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ORGANIZADORES:

BERNARDO DE AZEVEDO E SOUZA


JULIANA BEDIN GRANDO
MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI WERMUTH

CIÊNCIAS CRIMINAIS E DIREITOS HUMANOS

REVISORA:
CAMILA PAESE FEDRIGO

ASSOCIAÇÃO REFLETINDO O DIREITO


BENTO GONÇALVES
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C569 Ciências criminais e direitos humanos / orgs. Bernardo de


Azevedo e Souza, Maiquel Ângelo Dezordi
Wermuth, Juliana Bedin Grando. / revisoras
Camila Paese Fedrigo e Teresa Leopoldina dos
Santos Ribeiro. Bento Gonçalves, RS: Associação
Refletindo o Direito, 2015.

760 p. 21x29,7cm

ISBN 978-85-67584-17-1

1. Direito penal. 2. Direitos humanos. I. Souza,


Bernardo de Azevedo e. II.Wermuth, Maiquel
Ângelo Dezordi. III. Grando, Juliana Bedin. IV.
Fedrigo, Camila Paese.

CDU: 343.2

Índice para o catálogo sistemático:


1. Direito penal 343.2
2. Direitos humanos 342.7

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária


Márcia Servi Gonçalves – CRB 10/1500
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 10

A NUDEZ NO/DO DIREITO PENAL: A CONTRADIÇÃO ENTRE DIREITOS


HUMANOS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO 14

Aline Ferreira da Silva Diel


Tamires de Lima Oliveria

O DIREITO PENAL EM FACE DO FENÔMENO MIGRATÓRIO: QUANDO


A MIXOFOBIA SE SOBREPÕE AOS DIREITOS HUMANOS 27

Camila Rodrigues da Rocha


Klarissa Lazzarin de Sá

POLÍTICA CRIMINAL E PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA:


ESTRATÉGIAS PARA A PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA E PARA A
PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NOS ESPAÇOS 41

Ester Eliana Hauser


Lourdes Aparecida Grossmann

O GÊNERO FEMININO A PARTIR DO PRISMA DA VITIMODOGMÁTICA


E DA VITIMOLOGIA: percalços e possibilidades 60

Mariane Camargo D’Oliveira


Maria Aparecida Santana Camargo

DISCURSO FEMINISTA E PODER PUNITIVO: APROXIMAÇÕES


(IM)POSSÍVEIS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
76

Joice Graciele Nielsson


Raquel Cristiane Feistel Pinto

A MAXIMIZAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO A PARTIR


DO ATUAL CONTROLE SOCIAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA E
TERAPÊUTICA COMO MÉTODOS ALTERNATIVOS A JUSTIÇA
RETRIBUTIVA NO BRASIL 96
Alexandre Marques Silveira
Felipe da Veiga Dias

A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA DE TROCA AUTOMÁTICA DE


INFORMAÇÕES DOS PARAÍSOS FISCAIS RELACIONADO AO
TRÁFICO DE DROGAS E O ACESSO ÀS NECESSIDADES BÁSICAS
DO CIDADÃO
112

Guilherme Augusto Souza Godoy

A CONSTITUIÇÃO DE UM CÓDIGO PENAL ALICERÇADO NO ESTADO


DE EXCEÇÃO DE “SALÒ OU OS 120 DIAS DE SODOMA” E A
REPERCUSSÃO NO HOMO SACER
125

Laura Mallmann Marcht

O COMBATE AO TERRORISMO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL: O


PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E DA ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS ‘ 136

Aline Michele Pedron Leves


Pâmela Copetti Ghisleni

PARA QUE(M) SERVE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA? 155

Paulo Thiago Fernandes Dias

A CORRUPÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO MODERNO E A INFLUÊNCIA


POLÍTICA E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL 174

Maíra Fronza
Adalberto Narciso Hommerding

A CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SEUS


EFEITOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO 186

José Ricardo Maciel Nerling


Regina Gütler Carvalho

UMA INTRODUÇÃO ÀS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL 198


Antônio Paulo Soares Lopes da Silveira
Mariana Azambuja

DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO: DECORRÊNCIA DE UMA SEGURANÇA PÚBLICA EM
CRISE 218

Pedro Henrique Baiotto Noronha

A CASTRAÇÃO QUÍMICA: SUA EXPLÍCITA


INCONSTITUCIONALIDADE EM CONSONÂNCIA À (RE)SOCIALIZAÇÃO
DO APENADO 238

Diovan Roberto Schmalz

A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL: QUAL SUA


EFICÁCIA E POSSÍVEIS MEDIDAS ALTERNATIVAS 257

Lucas Oliveira Vianna

CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL 280

Ana Paula Schmidt Favarin

O MILITARISMO UM SISTEMA PARA SER REVISTO 294

Elmir Jorge Schneider

PLURALISMO JURÍDICO, DIREITO INFORMAL E A CRIMINALIDADE


311
Jeannine Tonetto de Aguiar

PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA


ABORDAGEM À LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA 328

Dieison Felipe Zanfra Marques


Tatiane Sartori Bagolin

RACISMO: DA LEI AÚREA À CRIMININALIZAÇÃO. UM ESTUDO


ACERCA DA EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASIILEIRA 342

Fagner Cuozzo Pias


A APLICABILIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO ÀS TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS 355

Ana Patrícia Racki Wisniewski;


Camila Paese Fedrigo

A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DA ATUAÇÃO DO


SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE
LEGITIMAÇÃO E REPRODUÇÃO DA ORDEM SOCIAL EXCLUDENTE:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO PERFIL DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA
CONTEMPORÂNEA 367

Luana Rambo Assis


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETA A


PRISÃO PREVENTIVA 383

Bruno Silveira Rigon


Felipe Lazzari da Silveira.

O DIRETO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A REALIDADE NA OBTENÇÃO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO
‘ 403

Janaína Machado Sturza


Luís Fernando Pretto Corrêa

A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO


BRASILEIRO 423

Juliana Oliveira Santos


Marcelo Dias Jaques

ANÁLISE BIOPSCICOSSOCIAL DO USO DE ALGEMAS: CONFLITO


ENTRE A LEI E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 443

Fernanda Licéli Lowe


O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE
VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 461

Gabriel Maçalai
Patrícia Borges Moura

OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL INQUISITORIAL


BRASILEIRO 480

Damiani Costa e Silva


Eduardo Vieira Hilário

DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS PARA APENADOS – DIMENSÕES


DA ECONOMIA SOLIDÁRIA 493

Enio Waldir da Silva

O ASPECTO INTERNACIONAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO A PARTIR DO PACTO DE
SÃO JOSÉ DA COSTA RICA 505

André Giovane de Castro


Marcelo Loeblein dos Santos

O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: (IN)APLICABILIDADE DA RESERVA


DO POSSÍVEL 526

Renata Maciel
Juliana Bedin Grando

O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS


HUMANOS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA 537

Eliete Vanessa Schneider


Bruna Katiane Boeno

A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA COMO


PREMISSA À UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA 549

Janaína Schorr
Alfedo Copetti Neto
ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E
NO BRASIL 564

Carla Dório de Oliveira


Doglas Cesar Lucas

OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO:


AVANÇO OU RETROCESSO? 584

Daniela da Rosa Molinari


Marcele Scapin Rogério

OS NOVOS DIREITOS E A INFLUÊNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS


NOS DIREITOS HUMANOS: A INTERNET (IN) FORMANDO CIDADÃOS
602
Danielli Regina Scarantti

POR UMA CULTURA PLANETÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS:


APONTAMENTOS A PARTIR DO PENSAMENTO DECOLONIAL 618

Carolina Menegon

AS CONTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA UMA


PERSPECTIVA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS 632

Tamiris A. Gervasoni
Felipe da Veiga Dias

DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA: AFINAL, ONDE SE


SITUAM? 649

Iuri Bolesina
Tássia A. Gervasoni

MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS COMO MECANISMO DE


CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E GARANTIA DOS DIREITOS
HUMANOS 670

Luana Nascimento Perin


Eloísa Nair de Andrade Argerich
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O
DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS (DIR) EM ÁREAS
ESPECÍFICAS 682

Ana Cristina Mendes


Valéria Mendes Pinheiro

A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL: O


JORNALISMO JUSTICEIRO E A OFENSA AOS DIREITOS HUMANOS
708

Danielli Zaninni
Vinícius Bindé Arbo de Araujo

A BUSCA POR RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES E O


EMPODERAMENTO DA SUBJETIVIDADE: O “CLUBE DA LUTA” E A
REBELIÃO DOS DESAJUSTADOS 725

Tiago Meyer Mendes


APRESENTAÇÃO

De acordo com a lição de Muñoz Conde1, enquanto existir Direito


Penal – e nas atuais condições deve-se ponderar que ele existirá por muito
tempo –, deve existir também sempre alguém disposto a estudá-lo e
analisá-lo racionalmente, de forma a convertê-lo em instrumento de
mudança e progresso rumo a uma sociedade mais justa e igualitária,
denunciando, para tanto, além das contradições que lhes são ínsitas, as
contradições do sistema econômico que o condiciona.
Na contemporaneidade, os estudos acerca do processo de expansão
do Direito Penal assumem especial relevância, em face das consequências
nefastas que o alargamento da intervenção punitiva produz no que diz
respeito à proteção dos direitos e garantias fundamentais, dado que dito
processo expansivo encontra-se assentado em bases que são
características de um Direito Penal autoritário e demasiadamente
repressivo, inadmissível no atual estado de desenvolvimento da
civilização.
Ocorre que o medo e a insegurança que permeiam as relações
sociais na pós-modernidade, em decorrência das novas tecnologias e da
incerteza que o futuro da sociedade globalizada representa em face dos
riscos que lhes são característicos, permitem a afirmação de que, da
mesma forma como a modernização dissolveu a sociedade agrária do
século XIX e elaborou a imagem da sociedade industrial, é agora
responsável pelo surgimento da uma nova figura social: a sociedade de
risco.
O ingresso nessa sociedade de risco se dá a partir do momento em
que os princípios de cálculo da sociedade industrial são encobertos e
anulados, e os perigos socialmente produzidos ultrapassam os limites da
segurabilidade. Com isso, passa-se de uma lógica de “distribuição de
riquezas” – característica da sociedade industrial clássica – para uma
lógica de “distribuição de riscos”. A potenciação dos riscos da

1MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda
Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
modernização caracteriza, assim, a atual sociedade de risco, que está
marcada por ameaças e debilidades que projetam um futuro incerto2.
O aumento da preocupação com as novas formas de criminalidade
que se apresentam nesta realidade é consequência inafastável dos cada
vez mais fortes sentimentos de insegurança e medo na sociedade
conte\mporânea, a reclamarem por parte de uma população cada vez
mais atemorizada diante da utilização deste “medo” como “mercadoria”
pelos meios de comunicação de massa, por uma maior presença e eficácia
das instâncias de controle social, diante daquilo a que Pérez Cepeda3
denomina de “cultura da emergência”.
Os sentimentos de insegurança e medo na sociedade
contemporânea adquirem novas dimensões diariamente, sendo
influenciados diretamente pelos meios de comunicação de massa,
utilizados como mecanismos para fomentar crenças, culturas, valores e
formar opinião sobre os mais diversos temas. Para sustentar os
interesses que representa, a mídia passa explorar a criminalidade em
grau máximo. Assim, o medo de se tornar vítima de um delito é
transformado em mercadoria da indústria4 cultural, criando uma
preocupação social com as novas formas de criminalidade. O medo difuso
e constante do crime torna-se, então, infinitamente maior do que a
possibilidade real de ser vítima de um delito. É dizer: a vivência subjetiva
dos riscos passa a ser claramente superior à sua própria existência
objetiva.
O sentimento geral de insegurança e medo, alimentado e acentuado
pelos meios de comunicação, apresenta-se, pois, de maneira
desproporcional em relação à existência concreta do risco. Como aponta
David Garland5, a gravidade do problema é inegável nos dias de hoje, a
ponto de já estarem sendo desenvolvidas políticas específicas mais com

2BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad.Trad. Jorge Navarro,
Dabiel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998.
3 PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho

penal postmoderno. Madrid: Iustel, 2007.


4 CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes

criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. pp. 23-24.


5 GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade

contemporânea. Rio de Janeiro: Revan. 2008. p. 346 e ss.


objetivo de reduzir os níveis de medo e insegurança do que propriamente
mitigar o crime.
Em uma sociedade como a nossa, na qual os valores não são
suficientemente robustos para orientar as condutas sob uma perspectiva
generalizada, predominando a desorganização, aceleração e
complexidade das relações sociais, associado ao interesse dos meios de
comunicação em fomentar na coletividade uma sensibilidade exacerbada,
é natural que a reação social seja a de clamar por conforto, mesmo que
ilusório, por meio do Direito Penal, ainda que possa implicar em
relativizações ou violações totais de direitos e garantais fundamentais.
Com efeito, buscando dar respostas eficazes à população, o Direito
Penal que se estrutura nesse contexto passa por um processo de
expansão do seu raio de intervenção, com uma significativa
transformação dos objetivos e do campo de atuação da política criminal,
em decorrência da proeminência que é dada à intervenção punitiva em
detrimento de outros instrumentos de controle social (Direito Civil,
Direito Administrativo). E a busca por eficiência exige a “adequação” dos
conteúdos do Direito Penal e Processual Penal às dificuldades ínsitas à
persecução às novas formas assumidas pela criminalidade, o que
perpassa por um processo de “atualização” dos instrumentos punitivos,
com a consequente flexibilização e/ou supressão de garantias penais e
processuais penais liberais.
Como consequência, surgem no âmbito das Ciências Criminais
posturas repressivistas/punitivistas que concebem como principal causa
da violência e da criminalidade na sociedade contemporânea o
afrouxamento na repressão e a impunidade de grande parte dos
envolvidos com crimes. Neste sentido propõem um maior endurecimento
nas penas, a supressão de garantias e a busca pela superação da
impunidade como estratégia primeira de segurança, panorama que
coloca em risco os direitos e garantias fundamentais.
Nesse sentido, o livro que ora temos o prazer de apresentar,
afigura-se como fruto de um conjunto de pesquisas que foram
apresentadas durante a realização do I Congresso Nacional de Ciências
Criminais e Direitos Humanos, na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, em parceria com o Canal Ciências
Criminais. Partindo do panorama geral acima delineado, o presente livro
dedica-se a promover o debate de diferentes temáticas relacionadas às
Ciências Criminais, à luz dos Direitos Humanos. Trata-se de uma obra
instigante que apresenta contribuições de diversos autores sobre temas
atuais e relevantes no âmbito da Criminologia, Política Criminal, Direito
Penal, Direito Processual Penal e Direitos Humanos, servindo como uma
importante fonte de pesquisa para acadêmicos e demais pessoas
interessadas no debate acerca da construção de um modelo de Direito
Penal mais justo e igualitário, em conformidade com os postulados de um
Estado Democrático de Direito.

Os organizadores.
A NUDEZ NO/DO DIREITO PENAL: A CONTRADIÇÃO ENTRE DIREITOS
HUMANOS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO1

Aline Ferreira da Silva Diel2


Tamires de Lima de Oliveira3

1. INTRODUÇÃO
O controle exercido pelo direito penal conduz a uma instável
segurança normativa, dada sua progressiva expansão regulatória. Essa
esfera do direito conduz a sociedade a um temor relevante das ações
humanas caracterizadas como violentas, achando no direito penal o veículo
de proteção adequado, na medida em que este separa o sujeito transgressor
do restante da sociedade que compactua com os acordos morais de "boa
convivência".
Para o sujeito transgressor, o afastamento do núcleo social é a medida
coercitiva/educativa perfeita para o direito penal - aqui caracterizado pelo
crescente direito penal do inimigo, ainda que de forma simbólica -, na
medida em que busca corrigir - ou eliminar - o sujeito e alertar os demais
sobre as ações proibidas. Esta lógica é tornada simples, pois "um indivíduo
que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode
participar dos benefícios do conceito de pessoa" (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p.
36).
Tem-se neste controle expansivo a caracterização da vida nua, que
diferencia a bios e zoé, resultando no sujeito que possui uma vida que não
vale a pena ser vivida. A figura excluída, ou o homo sacer, é banido do

1Este artigo é resultado de um recorte teórico no qual se pretende desenvolver o Projeto de


Dissertação vinculado ao Programa de Pós-Graduação stricto-sensu, Mestrado em Direitos
Humanos, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ,
Ijuí, RS. Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - CAPES
2Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões -

URI, campus Santo Ângelo/RS. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional


do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí, Ijuí/RS. Bolsista Capes.
3Mestranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito

da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ - Brasil),


graduada em Direito pela mesma instituição, bolsista Capes, e-mail:
oliveira.tamireslima@gmail.com.

14
núcleo social, tornando-se um não-sujeito, que passa a viver sob a tutela de
um estado de exceção, ou seja, marcado pela ausência de tutela dos direitos
humanos.
Enfrenta-se a nudez dentro do direito penal; a separação de indivíduos
a partir de uma violência legitimada pelo Estado, deveras arbitrária, mas
cogente nos preceitos normativos. "A redução do homem à vida nua é hoje a
tal ponto um fato consumado que ela está agora na base da identidade que o
Estado reconhece perante seus cidadãos" (AGAMBEN, 2015, p 84).
É sob o propósito de debater a inserção crescente do Estado - aqui
pelo direito penal - na vida dos indivíduos que este artigo se alicerça. A
partir da concepção agambeniana sobre a vida nua e o discurso expansivo
do direito penal, quese estabelece o contrassenso na tutela dos direitos
humanos. "A vida nua não está mais confinada em um lugar particular ou
em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente"
(AGAMBEN, 2002, p. 146), o que legitima a morte - simbólica e real - dos
indivíduos pelo Estado como um propósito moral.

2. ENTRE ZOÉ E BIOS: O CAMINHO DA SEPARAÇÃO DA VIDA QUE NÃO


VALE A PENA SER VIVIDA E A CARACTERIZAÇÃO DO HOMO SACER

Para Agamben (2002, p. 09)zoéé a vida comum a todos os seres vivos


(animais, homens ou deuses), enquanto biosé a forma ou maneira de viver
própria de um indivíduo ou de um grupo. A zoéé a vida livre, natural e
ordenada pelas regras da natureza; é a vida nua. Bios é a vida "criada" pelo
homem enquanto ser social; é a vida politizada. O homem cria a sociedade
para viver bem e, conforme Agamben (2002, p. 10) parafraseia Aristóteles,
"este é o fim supremo seja em comum para todos os homens, seja em
comum separadamente" que "unem-se e mantêm a comunidade política
tendo em vista o simples fato de viver".
A vida em comunidade traz benefícios para o homem individual e
"nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza
selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente,
testemunhe a presença de outros seres humanos" (ARENDT, 1989, p. 31). A

15
evolução do indivíduo depende da comunidade que o cerca, pois esta supre
suas necessidades vitais.

As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das


atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e,
no entanto, este ambiente, o mundo ao qual vivemos, mão existiria
sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas
fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou
que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo
político (ARENDT, 1989, p. 31).

Para manter o corpo político em ordem é necessária uma intervenção


superior que reprima qualquer possibilidade de revolta da população
ordenada. O corpo político que deu vida ao Estado permite que este
intervenha na vida individual dos cidadãos. Surge o direito como mecanismo
intercessor, regulando condutas e sancionando o desvio. Nesta seara, o
direito penal é o veículo predecessor que regula a "boa" convivência social,
tendo em suas medidas coercitivas, o mecanismo de controle social.
No entanto, este controle atravessa as fronteiras da simples regulação,
a partir do momento em que o direito penal caracteriza-se por uma
expansividade sem limites, controlando todos os atos da vida humana, seja
individual ou em sociedade. Esta intervenção qualifica o sujeito que pode
conviver em sociedade daquele que deve ser afastado. Surge a manipulação
dos corpos para que se tornem dóceis e manejáveis, a partir de regras,
estabelecidas pelo direito penal, que se configura como um contrato social de
regulação das ações humanas. O indivíduo que não se adaptar a esta
regulação será banido do corpo social, para que a ordem anterior possa ser
mantida.
Esta exclusão pode ser associada a uma figura arcaica do direito
romano: o Homo Sacer.4 Este personagem, segundo apresenta Castor Bartolomé
Ruiz, a partir da teoria de Agamben, é uma figura

4Ruiz complementa que a figura do homo saceré um conceito-limite do direito romano que
delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a
sacralidade e a soberania. Ambas são estruturas originárias do poder político e jurídico
ocidentais porque revelam os dois personagens que estão fora e acima da ordem: o homo
sacer e o soberano (RUIZ, 2013, p. 33).
16
[...] jurídico-política pela qual uma pessoa, ao ser proclamada sacer,
era legalmente excluída do direito (e consequentemente da política da
cidade). Tal condição de sacer impedia que ela pudesse ser
legalmente morta (sacrificada), porém qualquer um poderia matá-la
sem que a lei o culpasse por isso (2013, p. 33).

Saceré a vida abandonada pelo direito pelo fato de não ter-se adaptado
à organização política-social. O Homo Sacer constitui a vida que não vale a
pena ser vivida e que deve ser excluída do núcleo social, ensejando uma
morte simbólica. O indivíduo declarado sacer deixa de constituir a bios, ou a
vida em comunidade; "é uma vida matável por estar fora do direito, mas por
isso mesmo ela não pode ser condenada juridicamente". Este abandono se
caracteriza pela exposição "à vulnerabilidade da violência por ser desprovida
de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade se deriva de um ato de
direito que a excluiu" (RUIZ, 2013, p. 33).
O sujeito que transgride as concepções normativas da bios passa a ser
constituído como o sujeito detentor da vida que não vale a pena ser vivida, e
isto se conduz ao

[...] fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida


corresponde imediatamente à fixação de um limiar além do qual a
vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que
se cometa homicídio. A nova categoria jurídica de "vida sem valor"
(ou indigna de ser vivida) corresponde ponto por ponto [...] à vida
nua do homo sacer (AGAMBEN, 2002, p. 146, grifo do autor).

Com efeito, "ohomo sacer não só mostra a fragilidade da vida humana


abandonada pelo direito, mas também, e mais importante, revela a
existência de uma vontade soberana capaz de suspender a ordem e o direito"
(RUIZ, 2013, p. 33, grifo do autor). E na concepção de Agamben (2002, p.
146), "é como se toda valorização e toda "politização" da vida [...] implicasse
necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa
de ser politicamente relevante, é então somente "vida sacra".5 Destarte, a

5A vida sacra, na concepção de Agamben, é a vida insacrificável e, todavia, matável. Em


complemento, o autor destaca que aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é
tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto,
sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à
qual se encontra exposto. Esta violência - a morte insancionável que qualquer um pode
17
expansividade do direito penal, utilizando simbolicamente o direito penal do
inimigo, acaba por asseverar o condicionamento de determinados sujeitos ao
homo sacer alocando-os de volta a bios, ou à vida nua.

3. O DISCURSO EXPANSIVO DO DIREITO PENAL: OS FINS QUE


JUSTIFICAM A VIDA NUA E A ADOÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

O direito penal obedece ao fim específico da exclusão, muito antes de


proteger a sociedade da violência ou crescente criminalidade; aliás, "o
exercício de poder do sistema punitivo, dado seu caráter flagrantemente
seletivo, visa, antes do combate à criminalidade, à contenção de
determinados grupos humanos que, diante da configuração socioeconômica,
traduzem-se em inconvenientes sociais" (WERMUTH, p. 236). O Homo Saceré
idealizado nos baixos estratos sociais, onde impera a marginalização da
pobreza e onde as "raízes" do Estado apenas se apresentam no aspecto
punitivo, criando estereótipos do indivíduo como um ser pobre, negro e
favelado.
Além do caráter de exclusão, o direito penal constitui a gestão da vida
social, ao regular e controlar determinados - ou todos - os atos da vida
humana em sociedade. Cria-se uma espécie de regulamentação da moral
social, visando ao exercício de uma cidadania tida como correta. O indivíduo
que não seguir esta regulação será tratado como outro que não se adaptou
ou não aceitou esse contrato social. Esta é uma característica da
expansividade desta seara do direito em todos os aspectos da bios.6
Outrossim, a própria sociedade encontra nos mecanismos penais uma
barreira que divide a comunidade de "bem", dos sujeitos transgressores da

cometer em relação a ele - não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio,
nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio (2002, p. 90).
6No que concerne à questão da expansividade do Direito Penal, Manuel Cancio Meliá e

Günther Jakobs destacam que o ponto de partida de qualquer análise do fenômeno, que
pode denominar-se a "expansão" do ordenamento penal, está, efetivamente, em uma simples
constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo das duas
últimas décadas nos países de nosso entorno tem colocado, ao redor do elenco nuclear de
normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva dos bens
jurídicos clássicos, constituem hipóteses de "criminalização no estado prévio" a lesões de
bens jurídicos, cujos marcos penais estabelecem sanções desproporcionalmente altas (2005,
p. 56).
18
ordem social. Assim,

a sociedade encontra no Direito Penal a força e a garra para


exterminar o mal que a assola: se um cidadão atua fora do quadro
jurídico estabelecido e aceite pela comunidade - a cujo pacto todos os
homens aderem sob regra da prevalência da vontade da maioria -,
violando o contrato social, e, depois de ser advertido com uma pena
ou de saber que há condutas inadmissíveis e inaceitáveis na ordem
jurídica por serem aniquiladoras da harmonia vivencial, esse cidadão
não pode nem deve ser tratado como um cidadão, mas como um
inimigo da comunidade (VALENTE, 2010, p. 16, grifo do autor). 7

Utilizando-se da pena, o direito penal se justifica como um meio de


defesa social, o que significa "defender a sociedade desses seres perigosos
que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar do normal
(prognóstico científico de periculosidade) havendo que os ressocializar ou
neutralizar" (ANDRADE, 2003, p. 37-38).
Nesta senda, a pessoa caracterizada como homo sacer"é simplesmente
posta para fora da jurisdição humana [...]" (AGAMBEN, 2002, p. 89). O
sujeito tendente a perder seu lugar na sociedade, perde, deveras, todos os
direitos intrínsecos ao seu status de cidadão, caracterizando a vida nua, ou
aquela vida que não vale e pena ser vivida e, muito menos, tutelada pelo
direito e suas garantias fundamentais, pois deixa de atender a um bem
maior que é a própria sociedade, sendo caracterizado como um inimigo, não
apenas da comunidade, mas do próprio Estado.
Este inimigo é despersonificado frente à sua comunidade, passando a
receber tratamento diverso do despendido ao cidadão comum - ou o cidadão
de bem -. Esta despersonificação é caracterizada pela retirada do status de
cidadão do "delinquente", tornando-o um inimigo da sociedade, a ser
combatido pelo direito penal.

Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece


garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser
tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta

7Para Günter Jakobs, utilizando-se de autores contratualistas, justifica essa exclusão no


sentido de que o delinquente que infringe o contrato social estabelecido pela sociedade -
portanto, pela maioria - não participa mais dos benefícios deste e, a partir deste momento,
já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica (JAKOBS; MELIÁ, 2005).
19
guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu
direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito
também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é
excluído (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p.49).

Os indivíduos "que pela sua antijuridicidade permanente ou elevada


danosidade da sua conduta são considerados como seres nocivos e
perigososà vigência da ordem jurídica tutelante e detentora do primado da
paz jurídica e social" (VALENTE, 2010, p. 91, grifo do autor), são
controlados, conjunta e simbolicamente ao direito penal, por um Direito
Penal do Inimigo, que passa a regular a vida nua, ou a vida desprovida de
direitos.
Ao tornar-se inimigo, este indivíduo será automaticamente excluído do
grupo social, recebendo uma carga de estereótipos e estigmatizado, sendo
dificultada sua reinserção na comunidade. A esta exclusão pode-se aferir a
nudez estabelecida por Agamben. O Sujeito excluído é despido do status de
cidadão, tendente a permanecer nos "arredores" da bios, ou do núcleo social.
Torna-se uma vida que não merece ser vivida, podendo ser sacrificável
impunemente.
O que se observa é que o direito penal, muito contrário à função de
interventor mínimo que lhe foi idealizada e consagrado nas declarações de
direito, tem efetivamente mostrado ser o instituto jurídico de maior
intervenção na vida em sociedade. Age não mais apenas a posteriori na
estabilização de conflitos, mas a priori através de um controle social
excessivo, que chega a determinar quem merece ou não ser detentor do
próprio Direito. Fato que se estampa na crescente dualidade entre o sujeito
"cidadão" e o transgressor da lei - o não sujeito, o "inimigo".
Talvez a grande questão imposta ao Estado, desde a constituição das
sociedades civis, tenha realmente sido esta: o que fazer com aqueles que se
recusam a seguir as regras do "contrato social", aqueles a que não se pode
controlar com a ameaça da lei? Uma análise não muito complexa da
organização social da humanidade demonstra que o isolamento, o
afastamento espacial, parece ter sido escolhido durante séculos como a
solução (o escravo era confinado aos grilhões da senzala, os doentes mentais

20
e os indesejados ao manicômio).
Segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 114), "o isolamento reduz,
diminui, comprime a visão do outro". Na medida em que o outro (aqui o
indesejado social) é afastado do convívio e intercâmbio comunitário, suas
qualidades e circunstâncias individuais são subjugadas por uma
caracterização legal que, visando suprimir a disparidade, retira do sujeito a
relevância de sua singularidade, de sua identidade.
De fato, ao resolver o problema da desobediência à lei, através da
segregação espacial, o direito penal cria, na linha do pensamento de
Bauman (1999), uma espécie de must, um dever que gera mútuo isolamento,
qual seja o dever de segregar as diferenças e o dever de que a lei penal
exerça, nessa lógica, um impacto submissor. A partir disto,

o outro - lançado numa condição de forçada estranheza, guardada e


cultivada pelas fronteiras espaciais estritamente vigiadas, mantido a
distância e impedido de ter um acesso comunicativo regulador ou
esporádico - é além disso mantido na categoria de estranho,
efetivamente despojado da singularidade individual, pessoal, a única
coisa que poderia impedir a estereotipagem e assim contrabalançar ou
mitigar o impacto subjugador da lei - também da lei criminal
(BAUMAN, 1999, pp. 115-6).

A esse respeito, uma constatação simples, mas que muitas vezes


escapa à reflexão, é o fato de que o isolamento é apenas uma das formas de
punição disponíveis ao Estado. Em geral, os ordenamentos jurídicos
ocidentais contam com ao menos mais duas formas de penalização, quais
sejam a pena de multa e a pena de prestação de serviços sociais. E mesmo a
pena de prisão, nos moldes como é executada (tomando-se como exemplo a
estrutura penitenciária brasileira), está longe de representar o sistema (re)
socializante previsto constitucionalmente, quiçá oferecer ao preso o acesso
aos seus direitos fundamentais básicos. É neste âmbito que a vida que não
vale a pena ser vivida se materializa e o homo sacer pós-moderno depara-se
com um sistema penal em que a pena ainda reproduz a antiga lógica
meramente retributiva.
Neste ponto, é impossível não sucumbir à indagação primordial "por
que?". Por que em meio a uma evolução tecnológica e científica, que
21
pressupõe uma humanidade mais habilitada para resolver os desafios do
convívio social, a lógica da segregação do inconveniente ainda persiste?
Analisando a recorrência do modelo punição pela via do encarceramento
como uma das consequências da globalização, Bauman (1999) aponta como
possíveis causas de tal fenômeno o que aqui resumiremos em três aspectos,
que se correlacionam.
Primeiro, a promoção de questões classificadas na rubrica "lei e
ordem" da agenda pública do Estado, que se refletem cada vez mais nas
bandeiras eleitorais e são o espetáculo preferido da mídia. Segundo, a
"autopropulsação" do medo, a insegurança e incerteza psicológica inflada ao
máximo pela globalização pós-moderna, faz com que a nação busque no
territorialismo uma espécie de porto seguro, armando-se e estando sempre
em alerta com relação aos outros e, assim, impedindo a criação de laços
verdadeiros de solidarismo internacional. Por fim, em terceiro lugar, todos
estes aspectos criam a constante tensão social por segurança, desenhando
no imaginário social a ideia de que a sociedade é demonizantemente má e
necessita ser fortemente controlada e seus "maus elementos"
combatidos/exterminados.
A conclusão a que se chega, portanto, é de que o Direito Penal possui
um poder que vai além da punição: o poder de exclusão, que cada vez mais
se traduz em um poder de dar "a cada refugo seu depósito de lixo"
(BAUMAN, 2005, p. 81). O Estado de direito não interfere neste círculo de
exclusão, permanecendo o sujeito excluído à mercê de um direito garantidor
da dignidade humana - ou os direitos humanos - insólito, que encontra
barreiras em sua efetivação e estabelece o contrassenso entre um sistema
punitivo/repressivo e um Estado Democrático de Direito garantidor de
direitos e garantias fundamentais.

4. O DIREITO A TER DIREITOS EM CONTRASSENSO AO DIREITO


PENAL

O viver em sociedade nada mais é do que um direito humano, que faz


parte de uma construção social que busca proteger uma série de direitos
22
intrínsecos à dignidade da pessoa humana. A construção desses direitos,
que não são estáveis ou fixos, começou a partir das lutas do homem por sua
emancipação e liberdade, direito puramente inerente ao seu status humano.
Assim, "não nascemos iguais; tornamo-nos iguais como membros de um
grupo por força de nossa decisão de nos garantirmos direitos
reciprocamente" (ARENDT, 2007, p. 335).
Neste sentido, para Hannah Arendt (1986, p. 17), "os homens são
seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contado torna-
se imediatamente uma condição de sua existência" Assim, o sujeito precisa
estar presente em sua comunidade para que possa "existir" como um ser
humano, ou um sujeito de direito.
Encontramos aqui um contrassenso entre o "direito a ter direitos" e os
mecanismos repressivos do direito penal, que acabam suprimindo garantias
básicas dos indivíduos, como a própria convivência em sociedade. Com uma
expansiva criminalização de condutas e o direcionamento punitivo para
determinados sujeitos, o Estado detém o monopólio punitivo ao mesmo
tempo em que é responsável em efetivar os direitos humanos. Desta senda,
a dignidade humana é sobrepujada frente aos mecanismos penais. Ao ser
excluído do núcleo social, o sujeito tem decretada sua vida nua, deixando de
receber a tutela do Estado em atenção às suas necessidades.
O sujeito que não aceita o pacto social acaba por ser demonizado, e o
direito penal serve como instrumento de proteção contra um inimigo
iminente que está fadado a romper com a ordem anteriormente estabelecida.
Os direitos humanos não conseguem chegar a este indivíduo de forma eficaz,
pois não se trata apenas de garantias constitucionais dentro de um processo
penal, mas o direito a própria existência como um sujeito de direitos; um ser
humano, que possui o direito de estar e realizar em sociedade. Esta, pois,
que é a essência dos direitos humanos, como tão bem conceituados por
Arendt como o direito e a ter direitos.
Sob esta perspectiva, o homo sacer acaba por encontrar na vida nua
sua incivilidade, pois perdeu o seu status de cidadão, que na análise
arendtiana, ao perder o "status civitatis significa ser expulso da humanidade,
de nada valendo os direitos humanos aos expelidos da trindade Estado-
23
Povo-Território" (LAFER, p. 147). A isto se propõe o crescente Direito Penal
do Inimigo, para o qual quem não consegue atender ao pacto social
estabelecido, não pode esperar ser tratado como pessoa, mas o próprio
"Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que do contrário vulneraria o
direito à segurança das demais pessoas" (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 42).
Para que os direitos humanos sobreponham-se aos preceitos
normativos penais é necessário que o Estado, enquanto comunidade,
intervenha de modo a assegurar a igualdade entre os cidadãos pois,

[...] nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como
membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta
que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é um dado - ele
não éphysis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à
comunidade política. Ela é um construído, elaborado
convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da
organização da comunidade política. Daí a indissolubilidade da
relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se
politicamente, em conjunto com os seus concidadãos, através do
exercício de seus direitos políticos, e o direito da comunidade de
autodeterminar-se, construindo convencionalmente a igualdade
(LAFER, p. 150).

Os direitos humanos, como uma construção humana e política, podem


muito bem ser moldados para atender todos os indivíduos em todas as
dimensões sociais com suas especificidades. Neste sentido, Karam (2009)
argumenta no sentido de que é preciso buscar instrumentos mais eficazes e
menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à
intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções
explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosoas,
além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente à injustiça
decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande
volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e
alimentando diversas formas de violência.
A nudez desenhada por Agamben é encontrada no direito penal nos
casos em que este apenas serve como instrumento de punição e medo, e não
aos fins a que se destina, estigmatizando indivíduos através de um
direcionamento punitivo e criando o óbice para o alcance dos direitos

24
humanos. A todos é permitido participar da vida em comunidade, pois o
homem singular não consegue enxergar a sua condição humana, que reside
exatamente na vita activa conceituada por Arendt (1987, p. 17), ou seja, a
vida condicionada à produção de sua existência na comunidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito penal, através de seus mecanismos punitivos, acaba por


estabelecer a diferenciação entre os indivíduos a partir do direcionamento
punitivo, o que conduz àvida nua, ou a vida que não vale a pena ser vivida.
Outrossim, o paradigma punitivo acaba por ser excludente, caracterizando o
homo sacer, ou o sujeito que não merece viver em comunidade. Este aparato
punitivo alicerça-se na expansividade de um direito penal enraizado em
concepções baseadas no afastamento de determinados sujeitos, sendo estes
caracterizados, não apenas pelo discurso da não obediência às normas do
direito, mas por características sociais e pessoais.
A punição simbólica expande-se sem limites, fazendo com que a
sensação de impunidade cresça e, consequentemente, aumentem as
alternativas penais justificadas na contenção de indivíduos que,
supostamente, não concordam com as regras normativas estabelecidas pela
sociedade, sendo declarados como inimigos que devem ser combatidos
através da exclusão social.
Em outras palavras, o sujeito que desobedece a norma passa a ser
encarado como um outro ameaçador e, assim como nas sociedades
primitivas de outrora, constitui-se em uma ameaça a ser evitada e
exterminada, a fim de que se preserve o nós dos "cidadãos de bem". Sob este
viés da perspectiva repressiva-excludente do direito penal, o humanus dos
direitos humanos não é o sujeito universal, o "todos" que proclama a
Declaração de 1948, mas tão somente aquele que nunca transgrediu a Lei,
em oposição ao transgressor que, nesta lógica, é um não-humano. Resta
claro, portanto, que o direito penal acaba por produzir um Estado fortemente
endurecido no trato com seus cidadãos, formando um óbice na efetivação
dos direitos humanos e gerando, em consequência, uma insegurança de ser
25
decretada a vida nua para qualquer sujeito.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução


Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

_______. Nudez. Tradução David Pessoa Carneiro. 1. ed. Belo Horizonte:


Autêntica, 2014.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania


mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2003.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 4. ed.


Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

_______. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo,


totalitarismo. 7. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de


Janeiro: Zahar, 1999.

________. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções


e críticas. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

KARAN, Maria Lúcia. A privação da liberdade:o violento, danoso, doloroso e


inútil sofrimento da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o


pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

RUIZ, Castor Bartolomé. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. In:
Cadernos IHU em formação. Ano IX. n. 45. 2013. ISSN 1807-7862.

VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o


Terrorismo: o progresso ao retrocesso. Coimbra: Almedina, 2010.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O Brasil e a criminalização da pobreza:


a imposição do Medo do Direito Penal como instrumento de controle social e
de desrespeito à Dignidade Humana. In: BEDIN, Gilmar Antonio. Cidadania,
direitos humanos e equidade. Ijuí: Ed. Unijuí, 2012.

26
O DIREITO PENAL EM FACE DO FENÔMENO MIGRATÓRIO: QUANDO A
MIXOFOBIA SE SOBREPÕE AOS DIREITOS HUMANOS

Camila Rodrigues da Rocha1


Klarissa Lazzarin de Sá2

1.INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a perspectiva dos imigrantes em sua


condição de vulnerabilidade social, diante de uma realidade na qual se
busca preservar o Estado de Bem-Estar Social de tal modo que o caráter de
repressão exposto pelas políticas governamentais está por atribuir às suas
vidas o máximo de limitação de seus direitos.
Nesse sentido, aborda-se a problemática referente ao sentimento de
mixofobia, ou seja, o medo de misturar-se, que se perpetua entre as
sociedades que tendem, em razão disso, a se tornar brutalmente
excludentes. Esse sentimento acaba por tumultuar as relações e não
propagar a paz social, pois a partir dele são produzidos gradativamente
discursos de ódio e que levam a população a temer qualquer tipo de relação
com o diferente, sempre o relacionando a fatores negativos, como a
criminalidade e a clandestinidade.
As políticas que de fato venham a integrar o imigrante em seu novo
local de habitação e fazer com que ele possa interagir e participar da
comunidade tem se demonstrado ínfimas, quando não inexistentes. A
legislação apenas limita os direitos do imigrante, transformando-o, assim,
apenas em um “inimigo” passível de perseguições.
O sentimento de individualidade presente entre as pessoas não
consegue mais produzir caráter humanista, ou seja, se a sociedade é
excludente e não respeita os Direitos Humanos, é resultado das ações
individuais que não conseguem aceitar o convívio com a imigração de forma

1 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio


Grande do Sul – UNIJUI. Bolsista de Iniciação Científica Pibic/UNIJUÍ. Email: cah-
rd@hotmail.com
2 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio

Grande do Sul – UNIJUI. Bolsista de Iniciação Científica Pibic/CNPQ. E-mail:


klarissa.lazzarin@hotmail.com
27
pacífica.

2. O FENÔMENO MIGRATÓRIO NA CONTEMPORANEIDADE: os migrantes


como seres “redundantes” e a mixofobia

O fenômeno migratório mundial tem gerado grande pânico entre as


populações. Ao perceber os fluxos migratórios aumentando de uma forma
elevada, percebe-se o quanto são falhas as políticas de integração desses
indivíduos, de maneira que os seus direitos básicos – necessários a uma
vida digna como trabalho, saúde e educação – são desrespeitados.
Desde os primórdios pode-se falar em migração. Inicialmente os
colonizadores tinham a responsabilidade de formar as novas nações. Em um
período posterior vieram os trabalhadores, que se enquadravam como
africanos escravos e afins. Logo surgiram os pobres em busca de condições
melhores de vida. São vários os motivos que levam uma pessoa a sair de seu
país em busca de novos horizontes, induzidos por novas perspectivas.
A identidade do imigrante é erroneamente associada ao terrorismo, à
clandestinidade eà criminalidade. A ideia de estrangeiro se relaciona com
aquele ser que está se utilizando de um lugar que não lhe é devido, ou seja,
que ameaça a população autóctone que também se encontra vulnerável
diante da competitividade gerada por poucas alternativas de emprego. Nesse
rumo, tende-se a não mais tratar o imigrante de uma forma humanista e
igualitária.Contudo, há de se falar na desumanização provocada pelo
fenômeno migratório, a partir da qual o outro é sempre visto como inimigo e
como oponente justamente por não nascer naquele determinado país, e
como resultado não pertencer àquele determinado lugar.
Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (2009, página 32) conceitua aquele
que não pertence a uma determinada coletividade:

a palavra estrangeiro é utilizada como rótulo que se destina a


distribuir e classificar pessoas. Ao mesmo tempo em que tal
classificação pode ser utilizada para rebaixar o estrangeiro, por seu
“não- pertencimento”, serve também para exacerbar a unicidade do
grupo que lhe exclui. Nessa linha de raciocínio, o estrangeiro, porque
está em território alheio, é um intruso.

28
Em que pese a Constituição Federal brasileira tratar dos Direitos
Humanos e do princípio da dignidade humana, afirmando que todos são
iguais perante a Lei, percebe-se o quanto, também no Brasil, as políticas
governamentais são repressivas e utilitaristas no que se refere ao tema da
imigração. O Estatuto do Estrangeiro pode, nesse sentido, ser considerado
inconstitucional, por restringir muitos direitos, como, por exemplo, retirardo
imigrante qualquer poder de decisão, impossibilitando-o de participar dos
processos eleitorais. Nesse sentido, o exercício da cidadania não consegue
introduzir o imigrante. Contudo, para sobreviverem, eles necessitam abdicar
de todos os direitos que qualquer cidadão possui para que a figura do
imigrante ideal, ou seja, aquele que está em um determinado local apenas
para servir e não para participar, mesmo que seja bem qualificado e
preparado para atuar no mercado de trabalho, não consiga interagir e
participar de todas as práticas que envolvam o processo de cidadania que o
sistema democrático permite.
Os sistemas públicos de educação e saúde não tem conseguido dar
conta da demanda da grande quantidade de imigrantes que tem entrado no
Brasil, muitas vezes em situação irregular. Necessidades indispensáveis não
estão sendo respeitadas. Falta saneamento básico para essas pessoas, têm-
se extremo impasse em relação a um alojamento adequado para o imigrante
que se encontra em situações excessivamente precárias. Pode-se afirmar que
não se tem conseguido políticas eficazes para resolver tais empecilhos.
O imigrante necessita ser visto por aquilo que é: um ser humano.Por
conseguinte é de relevante importância o reconhecimento pela coragem de
enfrentar tantos obstáculos para abdicar de tudo o que lhe pertencia em seu
país de origem para enfrentar o novo, o diferente. Para Cristiane Maria
Sbalqueiro Lopes (2009, página 35),

desde logo devemos advertir que não compactuamos com as


hierarquizações, as manipulações e as rotulações que costumam
acompanhar as palavras imigrante e estrangeiro. Preferiríamos que
seu conteúdo exprimisse mais a valentia de ousar estabelecer-se em
outro país e enfrentar o desconhecido (migrante), e que despertasse a
curiosidade e a vontade de interagir com aquele que é diferente
(estrangeiro).

29
Pode-se falar, diante do quadro apresentado, de uma forma de
retrocesso que o Direito está evidenciando. À medida que um sistema de
democracia, em que todos os indivíduos possam participar de forma
igualitária, exercendo o poder governamental de uma nação, não consegue
incluir o imigrante nesse regime, não mais se pode falar em democracia. O
imigrante se sujeita, assim, às normas que restringem ao máximo seus
direitos, pois o “inimigo” que é considerado o estrangeiro diante da ameaça
que representa para o interesse nacional e para a ordem pública necessita
ser controlado pelas forças governamentais, sendo assim cumprida a função
da biopolítica.
Nessa perspectiva, o Estado, ao se utilizar do controle de todas as
populações, inclusive os imigrantes, produzirá como resultado aos cidadãos
nacionais tranquilidade e calmaria em relação ao perigo gerado pela
condição de ser imigrante. Para Michel Foucault (apud CASTRO, 2014,
página 115), “para compreender a biopolítica, é necessário estudar o
contexto geral da racionalidade política do liberalismo”. Trata-se da forma de
governar aplicando-se o biopoder, ou seja, os Estados utilizam de técnicas
para obter o controle de todas as populações para que assim possam
administrá-las. Nesse sentido, Foucault(apud CASTRO, 2014, página 112)
afirma que “governar consiste em conduzir condutas, ou seja, em pôr em
marcha um conjunto de ações sobre ações possíveis: incitando-as,
induzindo-as, desviando-as, facilitando-as ou dificultando-as, fazendo-as
mais ou menos prováveis”.
Desde os primórdios tenta-se barrar os direitos daqueles que não
pertencem – ou que por questões de discriminação não podem pertencer – à
“elite” da sociedade. O preconceito racial deu início a esse problema a partir
do século XIX, quando, por exemplo, surgem os imigrantes colonizadores no
Brasil para fins de branqueamento da população como uma política
nacional, mais especificamente no Sul do país. Destaca-se que, nesse
período, a prática da capoeira acabou sendo proibida por Lei, pois era
exclusivamente exercida por negros. Nessa acepção, na contemporaneidade
podemos ver a seletividade do indivíduo como passível de aceitação ou não
30
perante os demais. Ou seja, o fato de ser negro, pobre, imigrante ou
refugiado, a circunstância de ser diferente, é passível de repúdio e dá o
poder do Estado limitar através de um caráter repressivo e excludente os
princípios que deveriam ser respeitados que é a liberdade, a igualdade e a
fraternidade atribuindo ainda o direito de perseguição daquele que não é
“desejável”.
Ao imigrante pode-se atribuir o conceito de “ser redundante”, segundo
a perspectiva de Bauman(2005, p. 20), para o qual

ser “redundante” significa ser extranumerário, desnecessário, sem


uso – quaisquer que sejam os usos e necessidades responsáveis pelo
estabelecimento dos padrões de utilidade e de indispensabilidade. Os
outros não necessitam de você. Podem passar muito bem, e até
melhor, sem você. Não há uma razão auto-evidente para você existir
nem qualquer justificativa óbvia para que você reivindique o direito à
existência. Ser declarado redundante significa ter sido dispensado
pelo fato de ser dispensável.

A necessidade que os Estados têm de controle dos fluxos migratórios,


mesmo que se trate de dificultar a vida do imigrante, predomina sobre a
ideia do diferente. O grande impedimento para uma convivência pacífica é o
medo que, influenciado pela diversidade cultural, pode proporcionar falsas
compreensões da realidade. Há de se falar na ideia de Foucault sobre a
guerra de raças, por meio da qual os indivíduos, reunidos por um status,
com costumes, usos e suas leis particulares (FOUCAULT, 1997, p. 160), não
conseguem se adaptar ao diferente.Nesse rumo, tão somente restringem o
estrangeiro como forma de crescimento econômico, já que, em outras
perspectivas, ele não “serve” para mais nada além da clandestinidade e da
criminalidade.
A frase que destaca o medo e a insegurança gerada pela falta de
legislação adequada ao tema imigração, com a criação de um marco
regulatório no que tange a suprir as necessidades desses indivíduos em
conjunto com Direitos Humanos e Dignidade Humana acompanha o
imigrante por sua trajetória: “Nós não somos perigosos, mas estamos em
perigo”. Podemos assim refletir sobre os temores que o imigrante possa
enfrentar. Muitos desses imigrantes, que partem sozinhos nessa caminhada
árdua que pode representar a migração deixam suas famílias em seus países
31
de origem e temem pela vida e segurança de seus familiares. Basicamente
até atravessarem as fronteiras sobrevivem em lugares improvisados,
passando por situações inimagináveis, até conseguirem fazer a travessia
para os lugares planejados.
É verídico afirmar que muitas dessas travessias feitas pelos imigrantes
são irregulares. Todavia, essa forma irregular de entrar nos países se associa
a atividades delituosas, principalmente pelas políticas da União Europeia,
onde a irregularidade da situação migratória gera privação da liberdade do
indivíduo. As pessoas que partem de seus países de origem tem grande
dificuldade de regularizar sua situação, pois o mercado de trabalho se fecha
para o imigrante, ou apenas utiliza-se deste quando a mão de obra for
barata, então conseguir provar através de documentos que o imigrante
exerce profissão ou empregos lícitos para sobreviver são totalmente seletivos
e burocráticos. O que deveria facilitar suas vidas, apenas os transforma em
clandestinos.
Nessa perspectiva, a União Europeia tem fechado suas portas à
imigração. Suas políticas têm se demonstrado repressivas e excludentes.
Com intuito de garantir a segurança, as medidas punitivas se instauram de
forma crescente para evitar ou minimizar a expansão da imigração irregular.
Buscam-se formas de manter os imigrantes em seus países de origem,
contendo a imigração em troca de pressões e ajuda econômica, e se possível,
evitar a entrada de imigrantes na Europa e posteriormente forçar a saída dos
imigrantes do território europeu. Quando não mais é cabível manter o
imigrante em seu país de origem, têm-se visto que todas as medidas
possíveis que a Europa puder utilizar-se no que tange a “expulsar” aquele
indivíduo indesejado serão adotadas. Não se observa o cumprimento dos
Direitos Humanos, o que faz com que o estrangeiro veja seus limites
atrelados à repressão de forma direta e indireta. O simples fato de “ser”
imigrante já é suficiente, em muitos casos, para transformar o indivíduo em
objeto de punição, mesmo que não se tenha comprovado qualquer ato ilícito
ou digno de precaução que possa turbar a paz social.
Portanto, a figura do imigrante sempre será vista com olhos de
governos que buscam tão somente utilizá-los como fontes de crescimento
32
econômico. Em outras perspectivas o imigrante não serve para nada além do
terrorismo e clandestinidade, pela forma utilitarista sempre se restringindo
ao máximo os seus direitos. E quando utilizar-se desse sistema de governo
por algum motivo não couber, têm se utilizado de métodos que expulsem ou
possam barrar a entrada de imigrantes nos países.
O fenômeno da mixofobia, ou seja, o medo de “misturar-se” com
estrangeiros está cada vez mais presente entre as pessoas. Particularmente
em virtude do fato de que os imigrantes são seres associados sempre ao
terrorismo graças à influência e alienação gerada pelos meios de
comunicação em massa, que tratam o imigrante como sujeito de riscos,
resultando no medo e aversão, ou profunda antipatia em relação aos
estrangeiros, produzindo-se assim discursos de ódio que atingem não
somente pessoas de países diferentes, contudo atingem também outras
culturas, crenças, características físicas, fazendo com que o diferente se
torne errado, inaceitável e digno de críticas e de repúdio.
Se os Direitos Humanos são considerados desiguais perante o
imigrante, é por resultado de uma sociedade excludente, n qual o mais
poderoso domina a maioria vulnerável, e ser diferente é considerado como
uma anomalia.Não se pode tratar o imigrante como se ele fosse fugitivo ou
como se tivesse cometido um grave delito em seu país por não mais viver
nele.
É necessário ter discernimento do grau de adversidades enfrentadas
por essas pessoas para conseguirem manter-se em um lugar até então
desconhecido. Nessa lógica, depois de grandes contratempos, conseguir um
emprego que lhes dê o mínimo de condição para prosseguir é extremamente
difícil, seja pela remuneração baixa ou pela falta de oportunidade gerada
pela escassez de empregos e pela falta de confiança depositada em suas
habilidades.
Enquanto os Estados não conseguirem analisar criticamente a
situação de ser imigrante, de pertencer à outra nação, mas levar consigo os
direitos mínimos que alguém pode desfrutar, o fenômeno da mixofobia
existirá, a produção de racismo e de pânico continuarão habitando as
condutas das pessoas. O outro não é um inimigo que está em determinado
33
local para “roubar” ou disputar determinado cargo, sendo assim passíveis de
discriminação. O imigrante é um ser que passa a pertencer àquela
comunidade, e começa a utilizar-se dela para conquistar seu espaço, para
ter seus direitos respeitados, como humano, como uma pessoa digna que
não é um parasita em um local que não lhe pertence.
A criação de organizações socioculturais, por exemplo, que venham a
tratar de assuntos de interesses dos imigrantes é uma boa iniciativa para
novas perspectivas. Trabalhar a inclusão social do imigrante, fazendo com
que seus interesses possam ser respeitados, e principalmente para que suas
diferentes culturas sejam aceitas pelos demais de forma que se possa
compreender e adquirir aprendizado com relação a esses cidadãos é a
principal forma de combate a qualquer tipo de descriminalização e exclusão
social, afastando-se assim a exploração que as entidades governamentais e
econômicas vêm se utilizando. No entanto, não é essa a prática recorrente
em relação ao tema da imigração. Na realidade contemporânea, cada vez
mais o Direito Penal é chamado para atuar como “coadjuvante” na luta
contra os imigrantes, particularmente os que se encontram em situação
irregular. É sobre esse tema que se ocupará o tópico que segue.

3. O DIREITO PENAL EM FACE AO FENÔMENO MIGRATÓRIO: contornos


biopolíticos

A década de 1970 é marcada pela crise do Estado de Bem-Estar


Social, que se depara com o esgotamento de suas estratégias protetoras de
transformações sociais e econômicas, para que o Estado possa continuar
com seu projeto includente. Nesse cenário, os ataques neoliberais ao Estado
de Bem-Estar passam a afetar a população antes beneficiada por esse
modelo. Em um contexto tal, o Direito Penal se dirige não mais a indivíduos
concretos, mas passa a se projetar sobre grupos considerados “de risco”.
“De fato, com a passagem de um modelo de sociedade amparada pelo
Estado Social solidário à sociedade de risco securitário contemporânea, o
medo e a insegurança tornam-se companhia indissociáveis do indivíduo.
Assim, “para proteger-se do risco natural ou criado a nova ordem é a
34
segurança” e, “na dúvida, na ausência de um sistema de definição, controle e
gestão dos riscos, erige-se a segurança como máxima.” (MORAIS apud
WERMUTH, 2014 ).
Os atentados terroristas que marcaram o início do século XXI
trouxeram a discussão quanto à relativização dos limites dos poderes que os
Estados teriam para enfrentamento desse mal que repentinamente assolava
grande parte da população mundial. Nesse contexto, a flexibilização de
garantias como a liberdade e a intimidade passaram a ser toleradas em
nome desse “combate” ao terrorismo, a fim de se buscar a qualquer custo a
segurança de um grupo protegido. Essa parcela da população protegida,
tomada pelo medo e insegurança, são chamados a exercer sua função de
alerta policial, dando origem a um cenário de guerra de uns contra os
outros.
O uso do termo terrorismo serve para deslegitimar a violência
praticada pelo agente não vinculado ao Estado e ao mesmo tempo para
sancionar reações violentas por parte de Estados constituídos. O medo
passa a ser usado como combustível dessa guerra que independe de ameaça
bélica e as situações de emergência convertem-se em regra.
Nesse sentido, é preciso, a todo momento, avaliar se um determinado
indivíduo constitui ou não um perigo para o Estado. Contudo, essa avaliação
é realizada num contexto de emergência, podendo o Estado exercer
prerrogativas de poder que compreendem a suspensão da lei. Para Zafaroni
(2007, p. 18), o Direito Penal, ao admitir que alguns seres humanos são
perigosos, os tornou meros objetos do poder, passíveis de segregação e
eliminação, não os considerando mais pessoas. Ora, esse Direito Penal que
admite as chamadas medidas de segurança, com caráter meramente
contencioso desses indivíduos perigosos, fere o artigo 1° da Declaração
Universal de Direitos Humanos.
Em que consiste, pois, esse poder de Estado que promove a vida a
partir da determinação e extermínio de “inimigos”? Esse Estado de
“população” que passou a se preocupar com a vida e saúde de seus súditos
como prioridade é definido por Foucault (apud AGAMBEN, 2010, p. 11):
“Resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática
35
através das mais sofisticadas técnicas políticas. Surgem então na história
seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja a
simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar seu holocausto”.
Retomando o tema sobre a soberania, na qual o soberano detém o
poder de decidir a ultima ratio sobre o estado de exceção, a verdadeira face
da biopolítica, onde as pessoas são reduzidas à mera existência biológica
(vida nua) e o soberano decide quem tem o direito de viver e quem deve
morrer, pode ser definido – como feito por Agamben (2010) – como
“tanatopolítica”.
A perpetuação do estado de exceção se torna clara quando se toma o
entendimento de que o problema não está em “quem” exerce a soberania,
mas sobre “quem”, ou melhor, sobre “o que” ela é exercida. Nesse sentido, o
homo sacer - figura do direito arcaico romano resgatada pela obra
agambeniana (2010) para explicar a situação de determinadas pessoas ou
grupos na contemporaneidade – é entregue ao bando, abandonado,
pertencendo então ao bando soberano, e, consequentemente, tornando-se
mera vida nua, vida sacra, e, portanto, matável.
Qual então a relação entre essas pessoas tão distantes, mas próximas
pelas situações fáticas as quais estão sujeitas, tais como os presos nos
campos de concentração nazistas, os homens capturados no Afeganistão e
presos em Guantánamo, os condenados à pena de morte, refugiados,
imigrantes irregulares, dentre tantos outros casos? Não é a afirmação de que
a vida é o direito fundamental primeiro que toda e qualquer pessoa detém
pelo só fato de ser pessoa (artigo 5º, caput da CFB/88)? E é esse mesmo
direito que estabelece quem pode ou não exercer a sua vida, sua
sexualidade, como e quando poderá exercer atividades laborativas,
dominando de tal forma a vida humana que decide o que é matável e o que é
sacro.
Nesse viés, fica evidente aquilo que Foucault (2012, p.136) refere ao
salientar que “o ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação
das necessidades, o ‘direito’ de resgatar, além de todas as opressões ou
‘alienações’, aquilo que se é e tudo o que se pode ser, este ‘direito’ tão
incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos
36
estes novos procedimentos do poder”.
Segundo Judith Butler, a negação da situação de prisioneiros de
guerra àqueles detentos, o que segundo a Doutrina Bush excepcionaria a
aplicação do Tratado de Genebra, já que ele são “combatentes ilegais”, sem
que nenhum organismo internacional, mesmo a ONU, tenha contestado
juridicamente (e não retoricamente como se o fez) esta prática, lançou
aquelas pessoas num verdadeiro “limbo” jurídico, na medida em que estão
completamente destituídos da proteção de qualquer estatuto jurídico: são
meras vidas nuas (BUTLER, 2002, p.1-9).
O conceito de biopolítica surge para Foucault a partir da década de
1970. Para o autor, o início do século XIX é marcado por este fenômeno
responsável por transformar os mecanismos de poder até então conhecidos.
O que antes limitava-se ao sim e ao não, à vida e a morte de um indivíduo,
dão lugar a um poder que gera/gerencia a vida. O foco não mais é o
indivíduo, sujeito, mas o homem-espécie, a coletividade.
Se antes o Estado-nação exercia o poder sobre o indivíduo, a fim de
que fosse administrado seu corpo, agora o poder normatizado é exercido
sobre o corpo-espécie, exercendo-se a título de política estatal, por meio de
políticas sanitárias, urbanísticas e educativas.
O responsável pela socialização do corpo como primeiro objeto
enquanto força de trabalho e de produção foi o capitalismo que se
desenvolvia no início nesse período, ocasionando a entrada da vida humana
na história. E como consequência desse novo poder, surge a necessidade de
normas.
A grade questão que surge é: como exercer o poder de matar num
sistema centrado no biopoder? Como objeta Foucault (2012, p. 150), “de que
modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a
morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar,
multiplicar a vida e pô-la em ordem?”.
E é nesse momento que o racismo é introduzido nesse cenário,
permitindo que a vida seja dominada, legitimando a morte do outro, da raça
ruim, do perigoso. Em síntese: “se o genocídio é, de fato, o sonho dos
poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de
37
matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie,
da raça e dos fenômenos maciços da população. (FOUCAULT, 2012, p. 149).
Nesse estado de biopoder, o racismo assegura, e quem sabe, legitima a
morte, que está ligada à ideia de purificação, segurança, para então o
soberano exercer seu poder.
O terrorismo serve como justificativa ideológica para essa violência
sancionada, onde os terroristas são considerados à margem da lei, para que
então se justifique um tratamento de igual forma, são indivíduos não
considerados parte da camada humana.
A incorporação à legislação de penas mais duras, normas mais
severas, sem atentar para os princípios e garantias penais, objetivando uma
maior segurança dos “cidadãos” aclarando a tese defendida por Günther
Jakobs, para o qual o combate efetivo da macrocriminalidade somente se
torna medida satisfatória quando há uma diferenciação dos “cidadãos”,
pessoas que eventualmente praticam alguns delitos, dos “inimigos”, aqueles
que definitivamente rejeitaram as regras do Estado, como é o caso dos
terroristas.
O Direito Penal é onde o Estado mostra sua força, e um Estado
Democrático de Direito tem como função controlar essa força da violência
inerente ao estado de exceção sempre que pronta a se alastrar para todos os
lugares. Entretanto, essa perpetuação do estado de exceção como algo já
difundido no cenário político internacional, promove cada vez mais a
indistinção entre Direito Penal e guerra.
Assim, com a expansão do Direito Penal cumulado com o medo e a
insegurança que se instalou no mundo todo, clama por medidas urgentes,
por respostas urgentes de um Estado que enfrente e proteja o que é seu e
nesse caso, o homo sacer, como é melhor representado o inimigo do Estado,
já que não possui direitos, garantias ou mesmo uma identidade, não está
incluso, está à margem, inclusive da própria lei.
É nesse ponto que o caráter biopolítico do sistema se revela ao
transformar em vida nua essa multidão cuja existência ou inexistência é
irrelevante para o sistema. Esses sujeitos, não mais considerados pessoas,
estão à mercê do soberano. E é exatamente nesse momento em que o
38
soberano reafirma a vida nua, ao capturar novamente a vida através de
ações violentas mas, mesmo assim, legitimadas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que exista a harmonização entre imigração e Direitos Humanos,


há de se ter um marco regulatório que acabe por tratar de forma eficaz e que
garanta o cumprimento de exatamente todos os direitos do imigrante. Dessa
forma, obtendo um paralelo entre ambos, será possível executar os
princípios da Dignidade da Pessoa Humana de forma plena.
Tem-se a problemática referente aos números de imigrantes que estão
entrando nas Nações, de modo que está se tornando dia após dia difícil
manter o controle dos fluxos migratórios, na medida em que o número de
pessoas que saem de seu país de origem tem aumentado gradativamente. Ao
passo que a quantidade de pessoas, diferentes, entram em um país, surgem
turbulentas opiniões de pessoas atreladas pelo senso comum, gerando um
espaço profícuo para a mixofobia. O conceito de imigração é erroneamente
relacionado ao terrorismo e ao parasitismo social, o que legitima muitas
campanhas no sentido de fechamento de fronteiras.
A partir do momento em que o ser humano passar a obter caráter
humanista e o mínimo de sensatez possível, o Estado de Direitos – concreto,
real – não mais poderá banalizar a violência contra a migração, protegendo
esses cidadãos, garantindo uma vida digna onde seja possível respeitar o
direito das minorias e integrá-los junto à comunidade. Portanto, as políticas
de integração deverão ser atribuídas ao imigrante, fazendo surtir a igualdade
entre todos, sem exceções, com práticas sociais que possam no mínimo
suprir suas necessidades básicas.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad.


Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2005.
39
BUTLER, Judith. O Limbo de GuantánamoDisponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
33002007000100011&script=sci_arttext>. Acessado em 26/08/2015.

CASTRO, Eduardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2014

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Trad.


Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 22ª.
Impressão. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012.

LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito de imigração: o estatuto do


estrangeiro em uma perspectiva de direitos humanos. Porto Alegre: Nuria
Fabris Editora, 2009.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi.A produção da vida nua no patamar


de (in)distinção entre direito e violência: a gramática dos imigrantes como
“sujeitos de risco” e a necessidade de arrostar a mixofobia por meio da
profanação em busca da comunidade que vem.São Leopoldo, UNISINOS.
Tese nível Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Direito, Unidade
acadêmica de Pesquisa e Inovação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
São Leopoldo, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio


Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

40
POLÍTICA CRIMINAL E PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA:
Estratégias para a Prevenção da Violência e para a Promoção dos Direitos
Humanos nos espaços escolares

Ester Eliana Hauser1


Lurdes Aparecida Grossmann2

1. INTRODUÇÃO

A violência hoje presente na família e na sociedade tem se reproduzido


de forma intensa nos espaços escolares onde crianças e adolescentes, em
geral, tem buscado responder aos seus conflitos por meio de mecanismos
retributivo/punitivos violentos. Tais mecanismos não apenas expressam os
processos de violências vivenciadas no mundo adulto e presenciada
cotidianamente por muitos jovens, mas também reproduzem a lógica
perversa presente no sistema penal tradicional que, estruturado nos pilares
da culpa, da exclusão, da estigmatização e da dor, em pouco contribuem
para a redução da violência e para a afirmação dos direitos humanos na
sociedade.
Por ser um local destinado ao aprendizado e a socialização, em que
um dos principais aprendizados diz respeito aos relacionamentos
interpessoais e de grupo, a escola passa a ser um locus privilegiado para
que cidadãos em formação entrem em contato com ferramentas para
compreender e desenvolver valores necessários para uma convivência
mais pacífica e cidadã. Tomar consciência da própria cidadania e aprender
a forjar instrumentos de relações sociais pacíficas, não punitivas,
possibilita o aprendizado para uma cultura de paz que, vivenciada na
escola, pode se refletir para os demais ambientes nos quais crianças e
adolescentes vivem.

1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em


Direito Público pela Universidade do Noroeste do Estado do RS – UNIJUÍ. Professora da
Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI. E-
mail:estereh@unijui.edu.br
2 Doutoranda pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Mestre em Direito pela

Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Especialista em Direito pela Universidade do


Noroeste do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Professora da Universidade do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul – UNIJUI. E-mail: lurdesgrossmann@unijui.edu.br
41
Um destes instrumentos diferenciados para a pacificação de
conflitos e promoção da cidadania são as práticas de justiça restaurativa a
partir das quais se o busca aprimorar o diálogo, a compreensão dos
sentimentos e necessidades envolvidos nas contendas, o desenvolvimento
da empatia com a situação vivenciada, bem como a resolução de
problemas e reparação de danos, numa perspectiva de protagonismo dos
envolvidos e de corresponsabilização de todo o grupo, incluindo a família,
a comunidade e o Estado.
O Projeto Cidadania para Todos, através da oficina “Violência,
Práticas Restaurativas e Cultura de Paz”, busca instrumentalizar a
comunidade escolar para utilizar as práticas restaurativas para a
resolução de conflitos. Tais práticas já estão previstas na legislação
brasileira, entre as diretrizes da política pública de atendimento
socioeducativo aos jovens autores de atos infracionais, sendo aplicáveis
como uma estratégia de responsabilização diferenciada e atuando nas
consequências da violência praticada por adolescentes, mas ainda são
pouco adotadas como mecanismo de prevenção a esta violência e de
construção de uma cultura de paz.
Para demonstrar a importância da adoção das práticas restaurativas
nas escolas como mecanismo de prevenção da violência, de superação da
cultura punitiva e da promoção dos direitos humanos e da cidadania na
infância e adolescência, o presente artigo inicialmente discute a
necessidade de transformação da política criminal em uma política
integral de defesa dos direitos humanos, bem como aborda os direitos
humanos das crianças e adolescentes no Brasil e as políticas públicas
relativas a eles. Posteriormente analisa a atuação do Projeto Cidadania
para Todos no sentido de capacitar a comunidade escolar para a utilização
de práticas restaurativas no seu ambiente e, ao final, propõe a adoção
dessa prática como uma política pública para todas as escolas como
mecanismo concretizador das diretrizes e princípios previstos no Estatuto
da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal e como estratégia
para a promoção e defesa dos direitos humanos.

42
2. DA POLÍTICA CRIMINAL A UMA POLÍTICA INTEGRAL DE DEFESA
DOS DIREITOS HUMANOS

Tradicionalmente a expressão “Política Criminal” foi utilizada para


designar apenas o conjunto de práticas punitivas utilizadas no controle de
situações conflitivas, vinculando-se a expressão exclusivamente ao campo do
Direito Penal. Feuerbach (apud DELMAS MARTY, 1992, p. 24) conceituava a
política criminal como “[...] o conjunto de procedimentos repressivos através
dos quais o Estado reage contra o crime [...]”, limitando-a a uma forma de
reflexão sobre o direito penal. Porém nas últimas décadas a perspectiva
ampliou-se consideravelmente para incluir como objeto da política criminal
não somente os problemas de repressão ao crime, mas todo o conjunto de
procedimentos/estratégias através dos quais o corpo social organiza as
respostas ao fenômeno criminal.
Delmas Marty (1992, p. 24) observa que a política criminal passa a ser
conceituada sob uma perspectiva ampliada que analisa o fenômeno criminal
sob diversos ângulos: “dos procedimentos apenas repressivos para todos os
outros procedimentos, principalmente aqueles à base da reparação ou da
mediação: do Estado para todo o corpo social [...] o que exclui a possibilidade
de uma resposta totalmente isolada”. Deste modo busca-se introduzir ao
lado da resposta “reacional (a posteriori), a resposta preventiva (a priori)”.
Em que pese o duplo viés acima apontado, verifica-se, na atualidade,
uma tendência ao reforço das políticas criminais de cunho
punitivo/repressivo, que propugnam pela ampliação da utilização do Direito
Penal como estratégia de controle social. Tal reforço se manifesta,
especialmente, por meio de políticas criminais eficientistas/punitivistas e do
uso simbólico do D. Penal.3

3 A tendência política criminal repressivista, baseada no eficientismo penal e no uso


simbólico do D. PenaL encontra, no atual momento histórico brasileiro, maior expressão na
proposta de Emenda a Constituição que determina a redução da idade de imputabilidade
penal de 18 para 16 anos no caso de crimes considerados graves. Tal proposta, já aprovada
em duas votações na Câmara dos Deputados, vai de encontro ao modelo político criminal
consagrado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente cujo viés não repressivista,
propugna pela utilização de mecanismos de responsabilização alternativos e pela opção
prioritária por medidas de caráter pedagógico e inclusivo a adolescentes autores de atos
infracionais.
43
Partindo da análise da realidade contemporânea Meliá (2007), salienta
que o fenômeno de expansão do Direito Penal se desenvolve em duas frentes:
a) o desenvolvimento de um direito penal simbólico e; b) o ressurgir do
punitivismo. O desenvolvimento do direito penal simbólico tem como objetivo
exclusivo “dar impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido”
(Meliá, 2007, p. 59). Diante dos medos e da insegurança gerada por novas
formas de conflitividade social, o Direito Penal é utilizado como instrumento
para produzir tranquilidade, mediante o mero ato de promulgação de
normas que, em geral, sequer serão aplicadas. Assim, o legislador responde
produzindo leis penais que, em oposição ao sentimento de insegurança que
se alastra na sociedade, gerarão uma sensação de segurança e tranquilidade
na população.
Para Meliá (2007), no entanto, é impossível caracterizar a política
criminal contemporânea exclusivamente a partir do caráter simbólico do
direito penal. Para ele, paralelamente ao simbolismo, ha um ressurgir do
punitivismo que se dá a partir de processos de criminalização a “moda
antiga”. Isso significa que a promulgação de novas normas penais, em geral
mais rigorosas, também se faz com o intuito de promover sua aplicação com
firmeza e rigor.
Ao referir-se ao eficientismo penal, Baratta (2000, p. 42) observa que o
mesmo objetiva fazer mais rápida e eficaz a resposta penal, limitando ou
suprimindo garantias estabelecidas na tradição do direito penal liberal. Para
ele o eficientismo é reflexo da crise social e política, bem como dos processos
de comunicação social que os acompanham na atualidade. Trata-se de um
movimento político criminal que influencia profundamente a percepção dos
políticos, juristas e da opinião pública sobre o uso do direito penal e sobre o
modo de resolver os conflitos sociais, restringindo significativamente as
respostas ao campo da punição. Deste modo produz percepções que levam a
“criminalización de los conflitos, o sea, la lectura de los conflitos em el código
binário crimen/pena”. (BARATTA, 2000, p. 42)
Por outro lado, ao analisar os mecanismos não penais que compõe a
política de controle da violência e da criminalidade e o próprio conceito de
política criminal, Baratta (2000), salienta que este é extremamente
44
complexo, problemático e ambíguo. Complexo, pois em que pese a
univocidade de seus fins, os instrumentos de prevenção não penais das
infrações e de suas consequências são extremamente variados e
indetermináveis.4 Problemático pois em seus modelos mais avançados a
“política criminal” representa, enquanto gênero, uma totalidade mais vasta e
complexa da espécie “política penal”, sendo que “neste nível de elaboración
la línea de distinción entre la política criminal y la política en sentido amplio
(....) perde su pureza inicial.” (BARATTA, 2000, p. 28)
Já a ambiguidade do conceito fica visível, segundo Baratta (2000),
quando se examinam as relações entre política criminal e política social,
especialmente aquela concretamente dirigida aos grupos sociais mais
vulneráveis. Isso porque em que pese o reconhecimento, em nível
constitucional, da dignidade humana, da igualdade e demais direitos
fundamentais, não é incomum que as políticas sociais destinadas aos mais
vulneráveis, em especial aos jovens pobres e marginalizados, ainda sejam
marcadas por visões prevencionistas tradicionais. Tais modelos, ao
colocarem os sujeitos vulneráveis na condição de potenciais agressores,
produzem uma espécie de “criminalização da política social” que, ao
preocupar-se especialmente com o controle de tais populações, não
somente reproduz visões discriminatórias e perversas sobre tais grupos,
mas também os coloca como meros “objetos” e não como sujeitos das
políticas que lhe são destinadas. Deste modo, como propõe Baratta (2000,
p. 32)

Una vez que se há olvidado de garantizar la seguridade de los


derechos de um certo número de sujetos vulnerables,
pertenencientes a grupos marginales o peligrosos, la política

4 O autor observa que neste campo a riqueza e variabilidade dos diferentes modelos
operativos propostos dependem essencialmente das concepções teóricas em que se
sustentam, destacando a existência de modelos que se situam em três níveis diferenciados:
“En los niveles más básicos de la escala teórica encontraremos los modelos de la
criminologia ‘administrativa’ de estrecha matriz etiológica, aplicable unicamente al control
de la criminalidade; em los niveles intermédios conseguiremos los modelos de la
criminologia etiológica que compreendem também el control de las consequências dos
delitos; en fin, en los niveles más altos, se situan los modelos de la criminologia crítica que
adopta el paradigma do etiquetamento o de la reacción social, y lo hacen más apropriado
para la aplicación prática y para el control de las consecuencias de la delincuencia.”
(BARATTA, ANO, p. 28)

45
criminal la reencontra como “objetos de uma certa forma de política
social.
Objetos, entonces, y no sujetos, porque también esta vez la
finalidade de los programas de acción no es la garantia de sus
derechos, sino ante todo reforzar la seguridade de suas vítimas
potenciales. Para proteger as personas “respeitables” (y no para
tutelar aquellas que no puedem disfrutar de sus derechos civiles,
econômicos y sociales), la política criminal se transforma, em la
terminologia de la nueva prevención, en “prevenção social” (de la
criminalidade). (BARATTA, 2000, p. 32)

Nesta perspectiva, muitas vezes


El Estado interviene, a través de la prevención social, no tanto para
realizar su próprio deber de prestación respecto de los sujetos
lesionados, sino para realizar, com acciones que se agregan a
aquellas represivas el próprio deber de protección (....) respecto de
los sujetos débiles, considerados como factores de riesgo. Estamos
em presencia de uma sobreposición da polítca criminal a la política
social, de uma “criminalización” de la política social. (BARATTA,
2000, p. 32)

Considerando tais questões, em especial o crescimento dos


movimentos punitivistas/eficientistas, baseados na lógica de maximização
do aparato repressivo do Estado, e a inadequação das políticas criminais
não punitivas, estruturadas a partir da lógica de criminalização da política
social acima mencionada, Baratta (2000, p. 47) sugere que abram espaços,
na imaginação política, para a superação da lógica punitiva, construindo-se
caminhos para a substituição da “política criminal” por “alternativas a
política criminal.”
Para isso sugere um esforço dos juristas e da imaginação coletiva no
sentido de uma “emancipação da cultura do penal” a partir de uma
releitura das necessidades humanas e das situações de risco/violência sob
a ótica dos direitos fundamentais. Neste aspecto propõe a transição de
uma política criminal para uma política integral de defesa dos direitos
humanos.

Olvidando los delitos y las penas, podremos pues assegurar em el


âmbito de la política integral de los derechos, um espacio específico
a la politica del derecho penal. Cuando sustituyamos la politica
criminal por uma politica integral de protección de los derechos, la
politica del derecho penl podrá – aunque em el modo residual y
subsidiário que prescribe la Constitución – ser parte integrante de
ella. (BARATTA, 2000, p. 47)

46
O processo de “libertação da cultura punitiva” exige, como sugerem
Hulsmann e de Celis (1993, p. 179), mudança de percepção, atitudes e
comportamentos. Mas para isso são necessárias, em primeiro lugar,
“mudanças na linguagem”. Para os autores a linguagem e as imagens
desenvolvidas no âmbito da justiça penal nos influenciam profundamente,
fazendo com que “a justiça criminal exista em quase todos nós”, o que
contribui para a disseminação, no tecido social, da lógica de “resolução” de
conflitos nela presente. Tal lógica, baseada no castigo, na culpa, na
exclusão ou na correção pode e deve ser superada.
A Justiça Restaurativa aparece, nesta perspectiva, como potencial
estratégia de questionamento e desconstrução do modelo punitivo que, por
inúmeras razões, se impõe e se alastra nos dias atuais, inclusive nos
espaços escolares. Por sugerir a substituição da linguagem, o diálogo entre
os sujeitos e a reparação dos danos como principais estratégias, a
perspectiva restaurativa, propõe uma nova lógica, que potencializa a
participação, o diálogo e a corresponsabilização dos sujeitos, colocando
todos os envolvidos como protagonistas dos processos de resolução de
conflitos. Neste aspecto, representa, um significativo instrumento para a
redução da violência e para a afirmação da dignidade da pessoa humana.

3. OS DIREITOS HUMANOS E A CIDADANIA DAS CRIANÇAS E


ADOLESCENTES NO BRASIL: as políticas para a proteção integral a
infância e a adolescência a partir da Constituição Federal de 1988 e do
Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Constituição Brasileira de 1988 foi um marco para a cidadania das


crianças e dos adolescentes brasileiros. Ao consagrar a doutrina da proteção
integral em relação a essa parcela da população, não somente os reconheceu
como sujeitos de direitos e como pessoas em desenvolvimento, mas também
os elegeu como prioridade absoluta da nação. Baseada neste novo
paradigma estabeleceu uma série de direitos e garantias para as crianças e
adolescentes, como a determinação da idade de imputabilidade penal aos
dezoito anos, a responsabilidade da família, do Estado e da sociedade em
47
relação às questões da infância e adolescência, a descentralização e a
municipalização do atendimento para esta faixa etária e a previsão de que
suas demandas sejam consideradas prioridade absoluta.
Para dar cumprimento a estes princípios e diretrizes, em 1990, foi
publicada a Lei nº 8.069, denominada de Estatuto da Criança e do
Adolescente, ECA, cujo objetivo foi o de regulamentar as conquistas
expressas na Constituição Federal de 1988 em favor da infância e juventude.
O texto consagra a Doutrina da Proteção Integral que, inspirada na
perspectiva dos Direitos Humanos, está lastreada na Convenção das Nações
Unidas para o Direito das Crianças5, da qual o país é signatário. Tais
documentos não apenas reconhecem a cidadania de crianças e adolescentes,
mas representam um passo significativo para a afirmação dos direitos
humanos deste grupo social, historicamente alijado da condição de sujeitos
de direitos.
Referindo-se ao conceito de Direitos Humanos Herrera Flores (2000, p.
52) observa que os mesmos representam o

conjunto de processos dinâmicos e interesses que pugnan por ver


reconocidas sus propuestas partiendo de diferentes posiciones do
poder. Desde aqui los derechos humanos deben ser definidos como
eso, como sistemas de objetos (valores, normas, instituiciones) e
sistemas de acciones (práctica sociales) que possibilitan la apertura y
la consolidación de espacios de lucha por la dignidade humana.

Para o autor (2000, p. 52) os direitos humanos são

(...) respuestas jurídicas económicas, políticas y culturales a


relaciones sociales rotas o em constituión, que es preciso reconstruir
o apoyar desde uma idea plural, diversificada y contextualizda de
dignidade humana.
(....) los derechos humanos no constituyen unicamente la denuncia
que pretende restaurar algún conjunto de valores perdidos, sino uma
via para la reconstrucción de bases de la convivência humana.

Reforçando esta ideia Canterji (2008, p. 69) salienta que o conceito de

5 A Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembleia-Geral das Nações


Unidas, em 20 de novembro de 1989, articula todos os direitos civis, políticos, culturais,
sociais e econômicos das crianças, sendo considerado o documento de direitos humanos
mais aceito da história, tendo sido ratificado por 193 países. (UNICEF, 2014)

48
direitos humanos é complexo, não podendo ser tratado de forma simples ou
ter seu estudo limitado aos textos legais, “pactos” ou “declarações”. Estes
devem ser compreendidos como o “conjunto de processos (normativos,
institucionais e sociais) que criam e consolidam espaços para a dignidade
humana” e por isso deve se conhecer o contexto social em que estão situados
e os grupos a que se destinam.
No que tange aos direitos humanos de crianças e adolescentes, deve-se
reconhecer, portanto, que

(...) estes direitos se constituem em direitos especiais e específicos,


pela condição que ostentam de pessoas em desenvolvimento. Desta
forma, as leis internas e o sistema jurídico dos países que a adotam
devem garantir a satisfação de todas as necessidades das pessoas
até dezoito anos, não incluindo apenas o aspecto penal do ato
praticado pela ou contra a criança, mas o seu direito à vida, à saúde,
à educação, è convivência familiar e comunitária, ao lazer, à
profissionalização, à liberdade, entre outros. (SARAIVA, 2002, pp.
26-27)

A atuação articulada dos diversos entes da federação possibilita uma


maior efetividade nas políticas públicas, consideradas como ações
concretizadoras de direitos, mas ressalta-se que a Constituição determina
que essas políticas devem ser focalizadas nos municípios, local em que vive a
criança e o adolescente e seu entorno social, principalmente a família. Pois é
no convívio social cotidiano que se desenvolvem e concretizam os direitos e
deveres previstos na esfera jurídica.
Sob esta ótica, Gomes da Costa (1993, p.21), refere que a doutrina da
proteção integral afirma o “valor intrínseco da criança como ser humano;[...]
o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadoras da
continuidade do seu povo [...] o que torna as crianças e os adolescentes
merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do
Estado.”
A efetivação da doutrina da proteção integral exige a satisfação das
demandas relativas às crianças e aos adolescentes, mediante políticas
públicas sólidas, em especial aquelas relativas à saúde e a educação. Sendo
a escola um espaço essencial para a construção de um cidadão pleno,
consciente de seus direitos e deveres, e de seu papel como agente

49
transformador da realidade, evidencia-se a necessidade de qualificação das
ações educativas, especialmente no que tange ao enfrentamento da violência,
hoje tão presente em todos os espaços da sociedade e, em especial, nos
espaços escolares.

4. EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS E PARA A CIDADANIA: a


experiência desenvolvida no âmbito do Projeto de extensão “Cidadania para
Todos”

O Projeto de Extensão “Cidadania para Todos” é um projeto de ação


comunitária, vinculado ao Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da
UNIJUI, que é desenvolvido, desde o ano de 2006. Seu principal objetivo é
promover a educação para a cidadania, para os direitos humanos e para a
cultura de paz, por intermédio de oficinas e palestras, estruturadas a partir
de eixos temáticos que tem a cidadania e os direitos fundamentais como
aspectos transversais. A partir de tais práticas busca-se promover ações
individuais e coletivas capazes de contribuir para a consolidação dos direitos
humanos e a construção da cidadania, com especial ênfase na educação de
crianças e adolescentes, tendo como referência a utilização de práticas
restaurativas.
O trabalho baseia-se na convicção de que a consolidação do Estado
Democrático de Direito gerou a expectativa da realização de uma sociedade
mais pacífica e igualitária, baseada na afirmação da dignidade da pessoa
humana e no acesso a direitos fundamentais e que, nestes Estados a
cidadania é um valor fundamental e caracteriza-se não somente pela
possibilidade de participação política, exercida por meio do voto, mas,
essencialmente, pela necessidade de que todos conheçam e se reconheçam
como sujeitos de direitos e obrigações o que possibilita que os mesmos
participem ativamente da construção de políticas públicas que assegurem a
sua efetivação. A cidadania, segundo propõe Correa (2010, p. 24) “[...]
significa a realização democrática de uma sociedade, compartilhada pelos
indivíduos a ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e
condições de sobrevivência digna, tendo como valor-fonte a plenitude da
50
vida”. Neste sentido, Marshall (apud Correa, 2010, p. 23) afirma que ela
representa uma espécie de “[...] igualdade humana básica associada com o
conceito de participação integral da comunidade”, o que exige uma postura
ativa e de maior protagonismo por parte de todos.
A temática da cidadania é trabalhada transversalmente, numa
abordagem multidisciplinar, mediante ações desenvolvidas em Escolas de
Ensino Fundamental e Médio dos municípios da região de abrangência da
UNIJUI. Durante o desenvolvimento das atividades são utilizadas dinâmicas
de grupo que favorecem a participação dos sujeitos, com a criação de
espaços de reflexão e diálogo, com especial ênfase aos círculos restaurativos
e demais práticas de Justiça Restaurativa.
Além das oficinas temáticas e culturais, também se utilizam como
estratégias de socialização de informações um site 6 e o programa de rádio
Papo Cidadão, divulgado na rádio UNIJUI FM e em rádios da região, bem
como uma página no Facebook.7
Durante o desenvolvimento das atividades são utilizados recursos
audiovisuais e dinâmicas de grupo que favorecem a participação dos
sujeitos, criando espaços de reflexão e diálogo, com especial ênfase em
práticas e círculos restaurativos. Tais estratégias buscam fortalecer o debate
sobre cidadania e direitos humanos, no sentido da consolidação de práticas
educativas cidadãs, que visam à emancipação dos sujeitos e a afirmação de
uma cultura de paz.

5. AS PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA NA ESCOLA COMO


ESTRATÉGIAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA A PROMOÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA

A expressão Justiça Restaurativa tornou-se recorrente nos últimos


anos no Brasil e tem atiçado o interesse e a curiosidade de profissionais
de diversas áreas, em especial do Direito, da Psicologia, do Serviço Social e

6www.cidadaniaparatodos.com.br
7https://www.facebook.com/pages/Projeto-de-Extens%C3%A3o-Cidadania-Para-

Todos/239175732850951?fref=ts
51
da Pedagogia, notadamente quando estes atuam em questões relativas à
violência e a conflitividade que envolve a infância, a adolescência, a família
e a escola.
Howard Zehr (2008) define a Justiça Restaurativa como um
procedimento por meio do qual todas as partes envolvidas em situação
lesiva reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as
circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro.
Busca-se, por meio deste procedimento, promover vivências baseadas em
valores democráticos como a tolerância, o diálogo, o respeito, a
solidariedade, a humildade, o empoderamento, a partir das quais se
buscam respostas alternativas aos conflitos, que enfatizem, para além da
perspectiva punitiva, a restauração dos prejuízos causados pela conduta
lesiva, bem como dos laços sociais rompidos com a prática do delito, e que
levem o autor a assumir as responsabilidades por suas ações.
Azevedo (2005) salienta, contudo, que há uma corrente mais
abrangente que define a Justiça Restaurativa a partir de seus valores,
princípios e resultados almejados, representado um processo pelo qual se
busca promover, para além da reparação dos danos, outros valores como
“a participação, a reintegração e a deliberação”, constituindo este o seu
corpo axiológico básico. Deste modo, unificando as duas concepções
mencionadas, Azevedo (2005, p. 26) entende que

A Justiça Restaurativa pode ser conceituada como a proposição


metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas
intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por
meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e
representantes da comunidade voltadas a estimular: i) a adequada
responsabilização por atos lesivos; ii) a assistência material e moral
de vítimas; iii) a inclusão de ofensores na comumidade; iv) o
empoderamento das partes; v) a solidariedade; vi) o respeito mútuo
entre vítima e ofensor; vii) a humanização das relações processuais
em lides penais; e viii) a manutenção ou restauração das relações
sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito.

Apesar de ter sido institucionalizada e aplicada desde a década de


1970 na Europa e nos Estados Unidos, somente no ano de 2002 a ONU
passou a orientar os países membros a adotarem as práticas
restaurativas, estabelecendo seus princípios e valores básicos. No Brasil,

52
várias experiências8, especialmente no campo da justiça penal juvenil, têm
sido desenvolvidas com êxito e nelas são utilizadas estratégias, visando à
adequada responsabilização de adolescentes envolvidos em atos
infracionais. Busca-se, com este novo modelo, substituir a lógica de
exclusão, estigmatização e violência presente no paradigma
retributivo/punitivo tradicional e superar os constantes fracassos quanto
à adequada inserção de jovens infratores no seio da comunidade9.
A Justiça Restaurativa constitui-se, segundo Azevedo (2005, p. 140)
em uma proposição metodológica por intermédio da qual se busca, a
partir da comunicação efetiva entre vítimas, ofensores e a comunidade
transcender dinâmicas de culpa, vingança e punição, pois pretende conectar
pessoas e desenvolver ações construtivas que beneficiem todos, tendo como foco
as necessidades emergentes do conflito. Seu objetivo é aproximar e
corresponsabilizar “fortalecendo indivíduos e comunidades para assumir o papel
de pacificar seus próprios conflitos e interromper violências." (AMES; HAUSER,
2013). Trata-se de uma nova visão que trabalha com uma concepção relacional
da justiça, em que se concebe, “o crime como um encontro infeliz e a pena como
uma possibilidade de troca”. (GARAPON, 2004)

Trata-se, portanto, de uma metodologia que propõe uma mudança


radical de linguagem e de orientação, buscando a partir do diálogo,
identificar os danos oriundos da conduta lesiva, as necessidades de
autores e vítimas, enfocando os fatores causais do comportamento,
ao invés de responder às demandas de “severidade” ou
“endurecimento” e punição. O enfoque principal é o
restabelecimento da situação à condição anterior ao acontecimento
do crime, a partir de uma espécie de mediação do conflito entre a
vítima e seu agressor, permitindo-se, com isso, o compartilhamento
do conflito entre as partes. (AMES; HAUSER, 2013, p.110-111)

Resulta evidente, portanto, que as estratégias propostas no âmbito


da Justiça Restaurativa se afastam radicalmente das tradicionais
respostas produzidas no âmbito dos movimentos político-criminais

8 O Brasil iniciou suas experiências em Justiça Restaurativa no ano de 2005, nas cidades de
Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília, a partir de projetos financiados pelo Ministério
da Justiça. Desde então inúmeras experiências tem sido desenvolvidas.
9 A Lei nº 12.594/12 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo no

Brasil estabeleceu, entre suas diretrizes, a necessidade de utilização de práticas


restaurativas no processo de responsabilização do adolescente infrator.

53
repressivistas e da justiça retributiva tradicional, seja ela dirigida a
adultos ou adolescentes infratores.

No âmbito da justiça penal convencional, que estrutura-se a partir


de um paradigma retributivo, a imposição de sanções aos autores
de infrações penais fundamenta-se na necessidade de “retribuição”
e “prevenção” ao crime. Neste paradigma o crime é definido como
violação contra o Estado e o foco é o estabelecimento da culpa. A
natureza interpessoal do delito é obscurecida e o conflito é visto
como conflito entre o indivíduo e o Estado. A pena (imposição de
dor) visa retribuir e punir, substituindo-se um dano (crime) por
outro (pena). A vítima é ignorada e o infrator torna-se “objeto” da
intervenção, o que produz nele, irremediavelmente, um processo de
estigmatização.
No paradigma restaurativo, ao contrário, o crime é visto como uma
violação (dano) de uma pessoa por outra, e que este rompe o
equilíbrio das relações sociais em uma determinada comunidade. O
foco, a partir disso, será restabelecer as relações atingidas,
reconstruindo o equilíbrio rompido com a prática do delito. (AMES;
HAUSER, 2013, p.116)

Percebe-se, portanto, que no campo da justiça restaurativa o


conflito não é reconhecido como algo necessariamente negativo, pois o
mesmo é trabalhado como um processo educativo de cidadania e como um
momento de aprendizagem no qual o protagonismo dos indivíduos é
fundamental. Deste modo a noção de justiça é transformada, deixando de
ser apenas uma imposição institucional, apresentando-se como resultado
da construção dos sujeitos e da comunidade, o que faz com que os
indivíduos se percebam como sujeitos/cidadãos, que compreendam as
próprias necessidades e obrigações e também reconheçam os outros como
sujeitos de direitos e como semelhantes.
As metodologias propostas no âmbito da Justiça Restaurativa não
repercutem apenas no campo da justiça formal e podem ser utilizadas,
como técnicas de resolução de conflitos e prevenção da violência, nos mais
diversos espaços da sociedade, em especial, nas escolas, onde a violência,
em suas mais diversas formas, tem se manifestado de modo significativo
nos últimos anos. Nestes espaços, as estratégias de Justiça Restaurativa,
tradicionalmente dirigidas à resolução formal de conflitos de natureza
criminais mais graves protagonizados por jovens infratores, assumem um
novo significado ao contemplarem um conjunto de ações que, baseadas
54
em princípios e valores restaurativos, buscam promover a resolução
pacífica de conflitos e, simultaneamente, prevenir a violência, a partir da
construção de uma cultura de diálogo, tolerância, respeito, inclusão e paz.
A utilização de práticas restaurativas nos espaços escolares, em
especial os círculos restaurativos, promove valores e princípios que tem
como fundamento a dignidade da pessoa humana e proporciona a
comunidade escolar vivências e exemplos de convivência pacífica,
humanizada e cidadã. A realização de círculos restaurativos, sejam eles
destinados a resolver conflitos ou promover discussões sobre temas
diversificados, permite consolidar uma cultura de paz, pois auxiliam os
participantes na compreensão da realidade e dos problemas vivenciados e
do significado dos direitos humanos, bem como do quanto se pode fazer,
no espaço da escola, para garantir o respeito a eles. O debate aberto,
franco e verdadeiro sobre valores, sentimentos e necessidades e a busca
por soluções consensuais para os problemas vivenciados, no qual todos
participam em condições de igualdade, reafirma os valores da pessoa
humana e da democracia participativa e fortalece o sentido de
comunidade e de pertencimento.
Sabe-se que na atualidade, as respostas tradicionais, baseadas na
lógica retribuição/punição, ainda se mostram muito presentes nas
instituições de ensino e têm servido mais à perpetuação da violência
escolar do que ao seu enfrentamento. Nos espaços escolares ainda
persistem modelos de disciplina social autoritários, permissivos ou
negligentes, o que em pouco contribui para a educação cidadã e para a
afirmação de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e de
obrigações, na perspectiva exigida pela doutrina da proteção integral
consagrada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido se faz
necessária

(...) a abertura ao novo, experimentando novas estratégias


articuladoras e capazes de substituir a “cultura de guerra” por uma
“cultura de paz”. Um novo olhar é fundamental, em especial nas
instituições responsáveis pela formação de crianças e jovens, pois,
nas palavras de Howard Zehr (2008, p. 167) “a lente através da
qual enxergamos determina o modo como configuraremos o

55
problema e a ‘solução”. (AMES; HAUSER, 2013, p. 122).

Este novo modo de olhar exige que as conflitualidades, as violências


e suas causas sejam trazidas para um campo de visibilidade, por meio de
instrumentos que permitam a observação do comportamento do outro,
sem julgamentos apressados, que favoreçam o diálogo, a igualdade e a
produção consensual e comunitária de respostas mais adequadas e
humanizadas aos conflitos e as necessidades emergentes no contexto
escolar. Neste aspecto o trabalho desenvolvido por intermédio do projeto
“Cidadania para Todos” é de fundamental importância, pois além de
assegurar a interação da Universidade com a comunidade e o diálogo com
diferentes realidades e saberes, auxilia a promover, nos espaços escolares,
a educação para a cidadania e para os direitos humanos a partir de
estratégias que, por sua natureza restaurativa, fortalecem o protagonismo,
a emancipação dos sujeitos e a construção de laços comunitários,
consolidando práticas educativas cidadãs e afirmação de uma cultura de
paz.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da realidade de violência, que se produze e reproduze nos


espaços sociais, comunitários e escolares é comum, na atualidade, o
apego a estratégias tradicionais que propugnam pelo fortalecimento de
aparatos de controle com natureza punitiva/retributiva, cuja
característica fundamental é a estigmatização e exclusão dos sujeitos.
Nestes espaços, muitas vezes, o exercício de poder e controle espelha-se
em métodos tradicionais os quais refletem grande parte dos vícios ligados
às práticas autoritárias transmitidas ao longo das gerações.
Evidenciam-se, por outro lado, modelos de disciplina social negligentes
ou permissivos que recusam qualquer espécie de responsabilização ou de
controle dos conflitos emergentes no âmbito da escola, o que contribuiu,
de forma mais intensa, para a generalização da violência e da indisciplina.
Tais modelos não contribuem com a formação de cidadãos responsáveis e
56
aptos a participarem de forma ativa e comprometida na sociedade e, neste
aspecto não consolidam a ideia de proteção integral, consagrada na
Constituição Brasileira e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Já a utilização de práticas baseadas em princípios restaurativos no
espaço escolar mostra-se absolutamente salutar, pois além de contribuir
para a prevenção e resolução de conflitos a partir de uma perspectiva mais
democrática, participativa e cidadão, permite resgatar os laços que unem
os indivíduos que convivem nestes espaços, fortalecendo o sentido de
participação em uma comunidade.
Restaurar significa “religar”, “estabelecer laços” e isso só se faz possível
a partir da consolidação, no espaço da escola, de estratégias que resgatem
os valores do diálogo, da igualdade, da participação, da solidariedade e da
responsabilidade. Tais valores não podem ser “impostos”, precisam ser
construídos coletivamente, a partir de práticas que os utilizem como
modelos de ação. Estes princípios dizem respeito à construção de uma
nova cultura e precisam ser incorporados nas estruturas das diversas
instituições de modo a se estabelecer novas configurações de poder,
baseadas em valores e relações mais democráticas nas quais a paz não é
fruto de imposições, mas é construída cotidianamente por todos.
A escola é um lócus privilegiado para efetivar a previsão constitucional
que exige que a proteção à infância e a adolescência se faça, de modo
articulado pelo Estado, família e sociedade. As escolas públicas
representam o Estado e são agentes catalisadores para a interlocução com
a família e a comunidade. A implementação de práticas restaurativas
nestes espaços, enquanto política pública de proteção e promoção da
cidadania de crianças e adolescentes, pode representar um grande passo
para o prevenção da violência, para a afirmação dos direitos humanos e
para a consolidação da cidadania.

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set. 2015.

59
O GÊNERO FEMININO A PARTIR DO PRISMA DA VITIMODOGMÁTICA E
DA VITIMOLOGIA: percalços e possibilidades

Mariane Camargo D’Oliveira1


Maria Aparecida Santana Camargo2

1.INTRODUÇÃO

Tanto a vitimodogmática quanto a vitimologia trazem relevantes


instrumentais para uma abordagem jurídico-penal contemporânea mais
adequada, coerente e viável para investigar as questões concernentes à
vitimização da mulher, seja do prisma teórico, seja de uma perspectiva mais
pragmática. A vitimodogmática, como preceitua Greco (2007), objetiva
estabelecer qual foi a contribuição da vítima para o crime, possibilitando,
assim, maior cuidado no momento de se atribuir a culpabilidade ao agente.
Ela visa, consequentemente, estabelecer como deve ser tratado, do ponto de
vista dogmático, o comportamento da vítima.
Por sua vez, a origem da vitimologia esteve marcada por um
questionamento etiológico e pelo estudo das relações entre criminoso e
vítima. E quando o tema é a investigação da participação da vítima na
gênese do comportamento criminoso, a evocação dos delitos sexuais surge
na figura, construída com facilidade em uma sociedade sexista e machista,
da “vítima-provocadora”, conforme esclarece Oliveira (2007).
Embasando-se nestas premissas iniciais, a presente pesquisa, de
cunho essencialmente teórico, embora sustentada em dados quantitativos
disponibilizados nos sítios do governo federal, busca verificar em que medida
a vítima mulher é visualizada e alcançada pela Criminologia brasileira,
especialmente mediante a concatenação dos estudos da vitimodogmática
com os da vitimologia, ao compreender que este fenômeno sociocultural
requer mecanismos que vão além da responsabilização do agressor.

1Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social na Universidade FEEVALE/RS.


Mestre em Direito (UNISC/RS). Docente do Curso de Direito da UNICRUZ. Bolsista
PROSUP/CAPES. Advogada. E-mail: maricamargod@gmail.com
2Doutora em Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social – Mestrado – da Universidade de Cruz Alta
(UNICRUZ). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Humanos e Pedagógicos
(GPEHP) da UNICRUZ. E-mail: cidascamargo@gmail.com
60
Considera-se, inclusive, que a violência contra o gênero feminino continua
perpetuando, além de uma seletividade no contexto penal, a lógica patriarcal
de dominação masculina. O estudo estrutura-se em quatro tópicos, onde são
discutidas algumas questões referentes aos marcos teóricos da
vitimodogmática e da vitimologia. Após, é verificada a pauta relacionada ao
Direito Penal e à vítima. Na sequência, comenta-se como a vitimologia traz a
perspectiva do gênero feminino, e, por fim, examinam-se alguns dados que
tangenciam sobre a violência de gênero.

2. OS MARCOS TEÓRICOS DA VITIMODOGMÁTICA E DA CTITMOLOGIA

As origens do movimento vitimológico estão relacionadas ao


nascimento do movimento internacional de Direitos Humanos no período do
pós-guerra. Tornados públicos os horrores cometidos durante a II Guerra
Mundial, a consciência da comunidade internacional foi despertada para o
drama da vitimização. A distinção mais importante entre ambos vem de que,
enquanto o movimento de Direitos Humanos considerava a
macrovitimização, as origens do movimento vitimológico estava ligada aos
processos de microvitimização. A identidade genética de ambos os
movimentos é especialmente curiosa quando se verifica, nos discursos
atuais, uma aparente incongruência entre Direitos Humanos e direitos da
vítimas (OLIVEIRA, 2007).
É possível perceber que, conforme leciona Saliba (2009, p. 109), o
tratamento histórico dispensado à vítima dentro dos estudos penais passou
por três grandes momentos. O primeiro, descrito como “Idade de Ouro”,
vigorou até o fim da Alta Idade Média, com relevante participação no
sistema; no segundo momento, há uma neutralização do poder da vítima, e o
Estado, por meio dos poderes públicos, monopoliza a reação; finalmente, em
uma terceira fase, revaloriza-se o papel da vítima no processo penal.
Desde a Escola Clássica impulsionada por Beccaria e Fuerbach à
Escola Eclética de Impalomeni e Alimena, perpassando pela Escola
Positivista de Lambroso, Ferri e Garofalo, o Direito Penal praticamente teve
61
como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do
contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração. Isto apenas
passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia,
tiveram que vir em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do
crime, do criminoso e da pena(FERNANDES& FERNANDES, 2012, p.455).
Os primeiros estudos sistematizados sobre a vítima surgiram no final
da década de 1940 e dois nomes estão relacionados ao nascimento da
vitimologia: Mendelsohn e Von Henting. Há uma polêmica entre os
estudiosos da vitimologia acerca de quem teria sido o pioneiro: Von Henting
publicou, em 1948, sua obra mais conhecida The Criminal and His Victim.
Mendelsohn, por outro lado, teria utilizado, no ano anterior, a expressão
“vitimologia”. Sem embargo do interesse que possam ter alguns pela
discussão, Oliveira (2007) refere que o fato importante é que, no final da
década de 1940, o termo estava definitivamente cunhado.
Desde os primeiros trabalhos em vitimologia a partir de Mendelsohn,
que nomeou a ciência, e de Von Henting no final dos anos 1940, houve um
avanço fantástico a ponto de hoje a vitimologia e os movimentos pelos
direitos das vítimas constituírem possivelmente a força existente mais
dinamizadora para a transformação dos sistemas de Justiça Penal. Isto,
sobretudo, a partir do forte impulso nos anos 1960, em que se abriram
novos horizontes de investigação e de ação em matéria criminológica e
vitimológica (KOSOVSKI& SÉGUIN, 2000, p.22).
No Brasil, em conformidade com Oliveira (2007), somente na década
de 1970 foi publicada a primeira obra devotada ao estudo da vítima e a
partir daí o assunto despertou algum interesse, fortalecido com a criação da
Sociedade Brasileira de Vitimologia (SBV). A SBV, como relatam Kosovski e
Séguin (2000), foi fundada em 28 de julho de 1984, quando especialistas das
áreas de Direito, Medicina, Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, Sociologia e
Serviço Social, além de estudiosos das ciências sociais, uniram-se para
consolidar, no Brasil, os conhecimentos relacionados com a ciência da
Vitimologia, que, anteriormente, era apenas um capítulo da Criminologia.
Não obstante, em comparação com o destaque que o tema tem recebido na
doutrina internacional, a produção brasileira é, no mínimo, tímida.
62
A vitimodogmática é, segundo Larrauri (1992, p. 63), o conjunto das
abordagens feitas pelos penalistas que põem em relevo todos os aspectos do
Direito Penal em que a vítima é considerada. Os primeiros estudos sobre os
temas foram registrados na década de 1970. O crime de estelionato
determinou uma reflexão mais específica dos juristas sobre a participação da
vítima no delito. Isto ocorreu em razão das características próprias deste
crime, onde se constatou uma atuação consciente da vítima, que, muita
vezes, visava uma vantagem.
Molina (1993) arrola os principais motivos para o fortalecimento do
movimento vitimológico a partir da década de 1970. De início, o legado dos
pioneiros da vitimologia demonstrou a recíproca interação entre autor e
vítima. Além disso, no campo da Psicologia Social, emergiu uma área de
estudos apta a fornecer um referencial científico com a elaboração de vários
modelos teóricos baseados nos dados empíricos fornecidos pela pesquisa
vitimológica. Os estudos experimentais de Latané e Darley na década de
1970 relacionados à dinâmica da intervenção dos espectadores nas
situações de emergência e estudos de psicólogos sociais referentes a atitudes
de assistência (ou abandono) das vítimas de delitos, também impulsionou o
campo. Da mesma forma, a crescente credibilidade das denominadas
“pesquisas de vitimização” e o movimento feminista são outros relevantes
fatores impulsionadores do movimento vitimológico.
Já a expressão “vitimodogmática” agrupa uma série de considerações
dogmáticas referentes à intervenção da vítima na gênese do risco. A questão
central é determinar em que medida a corresponsabilidade da vítima na
ocorrência do delito pode ter repercussões sobre a valoração do
comportamento do autor (MELIÁ, 1998, p. 223-224). Como menciona
Sánchez (1989, p. 197), o ponto crucial da discussão vitimodogmática é o
estudo do comportamento da vítima no âmbito da dogmática penal e, em
especial, seus reflexos na responsabilidade do autor.

3. VÍTIMA E DIREITO PENAL

A função primordial do Direito Penal como parte integrante do


63
controle social é a de participar, nos limites de sua competência, e com seus
meios, da manutenção e asseguramento das normas que servem de base
para as leis penais. Esta função cumpre seus propósitos sem atender à
vontade ou aos fins da vítima, toda vez que se configura como Direito Penal
estatal. Através da neutralização da vítima, o que se vê é que a decisão sobre
as normas fica reservada ao sistema, sem qualquer influência da vítima,
conforme constata Greco (2007).
Sob o enfoque vitimodogmático, segundo a aludida autora (2007),
existem institutos que interessam profundamente ao Direito Penal, como o
consentimento, a concorrência de culpas e a provocação da vítima. Para
estudá-los, deve-se valer de abordagens empíricas da vitimologia e,
especialmente do conceito de vítima relacional, entendida como aquela que
interage com o autor e com o meio. Também servirão aqueles trabalhos de
campo sobre as diferentes tipologias de vítimas para temas como a
classificação por estrutura dos tipos penais.
A vitimologia não se resume hoje ao estudo das tipologias.
Estabelecer o conceito de vitimologia é tarefa complexa, pois que inúmeros
enfoques são possíveis e a expressão vítima, que delimita seu alcance, é
também sujeita a diversas interpretações. Apenas para ilustrar a dificuldade,
há uma pretensão de abarcar neste ramo do conhecimento o estudo e a
definição de políticas públicas relacionadas a todas as espécies de vítimas.
Há quem defenda que as consequências psicológicas de um forte trauma,
seja ele causado por um ato humano ou por um fenômeno natural são muito
semelhantes, consoante Oliveira (2007). Por isso, quando se pretende
analisar as intersecções entre a Vitimologia, a Criminologia e o Direito Penal,
vale mais falar em um “movimento vitimológico”, pois o que interessa é
verificar como os conhecimentos advindos dos diversos campos de
conhecimento causam e recebem impactos na área das ciências penais.
Outro esclarecimento que deve ser feito é de que, no momento atual,
os objetos de investigação da vitimologia e da vitimodogmática são distintos.
Pela primeira vez se busca estabelecer os tipos de vítimas, bem como
desenvolver os argumentos sociais, genéticos e jurídicos a respeito delas. Já
a vitimodogmática visa estudar a responsabilidade da vítima em relação ao
64
crime, sua parcela de responsabilidade para o evento danoso. É
precisamente o reconhecimento da problemática e seus possíveis
encaminhamentos, através de uma fundação e construção dogmáticas
consistentes, o que deve ser levado em conta para se valorar a
vitimodogmática. O Direito Penal só atuará quando as condutas práticas
forem merecedoras de pena, na ótica de Greco (2007).
Nesse sentido, Oliveira (2007) ressalta que a relação da Vitimologia
com a Criminologia e com o Direito Penal só pode ser bem dimensionada
com o método da interdisciplinaridade, abandonando as ideias de sujeição e
hierarquia. Ainda na busca de uma concepção útil, o que se tem em vista é
um enfoque vitimológico na Criminologia e no Direito Penal. Esse enfoque é
essencial para a compreensão adequada do fenômeno criminal em sua
acepção ampla. Se não há crime sem vítima é um contrassenso tentar
compreender o crime sem inserir a vítima na análise. Assim, abandonando-
se as antigas categorias de “ciência principal” e “ciência auxiliar”, o que
importa é recolher dos estudos vitimológicos elementos que conduzam a um
aperfeiçoamento das ciências penais. Sánchez (1993, p. 194) aduz que são
poucos aqueles que não concordam com a necessidade de se orientar o
Direito Penal para a vítima e sua maior satisfação. Desse modo, em torno da
ideia de reparação – como sanção autônoma ou como pressuposto da não
imposição de certas sanções – reúnem-se as mais variadas vertentes de
pensamento. O problema não é mais saber se se deve ou não atender os
interesses da vítima no Direito Penal, mas, sim, como fazê-lo.
Em consonância com o destaque feito por Manzanera (1990, p. 128-
129), a importância do estudo da relação entre o delinquente e a vítima não
é contestada por nenhum autor. É possível afirmar, sem espaço para
dúvidas, que eventual análise feita acerca do autor e do crime, sem levar em
consideração a vítima, chegará a uma visão míope e incompleta do fenômeno
analisado. No entanto, em que pese o consenso acerca deste ponto de vista,
a expressão “precipitação vitimal” recebeu muitas críticas e, por isso,
durante a reunião de Bellagio (julho de 1975), foi feita a proposta de sua
substituição por outras expressões consideradas mais adequadas como
“vulnerabilidade da vítima” ou “participação da vítima”. A crítica à
65
“vitimologia clássica” foi também impulsionada pelo surgimento,
notadamente nos Estados Unidos, de inúmeros serviços públicos voltados
para a vítima e pelo movimento “da Lei e da Ordem”. Iniciava-se, então, uma
nova abordagem vitimológica que, afastando-se das concepções anteriores,
criticadas por uma excessiva centralização na conduta da vítima (blame the
victim), passou a buscar novas funções e objetos de estudo para a
vitimologia.
Hoje em dia não se pode estudar o Direito Penal de forma isolada,
ignorando-se o binômio autor e vítima. Nota-se que a Criminologia, ciência
que centrou seus estudos no criminoso e nos motivos do crime, acabou,
paulatinamente, abrindo espaço para o surgimento da vitimologia, ciência
que adicionou a presença da vítima ao fenômeno criminoso e, portanto, deu
margem ao surgimento de mais um fator na equação crime-criminoso,
chegando-se ao trinômio crime, criminoso e vítima (GRECO, 2007).
É possível inferir, a partir do entendimento de Oliveira (2007), que, se
existe uma certa unanimidade em torno da necessidade de dar-se à vítima
alguma satisfação e em torno da ideia de que a neutralização da vítima pelo
Direito Penal moderno foi longe demais, as medidas e propostas que surgem
dessa concepção comum diferem muito entre si. Desde a perspectiva
abolicionista, a apregoar com insistência a necessidade da devolução do
conflito a seus protagonistas e a privatização da sua solução, aos modelos de
conciliação e mediação mais ou menos dependentes do sistema penal, à
concepção de uma reparação como pena autônoma, são muitas as
possibilidades teóricas e práticas de enquadramento do problema.

4. O GÊNERO FEMININO NA VITIMOLOGIA

O movimento feminista desempenhou aqui relevante papel. Não


fossem as críticas lançadas aos primeiros estudos tipológicos, é possível que
sua estrutura sexista estivesse ainda vigente. Houve uma repulsa inicial ao
estudo etiológico da vitimização, incentivada pelo movimento feminista que
via na discussão acerca da culpabilidade da vítima uma grave ameaça aos
direitos da mulher. Segundo essa ótica, sobre a mulher, frágil e vitimizada
66
em uma sociedade patriarcal, pareceria absurdo que se fizesse recair a culpa
pela ocorrência do crime. Assim, o questionamento etiológico deixaria aberto
um flanco importante na luta feminista, motivo pelo qual era imperioso
deslegitimá-lo (OLIVEIRA, 2007).
Esse risco, ainda na visão de Oliveira (2007), fica evidente quando se
pensa em alguns chavões ao estilo “mulher de malandro gosta de apanhar”,
em justificativas como “foi a mulher que provocou o ataque sexual ao se
vestir de maneira convidativa”, ou mesmo a antes larga exculpação do
homicídio passional. Embora menos frequentes na atualidade, por efetiva
conscientização, ou, ao mesmo, algum constrangimento, estas
representações não se encontram banidas do senso comum na sociedade
brasileira, nem da literatura especializada sobre o tema, como na obra de
Neuman (1994).
A citada autora (2007) elucida que a crítica feminista traz em seu
bojo importantíssimos temas vitimológicos. Mostra a necessidade de se
compreender, em relação aos crimes sexuais, não apenas a estrutura do fato
que envolve os protagonistas da cena, mas o contexto social em que se acha
inserido. A partir daí, a reação social e a reação do sistema de justiça
criminal podem ser compreendidas. A vitimologia apresenta ferramentas
essenciais nos processos de vitimização em geral e que se mostram
especialmente relevantes em duas categorias de vitimização da mulher: os
casos de violência doméstica e os crimes sexuais.
A primeira ferramenta são as chamadas “pesquisas de vitimização”
por se tratarem de crucial intersecção entre a Vitimologia e a Criminologia.
Estas pesquisas, de acordo com Kahn (1998) consistem, basicamente, em
um questionário, dirigido a uma mostra significativa da população, a quem
se pergunta se foi vítima de determinado delito. Normalmente são também
incluídas perguntas relacionadas ao sistema penal (como, por exemplo, se a
ocorrência foi ou não registrada e por que motivo), aos sentimentos de
insegurança e que grau de satisfação com os serviços policiais. Estas
informações obtidas, de maneira geral, revelam, conforme Larrauri (1991): a)
que existe um maior número de delitos daqueles que se denuncia; b) que
quando se produz a denúncia, ela obedece a motivos distintos de interesse
67
em conseguir a punição do culpado; c) que o fator mais influente é o estilo
de vida; d) que as vítimas provêm de setores mais pobres da sociedade; e)
que é frequente que a vítima conheça seu agressor; e, f) que a percepção de
insegurança e de medo não está diretamente relacionada com a
possibilidade matemática de ser vítima de um delito, principalmente.
Através da descoberta de diversas formas de vitimização e, em
especial, do constrangedor papel do Estado como agente vitimizador, surge a
necessidade de dar alguma resposta à vítima e é na busca dessas respostas
que inúmeras iniciativas têm emergido nos últimos tempos em variados
campos. Assim é que se originou uma política de segurança pública que
transformou as vítimas no foco principal de um discurso conservador, o
movimento da Lei e da Ordem (Law and Order); foram criados, especialmente
nos Estados Unidos, inúmeros programas de assistência às vítimas; diversos
países seguiram a proposta lançada por Margareth Fry na década de 1960,
criando fundos de compensação às vítimas; e, por fim, um grande número
de reformas legislativas tem por finalidade superar o abandono histórico da
vítima por parte do Direito Penal, proliferando projetos de reparação e
mediação penal, em consonância com o asseverado por Oliveira (2007).
Todas estas iniciativas surgiram diante de uma nova visão dos
direitos das vítimas, que, ignoradas pelo sistema penal, durante tanto tempo
direcionado unicamente para o criminoso, e desamparadas pelo Poder
Público, reivindicavam uma maior atenção ao reconhecimento de seus
direitos, assunto permanente em todos os simpósios internacionais de
vitimologia (OLIVEIRA, 2007). A síntese de tais reivindicações está, de
maneira expressa e inquestionável, na Declaração dos Princípios Básicos de
Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder, aprovada pela
Assembleia-Geral da ONU em 29 de novembro de 1985.
Na compreensão de Fernandes (1995), tal Declaração traz disposições
referentes ao tratamento digno que deve ser dispensado às vítimas, aos seus
direitos nos procedimentos administrativos e judiciais (direito à informação,
à expressão de suas opiniões e preocupações, à assistência, à proteção de
sua intimidade e de sua pessoa, bem como de seus familiares e
testemunhas), e à utilização de mecanismos informais tendentes a facilitar a
68
conciliação e a reparação. É também dada grande importância ao
ressarcimento, que compreende a devolução dos bens e pagamento das
perdas e danos decorrentes da vitimização, além do dever estatal no direito à
assistência. Como se depreende e com suporte na lição de Oliveira (2007), as
pesquisas de vitimização da mulher constituem necessária ferramenta não
apenas para o conhecimento estatístico do problema, mas,
fundamentalmente, para trazer dados indispensáveis à construção de
políticas públicas que atendam às necessidades femininas.

5. ALGUNS DADOS DE MULHERES VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A violência contra a mulher em todas as suas formas (psicológica,


física, moral, patrimonial, sexual, tráfico de mulheres) é um fenômeno que
atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis,
escolaridade ou raças. Faz-se necessário, portanto, que o Estado brasileiro
adote políticas públicas acessíveis a todas as mulheres, que englobem as
diferentes modalidades pelas quais ela se expressa. Nessa perspectiva,
devem ser também consideradas as ações de combate ao tráfico de
mulheres, jovens e meninas, como consta no Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2011).
Nesse aspecto, o Brasil celebrou um acordo federativo, que abrange
as dimensões da prevenção, assistência, combate e garantia de direitos às
mulheres denominado de “Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
Contra as Mulheres”. O Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
Contra as Mulheres (2011) foi lançado em agosto de 2007, como parte da
Agenda Social do governo federal. Parte do entendimento de que a violência
constitui um fenômeno de caráter multidimensional, que requer a
implementação de políticas públicas amplas e articuladas nas mais
diferentes esferas da vida social, tais como: na educação, no trabalho, na
saúde, na segurança pública, na assistência social, na justiça, na
assistência social, entre outras. Esta conjunção de esforços já resultou em
ações que, simultaneamente, vieram a desconstruir as desigualdades e
combater as discriminações de gênero, interferir nos padrões
69
sexistas/machistas ainda presentes na sociedade brasileira e promover o
empoderamento das mulheres; mas muito ainda precisa ser feito e por isso
mesmo, a necessidade de fortalecimento do Pacto, já que suas ações
propostas se apoiam em três premissas: a) a transversalidade de gênero; b) a
intersetorialidade; e, c) a capilaridade.
Ainda que seja um fenômeno reconhecidamente presente na vida de
milhões de brasileiras, não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que
apontem para a magnitude deste fenômeno. Alguns poucos estudos,
realizados em 2010 por institutos de pesquisa não governamentais, como a
Fundação Perseu Abramo, apontam que aproximadamente 24% das
mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica. Quando
estimuladas por meio da citação de diferentes formas de agressão, esse
percentual sobe para 43%. Um terço afirma, ainda, já ter sofrido algum tipo
de violência física, seja ameaça com armas de fogo, agressões ou estupro
conjugal. Outras pesquisas indicam, também, a maior vulnerabilidade de
mulheres e meninas ao tráfico e à exploração sexual. Segundo estudo da
Unesco de 1999, uma em cada três ou quatro meninas é abusada
sexualmente antes de completar 18 anos, conforme informa o referido Pacto
(2011).
Atualmente, existem 1.011 serviços de atendimento às mulheres em
situação de violência. A Lei Maria da Penha n. 11.340/06, que completará
10 anos em 2016, prendeu 4,1 mil agressores, instaurou 685,9 mil
procedimentos para coibir a violência e recebeu 2,7 milhões de ligações pela
Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), de acordo com o Portal ODM
(s/d).Esta é uma das importantes fontes de informações, já que a Central de
Atendimento à Mulher, foi criada em novembro de 2005 pela SPM/PR para
orientar as mulheres, em situação de risco e de violência, sobre seus direitos
e onde buscar ajuda, bem como para auxiliar no monitoramento da rede de
atenção à mulher em todo o país. Mesmo não oferecendo dados que
permitam construir um diagnóstico sobre a violência contra 1. Decreto
Presidencial sob o n° 7.393/2010. 17 as mulheres no país, a Central oferece
uma visão geral das características deste fenômeno e de sua magnitude.
Segundo o Relatório Nacional de Acompanhamento ODM (2014, p.
70
62), foram recebidas, no ano de 2012, 732 mil ligações válidas. No entanto, a
desigualdade de gênero ainda persiste no mercado de trabalho, nos
rendimentos e na política. E a violência doméstica continua atingindo
milhares de mulheres brasileiras. Apresentam-se alguns indicadores que
podem elucidar melhor a questão da violência, quanto aos tipos praticados,
particularmente por companheiro, cônjuge ou ex-marido, sendo
predominantes as lesões corporais leves e graves:

Um dado relevante e que chama atenção é que as violências moral e


psicológica atingem juntas, o percentual de 34,9% dessas ligações. A maior
parte das mulheres que entrou em contato com o Ligue 180 e que também é
vítima da violência tem de 20 a 40 anos (26.676), possui ensino fundamental
completo ou incompleto (16.000), convive com o agressor por 10 anos ou
mais, 40% e 82% das denúncias são feitas pela própria vítima. O percentual
de mulheres que declaram não depender financeiramente do agressor é 44%.
E 74% dos crimes são cometidos por homens com quem as vítimas possuem
vínculos afetivos/sexuais (companheiro, cônjuge ou namorado). Os números
mostram que 66% dos filhos presenciam a violência e 20% sofrem violência

71
junto com a mãe. Os dados do Pacto (2011) apontam que 38% das mulheres
sofrem violência desde o início da relação e 60% delas relataram que as
ocorrências de violência são diárias. Em números absolutos, o Estado de São
Paulo é o líder do ranking nacional com um terço dos atendimentos (77.189),
que é seguido pelo Estado da Bahia, com (53.850). Em terceiro lugar está o
Rio de Janeiro (44.345).
Em contrapartida, na referência que está contida no Relatório
Nacional de Acompanhamento ODM (2014), aindanão há no país pesquisas
regulares capazes de fornecer estatísticas para dimensionar e acompanhar o
problema da violência contra as mulheres. Apesar das dificuldades para
estimar a magnitude do fenômeno, a existência de um conjunto de registros
administrativos coletados pelos governos permite algumas análises que,
mesmo limitadas, indicam caminhos para avaliar as mudanças ocorridas no
período ou para construir um perfil do fenômeno. Nesse enfoque, denota-se a
imprescindibilidade de construção de indicadores para que se possam,
efetivamente, avaliar as políticas públicas construídas e implementadas em
termos de violência contra o gênero feminino. Logo, as possibilidades são
inúmeras e os percalços constantes na luta para mitigar essa permanente
problemática sociocultural.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O impacto do movimento vitimológico no Direito Penal se dá por


várias formas. Uma primeira aproximação revela que a evolução da
dogmática penal teve um preço decorrente da transformação dos fatos
concretos em categorias jurídicas. A vítima passou a ser o sujeito passivo do
crime. O movimento vitimológico, portanto, traz a vítima de carne e osso
para o Direito Penal, com suas aspirações, necessidades, angústias e
expectativas. A forma como esta subjetividade foi interpretada pelo Direito
Penal deu origem a dois campos distintos de atuações que podem ser
designados como “políticas de exclusão” e “políticas de inclusão” (OLIVEIRA,
2007).
Sob a perspectiva desta autora (2007), os estudos vitimológicos
72
relacionados especialmente às formas mais frequentes de violência contra a
mulher são fundamentais também para a criação de estratégias de mais
educação e mais prevenção. Ainda há muito trabalho a ser feito neste campo
e o desafio fundamental é buscar a criação de alternativas e
encaminhamentos que atendam aos interesses das mulheres sem ceder aos
discursos demagógicos e punitivos que reforçam as políticas de exclusão.
Ainda é útil ressaltar que, conforme Kosovski (2012), a vitimologia,
obviamente, não tem todas as respostas, mas pode auxiliar muito na análise
sistemática e compreensão das vítimas e, paradoxalmente pode fornecer
mais respostas adotando a perspectiva mais ampla dos Direitos Humanos.
Essa perspectiva, por exemplo, poderia desvelar e trazer à luz o impacto da
opressão na vitimização criminal, auxiliando, assim, a compreender suas
causas. Depreende-se, pelo exposto, que a violência contra o gênero feminino
vem, paulatinamente, perpetuando a lógica patriarcal, sexista e seletiva.
Mostra-se imprescindível, por conseguinte, construir indicadores de políticas
públicas que possam, pelas lentes da vitimodogmática e da vitimologia,
pensar em estratégias mais efetivas visando avançar nos desafios para
consolidar um enfoque transversalizado pelas questões de gênero no sistema
jurídico-criminológico.

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75
DISCURSO FEMINISTA E PODER PUNITIVO: APROXIMAÇÕES
(IM)POSSÍVEIS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Joice Graciele Nielsson1


Raquel Cristiane Feistel Pinto2

1.INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste trabalho é refletir sobre as relações


existentes entre o poder punitivo e o discurso feminista, a partir das
contribuições teóricas do criminalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni e da
análise do atual cenário brasileiro, sua caminhada para o enfrentamento da
violência de gênero e a aprovação recente da Lei 13.104/15, a Lei do
Feminicídio.
Neste sentido, analisará em um primeiro momento, a partir das
contribuições de Zaffaroni, o longo processo histórico de constituição e
justificação de toda sorte de discriminações baseadas em diferenças
biológicas, que hierarquizaram a sociedade, sob o alicerce do poder
patriarcal, do poder punitivo e do saber dominante, como expressões de
sustentação de um mesmo poder. Demonstra desta forma, a profunda
vinculação existente entre patriarcado e poder punitivo, representando a
própria violência de gênero, uma expressão do uso autorizado e legítimo
deste, como forma de controle social.
Em um segundo momento, analisa o fenômeno da violência de gênero
a partir do legado propiciado pelo feminismo, na construção de vários
marcos legais e políticos de visibilização, denúncia e enfrentamento. A partir
do arcabouço internacional, no Brasil, o processo conduziu à recente
aprovação da Lei 13.104/15, a Lei do Feminicídio, reforçando a tendência de
reivindicação punitiva do agressor, expressa pelo movimento feminista. Este
tendência será analisada a partir da constatação da pouca efetividade e dos
pressupostos do direito penal mínimo e da criminologia crítica.

1Professora do Curso de Direito da UNIJUÍ. Mestre em Desenvolvimento. Doutoranda em


Direito/UNISINOS.
2 Especialista em Gestão de Pessoa. Aluna Especial do Metrado em Direitos Humanos da

UNIJUÍ.
76
A parte final busca, a partir de Zaffaroni, demonstrar que a busca por
mecanismos repressivo punitivos como forma de enfrentamento às
discriminações e a violência de gênero carrega em si uma armadilha, ao
reforçar justamente o poder que está na gênese do próprio fenômeno. A par
disso, considera que a insistência neste caminho de contato entre discurso
feminista antidiscriminatório e poder punitivo representa uma forma de
neutralizar seu caráter profundamente transformador e reforçar o próprio
elemento discriminante e opressor.

2. HIERARQUIZAÇÃO BIOLÓGICA DA HUMANIDADE: a unidade ideológica


das discriminações

A discriminação, em sua forma de hierarquização baseada em


diferenças biológicas dos seres humanos é um capítulo antigo e contínuo da
história humana, cuja construção apresenta múltiplas facetas de um mesmo
processo histórico: racismo, discriminação de gênero, de pessoas portadoras
de deficiências, de doentes, de minorias sexuais e étnicas, de imigrantes,
crianças e adolescentes, idosos, dentre outros.
Zaffaroni (2009) utiliza a classificação proposta por Michel Wieviorka
(1992) sobre o racismo, para afirmar que todos estes tipos de discriminações
apresentam formas inorgânicas, orgânicas e oficiais de manifestação. As
formas inorgânicas são aquelas que não têm discursos nem instituições que
as sustentem de modo pretensamente coerente, mas se manifestam
cotidianamente na biopolítica, cunhada por Foucault. As formas orgânicas
aparecem quando partidos ou instituições, típicas da política tradicional
assumem os discursos que as sustentam, e por fim, as formas oficiais,
quando são assumidas e transformadas em políticas públicas pelos Estados.
No nível inorgânico, tais discriminações constituem-se a partir de um
poder in fluxo, conforme Foucault (1981), ou seja, nem fixo nem localizado
numa pessoa ou instituição e, portanto, podem ocorrer de maneira isolada.
Quando estas assumem formas orgânicas e articulam discursos de
sustentação através de marcos institucionalizados e oficiais, embora possam
colocar ênfase discursiva em um ou outro tipo de discriminação, sempre
77
tendem a se sustentar mutuamente, uma vez que “no son más que aspectos
de una misma estrutura Ideológica”.(ZAFFARONI, 2009, p. 322).
O ápice de toda esta “escoria ideológica” Zaffaroni (2009, p. 322)
embora não tenha sido nem o único nem o primeiro foi o nazismo, que nada
mais fez do que repetir pretensas teorias científicas prévias, como por
exemplo, a antropologia que legitimou o neocolonialismo do século XIX, e a
sociologia legitimante da ordem dentro das metrópoles deste período, todas
claramente racistas e discriminatórias com relação à mulher e quanto a
manifestações diversas de gênero, idealizantes de um poder viril
potencializado como resultado da luta seletiva. Do que se pode afirmar,
novamente com o professor argentino, que não houve racista que não tenha
defendido a necessidade de manter a mulher em uma posição de
subordinação ao controle paternalista e patriarcal, assim como não
deixaram de existir aqueles que idealizaram a perfeição física e a virilidade
(MOSSE, 1997).
E a que se deve a tão duradoura e inabalável manutenção desta
unidade ideológica que hierarquiza diferenças biológicas entre os seres
humanos nas mais diferentes formas de discriminações? Ao fato de
cumprirem uma mesma função de poder, pode-se responder a partir do
biopoder Foucaultiano, e da vontade de poder apontada por Nietzche. E é
justamente este poder, segundo Zaffaroni (2009), manifesto através das
discriminações biológicas que se sacraliza com o surgimento do poder
punitivo, ou seja, da violência autorizada e legitimada pela própria
hierarquização patriarcal, senhorial e corporativa da sociedade.
No mesmo sentido reflete Hannah Arendt (2001). Para a filósofa,
embora distintos, poder e violência, estão diretamente relacionados e a chave
para a compreensão da violência é a forma como se concebe o poder, uma
vez que aquela surge como recurso ou alternativa para manutenção deste,
tendo sua utilização legitimada socialmente no que se denominou de
exercício do poder punitivo. Conforme Zaffaroni (2009, p. 323) “Cambia la
piel en su avance, pero el poder es el mismo y mantiene su sustancia desde
hace, por lo menos, ochocientos años”, utilizando-se da violência autorizada
como controle punitivo para sua manutenção.
78
Este poder hierarquizado, segundo Zaffaroni (2009), está assentado em
três vigas mestras: o poder do pater familiae, ou seja, a subordinação da
metade inferiorizada da humanidade e o controle da transmissão cultural
(controle repressivo/punitivo da mulher); o poder punitivo, ou seja, o uso
legítimo da violência no disciplinamento dos inferiores (controle
punitivo/repressivo dos perigos reivindicatórios); e o poder do saber do
dominus, ou a ciência deste senhor, que ao longo de tempo, foi acumulando
capacidade instrumental de domínio (controle dos discursos).
Estas três vigas nascem com o próprio poder e se cruzam e
entrecruzam em sua construção. Sua presença na historia é antiga, mas sua
forma atual, enquanto poder verticalizante de uma sociedade hierarquizada
surge nos séculos XII e XIII na Europa, juntamente com o nascimento do
poder punitivo. Este, ao contrário do que se posa afirmar, segundo Zaffaroni,
nem sempre existiu, tendo aparecido e logo desaparecido em diferentes
momentos históricos, de modo que a humanidade caminhou sobre o planeta
durante milhões de anos sem conhecer a necessidade de punição, como
temos hoje3. Tudo mudou quando os senhores passaram a confiscar o lugar
das vítimas. Os chefes dos clãs deixaram de buscar a reparação e os juízes
deixaram sua função de árbitros porque uma das partes foi substituída pelo
senhor, enquanto poder político, que passou a selecionar os conflitos,
afastou as vítimas e afirmou: “la víctima soy yo”. (ZAFFARONI, 2009, p. 324).
Deste modo, o poder político passou a ser também o poder punitivo, a
decidir os conflitos, e mais ainda, o que deveria ser considerado como
conflito, fazendo desaparecer a vítima do cenário penal. Certamente, na
atualidade, há tentativas de reparar esta situação, mas não são mais que
paliativos que de modo algum restituirão o direito confiscado. O dia em que

3 De acordo com o autor (2009, p. 324) “Hasta los siglos XII y XIII europeos no había poder
punitivo en la forma en que hoy lo conocemos. Por ejemplo, cuando un germano lesionaba a
otro, el agresor se recluía en el templo (asilo eclesiástico) para evitar la venganza, y allí
permanecía mientras los jefes de sus respectivos clanes arreglaban la reparación
(Vergeltung) que el clan dellesionante debía al clan del lesionado, bajo amenaza de que, de
no resolverse, se declararían la guerra. Otro de los métodos de resolución del conflicto era
dirimir la cuestión por un juicio que se decidía con la intervención de Dios en persona, es
decir, con pruebas: las pruebas de Dios u ordalías. El juez en realidad era una suerte de
juez deportivo, que sólo cuidaba la transparencia e igualdad para permitir que Dios
expresara la verdad. La más común de las ordalías era la contienda o lucha, el duelo entre
las partes o sus representantes: el vencedor era poseedor de la verdade”.
79
o poder punitivo seriamente restituir o direito da vítima, passará a ser outro
o modelo de resolução de conflitos. Deixará de ser o poder punitivo, porque
perderá seu caráter estrutural, de manutenção do poder, e poderá se abrir a
outras práticas, como aquelas restaurativas, que levam em consideração
todas as vidas humanas envoltas ao conflito.
A partir desta usurpação da posição de vítima, segundo Zaffaroni
(2009), o processo penal deixou de ser um procedimento para resolver um
conflito entre as partes, e se converteu em um ato de poder de um senhor
soberano, e o poder é seu único objetivo; o juiz penal deixou de ser um
árbitro que garantia a objetividade e o equilíbrio entre as partes e passou a
ser um funcionário que decide conforme o interesse de seu senhor (Deus), ou
o juízo do certo e do justo passou a estar sempre do lado do poder, do
dominus, representado pelo juiz, e esta certeza fez com que o método de
estabelecimento da verdade dos fatos passasse a ser o interrogatório: uma
verdade proporcionada pelo acusado respondendo o interrogatório (a
inquisição, ou inquisitio) do juiz. Se aquele se recusava a confessar, era
torturado até falar (aquilo que o dominus queria ouvir).
Quando passou a ser esta a forma de se alcançar a verdade no
processo penal, o saber passou a se constituir mediante o interrogatório das
coisas e dos entes, que poderia chegar, conforme Foucault (1980) à tortura,
à violência, e até ao experimento4. Como saber é poder, nos ensina o filósofo,
este se acumula questionando os entes segundo o poder que se objetiva
exercer sobre eles. O sujeito do conhecimento, que tem Deus a seu lado, se
coloca na posição de inquisidor, em um plano superior ao objeto, como “un
enviado de Dios para saber, es el dominus que pregunta para poder”.
(ZAFFARONI, 2009, p. 325). Quando o objeto é outro ser humano, o saber
senhorial estabelece uma hierarquia: o ser humano-objeto será sempre um
ser inferior ao ser humano-sujeito. Não há nenhum diálogo, de modo que a
discriminação hierarquizante entre os seres humanos torna-se sempre um
pressuposto e uma consequência necessária desta forma de saber do

4Da abertura de cadáveres e sua vivissecção, passando pelos médicos nazistas e a exposição
de milhares de pessoas a radiação, conforme aponta o autor em El saber y las formas
jurídicas, 1980.
80
dominus.
A primeira tarefa em que se uniram poder punitivo e saber
inquisitorial foi no fortalecimento da estrutura patriarcal e a consequente
subordinação da mulher, como capítulo indispensável de seu
disciplinamento social. Uniram-se na construção de um sistema simbólico
de poder, que transformou a diferença de gênero na origem mais antiga,
universal e poderosa de muitas das conceituações moralmente valoradas de
tudo o que nos rodeia, conforme Harding (1996). Assim, produziram e
reproduziram estereótipos de gênero (SCOTT, 1990), contribuindo para a
construção e manutenção da opressão das mulheres e das mais diversas
formas de discriminações baseadas em diferenças biológicas (e
posteriormente morais) da sociedade.
Nesse intento, era indispensável disciplinar a sociedade, eliminando da
cultura os elementos pagãos, anárquicos ou disfuncionais, enquadrá-los na
hierarquia e na disciplina da sexualidade, especialmente as mulheres e
todas as formas diversas de sua manifestação. Tratava-se de uma tarefa
inteiramente vinculada ao poder, que se confundiu, segundo Zaffaroni, com
o processo de cristianização da sociedade no exercício de um poder
disciplinante, em uma Europa em que apenas as elites estavam
disciplinadas e ao qual o discurso teocrático serviu adequadamente como
modalidade comunicativa.
A inquisição foi a manifestação mais orgânica deste poder punitivo
nascente e seu exercício disciplinante foi de uma crueldade inenarrável. Sua
experiência consta em uma obra que, pela primeira vez expôs de forma
integrada e orgânica um discurso sofisticado de criminologia, direito penal,
direito processual penal e criminalística: o manual da Inquisição, publicado
em 1484 com o título Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras)5. Este é,
segundo Zaffaroni, certamente o livro fundacional da moderna ciência penal
e criminal.
Na obra, podem-se identificar algumas das notas estruturais mais
importantes do poder punitivo: a existência de um mal cósmico que ameaça

5 O martelo das feiticeiras Malleus Maleficarum (Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991).
81
destruir a humanidade, frente ao qual não se deve titubear nem prescindir
de qualquer meio; os piores inimigos são os que duvidam da existência deste
mal, porque duvidam da legitimidade do poder punitivo; o mal não obedece
causas mecânicas nem físicas, mas à vontade humana o que legitima o
castigo; a vontade humana se inclina ao mal nas pessoas que são
biologicamente inferiores, mais frágeis, como as mulheres6; a propensão ao
mal existe como pré disposição; quem exerce o poder punitivo é imune ao
mal; a confissão torna o acusado culpável, a não confissão significa mentira,
estimulada pela força da sua própria maldade; e por fim, os signos do mal
são incalculáveis, porque o mal se manifesta de incontáveis maneiras,
impossíveis de serem catalogadas e previstas.
Há assim uma articulação perfeita entre as três vigas do poder. O
poder patriarcal controla mais da metade da população: tem o direito de
punir mulheres, crianças e idosos, na gênese da violência (socialmente
autorizada) de gênero; o poder punitivo se ocupa de controlar os homens
jovens e adultos, ou seja, controla os controladores, e o saber instrumental é
poder a serviço do domínio dos controladores e dos controladores dos
controladores, em uma articulação básica que se mantem a despeito das
lutas de classes e corporações, da automização das elites, do colonialismo,
neocolonialismo, descolonialismo, hegemonia étnica e cultural. Em todas
elas, permanece o mesmo esquema básico que exclui do poder e marginaliza
socialmente dissidentes, minorias étnicas, sexuais, pessoas com
deficiências, doentes, psiquiatrizados, obesos, migrantes, e claro, mulheres,
dentre outros.

3. PODER PATRIARCAL E A SOCIEDADE BRASILEIRA: discussões acerca


do feminicídio

Não há duvida de que o poder punitivo é uma das vigas mestras da


hierarquização verticalizante que alimenta todas as formas de

6 As inferioridades biológicas eleitas irão se alterando conforme os séculos e, em alguns


casos, a ideologia punitiva se separará destas, ao menos aparentemente, para construir
inferioridades morais.
82
discriminações e violações da dignidade humana. E esta discriminação e
submissão das mulheres ao patriarcado são tão imprescindíveis como o
próprio poder punitivo, constituindo uma relação de dependência mútua. O
poder punitivo assegura o patriarcado, vigiando os controladores para que
não deixem de exercer seu domínio7, de tal modo que, segundo Zaffaroni, se
este rol fosse desfeito, a própria cadeia hierárquica cairia, porque as
mulheres romperiam o processo de transmissão cultural que legitima o
poder punitivo e o saber dominante.
Por isso, ambos foram se aperfeiçoando ao longo dos séculos, e
atualmente se encontram diante de uma situação paradoxal. É possível a
utilização do poder punitivo como forma de combate ao patriarcado,
mediante a penalização repressivo punitiva como combate à violência de
gênero, especialmente em sua forma mais nua e cruel, o feminicídio? Esta
dúvida tem gerado uma série de discussões, que colocam frente a frente
defensores da criminologia crítica, como o próprio Raúl Zaffaroni, que tem
servido de base às reflexões deste artigo, e feministas que buscam uma
alternativa de enfrentamento à violência de gênero e à morte de mulheres
exclusivamente por serem mulheres.
Modernamente, violência contra a mulher ou violência de gênero é tida
como toda ação violenta produzida em contextos e espaços relacionais e,
portanto, interpessoais, em cenários societários e históricos não uniformes, e
que incidem sobre a mulher, ou polo feminizado de uma relação, física,
sexual, psicológica, patrimonial ou moralmente, tanto no âmbito privado-
familiar como nos espaços de trabalho e públicos (BANDEIRA, 2014). Esta
violência “se origina no modo como se armam as relações entre homens e
mulheres no âmbito doméstico e familiar” (HEILBORN & SORJ, 1999, p.
213), e nada mais é do que o modo como são estabelecidas as relações de

7 Segundo Zaffaroni (2009, p. 329), “Si alguien duda de la eficacia de este poder, basta para
demostrarlo la circunstancia de que, después del Malleus, los sucesivos discursos
criminológicos casi no volvieron a mencionar a las mujeres hasta hace poco menos de
veinticinco años, salvo referencias tangenciales y esporádicas. La criminologia de los últimos
cinco siglos sólo se ocupa de los varones, lo que es altamente significativo teniendo en
cuenta que los discursos no sólo expresan lo que dicen sino también lo que ocultan y que
los operadores del saber no sólo se manifiestan en lo que ven sino también en lo que dejan
de ver”.

83
submissão e de poder entre homens e mulheres na esfera privada, segundo
a ótica da dominação masculina e do patriarcado.
Neste sentido, representa a privatização do uso do poder punitivo.
Este, frente às mulheres, é exercido pelo poder patriarcal, mediante uma
sorte de violência aprendida no decorrer dos processos primários de
socialização e deslocada para a esfera da sociedade em momentos
secundários na sociabilidade da vida adulta. Não é, portanto, uma patologia
ou desvio individual, mas sim uma permissão social, concedida e acordada
com os homens na sociedade, cujas próprias instituições da sociedade,
mediante um maior ou menor grau do que Portella (2005) identifica como
permissividade ou licença social para a sua efetivação. Sua existência revela
o controle social sobre os corpos, sexualidade e mentes femininas, exercido
mediante o uso do poder punitivo autorizado pelo poder patriarcal.
Neste ponto, cabe destacar que teorizar e pensar a violência de gênero
a partir dos pressupostos aqui assumidos é uma possibilidade recente na
história humana, visto que a construção do saber sempre foi controlada e
constituiu uma das vigas dos processos de dominação e discriminação. Sua
efetivação só foi possível a partir de um longo processo evolutivo de lutas
antidiscriminatórias construído, principalmente, ao longo do século passado,
em muito devido ao avanço da luta feminista.
As lutas antidiscriminatórias têm, no feminismo, o seu principal e
mais promissor representante, afinal, o discurso feminista é, segundo
Zaffaroni (2009, p. 329), não apenas mais um discurso antidiscriminatório,
mas “el discurso antidiscriminatorio por excelência”. Embora se possa
considerar com Bobbio (1998), que todo pensamento progressista por
excelência se empenha na luta contra a discriminação, neste campo, a
esperança representada pelo feminismo8 não pode ser igualada a nenhum
dos outros discursos dos discriminados.
Afinal, segundo o argentino, nenhuma das outras minorias, embora

8 Autores importantes do século XX, como Norberto Bobbio, no livro a Era dos Direitos;
Fritjof Kapra, no seu Ponto de Mutação, e Manuel Castells, em seu estudo sobre a Sociedade
em Redes, apontaram este como o século das mulheres, sustentando terem elas produzido
uma das revoluções culturais mais importantes do período a partir da luta pela constituição
de sua cidadania, identidade e existência.
84
numerosas, abarca metade da humanidade; muitos grupos discriminados
perdem identidade ao se renovarem permanentemente (como as crianças,
que se tornam adultos, e os idosos, que morrem); o discurso feminista é o
mais suscetível de penetrar em todas as agencias, classes, corporações e
instituições, não havendo, portanto, locus de poder social que não possa ser
alcançado pelas mulheres, e, ao mesmo tempo, constituir-se em um discurso
capaz de complementar-se e compatibilizar-se com todos os outros discursos
de luta antidiscriminatória.
Essa caminhada vitoriosa da luta feminista antidiscriminatória tem se
consolidado em marcos legais, principalmente, no âmbito internacional a
partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Posteriormente, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (ONU) em 1979, ratificada pelo Brasil em
1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) em 1994
fortaleceram as ações, levando os Estados Partes, a se comprometerem com
a implementação de uma política destinada a eliminar a discriminação
contra a mulher, possibilitando avanço na construção da igualdade de
gênero.
A Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1994,
considera violência contra a mulher “qualquer ação ou conduta, baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado”, independente da origem
do agressor (família, comunidade ou o próprio Estado), cabendo ao Estado
intervir tanto no âmbito público quanto privado. De acordo com a
Convenção, os Estados Partes devem “incorporar na sua legislação interna
normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam
necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”.
As respostas apresentadas pelo Estado brasileiro, a partir deste
processo, tem se concentrado na esfera repressivo punitiva, e mais
recentemente, ainda que de modo incipiente, na criação de uma rede de

85
atendimento às vítimas. Esta cronologia9 judicializante passa inicialmente
pela criação das Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (Deam´s)
em 1985, ganha um novo impulso a partir da Lei 9.099/95, que dispôs sobre
os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Jecrim´s), cuja responsabilidade
passou a ser julgar crimes de “menor potencial ofensivo” dentre os quais
estava a violência contra a mulher e se consolida definitivamente através da
Lei Maria da Penha10 (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006).
Após a aprovação da Lei Maria da Penha, pesquisas11, passaram a
indicar a permanência do fenômeno da violência, quando não sua gradação.
Isto fica claro, por exemplo, no estudo Violência contra a mulher: Feminicídios
no Brasil, produzido pelo IPEA12 em 2014, segundo o qual, no Brasil, no
período de 2001 a 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios, o que
equivale em média, a 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada
ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia,
aproximadamente. De acordo com a mesma pesquisa, constatou-se que não
houve redução nas taxas de mortalidade de mulheres, comparando com o
período anterior (2001-2006) e posterior (2007-2011) da Lei, sendo que a
taxa de mortalidade para cada 100 mil mulheres, no primeiro período foi de
5,28 e no segundo período de 5,22, ou seja, com um pequeno decréscimo.
Diante do cenário de falta de eficiência da legislação em vigor, e
continuação da incidência do problema, a medida adotada mais uma vez foi
repressivo punitiva, a partir da entrada em vigor da lei 13.104/2015, que
alterou o código penal, criando uma nova modalidade de homicídio

9 Este breve esboço do avanço das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero
não tem a pretensão de esgotar o debate sobre o tema, nem ignora as demais políticas
implementadas neste sentido. Tem apenas o condão de demonstrar a preponderância da
tônica repressivo-punitiva como principal resposta do Estado, e principalmente do direito
diante do problema.
10 Alcunhada por Maria da Penha, em homenagem à luta da biofarmacêutica cearense que

sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido e tornou-se paraplégica, sendo seu agressor
condenado após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A lei, portanto,
resultou de uma punição internacional dirigida ao Brasil, e de longo processo de
mobilização.
11 Vide uma compilação de dados de diversas pesquisas sobre violência de gênero no Brasil,

realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, disponível em:


http://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/dados-e-pesquisas-violencia/dados-e-fatos-
sobre-violencia-contra-as-mulheres/. Acesso em 27/05/2015
12http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_lei

lagarcia.pdf.2014. Acesso em 27/05/2015.


86
qualificado, o feminicídio, tido como aquele crime praticado contra a mulher
por razões da condição de sexo13 feminino.
Esta lei modificou o art. 121 do Código Penal, incluindo no rol dos
crimes de homicídio qualificado o Feminicídio, sendo aquele praticado contra
a mulher por razões da condição do sexo feminino, que envolver: I – violência
doméstica ou familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de
mulher. Possibilitou o aumento de pena, de um terço até a metade se o
crime for praticado: I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores
ao parto; II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60
(sessenta) anos ou com deficiência; III - na presença de descendente ou de
ascendente da vítima.” E por fim, alterou a Lei no 8.072, de 25 de julho de
1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
A partir da edição da Lei, tem se intensificado uma série de debates
acerca dos rumos que o enfrentamento à violência de gênero tem tomado no
Brasil. Este debate parte, inicialmente, do reconhecimento deste fenômeno
como um problema social grave e letal, dirigido especialmente às mulheres.
Tal apreensão é fundamental e deve ser anterior ao debate sobre a
necessidade de criar mais uma lei penal, ou de alterar o código. Sem que isto
esteja em questão, enquanto o fenômeno for tratado como um problema
menor ou desenraizado dos elementos estruturantes que o constituem, o
debate será vazio e desqualificado em sua potência de denúncia e
enfrentamento antidiscriminatório (GOMES, 2015). Neste sentido, o debate
acerca do tema adquire uma urgência e um caráter de denúncia em prol da
luta antidiscriminatória cujo valor é fundamental.
Reconhecer sua existência, identificar o fenômeno e apropriar-se do
vocábulo “feminicídio” implica em apreender um conjunto de concepções
teórico-políticas, que localizam a violência de gênero, suas características e
seu contexto de produção. Esta “visibilização” esperada não se constitui
apenas em trazer à mostra o que estava oculto (porque muitas vezes não
está), senão de politizar algo que foi naturalizado, algo que não foi observado

13Merece destaque o fato de o texto original do projeto de Lei conter a expressão gênero
feminino. Durante a votação na Câmara dos Deputados, a palavra gênero foi substituída por
sexo, a pedido da “bancada evangélica”.
87
e reconhecido em seu contexto de produção, qual seja patriarcal e
necropolítico (MARTÍNEZ, 2010). Feminicídio tem, portanto, “força histórico-
política, força de denúncia, de análise e insurreição” (MARTÍNEZ, 2010,
p.106), desmascarando o “patriarcado como uma instituição que se sustenta
no controle do corpo e da capacidade punitiva sobre as mulheres, e mostrar
a dimensão política de todos os assassinatos que resultam deste controle e
capacidade punitiva, sem exceção” (SEGATO, 2008, p.37).
Estabelecido o ponto inicial quanto a sua relevância, a questão que se
coloca é, qual a melhor resposta a ser construída para o seu enfrentamento?
A resposta a esse questionamento tem provocado um longo debate, tenso e
paradoxal entre as demandas dos movimentos de mulheres e feministas,
algumas chamadas por Larrauri (2007) de “feminismo punitivo” e a
criminologia crítica. Apesar de ambos estarem comprometidos com a luta
antidiscriminatória, com a transformação da realidade e com projetos
societários alternativos, tem sido difícil encontrar consenso.
Do ponto de vista deste artigo, tem-se que a resposta punitiva não é de
forma alguma o modo mais adequado de constituir o processo de luta
antidiscriminatória representado pelo feminismo. É importante reafirmar,
que a judicialização do feminicídio é apenas uma de suas perspectivas de
compreensão e que é totalmente possível estudar e denunciar o fenômeno
demandando aos Estados respostas adequadas, contudo não
necessariamente penais ou punitivas.
Neste mesmo sentido, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM, 2011), em debate sobre a
judicialização do feminicídio nos países latinos elencou cinco argumentos
contrários à esta dinâmica de “ingresso” no sistema de justiça penal de cada
país: 1) É preciso manter o princípio do direito penal mínimo; 2) O
feminicídio já está contemplado no homicídio qualificado; 3) Os problemas
de técnica legislativa podem tornar inconstitucional a nova lei; 4) Não há
redução nas taxas do fenômeno, tampouco se resolve o problema da
impunidade com a criação de um tipo penal, ou com o aumento de penas; 5)
O sistema penal não pode ser demandado por um sentido simbólico e sim,
por sua eficácia (que se reconhece que ele não tem).
88
A menção ao “direito penal mínimo” faz referência ao deslocamento da
análise da compreensão da criminalidade, tomando o crime em seu contexto
ontológico de constituição, que superou as leituras tradicionais e ampliou a
apreensão da realidade, analisando o que constitui a noção de desvio e as
condições estruturais que estão na gênese deste fenômeno, sobretudo, ao
afirmar, como o faz Baratta (2002), que a noção de crime é historicamente
construída, não existindo em si na realidade. Afinal, segundo o autor, crime
e violência são fenômenos diferentes e, portanto, ao pretender que
determinada violência seja reconhecida socialmente como um crime, faz-se
necessário demandar um tratamento penal enfrentando todos os problemas
estruturais do sistema de justiça criminal – essencialmente hierarquizado,
seletivo, conservador e reprodutor de desigualdades.
Nos marcos do direito penal mínimo, deve-se criticar a opção da luta
feminista pela resposta penal à violência de gênero. Ao depositarem sua
expectativas de luta no “poder punitivo” as mulheres convocam “o mesmo
veneno que as submete(ia), mutila(va) e mata(va)”. (BATISTA, 2008, p.14).
Recorrendo e reafirmando o “mito da tutela penal”, uma exata manifestação
da cultura que se pretende combater (AZEVEDO, 2008, p.133).
Além disso, este é um mecanismo totalmente ineficaz, como a própria
realidade brasileira tem demonstrado, sendo consenso que uma lei penal
não é a via adequada de abordagem de nenhum delito, só sendo utilizada em
caso de gravidade (Toledo, 2009a), entretanto, isso não a torna passível de
garantir a prevenção do fenômeno ou a punição dos casos (CLADEM, 2011).
De acordo com Carmen Antony “como criminólogas, sabemos que o direito
penal não previne nenhum tipo de condutas ilícitas” (apud CLADEM, 2011,
p.11). Logo, “por que colocará o feminismo tantas energias em algo que não
vai gerar nenhuma mudança, nem vai prevenir as matanças e mortes de
mulheres?” (Celina Berterame apud CLADEM, 2011, p.214). A resposta,
passa pela compreensão de que esta é exatamente a armadilha proposta pelo
poder a fim de neutralizar a força antidiscriminatória do discurso feminista,
e reduzir sua expressividade e capacidade de transformação estrutural da
sociedade.

89
4.MANUTENÇÃO E FORTALECIMENTO DO PODER PUNITIVO: a grande
armadilha dos discursos antidiscriminatórios

Embora não reste dúvida de que o discurso feminista em algum


momento cumprirá esta função revolucionária, não será em curto prazo,
porque submetido aos mesmos riscos retardatários e neutralizantes com que
o poder contém o avanço de tudo que lhe ameaça. Estes riscos se
materializam, principalmente, através do fomento à tendência espontânea de
fragmentação dos discursos antidiscriminatórios, que leva cada pessoa a
desenvolver uma sensibilidade particular a alguma delas, e a defender sua
prioridade e propriedade da própria dor: “mi desgracia es mía, no quiero
perderla en un mar de desgracias, por respetable que sean el dolor y la
desgracia ajenos”.(ZAFFARONI, 2009, p. 330).
Esta fragmentação leva a uma contraditória diversidade de
cosmovisões unidimensionais, cosmovisões parcializadas. Cada grupo
discriminado encara sua luta a partir de sua posição, fragmentando assim a
luta a partir de sua visão particular (e parcial) do mundo. Ao fragmentar a
luta, produzem contradições que impedem uma coalisão, fazendo-os
esquecer que a sociedade hierarquizada não é apenas machista, não é
apenas racista, não é apenas xenófoba, não é apenas homofóbica, etc., mas
sim, é tudo isso junto.
Com relação ao discurso feminista e o discurso do poder punitivo,
embora com algumas peculiaridades, é inegável que as armadilhas
neutralizantes e retardatárias não são diversas das que se colocam diante de
todos os outros discursos discriminatórios. Inicialmente críticos severos ao
discurso legitimante do poder punitivo, logo passam a reivindicar seu uso
pleno para a resolução de seu problema particular. E o poder punitivo
sempre opera seletivamente: se divide conforme a vulnerabilidade, que
responde a estereótipos, construídos em relação com imagens negativas,
carregadas de todos os tipos de preconceitos que contribuem para sustentar
culturalmente as próprias discriminações. Transitoriamente, Zaffaroni
(2009, p. 332) afirma que “la selección criminalizante es el producto último de
todas las discriminaciones”. A ela obedecem as características comuns dos
90
prisioneiros, que podem ser classificadas segundo os preconceitos que
determinaram sua seleção.
Neste sentido, a obra de Cesare Lombroso, que descreve o que viu nas
prisões e manicômios de sua época é, definitivamente, a melhor descrição
feita das discriminações traduzidas em estereótipos criminais seletivos.
Ninguém com as características descritas por ele poderia sair imune ao
poder punitivo de sua época. O que falha radicalmente em Lombroso,
segundo Zaffaroni (2009), são suas explicações, uma vez que confundiu as
causas da criminalização com as do delito.
Com relação à mulher, por exemplo, certamente as poucas presas que
havia naquele momento tinham características virilizadas, mas não que as
mulheres delinquentes fossem anormais: de sua observação, o que se deduz
é apenas que o poder punitivo selecionava mulheres conforme o estereótipo
de mulher viril, que seria um comportamento desviante da fêmea submissa e
doméstica. Tampouco era verdade que a prostituição fora um delito, na
realidade, era o encarceramento usado como forma de manter a mulher
subordinada, escravizada, mercadoria de um homem que a possui
(ZAFFARONI, 2009).
Essa situação de servidão torna desnecessária a intervenção
controladora do poder punitivo sobre ela, constituindo a máxima
manifestação do patriarcado ao qual o sistema penal delega o esforço de seu
controle. O resultado é a primeira grande privatização do poder punitivo,
anterior em muitos séculos às iniciativas recentes de privatização da
segurança: o controle da mulher e o exercício do poder punitivo sobre elas,
entregues aos homens, seus controladores. O poder punitivo do dominus,
precisava apenas controlar os controladores.
A partir da fragmentação dos discursos antidiscriminatórios, o que se
verifica é que cada um critica desde sua particular discriminação a
seletividade do poder punitivo, o que em princípio é correto e seria positivo,
desde que não viesse acompanhado da “la pretensión de que el propio poder
punitivo se ponga al servicio del discurso antidiscriminante” (ZAFFARONI,
2009, p. 333).Esta pretensão é insólita, sendo inconcebível que o poder
hierarquizante da sociedade, o instrumento mais violento de discriminação,
91
a ferramenta que sustenta todas as discriminações possa ser convertida em
um instrumento de luta contra a discriminação. Um poder que, por sua
estrutura é exercido de forma seletiva e discriminante, de nenhum modo
poderia ser exercido com intuito antidiscriminatório.
Embora existam teorias que postulem esta transformação como o
direito penal mínimo, ou as teorias garantistas, não há dúvidas de que são
propostas que requerem uma mudança muito profunda na sociedade,
principalmente uma sociedade como a brasileira, e que de modo algum
podem ser tidas como um mero retoque na lei penal. Apenas, neste marco,
segundo o professor Zaffaroni (2009) poderia ser pensado um poder punitivo
que estivesse do lado do mais fraco, embora nada na história indique esta
perspectiva de mudança, quando, ao contrário, toda a experiência tem
mostrado que invariavelmente, o poder punitivo sempre esteve ao lado do
mais forte.
A partir disso, o resultado da pretensão de que o poder punitivo, sem
maiores mudanças sociais e, apenas em virtude de algumas legislações
pontuais, se converta em um aliado da luta antidiscriminatória, é que o
poder punitivo passa a receber uma critica meramente pontual, que não o
atinge de forma mais grave e, ao mesmo tempo, se beneficia com uma
formidável legitimação tida como resultado da soma das reafirmações de sua
utilidade, produzidas pela soma de todos os setores discriminados.
O poder punitivo acaba tirando proveito de todo o progresso
antidiscriminatório na medida em que este reclama soluções, e reafirma que
a ineficácia das respostas antidiscriminatórias provém de garantias e limites
impostos pela legalidade constitucional e internacional, ou seja, as lutas
antidiscriminatórias não são eficientes por causa dos limites do poder e da
força punitiva. “El máximo grado de burla se alcanza cuando el instrumento
discriminante argumenta que su incapacidade antidiscriminatoria proviene de
que no es suficientemente flerte” (ZAFFARONI, 2009, p. 334),levando as
principais vítimas a lutarem pelo fortalecimento do poder que as discrimina.
Poder punitivo descontrolado e ilimitado é sinônimo de Estado de polícia, e
Estado de polícia é aquele que reprime com maior violência qualquer
reivindicação antidiscriminatória.
92
No caso do feminismo o poder punitivo, depois de sua originária e
brutal intervenção direta posta em prática na Inquisição, delegou a
subalternização da mulher ao controle patriarcal, que o opera por meio da
violência (socialmente autorizada) de gênero. Não necessita, portanto,
criminalizar diretamente as mulheres, mas servir de base à sociedade
hierarquizada e patriarcal para que esta se encarregue de punir os
comportamentos de gênero desviantes. Exerce, assim, um controle indireto,
que lhe permite figurar como totalmente alheio à inferiorização feminina. No
entanto, é o mesmo poder que permitiu a violência de gênero, como forma de
controle/repressão do corpo e da alma feminina.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, pode-se concluir que qualquer luta pela libertação da


opressão e discriminação a que as mulheres estão submetidas, em nossa
sociedade, deve exercer um combate aos três pilares que sustentam a
hierarquização da sociedade a partir de diferenças biológicas: patriarcado,
poder punitivo e saber dominante. Afinal, a violência de gênero é uma das
expressões socialmente legitimadas do exercício do controle punitivo
empreendido por aquele poder, a fim de manter sua hegemonia. Uma
tentativa de libertação que reforce qualquer um destes elementos, embora
possa parecer inicialmente favorável ou eficaz, apenas irá reforçar o poder de
dominação, ao qual a mulher e todos os grupos discriminados estiveram
submetidos ao longo da historia humana.
Configura-se assim uma grande armadilha na qual as feministas não
podem se deixar envolver na luta e no combate à violência de gênero e ao
feminicídio, qual seja, reforçar o poder punitivo e ajudar a desconstruir os
limites e garantias constitucionais a ele impostos. Esta armadilha tem o
grande objetivo de neutralizar o caráter profundamente transformador do
feminismo e das lutas antidiscriminatórias, uma vez que não sua edição não
tem maior eficácia na diminuição das mortes de mulheres. Ao buscar
combater a discriminação e a violência utilizando uma de suas vigas de
sustentação (poder punitivo), o discurso feminista, discurso
93
antidiscriminatório por excelência, corre o risco, de ver-se envolvido em um
contato não suficientemente sagaz ou hábil com o discurso legitimante do
poder punitivo, e acabar assim, sucumbindo aquele.

