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Ciencias Criminais e Direitos Humanos Eb
Ciencias Criminais e Direitos Humanos Eb
REVISORA:
CAMILA PAESE FEDRIGO
760 p. 21x29,7cm
ISBN 978-85-67584-17-1
CDU: 343.2
APRESENTAÇÃO 10
Maíra Fronza
Adalberto Narciso Hommerding
Gabriel Maçalai
Patrícia Borges Moura
Renata Maciel
Juliana Bedin Grando
Janaína Schorr
Alfedo Copetti Neto
ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E
NO BRASIL 564
Carolina Menegon
Tamiris A. Gervasoni
Felipe da Veiga Dias
Iuri Bolesina
Tássia A. Gervasoni
Danielli Zaninni
Vinícius Bindé Arbo de Araujo
1MUÑOZ CONDE, Francisco. Direito penal e controle social. Trad. Cíntia Toledo Miranda
Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
modernização caracteriza, assim, a atual sociedade de risco, que está
marcada por ameaças e debilidades que projetam um futuro incerto2.
O aumento da preocupação com as novas formas de criminalidade
que se apresentam nesta realidade é consequência inafastável dos cada
vez mais fortes sentimentos de insegurança e medo na sociedade
conte\mporânea, a reclamarem por parte de uma população cada vez
mais atemorizada diante da utilização deste “medo” como “mercadoria”
pelos meios de comunicação de massa, por uma maior presença e eficácia
das instâncias de controle social, diante daquilo a que Pérez Cepeda3
denomina de “cultura da emergência”.
Os sentimentos de insegurança e medo na sociedade
contemporânea adquirem novas dimensões diariamente, sendo
influenciados diretamente pelos meios de comunicação de massa,
utilizados como mecanismos para fomentar crenças, culturas, valores e
formar opinião sobre os mais diversos temas. Para sustentar os
interesses que representa, a mídia passa explorar a criminalidade em
grau máximo. Assim, o medo de se tornar vítima de um delito é
transformado em mercadoria da indústria4 cultural, criando uma
preocupação social com as novas formas de criminalidade. O medo difuso
e constante do crime torna-se, então, infinitamente maior do que a
possibilidade real de ser vítima de um delito. É dizer: a vivência subjetiva
dos riscos passa a ser claramente superior à sua própria existência
objetiva.
O sentimento geral de insegurança e medo, alimentado e acentuado
pelos meios de comunicação, apresenta-se, pois, de maneira
desproporcional em relação à existência concreta do risco. Como aponta
David Garland5, a gravidade do problema é inegável nos dias de hoje, a
ponto de já estarem sendo desenvolvidas políticas específicas mais com
2BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nova modernidad.Trad. Jorge Navarro,
Dabiel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998.
3 PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. La seguridad como fundamento de la deriva del derecho
Os organizadores.
A NUDEZ NO/DO DIREITO PENAL: A CONTRADIÇÃO ENTRE DIREITOS
HUMANOS E O DIREITO PENAL DO INIMIGO1
1. INTRODUÇÃO
O controle exercido pelo direito penal conduz a uma instável
segurança normativa, dada sua progressiva expansão regulatória. Essa
esfera do direito conduz a sociedade a um temor relevante das ações
humanas caracterizadas como violentas, achando no direito penal o veículo
de proteção adequado, na medida em que este separa o sujeito transgressor
do restante da sociedade que compactua com os acordos morais de "boa
convivência".
Para o sujeito transgressor, o afastamento do núcleo social é a medida
coercitiva/educativa perfeita para o direito penal - aqui caracterizado pelo
crescente direito penal do inimigo, ainda que de forma simbólica -, na
medida em que busca corrigir - ou eliminar - o sujeito e alertar os demais
sobre as ações proibidas. Esta lógica é tornada simples, pois "um indivíduo
que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode
participar dos benefícios do conceito de pessoa" (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p.
36).
Tem-se neste controle expansivo a caracterização da vida nua, que
diferencia a bios e zoé, resultando no sujeito que possui uma vida que não
vale a pena ser vivida. A figura excluída, ou o homo sacer, é banido do
14
núcleo social, tornando-se um não-sujeito, que passa a viver sob a tutela de
um estado de exceção, ou seja, marcado pela ausência de tutela dos direitos
humanos.
Enfrenta-se a nudez dentro do direito penal; a separação de indivíduos
a partir de uma violência legitimada pelo Estado, deveras arbitrária, mas
cogente nos preceitos normativos. "A redução do homem à vida nua é hoje a
tal ponto um fato consumado que ela está agora na base da identidade que o
Estado reconhece perante seus cidadãos" (AGAMBEN, 2015, p 84).
É sob o propósito de debater a inserção crescente do Estado - aqui
pelo direito penal - na vida dos indivíduos que este artigo se alicerça. A
partir da concepção agambeniana sobre a vida nua e o discurso expansivo
do direito penal, quese estabelece o contrassenso na tutela dos direitos
humanos. "A vida nua não está mais confinada em um lugar particular ou
em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente"
(AGAMBEN, 2002, p. 146), o que legitima a morte - simbólica e real - dos
indivíduos pelo Estado como um propósito moral.
15
evolução do indivíduo depende da comunidade que o cerca, pois esta supre
suas necessidades vitais.
4Ruiz complementa que a figura do homo saceré um conceito-limite do direito romano que
delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a
sacralidade e a soberania. Ambas são estruturas originárias do poder político e jurídico
ocidentais porque revelam os dois personagens que estão fora e acima da ordem: o homo
sacer e o soberano (RUIZ, 2013, p. 33).
16
[...] jurídico-política pela qual uma pessoa, ao ser proclamada sacer,
era legalmente excluída do direito (e consequentemente da política da
cidade). Tal condição de sacer impedia que ela pudesse ser
legalmente morta (sacrificada), porém qualquer um poderia matá-la
sem que a lei o culpasse por isso (2013, p. 33).
Saceré a vida abandonada pelo direito pelo fato de não ter-se adaptado
à organização política-social. O Homo Sacer constitui a vida que não vale a
pena ser vivida e que deve ser excluída do núcleo social, ensejando uma
morte simbólica. O indivíduo declarado sacer deixa de constituir a bios, ou a
vida em comunidade; "é uma vida matável por estar fora do direito, mas por
isso mesmo ela não pode ser condenada juridicamente". Este abandono se
caracteriza pela exposição "à vulnerabilidade da violência por ser desprovida
de qualquer direito, sendo que tal vulnerabilidade se deriva de um ato de
direito que a excluiu" (RUIZ, 2013, p. 33).
O sujeito que transgride as concepções normativas da bios passa a ser
constituído como o sujeito detentor da vida que não vale a pena ser vivida, e
isto se conduz ao
cometer em relação a ele - não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio,
nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio (2002, p. 90).
6No que concerne à questão da expansividade do Direito Penal, Manuel Cancio Meliá e
Günther Jakobs destacam que o ponto de partida de qualquer análise do fenômeno, que
pode denominar-se a "expansão" do ordenamento penal, está, efetivamente, em uma simples
constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida ao longo das duas
últimas décadas nos países de nosso entorno tem colocado, ao redor do elenco nuclear de
normas penais, um conjunto de tipos penais que, vistos desde a perspectiva dos bens
jurídicos clássicos, constituem hipóteses de "criminalização no estado prévio" a lesões de
bens jurídicos, cujos marcos penais estabelecem sanções desproporcionalmente altas (2005,
p. 56).
18
ordem social. Assim,
20
e os indesejados ao manicômio).
Segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 114), "o isolamento reduz,
diminui, comprime a visão do outro". Na medida em que o outro (aqui o
indesejado social) é afastado do convívio e intercâmbio comunitário, suas
qualidades e circunstâncias individuais são subjugadas por uma
caracterização legal que, visando suprimir a disparidade, retira do sujeito a
relevância de sua singularidade, de sua identidade.
De fato, ao resolver o problema da desobediência à lei, através da
segregação espacial, o direito penal cria, na linha do pensamento de
Bauman (1999), uma espécie de must, um dever que gera mútuo isolamento,
qual seja o dever de segregar as diferenças e o dever de que a lei penal
exerça, nessa lógica, um impacto submissor. A partir disto,
[...] nós não nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como
membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta
que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é um dado - ele
não éphysis, nem resulta de um absoluto transcendente externo à
comunidade política. Ela é um construído, elaborado
convencionalmente pela ação conjunta dos homens através da
organização da comunidade política. Daí a indissolubilidade da
relação entre o direito individual do cidadão de autodeterminar-se
politicamente, em conjunto com os seus concidadãos, através do
exercício de seus direitos políticos, e o direito da comunidade de
autodeterminar-se, construindo convencionalmente a igualdade
(LAFER, p. 150).
24
humanos. A todos é permitido participar da vida em comunidade, pois o
homem singular não consegue enxergar a sua condição humana, que reside
exatamente na vita activa conceituada por Arendt (1987, p. 17), ou seja, a
vida condicionada à produção de sua existência na comunidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
RUIZ, Castor Bartolomé. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. In:
Cadernos IHU em formação. Ano IX. n. 45. 2013. ISSN 1807-7862.
26
O DIREITO PENAL EM FACE DO FENÔMENO MIGRATÓRIO: QUANDO A
MIXOFOBIA SE SOBREPÕE AOS DIREITOS HUMANOS
1.INTRODUÇÃO
28
Em que pese a Constituição Federal brasileira tratar dos Direitos
Humanos e do princípio da dignidade humana, afirmando que todos são
iguais perante a Lei, percebe-se o quanto, também no Brasil, as políticas
governamentais são repressivas e utilitaristas no que se refere ao tema da
imigração. O Estatuto do Estrangeiro pode, nesse sentido, ser considerado
inconstitucional, por restringir muitos direitos, como, por exemplo, retirardo
imigrante qualquer poder de decisão, impossibilitando-o de participar dos
processos eleitorais. Nesse sentido, o exercício da cidadania não consegue
introduzir o imigrante. Contudo, para sobreviverem, eles necessitam abdicar
de todos os direitos que qualquer cidadão possui para que a figura do
imigrante ideal, ou seja, aquele que está em um determinado local apenas
para servir e não para participar, mesmo que seja bem qualificado e
preparado para atuar no mercado de trabalho, não consiga interagir e
participar de todas as práticas que envolvam o processo de cidadania que o
sistema democrático permite.
Os sistemas públicos de educação e saúde não tem conseguido dar
conta da demanda da grande quantidade de imigrantes que tem entrado no
Brasil, muitas vezes em situação irregular. Necessidades indispensáveis não
estão sendo respeitadas. Falta saneamento básico para essas pessoas, têm-
se extremo impasse em relação a um alojamento adequado para o imigrante
que se encontra em situações excessivamente precárias. Pode-se afirmar que
não se tem conseguido políticas eficazes para resolver tais empecilhos.
O imigrante necessita ser visto por aquilo que é: um ser humano.Por
conseguinte é de relevante importância o reconhecimento pela coragem de
enfrentar tantos obstáculos para abdicar de tudo o que lhe pertencia em seu
país de origem para enfrentar o novo, o diferente. Para Cristiane Maria
Sbalqueiro Lopes (2009, página 35),
29
Pode-se falar, diante do quadro apresentado, de uma forma de
retrocesso que o Direito está evidenciando. À medida que um sistema de
democracia, em que todos os indivíduos possam participar de forma
igualitária, exercendo o poder governamental de uma nação, não consegue
incluir o imigrante nesse regime, não mais se pode falar em democracia. O
imigrante se sujeita, assim, às normas que restringem ao máximo seus
direitos, pois o “inimigo” que é considerado o estrangeiro diante da ameaça
que representa para o interesse nacional e para a ordem pública necessita
ser controlado pelas forças governamentais, sendo assim cumprida a função
da biopolítica.
Nessa perspectiva, o Estado, ao se utilizar do controle de todas as
populações, inclusive os imigrantes, produzirá como resultado aos cidadãos
nacionais tranquilidade e calmaria em relação ao perigo gerado pela
condição de ser imigrante. Para Michel Foucault (apud CASTRO, 2014,
página 115), “para compreender a biopolítica, é necessário estudar o
contexto geral da racionalidade política do liberalismo”. Trata-se da forma de
governar aplicando-se o biopoder, ou seja, os Estados utilizam de técnicas
para obter o controle de todas as populações para que assim possam
administrá-las. Nesse sentido, Foucault(apud CASTRO, 2014, página 112)
afirma que “governar consiste em conduzir condutas, ou seja, em pôr em
marcha um conjunto de ações sobre ações possíveis: incitando-as,
induzindo-as, desviando-as, facilitando-as ou dificultando-as, fazendo-as
mais ou menos prováveis”.
Desde os primórdios tenta-se barrar os direitos daqueles que não
pertencem – ou que por questões de discriminação não podem pertencer – à
“elite” da sociedade. O preconceito racial deu início a esse problema a partir
do século XIX, quando, por exemplo, surgem os imigrantes colonizadores no
Brasil para fins de branqueamento da população como uma política
nacional, mais especificamente no Sul do país. Destaca-se que, nesse
período, a prática da capoeira acabou sendo proibida por Lei, pois era
exclusivamente exercida por negros. Nessa acepção, na contemporaneidade
podemos ver a seletividade do indivíduo como passível de aceitação ou não
30
perante os demais. Ou seja, o fato de ser negro, pobre, imigrante ou
refugiado, a circunstância de ser diferente, é passível de repúdio e dá o
poder do Estado limitar através de um caráter repressivo e excludente os
princípios que deveriam ser respeitados que é a liberdade, a igualdade e a
fraternidade atribuindo ainda o direito de perseguição daquele que não é
“desejável”.
Ao imigrante pode-se atribuir o conceito de “ser redundante”, segundo
a perspectiva de Bauman(2005, p. 20), para o qual
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
40
POLÍTICA CRIMINAL E PRÁTICAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA:
Estratégias para a Prevenção da Violência e para a Promoção dos Direitos
Humanos nos espaços escolares
1. INTRODUÇÃO
42
2. DA POLÍTICA CRIMINAL A UMA POLÍTICA INTEGRAL DE DEFESA
DOS DIREITOS HUMANOS
4 O autor observa que neste campo a riqueza e variabilidade dos diferentes modelos
operativos propostos dependem essencialmente das concepções teóricas em que se
sustentam, destacando a existência de modelos que se situam em três níveis diferenciados:
“En los niveles más básicos de la escala teórica encontraremos los modelos de la
criminologia ‘administrativa’ de estrecha matriz etiológica, aplicable unicamente al control
de la criminalidade; em los niveles intermédios conseguiremos los modelos de la
criminologia etiológica que compreendem também el control de las consequências dos
delitos; en fin, en los niveles más altos, se situan los modelos de la criminologia crítica que
adopta el paradigma do etiquetamento o de la reacción social, y lo hacen más apropriado
para la aplicación prática y para el control de las consecuencias de la delincuencia.”
(BARATTA, ANO, p. 28)
45
criminal la reencontra como “objetos de uma certa forma de política
social.
Objetos, entonces, y no sujetos, porque también esta vez la
finalidade de los programas de acción no es la garantia de sus
derechos, sino ante todo reforzar la seguridade de suas vítimas
potenciales. Para proteger as personas “respeitables” (y no para
tutelar aquellas que no puedem disfrutar de sus derechos civiles,
econômicos y sociales), la política criminal se transforma, em la
terminologia de la nueva prevención, en “prevenção social” (de la
criminalidade). (BARATTA, 2000, p. 32)
46
O processo de “libertação da cultura punitiva” exige, como sugerem
Hulsmann e de Celis (1993, p. 179), mudança de percepção, atitudes e
comportamentos. Mas para isso são necessárias, em primeiro lugar,
“mudanças na linguagem”. Para os autores a linguagem e as imagens
desenvolvidas no âmbito da justiça penal nos influenciam profundamente,
fazendo com que “a justiça criminal exista em quase todos nós”, o que
contribui para a disseminação, no tecido social, da lógica de “resolução” de
conflitos nela presente. Tal lógica, baseada no castigo, na culpa, na
exclusão ou na correção pode e deve ser superada.
A Justiça Restaurativa aparece, nesta perspectiva, como potencial
estratégia de questionamento e desconstrução do modelo punitivo que, por
inúmeras razões, se impõe e se alastra nos dias atuais, inclusive nos
espaços escolares. Por sugerir a substituição da linguagem, o diálogo entre
os sujeitos e a reparação dos danos como principais estratégias, a
perspectiva restaurativa, propõe uma nova lógica, que potencializa a
participação, o diálogo e a corresponsabilização dos sujeitos, colocando
todos os envolvidos como protagonistas dos processos de resolução de
conflitos. Neste aspecto, representa, um significativo instrumento para a
redução da violência e para a afirmação da dignidade da pessoa humana.
48
direitos humanos é complexo, não podendo ser tratado de forma simples ou
ter seu estudo limitado aos textos legais, “pactos” ou “declarações”. Estes
devem ser compreendidos como o “conjunto de processos (normativos,
institucionais e sociais) que criam e consolidam espaços para a dignidade
humana” e por isso deve se conhecer o contexto social em que estão situados
e os grupos a que se destinam.
No que tange aos direitos humanos de crianças e adolescentes, deve-se
reconhecer, portanto, que
49
transformador da realidade, evidencia-se a necessidade de qualificação das
ações educativas, especialmente no que tange ao enfrentamento da violência,
hoje tão presente em todos os espaços da sociedade e, em especial, nos
espaços escolares.
6www.cidadaniaparatodos.com.br
7https://www.facebook.com/pages/Projeto-de-Extens%C3%A3o-Cidadania-Para-
Todos/239175732850951?fref=ts
51
da Pedagogia, notadamente quando estes atuam em questões relativas à
violência e a conflitividade que envolve a infância, a adolescência, a família
e a escola.
Howard Zehr (2008) define a Justiça Restaurativa como um
procedimento por meio do qual todas as partes envolvidas em situação
lesiva reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as
circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro.
Busca-se, por meio deste procedimento, promover vivências baseadas em
valores democráticos como a tolerância, o diálogo, o respeito, a
solidariedade, a humildade, o empoderamento, a partir das quais se
buscam respostas alternativas aos conflitos, que enfatizem, para além da
perspectiva punitiva, a restauração dos prejuízos causados pela conduta
lesiva, bem como dos laços sociais rompidos com a prática do delito, e que
levem o autor a assumir as responsabilidades por suas ações.
Azevedo (2005) salienta, contudo, que há uma corrente mais
abrangente que define a Justiça Restaurativa a partir de seus valores,
princípios e resultados almejados, representado um processo pelo qual se
busca promover, para além da reparação dos danos, outros valores como
“a participação, a reintegração e a deliberação”, constituindo este o seu
corpo axiológico básico. Deste modo, unificando as duas concepções
mencionadas, Azevedo (2005, p. 26) entende que
52
várias experiências8, especialmente no campo da justiça penal juvenil, têm
sido desenvolvidas com êxito e nelas são utilizadas estratégias, visando à
adequada responsabilização de adolescentes envolvidos em atos
infracionais. Busca-se, com este novo modelo, substituir a lógica de
exclusão, estigmatização e violência presente no paradigma
retributivo/punitivo tradicional e superar os constantes fracassos quanto
à adequada inserção de jovens infratores no seio da comunidade9.
A Justiça Restaurativa constitui-se, segundo Azevedo (2005, p. 140)
em uma proposição metodológica por intermédio da qual se busca, a
partir da comunicação efetiva entre vítimas, ofensores e a comunidade
transcender dinâmicas de culpa, vingança e punição, pois pretende conectar
pessoas e desenvolver ações construtivas que beneficiem todos, tendo como foco
as necessidades emergentes do conflito. Seu objetivo é aproximar e
corresponsabilizar “fortalecendo indivíduos e comunidades para assumir o papel
de pacificar seus próprios conflitos e interromper violências." (AMES; HAUSER,
2013). Trata-se de uma nova visão que trabalha com uma concepção relacional
da justiça, em que se concebe, “o crime como um encontro infeliz e a pena como
uma possibilidade de troca”. (GARAPON, 2004)
8 O Brasil iniciou suas experiências em Justiça Restaurativa no ano de 2005, nas cidades de
Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília, a partir de projetos financiados pelo Ministério
da Justiça. Desde então inúmeras experiências tem sido desenvolvidas.
9 A Lei nº 12.594/12 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo no
53
repressivistas e da justiça retributiva tradicional, seja ela dirigida a
adultos ou adolescentes infratores.
55
problema e a ‘solução”. (AMES; HAUSER, 2013, p. 122).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
57
Fundamentais: a experiência do projeto “Cidadania para Todos”. Ijuí:
Unijui, 2013.
59
O GÊNERO FEMININO A PARTIR DO PRISMA DA VITIMODOGMÁTICA E
DA VITIMOLOGIA: percalços e possibilidades
1.INTRODUÇÃO
71
junto com a mãe. Os dados do Pacto (2011) apontam que 38% das mulheres
sofrem violência desde o início da relação e 60% delas relataram que as
ocorrências de violência são diárias. Em números absolutos, o Estado de São
Paulo é o líder do ranking nacional com um terço dos atendimentos (77.189),
que é seguido pelo Estado da Bahia, com (53.850). Em terceiro lugar está o
Rio de Janeiro (44.345).
Em contrapartida, na referência que está contida no Relatório
Nacional de Acompanhamento ODM (2014), aindanão há no país pesquisas
regulares capazes de fornecer estatísticas para dimensionar e acompanhar o
problema da violência contra as mulheres. Apesar das dificuldades para
estimar a magnitude do fenômeno, a existência de um conjunto de registros
administrativos coletados pelos governos permite algumas análises que,
mesmo limitadas, indicam caminhos para avaliar as mudanças ocorridas no
período ou para construir um perfil do fenômeno. Nesse enfoque, denota-se a
imprescindibilidade de construção de indicadores para que se possam,
efetivamente, avaliar as políticas públicas construídas e implementadas em
termos de violência contra o gênero feminino. Logo, as possibilidades são
inúmeras e os percalços constantes na luta para mitigar essa permanente
problemática sociocultural.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Ana Sofia Schimidt de. Vitimologia e Mulher. In: REALE JÚNIOR,
Miguel; PASCHOAL, Janaína (Coord.). Mulher e Direito Penal. Rio de
Janeiro: Forense, p. 55-78, 2007.
75
DISCURSO FEMINISTA E PODER PUNITIVO: APROXIMAÇÕES
(IM)POSSÍVEIS NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
1.INTRODUÇÃO
UNIJUÍ.
76
A parte final busca, a partir de Zaffaroni, demonstrar que a busca por
mecanismos repressivo punitivos como forma de enfrentamento às
discriminações e a violência de gênero carrega em si uma armadilha, ao
reforçar justamente o poder que está na gênese do próprio fenômeno. A par
disso, considera que a insistência neste caminho de contato entre discurso
feminista antidiscriminatório e poder punitivo representa uma forma de
neutralizar seu caráter profundamente transformador e reforçar o próprio
elemento discriminante e opressor.
3 De acordo com o autor (2009, p. 324) “Hasta los siglos XII y XIII europeos no había poder
punitivo en la forma en que hoy lo conocemos. Por ejemplo, cuando un germano lesionaba a
otro, el agresor se recluía en el templo (asilo eclesiástico) para evitar la venganza, y allí
permanecía mientras los jefes de sus respectivos clanes arreglaban la reparación
(Vergeltung) que el clan dellesionante debía al clan del lesionado, bajo amenaza de que, de
no resolverse, se declararían la guerra. Otro de los métodos de resolución del conflicto era
dirimir la cuestión por un juicio que se decidía con la intervención de Dios en persona, es
decir, con pruebas: las pruebas de Dios u ordalías. El juez en realidad era una suerte de
juez deportivo, que sólo cuidaba la transparencia e igualdad para permitir que Dios
expresara la verdad. La más común de las ordalías era la contienda o lucha, el duelo entre
las partes o sus representantes: el vencedor era poseedor de la verdade”.
79
o poder punitivo seriamente restituir o direito da vítima, passará a ser outro
o modelo de resolução de conflitos. Deixará de ser o poder punitivo, porque
perderá seu caráter estrutural, de manutenção do poder, e poderá se abrir a
outras práticas, como aquelas restaurativas, que levam em consideração
todas as vidas humanas envoltas ao conflito.
A partir desta usurpação da posição de vítima, segundo Zaffaroni
(2009), o processo penal deixou de ser um procedimento para resolver um
conflito entre as partes, e se converteu em um ato de poder de um senhor
soberano, e o poder é seu único objetivo; o juiz penal deixou de ser um
árbitro que garantia a objetividade e o equilíbrio entre as partes e passou a
ser um funcionário que decide conforme o interesse de seu senhor (Deus), ou
o juízo do certo e do justo passou a estar sempre do lado do poder, do
dominus, representado pelo juiz, e esta certeza fez com que o método de
estabelecimento da verdade dos fatos passasse a ser o interrogatório: uma
verdade proporcionada pelo acusado respondendo o interrogatório (a
inquisição, ou inquisitio) do juiz. Se aquele se recusava a confessar, era
torturado até falar (aquilo que o dominus queria ouvir).
Quando passou a ser esta a forma de se alcançar a verdade no
processo penal, o saber passou a se constituir mediante o interrogatório das
coisas e dos entes, que poderia chegar, conforme Foucault (1980) à tortura,
à violência, e até ao experimento4. Como saber é poder, nos ensina o filósofo,
este se acumula questionando os entes segundo o poder que se objetiva
exercer sobre eles. O sujeito do conhecimento, que tem Deus a seu lado, se
coloca na posição de inquisidor, em um plano superior ao objeto, como “un
enviado de Dios para saber, es el dominus que pregunta para poder”.
(ZAFFARONI, 2009, p. 325). Quando o objeto é outro ser humano, o saber
senhorial estabelece uma hierarquia: o ser humano-objeto será sempre um
ser inferior ao ser humano-sujeito. Não há nenhum diálogo, de modo que a
discriminação hierarquizante entre os seres humanos torna-se sempre um
pressuposto e uma consequência necessária desta forma de saber do
4Da abertura de cadáveres e sua vivissecção, passando pelos médicos nazistas e a exposição
de milhares de pessoas a radiação, conforme aponta o autor em El saber y las formas
jurídicas, 1980.
80
dominus.
A primeira tarefa em que se uniram poder punitivo e saber
inquisitorial foi no fortalecimento da estrutura patriarcal e a consequente
subordinação da mulher, como capítulo indispensável de seu
disciplinamento social. Uniram-se na construção de um sistema simbólico
de poder, que transformou a diferença de gênero na origem mais antiga,
universal e poderosa de muitas das conceituações moralmente valoradas de
tudo o que nos rodeia, conforme Harding (1996). Assim, produziram e
reproduziram estereótipos de gênero (SCOTT, 1990), contribuindo para a
construção e manutenção da opressão das mulheres e das mais diversas
formas de discriminações baseadas em diferenças biológicas (e
posteriormente morais) da sociedade.
Nesse intento, era indispensável disciplinar a sociedade, eliminando da
cultura os elementos pagãos, anárquicos ou disfuncionais, enquadrá-los na
hierarquia e na disciplina da sexualidade, especialmente as mulheres e
todas as formas diversas de sua manifestação. Tratava-se de uma tarefa
inteiramente vinculada ao poder, que se confundiu, segundo Zaffaroni, com
o processo de cristianização da sociedade no exercício de um poder
disciplinante, em uma Europa em que apenas as elites estavam
disciplinadas e ao qual o discurso teocrático serviu adequadamente como
modalidade comunicativa.
A inquisição foi a manifestação mais orgânica deste poder punitivo
nascente e seu exercício disciplinante foi de uma crueldade inenarrável. Sua
experiência consta em uma obra que, pela primeira vez expôs de forma
integrada e orgânica um discurso sofisticado de criminologia, direito penal,
direito processual penal e criminalística: o manual da Inquisição, publicado
em 1484 com o título Malleus Maleficarum (Martelo das feiticeiras)5. Este é,
segundo Zaffaroni, certamente o livro fundacional da moderna ciência penal
e criminal.
Na obra, podem-se identificar algumas das notas estruturais mais
importantes do poder punitivo: a existência de um mal cósmico que ameaça
5 O martelo das feiticeiras Malleus Maleficarum (Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991).
81
destruir a humanidade, frente ao qual não se deve titubear nem prescindir
de qualquer meio; os piores inimigos são os que duvidam da existência deste
mal, porque duvidam da legitimidade do poder punitivo; o mal não obedece
causas mecânicas nem físicas, mas à vontade humana o que legitima o
castigo; a vontade humana se inclina ao mal nas pessoas que são
biologicamente inferiores, mais frágeis, como as mulheres6; a propensão ao
mal existe como pré disposição; quem exerce o poder punitivo é imune ao
mal; a confissão torna o acusado culpável, a não confissão significa mentira,
estimulada pela força da sua própria maldade; e por fim, os signos do mal
são incalculáveis, porque o mal se manifesta de incontáveis maneiras,
impossíveis de serem catalogadas e previstas.
Há assim uma articulação perfeita entre as três vigas do poder. O
poder patriarcal controla mais da metade da população: tem o direito de
punir mulheres, crianças e idosos, na gênese da violência (socialmente
autorizada) de gênero; o poder punitivo se ocupa de controlar os homens
jovens e adultos, ou seja, controla os controladores, e o saber instrumental é
poder a serviço do domínio dos controladores e dos controladores dos
controladores, em uma articulação básica que se mantem a despeito das
lutas de classes e corporações, da automização das elites, do colonialismo,
neocolonialismo, descolonialismo, hegemonia étnica e cultural. Em todas
elas, permanece o mesmo esquema básico que exclui do poder e marginaliza
socialmente dissidentes, minorias étnicas, sexuais, pessoas com
deficiências, doentes, psiquiatrizados, obesos, migrantes, e claro, mulheres,
dentre outros.
7 Segundo Zaffaroni (2009, p. 329), “Si alguien duda de la eficacia de este poder, basta para
demostrarlo la circunstancia de que, después del Malleus, los sucesivos discursos
criminológicos casi no volvieron a mencionar a las mujeres hasta hace poco menos de
veinticinco años, salvo referencias tangenciales y esporádicas. La criminologia de los últimos
cinco siglos sólo se ocupa de los varones, lo que es altamente significativo teniendo en
cuenta que los discursos no sólo expresan lo que dicen sino también lo que ocultan y que
los operadores del saber no sólo se manifiestan en lo que ven sino también en lo que dejan
de ver”.
83
submissão e de poder entre homens e mulheres na esfera privada, segundo
a ótica da dominação masculina e do patriarcado.
Neste sentido, representa a privatização do uso do poder punitivo.
Este, frente às mulheres, é exercido pelo poder patriarcal, mediante uma
sorte de violência aprendida no decorrer dos processos primários de
socialização e deslocada para a esfera da sociedade em momentos
secundários na sociabilidade da vida adulta. Não é, portanto, uma patologia
ou desvio individual, mas sim uma permissão social, concedida e acordada
com os homens na sociedade, cujas próprias instituições da sociedade,
mediante um maior ou menor grau do que Portella (2005) identifica como
permissividade ou licença social para a sua efetivação. Sua existência revela
o controle social sobre os corpos, sexualidade e mentes femininas, exercido
mediante o uso do poder punitivo autorizado pelo poder patriarcal.
Neste ponto, cabe destacar que teorizar e pensar a violência de gênero
a partir dos pressupostos aqui assumidos é uma possibilidade recente na
história humana, visto que a construção do saber sempre foi controlada e
constituiu uma das vigas dos processos de dominação e discriminação. Sua
efetivação só foi possível a partir de um longo processo evolutivo de lutas
antidiscriminatórias construído, principalmente, ao longo do século passado,
em muito devido ao avanço da luta feminista.
As lutas antidiscriminatórias têm, no feminismo, o seu principal e
mais promissor representante, afinal, o discurso feminista é, segundo
Zaffaroni (2009, p. 329), não apenas mais um discurso antidiscriminatório,
mas “el discurso antidiscriminatorio por excelência”. Embora se possa
considerar com Bobbio (1998), que todo pensamento progressista por
excelência se empenha na luta contra a discriminação, neste campo, a
esperança representada pelo feminismo8 não pode ser igualada a nenhum
dos outros discursos dos discriminados.
Afinal, segundo o argentino, nenhuma das outras minorias, embora
8 Autores importantes do século XX, como Norberto Bobbio, no livro a Era dos Direitos;
Fritjof Kapra, no seu Ponto de Mutação, e Manuel Castells, em seu estudo sobre a Sociedade
em Redes, apontaram este como o século das mulheres, sustentando terem elas produzido
uma das revoluções culturais mais importantes do período a partir da luta pela constituição
de sua cidadania, identidade e existência.
84
numerosas, abarca metade da humanidade; muitos grupos discriminados
perdem identidade ao se renovarem permanentemente (como as crianças,
que se tornam adultos, e os idosos, que morrem); o discurso feminista é o
mais suscetível de penetrar em todas as agencias, classes, corporações e
instituições, não havendo, portanto, locus de poder social que não possa ser
alcançado pelas mulheres, e, ao mesmo tempo, constituir-se em um discurso
capaz de complementar-se e compatibilizar-se com todos os outros discursos
de luta antidiscriminatória.
Essa caminhada vitoriosa da luta feminista antidiscriminatória tem se
consolidado em marcos legais, principalmente, no âmbito internacional a
partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Posteriormente, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (ONU) em 1979, ratificada pelo Brasil em
1984, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) em 1994
fortaleceram as ações, levando os Estados Partes, a se comprometerem com
a implementação de uma política destinada a eliminar a discriminação
contra a mulher, possibilitando avanço na construção da igualdade de
gênero.
A Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1994,
considera violência contra a mulher “qualquer ação ou conduta, baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado”, independente da origem
do agressor (família, comunidade ou o próprio Estado), cabendo ao Estado
intervir tanto no âmbito público quanto privado. De acordo com a
Convenção, os Estados Partes devem “incorporar na sua legislação interna
normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam
necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”.
As respostas apresentadas pelo Estado brasileiro, a partir deste
processo, tem se concentrado na esfera repressivo punitiva, e mais
recentemente, ainda que de modo incipiente, na criação de uma rede de
85
atendimento às vítimas. Esta cronologia9 judicializante passa inicialmente
pela criação das Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (Deam´s)
em 1985, ganha um novo impulso a partir da Lei 9.099/95, que dispôs sobre
os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Jecrim´s), cuja responsabilidade
passou a ser julgar crimes de “menor potencial ofensivo” dentre os quais
estava a violência contra a mulher e se consolida definitivamente através da
Lei Maria da Penha10 (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006).
Após a aprovação da Lei Maria da Penha, pesquisas11, passaram a
indicar a permanência do fenômeno da violência, quando não sua gradação.
Isto fica claro, por exemplo, no estudo Violência contra a mulher: Feminicídios
no Brasil, produzido pelo IPEA12 em 2014, segundo o qual, no Brasil, no
período de 2001 a 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios, o que
equivale em média, a 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada
ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia,
aproximadamente. De acordo com a mesma pesquisa, constatou-se que não
houve redução nas taxas de mortalidade de mulheres, comparando com o
período anterior (2001-2006) e posterior (2007-2011) da Lei, sendo que a
taxa de mortalidade para cada 100 mil mulheres, no primeiro período foi de
5,28 e no segundo período de 5,22, ou seja, com um pequeno decréscimo.
Diante do cenário de falta de eficiência da legislação em vigor, e
continuação da incidência do problema, a medida adotada mais uma vez foi
repressivo punitiva, a partir da entrada em vigor da lei 13.104/2015, que
alterou o código penal, criando uma nova modalidade de homicídio
9 Este breve esboço do avanço das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero
não tem a pretensão de esgotar o debate sobre o tema, nem ignora as demais políticas
implementadas neste sentido. Tem apenas o condão de demonstrar a preponderância da
tônica repressivo-punitiva como principal resposta do Estado, e principalmente do direito
diante do problema.
10 Alcunhada por Maria da Penha, em homenagem à luta da biofarmacêutica cearense que
sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido e tornou-se paraplégica, sendo seu agressor
condenado após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A lei, portanto,
resultou de uma punição internacional dirigida ao Brasil, e de longo processo de
mobilização.
11 Vide uma compilação de dados de diversas pesquisas sobre violência de gênero no Brasil,
13Merece destaque o fato de o texto original do projeto de Lei conter a expressão gênero
feminino. Durante a votação na Câmara dos Deputados, a palavra gênero foi substituída por
sexo, a pedido da “bancada evangélica”.
87
e reconhecido em seu contexto de produção, qual seja patriarcal e
necropolítico (MARTÍNEZ, 2010). Feminicídio tem, portanto, “força histórico-
política, força de denúncia, de análise e insurreição” (MARTÍNEZ, 2010,
p.106), desmascarando o “patriarcado como uma instituição que se sustenta
no controle do corpo e da capacidade punitiva sobre as mulheres, e mostrar
a dimensão política de todos os assassinatos que resultam deste controle e
capacidade punitiva, sem exceção” (SEGATO, 2008, p.37).
Estabelecido o ponto inicial quanto a sua relevância, a questão que se
coloca é, qual a melhor resposta a ser construída para o seu enfrentamento?
A resposta a esse questionamento tem provocado um longo debate, tenso e
paradoxal entre as demandas dos movimentos de mulheres e feministas,
algumas chamadas por Larrauri (2007) de “feminismo punitivo” e a
criminologia crítica. Apesar de ambos estarem comprometidos com a luta
antidiscriminatória, com a transformação da realidade e com projetos
societários alternativos, tem sido difícil encontrar consenso.
Do ponto de vista deste artigo, tem-se que a resposta punitiva não é de
forma alguma o modo mais adequado de constituir o processo de luta
antidiscriminatória representado pelo feminismo. É importante reafirmar,
que a judicialização do feminicídio é apenas uma de suas perspectivas de
compreensão e que é totalmente possível estudar e denunciar o fenômeno
demandando aos Estados respostas adequadas, contudo não
necessariamente penais ou punitivas.
