mesma gente, a
vistoriar o vistoriado. Não tenho muita paciência
para eu ser sempre o mesmo, quanto mais as
minhas personagens. Nem sequer quando as
disfarço nas minhas próprias circunstâncias para
poder ser quem não sou (MACEDO, 2013, p. 19).

Helder Macedo coloca em seus romances dados que coincidem


com sua vida para além da literatura. A começar por S, pessoa e
personagem – realidade e ficção –, a quem Helder Macedo dedica a
maioria de seus livros – “À S., para que o emende” (Tão longo amor,

- 94 -
Tão curta a vida); “Para a S., no tudo que é tudo” (Pedro e Paula); “Para
a S contadora de histórias” (Natália); “Para ti. Já sabias” (Vícios e
virtudes); etc. Em Tão longo amor, Tão curta a vida, como é, aliás,
recorrente em sua obra, S aparece como mulher do narrador, que, por
sua vez, é um escritor português, professor acadêmico de literatura
portuguesa, residente na mesma rua da antiga casa de Freud, em
Londres, ex-jogador do pré-juniores do Benfica. Todas características
condizentes com a biografia do escritor, de tal modo que se estremece
a fronteira – o limiar – entre realidade e ficção. A presença de S tanto
na epígrafe quanto dentro do romance resulta no imbricamento de
texto e paratexto, de modo que não se sabe ao certo quando começa
e quando termina a narrativa, quem é pessoa e quem é personagem.

Conclusão
Como vimos, Helder Macedo está em permanente diálogo com
a tradição, seja ao nível do enunciado ou da enunciação. Sua carreira
acadêmica e a experiência como ensaísta e professor de literatura,
além de sua bagagem cultural que atravessa diversas formas de
expressão da arte tomam corpo na sua obra de poeta e ficcionista, de
modo a se fazerem presentes ostensivamente em sua produção, seja
através de citações diretas ou de referências disfarçadas, próprias de
narradores sedutores por quem o leitor não se pode deixar guiar sem
a devida desconfiança. Camões, por sua vez, se apresenta como seu
interlocutor de predileção.

- 95 -
Seu estudo Camões e a viagem iniciática, a meu ver, é, além de
tudo, uma carta de amor direcionada ao poeta cujos versos ressoam
obsessivamente na obra de Helder Macedo – afinal, talvez nem toda
carta de amor seja ridícula. Nela, o crítico-amante escreve: “A melhor
poesia é sempre uma pesquisa, uma tentativa de dar forma inteligível
ao desconhecido. Ao escrever, na canção VII, ‘e se é mais o que canto
que o qui entendo’, Camões cristaliza admiravelmente este propósito
filosófico inerente à sua poesia lírica” (MACEDO, 2013, p. 13). Talvez
seja por aí que deva ser lido o romance de nosso escritor: como uma
confissão de ignorância acompanhada pelo desejo de ir aprendendo,
de ir experimentando seu texto junto com o autor, o narrador e os
personagens. E talvez o metamorfoseado título Tão longo amor, Tão
curta a vida seja, enfim, não apenas uma expressão da angústia da
finitude, mas também a declaração de amor de Helder Macedo a seu
poeta, somada à renovação do pacto de mantê-lo eterno.

- 96 -
Referências

ANGELINI, Paulo Ricardo Kralik. Capelas imperfeitas: o narrador na


construção da literatura portuguesa do século XXI. 2008, 184 f. Tese
(Doutorado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas).
Instituto de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre.

BERARDINELLI, Cleonice. “Nas dobras do texto”. In: A experiência das


fronteiras. Organização e apresentação de Teresa Cristina Cerdeira.
Niterói: EdUFF, 2002.

______. “Os excursos do Poeta n’Os Lusíadas”. In: Estudos


camonianos. 2 ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria, 118.ed. São Paulo:


Editora AveMaria, 1959, (impressão 1998).

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Porto: Porto Editora, 1980.

______. “Sete anos de pastor”. In: Sonetos.

CERDEIRA, Teresa Cristina. “Helder Macedo: máscaras contra a


morte”. In: Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e
Africana da UFF, Vol 6, nº 12, abril 2014.

COELHO, Carlos Pinto. “A voz de Helder Macedo pela mão de Carlos


Pinto Coelho”. In: RIBEIRO, Margarida Calafate et alii. A primavera
toda para ti – homenagem a Helder Macedo. Lisboa: Presença, 2004.

COMPAGNON, Antoine. “Tesoura e cola”. In: O trabalho da citação.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

- 97 -
ELIOT, T. S. “Tradição e talento individual”. In: Ensaios de doutrina
crítica. Traduzidos com a colaboração de Fernando de Mello Moser;
prefácio, seleção e notas de J. Monteiro-Grillo. Lisboa: Guimarães,
1962.

MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Rio de Janeiro:


Móbile, 2013.

______. Partes de África. Rio de Janeiro: Record, 1999.

______. Pedro e Paula. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.

______. Tão longo amor, Tão curta a vida. 1 Ed. Rio de Janeiro: Rocco,
2013.

PAZ, Otávio. “A tradição da ruptura”. In: Os filhos do barro – Do


romantismo à vanguarda. Tradução: Olga Savary. Editora Nova
Fronteira.

- 98 -
Aspectos intertextuais da obra V de Vingança, de Alan
Moore

Luiz Eduardo Rodrigues Amaro49

Alan Moore é um aclamado roteirista britânico, que começou


a escrever histórias em quadrinhos em 1980, sendo o responsável
pelas edições de Doctor Who (1980), uma série clássica da cultura
inglesa. Tornou-se conhecido fora da Europa, por conta do seu
trabalho na editora DC Comics (selo Vertigo) com o Monstro do
Pântano (1983). A partir de então, emplacou vários trabalhos e muitos
de seus roteiros se transformaram em inspirações para filmes: Do
Inferno (2001), A Liga Extraordinária (2003), Watchmen (2009) e V de
Vingança (2006). Esse último, objeto do nosso estudo (a HQ).
A história acontece em uma Inglaterra futurística, distópica (do
grego “lugar ruim” – dys: mau, ruim; topos: lugar) e alternativa, criada
por Moore para representar a opressão dos cidadãos e, ao mesmo
tempo, expressar o seu pessimismo em relação aos rumos políticos do

49
Doutorando em Fontes Primárias e História Literária pela Unesp/Assis, fomentado
pela CAPES e orientado pela Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa. Membro do Grupo
de Estudos Bakhtinianos (GEB/Assis) e do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado
de São Paulo (GEL).

- 99 -
país real. V apresenta uma visão pessimista do futuro, visão que está
pautada no momento histórico em que a Inglaterra vivia: os anos 80.

Entrei no ritmo da minha carreira de escritor no


início dos anos 80, um período politicamente muito
sobrecarregado. A maior parte do mundo liberal
assistia horrorizada a ascensão inexorável da
merda de coligação de Direita entre Reagan e
Thatcher. Ao mesmo tempo, tínhamos elementos
de fascismo começando a se fazer ouvir nas ruas da
Grã-Bretanha com a ascensão da Frente Nacional e
mais e mais as coisas pareciam bastante sombrias.
Eu decidi que, se eu queria escrever sobre este
triste presente, a melhor maneira de fazê-lo era
com uma história ambientada no futuro, o que não
é, de forma alguma, um novo recurso. A maior
parte da ficção científica distópica não é realmente
sobre o futuro, mas sobre o tempo em que foi
escrita. E o roteiro, que eu fiz para V de Vingança,
não foi exceção. Ele se ambientava no que, naquela
época, parecia um ponto inatingível no futuro:
1997. No qual a Grã-Bretanha tinha sido dominada
por uma coalizão de grupos fascistas e com um
aventureiro anarquista muito romântico que se
opõe a tudo. Para comunicar a ideia do fascismo,
precisava de um símbolo para persuadir os leitores
de que estavam diante de um estado policial
fascista. A coisa que eu finalmente decidi foi a de
câmeras de segurança instaladas em cada esquina,
vigiando a todos os movimentos. Eu imaginei que
isso realmente se parecia com “Fascismo em
Ação”, e os leitores ficaram igualmente
impressionados e, aparentemente, também as
figuras do governo, que devem ter lido aquilo na
época e decidiram que aquelas câmeras de
segurança em cada esquina eram exatamente o
que precisávamos para o final dos anos 90 (VYLENZ,

- 100 -
2005, The Mindscape of Alan Moore,
documentário televisivo).

Antes de entrarmos nas teorizações e nas intertextualidades no


corpo do texto, temos a necessidade de nos atermos aos conceitos
ideológicos e fatos históricos, que permitiram a Alan Moore
concretizar V de Vingança (2012).
A obra é dividida em três partes: A Europa depois do Reino
(Tomo Um), Este cabaré depravado ou: Este Vil Cabaré (Tomo Dois) e
A terra do faça-o-que-quiser (Tomo Três).
O período em que a primeira parte se inspirou foi o começo dos
anos 80, famoso pelo ministério da Dama de Ferro, Margareth
Thatcher. Esse episódio histórico influenciou Moore a conceber a
sociedade distópica, que versa, aparentemente perfeita, pois é uma
superfície, uma máscara, em essência, ela é desigual, preconceituosa
e fascista, em que a protagonista percebe esse quadro alienante e
tenta destitui-lo. A ameaça nuclear, oriunda da Guerra Fria, era real.
Esse contexto afetava todos os europeus, principalmente os ingleses.
É dessa época a famosa música God Save the Queen da banda Sex
Pistols, a qual ironiza as políticas da Rainha (Deus salve a Rainha/ Seu
regime fascista/ Fez de você – cidadão – um retardado/ Bomba-H em
potencial). Esse é o ambiente utilizado por Alan Moore e é justamente
o que se explora no primeiro capítulo: os motivos que levaram a
Inglaterra àquele estado fascista.

- 101 -
O segundo focaliza na personagem Evey Hammond, uma jovem
operária, homossexual, filha de um notório esquerdista daquela
realidade, que é salva justamente por um anarquista arquetípico.
O terceiro capítulo é destinado a V. A Terra do faça-o-que-
quiser remete-nos a Aleister Crowley (Lei do Telema, 1904), famoso
ocultista maçônico da Mão Esquerda. Tal pensamento do “faça-o-que-
quiser, pois a lei tudo permite” foi passado em psicografia por Seth.
Esse intertexto funciona exemplarmente, pois Seth é o deus egípcio da
violência e da desordem, exatamente o que V promoverá nesse
capítulo, além disso, os mitólogos o consideram, apesar de sua
natureza desordeira, um deus bom, pois ele auxilia Rá, o deus-sol, a
trazer o barco solar, vencendo Apófis (o caos, a treva) e assim promove
o nascimento de um novo dia (o que a protagonista também faz no
final do último tomo, como veremos posteriormente, ao analisarmos
o significado do funeral viking do anti-herói).
Observemos agora a própria significação de V. O primeiro
sentido, e mais explícito, refere-se ao título original V for Vendetta.
Alan Moore não ficou preso apenas a uma conotação, tal qual em um
hipertexto, ele ramificou os caminhos interpretativos, somando
significados. V também significa, no contexto da obra, o quarto em que
a personagem residia, quando fora violada por pesquisas científicas,
como também o 5 de novembro (pois V é 5 em algarismo romano),
notadamente o dia da Revolução da Pólvora, com a qual a personagem
se liga visualmente por meio da máscara de Guy Fawkes. Além disso,

- 102 -
aparece também na narrativa a Quinta Sinfonia de Beethoven e a frase
Vi VeniVersum Vivus Vici (V.V.V.V.V.), fechando a significação.
Explicaremos esses termos posteriormente, com mais rigor.
Verificaremos, a partir de agora, como a intertextualidade
ajudou na construção de V de Vingança.
Já na primeira página da H.Q., deparamo-nos com um mar de
intertextualidade. O terceiro frame, em que há uma câmera de
vigilância, traz uma placa com a seguinte inscrição: “Para a sua
proteção”. O último, uma imagem do que, posteriormente, saberemos
que é A Galeria das Sombras (LLOYD, MOORE, 2012, p. 11).
Segundo Leyla Perrone Moises, uma característica da
transformação literária, a partir do século XIX, é a multiplicação dos
significados, o que implica em possiblidades de leitura (MOISÉS, 1978,
p. 58). Percebemos isso muito bem na obra em análise, uma vez que
ela se torna plurissignificativa, ao incorporar o interdiscurso
(literatura, cinema, linguagem imagética, partitura musical). As vozes,
que observamos manifestar, são independentes e, muitas vezes,
opositoras, como é o caso da voz de V, anarquista, em relação à do
Líder, fascista.
Prestemos particular atenção às palavras de Moises:

O escritor nunca encontra palavras neutras, puras,


mas somente “palavras ocupadas”, “palavras
habitadas por outras vozes”. Esta observação de
Bakhtine torna patentes os limites da semântica,
tal como ela é praticada habitualmente. O

- 103 -
estabelecimento de eixos sêmicos, bifurcando-se
em lexemas marcados pela presença ou ausência
de um sema (unidade de sentido), pressupõe a
determinação dos semas em estado puro, em grau
zero, inteiramente denotativo, o que,
evidentemente, é uma ilusão desmentida por
qualquer enunciado real, isto é, inserido num
contexto, desde o mais simples (discurso da
comunicação corrente) até o mais complexo
(discurso poético) (MOISES, 1978, p. 60-1).

Tal pensamento se aplica com perfeição na obra em estudo:


todas as mensagens ali, as palavras que chegam até o leitor, sobretudo
as intertextuais, estão carregadas de palavras ocupadas por outras
vozes e por aspectos ideológicos. Principalmente as falas do
protagonista.
Essas vozes, que constroem o enunciado de V de Vingança, são
incorporadas na narrativa de diferentes modos. Como nos ensina
Fiorin, baseando-se no pensamento de Bakhtin (BRAIT, 2006, p. 174),
há duas formas para que isto aconteça: a primeira, por meio de
citações, aspas, discurso direto e indireto, ou seja, o discurso do outro
é abertamente citado e separado; a segunda é por formas
composicionais, como a paródia e o discurso indireto livre.
Como percebemos na página 15, em que há o discurso de duas
personagens, um literário, Macbeth, e outro histórico, Guy Fawkes, já
inseridos no discurso do V, sem aspas, sem referência explícita,
citando, inclusive, a famosa estrofe que caracteriza a Revolução da
Pólvora, ligada a Fawkes; “Eu? Sou o rei do século XX, o bicho-papão,

- 104 -
a ovelha negra da família [...] Não se lembra da trova?” (LLOYD,
MOORE, 2012, p.15), que, no caso, é justamente a icônica mensagem
popular da famosa Conspiração: “Lembrem, lembrem do V de
novembro. Que traição, que artimanha. Por isso, não há porque
esquecer uma tamanha”.
V alude em “Sim, acho que podemos fazer um pacto” (LLOYD,
MOORE, 2012, p. 46), cita em “Ó beldade, até hoje eu te desconhecia”
(LLOYD, MOORE, 2012, p. 43) e utiliza outros artifícios para
transformar a narração em uma colcha de retalhos, sem permitir que
isto comprometa o discurso, pelo contrário, sem esse trabalho do
narrador-personagem, a costura do texto não aconteceria.
Outra característica importante dessa obra é o espelhamento.
Há um espelhamento entre Evey e V (Evey), que o autor trabalha
desde esta primeira página. A disposição dos dois frames finais da
página 11 comprovam essa ideia. Evey está se maquiando em frente a
um espelho, enquanto V se aproxima de uma penteadeira, em que
existe um espelho (LLOYD, MOORE, 2012, p. 11).
Esse móvel é icônico em narrativas assim. Lembremo-nos do
clássico de James O’Barr, O Corvo (1994), em que Eric Draven se vê
frente a frente com o seu outro renascido. A aproximação do conceito
dá-se pela metaforização da passagem: tanto Eric, quanto V, foram
vítimas da sociedade, usam máscaras representativas (a de Draven é
maquiada) e ambos buscam a mesma coisa: vingança.

- 105 -
Voltemos o nosso olhar para as relações intertextuais do último
quadro da página 11 com mais atenção. São deveras significativas: Son
of Frankenstein (1935), White Heat (1949), Murders in the Rue Morgue
(1932), Rathbon Karloft (cartazes colados na parede) e Utopia (1516),
Capital (1867) e Mein Kampf (1925). Todas essas referências ajudam
na construção de V de Vingança (1982) e estão representadas nesse
último quadro da página 11, como uma síntese da expressão literária
que a narrativa expressará.
White Heat (1949) é uma obra cinematográfica estadunidense,
classificada no gênero policial, considerada um dos maiores filmes de
gângsteres já produzidos. E esse ambiente de desordeiros, da lei
corrupta, de tiros e assassinatos faz parte da história de Moore. O
escritor dá pistas, por meio das intertextualidades, das significações
que abordará. O ambiente pessimista, cheio de assassinatos, com
policiais aparentemente bons, protegendo a sociedade daqueles que
violam as leis. Ora, o que não é V, se não um desordeiro, um anti-herói
que deseja destruir o sistema fascista, instaurando a anarquia e, para
tanto, assassina as pessoas da lei, que estão no poder, e explode as
principais edificações representativas deste? Son of Frankenstein
(1935) é um intertexto dentro do intertexto, uma obra, que retoma
outra preexistente e é reiterada na narração de V. O Barão Wolf Von
Frankenstein, filho de Henry (do primeiro livro), vai com sua família a
um vilarejo, em que existe um castelo. Nele, há um laboratório
construído sob uma mina de enxofre. Ali ele encontra o diário de seu

- 106 -
antepassado e anotações com fórmulas químicas. O local é cuidado
pelo corcunda Ygor, um servo familiar, que o leva até o “monstro”. O
que o Barão não sabe é que Ygor pretende ressuscita-lo, para que ele
volte a cometer assassinatos em vingança contra aqueles que lhe
fizeram o mal. Exatamente como V, vítima da ciência podre e
corrompida que, após sofrer inúmeras violações físicas e psíquicas,
pelos “doutores” de Larkhill, ao escapar daquele verdadeiro campo de
concentração nazifascista (o escritor britânico aqui incorpora a
imagem do campo de concentração nazista ao laboratório do Dr.
Frankenstein), jura vingança e começa uma onda de assassinatos,
como um Frankenstein modernizado, reescrevendo o seu próprio
destino.
Quem pensar intertextualmente nesta primeira página de V de
Vingança, e tiver posse do potencial semântico das tramas narradas
nelas, já sabe o que esperar, pois, de posse dessa chave-mestra,
destrancaria as demais significações.
Se, por um lado, Alan Moore atrelou as ações e motivações de
V pela via cinematográfica, por outro, a consciência reverbera nos
livros: ele é um grande pensador e tem uma cultura invejável e seu
posicionamento político se torna evidente.
Utopia (Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia) é
uma obra de Tomás Moro, em que ele discute várias questões
europeias, como as guerras, a censura e a pobreza. Inclusive, uma das
personagens, Rafael, uma pessoa de sabedoria invejável, nega-se a

- 107 -
trabalhar para aqueles que estão no poder, infectados pela corrupção
nociva à sociedade. Para ele, suas opiniões são demasiadamente
radicais. Lembremo-nos que exatamente assim são as próprias ideias
de V. O Capital (1867) é a obra de referência para o pensamento
marxista, que V leva ao extremo (pois é um anarquista), cujo conteúdo
é abrangente e denso. Mein Kampf (1925) funciona como um
contraponto e sua expressão nazifascista vai de encontro ao ambiente
da história em quadrinhos, pois é onde Hitler revela as suas ideias
antissemitas, racialistas, apartistas, nacional-socialistas e
anticomunistas. Não é à toa que, no enredo de Alan Moore, há
perseguições de prostitutas, homossexuais e pessoas com ideologias
de Esquerda (como é o caso do pai de Evey). Em vários momentos da
narração, esta expressão nazifascista de Mein Kampf (1925) ajuda na
construção do texto, como na passagem de Valerie (LLOYD, MOORE,
2012, p. 150-68).
Esse ambiente totalitário é constantemente resgatado durante
toda a trama. Verificamos a inscrição, que aparece outras vezes, “A
força através da pureza, pureza através da fé” (LLOYD, MOORE, 2012,
p. 13), o que imediatamente nos faz lembrar o pensamento nazista da
pureza da raça ariana que, aliada ao Cristianismo (Igreja Católica) e
contra o Judaísmo, transformam a ideologia racista em algo também
religioso (de fé). Duas ideias amalgamadas em uma única
intertextualidade. Para ajudar nessa cosmovisão, Moore alia imagens,
como a saudação nazista, e frases expressivas, como “Inglaterra

- 108 -
triunfa!”, característica dos soldados fascistas do Líder, além de
dedicar uma página inteira para revelar a face do opressor (LLOYD,
MOORE, 2012, p. 39).
O hábil roteirista britânico enredou a trama às referências
intertextuais e históricas de uma forma tão intensa que, se o leitor não
prestar bastante atenção, ele não perceberá. É o que acontece no
título do Tomo Um, A Europa depois do Reino, um jogo de palavras
com o quadro de Max Ernst, A Europa depois da chuva (1942), pintado
depois da sua fuga da Segunda Guerra Mundial, em que é
representada uma paisagem caótica, bem como a da realidade da
Inglaterra distópica da narrativa. Ademais, Ernst foi considerado
subversivo e sofreu repressão da polícia alemã, o que colabora ainda
mais para a motivação de inserir esse intertexto como título para
aludir ao que essa parte da obra expressa.
Continuando com as análises das intertextualidades, quando
Evey, em uma tentativa desesperada de conseguir a subsistência,
tenta se prostituir, seus primeiros “clientes” são os homens-dedo
(alusão ao governo nazista, como um organismo com cabeça, dedos
etc.) e eles se veem legalmente permitidos a punir a moça: estupra-la
e depois executa-la.
Nisso, aparece V, que estava em vigília e vem “fazer justiça”.
Teatralmente, ele profere a fala do Sargento do Ato I, cena II, da peça
Macbeth de Shakespeare; enquanto mata as “autoridades”
responsáveis pela proteção do cidadão.

- 109 -
de vilanias tão cumulado pela natureza [...] A
fortuna sorria-lhe à diabólica empreitada como
rameira de soldado [...] Tudo debalde, pois
Macbeth (merece o nome) zombando da fortuna e
com brandida espada... Fumegante da sangrenta
carnificina... Abre passagem como o favorito do
valor e enfrenta o miserável. Sei lhe dar bons dias...
Descose-o de um só golpe (MOORE, 2012, p. 13-4).

Além da óbvia aproximação entre a rameira de soldado com


Evey, notamos como Moore usa um episódio literário, já notoriamente
conhecido, que podemos interpretar como a índole ruim, desonesta,
desprovida de humanidade, intrínseca a muitos seres humanos,
inclusive, aos homens-dedo, que protegida pelo poder e pela
autoridade concedida pela própria sociedade e suas leis, mesmo que
naturais, é perniciosa. V repagina as palavras do clássico. Esse
“regicídio”, que há em Macbeth, é transportado para aquela
sociedade, ressignificando-a. V não age, ele reage. Lembrando que, tal
qual Macbeth, V também morre no fim da história. É uma outra
antecipação disfarçada que, metodicamente, foi adicionada à saga.
A perspectiva da erradicação da cultura está presente nessas
narrativas, ecoa-se aí, por exemplo, o famoso romance de Ray
Bradbury, Fahrenheit 451 (1953), em que é apresentado um futuro
sem os livros e com a censura radical ao pensamento crítico. A
intertextualidade entra nessa passagem para enviar ao leitor a
realidade do contexto da história narrada. A personagem Evey não
conhece uma das músicas mais famosas da banda Martha and the

- 110 -
Vandellas, o que demonstra que a memória cultural daquela geração
foi comprometida e V não se espanta com isso (LLOYD, MOORE, 2012,
p. 20). Atentemos para o fato de que, novamente, os livros, que
existem na estante, três frames antes, guiam-nos para dentro da
própria mente de V. O que ele outrora citara, quando salvou Evey dos
homens-dedo, está naquela estante da segunda página da história.
Exatamente o mesmo acontece com o intertexto consecutivo, quando
V diz: “Nada de Tamla, nem de Trojam. Adeus Billie Holiday e Black
Uhuru... Apenas a voz do mestre a toda hora, a todo momento”
(LLOYD, MOORE, 2012, p. 21).
Vejamos agora outro intertexto. O Capítulo Quatro chama-se
Vaudeville, que faz referência simultânea a duas passagens: uma
citação da peça Como Gostais, de Shakespeare, ato II, cena VII (a
questão de o mundo ser um palco) e ao próprio Vaudeville, um gênero
comum nos EUA e Canadá no final do século XIX e começo do século
XX, uma espécie de teatro popular de variedades, cuja variante mais
comum ficou no inconsciente popular como o circo dos horrores.
Moore, quando introduz esta perspectiva em V de Vingança
(1982), aponta, ao mesmo tempo, para a significação de sua própria
criação (a máscara de Fawkes, com a qual a personagem se identifica,
aproxima-a das máscaras de Vaudeville) e para a sociedade, pois o
gênero em questão era considerado impróprio e geralmente
apresentado em casas noturnas ou cabarés (ele antecipa esse conceito
aqui e o liga com ações futuras, pois observamos que o Tomo Dois se

- 111 -
chamará Este vil cabaré e revelará quão monstruosa, “freak”, é a
sociedade apresentada ali). É assim que V enxerga a sociedade inglesa
distópica daquela narrativa: vaudeville.
Novamente, usando a intertextualidade para representar algo
na narração, o pacto entre V e Evey, (LLOYD, MOORE, 2012, p. 46) o
roteirista usa um texto da obra de Christopher Marlowe, A História
Trágica do Dr. Fausto (1587), usando a abreviação V.V.V.V.V. (vi
veniversum vivus vici – pelo poder da verdade, eu, enquanto vivo,
conquistei o universo), uma ideia também peculiar a Goethe,
amarrando assim a significação. V demoniza o outro, ele é o diabo de
Evey, o corruptor, o assediador. Ela acaba, no fim da história, a
personifica-lo.
Como de praxe nessa obra de Moore, uma intertextualidade
puxa a outra, ajudando a narrativa a progredir. O mesmo sentido
profano da passagem com Evey, acima apresentado, é resgatado na
página 56, quando o mascarado se apresenta ao sacerdote pedófilo
para assassina-lo (perceba a ironia no uso do profano para purificar a
santidade, representada na figura do clérigo). Nessa parte, é usada a
letra de uma música dos Rolling Stones, chamada Sympathy for the
Devil (1968). Tal qual na letra, que diz “Por gentileza, permita que eu
me apresente, sou um homem de fortuna e requinte, estou por aí já
faz alguns anos, roubei as almas e a fé de muitos homens”, assim faz o
religioso pedófilo, que rouba as almas dos homens e vive em pecado.
A ironia maior reside no fato de que é o próprio diabo quem vem fazer

- 112 -
a “purificação”, pois V está com chifres, que aludem ao ser das trevas
(LLOYD, MOORE, 2012, p. 56). Há, portanto, uma subversão, uma
desconstrução da ideia religiosa.
No capítulo Vertente Vocacional, o escritor dá ênfase às
intertextualidades religiosas. Comprovamos pelas imagens: o traje de
V à lá pastor anglicano e a estátua indiana, além da fala inicial da
página, uma alusão bíblica (Mateus, Capítulo 25, v. 21): “Muito bem, ó
meu servo fiel” (LLOYD, MOORE, 2012, p. 116).
O interessante dessa passagem é que Moore condensa várias
questões da história nela. Há a noção política, que aproxima a ideia
religiosa da obediência com o conceito da hierarquia capitalista. A
justaposição da fala do quadro 1 “Muito bem, ó servo bom e fiel” com
a do quadro 2 “Por favor, não pense que esqueci da sua admirável
folha de serviços, ou das valiosas contribuições que prestou à
empresa” (LLOYD, MOORE, 2012, p. 116) revela-nos esta orientação
semântica.
Na página 175, temos outras referências literárias, que ajudam
na construção da história. O investigador Finch está lendo As raízes da
coincidência, de Arthur Koestler, um pensador, que fez um estudo
famoso sobre esta temática. Coincidência existir nesta mesma
sequência imagética, frames 1, 2 e 3, antes e depois da imagem da
obra, a icônica máscara de Guy Fawkes, símbolo do V? (LLOYD,
MOORE, 2012, p. 175).