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95
A MAXIMIZAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO A PARTIR DO
ATUAL CONTROLE SOCIAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA E
TERAPÊUTICA COMO MÉTODOS ALTERNATIVOS A JUSTIÇA
RETRIBUTIVA NO BRASIL

Alexandre Marques Silveira1


Felipe da Veiga Dias2

1. INTRODUÇÃO

Com atual quadro de maximização da intervenção penal e banalização


do poder punitivo no Brasil, é conveniente repensar sobre os objetivos dos
institutos jurídicos no país. O Brasil passa por um momento de grande
exteriorização de criminalidades, desigualdades, transgressões e métodos
que já são antiquados para as demandas do atual modelo social.
O atual sistema punitivo tem se tornado apenas uma máquina de
privações, perdendo seus demais propósitos, reforçando a segregação, não
evitando a reincidência, não alcançando maior efetividade no combate da
criminalidade. O presente controle social tem se resumido apenas em
exercer a jurisdição de uma forma seletiva e repressiva, levando em
consideração apenas as influências e opiniões de um controle social informal
e suas instituições que apelam por um sistema retributivo vingativo.
Dessa forma, tem-se como decorrência o aumento da criminalidade a
propagação de pânico moral e a sensação de insegurança, pois se esta
retribuindo violência com mais violência, deixando de primar pela redução
dos danos sociais. Nesse sentido, encontra-se em um contexto em que se
torna pertinente um novo modelo de justiça criminal no Brasil, juntamente
com exercício da pensamento crítico (abraçando as contribuições da
criminologia neste mesmo sentido), para que se possa analisar as
complexidades específicas de cada caso.

1 Graduado em Direito pela Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Pós-graduando


em Direito Penal – Complexo Educacional Damásio de Jesus. Integrante da Cátedra de
Direitos Humanos (FAMES). alexandremarquessilveira@gmail.com.
2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com período de

Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor da Faculdade


Metodista de Santa Maria (FAMES). Coordenador da Cátedra de Direitos Humanos (FAMES).
felipevdias@gmail.com.
96
Portanto, o presente trabalho tem como objetivo analisar as condições
do atual sistema punitivo brasileiro bem como elucidar a possibilidade de
implementação e ampliação do exercido dos métodos da justiça restaurativa
em todo ordenamento jurídico brasileiro. Deste modo, o estudo almeja
demonstrar a viabilidade de uma nova forma de solução de conflitos
decorrentes de delitos, bem como busca uma maneira mais humana e efetiva
ao combate das desigualdades sociais.
Para isto, o método de abordagem que servirá de referência para
análise das ideias, informações e resultados desta pesquisa é o método
dedutivo que parte de observações gerais para chegar a um objetivo de
pesquisa específico. Quanto ao método de procedimento este será o
monográfico, de modo que serão usados vários doutrinadores para que haja
embasamento para o tema defendido no trabalho, ofertando a análise de um
elemento pontual. Sendoque a técnica de pesquisa consistirá na investigação
de documentação indireta através de pesquisa bibliográfica com exame de
fontes normativas, doutrinárias e pesquisas empíricas de maneira a
examinar as informações já demonstradas em outros documentos e
aprofundar a referida discussão.

2.CONTROLE SOCIAL E A SUA INFLUÊNCIA NO ATUAL SISTEMA


PUNITIVO

Devido ao processo histórico nacional, no sentido do desenvolvimento


jurídico-social, a dogmática jurídico penal encontra-se em grande
defasagem, visto que a sociedade atual possui novas necessidades
econômicas, educacionais e ainda padece de desigualdades sociais, raciais e
um meio de controle social com tendência incriminadora de grupos mais
vulneráveis(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2010, p. 58). Deste modo, Estado
Democrático de Direito passa por uma ampla inversão de garantias
fundamentais constitucionais, visto que torna-se evidentemente a diferença
entre as normativas positivadas e os objetivos punitivos não declarados.
Tal controle social tem como finalidade limitar as condutas dos
indivíduos em sociedade; ocorre que este poder limitador e coercitivo
97
estávinculado às classessociais dominantes que possuem grande poder
econômico,acesso aos meiostecnológicos da informação, comunicação,as
instituições morais e religiosas, uma vez que “as classes mais poderosas
utilizam esse mecanismo por meio do direito penal e de todo sistema
punitivo, para consolidar um sistema de controle e dominação estrutural”
(RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 98. Tradução nossa). Apresentando a
combinação entre os mecanismos de controle formal e informal nasociedade
contemporânea.
Neste sentido, o controle social informal,exerce uma influência
negativa sobre o meio dogmático penal e que por consequência atua sobre o
sistema punitivo tido como controle social formal, por derivar das normas
legais (SHECAIRA, 2004, p. 56). Em outras palavras as instituições
religiosas, morais, famílias ou mesmo os meios de comunicação, embora
ocupem espaço no controle social informal, acabam atualmente exercendo
forte influência na atuação do controle social formal aplicado pelo Estado.
Sob essa perspectiva,o delineamento do controle social formal exercido
por intermédio do direito penal pode ser definido como:

um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o


Estado mediante um determinado sistema normativo (leia-se:
mediante normas penais), castiga com sanções de particular
gravidade (penas ou outras consequências afins) as condutas
desviadas (crimes e contravenções) mais nocivas para a convivência,
visando a assegurar, dessa maneira, a necessária disciplina social
bem como a convivência harmônica dos membros do grupo. Esse
controle social é dinâmico porque está vinculado a cada momento
cultural da sociedade. Acompanha as alterações sociais (ou, pelo
menos, deveria acompanhá-las) (BIANCHINI; MOLINA; GOMES,
2009, p. 24).

Entretanto, o que se presencia no direito penal é um controle social


formal influenciável, cheio de rotulações e seletividades, sendo esta
seletividade “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que
incrimina ou permite a punição de certas pessoas” (ZAFFARONIet. al., 2003,
p. 43). O sistema punitivo por intermédio da atividade legislativa elenca
determinadas condutas rotulando-as como criminosas (criminalização
primária), esquecendo-se de primar anteriormente por um estudo
criminológico-social, onde deveria ser realizada uma análise crítica, com
98
ênfase na visão macrocriminológica e na própria política criminal brasileira.
Essa ópticadá espaço para apreciação não apenas dos delitos e seus efeitos,
mas igualmenteoferta a possibilidade da re-análise na sistemática de
punição de determinados interesses sociais (revisão de bens jurídicos).
Neste contexto, vale salientar a definição e a importância do estudo da
criminologia (MOLINA, 2000, p. 37), a qual deve hodiernamente ocupar um
papel diferenciado nas ciências criminais, de maneira a questionar e
desconstruir as falácias que sustentam uma aplicação penal desvinculada
da realidade ou dos próprios pressupostos constitucionais.
Isto posto, deve-se indagar a estrutura do sistema punitivo atual, bem
como o controle social formal que este vem exercendo sobre os
indivíduos.Uma vez que os PoderesLegislativo eJudiciário ainda se
encontram presos a uma ideia de pena retributiva,tendo como seu elemento
subjetivo a penacompreendida como vingança. Dessa forma, “a ideia de
vingança se pauta pela irracionalidade, o que não deixa de ser, também uma
característica humana, eis que é consenso ser o homem usualmente levado
ou influenciado pelos seus sentimentos”(JUNQUEIRA; VANZOLINI, 2014, p.
467).
Em tal visão da pena alguém deve sofrer para saciar uma necessidade
afetiva de vingança. Onde o mais importante é a certeza do sofrimento do
que a punição do verdadeiro culpado, não importa quem esta sofrendo desde
que alguém sofra.Neste seguimento, a vingança (pena retributiva), traz a
ideia de desproporcionalidade, de forma que não leva em consideração os
aspectos mais intrínsecos dos casos concretos e a relação ofensor e vítima.
Ainda sobre a ideia de vingança Dotti afirma que:

(...) é generalizada a opinião de que a pena deita raízes no instinto de


conservação individual movimentado pela vingança. Tal conclusão,
porém, é contestada diante da afirmação segundo a qual tanto a
vingança de sangue como a perda da paz não caracterizavam reações
singulares, mas a revolta coletiva (DOTTI, 1998, p. 31).

Desta forma, a pena retributiva acaba apenas punindo a criminalidade


(ou ao menos uma parte selecionada da mesma), mas não a evitando, visto
que tal pena traz as influências e os vícios dosmecanismos de controle social
99
informal. Ao passo que através do controle social informal que a mídia
atualmente exerce “a justiça telemidiatizada é composta de palavras e
discursos (moralistas, duros, messiânicos) que a população adora ouvir”
(GOMES; ALMEIDA, 2013, p.20.). Portanto, os temas relacionados à
criminalidade são vinculados através de um ponto de vista que na maioria
das vezes traz como prerrogativa a culpa e a condenação.
Assim, tornando pertinente ressaltar, que com a grande exteriorização
da ideia de pena retributiva, ouve uma maximização da intervenção penal
nos fatos ocorridos em sociedade, já que “a maximização operacional do
sistema penal se revela, num primeiro momento, no aumento de edição de
normas penais, fato que tem algumas consequências imediatas” (COPETTI,
2000, p. 73). Desta forma, havendo um descumprimento de matéria
constitucional em relação aos princípios da insignificância e da intervenção
mínimana intervenção/restrição de direitos fundamentais, gerando um
abuso nos propósitos iniciais da intervenção penal.
No mesmo ensejo, sobre os objetivos da intervenção penal, se apregoa
a atuação penal enquanto instrumento final na cadeia jurídica, o que
significa dizer que devem ser exauridas as alternativas civis, administrativas
ou quaisquer outros meios disponíveis ao Direito, comoa “justiça
comunitária, a conciliação judicial e extrajudicial, os juizados especiais, e
aJustiça Restaurativa”(SANTOS, 2007. p. 58.), como modelos de inovações
institucionais. Isso enaltece o caráter subsidiário do sistema penal na
proteção dos bens jurídicos mais relevantes de modo que tal nível de poder
não pode ficar a mercê da mera influência midiática ou dos desejos
sanguinários de vingança.
Nesse prisma,a tutela jurídico-penal não se constituirá com
legitimidade se não for condizente com direitos e princípios fundamentais
constitucionais.Visto que a Constituição Federal tem a função de delinear as
bases de intervençãodos ramos do direito, bem como atuar diretamente
sobre a liberdade de legislar, aplicando aqueles princípios destinados a
fornecer garantias aos cidadãos, aos quais estão vinculados os Poderes
estatais(em especial na formatação das normas pelo Legislativo).
(CANOTILHO, 2002, p. 1151). Assim necessita-se do filtro constitucional,
100
verificando a transgressão de matérias fundamentais existentes no meio
jurídico-penal, tais como a maximização da intervenção penal e a ideia de
pena retributiva.
Ainda neste sentido, a pena retributiva oriunda da atual intervenção
penal, impede qualquer forma de diálogo e entendimento, de modo que a
visão restaurativa, terapêutica, visa exatamente à abertura de um diálogo e a
compreensão (reconhecimento do outro), superando a mera visão punitiva e
atualmente vingativa. Ademais, “as modificações introduzidas no sistema
penitenciário são insuficientes para atender a sua verdadeira finalidade,
qual seja, recuperar os delinquentes” (MUAKAD, 1998, p. 19).
Seguindo este raciocínio, nota-se que o atualcontrole social colabora
para um retrocesso egocêntrico de um Estado controlador, levando em
consideração queexiste a “pretensão e a soberba gerada pela crença
romântica de que o Direito Penal pode salvaguardar a humanidade de sua
destruição impedem o angustiante e doloroso processo de reconhecimento de
limites” (CARVALHO, 2004, p. 207). Uma vez que, se esta tão somente
retribuindo violência com mais violência, sem qualquer chance de uma
política mediadora, ressocializadorae restaurativa, já que a construção de
uma sociedade mais justa e menos conflituosa, jamais se concretizará se
forem utilizados os mesmos procedimentos punitivos perversos evingativos,
adotados até o presente momento.
Nesta conformidade, Andrade dispõe sobre as características e
objetivos centrais originários do controle social afirmando que:

uma característica do controle social formal é a de querer não


apenas a definição do objeto do controle, mas a justificação dos
meios empregados para fazê-lo, de modo que suas ações
(especialmente as coercitivas) devem receber uma fundamentação
racional, e esta constitui o seu marco de legitimação (ANDRADE,
2015, p. 178).

Portanto, seria iminente ressaltar que a atual ideia de sistema punitivo


e de pena retributiva, deve ser superada pelas esferas de controle da
sociedade (formal e informal), bem como devem ser restabelecidos os
parâmetros constitucionais definidos no Estado Democrático de Direito, ou

101
seja, um direito penal contido no uso da violência. Assim como devem ser
exploradas as novas perspectivas de solução de conflitos em substituição ao
modelo de pena retributiva, com concepções como a da justiça restaurativa,
para que haja um bom funcionamento do sistema jurídico, e adequada
proteção dos direitos básicos dos seres humanos na esfera penal.

3.A NECESSIDADE DE UMA JUSTIÇA PENAL RESTAURATIVA COMO


ALTERNATIVA AO ATUAL SISTEMA PUNITIVO

Com a latente falência do modelo punitivo no Brasil e o aumento


significativo da violência e criminalidade, urge a inserção de alternativas ao
pensamento fantasioso de incremento da máquina penal como solução aos
conflitos sociais no país. Vive-se em um momento de insegurança social e
jurídica, juntamentea frustração das respostas dogmaticamente construídas,
que padecem de uma intervenção penal seletiva repleta de desigualdades
(CANTERJI, 2008, p. 102), já que“a criminalidade é um ‘bem negativo’,
distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixadano
sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os
indivíduos” (BARATTA, 1997, p. 161).
Por conseguinte, os cidadãos excluídos do sistema de justiça formal,
acabam por fazer justiça com as próprias mãos, uma vez que, encontram-se
ligados ao propósito da vingança. Portanto, certifica-se da necessidade de
implementação de um sistema de justiça criminal complacente com a
realidade do país. Destarte questiona-se sobre a possibilidade de
implementaçãode modelos diferenciados no Brasil, como no caso da justiça
restaurativa, a qual traz uma lógicaalternativa e terapêuticaao atual sistema
punitivo, visando à inclusão social, bem como uma solução mais
humanizada para restaurar as mazelas deixadas pelo crime.
Nesse sentido, é pertinente a inserção de novos mecanismos e
iniciativas, que possibilitem a diminuição de prisões desnecessárias evitando
abusos e maus tratos, que irão auxiliar na efetivação do controle judicial
sobre o sistema prisional. Assim podendo começar com:

102
(...) uma criminologia que se proponha curiosa e compreensiva; uma
criminologia que não produza criminosos e criminalizações, mas sim
cognições desejantes de liberdade, que não apenas expliquem o
passado e seus atores, mas se projete para o futuro e seus sujeitos
possíveis (CHIES, 2008, p. 103).

Nessa lógica atentando para uma “ideia de uma justiça restaurativa


aplica-se a práticas de resolução de conflitosbaseadas em valores que
enfatizam a importância de encontrar soluções para ummais ativo
envolvimento das partes no processo”, tal concepção objetiva que as partes
consigam decidir “a melhor forma de abordar as consequências do delito,
bem como as suas repercussões futuras” (AZEVEDO, 2005b, p. 136).
Destarte, o modelo restaurativo “foca sua atenção no ato danoso e nos
prejuízos que resultaram dele, ao contrário do modelo criminal, então, a
orientação não é unidirecionada, mas envolve um olhar mais amplo”
(ROLIM, 2009, p. 241).Logode acordo com a resolução nº 12/2002 da ONU,
a justiça restaurativa constitui-se em um procedimento consensual e
voluntário entre vítima e infrator, e quando necessários com mais pessoas
da comunidade que tenham sido afetadas pelo crime. Desta forma,
juntamente com os mediadores também denominados facilitadores, busca-se
fornecer as ferramentas para suprir os traumas deixados pelo crime, através
do uso da transação, mediação, conciliação, audiências e processos
decisórios consensuais.Ainda procura restabelecer o diálogo e “faz com que
as partes assumam posição mais ativa na mediação e se expressem com
mais frequência do que o próprio mediador ou facilitador” (AZEVEDO,
2005a, p. 144).
Ademais, o enfoque de interação que a justiça restaurativa
proporciona, permite que as partes envolvidas se sintam mais
comprometidas com o processo, visto que osmecanismos
restaurativospremiam uma perspectiva maior dos interesses pessoais dos
envolvidos. Assim pode-se afirmar que“ambas as partes envolvidas na
experiência da mediação veem um tipo de ‘justiça’ em vez de passivamente
receber ‘justiça’”; isto revela que as duas partes acabam por se sentir “mais
responsáveis e abandonam os estereótipos tradicionais da sua forma de
pensar: ‘o delinquente intratável’ e a ‘vítima que se aproveita’ se convertem
103
em ‘mitos’ impraticáveis” (PETERS;AERTSEN, 1995, p. 140, tradução nossa).
Além disso, a abordagem mais informal do procedimento permite uma
maior tratativa do crime e suas consequências, visando à restituição,
reparação e também o pedido de desculpas.Dessa maneira, contrastando
com o perfil atual retributivo, que apenas centraliza-se no sujeito infrator, e
no ato punitivo. Uma vez que “o poder de punir do Estado fica organizado de
forma objetiva e silenciosa, tendo como objetivo fazer da pena um remédio
para o mal do indivíduo” (FOULCAUT, 1997, p. 171).
Todavia, na prática o que ocorre são procedimentos formais de grande
complexidade, os quais deixam as partes alienadas e isoladas em relação ao
processo, e ainda tem como resultado, penas cruéis e desumanas, com
quase nenhum meio de assistência psicológica ou terapêutica. Nesse
sentido, “o ambiente do cárcere deve ser evitado, sempre que possível, nos
casos em que a breve passagem do condenado pela prisão não enseje
qualquer trabalho de ressocialização” (GRECO, 2007, p. 529).
Consequentemente, o efeito do atual sistema punitivo é de frustação e
desgosto, onde não há uma real responsabilização, mas apenas um ato de
punição intimidatório, o qual impossibilita a reparação de traumas e
prejuízos. Em oposição, a base da justiça restaurativa é a correção desses
antigos paradigmas, e também “cria a obrigação de corrigir os erros. A
justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que
promovem reparação,reconciliação e segurança”(ZEHR, 2008,p. 171).
Contudo, no Brasil em específico no Rio Grande do Sul, verifica-se a
existência de aplicabilidade de alternativas ao atual perfil retributivo de
forma bastante ampla, a partir de um projeto de justiça terapêutica desde
2005 na cidade de Porto Alegre, o qual abrange vários elementos e medidas
que tem como objetivo aumentar as chances de infratores e usuários de
drogas se ressocializarem, oportunizando tratamento para que os mesmos
adquiram comportamentos socialmente adequados3. Estas medidas
terapêuticas poderão ser propostas pelo Ministério Público como

3 Associação de Justiça terapêutica “é um programa judicial de redução do dano social,


direcionado às pessoas que praticam pequenos delitos e ao mesmo tempo são usuários,
abusadores ou dependentes de drogas lícitas e/ou ilícitas”. Disponível em:<
http://www.anjt.org.,br/index.php?id=1> Acesso em: 20 de Ago de 2015.
104
circunstância para transação penal e suspenção do processo ou da pena,
podendo “o MP propor pena restritiva de direitos que, de uma forma ou de
outra, inclua a participação em cursos ou seminários sobre drogas – além da
suautilização no contexto do Estatuto da Criança e do Adolescente, em casos
de adolescentesusuários de drogas” (ACHUTTI, 2012, p.13).
Ainda conforme os instrumentos do projeto de justiça terapêutica, a
aplicação da proposta é cabível em casos de contravenções penais, crimes
contra a pessoa como aborto, lesões corporais leves envolvendo relações
domésticas ou familiares e de vizinhança. Também em crimes contra o
patrimônio como furto, roubo, dano, apropriação indébita, estelionato e
receptação entre outros. Ademais, conforme a Associação de Brasileira de
Justiça Terapêutica (ABJT, 2004) “a expressão Justiça Terapêutica
representa o trabalho dos operadores do direito e dos profissionais de saúde
que, de forma integrada, trabalham para oferecer uma perspectiva de vida e
de cidadania mais humana e justa aos infratores”.
Contudo, este projeto ainda enfrenta muitos óbices e resistência de
parte dos operadores da lei, sendo assim em decisões prolatadas pelos
Desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, as medidas
restaurativas têm sido bastante citadas, visto que, existem muitos recursos
contra progressão de regimes e concessão de outros benefícios aos
apenados, alegando que antes da concessão dos benefícios é necessário a
submissão dos apenados a exames psicológicos e psiquiátricos para
obtenção de algum direito previsto em lei. Dessa forma, no caso concreto os
Desembargadores têm decido que “não há impossibilidade de concessão do
benefício, pois nem o laudo é impeditivo. Ademais, o apenado não recebeu
qualquer espécie de tratamento ou orientação restaurativa” (BRASIL, 2014),
deixando claro que não se pode exigir a recuperação de uma pessoa que não
recebeu tratamento algum.
Portanto, fica claro que um tratamento restaurativo e terapêutico
aplicado durante o cárcere, também seria bastante eficaz viabilizando a
diminuição de reincidência em condutas infracionais e comportamentos
habituais do uso de drogas, bem como resultando em uma possível redução
da criminalidade. Ademais, ainda durante o lançamento do projeto de
105
audiência de custódia no Rio Grande do Sul o atual presidente do Supremo
Tribunal Federal o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que “é preciso
buscar novas formas de solução de controvérsias, como ocorre aqui de forma
pioneira” (BRASIL, 2015), fazendo referência às praticas de mediação,
conciliação e ampliação do exercício da justiça restaurativa que já tem vem
sendo colocada em pratica no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Seguindo este raciocínio, a justiça restaurativa viabiliza a manutenção
da paz social com dignidade, sendo capaz de complementar as necessidades
do atual sistema dogmático penal, buscando reduzir o impacto dos crimes
sobre os cidadãos.

A simples punição não considera os fatores emocionais e sociais, e


que é fundamental, para as pessoas afetadas pelo crime, restaurar o
trauma emocional – os sentimento e relacionamentos positivos, o que
pode ser alcançado através da justiça restaurativa, que objetiva mais
reduzir o impacto dos crimes sobre os cidadãos do que diminuir a
criminalidade(PINTO, 2005, p. 22).

Dessa maneira, a implementação da justiça restaurativa e terapêutica


em todo Brasil oferece grandes chances de redução da exclusão social e da
violência. Haja vista que o sistema penal contemporâneo estimula de forma
subjetiva a discriminação, violência e a desigualdade. Uma vez que fica claro
a diferenciação dos direitos dos “bons cidadãos” e os “maus cidadãos”
(ZAFFARONI, 2012. p. 309). Em contrapartida, cabe ressaltar que “a
igualdade é básica ou fundamental na democracia social. Sem ela, a
liberdade será uma quimera, a vida será um insulto e a isonomia, que é um
aspecto da igualdade, não deixará de ser puro artifício, pura verbalidade”
(COSTA, 1992, p. 124).
O processo restaurativo seria primordial, já que preza pela cooperação
dos envolvidos e a participação comunitária enaltecendo a interação
processual, bem como a proteçãodas necessidades e direitos das partes com
maior igualdade. Assim, esta técnica alternativa fortaleceria a aplicabilidade
de direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana, e ainda
estaria explorando a prática de democratização dos cidadãos envolvidos,
ajudando a “constituir sociedades civis mais fortes aumentando a
capacidade e o interesse dos cidadãos em participar de organizações sociais,
106
ao mesmo tempo que contribui para impedir que os conflitos se tornem
maiores”(OXHORN; SLAKMON, 2005, p 188).
Portanto, acredita-se que a expansão do sistema de justiça
restaurativa e das formas alternativas no Brasil seria um ótimo meio de
modificação ao atual modelo punitivo, uma vez que pretende agir e
solucionar diretamente as necessidades das partes, e também reafirmar as
responsabilidades do ofensor de um modo mais didático e terapêutico. Bem
como irá contribuir para evitar as muitas contrariedades e influências
errôneas exercidas pelo controle social informal sobre o sistema punitivo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido aos grandes obstáculos enfrentados pela justiça criminal


brasileira, o presente estudo buscou abordar os transtornos e empecilhos
derivados do controle social informal, como a pressão por punições exercida
sobre o sistema jurídico penal, que acaba gerando consequências negativas
na atuação penal brasileira. Atualmente são perceptíveis as anômalas
desigualdades sociais e as reiteradas violações de direitos e garantias dos
investigados, acusados, apenados e muitas vezes até mesmo de seus
familiares, uma vez que no contexto penitenciário, já se tornou prática
corriqueira o desrespeito às garantias individuais e fundamentais.
Em vista disso, existe um conjunto de antagonismos a Constituição
Federal, nesse sentido, verificando-se fragmentações aos princípios e normas
fundamentais. Logo, a pena acaba por transcender e transbordar a pessoa
do apenado, já que as mazelas do cárcere e do crime também afetam a
vítima, a qual em geral encontra-se completamente sem proteção, amparo
psicológico social, bem como sem compreender seus próprios direitos e o que
esta ocorrendo no processo, ficando alienada.
Em suma, questionasse sobre o fundamento da atual maximização da
intervenção penal e seu sistema punitivo, pois é explicito a grande
primordialidade que é dada a pena retributiva com caráter de vingança pelo
atual meio de controle social. Nesse sentido, seria edificante a busca por
novos meios que auxiliem no combate as desigualdades, a falta de
107
consideração com ambas às partes, a estigmatização com foco somente
sobre o infrator com a finalidade de intimidar e punir. Deixando de primar
pelos interesses dos envolvidos e da sociedade de um modo geral, no que
concerne o combate efetivo da criminalidade, e ainda realizar o
restabelecimento das partes com as garantias necessárias, fazendo com que
a justiça se faça presente em todos os momentos da vida social.
Assim, devendo-se perfazer e esgotar todos os meios cabíveis antes de
chegar à intervenção penal, que para muitos é a solução para todos os
problemas. Dessa forma deve se levar em consideração os novos mecanismos
de administração de conflitos, com o exercício e implementação de uma
justiça terapêutica e restaurativa. A justiça restaurativa traz uma
abordagem com foco na relação entre as partes, possibilitando fazer uma
análise criminológica capaz de esmiuçar a complexidade de cada caso
concreto, trazendo a faculdade de refletir além da justiça retributiva, com o
auxilio dos profissionais da rede pública de saúde.
Contudo, conclui-se que é evidente que o modelo restaurativo e
terapêutico é perfeitamente compatível com a jurisdição brasileira, visto que,
conforme já demonstrado existem projetos e aplicação de métodos
restaurativos no Brasil, restando assim à regularização, juntamente a
edificação deste instituto com as estruturas legais já existentes no
ordenamento jurídico, para que assim exista uma efetiva democratização na
administração de conflitos. Igualmente prima-se por uma definitiva aceitação
do método pelos profissionais do direito, despertando o interesse social de
participação na diminuição das desigualdades sociais, bem como colaborar
para responsabilização espontânea do infrator, reparação de traumas e
prejuízos emocionais facilitando a restauração e inclusão de ambas as
partes, afastando da visão retributiva de vingança e aproximando-se de um
viés mais humano e social.

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111
A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA DE TROCA AUTOMÁTICA DE
INFORMAÇÕES DOS PARAÍSOS FISCAIS RELACIONADO AO TRÁFICO
DE DROGAS E O ACESSO ÀS NECESSIDADES BÁSICAS DO CIDADÃO

Guilherme Augusto Souza Godoy1

1. INTRODUÇÃO

No livro ‘Infrações Econômicas e Financeiras’, José Manuel Pires Leal,


no artigo ‘O tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, e seus
proventos’, menciona as palavras de Zaluar (1994 e 2004) e Soares (2000),
que dizem que “a pobreza e a desigualdade social, são fatores que em
determinadas comunidades, com limitadas oportunidades legítimas, tendem
a facilitar o surgimento de organizações criminosas e a consolidação da
atividade do tráfico de drogas.” (LEAL, 2013)
Os autores inserem um contraponto proferindo que

a pobreza e a desigualdade social são variáveis necessárias para


compreender as causas e a origem de grupos criminosos que atuam
com o tráfico de drogas, em particular ao nível local (revenda e venda
direta ao consumidor) as mesmas não se revelam suficientes, em
particular quando pretende-se explicar as causas do tráfico
transcontinental de drogas. (LEAL, 2013)

Além da desigualdade social estar atrelada ao sistema onde as classes


mais desfavorecidas, nomeadamente trabalhadores regulares,
consequentemente tem impostos descontados de seus rendimentos,
enquanto o capital fruto de atividades ilícitas passam pelo processo de
lavagem de dinheiro e muitos deles são investidos nos paraísos fiscais, ou
seja, não gerando impostos ao país de origem, logo, contribuindo para um
maior poder a este pólo da sociedade, mantendo em contraste nítido essa
desigualdade que poderia ser diminuída ao haver maior transparência nas
offshores.
Deixa de gerar renda para o Estado por dois lados, o imposto da venda

1 Doutorando e Mestrando em Criminologia pela Universidade do Porto – Portugal,


Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Federal do Mato Grosso
– Brasil, Especialista em Direito Público pelo Instituto Cuiabano de Educação – MT – Brasil
e Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá – MT – Brasil.
112
da droga, que os pequenos traficantes não pagam, em razão da venda ser
uma atividade ilegal, portanto, não regulamentada, além do dinheiro dos
grandes traficantes que detém grandes fortunas adquiridas de forma ilícita e
saem do Estado através do processo de lavagem de dinheiro, ou seja, é um
capital que fica fora de circulação, pois é muitas vezes investido em bancos
estrangeiros, através do processo explicado no decorrer deste trabalho.
Deixando de gerar essa renda, o Estado deixa de ter um retorno de
capital, em forma de tributos, que seriam dedicados parcialmente à
manutenção dos serviços básicos oferecidos à sociedade, quais sejam, a
saúde, educação e segurança.
O rastro do dinheiro ou paper trail é uma importante ferramenta de
investigação realizada pela inteligência da polícia, que vem descobrindo
ilícitas proveniências de boa parte do dinheiro investido em off-shore, após
passar pelo processo de branqueamento, tão elevados proventos pressupõem
que se questione acerca do percurso que os capitais gerados pela droga
tendem a percorrer.

Esta dimensão – fluxos econômicos e financeiros gerados pelo lucro


elevadíssimo produzido pelo tráfico de drogas – constitui a dimensão
menos visível do fenômeno do tráfico, todavia constitui-se o objeto
central do móbil de quem se envolve nesse fenômeno criminal.
Faz-se referência ao branqueamento de capitais, caracterizado pela
transferência e conversão de valores provenientes da atividade
delituosa. Segundo os especialistas, o processo de branqueamento de
capitais é composto por três fases: a colocação dos capitais, a sua
circulação e consequentemente, enquanto objeto final, a sua
integração no sistema legítimo. (LEAL, 2013)

Quanto aos riscos inerentes a cada fase do branqueamento o autor,


cita o posicionamento de Susana Rodrigues, vejamos:

Susana Rodrigues (2010: 23), refere que, no que respeita aos riscos
inerentes às várias fases de branqueamento, a primeira fase ‘é a de
maior risco na medida em que é aquela na qual é mais possível
detectar a origem ilegal dos capitais’, a segunda constitui a fase
‘mais complexa e a mais internacional porquanto implica mais
operações financeiras e mais circulação dos capitais por diversas
instituições e países a fim de assegurar o encobrimento’ da sua
origem, sendo a terceira fase, ‘a mais confundida com o processo
legal já que os capitais ilícitos passam a aparentar ter sido obtidos
legalmente’.
As autoridades têm detectado, ainda antes da primeira fase do

113
processo de branqueamento, operações de transporte de elevadas
somas em dinheiro com destino ao local/país onde as organizações
se encontram sedeadas, ou onde os seus líderes se encontram a
residir, ou ainda para o país onde se processará o início da fase de
colocação desses capitais no sistema legítimo.(LEAL, 2013)

Nessa abordagem o autor conclui que a lavagem de dinheiro, em vários


casos tem sua fase final com o investimento do montante em offshores.

Na grande maioria dos casos, a investigação criminal consegue


identificar contas bancárias e respectivos movimentos estabelecidos
entre contas sediadas em diversas entidades bancárias localizadas
em vários países, algumas vezes com recursos a off-shores, assim
como a aplicação de avultadas somas de dinheiro na aquisição de
recursos para a prossecução da operação de tráfico (aquisição de
viaturas, embarcações, reparação de determinado meio de
transporte, pagamento de despesas várias com a operação de
transporte da droga, etc).
Definitivamente, seguir o caminho do dinheiro ou o rasto das lógicas
dos proveitos significa, previsivelmente, aproximarmo-nos dos
vetores centrais das organizações, pelos da acumulação econômica e
da tomada de decisão e como tal, uma oportunidade para alcançar o
cerne das organizações – a liderança e o lucro.(LEAL, 2013)

2. BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA DE TROCA AUTOMÁTICA DE


INFORMAÇÕES

A OCDE apresentou um projeto em 1998, para combater a


concorrência fiscal danosa, que aumentou a transparência e melhorou a
troca de informações entre as autoridades nacionais. No entanto, em 2001
esta iniciativa é interrompida com a perda de apoio dos Estados Unidos da
América.
Em 1989 surgiu um programa denominado Financial Action Task Force
– FATF, com dois objetivos, quais sejam, anti money laundering (AML) e
counter financing terrorism (CFT), abrangendo 180 jurisdições.
Os membros têm de incorporar as recomendações da FATF (normas,
sistema jurídico, sistema financeiro, cooperação internacional, trocas de
informação), bem como há avaliações periódicas e já se verificaram 3 rondas
de avaliações inter-pares.
Em 2003, na União Européia, foi criada a Diretiva “EU Saving Taxes
Directive” – EUSTD, sobre a tributação dos rendimentos da poupança sob a

114
forma de juros.
Tal diretiva foi transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 62/2005 de
11 de Março, em vigor desde Julho de 2005.
A diretiva foi alterada pela Diretiva 2004/66/EC de 26 abril de 2004 e
a decisão do conselho 2004/587/EC de 19 de Julho de 2004, em 13 de
novembro de 2008 foi adotada uma nova proposta de alteração.
Em julho de 2013, a Alemanha, França, Espanha, Itália e Reino
Unido, através de um Projeto Piloto, colocam em funcionamento o Sistema
Automático de Troca de Informações acerca de juros entre as jurisdições
aderentes acerca dos clientes que auferem rendimentos num Estado Membro
da União Européia, mas residem noutro. No entanto Áustria, Bélgica,
Luxemburgo e quase todos os paraísos fiscais dependentes da soberania dos
estados membros resolveram ficar de fora, adotando um sistema de
transição que não revela informações sobre os proprietários dos rendimentos
– taxa liberatória de tributação.
Tal Diretiva não se aplica a pessoas (incluindo cidadãos da UE) que
residam fora da União Européia.
Em 2011 foi criada a Diretiva 2011/16/EU, do conselho de 15 de
fevereiro de 2011, transposta para Portugal pelo Decreto-Lei n.º 61/2013 de
10 de maio, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade,
que veio aprofundar a obrigatoriedade de trocas de informações entre os
Estados Membros da União Européia, alargando a troca automática de
informações aos rendimentos de trabalho e de propriedade (imóveis).
Portugal assinou um novo acordo de troca automática de informações
que envolve paraísos fiscais – a partir de 2014, juntamente com 16 Estados-
Membros da União Europeia, Islândia, México, África do Sul e 12 jurisdições
de sigilo (ilhas na dependência da Coroa Britânica e territórios ultramarinos
do Reino Unido, Ilha de Man, Guerney, Jersey, Anguilha, Bermudas, Ilhas
Virgens Britanicas, Ilhas Caimão, Gibraltar, Montserrat, Ilhas Turks e
Caicos) e ainda o Liechtenstein.
Em 19 de Abril de 2009 os países G20 comprometem-se a aumentar a
troca de informações entre os paraísos fiscais e os outros países encorajando
a realização de Tax Information Exchange Agreements - TIEAs.
115
Em Setembro de 2009 o Fórum Global em Transparência e Trocas de
Informação para Efeitos Fiscais (Global Forum on Transparency and
Exchange of Information for Tax Purposes - “Global Forum”), que vinha a
trabalhar no tema desde 2000, por impulso do G20, torna-se uma
organização internacional em que os membros participam em pé de
igualdade. O “Global Forum” inclui 120 jurisdições, está mandatado para
assegurar que todas as jurisdições adiram ao mesmo nível acordado de
cooperação internacional em matérias fiscais definido pela OCDE em 2009:
Os membros devem realizar TIEAs segundo o standard da OCDE.
São cinco os requerimentos fundamentais: 1. Troca de informações
mediante pedido em que “haja evidência de que o pedido é relevante” para a
Administração e segundo o enquadramento legal do parceiro do tratado. –
Poder dos tribunais domésticos na consideração do que é relevante liquida
grande parte das trocas de informação; 2. Inexistência de restrições à troca
de informações por via de sigilo bancário ou devido a exigências fiscais de
interesse doméstico; 3. Disponibilidade de informação fiável e de poderes
para a obter; 4. Respeito pelos direitos dos contribuintes; 5. Estrita
confidencialidade na informação trocada.
O Fórum Global passa a fazer revisões para analisar a adaptação do
sistema jurídico e a troca de informações na prática.
Em junho de 2012 aconteceu a Convenção em Assistência Mútua
Administrativa em Matérias Fiscais (Convention on Mutual Administrative
Assistance in Tax Matters), onde 50 países já assinaram, mas não são muitas
as jurisdições sigilosas que aderiram à Convenção, Os EUA estão no sistema
de troca automática de informação desde julho de 2014, através da Foreign
Account Tax Compliance Act – FATCA, abrangendo os fluxos financeiros que
desenvolva dos EUA (por exemplo, de países onde há cidadãos dos EUA),
com o objetivo de combater a evasão fiscal de cidadãos americanos,
abrangendo os dados sobre informações pessoais e bancárias. Os países que
não assinarem verá seus fluxos financeiros com os EUA tributados com uma
taxa de retenção na fonte de 30%.
A OECD está desenvolvendo um modelo para estabelecer um padrão
global uniforme na implementação de um modelo de troca automática de
116
informações, com o objetivo de estabelecer uma plataforma multilateral para
troca efetiva padronizada de informações entre todas as jurisdições do
mundo.
Apesar destes esforços a situação está longe de estar resolvida: de
acordo com dados da Oxford Analytica – OXAM, dois terços do dinheiro
“ocultado” em paraísos fiscais estão relacionados com jurisdições da União
Europeia. Na reunião do Conselho Europeu de 22 de maio de 2013, dedicado
ao combate à fraude e evasão fiscal, foi referido: “(…) centros financeiros
offshore, com forte sigilo bancário, continuam a dominar o mercado
internacional de depósitos transfronteiriços.” (CRUZ, 2015)

3. CONSEQUÊNCIAS DAS INFRAÇÕES ECONÔMICAS E FINANCEIRAS


ENVOLVENDO O NARCOTRÁFICO E A RELAÇÃO COM OS PARAÍSOS
FISCAIS - Portugal, Espanha e demais membros da OCDE

No livro ‘How they got away with it’, RITA FARIA, JOSÉ CRUZ, ANDRÉ
LAMAS LEITE e PEDRO SOUSA, no artigo ‘Economic and Financial Criminality in
Portugal’, discorrem salientando que “as consequências diretas e indiretas
da criminalidade econômica e financeira associadas com a crise financeira
tem sido economicamente e socialmente prejudicial para Portugal.” (FARIA,
2013)

O aumento da dívida pública é estimada em torno de vários bilhões


de euros. Empresas portuguesas agora enfrentam custos mais altos
para empréstimos, o que reduz sua competitividade e pode levar a
falências e desemprego.
Portugal, atualmente está com a sua maior taxa de desemprego em
30 anos, também está passando por uma grande redução nos custos
de oportunidade resultantes do redirecionamento dos recursos
públicos longe de bens e serviços essenciais, como a saúde,
educação, o sistema judicial, e as agências de aplicação da lei
(tornando a aquisição e alocação de recursos adicionais para
combater o crime ainda mais problemático) (FARIA, 2013)

Com uma visão sobre a Espanha, MIGUEL ABEL SOUTO afirma que

o branqueamento de capitais constitui um ‘crime de globalização’,


cuja importância é fundamental hoje, devido à crise econômica que
estamos sofrendo, como as organizações criminosas, impulsionadas
117
principalmente pelo tráfico de drogas e caracterizadas pela crescente
natureza transnacional, que com suas atividades ilegais cada vez
enfraquecem mais a economia e influenciam no sistema financeiro,
finanças públicas ou serviços aduaneiros devido à sua
vulnerabilidade.
Ele afirma ainda que há uma ligação evidente entre drogas e lavagem
de dinheiro, como a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico
Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, foi o
primeiro documento internacional que forçou punição da lavagem de
dinheiro, formulando o protótipo de injusto que serviria de modelo
para muitas legislações de ‘privação do produto’ de narcotráfico.
Na Espanha a primeira punição de branqueamento em 1988 e 1992,
se limita aos bens provenientes do tráfico de drogas. Mas a partir do
Código Penal de 1995, quando se ampliou o rol de eventos previstos,
a pena aos lavadores de dinheiro derivado do narcotráfico se
agravou, modelo que foi seguido por alguns outros países, como
Costa Rica também localizada no meio das rotas droga. (SOUTO,
2014)

No entanto o autor afirma que não há qualificação especial na


legislação, para o branqueamento de capital, quando oriundo do tráfico de
drogas, vejamos:

Carece de tipificação criminal, o tipo qualificado de lavagem de


dinheiro procedente do narcotráfico, uma vez que não se pode
presumir que os montantes branqueados que se originam no tráfico
de drogas superam os derivados de outros crimes.
Além disso, se o Código Penal de 1995 procurou punir especialmente
a lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico, com uma
aplicação jurisprudencial decepcionante, apesar da extensão do rol
previsto em 1995 e 2003, continua a se concentrar quase
exclusivamente em tráfico de drogas, como mostra um estudo de 363
julgamentos entre 1995 e 2010, em que o narcotráfico foi parte do
crime precedente à lavagem de dinheiro, em 91% dos casos (337), a
perseguição não disminuiu, uma vez que a pesquisa sobre drogas
devido à comunicação de operações suspeitas pela Comisión de
Prevención de Blanqueo de Capitales e Infracciones Monetarias,
Servicio Ejecutivo – SEPBLAC, aumentaram de 21 em 2010 para 22
em 2011 e 48 em 2012, aos quais adicionou-se dois novos tipos
qualificados em 2010, resultando que ‘o âmbito de atuação do tipo
básico reduziu’ ‘consideravelmente em favor do agravamento’, de
modo que o primeiro quase nunca se aplicava, que transforma a
regra em ‘exceção’ mediante uma estranha técnica de formulação
normativa que diminuiu o uso do tipo básico. (SOUTO, 2014)

Com a visão exposta sobre Portugal e Espanha, verificamos que a crise


existente atualmente nesses países, tem relação direta com as infrações
econômicas e financeiras, incluindo com destaque o branqueamento de
capital, onde tem grande participação o capital oriundo do tráfico de drogas,

118
que acaba por ser investido em paraísos fiscais, ou seja, além de ser oriundo
de uma prática ilegal, ainda é investido em bancos de outros países, não
gerando impostos, funcionando como uma economia paralela dentro dos
países, contribuindo para a crise.
Em 2009, a OCDE fez um balanço, a respeito do branqueamento de
capital nos seus países membros, ilustrando o processo de branqueamento
conforme vemos a seguir:

(OECD, 2009)

Notavelmente, uma das origens do dinheiro é o narcotráfico, seguindo


o passo da localização, com o objetivo de depositar produtos do crime no
sistema financeiro, com a troca de moeda e de denominação, transporte e
depósito de dinheiro, depois é feita a estratificação, com o objetivo de
dissimular a origem criminosa dos recursos, através de transferências
bancárias, saques em dinheiro, depósito de dinheiro em outras contas
bancárias, dividir e mesclar entre contas bancárias, já na justificação tem o
objetivo de criar uma aparente origem legal para os produtos do crime,
através de criação de empréstimos fictícios, volume de negócios/vendas,
ganho de capital, ações, contratos, demonstrações financeiras, posse
dissimulada de bens, fundos criminais usados nas operações de terceiros,
finalmente a etapa do investimento, com objetivo de usar produtos do crime
em benefícios próprios, para obtenção de dinheiro na mão, consumo e

119
investimentos.
Na fase da estratificação o dinheiro pode ser transferido e dividido com
freqüência entre contas bancárias, países, pessoas físicas e/ou jurídicas. O
dinheiro também pode ser retirado em dinheiro e depositado em contas
bancárias com outros bancos. É comum o uso de contas bancárias em
países com leis rigorosas de sigilo bancário e de nomear sociedades off-shore
como os titulares de contas bancárias.
Vejamos uma demonstração mais específica:

(OECD, 2009)

No caso supra, o criminoso quer lavar uma renda ilícita, que é


depositada em uma conta bancária offshore controlada por empresa offshore
"A", que é de propriedade do criminoso. O criminoso quer ter estes fundos
disponíveis para ele em seu país de origem. Os fundos são seguidamente
ligados a uma conta bancária doméstica pela empresa "A" para a compra de
ações da empresa "B", que também é de propriedade do criminoso. O valor é
colocado sobre as ações da empresa "B". A empresa "B" tem agora o dinheiro
em sua conta disponível para o criminoso. Estes fundos estão agora lavados
e podem ser integrados.

120
4. TROCA AUTOMÁTICA DE INFORMAÇÕES NO CONTINENTE
AMERICANO

A demora do Brasil em ratificar uma convenção internacional que


permitirá obter informações e taxar dinheiro de brasileiros escondido em
paraísos fiscais é qualificada como ‘incompreensível’ pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.

O Brasil assinou em novembro de 2011 a Convenção de Assistência


Mútua em Matéria Tributária, da OCDE. Mas a iniciativa ainda não
foi remetida para apreciação do Congresso Nacional – etapa
necessária para a Receita Federal acionar a troca automática de
informações com fiscos de outros países.
A falta de ratificação ‘impede o Brasil de ter informações de paraísos
fiscais e o país perde recursos’, acrescentou. ‘Sem as informações,
não dá para cobrar taxa sobre brasileiros que esconderam seu
dinheiro ilegalmente em outros países.’(MOREIRA, 2015)

No Brasil o narcotráfico tem muita força e tem relação com o


branqueamento de capital e conseqüente investimento nos paraísos fiscais,
como demonstrado no esquema gráfico apresentado no item anterior,
vejamos no próximo item alguns fatores que demonstram, de certa maneira,
essa relação em cada fase do processo, conforme ilustrou-se acima.
Importante destacar um pronunciamento da presidente da Argentina
CRISTINA KIRCHNER na VII Cúpula das Américas, que destacou que

Deberían abordar fundamentalmente los países que más consumen,


el nudo de la cuestión del narcotráfico, el financiamiento. En dónde
se lava el dinero del narcotráfico? En los bancos de los países que
producen? O en los bancos de los países desarrollados? No seamos
cínicos. (KIRCHNER, 2015)

A presidente aborda justamente a questão do capital branqueado,


oriundo do tráfico de drogas, investido em paraísos fiscais, fazendo uma
crítica ao fato.

121
5. ESTUDOS QUE DEMONSTRAM O CAMINHO DO DINHEIRO ORIUNDO
DO NARCOTRÁFICO

Não é uma tarefa fácil, rastrear a origem ilícita do dinheiro que tem
indícios de que seja fruto de branqueamento de capital, quanto menos
especificar tal ilicitude, nomeadamente afirmando que a origem foi do
narcotráfico.
Alguns resultados já concluídos foram frutos do árduo trabalho do
setor de inteligência da polícia, identificando o rastro do dinheiro.
No entanto, como o caminho até o investimento nos bancos em
paraísos fiscais é muito comprido, nem sempre consegue-se rastrear até o
final do percurso trilhado.
Interessante destacar um estudo realizado pelo Departamento de
Roubos da polícia de Miami, “em meados da década de 80, que indica que de
100 notas de um dólar analisados, 99 tinham rastros de cocaína, tal estudo
foi feito justamente por ser conhecida tal região, no Estado da Flórida, pela
lavagem de dinheiro, assim como em outros estados norte-americanos”
(AGUILERA, 2015)
Outro caso importante que envolve dinheiro oriundo do narcotráfico,
passando pelo processo de branqueamento, foi denominado de ‘the bicycle
club’, que como mencionado no artigo de onde se extraiu,

é um exemplo de um esquema de lavagem de dinheiro, que envolveu


um traficante de maconha chamado Ben Kramer, que transferiu
seus rendimentos de drogas através de um banco em Liechtenstein
para outra instituição offshore e, eventualmente, para algo chamado
de Parceria LCP (LCP), que, juntamente com outra empresa
estabelecida na Califórnia, passando por um clube de jogo conhecido
como o Bicycle Club. Este clube foi usado para lavagem de dinheiro e
acabou por ser apreendido pelas autoridades, contudo não antes que
cerca de 10 milhões de dólares de receita de tráfico de maconha
tinha sido lavado através da LCP. (WILLIAMS, 2015)

Na investigação supra verificou-se que conseguiu ser rastreado o


caminho do capital oriundo do tráfico de drogas, conseguindo-se identificar
que tal dinheiro fora investido em offshore, tal trabalho comprova o caminho
completo identificado pela ilustração supraindicada, oriunda do sítio

122
eletrônico da OCDE.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política de troca automática de informações com incentivo num


aspecto global, está engajada e em crescimento por escala, ou seja, cada
passo é dado no ritmo necessário para gradualmente se aproximar do
objetivo final, qual seja um maior número de países adeptos, causando
maior transparência entre as informações fiscais entre as nações.
Quanto às informações a serem engajadas a esse aspecto fiscal,
nomeadamente fala-se sobre o narcotráfico e seu processo de
branqueamento, até atingir o investimento em paraísos fiscais, escolheu-se
abordar essa vertente por acreditar-se que talvez seja uma das mais
importantes dentre as outras origens ilícitas que objetivam tais
investimentos.
No Brasil, como no mundo todo, o consumo ininterrupto e crescente
das mais diversas drogas, dá muita força ao narcotráfico, no entanto, várias
nações vem alterando suas legislações e repensando a política de drogas
referente às drogas leves, pensando nas possibilidades de descriminalização,
despenalização ou legalização, pensando no uso, consumo e cultivo.
Certamente a cannabis tem preferência nesse processo, por ser uma droga
que muitos estudos demonstram que tem menos efeitos colaterais, mais
usuários e geralmente com uma composição mais natural.
Importante introduzir esse enredo, sem fugir do assunto do presente
trabalho, que envolve o cenário do white collar crime, para ressaltar a
importância do atual contexto complexo da influência dos estupefacientes
com a crise de alguns países, a desigualdade social e a desestruturação das
necessidades básicas que o Estado disponibiliza à sociedade: saúde,
educação e segurança.

REFERÊNCIAS
AGUILERA, Alejandro L. Perdomo. Paraísos fiscais, lavagem de dinheiro e
drogas no “novo mundo” da América. Carta Maior. Disponível em
123
<http://www.cartamaior.com.br> . Acesso em 12.jan.2015.

LEAL, José Manuel Pires. O tráfico de estupefacientes e de substâncias


psicotrópicas, e seus proventos. Infrações Econômicas e Financeiras.
Estudos de Criminologia e Direito. José Neves Cruz. Carla Cardoso. André
Lamas Leite. Rita Faria. Coimbra Editora. 2013

FARIA, Rita. José Cruz. André Lamas Leite. Pedro Sousa. Economic and
Financial Criminality in Portugal. How they got away with it. White collar
criminals and the financial meltdown. Susan Will. Stephen Handelman.
David C. Brotherton. Columbia University Press. New York: 2013.

CRUZ, José. (2015). Jurisdições de Sigilo [Dispositivo de sala de aula].


Temas Especiais II. Mestrado em Criminologia, Universidade do Porto, Porto,
Portugal.

KIRCHNER, Cristina Fernandez de. (2015, Abril 11). La Presidenta Cristina


Kirchner en la VII Cumbre de las Américas: "Deberían abordar
fundamentalmente los países que más consumen, el nudo de la cuestión del
narcotráfico, el financiamiento. En dónde se lava el dinero del narcotráfico?
En los bancos de los países que producen? O en los bancos de los países
desarrollados? No seamos cínicos". [Facebook status update]. Disponível em
<https://www.facebook.com/video.php?v=933707646693771>. Acesso em
14.abr.2015.

MOREIRA, Assis. OCDE cobra país sobre convenção contra evasão fiscal.
Valor Econômico. Disponível em <http://www.fazenda.gov.br>. Acesso em
17.jan.2015.

OECD (2009). Money Laundering Awareness Handbook for Tax


Examiners and Tax Auditors. Disponível em <http://www.oecd.org>.
Acesso em 17.jan.2015.

SOUTO, Miguel Abel. Política criminal sobre drogas en la era global y


blanqueo de dinero. Revista cuatrimestral europea sobre prevención y
represión del blanqueo de dinero. 2/2014. Academia Edizione e
Formazione. Milano, Itália.

WILLIAMS, Phil. Money Laundering. IASOC Magazine, Vol. 10, No. 4,


Summer 1997. Transnational Institute. Disponível em
<http://www.tni.org>. Acesso em 10.jan.2015.

124
A CONSTITUIÇÃO DE UM CÓDIGO PENAL ALICERÇADO NO ESTADO DE
EXCEÇÃO DE “SALÒ OU OS 120 DIAS DE SODOMA” E A REPERCUSSÃO
NO HOMO SACER

Laura Mallmann Marcht1

1. INTRODUÇÃO

Ao analisar o filme “Salò: 120 dias de Sodoma” (1975), fidedigno à obra


de Marquês de Sade, “Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem”,
nota-se que Pier Paolo Pasolini, diretor do filme em questão, não mede
limites ao apresentar cenas de violência nunca antes vistas na história do
cinema. Em vida, o Marquês foi preso diversas vezes em razão do caráter
obsceno e promíscuo de suas obras, as quais eram por ele utilizadas para
desmascarar a sociedade burguesa da época.
A história é datada entre 1944 e 1945. Por 120 dias, o norte da Itália –
o “anti-inferno” – é ocupado por nazi-fascistas para cometer as mais diversas
atrocidades. Quatro deles formam a “companhia”, composta pelo Duque
Blangis, Presidente Curval, Bispo (irmão do Duque) e o Magistrado Durcet
(que por seu relato, trabalhava no tribunal do júri). São homens da alta
sociedade que criam um código repleto de normas cruéis para que os jovens
satisfaçam suas libidos.
O longa-metragem representa uma estrutura de poder e remonta fortes
críticas ao totalitarismo, mais precisamente, o italiano. Para Pasolini, nada é
mais anárquico do que o poder, e este oprime. Não é por acaso que o filme
teve sua produção em 1975, a Itália ainda se mantinha extremamente
conservadora, com sentimentos fortes de nacionalismo, e as denúncias do
diretor italiano se mostram verdadeiramente revolucionárias. Denuncia
práticas que a sociedade aristocrática da época insiste em esconder, como
por exemplo, a sodomia, o estupro, a tortura, dentre outras práticas atrozes
e cruéis.
¹Aluna do Curso de Direito da UNIJUÍ, bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e
Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista” coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo
Copetti Neto, editora da Rede Garantismo Brasil, laura.marcht@hotmail.com.

125
Nesse estudo, será apresentado o supracitado código e como ele se
constitui, baseando-se no estado de exceção, bem como a coisificação do ser
humano, reduzido na sua condição de cidadão a mero homo sacer,
condicionado ao poder imensurável do soberano em questão, ou seja, da
companhia.

2. SALÒ: O ANTI-INFERNO NAZI-FASCISTA

Datada entre 1944 e 1945, Salò (salão de orgias) no norte da Itália, o


anti-inferno é ocupado durante 120 dias por nazi-fascistas que cometem as
mais diversas atrocidades. Não foi por acaso que Pasolini escolheu a Itália
para ser sede de sua forte crítica ao regime nazi-fascita, o diretor nasceu e
viveu numa “Itália que mudava do campo para as grandes cidades, que se
desenvolveu rapidamente assumindo valoresdistintos, e até contrários, às
suas antigas tradições, que sai da opressãofascista para um período
democrático bastante controverso” (BRITO, 2009, p. 4). Naquela época,

cada atrocidade foi cometida em nome da “humanidade” e da “justiça”.


Cada um dizia que queria libertar o homem (o “super-homem” criador
do mito democrático, ou libertar todos os homens da exploração do
capital e do Estado). Cada ideologia tinha sua ideia de homem e, na
medida em que a realizava, tudo estava justificado pela necessidade.
Daí nenhuma delas poder deter-se em obstáculos formais e se orientar
por seu próprio “direito natural”. (ZAFFARONI, 2002, p. 67).

Não se tem certeza sobre todos os crimes (não considerados como,


entretanto) cometidos pela força militar e policial à época da ditadura militar
alemã, por exemplo. Muitas das violações a direitos humanos se quer se terá
notícias, mas não é necessário, entretanto, muita reflexão para saber que
não foram poucas as práticas tortuosas.
Tudo isso se vem justificado pela falsa sensação de justiça transmitida
como, por exemplo, os alemães, justificando seus crimes em razão do
repúdio aos comunistas. Ainda pior, a falsa ideologia libertário-
revolucionária que assolou com qualquer proposta de direitos sociais já
introduzidos por Weimar, em 1919.
Dessa forma, Pasolini cria a “companhia” que se constitui pelo Duque
126
Blangis, Presidente Curval, Bispo e o Magistrado Durcet, homens da alta
sociedade que criam um código repleto de normas cruéis para que jovens
selecionados os satisfaçam. Logo de início, são selecionados 18 jovens sadios
e perfeitos.
Dentre esses, um é morto ao tentar fugir e outra menina é assassinada
por cometer prática religiosa. “Fracas criaturas acorrentadas, designadas ao
nosso prazer, espero que não tenham a ilusão de encontrar aqui a ridícula
liberdade concedida pelo mundo exterior”, dita o Duque, e continua: “Vocês
estão fora dos limites de qualquer legalidade. Ninguém no planeta sabe que
estão aqui. Para o mundo, vocês já estão mortos.”.
Por datar de um período totalitário, fora dos limites da legalidade e
destituído de normas constitucionalmente protetivas ao cidadão, típico do
estado de exceção, os italianos ditam regras, facilitadas pelo Estado, que se
encontra excepcionado. Os sujeitos aprisionados são destituídos de seus
diretos para se reduzirem à condição de mero objeto, a coisificação presente
na película é típica daqueles vitimados por regimes arianos, comum à época
datada.
Torturados pela fome, as vítimas são presas a coleiras e imploram por
comida como animais. Enquanto isso, vários são chicoteados ou torturados
de outra forma, a exemplo da jovem alimentada com pregos. Os italianos,
excitados por suas ações, dizem que são os únicos anarquistas, uma vez que
tomaram o poder do Estado e “na verdade, a única anarquia é aquela do
poder” cita o Duque. Portanto, nesse cenário, a companhia é o sujeito estatal
dotado de soberania, aquele que decide sobre o estado de exceção.
A obra se divide em círculos, os quais cada um detém uma
sistematização das vontades e dos desejos mais obscuros dos companheiros.
Cada círculo contém uma narradora, meretrizes experientes em
determinadas temáticas, com o objetivo de alimentar a imaginação dos
presentes no salão de orgias.
Primeiramente, no “círculo das manias”, a Senhora Vaccari conta as
diversas manias que encontrou em suas experiências com seus clientes (em
geral ricos e politicamente relevantes). O Magistrado cita que “não há mais
nada contagioso que o mal”, esperando que as vítimas se contagiassem com
127
as maliciosas narrações.
No denominado “círculo da merda”, a Senhora Maggi narra contos que
tem por base a coprofagia. O Presidente cita que seu maior sonho é
participar de um banquete com os excrementos das vítimas, exemplificando
que a libertinagem, em sentido estrito, consiste em ser carrasco e vítima.
Nesse instante, os jovens imploram em silêncio pela morte. A esperança da
concretização desse desejo é dada a um dos jovens, mas o mesmo é
impedido.
O Bispo ironiza: “Você deve ser estúpido para pensar que a morte viria
tão rapidamente. Não sabe que nossa intenção é matá-lo milhares de vezes?
Até o fim da eternidade, se a eternidade tiver fim.”. No “círculo de sangue”, a
Senhora Castelli conta histórias de mutilações e torturas. Não resta mais
nada aos indivíduos, já despidos de qualquer sensação de dignidade, a não
ser a morte, e nem esta é tranquila.
Os jovens insubordinados e até mesmo os subordinados foram
castigados com escalpelamentos, línguas e olhos arrancados, enforcamentos
e afins. Essas atrocidades apenas se mostraram possíveis devido ao estado
de exceção presente na película, que será objeto de estudo a seguir.

3. O ESTADO DE EXCEÇÃO CODIFICADO

“Estados de exceção surgem de períodos de crise política, são opostos


ao estado natural, o que significa dizer que é uma forma legal que não pode
ter forma legal” (AGAMBEN, 2004, p. 11-12). Dessa forma, pode-se dizer que
o estado de exceção nada mais é do que a suspensão da forma legal já
existente, do ordenamento jurídico vigente, ou seja, de determinada
Constituição. Situa-se num plano de indeterminação, entre o absolutismo e
a democracia, não sendo apenas de ordem jurídica ou extra jurídica, mas
uma indeterminação de ambas.
Nesse sentido, a teoria do estado de exceção analisa a conceituação de
necessidade, onde a necessidade não tem lei (necessitas legem non habet).
Esse estado de necessidade traduz um perigo atual e iminente de
determinado caso em particular que esteja ameaçando o ordenamento
128
jurídico vigente, este perigo é suspendido legalmente para dar lugar a uma
nova ordem jurídica, aparentemente “estável”. Essa necessidade é de caráter
subjetivo e tem por meta atingir um objetivo diverso do que a situação fática
da sociedade em questão.
De tradição democrático-revolucionária devido ao próprio movimento
constitucionalista, o estado de exceção suspende as liberdades individuais a
fim de que os governantes possam justificar suas ações, ou simplesmente
não dever explicações sobre elas uma vez que despidos de seus direitos, os
cidadãos (que nem recebem mais essa nomenclatura) não possuem direito
de oposição e nem força para tal.
Pela doutrina muito se é usada a expressão “plenos poderes”. “Trata-se
dos poderes dados ao Executivo, mais precisamente aos chefes desse poder,
de promulgar decretos com força-de-lei” (AGAMBEN, 2004, p. 17). Dessa
forma, o Parlamento não é mais soberano, se limitando apenas a ratificar os
decretos criados pelo Executivo, não exercendo sua função típica.
Ao notar que os poderes não estão bem delineados, a teoria do estado
de exceção justifica a discussão do exercício das atividades típicas de cada
poder, mais especificamente do Executivo, que acaba por legislar exatamente
sobre o que decide controlar, ou seja, as liberdades e direitos individuais. O
melhor exemplo dessa suspensão, foi o “Decreto para a proteção do povo e
do Estado”, impetrado pelo presidente Paul von Hindenburg, persuadido pelo
chanceler Adolf Hitler, em 28 de fevereiro de 1933.
O parlamento alemão na época fora incendiado e Hitler aproveitou a
oportunidade para decretar repúdio aos comunistas, retirando as sete seções
da Constituição de Weimar que defendiam as liberdades civis e individuais.
Concretiza-se assim, através da própria Constituição de Weimar, marco
essencial à evolução das Constituições sociais, o Terceiro Reich.
Schmitt, o primeiro a trabalhar com a teoria, em seus estudos já
explanava a ideia de uma “ditadura constitucional” em 1921. Logo, se o
estado de exceção é caracterizado por uma ausência, um vazio
constitucional, não há nada que impeça de que nesse vazio sejam inseridas
leis, ou até mesmo códigos, uma vez que até mesmo excepcionado, um
Estado pode ditar leis para reger a situação fática presente. O ordenamento
129
ainda existe, o que não mais existe são as normas que tratam daquilo que o
ameaça.
Deve-se isso a necessidade, que impõe a desconstituição de
determinada lei com o objetivo principal de proteger o ordenamento jurídico
vigente, mas será mesmo esse o objetivo? Não é possível que a exceção seja
apenas um meio mais sólido, para instaurar uma nova ordem jurídica? E
esta ordem, não seria viciada de ideias e concepções totalitárias e altamente
abolicionistas referente aos direitos de liberdade?
Em caso positivo, podemos afirmar que o estado de exceção se traduz
num descaminho à evolução do direito, um retrocesso das batalhas e lutas
pelas quais as primeiras Constituições foram conquistadas e elevadas do
mero plano político para se estabelecerem nos planos jurídico e sociológico
também.
A sociedade criada em Salò, é estruturada de acordo como qualquer
outra. Há um grupo detentor de poder (a companhia), que domina as
condutas de outro (os jovens) e esse controle se dá pela centralização ou
marginalização do poder. O direito penal tem por objeto, os códigos penais, e
estes servem como aporte ao controle social dos indivíduos. O código penal
criado na obra traduz essa necessidade, a necessidade de controlar as
condutas dos jovens, nesse sentido,

o fenômeno do controle social demonstra que uma sociedade é mais


ou menos autoritária ou mais ou menos democrática, segundo se
oriente em um ou outro sentido a totalidade do fenômeno e não
unicamente a parte do controle social institucionalizado ou explícito.
Assim, para avaliar o controle social em um determinado contexto, o
observador não deve deter-se no sistema penal, e menos ainda na
mera letra da lei penal, mas é mister analisar a estrutura familiar
(autoritária ou não), a educação (a escola, os métodos pedagógicos, o
controle ideológico dos textos, a universidade, a liberdade de cátedra
etc.), a medicina (a orientação “anestesiante” ou puramente
organicista ou mais antropológica de sua ideologia e prática) e muitos
outros aspectos que tornam complicadíssimo o tecido social.
(ZAFFARONI, 2002, p. 62).

O fenômeno do controle social presente na obra revela tendências


autoritárias, mesmo que o código instituído tenha sido criado por meio da
democracia entre os membros da companhia. A criminologia nesse aspecto é

130
ciência que estuda a conduta desses sujeitos, é a ciência do governo com
respeito ao fenômeno criminal e serve como crítica (ZAFFARONI, 2002, 132
p.). É a ciência, que ao selecionar os bens ou direitos que devem ser
tutelados, buscam maior segurança jurídica.
Nesse sentido, pode-se dizer que em Salò ou os 120 dias de Sodoma,
foi criado um código penal embasado no estado de exceção, onde a
companhia promulga as regras de ação e abstenção de seus brinquedos.
Para criá-lo, a companhia usou de sua política para delinear as atividades
pretendidas.
A segurança jurídica almejada nesse dispositivo busca garantir os
bens (os jovens) em sua totalidade (despidos de direitos), para que os
companheiros exercessem o direito fundamentado por eles com base no
estado de exceção. Esse código penal não é só possível, como necessário a
concretização dos objetivos elementares da companhia em relação a
necessidade que é encontrada na Itália, entre 1944 – 1945.

4 O CÓDIGO PENAL EM SALÒ E O CONSEQUENCIALISMO NO HOMO


SACER

A companhia institui então, para controlar de forma mais eficaz seus


objetos, uma espécie de código penal, com regras que obrigam, permitem e
proíbem. Aproximando-se através do direito positivo brasileiro, esse código
presente em Salòou os 120 dias de Sodoma poderia ser reproduzido da
seguinte forma:
O MAGISTRADO, usando da atribuição que a companhia lhe confere,
decreta a seguinte Lei:
PARTE GERAL
Título I
Da aplicação da Lei Penal
Art. 1º. Às 6h, em ponto, toda a companhia se reunirá na sala
de orgias, onde narradoras alternadas se sentarão para recitar uma
série de contos sobre um tema em particular.
Parágrafo único. A narração tem como objetivo acender a
imaginação e qualquer lascívia será permitida.
Art. 2º. Os membros da companhia podem interromper a
qualquer momento e quantas vezes quiserem.
Art. 3º. Após o jantar, os presentes passarão à celebração
daquelas que se chamam “orgias”, o salão e demais cômodos serão
131
adequadamente aquecidos.
Art. 4º. Todos os presentes, vestidos como devem, deitados no
chão e seguindo o exemplo dos animais, trocarão de posição, se
misturarão, se enroscarão, copularão de forma incestuosa,
adulterina e sodômica.
Título II
Dos crimes em espécie
Art. 5º. Homem que for pego em flagrante delito com uma
mulher:
Pena – Perda de um membro.
Art. 6º. Cometer atos religiosos, mesmo que levianamente:
Pena – Morte.
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 7º. As normas dispostas nesse código serão seguidas
cotidianamente.

Nesse sentido, podemos identificar dois polos: de um lado, a


companhia, detida de soberania e capaz de decidir sobre o estado de
exceção; e de outro, as vítimas, reduzidas a meros homines sacer, no limiar
entre a vida e a morte. O conceito de homo sacer se faz pertinente uma vez
que se encontra, assim como o estado de exceção, na esfera da
indeterminação, mas entre a sacralidade e a bestialidade do indivíduo. Cabe
analisar o direito penal do inimigo e o direito penal do cidadão, dois tipos de
planos ideais à nossa sociedade.
O primeiro trata do direito penal do inimigo, do sujeito indesejado – e
teoricamente – nocivo, aquele que por si só destrói seu elo jurídico por
cometer ato criminoso, romper com o contrato social, e apenas se dá de
forma coercitiva em relação ao inimigo. São os sujeitos que por estarem à
margem da sociedade, são penalizados para proteger aqueles que não
romperam com seu elo jurídico na sociedade.
O segundo trata do inverso, é aquele direito penal do cidadão detido de
direitos, o que contribui para que o inimigo não interfira em seus direitos e
na ordem social. O que se tem em comum nos dois planos, é a aplicação da
lei penal. Justifica-se dessa forma aquele que mata quem comete crime de
homicídio e por homicídio não responde.
Através da lei, o soberano pode decidir sobre seus súditos, pode incluir
através do estado excepcionado, a exclusão de qualquer sujeito que
desrespeitar a normatividade imposta, reduzindo este à vida humana nua e
matável:

132
Em realidade, vislumbra-se a degradação permanente dos direitos
fundamentais e a emergência do espectro do homo sacer, no qual a
vida humana aparece nua, submetida aos desígnios do poder
soberano, com seu proeminente poder de decidir em que momento a
vida deixa de ser politicamente relevante. Esse é o pano de fundo do
paradigma do “Direito Penal do Homo Sacer da Baixada” que se quer
desnudar. (CARVALHO, 2007, p. 93)

Logo,
o passo seguinte consiste na produção sistemática e insidiosa de
processos de vitimação, em que a suspensão de direitos obedece a
uma classificação biopolítica degradante e discriminatória. De um
lado, aqueles sujeitos plenamente morais de dignidade incorruptível –
nós –; de outro, os suspensos e degradados em sua qualidade moral
por seu caráter perigoso para a visão hegemônica da ordem social.
Estes últimos terminam por converterem-se em monstros. Com isso,
abre-se a possibilidade do extermínio total, justificado ética, política e
juridicamente. (CARVALHO, 2007, p. 104)

Não se sabe ao certo, porém, se as vítimas que foram selecionadas


foram jovens infratores ou se escolhidos à própria sorte, uma vez que até
mesmo as filhas dos integrantes da companhia compunham o salão. A
vitimação traz ao sujeito, não mais detentor de direitos, a sensação de
marginalização.
E mesmo que os sujeitos escolhidos fossem delinquentes, encarados
como inimigos da ordem social, seria justificada a violência empregada aos
jovens? Parece que não, a violência a que foram submetidos não é justificada
se quer pelas leis taliônicas, uma vez que não cometeram os mesmos crimes
para retribuir na mesma medida.
Trata-se apenas de violência, pura e simples. Violência presente nas
ditaduras, nas guerras, massacres, genocídios e afins, que se faz justificada
pela exceção ou até ocultadas, se desejável politicamente, como no caso do
holocausto. Exceção essa, que se faz presente até a contemporaneidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Salò retrata de forma crua os limites dos ser humano, até onde o
homem é capaz de chegar e o quanto se é possível suportar. A objetificação
do homem, a intolerância religiosa e as penas desmesuradas fazem parte
desse contexto em que o estado de exceção criado reproduz “a criação de um

133
espaço no qual a vida humana e a norma entram em um limiar de
indistinção: o ordenamento “normal” é suspenso de modo a permitir todo e
qualquer tipo de atrocidades.” (WERMUTH, 2014, p. 27).
Revolucionária, a película não deve ser interpretada como uma
apologia ao crime, mas ao contrário, Pasolini se mostra preocupado em
manter a atmosfera da obra inteiramente calma, através das músicas
tranquilas e ritmadas e deixa a violência institucionalizada para os recursos
visuais, não a fim de incitar o crime, mas de causar ânsia, repúdio, náuseas
para impactar o espectador a importar-se com o que provavelmente ocorreu
com várias camadas e grupos sociais e que esquecidos ou ocultados foram.
Mais do que uma mera crítica, a obra tem um caráter de denúncia.
Denúncia às práticas racistas, cruéis e injustificadas daqueles detentores de
poder. Ao aproximar essa denúncia aos dias atuais, não será difícil notar
que ainda existem muitas práticas desumanas em todos os âmbitos da
sociedade, desde a vida no trabalho ao cotidiano da violência doméstica. As
vítimas da companhia são reduzidas a meros homines sacer, destituídos de
seus direitos e principalmente de qualquer sensação de dignidade.
Ainda existem muitos homines sacer, aqueles que são destituídos de
seus direitos e obrigados a trabalhar em condições análogas de escravo,
aqueles que para não morrer de fome, furtam, roubam pães ou outros
mantimentos ínfimos e acabam em cárcere por muitos anos em uma
instituição penitenciária incapaz de suportá-los dignamente, ou ainda
aqueles que preferem estar presos para terem onde dormir em segurança,
dentre tantos outros.
Dessa forma fica clara a necessidade da fiscalização rigorosa dos
direitos humanos e fundamentais, uma vez que a falta de aplicação e
regulação desses pode causar danos jamais vistos pela sociedade – e
diversos desses nem chegam ao nosso conhecimento. O direito penal, com
ajuda da criminologia, deve cumprir com sua razão de ultima ratio.
Mostra-se necessário também uma melhor aplicabilidade à força
normativa do ordenamento jurídico, somente através de uma Constituição
política, jurídica e sociologicamente forte, se é possível impedir que práticas
absolutistas e totalitárias ocorram. Um Estado desregulado pode fazer tanto
134
mal quanto a companhia, instaurando um retrocesso ao direito que nem
sempre é capaz de ser superado, dessa forma:

Mostrar o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não


relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação
humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome "política".
A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo
direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder
constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz
simplesmente a poder de negociar com o direito. Ao contrário,
verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre
violência e direito. E somente a partir do espaço que assim se abre, é
que será possível colocar a questão a respeito de um eventual uso do
direito após a desativação do dispositivo que, no estado de exceção, o
ligava à vida. (AGAMBEN, 2004, p. 133)

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci Poletti. São


Paulo: Boitempo, 2004.

BRITO, Flávio Costa Pinto de. Salò - Ritos de controle e poder no último
filme de Pier Paolo Pasolini.Intercom, XXXII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, 2009. 13 p.

CARVALHO, Thiago Fabres de. O “Direito Penal do Inimigo” e o “Direito


Penal do Homo Sacer da Baixada”:Exclusão e Vitimação no Campo Penal
Brasileiro. Revista de Estudos Criminais, v. 25, 2007.85-120 p.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Produção da Vida Nua no Patamar


de (In)distinção entre Direito e Violência: a gramática dos imigrantes
como “sujeitos de risco” e a necessidade de arrostar a mixofobia por meio da
profanação em busca da comunidade que vem. Tese (Doutorado em Direito
Público) - Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2014.250 p.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito


Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4ª
ed. rev., 2002.890 p.

135
O COMBATE AO TERRORISMO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL: O
PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E DA ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS

Aline Michele Pedron Leves1


Pâmela Copetti Ghisleni2

1. INTRODUÇÃO

Os atos e atentados que a sociedade internacional tem acompanhado,


mormente a partir século XX, exigem profundas análises para que sejam
encontradas as vias de construção da paz e proteção aos direitos humanos
no combate ao terrorismo internacional. Atualmente, houve uma
multiplicação de conflitos não só internacionais, mas também internos,
gerando situações de violência inesperadas no âmbito mundial. Inúmeras
disputas religiosas se espalham por diversos cantos do globo e numerosos
crimes são cometidos em nome de Deus. Neste sentido, o fanatismo e o
terrorismo caminham, lado a lado, em ações que vitimam milhares de
pessoas.
Em vista disso, Norberto Bobbio (2003) afirma que se encontra em
evidência na comunidade internacional a existência de uma forma de
violência que embora seja mais limitada é bastante cruel, qual seja, o
terrorismo, a guerra dos fanáticos ou dos desesperados. A extensão desse
fenômeno para os mais diversos lugares do globo nos coloca diante de algo
novo, que pode ser traduzido pela não exclusividade do uso da força pública
dentro dos Estados singulares.
Pode-se afirmar que o terrorismo consiste na manifestação ulterior,
atual da guerra, adaptada aos novos tempos. Ou seja, é a forma pós-
moderna da guerra. No entanto, o problema é ainda mais complexo e precisa
ser analisado com cuidado. Esse fenômeno é, metaforicamente, a guerra pela
devastação material e pelo sofrimento humano que produz. É um dos tipos

¹ Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do


Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ e Bolsista PIBIC/CNPq do Grupo de Pesquisa:
Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade. E-mail: alineleves@hotmail.com;
2Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do

Sul – UNIJUÍ. E-mail: pcghisleni@gmail.com.


136
de guerra possíveis, uma vez que sempre reinou entre nós. Contudo, nas
palavras de Luigi Bonanate (2001), o terrorismo é a guerra de quem não
pode fazer guerra, isto é, de quem não pode sob pena de ser derrotado.
Tal fenômeno esteve associado à Revolução Francesa, no período
denominado “era do terror”, aos movimentos anarquistas de fins do século
XIX e início do século XX. A preocupação com o terrorismo internacional é,
todavia, algo peculiar do século XX. Independentemente da preocupação
política ou jurídica em relação ao fenômeno, o que se busca aqui é seu
entendimento teórico, relativamente aos aspectos históricos e conceituais,
bem como as possíveis formas de combatê-lo diante da atuação do Tribunal
Penal Internacional e da Organização das Nações Unidas.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE O TERRORISMO

Inúmeros fatos ocorridos ao longo da história poderiam ser atrelados


ao fenômeno terrorista e dependendo da forma como são analisados podem
ser valorados positiva ou negativamente. Nesse sentido, Leonardo Nemer
Caldeira Brant (2005) discorre sobre o fato de que Estados tendem a
qualificar um determinado comportamento ou ação como terrorista conforme
lhes convém. Por isso, essa tarefa de elencar determinados fatos históricos
como terroristas requer cuidado.
Parece evidente que o terrorismo ganhou maior atenção na aldeia
internacional a partir do início do novo milênio, sobretudo em virtude dos
ataques ocorridos em 2001, em Nova York e em 2004, em Madrid. Contudo,
o fenômeno tem referências históricas bastante antigas, que datam do 1º
século da Era Cristã, no Oriente Médio, mais especificamente na Palestina,
com a seita dos Sicarii-Zealots. Para Maria Sousa Galito (2007, p. 08), eram
“judeus extremistas separatistas, que impunham o terror para instigar à
mudança de comportamento na sociedade judaica de então, contra a
‘imoralidade’ dos que colaboravam com os invasores romanos”. Outra
manifestação terrorista ao longo da história pode ser encontrada no período
compreendido entre 1090 e 1272, com a seita ismaelita dos Hashashin. De
acordo com José Cretella Neto (2008), sob a liderança de Hasan-i-Sabbah, os
137
membros da seita de fundamentação religiosa efetuavam assassinatos
políticos contra dirigentes muçulmanos, mediante o emprego de armas
brancas.
É importante destacar que durante a Baixa Idade Média, na Europa
Ocidental, as guerras travadas tinham como característica o fato de que
implicavam na observância de determinados rituais, limitando seus efeitos
aos Estados e soberanos, de tal maneira que a população civil era raramente
atingida (CRETELLA NETO, 2008).
Foi com a Reforma e a Contrarreforma, no século XVI, que a guerra
ganhou contornos diferentes, pois “as populações civis se tornaram alvos
das hostilidades, freqüentes [sic] entre católicos e protestantes, que se
sucediam na Europa” (CRETELLA NETO, 2008, p. 665). Nesse sentido, não
há como deixar de falar da Guerra dos Trinta Anos, que durou de 1618 a
1648 e dizimou praticamente a metade da população alemã da época.
“Foram, sobretudo, vítimas de campanhas de terror planejadas pelos
exércitos, com finalidades estratégicas [...]” (CRETELLA NETO, 2008, p. 666).
Com a Paz de Vestfália, contudo, foi assinalado o fim da Guerra dos
Trinta Anos. Seu foco esteve em estabelecer, ainda que de modo
conservador, uma paz duradoura no cenário das relações internacionais. E
foi o que ocorreu, pois novas campanhas de terror somente tiveram
expressão novamente em 1789. Nesse sentido, a Revolução Francesa é tida
como a origem do terror moderno, pois foi no calor dos acontecimentos da
época que surgiu a expressão “terrorismo”, designando, por sinal, a forma
autocrática e cruel de governar, conforme já assinalado anteriormente. Nas
palavras de Aline Louro de Souza e Silva Rabello (2007, p. 20-21) “[...] o que
se pode chamar de terrorismo moderno nasceu com a Revolução Francesa.
Nesta época, o termo foi cunhado pelos próprios revolucionários, depois de
assumirem o poder, para denominar a ação contra os opositores do novo
regime”.
Neste ínterim, Cretella Neto (2008) aponta como curioso o fato de que
as noções de guerra total, de totalitarismo e de terrorismo surgiram
concomitantemente às ideias de liberdade, Direitos do Homem e regime
democrático.
138
Outras manifestações de terrorismo podem ser encontradas na Rússia,
em 1881, com o grupo Narodnaïa Volia, cuja fama deriva do fato de terem se
organizado para assassinar o Czar Alexandre II, o que foi concretizado em 13
de março de 1881 (GALITO, 2007).
No decorrer do século XX, temos como referência de movimentos
nacionalistas na Europa grupos como o Euskadi Ta Askatasuna – ETA e o
Irish Republican Army – IRA. Também é interessante lembrar os atentados
ocorridos durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, dos quais
resultou a morte de onze atletas. Já no século XXI, as manifestações
violentas mais proeminentes ficam a cargo da organização Al-Qaeda,
protagonista dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos EUA, e
de março de 2004, em Madrid. Do ataque ao World Trade Center e à sede do
Pentágono resultaram quase três mil mortos, e nos atentados em Madrid se
tem notícia de duzentos mortos e cerca de mil e quinhentos feridos.
Na Rússia, em Beslan, também no ano de 2004, cerca de vinte
sequestradores com forte aparato bélico invadiram uma escola e mantiveram
mil e duzentas pessoas, em sua maioria crianças, como reféns ao longo de
três dias. Na ocasião, morreram mais de trezentos civis. Ainda,
recentemente, é possível citar o atentado ao jornal satírico francês Charlie
Hebdo, ocorrido em 07 de janeiro de 2015, em Paris.
Dessa breve análise de atos terroristas ao longo da histórica, parece
claro que as manifestações contemporâneas do terrorismo apresentam
algumas diferenças se comparadas às manifestações anteriores. Nesse
sentido, para Alexander Zhebit (2008), o neoterrorismo é transnacional e seu
alvo não é mais o governo ou a estrutura estatal, mas a atual ordem das
coisas. Além disso, seus meios incluem poderosas armas nucleares,
químicas, biológicas e radiológicas, razão pela qual esse novo terrorismo é o
terrorismo de destruição de massa.
Nessa mesma senda, Fernanda Ruiz e Daniel Freire e Almeida (2005)
advertem que esse novo terrorismo não abarca espaços de negociação, os
quais são cedidos à violência extrema, atingindo o regime político, social e
econômico não somente do local do atentado, mas de toda a comunidade
internacional.
139
Por fim, é importante mencionar que, para Luciano Martins (2002, p.
19-25), atualmente, o terrorismo é subproduto dos conflitos étnico-religiosos
cujas origens remontam à Guerra Fria e ao colonialismo na Ásia e na África.
Isso quer dizer que os novos atos de terrorismo praticados não visam
conquistar ou substituir um governo ou um Estado, mas, sim, desmoralizá-
lo.

3. DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA AO TERRORISMO

A expressão terrorismo é oriunda do latim “terrere”, cujo significado é


“fazer tremer”. Discorrer, entretanto, sobre a definição e a natureza jurídica
do vocábulo implica, de início, em abordar as dificuldades encontradas pelos
juristas relativamente à elaboração de uma conceituação universalmente
aceita. Um dos óbices existentes à definição adequada está relacionado ao
fato de que os ataques terroristas não são vistos da mesma forma por todo
mundo. Ou seja, embora a grande maioria das pessoas julgue condenáveis e
atrozes os atos praticados pelos terroristas, não raro ocorre a glamourização
dos mesmos. Não é demais lembrar que as questões culturais subjacentes
são determinantes na compreensão dos atos terroristas enquanto condutas
louváveis ou condenáveis.
Outra dificuldade reside no fato de que, justamente em virtude da
ausência de uma definição universalmente aceita, juridicamente o
terrorismo não encontra significado, estando inclusive fora da abrangência
dos crimes de competência do Tribunal Penal Internacional, o que será
abordado oportunamente nesse estudo.
Além das causas já enunciadas, Omer Yousif Elagab, citado por
Cretella Neto (2009), adverte que muitos dos critérios utilizados para se
chegar à conceituação são de ordem política. Além disso, o fenômeno é
praticado a partir de motivos extremamente diferenciados conforme o
momento histórico. Na Revolução Francesa, por exemplo, a expressão
designava a forma autocrática e perversa de governar. Já no final do século
XIX fazia menção aos atentados ocorridos em 1880 na Rússia pelos niilistas
e, posteriormente, em toda a Europa, pelos anarquistas.
140
Outro obstáculo nesse sentido advém de que diversos elementos
presentes em um ato terrorista estão também descritos em condutas
relativas a crimes comuns, como homicídio, sequestro e invasão de
propriedade. Por fim, é preciso ter claro que o mundo é formado pelo bloco
dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, pelas potências mundiais de
fato e pelos países que se sentem oprimidos, heterogeneidade que torna
ainda mais difícil uma definição universalmente aceita (CRETELLA NETO,
2009).
Para Bonanate (2001, p. 16), o aparecimento dos fenômenos
terroristas é considerado explosivo e destruidor, visto que sequer sabemos
exatamente de quem e do que devemos nos defender. Por tal razão,
dificilmente haverá o estabelecimento de um “programa de governo” contra o
movimento terrorista.
Além disso, os grupos terroristas são bastante variados, cada qual
categorizado pela sua fonte de motivação. Para Rafael Ávila e Leandro de
Alencar Rangel (2009), tais grupos podem ser classificados da seguinte
forma: a) terrorismo de esquerda ou motivado pelo movimento comunista; b)
terrorismo de direita, de orientação fundamentalmente fascista; c) terrorismo
étnico-nacionalista ou separatista; e d) terrorismo religioso ou sagrado.
Diga-se, também, que outra dificuldade na definição de terrorismo está
relacionada à noção de crime político. Isso porque, a qualificação dos atos
terroristas como crimes políticos impossibilita a extradição de criminosos,
tendo em vista que a legislação de inúmeros Estados veda a extradição pela
prática de crime político.
Embora não se confunda com crime político, o terrorismo pode ser
visto como um fenômeno de caráter político. Nesse aspecto, Eugênio Diniz
(2002) adverte, entretanto, que o terrorismo é uma forma específica de luta
com propósito político. O grupo terrorista, fundamentalmente fraco usa do
terror para tentar, de uma forma rápida, aumentar sua força em relação ao
seu oponente. Por isso, suas ações nem sempre se ligam prontamente ao
atingimento de objetivos políticos. Bonanate (2001), por sua vez, acredita
que o terrorismo, o qual se define a si mesmo como “político” é
estruturalmente antipolítico ou apolítico, pelo fato de que, por natureza,
141
pode agrupar em torno de si um proselitismo elitista, uma minoria, e não as
grandes massas populares.
Outra circunstância interessante de ser assinalada diz respeito ao fato
de que quando da elaboração do presente estudo houve a aprovação, pela
Câmara dos Deputados, do texto principal do Projeto de Lei nº 2016/15, que
inclui no Código Penal o delito de terrorismo, com pena cominada de 12 a 30
anos. De acordo com informação oriunda do portal eletrônico “Vermelho”
(2015), a definição de terrorismo trazida no projeto dividiu opiniões, fazendo
com que deputados do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB) criticassem a redação por entenderem que
permitirá a criminalização movimentos sociais, limitando o exercício da
cidadania.
Fato é que existem inúmeras definições para a expressão terrorismo. O
maior problema existente hoje na sociedade internacional nesse aspecto está
justamente no fato de inexistir um consenso global, o que tornaria o
combate ao fenômeno mais efetivo, posicionamento assumido inclusive pela
Assembleia Geral da ONU na Resolução nº 42/159 de 1987 (UNITED
NATIONS, 1987).
Nesse sentido, para Ávila e Rangel (2009), o terrorismo é o fenômeno
em voga nos debates científicos e políticos no mundo contemporâneo, sendo
entendido como o uso do terror, de um medo deliberadamente criado, para
se obter determinados ganhos políticos. Nesse sentido, Michael Walzer
(2004) assevera que o terrorismo é obra de uma minoria de militantes que
alegam representar o povo, embora na verdade não o façam, agindo na sua
ausência.
Conforme o entendimento de Bonanate (2001), no terrorismo, os seus
inimigos não podem ser distinguidos, tendo em vista que consiste em um
fenômeno indiscriminado e difuso. Por sua vez, para Diniz (2002), o
terrorismo é uma forma específica de luta política, com objetivo político, cujo
emprego do terror é o meio de ação por excelência.
Quando se busca compreender o que é o fenômeno do terrorismo,
sobretudo em virtude dos eventos ocorridos em 2001 nos Estados Unidos da
América, percebe-se que estamos longe de uma compreensão definitiva
142
acerca do mesmo. Após os atentados aos EUA, o foco de preocupação dos
cientistas, especialmente das relações internacionais, nitidamente migrou
para esta área, diante da ausência de uma base teórica para a análise do
fenômeno do terrorismo (ÁVILA; RANGEL, 2009, p. 57).
Cretella Neto (2009) adverte, contudo, que se é verdade afirmar que
não há uma definição universalmente aceita, é verdade também que não há
uma relação de contradição entre as formulações existentes. Então, o autor
aponta alguns critérios basicamente sempre presentes no que se refere à
definição de atos terroristas, quais sejam, são atos irracionais para a
sociedade que os sofre, os terroristas se valem de recursos extremos, são
manifestações de violência gritante, não há um padrão cronológico ou de
métodos de conduta. Por fim, causam intensa comoção popular – em que
pese estatisticamente resultem em menos mortos e feridos se comparados a
outras situações – e, por tal razão, têm ampla ressonância midiática.
Cretella Neto (2009, p. 210), então, procurando incluir todos os
elementos que em sua concepção são fundamentais à definição de
terrorismo, oferece a seguinte formulação:

Terrorismo internacional é a atividade ilegal e intencional que


consiste na ameaça ou no emprego efetivo de violência física e/ou
psicológica extrema e sistemática, generalizada ou não, desenvolvida
por grupos ou por indivíduos, apoiados ou não por Estados,
consistindo na prática de atos de destruição de propriedades e/ou de
pessoas, ou de ameaça constante de empregá-los, em uma seqüencia
[sic] imprevisível de ataques dirigidos a grupos de indivíduos
aleatoriamente escolhidos, perpetrados em território de Estados
cujos governos foram selecionados como inimigos da causa
defendida pelos autores, causando inominável sensação de
insegurança aos habitantes da sociedade contra a qual são feitas as
ameaças ou cometidos os atentados.

Martha Crenshaw (1995, p. 482) acredita que o terrorismo é uma ação


cujo objetivo não é a eliminação física do inimigo, mas sua intimidação.
Nesse sentido:

Um ato heterodoxo de violência que não pretende eliminar um


oponente, senão coagi-lo e intimidá-lo. Tem como objetivo influenciar
o comportamento político de adversários atacando ou ameaçando
alvos que possuem valor simbólico e não material. Embora não
necessariamente cause mortes, as vítimas do terrorismo são sempre

143
civis.

Então, o terrorismo é uma forma de mudar o comportamento do


adversário atacando alvos que possuem um valor simbólico mais do que
importância material. Não visa, então, a dissuadir nem a compelir, mas a
induzir no alvo um comportamento que permita derrotá-lo.
De acordo com Paulo de Tarso Resende Paniago (2007, p. 14), na
busca por uma definição mais técnica e genérica, foi elaborada pelo Grupo
de Trabalho da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
(CREDEN) do Conselho de Governo, a designação do terrorismo como todo
“ato com motivação política ou religiosa, que emprega força ou violência
física ou psicológica, para infundir terror, intimidando ou coagindo as
instituições nacionais, a população ou um segmento da sociedade”.
Também é pertinente agregar ao estudo a formulação trazida pelo
Conselho de Segurança da ONU, na Resolução nº 1.566, de 2004 (UNITED
NATIONS, 2004), que define terrorismo como sendo a prática de:

[...] atos criminosos, inclusive contra civis, cometidos com a intenção


de causar a morte ou lesões corporais graves ou de tomar reféns com
o propósito de provocar um estado de terror na população em geral,
em um grupo de pessoas ou em determinada pessoa, intimidar a
uma população ou obrigar a um governo ou a uma organização
internacional a realizar um ato, ou se abster de realizá-lo.

Feitas esses considerações sobre a definição de terrorismo, resta


agora, considerando o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, entender se
o terrorismo é crime internacional autônomo, crime de guerra, crime contra
a humanidade, genocídio, ou assume a forma de crime autônomo e crime de
guerra, conforme o caso concreto. Essa classificação é importante porque ela
determinará o regime jurídico aplicável à conduta.
Cretella Neto (2009), na contramão do que fazem alguns autores,
defende que se trata de crime autônomo. Com isso, basicamente o autor
pretende esclarecer que o terrorismo é crime internacional dotado de
particularidades, que embora contenha elementos característicos de outros
crimes, com eles não se confunde. Os adeptos dessa teoria também afirmam
que determinados atos de terrorismo internacional, atualmente, receberam
144
tanta atenção jurídica e foram tão criminalizados que merecem tipificação
autônoma.
Não bastassem as discussões envolvendo o conceito de terrorismo, há
autores, a exemplo de Tatiana de Almeida Freitas Cardoso (2014), que com
razão, afirmam que os acontecimentos do 11 de setembro de 2001
significaram uma redefinição no conceito de terrorismo – a respeito do qual
sequer existe consenso. Isso porque, atualmente, o elemento proeminente na
definição do vocábulo é justamente o medo, que sempre esteve presente em
definições anteriores, mas agora sob um novo viés, que se traduz no medo de
sofrer novos atentados. Por isso, em suas considerações sobre medo e direito
penal, Maiquel Wermuth (2011) adverte que uma consequência inafastável
desse intenso sentimento de medo e insegurança na sociedade
contemporânea é o aumento da preocupação com novas formas de
criminalidade, inclusive relacionadas a ataques terroristas.

4. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A ORGANIZAÇÃO DAS


NAÇÕES UNIDAS NO COMBATE AO TERRORISMO NA SOCIEDADE
INTERNACIONAL

De fato, os impasses da comunidade internacional impediram o


surgimento de uma definição universal do que vem a ser terrorismo.
Estamos, nas palavras de Brant (2005), diante de algo que o direito deve
rechaçar, prever e tipificar, muito embora os Estados não tenham acordado
quanto aos seus contornos normativos. Então, resta agora identificar como a
Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional vêm se
adequado às mudanças ocorridas em âmbito mundial para um combate
mais efetivo ao terrorismo.
Para David Augusto Fernandes (2006), após a Segunda Guerra
Mundial e com o advento da Guerra Fria, houve a confirmação da urgência
de se estabelecer um sistema internacional de justiça, independente de
considerações e influências políticas. Diante dessa necessidade nasce, com a
Conferência dos Plenipotenciários ocorrida em Roma, em 17 de julho de
1998, o Tribunal Penal Internacional. Durante este encontro, representantes
145
de 160 países – dentre os quais o Brasil –, 17 organizações
intergovernamentais, 14 agências das Nações Unidas e 124 organizações não
governamentais, elaboraram um tratado multilateral para o estabelecimento
de uma Corte Penal Internacional, cuja competência é o julgamento dos
crimes mais graves que colocam em risco a paz e a sobrevivência da
humanidade.
A criação de uma Corte Penal Internacional encarregada de julgar os
prejuízos mais graves aos direitos humanos constitui um grandioso
acontecimento na história da humanidade. A importância dessa decisão, a
riqueza de debates que cercaram a criação da CPI e as diversas questões que
permanecem ainda hoje colocadas, fazem do Tribunal Penal Internacional,
na atualidade, a mais importante instituição internacional protetora dos
Direitos Humanos.
Embora tenha sido criado em 1998, conforme já assinalado, o Tribunal
Penal Internacional passou a operar no cenário internacional em 1º de julho
de 2002, quando atingiu o número de 60 ratificações necessárias para entrar
em vigor, conforme prevê o art. 126 do Estatuto de Roma. Sua competência
se restringe ao julgamento dos crimes mais graves que afetam a comunidade
internacional em seu conjunto (art. 5º), quais sejam, genocídio, crimes
contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.
O genocídio está previsto no art. 6º do Estatuto e consiste, em resumo,
nos atos praticados com intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo
nacional, étnico, racial ou religioso. Os crimes contra a humanidade (art. 7º)
podem ser conceituados como qualquer ato que, dentre outros, envolva o
homicídio, extermínio, prisão, tortura, deportação forçada, agressão sexual,
quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático,
contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque. Os
crimes de guerra (art. 8º) envolvem diversos atos, dentre os quais é possível
citar a tortura ou tratamentos desumanos, homicídio doloso, tomada de
reféns, entre outros, em particular quando cometidos como parte integrante
de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga
escala desse tipo de crime. Por fim, o crime de agressão, embora não
tipificado inicialmente por não ter havido concordância quanto a sua
146
definição, é o uso da força armada por parte de um Estado contra a
soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro
Estado ou, de qualquer outro modo incompatível com a Carta das Nações
Unidas.
Diante desse quadro, verifica-se que não há tipificação do crime de
terrorismo no âmbito do Tribunal Penal Internacional, o que causa
controvérsias entre os juristas. Apontam-se como causas da sua exclusão do
Estatuto de Roma, dentre outras, o fato de que a repressão dos atos
terroristas já se encontra regulamentada em tratados de cooperação
internacional. Além disso, apesar de suas catastróficas consequências, tal
crime não foi considerado suficientemente grave a ponto de integrar o
Estatuto. Para Ruiz e Almeida (2005, p. 154), outorgar competência ao
Tribunal Penal Internacional para julgamento de atos definidos como
terrorismo é pertinente, sobretudo em virtude do caráter de imparcialidade
atribuído ao julgamento:

[...] diante de tantas arbitrariedades praticadas, é certo que o


julgamento de um caso de terrorismo internacional pela jurisdição de
um único país, que tenha sido vítima direta ou reflexamente afetado,
incontestavelmente comportará um julgamento parcial, devendo-se
considerar, ainda, que nem sempre há um julgamento, mas simples
retaliação, como o ataque dos Estados Unidos e das tropas de
coalização ao Afeganistão após o atentado de 11 de setembro na
cidade de Nova Iorque.

Cretella Neto (2008), embora entenda ser o terrorismo um crime


autônomo, apresenta como possível solução a aproximação do terrorismo do
crime de genocídio ou de crime contra a humanidade, tendo em vista a
similaridade existente entre as condutas descritas nos mencionados tipos,
mais especificamente nos artigos 6º e 7º do Estatuto de Roma, e dos atos de
terrorismo. Outros posicionamentos existem no sentido de que enquadrar o
terrorismo em categorias diversas de modo impreciso conduzirá a um
enfraquecimento da aplicação das diversas convenções internacionais e
resoluções adotadas para o combate ao terrorismo.
Relativamente à ONU, é importante destacar que o terrorismo é, antes
de tudo, um ataque frontal aos valores inerentes à Carta das Nações Unidas.

147
Quer dizer, ele se constitui em uma afronta aos direitos humanos, ao próprio
direito internacional, à tolerância entre os povos e nações e ao sistema de
solução pacífica de controvérsias (BRANT, 2005). Cretella Neto (2008, p. 728)
assinala que inicialmente, o fenômeno terrorista era tratado pela organização
com “injustificável simpatia e paternalismo, embora se procurasse conter a
expansão do fenômeno”, postura que foi sendo progressivamente modificada,
no sentido de que hoje a ONU condena totalmente as práticas terroristas sob
qualquer pretexto.
Suas ações de combate ao terrorismo internacional, por intermédio da
Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, datam de 1972 e 1989,
respectivamente, de acordo com Igor Andrade Vidal Barbosa (2008). É
evidente que, conforme já assinalado, por ocasião dos atentados de 11 de
setembro de 2001, houve uma intensificação nas atividades da organização
voltadas ao combate ao terrorismo. Tanto é assim que em 28 de setembro de
2001, o Conselho de Segurança adotou a Resolução nº 1373 (UNITED
NATIONS, 2001), cujos objetivos consistem em “impedir o financiamento do
terrorismo, criminalizar a coleta de fundos para este fim e congelar
imediatamente os bens financeiros dos terroristas” (NAÇÕES UNIDAS DO
BRASIL, 200-?).
Em 2002, então, atenta à questão das armas de destruição de massa,
a Assembleia Geral adotou a Resolução nº 57/83(UNITED NATIONS, 2002),
primeiro texto com objetivo de elencar medidas no sentido de prevenir que
terroristas tenham acesso a material bélico com potencial altamente
destrutivo. O Conselho de Segurança, também preocupado com a questão
das armas de destruição de massa, adotou, em 2004, a Resolução nº 1540
(UNITED NATIONS, 2004), por meio da qual obrigou os Estados a
interromperem apoio prestado a agentes não estatais relativamente a
qualquer atividade envolvendo armas nucleares, biológicas e químicas e seus
meios de entrega.
É pertinente mencionar que a ONU atua também por meio do
Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), responsável
por analisar as novas tendências na criminalidade. Em 2002, o UNODC
lançou um projeto contendo doze instrumentos contra o terrorismo, e faz um
148
importante trabalho no sentido de prestar assistência técnica e jurídica aos
países interessados em fazer parte do projeto.
Outro instrumento jurídico bastante vinculado a um ataque terrorista
é o relatório In Larger Freedom: Towards Development, Security, and Human
Rights for All. Mencionado documento é resultado dos ataques ocorridos em
Madrid, em março de 2004. Em seu bojo, o Secretário Geral da ONU à
época, Kofi Annan, elencou o que considerou serem aspectos fundamentais
no combate ao terrorismo, a saber:

[...] dissuadir pessoas de apoiarem ou utilizarem-se do terrorismo;


negar-se aos terroristas os meios para se realizar um ataque; impedir
que Estados apoiem o terrorismo; reforçar a capacidade dos Estados
de combater o terrorismo; e defender os direitos humanos
(BARBOSA, 2006, p. 02).

Por fim, destaca-se que existem várias convenções internacionais a


respeito do terrorismo e, no âmbito da ONU, Cretella Neto (2009, p. 194-195)
menciona cronologicamente as seguintes: a) Convenção sobre a Prevenção e
Punição de Crimes contra Pessoas que gozam de Proteção Internacional,
inclusive Agentes Diplomáticos; b) Convenção Internacional contra a Tomada
de Reféns; c) Convenção sobre a Proteção Física de Materiais Nucleares; d)
Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com
Bombas; e) Convenção Internacional sobre a Supressão do Financiamento
do Terrorismo; e f) Convenção Internacional para a Supressão de Atos de
Terrorismo Nuclear.
Recentemente, em 2006, a Assembleia Geral adotou a Estratégia
Antiterrorista Global da ONU, em atenção a novos atentados terroristas
ocorridos após o fatídico 11 de setembro. Mencionada estratégia define
medidas específicas no combate ao terrorismo em todas suas vertentes, no
âmbito interno e também internacional.
É importante destacar que a ONU posiciona-se no sentido de que atos
criminosos pretendidos ou calculados para provocar um estado de terror no
público em geral, num grupo de pessoas ou em indivíduos para fins políticos
são injustificáveis em qualquer circunstância, independentemente das
considerações de ordem política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa
149
ou de qualquer outra natureza que possam ser invocadas para justificá-los.
Destarte, diante da globalização que conferiu novos contornos à
sociedade internacional contemporânea, exige-se da ONU medidas que
objetivem minorar o problema do terrorismo e, nesse cenário, é evidente que
uma cooperação maior entre os Estados do globo significa mais êxito na
resolução desses fenômenos. Não se pode esquecer, contudo, que a ONU não
está totalmente independente da influência e dos interesses das grandes
potências. Fato que pode ser aqui referenciado diz respeito à invasão
protagonizada pelos Estados Unidos ao Afeganistão, com autorização do
Conselho de Segurança da ONU, após o atentado de 11 de setembro, solução
que não parece ser a mais adequada, posto que se valeram da mesma
violência que pretendiam eliminar.
É em virtude de situações como essas que alguns estudiosos, como
Alexandre Almeida e Jefferson Ubiratan (2012) vêm se posicionando no
seguinte sentido:

Se por um lado a sua instituição pode ser considerada como um


avanço no que diz respeito à integração das Nações, por outro ela
não passa de um "tigre de papel", designação dada pelo teórico
alemão [...] Jürgen Habermas para a atuação da ONU no plano
global. O que tem sido observado é que as Nações Unidas não
possuem meios eficazes para impedir que um membro permanente
do Conselho recorra à força armada, contando apenas com a sua boa
vontade em relação à paz.

Sobre isso, como de resto ocorre com boa parte das questões
envolvendo o direito internacional, existem divergências, pois autores como
Roberto Hanania Filho (2007, p. 125) ainda consideram que “a ONU tem sido
o principal organismo engajado no combate ao terrorismo internacional”.
Fato é que ambas as instituições, no âmbito de suas atribuições, tem
desenvolvido um importante papel no sentido de minimizar e combater
ataques terroristas. É evidente que muitos avanços ainda devem ocorrer,
mas grandes conquistas já foram galgadas pelo TPI e pela ONU no que diz
respeito ao combate ao terrorismo.

150
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante desses breves apontamentos, fica claro que muitas


controvérsias ainda envolvem o terrorismo, muito embora esse fenômeno
tenha estado sempre presente na história da humanidade. Num mundo
globalizado, o terrorismo ganha novos contornos, não estando mais
vinculado a somente um Estado. Esse neoterrorismo caracteriza-se por ser
ainda mais assustador, uma vez que além de poder introduzir-se na
sociedade em qualquer momento e em qualquer lugar, seus efeitos irradiam
em todo o globo, não se restringindo apenas ao local no qual ocorreram os
ataques. Disso resulta que, cada vez mais, organizações e agências
internacionais, lado a lado com os Estados, têm mobilizado esforços no
sentido de combater os grupos terroristas.
Neste contexto, é evidente e ainda maior a exigência de uma espécie de
cooperação internacional de combate ao fenômeno do terrorismo que,
basicamente, está tão pouco desenvolvida tanto na teoria como na prática. É
possível dizer, então, que as velhas ideias talvez não se adequam mais a
realidade emergente do combate ao terrorismo.
Recentemente, o Ex-Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, fez um
pronunciamento bastante pertinente enfatizando que uma estratégia
mundial é imprescindível na luta contra o terrorismo, sendo que as Nações
Unidas certamente desempenham uma função fundamental nesse combate
proclamado universalmente. É preciso também, ter em mente que as causas
para os atos terroristas envolvem questões subjacentes muitas vezes não tão
evidentes nos ataques, como condições sociais, econômicas, religiosas e
disputas políticas não resolvidas.
Isto posto, parece claro que o combate mais efetivo e justo ao
terrorismo somente pode se dar a partir das normas de direito internacional,
respeitando-se sempre as noções inerentes à pessoa humana. Ademais, o
combate ao terrorismo internacional exige que se compreenda a sua
natureza e as suas motivações, sendo que o primeiro objetivo da guerra
contra o terrorismo não consiste no ato de olhar para o ataque e retribuí-lo,
mas atentar para o futuro e preveni-lo. Portanto, é imprescindível a
151
cooperação entre os Estados, com a colaboração de organizações e agências
internacionais, tais como a Organização das Nações Unidas e o Tribunal
Penal Internacional, não somente no que se refere a um consenso global de
terrorismo, mas também para a adoção de políticas mais efetivas de combate
ao fenômeno, com vistas à construção de uma paz mundial duradoura na
sociedade internacional.

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154
PARA QUE(M) SERVE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA?

Paulo Thiago Fernandes Dias1

1. INTRODUÇÃO

O título deste trabalho tem direta inspiração na obra Para que(m) serve
o direito penal?: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de
controle social, de Airto Chaves Junior e Fabiano Oldoni2, em que os autores
abordam, com muita propriedade e senso crítico, a seletividade do sistema
penal brasileiro.
Essa linha de análise se fará presente neste artigo, por ocasião do
estudo da aplicação (ou não) do princípio da insignificância em casos de
crimes praticados sem violência e/ou grave ameaça, principalmente, no
tratamento desigual e mais severo impingido ao responsabilizado por delitos
patrimoniais particulares.
Para tanto, serão utilizadas, como parâmetro, decisões recentes do
Supremo Tribunal Federal, em que se verifica certa mudança de
posicionamento, no sentido do reconhecimento ou não de determinadas
infrações penais contra o patrimônio privado, como bagatelares.
Parte-se também da abordagem de legislações estrangeiras e nacionais
que, de certa forma, influenciaram a formação de uma cultura
patrimonialista no Brasil, que se revela no punitivismo voltado às pessoas
que cometem crimes contra o patrimônio privado.
Afinal, enquanto se discute se o furto de barras de chocolates,
avaliadas em pouco mais de R$ 30,00 (trinta reais), comportaria a aplicação
do princípio da insignificância (STF HC n. 1077333), nos crimes contra a
ordem tributária, há decisões reconhecendo, como sem lesividade, a
sonegação fiscal que não suplante a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil

1 Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Direito Penal e Processual


Penal pela UGF, ex-professor Direito Penal e Direito Processual Penal da FACIMP, da FEST e
da IESMA/ UNISULMA todas de Imperatriz/MA, Advogado.
2 Publicada pela Editora Lumen Juris, em 2014.
3 No julgamento do Habeas Corpus n° 107733, o Ministro Luiz Fux negou a ordem ao

condenado Elias Soares Pereira, pois não se tratava de réu primário e o furto dos chocolates
objetivava a permuta por drogas (MOREIRA, 2012).
155
reais), com esteio na Portaria n. 75/2012, do Ministério da Fazenda
(STRECK, 2015).
Para que se entenda essa discrepância de tratamento, faz-se
necessária uma imersão histórica, a fim de que se relembre como,
tradicionalmente, os crimes contra o patrimônio recebiam (recebem)
tratamento penal mais gravoso, para que se possa entender a razão pela
qual haja tanta resistência para a aplicação do princípio da insignificância a
referidas infrações penais.
Além mais, em julgados recentes, o Supremo do Tribunal Federal tem
somado à análise do fato, questões relacionadas à pessoa do acusado, como
a reincidência, afastando-se do Direito Penal do Fato e se aproximando,
perigosamente, do Direito Penal do Autor (STRECK, 2014).
Afinal, seria o Brasil um país de cultura patrimonialista? Por que o
furto de chocolates no valor de R$ 30,00 é significante e a sonegação fiscal
de R$ 20.000,00 não?

2. BREVE HISTÓRICO DA TUTELA PENAL DOS CRIMES CONTRA O


PATRIMÔNIO

Curioso perceber que ao longo da história, os crimes contra o


patrimônio, mesmo que cometidos sem violência ou grave ameaça, recebiam
tratamento penal mais grave, inclusive nas sociedades que adotavam a Lei
do Talião4. Exemplificando essa desproporção na hora de sancionar, o
Código de Hammurabi punia com a pena de morte o responsável pela prática
de roubo, furto e receptação (§22 e §06), não estabelecendo diferenças entre
essas infrações. A regra do “olho por olho, dente por dente”, não era,
literalmente, utilizada pelo Código Babilônico.
O Código de Manu (século XIII a.C. ou no século V a.C.), além de
confirmar a separação da sociedade em castas, conforme a procedência
familiar da pessoa (característica que se mantém nos dias atuais), também
conferia punição de ordem física ao responsável pela prática de crime contra

4 O que desde já caracteriza uma ausência de lógica.


156
o patrimônio. Nesse sentido, POLAINO (2011, p. 13):

De acordo com o Código de Manu, a punição tinha caráter


obrigatório, ou seja, o rei deveria punir o ladrão com a morte para a
culpa não recair sobre ele, consoante o art. 313. O Código de Manu
distinguia os crimes de furto e roubo, conforme seu artigo 329 que
dizia que “a ação de tirar uma coisa com violência, à vista do
proprietário, é um roubo; em sua ausência é furto, do mesmo modo
que o que se nega a ter recebido”.

Sentido mais literal e, diverso da Lei do Talião aplicado por


Hammurabi, porém, foi o adotado pela legislação hebraica, pois, conforme se
observa nalgumas passagens do Antigo Testamento, o delito de furto não era
punido com penas drásticas, mas com a pena de restituição (às vezes em
valor superior ao furtado) da quantia retirada de seu legítimo proprietário.
Pode-se afirmar, portanto, que a Lei Mosaica se aproximava mais, pelo
menos no que tange aos crimes contra o patrimônio5, de uma noção de
proporcionalidade (entre o fato praticado e a sanção penal imposta).
Já o Direito Grego Antigo, apesar da pouca incursão no direito penal,
representou o início do processo de secularização ou laicização, isto é, a
separação entre crime e pecado, expressões que se confundiam, até então
(PIERANGELI, 2005).
A Lei das XII Tábuas, portanto, pode ser apontada como o diploma
inaugurador desse processo de laicização do direito penal romano, apesar de
conservar o tratamento da pessoa do ladrão, como uma espécie de pária,
sujeitando-o a uma pena desproporcional:

A Lei das XII Tábuas já punia o crime de furto, distinguindo-o em


manifesto e não manifesto. Ocorria o furtum manifestum quando o
agente era surpreendido em flagrante delito, praticando a ação ou no
lugar em que essa fora praticada. As penas aplicadas eram as
próprias da época, quais sejam, de natureza corporal para o furto
manifesto e pecuniárias para o furto não manifesto. A própria Lei das
XII Tábuas previa que o ladrão podia ser morto se fosse surpreendido
durante furto noturno (BITTENCOURT, 2014, p. 26).

A doutrina é praticamente uníssona ao reconhecer que o Direito


Romano foi mais profícuo e mais evoluído no que tange ao Direito Civil (vide

5 Essa ressalva é de suma importância, considerando-se que o adultério era tratado como
crime grave, sujeitando a mulher adúltera à pena de morte por apedrejamento.
157
os inúmeros brocardos que informam o ordenamento jurídico brasileiro)6. Na
seara penal, mesmo sem o destaque alcançado no campo civil, o Direito
Romano se mostrava menos teocrático7, conforme PIERANGELI (2005, p.
164):

Posteriormente, os próprios delitos privados, ou seja, os cometidos


contra os homens livres, e naqueles em que o Estado originariamente
não tinha interesse em perseguir, passam a ser perseguidos pelo
Estado e submetidos à pena pública por meio do chamado
procedimento extraordinário, o qual termina convertendo-se em
ordinário. Assim foi como o direito penal se afirmou em seu caráter
público. Essa mudança tem lugar com o advento do Império.
Durante a República, o povo romano havia sido simultaneamente
legislador e juiz, permanecendo como delitos privados (liberada a
composição entre as partes) somente os mais leves. Paulatinamente,
se foi entregando a faculdade de julgar às Quaestiones, que o faziam
por “exigências da majestade do povo romano” e da “saúde da coisa
pública”, o que estava bem distante da concepção teocrática oriental.
O direito penal romano fundava-se, assim, no interesse do Estado.

Nessa linha evolutiva, o Direito Romano etiquetava os crimes de furto


e roubo como delitos privados, os quais, apesar da punição de natureza
corpórea imposta inicialmente, passaram a ser sancionados com menos
severidade. Para CASTRO (2007, p. 114), o crime de furto era:

Entendido como a apropriação de coisa alheia sem uso de violência.


No início do Direito Romano tinha como pena a possibilidade de o
ladrão, pego em flagrante, ser punido fisicamente (ser morto ou
reduzido à condição de escravo). Mais tarde o furto passou a gerar
direito de o ofendido exigir uma multa pecuniária que poderia ser o
dobro, o triplo ou o quadruplo do valor da coisa furtada.

Tardou para que a privação de liberdade fosse utilizada como pena


oficial, sendo que durante séculos, ela só funcionava como uma cautela, ou
seja, o condenado à morte aguardava preso, a execução de sua sentença.
Para os padrões da época, a pena privativa de liberdade simbolizou,
em tese, um progresso na execução penal, apesar da finalidade escondida
por trás dessa mudança:

6Perfilhando desse entendimento, AZEVEDO (2007, p. 158).


7Distinguindo-se, consideravelmente, das legislações orientais antigas. O Direito Romano,
portanto, não quebrou com o processo de secularização iniciado na Grécia Antiga.
158
Na segunda metade do século XVII, inicia na Europa um movimento
fundamental para o desenvolvimento da pena privativa de
liberdade, com a construção de prisões organizadas para a correção
dos apenados através do trabalho e da disciplina.
A principal causa da transformação da prisão-custódia em prisão-
pena foi a necessidade de que não se desperdiçaria “mão de obra”, e
também para controlar sua utilização conforme as necessidades de
valorização do capital. Existe uma forte influência do modelo
capitalista implantado nessa época. É o controle da força de
trabalho, da educação e da “domesticação” do trabalhador. Essa era
a síntese dos princípios que orientavam as workhouses inglesas, e
também as rasphuis para os homens e as spinhis para as mulheres
em Amsterdã.
Somente no século XVIII surge a privação de liberdade como pena, e
apenas no século XIX a pena de prisão converte-se na principal das
penas, substituindo progressivamente as demais (LOPES JUNIOR,
2014, p. ).

O rigor punitivo também foi adotado no período referente ao direito


luso-brasileiro, sendo que os primeiros monarcas portugueses utilizavam a
pena de prisão, ainda na forma cautelar, ou seja, como rito de passagem
para a execução da pena-fim. Engana-se quem pensa que se tratava de
punição mais branda:

(...) Se os cárceres, hoje em dia, apesar de tudo quanto se alardeou


sobre o tratamento penal do condenado à pena privativa de
liberdade, mostram-se insuportáveis, que dizer daqueles tempos, em
que as celas nada mais significavam senão a expectativa de punição
mais rigorosa? (AZEVEDO, 2007, p. 164)

Do Período Colonial, perpassando pelo Código Criminal do Império e


pelo Período Republicano, até o Código Penal de 1940, a legislação brasileira
manteve a sanha punitiva, notadamente, quanto aos crimes contra o
patrimônio, os quais se dividiam em público e privado. A pena privativa de
liberdade se tornou a punição oficial, para a maioria dos delitos, somada ao
pagamento de multa, para determinadas infrações.
Entretanto, em que pese a não sujeição do condenado pelo crime de
furto à pena privativa de liberdade, outras garantias processuais lhe eram
inalcançáveis. Há que se destacar, também, o rigor com que os mendigos e
vadios eram tratados, muitas vezes, como seres abomináveis:

A proteção legal da propriedade era tão evidente que os considerados


“vagabundos sem domicílio”, mesmo que a pena ao crime de furto ou
de dano fosse unicamente a de multa, não tinham direito a fiança,

159
conforme preconizava o art. 6º do Decreto nº 3.475, de 4.11.1899
(RIBEIRO, 2013, p. 108).

Ainda na década de 40, o Estado brasileiro, por meio do decreto-lei n°


3.688, promulgou a famigerada Lei das Contravenções Penais, punindo com
prisão simples ou multa, dentre outras, infrações contra o patrimônio. Trata-
se de norma totalmente incompatível com a Carta de 1988, estando, porém,
e, lamentavelmente, em vigor nos dias atuais, apesar do reconhecimento
pelos tribunais e doutrina, da não recepção de vários dispositivos.
Com o Código Penal de 1940 (ainda vigente, apesar das várias
modificações), os crimes contra o patrimônio privado constam do Título II da
parte especial, sendo que a eles, em regra, cumula-se a pena privativa de
liberdade com a de multa. O delito de furto simples (artigo 155, caput),
mesmo em se tratando de comportamento desprovido de violência ou grave
ameaça, é punido com pena de reclusão de um a quatro anos, além da
multa. Punição por demais grave.
O rigor se punitivo se torna ainda mais latente, quando o legislador
atribui pena de reclusão de dois a oito anos e multa para a forma qualificada
do crime de furto.
Observa-se, nesse sumário resgate histórico, que a legislação brasileira
mantém uma preocupação excessiva com a propriedade privada, não por
acaso, a quando da entrada em vigor da Lei dos Crimes Hediondos no ano de
1990, o crime de homicídio qualificado não constava da aludida categoria de
delitos mais graves e, portanto, merecedores de maior punição.
Esse tratamento mais severo, no contexto dos crimes contra o
patrimônio privado, revela-se, não só com a imposição de sanções mais
pesadas, mas, ainda, com a própria distorção ou resistência a institutos ou
normas de política criminal, a exemplo do princípio da insignificância, que
poderiam, no mínimo, atenuar o quadro caótico manifestado pelo Sistema
Prisional brasileiro.

3. O TRATAMENTO DOGMÁTICO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Diante do tratamento recebido e para que se promova à melhor


160
situação da análise da matéria, não se pode fugir da característica
preponderante dos princípios, a de que eles se dirigem a um fim:

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente


prospectivas e com pretensão de complementariedade e de
parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da
correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção
(ÁVILA, 2015, p. 102).

Enquanto categoria do Direito Penal, o princípio da insignificância


exerce papel primordial, no instante em que almeja estabelecer freios para a
atuação punitiva estatal, historicamente, implacável (principalmente contra
setores menos favorecidos da sociedade).
Nesse sentido, destaca-se o posicionamento de SANTOS (2009, p. 160)
quando destaca a evolução normativa por qual passou o ordenamento
jurídico brasileiro com o advento da Constituição da República de 1988:

Os princípios funcionam como raízes do sistema jurídico, de tal


forma que seus postulados vão espargir-se pelas demais normas,
permitindo, de forma ordenada, inferir-se a unidade da ordem
jurídica. É possível dizer, nessa linha, que toda regra jurídica deve
fazer referência a princípios expressos ou implícitos, sob pena de
inconstitucionalidade.

Dito isso, a teoria do bem jurídico passa por uma série de debates, já
que nem toda infração penal tem bem jurídico (BOTTINI, 2012, p. 121).
Entretanto, para que se estude o princípio da insignificância, faz-se
necessária a abordagem da ameaça ou efetiva lesão ao bem jurídico, que
uma conduta possa causar, para que tal fato seja materialmente típico.
A definição de bem jurídico penal nunca navegou em mares calmos,
sendo ora conceituado como um valor cultural, ora como bem humano ou da
vida social merecedor de proteção pelo direito.
A par dessa gama de posicionamentos sobre o melhor conceito de bem
jurídico, vale colacionar os ensinamentos de PRADO (1997, p. 47):

“A noção de bem jurídico não se confunde com a de objeto da ação.


Este último vem a ser o elemento (pessoa humana ou coisa) sobre o
qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração

161
penal. Em outros termos, o objeto material ou da ação é formado
pelo ser animado ou inanimado – pessoa ou coisa (animal) – sobre o
qual se realiza o movimento corporal do autor que pratica uma
conduta típica no círculo dos delitos a cuja descrição pertence um
resultado tangível. Tem sido afirmado com acerto que tanto quanto o
conceito de objeto da ação pertence substancialmente à consideração
naturalista da realidade, o de bem jurídico, ao contrário,
corresponde, em essência, à consideração valorativa sintética. O
objeto material não é uma característica comum a qualquer delito,
pois só tem relevância quando a consumação depende de uma
alteração da realidade fática ou do mundo exterior”.

O bem jurídico deve ser entendido como a normogênese do tipo,


reorganizando a teoria do crime, atuando no momento de valoração da
conduta (CARVALHO, 2006, p. 141). Nesse raciocínio, o tipo penal passa a
ser o elemento definidor, horizontal e verticalmente, do tipo penal.
O legislador, portanto, deve agir com critério no momento da seleção
de determinado bem jurídico para fins de proteção penal, já que o Direito
Penal não deve cuidar de lesões ínfimas. Segundo BITTENCOURT (2012, p.
61):

O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por Claus


Roxin em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y
Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino minima
non curat praetor.

Essa necessidade de lesão ou ameaça séria de lesão a determinado


bem jurídico, caracteriza um norte ao legislador ordinário, como também ao
juiz. Trata-se de uma determinação de ordem constitucional, pilar do Estado
Democrático e Constitucional de Direito:

A ofensividade penal é uma diretriz dirigida ao legislador, mas


também ao juiz, que tampouco pode considerar proibida a conduta
concreta (pressuposto de fato ou Tatbestand fático), se no caso não
ofende um bem jurídico, porque o juiz sempre deve proferir
sentenças dentro do quadro constitucional (ZAFFARONI, 2014, p.
12).

Para BOTTINI (2012, p. 120), por sua vez, a elaboração das bases
dogmáticas do princípio da insignificância só foi possível após a identificação
da tipicidade material, para além da formal, entendendo como crime a
conduta capaz de ofender os valores reconhecidos culturalmente por

162
determinado Estado. Segundo o autor:

É necessário algo mais que o simples comportamento, algo que


aproxime do injusto do referente último da norma penal, que revele
ao menos a potencia do comportamento para afetar um bem jurídico.
Há uma materialidade mínima necessária além do desvalor da ação
que caracteriza o injusto: o risco que ele representa – ainda que em
abstrato – para um bem jurídico passível de proteção penal.

O princípio da insignificância, dessa forma, afasta a incidência do


Direito Penal daqueles comportamentos incapazes de sujeitar o bem jurídico
a qualquer tipo de ameaça ou lesão significativa:

Aqui pertence igualmente o chamado princípio da insignificância,


que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos
tipos: maus-tratos são uma lesão grave ao bem-estar corporal, e não
qualquer lesão; da mesma forma, é libidinosa, no sentido do código
penal só uma ação sexual de alguma relevância; e só uma violenta
lesão à pretensão de respeito social será criminalmente injuriosa. Por
“violência” não se pode entender uma agressão mínima, mas
somente a de certa intensidade, assim como a ameaça deve ser
“sensível”, para adentrar no marco da criminalidade. Se
reorganizássemos o instrumentário de nossa interpretação dos tipos
a partir destes princípios, daríamos uma significativa contribuição
para diminuir a criminalidade em nosso país (ROXIN, 2000, p. 47-
48).

O princípio da insignificância, diante do exposto, exclui do campo de


incidência da norma penal, aquelas infrações que não passaram do mero
estágio de adequação formal do fato, posto que, ante o grau de
inexpressividade, não há falar em reprovação penal:

(...) O princípio da insignificância é o princípio penal que norteia a


comparação entre o desvalor consagrado no tipo penal e o desvalor
social da conduta do agente, aferindo, assim, qualitativa e
quantitativamente a lesividade desse fato para constatar-se a
presença do grau mínimo necessário à concreção do tipo penal; se
nesse cotejo axiológico verificar-se que o desvalor do ato ou do
resultado é insignificante em relação ao desvalor exigido pelo tipo
penal, então esse fato deverá ser excluído da incidência penal, já que
é desprovido de reprovabilidade jurídica (SILVA, 2011, p. 100).

163
4. A (IN)APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES
CONTRA O PATRIMÔNIO NÃO VIOLENTOS

Apesar das bases dogmáticas em que está assentado, o princípio da


insignificância enfrenta resistência por parte da doutrina e da
jurisprudência, diante da suposta ausência de previsão ou regulamentação
legal, o que proporciona demasiada discricionariedade no instante em que se
reconhece ou não uma conduta como insignificante, o que poria em risco a
segurança jurídica (SANGUINÉ, 1990, p. 44 apud SILVA, 2011, p. 153).
Em doutrina, há posicionamento no sentido de que existem três
critérios para que se possa aplicar o princípio da insignificância, quais
sejam, a pouca reprovabilidade da conduta, a agressão a bem jurídico de
baixa relevância e a recorrência com que a conduta é praticada na sociedade
(DEU, 1991, p. 58 apud CARVALHO, 2006, p. 143)
No julgamento do Habeas Corpus n° HC 84.412-0/SP, realizado em
19.10.04, o Supremo Tribunal Federaldefiniu os critérios para a verificação
da infração penal bagatelar: a mínima ofensividade da conduta do agente,
nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade
do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Ocorre que a falta de uma teoria de política criminal bem definida,
como também, a precisão dos requisitos exigidos pelo Supremo Tribunal
Federal para a aplicação do princípio da insignificância, além da cultura de
intolerância em relação aos crimes patrimoniais, vêm colaborando para que
muitas pessoas sejam apenadas por crimes bagatelares8. Noutras palavras,
há muita gente sendo levada e/ou mantida na prisão pela prática de fato
atípico.
Tem sido comum a notícia de determinado autor de crime não violento
contra o patrimônio ser condenado em primeira e segunda instâncias, sendo
absolvido apenas quando os Tribunais Superiores apreciam, em regra, o
remédio heroico constitucional do habeas corpus. Ademais, na maioria dos
pedidos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal, em casos com essas

8Não se ignora o fato de que há posicionamento doutrinário no sentido da impropriedade da


expressão crime de bagatela (GRECO, 2009).
164
características, os acusados eram assistidos pela Defensoria Pública
(BOTTINI, 2012, p. 134).
De acordo com os últimos dados coletados pelo Ministério da Justiça,
no ano de 2014, a população prisional brasileirachegou a 607.731
(seiscentas e sete mil, setecentas e trinta e uma) pessoas, das quais cerca de
41% (quarenta e um por cento)sequer foram condenadas. Destaca-se que
11% da população carcerária brasileira aguarda julgamento ou foi
condenada pela prática do crime de furto9.
O número de pedidos de Habeas Corpus, referentes à aplicação do
princípio da insignificância para casos de infrações penais contra o
patrimônio, como furto, estelionato e apropriação indébita, preocupa, afinal,
observa-se um tratamento mais draconiano por parte do Judiciário brasileiro
à parcela mais carente que, costumeiramente, incide nessa figura delitiva.
Segundo dados divulgados pelo Supremo Tribunal Federal em 2011,
observa-se que há:

Dos 340 Habeas Corpus autuados no Supremo Tribunal Federal


(STF) entre 2008 e 2010 pleiteando a aplicação do princípio da
insignificância (ou bagatela), 91 foram concedidos, número que
equivale a 26,76% do total.
Em 2008, chegaram ao STF 99 processos do tipo, sendo que 31
foram acolhidos. Em 2009, dos 118 habeas corpus impetrados na
Corte sobre o tema, 45 foram concedidos. Já em 2010, o STF recebeu
123 HCs sobre princípio da insignificância, acolhendo somente 15
desses pedidos (BRASIL, 2011).

Conforme o informativo n° 793, de 3 a 7 de agosto de 2015, o Supremo


Tribunal Federal julgou, conjuntamente, os Habeas Corpus n° 123.108/MG
(no qual o paciente sofrera condenação à pena de um ano de reclusão e dez
dias-multa pelo crime de furto simples de um chinelo, avaliado em R$ 16,00,
apesar de haver restituído o bem), o de n° 123.533/SP (em que a paciente
fora condenada pela prática de furto qualificado de dois sabonetes líquidos
íntimos avaliados em R$ 40,00, na forma qualificada pelo concurso de
agentes, à pena de um ano e dois meses de reclusão, em regime semiaberto e
cinco dias-multa) e o de n° 123.734/MG (cujo paciente fora condenado pelo

9 Dados do Ministério da Justiça – Infopen estatística, disponíveis em: <


http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-
feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Último acesso em 27.08.2015
165
furto qualificado pela escalada e rompimento de obstáculo de 15 bombons
caseiros, avaliados em R$ 30,00, à pena de detenção em regime inicial
aberto, em que pese reconhecida a primariedade do réu e a ausência de
prejuízo à vítima).
Analisando os julgados mencionados no parágrafo anterior, o Plenário
do Supremo entendeu que para a aplicação do princípio da insignificância,
não basta, tão somente, a aferição da inexpressividade penal constante da
lei, sendo necessário um olhar social sobre o caso, evitando-se, com o
reconhecimento da atipicidade, o estímulo à prática de tais condutas:

O Plenário aduziu ser necessário ter presentes as consequências


jurídicas e sociais que decorrem do juízo de atipicidade resultante da
aplicação do princípio da insignificância. Negar a tipicidade
significaria afirmar que, do ponto de vista penal, as condutas seriam
lícitas. Além disso, a alternativa de reparação civil da vítima seria
possibilidade meramente formal e inviável no mundo prático. Sendo
assim, a conduta não seria apenas penalmente lícita, mas imune a
qualquer espécie de repressão. Isso estaria em descompasso com o
conceito social de justiça, visto que as condutas em questão, embora
pudessem ser penalmente irrelevantes, não seriam aceitáveis
socialmente. Ante a inação estatal, poder-se-ia chegar à lamentável
consequência da justiça privada. Assim, a pretexto de favorecer o
agente, a imunização de sua conduta pelo Estado o deixaria exposto
a uma situação com repercussões imprevisíveis e mais graves. Desse
modo, a aferição da insignificância como requisito negativo da
tipicidade, mormente em se tratando de crimes contra o patrimônio,
envolveria juízo muito mais abrangente do que a simples expressão
do resultado da conduta. Importaria investigar o desvalor da ação
criminosa em seu sentido amplo, traduzido pela ausência de
periculosidade social, pela mínima ofensividade e pela ausência de
reprovabilidade, de modo a impedir que, a pretexto da insignificância
do resultado meramente material, acabasse desvirtuado o objetivo do
legislador quando formulada a tipificação legal. Aliás, as hipóteses de
irrelevância penal não teriam passado despercebidas pela lei, que
conteria dispositivos a contemplar a mitigação da pena ou da
persecução penal. Para se conduzir à atipicidade da conduta,
portanto, seria necessário ir além da irrelevância penal prevista em
lei. Seria indispensável averiguar o significado social da ação, a
adequação da conduta, a fim de que a finalidade da lei fosse
alcançada (BRASIL, 2015).

Com a devida vênia, não se pode concordar com a motivação esposada


pelo Plenário do Supremo, por conta do julgamento dos Habeas Corpus n°
123.108/MG, 123.533/SP e 123.734/MG, notadamente, quando se observa
que o mesmo raciocínio não é aplicado em casos de crime contra a ordem
tributária, para os quais o tratamento, administrativo, legal e

166
jurisprudencial, é muito mais tolerante e parcimonioso, salvo se a sonegação
ultrapassar a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
A discrepância é tão latente que, a pessoa que furta o objeto de alguém
não se beneficia caso promova o ressarcimento do bem, antes da denúncia.
Já aquele que responde por sonegação fiscal, caso pague o tributo omitido,
antes do início do processo, será beneficiado com a extinção da punibilidade.
Segundo SILVA (2011), as bases jurídicas do princípio da
insignificância são o princípio da igualdade (em seu sentido material), o
princípio da liberdade (no Estado Democrático e Constitucional de Direito, a
prisão é ou deveria ser a ultima ratio), o princípio da Fragmentariedade (o
Direito Penal só se preocupa de infrações graves) e o princípio da
proporcionalidade.
Ao estabelecer tratamento penal, normativo e jurisprudencial, diverso
aos crimes contra o patrimônio público e privado, o Estado brasileiro se
afasta de uma linha de política criminal coerente, na medida em que distorce
institutos jurídicos (quebra da isonomia e da proporcionalidade) e colabora
para o cada vez mais caótico sistema penitenciário pátrio.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se com esses apontamentos, destacar a cultura


patrimonialista que vem norteando a edição de normas penais, além do
tratamento penal mais rigoroso àqueles que respondem por crimes contra o
patrimônio, mesmo que praticados sem violência ou grave ameaça.
A exemplo da virada que se operou com a legislação civil, já que o
Código de 1916, excessivamente patriarcal e patrimonialista, deu lugar ao
Estatuto de 2002, o qual dedicou espaço interessante aos direitos da
personalidade, representando inegável avanço.
A legislação penal, tanto o Código Penal, quanto a extravagante,
precisa dessa mudança de paradigma.
Entretanto, essa virada deve perpassar também pelos órgãos de
atuação jurisdicional, afinal, não raro os processos que envolvem
comportamentos inexpressivos, no sentido de ofensa ao bem jurídico
167
patrimônio, a aplicação do princípio da insignificância só se dá, e quando se
dá, no julgamento de habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Federal.
A imposição de pena de prisão ao crime de furto, por exemplo, além da
imposição de óbices alheios à verificação da análise da insignificância, só
reforçam o estado de crise estatal, no que tange à definição de uma política
criminal coesa (ou expande ou retrai o direito penal), e no que se refere ao
número excessivo de prisões desnecessárias e desumanas.
Quando se observa que crimes contra a ordem tributária, cuja
sonegação pode chegar à quantia de quase R$ 20.000,00 e mesmo assim
não ser processado criminalmente, diante da “inexpressividade” da
importância sonegada, uma pergunta insiste em incomodar: para que(m)
serve o princípio da insignificância?

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170
A CORRUPÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO MODERNO E A INFLUÊNCIA
POLÍTICA E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL

Maíra Fronza1
Adalberto Narciso Hommerding2

1. INTRODUÇÃO

O lucro e o capital atuam como novo medidor axiológico da sociedade.


E tais mediadores, integrantes do subsistema econômico, invadem, ainda
que indiretamente, o subsistema jurídico, que acaba sendo pressionado pela
mídia, pela política e até mesmo por interesses eleitoreiros, o que termina
por causar a corrupção do sistema de direito, especialmente na seara penal.
É de fácil percepção que os representantes da população (legisladores) estão
preocupados apenas com a criação da legislação para sanar determinados
problemas, sem, contudo, observar se as normas criadas terão, ou não,
alguma efetividade diante do problema e, inclusive, se são realmente a
solução para os problemas que surgem com a expansão do neoliberalismo. O
presente trabalho pretende fazer um breve análise do subsistema jurídico
atualmente corrompido por outros sistemas e acerca da influência
política/popular e midiática que pressiona o legislador na tomada de
providências diante da problemática da criminalidade.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TEORIA SISTÊMICA DE


LUHMANN

A noção da autopoiese no sistema social é devida a Nicklas Luhmann.


O sistema autopoiético surge da concepção de sistema trazida por dois
biólogos chilenos, Maturana e Varela, entendendo que um organismo vivo,

1 FRONZA, Maíra. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste


do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI; Pós-graduada em Direito Tributário pela
UNIDERP - Universidade Anhanguera; Graduada em Direito pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI.
2 HOMMERDING, Adalberto Narciso. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Alicante,

Espanha (2012); Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
(2005); Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2001).
171
seja animal, seja vegetal, deve ser considerado um sistema dotado de partes
vinculadas entre si, independentes de outros seres, mas, que interagem
dentro do próprio grupo. E é por isso que o dito sistema é considerado pelos
referidos doutrinadores como sistema fechado. Ressalta-se, outrossim, que
os ditos autores também referiram que o sistema, além de fechado, era
autopoiético e autorreferencial, conceitos que foram aprimorados pelos
estudos de Luhmann.
O conceito de “autopoiesis”, como dito, teve início no final da década
de 60 pelos biólogos chilenos Maturana e Varela. Os mencionados biólogos
utilizavam, então, do dito termo para indicar as designações como
autorreferido e autorreferente não só relacionadas aos seres vivos, mas
também para referir acerca do sistema nervoso (RODRIGUES e NEVES,
2012).
Como o conceito de autorreferência está intimamente ligado à
concepção da autopoiese, importa transcrever o dito conceito trazido por
Luhmann que refere como sendo uma “unidade do sistema consigo mesmo”
(apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 30). No entanto, o conceito de
autopoiese surge quando os referidos biólogos tentam explicar a autonomia
de um organismo vivo que é considerado como um sistema que se
autoproduz.
Para melhor compreensão, pode-se dizer que o sistema autopoiético é
um sistema fechado que, embora seja operado de forma autorreferenciada
em um determinado meio ou “entorno que o circunda”, produz uma
operação de diferenciação. Um exemplo de grande valia utilizado pelos
biólogos chilenos (Maturana e Varela) para explicar o conceito de autopoiese
é de que um ser vivo, seja ele planta ou animal ou, ainda, determinada
célula, não depende exclusivamente do meio em que vive, mas, sim, de sua
própria unidade sistêmica. Isto é, ser uma célula nervosa (e não epitelial),
ser um milho (e não um feijão), ser um gato (e não um cachorro)
(RODRIGUES e NEVES, 2012).
Dito de outro modo, são os elementos internos dos seres vivos (dos
sistemas vivos) que fazem com que esses (os seres vivos) sejam o que são,
inclusive, conservem o seu estado dessa forma.
172
Enfim, a autopoiesis é a capacidade que os sistemas autorreferidos
têm de produzirem-se a si próprios como unidades diferenciadas. Em outras
palavras, pode-se dizer que o sistema que se autoproduz também se
autorrestrutura, se autorrepara, se autotransforma e se autodapta sem
perder sua identidade. Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 32)
afirma mais, que “os sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos
produzem não apenas a sua estrutura, mas também os elementos que os
constituem [...] sem importar a base energética ou material. Os elementos
são informações, são diferenças que no sistema fazem diferença”.
Segundo Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012), para análise
do teoria sistêmica, faz-se necessária a distinção entre sistema e entorno.
Para o dito doutrinador, os sistemas estariam sempre ligados, acoplados e,
inclusive, orientados em relação a um entorno. O entorno poderia também
ser descrito como a parte externa de um determinado sistema. Destaca
também que no processo autopoiético a observação é importante para a
diferenciação do sistema e do entorno, muito embora ambos sejam
inteiramente ligados.
Aspecto também de grande valia que merece ser considerado é o fato
de que Luhmann entende a teoria sistêmica como evolucionista à medida
que interpreta o meio em que está inserido.
Para Luhmann, no entanto, o que importa é a autopoiese como um
sistema de reprodução. E tal sistema de reprodução no sistema social é o
denominado processo de comunicação, uma vez que os sistemas sociais são
entendidos como sistemas comunicativos (apud RODRIGUES e NEVES,
2012).
Rodrigues e Neves (2012, p. 60-61) referem que “a comunicação é a
operação própria dos sistemas sociais. É uma operação puramente social
porque pressupõe o envolvimento de vários problemas psíquicos em que se
possa atribuí-la exclusivamente a um ou a outros destes sistemas: não pode
haver comunicação individual”. Dito de outro modo, segundo os referidos
autores na esteira de Luhmann, quem comunica é o sistema social, e não os
seres humanos, haja vista que é a sociedade que se reproduz como sistema
de comunicação.
173
Ainda que os subsistemas sejam fechados à comunicação com outros
subsistemas, quando se organizam, porém, os variados subsistemas como
ciência, economia, política, etc., passam a se comunicar com outros
subsistemas por meio de decisões. E tais decisões, segundo Rodrigues e
Neves (2012), não prejudicam a autopoiesis do sistema social.
A comunicação nada mais é do que um processo de atualização
constante que envolve um grande número de pessoas que pensam de modo
diverso (RODRIGUES e NEVES, 2012)
Segundo Elaine V. Domingos Santos (2009), o sistema é sempre menos
complexo que o ambiente em que ele está inserido e, em razão da
complexidade do dito ambiente, faz-se necessária a seletividade de elementos
que reduzam tal complexidade.
Elaine V. Domingos Santos (2009, p.1) também conceitua
contingência:

Contingência é o fato de que, entre as possibilidades que se mostram


no sistema ou para o sistema, pode sempre ocorrer das expectativas
esperadas naquelas relações frustrações. Em outras palavras, cada
seleção atribuída a um sistema é produto de alternativas que fora
deixadas de lado. Numa situação contingencial, não se sabe quais os
resultados a serem escolhidos visto que se trabalha com
possibilidades. Portanto, na contingência, depende-se de
expectativas futuras, ou seja, há a necessidade de assumir riscos.

A autora ainda ressalta que o sistema social surge quando os


indivíduos expõem sua contingência um ao outro (indivíduo) gerando a
referida complexidade.
Outro aspecto importante trazido por Elaine V. Domingos Santos
(2009) quanto à teoria de Luhmann é a impossibilidade da existência de
sociedade sem meio ambiente, ainda que o sistema seja autopoiético. A
ligação do sistema com seu meio ambiente é também denominada de
acoplamento estrutural. Elaine novamente refere a comunicação como um
exemplo concreto de sistema autopoiético.
Como visto, o sistema está ligado ao seu exterior, ou seja, ao mundo
de valores que conduz a sociedade. Surge, então, a necessidade de dividir a
sociedade em subsistemas que relaciona a desigualdade e a igualdade entre

174
indivíduos. E daí também surge a distinção entre incluídos e excluídos
(SANTOS, 2009).
Por fim, o direito, além da economia, da política, da religião, é umo
subsistema inseridos dentro de um sistema que, como dito, é autopoiético e
que sobrevive dentro de seus próprios limites, autorreproduzindo-se para
atingir suas necessidades.
Entretanto, a comunicação dos sistemas sociais, ainda que seja
importante, atualmente está ocorrendo de modo acelerado, o que vem
proporcionando uma certa “corrupção sistêmica”, consoante será adiante
discorrido.

3. A CORRUPÇÃO DO SISTEMA (SUBSISTEMA) JURÍDICO MODERNO E


O SIMBOLISMO LEGISLATIVO EM RESPOSTA ÀS PRESSÕES
POPULARES

Como é sabido, os sistemas sociais atuais, quais sejam, direito,


economia, político, etc., estão cada vez mais interligados. Ocorre que, muito
embora essa “comunicação sistêmica” seja importante para o
desenvolvimento da sociedade moderna, a interferência direta de um sistema
ou subsistema em relação ao outro acaba por causar a denominada
“corrupção sistêmica, o que é chamada por muitos estudiosos como
“alopoiesis”.
A “alopoiesis”, entretanto, não pode ser vista como um conceito
isolado, mas, sim, oriundo da denominada “autopoiesis” trazida por
Luhmann por meio da sua teorias sistêmica de matriz biológica.
Consoante Marcelo Neves (2009), o sistema autopoiético que é fechado
e autônomo em relação aos demais subsistemas da sociedade se contrapõe
com o termo alopoiese que, por sua vez, se relaciona com o estado de
corrupção sistêmica.
E a alopoiese é o fenômeno que impede o desenvolvimento do Direito
em determinados pontos da sociedade justamente pela falta de autonomia
que decorre da sobreposição de outros códigos, especialmente econômico
(ter/não ter) e o político (poder/não poder) (NEVES, 2009).
175
Para Lira (2015), a relação do direito penal dentro do sistema jurídico
depende da função que o referido subsitema jurídico desempenha na
sociedade. Ou seja, é o processo de comunicação existente entre os
subsistemas existentes com o Sistema do Direito que irá fomentar a criação
de normas para a regulação de condutas tidas como lícitas ou ilícitas.
Segundo Luhmann (2005, pp. 188-189), “o Direito se encarrega de
uma só função, a saber: estabilização das expectativas normativas, via
regularização temporal, objetiva e social”.
A bem da verdade, quando há uma intromissão dos sistemas políticos,
sociais e/ou econômicos, seja por meio de pressões populares ou midiáticas,
ocorre a corrupção do Sistema de Direito. E isso causa a alopoiese, que é
simplesmente a interferência de outros sistemas no processo operativo
jurídico (LIRA, 2015).
Em outras palavras, significa dizer que o sistema jurídico perde sua
autonomia quando invadido por outros campos, o que Luhmann denomina
de “estado de corrupção” (2005, pp. 151-193). O exemplo típico de
“intromissão” referido por Adalberto Narciso Hommerding e José Francisco
Dias da Costa Lyra (2014, p. 100) é a pressão política e midiática. E é nesses
aspectos que estão focadas as discussões deste trabalho acadêmico.
Como é sabido, o direito surge em razão da necessidade da
regulamentação da paz, da ordem social, da segurança e, inclusive, do bem-
estar comum. E tudo isso se dá com o objetivo de melhorar a convivência
entre as pessoas e o progresso social. Tal fato torna o direito dinâmico,
exigindo que ele, a cada época, acompanhe os anseios e interesses da
sociedade para a qual foi criado.
É justamente nesse ponto que o presente trabalho pretende focar o
estudo. Ou seja, a legislação sofre mutação em decorrência das variações
sociais no tempo e no espaço. E isso está relacionado diretamente com a
pressão política e midiática de que se falava anteriormente. Portanto, há a
necessidade de o direito se refazer. Porém, a lei, como expressão positiva do
Direito, não pode ser simplesmente criado como forma de dar uma resposta
à sociedade sem ter, na prática, qualquer eficácia.
Max Weber (apud OLIVEIRA, 1997) já dizia que o direito é um
176
instrumento de dominação da sociedade, haja vista que a dita sociedade se
submete às regras de obediência impostas. Logo, aqueles que detêm o poder
político controlam a sociedade porque impõem a sua vontade. Assim, os
detentores do poder político exercem a dominação da sociedade, que “crê”
estar organizada por meio da criação da legislação.
Na verdade, o que se vê, principalmente no Brasil, que adotou o
Sistema codificado de regulação social, é que o legislador, diante das
pressões dos demais sistemas existentes, cria determinada legislação com o
objetivo de “dar uma resposta à sociedade” no sentido de que está (o poder
legislativo) tomando as providências necessárias diante de determinado fato.
E essa forma de criação de leis denomina-se de simbolismo legislativo. Nesse
sentido, Lira refere que (2015, p. 105):

A função simbólica da lei caracteriza-se, então, pela não produção de


efeitos externos. É dizer: a eficácia e a efetividade da lei só acontecem
na mente dos governantes e dos cidadãos, pois aqueles acreditam
terem feito algo para a proteção da paz pública.

No entanto, o que se vê é que o legislador, quando da criação de


determinadas leis, não busca realmente solucionar as verdadeiras
necessidades e exigências sociais, o que, acredita-se, no caso do Brasil, deve
ser feito por meio de políticas públicas, e não por meio de políticas
legislativas simbólicas , de cunho criminalista populista, que visam apenas
“aquietar” as massas populares e as influências da mídia.
O sistema jurídico atual apresenta, portanto, uma corrupção ou
irritação causada por outros subsistemas, o que, como dito, dá origem ao
simbolismo legislativo que visa passar uma “falsa” percepção da realidade.

4. A INFLUÊNCIA POPULAR E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL


ORIUNDA DO NEOLIBERALISMO EXPANSIVO

A bem da verdade, segundo Bauman e Mendoza Buergo (apud


HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 76):

177
[…] a pós-modernidade ou a modernidade-tardia, novo padrão
distintivo de relações econômicas e sociais, trouxe, no seu bojo, um
conjunto de riscos, inseguranças e problemas de controle social,
reconfigurando, dessa forma, as expectativas sociais com relação às
políticas criminais de repressão à criminalidade, já que o “caldo
cultural” pede o endurecimento da resposta penal.

Hommerding e Lyra (2014) referem que o Estado de Bem Estar Social


encontra-se em crise, seja pelos fatores oriundos do neoliberalismo, seja
pelos fatores oriundos da globalização, e, em razão disso, a sociedade
“clama” por estabilidade e segurança.
E para a solução de tal problemática (insegurança e instabilidade), faz-
se necessária a implantação de uma promessa de “vencer o inimigo”, ainda
que se tenha que infringir outros conceitos e, inclusive, corromper o
subsistema jurídico penal.
A legislação penal, como consequência, sofre influência direta dos
subsistemas. É a chamada “corrupção”, referida por Luhmann
(HOMMERDING e LYRA, 2014).
A insegurança, o medo e a busca pela eficácia preventiva fazem com
que o Direito Penal fique adstrito à política, ainda que acabe seguindo o
caminho da desformalização material e processual.
A velocidade da propagação das informações por meio da mídia, como
é sabido, é praticamente instantânea e tem o condão de fazaer transparecer
os detalhes acerca dos riscos atuais e dos medos que vêm em face da
ausência de segurança pública. E isso, como refere Lira (2015, p. 105),
“insufla” o povo contra o poder legislativo como o objetivo de que tome
providências em relação à repressão da criminalidade.
O legislador, então, pressionado pelas pressões populares e midiáticas
e, até podemos dizer, com a intenção de não decepcionar seus eleitores, cria
leis, ainda que de pouca eficácia legislativa (legislação simbólica) para “dar a
impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido" (CANCIO
MELIÁ, 2010, p. 79).
A respeito do tema já diziam Hommerding e Lyra (2014, p. 46) que
atualmente há “uma percepção social emocionalmente carregada e forjada
pelos mass mídia, isto é, uma cobertura sensacionalista e populista à

178
criminalidade, que estimula uma política criminal de cunho conservador, a
saber: tendência de governar pelo crime”.
Acredita-se que o “protagonismo” dos meios comunicativos apresenta
um sério problema, pois há, de certa forma, o uso político do controle penal
por meio da legislação criada que se apresenta como mecanismo de
“ofuscamento e encobrimento dos problemas sociais” que acaba fugindo das
atribuições políticas (HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 47).
O cenário atual demonstra claramente que, em sua maioria, as
legislações penais atuais foram elaboradas pelo legislador ante a exigência
da sociedade por uma resposta para determinada situação, ainda que fosse
uma situação isolada.
Inúmeras Leis Penais Brasileiras foram criadas por ingerência da
mídia. Segundo Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.072/90 foi a primeira “Lei
Midiática” que surge em face da pressão existente. O caso criminal célere
que deu origem à criação da referida norma foi o sequestro do empresário
Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O sequestro do empresário Roberto Medina
também contribuiu para a criação da Lei dos Crimes Hediondos.
É claro, todavia, que já existia uma forte movimentação legislativa
para a criação da referida Lei, mas o clamor dos meios comunicativos
aliados às ondas de criminalidade “pressionaram” para a elaboração da dita
Lei.
Consoante coloca Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.930/94 também foi
fruto de uma pressão midiática, principalmente oriunda da Rede Globo de
Televisão. Tal Lei surgiu em razão do homicídio da atriz Daniela Perez, a
personagem Yasmin em uma novela da referida rede de televisão.
A mãe e escritora Glória Perez, com o assassinato de sua filia Daniela,
dirigiu uma mobilização nacional para a criação da Lei nº 8.930/94 que
tinha por objetivo acrescentar à Lei dos Crimes Hediondos o homicídio
qualificado.
Odacir Silva Mascarenhas (2010) cita os casos de Doka Street e Ângela
Diniz, de Daniela Perez, de Roberto Medina, Abílio Diniz, a Chacina de
Diadema, o assassinato dos jovens Liana Friendbach e Felipe Caffé, a morte
da missionária norte-americana Dorothy Stang, além dos acontecimentos
179
gerados pelos presos Beira-Mar e Marcola, como influentes para a
modificação da legislação penal.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) também foi uma legislação
elaborada “às pressas” em razão de clamores oriundos da Comunidade
Internacional em relação aos direitos das mulheres (LIRA, 2015) que, como é
de conhecimento de muitos (especialmente juristas e aplicadores do direito),
apresenta vários problemas quando da sua aplicabilidade na prática.
Não se pretende dizer, entretanto, que a Lei Maria da Penha, assim
como outras legislações não sejam necessárias para a regulações de certos
atos sociais. O que se quer demonstrar, por conseguinte, é que a Lei Maria
da Penha, entre outras, foi elaborada para responder anseios populares e
midiáticos, sem que se fizesse um estudo prévio e, não menos importante,
sem que se adotassem níveis de racionalidade legislativa para a sua criação.
Lembra-se, outrossim, que tal Lei (Lei Maria da Penha) teve intensos reflexos
no Código Penal e, inclusive, na nova Lei no Feminicídio – Lei nº
13.104/2015).
Muitos doutrinadores falam ainda que a influência na mídia na criação
das Leis é tão relevante que pode ser enquadrada como um “quarto poder”.
Segundo João Queiroz (apud MASCARENHAS, 2010):

a “comunicação social” vem reclamando o papel e esta função


mediadora e, em causa deste atributo, pretende ser um ‘cão de
guarda’ (watchdog) dos interesses públicos e, nesta medida,
simbolicamente, um ‘4º Poder’ social e público que vigia e controla os
poderes legislativos, executivo e judicial.

É claro que, do ponto de vista constitucional, não há como atribuir a


designação de quatro poder à mídia. Mas não há como esconder que a mídia
ganhou tal alcunha em razão da sua falta de legitimidade e da falta de
controle existente sobre os órgãos de comunicação.
Mascarenhas (2010) refere que a imprensa possui sim um papel de
vigilância dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A diferença é que a
mídia não se preocupa com o interesse público, mas, sim, com o interesse
“do público”. E essa forma de manipulação de ideias em razão de
determinados interesses enseja um comportamento midiático supra
180
constitucional.
Não se pode esquecer de destacar que, ainda que seja minoritária, a
mídia não tendenciosa e responsável é importante para o desenvolvimento
do Estado Democrático, haja vista que busca revelar as informações
verdadeiras dos acontecimentos, sem que haja qualquer influência externa,
seja oriunda do governo, seja oriunda de instituições privadas. Porém, como
dito, tal mídia quase inexiste no cenário brasileiro.
Como é sabido, a mídia procura relatar acontecimentos que atraem,
divertem, emocionam e chocam, gerando uma sensação de insegurança na
sociedade. E isso acaba “pressionando” o Poder Legislativo para a
implantação de uma legislação mais severa, ainda que não se tenha um
estudo técnico eficaz da correta aplicação da Lei Penal.
Giovani Santim (apud MASCARENHAS, 2010) refere que a imprensa
trata os problemas políticos, sociais e econômicos como um “paravento”. Em
outras palavras, a mídia alimenta uma cultura do medo por meio da criação
de riscos que ameaçam a segurança e a ordem, consoante o interesse de
determinados grupos sociais.
Nota-se, portanto, que a mídia se detém em divulgar apenas notícias
mórbidas, grotescas e cruentas, pois o objetivo é provocar uma sensação de
choque no leitor/telespectador e, inclusive, no próprio legislador que acaba
se corrompendo pela pressão midiática, muitas vezes distorcida.
A mídia, de fato, pode ser considerada um “quarto poder”, pois pode
realmente selecionar, falsear e sobretudo silenciar acerca de determinados
acontecimentos.
Nesse sentido, cita-se trecho de Guareschi (apud MASCARENHAS,
2010):

Se é a comunicação que constrói a realidade, quem detém a


construção dessa realidade detém também o poder sobre a existência
das coisas, sobre a difusão das ideias, sobre a criação da opinião
pública.
Mas não é só isso. Os que detêm a comunicação chegam até a definir
os outros, definir determinados grupos sociais como sendo melhores
ou piores, confiáveis ou não-confiáveis, tudo de acordo com os
interesses dos detentores do poder. Já foram feitos estudos
interessantes sobre o que determinados povos pensam de outros
povos. Essa opinião está baseada, principalmente, nas informações
181
que as pessoas recebem. Em estudos e pesquisas realizados no
campo da comunicação, verificou-se que a opinião pública é
preparada com informações sobre determinadas populações de tal
modo que isso pode chegar a justificar até mesmo uma invasão de
um país adversário. A pesquisa de Hester (1976) mostrou que, de
cada 100 notícias enviadas do bureau das Associated Press de
Buenos Aires para o quartel central dos Estados Unidos, apenas 8
eram aproveitadas. Mas o mais sério era que das 8 aproveitadas, 4
eram notícias que falavam de violência e criminalidade – quando das
100 originais, apenas 10 eram sobre o assunto. Com isso, os países
informados por essas agências vão formando opinião, construindo
imagens sobre determinados povos, identificando-os como
criminosos e violentos. Não é difícil, posteriormente, legitimar uma
invasão ou retaliações sobre populações que, para a grande maioria,
são criminosas e violentas (grifo nosso).

Não há dúvidas, por conseguinte, que o Poder Legislativo sofre uma


“pressão” na elaboração das leis penais ante o clamor público para a
efetivação dos direitos.
O crime continua sendo tratado como um problema de interesse
público. A mídia, portanto, intensifica a preocupação da sociedade quanto à
delinquência e à ausência de segurança pública. Ocorre que, em busca da
repressão penal, na maioria das vezes, a figura do “inimigo”, representada
por atores das classes sociais populares, é demonizado pela mídia,
promovendo, assim, uma produção legislativa penal precipitada
(MASCARENHAS, 2010).
Não sequer aqui apenas “criticar” as Leis Penais criadas no Brasil por
ingerência da mídias e, consequentemente, da população, mas, sim,
demonstrar que muitas vezes a pressão política acaba deixando de lado,
como dito, os aspectos técnicos e teóricos importantes que devem ser
observados pelos legisladores para a criação de determinada norma.
Para Miguel Carbonell (apud HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 107):

[...] os meios de comunicação, que se relacionam intimamente com o


poder econômico, serão as forças principais que determinarão, em
realidade, a conduta dos indivíduos e pressionarão os poderes
públicos para obterem qualquer tipo de benefícios, nem sempre
lícitos.

A criação da legislação no Brasil, especialmente a Lei Penal, está


vestida de simbolismo que, aos olhos do povo, passa a ser considerada a
182
solução adequada para a punição e prevenção de certos acontecimentos
graves. Porém, tal legislação na sua essência (criação) vê-se corrompida pela
influência política/popular e midiática, seja pela pressão eleitoreira ou
oposicionista, seja pela necessidade de uma rápida solução dos conflitos
apresentados, o que, consoante referido, não traz o resultado esperado, a
solução do conflito social.
E a prova da corrupção do sistema penal por outros subsistemas
evidencia-se no fato de que, muito embora haja o endurecimento penal e a
explosão carcerária, a criminalidade não está decrescendo (HOMMERDING e
LYRA, 2014).
Nesse sentido, colaciono dados extraídos do último Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias realizado em junho de 2014 que
demonstra o aumento da população carcerária (2014, p. 15):

Entre 2000 e 2014, a taxa de aprisionamento aumentou 119%. Em


2000, havia 137 presos para cada 100 mil habitantes. Em 2014,
essa taxa chegou a 299,7 pessoas. Caso mantenha-se esse ritmo de
encarceramento, em 2022, a população prisional do Brasil
ultrapassará a marca de um milhão de indivíduos. Em 2075, uma
em cada dez pessoas estará em situação de privação de liberdade.

E tal problemática permanece, consoante ensina François (1999, pp.


378 e seguintes), talvez porque “o Direito Penal necessita de tempo para
proceder a uma auto-observação (tempo de aprendizagem) e forjar uma
dogmática jurídica orientada pelas consequências”.
Não há dúvidas, por conseguinte, que o controle penal é marcado por
uma intervenção de outros sistemas que “pressionam” para a criação de
uma Lei Penal que reafirme, ainda que simbolicamente, certos valores e o
consenso social. É por isso que, de regra, a Lei Penal não resolve conflitos e
problemas sociais.
Acredita-se, portanto, que a solução para esse impasse pode estar nas
teorias de Luhmann que entendem que o sistema jurídico necessita de uma
“clausura operativa” a fim de impedir que a pressão social ou uma
determinada campanha dos meios comunicativos possa modificar o direito.
E mais: o legislador, quando da elaboração de determinada Lei, deve
ter a visão do conjunto, da filosofia moral, da política, dos interesses opostos
183
dos grupos que pressionam a elaboração de determinada legislação, entre
outros fatores principiológicos, o que, pelo que se vê, não é o que está
ocorrendo em nosso país.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Acredita-se que o Direito Penal Brasileiro está em crise e, portanto,


precisa ser reformulado. É necessário que o legislador, quando da criação da
Lei Penal esteja atento às influências de outros subsistemas, como
econômico, cultural, etc. (alopoiesis). E mais: cabe ao legislador abandonar
algumas ideias trazidas pela mídia e, inclusive, estar atento as pressões
emanadas da globalização e dos interesses eleitoreiros, sob pena de
corrupção do sistema penal como um todo, o que, convenha-se, vem
ocorrendo com a legislação vigente, sobretudo a penal. Há, por conseguinte,
a necessidade de que seja realizado um estudo prévio efetivo acerca da
efetividade de determinada Lei, buscando verificar se a norma que entrará
em vigor realmente irá solucionar os problemas da criminalidade ou apenas
será destinada para “tranquilizar a sociedade atormentada”. A nação não
necessita de legislações simbólicas, mas, sim, de projetos e políticas que
resolvam os problemas sociais, como é o caso da criminalidade.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Ministério da Justiça - Levantamento Nacional de Informações


Penitenciárias. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-
direitos/politica-penal>. Acesso em 8 ago. 2015.

HOMMERDING, Adalberto Narciso; LYRA, José Francisco Dias da Costa.


Racionalidade das leis penais e legislação penal simbólica – 1. ed. Rio de
Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2014.

JAKOBS, Gunther. CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito penal do inimigo:


noções e críticas - 4. ed. Tradução André Luís Callegari e Nereu Giacomolli.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

LIRA, Cláudio Rogério Sousa. Direito Penal na pós-modernidade: a


racionalidade legislativa para uma sociedade de risco - 2ª edição. Curitiba:
Juruá. 2015.

184
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedade. Tradución de Javier Torre
Nafarrate. México: Herber, 2005.

MASCARENHAS, Odacir Silva. A influência da mídia na produção


legislativa penal brasileira. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 83, dez
2010. Disponível em<http://www.ambito-
Jurídico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8727&revista
_caderno=3>. Acesso em 12 nov. 2014.

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes,


2009.

OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena. O direito como meio de controle social


ou como instrumento de mudança social ?. Revista de Informação
Legislativa. Brasília a 34, n. 136, out/dez 1997.

RODRIGUES, Leo Peixoto; NEVES, Fabrício Monteiro. Niklas Luhmann: a


sociedade como sistema – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.