Neste mesmo sentido, o Comitê Latino Americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM, 2011), em debate sobre a
judicialização do feminicídio nos países latinos elencou cinco argumentos
contrários à esta dinâmica de “ingresso” no sistema de justiça penal de cada
país: 1) É preciso manter o princípio do direito penal mínimo; 2) O
feminicídio já está contemplado no homicídio qualificado; 3) Os problemas
de técnica legislativa podem tornar inconstitucional a nova lei; 4) Não há
redução nas taxas do fenômeno, tampouco se resolve o problema da
impunidade com a criação de um tipo penal, ou com o aumento de penas; 5)
O sistema penal não pode ser demandado por um sentido simbólico e sim,
por sua eficácia (que se reconhece que ele não tem).
88
A menção ao “direito penal mínimo” faz referência ao deslocamento da
análise da compreensão da criminalidade, tomando o crime em seu contexto
ontológico de constituição, que superou as leituras tradicionais e ampliou a
apreensão da realidade, analisando o que constitui a noção de desvio e as
condições estruturais que estão na gênese deste fenômeno, sobretudo, ao
afirmar, como o faz Baratta (2002), que a noção de crime é historicamente
construída, não existindo em si na realidade. Afinal, segundo o autor, crime
e violência são fenômenos diferentes e, portanto, ao pretender que
determinada violência seja reconhecida socialmente como um crime, faz-se
necessário demandar um tratamento penal enfrentando todos os problemas
estruturais do sistema de justiça criminal – essencialmente hierarquizado,
seletivo, conservador e reprodutor de desigualdades.
Nos marcos do direito penal mínimo, deve-se criticar a opção da luta
feminista pela resposta penal à violência de gênero. Ao depositarem sua
expectativas de luta no “poder punitivo” as mulheres convocam “o mesmo
veneno que as submete(ia), mutila(va) e mata(va)”. (BATISTA, 2008, p.14).
Recorrendo e reafirmando o “mito da tutela penal”, uma exata manifestação
da cultura que se pretende combater (AZEVEDO, 2008, p.133).
Além disso, este é um mecanismo totalmente ineficaz, como a própria
realidade brasileira tem demonstrado, sendo consenso que uma lei penal
não é a via adequada de abordagem de nenhum delito, só sendo utilizada em
caso de gravidade (Toledo, 2009a), entretanto, isso não a torna passível de
garantir a prevenção do fenômeno ou a punição dos casos (CLADEM, 2011).
De acordo com Carmen Antony “como criminólogas, sabemos que o direito
penal não previne nenhum tipo de condutas ilícitas” (apud CLADEM, 2011,
p.11). Logo, “por que colocará o feminismo tantas energias em algo que não
vai gerar nenhuma mudança, nem vai prevenir as matanças e mortes de
mulheres?” (Celina Berterame apud CLADEM, 2011, p.214). A resposta,
passa pela compreensão de que esta é exatamente a armadilha proposta pelo
poder a fim de neutralizar a força antidiscriminatória do discurso feminista,
e reduzir sua expressividade e capacidade de transformação estrutural da
sociedade.
89
4.MANUTENÇÃO E FORTALECIMENTO DO PODER PUNITIVO: a grande
armadilha dos discursos antidiscriminatórios
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: Miceli,
Sergio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo:
Anpocs, 1999.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Mulher e
Realidade: mulher e educação, Porto Alegre: Vozes, v. 16, n. 2, jul./dez.
1990.
95
A MAXIMIZAÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO A PARTIR DO
ATUAL CONTROLE SOCIAL E A JUSTIÇA RESTAURATIVA E
TERAPÊUTICA COMO MÉTODOS ALTERNATIVOS A JUSTIÇA
RETRIBUTIVA NO BRASIL
1. INTRODUÇÃO
101
seja, um direito penal contido no uso da violência. Assim como devem ser
exploradas as novas perspectivas de solução de conflitos em substituição ao
modelo de pena retributiva, com concepções como a da justiça restaurativa,
para que haja um bom funcionamento do sistema jurídico, e adequada
proteção dos direitos básicos dos seres humanos na esfera penal.
102
(...) uma criminologia que se proponha curiosa e compreensiva; uma
criminologia que não produza criminosos e criminalizações, mas sim
cognições desejantes de liberdade, que não apenas expliquem o
passado e seus atores, mas se projete para o futuro e seus sujeitos
possíveis (CHIES, 2008, p. 103).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
108
2015.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 8 ed. Rio de Janeiro:
Impetus, 2007.
MUAKAD, Irene Batista. Prisão Albergue. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1998.
111
A IMPORTÂNCIA DO SISTEMA DE TROCA AUTOMÁTICA DE
INFORMAÇÕES DOS PARAÍSOS FISCAIS RELACIONADO AO TRÁFICO
DE DROGAS E O ACESSO ÀS NECESSIDADES BÁSICAS DO CIDADÃO
1. INTRODUÇÃO
Susana Rodrigues (2010: 23), refere que, no que respeita aos riscos
inerentes às várias fases de branqueamento, a primeira fase ‘é a de
maior risco na medida em que é aquela na qual é mais possível
detectar a origem ilegal dos capitais’, a segunda constitui a fase
‘mais complexa e a mais internacional porquanto implica mais
operações financeiras e mais circulação dos capitais por diversas
instituições e países a fim de assegurar o encobrimento’ da sua
origem, sendo a terceira fase, ‘a mais confundida com o processo
legal já que os capitais ilícitos passam a aparentar ter sido obtidos
legalmente’.
As autoridades têm detectado, ainda antes da primeira fase do
113
processo de branqueamento, operações de transporte de elevadas
somas em dinheiro com destino ao local/país onde as organizações
se encontram sedeadas, ou onde os seus líderes se encontram a
residir, ou ainda para o país onde se processará o início da fase de
colocação desses capitais no sistema legítimo.(LEAL, 2013)
114
forma de juros.
Tal diretiva foi transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 62/2005 de
11 de Março, em vigor desde Julho de 2005.
A diretiva foi alterada pela Diretiva 2004/66/EC de 26 abril de 2004 e
a decisão do conselho 2004/587/EC de 19 de Julho de 2004, em 13 de
novembro de 2008 foi adotada uma nova proposta de alteração.
Em julho de 2013, a Alemanha, França, Espanha, Itália e Reino
Unido, através de um Projeto Piloto, colocam em funcionamento o Sistema
Automático de Troca de Informações acerca de juros entre as jurisdições
aderentes acerca dos clientes que auferem rendimentos num Estado Membro
da União Européia, mas residem noutro. No entanto Áustria, Bélgica,
Luxemburgo e quase todos os paraísos fiscais dependentes da soberania dos
estados membros resolveram ficar de fora, adotando um sistema de
transição que não revela informações sobre os proprietários dos rendimentos
– taxa liberatória de tributação.
Tal Diretiva não se aplica a pessoas (incluindo cidadãos da UE) que
residam fora da União Européia.
Em 2011 foi criada a Diretiva 2011/16/EU, do conselho de 15 de
fevereiro de 2011, transposta para Portugal pelo Decreto-Lei n.º 61/2013 de
10 de maio, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade,
que veio aprofundar a obrigatoriedade de trocas de informações entre os
Estados Membros da União Européia, alargando a troca automática de
informações aos rendimentos de trabalho e de propriedade (imóveis).
Portugal assinou um novo acordo de troca automática de informações
que envolve paraísos fiscais – a partir de 2014, juntamente com 16 Estados-
Membros da União Europeia, Islândia, México, África do Sul e 12 jurisdições
de sigilo (ilhas na dependência da Coroa Britânica e territórios ultramarinos
do Reino Unido, Ilha de Man, Guerney, Jersey, Anguilha, Bermudas, Ilhas
Virgens Britanicas, Ilhas Caimão, Gibraltar, Montserrat, Ilhas Turks e
Caicos) e ainda o Liechtenstein.
Em 19 de Abril de 2009 os países G20 comprometem-se a aumentar a
troca de informações entre os paraísos fiscais e os outros países encorajando
a realização de Tax Information Exchange Agreements - TIEAs.
115
Em Setembro de 2009 o Fórum Global em Transparência e Trocas de
Informação para Efeitos Fiscais (Global Forum on Transparency and
Exchange of Information for Tax Purposes - “Global Forum”), que vinha a
trabalhar no tema desde 2000, por impulso do G20, torna-se uma
organização internacional em que os membros participam em pé de
igualdade. O “Global Forum” inclui 120 jurisdições, está mandatado para
assegurar que todas as jurisdições adiram ao mesmo nível acordado de
cooperação internacional em matérias fiscais definido pela OCDE em 2009:
Os membros devem realizar TIEAs segundo o standard da OCDE.
São cinco os requerimentos fundamentais: 1. Troca de informações
mediante pedido em que “haja evidência de que o pedido é relevante” para a
Administração e segundo o enquadramento legal do parceiro do tratado. –
Poder dos tribunais domésticos na consideração do que é relevante liquida
grande parte das trocas de informação; 2. Inexistência de restrições à troca
de informações por via de sigilo bancário ou devido a exigências fiscais de
interesse doméstico; 3. Disponibilidade de informação fiável e de poderes
para a obter; 4. Respeito pelos direitos dos contribuintes; 5. Estrita
confidencialidade na informação trocada.
O Fórum Global passa a fazer revisões para analisar a adaptação do
sistema jurídico e a troca de informações na prática.
Em junho de 2012 aconteceu a Convenção em Assistência Mútua
Administrativa em Matérias Fiscais (Convention on Mutual Administrative
Assistance in Tax Matters), onde 50 países já assinaram, mas não são muitas
as jurisdições sigilosas que aderiram à Convenção, Os EUA estão no sistema
de troca automática de informação desde julho de 2014, através da Foreign
Account Tax Compliance Act – FATCA, abrangendo os fluxos financeiros que
desenvolva dos EUA (por exemplo, de países onde há cidadãos dos EUA),
com o objetivo de combater a evasão fiscal de cidadãos americanos,
abrangendo os dados sobre informações pessoais e bancárias. Os países que
não assinarem verá seus fluxos financeiros com os EUA tributados com uma
taxa de retenção na fonte de 30%.
A OECD está desenvolvendo um modelo para estabelecer um padrão
global uniforme na implementação de um modelo de troca automática de
116
informações, com o objetivo de estabelecer uma plataforma multilateral para
troca efetiva padronizada de informações entre todas as jurisdições do
mundo.
Apesar destes esforços a situação está longe de estar resolvida: de
acordo com dados da Oxford Analytica – OXAM, dois terços do dinheiro
“ocultado” em paraísos fiscais estão relacionados com jurisdições da União
Europeia. Na reunião do Conselho Europeu de 22 de maio de 2013, dedicado
ao combate à fraude e evasão fiscal, foi referido: “(…) centros financeiros
offshore, com forte sigilo bancário, continuam a dominar o mercado
internacional de depósitos transfronteiriços.” (CRUZ, 2015)
No livro ‘How they got away with it’, RITA FARIA, JOSÉ CRUZ, ANDRÉ
LAMAS LEITE e PEDRO SOUSA, no artigo ‘Economic and Financial Criminality in
Portugal’, discorrem salientando que “as consequências diretas e indiretas
da criminalidade econômica e financeira associadas com a crise financeira
tem sido economicamente e socialmente prejudicial para Portugal.” (FARIA,
2013)
Com uma visão sobre a Espanha, MIGUEL ABEL SOUTO afirma que
118
que acaba por ser investido em paraísos fiscais, ou seja, além de ser oriundo
de uma prática ilegal, ainda é investido em bancos de outros países, não
gerando impostos, funcionando como uma economia paralela dentro dos
países, contribuindo para a crise.
Em 2009, a OCDE fez um balanço, a respeito do branqueamento de
capital nos seus países membros, ilustrando o processo de branqueamento
conforme vemos a seguir:
(OECD, 2009)
119
investimentos.
Na fase da estratificação o dinheiro pode ser transferido e dividido com
freqüência entre contas bancárias, países, pessoas físicas e/ou jurídicas. O
dinheiro também pode ser retirado em dinheiro e depositado em contas
bancárias com outros bancos. É comum o uso de contas bancárias em
países com leis rigorosas de sigilo bancário e de nomear sociedades off-shore
como os titulares de contas bancárias.
Vejamos uma demonstração mais específica:
(OECD, 2009)
120
4. TROCA AUTOMÁTICA DE INFORMAÇÕES NO CONTINENTE
AMERICANO
121
5. ESTUDOS QUE DEMONSTRAM O CAMINHO DO DINHEIRO ORIUNDO
DO NARCOTRÁFICO
Não é uma tarefa fácil, rastrear a origem ilícita do dinheiro que tem
indícios de que seja fruto de branqueamento de capital, quanto menos
especificar tal ilicitude, nomeadamente afirmando que a origem foi do
narcotráfico.
Alguns resultados já concluídos foram frutos do árduo trabalho do
setor de inteligência da polícia, identificando o rastro do dinheiro.
No entanto, como o caminho até o investimento nos bancos em
paraísos fiscais é muito comprido, nem sempre consegue-se rastrear até o
final do percurso trilhado.
Interessante destacar um estudo realizado pelo Departamento de
Roubos da polícia de Miami, “em meados da década de 80, que indica que de
100 notas de um dólar analisados, 99 tinham rastros de cocaína, tal estudo
foi feito justamente por ser conhecida tal região, no Estado da Flórida, pela
lavagem de dinheiro, assim como em outros estados norte-americanos”
(AGUILERA, 2015)
Outro caso importante que envolve dinheiro oriundo do narcotráfico,
passando pelo processo de branqueamento, foi denominado de ‘the bicycle
club’, que como mencionado no artigo de onde se extraiu,
122
eletrônico da OCDE.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGUILERA, Alejandro L. Perdomo. Paraísos fiscais, lavagem de dinheiro e
drogas no “novo mundo” da América. Carta Maior. Disponível em
123
<http://www.cartamaior.com.br> . Acesso em 12.jan.2015.
FARIA, Rita. José Cruz. André Lamas Leite. Pedro Sousa. Economic and
Financial Criminality in Portugal. How they got away with it. White collar
criminals and the financial meltdown. Susan Will. Stephen Handelman.
David C. Brotherton. Columbia University Press. New York: 2013.
MOREIRA, Assis. OCDE cobra país sobre convenção contra evasão fiscal.
Valor Econômico. Disponível em <http://www.fazenda.gov.br>. Acesso em
17.jan.2015.
124
A CONSTITUIÇÃO DE UM CÓDIGO PENAL ALICERÇADO NO ESTADO DE
EXCEÇÃO DE “SALÒ OU OS 120 DIAS DE SODOMA” E A REPERCUSSÃO
NO HOMO SACER
1. INTRODUÇÃO
125
Nesse estudo, será apresentado o supracitado código e como ele se
constitui, baseando-se no estado de exceção, bem como a coisificação do ser
humano, reduzido na sua condição de cidadão a mero homo sacer,
condicionado ao poder imensurável do soberano em questão, ou seja, da
companhia.
130
ciência que estuda a conduta desses sujeitos, é a ciência do governo com
respeito ao fenômeno criminal e serve como crítica (ZAFFARONI, 2002, 132
p.). É a ciência, que ao selecionar os bens ou direitos que devem ser
tutelados, buscam maior segurança jurídica.
Nesse sentido, pode-se dizer que em Salò ou os 120 dias de Sodoma,
foi criado um código penal embasado no estado de exceção, onde a
companhia promulga as regras de ação e abstenção de seus brinquedos.
Para criá-lo, a companhia usou de sua política para delinear as atividades
pretendidas.
A segurança jurídica almejada nesse dispositivo busca garantir os
bens (os jovens) em sua totalidade (despidos de direitos), para que os
companheiros exercessem o direito fundamentado por eles com base no
estado de exceção. Esse código penal não é só possível, como necessário a
concretização dos objetivos elementares da companhia em relação a
necessidade que é encontrada na Itália, entre 1944 – 1945.
132
Em realidade, vislumbra-se a degradação permanente dos direitos
fundamentais e a emergência do espectro do homo sacer, no qual a
vida humana aparece nua, submetida aos desígnios do poder
soberano, com seu proeminente poder de decidir em que momento a
vida deixa de ser politicamente relevante. Esse é o pano de fundo do
paradigma do “Direito Penal do Homo Sacer da Baixada” que se quer
desnudar. (CARVALHO, 2007, p. 93)
Logo,
o passo seguinte consiste na produção sistemática e insidiosa de
processos de vitimação, em que a suspensão de direitos obedece a
uma classificação biopolítica degradante e discriminatória. De um
lado, aqueles sujeitos plenamente morais de dignidade incorruptível –
nós –; de outro, os suspensos e degradados em sua qualidade moral
por seu caráter perigoso para a visão hegemônica da ordem social.
Estes últimos terminam por converterem-se em monstros. Com isso,
abre-se a possibilidade do extermínio total, justificado ética, política e
juridicamente. (CARVALHO, 2007, p. 104)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Salò retrata de forma crua os limites dos ser humano, até onde o
homem é capaz de chegar e o quanto se é possível suportar. A objetificação
do homem, a intolerância religiosa e as penas desmesuradas fazem parte
desse contexto em que o estado de exceção criado reproduz “a criação de um
133
espaço no qual a vida humana e a norma entram em um limiar de
indistinção: o ordenamento “normal” é suspenso de modo a permitir todo e
qualquer tipo de atrocidades.” (WERMUTH, 2014, p. 27).
Revolucionária, a película não deve ser interpretada como uma
apologia ao crime, mas ao contrário, Pasolini se mostra preocupado em
manter a atmosfera da obra inteiramente calma, através das músicas
tranquilas e ritmadas e deixa a violência institucionalizada para os recursos
visuais, não a fim de incitar o crime, mas de causar ânsia, repúdio, náuseas
para impactar o espectador a importar-se com o que provavelmente ocorreu
com várias camadas e grupos sociais e que esquecidos ou ocultados foram.
Mais do que uma mera crítica, a obra tem um caráter de denúncia.
Denúncia às práticas racistas, cruéis e injustificadas daqueles detentores de
poder. Ao aproximar essa denúncia aos dias atuais, não será difícil notar
que ainda existem muitas práticas desumanas em todos os âmbitos da
sociedade, desde a vida no trabalho ao cotidiano da violência doméstica. As
vítimas da companhia são reduzidas a meros homines sacer, destituídos de
seus direitos e principalmente de qualquer sensação de dignidade.
Ainda existem muitos homines sacer, aqueles que são destituídos de
seus direitos e obrigados a trabalhar em condições análogas de escravo,
aqueles que para não morrer de fome, furtam, roubam pães ou outros
mantimentos ínfimos e acabam em cárcere por muitos anos em uma
instituição penitenciária incapaz de suportá-los dignamente, ou ainda
aqueles que preferem estar presos para terem onde dormir em segurança,
dentre tantos outros.
Dessa forma fica clara a necessidade da fiscalização rigorosa dos
direitos humanos e fundamentais, uma vez que a falta de aplicação e
regulação desses pode causar danos jamais vistos pela sociedade – e
diversos desses nem chegam ao nosso conhecimento. O direito penal, com
ajuda da criminologia, deve cumprir com sua razão de ultima ratio.
Mostra-se necessário também uma melhor aplicabilidade à força
normativa do ordenamento jurídico, somente através de uma Constituição
política, jurídica e sociologicamente forte, se é possível impedir que práticas
absolutistas e totalitárias ocorram. Um Estado desregulado pode fazer tanto
134
mal quanto a companhia, instaurando um retrocesso ao direito que nem
sempre é capaz de ser superado, dessa forma:
REFERÊNCIAS
BRITO, Flávio Costa Pinto de. Salò - Ritos de controle e poder no último
filme de Pier Paolo Pasolini.Intercom, XXXII Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação, 2009. 13 p.
135
O COMBATE AO TERRORISMO NA SOCIEDADE INTERNACIONAL: O
PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E DA ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS
1. INTRODUÇÃO
143
civis.
147
Quer dizer, ele se constitui em uma afronta aos direitos humanos, ao próprio
direito internacional, à tolerância entre os povos e nações e ao sistema de
solução pacífica de controvérsias (BRANT, 2005). Cretella Neto (2008, p. 728)
assinala que inicialmente, o fenômeno terrorista era tratado pela organização
com “injustificável simpatia e paternalismo, embora se procurasse conter a
expansão do fenômeno”, postura que foi sendo progressivamente modificada,
no sentido de que hoje a ONU condena totalmente as práticas terroristas sob
qualquer pretexto.
Suas ações de combate ao terrorismo internacional, por intermédio da
Assembleia Geral e do Conselho de Segurança, datam de 1972 e 1989,
respectivamente, de acordo com Igor Andrade Vidal Barbosa (2008). É
evidente que, conforme já assinalado, por ocasião dos atentados de 11 de
setembro de 2001, houve uma intensificação nas atividades da organização
voltadas ao combate ao terrorismo. Tanto é assim que em 28 de setembro de
2001, o Conselho de Segurança adotou a Resolução nº 1373 (UNITED
NATIONS, 2001), cujos objetivos consistem em “impedir o financiamento do
terrorismo, criminalizar a coleta de fundos para este fim e congelar
imediatamente os bens financeiros dos terroristas” (NAÇÕES UNIDAS DO
BRASIL, 200-?).
Em 2002, então, atenta à questão das armas de destruição de massa,
a Assembleia Geral adotou a Resolução nº 57/83(UNITED NATIONS, 2002),
primeiro texto com objetivo de elencar medidas no sentido de prevenir que
terroristas tenham acesso a material bélico com potencial altamente
destrutivo. O Conselho de Segurança, também preocupado com a questão
das armas de destruição de massa, adotou, em 2004, a Resolução nº 1540
(UNITED NATIONS, 2004), por meio da qual obrigou os Estados a
interromperem apoio prestado a agentes não estatais relativamente a
qualquer atividade envolvendo armas nucleares, biológicas e químicas e seus
meios de entrega.
É pertinente mencionar que a ONU atua também por meio do
Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), responsável
por analisar as novas tendências na criminalidade. Em 2002, o UNODC
lançou um projeto contendo doze instrumentos contra o terrorismo, e faz um
148
importante trabalho no sentido de prestar assistência técnica e jurídica aos
países interessados em fazer parte do projeto.
Outro instrumento jurídico bastante vinculado a um ataque terrorista
é o relatório In Larger Freedom: Towards Development, Security, and Human
Rights for All. Mencionado documento é resultado dos ataques ocorridos em
Madrid, em março de 2004. Em seu bojo, o Secretário Geral da ONU à
época, Kofi Annan, elencou o que considerou serem aspectos fundamentais
no combate ao terrorismo, a saber:
Sobre isso, como de resto ocorre com boa parte das questões
envolvendo o direito internacional, existem divergências, pois autores como
Roberto Hanania Filho (2007, p. 125) ainda consideram que “a ONU tem sido
o principal organismo engajado no combate ao terrorismo internacional”.
Fato é que ambas as instituições, no âmbito de suas atribuições, tem
desenvolvido um importante papel no sentido de minimizar e combater
ataques terroristas. É evidente que muitos avanços ainda devem ocorrer,
mas grandes conquistas já foram galgadas pelo TPI e pela ONU no que diz
respeito ao combate ao terrorismo.
150
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
153
UNITED NATIONS. Resolution 1566, 2004. Disponível em:
http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1566%20(200
4). Acesso em: 18 ago. 2015.
154
PARA QUE(M) SERVE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA?
1. INTRODUÇÃO
O título deste trabalho tem direta inspiração na obra Para que(m) serve
o direito penal?: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de
controle social, de Airto Chaves Junior e Fabiano Oldoni2, em que os autores
abordam, com muita propriedade e senso crítico, a seletividade do sistema
penal brasileiro.
Essa linha de análise se fará presente neste artigo, por ocasião do
estudo da aplicação (ou não) do princípio da insignificância em casos de
crimes praticados sem violência e/ou grave ameaça, principalmente, no
tratamento desigual e mais severo impingido ao responsabilizado por delitos
patrimoniais particulares.
Para tanto, serão utilizadas, como parâmetro, decisões recentes do
Supremo Tribunal Federal, em que se verifica certa mudança de
posicionamento, no sentido do reconhecimento ou não de determinadas
infrações penais contra o patrimônio privado, como bagatelares.
Parte-se também da abordagem de legislações estrangeiras e nacionais
que, de certa forma, influenciaram a formação de uma cultura
patrimonialista no Brasil, que se revela no punitivismo voltado às pessoas
que cometem crimes contra o patrimônio privado.
Afinal, enquanto se discute se o furto de barras de chocolates,
avaliadas em pouco mais de R$ 30,00 (trinta reais), comportaria a aplicação
do princípio da insignificância (STF HC n. 1077333), nos crimes contra a
ordem tributária, há decisões reconhecendo, como sem lesividade, a
sonegação fiscal que não suplante a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil
condenado Elias Soares Pereira, pois não se tratava de réu primário e o furto dos chocolates
objetivava a permuta por drogas (MOREIRA, 2012).
155
reais), com esteio na Portaria n. 75/2012, do Ministério da Fazenda
(STRECK, 2015).
Para que se entenda essa discrepância de tratamento, faz-se
necessária uma imersão histórica, a fim de que se relembre como,
tradicionalmente, os crimes contra o patrimônio recebiam (recebem)
tratamento penal mais gravoso, para que se possa entender a razão pela
qual haja tanta resistência para a aplicação do princípio da insignificância a
referidas infrações penais.
Além mais, em julgados recentes, o Supremo do Tribunal Federal tem
somado à análise do fato, questões relacionadas à pessoa do acusado, como
a reincidência, afastando-se do Direito Penal do Fato e se aproximando,
perigosamente, do Direito Penal do Autor (STRECK, 2014).
Afinal, seria o Brasil um país de cultura patrimonialista? Por que o
furto de chocolates no valor de R$ 30,00 é significante e a sonegação fiscal
de R$ 20.000,00 não?
5 Essa ressalva é de suma importância, considerando-se que o adultério era tratado como
crime grave, sujeitando a mulher adúltera à pena de morte por apedrejamento.
157
os inúmeros brocardos que informam o ordenamento jurídico brasileiro)6. Na
seara penal, mesmo sem o destaque alcançado no campo civil, o Direito
Romano se mostrava menos teocrático7, conforme PIERANGELI (2005, p.
164):
159
conforme preconizava o art. 6º do Decreto nº 3.475, de 4.11.1899
(RIBEIRO, 2013, p. 108).
Dito isso, a teoria do bem jurídico passa por uma série de debates, já
que nem toda infração penal tem bem jurídico (BOTTINI, 2012, p. 121).
Entretanto, para que se estude o princípio da insignificância, faz-se
necessária a abordagem da ameaça ou efetiva lesão ao bem jurídico, que
uma conduta possa causar, para que tal fato seja materialmente típico.
A definição de bem jurídico penal nunca navegou em mares calmos,
sendo ora conceituado como um valor cultural, ora como bem humano ou da
vida social merecedor de proteção pelo direito.
A par dessa gama de posicionamentos sobre o melhor conceito de bem
jurídico, vale colacionar os ensinamentos de PRADO (1997, p. 47):
161
penal. Em outros termos, o objeto material ou da ação é formado
pelo ser animado ou inanimado – pessoa ou coisa (animal) – sobre o
qual se realiza o movimento corporal do autor que pratica uma
conduta típica no círculo dos delitos a cuja descrição pertence um
resultado tangível. Tem sido afirmado com acerto que tanto quanto o
conceito de objeto da ação pertence substancialmente à consideração
naturalista da realidade, o de bem jurídico, ao contrário,
corresponde, em essência, à consideração valorativa sintética. O
objeto material não é uma característica comum a qualquer delito,
pois só tem relevância quando a consumação depende de uma
alteração da realidade fática ou do mundo exterior”.
Para BOTTINI (2012, p. 120), por sua vez, a elaboração das bases
dogmáticas do princípio da insignificância só foi possível após a identificação
da tipicidade material, para além da formal, entendendo como crime a
conduta capaz de ofender os valores reconhecidos culturalmente por
162
determinado Estado. Segundo o autor:
163
4. A (IN)APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES
CONTRA O PATRIMÔNIO NÃO VIOLENTOS
166
jurisprudencial, é muito mais tolerante e parcimonioso, salvo se a sonegação
ultrapassar a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
A discrepância é tão latente que, a pessoa que furta o objeto de alguém
não se beneficia caso promova o ressarcimento do bem, antes da denúncia.
Já aquele que responde por sonegação fiscal, caso pague o tributo omitido,
antes do início do processo, será beneficiado com a extinção da punibilidade.
Segundo SILVA (2011), as bases jurídicas do princípio da
insignificância são o princípio da igualdade (em seu sentido material), o
princípio da liberdade (no Estado Democrático e Constitucional de Direito, a
prisão é ou deveria ser a ultima ratio), o princípio da Fragmentariedade (o
Direito Penal só se preocupa de infrações graves) e o princípio da
proporcionalidade.
Ao estabelecer tratamento penal, normativo e jurisprudencial, diverso
aos crimes contra o patrimônio público e privado, o Estado brasileiro se
afasta de uma linha de política criminal coerente, na medida em que distorce
institutos jurídicos (quebra da isonomia e da proporcionalidade) e colabora
para o cada vez mais caótico sistema penitenciário pátrio.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
168
Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de (org.). A crise do processo penal e as
novas formas de administração da justiça criminal. Sapucaia do Sul:
Notadez, 2006, p.135-146.
CASTRO, Flavia Lages de. História do Direito Geral e do Brasil. 5ª ed. Rio
de Janeiro: editora Lumen Juris, 2007.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11ª edição. São Paulo:
Saraiva, 2014
169
________, Lenio Luiz. Direito Penal do fato ou do autor? A insignificância e a
reincidência. Publicado na Revista Consultor Jurídico, 9 de out. de 2014,
8h00. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-out-09/senso-
incomum-direito-penal-fato-ou-autor-insignificancia-reincidencia. Último
acesso em 25 ago. 2015.
170
A CORRUPÇÃO DO SISTEMA PUNITIVO MODERNO E A INFLUÊNCIA
POLÍTICA E MIDIÁTICA NA CRIAÇÃO DA LEI PENAL
Maíra Fronza1
Adalberto Narciso Hommerding2
1. INTRODUÇÃO
Espanha (2012); Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
(2005); Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2001).
171
seja animal, seja vegetal, deve ser considerado um sistema dotado de partes
vinculadas entre si, independentes de outros seres, mas, que interagem
dentro do próprio grupo. E é por isso que o dito sistema é considerado pelos
referidos doutrinadores como sistema fechado. Ressalta-se, outrossim, que
os ditos autores também referiram que o sistema, além de fechado, era
autopoiético e autorreferencial, conceitos que foram aprimorados pelos
estudos de Luhmann.
O conceito de “autopoiesis”, como dito, teve início no final da década
de 60 pelos biólogos chilenos Maturana e Varela. Os mencionados biólogos
utilizavam, então, do dito termo para indicar as designações como
autorreferido e autorreferente não só relacionadas aos seres vivos, mas
também para referir acerca do sistema nervoso (RODRIGUES e NEVES,
2012).
Como o conceito de autorreferência está intimamente ligado à
concepção da autopoiese, importa transcrever o dito conceito trazido por
Luhmann que refere como sendo uma “unidade do sistema consigo mesmo”
(apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 30). No entanto, o conceito de
autopoiese surge quando os referidos biólogos tentam explicar a autonomia
de um organismo vivo que é considerado como um sistema que se
autoproduz.
Para melhor compreensão, pode-se dizer que o sistema autopoiético é
um sistema fechado que, embora seja operado de forma autorreferenciada
em um determinado meio ou “entorno que o circunda”, produz uma
operação de diferenciação. Um exemplo de grande valia utilizado pelos
biólogos chilenos (Maturana e Varela) para explicar o conceito de autopoiese
é de que um ser vivo, seja ele planta ou animal ou, ainda, determinada
célula, não depende exclusivamente do meio em que vive, mas, sim, de sua
própria unidade sistêmica. Isto é, ser uma célula nervosa (e não epitelial),
ser um milho (e não um feijão), ser um gato (e não um cachorro)
(RODRIGUES e NEVES, 2012).
Dito de outro modo, são os elementos internos dos seres vivos (dos
sistemas vivos) que fazem com que esses (os seres vivos) sejam o que são,
inclusive, conservem o seu estado dessa forma.
172
Enfim, a autopoiesis é a capacidade que os sistemas autorreferidos
têm de produzirem-se a si próprios como unidades diferenciadas. Em outras
palavras, pode-se dizer que o sistema que se autoproduz também se
autorrestrutura, se autorrepara, se autotransforma e se autodapta sem
perder sua identidade. Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012, p. 32)
afirma mais, que “os sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos
produzem não apenas a sua estrutura, mas também os elementos que os
constituem [...] sem importar a base energética ou material. Os elementos
são informações, são diferenças que no sistema fazem diferença”.
Segundo Luhmann (apud RODRIGUES e NEVES, 2012), para análise
do teoria sistêmica, faz-se necessária a distinção entre sistema e entorno.
Para o dito doutrinador, os sistemas estariam sempre ligados, acoplados e,
inclusive, orientados em relação a um entorno. O entorno poderia também
ser descrito como a parte externa de um determinado sistema. Destaca
também que no processo autopoiético a observação é importante para a
diferenciação do sistema e do entorno, muito embora ambos sejam
inteiramente ligados.
Aspecto também de grande valia que merece ser considerado é o fato
de que Luhmann entende a teoria sistêmica como evolucionista à medida
que interpreta o meio em que está inserido.
Para Luhmann, no entanto, o que importa é a autopoiese como um
sistema de reprodução. E tal sistema de reprodução no sistema social é o
denominado processo de comunicação, uma vez que os sistemas sociais são
entendidos como sistemas comunicativos (apud RODRIGUES e NEVES,
2012).
Rodrigues e Neves (2012, p. 60-61) referem que “a comunicação é a
operação própria dos sistemas sociais. É uma operação puramente social
porque pressupõe o envolvimento de vários problemas psíquicos em que se
possa atribuí-la exclusivamente a um ou a outros destes sistemas: não pode
haver comunicação individual”. Dito de outro modo, segundo os referidos
autores na esteira de Luhmann, quem comunica é o sistema social, e não os
seres humanos, haja vista que é a sociedade que se reproduz como sistema
de comunicação.
173
Ainda que os subsistemas sejam fechados à comunicação com outros
subsistemas, quando se organizam, porém, os variados subsistemas como
ciência, economia, política, etc., passam a se comunicar com outros
subsistemas por meio de decisões. E tais decisões, segundo Rodrigues e
Neves (2012), não prejudicam a autopoiesis do sistema social.
A comunicação nada mais é do que um processo de atualização
constante que envolve um grande número de pessoas que pensam de modo
diverso (RODRIGUES e NEVES, 2012)
Segundo Elaine V. Domingos Santos (2009), o sistema é sempre menos
complexo que o ambiente em que ele está inserido e, em razão da
complexidade do dito ambiente, faz-se necessária a seletividade de elementos
que reduzam tal complexidade.
Elaine V. Domingos Santos (2009, p.1) também conceitua
contingência:
174
indivíduos. E daí também surge a distinção entre incluídos e excluídos
(SANTOS, 2009).
Por fim, o direito, além da economia, da política, da religião, é umo
subsistema inseridos dentro de um sistema que, como dito, é autopoiético e
que sobrevive dentro de seus próprios limites, autorreproduzindo-se para
atingir suas necessidades.
Entretanto, a comunicação dos sistemas sociais, ainda que seja
importante, atualmente está ocorrendo de modo acelerado, o que vem
proporcionando uma certa “corrupção sistêmica”, consoante será adiante
discorrido.
177
[…] a pós-modernidade ou a modernidade-tardia, novo padrão
distintivo de relações econômicas e sociais, trouxe, no seu bojo, um
conjunto de riscos, inseguranças e problemas de controle social,
reconfigurando, dessa forma, as expectativas sociais com relação às
políticas criminais de repressão à criminalidade, já que o “caldo
cultural” pede o endurecimento da resposta penal.
178
criminalidade, que estimula uma política criminal de cunho conservador, a
saber: tendência de governar pelo crime”.
Acredita-se que o “protagonismo” dos meios comunicativos apresenta
um sério problema, pois há, de certa forma, o uso político do controle penal
por meio da legislação criada que se apresenta como mecanismo de
“ofuscamento e encobrimento dos problemas sociais” que acaba fugindo das
atribuições políticas (HOMMERDING e LYRA, 2014, p. 47).
O cenário atual demonstra claramente que, em sua maioria, as
legislações penais atuais foram elaboradas pelo legislador ante a exigência
da sociedade por uma resposta para determinada situação, ainda que fosse
uma situação isolada.
Inúmeras Leis Penais Brasileiras foram criadas por ingerência da
mídia. Segundo Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.072/90 foi a primeira “Lei
Midiática” que surge em face da pressão existente. O caso criminal célere
que deu origem à criação da referida norma foi o sequestro do empresário
Abílio Diniz, ocorrido em 1989. O sequestro do empresário Roberto Medina
também contribuiu para a criação da Lei dos Crimes Hediondos.
É claro, todavia, que já existia uma forte movimentação legislativa
para a criação da referida Lei, mas o clamor dos meios comunicativos
aliados às ondas de criminalidade “pressionaram” para a elaboração da dita
Lei.
Consoante coloca Mascarenhas (2010), a Lei nº 8.930/94 também foi
fruto de uma pressão midiática, principalmente oriunda da Rede Globo de
Televisão. Tal Lei surgiu em razão do homicídio da atriz Daniela Perez, a
personagem Yasmin em uma novela da referida rede de televisão.
A mãe e escritora Glória Perez, com o assassinato de sua filia Daniela,
dirigiu uma mobilização nacional para a criação da Lei nº 8.930/94 que
tinha por objetivo acrescentar à Lei dos Crimes Hediondos o homicídio
qualificado.