- 113 -
As “coincidências” não param por aí. Koestler filiou-se ao
Partido Comunista Alemão em 1931 e, nesse sentido, ele seria uma
leitura perigosa para o detetive, visto que a Inglaterra distópica da
realidade de V era de extrema-direita. Quando trabalhava como
jornalista na Espanha, durante a Segunda Guerra Mundial, foi
capturado, preso e condenado por Franco. V também foi capturado,
preso e virou cobaia de experimentos patrocinados pelo regime
fascista (bem como o regime nazista de Direita fazia experiências em
humanos). A partir de então, passou a trabalhar pelo desenvolvimento
da Cultura e disseminou ideias contra o Regime. Em 1983, cometeu
suicídio. No caso de V, que também morre, a forma como ele enfrenta
as autoridades faz com que ele busque a morte, o que mostra que as
experiências de vida do autor da obra intertextualizada e a da
protagonista são bem próximas. A máscara nos quadros, portanto, não
é mera coincidência.
Essa perspectiva política se torna mais evidente ao nos
depararmos com a referência intertextual consecutiva: As confissões
de um revolucionário (LLOYD, MOORE, 2012, p. 196), escrita por
Proudhon, um ícone do pensamento de Esquerda. Observada essa
circunstância, torna-se irrevogável a premissa de que Moore, através
da citação, carrega a história pelo viés político e o uso dessas
intertextualidades são basilares para a concepção do texto. Proudhon
ensina que a anarquia é ordem, em francês, l’anarchie c’est l’ordre

- 114 -
(PROUDHON, 1982, p. 997), por isso mesmo, o símbolo dela é um A
circunscrito em um O. Essa voz proudhoniana orienta V.
É exatamente isso o que acontece. As sementes
revolucionárias, implantadas pelo trabalho politicamente incorreto do
anti-herói, ressignificadas pelas intertextualidades, viram árvores. O
colapso do sistema fascista entra em curso. Tal como uma Fênix, V
renasce para presenciar a revolução e, depois, morre.
Moore não perde a oportunidade de colocar na boca de V as
palavras de um outro escritor mundialmente famoso. “As notícias de
minha morte foram exageradas” (LLOYD, MOORE, 2012, p. 260) é a
última frase de um telegrama enviado por Mark Twain para a
Associated Press em 1897, desmentindo assim a imprensa, que
noticiava o falecimento do escritor. Pode parecer estranha a inserção
dessa passagem dentro do discurso, apesar de sabermos que V foi
dado como morto pelas autoridades. No entanto, de posse da
biografia de Twain, sabemos que ele, além de um escritor primoroso,
era um péssimo administrador e foi à falência. Assim é o sistema
fascista combatido por V, falido, que, segundo ele, deve ser substituído
pela Anarquia, ideia oposta expressa na mesma página. Ademais, a
alusão personifica o conceito anárquico em V: ela vive nele, não
morreu, ele é a Anarquia em pessoa.
Como toda boa história sobre Revolução, ela não estaria
completa sem um mártir. E, para reiterar a ideia de ciclo e de

- 115 -
continuidade, Evey assume seu papel. Um último pedido do
moribundo é realizado: um funeral viking.
No capítulo Valhalla, que é o mundo nórdico para onde vão os
guerreiros nobres, que sucumbiram em batalha, é criada uma nova
metaforização. Assim como o barco viking, o trem, em que está o
cadáver de V, navega, para depois ser consumido pelo fogo, o vagão
explode e as chamas purificam a derradeira representação do poder
usurpado pelo Estado fascista: o Parlamento (LLOYD, MOORE, 2012, p.
264). Nesse momento, Moore faz seu herói triunfar onde o Fawkes
inspirador fracassou. O renascimento daquela Inglaterra fictícia
aconteceu.
A capacidade do escritor de sintetizar várias ideias em dois
frames é simplesmente louvável. Nessa altura da história, ele liga a
personagem histórica Guy Fawkes, com a ideia anarquista de V, com a
simbologia da fênix, com o ritual funerário dos povos nórdicos, para
simbolizar o renascimento daquela Inglaterra fictícia. O que nos
remete ao pensamento de Kristeva: “todo texto é uma absorção e
transformação de uma multiplicidade de outros textos” (KRISTEVA,
1974, p.62). Por fim, um novo começo resplandece, o barco solar de
Rá volta a iluminar o mundo, por meio da explosão.
Elencamos as principais intertextualidades que colaboraram
para a evolução da narrativa, ajudando na concatenação das ideias e
sendo ressignificadas. Há muitas outras que o leitor pode apreciar e,
pelas principais aqui analisadas, podemos afirmar que a história em

- 116 -
questão não aconteceria sem essas intertextualidades. A todo
instante, quase em todas as páginas, percebemos vozes e intertextos
ajudando na tessitura do texto.
As honrarias recebidas por Alan Moore foram mais que
merecidas. O roteirista produziu um texto rico, plurissignificativo,
repleto de possiblidades de leitura. Isto é V de Vingança (1982), uma
obra capaz de ser lida de várias maneiras. Todas as leituras, muito
produtivas, devido ao seu caráter intertextual basilar, que analisamos
nesse ensaio.

- 117 -
Referências

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 2000.

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http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-
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- 118 -
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2012.

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VILLENZ, Dez (dir). The Mindscape of Alan Moore. Flashstar. 2005.


Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4Uh2jaFPM-E
Consulta em 15. set. 2014.

- 119 -
Falso x verdadeiro – nas fronteiras da ficção

Lucianne Michelle de Menezes

Narrar é mentir?

A mentira é uma verdade que se esqueceu de


acontecer (Mário Quintana).

A obra O falso mentiroso (2004), de Silviano Santiago, traz a


lume uma reflexão cara aos estudos literários: as fronteiras entre
ficção e realidade. Tais limites são questionados, porque há, no
romance, dados retirados da biografia do autor, mas também porque
há um narrador que admite, desde a primeira página, que os seus
relatos podem não ser fidedignos. “Posso estar mentindo. Posso estar
dizendo a verdade” (SANTIAGO, 2004, p. 9). Desse modo, nota-se que,
mesmo no âmbito da esfera ficcional, as informações narradas não
procuram convencer, não pretendem ser tomadas como verdade.
Essa estratégia narrativa desperta no leitor certa desconfiança
a respeito do que lhe é apresentado, afinal, em toda a narrativa a ideia
de falso e a de verdadeiro oscilam. O narrador – Samuel – está em
busca de sua origem e vai expondo versões acerca do seu nascimento.
Estas criam um embate entre si, de modo que paira a dúvida acerca de
qual seria o relato genuíno. Por outro lado, o que é relevante é a
maneira como as hipóteses são exploradas, o jogo narrativo que se
- 120 -
formula, ao se esmiuçar, de forma irônica e bem-humorada, as raízes
de Samuel.
O fato de ter sido adotado e de enxergar, neste processo,
alguns pontos obscuros, confere ao narrador a possibilidade de
atribuir a si uma identidade dupla: “Somos dois. Somos um. Um é cópia
do outro. Gêmeos, vá lá, já que ninguém morre nessa história”
(SANTIAGO, 2004, p. 48). O passado sobrevive na sua identidade atual
e o protagonista busca reunir dados que esclareçam quem de fato ele
é e como chegou à casa dos pais adotivos.
Ao longo do romance algumas versões são apresentadas:
“Samuel, nascido no dia 29 de setembro de 1936, filho de Eucanaã de
Souza Aguiar e de Ana Carneiro” (p. 49). Mais adiante surge outra
possibilidade ainda mais intrigante: “Teria nascido em Formiga, cidade
do interior de Minas Gerais. No dia 29 de setembro de 1936. Filho
legítimo de Sebastião Santiago e Noêmia Farnese Santiago. A versão é
tão inverossímil que nunca quis explorá-la” (p. 180). Neste trecho, o
narrador, embora ironicamente afirme que se trata de uma versão
improvável, aponta dados que se confundem com a vida do autor,
pois, Silviano Santiago de fato nasceu em Formiga (MG), no ano de
1936. Tal informação conduz ao questionamento acerca do que teria
sido extraído da vida do romancista, no processo de criação literária.
Ele próprio esclarece que “Toda escrita ficcional é autobiográfica”
(SANTIAGO, 2004 apud Giron, 2013). Porém, é relevante destacar que
esse caráter autobiográfico não significa necessariamente a exposição

- 121 -
de fatos verídicos da vida de quem escreve, mas sim uma íntima
relação entre o fazer artístico e as preferências de tema, enfoque,
construções linguístico-textuais, intertextos e outros aspectos que
aproximam o criador de sua obra. Além disso, como expõe Llosa
(2004):

Para quase todos os escritores, a memória é o


ponto de partida da fantasia, o trampolim que
impulsiona a imaginação em seu voo imprevisível
até a ficção. Recordações e invenções se misturam
na literatura de criação, de maneira
frequentemente inextrincável para o próprio
autor, que sabe, mesmo que pretenda o contrário,
que a recuperação do tempo perdido que a
literatura pode realizar é sempre um simulacro,
uma ficção em que o recordado se dissolve no
sonhado, e vice-versa (LLOSA, 2004, p. 20).

Observa-se, portanto, que realidade e ficção se misturam,


muitas vezes, pelo fato de que o processo de criação se dá pela
“ficcionalização da memória”, ou seja, pela capacidade, que o autor
transfere ao narrador, de reorganizar, intensificar, adaptar e
reconfigurar fatos atrelados a possíveis lembranças e à subjetividade
da mente criadora. Extraem-se da memória elementos que se
converterão, pelo delineamento artístico, em escritos literários.
A criação embasada na memória também expande o embate
“verdade versus mentira”, uma vez que tal processo sempre pode
abrigar a dúvida, a incerteza, o relativismo, afinal, transformam-se os
registros rememorados em situações e cenários imaginados. Nesse

- 122 -
sentido, investigar a veracidade do que é narrado, ainda que se
assemelhe detalhadamente a fatos reais, torna-se muito pouco
relevante, pois, conforme acentua Llosa (2004), “o romance é um
gênero amoral ou, ainda melhor, de uma ética sui generis, para a qual
verdades ou mentiras são concepções exclusivamente estéticas” (p.
18).
Em O falso mentiroso, os eixos da narrativa são justamente as
contradições, os dados que se opõem entre si, constituindo assim
diferentes versões de uma realidade elaborada na ficção: “Na minha
certidão a data de nascimento não é a do meu nascimento. É a data da
minha morte para os meus pais. Os verdadeiros. O dia do meu
nascimento na certidão é o do meu renascimento na casa dos meus
pais. Os falsos” (SANTIAGO, 2004, p. 48). O protagonista vai buscando
elucidar a si próprio, por meio do resgate do seu passado, de sua
origem. Porém, o que vai confirmando, ao longo de suas digressões e
relatos, é que os contrastes e os paradoxos na verdade são elementos
que o compõem, definindo-o na sua condição humana.

Sou muito discreto. Não guardo segredo.


Não sou dado a intimidades. Sou intimidado.
Vivo como devasso. Não sou indevassável.
Dizem-me singular. Evito o tom pessoal.
Sou mau. Pratico a caridade. Dizem-me generoso
(SANTIAGO, 2004, p. 176).

Acrescenta-se ainda que o personagem Samuel não apenas


questiona a sua própria identidade, mas também a daqueles que o

- 123 -
rodeiam. Nesse ponto, é possível entrever, na narrativa, que
“verdades absolutas” são encaradas com descrença, de modo que
certos comportamentos, normalmente valorizados exatamente por
atrelarem-se a ideais de nobreza e afetuosidade, podem revelar um
extremo artificialismo. É o caso, por exemplo, da personagem Donana,
mãe adotiva de Samuel, pois ela, embora se esforçasse por ter um bom
desempenho, na experiência da maternidade, traía-se, em suas
atitudes de “falsa mãe”, ainda que tentasse copiar o modelo do que
seria uma “mãe verdadeira”: “[...] Donana, mera cópia tardia e a
carbono” (p. 46). As suas demonstrações de afeto também se
revestiam de um caráter artificial: “Os beijos de galinha choca que
recebi ao chegar em casa eram diferentes dos beijinhos do carinho
materno. Donana tinha medo de tocar a pele do bebê com os lábios.
Os beijos seguidos na manta foi o modo que encontrou, coitada!”
(SANTIAGO, 2004, p. 46).
Observa-se que a construção de imagens duplas, díspares,
perpassa todo o romance, indicando, por exemplo, desvios de
conduta, dissimulação. Tal aspecto se evidencia nas atitudes da
enfermeira que, de acordo com as especulações de Samuel, teria sido
a responsável por tirá-lo discretamente do hospital, no dia do seu
nascimento, a fim de levá-lo à casa dos pais adotivos. O tom de
mistério associado a essa transação é reafirmado quando a enfermeira
procura Samuel para esclarecer, em troca de dinheiro, os detalhes a
respeito do processo de adoção. O modo de apresentação da

- 124 -
enfermeira não correspondia às suas reais intenções, criando assim
uma imagem que mais uma vez indicava contraste, duplicidade: “A
qual das duas me dirigir? À humilde senhora esmoler que batia à
porta? À rameira emperiquitada que gritava aqui estou, para o acerto
final de contas?” (p. 52).
Os pares de opostos se repetem na elucidação de fatos
associados à origem de Samuel, especialmente nas definições da
enfermeira, pois ela é, ao mesmo tempo, “a enfermeira cegonha” (p.
61) e a “piranha do asfalto” (p. 53); a “velha humilde” e a “cocote
emperiquitada” (p. 53). Na narrativa, o tom de seriedade que poderia
existir, haja vista a importância do tema na vida do protagonista, é
quebrado pelo emprego de uma linguagem corriqueira, debochada,
que permite destacar muito mais o inusitado da situação do que
propriamente a gravidade do fato. Por outro lado, o ar zombeteiro do
narrador não impede que ele perceba os “olhos de santa” (p. 55) que
ao mesmo tempo revelam os “olhos de megera” (p. 55) dessa mulher
que posa de “cegonha do bem” (p. 55), sem conseguir esconder a
identidade de “enfermeira do mal” (p. 55).
É válido acrescentar ainda que o personagem Samuel acaba
também por duplicar-se nas próprias mentiras e, assim como
consegue identificar, nos outros, a dissimulação, utiliza-se dela em
favor de seus interesses: “Prestei de mentirinha vestibular para
arquitetura. Passei de mentirinha no vestibular. Matriculei-me de
mentirinha no curso” (SANTIAGO, 2004, p. 146). Forjava a preferência

- 125 -
por um curso que era do agrado de seu pai e, diante da mãe, repetia a
estratégia, dissimulando a inclinação por um curso enaltecido por ela:
“Às vésperas do Natal comuniquei à mamãe que tinha passado no
vestibular de direito. ‘Melhor ser advogado de verdade do que
arquiteto de mentira, ela me disse’ [...]” (p. 147). De fato, o que
predominava era a mentira, afinal, Samuel havia optado por estudar
Belas Artes. E, curiosamente, a justificativa para sua atitude é o mesmo
paradoxo que embasa toda a narrativa: “Sou um falso mentiroso” (p.
148). Desse modo, acaba por enredar o leitor para uma possível
compreensão acerca das razões que o levam a mentir: “A arquitetura
era mentira piedosa para o papai. A advocacia para ela [a mãe]. Duas
mentiras, duas falsas afirmações de vida” (p. 148).
O embate entre aquilo que é falso e o que é verdadeiro
constitui a base de composição dos personagens e o modo como esse
duelo de opostos se inscreve, na obra de Santiago, favorece mais uma
vez a contestação de valores, de “verdades absolutas” que tendem a
esvanecer diante do confronto entre aparência e realidade. O Dr.
Eucanaã, pai adotivo de Samuel (ou mesmo o pai biológico, caso se
considere o depoimento da já citada enfermeira), era um homem que
fabricava camisinhas e defendia seu uso para a prevenção de doenças
e de filhos não desejados, mas, sua vida particular era o oposto do que
apregoava, afinal, ele “colecionava amantes” (p. 55) e “fez vários
filhos” (p. 55). Conseguiu progresso financeiro defendendo um
discurso cujo teor não era vivenciado, na prática, por ele mesmo. E,

- 126 -
para além disso, as consequências de se agir contrariamente ao
próprio discurso, faziam-no desconsiderar qualquer aspecto ético, a
ponto de ele oferecer à esposa cada uma das filhas consideradas
ilícitas, uma vez que ela tinha o desejo de ser mãe e não gerara filhos
naturais. Assim, o narrador Samuel acaba por concluir que a falsidade
era comum a ambos: “Éramos falsos. Ele na paternidade. Eu, na
descendência” (p. 110).
O tema da saúde pública, apresentado mediante a descrição
das atitudes do Dr. Eucanaã e alargado por meio das irônicas
colocações do narrador, também é mais um aspecto que reafirma a
falsa consistência das prerrogativas supostamente criadas em prol de
hábitos saudáveis:

Papai era higienista? Visionário? Apóstata? Ou


hipócrita enviado de Satã?
Sonhador, protegia o macho do acidente das
doenças sexualmente transmissíveis, como a
gonorreia e a sífilis?
Queria desinfetar as zonas de meretrício e os
bordéis?
Papai era ministro da Educação e Saúde do governo
Vargas? Por que me teria escondido função pública
tão nobre? (SANTIAGO, 2004, p. 108).

O que soa verdadeiro para o leitor é simplesmente o fato de


que a defesa da saúde pública era mero artifício para a obtenção de
interesses pessoais, conquistados por meios ilícitos: “Papai, o falso,
um verdadeiro escroque do dinheiro público. Especializara-se nos

- 127 -
jogos de influência” (p. 109). A falsa preocupação com a saúde e o
genuíno interesse financeiro se tornam mais acentuados na trama
quando, ao final da segunda guerra mundial, as doenças venéreas
passam a ser combatidas por meio do uso da penicilina,
desprestigiando assim o uso de preservativos. Nesse momento, até a
religião aparece como recurso desesperado para se tentar manter os
lucros: “[...] explodiam os balõezinhos de borracha vulcanizada.
Pichiiiiiiit! Não tinham mais serventia. Papai ficou tiririca com o liberou
geral do ministro. Um escândalo. Sem precedentes num país de índole
católica. Quase teve um piti” (p. 122).
Até mesmo o incentivo ao prazer não era aleatório, revelava
mais uma vez o intuito de lucrar a qualquer custo:

Acreditavam no prazer e o pregavam.


Indiscriminadamente. Incentivavam também os
femeeiros mais audaciosos a não abandonar a arte
da fornicação de desconhecidas. Contraponto
pecuniário: a alta rotatividade das consultas aos
médicos.
Eta classe unida! Jamais será vencida! (SANTIAGO,
2004, p. 126).

É interessante destacar que a ironia no texto de O falso


mentiroso é um recurso perfeitamente ajustável ao propósito
narrativo de revelar algumas verdades, denunciando certas práticas
mediante ideias que, à primeira vista, expõem o contrário. O próprio
jogo linguístico, que caracteriza a ironia, reveste-se da utilização de
uma ideia que desnuda uma outra percepção, oposta àquela revelada

- 128 -
de fato. Um dos momentos em que a construção irônica chega ao
extremo é quando, na narrativa, a penicilina é encarada como nociva:
“Com a penicilina veio a bancarrota sucessiva dos vários sanatórios
para tuberculosos. Os urologistas deviam se irmanar aos tisiólogos no
combate à destrutiva droga inventada por sir Alexander Fleming. ” (p.
128). A proposta apresentada pelo narrador, em uma alusão às ideias
de seu pai – o Dr. Eucanaã – sintetizam uma ácida crítica ao trato com
a saúde pública, negligenciada em favor de interesses pessoais.
Porém, o tom irreverente do texto tende a conduzir o leitor à reflexão
mais pela abordagem humorística que pelo tom de severidade que a
temática poderia suscitar. Como salienta Llosa: “[...] as fraudes, os
enganos e exageros da literatura narrativa servem para expressar
verdades profundas e inquietantes, que somente dessa maneira
enviesada vêm à luz” (LLOSA, 2004, p. 21).
Convém acrescentar ainda que, a todo momento, por
acompanhar os relatos de um personagem que desde o início já se
classificara como pouco confiável, o leitor se vê diante de dúvidas e de
mentiras propensas a tornarem-se verdade, em um paradoxo típico
dessa narrativa de Santiago. Há, por exemplo, diferentes versões para
esclarecer quem seria a mãe biológica do protagonista e que fatos
atrelam-se ao processo de adoção. Este, embora beneficie a mãe
adotiva, Ana, também indica mais um contraste acerca dessa mulher,
pois, ao mesmo tempo em que ela demonstra ser uma religiosa
fervorosa, é também cúmplice na formação da identidade forjada de

- 129 -
Samuel. A narrativa oferece pistas a respeito de quem seria a mãe
verdadeira, mas, acaba por instaurar a dúvida, a incerteza, tornando o
leitor um cúmplice do narrador, nas perquirições acerca de sua
origem: sua mãe seria Teresa? Seria a Senhora X? Esta última sequer
tem o nome revelado: “Donana sabia quem era a Senhora X? Tinham
selado pacto silencioso a meu respeito?” (SANTIAGO, 2004, p. 60).
Obviamente as construções narrativas também não criam uma forte
atmosfera de suspense, pois dessa forma haveria um objetivo único de
se descobrir verdades e, em O falso mentiroso, as certezas são sempre
questionadas, afinal, contestar verdades instituídas significa
dessacralizá-las, relativizando-as, como convém ao bom senso. E o
suspense também não se configura na obra porque as construções de
linguagem expressam muito mais uma fluidez bem-humorada que
uma intensa expectativa. Observa-se, por exemplo, o argumento
utilizado pelo narrador, a fim de considerar como suspeita uma atitude
de Teresa – amante de seu pai:

Teresa não tinha tido filhos. [...] Isso a livra de ser


minha mãe, a verdadeira. [...] Será que a livra? Por
que Teresa me presenteava com camisas de lã,
tricotadas por ela? Com muito carinho. Nunca
entendi o porquê dos presentes vindos da quitinete
da Lapa [...] O filho dela trocado por uma quitinete?
Logo na Lapa. [...] Não elejo a Miss Suéter da zona
norte como minha verdadeira mãe. Abiscoito mais
uma candidata ao título (p. 82).

- 130 -
A forma de abordagem do tema é plenamente debochada e
elege detalhes banais para intensificar hipóteses, o que desconstrói
qualquer sentido grave e severo que se poderia atribuir à questão. E
esse teor irreverente é levado ao extremo quando, no auge das
especulações acerca da própria origem, o narrador chega a duvidar da
própria existência: “Nasci por desejo? Nasci por acaso? Nasci da
conveniência? Nasci do amor? [...] Será que existo?” (SANTIAGO, 2004,
p. 59).
Assim, nota-se que esse romance de Silviano Santiago explora
e aprofunda, com informalidade e ironia, a dicotomia “verdade e
mentira”, de forma a relativizá-la, trazendo, para o centro de atenção,
o contexto, as informações e minúcias que compõem cenas e
personagens, em detrimento da necessidade de se estabelecer
aproximações ou distanciamentos entre arte e realidade.

Linguagem múltipla
É latente, no romance O falso mentiroso, o questionamento a
respeito da originalidade, no processo de criação artística. O
personagem Samuel argumenta em defesa da cópia, considerando-a
como evidência do contato do artista com variadas tendências -
“Quem copia tem repertório imenso e variado” (SANTIAGO, 2004, p.
182). Sendo conhecedor de diferentes obras, o artista poderia retirar
delas o que tivessem de melhor, lançando-lhes, inclusive, um novo
olhar, uma nova interpretação. Como alerta Compagnon (2012), a

- 131 -
mímesis configura-se como um processo de imitação criadora que
instaura a literariedade da obra literária. Nesse sentido, a ação
mimética é a de produzir aquilo que representa, favorecendo a
operação de deciframento das estruturas textuais, bem como a
construção de sentidos.
Outra característica que se destaca no texto de Santiago é a
escrita calcada na intertextualidade, aspecto inclusive claramente
defendido pelo narrador: “Não gosto de criar nada a partir do zero”
(SANTIAGO, 2004, p. 138). Esta assertiva dialoga com a abordagem de
Bakhtin (2003), em que se destaca o traço polifônico do texto literário,
ou seja, trata-se de uma escrita em que se lê o outro, pois, diferentes
discursos estão imersos no discurso literário. A intertextualidade
confere à literatura um caráter plural, mediante a coexistência de
diferentes “vozes” no mesmo texto.
Desse modo, observa-se que O falso mentiroso insere-se em
uma categoria de obra contemporânea que, embora apresente uma
construção linguística descontraída, irônica e repleta de expressões
cotidianas, típicas da oralidade, ainda assim estabelece constante
diálogo com a tradição literária, criando assim um entrecruzamento de
linguagens, uma reescrita de tons formais, pois, como esclarece o
protagonista Samuel: “A graça mais engraçada está em misturar.
Locais e épocas. Em embaralhar. Nomes, línguas e procedências”
(SANTIAGO, 2004, p. 183).