SANTOS, Elaine V. Domingues. Teoria da sociedade de Niklas Luhmann.


Jus Navegandi, Teresina, ano 14, n. 2348, 5 dez. 2009. <Disponível em:
http://jus.com.br/artigos/13947>. Acesso em: 7 nov. 2014.

185
A CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SEUS EFEITOS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO1

José Ricardo Maciel Nerling2


Regina Gütler Carvalho3

1. INTRODUÇÃO

A conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato


sexual sem autorização da vítima, conhecida como a pornografia de
vingança, tem se tornado algo comum nos dias de hoje. A popularização das
redes sociais e a democratização da internet, dos computadores e dos
celulares smartphones, vieram a facilitar esse tipo de conduta, causando
inúmeros transtornos às vítimas, em sua maioria do sexo feminino, sendo
que algumas chegaram ao extremo de cometer suicídio, uma das
consequências mais lastimáveis desse tipo de conduta.
O presente artigo é o resultado de um estudo dessa situação. Buscou-
se saber desde a origem do termo, como ele é tratado em alguns países,
como os Estados Unidos, Japão, Inglaterra, e como estamos tratando desse
assunto no Brasil. Além disso, discutimos as consequências dessa conduta
para as vítimas e para os autores, bem como de uma possível criminalização
desse ato, trazendo os projetos de leis sobre o tema, como forma de coibir
novos casos e novas vítimas.
Além de discutir a possível criminalização da conduta de divulgar
indevidamente imagens e vídeos de outrem, o presente artigo também
ressalta a importância da discussão da moral e de gênero, já que estes são,
visivelmente, os pilares de uma possível melhora do contexto em que
vivemos quando o assunto é pornografia de vingança.

2.CONCEITO E ORIGEM DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA

O termo “pornografia de vingança” é ainda muito recente, passou a ser

1 Artigo Científico realizado no decorrer do curso de Graduação em Ciências Jurídicas e


Sociais da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ.
2 Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. zejosers@yahoo.com.br
3Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. Regina.gcarvalho@hotmail.com

186
discutido – e definido - no período que compreende os últimos 5 (cinco) anos,
sendo, portanto, um objeto de estudo novo, um tema ainda jovem, tanto no
quesito social, quanto judicial.
Em resumo, pornografia de vingança é o ato de divulgar indevidamente
material íntimo de outrem. Embora esse ato tenha tomado grandes
proporções recentemente, o mesmo tem início ainda nos anos oitenta (1980),
quando revistas eróticas masculinas criaram, nos Estados Unidos, sessões
para divulgação de cenas produzidas pelos próprios leitores. A terminologia
também tem origem norte-americana, e decorre do termo “revenge porn”,
traduzido literalmente para o português como “pornografia de revanche”.
Vale citar que também veio do país ianque a primeira resposta a esse
ato. O estado da Califórnia foi pioneiro ao introduzir na legislação penal a
pornografia de vingança, através de lei sancionada em 2013 pelo então
governador Jerry Brown, que a tornou crime. A proposta foi do senador
republicano Anthony Cannela, e passou a prever prisão e multa4 aos
responsáveis.
Seguindo a linha, como resposta ao fenômeno e aos suicídios
cometidos pelas vítimas, países como o Japão (2014), por exemplo,
promulgaram legislação pertinente ao tema5, e outros, como a Inglaterra,
discutem atualmente a sua criminalização6.
A pornografia de vingança é mais um ato que reflete a sociedade
contemporânea, marcada pela individualização social, pela facilidade de
acesso às tecnologias e pela universalização instantânea das informações e
mensagens ao redor do globo.
A popularização das redes sociais e a democratização da internet, dos
computadores e dos celulares smartphones, são alguns dos meios que
vieram a facilitar que a pornografia de vingança viesse a se tornar contumaz
nos finais de relacionamentos amorosos e sexuais. Todavia, de maneira
alguma são os responsáveis por seu acontecimento, vez que a causa desse
problema não é tecnológica, e sim humana.

4 Prevê até 6 (seis) meses de prisão e multa.


5 Prevê até 3 (três) anos de prisão e multa.
6 Projeto deve impor pena de até 2 (dois) anos de prisão.
187
A pornografia de vingança é, na verdade, reflexo de um contexto social
decadente, onde teses mais conservadoras ainda propõem que um parceiro
seja propriedade do outro, retirando de outro ser humano sua liberdade de
escolha, sua dignidade, e denegrindo sua imagem, num ato desmedido de
completo desrespeito e intolerância.
Desde os primórdios da humanidade, a rejeição amorosa e sentimental
é encarada como algo a ser punível, algo a ser vingado por aquele que foi
deixado7. Sabe-se, por exemplo, que o próprio adultério, em algumas
culturas antigas, tinha por pena a morte de quem o cometia.
Essa cultura retributiva se mantém viva até hoje, seja na forma legal,
como, por exemplo, em alguns países em que a Sharia8 prevê pena capital,
ou na forma costumeira, muitas vezes velada, onde, na prática, ainda existe
o assassinato de pessoas por seus companheiros(as) ou ex-
companheiros(as), principalmente motivados por ciúmes, sentimento de
propriedade e a não aceitação do fim do relacionamento.
A divulgação de imagens íntimas deriva desse mesmo tipo de ideologia
e sentimento possui igual “teor prático”, refletindo uma diferente atitude
diante da mesma motivação arcaica. O que a distingue, entretanto, é o fato
de ser realizada por meios tecnológicos recentes, como a internet, redes
sociais, etc. Todavia, ainda visa agredir, destruir, punir e vingar, tomando na
atualidade, frequentemente, proporções gigantescas, até mesmo globais,
conforme bem expõe a escritora Maria João Marques,

estas exposições – maioritariamente de mulheres – são primas


afastadas daqueles ataques mais violentos que as mulheres sofrem,
às mãos de maridos e familiares, noutras partes do mundo, quando
mostram a ousadia de serem donas dos seus narizes – ou, na versão
Ocidente, terem vida sexual. Ácido vertido na cara para
permanentemente desfigurar as senhoras insubmissas e assim lhes
arruinar a perspectiva de encontrarem novo marido. Ou rega com
combustível e fogo a seguir. (...) As possibilidades são tantas quantas
as imaginações sádicas. O fundo é igual: mostrar que as mulheres
não podem abandonar uma relação impunemente (MARQUES,
2015).

7Vale ressaltar que, no Brasil, faz apenas 10 anos que o crime de adultério foi revogado, o
que se deu através da lei 11.106/05. Ademais, não se pode olvidar que até mesmo as
discussões acerca do divórcio ainda são muito recentes no ordenamento jurídico brasileiro.
8Lei Islâmica adotada em países que professam oficialmente a fé muçulmana.

188
Embora haja vítimas de ambos os sexos, a maior parte delas, nesse
caso, são mulheres, por conta de uma vulgarização da sexualidade feminina.
A pornografia de vingança reforma uma visão machista da sexualidade,
como se a divulgação de imagens íntimas fosse positiva para os homens e
negativa para as mulheres. É como se não fosse aceito que a mulher possa
expor sua sexualidade, sua natureza, seu desejo; passa, ao mesmo tempo, a
mensagem de que é, para o homem, motivo de orgulho relacionar-se e
demonstrar o fato.
Demonstrando a afirmativa acerca da cultura machista, recentemente,
uma dupla do estilo “sertanejo universitário”, chamada Max e Mariano,
lançou uma música intitulada “Eu vou jogar na internet”, onde faz apologia
à pornografia de vingança. Na letra, os cantores ameaçam a vítima – que,
ressaltamos, é do gênero feminino -, conforme se transcreve da letra:

(...) semana passada mesmo, a gente ficou. Sem que você percebesse,
eu gravei de nós um vídeo de amor. (...) Eu vou jogar na internet,
nem que você me processe. Eu quero ver a sua cara quando alguém
te mostrar; quero ver você dizer que não me conhece (Max e
Mariano,2015).

Essa questão cultural é basilar até mesmo para a definição de um bem


jurídico e sua necessidade de tutela. Conforme especifica o autor LUIZ
REGIS PRADO:

(...) procura-se conceber o bem jurídico como valor cultural –


entendida a cultura no sentido mais amplo, como um sistema
normativo. Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais
que se baseiam em necessidades individuais. (...) os valores culturais
transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua
existência surge necessitada de proteção jurídica (PRADO, 2003, p.
44).

No caso da pornografia de vingança, há um grave dano moral, pois


está em jogo a dignidade humana, a privacidade, a imagem, a moralidade.
Existem bens que não se limitam aos patrimônios, são bens que compõem a
própria pessoa em sua subjetividade, conforme explica CAHALI, ao
conceituar os danos morais:

189
Parece mais razoável (...) caracterizar o dano moral pelos seus
próprios elementos; (...) ‘como a privação ou diminuição daqueles
bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz,
a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade
individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos’
(CAHALI, 1999, p. 20).

Há, portanto, agressão a bem jurídico reconhecido social e


moralmente, o que confirma a necessidade de criminalização, com base no
que afirma Raúl Cervini (2002, p. 204) ao tratar da avaliação moral na
dinâmica legitimadora da norma penal, “de que o fim último do Direito é a
regulação de um determinado comportamento externo, que consiste em um
fazer ou omitir, procurando salvaguardar bens jurídicos.”
Nem sempre a conduta se dá entre pessoas envolvidas em
relacionamentos ordinários. Isso pode ocorrer até mesmo entre pessoas que
sequer se conhecem pessoalmente. A tecnologia tem dado diversos recursos
para que pessoas possam, facilitando, em muitos casos, até mesmo a ação
de pedófilos, que convencem menores, utilizando-se de sua ingenuidade,
através de insistentes elogios, a mostrarem através da web cam partes de
seu corpo.
Ademais disso, tornaram-se comuns o “sexo pela internet” ou “sexo
virtual”, em que pessoas tiram suas roupas e realizam cenas com estímulos
sexuais em tempo real, e os já populares “nudes9”, em que a própria pessoa
envia para alguém suas “fotos quentes”, nua, seminua ou somente
mostrando seus órgãos genitais, revelando, assim, suas carências afetivas e
suas taras.
Já existem até mesmo sites, programas e aplicativos, especializados no
assunto, que objetivam unicamente facilitar que os interessados tenham
acesso ao “sexo ao vivo”. A utilização dos mesmos é livre e consensual; mais
que isso, ganham espaço e um maior número de adeptos. Fazendo-se um
parêntese, podemos fazer uma outra análise, entendendo que essa seja uma
característica do que o filósofo Zygmunt Bauman chama de “sociedade de
consumidores”:

9Deriva da palavra “nudez”.


190
A ‘subjetividade’ do ‘sujeito’, e a maior parte daquilo que essa
subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço
sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria
vendável. A característica mais proeminente da sociedade de
consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta –
é a transformação dos consumidores em mercadorias (p. 20).

E, de fato, é o que acontece.


Voltando ao que se tratava, entende-se que padrões morais acabam
fazendo com que a divulgação de um momento de intimidade venha a ser
utilizado como estratégia de ataque e violência, acarretando, assim, grave
humilhação social para milhares de mulheres, que têm suas vidas afetadas
diretamente pela atuação do agressor e da própria sociedade, que a coloca,
mesmo sendo vítima, na posição de culpada pelo ato, fazendo-a se sentir
dessa forma. Isso, em alguns casos, acarreta doenças psíquicas, o uso de
álcool e drogas, e até mesmo o cometimento de suicídio.
Das respostas do Poder Judiciário brasileiro, especialmente o Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, podemos observar a reparação dos danos
materiais e morais pela divulgação de vídeos com cenas de sexo, através de
indenização pecuniária, conforme se vê, por exemplo, nas Ementas das
Jurisprudências nº 70054368287 e 70064563927 daquele órgão. Todavia,
não se tem respostas efetivas na esfera penal, vez que faltam elementos
jurídicos para tanto.
Contudo, nesses últimos tempos, com o crescente casos de crimes
cometidos pelos meios virtuais, com a divulgação de imagens e vídeos
íntimos, vitimando principalmente mulheres, buscou-se criar mecanismos
que inibam esse tipo de conduta. A Lei n. 12.737/12, conhecida como lei
Carolina Dieckmann, foi criada devido ao caso da atriz Carolina Dieckmann
que teve seu computador invadido e seus arquivos pessoais subtraídos,
inclusive com a publicação de fotos íntimas que rapidamente se espalharam
pela internet através das redes sociais. Essa lei acrescentou ao Código Penal
os artigos 154-A e 154-B, tipificando como crime a invasão de dispositivo
informático, da seguinte forma:

Art. 154-A Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à


rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de

191
segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou
informações sem autorização expressa ou tácita do titular do
dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.

Como se vê, o art. 154-A pode até ser aplicado aos casos envolvendo
aspectos sexuais, mas não foi elaborada especificamente para isso, não tem
previsão de um crime específico para quem simplesmente divulga
informações pessoais, de cunho íntimo, de outrem, não podendo ser aplicado
no caso da pornografia de vingança. Pode-se aplicar somente quando a
divulgação provém de uma invasão de dispositivo informático.
O projeto de lei n. 5.555/13, de autoria do Deputado Federal João
Arruda (PMDB-PR), prevê a alteração da Lei n. 11.340 - Lei Maria da Penha-,
o objetivo é criar mecanismos para combater condutas ofensivas contra a
mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação, sob a
justificativa de que

Há uma dimensão da violência doméstica contra a mulher que ainda


não foi abordada por nenhuma política pública ou legislação, que é a
violação da intimidade da mulher na forma da divulgação na Internet
de vídeos, áudios, imagens, dados e informações pessoais da mulher
sem o seu expresso consentimento (PL 5.555/2013).

Chamado de Maria da Penha Virtual esse projeto de lei possui a


intenção de proteger a mulher da violência praticada também nos meios
virtuais, com a divulgação de imagens e vídeos que venham violar sua
privacidade, como forma de atingir sua honra e imagem perante a sociedade.
Esse tipo de conduta geralmente é praticada por quem possui intimidade
com a vítima, em que cônjuges, ex-cônjuges, namorados, etc, se valem da
condição de coabitação ou de hospitalidade para obter tais registros,
divulgando-os posteriormente, com a finalidade de prejudicar a mulher. O
problema se torna ainda maior quando o agente usa esses arquivos para
ameaçar ou extorquir a vítima, tornando ainda mais cruel a situação em que
a mesma se encontra.
Além disso, visou-se através desse projeto de lei aproveitar todo o
sistema já instituído com a Lei Maria da Penha aqui no Brasil, e que é
exemplo para todo o mundo, como forma de tornar mais rápida e eficaz a

192
punição de quem pratica a conduta aqui discutida.
Já quando esses casos envolvem criança e adolescente, aplica-se a Lei
8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, alterado com a Lei
11.829/2013. A matéria dessa lei foi justamente a tipificação de crimes
contra crianças e adolescentes na internet, como assim traz o art. 241-A do
ECA:

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir,


publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de
sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro
registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica
envolvendo criança ou adolescente:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

Visto de maneira geral, a Lei n° 11.829/08 trouxe alterações de suma


importância, uma vez que passou a tipificar várias condutas que antes eram
silenciadas pela legislação e a preencher determinadas lacunas. Portanto,
quando o assunto é a divulgação de materiais pornográficos de crianças e
adolescentes, aplicam-se os dispositivos trazidos a partir do art. 240 do ECA,
visando a proteger o bem jurídico da vida, da liberdade, privacidade, etc. É
importante frisar que as modificações trazidas pela Lei n° 11.829/08 são
específicas e superiores àquelas contidas no Código Penal, afastando, assim,
a aplicação dos tipos penais que porventura sejam semelhantes.
Cabe salientar, também, a importância de a lei n. 12.965/2014,
conhecida como Marco Civil na Internet quando o assunto é pornografia de
vingança. Sancionada pela presidente Dilma Roussef há um pouco mais de
um ano, ela tem por objetivo trazer algumas mudanças para o uso da
internet no Brasil, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres.
Salienta-se da importância de haver leis regulamentando o uso da Internet,
pois como disse o advogado criminalista Eduardo Muylaert (apud REIS,
1996, p. 53), “o controle da Internet é difuso e cooperativo, para não dizer
anárquico. Ela cresceu livre de censura. Apesar disto o uso que tem sido feito
da Internet suscita uma pluralidade de questões do ponto de vista da ética e
também do Direito Penal”.
Com o Marco Civil da Internet, portanto, pessoas vítimas de violações

193
da intimidade, da pornografia de vingança, podem solicitar a retirada de
conteúdo, de forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando
este conteúdo, caso contrário, o provedor que disponibilizou tais conteúdos
será subsidiariamente responsabilizado pela violação da intimidade
decorrente da divulgação, como traz o art. 21:

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize


conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado
subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da
divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de
vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos
sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de
notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de
promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu
serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Por este e outros motivos é importante que passem a existir regras


sobre o uso de imagem no ambiente digital. Sendo assim, as vítimas de
violação de intimidade na internet podem solicitar a retirada de conteúdo, de
forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando este conteúdo, e
caso não consigam exclusão imediata devem procurar amparo legal,
responsabilizando subsidiariamente o provedor que divulgou os dados.
No Código Penal, portanto, a conduta de divulgar materiais íntimos de
outrem, com a intenção de vingança, quando não se enquadra na lei Maria
da Penha, como violência doméstica, ou no ECA, como pedofilia, se
enquadra no crime de difamação, cuja conduta é imputar a alguém fato
ofensivo à sua reputação, tendo como detenção de três meses a um ano, que
se aplica a quem produziu e a quem repassa imagens íntimas a título de
vingança. Essa pena, porém, na grande maioria das vezes é substituída por
pena alternativa, como pagar cesta básica ou prestar algum serviço à
comunidade, sem qualquer discussão comunitária e conscientizadora acerca
dessa prática. Portanto, o maior problema é o descaso com esse tipo de
conduta, que dá a sensação de impunidade à vítima, fazendo com que a
mesma se sinta injustiçada para além de todo abalo psicológico já sofrido.
O projeto de Lei n. 6.630/13, de autoria do Deputado Federal Romário
(PSB/RJ) foi criado com o objetivo de acrescentar artigo ao Código Penal,
tipificando a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato
194
sexual sem autorização da vítima. A diferença é que nesse projeto de lei não
há diferenciação de gênero, como o projeto de lei n. 5.555/13, que amplia a
quantidade de delitos abrangidos pela Lei Maria da Penha, ou seja, delitos
cometidos somente contra a mulher. O PL 6.630/2013 incluiria artigos no
capítulo dos crimes contra a liberdade sexual no Código Penal, com a
seguinte redação

Art. 216-B. Divulgar, por qualquer meio, fotografia, imagem, som,


vídeo ou qualquer outro material, contendo cena de nudez, ato
sexual ou obsceno sem autorização da vítima.
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
§1º Está sujeito à mesma pena quem realiza montagens ou qualquer
artifício com imagens de pessoas.
§2º A pena é aumentada de um terço se o crime é cometido: I - com o
fim de vingança ou humilhação; II – por agente que era cônjuge,
companheiro, noivo, namorado ou manteve relacionamento amoroso
com a vítima com ou sem habitualidade;
§3º A pena é aumentada da metade se o crime é cometido contra
vítima menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa com deficiência.”

A criminalização da conduta de divulgar imagens íntimas também é


uma forma de proteção à vítima, vez que também visa coibir que essa venha
a sofrer outros tipos de violências decorrentes da exposição, como situações
vexatórias, perda do emprego, abandono familiar, propostas para
prostituição, perseguição virtual, entre outros.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tipificação dessa conduta é mais uma possível resposta a um ato que


merece total repúdio da sociedade. Cabe a nós analisar o contexto social,
que ainda reconhece a sexualidade e o desejo feminino como motivo de
degradação moral. A lógica está completamente errada: no lugar de condenar
moralmente quem publicou as imagens e vídeos a título de vingança,
condenam a vítima por ter feito o que está exposto nos arquivos.
Portanto, uma possível solução para esse crescente problema social
está além de punir quem pratica o ato violar a intimidade e a vida privada de
outrem dessa forma, mas em criar uma conscientização de igualdade de
gênero.

195
REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Beatriz Accioly Lins de. Caiu na rede é crime: controvérsias


sobre a “pornografia de vingança”. Antropologia, gênero e punição, IV
ENADIR, GT.05. São Paulo, agosto de 2015.

BAUMAN, Z. Vida para Consumo: a transformação de pessoas em


mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 199p.

BRASIL. Projeto de Lei n. 6.630/2013. Acrescenta artigo ao Código Penal,


tipificando a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cena de nudez ou ato
sexual sem autorização da vítima e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=
1166720&filename=Tramitacao-PL+6630/2013> Acesso em: 20 ago. 2015.

BRASIL. Lei n. 12.965/2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e


deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l12965.htm> Acesso em: 22 ago. 2015.

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CERVINI, R. Os processos de descriminalização. 2.ed. São Paulo: Editora


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MARQUES, M. J. Violência Pornográfica, de facto. Observador. abr, 2015.


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196
MAX e MARIANO. Eu vou jogar na internet. Disponível em
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<http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/12/11/nova-versao-
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PRADO, L. R. Bem Jurídico Penal e Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora


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REIS, M. H. J. Computer Crimes. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. 62p.

YOUSSEF, S. C. Dano Moral. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos


Tribunais, 2000. 720p.

197
UMA INTRODUÇÃO AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL

Antônio Paulo Soares Lopes da Silveira1


Mariana Azambuja2

1. INTRODUÇÃO

O que é loucura? Simplesmente um rótulo? Uma condição? Uma


verdade? Um sentido? Um destino? Uma determinação? Ao passar dos
séculos constatamos o fascínio humano pela necessidade de determinar a
natureza humana, e, consequentemente, a normalidade quanto homem que
se determina no mundo por sua própria espécie e razão.
A cultura e a história desenvolveram perfis estéticos e subjetivos de
normalidade, os quais devem ser seguidos por todos. Nesse passo, a
normalidade se impõe como uma realidade construída e constituída
socialmente; a sociedade vai elevar a classificar o que se tem pelo aceito, o
termo médio do que devemos ser.
Assim, sempre será esperada uma forma de agir dos indivíduos
pertencentes a certos grupos culturais. Entretanto, nem sempre os
indivíduos perseguem essa proposição dos grupos de ser portarem como o
esperado.
No momento em que os objetivos traçados na ação individual não se
coadunarem com os mandamentos legais, tal conduta poderá incorrer no
âmbito criminal, e, se constatado que o indivíduo apresenta-se como
inimputável ou semi-imputável, em um prisma jurídico, este responderá por
essa inaptidão de viver em sociedade, recebendo em contrapartida uma
medida de segurança, capaz de prevenir que atue contra a segurança da
coletividade – normal.
Necessário introduzir o artigo citando, também, o poema de um dos
pacientes internados na instituição de tratamento psiquiátrico que foi tema
do documentário “A casa dos mortos”.

1Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Ciências Criminais pela


PUCRS, e Advogado atuante na Criminal e Cível.
2Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS, Especialista em Ciências Criminais pela

PUCRS, e Advogada Criminalista.

198
Em célebre passagem, este paciente compositor, ou compositor
paciente, nos brinda com a seguinte reflexão “(...) ‘A psiquiatria é a mais
atrasada das ciências’ – Parafraseio Jânio de Freitas porque a casa dos
mortos, que é a metáfora arquitetônica pela qual designo a psiquiatria, pede
que se fale contra si mesma!”3
Passando à análise mais ortodoxa, a construção do sistema brasileiro
de internações manicomiais tem todo seu liame precedido e esculpido dentro
do Código Repressor, portanto, coligadas às práticas penalísticas.
Sobre esse aspecto, a dogmática no trabalho antecedeu à construção
crítica, pois essa ordem de discursos propiciou a demonstração do
distanciamento entre os institutos jurídicos, penalmente constituídos e
postos, com a dura realidade prática que se apresenta no cotidiano das
instituições totais.
Nesse ponto, consabido que as instituições de internação possuem
carências tanto de estrutura quanto de apoio estatal. De mesma forma,
inegável que as práticas de internação estão cada vez mais em cheque na
forma clássica posta, pois são escassos os resultados benéficos, resultando
apenas como a exclusão do indivíduo indesejável do convívio social.
Portanto, é imprescindível que se proponha o debate quanto à
temática, tendo em vista a precariedade deste método de tratamento quanto
às medidas de segurança, deve ser negado o sistema vigente, para que de
alguma forma mitigue os alicerces da verdade científica posta, propiciando a
forjadura de novas concepções quanto o tratamento da matéria.

2. APONTAMENTOS SOBRE CULPABILIDADE, INIMPUTABILIDADE E


PERICULOSIDADE.

A consciência de que deveriam existir sanções criminais que não


fossem as penas surgiu com o Projeto do Código Penal suíço de Carl Stoos
em 1983 e o “contra projeto” de V. Liszt e Kahls em 1911(FERRARI, 2001, p.

3 Poema consultado no site:


<http://bubutesesmusicasliteraturas.blogspot.com.br/2013/02/poema-casa-dos-mortos-
de-bubu-casa-dos.html>. Acessado em: 26/08/2015.
199
30).
No Brasil, a reforma penal de 1984 adotou o sistema vicariante em
nosso ordenamento jurídico, ou seja, afastou a aplicação dupla da pena e
medida de segurança para os imputáveis e semi-imputáveis, pois a aplicação
concomitante atentaria contra o princípio do ne bis in idem.
Portanto, o imputável que cometer uma conduta ilícita será sujeito à
pena correspondente ao delito, enquanto o inimputável à medida de
segurança. Ao semi-imputável caberá pena ou medida de segurança, mas
nunca as duas, o que difere do sistema duplo binário.Assim, para o
entendimento sobre a medida de segurança é de suma importância que se
aponte breves conceitos do que se teria por inimputabilidade e
periculosidade.
Verifica-se que a imputabilidade é o elemento que se destaca na
estrutura da culpabilidade, sendo admitida por muitos como seu
pressuposto. Assim, quando da sua ausência ou imperfeição, por falta ou
debilidade de seus componentes, se exclui ou se atenua a culpabilidade, e,
consequentemente, a responsabilidade penal (ANÍBAL, 2005, p. 85).
Sobre a culpabilidade, caracteriza-se como um juízo reprovação sobre
o sujeito que realiza algum tipo de injusto penal. Os fundamentos que o
compõem ramificam-se: na capacidade geral de compreender e querer as
proibições ou mandados da norma jurídica (capacidade de culpabilidade), na
necessidade do conhecimento real ou possível da proibição concreta do tipo
de injusto específico (consciência real ou potencial da antijuridicidade), por
fim,na normalidade das circunstâncias em que ocorreu o fato (exigibilidade
de comportamento diverso).” (SANTOS, 2002, p. 173).
Importante ressaltar que a culpabilidade é a forma utilizada para a
mensuração da pena cominada ao agente. Portanto, a pena é proporcional à
culpa.
Nesse sentido, fica claro que existe a necessidade da configuração de
responsabilidade subjetiva do agente, não se elevando uma responsabilidade
objetiva, a qual para configuração basta apenas uma associação casual
entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico.
Além disso, verifica-se que a responsabilidade penal é sempre subjetiva,
200
sendo indispensável à verificação da culpabilidade do agente (BATISTA,
2007, p. 104).
Assim, como elementos da culpabilidade apresentam-se a
imputabilidade e a periculosidade, necessários para esclarecer a
inimputabilidade dos agentes os quais recaíram as medidas de segurança.
A imputabilidade do agente é reconhecida quando este não se encontra
no estado normal de autodeterminação, e, portanto, não possui a capacidade
de compreender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse
entendimento (QUEIROZ, 2008, p.389).
Deste modo, para caracterização dos indivíduos inimputáveis que não
possuem consciência da prática do injusto penal, necessária verificação de
um processo biológico que lhes tenha alterado, de modo permanente ou
transitório, as funções psíquicas e determinada perda ou suspensão da
capacidade normal de entendimento e vontade exigida pelo Direito Penal
punitivo (ANÍBAL, 2005, p. 85).
Segundo Cezar Roberto Bitencourt, para o reconhecimento da
existência de incapacidade de culpabilidade é suficiente que o agente não
tenha uma das duas capacidades: de entendimento ou de autodeterminação
(BITTENCOURT, 2009, p. 380).
No sistema biopsicológico, adotado pelo nosso ordenamento, existem
distinções no reconhecimento da imputabilidade, cingindo-se entre os
indivíduos menores de 18 anos, pessoas com doença mental, pessoas com o
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, embriaguez completa por
caso fortuito ou força maior, pelo álcool ou substâncias análogas (SANTOS,
2002, p. 187).
Em relação à aplicação das medidas segurança, têm-se como
incapacidade de culpabilidade as pessoas com doença mental ou com o
desenvolvimento mental incompleto ou retardado (SANTOS, 2002, p. 187).
Ainda, verifica-se a figura dos semi-imputáveis (ou com imputabilidade
reduzida), caracterizados por constituírem uma área limítrofe, um estado
intermediário situado na divisa entre a perfeita saúde mental e a insanidade
(QUEIROZ, 2008, p.390)
Nesse passo, esta redução na capacidade mental influenciará na
201
diminuição de pena, bem como poderá acarretar uma aplicação de medida
de segurança.
No entanto, a medida de segurança baseia-se na periculosidade do
agente, e não na culpabilidade, uma vez que o doente mental, ao praticar um
ato contrário ao ordenamento jurídico, torna-se uma ameaça ao convívio
social (TEOTÔNIO, 2012, p. 49).
Assim, caberá análise da culpabilidade e da periculosidade do agente
para se verificar a necessidade da aplicação da medida de segurança, isto é,
se o agente é inimputável ou semi-imputável e se demonstra periculosidade.
Ainda, a periculosidade deve ser observada de forma concreta, nunca
presumida, uma vez que deve ser demonstrada a necessidade da aplicação
da medida de segurança, por possuir um caráter preventivo (PRADO, 2011,
P. 789).

3. MEDIDA DE SEGURANÇA COMO PENA?

Após a realização de uma breve análise dos conceitos basilares que


alicerçam as medidas segurança, torna-se necessária a discussão sobre sua
natureza, com a imperiosa verificação de seu caráter sancionador.
No ordenamento jurídico-penal brasileiro a medida de segurança é
tratada como forma de sanção penal, porém tal concepção não é pacífica e
possuí grande divergência na doutrina, existindo diferentes posições sobre o
assunto.
Entende-se que a medida segurança se apresenta como uma resposta
do Estado às pessoas com incapacidade pelos atos que praticaram,
possuindo uma função preventiva, e, de nenhuma forma, alicerçada na
função retributiva, tendo em vista a própria inexistência de consciência da
prática do injusto penal pelo agente (FERRARI, 2001, p. 61-62).
Neste passo, a medida de segurança “constitui uma providência do
poder político que impede que determinada pessoa, ao cometer um ilícito-
típico e se revelar perigosa, venha a reiterar na infração, necessitando de
tratamento adequado para sua reintegração social” (FERRARI, 2001, p. 29-
30).
202
Assim, tem-se que sua função se relaciona com o objetivo de evitar que
o agente pratique novos delitos.
Em contrariedade ao aceito, Raúl Zaffaroni entende que as medidas de
segurança não deveriam estar na alçada do direito penal, alicerçando que “a
agressividade de um paciente não depende do acaso da intervenção punitiva,
mas sim de características da doença que o juízo cível deve valorar em cada
caso” (ZAFFARONI, 2011, p. 139-140).
Complementa o autor, fundamentando que tais medidas são
materialmente administrativas e só formalmente penais, e que a rigidez
punitiva da forma condiciona a matéria, tornando-se uma medida deveras
arbitrária e prejudicial para os pacientes internados (ZAFFARONI, 2011, p.
139-140).
Em contrariedade, Magalhães Noronha explicita que não procede a
afirmação de que a medida de segurança tem antes caráter administrativo,
ao passo que a pena possui caráter jurisdicional. Sustenta que, o Direito de
punir emana do Estado-Administração, e, portanto, o direito de impor a
medida de segurança, apresenta-se, de mesma forma, como manifestação do
jus puniendi (NORONHA, 2003, p. 313).
Assinala que, tanto a pena como a medida de segurança tem natureza
de ato jurisdicional, pois ambas se filiam à atividade administrativa do
Estado, que, por ser de coação indireta, necessita de prévio controle
jurisdicional (NORONHA, 2003, p. 313).
Para Hans-Heinrich Jescheck, a pena cominadade acordo como grau
daculpablidadesó podeatenderparcialmentea missãopreventiva doDireito
Penal.Considerando asegurança da comunidade, pode ser necessáriomais
tempode privaçãoda liberdademerecidapelaculpabilidade doinfrator,e de
acordo coma sua ressocialização podesernecessária a intervençãosobre
ele,sujeitoà pena de prisão, diferentemente da execução normal
deprisão.Também deveprevenir-se, em defesa da comunidade, certas
intervençõessem privaçãoliberdade (JESCHECK, 1993, p. 731).
Segundo Jorge de Figueiredo Dias, de acordo com a razão histórica e
político- criminal do seu aparecimento, as medidas de segurança visam à
finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de
203
factos ilícito-típicos pelo agente (DIAS, 2007, p. 87).
As medidas de segurança são orientadas, ao menos prevalentemente,
por uma finalidade de prevenção especial ou individual da repetição da
prática de factos ilícitos – típicos. Por outras palavras, as medidas de
segurança visam obstar, no interesse da segurança da vida comunitária, a
prática de factos ilícitos – típicos futuros através de uma actuação especial –
preventiva sobre o agente perigoso. A finalidade de prevenção especial ganha
assim, também neste enquadramento, uma dupla função: por um lado, uma
função de segurança, por outro lado, uma função de socialização.(DIAS,
2007, p. 87).
Assim, podemos observar que as principais diferenças entre a pena e
as medidas de segurança consistem em três fatores: enquanto as medidas de
segurança são aplicadas aos inimputáveis e semi-imputáveis
excepcionalmente, as penas são dirigidas aos imputáveis;o fundamento da
aplicação da pena é a culpabilidade, e das medidas de segurança a
periculosidade;as medidas de segurança têm natureza preventiva, e as
penas, natureza retributivo – preventivo.

4. PRESSUPOSTOS E ESPÉCIES

No ordenamento jurídico brasileiro a previsão de aplicação da medida


de segurança incide sobre os inimputáveis ou os semi-imputáveis, como
preleciona o artigo 26 do Código Penal.4
Em relação aos semi-imputáveis5, verifica-se que a pena aplicada
poderá ser diminuída de um a dois terços, e deverá ser convertida em
medida de segurança se o condenado necessitar de especial tratamento
curativo. Sobre este aspecto, verifica-se que o ordenamento jurídico

4Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
5Art. 26. (...) Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente,

em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou


retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de
11.7.1984).
204
brasileiro se desvinculou do sistema do duplo binário para o vicariante, e,
portanto, não existe a possibilidade de aplicação de pena e medida de
segurança ao semi-imputável de forma cumulativa (PRADO, 2011, p. 481).
A legislação delineou, portanto, dois pressupostos para o
reconhecimento da inimputabilidade: a enfermidade mental; e a
incapacidade de entendimento e/ou autodeterminação.
Deste modo, o simples fato de existir patologia psíquica não vai
delinear a imputabilidade do agente, uma vez que deve ser demonstrada a
influência da patologia na incapacidade de autodeterminação do agente, e,
consequentemente sua periculosidade (PRADO, 2011, p. 786).
Ainda, no que pese a clara demonstração de periculosidade do
indivíduo associada à patologia psíquica, não se pode aplicar a medida de
segurança, pois existe a imposição de que ele tenha praticado um fato típico
e antijurídico, sem que ocorra nenhuma das causas de justificação
(NORONHA, 2003, p. 315).
Nesse sentido, constata-se que nosso ordenamento jurídico não
permite a aplicação de medidas de segurança pré-delitivas por razões de
segurança jurídica, tendo em vista o receio de dar azo ao arbítrio judicial
(NORONHA, 2003, p. 315).
Sobre outro aspecto, constata-se que os inimputáveis, por não
constituírem o elemento da culpabilidade, não cometem crimes. O artigo 97,
caput, do Código Penal, prevê como definição da conduta praticada “fato
previsto como crime”, isto é, apenas cometem uma ação típica e ilícita
(NORONHA, 2003, p. 315).
Desta forma, uma vez constatado a prática de injusto penal (ou fato
previsto como crime) por inimputável, este será submetido a processo penal,
como se imputável fosse ocorrendo à instauração de incidente de insanidade
mental. Assim, após avaliação realizada por perito, o magistrado reconhece a
imputabilidade do agente, absolvendo-o e aplicando a medida de segurança
cabível (internação ou tratamento ambulatorial), qualificando-se como
medidas restritivas e detentivas respectivamente (TEOTÔNIO, 2012, p. 50).
O artigo 96, inciso I, do Código Penal, prevê os locais nos quais poderá
ser cumprida a medida de segurança, elencando os hospitais de custódia e
205
tratamento psiquiátrico, e na falta dos mesmos, em outro estabelecimento
adequado.
De outra forma, a Lei de Execuções Penais em seu artigo 101, prevê
que “O tratamento ambulatorial, disposto no artigo 97, segunda parte, do
Código Penal, será realizado no Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico ou em outro local com dependência médica adequada”.
Assim, no caso de internação, obrigatoriamente o condenado deverá
ser internado no Hospital de Custódia, sendo a mesma relativizada no caso
de inexistência de vagas ou de instituição com essa competência e
consequente transferência do sentenciado, a outro local adequado.
Entretanto, verifica-se que existem entendimentos os quais
interpretam de forma diversa o texto do Código Penal, no sentido de que o
magistrado verificará, no caso concreto, qual a melhor necessidade de
tratamento para o condenado (ambulatorial ou internação) na medida em
que a medida de segurança possui o caráter preventivo (evitar a ocorrência
da prática de novo fato pelo agente), bem como um caráter terapêutico
(recuperação e ressocialização dos indivíduos inimputáveis ou semi-
imputáveis) (CALDEIRA, 2013, p. 14).
Por fim, o magistrado deverá fixar um tempo mínimo de cumprimento
da medida de segurança, sendo previsto no artigo 97, §2º, do Código Penal,
entre 01 ano a 03 anos de duração.
Desta forma, a internação ou tratamento ambulatorial será por tempo
indeterminado, enquanto a perícia médica não verificar que ocorreu a cessão
de periculosidade do condenado (internado), elevando-se os arquétipos
elementares da Escola Positivista (Garofalo, Ferri e Lombroso).
Importante, apontar que, conforme o artigo 26 do CP, os inimputáveis
são isentos de pena, mas são sujeitos à medida de segurança. Nosso Código
atual prevê duas espécies de medida de segurança: a internação em hospital
de custódia e tratamento psiquiátrico e sujeição a tratamento ambulatorial.
Não há um prazo definidor da duração da medida de segurança,
devendo perdurar enquanto não for constatada a cessação da
periculosidade. Entretanto, a duração da medida de segurança é um tema
bastante controverso, uma vez que se verifica o prejuízo causado ao
206
condenado, tendo em vista a falta de critérios para a duração do tempo de
pena, mesmo com o Supremo Tribunal Federal considerando o limite
máximo de 30 anos6.
Ainda, é possível que a pena seja substituída por medida de segurança
quando o condenado for considerado semi-imputável ou quando houver a
superveniência de doença mental, e o tratamento ambulatorial pode ser
convertido em internação.

5. A DOENÇA MENTAL: um recorte analítico em relação ao transtorno de


personalidade antissocial

Observou-se que, dentre as possibilidades de se reconhecer a


inimputabilidade de um indivíduo, o Código Penal Brasileiro elenca a doença
mental como uma destas possibilidades.
Mister reconhecer que, para o Direito Penal, além do prejuízo pessoal,
necessário para o reconhecimento de uma psicopatologia, é de suma
importância que o agente tenha praticado algum fato típico previsto como
crime.
Assim, o termo “doença mental”, no campo penal, relaciona-se com
todas as alterações mórbidas da saúde mental, independentemente da
causa, referindo-se às psicoses endógenas ou congênitas (esquizofrenias,
paranoia, psicose maníaco-depressiva); exógenas (demência senil, paralisia
geral progressiva, epilepsia); ou as neuroses e os transtornos
psicossomáticos (CATALDO NETO, 2006, p. 164-165).
Nesse prisma, restringindo a análise em relação ao transtorno de
personalidade antissocial, tentar-se-á fazer um panorama sobre a finalidade
das medidas de segurança, do seu propósito, bem como sobre como
podemos objetivar novos tratamentos.
O transtorno de personalidade antissocial está previsto no DSM-V
301.7 (no CID 10 está previsto como F.60.2), podendo-se dividir seus
critérios diagnósticos em quatro pontos.

6HC 98360/RS. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento: 04/08/2009.


207
O primeiro seria coligado a um padrão difuso de desconsideração e
violação dos direitos das outras pessoas, com incidência desde os 15 anos de
idade, conforme indicado por no mínimo três das seguintes situações:
fracasso em agir de acordo com as normas sociais relativas a
comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que
originam sanções; tendência à falsidade, sendo verificada por mentiras
repetidas, utilização de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer
pessoal; impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro;
irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas
corporais ou agressões físicas; descaso pela segurança de si ou de outros;
irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em
manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações
financeiras; e ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou
racionalização em relações a ter ferido, maltratado ou roubado outras
pessoas (DSM-V, 2014, p. 659-663).
No segundo ponto, o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos de idade.
Em terceiro ponto, devem existir evidências da incidência de transtorno de
conduta com surgimento anterior aos 15 anos de idade. Ainda, no último
ponto, verificar-se-á a ocorrência de comportamento antissocial não se dá
exclusivamente durante o concurso de esquizofrenia ou transtorno bipolar
(DSM-V, 2014, p. 659-663).
Pode-se observar como característica diagnóstica essencial para a
verificação da patologia, o padrão difuso de indiferença e violação dos
direitos dos outros, o qual surge na infância ou no início da adolescência e
continua na vida adulta. Este padrão pode ser conhecido como, psicopatia,
sociopatia ou transtorno da personalidade dissocial. Constatando-se que a
falsidade a manipulação são aspectos centrais da personalidade do indivíduo
(DSM-V, 2014, p. 659-663).
Ainda, o indivíduo deve ter no mínimo 18 anos de idade e deve ter
apresentado alguns sintomas de transtorno da conduta antes dos 15 anos,
bem como padrão persistente e repetitivo de comportamento no qual os
direitos básicos dos outros ou as principais normas ou regras sociais
apropriadas a idade são violados. De mesma forma, deve ser observada a
208
prática de agressão a pessoas e animais, destruição de propriedade, fraude
ou roubo ou grave violação a regras(DSM-V, 2014, p. 659-663).
Constata-se que o padrão continua até a vida adulta. Indivíduos com
este transtorno da personalidade antissocial não têm êxito em ajustar-se às
normas sociais referentes a comportamento legal. Atitudes lesivas ou
destrutivas, estando preso ou não. O engano e a manipulação servem para
obter ganho ou prazer pessoal – ganhar dinheiro ou sexo – (DSM-V, 2014, p.
659-663).
Deste modo, os indivíduos tomamdecisões no calor do momento, sem
análise e sem consideração em relação às consequências a si ou aos outros.
Observa-se que, tendem a ser irritáveis e agressivos e podem envolver-se
repetidamente em lutas corporais ou cometer atos de agressão física –
inclusive espancamento do cônjuge ou filho – (DSM-V, 2014, p. 659-663).
Também se verifica que possuem pouco remorso pela consequência de
seus atos, apresentando, no mais das vezes, indiferença por terem ferido,
maltratado ou roubado alguém, racionalizando de modo superficial essas
situações. Em certas ocasiões, culpam as vítimas por serem tolas e
merecedoras de seu destino (DSM-V, 2014, p. 659-663).
Assim, minimizam as consequências danosas de seus atos ou
demonstram total indiferença ao resultado que prejudicou outrem.
Existem características associadas que apoiam o diagnóstico. Verifica-
se que os indivíduos com transtorno carecem de empatia, com tendência a
serem insensíveis, cínicos e desdenhosos em relação aos sentimentos,
direitos e sofrimentos alheios. Apresentam uma autopercepção inflada e
arrogante, podendo ser execessivamente opiniáticos, autoconfiantes ou
convencidos (DSM-V, 2014, p. 659-663).
Ainda, possuem um charme desinibido e superficial, podendo ser
muito volúveis e verbalmente influentes. Em contrapartida, são
irresponsáveis e exploradores em seus relacionamentos, e, em certos casos,
possuem vários parceiros sexuais, sem jamais ter mantido um
relacionamento monogâmico (DSM-V, 2014, p. 659-663).
Por fim, o desenvolvimento e o curso crônico do transtorno podem
tornar-se menos evidentes ou apresentar remissão conforme o indivíduo
209
envelhece, em particular por volta da quarta década e vida (DSM-V, 2014, p.
659-663).
De mesma forma, embora essa remissão tenda a ser especialmente
evidente quanto a envolvimento em comportamento criminoso, é possível que
haja diminuição no espectro total de comportamentos antissociais e uso de
substância. Por definição, a personalidade antissocial não pode ser
diagnosticada antes dos 18 anos de idade (DSM-V, 2014, p. 659-663).
Neste passo, consigna-se que a psiquiatria há muito vem encontrando
dificuldades para lidar com o transtorno antissocial. Atribui-se tamanha
dificuldade à falta de sentimentos para com os outros, bem como a falta de
empatia e/ou remorso do indivíduo (GAUER, 2006, p. 67-68).
A temática é bem controversa, entretanto, o objetivo central para
delinear o transtorno foi com a finalidade de discutir as medidas que devem
ser adotadas em relação aos casos em que os agentes de delitos são
diagnosticados com esse distúrbio.
Nesse prisma, negar a complexidade dos fenômenos que se
apresentam, é uma forma de acreditar que estamos preparados para lidar
com eles (GAUER, 2006, p. 72).
Assim, tendo em vista a forma em que estão sendo aplicadas e
pensadas as medidas de segurança, verifica-se que não servem de forma
alguma como método de tratamento para pessoas com transtorno
antissocial. Inseri-los em uma instituição total em nada vai acrescentar para
uma melhora do quadro clínico.
Sobre isso, Alfedro Cataldo alicerça que “inferimos que a medida de
segurança criminal exigirá a incidência de todos os princípios
constitucionais, não se submetendo o cidadão a condições que contrariem a
dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e intervenção mínima”
(CATALDO NETO, 2006, p. 72).
Assim, como as medidas de segurança apenas reafirmam um sistema
punitivo que se pauta pela constrição do “indivíduo perigoso”, e nem de
longe busca o mínimo critério socializador e de recuperação, imperioso que
se busque novas formas antimanicomiais para tratar da matéria.
Por fim, necessária a busca de um conhecimento que possa desvelar
210
de forma a acolher toda a complexidade envolvendo os eventos sociais. A
busca de produzir avanços sociais verdadeiros, sem jamais desconsiderar as
sutilezas envolvidas (GAUER, 2006, p. 73).

6. UMA ANÁLISE CRÍTICA

Observa-se que a aplicação da medida de segurança deveria ter por


premissa inicial a recuperação médico-social do agente inimputável,
considerado perigoso, que tenha cometido o delito, devendo existir o
pressuposto básico da denominada periculosidade para sua aplicação
(TEOTÔNIO, p. 2012, p. 47).
Entretanto, como elucida Eugênio Zaffaroni, a medida de segurança
possibilita ao juiz condenar o indivíduo a internação manicomial, com a
premissa inicial de diferenciação da coerção penal, poisnão possui caráter de
sanção. Porém, ao contrário senso, o autor afirma que as medidas de
segurança, atualmente, integram a coerção penal (ZAFFARONI, 1998, p. 90).
Deste modo, o nome dado às medidas de segurança serve apenas para
encobrir a perpetuidade da sanção e mais nada. Tornam-se injustas, cruéis
e desumanas, tendo em vista a possibilidade de prolongamento da pena,
através de repetidas perícias médicas, até o tempo de 30 anos (ZAFFARONI,
2004, p. 781).
Verifica-se que, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior
Tribunal de Justiça, já se manifestaram quanto à necessidade das medidas
de segurança respeitaram o princípio da proporcionalidade, isonomia, e,
principalmente, o preceito constitucional de que a pena não será perpétua.
Ainda, é necessário apontar a precariedade das instituições
manicomiais, bem como o fato de que, ainda nos dias de hoje, em muitos
estados, os doentes mentais que praticam ilícitos, encontra-se segregados
em casas de custódia e tratamento psiquiátrico sob o fundamento de uma
(suposta) imperiosa necessidade social (FERRARI, 2009, p. 05).
Em relação a isso, Goffman aponta o quanto este processo de
institucionalização vai desconstruindo a identidade do institucionalizado,
ocasionando a perda total de sua autodeterminação, implicando em sua
211
desculturalização, fazendo com que o indivíduo assuma uma personalidade
imposta pela instituição e pela sociedade, vivendo em um local fechado com
uma vida formalmente administrada, entretanto uma percepção individual
que se esvai (GOFFMAN, 1992, passim).
Portanto, mais do que devido que tratemos os doentes mentais da
mesma forma que os imputáveis, tendo em vista o total desconhecimento da
conduta de cada qual, não se pode descurar da dignidade da pessoa
humana, reconhecendo limite máximo aplicável de punição a qualquer
cidadão (FERRARI, 2009, p. 05).
Deste modo, embora tanto o Código Penal quanto a Lei de Execuções
Penais não prevejam a possibilidade, deve o magistrado, em atenção ao
princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5º, inciso XLVI da
Constituição Federal, aplicar a medida de segurança da maneira mais
benéfica ao caso concreto, tendo em vista as necessidades do tratamento do
condenado (TEOTÔNIO, p. 2012, p. 53-54).
Portanto, ao analisar a questão apenas pela ótica de uma aplicação
legislativa da medida de segurança, compromete-se totalmente a finalidade a
que foi destinada, apresentando-se muito mais do que uma prevenção, mas
sim uma forma, mesmo que não a mais adequada, de proporcionar
tratamento ao individuo que praticou o injusto penal.
A medida de segurança não pode de nenhuma forma, transformar-se
em uma mera restrição de liberdade do “condenado”, pois assim, como se
depreende do documentário “A Casa dos Mortos”, estaríamos condenando os
inimputáveis a uma pena muito mais severa do que aos imputáveis, do que
até mesmo a uma pena de prisão.7
Neste prisma, deve-se buscar a mudança dos princípios orientadores
do trato com os indivíduos diagnosticados com psicopatologias, criando
novas modalidades de assistência, que possuam a capacidade de atender de
forma mais humana e acolher a clientela dantes recebida pelos hospícios ou
manicômios. Logo, buscando formas de atendimento que relevem e desvelam
as particularidades de cada caso. Portanto, objetivando e proporcionando a

7 Casa dos Mortos. Direção: Débora Diniz. Disponível em:


<http://www.acasadosmortos.org.br/#>
212
aplicação de novos conceitos como cidadania, atenção integral, bem como a
alocação do referencial saúde no lugar da doença (CATALDO NETO, 2006,
158-159).
Proporcionar a transformação nas relações cotidianas entre os
profissionais que trabalham na área de saúde mental, usuários, famílias,
comunidade, serviços, buscando, como já referido, cada vez mais a
desistitucionalização e humanização destas relações (CATALDO NETO, 2006,
158-159).
Nesse sentido, observa-se que a partir do século XX ocorreu o processo
de edificação e de crise das instituições totais punitivas (no nosso caso os
manicômios). Embora incrustados na cultura ocidental, os manicômios
começaram cada vez mais a serem questionados (CARVALHO, 2013, p. 282).
As instituições totais se revelaram incapazes de preservar
minimamente os direitos das pessoas nelas mantidas, sendo questionadas,
também, sobre a incapacidade de atingirem o objetivo ressocializador a que
foram fundadas (CARVALHO, 2013, p. 282).
Assim, da mesma forma que o processo de carcerização e
institucionalização em massa vêm afetando como um todo à sociedade, o
processo de internações, mesmo com uma mudança drástica a partir dos
movimentos antimanicomiais, continua com seu trilhar desumano
prevencionista.
O que deveria ser uma medida terapêutica acaba por se transformar
em um dispositivo pior que uma sanção penal, mas sim um exercício de
futurologia pseudocientífica, que acaba por tratar vidas como supérfluas
(RAUTER, 1997, p. 71-72).
Desta feita, voltamos à antiga prática das relações de poder, que se
perpetua e se entrelaça na história humana, isto é, novamente voltamos à
prática de imputar rotulação de periculosidade a certos grupos sociais,
sempre com tratamentos rigorosos e punitivos, típicos de inimigos.
Aqui, percebe-se a similitude no tratamento relegado aos estrangeiros,
mendigos, leprosos, bruxas, prostitutas, ébrios, toxicômanos, terroristas, a
todos os indivíduos que sempre constaram nesse grupo de excluídos sociais,
podendo relacionar com um medo coletivo da loucura, o qual não podemos
213
entender.
Em outro enfoque, ainda se pretende expor a precariedade do conceito
de periculosidade. Observando a aleatoriedade de sua valoração pelo simples
fundamento de que não se pode com precisão antever o futuro do indivíduo,
o que predispõem a existência de graves erros no procedimento (CATALDO
NETO, 2006, 172).
No mais, esse conceito de periculosidade está sustentado na
interpretação jurídica de laudos psiquiátricos formulados a partir experts no
assunto, funcionando na forma de discursos de verdade, pois constituídos
com estatuto científico, por pessoas com qualificação para tanto, geralmente
com formação em nível superior. (FOCAULT, 2001, p. 08).
Por fim, pode-se finalizar a crítica com uma enfática passagem de
Goffman: “é uma satisfação pensar que aqueles que exilamos nos hospitais
psiquiátricos estão recebendo tratamento, e não castigo, sob os cuidados de
um médico.”(GOFFMAN, 1992, p.299).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como escopo realizar um panorama sobre


como as medidas de segurança são aplicadas no ordenamento jurídico
brasileiro.
De outra forma, objetivou-se, a partir do transtorno de personalidade
antissocial, realizar uma crítica ao propósito das medidas segurança,
coadunando e fazendo eco com os movimentos antimanicomiais.
Nesse sentido, demonstrou-se que o caráter sancionador da categoria
jurídica estudada, a qual se apresenta apenas como uma forma de
institucionalizar o indivíduo. Observou-se que as instituições de saúde não
condicionam qualquer tratamento eficaz para patologia psicológica
apresentada pelo indivíduo.
Em outro vértice, ficou delineado que, a medida de segurança,
fundamentada a partir do conceito de periculosidade, constituído na
criminologia clássica, tem como mote apenas a obstrução de sua
convivência, isto é, o mesmo caráter repressor e utilitário de um Direito
214
Penal que visa à defesa social e à prevenção de qualquer perigo a qualquer
custo.
Aqui, verifica-se o mesmo fenômeno punitivo da criminalização e
prisão em massa, tendo em vista que o objetivo é a proteção da incolumidade
pública, desfazendo-se, assim, os direitos individuais democráticos, em
detrimento desse interesse social.
Criam-se verdadeiras instituições de depósito humano, que
descontroem as diversas identidades de inúmeras pessoas, em virtude da
necessidade de segurança. Assim, as diversas vidas que são esquecidas
nesses depósitos se transformam em meras passagens e números registrais,
deixando tão somente documentos, invés de memórias, vivências e
experiências.
Assim“(...) das mortes sem batidas de sino;(...) das overdoses usuais e
ditas legais;(...) das vidas sem câmbios lá fora- que se reescrevam, então,Os
Infernos de Dante Alighieri;mas, aqui é a realidade manicomial!”8
Por derradeiro, a premissa reflexiva foi atendida, através do objetivo de
se introduzir de forma crítica como as medidas de segurança funcionam no
ordenamento jurídico brasileiro.

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2005.

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Paulo Ed. Saraiva. 2009, p. 380.

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CALDEIRA, Marconi. Medidas de Segurança. Tratamento Ambulatorial.


Entre os Limites de Sua Aplicação e o Princípio da Individualização da Pena.
In. Revista Síntese. Direito Penal e Processual Penal. V. 13, n. 78,

8 Poema consultado no site:


<http://bubutesesmusicasliteraturas.blogspot.com.br/2013/02/poema-casa-dos-mortos-
de-bubu-casa-dos.html>. Acessado em: 26/08/2015.
215
fev./mar., 2013.

CATALDO NETO, Alfredo. et al. Inimputabilidade e Doença Mental. In.


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Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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217
DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO: DECORRÊNCIA DE UMA SEGURANÇA PÚBLICA EM CRISE

Pedro Henrique Baiotto Noronha1

1. INTRODUÇÃO

Não é novidade que o sistema de segurança pública brasileiro está em


crise, sendo possível vislumbrar frequentemente índices altíssimos nas
estatísticas de criminalidade, especialmente quando comparados aos
indicadores de países com maior desenvolvimento.
Da mesma forma, é de conhecimento público que os cidadãos
brasileiros sentem-se inseguros e temerosos em virtude da violência que, de
certa forma, assola o país. Tal constatação advém da consulta aos noticiários
e das opiniões expostas pela população.
E este sentimento de insegurança é confirmado pelas pesquisas.
Embora os índices de criminalidade não sejam divulgados de forma
oficial por todos os estados da Federação – a este respeito, Oliveira, Dufloth e
Horta (2014) apontam que 26% dos estados brasileiros não apresentam
dados de criminalidade em seus sítios na internet, inobstante a Lei nº
12.681 de 4 de julho de 2012 tenha instituído o SINESP, Sistema Nacional
de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas, que dentre
suas finalidades inclui armazenar, tratar e integrar dados e informações
para auxiliar na formulação, implementação, execução, acompanhamento e
avaliação das políticas relacionados com segurança pública (art. 1º, inciso I
da mencionada Lei) - o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM
BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2014) aponta, por exemplo, que o
Brasil teve 53.646 mortes violentas no ano de 2013, e que, naquele ano,
gastou 5,4% de seu PIB com custos da violência, segurança pública, prisões
e unidades de medidas socioeducativas.
Em consulta ao sítio do SINESP (2015), onde constam dados de

1Assessor de Juiz de Direito. Bacharel em Direito pela Unicruz. Especializando em Direito


Processual Civil-EAD pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Aluno especial da
disciplina Sistemas Regionais de Direitos Humanos do Curso de Direitos Humanos do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Unijuí.
218
ocorrências dos anos de 2010 a 2013, denota-se que, no total dos estados
cujas informações são apresentadas, há um aumento ano a ano da
ocorrência de latrocínios, homicídios dolosos, estupros, furtos de veículos e
roubos de veículos (em relação a estes dois últimos delitos há uma pequena
diminuição no ano de 2012, com um índice de aumento maior no ano de
2013), baseado no número de ocorrências a cada 100 mil habitantes.
Dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime
(UNODC, 2013), apontam que o Brasil está entre os países com maiores
taxas de homicídio no mundo.
Interpretando estes dados, Ingram e Costa (2014, tradução nossa)
destacam que o Brasil possui taxas consistentemente maiores que a média
da América do Sul, sendo superado somente por Colômbia e Venezuela.
Além disso, o Brasil teve taxas de homicídio similares às dos Estados Unidos
no início dos anos 1980, mas no final daquela década, tornando-se uma
democracia emergente, já apresentava o dobro das mencionadas taxas
(CALDEIRA e HOLSTON, 1999, tradução nossa). Vale mencionar, no
entanto, que a confiabilidade dos dados apresentados à época da ditadura
militar brasileira deve ser vista com reservas, notadamente diante do
publicamente conhecido controle exercido sobre as fontes de informação à
época.
No entanto, ainda que considerados os dados mais precisos referentes
aos últimos anos, tudo aponta para o fato de que o Brasil está há um longo
tempo em uma crescente de violência, que pode ser analisada talvez como
incompatível com sua apontada condição de país emergente e sua
comumente aludida posição de destaque no Mercado Comum do Sul
(Mercosul) e no BRICS (mecanismo atualmente formado por Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul), visto que apesar dos avanços nos âmbitos
sociais e econômicos, a questão da criminalidade é cada vez mais
preocupante.
E as discussões quanto aos rumos a serem tomados pelas políticas
criminais não se restringem ao campo doutrinário, mas são objeto das mais
variadas expressões da população como um todo.
Por estes motivos, ao mesmo passo, constatam-se diversos
219
movimentos visando a pacificação social no país. No entanto, muitos destes
movimentos reivindicam a aplicação de normas penais mais severas,
algumas delas caracterizando possíveis supressões de direitos e garantias
fundamentais.
Neste norte, o mote do presente estudo é observar se as ideias
propostas pelos movimentos podem caracterizar a propagação da doutrina e
das medidas repressivas apontadas pelo Direito Penal do Inimigo no Brasil,
esclarecendo inicialmente de maneira breve os ditames de tal doutrina e,
acaso evidenciada tal hipótese, o que isso pode significar em termos de
evolução ou retrocesso, tendo em conta os direitos fundamentais, tanto
individuais quanto coletivos.

2. POLÍTICA CRIMINAL E “DIREITO PENAL” DO INIMIGO

Não há dúvidas de que a existência de tipos penais decorre da violação


de condições necessárias à convivência social. A este respeito, Aníbal Bruno
(1967, p. 11) leciona que “o fato que se apresenta como contrário à norma de
Direito, porque ofende ou põe em perigo o objeto da sua proteção, forma o
ilícito jurídico, cuja espécie mais grave é o ilícito penal, que viola as mais
fundamentais entre as leis da convivência”.
Sendo assim, o Estado utiliza-se do Direito Penal, conjunto de normas
jurídicas onde regulada sua atuação no combate ao crime, com a finalidade
de buscar o equilíbrio social e a proteção de bens jurídicos previamente
definidos.
E o Direito Penal, sem sombra de dúvidas, é um instrumento que se
diferencia da ciência da Política Criminal. O autor acima citado ensina,
ainda, que a Política Criminal define os objetivos do Estado diante do
problema do crime, formulando os meios necessários para atingir tais
finalidades. Quer dizer, esta busca determinar os fatos que devem ser
definidos como crimes, apontando as medidas que devem ser tomadas pelo
Estado para o combate à criminalidade. Ou seja, “sua posição é sempre
adiante do Direito vigente, cujas reformas oportunas sugere e orienta,
recebendo inspiração, por um lado, da filosofia e da história, e por outro, e
220
sobretudo, das ciências criminológicas” (1967, p. 34).
Dito isso, é possível afirmar que a Política Criminal serve como norte e
exerce influência no Direito Penal. Ademais, seus apontamentos surgem com
base nas condições fáticas da sociedade, mormente a respeito de condutas
consideradas como delitos.
No sistema jurídico moderno, a pessoa acusada deixou de ser simples
objeto do poder punitivo do Estado, passando a ser sujeito de Direitos,
dentre os quais destacam-se o direito ao princípio da reserva legal, à
presunção da inocência, ao devido processo legal (BEDIN, 2002).
Quando se trata de Direito Penal sempre se discute a respeito de
limites, tais como de intervenção, de tolerância, para a liberdade, para
direitos, para as ofensas, para o Estado e para o indivíduo. É permanente a
busca do equilíbrio entre segurança e liberdade, suas fronteiras e limites
(BUSATO, 2007).
Em um mesmo aspecto, há constante atrito entre doutrinas de Direito
Penal mínimo, Direito Penal garantista (muitas vezes inclusive vulgarizando
o significado do termo) em face daquelas que apontam a necessidade de
maiores represálias do ponto de vista penal, apontando inclusive
determinadas “velocidades” ou ainda a exclusão de determinados indivíduos
da condição de sujeito de direitos, a fim de garantir o pacto social e a
vigência do Estado Social e Democrático de Direito.
Dentre estas, este estudo visa observar o modelo que pode ser
chamado de sócio-filosófico estabelecido por Günter Jakobs e que estabelece
a necessidade de que o Estado, através do Direito Penal, trate determinados
indivíduos de maneira distinta, ou seja, separando o “inimigo” do “cidadão”,
perdendo aquele o status de pessoa, e em decorrência disso os direitos que a
este são inerentes, teoria esta que ficou conhecida como Direito Penal do
Inimigo, o que talvez pudesse ser melhor nomeado em nosso idioma, com
base naquilo que mencionado alhures sobre Direito Penal, Criminologia e
Política Criminal, como “Política Criminal do Inimigo”.
Segundo a teoria de Jakobs, o Direito Penal do cidadão e o do inimigo
(também nomeado indivíduo perigoso ou terrorista) não são duas esferas
isoladas do Direito Penal, mas na realidade, são dois polos ou tendências
221
opostas, em um único contexto jurídico-penal. Ao contrário do que se vê com
o cidadão comum, a relação do Estado com o indivíduo perigoso, determinar-
se-ia pela coação, e não pelo Direito. Diferentemente do criminoso comum,
para quem o Direito busca seu ajuste com a sociedade, com o dever de
reparação e de ajustar-se com a sociedade, os quais tem como pressuposto a
existência da personalidade (JAKOBS; MELIÁ, 2010).
Deste modo, a teoria afirma não somente que o Estado tem direito de
buscar a segurança frente a indivíduos que persistentemente reincidem no
cometimento de crimes, mas também “os cidadãos tem direito de exigir do
Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à segurança”,
que é o “direito dos demais” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 28).
Não há dúvidas, de fato, de que esta afirmação é verdadeira, e que em
uma sociedade complexa é necessário que o Estado tome as medidas
necessárias à manutenção da ordem, bem como que é direito dos cidadãos
exigir que tais medidas sejam tomadas.
Neste sentido, pode ser lembrado inclusive que o Supremo Tribunal
Federal já se manifestou em algumas oportunidades, em especial através do
Ministro Gilmar Mendes, pela aplicação do muito bem fundamentado
princípio da proibição da proteção insuficiente (ou proibição da
insuficiência), apontado como “uma espécie de garantismo positivo”, em
determinados casos onde o Estado, “não pode abrir mão da proteção do
Direito Penal para garantir a proteção de um direito fundamental”, conforme
exposto no julgamento do RE 418.376-5/MS (BRASIL, 2006, p. 7).
No entanto, a questão que provoca discussão não são as finalidades
buscadas pela doutrina do Direito Penal do Inimigo, que são legítimas, mas
sim os meios indicados, mormente no que tange à exclusão de determinadas
pessoas do direito à personalidade, não fazendo mais estas jus a
determinados direitos fundamentais, também no ponto referente aos
critérios utilizados para diferenciar o cidadão do inimigo e, especialmente,
qual a forma de exercer um controle sobre uma questão tão subjetiva que é
esta diferenciação.
As finalidades da doutrina de Direito Penal do Inimigo e da aplicação
do princípio da proibição da insuficiência possuem muita identidade,
222
especialmente no que tange ao objetivo de salvaguarda do Estado e da
sociedade. Entretanto, as ferramentas utilizadas são amplamente distintas,
pois enquanto o primeiro utiliza-se da supressão de direitos e exclusão da
própria personalidade, punindo o indivíduo pelo que ele é, e não pelo fato, o
outro faz uso do direito do Estado em não deixar de aplicar a sanção penal
em casos graves, ou seja, pelo fato, e quando imprescindível, especialmente
quando há conflito entre direitos fundamentais.
É induvidoso que há um oceano de distância entre (a) o Estado não
deixar de aplicar o Direito Penal para a garantia de um direito fundamental
e, (b) deixar de aplicar um direito fundamental, ou mesmo excluir de um
indivíduo a condição de pessoa a fim de buscar a repressão de ilícitos.
Ademais, sendo o princípio da proibição da proteção insuficiente uma
decorrência do princípio da proporcionalidade, ele há de privilegiar os
direitos fundamentais em face do combate intenso à criminalidade.
Em outro enfoque, os argumentos de Jakobs prosseguem, discorrendo
ele que terrorista é o sujeito que “rechaça, por princípio, a legitimidade do
ordenamento jurídico, e por isso persegue a destruição dessa ordem”
(JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 35), o que autorizaria restrições ao inimigo em
seus direitos de pessoa, tanto no âmbito material quanto no direito
processual, citando-se como exemplo, em casos extremos, a
incomunicabilidade do indivíduo, inclusive com proibição de contato com
defensor.
Ou seja, entende ele ser legítima a consideração de duas espécies de
delinquentes, que seriam a pessoa que comete delitos, e aquele indivíduo
que deve ser impedido de destruir o ordenamento jurídico, não podendo este
último ser tratado como pessoa, sob pena de vulnerar o direito à segurança
das demais pessoas da sociedade (JAKOBS; MELIÁ, 2010).
A própria opinião de Günther Jakobs alterou-se no decorrer dos anos,
visto que na Jornada de Direito Penal de 1985, em Frankfurt am Main,
desenvolveu os modelos contrapostos de Direito Penal do inimigo e Direito
Penal do cidadão, sendo o primeiro enquadrado, à época, como uma
categoria analítica com potencial crítico, e, naquela oportunidade, a
impressão obtida foi a de que o enquadramento de determinados tipos do
223
Código Penal Alemão servia para a deslegitimação daqueles (NEUMANN,
2010). No entanto, posteriormente, Jakobs passou a apontar o Direito Penal
do inimigo não com intenção de ser “sempre pejorativa” (JAKOBS; MELIÁ,
2010, p. 21).
E por seus próprios argumentos, a doutrina em exame é alvo de
constantes e duras críticas, recebendo inclusive contraponto de Manuel
Cancio Meliá, na interessante obra que dividem – não somente de fato, mas
também em argumentos. Nesta, Meliá defende o repúdio ao Direito Penal do
Inimigo, especialmente por sua ampla contaminação no Direito Penal
ordinário, associando tal circunstância à expansão do Direito Penal, ao
punitivismo e também ao Direito Penal simbólico, cuja motivação do
legislador está nos efeitos simbólicos obtidos por sua simples promulgação
(JAKOBS; MELIÁ, 2010).
Vale ressaltar que o tema voltou a ser centro das atenções com as
medidas adotadas pelos Estados Unidos da América após os atentados
ocorridos no dia 11 de setembro de 2001, com sequestros de aviões
tripulados, sendo dois deles jogados contra o World Trade Center, outro
contra o Pentágono e o último caindo em um campo aberto na Pensilvânia.
A partir de então, o terrorismo veio à pauta no cenário internacional, e
com isso, a teoria de Jakobs assumiu grande relevância, especialmente em
virtude das políticas adotadas pelos Estados Unidos da América e seus
aliados na chamada guerra ao terror.
Quanto a este ponto, Wermuth (2015, p. 118) descreve que o
terrorismo seria um dos “‘novos riscos’ que que mais obrigou o Estado a se
reinvestir nas suas funções, inclusive com limitações consideráveis ao
exercício de determinadas liberdades públicas pelos cidadãos”, tornando
portanto a segurança como prioridade. Refere que “a tragédia envolvendo as
torres gêmeas em Nova Iorque pode ser vista como o estopim de uma nova
doxa punitiva, pautada pela noção de guerra”.
Denota-se que após o ocorrido, o governo norte-americano passou a
adotar políticas repressivas e de índole que pode ser definida como
fortemente ligada ao chamado Direito Penal do inimigo, incluindo restrições
a liberdades, proteção da privacidade e aumento de detenções,
224
especialmente a estrangeiros e, especificamente os que tenham nomes
islâmicos ou árabes, inclusive utilizando-se de instrumentos que já eram
previstos em lei para a prática de tais atos.
A título de exemplificação, descreve CHEVIGNY (2011) que os
governos locais e federal dos Estados Unidos da América teriam, de certa
forma, tirado proveito do temor após o ocorrido em 11 de setembro de 2001,
permitindo maior intromissão por meios eletrônicos, informantes e
infiltração, não somente para casos de informações internacionais, mas em
casos criminais domésticos e contra ativistas políticos domésticos, visto que
ocorrera autorização para que o governo utilizasse da Corte de Inteligência
Internacional para estes casos. Cita inclusive que um artigo do USA Patricot
Act, que era pouco visado e autorizava interceptações de inteligência
internacional, logo após os atentados teve alteração de duas palavras,
passando a prescrever a possibilidade da Corte de Inteligência Internacional
ordenar interceptação caso a investigação tenha propósitos domésticos e
estrangeiros. Ademais, descreve que passaram a ocorrer detenções muito
mais frequentes que ações penais, passando o governo a deter centenas de
pessoas, em sua maioria estrangeiros, virtualmente todos com nomes
islâmicos ou árabes, sob acusações de prática de delitos leves, violações de
regas de imigração, ou alegação de que seriam testemunhas materiais, o que
é autorizado pele letra da lei. Cita que pouco se informou a este respeito,
havendo grande sigilo, pois o Procurador-Geral teria decretado que os
procedimentos de imigração naqueles casos deveriam ser bloqueados para o
público.
Sobre a posição adotada pelos Estados Unidos da América, Jakobs
referiu tratar-se de “persecução de delitos mediante guerra” (JAKOBS;
MELIÁ, 2010, p. 39).
Sob esta ótica, é possível afirmar que os acontecimentos do dia 11 de
setembro de 2001 foram catalisadores da adoção de uma política criminal
rígida, alicerçada na necessidade de proteção contra um inimigo que se pode
chamar de indeterminado - ou indeterminável: o terrorismo. Como forma de
defesa do Estado norte-americano, adotou-se uma política criminal
extremamente repressiva, que evidentemente causou limitações a
225
determinados direitos fundamentais, tratando de formas diferentes o cidadão
comum norte-americano e aquele que, em constatações feitas somente por
indícios e aparências, poderiam, aos olhos do governo, ser inimigos do
Estado.
Por outro lado, como já visto, a conjuntura atual da sociedade
brasileira, no campo da segurança pública, não é a mais favorável. O
crescimento da criminalidade é evidente, como já apontado no presente
trabalho, e muito se indaga a respeito dos caminhos que serão adotados
futuramente no Brasil, e as consequências que tais escolhas resultarão.

3. EVIDÊNCIAS DA PROPAGAÇÃO DA DOUTRINA DO DIREITO PENAL


DO INIMIGO NO BRASIL E SUAS POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS

A situação atual da violência urbana no Brasil beira ao caos. O


controle preventivo da criminalidade vem falhando em sua razão de existir.
As pessoas sentem-se inseguras, e não à toa, pois os mais diversos delitos
ocorrem cotidianamente, tonando-se fatos reiterados e cada vez mais
comuns.
E isso, sem dúvida, decorre de inúmeras transformações sociais,
culturais, antropológicas e comportamentais, mas também resulta em
muitas outras alterações do cotidiano. Afora a mudança de hábitos
evidenciada nas últimas décadas, que não é o objeto deste estudo, constata-
se também que esta situação aponta para a existência de uma certa revolta
na população em face da ocorrência de tais crimes, a instigação para que
sejam adotadas fortes medidas em face da criminalidade, em especial
medidas repressivas contra autores de delitos.
É verdade que o medo decorre não somente do crime, eis que a
chamada sociedade de risco, fenômeno global decorrente do desenvolvimento
acelerado, possui vários aspectos.
Nos últimos tempos, com um apontamento de declinação, em um
âmbito global, do Estado Assistencial em um neoliberalismo conservador,
bem como com o aumento da produtividade, redução de mão-de obra e taxas
de desemprego e subemprego, há exclusão social, insegurança e riscos
226
pessoais em virtude do aumento de prática de delitos violentos e contra o
patrimônio (PEGORARO, 2007).
Mas, analisada a situação com olhar somente no âmbito criminal da
situação no Brasil, o corolário lógico é que passaram a ocorrer movimentos
de diversas fontes visando um endurecimento de políticas criminais, mas,
especialmente, a existência de maiores represálias do ponto de vista penal a
agentes que praticam delitos, quão mais pelo crescimento da criminalidade
no país, o que é um facilitador do já apontado Direito Penal simbólico.
E esta espécie de comportamento não é novidade no mundo. Cita-se
como exemplo novamente os Estados Unidos da América, com o movimento
de Lei e Ordem (Law and Order), bem como com a política criminal
denominada tolerância zero, ou teoria das janelas quebradas (broken-
windows theory). Assumem destaque, ainda, leis que ficaram conhecidas
naquele país nos anos 1990 como three strikes and you’re out, oriunda da
Califórnia, em que se estabeleceu que o réu que cometesse um novo delito,
após condenação por delito grave ou violento, seria punido com o dobro de
pena inicialmente fixada para o crime. E no caso de terceira infração penal
após dois delitos graves ou violentos, ser-lhe-ia aplicada pena de prisão
perpétua, com mínimo de cumprimento efetivo de 25 anos encerrado. Tais
leis foram observadas em inúmeros estados norte-americanos, bem como o
governo federal aprovou legislação semelhante. No entanto, estas leis
geraram casos de grave desproporcionalidade, como por exemplo ocorreu no
caso Califórnia X Leandro Andrade, réu este viciado em drogas que tinha em
seu histórico furtos leves e tráfico de drogas, que foi flagrado em uma
tentativa de furto de fitas de vídeo, com a finalidade de comprar drogas,
sendo condenado à prisão perpétua (BUSATO, 2007).
Sem o intuito de ser taxativo, eis que os exemplos são muitos, o Direito
Penal na Espanha também sofreu reformas no ano de 2003, convertendo
aquilo que se chamava de Código Penal da Democracia do ano de 1995, em
um Código Penal da segurança, como intitulado pelo próprio governo. E
dentre as medidas, destaca-se por exemplo uma super agravação da pena
em virtude da habitualidade, consistente na reincidência por três delitos
previstos em mesmo título do mencionado Código, oportunidade em que
227
passa a ser possível a aplicação de pena superior em grau àquela prevista na
lei para o delito tratado, retomando assim normas da ditadura franquista,
permitindo a imposição superior em grau à prevista para o delito, com raízes
na figura do “delinquente por tendência” do Código penal fascista italiano e
na do Gewohnheitsverbrecher, Lei sobre o delinquente habitual, adotada pelo
regime nacional socialista alemão, impondo o “internamento em custódia de
segurança” em campos de concentração e por tempo indefinido aos
delinquentes habituais, inclusive em delitos como furto (CONDE, 2006).
A Alemanha, segundo estudo de Neumann (2010), nas últimas
décadas está tomando rumos em seu Direito Penal com inúmeras
características apontadas como típicas do Direito Penal do Inimigo, em
especial com a ampla antecipação da punibilidade, pena desproporcional nos
tipos correspondentes, transição para uma legislação de combate e
desmantelamento de garantias processuais.
Claro que, não obstante estes apontamentos, os últimos fatos que
realmente atiçaram as discussões no mundo acadêmico a respeito da
bandeira do “Direito Penal” do Inimigo foram as condutas adotadas pelos
norte-americanos após os ataques do dia 11 de setembro de 2001. No
entanto - dentro das devidas proporções, pois o ocorrido nos Estados Unidos
da América tomou uma amplitude mundial – também no Brasil está evidente
que o nível de criminalidade também aponta para a existência de
organizações criminosas e indivíduos que se encaixam perfeitamente na
descrição de Jakobs para inimigo ou terrorista, na definição por ele
empregada de tais palavras.
E em nosso país também existem movimentos recentes que apontam
para tentativas de reduções e restrições de direitos fundamentais, o que pode
significar um caminho de inserção do Direito Penal do Inimigo na legislação
brasileira e no Direito Penal ordinário.
Neste enfoque, Callegari e Motta (2008) asseguram que a
contaminação do Direito Penal comum pelo Direito Penal do Inimigo de fato
existe, citando como exemplos a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90),
onde não houve nova incriminação de condutas, mas somente alteração de
penas e restrição de garantias processuais a autores de determinados
228
crimes, concedendo-se portanto tratamento distinto a autores de crimes já
existentes; e o estabelecimento do Regime Disciplinar Diferenciado através
da Lei 10.792/2003, que dispõe sore a possibilidade de restrições aos
indivíduos segregados como em visitas e isolamento, sendo aplicável
inclusive ao preso provisório ou ao condenado sob o qual recaiam fundadas
suspeitas de participação em organizações criminosas.
Há ainda outros exemplos que conduzem à idêntica conclusão. Dentre
estes, chama atenção fato ocorrido no Estado do Rio de Janeiro. Após as
manifestações sociais ocorridas no Brasil a partir de Junho de 2013, a partir
de protestos do chamado Movimento Passe Livre, e que posteriormente
tomaram enorme proporção nacional, em que grande parte da população foi
às ruas deblaterar em face das políticas adotadas pelo governo, nos pontos
atinentes à educação, à saúde e à segurança, mas especialmente contra a
nefasta corrupção arraigada à coisa pública brasileira, circunstâncias estas
que foram infladas pelo enorme gasto público com obras para o evento da
copa do mundo de futebol que ocorreria no Brasil no ano de 2014.
Dentre estas manifestações, vislumbrou-se a ocorrência de
depredações ao patrimônio público e privado, saques e ocupações de prédios
públicos. Em face disso, houve também forte resposta policial, muitas vezes
violenta e desproporcional contra pessoas que tinham interesse em
ordeiramente exercer seu direito de livre expressão. Restou evidente a
dificuldade de diferenciação entre os autores de delitos, que aproveitaram
tais oportunidades, e os verdadeiros manifestantes.
Da mesma forma, segundo Souza (2013) diante de algumas atuações
da Polícia Militar do Rio de Janeiro naquelas situações, ficou evidenciada a
seletividade do Estado Penal, eis que se conferiu tratamento mais belicoso a
setores sociais mais oprimidos, ocorrendo ainda inúmeras detenções
arbitrárias, sob diversos argumentos, inclusive acusações de organização
criminosa entre pessoas que sequer se conheciam, corrupção de menores e
apologia ao crime.
Se isso não bastasse, após tal onda de protestos o governo do Estado
do Rio de Janeiro editou em 22 de julho de 2013 o Decreto estadual 44.302,
o qual constituiu uma Comissão Especial de Investigação de Atos de
229
Vandalismo em Manifestações Públicas – CEIV, ficando autorizada tal
comissão a tomar todas providências necessárias à investigação de prática
de atos de vandalismo, inclusive com requisição de informações, realização
de diligências e uma possibilidade ampla e subjetiva de prática de quaisquer
atos necessários à instrução de procedimentos criminais para punição de
ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas. Além disso,
determinou-se que as empresas de telefonia e internet deveriam entregar
informações de suspeitos em envolvimentos em protestos, atendendo pedidos
de informações do CEIV no prazo de 24 horas (SOUZA, 2013).
Decreto este flagrantemente inconstitucional, tanto formalmente
quanto materialmente, foi alvo de inúmeras críticas à época, motivo pelo
qual sofreu alteração após ajustamento com auxílio do Ministério Público
daquele Estado, denominada de aperfeiçoamento, conforme nota publicada
no portal do Governo daquele Estado (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, 2013).
Sobre este decreto, Souza (2013) acrescenta que a definição de
manifestantes como vândalos foi uma estratégia criminalizante, com
preceitos da teoria do direito penal do inimigo, de modo que o jus puniendi
estaria acolhendo o discurso da guerra, passando a agir como um Estado
contra a lei.
Nesse diapasão, há no Brasil alguns Projetos de Lei referentes ao
terrorismo, e recentemente teve repercussão o Projeto de Lei nº 2016/2015
que tramita na Câmara dos Deputados, visando regulamentar o disposto no
inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, e que disciplina o terrorismo
tratando de disposições investigatórias e processuais, reformulando o
conceito de organização terrorista, alterando as leis nºs 7.960 e 12.850.
A controvérsia a respeito deste projeto veio à lume após apresentação
de parecer favorável pela sua aprovação da Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania da Câmara, apontando a constitucionalidade,
juridicidade e técnica legislativa do projeto.
Caso aprovado e sancionado, o projeto inclui sob o manto da lei das
organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013) as organizações terroristas,
abrangendo atos preparatórios e executórios que ocorram por motivos de
230
“ideologia, política, xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor,
etnia, religião ou gênero” e que visem “provocar o terror, expondo a perigo a
pessoa, o patrimônio, a incolumidade pública ou a paz pública ou coagir
autoridades a fazer ou deixar de fazer algo” (BRASIL, 2015).
E a discussão se deu porque deputados dos partidos PSOL e PCdoB
afirmaram que o texto seria genérico e daria margem para enquadramento
de movimentos sociais no conceito de terrorismo (CARVALHO; CARDOSO,
2015). E, por tal redação acima apontada, realmente poderia existir tal risco
de interpretação, especialmente tendo em vista os exemplos já apontados
ocorridos nos Estados Unidos da América, onde após os acontecimentos de
11 de setembro de 2001 foram utilizadas legislações que já existiam para
execução de medidas caracterizadoras do Direito Penal do Inimigo.
No entanto, antes da aprovação na Comissão de Constituição e Justiça
e de Cidadania da Câmara, foi acrescentada nova redação ao projeto de lei,
apontando que aquela disposição não se aplica às condutas praticadas em
“manifestações políticas, movimentos sociais ou sindicais movidos por
propósitos sociais ou reivindicatórios”, e que tenham objetivo de “contestar,
criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender ou buscar direitos,
garantias e liberdades constitucionais” (BRASIL, 2015), o que já traz maior
segurança no que tange aos possíveis resultados do referido projeto, embora
chame a atenção tal redação original.
Aliás, nesta toada, seguindo a linha de pensamento já proposta por
Jakobs, a própria lei das organizações criminosas, Lei 12.850/2013, possui
em seu bojo disposições que apresentam apontamentos coincidentes com a
doutrina do Direito Penal do Inimigo, especialmente pela forma utilizada
para se definir tais organizações, mormente porque já existia previsão do
crime de formação de quadrilha ou bando na legislação penal brasileira.
Para Hireche e Figueiredo, a existência das definições de crime
organizado e de organizações criminosas, “como conceito dissociado da
figura já existente e punível da formação de bando ou quadrilha, ao que tudo
indica, é manifestação de um discurso de emergência do Direito Penal, de
Direito Penal Simbólico e de Direito Penal do Inimigo” (2015, p. 6).
De todos estes exemplos, rol que novamente não é taxativo, induvidosa
231
a constatação da existência de similitude entre aspectos observados em tais
situações e tentativas de modificações no ordenamento jurídico brasileiro e a
doutrina do Direito Penal do Inimigo. Jakobs aponta que o legislador “está
passando a uma legislação – denominada abertamente deste modo – de luta”
(JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 33), o que também é constatado no Brasil, onde
muito se fala em luta ou combate às drogas, ao crime organizado e em
especial à macrocriminalidade.
No mesmo norte, afirma ele que a pena, no caso do Direito Penal do
Inimigo, não é uma compensação de um dano à vigência da norma, mas sim
a eliminação de um perigo. Refere que a punibilidade avança em direção à
preparação, dirigindo-se a pena à segurança em face de fatos futuros, e não
somente a sanção de fatos cometidos (JAKOBS; MELIÁ, 2010).
No Brasil, a resposta da política criminal à crise já apontada tem sido
a utilização da pena, tal como descrevem CALLEGARI e MOTTA “como se
não existissem outros mecanismos de controle social válidos, ou ao menos
igualmente eficazes” (2008, p. 2), o que gera aumento da população
carcerária e sem dúvida aumento de gastos públicos, o que, por sua vez
conduz à diminuição de investimentos em outros quesitos
Assim, é possível afirmar que o legislador brasileiro, como forma de
resposta à crescente violência, apresenta muitas vezes como solução o
enrijecimento da norma penal e com maior criminalização, e em parte destas
alterações (ou tentativa de alterações) acaba contaminando o direito penal
ordinário com ditames da terceira velocidade do direito penal, qual seja a do
Direito Penal do Inimigo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo que observado, resta clara a existência de indícios de


propagação da Doutrina do Direito Penal do Inimigo na política criminal
brasileira e que estes possuem evidente vinculação com a insegurança que
macula o bom andamento da sociedade, não havendo dúvidas de que aquela
é uma decorrência desta.
Entretanto, todos os cuidados devem ser tomados com a política
232
criminal repressiva que vem sendo adotada, especialmente quando se passa
a confundir o Direito Penal do Inimigo com o Direito Penal ordinário.
Tanto é assim que Jakobs adverte que “a introdução de um cúmulo –
praticamente já inalcançável – de linhas e fragmentos de Direito Penal do
inimigo no Direito Penal geral é um mal, desde a perspectiva do Estado de
Direito” (JAKOBS; MELIÁ, 2010, p. 41).
E a advertência não é à toa, pois não é novidade na história da
humanidade que Estados, em períodos autoritários, tenham adotado
medidas restritivas de liberdades pessoais e de controle político sob o
argumento de controle em face de insegurança ou desordem. Os cuidados
devem ser redobrados quando da inserção de normas que restrinjam direitos
tanto materiais quanto processuais no âmbito penal, sob pena de privilegiar-
se um Estado de Polícia em detrimento das garantias democráticas do
Estado de Direito.
No entanto, no Brasil ainda permanece a tranquilidade da manutenção
destas garantias especialmente em virtude do exercício do controle de
constitucionalidade de normas em todas as suas formas, motivo principal
pelo qual, não obstante todas as tentativas de redução e restrição de direitos
básicos aos acusados de um crime, a segurança jurídica está sendo mantida.
Com efeito, parece haver consenso entre os favoráveis os contrários à
aplicação de um Direito Penal do Inimigo de que sua incidência, ramificação,
entrelaçamento e avanço sobre o Direito Penal comum, ou “do cidadão” são
um risco, podendo ser extremamente perigoso ao Estado de Direito e
devendo portanto ser evitado, sob pena de supressão de direitos
fundamentais dos cidadãos.
De acordo com os ensinamentos de Beccaria, que até hoje se mostram
pertinentes, “mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os
espíritos endurecidos de um povo apenas emergido do estado selvagem [...] à
medida que os espíritos se abrandam nos estados de sociedade, cresce a
sensibilidade e, com ela, deve decrescer a força da pena” (2002, p. 139).
Pois afinal, erro, preconceito discriminação circundam o ideário da
persecução criminal e a aplicação de penas, e embora por vezes pareça
agradável aos interesses da sociedade o endurecimento da política criminal
233
repressiva, com restrições mais severas tanto do ponto de vista penal quanto
do processual penal, devemos lembrar que não há demonstração segura
capaz de comprovar que a expansão do direito penal traz resultados práticos
na diminuição de violência e criminalidade, ao passo que a elevação dos
cidadãos a condições dignas de existência e o resgate de valores sociais são
exemplos bem-sucedidos de políticas que acabam por reduzir a prática de
crimes. Com base no exposto, e como forma de lembrança, sempre é
necessário que seja feito o seguinte questionamento: com a propagação do
Direito Penal do Inimigo, quem ou o que irá decidir quem é o inimigo e quem
é o cidadão?

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237
A CASTRAÇÃO QUÍMICA: SUA EXPLÍCITA INCONSTITUCIONALIDADE
EM CONSONÂNCIA À (RE)SOCIALIZAÇÃO DO APENADO

Diovan Roberto Schmalz1

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a imposição da castração química como sanção


penal a autores de crimes contra a liberdade sexual tem sido tema de
inúmeros debates nos cenários jurídico e social brasileiro e internacional.
Inclusive, por consequência do sensacionalismo jornalístico que se fundou
em torno desse tema, vemos a sociedade civil manifestando-se
favoravelmente à adoção da castração química como medida punitiva
estatal, porém, não sabendo exatamente de que se trata ou o que seja,
realmente, a castração química (HEIDE, 2007).
Por esta razão, se fazem pertinentes criteriosas análises acerca deste
instituto penalizador, dissecando-se questões como a conceituação da
castração química, sua (in)eficácia sob o aspecto ressocializador do apenado,
os países cujas legislações a permitem, a existência de projetos de leis
brasileiros que tratam do assunto e, por fim, a (im)possibilidade de sua
implantação no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, parte-se, inicialmente, do estudo acerca da castração
química, seu conceito e desenvolvimento histórico, sua forma de
administração e os medicamentos que são utilizados. Em seguida, analisar-
se-á o perfil psicológico do abusador sexual, a (in)eficácia do tratamento
hormonal e os efeitos no corpo do indivíduo.
A seguir, serão observados os projetos de leis criados no Brasil com o
escopo de utilizar a castração química como medida punitiva, bem como, se
levará em consideração o contraste legislativo internacional, observando-se a
maneira como é aplicada a pena da castração nos países em que esta é
prevista legalmente.

1 Bacharel em Direito (UNIJUI). E-mail: diovanschmalz@hotmail.com ou


diovanschmalz@gmail.com

238
Por fim, pretende-se ponderar os direitos constitucionais do apenado
com a possibilidade legal da aplicação desta pena, bem como, apurar se o
condenado seria ou não beneficiado com tal penalidade.

2. A CASTRAÇÃO QUÍMICA COMO MEDIDA PUNITIVA: historicidade,


conceito e efeitos domedicamento no corpo do apenado

Em razão de difundidos discursos eficientistas e de defesa social, que


perpassam a perda do controle sobre a criminalidade e a consequente
impunidade, observa-se que, no âmbito do Direito Constitucional Penal
brasileiro e internacional, surgiu, já há algum tempo, o debate sobre a
aplicação de uma pena própria aos indivíduos que cometem crimes contra a
liberdade sexual, sobretudo quando praticados contra crianças e
adolescentes.
O Direito Penal brasileiro advém do Direito Canônico (sendo,
portanto, a prática de um crime considerada como “pecado”) e o atual
sistema repressivo foi, inicialmente, inspirado no modelo imposto pela Santa
Inquisição, no qual castigos corporais e tortura eram de utilização
diária(HEIDE, 2007).
Em breve tomada histórica, pode-se observar que a castração
enquanto medida punitiva originou-se com a Lei de Talião, em que vigorava
a máxima do “olho por olho, dente por dente”. O sujeito considerado
criminoso era punido na medida de seu crime, sendo-lhe aplicado dano igual
ou semelhante ao que havia praticado. Nos primórdios, a castração era
realizada a macete, isto é, esmagavam-se, mediante golpes de cassetete, os
testículos do autor do crime sexual (MARQUES, 2010).
A castração, “como punição, é usada desde a Antiguidade para impor
humilhações a vencidos em guerras e, na primeira metade do século XX,
com o objetivo de 'purificar a raça', tornando vários tipos de criminosos
estéreis” (AGUIAR, 2007).
No princípio da história do direito brasileiro, quando o Brasil ainda
era colônia de Portugal, o Direito Penal e Processual Penal baseavam-se nas
ordenações Manuelinas, Filipinas e Afonsinas, as quais adotavam as penas
239
de morte, de mutilação através do corte de membros (aqui se verifica a
castração), de degredo, de tormento, a prisão perpétua e o açoite. Mesmo
após o Brasil tornar-se um país independente, a imposição destas penas
manteve-se por longo período, pois o direito brasileiro continuou a nortear-
se naquele medieval ordenamento jurídico europeu.
No tocante à castração,o entendimento era no sentido de que o
homem que praticasse determinados atos sexuais, considerados imorais ou
criminosos, poderia ser condenado à castração - então conhecida por
“capação” -, que podia ser concretizada por várias maneiras, objetivando
que, com o castigo, o agressor não tivesse mais possibilidade de voltar a
delinquir devido à aniquilação do seu apetite sexual (MARQUES, 2010).
Atualmente, devido aos avanços sociais e científicos, criou-se uma
nova modalidade de castração, denominada “castração química”, que,
diferente da castração física - pois não envolve amputação de órgãos genitais
-, é ocasionada pela administração de substâncias químicas que bloqueiam
a produção do hormônio testosterona nos delinquentes sexuais masculinos,
cessando a libido e controlando o desejo e os impulsos sexuais daqueles a
ela submetidos.
Como conceitua Mattos (2009, p. 59):

“A castração química ou terapia antagonista de testosterona, como


muitas vezes é denominada, é uma forma de castração reversível,
causada mediante a aplicação de hormônios que atuam sobre a
hipófise, glândula do cérebro que regula a produção e liberação da
testosterona”.

O método mais comum na realização da castração química consiste


na aplicação de antiandrógenos de via oral ou injetável, como o medicamento
Depo-Provera (acetato de medroxyprogesterona), que nada mais é que uma
versão sintética do hormônio feminino progesterona (HEIDE, 2007).
Algumas das drogas mais usadas na castração química são a
flutamida e o acetato de ciproterona. A primeira é um antiandrógeno não-
esteroidal que compete com a T e com a DHT pelo receptor de andrógeno
(RA) nas células da próstata, e a segunda é uma droga esteroidal que além
de competir pelo RA inibe a produção de Hormônio Luteinizante (LH) pela
240
hipófise, o que por sua vez inibe a produção de T pelos testículos (OLIVEIRA,
2005).
Há ainda os que intitulam a castração química como “terapia
antagonista de testosterona”, uma vez que, sendo utilizada como tratamento
voluntário pelo apenado, aplicando-se os medicamentos de acordo com o seu
consentimento, não se compararia àquela castração mecânica de séculos
atrás.
Doravante, relativamente aos efeitos da castração química no corpo
do condenado, verifica-se a redução da libido ou impulsos sexuais, já que
haverá uma falta de irrigação no pênis. Neste ponto, estudos com o Depo-
Provera (acetato de medroxyprogesterona), que é a versão sintética da
progesterona, o hormônio feminino pró-gestação, demonstram que há uma
redução do apetite sexual compulsivo dos sex ofenders e que seus efeitos
colaterais compensam-se pelos benefícios (HEIDE, 2007).
Verifica-se que os principais efeitos ocasionados pela castração
química são, em tese, temporários – como a redução do apetite sexual e o
prejuízo nas ereções -, sendo possível, posteriormente, após ser considerado
como curado o indivíduo submetido ao tratamento, reverter a produção do
hormônio testosterona aos níveis habituais daquele sujeito, bastando, para
isso, que se interrompa o uso do medicamento.
Ainda assim, em que pese a característica da reversibilidade e dos
aparentes benefícios da castração na forma química, os estudos
preexistentes na área ainda não foram capazes de comprovar se os demais
efeitos (colaterais) causados por esta intervenção hormonal também
cessariam com a interrupção do tratamento medicamentoso.
Nesse sentido, Spalding (1997, tradução nossa) aponta que:

Quando usado nos homens, a MPA efetivamente inibe as ereções,


ejaculações e reduz a frequência e intensidade dos pensamentos
eróticos. Os efeitos incluem o aumento do apetite, ganho de peso de
15 a 20kg, fadiga, depressão, hiperglicemia, impotência, diminuição
do volume ejaculatório, insônia, pesadelos, dispneia (dificuldade em
respirar), ondas de calor e frio, perda de cabelo, náusea, cãibras nas
pernas, irregular função da vesícula biliar, diverticulite, enxaqueca,
hipogonadismo, flebite, aumento da pressão do sangue, hipertensão,
tromboses (próximo a ataque cardíaco), diabetes, e encolhimento da
próstata e dos vasos seminais. (tradução nossa).
241
Contudo, a administração prolongada de hormônios inibidores do
hormônio testosterona pode provocar efeitos irreversíveis, haja vista que a
aplicação do acetato de medroxiprogesterona (MPA) em homens pode deixar
sequelas como a falha na irrigação do pênis e na ereção, frustrando o
orgasmo, acarretando, também, perda óssea, aumento de peso, hipertensão,
mal-estar, trombolismo, fadiga, hipoglicemia, ginecomastia e depressão
(VIEIRA e DOS SANTOS, 2008, p. 19).
Conquanto o efeito estimado da castração química venha a ser uma
espécie de impotência temporária, de acordo com o Psiquiatra Aderbal Vieira
Júnior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da
Universidade Federal de São Paulo, em entrevista à Revista Época (2008), o
uso prolongado e excessivo dos denominados inibidores hormonais pode
dificultar a recuperação de toda a potência sexual do homem. Assegura
ainda que a castração química traz como efeitos o aumento da pressão
arterial e a atrofia da genitália masculina, podendo a medida acarretar até
mesmo câncer hepático.
Diante disso, do ponto de vista clínico, evidencia-se a
desproporcionalidade com que se apresenta a castração química enquanto
medida punitiva, pois, embora atinja seu objetivo principal - tornar o
delinquente sexual temporariamente inapto e alheio à prática de crimes
sexuais -, acaba gerando efeitos colaterais consideravelmente nocivos à
saúde.
Ressalta-se, ainda, que este caráter temporário da castração química
pode vir a tornar-se perpétuo, já que, como exposto, com a utilização
prolongada de medicamentos inibidores do hormônio testosterona, os efeitos
colaterais podem se tornar irreversíveis e irremediáveis, mesmo após a
interrupção do tratamento. Em suma, as alterações e anomalias propostas
nesta nova modalidade de castração, não desfazem o seu componente
degradante e cruel ao corpo humano.
Outrossim, em se tratando de crimes sexuais, é imprescindível a
análise de suas causas e a possível associação destas a fatores naturais ou
biológicos da vida ou a eventos sociais. Neste aspecto, Alexandre Aguiar
242
(2007) explica que:

Várias pesquisas indicam que a testosterona, hormônio ligado à


sexualidade e à violência, é um dos fatores comumente presentes
naquelas pessoas que cometem crimes. Não é à toa que a maioria
dos homicidas são homens na faixa etária de 15 a 39 anos. Eles têm
níveis de testosterona 15 a 20 vezes maiores que as mulheres, e é
nessa faixa etária que esse hormônio atinge o auge no corpo.

Todavia, a Biologia, por si só, é incapaz de sintetizar a ocorrência de


todos os crimes a uma única causa, haja vista que, acompanhando a
estatística acima, existem ainda, por exemplo, homicidas mulheres, idosos e
até infantes.
Então, buscando-se estabelecer a motivação da prática delituosa,
Alessando Baratta (2002) explica que: “O delito era conduzido assim, pela
Escola Positiva, a uma concepção determinista da realidade em que o
homem está inserido, e da qual todo o seu comportamento é, no fim das
contas, expressão.”Logo, a prática do crime estaria associada a uma série de
fatores sociais que circundam a vida do criminoso, sendo, portanto, os atos
dos delinquentes reflexos da própria sociedade em que estão inseridos.
Mas, afinal, seriam fatores biológicos ou fatores sociais os condutores
da prática delitiva contra a dignidade sexual? Nesse sentido, para se definir
a motivação destes crimes, se faz necessário o estudo do perfil psicológico do
abusador sexual.
Notoriamente, entre os crimes sexuais, os que causam maior espanto
à sociedade são aqueles relacionados a pedofilia, o que, em suma, refere-se à
atração sexual por crianças (“ped” tem origem grega e significa “criança”). Na
maioria dos casos de pedofilia a criança tem menos de 13 anos, pré-púbere,
e o indivíduo molestador é um homem de 16 anos ou mais, pós-púbere
(HOLMES, 1997).
Portanto, enquanto desordem mental e de personalidade do
indivíduo, a pedofilia é uma espécie de parafilia, a qual constitui o gênero
dos transtornos mentais relacionados ao sexo, sendo definidas como
distúrbios qualitativos ou quantitativos do instinto sexual, podendo existir
como sintoma numa perturbação psíquica, como intervenção de fatores

243
orgânicos glandulares, ou simplesmente como questão da preferência sexual
(FRANÇA, 2001).
Associando as razões que podem ensejar o surgimento da pedofilia,
sabe-se que alterações funcionais cerebrais, principalmente em região de
lobos frontal e temporal, estão implicadas com esta doença. Além disso,
experiências sexuais precoces (abuso sexual), inabilidades sociais,
experiências de negligência parental, inadequadas formas de aprendizagem
sexual, alterações neuroquímicas têm sido apontadas na etiologia da
Pedofilia (BALTIERI, 2009).
No tocante aos demais crimes de abuso sexual contra vítimas
maiores de 13 anos de idade, é possível estabelecer sua motivação a partir
do estudo de comportamentos evidenciados pelos agressores (de conotação
biológica ou social), as características do crime (finalidade, atos,
planeamento), e a escolha e características das vítimas. Assim, os sujeitos
que partilham critérios comuns são identificados, descritos e, em seguida,
classificados em categorias distintas. Porém, é possível e comum encontrar
tipos de violadores que são incoerentes ou que não podem ser enquadrados
nos critérios anteriores.
Nesse entendimento, para Jocelyn Aubut (1993), é possível a
definição de quatro grandes categorias para classificar os denominados
violadores, sendo estas:

a)Busca pelo poder – Nesta categoria, estão elencados os homens


que se sentem inaptos ou fora dos padrões perante a vida em geral e
face às mulheres em particular, sentindo-se incapazes de estabelecer
um contato íntimo com as mulheres e a sociedade em geral. Por esta
razão que, para eles, a violação sexual vem a ser um teste em relação
a sua competência sexual e a si mesmo, uma maneira de se afirmar
enquanto homem dominante em seu grupo social. Assim, o indivíduo
que busca pelo poder, incorre na conduta ilícita de maneira
planejada e astuciosa, escolhendo geralmente vítimas da sua idade e
visa a capturá-las, dominá-las e, por fim, conquistá-las, por exemplo,
explicando-lhes, após o delito, que não queria magoá-las. b)Raiva–
Aqui se inserem os indivíduos que cometem o ato ilícito de maneira
brutal, cruel, impulsiva e espontânea. Através da violação sexual, o
indivíduo busca humilhar e ferir a vítima, isso porque, não agem
motivados pela sua excitação ou libido, mas sim pela sua raiva. E,
estas violações ocorrem, na maioria das vezes, devido a algum
conflito, preexistente entre o autor e a vítima. Logo, para o agressor,
abusar sexualmente da vítima seria antes uma vingança ou
desencargo de sua raiva, do que simplesmente a exploração do corpo
244
desta. c)Sadismo - O violador sadista é caracterizado pela prática
ritualizada de outro crime diferente do abuso sexual (por exemplo, o
roubo e o sequestro), mas que, durante a prática deste, o indivíduo
inflige maus tratos (golpes, tortura, queimaduras, lacerações)
erotizados sobre a vítima. Aqui, ocorre uma fusão da sexualidade
com a agressão, mas estas não são voluntárias, são planejadas a fim
de proporcionar prazer ao abusador. Suas vítimas são geralmente
desconhecidas, mas portadoras de características desejadas pelo
agressor, como idade, roupas, aparência, status social, etc.
d)Comportamento antissocial – Nesta, o agressor apresenta uma
vasta história de degradação e de comportamentos antissociais. Vive
à margem da sociedade e procura, sobretudo, a satisfação das suas
necessidades. Revela-se impulsivo, mas não sente raiva perante as
mulheres, pois, para ele, elas são um mero objeto que lhe permite
satisfazer as suas necessidades. Importante destacar que para estes
abusadores o delito sexual é secundário ao seu modo de vida, e se
dá, principalmente, em razão de sua problemática mais antissocial
do que sexual. (grifo nosso).

Veja-se que esta classificação aponta a motivação dos crimes sexuais


para além de fatores biológicos, apresentando, como principal causa, fatores
sociais que norteiam e compõe a vida do indivíduo que comete estes crimes.
Logo, se os crimes sexuais são cometidos tanto por fatores biológicos
quanto por fatores sociais, não seria a castração química enquanto medida
punitiva a solução deste problema, pois, conforme exposto acima, a violência
sexual não está essencialmente fundamentada na satisfação de um desejo e
não se refere, em todas as situações, em um excesso hormonal. Assim, a
administração da castração química no sujeito delinquente, além de causar
inúmeros efeitos colaterais em seu corpo, com certeza não faria com que este
compreendesse que é imoral, criminoso, bárbaro e cruel abusar sexualmente
de outrem.
Nos mesmos termos posiciona-se Spalding (1997, tradução nossa):

MPA tem sido usada com sucesso em um único tipo de ofensor


sexual, os parafílicos, que demonstram um padrão de excitação
sexual, ereção e ejaculação que é acompanhada por distintas
fantasias. Enquanto o MPA tem sido provado com sucesso em alguns
portadores de parafilias, deve ser considerada a opinião científica
que a droga não tem uma expressiva influência nos demais tipos de
criminosos sexuais, os quais também estão incorporados no âmbito
do novo estatuto: os réus que negam a perpetração da agressão; os
réus que admitem a perpetração da agressão, mas justificam o seu
comportamento em forças não-sexuais ou não-pessoais, como
drogas, álcool e estresse; e os réus que são violentos e parecem ser
instigados por fatores não-sexuais, como poder, fúria ou violência.

245
Não obstante, sequer aos indivíduos diagnosticados como portadores
da pedofilia a castração química se apresenta como medida apropriada,
como explica Danilo Baltieri (2009):

Medicações para controlar a ação da testosterona são muito poucas


vezes necessárias para a população de pessoas que padecem da
doença médica conhecida como Pedofilia. A princípio, cerca de 90%
dos portadores de Pedofilia conseguem adequada resposta
terapêutica através da psicoterapia e de medicações como
antidepressivos e outras medicações que auxiliam no controle dos
impulsos sexuais desviados. Medicações que controlam a ação da
testosterona, conhecidas como medicações hormonais, podem ser
necessárias para os restantes 10%, quando nenhuma outra forma de
tratamento produziu efeitos adequados, em termos de cessação de
impulsos sexuais desviados.

Para mais, Spalding (1997) explica que, para se submeter ao


tratamento com a administração da castração química, o agressor sexual
deverá se apresentar regularmente ao médico designado, pelo prazo
estabelecido em sua pena, para que se efetue a aplicação dos medicamentos
hormonais. Assim, encontra-se dificuldade no tratamento em razão desta
obrigatoriedade da administração dos inibidores hormonais, haja vista que,
caso a apresentação regular não seja obedecida pelos indivíduos, pode,
ainda, levar os delinquentes ao aumento da produção da testosterona,
provocando, de maneira inversa da pretendida inicialmente, uma maior
incidência na prática de crimes sexuais.
Ainda, referente à eficácia da castração química em impedir a prática
de novos crimes sexuais, David Holmes (1997, p. 424) assevera que, apesar
de reduzir o desejo sexual, tal procedimento não elimina necessariamente “a
excitação e o comportamento sexual”. Exemplificando, o autor refere que na
Alemanha, dos 39 estupradores castrados, 50% deles relataram que ainda
eram capazes de ter relação sexual.
Pelo exposto, constata-se que a administração de inibidores
hormonais não acarretaria, necessariamente, a redução do desejo e da
violência sexual, pois o indivíduo que se vê privado de sua virilidade, ainda
poderá incidir na prática de crimes sexuais, porém, estando, em tese,
privado da ereção peniana, utilizará outros métodos libidinosos para abusar
sexualmente da vítima (VIEIRA, 2008, p. 20).
246
Destarte, encontra-se aqui um enorme equívoco quando se interpreta
que a castração química enquanto medida punitiva seria capaz de evitar a
reincidência do indivíduo a ela submetido, pois, além das considerações já
colacionadas, sendo os crimes sexuais praticados por questões biológicas e
sociais, os motivos que conduziriam o sujeito a delinquir continuariam a
existir mesmo após a castração.

3. EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS NO DIREITO COMPARADO E AS


PROPOSTAS LEGISLATIVAS NO BRASIL

Não é de hoje que a castração química vem sublevando-se como tema


polêmico em vários países. Com marco inicial, na década de 1990, com o
advento da publicização de inúmeros casos de abusos sexuais praticados
contra crianças, adolescentes e mulheres de todas as idades, teve início - no
Brasil e em vários outros países - um movimento a favor do recrudescimento
do Direito Penal em relação à penalização de crimes praticados contra a
liberdade, a dignidade e a incolumidade sexual (SILVEIRA, 2008).
Assim, a castração química surgiu como uma resposta à indignação
do corpo social com um sistema punitivo estatal que castiga mas não
reabilita. E diante deste contexto de insegurança e revolta populacional,
alguns países passaram a admitir em seus ordenamentos jurídicos a
implantação da castração química como sanção penal autores de delitos
sexuais.
A primeira forma de castração química como punição a crimes
sexuais, surgiu no Estado da Califórnia (EUA), no ano de 1997, com a
previsão legal, no ordenamento jurídico estadual, de aplicação da castração
química como medida punitiva a crimes sexuais.
Destarte, Bruno Fontenele Cabral (2010) refere que, seguindo os
passos do Estado da Califórnia, outros Estados americanos, como Iowa,
Texas, Flórida, Luisiana, Wisconsin, Geórgia e Montana, também
estabeleceram, em seus ordenamentos jurídicos estaduais, a aplicação legal
da castração química de forma voluntária ou obrigatória.
Da mesma forma, outros países também introduziram a castração
247
química em seus diplomas legais e admitiram sua aplicação a criminosos
sexuais. São exemplos: Grã-Bretanha, Suécia, Itália, Dinamarca, Alemanha,
Moldávia, França, Áustria, Dinamarca e Coréia do Sul.
No Brasil também houve campanhas no sentido de implantar no
ordenamento jurídico pátrio a castração química como medida punitiva,
sendo que, nos últimos 20 anos, foram apresentadas inúmeras propostas
legislativas com essa temática. A exemplo: PEC nº 590/98; Projeto de Lei nº
7.021/02; Projeto de Lei nº 552/07; Projeto de Lei nº 5122/2009; Projeto de
Lei nº 349/11; Projeto de Lei nº 597/11; entre outros mais.
Contudo, de todos os projetos de lei apresentados, merece destaque o
Projeto de Lei nº 552/07, por ter sido o único projeto a obter parecer
favorável. Este projeto de lei, apresentado pelo Senador Gerson Camata,
semelhante aos demais projetos, visava acrescentar ao Código Penal a pena
de castração química ao autor de crimes sexuais contra crianças.
Este projeto legislativo, em razão do caráter de voluntariedade
previsto em seu texto – prevendo a castração química como um tratamento
que seria aplicado apenas aos apenados que realmente desejassem a ele se
submeter -, teve parecer favorável do relator Ministro Marcelo Crivella. No
entanto, após seu trâmite ordinário, o Projeto de Lei nº 552/07 foi, enfim,
arquivado.
Contudo, frise-se que todas as propostas legislativas apresentadas
foram arquivadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em
virtude da explícita violação a dispositivos constitucionais e direitos e
garantias individuais, sobretudo a dignidade da pessoa humana,
assegurados pela Constituição Federal brasileira.

4. DA INADMISSIBILIDADE DA ADOÇÃO DA CASTRAÇÕ QUÍMICA COMO


MEDIDA PUNITIVA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: a violação ao
princípio da dignidade

Em relação ao Direito Constitucional Penal, um dos princípios que


possui especial relevância é o da dignidade da pessoa humana. Referido
princípio exerce papel fundamental no sentido de permitir a validade
248
constitucional de diversos institutos jurídicos da seara penal.
Para Alexandre de Moraes (2005, p.17):

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se


manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo
invulnerável que todo estatuto jurídico deve (sic) assegurar, de modo
que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao
exercício dos Direitos Fundamentais, mas sempre sem menosprezar
a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres
humanos.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III,


estabeleceu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental.
Todavia, como explica Marcelo Novelino (2008, p. 26), tal princípio “[...] não é
um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a
todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor
ou quaisquer outros requisitos”.
Sob este aspecto, aduzido princípio consolida ao Estado a obrigação
de proteção da pessoa humana, de maneira a resguardar, respeitar e
promover condições que possibilitem aos seus cidadãos uma vida com
dignidade.
No entanto, apesar da notória importância dos direitos fundamentais,
observa-se hoje o desrespeito e o descrédito crescentes desses direitos,
sobretudo em relação à dignidade humana. Por esta razão, é imprescindível
que o Estado não apenas abstenha-se da prática de atos que atentem contra
essa dignidade, mas também que promova seu fortalecimento, a fim de se
efetivar a dignidade a todo sujeito de direito.
À vista disso, relativamente à castração química, é evidente que tal
medida, enquanto sanção penal, é incompatível com o ordenamento jurídico
brasileiro, haja vista que qualquer medida punitiva que ameace a integridade
física e psicológica da pessoa humana é lesiva não apenas ao princípio da
dignidade, como também aos direitos humanos em sua essência. Direitos
estes que, inclusive estabelecidos em convenções e tratados internacionais,
visam a consolidar internacionalmente os direitos fundamentais inerentes ao
ser humano.
249
Exemplo é o Tratado da Convenção Americana de Direitos Humanos,
também denominado Pacto de San José da Costa Rica, o qual busca
fortalecer a justiça social e à liberdade e autonomia dos cidadãos nos países
do continente americano. Assim, importa salientar que, no Brasil, o Pacto de
San José da Costa Rica possui equivalência de Emenda Constitucional,
como prevê o art. 5º, §§2º e 3º, da Constituição Federal de 1988.
Em seu artigo 5º, o Pacto de San José da Costa Rica dispõe, da
mesma forma que se encontra disposto nas normas constitucionais e
infraconstitucionais brasileiras, sobre o Direito à integridade pessoal do ser
humano, destacando o respeito à integridade física, psíquica e moral.
Ressaltando ainda que ninguém será submetido a torturas, nem a penas ou
tratos cruéis, desumanos ou degradantes, e, que a pessoa que estiver em
regime de segregação em casa prisional, deve ser tratada com o respeito
devido à dignidade inerente ao ser humano.
Acerca da caracterização das penas cruéis, Alexandre de Moraes
(2006, p. 338) explica que:

[...] dentro da noção de penas cruéis deve estar compreendido o


conceito de tortura ou de tratamentos desumanos ou degradantes,
que são, em seu significado jurídico, noções graduadas de uma
mesma escala que, em todos os seus ramos, acarretam padecimentos
físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem
os sofre.

Nesse sentido, percebe-se que a implantação da castração química


enquanto medida punitiva no ordenamento jurídico brasileiro, é totalmente
incompatível tanto com as normas constitucionais e infraconstitucionais
brasileiras, como também com o próprio direito positivo brasileiro. Por conta
disso, não se pode outorgar propostas legislativas que desrespeitem a
superioridade da Carta Magna pátria, violando princípios fundamentais sob
os quais a própria nação mantém seu alicerce.
Portanto, tem-se a castração química como uma sanção penal
totalmente contrária aos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Isso porque, ao ser usada como medida punitiva a agressores sexuais, a
castração química acaba ferindo não só princípios fundamentais inerentes a
todo ser humano, mas também diversos dispositivos constitucionais.
250
5. A CASTRAÇÃO QUÍMICA COMO DIREITO DO CONDENADO

Ultrapassada a discussão constitucional sobre o tema, questiona-se,


então, acerca da possibilidade do indivíduo apenado optar,
espontaneamente, por se submeter à castração química. Possibilidade esta
que já é realidade em muitos países e que também foi trazida a discussão no
Brasil, quando do advento de algumas propostas legislativas que, conforme
abordado anteriormente, buscavam a implantação da castração química
como medida punitiva no sistema jurídico nacional.
Sabe-se que, dentre as finalidades da pena, estão a ressocialização do
reeducando e a prevenção de novos delitos. Apesar da crise de legitimidade
que afeta a pena privativa de liberdade na contemporaneidade, a pena de
castração química, para seus defensores, insurge-se como o método menos
desumano e mais eficaz no combate à criminalidade sexual, bem como, para
eles, seria plenamente possível sua adequação aos parâmetros do
ordenamento jurídico brasileiro.
Para seus idealizadores, a conversão da castração química em um
direito do apenado, de maneira que este pudesse optar ou não a submeter-se
ao tratamento, tornaria esta medida punitiva legitima sob o aspecto
constitucional, uma vez que estariam respeitados os direitos
constitucionais do condenado e colaboraria com a diminuição dos
crimes sexuais. Assim, aquele que se dispusesse a realizar o tratamento
seria beneficiado com uma redução da pena que poderia variar entre um e
dois terços, em analogia ao benefício da delação premiada, prevista na Lei
8.072/90. A lógica é simples: parte da pena de prisão tornar-se-ia
desnecessária, pois a função ressocializadora estaria sendo atingida também
por meio da castração química. O condenado teria a opção de cumprir a
pena nos termos da lei atual ou de submeter-se ao tratamento durante todo
o período em que ele não estivesse encarcerado. Obviamente, esse
tratamento somente poderia ser feito após laudo médico que comprovasse
sua necessidade e com o pertinente apoio psicológico. Hipoteticamente
falando, um estuprador condenado a nove anos de reclusão poderia cumprir
de três a seis anos da pena, sendo que, no restante do período, ele deveria
251
comparecer ao local adequado para exames e aplicação do hormônio
feminino. Caso ele interrompesse o tratamento, a solução seria prendê-lo
novamente para que cumprisse o restante da pena. (AGUIAR, 2007).
Nesse contexto, Bruno Fontenele Cabral (2010) destaca a axiomática
ligação entre a pena de castração química de criminosos sexuais e o livro
"Laranja Mecânica",deJohn Anthony Burgess (2004), no qual o protagonista
do livro,Alex, criminoso sexual condenado, é usado, com sua autorização
expressa, numa experiência científica criada pelo Estado para a eliminação
de seu comportamento criminoso por meio da aplicação do método
denominado Ludovico. Ressalte-se que, ao submeter-se a tal experiência,
Alex teria um período considerável de sua pena descontada. Tal método
baseava-se em um tratamento psiquiátrico que, através de choques,
eliminava as reações do condenado sempre que nele se manifestasse o
desejo de delinquir ou um comportamento considerado inadequado. Após ser
posto em liberdade, Alex não mais volta a delinquir, porém, o faz não por
estar ressocializado, mas simplesmente porque ele era atingido por uma dor
extrema sempre que cogitava praticar algum delito.
Contudo, verifica-se que, hipoteticamente, em sendo admitida no
ordenamento jurídico brasileiro, a pena de castração não obteria, por si só,
resultados eficazes no combate à criminalidade sexual, pois ainda seria
necessária uma rede completa de atendimento psicológico e social ao
apenado.
Ainda assim, mesmo que de maneira facultativa, a adoção de tal
medida punitiva como sanção aos autores de crimes sexuais, além de
confrontar diretamente normas constitucionais e infraconstitucionais, não
atende as funções precípuas da pena, uma vez que, de acordo com o
conjunto de considerações trazidas à baila, a castração de um indivíduo não
impedirá que este venha a se tornar um criminoso reincidente específico, e,
tampouco, inibirá a prática de delitos sexuais da sociedade (CABRAL, 2010).
Em um quadro mais gravoso, tem-se que, além de mostrar-se ineficaz
sob o aspecto ressocializador da pena e de violar normas e princípios
constitucionais, admitir a castração química como sanção penal também
implicaria em um retrocesso jurídico ao direito brasileiro, na medida em que
252
se abriria precedentes e, assim, promoveria o ressurgimento das sanções
penais corpóreas e desumanas muito utilizadas em séculos passados.
Ademais, ainda que não seja imposta como pena, mas como um
tratamento facultativo que possa importar na redução da pena ou na
extinção da punibilidade, a castração química não encontra amparo
constitucional para sua implantação, à medida que implicaria em impor ao
condenado a escolha entre ser submetido a um tratamento hormonal cruel e
degradante ou a cumprir integralmente a pena privativa de liberdade a que
foi condenado - em uma casa prisional que não oferece as mínimas
condições da manutenção de sua dignidade.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo o exposto, verifica-se que a discussão de penas alternativas


no sistema jurídico penal brasileiro, em especial quando se tratam de
propostas legislativas no sentido de recrudescer a punição Estatal em
relação à criminalidade, é ainda questão delicada no país. Pois, mesmo nos
dias de hoje, a sociedade, e inclusive os legisladores, enxergam na punição a
panaceia da criminalidade, uma solução baseada no castigo e na dor pela
qual o condenado deve ser submetido para “pagar” por seus erros. E isso
evidencia-se à medida que os legisladores brasileiros violam dispositivos
constitucionais, promovendo propostas legislativas que vão de encontro ao
texto legal da Carta Magna de 1988, como o caso dos projetos de lei que
pretendem implementar a castração química no sistema punitivo brasileiro.
Nesse contexto, as mudanças legislativas na esfera penal não podem
ser fruto de ideais que contrariem os valores democráticos e busquem, de
forma distorcida e equivocada, “resolver” os problemas da violência e da
criminalidade tão somente com propostas repressivistas e contrárias às
propostas de um Direito Penal Mínimo, de caráter subsidiário.
Logo, adotar a castração química como recurso punitivo impingiria
em uma abertura de precedentes, de maneira a permitir a interpretação legal
de que outras penas corporais e cruéis também pudessem vir a ser
proporcionais à prática de outros crimes, o que nos aproximaria da
253
desvirtuação do positivismo penal que hoje norteia o Direito Constitucional
Penal brasileiro.
Ademais, permitir a ocorrência de castração química a criminosos no
Brasil, também desrespeita efetivamente os direitos humanos fundamentais
dos apenados, afrontando diretamente dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais.
Sendo assim, evidencia-se, nitidamente, a impossibilidade de se
encaixar no ordenamento jurídico brasileiro qualquer medida punitiva capaz
de lesionar um princípio que tem como fundamento algo intrínseco à
condição de ser humano, qual seja, sua dignidade.

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Acrescenta o art. 216-B ao decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 –

254
código penal, para cominar a pena de castração química nas hipóteses em
que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for
considerado pedófilo, conforme o código internacional de doenças. In: Diário
do Senado Federal, Brasília, n° 146, em 19 set. 2007.

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VIEIRA, Tereza Rodrigues; SANTOS, Thiago Borba Calixto dos. Castração


química: alternativa para os crimes contra a liberdade sexual? Revista
Jurídica Consulex, ano XII, nº 272, p. 18-20, 15 mai 2008.

256
A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL: QUAL SUA EFICÁCIA E
POSSÍVEIS MEDIDAS ALTERNATIVAS

Lucas Oliveira Vianna1

1. INTRODUÇÃO

Para compreender o conceito de maioridade penal, importa remeter-se,


previamente, à definição de imputabilidade penal: “conjunto de condições
pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada
a prática de um fato punível” (AMARO, 2004). No artigo 228 da Constituição
Federal (BRASIL, 1988), está disposto: “são penalmente inimputáveis os
menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. O
inimputável, de acordo com o artigo 26 do Código Penal (BRASIL, 1940), é
isento de pena. Dessas ideias, extrai-se que maioridade penal é a idade a
partir da qual o indivíduo que praticar uma infração pode receber pena.
Dessarte, tal punição não é imposta aos adolescentes, sendo-lhes aplicadas,
consoante dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD), medidas
socioeducativas, que são: advertência; obrigação de reparar o dano;
prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime
de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional (BRASIL,
1990). Essas medidas socioeducativas possuem finalidade diferente da pena,
pois pretendem garantir a manutenção do vínculo familiar e possuem
caráter pedagógico (NETO e GRILO, 1995).
No entanto, o aumento da violência urbana nos últimos anos tem
preocupado e causado medo na sociedade (SOUZA E CAMPOS, 2007), tanto
pelo maior número de ocorrências quanto pela crueldade e técnicas
criminosas (RAMOS, 2005). Um dos fatos mais perturbantes é que a
violência cometida por adolescentes – e contra eles – vem aumentando em
proporções inusitadas (KAUFMAN, 2004), tendo havido recorrentes
acontecimentos brutais envolvendo menores de idade, o que tem levado a
sociedade a cobrar do Estado que reduza a maioridade penal (ALVES et al.,
2009). Atualmente, a maior parte da população apoia a redução

1 Acadêmico do curso de Direito da URI.


257
(DATAFOLHA, 2015), e há diversos projetos em trâmite no Congresso
Nacional que propõem a medida (SALES et al., 2013).
Essa questão tem dividido opiniões, causado polêmicas, e gerado
discussões (CERQUEIRA e MARQUES, 2010). De um lado, os que apoiam a
redução, com argumentos como: o ECRIAD se tornou uma proteção para
aqueles que desejam cometer crimes, que o fazem na certeza da impunidade
(RODRIGUES e HUMILDES, 2008); os adolescentes têm plena consciência de
seus atos (SALES et al., 2013), o que se evidencia por terem direito a
escolher seu representante político (JORGE, 2002); alguns menores
infratores apresentam transtornos graves de personalidade, como psicopatia
(KAUFMAN, 2004); outros países que possuem menoridade penal inferior a
nossa são mais desenvolvidos e têm menores índices de violência (CUNHA et
al., 2006); por sua inimputabilidade, os menores são usados por maiores de
idade para cometer crimes (ALVES et al., 2009). Por outro lado, os que são
contra a medida sustentam, entre outros fundamentos, que: reduzir a
maioridade penal é tratar o sintoma, em vez de a doença, sendo necessário
adotar ações que tratem os fatores sociais e reintegrem o infrator à
coletividade (CRUCES, 2010); os países que responsabilizam menores mais
cedo têm índices de violência menores por outros fatores (ALVES et al.,
2009); não há como julgar a eficácia do ECRIAD se ele não é aplicado
efetivamente, com os fins para os quais foi concebido (SOUZA e CAMPOS,
2007); a prisão fabrica delinquentes, não reeduca, e contribui para a
reincidência (FOUCAULT, 1999); a maioridade penal é cláusula pétrea da
Constituição, não podendo ser alterada por emenda (ANDRADE, 2013).
Sendo um assunto controverso, atual, e de relevantes consequências
para a sociedade brasileira, faz-se oportuno um estudo sobre a eficácia da
redução da maioridade penal como medida para diminuição da
criminalidade, e possíveis providências alternativas. O presente artigo tem
por objetivo fazer isso através da análise das opiniões de diversos juristas,
da pesquisa no acervo bibliográfico pertinente, da contraposição dos
argumentos opostos, e da ponderação lógica acerca desses argumentos. Não
se objetiva que este trabalho configure-se como veredicto absoluto, haja vista
que representa uma das óticas sobre o assunto, elaborada com base nos
258
textos da amostra, sendo que o tema envolve uma miríade de fatores
demasiadamente numerosos para serem abrangidos por um artigo desta
extensão. Tem-se por finalidade concatenar informações de diversos artigos
e, com base nessas, estabelecer uma hipótese para o problema proposto.

2. CONTEXTO SOCIAL

Para analisar a situação da delinquência juvenil no Brasil, é


necessário fazê-lo, como em todo estudo, observando o contexto que cerca o
objeto de análise, a fim de evitar construir uma visão fragmentada do
mesmo.
No que tange à população em geral, dados obtidos pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2010) indicaram
que 28,7% da população brasileira vive na pobreza (54 milhões de pessoas),
o que inclui cerca de 25 milhões de crianças, e que 10% da sociedade (19
milhões) encontra-se em estado de extrema pobreza. A escassez financeira
desses jovens, aliada ao consumismo fomentado pela mídia, segundo o qual
o grande valor é possuir bens que a maioria das pessoas não tenha
(CASTRO, 2002), faz com que muitos deles tentem encontrar uma fonte de
renda, tanto para colaborar no sustento seu e de sua família, quanto para
adquirir itens os quais são privilégio das classes média e alta. Alguns o
fazem por meio do tráfico e de assaltos, outros, através do trabalho.
Entretanto, os que escolhem a via laboral encontram diversas dificuldades.
Silva e Oliveira (2015), constataram que 85,8% dos adolescentes de 15 anos
que trabalham recebem menos de um salário mínimo, e mais de 60%
daqueles entre 15 e 17 anos também não percebem esse valor. O estudo
ressalta, ainda, que a maioria exerce a atividade na informalidade, sem
qualquer proteção social. Além disso, a pesquisa revela que trabalhar
precocemente ocasiona, em muitos casos, um atraso no progresso escolar:
entre os menores que trabalham, 90% dos que possuem 15 anos não
concluíram o ensino fundamental, e 69,4% dos adolescentes de 16 a 17 anos
também não completaram esse estágio do ensino. Porém, a deficiência
educacional do Estado não se manifesta somente naqueles que necessitam
259
trabalhar. No Brasil, entre os adolescentes de 15 a 17 anos, 84% frequentam
a escola, mas apenas 48% no nível de ensino adequado à sua idade (MEC
apud BRASIL, 2010). Em 2013, aproximadamente um terço dos adolescentes
com idade de 15 a 17 anos ainda não havia terminado o ensino fundamental
(SILVA e OLIVEIRA, 2015). Ante esses dados, percebe-se que se apresenta
muito mais atrativa a opção pela criminalidade, mormente em razão da
improvável ascensão financeira, no regime capitalista, de um indivíduo
desprovido de qualificações, que vive em uma comunidade em que um
traficante de drogas lhe oferecerá, por uma semana de tráfico, o montante
que ele receberia por um mês de trabalho assalariado (CASTRO, 2002).
Pode-se verificar que o meio social de origem da maioria dos
adolescentes em conflito com a lei é exatamente esse, ao analisar as
estatísticas a seguir, que dizem respeito ao contexto social de menores
infratores. Um estudo feito pelo IPEA e pelo Ministério da Justiça (SILVA e
GUERESI, 2003) apontou que 66% dos adolescentes internados eram
oriundos de famílias pobres, 51% não frequentavam a escola e 49% não
trabalhavam quando cometeram o delito. Além disso, mais de 60% eram
negros. A profissão do pai da maioria dos detentos é pedreiro, 28% sequer
sabem a profissão do pai, e 34% possuem mãe doméstica, diarista, ou
faxineira (FEBEM, 2006). Dos internos, 89,6% não haviam concluído o
Ensino Fundamental, apesar de estarem em uma faixa etária equivalente à
do Ensino Médio (16 a 18 anos) (SILVA e GUERESI, 2003). Uma das maiores
causas do envolvimento em atos infracionais é a evasão escolar, visto que,
sem estar estudando, o menor se torna ocioso e mais suscetível de cometer
delitos (VIEIRA apud ESTEVÃO, 2007). Esses dados corroboram a ideia
supracitada de que pobreza, evasão escolar e falta de trabalho não só estão
relacionados entre si e com a delinquência juvenil, mas são as principais
causas desta. Outro aspecto determinante é a exposição desses menores às
drogas, que se encontram facilmente acessíveis nas comunidades em que
vivem. Uma pesquisa efetuada pelo Conselho Nacional de Justiça (BRASIL,
2012) demonstrou que 74,8% dos adolescentes internos são usuários de
entorpecentes. Dentre esses, 89% usavam maconha, 43% cocaína, e 21%
crack. Vieira apud Estevão (2007) destaca que a pobreza, o uso de drogas e a
260
influência de amigos são as principais razões para a prática delituosa,
igualando-se em números, o que denota a fragilidade do adolescente à
influência de terceiros, e a íntima relação da delinquência juvenil com o uso
de drogas. A exclusão social vivenciada diariamente pelos menores das
comunidades carentes incentiva-os a procurarem espaços de participação,
mecanismos e meios de sair do anonimato e da indiferenciação, o que os leva
a formarem grupos juvenis de comportamento violento e delinquente, como
as gangues, com o intuito de manifestar a revolta pela exclusão não apenas
socioeconômica, mas também simbólica (SILVA e OLIVEIRA, 2015).
Outro fator determinante é a desestruturação dos núcleos familiares
em que vivem esses adolescentes. Primeiramente, para se compreender a
importância da família na formação dos valores do menor em
desenvolvimento, em uma pesquisa feita pela UNICEF (2002) com
adolescentes de diversas faixas de renda e regiões, a família foi escolhida por
85% dos participantes como a principal responsável pela garantia do bem-
estar e dos direitos dos adolescentes. Ocorre que, na maioria dos casos, os
adolescentes em conflito com a lei não têm esse amparo. Amaral (2012), em
uma entrevista com um ex-detento, relatou que ele disse que “onde ele mora,
as crianças já matam, porque são largadas, os pais não educam, não
conversam, não dizem o certo e o errado”. Uma das principais causas de
transtornos de conduta e, consequentemente, da criminalidade entre
menores é a falta – ou desajuste – da figura paterna. Ratificando essa ideia
encontram-se as pesquisas, que demonstram que a maioria dos jovens
internados foi criada apenas pela mãe (BRASIL, 2012; FEBEM, 2006), 27%
dos internos possuem histórico de abuso de álcool na família, e, dentre esse
grupo, 48% por parte do pai. Outrossim, confirmando a relação entre
desestabilidade familiar e propensão à criminalidade, em 29% das famílias
dos menores houve morte violenta, sendo 93% por alguma forma de
assassinato (FEBEM, 2006). Ao encontro dessa ideia vêm Shikida et al.
(2014), que registram que, em 38% dos casos de adultos em conflito com a
lei, havia antecedentes criminais no seio familiar.
Diante dessas informações, conclui-se que o jovem infrator não é um
fenômeno acidental, fruto de sua própria natureza inerentemente má, salvo
261
raras exceções, e sim o resultado de uma série de fatores que, por serem
sociais, denotam um insucesso do Estado.

3. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS

Neste espaço, serão abordados os pontos principais que permeiam o


debate sobre a maioridade penal, comparando os argumentos de ambos os
lados, com o objetivo de averiguar a qual posicionamento assiste razão.

3.1. Voto

Jorge (2002) argumenta que, se o menor com 16 anos completos tem


discernimento para escolher seu representante através do voto, também o
tem para discernir o caráter ilícito de um crime. Essa é uma das alegações
mais recorrentes, inclusive, nos projetos de lei. Todavia, um voto e um crime
são atos jurídicos completamente distintos, e o discernimento para um não
pode servir como base para se deduzir o discernimento para o outro (ALVES
et al., 2009). O uso imprudente do direito político – ao votar-se em um
candidato inadequado – não gera, na vida do menor, as consequências
nefastas que advém do cometimento de um crime. Disso depreende-se que é
necessário um discernimento muito maior para o segundo.

3.2. Transtornos psicológicos

Kaufman (2004), em consonância com alguns defensores da redução,


afirma que alguns dos adolescentes em conflito com a lei são portadores de
transtornos de personalidade graves, como a sociopatia e a psicopatia, e que
para a maldade inerente não há tratamento médico, e talvez nem exista
reeducação possível. Não obstante tenha-se realmente observado patologias
em alguns adolescentes, isso não sustenta a redução da maioridade penal,
mas a contraria. Se o menor possui algum transtorno, precisa receber
tratamento psicológico e psiquiátrico adequado, uma vez que a prisão não
irá recuperá-lo, mas sim agravar a sua conduta antissocial, e, ao fim de sua
262
pena, será menos suscetível de receber com efetividade um tratamento
(CRUCES, 2010). O que esse conceito confronta é o limite de prazo da
internação. Amaro (2004) relata que, em 40 anos tratando pessoas que
podem ser consideradas normais do ponto de vista social e psiquiátrico,
observou que se pode levar mais de uma década para obter sucesso no
tratamento, o que denota a insuficiência do prazo de três anos de internação
para regenerar adolescentes autores de delitos graves.

3.3. Aliciadores de menores

Suscita-se, frequentemente, no debate acerca da redução, que a


impossibilidade de penalização de menores propicia que quadrilhas os
utilizem para serem responsabilizados por crimes graves coordenados por
maiores, tendo em vista que sua punição será mais branda (KAUFMAN,
2004). Todavia, é esse adulto quem responde penalmente tanto pela prática
do crime, quanto pela corrupção do menor, nos termos do artigo 244-B do
ECRIAD (ALVES et al., 2009). O que se faz imperioso é uma aplicação efetiva
da legislação existente. Além de que, se a maioridade penal for reduzida para
16 anos, aliciadores recorrerão aos adolescentes de 15 anos; caso seja
reduzida para 14 anos, utilizarão os de 13, e assim por diante. A questão
principal não é a inimputabilidade penal, mas sim o contexto em que os
menores estão inseridos desde a infância, vulneráveis à influência de
traficantes, sem perspectiva de emprego e renda, sem condições econômicas
básicas, com educação precária e núcleos familiares completamente
desestruturados (RODRIGUES e HUMILDES, 2008).

3.4. Apoio da população

Também pesa a favor da redução o fato de ser apoiada pela maior


parte da população. Atualmente, 87% dos brasileiros são favoráveis a
redução da maioridade penal de 18 para 16 anos (DATAFOLHA, 2015). Entre
estes, 74% defendem que ela deva valer para qualquer tipo de crime
cometido, e 26% entendem que deve ser aplicada apenas para crimes
263
específicos, como homicídio e estupro. Porém, isso se deve ao enfoque
exacerbado da mídia sobre os atos infracionais praticados por adolescentes
(MONTE et al., 2011). A forma como a imprensa representa esses indivíduos
é estigmatizante, como se a conduta criminosa fosse algo definitivo no seu
futuro, integrante da sua própria constituição como sujeito, como se não
houvesse qualquer laço social ou afetivo que pudesse servir de alicerce para
sua transformação em um “homem de bem” (ESPÍNDULA et al., 2006). Uma
pesquisa feita por Galvão e Camino (2011), com estudantes, demonstrou que
aqueles que opinaram favoravelmente à redução da maioridade penal
utilizaram argumentos típicos dos estágios inferiores da tipologia
kohlberguiana, ou seja, apresentaram reduzida capacidade de julgamento
moral, bem como argumentos repetitivos e rasos.
As estatísticas, no entanto, são incompatíveis com o que a imprensa
apresenta. Cuneo (2001) afirma que, conforme o Fórum Nacional de Defesa
da Criança e do Adolescente, aproximadamente 10% do total de crimes, no
Brasil, são cometidos por menores. Dos 21 milhões de adolescentes
brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida; em contrapartida,
eles são as principais vítimas da violência: 36,5% das mortes, por fatores
externos, de adolescentes no País, têm como causa homicídios, ao passo que
para a população total correspondem a 4,8% (UNICEF, 2015). Um estudo
feito pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ (BRASIL, 2012) que analisou
mais de 14 mil processos apontou que, dos atos infracionais cometidos por
internos, a maior parte concentrava-se em infrações contra o patrimônio
(52%) e relativas a tóxicos (26%), enquanto que apenas 18% eram contra a
pessoa, e 1% contra a dignidade sexual.
Como se pode extrair das estatísticas, conquanto a mídia faça parecer
que os estupros e homicídios cometidos por menores são numerosos, a
maior parte dos delitos não é de alta gravidade. Ocorre que, em virtude de
alguns casos terem ocasionado forte comoção social, a mídia os coloca
excessivamente em foco, o que causa uma generalização por parte da
população acerca da crueldade dos menores delinquentes.

264
3.5. Inimputabilidade vs. impunidade

Aqueles que apoiam a redução aduzem que o ECRIAD é uma lei


demasiadamente branda, que garante direitos ao menor, mas não explicita
deveres, e que não prevê consequências para seus atos (GRANDINO, 2007).
Segundo estes, a legislação atual gera uma sensação de impunidade por
parte dos menores, fomentando a sua inconsequência, por protegê-los de
uma punição. Contudo, um estudo realizado por Cunha et al. (2009)
demonstrou haver uma correlação positiva entre a idade e a gravidade do
delito, ou seja, adultos apresentaram uma média de gravidade de delitos
maior do que adolescentes, o que não ocorreria se a imputabilidade penal
prevenisse a criminalidade. Não há uma falta de punição ao adolescente
delinquente, pois a internação não deixa de ser uma privação da liberdade.
Vale registrar que, conforme observa Estevão (2007), para que um criminoso
adulto cumpra 3 anos no regime fechado (ao qual corresponde a medida de
internação), sua pena de reclusão não pode ser inferior a 18 anos, uma
sanção muito raramente aplicada. A título de exemplo, o autor cita o roubo
com emprego de arma de fogo, cuja pena, em regra, é aplicada em 5 anos e 4
meses de reclusão, e o estupro com violência presumida (que pode possuir
vítima menor de 14 anos) cuja pena, em regra, é fixada em 6 anos de
reclusão. Nesses dois exemplos, em tese, é possível a determinação do
regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena, e, mesmo que na
condenação seja fixado o regime inicial fechado, depois de cumprir menos de
um ano da reclusão, no primeiro exemplo, e um ano, no segundo, o
sentenciado já poderá progredir para a semiliberdade. Ainda se deve
ponderar que a privação da liberdade, por 3 anos, de uma pessoa com 16
anos, tem muito mais impacto do que para uma pessoa com 30 anos (SILVA
e OLIVEIRA, 2015). Destarte, comparando os dois sistemas, é visível que a
medida de internação não é tão branda quanto alegam os defensores da
redução.

265
3.6. A prisão

Um argumento muito levantado por aqueles que se posicionam


contrários à redução é que colocar menores em contato com criminosos
contumazes e experientes agravaria sua situação de antissociabilidade e,
consequentemente, a reincidência. Um relatório apresentado pela Comissão
dos Direitos Humanos e Minorias (Brasil, 2006) mostrou que praticamente
todos os estados do Brasil apresentam presídios superlotados, alguns na
ordem de 200%, com problemas como: falta de assistência médica aos
presos doentes; má qualidade da água e da comida; prática de tortura e
corrupção por parte dos agentes e da polícia; falta de acompanhamento
psicológico e insalubridade das instituições. Na penitenciária de Araquara-
SP, que possui somente 160 vagas, o relatório apontou haver 1.500 presos.
A superlotação gera problemas como violência entre os presos, rebeliões,
motins e greves de fome, que denunciam à sociedade a situação caótica das
prisões (AMARAL, 2012). Se essas condições se mostram inadequadas a
promover a regeneração de um adulto em conflito com a lei, tanto mais serão
insuscetíveis de recuperar um adolescente, que, por estar em fase
desenvolvimento, sofre maior influência de fatores externos. Inserido em um
ambiente nocivo, que instiga o menor a ser ainda mais agressivo, o
adolescente, que já se encontrava descontente e revoltado pela exclusão
social que sofria, encontrará em grupos violentos formados dentro da prisão
a oportunidade de se autoafirmar e extravasar toda a sua insatisfação
perante a sociedade que o encarcerou. Estevão (2007) reforça essa ideia, ao
lembrar que os dois grupos que mais atemorizam a sociedade – “PCC” e
“Comando Vermelho” – surgiram dentro de cadeias. O mesmo autor
questiona: que resultados obteríamos da convivência de menores de 18 anos
com integrantes de grupos desse tipo?
Conjuntamente, importa assinalar que o menor, por estar em fase de
formação, deve receber medidas com caráter pedagógico e reeducativo, o que
vai de encontro à natureza punitiva prisional, uma vez que o sistema
penitenciário não se preocupa com a reintegração, mas busca apenas a
retribuição vingativa e penalizante ao indivíduo que infringe a lei (LOCHE e
266
LEITE apud BARBATO, 2004). A função de ressocialização perdeu-se no
tempo, transformando o presídio em um mero exílio forçado de criminosos,
com o único objetivo de conferir à sociedade a proteção que ela deseja
(BITTENCOURT apud AMARAL, 2012). Desde o momento em que ingressa
na penitenciária, o sujeito inicia um processo de despersonificação que
mudará substancialmente o conceito que tem de si mesmo (AMARAL, 2012).
Assim como a FEBEM não é uma instituição adequada para satisfazer sua
finalidade, as prisões também se configuram como meio que desumaniza o
indivíduo e reproduz a prática criminosa (BARBATO, 2004). Com o fito de
entender as influências da pena em vidas de ex-detentos, foram feitas
pesquisas com os mesmos, as quais evidenciaram diversas dificuldades que
encontraram para serem socialmente aceitos e desligarem-se do período em
que estiveram presos (CRUCES, 2010). Entrevistas feitas com egressos desse
sistema demonstraram que eles enfrentam muita dificuldade para conseguir
emprego, já que quase todas as empresas em que comparecem solicitam a
Certidão de Antecedentes Criminais (AMARAL, 2012). Isso valida o fato de a
infração cometida por menor não gerar antecedentes criminais para depois
da maioridade, cujo propósito é não estigmatizar o indivíduo, facilitando a
sua reinserção na sociedade.
Tendo conhecimento desses dados, pondera-se que colocar os
adolescentes no sistema carcerário sacia a revolta da população, enquanto,
em contrapartida, alimenta a revolta do menor e dificulta o seu afastamento
da vida delituosa. O que importa mais: aplacar a sede de vingança da
sociedade, e transformar o jovem infrator em um criminoso contumaz, ou
tentar impedir o progresso da sua criminalidade e capacitá-lo a conviver com
essa sociedade, antes de recorrer à exclusão?

4. DISCUSSÕES EM TORNO DO ECRIAD

4.1. Evolução e conjuntura internacional

Outro argumento dos defensores da redução é que o ECRIAD não


seguiu a nova conjuntura social, sendo uma legislação atrasada, antiquada e
267
obsoleta, visto que contraria o movimento do Direito, e que se encontra
estática diante de um tema que demanda novas reflexões (CERQUEIRA e
MARQUES, 2010). Para eles, é cabível a redução da maioridade penal, já que
o progresso do mundo, com a globalização e o fácil acesso à informação,
ocasionou o amadurecimento mais precoce das crianças, que possuem plena
compreensão do caráter ilícito de seus atos, devendo a lei se adequar a esse
novo cenário social (JORGE, 2002). Eles entendem que a maioridade penal
de 18 anos, prevista pelo ECRIAD, foi estabelecida em uma época na qual as
pessoas de 18 anos eram muito mais ingênuas, mais “crianças” do que
atualmente (KAUFMAN, 2004). Para esse ponto de vista, nossa legislação
também está atrasada no cenário global, em que muitos países, como
Estados Unidos, China, Rússia, entre outros, estabeleceram uma idade de
imputabilidade penal menor (BORRING apud CUNHA et al., 2009).
Todavia, segundo Alves et al. (2009), o ECRIAD é um texto legal
internacionalmente pioneiro no respeito aos direitos da criança e do
adolescente. Diferentemente de muitas leis que surgem pelas mãos de uns
poucos políticos, o ECRIAD é resultado de um trabalho coletivo, do qual
participaram pessoas diretamente envolvidas com as crianças e
adolescentes, e inclusive os próprios menores, por meio de atividades
promovidas por associações e organizações (GRANDINO, 2007). Além disso,
a legislação atual que trata da infância e da adolescência no Brasil está de
acordo com o direito internacional, e qualquer alteração na maioridade penal
que diminua os direitos desse grupo contrariará os acordos e convenções dos
quais o Brasil é signatário (SILVA e OLIVEIRA, 2015).
Outrossim, segundo Alves et al. (2009), não se pode analisar
isoladamente a maioridade penal reduzida de países desenvolvidos, e alegar
que essa seja a causa dos baixos índices de violência, como se fosse uma
relação de causa e efeito. Para os autores, deve-se considerar também outros
indicadores, como o acesso à educação, à segurança, ao emprego e à saúde,
pois estes colaboram de forma considerável para a diminuição da violência,
além de serem os indicadores responsáveis por esses países estarem na
categoria de desenvolvidos. Ademais, entendemos que não se pode auferir a
consciência meramente com base na compreensão de ser ilícito o fato. Deve-
268
se ponderar, juntamente, a consciência moral do indivíduo, ou seja, a
compreensão de que sua ação é moralmente condenável. Ocorre que a
maioria dos menores em conflito com a lei não receberam, em seu
desenvolvimento, tanto do âmbito familiar quanto da comunidade em que
vivem, os valores morais corretos. Ao encontro dessa ideia vêm Rodrigues e
Humildes (2008), ao alertar que se deve abordar o adolescente infrator a
partir da inserção do objeto de análise na realidade socioeconômica
brasileira, tendo em vista que os países cuja maioridade penal se dá aos
dezesseis ou quatorze anos cobram um comportamento condizente com
aquilo que eles oferecem. Os autores entendem que, quando se oferecem as
condições necessárias para que os jovens se insiram inteiramente na
sociedade, nada mais razoável que seja demandado que eles se ajustem a
elas. Entretanto, as condições no Brasil são extremamente diferentes, como
já observamos no capítulo que trata do contexto social dos menores
infratores.

4.2. Reincidência dos menores infratores

No que tange à aduzida ineficiência do ECRIAD em prevenir a


criminalidade e evitar a reincidência, faz-se imprescindível um olhar mais
aprofundado sobre o tema. Em uma pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça (BRASIL, 2012), observou-se uma média nacional de
54% de reincidência. Por outro lado, no que se refere ao sistema prisional,
um estudo feito por Adorno e Boldrini (1989) demonstrou índices de
reincidência de 46,03%. Outra pesquisa de campo, mais recente, realizada
por Shikida et al. (2014), no Complexo de Penitenciárias de Piraquara
(Paraná), apontou uma média de reincidência de 59,33%, enquanto que para
os já reincidentes a média subiu para 78,90%, e para os não reincidentes a
média caiu para 39,76%.
Portanto, podemos observar que a reincidência vem aumentando nos
últimos anos, e que, até entre os que não são reincidentes, a probabilidade é
alta. Comparando os dois sistemas – unidades de internação e sistema
prisional – percebemos que não há uma grande diferença no que diz respeito
269
à reincidência. Logo, se o ECRIAD é uma legislação compatível com o cenário
atual, como se justifica que os dados mostrem uma reincidência tão elevada
entre os que receberam medida de internação? Alves et al. (2009) advertem
que isso se deve ao fato de que o Estatuto não é aplicado efetivamente com
os fins para os quais foi concebido, e frisam que não se poderá julgar a sua
improcedência enquanto o mesmo não for seguido à risca. Salientam os
autores que o estatuto está longe de cumprir a sua função socioeducativa,
devido a problemas também de infraestrutura, mas principalmente de
ideologia, pois as instituições atuais visam à punição, e não à reinserção.

4.3. As unidades de internação

Souza e Campos (2007) afirmam que as atuais instituições, que


deveriam aplicar as medidas socioeducativas, encaminham os jovens no
sentido oposto do que propõe o Estatuto, punindo, humilhando, violando os
corpos dos adolescentes. Segundo a FEBEM (2006), 42% dos internos dizem
receber pouco/nenhum respeito dos agentes de segurança, e 72% sentem
que o tratamento que recebem é humilhante. Um exemplo do fulcro punitivo
das instituições encontra-se em um estudo feito por Espíndula e Santos
(2004), que constatou que os assistentes de desenvolvimento social de
unidades de internação baseiam-se em princípios punitivos, como pôr os
adolescentes de castigo nas celas, e proibi-los de exercer as atividades
educativas, que deveriam ser asseguradas, já que fazem parte do regime de
internação. Cabe destacar que esse método punitivo não contribui para o
desenvolvimento do julgamento moral do indivíduo, mas simplesmente o
treina para obedecer às ordens e encaixar-se naquele sistema. Deve-se
observar se o adolescente julga a gravidade dos seus atos e das ações das
outras pessoas a partir das intenções e motivação dos mesmos, e não
somente com base em suas consequências, especialmente as materiais
(MONTE et al., 2011). Senão, tão logo o sujeito estiver livre da vigilância
repressiva, voltará à conduta delinquente, pois não desenvolveu o
discernimento de que aquilo é moralmente errado.
Não obstante essa finalidade equivocada das unidades constitua um
270
óbice à efetivação do ECRIAD, também o é a estrutura da maior parte delas.
Convém lembrar que a aplicação de medidas socioeducativas aos
adolescentes infratores deve seguir certas orientações, tais como a
obrigatoriedade de escolarização e profissionalização, bem como a garantia
de atendimento personalizado, respeitando a identidade e singularidade dos
adolescentes (MONTE et al., 2011). As estatísticas a respeito das
instituições denunciam o evidente descumprimento dessas diretrizes: no
quesito saúde, notou-se que 32% das estruturas não possuem enfermaria e
57% não dispõem de gabinete odontológico; 22% das unidades não possuem
refeitório, ou seja, nestas instituições, os alimentos são consumidos em
outros espaços sem destinação para esse fim; no aspecto educacional, 49%
das unidades não possuem biblioteca, 69% não dispõem de sala com
recursos audiovisuais e 42% não possuem sala de informática; destaca-se,
ainda, o baixo percentual de instituições com área destinada à visita íntima
– 3% (BRASIL, 2012). O estudo conclui que “dos dados apurados pode-se
constatar grande déficit do Estado na aplicação de medidas socioeducativas
e na aplicação de programas voltados à educação desses jovens.” (BRASIL,
2012).
O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP (Brasil, 2013),
também no tocante à estrutura, revelou os seguintes dados: no quesito
salubridade, mais da metade das unidades de internação situadas no
Centro-Oeste (68%), Nordeste (54%) e Norte (50%) foram dadas como
insalubres, ou seja, não possuem higiene, conservação, iluminação e
ventilação adequadas em todos os espaços da unidade; no Sul, 40% das
unidades foram reprovadas nesse quesito; apenas 1/3 das instituições do
Brasil possuem salas de aulas adequadas; somente 1/4 oferecem
atendimento multidisciplinar; em pelo menos 15% das unidades há pessoas
com transtornos graves (como psicopatia, por exemplo), o que requer
tratamento adequado fora da unidade; 25,4% das unidades de internação
visitadas não instauram procedimento administrativo antes da aplicação de
sanção; no que se refere à capacidade, o estudo mostrou que diversas
instituições encontram-se superlotadas, com índices em torno de 200%
(Ceará e Paraíba), 324% (Alagoas), 350% (Mato Grosso do Sul), e até 458%
271
(Maranhão). Por óbvio, é impossível que se consiga prestar o devido
atendimento, personalizado e individualizado, em locais cuja superlotação
abrange o quádruplo do que a entidade é capaz de comportar.
Entretanto, os dados mais alarmantes coletados pela pesquisa dizem
respeito à separação dos internos. Como frisa o CNMP (Brasil, 2013), a
determinação de separação dos adolescentes que estão internados
provisoriamente dos que estão em internação definitiva, além de constar no
ECRIAD, também integra as Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Proteção dos Jovens Privados de Liberdade: “De todas as maneiras, os jovens
detidos ou em espera de julgamento deverão estar separados dos declarados
culpados”. Porém, os dados obtidos pelo Conselho indicam que, em média,
59% das unidades do Brasil não efetuam essa separação, sendo que no
Centro-Oeste esse número chega a 72%. Também se constatou que 73% das
unidades não separam os internos por idade, e somente 25% separam de
acordo com a gravidade da infração (no Centro-Oeste esse índice cai para
8%), ou seja, adolescentes que foram internados por furto, ou tráfico, por
exemplo, dividem espaço com aqueles que cometeram atos infracionais
graves, como homicídio e estupro. Na semiliberdade, pode-se dizer que
praticamente não há separação. Contudo, apesar de todos esses dados, 64%
dos gestores estaduais consideraram as unidades ótimas ou boas.
Dessarte, como se pode promover a reeducação e reintegração do
menor infrator, sem garantir sua segurança e integridade perante outros
internos, sua dignidade física e moral, seu aprendizado, educação,
profissionalização e desenvolvimento psicológico, ao interná-lo em locais
insalubres, com salas de aula impróprias, sem assistência à saúde
adequada, em convívio com portadores de transtornos graves, em locais com
mais de quatro vezes o número de internos que podem suportar? Se não se
efetivam os princípios propostos pela legislação, como se pode arguir que ela
é ineficaz?

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A redução da maioridade penal, por si só, é insuficiente para resolver o


272
problema da criminalidade juvenil, porquanto a causa desta não é a
inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. Há, inclusive, uma grande
probabilidade de essa criminalidade aumentar se a redução for aprovada. As
principais razões que contribuem para a delinquência entre menores são o
contexto social em que estão inseridos, a situação das unidades de
internação, e o artigo 121 do ECRIAD, que prevê que o menor ficará
internado por, no máximo, 3 anos.
O cometimento de uma infração grave por parte de um adolescente
expõe a existência de várias falhas: nas políticas sociais básicas, na escola,
no Estado e na sociedade (CASTRO, 2002). Pais e professores expressam o
desânimo de não saber como impor limites e fazer com que os jovens se
submetam às normas de convívio (GRANDINO, 2007). Assim, a redução da
maioridade penal surge como uma válvula de escape da população para
libertar-se do sentimento de insegurança, diante de um Estado incompetente
para lidar com a criminalidade (CRITSINELIS, 2009). Mas não é admissível
que, por causa da dificuldade, lavem-se as mãos (GRANDINO, 2007). Deve-
se buscar um sistema punitivo que tenha caráter preventivo, e promova a
ressocialização de forma eficaz; a mudança não deve ser voltada à busca de
novas formas de punir, mas deve vir daquele que tem o dever de garantir a
segurança: o Estado (GALVÃO e CAMINO, 2011). Não se pode cogitar a
redução da maioridade penal enquanto se possui outras formas de atender
esses jovens, quer pelas escolas, quer pelas instituições de assistência, pela
família, pela melhor distribuição de riqueza, e pela aplicação efetiva do
ECRIAD (SOUZA e CAMPOS, 2007).
Propõe-se, como alternativa à redução, a remoção do prazo máximo de
internação, devendo esta perdurar enquanto persistir a impossibilidade de
reinserção do menor à sociedade, o que deve ser avaliado periodicamente por
uma junta composta de profissionais pertinentes, como psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas, e assistentes sociais (AMARO, 2004). É
indispensável que isso ocorra dentro de um estabelecimento com condições
adequadas, como programas de psico e socioterapia, atividades físicas e
artísticas, prática de esportes (KAUFMAN, 2004), e atividades externas, uma
vez que essas, ao contrário do que se pensa, diminuem os índices de evasão
273
(BRASIL, 2012), além de contribuírem para a reinserção do infrator. Cabe
frisar, todavia, que nenhuma medida isolada tem o condão de resolver um
problema desta complexidade. São fundamentais ações concomitantes, que
tanto refreiem os fatores que causam a criminalidade entre os jovens, quanto
promovam a reeducação daqueles que já estão envolvidos nela. O tráfico de
drogas, por exemplo, é um elemento que contribui para essa criminalidade
de duas formas: os menores que desenvolvem dependência recorrem ao
crime para adquirir dinheiro a fim de sustentar seu vício, e os traficantes,
por sua vez, aliciam menores, por sua inimputabilidade, para vender a
droga, em troca de recompensas como dinheiro, armas, ou entorpecentes
para consumo. Por isso, é imprescindível que se combata ativamente o
tráfico, mediante operações efetivas e estratégicas. Contudo, é essencial que
se adote, conjuntamente, várias outras medidas, tais como: prover as
necessidades básicas das famílias vulneráveis; reduzir a desigualdade social;
promover a segurança das comunidades carentes; prevenir a evasão escolar;
incentivar a profissionalização e o trabalho; oferecer tratamento àqueles que
apresentam transtornos psicológicos; reformular a ideologia das unidades de
internação e corrigir suas falhas estruturais; construir novas instituições
para sanar a superlotação; e efetivar a separação dos internos, quanto à
idade, gravidade do delito, e provisoriedade ou não da internação.
Merece atenção, ainda, o fato de que existem pessoas com transtornos
graves de conduta insuscetíveis de recuperação, os quais não se beneficiam
de medicamentos, nem apresentam grandes resultados em atividades de
terapia (KAUFMAN, 2004). Quanto a estes, em vez de colocá-los em um
estabelecimento prisional, deve-se efetuar sua separação da sociedade,
mediante internação onde seja possível seu tratamento psiquiátrico, sem
desrespeitar sua dignidade e seus direitos básicos. Tal medida deve ser
aplicada apenas em casos extremos, nos quais restar comprovado que o
transtorno pode não ser passível de recuperação, devendo tal questão ser
avaliada periodicamente por uma equipe de profissionais. Convém lembrar,
entretanto, que tais casos são a exceção, e que não se deve, por
generalização, usar desta ferramenta toda vez que se encontrar dificuldades
na recuperação de um infrator.
274
É compreensível que se sinta indignação quando crimes violentos são
cometidos por inimputáveis, e que se anseie puni-los como uma forma de
vingar a vítima e apaziguar a revolta dos que lhe eram próximos. Porém, em
primeiro lugar, deve-se almejar que esse sujeito cesse a sua carreira no
crime. Embora isso pareça ser alcançado através da reclusão, quando o
indivíduo retornar à sociedade, seguirá sua conduta delituosa, mais
experiente e perigoso. Portanto, antes de recorrer à exclusão, deve-se tentar
promover a sua recuperação, pois, assim, evitar-se-ão futuras vítimas.

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279
CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL

Ana Paula Schmidt Favarin1

1. INTRODUÇÃO

O princípio da insignificância e a sua aplicação, como tudo o que se


refere ao campo do direito, só podem ser compreendidos dentro de um
contexto histórico social. Eis a justificativa para retroceder no tempo e
registrar alguns momentos importantes da História do Direito que guardam
relação com o tema.
No entanto, enfatiza-se que a abordagem proposta, acerca dos
antecedentes históricos representa, apenas e tão somente, o resultado de
uma pesquisa panorâmica, uma vez que o foco principal do estudo está
voltado para a busca de uma maior compreensão do princípio da
insignificância, a partir de proposições doutrinárias fundadas no
minimalismo penal, da delimitação de sua área de incidência e dos critérios
de aplicabilidade recomendados, que à míngua de previsão expressa no
direito brasileiro, salvo exceções do Código Penal Militar, vem sendo
construídos pela jurisprudência que se norteia pelos princípios
constitucionais orientadores do Direito Penal.
Por conseguinte, através da análise de julgados que compõem o
repertório de jurisprudência dos tribunais brasileiros, procura-se evidenciar
a recepção do princípio da insignificância e os critérios de aplicabilidade nos
chamados crimes previdenciários, tipificados nos artigos 168-A e 337-A do
Código Penal.
2. BREVE HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO
PENAL

O Marquês de Beccaria constitui um marco importante na História do


Direito e seus reflexos são percebidos na construção do princípio da

1Graduada em Direito pela Universidade Luterana do Brasil e Mestranda (Bolsista UNIJUÍ)


em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ). Advogada OAB/RS. E-mail: ana_favarin@hotmail.com

280
insignificância. Com Dos delitos e das penas, iniciou-se a definição dos
limites entre a justiça divina e a justiça humana. Beccaria percebeu que na
justiça dos homens uma relação estabelecida entre uma ação e o estado
variável da sociedade, apresenta variações na medida em que a ação seja
favorável ao grupo social. Indignado com o tratamento desumano,
dispensado àqueles que não rezavam pela cartilha da época, que culminava
com a pena de morte e com a utilização da tortura como meio de prova,
criticou duramente a crueldade das penas utilizadas e defendeu a sua
proporcionalidade em relação ao dano social causado.
Intitulado como o autor a quem coube a fortuna de lançar as bases
do direito penal, posto que é em função de sua crítica que a legislação penal
europeia penal contemporânea começa a limpar-se, um pouco, de seu banho
constante de sangue e tortura. A violência da intromissão do Estado na vida
do homem passou por abrandamento no decorrer do tempo, de tal modo que
a voracidade punitiva dos primeiros momentos foi perdendo espaço. No
entanto, o ideal de convivência social ainda não foi consolidado e a resposta
estatal está longe de ser satisfatória.
Atualmente, ainda não se pode contar com um modelo de Direito
Penal consensual, cabendo ao julgador o grande desafio de dar solução justa
aos conflitos; tarefa árdua ante o descompasso entre as transformações
sociais e a produção legislativa.
Não se pode negar que a dinâmica evolutiva da sociedade, que
determina a seleção das condutas consideradas danosas num dado
momento, torna-se cada vez mais célere, e as leis penais em grande número,
não se ajustam na mesma velocidade. Diante disso, a validade das normas
incriminatórias deve ser constantemente avaliada.
Francisco de Assis Toledo (1991, p.19) relata que:

É de se prever, porém, que, permanecendo as tendências da


sociedade atual em profunda e rápida transformação, na qual
encena-se, com grande gala, a tragédia da ascensão dos crimes
violentos, o legislador penal, daqui e alhures, sofrendo
influência das doutrinas que pregam, há algum tempo, a
descriminalização de certos fatos ainda considerados
criminosos, mas sem repercussão na consciência social de
nosso tempo, marchará certamente, cedo ou tarde, para a

281
profunda reforma do direito penal legislado, revalorizando e
recolocando no centro da construção do novo sistema a
proteção dos bens jurídicos por forma e dentro dos limites que
reflitam as reais necessidades do mundo em que vivemos. E de
tal sorte que a justiça criminal, emperrada por uma enorme
carga de delitos de pequena importância, possa afinal dedicar-
se aos fatos e delinquentes mais graves que, desafiadoramente,
aí estão crescendo e se multiplicando diante de nossos olhos
atônitos.

