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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Agnan Siqueira de Oliveira

TRABALHO FINAL – FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO I

I - Caverna

Para começar, achas mesmo que, em semelhante situação, poderiam


ver deles próprios e dos vizinhos alguma coisa além da sombra
projetada pelo fogo, na parede da caverna que lhas fica em frente?
(PLATÃO, 2000, p. 319)

Essa narrativa que aqui apresento é a narrativa da descoberta do amor.


Acredito que ela possa ser evocada como um exemplo de experiência similar a
da “alegoria da caverna”, porque de modo geral o amor em sua concretude é
muito mais complexo do que a idéia que fazemos dele, se isso vale para o
amor cis-heterossexual, as coisas ficam ainda mais complexas no meio
LGBTQIA+. A minha tomada de consciência enquanto uma mulher trans só
começou a acontecer aos 22 anos de idade, mas não foi antes dos 25 que de
fato comecei a performar o feminino. Antes disso, o que sempre ficou muito
claro para mim desde criança era meu interesse amoroso por meninos. A
minha adolescência foi marcada pela contradição entre o desejo por pessoas
do mesmo sexo e uma vida religiosa ativa no meio Católico Apostólico
Romano. Essa situação, além de constantes crises fez com que as minhas
experiências sexuais acontecessem muito depois do que para os adolescentes
cis-heteronormativos da mesma idade.

Na época em que descobria minha sexualidade, a pauta LGBTQIA+


ainda era tabu e não existiam referências (filmes, séries, canais no youtube,
livros, etc), do que seria o amor no meio gay, pelo menos não acessíveis para
um jovem de 14-15 anos, religioso, criado numa família de classe média-baixa.
Assim, a primeria “sombra” que se colocava para mim era dissociação
completa entre amor e sexo. Sexo era aquela coisa suja que eu via quando
assistia pornografia e que me dava um prazer físico, amor era o que eu sentia
pelo menino da escola e que tinha haver com andar de mãos dadas, beijar,
viajar juntos, compartilhar a vida. Todos os amores da minha adolescência
foram platônicos, por meninos heterossexuais que nunca olharam para mim da
mesma forma que eu olhava para eles. Essa situação começou a mudar
quando entrei na Faculdade de Artes do Paraná para cursar Artes Cênicas e
gradativamente me afastei do meio religioso. Tive algumas experiências com
outros homens gays, mas quando não se resumiam a relações sexuais, em
geral não eram dotadas daquele encantamento que lemos nos livros sobre o
amor.

II - Subida

Considera agora, lhe disse, quais seriam as conseqüências da


libertação desses homens, depois de curados de suas cadeias e
imaginações, se as coisas se passassem do seguinte modo: vindo a
ser um deles libertado e obrigado imediatamente a levantar-se, a virar
o pescoço, andar e olhar na direção da luz, não apenas tudo isso lhe
causaria dor, como também o deslumbramento o impediria de ver os
objetos cujas sombras até então ele enxergava. Como achas que
responderia a quem lhe afirmasse que tudo que ele vira até ali não
passava de brinquedo e que somente, agora, por estar mais próximo
da realidade e ter o rosto voltado para o que é mais real é que ele via
com maior exatidão; e também se o interlocutor lhe mostrasse os
objetos, à medida que fossem desfilando, e o obrigasse, á custa de
perguntas, a designá-los pelos nomes? Não te parece que ficaria
atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo que ele vira até
então do que quanto naquele instante lhe mostravam? (PLATÃO,
2000, p. 320)

