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edição 13

capa: © beatriz meneses

edições anteriores

1. futuro do lixo | dezembro 2012 7. consumo consciente | junho 2015


2. subúrbios e identidades | março 2013 8. Empreenda-se | dezembro 2015
3. realismo mágico no século xxi | outubro 2013 9. vozes do velho chico | maio 2016
4. mobilidade urbana | abril 2014 10. somos todos olímpicos | agosto 2016
5. menos30 | outubro 2014 11. assista a esse livro | janeiro 2017
6. educação: mitos e fatos | dezembro 2014 12. corpo: artigo indefinido | junho 2017
caderno

CONSELHO EDITORIAL Globo


editorial Entre Dados 4
Djamila Ribeiro,
filósofa Comunicação

1
Edna Palatnik, Sérgio Valente, diretor
gerente de Desenvolvimento de Dramaturgia da Globo onde estamos e como
Fernanda Torres, Responsabilidade Social
atriz e escritora Beatriz Azeredo, diretora chegamos até aqui?
Gabriela Moura,
Globo Universidade ABERTURA Muito prazer, dataísmo 8
relações-públicas e escritora
George Moura, Viridiana Bertolini, gerente
linha do tempo Estamos na era do Big Data 10
autor e roteirista Viviane Tanner, supervisora
Ilona Szabó, artigo Ricardo Cappra 16
cientista política Equipe
Jailson de Souza e Silva, Fatima Gonçalves artigo Pablo Ortellado 24
geógrafo e professor Gabriela Gonzaga
Lázaro Ramos, Gisele Gomes
ator e escritor Helena Klang
Marcus Barão, Isabella Salles
presidente do Fórum da Juventude da CPLP Juan Crisafulli

2
Mônica Waldvogel, Leticia Castro
jornalista Milana Bernartt a realidade da vida conectada
Debate Christian Dunker, Cora Rónai e Jailson de Souza e Silva 30
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Beatriz Azeredo Ciberativismo 40
Viridiana Bertolini
Gisele Gomes Artigo Cristiano Borges 42
Caderno Globo 13
São Paulo, setembro 2018 Artigo Luciano Meira 52
CURADORES DESTA EDIÇÃO Tema: Entre dados
Cora Rónai, jornalista ISSN 2357-8572 artigo Paulo Feldmann 56
Ricardo Cappra, cientista de dados
ENtrevista Eugênio Bucci 60
Editora-chefe
Artigo Pedro Lenhard 68
Graziella Beting Editor: Globo Comunicação
e Participações S.A.
Edição e entrevistas Globo Universidade
Cristina De Luca Endereço: Rua Evandro
Rubem Barros Carlos de Andrade, 160
São Paulo – SP
revisão CEP 04583-115 para onde vamos?
Ricardo Jensen de Oliveira
artigo Luli Radfahrer 76
Projeto gráfico
Casa 36 EDIÇÃO DIGITAL ENTREVISTA Andrés Ochoa 80

3
O Caderno está
versão digital disponível em versão INFOGRÁfico Cidades inteligentes 86
Casa 36 digital no link:
APP.CADERNOSGLOBO.COM.BR ARTIGO Luciana Bazanella 92
ilustrações
Beatriz Meneses PODCAST CRÔNICA Cora Rónai 100
Esta edição tem uma versão em
Produção gráfica GLOSSÁRIO 102
podcast, feita em parceria com a
Toninho Amorim Rádio Globo, disponível no link:
radioglobo.globo.com/podcasts
editorial

trevistas, debates e análises produzidos por profissionais


e pesquisadores que têm a realidade tecnológica no centro
de seus estudos. As ilustrações são da artista Beatriz Me-
neses, que, ao combinar elementos vintage e atuais, re-
produz, nas imagens, uma ideia de futurismo retrô, uma
estética crítica e divertida sobre o nosso tempo.

Entre Dados
Neste momento único da história da humanidade, em que
nativos digitais convivem com pessoas que nasceram mui-
to antes da era da internet discada, outro fenômeno me-
A revolução digital – para citar apenas um dos nomes que rece registro. Na mudança de culturas e hábitos trazidos
descrevem a entrada da tecnologia de modo irreversível pela revolução digital, as telas e janelas se multiplicaram, PODCAST
nas culturas e sociabilidades de nosso tempo – trouxe com fazendo com que a televisão ampliasse seu alcance e as suas
ela uma série de possibilidades, potenciais de aproximação, possibilidades. Hoje, a tecnologia permite que seu conteú- Como o assunto é tecnologia e transmissão
interação, amplificações de vozes dentro da sociedade ja- do esteja presente em múltiplas plataformas: do celular ao de dados digitais, com esta edição o Caderno
mais vistos. Com o propósito de refletir e entender como computador, do avião ao elevador. Dessa forma, desde o inaugura uma outra plataforma de difusão
chegamos até aqui, onde estamos em termos de evolução final de 2017, por meio de todas as suas bases, a Globo fala, de seus conteúdos. Além da versão impressa
tecnológica, fazer um exercício de futurologia e apontar todos os dias, com mais de 100 milhões de brasileiros. Além e digital (disponível em app.cadernosglobo.
caminhos para onde vamos, esta edição do Caderno se disso, sabe, cada vez mais, quem é, como é e do que gosta com.br), agora a publicação tem um podcast
debruça sobre esta realidade interconectada, em que, cada um desses 100 milhões de uns. Tudo isso porque estão – um programa de rádio disponível em meios
mesmo sem se darem conta, todos estão em rede, nave- – e estamos – todos conectados em redes de dados que digitais. Em projeto realizado em parceria
gando, circulando e gerando uma quantidade jamais pro- permitem explorar a potência e a particularidade de cada com a Rádio Globo, cada edição vai se
duzida de dados e informações. uma dessas individualidades. transformar em uma série temática. A primeira,
Entre Dados, tem cinco episódios, trazendo
Para nos guiar na exploração desse universo, o Caderno Assim, enredados e conectados, fazemos este exercício de material complementar ao da publicação.
contou com um corpo de conselho editorial reformulado, estimular a reflexão sobre o tempo que vivemos e tentar Com locução da atriz Bruna Linzmeyer,
trazendo nomes importantes para o tema, além da parti- nos preparar para o que vem por aí. o Podcast Caderno Globo está disponível nos
cipação de dois curadores, especializados na área. Nas principais aplicativos tocadores de podcast
páginas a seguir, apresentamos uma série de artigos, en- Boa leitura. e na página radioglobo.globo.com/podcasts.

4 5
6
1.
8
Muito prazer, dataísmo
Linha do tempo

10
Sociedade Big Data
Os novos guardiões

16 24
estamos
e como
até aqui?
7
chegamos
Onde
Muito prazer,
Dataísmo
Não há como fugir. No mundo atual – e seguramente CRISTINA DE LUCA
é jornalista com MBA em Marketing
também no futuro próximo – caminhamos pela PUC-Rio, especialista em
tecnologia, editora at large da IT
todos para nos tornarmos adeptos do Dataísmo, Mídia, blogueira do UOL e editora
ora adoradores, ora encantadores de dados convidada deste Caderno

Todos nós, ainda que de forma Big Data, a inteligência artificial e se esses moldes fossem a melhor Para coibir abusos, vamos criando (LGPD), aprovada pelo Congresso “O dataísmo declara que o universo
inconsciente, agimos de modo a a internet das coisas. Nada do que forma de nos dizer o que deveríamos pesos e contrapesos, filtros e me- Nacional e cuja entrada em vigor consiste em fluxos de dados, e o va-
maximizar os fluxos de dados, li- fazemos está imune ao imenso vo- ser ou querer. canismos de controle, ora éticos, está prevista para meados de 2020. lor de qualquer fenômeno ou enti-
gando-nos a mais dispositivos e lume de dados gerados a cada inte- ora legais, baseados em aspectos Ela determina que qualquer empre- dade é determinado pela sua con-
serviços digitais, produzindo e ração social, econômica e política. Anúncios direcionados, na internet relacionais, comportamentais, con- sa, não apenas as digitais, antes de tribuição para o processamento de
consumindo mais informação e no celular, estão ficando tão es- correnciais, e por aí vai... A rápida coletar um dado – via cadastros, dados”, escreve Yuval Noah Harari.
através deles. Não por acaso, Eric Não é exagero afirmar que os da- pecíficos que às vezes temos a sen- evolução tecnológica nos obriga textos ou fotos –, especifique de
Schmidt quando ainda ocupava o dos – e as informações geradas a sação de estar sendo perseguidos. mais e mais a nos preocuparmos maneira clara e objetiva o uso que As sementes do dataísmo foram
cargo de chefe executivo do Goo- partir deles – são fator de produ- E, não raro, nos pegamos pensando com novas modalidades de contro- pretende dar a ele e solicite autori- lançadas há muito tempo, quando
gle, afirmou que de dois em dois ção semelhante à terra, ao capital como é possível que os serviços on- les de privacidade, termos de uso, zação do titular para isso. as pessoas aprendiam como passar
dias produzíamos uma quantida- e ao trabalho. E que seu valor pro- line acertem os filmes que gosta- códigos de conduta, regulamentos informações de uma para outra.
de de informações semelhante dutivo serve para resolver – não ríamos de ver, a música que gosta- técnicos, aumento de transparência A LGPD especifica a maneira cor- De lá para cá, esses canais de co-
àquela criada do início da civili- obstante também gerar – proble- ríamos de ouvir, determinem se e indicadores de confiabilidade. reta como as empresas poderão municação se multiplicaram e se
zação até hoje. É provável que ago- mas complexos, com apoio na estamos a fim de sair com alguém processar, controlar, hospedar ou tornaram mais poderosos. A digi-
ra já o façamos diariamente. promessa de melhorar e simplifi- ou prestes a engravidar (e até adi- Como contraponto às possibilida- compartilhar uma informação em talização amplificou seu alcance.
car a vida cotidiana de todos. vinhar de quem!), se estamos tris- des de mercantilismo exacerbado, todo o ciclo de vida do cliente, se-
Esse cenário tem levado teóricos tes ou a fim de ir a uma festa (ou manipulação e vigilância, surgem jam elas públicas ou privadas e o E como a evolução das tecnologias
como Yuval Noah Harari a susten- Em termos práticos: em muitos oli- ambos), como comprovam estudos também movimentos libertários cliente, beneficiário de serviços de informação e comunicação está
tar que o dataísmo acabará por gopólios digitais de hoje, nós, usuá- da Coding Rights, organização fe- como o Creative Commons, o pagos, gratuitos ou públicos. cada vez mais acelerada, é hora de
considerar obsoleto o homem rios, que nos cremos beneficiários minista que busca esclarecer o fun- hacktivismo e o biohacking, para começar a pensar em um freio de
quando as redes interligarem todos dos serviços, somos também ope- cionamento das tecnologias digitais. ficar nos mais conhecidos e, de Também será necessário dizer ao arrumação. Fenômenos como as
os organismos e objetos, se esten- rários, matéria-prima e mercadoria. certa forma, abordados nos artigos cidadão/cliente/consumidor que fake news ou as denúncias sobre
derem por todo o universo e forem A Coding Rights alerta, por exemplo, desta edição. Muitas das iniciati- informação poderá ser usada ou governos feitas por Edward Snow-
como Deus: controlarem tudo, por A venda e o uso dos dados para cons- que ainda que não nos importemos vas desses movimentos partem do guardada, como e até quando isso den são apenas alertas de que a de-
toda parte, com os seres humanos, truir opinião pública artificial e para em sermos perseguidos pela última princípio de que a venda e o uso será feito, a exemplo do que já mocracia e o livre mercado venceram
ou seja, nós, destinados a nos fun- produzir segmentação de mercado, marca de tênis ou pelo último des- indevido de dados não começaram acontece em todos os países da até não por serem intrinsecamente
dirmos a elas. o uso de robôs pelo marketing, são tino de voo sobre o qual pesquisa- com a internet, mas ganharam União Europeia, com a entrada em “bons”, mas por serem minimamen-
apenas alguns exemplos da relação mos, escândalos como o da Cam- novos contornos a partir dela. E vigor do Regulamento Geral de te viáveis para melhorar o sistema
Exagero? Pelo sim, pelo não, con- assimétrica que temos com as pla- bridge Analytica trouxeram à tona isso poderá piorar se não tivermos Proteção de Dados (GDPR), em global de processamento de dados.
vém prestar mais atenção em como taformas digitais que usamos dia- uma prática comum e perturbado- consciência de que os donos de maio de 2018.
nos inserimos nesse processo de riamente. Produzimos insumos para ra das plataformas digitais: a vasta grande parte dos dados, em pri- A vida é feita de algoritmos. O flu-
digitalização da humanidade, por a fábrica de perfis das redes sociais, quantidade de dados pessoais co- meira instância, somos nós. Sem esses cuidados, ficará cada vez xo de informações é fundamental
ora aparentemente irreversível. O que, por sua vez, nos encaixam em letados sobre nós é cada vez mais mais difícil continuar caminhando para a humanidade. Mas é preci-
cenário atual é de transformações seus moldes binários e polarizados usada para descobrir nossos desejos É esse o princípio que rege a Lei para a consolidação da economia e so entendê-lo e aperfeiçoá-lo.
contínuas e radicais, dirigidas pelo e nos revendem nesses pacotes, como e nossas necessidades. Geral de Proteção de Dados Pessoais da cidadania digitais. Sempre.