Portanto, a palavra de ordem é restringir a intervenção do Direito


Penal, que deverá ocupar-se apenas de situações relevantes e que não
possam ser solucionadas por outros meios ou outras áreas do direito. Isto
significa que em qualquer situação conflitiva a solução punitiva do conflito é
somente uma das soluções possíveis.
A intervenção mínima do Direito penal ainda não foi alcançada e é
certo que a crescente produção de leis com o objetivo de controlar a
criminalidade redunda em valorização do sistema punitivo.

3. A POLÍTICA CRIMINAL DELINEADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


DE 1988

Variando do conceito de ciência, para uns, a apenas uma técnica ou


método de observação e análise crítica do Direito Penal, para outros,
segundo NUCCI (2012, p. 70) “parece-nos que política criminal é uma
maneira de raciocinar e estudar o Direito Penal, fazendo-o de modo crítico,
voltado ao direito posto, expondo seus defeitos, sugerindo reformas e
aperfeiçoamentos, bem como com vistas à criação de novos institutos
jurídicos que possam satisfazer as finalidades primordiais de controle social
desse ramo do ordenamento”.
A Constituição de 1988, conduziu a um grande salto rumo a um
Direito Penal desejável, conferindo direitos e estabelecendo garantias e
princípios. Antes, a Lei 7209/84 que reformulou a parte geral do Código
Penal instituiu a humanização da sanções penais. No entanto, não se pode
afirmar que tenham sido integralmente recepcionados pelo legislador e pelos
aplicadores do Direito.
O Estado democrático de direito reclamava um Direito Penal menos

282
expansionista, cuja intervenção na vida dos cidadãos fosse mínima e que só
atuasse quando a paz social não pudesse ser concretizada por outros meios
disponíveis. Entretanto, não ocorreu dessa forma. Alberto Silva Franco
prefaciando obra de Zaffaroni registra suas impressões desse período:

Na própria Constituição Federal, de 1988, o modelo


garantístico e o princípio da intervenção penal mínima, que
são, sem dúvida, dados caracterizadores do Estado
Democrático de Direito, não o foram acolhidos em sua
inteireza, admitindo nocivas interferências (1997, p. 270)

Constata-se que a receita para a construção de um Estado


Constitucional e Humanitário de Direito, restringe a intervenção estatal
através do Direito Penal aos limites definidos pelos princípios constitucionais
que integram o movimento minimalista.

3.1 O princípio da intervenção mínima

Uma vez que a sanção penal é dirigida a um dos direitos mais


elementares do homem – a liberdade - o Direito Penal deve ser a ultima ratio
da aplicação deste tipo de sanção. O Direito Penal mínimo que se almeja, só
pode ser concretizado a partir da aproximação do direito com a realidade
social. Ao que consta, a privação da liberdade, não tem apresentado nenhum
resultado em benefício do condenado ou da própria sociedade. Talvez
porque, embora a tendência atual é ter a pena um caráter ressocializador e
não mais uma retribuição causado a outrem – como mero castigo, tal
objetivo ainda não foi alcançado; pelo menos é isto que se infere quando se
lê com olhos de ver o que acontece na sociedade atual.
Nem sempre se justifica a intervenção do Direito Penal, que só deve ser
admitida quando os outros meios de controle social não se mostrarem
suficientemente aptos à proteção de um bem juridicamente relevante, de
modo que sua aplicação só é aceitável quando evidenciada a gravidade do
prejuízo causado.
Para Lima (2000):

283
A intervenção do Direito Penal é requisitada apenas numa
maior necessidade de proteger a coletividade, a pena deve estar
reservada ao momento em que é o único meio de proteger a
ordem social dos crimes e possui caráter excepcional. Além do
mais, a sanção estabelecida para cada delito deve ser adequada
a ele, na medida da necessidade para a reprovação e prevenção
do crime. Não se admitem o excesso e o desnecessário de
punição a um delito, a aplicação da pena exige sua
proporcionalidade com o crime cometido. Além disso, a sua
aplicação está condicionada à existência de lesões sensíveis aos
bens jurídicos mais importantes.

O princípio da intervenção penal mínima, foi recepcionado pela


Constituição através do § 2° do art. 5°: “Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.” O princípio em análise tem a sua
raiz no art. 8° da Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris
1789), ao proclamar que a lei deve estabelecer “ penas estritas e
evidentemente necessárias.
Dias (2005), relata que:

A compatibilização entre a letra e o espírito das leis


fundamentais internas e as declarações internacionais
constitui exigência de uma ordem jurídica universal. A
Constituição de Portugal dispõe que “ os preceitos
constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados e integrados em harmonia com a
declaração Universal dos Direitos do Homem” ( art. 16°, 2). A
Carta Política espanhola também prescreve que as normas
relativas aos direitos fundamentais e às liberdades
reconhecidas constitucionalmente serão interpretadas em
conformidade com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e os tratados e acordos internacionais sobre as
mesmas matérias, ratificadas pela Espanha (art. 10,2).

Ainda que os preceitos constitucionais, e as recomendações contidas


nos tratados internacionais e as orientações doutrinárias e jurisprudenciais
focadas no movimento minimalista, a aplicação do princípio da intervenção
mínima ainda não satisfaz plenamente os seus defensores. O Estado
impotente em reduzir a criminalidade e agilizar a Justiça, lança mão da
atividade legislativa (muito menos custosa), para incutir na sociedade um
sentimento falacioso de segurança.
Destarte que a intervenção mínima se estabelece através da
284
fragmentariedade e da subsidiariedade. A fragmentariedade, explica Luiz
Flávio Gomes citando Muñoz Conde (2007, p. 281) “pretende que o Direito
penal somente tenha intervenção diante de ataques especialmente graves a
bens jurídicos que ostentem grande relevância social”. Do mesmo modo,
Nucci esclarece o que se entende por fragmentariedade

Fragmentariedade significa que nem todas as lesões a bens


jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito
penal que, por sua vez constitui somente parcela do
ordenamento jurídico. Fragmento é apenas a parte de um todo,
razão pela qual o direito penal deve ser visto, no campo dos
atos ilícitos, como fragmentário, ou seja, deve ocupar-se das
condutas mais graves, verdadeiramente lesivas à vida em
sociedade, passíveis de causar distúrbios de monta à
segurança pública e à liberdade individual. (NUCCI, 2012, p.
90)

No que concerne à subsidiariedade do Direito Penal, citando Maria da


Conceição Cunha e Carlo Henrique Paliero, Luiz Flávio Gomes apresenta a
seguinte definição:

A subsidiariedade do Direito penal, por seu turno, significa sua


posição de ultima ratio frente aos demais sistemas de controle
social formal ou informal. Se outros setores do ordenamento
jurídico se apresentam como suficientes e, portanto, como mais
idôneos para a tutela de um determinado bem jurídico, não se
deve utilizar o Direito penal para atender essa finalidade. A
ideia de que o Estado possa e deva perseguir penalmente sem
exceção toda e qualquer infração deriva do mito da “plenitude
do ordenamento jurídico” e não encontra amparo no moderno
pensamento filosófico e nem na realidade da práxis penal
(2007, p. 449)

A premissa de que o Estado possa e deva perseguir penalmente sem


exceção toda e qualquer infração deriva do mito da “plenitude do
ordenamento jurídico” e não encontra amparo no moderno pensamento
filosófico e nem na realidade da práxis penal.

3.2 Definindo a insignificância

O princípio da insignificância foi cunhado pela primeira vez por


Claus Roxin em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y

285
Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino mínima non curat
praetor. Segundo Bitencourt (2012, p. 58) a tipicidade penal exige uma
ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre
qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o
injusto típico.
O princípio da insignificância ou princípio de bagatela, considerado
um instrumento de exclusão da tipicidade, vem tendo os seus contornos
desenhados pela doutrina e pela jurisprudência por não contar com norma
explícita no Direito Penal brasileiro. Para atrair a aplicação do princípio da
insignificância há de se constatar um ataque ao bem jurídico de tal modo
irrelevante que não justifique a intervenção do Direito Penal. O princípio da
insignificância reclama, portanto, o que se denomina infração bagatelar
própria àquela que já nasce sem nenhuma relevância penal.
Há pois que se investigar que característica (ou características) deve
apresentar um determinado fato, capaz (ou capazes) de torná-lo apto a atrair
a incidência do princípio.
A resposta a tal questionamento oferecida pelo STF está evidenciada
na orientação do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal
materializada no HC84.412-SP, que elege os seguintes requisitos: a)
ausência de periculosidade social da ação, b) a mínima ofensividade da
conduta do agente, isto é: mínima idoneidade ofensiva da conduta, c)
inexpressividade da lesão jurídica causada e d) falta de reprovabilidade da
conduta. Esses são os vetores que tem norteado doutrina e jurisprudência;
três referem-se à conduta e um ao resultado jurídico.
A existência de duas espécies de infração bagatelar própria, que se
definem pela insignificância da conduta e pela insignificância do resultado, e
analisando a orientação do STF que se refere a vetores orientadores do
princípio, sem mencionar se devem ser ou não considerados conjuntamente,
Luiz Flávio Gomes, apresenta sua solução afirmando que o princípio da
insignificância pode incidir nos casos em que se verifique puro desvalor da
ação, puro desvalor do resultado ou ainda quando apresentar a combinação
de ambos os requisitos, enfatizando que cada caso é um caso. E exemplifica
as três situações:
286
1. Quem atira um pedaço de papel amassado contra um ônibus
coletivo realiza uma conduta objetivamente não perigosa ou de
periculosidade mínima (...). Logo, falta-lhe o desvalor da ação.
Em outras palavras, não se trata da ação desvalorada que está
prevista no tipo penal – CP, art. 264. Não há que se falar em
desaprovação da conduta.
2. Quem subtrai uma cebola ( ou um palito de fósforo ) pratica
uma conduta desvalorada (...), porém o resultado jurídico é
absolutamente ínfimo (falta portanto o desvalor do resultado,
falta um ataque intolerável ao bem jurídico). Aqui estamos
diante de um caso em que só o desvalor do resultado jurídico é
ínfimo. Mesmo assim, não há como deixar de aplicar o
princípio da insignificância, apesar do desvalor da ação.
3. Num acidente de trânsito em que o agente atua com culpa
levíssima e, ademais, gera uma totalmente insignificante, não
há como afastar a incidência deste princípio. Neste caso temos
a combinação de ambos os desvalores: da ação e do resultado.
Nem a ação foi grave nem o resultado foi relevante. Neste
terceiro grupo também não há como deixar de aplicar o
princípio da insignificância.

Por outro lado, há registro de entendimento que defende a


necessidade de se considerar conjuntamente o desvalor da ação e o desvalor
do resultado para qualificar o fato como de bagatela.
O princípio da insignificância foi bem aceito pela doutrina e vem
sendo aplicado pelos julgadores aos casos concretos. Entretanto, há objeções
por parte da doutrina. Odone Sanguiné (1990. P. 50) sintetiza muito bem os
entendimentos contrários ao princípio da insignificância registrando as
críticas de alguns doutrinadores:

A principal crítica se baseia em que o princípio colide com as


exigências de segurança jurídica. Há dificuldade em estabelecer
índices e critérios precisos, ou seja, controláveis, para delimitar
os casos insignificantes daqueles relevantes, não sendo
admissível que a tarefa fique confiada à doutrina e à
jurisprudência [...] outra objeção é a de que o princípio não
poderia ser aceito nos casos em que o legislador incrimine
expressamente contravenções de bagatela [...]. Também algum
outro autor [...] afirma que em certos tipos legais é impossível
uma interpretação restritiva por não conter uma característica
que se possa pôr em relação com a escassa importância do
bem jurídico, como é possível nos crimes patrimoniais.
Finalmente, uma posição mais formalista julga-o inaplicável
porque é um princípio “não incorporado ao ordenamento
jurídico”[...] porque ainda não “adequadamente legislado.

Ainda assim, a doutrina e a jurisprudência, salvo alguns percalços


naturais como acontece em qualquer tipo de construção, tem sabido
287
contornar as dificuldades que vão surgindo na busca de maior
aprimoramento na aplicação do princípio, de modo que tais críticas são tidas
por insubsistentes.

4. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CRIMES


PREVIDENCIÁRIOS

Incluídos no Código Penal pela Lei 9.983/2000, os crimes de apropriação


indébita previdenciária (CP: art. 168-A) e de sonegação de contribuição
previdenciária (CP: art. 337-A), anteriormente tratados em legislação
separada, contam com a previsão do perdão judicial, estando facultado ao
juiz deixar de aplicar a pena privativa de liberdade ou aplicar somente a
pena de multa, diante de algumas situações descritas na lei ( art. 168 –A §
3°, I e II – art. 337-A, § 2°, II e § 3°) desde que presentes as condições de
primariedade e bons antecedentes do agente.
Em virtude do anteriormente mencionado, registra-se alguma crítica
na aplicação do princípio da insignificância para tais tipos de delitos, sob o
argumento de que a própria lei já cuidou de precisar o que considera
insignificante sem dispensar a ação penal:

Poder-se-á objetar essa interpretação dizendo que, se a


insignificância prejudica a sua própria tipificação, até um
determinado grau, sequer poderá haver ação penal, porque
crime não existe. O argumento é válido sob o aspecto da
coerência da teoria da insignificância. Mas, de qualquer sorte,
ainda que assim se entenda, o certo é que esse “grau” até onde
o fato seja considerado insignificante deve estar abaixo da linha
estabelecida, pela lei, como máximo para o perdão judicial. Do
contrário, estar-se-ia revogando a lei, que confere significância
penal ao fato, exigindo a respectiva ação (porque, para que o
Judiciário perdoe, o Ministério Público tem que processar), pela
teoria, que preconiza a falta de justa causa para o processo
(SANGUINÉ, 1990, p.50)

Entretanto, a crítica não subsiste, uma vez que o que se extrai dos
julgados dos tribunais, muito menos que uma rejeição à teoria da
insignificância, é a existência de uma desarmonia na fixação de um valor
mínimo a ser considerado para a aplicação do princípio da insignificância,

288
mas não ensejam dúvidas sobre a possibilidade de ser aplicado aos crimes
previdenciários. Confira-se:

[...] I – Na persecução do crime de apropriação indébita de


contribuições previdenciárias, deve ser tomado em
consideração o mesmo patamar estabelecido na Lei 10.522, de
19 de julho de 2002, para a extinção do crédito inscrito como
Dívida Ativa da União. [...] Tendo o suposto prejuízo acarretado
à Previdência Social valor superior a R$100,00 (cem reais) que
o art. 18, § 1°, da Lei n° 10.522/2002 estabelece como teto
para o cancelamento ou extinção dos débitos inscritos como
Dívida Ativa da União- mas inferior a R$10.000,00 (dez mil
reais) que o art. 20 do mesmo diploma legal prevê como o
máximo para o arquivamento, sem baixa na distribuição dos
autos de execução de débitos de execuções fiscais[...] III- O art.
20 da Lei n° 10.522/2002, refere-se ao ajuizamento da
execução fiscal ou seu arquivamento sem baixa na
distribuição, e não à extinção do crédito, de sorte que, em se
tratando de valor superior a R$100,00 (cem reais) e inferior a
R$10.000,000 (dez mil reais), o interesse fiscal, embora
postergado, permanece íntegro.RCCR-RECURSO CRIMINAL-
200538000148200. Rel. Dês. Federal Tourinho Neto.Terceira
Turma.

Neste caso, a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª


Região, defende o valor máximo de R$100,00 (cem reais), para fins de
aplicação do princípio da insignificância por ser este o teto fixado para
cancelamento ou extinção de débitos inscritos como Dívida Ativa da União (
Lei 10.522/2002, art. 18,§ 1°).
Por outro lado a Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional
Federal da 2ª Região, entende que o valor a ser considerado deve ser igual ou
inferior a R$1.000,00, previsto na Lei 9.441/97 para extinção do crédito:

[...] Para fins de aplicação do princípio da insignificância, em


crime de apropriação indébita previdenciária, deve ser
utilizado, como patamar, o valor mínimo estabelecido pela
Previdência Social para o ajuizamento de execução fiscal,
previsto na Lei 9.441/97, a qual prevê a extinção do crédito
quando o montante for igual ou inferior a mil reais.
Precedentes [...]

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recente


julgamento (25/05/09), também defendeu como parâmetro para aplicação
do princípio da insignificância o valor de R$1.000,00:

289
[...] Consoante entendimento firmado por esta Corte, o
parâmetro para a aplicação do princípio da insignificância, no
crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias,
é de R$1.000,00, a teor do disposto no artigo 1°, inciso I, da Lei
9.441/1997. 2. De acordo com o art. 4° da Portaria n°
4.910/1999 do Ministério da Previdência e Assistência Social –
MPAS, não há extinção do crédito previdenciário quando o
valor ultrapassar o limite de R$1.000,00, ficando apenas
adiada a cobrança da dívida, via execução fiscal, até o
montante alcançar a quantia de R$5.000,00, não havendo,
assim, baixa na distribuição, permanecendo o interesse da
Fazenda Pública em cobrar o débito tributário.

Para a Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o


parâmetro é o valor de até R$5.000,00 (cinco mil reais):

(...) Conforme entendimento da Quarta Seção, deve ser


considerado, para fins de verificação e aplicação do princípio
da insignificância no crime de omissão de recolhimento de
contribuições previdenciárias (168-A do CP), o valor de até
R$5.000,00 (cinco mil reais), que, por analogia, utiliza-se,
também, para o delito de sonegação de contribuições
previdenciárias (art. 337-Ado CP). No caso, sendo o valor
sonegado inferior a esse limite, correto o reconhecimento do
crime de bagatela.

Indiferentemente às divergências acerca do valor da apropriação


indébita ou da sonegação a ser considerado como parâmetro para aplicação,
o princípio da insignificância vem sendo reconhecido reiteradamente como
instrumento de exclusão de tipicidade e aplicado também aos crimes
previdenciários pelos tribunais brasileiros.
O Supremo Tribunal Federal tem aplicado o princípio da
insignificância ao crime de descaminho quando a quantia sonegada não
ultrapassar o valor de R$10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20 da Lei
n° 10.522/02, para arquivamento das execuções fiscais sem baixa a
distribuição. Espera-se que este limite seja estendido também aos delitos
previdenciários porque, com a Super Receita ficou com a Fazenda Nacional a
responsabilidade pela arrecadação e fiscalização de todos os tributos e
contribuições sociais, não havendo como distinguir o crédito tributário do
previdenciário. Além disso, “se esse valor é irrelevante para ajuizamento da
ação fiscal, com muito mais razão é irrelevante para fins penais.

290
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O princípio da insignificância, mesmo com algumas resistências, já


integra o sistema jurídico brasileiro como mais um importante instrumento
de exclusão de tipicidade, inobstante a ausência de expressa previsão legal,
à exceção dos artigos 209, § 6° e 240, § 1°, do Código Penal Militar,
corroborando a concepção de que “O Direito não se esgota na lei”. Acredita-
se que a descriminalização de condutas irrelevantes é um caminho válido
para a concretização do Direito, cabendo ao Judiciário percorrê-lo quando o
legislador descansa. O juiz deve estar atento às transformações do mundo
moderno, porque, ao aplicar o Direito, não pode desconhecer os aspectos
sociais, políticos e econômicos dos fatos que lhe são submetidos. A análise
do caso concreto, imprescindível no Direito Penal, sob a ótica dos princípios
constitucionais que informam o Estado Democrático de Direito, afasta a
insegurança jurídica, de modo que, a falta de previsão no Direito legislado,
não constitui empecilho à aplicação do princípio da insignificância.

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293
O MILITARISMO UM SISTEMA PARA SER REVISTO

Elmir Jorge Schneider1

1. INTRODUÇÃO

Se buscarmos a função policial em sua origem, ela foi criada para


proteger os moradores da cidade (pólis na Grécia antiga), e não com a
missão de proteger o Estado (como o grande monstro “Leviatã“ de Thomas
Hobbes). Assim, o problema que se constata na sociedade atual é a polícia
militar como um mini exército a disposição dos governadores, sem cumprir
muitas vezes, sua função de proteger e garantir os direitos dos cidadãos.
A abordagem deste tema do militarismo, se justifica pelas recorrentes
denúncias de violência sobre a polícia militar confome será apresentado no
decorrer do texto, e por se julgar um sistema já ultrapassado para o periodo
em que nossa sociedade se encontra. Numa cenário em que a atuação
policial tem uma importância extremamente relevante, forçando a necessária
reflexão sobre este assunto através de estudos bibliográficos e experiências
vivenciadas.

2. O SISTEMA MILITAR NA POLÍCIA BRASILEIRA

Ao observar a história da formação das policias no Brasil, se percebe


que elas sempre tiveram uma relação bastante autoritária com a sociedade.
E essas experiências institucionais do corpo policial no Brasil, acabaram se
estruturando numa cultura de regimentos, de forma que não se explica
apenas pelo interesse das corporações em manterem sua forma original, mas
por uma tradição e uma relação com o Estado e a sociedade brasileira.
No Brasil até pouco tempo, o perfil do policial era sinônimo de força
física, sem ter a necessidade de grandes conhecimentos, onde o policial foi

1 Policial Rodoviário Federal. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre em Direitos


Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. E-mail:
elmir.jorge@hotmail.com

294
usado muitas vezes para atender a certos interesses. Com este objetivo, as
“forças policiais desde os anos da Primeira República são instrumentos de
manutenção dos interesses dos grupos dominantes do que da ordem
pública“ (MIRANDA, 2013, p. 41).

Militares e militarismo percorem desafios diferentes, enquanto os


primeiros se destacam pela ética, disciplina e integridade; o
militarismo caracteriza-se pelo autoritarismo, conservadorismo
político, pessimismo em relação à pessoa humana, alarmismo e
adesão à doutrina do Estado nacional (MIRANDA, 2013, p. 42).

Para se entender a forma de atuação dos nossos polícias militares, é


necessário analisar a trajetória política passada pelo nosso país, na qual,
tornaram-se reservas do Exército em 1934, sendo-lhe atribuída em 1946 a
responsabilidade pela segurança interna e manutenção da ordem. Em 1967
foi lhe delegada a competência da realização do policiamento ostensivo
fardado, definindo sua estrutura militarizada semelhante à do Exército. Com
esta noção básica, se identifica ainda que a competência das polícias
militares se estabeleceu quando o Brasil passava pelo período da ditadura
sendo governado por oficiais do Exército.

Após a Revoução Constitucionalista, de 1932, na qual a força pública


de São Paulo lutou contra o Exército Nacional [...] ‘a ideia de que era
necessário estabelecer um maior controle do poder central sobre as
forças públicas‘, de modo que ‘em 1934, a nova Constituição Federal
declarou as polícias militares reservas do Exército (art. 167, CF/34) e
garantiu a competência privativa da União para legislar sobre
organização, instrução justiça e garantias das forças policais dos
estados e condições gerais da sua utilização em caso de mobilização
ou de guerra (art. 5º, XIX, I, CF/34)‘ (CARVALHO, 2013, p. 184).

Como se verifica acima, o militarismo ganhou força no país quando a


polícia tinha outras métas, e sua função era de garantir em primeiro lugar a
governabilidade com disputas de poder além da eminência de poder ser
utilizada em guerra externa, aonde podiam inclusive gozar das mesmas
vantagens atribuídas ao efetivo do exército. E conforme já relatado acima, o
Decreto-Lei Nº. 317/1967 reorganizou a polícia e os bombeiros militares,
estabelecendo as competências conforme o artigo 2º que dentre outras
atividades tinha a função de: executar o policiamento ostensivo fardado;
295
atuar de maneira preventiva para dissuadir a perturbação da ordem; atuar
de maneira repressiva, contra perturbação da ordem e atender a convocação
do governo federal, para atuar em caso de guerra externa ou na prevenção
ou repressão de grave subversão da ordem, subordinando-se ao Comando
Militar nas atribuições da guarda territorial.
Ficando claro assim, a sua forte ligação com as atribuições
relacionadas ao contexto político da época, definindo a estrutura das polícias
militares muito semelhantes ao exército. Entretanto, a sociedade brasileira
tem evoluido muito nos últimos anos e o enfoque principal da polícia já não
deve mais ser o mesmo, mudando completamente a finalidade do seu
trabalho, onde a força e a brutalidade policial devem abrir espaço para uma
segurança pública voltada à proteção das pessoas.
Pois não se vence a violência praticando a violência, e no militarismo
muitas vezes se emprega a filosofia da violência para manter a ordem. De
acordo com Abrantes (2014), para melhorar o sistema policial brasileiro, não
basta apenas investir em quantidade de efetivo, mas principalmente na
qualidade do policial com democracia, o que segundo ele, não existe no
sistema militarista onde se identifica que o policial de baixa patente só
obedece ordens e não tem liberdade de ação, ficando impedido de utilizar
sua maior arma que é sua própria inteligência.
Boa parte das regras e formas de atuação da polícia foram criadas
durante a Ditadura Militar. Isso explica em grande parte o modelo policial no
Brasil, com sua estrutura repressiva, difundida no governo militar e que
ainda está de pé, não sendo alterada em absoluto e até aperfeiçoada em
alguns casos específicos, com tropas de elite das policias militares durante o
regime democrático. O que contradiz a ideia constitucional, onde o “polícia
ideal aprende que o pobre não é sinônimo de bandido. Ela aprende a não
cair no erro da aparência“ (ABRANTES, 2014, p. 62).

3. O INÍCIO DO FIM DO MILITARISMO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL


DE 1988

Após a Constituição Federal de 1988, iniciou-se uma transição entre a


296
norma e a prática. Dando início às alterações relativas aos direitos das
pessoas, construindo-se um processo contínuo com novo padrão de
atendimento ao público, voltado ao policiamento comunitário e aos direitos
humanos. Numa nova forma de fazer segurança pública, onde se tem o
processo de democratização das polícias, de maneira que as funções polícias
vão muito além de enfrentar o crime. Garantindo o bem-estar das pessoas e
atendendo as necessidades básicas da população, tanto de forma reativa
como também pró-ativamente através da prevenção.
A partir deste período, os procedimentos policiais começaram a ser
reformulados no sentido de tornar as ações menos agressivas, e melhorar a
qualidade do atendimento ao cidadão. Introduzindo mudanças na estrutura
das instituições policiais, com a intenção de aperfeiçoar o desempenho
individual, no respeito às leis e aos princípios democráticos, amadurecendo
a ação policial para que esta esteja pronta para deixar um sistema
militarista, e optar para um sistema mais democrático. Essas mudanças
partem de ações políticas, sendo consideradas decisões de governo para
serem implementadas na atividade policial.

O mundo em que nós vivemos não pode ter uma segurança pública
em que seus trabalhadores não possuem liberdade. No Brasil em que
sua democracia está em pleno amadurecimento, não se pode admitir
que exista uma polícia onde não existe democracia. Pois é uma
tremenda contradição, uma polícia que é antidemocrática fazer a
segurança de uma sociedade democrática (ABRANTES, 2014, p. 66).

E para o sucesso destas alterações que se propõe, tem-se a


necessidade do apoio da comunidade na solução do problema da segurança
pública. Onde a polícia esta autorizada a utilizar a força, e ter o poder de
decidir qual a força que poderá ser utilizada em cada ação no enfrentamento
com a população, é preciso criar regras e procedimentos que estabeleçam
parâmetros, com o objetivo de evitar práticas abusivas e corruptas por parte
de policiais.
A liberdade e a autonomia de tomada de decisões, por policiais que
trabalham em um regime desmilitarizado sem tanta hierarquia, demonstram
mais confiança e amadurecimento na tomada de decisões, apresentando um

297
trabalho mais eficiente, rápido e objetivo. Com esta transição que se iniciou
na Constituição Federal de 1988, pode-se destacar ainda como a principal
mudança sofrida pelas polícias militares, sendo como o controle que deixa de
ser do Ministério do Exército e passa à ser dos Governadores dos Estados,
Territórios e Distrito Federal. No entanto foram mantidas as demais regras
do Decreto-Lei nº 667/69, mantendo assim, mesmo no regime democrático
as regras do modelo de criação do regime militar.
Não obstante, após a Constituição de 1988 ter se verificado inovações
na área de formação policial, na polícia militar pouco alterações tiveram
sucesso na sua implementação, e a forma de atuação predominantemente
violenta continuou prevalecendo. Constatando-se, que estas ações de tornar
a polícia mais cidadã torna-se um processo lento e complicado, ainda mais
pela sua descentralização de unidade de comando, aonde cada Estado da
federação tem sua própria estrutura de instituição militar.
Reiteradamente volta-se a discussão sobre o fim do militarismo, o que
ocorre geralmente após a divulgação de fatos de arbitrariedades cometidas
pela polícia militar, em casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo
de Souza na Rocinha, aonde policiais militares foram acusados de terem
torturado e desaparecido com o corpo, também com a morte de Cláudia da
Silva Ferreira, que acabou ferida em tiroteio entre a polícia e moradores da
comunidade, sendo ela socorrida pela própria polícia militar e no caminho
caiu da viatura e veio a óbito. Com estes episódios de violência policial no
Brasil, a imprensa tenta reproduzir, generalizando a imagem da polícia
brasileira como extremamente violenta.
O que dá força nas discussões do tema para acabar com o militarismo
nas polícias brasileiras Seja pela forma autoritária que essa se porta com
relação ao tratamento com o público, ou seja, pela hierarquia interna da
corporação. Que impede um trabalho mais apurado com liberdade,
iniciativas próprias, inteligência, investigação ou eficácia na antecipação de
um crime. Constatando-se, que a forma de trabalho militarista está em
plena decadência, por já não atender mais os anseios da sociedade de hoje.
Alterar um modelo de polícia, sua estrutura, sistema e formas de
trabalho para adequá-las às novas regras não militarizadas, certamente é
298
um trabalho complexo, e requer das instituições policiais um empenho
extraordinário. Assim, precisa-se aos poucos corrigir as formas de trabalho e
procedimentos operacionais, adequando-os as novas regras, e tentar formar
o policial numa estratégia de respeito aos princípios constitucionais. Para
que o policial seja preparado na sua área, e possa se tornar um perito em
bem atender a população, pois “reformar a polícia pela extinção da
característica militar, não garante melhor desempenho policial, nem
tampouco presta maior contribuição ao desenvolvimento da democracia do
país” (PINC, 2011, p. 70).
No entanto, há que se concordar que a imagem da polícia militar está
bastante desgastada diante da sociedade, apesar da simples desmilitarização
não garantir a melhora na eficiência da polícia, ela poderá abrir um novo
campo de visão com relação às formas de atuação da policial, reacendendo a
confiança da sociedade, no trabalho da segurança pública.
Assim, o que se observa é que a imagem da polícia militar brasileira
ficou extremamente manchada em decorrência de inúmeros eventos trágicos
ocorridos no Brasil. Onde se pode citar como exemplos, o que ocorreu na
cidade de São Paulo em 1992 conhecidos como o Massacre do Carandiru, e a
Chacina da Candelária ocorrida no centro da cidade do Rio de Janeiro em
1993. Estes passaram uma visão negativa da polícia militar brasileira, que
foi identificada como transgressora dos direitos humanos.
Porém cabe ressaltar, que estes são fatos ocorridos ainda em uma fase
de transição, onde a polícia estava saindo de um sistema totalmente
militarizado para um maior respeito aos direitos humanos. E deste período
em diante, a polícia tem evoluído e vem se modernizado constantemente,
melhorando sua estrutura, sistemas, métodos, equipamentos,
procedimentos e técnicas, melhorando sua capacidade de se reinventar.
Com o novo momento político, a polícia vem aperfeiçoando seu
desempenho operacional em consonância com as regras mais democráticas.
De forma que, aos poucos a forma de trabalho vai se desmilitarizando e se
adequando a sociedade, por meio de um trabalho gradual, onde a
preservação da ordem pública passa a ter inserida também a garantia dos
direitos a todos os cidadãos, além do enfrentamento do crime e da violência.
299
Essas tarefas distintas exigem do policial, habilidades e uma qualificação
cada vez maior.
Motivo pelo qual constantemente tem-se procurado melhorar as formas
de policiamento, e uma destas opções foi mesclar o trabalho tradicional com
outros métodos de enfrentamento da violência, sem deixar de prestar um
serviço coercitivo em situações que isso se faça necessário de forma reativa2.
Tem-se destacado nesta linha o policiamento comunitário com ações mais
preventivas3, a qual necessita da participação da comunidade, porém para
atuar nesta frente o policial precisa estar ainda melhor preparado, pois irá
tratar da prevenção da violência com a ajuda dos membros da comunidade
usando métodos diferentes do método tradicional.
Esta formação e qualificação do policial parece ser o maior impasse para
o sucesso na implantação deste trabalho policial, porque exige do policial
não apenas capacitação profissional, mas também equilíbrio emocional para
lidar com os problemas das pessoas. De outra forma, tem-se uma grande
dificuldade em mensurar os resultados da prevenção tornando o trabalho
policial ainda mais complexo, ao invés de só apresentar números estatísticos
sobre o trabalho, o policial também interage com a população resolvendo
problemas sociais da própria comunidade.
Neste ensejo, as formas de atuação da polícia devem ser constantemente
revistas e aprimoradas, principalmente quando não atingem os resultados
esperados. Assim, para se adequar políticas de segurança pública no Brasil,
equilibrando a conduta individual do policial com os princípios
constitucionais, torna-se uma tarefa complexa, pois requer mudanças de
comportamento do policial nas suas atividades de rotina. Sem contar, que
desta inovação depende a sustentação das instituições policiais, que deve

2 Na forma de atuação reativa, o policial é treinado para agir identificando o infrator da lei,
procurando sempre o suspeito da infração legal, abordando o cidadão com desconfiança
onde dificilmente a ação policial é recebida com simpatia.
3 Ação preventiva é muito comum no policiamento comunitário, onde o trabalho policial está

voltado mais na aproximação com o público antes mesmo que ocorram as ações de violência
e os ilícitos, fazendo um trabalho com visitas, palestras e reuniões conscientizando a
comunidade da importância do policiamento comunitário e da boa relação que deve existir
entre a instituição policial e a população, sendo desta forma, fundamental a colaboração da
comunidade no trabalho policial, para estabelecer uma relação de confiança mútua e
desenvolver um trabalho em conjunto.
300
dar legitimidade nas ações da polícia.
Apesar de o policial ter a capacidade de convidar qualquer pessoa a ser
conduzida até a delegacia, esta situação não se aplica para todos os casos.
Pois “a arbitrariedade é caracterizada por condutas que extrapolam o leque
de escolhas disponíveis para cada um dos casos em concreto” (PINC, 2011,
p. 195). Podendo a conduta policial ser considerada desviante, nas situações
em que não se enquadra nos parâmetros legais, além da prática
discricionária fundamental no seu trabalho cotidiano policial ser
considerada discriminatória.
O policial que trabalha diretamente com o público tem relativa
autonomia para tomar suas decisões no enfrentamento das ocorrências.
Dessa forma, mudar o conceito e a forma do trabalho da polícia, torna-se
ainda mais difícil, o que não quer dizer que todas as formas de atuação da
polícia praticadas até o momento estejam erradas, apenas algumas atitudes
que rotineiramente foram consideradas como regras padrões, devem ser
adequadas ao novo ordenamento jurídico.

É muito importante que o policial saiba fazer uso da arma de fogo,


mesmo que esta arma tenha pouca chance de ser utilizada.
Entretanto, é determinante que o policial saiba fazer uso da
comunicação verbal, em especial durante as abordagens. Quando o
policial consegue controlar uma situação de intervenção por meio da
verbalização, diminuem as chances do uso da arma de fogo (PINC,
2011, p. 77).

Aos poucos o Brasil terá maturidade suficiente para implementar as


mudanças necessárias para melhora o trabalho policial. A importância do
treinamento, como meio de difusão e padronização da ação policial é
fundamental para a conduta individual do policial na rua. Contudo, a
preparação e a qualificação de um policial demanda tempo, exigindo um
trabalho intenso na democratização e desmilitarização do modelo de polícia
para mudar a forma de tratamento diante ao cidadão.
Ao analisar a constitucionalidade da desmilitarização, Carvalho (2013)
avalia o texto legal da PEC nº 102/2011, e conclui que a mesma não se
encontra apta para ir à votação no Congresso Nacional, por necessitar de
diversos ajustes que se refera ao rol de cláusulas pétreas estabelecido na
301
Constituição, sob pena de vir a ter sua inconstitucionalidade declarada pelo
Supremo Tribunal Federal. No entanto, a proposição alterando o artigo 144
da Constituição, que trata do regime adotado pelas polícias militares para o
modelo civil através de emenda constitucional, seria juridicamente viável,
tendo em vista, não ofender o rol de cláusulas pétreas previsto no artigo 60,
§º4, da Constituição.
Com esse entendimento, não ha óbice na mera unificação entre a polícia
militar com a polícia civil, por estar diante de duas instituições estaduais
que tem sua subordinação ao mesmo governo do Estado. Com a mera junção
de atribuições de dois órgãos subordinados ao mesmo governo, não afeta a
separação de poderes nem o pacto federativo.
Um forte empecilho continua sendo o fato da polícia militar constar
como força auxiliar e reserva do Exército, mantendo assim o vínculo com o
Exército e sobrepondo o controle militar sobre o controle civil representando
uma ameaça ao desenvolvimento democrático (CALDEIRA, 2000). Da mesma
forma, na própria estrutura organizacional da polícia militar, não se
encontra a designação de policial, mas sim de soldados, cabos, sargentos,
tenentes, capitães, majores e coronéis.

4. NA BUSCA DE UM TRABALHO VOLTADO PARA O FIM SOCIAL

Um passo importante na direção da desmilitarização é identificar nas


próprias instituições policiais, os fatores que dificultam o relacionamento
entre a população e a polícia. Tentando encontrar os problemas da falta de
credibilidade da população diante da polícia, o que é claramente percebido
pelos próprios policiais. Não é fácil encontrar a forma correta de se
trabalhar, porém, torna-se necessário mudar a estrutura com o pensamento
voltado a uma doutrina mais diferenciada que busca uma aproximação com
a sociedade. Aonde se podem buscar alguns exemplos fora do Brasil como:

Nas polícias norte-americanas e europeias, a organização policial


possui estrutura de comando com achatamento da pirâmide, ciclo
completo, não permitindo diferenciação entre polícia ostensiva e
judiciária. No caso brasileiro, a organização policial é vinculada a
estrutura militar do Exército brasileiro, no qual a hierarquia faz
302
parte da própria identidade corporativa (MIRANDA, 2013, p. 54).

Conforme Mirando (2013), o que se percebe da polícia brasileira


basicamente a polícia militar, é o fato desta sempre ter sido resistente às
mudanças, onde em pleno século XXI as instituições militares permanecem
com a Doutrina de Segurança Nacional. Identificando-se também, que a
tropa militar mantém atitudes de resistência à implantação de policiamentos
que fogem do tradicional, especialmente quando estes vão de encontro aos
interesses de manutenção da estrutura e organização hierárquica.
O militarismo pode ser um sistema eficiente para vigiar e proteger
teritorrialmente a nação. Porém a função de policiamento tem uma dimensão
completamete diferente, onde a missão passa a ser a proteção e a segurança
das pessoas. E em muitas situações do cotidiano em que a polícia é
acionada, acaba demonstrando o seu total descontrole e despreparo diante
de ações de servir e proteger a população.

O ano de 2013 provou que a Polícia Militar não tem preparo para
agir em manifestações populares. Desde junho do mesmo ano, a PM
no Brasil inteiro agiu com truculência com a população brasileira.
Suas ações ainda estão de acordo com a época da ditadura militar.
Uma polícia arcaica em uma sociedade pós-moderna e democrática
só pode acarretar o que aconteceu nas manifestações de 2013
(ABRANTES, 2014, p. 101).

Para mudar esta imagem negativa sobre a polícia brasileira, uma das
medidas pode ser o aprimoramento da relação entre policiamento
comunitário e a desmilitarização, onde “é possível tendo em vista a hipótese
de que o policiamento comunitário pode se constituir numa transição para
um policiamento desmilitarizado” (MIRANDA, 2013, p. 55). Nesta seara, os
princípios do militarismo se contrapõem ao policiamento de aproximação, da
mesma forma que setores conservadores das polícias militares atuam na
direção contrária do êxito do policiamento comunitário.

A análise do policiamento comunitário a partir dos olhares dos


próprios policiais nos leva a percebê-lo não apenas como alternativa
ao modelo tradicional, mas na perspectiva de reconhecê-lo como
parte do processo de desmilitarização das forças policiais brasileiras.
A permanência do modelo tradicional afeta a qualidade dos serviços
oferecidos à sociedade e, consequentemente o seu desenvolvimento
303
(MIRANDA, 2013, p. 55).

Numa sociedade moderna e democrática que se busca construir, é


fundamental que se tenha uma sincronia e adequação de valores com
garantia e manutenção da ordem pública, que passam a serem aspectos
indispensáveis, na defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. E é
nesse enfoque, que se percebe uma carência e despreparo das instituições
militares, como profissionais responsáveis da segurança pública deixando de
proporcionar proteção e garantir cidadania a todos.

Ora, este ethos repressivo e esta organização em segmentos


excludentes da polícia têm sido reforçadas, no Brasil, seja pelos
valores de nossa cultura judiciária, seja pelo ethos militar que tem
definido a autuação das polícias militares, tradicionalmente
organizados como exércitos, tanto antes de 1964, quanto depois
desta data (LIMA, 2011, p. 85).

Permanece muito evidente, que a formação policial de hoje continua


priorizando os padrões de policiamento tradicional, de modo que os direitos
humanos não conseguem enraizar seus princípios na formação e nas
resoluções policiais. Este fato tem dificultado o êxito de uma prática de
policiamento desmilitarizado nas polícias militares do Brasil. Contudo,
algumas instituições policiais têm avançado mais que outras, neste quesito
onde cada instituição tem sua base curricular específica. Principalmente
quando se trata de uma instituição militar para uma instituição não militar,
de forma que algumas conservam mais as características militares que
outras, no que se verifica:

A predominância do ‘modelo policial tradicional’ no conteúdo do


processo de formação profissional do futuro encontra-se
consubstanciado em uma concepção do trabalho policial que enfatiza
o comportamento legalista dos policiais em um arranjo burocrático-
militar que influencia a cultura, a filosofia de trabalho, a política
administrativa, o treinamento, as operações, táticas e estratégias
policiais (PONCIONI, 2005, p. 595).

Desta forma, se identifica grande resistência por parte dos próprios


policias, motivo pelo qual, à transversalidade passou a ser discutida já nos
cursos de formação policial, com o objetivo de difundir os direitos humanos
304
na atuação profissional. Assim, a educação das forças de segurança vem
evoluindo na qualificação e na educação do policial, procurando alterar aos
poucos o seu pensamento crítico, na busca de uma melhor
profissionalização.
As academias servem para moldar os futuros profissionais da segurança
pública, ensinando-lhes valores e crenças referente a profissão, repassando
a base de conhecimentos e cultura comum sobre o que é ser policial em um
determinado modelo de polícia profissional. De acordo com este
entendimento, analisando o comportamento e formas de atuação da polícia
no Estado do Rio de Janeiro.

Verifica-se que a identificação com o militarismo pode ser encontrada


mais acentuadamente no estilo de comportamento dos policiais
militares, principalmente daqueles lotados nas unidades
operacionais especiais da Corporação, como o Batalhão de Operações
Especiais (BOPE), mas é também claramente identificável no estilo
de comportamento dos policiais militares que fazem o policiamento
ostensivo nas ruas, em luta na ‘guerra contra o crime’ (PONCIONI,
2005, p. 599).

Neste contexto, pode-se argumentar que é traçado um padrão de


comportamento que valida simbolicamente o trabalho policial à vista de
todos, afirmando a identidade do policial como um soldado guerreiro, que
tem encorajado ações agressivas para fazer frente à missão que lhe foi
designada. Nesta seara, de acordo com Soares (2013) a missão das polícias
no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe
ao Exército. Segundo Soares a polícia precisa prover segurança aos
cidadãos, garantindo o cumprimento da lei, protegendo os direitos e
liberdades contra eventuais transgressões e violações legais. Para tanto,
ressalta os propósitos do policiamento preventivo, que requer entre outros os
seguintes atributos:

Descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no


processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos
humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem
o uso comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades
locais; capacidade de interlocução, liderança, mediação e
diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem
outros segmentos da corporação e intervenções governamentais

305
intersetoriais (SOARES, 2013, p. 5).

Como pode ser visto, o militarismo não permite este tipo de perfil
policial, e de outro modo, a discricionariedade da verdadeira função policial
conforme descrita por Soares, não tem tido sucesso na implementação e na
estrutura do trabalho policial num estado democrático como o nosso. Com
essa ideia, para melhorar a forma de trabalho policial tem-se alguns
entendimentos de que a iniciativa deva partir dos próprios soldados.
Melhorando assim, o trabalho da policial diante da sociedade (ABRANTES,
2014).
De acordo com Poncioni (2005), que realizou um estudo sobre a
formação profissional de algumas academias de polícia no Brasil, observou
que os policiais continuam sendo treinados para as demandas diárias e
preparados para dar respostas imediatas contra o crime, sendo estas formas
de atuação baseados em um determinado modelo profissional de polícia já
ultrapassado. Reforçando a identidade policial, com uma cultura de controle
do crime associado a convicções, valores e práticas que remetem ao combate
do infrator penal, renovando assim os velhos princípios básicos do trabalho
policial. E contrastando ao novo profissionalismo difundido em grande parte
do mundo ocidental, onde o serviço público a educação policial de alto nível
e a busca de uma aproximação policial com a comunidade, são
comportamentos considerados fundamentais para a construção de uma
nova identidade profissional do policial contemporâneo.
A polícia precisa de profissionais qualificados e não de policiais com
postura de heróis, essa ideia vem de encontro ao treinamento policial que
serve exatamente para controlar reações espontâneas nos profissionais da
área. Com este posicionamento é possível enfatizar, a importância que é a
boa formação e a constante atualização dos policiais no decorrer das suas
atividades. Pois a polícia “não é neutra nem imparcial, por definição: é a
favor da lei e da ordem e contra aqueles que a querem infringir ou perturbar”
(LIMA, 2011, p. 81).

A inserção das disciplinas de humanidades é justificada devido à


adequação da formação policial aos valores da sociedade
306
democrática. O paradoxo está numa sociedade que reconhece que a
mudança de paradigma do padrão de policiamento é indispensável,
mas sua polícia resiste à formação dos policiais para essa realidade
(MIRANDA, 2013, p. 51).

Nesta mesma linha, (LIMA, 2011) esclarece que a polícia brasileira


continua construída para a defesa do Estado e não para a defesa dos
cidadãos. E o policiamento atual, mantém na hierarquia militar a estrita
obediência e a negação da autonomia que se revela, como obstáculo na
atuação policial, tanto no que diz respeito a sua necessária autonomia de
decisão da prática de suas funções profissionais, como na avaliação de sua
conduta e eficácia da mediação dos conflitos. Desta forma, o desempenho da
atividade policial que se destina à administração dos conflitos na sociedade,
tem como objetivo o combate e o extermínio do inimigo ou a inexorável
punição dos transgressores.
De acordo com (COMPARATO, 2014), o policial deve estar preparado
para qualquer tipo de enfrentamento, sendo fundamental que o agente seja
treinado para controlar suas emoções e saber resistir a provocações, ser
tolerante e muitas vezes saber negociar os conflitos. O Brasil ainda está num
processo de transição da ditadura e do militarismo para a democracia, e
para agilizar os avanços nesta área torna-se necessário, que as autoridades
policiais se mostrem mais sensíveis na questão que acena as novas ideias,
promovendo uma reflexão ampla com a sociedade sobre um novo modelo de
polícia.
Para criar uma polícia desmilitarizada, já tem-se como exemplo no
Brasil a Polícia Civil, Federal e Rodoviária Federal, as quais não tem o
sistema militarista e nem por isso deixam de ter disciplina, hierarquia e
organização. Sem abrir mão daquilo que se sabe, é necessário procurar
aprender, e reproduzir nossas experiências acrescentando sempre novos
conhecimentos. Comgenialogia e astúcia, aliada ao conhecimento técnico, “a
tarefa é apontar-lhe outros caminhos e dependerá de engenho e arte a
consecução de objetivos comuns, que permitem um melhor desempenho de
nossa política e uma negociação mais justa de nossa segurança pública“
(LIMA, 2011, p. 91).

307
Por outro lado, não existem soluções fáceis, em um sistema tão
complexo como é a segurança pública no Brasil, com interesses diversos e
instituições que tem tido dificuldades para trabalhar de forma coesa no bem
comum da sociedade. Se apresentam desafios conforme o conceito de
Balestreri (1998), quando aborda o tema da desmilitarização, e a ideia de
uma polícia única, afirmando que é um conceito que ainda precisa ser
construído em nosso país, e não simplesmente acabar com a Polícia Militar,
e passa-la às mãos da Polícia Civil.
A importância do constante treinamento da atividade policial, reflete
diretamente na imagem projetada pela sociedade com relação a atuação da
polícia. Assim, o “procedimento não é uma ordem a ser seguida e sim uma
conduta a ser introduzida como um comportamento reflexivo do policial, em
seu trabalho cotidiano“ (PINC, 2011, p. 18). De modo que qualquer alteração
na forma de atuação do trabalho policial, requer um longo período de
adaptação e um constante treinamento.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa sociedade democrática como é o caso do Brasil, o trabalho da


polícia é de uma importância extrema, por ter essa a função de garantir o
correto cumprimento da Lei. Sendo para tal, lhe confiado um direito de fazer
cumprir a lei, na qual deve ter a capacidade individual de fiscalizar e
garantir os direitos, diante de situações onde o policial não consegue prever
seu trabalho, competindo ao mesmo, estar preparado para enfrentar as mais
diversas situações com autonomia, liberdade e responsabilidade.
Com este cenário, cabe-nos pensar em primeiro lugar no respeito ao
direito do policial como um ser cidadão, para que este tenha condições de
repassar tranquilidade as pessoas. Quando um polícia militar tem um
treinamento violento, ele acaba gerando uma reação violenta para com a
sociedade, e é justamente o que acontece no militarismo numa lógica de
treinar soldados para a guerra, tendo um inimigo a ser combatido. E
certamente a desmilitarização irá trazer grandes alterações, e a principal
delas será no próprio trabalho do policial, que é submetido à um Codigo
308
Penal Militar com um sistema diferenciado das demais pessoas, mais
rigoroso e com crimes específicos. Tendo que estar sempre pronto para
qualquer missão, trabalhando à qualquer hora em qualquer lugar, sem
receber hora extra ou adicional noturno.
Assim, apessar de toda dificuldade que se apresenta, ressalta-se a
importância de debater este tema para encontrar a melhor forma de fazer
segurança pública de qualidade. O que deve partir de uma polícia bem
preparada, moderna, equipada e inteligente que trata o povo com cidadania
e respeito. Aproveitando com mais eficiência, o recurso humando através do
trabalho dos policiais que tem demonstrado competência e capacidade para
realizar um excelênte serviço.

REFERÊNCIAS

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pública. 3. ed. Fortaleza: Premius, 2014.

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Fundo: CAPEC, Paster Editora, 1998.

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cidadania em São Paulo. Tradução de Frank de Oliveira e Henrique
Monteiro. São Paulo: Ed. 34; Edusp, 2000.

CARVALHO, Daniel Pinheiro de. Desmilitarização da polícia – A Proposta


de Emenda à Constituição nº 102/2011, do Senado Federal, é
Constitucional? Revista Debates em Direito Público, Belo Horizonte: Ano 12,
n. 12, p. 181 - 206, out. 2013.

COMPARATO, Bruno Konder.O que o policiamento das manifestações


revela sobre a qualidade da nossa democracia. Faculdade de Direito da
USP, São Paulo: 2014.

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formação policial em questão. Publicado em: Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: p. 73 - 92, 2011.

MIRANDA, José da Cruz Bispo de. Policiamento comunitário e


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PINC, Tânia Maria. Treinamento Policial: um meio de difusão de políticas


públicas que incidem na conduta individual do policial de rua. (Tese de

309
doutorado) orientador Leandro Piquet Carneiro. São Paulo: 2011.

PONCIONI, Paula. O modelo policial profissional e a formação


profissional do futuro policial nas academias de polícia do Estado do
Rio de Janeiro. Sociedade e estado. Brasília: v. 20, n. 3, p. 585 - 610,
set./dez. 2005.

SOARES, Luiz Eduardo. PEC-51: revolução na arquitetura institucional


da segurança pública. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais. São Paulo: ano. 21, n. 252, nov. 2013.

310
PLURALISMO JURÍDICO, DIREITO INFORMAL E A CRIMINALIDADE

Jeannine Tonetto de Aguiar1

1.INTRODUÇÃO

A política hegemônica da globalização neoliberal marcada pela


supremacia do mercado financeiro e os seus processos de desigualdades
econômicas, culturais e sociais têm resultado em inúmeros desdobramentos
à cultura jurídica brasileira e suas formas de legitimação.
O atual direito moderno, de tradição jurídica burguês-capitalista,
centralizado no Estado, identificado a partir de valores universais,
monoculturais, liberais e individualistas, que consolidou uma cultura
jurídica monista positivista vivencia um enorme esgotamento, que têm
favorecido o surgimento de novos espaços para se repensarem outras formas
de referência e legitimação, ensejando o surgimento de um novo fenômeno, a
que se denominou de pluralismo jurídico.
Com origem a partir da crise da modernidade, o pluralismo jurídico se
insere num contexto mais amplo, como outra forma de direito e política. É
um repensar o direito, interpretando-o como um produto da vida em
sociedade, e não necessariamente aquele encontrado no direito positivo
estatal, assim, o direito não mais se reduz tão-somente às normas
jurídicasoficiais, podendo emergir de diversos centros de produção
normativa.
Este novo projeto social e político busca a redefinição do Estado e a
efetivação de um sistema de regulamentação que traduz as necessidades e
os valores de sujeitos sociais como outra fonte de legitimação, aspirando-se
assim, à construção de novas formas jurídicas emergentes que se pautam na
dignidade humana e na emancipação social, como outra forma de direito
mais próxima da realidade das sociedades brasileiras.

1 Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo. Pós-
graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul. Bolsista do Programa CAPES/PROSUP.

311
Países periféricos como o Brasil tencionam solucionar alguns conflitos
sociais de maneira alternativa de direito, uma vez que, por estarem em
condição de exclusão de amparo legal e políticas públicas destinadas a
necessidades básicas fundamentais, não podem contar com o Estado,
preferindo dessa forma, submeter-se aos ditames socialmente emergidos
pela própria população.
Dessa forma, diante da deficiência e da ausência de recursos do
Estado nessas sociedades, surgem procedimentos ilegais supostamente
adequados a realizar justiça, capazes de solucionar problemas de origem
social, no entanto, essa normatividade informal, apesar de, por vezes, mais
rápida e eficaz e por tal razão obter amplo apoio da população, nem sempre
se organiza de maneira positiva e baseada nos fundamentos da
transformação social com objetivo de construir outro direito coletivo
conforme propõe o pluralismo, isto, pois, têm se organizado através de
grupos arbitrários, como o crime organizado que através do tráfico de drogas
recorre à força e a violência como forma de legitimação de suas imposições,
agindo, na maioria das vezes, na defesa de seus interesses próprios.
Assim, busca-se, a partir da constatação da ausência e da
insuficiência das atuais esferas jurídicas tradicionais, compreender a relação
da criminalidade com as novas formas alternativas de direito, introduzindo-
se um pluralismo jurídico através de um projeto comunitário-participativo,
como instrumento de combate as mazelas da globalização neoliberal, e
estratégia na busca pela justiça que o sistema formal não consegue garantir
prontamente.

2. O MONISMO JURÍDICO

A política hegemônica da globalização neoliberal marcada pela


supremacia do mercado financeiro de lógica individualista e monocultural, e
os seus processos de desigualdades econômicas, culturais e sociais,
dominação e exclusão, têm resultado em inúmeros desdobramentos à
cultura jurídica brasileira e suas formas de legitimação.
Na América Latina, segundo Antonio Carlos Wolkmer (2013, p. 40), a
312
interpretação e a prática da ideologia neoliberal referem-se ao radicalismo do
capitalismo que visa “absolutizar o mercado, até convertê-lo em meio, em
método e fim de todo comportamento humano racional. Segundo essa
concepção, ficam subordinados ao mercado a vida das pessoas, o
comportamento da sociedade e a política dos governos”.
A globalização neoliberal é resultado do modelo de desenvolvimento
econômico e social desenvolvido a partir das crenças e interesses do
indivíduo da classe social burguesa que buscava, enquanto classe
dominadora, manter sua hegemonia.
Durante o regime feudal vigia uma descentralização econômica, social
e política, porém a burguesia com o propósito de garantir seu progresso
material, e ter protegida a sua propriedade privada, buscava uma
centralização através de um Estado mais forte. Criou-se então, o monismo
jurídico como projeto centrado no Estado, reduzindo-se a legitimidade à
legalidade, o que firmou o positivismo estatal como único ordenamento
jurídico vigente na sociedade. (WOLKMER, 2012).
Consolidado ao longo da modernidade e aplicado de maneira uniforme
nos países ocidentais, o monismo jurídico propõe o Estado como único
responsável pela criação das normas jurídicas e a sua legitimação, não
havendo dessa forma, norma sem a presença do Estado, não reconhecendo
outras formas de solução aos conflitos ou regulação social que não venham
do Estado.
No entanto, tal projeto de centralismo jurídico estatal criado para
administrar conflitos de natureza individual e civil tem se tornado
insuficiente na tentativa de resolução aos conflitos coletivos de dimensão
social, na medida em que se vivenciam sociedades cada vez mais complexas
e diversificadas.
Este atual direito moderno vivencia um enorme esgotamento que,
somado às tensões e às necessidades evidenciadas pela sociedade nos
últimos tempos, têm favorecido o surgimento de novos espaços para se
repensar outras formas de referência e legitimação de direitos.
Assim, contrapondo ao monismo jurídico, nasce uma corrente de
pensamento identificada a partir da redução da importância do Estado
313
enquanto único legitimador de direito, denominada de pluralismo jurídico,
que, ao se insurgir contra a ideia da produção exclusiva do direito por parte
do Estado, objetiva o reconhecendo de outras fontes de produção de normas.
O pluralismo jurídico surge no Brasil como um novo paradigma,
buscando a legitimação de novas práticas nascidas na sociedade, e não
necessariamente no Estado. É um repensar o direito, interpretando-o como
um produto da vida em sociedade e não apenas um conjunto de leis criadas
pelo Estado, capaz de frear as consequências negativas propostas pelo
desenvolvimento da sociedade reduzido ao desenvolvimento do capitalismo
que inviabiliza formas democráticas de participação popular.

3. O PLURALISMO JURÍDICO COMO DIREITO INFORMAL

Na década de 1970, Boaventura de Sousa Santos (1988) analisou a


ocorrência de um sistema normativo existente a partir da organização social
que diferia do modelo estatal oficial no Brasil, de membros moradores de
uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, a qual dá o nome de
Pasárgada. A Comunidade de Pasárgada não era reconhecida pelo Estado
como sujeito de direitos, pelo contrário, era excluída juridicamente e tida
pelo direito estatal como ilegal, isto porque, tinha origem a partir de
ocupações em terrenos particulares, onde os moradores de Pasárgada, com a
ausência do direito estatal, se organizavam de forma a dar desenvolvimento
para comunidade.
Dessa forma, Santos (1988) apontava para o desenvolvimento de um
direito não oficial estruturado pelos moradores de Pasárgada como
mecanismo alternativo para a resolução de conflitos vivendo paralelamente
ao direito estatal oficial. Pasárgada se tratava de uma alternativa
emancipatória ao monismo jurídico positivista firmado pelo direito burguês,
como outro direito, que emergia das sociedades marginalizadas, onde os
grupos oprimidos representados pelas classes populares de Pasárgada eram
capazes de produzir um novo direito com valores e normas distintas do
direito oficial.
Para Santos (2006), atualmente, se vive uma época de transição
314
paradigmática entre o paradigma da modernidade e o outro paradigma que
está por vir, que deverá ser da emancipação social, de forma que, percebe-se
a fundamental necessidade de não pensar o direito moderno, devendo ser
este reinventado e adequado às necessidadesdos grupos sociais subalternos
e das organizações que lutam contra as imposições do neoliberalismo,
buscando-se o reconhecimento da pluralidade de sistemas jurídicos
vigorando ao mesmo tempo e no mesmo espaço geopolítico.
O pluralismo jurídico, segundo Wolkmer (2012, p. 238) é a
“multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sociopolítico,
interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo
sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”.
Assim, a intenção do pluralismo jurídico não está em negar ou
minimizar o direito estatal, segundo Wolkmer (2012, p. 240),

mas em reconhecer que este é apenas uma das muitas formas


jurídicas que podem existir na sociedade. [...] A pluralidade envolve
coexistência de ordens jurídicas distintas que define ou não relações
entre si. O pluralismo pode ter como meta práticas normativas
autônomas e autênticas geradas por diferentes forças sociais ou
manifestações legais plurais e contemplares, reconhecidas,
incorporadas e controladas pelo Estado.

Parte de uma premissa de negação do Estado como única fonte de


juridicidade, objetivando a juridicidade de variados grupos, reconhecendo-se
então, uma produção normativa criada através de grupos organizados
autônomos que compõem distintas forças sociais, e não necessariamente
aqueles encontrados no direito positivo estatal.
É nessa linha que Wolkmer (2012, p. 241) coloca uma dualidade entre
“pluralismo jurídico estatal”permitido e controlado pelo próprio Estado e
outro, um “pluralismo jurídico comunitário” autônomo, que subsiste
independentemente do controle estatal.
O pluralismo jurídico apesar de partir de um pressuposto comum que
é a ideia de que não há apenas uma e sim diversas ordens jurídicas
regulamentadoras de práticas sociais, não se manifesta apenas de uma
maneira. Há que se destacar que não são todas as práticas de pluralismo

315
existentes que estão realmente a serviço do projeto da emancipação social,
uma vez que, existem práticas que apesar de não estatais, reforçam e
contribuem a reprodução do direito hegemônico.Por tal razão importa
diferenciar o pluralismo jurídico que busca contribuir na redução das
desigualdades sociais e nas relações de poder, do pluralismo que agrava
ainda mais a desigualdade e exclusão social.
Wolkmer (2012, p. 243) elenca então as diferenças entre o pluralismo
jurídico como “projeto conservador”, servindo de alternativa para intentos
neoliberais, do pluralismo jurídico como “projeto emancipatório”,
transformador, como alternativa contra-hegemônica de emancipação de
estruturas sociais dependentes:

O pluralismo de corte conservador opõe-se radicalmente ao


pluralismo progressista e democrático. A diferença entre o primeiro e
o segundo está, fundamentalmente, no fato de que o pluralismo
conservador inviabiliza a organização das massas e mascara a
verdadeira participação, enquanto que o pluralismo transformador
como estratégia democrática de integração procura promover e
estimular a participação múltipla dos segmentos populares e dos
novos sujeitos coletivos de base.

Para um processo contra-hegemônico de rupturas em sociedades do


capitalismo periférico, como a brasileira, é primeira condição, segundo
Wolkmer (2012, p. 243), “a reconstrução democrática da sociedade civil, a
redefinição das funções do Estado e a implementação de um sistema de
regulamentação identificado com as carências e necessidades de novos
sujeitos de sociabilidades”.

4. PLURALISMO JURÍDICO E A CRIMINALIDADE BRASILEIRA

Eliane Botelho Junqueira e José Augusto de Souza Rodrigues (1992, p.


14), ao analisarem a comunidade de Pasárgada, vinte anos depois de Santos,
constataram que ao lado da associação de moradores da comunidade do Rio
de Janeiro havia surgido outro ator na resolução de conflitos por meio do
crime organizado que, ao contrário da associação de moradores que visam
um consenso a partir do diálogo, o crime organizado por meio da boca de
316
fumo recorre à violência como forma de legitimação de suas imposições,
veja-se:

O crime organizado é, portanto, um ator normativo, tanto nos


conflitos de propriedade não resolúveis com o discurso retórico das
Associações de Moradores, como – principalmente – nas questões de
competência da polícia e da justiça penal, ao aplicar, na imposição
da “ordem”, um código penal próprio, cujas penalidades variam da
prisão domiciliatória, expulsão temporária, impedimento de circular
em determinada área, tiro na mão, até para os casos mais graves, a
“pena de morte”. Dessa forma, contrariando os que imaginam as
favelas a partir de vínculos comunitários dialogais, estas práticas –
[...] que poderiam ter sido resolvidos diretamente pelas partes, sem
intervenção da boca-de-fumo – revelam que não existe uma
intersubjetividade do acordo nessas localidades, mas sim o recurso a
uma instancia superior que, dotada de poder coativo, é capaz de
impor a ordem.

O direito informal, dessa forma, supre as ausências deixadas pelo


direito oficial estatal, constatando-se assim, claramente, a existência de
pluralismo jurídico nas comunidades afetadas pelo crime organizado. Os
líderes dessas comunidades agem na disposição de todo o tipo de proteção e
assistência àqueles que não dispõem de proteção estatal. O poder dos
traficantes, baseado na lei do mais forte, pode ignorar princípios éticos e
humanitários, sendo por vezes, mais injusto que o direito positivo estatal.
Entretanto, apesar do tráfico utilizar da violência para proteger a ordem na
comunidade, os moradores, diante da ausência de outros meios, recorrem a
ele, firmando um pacto com os traficantes, na tentativa de terem seus
conflitos resolvidos e a proteção do seu local territorial, e, posteriormente,
como forma de agradecimento, acabam por garantir a segurança do crime
organizado.
Tal situação de proteção à comunidade, no entanto, não denota um
“espírito comunitário” dos traficantes, conforme observa Alba Zaluar (apud
JUNQUEIRA, 1992, p. 15), ao contrário, se trata de uma “ética de
autopreservação”, de maneira a prevenir seus interesses próprios,
eliminando quem os prejudica, e protegendo quem os defende.
Junqueira e Rodrigues (1992, p. 16) prosseguem:

317
Dessa forma, a velha fórmula dos liberais, de construção de
instâncias formais dotadas de poder de coação, não é velha nem de
todo má, pois aqui e agora, ao contrário do que alguns intelectuais
continuam a sonhar, a tese de auto-regulação da sociedade civil, em
termos práticos, tem significado, a entrega das populações das
favelas e das áreas periféricas ao poder de fato do crime organizado.
Mesmo considerando-se que a realidade brasileira se modificou
radicalmente neste últimos vinte anos, Pasárgada é mais fruto do
imaginário sobre a América Latina construído durante a década de
sessenta nos países centrais, do que situação típica das nossas
favelas que se caracterizam não por laços comunitários, mas pela
atomização que reflete a lógica de cada ator normativo, o que, por
sinal, não escapou à observação de Boaventura de Sousa Santos,
que estudou a “privatização possessiva” como uma das linhas de
força presentes nos direitos de Pasárgada.

Importa destacar que Santos (1988, p. 14) também reconhece a


contaminação pela ideologia dominante apontada por Oliveira como hipótese
capaz de afetar esses fenômenos jurídicos plurais, quando afirma que “a
intervenção da associação de moradores nesse domínio visa constituir como
que um ersatz da proteção jurídica oficial de que carecem”.
Para Lucas Borges de Carvalho (2013, p. 21-22) não se trata de negar
a existência de um direito paralelo ao direito estatal, como alternativa de
resolução de conflitos, vigorando no mesmo espaço, bem como, não se trata
de crer nas instituições estatais como única alternativa para as demandas
sociais e as novas exigências da contemporaneidade:

É um grave equivoco – de ordem epistemológica e também política –


rechaçar, por completo, o direito positivo em nome de um “outro
direito”, supostamente legítimo, porque fruto do agir dos oprimidos.
[...] é difícil situar o direito paralelo em um lugar completamente
distinto do oficial, como se um nada tivesse a ver com o outro ou
como se cada um operasse com lógicas e valores distintos. Pelo
contrário, o direito das periferias é um subproduto do direito
capitalista oficial, contaminado pelos mesmos valores que o regem.
Significativo, a respeito, é o fato de que o objetivo dos moradores das
periferias, tal como demonstram as pesquisas, não é o de construir
uma outra legalidade, mas ser incorporado ao sistema jurídico
estatal, o que é bastante compreensível em um país no qual os
direitos humanos básicos ainda não foram assegurados.

Roberto Barbato Jr. (2013) analisa uma nova situação de pluralismo


jurídico nas comunidades brasileiras, que é a tentativa de substituição da

318
liderança dos traficantes pelas milícias paralelas que buscam assumir um
controle social orientador nas comunidades. Ocorre que, esgotadas as
possibilidades de solução pacífica, assim como os traficantes, a milícia
também na tentativa de impor sua regra de conduta, usa da força e da
violência, ainda que com objetivos diversos aos do tráfico, não elide assim,
mesmo que composta por policiais, sua essência criminosa. Segundo o autor
(2013, p. 231):

Em suma, as milícias em nada se diferem dos narcotraficantes no


que diz respeito ao modo como impõem regras de conduta nas
favelas. Tal como os antigos líderes, são capazes de impor o terror,
exigir tributos e definir o destino das pessoas. [...] A tentativa de
atribuir alguma moralidade às suas ações, pautadas na recusa à
produção e ao consumo de entorpecentes, não afere a elas nenhum
sentido ético. Longe disso, elas procuram apoio numa pretensa aura
de salvacionismo, mas acabam por incorrer em inequívoca tirania.

Destaca-se que, assim como os traficantes, a existência da milícia nas


favelas se justifica pela ausência estatal no atendimento às demandas
sociais exigidas pela população, que possibilita o surgimento de novas
formas alternativas de normatividade.
Nessa linha, se questiona se seriam as milícias ou os grupos
criminosos, através de suas próprias leis e julgamentos, expressões legítimas
de normatividade.
Norberto Bobbio (2005, p. 31) ao afirmar que “[...] até uma associação
de delinquentes, desde que seja organizada com a finalidade de manter a
ordem entre seus membros, é um ordenamento jurídico”, reconhece
legitimidade aos grupos criminosos e a procedimentos não reconhecidos pelo
direito oficial estatal.
Preocupado com a questão da legitimidade enquanto pressuposto
fundamental para a construção de uma cultura jurídica informal, Wolkmer
(2001, p. 324) reconhece que nem todo grupo social autêntico é justo e
legítimo, por tal razão é essencial, ter em conta determinados “critérios-
limites”, que devem ser considerados quando na legitimação de
determinados institutos jurídicos, devendo se distinguir os “grupos
comprometidos com as causas do “justo”, do “ético” e do “bem comum” de
319
grande parcela da comunidade daqueles grupos sociais identificados com a
manutenção dos privilégios, a dominação e a oposição a qualquer mudança”,
isto, pois, “o conteúdo valorativo de uma manifestação normativa
informalizada e não-oficial é muito relativo, podendo ser moralmente correto
ou não. O fato de uma prática ser “extra-estatal” ou “não-oficial” não é
condição para sua legitimidade”.
A legitimidade não estaria associada à ideia de chancela estatal, e sim
a ideia de justo comunitário, sendo considerado como direito legítimo
quando associado a valores éticos e de justiça que respeitem a vida humana.
Dessa forma, para Barbato Jr. (2013), tanto as milícias quanto as
organizações criminosas não podem ser consideradas legítimas, apesar de
terem o apoio dos grupos sociais em meio a tais organizações, não deve, tão
somente, essa conduta de apoio justificar ações que se pautem, entre outros,
no terror, na tortura e no extermínio.

5. PLURALISMO JURÍDICO COMUNITÁRIO-PARTICIPATIVO

Wolkmer (2012, p. 244) propõe o reconhecimento de outra cultura


jurídica, comprometida com a emancipação social e os movimentos sociais,
que luta contra a democracia neoliberal hegemônica, aduzindo a um novo
direito, produzido através da comunidade e não somente pelo Estado. A
proposta de um novo pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo
deriva, pois, das práticas sociais insurgentes, criadas para a satisfação das
necessidades fundamentais e afirmação dos direitos humanos a partir da
perspectiva da interculturalidade, pressupondo

a) a legitimidade de novos sujeitos sociais; b) fundamentação na


justa satisfação de necessidades humanas; c) a democratização e
descentralização de um espaço público participativo; d) a defesa
pedagógica de uma ética da alteridade; e) a consolidação de
processos conducente a uma racionalidade emancipatória.

Novos sujeitos sociais são aqueles pensados em termos de identidades


humanas (enquanto identidade coletiva caracteriza-se na pluralidade de
sujeitos através dos movimentos sociais); de dignidade; autodeterminação e
320
participação, contrapondo-se aos tradicionais sujeitos individuais. É através
desses novos sujeitos coletivos de direito, segundo Wolkmer (2012, p. 263),
que se “tornam fontes de legitimação de “um novo senso comum solidário e
participativo” capaz de efetivar a justiça concreta e outra maneira mais
autêntica de constituir direitos”.
Os sujeitos sociais, segundo Wolkmer (2012, p. 261), “apesar de, por
vezes, oprimidos e “inseridos na condição de ‘ilegalidade’ para as diversas
esferas do sistema oficial, definem uma forma plural e emancipadora de
legitimação”. Assim, o Direito não se refere mais unicamente ao Direito
estatal, emergindo de diversas formas de produção normativa, inserido nos
novos movimentos sociais de onde origina.
A partir desses novos sujeitos coletivos se justifica o sistema de
necessidades humanas, que podem se referir, a valores, vontades,
ausências, entre outros, variando conforme cada sociedade ou cultura, que
no caso da sociedade latino-americana, segundo Wolkmer (2012, p. 245), o
capitalismo favorece a interpretação das necessidades como “produto de
carências primárias, de lutas e conflitos engendrados pela divisão social do
trabalho e por exigência de bens e serviços vinculados a vida produtiva”.
Busca-se ainda, a ampliação da esfera política através da
implementação de uma política democrática, para a produção de espaços
comunitários descentralizados e participativos, no desenvolvimento da ética
da alteridade, contrário a cultura individualista moderna, bem como, a
elaboração de uma racionalidade de caráter emancipatório, através do
cotidiano da vida concreta.
Tais condições são essenciais para fundamentar um novo paradigma
de juridicidade e indicam o caminho da construção de uma nova cultura do
direito, resultado da interação entre a prática e a teoria, plural e
participativa, onde se presenciam valores como identidade, autonomia,
satisfação das necessidades fundamentais, entre outros, caracterizadores
pelos novos sujeitos coletivos.Segundo Wolkmer (2012, p. 248):

Trata-se da produção e aplicação de direitos advindos das lutas e das


práticas sociais comunitárias, independentes da chancelados órgãos
ou agências do Estado. A prova desta realidade, por demais
321
inovadora, que não mais de centraliza no Judiciário, nas
Assembléias Legislativas ou nas Escolas de Direito, mas no seio da
própria Comunidade, são os novos sujeitos sociais. Com isso, aflora
toda uma “nova” lógica e uma “nova” justiça que nasce das práticas
sociais e que passa, dialeticamente, a orientar a ação libertadora de
agentes sociais excluídos.

O pluralismo jurídico, como projeto emancipatório, legitimado nas


práticas sociais, insurgentes e participativas dos novos sujeitos coletivos de
direito, objetiva a satisfação das necessidades humanas fundamentais e a
redução das relações desiguais de poder, agindo como um verdadeiro sujeito
produtor de direito, no desenvolvimento de uma prática denominada de
alternativa, colocada segundo Wolkmer (2012, p. 248), “não como “uso
alternativo do Direito”, mas como um processo de construção de outras
formas jurídicas”. Isto quer dizer que, não se trata da substituição de um
direito proveniente do Estado injusto por outro mais favorável, e sim, outra
forma de direito, criada através dos grupos sociais menos favorecidos, a
partir de suas necessidades.
Como refere Junqueira (1996, p. 4), a “exclusão da grande maioria da
população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à
saúde” é pressuposto para a análise de “novos movimentos sociais e suas
demandas por direitos coletivos e difusos”.
A insuficiência do direito formal estatal brasileiro, segundo Wolkmer
(2001, p. 99), que não conseguiu “acompanhar o ritmo das transformações
sociais e a especifidade cotidiana dos novos conflitos coletivos”, foi
determinante para o surgimento do direito informal, bem como,

trata-se de uma instância de decisão não só submissa e dependente


da estrutura de poder dominante, como, sobretudo, de um órgão
burocrático do Estado, desatualizado e inerte, de perfil fortemente
conservador e de pouca eficácia na solução rápida e global de
questões emergenciais vinculadas, quer às reivindicações dos
múltiplos movimentos sociais, quer aos interesses das maiorias
carentes de justiça e da população privada de seus direitos.

Assim, através do surgimento de práticas alternativas e um pluralismo


jurídico organizado pelos novos sujeitos coletivos em âmbito não estatal,
correspondem então, ao ideal do pluralismo jurídico comunitário-

322
participativo utilizado por Wolkmer para a superação do monismo jurídico.
Entretanto, este pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo
também é objeto de críticas por autores como Lédio Rosa de Andrade que,
segundo Carvalho (2013) dá ênfase as situações de controle social e
manipulação do crime organizado que utiliza suas próprias leis e ordens
para a resolução dos conflitos da comunidade, demonstrando assim, que
nem tudo que emerge dos grupos sociais é sempre emancipador,
questionando quais teorias seriam capazes de diferenciar o direito paralelo
do direito criminoso e, ainda, criticando a legitimidade dos valores impostos
por Wolkmer para qualificar o direito comunitário como o justo e ético e o
direito criminoso como o injusto e antiético, e se teria o intelectual algum
privilégio nesse sentido.
Para Carvalho (2013, p. 31) os critérios apontados por Wolkmer devem
ser objeto de questionamentos e debates, no entanto, é errado afirmar que
eles não possam ser propostos, pelo contrário ele esta cumprindo com o seu
“papel político de demonstrar com argumentos racionais que determinadas
concepções de justiça ou de pluralismo jurídico são melhores ou mais
legítimas do que outras, fornecendo, assim, critérios para uma análise
crítica da realidade”.
Ainda, acerca dos critérios e sua definição, para Carvalho (2013, p. 32-
33):

Em suma, pensar fundamentos morais para um pluralismo


comunitário não implica, em momento algum, ditar regras para toda
a sociedade, nem muitos menos demanda um acesso privilegiado à
verdade. Nem o juiz, nem o filósofo ou outro intelectual qualquer têm
melhores condições de sustentar proposições valorativas do que os
demais cidadãos. Todos, sem exceção, dispõem dos mesmos
recursos: argumentos.

Nesse contexto de críticas, Wolkmer (2001, p. 227) menciona que


Miguel Reale acredita que a variedade de pluralismos e de seus
representantes torna difícil sua apuração e sistematização. Para tal
doutrinador o erro do pluralismo jurídico está no fato de que “certas funções
(...) não podem ser exercidas por indivíduos ou por associações particulares

323
sem grave perigo para a ordem social e sem o aniquilamento do próprio
Estado”, colocando em perigo assim, a unidade do direito.
De igual forma, segundo Wolkmer (2001, p. 228), Norberto Bobbio
questiona as bases do pluralismo jurídico que pode “ocultar tanto uma
ideologia revolucionária inserida em ordenamentos que contribuem para a
“progressiva libertação dos indivíduos e dos grupos oprimidos pelo poder do
Estado”, quanto uma ideologia reacionária interpretada como “episódio da
desagregação ou da substituição do Estado e, portanto, como sintoma de
uma iminente e incompatível anarquia”.
Wolkmer (2001, p. 230) constata certas limitações ao pluralismo
jurídico tradicional o que o inviabiliza e torna inadequado para “estruturas
de privilégios, desigualdades e injustiças como a brasileira”, no entanto, esse
pluralismo jurídico hegemônico não impede o repensar de novas formas de
organização da vida social, que favoreçam “a imperiosidade de outro projeto
de pluralidade de caráter “ampliado” e “aberto”, identificado plena e
autenticamente com as condições objetivas de mudança e emancipação de
sociedades de cultura liberal-individualista como a nossa”.
A crítica ao direito dominante, realizada por Wolkmer, se refere ao
modo como este direito é interpretado, compreendido e aplicado, sendo
entendido como formal, hegemônico, e atuando sem considerar o contexto
social, econômico e cultural em que se encontra a maioria da população. Por
tal razão, propõe o pluralismo jurídico contra-hegemônico como uma prática
mais comprometida com a realidade social de países periféricos, como é o
caso brasileiro, transgredindo ao direito moderno, buscando a efetivação de
um sistema de regulamentação que traduz as necessidades e os valores de
sujeitos sociais como outra fonte de legitimação, aspirando-se assim, à
construção de novas formas jurídicas emergentes que se pautam na
dignidade humana e na emancipação social.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca de formas alternativas de solução de conflitos no Brasil, por


vezes, está relacionada a procedimentos ilegais, que resolvem as tensões
324
sociais através de métodos violentos. Tal situação propaga a capacidade dos
grupos criminosos de ampliar sua atuação e cada vez mais encarar sem
medo as normas estatais.
Com vistas na ausência e na insuficiência do atual modelo de
juridicidade pautado no Estado como único responsável pela solução das
mazelas da população, o pluralismo jurídico comunitário-participativo se
insere num contexto mais amplo, como outra forma de direito e política, que
propõe aos cidadãos, através de uma nova cultura do direito, o poder de
resgate dos seus direitos.
Trata-se de um projeto que consideraa emergência de novos sujeitos
coletivos e esferas de juridicidade, a partir da reflexão acerca de
instrumentos capazes de propiciar a democratização no direito, através da
construção de um modelo de direito mais descentralizado e que favoreça a
participação dos cidadãos, a partir do desenvolvimento da ética da alteridade
e da racionalidade emancipatória capazes de concretizar um sistema de
satisfação das necessidades humanas, com vistas à transformação do
direito, e o resgate ao pluralismo das relações sociais e aos anseios da
sociedade, aproximando o direito da realidade que se apresenta.

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327
PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA ABORDAGEM À
LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Dieison Felipe Zanfra Marques1


Tatiane Sartori Bagolin2

1. INTRODUÇÃO

No Brasil a concentração da riqueza é desordenada, as cidades estão


degradadas e as condições de habitação são péssimas, não há acesso a lazer,
cultura, saúde, educação, etc. e a prestação de serviços públicos são
precários e de pouca qualidade. Visivelmente, os direitos do cidadão há
tempos deixaram de ser assegurados pelo Estado, provocando a insatisfação
do povo brasileiro com a atual conjuntura político-social do país.
Tudo isso é de conhecimento público há longa data, porém,
atualmente, existe mais um fator preponderante sobre a questão: os meios
de comunicação de massa. Ou seja, há uma acentuada influência dos meios
de comunicação que incentivam o consumismo, ditando as regras do jogo e
os padrões da vida social. Devido aos problemas econômicos e sociais,
contudo, a maioria da sociedade não consegue enquadrar-se neste “padrão”
estabelecido pela mídia e é a partir dessa realidade que se inicia a
problemática da violência - foco do presente trabalho.
A partir do momento em que o indivíduo não se enquadra no padrão
indicado ele tem sua autoestima reduzida e passa a se sentir inferiorizado e
solitário. A partir disso passa a construir uma estratégia de vida própria e
comportar-se de um modo único. Nesse viés entra toda a problemática em
relação à criminalidade, destacando-se que essa influência incisiva e
constante da mídia provoca a exclusão social, afetando, principalmente, a
criança e o adolescente.
Os meios de comunicação estão diariamente retratando a realidade
brasileira, em matéria de violência, e cada vez mais a presença do jovem

1Acadêmico do 8º semestre do curso de Direito pela Universidade Regional do Noroeste do


Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: dieisonmarques@hotmail.com
2Acadêmica do 9º semestre do curso de Direito pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: tatihsb@hotmail.com
328
ganha destaque. A mídia consegue fazer sensacionalismo e transformar
determinados acontecimentos em grandes espetáculos e o os envolvidos que
se destacam, são os mais vulneráveis, isto é, a criança e o adolescente. Não
se pode deixar de mencionar que recentes episódios de crimes cometidos por
menores fizeram com que o tema ‘violência juvenil’ voltasse ao centro das
discussões do povo brasileiro e também dos legisladores (grifo nosso).
Neste cenário, o tema da redução da maioridade penal ressurgiu no
Congresso Nacional e deu luz à aprovação, em segundo turno, da PEC
171/93 na Câmara dos Deputados e seguindo os trâmites do procedimento
legislativo, segue para o Senado Federal. Nota-se que os discursos em defesa
da redução penal estão surtindo efeito, tanto que conforme pesquisa do
Datafolha (2015), 87% da população brasileira são a favor de tornar maiores
de 16 anos imputáveis penalmente.
É com preocupação com estes números e com a influência que a mídia
tem sobre a população brasileira, bloqueando seu senso crítico, que o
presente trabalho se desenvolve. Surgindo nesse momento em que se
discutem propostas de endurecimento da legislação relativa a delitos
infanto-juvenis e redução da imputabilidade penal, com a pretensão de
informar, refletir e demonstrar alguns mitos sobre o tema, abordando o
assunto a partir do viés constitucional e humano.

2. ASPECTOS SOBRE A PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE


PENAL

Na última semana, a mídia veiculou incessantemente a notícia da


aprovação de uma proposta de emenda à constituição, em segundo turno de
votação na Câmara dos Deputados, que reduz a maioridade penal de dezoito
para dezesseis anos para casos de crimes hediondos. Trata-se da PEC nº 171
de agosto de 1993 de autoria do ex-deputado Benedito Domingos que prevê a
alteração do art. 228 da Constituição Federal reduzindo a imputabilidade penal
de dezoito para dezesseis anos.
Como revela a o ex-deputado na justificativa da PEC (1993), seu objetivo é
responsabilizar criminalmente os jovens maiores de dezesseis anos, pois pela
329
legislação penal brasileira, o menor de dezoito anos não está sujeito à sanção
alguma, mas somente às chamadas medidas socioeducativas.
Atualmente, “a liberdade de imprensa, a ausência de censura prévia, a
liberação sexual, a emancipação e independência dos filhos cada vez mais
prematura, a consciência política que impregna a cabeça dos adolescentes, a
televisão...” (BRASIL, 1993, p.10) constituíram-se ao longo dos anos, em auxiliar
no processo de amadurecimento do jovem brasileiro, contribuindo para que se
torne entendedor dos seus atos, diferentemente dos jovens de quarenta ou
cinquenta anos atrás.
Na realidade, a análise que é efetuada pelo legislador leva em
consideração a evolução do desenvolvimento psicossocial e mental do jovem ao
longo dos anos, não se compatibiliza mais com o desenvolvimento daquele
menor de meados de1940, tornando insuficiente o tratamento somente com
medidas socioeducativas.
A justificativa da PEC (1993) revela que no ordenamento jurídico
pátrio, o indivíduo se torna capaz para o casamento aos dezesseis anos
somente tendo como critério o caráter biológico, não havendo preocupação
com os aspectos psicológicos ou morais; para os atos da vida civil em geral
dezoito anos, o que constitui somente a presunção da lei de pleno
desenvolvimento mental para o exercício; para os direitos eleitorais se exige
dezesseis anos (mesmo sendo irresponsável em caso de crimes eleitorais);
para que se possa trabalhar se exige quatorze anos (mesmo sem poder
distratar por conta própria;) e “o mais grave, indubitavelmente, é o
encontrado na esfera penal: para que alguém possa ser apenado pela prática
de ato delituoso, de ação típica, antijurídica, culpável e punível, é preciso
que, concretizados os elementos do crime, tenha o agente atingido a idade de
18 anos!”. (BRASIL, 1993, p. 11).
Com tais alegações, percebe-se que o legislador de 1993 acreditava
fielmente que as mudanças tecnológicas trouxeram consigo o poder de
interferir na formação da criança e do adolescente fazendo com que pudesse,
a partir de então, autodeterminar-se e fazer escolhas sozinho tendo
“indiscutivelmente um suficiente desenvolvimento psíquico e plena
possibilidade de entendimento” (BRASIL, 1993, p.11).
330
As alegações vão ainda mais a fundo a ponto do legislador dizer que os
jovens têm:

um amplo conhecimento e condições de discernir sobre o caráter de


licitude e ilicitude dos atos que praticam e de determinar-se de
acordo com esse entendimento, ou seja: hoje, um menor de dezesseis
ou dezessete anos sabe perfeitamente que matar, lesionar, roubar,
furtar, estuprar, etc. são fatos que contrariam o ordenamento
jurídico; são fatos contrários à lei, em síntese, entendem que
praticando tais atos são delinquentes (BRASIL, 1993, p.11).

Conforme a PEC (1993) a maioria dos crimes envolvendo violência é


praticada por menores de dezoito anos, quase sempre, aliciados por adultos.
O entendimento é que os jovens são utilizados para movimentar o crime
organizado e se a lei permanecer no seu estado atual não haverá forma de
controlar estes delinquentes juvenis, pois nem a polícia tem condições de
enfrentá-los, já que a lei impede que medidas mais severas sejam tomadas.
Com isto se crê que o que ocorre é o aumento da criminalidade juvenil
que diante da falta de aparatos estatais para controle de tal situação e de
“institutos adequados para o seu recolhimento para reeducação ou correção
de comportamento, após um afastamento do meio social em
estabelecimentos reformatórios, voltam inevitavelmente às práticas
criminosas”. (BRASIL, 1993, p. 11).
Conforme a justificativa da PEC, portanto, a finalidade é dar ao
adolescente consciência de sua participação social, da importância e da
necessidade de cumprimento da lei como forma de obter a cidadania. O que
se pretende “é dar ao menor, direitos e responsabilidade e não apenas
mandá-los para a cadeia” (BRASIL, 1993, p. 11).
A proposta em análise esteve inerte na Câmara por anos e nas últimas
votações recebeu emendas propondo a redução da maioridade de dezoito
para dezesseis anos nos casos de crimes hediondos, conforme emenda dos
deputados Rogério Rosso e André Moura, que prevê ainda a regra de
cumprimento de pena em estabelecimento separado dos destinados a
maiores de dezoito anos e dos menores de dezesseis anos, cuja
responsabilidade de criação seria concorrente entre os entes federados.
Para os deputados favoráveis à PEC, tal medida está amparada ao
331
clamor público em relação à proposta, baseados em uma pesquisa do
Datafolha (2015) que indica que 87% da população brasileira são a favor da
redução da maioridade penal. A PEC 171/93 seguiu no último dia 21 de
agosto para avaliação do Senado Federal com a seguinte redação:

Altera a redação do art. 228 da Constituição Federal. AS MESAS DA


CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL, nos termos
do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte
Emenda ao texto constitucional:
Art. 1º O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar
com a seguinte redação:
Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito
anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os
maiores de dezesseis anos, observando-se o cumprimento da pena
em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos
menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídio
doloso e lesão corporal seguida de morte. (NR).
Art. 2º A União, os Estados e o Distrito Federal criarão os
estabelecimentos a que se refere o art. 1º desta Emenda à
Constituição.
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de
sua publicação.

Observa-se, assim, que a redução da maioridade penal faz parte da


agenda política e social e, apresenta resposta ao clamor da sociedade que
não quer nem saber se há violação dos direitos fundamentais da criança e
adolescente.

3. ASPECTOS CONSTITUCIONAIS EM RELAÇÃO À IMPUTABILIDADE

A imputabilidade penal é a capacidade intelectual que o indivíduo


possui para determinar sua conduta e ter a compreensão da ilicitude de
seus atos, e em consequência disso, agir de acordo com tal entendimento. A
questão da imputabilidade se faz marco inicial da responsabilidade penal e
sua fixação:

A imputabilidade pode ser definida como a aptidão do indivíduo para


praticar determinados atos com discernimento, que tem como
equivalente a capacidade penal. Em suma, é a condição pessoal de
maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de
entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo este
entendimento (PONTE, 2001, p. 26).

332
Em contrapartida, a inimputabilidade é causa de exclusão de
culpabilidade, isto é, mesmo sendo o fato típico e antijurídico, não é
culpável, eis que não há elemento que comprove a capacidade psíquica do
indivíduo para compreender a reprovabilidade de sua conduta, não podendo
ocorrer imposição de pena ao infrator.
O ordenamento jurídico brasileiro apresenta a seguinte previsão legal
para distinguir o inimputável do imputável no art. 26 do Código Penal, in
verbis:

Art. 26: É isento de pena o agente que, por doença mental ou


desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da
ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

São casos em que o indivíduo pode ser considerado inimputável:


doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado,
embriaguez completa, decorrente de fortuito ou força maior, dependência de
substância entorpecente e menoridade.
A Constituição Federal de 1988 passa a tratar a inimputabilidade do
menor como um direito fundamental, visando a maior proteção da criança e
do adolescente, sendo assim, neste contexto, deu maior proteção à
inimputabilidade do menor de dezoito anos, conforme expresso em seu art.
228 tornando menores de 18 anos, penalmente inimputáveis, sujeitos às
normas da legislação especial, ou seja, Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA – Lei 8.069/90).
Nota-se, por meio deste dispositivo, que o Brasil levou em
consideração o critério puramente biológico para a fixação da
imputabilidade, levando em conta a idade do indivíduo e não seu nível de
discernimento psicológico para responder pelos seus atos. Diante disso, se
verifica que não importa se o indivíduo tem ou não consciência da ilicitude
de seus atos, pois ele só passará a responder criminalmente quando tiver 18
anos completos, caso contrário, fica sujeito à legislação especial, tendo de
cumprir medidas socioeducativas.
O Estatuto da Criança e Adolescente - ECA, Lei 8069/90, também

333
busca estabelecer orientações que priorizem tais indivíduos e a situação em
que eles se encontram. Referida legislação prevê em seu art. 103 e seguintes,
a questão da prática de atos infracionais e as medidas socioeducativas
aplicáveis. Já as medidas de proteção, elencadas nos art. 99 a 101 ditam
que estes instrumentos de forma alguma deverão ser entendidos como
castigo ou pena, muito menos para aliviar a responsabilidade jurídica dos
indivíduos causadores de danos à criança e ao adolescente.
Substancialmente, através do analisado sobre a legislação vigente, se
pode dizer, sem sombra de dúvida, que o menor de dezoito anos que pratica
uma conduta tipificada como crime não permanece impune, pois o ECA
prevê medidas que serão impostas ao infrator, as medidas socioeducativas,
que na realidade, apenas possuem denominação diferente de “pena”.
O principal parâmetro da inimputabilidade tem relação com proteção
do indivíduo, atribuindo-lhe um tratamento alusivo à sua característica de
pessoa em desenvolvimento, e inegavelmente percebe-se que há uma ligação
entre a norma que institui a inimputabilidade em razão da idade do
indivíduo com o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana.
Na verdade, ao realizar a análise sobre a imputabilidade penal,
observa-se que pode ser considerada imutável perante a Constituição.
Constata-se, assim, que ela pode ser considerada, indiretamente, cláusula
pétrea, insuscetível de Emenda Constitucional, conforme revela Andrade
(2013). Desta forma, como já sabido, os direitos e garantias fundamentais,
por se tratarem de cláusulas pétreas, não podem ser abolidos. Ou seja, não
se pode deixar de enfatizar que o art. 228, não pode ser objeto de emenda
constitucional, pois está coberto pela garantia de imutabilidade, consoante
disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição Federal:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante


proposta:
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir:
...
IV - os direitos e garantias individuais.

No entendimento de alguns juristas, a exemplo de Dotti (2015), esse

334
dispositivo constitucional, leva em consideração a incidência de direitos
fundamentais externos ao artigo 5º da Constituição Federal e em razão
disso, preveem a impossibilidade de modificação haja vista a imutabilidade
do art. 228 da Constituição Federal por considerar-se cláusula pétrea.
Importante verificar a posição do STF sobre a questão:

Assim, o artigo 228 da Constituição Federal encerraria a hipótese de


garantia individual prevista fora do rol exemplificativo do art.5º, cuja
possibilidade já foi declarada pelo STF em relação ao artigo 150, III, b
(Adin 939-7 DF) e consequentemente, autentica cláusula pétrea
prevista no artigo 60, § 4.º, IV. (...) Essa verdadeira cláusula de
irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia
positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa
em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em Juízo
(MORAES, 2005, p. 2176).

Em observância aos artigos expostos, se pode perceber que direitos


fundamentais não estão apenas descritos no art. 5º da Constituição Federal,
mas sim todos aqueles decorrentes da dignidade e liberdade da pessoa
humana, ressalvando-se o direito da inimputabilidade penal. O artigo 228 da
Constituição Federal está respaldado pela proteção de imutabilidade por se
tratar de cláusula pétrea, portanto, insuscetível de alteração por emenda
constitucional como pretende, por exemplo, a PEC 171/93.

4. DESCONSTITUINDO ALGUNS MITOS SOBRE A REDUÇÃO

A partir do que foi exposto até agora já se pode formar uma opinião
sobre o tema da redução da maioridade penal. Já foi possível analisar a
proposta tendente a alterar a Carta Maior e já foram demonstrados alguns
dos direitos e garantias assegurados aos destinatários da presente proposta
de alteração, mas ainda existem argumentos - contrários à redução - que
podem ser mencionados a fim de desconstituir alguns mitos criados
socialmente acerca do que se debate aqui.
O que se verifica é que nos últimos anos alguns dos crimes cometidos
por adolescentes ganharam ênfase nos meios de comunicação em massa e
provocaram discursos exaltados em defesa de práticas mais rígidas nas
medidas socioeducativas ou mesmo da redução da maioridade penal.
335
O argumento, por parte de setores da sociedade e da mídia que
defendem o endurecimento penal a este público específico, seria o
protagonismo dos adolescentes no cometimento de crimes graves, por
presumirem que o ECA trataria com medidas brandas esses adolescentes,
culminando no aumento da criminalidade.
Pois bem, conforme o ECA, os adolescentes infratores são
responsabilizados por seus atos infracionais, inclusive, sendo passíveis de
sanções por parte do Estado – medidas socioeducativas – que podem ser,
conforme art. 112 do ECA: advertência, obrigação de reparar o dano,
prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime
de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional, dentre outras.
Sublinha-se que em alguns casos o tratamento dedicado a um
adolescente pode ser imposto com maior rigor do que aquele oferecido pela
lei penal a um adulto, conforme destaca Murillo José Digiácomo, Promotor
de Justiça do Estado do Paraná e integrante do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná:

“De acordo com o previsto no próprio Estatuto, a privação da


liberdade do adolescente pode se estender por até 06 (seis) anos,
sendo 03 (três) anos em regime de internação e outros 03 (três) anos
em semiliberdade.” (DIGIÁCOMO, Murillo José. Redução da idade
penal: solução ou ilusão?
Mitos e verdades sobre o tema.

Ao contrário do que muitos pensam, esta é uma “pena” severa levando


em consideração que a medida correta a ser tomada deve estar permeada
pelo princípio da Proteção Integral da Criança, ou seja, deve promover a
recuperação do jovem através de atividades que possibilitem que este reveja
e compreenda o teor dos seus atos e que possa voltar ao caminho correto e
conviver em sociedade sendo um cidadão produtivo para ela.
Em relação ao aumento da criminalidade devido à violência praticada
por jovens, os dados estatísticos obtidos do Mapa do Encarceramento –
Jovens do Brasil de 2014, revelam que a taxa nacional de adolescentes
cumprindo medidas restritivas de liberdade era “de 95 por 100 mil
habitantes em 2011 (19.595 adolescentes), e passa para 100 adolescentes
por 100 mil habitantes em 2012 (20.532)” (BRASIL, 2014, p. 63) - lembrando
336
que o número de pessoas maiores de 18 anos em medidas restritivas de
liberdade em 2014, conforme relatório do Infopen- junho (2014) é de mais de
600.000.
Ainda falando de estatísticas, outro dado obtido diz respeito aos atos
infracionais mais recorrentes no país:

Nacionalmente, em 2012 o roubo representou 39% dos atos


infracionais cometidos no país, seguido pelo tráfico de drogas (27%).
Em terceiro lugar, com porcentagem menor, ficaram os homicídios
(9%), seguidos pelos furtos (4%). Os demais atos infracionais: porte
de arma de fogo, tentativa de homicídio, latrocínio, estupro e sua
tentativa variaram de 3% a 4%... (Mapa do Encarceramento: os
jovens do Brasil/ Secretaria-Geral da Presidência da República.
Brasília. 2014).

A partir destes dados é possível inferir que no Brasil apenas 11% dos
adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas cometeram atos
infracionais considerados graves e mediante violência, a exemplo do
homicídio e latrocínio. Este dado é relevante, pois a PEC, que ora se estuda,
busca justamente o recrudescimento das medidas punitivas dirigidas a
prevenir este tipo de delito.
A conclusão deste discurso é que a redução na maioridade penal para
16 anos seria a saída para se combater à impunidade sobre este grupo
populacional e para se reduzir a criminalidade. No entanto, com os dados
trazidos por esta pesquisa, constata-se que é pequena a parcela das
sentenças a adolescentes em razão do cometimento de crimes graves, como
homicídio e latrocínio. Assim, apesar dos discursos exaltados em favor da
redução da maioridade penal, constata-se que os delitos graves são a
minoria entre os delitos dos adolescentes processados.
Outro fator que merece destaque é o desejo de recrudescimento das
medidas socioeducativas impostas aos adolescentes sob o pretexto de terem
perfeita condição de discernir entre o certo e o errado. Um adolescente pode,
realmente, distinguir entre o certo e o errado, mas a redução penal não pode
levar em consideração somente este fato e sim que existem inúmeras
comprovações técnicas e científicas que comprovam que a adolescência é
uma fase de transição entre a infância e a idade adulta em que a pessoa

337
passa por uma fase de grandes transformações psicológicas, morfológicas e
sociais que podem torná-las mais propensa a atos antissociais. Por isso,
destaca-se a importância de um acompanhamento compromissado com os
adolescentes e é isto que há previsto no ECA, por exemplo, a partir da
proteção deste público.
Também se discute a imposição da redução da maioridade penal,
considerando o direito constitucional de voto aos dezesseis anos. Tal
argumento não merece prosperar, visto que não concede os direitos
universais de ser votado, bem como o voto aos menores é facultativo. Além
do mais, o critério utilizado para a maioridade penal é o biológico, como já
explicado neste trabalho, e é um critério objetivo para assegurar a segurança
jurídica em nosso país.
Sobre o encarceramento de menores, é relevante mencionar sobre o
assunto, que encarcerando adolescentes aumentaria a lotação de presídios,
e como demonstra a pesquisa da Infopen (2014), o déficit carcerário aumenta
a cada dia, não conseguindo atender a demanda que a Justiça requer. O
Estado ainda não é capaz de cumprir o papel descrito na Constituição
Federal, Código Penal, Lei de Execução Penal e muito menos ainda o
disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, esclarece
Luiz Flávio Gomes:

se os presídios são reconhecidamente faculdades do crime, a


colocação dos adolescentes neles (em companhia dos criminosos
adultos) teria como consequência inevitável a sua mais rápida
integração nas organizações criminosas. Recorde-se que os dois
grupos que mais amedrontam hoje o Rio de Janeiro e São Paulo
(Comando Vermelho e PCC) nasceram justamente dentro dos
presídios (GOMES, 2015).

Mas e quanto à utilização de adolescentes para a prática de crimes?


Esta é outra das inúmeras questões que a exaltação social traz à tona.
Embora ocorra de alguma forma o recrutamento de adolescente para a
prática de crimes, reduzir a maioridade não seria obstáculo para que isso
continuasse a ocorrer. Se a lógica é ter uma lei para punir possíveis
infratores que sejam menores e se associem ao crime, aquele que recruta,
sabedor da lei que torna os menores imputáveis, passaria a recrutar jovens
338
com cada vez menos idade.
Apesar de óbvio ainda há, no meio social, ideias que apelam para o
discurso que este seria o caminho a seguir. Seria interessante então criar
medidas de recrudescimento da repressão penal aos adultos que utilizam
adolescentes e crianças para a prática de crimes. Para a criança e o
adolescente só há um caminho: a educação. Somente investindo em medidas
que garantam a proteção da vida, saúde, que lhe garantam cultura, lazer e
educação por meio de políticas públicas fortes que permitam o
desenvolvimento sadio e, principalmente, digno destes que são o futuro da
nação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, através do presente trabalho se buscou desconstituir


alguns mitos e pré-conceitos que permeiam nossa sociedade e fazem crer
que a aprovação da PEC 171/93 será a melhor solução para o fim da
criminalidade. Porém, não é encarcerando jovens infratores que será possível
melhorar a sociedade.
Muito tem se falado no Brasil que os presídios são verdadeiras escolas
do crime e que os presos saem muito pior do que entraram. Então como
podemos pensar em mandar adolescentes para esse tipo de instituição? Ao
adolescente, os efeitos serão ainda mais danosos, uma vez que ele não
possui o mesmo poder de discernimento de um adulto, por se constituir
pessoa em desenvolvimento físico e mental.
A diminuição nos índices da criminalidade envolvendo menores
infratores só ocorrerá com a eficaz implantação das políticas que promovam
a valorização do indivíduo como um verdadeiro cidadão, garantido os direitos
previstos na Constituição. Só assim haverá uma esperança de futuro para
crianças e adolescentes provenientes de comunidades marginalizadas.
Embora a alteração pela PEC talvez ocorra, tal fato representaria um
retrocesso aos direitos já adquiridos pelas crianças e adolescentes.Com a
constitucionalização e a legalização de violações flagrantes dos direitos
fundamentais destes seres em formação, que precisam não da punição
339
propriamente dita, no sentido de castigo ou vingança pelo crime cometido,
mas sim de ressocialização, por meio da aprendizagem de valores
socialmente relevantes e de oportunidades para o afastamento do crime.
Pois, as consequências se tornarão ainda piores se permanecerem as
violações de direitosfundamentais e o prévio ingresso dos jovens na
criminalidade e, por consequência, no sistema carcerário.

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340
DOTTI, René. A redução da maioridade penal. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/rene-
dotti-a-proposta-de-reducao-da-maioridade-penal-
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GOMES, Luiz Flávio. Menoridade penal: cláusula pétrea? Disponível


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LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 18ª ed. rev., atual.


e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, 1455 p.

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PONTE, Antônio Carlos da. Inimputabilidade e processo penal. São Paulo:


Atlas, 2001, p. 26.

341
RACISMO: DA LEI ÁUREA À CRIMININALIZAÇÃO.
UM ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Fagner Cuozzo Pias1

1.INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira com fim da escravidão no Brasil, conforme


menciona Silva e Silva (2012), a qual obedeceu um processo lento,
influenciou fatores internos e externos, especialmente a pressão, interna,
exercida pelos abolicionistas. Contudo, antes da lei Áurea, outras tentativas
paliativas foram criadas como tentativa de abolição da escravidão.
Contudo, o avanço legislativo, calcado pelas marcas deixadas pela
escravidão, bem como pelo comportamento da sociedade brasileira,
instaurado com a abolição, trouxe uma sociedade racista, preconceituosa,
onde apenas as elites, comandadas pelos brancos coordenavam e ditavam as
regras para convivência em sociedade.
O negro, após o fim da escravidão, viu-se à própria sorte, numa
sociedade, até então desconhecida, e que não se preocupava em sequer
manter qualquer política com intuito de inserir socialmente o negro, o qual
era oriundo da África. Isto porque, logo após o fim da escravidão, os próprios
abolicionistas não conseguiram desvirtuar o principal foco/problema surgido
que era a “mão de obra barata” não mais mantida pelas elites.
Assim, a evolução da sociedade fez com que os negros nelas se
inserissem, muito embora as inúmeras insurgências do restante da
sociedade, que tratava o negro com extremo preconceito.
Neste viés, a legislação brasileira avança, no sentido de coibir práticas
de discriminação racistas, sendo que torna criminalizada a conduta,
perpassando por diversos momentos históricos.

1 Mestre em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social (UNICRUZ). Pós-Graduado em


Direito Civil e Processual Civil (UNICRUZ). Pós-Graduado em Direito Previdenciário
(UNIVERSIDADE DE ANHANGUERA). Pós-Graduando em Direito Penal e Processo Penal
(VERBO JURÍDICO). Graduado em Direito (UNICRUZ). Docente do Curso de Direito da
UNICRUZ, ministrando Disciplinas de Direito Penal. Advogado. E-mail:
fpias@unicruz.edu.br
342
2. DESENVOLVIMENTO

A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824,


conforme comenta Silveira (2006) compadecia com a desnaturação da
personalidade jurídica do negro, muito embora o artigo 179, inciso XIII
dispusesse que a lei seria igual para todos. Complementa Silveira (2006) que
a mais duradoura das constituições brasileiras, outorgada pelo Imperador D.
Pedro I, não fazia nenhuma referência à escravidão.
A lei nº 581 de 04 de Setembro de 1850, denominada Eusébio de
Queirós, em seu preâmbulo objetivando estabelecer medidas para repressão
do tráfico de africanos no império, extinguiu a importação de escravos pelo
Brasil, realizada estritamente via mar, proibindo a entrada de novos
escravos em território brasileiro, ao estabelecer em seu artigo 1º que as
embarcações brasileiras encontradas em qualquer lugar, e as estrangeiras
encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais do
Brasil, tendo a seu bordo escravos, seriam apreendidas pelas Autoridades,
ou pelos Navios de guerra brasileiros, e consideradas importadoras de
escravos.Aquelas embarcações que não tiverem escravos a bordo, nem os
houverem proximamente desembarcado, porém que se encontrassem com os
sinais de se empregarem no tráfico de escravos, seriam igualmente
apreendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos.
A lei supracitada considerada autores do crime de importação, ou de
tentativa da importação o dono, conforme artigo 3º, o capitão ou mestre, o
piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga. Eram considerados
cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos
no território brasileiro, ou que concorressem para os ocultar ao
conhecimento da Autoridade, ou para os subtrair a apreensão no mar, ou
em ato de desembarque, sendo perseguido.
Os artigos 4º ao 9º da lei mencionada regulamentavam como deveria
ocorrer o controle e o cumprimento mandamental, assim dispondo:

Art. 4º A importação de escravos no territorio do Imperio fica nelle


considerada como pirataria, e será punida pelos seus Tribunaes com
as penas declaradas no Artigo segundo da Lei de sete de Novembro
343
de mil oitocentos trinta e hum. A tentativa e a complicidade serão
punidas segundo as regras dos Artigos trinta e quatro e trinta e cinco
do Codigo Criminal.
Art. 5º As embarcações de que tratão os Artigos primeiro e segundo e
todos os barcos empregados no desembarque, occultação, ou
extravio de escravos, serão vendidos com toda a carga encontrada a
bordo, e o seu producto pertencerá aos apresadores, deduzindo-se
hum quarto para o denunciante, se o houver. E o Governo, verificado
o julgamento de boa presa, retribuirá a tripolação da embarcação
com á somma de quarenta mil réis por cada hum africano
apprehendido, que era distribuido conforme as Leis á respeito.
Art. 6º Todos os escravos que forem apprehendidos serão
reexportados por conta ........ para os portos donde tiverem vindo, ou
para qualquer outro ponto fóra do Imperio, que mais conveniente
parecer ao Governo; e em quanto essa reexportação se não verificar,
serão empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não
sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares.
Art. 7º Não se darão passaportes aos navios mercantes para os
portos da Costa da Africa sem que seus donos, capitães ou mestres
tenhão assignado termo de não receberem á bordo delles escravo
algum; prestando o dono fiança de huma quantia igual ao valor do
navio, e carga, a qual fiança só será levantada se dentro de dezoito
mezes provar que foi exactamente cumprido aquillo a que se obrigou
no termo.
Art. 8º Todos os apresamentos de embarcações, de que tratão os
Artigos primeiro e segundo, assim como a liberdade dos escravos
apprehendidos no alto mar, ou na costa antes do desembarque, no
acto delle, ou immediatamente depois em armazens, e depositos sitos
nas costas e portos, serão processados e julgados em primeira
instancia pela Auditoria de Marinha, e em segunda pelo Conselho
d'Estado. O Governo marcará em Regulamento a fórma do processo
em primeira e segunda instancia, e poderá crear Auditores de
Marinha nos portos onde convenha, devendo servir de Auditores os
Juizes de Direito das respectivas Comarcas, que para isso forem
designados.
Art. 9º Os Auditores de Marinha serão igualmente competentes para
processar e julgar os réos mencionados no Artigo terceiro. De suas
decisões haverá para as Relações os mesmos recursos e apellações
que nos processos de responsabilidade.
Os comprehendidos no Artigo terceiro da Lei de sete de Novembro de
mil oitocentos trinta e hum, que não estão designados no Artigo
terceiro desta Lei, continuarão a ser processados, e julgados no foro
commum. (Lei nº 581/1850, arts. 4º a 9º)

Contudo, conforme Silva e Silva (2012) leciona, a mencionada lei não


impediu comércio interno ilegal de negros, em razão da supervalorização dos
que aqui se encontravam, em razão do fim das importações e
consequentemente a redução das ofertas.
Já no entender de Moura (1994) a lei teve uma influência ainda mais
negativa, haja vista que “atingiu de forma definitiva o escravismo pleno”,
produzindo pânico entre os traficantes e aqueles interessados no comércio
de escravos.
344
Posteriormente, a lei nº 2.040/1871, intitulada Lei do Ventre Livre,
assinada pela Princesa Isabel, concedeu liberdade a todos os filhos que
nasciam de mulheres escravas, a contar de 28 de setembro de 1871, além de
declarar libertos os escravos da nação e outros.
A legislação oportunizou, conforme artigo 1º, § 1º ao § 7º, duas
possibilidades as crianças, ou seriam criadas pelos senhores de suas mães
até os oito anos de idade, e a partir dessa faixa etária os senhores poderiam
optar em utilizar dos seus serviços até os 21 anos de idade, ou entregá-los
aos cuidados do governo monarquista mediante indenização pecuniária.
Para Nabuco (1999) tal legislação foi “o primeiro ato de legislação
humanitária da nossa História”.
Com base no ensino de Silva e Silva (2012), a lei 3.270, de 28 de
setembro de 1885, conhecida como Lei dos Sexagenários, garantiu liberdade
a todos os escravos que contassem àquela data com 60 anos de vida e a
todos os demais que futuramente completassem a idade. Tal legislação
beneficiava, apenas, os escravos idosos, com pouco força física, acometidos
por enfermidades diversas, sendo menos valorizados e não mais úteis.
Ao comentar acerca da lei dos sexagenários, Mendonça (1999) que a
defesa obstinada da imprescindibilidade da indenização dos senhores cujos
escravos sexagenários fossem libertados mostrou-se intimamente
relacionada à defesa da escravidão como instituição legalmente reconhecida.

Não apressar a “solução” da questão servil – este era um dos grandes


lemas defendidos no Parlamento durante a passagem dos projetos
dos quais resultou a lei de 1885. Tanto nas discussões que cercaram
a passagem da lei pelo Parlamento quanto por dispositivos por ela
fixados, buscou-se preservar, dentro dos limites das possibilidades, a
vigência da escravidão por esse tempo visto como necessário.
(MENDONÇA, 1999, p. 137)

Denota-se que as legislações até então mencionadas, não passaram de


ensaios para a Lei Áurea, que viria posteriormente para conceder liberdade
total aos escravos. As legislações até então existentes não foram perspicazes
para conceder a liberdade aos escravos, mas foram salutares para a edição
da lei áurea que visou a libertação, total, dos escravos.
Nabuco (1999) denunciava a omissão dos legisladores como receio de
345
macular as leis civis com disposições vergonhosas. Afirmava que o escravo
era propriedade como qualquer outra, da qual o senhor dispõe como de um
cavalo ou de um móvel, escapando, nas cidades, em contato com diversas
influências civilizadoras ele escaparia de alguma forma da condição, mas no
campo, isolado no mundo, longe da proteção do Estado, poderia, inclusive,
ser fechado num calabouço durante meses.
Assim, no dia 13 de maio de 1888, foi sancionada a lei 3.353,
conhecida como Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, a qual concedeu
liberdade a todos os escravos viventes no Brasil, país que tornou-se o último
país do continente americano a libertar seus escravos.
A lei histórica, assim estabeleceu:

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o


Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do
Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei
seguinte:
Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no
Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e
execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir
e guardar tão inteiramente como nella se contém.
O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e
Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel
Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o
Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.
Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da
Independência e do Império.
Princeza Imperial Regente.

A Lei Áurea, conforme explana Silveira (2006) veio como resultado de


um processo longo e gradual, tendo sido editadas diversas leis anteriores
como ensaio para a edição da lei áurea.
Para Silveira (2006) não houve tergiversações, sendo declarada extinta
a escravidão sem contrapartidas indenizatórias, estando destruído o maior
regime escravocrata remanescente na América.
Com a desagregação do regime escrovata, o liberto se viu “convertido,
sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável
por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios
materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma econômica

346
competitiva” (FERNANDES, 2008, p. 29).

Como expediente para manter os escravos no trabalho, dissemina-se


entre os senhores na década de 1880 e, de maneira exacerbada, a
partir do momento em que as fugas em massa dos escravos se
tornam incontroláveis. Com a Abolição pura e simples, porém, a
atenção dos senhores se volta especialmente para os seus próprios
interesses. Os problemas políticos que os absorviam diziam respeito
a indenizações e aos auxílios para amparar a “crise da lavoura”. A
posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem
social deixam de ser matéria política. Era fatal que isso sucedesse.
(FERNANDES, 2008, p. 30)

Logo, considerando tal desiquilíbrio, imprimiu-se à abolição o caráter


de uma espoliação “extrema e cruel”, onde conforme Fernandes (2008) a
preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou
a ele o futuro da lavoura, o que é demonstrado pela transição do trabalho
escravo para o trabalho livre, desde 1823 até a assinatura da Lei Áurea em
13 de maio de 1888.
Para Fernandes (2008) as humilhações, ressentimentos e os ódios,
acumulados pelo escravo e liberto sob a escravidão e exacerbados de forma
terrível pelas desilusões recentes, lavraram destrutivamente o ânimo de
negros e mulatos.
Com a abolição, pura e simples, da escravidão houve, conforme
Fernandes (2008) uma atenção dos senhores para seus próprios interesses,
onde os problemas políticos que os absorviam diziam respeito a indenizações
e aos auxílios para amparar a “crise da lavoura”, ao revés que a posição do
negro no sistema de trabalho e sua integração social deixam de ser matéria
política.

De um lado, a revolução abolicionista, apenas de seu sentido e


conteúdo humanitários, fermentou, amadureceu e eclodiu como um
processo histórico de condenação do “antigo regime” em termos de
interesses econômicos, valores sociais e ideais políticos da “raça”
dominante. A participação do negro no processo revolucionário
chegou a ser atuante, intensa e decisiva, principalmente a partir da
fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição
especificamente abolicionista. Mas, pela própria natureza da sua
condição, não passava de uma espécie de aríete, usado como massa
de percussão pelos brancos que combatiam o “antigo regime”.
Mesmo os abolicionistas mais íntegros e tenazes não puderam ser
seus porta-vozes válidos [...]
347
De outro lado, a estrutura e a dinâmica da economia brasileira não
impunham às camadas dominantes outra orientação. Nas zonas
onde a prosperidade econômica desaparecera, os senhores já se
haviam desfeito do excesso de força de trabalho escravo, negociando-
a com os fazendeiros do leste e do sul. Para eles, a abolição era uma
dádiva: livraram-se de obrigações onerosas ou incômodas, que os
prendiam aos remanescentes da escravidão. Nas zonas onde a
prosperidade era garantida pela exploração do café, existiam dois
caminhos para corrigir a crise gerada pela transformação da
organização do trabalho. Onde a produção se encontrava em níveis
baixos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham
intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar,
na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em
condições substancialmente análogas às anteriores, e a degradação
de sua situação econômica, incorporando-se à massa de
desocupados e de semiocupados da economia de subsistência do
lugar ou de outra região [...]
Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio
destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de se
reeducar e de se transformar para corresponder aos novos padrões e
ideais de ser humano, criados pelo advento do trabalho livre, do
regime republicano e do capitalismo. (FERNANDES, 2006, p. 30-31,
35-36)

Neste sentido, Silva e Silva (2012) relata que os negros continuaram


presos ao preconceito social da época, muito embora a abolição da
escravatura, ante a ausência de políticas públicas pós-abolição pois não se
criaram leis nem projetos sociais visando a inclusão no negro na sociedade,
sendo estes lançados desprovidos de dinheiro, sem condições de
estabelecer0se, tendo que trabalhar por míseras compensações pecuniárias,
incapazes de suprir suas necessidades, em total desigualdade com os
brancos, permanecendo marginalizados, vistos como inferiores, longe de
ocuparem as mesmas posições sociais que os brancos, acarretando em
inferioridade econômica com reflexos atuais.
Em 1951 foi criada a lei 1.390/51, a qual foi intitulada Lei Afonso
Arinos, definiu, em seu artigo 1º, como contravenção penal, a recusa por
parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de
hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por
preconceito de raça ou de cor. A lei supracitada ainda, responsabilizava, pelo
mesmo crime, o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento onde o
delito fosse cometido.
A lei Afonso Arinos, relata Silva e Silva (2012) representou um
rompimento com o vácuo legislativo de repressão às práticas raciais,
348
introduzindo ineditamente no ordenamento jurídico brasileiro um diploma
legal com tal proposição. Contudo, há crítica que se faz a legislação que,
mesmo com suas deficiências técnicas e aspectos históricos, foi a parcimônia
em que a lei passou a ser aplicada, não podendo ser compreendida como
instrumento efetivo de combate à anomalia, mas símbolo de avanços
necessários, lentos e ascendentes.
Seguindo tal linha de pensamento, Silveira (2006) menciona as críticas
a legislação supracitada, tanto pela falta de rigor nas sanções previstas, pois
em nenhum caso ultrapassavam o limite máximo de um ano de prisão
simples, como pela técnica cauística de detalhar situações particularíssimas,
fazendo excluir a incidência de comportamentos impregnados de racismo.
Além disto, Silveira (2006) relata que a Lei Afonso de Arinos nunca esteve
entre os instrumentos legais mais eficazes, pois, como contravenções penais
são infrações de menor potencial ofensivo. Muito embora tais constatações, a
lei fulgurou por mais de trinta anos como principal instrumento de reação ao
racismo, sendo revogada em 1985, com advento da lei 7.437/85, a qual
incluiu entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de
preconceito de raça, cor, sexo ou estado civil, mantendo a natureza
contravencional das infrações de cunho racista. O artigo 1º estabeleceu:
“Constitui contravenção, punida nos termos desta lei, a prática de atos
resultantes de preconceito de raça, de cor, de sexo ou de estado civil”
(BRASIL, 1985, art. 1º).
A lei 7.437/85 continua, atualmente, em vigor no ordenamento
jurídico brasileiro, tendo revogado apenas os casos envolvendo o preconceito
contra a raça e a cor, definidos pela lei 7.716/89.
Já em 1967 a denominada lei de imprensa (Lei Federal nº 5.250/67)
previu como crime (no artigo 14) “fazer propaganda de guerra, de processos
para subversão da ordem política e social ou de preconceito de raça ou
classe”.
A Constituição Federal de 1967, abordou o tema do preconceito racial,
de forma explicitamente repressiva, para Silveira (2006).
O artigo 150, § 1º e § 8º, assim dispunham:

349
Art. 150. [...]
§ 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça,
trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça
será punido pela lei.
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou
filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo
quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um,
nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito
de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de
licença da autoridade. Não será, porém, tolerada propaganda de
guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de
classe. (BRASIL, 1967, § 1º e § 2º art. 150)

Em 1988, perante a Assembleia Nacional Constituinte, o então


Deputado Carlos Alberto Caó, apresentou proposta constitucional para
tornar a prática de racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito
a pena de reclusão. Assim, o deputado justifcou-se:

Passados praticamente cem anos da data da abolição, ainda não se


completou a revolução política deflagrada e iniciada em 1888. Pois
impera no País diferentes formas de discriminação racial, velada ou
ostensiva, que afetam mais da metade da população brasileira
constituída de negros ou descendentes de negros, privados do
exercício da cidadania em sua plenitude. Como prática do racismo
equivale à decretação da morte civil, urge transformá-lo em crime.
(CAÓ, 1988, p. 250)

Desta forma, com o advento da Constituição Federal, promulgada em


05 de outubro de 1988, denominada como cidadã, conforme denomina Silva
e Silva (2012), o combate aos crimes contra o preconceito racial ganhou nova
tutela estatal ao se inserir em seu artigo 5º, o inciso XLII: “ a prática do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão nos termos da lei”.
Para Telles (2003) a Constituição Brasileira de 1988 revolucionou as
bases legais da defesa dos direitos humanos no país e também reconheceu
os princípios da tolerância, do multiculturalismo e da dignidade individual.
O estado brasileiro, ainda, como forma de coibir a incidência do
preconceito racial, estabeleceu no artigo 1º da Constituição Federal da
República o princípio da dignidade humana, idealizada pela rubrica de um
Estado Democrático de Direito.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união


350
indissolúvel dos Estados, e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos.
III – a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988)

A Constituição Federal de 1988, condicionou a penalização do racismo


a uma lei infraconstitucional, a qual foi editada sob nº 7.716/89, cujo artigo
1º, com redação dada pela lei nº 9.459/97, estabelece que “serão punidos,
na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
A lei acima mencionada definiu ainda os crimes resultantes de
preconceitos de raça ou de cor, estabelecendo pena a quem trate de forma
preconceituosa alguma pessoa, em razão de sua cor, instituindo penas que
variam entre reclusão de 01 (um) a 05 (cinco) anos de prisão, além de multa,
tudo em conformidade com a gravidade da conduta do agente.
A lei supracitada, conhecida também como lei Antirracismo, definiu os
crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e, em seu artigo 1º
demonstra, conforme Silva e Silva (2012) que o intuito da lei é punir o
indivíduo inescrupuloso que exerce o seu preconceito contra aqueles grupos
sociais considerados vulneráveis em virtude de sua cor, raça, etnia, religião e
de sua procedência nacional, transformando tais ofensas em crimes.
A lei 9.459/97 descreve condutas, de forma particularizada,
consideradas racistas. O artigo 20 da lei estabelece: “ Praticar, induzir ou
incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional” a pena cominada pelo artigo é de um a três anos de
reclusão e multa. Já o artigo 140 determina “ injuriar alguém, ofendendo-lhe
a dignidade ou o decoro” caso a injúria consiste na utilização de elementos
referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem (§ 3º), a pena será de reclusão
de um a três anos e multa.
Visando à criação de políticas públicas em prol da população
declaradamente preta e parda, nos termos mencionados por Silva e Silva
(2012), foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro várias leis no
âmbito dos Estados, criando ações afirmativas de inclusão social, e no plano
federal a lei 10.558/02, com a finalidade de implementar e avaliar

351
estratégias para promoção do acesso ao ensino superior de pessoas
pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos
afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.
A lei 10.558/02, dispõem:

Art. 1º Fica criado o Programa Diversidade na Universidade, no


âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar
e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior
de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos,
especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.
Art. 2º O Programa Diversidade na Universidade será executado
mediante a transferência de recursos da União a entidades de direito
público ou de direito privado, sem fins lucrativos, que atuem na área
de educação e que venham a desenvolver projetos inovadores para
atender a finalidade do Programa.
Parágrafo único. A transferência de recursos para entidades de
direito privado, sem fins lucrativos, que atendam aos requisitos do
caput, será realizada por meio da celebração de convênio ou de outro
instrumento autorizado por lei.
Art. 3º Revogado.
Art. 4º Fica autorizada a concessão de bolsas de manutenção e de
prêmios, em dinheiro, aos alunos das entidades a que se refere o
parágrafo único do art. 2o.
Art. 5º Os critérios e as condições para a concessão de bolsas de
manutenção e de prêmios serão estabelecidos por decreto (BRASIL,
2002, art. 1º e 2º)

Para Silva e Silva (2012) o sistema de cotas é uma forma de o Estado


compensar a raça negra pelos prejuízos trazidos pela escravidão,
principalmente os socioeconômicos, reservando aos seus integrantes vagas
em concursos públicos e nas instituições de ensino superior da rede pública.
A lei 12.288 de 2010, por sua vez, dada a necessidade de findar com
as distinções raciais, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, considerando-
se, para efeitos legais, discriminação racial ou étnico-racial toda distinção,
exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou
origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o
reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,
cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.
O estatuto da igualdade racial prevê ainda no artigo 2º, que é dever do
Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo
a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o
352
direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades
políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas,
defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Além dos preceitos mencionados, o estatuto da igualdade racial prevê


uma gama de direitos a serem concedidos às pessoas negras e pardas, dos
quais visam dirimir as diferenças raciais existentes dentro da sociedade
brasileira.
Daí a importância de se verificar a problemática levantada, eis que há
práticas (ainda que genéricas) instituídas visando a inserção social de negros
na sociedade, garantindo-lhes, de alguma forma, acesso igualitários em
relação aos brancos, o que, ainda assim, torna o mito da democracia racial
evidente, pois acaba por transmitir uma impressão de que a sociedade
brasileira é totalmente justa e igualitária, sem quaisquer tipos de
preconceitos.
A sociedade por diversas vezes, distingue o negro do branco,
submetendo-o a condições desumanas e de inferioridade perante o convívio
social. Neste viés, o Estado intervém, através do Direito Penal, para
resolução do preconceito racial existente no país, a fim de conscientizar a
sociedade acerca da problemática, em que pese a interferência do direito
penal, de indagar se realmente a função estatal punitiva encontra a eficácia
almejada como forma de coibir os casos de preconceito racial pois, há que se
ter em mente que o direito penal não pode ser visto como a solução dos
problemas culturais e educacionais da sociedade.

REFERÊNCIAS

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________. Constituição Federal. Brasília-DF, 1967.

________. Lei 581/50. Brasília-DF, 1850.

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353
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TELLES. Edward. Racismo à Brasileira. Uma nova perspectiva


sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

354
A APLICABILIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO ÀS TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS

Ana Patrícia Racki Wisniewski1


Camila Paese Fedrigo2

1. INTRODUÇÃO

Este artigo deveria chamar-se “A aplicabilidade da lei do feminicídio a


todas as mulheres”, todavia por estarmos inseridos em uma sociedade
cisnormativa e que ainda produz um direito, eminentemente, cisgênero
precisamos nominá-lo da forma como apresentado a fim de que seus
propósitos basilares tenham sucesso. O questionamento preliminar que
devemos realizar para a adequada compreensão da possibilidade de
aplicarmos a lei do feminicídio, ou de qualquer outra que se preste à
proteção das mulheres, também às mulheres trans é o seguinte: “por que
temos, obrigatoriamente de distinguir mulheres transgênero de travestis e,
estas, por sua vez, das demais mulheres?”. A resposta é relativamente
simples. O direito, infelizmente, ainda diferencia mulheres trans de mulheres
cis porque significativa parcela da sociedade tradicional insiste em albergar
no conceito de mulher apenas aquelas pessoas que tenha sido contempladas
quando do seu nascimento com o órgão genital que, biologicamente, é
nominado como vagina.
É essa a linha limítrofe que separa mulheres transexuais e travestis de
mulheres cisgênero e permite que somente às últimas sejam assegurados
direitos. Um genital define hoje, no Brasil, se determinado ser humano
poderá, ou não, ter idênticos direitos que seu/sua semelhante possui, ainda
que a Constituição Federal assegure igualdade de condições e tratamento a

1 Professora visitante da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Ex-Advogada


do Escritório Maria Berenice Dias. Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos/RS. Membro-revisora da Revista Eletrônica Refletindo o Direito (ISSN 2318-
2091).
2Advogada do Escritório Serra, Serra e Serra Advogados, Consultores e Assessores. Pós-

graduanda em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito. Pós


graduanda em Direito do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Membro-criadora e
idealizadora da Revista Eletrônica Refletindo o Direito (ISSN 2318-2091). E-mail:
camilapfedrigo@yahoo.com.br
355
todos, sem distinções de qualquer natureza. Isso ocorre quando falamos de
direito ao nome civil, ao uso de banheiros adequados ao gênero em
determinados espaços públicos; ocorre também quando falamos de
atendimento especializado à saúde, direito à dignidade, direito ao trabalho...
mas, igualmente, quando falamos de Direito Penal.
Não bastasse toda a gama de violações que as pessoas transexuais
sofrem na busca dos mais básicos de seus direitos, se veem desamparadas
também no âmbito criminal. Violações de direitos de transexuais privados de
liberdade são recorrentes. O caso Vanessa Bolina trouxe a tona uma
realidade ainda não conhecida, porém já esperada frente ao caos do sistema
prisional brasileiro: não estamos preparados para o atendimento
humanizado das pessoas trans onde quer que seja. Isso porque violações
desse nível não ocorrem apenas a nível carcerário, mas de forma
institucionalizada em todos os setores de atendimento público e também no
âmbito da segurança pública no Brasil.
Muitas polícias não detêm o preparo técnico necessário para, em uma
abordagem, prisão ou revista, fazer valer o respeito ao nome social, á
dignidade e ao gênero da pessoa que está sendo submetida, naquele
momento, ao controle repressivo estatal. No Judiciário, significativo número
de magistrados não possui suficiente formação e conhecimento técnico
acerca das realidades trans que lhes permita realizar, de modo adequado aos
direitos mínimos destas pessoas, a prestação jurisdicional que lhes é exigida.
O mesmo se aplica, também, a muitos membros do Ministério Público que,
em análises rasas e a partir de conceitos ultrapassados seguem endossando
preconceitos ao invés de promover direitos.
Aliado a tudo isso, temos a falta de uma legislação específica sobre
gênero que segue sustentando a recorrente violação e negação dos direitos
das pessoas transexuais em nosso país sendo comum que - orientadas pela
analogia, costumes e os princípios gerais de direito - decisões contrárias ao
primado da dignidade humana, da liberdade e da inviolabilidade da vida
privada, sejam maioria. Entretanto, há casos em que, mesmo com a
existência de leis, elaboradas para a proteção da vida e da integridade física
da mulher, e que, claramente contemplam seu objeto de proteção, nos vemos
356
diante de situações em que sua aplicabilidade é mitigada quando se trata
conferir direitos às mulheres não cisgênero.
A segregação entre mulheres que nasceram com ou sem vagina parece
não importar ao direito penal, ou, ao menos, não deveria. Todavia, o que
vemos, na prática é que determinados conceitos desta esfera do direito têm
sido contaminados por elementos de ordem moral que tentam desvirtuar seu
foco como meio de reafirmar noções próprias de seus sistemas no seio dos
mecanismos de controle estatal, o que, definitivamente, não se pode admitir.
Os mais diversos ramos do Direito têm sido vítimas de interesses
escusos de bancadas legislativas religiosas e conservadoras. E com o Direito
Penal, isso não ocorre de forma diferente. A lei do feminicídio que o diga. Já
na tramitação de seu projeto junto ao Congresso Nacional teve o termo
"gênero" (constante da proposta original) substituído pela palavra "sexo" com
o claro intuito de não permitir uma interpretação extensiva do dispositivo às
mulheres transexuais e travestis. Outrossim, como se verificará, mesmo com
essa manobra pseudo-política não se mostrará possível afastar a
aplicabilidade do referido artigo legal a todas as mulheres.

2 DESENVOLVIMENTO

Quando falamos de direitos protetivos às mulheres a primeira


referência legislativa que nos surge é a Lei Maria da Penha, criada em 2006.
Marco de combate à violência doméstica e familiar, a lei 11.340/2006 é
aplicada a favor de mulheres transexuais e travestis de diferentes formas
pelo Judiciário brasileiro a partir da interpretação do julgador. O texto legal
faz referência expressa aos termos "mulher" e "gênero", qualificando como
violência doméstica ou familiar qualquer ação ou omissão baseada no gênero
que cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial.
As referências aos termos "mulher" e "gênero" sem qualquer ordem de
limitação e o claro interesse de proteção á parte hipossuficiente da relação
familiar, norteiam a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres
transexuais, inclusive para aquelas que ainda não tenham retificado seus
357
dados registrais3. Todavia, frente à divergência jurisprudencial que se firmou
sobre o tema, como meio de uniformização de sua aplicabilidade em todo o
território nacional, desde outubro de 2014, a Câmara dos Deputados analisa
o Projeto de Lei 8.032/14, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que
estende, expressamente, às pessoas transexuais e transgêneros, que se
identifiquem como mulheres, a proteção da referida lei. A alteração objetiva
incluir um parágrafo único ao artigo 5º da lei4, a fim de que não paire mais
qualquer dúvida acerca de sua aplicabilidade a todas as mulheres.
Em sentido oposto, e já antevendo a possibilidade de que, ao utilizar-
se do termo "gênero" a lei 13.104/2015 fosse aplicada também às mulheres
trans, o inciso VI da proposta original foi modificado por exigência da ala
conservadora do Congresso Nacional. O GADvS – Grupo de Advogados pela
Diversidade Sexual -, repudiou publicamente a manobra, afirmando que a
mesma teve origem na pressão da “Bancada Evangélica/Fundamentalista”
do Congresso Nacional que, ao exigir a substituição do termo “gênero” pelo
termo “sexo” no projeto, claramente tenta excluir de sua abrangência o
feminicídio transfóbico. Abaixo o comparativo entre a proposta original e a
aprovada pelos parlamentares:

Redação do projeto original


Feminicídio
VI - contra a mulher por razões de gênero feminino.
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2º-A Considera-se que há razões de gênero feminino quando o
crime envolve:
[...]

Redação convertida em lei


Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2º-A Considera-se que há razões da condição de sexo feminino
quando o crime envolve:
[...]

3A esse respeito há decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, disponível no link


<http://www.tjgo.jus.br/decisao/imprimir.php?inoid=2251460>.
4 Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas nesteartigo independem de orientação

sexual e se aplicam àspessoas transexuais e transgêneros que seidentifiquem como


mulheres.
358
Com a aprovação, na forma do substitutivo, e diante da clara manobra
que objetivou excluir as mulheres trans da proteção albergada pela lei do
feminicídio, a dúvida que surge é uma só: haverá, ainda, a possibilidade de
estendermos sua proteção também a elas? A resposta a este questionamento
perpassa duas questões fundamentais. A primeira, e a mais complexa, diz
respeito a noção do intérprete da lei ao conceito de mulher (a quem a lei
protege). E a segunda, ao objetivo primário da alteração (o que a lei protege).
Devemos partir do pressuposto de que a violência normalizada se
transmite e se reproduz socialmente nas ideias, valores e práticas sociais.
Ditas manifestações alcançam todos os âmbitos da vida – tanto das
mulheres cis quanto das mulheres trans – e, claramente, intervém nos
distintos espaços da vida destas pessoas e, também, nas instituições do
Estado.
É verdade também que, nos últimos tempos, são recorrentes as
notícias nos jornais e demais meios de comunicação sobre o assassinato de
mulheres pelo marido ou namorado, ex ou atual. Na verdade, são crimes de
violência contra a mulher, que denotam a desigualdade de gênero, mas que,
geralmente, se vêm noticiados como crimes “passionais”. Descritos como
uma ocorrência policial “comum”, tem sua verdade apagada. Poucos se dão
conta, mas o que está por trás desta realidade é o assassinato misógino de
mulheres cometido por homens, geralmente, cisgêneros e envolvido em
algum tipo de relacionamento com a vítima. Aqui começamos a compreender
a que a lei do feminicídio protege.
Rogério Sanches destaca a existência de duas correntes sobre o tema
no Direito Penal as quais são divididas em conservadora e moderna. Para a
primeira, parte-se do pressuposto de que a pessoa trans feminina,
geneticamente, não é mulher, o que, portanto, descarta a hipótese de
proteção especial. Já para a segunda corrente, desde que a pessoa
transexual tenha transmutado suas características sexuais (por cirurgia e de
modo irreversível), deve ser encarada de acordo com sua nova realidade
morfológica, e, a par disso, ser compreendida como mulher (CUNHA, 2015).
Greco (2015 [?], p. 530 apud CUNHA, 2015), por sua vez, refere - em uma
posição que pode muito entender de leis em matéria penal, mas pouco ou
359
quase nada de vivências transexuais - que

se existe alguma dúvida sobre a possibilidade de o legislador


transformar um homem em uma mulher, isso não acontece quando
estamos diante de uma decisão transitada em julgado. Se o Poder
Judiciário, depois de cumprido o devido processo legal, determinar a
modificação da condição sexual de alguém, tal fato deverá repercutir
em todos os âmbitos de sua vida, inclusive o penal.

Ou seja, para o penalista citado, após a retificação judicial de dados,


inexiste qualquer óbice à aplicação da Lei do Feminicídio às mulheres
transexuais cujos dados registrais tenham sido retificados judicialmente.
Aqui, objetivamente, os penalistas avaliam a quem a lei protege. Em verdade,
poucas são as discussões que se propõem a analisar os objetivos protetivos
da lei quando falamos de sua aplicabilidade às mulheres trans. As análises
rasas limitam-se a afirmar que a lei tem por objeto a proteção da mulher e, a
partir daí, discutir se travestis e transexuais podem, ou não, ser
enquadradas nesse conceito. Com isso inicia-se uma discussão que foge
totalmente aos objetivos do direito penal: a definição de quem pode, ou não,
ser considerada mulher. E que, na maioria das vezes, não consegue se
desprender dos ideais cisgênero que permeiam sua definição tradicional e
ultrapassada.
Em uma análise objetiva, não há qualquer dúvida de que o sujeito
passivo da lei do feminicídio seja a mulher vítima de homicídio motivado “por
razões da condição de sexo feminino”. Todavia, é preciso ter em mente que a
restrição da proteção desta lei somente às mulheres, longe de considerar
genitais, cromossomos ou nome civil, volta-se contra a prática de crimes que
são consumados em circunstâncias específicas de violência em função do
gênero, as quais não vitimizam, de forma tão contundente, a população
masculina.
Em termos práticos, podemos pensar no caso de um namorado,
marido ou companheiro que mata sua parceira em decorrência de uma
traição. O fato de esta parceira ser mulher cisgênero, travesti ou transexual,
não afasta a motivação do crime. O homicídio, nesse caso, se deu em razão
da condição que a pessoa assassinada ocupava na relação. Ao assassino não

360
importa a definição jurídica do termo “mulher” que o delegado que o irá
prender, o juiz ou o promotor que atuarão no seu caso compartilham. Ele
matou a mulher que o traiu. Não há quem possa lhe dizer o contrário.
Os liames subjetivos que envolvem o tipo de delito supra são os
mesmos para todas as mulheres. A vulnerabilidade que as torna passíveis de
proteção especial perante a lei é a mesma para mulheres trans e cisgênero. A
existência de uma relação de poder estabelecida no âmbito doméstico em
que estas violências ocorrem é inegável, assim como o é o fato de que o pólo
mais fraco dessa relação será a vítima dessa violência. Para a promotora de
Justiça Valeria Scarance (2015):

[...] nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro


encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos.
Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do
cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e
familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física.
Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar
roupas provocantes, não falar com outros homens e cozinhar. O
descumprimento dessas regras naturalizadas na relação, justifica
para o homem ato violento e faz que a vítima seja culpada pela
violência.

Inobstante a nefasta tentativa de excluir as mulheres transexuais,


travestis e demais pessoas trans que possam se identificar com o gênero
feminino da proteção da lei do feminicídio, a par da teoria objetiva da
interpretação, a qual é aparentemente majoritária em nossa doutrina
jurídica, tem-se a lei é mais sábia que o legislador, considerando-se, ainda,
que a “vontade do legislador”, não positivada no texto normativo, não pode
ser determinante na interpretação respectiva. Ou seja, ainda que o termo
gênero tenha sido suprimido do texto que se tornou lei, inevitavelmente, não
há como dissociá-lo da análise interpretativa da referida norma, sobretudo
quando consideramos a situação específica sob tutela.
A partir de então, sendo a identidade de gênero uma identidade de
autorreconhecimento soberano, em que apenas a pessoa é capaz de afirmar
com propriedade e legitimidade a qual gênero pertence, consoante ilustram
os Princípios de Yogyakarta, os quais dizem respeito à interpretação e
concretização da legislação internacional das pessoas LGBT, não há como se

361
negar sua proteção também às mulheres transexuais.
De outra parte, ainda que se repudie a recepção do termo gênero na
interpretação da lei do feminicídio frente ao claro intuito do legislador de
suprimi-lo do texto legal, igualmente, a proteção extensiva a todas as
mulheres não desaparece. Isso porque, quando pensamos no sujeito de
proteção da lei 13.104/2015, precisamos ter em mente que o termo “sexo”,
assim como a categorização das pessoas em “dois sexos” denota uma
construção social tão cultural e artificialquanto a categorização das pessoas
em “dois gêneros”. Noções que, definitivamente, não se encontram
vinculadas à natureza ou à biologia, o que nos permite a compreensão de
que pessoas transexuais que se identificam com o gênero feminino são,
nesse sentido, pessoas do sexo feminino, compreendendo-se o termo sexo
como uma construção biopolíticasocial.
Lenio Streck (1999) comenta que a sociedade em que vivemos e
construímos, infelizmente, nos faz acreditar que existe uma ordem de
verdade, em que cada um apenas “assume” seu lugar, inclusive de oprimido
e opressor. E essa ordem de verdade segue afirmando quem pode ou não ser
digno de direitos. A estrutura misógina de poder se encarrega de designar
que mulheres trans são “menos mulheres” e, por isso, menos humanas do
que aquelas consideradas “verdadeiras” ou “originais”.
Quem não é humano não têm o direito de ter direitos e as escalas de
humanidade são comuns nos juízos valorativos do senso comum. A vida da
vítima que reage e mata o assaltante tem mais valor do que a do bandido
morto. Já a vida de um estuprador, costuma valer menos do que a daqueles
que praticam crimes patrimoniais. Para travestis e transexuais a verdade
popular em nada se altera. Sua vida costuma valer menos do que a
pertencente às pessoas ditas “normais”, ou, simplesmente, a das pessoas
cisgênero.
Nessa linha, em recente artigo sobre o tema, Alice Bianchini e Luiz
Flávio Gomes (2015) referem que na qualificadora do feminicídio, somente
pode figurar como sujeito passivo a mulher. Complementando que, nesta
disposição legal, não se pode admitir qualquer analogia contra o réu, desse
modo “mulher se traduz num dado objetivo da natureza” cuja comprovação
362
mostra-se “empírica e sensorial”. Ou seja, em clara restrição da proteção
legislativa às mulheres que nasceram com vagina, os doutrinadores apontam
a impossibilidade que uma transexual não operada, ou uma travesti, vítimas
de feminicídio, sejam protegidas pela Lei 13.104/2015.
Nesse caso, para os citados penalistas, pouco importará se a pessoa
vítima da violência, que em que pese possuísse um órgão genital tipicamente
denominado como masculino, vivenciava uma identidade de gênero
feminino, tenha sido morta em virtude de violência doméstica e familiar,
menosprezo ou discriminação a essa condição. Se não puder ser
objetivamente identificada, empírica e sensorialmente, como mulher (leia-se
aqui, se não possuir uma vagina), não fará jus à proteção da lei.
Ou seja, se ouvida um contexto de violência em virtude da condição
(seja de sexo ou de gênero) feminina e, para uma interpretação que não
prejudique o réu, desconsidera-se, sumariamente, as razões que
fundamentam a existência da lei. O crime de feminicídio não se presta à
proteção exclusiva de mulheres que tenham nascido com vagina, seu
objetivo é, em muito, mais amplo. Não se trata de proteger uma determinada
vítima, mas sim de coibir uma forma específica de violência.
A quem a lei protege e a que a lei protege são perguntas que têm sua
resposta interligada por um termo comum: feminino. Longe de proteger seres
humanos vítimas de violência que, ao nascer, tenham sido biologicamente
qualificados como mulheres a partir da superficial análise de seu órgão
genital, a lei do feminicídio protege a vida em desvantagem. E quando a vida
está em desvantagem? Quando, pela influência de padrões estereotipados de
comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de
inferioridade ou subordinação, alguns pensam ser senhores soberanos da
existência de outros.
A violência misógina não advém da diferenciação morfológica e
sexuada dos corpos. Não são pênis, vaginas ou cromossomos os
responsáveis pelas mortes de milhares de mulheres vítimas de violência
domésticae familiar, menosprezo ou discriminação a sua condição enquanto
pessoa pertencente ao gênero feminino. Mas sim, relações de poder
alicerçadas em ideais machistas de dominação, posse e pertencimento. E é
363
contra isso que a legislação protetiva se coloca, ou deve se colocar, motivo
pelo qual, não há dúvida de que a lei do feminicídio abarca, de toda e
qualquer forma, à qualificação de crime hediondo o tipo penal do
assassinato contra mulheres, sejam elas cis ou transgêneros.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A admissão de apenas dois modelos como biologicamente naturais


pela medicina (homem com testículos e mulher com ovários), e, por
conseguinte, pela sociedade como um todo, torna primeiro diferentes e, na
sequência, marginais e anormais todas as outras formas de existência
humana. A diferenciação dos corpos entre aqueles que têm sua composição
anatômica adequada à identidade de gênero que ostentam (cisgênero) e os
que carregam órgãos sexuais titulados como pertencentes ao sexo oposto
(transgênero), acrescentando a estes últimos o diagnóstico de doença; é, sem
dúvidas, a maior responsável pela violação de direitos destas pessoas. O
outro só é reconhecido por nós como idêntico sujeito de direitos quando
conseguimos ver nele um igual, quando percebemos a existência de uma
responsabilidade ética para com o mesmo. Entretanto, no caso das pessoas
transexuais, essa identificação não ocorre.
A partir daí, no campo jurídico, o que temos então, são direitos já
apropriados e garantidos às pessoas cisgênero que deixam de ser atribuídos
às pessoas transgênero em função dos critérios de normalidade e adequação
social sustentados pela maioria política. Como juristas, devemos trabalhar
em prol de estratégias que, efetivamente, permitam às pessoas transexuais
ocupar uma posição de igualdade de direitos frente aos demais. Todavia,
mais relevante ainda se mostram as discussões teóricas que permitam a
compreensão das manifestações identitárias humanas para além do que a
maioria política dominante identifica como natural a partir dos parâmetros
que regem o conjunto em que ela mesma se insere.
Isso significa dizer que, para além da obrigação que temos como
operadores do direito, emerge também a necessidade de que, conhecedores
dessa realidade, passemos a agir como multiplicadores sociais dessa
364
construção que ressignifica a formação do próprio sujeito, e cujo papel é o de
permitir ver nas pessoas transexuais não mais a diferença, mas a
similaridade de um processo que nos constitui singular e objetivamente. Um
processo que se opera de igual maneira sobre todos os indivíduos, e que, por
isso, os coloca em um patamar de igualdade em que a única diferença - se é
que pode ser assim chamada - reside na suposta sorte ou coincidência
consistente no fato de que, indivíduos cisgênero, nasceram com genitais
adequados à identidade de gênero que expressam.
A alteração legislativa que incluiu o feminicídio no rol dos crimes
hediondos, penalizando de forma diversa o assassinato de mulheres é
recente, de modo que, ainda não se tem notícias de decisões que tenham
aplicado ou deixado de aplicar a qualificadora no caso de vítima travesti ou
transexual. Somente com o surgimento dos casos se mostrará possível a
consolidação de entendimentos, não havendo, como demonstrado, quaisquer
dúvidas acerca da possibilidade de sua aplicação a estas mulheres, quando
presentes os requisitos legais.
Caberá a cada um de nós, a par dos questionamentos e reflexões que
ora se fazem possíveis, defender a aplicação de um direito que, efetivamente,
mostra-se preocupado com as transformações sociais que se dispõe a regular
ou que limita-se a análise superficial do texto legal, restando alheio à
realidade que o constitui.

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2015.

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violência de gênero: possibilidade ou utopia do resgate da convivência
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desvelando a razão cínica do direito em terra brasilis. In: Revista Brasileira
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366
A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DA ATUAÇÃO DO
SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO
E REPRODUÇÃO DA ORDEM SOCIAL EXCLUDENTE: uma análise a partir
do perfil da população carcerária contemporânea

Luana Rambo Assis1


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth2

1. INTRODUÇÃO

Segundo lição de Muñoz Conde (2005), enquanto existir Direito Penal –


e nas atuais condições deve-se ponderar que ele existirá por muito tempo –
deve existir também sempre alguém disposto a estudá-lo e analisá-lo
racionalmente, de forma a convertê-lo em instrumento de mudança e
progresso rumo a uma sociedade mais justa e igualitária, denunciando, para
tanto, além das contradições que lhes são ínsitas, as contradições do
sistema econômico que o condiciona.
Partindo desse pressuposto, a presente pesquisa tem por objetivo
analisar o viés seletivo do sistema punitivo brasileiro, tanto no que se refere
ao seu aspecto quantitativo quanto ao seu aspecto qualitativo. Para tanto, a
partir de recentes dados acerca da população carcerária do país, procura-se
evidenciar a utilização do Direito Penal como instrumento de gestão e
controle social das camadas subalternizadas da sociedade, revelando, assim,
seu caráter desumano, particularmente em um país de modernidade tardia,
onde ainda não foram superadas as violências representadas pela falta de
segurança e liberdade, pela desigualdade política e pela pobreza. Quer dizer,
onde as promessas da modernidade jamais se cumpriram.
Para a concretização da pesquisa, a metodologia de abordagem
utilizada foi afenomenologia hermenêutica, a partir da qual se compreende
que a determinação do Direito, ao invés de mero ato passivo de subsunção, é

1AssistenteSocial. Graduada em Serviço Social pela URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em
Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul(UNIJUI). Bolsista Integral da CAPES. E-mail: luanarambo@yahoo.com.br
2Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do

Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio


Grande do Sul (UNIJUÍ) e do Curso de Graduação em Direito da UNISINOS. E-mail:
madwermuth@gmail.com

367
um ato criativo que implica o próprio sujeito. Este horizonte compreensivo
foi o que se mostrou suficientemente fértil e adequado para a discussão da
temática objeto desta investigação.

2. O PAPEL DO DIREITO PENAL NO PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO E


REPRODUÇÃO DA ORDEM HEGEMÔNICA: pensando o direito em uma
conjuntura social e política marcada pela luta de classes e desigualdade
social

Viver em sociedade não é uma tarefa fácil. Em um contexto


demulticulturalismo e diversidade é comum que ocorram conflitos devido à
convivência com seres humanos que pensam e agem de forma diversa,
enfim, vive-se um pluralismo de ideias, opiniões, concepções de mundo e de
sociedade que não raras vezes divergem entre si. Todo esse processo de
contraponto de visões é natural, afinal, o que seria da sociedade se não
houvesse conflitos?A divergência é algo constitutivo e inerente da/à
convivência humana. No entanto, a convivência dos seres humanos em um
determinado contexto social necessita para o bem estar da coletividade de
um conjunto de regras/normas que tem como finalidade organizar a vida
humana no sentido de evitar a desordem e a barbárie. O padrão normativo
serve como mecanismo de controle social, ou seja, adota-se um conjunto de
procedimentos com vistas a disciplinar e organizar as relações humanas de
modo a manter a ordem social, econômica, política e cultural.
Nesse sentido, Correia (2005, p.66) explica que a

expressão controle social tem origem na sociologia. De forma geral é


empregada para designar os mecanismos que estabelecem a ordem
social disciplinando a sociedade e submetendo os indivíduos a
determinados padrões sociais e princípios morais. Assim sendo
assegura a conformidade de comportamento dos indivíduos a um
conjunto de regras e princípios prescritos e sancionados.

O controle social, portanto,constitui-se em um conjunto de


instrumentos e procedimentos adotados por uma estrutura de poder com
vistas a disciplinar as relações humanas.Por meio desse disciplinamento a
conduta e o comportamento humano serão executados dentro dos moldes e
368
padrões impostos pelo sistema de poder em vigência. No caso da sociedade
brasileira, o sistema econômico predominante é o capitalista neoliberal, que
prevê um modelo de desenvolvimento pautado no lucro e na acumulação de
riquezas, ou seja, um Estado máximo para o capital e mínimo para o social.
Segundo a análise de Muñoz Conde (2005, p.22), o “controle social é
condição básica da vida social”. Com ele asseguram-se o cumprimento das
expectativas de conduta e o interesse das normas que regem a convivência,
conformando-os e estabilizando-os contrafaticamente, em caso de frustração
ou descumprimento com a respectiva sanção imposta por uma determinada
forma ou procedimento. O controle social, desta forma, determina os limites
da liberdade humana na sociedade, constituindo-se, ao mesmo tempo,
enquantoum instrumento de socialização de seus membros.
Nesse sentido, cumpre salientar, mesmo que de forma incipiente, as
facetas que o controle social adquire nas relações sociais, tendo em vista que
este está presente em todas as instâncias da vida humana. Sobre o tema,
Molina e Gomes (2002, p. 133-134) refletem que

há duas classes de instâncias: as formais e as informais. As


instâncias (agentes) informais são a família, a escola, a profissão, a
opinião pública, dentre outras. As instâncias (agentes) formais são a
polícia, a justiça, a administração penitenciária, etc. Os agentes de
controle social informal encarregam- se de condicionar o indivíduo,
de discipliná-lo, através de um longo processo que começa pela
família, escola, profissão. É o processo de socialização. Entretanto,
quando essas esferas de controle informais fracassam, entram em
cena as instâncias formais, que atuam de forma coercitiva e impõem
sanções distintas daquelas sociais: são as sanções estigmatizantes
atribuídas ao infrator.

Pode-se aferir que o controle social assume duas faces: informal e


formal. O controle informal é incutido desde a mais tenra idade e vai
aprimorando-se durante o processo de socialização do sujeito que inicia pela
família, seguindo pela escola, grupos de amigos, espaços de lazer e
entretenimento. Ou seja: em todas as nuances da vida o controle informal
está presente e reveste-se de mecanismos que tem como finalidade
disciplinar e incutir nas relações humanas o padrão normativo vigente.
O controle informal é interiorizado de maneira não coercitiva. O
processo de assimilação desses princípios dá-se de forma descontraída ao

369
longo da trajetória da vida.No entanto, quando essas instâncias falharem o
controle social formal será acionado, a partir de uma lógica
punitiva/coercitiva. O controle formal serve para sancionar e punir aqueles
que em um determinado estágio da vida infligiram o conjunto de regras
estabelecidas pela tessitura social.
O controle social formal – ou institucionalizado –, nesse sentido, é o
que se dá de forma explícita, e pode ser exercido de forma não punitiva – a
exemplo do que ocorre com as normas de direito privado, que regulamentam
as relações entre pessoas ou entre pessoas e coisas (bens jurídicos) sem o
estabelecimento de sanções – ou punitiva – que opera a partir da imposição
de sanções no caso de transgressão da norma reguladora. Há que
diferenciar, no entanto, no que tange a esta segunda classificação, entre o
controle social institucionalizado punitivo que opera a partir de um discurso
não punitivo e o que opera a partir de um discurso punitivo (PIERANGELI;
ZAFFARONI, 2002).

Neste ínterim, pode-se afirmar que o Direito Penal se revela


enquantouma instância de controle social formal, no momento em que
impõe um conjunto de sanções para aqueles indivíduos que ultrapassaram
as regras impostas e, desta maneira, não seencaixam nos moldes tidos como
“normais” e valorizados. O Direito Penal, enquanto instância de controle
formal trata de disciplinar e corrigir o comportamento dos sujeitos
considerados “desviados”, portanto.
Em relação ao exposto,MuñozConde (2005) enfatiza que o Direito
Penal é a superestrutura repressiva de uma determinada estrutura
econômica e de um determinado sistema de controle social pensado para a
defesa desta estrutura. Sendo assim, o Direito Penal, nas palavras do autor,
é o “braço armado da classe dominante”, uma vez que reproduz– na
aplicação das leis – o caráter conservador e ideológico que lhe deu origem.
De acordo com a célebre lição de Foucault (1987, p. 27),

as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’


que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas
estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas
têm por encargo sustentar (e nesse sentido, se os castigos legais são
feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das
370
infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os
mecanismos punitivos e suas funções).

Isso fica muito evidente a partir da análise de como se estruturam as


instituições e as práticas punitivas no Brasil.O arcabouço jurídico-penal,
desde os primeiros códigos, serviu como um importante instrumento de
legitimação do poder hegemônico.As elites conservadores sempre contaram
com a leveza e a suavidade das leis, ao passo queos segmentos pauperizados
e vulnerabilizadosse afiguram, historicamente, como os principais alvos do
sistema repressivo – que sobre eles recaisem nenhum resquício de
humanidade.Estabelece-se, assim, a seguinte equação: afirmação dos
direitos de liberdade para as classes dominantes versus manutenção da
opressão sobre os setores subalternos.
Uma análise dosCódigos Penais brasileiros de 1830, 1890 e o atual, de
1940, reforçam a premissa acima no que diz respeito à seletividade e a
abrangência da punição. No que se refere aos dois primeiros textos
legais,evidencia-se que os escravos e ex-escravos – considerados “vadios”
e“ociosos” – desde já perturbavam a ordem e o sossego da elite burguesa e,
como meio de manter os interesses do segmento elitizado intactos,
estabelecem penas com vistas a conter o comportamento dos setores
“desviantes”. Neste sentido, ao analisar as raízes históricas de constituição
do sistema punitivo, Flauzina (2008, p. 96) salienta que a “atuação do viés
truculento adotado pelo aparato de controle foi fundamental durante o
processo histórico para garantir a estrutura social assimétrica no país nos
termos pautados pelas elites”.
O cotejo entre o Código Penal republicano de 1890 e a Constituição de
1891 evidencia essa dinâmica: enquanto o primeiro foi marcado por traços
eminentemente repressivos, em especial no que diz respeito aos chamados
“Crimes contra a liberdade de Trabalho”3, a segunda foi informada por
princípios liberais, o que resta claro a partir da leitura dos dispositivos
referentes à declaração dos direitos dos cidadãos. Quer dizer, à inclusão da
cidadania por meio da Carta Constitucional correspondia a exclusão por

3Arts.204 e 207 do Código Penal de 1890 e art. 72, parágrafos 1º e 31 da Constituição


Federal de 1891.
371
meio do Código Penal sempre que estivesse ameaçada a “liberdade de
trabalho” (NEDER, 1995).
Além disso, o surgimento de um Código Penal em momento anterior à
Constituição republicana representa um indício de que “o fim do regime de
trabalhos forçados reclamou prioritariamente um instrumento de repressão,
deixando para segundo plano uma carta de declaração de direitos e
princípios que regulamentasse a vida em sociedade.” (FLAUZINA, 2008, p.
82). Verifica-se, então, que as medidas repressivas da época voltavam-se, por
um lado, para a imposição da ideologia burguesa do trabalho, e, por outro,
para o controle e a disciplina da população ex-escrava. Na verdade, o
primeiro objetivo servia como instrumento de encobrimento ideológico do
segundo.
Uma breve análise sobre a estrutura do atual Código Penal brasileiro
também permite afirmar que a intenção, na elaboração deste arcabouço
jurídico, era manter os interesses da ordem burguesa preservados, fenômeno
este que pode ser percebido na medida em que o Código dispensa uma
atenção especial na proteção do patrimônio e da propriedade privada em
detrimento dos direitos da pessoa humana.
Este interesse patrimonialista do legislador penal de 1940 também
faz com que se perceba, que o Código Penal em vigor traz consigo, por trás
da máscara de “neutralidade” do tecnicismo jurídico, toda a carga de
preconceito racial ínsita à sociedade brasileira escravocrata, o que se revela
precipuamente com a seletividade criminalizante do sistema punitivo que a
partir dele se estrutura.
Neste viés, Streck (2009, p. 92-93) menciona que, inspirado no
modelo fascista, o Código Penalbrasileirosegue apontando para o “andar de
baixo”da sociedade, com especial preocupação para com os crimes contra o
Estado, o livre desenvolvimento do trabalho, a proteção dos costumes, mas
sempre dando ênfase à propriedade privada. O referido autor enumera
alguns exemplos que ilustram a forma seletiva e desigual a partir da qual o
Direito Penal pauta sua atuação: no presente código o furto qualificado
recebe maior punição e coerção do que abandonar um recém nascido ou
praticar lesão corporal grave; furtar galinhas é mais grave do que exportar
372
pele de animal; os direitos do consumidor ficam relegados quando se trata
de crime de furto ou roubo. A sonegação de tributos, por exemplo, não é alvo
de alarde social e campanhas midiáticas visando à sua proscrição; já o furto
e o roubo despertam uma atenção especial da sociedade e dos meios de
comunicação com incessante apelo pela responsabilização e criminalização
dos culpados.
Pode-se indagar, então: o que está por trás da seletividade? Porque o
sonegador é o bom delinquente e o sujeito que pratica furto é o mau
delinquente? Que interesses estão encobertos? Quem são os controladores?
Quem são os controlados? A resposta a estas indagações exigiriam um
espaço mais amplo de discussão,mas é possível aferir que o sistema penal,
enquanto instância de controle social formalatua com vistas a preservar os
interesses cultivados e valorados pela ordem burguesa. Neste sentido, fica
fácil compreender porque o sonegador de tributos possui o direito de
extinguir a punição caso parcele a dívida gerada e o sujeito que comete furto,
mesmo reparando a vítima, não tem a mesma “regalia” de extinguir a
punição. Os delinquentes do “andar de cima” não são atingidos pelas
sanções penais, já os delinquentes do “andar de baixo” são seus principais
alvos.
Neste ínterim, dado o caráter seletivo com que se dá a atuação das
agências que integram o sistema penal, pode-se afirmar que o seu exercício
de poder visa, antes do combate à criminalidade, à contenção de
determinados grupos humanos que, diante da configuração socioeconômica,
se traduzem em inconvenientes sociais (WERMUTH, 2011).
Diante desse cenário de produção e reprodução de seres humanos
inservíveis para o convívio social, resta a indagação: o que fazer com esses
inconvenientes que são considerados empecilhos para o desenvolvimento
econômico, social, político e cultural? A prisão e as medidas de
endurecimento penal são as principais alternativas adotadas por um modelo
de produção que continua tratando a questão social como caso de polícia. Ao
invés de buscar os fatores desencadeantes da criminalidade, acabam por
adotar uma política de segurança pública pautada no eficientismo penal.
No que concerne ao modelo de segurança pública pautada no
373
eficientismo penal, Dornelles (2008, p. 42) analisa que

a política criminal é inflada ocupando os espaços normalmente


destinados as outras políticas disciplinares de controle social. Há
uma substituição das políticas disciplinares inclusivas e
integradoras por práticas de exclusão e segregação baseadas quase
que unicamente nas medidas penais.

Pode-se aferir frente ao exposto que o modelo de segurança pautado


no eficientismo penal não prioriza a análise acerca dos fatores causais do
crime. Prevalece a lógica da tolerância zero e a política do “pé na porta”
enfim, é um modelo que busca a segregação dos segmentos hipossuficientes
da sociedade, contribuindo com a limpeza e a higienização dos espaços
sociais, de modo a satisfazer os desejos de uma elite burguesa que não
consegue conviver com os dejetos que ela mesma produz. A prisão, neste
contexto, serve como depósito do lixo humano considerado irrelevante e
desnecessário para o modelo econômico vigente, discussão que será
abordada no tópico abaixo que segue.