Odacir Silva Mascarenhas (2010) cita os casos de Doka Street e Ângela
Diniz, de Daniela Perez, de Roberto Medina, Abílio Diniz, a Chacina de
Diadema, o assassinato dos jovens Liana Friendbach e Felipe Caffé, a morte
da missionária norte-americana Dorothy Stang, além dos acontecimentos
179
gerados pelos presos Beira-Mar e Marcola, como influentes para a
modificação da legislação penal.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) também foi uma legislação
elaborada “às pressas” em razão de clamores oriundos da Comunidade
Internacional em relação aos direitos das mulheres (LIRA, 2015) que, como é
de conhecimento de muitos (especialmente juristas e aplicadores do direito),
apresenta vários problemas quando da sua aplicabilidade na prática.
Não se pretende dizer, entretanto, que a Lei Maria da Penha, assim
como outras legislações não sejam necessárias para a regulações de certos
atos sociais. O que se quer demonstrar, por conseguinte, é que a Lei Maria
da Penha, entre outras, foi elaborada para responder anseios populares e
midiáticos, sem que se fizesse um estudo prévio e, não menos importante,
sem que se adotassem níveis de racionalidade legislativa para a sua criação.
Lembra-se, outrossim, que tal Lei (Lei Maria da Penha) teve intensos reflexos
no Código Penal e, inclusive, na nova Lei no Feminicídio – Lei nº
13.104/2015).
Muitos doutrinadores falam ainda que a influência na mídia na criação
das Leis é tão relevante que pode ser enquadrada como um “quarto poder”.
Segundo João Queiroz (apud MASCARENHAS, 2010):
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
REFERÊNCIAS:
184
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedade. Tradución de Javier Torre
Nafarrate. México: Herber, 2005.
185
A CRIMINALIZAÇÃO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA E SEUS EFEITOS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO1
1. INTRODUÇÃO
186
discutido – e definido - no período que compreende os últimos 5 (cinco) anos,
sendo, portanto, um objeto de estudo novo, um tema ainda jovem, tanto no
quesito social, quanto judicial.
Em resumo, pornografia de vingança é o ato de divulgar indevidamente
material íntimo de outrem. Embora esse ato tenha tomado grandes
proporções recentemente, o mesmo tem início ainda nos anos oitenta (1980),
quando revistas eróticas masculinas criaram, nos Estados Unidos, sessões
para divulgação de cenas produzidas pelos próprios leitores. A terminologia
também tem origem norte-americana, e decorre do termo “revenge porn”,
traduzido literalmente para o português como “pornografia de revanche”.
Vale citar que também veio do país ianque a primeira resposta a esse
ato. O estado da Califórnia foi pioneiro ao introduzir na legislação penal a
pornografia de vingança, através de lei sancionada em 2013 pelo então
governador Jerry Brown, que a tornou crime. A proposta foi do senador
republicano Anthony Cannela, e passou a prever prisão e multa4 aos
responsáveis.
Seguindo a linha, como resposta ao fenômeno e aos suicídios
cometidos pelas vítimas, países como o Japão (2014), por exemplo,
promulgaram legislação pertinente ao tema5, e outros, como a Inglaterra,
discutem atualmente a sua criminalização6.
A pornografia de vingança é mais um ato que reflete a sociedade
contemporânea, marcada pela individualização social, pela facilidade de
acesso às tecnologias e pela universalização instantânea das informações e
mensagens ao redor do globo.
A popularização das redes sociais e a democratização da internet, dos
computadores e dos celulares smartphones, são alguns dos meios que
vieram a facilitar que a pornografia de vingança viesse a se tornar contumaz
nos finais de relacionamentos amorosos e sexuais. Todavia, de maneira
alguma são os responsáveis por seu acontecimento, vez que a causa desse
problema não é tecnológica, e sim humana.
7Vale ressaltar que, no Brasil, faz apenas 10 anos que o crime de adultério foi revogado, o
que se deu através da lei 11.106/05. Ademais, não se pode olvidar que até mesmo as
discussões acerca do divórcio ainda são muito recentes no ordenamento jurídico brasileiro.
8Lei Islâmica adotada em países que professam oficialmente a fé muçulmana.
188
Embora haja vítimas de ambos os sexos, a maior parte delas, nesse
caso, são mulheres, por conta de uma vulgarização da sexualidade feminina.
A pornografia de vingança reforma uma visão machista da sexualidade,
como se a divulgação de imagens íntimas fosse positiva para os homens e
negativa para as mulheres. É como se não fosse aceito que a mulher possa
expor sua sexualidade, sua natureza, seu desejo; passa, ao mesmo tempo, a
mensagem de que é, para o homem, motivo de orgulho relacionar-se e
demonstrar o fato.
Demonstrando a afirmativa acerca da cultura machista, recentemente,
uma dupla do estilo “sertanejo universitário”, chamada Max e Mariano,
lançou uma música intitulada “Eu vou jogar na internet”, onde faz apologia
à pornografia de vingança. Na letra, os cantores ameaçam a vítima – que,
ressaltamos, é do gênero feminino -, conforme se transcreve da letra:
(...) semana passada mesmo, a gente ficou. Sem que você percebesse,
eu gravei de nós um vídeo de amor. (...) Eu vou jogar na internet,
nem que você me processe. Eu quero ver a sua cara quando alguém
te mostrar; quero ver você dizer que não me conhece (Max e
Mariano,2015).
189
Parece mais razoável (...) caracterizar o dano moral pelos seus
próprios elementos; (...) ‘como a privação ou diminuição daqueles
bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz,
a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade
individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos’
(CAHALI, 1999, p. 20).
191
segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou
informações sem autorização expressa ou tácita do titular do
dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita.
Como se vê, o art. 154-A pode até ser aplicado aos casos envolvendo
aspectos sexuais, mas não foi elaborada especificamente para isso, não tem
previsão de um crime específico para quem simplesmente divulga
informações pessoais, de cunho íntimo, de outrem, não podendo ser aplicado
no caso da pornografia de vingança. Pode-se aplicar somente quando a
divulgação provém de uma invasão de dispositivo informático.
O projeto de lei n. 5.555/13, de autoria do Deputado Federal João
Arruda (PMDB-PR), prevê a alteração da Lei n. 11.340 - Lei Maria da Penha-,
o objetivo é criar mecanismos para combater condutas ofensivas contra a
mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação, sob a
justificativa de que
192
punição de quem pratica a conduta aqui discutida.
Já quando esses casos envolvem criança e adolescente, aplica-se a Lei
8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, alterado com a Lei
11.829/2013. A matéria dessa lei foi justamente a tipificação de crimes
contra crianças e adolescentes na internet, como assim traz o art. 241-A do
ECA:
193
da intimidade, da pornografia de vingança, podem solicitar a retirada de
conteúdo, de forma direta, aos sites ou serviços que estejam hospedando
este conteúdo, caso contrário, o provedor que disponibilizou tais conteúdos
será subsidiariamente responsabilizado pela violação da intimidade
decorrente da divulgação, como traz o art. 21:
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
195
REFERÊNCIAS
196
MAX e MARIANO. Eu vou jogar na internet. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=siN3lw9_i1o> Acesso em: 31 ago,
2015.
Nova versão do marco civil facilitaria remoção em caso de “vingança pornô”.
UOL, São Paulo. Dez.2013. Disponível em:
<http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/12/11/nova-versao-
do-marco-civil-preve-remocao-de-conteudo-em-vinganca-porno.htm> Acesso
em: 19 ago. 2015.
197
UMA INTRODUÇÃO AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL
1. INTRODUÇÃO
198
Em célebre passagem, este paciente compositor, ou compositor
paciente, nos brinda com a seguinte reflexão “(...) ‘A psiquiatria é a mais
atrasada das ciências’ – Parafraseio Jânio de Freitas porque a casa dos
mortos, que é a metáfora arquitetônica pela qual designo a psiquiatria, pede
que se fale contra si mesma!”3
Passando à análise mais ortodoxa, a construção do sistema brasileiro
de internações manicomiais tem todo seu liame precedido e esculpido dentro
do Código Repressor, portanto, coligadas às práticas penalísticas.
Sobre esse aspecto, a dogmática no trabalho antecedeu à construção
crítica, pois essa ordem de discursos propiciou a demonstração do
distanciamento entre os institutos jurídicos, penalmente constituídos e
postos, com a dura realidade prática que se apresenta no cotidiano das
instituições totais.
Nesse ponto, consabido que as instituições de internação possuem
carências tanto de estrutura quanto de apoio estatal. De mesma forma,
inegável que as práticas de internação estão cada vez mais em cheque na
forma clássica posta, pois são escassos os resultados benéficos, resultando
apenas como a exclusão do indivíduo indesejável do convívio social.
Portanto, é imprescindível que se proponha o debate quanto à
temática, tendo em vista a precariedade deste método de tratamento quanto
às medidas de segurança, deve ser negado o sistema vigente, para que de
alguma forma mitigue os alicerces da verdade científica posta, propiciando a
forjadura de novas concepções quanto o tratamento da matéria.
4. PRESSUPOSTOS E ESPÉCIES
4Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
5Art. 26. (...) Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente,
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANÍBAL, Bruno. Direito Penal, parte geral. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense,
2005.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2007.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais; Coimbra Editora, 2007. P. 87.
PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. I. 11. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
216
ZAFFARONI, Raúl Eugênio. BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro:
Primeiro Volume. Teoria Geral do Direito. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
217
DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO: DECORRÊNCIA DE UMA SEGURANÇA PÚBLICA EM CRISE
1. INTRODUÇÃO
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANÍBAL BRUNO, de Oliveira Firmo. Direito Penal Parte Geral. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1967.
234
dfab6f010000000000&hitguid=Ie8d83340f25111dfab6f010000000000&spos
=5&epos=5&td=6&context=20&startChunk=1&endChunk=1> Acesso em: 10
ago. 2015.
237
A CASTRAÇÃO QUÍMICA: SUA EXPLÍCITA INCONSTITUCIONALIDADE
EM CONSONÂNCIA À (RE)SOCIALIZAÇÃO DO APENADO
1. INTRODUÇÃO
238
Por fim, pretende-se ponderar os direitos constitucionais do apenado
com a possibilidade legal da aplicação desta pena, bem como, apurar se o
condenado seria ou não beneficiado com tal penalidade.
243
orgânicos glandulares, ou simplesmente como questão da preferência sexual
(FRANÇA, 2001).
Associando as razões que podem ensejar o surgimento da pedofilia,
sabe-se que alterações funcionais cerebrais, principalmente em região de
lobos frontal e temporal, estão implicadas com esta doença. Além disso,
experiências sexuais precoces (abuso sexual), inabilidades sociais,
experiências de negligência parental, inadequadas formas de aprendizagem
sexual, alterações neuroquímicas têm sido apontadas na etiologia da
Pedofilia (BALTIERI, 2009).
No tocante aos demais crimes de abuso sexual contra vítimas
maiores de 13 anos de idade, é possível estabelecer sua motivação a partir
do estudo de comportamentos evidenciados pelos agressores (de conotação
biológica ou social), as características do crime (finalidade, atos,
planeamento), e a escolha e características das vítimas. Assim, os sujeitos
que partilham critérios comuns são identificados, descritos e, em seguida,
classificados em categorias distintas. Porém, é possível e comum encontrar
tipos de violadores que são incoerentes ou que não podem ser enquadrados
nos critérios anteriores.
Nesse entendimento, para Jocelyn Aubut (1993), é possível a
definição de quatro grandes categorias para classificar os denominados
violadores, sendo estas:
245
Não obstante, sequer aos indivíduos diagnosticados como portadores
da pedofilia a castração química se apresenta como medida apropriada,
como explica Danilo Baltieri (2009):
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
254
código penal, para cominar a pena de castração química nas hipóteses em
que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for
considerado pedófilo, conforme o código internacional de doenças. In: Diário
do Senado Federal, Brasília, n° 146, em 19 set. 2007.
MATTOS, Giovana Tavares de. Castração química: análise crítica sobre sua
aplicação como punição para delinquentes sexuais. 2009. 199 f. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Direito) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2009.
256
A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL: QUAL SUA EFICÁCIA E
POSSÍVEIS MEDIDAS ALTERNATIVAS
1. INTRODUÇÃO
2. CONTEXTO SOCIAL
3.1. Voto
264
3.5. Inimputabilidade vs. impunidade
265
3.6. A prisão
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
275
permanentes/cdhm/noticias/RelatSitSistPrisBras.html
276
CUNEO, M. R. Inimputabilidade não é Impunidade. Derrube esse Mito. Diga
não à Redução da Idade Penal.Revista Igualdade, v. 9, n.31, pp.22-37,
2001. Disponível em:
http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_27_2_3.php
279
CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL
1. INTRODUÇÃO
280
insignificância. Com Dos delitos e das penas, iniciou-se a definição dos
limites entre a justiça divina e a justiça humana. Beccaria percebeu que na
justiça dos homens uma relação estabelecida entre uma ação e o estado
variável da sociedade, apresenta variações na medida em que a ação seja
favorável ao grupo social. Indignado com o tratamento desumano,
dispensado àqueles que não rezavam pela cartilha da época, que culminava
com a pena de morte e com a utilização da tortura como meio de prova,
criticou duramente a crueldade das penas utilizadas e defendeu a sua
proporcionalidade em relação ao dano social causado.
Intitulado como o autor a quem coube a fortuna de lançar as bases
do direito penal, posto que é em função de sua crítica que a legislação penal
europeia penal contemporânea começa a limpar-se, um pouco, de seu banho
constante de sangue e tortura. A violência da intromissão do Estado na vida
do homem passou por abrandamento no decorrer do tempo, de tal modo que
a voracidade punitiva dos primeiros momentos foi perdendo espaço. No
entanto, o ideal de convivência social ainda não foi consolidado e a resposta
estatal está longe de ser satisfatória.
Atualmente, ainda não se pode contar com um modelo de Direito
Penal consensual, cabendo ao julgador o grande desafio de dar solução justa
aos conflitos; tarefa árdua ante o descompasso entre as transformações
sociais e a produção legislativa.
Não se pode negar que a dinâmica evolutiva da sociedade, que
determina a seleção das condutas consideradas danosas num dado
momento, torna-se cada vez mais célere, e as leis penais em grande número,
não se ajustam na mesma velocidade. Diante disso, a validade das normas
incriminatórias deve ser constantemente avaliada.
Francisco de Assis Toledo (1991, p.19) relata que:
281
profunda reforma do direito penal legislado, revalorizando e
recolocando no centro da construção do novo sistema a
proteção dos bens jurídicos por forma e dentro dos limites que
reflitam as reais necessidades do mundo em que vivemos. E de
tal sorte que a justiça criminal, emperrada por uma enorme
carga de delitos de pequena importância, possa afinal dedicar-
se aos fatos e delinquentes mais graves que, desafiadoramente,
aí estão crescendo e se multiplicando diante de nossos olhos
atônitos.
282
expansionista, cuja intervenção na vida dos cidadãos fosse mínima e que só
atuasse quando a paz social não pudesse ser concretizada por outros meios
disponíveis. Entretanto, não ocorreu dessa forma. Alberto Silva Franco
prefaciando obra de Zaffaroni registra suas impressões desse período:
283
A intervenção do Direito Penal é requisitada apenas numa
maior necessidade de proteger a coletividade, a pena deve estar
reservada ao momento em que é o único meio de proteger a
ordem social dos crimes e possui caráter excepcional. Além do
mais, a sanção estabelecida para cada delito deve ser adequada
a ele, na medida da necessidade para a reprovação e prevenção
do crime. Não se admitem o excesso e o desnecessário de
punição a um delito, a aplicação da pena exige sua
proporcionalidade com o crime cometido. Além disso, a sua
aplicação está condicionada à existência de lesões sensíveis aos
bens jurídicos mais importantes.
285
Sistema del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino mínima non curat
praetor. Segundo Bitencourt (2012, p. 58) a tipicidade penal exige uma
ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre
qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o
injusto típico.
O princípio da insignificância ou princípio de bagatela, considerado
um instrumento de exclusão da tipicidade, vem tendo os seus contornos
desenhados pela doutrina e pela jurisprudência por não contar com norma
explícita no Direito Penal brasileiro. Para atrair a aplicação do princípio da
insignificância há de se constatar um ataque ao bem jurídico de tal modo
irrelevante que não justifique a intervenção do Direito Penal. O princípio da
insignificância reclama, portanto, o que se denomina infração bagatelar
própria àquela que já nasce sem nenhuma relevância penal.
Há pois que se investigar que característica (ou características) deve
apresentar um determinado fato, capaz (ou capazes) de torná-lo apto a atrair
a incidência do princípio.
A resposta a tal questionamento oferecida pelo STF está evidenciada
na orientação do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal
materializada no HC84.412-SP, que elege os seguintes requisitos: a)
ausência de periculosidade social da ação, b) a mínima ofensividade da
conduta do agente, isto é: mínima idoneidade ofensiva da conduta, c)
inexpressividade da lesão jurídica causada e d) falta de reprovabilidade da
conduta. Esses são os vetores que tem norteado doutrina e jurisprudência;
três referem-se à conduta e um ao resultado jurídico.
A existência de duas espécies de infração bagatelar própria, que se
definem pela insignificância da conduta e pela insignificância do resultado, e
analisando a orientação do STF que se refere a vetores orientadores do
princípio, sem mencionar se devem ser ou não considerados conjuntamente,
Luiz Flávio Gomes, apresenta sua solução afirmando que o princípio da
insignificância pode incidir nos casos em que se verifique puro desvalor da
ação, puro desvalor do resultado ou ainda quando apresentar a combinação
de ambos os requisitos, enfatizando que cada caso é um caso. E exemplifica
as três situações:
286
1. Quem atira um pedaço de papel amassado contra um ônibus
coletivo realiza uma conduta objetivamente não perigosa ou de
periculosidade mínima (...). Logo, falta-lhe o desvalor da ação.
Em outras palavras, não se trata da ação desvalorada que está
prevista no tipo penal – CP, art. 264. Não há que se falar em
desaprovação da conduta.
2. Quem subtrai uma cebola ( ou um palito de fósforo ) pratica
uma conduta desvalorada (...), porém o resultado jurídico é
absolutamente ínfimo (falta portanto o desvalor do resultado,
falta um ataque intolerável ao bem jurídico). Aqui estamos
diante de um caso em que só o desvalor do resultado jurídico é
ínfimo. Mesmo assim, não há como deixar de aplicar o
princípio da insignificância, apesar do desvalor da ação.
3. Num acidente de trânsito em que o agente atua com culpa
levíssima e, ademais, gera uma totalmente insignificante, não
há como afastar a incidência deste princípio. Neste caso temos
a combinação de ambos os desvalores: da ação e do resultado.
Nem a ação foi grave nem o resultado foi relevante. Neste
terceiro grupo também não há como deixar de aplicar o
princípio da insignificância.
Entretanto, a crítica não subsiste, uma vez que o que se extrai dos
julgados dos tribunais, muito menos que uma rejeição à teoria da
insignificância, é a existência de uma desarmonia na fixação de um valor
mínimo a ser considerado para a aplicação do princípio da insignificância,
288
mas não ensejam dúvidas sobre a possibilidade de ser aplicado aos crimes
previdenciários. Confira-se:
289
[...] Consoante entendimento firmado por esta Corte, o
parâmetro para a aplicação do princípio da insignificância, no
crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias,
é de R$1.000,00, a teor do disposto no artigo 1°, inciso I, da Lei
9.441/1997. 2. De acordo com o art. 4° da Portaria n°
4.910/1999 do Ministério da Previdência e Assistência Social –
MPAS, não há extinção do crédito previdenciário quando o
valor ultrapassar o limite de R$1.000,00, ficando apenas
adiada a cobrança da dívida, via execução fiscal, até o
montante alcançar a quantia de R$5.000,00, não havendo,
assim, baixa na distribuição, permanecendo o interesse da
Fazenda Pública em cobrar o débito tributário.
290
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
______: Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 17 ed. São
Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES, Luiz Flávio, MOLINA, Antonio Garcia Pablos de, BIANCHINI, Alice.
Direito Penal Introdução e Princípios Fundamentais. São Paulo: Revista
dos tribunais, 2007. pp. 281-282 – 449, 451.
291
GOMES, Luiz Flávio, MOLINA, Antonio Garcia Pablos de. Direito
Penal:Parte
Geral. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 315.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: v. 1, Parte Geral. São Paulo: Saraiva,
1999.
293
O MILITARISMO UM SISTEMA PARA SER REVISTO
1. INTRODUÇÃO
294
usado muitas vezes para atender a certos interesses. Com este objetivo, as
“forças policiais desde os anos da Primeira República são instrumentos de
manutenção dos interesses dos grupos dominantes do que da ordem
pública“ (MIRANDA, 2013, p. 41).
O mundo em que nós vivemos não pode ter uma segurança pública
em que seus trabalhadores não possuem liberdade. No Brasil em que
sua democracia está em pleno amadurecimento, não se pode admitir
que exista uma polícia onde não existe democracia. Pois é uma
tremenda contradição, uma polícia que é antidemocrática fazer a
segurança de uma sociedade democrática (ABRANTES, 2014, p. 66).
297
trabalho mais eficiente, rápido e objetivo. Com esta transição que se iniciou
na Constituição Federal de 1988, pode-se destacar ainda como a principal
mudança sofrida pelas polícias militares, sendo como o controle que deixa de
ser do Ministério do Exército e passa à ser dos Governadores dos Estados,
Territórios e Distrito Federal. No entanto foram mantidas as demais regras
do Decreto-Lei nº 667/69, mantendo assim, mesmo no regime democrático
as regras do modelo de criação do regime militar.
Não obstante, após a Constituição de 1988 ter se verificado inovações
na área de formação policial, na polícia militar pouco alterações tiveram
sucesso na sua implementação, e a forma de atuação predominantemente
violenta continuou prevalecendo. Constatando-se, que estas ações de tornar
a polícia mais cidadã torna-se um processo lento e complicado, ainda mais
pela sua descentralização de unidade de comando, aonde cada Estado da
federação tem sua própria estrutura de instituição militar.
Reiteradamente volta-se a discussão sobre o fim do militarismo, o que
ocorre geralmente após a divulgação de fatos de arbitrariedades cometidas
pela polícia militar, em casos como o desaparecimento do pedreiro Amarildo
de Souza na Rocinha, aonde policiais militares foram acusados de terem
torturado e desaparecido com o corpo, também com a morte de Cláudia da
Silva Ferreira, que acabou ferida em tiroteio entre a polícia e moradores da
comunidade, sendo ela socorrida pela própria polícia militar e no caminho
caiu da viatura e veio a óbito. Com estes episódios de violência policial no
Brasil, a imprensa tenta reproduzir, generalizando a imagem da polícia
brasileira como extremamente violenta.
O que dá força nas discussões do tema para acabar com o militarismo
nas polícias brasileiras Seja pela forma autoritária que essa se porta com
relação ao tratamento com o público, ou seja, pela hierarquia interna da
corporação. Que impede um trabalho mais apurado com liberdade,
iniciativas próprias, inteligência, investigação ou eficácia na antecipação de
um crime. Constatando-se, que a forma de trabalho militarista está em
plena decadência, por já não atender mais os anseios da sociedade de hoje.
Alterar um modelo de polícia, sua estrutura, sistema e formas de
trabalho para adequá-las às novas regras não militarizadas, certamente é
298
um trabalho complexo, e requer das instituições policiais um empenho
extraordinário. Assim, precisa-se aos poucos corrigir as formas de trabalho e
procedimentos operacionais, adequando-os as novas regras, e tentar formar
o policial numa estratégia de respeito aos princípios constitucionais. Para
que o policial seja preparado na sua área, e possa se tornar um perito em
bem atender a população, pois “reformar a polícia pela extinção da
característica militar, não garante melhor desempenho policial, nem
tampouco presta maior contribuição ao desenvolvimento da democracia do
país” (PINC, 2011, p. 70).
No entanto, há que se concordar que a imagem da polícia militar está
bastante desgastada diante da sociedade, apesar da simples desmilitarização
não garantir a melhora na eficiência da polícia, ela poderá abrir um novo
campo de visão com relação às formas de atuação da policial, reacendendo a
confiança da sociedade, no trabalho da segurança pública.
Assim, o que se observa é que a imagem da polícia militar brasileira
ficou extremamente manchada em decorrência de inúmeros eventos trágicos
ocorridos no Brasil. Onde se pode citar como exemplos, o que ocorreu na
cidade de São Paulo em 1992 conhecidos como o Massacre do Carandiru, e a
Chacina da Candelária ocorrida no centro da cidade do Rio de Janeiro em
1993. Estes passaram uma visão negativa da polícia militar brasileira, que
foi identificada como transgressora dos direitos humanos.
Porém cabe ressaltar, que estes são fatos ocorridos ainda em uma fase
de transição, onde a polícia estava saindo de um sistema totalmente
militarizado para um maior respeito aos direitos humanos. E deste período
em diante, a polícia tem evoluído e vem se modernizado constantemente,
melhorando sua estrutura, sistemas, métodos, equipamentos,
procedimentos e técnicas, melhorando sua capacidade de se reinventar.
Com o novo momento político, a polícia vem aperfeiçoando seu
desempenho operacional em consonância com as regras mais democráticas.
De forma que, aos poucos a forma de trabalho vai se desmilitarizando e se
adequando a sociedade, por meio de um trabalho gradual, onde a
preservação da ordem pública passa a ter inserida também a garantia dos
direitos a todos os cidadãos, além do enfrentamento do crime e da violência.
299
Essas tarefas distintas exigem do policial, habilidades e uma qualificação
cada vez maior.
Motivo pelo qual constantemente tem-se procurado melhorar as formas
de policiamento, e uma destas opções foi mesclar o trabalho tradicional com
outros métodos de enfrentamento da violência, sem deixar de prestar um
serviço coercitivo em situações que isso se faça necessário de forma reativa2.
Tem-se destacado nesta linha o policiamento comunitário com ações mais
preventivas3, a qual necessita da participação da comunidade, porém para
atuar nesta frente o policial precisa estar ainda melhor preparado, pois irá
tratar da prevenção da violência com a ajuda dos membros da comunidade
usando métodos diferentes do método tradicional.
Esta formação e qualificação do policial parece ser o maior impasse para
o sucesso na implantação deste trabalho policial, porque exige do policial
não apenas capacitação profissional, mas também equilíbrio emocional para
lidar com os problemas das pessoas. De outra forma, tem-se uma grande
dificuldade em mensurar os resultados da prevenção tornando o trabalho
policial ainda mais complexo, ao invés de só apresentar números estatísticos
sobre o trabalho, o policial também interage com a população resolvendo
problemas sociais da própria comunidade.
Neste ensejo, as formas de atuação da polícia devem ser constantemente
revistas e aprimoradas, principalmente quando não atingem os resultados
esperados. Assim, para se adequar políticas de segurança pública no Brasil,
equilibrando a conduta individual do policial com os princípios
constitucionais, torna-se uma tarefa complexa, pois requer mudanças de
comportamento do policial nas suas atividades de rotina. Sem contar, que
desta inovação depende a sustentação das instituições policiais, que deve
2 Na forma de atuação reativa, o policial é treinado para agir identificando o infrator da lei,
procurando sempre o suspeito da infração legal, abordando o cidadão com desconfiança
onde dificilmente a ação policial é recebida com simpatia.
3 Ação preventiva é muito comum no policiamento comunitário, onde o trabalho policial está
voltado mais na aproximação com o público antes mesmo que ocorram as ações de violência
e os ilícitos, fazendo um trabalho com visitas, palestras e reuniões conscientizando a
comunidade da importância do policiamento comunitário e da boa relação que deve existir
entre a instituição policial e a população, sendo desta forma, fundamental a colaboração da
comunidade no trabalho policial, para estabelecer uma relação de confiança mútua e
desenvolver um trabalho em conjunto.
300
dar legitimidade nas ações da polícia.
Apesar de o policial ter a capacidade de convidar qualquer pessoa a ser
conduzida até a delegacia, esta situação não se aplica para todos os casos.
Pois “a arbitrariedade é caracterizada por condutas que extrapolam o leque
de escolhas disponíveis para cada um dos casos em concreto” (PINC, 2011,
p. 195). Podendo a conduta policial ser considerada desviante, nas situações
em que não se enquadra nos parâmetros legais, além da prática
discricionária fundamental no seu trabalho cotidiano policial ser
considerada discriminatória.
O policial que trabalha diretamente com o público tem relativa
autonomia para tomar suas decisões no enfrentamento das ocorrências.
Dessa forma, mudar o conceito e a forma do trabalho da polícia, torna-se
ainda mais difícil, o que não quer dizer que todas as formas de atuação da
polícia praticadas até o momento estejam erradas, apenas algumas atitudes
que rotineiramente foram consideradas como regras padrões, devem ser
adequadas ao novo ordenamento jurídico.
O ano de 2013 provou que a Polícia Militar não tem preparo para
agir em manifestações populares. Desde junho do mesmo ano, a PM
no Brasil inteiro agiu com truculência com a população brasileira.
Suas ações ainda estão de acordo com a época da ditadura militar.
Uma polícia arcaica em uma sociedade pós-moderna e democrática
só pode acarretar o que aconteceu nas manifestações de 2013
(ABRANTES, 2014, p. 101).
Para mudar esta imagem negativa sobre a polícia brasileira, uma das
medidas pode ser o aprimoramento da relação entre policiamento
comunitário e a desmilitarização, onde “é possível tendo em vista a hipótese
de que o policiamento comunitário pode se constituir numa transição para
um policiamento desmilitarizado” (MIRANDA, 2013, p. 55). Nesta seara, os
princípios do militarismo se contrapõem ao policiamento de aproximação, da
mesma forma que setores conservadores das polícias militares atuam na
direção contrária do êxito do policiamento comunitário.
305
intersetoriais (SOARES, 2013, p. 5).
Como pode ser visto, o militarismo não permite este tipo de perfil
policial, e de outro modo, a discricionariedade da verdadeira função policial
conforme descrita por Soares, não tem tido sucesso na implementação e na
estrutura do trabalho policial num estado democrático como o nosso. Com
essa ideia, para melhorar a forma de trabalho policial tem-se alguns
entendimentos de que a iniciativa deva partir dos próprios soldados.
Melhorando assim, o trabalho da policial diante da sociedade (ABRANTES,
2014).
De acordo com Poncioni (2005), que realizou um estudo sobre a
formação profissional de algumas academias de polícia no Brasil, observou
que os policiais continuam sendo treinados para as demandas diárias e
preparados para dar respostas imediatas contra o crime, sendo estas formas
de atuação baseados em um determinado modelo profissional de polícia já
ultrapassado. Reforçando a identidade policial, com uma cultura de controle
do crime associado a convicções, valores e práticas que remetem ao combate
do infrator penal, renovando assim os velhos princípios básicos do trabalho
policial. E contrastando ao novo profissionalismo difundido em grande parte
do mundo ocidental, onde o serviço público a educação policial de alto nível
e a busca de uma aproximação policial com a comunidade, são
comportamentos considerados fundamentais para a construção de uma
nova identidade profissional do policial contemporâneo.
A polícia precisa de profissionais qualificados e não de policiais com
postura de heróis, essa ideia vem de encontro ao treinamento policial que
serve exatamente para controlar reações espontâneas nos profissionais da
área. Com este posicionamento é possível enfatizar, a importância que é a
boa formação e a constante atualização dos policiais no decorrer das suas
atividades. Pois a polícia “não é neutra nem imparcial, por definição: é a
favor da lei e da ordem e contra aqueles que a querem infringir ou perturbar”
(LIMA, 2011, p. 81).
307
Por outro lado, não existem soluções fáceis, em um sistema tão
complexo como é a segurança pública no Brasil, com interesses diversos e
instituições que tem tido dificuldades para trabalhar de forma coesa no bem
comum da sociedade. Se apresentam desafios conforme o conceito de
Balestreri (1998), quando aborda o tema da desmilitarização, e a ideia de
uma polícia única, afirmando que é um conceito que ainda precisa ser
construído em nosso país, e não simplesmente acabar com a Polícia Militar,
e passa-la às mãos da Polícia Civil.
A importância do constante treinamento da atividade policial, reflete
diretamente na imagem projetada pela sociedade com relação a atuação da
polícia. Assim, o “procedimento não é uma ordem a ser seguida e sim uma
conduta a ser introduzida como um comportamento reflexivo do policial, em
seu trabalho cotidiano“ (PINC, 2011, p. 18). De modo que qualquer alteração
na forma de atuação do trabalho policial, requer um longo período de
adaptação e um constante treinamento.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
LIMA, Roberto Kant de. Direitos civis, estado de direito e cultura policial: a
formação policial em questão. Publicado em: Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: p. 73 - 92, 2011.
309
doutorado) orientador Leandro Piquet Carneiro. São Paulo: 2011.
310
PLURALISMO JURÍDICO, DIREITO INFORMAL E A CRIMINALIDADE
1.INTRODUÇÃO
1 Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo. Pós-
graduada em Direito e Processo Penal pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul. Bolsista do Programa CAPES/PROSUP.
311
Países periféricos como o Brasil tencionam solucionar alguns conflitos
sociais de maneira alternativa de direito, uma vez que, por estarem em
condição de exclusão de amparo legal e políticas públicas destinadas a
necessidades básicas fundamentais, não podem contar com o Estado,
preferindo dessa forma, submeter-se aos ditames socialmente emergidos
pela própria população.
Dessa forma, diante da deficiência e da ausência de recursos do
Estado nessas sociedades, surgem procedimentos ilegais supostamente
adequados a realizar justiça, capazes de solucionar problemas de origem
social, no entanto, essa normatividade informal, apesar de, por vezes, mais
rápida e eficaz e por tal razão obter amplo apoio da população, nem sempre
se organiza de maneira positiva e baseada nos fundamentos da
transformação social com objetivo de construir outro direito coletivo
conforme propõe o pluralismo, isto, pois, têm se organizado através de
grupos arbitrários, como o crime organizado que através do tráfico de drogas
recorre à força e a violência como forma de legitimação de suas imposições,
agindo, na maioria das vezes, na defesa de seus interesses próprios.
Assim, busca-se, a partir da constatação da ausência e da
insuficiência das atuais esferas jurídicas tradicionais, compreender a relação
da criminalidade com as novas formas alternativas de direito, introduzindo-
se um pluralismo jurídico através de um projeto comunitário-participativo,
como instrumento de combate as mazelas da globalização neoliberal, e
estratégia na busca pela justiça que o sistema formal não consegue garantir
prontamente.
2. O MONISMO JURÍDICO
315
existentes que estão realmente a serviço do projeto da emancipação social,
uma vez que, existem práticas que apesar de não estatais, reforçam e
contribuem a reprodução do direito hegemônico.Por tal razão importa
diferenciar o pluralismo jurídico que busca contribuir na redução das
desigualdades sociais e nas relações de poder, do pluralismo que agrava
ainda mais a desigualdade e exclusão social.
Wolkmer (2012, p. 243) elenca então as diferenças entre o pluralismo
jurídico como “projeto conservador”, servindo de alternativa para intentos
neoliberais, do pluralismo jurídico como “projeto emancipatório”,
transformador, como alternativa contra-hegemônica de emancipação de
estruturas sociais dependentes:
317
Dessa forma, a velha fórmula dos liberais, de construção de
instâncias formais dotadas de poder de coação, não é velha nem de
todo má, pois aqui e agora, ao contrário do que alguns intelectuais
continuam a sonhar, a tese de auto-regulação da sociedade civil, em
termos práticos, tem significado, a entrega das populações das
favelas e das áreas periféricas ao poder de fato do crime organizado.
Mesmo considerando-se que a realidade brasileira se modificou
radicalmente neste últimos vinte anos, Pasárgada é mais fruto do
imaginário sobre a América Latina construído durante a década de
sessenta nos países centrais, do que situação típica das nossas
favelas que se caracterizam não por laços comunitários, mas pela
atomização que reflete a lógica de cada ator normativo, o que, por
sinal, não escapou à observação de Boaventura de Sousa Santos,
que estudou a “privatização possessiva” como uma das linhas de
força presentes nos direitos de Pasárgada.
318
liderança dos traficantes pelas milícias paralelas que buscam assumir um
controle social orientador nas comunidades. Ocorre que, esgotadas as
possibilidades de solução pacífica, assim como os traficantes, a milícia
também na tentativa de impor sua regra de conduta, usa da força e da
violência, ainda que com objetivos diversos aos do tráfico, não elide assim,
mesmo que composta por policiais, sua essência criminosa. Segundo o autor
(2013, p. 231):
322
participativo utilizado por Wolkmer para a superação do monismo jurídico.
Entretanto, este pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo
também é objeto de críticas por autores como Lédio Rosa de Andrade que,
segundo Carvalho (2013) dá ênfase as situações de controle social e
manipulação do crime organizado que utiliza suas próprias leis e ordens
para a resolução dos conflitos da comunidade, demonstrando assim, que
nem tudo que emerge dos grupos sociais é sempre emancipador,
questionando quais teorias seriam capazes de diferenciar o direito paralelo
do direito criminoso e, ainda, criticando a legitimidade dos valores impostos
por Wolkmer para qualificar o direito comunitário como o justo e ético e o
direito criminoso como o injusto e antiético, e se teria o intelectual algum
privilégio nesse sentido.
Para Carvalho (2013, p. 31) os critérios apontados por Wolkmer devem
ser objeto de questionamentos e debates, no entanto, é errado afirmar que
eles não possam ser propostos, pelo contrário ele esta cumprindo com o seu
“papel político de demonstrar com argumentos racionais que determinadas
concepções de justiça ou de pluralismo jurídico são melhores ou mais
legítimas do que outras, fornecendo, assim, critérios para uma análise
crítica da realidade”.
Ainda, acerca dos critérios e sua definição, para Carvalho (2013, p. 32-
33):
323
sem grave perigo para a ordem social e sem o aniquilamento do próprio
Estado”, colocando em perigo assim, a unidade do direito.