- 132 -
Essa mescla de linguagens e estilos, que também reúne
diferentes épocas e contextos, caracteriza um aspecto da pós-
modernidade que é exatamente a pluralidade, a diversidade de
composições artísticas e também de temáticas, o que permite,
inclusive, que se coloquem, no centro de atenção, dados banais,
rotineiros, mas que tornam mais dinâmicas e bem-humoradas as
reflexões críticas que um texto, como o de Santiago, favorece. O
entrecruzamento defendido pelo narrador de O falso mentiroso
relaciona-se às ponderações de Flávio Carneiro (2005) sobre a ficção
do século XXI:

[...] a ficção produzida atualmente pelos escritores


mais experientes se alimenta da mesma fonte em
que bebem os iniciantes: a linguagem da televisão,
da publicidade, do cinema, da internet, ou da
própria tradição literária, não só brasileira
(CARNEIRO, 2005, p. 34).

O diálogo com a tradição é fortemente evidenciado ao longo


de todo o referido romance. Mas, sem dúvida os textos mais citados,
direta ou indiretamente, em vários momentos da narrativa de
Santiago, são os de Machado de Assis. Seja numa simples menção a
um título que é aproveitado em um contexto discursivo diferente, ou
ainda mediante estratégias narrativas típicas do “bruxo do Cosme
Velho” e que são reestruturadas na escrita do autor mineiro.
Machado, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), se
utiliza de uma técnica extraordinária para dar voz ao narrador, criando

- 133 -
uma realidade possível apenas na ficção, já que as memórias são
relatadas pelo protagonista após a sua morte:

[...] expirei às duas horas da tarde de uma sexta-


feira do mês de agosto de 1869, na minha bela
chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro
anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca
de trezentos contos e fui acompanhado ao
cemitério por onze amigos (ASSIS, 2006, p. 11).

Santiago, por sua vez, também apresenta uma inusitada


circunstância narrativa, uma vez que o narrador, em O falso mentiroso,
expõe detalhes dos primeiros dias de sua própria vida, como se tivesse
plena consciência dos acontecimentos, naquela ocasião: “Reabro os
olhos na manhãzinha do meu décimo nono dia de vida. O obstetra me
dá alta da tenda de oxigênio. Deixo o berçário nos braços da
enfermeira-chefe” (SANTIAGO, 2004, p. 43).
Dessa maneira, nota-se que, seja dando voz a um “defunto
autor” ou a um bebê recém-nascido, Machado e Santiago acabam por
compartilhar, embora cada um a seu modo, uma estratégia narrativa
inovadora, surpreendente. Além disso, tais textos convidam o leitor,
interessado em arte literária, a refletir acerca da ideia de
verossimilhança da obra artística, considerando-a como uma
possibilidade em relação ao mundo real, não havendo qualquer
obrigação de lhe ser fiel, podendo no máximo manifestar alguma
compatibilidade. E, no caso da obra de Santiago, em que os signos
“verdade” e “mentira” possuem significados que se deslocam e se

- 134 -
modificam, a noção de adequação à realidade e a de verossimilhança
são repensadas, afinal, o receptor do texto é levado a “crer”, por
exemplo, nas peripécias inimagináveis do personagem Zé Macaco,
como parte integrante das memórias de Samuel:

Zé Macaco tinha total controle do instrumento de


trabalho.
“Fiz das tripas saxofone”, confessou-me um dia.
Fez pacto com o diabo da carne. Uma das cláusulas
contratuais rezava que o pactário receberia da
deusa Euterpe a graça do peido mais estrepitoso e
menos malcheiroso da turma.
[...]
No último ano de ginásio, Zé Macaco nos brindou
com o Hino Nacional. Memorável. Digno do pacto
com o diabo e do palco do Teatro Municipal. Uma
verdadeira réussite. Por mais de dois anos ensaiara
o número escondido em casa. Guardara a surpresa
para a noite de formatura. [...] No banheiro, nossa
sala Cecília Meireles.
[...]
Era o dia da nossa despedida. A confraria dos
peidorrentos se desfazia com chave de ouro
(SANTIAGO, 2004, p. 28,29).

Mais adiante, ao expor outros pormenores das suas aventuras


juvenis, especialmente as que envolviam Zé Macaco, o narrador,
retomando mais uma vez técnicas machadianas, adverte o leitor sobre
a liberdade que este possui diante do texto, de modo que poderia
optar por ignorar certos trechos da narrativa: “Sou obrigado a
transcrever as palavras dele. Que você não se sinta envergonhado,
caro leitor. Se sentir, pule para o próximo capítulo” (SANTIAGO, 2004,

- 135 -
p. 42). Em Memórias póstumas de Brás Cubas, embora não fosse
exatamente por um possível pudor atribuído a quem lesse os escritos,
encontra-se a mesma sugestão: “Se o leitor não é dado à
contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá
direto à narração” (ASSIS, 2006, p. 16).
Novos diálogos com a obra machadiana surgem quando o
narrador de O falso mentiroso refere-se ao fim da sua existência: “Na
morte deixarei de ser múltiplo para ser singular. O ser humano se
multiplica em nós. O cadáver não. É tão íntegro e solitário quanto a
mais indesejada das gentes. A morte” (SANTIAGO, 2004, p. 182, grifos
meus). Nesse momento, ele atribui à morte uma característica que
outrora e, em sentido oposto, fora utilizada por Machado para definir
uma personagem que era bastante cobiçada pelos cavalheiros ao seu
redor. A expressão “a desejada das gentes” dá nome a um conto
machadiano no qual uma jovem era alvo do desejo alheio, enquanto,
no texto de Santiago, a expressão foi usada – em sua versão contrária
– para se referir a algo absolutamente distante da vontade humana: a
morte.
É relevante acrescentar também que a multiplicidade,
anteriormente citada pelo protagonista Samuel, além de definir sua
condição de humano, associa-se também às tendências artísticas
contemporâneas que buscam, de certo modo, harmonizar diferentes
estilos, afinal, como ressalta Resende (2008): “Multiplicidade é a
heterogeneidade em convívio, não excludente” (p. 18). Nesse sentido,

- 136 -
percebe-se também que há uma coerência interna no discurso do
narrador pois ele, repetidas vezes, mescla a sua escrita moderna,
atual, com fragmentos textuais que retomam a tradição literária,
criando um hábil e sutil diálogo que enriquece a narrativa. Nota-se
novamente referências a Machado no trecho “As memórias póstumas
são de um eu sem fendas” (SANTIAGO, 2004, p. 182, grifos meus), ou
até mesmo no fato de Samuel atrair-se intensamente por braços
femininos (os da prima Dorothy e mais tarde os da esposa Esmeralda),
o que faz lembrar o personagem machadiano Inácio, cuja atenção
voltava-se inteiramente aos braços de D. Severina, em um conto
intitulado justamente “Uns braços”.
Destaca-se também um trecho - “De repente não mais que de
repente, o retrato foi entrevisto” (SANTIAGO, 2004, p. 95, grifos meus)
- em que há uma explícita alusão a um soneto de Vinícius de Moraes.
O tom solene da poesia de Olavo Bilac também é lembrado, muito
embora mediante colocações que o parodiam:

Peço-lhe desculpa, caro leitor. Por tê-lo feito


sucumbir ao feitiço da linguagem. [...] Por fazê-lo
acreditar na língua portuguesa. A última flor do
Lácio, inculta e bela, a um tempo esplendor e
sepultura. Coisas de cultura subdesenvolvida. Ou
de cultura em desenvolvimento em tempos
neoliberais (SANTIAGO, 2004, p. 176, grifos meus).

A obra O falso mentiroso caracteriza-se por uma


desestabilização da escrita erudita, acadêmica, de modo que, ao longo

- 137 -
do livro, o narrador parece manter com o leitor uma conversa
informal, descontraída, fazendo-o cúmplice de suas dúvidas e
incertezas, mas também partilhando com ele o seu discurso satírico e
irreverente. Em alguns fragmentos, por exemplo, o texto de Santiago
apresenta marcas de acentuado erotismo, além de termos e
expressões incompatíveis com a modalidade formal de linguagem, tão
cara à tradição literária. Por outro lado, como já foi evidenciado, o
romance do escritor mineiro dialoga constantemente com textos
canônicos, o que demonstra o caráter híbrido da linguagem que
retoma o convencional, mediante releituras, reinvenções.
Entretanto, é válido destacar que o narrador Samuel não se
revela um defensor declarado da cultura de massa:

Pó de arroz empedernido [...] se deu conta de que


tinha nascido aristocrata das artes. A frustração
ginasial marca o início do meu distanciamento das
raízes populares da nação rubro-negra. Não sou
Flamengo e não tenho uma nega chamada Teresa
(SANTIAGO, 2004, p. 209).

Ainda que faça uso de uma linguagem entremeada de termos


típicos da oralidade informal, o narrador, de certo modo, se distancia
das modalidades culturais massivas, sugerindo inclusive que, para
decifrar mais profundamente os relatos e as digressões por ele
expostos, seria necessário ser um leitor especializado: “Embora
violado, sou inviolável. [...] Sou cofre de valores em tempos de

- 138 -
mercado negro. Fecho-me hermeticamente em palavras e frases de
efeito. Convincentes. E jogo a chave pela janela” (p. 175).
Por outro lado, certos leitores, comumente considerados como
especializados, são duramente criticados no romance, porque,
segundo o protagonista, eles se arvoram em julgar as obras de acordo
com tendências e padrões que criam, elegendo critérios bastante
duvidosos: “A fauna dos críticos é multicolorida e assustadoramente
medíocre. Julgam-se conhecedores. Apresentam-se nos jornais,
revistas e livros como ditadores da moda e pavões do progresso”
(SANTIAGO, 2004, p. 218). Samuel faz a crítica à crítica, permitindo que
se questione a chancela desse tipo de leitura como a única capaz de
atribuir valor e/ou desprestigiar produções artísticas.
De qualquer modo, em O falso mentiroso, percebe-se que a
linguagem se revela múltipla, de forma a acomodar, de maneira
harmoniosa e inovadora, tradicionalismo e contemporaneidade,
traços humorísticos que suavizam temáticas delicadas, além de
memórias ficcionalizadas que discutem a verossimilhança. E vale frisar
que tais aspectos estão em consonância com o pluralismo típico da
arte literária atual.
Nesse sentido, a criação literária moderna não é apresentada
como invenção, mas como diálogo com vozes diversas e como
suplemento, acréscimo ao que já é completo. E por essa razão, vale
frisar a autodefinição do narrador, quando afirma que é “o mais
original dos impostores” (SANTIAGO, 2004, p. 218).

- 139 -
Considerações finais
Discutir e problematizar a linha tênue que divide realidade e
ficção, bem como, em certos contextos, verdade e mentira, configura-
se como temática que favorece ampla reflexão acerca do fazer literário
e do narrar. O romance O falso mentiroso abriga contradições que vão
desde a multiplicidade das construções linguísticas até o relato de
episódios e situações que instauram, no leitor, a dúvida, a incerteza.
Ao investigar sua origem, o narrador Samuel vai tentando
montar o panorama do seu passado, mas acaba por reunir hipóteses
pouco confiáveis e, em meio a contradições e dissimulação, revela
também a ambiguidade que o define.
Há um jogo de opostos que perpassa a narrativa, mediante
fatos e versões que não se confirmam como falsas ou verdadeiras e,
para além dessa atmosfera instável, embora muito bem delineada,
estão também os artifícios de linguagem que, de tão espontâneos,
assemelham-se a uma conversa informal. Ao mesmo tempo,
reafirmando o contraste criativo e inovador, configuram-se diálogos
com a tradição literária. Enfim, nesse rico e plural ambiente narrativo,
o leitor é levado a refletir tanto sobre as interseções entre ficção e
realidade, como também sobre a capacidade que tem a literatura de
abrigar o paradoxo, abrindo assim as fronteiras do pensamento, como
bem observa Helena (2012).

- 140 -
Referências

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo:


Ática, 2006.

BAKHTIN. Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Ed. Martins


Fontes. 2003.

CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do


século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso


comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2012.

GIRON, Luís Antônio. Operação mãos sujas. Revista Época on line.


Disponível em:
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR63310-
6011,00.html> . Acesso em: 28 ago. 2013.

HELENA, Lúcia. Náufragos da esperança: a metáfora do naufrágio e o


naufrágio da modernidade. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012.

LLOSA, Mário Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004.

RESENDE, Beatriz. A literatura brasileira na era da multiplicidade. In:


______, Contemporâneos. Expressões da literatura brasileira no
século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, Biblioteca Nacional, 2008.
p. 15-40.

SANTIAGO, Silviano. O falso mentiroso. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

- 141 -
Intertextualidade em O dom do crime

Rogério de Souza Cruz

A literatura brasileira contemporânea possui inúmeros autores


cujo mote e estilo são diametralmente opostos, talvez o único elo
entre eles seja a dificuldade de definir o gênero de suas obras, a atual
produção literária “Mobiliza o leitor a mergulhar em textos híbridos de
imenso potencial, para discutir e reconhecer experiências e discursos
em que vivem imersos o mundo e os seres na contemporaneidade”
(HELENA, 2010, p. 23). A hibridez que a professora Lucia Helena
identificou na literatura contemporânea; com efeito, é encontrada no
romance O Dom do Crime, de Marco Lucchesi. O romance mistura
ficção, ensaio, biografia (como o autor é historiador, fatos da vida de
Machado de Assis e outros personagens históricos são reconstruídos
com maestria), permeado de intertextualidades, de citações.
O enredo é o amálgama de fatos esparsos juntados pelo
narrador, resultando em um belo mosaico oitocentista. A rua em que
está situada a residência do desafortunado casal José Mariano e
Helena Augusta, rua dos Barbonos, é cenário de outras obras de
Machado de Assis, a saber, os contos Pai contra mãe, A cartomante, e
também onde ficava a casa do então jovem Bento Santiago. A
estrutura do romance apoia-se no julgamento de José Mariano. O

- 142 -
narrador reconstrói cenários, atitudes, discursos e analisa social e
psicologicamente as pessoas envolvidas no assassinato de Helena
Augusta: José Mariano, Raimundo Martiniano, médicos, escravos,
agregados e empregados. Os autos do processo são a fonte, dir-se-ia
os originais sobre os quais o narrador (autor implícito) se debruça,
transformando-os num folhetim de sucesso, pois não faltam leitores e
expectadores para acompanhá-lo nos periódicos ou no tribunal. Herói
ou vilão, depende da perspectiva de quem observa. Partidários de
ambos os lados acotovelam-se à procura de lugar no fórum, para vaiar,
aplaudir, gritar ou discutir calorosamente, na Rua do Ouvidor,
empunhando o Jornal do Commercio, que explorou de maneira
sensacionalista o caso.
O romance de Marco Lucchesi, O Dom do crime, é narrado por
um advogado cujo nome não é revelado, aliás, ele sugere algumas
alcunhas pelas quais pode ser designado: Ninguém, Doutor Ulisses e
Doutor Ciclope. Não se identificar, evidencia a vontade de ficar no
anonimato, passar desapercebido na história que vai contar: “[...]
pretendo escrever, caro doutor Schmidt: as memórias dos outros.
Prometo frear o tom, mais comedido, talvez mais frio, como querem
os positivistas. Um livro sem opiniões. Beirando o cinismo. Ou quase”
(LUCCHESI, 2012, p. 20). O trecho ratifica o desejo do narrador de ficar
oculto, “as memórias” que irá escrever são “dos outros”, o doutor
Shmidt, citado na passagem, é o médico que o aconselhou a colocar
no papel as memórias. O desejo de não ser reconhecido, ou melhor,

- 143 -
de que seus contemporâneos não o reconhecessem, é hiperbólico,
pois deposita os manuscritos no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro com a ordem de vir à luz somente em 2010, ou seja, mais de
um século depois de escrito, pois a trama é ambientada em 1900.
O personagem narrador descortina paulatinamente sua vida e
seus hábitos. Idoso, tem alguns vícios: gosta de bons vinhos, charutos
e de assistir aos julgamentos no fórum, onde reencontra amigos e
relembra momentos em que defendeu criminosos e “facínoras” (p.20).
Talvez a crítica aos magistrados e companheiros de profissão decorra
do fato de estar aposentado, poder prescindir de vender os seus
honorários “No bordel em que se transformou o fórum” (p.16). Ao
revelar os meandros da Justiça, tirando a venda de seus olhos,
mostrando que o aparato judiciário enxerga muito bem o cliente
abastado, que pode pagar bons rábulas, daí conseguir a absolvição
através de uma relação promíscua entre promotores, magistrados e
advogados, o romance é de uma atualidade assaz, como ilustra a
Operação Zelote, da Polícia Federal, que investiga a venda de
sentenças.
Em uma de suas idas ao tribunal, o narrador assiste a Busch
Varella atuar no caso do alferes Almada, herói da Guerra de Canudos,
que, ao regressar, descobre a traição da mulher com um rapaz de
quinze anos: “Inquirida pelo alferes, não se faz de rogada e confessa
de pronto o adultério. O marido perde a cabeça e, como um
relâmpago, responde com um só golpe de faca. Nada de novo para

- 144 -
quem trucidou, na Bahia, mulheres e crianças” (LUCCHESI, 2012, p.
17). O exceto descortina a crueldade e covardia do criminoso contra
os seguidores de Antônio Conselheiro. Mesmo cometendo um crime
hediondo, o réu foi absolvido. O advogado alegara que seu cliente não
era assassino, “mas uma vítima da fatalidade” (LUCCHESI, 2012, p. 19).
Em uma época na qual a honra era lavada com o sangue, havia uma
vaga de crimes passionais que preenchiam as páginas dos periódicos.
O caso do alferes Almada traz à memória do narrador outro
crime, o assassinato de Helena Augusta pelo marido José Mariano,
ocorrido há quarenta anos, esse homicídio é o mote do romance
memorialista de Lucchesi, O Dom do Crime. Segundo o narrador, o
crime “inspirou” Machado de Assis a escrever a trama memorialística
protagonizada por Bentinho e Capitu. A partir do segundo capítulo de
O Dom do Crime, há um diálogo intenso com Dom Casmurro. Marco
Lucchesi utilizou Dom Casmurro como paradigma para escrever o seu
romance, “há inúmeras sugestões dele ao longo da obra [...] O que nos
interessa é estipular de que maneira este padrão específico influencia
o romance” (HUMPHREY, 1976, p. 85). As palavras de Robert
Humphrey norteiam a análise que faremos das personagens que
compõem o suposto triângulo amoroso: José Mariano, Helena Augusta
e Raimundo Martiniano Alves de Souza, que seriam; respectivamente,
Bentinho, Capitu e Escobar. Nos deteremos apenas nas personagens
que habitam a trama de Marco Lucchesi.

- 145 -
Os episódios são narrados paralelos a comentários das mesmas
situações que ocorrem na obra machadiana, surgindo um romance
labiríntico que desnorteia o leitor, obriga-o a ficar atento, pois tem em
suas mãos “um romance [que] exige atenção absoluta. Um piscar de
olhos e perde-se o plot, um deslize da concentração e os nomes se
confundirão. Até porque esta é a função de vários deles: usar disfarce
ou máscara, produzir ilusões, criar ficção” (RESENDE, 2008, p. 91).
A “concentração” e a confusão com os nomes, de que fala a
crítica Beatriz Resende, surgem ao analisarmos as personagens do
romance de Marco Lucchesi. O nome composto de Helena Augusta
não é fortuito. Helena é heroína de um romance homônimo de
Machado de Assis. Agregada que se apaixona por Estácio,
supostamente seu irmão. Augusta é personagem central do conto O
segredo de Augusta. A Helena, personagem de Lucchesi, antes de se
casar, é tão pobre quanto a de Machado. Chamava-se Helena Maria,
morava no morro do Castelo, lavava a roupa dos estudantes de
medicina. Logo após o casamento, passou a chamar-se “Helena
Augusta. Como se houvesse algo de refinado no acréscimo, diluindo
algo de obscuro” (LUCCHESI, 2012, p.38). Com uma genealogia
inventada, tal qual Brás Cubas, Helena um novo mudo conhece,
mergulha na vida de mulher rica e ociosa, passa as tardes a fazer tricô
ou lendo as poesias de Crisálidas, que traz dedicatória do autor:
Machado de Assis. Como o marido passava os dias no trabalho, para
preencher as monótonas horas e fugir da solidão, Helena Augusta

- 146 -
aproximou-se dos escravos e agregados, nada surpreendente para
quem conhecia-lhes as agruras e privações. Assim como Bentinho e
Capitu, que no início do casamento são felizes, os primeiros anos de
união de Helena Augusta e José Mariano são de felicidade extrema:

O retrato de Helena parece muito próximo de


Capitu, com seu chapéu de casada e o ar de casada
com que dava a mão a Bentinho para entrar e sair
do carro. Não lhe bastava ser casada entre quatro
paredes. Casa. Igreja. E papel. Era preciso, com
efeito, transmitir os sinais do novo estado
(LUCCHESI, p.39, 2012, grifos do autor).

O exceto compara e aproxima as duas personagens, Helena e


Capitu, que situações idênticas viveram. O leitor de Machado de Assis
reconhece as expressões itálicas, retiradas de Dom Casmurro.
José Mariano tem vida irrepreensível, casou-se aos vinte e três
anos, dedicou a tese à mulher: “tributo de amizade e veneração,
lembranças que ainda mesmo além da campa gravadas ficarão em
minha alma. De que campa se tratava? Uma versão nova de Tristão e
Isolda, unidos na morte, ou seria talvez o desenho de um delito
pressentido?” (LUCCHESI, 2012, p.58). Os trechos destacados são
retirados da tese, afirmam que mesmo depois de morta, a mulher
continuará a viver na lembrança do marido.
José Mariano é bondoso com os irmãos, amigos e parentes de
sua mulher, que reconhecem a generosidade. Vive do trabalho para
casa, “Importa saber, com Machado, se o Mariano da rua dos

- 147 -
Barbonos já estava dentro do Mariano do morro do Castelo, ou se este
foi mudado por efeito de algum caso incidente” (LUCCHESI, 2012,
p.59). Concomitante a reconstituição da relação de José Mariano e
Helena Augusta, fundamentada nos autos do processo, o incógnito
narrador vai analisando o casal Bento Santiago e Capitulina, por isso a
narrativa é prenhe em digressões, ziguezagues, um constante avançar
e recuar.
Raimundo Martiniano Alves de Souza é o “presumido amante
de Helena” (LUCCHESI, 2012, p. 129). Tem fama de sedutor e intrépido,
alguns maridos não deixam suas esposas passearem sozinhas, pois
receiam o conquistador. Raimundo responde a um processo por raptar
dona Cândida de Paiva e Oliveira, conhecida pela alcunha de viúva
Coelho. Devia estar mesmo apaixonado para cometer tal impropério,
pois os oito filhos da viúva, que são contrários à relação, não o
restituíram à razão. Alguns moradores da rua dos Barbonos – onde ele
e a viúva moram – afirmam que a coragem adveio das ações que a
viúva tem no Banco do Brasil. Raimundo raptou Cândida, e a levou
para uma casa onde havia, além do altar, um punhal e uma pistola,
bravateando que só sairiam casados, mas quando a polícia chegou, a
coragem acabou, abandonaram a casa da maneira que entraram:
solteiros.
A casa de Helena Augusta fica entre a de Raimundo e a de
Cândida, alguns vizinhos viram o galanteador “no telhado da casa de
José Mariano com uma lanterna”, saltando para a casa da amante – a

- 148 -
viúva Coelho. A fama que Raimundo possui de conquistador advém
dessa aventura. Os vizinhos afirmam que o casal se encontrou algumas
vezes na casa de Helena, encontros “decorosos” (LUCCHESI, 2012,
p.130).
A figura do agregado era onipresente nas abastadas famílias
oitocentistas. Não trabalhava, pouco acima do escravo, vivia de favor,
comia à mesa, externava sua opinião, mesmo sem ser ouvido, através
da bajulação e muitos rapapés, conseguia livre trânsito na casa, onde
mandava na escravaria e se o filho do senhor fosse criança, estava sob
sua autoridade. A casa de Helena Augusta também tinha sua agregada:
Leonor Eufrosina do Amor Divino, que

surpreendeu Helena em conversa com o vizinho em


mais de uma janela. Viu-se obrigada a dizer-lhe que
mudasse de vida. Censurou também o indivíduo
que se achava na parte dos fundos:
– O seu procedimento é infame, o senhor quer
descasar dois bens casados. Eu me vejo obrigada a
comunicar tudo ao doutor José Mariano, para dar
fim a esse escândalo (LUCCHESI, 2012, p .69).

A citação descortina o diálogo, ou melhor, a compostura que


Esperidiana, a agregada, passa em Raimundo, aliás, não só no rapaz,
mas também em Helena, sugerindo-a que mudasse de
comportamento, pois contaria a José Mariano, o que efetivamente fez.
O grifo mais uma vez é do autor.
Mordido de ciúmes, o iracundo marido consulta os
empregados, o alforriado Esperidião não titubeia: “Meu senhor está

- 149 -
traído por minha senhora” (LUCCHESI, 2012, p. 83), não satisfeito e
perplexo, encontra a negra Esperidiana, a quem indaga sobre o
comportamento de Helena Augusta, a resposta o transtorna: “– Minha
senhora está com a cabeça inteiramente perdida” (LUCCHESI, 2012, p.
84). As respostas do liberto e da agregada, acrescentadas à do
porteiro, que afirma ter visto um homem rondar o telhado da casa,
enlouquecem José Mariano.
Entre uma crise de ciúme e outra, o casal tenta manter as
aparências, passam uma temporada em Niterói, especificamente São
Domingos (o infortunado casal passeou pelo bairro onde atualmente
localiza-se faculdade de Letras da UFF), mas o médico estava acossado
pela dúvida e a mente do ciumento é fértil, tudo aflora a suspeita, faz
conjecturar uma traição: um sorriso para um transeunte, um olhar
para o lado, um cumprimento mais demorado. José Mariano convida
a mulher para ir à um baile, no que ela rejeita, alegando não está bem
disposta, o motivo alegado pela mulher para não acompanhá-lo será o
dente de ciúme que o morderá. Cada dia mais desconfiado,
amedrontado pela presença do janota Raimundo a desfilar pela rua
dos Barbonos, José Mariano decide mudar-se:

–Todos? – indaga a mulher.