3.A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DO SISTEMA


PUNITIVO BRASILEIRO: uma análise a partir da realidade carcerária

Conforme abordado no tópico precedente,o Direito Penal brasileiro


historicamente foi erigido com vistas a manter os interesses e privilégios do
setor elitizado inalterados.Para isso, seleciona e segrega nos muros da prisão
aqueles sujeitos que não se “encaixam” no padrão normativo vigente, ou
seja, os desviados, pervertidos, as classes consideradas perigosas. Essa
afirmação encontra eco no perfil dos sujeitos que superlotam as prisões
brasileiras.
Esse cenário indica, segundo Batista (2007), que o sistema prisional
brasileiro cumpre com o papel de legitimação da ordem estabelecida, no
momento em que seleciona e segrega em meio ao seu universo setores da
sociedade que são considerados pela lógica neoliberal desnecessários e
irrelevantes. Essas pessoas precisam ficar afastadas da sociedade
extramuros, que somente possui espaço para aqueles sujeitos que atendem
374
aos padrões vigentes, ou seja, pessoas com poder aquisitivo e status
condizente com a lógica hegemônica.
Recentemente o Conselho Nacional de Justiça lançou um relatório
acerca do perfil da massa carceráriabrasileira intitulado: “Mapa do
Encarceramento: Os Jovens do Brasil”. O documento revela alguns dados
referentes ao universo prisional mencionando que a população carcerária do
ano de 2005 a 2012 deu um salto de 74%, agravando a superlotaçãodas
penitenciárias do país. De acordo com o documento o Estado de São Paulo é
o que detém a maior concentração de pessoas privadas de liberdade
(BRASIL, 2015).
Em relação ao total de reclusos, 40% são presos provisórios que estão
aguardando julgamento, 60% engloba sujeitos condenados, em sua grande
maioria, ao regime fechado. No que concerne ao gênero, a presença de
homens prevalece.No entanto ocorreu nas últimas décadas um crescimento
significativo do percentual de mulheres cumprindo pena privativa de
liberdade no Brasil(BRASIL, 2015).
Os níveis de escolarização são chocantes:enorme parcela de reclusos
nem sequer completou o ensino médio, revelando desse modo a precariedade
e a fragilidade política/intelectual da massa carcerária. Referente à faixa
etária é possível aferir que a população carcerária é extremamente jovem:
54% da massa possui idade entre 18 a 24 anos (BRASIL, 2015).
Em relação à cor da pele, o estudo aponta que 60% do universo
prisional é composto por pessoas negras. O documento revela que a
população branca do Brasilé nove vezes maior que a negra. No entanto, os
negros abarrotam as prisões brasileiras com percentuais expressivos. A
negritude vem acompanhada de situações de privação econômica e
vulnerabilidade social, ou seja, o fato de ser negro e pobre desperta a
atenção das agências incumbidas de manter a ordem. Neste ínterim,
concorda-se com a reflexão de Frade (2008) quando menciona que estamos
habituados a considerar “marginais” – no sentido pejorativo de
“delinquentes” - principalmente os pobres.
O relatório elenca ainda os principais tipos de crimes cometidos,
sendo que 49% são crimes contra o patrimônio, 25% envolvendo tráfico de
375
drogas e 11,9% crimes contra a pessoa (BRASIL, 2015). Percebe-se,
portanto, que as prisõesdo país, ao contrário do que é disseminado no
imaginário social, não estão lotadas de seres com alto grau de
periculosidade,pois se assim fosse os crimes contra as pessoas seriam mais
expressivos. A construção social da figura do criminoso carrega uma visão
deturpada do fenômeno da criminalidade. Para o público é bem mais fácil
perceber como crime o assalto na padaria ou o furto de uma carteira na
calada da noite do que uma fraude de instituições financeiras à luz do dia,
envolvendo milhares de reais. Como também é mais fácil identificar o “Zé
Mané” (ou seja, o negro, mal vestido...), como um perigoso criminoso do que
uma figura limpa, cheirosa, de terno e gravata, bem falante e com o carro do
ano (DORNELLES, 1998).
Em razão disso, pode-se asseverar, de acordo com Andrade (1997),
que a tipificação da conduta delituosa não se exaure no momento normativo,
nem tampouco a aplicação da norma ao caso concreto constitui um exercício
de mera lógica formal; pelo contrário, a lei penal configura um marco
abstrato de decisão dentro do qual as agências do sistema penal gozam de
uma ampla margem de discricionariedade. Destarte, trata-se de suposição
errônea aquela propalada pelo discurso jurídico-penal segundo a qual a
prática da infração penal enseja a aplicação automática da pena, isto porque
“entre a seleção abstrata, potencial e provisória operada pela lei penal e a
seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização
secundária [polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, etc], medeia um
complexo e dinâmico processo de refração.” (ANDRADE, 1997, p. 260).
Esta seleção quantitativa levada a cabo pelo sistema penal foi
revelada principalmente a partir do novo papel relegado ao estudo das
estatísticas criminais pela Criminologia Crítica, em especial no que tange à
questão da criminalidade de colarinho branco e da cifra oculta da
criminalidade. As estatísticas criminais sempre serviram como ponto de
apoio das investigações criminológicas, uma vez que revelam a atividade da
polícia, do Ministério Público, dos Tribunais e das instituições penitenciárias
no “combate à criminalidade”. No entanto, com a revelação da criminalidade
de colarinho branco e da cifra oculta, passou-se a duvidar do valor de
376
verdade das estatísticas criminais no que pertine à quantificação da
criminalidade “real”, afinal, constatou-se que “nem todo delito cometido é
perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito
registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito averiguado é
denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina
em condenação.” (ANDRADE, 1997, p. 262-263).
Assim, antes de se apresentarem como fonte de estudo da
criminalidade em si, as estatísticas criminais transformaram-se em um hábil
instrumento para a investigação da lógica do controle social levado a cabo
pelo sistema penal, uma vez que, a partir da constatação de que elas
representam a criminalidade – em especial aquela praticada por pessoas de
alto prestígio social – de um modo muito inferior à sua cifra oculta, foi
possível demonstrar que as sobreditas estatísticas acabam por distorcer a
distribuição da criminalidade nos grupos sociais. Em função disso, cria-se
uma falsa impressão de que ela é um atributo exclusivo das classes menos
privilegiadas, legitimando, consequentemente, a atuação do sistema penal
sobre tais estratos sociais (ANDRADE, 1997).
Infere-se disso que

o que ocorre é que a criminalização é, com regularidade, desigual ou


seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres
não têm uma maior tendência a delinquir, mas sim a serem
criminalizados. De modo que à minoria criminal da Criminologia
positivista opõe-se a equação maioria criminal x minoria pobre
regularmente criminalizada.” (ANDRADE, 1997, p. 265).

Ademais, ao revelar que a criminalidade real é infinitamente superior


àquela apontada pelas estatísticas criminais, o estudo da sua cifra oculta
permitiu chegar-se à conclusão fundamental de que a imunidade e não a
criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal e que todos os
princípios ou valores sobre os quais o sistema se apoia (a igualdade dos
cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc) são radicalmente deturpados,
na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são
os casos registrados, razão pela qual estes argumentos passaram a ser
largamente utilizados pelas correntes abolicionistas, para as quais um
sistema que rege apenas casos esporádicos é absolutamente desnecessário
377
(HULSMAN, 1993).
Além da seletividade quantitativa do sistema penal, pode-se falar
também em uma seletividade qualitativa, ou seja, pautada pela
“especificidade da infração e as conotações sociais dos autores (e vítimas),
isto é, das pessoas envolvidas.” (ANDRADE, 1997, p. 266).Na realidade do
sistema penitenciário brasileiro atual, tendo como base os dados lançados
pelo Mapa do Encarceramento, pode-se aferir que o Direito Penal, por
intermédio do sistema prisional brasileiro, mais do que nunca revela seu
caráter seletivo e deflagra a opção por um modelo de sociedade que prima
pela proteção dos privilégios do segmento elitizado. A prisão serve como
mecanismo de inocuização e incapacitação seletiva de todos os setores
indesejados do seio social.
Com efeito, o fato de a clientela do sistema penal brasileiro ser
composta quase que exclusivamente por pessoas pertencentes aos estratos
sociais economicamente hipossuficientes – o que leva Flauzina (2008) a falar
na monotonia cromática das massas encarceradas e dos corpos caídos no
rastro da intervenção do sistema punitivo – demonstra que existe não um
processo de seleção de condutas criminosas, mas sim de pessoas que
receberão o rótulo de “delinquentes”. Tal seletividade qualitativa deve-se ao
fato de que, em sociedades desiguais, os grupos detentores da maior parcela
do poder possuem a capacidade de impor ao sistema uma impunidade
praticamente absoluta das suas próprias condutas criminosas, visto que “os
tipos penais têm uma relação direta com os bens jurídicos que as camadas
dominantes da sociedade pretendem preservar.” (STRECK, 1998, p. 37).
Diante de tais constatações, refere Andrade (1997) que a
criminalidade é imputada aos estratos economicamente hipossuficientes da
sociedade mediante juízos atributivos que são realizados a partir dos
processos de criminalização primária e secundária, ou seja, através da
definição dos bens jurídicos a serem protegidos e dos comportamentos
ofensivos a estes bens – os quais são predominantemente relacionados às
formas de desvio típicas das classes desfavorecidas, em detrimento daqueles
que dizem respeito a bens e valores como a vida, a saúde, etc –, bem como
da seleção dos indivíduos que serão criminalizados dentre todos aqueles que
378
praticarem tais comportamentos, quais sejam, os oriundos dos níveis mais
baixos da escala social, como consequência lógica da criminalização
primária. Destarte, o etiquetamento do indivíduo enquanto delinquente está
intrinsecamente relacionado à posição social por ele ocupada, de forma que,
segundo a clássica lição de Baratta (2000, p. 32),

las personas vulnerables y sinningún poder social que sufren


lesiones de sus derechos económicos y sociales (derechos ‘débiles’,
como señalalateoría de losderechosfundamentales), por parte del
Estado o de la sociedade, se convierten de tal modo
enpotencialesagresores de losderechosfuertes (integridad física,
derecho de propiedad) de lossujetos socialmente más protegidos.

Com efeito, há no Brasil um modelo de ordenamento social no qual à


delinquência levada a cabo pelas classes perigosas é atribuído o papel de
criação de medo e insegurança e “isto significa construir um consenso social
através do medo e da insegurança visando à adoção de políticas repressivas
e opressoras contra as classes populares e segmentos não-privilegiados.”
(DORNELLES, 2008, p. 37-38). É necessário, nesse sentido, impor o medo do
Direito Penal, uma vez que a partir do momento em que o Estado se exime
de suas tarefas de agente social do bem-estar, abre-se a necessidade de
novas iniciativas do seu aparato repressivo em relação àquelas condutas
transgressoras da “ordem” perpetradas pelos grupos que a ameaçam.
Outrossim, impõem-se iniciativas por parte do Estado que respondam às
demandas das classes que se integram à esta “ordem” no sentido de se
sentirem mais seguras em tal contexto (DORNELLES, 2008).
Corroborando com o estudo, Wacquant (2007, p.21) refere que a
“penalização serve aqui como uma técnica para a invisibilização dos
problemas sociais que o Estado enquanto alavanca burocrática da vontade
coletiva, não pode ou não se preocupa em tratar de forma profunda, e a
prisão neste sentido, serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os
dejetos da sociedade de mercado.Em outras palavras: a seletividade ínsita ao
sistema carcerário brasileiro revela de modo cada vez mais nítido, a violência
estrutural que subjaz à formação de nossa sociedade.

379
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o arcabouço teórico analisado no decorrer da exposição


do presente estudo, pode-se aferir que o sistema prisional brasileiro
operacionaliza a política de execução penal por um viés totalmente desigual
e seletivo. A premissa de um Direito Penal igualitário, justo e neutro não
passa de uma falácia, o que pode ser constatado no perfil da massa
carcerária brasileira que superlota as prisões. O Mapa do Encarceramento –
relatório produzido pelo Conselho Nacional de Justiça – evidencia que as
prisões brasileiras estão repletas de homens, negros, jovens, analfabetos ou
semi-analfabetos provenientes de segmentos pauperizados, enfim, os seres
humanos que de alguma forma não contemplam os padrões impostos pela
“ditadura de consumo” propostas pela ideologia burguesa são removidos do
contexto social, econômico, político e cultural, de modo a evitar a
“contaminação” com os setores saudáveis e produtivos. A prisão, neste
ínterim, serve como local de remoção e despejo dos seres humanos
refugados, ou seja, os consumidores falhos carecedores de poder aquisitivo e
influência política, características estas largamente valorizadas pelo sistema
capitalista neoliberal.
O Direito Penal neste contexto serve como mecanismo de controle
social altamente seletivo: desde os primeiros Códigos Penais brasileiros é
possível perceber o desigual no processo de implantação e efetivação do
arcabouço jurídico penal. Os crimes de cunho patrimonial recebem atenção
diferenciada em relação aos crimes contra a pessoa humana. Por ser o
Direito Penal um instrumento de controle e legitimação da ordem capitalista
neoliberal a proteção da propriedade privada deve ser prioridade.
A seletividade materializada no perfil da massa carcerária brasileira
evidencia-se que a seletividade é um fator presente no sistema prisional do
país e continuará sendo, afinal, o segmento elitizado repudia o convívio com
sujeitos que não ostentam os mesmos padrões de consumo. Deste modo, a
prisão é um componente fundamental de limpeza e higienização social da
raça “degenerada” e “desviada”.

380
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expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011.

382
A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETA A
PRISÃO PREVENTIVA

Bruno Silveira Rigon1


Felipe Lazzari da Silveira2

1. INTRODUÇÃO

Mesmo que a Lei nº 12.403/11 tenha estabelecido um novo regime de


medidas cautelares, colocando a prisão preventiva definitivamente na
condição de ultima ratio, o encarceramento preventivo segue sendo utilizado
em larga escala no Brasil. Os dados publicados pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2012 e pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) em 2014 demonstram que, mesmo após a reforma
do Código de Processo Penal (CPP), a constrição cautear da liberdade foi uma
medida que seguiu sendo utilizada de modo banalizado. Se os presos
provisórios no Brasil somavam 37,6% do total da população carcerária em
2012,3 a quantidade de presos provisórios subiu para 41% (se
considerarmos as prisões domiciliares o índice cai para 32%, mas ainda
assim configura uma quantidade de presos provisórios demasiadamente
elevada) em 2014,4 o que indica que a Nova Lei de Medidas Cautelates não
conseguiu alterar significativamente o quadro da prisão preventiva.
Paralelamente ao aumento do número de encarceramentos, os índices
referentes à quantidade de delitos praticados também são crescentes,
situação que demonstra claramente a ineficiência do modo como o problema
da criminalidade vem sendo tratado. Contudo, nossa sociedade segue

1 Graduado em Direito, Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais


pela PUC/RS. Advogado, atualmente licenciado para o exercício do cargo de Assessor no
Ministério Público do Rio Grande do Sul – MP/RS.
2Graduado em Direito pela UNISINOS; Pós-graduado em Derechos Fundamentales y

Garantías Constitucionales en el Derecho Penal y Procesal Penal pela UCLM e em Direito


Penal e Direito Processual Penal pela UNIRITTER; Mestre em Ciências Criminais pela
PUC/RS. Advogado criminalista.
3 Dados publicados pela Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) no Informe

sobre el uso de la prisión preventiva en las Américas. 2013. p. 21.


4 Dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Novo Diagnóstico de

Pessoas Presas no Brasil. Brasilia: CNJ, 2014. Disponível em:


<http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf>, Acesso em
18 abr.2015.
383
clamando pelo recrudescimento do controle penal nos mesmos moldes. No
presente trabalho, partimos do pressuposto de que a prisão preventiva é um
locus privilegiado para se identificar os principais fatores que culminam no
recrudescimento do controle penal e que a mídia, diante da grande
influência que exerce sobre as pessoas no contexto contemporâneo, possui
papel fundamental nessa dinâmica.
Assim, considerando que os mass media atualmente são
determinantes para o estabelecimento do comportamento dos indivíduos nos
mais diversos âmbitos da vida, bem como são responsáveis pela construção
da realidade, inclusive da “imagem” do criminoso, no presente artigo
buscaremos demonstrar o modo como a mídia dissemina o medo e a
insegurança no seio social, identificando sua influência no fenômeno do
recrudescimento do controle do crime, mais precisamente nas decisões
judiciais que banalizam o decreto da prisão preventiva, análise que será
procedida através do cotejo de dados e de uma revisão bibliográfica sobre o
tema.

2. O PAPEL DA MÍDIA PARA A PRODUÇÃO DE CONSENSO SOBRE A


QUESTÃO CRIMINAL

Vivemos em uma sociedade demasiadamente complexa, caracterizada


pelo modo de vida direcionado ao consumo e pela velocidade que move os
seus mais diversos âmbitos. Em nosso tempo, o que realmente interessa é o
aqui e o agora, pois todos têm pressa e desejam experimentar o maior
número de sensações positivas possíveis dentre as prometidas pela religião
do capital.5 Como consequência a felicidade hoje parece estar atrelada ao
poder de consumo e o acesso a constante troca de informações.
As transformações verificadas ao longo do tempo em nossa sociedade
podem ser compreendidas através do trabalho de Deleuze que, dando

5 Em seus escritos, Walter Benjamin comparou o capitalismo a uma religião, na medida em


que satisfaz as preocupações, os tormentos e os desassossegos a que antes as chamadas
religiões davam resposta. Ver: BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. In:
BARRETO, João (org.). Walter Benjamin: O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012. p. 35-38.
384
sequência aos estudos de Foucault,6 demonstrou como se deu a transição da
sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Conforme explicou
Deleuze, na sociedade disciplinar o indivíduo era moldado, adequado a vida
em sociedade, enquanto transitava de um lugar fechado para outro, um
processo que iniciava no seio familiar e era complementado por outras
instituições como a escola, a caserna, a fábrica, às vezes pelo hospital, e
quando “necessário” pela prisão. Na concepção do autor, mesmo que tenha
“evoluído”, o modelo imposto pela sociedade disciplinar entrou em crise na
metade do século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial,
momento marcado por profundas alterações no meio social, sendo
substituído pela sociedade de controle e, consequentemente, pela
substancial modificação das referidas instituições que restaram direcionadas
a outros fins, uma vez que os indivíduos passaram a ser moldados
constantemente por formas ultrarrápidas de controle que agem ao ar livre,
em espaços abertos (DELEUZE, 2013:223-224).
Em relação ao tema proposto pelo presente artigo, é de suma
importância destacar que os meios de comunicação consistem em poderosos
meios de controle, na medida em que desempenham papel fundamental para
o estabelecimento do modo de vida e de padrões comportamentais na
sociedade contemporânea. Os teóricos da comunicação sempre apontaram
para o papel de articulação social desempenhado pela mídia, bem como para
os efeitos desta prática. Lippman, por exemplo, defendeu que os meios de
comunicação são responsáveis pela articulação de diferentes partes da
sociedade, mas que nem sempre essa articulação tem efeitos positivos, já
que também pode ensejar reflexos indesejados e imprevisíveis no seio social
(LIPPMAN, 2008:16-20). Lasswell, por sua vez, atribuiu diversas funções à
mídia, descrevendo-a não apenas como responsável pela articulação dos
diversos seguimentos da sociedade, mas também como um mecanismo de
vigilância sobre o meio social e garantidora da democracia através da

6 Para Foucault, as mudanças sociais ocorridas no séc. XVIII e XIX levaram a alterações do
jogo do poder, que foi sendo gradativamente substituído pelo que denominou de sociedades
disciplinares, as quais atingiram o seu apogeu no séc. XX. A passagem de uma forma de
dominação a outra ocorreu quando a economia do poder percebeu ser mais eficaz e rentável
“vigiar” do que “punir”. Ver: FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2004.
385
comunicação política. Para o autor, a mídia também tem como função
garantir a continuidade do sistema vigente através da transmissão da
herança cultural e dos valores de uma geração para a outra (LASSWELL,
1972).
Diante do papel que desempenha, na medida em que acaba impondo
um modo de vida, um modelo de indivíduo adequado ao regime vigente,
determinando como as pessoas irão se comportar, como deverão pensar,
como deverão se vestir para estar na moda e, inclusive, como se posicionar
politicamente, resta evidente que exerce papel decisivo na formação do senso
comum, o que acaba lhe colocando na condição de um poderoso
instrumento de controle. O “senso comum é o repositório de saberes
acumulados tradicionalmente por um povo, onde se misturam
conhecimentos científicos, tradições, crendices, mitos e a aprendizagem
formal, escolar, bem como as informações trazidas pela mídia” (MARTINO,
2014:74).
Segundo o Germano, o senso comum tem como característica
apresentar-se como uma verdade tão evidente, que qualquer tipo de
questionamento a seu respeito poderia ser considerado absurdo, uma
afronta ao “bom senso”, e, por isso, pode tornar-se um instrumento de
dominação. Aqui, é oportuno alertar para o fato de que a “opinião pública” é
sempre reflexo do que paira no senso comum sobre determinado tema, uma
espécie de manifestação anônima gerada e instrumentalizada através de
discursos produzidos por políticos, professores, cientistas, jornalistas e
demais profissionais que exercem o poder de convencimento na sociedade
atual, atores sociais que podemos chamar de “formadores de opinião”
(GERMANO, 2012:31). Por esta razão Maffesoli sustenta que, em nossa
época, a opinião pública confunde-se com a opinião publicada (MAFFESOLI,
2010:10-11).
Conforme Merton e Lazarsfeld, os mass media contém um poderoso
instrumental que pode ser utilizado para diversos fins, para o bem ou para o
mal, sendo que, na ausência de um controle adequado, certamente será
destinado para a segunda hipótese, sobretudo para assegurar interesses
particulares em detrimento do bem comum. Os autores também chamam a
386
atenção para o fato de que, no que diz respeito ao controle social, a mídia de
massa atua promovendo a coerção da coletividade através de programas de
rádio e anúncios institucionalizados que substituem com eficácia qualquer
modo violento de coerção. Nesse diapasão, o que muitos chamam de “poder
de imprensa” estaria vinculado à função exercida pela mídia de reforçar as
normas sociais, promovendo ações sociais organizadas contra situações que
em tese estariam em desacordo com a moral pública (MERTON;
LAZARSFELD, 2000:109-116), o que pode ser constatado no caso da forte
pressão que a mídia introduz cotidianamente no campo criminal.
A força da mídia pode ser verificada no exemplo da televisão,
considerando o seu poder de alcance e de convencimento exercido através da
imagem. Bordieu chamou a atenção para o fato de que o acesso a esse
instrumento tem como contrapartida o que denominou de “formidável
censura”, ou seja, a perda de autonomia na relação comunicativa, já que o
tema do programa exibido é imposto, as condições da comunicação são
impostas e que a limitação de tempo nas discussões apresentadas impõe
enormes restrições aos discursos, impedindo que os assuntos sejam tratados
com profundidade. O autor sustentou ainda que a censura não é direcionada
somente ao público, mas também em desfavor dos próprios jornalistas e
convidados, já que existe um grande controle exercido pelo mercado, tendo
em vista que as empresas de comunicação necessitam se manter em posição
privilegiada para enfrentar a concorrência, o que impõe pressão e desafios
diários aos profissionais da comunicação, que são obrigados a conseguir
“furos”, informações exclusivas para que garantam sua reputação e seu
emprego (BORDIEU,1997:19-58). É o que Ramonet denominou de “censura
democrática” (RAMONET, 2010:28-29).
O interesse no caráter apelativo que o crime carrega fez com que a
mídia se tornasse a grande responsável pela construção da imagem da
criminalidade, interligando-a ao campo do sistema penal. É que exibição
excessiva de notícias sobre o crime, quase sempre sob um viés
sensacionalista, acaba estabelecendo os estereótipos dos indivíduos
criminosos, bem como quais os locais da cidade que são ocupados pelos
mesmos e devem ser evitados pela população. A relação entre mídia e crime
387
segue a seguinte dinâmica: primeiro os meios de comunicação ajudam a
criar um cenário de insegurança no seio social através da veiculação
excessiva de informações sobre o mundo do crime para, depois, com o apoio
da população amedrontada, pressionar o poder público para que solucione o
problema da criminalidade, o que normalmente é procedido através de
campanhas por mais leis penais, por decisões judiciais mais duras e pela
expansão do uso da prisão, sobretudo a preventiva. Outra questão que
precisa ser enfrentada é que, ao mesmo tempo em que lucra com essa
dinâmica, a mídia legitima um sistema penal que destrói milhares de
pessoas e é ineficaz para resolver o problema da criminalidade (BUDÓ,
2013:23).
Na grade de programação da televisão brasileira, por exemplo, não são
raros os programas alarmistas produzidos em um formato onde um
apresentador que mais parece um justiceiro, comanda ao vivo a transmissão
do trabalho da polícia no atendimento de ocorrências envolvendo crimes
graves como roubos, sequestros e latrocínios, exibindo sem nenhum pudor
imagens repletas de violência, sangue e desespero, para depois proferir um
discurso raso sobre segurança pública, incentivando o público na busca por
vingança contra a criminalidade, seja pelas próprias mãos ou através do
recrudescimento do sistema penal. Na verdade, programas desse tipo servem
como embriões dos movimentos de lei e ordem que cada vez mais ganham as
ruas com suas demandas vazias, desconsiderando completamente a
complexidade do fenômeno criminal, mas que acabam sendo encampadas
nas plataformas de alguns políticos interessados nos votos dos cidadãos
inseguros. Tendo ciência de que os meios de comunicação influenciam no
processo de significação do mundo, ou seja, na construção social da
realidade, e que assim determinam o comportamento dos indivíduos nos
processos de interação social, é importante compreender também o
funcionamento desse processo cognitivo. Aqui é necessário alertar para o
fato de que os meios de comunicação não possuem capacidade de produzir
efeitos diretos no que as pessoas irão pensar e como irão agir, mas sim sobre
os assuntos que elas entenderão como importantes e deverão se colocados
em suas pautas de discussão, sobre os quais deverá haver um consenso
388
(BUDÓ, 2013:82-83). Tal processo é claramente explicado pela teoria do
agenda-setting, que desvela os meandros da relação entre os meios de
comunicação de massa e as relações sociais, ou melhor, demonstra que a
agenda midiática é quem definirá os assuntos discutidos pelas pessoas e,
consequentemente, pautados na agenda pública (MARTINO, 2014:207).
Assim, com o impulso proporcionado pelo seu agendamento diário na
mídia, o tema criminalidade ganha às ruas a cada novo delito e, com o
auxílio dos formadores de opinião, acaba ganhando espaço no senso comum
onde magicamente as soluções para os problemas da criminalidade parecem
estar prontas, ironicamente esperando apenas um homem público honesto e
de boa vontade para colocá-las em prática. O grande problema é que as
percepções sobre a criminalidade que pairam no imaginário social
encontram-se vinculadas ao legado deixado pela criminologia positivista,7 ou
seja, em uma concepção determinista que reduz a complexidade do
fenômeno crime e se apóia principalmente na figura do criminoso nato que,
evidentemente, recebe o status de inimigo. O modo como os mass media
tratam o tema da criminalidade, sobretudo no que diz respeito à exposição
dos acusados, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois
acaba desrespeitando diversos direitos e garantias como, por exemplo, a
presunção de inocência, considerando que afirma abusivamente a culpa dos
suspeitos antes mesmo de que uma sentença sobre o caso tenha sido
proferida. No que tange aos graves prejuízos causados pelos meios de
comunicação aos indivíduos suspeitos, Budó referiu que: “A pena instituída
pelos meios de comunicação é a execração pública do suspeito ou acusado, a
violação de sua imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de
forma irrecuperável.”(BUDÓ, 2013:116).
Em suma, é possível afirmar que em nosso tempo a mídia dissemina
medo e insegurança no tecido social, o que produz reflexos extremamentes
negativos, uma vez que, em pânico, a sociedade amedrontada acaba

7A Escola Positiva surgiu no contexto de um acelerado desenvolvimento das ciências sociais


(Antropologia, Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, estatística etc), determinando uma nova
orientação nos estudos criminológicos, aderindo a uma concepção determinista da
criminalidade, objetivando defender mais enfaticamente o corpo social contra a ação do
criminoso, priorizando os interesses sociais em relação aos indivíduos que, segundo essa
corrente, teriam tendência a delinquir.
389
clamando por uma reação violenta por parte do Estado em relação a
criminalidade, o que camufla completamente as origens do problema e acaba
dificultando sua solução. Dias explicou que o medo pode ser definido como
um sentimento de inquietação e preocupação diante da possibilidade de
ocorrência de um evento que é considerado desagradável, algo que gera
grande sofrimento aos indivíduos. Segundo o autor, tudo que é considerado
estranho pode se tornar uma fonte de medo, inclusive pessoas, já que
grande parte dos indivíduos demonstra medo de seus semelhantes quando
estes são portadores de deficiências físicas, deficientes mentais, dependentes
químicos ou condenados pela justiça, realidade que facilita sobremaneira a
criação de bodes expiatórios. O medo se aloja nas camadas afetivas e
emocionais de cada indivíduo, assentando-se em pressupostos e raciocínios
de natureza sociológica, dando origem a um sentimento de necessidade de
vigilância permanente que se alastra no seio social, proporcionando o
surgimento do que Dias denominou de “idolatria do vigilante”, o que indica a
adoração de uma espécie de ente supremo que teria a responsabilidade de
reger a vida dos indivíduos e da comunidade, posição normalmente ocupada
pelo Estado ou seus agentes (DIAS, 2007:13-49-57-152). Não é a toa que
temos assistido inúmeros eposódios de linchamentos e que grande parte da
população apoia as execuções de suspeitos cometidas pela polícia.
Diante das considerações apontadas, concluímos que o principal
reflexo da disseminação do medo no tecido social e da criação de uma
imagem distorcida da criminalidade, é a criação da figura de um inimigo no
imaginário da população que, por estar atemorizada, passa a eleger algumas
classes como sendo perigosas, tratando seus membros (pobres, condenados,
viciados, prostitutas e etc.) como inimigos em potencial (ZAFFARONI;
OLIVEIRA, 2010:190-191), gerando uma realidade determinante para a
manutenção do processo que tem como consequência o recrudescimento do
controle exercido através do sistema penal, conforme podemos observar no
caso da prisão preventiva, objeto do presente trabalho, já que seguidamente
grande parte da população clama pela prisão imediata de suspeitos sem
qualquer tipo de preocupação com os verdadeiros propósitos dessa medida
processual.
390
3. MÍDIA E RECUDESCIMENTO PENAL: a espetacularização midiática do
crime a banalização da prisão preventiva

Como vimos, o modo como a mídia trata o problema da criminalidade


possibilita a criação de uma pseudo realidade onde as pessoas “de bem”
convivem com seus iguais, sempre distantes de uma massa de criminosos,
estes normalmente identificados em estereótipos vinculados a criminalidade,
indivíduos que são vistos como diferentes e maus (ZAFFARONI, 2013:197-
198). Diante da segregação e da ausência de alteridade, a sociedade “de
bem” acaba propondo uma guerra para resolver o problema da
criminalidade, mesmo que isso acarrete uma série de violações contra os
indivíduos colocados na posição de inimigos. É que dentro da lógica da
guerra contra o crime as vidas dessas pessoas podem ser destruídas em
nome do bem comum, uma vez que, ao romperem o contrato social para
cometer delitos, deixaram de ser merecedores de direitos e garantias. É por
isso que para muitos dos que defendem o trato da criminalidade em formato
de guerra, os direitos humanos, as garantias processuais e os juízes que
respeitam o devido processo legal acusatório não passam de indesejáveis
obstáculos que impedem o desenrolar da guerra contra o crime, sendo que
muitos políticos atemorizados e oportunistas, também influenciados pela
“criminologia midiática” (BOLDT, 2013; ZAFFARONI, 2012:303-346), aderem
a esse posicionamento e aprovam leis desnecessárias que apenas
contribuem para o recrudescimento do controle penal. Em suma, diante
desse panorama, independente dos danos causados aos indivíduos
absorvidos por suas malhas, o sistema punitivo atual acaba sendo visto
como o único modo de resolver o problema da criminalidade, em oposição a
qualquer tentativa de construção do Estado Social (ZAFFARONI, 2013:203-
2011).
É importante referir que tal realidade é apoiada no fato de que a
maioria das pessoas acredita cegamente em certas crenças jurídicas, como a
de que existe um legislador produzindo um sistema jurídico coerente, que o
juiz é axiologicamente neutro quando decide, que o ordenamento jurídico é
sempre justo e protege os interesses de todos os cidadãos. Contudo, faz-se
391
necessária a crítica no sentido de que a ordem jurídica resulta de uma
atividade humana e está radicada em uma sociedade complexa e
hierarquizada, onde quem dita às leis é a classe que ocupa o poder, o que faz
com que o sistema punitivo, em todas as fases (policial, judicial e execução
da pena), reproduza a realidade social (THOMPSON, 1998:45-47).
Na esteira do que foi explicitado, é possível concluir que o resultado da
administração publicitária da criminalidade e do medo por parte da mídia,
sempre articulando as impressões e vivencias dos envolvidos nos fatos
criminosos noticiados, cria um bisonho empirismo que acaba servindo de
base para o discurso punitivista que paira no senso comum (BATISTA,
1990:15). Conforme explica Carvalho, a vontade de punir é o principal
sintoma do novo quadro político-econômico e social, um sentimento que dá
ensejo ao populismo punitivo fomentado pelos movimentos de lei e ordem e
contribui para o enfraquecimento da democracia, na medida em que tenta
suprimir os direitos e as garantias de indivíduos pertencentes a
determinados grupos sobre o pretexto de se estar assegurando o bem
comum. Em resumo, o medo disseminado pela mídia no seio social faz com
que os adeptos dos movimentos encarceradores, mesmo diante da
impossibilidade de comprovação empírica de fatores com sensação de
insegurança e de impunidade, utilizem tais argumentos para exigir o
recrudescimento do controle exercido pelo sistema penal, uma vez que, no
senso comum, a contenção da criminalidade está vinculada as demandas
por mais punições (CARVALHO, 2010:8-10).
No mesmo sentido, Hassemer (1994:163) se posicionou salientando
que o controle da criminalidade tornou-se uma espécie de mecanismo
destinado a regular o sentimento de insegurança da população, propiciando
o surgimento de estratégias populistas de combate ao crime, medidas que
são ineficazes e apenas demonstram a incapacidade do Estado para
solucionar o problema da violência urbana. Em relação ao tema tratado no
presente trabalho, que tem como foco a relação entre a mídia e o
recrudescimento do controle penal, os esclarecimentos propostos pelo autor
são de grande valia:

392
(…) Não é a ameaça real da criminalidade e da violência que constitui
o fator decisivo para a política de segurança pública, e sim a
percepção de tal ameaça pela coletividade. Estes sentimentos de
ameaça dominam a população, são canalizados para reivindicações
de imediato arrocho nos meios coercitivos e tornam o relaxamento
dos direitos fundamentais bem como a sua corrosão pelo Estado não
só toleráveis como objeto de exigência da população. (...)

Diante de tal realidade, mesmo em um contexto democrático, o modo


de tratar a criminalidade na sociedade contemporânea apenas tem
fortalecido uma cultura bélica e violenta onde o poder punitivo é exercido em
formato de guerra, de modo semelhante ao que ocorreu nos períodos
autoritários, quando a concepção de segurança pública encontrava-se
atrelada com ideia de segurança nacional. Semelhantemente ao que ocorreu
entre as décadas de 1960 e 1980, período em que as ditaduras campearam
pelo continente latino-americano, no contexto contemporâneo a estética da
guerra encontra-se presente no controle da criminalidade, tendo como efeito
a supressão dos direitos e garantias dos suspeitos, uma vez que pela lógica
da exceção e da emergência imposta pela guerra, se o inimigo não joga
limpo, o estado também estaria autorizado a ultrapassar limites no exercício
do poder punitivo (ZAFFARONI; BATISTA, 2011:41-42). Segundo Baratta,
com o avanço do tempo a ideologia da defesa social passou a integrar a
filosofia dominante nas ciências jurídicas e a influenciar opiniões, sendo
absorvida não apenas pelos representantes do aparato penal penitenciário,
mas também pelo público em geral, dando ensejo a um discurso comum
sobre criminalidade, baseado no que o autor denominou de “Every Day
Theories”. Para Baratta, o conceito de defesa social serve muito mais como
um elemento justificante e racionalizante do sistema penal, do que um
elemento técnico do sistema legislativo ou dogmático, contudo, serve de base
para diversas teorias legitimadoras desse sistema nefasto (BARATTA,
2011:41-42). O estado atual da prisão preventiva no Brasil demonstra muito
bem essa dinâmica!
A Lei nº 12.403/11 alterou drasticamente o sistema das prisões
cautelares. Como principais modificações, podemos destacar a perda da
autonomia da prisão em flagrante e a adoção de um novo regime em relação
à prisão preventiva que, após a vigência da referida lei, teve sua decretação
393
condicionada à observância de inúmeros fatores, tornando-se de uma vez
por todas a última medida cautelar a ser aplicada nos feitos criminais. O
texto legal dispõe claramente que a prisão preventiva poderá ser decretada
somente nos casos em que as medidas cautelares menos gravosas do que
prisão se mostrem insuficientes,8 procedimento que deverá ser aplicado
também em relação aos procedimentos que apurem crimes hediondos
(CRUZ, 2011).
No novo regime das cautelares, a prisão preventiva tornou-se a ultima
ratio não apenas sob o argumento utilizado anteriormente, fundamentado na
leitura constitucional do processo penal a partir do princípio da presunção
de inocência, mas pelo que dispõe o próprio CPP alterado. Conforme o artigo
282, a aplicação das medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva,
deverá respeitar as necessidades de cada situação, bem como estar
destinada a assegurar a instrução processual, a aplicação da lei penal ou a
evitar a reiteração criminosa. Além disso, o texto legal determina que a
medida seja adequada ao caso concreto, devendo ser considerada a
gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do
imputado.9 Após as inúmeras exigências para sua aplicação, a prisão
preventiva resta consagrada como medida excepcional no parágrafo 6º,
inciso II, que preceitua: “A prisão preventiva será determinada quando não
for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319).” A
natureza cautelar da prisão preventiva não restou alterada após a alteração
do CPP. Pelo contrário: restou reforçada, uma vez que a constrição restou
consagrada como uma medida de exceção e de caráter instrumental, com
aplicação permitida somente em casos extremos, quando não existirem
outras formas de assegurar o trâmite e a conclusão do processo, em hipótese
podendo servir a outros fins (GOMES FILHO, 2011).

8 Artigo 310, II da Lei 12.403/11: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá
fundamentadamente: [...] ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando
presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou
insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; [...]”.
9 Artigo 282, I e II da Lei 12.403/11: “As medidas cautelares previstas neste Título deverão

ser aplicadas observando-se a: I - necessidade para aplicação da lei penal, para a


investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a
prática de infrações penais; II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias
do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.[...]”.
394
Nesse sentido, Giacomolli (2013:67) explicou que:

Com a Lei nº 12.403/11, a prisão preventiva deixou de ser a medida


cautelar pessoal por excelência, bem como a regra em termos de
medidas constritivas criminais. Situa-se, como já afirmado, na ultima
ratio do sistema cautelar criminal. Além disso, sua função é
eminentemente processual e não de antecipação de pena, ou seja,
destina-se a tutelar o processo (fuga do suspeito ou do imputado;
assegurar a presença no processo; garantir a incidência da potestate
punitiva, em caso de eventual condenação; assegurar o normal
desenvolvimento da atividade das partes e dos sujeitos processuais –
depoimento de vítimas, testemunhas, peritos, por exemplo).

Entretanto, mesmo que a Nova Lei de Medidas Cautelares tenha


adequado o ordenamento jurídico brasileiro ao que dispõe os diplomas
internacionais de proteção aos direitos humanos, tornando mais do que
nunca a prisão cautelar uma medida de exceção, a situação da prisão
preventiva no Brasil segue extremamente grave, já que a quantidade de
presos provisorios é enorme e as condições em que essas pessoas estão
segregadas é desumana. Lopes Jr. explicou que, dentre outros fatores, isso
ocorre pelo fato de que a prisão preventiva encontra-se inserida na dinâmica
da urgência característica da sociedade contemporânea, sendo utilizada
muitas vezes para iludir a opinião pública cada vez mais sedenta por
segurança. Na concepção do processualista, a imagem da prisão imediata do
suspeito, muitas vezes algemado e levado ao cárcere sob o foco das câmeras
dos programas de televisão sensacionalistas, provoca uma falsa sensação de
justiça instantânea, proporcionando a construção de uma imagem distorcida
do sistema repressivo no imaginário social, realidade que contribui
sobremaneira para o desvirtuamento e aplicação inadequada da prisão
preventiva que, ao invés de ser utilizada como ultima ratio, acaba se
tornando regra (2013:44). A continuidade do uso banalizado da prisão
preventiva após o advento da Lei 12.403/11 demonstra claramente que o
problema não é apenas legislativo, mas cultural, o que indica que a mídia,
pelo modo que trata do problema da criminalidade, desepenha papel
fundamental para a manutenção desse cenário.

395
4. O INFLUÊNCIA DA MÍDIA NAS DECISÕES JUDICIAS QUE DECRETAM
A PRISÃO PREVENTIVA

De acordo com Zizek, a variedade predominante da política atual pode


ser definida como “biopolítica pós-política”, isto é, uma nova forma de
governar que deixa de lado os velhos combates ideológicos para centrar na
administração e na gestão especializada de determinados âmbitos da vida.
Diante da ausência dos combates de ideologias, o fator que acabou
introduzindo paixão e criando um elo entre os indivíduos e o Estado foi o
medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de nossa
época.
O autor define a “biopolítica pós-política” como uma política do medo
baseada na insegurança diante dos mais variados fatores, como, por
exemplo, a criminalidade, o terrorismo, os imigrantes, a elevação da carga
tributária, as catástrofes ecológicas, entre outros, incluindo a questão do
assédio que, de acordo Zizek, é um dos fatores mais interessantes, pois traz
à tona uma espécie de novo direito humano central na sociedade capitalista,
que consiste no fato de que os indivíduos devem permanecer a uma
“distância segura” um dos outros (respeitando a individualidade alheia), o
que demonstra o elevado grau de individualismo na sociedade atual
(2009:43-44).
Além de demonstrar o individualismo do contexto atual, a distância
entre indivíduos mencionada por Zizek ilustra muito bem o que ocorre na
prática em relação ao trato da criminalidade por parte da sociedade. O
indivíduo estigmatizado como criminoso é sempre visto como o “outro” que
deve ser mantido distante e, se possível, destruído, seja pela polícia ou pelo
seu confinamento em um estabelecimento penal. Ao nosso juízo, a prisão
preventiva no Brasil tem justamente servido a esse fim, sendo utilizada pelos
magistrados como um instrumento de segurança pública, e não como ultima
ratio das medidas cautelares, compreensão que é usualmente fomentada
pelos meios de comunicação.
A violência nas notícias diárias desinseridas de explicação ou contexto
induzem, segundo Dias, sentimentos de insegurança nos indivíduos. O
396
agendamento midiático que alguns jornalistas conferem a determinado caso
“(...) são de imediato e facilmente promovidos à categoria de escândalo
nacional, introduzindo-se desta forma o medo no quotidiano das pessoas”
(2007:41). Contudo, Garland adverte que é equivocado presumir que os
eleitores sejam facilmente convencidos e infinitamente maleáveis ao apoio
maciço às políticas criminais de lei e ordem, assim como que a mídia possa
sustentar ou criar audiência para histórias de crimes sem condições sociais
e psicológicas preexistentes (2008:321). Essa é a visão de Lipovetsky
(2005:174) que, embora tenha analisado a realidade francesa, se assemelha
muito com as nossas peculiaridades sociais.

(...) a sensação de insegurança cresce, alimenta-se das menores


ocorrências criminais, e isso independentemente das campanhas de
intoxicação. A insegurança atual não é uma ideologia, é o correlato
inevitável de um indivíduo desestabilizado e desarmado amplificando
todos os riscos, obcecado por seus problemas pessoais, exasperado
por um sistema repressivo julgado inativo ou clemente “demais”,
habituado a ser protegido e traumatizado por uma violência da qual
ignora tudo: a insegurança cotidiana resume sob uma forma
angustiada a dessubstancialização pós-moderna. O narcisismo,
inseparável de um medo endêmico, não se constitui a não ser
estabelecendo um “lá fora” exageradamente ameaçador, o que, por
sua vez, aumenta a gama dos reflexos individualistas: atos de
autodefesa, indiferença para com o outro, aprisionamento na própria
casa; enquanto um número considerável de habitantes das grandes
metrópoles já se abriga por trás de uma porta blindada e desiste de
sair à noite, apenas 6% dos parisienses interfeririam se ouvissem
pedidos de socorro à noite.

O individualismo contemporâneo e o sentimento de insegurança social


possuem uma relação muito mais próxima do que podemos imaginar. O
medo, nesse cenário, desempenha um papel fundamental na produção dessa
sensação de insegurança em relação à criminalidade (MÍGUEZ; ISLA, 2010).
Já diria Bauman que “(...) a insegurança moderna, em suas variáveis
manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos”
(2009:16). É esse medo social que faz que vejamos no desconhecido um
potencial inimigo a ser evitado ou abatido (DIAS, 2007:10). Os criminosos,
sobretudo os traficantes, são vistos como inimigos da sociedade. Em nossa
realidade “(...) o medo tem sido utilizado como uma estratégia eficiente de
controle, criminalização e brutalização dos pobres, capaz de ampliar e

397
legitimar demandas cada vez maiores por segurança” (BOLDT, 2013:1998).
São essas emoções que conferem legitimidade ao processo de governo
através da criminalização da pobreza presente em nosso meio social, que
possui seu local privilegiado nos decretos de prisão preventiva.
Como a dinâmica do medo perpassa todo o meio social, também é
possível auferir que essa emoção atinge a percepção de muitos magistrado
sobre o crime e a criminalidade. Por esta razão, o constante agendamento de
histórias sobre a questão criminal pelos meios de comunicação acaba
influenciando, no mínimo inconscientemente, os juízes em suas decisões
judiciais. Pode-se notar isso na rotineira utilização de fundamentos que
remetem à ordem pública, como a argumentação com base no “clamor
social”, na “paz pública”, na “reiteração delitiva”, “na preservação das
instituições”, na “credibilidade da justiça”, entre outros (WEDY, 2013).
Tratam-se de argumentos fundados em uma retórica vazia que se presta
simplesmente a justificar o decisionismo judicial (STRECK, 2011) que
pretende assumir as funções típicas dos agentes de segurança pública.
A sensação de insegurança faz que vejamos no outro todas as causas
dos males sociais e os magistrados não se excluem desta lógica. Sob o
domínio do medo e da pressão midiática os juízes buscam dar uma resposta
à sociedade sob os problemas da criminalidade e acabam banalizando a
utilização da prisão preventiva, que deveria ser a ultima ratio das medidas
cautelares, e atuando como se fizesse parte do aparato da segurança
pública, ignorando seu papel constitucional de garantidor dos direitos
fundamentais. O imaginário coletivo que crê cegamente nos discursos vazios
da impunidade, de que ninguém vai preso no país, clama por punições
imediatas e não consegue compreender a necessidade da realização do
processo para comprovação da culpabilidade do réu, com o devido respeito
ao due process of law. A prisão preventiva, nesse cenário, acaba servindo
como um dispositivo jurídico-político que antecipa a penalidade e joga
apressadamente os acusados nos espaços de exceção que são nossos
presídios.

398
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno do recrudescimento do sistema penal torna-se cada vez


mais evidente através do aumento do número de pessoas encarceradas e sua
ineficácia está implícita no fato de que os índices referentes à criminalidade
seguem crescendo. Entretanto, a mídia segue influenciando a sociedade
brasileira, fazendo com que continue imersa na cultura do medo e exigindo
cotidianamente do poder publico uma resposta mais contundente, ou seja,
mais policiais nas ruas e mais prisões imediatas. Em suma, a cultura atual
baseia-se na utilização do medo social da violência para legitimar políticas
autoritárias que enfraquecem a participação cidadã e incentivam cada vez
mais o preconceito, a desconfiança e a intolerância que caracterizam a
precária sociabilidade das sociedades democráticas atuais (PASTANA,
2009:55).
Diante do exposto, concluímos no sentido de que ao fomentar o
recrudescimento do controle penal a mídia induz ou mantêm a sociedade,
sobretudo os magistrados, a um erro histórico, pois a manutenção ou o
recrudescimento do modelo de resolução dos conflitos vigente é incapaz de
resolver o problema da criminalidade ou promover a justiça, já que, além das
violações de direitos humanos que causa e da criminalidade que faz
proliferar, também exclui as vítimas de seus procedimentos.

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401
ZIZEK, Slavoj. Violência. Trad: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio
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402
O DIRETO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A REALIDADE NA OBTENÇÃO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Janaína Machado Sturza¹


Luís Fernando Pretto Corrêa²

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como interesse principal a exploração acerca da


temática sobre o acesso ao Direito à Saúde no sistema prisional, partindo da
premissa de que é primordial que se pense no espaço local a partir de uma
discussão global, na tentativa de articular e elaborar ações que resolvam ou
amenizem situações caóticas vigentes em nossa sociedade.
Assim, o Direito à Saúde no Brasil, como aponta a nossa Constituição
Federal de 1988, é um direito de todos e um dever do Estado, calcado no art.
196 da Constituição e garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação. Através deste dispositivo legal o termo saúde se constituiu
como um direito reconhecido igualmente a todo o povo, além de ser um meio
de preservação e de qualidade de vida, sendo este o bem máximo da
humanidade.
Desta forma, a saúde representa uma preocupação constante na vida de
cada cidadão, enquanto elemento fundamental para as necessidades de
segurança em vários aspectos do bem viver em comunidade. A complexidade
dos aparatos necessários para dar uma resposta a tal preocupação é
acrescida com a articulação dos Estados Modernos, muitas vezes de forma
desviante em relação ao objetivo originário. A solução para o acesso

¹ Doutora em Direito pela Escola Internacional de Doutorado em Direito e Economia Tullio

Ascarelli, da Universidade de Roma Tre/Itália. Mestre em Direito, Especialista em


Demandas Sociais e Políticas Públicas e Graduada em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC. Professora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul – UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e no Programa de Pós
Graduação em Direitos Humanos - Mestrado. Professora na graduação em Direito da
Faculdade Dom Alberto/Santa Cruz do Sul. Advogada. Contato: janasturza@hotmail.com.
² Acadêmico do curso de Direito pela UNIJUI, Bolsista CNPQ pelo projeto de pesquisa, O

direito fundamental à saúde e o princípio da dignidade humana: limites e possibilidades de


acesso às políticas públicas de saúde no município de Ijuí/RS, coordenado pela Profª Drª
Janaína Machado Sturza. Contato: pretto.feer@gmail.com.
403
igualitário ao Direito à Saúde, em parte, é atribuída a setores da política
econômica e social de cada país, aliando a isto o esforço conjunto de toda a
coletividade representada pela sociedade. Aqui destacam-se as discussões
globais em torno de ações locais.
Hoje, a saúde é um fundamental direito humano, além de ser também
um investimento social. Na medida em que os governos têm o objetivo de
melhorar as condições de saúde de todos os cidadãos, é necessário que
invistam recursos em políticas públicas de saúde, capazes de garantirem
programas efetivos para a sua promoção. Todavia, garantir o acesso
igualitário a condições de vida saudável e satisfatória a cada ser humano
constitui um princípio fundamental de justiça social e, portanto, exige
também uma grande produtividade complexa por parte da sociedade e do
Estado, sendo necessária a intensificação dos esforços para coordenar as
intervenções econômicas, sociais e sanitárias através de uma ação integrada.
Desta forma, para o pleno desenvolvimento de cada pessoa, enquanto
membro ativo de uma sociedade democrática e igualitária, é exigido não
somente a garantia do acesso universal ao Direito à Saúde, mas também o
seu efetivo cumprimento e satisfação, através da ativa intervenção do
Estado, na intenção de remover obstáculos e de promover a saúde para
todos os seus cidadãos, pois Direito à Saúde é direito à vida, sendo está o
bem máximo de cada ser humano.

2. O DIREITO FUNDAMENTAL CONTEMPORÂNEO: direito à saúde

Na sociedade contemporânea, a saúde deve ser considerada como um


bem de todos, como um direito social necessário à manutenção da vida.
Entretanto, o reconhecimento de sua eficácia é um forte argumento colocado
em discussão nos dias atuais, principalmente em relação aos “direitos
sociais e as externalidades que não podem ser internalizadas na avaliação da
saúde enquanto bem econômico”. (DALLARI – 1987. p15)
Assim, na tentativa de conceituar o termo saúde, não podemos nos
furtar, obrigatoriamente, de usar como ponto de partida o Preâmbulo da
Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), erigido em 26 de
404
julho de 1946, no qual fica estabelecido que a “Saúde é o completo bem-estar
físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças ou outros
agravos.” Neste sentido, em uma visão bastante avançada para a sua época
de construção, a OMS expandiu o conceito de saúde historicamente atrelado
à prevenção e principalmente à cura, abarcando, essencialmente, a
promoção da saúde.
Todavia, o tema do Direito à Saúde não era de todo estranho ao nosso
Direito Constitucional anterior a 1988, o qual delegava competência à União
para legislar sobre defesa e proteção da saúde. Porém, isso tinha sentido de
organização administrativa de combate às endemias e epidemias, sendo isto
modificado na atual conjuntura, pois com a promulgação da Constituição
Cidadã a saúde passou a ser um direito do homem, (SILVA – 2002)
assumindo status de grande relevância em nosso ordenamento jurídico.
Notadamente, a atual Carta Magna também submete esse direito ao conceito
de seguridade social, cujas ações e meios se destinam a assegurar e tornar
eficaz o direito à saúde. (SILVA – 2002)
Em nosso país, portanto, a saúde foi realmente reconhecida como
direito em 1988, com a promulgação da nossa Constituição Federal. Esta
Carta proclama a existência do Direito à Saúde como um dos direitos
fundamentais da pessoa humana, além de estabelecer a saúde como direito
de todos e dever do Estado, organizando a forma e os aspectos do
atendimento a ser dado através da criação de um Sistema Único de Saúde
(art. 200). (SOBRINHO – 2003)
Desta forma, a evolução conduziu à concepção da nossa Constituição
Federal de 1988, onde em seu Art. 196 estabelece que “A saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (BRASIL – 1988).
No Brasil, o acesso ao Direito à Saúde passou por grandes
transformações e, a despeito de muitos obstáculos, opostos por setores
sociais privilegiados e retrógrados, tem havido muitos avanços na luta pelo
estabelecimento de melhores condições de vida para todos os brasileiros,
405
dentre elas a saúde. Nesta área é possível perceber o evidente progresso,
podendo-se considerar superada a concepção estreita e individualista que
limitava a saúde exclusivamente ao oferecimento de serviços médico –
hospitalares, dos quais somente os mais ricos teriam acesso, sendo que aos
pobres restariam a precariedade e ainda como um favor do Estado.
(CARVALHO, SANTOS – 1995)
Através do princípio de que o direito à saúde é igual à vida de todos os
seres humanos, significa também que, nos casos de doença, cada um tem o
direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência
médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter
muito valor sua consignação em normas constitucionais. (SILVA – 2002)
Como ocorre com os direitos sociais em geral, o direito à saúde
comporta duas vertentes, uma de natureza negativa, que consiste no direito
a exigir do Estado que se abstenha de qualquer ato que prejudique a saúde;
outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações
estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas (SILVA –
2002).O Direito à Saúde, a partir do artigo 196, utilizando-se do artigo 197,
ambos da Carta Magna, retratam a relevância pública das ações e serviços
de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua
regulamentação, fiscalização e controle. Assim, sua execução deve ser feita
diretamente ou então através de terceiros, ou ainda, por pessoa física ou
jurídica de direito privado. (MORAES – 2001)
Na conformidade do artigo 196, o Direito à Saúde, respaldado em tal
dispositivo legal, trata-se de um programa a ser atendido pelo Estado,
mediante norma de conteúdo programático, através da qual fixam-se vetores
maiores que apontam para direções e objetivos a serem atingidos pela ação
estatal. (RAMOS – 1995)
Sendo assim, o Direito à Saúde trata de um direito positivo, que exige
prestações do Estado e que impõe aos entes públicos a realização de
determinadas tarefas, de cujo cumprimento depende a própria realização do
direito (SILVA – 2002). Nesta esfera decorre um especial direito subjetivo de
conteúdo duplo, por um lado, pelo não cumprimento das tarefas estatais
para sua efetivação, dá cabimento à ação de inconstitucionalidade por
406
omissão (arts. 102, I, a e 103, § 2º) e, por outro lado, o seu não atendimento,
inconcreto, por falta de regulamentação¹, pode abrir pressupostos para a
impetração do mandado de injunção (art. 5º, LXXI).
A saúde, em nível constitucional e da legislação ordinária, é um bem
jurídico tutelado, extensivo a todas as pessoas que estejam sujeitas à ordem
jurídica brasileira. É, portanto, intolerável que uma pessoa ou toda a
coletividade possa ser ferida nesse direito, sem que as leis brasileiras lhe
deem a devida proteção (DIAS – 2001). Assim, é possível reforçar a menção
anterior descrevendo que desde o seu preâmbulo a Constituição indica um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e abrangendo,
assim, o Direito à Saúde. (PODVAL – 2003)
É possível visualizarmos, desta forma, a consciência de cidadania
expressa na Constituição, a qual elencou um rol quase exaustivo de direitos
e garantias individuais, além, é claro, dos direitos sociais. É neste patamar
que se encontra o Direito à Saúde, ou seja, um direito fundamental social de
segunda geração (VARGAS – 1997). E, para ratificar tal exposição, podemos
citar Dallari, quando diz que “[...] o direito à saúde deve ser assegurado a
todas as pessoas de maneira igual [...]”. (1985, p47-60)
Portanto, este direito acena como um dos importantes elementos da
cidadania, como um direito à promoção da vida das pessoas, pois Direito à
Saúde é direito à vida (MORAIS – 1996). Partindo desta análise, a questão do
Direito à Saúde é universal, assim como a do acesso igualitário às ações de
saúde, estando assegurado constitucionalmente tanto na seção específica

¹Cf. a Lei 8.080, de 19.09.1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e

recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e


regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou
conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de
direito público ou privado, e reafirma que a saúde é um direito fundamental do ser humano,
devendo o Estado promover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Cf. também
a Lei 8.142, de 28.12.1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde – SUS. CARVALHO, Guido Ivan de; SANTOS, Lenir. Sistema único
de saúde. Comentários à Lei Orgânica da Saúde 8.080 de 1990 e 8.142 de 1990. 2. ed. São
Paulo: Hucitec, 1995.
407
como nas disposições gerais sobre a Seguridade Social. (NETO – 2003)

3. REFELXÕES E APONTAMENTOS ACERCA DA POPULAÇÃO


CARCERÁRIA

Discorrendo acerca da historicidade do sistema carcerário brasileiro, na


Antiguidade Clássica, temos que daquele que cometesse um crime, era
tolhida sua vida. Já na Idade Média, período de verdadeiro poder religioso,
as heresias eram punidas com a tortura do infrator. Com o advento do
capitalismo, o tempo como mercadoria de que todos dispunham igualmente,
passa a ser a base da pena e o cárcere, que até então servia apenas de
custódia daqueles que esperavam serem torturados, passa a identificar-se
com a própria pena, pois privando o indivíduo de sua liberdade este não
poderia dispor de seu tempo. (ALMEIDA, KUBOTA – 2003)
Nesta perspectiva, Almeida e Kubotaafirmam que o sistema carcerário
vigente corresponde a uma síntese histórica do sistema de penas.

O indivíduo quando condenado à prisão, desde logo tem proferida


sua sentença de morte social, o que significa, embora não nos
moldes das penas draconianas, o sujeito não deixa de ser privado de
sua vida. Afora isto, ao ser retirado de seu ambiente social, e inserido
numa realidade isolada, com uma cultura própria, qual seja, de
violência, maus-tratos, desrespeito, condições precárias de higiene e
saúde; tem o indivíduo não somente seu corpo, como também sua
mente marcados pela tortura a que é submetido; desta vez, tortura
velada, que não está aos olhos do público. (2003, p. 42)

O fracasso histórico do cárcere é inevitavelmente reconhecido,


principalmente para fins de controle da criminalidade e de reinserção do
preso na sociedade, adotando como alternativa a abolição da instituição
carcerária e de sua população. (MELLO – 2002)
Retomando ainda fatos históricos, a primeira cadeia remonta à época do
descobrimento do Brasil, estando esta localizada na praia que leva o mesmo
nome, qual seja, Descobrimento. Quanto a sua estrutura, suas paredes
possuem um metro e treze centímetros de espessura, as grades que
guarnecem as janelas são protegidas por madeira de pau brasil, revestida
com barras de ferro. Ainda hoje ela pode ser visitada e está localizada na
408
cidade baiana de Porto Seguro, no Estado da Bahia, posto que,
naturalmente, não guarda mais população carcerária. (OLIVEIRA – 2001)
Nesta conjectura, é indispensável que se faça de cada condenado
alguém que esteja em condições de viver tanto quanto possível como se fosse
uma pessoa livre. As antigas e atormentadas classificações dos criminosos
perdem a importância que se lhes emprestava, pois em última análise,
prevalecerá (ou não) o cárcere efetivo, constituído por obstáculos ao exercício
da liberdade. (ALEIXO – 2003)
É importante, neste momento, que se caracterize o preso, o qual, com
base no Direito Penitenciário, é o sujeito de uma relação jurídica com o
Estado, que é o outro sujeito. É uma complexa relação jurídica em que há
recíprocos direitos e deveres. Entre os direitos e deveres do preso, compondo
seu status jurídico de condenado, há os que permanecem, apesar da
condenação, e há os que surgem dela. Neste entremeio, deve haver direitos
humanos e direitos adquiridos. (MIOTTO – 2001)
Perante tal interação, ainda é possível revelar que dos direitos e deveres
do Estado e do condenado pode ocorrer descumprimento dos deveres pelo
Estado e pelo condenado. A necessidade de certeza do cumprimento do
direito exige a atenta observação do princípio da legalidade, o que, por sua
vez, subentende a interveniência judicial. (MIOTTO – 2001)
Ainda na caracterização do preso, as populações carcerárias
apresentam-se como resultado final de um processo que implica em perdas
nas várias etapas de funcionamento do sistema de Justiça Criminal e, por
conseguinte, não se pode, com base no perfil dos prisioneiros, traçar
características dos mesmos nesta ou naquela sociedade. (LAMGRUBER –
2001)
Através da perspectiva traçada até aqui, a população carcerária, desde
os tempos mais remotos, nunca teve direito de espécie alguma. Eram
tratados sem dó e sem misericórdia. A partir do final do século XIX e início
do século XX começou a surgir uma nova concepção na execução penal e o
preso passou a ser encarado como ser que é. (TEIXEIRA – 1992)

409
4. A GRANDE RELEVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO
SISTEMA PRISIONAL

O Direito à Saúde, enquanto típico direito social, implica em prestações


positivas do Estado, sendo indiscutível o relevo que a questão assume na
execução da pena de prisão, face às graves carências sanitárias que a
população carcerária tradicionalmente apresenta. Já na perspectiva dos
direitos do recluso, o conteúdo deste direito traduz-se em não ser excluído
de prestações estaduais, em virtude da reclusão. (RODRIGUES – 2000)
Entretanto, de um outro prisma, a defesa e a promoção da saúde
inserem-se na área específica da socialização, justificando a criação de
programas especiais que dêem corpo a um dever especial do Estado para
com o cidadão encarcerado (RODRIGUES – 2000). Logo, Dallaricontribui
neste sentido quando diz que:

A saúde é antes de tudo um fim, um objetivo a ser alcançado. Uma


“imagem-horizonte” da qual tentamos nos aproximar. É uma busca
constante do estado de bem-estar. A saúde seria a possibilidade de a
pessoa ter os meios indispensáveis para a sua efetivação enquanto
cidadão de direito. (1998, p.59)

Ratificando tal exposição, podemos dizer que as pessoas encarceradas


mantêm seu direito fundamental de gozar de boa saúde, tanto física quanto
mental, bem como o direito a um padrão de atendimento médico que seja
pelo menos equivalente ao prestado na comunidade em geral. Dentro desta
esfera, podemos citar o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, o qual estabelece no seu artigo 12: “[...] o direito de toda
pessoa de desfrutar do mais elevado padrão de saúde física e mental possível
[...]”. (COYLE – 2002)
Neste sentido, é possível complementar citando o fato de as pessoas
encarceradas possuírem, além desses direitos fundamentais de todas as
pessoas humanas, salvaguardas adicionais em decorrência de sua condição.
Quando um Estado priva as pessoas de sua liberdade, ele assume a
responsabilidade de cuidar de sua saúde, tanto em termos das condições
nas quais as detêm, quanto em termos do tratamento individual que pode
410
ser necessário devido as circunstâncias. (COYLE – 2000)
Hodiernamente não poderíamos deixar de mencionar, dentro do
contexto acima, a Lei de Execução Penal, 7.210 de 11 de junho de 1984, a
qual representa, uma construção dogmática distanciada da realidade do seu
tempo, capaz de humanizar o sistema carcerário. Além disto, ela foi
estabelecida rigorosamente nas linhas mestras traçadas pela Organização
das Nações Unidas (ONU), a qual estabelece recomendações para o
tratamento dos encarcerados. (TEIXEIRA – 1998)
Seguindo este eixo, a Lei 7.210/84 não poderia deixar de abordar o
Direito à Saúde do encarcerado, salientando que no cárcere a assistência à
saúde é complicada e, na maioria das vezes, é insuficiente. Todavia, saúde é
um direito e sendo assim, se o presídio não tiver condições de oferecer esta
assistência, deverá providenciar para oferecimento das condições
adequadas, ou, no mínimo, para que o condenado a receba em outro local,
devendo ser autorizada sua saída do presídio, a fim de que o mesmo obtenha
o tratamento adequado. (JUNIOR – 2003)
Respaldando legalmente tal enunciado, existem alguns dispositivos
legais da Lei de Execução Penal, como art. 11 e 14.2Neste sentido, podemos
dizer que o preso, como qualquer pessoa, é suscetível de contrair doença.
Pode ocorrer que, ao ser recolhido ao estabelecimento penal, já apresente
perturbação da saúde ou doença física ou mental. É possível, também, que
uma doença esteja latente e venha a manifestar-se após a prisão, seja por
sua natural evolução, seja porque o ambiente do estabelecimento penal
influi, no todo ou em parte, para sua eclosão ou desencadeamento. Entre
elas há que se mencionar um possível trauma psicológico provocado pelo
primeiro contato com o ambiente prisional, capaz de desencadear doença
latente ou provocar estados de perturbação que, evoluindo, venham a
transformar o preso em doente mental (MIRABETE – 2002)

2BRASIL. Lei de Execução Penal n. 7.210, promulgada em 11 de julho de 1984. Art. 11 “A


assistência será:
I – material; II – à saúde; III – jurídica; III – educacional; IV – social; V – religiosa.” Art. 14 “A
assistência à saúde do preso e do internado, de caráter preventivo e curativo, compreenderá
atendimento médico, farmacêutico e odontológico. § 1º (vetado). § 2º Quando o
estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária,
esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. ”
411
Existem doenças que podem ser provocadas ou desencadeadas pelas
más condições de higiene, alimentação, vestuários, etc, como, por exemplo,
as decorrentes de alimentação inadequada qualitativa ou quantitativamente,
da falta de atividade física, da subnutrição ou desnutrição. Por fim, existe a
possibilidade de doenças cujas causas são independentes das condições
carcerárias e as lesões provocadas por acidentes do trabalho prisional ou
comuns e pelas agressões sofridas pelo preso dentro do sistema prisional.
(MIRABETE – 2002)
Não há dúvida de que é fundamental para a vida de uma instituição
prisional a existência de serviço médico eficiente e adequadamente equipado
para fazer frente às necessidades quotidianas desta população. As Regras
Mínimas da ONU preconizam que cada estabelecimento penitenciário deve
dispor dos serviços de, pelo menos, um médico, com conhecimento de
psiquiatria e que os serviços médicos devem ter sua organização
estreitamente relacionada com a administração geral dos serviços de saúde
da comunidade ou da nação, devendo todo o preso poder valer-se dos
cuidados de um dentista devidamente habilitado. (MIRABETE – 2002)
Nesta abordagem, observamos que existe uma obrigação absoluta por
parte do Estado de preservar e, se necessário, restaurar a saúde das pessoas
pelas quais ele assume responsabilidade ao priva-las de liberdade. As
condições em que as pessoas encarceradas são mantidas terão um grande
impacto sobre sua saúde e seu bem-estar. No intuito de cumprir suas
responsabilidades, as administrações penitenciárias devem, portanto,
assegurar padrões apropriados em todas as áreas que podem afetar a saúde
e a higiene dos presos, contribuindo, desta forma, para que as pessoas que
não se encontram bem de saúde possam se recuperar, além de prevenir a
propagação de infecções às saudáveis. (COYLE – 2002)
Hoje, constitui necessidade indeclinável a Administração manter a
saúde dos presos e internados e atendê-los em caso de enfermidade,
procurando um adequado regime sanitário nos estabelecimentos
penitenciários. A assistência médica compreende dois aspectos, o preventivo
e o curativo. O primeiro relaciona-se com as medidas profiláticas, que se
traduzem no exame médico a ser efetuado em todo aquele que ingressa no
412
estabelecimento, na inspeção da higiene dos locais, na inspeção da dieta
alimentícia e no controle dos presos submetidos a medidas disciplinares.
(MIRABETE – 2002)
Já o segundo aspecto refere-se à assistência médica diária para o
diagnóstico e tratamento dos enfermos da prisão. Dispõem as Regras
Mínimas da ONU que o médico deve examinar cada preso, logo após seu
recolhimento, quanto antes possível, e que, posteriormente, deverá fazê-lo
sempre que seja necessário, tendo principalmente em vista descobrir a
possível existência de doença física ou mental e tomar as medidas que se
impuserem. Além disso, deve também assegurar a separação dos presos que
sejam suspeitos de ser portadores de doenças infecciosas ou contagiosas,
revelar as deficiências físicas ou mentais que poderiam ser obstáculo ao
reajustamento e determinar a capacidade física de cada preso para o
trabalho. (MIRABETE – 2002)
Assim, um bom estado de saúde é importante para todos. Isso afeta o
modo como as pessoas se comportam e sua capacidade de funcionarem
como membros da comunidade. A boa saúde é de particular relevância na
comunidade fechada de um presídio. Por sua natureza, a condição de estar
preso pode ter um efeito prejudicial para o bem-estar tanto físico quanto
mental das pessoas presas. Este, por sua vez, não devem sair do presídio em
uma condição pior do que quando entraram, valendo isso também para
todos os aspectos da vida na prisão, mas especialmente ao serviço de
atendimento à saúde. (COYLE – 2002)
Muitas vezes os presos chegam à prisão com problemas de saúde pré-
existentes que podem ter sido causados por negligência, maus tratos ou pelo
estilo de vida pregresso da pessoa. Os presos muitas vezes provêm dos
segmentos mais pobres da sociedade e seus problemas de saúde refletirão
esse fato. Eles trarão consigo doenças não tratadas, vícios, bem como
problemas de saúde mental. Esses presos precisarão de apoio específico, da
mesma forma que muitos outros cuja saúde mental pode ser significativa ou
adversamente afetada pelo fato de estarem presos. (COYLE – 2002)
Sempre que possível, as pessoas presas devem ter pleno acesso aos
recursos médicos que estão disponíveis ao público em geral. Na maioria das
413
jurisdições, esse acesso é limitado ao atendimento especializado, enquanto o
atendimento médico geral é prestado dentro da unidade prisional individual
ou em instalações médico-penitenciárias específicas. Qualquer tratamento
médico ou serviço de enfermaria prestado pela administração penitenciária
deve ser pelo menos comparável àquele disponível na comunidade externa.
(COYLE – 2002)
Um importante princípio do atendimento à saúde no contexto
penitenciário é que todo atendimento e tratamento médico necessário deve
ser prestado gratuitamente. Esse princípio pode exigir atenção especial nas
jurisdições onde a prestação gratuita do serviço médico na sociedade civil é
limitada. Também pode ser um problema onde há números crescentes de
presos cumprindo penas longas e que necessitam de tratamentos caros para
doenças complexas ou terminais. (COYLE – 2002)
Em 2003, o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça iniciaram a
liberação e repasse de recursos do Fundo Nacional de Saúde às unidades
federadas que deram início ao processo de implantação de ações e serviços
de saúde em unidades prisionais, tendo como base o Plano Nacional de
3
Saúde no Sistema Penitenciário. Todas as unidades federadas com número
significativo de presos receberam recursos, por terem dado início à
adequação com o padrão federal. 4

Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e


Paraná foram contemplados com recursos federais. O Rio Grande do Sul,
tradicionalmente deficiente em dotações orçamentárias destinadas a ações
de saúde no sistema prisional, deixou de receber importantes recursos
federais em função do atraso no início da implantação dos programas e
atividades relacionadas à saúde prisional. 5

Desta forma, as pessoas presas, qualquer que seja a natureza de sua


transgressão, mantêm todos os direitos fundamentais a que têm direito
todas as pessoas humanas, inclusive o direito de gozar dos mais elevados

3O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, apesar de ter sido revogado, ainda
hoje serve de referência para ações no âmbito da saúde prisional.
4Relatório Azul – Garantias e Violações dos Direitos Humanos, 2002/2003, da Comissão de

Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.


5 Idem.

414
padrões de saúde física e mental. (COYLE, 2002)

5. A GLOBALIZAÇÃO E A IMPORTÂNCIA DAS INICIATIVAS LOCAIS

O Espaço Local é um processo maior de comunicação e controle social,


que surge após avaliações, discussões e articulações em âmbito global. Essa
redefinição do espaço local enquanto esfera de menor complexidade
contribui para retornar a centralidade ao cidadão, muitas vezes contraposto
ao distanciamento da globalização-excludente. Espaço local é um meio de
concretização dos princípios constitucionais, porém também com limitações
e restrições constitucionais, uma vez que o fortalecimento do poder local
pode ser contraditório, mas é, sem dúvida alguma, estratégia de cidadania,
manutenção do controle social sobre decisões públicas e concretização da
CF.
Entretanto, inicialmente, pode-se dizer que o conceito de espaço no
nosso desenvolvimento atual está gerando interesse crescente, mas também
crescente confusão. Afinal, para onde vão as macrotendências: globalização,
blocos, poder local? Entre o "Small is Beautiful" e a "aldeia global", há razões
de sobra para discutir-se de forma mais aprofundada ou mais sistematizada
o conceito de espaço e a importância que assume no cotidiano da sociedade
contemporânea. Nesse sentido:

Referimo-nos aqui aos espaços da reprodução social. Na realidade, a


simples reprodução do capital, ou reprodução econômica, já não é
suficientemente abrangente para refletir os problemas que vivemos,
inclusive para entender a própria reprodução do capital. Na linha
imprimida pelos sucessivos relatórios sobre Desenvolvimento
Humano das Nações Unidas, o objetivo central do desenvolvimento é
o homem, a economia é apenas um meio. Ninguém mais se
impressiona com o simples crescimento do PIB, e tornou-se cada vez
mais difícil identificar bem-estar humano com o bem-estar das
empresas. (DOWBOR – 1995)

O processo de globalização e a informatização dos processos de


produção, distribuição e gestão, modificam profundamente a estrutura
espacial e social dos espaços locais em todo o planeta. Este é o sentido mais
direto da articulação entre o global e o local. Os efeitos sócio espaciais desta

415
articulação variam segundo níveis de desenvolvimento dos países, sua
história urbana, sua cultura e suas instituições. (BORJA, CASTELLS – 1997)
Nesta abordagem, a globalização traz uma visão simplificada de
abertura e unificação dos espaços da reprodução social. Ocorre uma nova
hierarquização dos espaços, segundo as diferentes atividades, envolvendo
tanto globalização como formação de blocos, fragilização do Estado-nação e
surgimento de espaços subnacionais fracionados de diversas formas. A
globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim
de século, além de uma dinâmica diferenciada na articulação para
solucionar problemas contemporâneos. (DOWBOR – 1995)
Na formulação de Milton Santos, "o que globaliza separa; é o local que
permite a união". Assim, em uma dimensão extremamente prática deste
processo, o exemplo cotidiano do dilema da solidariedade é o mais comum
na sociedade contemporânea. Não que o ser humano seja menos solidário na
atualidade, mas a humanização do desenvolvimento, ou a sua re-
humanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários. A própria
recuperação dos valores e a reconstituição da dimensão ética do
desenvolvimento exigem que para o ser humano o outro volte a ser um ser
humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas.
Este processo de reconhecimento do outro não se dá no anonimato e o
anonimato se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade, no
espaço local. (DOWBOR – 1995)
Contudo, não é suficiente o alargamento das competências do poder
local para que se construa um direito social que permita uma nova e
qualificada relação entre o Poder Público e a sociedade. É preciso uma
modificação estrutural nas próprias estratégias de gestão do espaço local, a
fim de que uma nova interpretação da repartição de competências esteja
agregada a um processo de democratização das decisões públicas, evitando-
se, com isso, que o espaço local seja apenas a repetição, em escala menor,
dos processos de legitimação próprios da sociedade de massas, cujas críticas
devem ser consideradas nesta (re)ordenação do espaço público. (HERMANY –
2007)
Os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a
416
sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento. Todavia, não
somente as iniciativas locais são suficientes, pois sem sólidas estruturas
locais participativas e democratizadas, não há financiamentos externos ou
de instituições centrais que produzam resultados. De certa forma, o espaço
local está recuperando gradualmente um espaço de decisão direta sobre a
"polis", recuperando a dimensão mais expressiva da política e da
democracia. (DOWBOR – 1995)
Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o
público e o privado, surge assim com força o espaço público comunitário,
enriquecendo as opções de resolução de problemas. Em outros termos, o
espaço local aparece hoje como foco de uma profunda reformulação política
no sentido mais amplo, já que o nível local de organização política não
substitui transformações nas formas de gestão política que têm de ser
levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mundial, mas comunidades
fortemente estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada
capaz de viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos.
(DOWBOR – 1995).Nesta conjuntura:

A abordagem do poder local, como espaço privilegiado para a


articulação dos atores sociais, também deve ser inserida no contexto
da globalização, no qual se devem destacar as questões inerentes à
potencialidade do espaço local no exercício do controle social sobre a
dinâmica das relações socioeconômicas. (HERMANY – 2007. p. 262)

Ao mesmo tempo em que os problemas locais são decorrentes da


estrutura da modernidade do espaço global, devem também integrar-se a
estruturas em suas sociedades locais. Nesse sentido, o local e o global se
complementam e não são antagônicos. Essa integração social requer
mecanismos políticos democratizados, baseados na descentralização
administrativa e na participação cidadã.
Em verdade, o espaço local pode ser considerado como um importante
elemento de garantia da atuação da sociedade civil no contexto de crise do
Estado Nacional e de construção de uma economia globalizada capaz de
impulsionar ações capazes de sanar dificuldades na resolução dos
problemas decorrentes da complexidade e da contemporaneidade da
417
sociedade.
Diante disto, o poder local torna-se fundamental para que o novo
contexto global coexista com instrumentos de controle social, uma vez que
amplia as garantias sociais no paradigma transnacional. Logo, cabe destacar
que:

São justamente os governos locais os responsáveis pela execução de


políticas públicas adequadas para o fortalecimento da qualidade de
vida, seja em função da (re) definição de competências
constitucionais, seja em virtude da crise de financiamento do Estado
Nacional, que o incapacita de atender com efetividade às demandas
da população. Tais razões justificam a importância, até paradoxal, do
poder local para o desenvolvimento econômico na sociedade
globalizada, vinculado ao conceito de qualidade de vida como fator de
produtividade e, por conseguinte, de eficiência do sistema produtivo.
(HERMANY – 2007. p.263)

Portanto, é necessário que os governos locais assumam seu poder e


sejam capazes de firmar sua comunidade e seus interesses acima de suas
diferenças de partidos e ideologias. Devem ser capazes de defender seus
interesses específicos em relação aos seus respectivos estados nacionais,
sem separatismos destrutivos, mas aceitando a necessidade de conflito
negociado como forma normal de existência política em um sistema
institucional plural. (BORJA, CASTELLS – 1997)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não pretendemos, aqui, concluir efetivamente este estudo, mas apenas


apresentar algumas considerações acerca de questões observadas ao longo
da realização deste artigo, uma vez que a pesquisa é assim, não um estudo
definitivo, mas sim uma forma de proporcionar questionamentos, reflexões e
alternativas para produzir conhecimento sobre assuntos de direta e
fundamental importância para o processo de construção e consolidação de
um país fundado no princípio do Estado Democrático de Direito.
Desta forma, a sociedade contemporânea, caracterizada pela
complexidade, contingência e principalmente pela paradoxalidade,
proporciona oportunidades ao indivíduo, porém o limita também. Nunca, em

418
uma sociedade hodierna, houve tantas possibilidades de inclusão, e,
consequentemente, nunca se teve tanto “direito a ter direitos”. Todavia, o
acesso permanente a estes mecanismos inclusivos, na maioria das vezes,
acontece justamente pela exclusão, ou então, pelo não acesso. (VIAL – 2005)
É a partir desta perspectiva que podemos pautar nosso estudo, o qual
objetivou delinear o acesso ao Direito à Saúde conferido à população
prisional, pontuando a importância do espaço global para a resolução de
problemas locais. É, pois, de fundamental relevância que se comece a pensar
nestas questões, mais especificamente em políticas públicas locais que
sejam capazes de proporcionar alternativas e promover mecanismos que
realmente, de fato e de direito, possibilitem o acesso ao direito à saúde.
Assim, ainda nos dias atuais, o status que o sistema prisional assume
na sociedade é o de caráter exclusivamente punitivo, esquecendo que antes
de tudo o sistema deve preparar para o “retorno a vida livre”, de forma que
este indivíduo possa passar a integrar novamente a sociedade na qualidade
de cidadão. Contudo, não buscamos aqui julgar os detentos e seus crimes,
tão pouco a falência do sistema carcerário, mas sim conhecer os
mecanismos que proporcionam o acesso ao Direito à Saúde, o qual está
intimamente ligado à vida.
Neste sentido, é justamente no espaço local que a sociedade hodierna
irá encontrar alternativas e possibilidades para a atuação em direção à
busca de mecanismos de controle social que permitam a “compatibilidade da
sociedade de fluxos com a concretização do princípio da cidadania e da
dignidade da pessoa humana. ” (HERMANY – 2007)
Nos dias de hoje, falar em “acesso ao direito à saúde” é sinônimo de um
pensamento que nos remete à ideia de implementação e busca da
consolidação dos direitos das pessoas enquanto seres humanos, dignos de
exercerem seus direitos e também de cumprirem seus deveres. Nesta
conjuntura está o detento, o qual é visto por grande parte da sociedade como
“não sujeito de direito” e, portanto, sem direito ao acesso a determinados
serviços, como a saúde.
Temos, assim, uma sociedade que inclui todos somente porque também
é capaz, ao mesmo tempo, de excluir os ditos incluídos. Logo, a diferença
419
entre inclusão e exclusão se refere ao modo pelo qual uma sociedade
consente aos indivíduos serem pessoas humanas ou, de uma outra forma,
de participarem do sistema universal de comunicação e consequentemente
da sociedade, o que significa que o binômio inclusão/exclusão assumem
formas diversas nas diferentes etapas evolutivas,(VIAL, CAON, MIETTO –
2004) calcançando também as articulações existentes no espaço local
enquanto proposta de ampliação do espaço de controle da sociedade sobre
as decisões públicas, ressaltando aqui a concretização dos princípios
constitucionais.
Finalizando, podemos dizer que o acesso ao Direito à Saúde, no que
tange a população prisional, representa não só um desafio, mas também
uma perspectiva no direito sanitário enquanto instrumento para políticas
públicas de inclusão social no espaço local. Logo, podemos dizer que as
questões que envolvem esta população têm dimensões globais, uma vez que
abarcam problemas que acometem inúmeros países. Entretanto, a busca de
alternativas e mecanismos que solucionem não só a carência de articulações
em direção ao acesso ao direito à saúde, mas também toda a problemática
do sistema prisional na sociedade contemporânea, está justamente na esfera
local, a qual é capaz de construir e desenvolver estratégias de acordo com
sua realidade, ampliando a concretização dos direitos sociais,
essencialmente do princípio da dignidade da pessoa humana.

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422
A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO
BRASILEIRO

Juliana Oliveira Santos1


Marcelo Dias Jaques2

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa possui como tema central a análise do direito


fundamental à saúde no que concerne, especialmente, ao cenário
atualmente encontrado no sistema prisional brasileiro – observada a
legislação específica acerca do assunto –, tendo como pano de fundo o papel
do Estado como responsável pela tutela dessa garantia constitucional.
Neste contexto, além de se falar em direitos sociais, torna-se
importante trazer à luz o fato de que, mesmo privados de liberdade, os
cidadãos aprisionados, ou seja, que cumprem pena de detenção, não podem
ter cerceados os direitos relativos à sua dignidade previstos na Constituição
Federal (CF) de 1988.
É o que destaca Schwartz (2003, p. 43) ao mencionar que para efeitos
de aplicação do art. 196 da CF/88, a saúde pode ser conceituada como: “um
processo sistêmico que objetiva a prevenção e cura de doenças”, ao mesmo
tempo em que tem por objetivo a melhor qualidade de vida possível, a partir
da “aferição da realidade de cada indivíduo”, tendo como “pressuposto de
efetivação a possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios
indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar”.
Nesse sentido, ressalta-se a questão da dignidade da pessoa humana,
caracterizada por Moraes (2013) como um valor referente à pessoa e que se
manifesta individualmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida, além do respeito por parte dos demais. Esse direito deve ser

1 Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ, aluna especial do


Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul - UNIJUÍ.
2 Doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Mestre em

Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ.
Especialista em Direito Público pela Verbo Jurídico. Bacharel em Direito pela Universidade
Luterana do Brasil – ULBRA. Bolsista PROSUP/CAPES.
423
assegurado de forma efetiva, ainda que a realidade fática apresente
limitações, porém sempre resguardando a necessária estima e respeito que
todas as pessoas – ainda que em estado de privação de liberdade – merecem
enquanto seres humanos.
Diante do exposto, através da pesquisa dedutiva e bibliográfica, este
artigo visa a analisar a efetividade da atuação do Estado, frente ao Sistema
Prisional, na aplicação das leis e Portarias Interministeriais que serão
estudadas. Além do que determina a Carta Magna de 1988, busca-se, aqui, o
estudo das leis que garantem o acesso à saúde no sistema penitenciário
brasileiro, ou seja, a Lei de Execução Penal (n.º 7. 210, de 11 de julho de
1984 – LEP), a Lei Orgânica da Saúde (n.º 8.080 de 19 de setembro de 1990,
que contempla o Sistema Único de Saúde – SUS), bem como as Portarias
Interministeriais n.º 1.777, de 09 de setembro de 2003, e n.º 1, de 02 de
janeiro de 2014.
É fato público e notório que o dever de prestação da garantia
constitucional de acesso à saúde por todos os indivíduos tem se mostrado
uma tarefa hercúlea ao Estado brasileiro, encontrando ainda maiores
obstáculos no que tange ao sistema prisional.
Para desenvolver este trabalho propôs-se o seguinte problema: Existem
políticas públicas implementadas pelo Estado para a garantia do direito de
acesso à saúde no âmbito prisional e se são suficientes para cumprir seu
mister? Como hipóteses prováveis se apresenta uma assertiva positiva, no
sentido de que há políticas estatais empregadas na tutela do direito à saúde
realmente efetivas em seu desiderato; entretanto, agora sob o viés negativo,
apesar de terem sido editados dispositivos legais em favor da manutenção
das condições mínimas de saúde para os indivíduos privados de liberdade,
como se verá no decorrer do estudo, as mesmas não apresentam resultados
mínimos para satisfazer esse direito fundamental.
Por meio deste trabalho acadêmico, espera-se abordar uma temática
de relevante importância no cenário brasileiro atual, bem como destacar a
importância de ações que garantam o direito à saúde dos apenados e
estimular a criação de novas práticas, visando à consolidação do acesso à
saúde no sistema penitenciário no Brasil.
424
Assim, a partir da problemática apresentada pelo Sistema
Penitenciário Brasileiro e da legislação referente ao acesso à saúde no
âmbito prisional, bem como a atuação do Estado como garantidor desse
direito - fundamento do presente trabalho –, torna-se imprescindível um
breve estudo da situação atual do referido sistema.

2. ABORDAGEM HISTÓRICA SOBRE O SISTEMA PRISIONAL


BRAISLEIRO

A pena consiste em uma sanção penal de caráter aflitivo, que resulta


na restrição ou privação de um direito ao indivíduo considerado culpado pela
prática de um ato considerado como infração penal. É aplicada pelo Estado
na execução de uma sentença e tem como finalidade a aplicação de uma
retribuição punitiva, promover a readaptação social e prevenir novas
transgressões através da intimidação dirigida à coletividade3 (CAPEZ, 2014,
p. 379-380).
O sistema penal, de acordo com o exposto por Zaffaroni e Pierangeli
(2002, p. 70) é o que pode ser chamado de “controle social punitivo
institucionalizado”. Na prática, isso quer dizer que o mesmo sistema abrange
tanto o que se constata como o que se “suspeita de delito até que se impõe e
executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que
institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos
e condições para esta atuação”. Portanto, pode-se resumir a ideia geral de
“sistema penal”, mesmo que em um sentido limitado, compreendendo, além
disso, a “atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes,
promotores e funcionários e da execução penal” (ZAFFARONI; PIERANGELI,
2002, p. 70).
O poder punitivo, ou seja, o poder de aplicar sanções emana do
Estado. Assim, o juiz, que representa a figura do Estado, está agindo em
nome da sociedade quando aplica a pena em relação a um ilícito penal,

3 São três as teorias que explicam as finalidades da pena: a) a Teoria absoluta ou da


retribuição; b) a teoria relativa ou da prevenção; c) a Teoria mista. O Direito Penal brasileiro
adota essa terceira teoria, abarcando a dupla função de punir aquele que cometeu o ato
ilícito, bem como reeducá-lo e intimidar a coletividade (MASSON, 2014).
425
delito este devidamente tipificado no Código Penal brasileiro.
De acordo com Mirabete (2013, p. 235), a pena de prisão originou-se
nos mosteiros da Idade Média, “como punição imposta aos monges ou
clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem as suas celas para se
dedicarem, em silêncio, à meditação e se arrependessem da falta cometida,
reconciliando-se assim com Deus”. Para o autor, a primeira abordagem
prisional tinha como intenção fazer com que o faltoso fosse recolhido para
que meditasse sobre os atos cometidos, podendo se reconciliar então com
Deus.
O mesmo autor relata que no Brasil, no início da colonização as leis
que vigoravam eram baseadas nas Ordenações Afonsinas as quais oprimiam
de maneira violenta e cruel os crimes cometidos. Mais tarde, vigoraram as
Ordenações Manuelinas, porém poucas modificações ocorreram no que diz
respeito aos tratamentos cruéis.
O sistema jurídico que vigorou durante todo o período do Brasil-
Colônia foi o mesmo que existia em Portugal, ou seja, as Ordenações Reais,
compostas pelas Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas
(1521) e, por último, fruto da união das Ordenações Manuelinas com as leis
extravagantes em vigência, as Ordenações Filipinas, que surgiram como
resultado do domínio castelhano (PEDROSO, 2004).
Conforme Teles (2006), as Ordenações Filipinas foram aplicadas
efetivamente no Brasil, sob a administração direta do Reino, com vigência a
partir de 1603, findando em 1830 com o advento do Código do Império. A
matéria penal estava contida no Livro 5, denominado o “Famigerado” e as
penas fundavam-se na crueldade e no terror, distinguindo-se pela dureza
das punições. A pena de morte era aplicada com frequência e sua execução
realizava-se com a morte pelo fogo até ser reduzido a pó e a morte cruel
marcada por tormentos, mutilações, marca de fogo, açoites, penas
infamantes, degredos e confiscações.
Em 1830 foi promulgado um novo Código Criminal do Império
reconhecendo a prisão como forma de punição no Brasil, elaborado a partir
das ideias Iluministas da época, com influência da obra “Dos Delitos e das
Penas”, de Beccaria. Neste código foi consagrado o princípio da
426
humanização, que resultou na abolição dos açoites, torturas, marca de ferro
quente, porém manteve-se a pena capital (CARVALHO FILHO, 2002, p. 38).
Segundo o mesmo autor, existia naquela época a pena de prisão com
trabalho, pena de prisão simples e pena de prisão celular. Tais espécies
eram consideradas desumanas, pois em todas elas o elemento comum era o
castigo.
A primeira casa prisional no Brasil surgiu em 1830, tendo sido
denominada Casa de Correção do Rio de Janeiro e visava representar os
avanços em relação às técnicas punitivas que predominavam na época. No
entanto, o que veio a ocorrer com o passar do tempo, foi o início de um
evidente problema social, sendo que perdura na contemporaneidade, como o
aumento da população, a superlotação e a falta de estrutura carcerária
(PEDROSO, 2004).
Em 1940, foi elaborado o Código Penal e a partir daí, surgiram as
penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa, dando um
tratamento individualizado e compatível com o crime ou contravenção
cometida, uma vez que o ser humano passou a ter maior proteção jurídica e
valorização enquanto pessoa humana, se comparado com outrora.
Carvalho (2003) ressalta a relevância de ser tratada a questão
carcerária na sociedade brasileira, descrevendo que a realidade dos presídios
em todo país é o retrato fiel de uma sociedade desigual e da ausência de
uma política setorial séria e estruturada que enfrente a ineficácia do sistema
penitenciário. O autor acrescenta que o quadro do sistema penitenciário é
caótico, revelando uma “desassistência” generalizada nos presídios, reflexo
da ausência de uma política que rompa com o estado de degradação em que
se encontram milhares de homens e mulheres presos.
Em 1984, com o objetivo de “efetivar as disposições da sentença ou
decisão criminal e proporcionar condiçõespara a harmônica integração social
docondenado e do internado”surgiu a Lei 7.210, conhecida como Lei de
Execuções Penais. Tal lei, juntamente com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, trouxe mudanças substanciais quanto à proteção da
pessoa humana.
Entre 1995 e 2005, a população carcerária do Brasil saltou de pouco
427
mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de
143,91% em uma década. A taxa anual de crescimento oscilava entre 10 e
12%4.
Segundo dados consolidados pelo Sistema Nacional de Informação
Penitenciária, a partir de 2005, já com padrões de indicadores e
informatização do processo de coleta de informações, a taxa de crescimento
anual caiu para cerca de 5 a 7% ao ano. Entre dezembro de 2005 e
dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para
473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos, de 31,05%,
deixando claro através destes dados apontados a deficiência de vagas,
juntamente com a problemática da superlotação das casas prisionais.
Ocorre que a realidade cada vez mais se distancia da teoria,
provocando um abismo vertiginoso entre o plano do dever ser e o plano do
ser5. Contendo a quarta maior população carcerária do mundo – apenas
atrás dos Estados Unidos, China e Rússia –, atualmente o Brasil possui
mais de 607 mil pessoas reclusas a um sistema prisional em estado de
superlotação que apresenta déficit superior a 231 mil vagas. São os dados
divulgados pelo Ministério da Justiça em 23 de junho de 2015, constantes
no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)6.
O encarceramento em celas superlotadas e em condições degradantes
e desumanas desvirtua a finalidade da pena – que como foi visto, excede a
esfera da mera punição –, sendo manifesto que a realidade atual não permite
ao apenado alcançar a ressocialização. Agrava a situação o fato de que a
superpopulação e a precariedade das condições dos presídios consistem em

4 Neste período, as informações ainda eram consolidadas de forma lenta, já que não havia

um mecanismo padrão para consolidação dos dados, que eram recebidos via fax, ofício ou
telefone.
5 Aqui se utiliza a distinção entre o plano do ser e do dever ser proposta por Hans Kelsen em

sua obra Teoria pura do direito na qual a conduta humana, o ser, somente assume
significação jurídica quando coincide com uma previsão normativa válida, o dever ser. Ao
passo que a conduta humana pode se conformar ou contrariar uma norma – o que permite
uma valoração da mesma como positiva ou negativa – as normas, por sua vez, são
estabelecidas através de atos de vontade humana, possuindo, portanto, valores arbitrários e
relativos (KENSEN, 2006).
6 Tal relatório INFOPEN é o documento oficial que contém os dados mais atualizados sobre a

matéria. Tomando como data-base o mês de junho de 2014, oferece informações completas
para subsidiar administração do Sistema Penitenciário Nacional, sintetizando os dados dos
estabelecimentos penais dos estados com o objetivo de contribuir para um diagnóstico da
situação prisional do país (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015).
428
problemas estruturais e sistêmicos que evidenciam a situação de deficiência
crônica do sistema prisional brasileiro, fato que não é exceção, pois está
presente em todo o país.
Com relação a essas violações, Carvalho (2002, p. 212) ressalta que o
fenômeno da inobservância dos direitos da pessoa presa, por parte da
administração pública, é uma das realidades mais notórias no país, sendo
que inúmeros estudos empíricos demonstram o afirmado.
Para Viana (2012), o maior de todos os problemas enfrentados pelo
sistema carcerário brasileiro, refere-se à questão da superlotação e que não
apresenta uma solução em curto prazo, pois o que existe são várias
discussões com vistas a tentar elucidar este problema. Desta forma, pode-se
perceber que a prisão torna-se um espaço de punição excessiva, e a exclusão
surge através da condição a que os apenados são submetidos. Devido à
superlotação das celas e das instalações insalubres, os apenados estão mais
predispostos ao contágio de doenças, haja vista não haver um amparo firme
acerca deste direito.
Schmidt (2003, p. 278) refere que, de modo geral, o preso se encontra
em “situação social e jurídica bem mais grave do que qualquer pessoa que
viva em liberdade”. Além disso, a restrição da liberdade impede o preso de
“satisfazer, pelas próprias possibilidades, as suas necessidades vitais, como
a proteção à saúde, de sua segurança”, entre outros aspectos.
Como explica Bitencourt (2002), a essência do regime prisional é o fato
de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da
condenação. A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende
constituir um estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime
aplicado e, de outro, pretende que este regime, em razão da boa disposição
anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a
preparação para a futura vida em sociedade.
Para Schmidt (2003, p. 280), o ambiente mais “dessocializador possível
é o próprio cárcere, já que boa parte das casas prisionais brasileiras não
possui condições mínimas de salubridade”. Outro aspecto a ressaltar,
segundo o autor, é o índice de doenças como a AIDS, o qual é elevadíssimo,
chegando, em alguns locais, a atingir quase 20% dos apenados, além da
429
superlotação que é evidente.
Nessa tendência, cabe mencionar de forma mais detalhada a falta de
estrutura física, ou seja, as más condições das celas a que os apenados são
obrigados a manterem-se durante o cumprimento de suas respectivas penas.
Está na Constituição Federal, assim como nas demais leis, que é dever do
Estado garantir condições higiênicas, salubres de habitação para os
apenados, bem como assegurar que os detentos tenham alimentação e
vestuário.
Quanto às condições da cela, Schmidt (2003, p. 292) descreve que:

[...] o anseio da cela ou do alojamento é um dever imposto muito


mais ao Estado do que, propriamente, ao preso. Trata-se da
obrigação de assistência material que, segundo dispõe o art. 16 da
LEP, consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e
instalações higiênicas. Portanto, antes mesmo de o Estado - e, como
tal, também a administração prisional – exigir de apenados os
devidos cuidados em relação ao local onde estejam recolhidos,
deverá, a bem de verdade, proporcionar condições dignas para que
estes mesmos apenados possam, com humanidade, cumprir a
reprimenda estatal imposta. Uma vez cumprida tal prestação
positiva, aí sim poderá ser exigido do preso que mantenha em boas
condições a cela ou alojamento.

Importante, nesse sentido, acrescentar a visão de Mirabette (2002, p.


39) para o qual o Estado tem o direito de executar a pena e os limites desse
direito de execução “são traçados pelos termos da sentença condenatória,
devendo o sentenciado submeter-se a ela”. Porém, o mesmo autor acrescenta
que a esse dever corresponde o direito do condenado de não sofrer, ou seja,
de não ter de cumprir outra pena, e que, “eliminados alguns direitos e
deveres do preso nos limites exatos dos termos da condenação”, a pena
privativa de liberdade de locomoção deve ser executada somente quantos aos
aspectos “inerentes a essa liberdade, permanecendo intactos outros tantos
direitos”. A inobservância desses direitos significaria a imposição de uma
pena suplementar não prevista em lei.
Hoje é sabido que a maioria dos delitos praticados traz, em si, não só a
responsabilidade de seu autor, como, também, uma responsabilidade social,
ou seja, o fato de que a sociedade e o Estado tem uma parcela de culpa pelo
crime praticado (CARVALHO, 2002).
Diante do exposto e com base na visão dos autores, verifica-se a
430
negligência do Estado brasileiro frente ao Sistema Prisional, mostrando um
Sistema falido, que impossibilita a reabilitação de seus custodiados,
negando-lhes até mesmo os direitos constitucionais, especialmente os
definidos pelo Sistema Único de Saúde, que será destacado a seguir.

3. O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

A saúde no Brasil é um direito constitucional, ou seja, está previsto na


Constituição Federal de 1988 em seus artigos 6.º, caput, 196º, caput, bem
como no artigo 5.º, caput, quando se lê “direito à vida”. Diante destes
dispositivos, torna-se notória a ligação estreita de saúde e direito, ou seja,
são dois sistemas inteiramente ligados.
De acordo com Sarlet (2010, p. 259), “a existência de normas que se
restringem a estabelecer programas, finalidades e tarefas mais ou menos
concretas a serem implementadas pelos órgãos estatais e que reclamam uma
mediação legislativa (normas programáticas)” correspondem a uma exigência
do Estado Social de Direito.
O mesmo autor ressalta que a Constituinte de 1988 consagrou uma
série de direitos fundamentais sociais e, também, considerou todos os
direitos fundamentais como “normas de aplicabilidade imediata”. Alguns
direitos fundamentais sociais se enquadram, pela sua estrutura normativa e
por sua função, “no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual inexistem
maiores problemas em considerá-los normas autoaplicáveis” (SARLET, 2010,
p. 260).
Por sua vez, a Emenda Constitucional n° 20/98 estabeleceu que a lei
definirá os critérios de transferência de recursos para o SUS e ações de
assistência social da União para os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, como também dos Estados para os Municípios, observada a
respectiva contrapartida de recursos (CF, 1988, art. 195, §10).
A Emenda Constitucional nº. 29 e agora a Lei Complementar nº
141/2012, provocaram alterações relevantes em relação aos gastos das três
esferas de governo com a saúde. Teve a intenção de que a participação dos
estados e municípios no financiamento da saúde crescesse e que em
431
contrapartida a participação da União caísse (GUIMARÃES, 2012).
No caput do artigo 195 da Constituição Federal de 1988 encontram-se
implícitos os seguintes princípios: a saúde como direito de todos e dever do
Estado; a regionalização e a hierarquização das ações e serviços de saúde; e
a unicidade do sistema de saúde. Tais princípios foram desenvolvidos e
explicitados na Lei Orgânica da Saúde – LOS.
A Lei Orgânica da Saúde prevê que, além das diretrizes
constitucionais, as ações e serviços de saúde, públicos e privados, devem
obedecer aos princípios da universalidade de acesso, da integralidade de
assistência, da preservação da autonomia das pessoas, da igualdade, do
direito à informação, da divulgação de informações quanto ao potencial dos
serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário, da utilização da
epidemiologia para o planejamento das ações e da participação da
comunidade, conforme previsto no artigo 7º do referido diploma legal.
A saúde faz parte do “sistema social sobre o qual nos encontramos, e,
se quisermos ir mais adiante, faz parte do sistema da vida – que também é
um sistema social. Ela (a saúde) é um sistema dentro de um sistema maior
(a vida), e com tal sistema interage” (SCHWARTZ, 2003, p. 37).
A Constituição não trata a saúde apenas como a ausência de doenças
nos seres humanos, mas sim na ótica da proteção, prevenção e promoção da
saúde, preocupando-se não só em tratar os males que podem acometer a
população, deixando clara a intenção do Estado em proporcionar digna
qualidade de vida aos seus cidadãos, sem distinção. De acordo com Sarlet
(2009, p. 325) o direito à saúde é uma “exigência inarredável de qualquer
Estado (social ou não) que inclua nos seus valores essenciais a humanidade
e a justiça”, ainda que as mesmas sejam limitadas ao estritamente
necessário para a proteção humana.
Conforme afirma Schwartz (2003, p.160) não resta dúvida que o
objetivo maior de nossa sociedade é o respeito à dignidade humana, em que
a saúde ocupa lugar de destaque, já que é um princípio fundamental,
topograficamente – não por acaso – localizado em posição de privilégio no
texto constitucional.
Para Sarlet (2010, p. 70), pode-se entender por dignidade da pessoa
432
humana a qualidade que é própria e “distintiva reconhecida em cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade”. Esse sentido implica em um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato com sentido degradante e desumano, como contra aqueles que
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável.
Ao estabelecer a saúde como direito de todos e dever do Estado
(art.196), a Constituição Federal de 1988 inovou, indicando que tipo de
saúde deve ser possibilitada aos cidadãos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país. Esse é o sentido das expressões “redução do risco de
doenças”, “promoção”, “proteção” e “recuperação”, contidas no dispositivo
constitucional anteriormente referido. Quando fala em “recuperação”, a
CF/88 está conectada ao que se convencionou chamar de saúde “curativa”;
os termos “redução do risco de doença” e “proteção” estão claramente ligados
à saúde “preventiva”; e a “promoção” é a qualidade de vida, posteriormente
explicada pelo art. 225 da Constituição (DALLARI, 1995 apud SCHWARTZ,
2003, p. 27).
Como salienta Sarlet (2010, p. 56-57), a dimensão positiva é o que
distingue esses direitos pelo fato de que se cuida não mais de evitar a
intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas sim propiciar
um direito de participar do bem-estar social. Não se cuida mais, portanto, de
liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do
Estado.
Conforme Sarlet (2010, p. 70), os direitos fundamentais, ao menos de
“forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do
princípio da dignidade da pessoa humana. O significado último das
cláusulas de imutabilidade está em prevenir um processo de erosão da
Constituição”. Enfim, são os direitos que propiciam e promovem a
participação ativa e co-responsável de cada ser nos destinos da própria
existência e da vida com os demais seres humanos, mediante o devido
respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Portanto, cabe ressaltar que os apenados ou condenados não perdem
433
seus direitos assegurados pela Constituição Federal e, com isso, o direito ao
acesso a uma saúde de qualidade ultrapassa os muros das penitenciárias.

4. A SAÚDE PRISIONAL COMO DEVER DO ESTADO

A disciplina constitucional do direito à saúde, perante o modelo


federativo de Estado, estabelece ser de competência de todas as pessoas
políticas dispor sobre saúde. A saúde no Brasil é dever do Estado e está
expressamente prevista no artigo 6.º, caput, da Constituição, bem como no
artigo 196, caput, aparecendo ainda no caput, dos artigos 197, 198, 199 e
200, os quais estabelecem políticas públicas referentes à promoção da saúde
no Brasil, bem como sua estruturação.
Quanto à obrigatoriedade do Estado como garantidor da saúde, Sarlet
et al. (2012, p. 77) explica que, consagrado no art.6.º de nossa Constituição,
é no art. 196 e seguintes que o direito à saúde encontra sua maior
concretização ao nível normativo-constitucional, para além de uma
significativa e abrangente regulamentação normativa na esfera
infraconstitucional, com destaque para as leis que dispões sobre a
organização e benefícios do SUS e o fornecimento de medicamentos.
Sarlet (2010) ressalta que os dispositivos relacionados, ou seja, os
artigos 196 a 200, no que diz respeito à forma de positivação quanto a uma
norma definidora do direito à saúde como direito subjetivo, portanto o
mesmo é de titularidade universal. Além disso, o direito à saúde também é
previsto em diplomas internacionais, ratificados pelo Brasil: Declaração
Universal da ONU, de 1948, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, na Convenção de Direitos da Criança e na Convenção
Americana de Direitos Humanos. Assim, ainda que não fosse albergada no
texto constitucional brasileiro, em razão da abertura do catálogo dos direitos
fundamentais, por força do artigo 5º, § 2º do texto constitucional, este direito
já estaria protegido.
Nesse sentido, também é relevante o entendimento de Moraes (2013, p.
844) o qual ressalta que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
434
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário a
ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação, forte no
artigo 196 da Constituição Federal de 1988, sendo de relevância pública as
ações e serviços de saúde. Cabe ao Poder Público, nos termos do artigo 197
da Carta Magna, dispor nos termos da lei, sobre a sua regulamentação,
fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou por
meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Ao ressaltar a relatividade dos direitos e garantias individuais e
coletivos, Moraes (2014) afirma que os direitos fundamentais nascem para
reduzir a ação do Estado aos limites impostos pela Constituição, sem,
contudo, desconhecerem a subordinação do indivíduo ao Estado, como
garantia de que eles operem dentro dos limites impostos pelo direito.
Além disso, também há a questão das normas de característica
impositiva de deveres e tarefas, já que o art. 196 enuncia que “a saúde é
direito de todos e dever do Estado”, além de impor aos poderes públicos uma
série de tarefas, tais como a de promover políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos, além de estabelecer
o acesso universal e igualitário às ações e prestações neste campo (SARLET
et al., 2012).
De acordo com Sarlet et al. (2012), num segundo momento, a
Constituição remete a regulamentação das ações e serviços de saúde ao
legislador (art. 197), além de criar e fixar as diretrizes do Sistema Único de
Saúde (art. 198), oportunizando a participação (em nível complementar) da
iniciativa privada na prestação da assistência à saúde (art. 199), bem como
estabelecendo, conforme o art. 200, em caráter exemplificativo, as
atribuições (nos termos da lei) que competem ao Sistema Único de Saúde.
Assim, como está definido na Constituição Federal de 1988 e demais
leis relacionadas, o acesso à saúde dentro das penitenciárias brasileiras é de
responsabilidade do Estado, tendo em vista que a saúde é entendida como
direito de todos, sem distinção, e dever do Estado a sua promoção.
Portanto, cabe ao Estado concretizar o direito à vida, especialmente no
que diz respeito ao oferecimento de saúde, pois isto parte do próprio texto
constitucional e de sua conexão com diversas normas de direitos, uma vez
435
que a forma como a questão foi tratada na Constituição, destinando um
capítulo próprio à saúde, demonstra o cuidado com esse bem jurídico. Com
efeito, o direito à saúde, por estar intimamente relacionado ao direito à vida,
manifesta a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e
também é tratado na Lei de Execução Penal que se aborda na sequência.

5. PORTARIAS INTERMINISTERIAIS ACERCA DA SAÚDE PRISIONAL NO


BRASIL

Algumas portarias completam a legislação já existente quanto à


garantia do acesso à saúde, destacando-se neste artigo a Portaria
Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003 que aprovou o Plano
Nacional de Saúde no Sistema Prisional (PNSSP), constatando-se através
dessa portaria, a preocupação do Estado em definir as ações e diretrizes do
SUS, no que se refere à necessidade de prover a saúde junto ao sistema
carcerário brasileiro.
Nesse sentido, a Portaria Interministerial nº 1.777/03 (BRASIL, 2014)
no art. 1º, caput, assim estabelece: “Art. 1º- Aprovar o Plano Nacional de
Saúde no Sistema Penitenciário [...] destinado a prover a atenção integral à
saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e
femininas, bem como nas psiquiátricas”.
Nos parágrafos do mesmo artigo, a Portarianº 1.777/03 define que as
ações e serviços decorrentes desse Plano terão por finalidade promover a
saúde dessa população e contribuir para o controle e/ou redução dos
agravos mais frequentes que a acometem, bem como estabelecer como
prioridades para o alcance dessa finalidade.
Quanto ao financiamento das ações de saúde no sistema prisional a
Portaria Interministerial n.º 1.777 de 09 de Setembro de 2003 prevê no “Art.
4º - Determinar que o financiamento das ações de saúde, no âmbito do
Sistema Penitenciário, deverá ser compartilhado entre os órgãos gestores da
saúde e da justiça das esferas de governo”.
A referida Portaria também ressalta a atuação do Ministério da Justiça
como responsável na alocação de recursos para financiamento e aquisição
436
de equipamentos para prover a saúde prisional como se pode verificar no
texto contido nos artigos 6º e 7º.
Portanto, a partir da análise da Portaria n.º 1.777, observa-se que
através da mesma o Estado procurou determinar quais os melhores
caminhos para imprimir ações de atendimento à saúde e dignidade dos
presos, além de mostrar um caminho que retrata as imensas falhas
institucionais existentes no sistema penitenciário brasileiro.
Com relação ao tema proposto, também se destaca neste artigo a
implementação da Portaria n.º 1, de 02 de janeiro de 2014 que, em linhas
gerais, institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do SUS,
entendendo por pessoas privadas de liberdade no sistema prisional aquelas
com idade superior a dezoito anos e que estejam sob a custódia do Estado
em caráter provisório ou sentenciados para cumprimento de pena privativa
de liberdade ou medida de segurança.
Conforme Viana (2012), essa nova tentativa de direcionamento do
sistema penitenciário, resulta na confirmação de que um longo caminho
ainda necessita ser percorrido. Isso porque, atentar para a realidade de que
apenas atualmente ocorreu a preocupação para uma melhor proteção a esse
universo, pesa como um atraso em termos de legislação. Portanto, a situação
que existe decorre de um sistema ainda falho e que precisa de maneira
urgente de maior atenção e cuidados.
Outro aspecto a acrescentar é que a adesão dos municípios é
facultativa como determina o art. 14 da Portaria n.º 1 de 2014 desde que
observados os requisitos elencados no mesmo dispositivo.
Em 2003, foi criado o Plano Nacional de Saúde no Sistema
Penitenciário (PNSSP), com o objetivo de levar aos cárceres o que apenas
estava previsto na lei: as ações e serviços de saúde (KOLLING; SILVA e SÁ,
2013).
Para os mesmos autores, ainda que antes do Plano Nacional de Saúde
no Sistema Penitenciário houvesse ações de saúde nos estabelecimentos
penais, o plano nacional promoveu o acesso efetivo, por meio de incentivo
financeiro para custeio, e medicamentos de atenção básica, com recursos do
437
Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça, o qual deveria assumir a
reforma e a adequação dos espaços físicos de estabelecimentos penais e
equipamentos. Os autores também destacam que a dinâmica da atenção à
saúde nas unidades prisionais tem sido essencialmente curativa e um pouco
preventiva. Predominam, ainda, as consultas e imunizações. Ainda há muito
investimento a ser feito para consolidar uma lógica de atenção básica para
promoção e preservação da saúde, com orientações acerca de doenças
infectocontagiosas.
Na tentativa de enfrentamento desse problema, algumas ações do
Estado ganharam espaço no cenário, dentre as quais o Plano Nacional de
Saúde no Sistema Penitenciário. O plano se refere às questões que até então
a LEP não enfrentou. A formulação do plano considerou a relevância da
caracterização da população penitenciária, diretrizes e estratégias para a
consolidação da política de saúde no sistema prisional, regulamentou as
questões de financiamento, de recursos humanos, de informação em saúde e
as formas de gestão.
A portaria que instituiu o plano prevê mecanismos para a plena
extensão dos serviços do SUS aos presídios, enfatizando a “atenção básica”,
mediante o estabelecimento de ações a serem conduzidas pelos vários níveis
de gestão, com a respectiva divisão de responsabilidades. A lógica adotada
está fundamentada na ideia de que presídios com mais de 100 presos devem
ter permanentemente uma equipe de saúde vinculada ao SUS, trabalhando
por 20 horas semanais e destinando-se ao atendimento de 500 presos. Logo,
se um presídio tem lotação de 1000 presos, serão necessárias duas equipes
naquele mesmo nível de dedicação (BRASIL, 2003).
Conforme Kolling; Silva e Sá (2013), dentro da lógica do Plano Nacional
de Saúde, no Sistema Penitenciário pode-se destacar que a promoção da
cidadania por meio da efetivação do direito à saúde, trata-se de uma política
pública intersetorial instituída pela Portaria Interministerial n. 1.777/2003,
editada pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, com a finalidade de “levar”
cidadania para os que estão atrás do “muro”, ou seja, essa política mostra-se
como uma ponte e não como mais um muro de isolamento.
Ao enfrentar o problema com uma política pública específica, o Estado
438
como garantidor do direito considerou as peculiaridades e necessidades dos
que estão submetidos ao Sistema Prisional, dando o primeiro passo para
inserir a expectativa de ver o direito à saúde concretizado “do lado de dentro
dos muros”.
Portanto, a partir das várias leis e portarias, foram criados
mecanismos para neutralizar ou até eliminar a negligência do Estado quanto
aos direitos dos apenados, ou seja, concretizando as necessidades desse
segmento social.

6. CONSIDERÇÕES FINAIS

Conforme destacado no decorrer da presente pesquisa, a saúde é um


direito constitucional que necessita de regulamentação e proteção. Além
disso, no ordenamento jurídico brasileiro existem leis que asseguram de
forma clara o direito à saúde para todos, mas se verifica que isso não é
garantido pelo Estado, como determina a Constituição.
Desse modo, ao pensar em saúde sob o olhar jurídico, constata-se
uma relevante complexidade, pois apesar de existirem inúmeras legislações
que asseguram o direito à saúde no Brasil, a realidade do Sistema prisional
não proporciona a efetividade desse direito. .
A partir do direito à saúde, este trabalho definiu como objetivo um
olhar acerca do acesso à saúde no Sistema Prisional Brasileiro, tendo em
vista que mesmo sob os “muros” do Estado, os presos possuem direitos.
Porém, esses direitos vêm sendo deturpados, pois, conforme destacado no
decorrer deste trabalho, há um desrespeito quanto à aplicação dos artigos da
Constituição Federal, que é a lei maior do país, bem como em relação às
demais legislações que garantem o direito à saúde, isto é a Lei Orgânica do
SUS e Lei de Execução Penal, além de Portarias.
Sabe-se que as ações de saúde também no âmbito prisional dependem
da ação positiva do Estado, e os recursos disponíveis são insuficientes para
atender esta população, já que nem sempre os gastos com os direitos sociais
são a prioridade quando é feita a escolha das demandas para custear o
acesso à saúde dentro das penitenciárias brasileiras.
439
É fundamental e urgente apresentar soluções a esta problemática para
efetivar o direito à saúde do apenado, ou seja, não apenas para amenizar,
mas para garantir esse direito a todos e, especialmente, àqueles que se
encontram privados de seus direitos básicos.
Diante disso, como primeira ação para diminuir a problemática do
acesso à saúde no âmbito prisional é necessário concretizar as políticas
públicas de saúde, visando efetivar verdadeiramente o disposto na
legislação, principalmente o que prevê a Constituição Federal e a
implementação do Sistema Único de Saúde.
Enfim, diante da problemática generalizada quanto ao Sistema
Prisional brasileiro, é preciso pensar em ressocialização e recuperação,
proporcionando a garantia à saúde dos apenados, isto é, oferecendo
condições salubres, cuidados preventivos, boa alimentação e a promoção
efetiva da saúde.

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442
ANÁLISE BIOPSCICOSSOCIAL DO USO DE ALGEMAS: CONFLITO ENTRE
A LEI E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Fernanda Licéli Lowe1

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo traz como tema principal a análise biopsicossocial do


uso de algemas em conflito com o princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana. Devido à agressividade acerca da utilização do objeto, que
historicamente foi criado no século XVI, e que hoje, apesar de utilizado
mundialmente pelas polícias, no Brasil ainda carece de legislação própria. A
partir de aspectos históricos é possível conhecer as particularidades do uso
de algemas e do objeto em si, compreender suas características e limitações,
bem como o regramento esparso na Constituição Federal de 1988, Código
Penal, Código de Processo Penal e Súmula Vinculante nº 11 do Supremo
Tribunal Federal. A problemática do uso de algemas calcada estána falta de
legislação.
A utilização do objeto entra em conflito com os princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da integridade física, da
presunção de inocência, da legalidade e da proporcionalidade. Na medida em
que tem relevante função social, o cumpridor da norma não poderá
desfigurar o sentido acerca da gravidade da situação, ignorando direitos ou
ultrapassando os limites que a Constituição confere. São estes direitos de
defesa que originam a perspectiva clássica de que o Estado é um adversário
da população, por falta de qualidade na segurança pública, os cidadãos não
observam a face do Estado no sentido de guardião dos direitos públicos.
Ainda,atinge-se a esfera do poder de polícia transmitido pelo Estado,
envolvendo questões pertinentes ao constrangimento ilegal, uso, abuso e
contenção mecânica.
Caracterizar o uso de algemas de maneira excepcional, somente para

1Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Pós Graduanda em Direito
Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER. Aluna especial do
Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul - UNIJUÍ.
443
casos onde há fundado risco e perigo à sociedade, é primordial para garantir
a efetividade humanística do princípioda dignidade da pessoa humana.
Todavia, a partir de interpretações quanto à aplicabilidade da Carta Magna
(subjetivadas no conceito de ser humano e dignidade humana) procura-se
superar a inflexibilidade vinculada aodireito penal.
Relacionando a subjetividade psicológica e o meio social em que está
inserido o indivíduo, aborda-se a utilização do uso de algemas nos aspectos
onde o coletivo prepondera sobre o interesse individual. Por outro lado,
analisa-se a aplicabilidade do objeto como afronta ao princípio da dignidade
da pessoa humana e os possíveis danos psicológicos oriundos da inserção do
autor do delito no sistema criminal. Contudo, o próprio Estado, como
garantir da proteção de todos, não pode ser o violador do garantido princípio
da dignidade da pessoa humana, devendo o objeto ser utilizado somente
quando a necessidade se fizer – na supremacia do interesse público sobre o
particular.

2. DESENVOLVIMENTO

De acordo com Pitombo (1985, p. 275) “as algemas eram utilizadas


para tolher pelos pulsos, ou dedos e polegares, e os grilhões serviam para
jungir pelos tornozelos os presos”. Conforme conceitua Maria Helena Diniz
(1998, p. 182), “algema é uma pulseira metálica, dotada de fechadura,
empregada para prender os braços de uma pessoa pelos punhos, na frente
ou atrás do corpo”.
Apesar das mudanças de valores, das revoluções que norteiam a
História mundial e dos avanços tecnológicos, tradicionalmente, o método de
algemar significa punir, castigar e instigar o medo nas civilizações. Há
divergência quanto à época do surgimento e utilização de algemas, Fernanda
Herbella revela a origem mesopotâmica:

A prática de se limitar os movimentos de alguém através da


contenção de suas mãos e de seus pés perde-se nas brumas do
tempo. Relevos mesopotâmicos já mostravam, 4.000 anos atrás,
prisioneiros com mãos atadas. (HERBELLA,2008.p.23)

444
Contudo, a algema traduz na totalidade o bloqueio no agir -
resumidamente, é um instrumento persecutório de limitação dos
movimentos físicos.
Após períodos sombrios onde a humanidade provou dissabores e
atrocidades acerca de punições e métodos de tortura, surge o Iluminismo,
comandado por filósofos como Immanuel Kant, Rosseau, Voltaire e John
Locke. A ideia é renascentista, transformar radicalmente os ideais,
separando a razão e a fé, excluindo conceitos inquisitórios de que Deus é o
centro do Universo, abrangendo caráter humanista e individual.
Esta caracterização mais humanística consagra o Direito Penal à
época, onde o cerne do movimento foi identificar o direito propriamente dito,
ou seja, o poder foi transferido da Igreja para o Estado, para que este
exercesse o direito através da Lei.
De acordo com PITOMBO (1985, p.276), o caráter da prisão e o
contexto do uso ilimitado de algemas é difundido para o “uso de necessidade
extrema”. Desta forma, novos parâmetros de Lei e direitos do homem
consagram este período renovador.
Mundialmente o uso de algemas tomou forma “extraordinária”,
utilizado somente para casos extremos de periculosidade. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, presume a inocência do indivíduo
e o caráter abusivo do uso desenfreado das algemas.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - Artigo 9º-


Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se
julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda
da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei. 2

No Brasil, somente em 1832 há manifestos acerca do tema, fixado em


lei com a entrância do Código de Processo Criminal de Primeira Instância do
Império do Brasil (BRASIL. Decreto de 23 de maio de 1821). Tal Código
dispunha em seu capítulo VI, artigo 180, que “caso o réu não obedecesse e
procurasse evadir-se, o executor teria direito de empregar o grau da força
necessária para efetuar a prisão; se obedecesse, porém, o uso da força

2www.direitoshumanos.usp.br/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.Acesso

em 30/08/2015.
445
estaria proibido”.
Nesta perspectiva, a Lei de 26 de dezembro de 1841, reformadora do
Código de Processo Penal, deixou intocado o artigo 180, oriundo do Código
de 1832. Somente em 1871 foi promulgada a Lei nº 2033 que veda
expressamente “o deslocamento do preso com ferros, algemas ou cordas,
salvo em caso de extrema segurança, que deveria ser justificada pelo
condutor, sob pena de multa”.
A doutrina de MIRABETE (2004. P.834) narra que ainda no período
Imperial, quando vigoravam as ordenações filipinas e leis avulsas, o Decreto
nº 4.824 de 22-11-1871, consignava expressamente o apenamento daquele
representante estatal que utilizasse desnecessariamente, na condução do
preso, instrumentos como cordas, algemas ou ferros.
Ainda, caracterizando o uso de coerção física a época, ACOSTA
(1955.p.93) demonstra que era vedado o emprego de força na efetivação da
prisão, salvo o indispensável para conjurar a resistência ou a tentativa de
fuga do preso.
A Lei n° 7.210 (11 de julho de 1984), que instituiu a Lei de Execução
Penal (LEP) no sistema brasileiro, em seu artigo 199 prevê que “o emprego de
algemas será disciplinado por decreto federal”. Ou seja, depende de
regulamentação complementar para disciplinar seu uso no âmbito nacional.
Com efeito, as algemas representam para o Direito Penal, além de um
instrumento de força, uma forma de repressão e coerção do Estado,
tornando-se, muitas vezes, o símbolo maior de humilhação do homem.
Importante ressaltar as sábias lições de NUCCI a respeito do uso da
força e algemas:

A prisão deve realizar-se sem violência, exceto quando o preso


resistir ou tentar fugir. Logo, parece-nos injustificável, ilegal se tratar
de presos cuja periculosidade é mínima ou inexistente. Tem-se
assistido a autênticos espetáculos de violência (no mínimo moral),
por ocasião da realização de prisões de pessoas em geral,
disseminando-se o uso das algemas como se esta fosse a regra e não
a exceção. Algemar alguém é nítido emprego de força, o que o artigo
284 veda, como regra, para a efetivação da prisão. Enquanto não
houver uma disciplina legal a respeito do uso de algemas, deve-se
seguir a lei, valendo-se dos grilhões quando o réu, realmente
apresentar periculosidade. (NUCCI, 2004. p.47)

446
Acerca da matéria envolvendo o uso de algemas e suas limitações, a
legislação brasileira destaca-se nos seguintes embasamentos:

1)Súmula Vinculante nº 11/ Supremo Tribunal Federal (STF)


Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado
receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por
parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por
escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato
processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do
Estado.

2) Art. 284 do Código de Processo Penal Brasileiro


Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso
de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

3) Art. 292 do Código de Processo Penal Brasileiro


Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em
flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e
as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários
para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará
auto subscrito também por duas testemunhas.

4) Art. 234 do Código de Processo Penal Militar


O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de
desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência
da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para
vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a
prisão do ofensor.
De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas
testemunhas.
§ 1º - O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja
perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum
será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242.
§ 2º - O recurso ao uso de armas só se justifica quando
absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a
incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu. 3

Ao interpretar o artigo 284 do Código de Processo Penal, Guilherme


de Souza Nucci (2004.p.47) esclarece que o Código de Processo Penal (CPP)
impõe “que a prisão seja feita sem violência gratuita e desnecessária,
especialmente quando há aquiescência do procurado”. Entretanto,
especifica, expressamente, que a força pode ser utilizada, no caso de haver
resistência ou tentativa de fuga. Assim, após o advento da Súmula nº11, a
prática comum de utilização de algemas em ações policiais e judiciais
“transmudou-se para exceção”, passando a necessitar de prévia
fundamentação e/ou justificação expressa.

3www.planalto.gov.br. Acesso em 30/08/2015.


447
Fernanda Herbella caracteriza a situação conflituosa justificando o
uso de algema em algumas situações:

De fato, a dignidade não pode ser alvitada pelo poder estatal, quando
se enfatiza, em nível mundial, o respeito aos direitos da pessoa
humana, tornando inaceitável a conduta abusiva fundada no aspecto
negativo do poder de mando. O uso de algemas, contudo, se justifica
em alguns casos. O simples ato de algemar, por si só, desde que
necessário, justificado e moderado, decorrendo de uma prisão
legalmente imposta, nenhum abuso perfaz. (HERBELLA, 2008. p.19)

Considerando que a Constituição Federal Brasileira é a lei


fundamental e de maior relevância hierárquica, temos a interpretação dos
conceitos do direito penal a partir dos princípios insculpidos na Carta
Magna.O equilíbrio deverá ser atingido entre os princípios constitucionais e
a aplicação da lei, consubstanciada nos parâmetros de aplicabilidade da
função social. Reafirma Fernando Capez a regularidade do sistema penal
quando instrumentalizado de acordo com a Constituição Federal de 1988.

1. O Direito Penal brasileiro somente pode ser concebido à luz do


perfil constitucional do Estado Democrático de Direito, devendo,
portanto, ser um direito penal democrático.
2. Do Estado Democrático de Direito parte um gigantesco tentáculo,
a regular todo o sistema penal, que é o princípio da dignidade
humana, de modo que toda incriminação contrária ao mesmo é
substancialmente inconstitucional.
3. Da dignidade da pessoa humana derivam princípios
constitucionais do Direito Penal, cuja função é estabelecer limites à
liberdade de seleção típica do legislador, buscando, com isso, uma
definição material do crime.
4. Esses contornos tornam o tipo legal uma estrutura bem distinta
da concepção meramente descritiva do início do século passado, de
modo que o processo de adequação de um fato passa a submeter-se
à rígida apreciação axiológica.
5. O legislador no momento de escolher os interesses que merecerão
a tutela penal, bem como o operador do direito, no instante em que
vai proceder a adequação típica, devem, forçosamente, verificar se o
conteúdo do material daquela conduta atenta contra a dignidade da
pessoa humana ou os princípios que dela derivam. Em caso positivo,
estará manifestada a inconstitucionalidade substancial da norma ou
daquele enquadramento, devendo ser exercitada o controle técnico,
incompatibilidade vertical com o Texto Magno.
6. A criação do tipo e a adequação concreta da conduta ao tipo
devem operar-se em consonância com os princípios constitucionais
do Direito Penal,os quais derivam da dignidade humana que, por sua
vez, encontra fundamento no Estado Democrático de Direito.
(CAPEZ, 2004. p. 013)

Na medida em que tem relevante função social, o cumpridor da

448
norma não poderá desfigurar o sentido acerca da gravidade da situação,
ignorando direitos ou ultrapassando os limites que a Constituição confere.
São estes direitos de defesa que originam a perspectiva clássica de que o
Estado é um adversário da população – pela falta de qualidade na segurança
pública os cidadãos não observam a face do Estado no sentido de guardião
dos direitos públicos. Neste aspecto, TEPEDINO caracteriza o ser humano e
as relações sociais como a alavanca da atividade estatal.

A dignidade da pessoa humana torna-se o objetivo central da


República, funcionalizando em sua direção a atividade econômica
privada, a empresa, a propriedade, as relações de consumo. Trata-se
não mais do individualismo do século XVIII, marcado pela
supremacia da liberdade individual, mas de um solidarismo
inteiramente diverso, em que a autonomia privada e o direito
subjetivo são remodelados em função dos objetivos sociais definidos
pela Constituição e que, em última análise, voltam-se para o
desenvolvimento da personalidade e para a emancipação do homem.
(TEPEDINO, 2001. p.500)

No tocante aos direitos humanos, Eurico Bitencourt Neto (2010.p.117)


afirma que “situações de fato podem ameaçar a dignidade humana, pelo que
o Direito de um Estado fundado na dignidade da pessoa humana deve
fornecer meios para que tais situações sejam evitadas e combatidas”.
José Almir Pereira da Silva(2008) sobrepõe as garantias fundamentais
de dignidade humana e integridade física valorando-as como o topo dos
direitos individuais.

É cediço que estamos diante de um Estado Democrático de Direito


que tutela os direitos e garantias individuais, notadamente a
dignidade da pessoa humana, mas não podemos olvidar que o
Estado muitas vezes limita temporariamente e moderadamente
direitos individuais com escopo de preservar a vida e a integridade da
pessoa, sendo que esta limitação temporária de direito individual
também visa o direito da coletividade e jamais pode ser considerada
como afronta à dignidade da pessoa humana. Ademais, sopesando os
direitos tutelados não resta dúvida que a preservação da vida, da
integridade física e do bem comum se sobrepõe a todos os outros
direitos individuais mencionados alhures. 4

Seguindo a mesma linha, MENDES, COELHO e BRANCO reafirmam o


caráter social e positivista da norma jurídica diante do princípio da
4 SILVA, José Almir Pereira. Academia de Direito Militar. Disponível em:
www.academiadedireitomilitar.com
449
proporcionalidade.

Utilizado de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de


direitos muito embora possa aplicar-se, também, para dizer do
equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios – o
princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência,
consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana
diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência,
moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e
valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a
de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do
direito,serve de regra de interpretação para todo o ordenamento
jurídico. (MENDES,COELHO,BRANCO,2008. p.120-121)

A presunção de inocência impõe ao Poder Público um dever de


tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades,
enfatizado pelo Supremo Tribunal Federal:

O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA


IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE,
AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL
IRRECORRÍVEL. A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui
extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser
ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que,
fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário,
culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos
e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da
República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de
pessoa acusada da suposta prática de crime indigitado como grave, e
até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se
revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF,
art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser
tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal
cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito,
decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio
constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico,
consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de
tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em
relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se
estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença
do Poder Judiciário. Precedentes.5

Ainda, a proporcionalidade exige a adequação como medida restritiva,


a ser invocada de acordo com os fins invocados pela lei. É uma necessidade
estar em consonância com o meio para atingir o fim.
HERBELLA(2008.p.129) caracteriza que “o objetivo da colocação das
algemas não deve ser o de patrocinar constrangimentos e situações
vexatórias”. A simples condução de preso algemado não configura crime ou

5 Supremo Tribunal Federal, julgamento HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – STF.
450
abuso, pois não existe o dolo específico de expor ou humilhar. Não resta
dúvida de que o agente de autoridade, independentemente de sua natureza,
quando procede ao ato de algemar, está exercendo o poder de polícia a ele
conferido. Todavia, não se admite a utilização da força além da necessária
para efetivar a prisão ou conduzir o detento, sendo que “não se concebe, por
exemplo, que, em caso de resistência passiva, o soldado faça uso do
cassetete. O que passar do indispensável sujeita o infrator as penas da lei”.
O Código de Processo Penal em seu artigo 292 narra que, se houver,
ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à
determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o
auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para
vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas
testemunhas.
Neste sentido completa HERBELLA (2008.p.143) ao solidificar que o
“uso nocivo das algemas provoca o estrangulamento dos pulsos,
ocasionando enormes danos à saúde(...)”.
Julio Fabbrini Mirabete assevera que estão proibidos os maus-tratos e
castigos que, por sua crueldade ou conteúdo desumano, degradante,
vexatório e humilhante, atentam contra a dignidade da pessoa, sua vida, sua
integridade física e moral.

Ainda que seja difícil desligar esses direitos dos demais, pois dada
sua natureza eles se encontram compreendidos entre os restantes, é
possível admiti-los isoladamente, estabelecendo, como faz a lei, as
condições para que não sejam afetados. Em todas as dependências
penitenciárias, e em todos os momentos e situações, devem ser
satisfeitas as necessidades de higiene e segurança de ordem
material, bem como as relativas ao tratamento digno da pessoa
humana que é o preso.(MIRABETE,2007.p.119)

Posteriormente a Súmula de nº 11/STF é sabido que o ato algemar


somente será lícito quando a necessidade se fizer, diante do interesse
público sobressaltado à conduta do indivíduo, não observando desvio ou
abuso de poder. Destaca HERBELLA (2008.p.122) que, atualmente, “o uso
de algemas para o preso deixou de ser regra e passou a ser exceção”.
Considerando que o fator biológico é aquele relacionado ao
comportamento, o psicológico interligado está com a mente, e, que o meio
451
social refere-se ao ambiente, a Psicologia jurídica designa a utilização de
linhas metodológicas e explicativas, objetivadas na compreensão (objetiva e
subjetiva) de questões judiciais, envolvendo circunstâncias relacionadas ao
sujeito e a Lei.
OLIVEIRA (1992.p.31) destaca que a criminologia surge no cenário das
ciências humanas, tendo como campo de pesquisa as causas (fatores
determinantes) da criminalidade, bem como a personalidade e a conduta do
delinquente e a maneira de ressocializá-lo.
Segundo Mira y Lopez (2008,p.42), os fatores gerais responsáveis pela
relação pessoal em um determinado momento podem ser herdados, mistos
ou adquiridos. Os herdados são aqueles que influenciam no comportamento
da pessoa, sendo constituição corporal, temperamento e inteligência. Nesta
linha, o caráter é considerado de forma mista (corporal e adquirido), pois é
tido como um fator morfológico originário na pessoa a partir de um obscuro
sentimento de superioridade ou inferioridade física em frente às situações, o
que influencia na determinação do seu modo de reagir. Já os últimos são
aqueles propriamente adquiridos (referente à nomenclatura) ao longo da
vida, determinados em prévia experiência de situações análogas,
constelação, situação externa atual, tipo médio de reação social (coletiva) e
modo de percepção da situação.
Desta forma, o comportamento individual reflete os aspectos da
conduta social - há em todo momento uma influência recíproca entre o
sujeito e seu meio social.
A partir do século XX, com as novas adaptações humanísticas do
sistema penal, o criminoso passou a ser analisado física e psiquicamente, ou
seja, como um ser biopsicológico, que necessita de tratamento. Segundo
Bauman (1999,p.130), “a imobilidade forçada, a proibição do movimento é
um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e de dor”.
SILVA (2007,p.06-07) destaca que a frustração da sociedade
ocasionada pela não aceitação do indivíduo que busca a construção de uma
identidade, pode gerar transtornos mentais graves.Ainda, coloca que a
Psicologia Judicial contribui de forma essencial nas decisões dos Tribunais,
“trazendo aos autos uma realidade psicológica dos agentes envolvidos que
452
ultrapassa a literalidade da lei, e que de outra forma não chegaria ao
conhecimento do julgador”, isto por se tratar de um trabalho que vai além da
mera exposição dos fatos, pois é feita uma “análise aprofundada do contexto,
incluindo “aspectos conscientes e inconscientes, verbais e não-verbais,
autênticos e não-autênticos, individualizados e grupais, que mobilizam os
indivíduos às condutas humanas”.
Entretanto, acerca da existência da efetividade buscada no direito
Penal, nota-se que a perspectiva dos recursos disponíveis para garantir a
segurança e a aplicação da norma jurídica são extremamente ilusórios no
campo penal. Neste patamar, QUEIROZ atenta sobre a realidade social do
direito Penal.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos


os membros da família humana e seus direitos iguais e inalienáveis é
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do
homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência
da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens
gozem de liberdade, de palavra, de crença e da liberdade de viverem
a salvo do temor da necessidade, foi proclamado como a mais alta
inspiração do homem comum (...) como o ideal comum a ser atingido
por todos os povos e todas as nações. (QUEIROZ,2004.p.112)

Diante deste contexto, busca-se por um meio-termo no direito penal


constitucional, entre o uso de algemas e a garantia da segurança pública. O
uso de algemas é permitido quando visa prevenir e evitar qualquer situação
que leve a um confronto, ao custodiado, seus condutores ou pessoas
circundantes. Aqui, olvida guarida também o interesse social, sobressaltado
em relação ao individual (no caso de garantia individual constitucional). Com
o uso “limitado” de algemas, teoricamente, evita-se uso excessivo e/ou
abuso, restringindo os movimentos daquele indivíduo (considerando que só
se algemam pessoas que estão indo ou voltando ao cárcere), que represente
risco eminente à sociedade.
Nesta linha, a prisão aparece como um “mecanismo natural” de defesa.
A própria evolução da vida em sociedade, em que os indivíduos se agrupam e
fixam tarefas entre si, acabou por dar forma a este sistema de reação contra
comportamento “anti-natura”.Considerando que o sistema é responsável
pela proteção, segurança e bem-estar de todos os presos, o Estado é o
453
garantidor e responde pelas consequências.A Constituição Federal, em seu
artigo 37,§ 6º, faz referência aos princípios constitucionais que a
Administração Pública de qualquer um dos poderes deverá obedecer -
princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e
da eficiência. A responsabilidade civil do Estado é objetiva, portanto, os
prestadores de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes
causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável,
nos casos de dolo ou culpa.
O uso de algemas acarreta em choque - entra em conflito com a
formação moral inicial, a negação do agir, a punição do ato transforma-se
em repugna, reprimindo o sentimento em trauma psíquico. As
consequências psicológicas pela separação da família e de outras fontes de
sustentação social, a ansiedade pela situação de estar privado de sua
liberdade, e o desespero pelo desconhecimento do futuro são alguns dos
fatores de vulnerabilidade. Estes fatores também podem ser condições
desencadeadoras de doenças mentais e de comportamento suicida.
A partir desta indecisão pendular no que tange ao controle de disciplina
das classes populares x elites burguesas, onde há preexistente o fato de alguns
cidadãos “apresentar conduta mais suspeita” do que outro, pelo simples fato de
fazer parte de “classes perigosas e pobres”, há um Estado Democrático
alicerçado nos padrões coloniais da escravatura.
GOFFMAN (1992,p.10) faz uma análise da perspectiva do indivíduo,
quando da sua inserção nessa microssociedade. Descrevendo todo o
processo doloroso que o sujeito sofre, de forma a poder adaptar-se ao novo
mundo em que se vê inserido. Em alguns estabelecimentos prisionais, os
presos passam por um processo intenso de despojamento do eu, logo no
momento da sua entrada. Exemplificando: no ritual de banho; mudança de
roupa; raspagem do cabelo; afastamento de seus objetos materiais;
distribuição de um número identificador. Todos estes “processos de
admissão” parecem pensados para despir o indivíduo do seu eu
identificador.A cultura imposta no país possui ainda características
coloniais, da realeza e escravidão, onde o direito social-penal é apenas um
“pano de fundo” para o pouco exercício democrático da lei.Sobre o sistema
454
penal e a prevista função social (des)igualitária, enfatiza o autor Nilo Batista:

[...] o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo


igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na
verdade o seu funcionamento é seletivo, atingindo determinadas
pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de
suas condutas. [...] O sistema penal é também apresentado como
justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua
intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu
desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas
preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das
respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se
apresenta comprometido com a dignidade da pessoa humana,
quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação
na figura social de sua clientela.

No meio social, kuntamente à família o indivíduo vai sendo regrado, na


infância e na fase adolescente, consolidando seu caráter embasado nos
princípios básicos que regem toda a formação estrutural da moral e ética do
meio em que vive. É evidente que o coexistir implica em conflitos, na
interação e nas relações decorrentes da convivência em sociedade há
bloqueios e atritos entre as pessoas.
A partir destes conflitos, fala-se em um tripé de suporte do controle
social, um sistema institucionalizado que freia os comportamentos do
indivíduo, preservando a tutela e ordem social, de maneira adequada,
porém, muitas vezes enérgica.
Neste âmbito, salienta Altoé sobre questões tratadas sobre outro prisma,
envolvendo a Psicologia e o Direito, exigindo maior sensibilidade para captar as
sensações e intenções do indivíduo.

As questões humanas tratadas no âmbito do Direito e do judiciário


são das mais complexas. (...) E o que está em questão é como as leis
que regem o convívio dos homens e das mulheres de uma dada
sociedade podem facilitar a resolução de conflitos. Aqueles que têm
alguma experiência na área se dão conta que as questões não são
meramente burocráticas ou processuais. Elas revelam situações
delicadas, difíceis e dolorosas. A título de exemplo vejamos alguns
dos motivos pelos quais as pessoas recorrem ao judiciário: pais que
disputam a guarda de seus filhos ou que reivindicam direito de
visitação, pois não conseguem fazer um acordo amigável com o pai
ou a mãe de seu filho; maus-tratos e violência sexual contra criança,
praticado por um dos pais ou pelo(a) companheiro(a) deste; casais
que anseiam adotar uma criança por terem dificuldades de gerar
filhos; pais que adotam e não ficam satisfeitos com o comportamento
da criança e a devolvem ao Juizado; jovens que se envolvem com
drogas/tráfico, ou, passam a ter outros comportamentos que

455
transgridem a lei, e seus pais não sabem como fazer para ajudá-los
uma vez que não contam com o apoio de outras instituições do
Estado (de educação e de saúde, por exemplo).A subjetividade é a
síntese singular e individual que cada um de nós vai construindo
conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da
vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado,
por ser única, e nos iguala, de outro lado na medida em que os
elementos que a constituem são experienciados no campo comum da
objetividade social. Esta síntese – a subjetividade - é o mundo de
ideias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a
partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua
constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações
afetivas e comportamentais" (BOCK; FURTADO e TEIXEIRA, 1999, p.
23)

Diante deste raciocínio, o uso de algemas está coadunado ao


psicológico individual e cabe aos Tribunais utilizar-se da técnica
psicojurídica de forma auxiliadora na tomada de decisões. Calcando as
decisões jurisprudenciais de forma humanitária, a partir de uma aplicação
mais digna e segura do jus puniendi, cumprindo a função penal social
estabelecida pela Constituição brasileira e pactos/tratados internacionais.
Assim, o sistema penal é uma espécie de controle social. Neste
patamar, a interpretação das sensações humanas está dimensionada na
busca da verdade real, tão requisitada pelos Tribunais. Baseado no agir e
nas emoções pessoais atinge-se o potencial juridicamente calcado na
efetividade da decisão jurisdicional. José Almir Pereira da Silva (2014)
aponta que é impossível saber a priori a reação do indivíduo que está sendo
algemado.

[...] não somos capazes de mensurar a possibilidade de reação


daquele que se encontra em situação de aprisionamento, pois aquele
que se sente acuado, prestes a ser conduzidos à prisão pode
abruptamente oferecer resistência, por mais pacífico que seja ou se
encontrem visto que a reação humana é imprevisível. [...] Sabemos
que não existe mais possibilidade de mensurar o que é “bom ou
mau”, “pacífico ou agressor”, o dito “normal e o psicopata”. A
aparência física, o poder econômico e a crença religiosa não mais
podem ser utilizadas como limitadores de ação ou reação, todos são
passíveis de esboçar uma inopinada reação diante de uma prisão
legal ou não.

Analisando profundamente a conduta de maneira psíquica, busca-se o


fato gerador da causa do delito prescrito em lei.

Uma vez afastados tanto excessos quanto déficits de proteção,

456
atingimos a finalidade do sistema de proteção dos direitos
fundamentais: uma proteção eficiente (enquanto não suficiente e não
excessiva). Logicamente, entre esses pontos extremos (limites
máximo de intervenção e mínimo de proteção) existe um elevado
espaço de liberdade de configuração do legislador, dentro do qual a
solução não é constitucionalmente pré-determinada, e cujo
preenchimento, por essa razão, é deixado ao plano da legislação.
(FELDENS,2012.p.168)

Como antítese ao exposto anteriormente, a alternativa analisada por


BECCARIA idealiza buscar meios de prevenção ao crime.

É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador


sábio deve antes procurar impedir o mal que recuperá-lo, pois uma
boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens
a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares
que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males
desta existência. Contudo, os processos até hoje utilizados são
geralmente insuficientes e contrários à finalidade que se propõem.
(BECCARIA, 2007.p.49)

Desta forma, GRECO (2006,p.720) caracteriza que a conduta em


desconformidade com a norma deve ser esperada em seus aspectos
fundamentais, implicando que “cada pessoa terá consciência de que os
demais se comportarão de acordo com a norma, sem infringi-la,
principalmente, porque a norma precisa de certa confirmação cognitiva para
converter-se em real”. Isso demonstra que, a norma em si é promessa vazia,
pois na realidade, já não oferece a segurança social necessária.
Neste cenário, a constituição deve continuar a ser a “reserva de
justiça” para os sistemas políticos e jurisdicionais, onde a legitimidade do
constituinte não é mera posse de poder, mas a conformidade do julgamento
do ato através das “ideias de justiça” radicadas na sociedade. FIGUEIREDO
(2006.p.564-565) preceitua que “é preciso valorizar o caráter normativo da
Constituição, assegurando aos seus preceitos de eficácia jurídica e social.
(...) Para o futuro do mundo econômico e social parece indispensável
combinar o conceito de Estado constitucional com a solidariedade”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se demonstrou ao longo do estudo, não há normatização


própria acerca do uso de algemas, especificidades ou limitações. O
457
cumpridor da norma baseia-se no Código de Direito Processual Penal, na
Súmula Vinculante nº11 do Supremo Tribunal Federal e nos princípios
calcificados na Constituição Federal Brasileira. Entretanto, há um misto
diversificado de situações que não são abordadas nestas legislações, o que
ocasiona a falha no sistema garantidor.
São estas “falhas de segurança” por parte do Estado que originam a
perspectiva clássica de que este é um adversário da população, por falta de
qualidade ao atuar no papel de guardião de direitos públicos. Tanto o
acusado (individual) quanto os cidadãos (coletivo) mostram-se insatisfeitos
com o funcionamento do sistema penal. Essa insatisfação é derivada das
vicissitudes do sistema, que não raras vezes, falha nas prestações positivas
em relação à criminalidade. O medo propaga-se muito além do alcance
garantidor de segurança do Estado, resultando em incertezas e preconceitos
sociais, apontando classes e raças como causadoras da criminalidade.
No âmbito psicossocial, além do acusado, o ambiente familiar também
é atingido. Os traços psicológicos e características pessoais são modificados
após a inserção do autor do delito no sistema criminal. Outrossim, o objetivo
de salvaguardar a liberdade individual entra em conflito com o ato
antijurídico, pois aquele que sofre a aplicabilidade da lei, é
discriminatoriamente banalizado na sociedade, designado de forma distinta e
personalizado na figura do criminoso.
Relativamente a estas variações, analisa-se que o sistema penal
constitucional não atende a perspectiva inicial da função social, que é o
caráter humanitário.
Diante do contexto punitivo do objeto, SILVA resume a finalidade
(correta) do uso de algemas quando destaca que “estamos diante de um
Estado Democrático de Direito que tutela os direitos e garantias individuais,
notadamente a dignidade da pessoa humana”. Salienta ainda, que o Estado
poderá limitar temporariamente e moderadamente os direitos individuais -
sem afrontar a dignidade da pessoa humana, em casos excepcionais onde há
o escopo de preservar a vida e a integridade da pessoa (indivíduo ou
coletivo). Desta forma, a “preservação da vida, da integridade física e do bem
comum se sobrepõe a todos os outros direitos individuais mencionados
458
alhures”.

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at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html

460
O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE
VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO1

Gabriel Maçalai2
Patrícia Borges Moura 3

1. INTRODUÇÃO

A questão da laicidade do Estado não é nova. No entanto, a simples


menção ao Estado atual, “divorciado” de uma religião oficial, precisa nos
guiar para a análise de sua origem e motivos. Remete-nos para o período
Medieval, quando a falência da estrutura estatal anterior deu lugar para a
Igreja, que serviu de estrutura para a sociedade. Tão logo, a Igreja passou a
controlar e influenciar o Estado, em todas as suas esferas.
Tal evento fez com que o Estado se torna cristão, e como o Direito
acompanha a sociedade em suas mudanças, tornou-se canônico também.
Assim, nesta esfera o Direito Penal passa ser dominado pelas práticas
inquisitórias, pelos crimes religiosos (pecados) e pela infringência do que
hoje tratamos como Direitos Humanos.
Nesse contexto, o presente artigo visa a entender a dimensão do
princípio de secularização (abandono da religião) na seara penal, e como tal
princípio tem se manifestado em nosso ordenamento jurídico. Para tal,
através do método hipotético-dedutivo, analisamos os sistemas processuais
inquisitivo e acusatório, numa breve digressão histórica, para a
compreensão do processo de secularização propriamente dito e sua relação
com o poder judicial de valoração da prova no Brasil.

1 Pesquisa livre realizada durante o Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste


do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUI.
2 Bacharel em Teologia (UNICESUMAR), Bacharelando em Direito (UNIJUI) e Licenciando em

Filosofia (FAERPI). Pós-graduando lato sensu dos cursos de especialização em Ciências da


Religião, Direito Eleitoral e Direito Tributário (FAVENI). E-mail: gabrielmacalai@live.com ou
diac.gabrielmacalai@gmail.com.
3 Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (UFSM). Especialista em Direito Público (UNIJUÍ).

Mestre em Direito (UNISINOS). Professora do Curso de Graduação em Direito da UNIJUÍ. E-


mail: pmoura@unijui.edu.br.
461
2. DO SISTEMA INQUISITIVO AO ACUSATÓRIO: breve resgate histórico

A História deixa evidentes as transformações pelas quais a sociedade


passou, com especial destaque à transição do Estado moderno ao
contemporâneo. O destaque especial se deve ao fato de que, para o recorte
do tema a ser enfrentado, importa a compreensão da organização política da
sociedade civil ocidental, com as diversas nuances de Estado, até culminar
no Estado democrático de direito, como aconteceu em muitos países, cujos
sistemas jurídicos foram bastante influenciados por países da Europa
continental.
Juntamente com cada mudança que os povos enfrentaram em sua
construção, o Direito se modificou, com a intenção de se adequar às novas
situações que se apresentaram. Neste sentido, é possível verificar que o
Direito Penal, a Criminologia e as políticas criminais igualmente se
alteraram, ainda que não necessariamente em um mesmo ritmo ou sintonia.
Desde sempre, a sistematização das normas na seara penal foi-se moldando
às respostas esperadas pela sociedade à criminalidade em cada época, com
períodos de maior repressão, dosados, eventualmente, com uma
preocupação mais humanista da punição.
Nesse contexto, é importante compreender o papel do processo penal,
cujas normas e princípios são estabelecidos a partir da resposta esperada,
frente “às exigências do Direito Penal e do Estado” em cada época (LOPES
JR., 2008, p. 55). Isto, considerando-se o viés prático do Direito Processual
Penal, pois que permite que o direito material torne-se concreto (LOPES JR.,
2010), a estabelecer “o modo de resolver as questões penais”. (PRADO, 2006,
p. 65). E mais que isto, principalmente pensando o processo penal, na
contemporaneidade, em especial nas sociedades democráticas, que
consagraram o princípio da necessidade do processo em relação à pena, e a
partir dele incorporaram em seu texto constitucional uma série de princípios
garantidores do direito à liberdade individual, pois é natural que haja uma
afinidade entre as normas penais e processuais penais, bem como entre elas
e a Constituição, já que tanto o Direito Penal como o Direito Processual são
instrumentos do poder de penar do Estado, “empregados como forma de
462
controle social”. (THUMS, 2006, p. 175).
Portanto, na História do Direito, assim como a luta pela liberdade é
uma constante e um marco na assunção de novos modelos, mais ou menos
repressivos, a ideia de sistematizar “as regras do jogo” na esfera penal, o que
significa identificar o método aplicável para a solução dos casos penais,
merece ser contextualizada no espaço e no tempo. Ou seja, o modelo é
variável, de acordo com a “opção” de cada nação. (PRADO, 2006, p. 65).
Em vários períodos, o processo penal alternou-se pelos diversos
sistemas criminais existentes. Em um primeiro momento, seguia-se o
sistema acusatório, surgido na Alta República romana, e que perdurou em
boa parte da Europa Ocidental até meados do Séc. XII (THUMS, 2006), num
momento em que o Direito não fazia diferenciação entre ilícitos penais e
civis, mas sim entre crimes públicos (contra o Estado) e crimes privados, o
que fazia o processo penal ter um caráter igualmente privado (DI GESU,
2010).
O processo, neste sistema, era marcado pela passividade do julgador.
A iniciativa do processo cabia às partes, a acusação então era feita por um
“órgão distinto do juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante
voluntário da coletividade (accusator)” (LOPES JR., 2010, p. 153), adotando-
se o princípio do ne procedat iudex ex officio (o juiz não pode agir de ofício,
sem provocação), sendo vedada a acusação anônima ou sem acusador
legítimo. Era o momento, também, para aqueles que queriam se destacar na
sociedade, e lutar por cargos políticos, visto que o processo era o meio para
apresentações orais e publicidade dos que ali se expressavam. Estava, no
entanto, a acusação restrita a “falar” a verdade, sob pena de enquadramento
no crime de denunciação caluniosa, o que, geraria um processo e posterior
condenação.
A produção das provas não podia ser originada da vontade ou
discricionariedade do juiz, estando ele restrito à produção precária ou às
provas defeituosas ou insuficientes que se lhe fossem apresentadas durante
a instrução processual. E a sentença era marcada pela oralidade, em sua
manifestação pelo juiz (DI GESU, 2010).
No entanto, com o surgimento do Império Romano por volta de 27 a.
463
C. (UFCG, 2015), o processo acusatório tornou-se insuficiente para
repreender os novos delitos que se mostravam e, também, a produção de
provas estava condicionada ao sentimento de vingança da parte que a
produzisse provas que não condiziam com a verdade, mas tendenciosas.
Assim, muitos juízes passaram a intervir cada vez mais na produção das
provas, de forma que concentravam em si mesmos as funções de persecução
criminal com a de julgador, passando a agir de ofício, sem uma acusação
formal. Tal situação, por fim, fez com que a publicidade dos atos processuais
que imperava no início, fosse substituída, gradativamente, por atos secretos.
As sentenças, lidas em público anteriormente em grandes tribunais,
passaram a ser escritas e lidas apenas em audiências restritas. Essas
características apontam, conforme Lopes Jr. (2010), para o princípio do
sistema inquisitório.
Nesse contexto, o modelo inquisitorial foi substituindo o acusatório
aos poucos, a partir do século XII, na França, em razão do poderio da Igreja
Católica, e imperou por mais de seis séculos em toda a Europa continental,
tendo sido derrotado por movimentos sociais e políticos, inspirados pelos
ideais iluministas, ao que parte da doutrina reconhece na Revolução
Francesa de 1789 um marco importante para essa ruptura. (THUMS, 2006).
O sistema inquisitivo distingue-se do acusatório em especial pelo
acúmulo de funções do juiz, que atua na obtenção produção de provas e no
julgamento do processo. Mais que isso, o processo no sistema inquisitorial é
plenamente enquadrado posteriormente nos Estados absolutistas, em que
todos os poderes estão concentrados na figura do soberano. Neste modelo,
portanto, não importam os meios a serem utilizados para a obtenção da
prova. Importa que ela seja obtida.
Na verdade, a prova não servia para convencer o juiz, mas sim para
fundamentar a decisão já previamente tomada pelo julgador/inquisidor.
Neste sentido, Thums (2006, p.202) explica que a posição do acusado é
reduzida a um “mero objeto”, não gozando de garantias ou direitos, pois “a
prova pode ser obtida por qualquer meio, ainda que cruel. A ideia é de
repressão máxima a quem infringiu a lei, por isso a ação penal é
desencadeada pelo próprio julgador”. E prossegue dizendo que “o objetivo é a
464
busca da verdade a qualquer custo”. Aí, tem-se a origem do mito da busca
da verdade real e completa pelo processo penal.
Essa é uma característica importante do modelo em análise, porque a
partir dela identifica-se o quanto a imparcialidade do julgador é afetada, pois
o modo de gestão da prova, conduzido por um juiz inquisidor, que investiga e
acusa, para então julgar, que dá maior importância aos fins do que aos
meios, e que busca a verdade “a qualquer custo”, reduz o acusado a mero
objeto no processo, negando sua condição de sujeito de direitos, como
referido. Tanto é assim que uma das provas mais importantes nesse sistema
era a confissão. Uma vez fosse o réu confesso, em alguns casos punha-se fim
ao processo, pois “o resto eram os modos de se confirmar aquilo que a razão
já havia projetado” (COUTINHO, 2010, p. 4). E, para tanto, a tortura,
inclusive física, era um meio legítimo para a obtenção de prova nos
Tribunais da Santa Inquisição.
Nesse particular, a doutrina tece uma crítica importante ao processo
inquisitório, em especial no uso da tortura para obtenção da confissão, a
qual se tornou a “rainha das provas”. Ora, se a figura do julgador se
confunde antes com a do acusador, significa que o juiz já parte de uma
“verdade” detida pelo réu, tido como um “pecador”, e o que precisa é tão
somente dele “extraí-la”. Nessa condição, o objeto da investigação não se
resume mais apenas ao crime, mas antes ao réu. (COUTINHO, 2010, p. 4;
MARQUES, 1980).
Referido sistema foi, então, aprimorado pelo Direito Romano, para
servir aos interesses do Direito Canônico no século XIII. Neste período, a
Igreja Católica expande sua influência, tornando-se a religião estatal em
muitas nações. (THUMS, 2006).
O domínio da Igreja Romana à época fazia com que o direito secular
fosse o mesmo que o direito canônico, visto que os delitos eram os mesmos,
os procedimentos processuais também. Na verdade, neste período, com a
queda do Império Romano, a sociedade precisou de uma estrutura para se
organizar e a estrutura capaz e disponível era a Igreja Católica, a única
cristã. Tão logo, a Igreja serviu de base e sustentáculo para a sociedade,
porém, passou a se exceder em suas funções, dominando questões que,
465
noutros tempos, não eram e não vieram a ser suas. (BEDIN, 2013).
Assim, o processo penal passou a ser “cristão”, e os crimes religiosos
passaram a ganhar punições estatais. Neste sentido, Thums (2006, p.202)
afirma que

A evolução do sistema inquisitorial no direito canônico, que se


tornou regra das justiças eclesiásticas, afeta diretamente as justiças
seculares. Essa situação decorre da promiscuidade entre o direito
comum e o canônico, na medida em que grande parte dos delitos
comuns também é delito religioso e também porque não há
separação entre deito e pecado. Assim, o direito canônico vale-se dos
princípios do sistema inquisitivo e aprimora os procedimentos
processuais adequados à época aos tipos ilícitos que busca punir.

Segue o autor, dizendo que no modelo inquisitorial os direitos e


garantias referentes à defesa do acusado não eram observados. Tal fato é
acentuado, quando se percebe o poderio que a Igreja Romana detinha
durante a Santa Inquisição ou Inquisição do Santo Oficio, que se
desenvolveu de forma paralela à Justiça da época, em um período que ficou
conhecido como “Idade das Trevas”, o medievo, já que o sistema inquisitivo
teve início naquele momento da História e perdurou até o final da Idade
Moderna.
A Idade Média, embebecida pela fé cristã com dogmática dominada
pelo Catolicismo, foi um dos períodos mais críticos da História humana. A
Inquisição foi criada como um “terrível sistema concebido pela igreja católica
para implantar o catolicismo no mundo ocidental, principalmente na
Europa, e que perdurou por mais de seis séculos como forma eficaz de
controle social” (THUMS, 2006, p. 2014)
Thums (2006, p. 2015) afirma que a inquisição “surgiu como
necessidade para a defesa do dogma da fé, porque grande parte da
comunidade está sendo afetada pela influência dos hereges”. A concepção de
hereges se multiplica com a Reforma Protestante, quando então a Igreja
Católica precisou lutar contra pagãos e também contra outros cristãos,
reformados e protestantes, que surgiram como hereges, que se permitiram a
leitura da Bíblia e sua popularização, o que era um delito ou pecado mortal.
Assim, heresia era entendida como “tudo aquilo que vai contra as tradições,

466
dogmas, rituais, ensinamento dos sacramentos e crenças católicas” (THUMS,
2006, p. 215). Ademais, as penas mais graves eram destinadas aos
opositores e hereges, que poderiam ameaçar o sistema, enquanto que
assassinos, ladrões e outros delinquentes poderiam até obter perdão. Já os
hereges estavam sujeitos à pena de morte, banimento, confisco de bens (que
deveriam migrar para o patrimônio eclesiástico), dentre outras. A pena
corporal, a infligir dor e sofrimento, era largamente utilizada. Blasfemadores,
adivinhos e videntes estavam sujeitos à mesma punição.
Corforme Thums (2006), a Inquisição já era comum no meio católico,
porém, com éditos de perseguição aos hereges no império romano, proferidos
por Frederico II, inaugurou-se o “Santo Tribunal” no meio secular que, como
dito, não diferenciava delitos de pecados. Tanto é que num primeiro
momento os nomes dos hereges eram lançados em editais, para que se
apresentassem de maneira voluntária. Com o arrependimento, seriam
excomungados e logo entregues às autoridades reais, que eram as
autoridades seculares, as quais aplicariam a pena, como a queima nas
fogueiras, dentre outras. Todavia, aqueles que não se entregavam, eram
capturados e torturados para que confessassem o crime de heresia do qual
eram acusados, para então sofrerem as condenações devidas. Assim, fica
evidenciada a aplicação da prática do sistema inquisitorial, em que as provas
são colhidas desde o início do procedimento, e as funções de investigar,
acusar e julgar estão concentradas numa única pessoa que, na época, tendo
em vista o caráter transcendental que se atribuía ao julgamento, gastava
mais tempo com cerimoniais do que com o julgamento específico.
Aos poucos, novamente, a sociedade muda. Mudança esta
impulsionada pela Reforma Protestante e pelos ideais do Iluminismo,
abandonando-se, paulatinamente, a dominação religiosa da Idade Média.
Desta forma, passa-se a falar novamente no processo acusatório, buscando
garantir a observância dos direitos humanos, do contraditório e da ampla
defesa, ou mesmo em sistemas mistos (também tidos como acusatórios
formais), os quais perduram até hoje em alguns países, a exemplo, a França
e a Espanha:

467
De efeito, à época da edição do Código de Napoleão - Code
d’Instruction Criminelle (1808), como forma de aplainar as
arbitrariedades e desumanidades do Sistema Inquisitorial até então
adotado, entrou em vigor na França uma estrutura processual do
tipo misto - inquisitivo e acusatório, reforçada com o Códe de
Procédure Pénale (1959), realizando-se o processo em três fases: a da
Polícia Judiciária, a da Instrução e a do Julgamento. Os princípios
do sistema inquisitivo eram aplicados na fase de instrução
preparatória, em que o Magistrado desenvolvia, por escrito,
secretamente, sem contraditório e sem defesa, as investigações
processuais. Na fase de Julgamento, o processo assumia princípios e
regras do sistema acusatório, primando pela oralidade, publicidade e
contraditório. (LAGO, 2015, p. 12).