Quando estava no terceiro ano da faculdade inscrevi, juntamente com


alguns colegas da faculdade, um projeto para um edital de intercâmbio do
Ministério da Cultura. Fomos aprovados e ganhamos o dinheiro para custear
todos os gastos de uma viagem de três semanas para Lisboa, para estudar
com o coreografo português João Fiadeiro. Eu estava com 20 anos e nunca
tinha andado de avião, nunca havia estado fora do país e nunca tinha passado
tanto tempo longe da família. Eu nem tinha ido numa balada ainda, e foi no
início da terceira semana que o inesperado aconteceu. Fui convidada pelos
meus colegas para ir numa balada LGBT chamada “Finalmente”. Cinco minutos
depois que havíamos chegado, entra no salão de dança um rapaz alto, loiro e
de olhos verdes. Nossos olhares se cruzam e imediatamente começamos a
flertar ainda de longe. Mais cinco minutos e eu estava ao seu lado dançando,
quando sou convidada para sair com ele daquela balada em direção a uma
outra nas proximidades chamada “Construction”. Aceitei. Passamos a noite
inteira dançando. Ele demorou para me dar o primeiro beijo. Ao final da noite,
ele me perguntou se eu gostaria de o acompanhar até a sua casa e terminar a
noite ao seu lado. Novamente aceitei. Para minha surpresa, quando chegamos
na marina de Lisboa, descobri que aquele rapaz 15 anos mais velho que eu era
um marinheiro, que morava num pequeno veleiro. Eu nunca tinha estado numa
balada antes, e da primeira vez me encontro com um marinheiro, eu também
nunca tinha estado num barco antes.

A última semana em Lisboa passou como que num conto de fadas, idas
a restaurantes, viagens para Cintra, uma cidade histórica cheia de castelos nos
arredores de Lisboa, não passei um dia sequer sem vê-lo. Mas no final eu tive
que voltar para o Brasil e deixar o marinheiro em Lisboa, sem saber quando e
se voltaria a vê-lo um dia. Foi uma das experiências mais doloridas que já
passei na minha vida.

De volta ao Brasil, a vida parecia que não tinha mais graça, até que ele
entrou em contato pelo Facebook. Continuamos a conversar todos os dias pela
internet, até que ele propôs que eu comprasse uma passagem de avião para
visitá-lo novamente nas minhas férias. Ele pagaria a passagem e me daria
hospedagem e alimentação. Eu não acreditava no que a vida estava me
proporcionando, esse primeiro amor com matizes épicas era muita mais do que
eu poderia imaginar que um dia aconteceria comigo. Mas ao mesmo tempo
dúvidas começavam a surgir na minha cabeça: será que amor dele continuaria
igual ao que eu sentia por ele? Como faríamos depois da segunda viagem para
manter uma relação? E sobretudo, eu não estava tendo relações com mais
ninguém, depois que conheci ele, será que ele agia da mesma forma?

Isso me consumia de uma tal maneira que eu simplesmente não


consegui me conter. Numa tarde, depois de chegar em casa, mandei uma
mensagem perguntando: Você tem ficado com outras pessoas? E a resposta
veio como um trovão: Óbvio, não posso me negar sexo! A qual eu apenas
respondi: Preciso pensar... e não falei com ele durante dois dias. Eu não
conseguia entender como uma pessoa seria capaz de gastar 1000 euros numa
passagem de ida e volta, para que eu pudesse vê-lo, declarar amor por mim e
ao mesmo tempo estar tendo relações sexuais com outros.
Depois desse acontecimento a relação não foi mais a mesma, eu voltei a
falar com ele, mas ele soava frio e distante. Mesmo assim, decidi que iria fazer
a segunda viagem para por um ponto final naquela história e poder me libertar.

A segunda viagem só teve o primeiro dia das três semanas no modo Lua
de Mel. Não tardou para que o marinheiro começasse a se portar como “pai” e
quisesse me ensinar como a vida era. Assim, quando saíamos, ele elogiava
outros homens na minha frente, mesmo sabendo que eu ficava visivelmente
incomodada. Foi a festas e não me chamou para ir junto, me deixando sozinha
no barco. E eu, sozinha, também fazia minhas investigações sobre quem de
fato era aquele homem. Assim, encontrei perfils em sites de relacionamento,
fotos de outros homens no computador, conversas de facebook do período em
que “estávamos juntos” em que ele marcava encontros com outros homens. No
final da primeira semana eu já nem queria mais beijá-lo e saia mais cedo
quando ele estava prestes a chegar do trabalho e ficava na rua até mais ou
menos meia noite, só para não ter que conviver.