8 9
ESTamos na era 1895
Cinematógrafo
Irmãos Lumière

do big data Telégrafo


sem fio
Guglielmo
Marconi
Geramos diariamente mais de 2,5 quintilhões 1887 1896
de bytes (1 = 10 elevado à 18a potência), Ondas
eletromagnéticas
Radiocomunicações
A Suprema Corte dos Estados Unidos concedeu a
Nikola Tesla o mérito da criação do rádio, já que
e esse número só faz crescer graças Heinrich Hertz
Marconi usou 19 patentes dele no seu projeto.
À parte os seus trabalhos em eletromagnetismo

à distância cada vez menor entre as 1876 e engenharia eletromecânica, Tesla contribuiu
em diferentes medidas para o estabelecimento

descobertas tecnológicas e sua Telefone


Alexander
da robótica, controle remoto, radar e ciência da
computação e para a expansão da balística, da

aplicação em produtos e serviços


Graham Bell
1880 física nuclear e da física teórica.

Fotofone
Graham Bell e
1891
Cinetoscópio
Sarah Orr
Thomas Edison

1838 1856
De onde Código Morse
Samuel Morse
Teletrofone
ou telégrafo

viemos falante
Antonio
Meucci

1827
Primeira imagem
permante (foto)
Joseph Nicéphore
Niépce

1839
1642 Serviço postal
como o Surgimento das
telecomunicações
Máquina de conhecemos hoje,
Pascal com o início da
venda de selos
1439-40 Daguerreótipo
Prensa
(fotografia)
© Fotos: wikimedia commons
Gutenberg
Niépce/Daguerre

1614 1837
Logaritmo
John Napier Telégrafo
Samuel Morse

10 11
:-)
1983
Fidonet
1972 1973 1979 1984
Surgimento
Tom Jennings
Creeper, o Primeira ligação de um Emoticon Domínios (.com,
primeiro vírus telefone celular, sem fio Kevin .org, .edu etc.)

da radiodifusão, Robert Thomas


Morris
Martin Cooper

Primeira patente de RFID


Mackenzie Jon Postel

da informática 1970
(identificação por
radiofrequência)
Mario W. Cardullo

(computação
Termo Internet
é usado pela
primeira vez por
1981
IBM-PC e MS-DOS

e microcomputação), Vinton Cerf

1976
Padrão responsável
pela popularização dos

da comunicação
microcomputadores
Padrão Ethernet pessoais

1965 Robert Metcalfe

de dados 1950-51
Univac (primeiro
Correio
eletrônico

e da internet 1980
computador a processar
dados numéricos e
alfanuméricos, fabricado Bitnet (acrônimo
pela Remington Rand)
e o Fortran
1974 de “Because It’s
Time to NETwork”
TCP/IP
ou “Because It’s
(primeira
Snark (primeiro
neurocomputador) 1959 1963-64
especificação
da internet)
There NETwork”)

Mavin Minsky Cobol


Linguagem Robert Kahn e
Grace Hopper
Basic Vinton Cerf
Aplicações

1935-36 1975
comerciais John Kemeny e
Thomas Kurtz
Máquina de Turing Altair 8800
Alan Turing (primeiro computador)
Determinante para a
ciência da computação
1946 1962 Ed Roberts 1978
Computador digital Arpanet Apple II
1971
e a formalização do Primeira câmera digital
eletrônico (Eniac) Bob Taylor e Larry Steven Sasson Steve Jobs e
conceito de algoritmo.
John Prester e John Roberts (primeira Steve Wozniak
4004 (primeiro
William Mauchly rede operacional de
microprocessador)
e o Assembly computadores, do Usenet
Ted Hoff
Departamento de Tom Truscott
1925-27 Defesa Americano)
e-Mail, como o
conhecemos hoje
e Jim Ellis
Televisão
(teledifusão)
Philo Farnsworth
1947 Ray Tomlinson Protocolo Xmodem
e criação do
Invenção do telefone móvel primeiro BBS
Ward Christensen

1956 Markup Language


1943 © Fotos: wikimedia commons
Charles Goldfarb
Surge o conceito
1919-20 Primeiros estudos sobre
neurocomputação
da Inteligência
Artificial
Primeiro SPAM

1941
Rádio comercial Gary Thuerk
Warren McCulloch John McCarthy
(radiodifusão)
Z3, a primeria
máquina de
computação
programável
Konrad Zuse
13
2013
2005 Primeira menção ao
termo Web 2.0
2016
YouTube Democratização

Web chega 2007 2009 2012 do uso da


inteligência
a 1 bilhão iPhone A Web atinge a marca artificial
WhatsApp
de usuários consolida o de 2,4 bilhões (machine e deep
smartphone e de usuários learning,

2002
Netflix
2000
computação
consolida o Entrada em operação cognitiva).
Videolog Wi-Fi, MySpace e streaming de da rede 4G LTE
Adam Kontras Friendster vídeo

BitTorrent
Bram Cohen
2006 2010
Amazon Watson
Twitter (primeira
plataforma de
computação
1998 cognitiva)
Primeira definição de
wearable computer
2003 Pinterest e
LinkedIn
(computador vestível) Instagram

1985 1991 Steve Mann


e Skype

Multimídia Gopher (protocolo para 2014


(com o
lançamento
distribuir e buscar
arquivos)
Google
Larry Page e Sergey Brin 2004 O ano dos
fundam a empresa Orkut, wearables
do Amiga Paul Lindner e
Facebook (dispositivos
1000) Mark McCahill
e Flickr vestíveis)
Veronica (sistema de
busca no Gopher) 1997-98
Steven Foster
e Fred Barrie
Blogs
Jorn Barge
2001
Jphone
primeiro celular
Banda larga móvel, com câmera
com a entrada em
operação das redes 3G 1994 1999 Banda larga
Napster

Nasce a Web 2.0,


Wikis vira o padrão de acesso
1992-93 Shawn Fanning Internet móvel
1990
caracterizada pelo
Mosaic (o primeiro Surge o Conceito do Big Data
Archie browser) conceito de como usamos hoje
Primeiro sistema de internet Doug Laney (embora o

compartilhamento
buscas da web das coisas
1995
termo apareça pela
Kevin Ashton primeira vez em
um periódico
1988
O acesso

Protocolo IRC
comercial à
Internet chega
1997
da Nasa de 1997)

Wikipedia
de dados. Com ela,
1989
ao Brasil

a era do Big Data


(Internet
© Fotos: wikimedia commons
Relay Chat) A Web atinge a marca Larry Sanger
Jarkko Oikarinen WWW (World Wide Web) Geocities, com de 1 milhão de sites

e a computação
(a interface gráfica da as páginas registrados no mundo
internet, como a usamos hoje) web pessoais
Tim Bernes-Lee O termo cloud computing

cognitiva
(computação em nuvem)
@TheWorld foi usado pela primeira vez
Primeiro provedor internet Ramnath Chellappa

15
ARTIGO
por RICARDO CAPPRA

Sociedade
Big Data
SEM capacidade analítica será difícil
usufruir da revolução provocada
pelA proliferAção de dados

M
uito se fala em tecnologia exponencial, ou seja, o cresci-
mento não linear de recursos tecnológicos que a socieda-
de tem à sua disposição. Podemos perceber isso através das
ferramentas que estão no nosso dia a dia, como Wi-Fi,
smartphones, televisores conectados à internet, relógios
inteligentes, entre tantas outras. Mas, enquanto essa tec-
nologia toda entra em nossas vidas, outra revolução silen-
ciosa ocorre simultaneamente, a Revolução dos Dados.

Todos os recursos tecnológicos que surgiram ao nosso redor trouxeram


ricardo junto softwares nos quais circulam muitas informações: aplicativos
capPra é cientista- que contam o número de passos, que monitoram a frequência cardía-
-chefe da Cappra Data
ca, o status de nossos relacionamentos, as fotos do último show a que
Science. Em seu
laboratório são criados
assistimos, os hábitos de nossos amigos próximos e até daqueles dis-
métodos que ajudam tantes, sem falar em todos os registros de dados em nosso ambiente de
no desenvolvimento trabalho, que conta com mais sistemas para armazenar e disponibili-
analítico de indivíduos zar informação. No centro de tudo isso estão os dados.
e organizações globais
como Ambev, Barcelona
F. C., Coca-Cola, World
Bank, Gerdau, Globo,
Santander, Unilever,
UOL e muitas outras.

16 17
ARTIGO

A sociedade rapidamente adotou todos esses re- O crescimento contínuo de diferentes tipos de
cursos tecnológicos, e assim nos tornamos gran- dados, associado ao volume de dados e à velo-
des geradores de dados, muitos deles armazena- cidade da informação, ganhou o nome de Big
dos em bancos de dados de governos (como Data. Fenômeno que vem causando uma verda-
impostos que pagamos e tantas outras informações deira transformação em todos os setores da so- Como lidar com tanta informação? ter muitos dados para a
que fornecemos), de empresas (registrando todas ciedade, sejam eles sociais ou econômicos. O Esse é, sem dúvida, um dos prin-
as nossas atividades e processos) e obviamente potencial do Big Data está sendo explorado por cipais desafios atuais. Com tantos
tomada de decisão nem
na vida pessoal (quando enchemos as redes sociais empresários que criam startups milionárias a dados disponíveis, como definir sempre é o melhor caminho.
com novas informações e interações). É muito partir dos dados que armazenam, pessoas que quais armazenar, quais usar para
difícil afirmar o volume de dados que a sociedade usam essas informações para influenciar milhões gerar informação e quais descar-
é preciso transformá-los
está gerando atualmente, isso porque muitos de indivíduos ou, ainda, governos que, a partir tar?! Recentemente estudamos em em análises relevantes
deles estão sob domínio privado, fazendo com dos seus registros, podem tomar decisões que nossos laboratórios o impacto des-
que a contagem exata se torne praticamente im- afetam toda a sociedade. É possível afirmar que, se consumo de informação não
possível. Estima-se que, em 2020, a sociedade irá hoje, uma das principais fontes do poder é a qualificada em nossas vidas e des-
gerar 47 zettabytes (1 zettabyte é o mesmo que 1 informação derivada da ciência de dados. Quan- cobrimos uma doença, a intoxi-
milhão de petabytes; 1 petabyte significa 1 milhão do entendemos que dados qualificados, organi- cação por consumo excessivo de informação,
de gigabytes), sendo que em 2015 geramos 12 zados e facilmente visualizados podem se trans- que ganhou o apelido de infoxication.
zettabytes, ou seja, vamos quadruplicar em cin- formar em uma fonte inesgotável de informação,
co anos. Isso não é nada quando comparado aos fica claro que aqueles que tiverem maior domí- O dr. David Lewis, Ph.D. em psicologia, docu- Uma falha sistêmica
próximos cinco anos: em 2025 chegaremos a 163 nio sobre as técnicas de armazenamento, clas- mentou no livro Information overload, de 1999, um Especialmente no Brasil, nossa capacidade de
zettabytes, que representam mais do que dez sificação e tratamento dos dados, para transfor- estudo sobre a síndrome da fadiga por consumo análise foi pouco desenvolvida. Na educação
vezes o número de 2015. má-los em informação, terão mais poder. de informação (information fatigue syndrome), em básica, as escolas ensinam matemática e esta-
que verificou o impacto do consumo excessivo tística de forma mecânica, baseada na simples
Para simplificar o entendimento do Big Data, de informação na vida das pessoas, comprovan- repetição, fazendo com que os alunos decorem
Crescimento anual de dados na internet gosto de usar a representação visual abaixo. Ela do que ele afeta diretamente nosso sistema imu- as fórmulas e não se preocupem com a lógica.
180 mostra que o crescimento dos dados em volu- nológico por causa do bombardeio a que nosso Isso significa que a modelagem analítica por
163 ZB me, variedade e velocidade causa esse efeito cérebro é submetido a processar diariamente. trás de uma fórmula não é repassada da forma
1 petabyte = 1 mm gigabytes
não linear de geração da informação no mundo. Toda essa poluição de dados gera uma verdadei- adequada, prejudicando assim a formação bá-
zettabytes (ZB)