Ao final do século XIX, apesar de ter sido praticamente abolido do


sistema processual penal francês o caráter inquisitivo da instrução
preliminar, a qual deixou de ser secreta e passou a admitir o contraditório,
em meados do século XX houve um retorno ao modelo inquisitivo na fase
preliminar, perdurando até os dias atuais (LAGO, 2015). Evidentemente que
não com as arbitrariedades e atrocidades que eram próprias do medievo,
nem tampouco com o desrespeito à dignidade humana, mas sem oportunizar
um procedimento dialético, numa negação ao contraditório.
Os ideais iluministas acarretaram, portanto, o retorno ao sistema
acusatório na maioria dos países da Europa continental, muitos dos quais
influenciaram sistemas processuais da maioria dos países latino-americanos
que, pós-governos ditatoriais, já no século XX, promulgaram textos
constitucionais, sob a alegoria de um pacto social, a exporem um modelo
acusatório e garantista.

3. O PROCESSO PENAL PÓS SECULARIZAÇÃO

Com a libertação da sociedade das “garras” da religião, passa-se então


a falar na secularização do direito penal e, por consequência, do processo
penal. Secularização é um conceito amplamente cristão. Ou pelo menos não
haveria sentido em utilizá-lo, senão num conceito ou em referência a alguma
questão religiosa. Alves (1984) aponta para esta mudança social, dizendo
que num período anterior ao que vivemos não ter uma religião era sinônimo
de “anomalia”. Hoje não o é. Porém, é impossível negarmos a existência da

468
religião. Ela continua existindo, mas possui um locus de atuação próprio,
deixando assim os dogmas e a fé ocuparem um espaço próprio, enquanto o
Estado possui outro.
Esta separação Religião-Estado é o que entendemos como
secularização. MARRAMAO (1994, p. 19) aponta que

[...] os neologismos séculariser (1586) e sécularization (1567)


estiveram relacionados ao lento e tormentoso processo de afirmação
de uma jurisdição secular - isto é laica, estatal - sobre amplos
setores da vida social até então sobre o controle da Igreja.

Neste sentido, secularização (ou laicização) é definida no Novíssimo


Aulete Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (AULETE, 2011, p.
1.244)como “conversão dos bens do clero em bens nacionais”. Noutro
conceito para o verbete, o mesmo dicionário cita que a secularização é o
processo de “conversão de crenças, determinadas ações e instituições
religiosas em doutrinas filosóficas, ações e instituições seculares”.
Na História do Direito,

O processo de laicização, cisão entre ciência e religião, teve início


com a obra de Nicolau de Cusa, De Docta Ignorantia, de 1440,
passando por Kant e sua Crítica da razão pura, e alcançando o ápice
com a "morte de deus", nas obras de Feuerbach e Nietzsche, no
século XIX. (MOURA, 2011).

Esta conversão do religioso em secular, no âmbito do processo penal,


seguiu os mesmos rumos dos demais ramos do Direito: com a influência do
Iluminismo e da Reforma Protestante, abdicando da fé como fonte suprema
de respostas e de mandamento legal, abriu espaço para a igualdade, a
fraternidade e demais pontos da ideologia Iluminista. Nesta etapa, começa-se
a construir a ideia da Idade Média como “Idade das Trevas”, como referido, já
que fez com que todo o avanço e conhecimento praticamente parassem.
O Direito então se volta para o ser humano, se torna humanista,
abandonando a teocracia que antes imperava. Os governos, graças à
Reforma Protestante, passaram a decidir a religião de cada país, ainda não
importando qual era a opção de cada indivíduo, constituindo assim, as
Religiões nacionais. Com o passar do tempo, no entanto, as religiões cristãs

469
deixaram de ser unicamente Católica, Reformada, Anglicana e Protestante,
passou-se a criar novas e diversas religiões, entrando na fase da “História da
Igreja” que se denominou de “denominacionalismo” (BOSCH, 2002).
Neste período, com grande base no Iluminismo, surgem os ideais
sociais de igualdade, fraternidade e liberdade. Neste caso, igualdade refere-
se à “inexistência de desvios ou incongruências sob determinado ponto de
vista” (D’OLIVEIRA, 2015, p. 7). Numa concepção política, diz respeito à
ausência de diferenças entre direitos e deveres com relação aos membros de
uma mesma sociedade. Juridicamente, é entendida como “uma norma que
impõe tratar todos da mesma maneira os que estejam na mesma situação de
igualdade e desigualmente os que se encontrem em situações diferentes”.
(D’OLIVEIRA, 2015, p. 7).
Fraternidade carrega consigo a ideologia de irmandade, fortalecendo
ainda o conceito de igualdade, no sentido de que entre irmãos não há
possibilidade discriminação, por serem descendentes e semelhantes, ou
melhor, iguais. A liberdade, portanto, é concebida em relação à dignidade de
direitos. (D’OLIVEIRA, 2015).
Logo, não era mais possível condenar aqueles que tinham uma fé
diferente por crimes religiosos, visto que estavam abarcados pela mesma
crença, e as crenças não vinculavam mais o indivíduo como antes. Assim,
para uma condenação justa, seria preciso permitir que todos tivessem a
mesma oportunidade de fala e expressão e direito ao contraditório,
impedindo a vigência dos tribunais de exceção.
Assim, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em
seu primeiro artigo sintetiza o que já pontuava a História, in verbis, “todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados
de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade”. Ou seja, são direitos básicos de todo ser humano: a liberdade
e a igualdade, expandindo-os para os processos judiciais (D’OLIVEIRA,
2015).
Nesse aspecto, Almeida (2015) afirma que:

A Declaração Universal de 1948 representa a culminação de um


470
processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos
Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade
essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, isto é,
como fonte de todos os valores, independentemente das diferenças de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como se diz em
seu artigo II. E esse reconhecimento universal da igualdade humana
só foi possível quando, ao término da mais desumanizadora guerra
de toda a História, percebeu-se que a ideia de superioridade de uma
raça, de uma classe social, de uma cultura ou de uma religião, sobre
todas as demais, põe em risco a própria sobrevivência da
humanidade.

No entanto, a influência de características próprias do modelo


inquisitório ainda é um tanto notória até mesmo na contemporaneidade, a
exemplo, a legislação processual penal infraconstitucional brasileira.
Isso porque os atuais modelos acusatórios não podem ser
considerados nos mesmos moldes que foram construídos na Antiguidade
Greco-Romana, e não são poucos os doutrinadores a afirmar que já não
existem mais sistemas puros. O que temos são os chamados modelos
(neo)inquisitórios, pois carregam traços do sistema anterior, não merecendo
receber a denominação de pós-inquisitorial (DI GESU, 2010). O importante é
que seja possível identificar a preponderância de características que mais se
amoldam ou ao princípio inquisitório, ou ao acusatório. A propósito,
pensando-se na realidade do sistema processual penal pátrio, Lopes Jr.
(2010, p. 170), numa contundente alusão crítica, chega a afirmar que “fica
fácil perceber que o processo penal brasileiro é inquisitório, do início ao fim,
e que isso deve ser severamente combatido”.
Se atentarmos para o fato de que o atual Código de Processo Penal tem
seu texto original datado de 1941, e que as alterações mais recentes e
significativas ocorreram em 2003 (pela Lei n.º 10.792), em 2008 (com a
promulgação das Leis n.º 11.689, 11. 690 e 11.719) e em 2011 (pela Lei n.º
12.403), não é difícil reconhecer o quanto esteve distanciado do modelo
acusatório e garantista assente no texto constitucional de 1988. Ainda
assim, no que tange à primeira fase da persecução penal, que corresponde
ao procedimento investigatório, e considerando que, no Brasil, o inquérito
policial é o procedimento investigatório por excelência, o Código de Processo
Penal permanece quase que intocado nesse particular, carecendo de uma
471
leitura constitucional, pois que orientado pelo princípio do inquisitivo
preponderantemente.
A par tudo isso, e não negligenciando o quanto os sistemas penais
contemporâneos e democráticos incorporaram a orientação ético-filosófica
dos ideais iluministas e passaram a conceber a figura do acusado como um
sujeito de direitos, além de absorver a ruptura com a moral eclesiástica, na
determinação das condutas desviantes, com foco na tutela de bens jurídicos,
o processo de secularização (laicização) ainda permanece inacabado. Não
raras as vezes nos deparamos com “aspectos da moral sendo valorados pelos
legisladores e pelos juízes” (BONHO, 2005), ainda que no campo da punição
e da execução da pena, o princípio da secularização vede a imposição de
sanções penais de fins morais. (MOURA, 2011).
No processo penal, tal compreensão é sobremaneira relevante, pois a
atividade judicial de valoração da prova, por vezes, revela um decisionismo
cuja subjetividade do julgador a lei não tem como abolir, apenas limitar.
Nesse aspecto, é importante mencionar que, por mais que a legislação
processual penal brasileira tenha evoluído, a ponto de ser orientada por um
modelo acusatório e garantista, a partir da Constituição de 1988, ainda há
um vácuo entre o “dever ser” e o “ser” no processo penal pátrio,
principalmente no que se refere à principal característica que permite
identificar se um sistema é acusatório ou inquisitivo, qual seja, o modo de
gestão da prova. Quanto mais poderes instrutórios são atribuídos ao
julgador, permitindo-se que se substitua às partes na atividade de produção
probatória, por exemplo, menos imparcial, mais persecutório e de perfil
inquisidor terá o magistrado, e mais se distanciará do modelo acusatório.4

4 A exemplo, o previsto no art. 156, do CPP que, mesmo pós-reforma de 2008, cuja
pretensão difundida seria uma adequação da legislação infraconstitucional ao modelo
acusatório e garantista, ainda atribui ao juiz a possibilidade de determinar a produção
antecipada de provas na fase investigatória, ou mesmo ordenar, de ofício, no curso da
instrução, diligências probatórias.
472
4. O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE
VALORAÇÃO DA PROVA: o modelo brasileiro

A compreensão do sistema processual penal brasileiro na


contemporaneidade, necessariamente, parte do modelo previsto
constitucionalmente e que, inquestionavelmente, é acusatório e garantista. A
consolidação desse modelo está umbilicalmente ligada a uma matriz teórica
que somente pode conceber a legitimidade do poder de julgar do Estado, se
exercido discricionária, porém, limitadamente.
Nesse viés, o processo, sem o qual não há de se conceber a existência
de um fato delitivo, com a consequente imposição da pena, antes de ser um
instrumento a serviço do exercício do poder punitivo do Estado, está a
assegurar a máxima eficácia aos direitos constitucionais do acusado. Daí a
se falar na “instrumentalidade garantista” do processo penal contemporâneo
(LOPES, 2010), a respeito da qual a persecução penal se justifica não pelo
seu fim, que pode culminar (ou não), na punição, mas sim na averiguação da
suposta prática de um ilícito penal, e na identificação da autoria delitiva,
para que só então, caso aferida a responsabilidade criminal, a pena possa
ser concretizada.
O princípio do nullum crime, nulla poena sine judicio, nesse contexto,
assume uma real importância para aquilo que a teoria do garantismo penal
reconhece como sendo a estrita jurisdicionariedade (FERRAJOLI, 2002), a
garantir uma esfera intangível do direito à liberdade individual, mesmo para
o Estado.
Para a epistemologia garantista, o desenrolar da instrução criminal
deve proporcionar condições de verificabilidade e de refutabilidade da
hipótese acusatória, a possibilitar, por meio do processo, um “controle
empírico”, de modo a ser convalidada tão somente se “apoiada em provas e
contraprovas, segundo a máxima do nullum judicium sine probatione”. À
medida que a sentença seja resultado de uma atividade cognitiva dos fatos,
vinculada ao reconhecimento e à aplicação da lei (a pressupor o desvio
punível, fruto de um comportamento determinado juridicamente como delito
“e não por uma imoralidade intrínseca ou por anormalidade”), a condenação
473
de alguém comprovadamente responsável igualmente não será “fruto de um
juízo moral ou de um diagnóstico sobre a natureza anormal ou patológica do
reú”, e “somente assim a justificação da jurisdição via secularização se faz
presente”. (FERRAJOLI, 2002, p. 32-33; MOURA, 2011).
Nesse contexto, resgata-se a ideia do paradigma secularizador como
princípio fundante do Estado democrático de direito, a preconizar um
modelo acusatório, em oposição ao modelo inquisitivo que, “estruturado na
negação do contraditório e na junção laboral de acusação e julgamento,
desenvolve [...] um primado das hipóteses sobre os fatos”. (CARVALHO,
2001, p. 31; MOURA, 2011).
No processo penal brasileiro, em que o texto constitucional de 1988
prevê a necessidade de motivação das decisões judiciais (art. 93, XI), é
inegável seu caráter de norma-garantia, a limitar o poder judicial de
valoração da prova. Num sistema acusatório e garantista como o nosso, não
poderia ser diferente: por mais que o juiz seja livre para formar seu
convencimento, sem ter de se ater às amarras da legislação nesse sentido,
não pode fazê-lo arbitrariamente, devendo restringir-se às provas dos autos,
obtidas e produzidas licitamente, em respeito ao contraditório judicial.
Partindo-se da premissa de que a expressão “sentença” deriva do
vocábulo em latim sentire, que significa “sentimento”, “intuição” (SILVA,
2013), não há como negar o caráter de subjetivismo que acompanha a
decisão do juiz. E somente por meio da necessidade de exposição das razões
de decidir é que se pode minimizar o caráter meramente decisionista da
sentença, bem como reduzir (posto que eliminar seria uma utopia) o
subjetivismo judicial quando da análise e valoração dos elementos
probatórios. Trata-se, em outro sentido, da sentença como resultante da
“verdade processual” (FERRAJOLI, 2002), aquela que emana dos autos, mas
que também representa a “verdade do julgador”, obtida a partir de sua
leitura ou interpretação das alegações e provas, mas que não seja fruto de
um juízo de valor meramente moral. A verdade evidenciada na sentença
nada mais é do que a verdade que os autos demonstraram (por meio das
alegações das partes e das provas por elas produzidas), a partir do olhar do
julgador, o que a torna ainda mais relativa.
474
Daí a importância dos ideais iluministas que, associados a uma
concepção organicista da sociedade, “composta ‘artificialmente’ por um pacto
simbólico e fundante” (CARVALHO, 2001, p. 54), acarretaram a ruptura com
a moral eclesiástica do medievo, e influenciaram, séculos mais tarde, na
seara penal, o surgimento das propostas minimalistas, como reação à
ideologia de defesa social e ao maximalismo penal, numa tentativa de
desconstrução (ou de relegitimação) dos sistemas penais existentes. Dentre
essas propostas, o destaque aqui para o garantismo penal e processual
penal.
O Direito Penal é assim. Constantemente envolto em um ciclo no
mínimo curioso, para não dizer “círculo vicioso”, em que se avança um
passo, na mesma medida em que se retrocedem dois, como diriam os
criminólogos críticos da contemporaneidade. Sobrevive às barbáries do
medievo, entra em um processo de humanização, resgata o reconhecimento
do homem como centro do universo, atribui uma série de garantias ao direito
a uma vida mais digna a todos, independente de sua condição de homem
livre ou não, de vítima ou acusado, e leva o Estado a uma redução de seu
caráter intervencionista e repressivo.
Porém, de repente, na mesma medida em que permite que se
questione a legitimidade da pena, que se critique seu caráter meramente
retributivo, o pensamento penalista tradicional ressurge impiedoso.
Reconhece a condição de falível e (de falido) do sistema punitivo e, lá pelas
tantas, movido por um discurso perverso e alienante, que reconhece o
indivíduo transgressor, ou um grupo deles, como “inimigos” da sociedade,
faz ressurgir um Estado penal altamente repressivo, policialesco, movido
pela concepção tradicional de que se combate uma crescente onda de
violência e de criminalidade com políticas de segurança que se resumam “à
luta contra a impunidade”, ressaltando o caráter protagonista (e ilusório) do
Direito Penal nessa tarefa.
E, por trás desse discurso por vezes velado, paradoxal e contraditório,
a desigualdade socioeconômica e cultural se perpetua nos países
capitalistas, e o sistema penal abriga apenas os “excluídos”, aqueles que são
privados de acesso aos bens tutelados jurídica e penalmente pelo Estado.
475
Felizmente, os movimentos minimalistas e a Criminologia Crítica
contemporânea sobrevivem a essa lógica, margeiam e procuram enfraquecer,
paulatinamente, e para muitos, até de modo imperceptível, despercebido, o
discurso dominante, num constante exercício de resistência à intolerância.
Na contemporaneidade, vivemos a realidade de um penalismo (ao menos nos
países latino-americanos) em que parecem ter sido esquecidos os ideais
iluministas, e o ciclo precisa ser retomado. Mas enquanto isso não acontece,
enquanto se nega o caráter de cláusula pétrea à norma constitucional que
prevê a menoridade penal aos dezoito anos, como é o caso do Brasil no
cenário jurídico e político atual, que não se permita o mesmo retrocesso no
processo penal, capaz de permitir aos Tribunais, pela análise dos casos
penais, um controle de constitucionalidade, com os olhos voltados para a
estrita legalidade, segundo a matriz teórica garantista.
Já que temos como legado iluminista, entre outros, a compreensão do
crime como fruto de uma conduta comissiva ou omissiva, resultante de uma
transgressão livre e consciente da norma jurídica, e não como uma
transgressão à moral eclesiástica. Já que ao Estado-Juiz importa “a prática
do fato correspondente à lei”, pois que o homem é livre para pensar, sentir,
se emocionar. Já que, numa alusão à teoria contratualista, a “liberdade
pactuada não corresponde à liberdade de pensamento, ao foro íntimo”, a
garantir que haja uma parcela do direito à liberdade que permaneça
inatingível, até mesmo para o Estado (FERRAJOLI, 2003; CARVALHO, 2001,
p. 47), que ao menos não percamos a noção da importância de um processo
que se desenvolva de forma dialética. Que não se renegue o modelo
constitucional acusatório, que não se vislumbre o processo como mero
instrumento de controle social por parte do Estado, e que, por fim, não mais
se confundam seus fins com os da pena.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O dinamismo do Direito Processual Penal fez com que surgissem


modelos, teorias e visões que o fizeram acompanhar a sociedade, em suas
necessidades. O modelo acusatório, em sua origem, era dotado de momentos
476
políticos e ficava restrito à precariedade das provas então produzidas. Essa
condição propiciou, entre outras coisas, o nascedouro do modelo
inquisitorial, que concentrou poderes de persecução e julgamento, em
especial à Igreja Cristã (Católica).
Graças ao Iluminismo e à Reforma Protestante, fruto dos movimentos
políticos e sociais que se rebelaram contra as atrocidades do modelo
inquisitorial e dos Estados Absolutistas do início da Era Moderna,
provocando a ruptura entre o poder estatal e a religião para a tomada de
decisões, culminando no rompimento entre o Direito e a moral, sobretudo, a
moral elesiástica. Nesse viés, iniciou-se a secularização do Direito, impondo,
na seara penal, uma racionalidade fundada numa teorização do crime e da
pena, a possibilitar respostas ao “por que proibir?” e ao “por que punir”, com
base em um sistema acusatório e garantista, cujos axiomas, em uma
sociedade democrática, conferem legitimidade ao poder punitivo estatal, que
não mais poderia ser exercido ilimitadamente.
Necessário, então, se fez adaptar-se o Direito Processual Penal a um
novo modelo, em que as provas não sirvam apenas para fundamentar a
decisão do julgador, mas antes para que, a partir delas, obtidas e produzidas
de forma a não atentar contra o sistema de garantias previsto
constitucionalmente, o julgador pudesse conhecer a realidade fática em que
supostamente estaria fundada a necessidade da persecução penal, a
permitir uma sentença emanada o mais próximo possível da verdade dos
fatos. Ou seja, resultante de uma racionalidade cognitiva, a explorar
eventual materialidade a autoria delitivas, reduzindo-se o espaço para juízos
de valor meramente morais. Uma persecução penal, resultante de um
processo dialético, a refutar ou acolher a(s) hipótese(s) acusatória(s)
inicialmente sustentada(s) e, sobretudo, de respeito aos direitos
fundamentais do acusado.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Bruno Rotta. Entre Desprezos E Disfunções: Os Direitos


Humanos E O Direito Penal. Disponível em:
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479
OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL INQUISITORIAL
BRASILEIRO

Damiani Costa e Silva1


Eduardo Vieira Hilário2

1.INTRODUÇÃO

O direito, e principalmente, o processo penal, sofreram significativas


mudanças através dos tempos. A Europa Medieval, com seu sistema penal
inquisitorial, onde a tortura e a barbárie reinavam, era a transfiguração de
um Estado autoritário, onde o poder era centralizado nas mãos de poucos, e
onde as luzes da razão não conseguiam vencer as densas nuvens deste
período de escuridão.
Entretanto, ainda que muitos entendam a inquisição como algo
desiginado exclusivamente à era medieval, este trabalho busca tensionar as
práticas inquisitoriais de forma contemporânea, relacionando-as diretamente
ao ápice do sensacionalismo midiático que vive a sociedade brasileira.
Atualmente, o Brasil está revisitando, em larga escala, questões como
o direito à informação, a democracia e a política criminal. Se de um lado
temos a mídia e a garantia constitucional da liberdade de impresa e
liberdade de expressão, do outro temos o cidadão moderno, curioso por
natureza, necessitado de informações pertinentes ao que ocorre ao seu
redor.
Inegavelmente, no universo da informação, o maior interesse do
receptor é no saber do crime. Como não poderia deixar de ser em uma
sociedade capitalista, o repector precisa ser atraído para gerar lucro e isso é
feito através da venda da criminalidade. O excesso de dramatização do crime
acaba fortalecendo estereótipos, razão pela deparamos-nos, então, com um

1 Acadêmica do 9º semestre do curso de Direito da UNICRUZ. Pesquisadora do GPJUR da


UNICRUZ. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),
“Neoinquisitorialismo e Interacionismo Simbólico na Sociedade Contemporânea”. E-mail:
damiani-siva@hotmail.com
2 Acadêmico do 10º semestre do Curso de Direito da Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ).

Pesquisador voluntário no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC),


“Neoinquisitorialismo e Interacionismo Simbólico na Sociedade Contemporânea”. E-mail:
eduardovh13@hotmail.com
480
vilão – o criminoso, que deve ser detido, combatido e erradicado pelo Juiz
Penal.
Este raciocínio, em toda sua simplicidade, levanta questionamentos
mais profundos acerca da natureza do nosso ordenamento jurídico e o
procedimento processual penal adotado. O caminho que o criminoso
percorre, das telas da televisão até à cadeia, precisa ser investigado. Não
obstante, é preciso levar em conta o que acontece com o dito criminoso após
sua inclusão no cárcere e quais as consequencias a serem enfrentadas,
então, pela sociedade.

2. O SISTEMA INQUISITORIAL

A fase inquisitorial se iniciou com os Concílios de Verona em 1184 e


se transformou no sistema penal regente no continente europeu com as
Bulas Papais de Gregório IX e Inocêncio, em 1232 e 1252 D.C.,
respectivamente. Foram várias as normativas que sustentaram e deram ares
de legalidade a inquisição, dentre as quais pode se destacar a Bula Ad
Extirpanda (1252), a Directorium Inquisitorum (1376) e Malleus Maleficarum
(1489).
Tais manuais instrumentalizaram os procedimentos penais da época,
baseados em denúncias anônimas e sem substância, instrução probatória
baseada na confissão do acusado e busca da verdade pela tortura. Trata-se
de Códigos baseados nas tradições da Igreja e dos homens, que grande parte
da Europa elegeu ao posto de Leis, e que sustentaram durante séculos o
aparelho inquisitorial. Neste sentido, Beccaria (1997), já no século XVIII,
afirmava:

Abramos a história, veremos que as leis, que deveriam ser


convenções feitas livremente entre homens livres, não foram, o mais
das vezes, senão o instrumento das paixões da minoria, ou o produto
do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador
da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da
sociedade com este único fim: todo o bem-estar possível para a
maioria (BECCARIA, 1997, p. 21).

O sistema inquisitorial ressurge como modelo nas práticas judiciárias

481
medievais com o redescobrimento e revitalização no século XII pela
Universidade de Bolonha, do Corpus Iuris Civilis, também conhecido por
Código de Justiniano, que se trata de um conjunto de compilações jurídicas,
publicado entre os anos de 529 e 534 D.C por ordens do imperador
bizantino Justiniano I, o qual servia de base ao Direito Romano. Beccaria
(1997), discorrendo sobre o Corpus Iuris Civilis, afirma que estas leis, por
assim dizer, não passavam de uma compilação repleta de comentários
obscuros e opiniões relativas a uma Europa antiga e desatualizada.
O clero, se aproveitando do Corpus Iuris Civilis, nele escorou sua
organização com vistas a desenvolver sua teocracia radical. Salo de Carvalho
(2005) destaca algumas características encontradas neste novo método
inquisitorial, sejam elas:

(a) o caráter público das denúncias, não mais restritas à vítima ou


aos seus familiares, aliada (b) ao sigilo da identidade do delator; (c) a
inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador,
sendo lícito a este realizar a imputação, produzir a prova e julgar o
acusado; (d) o sistema tarifado de provas e sua graduação na escala
da culpabilidade, recebendo a confissão o máximo valor (regina
probatio); e (e) a autorização irrestrita da tortura como mecanismo
idôneo para obtenção de confissões. (CARVALHO, 2005, p. 234).

A tortura passou a ser o principal instrumento do qual se valia o


sistema inquisitorial para extração da confissão, a qual, na maioria das
vezes era alcançada com sucesso. Isto acontecia, pois, o torturado sendo
culpado ou não, confessava o delito a fim de ser ver livre do martírio a que
era submetido – ainda que fosse inocente das acusações (BECCARIA, 1997).
De outro lado, com a expansão do sistema inquisitório, houve a
utilização deste modelo para julgar os crimes espirituais. Surgiram, então,
três jurisdições penais: a central, a local e a eclesiástica (GONZAGA, 1993).
A primeira era exercida por juízes ligados diretamente ao monarca regente; A
segunda, por sua vez, poderia ser referente, além de um terminado local, à
cidades, regiões, ou até mesmo países; Finalmente, a terceira, era restrita às
questões que diziam respeito à Igreja (GONZAGA, 1993).
Em suma, o sistema processual inquisitorial era caracterizado pela
ausência de contraditório e ampla defesa, além da não separação entre a
figura do acusador e do julgador, na medida em que quem acusava e
482
aplicava dos mais bárbaros métodos para colher as provas era o mesmo que
depois sentenciava. Nesse sistema medieval, a insuficiência de provas não
gerava absolvição. Pelo contrário, levava a um juízo de semiculpabilidade.

2.1 Superação do sistema inquisitório e primeiras luzes em matéria


processual penal

O avanço da ciência foi um duro golpe à teocracia estatal, e por


consequência, no sistema inquisitorial. Quando Nicolau Copérnico afirma
que a Terra não é o centro do universo, coloca em dúvida vários dogmas
ensinados durante séculos pela Igreja. Além disso, com o avanço da
medicina, se descobriu que várias das possessões demoníacas ou bruxarias
– as quais eram passíveis de imputação de crime de heresia – não passavam
de enfermidades curáveis. Todavia, apenas a partir de 1640, depois de
diversos anos torturando e matando em nome da justiça, a feitiçaria se
dissocia da ideia de delito (CARVALHO, 2005).
As edições das Ordonnance Criminelle, por Luís XIV, trouxeram
dispositivos que criaram barreiras ao uso da tortura. Como exemplo, no
artigo 7º, Título XIX, aponta-se que as decisões que permitiam o uso da
tortura não poderiam ser executadas a não ser quando confirmadas pelo
Tribunal de Paris. Além disso, criou–se o recurso obrigatório, nos casos em
que fosse aplicada pena corporal por juiz local. Isto significa que deveriam
ser enviados ao Tribunal de Pariso acusado e seu processo, para que uma
reanálise do caso fosse feita (CARVALHO, 2005).
No entanto, somente com o florescimento do humanismo e do
racionalismo que a Europa se dissocia gradativamente do sistema
inquisitorial. Dentre os autores que contribuíram para tal, citamos o alemão
Christian Thomasius, os italianos Pietro e Alessandro Verri, Cesare Beccaria,
e o francês Voltaire.
Atravésdo Code d'Instruction Criminelle, de 1808, de Napoleão
Bonaparte, é que nasce o processo misto, o qual se dividia em duas partes: a
primeira, nos moldes do sistema inquisitorial, se tinha a instrução
probatória, através do juiz de instrução; na segunda, se teria o debate
483
público entre defesa e acusação, onde se permitia o contraditório (PRADO,
2006).
Após a Revolução Francesa, o processo misto unificou as virtudes
existentes no inquisitório e no contraditório, dividindo o processo em duas
grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema
inquisitivo, e a fase de julgamento, com a predominância do sistema
acusatório. Num primeiro estágio, há o procedimento secreto, escrito e sem
contraditório, enquanto no segundo, presentes se fazem a oralidade, a
publicidade, o contraditório, a concentração dos atos processuais, a
intervenção de juízes populares e a livre apreciação das provas (NUCCI,
2010).

3. A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA NO TEMPO

O sistema processual penal inquisitivo se fez vigente no Brasil até


1830, por meio das Ordenações Filipinas, código legal português promulgado
em 1603 por Filipe I, rei de Portugal. Em seu Livro V, estas ordenações
regulamentavam o direito e o processo criminal. Com a morte de D.
Henrique, que viera a falecer sem deixar herdeiros, o trono de Portugal
passou às mãos do rei da Espanha, D. Filipe II. Houve nessa época a união
de duas coroas, e assim as Ordenações Filipinas passaram a vigorar em todo
o reino, inclusive no Brasil (MACHADO, 2010).
Em 1832, foi publicado o primeiro Código de Processo Penal no
Brasil, o qual já abarcou o sistema acusatório. Tal Código, ainda assim,
reunia características do modelo inquisitivo, como a possibilidade do Juiz
recolher provas da materialidade do delito e, de ofício, dar início a ação
penal, além de ouvir testemunhas sem a presença do réu. Porém, trouxe
grandes avanços coadunados ao modelo acusatório, como a incumbência do
Ministério Público em conduzir a ação penal pública, bem como executar
sentenças (NUCCI, 2010).
A partir de 1841, com a Lei nº 261, num movimento mais amplo em
direção ao modelo acusatório, se separou a função do Juiz da do Delegado
de Polícia, que culminou no ano de 1871 com a criação da Lei 2.033, a qual
484
disciplinou o Inquérito Policial, incumbindo ao Delegado a função de
investigação e coleta de provas, função esta retirada da esfera judicial
(OLIVEIRA, 2008).
Mas o grande salto ainda estava por vir quando em 1941, foi
promulgado o Código de Processo Penal, ainda vigente. Porém, foi
exclusivamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual
trouxe consigo uma série de garantias individuais garantidas também ao réu
e/ou ao preso, que vários paradigmas existentes anteriormente no processo
penal brasileiro foram rompidos. Logo, quando comparamos a Carta Magna
de 1988 e seu moderno corpo constitucional que trouxe uma série de
garantias, percebemos que o Código Penal e de Processo Penal são arcaicos e
obsoletos.
Essa afirmação ganha força quando se leva em conta que o
mencionado Código foi baseado na legislação processual penal italiana dos
anos de 1930, época em que vigorava no país o regime autoritário e fascista
de Benito Mussolini, características que nosso Código absorveu, tendo o
excesso de autoridade e a presunção de culpabilidade como características
básicas.
Nesse sentido, Eugênio Pacelli Oliveira (2008), muito bem coloca:

“(...) o fato da existência de uma acusação implicava juízo de


antecipação de culpa, presunção de culpa, portanto, já que ninguém
acusa quem é inocente! Vindo de uma cultura de poder fascista e
autoritário, como aquela do regime italiano da década de 1930, nada
há de se estranhar. Mas a lamentar há muito. Sobretudo no Brasil,
onde a onda policialesca do CPP produziu uma geração de juristas e
de aplicadores do direito que, ainda hoje, mostram alguma
dificuldade em se desvencilhar das antigas amarras” (OLIVEIRA,
2008, p. 06).

De fato, resquícios de autoritarismo que se refletem diretamente na


inquisição, não faltam em nosso Código de Processo Penal! Como exemplos,
podemos apontar a chamada mutatio libeli e imendattio libeli, dos artigos 383
e 384, as quais possibilitam ao magistrado alterar a acusação, dando-lhe
definição jurídica diversa; ou mesmo a possibilidade de o juiz requisitar
provas, de ofício (art. 156); instaurar incidente de falsidade e de insanidade
mental do réu, de ofício (art. 149); além de o magistrado ainda ter de decidir

485
sobre o arquivamento do inquérito policial – do qual não é coator.
Aury Lopes Jr. (2012) levantou alguns pontos da investigação no
processo penal que precisam ser revisitados e redefinidos. O autor afirma
que, acima de tudo, é preciso determinar a função e esfera de atuação do
juiz na parte investigativa, sempre o mantendo longe de qualquer iniciativa
investigatória: o juiz deve sempre atuar como garantidor da máxima eficácia
dos direitos fundamentais do imputado, razão pela qual não pode, jamais,
ser o investigador – o que é concebido no processo penal inquisitório.
Essas críticas ao Direito e ao Processo Penal são ponderadas na ótica
do Neoinquisitorialismo, campo de estudo que procura discutir não só o
procedimento penal, como a mentalidade e a cultura inquisitória instalada
na sociedade contemporânea.
Logo, a fim de aventar o fenômeno da criminalidade e o modo usado
pelo processo penal para reprimi-lo, importante que se comece pela definição
do modelo processual vigente. Embora seja aceito por grande parte dos
doutrinadores que o sistema processual penal brasileiro é misto, ainda há
divergência entre os estudiosos.
NUCCI (2010) entende que o sistema processual penal brasileiro é
misto, na medida em que seus principais focos são constitucional e
processual. Ou seja, margeados pelo que dispõe a Constituição Federal de
1988, estamos diante de um sistema acusatório, haja vista os princípios
abarcados na Carta Magna. Por outro lado, os procedimentos existentes no
Código de Processo Penal são elaborados sob uma ótica claramente
inquisitiva.
Entretanto, MIRABETE (2005) considera que o modelo processual
penal brasileiro é exclusivamente acusatório, uma vez que este é assegurado
pela Constituição Federal, a qual estabelece o contraditório e a ampla defesa
através de seus determinados recursos.
Certos doutrinadores contemporâneos – com os quais nos
posicionamos, apontam que a diferenciação destes dois sistemas processuais
é determinada pelo critério de gestão da prova. Ora, se a principal finalidade
do processo é reconstituir crime pretérito a fim de que se monte instrução
probatória, é na gestão da prova que se pode identificar o princípio
486
unificador – dispositivo ou inquisitivo (COUTINHO, 2010).
Aury Lopes Jr. (2012), por exemplo, considera que, embora
importantes, as funções do julgador são secundárias e insuficientes para
que se dite, ou se adeque, determinado modelo acusatório.
Esta discussão é de extrema relevância, pois, em que pese seja
consenso de que o sistema penal acusatório sustentando pela Constituição
Federal deva ser adotado, os legisladores continuam legislando ao revés, sem
aterem-se aos princípios constitucionais, e pior, tentam mudar a Carta
Magna, inclusive no que tange às cláusulas pétreas, como demonstram as
recentes propostas de emenda à constituição que propunham reduzir a
maioridade penal.
Salo de Carvalho (2005) afirma que o Direito Penal e Processual Penal
passou por um processo de laicização, principal diferença no sistema
inquisitorial medieval, o qual era completamente fundado e regulamentado
por preceitos religiosos. O autor questiona, todavia, se isto foi suficiente para
superar a lógica inquisitorial medieval, incrustrada na cultura da sociedade.
Já no ano de criação da nossa Carta Magna, o então Ministro do
Tribunal Federal de Recursos, Francisco de Assis Toledo (1988) fez
apontamentos inteligentes e de extrema relevância quanto às falhas
existentes no Código Penal Brasileiro:

O Código Penal de 1940, com o que dele ainda permanece, feito e


editado no clímax do Estado Novo, foge aos padrões desejáveis. Foi,
para a época, um estatuto avançado, incorporando o que havia de
consenso na doutrina então dominante. Essa doutrina, porém, tem
um grave pecado: remonta ao primeiro quartel do século XX e se
estrutura sobre a crença da necessidade e suficiência da pena de
prisão para o controle do crime. A política criminal que a inspira é
marcadamente parcial e repressiva (TOLEDO, 1988, p.249).

O ministro segue seu raciocínio e elucida que a sociedade é tomada


por uma falsa noção de que a cadeia é a solução para a criminalidade,
ignorando problemas como a superlotação das instituições carcerárias e a
rotulação que os apenados adquirem, marginalizando-os ainda mais
(TOLEDO, 1988).
Ou seja, nossa legislação penal vigente foi criada dentro da atuação

487
de regimes totalitários de direita, cujas principais formas de expressão eram
o fascismo italiano e o nazismo alemão. Aliando-se estas diretrizes ao caráter
inquisitivo processual herdado pela era medieval, não é de se estranhar que
a política criminal trazida por essas leis tenham absorvido o caráter
repressivo e intervencionista vivido na época, consolidando na população o
desejo de repressão acima de qualquer prevenção.

4. OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL

Ainda que o Direito Penal e Processual Penal tenham conseguido se


libertar das garras seculares da definição de pecado, a sociedade, em sua
maioria, parece estar fortemente influenciada por conceitos morais religiosos
que confundem a definição de crime com a definição de pecado.
Não é novidade que a sociedade em geral é relevantemente
influenciada pela mídia. Essa influência, ao contrário do que possa parecer,
reflete de maneira direta no ordenamento jurídico, nas políticas públicas e,
claro, no processo penal brasileiro. Isso porque, vivemos o um momento
dominado pelo sensacionalismo midiático, que se escalona
proporcionalmente ao fenômeno da globalização (ZAFFARONI, 2012).
Através do meio televisivo de comunicação, a imprensa constrói um
modelo informativo que dissolve os limites do real e do imaginário. Logo, o
receptor passa a interagir com a informação, em virtude do caráter
emocional de que a mesma é dotada, abandonando sua figura de
telespectador e transformando em um integrante da realidade que lhe é
apresentada (VIEIRA, 2003).
Incapaz de construir barreiras entre o racional e o sentimental, o
receptor das informações acaba sentindo-se diretamente afetado. Assim
como o jornalismo sensacionalista, a internet também tem contribuído para
a supervalorização da violência urbana, ampliando o interesse popular pela
justiça penal e pelo crime através do uso de uma linguagem discursiva, ágil
e coloquial (VIEIRA, 2003).
Portanto, sustenta-se a hipótese de que a população esteja vivendo
um estado de medo criado pela criminalidade extrema a que é exposta.
488
Assim, Bauman (2008) define o medo como uma incerteza inerente ao ser
humano, é um sentimento que ignora as causas do perigo e o que deve ser
feito. Neste sentido, bem ensina o jurista Raphael Boldt (2013):
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação
popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez
que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas
contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem
as causas do próprio medo (BOLDT, 2013, p. 96).

Neste contexto a mídia pode ser concebida como uma ferramenta de


proliferação do medo na sociedade, uma vez que se rompeu a relação do
sentimento de medo com contos e mitos – instancia dominadora na era
medieval. A sensação de medo passou, então, a ser transmitida diariamente
através de imagens e informações que adentram a rotina e a realidade
concreta do receptor.
Bauman (2008) apresenta o medo líquido como uma espécie de
irrealidade na qual a sociedade está absorvida. O autor explica que, o
homem vive constantemente ansioso e dominado por temores diversos, ao
passo que passa a se deixar influenciar pela informação a que é exposto sem
questionar a veracidade dos fatos. Doravante, analisando os ensinamentos
de Bauman (2008), pode-se afirmar que a insegurança não deriva tanto da
carência de proteção, mas, sobretudo, da falta de clareza dos fatos.
Shecaira (2012) ainda define a mídia como uma fábrica de ideologias,
capaz de condicionar o receptor, eis que altera a realidade dos fatos com
facilidade e cria, então, um processo permanente de indução à
criminalidade. Deste modo, os meios de comunicação possuem o poder de
desvirtuar o senso comum através da manipulação popular.
Apavorada, a população clama pela intervenção estatal e a repressão
da criminalidade que tanto teme, condicionando o legislador a criar normas
penais para a solução do problema. Este processo faz com o que Direito
Penal perca sua característica de instrumento garantidor de bens
juridicamente protegidos, lhe dando nova função: abarcar e confrontar a
realidade aos medos sociais (WACQUANT, 2001).
Como expõe Loïc Wacquant (2001) – e aqui está a questão enervante
– esta instalação do terror favorece aos políticos modernos a exploração do

489
crime violento através do medo que este causa, entoando discursos
medievos, intervencionistas e brutalmente repressivos de combate à
criminalidade, os quais se difundem e conquistam a simpatia da população.
O próprio candidato escolhido, então, perpetua a cultura inquisitória
em que nos encontramos, além da ira e do desejo por vingança. Em que pese
o Direito e o Processo Penal tenham sido revisitados e rediscutidos
incansavelmente ao longo dos anos, acompanhados de denúncias totalitárias
e inquisitórias, parece faltar, nestes estudos, uma abordagem criminológica
e sociológica contemporânea, que leve em consideração a cultura e os
anseios do cidadão.
A sociedade que vive submersa na vitimização pelo risco da
criminalidade, no tocante às hipotéticas situações quanto à violência
urbana, busca por respostas advindas da política criminal eficientista, que
não se preocupa apenas com a efetividade da lei penal, mas, também, em
passar uma falsa mensagem de segurança e controle sobre a criminalidade e
de custo-benefício ao Estado. Essa nova estrutura legal claramente exprime
a conjugação de uma perspectiva simbólica e instrumental.

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, a sociedade fica a mercê do que lhe é transmitido pela mídia,


agarrando-se a esperança de um futuro melhor e menos violento. Estagnado,
o processo penal fica a acompanhar uma população vivendo em completa
divisão social, enquanto os anos e as oportunidades de avanço seguem
passando. A elite escolhe para si quem é o inimigo, estereotipando ainda
mais as camadas mais pobres que, marginalizadas, agarram-se aos seus
poucos recursos e perpetuam o que lhes foi predestinado: fracasso no
sistema.
Percebe-se de forma cristalina que a população deixou de se
perguntar diante da comprovação de que o outro pode ser bárbaro. A
solução encontrada foi, portanto, levantar muros que separem o criminoso
estereotipado (o pobre, o negro), do cidadão de bem.
Logo, a brutalidade medieval transcende a caça às bruxas instituída
490
pelo Malleus Maleficarum. Essa violência é gerada no seio da sociedade e
reafirmada pela informação deliberada e carente de ética.
Sem maiores dificuldades, pode-se resumir que nos regimes
autoritários houve sempre uma constante: a necessidade de transformar o
processo penal em um instrumento de segurança pública. Essa ótica reduz o
processo penal à mera ferramenta para eliminar pessoas indesejadas,
deixando de se preocupar com os meios para que isso ocorra, tampouco os
resultados que essa ação trará.O que nos resta é um instrumento de
repressão e controle social encontrado no processo penal e exercido pelo juiz
criminal – sobre quem recai todo o poder inerente à segurança pública.
O processo penal brasileiro, em seu atual momento, tem rompido
com os limites do poder punitivo, bem como vem enfraquecendo as garantias
processuais constitucionais. Os avanços suscitados nos procedimentos
penais estão amarrados ao capitalismo e à exploração da ignorância.

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492
DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS PARA APENADOS – DIMENSÕES DA
ECONOMIA SOLIDÁRIA

Enio Waldir da Silva1

1. INTRODUÇÃO

A economia solidária é compreendida por nós em três dimensões: a)


como uma pratica econômica, por onde parcela da população busca
garantir renda e trabalho de um modo alternativo; b) como um movimento
social, que luta em defesa do associativismo, cooperativismo popular e
desenvolvimento sustentável frente ao Estado e c) uma proposta de vida
social que contém uma filosofia e uma sociologia que defende uma
organização social permeada pela solidariedade, dignidade humana,
sustentabilidade e justiça igualitária. Como tal, possui diversos discursos
ligados aos atores que a integram e apoiam. Mapeamos parte destes
discursos e estudamos até que ponto a pratica da economia solidária poderia
ser fonte para concretização dos direitos humanos.
Foi um estudo com orientação teórica da sociologia jurídica crítica que
enfatiza as relações sociais inovadoras de sociabilidades. Neste sentido segue
a tradicional abordagem de Emille Durkheim que aponta que a cultura
social sobre o crime e a penalização vem de um sentimento coletivo ferido,
mas que a razão para a existência de expressiva condição criminológica é da
própria sociedade que não foi capaz de manter uma forte consciência
coletiva enraizadas em suas normas e valores e por não assegurar os laços
religiosos e familiares que protegem os indivíduos das tendências
dessocializantes. No entanto, as soluções para esta patologia – o crime – não
virão destas soluções da solidariedade mecânica, do qual está inserido o
direito penal. Estaria sim, na solidariedade orgânica que abriga o direito
restitutivo que progride com as sociedades complexas e segue a abordagem
da necessária ressocialização de indivíduos em situação de pena carcerária.
Neste sentido, devolver o indivíduo socializado é coisa que o sistema

1Texto é fruto de Projeto de Pesquisa institucional. Professor Doutor em Sociologia, Atua no


Mestrado em Direitos Humanos e na graduação da UNIJUI.
493
penitenciário não faz, de sorte que o que pode cumprir esta função, é para o
autor, reconstituir a moral de trabalho para o preso, qualificar ele, fortalecer
sua personalidade individual com base em uma função especializada da
economia solidária e numa nova visão de vida diante da família, do trabalho
e da espiritualidade –esperança- e fé em viver em comunidade. Defendemos
que, com base na essencialidade da proposta de Divisão do Trabalho de
Durkheim é possível fundamentar a ação socializadora da economia
solidária para o apenado (DURKHEIM, 1986).
Uma abordagem bem diferente, mas que nos ampara a pensar nesta
saída é a de Habermas. Ele defende a necessidade de uma reestruturação do
sistema de direitos como condição sine qua non para se evitar a tecnificação
do mundo da vida pelos subsistemas do dinheiro e do poder administrativo
e, conseqüentemente, realizar os direitos humanos como direitos
econômicos, políticos e socioculturais de forma inclusiva de todos os seres
humanos, concretizando, assim, os ideais de liberdade, igualdade e justiça.
Se atualmente muitos não podem elaborar as normas para viverem,
querem que ao menos sejam escutados e entendidos pelos normatizadores
da sociedade democrática, pois esta precisam considerar os interesses mais
universal possível: o direito ao trabalho e renda digna. Este é um principio
moral que vai além da responsabilidade pessoal do preso. Por isso o Estado
de Direito deve oferecer potenciais a estes excluídos de forma que a moral
busque universalização no âmbito público, devendo ser realizada por todos,
já crimes e violências não podem ser imputados somente a indivíduo que
sofre a pena.
Para que a formação política da opinião e da vontade racionalmente
motivadora o Estado deve apresentar soluções, pois está amparado na
discursividade legal dos direitos humanos (HABERMAS, 1997, v. I, p. 145 –
147).
O direito, compreendido como um todo, abrange também os direitos
fundamentais e estes têm como base o acesso ao trabalho e a renda.

O direito é sistema de saber e, ao mesmo tempo, sistema de ação. (...)


No direito, os motivos e orientações axiológicas estão interligados
entre si num sistema de ação, por isso as proposições jurídicas tem

494
eficácia imediata para a ação, o mesmo não acontecendo com os
juízos morais enquanto tais. De outro lado, as instituições jurídicas
distinguem-se das ordens institucionais naturais através do seu
elevado grau de racionalidade, pois nelas se cristaliza um sistema de
saber sólido, configurado dogmaticamente e conectado a uma moral
dirigida por princípios. E, como o direito está estabelecido
simultaneamente nos níveis da cultura e da sociedade, ele pode
compensar as fraquezas de uma moral racional que se atualiza
primariamente na forma de um saber. (HABERMAS, 1997, v. I, p.
150).

Percebemos que esta reflexão nos ampara para falarmos de uma


relação do saber do direito e do saber das práticas de economia solidária que
pode ser canalizados para este público encarcerado. Verificamos, então, que
a luta pela concretização dos direitos dos direitos humanos encontra
ressonância nas práticas destes grupos organizados pela economia solidária,
especialmente quando estas associações e cooperativas conseguem garantir
trabalho e renda mais constante para todos os seus membros. A
consolidação da autonomia destes grupos expressa também poderes para
fortalecimento da democracia participativa, dos saberes emergentes,
decentes, urgentes e prudentes, pois são frutos de atores sociais munidos de
liberdades substantivas (trabalho e renda). As experiências da economia
solidária traduzem os muitos potenciais em que ela pode ser usada para
assegurar vida digna a muitos indivíduos. No tocante ao público alvo deste
estudo, os apenados, verificamos o enorme potencial educativo, formativo,
organizativo e de ação concreta que a economia solidária proporciona a estes
que fazem parte dos excluídos sociais

2. DESENVOLVIMENTO

Percebemos, inicialmente, que as muitas experiências da economia


solidária com apenados somente puderam acontecer com sujeitos que
cumprem penas no regime “semi-aberto”, “aberto” e em “Livramento
Condicional” e quando o judiciário apoiou as iniciativas dentro de estratégias
de aplicação de penas alternativas, de cumprimento das prerrogativas
constitucionais de ressocialização e, também, para concretizar designações

495
de efetivações dos direitos humanos. As políticas públicas têm apoiado
experiências de organização de trabalho solidário que geram renda e
agregam valores a indivíduos excluídos do sistema social, mas ainda carece
de uma disposição institucional, legal e de saberes pertinentes para aplicar
objetivamente a economia solidária nestes indivíduos em encarceramento.
Esta pesquisa contribuiu para ampliar estes saberes que podem orientar a
emergência de políticas públicas voltadas para este setor e sensibilizar as
autoridades dedicadas a ofertar trabalho para apenados, cumprindo os
preceitos legais e os princípios dos direitos humanos.

2.1.A solidariedade e a economia solidária

Milhares de rede de economia solidária que vão se organizando pelo


mundo a fora, tornam-se poderosos atratores, capazes de irradiar
desenvolvimento sustentável nos territórios que alcançam, na medida em
que integrem estrategicamente seus fluxos de meios econômicos (bens
tangíveis e intangíveis) e seus fluxos de valores econômicos (MANCE, 2008;
192). Esta expressão indica as imaginações que estão sendo criadas em
torno das praticas de economia solidária como alternativas sistêmica ao
capitalismo e noticiam sobre a amplitude sua como contraposto ao sistema
de vida concorrencial do mercado atual. Numa missão de promover o bem-
viver das pessoas e a paz entre os povos pela pratica de uma consciência que
já está nas pessoas a economia solidária teria o germe de uma revolução
pacífica.
Esta consciência seria revelada pela pratica de trabalho solidário, pela
distribuição equitativa das rendas e riquezas produzidas. Ou seja, não há
indivíduo que seja contra a um justo trabalho, a uma justa renda e a uma
vida de paz e bem-viver. Esta força é interna e está a lógica humana que
exige integração de um Eu a um Outro para juntos viverem. A lógica do
sistema da vida humana é visualizada na lógica de uma proposta sistêmica
de vida social, que não ameaça a lógica sistêmica do planeta. É aqui que
devemos pensar a solidariedade da vida humana com a solidariedade do
sistema planetário. Perceptível como participação de pessoas que consomem
496
ar, água, terra e energia e seus frutos. Não se pode destruir a fonte do que
nos sustentam (TOURAINE, 1998).
Então, a solidariedade envolve relações como a natureza e o meio
ambiente, relações sociais, ideias e o bom uso do conhecimento. Como não
somos todos iguais, procuramos fazer ações junto com o outro de modo a
não desprezá-los e nem sermos tratados degradadamente por ele, ou, ainda,
por sermos seres humanos iguais, a solidariedade significa aquele aspecto
de nossa existência que entende que precisa do outro e que o outro precisa
de mim. Se nascemos com a força solidária em nossa natureza (dependemos
da mãe, do pai...), ao nos inserirmos na sociedade a solidariedade vai
enfrentando muitos obstáculos para naturalmente se manifestar e se tornar
social e, como tal, sofre os vícios de toda a socialização por dependência. A
solidariedade faz parte de uma cultura de reconhecimento e pertencimento a
um mundo que precisa convivência e complementaridade, sustentabilidade e
respeitabilidade.
Quanto maior a cultura de solidariedade, maior a possibilidade de
alcançarmos uma vida moral coletiva, de modo a entender a dor e a
humilhação do Outro, propondo a inclusão do “diferente” no nosso grupo
social, aumentando os nossos acordos intersubjetivos e a referência a um
nós. Ações solidárias não são linguagens apenas de contingência onde
exigem apenas gentilezas, mas um permanente diálogo que desconstrói os
ambientes de humilhação dos outros, favorecendo, assim, uma cultura de
convivência dos diferentes. Entender a solidariedade é ver os agrupamentos
de sujeitos livres que compartilham compromissos e ações coletivas, unidos
através do sentimento de pertencimento coletivo, do compartilhamento dos
interesses, da cidadania, de reconhecimento de sujeitos de direito. Neste
sentido a solidariedade instaura a liberdade.
Certamente, em uma sociedade esfacelada como a nossa a
solidariedade é também força e objetivo de lutas individuais e coletivas.
Significa que a solidariedade não brota de sujeitos munidos de misantropias
e atravessados por necessidades substanciais. É necessário uma via de mão
dupla a responsabilidade de gerar renda digna que instaure a concretude de
uma vida em que as necessidades genuínas estejam superadas (SEN,2010).
497
A renda auferida de modo coletivo, fruto da autogestão e carregado dos
metabolismos humanos dos que se unem para ter vivencias dignas é uma
das maiores fontes educadoras que existe e seus efeitos são percebidos como
ressocializantes, não para a mesma sociedade que tem lógica excludente,
mas para outra sociabilidade.

2.2. Renda digna

A dignidade tem uma concretude de onde ela brota: a qualidade de


vida, ou seja, quando sujeito não passa fome, quando consegue manter sua
saúde ou recuperá-la casa adoeça, quando tem casa para morar, quando
tem acesso a educação científica, quando consegue viver sua afetividade,
quando consegue falar e ser ouvido e, especialmente, quando consegue
trabalhar e auferir renda digna.
Há lugares em que grupos produzem riquezas para poderem melhor
aproveitar suas vidas, torná-las prazerosas, tornar as trocas uma forma de
relação social. Alguns descobriram que a vida podia ser de outro modo longe
da competição e da concorrência e criaram alternativas que davam sentido
ao direito de viver segundo a natureza social dos sujeitos. Se sofremos
quando o outro sofre e lutamos para diminuir o sofrimento dele, nos
dedicamos ao Outro como nos dedicamos a um Nós isto quer dizer que
somos solidários e não competidores.
Trata-se de refletir em escala planetária, adotando a "identidade
terrena" de que fala Edgar Morin (2008). Pensar a longo prazo, levar em
conta as gerações que ainda não nasceram, mas que sofrerão as
consequências de nossas escolhas atuais. Inserir-se em uma visão ecológicas
e privilegiar o desenvolvimento duradouro, não separando a espécie humana
dos outros componentes da natureza. Muitos buscam no outro os elementos
de igualdade, como a amizade, a compreensão, a solidariedade e, quando
encontram as diferenças, respeitam-nas e buscam formas de saber tratá-las,
conviver com elas.
Em muitos lugares se percebem sabedorias subjacentes, não
colonizadas e nem colonizadoras. Assim, se os laços vivos da liberdade
498
persistem contra a lógica perversa do aprisionamento do lucro imediato, não
há por que, como diz Habermas (1997), nos desesperarmos com o poder, a
razão e o Estado. Estamos vivos, pensantes e capazes de linguagem, na
universidade, na rua, na associação, na comunidade, então tudo pode ser
criado. Para Boaventura de Sousa Santos(2009), estas experiências de vidas
emancipadas espalhadas por aí, necessitando de serem unidas em uma nova
alternativa de vida, em uma nova epistemologia e na utopia da igualdade,
que continua viva. Essas práticas solidárias estão ao alcance de qualquer
pessoa, pois falam a gramática do social, já que os homens não agem
somente porque estão presos a uma situação tornada insuportável, mas
também porque estão ligados a certas visões do possível.
E a renda é um substrato fundamental que concretiza e motiva as
vidas. Ela garante a sua liberdade substantiva como alimento, trabalho,
educação e saúde, e permite que sejam aproveitadas as oportunidades
econômicas, a liberdade de escolhas, as facilidades sociais, as
transparências e a segurança. Por isso não ha “sujeito desespero” e o
fundamento da dignidade da humanidade da vida está em qualquer pessoa.
Não se trata de fazer imaginar um super-homem capaz de resolver todos os
problemas que a afetam, mas de entender os problemas e criar esforços para
resolvê-los. Contudo, as liberdades substantivas de que desfrutamos para
exercer nossas responsabilidades são extremamente dependentes
circunstâncias políticas, culturais, sociais, econômicas e ambientais. A
economia solidária congrega estas dimensões.
Surge das antigas formas de trabalho familiar; transformou-se em
uma alternativa de renda dos desempregados; se fortalece com as
associações de catadores nas grandes cidades; se expande com o
fortalecimento da agricultura familiar e do artesanato; se consolida com a
criação de estudos de sua realidade, com o apoio das universidades
incubadoras e com as politicas públicas; se globaliza como sendo uma forma
de fazer empreendimentos produtor de renda constante diante das
oscilações do mercado.
Hoje está buscando maior reconhecimento, melhor organização e mais
tecnologias para implementar seus fins de trabalho solidário e autonomia.
499
Responde por 10% do PIB brasileiro. Isso apenas das atividades
formalizadas, pois o conjunto de atividades informais que garante trabalho e
renda para milhões de famílias é infinitamente maior.Suas atividades estão
35 % organizadas em forma de cooperativas e 32% são associações. Existem
11 leis estaduais sobre economia solidária e está presente em mais de 3 mil
municípios.A economia solidária recebe apoio de diferentes ministérios. A
Senaes – secretaria nacional de economia solidária, fazendo esforços para
que esta pulverização de recursos sejam reunidas em um setor e garanta-se
uma estrutura mais permanente de capacidade de fazer frente a várias
demandas de exclusão social: ministérios - da agricultura, desenvolvimento
social, saúde, justiça, ciência e tecnologia...Sua heterogeneidade advém
também das emergências de novos ramos econômicos e da crise da onda
neoliberal. É um caminho que a nova Europa vem adotando para proteger
seus trabalhadores das oscilações econômicas. Criaram recentemente a
Academia Européia dee Economia Solidária. A própria OIT recomenda que a
economia solidária, com suas prerrogativas de autogestão e cooperação seja
a alternativa para mudar o mundo a favor dos trabalhadores em geral.

2.3. Direito ao trabalho na prisão

O pressuposto de que existe uma natureza humana universal que


pode ser conhecida racionalmente nos leva a pensar que a natureza humana
pode ser inserida em uma realidade organizada que a contemple. Não se
trata de impor esta organização, mas de participar dela e assumi-la como
uma das formas de contemplar nossa diversidade. Provavelmente se
tivéssemos com acesso a aquilo que nos torna digno teríamos mais força
para enfrentar as vulnerabilidades da violência e da estupidez. Minha
qualidade de vida baseada saúde física, intelectual, mental e espiritual
produziria menos estranhamento (ZOLL, 2007).
Por isso o sonho dos direitos humanos concretizados é o sonho da
sociedade ideal pensada por muitos lutadores sociais.Trata-se de criar uma
cultura do nós e não remeter o outro para fora da humanidade. Assim, em
todos os espaços é possível de serem criada esta cultura. O apenado pode
500
nunca ter ouvido falar desta oportunidade. Pelo trabalho, têm a
possibilidade de orientar suas compreensões para outra vida possível. O
trabalho é um direito universal. Quando uma pessoa é presa, ela não perde
este direito, na verdade, de acordo com a Lei de Execuções Penais, o
trabalho é tanto um direito quanto um dever daqueles que foram
condenados e se encontram nos estabelecimentos prisionais. No entanto,
estas atividades não devem se assemelhar a trabalhos forçados, cruéis ou
degradantes.
O objetivo do trabalho destinado aos presos não é aplicar uma
segunda punição àquele que já tem a liberdade cerceada mas, pelo contrário,
reabilitar e ressocializar o preso, auxiliando sua recuperação e preparando-o
para a reinserção na vida em sociedade. Aí está um dos papeis dos direitos
humanos: garantir as condições de uma comunicação franca, honesta e
autônoma por onde as opiniões e a vontade podem ser entendidas e
refinadas ao ponto de se institucionalizarem para ser vividas. Embora
estejam formalmente escritos os direitos sociais e humanos não estão sendo
efetivados em sua plenitude. Os estudos sobre a ressocialização mostram
que os indivíduos que comentem agressões ao ordenamento jurídico são
julgados mediante o devido processo legal e penalmente condenado com
base nos indícios suficientes de autoria e materialidade (SALLA, 2011).
O indivíduo, durante o cumprimento de sua pena, deve ter acesso aos
meios que possibilitem a sua reeducação, garantindo assim a sua
readaptação ao convívio social ao final da sua condenação. O cárcere possui
um ambiente, em razão de sua antítese com a comunidade livre, converte-se
em meio artificial, antinatural, que não permite realizar muito pouco de um
trabalho reabilitador sobre o recluso. O sistema carcerário não reabilita o
preso, sendo assim a pena privativa de liberdade perde o seu caráter
ressocializador. Isto porque, nas prisões os presos são humilhados e
violentados, sua dignidade e os seus direitos não são preservados, e,
consequentemente aquele preso que deveria ser reeducado acaba voltando
para a delinquência (BITENCOURT, 2001, p. 154-155).

501
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, a Economia Solidária permite aos apenados e aos egressos das


prisões uma alternativa de geração de renda lícita, uma vez que o peso do
estigma de ser um ex-presidiário os impedem de conseguir um emprego,
agravando ainda mais a situação da criminalidade e da exclusão social.
A Economia Solidária, por sua forma organizativa e prospectiva é um
grande antídoto da violência, uma forma ampla de inclusão social pelo
trabalho e renda e se encaixa perfeitamente na estratégia de promoção dos
direitos humanos, da justiça e das promoções de atividades ressocializantes
de pessoas que sofrem a violência do aprisionamento.
Os relatos de atores atuantes nos presídios mostram a forma possível
é pela Educação: “ideia de que a associação do trabalho com a educação são
os pilares para a emancipação humana dos detentos, pois essas duas
concepções partem do princípio de que os saberes e significados construídos
pelos próprios envolvidos (apenados), e não de um saber e conhecimento já
pronto e formulado que, muitas vezes, não é significativo para o grupo”
(SILVA, 2012).
Todos reconhecem que o trabalho dos presos tem um papel muito
importante em vários sentidos. Tanto no sentido de proporcionar uma
ocupação, mas também representa uma oportunidade de ganhos e de
qualificação profissional. Além, é claro, de colaborar com a manutenção da
ordem interna nas prisões. O trabalho contribui para abrir perspectivas de
vida para o preso. Há também a questão da autoestima. Enfim, há vários
aspectos que são bastante positivos em relação ao trabalho. O grande
desafio para os gestores públicos é que essa atividade acaba convivendo com
outras preocupações inerentes ao contexto de uma unidade prisional,
especialmente na área de segurança.
O trabalho é, inquestionavelmente, uma atividade fundamental,
sobretudo nessa perspectiva de criar oportunidades para que os presos
possam experimentar perspectivas novas de vida. São muitos os problemas
enfrentados pelo sistema prisional. Entre eles é do que sua crise se insere na
crise dos controles sociais em si, que foram montados para enfrentar os
502
efeitos da má socialização e não os processos que levam os sujeitos a
criminalização. Efeito da lógica perversa de exclusão da sociedade
capitalista, os sistemas prisionais são a síntese da cultura de desrespeito a
dignidade da vida....
A Economia Solidária poderia melhor cumprir suas perspectivas se
estiver acoplada a um programa sistêmico do Estado e de Direitos Humanos.
Se não possuir um amplo programa políticas públicas de ressocialização, os
efeitos da Economia Solidária no atual sistema prisional serão muito
residuais. É a lógica perversa de exclusão da sociedade capitalista que torna
os sistemas prisionais ainda mais uma síntese da cultura de desrespeito a
dignidade da vida. Por outro lado, ficou claro que a apresentação de meios
alternativos de vida e amplia as possibilidades de ressocialização dessas
pessoas.
Se apresentarmos a Economia Solidária como um meio de fazer com
que estas pessoas possam ter uma ocupação e uma fonte de renda justa é
possível reverter a situação de muitos sujeitos presentes nas realidades
prisionais. Não por que ela foi feita para esta situação, mas por que a
Economia Solidária traz o germe de uma nova civilização e suas dimensões
práticas desafiam os poderes públicos e a sociedade civil e mobilizar esforços
de combate às misantropias humanas. O Estado e seus representantes
julgadores e aplicadores da pena estão de mãos atadas diante dos
comprometimentos funcionais. Arremedam algumas alternativas, mas
sabem da pouca ressonância de um trabalho isolado, fora de um contexto
transformativo mais amplo que proponha perspectivas de vida digna, justa e
pacífica.

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503
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como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis, RJ:
Vozes. 1999.

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TOURAINE, Alan. Podemos viver juntos? Iguais e Diferentes. Petrópolis
(RJ): Vozes.1998.

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sociedade ( projeto de ressocialização de presos da Secretaria de
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Letras, 2010.

ZOLL, I. O que é solidariedade hoje. Ijui/RS: Editora Unijui, 2007.

504
O ASPECTO INTERNACIONAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO A PARTIR DO PACTO DE
SÃO JOSÉ DA COSTA RICA

André Giovane de Castro1


Marcelo Loeblein dos Santos2

1. INTRODUÇÃO

A necessidade de proclamar a dignidade da pessoa humana deu ensejo


à criação de direitos e garantias em nível internacional. O período iluminista,
vivenciado no século XVIII, abriu um espaço de discussões para a promoção
de ordenamentos jurídicos que viessem ao encontro da efetivação de uma
vida digna.
O século XX, porém, em razão da violência contra o ser humano e dos
milhares de mortos durante a Segunda Guerra Mundial, tornou-se um
marco ao fortalecimento dos tratados internacionais sobre a temática dos
direitos humanos. Com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU),
em 1945, o assunto ganhou repercussão e, em 1948, instituiu-se a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, enquanto texto de cunho
internacional a respeito da matéria.
O debate sobre a inserção do ser humano como sujeito do Direito
Internacional, a partir de então, foi incluído na pauta de consolidação e
garantia dos direitos do homem. Enquanto o Estado apresenta-se como
principal sujeito, o indivíduo busca também alcançar este título, uma vez
que as prerrogativas seriam maiores perante os tribunais internacionais.
Apenas elaborar textos que satisfaçam aos interesses da comunidade
internacional, porém, não resulta significativamente na garantia dos
respectivos direitos. Para tanto, a partir da segunda metade do século
passado, foram criados sistemas regionais com o intuito, entre outros, de
dar sanção aos países que violarem os direitos humanos. Destacam-se, entre

1 Aluno do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado


do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Andre_castro500@hotmail.com
2 Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Professor do Curso de

Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do


Sul (UNIJUÍ). Marcelos@unijui.edu.br
505
os mais fortalecidos, os sistemas da África, América e Europa.
Neste trabalho, portanto, apresentamos com mais ênfase o Pacto de
São José da Costa Rica, ou Convenção Americana de Direitos Humanos,
datado de 1969. Este texto estabeleceu a constituição da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, cujo objetivo se encontra na consolidação do princípio máster da
dignidade da pessoa humana.

2. A RAZÃO EXISTENCIAL DOS DIREITOS HUMANOS

A sociedade contemporânea utiliza de maneira intensa o discurso


acerca dos direitos humanos. Com o fortalecimento dos sistemas
democráticos, deu-se abertura para a consolidação de direitos e garantias
aos cidadãos, uma vez que se constituem enquanto sujeitos e protagonistas
da história. Após a Segunda Guerra Mundial, surgiu a necessidade de se
instituir mecanismos internacionais que viessem de encontro às barbáries
cometidas durante o respectivo evento de guerra. Ao compreender o homem
em sua personalidade, percebeu-se a importância de zelar pela sua
dignidade, o que corrobora os denominados direitos humanos.
O Direito Internacional, assim, dedicou-se a estudar os
acontecimentos liderados pelo ditador alemão Adolfo Hitler. Nesse tocante,
conforme ensina Guerra (2013, p. 470), acerca dos desafios após 1945:

[...] o moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um


fenômeno do pós-guerra e seu desenvolvimento pode ser atribuído às
monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença
de que parte dessas violações poderia ter sido prevenida se um
efetivo sistema de proteção internacional dos direitos humanos já
existisse, o que motivou o surgimento da Organização das Nações
Unidas, em 1945.

Em razão das atrocidades cometidas no decorrer da Segunda Guerra


Mundial, de acordo com Braun (2002, p. 105), “houve a necessidade de
reconstrução do valor dos direitos humanos como um paradigma e
referencial ético a orientar a ordem internacional”. A partir do momento em
que o ser humano se tornou o centro do debate, entendeu-se o direito

506
humano como “[...] um direito moral universal, algo que todos os homens em
toda a parte, em todos os tempos, devem ter algo do qual ninguém pode ser
privado, sem uma grave ofensa à justiça, algo que é devido a todo o ser
humano simplesmente porque é um ser humano” (Cranston, apud
GORCZEVISKI, 2005, p. 22).
Nesse raciocínio, Vieira (2015, p. 102-103) contribui ao afirmar que:

Os direitos humanos, enquanto fruto dos reclames democráticos de


um conjunto de movimentos de construção histórica em favor do
pleno desenvolvimento do ser humano, referem-se,
contemporaneamente, à institucionalização e à promoção de um
mínimo ético universal, pela garantia de direitos básicos, sejam estes
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, a serem considerados
e realizados de forma integrada e indivisível, a todos os seres
humanos no planeta Terra, indistintamente, universalmente.

Os direitos humanos, portanto, podem ser conceituados


genericamente enquanto um conjunto de normas que compõe o
ordenamento jurídico, entendidos como direitos inerentes ao ser humano.
Eles se constituem na representação das condições elementares da natureza
humana, compondo o conceito de indivíduo nas dimensões da matéria, do
espírito e do social, para que o homem possa exercer com plenitude as
liberdades da vida, na condição de membro de uma sociedade de direitos.

2.1 A origem dos direitos do homem

Os direitos individuais remontam ao Egito e à Mesopotâmia, onde já


poderiam ser encontrados sistemas jurídicos que preconizavam a essência
do ser humano. Porém, conforme ensina Guerra (2013, p. 460):

É no período chamado do Direito Cuneiforme que começam a surgir


os “códigos”, a exemplo do Código de Hamurabi (1690 a.C.), que
talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direitos
comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a
honra, a dignidade, a família, provendo a supremacia das leis em
relação aos seus governantes.

Trata-se de direitos incorporados na sociedade desde a Idade Antiga.


Contudo, a aplicabilidade ainda era restrita, ou quase nula. Foi a partir do

507
século XVIII, com o advento do Iluminismo, que surgiram ideias tendo como
cerne o ser humano e, de tal feita, instituiu-se o Século das Declarações em
virtude da fundamentação baseada na racionalidade, num direito natural
que transcende os demais e se aplica do mesmo modo a todos.
Os direitos ficaram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, publicada em 1789 na Assembleia Nacional Francesa. Este
acontecimento pode ser definido como um marco na história da valorização
humana, pois para Bobbio (1992, p. 85) foi “um daqueles momentos
decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e
o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero
humano”. Nele, consagram-se, entre outros, os princípios da igualdade, da
liberdade, da legalidade, da presunção de inocência e da livre manifestação
de pensamento (GUERRA, 2013).
A compreensão é de que, não obstante os direitos humanos sejam
inerentes à própria natureza humana, seu reconhecimento e sua proteção
são decorrentes de um processo histórico lento e gradual, com alguns
avanços e retrocessos, tendo sido afirmados de acordo com as lutas das
gerações que movimentam a sociedade. O conjunto de direitos fundamentais
na sociedade contemporânea, de acordo com Schafer (2005, p. 12), “assume
vital importância em uma sociedade complexa e marcadamente difusa”.
Os direitos de primeira geração compreendem os civis e políticos. O
Estado só pode agir nos limites traçados pela lei. Os direitos à vida, à
liberdade e à propriedade são doravante protegidos pela lei. Os de segunda
geração referem-se aos econômicos, sociais e culturais objetivando a
igualdade, tendo o Estado a função promocional. Nesta dimensão, os
direitos são individuais e coletivos e o Estado possui uma concepção
política.
As garantias fundamentais de terceira geração materializam-se pelos
direitos coletivos, que possuem como destinatários toda a coletividade e as
formações sociais, com acepção difusa e se consagram no princípio da
solidariedade. Os direitos de quarta geração, segundo Bonavides (2000, p.
27), estão relacionados com “a democracia, o direito à informação, o
pluralismo, a efetivação dos direitos humanos, direitos que exigem uma
508
democracia direta”.
A partir de toda essa trajetória, Bobbio (1992, p. 26) afirma que:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a


manifestação da única prova através da qual um sistema de valores
pode ser considerado humanamente fundado e, portanto,
reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade.

Datada de 1948, a Declaração Universal significa que todos os


cidadãos compartilham de valores comuns. É a partir dela, portanto, que se
inicia um novo processo de efetivação dos direitos humanos, baseado na
internacionalização, cujo objetivo é unir os Estados em prol da garantia
eficaz dos direitos do homem.

2.2 A internacionalização dos direitos do homem

A partir da Organização das Nações Unidas (ONU), uma série de


textos normativos é elaborada, cujo foco se baseia na promoção de
dignidade ao ser humano. Entre eles, merece salientar a Declaração
Universal dos Direitos Humanos; o Pacto de Direitos Civis e Políticos; o
Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; a Convenção Sobre
Discriminação Racial; a Convenção Sobre os Direitos da Mulher; a
Convenção Sobre a Tortura; e a Convenção Sobre os Direitos da Criança.
O marco que registra o processo de internacionalização dos direitos
humanos foi o ano de 1946, quando o Conselho Econômico e Social
instituiu a Comissão de Direitos Humanos em conformidade com o disposto
no artigo 68 da Carta das Nações Unidas. Esta Comissão, após três anos de
trabalho, apresentou o projeto da Declaração Universal dos Direitos
Humanos para a Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de
1948.
Apesar de ter sofrido inúmeras criticas ideológicas, culturais,
religiosas, morais, sociais e filosóficas, em virtude de suas diferentes
concepções, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a
igualdade essencial de todo o ser humano em sua dignidade de pessoa,
enquanto fonte de todos os valores. Assim, assevera Silva (1999, p. 169) que
509
“[...] a condição de pessoa humana é o requisito único e exclusivo para a
titularidade de direitos”.
Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram realizados
Pactos, Convenções e Protocolos Internacionais para convencionar com os
Estados as obrigações e providências a serem tomadas tanto por esforço
próprio, quanto pela cooperação de outros Estados, permitindo o gozo dos
direitos reconhecidos através das declarações de intenções.

3. A PESSOA HUMANA ENQUANTO SUJEITO DO DIREITO


INTERNACIONAL

O título de sujeito do Direito Internacional para o ser humano


continua dividindo entendimentos. Conforme Guerra (2013, p. 477), “[...] a
pessoa humana era relegada sempre a um plano inferior e, no pós-Segunda
Guerra Mundial, uma profunda alteração se deu, em razão de os direitos
humanos terem sido internacionalizados, a começar pela criação da ONU”.
Apesar de ser ele o protagonista e destinatário dos direitos assegurados em
textos normativos de âmbito universal, ainda não há consenso quanto à sua
definição como sujeito.
Em posição favorável, defende Bobbio (1992, p. 103):

[...] Os direitos do homem, que tinham sido e continuam a ser


afirmados nas Constituições dos Estados particulares, são hoje
reconhecidos e solenemente proclamados no âmbito da comunidade
internacional, com uma consequência que abalou literalmente a
doutrina e a prática do direito internacional: todo indivíduo foi
elevado a sujeito potencial da comunidade internacional, cujos
sujeitos até agora considerados eram, eminentemente, os Estados
soberanos.

Do mesmo aspecto, contribui Vieira (2015, p. 127):

Com a assimilação axiológica dos direitos humanos na ordem


política global, a pessoa individual passa a sustentar cada vez mais o
status de pessoa jurídica de Direito Internacional. Ora, se o ser
humano individualmente tem direitos reconhecidos universalmente,
nada mais lógico do que ostentar capacidade como personalidade
internacional.

510
É necessário compreender que a evolução do ser humano ao nível de
sujeito do Direito Internacional garante a consolidação dos direitos do
homem, uma vez que a participação nos organismos representativos em
âmbito universal será mais intensa, o que possibilitará que as violações aos
direitos sejam mais ágil e eficazmente resolvidas. Em sendo sujeito do
Direito Internacional, o ser humano avança substancialmente sua
participação em tais órgãos, destacando, conforme Vieira (2015, p. 127), a
ampliação da “[...] capacidade de peticionar e denunciar em caso de violação,
seja para a ONU ou para os sistemas de proteção regionais”.
Enquanto a corrente mais conservadora da doutrina entende que o
indivíduo não detém personalidade jurídica de Direito Internacional, o
presente Direito Internacional dos Direitos Humanos discorda ao definir o
ser humano como sujeito, pois possui personalidade e capacidade jurídica
nas esferas interna e externa. Assim, enfatiza Cançado Trindade (2006, p.
17-18):

O ser humano passa a ocupar, em nossos dias, a posição central que


lhe corresponde, como sujeito do direito tanto interno como
internacional, em meio ao processo de humanização do Direito
Internacional, o qual passa a se ocupar mais diretamente da
identificação e realização de valores e metas comuns superiores.

O ser humano, à vista disso, constitui uma história em busca do


protagonismo perante o Direito Internacional. Conforme enfatiza Guerra
(2013, p. 468), “embora já se possa admitir a pessoa humana como sujeito
de direito internacional e reconhecendo os avanços da matéria, impende
assinalar que muito ainda deve ser feito”. Antes, portanto, somente o Estado
era entendido como sujeito, o que criava uma espécie de relação interestatal
de Direito Internacional. Pela existência de instituições internacionais e
regionais que visam a regular a aplicabilidade dos direitos humanos, cabe
entender o indivíduo como sujeito.

4. OS SISTEMAS REGIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

A intenção de elaborar mecanismos consistentes para a garantia dos


511
direitos humanos, visando à responsabilização do Estado que os violar,
resultou na criação de sistemas regionais. Os principais, ora vigentes, são os
da África, da América e da Europa. A internacionalização dos direitos
humanos, de acordo com Guerra (2013, p. 483), fez com que estes
deixassem “de pertencer à jurisdição doméstica ou ao domínio reservado dos
Estados”.
Assim, buscando aproximar os organismos dos Estados, constituíram-
se planos regionais, dos quais se destaca a Convenção Americana de Direitos
Humanos, de 1969, que estabeleceu a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e a Corte Interamericana, constituindo, assim, o sistema
interamericano. Já o europeu resultou da Convenção Europeia de Direitos
Humanos, de 1950, que instituiu de forma inicial a Comissão e a Corte
Europeia de Direitos Humanos, cujas instituições foram fundidas com o
Protocolo nº 11, de 1998. E o sistema africano, com base na Carta Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, conta com a Comissão Africana
de Direitos Humanos e, através de Protocolo à Carta datado de 1998, criou-
se a Corte Africana de Direitos Humanos.
Entre os objetivos desse modelo, alicerçado no debate internacional de
efetivação dos direitos humanos, Vieira (2015, p. 113) afirma:

Os sistemas regionais têm o condão de reforçar ou mesmo mediar a


linguagem por meio de tratados internacionais, estabelecendo
instituições próprias, mais próximas dos Estados e de seus povos,
geográfica e simbolicamente, produzindo inovações consideráveis nos
meios de instituição e responsabilização internacional dos Estados
por violação dos direitos humanos, com destaque à
jurisdicionalização internacional.

Percebe-se, diante desse cenário, que os organismos internacionais,


almejando construir instrumentos que satisfaçam aos clamores da
população que sofre com a violação dos direitos humanos, encontraram nos
sistemas regionais uma forma de aproximar a jurisdição dos problemas
sociais, de modo a garantir com mais ênfase a promoção da dignidade da
pessoa humana, enquanto princípio máster da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e outros textos de âmbito internacional que versam sobre
a respectiva temática.
512
Assim, conforme Christof Heyns e Frans Viljoe (1999, apud
PIOVESAN, 2012, p. 318):

Enquanto o sistema global de proteção dos direitos humanos


geralmente sofre com a ausência de uma capacidade sancionatória
que têm os sistemas nacionais, os sistemas regionais de proteção dos
direitos humanos apresentam vantagens comparativamente ao
sistema da ONU: podem refletir com maior autenticidade as
peculiaridades e os valores históricos de povos de uma determinada
região, resultando em uma aceitação mais espontânea e, devido à
aproximação geográfica dos Estados envolvidos, os sistemas
regionais têm a potencialidade de exercer fortes pressões em face de
Estados vizinhos, em caso de violações.

As peculiaridades encontradas em cada Estado e a agilidade em favor


do aspecto sancionatório e, principalmente, o cumprimento das sentenças
são os fatores que impulsionam e enfatizam o resultado benéfico dos
sistemas regionais, constatados na África, América e Europa. A partir dessas
considerações, verifica-se o compromisso internacional, com apoio dos
respectivos continentes, com a consolidação dos direitos humanos.

4.1. Africano

A Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos, de 1981,


representa para o continente africano o documento marcante para o
processo de efetivação dos direitos humanos. A proteção do indivíduo, em
uma das regiões mais pobres do mundo, ganha um novo olhar com a
instituição de mecanismos que visam a promover a dignidade. Essa
afirmação é corroborada por Delgado (2001, apud FERNANDES, 2014, p. 1),
ao enaltecer que o “tratado apresenta características peculiares, em razão do
próprio contexto sociopolítico no qual se insere a maioria dos países
signatários, enfatizando, por isso, a eliminação de quaisquer formas de
opressão e colonialismo, como o direito ao desenvolvimento dos povos”.
Os documentos que consagram o sistema africano, diferentemente dos
presentes na América e Europa, enfatizam a proteção acerca de direitos dos
povos, como a autodeterminação dos povos, a paz, o desenvolvimento
econômico, social e cultural. Ainda, salienta-se a preocupação dos textos

513
com deveres de cada indivíduo diante de sua família, sociedade e Estado. De
acordo com Fernandes (2014, p. 1), “inspirados nas suas tradições históricas
e nos valores da civilização africana, reconheceram que os direitos
fundamentais do ser humano se baseiam nos atributos da pessoa humana,
o que justifica a sua proteção internacional”.
Apesar de o sistema africano ser significativamente válido no que
tange ao respeito e à busca pela dignidade na vida de cada indivíduo, ele
ainda sofre com problemas estruturais, muito em razão da situação
econômica e política dos Estados que integram o continente. Nesse sentido,
Vieira (2015, p. 116) assevera que “o maior freio a seu desenvolvimento
efetivo tem sido a fragilidade institucional persistente tanto nos Estados
quanto no sistema interestatal posto”. Ao abordar os possíveis motivos que
ainda causam a fragilidade do respectivo sistema, Guerra (2013, p. 533)
menciona os seguintes aspectos:

[...] I) falta de recursos financeiros; II) falta de interesse político por


alguns Estados; III) falta de maturidade política; IV) falta de unidade;
V) falta do desenvolvimento de maior cultura dos direitos humanos;
VI) falta de desenvolvimento; VII) outros fatores que comprometem o
alcance de bons resultados nesse mister.

Merece salientar, no entanto, o compromisso assumido por alguns dos


Estados africanos com a bandeira defendida pelo recente Direito
Internacional dos Direitos Humanos. As dificuldades históricas da região,
porém, não retiram a legitimidade do tratado que visa, em conjunto com os
sistemas da América e da Europa, fortalecer o indivíduo como possuidor de
direitos e, como tal, ser respeitado.

4.2. Americano

Aprovadas em 1948, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do


Homem e a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais representam
textos que iniciaram no continente americano o debate sobre os direitos
fundamentais do homem, hoje consagrados em diversas Constituições dos
Estados. A Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida

514
como Pacto de São José da Costa Rica, datada de 1969, constituiu dois
órgãos destinados à proteção de tal matéria, quais sejam, a Comissão e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Salienta-se, ainda, com relação
a textos que corroboram a mesma temática, o Protocolo Adicional da
Convenção Americana de Direitos Humanos na área de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, ou somente Protocolo de São Salvador, de 1988.
O Pacto entrou em vigência em 1978, mas somente em 1992 o Brasil
aderiu. Já em 1998 o Estado brasileiro reconheceu, por intermédio do
Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998, a competência
jurisdicional da Corte e, através do Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de
2002, promulgou a Declaração de Reconhecimento da Competência
Obrigatória da Corte Interamericana em todos os casos concernentes à
interpretação ou aplicação dos dispositivos elencados na Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Com relação ao Estado brasileiro, Ramina (2006, p. 87) observa que:

[...] o artigo 5º, § 2º, não deixa dúvidas acerca da hierarquia


constitucional dos tratados de direitos humanos. Partindo-se dessa
perspectiva, diante de um conflito entre dispositivo constitucional e
tratado de direitos humanos, aplicar-se-ia o tratado, em virtude de a
própria Constituição dar primazia aos direitos e garantias individuais
nela previstos, não excluindo outros estabelecidos em tratados
ratificados pelo Brasil e, assim, de observância compulsória na
ordem interna, inclusive pelo Judiciário.

Percebe-se, assim, o desejo do Estado brasileiro em proteger os direitos


inerentes ao próprio indivíduo. Nesse aspecto, os constituintes de 1988,
após o término da ditadura militar e início do processo de redemocratização,
atentaram-se a esse fato e inseriram no texto um extenso rol de direitos e
garantias dos seres humanos. Diante desse cenário, Braun (2002, p. 101)
assevera que “a institucionalização das liberdades fundamentais na
Constituição de 1988 contribuiu para que a política brasileira de direitos
humanos mudasse significativamente, em especial, no reconhecimento das
obrigações internacionais sobre a matéria”.

515
4.3. Europeu

O continente europeu foi o palco do maior evento de guerra do mundo.


Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial e das atrocidades
cometidas contra os seres humanos, principalmente em virtude da ideologia
nazista, liderada por Hitler, surgiu a necessidade de reparar e, de modo
enfático, constituir organismos em prol da proteção dos direitos humanos. O
início desse processo ocorreu com a instituição do Conselho Europeu,
consolidado em 1950 pela sua Convenção.
Os direitos civis e políticos integraram, inicialmente, a Convenção
Europeia de 1950. O documento, ainda, contribuiu significativamente em
razão de criar órgãos que fiscalizassem e julgassem os casos de violação aos
referidos direitos. Nesse tocante, afirma Comparato (1999, apudGUERRA,
2013, p. 511) que “a existência de órgãos incumbidos de fiscalizar o respeito
aos direitos humanos e julgar as suas eventuais violações, dentro de cada
Estado, é uma questão crucial para o progresso do sistema internacional de
proteção da pessoa humana”.
No ano de 1992, com o Tratado de Maastricht, constituiu-se a União
Europeia, de modo a reiterar o compromisso com os direitos fundamentais
determinados na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Já em 2000,
com a adoção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,
ocorre mais um avanço importante na temática em voga, pois elenca direitos
sociais e econômicos como necessários de proteção na sociedade.
É mister assinalar, ainda, que o sistema regional, adotado na Europa,
segundo Guerra (2013, p. 515), “é extremamente avançado, haja vista que
defere condição para a pessoa humana litigar diretamente no Tribunal
Europeu, sem que haja intervenção de terceiros, por violação aos direitos
humanos”. Trata-se, pois, de uma garantia ao indivíduo de buscar a
proteção ao direito que fora transgredido, o que corrobora o anseio de ter o
ser humano enquanto efetivo sujeito do Direito Internacional.

516
5. A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO PACTO
DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA

Os direitos humanos, apesar de diversos textos os regulamentarem,


sofrem de um problema, que é a efetivação de tais garantias aos seus
destinatários, ou seja, os próprios seres humanos. Assinala, nesse tocante,
Bobbio (1992, p. 25):

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual era
sua natureza ou fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados.

A partir desse embate e com o intuito de garantir que os tratados não


sejam apenas letras mortas, o Tratado de São José da Costa Rica consolidou
organismos em vista à promoção dos direitos fundamentais do ser humano.
Assim, tornou-se um documento que agrega aos anseios determinados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o almejo de
proteger e observar a aplicação dos respectivos direitos da temática
supramencionada, busca encaminhar recomendações aos Estados-partes, de
forma a apresentar medidas a serem adotadas pelo governo estatal na
garantia da dignidade da pessoa humana; constituir análises e relatórios,
caso necessários, para a observância dos índices de efetivação e
aplicabilidade dos direitos humanos; e, ainda, entre outras atribuições,
incumbe-lhe enviar à Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos um relatório anual.
Denúncias de violação dos direitos humanos, encaminhadas por
indivíduo ou grupo, são remetidas à Comissão, cuja responsabilidade é a de
examinar as solicitações. Salienta Pantoni (2011, p. 1) que, “além destas
petições individuais, a Comissão pode receber petições interestatais
contendo violações a direitos humanos”. Assim, ao receber a denúncia, os
membros analisam a sua admissibilidade e, em seguida, requerem
informações ao Estado denunciado, uma vez que se preza pelo princípio do

517
contraditório.
Em sendo confirmada a existência de violação de direito, a Comissão
buscará com as partes uma solução amistosa. Caso não seja possível, cabe à
Comissão redigir um relatório com recomendações ao Estado-parte, o qual
possui o prazo de três meses para solucionar o problema ou, caso não o
faça, pode ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja competência
abrange os aspectos consultivo e contencioso, é o órgão jurisdicional do
sistema americano de proteção aos direitos humanos. Quanto à área
consultiva, cabe a ela interpretar a própria Convenção que lhe instituiu, bem
como outros tratados que versem sobre essa matéria. E, agindo
contenciosamente, tem a incumbência de julgar casos que envolvam os
Estados-partes, isto é, que reconhecem a respectiva jurisdição, como, no
caso, o Brasil.
Na hipótese de constatar que houve violação de direito assegurado pela
Convenção, a Corte determina que o Estado restaure o direito violado e,
ainda, se preciso, que faça a compensação pecuniária à vítima. Portanto,
conforme Buergenthal (1984, apudPIOVESAN, 2012, p. 326), “os Estados
têm, consequentemente, deveres positivos e negativos, ou seja, eles têm a
obrigação de não violar os direitos garantidos pela Convenção e têm o dever
de adotar as medidas necessárias e razoáveis para assegurar o pleno
exercício destes direitos”.
A partir do exposto e de acordo com Piovesan (2012 p. 354), “[...] o
sistema interamericano está se consolidando como importante e eficaz
estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições
nacionais se mostram omissas ou falhas”. Porém, há uma preocupação
acerca do cumprimento das sentenças, que não deve se ater exclusivamente
ao aspecto pecuniário, mas, sim, com a execução de investigação e adoção
de medidas para coibir a prática violadora dos direitos humanos. Afirma,
ainda, Cançado Trindade (2006, p. 115) que há o debate sobre a necessidade
de se “[...] assegurar a maior participação possível dos indivíduos, das
supostas vítimas, no procedimento perante a Corte Interamericana, sem a
intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.
518
No atual contexto, portanto, ganha relevância a proposta de
democratização do acesso à Corte pelos indivíduos, hoje somente possível
pelos Estados-partes e pela Comissão. Assim, a participação do ser humano
e de entidades tornar-se-ia mais relevante e assídua, o que resultaria
beneficamente na luta pela promoção de dignidade à pessoa humana.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos humanos tornaram-se instrumentos de alcance


internacional com o objetivo de garantir o mínimo de dignidade ao indivíduo.
Mesmo que presentes desde a Antiguidade nas sociedades do Egito e
Mesopotâmia, foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial e com a
criação da Organização das Nações Unidos, no final da primeira metade do
século XX, que eles ganharam repercussão internacional.
A partir da compreensão de que, segundo Dallari (2004, p. 14), “os
direitos humanos fundamentais são os mesmos para todos os seres
humanos”, diversos tratados e convenções foram elaborados com o intuito de
normatizá-los. Em 1946 houve o marco de internacionalização dos direitos
humanos, quando o Conselho Econômico e Social instituiu a Comissão de
Direitos Humanos para apresentar o projeto da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, publicada em 1948.
O debate, a partir de então, focou-se na definição do indivíduo
enquanto sujeito do Direito Internacional. Apesar de dividir opiniões,
prevalece a concepção de que ele merece ser protagonista desse cenário
mundial. Em recebendo esse título, propiciar-lhe-á a participação nos
organismos representativos em âmbito universal.
Não obstante sejam inerentes à natureza humana, o reconhecimento e
a efetivação de tais direitos apresentam-se como um processo lento e
gradual. Por isso, visando à responsabilização do Estado que os violar,
houve a criação de sistemas regionais, sendo os da África, resultante da
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos; da América, a partir da
Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto
de São José da Costa Rica, de 1969; e da Europa, com base na Convenção
519
Europeia de Direitos Humanos, de 1950.
Diante dessa estrutura internacional e com o apoio dos Estados,
afirma-se o interesse de construir instrumentos que satisfaçam aos clamores
da população que sofre com a violação dos direitos humanos. Os sistemas
regionais servem, portanto, como uma forma de aproximar a jurisdição dos
problemas sociais, de modo a garantir com mais ênfase a promoção da
dignidade da pessoa humana.
No âmbito do sistema interamericano, verifica-se a existência da
Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, fundadas no
intuito de proteger e observar a aplicação das sanções. As denúncias,
encaminhados por indivíduo ou grupo, são remetidas à Comissão, que detém
a responsabilidade de examinar as solicitações e, posteriormente, requerer
informações ao Estado denunciado. Ao ser confirmada a existência de
violação, o órgão buscará com as partes uma solução amistosa e, não sendo
possível, redigirá um relatório com recomendações ao Estado-parte, o qual
possui o prazo de três meses para solucionar o problema ou, caso não o
faça, pode ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte possui competência consultiva e contenciosa. Portanto, cabe
aos seus membros interpretarem a própria Convenção que lhe instituiu, bem
como outros tratados que versem sobre essa matéria. E, agindo
contenciosamente, tem a incumbência de julgar casos que envolvam os
Estados-partes, isto é, que reconhecem a respectiva jurisdição, como, no
caso, o Brasil. Na hipótese de constatar que houve violação de direito
assegurado pela Convenção, a Corte determina que o Estado restaure o
direito violado e, ainda, se preciso, que faça a compensação pecuniária à
vítima.
Há desafios a serem enfrentados, como o cumprimento das sentenças
e a democratização do acesso dos indivíduos aos órgãos regionais. Mas,
conforme Bicudo (1997, p. 10), nota-se que os direitos em discussão chegam
“[...] como uma imposição da comunidade dos homens, traduzida em
tratados e convenções internacionais, ingressando, por último, na legislação
ordinária dos Estados, configurando todo o processo que serve de
fundamento maior à própria democracia [...]”. Percebe-se que a
520
internacionalização e a criação de sistemas regionais, com aprofundamento
neste trabalho ao interamericano, resultaram em um processo de
consolidação dos direitos humanos. A proteção ao indivíduo encontra-se, à
vista disso, como bandeira importante no âmbito universal.

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e perspectivas da democracia e dos direitos humanos. 1ª ed. Ijuí/RS: Unijuí,
2015.

522
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: (IN)APLICABILIDADE DA RESERVA DO
POSSÍVEL

Juliana Bedin Grando1


Renata Maciel2

1. INTRODUÇÃO

A conquista dos direitos humanos tem principal destaque o século XX,


pois o encerramento da Segunda Guerra Mundial no ano de 1945, e, em
especial, a criação da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948
inauguram um novo patamar dos direitos humanos, pois consagra-se a sua
universalidade e indivisbilidade.
Incorporando-se tal disposição, a Constituição Federal de 1988
brasileira assegura uma ampla gama de direitos humanos que são elevados
ao patamar de fundamentais e sociais. Tendo-se, dessa forma, assegurado o
princípio formador da República: a dignidade da pessoa humana.
Um destes direitos previstos tanto na declaração de 1948, quanto na
Consituição de 1988 é o direito à saúde. Falando-se em especial da
Constituição de 1988, esta assegura que o direito à saúde, é um direito
fundamental e social universal, fato que não demonstra interesse do
legislador em restringir o acesso a este direito.
No entanto, um instituto criado na jurisprudência alemã tem levado à
discussão a universalidade do direito à saúde: a reserva do possível. Nessa
senda, o presente ensaio, por meio da pesquisa bibliográfica, destina-se a
discutir em um primeiro momento o direito à saúde enquanto um direito
humano e fundamental reconhecido pela lesgislação; na sequência, analisar-
se-á o instituto da reserva do possível; e, por fim, a possibilidade de
aplicação da resreva do possível nas decisões que versem acerca do direito à
saúde no Brasil.

1 Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul –


UNIJUÍ. Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Email: juliana.bedin@yahoo.com.br.
2Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUI, vinculada a Linha de Pesquisa Direitos

Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos. Bolsista FAPERGS. Bacharel em Direito pela
UNIJUI. E-mail: advogada.rmaciel@gmail.com.
523
2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS: o direito à saúde

A construção histórica dos direitos humanos é de extensa data, mas


tem seu principal documento na Declaração Universal de Direitos Humanos
de 1948. Documento este que surgiu do anseio mundial pelo
estabelecimento de paz do período pós segunda guerra mundial, que havia
se encerrado em 1945. De fronte a tal cenário de completa dizimação de
direitos humanos, a Declaração firma-se como a garantia do
estabelecimento de preceitos mínimos existenciais, tendo como princípios a
universabilidade e indivisibilidade dos direitos.
Nessa senda,

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um


documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por
representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as
regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948,
através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma
norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela
estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos
humanos. (DUDH, 2015).

Desse modo,a universalidade dos direitos humanos, pode-se dizer,


encontra-se consagrada como inerente à discussão. No entanto, uma das
críticas mais elaboradas à temática diz respeito ao fato de a Declaração não
ter nascido universal, tendo em vista que apenas cinquenta e seis países
ocidentais participaram de sua elaboração, ensejando assim uma declaração
“ocidental” dos direitos humanos (ALVES, 1999).
Embora existente esta crítica, para os países ocidentais, a Declaração
é o documento mais importante da temática dos direitos humanos no século
XX, pois consagra em seu texto uma ampla gama de direitos que buscam
assegurar uma vida dignificante.
Neste mesmo século, porém no ano de 1988, a Constituição Federal
que entra em vigor no Brasil, traz em seu contexto a como um de seus
fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana em consenso com
o estipulado na Declaração. Nesse contexto, um dos principais diferenciais
524
desta constituição consta na elevação ao patamar de direitos fundamentais e
sociais os princípio básicos asseguratórios de uma vida digna, pois tem como
fundamento “[...] criar e manter as condições elementares para assegurar
uma vida em liberdade e a dignidade da pessoa humana” (HESSE, 2009, p.
33).
Dessarte, um dos direitos elevados ao status de fundamental e social é
o direito saúde. Um dos direitos humanos mais importantes, se é que se
pode falar em um direito mais importante que os demais, o direito à saúde
consagra a preocupação com as condições sanitárias de que o ser humano
necessita para viver. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia
editado em 1946 que se entende por saúde é completo bem-estar físico,
mental e social e não apenas a ausência de doenças.
Nesse sentido, Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, p. 82), assegura
que o conceito proposto pela Organização Mundial de Saúde alargou a noção
do conceito de saúde existente até então, uma vez que, ao superar o enfoque
negativo da saúde (que é baseado tão somente na ideia de ausência de
enfermidades) e propugnar o aspecto positivo da “obtenção do estado de
completo bem-estar físico, psíquico e social”, a Organização Mundial de
Saúde retomou a ideia de qualidade de vida.
Incorporando tal conceito, a Constituição Federal de 1988 trouxe em
seu artigo 6º que “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição”. Ademais, a seção II do título VIII, trata especificamente do
tema da saúde, tendo como principal referência o artigo 196 que dispõe que
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação”.
Desse modo, o direito à saúde é amplamente positivado pela
Constituição Federal de 1988. No entanto, a problemática cinge-se na sua
efetivação, pois o que se tem demonstrado no cenário atual é a quase
completa ineficácia do Estado em garantir que o direito à saúde, reconhecido
525
como essencial para a formação da cidadania, seja de fato alcançado a
todos. Igualmente, quando fala-se nas políticas públicas relativas ao tema,
que são uma das principais formas de se alcançar tal direito, estas são
quase inexistentes e/ou praticamente ineficazes, acarretando, por
conseguinte, em diversos problemas sociais.
Ainda, deve-se ressaltar que o direito à saúde somente será efetivado
no momento em que o Estado responsabilizar-se pela prestação de todas as
atividades consideradas como o mínimo que deve ser oferecido ao povo, entre
as quais se encontra a promoção da saúde(DALLARI, 1990). Ademais,
“saúde é um típico direito da Cidadania Brasileira, porquanto direito de
todos e dever do Estado, malgrado na prática ainda deixe muito a desejar,
cabendo a todos colaborar e cobrar melhoria dos serviços” (PINTO apud
CARVALHO; PINTO, 2011, p. 19).
Assim sendo deve-se ter em consideração que “O direito à saúde é
claro, deverá ser sempre que possível atendido” (SCHWARTZ; GLOECKNER,
2003, p. 158), pois além do fato de constar na Declaração Universal de 1948
como um direito humano universal, ou seja, que todos tem acesso, a carta
constitucional de 1988 reafirmou a sua universalidade ao afirmar ser um
direito de todos e, portanto, a sua efetividade deve ser alcançada pelo Estado
a todos os cidadãos.
Outrossim, Schwartz (2001, p. 43) defende ainda que, para efeitos de
aplicação do artigo art. 196 da CF/88, a saúde:

(...) pode ser conceituada como: um processo sistêmico que objetiva a


prevenção e cura de doenças, ao mesmo tempo que visa a melhor
qualidade de vida possível, tendo como instrumento de aferição a
realidade de cada indivíduo e pressuposto de efetivação a
possibilidade de esse mesmo indivíduo ter acesso aos meios
indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar.

Desse modo, o Estado deve trabalhar para assegurar que o direito à


saúde possa ser efetivado no seu mais amplo aspecto, garantindo-se o
completo bem-estar físico e psíquico constante no conceito da OMS. Ainda,
quando se fala em infligência do direito à saúde se está desvalorizando os
fundamentos do Estado, pois se está deixando de assegurar o mínimo

526
dignificante e deixando-se de se observar os propósitos do Estado.
Muitos são os empeçilhos encontrados para assegurar a efetividade do
direito à saúde, entre os quais pode-se falar na criação na Alemanha da
reserva do possível, com vistas a diminuir e limitar a universalidade do
direito. Para entender-se melhor a sua aplicação, o próximo tópico
preocupar-se-á em analisar a reserva do possível, para após verificar-se sua
(in)aplicabilidade ao direito à saúde.

3. BREVE ANÁLISE SOBRE O INSTITUTO DA RESERVA DO POSSÍVEL

O instituto da reserva do possível é recente e sua aplicação ocorreu


pela primeira vez na década de 70, do século passado, na Alemanha, mais
precisamente no caso BVerfGE 33, 303, de 1973, no qual se procurava
solucionar a restrição quanto ao número de vagas em algumas
Universidades alemãs. No caso em comento foi decidido que, como foi
verificado ao longo do processo que o Estado Alemão estava fazendo todo o
possível para tornar o acesso ao nível superior mais facilitado, fugia do
razoável que fosse exigido ainda mais daquele Estado, sob a possível
consequência que outros direitos sociais fossem negligenciados.
O argumento utilizado no referido caso pela Corte Constitucional
Alemã foi que “na medida em que os direitos de tomar parte são limitados e
não existentes a priori, encontram-se sob e reserva do possível, no sentido
daquilo que o individuo pode racionalmente esperar da sociedade”
(SGARBOSSA, 2010, p. 36).
Assim, é perceptível que de acordo com o princípio da reserva do
possível se faz necessário que exista racionalidade por parte dos indivíduos
em relação às suas expectativas na concretização dos direitos fundamentais
e sociais. Ademais, antes mesmo de o Tribunal Constitucional da Alemanha
proferir a decisão sobre a reserva do possível, o autor Häberle já havia
traçado os primeiros contornos sobre o tema.
Na concepção de Häberle era importante saber se os direitos
fundamentais devem ser satisfeitos na medida da capacidade econômica
prestacional do Estado ou se o Estado prestacional deveria existir para
527
efetivar direitos fundamentais. (KELBERT, 2011, p. 70). Assim, o artor
exprimiu a ideia de que os direitos sociais a prestações materiais estariam
sob a reserva das prestações financeiras do Estado, uma vez que, se
consistem em direitos a prestações financiadas pelos cofres públicos
(FIGUEIREDO, 2007).
Sarlet e Figueiredo (2007, p. 189) destacam que é possível delimitar
uma dimensão tríplice da reserva do possível, que abrange:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos


direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos
materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição
das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e
administrativas; entre outras, e que, alem disso, reclama
equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do
nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva
(também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a
reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da
prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade, e, nesta
quadra, também a sua razoabilidade.

Assim, de acordo com interpretações a reserva do possível começou a


ser compreendida de várias maneiras. Luis Fernando Sgarbossa (2010)
entende que ora tal princípio é compreendido como limitação fática aos
direitos fundamentais, especificando, como a limitação que se baseia em
escassez real ou econômica imposta ao exercício dos direitos sociais.
Destaca, ainda, uma limitação jurídica, ou seja, como a limitação imposta ao
exercício dos direitos sociais com base na escassez ficta, ou legal.
Ademais, é possível que a reserva do possível seja entendida como
uma limitação imposta ao exercício dos direitos sociais com base na
ausência de razoabilidade ou proporcionalidade da pretensão, e, por fim,
como todos esses aspectos em conjunto ou alguns deles combinados entre
si.
Já, Daniel Wei Liang Wang (2007) defende que existem teóricos que
entendem que existe um limite fático à exigibilidade judicial dos direitos
sociais (que é a sua dependência da capacidade econômica do Estado ou, em
outras palavras, de cobertura financeira e orçamentária) e que não pode ser

528
ignorada pelas decisões judiciais. Tal limite fático seria expresso em alguns
trabalhos e decisões judiciais pelo termo “reserva do possível”.
Sabe-se que os direitos fundamentais são os direitos sociais em
sentido amplo, ou seja, decorrem do desenvolvimento do Estado Social de
Direito. Conforme já demonstrado, a Constituição Federal de 1988 inclui os
direitos sociais dentre os direitos fundamentais. Esses direitos são,
geralmente, caracterizados como prestações positivas do Estado, todos os
entes estatais devem atender e promover tais direitos. Assim, nao é possível
que os direitos fundamentais sejam ineficazes com fundamento na reserva
do possível (FIGUEIREDO, 2007).
Isto porque, a promoção dos direitos fundamentais, nos quais se
incluem os direitos sociais, encontra fundamento no princípio da dignidade
da pessoa humana (KELBERT, 2011). Daí a importância do Estado promover
tais direitos, pois, inerentes à própria essência das pessoas.
A arrecadação tributária é o meio pelo qual o Estado dispõe para
promover e financiar os direitos fundamentais. Ocorre que, muito embora
exista verba prevista para a efetivação dos projetos sociais, os valores, por
vezes, não são suficientes para a promoção de todos os direitos
constitucionalmente previstos, considerando a quantidade de direitos
fundamentais elencados na CF/88. Outra concreta que ocorre é que as
verbas acabam não sendo aplicadas às finalidades previstas, ou seja, o Poder
Executivo deixa de estabelecer e implementar políticas públicas que
poderiam se não solucionar, ao menos, amenizar a situação da efetivação
dos direitos fundamentais.
É perceptível quea concretização dos direitos fundamentais depende de
fatores econômicos bem como da existência de verbas disponíveis, nesse
sentido, “a escassez de recursos pode figurar como limite à efetivação dos
direitos fundamentais, especialmente os de cunho prestacional” (KELBERT,
2011, p. 76).
No entanto, com a inserção dos direitos sociais no rol dos direitos
fundamentais, o constituinte brasileiro assume o compromisso de
concretizar tais direitos. Assim, as vinculações orçamentárias previstas na
Constituição Federal não podem ser violadas, devem ser respeitadas e
529
cumpridas fielmente. É dever do Estadose planejar com o objetivo de realizar
esses direitos.
Todos os direitos têm custos, tanto os de prestação positiva, em geral
os direitos sociais; e até mesmo os de prestação negativa, a exemplo de os
valores despendidos para a manutenção de instituições permanentes
providas pelo Estado. Ocorre que, a simples constatação de que todos os
direitos possuem custos não é por si só uma questão problemática.
De acordo com Kerbelt (2011), quando se admite a escassez de
recursos estatais para a promoção dos direitos fundamentais, os problemas
começam a surgir. Assim, para que seja possível a efetivação dos direitos
fundamentais é preciso que escolhas sejam feitas. A mesma autora
aprofunda a discussão ao referir que“A necessária eleição de valores e bens a
serem protegidos, as já referidas escolhas, engloba, ainda, outro aspecto,
que diz respeito à relativização dos direitos protegidos”.
Será sempre necessário que exista um critério de escolha a ser
adotado para que se delimite quais os direitos que serão primordialmente
atendidos e efetivados, este critério é decorrente da finitude dos recursos. No
entanto, é importante considerar que a aplicação de recursos em
determinado setor sempre causará conseqüências negativas em outro setor
que deixará de ser atendido.
Assim, o Estado deve promover políticas públicas que prevejam a exata
aplicação de recursos para a efetivação de todos os tipos de direitos, sejam
os decorrentes de prestações positivas ou negativas, uma vez que é inviável
pensar em concretização de direitos sociais sem pensar no custo desses
direitos, isto porque diretamente “os custos dos direitos podem figurar como
uma limitação à plena realização dos direitos sociais” (KERBET, 2011, p.
68).
Quanto à previsão legal da reserva do possível, não existe no Brasil tal
texto legal, a Constituição Federal vigente apenas estabelece que o valor
proveniente da arrecadação dos tributos deve ser destinado a determinadas
atividades, como, por exemplo, saúde, educação.
No entanto, a reserva do possível foi recepcionada pelo STF em
diversas decisões. Na maioria dos julgamentos a recepção consistiu apenas
530
no reconhecimento de eventual cabimento da alegação do princípio, em tese,
sendo que, no caso concreto sub judice, foi negado o acolhimento à mesma.
(SGARBOSSA, 2010). Sendo amplamente conhecida, debatia e utilizada nos
tribunais brasileiro, é necessário que se faça uma análise breve sobre como
a reserva do possível vem sendo empregado pelas partes e recepcionada
pelos órgãos jurisdicionais.
Sgarbossa (2010) desta que o princípio se aplica essencialmente nas
ações em que se discute o acesso aos direitos sociais, ou seja, em casos que
comumente tratam de acesso à educação, à saúde, entre outras políticas
públicas de cunho social. Assim, nos casos em que a vida do requerente
encontra-se em risco direto em decorrência de não cumprimento de
prestação por parte do Estado, ações que demandem direitos à saúde ou
educação, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a reserva do possível
apenas a título argumentativo ao referir que a prestação é restrita à condição
financeira do Estado, no entanto, não deixa de conceder a prestação,
especificando que o direito não pode ser negado, ou seja, que a reserva do
possível não é cabível como argumento para a não realização do direito.
Para finalizar, é possível assegurar que a discussão sobre a reserva do
possível não foi ainda devidamente tratada pelo Supremo Tribunal Federal, o
qual, na maioria das manifestações, refere que tal princípio se limita à
escassez de recursos financeiros do Estado.

2. A (in)aplicabilidade da reserva do possível no direito à saúde


brasileiro

Sabe-se que o direito à saúde, enquanto direito fundamental, pode ser


oponível contra o Estado e deve ser preservado. Assim, seria possível afirmar
que a existência do direito à saúde como um direito público subjetivo
oponível contra o Estado, no qual se estaria obrigando o Estado à
determinada prestação, independentemente de previsão em legislação
ordinária e, portanto, passível de reclamação pelo titular do direito via
judicial e/ou administrativa. A partir de tal constatação o presente artigo se
propõe a responder se existe ou não a possibilidade de aplicação da reserva
531
do possível às demandas relacionadas ao direito à saúde no âmbito
brasileiro.
Entende-se que o Estado brasileiro, conforme preceitua o artigo 196,
da CF/88, tem a obrigação de promover o direito à saúde a todas as pessoas,
uma vez que, a saúde é caracterizada por ser um direito público subjetivo
com característica inegavelmente individual. Assim, como é sabido que as
garantias individuais relacionadas aos direitos fundamentais são legítimas, a
busca pela efetivação do direito à saúde mediante a oposição de um vínculo
obrigacional entre cidadão-credor e o Estado-devedor é perfeitamente
possível (SCHWARTZ, 2001).
Uma vez que o direito à saúde foi recepcionado no ordenamento
brasileiro como direito fundamental de natureza constitucional, oponível
contra o Estado, ele se caracteriza como uma conquista da sociedade como
um todo. Nesse sentido, é preciso que o Estado se movimente como agente
promotor e provedor de tal direito, por meio das políticas públicas de
responsabilidade do Poder Executivo, com o objetivo de implementação da
saúde no mundo dos fatos, bem como na promoção da questão sanitária, a
fim de que “o Brasil seja exemplo de sociedade de justiça social, de respeito
aos valores democráticos, e principalmente demonstrar que o país tem na
dignidade da pessoa humana seu grande objetivo” (SCHWARTZ, 2001, p.
160).
É claro que a adoção de políticas públicas relacionadas aos direitos
sociais são condicionadas por circunstâncias econômicas. No entanto, não é
autorizado que tais condições constituam um empecilho insolúvel para
limitar a realização prática desses direitos constitucionalmente
estabelecidos, especialmente por se tratarem de direitos que, levados a sério,
buscam superar exatamente as condições econômicas (FIGUEIREDO, 2007).
São muitas as formas que podem ser utilizadas pelo Estado para dar
efetividade a esse direito, entre as quais é possível citar, por exemplo, a
utilização das políticas públicas, que se constituem como “o Estado em ação”
(GOBERT; MULLER apud HÖFLING, 2001, p. 02). Assim, quando o Estado
deixa de fornecer as condições aos seus cidadãos para que alcancem o
direito à saúde, está negando os propósitos de qualquer Estado democrático.
532
Quanto à (in)aplicabilidade da reserva do possível ao direito à saúde
brasileiro, opta-se por tal posicionamento uma vez que, conforme preceitua
Schwartz (2001, p. 160):

A saúde é um dever do Estado a respeito do qual os governos estão


obrigados a assumir e realizar, não importando quais os elementos
necessários para a consecução da tarefa, visto que a Constituição
Brasileira é vinculativa e de caráter dirigente também aos Poderes
Públicos.

Ou seja, mesmo que sabido que a saúde necessita de meios materiais


para a sua efetivação, a Constituição Federal, em momento algum, desobriga
o Estado de promover tal direito, em qualquer circunstância, muito pelo
contrário, em diversos artigos determina que os poderes públicos têm
responsabilidade na área da saúde, e que não é autorizado aos entes
federados que compõem a República Brasileira a possibilidade de eximir-se
de tal obrigação.
Ainda, Sarlet e Figueiredo (2007) defendem que não lhes parece
correta a aplicação da reserva do possível como elemento integrante dos
direitos fundamentais, nem como parte de seu núcleo essencial, nem mesmo
enquadrada no âmbito dos limites imanentes aos direitos fundamentais.
Destacam, ainda, que a reserva do possível se constitui, sim, em uma
espécie delimite jurídico e fático dos direitos fundamentais, quando, em
circunstâncias específicas, a exemplo da hipótese de conflito entre direitos, é
que poderá ser invocada a reserva do possível. No entanto, ainda nesta
hipótese, devem ser observados os princípios da proporcionalidade e mínimo
existencial em relação a todos os direitos fundamentais, ou seja, a
indisponibilidade de recursos deve ser considerada somente com o intuito de
salvaguardar outro direito fundamental.
Por todo o exposto, julga-se possível que o direito à saúde seja levado à
apreciação do Poder Judiciário, no caso de não ser efetivado pelo Poder
Executivo, uma vez que a tarefa essencial do Poder Judiciário no
constitucionalismo contemporâneo é “garantir a observância e o
cumprimento dos direitos fundamentais do homem” (SCHWARTZ, 2001, p.
163).
533
Quanto a possibilidade de discussão da chamada ditadura do Poder
Judiciário, entende-se que tal premissa não é verdadeira, visto que tal poder
possui a obrigação de primar pela observância do princípio da supremacia
da Constituição, em especial ao que se refere à preservação das decisões do
poder constituinte originário, ou seja, cabe ao intérprete da lei o esforço para
que seja resguardada a unidade do sistema instituído, com a finalidade de
que as normas constitucionais sejam efetivadas (FIGUEIREDO, 2007).
O número de ações judiciais existentes que reivindicam o direito à
saúde pode ser justificado mais pelas deficiências do sistema vigente do que
pelo objetivo originário de realização da saúde, “até porque ao indivíduo
interessa é a manutenção da própria saúde, ou o acesso aos meios para
obtê-la e preservá-la, e não o fundamento constitucional ou legal da ação
proposta” (FIGUEIREDO, 2007, p. 91).
Nesse sentido, é dever do Poder Judiciário a proteção do direito à
saúde, por se tratar de um direito intrinsecamente ligado à proteção aos
direitos à cidadania e à vida, os quais pressupõem que todos os direitos
fundamentais do homem sejam protegidos e efetivados para que sejam
concretizados. Ainda, é dever do Estado promover o direito à saúde através
das políticas públicas implementadas pelo Poder Executivo. Não pode o
Estado eximir-se dessa obrigação com fundamento no princípio da reserva
do possível, devido a saúde ser um direito humano fundamental que deve
ser assegurado a todas as pessoas, conforme preceitua a Constituição
Federal, lei maior do Estado brasileiro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, pode-se concluir que o conceito de direito à saúde


conforme reconhecido na atualidade é recente, e que em âmbito brasileiro
somente foi recepcionado como direito humano após a promulgação da
Constituição Federal de 1988. Ainda conforme previsão constitucional o
Estado é quem deve prover e promover o direito à saúde.
Nesse sentido, cabe ao Estado a garantia dos direitos fundamentais e
sociais constitucionalmente previstos e que, muito embora todos os direitos
534
possuam custos, o Estado possui a previsão de arrecadação tributária que
se destina, entre outras aplicações, à concretização de tais direitos.
É possível destacar que a simples argumentação de inexistência de
recursos para aplicação na efetivação dos direitos sociais não basta como
fator que desobrigue o Estado dessas prestações. Ademais, o Estado tem
meios plenamente eficazes para a promoção dos direitos sociais, em especial
o direito à saúde, considerando que tal direito possui orçamento próprio,
além de ser plenamente possível a implementação de políticas públicas na
busca pela proteção de promoção da saúde.
Destarte, apesar de o STF já ter reconhecido e, por vezes, aplicado a
reserva do possível no âmbito brasileiro, ainda há muito que se buscar. É
preciso que o Poder Judiciário seja incisivo para que os direitos sociais,
amparados pela legislação, especialmente constitucional, sejam efetivamente
cumpridos.

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536
O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA

Eliete Vanessa Schneider1


Bruna Katiane Boeno2

1. INTRODUÇÃO

O movimento de internacionalização dos direitos humanos


desenvolveu-se extraordinariamente depois da segunda guerra mundial, em
resposta às atrocidades cometidas ao longo do Nazismo (GOMES, 2000). O
convívio dos Estados em uma comunidade juridicamente organizada e a
intensificação das relações entre os povos deu vida a um ordenamento
jurídico internacional preocupado com os direitos da pessoa humana
(REZEK, 2010). Ademais, atualmente é um dos aspectos jurídicos que mais
se desenvolve, trazendo influência sobre os mais variados aspectos da vida
humana.
Nesse sentido, propõe-se o presente trabalho a analisar o sistema
regional de proteção aos Direitos Humanos no qual o Brasil está inserido,
qual seja, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, na
medida em que descreve um caso paradigmático ocorrido e que tornou-se
um marco quanto à proteção internacional e à influência do sistema nas
jurisdições nacionais dos países que ratificaram seu principal documento
legal, qual seja, a Convenção Americana de Direitos Humanos. Trata-se do
caso da vítima de violência doméstica, Sra. Maria da Penha, que inclusive
culminou com a criação de lei brasileira que leva seu nome.

2. DESENVOLVIMENTO

De acordo com Accioly (2010, p.32), “todo o estudo há de ser iniciado

1 Bacharel em Direito e Mestre em Direitos Humanos e atualmente professora do Curso de


Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
advogada;
2 Bacharel em Direito pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do

Sul, advogada.
537
pela definição de seu objeto”. Dessa forma, entende-se necessário passar
pela abordagem do conceito de Direito Internacional, e também pela
definição dos direitos humanos. Ainda de acordo com o mesmo autor, pode
se definir o Direito internacional como

o conjunto de normas jurídicas que rege a comunidade


internacional, determina direitos e obrigações dos sujeitos,
especialmente nas relações mútuas dos estados, e subsidiariamente,
das demais pessoas internacionais, como determinadas
organizações, bem como dos indivíduos. (ACIOLLY, 2010, p. 32).

Como exposto, para se chegar ao objetivo ao qual se propõe o presente


trabalho, é necessário também entender o conceito de Direitos Humanos.
Segundo Dallari (2008, p. 12)
A compreensão do verdadeiro sentido da expressão Direitos
Humanos é necessária para superar preconceitos e evitar
desvirtuamentos. As pessoas humanas, titulares dos direitos
humanos, são todas iguais em valor, direitos e dignidade. Por isso é
necessário respeitar as diferenças devidas a fatores culturais e agir
com espírito de solidariedade.

A expressão direitos humanos é uma forma de abreviar a menção dos


direitos fundamentais pela pessoa humana. Esses direitos – os
fundamentais – são assim chamados por que sem eles a pessoa humana não
consegue se desenvolver, nem participar plenamente da vida. Toda a pessoa,
ao nascer, deve ter garantidas as condições mínimas que proporcionem o
seu desenvolvimento, e a sua participação ativa na sociedade em que vive,
bem como o direito a receber os benefícios que essa vida em sociedade pode
proporcionar. Assim sendo, nas palavras de Dallari (2008), pode – se dizer
que os direitos humanos “correspondem a necessidades essenciais da pessoa
humana”.
E quando se fala em igualdade, deve-se ter muito clara a ideia de que
uma pessoa não vale mais, ou menos que outra. No entanto, essa afirmação
de igualdade não quer dizer igualdade física, intelectual ou psicológica. Cada
pessoa humana tem sua individualidade, personalidade, seu modo próprio
de ver e sentir as coisas. E da mesma forma, os grupos sociais têm a sua
cultura própria, que é o resultado de condições naturais e sociais. (DALLARI,
2008). Nesse sentido, as pessoas têm as suas diferenças, mas continuam
538
sendo iguais como seres humanos, tendo as mesmas necessidades e
faculdades essenciais.
Dallari (2008, p 15), defende que

O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em


todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento
econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se
forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade dos seres
humanos. O sucesso político ou militar de uma pessoa ou de um
povo, bem como o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada
disso é merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à
dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.

Os principais direitos humanos são o direito à vida, o direito de ser


pessoa, o direito à liberdade real, o direito à igualdade de direitos e
oportunidades, o direito à moradia e à terra, o direito ao trabalho em
condições justas, o direito de participar das riquezas, o direito à educação, o
direito à saúde, o direito ao meio ambiente sadio, direito de participar do
governo, direito de receber os serviços púbicos, e o direito à proteção dos
direitos.
Quanto ao direito à proteção dos direitos, afirma-se que um direito só
existe quando pode ser usado. Afirma Dallari (2008, p. 13), que

Não basta afirmar, formalmente, a existência dos direitos, sem que


as pessoas possam gozar desses direitos na prática. A par disso, é
indispensável também a existência de instrumentos de garantia,
para que os direitos não possam ser ofendidos ou anulados por ações
arbitrárias de quem detiver o poder econômico, político ou militar.

E como medida de garantia da efetivação dos Direitos Humanos,


tratando-se do plano externo, ou seja, internacional, é que surgem alguns
instrumentos ao longo dos anos, tendo como marco inicial, como já afirmado
no início deste trabalho, o período pós guerra. Em 1.948, surge a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Até a fundação das Nações Unidas, em
1945, não se tinha segurança para afirmar que houvesse, em direito
internacional público, preocupação consciente sobre o tema dos Direitos
Humanos. De longa data alguns tratados avulsos cuidaram de proteger
certas minorias dentro do contexto da sucessão de Estados. (REZEK, 2010,

539
p. 225). Como ensina Flávia Piovesan, (2007, p. 118):

A Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o


pós guerra deveria significar a reconstrução desses direitos. Sob esse
prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida
como questão doméstica do Estado, e sim como problema de
relevância internacional como legítima preocupação da comunidade
internacional.

A criação da sistemática internacional de proteção aos direitos


humanos surge em decorrência dessa universalização dos direitos, que
passou a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, uma vez que para ser
possível a concretização dos direitos presentes na declaração, era preciso um
mecanismo de monitoramento e controle das atividades estatais. O Sistema
Internacional de direitos humanos passou assim a atuar de forma a proteger
os direitos de qualquer ser humano, quando o Estado torna-se negligente e
omisso no amparo deles. (PIOVESAN, 2007). Esses “mecanismos” foram
sendo implantados através dos tratados e convenções internacionais, uma
vez que, para realizar o controle necessário frente aos direitos humanos, não
se poderia contar apenas com instituições internas do Estado.
Quanto aos tratados e convenções internacionais, há uma importante
colocação a ser feita. No plano interno, todos somos “jurisdicionáveis”.
Quando existe alguma ação demandada contra nós, não possuímos o condão
de aceitar ou não tal demanda. Já quando se trata dos Estados, a questão se
torna diversa. Segundo Rezek, (2010, p. 2)

O Estado, no plano internacional, não é originalmente jurisdicionável


perante corte alguma. Sua aquiescência, e só ela, convalida a
autoridade de um foro judiciário ou arbitral, de modo que a sentença
resulte obrigatória e que seu eventual descumprimento configure ato
ilícito.

O instrumento de maior importância do sistema interamericano é a


Convenção Americana de Direitos Humanos. Convenção esta que foi
assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, entrando em vigor, no
entanto em 1.978. Somente os Estados Membros da OEA (Organização dos
Estados Americanos) teriam o direito de aderir à convenção. Neste universo,

540
os Estados Unidos da América não ratificaram a convenção, e o Brasil foi um
dos países que mais tardiamente o fez, o que ocorreu apenas em setembro
de 1992 (GOMES, 2000). Ainda de acordo com o mesmo autor, (2000, p 30),
dentre os direitos civis e políticos reconhecidos e assegurados pela
Convenção destacam-se:

O direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito de não


ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um
julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário,
o direito à privacidade, p direito à liberdade de consciência e religião,
o direito à liberdade de pensamento e de expressão, o direito à
resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o
direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e
residência, o direito de participar do governo, o direito á igualdade
perante a lei e o direito à proteção judicial.

Pode-se dizer que os dois primeiros artigos constituem a base da


convenção. Enquanto o primeiro artigo institui a obrigação dos Estados –
partes de respeitar os direitos e as liberdades garantidas reconhecidas pela
convenção e assegurar o livre e pleno exercício destes direitos e liberdades
sem qualquer discriminação de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião
política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição
econômica, nascimento ou qualquer outra condição social, o segundo artigo
afirma o comprometimento dos Estados-partes para que, na hipótese do
exercício dos direitos referidos não estarem assegurados por previsões
legislativas de âmbito doméstico, a adotar tais medidas legislativas ou outras
que sejam necessárias para conferir efeitos a estes direitos (CONVENÇÃO).
Além da convenção americana de Direitos Humanos, outra questão
que não se pode deixar de abordar em se tratando do Sistema Internacional
de proteção aos Direitos humanos, é a da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. A competência da referida comissão, alcança todos os
Estados-partes da Convenção Americana, em relação a todos os direitos nela
previstos. Além disso, também alcança todos os estados participantes da
OEA (Organização do Estados Americanos), em relação aos direitos
presentes na Declaração universal dos Direitos Humanos de 1948. Quanto a
sua composição, trabalha Gomes (2000, p. 33) que

541
É integrada por sete membros “de alta autoridade moral e
reconhecida versação em matéria de direitos humanos”, que podem
ser nacionais ou de qualquer Estado-Membro da Organização dos
Estados Americanos. Os membros da Comissão são eleitos, a título
pessoal, pela Assembleia Geral por um período de 4 anos, podendo
ser reeleitos por uma vez.

A principal função da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é


promover a observância e a proteção dos direitos humanos na América. Para
que isso seja concretizado, cabe à comissão fazer recomendações aos
governos dos Estados – partes prevendo a adoção de medidas por eles
adotadas. Além disso, a comissão deve apresentar anualmente um relatório
à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, e também,
diga-se de passagem, uma das funções mais importantes da Comissão,
segundo o artigo 44 é examinar as petições encaminhadas por indivíduos ou
grupos de indivíduos, ou ainda alguma entidade não –governamental, que
contenham denúncia de violação a algum dos direitos consagrados na
convenção americana de direitos humanos (GOMES, 2000).
Alem de todas essas funções, o art 41 da Convenção interamericana de
direitos Humanos, consagra expressamente algumas funções da Comissão:

Estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América;


Preparar os estudos ou relatórios que considerar convenientes para o
desempenho de suas funções; Solicitar aos governos dos Estados
membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que
adotarem em matéria de direitos humanos; Atender às consultas
que, por meio da Secretaria-Geral da Organização dos Estados
Americanos, lhe formularem os Estados membros sobre questões
relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas
possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que eles lhe
solicitarem; Atuar com respeito às petições e outras comunicações,
no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto no
art 44 e 51 da Convenção (CONVENÇÃO).

Sobre a petição inicial, deve responder a certos requisitos de


admissibilidade, entre eles, o principal é o prévio esgotamento das vias
internas, salvo injustificada demora processual, ou no caso de a legislação
interna de algum Estado não prover o devido processo legal. Depois da
admissibilidade, o primeiro passo que a comissão irá tomar, é a tentativa de
resolução amistosa do conflito (GOMES, 2000). Caso isso não seja possível, a
comissão elaborará um relatório sobre os fatos ocorridos, as conclusões as
542
quais se chegou, e, caso sejam pertinentes, as recomendações que forem
feitas aos Estados. Sobre o relatório, colocação importante é feita por
Thomas Burgenthal (APUD GOMES, 2000, p 40):

É importante notar que o relatório elaborado pela Comissão, na


terceira fase do procedimento, é mandatório, e deve conter as
conclusões da Comissão, indicando se o Estado referido violou ou
não a Convenção Americana. Este relatório é encaminhado ao
Estado-parte, que tem o prazo de três meses para conferir
cumprimento às recomendações feitas.

Por último, deve-se estudar a Corte interamericana de Direitos


Humanos, a qual inclusive poderá ser acionada no caso do estado membro
não cumprir alguma recomendação que tenha recebido da Comissão, no
prazo de três meses. A Corte interamericana de direitos é órgão jurisdicional
do sistema regional, que é composta por sete juízes nacionais de Estados-
Membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos Estados- Partes da
Convenção. Ela apresenta competência consultiva e contenciosa. No plano
contencioso, a competência da Corte é limitada aos Estados-partes da
convenção que a reconheçam expressamente, é importante ressaltar que
somente a Comissão Interamericana e os Estados-parte podem submeter um
caso à corte. No caso brasileiro, a aceitação da competência da Corte
Interamericana ocorreu recentemente, (GOMES, 2000).
Ensina Luiz Flávio Gomes em sua obra (2000, p. 45) que

A corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia


de que um Estado-parte violou direito protegido pela Convenção. Se
reconhecer que efetivamente ocorreu a violação à Convenção,
determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à
restauração do direito então violado. A corte pode ainda condenar o
Estado a pagar uma justa compensação à vítima. A decisão da corte
tem força jurídica vinculante e obrigatória. Se a corte fixar uma
compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em
conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de
sentença desfavorável ao Estado.

Frente a esses mecanismos de proteção aos Direitos Humanos, que


são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte
Interamericana de Direitos, é que se propõe neste trabalho, realizar uma
abordagem de um caso ocorrido no país. Trata-se de uma violação contra os
543
direitos humanos. Uma violação contra um direito humano que possui um
gênero especial: a mulher.
Para o estudo do caso em específico, faz-se necessária uma abordagem
prévia dos direitos humanos das mulheres, que em relação ao cenário
internacional, ganharam visibilidade nos últimos anos, sendo pauta
constante de reuniões dentro do sistema internacional de proteção aos
direitos humanos. Em 1993, durante a Conferência Mundial de Direitos
Humanos, sediada em Viena, as mulheres levantaram uma campanha,
apresentando como tema “os direitos das mulheres também são direitos
humanos”. Nesse passo, a violência doméstica e familiar foi inserida como
forma de violação aos direitos humanos das mulheres (ABREU, 2010).
Antes disso, o Brasil já havia ratificado a Convenção para Eliminação
de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW – Convention
on the Elimination of all Discrimination against Womwn), em 1984. Esse
documento internacional, em seu artigo 1º, conceituou a discriminação
contra a mulher como “toda distinção, exclusão ou restrição fundada no
sexo e que tenha por objetivo ou conseqüência prejudicar ou destruir o
reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do
seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (PASINATO,
2008).
Além da Convenção para eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher, o Brasil também ratificou no ano de 1995 a
Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra a mulher, também chamada de Convenção de Belém do Pará. Esta
convenção foi adotada pelos países da OEA (Organização dos Estados
Americanos). Esta convenção teve o propósito de discutir a violência
doméstica contra a mulher. Conceituou em seu art 1º a violência contra a
mulher sendo “qualquer ação ou conduta baseada, no gênero, que cause
morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico contra a mulher,
tanto no âmbito público como no privado” (SOUZA, 2009).
Porém, um dos maiores marcos no que diz respeito aos direitos
544
humanos das mulheres, ocorreu em 2006, com criação da Lei 11.340/2006,
conhecida como a Lei Maria da Penha, que traz por finalidade criar
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Apesar da lei ser recente, o fato que marcou sua origem ocorreu há vários
anos.
Trata-se do caso da cearense Maria da Penha Maia Fernandes. Ela foi
vítima de violência doméstica, como várias mulheres que têm seus direitos
violados todos os dias. As agressões e ameaças partiam de seu esposo,
Marco Antonio Heredia Viveiros, professor universitário. Em 1983, ocorreu a
primeira tentativa de homicício. Maria da Penha levou um tiro de espingarda
enquanto dormia, o que a deixou paraplégica. Alguns dias depois, houve
mais uma tentativa, quando Heredia tentou eletrocutar Maria da Penha,
enquanto esta tomava banho. Após as tentativas, Maria da Penha separou-
se, sendo que procurou ajuda judicial. Em setembro de 1984, o Ministério
Público faz a acusação, e em 1991, o professor vai a Júri e é condenado a 10
anos de prisão. A defesa recorreu e o Júri foi anulado. Novo júri ocorreu
somente em 1996, sendo que novamente houve condenação, desta vez em 10
anos e seis meses. Novamente a defesa recorreu e o réu respondeu em
liberdade (SOUZA, 2009).
Apenas 19 anos depois de cometido o crime contra Maria da Penha, é
que Marco Antônio foi preso, sendo que cumpriu apenas dois anos da pena
imposta. Diante de tanta injustiça, no ano de 2001 Maria da Penha
formalizou sua insatisfação judicial perante o Centro pela Justiça e pelo
Direito Internacional (CEJIL), e perante o Comitê Latino-Americano de
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), sendo que a partir daí a denúncia
foi encaminhada à Comissão Internacional de Direitos Humanos (ABREU,
2010, p. 6).
A denúncia culminou no relatório 54/01, o qual concluiu ter sido o
Brasil omisso de uma forma geral em relação à violência doméstica contra
as mulheres, e especificamente no que diz respeito a repressões que
deveriam ter sido tomadas contra o agressor no caso Maria da Penha.
Recomendou que fossem tomadas medidas que garantissem a efetividade
dos direitos já reconhecidos na Convenção Americana e na Convenção de
545
Belém do Pará. Segundo disposição do relatório, este considerou

Que o Estado violou os direitos e o cumprimento de seus deveres


segundo o art. 7 da Convenção de Belém do Pará em prejuízo da
Senhora Fernandes, bem como em conexão aos arts. 8 e 25 da
Convenção Americana e sua relação com o art. 1 da Convenção, por
seus próprios atos omissivos e tolerantes da violação infligida
(SOUZA, 2009, p. 24).

Finalmente, no ano de 2002, portanto 19 anos e seis meses depois de


cometer o crime, e seis meses antes de prescrever o crime, Marco Antonio
Heredia Viveiros foi preso. Além disso, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos determinou que o Estado do Ceará (estado onde ocorreu o
crime), pagasse à Maria da Penha o valor de R$ 20.000,00 a título de
indenização pela morosidade judicial (MACEDO, 2010).
Como forma de tratar com mais rigorosidade os crimes cometidos
contra as mulheres, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada pelo Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva a Lei de 11.340, sob o Título Lei Maria da Penha.
Referida lei, em seu artigo 1° define que

Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica


e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre Eliminação de Todas as
Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de
todos os tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e estabelece
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de
violência doméstica e familiar. (SOUZA, 2009, p. 21).

A referida lei tornou as penas aos agressores mais graves, uma vez que
antes, as penas eram brandas, e na maioria das vezes, consistiam no
pagamento de cestas básicas ou multas, em função da Lei 9.099. Agora, os
crimes praticados em regime de violência doméstica contra as mulheres, não
permitem mais o pagamento de cestas básicas ou multa, e as penas agora
podem chegar a 3 anos de prisão, com a possibilidade de prisão em flagrante
ou prisão preventiva decretada quando houver riscos de integridade física ou
psicológica da vítima (MACEDO, 2010).

546
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desfecho desta história é considerado de imensa relevância, uma vez


que ao longo da história brasileira, e de muitos outros países, a mulher era
vista como sexo frágil, submissa ao homem e proibida de exercer seus
direitos civis, como votar por exemplo. Isso exigiu muita determinação,
muita luta, com muita garra deste “sexo frágil” para que fosse possível, pelo
menos parcialmente, a reversão do cenário preconceituoso e paternalista a
que eram submetidas. A constituição brasileira de 1988, em certa medida,
legitimou esta luta, com o art. 5°, Inc I, a promover a “igualdade de deveres e
obrigações entre homens e mulheres”. Hoje, se vê mulheres ocupando
cargos altos, votando, opinando em grandes causas.
Além de exemplo de perseverança e de luta da mulher brasileira para
fazer valer os seus direitos, através da elucidação do caso mencionado,
ocorrido no Brasil, que este trabalho se propõe a deixar em evidência a
importância e a grandeza do Sistema Interamericano de Proteção aos
Direitos Humanos. Mostrar que, em havendo a morosidade judicial, ou o
descaso da legislação pátria dos Estados, ainda existe uma alternativa. É
uma segurança do cidadão de que ele não conta apenas com sua justiça
nacional, pois se esta for falha, ele possui uma segunda opção. A opção de
fazer valer sim os seus direitos perante um segundo nível de Proteção,
através da Comissão e a Corte Interamericana de Proteção aos Direitos
Humanos, como o fez e provou que é possível Maria da Penha.

REFERÊNCIAS

ABREU, Ludmila Moura de. A Lei Maria da Penha à luz da Convenção


Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a
mulher. Disponível em<http://www.webartigos.com/articles/36483/1/A-
LEI-MARIA-DA-PENHA-A-LUZ-DA-CONVENCAO-INTERAMERICANA-PARA-
PREVINIR-PUNIR-E-ERRADICAR-A-VIOLENCIA-CONTRA-
MULHER/pagina1.html>. Acesso em 12 nov. 2010.

ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São


Paulo: Saraiva, 2010.
547
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. 29.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em:


<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/oea/oeasjose.htm>. Acesso em 23
nov. 2010.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo:


Editora Moderna, 2008.

GOMES, Luiz Flávio. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos


Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000.

MACEDO, Larissa. Caso Maria da Penha. Disponível em:


<http://academico.direitorio.fgv.br/ccmw/Caso_Maria_da_Penha>. Acesso
em 12 nov.2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional


Internacional. 8 ed. São Paulo: Max Limonad, 2007

REZEK, Francisco. Direito Público Internacional. São Paulo: Saraiva,


2010.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Comentários à lei de Combate à Violência


contra a Mulher. Curitiba: Juruá Editora, 2009.

548
A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA COMO PREMISSA À
UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA

Janaína Soares Schorr1


Alfredo Copetti Neto2

1. INTRODUÇÃO

A organização do mundo em sociedades cria, por si só, hábitos e


modelos próprios de cada uma destas coletividades. Este modo de viver
desenvolvido pelo homem acarreta nele hábitos e costumes próprios do seu
grupo, e, muitas vezes, diverso dos demais.
Em um Estado Democrático de Direito, constituído por princípios que
consagram a liberdade do indivíduo, a igualdade entre todos, a cidadania e o
reconhecimento do outro como um ser portador de direitos, deveres e
desejos, se faz necessário que ocorra o reconhecimento, igualmente, desta
cultura pertencente a cada grupo, a cada coletividade.
Contudo, o que se apresenta em inúmeras ocasiões é exatamente o
inverso, qual seja, a inobservância das premissas de um Estado
Democrático, e, por via reflexa, a não aceitação da cultura do outro, como
algo normal, correto ou aceitável. E daí advém, por óbvio, as crises
verificadas diuturnamente em nosso país e no mundo globalizado.
O presente estudo, em uma tentativa inicial de análise do tema,
objetiva a discussão da construção de uma cultura democrática como um
dos pilares a constituírem uma sociedade que seja mais igualitária e
fraterna. A democracia deve tornar o indivíduo realmente um cidadão,
pertencente a um todo, mas que seja, ao mesmo tempo, livre para viver em
plenitude e parte integrante de uma coletividade em termos culturais e
econômicos.
A democracia não foi algo criado de um dia para o outro, e sim, é um

1 Mestranda em Direitos Humanos na UNIJUÍ. Bolsista UNIJUÍ. Membro do Grupo de


Pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”. Advogada e orientadora
educacional profissional do Senac, unidade Santo Ângelo/RS.
2 Doutorado em Teoria do Direito e da Democracia pela Università degli Studi Roma Tre

(UNIROMATRE, 2010 Revalidado UFPR) e Estágio Pós-Doutoral na UNISINOS/PDJ-CNPQ,


2014. Mestrado em Direito Público (Filosofia do Direito) pela UNISINOS, 2006. Professor na
UNIJUÍ, UNIOESTE e Univel. Advogado OAB-RS.
549
processo construído a cada dia, e que está apenas dando seus primeiros
passos, cabendo aos indivíduos auxiliar no melhor andamento desta
caminhada, para que os efeitos daí surgidos sejam por si só cada vez mais
produtivos e enriquecedores ao conjunto envolvido.
Dividido em três partes, o artigo traz, em sua parte inicial, um estudo
introdutório a respeito da cultura e do ser humano como alguém que decorre
do meio cultural em que está inserido. Através da comunicação oral e escrita
é que ele se diferencia dos demais seres vivos e, por decorrência, se torna
um ser culturalmente integrado ao ambiente.
Em seguida, é tratado a respeito deste esforço que combina a unidade
e a diversidade, a liberdade e a integração, ou seja, a cultura democrática. A
partir do momento em que a comunidade optou pela democracia, é
necessário aliá-la à cultura existente neste aglomerado, permitindo que se
haja e viva de forma livre, mas respeitando também a liberdade do outro.
E, por fim, o estudo a respeito da necessidade da construção efetiva de
uma cultura que seja democrática e que respeite os direitos de todos, sejam
eles minoria ou maioria. Somente será possível construir um mundo
democrático, quando o homem souber respeitar a diferença e os povos que
possuam costumes diversos.
Uma cultura que esteja aliada à democracia, uma sociedade em que o
indivíduo tenha respeitada a sua cultura, mas também respeite os hábitos e
costumes dos demais. Em que o debate ocorra para o aprendizado e
melhoramento de todos e não apenas como tentativa de mudança do modo
de viver daquele que pensa e age diferentemente. Um mundo onde ocorra o
diálogo social como meio de fortalecimento da democracia.
É sabido que o tema, por sua importância, deve ser cada vez mais
aprofundado, vez que se trata da história de um e de todos, havendo a
necessidade premente da aceitação de cada ser humano como um ser único,
dotado especialmente da sua individualidade e de particularidades que
devem ser respeitadas, para a efetivação de um mundo plural e onde floresça
concretamente a almejada paz social e a igualdade idealizada em um Estado
Democrático.

550
2. A CULTURA COMO ESTRUTURA DE UMA SOCIEDADE

O ser humano é o único ser passível de desenvolver-se culturalmente.


Isto pode ser facilmente observado se partirmos da premissa de que ele é o
único dos animais que pode comunicar-se de forma escrita e fabricar
instrumentos que facilitam sua vida diária.
Já na era da Antiguidade existiam as mais diversas tentativas de
explicar as diferenças existentes entre os homens, a partir do ambiente físico
que habitavam, como resultado de uma endoculturação, vez que o
comportamento individual depende de um aprendizado, e em razão de que a
comparação de povos diferentes leva a descoberta de costumes igualmente
diferentes (LARAIA, 2009).
Para Zeferino Rocha,

Na passagem do mundo exterior das coisas materiais – o mundo da


natureza — para a realidade significada que é o mundo da cultura,
abre-se o espaço, no qual vão se inscrever as normas, os ideais e o
tesouro de inúmeras formas simbólicas, tais como: o saber, a arte, a
religião, a ciência, a técnica, formas simbólicas estas que tornam o
mundo-morada do homem um mundo habitável. Resumindo, o
homem é o único animal que cria seu mundo-morada como um
universo simbólico de normas e de ideais, e isto é justamente o que
eu entendo por cultura (2007, p. 120).

E complementa que

[...] quando as coisas da natureza transformam-se em obras


humanas, a Natureza se faz Cultura, da qual o homem é, ao mesmo
tempo, a causa e o efeito. Causa porque é ele quem transforma a
Natureza em Cultura, e, ao mesmo tempo, efeito, porque todo
homem é homem de seu tempo e traz as marcas da cultura em que
se insere e da qual recebe as influências. (2007, p. 120)

Ao contrário, se aos homens faltar a cultura, eles não passarão de


“monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos
sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos
psiquiátricos” (GEERTZ, 1989, p. 35). O sistema nervoso central do homem
cresceu, em sua maior parte, exatamente com a cultura, sendo ele incapaz
de dirigir o comportamento humano sem os símbolos significantes fornecidos

551
por ela.
Geertz explica que

Nossa idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas


emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos
culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de
tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e,
não obstante, manufaturados. Chartres é feita de pedra e vidro, mas
não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não somente uma
catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo
particular por certos membros de uma sociedade particular. Para
compreender o que isso significa, para perceber o que isso é
exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades
genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas as
catedrais. Você precisa compreender também – e, em minha opinião,
da forma mais crítica – os conceitos específicos das relações entre
Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que
foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os
homens, eles também, até o último deles, são artefatos culturais.
(1989, p. 36-37)

Edward Tylor foi o primeiro a definir o termo Cultura, oriundo do


vocábulo inglês Culture, significando para ele, em seu amplo sentido
etnográfico, “este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,
moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos
pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 2009, p. 25).
A cultura é um estilo de vida, um espaço de vida, encarnando nele
uma visão do mundo e do homem, que tem na importância característica da
linguagem o mais fundamental de seus sistemas simbólicos, onde constam
os conceitos éticos e onde se une a universalidade pertencente aos costumes
e a singularidade relacionada à práxis. Por isso, não se pode conceber a
cultura separada da ética, pois que as consequências desta separação
acabam sendo funestas para a civilização (MENESES, 1991).
Modernamente, o conceito de cultura se reconstruiu, admitindo-se que
é um sistema que adapta a comunidade ao seu embasamento biológico, em
que cada sociedade possuirá uma cultura própria, influenciada pelas
próprias características sociais e locais, “o modo de ver o mundo, as
apreciações de origem moral e valorativa, os diferentes comportamentos
sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança
cultural, ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”

552
(LARAIA, 2009, p. 68).
Disso decorre o fato de que indivíduos que pertencem a culturas
diversas são facilmente reconhecidos pelo seu modo de agir, vestir, ou
mesmo, pelo seu modo de comunicar-se. Se analisarmos o cotidiano de cada
cultura, veremos que, o que é tradicional em uma, pode não o ser em outra.
Por exemplo, a forma de reação de um povo à morte: enquanto uns a
saúdam, como algo que liberta, outros a tem como algo triste, desolador e
irreversível.
Outro exemplo é o motivo pelo qual as pessoas riem. Em algumas
culturas o riso é algo ligado ao cotidiano, enquanto em outras é uma questão
de etiqueta, acarretando situações consideradas desagradáveis. Deste modo,
se verifica que o riso acaba sendo condicionado aos padrões culturais
estabelecidos, mesmo que seja, de origem, algo fisiológico.
Laraia traz ainda o exemplo da diversidade cultural em termos
gastronômicos:

Frequentemente, esta diversidade é utilizada para classificações


depreciativas; assim, no início do século os americanos
denominavam os franceses de “comedores de rãs”. Os índios Kaapor
discriminam os Timbira chamando os pejorativamente de “comedores
de cobra”. E a palavra potiguara pode significar realmente
“comedores de camarão”, mas resta uma dúvida linguística desde
que em Tupi ela soa muito próximo da palavra que significa
“comedores de fezes” (2009, p. 71).

O que demonstra, ainda mais, que o mundo visto pelo homem a partir
da sua cultura, e isto dita seu modo de agir e de viver, muitas vezes
conduzindo o entendimento de que o seu é o melhor, mais correto e mais
natural modus vivendi, originando daí o etnocentrismo, causa de numerosos
conflitos ocorridos na sociedade através dos tempos.
Além disso, muitas vezes, é gerado um verdadeiro espanto na maioria
das pessoas que não conseguem conviver e aceitar estes costumes diversos
dos seus, em razão da rica diversidade existente de sociedades e, portanto,
de culturas. Incrivelmente a compreensão humana, que deveria fazer com
que se aceitasse as diferenças e o diferente, acaba, ao contrário, afastando e
gerando um sentimento de repulsa pelo outro que não éigual.

553
Conforme Meneses,

é que neste caso, o Outro é outro sujeito, para quem eu sou também
um Outro, que me conhece como tal, como eu a ele; que pode
aceitar-me, mas que sobretudo e antes de tudo pode repelir-me,
como eu também faço com ele; de modo que o reconhecimento nunca
é imediato, mas passa por uma reconciliação (1993, p. 454).

Com a globalização surge a tendência de uma homogeneização da


cultura em termos mundiais, numa tentativa de que a diversidade cultural
se transformasse em uma cultura transnacional. Porém, na prática, ela
ainda não foi conquistada, devendo ser construída. Argumenta Montero,

A particularidade do debate atual sobre a globalização reside na


aceitação do fato de que a expansão planetária dos modelos culturais
é vista como sendo capaz de realizar-se sem a existência de um
centro específico exportador (ou impositor) de idéias, ideologias ou
comportamentos paradigmáticos. [...] a produção cultural nesta
modernidade-mundial é desterritorializada, isto é, ao ser absorvida
por outras culturas, não leva mais a marca de sua origem
(ocidental/americana) específica (1996, p. 92-93).

Hoje as relações ocorrem em circuitos cada vez mais alargados e as


tradições e costumes estão presentes não apenas na sociedade que
primariamente a tinham, como em outras em virtude da maior comunicação
existente entre os povos, das mudanças no mundo como um todo, e no
entrelaçamento que caracteriza a nossa atualidade.
Mas isto não retira a necessidade, independente da cultura em que se
esteja inserida, de que as relações sejam movidas pelo princípio ontológico
da prática ética, que caracteriza a cultura verdadeiramente humana e que,
abrindo mão dos “valores particulares regidos unicamente pelos caprichos e
interesses dos indivíduos” assuma o valor de princípios universais,
constituindo o sujeito ético que “embora seja particular na medida em que é
inserido em uma cultura particular, nem por isso deixa de ser um sujeito de
direitos e de deveres universais” (ROCHA, 2007, p. 122).
A cultura, portanto, éalgo inerente ao homem e relacionado ao meio
em que se estáinserido, com usos e costumes determinados pelos hábitos do
grupo, e que, no mais das vezes, acaba por determinar suas atitudes

554
cotidianas e suas práticas em relação ao outro. A globalização, ao aproximar
diferentes realidades e comunidades, fez com que os povos acabassem
incorporando hábitos novos aos seus.

3. CULTURA DEMOCRÁTICA

A democracia, como já dito, é um processo é construído a cada dia,


sendo hoje, conforme Norberto Bobbio, um “termo com conotação fortemente
positiva. Não há regime, até mesmo o mais autoritário, que não queira
denominar-se democrático” (2003, p. 246).
Além disso,

o processo de democratização do sistema internacional, que é o


caminho obrigatório para a busca do ideal da “paz perpétua”, no
sentido kantiano da expressão, não pode avançar sem uma gradativa
ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem,
acima de cada Estado. Direitos do homem, democracia e paz são três
momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos
do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem
democracia, não existem as condições mínimas para a solução
pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a
sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando
lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz
estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente
quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
Estado, mas do mundo (BOBBIO, 2004, p. 7).

Nas palavras de Kelsen,

A democracia julga da mesma maneira a vontade política de cada


um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada
opinião política, cuja expressão, é a vontade política. Por isso a
democracia dá a cada convicção política a mesma possibilidade de
exprimir-se e de buscar conquistar o ânimo dos homens através da
livre concorrência. [...] O domínio da maioria, característico da
democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só
porque, segundo a sua essência mais íntima, pressupõe por
definição uma oposição – a minoria – mas também porque reconhece
politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades
fundamentais (2000, p. 105-106).

A democracia busca, portanto, combinar o pensamento racional que


faz parte do ser humano, com a sua liberdade pessoal e a identidade
cultural. O indivíduo é um sujeito, guiado “por seus interesses, pela
555
satisfação de suas necessidades, ou até mesmo pela recusa de modelos
centrais de conduta” (TOURAINE, 1996, p. 28). Assim, muitas vezes, ele não
é portador de uma cultura democrática, nem mesmo defende a sociedade
democrática em que vive, querendo, por outro lado, salvaguardar os seus
bens e seus próprios interesses, em detrimento dos demais.
Sendo o regime democrático reconhecedor do direito das minorias,
pela maioria, deve ele buscar o desenvolvimento de uma cultura que seja
igualmente democrática, e que possua, como objetivo principal, a
combinação da liberdade dos indivíduos e das coletividades, com a unidade
da atividade econômica e igualmente das regras jurídicas (TOURAINE, 1996).
O desenvolvimento de uma cultura democrática que seja aberta,
pluralista e principalmente voltada aos direitos humanos, devendo ser
desenvolvida e construída em todos os lugares, nas escolas, nas igrejas, nos
meios de comunicação. Necessário se faz o esforço coletivo para que a sua
edificação se efetive e, com isto, se possa consolidar a democracia em todas
as suas acepções.
A definição de cultura democrática decorre da democracia, na medida
em que esta

é o regime que reconhece os indivíduos e as coletividades como


sujeitos, isto é, os protege e encoraja em sua vontade de “viver sua
vida” e dar unidade e sentido à sua experiência vivida. Nesse caso, o
que limita o poder não é somente um conjunto de procedimentos,
mas a vontade positiva de aumentar a liberdade de cada um. A
democracia é a subordinação da organização social e, em particular,
do poder político, a um objetivo que não é social, mas moral: a
libertação de cada um (TOURAINE, 1996, p. 254).

Ela éa oposição às forças de dominação social e de controle da


sociedade, incentivando a participação ativa de cada integrante dela,
concedendo a cada indivíduo o direito de reconhecer o direito do outro, e
assim ter reconhecidos os seus.
Portanto, a partir do respeito à individualidade pertencente ao outro,
sem a abolição das diferenças culturais existentes, e sim, por outro lado,
aumentando a diversidade interna existente na sociedade, na medida em
que elas se complementam, aceitando o diálogo dos indivíduos e das

556
culturas, é que se poderá efetivamente construir uma cultura democrática.

4. A CULTURA DEMOCRÁTICA COMO PILAR DE CONSTRUÇÃO DE UMA


SOCIEDADE IGUALITÁRIA

O mundo globalizado e suas consequências a nível econômico, civil e


político, acabam por acarretar a desconfiança na democracia como a melhor
forma de governo. Aliado a isto, tem-se o consumismo como algo presente na
sociedade atual e que prejudica, como um todo, o desenvolvimento de um
modo de vida que seja mais sustentável, não só a nível de ambiente, como a
nível de relações interpessoais e entre culturas distintas.
Isto gera a necessidade de desenvolvimento de algumas estratégias que
possam auxiliar na concretização de um Estado democrático que englobe,
efetivamente, todas as suas premissas. Uma delas, e, quiçá, a mais
importante, seja a realização de um diálogo social que envolva todos os
atores da sociedade. Assim,

Prescindimos de uma democracia que, ao mesmo tempo, seja capaz


de ampliar a participação da sociedade em geral com o diálogo
sistemático com os cidadãos, com grupos sociais que querem
melhorar suas condições de vida e de direitos, ou que querem um
padrão sustentável de desenvolvimento e consumo (DIÁLOGO
SOCIAL, 2009).

Touraine, igualmente, traz a questão da necessidade do diálogo entre


as culturas, que deve advir da política. Ele ressalta que,

O essencial é reconhecer que o papel da política, o que a torna


democrática, é tornar possível o diálogo entre as culturas. Para uns,
este diálogo não precisa mais que liberdade; para outros, entre os
quais me encontro, supõe de início que cada indivíduo se constitua
desde logo como ator e como sujeito, articulando suas práticas e
seus valores; e, no que diz respeito a todos, trata-se de estender, de
aprofundar e de generalizar o que foi o espírito da democracia
industrial, ou seja, a defesa, em situações sociais concretas, do
direito de cada indivíduo e da coletividade de agir em conformidade
com sua própria liberdade e no respeito à liberdade dos outros
(1998, p. 64-65).

É o reconhecimento do indivíduo que está em voga, o seu direito de

557
articular as suas experiências, seja na vida pessoal ou em termos coletivos,
além da participação no mundo através da sua identidade cultural
particular. Necessário reconhecer não a inspiração universalista de uma
cultura, mas “a vontade de individuação de todos os que procuram
reunificar o que o nosso mundo, economicamente globalizado e
culturalmente fragmentado, tende sempre mais fortemente a separar”
(TOURAINE, 1998, p. 65).
A necessidade de que cada um seja visto como um indivíduo separado,
isolado, e, portanto, que deve ser considerado como um igual, mas
igualmente como um diferente. Assim,

A diversidade de atores definidos não somente pelo lugar que


ocupam na sociedade, mas também cada vez mais por sua
identidade pessoal e por sua herança cultural, combina-se com sua
igualdade que tem como referência comum um princípio não social,
a liberdade humana, ao passo que se tente substituir a igualdade e a
diferença no interior do mesmo conjunto social institucionalizado,
chega-se a contradições insuperáveis (TOURAINE, 1998, p. 95-96).

Cada vez mais urge que se reconheça essa multiculturalidade, esta


diferença presente no mundo,

O reconhecimento de que vivemos em sociedades multiculturais,


compostas de uma pluralidade de identidades, instiga a reflexão a
respeito das dificuldades de sustentar a ideia de cidadania e de
identidades comuns, sem o devido reconhecimento das culturas
excluídas ou esquecidas, não reconhecidas, desde o projeto moderno.
São demandas de direito às diferenças e à diversidade (BERTASO,
2013, p. 27-28).

Sendo um Estado de Direito pautado pela Justiça, em que estão


presentes um Estado de liberdade e de igualdade, logicamente, por via
reflexa, também deve estar ele amparado pela diferença, quase como uma
consequência do princípio da isonomia, por incluir cidadãos que pensam e
agem de formas não iguais (BEDIN, 2009).
Atualmente, encontramos um Estado Democrático para as zonas ditas
civilizadas do contrato social, e um fascista para as zonas excluídas
socialmente, devendo a igualdade ser ampliada para os domínios econômico
e social. A solidariedade, desse modo, deve ser praticada na diferença, e não
558
apenas entre iguais. É necessário que se reivindique igualdade quando a
diferença inferioriza e o direito à diferença quando a igualdade
descaracteriza (VIEIRA, 2014).
É paradoxal e, ao mesmo tempo, compreensível, que se discuta o
reconhecimento da diferença na contemporaneidade e a tentativa de
desenvolvimento de uma cultura democrática, vez que o mundo tem se
mostrado cada vez mais frágil, no que tange a simbolização das experiências.
Talvez seja exatamente por isso que este assunto esteja tão em voga. Falar,
juridicamente, de reconhecimento da alteridade, justifica-se nesse mundo
onde a capacidade simbólica está quase “em frangalhos”.
Necessário se faz, cada vez mais, que a busca por um mundo
efetivamente democrático seja uma busca coletiva, e não isolada. O homem é
um ser cultural, como já visto, e, para viver plenamente a democracia, deve-
se aceitar e até mesmo “cultuar” esta multiculturalidade presente na nossa
sociedade.
Os direitos humanos possuem papel fundamental neste processo,
pois, além de viabilizarem as liberdades, são estratégicos no sentido de
auxiliarem o funcionamento da sociedade política, e são eles que
“institucionalizaram a ética da alteridade e o dever de respeitar a existência
singular e única do Outro” (DOUZINAS, 2009, p. 362).
Como bem argumenta o Doglas Cesar Lucas,

[...] os direitos humanos devem funcionar como o mediador entre as


igualdades e as diferenças, como limite ético para o reconhecimento
das particularidades e para a afirmação que não homogeneízem e
não sufoquem a humanidade presente de cada homem isoladamente
considerado (LUCAS, 2013, p. 286).

O ser humano não existe, e sim, coexiste com outros. A relação entre
todos não deve ser uma relação de domínio de um sobre o outro, e sim, deve
ser uma relação de con-vivência. Não deverá ocorrer a intervenção, e sim a
inter-ação e a comunhão (BOFF, 1999).
De acordo com Touraine,

[...] este individualismo tem também uma dimensão totalmente

559
diferente: (...) nós procuramos salvar nossa existência individual,
singular. Desdobramento criador, porque faz nascer ao lado do ser
empírico um ser de direitos, que procura se constituir como ator livre
através da luta por seus direitos (2006, p. 240) [grifo no original].

As conquistas da atualidade, dentre elas a consagração do direito


humano à diferença, vem apenas afirmar que será através de uma cultura
democrática que a sociedade humana poderá se concretizar em uma
sociedade efetivamente mais igualitária, justa e fraterna. Quando se respeita
o outro, como um ser igual, mas, ao mesmo tempo, um ser diferente, e,
portador de uma cultura própria, advinda de hábitos e costumes já
arraigados, temos o pontapé inicial do desenvolvimento de uma coletividade
que, seguindo os preceitos da democracia, realmente se configure como um
Estado dos cidadãos, como defendido por Bobbio.
Por isso a importância cada vez mais crescente dos trabalhos que
envolvem o desenvolvimento da autoestima e da consciência de identidade.
Após gerações e gerações de povos oprimidos, de pessoas sendo
consideradas coisas, de ausência de direitos, natural que se tenha que
reaprender a viver como um indivíduo único, e realmente se possa ser uma
unidade pertencente a um todo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O homem é um ser cultural, e, inclusive, o único dentro da cadeia de


seres vivos que assim pode ser considerado. É produto do meio em que está
inserido, e, por isso, seus atos, hábitos e costumes são a ele vinculados.
Porém, por outro lado, igualmente é um homem mundial, e, em tempos
globalizados, não pertence mais a apenas um meio, e sim, ao todo, tendo,
por este motivo, hábitos adquiridos de outras culturas.
Assim, o primeiro ponto trazido neste estudo foi exatamente a
explicação quanto ao indivíduo como um ser cultural, que, vivendo em um
mundo onde imperam sociedades democráticas, deve ser conduzido à
aceitação do outro como um ser igualmente portador de direitos, deveres e
desejos.

560
A partir desta aceitação e da consagração da alteridade é que se
poderá crescer em termos de mundo e em termos de evolução. Apenas a
partir da construção e efetivação de uma cultura eminentemente
democrática, que aceite as demais culturas, que a elas se interligue, e que
aceite as diferenças é que se poderá construir um mundo fraterno e justo.
A sociedade sofreu inúmeras mudanças em termos de direitos nos
últimos dois séculos e, cada vez mais estámudando, sendo necessário que
todos possam aprender e discutir sobre os caminhos que levaram a nossa
atualidade, a construção histórica e a evolução sofrida em termos mundiais.
Somos diferentes, isto éum fato! E na busca pela extinção das
desigualdades, pela confirmação de que todos somos iguais, perante a lei e a
sociedade, muitas vezes nos esquecemos de que não somos totalmente
iguais, e sim, como bem disse Boaventura de Sousa Santos, todos
possuímos o direito de ser diferentes e iguais.
Isto não retira, obviamente, a necessidade do alcance, por todo e
qualquer indivíduo, dos direitos fundamentais e das garantias constantes
nas normas constitucionais, dentre elas, o direito a ver-se inserido
democraticamente em razão da sua cultura, para o alcance maior do fim a
que se destina o Estado.
A era dos direitos estásendo vivida pela humanidade, e um dos mais
importantes direitos a ser defendido e protegido por cada indivíduo é,
exatamente, o direito de ser uma individualidade e de, pertencendo a um
todo, conviver com os demais, em um mundo onde haja mais respeito e
alteridade, onde uma cultura democrática realmente se efetive, e, com ela, se
desenvolva, realmente, uma sociedade mais igualitária.

REFERÊNCIAS

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Brasil. Santo Ângelo: FuRI, 2013.

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Vozes, 1999.

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7ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

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São Paulo: Brasiliense, 1990.