–Todos.
– Esperidiana também?
– E por que não Esperidiana? – pergunta José
Mariano, com suspeita crescente.

- 150 -
– Ela é amiga mais que uma escrava. Conhece toda
a minha vida. Nada do que me diz respeito lhe é
reservado.
[...]
– Então o que disser Esperidiana é verdade? Pode-
se acreditar nela?
Helena balbuciou um sim, completando:
– Por que não?
Sem saber, e com apenas três palavras, Helena
acabava de lavrar sua sentença de morte
(LUCCHESI, 2012, p.115-116).

O diálogo ratifica o prestígio alcançado pelo agregado, no


romance em questão, agregada, no seio da sociedade patriarcal. O
ciumento José Mariano surpreende-se ante a indagação de sua
mulher, se Esperidiana, a agregada, os acompanharia para a nova casa.
Óbvio que sim, a agregada o servia desde os tempos de estudante de
medicina, suas palavras soam como verdades absolutas aos ouvidos
do marido. Ao confirmar com uma indagação o aforisma de José
Mariano, o qual tudo o que sai da boca de Esperidiana é verídico,
Helena Augusta decretou, involuntariamente, sua sentença de morte.
O assassinato de Helena Augusta aconteceu na noite de terça-feira, 6
de novembro de 1866. Na fatídica noite:

Não dorme Dom Pedro, aflito com a Guerra do


Paraguai, após o revés de Curupaiti. Não dorme
Joaquim Maria, plasmando ideias para um
romance, de cuja história mal formulou o enredo,
a que não falta, muito embora, um nome:
Ressurreição [...] tão pouco a escrava Esperidiana,
presa de um estranho remorso. Insones, José
Mariano e os vizinhos da casa 22 da rua dos

- 151 -
Barbonos. Só Helena Augusta não voltará da noite
em que se perde (LUCCHESI, 2012, p.26).

A passagem revela como o narrador rememora os principais


acontecimentos do ano e da noite em que Helena Augusta foi vítima
de crime passional: a nação sofrera uma derrota na Guerra do
Paraguai, daí a insônia do imperador, Joaquim Maria são os primeiros
nomes de Machado de Assis, que realmente publicou o romance
Ressurreição, em 1866. Esperidiana é a agregada que acusou, mesmo
sem ter provas, sua senhora, daí o “remorso”, enfim, a insônia de José
Mariano decorre do crime que cometera.
José Mariano assassinou a esposa dentro de casa, com o bisturi
desferiu golpes na altura do pescoço, provocando-lhe “– Um grande
ferimento inciso de duas polegadas e meia de extensão, no lado
esquerdo do pescoço [...] achando-se a veia jugular largamente aberta,
podendo-se chegar com os dedos na ferida até as apófises
transversais” (LUCCHESI, 2012, p. 88-89). A descrição, com requintes
naturalistas, evidencia a raiva do marido, sua extrema maldade ao
cometer o crime hediondo, julgava-se no direito de matar a mulher
para defender a honra. Após o crime, foi à polícia e se entregou, talvez
porque sabia que não ficaria muito tempo recluso.
No mundo habitado por meirinhos, rábulas e bacharéis, há uma
figura proeminente, Busch Varella, advogado de defesa de José
Mariano. Estudou graças ao pedido da mãe, Carlota, ao Imperador D.
Pedro. Aluno dedicado, bacharelou-se na Faculdade de Direito de São

- 152 -
Paulo, em 1843. Como a maioria dos doutores, escrevia sonetos.
Sonhava com a consagração literária, que nunca veio. Desgosto maior
foi assistir à consagração literária do sobrinho, o poeta Fagundes
Varella. Lia compulsivamente Monte Alverne e Junqueira Freire à
procura de belas e desconhecidas metáforas, seu discurso dedicado à
libertação dos escravos foi “uma síntese desajeitada, a meio caminho
de Fagundes Varella e Castro Alves” (LUCCHESI, 2012, p. 51). Busch
Varella altera contextos e circunstâncias, pinça palavras e frases
aleatórias, inserindo-as em uma oratória persuasiva e ludibriante.
A primeira medida do sofista Busch Varela é alegar que seu
cliente teve um lapso de razão, por isso deveria ser recolhido ao
Hospício de Pedro II, onde, ainda segundo a defesa, os mais de
quinhentos amigos que o visitaram, provaram o estado catatônico no
qual José Mariano se encontrava. Usa a estratégia de desqualificar
moral e socialmente a vítima. Sua eloquência acentua a ascensão
social que Helena Augusta teve após o casamento, como se o marido
tivesse feito um favor ao casar com a moça: “Ao casarem, o médico-
cirurgião transpôs o abismo social que o separava da esposa,
elevando-a às esferas mais altas da sociedade” (LUCCHESI, 2012,
p.37). Os grifos são do autor, demarcam a transformação social por
que passou Helena Augusta e acentuam sua nova condição social.
Segundo o defensor, Helena Augusta era “o centro e a circunferência”,
(LUCCHESI, 2012, p. 57), dos dias de José Mariano, que já dera, ainda
segundo o rábula, “provas de Humanidade” (LUCCHESI, 2012, p.59). O

- 153 -
marido assassino é transformado em vítima; a mulher, “ a esposa
culpada, cuja perfídia não se ignora” (LUCCHESI, 2012, p. 124).
O promotor Firmo Diniz, com trinta e oito anos de idade, é a
voz da acusação. Bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo, de
estatura mediana, lembra “o tio Cosme de Bentinho” (LUCCHESI, 2012,
p.53). Para Firmo, o crime foi premeditado, José Mariano deixou
separado a arma do crime, o bisturi, que manuseava com presteza,
tornado o

– Assassinato tanto mais bárbaro quanto é certo


que seu autor era um médico, que não duvidou
fazer uso do instrumento da ciência, que lhe fora
confiado para salvar vidas, entregando-o, como
ferro homicida, para ferir uma mísera mulher, em
lugar onde sabia que o ferimento seria
necessariamente mortal (LUCCHESI, 2012, p. 95).

O trecho revela como o promotor qualificou o assassinato de


Helena Augusta, “bárbaro”, com o agravante do réu cometê-lo com o
instrumento de trabalho, portanto, ultrajou o bisturi, que a priori era
para fazer operações, extirpar moléstias, transformou-o em arma
letal. Não obstante, a réplica de Busch Varella afirma o contrário:

– Tenho ouvido mais de uma pessoa dizer isso, mas


ainda não compreendo a razão por que se afirma
que o doutor José Mariano aviltou esse ferro, [o
bisturi], empregando-o em desafrontar a sua
honra, que tinha sido tão torpe e tão perfidamente
ultrajada; ele o desonraria se porventura o tivesse
empregado a sangue frio, se durante o sono

- 154 -
procurasse abrir uma veia e deixasse que ela se
esvaísse, por um desses modos que a ciência lhe
aconselhasse e estavam ao seu alcance. Porventura
um homem, que se via insultado, repentinamente
trata de examinar, pelo desenho, pela pintura, que
o vaso que tem diante de si é de fina porcelana de
Sèvres ou de barro? Não, o atira imediatamente na
cabeça do agressor, pois o doutor José Mariano
não teria tempo de procurar qualquer outro
instrumento, era preciso que se desforrasse
incontinente (LUCCHESI, 2012, p. 96-97).

O longo trecho é necessário para ilustrar a argumentação


sofística de Busch Varella, o defensor insiste na tese segundo a qual
seu cliente teve a honra manchada pela suposta traição de Helena
Augusta. Da passagem, também se apreende a intenção do rábula em
demonstrar que o crime não fora premeditado, por isso o réu lançou
mão do que estava mais próximo: o bisturi. Uma pessoa raivosa não
repara se o objeto com o qual irá agredir é valioso ou não. Pode-se
discordar do advogado, mas não se pode negar o brilhantismo de sua
retórica. A réplica de Busch Varella obteve o silêncio respeitoso do
auditório.
O pivô do crime, o bacharel Raimundo Martiniano, é ouvido,
mas pouco acrescenta. Busch Varella o chama de “ladrão da honra
alheia, que se acautela contra a vingança do esposo, a que jamais se
deu” (LUCCHESI, 2012, p.137 grifos do autor). Raimundo Martiniano
objeta que fora vítima dos filhos da viúva Coelho, contrários à relação,
induziram José Mariano a crer que ele “seduzira sua esposa,

- 155 -
provocando aquela desgraça. Esperidiana foi peça fundamental, no
jogo de xadrez, movida pelos filhos de Cândida” (LUCCHESI, 2012,
p.137). As poucas palavras atribuídas ao conquistador Raimundo
Martiniano revelam que nunca houve nada entre ele e Helena. Aliás,
ele alega ter sido vítima de uma artimanha dos filhos da viúva Coelho,
a quem amava, que envenenaram a cabeça do ciumento José Mariano.
Qualquer atitude de José Mariano em ralação a esposa, reverberaria
no romance de Raimundo e a viúva Coelho para separá-los. O plano
funcionou graças a prestimosa ajuda da agregada Esperidiana. As
palavras de Raimundo Martiniano não tiveram o poder de sensibilizar
o júri, “Sob uma chuva de vivas e aplausos, Mariano foi absolvido nove
dias antes do natal de 1866” (LUCCHESI, 2012, p.138).
O promotor Firmo Diniz recorreu da sentença, no entanto.
Alegou serem as testemunhas de defesa, a agregada Leonora
Eufrosina e o médico Torres Homem, pessoas ligadas ao réu. Aquela,
dependente; este, amigo. Outra dúvida que o julgamento não
dissipou, se a morfina prescrita pelo médico não produziu
propositadamente uma aparente alienação mental, cujo objetivo seria
impressionar. O tribunal decide por outro julgamento, que condenou
José Mariano de uma “forma branda e sem maiores impedimentos”
(LUCCHESI, 2012, p.139). O narrador apócrifo não esclarece em que
consiste a condenação “branda”. Prestar serviços comunitários não
foi, seria uma sentença anacrônica. No romance, a última referência
ao marido ciumento, afirma: “Fora das páginas do Almanaque

- 156 -
Laemmert no ano de 1867, Mariano volta apenas 12 meses depois,
domiciliado na rua da Alfândega, 143. Muda-se não poucas vezes,
desaparecendo, de todo e para sempre, a partir de 1880. Das folhas
do Laemmert e do mundo?” (LUCCHESI, 2012, p. 139). O exceto revela
as mudanças de endereço, que seu nome não constava mais nas
páginas do Almanaque, e finaliza com uma indagação, que não é
respondida, restando ao leitor conjecturar sobre o fim de José
Mariano.
Quase três décadas depois, o psiquiatra Viveiros de Castro
questiona a tese defendida por Busch Varella: lapso de memória e
crime em defesa da honra. Segundo o reconhecido psicanalista
forense, os argumentos são excludentes. Fundamentado em pesquisas
profundas, Viveiros de Castro ressalta que a pessoa acometida de
surto provisório de memória, “Passada a fase aguda, cai num sono
profundo de que desperta perfeitamente lúcido. Não recorda o que se
passou. Não finge, nem se arrepende do crime porventura cometido,
do qual não tem notícia” (LUCCHESI, 2012, p. 142). Ora, foi exatamente
o oposto que aconteceu com José Mariano. Após assassinar a mulher,
dar ordens ao cunhado sobre o governo da casa, como réu confesso
vai à polícia e se entrega, conta ao delegado os motivos por que
assassinou a esposa, caracterizando a tese da defesa em

Uma aberração jurídica e médica. Contradição que


o primeiro júri não percebeu, bracejando nas ondas
fortes das metáforas do doutor Busch Varella, nas

- 157 -
correntes do folhetim, que acabou por fazer
volume raso das figuras de Helena e Mariano,
segundo uma práxis recorrente, que inverte o lugar
da vítima e do assassino (LUCCHESI, 2012, p. 143)

A passagem revela o argumento do analista, Viveiros de Castro,


o binômio argumentativo de Busch Varella se contradiz mutuamente,
não se sustentou com a análise mais profunda, manteve-se de pé
porque o júri, os periódicos e seus leitores ficaram extasiados com as
metáforas de Busch Varella e leram, ou melhor, viram o caso como um
folhetim; acrescenta-se a isso, em se tratando de crimes praticados
por maridos supostamente traídos, os papéis de “vítima” e “assassino”
serem inevitavelmente trocados, e a mulher enterrada “sob os
escombros patriarcais da defesa”( LUCCHESI, 2012, p.143). Ou seja, a
sociedade patriarcal dá ao homem o “direito” de ter amantes, à
infidelidade, enquanto a mulher é obrigada a fazer vista grossa às
aventuras do marido.
No mundo diegético engendrado pelo romance O Dom do
Crime, há a recriação do ambiente oitocentista, respira-se a fumaça
dos charutos dos literatos que passavam as tardes galanteando as
moças na Rua do Ouvidor ou folheando romances na livraria Garnier,
obras recém-chegadas no último paquete. O Século XIX foi o auge do
romance, daí comentários sobre obras literárias perpassam toda a
narrativa, longos trechos de romances são citados, pequenos ensaios
pululam de dentro da obra. Analisaremos algumas passagens do
romance que ratifiquem nossos argumentos, não faremos um

- 158 -
mapeamento de todos os romances citados, seria enfadonho. A
passagem a seguir é emblemática:

Todo crime deságua numa confusão de hemácias.


Não há em O primo Basílio. Mas foi por um triz. Um
segredo disperso. Uma carta. E a morte de Luísa,
asséptica, funcional. Se não houve derramamento
de sangue, a história se mostrava rude aos olhos de
Machado. Como se, por equívoco, a lógica do
excesso tornasse mais nítida a trama. E mais
espessa. Para uma gama de escritores, importava
enumerar os fios de que se compõem um lenço de
cambraia ou um esfregão de cozinha. O êxito da
página, insiste Machado, não devia repousar no
volume de informações, quase sempre vulgares e
degradantes, mas na precisão sutil com que se
mostram as ideias. O perigo do movimento realista
é haver quem suponha que o traço grosso é o traço
exato, conclui Machado e sem maiores delongas
(LUCCHESI, 2012, p. 27).

A citação é um emaranhado de textos, para se libertar do cipoal


de referências e alusões, o leitor precisa ter bom cabedal de leitura. O
romance de Eça de Queirós, O primo Basílio, é citado, a personalidade
e o comportamento de Luísa, uma das protagonistas, são brevemente
esboçados, por conseguinte o narrador passa a comentar o famoso
ensaio de Machado de Assis sobre o romance de Eça, especificamente,
e; finalmente, a abrangência do artigo machadiano, que abarca toda a
escola realista. As palavras destacadas são pinçadas do ensaio de
Machado. Embora soe paradoxal, a narrativa romanesca é formada de
várias vozes que vão se aglutinando, se justapondo, formando um

- 159 -
discurso polifônico pronunciado por uma única voz – a do narrador,
extremamente erudito.
Referências biográficas são relatadas com a precisão de
historiador, momentos da vida de Machado de Assis são revelados de
forma sorrateira, como se fizessem parte do enredo, sabemos que

Machado de Assis vive encerrado nas páginas do


Diário do Rio de Janeiro, em meio ao burburinho da
rua do Ouvidor. Escreve da primeira a última linha.
Ocupa todos os espaços possíveis, transcrevendo
notícias, assinadas ou não, criando siglas, folhetins,
editorias. Tenciona deixar o diário para assumir o
posto de primeiro oficial na Secretaria de
Agricultura, prometido por Afonso Celso, após
intermediação de Quintino. O salário modesto e o
excesso de trabalho: nunca houve emprego que
viesse mais a propósito (LUCCHESI, 2012, p. 31).

O trecho biográfico, retirado do romance, descortina as agruras


por que passou nosso maior romancista. Escrevia todas as páginas do
periódico, enquanto labutava como mouro na imprensa, ouvia o
burburinho da Rua do Ouvidor, o desejo de ter emprego mais estável,
que não fosse suscetível às mudanças do mercado, o que acabou por
conquistar, graças a ajuda do amigo, a quem Machado de Assis
agradece –com suas próprias palavras (em itálico) – ao reconhecer a
importância do emprego. Além de ter a vida devassada, Machado
também aparece, de maneira enviesada, nas páginas do romance,
como personagem, ao ler “Dentre as notas de falecimento, uma delas
salta-lhe aos olhos [de Machado de Assis] pela concisão: a missa de

- 160 -
sétimo dia de Helena Augusta” (idem, 32). Sabemos que realmente o
autor de Esaú e Jacó foi copidesque no Diário do Rio de Janeiro e
efetivamente trabalhou na Secretaria de Agricultura, mas que tenha
lido o obituário de Helena Augusta, é invenção da veia ficcionista de
Marco Luacchesi. À medida que o leitor vai se embrenhando nas
páginas do romance, conhece um pouco mais a vida de Machado de
Assis, que traduziu O barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e Os
trabalhadores do mar, de Victor Hugo.
Como já afirmamos, a tese do advogado de defesa de José
Mariano, Bush Varella, é macular o comportamento social de Helena
Augusta, comparando-a à prostituta Lúcia, personagem de Lucíola, de
José de Alencar:

Lucíola salta sobre a mesa e dança, agitando as


longas tranças negras, na retração dos rins, no
requebro sensual. Imita quadros lascivos, o gesto, a
posição, a imagem do gozo, a volúpia que lhe
estremecia o corpo, com a voz que lhe expirava no
flébil suspiro e no beijo soluçante, com a palavra
trêmula que borbulhava dos lábios no delíquio do
êxtase amoroso (LUCCHESI, 2012, p. 123).

Ao analisar a argumentação da defesa, segundo a qual o


comportamento de Helena Augusta era próximo ao de uma prostituta,
o narrador imiscui em seu relato o drama de Lúcia, personagem do
universo alencariano, que por uma questão nobre se prostituiu.
Chama atenção o trecho escolhido, um dos mais emblemáticos do
romance. Acentuando as expressões sensuais, Lúcia sobe na mesa,

- 161 -
onde imita as poses eróticas dos quadros que adornam as paredes da
sala de jantar. Apenas como observação, houve um cochilo do autor
ou problema de impressão? As indagações são feitas, porque a citação
inicia com “Lucíola...”, Ora, Lucíola é o título do romance, deveria vir;
portanto, em itálico, quem salta sobre a mesa é a personagem do
romance – Lúcia.
O romance se desdobra e oferece ao leitor a possibilidade de
ler, concomitantemente, outra(s) obra(s). Requer atenção redobrada,
pois o comportamento das personagens são similares:

Esperidião surpreendera Raimundo no quintal,


junto ao muro, enquanto Helena se escondia sob o
caramanchão. Quase o idílio de Senhora, quando
Aurélia Camargo conduziu o marido a um
caramanchão que havia no meio da chácara. Idílio
perfeito, não fosse Helena Augusta uma mulher
casada (LUCCHESI, 2012, p. 84).

Outro romance de José de Alencar espelha o de Marco


Lucchesi; nesse caso, Senhora. As passagens são similares, se
confundem. As duas personagens, Aurélia e Helena Augusta,
conduzem; uma, o marido; a outra, o amante(?), ao caramanchão. As
passagens e trechos retirados e comentados ilustram as
intertextualidades que O Dom do Crime estabelece com vários
romances oitocentistas. Permeado de citações, de referências, de
temas similares, de alusões, de comentários históricos e biográficos,
ratifica as palavras de Linda Hutcheon, embora contemporâneo, o

- 162 -
romance “apresenta uma sensação da presença do passado, mas de
um passado que só pode ser conhecido a partir de seus textos, de seus
vestígios – sejam literários ou históricos” (Hutcheon, 1991, p. 164).
Não nos propusemos a recensear a obra, ou seja, trazer todas as
passagens nas quais o romance dialoga com outras obras, o que seria
cansativo e entediante, focamos algumas das diversas faces que a obra
demonstra, conscientes da precariedade da abordagem, pois o
romance é rico e se oferece a outras leituras.

- 163 -
Referências

HELENA, Lucia. O silêncio, o alarido e o cosmopolitismo. In Ficções do


desassossego: fragmentos da solidão contemporânea. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2010, p. 23- 42.

HUMPHREY, Robert. As formas. In O fluxo da consciência. Trad. De


Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976, p. 77-101.

HUTCHEON, Linda. A intertextualidade, a paródia e os discursos da


história. In Poética do Pós-Modernismo. Tradução de Ricardo Cruz.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991, p. 163-182.

LUCCHESI, Marco. O Dom do Crime. Rio de Janeiro: Editora Record,


2012.

RESENDE, Beatriz. Bernardo Carvalho e o trágico radical. In


Contemporâneos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra e Biblioteca
Nacional, 2008, p. 77-92.

- 164 -
PARTE II - Questões de gênero e

intertextualidade

- 165 -
- 166 -
Personagens femininas míticas, lendárias e históricas
presentes no romance Noites no circo

Ludmilla Carvalho Fonseca50

Noites no Circo: elementos de uma narrativa feminina


O romance está organizado em três partes, sendo essas:
Londres (contendo cinco capítulos), Petersburgo (dotada de onze
capítulos) e Sibéria (organizada em onze capítulos). A primeira parte
do romance se passa em Londres, em 1899. A narrativa inicia com a
personagem protagonista Fevvers dando entrevista ao jornalista Jack
Walser, que se propõe, através de uma série de perguntas, dentro de
longas horas, descobrir se ela realmente possui asas. Fevvers é a
trapezista mais famosa da época, e bastante aclamada pelo público.
Esta, por sua vez, recebe um convite para realizar uma gigantesca
turnê pelo mundo, passando pela Rússia, Japão e Estados Unidos.
Ao longo da entrevista, Fevvers, acompanhada da sua mãe
adotiva, Lizzie, conta a trajetória da sua vida. Ela diz ao jornalista que
fora encontrada por Lizzie numa escada em Londres, embrulhada em
palhas. Esta, por sua vez, leva a bebê ao prostíbulo em que morava.

50
Bolsista da Fapesp; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, Unesp
- Assis.

- 167 -
Lizzie, por ter acabado de perder um bebê, tem a possibilidade de
amamentá-la. A trapezista descreve o quão aconchegante e agradável
era o lar onde habitavam, chamado de Casa da Mamãe Nelson, em
virtude de ser gerenciada pela senhora que as meninas assim
apelidaram por ela se vestir como homem, utilizar um tampão de
pirata sobre os olhos e uma espada na cintura. Fevvers conta como era
o dia-a-dia das colegas prostitutas, descreve o ambiente e ainda narra
os momentos em que passou sua infância, trabalhando como cupido,
vestida de anjo, até o momento em que aprendeu a voar, já na
adolescência.
Os dias felizes nessa casa foram interrompidos pela morte
inesperada da Mamãe Nelson. Cada uma das colegas prostitutas
seguiu o seu caminho. Fevvers e Lizzie foram acolhidas pela sua irmã,
Isotta, numa casa humilde e aconchegante em Battersea. Devido às
grandes dificuldades financeiras, Fevvers aceita o convite para
trabalhar na casa de Madame Shreck, para se exibir junto com outras
criaturas diferentes numa espécie de Circo dos Horrores. Madame
Shreck vende a trapezista para o senhor Rosencreutz, que planeja
sacrificá-la em um ritual. Ela consegue fugir desse sufoco, com êxito.
O jornalista Walser, após concluir a entrevista no camarim de
Fevvers, resolve seguir viagem para a Rússia como o mais novo
integrante do circo, infiltrado para fazer uma reportagem sobre as
aventuras das noites no circo, e para ficar mais próximo da trapezista.

- 168 -
Quando inicia a narrativa da segunda parte, as personagens do
circo já estão em São Petersburgo. São apresentadas as personagens
do circo, como: os palhaços, Sansão, a Princesa da Abissínia, e os
animais que compõem o espetáculo do circo do Coronel Kearney.
Nesse momento da obra, é apresentado o beco dos palhaços, as
características de cada integrante deste grupo, e o cotidiano caótico
desses trabalhadores circenses, no qual Walser se encontra inserido.
É abordada, também, a história da personagem Mignon, uma
adolescente órfã que passa boa parte de sua vida nas ruas, e que sofre
violência sexual. Fevvers a acolhe e, por meio do Coronel, a insere no
mundo do circo, descobrindo o talento da menina de cantar e dançar
com tigres. Ocorre um conflito no interior da trupe circense entre os
Charivaris, milenar grupo de equilibristas, e Fevvers. Eles pretendiam
descobrir e revelar o segredo dela ao executar as manobras aéreas.
Após vários conflitos, e devido à sua posição de estrela do espetáculo,
o Coronel opta por demitir os Charivaris.
Após o êxito do espetáculo em Petersburgo, Fevvers cede ao
convite de jantar com o Coronel Kearney, em troca de um colar de
diamantes. Após o jantar, o Coronel tenta abusar sexualmente de
Fevvers. Não aceitando a situação, ela foge em direção ao trem que
parte para a Sibéria.
Nesta terceira e última parte, o trem transportando todos os
integrantes da trupe sofre um atentado no curso da Ferrovia
Transbaicália, numa região erma da Sibéria. O atentado havia sido

- 169 -
cometido pelos bandoleiros camponeses, justiceiros fugitivos que
haviam vingado o estupro de suas mulheres por parte dos soldados do
exército russo e dos seus patrões. Tais camponeses raptaram a trupe
interessados na figura famosa de Fevvers. Eles acreditavam, devido a
um engano promovido pelo Coronel, numa propaganda de marketing
do circo, que a trapezista teria relações íntimas com a família real
inglesa, podendo interceder por eles, que suplicavam perdão por parte
do Czar russo, para que pudessem retornar às suas terras.
Um grupo de prisioneiras fugitivas encontram o trem,
pertencente ao circo, destroçado, na linha Transbaicália. Nos
escombros, elas encontram Walser, que havia perdido a memória em
virtude de uma pancada na cabeça, e o alimenta. Após se despedirem
do jornalista, ele vagueia pelo deserto siberiano até encontrar um
xamã, e passa a viver com a sua comunidade.
No acampamento dos bandoleiros, após descobrirem que
Fevvers não tinha relações íntimas com a rainha Vitória e por isso não
podia ajudá-los, eles se frustram, se revoltam e se embebedam
cantarolando com os palhaços do circo que os animam com uma
canção fúnebre. Nesse momento, vem uma grande tempestade e
todos os palhaços e bandoleiros desaparecem. A trapezista, Lizzie,
Sansão, o Coronel e sua porca Sybil, o Fugitivo, a Princesa, Mingnon,
além de um cachorro dos palhaços que escapou da tempestade
seguiram sem direção até encontrarem uma cabana, habitada por um
velho maestro.