1 zettabyte = 1 MM petabytes
ra “paralisia analítica”. Ou seja, afeta nossa ca- sica nessa área. Em resumo, o sistema de edu-
pacidade de distinguir os fatos que são realmen- cação básica forma uma população menos ana-
47 ZB
BIG DATA: Crescimento exponencial de dados te relevantes para uma análise adequada, lítica, com menor desenvolvimento lógico; uma
prejudicando nossa tomada de decisões. Tudo herança que carregamos para o resto de nossas
12 ZB VELOCIDADE
2 ZB
isso, segundo o trabalho de Lewis, interfere em vidas. Nos países desenvolvidos, as disciplinas
0.1 ZB
nosso sono e capacidade de concentração, e os que chamamos de exatas são ensinadas de for-
real time
0 sintomas dessa fadiga podem aparecer em forma ma diferente, destacando-se os motivos das
2005 2010 2015 2020 2025
de depressão, ansiedade, irritabilidade, estresse composições das fórmulas, o que gera maior
Fonte: IDC’s DATA AGE 2025 STUDY near real time e até sintomas físicos como a fibromialgia. senso crítico no desenvolvimento do pensa-
periodic
mento sistêmico e analítico.
Em resumo, ter muitos dados para tomar decisões
batch nem sempre é o melhor caminho. É preciso
VOLUME
table transformar a imensa massa de dados ao nosso
alcance em poucas análises relevantes, e assim,
database
diante de uma visão mais clara dos cenários
photo, web,
audio disponíveis, escolher as melhores alternativas.
Para isso, precisamos desenvolver nossa capa-
social, video, mobile,
unstructured cidade analítica, criar técnicas e mecanismos
para usufruir do melhor dessa revolução que o
efeito Big Data está causando.
VARIEDADE Fonte: c4ppr4

19
18
ARTIGO

em uma sequência de passos predefinidos. Não


são os algoritmos que são inteligentes. A in-
teligência está nas regras que eles utilizam. O
código de computador é apenas um roteiro
A capacidade analítica menos desenvolvida é, algoritmos são para que as regras aconteçam. Algoritmos são
sem dúvida, uma barreira para elevar o nível repetidores de regras humanas. Obviamente,
de pesquisa e desenvolvimento de métodos de
repetidores um grande número de dados devidamente
análises e, consequentemente, o uso de todos de regras humanas estruturados, com sequência bem definida,
esses dados disponíveis, pois trabalhar com aliado à capacidade de processamento das
dados não deveria ser um privilégio da área de máquinas de hoje, cria algo que o humano não
tecnologia. A grande verdade é que as melhores tem capacidade de fazer sozinho. O uso da
práticas em ciência de dados costumam ser tecnologia é fundamental, mas sem uma lógi-
compostas por três pilares de conhecimento: ca bem estruturada, ela não passará de algo-
ciências exatas, tecnologia e negócios. ritmos (regras), passíveis de falha.

Os profissionais que atuam diretamente no pro- Mas a capacidade analítica não deveria estar A inteligência artificial, na qual somos instados A representação gráfica abaixo mostra a evolu-
cesso de transformação de dados em informação restrita a um grupo de profissionais. Ela deve- a prestar atenção em tudo que é jornal, revis- ção que nos trouxe ao ponto em que estamos
são conhecidos como cientistas de dados, a pro- ria fazer parte de nossa formação básica. Afi- ta, noticiário, filme e séries de TV, nada mais hoje na construção de algoritmos e da inteli-
fissão mais desejada e mais bem remunerada dos nal, em um futuro muito próximo, precisare- é do que um algoritmo com um processo de gência artificial. O início remonta ao consumo
EUA, quando comparada com todas as outras mos inevitavelmente ser mais analíticos. aprendizagem constante que, a partir da co- de relatórios, construção de análises, monito-
áreas do conhecimento, segundo o Glassdoor, Pense um pouquinho nos últimos aplicativos dificação inicial, armazena o aprendizado em ramento de informação... Tudo isso permite
um dos mais importantes portais americanos que você baixou em seu smartphone, seja um suas próprias bases de dados, para a partir dele armazenar melhores dados, para construir me-
sobre carreiras. Eles costumam atuar aplicando app de prática esportiva, um game ou algo para tomar “suas próprias decisões” e evoluir com lhores regras, e possibilitar a execução pelas
sua expertise entre as grandes áreas de conhe- o ajudar no deslocamento de sua casa para o uma capacidade de processamento infinita- máquinas. Um caminho totalmente baseado
cimento, como pode ser visto neste gráfico: trabalho. Todos eles possuem recursos para mente maior que a do ser humano. Coloquei na capacidade analítica do ser humano, que
você mesmo analisar os dados. Os fornecedo- as aspas em “suas próprias decisões” porque cria a lógica de funcionamento das máquinas.
res de tecnologia já estão transferindo as aná- precisamos lembrar que as regras iniciais para
Disciplina Ciência de Dados e vertentes lises individuais para os usuários, permitindo aprendizagem/execução são inseridas pelos
de atuação profissional que cada um faça seus próprios estudos ba- programadores dessa inteligência artificial, ou Evolução analítica
profissional que atua seados nos seus dados primários, combinados seja, por seres humanos, criadores das regras.
na construção de
modelos científicos para com dados de terceiros. Quanto maior a capacidade analítica desse INTELIGÊNCIA
ajudar na solução de
problemas de negócio humano, melhor funcionarão. ARTIFICIAL
predictive
Análises, algoritmos e inteligência artificial analytics
Quando cito o termo “capacidade analítica”, algoritmos
rules, decision,
isso não está restrito à análise de dados. Na management systems

complexidade
verdade, o primeiro passo para o desenvolvi- monitoramento
NEGÓCIOS CIÊNCIA mento de um algoritmo, por exemplo, não é dashboards, corecards

ciência o código que será criado para o funcionamen-


de to dele, e sim as regras que a máquina deverá análises
dados olap, visualization tools
seguir. Ou seja, a lógica. Um algoritmo nada
mais é do que uma série de regras estruturadas relatórios
query, search tools, reporting
profissional que atua
TECNOLOGIA
na automatização e
otimização de processos
através da tecnologia
tempo Fonte: c4ppr4

profissional que atua


no desenvolvimento
de tecnologia para
acelerar/potencializar
Fonte: c4ppr4 as aplicações científicas

21
20
Não existe atalho, é um processo realmente tra-
pensamento analítico, habilidades balhoso, que exige tempo e dedicação para ser
desenvolvido. Como citei antes, não se trata de
analíticas e orientação por dados um código de computador complexo, e sim de
são três fundamentos a serem muita investigação, baseada em análises, para
Quando pensamos em processos O processo de transformação dos dados concepção de um sistema lógico que precisa ser
desenvolvidos nos próximos anos nas áreas de negócio, são muitos Para representar um pouco desse processo de testado até a exaustão, para então se transformar
os incrementos de valor que já po- transformação, vou usar um funil. Na parte no código que a máquina executará.
demos encontrar no mercado: al- superior veremos muitos dados, variados, em
goritmos que sugerem melhores um banco não estruturado. Essa camada car- Pensamento analítico, habilidades analíticas e
rotas de entregas, baseados no his- rega um Mistério, pois é muito difícil saber se orientação por dados são três fundamentos que
tórico e trânsito em tempo real; os cruzamentos desses dados levarão realmen- precisaremos desenvolver nos próximos anos. A
modelos matemáticos que recomendam o melhor te a resultados relevantes. A próxima camada transformação digital já impactou todas as pessoas
momento de fazer a compra de determinada representa o momento de Investigar, cruzar no mundo e essa próxima revolução silenciosa já
matéria-prima, baseados em buscas na internet; todas as variáveis possíveis, aplicar fórmulas e está acontecendo. A Revolução Analítica está
dados de mercado e monitoramento em tempo modelos que ajudem a identificar padrões e sendo dominada por aqueles que adotaram um
real de taxas e câmbios; sistemas de recomen- anomalias (termo usado para identificação de pensamento analítico, que em razão disso estão
dação para recrutamento e seleção de profissio- variâncias nos padrões). Na fase seguinte, de acelerando o desenvolvimento de suas habilida-
nais baseados em seus dez últimos anos de car- Modelagem & Sequenciamento, nascem os mo- des analíticas, independentemente das posições
reira... No dia a dia, isso representa menos delos de análise específicos, onde hipóteses são que ocupam, e estão criando uma cultura orien-
Negócios orientados por dados decisões baseadas em feeling (percepções indi- testadas e as regras que comporão os sistemas tada por dados em suas áreas de atuação, através
Assim como a tecnologia, softwares e dados viduais) e mais decisões data-driven (orientadas inteligentes são organizadas. Só na última ca- de melhores práticas analíticas.
estão presentes em tudo que está ao nosso redor. por dados), permitindo que deixemos de lado as mada serão desenvolvidos os sistemas, algorit-
E, mais recentemente, também em todas as eta- tarefas repetitivas e nos concentremos naquilo mos e rotinas com inteligência artificial. E você, vai ficar de fora dessa?
pas dos negócios. Empresas usam rastros digitais que é realmente mais importante para nós.
deixados por seus consumidores (nós!), gerando
recomendações, em suas próximas visitas, ba- Nada do que falamos aqui diminui a importân- Intelligence funnel: transformação dos dados
seadas em seus hábitos e preferências individuais. cia das pessoas envolvidas nesses processos de em inteligência
Isso faz com que aumente muito a precisão do negócio. O uso de dados não vai concorrer com
marketing, por exemplo, que vai entregar men- os bons profissionais que atuam em logística,
sagens cada vez mais adequadas ao seu público, compras, recursos humanos. Na verdade, os
dados não
permitindo que ele mesmo faça a personalização tornará mais produtivos através do uso de fer- mistério estruturados
do que é mais relevante. As recomendações mais ramentas de automação, para que o esforço
refinadas serão muito valorizadas pelos consu- braçal/operacional/mecânico seja menor, e para anomalias
investigação e padrões
midores no meio dessa avalanche de dados. O que eles possam usar mais de sua capacidade
conteúdo mais relevante e personalizado per- analítica na criação de regras melhores. Assim,
modelagem &
mitirá que façamos uma melhor gestão do nos- poderão elevar a precisão do processo e gerar sequenciamento análises & hipóteses

so tempo e reduzirá o efeito da infoxication. Ob- valor através da tecnologia, que tem capacida-
viamente, precisaremos de regras claras para uso de de digerir muito mais informação, muito sistemas algoritmos &
inteligência artificial
de dados, respeito da privacidade do indivíduo mais rápido, com muito menos chance de erro.
e consenso de quando essa troca valerá ou não
a pena. A cessão dos dados será uma opção do Fonte: c4ppr4
usuário, que precisará ter em suas mãos a pos-
sibilidade de trocar dados individuais por con-
veniência e/ou produtos e informações melho-
res. Esse debate já acontece no mundo todo.

23
22
ARTIGO
por pablo ortellado

Os operadores das plataformas detêm o


poder de ordenar os conteúdos produzidos
da mesma forma que os antigos editores

meios de comunicação. Eles elegiam A comunicação interativa, por ou-


quais livros seriam publicados, quais tro lado, é bidirecional, mas limi-
músicas seriam escutadas e quais tada. Nela, se fala e se escuta ao
filmes seriam vistos. Se um autor mesmo tempo, mas com apenas

N
de contos queria ser publicado, pre- dois interlocutores. O modelo dela
a língua inglesa, difun- cisava mandar um manuscrito para é o telefone.
diu-se o termo gate ser selecionado por um editor; se
keepers, os “guardiões um cantor queria gravar uma mú- Já a autocomunicação de massa é
do portão”, para se re- sica, precisava mandar uma demo essa forma nova, meio híbrida, que
ferir àqueles agentes para ser selecionado pelo produtor combina elementos das duas an-
encarregados de fazer de uma gravadora. Essa função era teriores. Seu modelo é o feed de
a triagem do que vai necessária porque o sistema de co- notícias do Facebook ou a timeline
ou não vai ser distribuído pelo sis- municação de massa era concen- do Twitter. Nela, o usuário é, ao
tema de comunicação de massa. trado num grande emissor e havia mesmo tempo, emissor e receptor.
Trata-se dos editores que ocupam poucos espaços disponíveis para Quando abrimos o feed de notícias,
os postos-chave nas publicações muita gente que queria se expressar. vemos o que nos dizem 200 con-
impressas ou nos sistemas de tatos (média de amigos de um usuá-
radiodifusão e que decidem se de- O sociólogo catalão Manuel Castells rio brasileiro) e, quando postamos
terminado texto, música ou con- dividiu os meios de comunicação algo, esses 200 contatos nos leem.
teúdo audiovisual vai ser distri- em três modelos: a comunicação
buído por uma editora, por um de massa, a comunicação intera-
jornal ou revista, por uma rede de tiva e uma nova forma que ele cha-
rádio ou de TV. Na era das mídias ma de “autocomunicação de mas-
sociais, faz sentido falar de um novo sa”. A comunicação de massa é
tipo de guardião? aquela que apresentamos há pou-
co, na qual um centro emissor, uma
Os antigos editores tinham a missão editora, uma redação jornalística pablo ortellado
de filtrar a grande diversidade de ou um estúdio de TV, produz con- é filósofo, professor
vozes do debate público, selecio- teúdo selecionado por um gate kee- de Gestão de Políticas
nando as mais capacitadas que me- per que é distribuído para um gran- Públicas na USP e colunista
do jornal Folha de S. Paulo.
receriam a atenção concentrada dos de público que recebe a mensagem.