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ROCHA, Zeferino. Ética, cultura e crise ética de nossos dias. Síntese, Belo
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na


pós-modernidade. 13ª ed. São Paulo: Cortez, 2010.
562
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Reconhecer para libertar: os
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TOURAINE, Alain. Igualdade e diversidade: o sujeito democrático. Tradução


de Modesto Florenzano. Bauru: EDUSC, 1998.

_____. O que é democracia? 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

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VAZ, Henrique C. de Lima Vaz. Cultura e Filosofia. Síntese Nova Fase, Belo
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<http://gestaocompartilhada.pbh.gov.br/sites/gestaocompartilhada.pbh.gov
.br/files/biblioteca/arquivos/cidadania_e_sociedade_civil_no_espaco_publico
_democratico.pdf> Acesso em: 27 ago 2014.

563
ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E NO
BRASIL

Carla Dóro de Oliveira1


Doglas Cesar Lucas2

1. INTRODUÇÃO

Entre a década de 1970 e 1980, países latino-americanos como o


Brasil, a Argentina, o Chile e o Uruguai passaram por um período de forte
repressão estatal contra a população civil. Foram “anos de chumbo”, de
regimes autoritários que governavam pelo uso da força. Nessa época, a
violação de direitos humanos era prática costumeira, pessoas eram detidas
arbitrariamente e torturadas, e muitas delas acabavam “sumindo”
misteriosamente, um crime que ficou conhecido como “desaparecimento
forçado”.
Embora a história desses países seja semelhante em muitos aspectos,
é interessante averiguar qual o caminho escolhido por um ou outro país para
deixar para traz esse período de violação de direitos e começar a
reconstrução de sua democracia. Para tanto, o presente estudo se dedicou a
analisar os casos brasileiro e argentino, traçando um paralelo entre os dois,
a fim de entender quais os possíveis reflexos dessas escolhas para o futuro
de suas democracias.

2. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

A justiça de transição traz em seu próprio nome o seu cerne, uma vez
que se dedica a conduzir um país à construção de uma democracia após um
período de restrição de direitos individuais, trazendo consigo uma gama de
medidas aptas a possibilitarem tal mudança. Nesse sentido, de acordo com

1 Acadêmica do 10º período do Curso de Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior


de Santo Ângelo – IESA/CNEC. Email: carladorodeoliveira@gmail.com.
2 Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Roma Tre (2012). Professor dos
Cursos de Graduação e de Mestrado em Direito na Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí e no Curso de Direito do Instituto Cenecista de
Ensino Superior Santo Ângelo –IESA/CNEC.
564
Paul van Zyl, “pode-se definir a justiça transicional como o esforço para a
construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em
massa ou violação sistemática dos direitos humanos” (2011, p. 47).
Para que se torne completo, estudiosos do tema, dentre eles Paulo
Abrão e Marcelo D. Torelly, apontam que o processo transicional deve passar
por quatro etapas distintas, cada qual desempenha relevante e indispensável
papel na construção da democracia, são elas:

(i) a reparação, (ii) o fornecimento da verdade e a construção da


memória, (iii) a regularização da justiça e o restabelecimento da
igualdade perante à lei e (iv) a reforma das instituições perpetradoras
de violações contra os direitos humanos (2011, p. 215).

A reparação, primeira dimensão da justiça transicional, diz respeito


tanto à indenização pelos danos materiais causados às vítimas das violações
de direitos humanos, quanto a “assistência psicológica (p.ex.
aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas simbólicas (p.ex.
monumentos, memoriais e dias de comemoração nacionais)” (ZYL, 2011, p.
52).
Um aspecto dessa transição deve ser trabalhado paralelamente ao
outro e não de forma excludente. No entanto, no Brasil houve, até pouco
tempo, inegável preferência pelo modelo pecuniário de reparação. Dessa
visão compartilha Roberta Camineiro Baggio, segundo a qual o uso exclusivo
desse modelo acarreta um

[...] menosprezo pelos avanços transicionais arduamente


conquistados até aqui e o desrespeito em relação aos perseguidos
políticos que passam a ser vistos, de um modo geral, principalmente
pela mídia, como “caçadores de tesouros” às custas do dinheiro
público (2011, p. 254).

A autora procede à minuciosa análise do tema, defendendo que,


quanto ao aspecto reparatório, a justiça de transição tem como desafio,
permitir o reconhecimento das vítimas do regime autoritário, dessa pessoa
no seu modo de vida e de suas convicções, pois, desse modo, estaria se
permitindo “aos sujeitos outrora desrespeitados a (re)construção de uma
imagem positiva de si mesmos” (BAGGIO, 2011, p. 258).
Dita circunstância se faz crucial em face de um regime que

565
classificou como “terroristas” aqueles que se opuseram ao Governo, os quais,
em larga maioria – segundo dados da obra “Brasil: Nunca Mais”– foram
presos por crimes como militância em organização partidária proibida e que,
até hoje, são vistos por parcela da população como criminosos.
É também esse o entendimento do eminente jurista francês Antoine
Garapon, para quem o crime contra a humanidade inaugurou uma nova
prática, até então inédita e inimaginável, a do crime sistematicamente
organizado pelo Estado contra a população civil, muitas vezes, nacional do
próprio país violador de direitos. Por essa razão que o reconhecimento
adquire um espaço tão importante na justiça de transição, posto que, em
decorrência crime contra a humanidade, o direito da vítima de pertencer à
própria comunidade da qual faz parte lhe é violentamente negado. Nada
mais justo, nesse sentido, que esse Estado que suprimiu esse direito seja o
mesmo que, uma vez cessadas tais violações, venha a admitir seu erro,
reconhecendo a vítima enquanto sujeito de direitos, parte dessa sociedade.
Nas palavras do autor, “as vítimas não esperam apenas da justiça aquilo que
lhes cabe – a restituição dos seus direitos, a indemnização dos danos
sofridos, a punição dos culpados –, mas também, e em primeiro lugar, serem
reconhecidas” (2002, p. 135). Isso porque,

[...] é o registro da identidade, por estar ligado ao plano político, que


é afectado. A vítima, violentamente expulsa da sua cidade, vê-se
condenada a uma solidão moral que se agrava com o tempo. Se um
prejuízo é reparado, já uma identidade negada exige ser
reconstruída, reiterada por um acto de justiça, inédito aos olhos de
muitos, o reconhecimento (GARAPON, 2002, p. 135).

Essa situação tem apresentado melhoras em nosso país,


principalmente após a Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Chamada
por muitos de nova Lei de Anistia, esse dispositivo regulamentou o artigo 8º
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabelecendo
outras medidas de reparação às vítimas do regime ditatorial, além da
pecuniária, e instituindo a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da
Justiça.
A partir do trabalho da mencionada Comissão foram implantadas as
Caravanas da Anistia, projeto pelo qual, conforme explica José Carlos

566
Moreira da Silva Filho, a Comissão de Anistia se desloca pelos mais diversos
Estados brasileiros “para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos
locais onde as perseguições aconteceram, realizando as apreciações em
ambientes educativos como Universidades, espaços públicos e comunitários”
(2015, p. 200).
O trabalho das Caravanas da Anistia é fundamental para a
reconstrução da memória e da verdade, mas, principalmente, para a
valorização e o reconhecimento da vítima, pessoa que teve sua dignidade
violada no mais alto grau. É de extrema importância ressaltar que uma das
medidas adotadas pela sessão de julgamento das Caravanas é o pedido
oficial de desculpas por parte do Presidente da sessão ao anistiado. Entende-
se que esse ato

[c]orrigiu-se, dentro das balizas legais existentes, o desvirtuamento


interpretativo que dava ao texto legal uma leitura economicista, uma
vez que a anistia não poderia ser vista como a imposição da amnésia
ou como ato de esquecimento ou de suposto e ilógico perdão do
Estado a quem ele mesmo perseguiu e estigmatizou como subversivo
ou criminoso (ABRÃO; TORELLY, 2011, p. 222).

Esse trabalho realizado pela Comissão de Anistia através das


Caravanas é amplamente elogiado pelos estudiosos do tema, que defendem
se tratar de efetiva prática de reparação moral, baseada na valorização do
anistiado, por meio do reconhecimento. Nas palavras de Baggio, o pedido de
desculpas oficial é

[...] uma estratégia concreta de valorização do papel daqueles que


exerceram com legitimidade seu direito de resistência contra o
Estado autoritário, reconhecendo sua importância histórica e
contrapondo frontalmente o processo de desvalorização desse grupo
na sociedade brasileira. Nesse ato, há uma ressignificação semântica
da concepção de anistia, caracterizando tal iniciativa como uma
divergência real em relação à ideia de anistia como esquecimento
(2011, p. 267).

Aliás, importante frisar que, em se tratando do número de


requerimentos de anistia julgados pela Comissão até 2010, “[...] cerca de
34% foram indeferidos. Além disso, 41,33% de todos os requerimentos
apreciados pela Comissão até Dezembro de 2010 foram deferidos mas sem a
concessão de qualquer reparação econômica” (SILVA FILHO, 2015, p. 171).
Tais dados comprovam que, além de nem todos os pedidos de anistia
567
serem deferidos, dentre os que o são, nem todos recebem benefícios
pecuniários – ao contrário do que fazem crer algumas informações divulgada
pela mídia. O que se deve ter em mente, afinal, é que medidas como essa dão
força ao processo transicional no país, credibilizam a imagem do anistiado
político e, fator muito relevante, rompem o silêncio imposto pela Lei de
Anistia, trazendo ao debate a questão das violações aos direitos humanos
cometidas durante o regime militar. Ademais, um modelo reparatório que vai
além da reparação pecuniária ajuda a desconstruir a ideia de que os
anistiados políticos estão em busca, tão somente, daquilo que a mídia
chama pejorativamente de “bolsa ditadura”, uma vez que a própria Lei nº
10.559/02 prevê outras formas de reparação, que não a material, as quais
precisam ser cada vez mais adotadas.
Outro aspecto que torna ainda mais significativo o trabalho das
Caravanas da Anistia é o fato de que, durante as sessões, o anistiando tem a
oportunidade de dar seu testemunho sobre os horrores vividos durante a
repressão. Isso, num país onde até o ano de 2011 ainda não se tinha
instaurado uma Comissão da Verdade no âmbito do Executivo, é um
acontecimento que merece destaque. Aliás, levando-se em consideração que
o fornecimento da verdade e a reconstrução da memória é uma das
dimensões da justiça transicional, defende Silva Filho que, “ao abrir o espaço
público para essas narrativas a Comissão contribui para recolocar
politicamente no cenário público aqueles que foram expulsos da comunidade
política, violados, agredidos e desumanizados” (2015, p. 177).
Cumpre salientar que, em nosso país, somente com a Lei nº 12.528
de 18 de novembro de 2011 – transcorridos mais de vinte anos desde a
Constituição de 1988 – é que foi criada, no âmbito do Poder Executivo, a
Comissão Nacional da Verdade (CNV). A finalidade da CNV é examinar e
esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período
ditatorial, de modo a efetivar o direito à memória e à verdade histórica e
promover a reconciliação nacional. Antes disso, o Estado brasileiro
promoveu outras ações, mas nenhuma com a magnitude da CNV, que
conseguiu alçar o tema da busca pela memória e pela verdade ao centro do
debate nos principais veículos midiáticos do país.
568
A importância da CNV reside no fato de que somente com o
reconhecimento dos fatos ocorridos, com o esclarecimento da verdade e da
memória e com o reconhecimento da vítima enquanto agente político
relevante na luta contra um regime injusto e opressor é que se pode superar
esse triste capítulo da história brasileira, quando, aí sim, o esquecimento
servirá, finalmente, enquanto aliado no processo de luto – mas jamais para
que se apague de nossas memórias as graves violações aos direitos humanos
aqui cometidas. Outros autores também seguem o mesmo raciocínio, a
exemplo de Garapon, segundo o qual

O ritual da justiça possibilita a separação definitiva do mundo


dos vivos do mundo dos mortos. É necessário poder assistir
simbolicamente à morte de um ente próximo para que este se torne,
enfim, um antepassado. Mas é igualmente necessário que o
sobrevivente readquira uma vida normal para parar de ameaçar a
ordem do mundo, apaziguar o seu ressentimento e conseguir viver
(GARAPON, 2002, p. 214-5).

A respeito do tema, não se pode deixar de lado os estudos levados a


cabo por Tricia D. Olsen, Leigh A. Payne e Andrew G. Reiter. Os
pesquisadores analisaram números da Base de Dados da Justiça de
Transição (TJDB), que inclui “dados de cinco mecanismos de justiça de
transição — julgamento, comissões de verdade, anistias, reparações e
depuração – para todos os países do mundo, de 1970-2007” (2011, p. 553).
A partir disso, concluíram que as anistias, ao contrário do que se imaginava,
não desempenham um papel de todo negativo na justiça transicional, desde
que combinadas com outras medidas transicionais, e que, ademais, o
sucesso da adoção das Comissões da Verdade “depende da combinação das
comissões de verdade com os julgamentos e as anistias” (2011, p. 561).
Tais dados reforçam a ideia de que uma justiça de transição
lastreada apenas num sistema reparatório que privilegia a reparação
pecuniária e em Comissões da Verdade – tardiamente instauradas – não é
suficiente para o avanço dos direitos humanos e o fortalecimento da
democracia. Diante disso, os autores advogam que os dados coletados
durante sua pesquisas comprovam que

[...] as anistias não são necessariamente perigosas para a democracia


e os direitos humanos como a abordagem contestadora argumenta.
569
Tampouco mostram, porém, que os julgamentos são perigosos para
os direitos humanos e a democracia, como a abordagem proponente
poderia argumentar. Apenas as comissões de verdade tendem a
resultados negativos, mas apenas quando os Estados a utilizam em
benefício próprio (2011, p. 561).

Isso significa que “as anistias poderão vir antes e serem depois
afastadas para que ocorram os julgamentos (como no caso argentino), ou
que as anistias convivam com a realização de alguns julgamentos (como no
caso chileno e uruguaio)” (SILVA FILHO, 2015, p. 66). Portanto, frisa-se
primeiramente, conforme o estudo, em dado momento histórico, as anistias
podem ser benéficas quando, por exemplo, surgem como a única forma de
um governo ditatorial “deixar” o poder; ademais, que isso não pode servir de
obstáculo, no entanto, para que essas anistias não sejam nunca contestadas
– no caso Argentino, por exemplo, a Lei de Autoanistia foi julgada
inconstitucional pela própria Suprema Corte do país, com base na
jurisprudência internacional sobre a proteção dos direitos humanos –; por
fim, que nem sempre uma lei de anistia precisa ser revogada ou anulada
pelo Judiciário a fim de que a responsabilização dos agentes públicos que
cometeram crimes de lesa-humanidade possa acontecer, uma vez que, como
no caso uruguaio, pode-se optar pela responsabilização não de todos os
agentes envolvidos na violação sistemática aos direitos humanos – o que não
se pode permitir é a absoluta negativa, por parte do Estado, dessa dimensão
da justiça transicional.
A respeito do assunto, Paul van Zyl traz importantes contribuições,
argumentando que “os julgamentos podem servir para evitar futuros crimes,
dar consolo às vítimas, pensar um novo grupo de normas e dar impulso ao
processo de reformar as instituições governamentais, agregando-lhes
confiança” (2011, p. 49-50). Zyl complementa, trazendo como exemplo o
julgamento de Nuremberg para aduzir que, não obstante nem todos os
perpetradores de graves violações aos direitos humanos terem sido levados a
julgamento, tal aspecto não retira a extrema relevância desse caso para a
efetiva proteção aos direitos humanos (2011, p. 50-1). Nas palavras de
Garapon:

O julgamento não evacua factos passados, mas fixa-os na

570
memória colectiva dando-lhes uma versão oficial e definitiva. [...]
Enquanto uma acção tida como criminosa não for julgada, existe o
risco de a injustiça ser consagrada pelo tempo (2002, p. 208).

Pode-se pensar o processo como uma etapa, uma fase importante


para que os fatos sejam revividos, discutidos, elucidados e, enfim,
encerrados. É um “palco” necessário para o reencontro da vítima e do seu
carrasco, que agora se encontram em posições invertidas, de modo a
possibilitar, finalmente, que a vítima conte sua história e seja, de fato,
ouvida. É o local de reconhecimento e de entendimento, e o primeiro passo
para que o perdão se torne viável. Aliás, como a dimensão da justiça tem por
objetivo a reconstrução e a reconciliação, Garapon advoga que “em vez de
uma pena que exclui da humanidade, a justiça deve visar não a expulsão,
não o recalcamento, mas a reintegração da experiência central da violência e
do crime na vida pública” (2002, p. 156). Por fim, o que se deve considerar é
que essa é somente uma das dimensões da justiça transicional, devendo vir
sempre aliada dos demais âmbitos do processo de transição.
Quanto ao fortalecimento das instituições, Silva Filho defende que
constitui o dever de “reforma das instituições públicas que, durante o regime
de exceção, permitiram e se amoldaram à prática sistemática de crimes
contra a humanidade, especialmente as instituições relacionadas à Justiça e
à Segurança Pública” (2011, p. 282). A estagnação das instituições públicas
desde a ditadura militar é fator que contribui, e muito, para a continuidade
na perpetração de violências contra os direitos individuais.
O que se nota é que, até hoje, nosso Poder Judiciário é muitíssimo
conservador, o Exército brasileiro ainda não reconhece a violação sistemática
aos direitos humanos cometidas durante o regime militar e, por fim, a
violência permanece sendo o modus operandi das instituições de Segurança
Pública no país. Nesse sentido, a reforma das instituições pode trabalhar
como aliada da responsabilização dos agentes públicos, conforme visto
acima, contribuindo “para estabelecer a responsabilidade não penal por
violações dos direitos humanos, particularmente em contextos nos quais
resulta impossível processar todos os responsáveis” (ZYL, 2011, p. 54).
Em se tratando do Poder Judiciário, seu conservadorismo pode ser

571
observado por diferentes enfoques. No entanto, urge dar destaque a dois
aspectos. Primeiramente, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, em sua maioria, os Ministros do STF
sequer mencionam o direito internacional para analisar a questão, apesar de
o assunto versar sobre direitos humanos, matéria amplamente amparada
por tratados e convenções de direito internacional.
Quanto ao Exército, até hoje se espera um pedido oficial de desculpas
pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar,
posto que

Trazer oficialmente à memória uma injustiça praticada pelo


Estado, admitir uma responsabilidade, acaba por ser sinônimo de
emitir um juízo moral, jurar fidelidade a um sistema de valores que
transcende os interesses do Estado. Lamentar um crime é assumir o
compromisso implícito de que nunca mais irá cometê-lo (GARAPON,
2002, p. 181).

É justamente por ser um ato político de reconhecimento que vincula


o Estado a esse sistema de valores transcendente a seus interesses que é tão
importante que esse pedido oficial de desculpas aconteça. Entretanto, por
esse mesmo motivo é extremamente improvável que isso, de fato, ocorra.
Ademais, é consabido que, até 2010, as Forças Armadas
comemoravam o dia do golpe que deu início ao regime militar – 31 de março
de 19643. Além do que, em 2010 o Jornal Folha de São Paulo denunciou, por
meio da reportagem de Angela Pinho, a adoção, nos Colégios Militares, de
um livro didático de história que ensinava os estudantes a “louvar a
ditadura”, segundo o qual o golpe de 1964 foi uma “revolução democrática”.
A obra ainda silenciava quanto à prática da tortura e desaparecimentos
forçados de pessoas, dando amplo destaque à ação dos grupos de oposição
ao regime4.
Para demonstrar os efeitos da falta da reforma das instituições
públicas no Brasil, imperioso revelar os dados colhidos pela organização não

3 Reportagem de Bruno Góes veiculada pelo jornal O Globo em 31 de março de 2011 dá


conta que o Exército finalmente decidiu abolir as comemorações ao golpe de 64. Disponível
em: <http://oglobo.globo.com/politica/exercito-abole-comemoracao-do-golpe-de-64-mas-
clubes-militares-prestam-homenagem-data-2802824>. Acesso em 11 jun. 2015.
4 Reportagem de Angela Pinho publicada em 13 de junho de 2010. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306201018.htm>. Acesso em 11 jun.
2015.
572
governamental (ONG) Anistia Internacional (AI) nos Informes 2014/2015 que
dispõe sobre “O estado dos direitos humanos no mundo”. Na pesquisa, a AI
traz informações relativas à violação dos direitos humanos, segurança
pública, impunidade, tortura, condições prisionais, entre outros, nos mais
diversos países onde atua. O informe é dividido por país, sendo que, em se
tratando da segurança pública no Brasil, a AI demonstrou preocupação,
registrando que

Segundo estatísticas oficiais, 424 pessoas foram mortas pela


polícia durante operações de segurança no estado do Rio de Janeiro
em 2013. No primeiro semestre de 2014, houve um aumento do
número de mortes nessas circunstâncias, quando a polícia matou
285 pessoas, 37% a mais que no mesmo período de 2013 (ANISTIA
INTERNACIONAL, 2015, p. 73).

Esses números reforçam a tese de que a impunidade e a falta de uma


reforma nas instituições públicas brasileiras após o período ditatorial
contribuem para uma cultura de violência. Os órgãos da segurança pública,
em vez de fazer cessar a violência com que tratavam os presos políticos na
ditadura militar, apenas mudaram de foco. Agora, o “inimigo estatal” é o
pobre, o negro e, porque não incluir na lista, o manifestante, o
“insubordinado”. De acordo com Silva Filho, a falta de uma transição
adequada “se reflete na continuidade da extrema violência empregada pelas
forças de segurança pública no país, e em especial da tortura como método
de investigação criminal” (2011, p. 282).
Aliás, quanto ao uso da tortura como método de investigação
criminal, a Anistia Internacional conduziu um estudo chamado “Actitudes
respecto a la tortura” pelo qual entrevistou 21.221 (vinte e uma mil duzentas
e vinte e uma) pessoas de vinte e um países diferentes. A pertinência do
estudo frente ao trabalho ora realizado refere-se à primeira questão da
pesquisa. No caso, diante da seguinte afirmação: “se as autoridades de meu
país me colocassem sob custódia, tenho confiança de que estaria a salvo da
tortura”, perguntava-se ao entrevistado se: concordava totalmente;
concordava parcialmente; discordava em parte; ou, discordava totalmente.
O resultado da pesquisa indicou que 80% dos brasileiros discordam
total ou parcialmente dessa afirmação; 18% respondeu que concordava (total

573
ou parcialmente), enquanto 2% não soube responder ou não quis responder.
O Brasil foi o país onde o medo da tortura foi o mais alto. Em outros países
latino-americanos que passaram por ditaduras militares, mas que, no
entanto, apresentam um processo transicional mais avançado que o
brasileiro, como na Argentina, por exemplo, 49% dos entrevistados
discordaram da afirmação, enquanto 34% concordaram; já no Chile, 30%
dos entrevistados discordaram da afirmação, enquanto 45% concordaram.
Tais dados demonstram um índice muito maior de confiança nas instituições
de segurança pública por parte dos vizinhos que implementaram a justiça
transicional de forma mais completa5.
Abrão e Torelly reconhecem que muito já se fez no sentido de
fortalecer as instituições democráticas no país, contudo, argumentam que
ainda “restam reformas a serem cumpridas especialmente nas Forças
Armadas e nos sistemas de Segurança Pública” (2011, p. 224).
Como já foi dito, a justiça de transição se faz de diferentes aspectos e
é quando essas dimensões são trabalhadas em conjunto que se aumentam
as chances de se obter avanços significativos na valorização dos direitos
humanos e no fortalecimento da democracia. Desse modo, é imperioso lutar
para que o processo transicional se complete no país, de modo que se efetive
a reparação – não apenas pecuniária, mas também moral das vítimas de
violações aos direitos humanos –, a busca por verdade e memória (como tem
sido feito pela CNV, embora com a relutância das Forças Armadas), a
tentativa de responsabilização dos agentes públicos (dentro dos limites
possíveis), paralelamente à reforma (para o fortalecimento) das instituições
democráticas.

3. UM PARALELO ENTRE A DITADURA BRASILEIRA E O CASO


ARGENTINO

O Brasil não foi o único país que passou por um regime de exceção.

5 Pesquisa completa disponível em: <https://anistia.org.br/direitos-


humanos/publicacoes/pesquisa-global-percepcoes-sobre-tortura/>. Acesso em 11 jun.
2015.
574
Nesse contexto, basta olharmos as nações vizinhas para encontrarmos
histórias muito similares às vividas por nós, brasileiros, durante a ditadura.
Por conseguinte, é interessante avaliarmos o tratamento que países que
passaram por situações análogas a nossa deram a tais fatos, pois a forma
com que um Estado responde a tais violações muito diz sobre a própria
sociedade que o forma.
É interessante destacar que as histórias argentina e brasileira se
aproximam e se afastam em diversos pontos. Nas palavras de Guilhermo J.
Yacobucci “La historia política del Siglo XX en la Argentina estuvo signada
no solo por los grandes cambios sociales también por la violencia que
encontró, en los recurrentes golpes de Estado, uno de los aspectos más
destacados” (2011, p. 22). Dita característica não destoa da experiência
vivida pelo Brasil, que também passou – não somente uma vez – por golpes
de Estado.
Ao explicar de que forma se dava a repressão na ditadura Argentina,
o suprarreferido autor relata que o uso da violência era contínuo e que logo o
governo começou a fazer uso da prática do “desaparecimento forçado”:

Dentro de esos mecanismos que se desarrollaron en el periodo


democrático se incluyeron formaciones especiales que enfrentaban
de manera violenta a los grupos subversivos. Había eliminación
física, atentados y actos de terrorismo. Sin embargo, también
comenzó una modalidad que luego se desenvolvería de manera
extensa y sistemática durante la dictadura militar. Se trata de la
detención ilegal de personas que además de ser secuestradas y
torturadas dentro del ámbito de las propias fuerzas de seguridad,
terminaban “desapareciendo” (2011, p, 23).

Os métodos utilizados pelo governo argentino para reprimir os


opositores eram tão parecidos com os utilizados pelo governo ditatorial
brasileiro que os relatos de Yacobucci sobre as práticas lá utilizadas,
poderiam facilmente ser encarados como acontecimentos relativos ao Brasil.
Nesse sentido explica José Maria Gomes que todos os regimes ditatoriais

[...] convergiam no objetivo estratégico último de eliminar as ameaças


subversivas à ordem social estabelecida e redefinir os termos de
inserção dos capitalismos periféricos na economia mundial, num
processo de “modernização conservadora” capaz de garantir a nova
versão militarizada da equação “Segurança e Desenvolvimento”
(2008, p. 105).

575
Quanto aos perseguidos pelo regime, cumpre destacar que, assim
como ocorreu no Brasil, o governo ditatorial argentino também se preocupou
em silenciar todos que considerava inconvenientes. Desde guerrilheiros, até
professores e mesmo clérigos. Dita situação não difere muito da ocorrida em
nosso país, no entanto, no caso argentino, os números da repressão é que
causam espanto. Conforme expõe Claudia C. Tomazi Peixoto, aponta-se que
“a ditadura argentina (1976-83) resultou em 30 mil mortos e desaparecidos,
segundo a Associação das Mães da Praça de Maio, e em torno de 18 mil
segundo dados oficiais [...]. No Brasil (1964-85) a ditadura teria deixado o
saldo de mais de 300 mortos e desaparecidos” (2011, p. 18).
Dito isso, vê-se que, apesar de os regimes brasileiro e argentino terem
suas similitudes, também se distinguiam em alguns pontos. Enquanto na
Argentina, o desparecimento forçado era o tratamento dispensado, via de
regra, aos indivíduos que o governo considerava “subversivos”; no Brasil, o
método preferido era a aplicação da tortura aos presos políticos, o
desaparecimento forçado era menos recorrente em comparação com o país
vizinho. Dita distinção, por sua vez, teve relevante impacto sobre o número
total de mortos e desaparecidos durante o regime ditatorial em cada país, o
que acabou influenciando o modo com que cada Estado tratou da sua
justiça de transição.
Assim como no Brasil, o governo ditatorial da Argentina também
editou uma lei de anistia antes de deixar o poder, a Lei nº 22.924, de 22 de
setembro de 1983, visando à impunidade dos crimes perpetrados pelos seus
agentes durante o regime. Conforme explica Pablo F. Parenti, a norma levou
o nome de

[...] “Lei de Pacificação Nacional”, denominada comumente como “Lei


de autoanistia”, mediante a qual foram declaradas extinguidas “as
ações penais emergentes dos delitos cometidos com motivação ou
finalidade terrorista ou subversiva, desde 25 de maio de 1973 até 17
de junho de 1982” e “todos os fatos de natureza penal realizados na
ocasião ou com motivo do desenvolvimento de ações dirigidas a
prevenir, conjurar ou por fim às referidas atividades terroristas ou
subversivas, qualquer tivesse sido sua natureza ou o bem jurídico
lesionado” (2011, p. 42).

A partir de então as semelhanças entre a experiência argentina e


576
brasileira começam a rarear, dado que já no governo democrático de Raúl
Alfonsín, na Argentina, o presidente promoveu diversas medidas tendentes a
garantir a devida justiça de transição em seu país – bem diferente, por sinal,
do ocorrido no Brasil. Para Gomes, o governo de Alfonsín foi o que:

[...] foi mais longe na proposta de “solução”: revogou a lei de auto-


anistia, criou uma comissão de investigação para apurar a verdade
do acontecido com os desaparecidos (a Comisión Nacional sobre la
Desaparición de las Personas – CONADEP -, presidida pelo escritor
Ernesto Sábato) e submeteu as três juntas militares da ditadura ao
julgamento penal na justiça civil, junto com a cúpula das
organizações guerrilheiras, além de outras medidas de reparação e
promoção dos direitos humanos (ratificação de tratados
internacionais, educação formal em escolas colégios e universidades,
etc.) (2008, p. 110).

Nesse sentido, afirma Parenti que “o Congresso sancionou, em 22 de


dezembro de 1983, a lei 23.040, que revogou por inconstitucionalidade e
declarou irremediavelmente nula a lei de fato 22.924” (2011, p. 43).
Seguindo no caminho da investigação e do esclarecimento das graves
violações aos direitos humanos ocorridas na Argentina durante a ditadura
militar, o Judiciário argentino ratificou a decisão do Legislativo, conforme
explica Yacobucci, “la Corte Suprema de Justicia argentina (CSJN) legitimó
la anulación de esa norma de facto, restándole entonces toda eficacia a sus
actos de manera retroactiva” (2011, p. 26).
No entanto, a punição dos responsáveis pelos crimes de lesa-
humanidade cometidos durante a ditadura argentina enfrentou dificuldades
e resistência por parte dos integrantes das Forças Armadas. Diante da
imposição de algumas condenações pelos crimes cometidos por militares
durante do regime ditatorial, o Governo, pressionado, decidiu impedir a
continuação da persecução penal. Para tanto “el Congreso democrático dictó
las denominadas leyes de ‘punto final’ (23.492) y ‘obediencia debida’
(23.521)” (YACOBBUCI, 2011, p. 27).
A edição das referidas leis marcou o encerramento dos julgamentos
penais dos crimes ocorridos durantes a ditadura militar na Argentina.
Cumpre frisar que os dispositivos legais foram editados durante um governo
democrático e que “A lei de obediência devida foi convalidada poucos dias
depois pela Corte Suprema de Justiça da Nação” (PARENTI, 2011, p. 44), a

577
mesma corte que, pouco tempo antes, havia se manifestado favorável à
invalidação da lei de anistia argentina.
Entretanto, uma mudança na legislação permitiu uma nova
interpretação do caso. O artigo 75, inciso 22, da nova Constituição argentina
determinou a incorporação de tratados internacionais ao direito interno do
país, dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
indicando ainda que “esa integración era en las condiciones de vigencia de
los instrumentos internacionales” (YACOBBUCI, 2011, p. 29). Referida
ressalva significava que, ao aplicar os tratados e convenções internacionais,
o ordenamento jurídico argentino ficava sujeito à interpretação que lhes
conferia a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Nesse sentido,
refere Yacobucci:

[...] la interpretación de esos tratados quedaba sujeita a lo que


dijeran los órganos de aplicación correspondientes – de naturaleza
internacional – y no a lo que evaluaran las autoridades judiciales
argentinas. Esto significó una cambio de paradigma en cuanto a la
comprensión del orden jurídico de la Argentina, brindó un gran
impulso a la tranformación de su cultura legal, posibilitó un
instrumento axiológico, comunicativo y político para considerar las
obligaciones del Estado Argentino frente a las graves violaciones de
los derechos humanos y, en definitiva, abrió un canal de revisión
respecto del status quo a que había llevado las sucesivas leyes,
amnistías e indultos concretados en el período democrático posterior
a la dictadura militar (2011, p. 29).

Tendo reconhecido a competência da CIDH, bem como assinalado


que tal reconhecimento levava, necessariamente, a uma interpretação da
Convenção Americana de Direitos Humanos e do direito internacional dos
direitos humanos conforme o sistema interamericano de direitos humanos,
ou seja, de forma interrelacionada com o sistema de proteção no qual a
nação signatária da Convenção se inseria, a Corte Suprema argentina tomou
como precedente, conforme expõe Pádua Fernandes, “o caso Barrios Altos,
contra o Peru, em que a Corte considerou violadoras da Convenção as leis de
autoanistia peruanas” (2010, p. 1677). No julgamento desse caso a Corte
IDH estabeleceu

[...] que las disposiciones de amnistía, prescripción y excluyentes de


responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de
los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos
tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o
578
arbitrarias y las desapariciones forzadas contravienen derechos
inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los
Derechos Humanos. En consecuencia carecen de efectos jurídicos y
no pueden seguir representanto un obstáculo para la investigación
de los hechos, la identificación y el castigo de los responsables (Caso
“Barrios Altos”, sentencia del 14 de marzo de 2011, Serie C n. 75)
(YACOBUCCI, 2011, p. 32).

Com base nisso, ao julgar o Caso “Simon”, a Corte Suprema


argentina (CSJN) analisou as leis de “obediência devida” e de “ponto final”.
Até então era predominante o entendimento de que tais leis legitimavam-se
por buscarem a pacificação social. Seus defensores alegavam o uso da
ponderação, sustentando que a anistia era a única forma de manter a
harmonia política. No entanto, a própria CSJN, mesmo após ter considerado
válidas as referidas leis, entendeu que elas não podiam mais prosperar,
tendo em vista as inegáveis mudanças pelas quais o direito argentino tinha
passado. De acordo com a Corte Suprema argentina, por impedirem a
persecução das violações aos direitos humanos cometidas durante a
ditadura, os referidos dispositivos contrariavam a Convenção Americana de
Diretos Humanos e não tinham, portanto, validade. Nesse sentido, válido
trazer a citação de trecho da decisão da Suprema Corte argentina compilada
por Yacobucci:

[...] el derecho argentino há sufrido modificaciones fundamentales


que imponen la revisión de lo resuelto en esa ocasión. Así, la
progresiva evolución del derecho internacional de los derechos
humanos – con el rango establecido por el art. 75, inc. 22 de la
Constitución Nacional – ya no autoriza al Estado a tomar decisiones
sobre la base de ponderaciones de esas características, cuya
consecuencia sea la renuncia a la persecución penal de delitos de
lesa humanidad, en pos de una convivencia social pacífica apoyada
en el olvido de hechos de esa naturaleza (...) en efecto, a partir de la
modificación de la Constitución Nacional en 1994, el Estado
argentino ha asumido frente al derecho internacional y en especial,
frente al orden jurídico interamericano, una serie de deberes, de
jerarquía constitucional, que se han ido consolidando y precisando
en cuanto a sus alcances y contenido en una evolución claramente
limitada de las potestades del derecho interno de condonar u omitir
la persecución de hechos como los del sub lite (2011, p 33-4).

Com a declaração, pelo Judiciário argentino, da invalidade das leis de


“ponto final” e “obediência devida”, foi possível a retomada do julgamento
dos crimes cometidos durante a ditadura naquele país. Além disso, para
encerrar de vez a questão, o Poder Legislativo também privilegiou o respeito

579
aos direitos humanos e “em agosto de 2003, o Congresso sancionou a lei
25.779, mediante a qual ‘declarou’ a ‘nulidade insanável’ das leis de ponto
final e de obediência devida” (PARENTI, 2011, p. 47). Em face disso, cumpre
apresentar os dados trazidos por Peixoto sobre os julgamentos dos crimes
cometidos durante a ditadura militar argentina, segundo a qual, até o mês
de maio de 2011, “807 pessoas foram/estavam sendo julgadas, das quais
212 foram condenadas” (PEIXOTO, 2011, p. 16).
Por óbvio, a reabertura dos processos pelos crimes cometidos durante
o período ditatorial na Argentina é tarefa árdua, que exige – e exigirá – muito
esforço por parte de todas as autoridades envolvidas. No entanto, tal
argumento não pode servir de entrave à investigação e ao julgamento dos
casos. Yacobucci destaca que, tendo sido essa a escolha argentina, escreve-
se um caminho sem volta, portanto, “deberán crearse medios, ajustarse
esquemas de trabajo y limitar la carga ideológica en el desenvolvimiento de
los juicios para alcanzar el verdadero significado de la tragedia vivida por
nuestro país” (2011, p. 44).
Por outro lado, a persecução penal das graves violações aos direitos
humanos perpetradas durante a ditadura militar não deve, de modo algum,
ser vista como uma forma de “revanchismo”. Pelo contrário, a busca da
verdade permitirá a superação do assunto e o enfrentamento das questões
traumáticas.
Observando-se a história recente dos países vizinhos, vê-se que,
enquanto na Argentina “uma das primeiras medidas do governo pós-
ditadura foi a criação de uma comissão no âmbito do Poder Executivo para
obter informação sobre o destino que tiveram aquelas pessoas que tinham
sido vítimas do sistema de repressão ilegal” (PARENTI, 2011, p. 51) – trata-se
da CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas),
criada no governo do presidente Raúl Alfonsín – em nosso país, o único
relatório que buscou investigar a verdade ocorrida durante a repressão
militar logo após o fim do regime foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, da
Arquidiocese de São Paulo. A Comissão Nacional da Verdade no âmbito do
Poder Executivo, por sua vez, só foi criada pela Lei nº 12.528, de 18 de
novembro de 2011, enquanto seu relatório foi divulgado apenas em 10 de
580
dezembro de 2014, cinquenta anos após o golpe que instaurou a ditadura
militar brasileira.
Frisa-se ainda que, enquanto a Argentina acatou a decisão da Corte
IDH, dando cumprimento aos dispositivos internacionais de proteção aos
direitos humanos e invalidando sua lei de anistia, a Suprema Corte
brasileira, tendo a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Lei
de Anistia, preferiu abster-se desse feito, alegando que essa tarefa cabia ao
Poder Legislativo. Ademais, o Estado brasileiro, mesmo depois de ter sido
condenado pela Corte, continuou a desrespeitar tal decisão, em total
desacordo com o que preconiza o direito internacional dos direitos humanos.
Isso tudo revela que o Brasil ainda tem muito a aprender em sede de direitos
humanos com a nação vizinha.
De todo o exposto, é inegável que os caminhos escolhidos pelo Brasil
e pela Argentina foram opostos. Embora os defensores da anistia ampla e
irrestrita defendam que o regime ditatorial vivido em nosso país foi mais
brando do que o dos outros países latinos, em razão do número final de
mortos e desaparecidos, isso não pode, jamais, servir de argumento para a
ocultação e o esquecimento de fatos tão importantes e de tamanha
magnitude para a construção e elucidação de nossa própria história.
O que se deve ter em mente é que a violação dos direitos de um
indivíduo, além de ser um crime, é uma ameaça constante a todos os demais
integrantes de uma sociedade e que aceitar que violações tão graves quanto
as aqui vividas caiam no esquecimento é permitir que as essas violações
venham a se repetir no futuro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Construir uma democracia bem consolidada, fundada em bases


seguras, formar uma sociedade consciente de seus direitos e,
principalmente, ciente da sua história, não é tarefa fácil, no entanto,
certamente é um desafio que precisa ser enfrentado.
O presente estudo dedicou-se a estudar, justamente, um meio para
que isso seja possível, analisando especialmente os caminhos indicados por
581
estudiosos da justiça de transição e, ademais, aqueles já trilhados por nosso
país vizinho, a Argentina. Busca-se, com isso, servir de aliado na luta pela
consolidação e pelo fortalecimento da democracia e pelo respeito aos direitos
humanos em nosso país, para que histórias como as aqui contadas não
venham jamais a se repetir.

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583
OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: AVANÇO
OU RETROCESSO?

Daniela da Rosa Molinari1

Marcele Scapin Rogério2

1. INTRODUÇÃO

A globalização é um fenômeno de mudanças que ocorre em escala


global, um processo de integração econômica, social, cultural, política e
ambiental com implicações diretas sobre o homem e sobre a sociedade. Esse
processo trouxe avanços tecnológicos e científicos, favorecendo para quem
detém condições de acesso, o que não ocorre com os excluídos da lógica do
desenvolvimento, principalmente em pese a efetivação dos direitos humanos.
Daí por que não falar em retrocesso dos direitos humanos?
Os direitos humanos são frutos de conquistas ao longo da história,
surgem como garantias de uma vida digna aos indivíduos, merecedores de
condições que satisfaçam as condições mínimas existencial, de respeito e
igualdade independente de raça, sexo e cor. Como ficam os direitos humanos
com a globalização? A globalização pode tanto promover o homem, assim
como aprisioná-lo, negando-lhe à condição humana e de um ser portador de
direitos.
Seria função do Estado, proteger os direitos de seus cidadãos contra
qualquer interferência externa e garantir um espaço de liberdade para que,
dentro dele, cada indivíduo pudesse usufruir das condições mínimas para
uma vida com dignidade e atingir seus objetivos e desejos. A partir da
globalização, ocorre o enfraquecimento deste Estado pelo poder econômico
instaurado, que deixa de promover o bem-estar geral e de remover os
obstáculos que impedem os indivíduos de alcançarem o bem-estar

1Formada em Direito pela UNICRUZ – Universidade de Cruz Alta, mestranda em Direito pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ. Bolsista
UNIJUÍ. Email: danielarmolinari@hotmail.com
2Formada em Direito pela UNICRUZ- Universidade de Cruz Alta e mestranda em Direito pela

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ.Bolsista


FAPERGS.Email: cele_scapin@yahoo.com.br
584
individual.
Sendo assim, esta abordagem busca refletir os reflexos da
globalização na sociedade atual, esse modelo de desenvolvimento que ainda
divide entre os avanços e as melhorias na qualidade de vida, a exclusão
social, a pobreza, a fome e os problemas ambientais.

2. DESENVOLVIMENTO

O ser humano encontra-se no centro dos direitos humanos e constitui


não só o fundamento, como o fim de todos os direitos. Vale dizer que o
direito não apenas é feito pelo homem, mas para o homem, que constitui o
destinatário final de valor mais alto de toda norma jurídica.
A dignidade é atributo ou qualidade inerente a todos os homens,
decorrente da própria condição humana. O indivíduo, pelo só fato de
integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade, que o torna credor de
igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes.
Sarlet (2001, p.60) define a dignidade da pessoa humana como a
qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Os direitos humanos não são estáticos, acompanham o processo
histórico. A partir dessa idéia, Bobbio (2004) pondera que os direitos
humanos nascem quando podem nascer, portanto, compõe um construído
axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a
partir de um espaço simbólico de luta e ação social.
Os direitos humanos são aplicados a todos os homens e servem como
princípios e valores que afirmam e protegem a condição humana. São de
valor universal, pois devem ser reconhecidos e respeitados por todos, em
585
todas as sociedades, em qualquer tempo. São esses direitos que tornam os
homens iguais, independente de raça, sexo, classe social ou crenças morais
e religiosas e que conjugam forças visando o objetivo máximo: a existência
digna do homem.
Na evolução histórica dos direitos, consideram-se três gerações de
direitos humanos. As gerações não são categorias que se excluem, mas que
se completam. A chamada primeira geração de direitos humanos centrou
força na liberdade, lema da Revolução Francesa (1789) que tinha como os
principais valores defendidos a liberdade e a igualdade, mas, sobretudo, a
liberdade: de ir e vir, de pensamento e expressão, de culto religioso, de
associação. Esta geração visou proteger os indivíduos dos abusos de regimes
absolutistas ou autoritários, garantindo espaços mais democráticos de
tomadas de decisão.3
Uma vez conquistados os direitos de primeira geração, o homem
passou a lutar pelos direitos de segunda geração, inspirados pela Revolução
Industrial (meados do século XVIII), ante as péssimas condições de trabalho
impostas aos operários. Esta geração dos direitos humanos é desencadeada
pela ideia de igualdade, que visa garantir uma maior igualdade de
oportunidade na sociedade, garantindo bens e serviços básicos a todos, tais
como: saúde, educação, moradia, alimentação, dentre outros.4
Dessa forma, o direito fundamental à vida se constitui, então, no
direito de todo ser humano não ser privado de sua vida e o direito de dispor
dos meios apropriados de subsistência e de um padrão digno de vida.
(TRINDADE, 1993, p.72)
Ao lado dos direitos sociais, emergiram os chamados direitos de
terceira geração, que surgiram após a Segunda Guerra Mundial (1945) pelos
conflitos de interesses econômicos e de uma nova convergência de direitos,
voltados à essência do ser humano, na proteção dos grupos humanos
(família, povo, nação), na sua razão de existir e o principal, destino da

3Por sua ênfase na proteção dos indivíduos, o que passou a ser chamados de direitos
individuais, contendo o Estado frente à pessoa humana, cabendo tão somente ser o
guardião das liberdades, sem interferência no relacionamento social.
4Daí a denominação de direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem do Estado o

dever de agir, no sentido de se buscar a superação das carências individuais e sociais.

586
humanidade.
A idéia desta geração trata o ser humano como gênero, não limitado
ao indivíduo ou a determinada coletividade,5 está ligada ao valor da
fraternidade ou solidariedade, direitos relacionados ao desenvolvimento ou
progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao
direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao
direito de comunicação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo,
destinados à proteção do gênero humano (NOVELLINO. 2009).
Existem alguns doutrinadores que defendem a existência dos
direitos de quarta e quinta geração, apesar de ainda não haver consenso na
doutrina. Para Bobbio (2004), trata-se de direitos ligados à vida como
elemento político: a proteção do patrimônio genético, a preocupação com a
bioética, dentre outros engenharia genética e, defende a existência desses
direitos de quarta geração, com aspecto introduzido pela globalização
política, relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo.
Já existem autores defendendo a existência dos direitos de quinta
geração que seguem a corrente de Bonavides (2008), que faz referência ainda
a uma quinta geração de direitos. Nessa categoria, desenvolve-se a
concepção da paz, afirmando que, embora tenha sido ela incluída
inicialmente no âmbito dos direitos de terceira geração, tal direito foi
esquecido, talvez pela superficialidade com que tem sido trabalhado entre os
direitos de fraternidade. Segundo o autor, a dignidade jurídica da paz deriva
do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto
qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie,
reino de segurança dos direitos.
Os liames existentes entre o meio ambiente e os direitos humanos
são percebíveis, seja porque em seu conteúdo se identificam prescrições de
direitos fundamentais básicos, seja pelo simples fato de que a degradação
ambiental gera violações aos direitos humanos. O que enseja afirmar que o
direito a um meio ambiente equilibrado é condição para uma vida saudável e
para o pleno gozo do direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento. Não há

5Direitos de titularidade coletiva ou difusa.


587
vida sem um ambiente saudável onde a pessoa possa se desenvolver com
dignidade e qualidade.
Por sua vez, os direitos humanos são direitos positivados nos
tratados ou costumes internacionais, que asseguram a toda e qualquer
pessoa, independentemente de sua cor, sexo, religião, idade, nacionalidade
ou qualquer outro requisito, a qualidade de detentora de direitos humanos,
bastando, então, apenas a sua simples existência. Ou seja, são aqueles
direitos que já ascenderam ao patamar do Direito Internacional Público.
(MAZZUOLI, 2006)
Porém, é preciso destacar que muitos desses direitos embora
positivados e garantidos em esfera internacional, deixam de ser efetivados na
prática. A globalização viola a idéia de cidadania e fere cada vez mais a
efetivação dos direitos humanos. Atualmente quando se fala em globalização,
questiona-se até que ponto os direitos humanos são respeitados? Sendo
assim, a globalização pode tanto promover o homem, como torná-lo vitima
dela.
Falar de globalização remete ao conjunto de transformações sociais,
políticas, econômicas, culturais e ambientais que se fazem perceber do local
ao global, geralmente relacionadas às inovações tecnológicas e científicas e
ao incremento no fluxo comercial mundial, pela velocidade que estas
ocorrem no mundo.
Para Bauman (1999) a “globalização” está na ordem do dia, é o destino
irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos
afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. É um misto de felicidade e
infelicidade alheia. A globalização tanto divide como une, divide enquanto
une.” (BAUMAN, 1999, p. 8)
Esse processo de transformação significa “que ninguém pode evadir-
se dos efeitos da globalização, pelos quais todos nós somos atingidos, em
menor ou maior grau, mediante um conjunto de acontecimentos que afetam
indistinta e dialeticamente o âmbito local e global.” Nesse novo panorama
social “nada é tão longe que não possa mais interessar ao local e nem tão
localizado que não possa influenciar outros lugares” (LUCAS, 2009, p.43). E
como bem observa Santos (2001, p. 40) “nenhuma fração do planeta escapa
588
a essa influência”.
O que se pode observar com a globalização é que as grandes
potências mundiais restringem a entrada de países em desenvolvimento no
jogo do mercado. A barreira imposta tem justamente a finalidade de causar a
dependência econômica, social e cultural desses países. Um exemplo bem
típico é o dos medicamentos, onde os grandes laboratórios detêm a cura de
doenças e mantém este vínculo de supremacia com países em
desenvolvimento.
Segundo Ferrajoli (2011, p. 79) “muitos desses medicamentos, como
as vacinas contra as doenças infecciosas, não custam quase nada, mas não
são distribuídos e em alguns casos nem mesmo produzidos por falta de
demanda nos países ricos”. Também destaca, que cerca de 15%, entre os
quais os medicamentos da contra a AIDS e meningite, estes são patenteados,
o que resulta grande custo para as nações pobres. “O resultado dessa
gigantesca omissão de socorro são mais de 15 milhões de mortos por ano,
vítimas portanto, mais do que de doenças, das leis do mercado, claramente
incompatível com o direito à saúde.”
O uso da tecnologia não ficou restrito à atividade industrial. Os
avanços tecnológicos atingiram também os meios de comunicação,
informação e transporte. Através destas inovações tornou-se possível a
difusão de informações entre empresas, instituições financeiras e
investidores, ligando os mercados do mundo, graças à implantação da
telefonia fixa e móvel, televisão, fax, internet, entre outros.
As mudanças ocorridas principalmente nos meios de transportes e nas
telecomunicações, fez com que o mundo “encurtasse” as distâncias, o que
conseqüentemente modificou a noção de tempo/espaço. Palavras como
“perto” e “longe” perderam o sentido que carregavam antigamente como
indicação de localização e ganharam outra dimensão.
Como complemento, Morin (2000, p. 67) argumenta:

“O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do mundo


faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está
cada vez mais em cada uma de suas partes. Isto se verifica não
apenas para nações e povos, mas para os indivíduos. Assim, como
cada ponto de um holograma contém a informação do todo do qual

589
faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome
informações e substâncias oriundas de todo o universo.”

Além das mudanças no cenário produtivo e econômico, a globalização


forçou o enfraquecimento dos Estados- nação. Com o avanço do capitalismo,
esses, por sua vez, tiveram que reorganizar seu sistema e sua forma de
atuação, ao fato de se tornarem vítimas dessa nova organização mundial,
que de acordo com Lucas (2009, p. 41) “se tornam reféns de um conjunto de
políticas econômicas, fixadas externamente, impostas pelo mercado como
necessárias para viabilizar a inserção estatal no cenário mundial”, o que
corroem a autonomia interna dos países.
É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades
para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da
economia mundial. Os problemas sociais surgem ao mesmo tempo em que
leva uma economia ser competitiva, que por conseqüência, “gera um
sentimento de exclusão e mal estar na sociedade”, a formação de “buracos
negro que concentram em seu interior toda a energia destrutiva que afeta a
humanidade e se comunicam entre si, por exemplo, por meio da economia
do crime apresentada pelas drogas e prostituição” como assim define
Castells (1999, p.192).
Por sua vez, no que pese aos impactos sociais da globalização, é cada
vez mais visível a precarização e a exclusão social em que se encontram
milhões de pessoas nos quatro cantos do planeta, fruto das profundas
transformações econômicas e tecnológicas que afetaram a produção de bens
e serviços em escala mundial.
Para Bauman (1999), as conseqüências humanas da globalização,
traduzidas no desenraizamento de populações inteiras de suas comunidades
e países, na crescente pobreza material, na destruição ambiental, nos
conflitos étnicos e na migração sul-norte, entre outros fenômenos,
contribuem para colocar em cheque os decantados benefícios do fenômeno,
quando avaliado por uma lógica distinta àquela do êxito econômico. Outros
fenômenos, como o narcotráfico e o crime organizado em escala mundial,
estimulados pelas facilidades do comércio internacional, também podem ser
590
colocados na categoria dos impactos sociais negativos propiciados pela
globalização.
O planeta encontra-se numa teia que se interliga internamente em
diversos pontos, sistemicamente. Conforme Capra (1996, p.23), quanto mais
estudamos os principais problemas da nossa época, mais somos levados a
perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São problemas
sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes.
Complementando o acima, Bauman (1999, p. 79) destaca:
A globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de
ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais
recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo
afora com extrema rapidez e especular com eficiência cada vez maior.
Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas vidas dos pobres do
mundo. De fato a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para
muito poucos, mas deixa de fora e marginaliza dois terços da
população mundial.

A cidade sofre diretamente as conseqüências da expansão


populacional presenciada, muitas transformações ocorreram em nível de
estruturação de seu espaço. A área principal da cidade tornou-se centro e ao
seu redor uma nova delimitação foi formada, a periferia, como bem
caracteriza Alves (1992, p.19) “verdadeiros formigueiros humanos.”
A urbanização vem crescendo rapidamente, atingindo proporções em
torno de 80% da população total do país (PHILIPPI JR, 2002). Um fato
incontestável é que as cidades estão inchando e na sua maioria não
disponibilizam infraestrutura adequada à população urbana e quem sofre
mais com essa ausência é uma camada com pouco ou quase nada de
condições econômicas, que na maioria das vezes residem em favelas e zonas
desprivilegiadas, longe da qualidade dos serviços prestados em regiões mais
centrais das cidades.
O território urbano torna-se um campo de batalha de uma contínua
guerra espacial. “As elites escolheram o isolamento6 e pagam por ele
prodigamente e de boa vontade. O resto da população se vê afastado e
forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo

6Baumam (1999, p. 81-82) fala dos condomínios, caracterizados pelo “isolamento” que cria,
que nada mais é que a separação dos que detém poderes econômicos daqueles considerados
socialmente inferiores.
591
isolamento”. (BAUMAN, 1999, p.29, 31)
Davis (2006, p.121) denomina esses espaços de “zonas totalmente
protegidas”, verdadeiras “aldeias de segurança”. As casas transformam-se
praticamente em fortalezas, cercadas de muros altos, com cacos de vidro,
arame farpado e pesadas barras de ferro em todas as janelas, cercas
elétricas, numa “arquitetura do medo”.
No terceiro mundo urbano, os pobres temem eventos internacionais
de alto nível: conferências, eventos esportivos, concursos de beleza, festivais
internacionais – que levam as autoridades a iniciar cruzadas de limpeza da
cidade: os favelados sabem que são as “sujeiras” ou a “praga” que seus
governos preferem que o mundo não veja (Davis, 2006, p.111). “Embora
todos os que vivem na cidade sejam tratados como citadinos, nem todos são
considerados e tratados como cidadãos” (ALVES, 1992, p. 41)
Alves (1992, p. 51-52) ainda destaca que o cidadão sem teto é
empurrado cada vez mais para áreas distantes do centro, regiões insalubres
e proibidas para loteamentos, formando ali verdadeiros cinturões de miséria
das grandes cidades. Por causa das chuvas, as enchentes e inundações
arrastam barracos e crianças, estragam móveis e pertence e espalham a
hepatite e a leptospirose entre os moradores. Os moradores em situação
irregular são os mais prejudicados, pelo fato de estarem fora dos padrões
exigidos, acabam não contando também, com os serviços urbanos essenciais
e são obrigados a conviver com a sujeira dos esgotos correndo a céu aberto,
dos seus próprios lixos que não são recolhidos e, muitas vezes, os da cidade
toda, que em sua vizinhança são depositados.
Além de todos estes impactos socioambientais citados, outro chama a
atenção, por ser considerado um dos maiores problemas de nosso tempo: a
aceleração demográfica. A esse respeito Saavedra (2014, p.81) destaca:

A cada segundo e meio – a cada batida do pulso humano normal - a


população mundial é aumentada em uma pessoa. Para estar bem
alimentada cada uma dessas pessoas deve ter cerca de uma tonelada
de alimento por ano. Deve ter roupas e moradia. Se irá participar do
mundo democrático, deverá ter pelo menos um mínimo de educação
(...). Todas essas coisas são custosas e implicam que o homem viva
em um meio ambiente suficientemente propício para provê-las. Se
este meio ambiente é muito pobre – como no deserto de Saara, ou se,
como na China e na Coréia, há tantos que é impossível encontrar

592
comida, água, árvores, etc., para satisfazer suas necessidades
básicas, viverá em uma miséria esmagadora. E pode se tornar um
perigo não apenas para os seus pares, mas para o mundo inteiro. É
por isso que todo mundo deveria se preocupar pelo que está
acontecendo com o número de crianças nascidas a cada ano. É por
isso que o que está acontecendo com os recursos em qualquer lugar
deve ser incumbência pessoal de cada um de nós (...). a propagação
do consumismo, engendrada na ignorância do povo ( ignorância que
tem as suas raízes profundas na superpopulação e da destruição da
Terra) é importante para cada um de nós. Resta-nos pouco tempo,
mas está se acabando rapidamente.

O último Relatório do Desenvolvimento Humano divulgado em 2014,


pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), alerta que a
vulnerabilidade persistente ameaça o desenvolvimento humano. E se não for
combatida sistematicamente por políticas e normas sociais, o progresso não
será nem equitativo nem sustentável. De acordo com as medidas de pobreza
com base na renda, 1,2 bilhão de pessoas vivem com 1,25 dólares ou menos
por dia, ou seja, quase 1,5 bilhão de pessoas em 91 países em
desenvolvimento estão vivendo na pobreza, com a sobreposição de privações
em saúde, educação e padrão de vida. Embora a pobreza esteja diminuindo
em geral, quase 800 milhões de pessoas estão sob o risco de voltar à pobreza
caso ocorram contratempos.7
Bauman aponta para um novo mundo proposto, onde a fome, a
pobreza e a miséria absoluta leva ao processo de degradação social que nega
as condições mínimas de vida humana. O primeiro requisito de uma vida
digna é ter o que comer. Mas o planeta ainda está longe de alcançar o
objetivo do milênio que é a redução da fome no mundo. A pobreza e a fome,
derivam outros fatores que enfraquecem as relações sociais e,
consequentemente, os laços afetivos e familiares. Para Ferrajolli (2011, p.75-
76) são três as grandes, terríveis emergênciais globais provocando dezenas
de milhões de mortos cada ano e tornam necessária e urgente a qualificação
destes bens como fundamentais: a fome, a sede e as doenças curáveis mas
não curadas.

A primeira emergência dramática é aquela do acesso à água, objeto


daquele colorário do direito à vida que é precisamente o direito à

7Dados disponíveis em: http://www.onu.org.br/especial/pobreza/


593
subsistência. A água potável não é mais um bem natural, nem muito
menos um bem comum a todos. Mais de um bilhão de pessoas não
tem a possibilidade de aceder a ela; e por esta impossibilidade,
milhoes de pessoas morem todo ano. A água tornou-se um bem
escasso por dois motivos: pelas agressões ao patrimônio florestal,
que provocam todo ano a devastação de milhões de hectares, muitos
dos quais viram deserto; pela poluição das nascentes, dos rios e dos
aquíferos, provocadaos pelas atividades insdustriais desrreguladas; e
pela massiva privatização, enfim dos recursos hídricos que
paradoxalmente são reduzidos a bens patrimoniais. Calcula-se por
causa da fome e da desnutrição, 28% das crianças em
desenvolvimento está abaixo do peso ou sofre de nanismo e, que
cerca 10 milhões de crianças morrem todos o ano antes de completar
cinco anos.95% dos mortos por AIDS são provenientes dos países
pobres e 79% apenas na Africa sub-daariana, onde ocorrem tambem
90% das mortes por malária. A África , onde é maior o número de
mortes por doenças não tratadas, absorve apenas 1,1% das vendas
globais de medicamentos.

O mundo passa a ser classificado com outras formas. Os países são


designados como desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A
classificação considera as condições econômicas, industriais e sociais que
configuram o cenário de cada país. Os primeiros estão geralmente
associados à idéia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os
segundos abraçam o projeto de desenvolvimento com a esperança de
chegarem, um dia, a ser desenvolvidos e os demais, sofrem à exclusão,
marginalização, miséria.
É certo que a globalização produziu uma janela de oportunidades
para que mais países pudessem ingressar nas principais correntes da
economia mundial. Nesse contexto, podemos citar os Tigres Asiáticos e o
Japão, que souberam aproveitar as oportunidades desencadeadas pela
economia mundial, implantando ações políticas como o desenvolvimento de
uma mão-de-obra treinada e qualificada, a adoção de modelos voltados a
exportação e a competição com base em maiores níveis de produtividade,
maior produção por unidade de trabalho. Os problemas sociais surgem ao
mesmo tempo em que leva uma economia ser competitiva, que por
conseqüência, gera um sentimento de exclusão e mal estar na sociedade,
como assim define Castells (1999).
Nesse sentido, a globalização contribui para o aumento da
desigualdade social e econômica entre países e pessoas.De acordo com o

594
relatório "Credit Suisse 2013 Wealth Report", um dos mapeamentos mais
completos sobre a desigualdade social, 0,7% da população concentra 41% da
riqueza mundial. A lógica regente é a de maior concentração de riqueza e de
poder por parte dos países desenvolvidos, independente dos resultados que
isso provoca para parcela considerável da população mundial.8 Essa
conseqüência é destacada por Oliveira (2001, p. 76) do seguinte modo:

A sociedade capitalista produziu um abismo profundo entre ricos e


pobres. Grande parte da desgraça dos pobres de hoje, sobretudo no
Terceiro Mundo, é conseqüência do processo ilimitado de
acumulação do capital, hoje feito sistema mundial de produção, que
tem significado nesses países a marginalização da grande maioria do
povo e cooptado a consciência por força da propaganda ideológica.

Apesar das críticas e argumentos negativos, existem aspectos


positivos relacionados à globalização mundial. Não há como negar que a
ciência e a tecnologia promovem inúmeros avanços e benefícios à
humanidade, assim como os sistemas de comunicação, transporte.
Considerando essa evolução, muitos direitos humanos foram efetivados a
partir dessas mudanças, como frutos do processo social e cultural, que
apontam para o bem estar e para a dignidade do ser humano em todo o
mundo, como para a mudança na conscientização e no comportamento
social acerca de diversas questões, como podemos citar os direitos da
criança e adolescente, da mulher, do idoso, dos deficientes físicos, do meio
ambiente.
Gadotti (2000, p. 78) desenvolve o seguinte comentário sobre as duas
formas de conceber a globalização:

A globalização em si não é problemática, pois representa um


processo de avanço sem precedentes na história da humanidade. O
que é problemática é a globalização competitiva onde os interesses
do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os
interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das
grandes empresas transnacionais. Assim, pode-se distinguir uma
globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e
solidária. A primeira está subordinada apenas às leis do mercado, e
a segunda subordina-se aos valores éticos e à espiritualidade
humanos.

8Relatórioelaborado pelo banco Credit Suisse, Global Wealth ReportDisponivel em:


http://www.brasildefato.com.br/node/26343: Acesso em 20 ago 2015.
595
A primeira forma de globalização declina sobre o modelo de dominação
econômica e política sob as bases do modo de produção capitalista, de um
modelo social e cultural desigual e excludente. A segunda é a propiciada
pelos avanços tecnológicos, capaz de proporcionar condições para uma
cidadania global, criando novas organizações e movimentos sociais, políticos
e culturais de aceitação e valorização das diferenças. Nesse sentido, as
próprias instâncias internacionais, como a ONU e suas organizações, como a
UNESCO, a OMS e a OMT, têm lançado planos, projetos, numa reivindicação
política de respeito à vida, uma ação democrática da manutenção de cultura,
do equilíbrio ecológico e da paz. Além disso, surgiram também muitas
organizações não governamentais (ONGs) e também empresas
transnacionais. “Estas novas entidades foram, aos poucos, se firmando como
novos atores internacionais importantes, fazendo com que as relações
internacionais se intensificassem, os temas da agenda se ampliassem e
novos fluxos fossem estabelecidos em toda parte do mundo” (BEDIN, 2009,
p.31).
A força da comunicação global é um aspecto positivo do ponto de
vista dos direitos humanos, pois atua como um despertador da consciência
cívica e política internacional. Graças às denúncias, muitos dos casos de
violação dos direitos humanos , são hoje resolvidos. . A comunicação social
tem aqui um lugar de relevo ,pode ser o factor de maior pressão a nível
governamental na tentativa de correção ou intervenção em situações de
ameaça desses mesmos direitos
A globalização do capital tem levado também a uma globalização dos
problemas sociambientais, causados pelo processo econômico e industrial
desenfreado, como a poluição, as mudanças climáticas, o desmatamento, a
destruição da camada de ozônio, aquecimento global, vazamentos nucleares,
degradação de recursos hídricos, entre outros, que assumem dimensões
planetárias.
O crescimento econômico é com certeza necessário, assinala Sachs
(1992, p.117-130), mas não suficiente para garantir o desenvolvimento. Na
verdade, o que deve haver para que o desenvolvimento real – e não o mau

596
desenvolvimento – seja viabilizado é uma conformação entre eficácia
econômica, igualdade social e prudência ambiental. O modelo de
desenvolvimento proposto pela modernidade, entretanto, perdeu de vista
essa amplitude e, assim sendo, cumpriu apenas parcialmente os seus
desígnios.
Com base nessa compreensão, Leff (2004, p. 352) menciona que “os
impactos sociais e ecológicos, evidenciados pela desigualdade social, pelo
aumento da pobreza e pela degradação dos recursos naturais, resultantes
dos dominantes padrões de produção e consumo, deflagram uma crise
ambiental planetária”. .
A crise ambiental possui proporção maior do que inicialmente
pensava-se. Nas palavras de Morin e Kern (2003, p. 91), “o mito do progresso
hoje desmorona, o desenvolvimento está enfermo; todas as ameaças para o
conjunto da humanidade têm pelo menos uma de suas causas no
desenvolvimento das ciências e técnicas”. Apesar disso, o homem continua a
investir na sua força de dominação e treinar a sua capacidade de
transformar, reproduzir e recriar, sem impor qualquer limitação à sua
pretensão de tudo conhecer.
Por esse motivo, o termo sustentabilidade foi adicionado ao conceito
de desenvolvimento, apresentando-se como um modelo que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações
futuras atenderem às suas próprias necessidades. No entendimento de Leff
(2004, p.9):

A degradação ambiental, o risco do colapso e o avanço da


desigualdade e da pobreza são sinais eloqüentes da crise do mundo
globalizado. A sustentabilidade é o significante de uma falha
fundamental na história da humanidade; crise da civilização que
alcança seu momento culminante na modernidade, mas cujas
origens remetem à concepção do mundo que serve de base à
civilização ocidental. A sustentabilidade é do nosso tempo, do final
do século XX e da passagem para o terceiro milênio, da transição da
modernidade truncada e inacabada para a pós-modernidade incerta,
marcada pela diferença, pela diversidade, pela democracia e pela
autonomia.

Para isso, exige-se a conscientização da nossa hodierna e real

597
situação a fim de que essa ação ética seja responsável e promova vida,
dignidade e harmonia de modo universal, tanto para o presente como para o
futuro, pois os problemas fundamentais do nosso tempo afetam toda a
humanidade, local e global, daí a necessidade de uma responsabilidade
moral comum com vistas ao futuro. Oliveira (2001, p. 167-168) afirma a
necessidade ao dizer:

Tal situação leva os seres humanos, as nações e as culturas, pela


primeira vez na história mundial, a se sentirem interpelados diante
dos perigos comuns, a assumirem uma responsabilidade moral
comum em face da questão da articulação de seu futuro, ou seja,
perante as questões fundamentais relacionadas aos grandes
objetivos de uma sociedade que se faz planetária.

Morais (2010, p. 132) de modo reduzido afirma, que os direitos


humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que
dizem respeito à vida digna, tanto daqueles do presente quanto daqueles do
porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos
agentes político-jurídico-econômico-sociais a tarefa de agirem no sentido de
permitir e viabilizar que a todos seja consignada a possibilidade de usufruí-
los em benefício próprio e comum ao mesmo tempo.
O desenvolvimento sustentável vem com um espírito de
responsabilidade comum com a efetivação dos direitos humanos, os modelos
produtivos são levados a sentidos harmoniosos, o que os torna não mais
destrutivos, mas sim, construtivos, como ferramenta de manutenção da
qualidade de vida das gerações atuais e futuras. Dessa forma, pode-se
perceber que o modelo de desenvolvimento atualmente proposto não
condena o desenvolvimento econômico, muito pelo contrário, atribui a ele
um importante papel social e ambiental, a fim de que a efetivação dos
direitos humanos prevaleça.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A globalização não pára e os efeitos desse processo são sentidos no


nosso dia-a-dia. Se por um lado, ficamos maravilhados com as conquistas e
descobertas que facilitam a vida e mostram a genialidade do ser humano,
598
por outro, contemplamos inúmeras tragédias e ameaças, as quais colocam
em risco a qualidade e inclusive a continuidade da vida humana na Terra.
Por esse conforto e facilidade, fica evidente que este processo é
irreversível. É certo que o homem não vai regredir. Novas necessidades vão
surgindo e estas tende ser satisfeitas.
Na globalização está presente a interação de diversos fatores
econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais, tendo como
referências os interesses que fortalecem a lógica do capitalismo e a
maximização do lucro acima de outras prioridades.
O grande desafio da humanidade é adotar uma modelo de
desenvolvimento que garanta a expansão, sem esquecer a promoção dos
direitos humanos, o que significa dizer que a princípio da dignidade humana
deve ser observado e que todo ser humano deve dispor de um mínimo de
meios apropriados de subsistência e de um padrão digno de vida. O modo
de vida planetário precisa ser alterado porque as conseqüências futuras não
são tranqüilizadoras, caso perpetuem-se as ações vigentes.
No decorrer do trabalho, foi possível perceber os aspectos positivos e
negativos da globalização. O que se questiona, é que mesmo com tanto
“progresso”, temos tamanha desigualdade social, pessoas morrendo de fome,
o grande desemprego, a miséria crescente, pessoas que não tem acesso à
água e aos medicamentos, desmatamento que cessa, poluição a todo vapor,
destruição da camada de ozônio, enfim tantos outros problemas
socioambientais que são notícias diárias,e por fazerem parte da nossa rotina,
nem sequer nos comovemos.
Portanto, diante das preocupações e das constatações extraídas do
atual contexto de globalização, a educação, na perspectiva da ética
planetária, pode e deve dar sua contribuição ao enfatizar uma formação
correspondente ao desenvolvimento sustentável e às relações solidárias, de
respeito, de preservação e de cuidado de tal forma que caracterize a
dignidade das pessoas e do meio ambiente. Nesse mesmo sentido, pode
chamar a atenção para a responsabilidade humana e enfatizar princípios
que apontam para a integridade em favor da vida.
Dessa forma, precisamos de uma mudança urgente nos paradigmas e
599
princípio que determinam a concepção e visão de mundo atual. As
conseqüências que temos presenciado desse modelo de desenvolvimento se
configuram por meio de um mundo violento, injusto, desigual e ameaçador.
Por isso, esses paradigmas e princípios devem ser correspondentes à
perspectiva da ética planetária, pois favorecem a construção de um mundo
melhor, mais harmônico e digno de se viver e que garanta a sobrevivência
das futuras gerações.

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600
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601
OS NOVOS DIREITOS E A INFLUÊNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS NOS
DIREITOS HUMANOS: A INTERNET (IN) FORMANDO CIDADÃOS

Danielli Regina Scarantti1

1. INTRODUÇÃO

O paradigma emergente revela uma sociedade multicultural marcada


por intensos fluxos de comunicações. Nesse contexto, a internet surge como
um instrumento importante em razão de dois aspectos principais: ela nasceu
como um meio de informação e se desenvolve ao longo do século XXI como
um meio que abarca uma série de elementos úteis e necessários para a
formação dos indivíduos no que tange ao exercício democrático da cidadania.
Esse aprimoramento de funções descrito é possível, primeiramente, em
razão da possibilidade de novos direitos serem acrescentados à ordem
jurídica na medida em que os indivíduos sentem novas necessidades para
regular a convivência em sociedade – sendo exatamente esse contexto que
inaugura a parte inicial do trabalho, o qual está dividido em duas partes.
A primeira parte do trabalho se dedica ao resgate da trajetória
expansiva dos direitos humanos e versa sobre a inserção de novos direitos,
especialmente sobre o reconhecimento do acesso à internet como direito
humano, quando a Organização das Nações Unidas, ONU, se pronunciou e
destacou a internet como meio de comunicação essencial para a circulação
de informações indispensáveis às relações humanas.
Na sequencia, a segunda parte do trabalho aborda o papel da internet
no século XXI. Nesse tópico serão delineadas as principais vantagens do
mundo digital. Para isso, o texto revela que o direito de acesso à internet não
se constitui em um simples direito fim, mas sim, em um direito mediador
fundamental para a execução de outros direitos civis, socioeconômicos,
políticos e de solidariedade internacional.

1Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do


Sul, UNIJUÍ, e Mestranda (Bolsista CAPES) na mesma Universidade. E-mail:
danielli.scarantti@gmail.com.
602
Assim, a importância da internet resta comprovada. Todavia, torna-se
possível observar que a maior parte da população brasileira não possui
acesso às redes, o que evidencia um cenário de exclusão digital que vai de
encontro com a consolidação de direitos humanos.
Por isso, o trabalho serve de alerta à sociedade sobre a violação de um
direito humano ainda pouco invocado pelas vítimas desse sistema, ao
mesmo tempo em que sugere aos gestores públicos a fomentação de políticas
públicas de inclusão digital.

2. NOVOS DIREITOS E O RECONHECIMENTO DO ACESSO À INTERNET


COMO DIREITO HUMANO

A trajetória expansiva dos direitos humanos teve início na idade


moderna - mais especificamente no decorrer dos séculos XVII e XVIII - a
partir da premissa de que todos os homens deveriam ter direitos que
protegessem os valores humanos fundamentais. Assim, constituíram-se
numa ruptura com o passado, por meio de lutas contra a opressão e de
desavenças contra o Estado. Tais fatos originaram transformações políticas,
bem como a colocação do indivíduo no centro do mundo através do novo
pensamento que admitia o poder como originário da própria nação.
Então, ainda que alguns autores tenham denominado os direitos do
homem como direitos naturais2, Darcísio Corrêa (2002) defende que eles são
direitos históricos. Isso porque são direitos incorporados de maneira
evolutiva ao ordenamento jurídico de acordo com as necessidades sentidas
pelos seres humanos. Ou seja, trata-se de “[...] um ciclo perpétuo, ao qual é
possível acrescentar-se periodicamente novo conjunto de direitos”
(SPENGLER; BEDIN; LUCAS, 2013, p. 12).
Devido a essa possibilidade de acrescentar novos direitos no
ordenamento de acordo com as necessidades da época vivida, o

2Nesse sentido, Joaquín Herrera Flores (2009, p. 2) defende os direitos humanos como “um
produto cultural surgido em um contexto concreto e preciso de relações que começam a
expandir-se por todo o globo – desde o século XV até estes incertos inícios do século XXI –
sob o nome de modernidade ocidental capitalista”.

603
desenvolvimento dos direitos do homem admite uma classificação
acadêmica, de modo que Gilmar Antônio Bedin (1998, p. 99) afirma a
existência de quatro principais gerações de direitos, as quais

[...] surgiram, no século XVIII, como direitos civis, ampliaram-se, no


século XIX, como direitos políticos, desenvolveram-se, no início do
presente século, como direitos econômicos e sociais e consolidaram-
se, no final da primeira metade do presente século, como direitos de
solidariedade ou direitos do homem no âmbito internacional.

Ressalta dizer que todas as gerações de direitos humanos estão


estritamente ligadas entre si e uma se soma a outra com o objetivo de
complementariedade, nunca de substituição. Nesta perspectiva, “Os direitos
civis e políticos são importantes, mas sua conquista deve representar o
impulso para a concretização dos direitos socioeconômicos, assim como dos
novos direitos” (COLPANI, 2004, p. 199). Visto isso, o presente trabalho se
concentra na quarta geração de direitos.
Chamada também de geração dos direitos de solidariedade,
compreende um conjunto de direitos pensados em escala internacional. Ou
melhor, trata-se de uma era que vem progredindo há aproximadamente 67
anos e cuida de normatizar os direitos sobre o Estado, bem como “[...]
sinalizam para os limites territoriais do Estado moderno e para o
enfraquecimento do conceito de soberania [...]” (SPENGLER; BEDIN; LUCAS,
2002, p. 37), pois de acordo com os mesmos autores esses direitos se
apresentam como garantias de relevância global com urgência de expansão
para todos os espaços do mundo no século XXI.
Nesta fase a soberania ultrapassa fronteiras e cada país se direcionará
sob duas perspectivas. De acordo com Gilmar Antônio Bedin (1998, p. 73),
por um lado se indica promover ações articuladas e orientadas para
estruturar grandes blocos econômicos, sociais e políticos. E por outro lado se
indica possibilitar aos indivíduos direitos e capacidade processual para
agirem em graus mundiais.
Darcísio Corrêa (2010, p. 441) complementa que

esses direitos, hoje postos como condição de sobrevivência planetária

604
e cuja titularidade não é mais constituída apenas pela singularidade
dos indivíduos, podem ser exemplificados pelos direitos à
autodeterminação dos povos, à paz internacional, ao
desenvolvimento (por um diálogo Norte/Sul), a um meio ambiente
equilibrado e saudável, à comunicação, além dos direitos das
coletividades regionais ou étnicas culturalmente diferenciadas.

Embora existam outros entendimentos em relação à classificação


acadêmica de gerações de direitos, uma opinião é consensual entre todos os
autores. Novos direitos podem ser acrescentados à ordem de proteção
jurídica:

Não é preciso muita imaginação para prever que o desenvolvimento


da técnica, a transformação das condições econômicas e sociais, a
ampliação dos conhecimentos e a intensificação dos meios de
comunicação poderão produzir tais mudanças na organização da
vida humana e das relações sociais que se criem ocasiões favoráveis
para o nascimento de novos carecimentos e, portanto, para novas
demandas de liberdade e de poderes. (BOBBIO, 1992, p. 33).

Hannah Arendt (1989) vai ao encontro dessa abordagem sobre o


conjunto de transições referido e explica que os direitos humanos fazem
parte de uma invenção humana, a qual está em permanente processo de
construção e reconstrução. Da mesma forma, Bobbio (1992, p. 32)
complementa “os direitos ditos humanos são o produto não da natureza,
mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis,
ou seja, suscetíveis de transformação e de ampliação”. Logo, ressalta dizer
que os direitos humanos são uma construção social e por tal característica,
não estanque. Um produto social que acompanha o desenvolvimento
individual e coletivo dos sujeitos que vivem em sociedade.
O jurista brasileiro, atual membro do Tribunal Internacional de
Justiça, Antonio Augusto Cançado Trindade (1999), acrescenta que a
proteção dos direitos humanos ocupa uma posição central na agenda
internacional da passagem do século XX para a atualidade. Portanto,
depreende-se que os direitos humanos cada vez mais conquistam extrema
importância para a coletividade, pois se desenvolvem de acordo com as
necessidades globais de proteger a dignidade humana.
Exatamente nesse sentido, em maio de 2011, a ONU declara o acesso
605
à internet como direito humano, em razão de ter reconhecido que com o
advento da era digital, o mundo sofreu transformações em suas mais
diversas áreas, fazendo que o indivíduo encontre boa parte das informações
necessárias ao toque de um mouse:

Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU), reconhecendo a


importância do fluxo de informação e comunicação gerado pela
internet, relatório que analisa as tendências e desafios através da
internet decretou “ser direito de todos os indivíduos procurar,
receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos através da
Internet. A ONU destaca ainda a natureza única e transformadora da
Internet não só para permitir aos cidadãos exercer o seu direito à
liberdade de opinião e expressão, mas também uma gama de outros
direitos humanos, além de promover o progresso da sociedade como
um todo. (CONCEIÇÃO, 2012, p. 5).

No Brasil, esse direito foi consagrado no ordenamento jurídico interno


em 2014, pelo Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965. A referida legislação
garantiu os direitos humanos como fundamento do uso da internet, bem
como certificou o acesso à internet como instrumento essencial para o
exercício da cidadania, a qual passou a ter uma nova dimensão em razão do
contato das novas tecnologias com novos conhecimentos e sociedades
multiculturais.
Então, se há liberdade de expressão, liberdade política, cultural,
econômica e social e se essas liberdades são para as pessoas que vivem em
sociedade, natural que o exercício desses direitos sejam, também,
externados no mundo virtual, enquanto este se apresenta como um reflexo
da sociedade pós-moderna. Pois, “El número de personas que se incorporan
a la sociedade mundial de la información no deja de aumentar y las redes de
comunicaciones de alta velocidad se están convirtiendo en una
infraestructura indispensable” (UNIÓN INTERNACIONAL DE
TELECOMUNICACIONES, 2013).
A celeridade e transparência para transferir informação por meio da
internet é um fato que não pode retroceder, pois as tecnologias oferecidas
pelo mundo digital são importantes ferramentas, principalmente, para
fomentar a democracia participativa que se apresenta como fator essencial
para a defesa da dignidade humana e o exercício da cidadania, além de

606
garantir a efetivação de direitos civis, socioeconômicos, políticos e de
solidariedade, bem como o “desenvolvimento e o crescimento econômico, a
equidade social, o intercâmbio cultural, a pesquisa e a melhoria educacional
da população.” (HELOU; LENZI; ABREU; SAISS; SANTOS, 2011, p. 2).
Sendo assim, o próximo item analisará os benefícios gerados pela
internet na pós-modernidade, na medida em que o mundo digital está
superando as barreiras de informar e construindo plataformas digitais
dotadas de elementos importantes na formação cidadãos.

3. O PAPEL DA INTERNET NO SÉCULO XXI: ENTRE FORMAR E


INFORMAR CIDADÃOS

A ascensão da internet é um dos elementos basilares da revolução


tecnológica que perpassa o mundo contemporâneo. Ela se constitui no
“instrumento básico para a construção desse novo cenário de organizações e
comunicações virtuais” (JAMIL; NEVES, 2010, p. 9) que ensejaram uma
série de transformações na sociedade, tanto em sua esfera pública, quanto
em sua esfera privada.
Percebe-se que as funções da internet evoluíram em grande escala no
último século. Criada com o principal propósito de comunicar, hoje ela se
apresenta como uma ferramenta de múltiplas utilidades – na vida particular,
no trabalho, no comércio de bens, produtos e serviços, nas atividades
governamentais, nos serviços sociais, enfim, nos mais variados segmentos
da sociedade.
Foram diversos avanços tecnológicos que impactaram a coletividade.
Como refere Manuel Castells (2003, p. 34) “a cultura dos produtores da
Internet moldou o meio” e hoje, viver desconectado do mundo digital é um
desafio, haja vista que o mundo digital se tornou uma verdadeira extensão
do mundo real no sentido de que muitas tarefas atualmente só podem ser
desenvolvidas de maneira on-line, como é o caso da declaração de imposto
de renda.

Foi-se o tempo em que o conhecimento ficava engessado nas


607
prateleiras dos escritórios e bibliotecas. Hoje, tudo transita pelas
linhas da internet, sabendo-se que quem não tentar acompanhar as
evoluções tecnológicas estará fadado ao fracasso. Como já
mencionado, estamos na era do conhecimento; da informação
automática, da informática. (MOREIRA, 2012, p. 1).

Ressalta-se que nessa era o digital está cada vez mais presente e
imprescindível na vida cotidiana em todos os seus aspectos. Mais do que
comunicar, a internet está revelando uma face promotora da formação do
homem enquanto cidadão munido de direitos e deveres. Como destaca
Dominique Wolton (2010, p. 87) “a informação e a comunicação são
inseparáveis da história da emancipação do homem”, por isso vejamos a
partir de agora de forma específica a influência que a web causa na vida dos
indivíduos.
De imediato, é importante frisar que a internet é muito mais do que
um direito fim, ela é um verdadeiro direito meio no sentido de que atua como
mediadora para a efetivação de vários outros direitos – sejam eles, civis,
socioeconômicos, políticos e de solidariedade internacional. Victor Gentilli
(2005, p. 129) entende que o direito à informação é “a porta de acesso aos
outros direitos” e nesse sentido, a internet se apresenta como um importante
meio veiculador dessas informações necessárias para a vida do homem em
sociedade.
No que tange aos direitos civis, o direito de acesso à internet vai atuar
como mediador, principalmente, na efetivação da liberdade de expressão e
manifestação, na medida em que oferece informações úteis e diversas e a
partir disso, autonomia para os cidadãos se manifestarem e “defender uma
sociedade mais justa e igualitária” (RADDATZ, 2012, p. 298). Um indivíduo
bem informado, por exemplo, poderá lutar consciente pela proteção de suas
garantias, bem como reivindicar pelos seus interesses e ideais, como foi o
caso das manifestações e protestos ocorridos no Brasil em julho de 2013.

“[...] quando associamos a idéia do exercício do direito civil a uma


circunstância de amplo acesso à informação, fica claro o
entendimento da relação de causa e efeito entre, por um lado, a idéia
de direitos que geram direitos, e por outro, o fato de que os direitos
civis são direitos que assumem outra qualidade quando efetivamente
universais.” (GENTILLI, 2005, p. 134)

608
A veiculação de informações de cunho social promovida pela internet
vai revelar o acesso ao mundo digital como um verdadeiro direito mediador
na efetivação dos direitos socioeconômicos, ou seja, a disponibilização de
informações por meio da internet se constitui em elemento necessário e útil
“para a manutenção da vida humana em sua dignidade mínima” (GENTILLI,
2005, p. 131).
Nesse contexto percebe-se que a internet concede uma série de
informativos relacionados à saúde com propagandas diversas sobre as
campanhas de vacinação e prevenção do mosquito da dengue, por exemplo.
Já em relação ao direito social de educação, as redes também se apresentam
como ferramentas importantíssimas, segundo Néstor García Canclini (2005,
p. 219):

Nas ciências exatas, o uso de modems tem possibilitado o


desenvolvimento de fluidas comunicações internacionais, permitindo
que pesquisadores maduros e jovens tenham acesso a novas teorias,
com baixos custos, frequentemente pagos por suas instituições.

Ademais, o direito de acesso à internet como meio veiculador de


informações se apresenta também como um suporte para a efetivação dos
direitos políticos. Por exemplo, os Portais da Transparência criados pelos
governos municipais, estaduais e federal são ótimas ferramentas de controle
que o cidadão pode manusear, além disso, “[...] para o exercício pleno e
consciente do direito de voto. Se o cidadão não tiver acesso às informações
necessárias sobre os partidos em disputas, suas propostas, suas opiniões,
etc. ele não poderá votar consciente” (GENTILLI, 2005, p. 135).
O acesso à internet possui um papel de suprema importância e já
possibilita falarmos em tele-democracia. Pode-se verificar claramente os
benefícios gerados através dos sistemas computadorizados de voto, onde o
resultado das eleições pode ser conhecido em poucas horas em todas as
regiões do país. Só não há, ainda, a possibilidade de votar pelo computador
de casa porque este acesso não está ao alcance de todos os indivíduos e por
ainda não se considerar o processo seguro o bastante para isentar
oportunidades de cerceamento da liberdade de escolha do eleitor, pois em

609
termos práticos de tecnologia seria possível criar um sistema de voto on-line.
(HARTMANN, 2007).
Outrossim, quanto ao governo eletrônico, Elisabeth Gomes, quando
assessora da Presidência da Anatel em 2002 (p. 6), referiu:

São diversos os serviços oferecidos aos cidadãos, como por exemplo,


a obtenção de certidões e inscrições de concursos via Internet,
requerimento de benefícios previdenciários, cartão bancário para
recebimento de benefícios capilarizando a rede de pagamentos e
suprimindo as filas, pagamento eletrônico de impostos, taxas e
contribuições, consultas públicas sobre propostas de leis, decretos e
atos normativos, o cartão do Sistema Único de Saúde que
condensará a memória da vida médica do usuário dos serviços,
enfim, um vasto elenco de iniciativas e programas de governo
eletrônico.

Ou seja, torna-se possível discutir questões centradas na tele-


administração, em virtude de que a internet pode propiciar a interação do
cidadão de maneira ágil, eficiente e transparente nos processos
participativos do Estado. Exemplificando isso, denota-se que os atos
administrativos eletrônicos poderiam ser programados pelo servidor público,
e após este processo seria automático seu preenchimento pelo cidadão,
assim, evitando que o agente permaneça por diversas vezes acompanhando o
procedimento burocrático. Diante de um atendimento on-line reduzirá as
diferenças de tratamento e o cidadão poderá acompanhar virtualmente,
minuto a minuto, o andamento dado ao seu processo, dentre muitas outras
possibilidades. (HARTMANN, 2007).
Hartmann (2007, p. 20) aponta que o acesso do cidadão brasileiro à
internet é um requisito para a eficiência da Administração. Ele também
reforça a ideia de que o mundo virtual é pressuposto necessário para a
concretização de direitos a prestações fáticas como o direito a saúde, a
educação e a seguridade social.
Como direito-meio na efetivação dos direitos políticos, o direito de
acesso à internet para conferir informação é um propulsor do exercício da
cidadania, é “combustível para o aprofundamento democrático” (GENTILLI,
2005, p. 146), pois é através dos mecanismos facilitados por ele, que o
cidadão passa a conhecer, saber e utilizar as informações úteis ao

610
fortalecimento da vida em sociedade, o que lhe dará sustentação para
delinear sua opinião crítica e assim, como indivíduo ativo, contribuir no
exercício democrático da cidadania, porque esta “[...] não pode ser exercida
na ausência do direito à informação” (RADDATZ, 2012, p. 302).
Ademais, o direito de acesso à internet para obter informação também
se revela como um meio fundamental para efetivar os atuais direitos de
solidariedade internacional, como o direito ao desenvolvimento, ao meio
ambiente sadio, à paz e à autodeterminação dos povos, haja vista que foram
ultrapassados os limites de fronteira entre os países através da comunicação
mundial tão presente na sociedade pós-moderna.
Atualmente, todos os projetos elaborados por uma nação, querendo ou
não, terão influência internacional. Enfim, todas essas razões explicam o
porquê que “o direito à informação nesse modelo de sociedade é requisito
para compreender não só um momento histórico, mas uma nova cultura, em
que os indivíduos são cidadãos do mundo” (RADDATZ, 2012, p. 297).
Tais fatos se devem ao fenômeno da globalização. Hodiernamente,
todas as nações estão conectadas e interligadas por meio de objetivos em
comum. As relações estão cada vez mais acentuadas entre os países. Nesta
senda, Armando Cuesta Santos (2001, p. 1) complementa que essa era do
conhecimento é, igualmente, a era da maior produtividade do trabalho, e
quem não assimilar tal fato não poderá competir, o que equivale a dizer que
não sobreviverá no início deste século XXI.
Neste sentido, aponta-se:

Vemos que a Internet e o processo de Globalização permitem colocar


à disposição de qualquer cidadão do mundo diversas informações e
facilidades, porém este cidadão necessita ter conhecimentos (para
saber fazer uso deste instrumento) e recursos (financeiros)
disponíveis para fazer uso desta tecnologia, podemos constatar
assim, que nos dias atuais, quem tem acesso à Internet tem um
grande poder em suas mãos, pois pode se considerar parte da
“sociedade em rede”. (PORTAL EDUCAÇÃO, 2013).

Isto configura exatamente a afirmação de Angela Maria Barreto (2005,


p. 5), a qual não tem dúvidas que a sociedade da informação desencadeou
“transformações tecnológicas, organizacionais, geopolíticas, comercias e

611
financeiras, institucionais, culturais e sociais” na vida do homem moderno.
Desse modo, nota-se que todos os segmentos da sociedade, de uma
forma ou outra, foram atingidos pelas utilidades ofertadas pela internet. É
notório que grande parte dos serviços disponibilizados hoje, tanto pelo órgão
privado quanto pelo órgão público, são informatizados e exigem pelo menos
um mínimo de habilidades na área da informática.

Já pensou como seria passar 1 mês sem celular e sem acesso à


internet? Você conseguiria? Estas perguntas, quando refletidas
criticamente, mostram a importância que o acesso às informações
automáticas ganhou na época em que vivemos. De fato, a
informática mudou substancialmente todos os ambientes da esfera
social, as formas de se relacionarmos, trabalharmos, enfim, toda a
nossa forma de viver. (MOREIRA, 2012, p.1).

A partir dessas considerações é possível compreender que a internet


está cumprindo, hoje, não só um papel de informar, mas também de formar
cidadãos. O mundo digital oferece cada vez mais aparatos para os indivíduos
exercer os seus compromissos com a cidadania, a internet está ampliando
aquela ideia de múltipla ferramenta. Ela está se configurando em um espaço
social e público com novos contornos no paradigma emergente da sociedade,
nesta senda:

O desenvolvimento do ciberespaço não vai “mudar a vida”


milagrosamente nem resolver os problemas econômicos e sociais
contemporâneos. Abre, contudo, novos planos de existência: - nos
modos de relação: comunicação interativa e comunitária de todos
com todos no centro de espaços informacionais coletivamente e
continuamente reconstruídos; - nos modos de conhecimento, de
aprendizagem e de pensamento: simulações, navegações transversais
em espaços de informação abertos, inteligência coletiva; - nos
gêneros literários e artísticos: hiperdocumentos, obras interativas,
ambientes virtuais, criação coletiva distribuída. Nem os dispositivos
de comunicação, nem os modos de conhecimentos, nem os gêneros
caracteríscticos da cibercultura irão pura e simplesmente substituir
os modos e gêneros anteriores. (LÉVY, 1999, p. 218).

Ou seja, estamos verificando a ascensão de uma sociedade em rede,


onde a internet deixou apenas de informar os cidadãos, e agora também está
revelando uma face de formação dos indivíduos na medida em que oferece
um aparato de informações úteis e necessárias para o exercício democrático
da cidadania. O grande problema é que ainda existem muitas pessoas que
612
vivem às margens dessas plataformas digitais. De acordo com o Comitê
Gestor da Internet no Brasil (2014, p. 164), cerca de 51% da população
brasileira está excluída digitalmente. Em números absolutos, a pesquisa
estima que 30,6 milhões de domicílios brasileiros possuam computador em
casa.
Isso evidencia que:

Apesar de ser causadora de diversos benefícios para a sociedade,


essa informática e a internet trouxeram pontos positivos e pontos
negativos. Se por um lado tais tecnologias promoveram quantidade e,
dependendo, qualidade de acesso a informações; por outro lado, a
informática e, principalmente a internet, podem ser fatores cruciais
no aumento da exclusão social. (CONCEIÇÃO, 2012, p. 2).

Cicilia M. Krohling Peruzzo (2011) também concorda com esta


constatação que apesar do aumento progressivo do acesso à internet,
grandes contingentes populacionais na América Latina ainda estão à
margem dos benefícios desse ambiente comunicacional que vem
contribuindo para mudanças culturais, bem como no modo de gerar e
difundir informações.
Indubitavelmente, hoje a internet é meio de comunicação essencial,
assim como o rádio e a televisão foram no século passado. O grande
problema é que o acesso ao ambiente digital não atinge a maior parte da
população em razão do custo e do manuseio que exige alguns conhecimentos
específicos, e esses fatores impulsionam ainda mais o desenvolvimento de
desigualdades sociais. Assim, conforme Conceição (2012, p. 14) “o desafio,
portanto, é evitar que a internet seja mais um fator para aumentar a
desigualdade e a exclusão social”.
Logo, isso demonstra a necessidade de fomentar políticas públicas de
inclusão digital, haja vista que a sociedade clama por “respostas às
demandas sociais que emergem” (SILVA, 2012, p. 232) desse novo
paradigma emergente que abarca as transformações de uma verdadeira
(r)evolução tecnológica.

613
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento – civil, socioeconômico, político, cultural – da


sociedade contemporânea e a nova dimensão de cidadania é uma realidade
inegável da era digital. Nesse contexto, o direito de acesso à internet para a
busca e troca de informações é, indubitavelmente, um direito que ocupa
papel fundamental na vida dos indivíduos, pois se constitui num direito
intermediário para a efetivação de outros direitos humanos.
Sendo assim, deve ser garantido a todas as pessoas. Porém, visto que
cerca de 51% dos domicílios brasileiros não possui acesso à internet, o
trabalho alerta que na prática está ocorrendo a violação de um direito
humano importante não só pela sua função de veicular informações, mas
também por constituir um espaço dotado de elementos que garantem
suporte para o exercício democrático da cidadania. Ou seja, hoje a internet
informa e, ao mesmo tempo, contribui na formação do cidadão.
Desse modo, ao final do presente trabalho se sugere aos gestores a
fomentação de políticas públicas de inclusão digital, como são os casos dos
telecentros que oferecem a máquina conectada à internet, acompanhada de
cursos preparatórios de informática que preparam as pessoas para que
sejam indivíduos ativos - informados, críticos e participativos - no exercício
democrático da cidadania também no ambiente digital. Pois, investimentos
nessa escala tendem a contribuir para o fortalecimento de cidadãos
comprometidos com deveres e direitos e, em decorrência, o progresso da
sociedade.

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617
POR UMA CULTURA PLANETÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS:
APONTAMENTOS A PARTIR DO PENSAMENTO DECOLONIAL1

Carolina Menegon2

1.INTRODUÇÃO

Historicamente, pode-se verificar que as culturas hegemônicas


tentaram fechar-se sobre si mesmas e apresentar o outro como o bárbaro, o
selvagem, o incivilizado e, como consequência, suscetível de ser colonizado
pelo que se autodenomina civilização. Nesse sentido, a produção do
conhecimento, especialmente no campo dos direitos humanos se deu como
produto da cultura e do esforço político do Ocidente e, portanto, nada ou
pouco tem a ver com a história dos povos não ocidentais. Dessa forma, a
teoria dominante dos direitos humanos conta a história dos direitos
conferidos a uma parte muito pequena da humanidade em um determinado
lugar e tempo: o Ocidente moderno capitalista, razão pela qual se tornou o
signo da superioridade de uma cultura – a ocidental – sobre todas as
demais.
No entanto, em movimento contrário, a partir da década de 1990 na
América Latina, vêm ganhando força os estudos decoloniais ou descoloniais,
os quais assumem uma perspectiva de crítica ao colonialismo a partir da
própria América Latina. Entre os autores (com distintos posicionamentos e
orientações teóricas) que vêm trabalhado e/ou trabalharam a questão
decolonial, pode-se citar o antropólogo e teórico literário e cultural argentino
Walter Mignolo, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o filósofo argentino
Enrique Dussel, o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, o sociólogo
porto-riquenho RamónGrosfoguel, o antropólogo colombiano Arturo Escobar,

1 Trabalho desenvolvido a partir dos estudos realizados pela autora para a elaboração do
primeiro capítulo da sua dissertação de mestrado intitulada “A COLONIALIDADE E O
PENSAMENTO FEMINISTA LATINO-AMERICANO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS DOS
FEMINISMOS NAS NAÇÕES “PERIFÉRICAS”.”
2 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande

do Sul (UNIJUÍ); vinculação à Linha de Pesquisa “Fundamentos e Concretização dos Direitos


Humanos”; bolsista de Extensão no País do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) - Nível C, vinculada à Incubadora de Economia Solidária da
UNIJUÍ. Graduada em Direito pela mesma universidade. E-mail:
carolina.menegon@bol.com.br
618
osociólogo venezuelano Edgardo Lander, o filósofo porto-riquenho Nelson
Maldonado Torres, a linguista estadunidenseCatherine Walsh (a qual
trabalha com movimentos indígenas no Equador), entre vários outros.
As reflexões dos autoresacima citados se dão a partir das heranças
coloniais doImpério espanhol e português na América durante os séculosXVI
ao XX. Abordam as heranças de larga duração que seinscrevem sobre o
corpo social deste continente no século XVIcom a conquista da América e
que perduram, embora se transformando,introduzidas naquilo que a teoria
social contemporânea denomina como “modernidade” (INSTITUTO DE
ESTUDIOS SOCIALES CONTEMPORÁNEOS, p. 4, 2007).
Um dos objetivos dos estudos decoloniais é estabelecer uma noção
ampliada de colonialismo: a colonialidade. Além disso, buscam traçaruma
genealogia da decolonialidade e desenvolver um acervoconceitual
decolonial.Trata-se de uma perspectiva de estudos heterogêneaque prioriza
os estudos transdisciplinares, isto é, estudos queutilizam conhecimentos
provindos de várias áreas para a análisede um objeto particular. Significa,
portanto não a exclusão, masa inclusão de distintos saberes em cada
investigação.
Os estudos decoloniais utilizam um amplo número defontes, entre
elas, as teorias europeias e norte-americanas críticas da modernidade,os
estudos chamados propriamente de pós-coloniais,a teoria feminista chicana,
a filosofia africana... Aprincipal força orientadora dos estudos decoloniais é,
entretanto,uma reflexão continuada sobre a realidade cultural e
políticalatino-americana, sendo influenciados decisivamente pelo
pensamentofilosófico e político desenvolvido no nosso continente.
Partindo-se dessas premissas, o presente trabalho objetiva,
inicialmente, apresentar um posicionamento crítico quanto ao paradigma
universalista/eurocêntrico dos direitos humanos e a sua perspectiva
colonizadora para, na sequência, abordar a decolonialidade – em seus
aspectos conceituais mais relevantes – como corrente contra hegemônica.
Com a finalidade de cumprir, portanto, o objetivo proposto, o percurso
teórico nesta investigação foi elaborado sob a base lógica do método
dedutivo, com uma coleta de dados, sobretudo, bibliográficos.
619
2. CRÍTICA AO PARADIGMA UNIVERSALISTA/EUROCÊNTRICO DOS
DIREITOS HUMANOS

Segundo Bragato (2013, p. 314), estudar Direito no Brasil e,


particularmente, direitos humanos, implica, no mais das vezes, duas pré-
compreensões raramente contestadas. A primeira delas dá conta de que os
sistemas jurídicos – incluindo o conteúdo das leis e o formato dos institutos
– de diversos países no mundo hoje, notadamente as ex-colônias, como é o
caso brasileiro, em particular, e latino-americano, em geral, foram
historicamente construídos como cópias do modelo europeu e que, por essa
razão, pertencem ou à família da Common Law (no caso da América do
Norte) ou à da Civil Law (no caso da América Latina).
A segunda pré-compreensão – e a que mais interessa para o presente
trabalho – é de que a origem e a afirmação dos direitos humanos nos mais
diversos sistemas jurídicos (nacionais, regionais e internacionais) ocorreram
graças à moderna sociedade europeia, sob cujos auspícios se iniciaram a era
do Iluminismo e da emergência do sujeito livre e racional. Nesse sentido, os
direitos que hoje figuram no cenário latino-americano de proteção dos
direitos humanos, seja no nível internacional (como, por exemplo, no âmbito
da Organização dos Estados Americanos – OEA), seja nas legislações
domésticas dos países latino-americanos (o Brasil mostra-se um exemplo
clássico), são considerados como mais um produto europeu importado e
adotado nessas terras (BRAGATO, 2013).
De fato, não se pode ignorar a contribuição e, até mesmo, o
protagonismoocidental em diversas áreas do conhecimento e também na
afirmação dos direitoshumanos. Porém, essa contribuição não é absoluta,
mas limitada e pontual. Nestesentido, explica Chandra Muzaffar (1999, p.
26) que:

Enquanto a Europa construía o edifício dos direitos individuais


dentro de suas próprias fronteiras, destruía a pessoa humana em
outras terras. Enquanto os direitos humanos expandiam-se em
outras terras. Enquanto os direitos humanos expandiam-se entre os
povos brancos, o império europeu infligiu horríveis sofrimentos sobre
620
os habitantes de cor do Planeta. A eliminação das populações nativas
das Américas e da Australásia e a escravização de milhões de
africanos durante o comércio escravo europeu foram duas das
maiores tragédias da época colonial. De fato, a supressão de milhões
de asiáticos em quase todas as partes do continente durante os
longos séculos de dominação colonial foi também outra colossal
calamidade para os direitos humanos. O colonialismo ocidental na
Ásia, na Australásia, na África e na América Latina representa a
mais massiva e sistemática violação dos direitos humanos jamais
vista na história.

As brutalidades e os horrores do colonialismo, representados nas


figuras dogenocídio indígena, da escravidão africana, do saque das riquezas
dos continentescolonizados e, especialmente, da ideologia do racismo e da
intolerância,reproduzida no século XX dentro da própria Europa e
responsável por duasguerras de dimensões globais, descortinam a realidade
de que a concepção geo-históricadominante dos direitos humanos é uma
contradição em si mesma.
Cumpre salientar, no entanto, que adotar essa visão crítica não
implica negar que os direitos humanossejam um fenômeno moderno. Mas,
precisamente por serem modernos, seusfundamentos geo-históricos não
podem ignorar a colonialidade, que é o ladoobscuro da modernidade.
Reconhecer esta dimensão é o primeiro passo para redefinir os termosdo
discurso dos direitos humanos e que deve partir do questionamento
básicoacerca do papel hegemônico da Europa moderna.
Segundo Bragato (2013, p. 316), o discurso fortemente persuasivo da
teoria universalista dos direitos humanos esconde o fato de que o Ocidente
construiu um projeto de expansão e colonização calcado no desprezo, na
inferiorização e no desrespeito das culturas alheias. Neste sentido, o
arcabouço filosófico fundado na modernidade que subjaz às conquistas
internas do Ocidente está fortemente comprometido com o ideário
individualista que não dá conta de justificar as razões para o respeito
universal dos direitos humanos.
Tanto nas Declarações Americanas, quanto na Declaração Francesa, o
protótipo da natureza humana não era apenas masculino, mas também
branco e ocidental, porque somente os seres humanos com essas
características adequavam-se à ideia de racionalidade. Os outros –

621
mulheres, estrangeiros, colonizados e negros – estavam excluídos da
humanidade em função de seu padrão inferior de racionalidade (BRAGATO,
2013).
Mignolo (2008, p. 15) refere que esse fenômeno guarda estreita relação
com o incremento do contato dos europeus com outros povos justamente no
momento em que se processavam as revoluções modernas que
determinaram a posição central do Ocidente. Isso porque o encontro com os
índios, a simultânea expulsão dos muçulmanos e dos judeus da península
ibérica no fim do século XV e a submissão dos negros africanos à escravidão
levaram a uma específica classificação e gradação da humanidade.
Taylor (2001, p. 101), esclarece que os obstáculos com os quais se
depara um possível consenso entre os defensores de diferentes linhas de
pensamento em torno dos direitos humanos residem justamente no fato de o
discurso dos direitos ter suas raízes no sistema de valores da cultura
ocidental. Não apenas isso constitui um obstáculo, mas também a filosofia
que subjaz a esse reconhecimento e que pressupõe a primazia do indivíduo,
desafiando noções comunitárias de mundo que dão mais ênfase à forma
como esses indivíduos se relacionam e se posicionam na sociedade.
Taylor ressalta que na Europa os direitos nasceram como poderes do
indivíduo que se sobrepõe à sociedade. Daí, ao invés de falarmos que é
errado matar alguém, dizemos que temos direito à vida. O discurso ocidental
dos direitos envolve, de um lado, um conjunto de formas legais, pelas quais
a imunidade e as liberdades são inscritas como direitos com certas
consequências para a possibilidade de renúncia e para as formas nas quais
eles podem ser assegurados; e, por outro, uma filosofia da pessoa e da
sociedade que atribui enorme importância ao indivíduo, com significativa
atenção ao seu poder de consentimento. Para a maioria das culturas não-
ocidentais, sobretudo, isso não funciona. A filosofia ocidental supõe
indivíduos possuidores de direitos e encorajados a agir e a defendê-los
agressivamente contra a sociedade e os outros, enquanto aquelas culturas
dão mais ênfase à responsabilidade que esse indivíduo deve ter diante deles.
A concepção individualista ocidental é vista aos olhos de muitos povos como
criadora de homens autossuficientes, que leva à atrofia do senso de
622
pertencimento e a um grau maior de conflito social, enfraquecendo a
solidariedade social e aumentando a ameaça de violência (TAYLOR, 2001, p.
103).
Nesse sentido,a racionalidade, como critério de pertença à
humanidade, não levou ao reconhecimento da igualdade entre os seres
humanos, porque, antes, funcionou como critério de diferenciação e
exclusão. Por isso, nos tempos modernos, a racionalidade que abordava e
explicava o indivíduo, suas relações sociais e a justiça daí emergente tornou-
se um importante fator de exclusão daqueles seres humanos fora do padrão
cultural dominante, que, em última análise, encarnou a figura do europeu,
branco, do sexo masculino, cristão, conservador, heterossexual e
proprietário. Ao mesmo tempo em que a modernidade assentou a máxima
segundo a qual todo ser humano é pessoa, negou a mais da metade deles a
condição de humano. As mulheres latino-americanas, por exemplo, se
inserem nessa parcela a quem os direitos humanos foram negados.
Problematizando-se o conceito de racionalidade, procura-se
demonstrar que, por trás de uma aparente neutralidade, subjaz um projeto
de invisibilidade e opressão humana, reforçado pela ideia de raça e pelo
exercício de um poder de matriz colonial. Este trabalho consiste em um
exercício de crítica à concepção dominante dos direitos humanos, cujos
limites não permitem a proposição de novos discursos, mas tão-somente a
sinalização de caminhos que propiciem a reconstrução de discursos outros
que levem em conta histórias silenciadas, povos esquecidos e culturas
oprimidas. (BRAGATTO, 2014, p. 206).
Como os direitos naturais derivam da hipótese de um estado pré-social
ou de natureza, a sua concepção antropológica fundante é a de indivíduo
que existe e subsiste sozinho e onde a sociedade não é o momento de
realização do humano. O outro, portanto, não é o que possibilita a existência
do sujeito, mas o limite para o exercício da liberdade, direito natural por
excelência, tal como expresso no art. 4º da Declaração Francesa. Por isso, as
Declarações modernas não objetivavam exatamente a concessão de uma vida
digna para todos os seres humanos, mas garantir o exercício da liberdade
para aqueles que, por suas próprias forças, fossem capazes de exercê-la
623
(BRAGATTO, 2014, p. 210).
Assim, o colonialismo produziu a chamada inferioridade do colonizado
que, uma vez derrotado e dominado, acaba por aceitar e internalizar essa
ideia. O colonizador se sustenta no racismo para estruturar a colonização e
justificar sua intervenção, pois, através da difusão ideológica da suposta
superioridade do colonizador, sua ação é vista como benefício, e não como
violência, o que resultou na alienação colonial, na construção mítica do
colonizador e do colonizado, o primeiro retratado como herdeiro legítimo de
valores civilizatórios universalistas e o segundo, como selvagem e primitivo,
despossuído de legado merecedor de ser transmitido (FANON, 2008).

3. O PENSAMENTO DECOLONIAL E SUA PERSPECTIVA PLANETÁRIA

O pensamento decolonial é um projeto epistemológico fundado no


reconhecimento da existência de um conhecimento hegemônico, mas,
sobretudo, na possibilidade de contestá-lo a partir de suas próprias
inconsistências e na consideração de conhecimentos, histórias e
racionalidades tornadas invisíveis pela lógica da colonialidade moderna
(BRAGATTO, 2014, p. 205).O pensamento descolonial insere-se, portanto, na
trilha das formas de pensamento contra-hegemônicas da modernidade e
inspira-se nos movimentos sociais de resistência gerados no contexto
colonial. Momentos estes que foram veladospela retórica da modernidade,
que provocou o ocultamento da colonialidade e,em consequência, a
invisibilidade do pensamento decolonial em desenvolvimento.
Categorias como colonialidade, modernidade, decolonialidade,sistema-
mundo moderno/colonial, matriz colonial depoder (colonialidade do poder),
colonialidade do saber, diferençacolonial, ocidentalismo, eurocentrismo,
locus de enunciaçãoprivilegiado e a noção de imaginário do “ponto zero”,
sãograndes contribuições dos estudos decoloniais para se pensar aquestão
colonial (COLAÇO; DAMAZIO, 2012).
Colonialidade é um conceito utilizado inicialmente porQuijano (1991).
A palavra colonialidade (e não colonialismo) é utilizadapara chamar atenção
sobre as continuidades históricas entre ostempos coloniais e o tempo
624
presente e também para assinalarque as relações coloniais de poder estão
atravessadas peladimensão epistêmica. Colonialidade é um conceito
complexo(atua em vários níveis).
Em um primeiro momento busca tornar visível olado obscuro da
modernidade. A retórica da modernidadevem sempre acompanhada pela
lógica da colonialidade, demodo que não pode haver modernidade sem
colonialidade.Sob a retórica da modernidade e seus projetos
universais(cristianização, civilização, modernização,
desenvolvimento,democracia, mercado etc.) perpetua-se a lógica da
colonialidade(dominação, controle, exploração, dispensabilidade de
vidashumanas, subalternização do saberes dos povos colonizadosetc.)
(MIGNOLO, 2008, p. 293).
Além disso, colonialidade também é uma expressão abreviadade matriz
de poder colonial que Quijano (1991) batizou com onome “padrão de poder
colonial” ou “colonialidade do poder”.Em terceiro lugar, colonialidade
designa histórias,subjetividades, formas de vida, saberes pluriversais
esubjetividades colonizadas a partir dos quais surgem respostasdecoloniais.
Se por um lado a colonialidade é a cara invisívelde modernidade é também,
por outro lado, a energia que gera adecolonialidade (MIGNOLO, 2008b, p. 9-
10).
Deste modo, quando falamos em “decolonialidade”,estamos nos
remetendo necessariamente a uma tríade deconceitos, a
“modernidade/colonialidade/decolonialidade”.A “/” (barra) que une as
categorias “modernidade/colonialidade/decolonialidade” e ao mesmo tempo
as separa significa, porum lado, que uma não pode ser pensada sem as
outras e que,historicamente, surgem conjuntamente no mesmo
processohistórico. Cada uma delas é constitutiva das outras duas.O último
conceito da tríade, a “decolonialidade”,significa um tipo de atividade
(pensamento, giro, opção)de enfrentamento à retórica da modernidade e à
lógica dacolonialidade (GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008, p. 34).
Já o colonialismo, segundo Mignolo (2007, p. 33), refere-se aperíodos
históricos específicos e a lugares de domínio imperial(português, espanhol,
britânico e desde o início do século XX,estadunidense). O termo
625
colonialidade diz respeito a umaestrutura lógica de domínio colonial
(independente de suamanifestação histórica, por exemplo, o colonialismo
espanhol,português) que impõe o controle, a dominação e a exploração
eproduz certa classificação racial da humanidade.
No imaginário moderno tudo deve principiar pela Grécia.Entretanto, os
estudos decoloniais se direcionam temporalmentepara o século XVI, a partir
do surgimento e consolidação dosistema-mundo moderno/colonial.Os
marcos da macronarrativa do sistema-mundomoderno/colonial não
possuem, deste modo, suas origensna Grécia, mas no século XVI e na
produção das diferençascoloniais. Ou seja, na vitória final do cristianismo
sobre o Islã em1492, na conversão dos indígenas ao cristianismo após a
vitóriade Hernán Cortés sobre o “imperador” asteca Moctezuma, nachegada
de Vasco da Gama na Índia em 1498 e dos jesuítas naChina em 1580, no
contingente enorme de escravos africanos trazidos para as Américas
(COLAÇO; DAMAZIO, 2012).
Para os estudosdecoloniais a modernidade nasce junto com a
colonialidade;ambas constituem-se um só processo, são dois lados da
mesmamoeda. Embora usualmente entendamos a modernidadecomo um
projeto definido por seu espírito libertador e porsua retórica salvacionista, os
autores decoloniais assinalam seu“lado oculto”, que é a colonialidade. Nesse
sentido, trabalha-secom a noção de sistema mundo moderno/colonial
paraenfatizar como a colonialidade é constitutiva da modernidade ecomo
ambas devem ser pensadas a partir de uma perspectiva desistema-mundo.
O sistema-mundo moderno/colonial tem sua origem,conforme explica
Mignolo (2005, p. 73-75), no “circuitocomercial do Atlântico” quer dizer, na
articulação dos mercadosregionais da Europa e Ásia com os mercados
regionais deAnahuac e Tawantinsuyu.Esta articulação permite a emergência
do capitalismomundial com base em centros e periferias. A relação básica
entreos centros e as periferias foi o saque e a exploração, tanto damão de
obra, indígena e posteriormente africana, como tambémde recursos
naturais.
Até a “invenção” da América, a Europa tinha um papelmarginal nos
grandes circuitos mercantis que tinham emConstantinopla um dos seus
626
lugares centrais. A tomada dessacidade pelos turcos, em 1453, engendrou a
busca de caminhosalternativos, sobretudo por parte dos grandes
negociantesgenoveses que encontraram apoio político entre as
monarquiasibéricas e na Igreja Católica Romana (COLAÇO; DAMAZIO,
2012).
Mignolo (2005, p. 73) diz que a emergência do circuitocomercial do
Atlântico possibilitou uma confluência entreo controle econômico na
expansão do Ocidente e tambémo controle epistêmico ou do pensamento.
Esta é a principalexplicação ao fato de que uma casualidade se transformou
noparadigma dominante até hoje. Ou seja, aí está o início de umahistória na
qual uma perspectiva “local” de saber começa ainstaurar-se como
conhecimento universal. É neste cenário quepodemos localizar
historicamente o começo da construção deum saber jurídico pretensamente
universal, exemplificado comFrancisco de Vitória e no debate de Valladollid
entre Las Casase Sepúlveda.
A partir deste momento não é possível conceber amodernidade sem a
colonialidade, o lado silenciado pelaimagem reflexiva que a modernidade (por
exemplo, osintelectuais, o discurso oficial do estado) construiu de si
mesma(MIGNOLO, 2005, p. 75). Desta maneira, para se falar
emmodernidade também é necessário considerar a colonialidade ea
decolonialidade como categorias interdependentes no interiordo sistema-
mundo moderno/colonial.
A perspectiva eurocêntrica, segundo Quijano (2002,p. 4-5), foi
“imposta e admitida nos séculos seguintes, como aúnica racionalidade
legítima. Em todo caso, como a racionalidadehegemônica, o modo dominante
de produção de conhecimento”.
Para o que interessa aqui, entre seus elementos principais é
pertinentedestacar, sobretudo, o dualismo radical entre “razão” e “corpo”
eentre “sujeito” e “objeto” na produção do conhecimento; tal dualismoradical
está associado à propensão reducionista e homogeneizantede seu modo de
definir e identificar, sobretudo na percepção daexperiência social, seja em
sua versão a-histórica, que percebeisolados ou separados os fenômenos ou
os objetos e não requer porconsequência nenhuma ideia de totalidade, seja
627
na que admite umaideia de totalidade evolucionista, orgânica ou sistêmica,
inclusivea que pressupõe um macrossujeito histórico. Essa perspectiva
deconhecimento está atualmente em um de seus mais abertos períodosde
crise, como o está toda a versão eurocêntrica da modernidade.(QUIJANO,
2002, p. 4-5).
Dussel (1993; 2005) propõe um modelo alternativoà visão tradicional e
eurocêntrica de modernidade, o quechama de “paradigma planetário”.
Afirma que a modernidadeé um fenômeno do sistema-mundo
moderno/colonial.A modernidade não é fruto de uma Europa independente,
masde uma Europa concebida como centro. Essa centralidade daEuropa no
sistema-mundo não é fruto de uma superioridadeinterna acumulada, mas é
um efeito do descobrimento, conquistae colonização da América. Esse fato
vai lhe dar vantagem frenteao mundo otomano-islâmico, Índia e China. A
modernidadeé o resultado desses eventos. Não há, portanto,
modernidadesem colonialidade.
Deste modo, fica evidente como modernidade e colonialidadeestão
necessariamente relacionadas uma com a outra.Não é com os pressupostos
da modernidade que a colonialidadeserá superada, pois é precisamente a
modernidade quenecessita e produz a colonialidade.Pode se dizer, deste
modo, que o primeiro passo parase pensar decolonialmente é partir da
premissa de que amodernidade não existe sem a colonialidade. No âmbito
dos direitos humanos, não é possível pensar o “direito moderno” sem
analisarsua face em relação com a colonialidade.

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre o discurso dominante sobre a fundamentação histórico-


geográfica e filosófico-antropológica dos direitos humanos e a sua atual
configuração, observam-se profundas falhas e incoerências. A teoria
dominante supõe que os direitos humanos são o produto do esforço histórico
e teórico do Ocidente Moderno.
Por outro lado, os direitos humanos abrangem tão variados bens e
exigem a proteção para tão variadas formas de vida humana, que é difícil
628
traçar uma linha contínua que os ligue aos chamados direitos naturais do
homem moderno. Todavia, essa teoria é dominante porque é produzida por
quem tem legitimidade epistêmica para produzir conhecimento válido. Além
disso, o arcabouço teórico da modernidade ignora completamente sua
dimensão colonial.
Por isso o discurso dominante é eurocêntrico e justamente por isso é
dominante. Ocorre que, sendo eurocêntrico, é um discurso localizado e
parcial. Pensa os direitos humanos como um fenômeno situado apenas em
um dos lados da linha abissal: no contexto das sociedades colonizadoras.
Para muitos teóricos da modernidade todas as culturase sociedades do
mundo são reduzidas a uma manifestaçãoda história e cultura europeia.
Entretanto, para os autoresdecoloniais as histórias são “outras”. Enquanto
que para osrepresentantes da história universal a modernidade tem uma
sóface, para os estudos decoloniais latino-americanos, tem duas.O chamado
progresso da modernidade é construído a partir daviolência da colonialidade.
Além disso, tais estudos se constituem em uma alternativa que se
contrapõe às grandes narrativas universalistas e assim representam uma
nova perspectiva de pensamento não apenas para a América Latina, mas
para o mundo das ciências sociais e humanas como um todo.

Isso não significa que o trabalho deste grupo é apenas de interesse


para as supostamente universais ciências sociais e humanas, mas
que o grupo pretende intervir de forma decisiva nos discursos da
ciência moderna para criar outro espaço para a produção de
conhecimento, uma forma distinta de pensamento, “um paradigma
outro”, a própria possibilidade de falar sobre “mundos e
conhecimentos de outra maneira” (ESCOBAR, 2003, p. 51).

Os estudos decoloniais possibilitam, portanto, compreender os


discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem
e perduram a partir das relações coloniais. Trata-se, desta maneira, de uma
perspectiva diferente de se entender o direito, pois permite que este seja
pensado a partir de diferentes categorias e formas de conhecimento,
inimagináveis para o direito ocidental.

629
REFERÊNCIAS

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Paragon House, 2001.

631
AS CONTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA UMA PERSPECTIVA
CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Tamiris A. Gervasoni1
Felipe da Veiga Dias2

1. INTRODUÇÃO

A origem histórica dos direitos humanos é atribuída a um processo de


reconhecimento destes direitos a partir da sociedade ocidental. A Revolução
Francesa passa a ser compreendida como relevante marco histórico de
profunda influência nos direitos humanos, tendo sido muitas ideias
propagadas na época, bem como há ainda a influência de célebres autores
que orbitam até os dias atuais o pensamento político moderno, constituindo
a base de documentos internacionais que procuram afirmar os direitos
humanos.
Além da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto San Jose da Costa
Rica, entre outros, que procuram assegurar e reconhecer os direitos
humanos no plano internacional, é que o primeiro item do trabalho propõe-
se a desenvolver. Através de uma investigação histórica, apresenta-se em um
primeiro momento a influência e contextualização de importantes
documentos internacionais no trato dos direitos humanos.
Em segundo momento, não obstante a relevância dos documentos
internacionais referidos na esfera dos direitos humanos intenta-se
demonstrar a necessidade de não resumir tais direitos a uma ideia
oficializada e burocratizada, até mesmo no que tange aos seus aspectos
interpretativos. Fundamental também ampliar os horizontes a partir dos

1 Mestranda com Bolsa Capes Prosup em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC. Graduada pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direito,
Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela Professora Pós-Doutora em Direito Marli
Marlene Moraes da Costa. Email: tamirisgervasoni@gmail.com.
2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista CAPES (nº

12333/13-1) - Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor da


Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Coordenador da Cátedra de Direitos
Humanos (FAMES). Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças,
Adolescentes e Jovens do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social
(GRUPECA/UNISC). Advogado – felipevdias@gmail.com.
632
quais fala-se historicamente em direitos humanos para, justamente,
considerar que apesar de sua origem histórico-teórica realizar-se em
contexto ocidental, outras regiões do mundo, da mesma maneira ou de
maneira distinta, já lutavam por tais direitos e sobretudo, já tinham tais
direitos violados.
Neste sentido, a partir de uma perspectiva crítica dos direitos
humanos, com aporte em autores que defendem tal percepção, é que
procura-se aliá-la ao movimento do giro decolonial, com o objetivo de
rejeição a um consenso sobre direitos humanos historicamente imposto,
desconectado das singularidades locais e que não contempla seu caráter
emancipador, visto que, tais elementos são primordiais para a construção de
uma realidade superação de um pensamento simplificador da realidade e
reducionistas dos direitos humanos.

2. O PROCESSO HISTÓRICO DE ORIGEM (OCIDENTAL) DOS DIREITOS


HUMANOS

Os primeiros processos de reconhecimento dos direitos humanos são


inicialmente observados e estudados na – e partir da – sociedade moderna
ocidental (WOLKMER, 2010, p. 14), sendo que a influência do pensamento
político moderno, com Maquiavel, Hobbes, Locke e Rosseau, é notável no
quadro de conquistas dos direitos dos humanos, e tem nos períodos
revolucionários, em especial o francês, o caráter de universalidade do
pensamento político que propagará através dos ideais do liberalismo na
defesa de direitos do homem reconhecendo sua condição de cidadania
formal, excluindo todo o restante da população, fundamentando-se no
pensamento jusnaturalista conservador, mas garantindo algumas
prerrogativas de resistência contra a vontade de império dos soberanos3.
A manifestação que representou os ideais revolucionários ficou

3 “A obra de Rousseau serviu de luzeiro para Revolução Francesa e exerceu profunda


influência no liberalismo político. A tese difundida pelo filósofo teve antecessores
jusnaturalistas que já haviam tentado arrancar da penumbra as medidas pactícias que
explicavam o advento do Estado a partir do respeito correlato aos direitos da pessoa como
criatura social”. (CARVALHO, 1998, p. 35).
633
conhecida como a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, sendo um
marco na luta por direitos humanos e que afirmava no seu artigo 1º as
concepções de igualdade e liberdade entre todos os homens4. Neste
documento ocorre a exaltação das concepções jusnaturalistas e iluministas,
mas ao mesmo tempo representa o primeiro passo no reconhecimento dos
direitos humanos, já que a irradiação dos efeitos desta era um objetivo dos
revolucionários.
Além de tal declaração, outros registros referentes aos direitos
humanos, já no início do século XVIII, tiveram relevância no cenário europeu
ocidental como a Convenção de 11 de agosto de 1792 que proibiu o tráfico de
escravos nas colônias, a Constituição Francesa de 1848 que pela primeira
vez na história aboliu a pena de morte; a Convenção de Genebra de 1864; o
Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890 sobre repressão ao tráfico de
escravos africanos e a significativa importância para o reconhecimento de
direitos sociais previstos nas Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar
de 1919.
A Constituição de Weimar terá real importância como influência para
evolução das instituições políticas ocidentais. Na opinião de Comparato
(1999, p. 184) encontra-se nesta carta constituinte o fundamento de um
perfil de Estado galgado na democracia social e ao mesmo tempo inspirado
por ideais proclamados no período revolucionário francês elevam a dignidade
humana a matriz jurídico-axiológica do direito moderno. Aponta o autor
referido que aquelas constituições (mexicana e alemã) traçaram os
parâmetros posteriormente seguidos, os quais tiveram sua implementação
difundida com certo atraso devido ao período nazifascista, o qual marcou um
retrocesso no caminho dos direitos humanos.
Seguindo as situações mais importantes na linha histórica de
conquistas dos direitos humanos, cita-se a Convenção de Genebra de 1926
(sobre a escravatura), Convenção Relativa ao Tratamento de Prisioneiros de
Guerra de 1929 e a Carta das Nações Unidas de 1945 (CARVALHO, 1998, p.
56). Esta última de magnitude singular, pois dentro de uma ideia global de

4Artigo.1º.Os
homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.
634
paz (e conquista de direitos humanos) o papel da ONU foi e continua sendo
muito relevante.
Em 1948 sob a influência do período pós-segunda guerra mundial foi
aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora concebida
inicialmente como uma fase procedimental dentro do planejamento da
Comissão de Direitos Humanos, é fato pacífico na órbita jurídica de que
direitos humanos independem de formalismos legais como, por exemplo, a
positivação. Em um contexto sintético a doutrina (na linha positivista)
tipifica esses direitos constitucionalmente garantidos como fundamentais,
dentro de uma ordem jurídica interna, já os direitos humanos englobariam
uma ordem jurídica internacional, desta maneira não estando vinculados às
definições básicas da lei. (SARLET, 2009, p. 29).
Este documento resgata princípios emergentes na Revolução
Francesa, e na Declaração de Direitos do Homem e Cidadão, como liberdade,
fraternidade e igualdade, contudo, salienta-se que a declaração de 1948 foi
realizada como uma fase de um procedimento, no qual se deu seguimento
em 1966 com o Pacto sobre Direito Civis e Políticos e o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CARVALHO, 1998, p. 59).
Outrossim, até os dias atuais ocorreram mais acordos no âmbito
internacional com o objetivo de reconhecer e assegurar direitos humanos,
como por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de
São José da Costa Rica) de 1969 que reiterou muitas das disposições no
Pacto de 1966, menciona-se ainda a Carta Africana de Direitos Humanos e
dos Direitos dos Povos de 1981 e a Convenção sobre a Diversidade Biológica
de 1992 assinada no Rio de Janeiro.
Nota-se que desde a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão,
progrediu-se muito no reconhecimento dos direitos humanos, sendo que tal
documento serviu e permanecerá como uma referência no caminho traçado
até os dias atuais. Não obstante, um de seus efeitos foi à condução ao
prisma da dignidade da pessoa humana, o qual pauta não somente Estados
e suas respectivas políticas públicas, mas também os direitos humanos nas
modernas Cortes internacionais.
Não obstante a importância e influência de todos os documentos
635
referidos sobre direitos humanos, que os reconhecem internacionalmente e
almejam sua garantia, é preciso compreender que os direitos humanos não
se resumem a tais documentos, seja no seu reconhecimento ou na própria
interpretação que lhes é conferida. Em geral, a maioria destes documentos
prega uma única visão de mundo, a ocidentalizada, não contemplando as
peculiaridades e necessidades locais de outras regiões do mundo.
É neste sentido, portanto, que insere-se a teoria crítica dos direitos
ao apontar às nuances das concepções já estabelecidas sobre direitos
humanos (em especial no campo dogmático e positivo), com o condão de
rompimento e ao mesmo tempo de contextualização a um novo pensamento,
realizando o que entende Alfaro como uma inversão ideológica no plano dos
diretos humanos (2010, p. 33-34). Esta transformação deve aproximar e
interconectar os componentes apartados pela racionalidade moderna, tendo
como base as demandas dos sujeitos concretos (2010, p. 35), ou ao menos
entender a sociedade civil como fundamento desses direitos.
A partir desta perspectiva os direitos humanos são compreendidos à
luz da possibilidade de que todos possam expressar “suas plurais e
diferenciadas formas de levar adiante a sua existência” (FLORES, 2009, p.
41-42). A teoria crítica dos direitos humanos objetiva a libertação do sujeito
que se vê historicamente discriminado e excluído do mundo da vida com
dignidade (FLORES, 2009, p. 12). Ressalta-se que, via de regra, os direitos
humanos remetem à ideia de “direito” enquanto norma jurídica, de direitos
previstos em “lei” e garantidos pelo Estado, fundamentados em valores (como
a liberdade, a igualdade e a solidariedade) e na própria condição de ser
humano (RUBIO, 2010, p. 13).
Os direitos humanos não podem ser considerados como um produto
cultural que surgiu em um contexto específico, limitando-se àquela
realidade. Tais direitos devem transcender a órbita das relações impostas
pelo capital desde o século XVI, vislumbrando-se nas diversas percepções
sobre o mundo de modo natural e que são/foram construídas historicamente
(FLORES, 2009, p. 18/32). Amarrar-se a um “pensamento único só nos
oferece como armas de luta um conjunto de propostas normativas
universalistas – os direitos humanos – absolutamente abstraídas de nossa
636
realidade concreta” (FLORES, 2009, p. 22). É a partir desta perspectiva, que
o item subsequente propõe-se a analisar a teoria crítica dos direitos
humanos como possibilidade para a superação de um pensamento unívoco e
simplificador da realidade.

3. A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A SUPERAÇÃO DO


PENSAMENTO SIMPLIFICADOR DA REALIDADE

A delimitação dos direitos humanos enquanto direitos e garantias


previstos a todo e qualquer indivíduo, mas atrelado ao panorama jurídico de
aplicação internacional, enquanto que no plano interno estes seriam direitos
fundamentais, é a construção usual da doutrina positivista do tema. Essa
proteção contumaz pode ser concebida de forma dupla (SARLET, 2009, p.
29), ou seja, contando com uma repetição por parte dos Estados na previsão
desses direitos. Diante da inconformidade com a limitação disposta na usual
compreensão desses direitos, ainda arraigado em um pensamento
simplificador da realidade, é que se insere a teoria crítica dos direitos
humanos; a fim de impedir a legitimação no distanciamento entre o discurso
e a prática em matéria de direitos humanos.
Assim o entendimento acerca da necessidade de adição da teoria
crítica dá-se também pelo atual contexto científico, onde as formas de
construção do conhecimento não são mais capazes de responder as
indagações hodiernas, especialmente por resistir em utilizar a lógica
cartesiana no tocante a questões complexas. Esse raciocínio simplificador
consolida um princípio (MORIN, 1994, p. 28 ou MORIN; LE MOIGNE, 1999,
p. 33) que norteia o pensamento humano moderno, e acaba por ignorar o
elemento da complexidade como inerente as atuais problemáticas
enfrentadas.
Desse modo, a adoção de uma visão meramente formal ou que aceite o
distanciamento entre teoria e prática funciona na manutenção de um
pensamento limitado, do ponto de vista da complexidade científica (galgado
nos parâmetros de segmentação e especialização para o conhecimento),
hermenêutica (STRECK, 2011) (reproduzindo uma limitação interpretativa,
637
mas também na direção da não superação da teoria jurídica positivista) e
humana, ao mesmo tempo em que premia uma lógica de permanente lesão
aos direitos humanos, haja vista a impossibilidade de aproximação entre
esses dois aspectos “naturaliza” o processo de violação. Por isso, a indicação
de que o abismo existente entre o discurso e as ações de direitos humanos
não podem ser desarticulados por resoluções singelas, parece acertado ao
dispor que tal fato está ligado a nuances estruturais de organização e
estruturação das sociedades modernas (GALLARDO, 2008, p. 50), as quais
são altamente complexas.
Desse modo apregoa-se na manutenção da simplificação do raciocínio
(estabelecendo sempre relações de causa e efeito) próprio da modernidade, a
dificuldade em lidar com as demandas dos novos tempos (SANTOS, 2007, p.
19), fator este que acaba por intensificar as regulações, juntamente com a
redução da emancipação do ser humano, emergindo assim a face estatal da
dominação e da coerção (RUBIO, 2011, p. 63-64). Sem olvidar que a
formação científica do conhecimento possui ligação direta com a estrutura
do mercado e das relações de trabalho (RUBIO, 2011, p. 67).
Contudo, há ainda outros componentes que necessitam ser superados,
juntamente ao paradigma científico, no caminho da teoria crítica dos direitos
humanos, o que indica a inclusão de fatores como: (a) racionalidade e ética
(em prol da vida e contrária ao sofrimento humano); (b) a inserção do
pluralismo jurídico; (c) e a incorporação da “pluriversalidade e
interculturalidade do mundo nos estudos jurídicos” (RUBIO; FRUTOS, 2013,
p. 17-18) (em sentido semelhante mas com outras proposições encontra-se a
visão de Herrera Flores) (2000, p. 27).
Esses contornos conduzem à densidade inerente à discussão hodierna
dos direitos humanos, já que essa se introduz em um contexto globalizado e
que se depara com linhas de crise dos mais variados campos, os quais se
interligam ao seio jurídico, relativizando bases do Estado e suas instituições
ou da própria estrutura da sociedade capitalista moderna. Porém, enfatiza-
se que a inserção de componentes de densidade e modificação social, tal
qual a globalização, não significa algo necessariamente negativo, ou seja,
apesar de efeitos deletérios se vislumbram alternativas alinhadas aos
638
direitos humanos, conforme prelecionam as ideias de Santos, ao apresentar
um ideal de globalização contra-hegemônica (focada na luta contra exclusão
social) (SANTOS, 2005, p. 29).
Na busca pelo rompimento com esta espécie de cadeia de passividade
se apresenta a teoria crítica dos direitos humanos, sendo que a negação de
características culturais e ideológicas, por exemplo, no que concernem os
direitos humanos, parece ser o primeiro equívoco por parte do pensador
jurídico-político contemporâneo (FLORES, 2000, p. 23), visto que tal atitude
resulta na incompreensão de algumas questões hodiernas (limitação
interpretativa da realidade). Tais fatores estão ligados diretamente à matriz
de fundamentação desses direitos, as quais são arraigadas nas instituições e
formações sociais modernas (própria da sociedade civil emergente)
(GALLARDO, 2008, p. 47).
Tais considerações conduzem a uma compreensão de direitos
humanos mais ampla e complexa, ao mesmo tempo em que se nega a
manter a cegueira da ineficácia dogmática frente a permanentes ofensas a
esses direitos, por meio da simples alusão a não conexão entre o marco
teórico e as situações fáticas nas quais eles devem ser observados. Diante
disto partilha-se do pensamento de Flores quanto a uma (possível)
determinação sobre os direitos humanos, não como uma verdade ou um
conceito fechado (demonstrando um alinhamento aos progressos alcançados
pelos estudos hermenêuticos), mas sim como uma delimitação no horizonte
utópico.

Portanto, se queremos definir os direitos humanos, ou o que é o


mesmo, delimitá-los dos interesses dos poderosos e trazê-los as
reivindicações, anseios e valores dos indivíduos, grupos e culturas
subordinadas, devemos entende-los dentro dessa concepção
contextualizada de direito: conjunto de processos dinâmicos de
confrontação de interesses que lutam por ver reconhecidas as suas
propostas partindo de diferentes posições de poder. Desde aqui os
direitos humanos devem ser definidos como isso, como sistemas de
objetos (valores, normas, instituições) e sistema de ações (práticas
sociais) que possibilitam a abertura e a consolidação de espaços de
luta pela dignidade humana. É dizer, marcos de relação que
possibilitam alternativas e tendem a garantizar possibilidades de
ação amplas no tempo e no espaço a fim de alcançar os valores da
vida, da liberdade e da igualdade. (FLORES, 2000, p. 52-53)

Com fulcro nessa percepção vislumbram-se caracteres já citados no


639
sentido de superação moderna da racionalidade juntamente com a inclusão
das demandas concretas dos seres humanos como parâmetro de debate e
formação de interesses em um determinado espaço e tempo. Isso indica que
o conflito é visto sob a perspectiva contributiva de construção do
conhecimento, bem como dos direitos humanos, abandonando o atual
modelo simplista de consenso, o qual além de insatisfatório, ainda não inclui
os fatores de complexidade, racionalidade ética e de pluralidade do direito
(RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 22-33).
A concepção de direitos humanos alicerçada na dignidade humana e
no sujeito como centro teórico conduz ao modelo idealizado por Flores e
Rubio, denominado de interculturalismo crítico ou de resistência, servindo
de base as suas propostas críticas aos direitos humanos. Nesse modelo os
autores apostam pela “fecundação mútua de culturas e diversas
modalidades de saber e conhecer, considerando que todas as culturas, que
são incompletas, se constroem” por meio de embates de “signos, saberes e
significações, onde permanentemente se transformam as relações sociais,
culturais e institucionais, e essas relações é onde se edificam os
significados” (RUBIO; FRUTOS, 2013, p. 35).
A determinação aditiva do conflito e das múltiplas culturas
transparece a busca e o próprio desenvolvimento dos direitos humanos
pautada por uma noção de igualdade e diferença conforme o pensamento de
Santos em sua delimitação de que “temos o direito a ser iguais quando a
diferença nos inferioriza; temos direito a ser diferentes quando a igualdade
nos descaracteriza” (SANTOS, 2010, p. 147). Esse componente é
imprescindível à combinação de matrizes posteriores, bem como a
consideração de que os embates que compõem os direitos humanos são
dispostos pelos indivíduos em diferentes posições de poder, algo valioso nas
leituras da intervenção coercitiva estatal.

4. AS CONSTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA A TEORIA


CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS

A compreensão do mundo, em se tratando de direitos humanos, não


640
deve resumir-se à compreensão ocidental do mundo, ou a nenhuma outra
perspectiva reducionista e centralizadora. É neste sentido, portanto, que
insere-se a proposta do pensamento decolonial, calcado na premissa de
desobediência epistêmica, trazendo a urgência e a necessidade de
descolonizar o conhecimento (BRAGATO, 2014, p. 2011). Colonialidade é um
conceito que busca refletir a dependência existente entre centro e periferia
não restrito à ideia de economia e política, mas alcançando também a
produção do conhecimento, que é suscetível à colonização. “A colonialidade é
uma característica do poder exercido nas relações de dominação colonial da
modernidade e nisso se diferencia do colonialismo em si, que é um processo
de poder”. (BRAGATO, 2014, p. 212).
A necessidade do olhar decolonial torna-se evidente no momento em
que se percebe que os direitos humanos não se efetivam como direitos
humanos em várias regiões do mundo, em especial no que tange aos países
do sul global e para perceber isto basta que “consultemos unicamente os
informes anuais promovidos pelas Nações Unidas e constataremos o abismo
cada vez maior que existe entre o proclamado na declaração e as realidades
concretas nas quais vivem quatro quintos partes da humanidade”. (FLORES,
2009, p. 20).
Aquilo que vem se denominando como “giro decolonial” “basicamente
significa o movimento de resistência teórico e prático político e
epistemológico, a lógica da modernidade/colonialidade”. (BALLESTRIN,
2013, p.105), demonstrando a necessidade de olhar para os direitos
humanos com uma visão limpa, não influenciada por um conhecimento
produzido de forma desconcertada com a realidade, acolhendo-se o que se
constrói e que se coaduna com as culturas e localidades não
ocidentais/europeias.
Enquanto a forma de perceber a cultura e os comportamentos
regionais passar pelo filtro europeu de produção e dominação do
conhecimento, não há como se pensar em teoria crítica dos direitos
humanos, pois “a diferença colonial epistêmica é cúmplice do universalismo,
sexismo e racismo”. (BALLESTRIN, 2013, p.104). A colonialidade é um
conceito que se refere a um amplo domínio da experiência humana
641
conforme:

the logic of coloniality can be understood as working through four


wide domains of human experience: (1) the economic: appropriation
of land, exploitation of labor, and control of finance; (2) the political:
control of authority; (3) the civic: control of gender and sexuality; (4)
the epistemic and the subjective/personal: control of knowledge and
subjectivity. (MIGNOLO, 2005, p. 11).

A colonização, enquanto processo fático de imposição e presença física


de outro Estado soberano impondo em outro suas regras e cultura, ainda
que não se dê sempre de tal forma, é um processo que persiste e ocorre de
múltiplas formas, seja na produção do conhecimento ou na organização
político-jurídica, e muitas vezes, efetua-se até mesmo de modo camuflado.
Ideologicamente muitas realidades foram usurpadas a partir da “ideologia-
mundo” e, por isso, “necessitamos lutar com as mesmas armas que eles
utilizam a ideologia. É preciso, pois, lutar ideologicamente para recuperar o
mundo. É nesse terreno, o da ideologia, que colocamos em jogo nossa
própria possibilidade de resistência real”. (FLORES, 2009, p. 22).
É fundamental que o olhar seja um olhar decolonial, que resgate o
que realmente se relaciona e é inerente aos povos em suas peculiaridades,
que tal olhar aliado à perspectiva da teoria crítica dos direitos humanos
rejeite o senso comum, demonstrando que os direitos humanos só serão
realidade se construídos cotidianamente com respeito e de acordo com as
singularidades de cada cultura, considerando sempre o respeito ao próximo
e a dignidade humana, primando-se pelo caráter emancipador de tais
direitos.
Os direitos humanos “são práticas que se desenvolvem diariamente,
em todo tempo e em todo lugar e não se reduzem a uma única dimensão
normativa, filosófica ou institucional, tampouco a um único momento
histórico que lhe dê origem” (RUBIO, 2010, p. 18-19). Os direitos humanos
são construídos a todo o tempo, seja nas relações mais simples ocorridas no
cotidiano até as mais complexas, são realizados em atos de respeito e
consideração com o próximo, não apenas por leis a atos jurídicos. Do mesmo
modo, são também violados não apenas pelo Estado ao não concretizar

642
direitos básicos garantidos pela Constituição e/ou pela Declaração Universal
dos Direito Humanos, mas em comportamentos simples que discriminam e
violam a dignidade humana, que não compreendem o outro pelo modo de ser
e se reconhecer, pela forma como reage e interage com o mundo.
No decorrer da história, os direitos humanos estiveram conectados às
ideias e aos dizeres de alguns filósofos e pensadores5, porém, a celeuma não
reside nas respectivas considerações destes, mas sim, no momento em que
se desconsidera que os direitos humanos são (também) produções sócio-
históricas e não apenas produções teórico-filosóficas (RUBIO, 2010, p. 14).
Eminentemente que as reflexões e obras acerca dos direitos humanos
exerceram e exercem papel importante, além de ampla influência, na
construção e consolidação dos direitos humanos, todavia, há de se ponderar
que tais reflexões restringem-se ao intelecto de seleto grupo de pensadores
europeus, que inicialmente no século XVII, iniciaram suas indagações e
meditações sobre tal tema.

No contexto o moderno, o problema reside em que foi somente o


imaginário burguês que se impôs aos demais imaginários (operário,
feminista, étnico, ambiental...) estabelecendo um padrão que todos
deveriam seguir e moldando uma figura à qual todos deviam
adaptar-se, impedindo a possibilidade de construir novos padrões e
novas figuras (RUBIO, 2010, p. 17-18).

Logo, é de se pensar que os anseios e as necessidades dos muitos


grupos que não correspondiam aos ideais burgueses da Revolução Francesa
foram desconsiderados na construção das premissas que irão embasar a
concepção (inicial) de direitos humanos. Não obstante, tais ideais foram
erigidos sob a égide do mundo ocidental, no contexto europeu, no qual
figurava o homem branco, heterossexual e cristão como sinônimo de
estereótipo ideal da sociedade, desta forma, mulheres, crianças, negros,
índios, deficientes, entre tantas outras possibilidades, não eram detentores
de direitos (humanos) àquela época. A própria Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, oriunda dos preceitos da Revolução Francesa,

5 Neste sentido, Sanchez Rubio em sua obra elenca alguns pensadores e filósofos como John
Locke, Francisco de Vitória, Rousseau, Hobbes, Kant, Norberto Bobbio, Ferrajoli, Habermas.
(2010, p. 14).
643
“reconhecia direitos a um protótipo bem específico da natureza humana: o
homem (sexo masculino), branco e, de preferência, dono de propriedades”.
(DIAS; COSTA, 2013, p. 32).
Sob este prisma, percebe-se que não há teoria crítica de direitos
humanos sem olhar decolonial, pois, os direitos humanos concebidos na
modernidade ocidental desde o início não albergavam outras culturas que
não a europeia. Ao revés, as culturas hegemônicas encasulavam-se sobre si
mesmas e visualizam o restante que não se enquadrava “como bárbaro, o
selvagem, o incivilizado e, como consequência, suscetível de ser colonizado
pelo que se autodenomina civilização”. (FLORES, 2009, p. 18).
Neste contexto, os direitos humanos foram transportados e
instaurados em outras partes do mundo como “um projeto moral, jurídico e
político criado na Modernidade Ocidental” (BRAGATO, 2014, p. 205),
entretanto, como resultado de tal dominação europeia e imposição de seus
valores, tais direitos estavam (e estão) desconectados com a realidade e
mentalidade de outros povos e culturas. Assim, a despeito da independência
de vários povos colonizados isto não representou “a ruptura com esta teoria
da história. Em boa parte, prosseguiram-na e é por isso que a zona de
contacto continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o
colonialismo político”. (SANTOS, 2007, p. 32). Persiste hodiernamente, ainda
no século XXI, ideias produzidas pelos pensadores europeus dos séculos em
contextos diferentes dos quais se tenta efetivá-las e é preciso quebrar este
vínculo, pois tais ideias não representam as necessidades e peculiaridades
de outras realidades que são vividas fora do contexto europeu, não alcança
as carências das mulheres, dos índios, dos negros, das crianças e de
qualquer outro que não seja homem, branco, heterossexual e cristão.
Desta forma, é indispensável que no trato de todas as questões
relacionadas aos direitos humanos em sua perspectiva crítica seja
ultrapassada a visão engessada e minimalista que reduz os direitos
humanos a uma ideia “oficial” àquilo que está previsto em documentos
internacionais, amparando-se “as nossas próprias produções culturais,
políticas, étnicas, sexuais, econômicas e jurídicas, com autonomia,
responsabilidade e autoestima em todos aqueles espaços e lugares sociais
644
onde se forjam as relações humanas”. (RUBIO, 2010, p. 11).
A partir de uma mirada decolonial e crítica dos direitos humanos será
possível (re)afirmar as diferenças, reconhecê-las e preservá-las,
concretizando-se o reconhecimento de múltiplas identidades e percepções
diferenciadas sobre o mundo, redefinindo o contexto a partir de uma
construção que atenda às necessidades e peculiaridades locais,
assegurando-se o caráter emancipador dos direitos humanos. A união da
perspectiva decolonial com a teoria crítica dos direitos humanos almeja
possibilitar a superação de uma pensamento unívoco e simplificador da
realidade, rejeitando-se o modelo simplista de consenso que não inclui a
pluralidade e o reconhecimento das diferenças como elementos
fundamentais para a concretização dos direitos humanos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito do significado e influência que possuem os documentos


internacionais sobre direitos humanos, tanto no seu reconhecimento como
na busca pela sua efetivação, percebe-se que tais direitos não se resumem a
eles. Os direitos humanos não são, e não podem ser compreendidos, como
produto cultural de um único contexto específico, de uma única cultura, de
uma única percepção, logo, tem-se a necessidade de transcendermos
algumas percepções históricas que foram continuamente reproduzidas e
que, em verdade, não correspondem à realidade plural na qual os direitos
humanos precisam ser compreendidos.
Uma compreensão mais ampla e complexa, que não mantenha a
ineficácia dogmática frente a permanentes violações aos direitos humanos,
bem como a concepção de um conceito enquanto delimitação utópica e não
uma verdade absoluta são perspectivas inseridas pela teoria crítica dos
direitos humanos, que se demonstra mais adequada e coerente com a
compreensão plural e emancipadora que tais direitos carecem.
Assim, incluem-se as contribuições do giro decolonial para a
perspectiva crítica, já que com tal movimento intenciona-se a ruptura de
ideias universalizantes no sentido de impor uma única percepção sobre os
645
direitos humanos, almeja-se uma mirada conectada com as realidades locais
acolhendo-se o que se constrói e o que se coaduna com as culturas e
localidades não ocidentais/europeias. Não obstante, rejeita-se o senso
comum, demonstrando-se que os direitos humanos só serão efetivados se
construídos cotidianamente com respeito e de acordo com as singularidades
de cada cultura, considerando sempre o respeito ao próximo e a dignidade
humana, primando-se pelo caráter emancipador de tais direitos.
É desta forma que a união da perspectiva decolonial com a teoria
crítica dos direitos humanos possibilita a superação de um pensamento
unívoco e simplificador da realidade, refutando-se o modelo simplista de
consenso que não inclui a pluralidade e o reconhecimento das
dissemelhanças como elementos primordiais para o respeito e concretização
dos direitos humanos, encarando o mundo nas suas diferenças e
reconhecendo-as para respeitá-las.

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648
DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA: AFINAL, ONDE SE
SITUAM?

Iuri Bolesina1
Tássia A. Gervasoni2

1.INTRODUÇÃO

Entre mitos e verdades que compõem o pensamento jurídico, há uma


ideia razoavelmente coerente e relativamente aceita de que alguns preceitos
são tão genéricos, em um sentido positivo, que é praticamente impossível
contraditá-los. Por exemplo, ninguém pode negar, ou melhor, ninguém
conseguiria racional e cientificamente negar a importância da dignidade da
pessoa humana enquanto vetor das Constituições e Estados de Direito
democráticos. Ou então, grite “liberdade” em qualquer arremedo de multidão
e o apoio virá maciçamente, pois não há quem se oponha a ideia de
“liberdade”.
Isso significa que alguns conceitos foram de tal forma absorvidos pelo
ideário jurídico e, também, social, que a sua invocação praticamente deixa
de reclamar justificação. O lado sombrio dessa adesão acrítica é que
referidos preceitos e discursos, a despeito de sua vasta e sólida
fundamentação, caem na banalização, são corroídos pelos equívocos
cotidianos que se dissipam irrefreavelmente, são manipulados e distorcidos,
vão se consolidando pelo lado avesso.
É o fiel retrato do que ocorre com o discurso dos direitos humanos ao
longo dos últimos anos: de revolucionário, emancipador e universal a
conservador, preconceituoso e maniqueísta. Não que os direitos humanos e
seus fundamentos tenham se convertido naquilo que combatiam, mas essa
tem sido a sua destinação enquanto discurso (assujeitador), sobretudo,

1 Doutorando e Mestre em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Civil pela Faculdade
Meridional – IMED. Integrante do Grupo de Pesquisa “Intersecções jurídicas entre o público
e o privado”, vinculado ao CNPq. Professor da faculdade de direito da IMED. Advogado.
Email: iuribolesina@gmail.com.
2 Doutoranda em Direito pela UNISINOS/Universidad de Sevilla (Espanha). Bolsista CAPES

(PDSE – Proc. nº 12673-13-7). Mestre e Graduada em Direito pela UNISC. Professora na


FAMES. Integrante de Grupos de Pesquisa vinculados ao CNPq. Advogada. Email:
tassiagervasoni@gmail.com.
649
popular.
A pergunta que motiva o presente esforço de reversão desse quadro,
portanto, “onde estão os direitos humanos?”, é repetida acusatoriamente
todos os dias na televisão, nas redes sociais, nas conversas informais de
bares e esquinas, na consciência de muitas pessoas e, não raro, em bancos
acadêmicos (nos quais humanos estão sentados). Como se os direitos
humanos fossem algo separado e separável do próprio ser humano, de cada
um que (se) questiona a sua validade e importância.
Em uma tentativa de resposta a essa angustiante pergunta que
empurra os direitos humanos a uma armadilha perversa, este trabalho
objetiva refletir sobre o lugar desses direitos e seu discurso de
fundamentação ao longo do desenvolvimento da civilização, resgatando de
fatos históricos suas raízes e relatando ocorrências das mais atuais para
demonstrar que sempre estiveram aptos a cumprir o seu papel, contra todas
as adversidades impostas por elementos estatais ou privados, em nome de
interesses os mais diversos (políticos, econômicos, religiosos...).
Para tanto, valer-se-á das contribuições da teoria crítica dos direitos
humanos, na lógica da hermenêutica-fenomenológica, a fim de trazer à luz
aquilo que se oculta naquilo que se mostra nos discursos sobre direitos
humanos. Logo, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe
entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. O
processo interpretativo deixa de ser reprodutivo e passa a ser produtivo,
coadunando-se, assim, com as balizas obrigatórias de toda análise através
de uma teoria crítica. Em assim sendo, afasta-se, por exigência e coerência
lógica, qualquer método(logia) dogmático de construção textual. Ao lado
disso, destaca-se que a escolha dos referenciais teóricos não significa
exaustão; há, ao lado dos autores utilizados, outros de contribuição
destacada, mas que, por limitações formais do texto e opção digressiva,
acabaram não sendo inseridos.
O que são os direitos humanos, qual a sua importância e verdadeiro
sentido e, principalmente, quem sãos os responsáveis pela sua
concretização, são as respostas que aqui seguem – direcionadas,
notadamente, aqueles que questionam “onde estão os direitos humanos?”.
650
2. A TÍTULO DE PRÓLOGO: a controvérsia sobre o que são direitos
humanos – (desa)fixando um sentido

O que são direitos humanos? Há, em máximo resumo (pois a teoria é


muito mais profunda e complexa do que se sintetiza neste parágrafo), ao
menos dois grandes eixos que tentam responder a tal pergunta de modo
mais técnico e construído. No primeiro eixo, reside uma ideia mais
“racionalizada e rígida” do que são direitos humanos, sendo eles aqueles
direitos que estão positivados nos tratados (pactos, declarações, etc)
internacionais e que podem ser trazidos para as Constituições dos países na
forma de direitos fundamentais (SARLET, 2010, p. 29). É nesta área que
também reside o entendimento de que direitos humanos não são direitos
propriamente ditos, mas, sim, aspirações, valores, ideais de uma dada
sociedade, em um determinado tempo. Direitos seriam apenas àquelas
aspirações que, positivadas, são exigíveis de uma autoridade política,
integrantes, portanto, da ordem jurídica de um determinado Estado
(MACHADO, 2013, p. 254).
No segundo eixo, defende-se a ideia de que direitos humanos são
direitos (e deveres) imanentes à condição humana independentemente de
qualquer legislação que os liste ou autoridade que os tutele; existem,
portanto, sem a necessidade de estarem escritos em quaisquer documentos,
pois são, assim, anteriores a eles, sendo considerados direitos humanos,
justamente pelo fato de pertencerem à condição humana e não por estarem
positivados. Mais modernamente advoga-se no sentido de que os direitos
advindos da condição humana não são estanques (imutáveis, atemporais,
absolutos, anespaciais), pois seriam eles dinâmicos no espaço e no tempo
(BEUCHOT, 1999, p. 45-46), uma vez que se reconhece que a história não
tem fim quando se fala em direitos humanos, pois ao mesmo tempo em que
sempre haverá riscos à pessoa humana, em igual medida existirão direitos
inerentes a esses riscos (QUEIROZ, 2002, p. 49).
Existe, contudo, uma terceira via que, de certo modo, costura os dois
eixos e apresenta uma perspectiva bastante adequada para se (re)pensar

651
direitos humanos para além da insuficiente dicotomia direito positivo versus
direito natural. Tal perspectiva, a teor do que propunha Roosevelt (1958),
sinaliza que direitos humanos residem em práticas concretas (pessoais,
sociais, simbólicas, culturais, institucionais) que se opõem a algum tipo de
opressão, plasmadas no respeito integral ao próximo e no exercício pleno da
alteridade, tudo em uma perspectiva de valorização pré-violatória (RUBIO,
2007, p. 14-30), de sorte que direitos humanos repousariam em pequenas
ações, como ajudar alguém a atravessar a rua, e em grandes ações, como a
luta por água potável. Direitos humanos, desta forma, seriam aqueles
direitos reconhecidos (em nível internacional ou nacional) em prol da
dignidade humana, e seriam também aquelas condutas que valorizassem a
condição de seres humanos, praticadas por qualquer um, em suas relações
humanas diárias.
Desta forma, direitos humanos sintetizam-se em situações reais (pois,
direitos humanos não existem em “abstrato”) de respeito à condição humana
do próximo, que são realizadas/desfrutadas no cotidiano e não dependem,
necessariamente, de um ente maior e mais poderoso para sua concretização
(RUBIO, 2007, p. 30). Por certo que os Estados guardam um importante
papel nesta tarefa de tutela (pré/pós violatória), mas não são os únicos
sujeitos a terem a oportunidade de agir. Tal postura, aliás, transforma a
anestesia em sinestesia e sinergia na proteção e promoção dos direitos
humanos, rejeita a ideia de um “rol engessado e dado de direitos humanos” e
abranda o abismo existente entre o violado e o assegurado, entre o dito e o
realizado (RUBIO, 2007, p. 13).
E, perceba-se que, longe de querer “banalizar” a ideia de direitos
humanos, sob a errônea visão de que “tudo é direito humano”, essa
perspectiva visa e atinge o revés, que é uma revisão do “pensar direitos
humanos” que, infelizmente, segue amarrada à uma cultura passiva,
limitada, de impotência e que teimosamente divide direitos humanos em
“teoria” e “prática” sem se dar conta dos prejuízos que tal distinção acarreta
(BARRETO, 2010, p. 19). Se em um lado está o risco da “banalização”, no
outro extremo está o risco do engessamento (standardização) simplista dos
direitos humanos (só são direitos humanos aquilo que nós dizemos para eles
652
que são direitos humanos) (RUBIO, 2010, p. 11).
Mas, afinal, onde estão os direitos humanos?

3. OS DIREITOS HUMANOS ESTÃO NOS “DEFENSORES” DIÁRIOS E


COMUNS E NOS PEQUENOS/GRANDES ATOS DO DIA-A-DIA

Recentemente (2013) Felix Kjellberg propôs (em parceria com o projeto


Charity: Water) uma iniciativa que angariou mais de 15 mil seguidores e
arrecadou U$ 446.462,00 em uma campanha em favor da entrega de
bombas de água potável, sustentáveis e comunitárias para comunidades
carentes de países subdesenvolvidos. Isso possibilitou que – inicialmente –
6.868 pessoas obtivessem acesso a este bem tão caro aos humanos e à
própria vida condigna (CHARITY WATER, 2013).
Mas quem é Felix Kjellberg e o que ele possui de especial para ter
registrado este feito? Felix, cansado de uma espécie de “bulling da
sociedade” , resolveu usar seu carisma e criatividade para fazer o que
gostava: jogar videogame. Inaugurou um canal no Youtube onde faz
gameplays, epitetou-se de “PewDiePie” e, anos depois, é reconhecido como o
“Rei do Youtube” (o canal com o maior número de inscritos e visualizações).
Basicamente: nada de especial. Apenas carisma e criatividade. Felix não é
um grande empresário (tampouco uma grande empresa/corporação); não é
um Estado/Comunidade Internacional; não é uma organização nacional ou
internacional; Felix é um ser humano comum (atualmente mais famoso que
a maioria, é preciso reconhecer) que resolveu promover direitos humanos.
Algo semelhante ocorre no Brasil com o grupo “Doutores da Alegria”
(2013). Trata-se de uma organização civil sem fins lucrativos, que há duas
décadas visita crianças hospitalizadas visando alegrá-las e confortá-las.
Fantasiados de palhaços, brincam de médicos com instrumentos nada
convencionais (cornetas, línguas de sogra, narizes vermelhos, flores de lapela
gigantes, enfim, todo o aparato de um palhaço circense que se preze)
transformando o ambiente hospitalar, florescendo risos nas crianças e
entregando-lhes dignidade através da alegria. Falando-se em hospitais, é
preciso fazer menção ao programa “Médicos sem Fronteiras” (2013), que

653
desde 1971 atua para levar apoio e saúde aos que dela carecem. Hoje são
mais de 34 mil profissionais, de diferentes áreas e nacionalidades, que
compõem a organização que se espalha por mais de 70 países.
No mesmo sentido estão os movimentos sociais populares que
(realmente) aspiram opor-se a algum tipo de opressão – normalmente
reveladas em alguma discriminação e/ou preconceito e em excessos de
poder (econômico, social, sexual, dentro outros). Ditos movimentos (que
representam manifestações sociais/culturais e, em geral, começam não-
violentos, porém pelo descaso da outra parte envolvida tendem a demonstrar
focos de violência) espelham processos de lutas e de ação social que visam
alargar e consolidar espaços de direitos humanos que, para aquele grupo,
em tese, vêm sendo negligenciados em alguma medida. Manifestações desta
monta costumam questionar standards (padrões) oficiais, habituais e/ou
insuficientemente institucionalizados de direitos humanos em uma
sociedade (RUBIO, 2010, p. 17). São exemplos contemporâneos os
“fazendeiros de Larzac”, na França, em 1971 (LIU, 2011), a “luta pela água”
em Cochabamba, na Bolívia, em 2000 (CONSTANCE, 2005), a “queda do
ditador Mubarak”, no Egito, em 2011 (BACHEGA, 2014).
Todavia, existe igualmente algo semelhante a uma “cifra oculta” dos
direitos humanos, composta por todas aquelas pessoas que nas suas
relações humanas rotineiras adotam posturas de (des)concretização de
direitos humanos ou, como quer Rubio (2010, p. 12): seres humanos que
fazem e desfazem direitos humanos a todo momento, em toda relação
humana social. Aquele que ajuda o deficiente visual a caminhar numa
calçada danificada; aquele que auxilia a criança a atravessar a rua; aquele
que corre estender o seu guarda-chuva ao outro que se molha na chuva;
aquele que é generoso ou tolerante com o colega de trabalho; são pessoas
que fazem direitos humanos em pequenos atos que tendem a não ser
noticiados e conhecidos pelos demais. Tratam-se de verdadeiros pequenos-
grandes atos de direitos humanos do cotidiano realizados por pessoas
comuns, em relações recíprocas e solidárias. Representam, em certa medida,
o reconhecer dos direitos do “outro” (BARRETO, 2010, p. 14).
É interessante, em todos esses casos mencionados (reais e hipotéticos),
654
que o primeiro sentimento que se sobressalta no intérprete é que essas
pessoas estavam “ajudando” outras e, de fato, estavam, porém, muito mais
que uma ajuda, essas pessoas comuns estavam concretizando direitos
humanos (pois ninguém há de negar que naqueles casos é perceptível o
direito à liberdade, à igualdade, à saúde, à democracia, enfim, à dignidade
humana) e certamente não porque se sentiram compelidos a cumprir a
Declaração Universal de Direitos Humanos. Não significa dizer, entretanto,
que essas pessoas sempre fazem direitos humanos; significa, sem embargo,
que essas pessoas, naquelas relações humanas concretas, fizeram direitos
humanos. Em outras relações, em sentido inverso e equivocadamente,
poderiam desfazer direitos humanos. É esse movimento (fazer/desfazer) que
revela a dinâmica aberta e ativa dos direitos humanos nas relações humanas
e vice-versa (das relações humanas nos direitos humanos): uma lógica
constante e recíproca.
Essa dinâmica se opõe, em distinta medida, ao senso comum e a uma
cultura simplista acerca de direitos humanos, na medida em que valoriza (e
aclara) que: (1) muito embora os estudiosos e filósofos que trataram da
temática direitos humanos sejam referências privilegiadas no assunto, não
são eles, apenas por teorizarem, que criam os direitos humanos, pois como
se viu direitos humanos se constroem e desconstroem no dia-a-dia, por
todos; (2) não são apenas os eventos históricos e os reconhecimentos oficiais
que fazem e desfazem direitos humanos. Pensar assim seria minimalista e
desconsideraria as pequenas-grandes lutas do cotidiano que nem sempre
são vistas, tampouco tuteladas; e (3) direitos humanos não existem apenas
quando violados e tutelados (ou não) pelo Estado ou pela Comunidade
Internacional (visão pós-violatória). É preciso se pensar direitos humanos em
um duplo sentido: num sentido pós-violatório e num sentido pré-violatório,
com amplo e incisivo destaque para o segundo.
Ao lado da dimensão formal (teórica, normativa, institucional) dos
direitos humanos reside uma dimensão que se realiza corriqueiramente, a
todo o momento, nas relações humanas sociais. Então, sim, direitos
humanos também residem nos “defensores” diários, nas pessoas comuns
que agem concretizando direitos humanos nos pequenos/grandes atos do
655
dia-a-dia.