- 170 -
Fevvers passa alguns dias nessa cabana com seus
companheiros e, concomitantemente, Walser passa a viver na aldeia.
Após a partida do Coronel e do Fugitivo, Fevvers e sua mãe começam
a fazer uma caminhada e encontram outra cabana com uma jovem
febril e um bebê faminto. Ao socorrê-las, Fevvers decide levar a
mulher, e Lizzie, carregar o bebê. Após uma pequena caminhada, elas
se deparam com uma aldeia, entram na casa do xamã e interrompem
um ritual. As luzes se apagam e ocorre um conflito. Quando a luz é
acesa, Fevvers se depara com Walser.
Após esse episódio, há o desfecho do romance com a volta da
memória de Walser. Fevvers e o jornalista, enfim, passam a viver
juntos na aldeia com os demais. O casal declara o amor um pelo outro,
numa radiante alegria. Passam a integrar a vida naquela comunidade,
da qual Lizzie envolve-se com os problemas.
Dentre vários elementos, um chama bastante atenção ao tratar
da relação que as mulheres que habitam a casa da Mamãe Nelson têm
entre si, quando estão imersas num ambiente essencialmente
feminino, e elas não estão trabalhando como prostitutas à noite.
Durante o dia, as moradoras têm o tempo livre para ler, estudar, tocar
instrumentos, enfim, passar o tempo da forma como preferem.
A Mamãe Nelson oferece completa liberdade às suas meninas,
apenas se portando com firmeza e rigor diante dos clientes. A casa é
descrita por Lizzie e Fevvers como um verdadeiro lar, harmônico e
onde é respeitada a individualidade de todas as garotas, que podem

- 171 -
usufruir de todos os prazeres sem serem conduzidas a seguir um
padrão de vida social pré-estabelecido, podendo beber vinhos todos
os dias, realizar as atividades individuais e os serviços domésticos sem
horários definidos, ou seja, o tempo do relógio não é seguido. Essa
despreocupação com o tempo linear é representada pelo relógio de
parede da sala que sempre marca a mesma hora.

Esse relógio, se poderia dizer, era o símbolo, ou a


representação, do pequeno reino particular de
Mamãe Nelson. Era uma figura do Pai Tempo com
uma grande foice numa das mãos e uma caveira na
outra, acima de um mostrador em que os ponteiros
permaneciam sempre à meia-noite ou ao meio-dia,
o ponteiro dos minutos e o ponteiro das horas
perpetuamente unidos como que em oração, pois
Mamãe Nelson dizia que o relógio da sua sala de
recepção devia marcar o ponto morto do dia ou da
noite, a hora sem sombra, a hora da visão e da
revelação, a hora serena no centro da tempestade
do tempo (CARTER, 1991, p. 34).

A casa é apresentada como um território íntimo das mulheres,


sempre fechada para os olhos do mundo exterior, e voltada ao
universo feminino interior. É um navio errante nos oceanos da
liberdade, comandado por uma almirante libertária, às avessas do
mundo masculino austero, do poder e da conquista territorial de
mundos distantes. A casa pode ser associada ao que Elaine Showalter
(1994, p. 48) denomina de território selvagem, assim

- 172 -
Podemos pensar na “zona selvagem” da cultura das
mulheres espacial, experimental ou
metafisicamente. Espacialmente ela significa uma
área só de mulheres, um lugar proibido para os
homens, que corresponde à zona em que X [grupo
dominante masculino] está fora dos limites das
mulheres. Experimentalmente, significa os aspectos
dos estilos de vida feminino que estão do lado de
fora e diferenciam-se daqueles dos homens; [...].
Mas, se pensamos na zona selvagem
metafisicamente, ou em termos de consciência, não
há espaço masculino correspondente, já que tudo na
consciência masculina está dentro do círculo da
estrutura dominante e, desta forma, acessível à
linguagem ou estruturada por ela.

No território selvagem feminino, manifesta-se um cotidiano


diferente daquele masculino. Nesse caso, ocorre a impossibilidade de
os homens terem acesso a esse universo genuinamente feminino,
cabendo a eles apenas imaginar como se configura esse território. Isso
pode ser exemplificado no romance quando o jornalista Walser busca
compreender o que configura o universo feminino de Fevvers.
Um outro tema abordado no romance, e essencial para ser
discutido, é a imposição do poder físico, psicológico e econômico
masculino sobre a mulher. Duas personagens são vítimas de violência
sexual. Fevvers é apalpada nos seios pelo empregado do senhor
Rosencreutz, quando desce da condução que a leva a este senhor que
pretende seduzi-la para depois sacrificá-la em uma seita androgênica.
A personagem também é violentada pelo Coronel Kearney. Mignon é
praticamente uma criança e sempre foi vítima de violência sexual,

- 173 -
além disso, para sobreviver, se torna alvo de estupro e prostituição.
Mignon e a irmã viviam em um orfanato, onde trabalhavam e sofriam
maus tratos.

Suportou isso por seis meses, porque era inverno e a


casa onde estava como criadinha ficava cravada no
interior, no meio da neve. Mas quando chegou a
primavera, ela fugiu e um camponês que levava um
carregamento de repolho para a cidade lhe deu uma
carona em troca de lhe chupar o pinto (CARTER,
1991, p. 151).
Assim, roubava um pouco e, por uns cobres,
esvaziava rapidamente garotos nervosos em becos
afastados e, por uns cobres mais, deixava que
metessem nela contra paredes sombrias. A essa
altura, teria uns catorze anos (CARTER, 1991, p. 152).

O romance é marcado por debates em torno da teoria social


crítica revolucionária, de base libertária, como também, e mais
central, a discussão acerca do feminismo. Lizzie se mostra, através do
seu discurso bem elaborado, uma profunda leitora e entendedora das
teorias e práticas libertárias revolucionárias, sendo citados, ao longo
do texto, autores da envergadura de Godwin e Kropotkin. Ela também
se apresenta engajada na causa feminista, que, assim como todas as
integrantes da casa da Mamãe Nelson, se portava como sufragista.
Nesse caso, pode-se detectar que o feminismo constituído no interior
da obra está vinculado à Primeira Onda.
Tanto Lizzie quanto Fevvers possuem um discurso de
emancipação da mulher. Dentro desse discurso emancipatório, elas

- 174 -
propõem todo tipo de autonomia, seja das questões financeiras, da
busca pela liberdade, pelo prazer, pela felicidade, desvinculadas do
discurso e do poder masculinos. Elas despertam, através da leitura,
uma espécie de fulgor, ânsia pela luta, pela liberdade da mulher, como
uma nova condição existencial do ser feminino. Com base na
argumentação de Cleide Rapucci (2007, p. 2),

Nesse contexto patriarcal, as heroínas carterianas


dos romances tiveram que aprender a adquirir
autonomia e autossuficiência. A mulher carteriana
quer ser uma-em-si-mesma, e tem que aprender a
fazê-lo dentro das circunstâncias. E essa é uma tarefa
cíclica, que se faz num eterno jogo de perde-ganha.

Encontra-se no romance uma crítica ao posicionamento


machista, como por exemplo, o do escritor Baudelaire. Além dessa
crítica, é enfatizada a defesa do sufragismo e de outras táticas
revolucionárias como alternativas da libertação da mulher.

– O poeta francês, meu senhor. Um pobre sujeito


que amava as prostitutas não pelo prazer da coisa
mas, da maneira como ele entendia, pelo horror da
coisa, como se não fôssemos mulheres
trabalhadoras fazendo isso por dinheiro mas almas
danadas que atraíam os homens para a sua ruína,
como se não tivéssemos nada melhor para fazer...
Porém naquela casa éramos todas sufragistas. Oh,
Nelson era uma das “Votos para as Mulheres”, posso
lhe dizer (CARTER, 1991, p. 45).

A metáfora das asas da mulher pássaro denota poder, força, do


vigor, território, discurso, alegria, vivacidade, afetuosidade que as
- 175 -
mulheres portam consigo. Pode-se chegar à reflexão, a partir da leitura
do romance, que, enquanto mulheres, todas nós temos que criar asas
como Fevvers para buscarmos nosso território selvagem.

As personagens femininas míticas, lendárias e históricas


Em Noites no Circo, são encontrados procedimentos de
intertextualidade, como a paródia e a alusão. Este último é o objeto de
análise deste trabalho, no qual pretende-se abordar as personagens
míticas, lendárias e históricas referenciadas por Carter no Romance. De
acordo com Tiphaine Samoyault (2008, p. 50),

A alusão pode também remeter a um texto anterior


sem marcar a heterogeneidade tanto quanto a
citação. [...] Não plenamente visível, ela pode
permitir uma conivência entre o autor e o leitor que
chega a identificá-la. A alusão depende mais do
efeito de leitura que as outras práticas intertextuais:
tanto pode não ser lida como pode também o ser
onde não existe. A percepção da alusão é
frequentemente subjetiva e seu desvendamento
raramente necessário para a compreensão do texto.

No texto de Carter, pode-se encontrar a combinação da paródia


com a alusão. Esta por si só não daria o tom diferenciado se não fosse
aliada à paródia. Alusões ao Almirante Horatio Nelson, à Helena de
Tróia, à Princesa da Abissínia, dentre outras personagens, adquirem
um caráter subversivo, caracterizando a obra da autora como um texto

- 176 -
dissidente, vinculado à proposta da literatura pós-moderna, no sentido
dado por Linda Hutcheon (1991).
Quatro categorias distintas, nominal, pessoal, histórica e
textual, possibilitam a Earl Miner (1990), autor de Comparative Poetics,
classificar os tipos de alusões, que podem ser observados no quadro a
seguir:

Tipos de Objeto referenciado Ocorrências em Noites no


alusão Circo
Alusão Ocorre quando o autor se Quando a autora alude a
nominal refere a um nome próprio do Shakespeare.
conhecimento geral.
Alusão Ocorre quando há Jack Walser exerce a
pessoal referências restritas à vida função de jornalista, assim
privada do próprio autor. como Carter já havia
exercido.
Alusão Ocorre quando há referência Referência à Grande
histórica a acontecimentos passados Exposição Universal.
ou recentes.
Alusão Ocorre quando há referência Referência à personagem
textual a textos pré-existentes na Ismael, de Moby Dick.
tradição literária.

A partir do que foi exposto sobre alusão textual, propõem-se,


neste momento, abordar as personagens femininas míticas, lendárias
e históricas referenciadas ao longo do romance, no intuito de
demonstrar que Noites no Circo é marcado pelo procedimento da
alusão, favorecendo a autora a construir um texto caracterizado pela
intertextualidade.

- 177 -
Tomando como base os trabalhos de Hibbert (1995) e Hayward
(2003), Horatio Nelson (1758 – 1805) foi um oficial britânico da
Marinha Real Britânica, famoso pelas suas intervenções nas Guerras
Napoleônicas. Ganhou várias batalhas, das quais se destaca a Batalha
de Trafalgar, em 1805, durante a qual, foi morto.
Nelson, no leito da morte, disse: Kiss me, Hardy; o capitão
ajoelhou-se a seu lado e beijou-o na face. No romance, Mamãe Nelson
é a alusão ao Almirante Horatio Nelson. Apesar deste ser uma figura
histórica masculina, no romance, é transfigurado na personagem
feminina da mamãe heroica do prostíbulo. Pode-se destacar no
romance o fragmento que narra o atropelamento da mamãe Nelson
por uma carroça de cervejeiro, momento em que é feita a relação entre
a morte do almirante e a morte da dona do prostíbulo. “ – Morta na
chegada ao hospital, coitadinha – Lizzie intrometeu-se, como um sino
rachado. – Não houve oportunidade sequer para um “Beije-me,
Hardy”, ou para últimas palavras ternas como essas” (CARTER, 1991, p.
52).
Em momento anterior na narrativa é possível encontrar uma
passagem que estabelece relação entre o navio do Almirante Nelson e
a casa da mamãe Nelson. Havendo, por sua vez, uma inversão da figura
austera do comando do almirante para a figura excêntrica da gestão
libertária da mamãe, como também, a inversão dos valores dos
homens comandantes do navio, a serviço do império, para mulheres
piratas numa casa onde prevalece a liberdade, a serviço do prazer.

- 178 -
[...] – Tinha uma excentricidade, meu senhor. Por
causa da sua alcunha, ou apelido, ela sempre se
vestia como o uniforme de gala de almirante-
comandante-de-esquadra. Nunca deixava escapar
uma brincadeira, seu único olho era muito perspicaz,
e costumava dizer sempre: “Cuido de um naviozinho
estanque”. Seu navio, seu navio de guerra, embora às
vezes ela risse e dissesse: “Era um navio de piratas e
navegava com bandeira falsa”, sua barca de prazer
que estava ancorada, dentre todos os lugares
inverossímeis no preguiçoso Tâmisa (CARTER, 1991,
p. 38).

Uma outra alusão encontrada no romance refere-se à deusa


Sophia (o nome de batismo de Fevvers é Sophie). Com base no
Dicionário de Mitologia Grega Romana, de Gama Kury (2008), Sophia
(em grego: Σοφία) é aquela que detém o saber. Deusa da sabedoria e
espiritualidade feminina.
A protagonista Fevvers, ao longo da narrativa, se autodenomina
Vênus Cockney. Ela faz uma junção da deusa do amor e do prazer com
a região de sua origem, no East End de Londres. A região habitada
pelos falantes cockneys é caracterizada por possuir cultura, costumes
e linguagem diferenciados do resto da capital londrina.
Vênus é a deusa do panteão romano, equivalente à Afrodite no
panteão grego. Deusa do amor e da beleza. Para Kury (2008, p. 400), é
uma divindade antiquíssima, cultuada num santuário perto de Árdea,
construído antes da fundação de Roma. “A partir do século II d.C. Vênus

- 179 -
aparece totalmente assimilada à Afrodite dos gregos, quer em seus
atributos, quer em suas lendas”.
O poeta Lucrécio (1964, p. 19) irá dedicar sua obra De la nature
à Venus, realizando uma saudação, momento em que relaciona o papel
da deusa ao sentimento de amor e prazer. “O Mère d’Enée et de sa
race, plaisir des hommes et des dieux, bienfaisante Vénus, toi sous les
signes errants du ciel, peuples la mer porteuse de vaisseux et les terres
aux riches moissons!”
Na obra, Fevvers é aludida à Flora pela personagem Sr.
Rosencreutz, durante um ritual pagão em que o velho pretende
assassiná-la. “- ‘Flora!’, exclama. ‘Espírito veloz do mundo que
desperta! Alado e aspirando ao alto! Flora, Azrael, Vênus Pandemos!
Esses são só alguns dos muitos nomes com que eu poderia honrar a
minha deusa, mas esta noite eu a chamarei de ‘Flora’, muitas vezes,
pois não sabe que noite é, Flora?’” (CARTER, 1991, p. 91).
Flora, na mitologia romana, é uma ninfa das Ilhas Afortunadas.
Esposa de Zéfiro e deusa das flores. É a potência da natureza que faz
florir as árvores e preside a tudo que floresce. Segundo Kury (2008, p.
155) ela é “uma das divindades mais antigas da Itália central, que
presidia a floração primaveril, desde a dos cereais até a das árvores
frutíferas de todas as espécies e principalmente da videira, e o
desabrochar das flores puramente ornamentais”.
Além da alusão à Flora, encontra-se uma referência à Vitória de
Samotrácia quando a protagonista tomou consciência de que poderia

- 180 -
voar, se intitulando de Vitória Alada. Ao entrar no quarto e ver a
dimensão das asas de Fevvers, mamãe Nelson reconhece nela o
nascimento do símbolo da libertação feminina do novo século, e diz:

– “Oh, minha filhinha, acho que você deve ser a filha


imaculada do século que neste exato momento está
aguardando nos bastidores, a Nova Era em que
nenhuma mulher será completamente acorrentada”.
Depois, ela chorou. Naquela noite, jogamos fora os
arcos e as flechas e, pela primeira vez, me fiz passar
pela Vitória Alada [...] (CARTER, 1991, p. 29).

A Vitória de Samotrácia, também conhecida como Nice de


Samotrácia, é uma escultura de 3,28 metros, que representa a deusa
grega Nice, cujos pedaços foram descobertos em 1863 nas ruínas do
Santuário dos grandes deuses de Samotrácia. Fazia parte de uma fonte,
com a forma de proa de embarcação, em pedra calcária, doada ao
santuário pela cidade de Rodes. Atualmente, ela ocupa lugar de
destaque numa escadaria do Museu do Louvre, em Paris (HAMIAUX,
2007).
Conforme destaca Kury (2008), Prosérpina, na mitologia grega,
é filha de Júpiter com Ceres, uma das mais belas deusas de Roma.
Enquanto colhia flores, foi raptada por Plutão, que a fez sua esposa.
Sua mãe, desesperada com o desaparecimento da filha, caiu numa
fúria terrível, destruindo as colheitas e as terras. Somente a pedido de
Júpiter, acedeu a devolver a vida às plantas, exigindo, no entanto, que
Plutão lhe devolvesse a filha. Como, por um ardil deste último,

- 181 -
Prosérpina havia comido um bago de romã, não poderia abandonar o
submundo de forma definitiva. Acabou por se encontrar uma solução
do agrado de todos: Prosérpina passaria metade do ano debaixo da
terra, no submundo, na companhia do marido - corresponde essa
época, ao inverno, quando Ceres, desolada, descuida da Natureza,
deixando morrer as plantas - e a outra metade do ano à superfície, na
companhia da mãe - corresponde ao verão, quando a natureza
renasce, fruto da alegria de Ceres.
Em Noites no Circo, ao receber Fevvers, que havia sido raptada
pelos homens do Sr. Rosencreutz, este a compara a um anjo e,
também, à Prosérpina, dizendo: “Azrael, Azrail, Ashriel, Azriel, Azaril,
Gabriel, anjo negro de muitos nomes. Bem-vinda a mim, de sua
morada no terceiro céu. Veja, eu a recebe com rosas não menos
paradoxalmente vernais do que a sua presença, que, como Prosépina,
vem da Terra dos Mortos para anunciar a nova vida!” (CARTER, 1991,
p. 88).
O romance inicia-se com a personagem Fevvers se comparando
com Helena de Tróia. Na mitologia grega, Helena era filha de Zeus e de
Leda. Quando tinha onze anos foi raptada pelo herói Teseu. Porém,
seus irmãos Castor e Pólux a levaram de volta a Esparta. “Em Homero
Helena esteve em Tróia durante os dez anos da guerra, vivendo com
Páris como sua esposa” (KURY, 2008, p. 177). Possuía a reputação de
mulher mais bela do mundo. Posteriormente, Helena se casou com
Menelau, que se tornou rei de Esparta. Lídia Moreira (2011, p. 10 – 11)

- 182 -
discorre sobre a comparação entre Helena e Fevvers, porém destaca o
caráter subversivo de Carter, que buscou construir uma Helena às
avessas, pois a protagonista não tem a boa aparência de Helena, sendo
uma mulher livre e independente, controlando seu próprio destino.

Angela Carter dá ao mundo uma nova Helena e,


portanto, um novo paradigma de feminilidade, ao
desmistificar a personagem. Fevvers é, de fato,
parecida com Helena, a mulher mais desejada de seu
tempo. Entretanto, embora ela seja femme-fatale
daquele momento, Fevvers está longe de ser
fascinantemente como Helena: ela é mais alta que a
maioria das mulheres, não tem boas maneiras e seus
traços faciais e maquiagem são tão que Walser,
quando eles se conhecem, até se pergunta se Fevvers
não é na verdade um homem. Além disso, ela tem
protuberâncias grotescas debaixo do vestido, uma
lembrança de sua condição bizarra de mulher-
pássaro.

Ao tomar banho na mansão do Sr. Rosencreutz, Fevvers se


compara à Lady Godiva. “Assim, eu os penteei e me cobri toda com eles
[cabelos] da mesma forma que Lady Godiva insubstancial porém
modestamente se vestiu em sua célebre cavalgada através de
Conventry. Eu tinha mais cabelos do que o suficiente para me esconder
[...]” (CARTER, 1991, p. 90). Nesse momento, a mulher pássaro utiliza
de um traço feminino para se proteger das intenções do velho,
cortando sua farta e longa trança para enrolá-la na cintura, prendendo
suas asas. Desse modo, ela consegue criar uma estratégia de proteção
do agressor.

- 183 -
Segundo Daniel Donoghue (2003), Lady Godiva (Mércia, cerca
de 990 – Coventry, 1067) foi uma aristocrata anglo-saxônica, esposa de
Leofric (968–1057), Duque da Mércia, que, de acordo com a lenda,
cavalgou nua pelas ruas de Coventry, Inglaterra, na intenção de coibir
o excesso da cobrança de impostos que seu marido iria realizar na
comunidade em que vivia. Esse gesto a transformou em um ícone em
defesa da igualdade e justiça no Reino Unido.
Numa passagem da segunda parte do romance, a velha
babusca conta ao seu neto a história de um porco que fora a São
Petersburgo para rezar. Com dores e impaciente, devido às dificuldades
da vida, e sem encantamento para contar a história, ela a conclui com
certo desprezo e descompromisso. Quando Ivanzinho pergunta “o que
aconteceu com o porco?”, a velha responde: “o lobo comeu”. Dessa
forma, o narrador argumenta que a velha não é nenhuma Sherazade
para ter capacidade de contar as histórias com dedicação e
criatividade.
Sherazade é uma lendária rainha persa e narradora dos contos
de As Mil e Uma Noites. Segundo a lenda da antiga Pérsia, Sherazade,
com sua beleza e inteligência, fascinou o rei ao narrar histórias
fantásticas por mil e uma noites, poupou sua vida e ganhou o eterno
amor do Rei Shariar.
Sobre o papel de Sherazade como um voz feminina que soube
mudar a situação de dominação masculina, demarcando um estilo na

- 184 -
literatura árabe, sobretudo no que diz respeito ao seu poder de
narrativa e ao prazer de narrar, Cláudia Felícia Ferreira (2011, p. 1) diz:

Eternizada pela tradição, ela é uma das vozes


femininas mais antigas e poderosas do mundo árabe.
Sherazade encarna o intelecto da Mulher e a quem a
palavra libertou, fez (e faz) viajar o imaginário
universal e aproveitou para daí obter o passaporte
para a vida. Mas essa viagem durou mil e uma
noites... Dias e noites são o destino de quem quer
viver.

Na obra, é possível encontrar também referência a


personagens históricas, como a Princesa da Abissínia. Personagem
integrante do circo, pianista e domadora de tigres, a jovem aprendera
piano com a mãe e a arte de domar os felinos com o pai, que dizia ter
nascido na Etiópia, mas na verdade ele era da cidade do Rio de Janeiro,
e sua mãe, natural de Guadalupe. Pode-se comparar o ato de domar
tigres da jovem princesa com a política de equilíbrio promovida pela
monarca da Abissínia, domando as forças conflituosas internas do país.
Também é possível destacar a desconstrução da ideia de nativismo dos
governos africanos, através da família circense da personagem, que
tem um pai brasileiro, uma mãe mexicana, nasce na França e viaja pelo
mundo, dando ênfase ao cosmopolitismo pós-moderno.
Bahru Zewde (2001), ao abordar a história da Etiópia, destaca a
importância do governo da princesa da Abissínia, conforme era
conhecida a Princesa Zauditu (1876 – 1930). Ela foi a Imperatriz da
Etiópia, de 27 de setembro de 1916 a 1 de março de 1930, tendo sido

- 185 -
a primeira mulher a reinar sobre aquele país, em tempos modernos.
Fez um governo de equilíbrio entre as forças políticas antagônicas
internas. A monarca incentivou o fortalecimento dos Ras Tafari no
interior do regime político, acabando sendo substituída, mais tarde,
pelos próprios Ras Tafari.

Considerações finais
Noites no Circo, penúltimo romance de Carter, demonstra que
no território selvagem, de convivência feminina, estão presentes as
liberdades, enquanto que no território dominante patriarcal, a mulher
está vulnerável. Porém, a autora propõe como saída a independência,
a autonomia e a disposição das mulheres em lutar diante dos conflitos
impostos pelo modelo de sociedade opressor, autoritário, machista,
homogêneo e violento.
Um outro aspecto relevante no romance é o uso do
procedimento intertextual da alusão, que permite a autora comparar
personagens míticas, lendárias e históricas com as personagens
femininas do romance, propondo, ao combinar alusão à paródia, um
discurso subversivo como forma de alteração dos valores sociais
dominantes.

- 186 -
Referências

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Mulher e Literatura. V Seminário Internacional Mulher e Literatura.
Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília: Universidade
de Brasília, 4, 5 e 6 de agosto de 2011.

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- 187 -
Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Brasília: Universidade
de Brasília, 4, 5 e 6 de agosto de 2011.

RAPUCCI, C. A. A velha garota sábia: a conquista do espaço feminino


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da ABRAPUI. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 1 – 10.

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feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

ZEWDE, B. A history of modern Ethiopia. Oxford: James Curry, 2001.

- 188 -
Sobre Shakespeare, Veríssimo e Travestilidade: relações
intertextuais entre Noite de reis e a Décima segunda noite

Giovane Alves de Souza51


Caio Antônio de Medeiros Nóbrega Nunes Gomes52

Introdução
Ao tratar do humano e da relação deste consigo mesmo, com
os outros e com seus muitos espaços-tempos, a literatura se articula
fortemente com uma noção de realidade. Concepções de mimeses,
representação e realismo já buscaram apresentar as maneiras pelas
quais textos literários “oferecem uma janela para o mundo ou (nas
palavras de Hamlet) seguram um espelho em direção à natureza”
(BENNETT; ROYLE, 2004, p. 27). É inegável, como argumenta a teórica
Tiphaine Samoyault (2008, p. 9), que “[a] literatura se escreve
certamente numa relação com o mundo”. Textos literários, porém, em
uma em uma das suas mais substanciais potencialidades, podem nos
remeter referencialmente a outros textos – e às realidades, aos
mundos destes outros textos –, de modo que podemos afirmar que a

51
Aluno de Graduação em Letras (habilitação em língua inglesa) na Universidade
Estadual da Paraíba – Campus III.Email: giovane.oficial@hotmail.com
52
Mestrando do Curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Bolsista do
CNPq. Email: caioamnobrega@gmail.com

- 189 -
literatura “também apresenta-se numa relação consigo mesma, com
sua história, com a história de suas produções, a longa caminhada de
suas origens” (SAMOYAULT, 2008, p. 9).
O termo intertextualidade foi cunhado para se referir à
presença de textos em outros textos, às relações estabelecidas entre
eles. Neste artigo, objetivamos exatamente analisar as relações
intertextuais entre A décima segunda noite, romance de Luis Fernando
Veríssimo publicado em 2006, e uma das mais memoráveis peças de
William Shakespeare, a comédia Noite de Reis, escrita e encenada pela
primeira vez em 1602. Em nosso percurso analítico, daremos atenção
às referências que Veríssimo propôs em seu romance à peça
shakespeariana, especialmente em relação a como a questão da
travestilidade foi representada em ambos os textos, e atualizada na
narrativa contemporânea.
Convém ressaltar que a análise das produções literárias destes
autores nos permite estabelecer uma relação entre ambas em termos
de uma transcontextualização paródica. Assim, o desenvolvimento de
nossa análise crítico-comparativa nos permitirá uma compreensão dos
contextos de ambos os textos, de forma que percebamos como a
paródia se articulou no texto contemporâneo e quais sentidos
podemos depreender de tal articulação.
Assim, primeiramente teceremos alguns comentários gerais
sobre a intertextualidade e especificamente sobre a forma intertextual

- 190 -
da paródia. Em seguida, passaremos à análise do romance de
Veríssimo e da peça de Shakespeare.