24 25
ARTIGO

será que os algoritmos estão


Trata-se de um modelo interativo um site de notícias, elas estão in- conteúdos politicamente
como o telefone, mas que fala para troduzindo uma dinâmica de co-
privilegiando conteúdos com alta sensíveis, o algoritmo tem
mais gente. Castells diz que, se nos municação de massa dentro da carga emocional e, com isso, nos um grande impacto sobre
veículos de massa se fala unidire- autocomunicação da mídia social. o debate público e sobre
cionalmente, de um para muitos, Isso porque, em vez de escutarmos
empurrando para posições cada a democracia.
e na comunicação como a do tele- uma pluralidade de vozes, estamos vez mais extremas e apaixonadas?
fone se fala interativamente, de um recebendo conteúdo produzido Hoje discutimos muito se
para um, na autocomunicação das centralmente, numa redação ou os algoritmos terminam
mídias sociais se fala de um para num estúdio. criando “bolhas” ou “câ-
muitos e de muitos para um. maras de eco”, isto é, co-
O mesmo acontece quando vozes munidades nas quais pes-
Nesse nível de análise, parece que de usuários começam a se desta- Quando vemos a nossa timeline considera mais interessante e co- Essas regras, no entanto, não são soas que têm a mesma opinião
as mídias sociais são uma forma car e passam a ser compartilhadas ou feed de notícias, a ordem na loca esses conteúdos na frente de públicas. As empresas se esforçam política falam apenas para elas
nova, interativa, descentralizada por muitas pessoas. Os chamados qual são apresentadas as publica- publicações pelas quais, acredita, em esconder como funcionam os mesmas. Será que o fato de o al-
e democrática, na qual todo mun- “influenciadores” são perfis ou con- ções daqueles que seguimos não o usuário se interessa menos. algoritmos de seleção e ranquea- goritmo selecionar conteúdos que
do fala e todo mundo escuta. Mas, tas proeminentes cujos conteúdos é cronológica nem aleatória. Um mento porque os tratam como pro- agradam aos usuários não termi-
se olharmos de perto, veremos agradam a muitos usuários que os algoritmo estima os conteúdos Esse ordenamento é uma espécie priedade intelectual que poderia na fazendo com que as pessoas
que ela abriga dentro dela formas seguem e compartilham tudo mais propensos a nos agradar e os de filtragem, como a dos guardiões ser apropriada ou aperfeiçoada por sejam expostas a pouca opinião
de comunicação de massa e que o aquilo que publicam. Esses usuá- coloca na frente, enquanto aque- da comunicação de massa. A sele- empresas concorrentes. política divergente, reforçando os
operador da plataforma dispõe do rios destacados passam a ter um las publicações que acredita serem ção dos algoritmos escolhe o que preconceitos e consolidando a di-
poder de ordenar os conteúdos alcance bem maior do que os usuá- menos relevantes ficam para trás nós vamos ver nas mídias sociais, Por isso, muitas vezes não sabemos visão da comunidade?
produzidos pelos contatos, o que rios comuns, ainda que normal- ou até não chegam a ser mostradas. assim como um editor de jornal, nem mesmo a lógica geral do al-
poderia ser considerado um poder mente não cheguem a ter a pro- Ao fazer esse ordenamento, o al- revista ou TV também escolhe as goritmo. Será que ele ordena pelo Será que os algoritmos estão pri-
de curadoria análogo ao dos anti- jeção de quem ocupa veículos de goritmo das plataformas age como vozes que serão veiculadas para nós. contato que acredita ser mais con- vilegiando conteúdo com alta car-
gos editores. massa, como a TV. um gate keeper, como uma espécie fiável, pelo tema do conteúdo, pela ga emocional, que geram indigna-
de editor. Mas, ao contrário dos editores que carga emocional da publicação? ção ou medo, e com isso, estão nos
Nem tudo o que vemos nas mídias Mas essas dinâmicas de massa nas escolhem com base na análise e Não sabemos quais escolhas ele empurrando para posições políti-
sociais é produzido por usuários. mídias sociais, nas quais certas Esse ordenamento por meio de al- no juízo profissional, os algoritmos faz e, quando faz mais de uma cas cada vez mais extremas e mais
Uma parcela muito relevante do vozes se destacam em comparação goritmos é feito com a intenção de fazem uma escolha matemática simultaneamente, que peso atri- apaixonadas? Seriam os algoritmos
que nos chega no Facebook e no com as vozes de usuários comuns, priorizar conteúdos que interessem automática. É uma espécie de se- bui a cada critério. os responsáveis pelo processo de
Twitter são links de notícias e ví- não são intermediadas por um gate mais ao usuário, fazendo-o per- leção sem rosto, um poder discri- polarização política ou pelo rebai-
deos produzidos por grupos dedi- keeper, por um editor. Trata-se de manecer mais tempo na platafor- cionário que é operado por uma Quando falamos de publicações xamento da qualidade do conteú-
cados. Quando muitas pessoas um processo mais ou menos es- ma. Quanto mais tempo um usuá- máquina. É, no fundo, responsa- pessoais ou de esporte ou entre- do jornalístico que vemos no fenô-
compartilham o mesmo link de pontâneo no qual quem consegue rio fica na mídia social, mais ele vê bilidade atribuída a quem não pode tenimento, o ordenamento pode meno das notícias falsas?
agradar ao público fala para uma propaganda e maior é a receita da responder por ela. ser relevante para a satisfação do
audiência maior. empresa. Para prender o usuário usuário-consumidor, mas não tem Essas são perguntas que muitos
na plataforma, o algoritmo faz uma Claro que por trás dos algoritmos maiores implicações. No entanto, pesquisadores estão fazendo e que
Coisa diferente é o poder dos al- série de cálculos. Ele detecta os existem pessoas. Alguém criou os esse ordenamento atua também seguem sem resposta. São pergun-
goritmos que são utilizados pelas contatos para cujas postagens o algoritmos, os critérios, as regras sobre conteúdos políticos e jor- tas características deste novo mun-
plataformas. Algoritmos são um usuário costuma dar mais curtidas automáticas de seleção e ordena- nalísticos, e, quando ordena esses do no qual as pessoas se comunicam
conceito matemático cujo nome ou aquelas publicações cujos temas mento dos conteúdos. São as em- cada vez mais por mídias sociais e
assusta, mas que não passam de presas que operam as plataformas no qual os guardiões não são mais
um conjunto de regras ou instru- as responsáveis por esse novo po- editores profissionais, mas algo-
ções utilizados num programa de der de seleção – são elas, no fun- ritmos de máquina.
computador. do, os novos guardiões.

27
26
28
2.
Visões de um estranho paraíso

30
Ciberativismo

40
Quando David e Golias vira Dados e Golias
42

Novos hackers da velha escola


Chegamos à eletronização 52
56
Como as fake news podem afetar o destino da democracia
60

Batalha pelas mentes


68
A
DA VIDA

29
REALIDADE
CONECTADA
DEBATE
com Christian Dunker, Cora Rónai e JailSon de Souza E SILVA

EM Momento DE MUDANÇAS PROFUNDAS,


ENXERGAMOS ALGO QUE NÃO sabemos bem o que é

VISÕES
D
ifícil saber o que somos e onde estamos neste momen-

DE UM
to. Se isso tem sido tarefa de séculos para a espécie
humana, temos agora muito mais dúvidas do que res-
postas. Como na bonita imagem utilizada pelo psica-
nalista Christian Dunker, um dos participantes deste

ESTRANHO
bate-papo sobre o impacto da nova era dos dados e da
informação sobre nossas vidas, parecemos viver em um
território que ora é terra, ora é mar. Ondas que vêm e vão enquanto

PARAÍso
tentamos delimitar novas regras e modos de convívio em que possa-
mos nos situar como indivíduos e como sociedade. Um espaço em
que política, privacidade, traba-
lho, educação, ética, direitos in- Cristina De Luca – Como esse Christian
dividuais, serviços e muitas coi- mundo dos dados tem impac- Dunker
sas mais estão em mutação, umas tado a vida de vocês? Que visão é psicanalista e
professor do Instituto
em vias de extinção, outras de têm desse universo? de Psicologia da USP.
ganhar novíssima configuração. Christian Dunker– Tenho Face-
book, Twitter, um canal no You-
Para falar sobre isso, reunimos Tube e faço uma campanha para Cora Rónai
nos estúdios da Rádio Globo, em ultrapassar os muros da universi- é jornalista e colunista
São Paulo, para a gravação do po- dade e reduzir a distância entre o de O Globo, além de
curadora do Caderno.
dcast deste Caderno, Christian conhecimento erudito e o saber
Dunker (professor do Instituto de popular, comum. As mídias sociais
Psicologia da USP), Cora Rónai têm sido muito úteis nesse senti-
(jornalista de O Globo) e Jailson de do. Outra forma pela qual sou JailSon de Souza
Souza e Silva (professor de Geo- afetado é pela clínica. Meus pa- E SILVA é professor de
grafia da UFF). Além deles, os me- cientes se separam, casam, pessoas Geografia da Universidade
Federal Fluminense, fundador
diadores Cristina De Luca e Rubem de terceira idade encontram novos do Observatório de Favelas
Barros, editores deste Caderno. parceiros, adolescentes se criticam, e do Instituto Maria e João
tudo virtualmente. Mães de Whats- Aleixo, além de conselheiro
-App se atacam, isso está no coti- desta publicação.
diano de sofrimento das pessoas.
Hoje, muitos casais que se separam
têm a separação desencadeada
porque um ou outro pegou uma
mensagem no Facebook, uma tela
aberta de WhatsApp. Não quer
dizer que a separação não viria por
O vídeo deste debate
outros meios. Mas o desencadean- está disponível em app.
te é quase sempre esse vacilo do cadernosglobo.com.br
“deixei a tela aberta”.

30 31
debate

Cora Rónai – Não faço distinção


entre o que é minha vida analógica
e a minha vida digital. Como todo
mundo, vivo na internet, chamo o os nascidos após 1995 são a primeira
Uber, faço internet banking, su-
permercado... O cotidiano de todos
geração criada nesse universo de nativos
nós está tão afetado pelos dados que digitais. isso é decisivo, como foi a
é difícil para qualquer pessoa dizer
como é afetada pelos dados. Con-
primeIRa geração que lidou com o fogo
sigo distinguir as coisas digitais das
não digitais, mas o papel delas é CHRISTIAN DUNKER
muito parecido. Escrevo no com-
putador, leio no Kindle, escrevo
sobre isso... Os gatos ainda não são
digitais, nem os peixes! isso possa nos tornar seres cada Você aperta algo numa direção e vai lidar com o outro, a gente constrói
vez mais previsíveis. receber outra coisa naquela direção, formas atomizadas de vida. O de-
Jailson de Souza e Silva – Tenho composta por um conjunto de pon- safio é como a tecnologia pode
58 anos. No doutorado, tive aces- Rubem Barros – Com essa abun- tos cada vez mais complexo e amplo. ajudar nesse encontro, e não fa-
so a um computador. Achava que dância de dados, exponencial, Quando você aperta uma coisa zer com que as pessoas se fechem
nunca conseguiria usar aquilo. Seis e a previsibilidade que pode querendo dizer “não quero mais em si mesmas. Quando os algo- são professores, os amigos dos seus A rede traz o que está longe pra
meses depois estava escrevendo decorrer dela, que espaço sobra disso”, não consegue ir contra a ritmos nos levam a um processo pais são professores ou têm pro- perto. Também pode afastar o que
minha tese no computador, sem para o acaso na vida? máquina. A possibilidade de dizer em que as pessoas se aproximam fissões correlatas. Você vai a uma está perto. Mas isso depende do
querer deixar acontecer o que Cora – Tudo é acaso. Mesmo a “não quero essa previsibilidade que pelo que têm de comum, e não escola de classe média, encontra que a pessoa quer encontrar. As
aconteceu com o inglês. Sou de previsibilidade pode ser acaso. está sendo oferecida” tende a se com o que têm de diverso, temos gente da sua religião, do seu time redes permitem encontrar os seus
periferia, não estudei inglês mais Como aquele meme que todo mun- reduzir. A contingência, como ne- um problema para a democracia de futebol, frequenta o mesmo bar. iguais, na Finlândia, no Canadá, no
novo. Quando pude, estava do- do manda, que vida é o que acon- gação da necessidade, vai encontrar e para a convivência. A intole- A vida toda transcorre entre pes- alto Volga. Quando a internet co-
minado pela questão ideológica. tece com você enquanto você faz dificuldade para se traduzir na lin- rância passa a ser um problema, soas parecidas. Em Brasília, havia meçou, eu participava de um gru-
“A língua do imperialismo, não!” planos. Por mais que haja Big Data, guagem dos algoritmos, se pensar- passamos a valorizar opções que o clube dos diplomatas, o clube po de discussão, a gente conver-
Hoje estudo muito inglês. Ficar inteligência artificial, amanhã a mos que ele tem essa compulsão a reforçam nossos valores, nossos dos jornalistas, dos parlamentares, sava sobre gatos. Não tinha tanta
para trás dos dados, da tecnologia, gente é atropelado e quebra a per- se repetir, a produzir reflexos do estilos e proposições, e não sabe- bolha até no final de semana. Com gente para conversar sobre gatos,
e virar uma coisa meio analógica na. Não é tão certo a gente contar que você foi ontem e é hoje. mos mais lidar com o outro. Como a internet, você encontra gente e ali todos tinham gatos. Se alguém
seria um equívoco. Ao mesmo com a previsibilidade. O Big Data a tecnologia pode estimular a pe- além até do seu limite geográfico, tinha algum problema, tinha apoio,
tempo, sou muito cioso da questão pode saber que sempre compro Jailson – [O sociólogo Pierre] dagogia da convivência sem ape- pessoas do outro bairro, da outra suporte, sugestões de uma pessoa
da subjetividade. Dirijo uma or- camisetas pretas XXL, vou conti- Bourdieu trabalhava uma questão nas fortalecer o princípio da apro- cidade e, também, das outras ci- de um lugar que você nem sabia
ganização e me diziam que eu nuar comprando camisetas pretas central: por que somos tão pare- ximação mesmerizada com dades ideológicas ou emocionais. apontar no mapa. Ao mesmo tem-
tinha de estar conectado. Tenho XXL e não me mostrar uma small, cidos com nossos pais se não é a aqueles com os quais me identi- Está havendo um confronto brabo, po, há uma pessoa completamen-
Facebook e não faço nada lá, um a não ser que eu comece a comprar biologia nem a física que nos de- fico? Aí há uma dimensão ética: polarização, talvez porque, pela te diferente ao lado da sua casa.
amigo coloca as coisas para mim, muitas pílulas de dieta e o Big Data finem? Por que tendemos a repe- saber qual é o grau de compro- primeira vez na vida, estamos de
posições, artigos. Tento manter em algum momento diga “ah, essa tir tantos comportamentos das misso dessas empresas com a de- fato ouvindo o que o outro tem a Jailson– As redes sociais permi-
determinados mecanismos de de- mulher já deve ter emagrecido, gerações anteriores? Entender mocracia e com a superação das dizer. Longe da internet e das re- tem que a gente conheça mais o
fesa da privacidade. O que mais vou começar a apresentar medium como a tecnologia está funcionan- lógicas racistas, intolerantes e des sociais, a gente sequer saberia outro, suas relações, costumes,
me preocupa é como as empresas pra ela”. Mas não é assim que a do e como a estão usando e se todos os “ismos”. quem são essas pessoas. lógicas, o que permite recortar
usam e controlam nossos dados, banda toca. O imprevisto é a for- relacionando em conjunto é vital mais o nível das relações que quer
como os algoritmos têm um papel ça mais determinante da nossa para superar isso. Contrapontos estabelecer. Existe essa dimensão
de nos moldar, nos tornar usuários história e do mundo como um todo. física. Na PUC-Rio, havia pessoas
mais acomodados. Uns têm uma Uma coisa que trabalhamos no Cora – Nunca convivemos tanto que nunca tinham ouvido falar de
visão de teoria conspiratória, de Christian – Algoritmos estão todos Observatório das Favelas é a pe- com o outro quanto com as redes Bonsucesso. Não sabiam o que era
que querem nos fazer objetos... baseados numa espécie de metar- dagogia da convivência. A cidade sociais. O normal do ser humano a distância entre Penha, Nova Igua-
Mas há uma preocupação de que regra, que é “quanto mais, mais”. é marcada pela dificuldade de é viver numa bolha. Se seus pais çu e Madureira. Viviam na Gávea