De igual forma, segundo Wolkmer (2001, p. 228), Norberto Bobbio
questiona as bases do pluralismo jurídico que pode “ocultar tanto uma
ideologia revolucionária inserida em ordenamentos que contribuem para a
“progressiva libertação dos indivíduos e dos grupos oprimidos pelo poder do
Estado”, quanto uma ideologia reacionária interpretada como “episódio da
desagregação ou da substituição do Estado e, portanto, como sintoma de
uma iminente e incompatível anarquia”.
Wolkmer (2001, p. 230) constata certas limitações ao pluralismo
jurídico tradicional o que o inviabiliza e torna inadequado para “estruturas
de privilégios, desigualdades e injustiças como a brasileira”, no entanto, esse
pluralismo jurídico hegemônico não impede o repensar de novas formas de
organização da vida social, que favoreçam “a imperiosidade de outro projeto
de pluralidade de caráter “ampliado” e “aberto”, identificado plena e
autenticamente com as condições objetivas de mudança e emancipação de
sociedades de cultura liberal-individualista como a nossa”.
A crítica ao direito dominante, realizada por Wolkmer, se refere ao
modo como este direito é interpretado, compreendido e aplicado, sendo
entendido como formal, hegemônico, e atuando sem considerar o contexto
social, econômico e cultural em que se encontra a maioria da população. Por
tal razão, propõe o pluralismo jurídico contra-hegemônico como uma prática
mais comprometida com a realidade social de países periféricos, como é o
caso brasileiro, transgredindo ao direito moderno, buscando a efetivação de
um sistema de regulamentação que traduz as necessidades e os valores de
sujeitos sociais como outra fonte de legitimação, aspirando-se assim, à
construção de novas formas jurídicas emergentes que se pautam na
dignidade humana e na emancipação social.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARRUDA JR. Edmundo Lima de. Lições de direito alternativo. São Paulo:
Acadêmica, 1992.
325
jurídico no Brasil. In: Pluralismo Jurídico. Os novos caminhos da
contemporaneidade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
327
PROPOSTA DE REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL: UMA ABORDAGEM À
LUZ DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
1. INTRODUÇÃO
332
Em contrapartida, a inimputabilidade é causa de exclusão de
culpabilidade, isto é, mesmo sendo o fato típico e antijurídico, não é
culpável, eis que não há elemento que comprove a capacidade psíquica do
indivíduo para compreender a reprovabilidade de sua conduta, não podendo
ocorrer imposição de pena ao infrator.
O ordenamento jurídico brasileiro apresenta a seguinte previsão legal
para distinguir o inimputável do imputável no art. 26 do Código Penal, in
verbis:
333
busca estabelecer orientações que priorizem tais indivíduos e a situação em
que eles se encontram. Referida legislação prevê em seu art. 103 e seguintes,
a questão da prática de atos infracionais e as medidas socioeducativas
aplicáveis. Já as medidas de proteção, elencadas nos art. 99 a 101 ditam
que estes instrumentos de forma alguma deverão ser entendidos como
castigo ou pena, muito menos para aliviar a responsabilidade jurídica dos
indivíduos causadores de danos à criança e ao adolescente.
Substancialmente, através do analisado sobre a legislação vigente, se
pode dizer, sem sombra de dúvida, que o menor de dezoito anos que pratica
uma conduta tipificada como crime não permanece impune, pois o ECA
prevê medidas que serão impostas ao infrator, as medidas socioeducativas,
que na realidade, apenas possuem denominação diferente de “pena”.
O principal parâmetro da inimputabilidade tem relação com proteção
do indivíduo, atribuindo-lhe um tratamento alusivo à sua característica de
pessoa em desenvolvimento, e inegavelmente percebe-se que há uma ligação
entre a norma que institui a inimputabilidade em razão da idade do
indivíduo com o princípio da proteção à dignidade da pessoa humana.
Na verdade, ao realizar a análise sobre a imputabilidade penal,
observa-se que pode ser considerada imutável perante a Constituição.
Constata-se, assim, que ela pode ser considerada, indiretamente, cláusula
pétrea, insuscetível de Emenda Constitucional, conforme revela Andrade
(2013). Desta forma, como já sabido, os direitos e garantias fundamentais,
por se tratarem de cláusulas pétreas, não podem ser abolidos. Ou seja, não
se pode deixar de enfatizar que o art. 228, não pode ser objeto de emenda
constitucional, pois está coberto pela garantia de imutabilidade, consoante
disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição Federal:
334
dispositivo constitucional, leva em consideração a incidência de direitos
fundamentais externos ao artigo 5º da Constituição Federal e em razão
disso, preveem a impossibilidade de modificação haja vista a imutabilidade
do art. 228 da Constituição Federal por considerar-se cláusula pétrea.
Importante verificar a posição do STF sobre a questão:
A partir do que foi exposto até agora já se pode formar uma opinião
sobre o tema da redução da maioridade penal. Já foi possível analisar a
proposta tendente a alterar a Carta Maior e já foram demonstrados alguns
dos direitos e garantias assegurados aos destinatários da presente proposta
de alteração, mas ainda existem argumentos - contrários à redução - que
podem ser mencionados a fim de desconstituir alguns mitos criados
socialmente acerca do que se debate aqui.
O que se verifica é que nos últimos anos alguns dos crimes cometidos
por adolescentes ganharam ênfase nos meios de comunicação em massa e
provocaram discursos exaltados em defesa de práticas mais rígidas nas
medidas socioeducativas ou mesmo da redução da maioridade penal.
335
O argumento, por parte de setores da sociedade e da mídia que
defendem o endurecimento penal a este público específico, seria o
protagonismo dos adolescentes no cometimento de crimes graves, por
presumirem que o ECA trataria com medidas brandas esses adolescentes,
culminando no aumento da criminalidade.
Pois bem, conforme o ECA, os adolescentes infratores são
responsabilizados por seus atos infracionais, inclusive, sendo passíveis de
sanções por parte do Estado – medidas socioeducativas – que podem ser,
conforme art. 112 do ECA: advertência, obrigação de reparar o dano,
prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime
de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional, dentre outras.
Sublinha-se que em alguns casos o tratamento dedicado a um
adolescente pode ser imposto com maior rigor do que aquele oferecido pela
lei penal a um adulto, conforme destaca Murillo José Digiácomo, Promotor
de Justiça do Estado do Paraná e integrante do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias da Criança e do Adolescente do Estado do Paraná:
A partir destes dados é possível inferir que no Brasil apenas 11% dos
adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas cometeram atos
infracionais considerados graves e mediante violência, a exemplo do
homicídio e latrocínio. Este dado é relevante, pois a PEC, que ora se estuda,
busca justamente o recrudescimento das medidas punitivas dirigidas a
prevenir este tipo de delito.
A conclusão deste discurso é que a redução na maioridade penal para
16 anos seria a saída para se combater à impunidade sobre este grupo
populacional e para se reduzir a criminalidade. No entanto, com os dados
trazidos por esta pesquisa, constata-se que é pequena a parcela das
sentenças a adolescentes em razão do cometimento de crimes graves, como
homicídio e latrocínio. Assim, apesar dos discursos exaltados em favor da
redução da maioridade penal, constata-se que os delitos graves são a
minoria entre os delitos dos adolescentes processados.
Outro fator que merece destaque é o desejo de recrudescimento das
medidas socioeducativas impostas aos adolescentes sob o pretexto de terem
perfeita condição de discernir entre o certo e o errado. Um adolescente pode,
realmente, distinguir entre o certo e o errado, mas a redução penal não pode
levar em consideração somente este fato e sim que existem inúmeras
comprovações técnicas e científicas que comprovam que a adolescência é
uma fase de transição entre a infância e a idade adulta em que a pessoa
337
passa por uma fase de grandes transformações psicológicas, morfológicas e
sociais que podem torná-las mais propensa a atos antissociais. Por isso,
destaca-se a importância de um acompanhamento compromissado com os
adolescentes e é isto que há previsto no ECA, por exemplo, a partir da
proteção deste público.
Também se discute a imposição da redução da maioridade penal,
considerando o direito constitucional de voto aos dezesseis anos. Tal
argumento não merece prosperar, visto que não concede os direitos
universais de ser votado, bem como o voto aos menores é facultativo. Além
do mais, o critério utilizado para a maioridade penal é o biológico, como já
explicado neste trabalho, e é um critério objetivo para assegurar a segurança
jurídica em nosso país.
Sobre o encarceramento de menores, é relevante mencionar sobre o
assunto, que encarcerando adolescentes aumentaria a lotação de presídios,
e como demonstra a pesquisa da Infopen (2014), o déficit carcerário aumenta
a cada dia, não conseguindo atender a demanda que a Justiça requer. O
Estado ainda não é capaz de cumprir o papel descrito na Constituição
Federal, Código Penal, Lei de Execução Penal e muito menos ainda o
disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, esclarece
Luiz Flávio Gomes:
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
340
DOTTI, René. A redução da maioridade penal. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/rene-
dotti-a-proposta-de-reducao-da-maioridade-penal-
4ak8zoe2ffih0xjmed9cigmd9>>. Acessado em 28 de agosto de 2015.
341
RACISMO: DA LEI ÁUREA À CRIMININALIZAÇÃO.
UM ESTUDO ACERCA DA EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
1.INTRODUÇÃO
346
competitiva” (FERNANDES, 2008, p. 29).
349
Art. 150. [...]
§ 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça,
trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça
será punido pela lei.
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou
filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo
quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um,
nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito
de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de
licença da autoridade. Não será, porém, tolerada propaganda de
guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de
classe. (BRASIL, 1967, § 1º e § 2º art. 150)
351
estratégias para promoção do acesso ao ensino superior de pessoas
pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos
afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.
A lei 10.558/02, dispõem:
3.CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita, 1994.
354
A APLICABILIDADE DA LEI DO FEMINICÍDIO ÀS TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS
1. INTRODUÇÃO
2 DESENVOLVIMENTO
360
importa a definição jurídica do termo “mulher” que o delegado que o irá
prender, o juiz ou o promotor que atuarão no seu caso compartilham. Ele
matou a mulher que o traiu. Não há quem possa lhe dizer o contrário.
Os liames subjetivos que envolvem o tipo de delito supra são os
mesmos para todas as mulheres. A vulnerabilidade que as torna passíveis de
proteção especial perante a lei é a mesma para mulheres trans e cisgênero. A
existência de uma relação de poder estabelecida no âmbito doméstico em
que estas violências ocorrem é inegável, assim como o é o fato de que o pólo
mais fraco dessa relação será a vítima dessa violência. Para a promotora de
Justiça Valeria Scarance (2015):
361
negar sua proteção também às mulheres transexuais.
De outra parte, ainda que se repudie a recepção do termo gênero na
interpretação da lei do feminicídio frente ao claro intuito do legislador de
suprimi-lo do texto legal, igualmente, a proteção extensiva a todas as
mulheres não desaparece. Isso porque, quando pensamos no sujeito de
proteção da lei 13.104/2015, precisamos ter em mente que o termo “sexo”,
assim como a categorização das pessoas em “dois sexos” denota uma
construção social tão cultural e artificialquanto a categorização das pessoas
em “dois gêneros”. Noções que, definitivamente, não se encontram
vinculadas à natureza ou à biologia, o que nos permite a compreensão de
que pessoas transexuais que se identificam com o gênero feminino são,
nesse sentido, pessoas do sexo feminino, compreendendo-se o termo sexo
como uma construção biopolíticasocial.
Lenio Streck (1999) comenta que a sociedade em que vivemos e
construímos, infelizmente, nos faz acreditar que existe uma ordem de
verdade, em que cada um apenas “assume” seu lugar, inclusive de oprimido
e opressor. E essa ordem de verdade segue afirmando quem pode ou não ser
digno de direitos. A estrutura misógina de poder se encarrega de designar
que mulheres trans são “menos mulheres” e, por isso, menos humanas do
que aquelas consideradas “verdadeiras” ou “originais”.
Quem não é humano não têm o direito de ter direitos e as escalas de
humanidade são comuns nos juízos valorativos do senso comum. A vida da
vítima que reage e mata o assaltante tem mais valor do que a do bandido
morto. Já a vida de um estuprador, costuma valer menos do que a daqueles
que praticam crimes patrimoniais. Para travestis e transexuais a verdade
popular em nada se altera. Sua vida costuma valer menos do que a
pertencente às pessoas ditas “normais”, ou, simplesmente, a das pessoas
cisgênero.
Nessa linha, em recente artigo sobre o tema, Alice Bianchini e Luiz
Flávio Gomes (2015) referem que na qualificadora do feminicídio, somente
pode figurar como sujeito passivo a mulher. Complementando que, nesta
disposição legal, não se pode admitir qualquer analogia contra o réu, desse
modo “mulher se traduz num dado objetivo da natureza” cuja comprovação
362
mostra-se “empírica e sensorial”. Ou seja, em clara restrição da proteção
legislativa às mulheres que nasceram com vagina, os doutrinadores apontam
a impossibilidade que uma transexual não operada, ou uma travesti, vítimas
de feminicídio, sejam protegidas pela Lei 13.104/2015.
Nesse caso, para os citados penalistas, pouco importará se a pessoa
vítima da violência, que em que pese possuísse um órgão genital tipicamente
denominado como masculino, vivenciava uma identidade de gênero
feminino, tenha sido morta em virtude de violência doméstica e familiar,
menosprezo ou discriminação a essa condição. Se não puder ser
objetivamente identificada, empírica e sensorialmente, como mulher (leia-se
aqui, se não possuir uma vagina), não fará jus à proteção da lei.
Ou seja, se ouvida um contexto de violência em virtude da condição
(seja de sexo ou de gênero) feminina e, para uma interpretação que não
prejudique o réu, desconsidera-se, sumariamente, as razões que
fundamentam a existência da lei. O crime de feminicídio não se presta à
proteção exclusiva de mulheres que tenham nascido com vagina, seu
objetivo é, em muito, mais amplo. Não se trata de proteger uma determinada
vítima, mas sim de coibir uma forma específica de violência.
A quem a lei protege e a que a lei protege são perguntas que têm sua
resposta interligada por um termo comum: feminino. Longe de proteger seres
humanos vítimas de violência que, ao nascer, tenham sido biologicamente
qualificados como mulheres a partir da superficial análise de seu órgão
genital, a lei do feminicídio protege a vida em desvantagem. E quando a vida
está em desvantagem? Quando, pela influência de padrões estereotipados de
comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de
inferioridade ou subordinação, alguns pensam ser senhores soberanos da
existência de outros.
A violência misógina não advém da diferenciação morfológica e
sexuada dos corpos. Não são pênis, vaginas ou cromossomos os
responsáveis pelas mortes de milhares de mulheres vítimas de violência
domésticae familiar, menosprezo ou discriminação a sua condição enquanto
pessoa pertencente ao gênero feminino. Mas sim, relações de poder
alicerçadas em ideais machistas de dominação, posse e pertencimento. E é
363
contra isso que a legislação protetiva se coloca, ou deve se colocar, motivo
pelo qual, não há dúvida de que a lei do feminicídio abarca, de toda e
qualquer forma, à qualificação de crime hediondo o tipo penal do
assassinato contra mulheres, sejam elas cis ou transgêneros.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
366
A SELETIVIDADE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DA ATUAÇÃO DO
SISTEMA PENAL BRASILEIRO COMO INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO
E REPRODUÇÃO DA ORDEM SOCIAL EXCLUDENTE: uma análise a partir
do perfil da população carcerária contemporânea
1. INTRODUÇÃO
1AssistenteSocial. Graduada em Serviço Social pela URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em
Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul(UNIJUI). Bolsista Integral da CAPES. E-mail: luanarambo@yahoo.com.br
2Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do
367
um ato criativo que implica o próprio sujeito. Este horizonte compreensivo
foi o que se mostrou suficientemente fértil e adequado para a discussão da
temática objeto desta investigação.
369
longo da trajetória da vida.No entanto, quando essas instâncias falharem o
controle social formal será acionado, a partir de uma lógica
punitiva/coercitiva. O controle formal serve para sancionar e punir aqueles
que em um determinado estágio da vida infligiram o conjunto de regras
estabelecidas pela tessitura social.
O controle social formal – ou institucionalizado –, nesse sentido, é o
que se dá de forma explícita, e pode ser exercido de forma não punitiva – a
exemplo do que ocorre com as normas de direito privado, que regulamentam
as relações entre pessoas ou entre pessoas e coisas (bens jurídicos) sem o
estabelecimento de sanções – ou punitiva – que opera a partir da imposição
de sanções no caso de transgressão da norma reguladora. Há que
diferenciar, no entanto, no que tange a esta segunda classificação, entre o
controle social institucionalizado punitivo que opera a partir de um discurso
não punitivo e o que opera a partir de um discurso punitivo (PIERANGELI;
ZAFFARONI, 2002).
379
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
380
REFERÊNCIAS
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio
de Janeiro: Revan,2007.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos EUA. 3.ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2007.
382
A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETA A
PRISÃO PREVENTIVA
1. INTRODUÇÃO
6 Para Foucault, as mudanças sociais ocorridas no séc. XVIII e XIX levaram a alterações do
jogo do poder, que foi sendo gradativamente substituído pelo que denominou de sociedades
disciplinares, as quais atingiram o seu apogeu no séc. XX. A passagem de uma forma de
dominação a outra ocorreu quando a economia do poder percebeu ser mais eficaz e rentável
“vigiar” do que “punir”. Ver: FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2004.
385
comunicação política. Para o autor, a mídia também tem como função
garantir a continuidade do sistema vigente através da transmissão da
herança cultural e dos valores de uma geração para a outra (LASSWELL,
1972).
Diante do papel que desempenha, na medida em que acaba impondo
um modo de vida, um modelo de indivíduo adequado ao regime vigente,
determinando como as pessoas irão se comportar, como deverão pensar,
como deverão se vestir para estar na moda e, inclusive, como se posicionar
politicamente, resta evidente que exerce papel decisivo na formação do senso
comum, o que acaba lhe colocando na condição de um poderoso
instrumento de controle. O “senso comum é o repositório de saberes
acumulados tradicionalmente por um povo, onde se misturam
conhecimentos científicos, tradições, crendices, mitos e a aprendizagem
formal, escolar, bem como as informações trazidas pela mídia” (MARTINO,
2014:74).
Segundo o Germano, o senso comum tem como característica
apresentar-se como uma verdade tão evidente, que qualquer tipo de
questionamento a seu respeito poderia ser considerado absurdo, uma
afronta ao “bom senso”, e, por isso, pode tornar-se um instrumento de
dominação. Aqui, é oportuno alertar para o fato de que a “opinião pública” é
sempre reflexo do que paira no senso comum sobre determinado tema, uma
espécie de manifestação anônima gerada e instrumentalizada através de
discursos produzidos por políticos, professores, cientistas, jornalistas e
demais profissionais que exercem o poder de convencimento na sociedade
atual, atores sociais que podemos chamar de “formadores de opinião”
(GERMANO, 2012:31). Por esta razão Maffesoli sustenta que, em nossa
época, a opinião pública confunde-se com a opinião publicada (MAFFESOLI,
2010:10-11).
Conforme Merton e Lazarsfeld, os mass media contém um poderoso
instrumental que pode ser utilizado para diversos fins, para o bem ou para o
mal, sendo que, na ausência de um controle adequado, certamente será
destinado para a segunda hipótese, sobretudo para assegurar interesses
particulares em detrimento do bem comum. Os autores também chamam a
386
atenção para o fato de que, no que diz respeito ao controle social, a mídia de
massa atua promovendo a coerção da coletividade através de programas de
rádio e anúncios institucionalizados que substituem com eficácia qualquer
modo violento de coerção. Nesse diapasão, o que muitos chamam de “poder
de imprensa” estaria vinculado à função exercida pela mídia de reforçar as
normas sociais, promovendo ações sociais organizadas contra situações que
em tese estariam em desacordo com a moral pública (MERTON;
LAZARSFELD, 2000:109-116), o que pode ser constatado no caso da forte
pressão que a mídia introduz cotidianamente no campo criminal.
A força da mídia pode ser verificada no exemplo da televisão,
considerando o seu poder de alcance e de convencimento exercido através da
imagem. Bordieu chamou a atenção para o fato de que o acesso a esse
instrumento tem como contrapartida o que denominou de “formidável
censura”, ou seja, a perda de autonomia na relação comunicativa, já que o
tema do programa exibido é imposto, as condições da comunicação são
impostas e que a limitação de tempo nas discussões apresentadas impõe
enormes restrições aos discursos, impedindo que os assuntos sejam tratados
com profundidade. O autor sustentou ainda que a censura não é direcionada
somente ao público, mas também em desfavor dos próprios jornalistas e
convidados, já que existe um grande controle exercido pelo mercado, tendo
em vista que as empresas de comunicação necessitam se manter em posição
privilegiada para enfrentar a concorrência, o que impõe pressão e desafios
diários aos profissionais da comunicação, que são obrigados a conseguir
“furos”, informações exclusivas para que garantam sua reputação e seu
emprego (BORDIEU,1997:19-58). É o que Ramonet denominou de “censura
democrática” (RAMONET, 2010:28-29).
O interesse no caráter apelativo que o crime carrega fez com que a
mídia se tornasse a grande responsável pela construção da imagem da
criminalidade, interligando-a ao campo do sistema penal. É que exibição
excessiva de notícias sobre o crime, quase sempre sob um viés
sensacionalista, acaba estabelecendo os estereótipos dos indivíduos
criminosos, bem como quais os locais da cidade que são ocupados pelos
mesmos e devem ser evitados pela população. A relação entre mídia e crime
387
segue a seguinte dinâmica: primeiro os meios de comunicação ajudam a
criar um cenário de insegurança no seio social através da veiculação
excessiva de informações sobre o mundo do crime para, depois, com o apoio
da população amedrontada, pressionar o poder público para que solucione o
problema da criminalidade, o que normalmente é procedido através de
campanhas por mais leis penais, por decisões judiciais mais duras e pela
expansão do uso da prisão, sobretudo a preventiva. Outra questão que
precisa ser enfrentada é que, ao mesmo tempo em que lucra com essa
dinâmica, a mídia legitima um sistema penal que destrói milhares de
pessoas e é ineficaz para resolver o problema da criminalidade (BUDÓ,
2013:23).
Na grade de programação da televisão brasileira, por exemplo, não são
raros os programas alarmistas produzidos em um formato onde um
apresentador que mais parece um justiceiro, comanda ao vivo a transmissão
do trabalho da polícia no atendimento de ocorrências envolvendo crimes
graves como roubos, sequestros e latrocínios, exibindo sem nenhum pudor
imagens repletas de violência, sangue e desespero, para depois proferir um
discurso raso sobre segurança pública, incentivando o público na busca por
vingança contra a criminalidade, seja pelas próprias mãos ou através do
recrudescimento do sistema penal. Na verdade, programas desse tipo servem
como embriões dos movimentos de lei e ordem que cada vez mais ganham as
ruas com suas demandas vazias, desconsiderando completamente a
complexidade do fenômeno criminal, mas que acabam sendo encampadas
nas plataformas de alguns políticos interessados nos votos dos cidadãos
inseguros. Tendo ciência de que os meios de comunicação influenciam no
processo de significação do mundo, ou seja, na construção social da
realidade, e que assim determinam o comportamento dos indivíduos nos
processos de interação social, é importante compreender também o
funcionamento desse processo cognitivo. Aqui é necessário alertar para o
fato de que os meios de comunicação não possuem capacidade de produzir
efeitos diretos no que as pessoas irão pensar e como irão agir, mas sim sobre
os assuntos que elas entenderão como importantes e deverão se colocados
em suas pautas de discussão, sobre os quais deverá haver um consenso
388
(BUDÓ, 2013:82-83). Tal processo é claramente explicado pela teoria do
agenda-setting, que desvela os meandros da relação entre os meios de
comunicação de massa e as relações sociais, ou melhor, demonstra que a
agenda midiática é quem definirá os assuntos discutidos pelas pessoas e,
consequentemente, pautados na agenda pública (MARTINO, 2014:207).
Assim, com o impulso proporcionado pelo seu agendamento diário na
mídia, o tema criminalidade ganha às ruas a cada novo delito e, com o
auxílio dos formadores de opinião, acaba ganhando espaço no senso comum
onde magicamente as soluções para os problemas da criminalidade parecem
estar prontas, ironicamente esperando apenas um homem público honesto e
de boa vontade para colocá-las em prática. O grande problema é que as
percepções sobre a criminalidade que pairam no imaginário social
encontram-se vinculadas ao legado deixado pela criminologia positivista,7 ou
seja, em uma concepção determinista que reduz a complexidade do
fenômeno crime e se apóia principalmente na figura do criminoso nato que,
evidentemente, recebe o status de inimigo. O modo como os mass media
tratam o tema da criminalidade, sobretudo no que diz respeito à exposição
dos acusados, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, pois
acaba desrespeitando diversos direitos e garantias como, por exemplo, a
presunção de inocência, considerando que afirma abusivamente a culpa dos
suspeitos antes mesmo de que uma sentença sobre o caso tenha sido
proferida. No que tange aos graves prejuízos causados pelos meios de
comunicação aos indivíduos suspeitos, Budó referiu que: “A pena instituída
pelos meios de comunicação é a execração pública do suspeito ou acusado, a
violação de sua imagem, honra, estado de inocência, sua estigmatização, de
forma irrecuperável.”(BUDÓ, 2013:116).
Em suma, é possível afirmar que em nosso tempo a mídia dissemina
medo e insegurança no tecido social, o que produz reflexos extremamentes
negativos, uma vez que, em pânico, a sociedade amedrontada acaba
392
(…) Não é a ameaça real da criminalidade e da violência que constitui
o fator decisivo para a política de segurança pública, e sim a
percepção de tal ameaça pela coletividade. Estes sentimentos de
ameaça dominam a população, são canalizados para reivindicações
de imediato arrocho nos meios coercitivos e tornam o relaxamento
dos direitos fundamentais bem como a sua corrosão pelo Estado não
só toleráveis como objeto de exigência da população. (...)
8 Artigo 310, II da Lei 12.403/11: “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá
fundamentadamente: [...] ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando
presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou
insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; [...]”.
9 Artigo 282, I e II da Lei 12.403/11: “As medidas cautelares previstas neste Título deverão
395
4. O INFLUÊNCIA DA MÍDIA NAS DECISÕES JUDICIAS QUE DECRETAM
A PRISÃO PREVENTIVA
397
legitimar demandas cada vez maiores por segurança” (BOLDT, 2013:1998).
São essas emoções que conferem legitimidade ao processo de governo
através da criminalização da pobreza presente em nosso meio social, que
possui seu local privilegiado nos decretos de prisão preventiva.
Como a dinâmica do medo perpassa todo o meio social, também é
possível auferir que essa emoção atinge a percepção de muitos magistrado
sobre o crime e a criminalidade. Por esta razão, o constante agendamento de
histórias sobre a questão criminal pelos meios de comunicação acaba
influenciando, no mínimo inconscientemente, os juízes em suas decisões
judiciais. Pode-se notar isso na rotineira utilização de fundamentos que
remetem à ordem pública, como a argumentação com base no “clamor
social”, na “paz pública”, na “reiteração delitiva”, “na preservação das
instituições”, na “credibilidade da justiça”, entre outros (WEDY, 2013).
Tratam-se de argumentos fundados em uma retórica vazia que se presta
simplesmente a justificar o decisionismo judicial (STRECK, 2011) que
pretende assumir as funções típicas dos agentes de segurança pública.
A sensação de insegurança faz que vejamos no outro todas as causas
dos males sociais e os magistrados não se excluem desta lógica. Sob o
domínio do medo e da pressão midiática os juízes buscam dar uma resposta
à sociedade sob os problemas da criminalidade e acabam banalizando a
utilização da prisão preventiva, que deveria ser a ultima ratio das medidas
cautelares, e atuando como se fizesse parte do aparato da segurança
pública, ignorando seu papel constitucional de garantidor dos direitos
fundamentais. O imaginário coletivo que crê cegamente nos discursos vazios
da impunidade, de que ninguém vai preso no país, clama por punições
imediatas e não consegue compreender a necessidade da realização do
processo para comprovação da culpabilidade do réu, com o devido respeito
ao due process of law. A prisão preventiva, nesse cenário, acaba servindo
como um dispositivo jurídico-político que antecipa a penalidade e joga
apressadamente os acusados nos espaços de exceção que são nossos
presídios.
398
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
399
BOLDT, Raphael. Criminologia Midiática: Do Discurso Punitivo à Corrosão
Simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
400
LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: Ensaios Sobre o Individualismo
Contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.
402
O DIRETO FUNDAMENTAL À SAÚDE E A REALIDADE NA OBTENÇÃO
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO
1. INTRODUÇÃO
¹Cf. a Lei 8.080, de 19.09.1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
409
4. A GRANDE RELEVÂNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO
SISTEMA PRISIONAL
3O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, apesar de ter sido revogado, ainda
hoje serve de referência para ações no âmbito da saúde prisional.
4Relatório Azul – Garantias e Violações dos Direitos Humanos, 2002/2003, da Comissão de
414
padrões de saúde física e mental. (COYLE, 2002)
415
articulação variam segundo níveis de desenvolvimento dos países, sua
história urbana, sua cultura e suas instituições. (BORJA, CASTELLS – 1997)
Nesta abordagem, a globalização traz uma visão simplificada de
abertura e unificação dos espaços da reprodução social. Ocorre uma nova
hierarquização dos espaços, segundo as diferentes atividades, envolvendo
tanto globalização como formação de blocos, fragilização do Estado-nação e
surgimento de espaços subnacionais fracionados de diversas formas. A
globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim
de século, além de uma dinâmica diferenciada na articulação para
solucionar problemas contemporâneos. (DOWBOR – 1995)
Na formulação de Milton Santos, "o que globaliza separa; é o local que
permite a união". Assim, em uma dimensão extremamente prática deste
processo, o exemplo cotidiano do dilema da solidariedade é o mais comum
na sociedade contemporânea. Não que o ser humano seja menos solidário na
atualidade, mas a humanização do desenvolvimento, ou a sua re-
humanização, passa pela reconstituição dos espaços comunitários. A própria
recuperação dos valores e a reconstituição da dimensão ética do
desenvolvimento exigem que para o ser humano o outro volte a ser um ser
humano, um indivíduo, uma pessoa com os seus sorrisos e suas lágrimas.
Este processo de reconhecimento do outro não se dá no anonimato e o
anonimato se ultrapassa no circuito de conhecidos, na comunidade, no
espaço local. (DOWBOR – 1995)
Contudo, não é suficiente o alargamento das competências do poder
local para que se construa um direito social que permita uma nova e
qualificada relação entre o Poder Público e a sociedade. É preciso uma
modificação estrutural nas próprias estratégias de gestão do espaço local, a
fim de que uma nova interpretação da repartição de competências esteja
agregada a um processo de democratização das decisões públicas, evitando-
se, com isso, que o espaço local seja apenas a repetição, em escala menor,
dos processos de legitimação próprios da sociedade de massas, cujas críticas
devem ser consideradas nesta (re)ordenação do espaço público. (HERMANY –
2007)
Os espaços locais podem abrir uma grande oportunidade para a
416
sociedade retomar as rédeas do seu próprio desenvolvimento. Todavia, não
somente as iniciativas locais são suficientes, pois sem sólidas estruturas
locais participativas e democratizadas, não há financiamentos externos ou
de instituições centrais que produzam resultados. De certa forma, o espaço
local está recuperando gradualmente um espaço de decisão direta sobre a
"polis", recuperando a dimensão mais expressiva da política e da
democracia. (DOWBOR – 1995)
Ultrapassando a tradicional dicotomia entre o Estado e a empresa, o
público e o privado, surge assim com força o espaço público comunitário,
enriquecendo as opções de resolução de problemas. Em outros termos, o
espaço local aparece hoje como foco de uma profunda reformulação política
no sentido mais amplo, já que o nível local de organização política não
substitui transformações nas formas de gestão política que têm de ser
levadas a efeito nos níveis do Estado-nação e mundial, mas comunidades
fortemente estruturadas podem constituir um lastro de sociedade organizada
capaz de viabilizar as transformações necessárias nos níveis mais amplos.
(DOWBOR – 1995).Nesta conjuntura:
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
418
uma sociedade hodierna, houve tantas possibilidades de inclusão, e,
consequentemente, nunca se teve tanto “direito a ter direitos”. Todavia, o
acesso permanente a estes mecanismos inclusivos, na maioria das vezes,
acontece justamente pela exclusão, ou então, pelo não acesso. (VIAL – 2005)
É a partir desta perspectiva que podemos pautar nosso estudo, o qual
objetivou delinear o acesso ao Direito à Saúde conferido à população
prisional, pontuando a importância do espaço global para a resolução de
problemas locais. É, pois, de fundamental relevância que se comece a pensar
nestas questões, mais especificamente em políticas públicas locais que
sejam capazes de proporcionar alternativas e promover mecanismos que
realmente, de fato e de direito, possibilitem o acesso ao direito à saúde.
Assim, ainda nos dias atuais, o status que o sistema prisional assume
na sociedade é o de caráter exclusivamente punitivo, esquecendo que antes
de tudo o sistema deve preparar para o “retorno a vida livre”, de forma que
este indivíduo possa passar a integrar novamente a sociedade na qualidade
de cidadão. Contudo, não buscamos aqui julgar os detentos e seus crimes,
tão pouco a falência do sistema carcerário, mas sim conhecer os
mecanismos que proporcionam o acesso ao Direito à Saúde, o qual está
intimamente ligado à vida.
Neste sentido, é justamente no espaço local que a sociedade hodierna
irá encontrar alternativas e possibilidades para a atuação em direção à
busca de mecanismos de controle social que permitam a “compatibilidade da
sociedade de fluxos com a concretização do princípio da cidadania e da
dignidade da pessoa humana. ” (HERMANY – 2007)
Nos dias de hoje, falar em “acesso ao direito à saúde” é sinônimo de um
pensamento que nos remete à ideia de implementação e busca da
consolidação dos direitos das pessoas enquanto seres humanos, dignos de
exercerem seus direitos e também de cumprirem seus deveres. Nesta
conjuntura está o detento, o qual é visto por grande parte da sociedade como
“não sujeito de direito” e, portanto, sem direito ao acesso a determinados
serviços, como a saúde.
Temos, assim, uma sociedade que inclui todos somente porque também
é capaz, ao mesmo tempo, de excluir os ditos incluídos. Logo, a diferença
419
entre inclusão e exclusão se refere ao modo pelo qual uma sociedade
consente aos indivíduos serem pessoas humanas ou, de uma outra forma,
de participarem do sistema universal de comunicação e consequentemente
da sociedade, o que significa que o binômio inclusão/exclusão assumem
formas diversas nas diferentes etapas evolutivas,(VIAL, CAON, MIETTO –
2004) calcançando também as articulações existentes no espaço local
enquanto proposta de ampliação do espaço de controle da sociedade sobre
as decisões públicas, ressaltando aqui a concretização dos princípios
constitucionais.
Finalizando, podemos dizer que o acesso ao Direito à Saúde, no que
tange a população prisional, representa não só um desafio, mas também
uma perspectiva no direito sanitário enquanto instrumento para políticas
públicas de inclusão social no espaço local. Logo, podemos dizer que as
questões que envolvem esta população têm dimensões globais, uma vez que
abarcam problemas que acometem inúmeros países. Entretanto, a busca de
alternativas e mecanismos que solucionem não só a carência de articulações
em direção ao acesso ao direito à saúde, mas também toda a problemática
do sistema prisional na sociedade contemporânea, está justamente na esfera
local, a qual é capaz de construir e desenvolver estratégias de acordo com
sua realidade, ampliando a concretização dos direitos sociais,
essencialmente do princípio da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
420
BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global – a gestão das cidades na
era da informação. Madrid: Santillana, 1997.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução penal. 10. ed. São Paulo: Atlas S. A.,
2002.
MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas S. A.,
2001.
421
MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses
transindividuais– O Estado e o direito na ordem contemporânea. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed.
São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
422
A TUTELA DO DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA PENITENCIÁRIO
BRASILEIRO
1. INTRODUÇÃO
Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ.
Especialista em Direito Público pela Verbo Jurídico. Bacharel em Direito pela Universidade
Luterana do Brasil – ULBRA. Bolsista PROSUP/CAPES.
423
assegurado de forma efetiva, ainda que a realidade fática apresente
limitações, porém sempre resguardando a necessária estima e respeito que
todas as pessoas – ainda que em estado de privação de liberdade – merecem
enquanto seres humanos.
Diante do exposto, através da pesquisa dedutiva e bibliográfica, este
artigo visa a analisar a efetividade da atuação do Estado, frente ao Sistema
Prisional, na aplicação das leis e Portarias Interministeriais que serão
estudadas. Além do que determina a Carta Magna de 1988, busca-se, aqui, o
estudo das leis que garantem o acesso à saúde no sistema penitenciário
brasileiro, ou seja, a Lei de Execução Penal (n.º 7. 210, de 11 de julho de
1984 – LEP), a Lei Orgânica da Saúde (n.º 8.080 de 19 de setembro de 1990,
que contempla o Sistema Único de Saúde – SUS), bem como as Portarias
Interministeriais n.º 1.777, de 09 de setembro de 2003, e n.º 1, de 02 de
janeiro de 2014.
É fato público e notório que o dever de prestação da garantia
constitucional de acesso à saúde por todos os indivíduos tem se mostrado
uma tarefa hercúlea ao Estado brasileiro, encontrando ainda maiores
obstáculos no que tange ao sistema prisional.