Intertextualidade e paródia
Tiphaine Samoyault (2008), em seu livro A intertextualidade,
propõe um percurso pelo desenvolvimento teórico e pelas discussões
que levaram ao estabelecimento do conceito de intertextualidade.
Neste percurso, a teórica compreende que o conceito já foi “tão
utilizado, definido, carregado de sentidos diferentes que se tornou
uma noção ambígua do discurso literário” (SAMOYAULT, 2008, p. 9).
De um lado, temos noções mais gerais de intertextualidade, que a
compreendem como um fenômeno inerente a todas as práticas
textuais, como pensado por Mikhail Bakhtin (e sua noção de
dialogismo) e Julia Kristeva (que foi a teórica a cunhar o próprio termo
intertextualidade, em meio às discussões teóricas do pós-
estruturalismo, na França, na década de 1970). Tal concepção ampla
vê o texto como formado por um mosaico de citações, como absorção
e transformação de outros textos. Segundo Samoyault (2008, p. 15),
tal entendimento faz dessa concepção ampla “menos um instrumento
que descreve práticas do que o mecanismo importante de um sistema
que formaliza a produção textual”.
Pouco utilizável na interpretação crítica de textos específicos,
tais discussões mais gerais sobre o fenômeno intertextual foram
seguidas por abordagens mais restritas, que buscaram mapear e

- 191 -
categorizar as diferentes práticas intertextuais. Entre tais práticas,
encontra-se a paródia, o pastiche, a citação, o plágio, a alusão, a
integração, a colagem etc.
Após a leitura dos dois textos que foram o corpus deste artigo,
percebemos que a prática intertextual realizada por Veríssimo em seu
romance em relação à comédia shakespeariana se articula com a
conceituação de paródia da teórica canadense Linda Hutcheon. Assim,
antes de passarmos à análise dos dois textos aqui pretendida,
apontaremos alguns dos pontos mais relevantes em relação à paródia
para Hutcheon.
Em Uma teoria da paródia, a crítica canadense Linda Hutcheon
(1985) propõe um estudo sobre a paródia, levando em consideração
as suas configurações especialmente em relação a textos
contemporâneos. Neste processo, a teórica busca arquitetar o
conceito do que é paródia, desde a desconstrução da própria palavra
em si, até a edificação de seu significado por meio de um exame
minucioso de incursões paródicas nas mais diversas artes e mídias,
chegando ao entendimento de que a paródia é, na sua
“transcontextualiazação” (HUTCHEON, 1985, p. 48), a repetição com
diferença do texto parodiado, abrindo assim um espaço entre o texto
parodiado e o texto paródico.
No estudo, a teórica compreende ainda reconhecer que a
paródia não é um fenômeno restrito apenas ao século XX, contudo a
quantidade de obras que se utilizaram dessa ferramenta neste século

- 192 -
aponta para a relevância que a paródia conquistou neste período.
Hutcheon inicia sua teoria explanando sobre a definição da paródia em
si, que para ela não é tratada de forma justa, pois vai além do que está
expresso em dicionários, por exemplo, a definição do dicionário
Oxford:

Uma composição em prosa ou em verso em que os


estilos característicos do pensamento e fraseado
de um autor, ou classe de autores, são imitados de
maneira a torná-los ridículos, em especial
aplicando-os a temas caricatamente impróprios;
imitação de uma obra tomando, mais ou menos
como modelo o original, mas alterado de maneira
a produzir um efeito ridículo (HUTCHEON, 1985, p.
48).

Segundo a teórica, esta explanação sobre o termo não faz jus


ao seu significado completo, fazendo, assim, que a paródia se limite a
um conceito de ridículo, que não condiz com a sua verdadeira
abrangência, uma vez que não existe uma correlação entre ambos os
termos, como existe, por exemplo, na piada, ou burla, de burlesco
(HUTCHEON, 1985, p. 48). Hutcheon diz ainda que grande parte dos
teóricos que estudam a paródia, limitam-se a definição etimológica da
raiz da palavra parodio, vinda do grego, que significa “contra-canto”,
contudo, o prefixo para, pode significar “ao longo de”, “contra” ou
“oposição”, abrangendo assim uma maior dimensão de sentidos.
Dessa forma, para Hutcheon, é imprescindível o uso de termos mais
justos, até mesmo no que se refere à estrutura formal do termo, uma

- 193 -
vez que a própria palavra em si abre espaço para interpretações mais
vastas.
No que se refere à articulação da paródia, a autora aponta a
ironia como sendo a ferramenta primordial para sua constituição,
atentando para o fato de que, de maneira oposta ao que se concebia
por paródia tradicionalmente, a forma moderna da paródia não
necessariamente permite que uma obra sempre se sobressaia sobre a
outra:

É o facto de diferirem que esta paródia acentua e,


até, dramatiza. A ironia parece ser o principal
mecanismo retórico para despertar a consciência
do leitor para esta dramatização. A ironia participa
no discurso paródico como uma estratégia, no
sentido utilizado por Kenneth Burke [...], que
permite ao descodificador interpretar e avaliar. Por
exemplo, num romance que em muitos aspectos é
uma pedra-de-toque para toda esta reavaliação da
paródia, The French Lieutenant's Woman (A
Amante do Tenente Francês), John Fowles justapõe
as convenções dos romances vitoriano e moderno.
As premissas teológicas e culturais de ambas as
épocas – conforme se manifestam através das suas
formas literárias – são ironicamente comparadas
pelo leitor através do médium da paródia formal
(HUTCHEON, 1985, p. 46-47).

Hutcheon faz ainda referência ao pensamento dos percursores


românticos de Thomas Mann,53 por exemplo, que cientes da dualidade
da obra de arte, acometeram-se a aniquilar o que se concebia por

53
Famoso escritor alemão, é considerado um dos maiores romancistas do século XX.

- 194 -
ilusão artística. Para eles, a ironia se tornou um dos utensílios
primordiais para a instituição de novos níveis de ilusão competentes à
paródia, que nem sempre têm a necessidade de ostentar um caráter
ridicularizador (HUTCHEON, 1985, p. 45).
A autora define ainda a ironia como “uma forma sofisticada de
expressão”, ressaltando que a paródia é um gênero sofisticado em
suas respectivas exigências, fazendo com que assim seus praticantes
tornem-se também intérpretes (HUTCHEON, 1985, p. 50). Durante o
andamento deste processo, Hutcheon diz ainda que, para que haja a
culminância da realização da paródia, é necessário que seja feita uma
sobreposição estrutural das obras parodiadas para com a nova obra,
de forma que o codificador e o descodificador efetuem este processo:

A paródia é igualmente um género sofisticado nas


exigências que faz aos seus praticantes e
intérpretes. O codificador e, depois, o
descodificador, têm de efectuar uma sobreposição
estrutural de textos que incorpore o antigo no
novo. A paródia é uma síntese bitextual [...], ao
contrário de formas mais monotextuais, como o
patiche, que acentuam a semelhança e não a
diferença (HUTCHEON, 1985, p. 50).

Dessa forma, a teórica propõe uma comparação entre a


paródia e a metáfora, considerando que ambas necessitam que um
segundo sentido seja construído pelo descodificador, por meio de
inferências realizadas acerca de afirmações superficiais que
complementem o primeiro plano, usando como ferramentas o

- 195 -
conhecimento e, também, o reconhecimento de um contexto
(HUTCHEON, 1985, p. 50).
Ademais, a autora ainda reforça a ideia de que a literatura não
é a única área no que compete ao uso da paródia, levando em conta
que outras formas de arte já o fizeram. Entretanto, ela afirma que é na
literatura que o uso da paródia melhor se articula, tendo os seus
acontecimentos mais explícitos. Hutcheon explana sobre tal fator
contrastando a literatura com a música moderna, exemplificando o
que ocorre nas capas de discos, onde se recorre a uma maior
exploração da obra, para que assim seja possível tecer uma linha de
conexão entre a nova obra e a lista de obras que foram parodiadas
(HUTCHEON, 1985, p. 46).
Sendo assim, o uso da paródia como ferramenta de elaboração
de um novo texto, a partir de outros textos parodiados, na
modernidade, traz consigo uma conexão intertextual entre o passado
da literatura e os novos textos, por vezes influenciada por grandes
nomes da nossa história e os seus respectivos legados, gerando assim,
uma relação que conecta a literatura moderna com o legado cultural
destes autores e autoras.
Na próxima seção deste artigo, buscaremos os contatos
intertextuais/paródicos entre um texto do início do século XVII e um
texto do início do século XXI – a saber, a comédia shakespeariana Noite
de Reis e o romance A décima segunda noite, do escritor brasileiro Luis
Fernando Veríssimo. Estaremos, assim, vendo como o grande

- 196 -
dramaturgo da literatura inglesa William Shakespeare faz-se presente
na literatura brasileira contemporânea, como seu legado cultural
chega a leitores brasileiros do século XXI.

A travestilidade em Noite de Reis e a décima segunda noite


Noite de Reis (no inglês, Twelfith Night) é uma peça de William
Shakespeare que se refere à décima segunda noite depois do natal, à
noite do dia seis de janeiro, Dia de Reis, quando, seguindo o costume
britânico, encerram-se os festejos natalinos de forma exacerbada, com
muita festa e alvoroço (VIÉGAS-FARIA, 2015, p. 5). A comédia
dramatiza uma série de conflitos amorosos vivenciados pela
personagem Viola, que em meio ao texto shakespeariano, acaba por
se separar de seu irmão gêmeo Sebastião em um naufrágio, e ainda
tem que lidar com a ideia de ver seu amado, o Duque de Ilíria, fazer
juras de amor a outra mulher.
Na peça, Viola se disfarça de homem, muda o seu nome para
Cesário e começa a trabalhar para o duque Orsino como mensageira/-
o, entregando as cartas de amor do Duque à Lady Olívia. Viola pede ao
capitão do navio para que ele a auxilie com a tarefa:

Capitão, tua pessoa mostra boas maneiras, uma


atitude bonita. Embora uma natureza assim, de
belos muros, encerre em si muitas vezes um ar
poluído, estou pronta a acreditar que tens
pensamentos condizentes com tua bela aparência.
Eu te suplico (e te pagarei generosamente):
esconde de todos quem eu sou, e sê meu ajudante,

- 197 -
pois esse disfarce, se der certo, vai tornar-se a
própria forma de meu intento. Vou colocar-me a
serviço desse duque. Vais me apresentar a ele: eu,
um eunuco. Essa incomodação pode valer-te a
pena, pois eu sei cantar, e posso falar com ele
através da música, com vários instrumentos e voz.
Isso vai provar que posso muito bem estar a serviço
dele. O que mais venha a acontecer, eu entrego nas
mãos do tempo. Peço apenas que ajustes o teu
silêncio ao meu engenho (SHAKESPEARE, 2015, p.
15).

Este disfarce de Viola se deu pelo fato de que na época em que


se passa a trama, o papel do indivíduo do gênero feminino na
sociedade era limitado, levando em consideração o patriarcalismo da
época, suprimindo assim, a autonomia do ser do gênero feminino e
limitando-o a áreas restritas da sociedade, num processo que
culminou com a mulher tendo um papel inferior em relação ao
homem:

As restrições de gênero, raciais, étnicas, e classistas


continuavam sendo determinantes, no sentido de
estabelecer como as pessoas deveriam ser tratadas
e o que lhes era facultado fazer, ou seja, esses
fatores ainda delimitavam a esfera de ação da
maioria dos indivíduos e lhes impingiam sanções
legais, sociais e econômicas. Na Inglaterra de
Shakespeare, o homem podia exercer uma grande
variedade de papéis de acordo com suas
possibilidades e capacidades; o desempenho social
da mulher, no entanto, era bastante limitado. Sua
identidade derivava exclusivamente ao sexo ao
qual pertencia: podia ser mãe, esposa ou viúva;

- 198 -
dama ou criada; virgem, prostituta ou bruxa
(CAMATI, 2008, p. 138).

A mudança elaborada pela personagem propõe, então, uma


subversão dos valores da época, invertendo assim o posicionamento
da personagem tal como indivíduo pertencente a um gênero que
ocupava um papel secundário, elaborando a sua ascensão social para
um indivíduo do gênero masculino, ao qual se concebia como superior
nos mais diversos aspectos relativos à sociedade da época, fazendo
com que, dessa forma, ela pudesse conquistar os objetivos almejados
durante a trama.
Viola mantém o seu disfarce, também, para se manter próxima
de Orsino, por quem ela está apaixonada. Contudo, em um dos
momentos da trama, ela se vê diante de uma crise, na qual ela tem
que revelar sua verdadeira identidade a todos, já que Olívia havia
conhecido seu irmão gêmeo, Sebastião, e havia se casado com o
mesmo, que é confundido com ela (Viola/Cesário) durante o decorrer
da história, por conta da semelhança entre ambos:

OLÍVIA- Ai de mim, que a baixeza desse teu medo


obriga-te a sufocar tua real identidade. Não
receies, Cesário! Toma posse da fortuna que te
pertence, sê quem tu sabes que tu és, e assim é que
tu serás grande, tão grande como aquele a quem tu
receias [...] Meu bom Padre, eu vos encarrego,
pessoa de reverência que sois, de revelar, aqui e
agora (apesar de que tivéssemos pretendido
manter no escuro a cerimônia que agora temos de
trazer à luz antes de haver atingido a maturidade),

- 199 -
o que é de vosso conhecimento, ou seja: o que se
passou recentemente entre mim e esse jovem?
(SHAKESPEARE, 2015, p. 127).

A inversão dos papéis de gênero, apresentada na trama, pode-


se assemelhar, inclusive, ao que ocorreu com a rainha Elisabeth, tendo
em vista que antes da mesma assumir o trono da Inglaterra, nunca
houvera outra mulher que obteve o mesmo feito, então houve uma
masculinização da sua imagem, usada pela mesma como uma espécie
de ferramenta para que ela pudesse exercer sua imponência:

Após a morte prematura de Eduardo VI (1537-


1553), e na absoluta falta de um herdeiro
masculino, duas filhas de Henrique VIII (1491-
1547), Maria (1516-1558) e Elisabete (1533-1603),
tornaram-se rainhas, um fenômeno sem
precedentes que até então havia sido impensável
em uma sociedade patriarcal. Em 1558, com a
morte de Maria I e a ascensão de Elisabete I ao
trono, uma era de relativa paz e de prosperidade
transformou a Inglaterra em uma das principais
potências do cenário político da época. Elisabete I
teve poderes absolutos durante o seu reinado, e
com a imagem do soberano-mulher que criou de si
mesma (um “príncipe” com um corpo de mulher e
o coração de um rei), exprimia a ambiguidade dos
papéis fixos supostamente inscritos na natureza do
homem e da mulher (CAMATI, 2008, p. 138-139).

O posicionamento do ser feminino nas obras de Shakespeare


vem sendo questionado desde 1960, a partir do surgimento das
críticas neo-historicista e materialista cultural. Boa parte dos mais
diversos aspectos apresentados na obra shakespeariana veio à tona

- 200 -
sob novas perspectivas, um desses aspectos inclusive era “a
significação do ser mulher nos contextos histórico e cultural da era
elisabetana-jaimesca” (CAMATI, 2008, p. 140). Tal problematização
abriu espaço para uma maior investigação da ótica que Shakespeare
mantinha sobre o papel da mulher em suas obras.
Considerando ainda que Shakespeare atuou durante o reinado
da rainha Elisabete I, uma das primeiras mulheres a assumir o trono da
Inglaterra, não é difícil de imaginar que o autor possa ter sido
influenciado pelo cenário político da época e tenha transferido
características femininas subversivas para as suas obras,
transformando a conjuntura social dos papéis de gênero na época:

[...] não devemos esquecer que, durante grande


parte do período criativo de Shakespeare, a
soberana absoluta foi uma mulher, Elisabete I, fato
que, sem dúvida, repercutiu nas estruturas do
patriarcado, e provocou discussões a respeito dos
papéis sociais dos homens e das mulheres. Através
do questionamento do que é natural e do que é
construção social, Shakespeare mostra presciência
em relação à instituição das mulheres diante dos
estereótipos que lhes eram impostos: ele deu,
muitas vezes, vez e voz à mulher, pois soube
compreender as fraquezas e potencialidades
humanas independentemente de sexo, classe
social ou raça (CAMATI, 2008, p. 141).

Em Noite de Reis, bem como em outras comédias de


Shakespeare, é notável a transgressão da fundamentação dos papéis
femininos. Tal fenômeno é posto em ação através do uso da

- 201 -
transvestilidade, arquitetada pela metateatralidade, ironia e até a
paródia, por exemplo, que quando é posta em uso por suas
personagens, consegue abrir espaço para um maior questionamento
dos papéis de gênero, contradizendo os conceitos tradicionais da
“masculinidade” e “feminilidade” (CAMATI, 2008, p. 142). Este
questionamento surge em Noite de Reis, através do disfarce de Viola,
que, para conseguir trabalhar para o Duque de Ilíria, se vestiu de
homem, adotando uma nova identidade.
O destaque dado ao papel da mulher nas obras de Shakespeare
também pode ser observado através das performances das
personagens Pórcia, Beatriz, Katherina, Adriana, Rosalinda, e até
Julieta, quando a mesma questiona as decisões do pai, contrariando a
rigorosa imagem patriarcal do mesmo. O posicionamento de Julieta é
fator de reconhecimento mundial por críticos da área, que atentam
para subversão do papel feminino perante o acontecimento da
narrativa, quando a mesma prioriza interesses pessoais em
detrimento dos interesses sociais e políticos do pai (CAMATI, 2008, p.
141).
Em A décima segunda noite, porém, as questões de gênero são
mais abrangentes. O romance, que se constitui substancialmente a
partir de uma relação intertextual com Noite de Reis, de William
Shakespeare, conta a história de Violeta, brasileira recém-chegada do
país de origem, que busca uma maneira de sobreviver na França e de
lidar com o recente desaparecimento de seu irmão gêmeo, Sebastião.

- 202 -
O enredo do romance, assim, desde início já se assemelha bastante
com a comédia shakespeariana. Porém, a partir da paródia, como
veremos, torna-se oposto, apesar de paralelo.
No romance, a personagem Violeta, assim como Viola, precisou
se vestir de homem para trabalhar, acabando por adotar a identidade
de César. Violeta irá trabalhar no Ilíria, que, se antes, em Noite de reis,
era o nome de uma ilha, agora é o nome do salão de beleza de Orsino,
por quem Violeta mais tarde se apaixona. No salão Ilíria, Orsino
contratava apenas homens como seus funcionários: “O Orsino só
emprega rapazes nos seus salões. Diz que não é discriminação sexual
porque seus rapazes representam todos os sexos conhecidos e alguns
ainda em fase de experimentação” (VERÍSSIMO, 2006, p. 20).
Tal fator apresentado em A décima segunda noite, remete-nos
aos desafios enfrentados por Viola, mulher da época shakesperiana,
que havia perdido uma forte figura masculina em sua vida e que, a
partir de então, teria que, sozinha, tornar-se responsável por
sobreviver em um novo ambiente desconhecido, e seguir com a sua
vida lidando com a perda de um ente querido.
A “transcontextualiazação” a que se refere Hutcheon fica
evidente na narrativa de Luís Fernando Veríssimo, a partir do
momento em que o autor construiu uma nova trama, baseada na
comédia shakespeariana, repetindo a base do texto parodiado, porém
arquitetando novos traços à história, que se passa, desta vez, em um
contexto mais contemporâneo, na França. O romance, além disso,

- 203 -
como narrativa e não drama, traz um grande diferencial na figura de
seu narrador, Henri, um papagaio de herança aristocrática:

Sou descendente de um daqueles papagaios que


vieram com os índios tupinambás do Brasil para a
recepção a Henri II em Rouen, no norte da França,
em 1550. Quando armaram uma falsa maloca, com
cinquenta tupinambás emplumados e cinquenta
franceses pintados de índio, para mostrar ao rei
como era a vida na recém-descoberta Terra dos
Papagaios. Nosso papel na encenação era sermos
coloridos e exóticos e providenciarmos o som
ambiente tropical, mas meu antepassado direto,
que já tinha o meu espírito crítico, escapou da
maloca, voou sobre a multidão e cagou na cabeça
de Montaigne, inspirando-o a escrever seu ensaio
sobre o primitivo, depois pousou no ombro do rei,
que o achou “charmant” e o levou para o aviário da
sua favorita Diane de Poitiers, no castelo de
Chenonceaux (VERÍSSIMO, 2006, p. 9-10).

Hutcheon diz que durante o processo de criação da paródia é


necessário que haja uma sobreposição estrutural das obras parodiadas
para com a nova obra, para que a realização da paródia tenha sucesso
(HUTCHEON, 1985, p. 50). Nesse sentido, um dos traços usados por
Veríssimo para a realização deste processo foi a sua nova forma de
usar questões que envolvem gênero e sexualidade.
Apesar de a trama girar em torno de Violeta e seu disfarce,
assim como acontece com Viola em Noite de Reis, a paródia traz
acréscimos no que diz respeito à travestilidade. A Negra, por exemplo,

- 204 -
é uma das personagens que caracteriza a amplificação dessa questão
no romance brasileiro:

A Negra tinha chegado do Brasil anos antes. Foi


uma pioneira. Começou como travesti no Bois de
Boulogne, se fingindo de homem, porque francês
gosta muito disso. Ganhou dinheiro, abriu um
restaurante brasileiro, perdeu todo o dinheiro,
formou um conjunto de música e dança chamado
“Candombleu” e nessa época estava abrindo uma
“Clinique Astrologique” em que botava cartas,
jogava búzios, fazia mapa astral e dava banho de
descarrego, porque francês gosta muito disso
também (VERÍSSIMO, 2006, p. 13-14).

Neste ponto, o narrador confunde a identidade de gênero


feminina de “travesti”, com crossdresser – que é apenas uma pessoa
que se caracteriza com um gênero diferente, através de vestimentas,
por exemplo, porém apenas por interesse, fetiche etc. –, sem
compromisso com a sua sexualidade54. Contudo, ele acrescenta
pontos que dizem respeito à questão de gênero, com uma dose de
exagero, trazendo mais humor à sua produção.
Outro personagem emblemático responsável por tal aspecto é
o Festinha, que foi definido na trama como “um malandro que
encontrava em tudo um pretexto para fazer festa; e tal característica
colaborou na definição do seu nome” (VERÍSSIMO, 2006, p. 30). O

54
LUCCIOLA, L. Entenda a diferença entre travesti, transexual, cross dresser e drag
Queen. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/entenda-
diferenca-entre-travesti-transexual-cross-dresser-drag-queen-14807314.html>.
Acesso em: 21 set. 2016.

- 205 -
mesmo, em alguns momentos, nos fazer questionar considerações a
respeito da representação dos papéis de gênero com a sua
personalidade:

Seu gosto por ostras, diz Festinha, é tanto


gastronômico quanto ideológico. Nem todo o
mundo sabe que as ostras não são apenas
hermafroditas, são dicogâmicas e protândricas.
Tente dizer isso com um bico em curva como o
meu. As ostras escolhem o seu sexo. Um ano
podem produzir óvulos, no outro esperma. Quando
hibernam, perdem ou neutralizam o seu gênero, e
tanto podem voltar fêmeas como machos. “São
como eu no inverno parisiense”, diz o Festinha.
“Nunca sei exatamente de que gênero aparecerei
na primavera, se vou preferir empadinhas ou
empadões”. Comer ostras tem, para Festinha, além
de todos os seus outros prazeres, essa conotação
afetiva de comunhão com irmãs, ou irmãos
(VERÍSSIMO, 2006, p. 97).

As manifestações da sexualidade de Festinha são recorrentes


durante o romance, trazendo humor ao texto e complementando a
personalidade do personagem. Em diversos outros momentos, é
possível ver estas manifestações sendo postas em prática por
Festinha, como no exemplo a seguir, no qual ele traz novamente à
trama a questão da sexualidade, onde o narrador se refere à
orientação sexual do personagem:

O Festinha era um elo entre o mundo da Olívia e o


mundo da Negra. O único. Frequentava os dois
mundos com a mesma animação e tanto podia ser

- 206 -
visto contando as últimas do meio diplomático
brasileiro a franceses incrédulos num dos salões da
Olívia, antes do luto, como tocando violão numa
das festinhas em que a Tanira reunia os amigos e
novos conhecidos, que ela dividia entre
“empadinhas” e “empadões”, no seu apartamento,
e em que ninguém comia ninguém, embora o
Festinha tentasse comer todo mundo, fosse
empadinha ou empadão (VERÍSSIMO, 2006, p. 30-
31).

Festinha expressa uma maior flexibilização dos padrões de


gênero pré-estabelecidos pela sociedade, através da maneira com que
ele se relaciona sexualmente com outros personagens e até pela
maneira como ele se comporta, desconstruindo, assim, a formação
dicotômica pertinente aos conceitos de orientação sexual e de
identidade de gênero. Esta expressão dos papéis de gênero, chamada
por Butler de “performatividade”, pode ser moldada culturalmente
pela sociedade:

Quando a “cultura” relevante que “constrói” o


gênero é compreendida nos termos dessa lei ou
conjunto de leis, tem-se a impressão de que o
gênero é tão determinado e tão fixo quanto na
formulação de que a biologia é o destino. Nesse
caso, não a biologia, mas a cultura se torna o
destino (BUTLER, 2010, p. 28-29).