32 33
32
debate

e Leblon, não tinham a menor indígenas suportam. Elas se ex- gócios. Há coisas próprias dessa as pessoas querem mais seguido- vez, uma pessoa estava falando da
noção da sociedade. A rede pode pandem até que excedem esse plataforma, exclusivas. Relações res. Isso vai mudar a forma como tragédia que são as motos e a ne-
contribuir para uma abertura número e se dividem em grupos, de pessoas desejantes com ava- o ser humano lida com afetos e cessidade de proibi-las. A quali-
maior, mas a tendência é que as em geral de 150. O segundo as- tares, que não são reais, sem con- emoções. Não há volta. Não adian- dade de vida, para quem conhece
pessoas se relacionem com aque- pecto é que estamos expostos a tato corporal, que formam laços ta pensar que o bom é encontrar o interior do Brasil, melhorou
las mais parecidas, e as redes aju- um número muito maior do que amorosos. Antes havia relações no bar. Hoje, um menino da Ama- muito com as motos. Em termos
dam a construir essa aproximação. isso de encontros – com línguas, epistolares, mas a quantidade de zônia que se interesse por gelo vai de mobilidade, a substituição dos
O desafio é se a rede permite con- costumes, estratégias de desejo –, pessoas que se apaixonam e vivem entrar no YouTube encontrar o que animais de carga, as pessoas ago-
tato com a diferença. As redes e isso não tem precedentes, é per- amores sem nunca se encontrar precisa para chegar à universida- ra podem morar no campo, tra-
ajudam a sair da bolha. Mas a bo- mitido pela linguagem digital. é inusitada. E há uma mutação de ou para estudar sozinho. O que balhar na cidade, têm mais aces-
lha mudou e os elementos que Ajuda a entender por que se forma das formas políticas. As relações se descortina de conhecimento... e o real, ela existe, mas é impossí- so às coisas. É incomparável. É
sustentam a identidade, muitas um desejo de identidade, de re- de poder não tinham equivalen- Antes o conhecimento era ligado vel dissociar sujeito e estrutura, óbvio que tem de ter um controle,
vezes absolutizada, continuam a dução das diferenças, de compres- te antes. É uma plataforma trans- a lugares físicos. indivíduo e sociedade. Nesse plano, tem um problema cultural, pois
ser reafirmados. Há mais chance, são das infinitas formas para a nacional, sem governança legis- o simbólico é o real e afirma-se as pessoas bebem antes de dirigir.
hoje, de encontrar meus iguais constituição de valores, de relações lativa ou ordenamento jurídico, Jailson – Coisas superlegais acon- cada vez mais como real. É preciso ter a clareza de que ha-
com as informações do mundo sociais, de tal maneira que você uma série de coisas novas. E o teceram na vida. Passaram... A verá danos com a chegada da tec-
virtual. Como ajudar a encontrar passou o limite de diversidade que novo é sempre bom e ruim. tecnologia amplia o repertório das o futuro, as ocupações nologia, mas que as pessoas têm
também os diferentes? suporta? Não só vamos viver num pessoas, cria novas possibilidades direito de escolher. E há a questão
pequeno grupo, mas vamos recu- Cora – Não somos um retrato do e mecanismos. Traz mais vantagens Christian – Os nascidos após 1995 do acesso às diferentes tecnologias,
Qualidade e quantidade sar o encontro que esteja fora des- que já aconteceu. Somos aquelas do que desvantagens. Ao mesmo são a primeira geração criada nes- como se garante esse acesso e o
das interações sa previsibilidade suportável. pessoas que estão no meio da onda. tempo, tem a questão de como li- se universo de nativos digitais. Isso emprego? Como vai ser quando
E não dá para dizer que o que vem damos com a democracia, com a é decisivo, como foi a primeira não houver mais carros com mo-
Christian – Gostaria de trazer dois Há equivalência entre o contato depois será melhor ou pior. A gen- desigualdade, como não deixar que geração de leitores de livros, a pri- toristas?
elementos. Um é o número de físico e digital, mas a quantidade te estranha pessoas desenvolverem a tecnologia se torne instrumento meira geração que lidou com o fogo
Dunbar, um número matemático muda a qualidade. Ter acesso a laços fortes pela internet. É o nor- para reproduzir o processo de apar- ou com o automóvel. Eles ou nós Cora – Vejo o pessoal discutindo
de com quantas pessoas você con- uma infinidade de informações e mal para uma pessoa de 20 anos, tar e violentar as pessoas. Os ga- estamos tomando decisões que vão a legislação trabalhista, e isso me
segue interagir ao mesmo tempo caminhos produz uma reorgani- de 9 anos. Antigamente, a gente rotos das favelas estão cada vez afetar pesadamente o futuro de parece tão ultrapassado... Não vai
em sua vida, que é de 150. O mes- zação do saber na produção cien- administrava 150 pessoas numa mais conectados. É impossível médio prazo. Há, por exemplo, um haver mais trabalho, e não é daqui
mo número que as comunidades tífica, na universidade, nos ne- cidade de 10 mil habitantes. Hoje, fazer essa distinção entre o virtual efeito de inversão de autoridade. a cem anos, é já. Outro dia, fui à
Meus filhos conhecem mais Embraer. Tem um galpão gigan-
essa tecnologia do que eu. tesco, onde está sendo construído
Isso tem efeitos subjetivos, um avião de carga para substituir
coloca crianças numa po- o Hércules C-130, e tem cinco
christian dunker jailson de souza e silva cora rónai sição em que nunca esti- pessoas lá dentro fazendo o avião
veram. Por outro lado, há que nem olham para o avião, mas
riscos na novidade, como para os robôs que constroem os
quando se descobriu a ra- aviões. Carros autônomos já são
dioatividade. “Ah, que lin- realidade. Robô no hotel, entre-
do, olha só... morreram gando pequenas encomendas.
todos.” Porque você não Hoje é um brinquedo, daqui a três,
sabia, por exemplo, que quatro anos, já não precisaremos
expor uma criança a um de um monte de funcionários no
tablet babá vai produzir hotel. Não acredito que tradutores
danos que desconhecemos. como o Google possam traduzir
Jailson – Num debate uma coisas sofisticadas. Guimarães

© Marcos Rosa
Rosa, as máquinas nunca vão tra-
duzir. Mas Agatha Christie, ma-
nuais técnicos, tudo isso será mui-
to bem traduzido, melhor do que