Para desenvolver este trabalho propôs-se o seguinte problema: Existem
políticas públicas implementadas pelo Estado para a garantia do direito de
acesso à saúde no âmbito prisional e se são suficientes para cumprir seu
mister? Como hipóteses prováveis se apresenta uma assertiva positiva, no
sentido de que há políticas estatais empregadas na tutela do direito à saúde
realmente efetivas em seu desiderato; entretanto, agora sob o viés negativo,
apesar de terem sido editados dispositivos legais em favor da manutenção
das condições mínimas de saúde para os indivíduos privados de liberdade,
como se verá no decorrer do estudo, as mesmas não apresentam resultados
mínimos para satisfazer esse direito fundamental.
Por meio deste trabalho acadêmico, espera-se abordar uma temática
de relevante importância no cenário brasileiro atual, bem como destacar a
importância de ações que garantam o direito à saúde dos apenados e
estimular a criação de novas práticas, visando à consolidação do acesso à
saúde no sistema penitenciário no Brasil.
424
Assim, a partir da problemática apresentada pelo Sistema
Penitenciário Brasileiro e da legislação referente ao acesso à saúde no
âmbito prisional, bem como a atuação do Estado como garantidor desse
direito - fundamento do presente trabalho –, torna-se imprescindível um
breve estudo da situação atual do referido sistema.
4 Neste período, as informações ainda eram consolidadas de forma lenta, já que não havia
um mecanismo padrão para consolidação dos dados, que eram recebidos via fax, ofício ou
telefone.
5 Aqui se utiliza a distinção entre o plano do ser e do dever ser proposta por Hans Kelsen em
sua obra Teoria pura do direito na qual a conduta humana, o ser, somente assume
significação jurídica quando coincide com uma previsão normativa válida, o dever ser. Ao
passo que a conduta humana pode se conformar ou contrariar uma norma – o que permite
uma valoração da mesma como positiva ou negativa – as normas, por sua vez, são
estabelecidas através de atos de vontade humana, possuindo, portanto, valores arbitrários e
relativos (KENSEN, 2006).
6 Tal relatório INFOPEN é o documento oficial que contém os dados mais atualizados sobre a
matéria. Tomando como data-base o mês de junho de 2014, oferece informações completas
para subsidiar administração do Sistema Penitenciário Nacional, sintetizando os dados dos
estabelecimentos penais dos estados com o objetivo de contribuir para um diagnóstico da
situação prisional do país (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015).
428
problemas estruturais e sistêmicos que evidenciam a situação de deficiência
crônica do sistema prisional brasileiro, fato que não é exceção, pois está
presente em todo o país.
Com relação a essas violações, Carvalho (2002, p. 212) ressalta que o
fenômeno da inobservância dos direitos da pessoa presa, por parte da
administração pública, é uma das realidades mais notórias no país, sendo
que inúmeros estudos empíricos demonstram o afirmado.
Para Viana (2012), o maior de todos os problemas enfrentados pelo
sistema carcerário brasileiro, refere-se à questão da superlotação e que não
apresenta uma solução em curto prazo, pois o que existe são várias
discussões com vistas a tentar elucidar este problema. Desta forma, pode-se
perceber que a prisão torna-se um espaço de punição excessiva, e a exclusão
surge através da condição a que os apenados são submetidos. Devido à
superlotação das celas e das instalações insalubres, os apenados estão mais
predispostos ao contágio de doenças, haja vista não haver um amparo firme
acerca deste direito.
Schmidt (2003, p. 278) refere que, de modo geral, o preso se encontra
em “situação social e jurídica bem mais grave do que qualquer pessoa que
viva em liberdade”. Além disso, a restrição da liberdade impede o preso de
“satisfazer, pelas próprias possibilidades, as suas necessidades vitais, como
a proteção à saúde, de sua segurança”, entre outros aspectos.
Como explica Bitencourt (2002), a essência do regime prisional é o fato
de possibilitar ao recluso reincorporar-se à sociedade antes do término da
condenação. A meta do sistema tem dupla vertente: de um lado pretende
constituir um estímulo à boa conduta e à adesão do recluso ao regime
aplicado e, de outro, pretende que este regime, em razão da boa disposição
anímica do interno, consiga paulatinamente sua reforma moral e a
preparação para a futura vida em sociedade.
Para Schmidt (2003, p. 280), o ambiente mais “dessocializador possível
é o próprio cárcere, já que boa parte das casas prisionais brasileiras não
possui condições mínimas de salubridade”. Outro aspecto a ressaltar,
segundo o autor, é o índice de doenças como a AIDS, o qual é elevadíssimo,
chegando, em alguns locais, a atingir quase 20% dos apenados, além da
429
superlotação que é evidente.
Nessa tendência, cabe mencionar de forma mais detalhada a falta de
estrutura física, ou seja, as más condições das celas a que os apenados são
obrigados a manterem-se durante o cumprimento de suas respectivas penas.
Está na Constituição Federal, assim como nas demais leis, que é dever do
Estado garantir condições higiênicas, salubres de habitação para os
apenados, bem como assegurar que os detentos tenham alimentação e
vestuário.
Quanto às condições da cela, Schmidt (2003, p. 292) descreve que:
6. CONSIDERÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
_____. (Org.) Pena e Garantias. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen
Juris. 2003.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
______. Execução penal, comentários à Lei 7.210 de 11-7-84. 11. ed. São
441
Paulo: Atlas, 2004.
TELES, Ney Moura. Direito Penal; Parte Geral – I. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2006.
442
ANÁLISE BIOPSCICOSSOCIAL DO USO DE ALGEMAS: CONFLITO ENTRE
A LEI E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1. INTRODUÇÃO
1Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Pós Graduanda em Direito
Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER. Aluna especial do
Mestrado em Direitos Humanos da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul - UNIJUÍ.
443
casos onde há fundado risco e perigo à sociedade, é primordial para garantir
a efetividade humanística do princípioda dignidade da pessoa humana.
Todavia, a partir de interpretações quanto à aplicabilidade da Carta Magna
(subjetivadas no conceito de ser humano e dignidade humana) procura-se
superar a inflexibilidade vinculada aodireito penal.
Relacionando a subjetividade psicológica e o meio social em que está
inserido o indivíduo, aborda-se a utilização do uso de algemas nos aspectos
onde o coletivo prepondera sobre o interesse individual. Por outro lado,
analisa-se a aplicabilidade do objeto como afronta ao princípio da dignidade
da pessoa humana e os possíveis danos psicológicos oriundos da inserção do
autor do delito no sistema criminal. Contudo, o próprio Estado, como
garantir da proteção de todos, não pode ser o violador do garantido princípio
da dignidade da pessoa humana, devendo o objeto ser utilizado somente
quando a necessidade se fizer – na supremacia do interesse público sobre o
particular.
2. DESENVOLVIMENTO
444
Contudo, a algema traduz na totalidade o bloqueio no agir -
resumidamente, é um instrumento persecutório de limitação dos
movimentos físicos.
Após períodos sombrios onde a humanidade provou dissabores e
atrocidades acerca de punições e métodos de tortura, surge o Iluminismo,
comandado por filósofos como Immanuel Kant, Rosseau, Voltaire e John
Locke. A ideia é renascentista, transformar radicalmente os ideais,
separando a razão e a fé, excluindo conceitos inquisitórios de que Deus é o
centro do Universo, abrangendo caráter humanista e individual.
Esta caracterização mais humanística consagra o Direito Penal à
época, onde o cerne do movimento foi identificar o direito propriamente dito,
ou seja, o poder foi transferido da Igreja para o Estado, para que este
exercesse o direito através da Lei.
De acordo com PITOMBO (1985, p.276), o caráter da prisão e o
contexto do uso ilimitado de algemas é difundido para o “uso de necessidade
extrema”. Desta forma, novos parâmetros de Lei e direitos do homem
consagram este período renovador.
Mundialmente o uso de algemas tomou forma “extraordinária”,
utilizado somente para casos extremos de periculosidade. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, presume a inocência do indivíduo
e o caráter abusivo do uso desenfreado das algemas.
2www.direitoshumanos.usp.br/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.Acesso
em 30/08/2015.
445
estaria proibido”.
Nesta perspectiva, a Lei de 26 de dezembro de 1841, reformadora do
Código de Processo Penal, deixou intocado o artigo 180, oriundo do Código
de 1832. Somente em 1871 foi promulgada a Lei nº 2033 que veda
expressamente “o deslocamento do preso com ferros, algemas ou cordas,
salvo em caso de extrema segurança, que deveria ser justificada pelo
condutor, sob pena de multa”.
A doutrina de MIRABETE (2004. P.834) narra que ainda no período
Imperial, quando vigoravam as ordenações filipinas e leis avulsas, o Decreto
nº 4.824 de 22-11-1871, consignava expressamente o apenamento daquele
representante estatal que utilizasse desnecessariamente, na condução do
preso, instrumentos como cordas, algemas ou ferros.
Ainda, caracterizando o uso de coerção física a época, ACOSTA
(1955.p.93) demonstra que era vedado o emprego de força na efetivação da
prisão, salvo o indispensável para conjurar a resistência ou a tentativa de
fuga do preso.
A Lei n° 7.210 (11 de julho de 1984), que instituiu a Lei de Execução
Penal (LEP) no sistema brasileiro, em seu artigo 199 prevê que “o emprego de
algemas será disciplinado por decreto federal”. Ou seja, depende de
regulamentação complementar para disciplinar seu uso no âmbito nacional.
Com efeito, as algemas representam para o Direito Penal, além de um
instrumento de força, uma forma de repressão e coerção do Estado,
tornando-se, muitas vezes, o símbolo maior de humilhação do homem.
Importante ressaltar as sábias lições de NUCCI a respeito do uso da
força e algemas:
446
Acerca da matéria envolvendo o uso de algemas e suas limitações, a
legislação brasileira destaca-se nos seguintes embasamentos:
De fato, a dignidade não pode ser alvitada pelo poder estatal, quando
se enfatiza, em nível mundial, o respeito aos direitos da pessoa
humana, tornando inaceitável a conduta abusiva fundada no aspecto
negativo do poder de mando. O uso de algemas, contudo, se justifica
em alguns casos. O simples ato de algemar, por si só, desde que
necessário, justificado e moderado, decorrendo de uma prisão
legalmente imposta, nenhum abuso perfaz. (HERBELLA, 2008. p.19)
448
norma não poderá desfigurar o sentido acerca da gravidade da situação,
ignorando direitos ou ultrapassando os limites que a Constituição confere.
São estes direitos de defesa que originam a perspectiva clássica de que o
Estado é um adversário da população – pela falta de qualidade na segurança
pública os cidadãos não observam a face do Estado no sentido de guardião
dos direitos públicos. Neste aspecto, TEPEDINO caracteriza o ser humano e
as relações sociais como a alavanca da atividade estatal.
5 Supremo Tribunal Federal, julgamento HC 95.886/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – STF.
450
abuso, pois não existe o dolo específico de expor ou humilhar. Não resta
dúvida de que o agente de autoridade, independentemente de sua natureza,
quando procede ao ato de algemar, está exercendo o poder de polícia a ele
conferido. Todavia, não se admite a utilização da força além da necessária
para efetivar a prisão ou conduzir o detento, sendo que “não se concebe, por
exemplo, que, em caso de resistência passiva, o soldado faça uso do
cassetete. O que passar do indispensável sujeita o infrator as penas da lei”.
O Código de Processo Penal em seu artigo 292 narra que, se houver,
ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à
determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o
auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para
vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas
testemunhas.
Neste sentido completa HERBELLA (2008.p.143) ao solidificar que o
“uso nocivo das algemas provoca o estrangulamento dos pulsos,
ocasionando enormes danos à saúde(...)”.
Julio Fabbrini Mirabete assevera que estão proibidos os maus-tratos e
castigos que, por sua crueldade ou conteúdo desumano, degradante,
vexatório e humilhante, atentam contra a dignidade da pessoa, sua vida, sua
integridade física e moral.
Ainda que seja difícil desligar esses direitos dos demais, pois dada
sua natureza eles se encontram compreendidos entre os restantes, é
possível admiti-los isoladamente, estabelecendo, como faz a lei, as
condições para que não sejam afetados. Em todas as dependências
penitenciárias, e em todos os momentos e situações, devem ser
satisfeitas as necessidades de higiene e segurança de ordem
material, bem como as relativas ao tratamento digno da pessoa
humana que é o preso.(MIRABETE,2007.p.119)
455
transgridem a lei, e seus pais não sabem como fazer para ajudá-los
uma vez que não contam com o apoio de outras instituições do
Estado (de educação e de saúde, por exemplo).A subjetividade é a
síntese singular e individual que cada um de nós vai construindo
conforme vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da
vida social e cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado,
por ser única, e nos iguala, de outro lado na medida em que os
elementos que a constituem são experienciados no campo comum da
objetividade social. Esta síntese – a subjetividade - é o mundo de
ideias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a
partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua
constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações
afetivas e comportamentais" (BOCK; FURTADO e TEIXEIRA, 1999, p.
23)
456
atingimos a finalidade do sistema de proteção dos direitos
fundamentais: uma proteção eficiente (enquanto não suficiente e não
excessiva). Logicamente, entre esses pontos extremos (limites
máximo de intervenção e mínimo de proteção) existe um elevado
espaço de liberdade de configuração do legislador, dentro do qual a
solução não é constitucionalmente pré-determinada, e cujo
preenchimento, por essa razão, é deixado ao plano da legislação.
(FELDENS,2012.p.168)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
459
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Sites:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=12
20
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
%C3%A0 cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-
at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html
460
O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE
VALORAÇÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO1
Gabriel Maçalai2
Patrícia Borges Moura 3
1. INTRODUÇÃO
466
dogmas, rituais, ensinamento dos sacramentos e crenças católicas” (THUMS,
2006, p. 215). Ademais, as penas mais graves eram destinadas aos
opositores e hereges, que poderiam ameaçar o sistema, enquanto que
assassinos, ladrões e outros delinquentes poderiam até obter perdão. Já os
hereges estavam sujeitos à pena de morte, banimento, confisco de bens (que
deveriam migrar para o patrimônio eclesiástico), dentre outras. A pena
corporal, a infligir dor e sofrimento, era largamente utilizada. Blasfemadores,
adivinhos e videntes estavam sujeitos à mesma punição.
Corforme Thums (2006), a Inquisição já era comum no meio católico,
porém, com éditos de perseguição aos hereges no império romano, proferidos
por Frederico II, inaugurou-se o “Santo Tribunal” no meio secular que, como
dito, não diferenciava delitos de pecados. Tanto é que num primeiro
momento os nomes dos hereges eram lançados em editais, para que se
apresentassem de maneira voluntária. Com o arrependimento, seriam
excomungados e logo entregues às autoridades reais, que eram as
autoridades seculares, as quais aplicariam a pena, como a queima nas
fogueiras, dentre outras. Todavia, aqueles que não se entregavam, eram
capturados e torturados para que confessassem o crime de heresia do qual
eram acusados, para então sofrerem as condenações devidas. Assim, fica
evidenciada a aplicação da prática do sistema inquisitorial, em que as provas
são colhidas desde o início do procedimento, e as funções de investigar,
acusar e julgar estão concentradas numa única pessoa que, na época, tendo
em vista o caráter transcendental que se atribuía ao julgamento, gastava
mais tempo com cerimoniais do que com o julgamento específico.
Aos poucos, novamente, a sociedade muda. Mudança esta
impulsionada pela Reforma Protestante e pelos ideais do Iluminismo,
abandonando-se, paulatinamente, a dominação religiosa da Idade Média.
Desta forma, passa-se a falar novamente no processo acusatório, buscando
garantir a observância dos direitos humanos, do contraditório e da ampla
defesa, ou mesmo em sistemas mistos (também tidos como acusatórios
formais), os quais perduram até hoje em alguns países, a exemplo, a França
e a Espanha:
467
De efeito, à época da edição do Código de Napoleão - Code
d’Instruction Criminelle (1808), como forma de aplainar as
arbitrariedades e desumanidades do Sistema Inquisitorial até então
adotado, entrou em vigor na França uma estrutura processual do
tipo misto - inquisitivo e acusatório, reforçada com o Códe de
Procédure Pénale (1959), realizando-se o processo em três fases: a da
Polícia Judiciária, a da Instrução e a do Julgamento. Os princípios
do sistema inquisitivo eram aplicados na fase de instrução
preparatória, em que o Magistrado desenvolvia, por escrito,
secretamente, sem contraditório e sem defesa, as investigações
processuais. Na fase de Julgamento, o processo assumia princípios e
regras do sistema acusatório, primando pela oralidade, publicidade e
contraditório. (LAGO, 2015, p. 12).
468
religião. Ela continua existindo, mas possui um locus de atuação próprio,
deixando assim os dogmas e a fé ocuparem um espaço próprio, enquanto o
Estado possui outro.
Esta separação Religião-Estado é o que entendemos como
secularização. MARRAMAO (1994, p. 19) aponta que
469
deixaram de ser unicamente Católica, Reformada, Anglicana e Protestante,
passou-se a criar novas e diversas religiões, entrando na fase da “História da
Igreja” que se denominou de “denominacionalismo” (BOSCH, 2002).
Neste período, com grande base no Iluminismo, surgem os ideais
sociais de igualdade, fraternidade e liberdade. Neste caso, igualdade refere-
se à “inexistência de desvios ou incongruências sob determinado ponto de
vista” (D’OLIVEIRA, 2015, p. 7). Numa concepção política, diz respeito à
ausência de diferenças entre direitos e deveres com relação aos membros de
uma mesma sociedade. Juridicamente, é entendida como “uma norma que
impõe tratar todos da mesma maneira os que estejam na mesma situação de
igualdade e desigualmente os que se encontrem em situações diferentes”.
(D’OLIVEIRA, 2015, p. 7).
Fraternidade carrega consigo a ideologia de irmandade, fortalecendo
ainda o conceito de igualdade, no sentido de que entre irmãos não há
possibilidade discriminação, por serem descendentes e semelhantes, ou
melhor, iguais. A liberdade, portanto, é concebida em relação à dignidade de
direitos. (D’OLIVEIRA, 2015).
Logo, não era mais possível condenar aqueles que tinham uma fé
diferente por crimes religiosos, visto que estavam abarcados pela mesma
crença, e as crenças não vinculavam mais o indivíduo como antes. Assim,
para uma condenação justa, seria preciso permitir que todos tivessem a
mesma oportunidade de fala e expressão e direito ao contraditório,
impedindo a vigência dos tribunais de exceção.
Assim, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em
seu primeiro artigo sintetiza o que já pontuava a História, in verbis, “todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados
de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade”. Ou seja, são direitos básicos de todo ser humano: a liberdade
e a igualdade, expandindo-os para os processos judiciais (D’OLIVEIRA,
2015).
Nesse aspecto, Almeida (2015) afirma que:
4 A exemplo, o previsto no art. 156, do CPP que, mesmo pós-reforma de 2008, cuja
pretensão difundida seria uma adequação da legislação infraconstitucional ao modelo
acusatório e garantista, ainda atribui ao juiz a possibilidade de determinar a produção
antecipada de provas na fase investigatória, ou mesmo ordenar, de ofício, no curso da
instrução, diligências probatórias.
472
4. O PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO E O PODER JUDICIAL DE
VALORAÇÃO DA PROVA: o modelo brasileiro
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
477
em: 26 ago. 2015.
ALVES, Rubem Azevedo. O que é religião. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
478
________. Direito processual penal e sua conformidade constitucional.
Vol. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
479
OS REFLEXOS DA MÍDIA NO PROCESSO PENAL INQUISITORIAL
BRASILEIRO
1.INTRODUÇÃO
2. O SISTEMA INQUISITORIAL
481
medievais com o redescobrimento e revitalização no século XII pela
Universidade de Bolonha, do Corpus Iuris Civilis, também conhecido por
Código de Justiniano, que se trata de um conjunto de compilações jurídicas,
publicado entre os anos de 529 e 534 D.C por ordens do imperador
bizantino Justiniano I, o qual servia de base ao Direito Romano. Beccaria
(1997), discorrendo sobre o Corpus Iuris Civilis, afirma que estas leis, por
assim dizer, não passavam de uma compilação repleta de comentários
obscuros e opiniões relativas a uma Europa antiga e desatualizada.
O clero, se aproveitando do Corpus Iuris Civilis, nele escorou sua
organização com vistas a desenvolver sua teocracia radical. Salo de Carvalho
(2005) destaca algumas características encontradas neste novo método
inquisitorial, sejam elas:
485
sobre o arquivamento do inquérito policial – do qual não é coator.
Aury Lopes Jr. (2012) levantou alguns pontos da investigação no
processo penal que precisam ser revisitados e redefinidos. O autor afirma
que, acima de tudo, é preciso determinar a função e esfera de atuação do
juiz na parte investigativa, sempre o mantendo longe de qualquer iniciativa
investigatória: o juiz deve sempre atuar como garantidor da máxima eficácia
dos direitos fundamentais do imputado, razão pela qual não pode, jamais,
ser o investigador – o que é concebido no processo penal inquisitório.
Essas críticas ao Direito e ao Processo Penal são ponderadas na ótica
do Neoinquisitorialismo, campo de estudo que procura discutir não só o
procedimento penal, como a mentalidade e a cultura inquisitória instalada
na sociedade contemporânea.
Logo, a fim de aventar o fenômeno da criminalidade e o modo usado
pelo processo penal para reprimi-lo, importante que se comece pela definição
do modelo processual vigente. Embora seja aceito por grande parte dos
doutrinadores que o sistema processual penal brasileiro é misto, ainda há
divergência entre os estudiosos.
NUCCI (2010) entende que o sistema processual penal brasileiro é
misto, na medida em que seus principais focos são constitucional e
processual. Ou seja, margeados pelo que dispõe a Constituição Federal de
1988, estamos diante de um sistema acusatório, haja vista os princípios
abarcados na Carta Magna. Por outro lado, os procedimentos existentes no
Código de Processo Penal são elaborados sob uma ótica claramente
inquisitiva.
Entretanto, MIRABETE (2005) considera que o modelo processual
penal brasileiro é exclusivamente acusatório, uma vez que este é assegurado
pela Constituição Federal, a qual estabelece o contraditório e a ampla defesa
através de seus determinados recursos.
Certos doutrinadores contemporâneos – com os quais nos
posicionamos, apontam que a diferenciação destes dois sistemas processuais
é determinada pelo critério de gestão da prova. Ora, se a principal finalidade
do processo é reconstituir crime pretérito a fim de que se monte instrução
probatória, é na gestão da prova que se pode identificar o princípio
486
unificador – dispositivo ou inquisitivo (COUTINHO, 2010).
Aury Lopes Jr. (2012), por exemplo, considera que, embora
importantes, as funções do julgador são secundárias e insuficientes para
que se dite, ou se adeque, determinado modelo acusatório.
Esta discussão é de extrema relevância, pois, em que pese seja
consenso de que o sistema penal acusatório sustentando pela Constituição
Federal deva ser adotado, os legisladores continuam legislando ao revés, sem
aterem-se aos princípios constitucionais, e pior, tentam mudar a Carta
Magna, inclusive no que tange às cláusulas pétreas, como demonstram as
recentes propostas de emenda à constituição que propunham reduzir a
maioridade penal.
Salo de Carvalho (2005) afirma que o Direito Penal e Processual Penal
passou por um processo de laicização, principal diferença no sistema
inquisitorial medieval, o qual era completamente fundado e regulamentado
por preceitos religiosos. O autor questiona, todavia, se isto foi suficiente para
superar a lógica inquisitorial medieval, incrustrada na cultura da sociedade.
Já no ano de criação da nossa Carta Magna, o então Ministro do
Tribunal Federal de Recursos, Francisco de Assis Toledo (1988) fez
apontamentos inteligentes e de extrema relevância quanto às falhas
existentes no Código Penal Brasileiro:
487
de regimes totalitários de direita, cujas principais formas de expressão eram
o fascismo italiano e o nazismo alemão. Aliando-se estas diretrizes ao caráter
inquisitivo processual herdado pela era medieval, não é de se estranhar que
a política criminal trazida por essas leis tenham absorvido o caráter
repressivo e intervencionista vivido na época, consolidando na população o
desejo de repressão acima de qualquer prevenção.
489
crime violento através do medo que este causa, entoando discursos
medievos, intervencionistas e brutalmente repressivos de combate à
criminalidade, os quais se difundem e conquistam a simpatia da população.
O próprio candidato escolhido, então, perpetua a cultura inquisitória
em que nos encontramos, além da ira e do desejo por vingança. Em que pese
o Direito e o Processo Penal tenham sido revisitados e rediscutidos
incansavelmente ao longo dos anos, acompanhados de denúncias totalitárias
e inquisitórias, parece faltar, nestes estudos, uma abordagem criminológica
e sociológica contemporânea, que leve em consideração a cultura e os
anseios do cidadão.
A sociedade que vive submersa na vitimização pelo risco da
criminalidade, no tocante às hipotéticas situações quanto à violência
urbana, busca por respostas advindas da política criminal eficientista, que
não se preocupa apenas com a efetividade da lei penal, mas, também, em
passar uma falsa mensagem de segurança e controle sobre a criminalidade e
de custo-benefício ao Estado. Essa nova estrutura legal claramente exprime
a conjugação de uma perspectiva simbólica e instrumental.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17. ed. rev. atual. São Paulo:
Atlas, 2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. atual. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: RT, 2003.
492
DIGNIDADE E DIREITOS HUMANOS PARA APENADOS – DIMENSÕES DA
ECONOMIA SOLIDÁRIA
1. INTRODUÇÃO
494
eficácia imediata para a ação, o mesmo não acontecendo com os
juízos morais enquanto tais. De outro lado, as instituições jurídicas
distinguem-se das ordens institucionais naturais através do seu
elevado grau de racionalidade, pois nelas se cristaliza um sistema de
saber sólido, configurado dogmaticamente e conectado a uma moral
dirigida por princípios. E, como o direito está estabelecido
simultaneamente nos níveis da cultura e da sociedade, ele pode
compensar as fraquezas de uma moral racional que se atualiza
primariamente na forma de um saber. (HABERMAS, 1997, v. I, p.
150).
2. DESENVOLVIMENTO
495
de efetivações dos direitos humanos. As políticas públicas têm apoiado
experiências de organização de trabalho solidário que geram renda e
agregam valores a indivíduos excluídos do sistema social, mas ainda carece
de uma disposição institucional, legal e de saberes pertinentes para aplicar
objetivamente a economia solidária nestes indivíduos em encarceramento.
Esta pesquisa contribuiu para ampliar estes saberes que podem orientar a
emergência de políticas públicas voltadas para este setor e sensibilizar as
autoridades dedicadas a ofertar trabalho para apenados, cumprindo os
preceitos legais e os princípios dos direitos humanos.
501
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
504
O ASPECTO INTERNACIONAL E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS NO SISTEMA INTERAMERICANO A PARTIR DO PACTO DE
SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
1. INTRODUÇÃO
506
humano como “[...] um direito moral universal, algo que todos os homens em
toda a parte, em todos os tempos, devem ter algo do qual ninguém pode ser
privado, sem uma grave ofensa à justiça, algo que é devido a todo o ser
humano simplesmente porque é um ser humano” (Cranston, apud
GORCZEVISKI, 2005, p. 22).
Nesse raciocínio, Vieira (2015, p. 102-103) contribui ao afirmar que:
507
século XVIII, com o advento do Iluminismo, que surgiram ideias tendo como
cerne o ser humano e, de tal feita, instituiu-se o Século das Declarações em
virtude da fundamentação baseada na racionalidade, num direito natural
que transcende os demais e se aplica do mesmo modo a todos.
Os direitos ficaram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, publicada em 1789 na Assembleia Nacional Francesa. Este
acontecimento pode ser definido como um marco na história da valorização
humana, pois para Bobbio (1992, p. 85) foi “um daqueles momentos
decisivos, pelo menos simbolicamente, que assinalam o fim de uma época e
o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero
humano”. Nele, consagram-se, entre outros, os princípios da igualdade, da
liberdade, da legalidade, da presunção de inocência e da livre manifestação
de pensamento (GUERRA, 2013).
A compreensão é de que, não obstante os direitos humanos sejam
inerentes à própria natureza humana, seu reconhecimento e sua proteção
são decorrentes de um processo histórico lento e gradual, com alguns
avanços e retrocessos, tendo sido afirmados de acordo com as lutas das
gerações que movimentam a sociedade. O conjunto de direitos fundamentais
na sociedade contemporânea, de acordo com Schafer (2005, p. 12), “assume
vital importância em uma sociedade complexa e marcadamente difusa”.
Os direitos de primeira geração compreendem os civis e políticos. O
Estado só pode agir nos limites traçados pela lei. Os direitos à vida, à
liberdade e à propriedade são doravante protegidos pela lei. Os de segunda
geração referem-se aos econômicos, sociais e culturais objetivando a
igualdade, tendo o Estado a função promocional. Nesta dimensão, os
direitos são individuais e coletivos e o Estado possui uma concepção
política.
As garantias fundamentais de terceira geração materializam-se pelos
direitos coletivos, que possuem como destinatários toda a coletividade e as
formações sociais, com acepção difusa e se consagram no princípio da
solidariedade. Os direitos de quarta geração, segundo Bonavides (2000, p.
27), estão relacionados com “a democracia, o direito à informação, o
pluralismo, a efetivação dos direitos humanos, direitos que exigem uma
508
democracia direta”.
A partir de toda essa trajetória, Bobbio (1992, p. 26) afirma que:
510
É necessário compreender que a evolução do ser humano ao nível de
sujeito do Direito Internacional garante a consolidação dos direitos do
homem, uma vez que a participação nos organismos representativos em
âmbito universal será mais intensa, o que possibilitará que as violações aos
direitos sejam mais ágil e eficazmente resolvidas. Em sendo sujeito do
Direito Internacional, o ser humano avança substancialmente sua
participação em tais órgãos, destacando, conforme Vieira (2015, p. 127), a
ampliação da “[...] capacidade de peticionar e denunciar em caso de violação,
seja para a ONU ou para os sistemas de proteção regionais”.
Enquanto a corrente mais conservadora da doutrina entende que o
indivíduo não detém personalidade jurídica de Direito Internacional, o
presente Direito Internacional dos Direitos Humanos discorda ao definir o
ser humano como sujeito, pois possui personalidade e capacidade jurídica
nas esferas interna e externa. Assim, enfatiza Cançado Trindade (2006, p.
17-18):
4.1. Africano
513
com deveres de cada indivíduo diante de sua família, sociedade e Estado. De
acordo com Fernandes (2014, p. 1), “inspirados nas suas tradições históricas
e nos valores da civilização africana, reconheceram que os direitos
fundamentais do ser humano se baseiam nos atributos da pessoa humana,
o que justifica a sua proteção internacional”.
Apesar de o sistema africano ser significativamente válido no que
tange ao respeito e à busca pela dignidade na vida de cada indivíduo, ele
ainda sofre com problemas estruturais, muito em razão da situação
econômica e política dos Estados que integram o continente. Nesse sentido,
Vieira (2015, p. 116) assevera que “o maior freio a seu desenvolvimento
efetivo tem sido a fragilidade institucional persistente tanto nos Estados
quanto no sistema interestatal posto”. Ao abordar os possíveis motivos que
ainda causam a fragilidade do respectivo sistema, Guerra (2013, p. 533)
menciona os seguintes aspectos:
4.2. Americano
514
como Pacto de São José da Costa Rica, datada de 1969, constituiu dois
órgãos destinados à proteção de tal matéria, quais sejam, a Comissão e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Salienta-se, ainda, com relação
a textos que corroboram a mesma temática, o Protocolo Adicional da
Convenção Americana de Direitos Humanos na área de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, ou somente Protocolo de São Salvador, de 1988.
O Pacto entrou em vigência em 1978, mas somente em 1992 o Brasil
aderiu. Já em 1998 o Estado brasileiro reconheceu, por intermédio do
Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998, a competência
jurisdicional da Corte e, através do Decreto nº 4.463, de 8 de novembro de
2002, promulgou a Declaração de Reconhecimento da Competência
Obrigatória da Corte Interamericana em todos os casos concernentes à
interpretação ou aplicação dos dispositivos elencados na Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Com relação ao Estado brasileiro, Ramina (2006, p. 87) observa que:
515
4.3. Europeu
516
5. A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DO PACTO
DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual era
sua natureza ou fundamento, se são direitos naturais ou históricos,
absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados.
517
contraditório.
Em sendo confirmada a existência de violação de direito, a Comissão
buscará com as partes uma solução amistosa. Caso não seja possível, cabe à
Comissão redigir um relatório com recomendações ao Estado-parte, o qual
possui o prazo de três meses para solucionar o problema ou, caso não o
faça, pode ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja competência
abrange os aspectos consultivo e contencioso, é o órgão jurisdicional do
sistema americano de proteção aos direitos humanos. Quanto à área
consultiva, cabe a ela interpretar a própria Convenção que lhe instituiu, bem
como outros tratados que versem sobre essa matéria. E, agindo
contenciosamente, tem a incumbência de julgar casos que envolvam os
Estados-partes, isto é, que reconhecem a respectiva jurisdição, como, no
caso, o Brasil.
Na hipótese de constatar que houve violação de direito assegurado pela
Convenção, a Corte determina que o Estado restaure o direito violado e,
ainda, se preciso, que faça a compensação pecuniária à vítima. Portanto,
conforme Buergenthal (1984, apudPIOVESAN, 2012, p. 326), “os Estados
têm, consequentemente, deveres positivos e negativos, ou seja, eles têm a
obrigação de não violar os direitos garantidos pela Convenção e têm o dever
de adotar as medidas necessárias e razoáveis para assegurar o pleno
exercício destes direitos”.
A partir do exposto e de acordo com Piovesan (2012 p. 354), “[...] o
sistema interamericano está se consolidando como importante e eficaz
estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições
nacionais se mostram omissas ou falhas”. Porém, há uma preocupação
acerca do cumprimento das sentenças, que não deve se ater exclusivamente
ao aspecto pecuniário, mas, sim, com a execução de investigação e adoção
de medidas para coibir a prática violadora dos direitos humanos. Afirma,
ainda, Cançado Trindade (2006, p. 115) que há o debate sobre a necessidade
de se “[...] assegurar a maior participação possível dos indivíduos, das
supostas vítimas, no procedimento perante a Corte Interamericana, sem a
intermediação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.
518
No atual contexto, portanto, ganha relevância a proposta de
democratização do acesso à Corte pelos indivíduos, hoje somente possível
pelos Estados-partes e pela Comissão. Assim, a participação do ser humano
e de entidades tornar-se-ia mais relevante e assídua, o que resultaria
beneficamente na luta pela promoção de dignidade à pessoa humana.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 17ª ed. Rio de Janeiro: Campus,
1992.
521
Alegre/RS: Livraria do Advogado, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed.
São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
522
O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL: (IN)APLICABILIDADE DA RESERVA DO
POSSÍVEL
1. INTRODUÇÃO
Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos. Bolsista FAPERGS. Bacharel em Direito pela
UNIJUI. E-mail: advogada.rmaciel@gmail.com.
523
2. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS: o direito à saúde
526
dignificante e deixando-se de se observar os propósitos do Estado.
Muitos são os empeçilhos encontrados para assegurar a efetividade do
direito à saúde, entre os quais pode-se falar na criação na Alemanha da
reserva do possível, com vistas a diminuir e limitar a universalidade do
direito. Para entender-se melhor a sua aplicação, o próximo tópico
preocupar-se-á em analisar a reserva do possível, para após verificar-se sua
(in)aplicabilidade ao direito à saúde.
528
ignorada pelas decisões judiciais. Tal limite fático seria expresso em alguns
trabalhos e decisões judiciais pelo termo “reserva do possível”.
Sabe-se que os direitos fundamentais são os direitos sociais em
sentido amplo, ou seja, decorrem do desenvolvimento do Estado Social de
Direito. Conforme já demonstrado, a Constituição Federal de 1988 inclui os
direitos sociais dentre os direitos fundamentais. Esses direitos são,
geralmente, caracterizados como prestações positivas do Estado, todos os
entes estatais devem atender e promover tais direitos. Assim, nao é possível
que os direitos fundamentais sejam ineficazes com fundamento na reserva
do possível (FIGUEIREDO, 2007).
Isto porque, a promoção dos direitos fundamentais, nos quais se
incluem os direitos sociais, encontra fundamento no princípio da dignidade
da pessoa humana (KELBERT, 2011). Daí a importância do Estado promover
tais direitos, pois, inerentes à própria essência das pessoas.
A arrecadação tributária é o meio pelo qual o Estado dispõe para
promover e financiar os direitos fundamentais. Ocorre que, muito embora
exista verba prevista para a efetivação dos projetos sociais, os valores, por
vezes, não são suficientes para a promoção de todos os direitos
constitucionalmente previstos, considerando a quantidade de direitos
fundamentais elencados na CF/88. Outra concreta que ocorre é que as
verbas acabam não sendo aplicadas às finalidades previstas, ou seja, o Poder
Executivo deixa de estabelecer e implementar políticas públicas que
poderiam se não solucionar, ao menos, amenizar a situação da efetivação
dos direitos fundamentais.
É perceptível quea concretização dos direitos fundamentais depende de
fatores econômicos bem como da existência de verbas disponíveis, nesse
sentido, “a escassez de recursos pode figurar como limite à efetivação dos
direitos fundamentais, especialmente os de cunho prestacional” (KELBERT,
2011, p. 76).
No entanto, com a inserção dos direitos sociais no rol dos direitos
fundamentais, o constituinte brasileiro assume o compromisso de
concretizar tais direitos. Assim, as vinculações orçamentárias previstas na
Constituição Federal não podem ser violadas, devem ser respeitadas e
529
cumpridas fielmente. É dever do Estadose planejar com o objetivo de realizar
esses direitos.
Todos os direitos têm custos, tanto os de prestação positiva, em geral
os direitos sociais; e até mesmo os de prestação negativa, a exemplo de os
valores despendidos para a manutenção de instituições permanentes
providas pelo Estado. Ocorre que, a simples constatação de que todos os
direitos possuem custos não é por si só uma questão problemática.