Deste modo, Festinha colabora para uma expansão das


questões de gênero durante o romance, abrindo espaço para uma
maior discussão sobre sexualidade que se apresenta em maior escala
em A décima segunda noite, que agora não acontece somente com
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Violeta e Negra, de modo que este fenômeno implica em um
diferencial no texto paródico de Veríssimo. O romance, assim, ao
produzir uma “transcontextualiazação” de Noite de Reis, traz uma
repetição da presença de questões de gênero com diferenças em
relação à comédia shakespeariana, determinando assim, um espaço
entre o texto parodiado e o texto paródico.
Tal questão é recorrente durante o desenvolvimento de todo o
romance, e é tratada de forma banal pelos personagens, de modo que
as características pertinentes à sexualidade e gênero, que são
performadas pelos mesmos, aderem-se à narrativa de A décima
segunda noite, formando, com alguns outros elementos desenvolvidos
no romance, uma paródia em relação à peça que serviu de inspiração
para a escrita do romance, mantendo, este, a qualidade e humor que
já podíamos ver na comédia de Shakespeare.

Considerações finais
Trazer à tona a paródia, de forma intertextual para a criação de
uma nova obra inspirada por outras já reconhecidas, pode ser
considerado por muitos um processo arriscado, e, também, motivo
para desqualificar a originalidade de uma nova criação, contudo
acreditamos que tais ferramentas são, na verdade, estratégias
utilizadas para a proliferação de uma história, em forma de
homenagem ao legado das obras parodiadas, e acreditamos ser isso o

- 208 -
que Luís Fernando Veríssimo conseguiu fazer com A décima segunda
noite.
Neste sentido, as contribuições teóricas de Linda Hutcheon nos
permitiram alcançar os objetivos propostos no início deste trabalho,
realçando assim todos os aspectos necessários para a elaboração
desta pesquisa, levantando ainda a importância das questões
pertinentes a gênero e sexualidade na literatura, que andam lado a
lado com o legado de William Shakespeare e a sua influência na
contemporaneidade.
Deste modo, a paródia, como ferramenta no processo de
criação ficcional, é um importante recurso para a perpetuação de
tramas e enredos, assumindo um compromisso simbólico com o
legado de autores e autoras importantes para a história da literatura
mundial, fazendo com que suas tramas continuem colaborando para a
(re)escrita e para a (re)leitura da literatura no decorrer dos séculos.

- 209 -
Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 2016.

CAMATI, Anna Stegh. O lugar da mulher na sociedade elisabetana-


jaimesca. In: LEÃO, Liana de Camargo; SANTOS, Marlene Soares dos
(orgs.). Shakespeare sua época e obra. Curitiba: Beatrice, 2008. p.
133-146.

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- 210 -
Tecendo mulheres: Diálogo Literário entre Lucinda Persona
e Marina Colasanti

Paula Simone Fernandes Esteves 55

Ao se falar em diálogo literário, logo se associa à Literatura


Comparada, ramo da Teoria Literária, a qual veio a ser reconhecida
definitivamente enquanto disciplina no século passado e, a partir de
então, cada vez mais tem ganhado espaço pelo caráter interativo que
assume, pois pensa na diversidade, ou seja, associa tudo em relação a
algo. Neste campo literário, nenhuma literatura está isolada, sozinha,
independente de períodos, de espaços, de gêneros e de áreas, enfim,
ela é estudada transversalmente.
Desta forma, entende-se que as fronteiras literárias são
superadas. Segundo o crítico de Literatura Comparada Benjamin
Abdala (2012, p.50), em Literatura Comparada e Relações
Comunitárias, Hoje, “as fronteiras são múltiplas e têm se
movimentado em escala planetária por suas aproximações”, o que o
autor chama de “redes comunitárias”, que tendem a trazer grandes
contribuições para a vida social. Assim, a ciência literária também tem
se colocado nesse caminho de promover articulações entre as nações,

55
Mestranda em Estudos Literários, UNEMAT. paulafetga@hotmail.com

- 211 -
destacando, portanto, o comparatismo, ressaltando que não se trata
estritamente de comparar no seu sentido literal, mas como uma
disciplina que visa o transdisciplinar.
A Comparação é inevitável, visto que é utilizada,
inconscientemente, para qualificar qualquer coisa, já que para julgar a
qualidade de algo, sempre deverá ser em relação a outra coisa. “A
crítica literária, por exemplo, quando analisa uma obra, muitas vezes,
é levada a estabelecer confrontos com outras obras de outros autores,
para elucidar e para fundamentar juízos de valor” (CARVALHAL, 2006,
p. 7-8). O que cabe é buscar semelhanças ou diferenças e não dizer
que um sujeito é outro. Essas constatações lançam luz à ideia de que
de fato nenhum escritor está solitário, sempre parte de um já dito, isto
é, ele traz sempre uma bagagem de leituras para seu texto.
Todo indivíduo é modelado por hábitos que são anteriores a
ele, ou seja, subentende-se que existe uma relação de aproximação
entre presente e passado. Como afirma Abdala (2012), sempre há uma
manutenção da forma antiga, que ele chama de “sobrevivência da
forma”. “[...] é preciso atentar para hábitos culturais arraigados
(sobrevivência das formas), que incorporam gestos hegemônicos nas
relações entre países e regiões, em situações de aparente
reciprocidade” (ABDALA, 2012, p.53).
Desse modo, compreende-se que não se trata de utilizar a
literatura comparada com vias a diluir fronteiras entre as nações, pois
elas existem e não se apagam. Mas pensar que tais fronteiras possuem

- 212 -
flexibilidade, há a possibilidade de diálogo, contudo sem escamotear
suas peculiaridades. “[...] o diálogo não se faz em abstrato, mas com
culturas diferentes, provenientes de experiências históricas que têm
singularidades e motivações políticas” (ABDALA, 2012, p. 65).
A noção dessa relação entre as nações está desde Goethe que,
em 1827, já sugeria a ideia de Weltliteratur56 – uma literatura mundial,
que estabelecesse intercâmbios culturais entre as nações, não no
sentido de homogeneizar ou instaurar superioridade de uma para
outra, porém, no ideal de promover relações de semelhanças
culturais, respeitando as individualidades. Visão também proclamada
por Marx e Engels, em 1848, no Manifesto Comunista de que “[...] os
homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas
condições de existência e suas relações recíprocas” (MARX, ENGELS,
1999, p. 12), pelo vertiginoso crescimento do mercado, que se torna o
que chamam de “mercado mundial”, faz surgir relações de troca e
mutualidades entre as pessoas de diferentes nações. Dessa forma,
percebe-se que a atmosfera que paira sobre a Literatura Comparada
já era insuflada há dois séculos.
Entretanto, precisa-se esclarecer que a Literatura Comparada
não se trata apenas das relações dialogistas entre países, mas também
dentro de um território nacional, haja visto que nas regiões de cada

56
Este conceito está desenvolvido no artigo de Isabela M.F. Kestler. “O conceito de
Literatura Universal em Goethe. – Revista Cult, 2011
(revistacult.uol.com.br/home/tag/cultura)

- 213 -
nação existem diálogos literários. Esse intercâmbio entre escritores
revela a grande rede de comunicação que constrói a literatura.
Nessa perspectiva, este artigo relaciona o diálogo literário
entre as escritoras Marina Colasanti e Lucinda Nogueira Persona, nos
contos A moça tecelã de Colasanti, publicado pela primeira vez em
1978, e Tricô, de Persona, publicado em 2005. A análise revela que
existe uma relação dialógica entre tais narrativas, ainda mais no que
tange às personagens centrais, no caso, mulheres. Nesse caminho, ao
observar como é representada a figura feminina nos dois textos,
retoma-se, consequentemente, a tradição clássica Odisseia (2009), de
Homero, com a personagem Penélope, observando os modos como a
mulher é constituída e sua relação com a tecelagem, principal
associação entre os textos, muito embora o diálogo vá muito além
desta constatação. Tal aproximação entre os textos, partindo das
teorias da Literatura Comparada, possibilitará uma compreensão mais
refinada destes contos, já que, conforme definiu Brunel; Pichois;
Rousseau (1990, p. 140), no livro Que é Literatura Comparada, que, a
aproximação das literaturas, sem restrição de tempo e espaço,
colabora para uma melhor apreciação dos textos.
Marina Colasanti imigrou com sua família para o Brasil aos 11
anos e radicaram-se no Rio de Janeiro, ali Marina construiu sua longa
carreira nas artes e na literatura. A autora possui uma imensa
produção literária, recebeu vários prêmios por seu notável talento,
passou por vários gêneros textuais como a poesia, contos, crônicas,

- 214 -
romances. Sua literatura é direcionada tanto para adultos quanto para
crianças. Além de escritora, jornalista, Marina é também ilustradora
de vários de seus livros, também fez algumas traduções. A escritora
trata em suas obras de coisas cotidianas, a condição feminina, o amor,
problemas sociais com uma sensibilidade marcante.
Lucinda Nogueira Persona nasceu no estado do Paraná e
mudou-se com sua família para Mato Grosso ainda muito jovem, onde
iniciou sua produção literária, além de escritora é também professora
de Ciências biológicas. A autora estreou na poesia, gênero em que se
destaca, em 1995, com seu livro Por imenso gosto, sua poesia já
recebeu prêmios, como o Jabuti e menções honrosas. Produziu prosa
infanto-juvenil e alguns contos publicados em jornais e revistas.
Lucinda apresenta grande qualidade escrita abordando assuntos
corriqueiros de uma forma suave e encantadora. Sua produção
literária ainda não alcançou o mesmo reconhecimento de Marina
Colasanti, já que se trata de uma literatura considerada periférica,
produzida fora dos grandes centros, portanto, pouco afamada, ainda
que sua qualidade não seja inferior.
Os contos estudados neste artigo são produzidos por duas
mulheres que apresentam um refinamento estético e uma delicadeza
visíveis ao abordarem, no caso específico analisado, a posição da
mulher e seu potencial.
A linha dialógica entre tais textos reatualiza, cada um a seu
modo, o mito de Penélope de séculos atrás, tanto na figura e

- 215 -
comportamento da mulher como no símbolo do tecer. Retomada mais
claramente por Marina Colasanti, a figura de Penélope é recuperada
pelas condições de seu tempo, situada num lócus enunciativo
atualizado, subvertendo o comportamento da personagem de
Homero, no que diz respeito ao matrimônio e à relação
homem/mulher. E, sequencialmente, Lucinda Persona moderniza a
Moça Tecelã, apresentando uma nova condição à mulher
contemporânea. Nos três textos, a figura da mulher relaciona-se ao
ofício da fiação, em menor grau no conto Tricô, no entanto, todos
determinam a ação das personagens em relação ao ato de tecer.
A tecelagem, cultural e historicamente, é uma atividade
destinada às mulheres e passada de mãe para filha. O fiar, bordar,
tecer relacionam-se à figura feminina desde a Antiguidade numa
atmosfera mitológica que incorporava nas mulheres que teciam o
poder de determinar os destinos da humanidade e o seu próprio
futuro. Assim, várias obras literárias retomam esses mitos inferindo
neles um caráter de revisão no tempo. A agulha foi uma das primeiras
ferramentas da mulher para a entrada no mercado de trabalho. “[...]
as mulheres são principalmente utilizadas na fiação e na tecelagem”
(BEAUVOIR, 1970, p.149). Considerava-se que a mulher teria maior
destreza com as linhas, ademais são mais detalhistas que a figura
masculina e, por muito tempo, uma mão-de-obra barata. Muitas
mulheres sobreviviam e ainda hoje sobrevivem desta arte da fiação,
claro que atualmente em menor grau.

- 216 -
No conto A Moça Tecelã, a figura central é uma mulher que vive
a tecer sua vida, escolhe os fios a dedo e vai tecendo com alegria seus
desejos, há uma atmosfera mágica em seu tear, tudo que ela tece se
constitui realidade. Esta é a figura de uma mulher sonhadora que, ao
passo de sua lançadeira, vai formando o tempo a seu gosto, e assim
passava seus dias, “tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer”.
Com o passar do tempo, esta mulher sente-se só e acredita que
precisa de um companheiro, assim escolhe as linhas que compõem um
gracioso homem, o qual fez com que a moça aspirasse a filhos e uma
família feliz. No entanto, essa idealização, que a priori simbolizava para
ela a felicidade, é desenganada quando ambiciosamente o homem
passa a fazer inúmeras exigências, além do mais, entendendo que
aquele poder que o tear tinha poderia chamar a atenção dos invejosos,
ele a tranca no “mais alto quarto da mais alta torre”, relembrando o
mesmo destino da personagem Rapunzel, do clássico contos de fadas,
que foi isolada da convivência social por uma feiticeira, numa alta torre
no meio da floresta.
A pureza dos sonhos da personagem, em A Moça Tecelã é
destruída pela ambição do marido e pelo perfil patriarcal que se
impera na narrativa com sua chegada, já que a mulher deveria
somente servir suas vontades, que não eram poucas. E assim, a moça
foi se ofuscando, tornando-se objeto.

- 217 -
Essa situação predominou muitos anos na história da
sociedade (não ainda dissipado de todo), a do homem dominador que
oprime a mulher. Entretanto, a mulher construída neste texto de
Colasanti toma consciência de seu potencial e percebe a influência
negativa deste homem em sua vida e compreende que não
necessitava dele para ser feliz. Momento este, que a moça destece
esse homem e com ele todas as riquezas que mesmo determinou
possuir.
Cabe lembrar novamente que esse tecer e destecer
rememoram a tradição clássica de Homero, em Odisseia, na qual a
personagem Penélope, aguardando esperançosamente o retorno de
seu amado marido Ulisses (Odisseu), realiza essas ambivalentes ações
- tecer e destecer. O ato de tecer vigora como uma estratégia para
livrá-la de escolher um outro marido. Como Odisseu não retornava há
muitos anos, foi dado como morto e havia uma forte pressão para que
Penélope escolhesse um novo pretendente, também percebe-se neste
texto a ambição do homem diante do sacrifício da mulher, já que
muitos desejavam na verdade não Penélope, mas o posto de rei. Para
ganhar tempo, ela prometeu coser um tapete, se o rei não retornasse
antes do seu acabamento, ela escolheria um pretendente. Assim, na
sua astúcia, tecia durante o dia e destecia durante a noite, estratégia
que a protegeu durante certo tempo.
Essa ação de tecer e destecer, dá às mulheres “Moça” e
“Penélope” uma dimensão de decisão em que ambas podem driblar

- 218 -
seu destino, no entanto, Penélope continua presa às amarras do
casamento, usa o tear para se manter fiel à espera do marido, cumpre,
pois, o papel de “boa esposa” determinado pelo regime tradicional do
matrimônio.
No conto de Marina Colasanti, a personagem feminina
desmistifica o casamento como instituição indissolúvel, trazendo a
liberdade como meio de romper o aprisionamento da mulher ao
homem. Mesmo que ela tenha idealizado o homem amado, percebe
que não era como os príncipes dos contos de fadas, então decide, sem
pestanejar, eliminá-lo de sua vida.
A retomada dos contos de fada e dos mitos das tradições
clássicas é um traço comum em Marina Colasanti, sendo assim,
assume em seus textos os vários diálogos que estabelece para compor
suas produções, numa perspectiva de trazê-los à realidade presente.
Essa ideia é defendida por Joseph Campbell em O poder do mito:

Esses bocados de informação, provenientes dos


tempos antigos, que têm a ver com os temas que
sempre deram sustentação à vida humana, que
construíram civilizações e enformaram religiões
através dos séculos, têm a ver com os profundos
problemas interiores [...] (CAMPBELL, 1990, p. 15).

Nesse sentido caminha a escrita de Marina Colasanti com um


olhar sensível às questões comuns da vida, especialmente, à condição
da mulher.

- 219 -
Diante desse caminhar da narrativa colasantiana é que ela
desconstrói alguns estereótipos sociais como o casamento enquanto
preenchimento do ser, a composição da família como garantia de
felicidade e, ademais, o final feliz tão clássico dos contos de fada não
se dá a dois e sim individualmente, no caso do conto A Moça Tecelã.
O tear que se constituiu como um elemento de aprisionamento
da mulher no ambiente doméstico, reforçando o patriarcalismo, se
transforma em símbolo de libertação. Esta mulher não quer mais ser
objeto, quer ser sujeito. Marina Colasanti apresenta a nova mulher
que não quer ser mais submissa, mas sim decidir seu destino por si só.
É importante pontuar que nesse conto as personagens não
recebem nomes, podendo atingir a representação do social. Apesar da
magia que envolve o tecer, o conto é bem útil para a vida real.
Considerando a ideia de Cândido et all (1969, p. 42) “a ficção é o lugar
onde o sujeito pode pensar, por meio das personagens, a sua
condição, através desse espaçamento que o desliga de si mesmo”.
A autora segue em muitos de seus textos esse perfil de
ambientar em seus escritos as questões comuns à sociedade,
principalmente no que diz respeito ao amor e outros sentimentos. Em
A Moça Tecelã, especificamente, o arcabouço da dominação é posto
em questão na relação homem/ mulher, que envolve uma construção
histórica de dominação, isto é, a mulher sai do domínio do pai e passa
ao domínio do marido, travessia de poder sempre vista até certo
tempo como necessária para o controle da vida. “[...] ela própria faz

- 220 -
parte do patrimônio do homem, primeiramente do pai e em seguida
do marido” (BEAUVOIR, 1970, p.107).
Assim, a mulher num contexto geral e no próprio texto em
questão, perde sua subjetividade, já que vive sob as condições que lhe
são impostas e não sob suas vontades. A partir do momento em que a
personagem feminina tece um companheiro para si, pensando em
completar sua felicidade, ela constrói um opressor que até em um
certo momento do conto apaga os sonhos e anseios da moça para dar
vasão aos seus desejos. Neste entremeio da narrativa, a moça cede às
exigências do marido, o que caracteriza algo que Bourdieu, no livro A
dominação masculina (2003, p. 46) denominou de “violência
simbólica”, em que o oprimido concede ao dominador essa relação de
poder naturalizando, inconscientemente, essa situação. Então, essa
relação de dominação se traduz em algo espontâneo, o que faz com
que essa violência se perpetue.
Contudo, Colasanti tira a mulher desse território de
subordinação quando dá a sua personagem a motivação para lutar
contra esse domínio e tomar seu poder de decisão, e assim,
percebendo-se oprimida e infeliz, desmancha aquele capítulo de sua
história, ou seja, destece o destino que pensou ser o ideal de
felicidade. Este ato de destecer demonstra o enfraquecimento da
relação conjugal e revela simbolicamente o desfazer do matrimônio –
divórcio, mais comum na sociedade contemporânea.

- 221 -
No conto Tricô, de Lucinda Nogueira Persona, a personagem
representa uma mulher mais avançada, o tecer configura apenas uma
distração em sua vida. No entanto, da mesma forma que Marina,
Lucinda usa o tear como ferramenta simbólica para construir a mulher
dentro da narrativa. O tricotar constitui uma mulher firme, precisa
como os pontos do bordado, mas também doce, leve e delicada como
a lã utilizada.
A mulher deste conto relaciona-se mais à mulher
contemporânea, que já ocupa um lugar no mercado de trabalho, tem
inúmeras funções: casa, trabalho, filhos, marido, compromissos,
porém, mostra-se realizada, feliz. É como se “Moça”, personagem de
Marina, ganhasse maturidade nas mãos de Lucinda, agora, aquela
jovem inocente, sonhadora se tornou uma mulher realizada,
independente.
O tecer está sempre associado ao pensamento, aliás em ambos
os contos, as mulheres tecelãs tecem e pensam ao mesmo tempo,
como se tirassem o caráter mecânico da tecelagem. Entretanto, em
Lucinda, o tricotar é colocado como algo natural e não num sentido
que inferiorize a mulher, que a encarcere no seu lar, já que em Tricô
percebe-se que tecer não era tudo o que a personagem fazia e queria
fazer, ela está além disso.
Além do que, no texto em questão, não é empregada a ação de
destecer, a personagem apenas tece, como se não fosse necessário

- 222 -
desenredar nada, tudo segue um curso que a agrada, pois nota-se que
ela está satisfeita com sua estrutura íntima.
A personagem do conto Tricô é uma mulher observadora,
versátil e o tecer pode ganhar um outro significado, ou melhor, o tecer
também está relacionado ao texto, à escrita, uma vez que a
personagem é também escritora.
Ana Maria Machado, em seu artigo O Tao da teia: sobre textos
e têxteis (2003), esclarece que a tecelagem e a escrita sempre
estiveram associadas, a produção de um texto está estreitamente
ligada ao ato de fiar e completa com a frase: quem conta um conto
aumenta um ponto (MACHADO, 2003, p. 175), comprovando que até
inconscientemente relacionamos o texto ao bordado. Essa associação
está clara no conto Tricô já que a personagem é uma mulher escritora,
que usa a escrita como meio de expressar suas angústias, medos,
sonhos, desejos, segredos, “Escrever era um de seus modos de tirar
partido das perplexidades”. A linha agora se torna a caneta, e o
bordado, seu texto.
Quando, no transcorrer da narrativa, menciona seu filósofo
preferido E.M. Cioran, dá sinais de que é uma mulher culta, leitora, isto
é, um perfil de mulher muito mais maduro que a personagem de A
Moça Tecelã.
É importante pontuar que ainda é recente a inserção da mulher
no mundo da escrita, por muito tempo o homem era quem dominava
o papel e a caneta, o que é notável ao se pensar a quantidade

- 223 -
exorbitante de livros escritos por homens em relação à produção de
mulheres. Virgínia Woolf na obra Um teto todo seu (1985, p. 66-67),
afirma que o anonimato das mulheres no mundo da escrita perdurou
por muito tempo, já que qualquer mulher que possuísse inclinação
para a escrita poderia ser julgada perturbada e até mesmo corria o
risco de ter distorcido o sentido do que escreveu. Portanto, o tecer
com sentido também de escrever, como é constituído no conto de
Lucinda, era limitado às mulheres. Contudo, a narrativa Lucinda
Persona revela um cenário de conquista da mulher enquanto indivíduo
ativo no mundo literário.
Em Tricô, a mulher se mostra determinada e não condicionada
às regras do casamento tradicional, dessa forma, não perde sua
subjetividade. Segundo Beauvoir (1980, p. 449) “[...] em seus projetos
afirma-se concretamente como sujeito [...]”. Então, mesmo que seu
bordado também se destine a um companheiro, não é uma imposição
dele, mas a expressão de uma satisfação que esta mulher tem de
presentear seu amado, através de um produto produzido por ela
mesma, comprovando novamente que tecer era apenas mais uma
atividade dentre tantas que ela desempenhava.
No que diz respeito aos sentimentos, o amor, neste conto,
concretizou-se de forma satisfatória e não apenas idealizado somente
pela mulher. Supõe-se que o ideal pretendido por Marina é
confirmado, de que as mulheres são senhoras de seus destinos, de que
têm o poder de tecer sua vida.

- 224 -
No primeiro parágrafo do conto de Lucinda, fica evidente este
diálogo com Marina na passagem: “Numerosas mulheres, em certos
momentos, revertem às teias”, ou seja, sempre que julgarem
necessário podem retomar as rédeas e transformar seus destinos,
assim destecer o que não lhe agrada. Também aparece no início do
conto a figura da aranha, a qual metaforiza a mulher com seu tear, pois
da mesma forma que a aranha usa sua teia como meio de garantir sua
presa, a mulher também usa, simbolicamente, o tear para conquistar
seus sonhos. Isso quer dizer que o gesto de construir a fiação, a escolha
dos fios, a eficácia dos pontos, revelam a ação da mulher ao fazer suas
escolhas, ao traçar seu destino, ao conduzir sua vida.
Nos dois contos há uma aproximação das personagens com a
natureza, demonstrando mulheres livres de futilidades mundanas,
avessas as grandezas. Assim, ambas personagens também
enxergavam a felicidade nas coisas mais simples, nas belezas e
potencialidades da natureza. Porém, no conto de Lucinda a
personagem não se sente solitária, ou quando o diz, entende ser bom
o anonimato. Percebemos uma mulher emancipada, que não busca a
felicidade unicamente no matrimônio, mas em tantas outras coisas.
Ela brindava e se inebriava com os efeitos do clima e com a paisagem
que se apresentava. Não possuía uma magia em seu tear, mas era
apenas o modo como via o mundo que caracteriza a grandeza que ela
descrevia.

- 225 -
Ela descreve um cenário obscurecido pelas condições do
tempo, que possivelmente pode fazer alusão à noite e este foi um
período do dia determinante às ações da personagem do conto de
Marina Colasanti. A noite foi o momento escolhido para que a Moça
Tecelã desse fim à condição de infelicidade que vivia, pois enquanto o
marido dormia levantou-se e desfez seu tapete, desconstruindo toda
aquela vida de opressão que havia tecido.
A noite tem uma simbologia bem marcante, de acordo com o
Dicionário de Símbolos, a noite representa “o tempo das conspirações
que se instauram durante o dia como manifestações de vida; pode ser
compreendida como a preparação para um novo dia” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1986, p. 754). No conto A Moça Tecelã, a noite de fato
foi o resplandecer de uma nova vida para a personagem, foi a chave
para sua libertação, desempenhou papel semelhante em Odisseia já
que a noite era o momento em que Penélope colocava em prática sua
estratégia de driblar o sistema, que lhe impunha, pelas “regras
sociais”, um novo enlace matrimonial.
Já no conto Tricô, a noite confundia-se com o dia, “Era de dia e
era de noite”, assim pode-se pressupor que a autora coloca a
personagem dentro de um poder de decisão independente da
condição temporal.
Nesse ponto, percebe-se, na aproximação entre esses contos,
que há confluências mas também divergências na perspectiva da
representação da mulher. Esse diálogo elencado pelos detalhes

- 226 -
apresentados, demonstra que Lucinda avança na perspectiva de
Marina, tirando a mulher da reclusão doméstica e da solidão,
colocando-a num mundo no qual possui maior participação na vida
social. É como se Lucinda pegasse um fio que Marina, propositalmente
ou não, deixou solto ao concluir seu conto e transportasse a
personagem para uma contemporaneidade que torna possível a
realização desta mulher.
Portanto, o tecer está além do conteúdo dos contos já que ele
ganha um aspecto que transcende as narrativas, revelando que a vida
das mulheres está sendo tecida, mesmo processo da fiação, visto que
se constrói com pontos firmes os quais vão se amarrando ou se
desfazendo, quando preciso, conforme suas conquistas ao longo da
história.
Nesse sentido, o estabelecimento desse diálogo amplia a
compreensão da composição dos textos, bem como ilumina o trabalho
das autoras. Visto que “Apontar influências sobre um autor é
certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e
considerá-la um produto humano, não um objeto vazio” (NITRINI,
2000, p. 130).
Cabe lembrar, que o que se denomina influência não se
constitui como uma qualificação pejorativa, pois nada mais é que a
continuidade de uma relação natural da literatura, onde o ponto de
partida de toda produção jamais desconsidera a experiência de vida e
leituras que se tem na mente.