35
34
debate

Cora – Isso vai acontecer. Quan-


do os carros foram inventados,
dade, na minha visão, está se tor- tinha de ir uma pessoa na frente,
sou otimista na possibilidade de o ser nando cada vez mais humana. Nes- avisando que vinha um carro. Ima-
se processo, há conflitos. No Brasil, gina isso hoje... Há um momento
humano se tornar mais pleno no que diz por exemplo, é um avanço tratar do em que você tem de alertar para
respeito à convivência, à sociabilidade sexismo e do racismo nessa con- aquela tecnologia. A nossa geração,
juntura, coisas que nunca foram tomou um caixote e agora temos
tratadas. Tornar esse processo vi- de ficar em pé nessa onda. Ainda
sível possibilita enfrentá-lo. Sou não estamos vendo muitas solu-
Jailson de souza e silva otimista na possibilidade de o ser ções, mas a onda já veio.
humano se tornar mais pleno no
que diz respeito à convivência, so- Privacidade e sua lei
ciabilidade, valores que nos ajudem
a entender que temos de cuidar do Cora – Privacidade não existe. O
planeta, dos outros, de nós mesmos. conceito de privacidade foi um
por humanos. Ou a humanidade de ser enfrentado de forma polí- terar o sistema de concessão de pequeno luxo que tivemos no fim
começa a pensar numa renda uni- tica, com mais programas de trans- rádio e televisão, não resolveu o Cristina – Começamos falando do Cora – Temos de aprender a con- do século 19, primeira metade do
versal, em como vamos sobreviver ferência de renda. As pessoas vão analfabetismo. De repente, uma lado humano, mas, quando olha- viver de forma mais pacífica com 20, e apenas em certas classes so-
a partir do fim do trabalho, ou entrar mais tarde nos poucos tra- população que sempre esteve fora mos o cenário lá fora, é uma selva esses problemas da nossa nature- ciais. Antes não havia. Depois me-
vamos ser pegos de calças curtas. balhos que existirão, ou vamos da conversa entrou. Para o bem e econômica. Quando olhamos para za. Não dá para pensar numa uto- nos ainda. Revelo pouco da minha
O que fazer com as pessoas? É isso entrar numa distopia em que va- para o mal. Tanto do ponto de vis- as grandes corporações que estão pia, numa humanidade compos- vida. Revelo muito dos meus gatos,
que tem de ser discutido com ur- mos criar ilhas ricas para os 3% e ta de opiniões, atitudes, tomadas usando os nossos dados, estamos ta de seres diferentes. Eles não e através disso as pessoas criam
gência. Caso contrário, vamos o resto viverá em imensos guetos. de posição políticas meio erráticas, trabalhando, ocupados, gerando estão aí. É possível educar melhor, uma grande intimidade comigo.
caminhar para uma desigualdade A população vai começar a decres- dogmáticas ou ecléticas, mas há dados para que essas corporações ensinar regras de convivência um Mostro algumas coisas da minha
e concentração cada vez maiores. cer e terá de se fazer o que foi fei- uma nova política se formando, que se apropriem deles e gerem rique- pouco melhores, acabar com a vida que podem ser mostradas, e
to nos séculos 18 e 19, quando os não se traduziu em institucionali- za. Como tornamos claras essas desigualdade. Mas não tenho mui- aí as pessoas acham que sabem
Christian – A palavra-chave é direitos sociais se ampliaram, e dade. É um ganho que a tecnologia novas relações de poder? ta esperança. tudo sobre mim. Mas é uma coisa
ocupar. Do ponto de vista da ex- também os direitos econômicos, não nos trouxe ainda. Por que não pensada, isso cria uma intimida-
periência subjetiva, a gente sente culturais, individuais. O capita- temos decisões políticas cotidianas, Jailson – Há um discurso na linha Jailson – As instituições – educa- de com os leitores e um nível de
os impactos de uma vida em ple- lismo precisou criar as condições locais, comunitárias, tomadas via da teoria conspiratória, equivoca- cionais, políticas, culturais, Judi- amizade simpático. De vez em
na ocupação. Não tem mais sala para resolver esses novos proble- suporte eletrônico? É um gap ina- do. Os sujeitos têm capacidade de ciário – vão ter de lidar com a tec- quando, encontro leitores, são en-
de espera, não tem fila de banco, mas. Gerou soluções como a so- ceitável. Não há motivo, por exem- reagir e reconstruir a agenda. Po- nologia de outra forma, sob pena contros calorosos, como se a gen-
não há situação em que você pos- cial-democracia, o Welfare State. plo, para não se efetivar o orçamen- demos inventar a partir das respos- da irrelevância. Na França, proibi- te se conhecesse há muito tempo.
sa se recolher para qualquer ati- É isso ou a barbárie, como o Bra- to participativo, difícil de aplicar tas que nos são dadas. As empresas ram o celular na escola. É uma As pessoas me conhecem. Eu é que
vidade meditativa, ou de recuo; sil hoje, com 62 mil pessoas as- no mundo real, mas muito mais continuam centradas numa pers- escola de 200 anos, centrada no não as conheço tanto.
há uma entrada dessa ocupação sassinadas anualmente. Essas fácil com as ferramentas virtuais. pectiva sistêmica do Homo econo- professor, que se recusa a reconhe-
permanente. Quando a gente fala tensões estão aí, mas o problema micus, essa lógica continua na base cer essa nova geração e que a tec- Cristina – Hoje, a privacidade é
em substituição do trabalho pela não é a tecnologia. Jailson – Não temos uma essência, da indústria de tecnologia. Tem de nologia pode ser um ponto a favor, outra. Estamos gerando dados,
técnica, há outro lado: quem vai não somos o mesmo ser humano haver mecanismos para resistir e você pode criar mecanismos de pegadas, mas não queremos virar
consumir? Quem vai comprar os Cristina – A tecnologia também de mil anos atrás. Somos um pro- pensar em outras relações fora do pesquisa e participação. Em vez de produto. É algo muito mais liga-
carros? A nossa circulação do di- está colocando poder nas mãos cesso. No Japão, mata-se uma pes- “custo e benefício”. As empresas pensar em como a tecnologia pode do com o que eu deixo de rastro
nheiro no universo virtual ainda dos indivíduos. Como se faz soa a cada 100 mil, no Brasil mata- também vão entrar em um confli- estar a serviço da escola, usa-se do que com público e privado.
não foi inventada. Não encontra- para dar visibilidade a isso? se mais de 30. Ao mesmo tempo, o to entre elas, o que muitas vezes um discurso de antagonismo.
mos uma regulação jurídica. Christian – No Brasil, 40 milhões Japão ainda permite a caça à baleia. gera novas possibilidades. Podemos Christian – Tanto a noção de di-
de pessoas entraram no espaço São seres da mesma espécie que ter outro garoto de 20 anos que crie visão como a de privacidade de-
Jailson – O mundo terá de lidar público, com direitos e meios para vivem de formas absolutamente uma tecnologia que torne o mundo pendem de uma maneira especí-
com a extinção de um número ter opiniões, algo sem precedente. distintas. São valores em disputa, e mais amoroso, que faça a humani- fica, histórica, de subjetivar o
enorme de profissões. E isso terá Minha geração não conseguiu al- essa é a graça da vida. A humani- dade se relacionar de outra forma. espaço. Na modernidade, come-

36 37
debate

© Marcos Rosa
gência para a frente, mas tem a
Cristina – Se a privacidade não contingência para trás, do passa-
existe, por que defender a Lei do que você reinventa a partir do
de Proteção de Dados Pessoais? presente, para o futuro que quer. Ética e mundo digital
Cora – Privacidade não existe. Ago- Para isso acontecer você precisa
ra, o que não pode é uma empresa ter certo registro de negatividade, Jailson – Podemos colocar a ques-
pegar os seus dados e dizer o que ou seja, coisas que não acontece- tão ética em dois planos. No ca-
sabe de você. Juntar com o que ram. Isso é muito tenso quando se samento, até que ponto tenho di-
outra empresa sabe de você e com pensa o que está em curso, com reito de acessar o e-mail do outro?
uma terceira e usar isso contra você. 10% dos dados na forma estrutu- mativo, vão regular estratégias. Antes, se você abrisse uma carta,
Temos de nos defender contra isso. rada. O Watson acha que em qua- Como vamos lidar com aquilo que a pessoa descobriria. Hoje, você
Os seus dados não podem ser usa- tro, cinco anos 80% a 90% dos é não dado, teremos o direito a esse pode acessar as coisas do outro
dos contra você, é preciso regular dados vão adquirir uma forma es- não dado, não memória, tão im- sem ele saber. No plano econômi-
isso. Antes, você estava numa al- truturada. Daí, todo o seu espaço portante para nossa experiência? co, as empresas não têm direito a
deia de 150 pessoas, todo mundo de memória, seus rastros, coisas uma gigantesca transferência da
sabia quem você era, mas ninguém que hoje a gente não chama de Jailson – As empresas vão ter as riqueza da sociedade para as com-
sabia tanto a seu respeito. O padre dado, coisas contingentes, vão ad- informações sobre nós, a aceitação panhias da área de tecnologia, não
ou o médico estavam sob sigilo de quirir um valor preditivo, infor- da tecnologia torna isso implícito. têm o direito de só pensar no lucro.
confissão ou profissional. Essas Seremos o produto das Há uma dimensão ético-política
pequenas barreiras não podem ser empresas, nossas carac- em que tem de haver uma distri-
rompidas. Hoje, mais do que in- terísticas, corpos, de- buição desses recursos. Caso con-
çamos a nos entender como su- vasão de privacidade, temos a jun- sejos, vontades. E não trário, vão destruir cada vez mais
jeitos divididos entre a forma como ção de vários dados, inclusive de mais o que a gente com- a nossa ambiência econômica, so-
você ama e se conduz com os seus coisas que você nem registra que pra. E elas vão ganhar cial e política.
filhos e a forma como se coloca no está fazendo, como procurar um dinheiro da forma que
espaço público. Essa sobreposição Jailson – Meu casamento vai fazer sapato na internet. Temos de criar acham que podem fazer, Christian – Os problemas criam
da geografia, do território como, 30 anos. Muitos de nós temos re- uma forma de defesa do que se e a gente não consegui- nossa consciência ética, a capaci-
de um lado, o privado e, do outro, lações duradouras. Os jovens têm sabe a respeito da gente, que é o imprevisto rá controlar isso. A úni- dade de lidar com problemas que
o público, é enganosa. Se a olhar- outro tipo de vínculo. A questão virtualmente tudo. ca defesa possível é não não têm uma resposta funcional ou
mos de perto, havia um terceiro da subjetividade e privacidade
é a força mais permitir que isso nos juridicamente perfeita. Isso leva a
fenômeno, uma zona de indeter- passa muito por isso. Há um pro- Cristina – A lei traz o princípio do determinante da prejudique, não nos ex- um maior nível de exigência. Co-
minação. Onde há uma não fron- cesso de abertura na vida subje- legítimo interesse. A empresa pe- ponha publicamente. É meçamos a ter uma pauta ética em
teira, um espaço como se fosse de tiva que é diferente da individua- gou o seu dado em algum momen-
nossa história possível pensar na tec- razão de algo que sempre esteve aí,
um litoral móvel, de indetermi- lidade. Quando a gente casa, to, com o seu consentimento, na e do mundo nologia de forma que as mas que passa a ter um valor dife-
nação, de contingência. Ele é es- perde boa parte da individualida- compra de um sapato, por exem- estruturas institucionais rente, que é o sofrimento. Com um
sencial para criar uma experiência de, mas em tese tem de manter a plo. E guarda o dado para te fazer
como um todo nos protejam desse con- mundo que se interconecta e con-
subjetiva, meio patológica em re- subjetividade. São elementos que outra oferta dali a um ano. Por esse junto de predadores. É versa, um dos grandes avanços éti-
lação a essa distinção bem orde- o uso das redes acaba impedindo. tempo, é legítimo guardar para cora rónai nossa única defesa, que cos foi inscrever no espaço público
nada. É ali que você tem a possi- Muitas vezes a esposa descobre fazer um remarketing. Mas até protejam nossos dados inúmeras formas de sofrimento
bilidade de negociar incertezas, algo que não deveria, mas a pessoa quanto tempo ela pode guardar o de usos indevidos. Fora antes invisíveis. A forma como a
de dividir coisas que não sabe, colocou na rede. Há um grau de dado e para quem vai entregá-lo? isso, é ilusão achar que política lia a ética e a transformava
compartilhar afetos que não têm exposição de elementos subjetivos As empresas estão começando a podemos usar tecnolo- em formas jurídicas se modificou
nome. Isso sofreu uma mutação que incomoda e faz com que eu olhar para trás e ver o que têm gia impunemente. muito. Hoje há uma sensibilidade
violenta com a tecnologia digital. queira me defender. É inevitável guardado, pois podem ser obriga- para formas de sofrimento e de
É preciso colocar numa outra gra- a tecnologia influenciar a nossa das a destruir dados armazenados. invasão, de respeito ao outro que,
mática o que significa estar íntimo subjetividade e a nossa individua- mesmo ainda não praticada, estão
do outro e como essa experiência lidade. O problema maior não é a Christian – A história é construí- no horizonte. Queremos um mun-
se torna potente e valiosa nessa perda da individualidade, mas a da a partir de certas deformações. do em que esse tipo de coisa tenha
nova forma de relação. perda da subjetividade. A gente sempre pensa a contin- outro tratamento.

39
38
Na internet são reproduzidas as mesmas

Coding Rights Brasil


desigualdades de gênero que na vida off-line,
É um projeto de fiscalização de gastos afirma um grupo de ativistas fundadoras de

Serenata de amor
públicos que compartilha informações uma organização contra as desigualdades de
a esse respeito em linguagem acessível. poder nos ambientes digitais, a Coding Rights.
A bot Rosie, baseada em inteligência A ideia é atuar como um think-and-do-tank
artificial, mapeia e analisa os gastos capaz de contribuir para a proteção e
de deputados federais e senadores promoção de direitos humanos no mundo
reembolsados pela Cota para Exercício digital. Por meio de três iniciativas específicas,
da Atividade Parlamentar (CEAP), a organização trabalha para promover o uso
denunciando movimentações suspeitas. crítico das tecnologias
Para que a população consiga entender digitais explicando
a informação gerada pela Rosie, práticas de coleta de
foi criado o Jarbas, um site no qual dados e de obtenção de
é possível navegar pelos gastos consentimento desde a
e descobrir mais sobre cada suspeita, perspectiva dos usuários,

Ciberativismo
de maneira simples e descomplicada. especificamente mulheres
Quer saber mais? Acesse: serenata.ai e indivíduos LGBTTQI.
Entre eles está a
plataforma Chupadados,

Coletivos sociais atribuem à internet um papel que revela critérios de


segmentação de

central em suas formas de articulação, O Olabi é uma organização social


publicidade no Facebook.
Mais informações em:

Olabi
desenvolvendo com êxito novas formas de que busca democratizar a produção
de tecnologia na construção
www.codingrights.org

organização, muitas vezes de alcance global de um mundo mais diverso e justo.