Num dos dias em que estava sozinha, sem fazer nada no barco,
comecei a mexer em alguns objetos que estavam em cima de uma mesa, até
que encontrei numa sacolinha um caderno. Tratava-se de um diário, que além
de descrições detalhadas de relações sexuais que o marinheiro havia tido
comigo e com outros homens, narrava todos os eventos que narrei aqui só que
pela perspectiva do marinheiro. Quando me deparei com esse objeto pensei
“se ele estivesse viajando e uma outra pessoa encontrasse esse diário, haveria
um personagem chamado Agnan, mas foi eu que encontrei o personagem
acaba de assumir o controle do livro”. Assim, saí correndo pelas ruas de Lisboa
atrás de uma copiadora para tirar uma cópia do caderno. Quase fui pega, mas
por uma obra do destino consegui trazer a cópia do diário para o Brasil ao final
da segunda viagem.

III – Volta a Caverna

E se tivesse de competir outra vez a respeito das sombras com


aqueles eternos prisioneiros, quando ainda se ressentisse da
fraqueza da vista, por não se ter habituado com o escuro – o que não
exigiria pouco tempo – não se tornaria objeto de galhofa dos outros e
não diriam que o passeio lá por cima lhe estragara a vista e que não
valia a pena sequer tentar aquela subida? E se porventura ele
procurasse libertá-los e conduzi-los para cima, caso fosse possível
aos outros fazer uso da mão e matá-lo, não lhe tirariam a vida?
(PLATÃO, 2000, p. 322)

De volta ao Brasil, iniciei um processo de criação dentro da disciplina de


“Projeto de Investigação da Cena III”, e usava o diário roubado como principal
disparador para criação tanto da dramaturgia, quanto da encenação. Eu não
conseguia fechar a experiência, de fato ele havia me amado, o diário
demonstrava isso, mas me amar não impunha para ele a necessidade de
monogamia. E isso não entrava na minha cabeça... A subida para fora da
caverna não havia me jogado no idealismo, na transcendência, mas ao
contrário havia me tirado dela e apresentado uma forma imanente de amor,
com todas as suas contradições. Ao dividir essa experiência com as pessoas
que trabalhariam comigo na criação, não me via como a libertadora, mas como
alguém que havia vivido uma experiência muito intensa e diferente daquela que
as pessoas de 20 anos costumam viver. Eu havia tido contato com a diferença
radical e isso havia mudado a minha perspectiva.

No meu trabalho tanto com os atores, quanto na minha visão de


encenação daquilo que eu gostaria de proporcionar ao público enquanto
experiência estética não me coloquei num patamar superior, mas ao contrário
convidei a equipe (e depois o público) a pensar junto comigo as formas de
relações afetivas na contemporaneidade sem adotar perspectivas
maniqueístas: ou dizendo que a tradição está correta e julgar o contemporâneo
a partir disso ou assumindo que o contemporâneo que está correto e fechar os
olhos para suas contradições. Tratou-se de uma investigação estética do amor,
dos pais pelos filhos, entre amigos e entre amantes.

Eu não me tornei poligâmica depois disso, na verdade a experiência


serviu também para problematizar o meu pertencimento a comunidade gay,
movimento que resultaria anos depois na minha transição de gênero. Mas com
essa vivência aprendi que existem muitos fatores que interferem na produção
dos amores possíveis e que esse território é muito mais vasto do que aquele
que as comédias românticas apresentam.

Referências:

PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. – 3 ed. – Belém : EDUFPA, 2000.

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