- 227 -
Marina demonstra claramente a possibilidade desses diálogos
na relação inegável de A Moça Tecelã com a Penélope da Odisseia de
Homero, destaca-se que neste caso, as personagens são construídas
pela visão de uma mulher em contrapartida à visão de um homem na
constituição da personagem feminina. Além das várias alusões aos
contos de fadas que é comum em alguns de seus textos.
Já Lucinda, em entrevista57 declara que “toda obra artística
recebe influxos das diversas áreas e realidades, que bem pode ser a
acumulação gradual de tudo que o escritor já leu”. Diante disso,
reforça o que Sandra Nitrini (2000) afirma, isto é, nenhum texto se
constrói de um nada, nunca está esvaziado de outras composições.
Assim sendo, promover esses diálogos, numa perspectiva
comparatista, fortalece o sistema literário como um todo, já que
amplia o contato entre as produções literárias sejam distantes no
tempo, no espaço e no reconhecimento, corroborando no importante
papel que a literatura tem na vida da humanidade.

57
Entrevista concedida à Marta H. Cocco no apêndice do livro Mitocrítica e Poesia:
regimes, imagens e mitos na poética de Lucinda Persona. – Cuiabá: Carlini e Caniato
Editorial, 2016, p. 191.

- 228 -
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Universidade de São Paulo, 2000.

PERSONA, Lucinda. Tricô. Revista RDM: Mato Grosso. Ano VI – nº 111,


p. 42, 17 de julho de 2005.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. – Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Rapunzel. http://www.grimmstories.com/pt/grimm-contos/rapunzel.
(acessado em 28/05/2016)

http://www.marinacolasanti.com (acessado em 03/06/2016)

- 230 -
Anexos

A Moça Tecelã
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das
beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia
passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã
desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo
tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça
colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em
breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em
pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-
la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas
e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios
dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado
de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se
sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite,
depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu
sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao
lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa
nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe
dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu
emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos,
quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o
chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos
que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

- 231 -
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em
filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada
mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia
justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de
tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem
querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates
em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e
portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha
tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para
arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes
acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido
escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar
a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos
cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o
que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe
pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez
pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia
sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a
longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a
lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou
a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os
jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que
continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim
além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura,
acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela
já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo,

- 232 -
sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito
aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha
clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a
manhã repetiu na linha do horizonte”.
(Marina Colasanti - Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. –Rio de Janeiro:
Global Editora, 2000.)

Tric
Efetivamente, seus dedos movimentavam-se com tal rapidez que só
se podia esperar um aumento substancial da trama. Numerosas mulheres,
em certos momentos, revertem às teias. Era o que acontecia com ela. A coisa
menos estranha que uma mulher pode fazer é tricotar, é postar-se num
canto aconchegante e trançar os fios. É postar-se num canto e abocanhar
sonhos da mesma forma que as aranhas vão apanhando as moscas.
Enquanto tecia, ela pensava na vida. Vida estável, agora, se é que
uma vida pode ser tomada nesses termos. Ela era uma mulher infinitamente
versátil. Em horas mais amenas gostava daquela distração, principalmente
quando chegava o inverno indócil. Naquele momento, tricotava um suéter e
loucas ideias. Sentia-se aguilhoada por uma felicidade indefinível. Enquanto
aguardava os filhos que estavam na escola, enquanto imaginava a hora de
lhes dar alimento, ela tricotava. Era sempre assim. Já verificara a
correspondência, providenciara pequenos detalhes e só iria para o
consultório no expediente da tarde.
Com rápidos movimentos estereotipados, ela alargava a malha,
desprendida de tudo que tivesse peso. De pesado admitia apenas aquele céu
preto na manhã de julho, um dia transmutado a noite. Era de dia e era de
noite. Parou por um momento no meio do trançado. Queria olhar as
sombras. Aquilo mexia com ela, para o bem. Deixara entreaberto o vidro da
janela e o vento gelado não encontrava resistência, expandindo-se na sala.
Uma garoa começou a cair. Ela vibrou num clima que a muitos soaria hostil.
De um sétimo andar, via as pontas angulosas e apáticas dos outros prédios.
Aqueles rígidos corpos independentes, consolidados no espaço e no tempo.
Uma alucinante disjunção de edifícios a perder de vista. Realidade estranha,
porquanto não divisava outras vidas, nenhum perfil, no interior daquelas
caixas de cimento.
Olhou mais uma vez a rede de retângulos coroados pelas nuvens
negras. Viu beleza nas elaborações, na dura monotonia e nas paredes
poluídas. Gostava de contemplar a cidade escurecida por fungos, de sentir-

- 233 -
se absolutamente anônima e sugada na gigantesca metrópole. Ali, vivia e
trabalhava. Nos finais de semana, refugiava-se num lugarejo do interior, na
área das montanhas.
Voltou ao tricô.
Por algum tempo, evoluiu rapidamente e chegou ao decote. Tecia e
pensava. Na verdade, deveria estar revisando seu livro, um novo romance
que dera por acabado. Escrever era um de seus modos de tirar partido das
perplexidades. Estava tudo ali: paisagem, tempo, vidas, desesperos, desejos,
insônias, mortes, lágrimas, silêncios, rupturas, sucessos, perdas, sombras,
lugares, fantasmas, paixões. Sua bagagem.
Ela era uma mulher decidida, organizada e resistente. Dava graças à
sua estrutura íntima: firme como os nós que agora entrelaçava, mas também
doce e sedosa, como a lã naquele novelo de cinzas. Ela sorria levemente
enquanto urdia o acabamento da gola, pensando naquilo que o destino lhe
reservara.
Exatamente como as mulheres, também o destino elabora suas
malhas. Radiante, ela antecipava o momento em que ofertaria aquele
presente. Sim, seria no final de semana, na casa de campo, entre rajadas de
aromas silvestres e o frio sublunar. Talvez dissesse a ele: isto é teu, te amo.
Talvez não dissesse nada. Não por acaso, pareceu escutar o peculiar sussurro
de um filósofo que adorava: “que aterradora banalidade”. Era assim, com
certas pulsões contrárias, que o defensor dos desencantos a despertava. Mas
não fez caso de Cioran. Dedicou-se ao suéter. Estava quase pronto. Afagou o
agasalho de lã do mesmo modo que afagaria o corpo que iria usá-lo. Como
fazem notoriamente as pessoas que amam, ela se lançou numa voragem
momentânea, ocupou mente e coração com o homem de sua vida. Era tudo
o que precisava.

(Lucinda Nogueira Persona- Revista RDM: Mato Grosso. Ano VI – nº 111, p.


42, 17 de julho de 2005.)

- 234 -
Literatura e intertextualidade: representação do feminino
em recriações da obra Chapeuzinho Vermelho

Paola Tassinari Groos58


Jordana Cassel Steindorff59

Este capítulo tem como objetivo analisar os contos

Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault, e Fita Verde no Cabelo, de

Guimarães Rosa, e o filme A Garota da Capa Vermelha, dirigido por

Catherine Hardwicke, produzido por Leonardo DiCaprio, a partir de um

roteiro escrito por David Leslie Johnson, a fim de encontrar

semelhanças e diferenças que aproximem ou que distanciem as obras

em questão, demonstrando nelas as diferentes representações do

feminino, através de reconstruções intertextuais.

A análise de dois contos atrelada a um filme é possível, pois,

como respalda Carvalhal (2006), “a literatura comparada é uma forma

específica de interrogarmos os textos, literários ou não, e outras

formas de expressão cultural e artística” (CARVALHAL, 2006, p. 74).

58
Autora. Mestranda em Letras, UFSM.
59
Coautora. Mestranda em Letras, UFSM.

- 235 -
Kristeva (apud Perrone-Moisés, 1993) afirma que o estabelecimento

das relações de sentido, no texto, ultrapassam os seus limites e geram

novos sentidos, pois “todo texto é a absorção e transformação de uma

multiplicidade de outros textos” (p.63). Convém mencionar que um

dos assuntos mais debatidos em Literatura Comparada no Brasil vem

sendo, exatamente, o da intertextualidade.

De acordo com Sant’Anna (2000, apud Tavares; Silva, 2013),


intertextualidade é

a relação entre uma obra e outra(s) implícita ou


explicitamente. Pode acontecer em textos,
cinema, canção, propagandas, entre outros. É
implícita quando não há indicações diretas sobre
a relação entre determinados textos, mas há essa
percepção por meio do conhecimento de mundo
para ligar um texto ao outro. Pode ir ao encontro
à ideia do texto ao qual está relacionado
(paráfrase) ou debatê-la, discuti-la ou ironizá-la
(paródia).

Já que somos professoras de língua materna, fica evidente, no

contato com os alunos em ambiente escolar, a falta de familiaridade

com a intertextualidade atrelada às obras literárias. Constata-se que

os alunos sentem dificuldades em relacionar obras devido à falta de

contato com a tradição literária, o que impõe obstáculos para um

melhor desempenho escolar. Para exemplificar esse aspecto,

podemos pensar nas questões:

- 236 -
Como ele [aluno] poderá identificar um texto
dado como paródia ou pastiche de outro, se não
conhece este outro? Como poderá identificar a
ruptura de uma obra em relação às normas
estéticas adotadas pelas obras que a precederam,
se não conhece as obras (e as normas)
precedentes? Como poderá entender textos
teóricos que usam como parte de sua
argumentação outros textos literários ou
teóricos, que ele não conhece? (JOBIM, 1994, p.
76).

Por isso, é fundamental incentivar a leitura, buscando

promover a interação das obras, através da abordagem intertextual, a

fim de que seja possível confirmar que os textos são atravessados por

outros textos. Assim, nessa análise, percebe-se que tanto o conto Fita

Verde no Cabelo quanto o filme A Garota da Capa Vermelha são

releituras de Chapeuzinho Vermelho, de Perrault. Nos dois contos, a

protagonista não é nomeada, já no filme, chama-se Valerie.

No conto de Perrault, a jovem é caracterizada como uma

menina obediente e ingênua, que não consegue perceber os perigos

que a circundam. As ações que envolvem a protagonista perpassam

apenas o espaço da sua “cidadezinha” até a casa da sua avó. Esta

mandou fazer um pequeno capuz vermelho para a neta e é

caracterizada como uma velhinha bondosa que está com a saúde

- 237 -
debilitada. A mãe só aparece no início do conto, em que é revelado o

seu amor pela filha, o seu zelo pela avó e os seus dotes culinários.

Em Fita Verde no Cabelo, a “meninazinha” inicia o conto como

uma pessoa sem juízo, que sai com uma fita verde “inventada” no

cabelo. Essa, enquanto passava pelo bosque, começou a tomar

decisões sozinha, resolvendo ir pelo caminho “louco e longo”. Ao

chegar na casa da avó e deparar-se com ela muito debilitada, Fita

Verde percebe que perdeu a fita do seu cabelo e se espanta por

defrontar-se com a avó tão doente. No final do conto, a menina

adquire juízo, primeiro pela consciência da perda do bem material e

simbólico e, segundo, pela perda da avó, bem humano e irreparável. E

a mãe tem uma pequena participação na linha de ação, apenas

solicitando que Fita Verde fosse levar um cesto com alimentos na casa

da avó.

O filme A Garota da Capa Vermelha trabalha muito bem com a

questão da identidade feminina. Valerie não é frágil, muito pelo

contrário, desde pequena ela subia em árvores muito altas, caçava

coelhos, desobedecendo às ordens de sua mãe. Na fase adulta, lutou

ferrenhamente contra um casamento arranjado e continuou

demonstrando seu amor verdadeiro. Quando seu segredo foi

revelado, pela sua melhor amiga, manteve uma postura sensata,

- 238 -
percebendo as circunstâncias que haviam levado aquela a tomar a

cruel decisão. Não fraquejou diante do autoritarismo de Salomon e

não esmoreceu quando até os mais próximos começaram a se tornar

suspeitos, sendo corajosa suficientemente para matar seu próprio pai,

depois da descoberta, e por se entregar a um homem que se tornaria

um novo lobisomem.

A avó, no filme, foge do padrão instituído, pois não é uma

velhinha frágil, mas sim uma mulher destemida, que viveu cercada de

lobisomens. Essa senhora deixa transparecer uma aura misteriosa,

durante as cenas, devido a sua alta sabedoria, e possui muita valentia,

a ponto de enfrentar homens poderosos. É ela também que

confecciona a capa vermelha que intitula a obra, a fim de que a neta

usasse após o casamento. Uma figura feminina duvidável no filme é

Suzette, a mãe da garota. Ela traiu o marido com o futuro sogro de sua

filha, e foi por esse motivo que a filha mais velha, Lucie, não pode se

casar com Henry (no caso, seu meio-irmão), traição essa que também

causou a morte da jovem, logo no início, porque não conseguiu ouvir

o lobisomem, pois este não era seu pai, e desde esse momento Cesaire

descobriu a infidelidade. Outro ponto que demonstra debilidade do

caráter dessa mãe é o fato dela tentar impedir o amor de Valerie com

Peter, porque este era um simples lenhador, arranjando o casamento

- 239 -
com Henry, que era ferreiro e ganhava mais, ou seja, o que realmente

interessava a ela era o dinheiro.

As avós tanto de Chapeuzinho Vermelho quanto de Valerie têm

relação com o capuz e a capa usados por elas. A primeira, por gostar

muito da neta, manda produzir o capuz vermelho; a segunda, para

presentear a neta no casamento, confecciona a capa vermelha, e

acaba entregando antes da data planejada. Entretanto, a vó de Fita

Verde não possui relação com a escolha da fita.

O vermelho vivo, como é o caso da cor do capuz de

Chapeuzinho Vermelho e da capa de A Garota da Capa Vermelha, “é a

imagem de ardor e de beleza, de força impulsiva e generosa, de

juventude, de saúde, de riqueza, de Eros livre e triunfante”

(CHEVALIER, 1997, p. 945). Já a cor verde conserva um caráter

ambíguo e complexo, no conto de Guimarães Rosa, que provém da sua

polaridade dupla: “o verde do broto e o verde do mofo, a vida e a

morte” (CHEVALIER, 1997, p. 943), pois a neta só adquiriu maturidade

quando sua avó faleceu.

No conto de Perrault, o lobo está presente e é capaz de

estabelecer diálogo com Chapeuzinho Vermelho, que o compreende;

no conto de Guimarães Rosa, o lobo não está presente fisicamente, foi

morto pelos lenhadores, mas ainda gera medo na menina; no filme,

- 240 -
Valerie é capaz dialogar com o lobisomem por ser sua filha. Em

Chapeuzinho Vermelho, o lobo devora a avó e a personagem principal.

Em A Garota da Capa Vermelha, o lobisomem mata sua própria mãe,

avó de Valerie. Já em Fita Verde no Cabelo, a figura do lobo só é

recordada por Fita Verde depois que sua avó havia morrido.

A realização do diálogo interrogativo que Chapeuzinho

Vermelho trava com a avó, na casa desta, é recuperada nas duas

releituras, de maneira modificada. No conto de Guimarães Rosa, de

modo mais sentimental, pois a avó, muito debilitada, afirma que não

poderá mais abraçar, beijar e ver a neta querida, evidenciando a morte

próxima. Entretanto, no filme, Valerie, quando está tentando

descobrir quem é o lobisomem, sonha com sua avó. No sonho, o

diálogo do conto inicial é repetido, ou seja, Valerie pergunta à avó o

porquê dos olhos e da boca tão grandes e ela responde,

respectivamente, que era para ver melhor e para comê-la.

O filme, ambientado na Idade Média, retrata outras questões

sociais da época, além da intertextualidade com Chapeuzinho

Vermelho, de Perrault. O casamento arranjado é um exemplo disso. A

opinião das mulheres era desconsiderada pela família, as noivas

tinham que aceitar a escolha dos pais e serem submissas aos maridos.

Valerie luta contra isso.

- 241 -
Para finalizar, depois de ter comparado semelhanças e

diferenças, é possível afirmar que em Chapeuzinho Vermelho, o foco

atribuído ao sexo feminino da personagem é a defesa da sua

virgindade, que, no contexto da época da criação da obra, era o

principal valor que esta poderia oferecer ao seu marido. Por isso, a

figura do lobo que representa os jovens galantes que poderiam

desvirtuar as jovens casadoiras. Em Fita Verde no Cabelo, o lobo não

existe mais, porque o perigo da desvirtuação feminina já foi desfeito.

A jovem já possui liberdade de escolha, é por isso que escolhe o

caminho mais “louco e longo” e usa a fita da cor verde, simbolizando

a emancipação de seu corpo. Por fim, em A Garota da Capa Vermelha,

Valerie é senhora da própria libido, ao ponto de perguntar se Peter a

desejava e, depois deste ser transformado em lobisomem, manter

relações com ele. Assim, nota-se, com a análise, a presença de relações

intertextuais nas obras Fita Verde no Cabelo e A Garota da Capa

Vermelha, a partir da fonte primária produzida Charles Perrault.

- 242 -
Referências

A GAROTA DA CAPA VERMELHA. Disponível em:


<https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=we
b&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CCcQFjABahUKEwibv7_JpZLGAhWB
4IAKHWDIAL4&url=http%3A%2F%2Fwww.filmesonlinegratis.net%2Fa
ssistir-a-garota-da-capa-vermelha-dublado-
online.html&ei=rBR_VZu5CYHBgwTgkIPwCw&usg=AFQjCNGbKfok96c
xf0QRDBFoC-pQU98NVw&sig2=vY3C_-
uwSHclRD1znLCYkw&bvm=bv.95515949,d.eXY>. Acesso em: 28 Mai.
2015.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4.ed. São Paulo:


Ática, 2006.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes,


gestos, formas, figuras, cores, números). 11.ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.

JOBIM, José Luís. A crítica da teoria: uma análise institucional. In:


Revista Brasileira de Literatura Comparada. v. 2. São Paulo: 1994.

PERRAULT, Charles. Chapeuzinho Vermelho. Disponível em:


<http://sempreversoes.blogspot.com.br/2011/03/chapeuzinho-
vermelho-perrault.html>. Acesso em: 15 Mai. 2015.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Crítica e intertextualidade. In: ___. Texto,


crítica e escritura. São Paulo: Ática, 1993.

ROSA, Guimarães. Fita Verde no Cabelo. Disponível em:


<https://nadaquetenhalogica.wordpress.com/2010/04/04/fita-verde-
no-cabelo-de-joao-guimaraes-rosa/>. Acesso em: 15 Mai. 2015.

TAVARES. Fabiana Gomes; SILVA, Solimar Patriota. Leitura e


intertextualidade nas diferentes versões de Chapeuzinho
Vermelhinho. In: Revista Philologus, Ano 19, N° 57 – Supl.: Anais da
VIII JNLFLP. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2013.

- 243 -
Sobre os autores

Caio Antônio de Medeiros Nóbrega Nunes Gomes


http://lattes.cnpq.br/2808953833629703
Graduado no curso de Letras/Inglês pela Universidade Federal da Paraíba.
Atualmente desenvolve pesquisa de Mestrado sobre literatura inglesa
contemporânea no Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma
instituição. Tem experiência e publicações nas áreas de Ensino de Língua
Inglesa e de Crítica e Teoria Literárias, nestas com ênfase em metaficção,
paródia, ironia, conto de fadas e romance policial.

Eider Ferreira Santos


http://lattes.cnpq.br/4875222626647818
Graduado em Letras-Licenciatura em Língua portuguesa e Literaturas pela
Universidade do Estado da Bahia, UNEB (2015). Pós-graduado em
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas pelo Centro
Universitário Leonardo da Vinci. Mestrando do programa de Pós-Graduação
em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campos II-
Alagoinhas, na Linha Letramento, Identidade e Formação de Educadores com
a pesquisa "Educadoras Teodorenses: entrelaçando vidas e formação
docente" financiada pela FAPESB. Atua como membro do grupo de Pesquisa
GEREL (Grupo de Estudos em Resiliência, Educação e Linguagens) liderado
pela professora Drª Maria de Fátima Berenice da Cruz; atuou como monitor
do projeto Atelier de Leitura Literária para a Educação Básica, bem como do
projeto de Iniciação Científica intitulado "A Noção de Corpo-Poder na Prosa
de Aleilton Fonseca", projeto este financiado pela FAPESB. Atualmente, faz
parte do Projeto de Pesquisa "Educadoras Baianas: saberes e experiências de
práticas pedagógicas de professoras da Educação básica" financiado pelo
CNPq, no Pólo Alagoinhas, vinculado ao GEPHEG - Grupo de Estudos e
Pesquisas em História, Educação e Gênero, certificado pelo CNPq/UEFS.

Giovane Alves de Souza


http://lattes.cnpq.br/0660617479087034
Aluno atualmente da Graduação em Letras/ Habilitação Língua Inglesa pela
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Tem experiência na área de
Linguística (Monitor Bolsista - no período 2015.2). Atualmente é monitor de

- 244 -
língua inglesa III da Universidade Estadual da Paraíba. Tem experiência na área
de Letras, com ênfase em Literaturas Estrangeiras Modernas.

Jordana Cassel Steindorff


http://lattes.cnpq.br/5581271068921513
Graduada no curso de Licenciatura em Letras Português e Literaturas de
Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Santa Maria. Atuou como
bolsista nos Projetos de Pesquisa: Representações do Agir Docente? e
"Literatura, memória e realidade: tensões do Brasil moderno na ficção do
século XX". Atualmente cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Letras, área de concentração: Estudos Literários, linha de pesquisa:
"Literatura, comparatismo e crítica social", pela Universidade Federal de Santa
Maria.

Lucianne Michelle de Menezes


http://lattes.cnpq.br/1354199519304107
Doutoranda em Literatura Comparada - Universidade Federal Fluminense,
com período Sanduíche, na Universidade de Coimbra (Portugal). Mestrado em
Letras pela Universidade Federal de Sergipe (2010), especialização em
Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa (2006) e graduação em Letras
Vernáculas pela Universidade Federal de Sergipe (2002). É servidora da
Secretaria Estadual de Educação de Sergipe (Departamento de Educação) e
professora da secretaria municipal de educação de Aracaju (SE). Foi
professora da graduação em Letras da Faculdade Atlântico (SE) e professora
tutora da graduação em Letras da Universidade Tiradentes (SE).

Ludmilla Carvalho Fonseca


http://lattes.cnpq.br/1830251952527606
Possui Graduação em Letras - Português/Inglês, pela Universidade Estadual
de Goiás (2007), Mestrado em Literatura e Práticas Sociais, pela Universidade
de Brasília (2010) e, atualmente, é doutoranda em Literatura e Vida Social,
pela Universidade Estadual Paulista, vinculada à Literatura e outras áreas do
conhecimento, estabelecendo relação entre literatura e filosofia.
Recentemente, desenvolve pesquisa de doutorado na área de literatura de
autoria feminina e crítica feminista, atuando, principalmente, nos seguintes
temas: Simone de Beauvoir, Clarice Lispector, feminismo, personagem
feminina e existencialismo.

- 245 -
Luiz Eduardo Rodrigues Amaro
http://lattes.cnpq.br/2729494759781839
Luiz Eduardo Rodrigues Amaro concluiu a graduação em Letras
(Latim/Italiano) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(Unesp/Assis) em 2003. Cursou Mestrado em Letras na área de Literatura e
Vida Social com o apoio da FAPESP, que foi concluído em 2007 e, desde 2013,
é Doutorando em Letras na área Fontes Primárias e História Literária pela
mesma instituição com o apoio da CAPES. Camonologista, mitólogo, latinista,
crítico literário e escritor, fluente em Inglês, Italiano e Latim. Integrante do
projeto multiartístico Marmor, sendo o responsável pelas líricas e pelo livro
Alma Celta, publicado pela editora Leya (Casa da Palavra) em 2014.
Pesquisador de Literatura Portuguesa. Membro do Grupo de Estudos
Bakhtinianos de Assis/SP, capitaneado pela Dra. Ester Myriam Rojas Osorio e
membro do GEL - Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo.

Mariana de Mendonça Braga


http://lattes.cnpq.br/5351767993708134
Mariana Braga é graduada em Letras Português-Literaturas na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já foi pesquisadora e monitora do
Laboratório de Pesquisa, Ensino e Extensão de Libras (LAPEEL), durante os
anos de 2011 e 2012. Entre 2012 e final de 2014, foi pesquisadora de
literatura portuguesa na Cátedra Jorge de Sena, estudando a obra da poeta
Sophia de Mello Breyner Andresen e do escritor Helder Macedo, na qualidade
de monitora e pesquisadora. Atualmente, faz mestrado em Letras Vernáculas,
na área de Literatura Portuguesa e Africanas, dando prosseguimento aos
estudos sobre Helder Macedo.

Paola Tassinari Groos


http://lattes.cnpq.br/1175317597907545
Possui graduação em Letras - Licenciatura - Português e Literaturas de Língua
Portuguesa, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). De março de
2014 a janeiro de 2016, atuou como bolsista do Subprojeto Letras Português,
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), da UFSM.
Atualmente, é mestranda em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-
graduação em Letras, na UFSM.

- 246 -
Paula Simone Fernandes Esteves
http://lattes.cnpq.br/0543368973302546
Possui graduação em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso
(2007/2). Língua Portuguesa e Inglesa e suas respectivas literaturas.

Rogério de Souza Cruz


http://lattes.cnpq.br/7083160822138793
Possui mestrado em ESTUDOS DE LITERATURA pela Universidade Federal
Fluminense (2013). Professor Concursado de Língua Portuguesa da Rede
Pública Estadual.

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A Literatura é uma das mais caras artes
produzidas pela engenhosidade humana.
Desde as primeiras manifestações literárias
até a complexidade dos romances
modernos, como os de Dostoiévski, sua
natureza social carregou consigo a visão de
um povo, em um tempo e espaço geográfico
definidos. O literário é também registro,
manifesta-se como produto da relação do eu
com o outro, dentro do social. No entanto,
não é um registro qualquer, como uma nota
de rodapé de um livro ou um comunicado
aleatório em um jornal, ele é circunscrito em
uma natureza particular: a artística.

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