Atua criando projetos, programas
e políticas capazes de demonstrar
que as inovações também
podem ser produzidas fora dos O labExperimental é um grupo de intervenção criativa que

labExperimental
grandes centros de pesquisa, das atua principalmente em ambientes educacionais, culturais
Tal fenômeno, descrito em detalhes por Jorge Alberto Indignados, o Occupy Wall Street, as Jornadas de Junho grandes empresas e dos parques e de mediação. Seus projetos focam em quatro eixos temáticos:
S. Machado, professor da Escola de Artes, Ciências e no Brasil, o #JeSuisCharlie, assim como o fortaleci- tecnológicos (até em parceria Modelos de Organização, Ocupação de Espaço Público,
Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/ mento de grupos e coletivos feministas, negros e LGB- com todos eles). Isso inclui Mídia Livre e Remixologia. A ideia é estimular a participação
USP), no estudo “Ativismo em rede e conexões identi- TQIA+, são marcos do potencial de interação e de ação engajar a população para resolver de crianças, jovens e adultos na construção de uma cultura
tárias: novas perspectivas para os movimentos sociais”1, afirmativa da sociedade a partir das redes sociais. problemas urbanos, de modo de rede por meio da ação em um laboratório de criatividade.
abre um amplo horizonte de transformações e mudan- a melhorar a qualidade de vida. Para isso, o LabE promove debates sobre o que é essa cultura
ças sociopolíticas, que apontam para o surgimento de Também no Brasil, a juventude conectada tem defen- Saiba mais em: de rede em que estamos inseridos, e incentiva ações criativas
novas dinâmicas de ação coletiva com base em com- dido suas bandeiras usando os celulares, a internet e www.olabi.org.br e intervenções culturais. As oficinas são trocas de experiências
plexas redes construídas a partir da defesa de crenças, as redes sociais como armas para exercer sua cidada- de trabalho e convívio virtual, nas quais o
valores e ideologias em comum. Assim nascem o cibe- nia, considerando que a cidadania plena só se con- participante integra esse coletivo vislumbrando
rativismo, o net-ativismo, o ativismo digital, os movi- quista por meio dos direitos civis (direitos fundamen- um resultado concreto: a intervenção cultural
mentos sociais em rede e seus muitos outros sabores. tais à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade), em sua cidade. Para mais informações,
direitos políticos e direitos sociais perante um Estado acesse: labexperimental.org
Exemplos não faltam de mobilizações e protestos que democrático. Conheça algumas dessas iniciativas.
ganharam força e potência através das interações es-
tabelecidas a partir das tecnologias de comunicação e
informação. A Primavera Árabe, o Movimento dos 1. http://bit.ly/2pnfiCd

40 41
ARTIGO
por cristiano Borges

Quando
Davi
e Golias
vira
Dados cristiano

e Golias
Borges é analista
de segurança da
informação, professor
e coordenador do
curso de Tecnologia
em Redes de
Computadores
(Faculdade
o conceito de privacidade está Alcides Maya).

sendo modificado pelos usos


sociais. um novo olhar sobre
como proteger nossos dados
PASSOU A SER UM valor essencial

n
ão, a ideia de comparar Davi aos nossos dados não é exatamente
nova. O criptólogo e escritor americano Bruce Schneier, no livro
Data and Goliath – The hidden battles to collect your data and control
your world (Dados e Golias - As batalhas ocultas para coletar seus dados
e controlar seu mundo, em tradução livre), já fazia alusão a essa pas-
sagem. Você certamente conhece a história: Golias, o “guerreiro
ideal”, com todo o equipamento de batalha mais avançado da épo-
ca, contra Davi, um pastor de ovelhas que, aborrecido com a arrogância de Golias
e contando apenas com seu cajado, sua atiradeira, cinco pedras e muita fé, deci-
diu enfrentá-lo no campo de batalha. A vitória de Davi contra o temido Golias
praticamente decretou a vitória dos israelitas sobre os filisteus. Agora remova Davi
dessa equação e adicione um novo protagonista: seus dados pessoais. Você certa-
mente consegue pensar não em um, mas em vários Golias, certo?

42 43
ARTIGO

Quando se trata de dados pessoais e privaci-


dade, perde-se de vista o campo de batalha.
Independentemente de você ser da tribo do
“não tenho nada a esconder, mas não te mos-
tro meu WhatsApp” ou um defensor ferrenho no mundo de hoje, o petróleo
da privacidade que acredita que Black Mirror
já é logo ali na esquina, o fato é que estamos
deixou de ser o bem mais valioso.
todos no mesmo barco e ele está fazendo água. Perdeu seu lugar para os dados.
Portanto, antes de buscarmos entender os
benefícios de um GDPR (General Data Priva-
até porque petróleo não gera mais
cy Regulation) europeu ou de uma LGPD (Lei petróleo, e dados geram mais dados
Geral de Proteção de Dados) nacional, preci-
samos entender por que ter uma regulação
sobre o uso de dados pessoais pelas empresas
é tão importante.

O conceito de privacidade, mesmo que seja


um direito fundamental, está sendo modifi-
cado pelas normas sociais. É difícil falar em transparente, talvez repensemos o uso desses 2014 o ex-diretor da NSA e da CIA, general
privacidade num mundo em que qualquer aplicativos “gratuitos”. E olhe que nem esta- Michael Hayden4, disse: “Nós matamos pessoas
coisa na qual se clica gera rastros. Hoje em dia mos falando de brinquedos como a boneca My baseando-nos em metadados”.
esses rastros não representam apenas uma Friend Cayla, que teve sua comercialização
forma de registrar ou controlar dados pessoais, proibida na Alemanha2 por risco de espiona- Lembrando o Panóptico, de Jeremy Bentham,
mas representam também uma tendência de gem, ou o famoso ursinho Teddy, que deixou considere que você está sendo vigiado a todo
comportamento futuro, o que é um motivador vazar3 na internet 2 milhões de conversas en- momento e não há outra opção senão se con-
ainda maior para sua coleta. Somos máquinas tre pais e filhos. Quando se tem metadados formar, a não ser que nós, oficiais detentores
de gerar metadados. suficientes, talvez o conteúdo seja irrelevante. dos dados, lutemos contra Golias. Existe con-
senso de que a liberdade depende da livre cir-
Quando você lê um livro num Kindle, o dis- Conforme Schneier sugere em Data and Golia- culação de ideias, mas será que é possível ter
positivo envia para a Amazon1 seus hábitos de th, faça um experimento simples: imagine que livre circulação de ideias se os Golias nos colo-
leitura: se você leu o livro do início ao fim ou você contrata um detetive particular para es- cam em bolhas e nos vigiam o tempo todo? Será
se tem o hábito de ler algumas páginas diaria- pionar alguém. O detetive colocará escutas na que num modelo de negócios em que somos o
mente, se você marcou alguma passagem, com casa, no escritório e no carro dessa pessoa. produto, e não o cliente, teremos uma luta efe-
qual frequência você lê esse livro ou se desis- Procurará ter acesso ao telefone e ao compu- tivamente justa?
tiu de lê-lo na íntegra. O dispositivo faz call tador dela e gerar relatórios detalhados sobre
back para enviar esses metadados, e toleramos suas conversas. Agora imagine que, em vez de A tensão existente para equilibrar o uso de dados,
esse tipo de conduta, pois é feito de forma espionar, você pediu ao detetive que “vigias- a privacidade, a segurança e a vigilância não são
transparente; não nos incomoda tanto assim. se” essa mesma pessoa. Você terá um relatório
1. BELL, Steve. Hey, did 3. BICCHIERAI, Lorenzo
you know that your Kindle Franceschi. Internet of Mas você consegue imaginar essa postura fora diferente, mas não menos importante: aonde
is spying on you? 2015. things Teddy Bear leaked da internet? Ter um funcionário da Amazon ela foi, o que fez, com quem falou e por quan-
Disponível em: http://bit. 2 million parent and na sua casa, toda vez que você abre um livro, to tempo, para quem ela escreveu, o que ela
ly/2xbJovK. Acesso em: kids message recordings.
14/8/2018 2017. Disponível em:
coletando dados sobre seus hábitos de leitura? leu e o que comprou. A espionagem lhe dará
http://bit.ly/2MmK8Us. as conversas; a vigilância lhe dará todo o res-
2. EFE. Alemanha
proíbe comercialização
Acesso em: 14/8/2018 Uma gigante da tecnologia que sabe o que você to. Novamente: quando se tem metadados
de boneca por risco 4. COLE, David. lê, quando você lê e como você lê, pode infe- suficientes, talvez o conteúdo seja irrelevante.
de espionagem. 2017. We kill people based rir muito sobre você. Se pensarmos que cada
Disponível em: on metadata. 2014. aplicativo, cada gadget maravilhoso que usa- Entenda que seus dados e metadados são você
https://abr.ai/2MplrXv. Disponível em:
Acesso em: 14/8/2018 http://bit.ly/2OdWvDW. mos, coleta e manda informações para seus e são absolutamente relevantes para o que en-
Acesso em: 14/8/2018 fabricantes sobre nossos hábitos de forma tendemos como privacidade. Não por acaso, em

44 45
ARTIGO

necer seu CPF na hora da compra. Suspeita-se


que essas listas de compras estejam sendo divul-
gadas para empresas de análise de crédito e, pas-
as leis de proteção aos dados mem, empresas de planos de saúde. Esse tipo de
prática permitiria uma discriminação do usuário
já começam a surtir efeito. em função dos medicamentos que compra, por
As empresas estão reduzindo exemplo. Já pensou ter um empréstimo negado
depois de ter começado a comprar medicamen-
o número de dados que mantêm tos para o tratamento de câncer... da sua avó?
e descartando outros tantos Será que foi realmente com essa finalidade que
você confiou seu CPF a alguma empresa?

Também não por acaso, existem defensores de


que, se formos realmente donos de nossos dados,
deveríamos poder vendê-los10, já que é comum
o modelo de negócio em que empresas se baseiam
no uso dos nossos dados sem nos dar nenhuma
compensação monetária. Segundo essa linha de
algo relativamente novo, mas certamente perder Gigantes da tecnologia como a Intel5 e a Micro- raciocínio, você deveria poder vendê-los, con-
o controle sobre como nossas informações pes- soft6, entre diversas outras, reforçam a ideia de ceder uso limitado em troca de um serviço ou
soais são utilizadas pelas empresas não nos é que “os dados são o novo petróleo”, enquanto mantê-los privados. Mas o que importa aqui é
nada favorável. Nós não deveríamos estar em o discurso dos analistas de segurança da infor- termos a efetiva noção de que quem detém a
guerra com Golias. Nós confiamos a ele nossas mação defende que os dados são um “ativo informação tem mais poder na nova economia.
informações, um dos nossos bens mais preciosos, tóxico ” e devem ser tratados como tal. A revis-
acreditando que ele as trata com a devida res- ta The Economist, em reportagem de 2017 inti- No mundo todo, as iniciativas para a proteção crise de credibilidade
ponsabilidade, mas ano a ano, notícia a notícia, tulada “The world’s most valuable resource is de dados pessoais são o assunto em evidência.
percebemos que Golias pode estar abusando da no longer oil, but data”(O recurso mais valioso No estado norte-americano de Vermont, por A Cambridge Analytica foi uma empresa britânica de
nossa confiança. do mundo não é mais o petróleo, são os dados), exemplo, foi aprovada11 em maio uma regula- comunicação estratégica especializada em usar
afirma que o bem mais valioso do mundo não mentação que visa proteger os habitantes do dados recolhidos nas redes sociais para traçar perfis
é mais o petróleo, e sim dados. No episódio 148 estado da aquisição fraudulenta de dados, bem psicológicos de usuários usados na segmentação de
5. LOUREIRO, Rodrigo. 9. LUIZ, Gabriel. CPF em do podcast “Segurança Legal”8, o especialista como estabelecer um registro e padrões de publicidade e outros conteúdos capazes de tentar
Os dados são o troca de desconto: MP em segurança da informação e sociólogo Carlos segurança para a indústria de data brokers. Foi interferir em suas escolhas. Em 2014 participou de 44
novo petróleo. 2018. investiga venda de dados
Disponível em: de clientes por farmácias. Cabral, ao comentar o caso Cambridge Analy- o primeiro estado americano a aprovar uma campanhas políticas, incluindo a campanha
http://bit.ly/2MoKjyH. 2018. Disponível em: tica, aborda a questão do dataísmo, segundo legislação para dar maior transparência às presidencial de Donald Trump e a do Brexit.
Acesso em: 14/8/2018 https://glo.bo/2OdfT46. ele, um conceito definido por Yuval Noah Ha- atividades dos corretores de dados. Mas cer-
Acesso em: 14/8/2018
6. OLHAR DIGITAL. rari no livro Homo Deus, que reflete uma devo- tamente a que tem causado maior impacto O modelo de operação da empresa veio a público
Microsoft diz que ‘dados 10. MAWAD, Marie et al. ção quase religiosa ao acúmulo, tratamento e entre as empresas no mundo todo é a regula- durante as investigações de manipulação dos
são o novo petróleo’. Venda de dados
uso de dados. Mas Cabral vai mais longe em sua mentação europeia. O GDPR – General Data eleitores americanos. A Cambridge Analytica
2016. Disponível em: pessoais é próximo
http://bit.ly/2N4g2KF. passo da revolução análise, trazendo a visão do cientista Piero Sca- Protection Regulation (Regulamento Geral de coletou, por meio de um “teste de personalidade”
Acesso em: 18/4/2018 de big data. 2018. ruffi de que não é possível fazer petróleo com Proteção de Dados)–, segundo o site eugdrp. que circulou na rede social em 2003, informações de
Disponível em: mais petróleo, mas é possível gerar mais dados org,“substitui a Diretiva de Proteção de Dados mais de 50 milhões de usuários do Facebook, que
7. SCHNEIER, Bruce.
http://bit.ly/2Qpxs2d.
Data is a toxic asset. com dados. Logo, dados valem muito mais que 95/46/EC e foi concebido para harmonizar as foram usadas para influenciar o debate político.
Acesso em: 14/8/2018
2016. Disponível em: petróleo. Estaria a humanidade fadada a travar leis de dados privados dos países membros da
http://bit.ly/2x53Uiq. 11. VERMONTBIZ.
guerras pela posse dos dados assim como fazem União Europeia, para proteger e empoderar a O escândalo afetou o valor de mercado do
Acesso em: 14/8/2018 Vermont AG hails new
data broker law. 2018. hoje pelo petróleo? privacidade de todos os cidadãos e reformular Facebook, mergulhado em uma crise de
8. SEGURANÇA LEGAL.
Disponível em: o modo como as organizações em toda a região credibilidade por causa de suas práticas de
Episódio #148 – Cambridge
http://bit.ly/2CQgUhn. Não por acaso, o Ministério Público do Distrito abordam a privacidade de dados”; mas acaba tratamento e uso de dados, e o obrigou a anunciar
Analytica. 2018. Disponível
Acesso em: 14/8/2018
em: http://bit.ly/2Qqudb8. Federal9 decidiu investigar farmácias que ofere- atingindo as empresas que lidam com dados medidas para reduzir o compartilhamento de
Acesso em: 14/8/2018 cem descontos obsessivamente se o cliente for- de cidadãos europeus no mundo todo. informações dos usuários com seus parceiros.