De acordo com Kerbelt (2011), quando se admite a escassez de
recursos estatais para a promoção dos direitos fundamentais, os problemas
começam a surgir. Assim, para que seja possível a efetivação dos direitos
fundamentais é preciso que escolhas sejam feitas. A mesma autora
aprofunda a discussão ao referir que“A necessária eleição de valores e bens a
serem protegidos, as já referidas escolhas, engloba, ainda, outro aspecto,
que diz respeito à relativização dos direitos protegidos”.
Será sempre necessário que exista um critério de escolha a ser
adotado para que se delimite quais os direitos que serão primordialmente
atendidos e efetivados, este critério é decorrente da finitude dos recursos. No
entanto, é importante considerar que a aplicação de recursos em
determinado setor sempre causará conseqüências negativas em outro setor
que deixará de ser atendido.
Assim, o Estado deve promover políticas públicas que prevejam a exata
aplicação de recursos para a efetivação de todos os tipos de direitos, sejam
os decorrentes de prestações positivas ou negativas, uma vez que é inviável
pensar em concretização de direitos sociais sem pensar no custo desses
direitos, isto porque diretamente “os custos dos direitos podem figurar como
uma limitação à plena realização dos direitos sociais” (KERBET, 2011, p.
68).
Quanto à previsão legal da reserva do possível, não existe no Brasil tal
texto legal, a Constituição Federal vigente apenas estabelece que o valor
proveniente da arrecadação dos tributos deve ser destinado a determinadas
atividades, como, por exemplo, saúde, educação.
No entanto, a reserva do possível foi recepcionada pelo STF em
diversas decisões. Na maioria dos julgamentos a recepção consistiu apenas
530
no reconhecimento de eventual cabimento da alegação do princípio, em tese,
sendo que, no caso concreto sub judice, foi negado o acolhimento à mesma.
(SGARBOSSA, 2010). Sendo amplamente conhecida, debatia e utilizada nos
tribunais brasileiro, é necessário que se faça uma análise breve sobre como
a reserva do possível vem sendo empregado pelas partes e recepcionada
pelos órgãos jurisdicionais.
Sgarbossa (2010) desta que o princípio se aplica essencialmente nas
ações em que se discute o acesso aos direitos sociais, ou seja, em casos que
comumente tratam de acesso à educação, à saúde, entre outras políticas
públicas de cunho social. Assim, nos casos em que a vida do requerente
encontra-se em risco direto em decorrência de não cumprimento de
prestação por parte do Estado, ações que demandem direitos à saúde ou
educação, o Supremo Tribunal Federal tem aplicado a reserva do possível
apenas a título argumentativo ao referir que a prestação é restrita à condição
financeira do Estado, no entanto, não deixa de conceder a prestação,
especificando que o direito não pode ser negado, ou seja, que a reserva do
possível não é cabível como argumento para a não realização do direito.
Para finalizar, é possível assegurar que a discussão sobre a reserva do
possível não foi ainda devidamente tratada pelo Supremo Tribunal Federal, o
qual, na maioria das manifestações, refere que tal princípio se limita à
escassez de recursos financeiros do Estado.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
535
HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2009.
536
O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS
HUMANOS SOB A ÓTICA DA LEI MARIA DA PENHA
1. INTRODUÇÃO
2. DESENVOLVIMENTO
Sul, advogada.
537
pela definição de seu objeto”. Dessa forma, entende-se necessário passar
pela abordagem do conceito de Direito Internacional, e também pela
definição dos direitos humanos. Ainda de acordo com o mesmo autor, pode
se definir o Direito internacional como
539
p. 225). Como ensina Flávia Piovesan, (2007, p. 118):
540
os Estados Unidos da América não ratificaram a convenção, e o Brasil foi um
dos países que mais tardiamente o fez, o que ocorreu apenas em setembro
de 1992 (GOMES, 2000). Ainda de acordo com o mesmo autor, (2000, p 30),
dentre os direitos civis e políticos reconhecidos e assegurados pela
Convenção destacam-se:
541
É integrada por sete membros “de alta autoridade moral e
reconhecida versação em matéria de direitos humanos”, que podem
ser nacionais ou de qualquer Estado-Membro da Organização dos
Estados Americanos. Os membros da Comissão são eleitos, a título
pessoal, pela Assembleia Geral por um período de 4 anos, podendo
ser reeleitos por uma vez.
A referida lei tornou as penas aos agressores mais graves, uma vez que
antes, as penas eram brandas, e na maioria das vezes, consistiam no
pagamento de cestas básicas ou multas, em função da Lei 9.099. Agora, os
crimes praticados em regime de violência doméstica contra as mulheres, não
permitem mais o pagamento de cestas básicas ou multa, e as penas agora
podem chegar a 3 anos de prisão, com a possibilidade de prisão em flagrante
ou prisão preventiva decretada quando houver riscos de integridade física ou
psicológica da vítima (MACEDO, 2010).
546
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
548
A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA COMO PREMISSA À
UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA
1. INTRODUÇÃO
550
2. A CULTURA COMO ESTRUTURA DE UMA SOCIEDADE
E complementa que
551
por ela.
Geertz explica que
552
(LARAIA, 2009, p. 68).
Disso decorre o fato de que indivíduos que pertencem a culturas
diversas são facilmente reconhecidos pelo seu modo de agir, vestir, ou
mesmo, pelo seu modo de comunicar-se. Se analisarmos o cotidiano de cada
cultura, veremos que, o que é tradicional em uma, pode não o ser em outra.
Por exemplo, a forma de reação de um povo à morte: enquanto uns a
saúdam, como algo que liberta, outros a tem como algo triste, desolador e
irreversível.
Outro exemplo é o motivo pelo qual as pessoas riem. Em algumas
culturas o riso é algo ligado ao cotidiano, enquanto em outras é uma questão
de etiqueta, acarretando situações consideradas desagradáveis. Deste modo,
se verifica que o riso acaba sendo condicionado aos padrões culturais
estabelecidos, mesmo que seja, de origem, algo fisiológico.
Laraia traz ainda o exemplo da diversidade cultural em termos
gastronômicos:
O que demonstra, ainda mais, que o mundo visto pelo homem a partir
da sua cultura, e isto dita seu modo de agir e de viver, muitas vezes
conduzindo o entendimento de que o seu é o melhor, mais correto e mais
natural modus vivendi, originando daí o etnocentrismo, causa de numerosos
conflitos ocorridos na sociedade através dos tempos.
Além disso, muitas vezes, é gerado um verdadeiro espanto na maioria
das pessoas que não conseguem conviver e aceitar estes costumes diversos
dos seus, em razão da rica diversidade existente de sociedades e, portanto,
de culturas. Incrivelmente a compreensão humana, que deveria fazer com
que se aceitasse as diferenças e o diferente, acaba, ao contrário, afastando e
gerando um sentimento de repulsa pelo outro que não éigual.
553
Conforme Meneses,
é que neste caso, o Outro é outro sujeito, para quem eu sou também
um Outro, que me conhece como tal, como eu a ele; que pode
aceitar-me, mas que sobretudo e antes de tudo pode repelir-me,
como eu também faço com ele; de modo que o reconhecimento nunca
é imediato, mas passa por uma reconciliação (1993, p. 454).
554
cotidianas e suas práticas em relação ao outro. A globalização, ao aproximar
diferentes realidades e comunidades, fez com que os povos acabassem
incorporando hábitos novos aos seus.
3. CULTURA DEMOCRÁTICA
556
culturas, é que se poderá efetivamente construir uma cultura democrática.
557
articular as suas experiências, seja na vida pessoal ou em termos coletivos,
além da participação no mundo através da sua identidade cultural
particular. Necessário reconhecer não a inspiração universalista de uma
cultura, mas “a vontade de individuação de todos os que procuram
reunificar o que o nosso mundo, economicamente globalizado e
culturalmente fragmentado, tende sempre mais fortemente a separar”
(TOURAINE, 1998, p. 65).
A necessidade de que cada um seja visto como um indivíduo separado,
isolado, e, portanto, que deve ser considerado como um igual, mas
igualmente como um diferente. Assim,
O ser humano não existe, e sim, coexiste com outros. A relação entre
todos não deve ser uma relação de domínio de um sobre o outro, e sim, deve
ser uma relação de con-vivência. Não deverá ocorrer a intervenção, e sim a
inter-ação e a comunhão (BOFF, 1999).
De acordo com Touraine,
559
diferente: (...) nós procuramos salvar nossa existência individual,
singular. Desdobramento criador, porque faz nascer ao lado do ser
empírico um ser de direitos, que procura se constituir como ator livre
através da luta por seus direitos (2006, p. 240) [grifo no original].
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
560
A partir desta aceitação e da consagração da alteridade é que se
poderá crescer em termos de mundo e em termos de evolução. Apenas a
partir da construção e efetivação de uma cultura eminentemente
democrática, que aceite as demais culturas, que a elas se interligue, e que
aceite as diferenças é que se poderá construir um mundo fraterno e justo.
A sociedade sofreu inúmeras mudanças em termos de direitos nos
últimos dois séculos e, cada vez mais estámudando, sendo necessário que
todos possam aprender e discutir sobre os caminhos que levaram a nossa
atualidade, a construção histórica e a evolução sofrida em termos mundiais.
Somos diferentes, isto éum fato! E na busca pela extinção das
desigualdades, pela confirmação de que todos somos iguais, perante a lei e a
sociedade, muitas vezes nos esquecemos de que não somos totalmente
iguais, e sim, como bem disse Boaventura de Sousa Santos, todos
possuímos o direito de ser diferentes e iguais.
Isto não retira, obviamente, a necessidade do alcance, por todo e
qualquer indivíduo, dos direitos fundamentais e das garantias constantes
nas normas constitucionais, dentre elas, o direito a ver-se inserido
democraticamente em razão da sua cultura, para o alcance maior do fim a
que se destina o Estado.
A era dos direitos estásendo vivida pela humanidade, e um dos mais
importantes direitos a ser defendido e protegido por cada indivíduo é,
exatamente, o direito de ser uma individualidade e de, pertencendo a um
todo, conviver com os demais, em um mundo onde haja mais respeito e
alteridade, onde uma cultura democrática realmente se efetive, e, com ela, se
desenvolva, realmente, uma sociedade mais igualitária.
REFERÊNCIAS
_____. A cultura no plural. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 20, n. 63,
p. 445-458, 1993.
ROCHA, Zeferino. Ética, cultura e crise ética de nossos dias. Síntese, Belo
Horizonte, v. 34, n. 108, p. 115-131, 2007.
VAZ, Henrique C. de Lima Vaz. Cultura e Filosofia. Síntese Nova Fase, Belo
Horizonte, v. 21, n. 67, p. 479-493, 1994.
563
ANÁLISE COMPARADA: A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ARGENTINA E NO
BRASIL
1. INTRODUÇÃO
A justiça de transição traz em seu próprio nome o seu cerne, uma vez
que se dedica a conduzir um país à construção de uma democracia após um
período de restrição de direitos individuais, trazendo consigo uma gama de
medidas aptas a possibilitarem tal mudança. Nesse sentido, de acordo com
565
classificou como “terroristas” aqueles que se opuseram ao Governo, os quais,
em larga maioria – segundo dados da obra “Brasil: Nunca Mais”– foram
presos por crimes como militância em organização partidária proibida e que,
até hoje, são vistos por parcela da população como criminosos.
É também esse o entendimento do eminente jurista francês Antoine
Garapon, para quem o crime contra a humanidade inaugurou uma nova
prática, até então inédita e inimaginável, a do crime sistematicamente
organizado pelo Estado contra a população civil, muitas vezes, nacional do
próprio país violador de direitos. Por essa razão que o reconhecimento
adquire um espaço tão importante na justiça de transição, posto que, em
decorrência crime contra a humanidade, o direito da vítima de pertencer à
própria comunidade da qual faz parte lhe é violentamente negado. Nada
mais justo, nesse sentido, que esse Estado que suprimiu esse direito seja o
mesmo que, uma vez cessadas tais violações, venha a admitir seu erro,
reconhecendo a vítima enquanto sujeito de direitos, parte dessa sociedade.
Nas palavras do autor, “as vítimas não esperam apenas da justiça aquilo que
lhes cabe – a restituição dos seus direitos, a indemnização dos danos
sofridos, a punição dos culpados –, mas também, e em primeiro lugar, serem
reconhecidas” (2002, p. 135). Isso porque,
566
Moreira da Silva Filho, a Comissão de Anistia se desloca pelos mais diversos
Estados brasileiros “para julgar requerimentos de anistia emblemáticos nos
locais onde as perseguições aconteceram, realizando as apreciações em
ambientes educativos como Universidades, espaços públicos e comunitários”
(2015, p. 200).
O trabalho das Caravanas da Anistia é fundamental para a
reconstrução da memória e da verdade, mas, principalmente, para a
valorização e o reconhecimento da vítima, pessoa que teve sua dignidade
violada no mais alto grau. É de extrema importância ressaltar que uma das
medidas adotadas pela sessão de julgamento das Caravanas é o pedido
oficial de desculpas por parte do Presidente da sessão ao anistiado. Entende-
se que esse ato
Isso significa que “as anistias poderão vir antes e serem depois
afastadas para que ocorram os julgamentos (como no caso argentino), ou
que as anistias convivam com a realização de alguns julgamentos (como no
caso chileno e uruguaio)” (SILVA FILHO, 2015, p. 66). Portanto, frisa-se
primeiramente, conforme o estudo, em dado momento histórico, as anistias
podem ser benéficas quando, por exemplo, surgem como a única forma de
um governo ditatorial “deixar” o poder; ademais, que isso não pode servir de
obstáculo, no entanto, para que essas anistias não sejam nunca contestadas
– no caso Argentino, por exemplo, a Lei de Autoanistia foi julgada
inconstitucional pela própria Suprema Corte do país, com base na
jurisprudência internacional sobre a proteção dos direitos humanos –; por
fim, que nem sempre uma lei de anistia precisa ser revogada ou anulada
pelo Judiciário a fim de que a responsabilização dos agentes públicos que
cometeram crimes de lesa-humanidade possa acontecer, uma vez que, como
no caso uruguaio, pode-se optar pela responsabilização não de todos os
agentes envolvidos na violação sistemática aos direitos humanos – o que não
se pode permitir é a absoluta negativa, por parte do Estado, dessa dimensão
da justiça transicional.
A respeito do assunto, Paul van Zyl traz importantes contribuições,
argumentando que “os julgamentos podem servir para evitar futuros crimes,
dar consolo às vítimas, pensar um novo grupo de normas e dar impulso ao
processo de reformar as instituições governamentais, agregando-lhes
confiança” (2011, p. 49-50). Zyl complementa, trazendo como exemplo o
julgamento de Nuremberg para aduzir que, não obstante nem todos os
perpetradores de graves violações aos direitos humanos terem sido levados a
julgamento, tal aspecto não retira a extrema relevância desse caso para a
efetiva proteção aos direitos humanos (2011, p. 50-1). Nas palavras de
Garapon:
570
memória colectiva dando-lhes uma versão oficial e definitiva. [...]
Enquanto uma acção tida como criminosa não for julgada, existe o
risco de a injustiça ser consagrada pelo tempo (2002, p. 208).
571
observado por diferentes enfoques. No entanto, urge dar destaque a dois
aspectos. Primeiramente, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, em sua maioria, os Ministros do STF
sequer mencionam o direito internacional para analisar a questão, apesar de
o assunto versar sobre direitos humanos, matéria amplamente amparada
por tratados e convenções de direito internacional.
Quanto ao Exército, até hoje se espera um pedido oficial de desculpas
pelos crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar,
posto que
573
ou parcialmente), enquanto 2% não soube responder ou não quis responder.
O Brasil foi o país onde o medo da tortura foi o mais alto. Em outros países
latino-americanos que passaram por ditaduras militares, mas que, no
entanto, apresentam um processo transicional mais avançado que o
brasileiro, como na Argentina, por exemplo, 49% dos entrevistados
discordaram da afirmação, enquanto 34% concordaram; já no Chile, 30%
dos entrevistados discordaram da afirmação, enquanto 45% concordaram.
Tais dados demonstram um índice muito maior de confiança nas instituições
de segurança pública por parte dos vizinhos que implementaram a justiça
transicional de forma mais completa5.
Abrão e Torelly reconhecem que muito já se fez no sentido de
fortalecer as instituições democráticas no país, contudo, argumentam que
ainda “restam reformas a serem cumpridas especialmente nas Forças
Armadas e nos sistemas de Segurança Pública” (2011, p. 224).
Como já foi dito, a justiça de transição se faz de diferentes aspectos e
é quando essas dimensões são trabalhadas em conjunto que se aumentam
as chances de se obter avanços significativos na valorização dos direitos
humanos e no fortalecimento da democracia. Desse modo, é imperioso lutar
para que o processo transicional se complete no país, de modo que se efetive
a reparação – não apenas pecuniária, mas também moral das vítimas de
violações aos direitos humanos –, a busca por verdade e memória (como tem
sido feito pela CNV, embora com a relutância das Forças Armadas), a
tentativa de responsabilização dos agentes públicos (dentro dos limites
possíveis), paralelamente à reforma (para o fortalecimento) das instituições
democráticas.
O Brasil não foi o único país que passou por um regime de exceção.
575
Quanto aos perseguidos pelo regime, cumpre destacar que, assim
como ocorreu no Brasil, o governo ditatorial argentino também se preocupou
em silenciar todos que considerava inconvenientes. Desde guerrilheiros, até
professores e mesmo clérigos. Dita situação não difere muito da ocorrida em
nosso país, no entanto, no caso argentino, os números da repressão é que
causam espanto. Conforme expõe Claudia C. Tomazi Peixoto, aponta-se que
“a ditadura argentina (1976-83) resultou em 30 mil mortos e desaparecidos,
segundo a Associação das Mães da Praça de Maio, e em torno de 18 mil
segundo dados oficiais [...]. No Brasil (1964-85) a ditadura teria deixado o
saldo de mais de 300 mortos e desaparecidos” (2011, p. 18).
Dito isso, vê-se que, apesar de os regimes brasileiro e argentino terem
suas similitudes, também se distinguiam em alguns pontos. Enquanto na
Argentina, o desparecimento forçado era o tratamento dispensado, via de
regra, aos indivíduos que o governo considerava “subversivos”; no Brasil, o
método preferido era a aplicação da tortura aos presos políticos, o
desaparecimento forçado era menos recorrente em comparação com o país
vizinho. Dita distinção, por sua vez, teve relevante impacto sobre o número
total de mortos e desaparecidos durante o regime ditatorial em cada país, o
que acabou influenciando o modo com que cada Estado tratou da sua
justiça de transição.
Assim como no Brasil, o governo ditatorial da Argentina também
editou uma lei de anistia antes de deixar o poder, a Lei nº 22.924, de 22 de
setembro de 1983, visando à impunidade dos crimes perpetrados pelos seus
agentes durante o regime. Conforme explica Pablo F. Parenti, a norma levou
o nome de
577
mesma corte que, pouco tempo antes, havia se manifestado favorável à
invalidação da lei de anistia argentina.
Entretanto, uma mudança na legislação permitiu uma nova
interpretação do caso. O artigo 75, inciso 22, da nova Constituição argentina
determinou a incorporação de tratados internacionais ao direito interno do
país, dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
indicando ainda que “esa integración era en las condiciones de vigencia de
los instrumentos internacionales” (YACOBBUCI, 2011, p. 29). Referida
ressalva significava que, ao aplicar os tratados e convenções internacionais,
o ordenamento jurídico argentino ficava sujeito à interpretação que lhes
conferia a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Nesse sentido,
refere Yacobucci:
579
aos direitos humanos e “em agosto de 2003, o Congresso sancionou a lei
25.779, mediante a qual ‘declarou’ a ‘nulidade insanável’ das leis de ponto
final e de obediência devida” (PARENTI, 2011, p. 47). Em face disso, cumpre
apresentar os dados trazidos por Peixoto sobre os julgamentos dos crimes
cometidos durante a ditadura militar argentina, segundo a qual, até o mês
de maio de 2011, “807 pessoas foram/estavam sendo julgadas, das quais
212 foram condenadas” (PEIXOTO, 2011, p. 16).
Por óbvio, a reabertura dos processos pelos crimes cometidos durante
o período ditatorial na Argentina é tarefa árdua, que exige – e exigirá – muito
esforço por parte de todas as autoridades envolvidas. No entanto, tal
argumento não pode servir de entrave à investigação e ao julgamento dos
casos. Yacobucci destaca que, tendo sido essa a escolha argentina, escreve-
se um caminho sem volta, portanto, “deberán crearse medios, ajustarse
esquemas de trabajo y limitar la carga ideológica en el desenvolvimiento de
los juicios para alcanzar el verdadero significado de la tragedia vivida por
nuestro país” (2011, p. 44).
Por outro lado, a persecução penal das graves violações aos direitos
humanos perpetradas durante a ditadura militar não deve, de modo algum,
ser vista como uma forma de “revanchismo”. Pelo contrário, a busca da
verdade permitirá a superação do assunto e o enfrentamento das questões
traumáticas.
Observando-se a história recente dos países vizinhos, vê-se que,
enquanto na Argentina “uma das primeiras medidas do governo pós-
ditadura foi a criação de uma comissão no âmbito do Poder Executivo para
obter informação sobre o destino que tiveram aquelas pessoas que tinham
sido vítimas do sistema de repressão ilegal” (PARENTI, 2011, p. 51) – trata-se
da CONADEP (Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas),
criada no governo do presidente Raúl Alfonsín – em nosso país, o único
relatório que buscou investigar a verdade ocorrida durante a repressão
militar logo após o fim do regime foi o projeto “Brasil: Nunca Mais”, da
Arquidiocese de São Paulo. A Comissão Nacional da Verdade no âmbito do
Poder Executivo, por sua vez, só foi criada pela Lei nº 12.528, de 18 de
novembro de 2011, enquanto seu relatório foi divulgado apenas em 10 de
580
dezembro de 2014, cinquenta anos após o golpe que instaurou a ditadura
militar brasileira.
Frisa-se ainda que, enquanto a Argentina acatou a decisão da Corte
IDH, dando cumprimento aos dispositivos internacionais de proteção aos
direitos humanos e invalidando sua lei de anistia, a Suprema Corte
brasileira, tendo a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Lei
de Anistia, preferiu abster-se desse feito, alegando que essa tarefa cabia ao
Poder Legislativo. Ademais, o Estado brasileiro, mesmo depois de ter sido
condenado pela Corte, continuou a desrespeitar tal decisão, em total
desacordo com o que preconiza o direito internacional dos direitos humanos.
Isso tudo revela que o Brasil ainda tem muito a aprender em sede de direitos
humanos com a nação vizinha.
De todo o exposto, é inegável que os caminhos escolhidos pelo Brasil
e pela Argentina foram opostos. Embora os defensores da anistia ampla e
irrestrita defendam que o regime ditatorial vivido em nosso país foi mais
brando do que o dos outros países latinos, em razão do número final de
mortos e desaparecidos, isso não pode, jamais, servir de argumento para a
ocultação e o esquecimento de fatos tão importantes e de tamanha
magnitude para a construção e elucidação de nossa própria história.
O que se deve ter em mente é que a violação dos direitos de um
indivíduo, além de ser um crime, é uma ameaça constante a todos os demais
integrantes de uma sociedade e que aceitar que violações tão graves quanto
as aqui vividas caiam no esquecimento é permitir que as essas violações
venham a se repetir no futuro.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar: para
uma justiça internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
583
OS DIREITOS HUMANOS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO: AVANÇO
OU RETROCESSO?
1. INTRODUÇÃO
1Formada em Direito pela UNICRUZ – Universidade de Cruz Alta, mestranda em Direito pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUÍ. Bolsista
UNIJUÍ. Email: danielarmolinari@hotmail.com
2Formada em Direito pela UNICRUZ- Universidade de Cruz Alta e mestranda em Direito pela
2. DESENVOLVIMENTO
3Por sua ênfase na proteção dos indivíduos, o que passou a ser chamados de direitos
individuais, contendo o Estado frente à pessoa humana, cabendo tão somente ser o
guardião das liberdades, sem interferência no relacionamento social.
4Daí a denominação de direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem do Estado o
586
humanidade.
A idéia desta geração trata o ser humano como gênero, não limitado
ao indivíduo ou a determinada coletividade,5 está ligada ao valor da
fraternidade ou solidariedade, direitos relacionados ao desenvolvimento ou
progresso, ao meio ambiente, à autodeterminação dos povos, bem como ao
direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e ao
direito de comunicação. São direitos transindividuais, em rol exemplificativo,
destinados à proteção do gênero humano (NOVELLINO. 2009).
Existem alguns doutrinadores que defendem a existência dos
direitos de quarta e quinta geração, apesar de ainda não haver consenso na
doutrina. Para Bobbio (2004), trata-se de direitos ligados à vida como
elemento político: a proteção do patrimônio genético, a preocupação com a
bioética, dentre outros engenharia genética e, defende a existência desses
direitos de quarta geração, com aspecto introduzido pela globalização
política, relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo.
Já existem autores defendendo a existência dos direitos de quinta
geração que seguem a corrente de Bonavides (2008), que faz referência ainda
a uma quinta geração de direitos. Nessa categoria, desenvolve-se a
concepção da paz, afirmando que, embora tenha sido ela incluída
inicialmente no âmbito dos direitos de terceira geração, tal direito foi
esquecido, talvez pela superficialidade com que tem sido trabalhado entre os
direitos de fraternidade. Segundo o autor, a dignidade jurídica da paz deriva
do reconhecimento universal que se lhe deve enquanto pressuposto
qualitativo da convivência humana, elemento de conservação da espécie,
reino de segurança dos direitos.
Os liames existentes entre o meio ambiente e os direitos humanos
são percebíveis, seja porque em seu conteúdo se identificam prescrições de
direitos fundamentais básicos, seja pelo simples fato de que a degradação
ambiental gera violações aos direitos humanos. O que enseja afirmar que o
direito a um meio ambiente equilibrado é condição para uma vida saudável e
para o pleno gozo do direito à vida, à saúde e ao desenvolvimento. Não há
589
faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome
informações e substâncias oriundas de todo o universo.”
6Baumam (1999, p. 81-82) fala dos condomínios, caracterizados pelo “isolamento” que cria,
que nada mais é que a separação dos que detém poderes econômicos daqueles considerados
socialmente inferiores.
591
isolamento”. (BAUMAN, 1999, p.29, 31)
Davis (2006, p.121) denomina esses espaços de “zonas totalmente
protegidas”, verdadeiras “aldeias de segurança”. As casas transformam-se
praticamente em fortalezas, cercadas de muros altos, com cacos de vidro,
arame farpado e pesadas barras de ferro em todas as janelas, cercas
elétricas, numa “arquitetura do medo”.
No terceiro mundo urbano, os pobres temem eventos internacionais
de alto nível: conferências, eventos esportivos, concursos de beleza, festivais
internacionais – que levam as autoridades a iniciar cruzadas de limpeza da
cidade: os favelados sabem que são as “sujeiras” ou a “praga” que seus
governos preferem que o mundo não veja (Davis, 2006, p.111). “Embora
todos os que vivem na cidade sejam tratados como citadinos, nem todos são
considerados e tratados como cidadãos” (ALVES, 1992, p. 41)
Alves (1992, p. 51-52) ainda destaca que o cidadão sem teto é
empurrado cada vez mais para áreas distantes do centro, regiões insalubres
e proibidas para loteamentos, formando ali verdadeiros cinturões de miséria
das grandes cidades. Por causa das chuvas, as enchentes e inundações
arrastam barracos e crianças, estragam móveis e pertence e espalham a
hepatite e a leptospirose entre os moradores. Os moradores em situação
irregular são os mais prejudicados, pelo fato de estarem fora dos padrões
exigidos, acabam não contando também, com os serviços urbanos essenciais
e são obrigados a conviver com a sujeira dos esgotos correndo a céu aberto,
dos seus próprios lixos que não são recolhidos e, muitas vezes, os da cidade
toda, que em sua vizinhança são depositados.
Além de todos estes impactos socioambientais citados, outro chama a
atenção, por ser considerado um dos maiores problemas de nosso tempo: a
aceleração demográfica. A esse respeito Saavedra (2014, p.81) destaca:
592
comida, água, árvores, etc., para satisfazer suas necessidades
básicas, viverá em uma miséria esmagadora. E pode se tornar um
perigo não apenas para os seus pares, mas para o mundo inteiro. É
por isso que todo mundo deveria se preocupar pelo que está
acontecendo com o número de crianças nascidas a cada ano. É por
isso que o que está acontecendo com os recursos em qualquer lugar
deve ser incumbência pessoal de cada um de nós (...). a propagação
do consumismo, engendrada na ignorância do povo ( ignorância que
tem as suas raízes profundas na superpopulação e da destruição da
Terra) é importante para cada um de nós. Resta-nos pouco tempo,
mas está se acabando rapidamente.
594
relatório "Credit Suisse 2013 Wealth Report", um dos mapeamentos mais
completos sobre a desigualdade social, 0,7% da população concentra 41% da
riqueza mundial. A lógica regente é a de maior concentração de riqueza e de
poder por parte dos países desenvolvidos, independente dos resultados que
isso provoca para parcela considerável da população mundial.8 Essa
conseqüência é destacada por Oliveira (2001, p. 76) do seguinte modo:
596
desenvolvimento – seja viabilizado é uma conformação entre eficácia
econômica, igualdade social e prudência ambiental. O modelo de
desenvolvimento proposto pela modernidade, entretanto, perdeu de vista
essa amplitude e, assim sendo, cumpriu apenas parcialmente os seus
desígnios.
Com base nessa compreensão, Leff (2004, p. 352) menciona que “os
impactos sociais e ecológicos, evidenciados pela desigualdade social, pelo
aumento da pobreza e pela degradação dos recursos naturais, resultantes
dos dominantes padrões de produção e consumo, deflagram uma crise
ambiental planetária”. .
A crise ambiental possui proporção maior do que inicialmente
pensava-se. Nas palavras de Morin e Kern (2003, p. 91), “o mito do progresso
hoje desmorona, o desenvolvimento está enfermo; todas as ameaças para o
conjunto da humanidade têm pelo menos uma de suas causas no
desenvolvimento das ciências e técnicas”. Apesar disso, o homem continua a
investir na sua força de dominação e treinar a sua capacidade de
transformar, reproduzir e recriar, sem impor qualquer limitação à sua
pretensão de tudo conhecer.
Por esse motivo, o termo sustentabilidade foi adicionado ao conceito
de desenvolvimento, apresentando-se como um modelo que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações
futuras atenderem às suas próprias necessidades. No entendimento de Leff
(2004, p.9):
597
situação a fim de que essa ação ética seja responsável e promova vida,
dignidade e harmonia de modo universal, tanto para o presente como para o
futuro, pois os problemas fundamentais do nosso tempo afetam toda a
humanidade, local e global, daí a necessidade de uma responsabilidade
moral comum com vistas ao futuro. Oliveira (2001, p. 167-168) afirma a
necessidade ao dizer:
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
601
OS NOVOS DIREITOS E A INFLUÊNCIA DAS NOVAS TECNOLOGIAS NOS
DIREITOS HUMANOS: A INTERNET (IN) FORMANDO CIDADÃOS
1. INTRODUÇÃO
2Nesse sentido, Joaquín Herrera Flores (2009, p. 2) defende os direitos humanos como “um
produto cultural surgido em um contexto concreto e preciso de relações que começam a
expandir-se por todo o globo – desde o século XV até estes incertos inícios do século XXI –
sob o nome de modernidade ocidental capitalista”.
603
desenvolvimento dos direitos do homem admite uma classificação
acadêmica, de modo que Gilmar Antônio Bedin (1998, p. 99) afirma a
existência de quatro principais gerações de direitos, as quais
604
e cuja titularidade não é mais constituída apenas pela singularidade
dos indivíduos, podem ser exemplificados pelos direitos à
autodeterminação dos povos, à paz internacional, ao
desenvolvimento (por um diálogo Norte/Sul), a um meio ambiente
equilibrado e saudável, à comunicação, além dos direitos das
coletividades regionais ou étnicas culturalmente diferenciadas.
606
garantir a efetivação de direitos civis, socioeconômicos, políticos e de
solidariedade, bem como o “desenvolvimento e o crescimento econômico, a
equidade social, o intercâmbio cultural, a pesquisa e a melhoria educacional
da população.” (HELOU; LENZI; ABREU; SAISS; SANTOS, 2011, p. 2).
Sendo assim, o próximo item analisará os benefícios gerados pela
internet na pós-modernidade, na medida em que o mundo digital está
superando as barreiras de informar e construindo plataformas digitais
dotadas de elementos importantes na formação cidadãos.
Ressalta-se que nessa era o digital está cada vez mais presente e
imprescindível na vida cotidiana em todos os seus aspectos. Mais do que
comunicar, a internet está revelando uma face promotora da formação do
homem enquanto cidadão munido de direitos e deveres. Como destaca
Dominique Wolton (2010, p. 87) “a informação e a comunicação são
inseparáveis da história da emancipação do homem”, por isso vejamos a
partir de agora de forma específica a influência que a web causa na vida dos
indivíduos.
De imediato, é importante frisar que a internet é muito mais do que
um direito fim, ela é um verdadeiro direito meio no sentido de que atua como
mediadora para a efetivação de vários outros direitos – sejam eles, civis,
socioeconômicos, políticos e de solidariedade internacional. Victor Gentilli
(2005, p. 129) entende que o direito à informação é “a porta de acesso aos
outros direitos” e nesse sentido, a internet se apresenta como um importante
meio veiculador dessas informações necessárias para a vida do homem em
sociedade.
No que tange aos direitos civis, o direito de acesso à internet vai atuar
como mediador, principalmente, na efetivação da liberdade de expressão e
manifestação, na medida em que oferece informações úteis e diversas e a
partir disso, autonomia para os cidadãos se manifestarem e “defender uma
sociedade mais justa e igualitária” (RADDATZ, 2012, p. 298). Um indivíduo
bem informado, por exemplo, poderá lutar consciente pela proteção de suas
garantias, bem como reivindicar pelos seus interesses e ideais, como foi o
caso das manifestações e protestos ocorridos no Brasil em julho de 2013.
608
A veiculação de informações de cunho social promovida pela internet
vai revelar o acesso ao mundo digital como um verdadeiro direito mediador
na efetivação dos direitos socioeconômicos, ou seja, a disponibilização de
informações por meio da internet se constitui em elemento necessário e útil
“para a manutenção da vida humana em sua dignidade mínima” (GENTILLI,
2005, p. 131).
Nesse contexto percebe-se que a internet concede uma série de
informativos relacionados à saúde com propagandas diversas sobre as
campanhas de vacinação e prevenção do mosquito da dengue, por exemplo.
Já em relação ao direito social de educação, as redes também se apresentam
como ferramentas importantíssimas, segundo Néstor García Canclini (2005,
p. 219):
609
termos práticos de tecnologia seria possível criar um sistema de voto on-line.
(HARTMANN, 2007).
Outrossim, quanto ao governo eletrônico, Elisabeth Gomes, quando
assessora da Presidência da Anatel em 2002 (p. 6), referiu:
610
fortalecimento da vida em sociedade, o que lhe dará sustentação para
delinear sua opinião crítica e assim, como indivíduo ativo, contribuir no
exercício democrático da cidadania, porque esta “[...] não pode ser exercida
na ausência do direito à informação” (RADDATZ, 2012, p. 302).
Ademais, o direito de acesso à internet para obter informação também
se revela como um meio fundamental para efetivar os atuais direitos de
solidariedade internacional, como o direito ao desenvolvimento, ao meio
ambiente sadio, à paz e à autodeterminação dos povos, haja vista que foram
ultrapassados os limites de fronteira entre os países através da comunicação
mundial tão presente na sociedade pós-moderna.
Atualmente, todos os projetos elaborados por uma nação, querendo ou
não, terão influência internacional. Enfim, todas essas razões explicam o
porquê que “o direito à informação nesse modelo de sociedade é requisito
para compreender não só um momento histórico, mas uma nova cultura, em
que os indivíduos são cidadãos do mundo” (RADDATZ, 2012, p. 297).
Tais fatos se devem ao fenômeno da globalização. Hodiernamente,
todas as nações estão conectadas e interligadas por meio de objetivos em
comum. As relações estão cada vez mais acentuadas entre os países. Nesta
senda, Armando Cuesta Santos (2001, p. 1) complementa que essa era do
conhecimento é, igualmente, a era da maior produtividade do trabalho, e
quem não assimilar tal fato não poderá competir, o que equivale a dizer que
não sobreviverá no início deste século XXI.
Neste sentido, aponta-se:
611
financeiras, institucionais, culturais e sociais” na vida do homem moderno.
Desse modo, nota-se que todos os segmentos da sociedade, de uma
forma ou outra, foram atingidos pelas utilidades ofertadas pela internet. É
notório que grande parte dos serviços disponibilizados hoje, tanto pelo órgão
privado quanto pelo órgão público, são informatizados e exigem pelo menos
um mínimo de habilidades na área da informática.
613
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
614
Ijuí: Editora UNIJUÍ, 1998.
HELOU, Angela Regina Heinzen Amin; LENZI, Greicy Kelli Spanhol; ABREU,
Ana Donner; SAISS, Gerson; SANTOS, Neri dos. Políticas públicas de
inclusão digital. Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/index.php/renote/article/view/21920/12720>.
Acesso em 14 maio 2015.
617
POR UMA CULTURA PLANETÁRIA DOS DIREITOS HUMANOS:
APONTAMENTOS A PARTIR DO PENSAMENTO DECOLONIAL1
Carolina Menegon2
1.INTRODUÇÃO
1 Trabalho desenvolvido a partir dos estudos realizados pela autora para a elaboração do
primeiro capítulo da sua dissertação de mestrado intitulada “A COLONIALIDADE E O
PENSAMENTO FEMINISTA LATINO-AMERICANO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS DOS
FEMINISMOS NAS NAÇÕES “PERIFÉRICAS”.”