4. OS DIREITOS HUMANOS TAMBÉM ESTÃO NOS ATOS HISTÓRICOS E


NOS EMBLEMÁTICOS “DEFENSORES” DOS DIREITOS HUMANOS

No ano de 1963, na Cidade de Birmingham, no estado americano do


Alabama, um homem liderou expressivas manifestações pacíficas em prol da
liberdade, dos direitos civis para os negros e da não discriminação e
segregação racial. Era ele Martin Luther King (1929-1968). Todas as
manifestações – notadamente as ocorridas a partir de 1963 – foram
enfrentadas por forças policiais que faziam uso de cães e jatos d´água de
mangueiras de incêndio. Em agosto 1964, King, aos pés do Lincon Memorial,
discursou o seu famoso “I have a dream” para mais de 250 mil pessoas,
advogando a necessidade da tolerância e da coexistência harmoniosa e
pacífica entre brancos e negros, assim como a necessidade do
reconhecimento dos direitos civis aos negros (WHITMAN, 2013).
Ironicamente, 100 anos antes, Abraham Lincoln havia assinado a
Proclamação da Emancipação, abolindo a escravidão; 16 anos antes, os
Estados Unidos havia ratificado a Declaração Universal dos Direitos do
Homem – que nos artigos 1º e 2º preveem a igual dignidade, liberdade e
direitos para qualquer “raça” –; e 10 anos antes, a Suprema Corte americana
havia declarado inconstitucional a política do “Separate but equal” (Brown
vs. Board of Education), que previa que brancos e negros eram iguais, mas
deviam ficar separados. Então, com todos estes antecedentes em prol da
igualdade racial e dos direitos civis, por que Martin Luther King precisou
sair em defesa dos direitos humanos?
Tal como King, outro nome de grande relevância histórica e simbólica
para os direitos humanos foi Gandhi (1869-1948). Reconhecido pelo epiteto
de Mahatma (“grande espírito”), Gandhi foi um emblemático defensor dos
direitos humanos, tendo militado em prol da tolerância religiosa, da
harmonia étnica e da liberdade e da igualdade das mulheres em relação aos
homens. Não obstante tenha se valido da tática da desobediência civil não
violenta (satyagraha) (quiçá justamente por isso), Gandhi foi inúmeras vezes

656
aprisionado. É reconhecidamente uma inspiração iluminada no assunto
direitos humanos (LELYVELD, 2012).
Há também na história contemporânea o homem que, ao todo, ficou 27
anos da sua vida preso (cerca de uma década em uma cela de 4m²): Nelson
Mandela (1918-2013). Mandela foi o grande nome da luta contra a
segregação racial na África do Sul e em prol dos direitos civis e políticos da
comunidade negra. Em geral adepto das ações não-violentas, após um
episódio trágico resolveu valer-se da violência para fazer frente ao regime sul
africano: foi preso e condenado à prisão perpétua. Durante a sua reclusão,
reviu conceitos e voltou a apoiar ações não-violentas. Por forças civis e
políticas internacionais e locais, Mandela foi solto no ano de 1990,
recebendo o Nobel da Paz em 1993 e tornando-se Presidente em 1994 e o
principal nome responsável pelo fim do regime segregacionista daquele país
(MANDELA, 2012, p. 361-477/523-580).
Por fim, mas não por último, Eleanor Roosvelt (1884-1962) que, sem
embargo de todos os seus esforços em prol dos direitos das mulheres, é
reconhecida pelos seus efetivos esforços para a aprovação da Declaração
Universal dos Direito Humanos (BEASLEY; SHULMAN; BEASLEY, 2001,
535-540).
Pode-se dizer que esses são alguns dos “paladinos dos direitos
humanos” (YOUTH FOR HUMAN RIGHTS, 2014), representando alguns dos
marcos personificados na história dos direitos humanos que não só fizeram
a diferença como se tornaram gigantescas referências públicas na temática
“luta contra algum tipo de opressão e defesa dos direitos humanos”. Por
certo que se valeram de referenciais teóricos proporcionados por outros
grandes nomes (os “paladinos teóricos dos direitos humanos”), como Locke,
Hobbes, Rousseau e Kant – para ficar apenas nesses – que teorizaram as
bases do pensamento de valorização e respeito aos direitos humanos.
A história, em termos de direitos humanos, parece ser espiralada,
intervalando momentos de tensão, crise e bonança, num ciclo contínuo que
justifica o aparecimento de tantos nomes simbólicos nesta luta. Foram e são
essas pessoas que demonstram que o sucesso dos direitos humanos não
depende exclusivamente da vontade política dos Estados – apesar do
657
secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, asseverar o contrário (ONU 2013).
A propósito, cumpre o registro do fato notório de que não raro é “contra”
o próprio Estado que se trava a luta pela conquista de tais direitos; mesmo
se defendendo a sua natureza inata ao ser humano, os direitos humanos
dificilmente foram e são reconhecidos sem um processo de luta, merecendo-
se destacar que, apesar de não serem “concessões” estatais, pois o ato que
os institucionaliza opera justo “reconhecimento”, isso não afasta o seu
caráter de conquistas. A história é a prova definitiva de que os direitos têm
sido praticamente arrancados do poder estatal; os deveres a que lhes
correspondem foram, neste sentido, efetivamente impostos ao Estado. E é
preciso assinalar a coragem e a determinação daqueles que lutaram no
passado para a formalização de tais direitos, pois para garantir o direito de
greve, por exemplo, as pessoas tiveram primeiro que realizar greves (greves
as quais não tinham direito). Ou seja, as pessoas tiveram que reunir poder
social e político para alterar a relação de forças condicionante e pré-existente
(CAPELLA, 1993, p. 148).
Então, sim, é possível dizer que nessas emblemáticas figuras, ou pelo
menos nos seus ideais e nas suas lutas, residem direitos humanos.

5. IGUALMENTE, OS DIREITOS HUMANOS ESTÃO NOS DOCUMENTOS E


INSTITUIÇÕES OFICIAIS

No Brasil, entre os anos de 1983 e 1984, Maria da Penha Maia


Fernandes sofreu dois ataques do seu companheiro que intentava matá-la.
No primeiro, Maria foi alvejada enquanto dormia. Sobreviveu, mas ficou
paraplégica. Na ausência de “leis” que lhe alcançassem alguma proteção,
Maria se viu obrigada a voltar para a casa de seu companheiro. Tempos
depois do primeiro ataque ocorre o segundo: o companheiro de Maria tenta
eletrocutá-la enquanto a mulher paraplégica tomava banho. Sobreviveu.
Tão-só em setembro de 1984 o companheiro de Maria é denunciado pelo
Ministério Público por tentativa de homicídio. Inicia-se um processo judicial
que, entre prazos, recursos, anulações de atos e julgamentos, somente
encontra seu termo em 2002. Antes disso, contudo, Maria, em agosto de

658
1998, inconformada com a sua situação, com o descaso do Estado brasileiro
(o qual voltaria a ser verificado na CIDH) e com a morosidade do Poder
Judiciário, protocoliza uma denúncia na Comissão Internacional de Direitos
Humanos, a qual engendra uma “recomendação” para o Estado Brasileiro,
no ano de 2001. Diante disso, no ano de 2006, atendendo às recomendações
da CIDH, às determinações Constitucionais e aos predicados de direitos
humanos, o Brasil inaugura a Lei “Maria da Penha” (11.340/06), que dispõe
sobre a tutela e a proteção nos casos de violência doméstica contra as
mulheres (CAMPOS, 2008, p. 19-22).
Para ficar neste território brasileiro, outro caso é o do trabalho infantil.
O PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mais atual realizado
pelo IBGE, no ano de 2010 (e publicado em 2013 [IBGE, 2013]), revelou
sobre a temática que existiam cerca de 3,7 milhões crianças e adolescentes
entre 5 e 17 anos trabalhando. O número, apesar de uma melhora
significativa em relação ao ano de 2002, quando havia cerca de 7,4 milhões
de crianças e adolescentes trabalhando, continua longe do cumprimento das
predisposições de direitos humanos sobre o assunto. Outro número
negativamente interessante é que dessa quantidade de crianças e
adolescentes, cerca da metade possui jornada de trabalho de 40 horas ou
mais.
O que há de comum em ambos os casos? Que não obstante a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em ambos os relatos, a
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher (1979) , no caso da Maria da Penha, e a Convenção sobre os direitos
da Criança (1989) , no caso do trabalho infantil, já reconhecerem direitos
humanos a esses grupos e determinaram que os Estados emprenhem
esforços na proteção e promoção deles; ainda assim as violações ocorreram
(e ocorrem) e foram determinantes para que o Estado empenhasse-se para
(tentar) resolver – não obstante os documentos normativos.
E, infelizmente, a história é farta neste sentido. Muitos anos antes, a
Carta Magna (1215), a Petição de Direito (1628), a Declaração de
Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789) e, ainda, mais recentemente a própria
659
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e algumas Constituições
adjetivadas de democráticas, todos documentos que buscavam a proteção
aos direitos humanos, acabaram por ter sua efetividade comprometida pela
vontade política e jurídica, pelos limites econômicos, pelos labirintos
normativos e das instituições dos Estados, pela cultura social de anestesia e
visão estreita e limitada em relação dos direitos humanos . Douzinas (2009,
p. 27) chega a afirmar que neste século obcecado por direitos humanos é
onde se encontram o maior número de violações.
De fato, efetivamente, os direitos humanos também se encontram em
documentos internacionais (tratados, pactos, declarações e afins) e nas
Constituições de alguns países, representando uma parte da dimensão
formal dos direitos humanos (aspecto normativo). Igualmente, os direitos
humanos estão nas ações das instituições e poderes dos Estados e da
Comunidade Internacional (aspecto institucional). Para se ter como exemplo
inicial, pode-se pensar que a Constituição brasileira em seu vasto rol de
direitos fundamentais prevê inúmeros direitos humanos. A própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos é um ótimo exemplo de uma
lista de direitos humanos que devem ser concretizados – não obstante seja
comum referir o seu caráter meramente “declaratório”. Há, neste sentido,
legislações – internacionais e nacionais – que preveem direitos humanos
para as mais variadas carências humanas e que carecem ser tuteladas (por
ações pontuais ou por políticas públicas) em grande medida pelo Estado
e/ou pela Comunidade Internacional, dado a sua força, alcance e poder de
organização.
E, o que há de comum nestas esferas – internacional/nacional e
normativa/institucional – é o fato de que tais direitos se aplicam a todos
indistintamente (cada qual em suas esferas) e encontram dificuldade de
materialização na prática para todos. Se foi difícil colocar os direitos
humanos nos “papeis”, mais difícil está sendo tirá-los do papel para o nível
da concretização, simploriamente porque as palavras e as letras não
bastavam para a proteção e a promoção dos direitos humanos.
Muito em razão disso se criou a falsa ideia de que “na teoria” é de um
jeito, mas “na prática” a realidade é outra. Tal visão sobre direitos humanos
660
é minimalista e traz prejuízos incontáveis para todos. Assemelha-se a defesa
sobre a programaticidade dos direitos fundamentais sociais que por muito
tempo manteve a realização destes direitos num estado letárgico que
impulsionava constantes descasos e violações a eles e culminava no prejuízo
concreto a seres humanos. Os espaços normativos e institucionais dos
direitos humanos são elementares para sua realização, mas ainda assim, se
trabalharem com lógicas pós-violatórias, tendem a perpetuar essa cultura
estreita e falaciosa e a serem insuficientes (ou deficientes). Veja-se “na
prática” o que efetivamente ocorre: quantas demandas judiciais para a tutela
dos direitos humanos são intentadas com uma perspectiva pré-violatória
(antes que o dano ocorra)? E quantos e quantas vezes direitos humanos são
violados todos os dias sem que se haja notícia para que sejam tutelados
(RUBIO, 2010, p. 14-15)?
Outro problema que daí advém é a ideia de “delegação” da concretização
dos direitos humanos para os espaços normativos e institucionais que
engendra, no mínimo, duas consequências preocupantes. A primeira delas é
a criação de listas engessadas de direitos humanos por parte dessas figuras
jurídicas em detrimento da pluralidade e mobilidade que os direitos
humanos carecem e da visão unitária sobre a dignidade humana
(DOUZINAS, 2009, p. 28-29/379). O que se tem em concreto é que só são
direitos humanos aquilo que eles dizem para nós que são direitos humanos.
Ou, como quer Barreto (2010, p. 2), ocorre a fetichização que aprisiona os
direitos humanos. Surge uma barreira que divide o que “é” do que “não é”
direito humano e que separa eles de nós (quando isso, efetivamente, não
existe). A segunda, consequência da primeira, é que se esquece que direitos
humanos se (des)constroem nas relações humanos sociais diárias em
pequenos/simples e em grandes/complexas ações de pessoas comuns (ou
não). A concretização de direitos humanos não é exclusividade das
instâncias legisladas e das instituições (supra)estatais. Estes dois problemas
alimentam a cultura simplista, limitada e anestésica sobre direitos
humanos, aleijando sua plena potencialidade (RUBIO, 2010, p. 15-16).
Muito embora se deva prestar atenção no alerta realizado, é preciso
reconhecer que inúmeros Estados têm conseguido através da ação política e
661
judicial executar ações exitosas ou, pelo menos, parcialmente exitosas, que
favorecem os direitos humanos. Exemplos bastante evidentes disso são as
políticas públicas voltadas para a proteção e a promoção da diversidade, da
saúde, do acesso à justiça, da cidadania, da igualdade – para ficar apenas
nestas – e as decisões judiciais que são de modo democrático e
substancialmente alinhadas com os direitos humanos e com os direitos
fundamentais. De outro lado, porém, é preciso perceber que quanto maior
for a consciência e a cultura sobre direitos humanos, menor será o número
de denúncias e demandas judicias (RUBIO, 2007, p. 16), já que ou existirá a
tutela pré-violatória ou existirá o respeito aos direitos humanos de modo
espontâneo.

6.HÁ UMA CULTURA SENSO COMUM DOS DIREITOS HUMANOS (?)

Onde estão os direitos humanos? Todos os dias uma nova razão para a
velha e mesma pergunta: um cidadão, um trabalhador (desde que não
tenham antecedentes criminais), um policial, um adolescente (desde que não
seja um “menor infrator”) assassinados e lá vem a pergunta de algum
incauto com a frase afiada: “e agora, onde estão os direitos humanos?”. Para
aquele que ainda não percebeu:
(1) Historicamente, os direitos humanos estavam mundo afora servindo
como inspiração para muitos ativistas (alguns que inclusive sacrificaram
suas vidas ou perderam boa parte em celas de 4m²) contra todo tipo de
opressão de um poder dominador, para que todos pudessem ter liberdade,
igualdade, democracia, afim de que a todos fossem reconhecidos algo tão
básico como o direito à vida e a liberdade de expressão para que, por
exemplo, todos pudessem usar suas sempre interessantes opiniões nas
redes socais, inclusive para maldizer os direitos humanos. Enfim, toda a
gama de direitos humanos (e fundamentais) já reconhecidos e conquistados
à custa de muita luta e sofrimento e que, ironicamente, carecem ser
ratificados cotidianamente.
E aqui, aliás, reside uma das maiores construções teóricas em direitos
humanos, qual seja, a de que todos os homens são dotados de inerente e

662
igual dignidade (SARLET, 2011, p. 52-53). Uma visão romântica que oculta
sua verdadeira essência de que o que é ínsito e igual é o direito de ter
reconhecida, respeitada, protegida e promovida a dignidade humana, ou
seja, o direito de ter dignidade humana. Com isso, afirma-se que a dignidade
humana realmente existe – não só no plano jurídico como adverte Sarlet
(2011, p. 50-51) –, mas que é algo que se conquista, se defende e se mantém
ao longo da existência humana.
(2) Efetivamente, os direitos humanos estão por aí, em todos os lugares!
Seguramente na sua cidade, plasmados em trabalhos voluntários, ações
sociais, políticas públicas, protestos, em passeatas e paradas, e em boas
ações. Outros, por sua vez, estão nas condutas de professores e alunos que,
em sala de aula estão tentando transformar alunos e colegas em cidadãos
responsáveis e conscientes em relação aos direitos humanos.
Direitos humanos não se tornam mais ou menos importantes pelo fato
de estarem escritos em qualquer lugar; isso faz com que eles se tornem mais
conhecidos apenas. Direitos humanos se tornam mais ou menos
importantes quando se percebe que esse ou aquele é elementar para a
dignidade de alguém. Daí porque realmente e no fundo, não importa se a
pessoa “X” conhece ou não a Declaração Universal dos Direitos Humanos se
ela for um sujeito predisposto aos direitos humanos. Se aquele rol
exemplificativo de direitos humanos não é cumprido de modo espontâneo e
natural, conhecê-lo não tornará a pessoa “X” mais humana e cumpri-lo,
apenas por isso, se torna algo artificial que não se presta para um alteração
da cultura senso comum de direitos humanos. Evidentemente que o
cumprimento forçado (pelo Estado) é melhor que o descumprimento e, em
alguma medida, auxilia a alteração cultural. Se humanos fazem direitos
humanos a recíproca é também verdadeira: direitos humanos fazem
humanos (DOUZINAS, 2009, p. 375). Aliás, os direitos humanos se não
estão em você, certamente estão por você.
Dita cultura senso comum apresenta como características mais
marcantes: (a) a crença de que os direitos humanos só existem quando
violados; (b) a crença de que os direitos humanos só existem e são tutelados
para determinados grupos (como os apenados e os homoafetivos); (c) a
663
incoerência e o antagonismo de princípios e de discursos (para o filho do
branco e rico é certo ser da “geração canguru”; para o filho do negro e pobre
é errado, pois devia estar trabalhando para melhorar de vida; para o casal
homoafetivo é errado (e feio) andar de mãos dadas no shopping; para o casal
heterossexual é certo (e bonito) qualquer forma de amor); (d) o entendimento
de que a discriminação velada não é discriminação; (e) a dificuldade de
praticar a alteridade; (f) a crença em valores absolutos de certo e errado, e o
uso de generalizações como fundamento (“todo mundo sabe...”; “ninguém faz
isso...”); (g) a hipocrisia e o discurso de superioridade como nota recorrente
nas manifestações; (h) a dificuldade de aceitar a pluralidade, a diversidade e
a mudança; (i) a tendência de “sujeitar” os direitos humanos a consciência
pessoal ou de um determinado grupo (“os direitos humanos são aquilo que
eu (nós) acho que são e se aplicam para aqueles que eu (nós) acho que se
aplicam” - esquema S-O, da hermenêutica filosófica); e (j) a dificuldade de
considerar em suas reflexões eventos e heranças histórico-culturais-sociais
(efetivados em discursos como “outro holocausto é impossível” ou “a mulher
sofre preconceito de gênero, mas eu por ser homem também sofro” –
lembrando que ser homem nunca foi tido como um demérito na história e na
cultura ocidental).
A questão é: e se tudo se invertesse? Se ser branco, rico, heterossexual,
magro, enfim, aquele dentro dos “padrões” (de quem?) fosse errado e feio?
Estariam essas mesmas pessoas sustentando o senso comum sobre direitos
humanos? Talvez se dessem conta de que não existe eles e nós... sempre foi
e é “nós”; de que é preciso ter medo de não ter direitos humanos; de que
direitos humanos nunca foram exclusividade da lei ou do sistema jurídico;
de que direitos humanos têm a ver com coisas pequenas e simples como
fazer o bem, respeitar, tratar as pessoas dignamente e também com coisas
grandes e complexas e tão importantes que passam desapercebidas no dia-
a-dia, como liberdade e igualdade; de que o fato de uma pessoa ser ateu ou
gay não quer dizer que ela é má, doente ou menos humana. E o mesmo se
pode dizer dos seus gostos, características físicas e preferências em geral; de
que o problema não é a lei, mas sim o preconceito e as pessoas ignorantes e
intolerantes; de que se pode perder mais do que se imagina em termos de
664
direitos humanos; e, finalmente, de que os direitos humanos sempre foram
seus, meus e de qualquer outra pessoa, independentemente de qualquer
coisa: não eram do bandido ou do pobre apenas (BOLESINA, 2014, p. 142-
143).
Portanto, já não se trata apenas de aumentar a consciência e a cultura
de promoção de direitos humanos, mas, sim, de perceber que somos todos
seres humanos carecedores de direitos humanos, que demandam uma
cultura onde esses direitos são percebidos a partir de uma lógica
emancipadora, pré-violatória e que pretende contribuir com os níveis de
humanização das práticas humanas sociais (RUBIO, 2007, p. 16/31). Daí
porque se reafirme que direitos humanos sintetizam-se em situações reais
(pois, direitos humanos não existem em “abstrato”), do cotidiano, práticas
pequenas e grandes, simples e complexas, de respeito à condição humana, e
que não dependem, necessariamente e exclusivamente, de um ente maior e
mais poderoso para sua concretização, como o Estado, pois podem ser
executados por pessoas comuns. Ou, como perspicazmente resume Barreto
(2009, p. 268): “direitos humanos encontram-se presentes em todas as
manifestações humanas”. Tal visão transforma a anestesia em sinestesia e
sinergia na proteção e promoção dos direitos humanos; ataca a trivialização
dos direitos humanos (FERRAZ JÚNIOR, 1990, p. 99); rejeita a ideia de um
“rol engessado e dado de direitos humanos” e abranda o abismo existente
entre o violado e o assegurado, entre o dito e o realizado.
Então, onde estão os direitos humanos? Em todos os lugares,
certamente.

7.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conta-se que em Nova York, no bairro Bronx, há um zoológico com um


grande pavilhão que abriga exclusivamente primatas, de diferentes e
variadas espécies. Contudo, o que acaba chamando mais atenção é uma
jaula que fica isolada, bem protegida e fechada com grades extremamente
grossas. Neste local, há uma etiqueta que anuncia estar ali “o primata mais
perigoso do planeta”. Ao olhar por entre as espessas barras de ferro, com

665
surpresa e espanto os visitantes veem sua própria imagem refletida em um
espelho; em seguida um letreiro informa que aquela espécie matou mais do
que qualquer outra espécie conhecida sobre o planeta (MATURANA;
VARELA, 2007, p. 29).
Diante disso e de tudo o que essas páginas reúnem, será mesmo que a
grande questão é onde estão os direitos humanos? Como se viu, estão nos
“defensores” diários e comuns e nos pequenos/grandes atos do dia-a-dia,
estão nos atos históricos e nos emblemáticos ativistas, estão nas normas
previstas nas constituições e nos tratados internacionais, bem como nas
instituições do Estado, estão nas organizações como a ONU, a OEA e as
ONGS, enfim, estão em todos aqueles que se dedicam a fazer de um discurso
inspirador, uma realidade mais justa.
A história se repete, pois em tempos de liberdade dos quais se vive o
apogeu, estudos demonstram que nunca houve tanto trabalho escravo. Em
tempos de igualdade (formal, ao menos) há intolerância, preconceito e ódio.
Em tempos de globalização há exclusão social. Em tempos de progresso há
desigualdade entre ricos e pobres em níveis nunca antes tão elevados, há
fome e miséria.
Onde estão os direitos humanos? O texto ajuda a responder, sinaliza;
no entanto, há muito mais envolvido. Mas esses direitos, como toda a
abstração jurídica, dependem de seres humanos, dependem da humanidade,
pois como visto, não é de hoje que é preciso lutar para que a realidade
sonhada aconteça. Recordando o quase desabafo de Capella (1993, p.140),
as pessoas têm lutado por democratização política, contra a opressão e a
desigualdade, e têm conseguido direitos. Porque não é exatamente por
direitos que luta(va)m, assim como não é o mesmo ter direito ao trabalho e
ter um posto de trabalho. Os problemas que aqui se põem derivam
justamente do fato de que o primeiro não supõe necessariamente o segundo.
O reconhecimento dos direitos humanos é, destarte, um primeiro passo,
uma primeira e importante vitória. Não significa, contudo, que já seja hora
de a humanidade abandonar seus propósitos de justiça, afinal,
diferentemente de um conto de fadas em que o enredo sempre acaba com o
“final feliz”, a história da humanidade possui muitos finais – diários finais de
666
pessoas reais –, mas só um ponto final, que só aparece quando se acabar a
humanidade.

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669
MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS COMO MECANISMO DE
CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E GARANTIA DOS DIREITOS
HUMANOS

Luana Nascimento Perin1


Eloísa Nair de Andrade Argerich2

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo propiciar aos leitores o


entendimento sobre a democracia no Brasil e, principalmente, sobre a
democracia participativa, a qual desencadeia os movimentos sociais, tanto
urbanos quanto rurais, para a garantia dos direitos humanos. Entretanto,
serão aprofundados somente os movimentos sociais urbanos, pois estes
ganharam maior força no atual cenário devido aos novos meios de
comunicação, tais como a Internet, que deu margem à criação do Facebook,
do Twitter, e demais redes sociais.
O estudo não destaca apenas os pontos favoráveis dessa nova era,
mas também enfatiza os cuidados necessários com o sistema informacional
na Internet, uma vez que as informações passam por diversos leitores e são
transmitidas, muitas vezes, de maneira equivocada e contraditória aos reais
acontecimentos.
Na maioria das vezes os movimentos sociais contemporâneos são
organizados nas redes sociais e, por esse motivo, é preciso ficar atento à
realidade, pois para ser entendido como “movimento social” ele deve possuir
um objetivo com uma causa comum, e reivindicar, por exemplo, reforma
agrária, casas populares, pavimentação asfáltica, iluminação, garantia dos
direitos humanos, etc. Um dos maiores exemplos a serem citados foi o caso
das “Diretas Já”, movimento realizado em 1983/1984, e que possuía como
objetivo a restauração da democracia no Brasil por meio das eleições
presidenciais. Com o Golpe Militar de 1964 a Presidência da República
passou a ser comandada por militares, e desde então não houve novas

1Egressa do curso de Direito. E-mail: luana.perin@unijui.edu.br.


2Docente da disciplina Direito Constitucional II, Departamento de Ciências Jurídicas e
Sociais (DCJS) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(Unijuí). E-mail: argerich@unijui.edu.br.
670
eleições presidenciais, bem como, o desrespeito aos direitos humanos, pois
que aqueles que não aceitavam o modo em que os cidadãos eram tratados, e
reivindicavam seus direitos, eram torturados, na maioria das vezes, até a
morte.
Este artigo pretende verificar a importância dos movimentos sociais
urbanos para a consolidação da democracia e dos direitos humanos, cujo
maior evento, ocorrido entre 1983/194, reuniu milhares de pessoas que
reivindicavam um mesmo fim, com o objetivo de trazer benefícios para todos
os cidadãos brasileiros.

2. DEMOCRACIA E MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS

Para melhor entendimento acerca dessa temática faz-se necessária


uma abordagem sobre os aspectos que sustentam a democracia para,
posteriormente, contextualizar os movimentos sociais urbanos. É
fundamental compreender a origem e o conceito dos movimentos sociais,
suas características e fundamentos, haja vista que as lutas pela
redemocratização do país são originárias de movimentos sociais, divulgados
pelos meios de comunicação em redes ou por grupos sociais, pelos excluídos
ou por aqueles que têm suas demandas não atendidas pelo governo.
Os movimentos sociais, segundo Gohn (2013, p. 40), “constituem-se
como um dos sujeitos sociopolíticos presentes no associativismo no Brasil,
porque eles foram, e ainda são as bases de muitas ações coletivas no país a
partir de 1970.” Tais movimentos sociais transitam pelos espaços não
consolidados pelo poder político, que não consegue efetivar o atendimento
das demandas dos atores sociais na luta por seus pleitos, e se encontram
desejosos de expressar sua desconformidade com a ação política e/ou social.
Estes atores sociais surgiram na sociedade civil brasileira após os
anos 1970, sem a autorização do Estado e, num primeiro momento, contra o
próprio Estado. Constituíram, assim, uma participação à revelia dos
interesses estatais, e se consolidaram como um novo espaço de participação
democrática e das relações sociopolíticas e sociais.
Sobre esse tema Gohn (2011, p. 303) assevera que:
671
[...] os novos atores sociais que emergiram na sociedade civil
brasileira, após 1970, à revelia do Estado, e contra ele num primeiro
momento, configuraram novos espaços e formatos de participação e
de relações públicas. Estes novos espaços foram construídos
basicamente pelos movimentos sociais, populares ou não, nos anos
70-80 (Gohn, 1991); e nos anos 90 por um tipo especial de ONGs
que denominamos anteriormente de cidadãs, ou seja, entidades sem
fins lucrativos que se orientam para a promoção e para o
desenvolvimento de comunidades carentes a partir das relações
baseadas em direitos e deveres da cidadania (Gohn, 1994).

Os movimentos sociais podem ser definidos como fenômenos


históricos, decorrentes das lutas de classes. Com enfoque nas suas
necessidades, os atores sociais buscam com suas ações diretas e discursos,
organizados ou não, obter visibilidade e chamar a atenção para as
dificuldades que estão condicionadas aos problemas do cotidiano, na busca
por melhores condições de vida e de trabalho.
Apesar das variadas teorias sobre os movimentos sociais, Gohn
(2004, p. 343, grifo da autora) sustenta que "[...] Nunca haverá uma teoria
completamente pronta e acabada sobre eles (movimentos sociais).Os
movimentos são fluídos, fragmentados, perpassados por outros processos
sociais.”
Paulo Silvino Ribeiro ([s.d.], [s.p.]) conceitua os movimentos sociais
como a ação coletiva de um grupo organizado “[...] que objetiva alcançar
mudanças sociais por meio do embate político, conforme seus valores e
ideologias dentro de uma determinada sociedade e dentro de contextos
específicos, permeados por tensões sociais.”
É possível considerar, então, que os movimentos sociais lutam por
melhorias das condições de vida e de trabalho do cidadão, mas,
principalmente, buscam a realização de seus anseios, a construção de uma
identidade que visa, também, à transformação da sociedade.
A abordagem deste estudo pretende considerar apenas a história dos
movimentos sociais urbanos dos últimos 20 anos, o que significa que do
universo dos estudos sobre os movimentos a preocupação está em mapear
apenas uma faceta dessas mobilizações.
Ao demarcar as diferenças entre os movimentos sociais, a fim de lhes

672
conferir identidade própria, destaca-se que “O repertório de lutas
construídas por eles demarcam interesses, identidades, subjetividades e
projetos de grupos sociais que não só mobilizam as pessoas, mas mobilizam
ideias e valores que contribuem para impulsionar mudanças sociais.”
(GOHN, 2013, p.40-41).
Cumpre registrar que no final dos anos 70, segundo Gohn (2011, p.
281):

[...] no Brasil, quando se falava em novos movimentos sociais, em


encontros, seminários e colóquios acadêmicos, tinha-se bem claro de
que fenômeno se estava tratando. Era sobre os movimentos sociais
populares urbanos, particularmente aqueles que se vinculavam às
práticas da Igreja Católica, na ala articulada à Teologia da
Libertação. A denominação buscava contrapor os novos movimentos
sociais aos ditos já velhos, expressos no modelo clássico das
sociedades amigos de bairros ou associações de moradores. O que
estava no cerne da diferenciação eram práticas sociais e um estilo de
organizar a comunidade local de maneira totalmente distinta.

Embora seja um equívoco, a relação dos movimentos sociais urbanos


com o Estado era vista como uma rebelião ou oposição. Na realidade esses
movimentos buscavam mudanças sociais nos projetos políticos, sociais e
econômicos apresentados pelo governo.
Analistas e consultores de organizações internacionais consideram os
movimentos sociais como elementos e fontes de inovações e mudanças
sociais. Não se pode olvidar, contudo, que estes movimentos “[...] detêm um
saber decorrente de suas práticas cotidianas, passíveis de serem
apropriadas e transformadas em força produtiva.” (GOHN, 2013, p. 41).
Os movimentos sociais populares urbanos sempre ocuparam um
papel de destaque na sociedade. Nesse sentido, Gohn (2011, p. 282)
assevera que" [...]os movimentos sociais populares urbanos tinham papel de
destaque. Eles eram vistos como fontes de poder social. A relação dos
movimentos com o Estado era vista em termos de antagonismo e oposição".
O papel exercido pela Igreja na estruturação dos movimentos sociais
urbanos consistia, principalmente, em ser formadora de opinião, pois “a
relação da Igreja era usualmente tratada apenas em termos de apoio ou de
matriz formadora/constituidora das novas forças sociais” (SADER apud

673
GOHN, 2011, p. 283), o que se modificou a partir dos anos 80.
Progressivamente, os movimentos sociais passaram a ter outro
referencial e a serem fortemente influenciados pela política estatal. Destaca-
se que a história e a sociedade não mostram que é pela articulação dos
grupos que se pode perceber as mudanças no cenário sociopolítico,
econômico e cultural.
Com efeito, é notável o que Gohn (2011, p. 283) apresenta sobre
essas mudanças ao observar que:

As mudanças na conjuntura política no início dos anos 80 vieram a


alterar o cenário. No campo popular começou-se a indagar e a
questionar o caráter novo dos movimentos populares. No campo das
práticas não exclusivamente populares, iniciou-se o interesse, por
parte dos pesquisadores, por outros tipos de movimentos sociais, tais
como o das mulheres, os ecológicos, os dos negros, índios, etc.
Foram movimentos que ganharam expressão naquela década,
embora fossem lutas já antigas que ressurgiram no Brasil no final
dos anos 70. Em alguns casos estiveram articulados à luta popular,
como no caso das creches e de algumas alas do movimento
feminista.

As mudanças na conjuntura política e social brasileira e as políticas


participativas possibilitam a compreensão de que os movimentos sociais
urbanos no Brasil sempre estiveram presentes e atuantes, mas ganharam
força neste período, quando uma grande parcela de desempregados do setor
produtivo privado saíram às ruas para reivindicar que a agenda pública e
governamental contemplasse políticas públicas de desenvolvimento. Também
contribuíram para o avanço quantitativo das mobilizações da década de 80 o
surgimento de grandes centrais sindicais e o aparecimento de entidades
qualificadas como movimentos sociais, os quais realizam articulações para
implementar seus objetivos.
O Estado nem sempre foi adversário dos movimentos sociais, mas
seu principal interlocutor, notadamente quando, nos anos 90, ocorreu “o
aprofundamento do processo de transição democrática, com a ascensão de
líderes da oposição, de vários matizes, a cargos no parlamento e na
administração de postos governamentais [...]” (GOHN, 2011, p. 288),
enfatizando a cidadania e a exclusão social como categorias básicas para a
sustentação dos movimentos sociais.
674
Os elementos básicos que sustentaram os movimentos sociais
urbanos na década de 90 foram direcionados às ações que envolvem a
cidadania coletiva e a exclusão social. Desta forma, é imprescindível verificar
a análise efetuada por Gohn (2011, p. 288) sobre o tema, ao observar que no
plano das análises, os anos 90 enfatizarão duas categorias básicas: a
cidadania coletiva e a exclusão social. A primeira, já presente na década
anterior, apresentará como novidade pensar o exercício da cidadania em
termos coletivos, de grupos e instituições que se legitimaram juridicamente a
partir de 88, e que têm de desenvolver um novo aprendizado, pois não se
trata apenas de reivindicar, pressionar ou demandar.
Ao dar ênfase às categorias dos excluídos da cidadania coletiva,
cientistas políticos, dentre eles Touraine, Marshall e Dahrendorf, afirmam
que a qualidade do conflito existente nos movimentos sociais se modificou,
não ocorrendo mais em torno das diferenças e desigualdade sociais. Elas
passam, sim, a se restringir à participação cívica nas decisões políticas,
econômicas ou sociais, tomada pelos governantes, quando envolvem direitos
e obrigações e a precariedade de serviços essenciais prestados à população
(apud GOHN, 2011, p. 289).
Neste cenário, Dahrendorf (apud GOHN, 2011, p. 289) destaca que:

[...] a luta para se ter direitos de cidadania para todos os seres


humanos implica a construção da sociedade civil geral sob o governo
da lei. Atualmente as barreiras de privilégios continuam a ser a
questão fundamental, e os “cidadãos” meramente ganharam uma
nova posição, mais vantajosa, na luta por maiores chances na vida.

Diante das lutas realizadas pelos movimentos sociais urbanos


visando à construção de uma sociedade mais justa e solidária é inegável que
o Estado passa a ser o elemento responsável pela coesão social. Segundo
Castells (apud GOHN, 2011, p. 295), “Ele tem a capacidade de regular as
relações políticas de classe, desempenhando um papel de árbitro [...]”, o que
confirma que os movimentos sociais organizam-se com a finalidade de lutar
pelos seus ideais e exigir o cumprimento das políticas governamentais
relativas aos direitos fundamentais.
Os movimentos sociais apresentam características gerais e
675
fundamentos que variam de tempos em tempos, como se observou na
análise dos anos 70 a 90. Ademais, apresentam uma trajetória que
ultrapassa as questões sociais e envolve questões políticas e econômicas.
É interessante observar que a trajetória dos movimentos sociais no
Brasil nos últimos 20 anos tem como paradigma as teorias não só norte-
americana e europeia, mas também latino-americana. Concentra-se,
principalmente, nos movimentos sociais libertários ou emancipatórios, nas
lutas populares, nas lutas pela terra, dando atenção às possibilidades de
conscientização, mobilização e organização de grupos e movimentos.
No entendimento de Gohn (2011, p. 14)"[...] o paradigma norte-
americano possui, em suas diferentes versões, explicações centradas mais
nas estruturas das organizações dos chamados sistemas sociopolítico e
econômico [...]" e, analisa a ação coletiva, os comportamentos
organizacionais e integração social, diferentemente do paradigma europeu.
Não resta dúvida de que na Europa os movimentos sociais
apresentavam como paradigma uma abordagem teórica bem diferenciada, e
que a abordagem marxista e a dos Novos Movimentos Sociais são
consideradas como um espelho para explicar a identidade dos atores sociais.
Sobre as teorias evolucionistas Gohn (2011, p. 14-15) ressalta que "A
marxista centra-se no estudo dos processos históricos globais, nas
contradições existentes e nas lutas entre as diferentes classes sociais."
Destaca-se que o paradigma latino-americano, mais próximo da
realidade brasileira, apresenta em seus estudos aspectos fundamentais
relacionados aos movimentos sociais libertários ou emancipatórios. Ou seja,
movimentos nos quais índios, negros e mulheres lutam para a sua libertação
e emancipação social com o intuito de obterem maior espaço na sociedade,
consolidando a cidadania participativa. Nota-se que esse paradigma leva à
reflexão de que em países como Bolívia, Venezuela, Argentina e Paraguai, os
novos sujeitos históricos que lutam por uma cidadania coletiva ainda não
conseguiram manter uma estratégia de mobilização, organização e
conscientização para a obtenção de um mínimo para sobreviver com
dignidade (GOHN, 2011, p. 15).
É fundamental adentrar no paradigma dos movimentos sociais no
676
Brasil em virtude da evolução que esses têm apresentado nos últimos 20
anos, e as consequências que têm acarretado no cenário da organização
popular em geral.
O que se observa com os movimentos sociais urbanos no Brasil é que
esses têm se transformado em um forte fenômeno sociopolítico, pois nunca
se viu na história brasileira tantas manifestações coletivas com cidadãos de
todas as classes sociais engajados na luta pela transformação social em
direção a uma sociedade mais justa e livre. Grupos sociais se unem não para
reivindicar direitos, mas para demonstrar sua inconformidade com a
corrupção e com o desvio de verbas públicas.
Como ponto decisivo para essa transformação pode-se citar o
engajamento de trabalhadores informais, formais, intelectuais, professores,
caminhoneiros, comerciários, agricultores, indígenas, etc., em movimentos
sociais urbanos ou rurais. Destaca-se, também, a intermediação dos meios
de comunicação, considerando principalmente as redes sociais, que em
poucos minutos conseguem articular milhares de pessoas em torno de uma
causa comum, promovendo uma mobilização veloz e ilimitada.
É inevitável que, na atualidade, os meios de comunicação de massa
têm se apresentado como um dos instrumentos mais eficazes para mobilizar
pessoas e articular movimentos. Na visão de Teresa Costa Alves (2013, p.
124), “O século XX caracterizou-se por uma transformação acelerada do
paradigma da comunicação, que deixou de evoluir ao ritmo do
desenvolvimento humano, biológico, para se aproximar do ritmo dos
acontecimentos e sua mediatização.”
Ademais, o desenvolvimento de uma sociedade em rede e
informacional tem provocado profundas transformações nas comunicações e
na troca de informações, acelerando o processo de divulgação, bem como de
chamamento aos movimentos sociais para agirem em favor de uma causa
comum.
Se, por um lado, é possível afirmar que a liberdade de expressão,
garantida pela democracia na Constituição Federal, tem se mostrado
transparente e global, tanto que proporciona aos indivíduos o
compartilhamento de ideias e conhecimentos, por outro lado a relação dos
677
movimentos sociais urbanos com as redes sociais não tem sido isenta de
polemização, principalmente ao se observar que o poder institucionalizado se
lhes opõe com a força pública (policial).
Observa-se, assim, que “Neste contexto a mídia possui um papel
relevante como fonte de interpretação da realidade, modificando e
expandindo áreas de experiência individual, intervindo na formação da
opinião pública e contribuindo para a definição de identidades individuais e
coletivas.” (DELLA PORTA apud PEREIRA, 2011, p. 3).
Destaca Pereira (2011, p. 3) que os meios de comunicação de massa
fazem parte do dia a dia do brasileiro, e constituem-se em formadores de
opinião. Contribuem, assim, como elementos fundamentais na “disputa pela
definição de identidades individuais e coletivas, que perpassam tanto a
esfera privada quanto pública. Isto porque a esfera privada tornou-se
também um espaço de disputa e mobilização de conflitos”, traduzindo os
anseios da sociedade civil e possibilitando ao cidadão a sua participação
democrática na vida política do Estado brasileiro.
Na verdade, a mídia exerce um papel de destaque na era
informacional e contribui para a intermediação das relações sociais entre
grupos distintos, bem como para a organização de interesses, mesmo
quando se percebe uma crise no sistema representativo e nas organizações
governamentais e não governamentais.
É nessa questão que trabalham Valéria Ribas do Nascimento e
Márcio Schorn Rodrigues (2014, p. 163) quando ressaltam que "a sociedade
informacional é fruto, portanto, da referida inteligência coletiva, que
proporciona ao indivíduo a reflexão e o compartilhamento de seus
conhecimentos com os seus semelhantes [...],"e se utilizam da Internet para
gerar seus conteúdos mediante a interatividade como website.
O desenvolvimento dessa sociedade ocasiona um novo espaço para a
comunicação, de forma que ela se torna cada vez mais transparente e
universalizada, redefinindo a atuação das instituições públicas, aumentando
cada vez mais a sua responsabilidade social. Isso engendra rapidez inédita
em campos de ação como a Internet, modificando sobremaneira a atuação e
o poder de alcance das mídias tradicionais (LEVY, 2011, p. 55).
678
Nesse sentido, cumpre destacar que influenciados pela sociedade em
rede as pessoas têm modificado o seu modo de pensar, agir e sentir,
difundindo, assim, outros meios de expressão e manifestação social,
cultural, política, entre outras. Cita-se, por exemplo, a Internet, que tem sido
usada de forma muito acentuada e o “[...] uso cada vez mais desenfreado das
tecnologias de informação, entendidas como todas as atividades e soluções
providas por recursos de computação que visam permitir o seu
armazenamento, acesso e o utilização”, as quais provocam uma revolução
nas relações sociais (CASTELLS apud NASCIMENTO; RODRIGUES, 2014, p.
160).
Sabe-se que, na atualidade, “A internet tem sido o grande
meio/veículo articulador de ações coletivas e movimentos sociais. Ela
possibilitou a criação de redes virtuais que viabilizam conexões de grupos
que nunca se encontraram fisicamente de fato.” (GOHN, 2013, p.
150).Reconhece-se, portanto, que é por meio da Internet que os eventos são
organizados e divulgados e se consegue mobilizar milhares de seguidores.
É importante referir que os mecanismos de comunicação entre os
sujeitos na era informacional não se reduzem apenas à imprensa, mas vão
do Jornal à Internet/Facebook, sem desmerecer os demais sites de
divulgação e informação, como o Twitter, Blog, etc. Dessa forma, o mundo
contemporâneos e caracteriza cada vez mais com a intensa participação de
todos e em tempos recordes.
Nesse diapasão asseveram Nascimento e Rodrigues (2014, p. 169)
que:

As novas tecnologias da informação, propulsoras da sociedade em


rede, constituem o fio condutor para que os meios de comunicação
se aprimorem e consigam atender às demandas sociais. Ocorre que,
na mesma medida em que cresce o número de usuários e de
informações lançadas na Internet, por exemplo, aparecem os
conflitos gerados por esse manancial de dados que, em última
análise, poder servir de instrumento de invasão na privacidade das
pessoas.

A utilização da Internet ao longo dos anos vem crescendo


assustadoramente e os meios de comunicação impressos, a exemplo de

679
jornais e revistas, considerados tradicionais, embora ainda persistam, estão
perdendo espaço para os meios virtuais, como Twitter, Blogs, website e
Facebook.
Para melhor compreensão do assunto abordam-se neste estudo
apenas aspectos relativos ao Facebook, que é considerado um dos “[...] meios
das novas tecnologias de informação que possibilitam não apenas a conexão
e estruturação das ações, mas têm sido grandes divulgadores das
informações e alimentadores das ações e reações em cadeia” (GOHN, 2013,
p. 150). Em tempos recordes, eles têm mobilizado milhões de seguidores pelo
mundo todo.
A Internet surge como um mecanismo apto a reviver e a revigorar a
cidadania que habita nos cidadãos, na vontade de melhorar a qualidade de
suas vidas, organizar as comunidades locais e facilitar a troca de
informações. Desse modo, os indivíduos, conectados em rede, podem
discutir e apresentar aos governantes as soluções para problemas
cotidianamente vividos e esquecidos pelos parlamentares que, em muitos
momentos, tratam apenas de interesses e vantagens particulares (OLIVEIRA;
RODEGHERI, [s.d.], p. 2).
A fim de alterar a lógica de comunicação entre as pessoas, a Internet
as aproximou e possibilitou discussões e debates dos mais variados temas,
principalmente em relação à cidadania e democracia, e não apenas com
relação aos direitos e garantias fundamentais.
Pode-se afirmar, inclusive, que as informações que circulam de forma
livre nas redes sociais revolucionaram a liberdade de expressão e de
manifestação, alicerces da democracia, principalmente se for considerada a
dimensão de igualdade dos meios de comunicação. Isso comprova que a
conexão em rede facilita a ação e a interação entre as pessoas, bem como a
participação cidadã no espaço público.
Ao longo dos anosos meios de comunicação têm contribuído para
alterar as formas de expressão da opinião pública, haja vista que as novas
tecnologias são grandes facilitadores dos processos de distribuição de
informação em prol de uma democracia mais participativa.
Necessário explicitar, portanto, a importância dos meios de
680
comunicação, partindo-se da ideia de que existe liberdade de expressão
quando há a publicação de notícias, informações e entretenimento que vão
desde os jornais até o Facebook. Não se pode deixar de mencionar ainda que
“os fóruns de discussão online utilizadas pelos membros dos movimentos
sociais para comunicarem entre si propiciam a discussão sobre os mais
variados temas sociais.” (ALVES, 2013, p.3).
Ao observar essas formas de manifestação e informação é importante
analisar a função que o jornal exerce na atualidade, já que ele concorre com
o meio virtual que tem custo zero, enquanto o impresso exige um pagamento
muitas vezes superior àquilo que a pessoa pode dispor.
Nesse contexto, o Facebook também é uma empresa e se faz valer da
publicidade para cobrir os custos que, de certa forma, estão embutidos na
publicidade/markentig e nos patrocinadores. Ao usar as informações do
Facebook, tanto as enviadas quanto as recebidas, o cidadão faz uso das
redes de telecomunicações, realizando via privada ou pública, o pagamento
de mensalidades contratadas com operadoras de serviços, tais como a Oi,
Net, Vivo, Claro, aparelhos utilizados para recebimento do sinal, outros
equipamentos, etc.
Mesmo que os meios virtuais sejam utilizados por mais de 89.000
milhões de brasileiros, conforme dados divulgados pelo site Facebook, para
Ana Paula de Araújo (2015, [s.p.]):
A função do jornal é basicamente a comunicação. É um dos meios
mais rápidos de ficarmos informados a respeito do que acontece no
mundo. Dentro do jornal há várias sessões que, por sua vez, abrigam
vários tipos de textos. Há algumas características que são comuns a
todos estes textos, enquanto há outras que servem para
individualizá-los. (grifo da autora).

Os jornais costumam apresentar um editorial com a relação das


matérias veiculadas, que são apresentadas por ordem de relevância e de
importância. Ademais, trazem em seu texto, além de notícias sobre fatos
ocorridos no mundo e na sociedade, a opinião do editor que, muitas vezes,
contraria o que o leitor pensa sobre a matéria. Para tanto, é imperioso que se
diga que os veículos de comunicação impressos são tão importantes quanto
os meios virtuais (ARAÚJO, 2015).
Observa-se que no momento em que o cidadão, sem pertencer a
681
partidos políticos ou mesmo grupos ativistas, participa de passeatas ou se
engaja em movimentos sociais para reivindicar seus direitos, ouapenas para
demonstrar sua inconformidade com acontecimentos sociais ou políticos de
seu Estado, está exercendo seu direito de cidadania. Por isso, "quanto mais
se democratiza um país, mais haverá cidadãos falando de seus problemas
em locais não tradicionais da política." (PINTO apud ALVES, 2013, p. 126).
No que diz respeito à comunicação pelos meios virtuais destaca-se o
Facebook, pela velocidade instantânea das informações e pelo grande
número de acessos. Esta rede social vem inaugurando uma nova forma de
liberdade de expressão, pois se assiste diariamente a propagação de
registros, os quais se convertem em movimentos sociais.
Assim, Adriana de Araujo Guzzi (2014, p. 228-229) assevera que:

Na mesma medida em que as redes sociais e de compartilhamento de


altíssima densidade – como Orkut, Facebook, Twitter, You Tube,
Flickr, entre outras – propiciaram a abertura para encontros,
conversações e comentários por meio de suas comunidades, além
dos sites e blogs pessoais com interatividade, vemos o quanto essa
mídia vem assumindo uma importante função educativa para os
jovens. Ainda que a grande maioria use as redes apenas para se
expor e encontrar amigos, são muitos os que já sabem usá-las para
compartilhar interesses comuns e encontrar informações que vão
além do que a escola ou a comunidade dos quais fazem parte podem
oferecer.

Em relação ao Facebook não é de espantar que cada vez mais a


prática está disseminada, aumentando progressivamente o número de
pessoas que o acessam e utilizam este meio virtual para formação de
opiniões. “As pesquisas também mostram que cerca de 75% dos(as)jovens de
16 a 24 anos e 90% das pessoas com escolaridade acima de superior
completo se conectam à Internet.” Mas é fundamental que o usuário das
redes sociais tenha cautela em relação à utilização desses sites, pois se
reconhece que nem todas as fontes de referência são confiáveis (GOHN,
2013, p. 151).
Ressalta Guzzi (2014, p. 230-231) que o Facebook e as redes
sociais“[...]tornam-se parte importante das mídias sociais e funcionam como
uma autêntica pesquisa de mercado, bem segmentada e a custo baixíssimo."
É possível afirmar, inclusive, que hoje as redes sociais, notadamente
682
o Facebook, é o mecanismo mais utilizado na articulação dos movimentos
sociais urbanos, e que legitima as ações empreendidas pelos manifestantes,
seja na área política, social ou econômica, contrapondo-se, muitas vezes, às
necessidades geradas pelo Estado.
A Internet assume um papel fundamental na articulação dos
movimentos sociais. No Brasil, o número de acessos ao Facebook cresce de
forma assustadora, cujos dados relativos aos usuários da plataforma
revelam que:

[...] a rede social possui 89 milhões de brasileiros que acessam o site


todos os meses. O número corresponde a oito de cada dez
internautas, sendo que o número total no país chega a 107,7
milhões.Isso significa que os internautas que acessam o Facebook
diariamente totalizam cerca de 59 milhões. Os dados são referentes
ao segundo trimestre de 2014. (MEIO & MENSAGEM, 2015).

Destaca-se que as articulações dos manifestantes em movimentos


sociais urbanos ocorrem por meio do Facebook porque é, como já salientado
anteriormente, um dos meios mais velozes para mobilizar, articular e engajar
pessoas, difundindo ideias que envolvem a luta pela democracia e a
liberdade de expressão. “O número de acessos de dispositivos móveis
cresceu 55%, o que representa 68 milhões de pessoas. No último ano, a base
de pessoas ativas na rede aumentou 105%, atingindo 41 milhões de
pessoas.” (BORJA apud GOHN, 2011, p. 196).
Constata-se que a Internet, ou seja, a utilização do Facebook
possibilita ao cidadão participar ativamente da vida política e social do país,
não havendo necessidade de gastos com materiais impressos. Basta um
chamado pela rede e em poucos minutos milhares de pessoas em todos os
cantos do país saem às ruas para protestar pelos seus direitos ou apenas
para manifestar sua indignação com a classe política do país.
Oliveira e Rodegheri ([s.d.], p. 2) afirmam que ''A grande vantagem
decorrente da utilização da Internet é a possibilidade de diversificação das
fontes de informação, porque permite a emissão de conteúdo por todo aquele
que detém acesso à rede e deseja se expressar".
Por isso, cabe referir que a luta pela redemocratização do país passa

683
necessariamente pelo mapeamento do cenário dos movimentos sociais no
Brasil. Essa mobilização de pessoas de todos os Estados, e em torno de um
objetivo comum, é fundamental para a compreensão do que está
acontecendo atualmente com a mobilização dos movimentos sociais
urbanos.
Partindo da análise dos movimentos sociais no Brasil destaca-se que
a breve abordagem se refere à Era da Participação, ou seja, de 1978 a 1989,
que proporciona a compreensão sobre a temática.
Observa-se que os movimentos ocorridos naquela época aconteceram
de forma isolada, principalmente na zona rural, e tiveram pouco contato com
a zona urbana. É inegável, contudo, que sempre houve um diálogo e debates
acadêmicos que visavam acima de tudo compreender a importância da luta
pela liberdade de expressão, manifestação e reunião, haja vista a ausência
do Estado no cumprimento das demandas sociais.
Gohn (2011, p. 275) enfatiza que “Assim, ao chamar a atenção para o
papel do Estado na dinâmica dos movimentos sociais” não se está apenas
apontando para a ausência de um dado importante nos estudos, mas
também fazendo uma leitura dos fatos segundo uma matriz teórica de
abordagem.
Os movimentos sociais urbanos surgiram em vários segmentos da
sociedade, mas sua culminância, nos anos 80, se deu em torno das questões
urbanas, as quais se acentuaram com o aumento populacional e com o
deslocamento de grandes contingentes de pessoas da área rural para as
cidades. Sujeitas a várias formas de exclusão social, essas pessoas passaram
a se organizarem torno de um objetivo comum, ou seja, à luta pela moradia
(GOHN, 2011, p. 276-277).
É interessante observar que a realização desta análise se constitui
num esboço da trajetória dos movimentos sociais urbanos no Brasil, que
sempre atuaram em prol da democratização do país, mais acentuadamente
na área dos movimentos sociais urbanos.
A exclusão que se origina do padrão de desenvolvimento econômico
adotado pelo país gera a emergência de novos atores, que passam a exigir
não apenas mudanças dos rumos da política, mas também o cumprimento
684
das políticas públicas divulgadas nas campanhas políticas e nos planos
governamentais dos políticos.
É necessário ressaltar que o padrão de desenvolvimento que gera a
exclusão não pode persistir e a sociedade civil precisa se mobilizar para
reverter este cenário. Admite Gohn (2011, p. 296) que "[...] o padrão de
desenvolvimento que se instaura legitima a exclusão como forma de
integração. Passa a ser exclusão integradora, modelo perverso de gestão da
crise [...]", recuperando a legitimidade política e criando condições para um
novo ciclo de crescimento econômico com a redefinição dos atores
sociopolíticos em cena.
A tendência atual é a estruturação de grupos sociais que, com a
emergência de novos atores, tais como cidadãos articulados em redes que
participam de associações, entidades do Terceiro Setor, Organizações Não
Governamentais (ONGs), podem modificar o cenário das relações sociais,
trabalhistas e políticas e, assim, exigir um projeto social voltado à inclusão
social.
A emergência de novos atores ganha força neste século e mostra que
podem se mobilizarem torno de temas que dizem respeito a todos, tais como
saúde, educação, moradia, enfim, direitos de cidadania.
Vários foram os movimentos nacionais pela redemocratização do país
e acesso aos serviços públicos. O marco histórico, porém, foi o movimento
nacional pelas “‘Diretas Já’”, que reivindicou as eleições diretas para
presidente da República, em 1984 (GOHN, 2011).
O papel dos movimentos sociais nesta época são fenômenos que
transformaram as relações sociais, sendo agentes do processo de
transformação. Entre os movimentos sociais populares urbanos se destaca o
“Custo de Vida – Carestia” que, em 1980, lutou contra os altos preços dos
alimentos. Além desse destacam-se ainda os movimentos pelos transportes
públicos e pela saúde, em 1982, demonstrando que o povo brasileiro já
estava atento aos problemas referentes à falta de políticas públicas e sociais
do governo para o atendimento das demandas da sociedade.
É imprescindível observar que além dos movimentos nacionais
populares urbanos, outros movimentos, tais como sindicais, estudantis,
685
rurais, ecológicos, dentre outros, a partir de 1984 até a presente data,
apresentam a emergência de novos atores sociais que lutam por melhoria de
condições de vida, bem como pela manutenção da democracia.
Destacam-se, ainda, os movimentos nacionais intitulados “Ética na
Política”, os quais lutam contra a corrupção (responsável pela articulação
que depôs o ex-presidente Collor de Mello, em 1992), bem como os “Caras-
Pintadas”, movimento estudantil de 1992, que surgiu após as “Diretas Já”.
Verifica-se, portanto, que há uma nova prática de organização, interlocução
e articulação para a concretização da democracia e liberdade de expressão.
Os referidos movimentos urbanos e nacionais deixaram a militância
como herança para a nova geração, abrindo-lhe a possibilidade de
participação “[...] com um controle social mais efetivo, menos cooptada e
menos caudatária às redes de clientelismo.” (GOHN, 2013, p. 171).
Caracterizando novas formas de organização social, articuladas pelos meios
de comunicação e através de fóruns específicos, os movimentos sociais
urbanos reconhecem no plano dos valores ou da moral que tais processos de
mobilização giram em torno de projetos sociais mais amplos do que apenas a
reivindicação sem objetivos, apenas para tumultuar o processo democrático.
Com as mudanças sociais e políticas ocorridas no século XXI
emergem novos atores sociais, mobilizando-se em movimentos sociais
urbanos como um mecanismo de inclusão social e oposição aos obstáculos à
construção da democracia, segundo os princípios da cidadania. Registra-se,
ainda, que a mobilização das massas no cenário político nacional é uma
forma de pressão ou de manifestação para fazer o chamamento da
sociedade, apresentando uma nova agenda, com novos atores, que querem
ser partícipes do projeto de consolidação do espaço democrático.
É evidente que os movimentos sociais urbanos ganharam novos
contornos nesse século e não podem ser pensados de forma isolada do
contexto histórico e conjuntural do momento, no qual os novos
interlocutores – não apenas aqueles representados pelas ONGs, associações,
Terceiro Setor, mas cidadãos que mesmo não pertencendo a um ou outro –
mobilizam-se e têm uma identidade modelada a partir das novas agendas de
ideias e demandas (GOHN, 2013, p. 173), quais sejam, tornarem-se
686
protagonistas da história em curso.
Há um processo de reformulação de novas políticas que vai alterando
a identidade dos movimentos sociais populares, e não envolve apenas os
cidadãos de uma determinada categoria socioeconômica e cultural. Assim,
novas categorias passam a integrar e participar dos movimentos sociais, seja
por meio de passeatas e fóruns, ou por debates nas redes sociais.
Partindo da constatação de que novos interlocutores estão surgindo e
se mobilizando, Gohn (2011, p. 301) acredita que "A construção de uma
nova concepção de sociedade civil é resultado das lutas sociais
empreendidas por movimentos e organizações sociais nas décadas
anteriores, que reivindicaram direitos e espaços de participação social."
Nesta perspectiva, alguns elementos são necessários para a
participação de sujeitos que antes eram meros espectadores e agora se
inserem nos movimentos sociais como protagonistas. Suas ações devem ser
permeadas pela ética e solidariedade, pois conforme Gohn (2013, p. 173),
elas precisam aprender a “[...] identificar projetos diferentes ou convergentes,
gerados como respostas às pressões e demandas socioeconômicas que elas
fazem.”
De tudo isso se abstrai que “Este espaço é trabalhado segundo
princípios da ética e da solidariedade, enquanto valores motores de suas
ações, resgatando as relações pessoais, diretas e as estruturas comunitárias
da sociedade [...].” (GOHN, 2011, p. 301). Ao mesmo tempo,

Resgatam-se regras de civilidade e de reciprocidade ao se reconhecer


como detentores de diretos legítimos os novos interlocutores: grupos
de favelados, de mulheres discriminadas, de crianças maltratadas,
de ecologistas militantes, de sem-terra e/ou sem-teto, entre outros.
[...] assiste-se, na sociedade brasileira, à recriação da esfera pública
– que leva alguns analistas a falarem em reinvenção da república.
(GOHN, 2011, p. 301).

Diante dessas considerações pode-se afirmar que com a emergência


de novos atores há uma (des) mobilização dos movimentos populares
urbanos, haja vista que as demandas deslocaram-se da agenda dos
excluídos de uma determinada classe social e passaram a fazer parte da
agenda de todos os brasileiros que vivem uma nova – mas não desconhecida
687
– democracia participativa.
O que se modifica com esses deslocamentos de pautas são as
identidades múltiplas dos sujeitos e dos interlocutores que agem em redes,
com demandas e problemas sociais diferentes dos grupos sociais que lutam
para ter um mínimo existencial para uma sobrevivência com a dignidade.
Por isso, se reconhece “[...] que nem todas as ações coletivas desenvolvem
laços de pertencimento, assim como não desenvolvem a consciência de
resistência ou o desejo de emancipação social.” (GOHN, 2013, p. 169).
Faz-se necessário, portanto, a presença de novos atores para
demonstrar que a articulação desses movimentos não se dá por
contraposição ao Estado e à ideologia vigente, mas a favor de um Brasil
menos corrupto, com políticas públicas voltadas ao cidadão hipossuficiente.
Ademais, acredita-se na necessidade de redefinição do papel do Estado,
“restaurando a esperança e a crença que vale a pena lutar por uma
sociedade mais justa e igualitária” (GOHN, 2011, p. 342), pois o que se
observa é que não mais atende às necessidades e demandas da população.
Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedade
brasileira configuram novos espaços e formatos de participação e de relações
sociais e, inevitavelmente vão se integrando por meio das redes sociais e
comunidades e ocupando um espaço que antes não lhes interessava. A
tendência é aumentar a participação em questões políticas e sociais,
evidenciando que “[...] a capilarização do acesso às redes eletrônicas,
incluindo os celulares e os dispositivos móveis [...]” (GUZZI, 2014, p.
240),está possibilitando que esses novos atores reconheçam que podem
contribuir para o fortalecimento da democracia e da cidadania.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão deste artigo não foi esgotar o assunto, e sim analisar a


importância dos movimentos sociais urbanos em relação aos atuais meios de
comunicação para a consolidação da democracia e liberdade de expressão,
cujas garantias são previstas constitucionalmente.
Os movimentos sociais, tanto urbanos quanto rurais, em suas
688
diversas formas e objetivos, possuem uma finalidade em comum, qual seja, a
manutenção da democracia e da liberdade de expressão.
Assim, é perceptível que os movimentos sociais existem há anos, e
que até hoje são utilizados para que a democracia só “caminhe para frente”,
pois é uma das formas de controlar e ajudar o governo a gerir o Brasil.
Quando o povo não é ouvido por seus representantes políticos, ele sai às
ruas para lutarem por seus direitos.
Observa-se, contudo, um ponto crítico: nem toda movimentação da
sociedade é um movimento social reconhecido. Não basta, portanto, o
intento de sair às ruas, de forma descontrolada, sem ao menos possuir um
objetivo/finalidade em comum. Ademais, não se pode reconhecer o
movimento se as pessoas saem de maneira desordenada para batalhar por
direitos que sequer reconhecem como seus, apenas pela participação e
popularidade. Movimentos dessa espécie possibilitam a infiltração de
sujeitos com objetivos diversos daqueles por ventura defendidos, com a
marginalização de condutas e o cometimento de crimes.
Quando se trata de movimentos criados em redes sociais é preciso
saber do que se trata, e se realmente está de acordo com o que a sociedade
necessita. Muitos movimentos são organizados com o fito de legalizar a
participação de “baderneiros”, incitando confusões e violência, sem
aproveitar o momento para a consecução de roubos, furtos, depredação de
patrimônios, etc.
O principal foco deste artigo foi demonstrar aos leitores que os
movimentos sociais precisam estar presentes na sociedade a fim de
consolidar a democracia, em especial porque exteriorizam o direito à
liberdade de expressão.
Não se pode deixar de mencionar também, que a consolidação da
democracia e a exteriorização da liberdade de expressão surgem com a
emergência de novos atores sociais que fazem parte de várias classes sociais.
As manifestações passaram a fazer parte da agenda de todos os brasileiros
que vivem uma nova – mas não desconhecida– democracia participativa.
Em síntese, os novos atores sociais que emergiram na sociedade
brasileira configuram novos espaços e formatos de participação e de relações
689
sociais e, inevitavelmente, estes vão se integrando por meio das redes sociais
e comunidades e ocupando um espaço que antes não lhes interessava. A
tendência é aumentar a participação em questões políticas e sociais,
evidenciando a necessidade da presença de novos atores para demonstrar
que a articulação desses movimentos não se dá por contraposição ao Estado
e à ideologia vigente, mas a favor de um Brasil menos corrupto, com
políticas públicas voltadas não só ao cidadão hipossuficiente, mas a todos
que lutam por um país melhor.
Acredita-se, portanto, na necessidade de redefinição do papel do
Estado, ou seja, um Estado comprometido com a justiça social e o bem-estar
de todos e não de apenas uma determinada classe social.

REFERÊNCIAS

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2012. Estudos em Comunicação. Portugal: Centro de Estudos de
Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho, nº 14, dez., 2013.

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______. (Org.). Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e


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GUZZI, Adriana de Araújo. Web e Participação: a democracia no século XXI.


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LEVY, Pierre. Inteligência Coletiva. São Paulo, SP: Ed. Loyola, 2011.

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Disponível
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Acesso em: 22 mar. 2015.

NASCIMENTO, Valéria Ribas de;RODRIGUES, Marcio Schorn. A sociedade


690
informacional em xeque: princípio da publicidade versus direito à intimidade
e a Lei nº 12.527/11. In: OLIVEIRA, Rafael de; BUDÓ, Marília de Nardin
(Orgs.). Mídias da sociedade em rede(Orgs.) Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2014.

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http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=67ff32d40fb51f1a. Acesso
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http://www.compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/03/Marcus-
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RIBEIRO, Paulo Silvino. Movimentos Sociais: Breve definição. Brasil


Escola. Disponível em:
http://www.brasilescola.com/sociologia/movimentos-sociais-breve-
definicao.htm. Acesso em: 20 mai. 2014.

691
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO
INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS (DIR) EM ÁREAS ESPECÍFICAS

Ana Cristina Mendes1


Valéria Mendes Pinheiro2

1. INTRODUÇÃO

A temática “direitos humanos dos imigrantes refugiados no Brasil e no


mundo” é tema atual e constante nos diversos meios de mídia que cercam a
todos diariamente. A relevância desse assunto é tão imensa que para
abordá-lo necessário se faz voltarem-se os olhos a tutela dos direitos
humanos e, assim, a um dos pontos de maior relevância quando se fala em
tutela de direitos, que é o marco inicial da internacionalização dos direitos
humanos, a Carta das Nações Unidas, a qual foi criada logo após o final do
segundo grande conflito, em 1945, a qual demarca um novo cenário, uma
nova ordem internacional e, logo sucedida pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Foi a partir desta nova ordem internacional que sobreveio da
necessidade de prevenir, a nível internacional, que novas barbáries fossem
cometidas com os seres humanos, que houve uma conscientização dos
Estados da necessidade de uma ordem além-fronteiras que fosse capaz de
tutelar os direitos do homem de forma universal. Foi assim que surgiram as
mais importantes cartas de direitos humanos, o que trouxe a universalização
dos direitos do homem.
Nesta esfera o Brasil, signatário de vários Tratados Internacionais de
Direitos Humanos, deu início à adequação do ordenamento jurídico aos
novos direitos, o que foi marcado pela promulgação da Constituição federal
de 1988, com a institucionalização dos direitos humanos e adesão a
importantes instrumentos internacionais de direitos humanos.
A partir deste histórico o presente estudo busca analisar o histórico da

1 Advogada, Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela UNICRUZ - Universidade


de Cruz Alta. Possui curso de formação com carga horária de 530h pela Fundação Escola
Superior do Ministério Público.
2 Graduanda em Direito pela UFPEL – Universidade Federal de Pelotas.

692
internacionalização dos direitos humanos, bem como criação e a adequação
do Direito Internacional dos refugiados, bem como os avanços ocorridos no
âmbito nacional no que se refere à efetivação da tutela dos direitos
humanos, especialmente no que diz respeito ao Direito Internacional dos
Refugiados, abrindo espaço para novos e mais aprofundados estudos sobre
esta temática frente à relevância e perfil desafiador e urgente da matéria.

2. O SURGIMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em um cenário


pós-guerra, tendo como objetivo permitir o advento dos direitos humanos
como questão de interesse internacional. Como leciona Piovesan (2007, p.
108) “O Direito Internacional dos Direitos Humanos ergue-se no sentido de
resguardar o valor da dignidade humana, concebida como fundamento dos
direitos humanos”.
Muito embora os direitos humanos já fossem tutelados por leis e
tratados em várias Nações, a efetividade e aplicabilidade dos referidos
direitos ficavam adstritos à positivação e efetivação destes por meio de cada
Estado/País. Foi somente após a efetiva implementação do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, que ocorreu a universalização destes
direitos.
Destarte, a partir de uma análise dos fatos horrendos ocorridos
durante a Segunda Guerra Mundial, observa-se que o regime totalitário
produziu violações aos direitos humanos numa dimensão nunca antes
vivenciada, expondo a fragilidade dos mecanismos de proteção ao indivíduo,
até então existente. A vulnerabilidade, aliada a necessidade de recomeço,
bem como de união entre as Nações a fim de conceber instrumento forte o
bastante para trazer ao mundo a necessidade de proteção internacional dos
Direitos Humanos e, via de consequência, a tutela dos mesmos. (CASADO
FILHO, 2012)

Com o final de Segunda Grande Guerra, o mundo precisava, com


urgência, se reestruturar. Várias ações foram tomadas, do ponto de

693
vista econômico e político, como a criação de organismos
internacionais planejados antes mesmo do fim do conflito, na
Conferência de Bretton Woods, em 1944.
O mundo havia vivenciado a ascensão dos nacionalismos, e,
conforme leciona Hobsbawm, em sua clássica obra Nações e
nacionalismo, esse fenômeno foi um dos principais motores dos
conflitos e das perseguições aos indivíduos.
E, entre tais perseguições, a empreendida pelos alemães nazistas aos
povos de origem judaica foi a que mais se notabilizou, ficando
conhecida como Holocausto. Entretanto, não apenas judeus foram
perseguidos e assassinados no período. As perseguições também
atingiram militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos,
deficientes motores, deficientes mentais e pacientes psiquiátricos.
Enfim, todos os que não se encaixassem no ideal de perfeição nazista
poderiam ser vítimas. E esse receio de que, amanhã, qualquer um
poderia ser a próxima vítima fez com que os líderes dos principais
países pensassem em soluções institucionais para evitar novas
perseguições (CASADO FILHO, 2012. p.64).

Neste ideário surge a premência de garantia dos direitos essenciais


do homem, não somente no âmbito interno de cada país, mas em âmbito
internacional, onde houvesse a responsabilização e comprometimento dos
Estados como forma de não mais permitir que as atrocidades cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial se repetissem.
Segundo Bobbio (1992) diante deste quadro evidenciou-se a
necessidade de tutelar os direitos essenciais do ser humano, com o
diferencial de que, nesta etapa deveria ocorrer a tutela dos direitos a nível
internacional, com o compromisso e responsabilização dos Estados em
âmbito internacional e não mais apenas no recinto interno, por meio da
positivação das Constituições nacionais. Entende que, desta forma, seria
possível “uma proteção universal dos direitos humanos, no sentido de que os
destinatários não são mais apenas os cidadãos de um determinado Estado,
mas todos os homens” (BOBBIO, 1992, p. 30).
Nesta órbita relevante buscar a evolução histórica do surgimento
desta internacionalização dos direitos humanos, bem como os desafios
superados a fim de que o indivíduo fosse reconhecido como verdadeiro
sujeito de direito internacional. A veia inicial para a referida
internacionalização destes direitos teve como marco histórico o Direito
Humanitário, que para Celso Lafer, é um direito que trata de tema clássico
de Direito Internacional Público – a paz e a guerra. Ainda, como marco
histórico vem a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho,
694
ambas criadas no período pós Primeira Guerra Mundial.
Com o surgimento do Direito Humanitário pode-se relativizar o
alcance e o âmbito do poder estatal. Para Piovesan (2007, p. 110) “o Direito
Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há
limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de
conflito armado”.
Quanto a Liga das Nações acrescenta a mesma autora que “veio para
reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar
a soberania dos Estados”. Na sequência aduz que “... tinha como finalidade
promover a cooperação, paz e segurança internacional e a independência
política de seus membros”. Organismo concebido ao final da Primeira Guerra
Mundial, com objetivo de manter a paz e a segurança no planeta e estimular
a cooperação internacional. Ocorre que, a Segunda Guerra Mundial mostrou
o fracasso da Liga das Nações, o que ensejou a busca por alternativas mais
eficazes (SIMON, 2008).
Por sua vez a Organização Internacional do Trabalho trouxe como
premissa a preocupação com as condições de trabalho, promovendo
parâmetros básicos de trabalho e bem estar social, ou seja, seu objetivo era
regular a condições dos trabalhadores no âmbito mundial.
Considerando as premissas individuais de cada um dos três institutos
acima citados, pode-se dizer que estes foram a base para o processo de
internacionalização dos direitos humanos. A partir desta nova concepção, o
direito internacional deixa de ser entendido como aquele que regula as
relações governamentais entre Estados, para passar a ter como premissa
básica a salvaguarda dos direitos do ser humano (PIOVESAN, 2007, p. ).
A corroborar o entendimento acima declinado, Lucas (2009) afirma que
os direitos humanos compõem um sistema ético e jurídico transnacional,
cujas responsabilidades vão além das soberanias, que tem como objetivo
principal o reconhecimento dos problemas humanos, ao lado da criação de
cultura política, jurídica e institucional de comprometimento com a
humanidade.
Com supedâneo em tais ideários, mister trazer a lume as ponderações
de Bedin (2009. p. 24) quando refere que o idealismo político, embasado em
695
seus pressupostos estabelecem novas possibilidades e viabilizam um novo
olhar sobre as relações internacionais, o que possibilita a “afirmação de que
é possível delinear um sistema internacional articulado, não a partir da
noção de poder, mas do predomínio do Estado de Direito”.
Muito embora o marco inicial e primeiros delineamentos tenham
ocorrido no período pós Primeira Guerra Mundial, com a Liga das Nações, foi
depois da Segunda Guerra Mundial e, provavelmente pelas horrendas
violações dos direitos humanos que a internacionalização dos direitos
humanos veio a se consolidar. Referidas constatações reclamam concluir
que a internacionalização dos direitos humanos é, na verdade, um
movimento novo a nível histórico.
Segundo se depreende dos ensinamentos de Piovesan (2007) a
internacionalização dos direitos humanos trata-se de um fenômeno
historicamente novo, eis que surgiu após o período de violências atrozes e
violações sem precedentes dos direitos humanos pelo nazismo. Destaca que
a Era Hitler marcou a atuação do estado como sendo o transgressor dos
direitos humanos, na qual o extermínio de vários milhões de seres humanos
marcou a redução da pessoa humana a “algo” descartável e destrutível. “O
legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a
condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça
pura ariana” (PIOVESAN, 2007, p. 116).
Ao lado disso, há que se citar a análise das barbáries cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial, pelo nazismo, ao que é chamado de
“máquina de matar nazista”: “O principal alvo eram os judeus e seus
descendentes, mas a máquina de matar nazista também perseguiu ciganos,
homossexuais e deficientes mentais” (CASADO FILHO, 2012, p. 42).
Casado Filho (2012) refere que os fatos ocorridos durante o nazismo
eram até aquele período inimaginável, pois o Estado simplesmente
determinou o extermínio das pessoas que para Hitler, eram indesejadas.
Frente às atrocidades imensuráveis ocorridas durante o período da
Segunda Guerra Mundial em nome de um idealismo atroz impactaram de tal
forma o mundo, que necessário foi repensar o sistema a fim de evitar que
tamanhos desrespeitos aos direitos fundamentais voltassem a ocorrer.
696
Neste viés, insta trazer à colação o robusto entendimento explicitado
por Casado Filho (2012, p. 43), quando refere que após o fim da Segunda
Guerra Mundial quando o “mundo” teve o real conhecimento das atrocidades
cometidas pelo Estado, houve muita pressão para a criação de institutos, ou
mecanismos que pudessem evitar que novas barbáries ocorressem. Destaca
que após a destruição causada pelas bombas atômicas que devassaram
Hiroshima e Nagazaki, o mundo teve ciência de que o homem poderia acabar
com o Planeta. Para Casado Filho, tais fatos mudaram o pensamento das
pessoas, o que, de certa forma, facilitou a aceitação de acordos e tratados
internacionais sobre direitos humanos.
Tal ideário foi simbolizado e colocado em prática pela Carta das Nações
Unidas, criada logo após o final do segundo grande conflito, em 1945, a qual
demarca um novo cenário, uma nova ordem internacional. Surge em um
contexto em que as Nações clamam por paz. Seu objetivo principal, segundo
Casado Filho (2012, p.) “é o de ‘preservar as gerações futuras do flagelo da
guerra’. E sua forma de atuar foi, sobretudo, declarar os direitos que
considerava fundamentais e que precisavam ser respeitados por todos os
Estados”.
Além da preocupação com a paz, ainda a Carta das Nações Unidas
tutela:

a “segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas


entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano
econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de
saúde, a proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem
econômica internacional e a proteção internacional dos direitos
humanos” (PIOVESAN, 2007. p. 124).

Na explicação de José Augusto Lindgren Alves (apud


Piovesan, 2007, p. 129) após a assinatura da Carta das Nações Unidas
houve o comprometimento da comunidade internacional de promover e
fortalecer o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais de todo
ser humano indistintamente. Com este objetivo, o órgão das Nações Unidas
responsável pelos direitos humanos, - CDH Comissão de Direitos Humanos,
foi responsável pela elaboração de um documento internacional de direitos

697
humanos, o que teve início pela criação da Declaração.
Desta forma, embasada no teor de todos os artigos da Carta das
Nações Unidas, com ênfase especial ao seu primeiro artigo fica consolidado o
movimento de internacionalização dos direitos humanos.

Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são:


1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar,
coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir
os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por
meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do
direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou
situações que possam levar a uma perturbação da paz;
2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no
respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação
dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da
paz universal;
3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os
problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou
humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de
raça, sexo, língua ou religião; e
4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a
consecução desses objetivos comuns.

Em que pese os direitos humanos estarem repetidamente tutelados


na Carta das Nações Unidas, a qual determina sejam aqueles defendidos e
promovidos entre os povos em caráter internacional e universal, lacunas
ficaram presentes eis que não havia a definição do que significava a
expressão “direitos humanos e liberdades fundamentais” a qual vem
positivada no artigo 1.3. da referida Carta: “Conseguir uma cooperação
internacional [...] para promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça,
sexo, língua ou religião”.
Assim, imperioso se faz lançar mão dos estudos apresentados por
Piovesan (2007), em sua tese de Doutorado intitulada Direitos Humanos e o
Direito Constitucional Internacional quando aduz que, embora a Carta das
Nações Unidas traga a necessidade e o dever de promover e respeitar os
direitos humanos e as liberdades fundamentais , ela não define o conteúdo
destas expressões, deixando-as em aberto. Daí o desafio de desvendar o
alcance e significado da expressão “direitos humanos e liberdades
fundamentais”, não definida pela Carta.

698
A lacuna existente na Carta das Nações Unidas quanto à significação
da expressão “Direitos humanos e liberdades fundamentais” trouxe muita
discussão para o meio jurídico e político mundial, eis que nesta expressão
está o ponto nodal dos direitos humanos. Foi com o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que foi definido, com precisão o
elenco dos “direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo em seu
artigo primeiro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aduz que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
(PIOVESAN, 2007).
Neste diapasão, trazendo a lume as palavras de Ramos (2013, p. 18),
as quais sinteticamente traduzem a significação da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, descrevendo os direitos políticos e civis e os direitos
econômicos, sociais e culturais:
No preâmbulo da Declaração é mencionada a necessidade de respeito
aos “direitos do homem” e logo após a “fé nos direitos fundamentais
do homem” e ainda o respeito “aos direitos e liberdades
fundamentais do homem”. Nos seus trinta artigos, são enumerados
os chamados direitos políticos e liberdades civis (arts. I-XXI), assim
como direitos econômicos, sociais e culturais (arts. XXII-XXVII).
Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à
integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o
direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à
liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião.
Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à
segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e
o direito à educação, bem como o “direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis” (direito ao mínimo existencial – art. XXV).

Embasado nas ponderações estruturadas até o momento, importante


destacar que, apesar de todo o lento processo de internacionalização dos
direitos humanos, o qual perpassou por diversos Tratados e Organismos
Internacionais, a efetiva Universalização, internacionalização e inerência dos
Direitos Humanos, ocorreu com a edição da Declaração Universal de Direitos
Humanos. A partir deste marco, basta a condição humana para ser titular
dos direitos essenciais. Nas palavras de Casado Filho (2012, p. 69) “A partir
da Declaração, pode-se dizer que o ser humano começou a ter voz no plano
internacional...”.
Aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem e, via de
699
consequência, a internacionalização, a universalização dos direitos humanos
na sua concepção contemporânea, necessário se faz analisar o valor jurídico
desta Declaração. Nos ensinamentos de Piovesan (2007, p. 137)
encontramos como resposta acerca desta indagação que, partindo da
premissa de que a Declaração Universal dos Direitos do Homem possui força
vinculante, ficam os Estados membros das Nações Unidas obrigados a
promover o respeito e a observância universal dos Direitos positivados na
Declaração.

3. O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIR –


DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS

Em época de eclosão de migrações de pessoas vindas de vários


lugares do mundo, as quais vem buscar refúgio no Brasil, necessário se faz
analisar se os Direitos Humanos dos refugiados que buscam refúgio no
Brasil estão sendo respeitados; se a legislação brasileira está em
consonância com os Tratados Internacionais dos quais é signatário. Neste
diapasão calha referir que refugiado é todo indivíduo que, ameaçado e
perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas, precisam deixar seu local de origem ou residência
habitual para encontrarem abrigo e morada em outros países do Globo.
(ALMEIDA, 2012)
A análise da situação dos refugiados no Brasil reclama uma
interpretação alicerçada em múltiplas divisões que passaram a tutelar a
proteção da pessoa humana em qualquer circunstância. As tutelas
internacionais dos Direitos Humanos são divididas em duas grandes esferas,
uma em âmbito universal e outra em âmbito regional. Em âmbito universal
compreende o DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos, o DIH –
Direito Internacional Humanitário e o DIR – Direito Internacional dos
Refugiados, os quais, apesar de se constituírem como ramos distintos e
autônomos, são considerados, na verdade vertentes complementares e
convergentes do DIP – Direito Internacional Público (PEREIRA, 2009, p ).
Cumpre aqui destacar as diferenças existentes entre os institutos do

700
asilo e do refúgio, pois o asilo remonta ao final do Século XIX, ao passo que o
refúgio foi tutelado somente após o final da I Guerra Mundial, ou seja, no
Século XX. Ainda, o asilo, tanto o territorial quanto o diplomático, encontra-
se ligado apenas ao fato de existir, em si, perseguição política que enseje o
direito de proteção a algum indivíduo e é praticado, sobretudo, em
perspectiva regional, no âmbito latino-americano. O direito de refúgio, por
sua vez, é assegurado universalmente e aplicado, então, em âmbito
universal, a partir de cinco motivos geradores do bem fundado temor de
perseguição, seu elemento essencial, quais sejam: raça, religião, opinião
política, pertencimento a um determinado grupo social e nacionalidade
precípua de proteção da pessoa humana em toda e qualquer circunstância,
tendo-a, consequentemente, como destinatário final de suas normas
processuais e substantivas, são considerados vertentes complementares e
convergentes do DIP (ALMEIDA, 2012).
No âmbito regional a tutela dos direitos humanos é dividida em três
sistemas: Sistema Europeu de Proteção dos direitos Humanos, Sistema
Americano de Proteção dos Direitos Humanos e Sistema Africano de proteção
dos Direitos Humanos (FROEHLICH; VIEIRA, 2009).
No âmbito da proteção internacional dos Direitos Humanos acima
mencionados será efetuado estudo sistemático de cada um dos três eixos
individualmente, com maior ênfase no DIDH – Direito Internacional dos
Direitos Humanos e no DIR – Direito Internacional dos Refugiados, que é
aquele que, muito embora seja parte integrante dos demais, a saber:

DIR - Direito Internacional dos Refugiados é o eixo que detém a


finalidade precípua de, no cenário internacional, proteger os
indivíduos que por motivos de raça, nacionalidade, opinião
política, religião ou pertencimento a determinado grupo social,
foram forçados a abandonar seus lares para irem viver em uma
região do globo que não a sua de costume ou origem.
(ALMEIDA, 2012)

Observa-se pelo teor do artigo acima mencionado que o DIR - Direito


Internacional dos Refugiados é responsável pela proteção dos refugiados,
devendo salvaguardar a pessoa humana de qualquer tipo de violação de
direitos, sejam eles civis, políticos, sociais, econômicos etc, estando
701
alicerçado no princípio internacional de proteção a pessoa humana. Nas
palavras de Almeida (2012, p. 45) temos que o Direito Internacional dos
Refugiados (DRI) é um dos pilares máximos do Direito Internacional dos
Direitos Humanos (lato sensu) e seu objetivo principal é proteger pessoas
que, por perseguição em função da raça, da opinião política, da
nacionalidade, da religião ou da pertença a determinado grupo social, foram
forçadas a abandonar seus lares e a viver em áreas territoriais que não as
suas de origem.
Na mesma linha do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o
Direito Internacional dos Refugiados tem como objetivo principal a proteção
do ser humano. Neste, a proteção ocorre em casos específicos, ou seja, “... o
DIR age na proteção do refugiado, desde a saída do seu local de residência,
trânsito de um país a outro, concessão do refúgio no país de acolhimento e
seu eventual término” (RAMOS, p. 22).
O Direito Internacional dos refugiados, bem como o Direito
Internacional Humanitário não excluem o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, eis que este é mais abrangente que aqueles, pois se trata de leis
especiais e aquele lei genérica, que é aplicada subsidiariamente a todas as
situações quando da ausência de previsão específica. Entre os eixos há uma
relação de complementaridade, eis que nas lacunas dos específicos, aplica-se
o genérico, no caso, o Direito Internacional dos Direitos Humanos. (RAMOS,
p. 22)
Insta referir que o Direito Internacional dos Refugiados é anterior a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do próprio Direito
Internacional dos Direitos Humanos, eis que remonta ao de 1921 com a
criação do Alto Comissariado para os refugiados Russos, o qual foi seguido
de outros organismos e comitês com objetivo de proteção aos refugiados.
Mas foi no período pós Segunda Guerra Mundial que o mesmo se fortaleceu,
juntamente com a Declaração dos Direitos do Homem e da
internacionalização dos Direitos Humanos (ALMEIDA, 2012).
Cabe assinalar que foi em meados do mês de julho de 1951 que foi
aprovado, pela Conferência das Nações Unidas, o Estatuto dos Refugiados e
Apátridas, ao qual o Brasil aderiu. A Convenção relativa ao Estatuto dos
702
Refugiados de 1951, nos moldes do entendimento de Saadeh; Eguchi (2009)
“... é considerada a Carta Magna do instituto ao estabelecer, em caráter
universal, o conceito de refugiado bem como seus direitos e deveres;
entretanto, definiu o termo "refugiado" de forma limitada temporal e
geograficamente.
Frente à limitação temporal e geográfica da Convenção Relativa ao
Estatuto dos Refugiados – CRER, de 1951; em 1967 foi aprovado o Protocolo
Relativo ao Estatuto dos Refugiados - PRER o qual suprimiu a limitação
antes referida quanto a questão temporal, ficando facultativo a cada Estado-
Parte regulamentar as limitações ou não (ONU, 1967).

4. O DIR – DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS NO


ORDENAMENTO BRASILEIRO

Com o objetivo de regulamentar sua adesão ao Estatuto dos


Refugiados, na data de 28 de janeiro de 1961, o Brasil promulgou o Decreto
50.215, por meio do qual foi dado ciência aos brasileiros de todos os termos
do Tratado que o Brasil era signatário. A adesão do Brasil foi efetuada, mas
com reservas geográfica e temporal, além de limitações dos direitos de
associação e de labor remunerado. Foi em 1972 que, de fato, o Brasil aderiu
ao Estatuto dos Refugiados, quando foi derrubada a reserva temporal. Na
sequencia, em 1989 e 1990, por meio de Decretos Presidenciais, forma
derrubadas as restrições da reserva geográfica e de limitações dos direitos de
associação e de labor remunerado (SAADEH; EGUCHI, 2009, p. ).
Posteriormente foi promulgada a Lei n. 9.474, de 22.7.1997, a qual
constitui em verdadeiro Estatuto pessoal do refugiado no Brasil. (SAADEH;
EGUCHI, 2009, p.)
Consoante entendimento de Ramos (2014, p. 157) em sua obra
intitulada Curso de Direitos Humanos, pode-se definir “refugiado” com a
combinação do artigo 1º do Protocolo com o artigo primeiro da Convenção
Relativa ao Estatuto dos Refugiados, a saber:

Combinando-se o que determina o art. 1º do Protocolo com o art. 1º

703
da Convenção, pode-se definir “refugiado” como:
• pessoa que é perseguida ou tem fundado temor de perseguição;
• por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas e
encontra-se fora do país de sua nacionalidade ou residência;
• e que não pode ou não quer voltar a tal país em virtude da
perseguição ou fundado
temor de perseguição.

A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados traz em seu bojo os


direitos e deveres dos refugiados, sendo que dentre estes o dever em
respeitar as leis do país de acolhida. Quanto aos direitos, os signatários
assumem o compromisso, conforme teor do art. 3º, de aplicar as disposições
da Convenção aos refugiados “sem discriminação quanto à raça, à religião
ou ao país de origem” (ONU, 1951).
Importante trazer a baila, ainda, os direitos tutelados no Capítulo III da
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o qual cuida do exercício de
empregos remunerados pelos refugiados (art.17) determinando a aplicação
do mesmo tratamento dispensado ao estrangeiro, ou ao nacional quanto às
regras trabalhistas e previdenciárias (ONU, 1951).
Necessário evidenciar que, com o advento da Constituição Federal de
1988, vários dispositivos reproduzem fielmente enunciados constantes dos
tratados internacionais de direitos humanos (PIOVESAN, 2007, p. 92). E,
ainda, cabe destacar a força hierárquica dos Tratados Internacionais no
ordenamento brasileiro que, por força das alterações trazidas pela emenda
45/2004, da Emenda Constitucional n. 45, que introduziu na Constituição
de 1988 o § 3º do art. 5º, dispõe: “Os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste cenário de tutela e respeito universal aos direitos do homem, ou


seja, a internacionalização dos direitos humanos, onde os indivíduos
passaram a ser sujeitos de direito internacional, o Brasil passou a

704
implementar políticas públicas baseadas na tutela destes direitos. Evidencia-
se que esta mudança de paradigma político teve por base a democratização
que teve seu ponto inicial em 1985 e culminou com a promulgação da
Constituição Federal de 1988. Foi com estas alterações no âmbito da política
interna que o Brasil voltou a ter respeito em âmbito internacional quanto a
questão da proteção dos direitos humanos, o que era e ainda é de interesse
da comunidade internacional.
A partir da Emenda Constitucional 45 de 2004, os Tratados
Internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário
passam a ter hierarquia de norma constitucional, passando assim, a fazer
parte integrante do Texto da Constituição.
Quanto a importante questão sobre o Direito Internacional dos
Refugiados e sua adequação e incorporação ao ordenamento Jurídico
Brasileiro, tratada na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados pode-
se destacar que muitos avanços houve, mas muitos ainda estão por vir a fim
de efetivar os direitos dos refugiados, os quais são garantidos por Tratados
Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Dentre as lacunas
evidenciadas quanto aos direitos dos refugiados, tanto no Brasil quanto no
âmbito internacional, mister se faz destacar a necessária evolução jurídica
quanto aos direitos do refugiado ambiental, eis que novos conceitos
surgiram e outros tantos vão surgir. Assim premente que novos institutos
sejam criados, ou que os atuais sejam devidamente adequados à nova
realidade, novos conceitos de refugiados fazem parte da realidade atual.
Portanto, este viés dos “Direitos Humanos é assunto instigante, desafiador e
emergencial, na medida em que busca romper com conceitos clássicos e
vigentes, e necessário para a eliminação ou amenização das inseguranças e
dos riscos hodiernos a que a sociedade está exposta” (ALMEIDA, 2015).
Neste diapasão ficou evidente a constante alteração das necessidades
dos seres humanos, as quais deve o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, bem como seus Estados Signatários, estar em consonância, o que
exige constante adequação e evolução jurídica, bem como o pleno e total
comprometimento do Estado Brasileiro à causa dos direitos humanos.

705
REFERÊNCIAS

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707
A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL: O
JORNALISMO JUSTICEIRO E A OFENSA AOS DIREITOS HUMANOS.

Danielli Zanini1
Vinícius Bindé Arbo de Araujo2

1. INTRODUÇÃO

Vivenciam-se tempos em que, na maioria dos casos, a impunidade é


uma certeza. Por isso, cada vez mais, a população está sedenta por justiça.
Oportunamente, a mídia tendenciosa e o jornalismo justiceiro ultrapassam
os limites legais, do respeito ao próximo e dos direitos humanos, atuando
como se fossem instituições inalcançáveis pela lei, e, por vezes, até mesmo
como se fossem a lei, para não só denunciar, como julgar e condenar um ou
mais indivíduos. A execução fica por conta do povo.
É assim que a imprensa tendenciosa e majoritária, irresponsavelmente
dá respostas à sociedade, respostas construídas, manipuladas. As
consequências são as piores possíveis. A população, cega, faz justiça com as
próprias mãos. Uma justiça criminosa.
O jornalista que jurou assumir o compromisso com a verdade e a
informação, jurou buscar o aprimoramento das relações humanas e sociais,
jurou visar um futuro mais digno e mais justo para todos os cidadãos
brasileiros, não vem cumprindo com seu juramento quando atua de forma
sensacionalista, agindo como senhor da vida e da dignidade do ser humano,
dispondo desses bens e manipulando a consciência da massa a seu bel-
prazer, para atender, assim, a objetivos e interesses próprios, tendenciosos e
mercadológicos. É um jogo de poder.
Nesse ínterim, observa-se que o Direito Penal atua somente para
pequena parcela da população, como os criminosos de colarinho branco,
inacessíveis ao julgamento e execução pelo povo, enquanto este, por sua vez,
descarrega todo o sentimento de inconformidade com a justiça atual
promovendo linchamentos de pessoas acusadas pela comoção social e pela
1 Graduada em Direito pela UNIJUÍ-TP e Pós-Graduanda em Relações Internacionais pela
Clio Internacional e Damásio Educacional.
2 Graduado em Direito pela UNIJUÍ-TP.

708
mídia.
A partir dessa perspectiva, questiona-se qual é o grau de influência
que o jornalismo justiceiro tem na vida das pessoas? Mais do que isso, qual
é o impacto da notícia veiculada de forma errônea, com caráter manipulador
e sob o falso exercício da liberdade de expressão na vida das pessoas, bem
como quais direitos fundamentais lhes são feridos e quais as consequências
que isso pode representar na vida de um ser humano? Ainda há
preocupação com a reparação do dano causado e, havendo, seria possível
restaurar o bem maculado?
Essas são questões relevantes, uma vez que interferem nos direitos
humanos, direitos fundamentais do indivíduo e, portanto, tão importantes,
haja vista que se relacionam com o íntimo de cada ser. Questões que
merecem ser pensadas e debatidas, a fim de que as pessoas desenvolvam a
habilidade de discernir o que é sensacionalismo do que é jornalismo correto
e informativo, que em vez de ferir direitos, zela pela garantia destes.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A influência da mídia no comportamento humano ou social

A crescente busca por audiência a qualquer custo, medida através de


pontos percentuais entre os principais canais de televisão aberta no Brasil,
ou seja, veículos de mídia que se utilizam de concessões públicas para
apenas e, tão somente, lucrarem desenfreadamente, fez com que se
ampliassem os programas sensacionalistas que possuem foco no dia a dia da
polícia, em uma cruzada contra os bandidos que, segundo esta própria
mídia, estão cada vez mais a solta pelo país.
São programas que abusam de frases de efeito, em uma tentativa
sórdida de influenciar a opinião pública, explorando o descontrole do crime e
expondo de forma nua e crua as ações policiais em subúrbios e áreas
periféricas de grandes cidades.
A partir dessa introdução, Llosa apresenta uma possível causa dessa
“sensacionalização” do jornalismo, uma vez que, visando agradar ao público
709
para assim atingir maiores índices de audiência, a mídia promove a
espetacularização da notícia, aos moldes do que a cultura do espetáculo
exige, vejamos:

A fronteira que tradicionalmente separava o jornalismo sério do


sensacionalista e marrom foi perdendo a nitidez, enchendo-se de
buracos, até se evaporar em muitos casos, a tal ponto que em nossos
dias é difícil estabelecer diferença nos vários meios de informação.
Porque uma das consequências de transformar o entretenimento e a
diversão em valor supremo de uma época é que, no campo da
informação, isso também vai produzindo, imperceptivelmente, uma
perturbação subliminar das prioridades: as notícias passam a ser
importantes ou secundárias sobretudo, e às vezes exclusivamente,
não tanto por sua significação econômica, política, cultural e social,
quanto por seu caráter novidadeiro, surpreendente, insólito,
escandaloso e espetacular. Sem que isso tenha sido proposto, o
jornalismo de nossos dias, acompanhando o preceito cultural e
imperante, procura entreter e divertir informando; assim, graças a
essa sutil deformação de seus objetivos tradicionais, o resultado
inevitável é fomentar uma imprensa também light, leve, amena,
superficial e divertida que, nos casos extremos, se não tiver à mão
informações dessa índole para passar, as fabricará por conta própria
(LLOSA, Mario Vargas, 2013, p. 47-48).

Ao simplesmente noticiar ações policiais, clamando por leis e penas


mais duras e mais e mais detenções, a fim de que se dê o exemplo que a
“bandidagem” merece, programas televisivos como Cidade Alerta, na Rede
Record, e Brasil Urgente, na TV Bandeirantes, expõe ao público de classe
média ou baixa, uma visão deturpada e simplista dos fatos. A partir deste
cenário, qual reação podemos esperar por parte de trabalhadores que, após
um cansativo dia de trabalho, chegam em seus lares e acabam por encarar
programas com esse grau de intransigência?
A televisão aberta no Brasil padece de um mal que tomou conta de
praticamente todas as mídias tradicionais, incluindo jornais, revistas e
rádios. Nesse viés, pode-se constatar a falta do contraditório, da reportagem
de campo e investigativa, da busca pelas causas e não somente das
consequências, sobretudo, da carência de um debate mais aprofundado e
qualificado.
Há que se ressaltar que, não são apenas os programas que
apresentam em sua íntegra a busca por justiça a qualquer custo, não
importando a truculência policial, a falta de uma investigação mais

710
avançada ou a busca por respostas vindas também das comunidades que
deixam a desejar. Os telejornais também pecam em suas coberturas
superficiais, ávidos por furos de reportagem que se confundem com
abordagens de pouca credibilidade. Poucos são os programas inclusivos,
preocupados em levar ao público informações embasadas e qualificadas, a
partir do depoimento de especialistas e pesquisadores, principalmente em se
tratando de temas sensíveis como, por exemplo, a segurança pública.
Nesse sentido, a perspectiva de Wolf, citado por Marília Denardin Budó
(2006), encaixa-se com a interpretação que este estudo pretende apresentar
acerca do tema proposto:

[...] o caráter comercial da informação é preponderante no que se


refere aos veículos de comunicação brasileiros. Ao optar entre os
valores-notícia interesse (do público) e importância, aquele se
sobrepõe, abrindo espaço na divulgação da informação para
interesses individuais, e, conseqüentemente, para o sensacionalismo.
Opta-se, então, pela confusão entre informação e entretenimento,
ressaltando-se os aspectos engraçados, dramáticos e de aparente
conflito, para então divertir. Na prática, percebe-se que “quanto mais
negativo, nas suas conseqüências é um acontecimento, mais
probabilidades tem de se transformar em notícia”.

Quando falamos em telejornais, devemos lembrar que alguns dos


principais noticiários da grande mídia brasileira são notórios em
manipulações de pautas, sem qualquer pudor ou ética jornalística,
abordando apenas aquilo que é de interesse dos grupos proprietários dos
canais televisivos. Até mesmo o telespectador nem tão crítico é capaz de
notar a diferença abissal de cobertura jornalística quando se trata de crimes
envolvendo a classe média alta ou a classe mais desfavorecida. Não é à toa,
que o massacre vivenciado nos últimos anos pela população jovem e negra
no Brasil, vem sendo dramaticamente omitido dos principais meios de
comunicação de massa em nosso país.
Para reforçar esse entendimento, vale destacar o ponto de vista de
Budó (2006) no que diz respeito à seletividade editorial da mídia nativa:

Assim, mais do que divulgar acontecimentos, o jornalismo possui um


papel de definir quais são os fatos que repercutirão na mídia, e quais
não serão conhecidos. Além desse quadro de abordagem da
realidade, ainda o jornalista define qual o ângulo será privilegiado na
711
notícia, mesmo que isto ocorra inconscientemente. Quando se trata
de notícias sobre crimes, o senso comum jornalístico é
preponderante ao definir a forma de abordagem do fato. Apesar de
defenderem a objetividade, na sua maioria os jornais são
absolutamente sensacionalistas nesse tipo de caso. Como percebe
Lage (1979, p. 24) o sensacionalismo permite que se mantenha um
elevado índice de interesse popular (o que é conveniente para o
veículo, na época de competição por leitores e de maximalização
publicitária), refletindo, na divulgação de crimes e grandes
passionalismos, uma realidade violenta muito próxima de imprecisos
sentimentos do leitor; oferece-lhe, em lugar da consciência, uma
representação de consciência (...). Quanto aos problemas, eles se
esvaziam no sentimentalismo ou se disfarçam na manipulação da
simplificação e do inimigo único.

Um ponto importante a ser observado é o do oportunismo da mídia,


que além de promover uma sensação de insegurança na população, se
aproveita desse sentimento para incentivar uma reação do povo no sentido
de buscar eliminar a sua ansiedade e insegurança a partir do extermínio do
que lhe causa mal, exorcizando o “monstro da vez”, normalmente indicado
também pela própria mídia. Cabe destacar aqui, que após a justiça feita
pelas próprias mãos, a sensação de segurança e alívio é momentânea. Nesse
sentido, vale destacar trecho do sociólogo Bauman, sobre os sentimentos de
insegurança da população e a tendência a expurgar um monstro simbólico
na tentativa de eliminar as ansiedades acumuladas, vejamos:

As cidades contemporâneas são campos de batalha em que os


poderes globais e os significados e identidades obstinadamente locais
se encontram, se chocam, lutam e buscam um acordo que se mostre
satisfatório ou pelo menos tolerável – um modo de coabitação que
encerre a esperança de uma paz duradoura, mas que, em geral, se
revela um simples armistício, um intervalo para reparar as defesas
avariadas e redistribuir as unidades de combate.
[...]
Sendo um componente permanente da vida urbana, a presença
perpétua e ubíqua de estranhos visíveis e próximos aumenta em
grande medida a eterna incerteza das buscas existenciais de todos os
habitantes. Essa presença, impossível de se evitar senão por breves
momentos, é uma fonte de ansiedade inesgotável, assim como de
uma agressividade geralmente adormecida, mas que volta e meia
pode emergir.
O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca
desesperadamente escoadouros confiáveis. As ansiedades
acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os “forasteiros” [...]. O
fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo –
queima-se simbolicamente o monstro assustador da insegurança.
[...] Mas a líquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e
caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros
indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças

712
investidas nas “medidas duras e decisivas” se esvanecem tão logo se
apresentam (BAUMAN, Zygmunt, 2004).

A partir do trecho exposto, pode-se analisar que muitos são os eleitos


para figurar no papel de monstros que ameaçam os “cidadãos de bem”,
gerando insegurança na população. Cotidianamente, vemos a opinião
pública se voltar contra os negros, os pobres, os moradores de comunidades,
e um tipo mais recente nos noticiários, os imigrantes. Esses são
apresentados como ameaças à população, que, manipulada por manchetes e
notícias tendenciosas, reúne suas forças no combate ao que lhe causa medo
e promove assim mais injustiças e violências.
Nesse sentido, cabe transcrever novamente o que Bauman assevera
acerca do tratamento preconceituoso sofrido por alguns segmentos da
sociedade em tempos de consumismo, uma vez que não são úteis para a
economia consumista, acabam por se tornar alvo da exclusão social e, nesse
sentido, fazendo uma ligação com a análise do presente artigo, podem,
facilmente, ser acusados pela mídia sensacionalista,

Quase fisicamente liquidados (a pressão por tal “solução” manifesta-


se mais patentemente nos lemas populistas que exigem a deportação
de estrangeiros, esse “sorvedouro dos nossos recursos”, e o
fechamento das fronteiras aos migrantes, definidos a priori como
parasitas e aproveitadores, não produtores de riqueza), eles precisam
ser isolados, neutralizados e destituídos de poder, de tal modo que a
possibilidade de seus infortúnios e humilhações maciços, porém
individualmente experimentados, se condensar em protesto coletivo
(quanto mais eficaz) seja mais diminuída, idealmente reduzida a
zero. Esses resultados são buscados mediante a estratégia bifurcada
da incriminação da pobreza e brutalização dos pobres (BAUMAN,
Zygmunt, 1998).

Ainda, outra forma de interferência da mídia é por meio da promoção


do clamor público, que por sua vez pressiona os órgãos do legislativo a dar
uma resposta imediata à criminalidade, e como consequência disso, vemos
cada dia mais um número maior de leis sendo propostas, ocorrendo assim
uma inflação legislativa a partir do clamor da população. Nesse aspecto,
Baratta, citado por Budó (2006) fala sobre a mídia espetacular,

Baratta (1994) também levanta a questão do espetáculo e da

713
influência da opinião pública no exercício crescente da função
simbólica do sistema penal. Ele acaba servindo como resposta à
demanda por segurança, mesmo que na prática não realize as
funções instrumentais prometidas. “Na verdade, na ‘política como
espetáculo’ as decisões são tomadas não tanto visando modificar a
realidade dos espectadores: não procuram tanto satisfazer as
necessidades reais e a vontade política dos cidadãos, senão vir ao
encontro da denominada ‘opinião pública”.

A partir dessa realidade, percebe-se que muitos direitos e garantias


individuais têm sido frequentemente violados. Nesse sentido, dentre outros,
destaca-se a violação da imagem, da dignidade da pessoa humana, da
presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, direitos
previstos constitucionalmente e até mesmo na Declaração Universal dos
Direitos do Homem e Pacto de San José da Costa Rica, que preveem que
“ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da
sentença penal condenatória”.
Neste cenário, verifica-se que, mais do que acusar um indivíduo,
expondo sua imagem e ferindo seus direitos e sua dignidade, a imprensa, em
sua maior força, televisionada, também condena o indivíduo. Por sua vez, a
população executa a pena, valendo a analogia com os espetáculos da idade
média, feita por Fábio de Andrade, citado por Lorena Corrêa Braga (2014),
“(...) voltamos aos linchamentos em praça pública, quando populares
gritavam e enxovalhavam os réus (...)”.
Neste sentido, Budó destaca com clareza ao que se resume a atuação
da população influenciada pela mídia mal intencionada, vejamos:

É assim que se percebe nos dias atuais uma forma não


institucionalizada de executar penas sem processo. O fato de haver
um sujeito passivo em um processo criminal passa a ser considerado
pelos meios de comunicação como uma sentença condenatória
transitada em julgado. A pena instituída por estes órgãos é a
execração pública do suspeito ou acusado, a violação de sua
imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de forma
que jamais se recuperará, mesmo após a sua absolvição (BUDÓ,
Marília Denardin, 2006).

Assim, é evidente que a mídia, através do jornalismo, exerce grande


poder de influência na população, que insegura diante do sentimento de
impunidade, deposita todo o seu medo na execração de um inimigo, muitas

714
vezes construído pela própria mídia sensacionalista. Um jornalismo egoísta e
mal intencionado, que busca atingir os seus objetivos mercadológicos, sem
se importar com o prejuízo causado a seres humanos que veem a sua vida
exposta e disposta como se vivessem em uma terra sem leis.

2.2 A tragédia de Castelo no Piauí

Para que seja exemplificada a gravidade da falta de ética jornalística


na cobertura de crimes no Brasil, aliada ao despreparo policial e da Justiça,
é necessário dar destaque a um fato recente e chocante, ocorrido na cidade
de Castelo do Piauí, localizada a 180 quilômetros de Teresina, capital
piauiense. Trata-se de um crime de estupro coletivo, que vitimou quatro
meninas e que apresentou como suspeitos a priori, quatro adolescentes e um
adulto.
Um verdadeiro prato cheio para os defensores da redução da
maioridade penal e para jornalistas ávidos por condenações rápidas, sem
qualquer compromisso com uma investigação mais detalhada e profunda.
Uma das mais tradicionais e conservadoras publicações nacionais, a
revista Veja estampou na capa de uma de suas edições, fotos com as faces
dos quatro adolescentes, afirmando que a condenação seria certa, pela
comprovação da autoria das agressões. Ao fazer isso, Veja não observou uma
regra constitucional básica, explicitada no artigo 50 da Carta Magna, onde
está ratificado que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela
autoridade competente”.
Impera frisar que, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), em seu artigo 143, parágrafo único, que diz que “Qualquer notícia a
respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se
fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco e residência”.
Acerca do fato, a jornalista Maria Carolina Trevisan, em matéria
especial para o coletivo de mídia Jornalistas Livres (2015), fez um relato
independente e demonstrou, em reportagem veiculada em seu sítio, os
equívocos e a tragédia social que se manifesta a partir do descompromisso
de autoridades e da mídia selvagem:
715
A apressada punição dos supostos autores do crime seria um
desfecho aceitável caso os procedimentos de investigação e justiça
tivessem sido observados, especialmente no que se refere aos
direitos humanos. Não foi o que aconteceu. Trinta e três dias após
as agressões, o adolescente G., de 17 anos, morreu espancado —
 enquanto se encontrava sob tutela do Estado -, no Centro
Educacional Masculino (CEM), em Teresina. Não se sabe se o
adolescente foi morto à noite ou na hora do banho — conhecido
momento de vulnerabilidade em que os abusos costumam
acontecer nas unidades de internação de adolescentes. Alega-se
que a unidade estaria superlotada e por isso G., apesar das
ameaças de outros jovens, foi colocado na cela que abriga internos
que cometeram atos infracionais graves como homicídio e estupro.
G. era o delator do crime de estupro do qual teria feito parte. “A
sede pela descoberta do autor pode prejudicar a busca daquilo que
chamamos de Justiça”, afirma Riccardo Cappi, doutor em
Criminologia e professor de Direito da Universidade Estadual de
Feira de Santana (BA). Com o crime “solucionado”, todos poderiam
dormir sossegados. “Nos interessa achar um culpado que esteja
distante de nós. O castigo desempenha assim a função de
afastamento da responsabilidade coletiva”, alerta Cappi. Nesta
segunda-feira, 10 de agosto, o programa de exibição local “Bancada
do Piauí”, da TV Antena 10, afiliada da Rede Record, revelou a
participação do PM Elias Júnior como mandante do estupro
coletivo, conforme informações do subcomandante da Polícia Militar
Lindomar Castilho. Em conversa gravada com funcionários do
CEM, G. afirmou que o PM o contratou por 2 mil reais para
executar atos infracionais na cidade. Elias Junior foi afastado da
corporação e está à disposição da Corregedoria.

Com as novas revelações, restou à Defensoria Pública pedir a


absolvição dos quatro adolescentes envolvidos no caso e do adulto, até
então apontado como mandante do crime. Entretanto, vários direitos já
haviam sido feridos, e tampouco houve a preocupação da mídia com a
(tentativa de) reparação do dano sofrido, conforme constata a reportagem
de TREVISAN (2015):

Não houve qualquer repercussão na mídia nacional comparável à


cobertura na época dos fatos. Como se nós, jornalistas, não
fôssemos mais responsáveis pela história que ajudamos a montar —
 e que agora entra numa reviravolta ainda mais cruel. Se o papel
principal do Jornalismo é fiscalizar o Poder e acompanhar as
políticas públicas, neste caso, falhamos muito. Deixamos que a
ponta mais frágil do enredo ficasse exposta a qualquer violação.
Teria sido bom jornalismo, comprometido com o respeito à
dignidade da pessoa, procurar entender de que maneira se deram
os depoimentos; compreender quem eram as partes interessadas
em que o crime fosse assumido por meninos e por um “traficante”;
questionar a rápida conclusão do caso; identificar as políticas
sociais e as falhas da rede de proteção de crianças e adolescentes;
contextualizar a situação social de um município que tem Índice de

716
Desenvolvimento Humano baixo (IDHM 0,587, o que coloca Castelo
do Piauí em 4.467ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros) e
com cerca de 20% da população em situação de extrema pobreza
(renda per capita mensal abaixo de 70 reais).

Este episódio exemplifica o potencial nefasto que muitos crimes estão


tendo, principalmente em regiões periféricas, tanto em grandes cidades
como nos rincões mais longínquos do Brasil.
Está escancarado, para autoridades, estudiosos e a população em
geral, ver e encarar a total afronta aos direitos humanos em setores
minoritários e historicamente oprimidos da sociedade brasileira. Um índice
inédito, lançado pela ONU (Organização das Nações Unidas), denominado
como Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), concluiu, através de
indicadores sociais, que a cor da pele dos jovens está diretamente
relacionada ao risco de exposição à violência a que estão submetidos.
De acordo com o estudo, Alagoas, no Nordeste brasileiro, é o estado
com maior IVJ – Violência e Desigualdade Racial: 0,608, na escala de 0 a 1.
Isso significa que Alagoas é o estado onde os jovens negros de 12 a 29 anos
estão mais vulneráveis à violência. No extremo oposto, São Paulo é o estado
em melhor situação, isto é, com o menor índice entre as 27 unidades da
federação: 0,200.
Ao analisar especificamente as taxas de homicídios de brancos e
negros, o levantamento mostra que a Paraíba é o estado com maior risco
relativo por raça/cor. Assim, um jovem negro corre risco 13,4 vezes maior
que um jovem branco de ser assassinado na Paraíba. Pernambuco tem a
segunda maior taxa de risco relativo de homicídios de jovens negros em
relação a jovens brancos (11,57), seguido por Alagoas (8,75).
Os dados de homicídios foram obtidos no Sistema de Informações de
Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Segundo o levantamento, o
Nordeste é a região com maior distância entre a taxa de homicídios de jovens
negros e brancos. Em 2012, foram assassinados 87 jovens negros para cada
grupo de 100 mil jovens negros na região, ante 17,4 jovens brancos para
cada grupo de 100 mil jovens brancos. Em outras palavras, o risco de um
jovem negro nordestino ser assassinado era quase quatro vezes maior que

717
um jovem branco nordestino.
O estudo fez uma simulação, excluindo a desigualdade racial no
cálculo das taxas de assassinatos de jovens no Brasil. O objetivo foi aferir o
impacto da desigualdade racial na vulnerabilidade juvenil à violência. Assim,
na hipótese de que a taxa de homicídios de jovens negros igualasse a de
jovens brancos, o IVJ – Violência e Desigualdade Racial diminuiria até 9,8%,
como ficou demonstrado na simulação realizada no Distrito Federal. Em
Alagoas, o impacto seria uma redução de 9,2% do índice.
O estudo calculou ainda o IVJ – Violência e Desigualdade Racial
referente ao ano de 2007, o que permitiu comparar a realidade de 2007 com
a de 2012. O Piauí foi o estado em que o índice mais cresceu, isto é, onde
houve uma piora de 25,9% no tocante à maior vulnerabilidade de negros. O
índice piauiense passou de 0,379 (em 2007) para 0,477 (em 2012). Realidade
bem diferente viveu o Rio de Janeiro, cujo índice teve a maior queda do país:
– 43,3% (de 0,545, em 2007, para 0,309, em 2012).
Apesar desse retrato nítido de que ainda resta uma carência grande de
políticas públicas que evitem ou minimizem estes impactos, a grande mídia
pouco interpretou ou divulgou estes números em horário nobre. Não há
espaço para questionamentos sérios e necessários como esses, que deveriam
estar mais presentes na vida cotidiana do público.
O jornalista, escritor e professor Juremir Machado da Silva (2012),
crítico dos meios de comunicação, com fina ironia, nos apresenta alguns
argumentos referentes à imprensa e à televisão:

Para Balzac, autor realista, se a imprensa não existisse seria preciso


não inventá-la. Na sociedade mídiocre, hiper-realista, a imprensa
não existe mais, a não ser como entretenimento ou reality show em
tempo real. A realidade é hiperespetacular. O sonho do escritor foi,
enfim, realizado como ficção deslocada dos personagens. [...] Na
televisão, como se sabe, embora nem sempre se conte isso ao
telespectador, tudo está a serviço da sagrada imagem, inclusive o
imaginário e o fato. Não conta o que se diz, nem mesmo
necessariamente quem o diz, mas, antes de tudo, o efeito de
embalagem e a embalagem do efeito. Não se trata de em que
circunstâncias se diz algo e sim em qual cenário e com quais
recursos se diz esse algo elementar.

718
2.3 As mídias independentes e a atenção aos direitos humanos

As mídias independentes, reforçadas pelo crescimento exponencial das


mídias sociais e da interatividade, estão cumprindo um papel preponderante
para as garantias aos mais elementares direitos fundamentais e humanos.
Aprofundam a investigação sobre temas que são tratados superficialmente
nos veículos tradicionais, questionam e apresentam o lado pouco ou nunca
explorado pelos meios de comunicação de maior poderio econômico. Esse
trabalho é feito de forma colaborativa, a grande marca do meio virtual nos
últimos anos.
Nesse sentido, as mídias independentes possuem um componente
cidadão de grande relevância, garantindo o contraponto necessário àquilo
que é massificado pela mídia tradicional, vinculada historicamente aos seus
compromissos corporativos e empresariais, restando ser guiada por uma
pauta pouco afeita a conquistas populares, mas muito mais voltada ao
sensacionalismo e à não reflexão.
Uma opinião que reforça a crítica aos meios tradicionais de
comunicação e aponta o advento das mídias independentes é explicitada por
Carmélio Reynaldo Ferreira (s/d):

A impossibilidade de dispor da tecnologia da comunicação de massa


manteve as pessoas à mercê dos que controlavam a mídia. Porém,
desde o final do século passado, as ferramentas desenvolvidas para a
informática e a internet disponibilizaram recursos que permitem um
papel ativo dos seus usuários no complexo de comunicação de massa.
Essas novas tecnologias estão impondo maior responsabilidade da
mídia, pois a internet faz de cada usuário um potencial emissor, seja
através de blogs, gratuitos ou pagos, sites, etc.; seja como interlocutor
em grupos de discussão, comunidades virtuais ou sites de
relacionamento. Já prolifera na internet uma modalidade saudável
para a cidadania, que é a de crítica/análise dos meios de comunicação
de massa, atividade que está recebendo o nome de observador de
mídia. Em reação pouco inteligente, pois não têm condições de mudar
essa nova realidade, os grandes veículos criam blogs em seus sites,
através dos quais as estrelas da publicação tentam se humanizar e se
aproximar do público e, através da confiança conquistada,
desacreditar os críticos.

Um exemplo de mídia independente que começou a ter destaque,


principalmente após a ebulição dos protestos populares, em meados de

719
2013, é a Agência Pública. Entre suas pautas estão temas que ocupam
pouco espaço e valorização nas mídias tradicionais, como a questão
indígena, a construção de hidrelétricas e barragens, a luta por moradia e
contra o desalojamento de famílias, em benefício de grandes grupos
imobiliários ou de eventos esportivos milionários.
Romper com a hegemonia de alguns grupos empresariais jornalísticos
no Brasil é uma maneira de oportunizar à sociedade visões completamente
diferenciadas de uma série de questões, mas, principalmente, abrir
oportunidade para a obtenção de novos olhares sobre os direitos humanos,
em uma luta que vem sendo reforçada de forma universal. É um meio
inovador de cidadania e de debate sobre direitos.
A opinião de FERREIRA (s/d) novamente deve ser destacada:

Controlando a mídia e o entretenimento, os grupos hegemônicos


controlam com eficiência o pensamento, os meios para legitimarem-se
no poder e mantém o status quo, pois, através dos conteúdos
veiculados, obtêm a adesão da maioria. Mas, nesses conteúdos,
também circulam as idéias com que se constrói a resistência à
hegemonia, como frisa Douglas Kellner: “[...] a cultura veiculada pela
mídia induz os indivíduos a conformar-se à organização vigente da
sociedade, mas também lhes oferece recursos que podem fortalecê-los
na oposição a essa mesma sociedade.”

O conteúdo engessado e pouco criativo das principais mídias no Brasil


acaba por fortalecer os canais independentes. Afastar-se do senso-comum,
apresentando um panorama diferenciado e aprofundado sobre temas
importantes para o presente e o futuro, está na pauta atual.
O material produzido, entretanto, deve ser organizado e projetado de
forma responsável e ética, apostando na inteligência do público que
absorverá as informações. Neste sentido, Jesús Martín-Barbero (1998) faz
uma análise importante:

Mas também é verdade, como escreveu Baudrillard, que quanto “maior


é a quantidade de informação, menos sentido”. Cada dia estamos
informados sobre mais coisas, porém cada dia sabemos menos o que
significam. Quanto da enorme quantidade de informação que
recebemos sobre o país e o mundo se traduzem em maior
conhecimento dos outros, em possibilidade de comunicação e em
capacidade de atuar de modo transformador sobre nossa sociedade?

720
Hoje, o volume de informações é vasto e sem limite, o que acaba
prejudicando, de certa forma, a interpretação e seleção daquilo que
realmente faz sentido ou tem importância. Além de receber a informação, o
cidadão deve situar onde pode ter participação efetiva, não apenas ilusória.
A partir disso, MARTÍN-BARBERO (1998) novamente deve ser destacado:

De outro lado, a informação tem passado a simular o social, a


participação. Ao sentir-me informado do que acontece, tenho a ilusória
sensação de estar participando, atuando na sociedade, de ser
protagonista, quando “sabemos” que os protagonistas são outros e
bem poucos. Pois se é verdade que as novas tecnologias
descentralizam, é certo que não estão fazendo nada contra a
concentração de poder e capital, que é cada vez maior.

Se hoje há uma necessidade por novos olhares frente a determinados


temas, ainda mais se for sensível e em construção permanente, como no
caso dos direitos humanos e direitos fundamentais, isso é resultado da
saturação de uma mídia pouco preocupada em realmente buscar ajudar a
transformar positivamente uma parte da realidade social, uma tarefa que
também lhe cabe.
A Mídia Ninja, com um formato completamente diferente de tudo
aquilo que a sociedade brasileira estava acostumada a enxergar como
veículo de comunicação, assumiu uma posição de destaque e de ativismo
social, através de uma rede de contatos e colaboradores, que mantém
ininterrupto este canal de comunicação, com uma independência que deve
ser entendida e exaltada.
O texto que apresenta o perfil do site da MÍDIA NINJA (2014) dá a
exata noção do grau de transformação e de novidade que representa:

“Uma rede de comunicadores que produzem e distribuem informação


em movimento, agindo e comunicando. Apostamos na lógica
colaborativa de criação e compartilhamento de conteúdos,
característica da sociedade em rede, para realizar reportagens,
documentários e investigações no Brasil e no mundo. Nossa pauta
está onde a luta social e a articulação das transformações culturais,
políticas, econômicas e ambientais se expressa. A Internet mudou o
jornalismo e nós fazemos parte dessa transformação. Vivemos uma
cultura peertopeer (P2P), que permite a troca de informações diretas
entre as pessoas, sem a presença dos velhos intermediários. Novas
tecnologias e novas aplicações têm permitido o surgimento de novos
espaços para trocas, nos quais as pessoas não só recebem mas
721
também produzem informações.”

No entanto, é importante frisar que nem tudo está perdido. Nesse


sentido, Bauman destaca que a justiça só será efetiva quando os direitos
humanos forem assegurados, e isso poderá ser alcançado por meio da
tolerância, vejamos:

Não é preciso mencionar que o problema da justiça não pode ser


sequer postulado a menos que já haja um regime democrático de
tolerância que assegure, em sua constituição e prática política, os
“direitos humanos” – ou seja, o direito a conservar a própria
identidade e singularidade sem risco de perseguição. Essa tolerância
é uma condição necessária a toda justiça (BAUMAN, Zygmunt,
1998).

Ademais, é importante que a tolerância seja compreendida da forma


correta, nas palavras de Bauman, é preciso que haja “a transformação da
tolerância em solidariedade [...]. No entanto, na maioria das vezes, dada a
atual configuração do mecanismo político, os regimes democráticos
interpretam tolerância como empedernimento e indiferença”, o que precisa
ser mudado e pode ser, com o esforço de todos, modificado.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate sempre necessário sobre a temática dos direitos humanos,


com enfoque no direito penal e a interpretação que se dá pelos meios de
comunicação, é um compromisso que deve ser assumido pelos
pesquisadores educacionais, através de eventos que estabeleçam a
possibilidade de apresentação de trabalhos que fortaleçam essa temática.
Este trabalho teve a intenção de demonstrar como os meios de
comunicação preponderantes provocam posições preocupantes na
construção de um imaginário popular, que baseado naquilo que lhes é
apresentado, não reflete a importância dos direitos humanos como
construção coletiva de uma sociedade que precisa agir e enxergar um
caminho cidadão, que respeite o estado democrático de direito, sob pena de
regredir em conquistas sensíveis e alcançadas com muito esforço ao longo

722
dos séculos, como forma de estabelecer limites e garantias individuais e
coletivas. Conquistas essas que são universais.
Nesse sentido, o debate proporcionado pelas questões apresentadas no
presente trabalho é de suma importância, pois uma vez que evidente a
influência exercida pela mídia e, em especial, pelo jornalismo, na formação
da opinião pública e, como consequência, em seus atos, faz-se necessária a
luta pela mudança de paradigmas e pela conscientização da população,
visando uma sociedade e um direito penal que respeite o ser humano
enquanto indivíduo dotado de direitos, fundamentais e humanos.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos lações humanos.


Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:


Zahar, 1998.

BRAGA, Lorena Corrêa. O poder da mídia e seus reflexos na ordem


jurídica penal. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 121, fev 2014.
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14362>.
Acesso em ago 2015.

BUDÓ, Marília Denardin. Mídia e crime: a contribuição do jornalismo para


a legitimação do sistema penal. In. UNIrevista - Vol. 1, n° 3, 2006. Disponível
em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/12502-12503-1-
PB.pdf>. Acesso em jul 2015.

FERREIRA, Carmélio Reynaldo. Mídia e direitos humanos. Disponível em:


<http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/edh/redh/03/03_carmelio_midia_
dh.pdf>. Acesso em ago 2015.

LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do


nosso tempo e da nossa cultura. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicação e Cidade: entre Meios e Medos.


In: Grupo de Estudos sobre Práticas de Recepção a Produtos Mediáticos, I,
n. 01, 1998. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/51311/55378>.
Acesso em nov 2014.

MÍDIA NINJA. Quem somos. Disponível em:


<https://ninja.oximity.com/partner/ninja/about> Acesso em ago 2015.
723
ONU. Declaração universal dos direitos humanos. 1948.

SILVA, Juremir Machado da. A sociedade midíocre – passagem ao


hiperespetacular (o fim do direito autoral, do livro e da escrita). 1 ed. Porto
Alegre: Sulina, 2012.

TREVISAN, Maria Carolina. O jornalismo justiceiro faz mais vítimas.


Disponível em: <https://medium.com/jornalistas-livres/o-jornalismo-
justiceiro-faz-mais-v%C3%ADtimas-661b6e5e82d9>. Acesso em ago 2015.

724
A BUSCA POR RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES E O
EMPODERAMENTO DA SUBJETIVIDADE: O “CLUBE DA LUTA” E A
REBELIÃO DOS DESAJUSTADOS

Tiago Meyer Mendes1

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, no atual mundo globalizado, onde os meios de vida detêm


uma liquidez jamais vista antes. As formas de relação interpessoais se
alteram com o passar dos anos e cada vez mais os indivíduos buscam
significado para suas existências, crendo que formas pré-moldadas poderão
satisfazer subjetividades complexas, desejos viscerais e projetos de vida que
sonham em não serem estereotipados.
Neste sentido, a sociedade tornou-se uma sociedade de consumo, a
qual o mercado, a mídia e o Estado prometeram grandeza a todos.
Entretanto, com o passar dos anos, os indivíduos presos à trabalhos pouco
ou nada satisfatórios e em vidas comuns, começam a perceber que a
promessa da grandeza não será cumprida, neste momento a maioria apenas
se resigna e prossegue vivendo conforme as banalidades permitem, ainda
com o sonho adormecido, que só os faz frustrarem-se.
Todavia, com a banalização da repressão dos desejos e com a
passividade dos indivíduos (um mal-estar de modernidade), as pessoas
afundam-se em seus sofás e continuam replicando a forma “confortável” de
dominação, o sentimento de rejeição os leva a não buscarem soluções para
seus sonhos, somente remédios paliativos como o consumismo, televisão,
pequenos prazeres (como comida e o sexo), dentre outros.
Percebem-se estes sujeitos como “desajustados”, pois não são
integralmente parte da sociedade, em que pese são as engrenagens que
promovem o movimento dela.
Desta forma surge o Clube da Luta.

1Mestrando em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio


Grande do Sul. Bolsista da Fundação de Amparo àPesquisa do Estado do Rio Grande do Sul
–FAPERGS. Bacharel em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo
Ângelo –IESA. Email: tmeyermendes@hotmail.com.
725
O clube é um local de promoção de liberdades e, principalmente, de
libertação através da violência, sendo a violência é uma forma primitiva de
(re)estabelecer o domínio, bem como, uma forma de empoderamento social,
moral e de construção de uma identidade em meio a uma modernidade
complexa, onde luta-se por individualidade, com pouco espaço para o
diferente, o subversivo e o destoante.
Através da libertação promovida pelo Clube da Luta, o sujeito passa a
reconhecer-se naquele meio onde é visto como igual. A subversão trazida
pela violência e pela profanação da integridade física, sua e de outros, o faz
existir, sentir um novo tipo de prazer que lhe sacia os desejos. Não mais o
sujeito está desamparado, pois passa a fazer parte de algo maior que uma
vida fútil de perseguição de inatingíveis ideais utópicos.
O Projeto Desordem e Destruição constitui um terrorismo sem rosto,
de indivíduos que em comunidade buscam sua unidade individual e sua
representação na comunidade. A falta de abertura da sociedade
contemporânea leva os desajustados a cometerem crimes e buscarem
através da subversão o reconhecimento, e, algum lugar, podendo ser
qualquer um, na sociedade.
O livro Clube da Luta de Chuck Palahniuk interpela diversos enfoques
de temas do Direito, Sociologia e da Filosofia, que vão desde a identidade,
reconhecimento, alteridade, ao sentimento de sentir-se completo (mesmo em
uma vida vazia), por intermédio do consumismo, o terrorismo sem face em
uma ordem de guerrilha urbana e a violência, que vai além da física
tornando-se visceral, até que o sujeito torna-se somente a violência.
Através da revisão bibliográfica, e, valendo-se das lições da obra
literária “O Clube da Luta” como base para a análise de mazelas inerentes ao
cotidiano e sua economia baseada nos moldes do capitalismo exacerbado,
propõe-se um debate acerca das promessas não cumpridas e vidas
frustradas.
Com o presente artigo, busca-se expor a conceitualização de um
reconhecimento não ortodoxo, o reconhecimento subversivo, persegue-se
também apresentar a construção simbólica da identidade e do sentimento de
pertençado indivíduo e respeitando sua alteridade, incluindo-o em uma
726
comunidade que o protege. Nem que os vínculos que precisam ser
estabelecidos para esta conexão sejam a violência, o crime e o terrorismo.

2. RECONHECIMENTO, SUBJETIVIDADES E EMPODERAMENTO

O mundo globalizado dotado de uma liquidez de valores, de relações,


de exemplos e, pode-se dizer, de sentido, aponta para o horizonte de uma
falsa promessa de sonhos enlatados, onde o indivíduo se torna, se comporta
e age crendo que está escolhendo entre as inúmeras opções de vidas,
entretanto apenas é uma pequena engrenagem da máquina, individualmente
irrelevante, porém coletivamente preponderante.
No mundo contemporâneo, fruto de uma globalização e todos os seus
efeitos - como a comunicação em tempo real, o comércio mundial, as
organizações e empresas transnacionais com atuação em praticamente todo
o planeta - a criação de uma identidade somente atribuída ao Estado, seus
conceitos de nação ou a conexão do sujeito a um local específico do seu país
não são mais o suficiente para representar àquilo que as pessoas são,
tampouco, a forma como elas anseiam ser representadas (BAUMAN, 1999).
A complexidade da identidade atual é relacionada diretamente pela
dificuldade da aceitação do outro e seu eventual reconhecimento, as relações
por vezes passam a ser conflitantes, pela fragilidade de identidades fixas e
previsíveis, vez que, a conexão do sujeito não se vincula mais a uma forma
tradicional e linear de modo de vida, cultura, relações, dando espaço para
indivíduos cada vez mais multifacetados, próximos em alguns sentidos e
díspares em outros (HONNETH, 2003).
Neste viés, pode-se afirmar que o sentimento de pertença configura a
identidade, como uma de suas tantas peças de construção e, sendo uma das
principais desde sua gênese (CAMPILONGO, 2000).
O pertencimento não possui somente vínculos com a cidadania e o
Estado, pois é relacionado intrinsecamente com a religião, questões de
identificação cultural, bem como, orientações e definições políticas, sexuais,
dentre outras, que compõe o sujeito.
O sentimento de pertença, desta forma, pode ser logo relacionado a
727
questões jurídicas e de soberania, como o Estado e sua constituição,
metafísicas, como a religião, políticas, como orientação de participação
efetiva e ligações com determinados ideais de formatação social, bem como
sociológicas e filosóficas, vinculadas as suas relações culturais e
preferências diversas.
De acordo com o pensamento de Andrew Linklater (2000) e Seyla
Benhabib (2004), o sentido de pertencimento como cidadania é essencial à
proposta do cosmopolitismo ideológico, neste sentido ele se conecta
intrinsecamente com a máxima de considerar a todos como humanos
detentores dos mesmos direitos mínimos de coexistência, mesmo em uma
esfera econômica.
O pertencimento político, logo definido como participação cidadã,
trata-se, essencialmente, da emancipação do ser humano como uma
ferramenta do cosmopolitismo, não somente como uma engrenagem sem
poder de decisão àquilo que lhe permeia (BENHABIB, 2004).
Este sentimento de participar advém, inclusive, do direito, quando este
legisla para uma camada dominante, logo, minoritária, da sociedade, criando
uma barreira, a qual é uma espécie de luta de classes cosmopolita que não
se restringe somente a riquezas. O pertencimento e o respeito à alteridade
precisam ser revistos no próprio sistema jurídico, para coexistir alguma
forma pacífica de vinculação kantiana do ser (MENDES, 2015).
As comunidades criam conceitos como “nós” e “outros” entre vários
“eus” diferentes, algumas vezes promove, mesmo que de forma velada,
dificuldades de aproximações entre indivíduos e culturas, desrespeitando a
alteridade e por vezes encerrando os “seus” da convivência com os demais
(DOUZINAS, 2009).
Ao passo que o mundo buscou uma revolução iluminista de sentido e
individualidade, com o homem sendo o seu próprio “deus” que devesse
prestar contas a relações terrenas, e não metafísicas, em algum momento
desta mudança as rédeas trocaram de mãos e o “sacro-homem”, objeto de
sua própria veneração, passou a amar uma nova e difusa divindade: o
mercado.
A partir deste momento a necessidade de consumo passou a inverter
728
os papéis, de um momento inicial onde o homem realizava escambos por
necessidade, ele passa a ter a necessidade de comprar. Torna-se escravo do
que os objetos significam para os outros (e para ele), transformando a si
mesmo em mercadoria “você fica preso em seu belo ninho e as coisas que
costumavam ser suas agora mandam em você” (PALAHNIUK, p. 50, 2012).
A retroalimentação provocada pelo consumo é uma estratégia eficaz,
pois cria uma relação perfeita entre o “ser alguém para ter tal objeto” e “ter
tal objeto exclusivo para ser alguém” (LACAN, 1995). Prisões de status e
cifras agrilhoam as liberdades de escolhas dos produtos, em uma infinidade
deles, o sujeito precisa aceitar que um ou outro “o define como quem ele é” e
sonha em passar a ser que aquilo que lhe é prometido, ao menos por um
tempo acredita-se nesta ilusão, até precisar de algo novo para se definir
melhor, ou definir-se o novo eu. “Nossa cultura nos fez sermos todos iguais.
Ninguém mais é verdadeiramente branco, preto ou rico. Todos queremos a
mesma coisa. Individualmente não somos nada” (PALAHNIUK, p. 167, 2012).
Neste sentido, passa-se a buscar sua posição no mundo através de
bens, desde roupas até a bebida que consome, do sofá ao aparelho de jantar,
todo o consumismo passa a ser voltado para a auto-composição da
subjetividade preenchendo o vazio singular que a liquidez da vida moderna
deixou na vida, afetando a questão psicológica (BEDIN; MENDES, 2015).
E consumir passa a ser o meio de ser reconhecido como cidadão, para
subjetivamente empoderar-se de direitos. Abandona-se o conceito que a
cidadania “tem a ver fundamentalmente com a participação na comunidade
política na qual o cidadão é inserido pelo vínculo jurídico” (CORRÊA, 2010,
p. 25), apesar dos avanços dos conceitos de direitos humanos e de Estado.
Desta forma a cidadania, bem de grande valia do ser humano, cada
vez mais relaciona-se ao consumo, nas palavras de Nestor García Canclini
(2008, p. 29),

Estas [formas de exercer a cidadania] sempre estiveram associadas


àcapacidade de apropriação de bens de consumo e àmaneira de usá-
los, mas supunha-se que essas diferenças eram compensadas pela
igualdade em direitos abstratos que se concretizava ao votar, ao
sentir-se representado por um partido político ou um sindicato.
Junto com a degradação da política e a descrença em suas

729
instituições, outros modos de participação se fortalecem. Homens e
mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos
–a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como me informar,
quem representa meus interesses –recebem sua resposta mais
através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de
massa do que pelas regras abstratas da democracia ou pela
participação coletiva em espaços públicos.

Na sociedade de consumo que se convive, cada vez mais o indivíduo


espelha-se em seus bens, nos grupos aos quais pertence, na busca pela
identificação da pertença. (BAUDRILLARD, 2012). Desta forma, passam a ser
os bens que pertencem o indivíduo, tornando-o indissociável da manutenção
do consumo para continuar pertencendo a um grupo e aos seus próprios
bens.
Reconhecer-se foi transformado em algo problemático, não se aceita
estereotipações para si, busca-se e necessita-se a singularidade, sentir-se
ímpar, único e exclusivo, entretanto não se quer enfrentar a adversidade de
ser o diferente, aquele que no subconsciente da coletividade é o “outro”, que
não pertence ao grupo do “nós”. Desta forma entrega-se a liberdade e a
singularidade em prol da coletividade e do reconhecimento (RESTA, 2014).
A relação do ser humano com o outro sempre nasce de um conflito,
toda relação interpessoal nasce de um conflito. As relações explicam a
própria existência humana. Inicialmente o outro é aquele que vem ameaçar a
“zona de conforto” do indivíduo, que pode desejar o que lhe é desejado e
usurpar-lhe estes objetos, triunfando desta forma na conquista por algo
(MULLER, 1995).
Entretanto, “banir um estranho é banir a comunidade, e bane-se a si
mesmo da comunidade desse modo” (Lyotard apud Douzinas 2009, pg. 155).
O encerramento de uma cultura às demais, bloqueia o intercâmbio,
inclusive, de benefícios culturais oriundos de outras formas de pensamento.
O outro, mesmo não se portando de forma agressiva, causa o conflito
para a aceitação da diferença, o reconhecimento e para a alteridade.
Paradoxalmente somente na presença do outro que pode-se pensar uma
relação de “nós”, pois o grupo só consegue se definir mediante o diferente, só
a partir da observação de algo “não igual” que chega-se ao conceito de
“igual”, somente com a existência do “externo” que nasce o reconhecimento

730
ao “interno” (HABERMAS, 2007).
O consumismo cria esta noção de “nós” e “eles” através da capacidade
econômica de aquisição de bens, do que se consome e onde se consome,
dando gênese a grupos fechados de compradores que ao adquirir passam a
hibridizarem-se com o que adquiriram. Subjetivamente torna-se o objeto,
neste momento a relação lógica de “ser” e “ter” transformam-se em “ter” e
“ser” (BEDIN; MENDES, 2015).
Os indivíduos “desajustados” que apesar de serem consumidores,
pagarem tributos, possuírem empregos no mercado de trabalho, são
renegados de serem alguém e é onde o Clube da Luta acolhe a todos.
Transforma-se em uma comunidade fechada, onde estes passam a serem
reconhecidos, criam laços de solidariedade, fraternidade e alteridade entre
eles. Os ferimentos os fazem serem reconhecidos nas ruas, começam a
perceber futuros membros por características sociais, culturais, sexuais,
físicas, étnicas e econômicas que eles mesmo possuem.
Desta forma, a violência os une. A subversão os faz tornarem-se
alguém no meio da multidão. Mesmo que considerados inimigos públicos.
“Enquanto permanecer no clube da luta você não é definido por quanto
dinheiro tem no banco. Você não é o seu trabalho. Não é a sua família nem é
quem acha que é” (PALAHNIUK, p. 178, 2012).
No instante em que as identidades perdem o cunho moral estabelecido
pelas éticas sociais, que a transformavam em algo inerente do ser humano, a
relação de sentimento de pertença, a algum lugar, religião, comunidade,
determinada cultura ou grupo, torna-se essencial, para o estabelecimento do
conceito de “nós” e a garantia de que esse grupo fornece ao “eu” (LUCAS,
2010).
No livro Clube da Luta os modelos de vida do American way of life não
controlam os membros do grupo, ao integrarem o Clube da Luta estes
sentem-se dentro de algo que os transforma em uma unidade, têm a
sensação de “nós” e podem sentir que estão incluídos em algo, não sendo
assim os excluídos.
No mundo contemporâneo, onde formas fragilizadas dos conceitos de
lealdade e de vínculos mais profundos há uma transitoriedade permanente,
731
onde tudo escorre por entre os dedos, nada mais é certo e sim vazio,
mutante e líquido (BAUMAN, 1999). Com essas mudanças constantes os
sujeitos passam a buscar formas de garantia da segurança e nisso, retornam
à ideias de comunidade, pois estas estabelecem uma segurança nas
constantes dicotomias que levam as incertezas.
E ao perceberem-se como “rejeitados” e entenderem-se desta forma, os
membros o clube da luta passam a reagir de forma distinta da padronizada,
a desconstruir as promessas do governo e da mídia que o consumo os faria
heróis e decidem assumir uma posição de participação na sociedade
(PALAHNIUK, 2012)

As pessoas em que vocêquer pisar, nós, somos as pessoas das quais


vocêdepende. Somos nós que lavamos suas roupas, preparamos sua
comida e servimos seu jantar. Arrumamos sua cama. Cuidamos de
vocêenquanto dorme. Dirigimos as ambulâncias. Passamos as suas
ligações. Somos cozinheiros e motoristas de táxi e sabemos tudo
sobre você. Processamos seus pedidos de seguro e gastos do cartão
de crédito. Controlamos todas as partes da sua vida.
Somos os filhos do meio da história, criados pela televisão para
acreditar que algum dia seremos milionários, astros de filmes ou da
música, mas não seremos. E estamos entendendo isso agora (p. 206)

Na mesma vereda, o empoderamento das classes economicamente


desprivilegiadas éuma forma de conquista do direito da multidão. “Apesar da
infinidade de mecanismo de hierarquia e subordinação, os pobres estão
constantemente expressando uma enorme força de vida e produção”(HARDT;
NEGRI, 2005, p. 175).
Entretanto, a busca de mudança de perspectiva énecessária para o
avanço da sociedade e para o reconhecimento das relações, logo,
“precisamos reconhecer que os pobres não são apenas vítimas, mas também
agentes poderosos”(HARDT; NEGRI, p. 186, 2005). Tanto que háuma crítica
quanto a colocação dos membros do clube, “vejo os homens mais fortes e
inteligentes que jáviveram (...) esses homens estão enchendo tanques de
carros e servindo mesas”(PALAHNIUK, p. 186, 2012).
Ainda, deste sentimento de abandono, pode-se observar o abandono
pelo sagrado, a profanação dos humanos para que possam reassumir o
controle de suas vidas “Tyler achava que conseguir chamara a atenção de

732
Deus sendo mau era melhor do que não conseguir atenção nenhuma. Talvez
porque seja melhor o ódio de Deus do que a indiferença Dele”(PALAHNIUK,
p. 176, 2012). O sentimento de desamparo amplia-se, causando uma tristeza
psicológica que precisa ser suprida.

Somos os filhos do meio de Deus, de acordo com Tyler Durden, e não


temos lugar especial na história nem atenção.
A menos que consigamos chamar a atenção de Deus, não teremos a
menor chance de danação ou redenção”(p. 176).

Neste caminho, os membros do clube da luta passam a agir em


condutas criminosas, criando o Projeto Desordem e Destruição, para serem
reconhecidos pela sociedade, adentrarem no sistema de leis, mesmo que
como infratores. Atingir o “o desastre é uma parte natural da minha
evolução – Tyler sussurrou – rumo à tragédia e a dissolução” (PALAHNIUK,
p. 136, 2012). Por meio da profanação do sagrado e da cultura
contemporânea, os membros do clube estavam chamando atenção de Deus e
receberiam a danação, que parece substancialmente mais importante que a
indiferença.

3. VIOLÊNCIAS, TERRORISMO E ESTADO DE EXCEÇÃO

A violência é uma forma primitiva de conquista ou reconquista de


dominação. Quando outros meios de empoderamento falham ou não são
conhecidos pelo agente, ele vale-se da violência para assumir uma posição e
dominar aqueles que consegue. “A meta era ensinar cada homem no projeto
que ele tinha poder para controlar a história. Nós, cada um de nós, pode
controlar o mundo” (PALAHNIUK, p.152, 2012). Neste sentido, a violência
gera uma espiral crescente, no sentido que agir violentamente provocará
outras formas de violência.
No momento em que a violência é legitimada como direito do homem,
não mais se poderá desobrigar alguém de recorrer a este direito, ampliando a
crescente da violência (MULLER, 1995). Acaba que a ideologia da violência
permite com que indivíduo justifique a sua agressividade, deste modo, esta
se transforma em uma fatalidade banalizada como o método mais
733
simplificado de resolução de conflitos.
O conflito é a gênese das relações interpessoais. As relações humanas
constituem a subjetividade e a personalidade, explicando a própria
existência humana, sendo que esta não é apenas viver (ou sobreviver), mas,
viver com os outros. O ser humano essencialmente é um ser coletivo (ZIZEK
2014).
Ademais, necessário ressaltar que existem diversas formas de
violência: violência física (aquela que atenta contra a integridade física e a
vida do sujeito), violência psicológica (aquela que agride o indivíduo de
maneira subjetiva e psicossocial), violência moral (a qual abusa do sujeito
em seus princípios éticos e de conduta ou o coage hierarquicamente), dentre
outras. Logo, o ato de violentar é sempre um ato complexo, o qual parte do
ser humano, revestido de vontade ou não.
Ressalta-se que a agressividade pode ser benéfica ou maléfica,
destruidora ou criadora, pois se trata de um poder de combatividade e de
afirmação da própria personalidade humana. A agressividade interage com o
medo, levando em conta que o medo não é uma vergonha, sendo ele uma
técnica de sobrevivência. Todavia, dominar o medo, assim como as emoções
e paixões que ele suscita, permite exprimir a agressividade de uma forma
benéfica e criadora (MULLER, 1995).
A violência é uma pronta satisfação do desejo advindo do ódio. Viver é
uma luta pela existência. A existência complexa tem a ver com defender os
direitos básicos próprios, bem como, daquela comunidade à qual se é
solidário (ZIZEK, 2012).
Por vezes a violência e a subversão estão interligadas, nos momentos
em que o indivíduo vale-se da violência destrutiva para buscar desconstruir
um modo de convivência estipulado no cotidiano, pelos principais agentes
norteadores do mundo globalizado, como o mercado, a mídia, o Estado, uma
cultura dominante, dentre outros. “Conflitos, como diferentes de outras
formas de interação, sempre envolvem poder, e é difícil avaliar o poder
relativo dos contedores antes do conflito ter estabelecido o item”2 (LEWIS, p.

2 Tradução livre do inglês


734
134, 1965).
Precisa-se notar que mesmo formas sutis representam violências,
muitas vezes simbólicas, cita-se o mercado como uma forma tradicional de
violência, já que este imputa desejos inalcançáveis e, se todo conflito nasce
de um desejo, e a deformação do conflito transforma-se em violência, pode-
se perceber que esta afirmação está correta.
Ainda, como violência simbólica do mundo globalizado, nota-se as
características de moda e beleza estipuladas por indústrias do
entretenimento, cosméticas e pornográficas, as quais criam um patamar
praticamente inatingível pelo ser humano comum, que não possui
capacidade econômica, tampouco tempo para dedicar à alcançar esse
padrão.
Ademais, a violência é uma forma de extravasar frustrações. Trata-se
de uma forma simplória de conquistar um espaço em meio à multidão. Toda
vez que se violenta alguém, isto representa, segundo Kant (2008), uma forma
de desumanizar ao indivíduo, estabelecendo uma nova relação de poder,
onde um percebe-se mais “humano” que o outro. Já na violência promovida
pelos crimes de roubo, não se subtrai do outro apenas o objeto, entretanto
subtrai-se o que aquele objeto representa.
Em meio a um grupo, a violência precisa ser aceita para ser replicada.
A violência precisa ser uma característica daquela “comunidade” para que
esta seja utilizada dentro e fora do grupo, conquanto aquele que promover a
violência em um grupo no qual não a aceita como resolução de conflitos
tende a ser excluído do deste convívio, entretanto, ao ser aceita a violência
por um grupo, este irá potencializar a violência por um “efeito manada”,

Algumas das perspectivas do homem sobre a violência são


psicoculturais em origem, o resultado de padrões de socialização que
encorajam ou desencorajam os cartazes exteriores de agressão e de
tradições culturais que sancionam respostas coletivas violentas e
várias espécies de carências. Estas perspectivas são atitudes
recalcadas sobre, ou predisposições normativas para a violência.
(MACKENZIE, pg.156, 1978).

Nesta lógica, em um grupo violento, o membro do grupo que não


replica a violência acaba por ser excluído do grupo, logo, a violência torna-se
735
a medida de conexão com esta coletividade. Gerando por seus membros cada
vez mais abusos, que explicitam normalmente à relação daquele membro e
sua fidelidade ao grupo. Assim, “hordas” de indivíduos acabam buscando a
aceitação através da imposição agressiva (ENRIQUEZ, 1995). Em pouco
tempo, a única coisa que o grupo representa e a única forma que se faz
representar é através da violência.
Cria-se, desta forma, a sensação que quanto mais primitivo o grupo,
mais violento ele será, abandonando o status de grupo para assumir um de
horda. Migrando de uma vida complexa, considerada avançada, uma bios, a
vida em sociedade que tenta proteger-se do caos, zoe, sendo esta uma vida
caótica, primitiva, subversiva, onde impera um animalismo e a vida nua,
permanecendo-se em constante estado de exceção (AGAMBEN, 2002).
Há um prazer nefasto em profanar, subverter a sociedade e disseminar
o caos entre aqueles que veneram e promovem os sentimentos de segurança.
Quando um grupo apropria-se deste caráter subversivo, ao causar
intranquilidade e medo na sociedade, este atinge seu objetivo (BECK, 1992).
“Temos que mostrar a esses homens e mulheres a liberdade, e faremos isso
escravizando-os. Mostraremos a eles coragem ao assustá-los.” (PALAHNIUK
p.187).
Esta é uma forma de protesto político, por vezes anárquico, contra os
moldes promovidos pelas violências simbólicas da contemporaneidade.

Quando Tyler inventou O Projeto Desordem e Destruição, ele disse


que a meta não tinha nada a ver com outras pessoas. Tyler não se
importava se outras pessoas se ferissem ou não. A meta era ensinar
cada homem no projeto que ele tinha poder para controlar a história.
Cada um de nós pode controlar o mundo (PALAHNIUK, 2012, p.
152).

Com sua evolução o clube da luta transforma-se em Projeto Desordem


e Destruição, onde une diversos indivíduos como um exército de guerrilha.
Este grupo busca destruir as matizes da sociedade contemporânea,
corrompendo seu sistema econômico e sua história, os quais representam
violências simbólicas contra a maior parte da população, já que esta parte,
em que pese seja a que mantém, nunca conseguem alcançar o objetivo do
American Dream, tornando-se escravos de um sistema que eles próprios
736
sustentam, todavia, os destrói,

Há uma categoria de homens e mulheres jovens e fortes que querem


dar a própria vida por algo. A propaganda faz essas pessoas irem
atrás de carros e roupas de que elas não precisam. Gerações têm
trabalhado em empregos que odeiam para poder comprar coisas de
que realmente não precisam. –Não temos uma grande guerra em
nossa geração ou uma grande depressão, mas na verdade temos,
sim, éuma grande guerra de espírito. Temos uma grande revolução
contra a cultura. A grande depressão éa nossa vida. Temos uma
depressão espiritual (PALAHNIUK, p. 186, 2012).

Ao assumir este caráter de arauto do caos, o Projeto Desordem e


Destruição acaba se tornando uma espécie de terrorismo. O terrorismo éum
inimigo líquido da ideologia de segurança e tranquilidade que o Estado
promete aos seus cidadãos. Líquido, pois age de forma surpreendente,
simbolizado por signos, marcas, nomes, entretanto, não éum inimigo com
face e o qual segue um padrão, representando uma maior insegurança
perante a incerteza do que ocorreráa seguir. “Do mesmo jeito que o clube da
luta faz com escriturários e bilheteiros, o Projeto Desordem e Destruição
quebraráa civilização para que possamos fazer do mundo um lugar
melhor”(PALAHNIUK, p. 155, 2012).
Quando uma determinada quantidade de pessoas age de forma
desorganizada, elas não passam de uma multidão, conquanto que quando
passam a organizarem-se, tornam-se um grupo, neste momento passam a
ter força de alterar e manipular a organização estatal e deteriorar as relações
institucionalizadas pela sociedade (HARDT; NEGRI, p. 175, 2005). No
momento em que buscam subverter a ordem por meio de atos violentos
contra símbolos de status e poder, pouco se importando com os efeitos
colaterais e se atingirão outras pessoas, este grupo passa a agir de forma
terrorista.
O terrorismo pressupõe a busca da quebra de uma hegemonia de
convivência harmônica de um grupo de pessoas de uma sociedade, de uma
cultura ou de um Estado. Utiliza-se da violência em diversos sentidos, desde
a agressão para imputar o medo, como também para se fazer ser visto e
reconhecido. O terrorismo persegue estipular um estado e exceção no seu
adversário, tornando-lhe as relações caóticas e inseguras (ZIZEK, 2014).

737
Ademais, faz-se por intermédio de terrorismo a profanação daquilo que
épercebido por certa sociedade como sacro. De forma subversiva, tenta-se
corromper o viés de divino e eterno. Neste sentido, os alvos do terrorismo são
os objetos, locais ou construções, os quais representam os símbolos daquilo
que se busca destruir. Colocar a cultura em choque sempre éo objetivo
maior.
Com a profanação destes espaços através da violência, espera-se que
estas saiam da posse pelo “divino” e retornem àposse dos humanos. Ao
retornar àposse dos humanos, eles poderão repensar a sua relação com
estes objetos. Somente ao sacrificar-se algo, que isto pode novamente ser
compreendido como pertencente ao homem, desta forma o homem pode
destituir o poder, outrora divino, de instituições, objetos e locais (AGAMBEN,
2008).
A reconquista do sagrado por meio da subversão éuma forma de
demonstrar que não hápreceitos imortais e indestrutíveis. Desde as matizes
do iluminismo, o homem colocou-se na posição de Deus, entretanto, busca
de forma constante justificar relações, atitudes, ações, os quais necessitam
de um poder dominante. Desta forma, a maior parte da sociedade entende
confortável a manutenção de poderes superiores, sacros, que lhe trazem
conforto e justificativa em suas atitudes.
Com símbolos de poder que parecem ser eternos sendo destruídos,
instaura-se o medo e, em um nível maior de medo, instaura-se o estado de
exceção (ZIZEK, 2014). Paradoxalmente, o estado de exceção causa mais
medo, visto que quebra as garantias tão fundamentais para uma vida fora do
caos. Compreende-se que no mundo atual diversas culturas coexistem,
entretanto, quando uma cultura apresenta-se subversiva, retira as demais
de sua zona de conforto, pois ameaça-lhes a manutenção do modo de vida
secularizado e esta mudança causa agonia aos seres humanos (ZIZEK,
2003).
O indivíduo que compõe este mundo da contínua exceção échamado
por Agamben (2008) de Homo Sacer e vive em um estado de não-lei, ou de
força de lei opressora,

738
o Homo sacer de hoje éo objeto privilegiado da biopolítica
humanitária: o que éprivado da humanidade completa por ser
sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de
serem os campos de concentração e os de refugiados que recém
ajuda humanitária as duas faces, “humana”e “desumana”, da
mesma matriz formal sociológica (ZIZEK, p.111, 2002).

O direito éuma busca por garantias de relações interpessoais. A


positivação do direito representa a ideologia de que todos são revestidos de
direitos garantidos, efetivos, válidos e conhecidos, e se usurpados destes
direitos, aquele que atentou contra o seu direito sofreráas sanções
decorrentes de seus atos. Cria-se a ilusão que não haverácrime impune e
que a responsabilidade nortearáos atos. O próprio direito estipula relações
de poder e éuma forma de manutenção do poder secularizado em
instituições.
De acordo com Locke, a liberdade para lutar pelo equilíbrio de poder,
utilizando-se as forças em busca de uma justiça social, passa a ser direito
constitutivo de ter direitos constituintes a uma sociedade menos
fragmentada e violenta (MULLER, 1995).
O Estado vive em uma relação de poder, garantido e efetivado por uma
violência legitimada. Assim, a violência passa a ser um coerente meio de
dominação. A missão específica do estado éestabelecer, manter e, se
necessário, restabelecer a “paz”, garantindo segurança para os cidadãos,
custe o que custar.
O Estado necessita de “garras e dentes”e a violência torna-se a forma
de manter este “Leviatã”no poder, confundindo a vontade do estado com a
vontade do Povo por meio da coação. Isto pode ser realizado por meio de
diversas formas de violência que são exercidas, entre elas pode-se citar o
contrato social e a democracia.
O direito sótem sua gênese, mediante a existência de uma força
reguladora que pode lhe implementar, seja através de uma sanção ou por
meio de um “poder”de tornar justa uma relação injusta anteriormente. Neste
viés, a força não éa violência, e sópode-se pensar em convivência harmônica
em um cenário de reconhecimento, efetividade e legitimidade da força como
promovedora de justiça (MULLER, 1995).
Jáem um estado de exceção, nem mesmo o direito éuma garantia.
739
Quando corrompe-se o próprio mantenedor e instituidor de garantias das
formas de poder, rompem-se de forma fundamental as relações e limites das
forças de poder que regem a sociedade, ampliando um desequilíbrio que
geraráinjustiças. Nessa perspectiva tem-se que a justiça éo equilíbrio dos
poderes.
O estado de exceção busca a continuidade de existência de uma
sociedade, devendo fazer todo o possível para que isto ocorra (AGAMBEN,
2008). Nesta vereda não hámais uma preocupação com a justiça e, da
mesma forma que o terrorismo, o estado de exceção por meio da coerção e
força, age de forma a negligenciar os danos colaterais em prol de um objetivo
central. Reproduzindo a máxima maquiavélica de que os fins justificam os
meios.
Torna-se dessa forma uma dicotomia de como o próprio direito
prevêum estado de “não-direito”(AGAMBEN, 2008). E como o estado de
exceção, que busca a manutenção da sociedade, vale-se de alguns meios de
conquista e reconquista do poder, os mesmos do próprio terrorismo, como a
violência e uma relação de medo com a sociedade, medo tanto por meio da
agressividade, quanto por meio da falta de garantias e de relações
duradouras.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo atual baseia-se em uma promessa de liberdade que não se


cumpre. Além de sonhos que não serão realizados, porém promovidos a
exaustão pelos meios de manipulação de massas. Mesmo o mais desajustado
acaba promovendo e aceitando o discurso da sociedade atual, entretanto,
pode-se perguntar atéque ponto esses desejos não cumpridos são benéficos
àsociedade? E se são destrutivos, por que replicá-los incessantemente?
Estas são questões trazidas no livro Clube da Luta e que tentam ser
desconstruídas por Tyler Durden em uma jornada de autoconhecimento em
uma complexa e visceral relação intrapessoal.
O consumismo éuma primeira forma de reconhecer-se e se fazer
reconhecer. Uma forma institucionalizada, aceita e replicada pela sociedade,
740
a qual mantém o cidadão na zona de conforto, pois por uma relação de
mimetismo em pouco tempo todos estão agindo iguais e desejando as
mesmas coisas. Entretanto, o consumismo éum prazer momentâneo, o que o
faz ser tão eficaz, pois se retroalimenta, conquanto, como uma espécie de
“remédio paliativo”acaba sempre permitindo que a “doença”volte.
A busca por reconhecimento éuma forma de fazer-se existir em um
mundo, por vezes a necessidade de abandonar o sentimento de desamparo
obriga os indivíduos a utilizarem a única maneira que se apresenta àsua
escolha, a violência. A violência representa uma subversividade subjetiva do
ser humano, uma busca de empoderamento e reconhecimento através de um
modo primitivo, que instintivamente apresenta-se aos desajustados como
uma saída, principalmente quando ela éfruto de um “efeito manada”e éaceita
por uma comunidade.
O sujeito vive àbusca de aceitação que sóse dápela existência e
reconhecimento promovido pelo outro, logo, subjetivamente, o ser humano
sempre busca a sua própria existência e o sentido da mesma no outro, que
ele reconhece como diferente, porém, não inferior. Sófaz sentido criar o
conceito de “nós”perante a existência do conceito “eles”e, da mesma forma,
“eles”tampouco existiriam, como grupo social assim percebido, sem a
presença de “nós”.
O terrorismo promovido pelo Projeto Desordem e Destruição acaba
sendo uma forma de destruir os signos opressores da sociedade, busca uma
profanação ao que esta carrega por sagrado, como sua história a ser
venerada, o dinheiro a ser ganho e o conforto a ser mantido, tudo para
explicar o motivo pelo qual todos aceitam abrir mão de suas liberdades em
prol de uma promessa que não écumprida. Ademais, por meio do terrorismo,
os sujeitos sentem-se adentrando o direito, mesmo que para a
“danação”estipulada por eles.
Apesar dos esforços reconhece-se a complexidade do tema, observando
que não foram esgotadas as discussões inerentes ao mesmo, tampouco as
lições sociais, filosóficas e jurídicas que podem ser promovidas através do
livro O Clube da Luta, o qual foi utilizado como base literária para a análise
proposta do cotidiano.
741
Neste sentido, o presente artigo busca expor a complexidade dos
desejos como promovedores da perseguição por ideais. A necessidade dos
indivíduos de fazerem-se reconhecer e não mais sentirem-se desamparados,
não serem “uma geração perdida na história”, mesmo que o reconhecimento
venha com cunho negativo ele apresenta-se necessário, e, por vezes, a
violência éa única forma de atingir o objetivo de sentir-se parte de algo e da
mesma forma parte do todo. A subversão acaba por ser a forma possível de
liberdade.

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