2 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande
621
mulheres, estrangeiros, colonizados e negros – estavam excluídos da
humanidade em função de seu padrão inferior de racionalidade (BRAGATO,
2013).
Mignolo (2008, p. 15) refere que esse fenômeno guarda estreita relação
com o incremento do contato dos europeus com outros povos justamente no
momento em que se processavam as revoluções modernas que
determinaram a posição central do Ocidente. Isso porque o encontro com os
índios, a simultânea expulsão dos muçulmanos e dos judeus da península
ibérica no fim do século XV e a submissão dos negros africanos à escravidão
levaram a uma específica classificação e gradação da humanidade.
Taylor (2001, p. 101), esclarece que os obstáculos com os quais se
depara um possível consenso entre os defensores de diferentes linhas de
pensamento em torno dos direitos humanos residem justamente no fato de o
discurso dos direitos ter suas raízes no sistema de valores da cultura
ocidental. Não apenas isso constitui um obstáculo, mas também a filosofia
que subjaz a esse reconhecimento e que pressupõe a primazia do indivíduo,
desafiando noções comunitárias de mundo que dão mais ênfase à forma
como esses indivíduos se relacionam e se posicionam na sociedade.
Taylor ressalta que na Europa os direitos nasceram como poderes do
indivíduo que se sobrepõe à sociedade. Daí, ao invés de falarmos que é
errado matar alguém, dizemos que temos direito à vida. O discurso ocidental
dos direitos envolve, de um lado, um conjunto de formas legais, pelas quais
a imunidade e as liberdades são inscritas como direitos com certas
consequências para a possibilidade de renúncia e para as formas nas quais
eles podem ser assegurados; e, por outro, uma filosofia da pessoa e da
sociedade que atribui enorme importância ao indivíduo, com significativa
atenção ao seu poder de consentimento. Para a maioria das culturas não-
ocidentais, sobretudo, isso não funciona. A filosofia ocidental supõe
indivíduos possuidores de direitos e encorajados a agir e a defendê-los
agressivamente contra a sociedade e os outros, enquanto aquelas culturas
dão mais ênfase à responsabilidade que esse indivíduo deve ter diante deles.
A concepção individualista ocidental é vista aos olhos de muitos povos como
criadora de homens autossuficientes, que leva à atrofia do senso de
622
pertencimento e a um grau maior de conflito social, enfraquecendo a
solidariedade social e aumentando a ameaça de violência (TAYLOR, 2001, p.
103).
Nesse sentido,a racionalidade, como critério de pertença à
humanidade, não levou ao reconhecimento da igualdade entre os seres
humanos, porque, antes, funcionou como critério de diferenciação e
exclusão. Por isso, nos tempos modernos, a racionalidade que abordava e
explicava o indivíduo, suas relações sociais e a justiça daí emergente tornou-
se um importante fator de exclusão daqueles seres humanos fora do padrão
cultural dominante, que, em última análise, encarnou a figura do europeu,
branco, do sexo masculino, cristão, conservador, heterossexual e
proprietário. Ao mesmo tempo em que a modernidade assentou a máxima
segundo a qual todo ser humano é pessoa, negou a mais da metade deles a
condição de humano. As mulheres latino-americanas, por exemplo, se
inserem nessa parcela a quem os direitos humanos foram negados.
Problematizando-se o conceito de racionalidade, procura-se
demonstrar que, por trás de uma aparente neutralidade, subjaz um projeto
de invisibilidade e opressão humana, reforçado pela ideia de raça e pelo
exercício de um poder de matriz colonial. Este trabalho consiste em um
exercício de crítica à concepção dominante dos direitos humanos, cujos
limites não permitem a proposição de novos discursos, mas tão-somente a
sinalização de caminhos que propiciem a reconstrução de discursos outros
que levem em conta histórias silenciadas, povos esquecidos e culturas
oprimidas. (BRAGATTO, 2014, p. 206).
Como os direitos naturais derivam da hipótese de um estado pré-social
ou de natureza, a sua concepção antropológica fundante é a de indivíduo
que existe e subsiste sozinho e onde a sociedade não é o momento de
realização do humano. O outro, portanto, não é o que possibilita a existência
do sujeito, mas o limite para o exercício da liberdade, direito natural por
excelência, tal como expresso no art. 4º da Declaração Francesa. Por isso, as
Declarações modernas não objetivavam exatamente a concessão de uma vida
digna para todos os seres humanos, mas garantir o exercício da liberdade
para aqueles que, por suas próprias forças, fossem capazes de exercê-la
623
(BRAGATTO, 2014, p. 210).
Assim, o colonialismo produziu a chamada inferioridade do colonizado
que, uma vez derrotado e dominado, acaba por aceitar e internalizar essa
ideia. O colonizador se sustenta no racismo para estruturar a colonização e
justificar sua intervenção, pois, através da difusão ideológica da suposta
superioridade do colonizador, sua ação é vista como benefício, e não como
violência, o que resultou na alienação colonial, na construção mítica do
colonizador e do colonizado, o primeiro retratado como herdeiro legítimo de
valores civilizatórios universalistas e o segundo, como selvagem e primitivo,
despossuído de legado merecedor de ser transmitido (FANON, 2008).
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
629
REFERÊNCIAS
631
AS CONTRIBUIÇÕES DO GIRO DECOLONIAL PARA UMA PERSPECTIVA
CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS
Tamiris A. Gervasoni1
Felipe da Veiga Dias2
1. INTRODUÇÃO
1 Mestranda com Bolsa Capes Prosup em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC. Graduada pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa “Direito,
Cidadania e Políticas Públicas”, coordenado pela Professora Pós-Doutora em Direito Marli
Marlene Moraes da Costa. Email: tamirisgervasoni@gmail.com.
2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista CAPES (nº
4Artigo.1º.Os
homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.
634
paz (e conquista de direitos humanos) o papel da ONU foi e continua sendo
muito relevante.
Em 1948 sob a influência do período pós-segunda guerra mundial foi
aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora concebida
inicialmente como uma fase procedimental dentro do planejamento da
Comissão de Direitos Humanos, é fato pacífico na órbita jurídica de que
direitos humanos independem de formalismos legais como, por exemplo, a
positivação. Em um contexto sintético a doutrina (na linha positivista)
tipifica esses direitos constitucionalmente garantidos como fundamentais,
dentro de uma ordem jurídica interna, já os direitos humanos englobariam
uma ordem jurídica internacional, desta maneira não estando vinculados às
definições básicas da lei. (SARLET, 2009, p. 29).
Este documento resgata princípios emergentes na Revolução
Francesa, e na Declaração de Direitos do Homem e Cidadão, como liberdade,
fraternidade e igualdade, contudo, salienta-se que a declaração de 1948 foi
realizada como uma fase de um procedimento, no qual se deu seguimento
em 1966 com o Pacto sobre Direito Civis e Políticos e o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CARVALHO, 1998, p. 59).
Outrossim, até os dias atuais ocorreram mais acordos no âmbito
internacional com o objetivo de reconhecer e assegurar direitos humanos,
como por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de
São José da Costa Rica) de 1969 que reiterou muitas das disposições no
Pacto de 1966, menciona-se ainda a Carta Africana de Direitos Humanos e
dos Direitos dos Povos de 1981 e a Convenção sobre a Diversidade Biológica
de 1992 assinada no Rio de Janeiro.
Nota-se que desde a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão,
progrediu-se muito no reconhecimento dos direitos humanos, sendo que tal
documento serviu e permanecerá como uma referência no caminho traçado
até os dias atuais. Não obstante, um de seus efeitos foi à condução ao
prisma da dignidade da pessoa humana, o qual pauta não somente Estados
e suas respectivas políticas públicas, mas também os direitos humanos nas
modernas Cortes internacionais.
Não obstante a importância e influência de todos os documentos
635
referidos sobre direitos humanos, que os reconhecem internacionalmente e
almejam sua garantia, é preciso compreender que os direitos humanos não
se resumem a tais documentos, seja no seu reconhecimento ou na própria
interpretação que lhes é conferida. Em geral, a maioria destes documentos
prega uma única visão de mundo, a ocidentalizada, não contemplando as
peculiaridades e necessidades locais de outras regiões do mundo.
É neste sentido, portanto, que insere-se a teoria crítica dos direitos
ao apontar às nuances das concepções já estabelecidas sobre direitos
humanos (em especial no campo dogmático e positivo), com o condão de
rompimento e ao mesmo tempo de contextualização a um novo pensamento,
realizando o que entende Alfaro como uma inversão ideológica no plano dos
diretos humanos (2010, p. 33-34). Esta transformação deve aproximar e
interconectar os componentes apartados pela racionalidade moderna, tendo
como base as demandas dos sujeitos concretos (2010, p. 35), ou ao menos
entender a sociedade civil como fundamento desses direitos.
A partir desta perspectiva os direitos humanos são compreendidos à
luz da possibilidade de que todos possam expressar “suas plurais e
diferenciadas formas de levar adiante a sua existência” (FLORES, 2009, p.
41-42). A teoria crítica dos direitos humanos objetiva a libertação do sujeito
que se vê historicamente discriminado e excluído do mundo da vida com
dignidade (FLORES, 2009, p. 12). Ressalta-se que, via de regra, os direitos
humanos remetem à ideia de “direito” enquanto norma jurídica, de direitos
previstos em “lei” e garantidos pelo Estado, fundamentados em valores (como
a liberdade, a igualdade e a solidariedade) e na própria condição de ser
humano (RUBIO, 2010, p. 13).
Os direitos humanos não podem ser considerados como um produto
cultural que surgiu em um contexto específico, limitando-se àquela
realidade. Tais direitos devem transcender a órbita das relações impostas
pelo capital desde o século XVI, vislumbrando-se nas diversas percepções
sobre o mundo de modo natural e que são/foram construídas historicamente
(FLORES, 2009, p. 18/32). Amarrar-se a um “pensamento único só nos
oferece como armas de luta um conjunto de propostas normativas
universalistas – os direitos humanos – absolutamente abstraídas de nossa
636
realidade concreta” (FLORES, 2009, p. 22). É a partir desta perspectiva, que
o item subsequente propõe-se a analisar a teoria crítica dos direitos
humanos como possibilidade para a superação de um pensamento unívoco e
simplificador da realidade.
642
direitos básicos garantidos pela Constituição e/ou pela Declaração Universal
dos Direito Humanos, mas em comportamentos simples que discriminam e
violam a dignidade humana, que não compreendem o outro pelo modo de ser
e se reconhecer, pela forma como reage e interage com o mundo.
No decorrer da história, os direitos humanos estiveram conectados às
ideias e aos dizeres de alguns filósofos e pensadores5, porém, a celeuma não
reside nas respectivas considerações destes, mas sim, no momento em que
se desconsidera que os direitos humanos são (também) produções sócio-
históricas e não apenas produções teórico-filosóficas (RUBIO, 2010, p. 14).
Eminentemente que as reflexões e obras acerca dos direitos humanos
exerceram e exercem papel importante, além de ampla influência, na
construção e consolidação dos direitos humanos, todavia, há de se ponderar
que tais reflexões restringem-se ao intelecto de seleto grupo de pensadores
europeus, que inicialmente no século XVII, iniciaram suas indagações e
meditações sobre tal tema.
5 Neste sentido, Sanchez Rubio em sua obra elenca alguns pensadores e filósofos como John
Locke, Francisco de Vitória, Rousseau, Hobbes, Kant, Norberto Bobbio, Ferrajoli, Habermas.
(2010, p. 14).
643
“reconhecia direitos a um protótipo bem específico da natureza humana: o
homem (sexo masculino), branco e, de preferência, dono de propriedades”.
(DIAS; COSTA, 2013, p. 32).
Sob este prisma, percebe-se que não há teoria crítica de direitos
humanos sem olhar decolonial, pois, os direitos humanos concebidos na
modernidade ocidental desde o início não albergavam outras culturas que
não a europeia. Ao revés, as culturas hegemônicas encasulavam-se sobre si
mesmas e visualizam o restante que não se enquadrava “como bárbaro, o
selvagem, o incivilizado e, como consequência, suscetível de ser colonizado
pelo que se autodenomina civilização”. (FLORES, 2009, p. 18).
Neste contexto, os direitos humanos foram transportados e
instaurados em outras partes do mundo como “um projeto moral, jurídico e
político criado na Modernidade Ocidental” (BRAGATO, 2014, p. 205),
entretanto, como resultado de tal dominação europeia e imposição de seus
valores, tais direitos estavam (e estão) desconectados com a realidade e
mentalidade de outros povos e culturas. Assim, a despeito da independência
de vários povos colonizados isto não representou “a ruptura com esta teoria
da história. Em boa parte, prosseguiram-na e é por isso que a zona de
contacto continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o
colonialismo político”. (SANTOS, 2007, p. 32). Persiste hodiernamente, ainda
no século XXI, ideias produzidas pelos pensadores europeus dos séculos em
contextos diferentes dos quais se tenta efetivá-las e é preciso quebrar este
vínculo, pois tais ideias não representam as necessidades e peculiaridades
de outras realidades que são vividas fora do contexto europeu, não alcança
as carências das mulheres, dos índios, dos negros, das crianças e de
qualquer outro que não seja homem, branco, heterossexual e cristão.
Desta forma, é indispensável que no trato de todas as questões
relacionadas aos direitos humanos em sua perspectiva crítica seja
ultrapassada a visão engessada e minimalista que reduz os direitos
humanos a uma ideia “oficial” àquilo que está previsto em documentos
internacionais, amparando-se “as nossas próprias produções culturais,
políticas, étnicas, sexuais, econômicas e jurídicas, com autonomia,
responsabilidade e autoestima em todos aqueles espaços e lugares sociais
644
onde se forjam as relações humanas”. (RUBIO, 2010, p. 11).
A partir de uma mirada decolonial e crítica dos direitos humanos será
possível (re)afirmar as diferenças, reconhecê-las e preservá-las,
concretizando-se o reconhecimento de múltiplas identidades e percepções
diferenciadas sobre o mundo, redefinindo o contexto a partir de uma
construção que atenda às necessidades e peculiaridades locais,
assegurando-se o caráter emancipador dos direitos humanos. A união da
perspectiva decolonial com a teoria crítica dos direitos humanos almeja
possibilitar a superação de uma pensamento unívoco e simplificador da
realidade, rejeitando-se o modelo simplista de consenso que não inclui a
pluralidade e o reconhecimento das diferenças como elementos
fundamentais para a concretização dos direitos humanos.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
DIAS, Felipe da Veiga. COSTA, Marli Marlene Moraes da. Sistema punitivo
e gênero: uma abordagem alternativa a partir dos direitos humanos. 1. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
646
humanos. Murcia: s.e., 2008.
RUBIO, David Sánchez; FRUTOS, Juan Antonio Senent de. Teoría crítica
del derecho: nuevos horizontes. Sevilla: Centro de Estudios Jurídicos y
Sociales Mispat, A.C., 2013.
647
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e
teorias discursivas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
648
DIREITOS HUMANOS EM PERSPECTIVA CRÍTICA: AFINAL, ONDE SE
SITUAM?
Iuri Bolesina1
Tássia A. Gervasoni2
1.INTRODUÇÃO
1 Doutorando e Mestre em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Civil pela Faculdade
Meridional – IMED. Integrante do Grupo de Pesquisa “Intersecções jurídicas entre o público
e o privado”, vinculado ao CNPq. Professor da faculdade de direito da IMED. Advogado.
Email: iuribolesina@gmail.com.
2 Doutoranda em Direito pela UNISINOS/Universidad de Sevilla (Espanha). Bolsista CAPES
651
direitos humanos para além da insuficiente dicotomia direito positivo versus
direito natural. Tal perspectiva, a teor do que propunha Roosevelt (1958),
sinaliza que direitos humanos residem em práticas concretas (pessoais,
sociais, simbólicas, culturais, institucionais) que se opõem a algum tipo de
opressão, plasmadas no respeito integral ao próximo e no exercício pleno da
alteridade, tudo em uma perspectiva de valorização pré-violatória (RUBIO,
2007, p. 14-30), de sorte que direitos humanos repousariam em pequenas
ações, como ajudar alguém a atravessar a rua, e em grandes ações, como a
luta por água potável. Direitos humanos, desta forma, seriam aqueles
direitos reconhecidos (em nível internacional ou nacional) em prol da
dignidade humana, e seriam também aquelas condutas que valorizassem a
condição de seres humanos, praticadas por qualquer um, em suas relações
humanas diárias.
Desta forma, direitos humanos sintetizam-se em situações reais (pois,
direitos humanos não existem em “abstrato”) de respeito à condição humana
do próximo, que são realizadas/desfrutadas no cotidiano e não dependem,
necessariamente, de um ente maior e mais poderoso para sua concretização
(RUBIO, 2007, p. 30). Por certo que os Estados guardam um importante
papel nesta tarefa de tutela (pré/pós violatória), mas não são os únicos
sujeitos a terem a oportunidade de agir. Tal postura, aliás, transforma a
anestesia em sinestesia e sinergia na proteção e promoção dos direitos
humanos, rejeita a ideia de um “rol engessado e dado de direitos humanos” e
abranda o abismo existente entre o violado e o assegurado, entre o dito e o
realizado (RUBIO, 2007, p. 13).
E, perceba-se que, longe de querer “banalizar” a ideia de direitos
humanos, sob a errônea visão de que “tudo é direito humano”, essa
perspectiva visa e atinge o revés, que é uma revisão do “pensar direitos
humanos” que, infelizmente, segue amarrada à uma cultura passiva,
limitada, de impotência e que teimosamente divide direitos humanos em
“teoria” e “prática” sem se dar conta dos prejuízos que tal distinção acarreta
(BARRETO, 2010, p. 19). Se em um lado está o risco da “banalização”, no
outro extremo está o risco do engessamento (standardização) simplista dos
direitos humanos (só são direitos humanos aquilo que nós dizemos para eles
652
que são direitos humanos) (RUBIO, 2010, p. 11).
Mas, afinal, onde estão os direitos humanos?
653
desde 1971 atua para levar apoio e saúde aos que dela carecem. Hoje são
mais de 34 mil profissionais, de diferentes áreas e nacionalidades, que
compõem a organização que se espalha por mais de 70 países.
No mesmo sentido estão os movimentos sociais populares que
(realmente) aspiram opor-se a algum tipo de opressão – normalmente
reveladas em alguma discriminação e/ou preconceito e em excessos de
poder (econômico, social, sexual, dentro outros). Ditos movimentos (que
representam manifestações sociais/culturais e, em geral, começam não-
violentos, porém pelo descaso da outra parte envolvida tendem a demonstrar
focos de violência) espelham processos de lutas e de ação social que visam
alargar e consolidar espaços de direitos humanos que, para aquele grupo,
em tese, vêm sendo negligenciados em alguma medida. Manifestações desta
monta costumam questionar standards (padrões) oficiais, habituais e/ou
insuficientemente institucionalizados de direitos humanos em uma
sociedade (RUBIO, 2010, p. 17). São exemplos contemporâneos os
“fazendeiros de Larzac”, na França, em 1971 (LIU, 2011), a “luta pela água”
em Cochabamba, na Bolívia, em 2000 (CONSTANCE, 2005), a “queda do
ditador Mubarak”, no Egito, em 2011 (BACHEGA, 2014).
Todavia, existe igualmente algo semelhante a uma “cifra oculta” dos
direitos humanos, composta por todas aquelas pessoas que nas suas
relações humanas rotineiras adotam posturas de (des)concretização de
direitos humanos ou, como quer Rubio (2010, p. 12): seres humanos que
fazem e desfazem direitos humanos a todo momento, em toda relação
humana social. Aquele que ajuda o deficiente visual a caminhar numa
calçada danificada; aquele que auxilia a criança a atravessar a rua; aquele
que corre estender o seu guarda-chuva ao outro que se molha na chuva;
aquele que é generoso ou tolerante com o colega de trabalho; são pessoas
que fazem direitos humanos em pequenos atos que tendem a não ser
noticiados e conhecidos pelos demais. Tratam-se de verdadeiros pequenos-
grandes atos de direitos humanos do cotidiano realizados por pessoas
comuns, em relações recíprocas e solidárias. Representam, em certa medida,
o reconhecer dos direitos do “outro” (BARRETO, 2010, p. 14).
É interessante, em todos esses casos mencionados (reais e hipotéticos),
654
que o primeiro sentimento que se sobressalta no intérprete é que essas
pessoas estavam “ajudando” outras e, de fato, estavam, porém, muito mais
que uma ajuda, essas pessoas comuns estavam concretizando direitos
humanos (pois ninguém há de negar que naqueles casos é perceptível o
direito à liberdade, à igualdade, à saúde, à democracia, enfim, à dignidade
humana) e certamente não porque se sentiram compelidos a cumprir a
Declaração Universal de Direitos Humanos. Não significa dizer, entretanto,
que essas pessoas sempre fazem direitos humanos; significa, sem embargo,
que essas pessoas, naquelas relações humanas concretas, fizeram direitos
humanos. Em outras relações, em sentido inverso e equivocadamente,
poderiam desfazer direitos humanos. É esse movimento (fazer/desfazer) que
revela a dinâmica aberta e ativa dos direitos humanos nas relações humanas
e vice-versa (das relações humanas nos direitos humanos): uma lógica
constante e recíproca.
Essa dinâmica se opõe, em distinta medida, ao senso comum e a uma
cultura simplista acerca de direitos humanos, na medida em que valoriza (e
aclara) que: (1) muito embora os estudiosos e filósofos que trataram da
temática direitos humanos sejam referências privilegiadas no assunto, não
são eles, apenas por teorizarem, que criam os direitos humanos, pois como
se viu direitos humanos se constroem e desconstroem no dia-a-dia, por
todos; (2) não são apenas os eventos históricos e os reconhecimentos oficiais
que fazem e desfazem direitos humanos. Pensar assim seria minimalista e
desconsideraria as pequenas-grandes lutas do cotidiano que nem sempre
são vistas, tampouco tuteladas; e (3) direitos humanos não existem apenas
quando violados e tutelados (ou não) pelo Estado ou pela Comunidade
Internacional (visão pós-violatória). É preciso se pensar direitos humanos em
um duplo sentido: num sentido pós-violatório e num sentido pré-violatório,
com amplo e incisivo destaque para o segundo.
Ao lado da dimensão formal (teórica, normativa, institucional) dos
direitos humanos reside uma dimensão que se realiza corriqueiramente, a
todo o momento, nas relações humanas sociais. Então, sim, direitos
humanos também residem nos “defensores” diários, nas pessoas comuns
que agem concretizando direitos humanos nos pequenos/grandes atos do
655
dia-a-dia.
656
aprisionado. É reconhecidamente uma inspiração iluminada no assunto
direitos humanos (LELYVELD, 2012).
Há também na história contemporânea o homem que, ao todo, ficou 27
anos da sua vida preso (cerca de uma década em uma cela de 4m²): Nelson
Mandela (1918-2013). Mandela foi o grande nome da luta contra a
segregação racial na África do Sul e em prol dos direitos civis e políticos da
comunidade negra. Em geral adepto das ações não-violentas, após um
episódio trágico resolveu valer-se da violência para fazer frente ao regime sul
africano: foi preso e condenado à prisão perpétua. Durante a sua reclusão,
reviu conceitos e voltou a apoiar ações não-violentas. Por forças civis e
políticas internacionais e locais, Mandela foi solto no ano de 1990,
recebendo o Nobel da Paz em 1993 e tornando-se Presidente em 1994 e o
principal nome responsável pelo fim do regime segregacionista daquele país
(MANDELA, 2012, p. 361-477/523-580).
Por fim, mas não por último, Eleanor Roosvelt (1884-1962) que, sem
embargo de todos os seus esforços em prol dos direitos das mulheres, é
reconhecida pelos seus efetivos esforços para a aprovação da Declaração
Universal dos Direito Humanos (BEASLEY; SHULMAN; BEASLEY, 2001,
535-540).
Pode-se dizer que esses são alguns dos “paladinos dos direitos
humanos” (YOUTH FOR HUMAN RIGHTS, 2014), representando alguns dos
marcos personificados na história dos direitos humanos que não só fizeram
a diferença como se tornaram gigantescas referências públicas na temática
“luta contra algum tipo de opressão e defesa dos direitos humanos”. Por
certo que se valeram de referenciais teóricos proporcionados por outros
grandes nomes (os “paladinos teóricos dos direitos humanos”), como Locke,
Hobbes, Rousseau e Kant – para ficar apenas nesses – que teorizaram as
bases do pensamento de valorização e respeito aos direitos humanos.
A história, em termos de direitos humanos, parece ser espiralada,
intervalando momentos de tensão, crise e bonança, num ciclo contínuo que
justifica o aparecimento de tantos nomes simbólicos nesta luta. Foram e são
essas pessoas que demonstram que o sucesso dos direitos humanos não
depende exclusivamente da vontade política dos Estados – apesar do
657
secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, asseverar o contrário (ONU 2013).
A propósito, cumpre o registro do fato notório de que não raro é “contra”
o próprio Estado que se trava a luta pela conquista de tais direitos; mesmo
se defendendo a sua natureza inata ao ser humano, os direitos humanos
dificilmente foram e são reconhecidos sem um processo de luta, merecendo-
se destacar que, apesar de não serem “concessões” estatais, pois o ato que
os institucionaliza opera justo “reconhecimento”, isso não afasta o seu
caráter de conquistas. A história é a prova definitiva de que os direitos têm
sido praticamente arrancados do poder estatal; os deveres a que lhes
correspondem foram, neste sentido, efetivamente impostos ao Estado. E é
preciso assinalar a coragem e a determinação daqueles que lutaram no
passado para a formalização de tais direitos, pois para garantir o direito de
greve, por exemplo, as pessoas tiveram primeiro que realizar greves (greves
as quais não tinham direito). Ou seja, as pessoas tiveram que reunir poder
social e político para alterar a relação de forças condicionante e pré-existente
(CAPELLA, 1993, p. 148).
Então, sim, é possível dizer que nessas emblemáticas figuras, ou pelo
menos nos seus ideais e nas suas lutas, residem direitos humanos.
658
1998, inconformada com a sua situação, com o descaso do Estado brasileiro
(o qual voltaria a ser verificado na CIDH) e com a morosidade do Poder
Judiciário, protocoliza uma denúncia na Comissão Internacional de Direitos
Humanos, a qual engendra uma “recomendação” para o Estado Brasileiro,
no ano de 2001. Diante disso, no ano de 2006, atendendo às recomendações
da CIDH, às determinações Constitucionais e aos predicados de direitos
humanos, o Brasil inaugura a Lei “Maria da Penha” (11.340/06), que dispõe
sobre a tutela e a proteção nos casos de violência doméstica contra as
mulheres (CAMPOS, 2008, p. 19-22).
Para ficar neste território brasileiro, outro caso é o do trabalho infantil.
O PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) mais atual realizado
pelo IBGE, no ano de 2010 (e publicado em 2013 [IBGE, 2013]), revelou
sobre a temática que existiam cerca de 3,7 milhões crianças e adolescentes
entre 5 e 17 anos trabalhando. O número, apesar de uma melhora
significativa em relação ao ano de 2002, quando havia cerca de 7,4 milhões
de crianças e adolescentes trabalhando, continua longe do cumprimento das
predisposições de direitos humanos sobre o assunto. Outro número
negativamente interessante é que dessa quantidade de crianças e
adolescentes, cerca da metade possui jornada de trabalho de 40 horas ou
mais.
O que há de comum em ambos os casos? Que não obstante a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em ambos os relatos, a
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher (1979) , no caso da Maria da Penha, e a Convenção sobre os direitos
da Criança (1989) , no caso do trabalho infantil, já reconhecerem direitos
humanos a esses grupos e determinaram que os Estados emprenhem
esforços na proteção e promoção deles; ainda assim as violações ocorreram
(e ocorrem) e foram determinantes para que o Estado empenhasse-se para
(tentar) resolver – não obstante os documentos normativos.
E, infelizmente, a história é farta neste sentido. Muitos anos antes, a
Carta Magna (1215), a Petição de Direito (1628), a Declaração de
Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789) e, ainda, mais recentemente a própria
659
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e algumas Constituições
adjetivadas de democráticas, todos documentos que buscavam a proteção
aos direitos humanos, acabaram por ter sua efetividade comprometida pela
vontade política e jurídica, pelos limites econômicos, pelos labirintos
normativos e das instituições dos Estados, pela cultura social de anestesia e
visão estreita e limitada em relação dos direitos humanos . Douzinas (2009,
p. 27) chega a afirmar que neste século obcecado por direitos humanos é
onde se encontram o maior número de violações.
De fato, efetivamente, os direitos humanos também se encontram em
documentos internacionais (tratados, pactos, declarações e afins) e nas
Constituições de alguns países, representando uma parte da dimensão
formal dos direitos humanos (aspecto normativo). Igualmente, os direitos
humanos estão nas ações das instituições e poderes dos Estados e da
Comunidade Internacional (aspecto institucional). Para se ter como exemplo
inicial, pode-se pensar que a Constituição brasileira em seu vasto rol de
direitos fundamentais prevê inúmeros direitos humanos. A própria
Declaração Universal dos Direitos Humanos é um ótimo exemplo de uma
lista de direitos humanos que devem ser concretizados – não obstante seja
comum referir o seu caráter meramente “declaratório”. Há, neste sentido,
legislações – internacionais e nacionais – que preveem direitos humanos
para as mais variadas carências humanas e que carecem ser tuteladas (por
ações pontuais ou por políticas públicas) em grande medida pelo Estado
e/ou pela Comunidade Internacional, dado a sua força, alcance e poder de
organização.
E, o que há de comum nestas esferas – internacional/nacional e
normativa/institucional – é o fato de que tais direitos se aplicam a todos
indistintamente (cada qual em suas esferas) e encontram dificuldade de
materialização na prática para todos. Se foi difícil colocar os direitos
humanos nos “papeis”, mais difícil está sendo tirá-los do papel para o nível
da concretização, simploriamente porque as palavras e as letras não
bastavam para a proteção e a promoção dos direitos humanos.
Muito em razão disso se criou a falsa ideia de que “na teoria” é de um
jeito, mas “na prática” a realidade é outra. Tal visão sobre direitos humanos
660
é minimalista e traz prejuízos incontáveis para todos. Assemelha-se a defesa
sobre a programaticidade dos direitos fundamentais sociais que por muito
tempo manteve a realização destes direitos num estado letárgico que
impulsionava constantes descasos e violações a eles e culminava no prejuízo
concreto a seres humanos. Os espaços normativos e institucionais dos
direitos humanos são elementares para sua realização, mas ainda assim, se
trabalharem com lógicas pós-violatórias, tendem a perpetuar essa cultura
estreita e falaciosa e a serem insuficientes (ou deficientes). Veja-se “na
prática” o que efetivamente ocorre: quantas demandas judiciais para a tutela
dos direitos humanos são intentadas com uma perspectiva pré-violatória
(antes que o dano ocorra)? E quantos e quantas vezes direitos humanos são
violados todos os dias sem que se haja notícia para que sejam tutelados
(RUBIO, 2010, p. 14-15)?
Outro problema que daí advém é a ideia de “delegação” da concretização
dos direitos humanos para os espaços normativos e institucionais que
engendra, no mínimo, duas consequências preocupantes. A primeira delas é
a criação de listas engessadas de direitos humanos por parte dessas figuras
jurídicas em detrimento da pluralidade e mobilidade que os direitos
humanos carecem e da visão unitária sobre a dignidade humana
(DOUZINAS, 2009, p. 28-29/379). O que se tem em concreto é que só são
direitos humanos aquilo que eles dizem para nós que são direitos humanos.
Ou, como quer Barreto (2010, p. 2), ocorre a fetichização que aprisiona os
direitos humanos. Surge uma barreira que divide o que “é” do que “não é”
direito humano e que separa eles de nós (quando isso, efetivamente, não
existe). A segunda, consequência da primeira, é que se esquece que direitos
humanos se (des)constroem nas relações humanos sociais diárias em
pequenos/simples e em grandes/complexas ações de pessoas comuns (ou
não). A concretização de direitos humanos não é exclusividade das
instâncias legisladas e das instituições (supra)estatais. Estes dois problemas
alimentam a cultura simplista, limitada e anestésica sobre direitos
humanos, aleijando sua plena potencialidade (RUBIO, 2010, p. 15-16).
Muito embora se deva prestar atenção no alerta realizado, é preciso
reconhecer que inúmeros Estados têm conseguido através da ação política e
661
judicial executar ações exitosas ou, pelo menos, parcialmente exitosas, que
favorecem os direitos humanos. Exemplos bastante evidentes disso são as
políticas públicas voltadas para a proteção e a promoção da diversidade, da
saúde, do acesso à justiça, da cidadania, da igualdade – para ficar apenas
nestas – e as decisões judiciais que são de modo democrático e
substancialmente alinhadas com os direitos humanos e com os direitos
fundamentais. De outro lado, porém, é preciso perceber que quanto maior
for a consciência e a cultura sobre direitos humanos, menor será o número
de denúncias e demandas judicias (RUBIO, 2007, p. 16), já que ou existirá a
tutela pré-violatória ou existirá o respeito aos direitos humanos de modo
espontâneo.
Onde estão os direitos humanos? Todos os dias uma nova razão para a
velha e mesma pergunta: um cidadão, um trabalhador (desde que não
tenham antecedentes criminais), um policial, um adolescente (desde que não
seja um “menor infrator”) assassinados e lá vem a pergunta de algum
incauto com a frase afiada: “e agora, onde estão os direitos humanos?”. Para
aquele que ainda não percebeu:
(1) Historicamente, os direitos humanos estavam mundo afora servindo
como inspiração para muitos ativistas (alguns que inclusive sacrificaram
suas vidas ou perderam boa parte em celas de 4m²) contra todo tipo de
opressão de um poder dominador, para que todos pudessem ter liberdade,
igualdade, democracia, afim de que a todos fossem reconhecidos algo tão
básico como o direito à vida e a liberdade de expressão para que, por
exemplo, todos pudessem usar suas sempre interessantes opiniões nas
redes socais, inclusive para maldizer os direitos humanos. Enfim, toda a
gama de direitos humanos (e fundamentais) já reconhecidos e conquistados
à custa de muita luta e sofrimento e que, ironicamente, carecem ser
ratificados cotidianamente.
E aqui, aliás, reside uma das maiores construções teóricas em direitos
humanos, qual seja, a de que todos os homens são dotados de inerente e
662
igual dignidade (SARLET, 2011, p. 52-53). Uma visão romântica que oculta
sua verdadeira essência de que o que é ínsito e igual é o direito de ter
reconhecida, respeitada, protegida e promovida a dignidade humana, ou
seja, o direito de ter dignidade humana. Com isso, afirma-se que a dignidade
humana realmente existe – não só no plano jurídico como adverte Sarlet
(2011, p. 50-51) –, mas que é algo que se conquista, se defende e se mantém
ao longo da existência humana.
(2) Efetivamente, os direitos humanos estão por aí, em todos os lugares!
Seguramente na sua cidade, plasmados em trabalhos voluntários, ações
sociais, políticas públicas, protestos, em passeatas e paradas, e em boas
ações. Outros, por sua vez, estão nas condutas de professores e alunos que,
em sala de aula estão tentando transformar alunos e colegas em cidadãos
responsáveis e conscientes em relação aos direitos humanos.
Direitos humanos não se tornam mais ou menos importantes pelo fato
de estarem escritos em qualquer lugar; isso faz com que eles se tornem mais
conhecidos apenas. Direitos humanos se tornam mais ou menos
importantes quando se percebe que esse ou aquele é elementar para a
dignidade de alguém. Daí porque realmente e no fundo, não importa se a
pessoa “X” conhece ou não a Declaração Universal dos Direitos Humanos se
ela for um sujeito predisposto aos direitos humanos. Se aquele rol
exemplificativo de direitos humanos não é cumprido de modo espontâneo e
natural, conhecê-lo não tornará a pessoa “X” mais humana e cumpri-lo,
apenas por isso, se torna algo artificial que não se presta para um alteração
da cultura senso comum de direitos humanos. Evidentemente que o
cumprimento forçado (pelo Estado) é melhor que o descumprimento e, em
alguma medida, auxilia a alteração cultural. Se humanos fazem direitos
humanos a recíproca é também verdadeira: direitos humanos fazem
humanos (DOUZINAS, 2009, p. 375). Aliás, os direitos humanos se não
estão em você, certamente estão por você.
Dita cultura senso comum apresenta como características mais
marcantes: (a) a crença de que os direitos humanos só existem quando
violados; (b) a crença de que os direitos humanos só existem e são tutelados
para determinados grupos (como os apenados e os homoafetivos); (c) a
663
incoerência e o antagonismo de princípios e de discursos (para o filho do
branco e rico é certo ser da “geração canguru”; para o filho do negro e pobre
é errado, pois devia estar trabalhando para melhorar de vida; para o casal
homoafetivo é errado (e feio) andar de mãos dadas no shopping; para o casal
heterossexual é certo (e bonito) qualquer forma de amor); (d) o entendimento
de que a discriminação velada não é discriminação; (e) a dificuldade de
praticar a alteridade; (f) a crença em valores absolutos de certo e errado, e o
uso de generalizações como fundamento (“todo mundo sabe...”; “ninguém faz
isso...”); (g) a hipocrisia e o discurso de superioridade como nota recorrente
nas manifestações; (h) a dificuldade de aceitar a pluralidade, a diversidade e
a mudança; (i) a tendência de “sujeitar” os direitos humanos a consciência
pessoal ou de um determinado grupo (“os direitos humanos são aquilo que
eu (nós) acho que são e se aplicam para aqueles que eu (nós) acho que se
aplicam” - esquema S-O, da hermenêutica filosófica); e (j) a dificuldade de
considerar em suas reflexões eventos e heranças histórico-culturais-sociais
(efetivados em discursos como “outro holocausto é impossível” ou “a mulher
sofre preconceito de gênero, mas eu por ser homem também sofro” –
lembrando que ser homem nunca foi tido como um demérito na história e na
cultura ocidental).
A questão é: e se tudo se invertesse? Se ser branco, rico, heterossexual,
magro, enfim, aquele dentro dos “padrões” (de quem?) fosse errado e feio?
Estariam essas mesmas pessoas sustentando o senso comum sobre direitos
humanos? Talvez se dessem conta de que não existe eles e nós... sempre foi
e é “nós”; de que é preciso ter medo de não ter direitos humanos; de que
direitos humanos nunca foram exclusividade da lei ou do sistema jurídico;
de que direitos humanos têm a ver com coisas pequenas e simples como
fazer o bem, respeitar, tratar as pessoas dignamente e também com coisas
grandes e complexas e tão importantes que passam desapercebidas no dia-
a-dia, como liberdade e igualdade; de que o fato de uma pessoa ser ateu ou
gay não quer dizer que ela é má, doente ou menos humana. E o mesmo se
pode dizer dos seus gostos, características físicas e preferências em geral; de
que o problema não é a lei, mas sim o preconceito e as pessoas ignorantes e
intolerantes; de que se pode perder mais do que se imagina em termos de
664
direitos humanos; e, finalmente, de que os direitos humanos sempre foram
seus, meus e de qualquer outra pessoa, independentemente de qualquer
coisa: não eram do bandido ou do pobre apenas (BOLESINA, 2014, p. 142-
143).
Portanto, já não se trata apenas de aumentar a consciência e a cultura
de promoção de direitos humanos, mas, sim, de perceber que somos todos
seres humanos carecedores de direitos humanos, que demandam uma
cultura onde esses direitos são percebidos a partir de uma lógica
emancipadora, pré-violatória e que pretende contribuir com os níveis de
humanização das práticas humanas sociais (RUBIO, 2007, p. 16/31). Daí
porque se reafirme que direitos humanos sintetizam-se em situações reais
(pois, direitos humanos não existem em “abstrato”), do cotidiano, práticas
pequenas e grandes, simples e complexas, de respeito à condição humana, e
que não dependem, necessariamente e exclusivamente, de um ente maior e
mais poderoso para sua concretização, como o Estado, pois podem ser
executados por pessoas comuns. Ou, como perspicazmente resume Barreto
(2009, p. 268): “direitos humanos encontram-se presentes em todas as
manifestações humanas”. Tal visão transforma a anestesia em sinestesia e
sinergia na proteção e promoção dos direitos humanos; ataca a trivialização
dos direitos humanos (FERRAZ JÚNIOR, 1990, p. 99); rejeita a ideia de um
“rol engessado e dado de direitos humanos” e abranda o abismo existente
entre o violado e o assegurado, entre o dito e o realizado.
Então, onde estão os direitos humanos? Em todos os lugares,
certamente.
7.CONSIDERAÇÕES FINAIS
665
surpresa e espanto os visitantes veem sua própria imagem refletida em um
espelho; em seguida um letreiro informa que aquela espécie matou mais do
que qualquer outra espécie conhecida sobre o planeta (MATURANA;
VARELA, 2007, p. 29).
Diante disso e de tudo o que essas páginas reúnem, será mesmo que a
grande questão é onde estão os direitos humanos? Como se viu, estão nos
“defensores” diários e comuns e nos pequenos/grandes atos do dia-a-dia,
estão nos atos históricos e nos emblemáticos ativistas, estão nas normas
previstas nas constituições e nos tratados internacionais, bem como nas
instituições do Estado, estão nas organizações como a ONU, a OEA e as
ONGS, enfim, estão em todos aqueles que se dedicam a fazer de um discurso
inspirador, uma realidade mais justa.
A história se repete, pois em tempos de liberdade dos quais se vive o
apogeu, estudos demonstram que nunca houve tanto trabalho escravo. Em
tempos de igualdade (formal, ao menos) há intolerância, preconceito e ódio.
Em tempos de globalização há exclusão social. Em tempos de progresso há
desigualdade entre ricos e pobres em níveis nunca antes tão elevados, há
fome e miséria.
Onde estão os direitos humanos? O texto ajuda a responder, sinaliza;
no entanto, há muito mais envolvido. Mas esses direitos, como toda a
abstração jurídica, dependem de seres humanos, dependem da humanidade,
pois como visto, não é de hoje que é preciso lutar para que a realidade
sonhada aconteça. Recordando o quase desabafo de Capella (1993, p.140),
as pessoas têm lutado por democratização política, contra a opressão e a
desigualdade, e têm conseguido direitos. Porque não é exatamente por
direitos que luta(va)m, assim como não é o mesmo ter direito ao trabalho e
ter um posto de trabalho. Os problemas que aqui se põem derivam
justamente do fato de que o primeiro não supõe necessariamente o segundo.
O reconhecimento dos direitos humanos é, destarte, um primeiro passo,
uma primeira e importante vitória. Não significa, contudo, que já seja hora
de a humanidade abandonar seus propósitos de justiça, afinal,
diferentemente de um conto de fadas em que o enredo sempre acaba com o
“final feliz”, a história da humanidade possui muitos finais – diários finais de
666
pessoas reais –, mas só um ponto final, que só aparece quando se acabar a
humanidade.
REFERÊNCIAS
BACHEGA, Hugo. Três anos após queda de Mubarak, Egito segue dividido
e imprevisível. 2014.Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/01/140124_egito_praca
_tahrir_hb_lgb.shtml>. Acesso em: 15 fev. 2014.
BEASLEY, Maurine H.; SHULMAN, Holly C.; BEASLEY, Henry. The Eleanor
Roosevelt encyclopedia. Westport:Greenwood Press, 2001.
DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. Trad. Luzia Araújo. São
Leopoldo: Unisinos, 2009.
667
Novos Estudos (CEBRAP), nº 28, outubro, 1990, p. 99-115.
668
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na constituição federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.
669
MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS COMO MECANISMO DE
CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA E GARANTIA DOS DIREITOS
HUMANOS
1. INTRODUÇÃO
672
conferir identidade própria, destaca-se que “O repertório de lutas
construídas por eles demarcam interesses, identidades, subjetividades e
projetos de grupos sociais que não só mobilizam as pessoas, mas mobilizam
ideias e valores que contribuem para impulsionar mudanças sociais.”
(GOHN, 2013, p.40-41).
Cumpre registrar que no final dos anos 70, segundo Gohn (2011, p.
281):
673
GOHN, 2011, p. 283), o que se modificou a partir dos anos 80.
Progressivamente, os movimentos sociais passaram a ter outro
referencial e a serem fortemente influenciados pela política estatal. Destaca-
se que a história e a sociedade não mostram que é pela articulação dos
grupos que se pode perceber as mudanças no cenário sociopolítico,
econômico e cultural.
Com efeito, é notável o que Gohn (2011, p. 283) apresenta sobre
essas mudanças ao observar que:
679
jornais e revistas, considerados tradicionais, embora ainda persistam, estão
perdendo espaço para os meios virtuais, como Twitter, Blogs, website e
Facebook.
Para melhor compreensão do assunto abordam-se neste estudo
apenas aspectos relativos ao Facebook, que é considerado um dos “[...] meios
das novas tecnologias de informação que possibilitam não apenas a conexão
e estruturação das ações, mas têm sido grandes divulgadores das
informações e alimentadores das ações e reações em cadeia” (GOHN, 2013,
p. 150). Em tempos recordes, eles têm mobilizado milhões de seguidores pelo
mundo todo.
A Internet surge como um mecanismo apto a reviver e a revigorar a
cidadania que habita nos cidadãos, na vontade de melhorar a qualidade de
suas vidas, organizar as comunidades locais e facilitar a troca de
informações. Desse modo, os indivíduos, conectados em rede, podem
discutir e apresentar aos governantes as soluções para problemas
cotidianamente vividos e esquecidos pelos parlamentares que, em muitos
momentos, tratam apenas de interesses e vantagens particulares (OLIVEIRA;
RODEGHERI, [s.d.], p. 2).
A fim de alterar a lógica de comunicação entre as pessoas, a Internet
as aproximou e possibilitou discussões e debates dos mais variados temas,
principalmente em relação à cidadania e democracia, e não apenas com
relação aos direitos e garantias fundamentais.
Pode-se afirmar, inclusive, que as informações que circulam de forma
livre nas redes sociais revolucionaram a liberdade de expressão e de
manifestação, alicerces da democracia, principalmente se for considerada a
dimensão de igualdade dos meios de comunicação. Isso comprova que a
conexão em rede facilita a ação e a interação entre as pessoas, bem como a
participação cidadã no espaço público.
Ao longo dos anosos meios de comunicação têm contribuído para
alterar as formas de expressão da opinião pública, haja vista que as novas
tecnologias são grandes facilitadores dos processos de distribuição de
informação em prol de uma democracia mais participativa.
Necessário explicitar, portanto, a importância dos meios de
680
comunicação, partindo-se da ideia de que existe liberdade de expressão
quando há a publicação de notícias, informações e entretenimento que vão
desde os jornais até o Facebook. Não se pode deixar de mencionar ainda que
“os fóruns de discussão online utilizadas pelos membros dos movimentos
sociais para comunicarem entre si propiciam a discussão sobre os mais
variados temas sociais.” (ALVES, 2013, p.3).
Ao observar essas formas de manifestação e informação é importante
analisar a função que o jornal exerce na atualidade, já que ele concorre com
o meio virtual que tem custo zero, enquanto o impresso exige um pagamento
muitas vezes superior àquilo que a pessoa pode dispor.
Nesse contexto, o Facebook também é uma empresa e se faz valer da
publicidade para cobrir os custos que, de certa forma, estão embutidos na
publicidade/markentig e nos patrocinadores. Ao usar as informações do
Facebook, tanto as enviadas quanto as recebidas, o cidadão faz uso das
redes de telecomunicações, realizando via privada ou pública, o pagamento
de mensalidades contratadas com operadoras de serviços, tais como a Oi,
Net, Vivo, Claro, aparelhos utilizados para recebimento do sinal, outros
equipamentos, etc.
Mesmo que os meios virtuais sejam utilizados por mais de 89.000
milhões de brasileiros, conforme dados divulgados pelo site Facebook, para
Ana Paula de Araújo (2015, [s.p.]):
A função do jornal é basicamente a comunicação. É um dos meios
mais rápidos de ficarmos informados a respeito do que acontece no
mundo. Dentro do jornal há várias sessões que, por sua vez, abrigam
vários tipos de textos. Há algumas características que são comuns a
todos estes textos, enquanto há outras que servem para
individualizá-los. (grifo da autora).
683
necessariamente pelo mapeamento do cenário dos movimentos sociais no
Brasil. Essa mobilização de pessoas de todos os Estados, e em torno de um
objetivo comum, é fundamental para a compreensão do que está
acontecendo atualmente com a mobilização dos movimentos sociais
urbanos.
Partindo da análise dos movimentos sociais no Brasil destaca-se que
a breve abordagem se refere à Era da Participação, ou seja, de 1978 a 1989,
que proporciona a compreensão sobre a temática.
Observa-se que os movimentos ocorridos naquela época aconteceram
de forma isolada, principalmente na zona rural, e tiveram pouco contato com
a zona urbana. É inegável, contudo, que sempre houve um diálogo e debates
acadêmicos que visavam acima de tudo compreender a importância da luta
pela liberdade de expressão, manifestação e reunião, haja vista a ausência
do Estado no cumprimento das demandas sociais.
Gohn (2011, p. 275) enfatiza que “Assim, ao chamar a atenção para o
papel do Estado na dinâmica dos movimentos sociais” não se está apenas
apontando para a ausência de um dado importante nos estudos, mas
também fazendo uma leitura dos fatos segundo uma matriz teórica de
abordagem.
Os movimentos sociais urbanos surgiram em vários segmentos da
sociedade, mas sua culminância, nos anos 80, se deu em torno das questões
urbanas, as quais se acentuaram com o aumento populacional e com o
deslocamento de grandes contingentes de pessoas da área rural para as
cidades. Sujeitas a várias formas de exclusão social, essas pessoas passaram
a se organizarem torno de um objetivo comum, ou seja, à luta pela moradia
(GOHN, 2011, p. 276-277).
É interessante observar que a realização desta análise se constitui
num esboço da trajetória dos movimentos sociais urbanos no Brasil, que
sempre atuaram em prol da democratização do país, mais acentuadamente
na área dos movimentos sociais urbanos.
A exclusão que se origina do padrão de desenvolvimento econômico
adotado pelo país gera a emergência de novos atores, que passam a exigir
não apenas mudanças dos rumos da política, mas também o cumprimento
684
das políticas públicas divulgadas nas campanhas políticas e nos planos
governamentais dos políticos.
É necessário ressaltar que o padrão de desenvolvimento que gera a
exclusão não pode persistir e a sociedade civil precisa se mobilizar para
reverter este cenário. Admite Gohn (2011, p. 296) que "[...] o padrão de
desenvolvimento que se instaura legitima a exclusão como forma de
integração. Passa a ser exclusão integradora, modelo perverso de gestão da
crise [...]", recuperando a legitimidade política e criando condições para um
novo ciclo de crescimento econômico com a redefinição dos atores
sociopolíticos em cena.
A tendência atual é a estruturação de grupos sociais que, com a
emergência de novos atores, tais como cidadãos articulados em redes que
participam de associações, entidades do Terceiro Setor, Organizações Não
Governamentais (ONGs), podem modificar o cenário das relações sociais,
trabalhistas e políticas e, assim, exigir um projeto social voltado à inclusão
social.
A emergência de novos atores ganha força neste século e mostra que
podem se mobilizarem torno de temas que dizem respeito a todos, tais como
saúde, educação, moradia, enfim, direitos de cidadania.
Vários foram os movimentos nacionais pela redemocratização do país
e acesso aos serviços públicos. O marco histórico, porém, foi o movimento
nacional pelas “‘Diretas Já’”, que reivindicou as eleições diretas para
presidente da República, em 1984 (GOHN, 2011).
O papel dos movimentos sociais nesta época são fenômenos que
transformaram as relações sociais, sendo agentes do processo de
transformação. Entre os movimentos sociais populares urbanos se destaca o
“Custo de Vida – Carestia” que, em 1980, lutou contra os altos preços dos
alimentos. Além desse destacam-se ainda os movimentos pelos transportes
públicos e pela saúde, em 1982, demonstrando que o povo brasileiro já
estava atento aos problemas referentes à falta de políticas públicas e sociais
do governo para o atendimento das demandas da sociedade.
É imprescindível observar que além dos movimentos nacionais
populares urbanos, outros movimentos, tais como sindicais, estudantis,
685
rurais, ecológicos, dentre outros, a partir de 1984 até a presente data,
apresentam a emergência de novos atores sociais que lutam por melhoria de
condições de vida, bem como pela manutenção da democracia.
Destacam-se, ainda, os movimentos nacionais intitulados “Ética na
Política”, os quais lutam contra a corrupção (responsável pela articulação
que depôs o ex-presidente Collor de Mello, em 1992), bem como os “Caras-
Pintadas”, movimento estudantil de 1992, que surgiu após as “Diretas Já”.
Verifica-se, portanto, que há uma nova prática de organização, interlocução
e articulação para a concretização da democracia e liberdade de expressão.
Os referidos movimentos urbanos e nacionais deixaram a militância
como herança para a nova geração, abrindo-lhe a possibilidade de
participação “[...] com um controle social mais efetivo, menos cooptada e
menos caudatária às redes de clientelismo.” (GOHN, 2013, p. 171).
Caracterizando novas formas de organização social, articuladas pelos meios
de comunicação e através de fóruns específicos, os movimentos sociais
urbanos reconhecem no plano dos valores ou da moral que tais processos de
mobilização giram em torno de projetos sociais mais amplos do que apenas a
reivindicação sem objetivos, apenas para tumultuar o processo democrático.
Com as mudanças sociais e políticas ocorridas no século XXI
emergem novos atores sociais, mobilizando-se em movimentos sociais
urbanos como um mecanismo de inclusão social e oposição aos obstáculos à
construção da democracia, segundo os princípios da cidadania. Registra-se,
ainda, que a mobilização das massas no cenário político nacional é uma
forma de pressão ou de manifestação para fazer o chamamento da
sociedade, apresentando uma nova agenda, com novos atores, que querem
ser partícipes do projeto de consolidação do espaço democrático.
É evidente que os movimentos sociais urbanos ganharam novos
contornos nesse século e não podem ser pensados de forma isolada do
contexto histórico e conjuntural do momento, no qual os novos
interlocutores – não apenas aqueles representados pelas ONGs, associações,
Terceiro Setor, mas cidadãos que mesmo não pertencendo a um ou outro –
mobilizam-se e têm uma identidade modelada a partir das novas agendas de
ideias e demandas (GOHN, 2013, p. 173), quais sejam, tornarem-se
686
protagonistas da história em curso.
Há um processo de reformulação de novas políticas que vai alterando
a identidade dos movimentos sociais populares, e não envolve apenas os
cidadãos de uma determinada categoria socioeconômica e cultural. Assim,
novas categorias passam a integrar e participar dos movimentos sociais, seja
por meio de passeatas e fóruns, ou por debates nas redes sociais.
Partindo da constatação de que novos interlocutores estão surgindo e
se mobilizando, Gohn (2011, p. 301) acredita que "A construção de uma
nova concepção de sociedade civil é resultado das lutas sociais
empreendidas por movimentos e organizações sociais nas décadas
anteriores, que reivindicaram direitos e espaços de participação social."
Nesta perspectiva, alguns elementos são necessários para a
participação de sujeitos que antes eram meros espectadores e agora se
inserem nos movimentos sociais como protagonistas. Suas ações devem ser
permeadas pela ética e solidariedade, pois conforme Gohn (2013, p. 173),
elas precisam aprender a “[...] identificar projetos diferentes ou convergentes,
gerados como respostas às pressões e demandas socioeconômicas que elas
fazem.”
De tudo isso se abstrai que “Este espaço é trabalhado segundo
princípios da ética e da solidariedade, enquanto valores motores de suas
ações, resgatando as relações pessoais, diretas e as estruturas comunitárias
da sociedade [...].” (GOHN, 2011, p. 301). Ao mesmo tempo,
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
______. Teorias dos movimentos sociais. 9.ed. São Paulo: Loyola, 2011.
LEVY, Pierre. Inteligência Coletiva. São Paulo, SP: Ed. Loyola, 2011.
691
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO
INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS (DIR) EM ÁREAS ESPECÍFICAS
1. INTRODUÇÃO
692
internacionalização dos direitos humanos, bem como criação e a adequação
do Direito Internacional dos refugiados, bem como os avanços ocorridos no
âmbito nacional no que se refere à efetivação da tutela dos direitos
humanos, especialmente no que diz respeito ao Direito Internacional dos
Refugiados, abrindo espaço para novos e mais aprofundados estudos sobre
esta temática frente à relevância e perfil desafiador e urgente da matéria.
693
vista econômico e político, como a criação de organismos
internacionais planejados antes mesmo do fim do conflito, na
Conferência de Bretton Woods, em 1944.
O mundo havia vivenciado a ascensão dos nacionalismos, e,
conforme leciona Hobsbawm, em sua clássica obra Nações e
nacionalismo, esse fenômeno foi um dos principais motores dos
conflitos e das perseguições aos indivíduos.
E, entre tais perseguições, a empreendida pelos alemães nazistas aos
povos de origem judaica foi a que mais se notabilizou, ficando
conhecida como Holocausto. Entretanto, não apenas judeus foram
perseguidos e assassinados no período. As perseguições também
atingiram militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos,
deficientes motores, deficientes mentais e pacientes psiquiátricos.
Enfim, todos os que não se encaixassem no ideal de perfeição nazista
poderiam ser vítimas. E esse receio de que, amanhã, qualquer um
poderia ser a próxima vítima fez com que os líderes dos principais
países pensassem em soluções institucionais para evitar novas
perseguições (CASADO FILHO, 2012. p.64).
697
humanos, o que teve início pela criação da Declaração.
Desta forma, embasada no teor de todos os artigos da Carta das
Nações Unidas, com ênfase especial ao seu primeiro artigo fica consolidado o
movimento de internacionalização dos direitos humanos.
698
A lacuna existente na Carta das Nações Unidas quanto à significação
da expressão “Direitos humanos e liberdades fundamentais” trouxe muita
discussão para o meio jurídico e político mundial, eis que nesta expressão
está o ponto nodal dos direitos humanos. Foi com o advento da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que foi definido, com precisão o
elenco dos “direitos humanos e liberdades fundamentais”. Logo em seu
artigo primeiro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aduz que
“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
(PIOVESAN, 2007).
Neste diapasão, trazendo a lume as palavras de Ramos (2013, p. 18),
as quais sinteticamente traduzem a significação da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, descrevendo os direitos políticos e civis e os direitos
econômicos, sociais e culturais:
No preâmbulo da Declaração é mencionada a necessidade de respeito
aos “direitos do homem” e logo após a “fé nos direitos fundamentais
do homem” e ainda o respeito “aos direitos e liberdades
fundamentais do homem”. Nos seus trinta artigos, são enumerados
os chamados direitos políticos e liberdades civis (arts. I-XXI), assim
como direitos econômicos, sociais e culturais (arts. XXII-XXVII).
Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à
integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o
direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à
liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião.
Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à
segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e
o direito à educação, bem como o “direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis” (direito ao mínimo existencial – art. XXV).
700
asilo e do refúgio, pois o asilo remonta ao final do Século XIX, ao passo que o
refúgio foi tutelado somente após o final da I Guerra Mundial, ou seja, no
Século XX. Ainda, o asilo, tanto o territorial quanto o diplomático, encontra-
se ligado apenas ao fato de existir, em si, perseguição política que enseje o
direito de proteção a algum indivíduo e é praticado, sobretudo, em
perspectiva regional, no âmbito latino-americano. O direito de refúgio, por
sua vez, é assegurado universalmente e aplicado, então, em âmbito
universal, a partir de cinco motivos geradores do bem fundado temor de
perseguição, seu elemento essencial, quais sejam: raça, religião, opinião
política, pertencimento a um determinado grupo social e nacionalidade
precípua de proteção da pessoa humana em toda e qualquer circunstância,
tendo-a, consequentemente, como destinatário final de suas normas
processuais e substantivas, são considerados vertentes complementares e
convergentes do DIP (ALMEIDA, 2012).
No âmbito regional a tutela dos direitos humanos é dividida em três
sistemas: Sistema Europeu de Proteção dos direitos Humanos, Sistema
Americano de Proteção dos Direitos Humanos e Sistema Africano de proteção
dos Direitos Humanos (FROEHLICH; VIEIRA, 2009).
No âmbito da proteção internacional dos Direitos Humanos acima
mencionados será efetuado estudo sistemático de cada um dos três eixos
individualmente, com maior ênfase no DIDH – Direito Internacional dos
Direitos Humanos e no DIR – Direito Internacional dos Refugiados, que é
aquele que, muito embora seja parte integrante dos demais, a saber:
703
da Convenção, pode-se definir “refugiado” como:
• pessoa que é perseguida ou tem fundado temor de perseguição;
• por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou
opiniões políticas e
encontra-se fora do país de sua nacionalidade ou residência;
• e que não pode ou não quer voltar a tal país em virtude da
perseguição ou fundado
temor de perseguição.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
704
implementar políticas públicas baseadas na tutela destes direitos. Evidencia-
se que esta mudança de paradigma político teve por base a democratização
que teve seu ponto inicial em 1985 e culminou com a promulgação da
Constituição Federal de 1988. Foi com estas alterações no âmbito da política
interna que o Brasil voltou a ter respeito em âmbito internacional quanto a
questão da proteção dos direitos humanos, o que era e ainda é de interesse
da comunidade internacional.
A partir da Emenda Constitucional 45 de 2004, os Tratados
Internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário
passam a ter hierarquia de norma constitucional, passando assim, a fazer
parte integrante do Texto da Constituição.
Quanto a importante questão sobre o Direito Internacional dos
Refugiados e sua adequação e incorporação ao ordenamento Jurídico
Brasileiro, tratada na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados pode-
se destacar que muitos avanços houve, mas muitos ainda estão por vir a fim
de efetivar os direitos dos refugiados, os quais são garantidos por Tratados
Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Dentre as lacunas
evidenciadas quanto aos direitos dos refugiados, tanto no Brasil quanto no
âmbito internacional, mister se faz destacar a necessária evolução jurídica
quanto aos direitos do refugiado ambiental, eis que novos conceitos
surgiram e outros tantos vão surgir. Assim premente que novos institutos
sejam criados, ou que os atuais sejam devidamente adequados à nova
realidade, novos conceitos de refugiados fazem parte da realidade atual.
Portanto, este viés dos “Direitos Humanos é assunto instigante, desafiador e
emergencial, na medida em que busca romper com conceitos clássicos e
vigentes, e necessário para a eliminação ou amenização das inseguranças e
dos riscos hodiernos a que a sociedade está exposta” (ALMEIDA, 2015).
Neste diapasão ficou evidente a constante alteração das necessidades
dos seres humanos, as quais deve o Direito Internacional dos Direitos
Humanos, bem como seus Estados Signatários, estar em consonância, o que
exige constante adequação e evolução jurídica, bem como o pleno e total
comprometimento do Estado Brasileiro à causa dos direitos humanos.
705
REFERÊNCIAS
707
A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL: O
JORNALISMO JUSTICEIRO E A OFENSA AOS DIREITOS HUMANOS.
Danielli Zanini1
Vinícius Bindé Arbo de Araujo2
1. INTRODUÇÃO
708
mídia.
A partir dessa perspectiva, questiona-se qual é o grau de influência
que o jornalismo justiceiro tem na vida das pessoas? Mais do que isso, qual
é o impacto da notícia veiculada de forma errônea, com caráter manipulador
e sob o falso exercício da liberdade de expressão na vida das pessoas, bem
como quais direitos fundamentais lhes são feridos e quais as consequências
que isso pode representar na vida de um ser humano? Ainda há
preocupação com a reparação do dano causado e, havendo, seria possível
restaurar o bem maculado?
Essas são questões relevantes, uma vez que interferem nos direitos
humanos, direitos fundamentais do indivíduo e, portanto, tão importantes,
haja vista que se relacionam com o íntimo de cada ser. Questões que
merecem ser pensadas e debatidas, a fim de que as pessoas desenvolvam a
habilidade de discernir o que é sensacionalismo do que é jornalismo correto
e informativo, que em vez de ferir direitos, zela pela garantia destes.
2. DESENVOLVIMENTO
710
avançada ou a busca por respostas vindas também das comunidades que
deixam a desejar. Os telejornais também pecam em suas coberturas
superficiais, ávidos por furos de reportagem que se confundem com
abordagens de pouca credibilidade. Poucos são os programas inclusivos,
preocupados em levar ao público informações embasadas e qualificadas, a
partir do depoimento de especialistas e pesquisadores, principalmente em se
tratando de temas sensíveis como, por exemplo, a segurança pública.
Nesse sentido, a perspectiva de Wolf, citado por Marília Denardin Budó
(2006), encaixa-se com a interpretação que este estudo pretende apresentar
acerca do tema proposto:
712
investidas nas “medidas duras e decisivas” se esvanecem tão logo se
apresentam (BAUMAN, Zygmunt, 2004).
713
influência da opinião pública no exercício crescente da função
simbólica do sistema penal. Ele acaba servindo como resposta à
demanda por segurança, mesmo que na prática não realize as
funções instrumentais prometidas. “Na verdade, na ‘política como
espetáculo’ as decisões são tomadas não tanto visando modificar a
realidade dos espectadores: não procuram tanto satisfazer as
necessidades reais e a vontade política dos cidadãos, senão vir ao
encontro da denominada ‘opinião pública”.
714
vezes construído pela própria mídia sensacionalista. Um jornalismo egoísta e
mal intencionado, que busca atingir os seus objetivos mercadológicos, sem
se importar com o prejuízo causado a seres humanos que veem a sua vida
exposta e disposta como se vivessem em uma terra sem leis.
716
Desenvolvimento Humano baixo (IDHM 0,587, o que coloca Castelo
do Piauí em 4.467ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros) e
com cerca de 20% da população em situação de extrema pobreza
(renda per capita mensal abaixo de 70 reais).
717
um jovem branco nordestino.
O estudo fez uma simulação, excluindo a desigualdade racial no
cálculo das taxas de assassinatos de jovens no Brasil. O objetivo foi aferir o
impacto da desigualdade racial na vulnerabilidade juvenil à violência. Assim,
na hipótese de que a taxa de homicídios de jovens negros igualasse a de
jovens brancos, o IVJ – Violência e Desigualdade Racial diminuiria até 9,8%,
como ficou demonstrado na simulação realizada no Distrito Federal. Em
Alagoas, o impacto seria uma redução de 9,2% do índice.
O estudo calculou ainda o IVJ – Violência e Desigualdade Racial
referente ao ano de 2007, o que permitiu comparar a realidade de 2007 com
a de 2012. O Piauí foi o estado em que o índice mais cresceu, isto é, onde
houve uma piora de 25,9% no tocante à maior vulnerabilidade de negros. O
índice piauiense passou de 0,379 (em 2007) para 0,477 (em 2012). Realidade
bem diferente viveu o Rio de Janeiro, cujo índice teve a maior queda do país:
– 43,3% (de 0,545, em 2007, para 0,309, em 2012).
Apesar desse retrato nítido de que ainda resta uma carência grande de
políticas públicas que evitem ou minimizem estes impactos, a grande mídia
pouco interpretou ou divulgou estes números em horário nobre. Não há
espaço para questionamentos sérios e necessários como esses, que deveriam
estar mais presentes na vida cotidiana do público.
O jornalista, escritor e professor Juremir Machado da Silva (2012),
crítico dos meios de comunicação, com fina ironia, nos apresenta alguns
argumentos referentes à imprensa e à televisão:
718
2.3 As mídias independentes e a atenção aos direitos humanos
719
2013, é a Agência Pública. Entre suas pautas estão temas que ocupam
pouco espaço e valorização nas mídias tradicionais, como a questão
indígena, a construção de hidrelétricas e barragens, a luta por moradia e
contra o desalojamento de famílias, em benefício de grandes grupos
imobiliários ou de eventos esportivos milionários.
Romper com a hegemonia de alguns grupos empresariais jornalísticos
no Brasil é uma maneira de oportunizar à sociedade visões completamente
diferenciadas de uma série de questões, mas, principalmente, abrir
oportunidade para a obtenção de novos olhares sobre os direitos humanos,
em uma luta que vem sendo reforçada de forma universal. É um meio
inovador de cidadania e de debate sobre direitos.
A opinião de FERREIRA (s/d) novamente deve ser destacada:
720
Hoje, o volume de informações é vasto e sem limite, o que acaba
prejudicando, de certa forma, a interpretação e seleção daquilo que
realmente faz sentido ou tem importância. Além de receber a informação, o
cidadão deve situar onde pode ter participação efetiva, não apenas ilusória.
A partir disso, MARTÍN-BARBERO (1998) novamente deve ser destacado:
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
722
dos séculos, como forma de estabelecer limites e garantias individuais e
coletivas. Conquistas essas que são universais.
Nesse sentido, o debate proporcionado pelas questões apresentadas no
presente trabalho é de suma importância, pois uma vez que evidente a
influência exercida pela mídia e, em especial, pelo jornalismo, na formação
da opinião pública e, como consequência, em seus atos, faz-se necessária a
luta pela mudança de paradigmas e pela conscientização da população,
visando uma sociedade e um direito penal que respeite o ser humano
enquanto indivíduo dotado de direitos, fundamentais e humanos.
REFERÊNCIAS
724
A BUSCA POR RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES E O
EMPODERAMENTO DA SUBJETIVIDADE: O “CLUBE DA LUTA” E A
REBELIÃO DOS DESAJUSTADOS
1. INTRODUÇÃO
729
instituições, outros modos de participação se fortalecem. Homens e
mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos
–a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como me informar,
quem representa meus interesses –recebem sua resposta mais
através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação de
massa do que pelas regras abstratas da democracia ou pela
participação coletiva em espaços públicos.
730
ao “interno” (HABERMAS, 2007).
O consumismo cria esta noção de “nós” e “eles” através da capacidade
econômica de aquisição de bens, do que se consome e onde se consome,
dando gênese a grupos fechados de compradores que ao adquirir passam a
hibridizarem-se com o que adquiriram. Subjetivamente torna-se o objeto,
neste momento a relação lógica de “ser” e “ter” transformam-se em “ter” e
“ser” (BEDIN; MENDES, 2015).
Os indivíduos “desajustados” que apesar de serem consumidores,
pagarem tributos, possuírem empregos no mercado de trabalho, são
renegados de serem alguém e é onde o Clube da Luta acolhe a todos.
Transforma-se em uma comunidade fechada, onde estes passam a serem
reconhecidos, criam laços de solidariedade, fraternidade e alteridade entre
eles. Os ferimentos os fazem serem reconhecidos nas ruas, começam a
perceber futuros membros por características sociais, culturais, sexuais,
físicas, étnicas e econômicas que eles mesmo possuem.
Desta forma, a violência os une. A subversão os faz tornarem-se
alguém no meio da multidão. Mesmo que considerados inimigos públicos.
“Enquanto permanecer no clube da luta você não é definido por quanto
dinheiro tem no banco. Você não é o seu trabalho. Não é a sua família nem é
quem acha que é” (PALAHNIUK, p. 178, 2012).
No instante em que as identidades perdem o cunho moral estabelecido
pelas éticas sociais, que a transformavam em algo inerente do ser humano, a
relação de sentimento de pertença, a algum lugar, religião, comunidade,
determinada cultura ou grupo, torna-se essencial, para o estabelecimento do
conceito de “nós” e a garantia de que esse grupo fornece ao “eu” (LUCAS,
2010).
No livro Clube da Luta os modelos de vida do American way of life não
controlam os membros do grupo, ao integrarem o Clube da Luta estes
sentem-se dentro de algo que os transforma em uma unidade, têm a
sensação de “nós” e podem sentir que estão incluídos em algo, não sendo
assim os excluídos.
No mundo contemporâneo, onde formas fragilizadas dos conceitos de
lealdade e de vínculos mais profundos há uma transitoriedade permanente,
731
onde tudo escorre por entre os dedos, nada mais é certo e sim vazio,
mutante e líquido (BAUMAN, 1999). Com essas mudanças constantes os
sujeitos passam a buscar formas de garantia da segurança e nisso, retornam
à ideias de comunidade, pois estas estabelecem uma segurança nas
constantes dicotomias que levam as incertezas.
E ao perceberem-se como “rejeitados” e entenderem-se desta forma, os
membros o clube da luta passam a reagir de forma distinta da padronizada,
a desconstruir as promessas do governo e da mídia que o consumo os faria
heróis e decidem assumir uma posição de participação na sociedade
(PALAHNIUK, 2012)
732
Deus sendo mau era melhor do que não conseguir atenção nenhuma. Talvez
porque seja melhor o ódio de Deus do que a indiferença Dele”(PALAHNIUK,
p. 176, 2012). O sentimento de desamparo amplia-se, causando uma tristeza
psicológica que precisa ser suprida.
737
Ademais, faz-se por intermédio de terrorismo a profanação daquilo que
épercebido por certa sociedade como sacro. De forma subversiva, tenta-se
corromper o viés de divino e eterno. Neste sentido, os alvos do terrorismo são
os objetos, locais ou construções, os quais representam os símbolos daquilo
que se busca destruir. Colocar a cultura em choque sempre éo objetivo
maior.
Com a profanação destes espaços através da violência, espera-se que
estas saiam da posse pelo “divino” e retornem àposse dos humanos. Ao
retornar àposse dos humanos, eles poderão repensar a sua relação com
estes objetos. Somente ao sacrificar-se algo, que isto pode novamente ser
compreendido como pertencente ao homem, desta forma o homem pode
destituir o poder, outrora divino, de instituições, objetos e locais (AGAMBEN,
2008).
A reconquista do sagrado por meio da subversão éuma forma de
demonstrar que não hápreceitos imortais e indestrutíveis. Desde as matizes
do iluminismo, o homem colocou-se na posição de Deus, entretanto, busca
de forma constante justificar relações, atitudes, ações, os quais necessitam
de um poder dominante. Desta forma, a maior parte da sociedade entende
confortável a manutenção de poderes superiores, sacros, que lhe trazem
conforto e justificativa em suas atitudes.
Com símbolos de poder que parecem ser eternos sendo destruídos,
instaura-se o medo e, em um nível maior de medo, instaura-se o estado de
exceção (ZIZEK, 2014). Paradoxalmente, o estado de exceção causa mais
medo, visto que quebra as garantias tão fundamentais para uma vida fora do
caos. Compreende-se que no mundo atual diversas culturas coexistem,
entretanto, quando uma cultura apresenta-se subversiva, retira as demais
de sua zona de conforto, pois ameaça-lhes a manutenção do modo de vida
secularizado e esta mudança causa agonia aos seres humanos (ZIZEK,
2003).
O indivíduo que compõe este mundo da contínua exceção échamado
por Agamben (2008) de Homo Sacer e vive em um estado de não-lei, ou de
força de lei opressora,
738
o Homo sacer de hoje éo objeto privilegiado da biopolítica
humanitária: o que éprivado da humanidade completa por ser
sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de
serem os campos de concentração e os de refugiados que recém
ajuda humanitária as duas faces, “humana”e “desumana”, da
mesma matriz formal sociológica (ZIZEK, p.111, 2002).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
_____. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
742
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São
Paulo: Max Limonad, 2000.
743
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência. Percurso filosófico.
Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
______. Vivendo no fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São
Paulo: Boitempo Editorial. 2014.
744