46 47
ARTIGO

Muito do alarde causado pela nova regulamen-


tação se deve ao fato de as multas serem pe-
sadíssimas, chegando a € 20 milhões (cerca
de R$ 81 milhões) ou 4% do faturamento da
empresa transgressora, o que for maior. Outras a nova lei na europa motivou um novo
penalidades previstas na lei, para casos em que
as empresas não notificarem sobre os vaza-
tipo de golpe. bandidos sequestram
mentos, por exemplo, ficam em torno de 2% dados de empresas e exigem resgate
do faturamento. Esse fator é de extrema im-
portância, pois qual é a motivação que as em-
para não divulgá-los, o que poderia
presas que lidam com dados pessoais de mi- fazê-las pagar multas pesadas
lhares, milhões de pessoas têm para
efetivamente proteger essas informações? O
que acontecerá se, por usarem práticas de se-
gurança pífias, elas deixarem os dados pessoais
de seus clientes vazarem na internet?

Não são raros os casos de vazamentos de dados


aqui no cenário nacional, onde as empresas não que, em e-mail à publicação AdExchanger, a Entre os principais20 aspectos da lei de proteção
só não lhe pedem desculpas, mas não avisam chief marketing officer da empresa, Julie Ber- de dados da União Europeia (muitos válidos
você sobre a exposição dos seus dados, não nard, alegou17 que o ambiente regulatório também para a recente legislação brasileira),
assumem seus erros, e ainda negam publica- europeu deixou de ser favorável ao seu mo- podemos listar os de maior relevância:
mente os vazamentos; e a vida segue seu curso. delo de negócios específico. A pergunta que
Isso quase aconteceu com uma instituição ban- fica é: qual ambiente? Um ambiente que bus- - a necessidade de comunicar vazamentos a
cária12, recentemente, não fosse a intervenção que o uso e armazenamento de dados pessoais qualquer pessoa afetada e aos órgãos regula-
do Ministério Público do Distrito Federal. Uma dos usuários com responsabilidade? Ações dores; ou seja, se suas informações foram va-
lei de proteção de dados com multas pesadís- como essa mostram a importância de uma lei zadas, você deve ser notificado e estar ciente
simas parece ser uma motivação bem interes- robusta para a proteção de dados. das ações tomadas;
sante para evitar descuidos e abusos.
Obviamente, uma lei de proteção de dados - a obrigação de as empresas considerarem a
O GDRP impacta tanto a maneira como as pessoais não é algo simples, nem na sua con- confidencialidade dos dados (uma vez que
empresas usam nossos dados que algumas cepção nem na sua implementação. Alguns dados não possuem privacidade) no escopo de
delas, após o início da vigência da lei europeia, especialistas, entre eles o jornalista investi- qualquer projeto: o chamado privacy by design;
fecharam as portas. O jogo online Ragnarök13, gativo Brian Krebs18, discutem as implicações
12. JURISTAS. MPDF 2018. Disponível em: por exemplo, que teve grande sucesso no negativas de segurança que a nova lei terá
quer que Banco Inter http://bit.ly/2COKJik.
pague indenização por Acesso em: 14/8/2018 Brasil, desligou seus servidores na Europa em sobre serviços como o Whois, por exemplo,
vazamento de dados função da nova legislação. O mesmo fez a que dificultará a identificação de crackers e
15. ÉPOCA NEGÓCIOS.
de clientes. 2018.
Facebook vai tirar
Drawbridge14, fornecedora de ferramentas de spammers que registram novos domínios,
Disponível em: 17. SCHIFF, Allison. 19. AMIR, Waqs.
1,5 bi de usuários do publicidade segmentada que monitora a jor- uma vez que seus dados não poderão ser di- Verve closes European Ransomhack: a new
http://bit.ly/2OdG7n6.
Acesso em: 14/8/2018
alcance de nova lei de nada digital dos consumidores. O Facebook15 vulgados. Além disso, a nova lei já está mo- business thanks to GDPR. attack blackmailing
privacidade na EU. 2018.
fará a migração de 1,5 bilhão de usuários tivando um novo tipo de golpe chamado Ran- 2018. Disponível em: business owners using
13. GAMEHALL. Após 14 Disponível em: http://bit.ly/2N8xoGp. GDPR. 2018. Disponível
anos, “Ragnarök Online” https://glo.bo/2x5yhFw. africanos, asiáticos, australianos e latino- somhack , em que bandidos sequestram os
19
Acesso em: 14/8/2018 em: http://bit.ly/2CP41E3.
fecha servidores na Acesso em: 14/08/2018 -americanos da rede social que estavam na dados de empresas, mas, em vez de cripto- Acesso em: 14/08/2018
Europa. 2018. Disponível 18. KREBS, Brian. New EU
16. ECOMMERCE BRASIL. Irlanda para sua subsidiária americana, fu- grafá-los como um típico ransomware faria, privacy law may weaken 20. PAYÃO, Felipe.
em: http://bit.ly/2p1rk3O.
Acesso em: 14/8/2018
Verve encerra negócios gindo do alcance da nova lei. A Verve16, em- exigem resgate para a não divulgação dos security. 2018. Disponível GDPR: a nova lei
na Europa por presa que administra uma plataforma de mar- dados, o que faria a empresa ter problemas em: http://bit.ly/2OgF1al. cibernética que pode
14. HERCHER, James. conta do GDPR. 2018. Acesso em: 14/8/2018 afetar todo o mundo.
keting mobile alimentada por dados de com o GDPR e suas pesadas multas. Efeitos
Drawbridge exits media Disponível em: 2018. Disponível em:
business in Europe before http://bit.ly/2N8WXHk. localização, também encerrou suas atividades colaterais que precisarão ser tratados confor- http://bit.ly/2Mua7tm.
GDPR storms the castle. Acesso em: 14/8/2018 na Europa. O interessante no caso da Verve é me esses conceitos vão amadurecendo. Acesso em: 14/8/2018

48 49
ARTIGO

- a obrigatoriedade de terceiros manterem re-


gistros detalhados de como os dados estão
sendo utilizados;

- o direito garantido aos cidadãos de solicitar a estudo recente com 1,5 mil
exclusão dos seus dados pessoais em posse de
determinada organização; a guarda de registros
líderes de 34 países mostra que
de como os dados são processados dentro da 84% deles acreditam que a
organização, incluindo nome e detalhes da
organização, a finalidade do processamento,
conformidade com o gdpr (lei
a descrição de categorias de indivíduos e dados europeia) será positiva
pessoais, destinatários, detalhes da transfe-
rência e cronogramas de retenção de dados;

– a impossibilidade de as empresas transferirem


dados de cidadãos europeus para países tercei-
ros que não possuem leis adequadas para a
proteção de dados, sendo que a Comissão Eu-
ropeia avalia quais países possuem leis satisfa- leta, processamento e armazenamento de dados. Ressaltando a importância de leis nacionais e
tórias, mantendo uma lista de países aprovados; O mindset corporativo precisará entender, res- internacionais que tratam desse tema, já é pos-
peitar e levar em conta a segurança da infor- sível identificar efeitos interessantes. Um estu-
– a contratação, por empresas que processem mais mação. E a prova de que isso já está acontecen- do recente do IBM Institute for Business Value
de 5 mil registros em um período de 12 meses, do foi a corrida que tivemos no mês de maio (IBV)23, feito com mais de 1,5 mil líderes de
de um DPO – Data Protection Officer (escritório para a atualização de “Termos de Uso” e “Po- negócios em empresas de 34 países, mostra que
de proteção de dados), encarregado da gestão líticas de Privacidade” de diversos serviços, 84% deles acreditam que a prova de conformi-
desses dados no ambiente empresarial; adequando-se à nova regulamentação. dade com o GDPR será vista como um diferen-
ciador positivo para o público. E o mais impor-
– o consentimento do usuário para o uso de seus Na América Latina, países como Chile, Argen- tante: 80% das empresas estão reduzindo a
dados pode ser suspenso por ele a qualquer tina, Colômbia e Peru já contam com esse tipo quantidade de dados pessoais que mantêm; 78%
momento, e a empresa deve fornecer os meios de regulamentação. Porém seria leviano dizer estão reduzindo o número de pessoas que têm
para facilitar esse procedimento; que o Brasil não se preocupa com o tema. Pos- acesso aos dados pessoais e 70% estão descar-
suímos diversas leis21 que direta ou indireta- tando dados que não são mais necessários. Afi-
- a garantia da portabilidade de dados, ou seja, mente tratam da proteção de dados pessoais, nal, existe segurança maior para a proteção do
o usuário tem o direito de obter cópia de seus como o Marco Civil, por exemplo, mas uma dado do que ele não existir?
dados armazenados e disponibilizá-los em legislação específica como a LGPD é muito mais
outro serviço, sendo as empresas obrigadas a relevante no cenário nacional. A LGPD, clara- Diante do cenário descrito aqui, cabe perguntar
fornecer ferramentas para essa finalidade; mente inspirada no GDPR, foi sancionada22 por também: estariam os dados posicionando a pe-
21. BAPTISTA LUZ 23. IBM IBV REPORT.
Michel Temer enquanto eu escrevia este artigo, dra na atiradeira para enfrentar os diversos Go-
ADVOGADOS. Proteção The end of the beginning: – a clareza das políticas de privacidade, que de- dando às empresas 18 meses para a devida ade- lias? Uma coisa é certa: se não quisermos mais
de dados – A legislação unleashing the vem ser de fácil interpretação pelos usuários; e quação, o que acabará ocorrendo em fevereiro viver na imensa contradição de “quem contro-
vigente no Brasil. 2017. transformational
de 2020. Fruto de duas consultas pela internet, la o dado” ou “quem o dado controla”, o mo-
Disponível em: power of GDPR. 2018.
http://bit.ly/2Ob8Skh. Disponível em: – o direito de os usuários serem informados se 15 audiências públicas e aprovação unânime em mento de “os dados” se rebelarem contra a ar-
Acesso em: 14/8/2018. https://ibm.co/2ND5Bgw. seus dados estiverem sendo compartilhados ambas as casas do Congresso, esperava-se que rogância de Golias é agora, mesmo que o ideal
Acesso em: 14/8/2018. com grupos externos. a lei fosse aprovada sem vetos pela Presidência fosse promover a paz entre ambos.
22. MAZUI, Guilherme;
CASTILHOS, Roniara. da República, o que acabou não acontecendo.
Temer sanciona com vetos Mesmo que para algumas empresas o GDPR Ainda assim, é um passo importante na direção
lei de proteção de dados
possa parecer assustadora, ela visa levá-las a da manutenção do direito à privacidade dos
pessoais. 2018. Disponível
em: https://glo.bo/2oZCl5I. padrões mais elevados de segurança, respon- cidadãos brasileiros. As multas da LGPD podem
Acesso em: 14/8/2018. sabilidade, governança e transparência na co- chegar a R$ 50 milhões por infração.

50 51
ARTIGO
por LUCIANO MEIRA

Novos
hackers mais do que
pensar na

da velha
introdução de
novas
tecnologias

escola digitais, o
desafio é rever
o ambiente
escolar e a
formação
docente

s
egundo dados da pesquisa TIC Educação, do Comitê Gestor da
Internet no Brasil1, a atividade virtual mais frequente entre 84%
das meninas e 73% dos meninos de 9 a 17 anos é a pesquisa, na
internet, de informações para a realização de trabalhos escola-
res. Além disso, embora eles baixem mais aplicativos móveis
que elas, ambos usam as redes sociais e se comunicam por men-
sagens instantâneas com muita e igual frequência.

Existe, assim, um enorme contingente de crianças e jovens que, principal- 1. CGI, 2016, bit.ly/2BvfdoG
mente fora da escola, se organiza com as mídias digitais a fim de facilitar e
potencializar suas atividades cotidianas, até aquelas próprias da escola. Na
escola, por outro lado, sobram tensões e controvérsias relacionadas ao uso
das tecnologias digitais na sala de aula, especialmente os dispositivos móveis,
formalmente proibidos para uso “não pedagógico” em seis estados da Fede-
ração (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Distrito Federal, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul). Luciano Meira,
Ph.D., professor da
A despeito disso, estamos todos mergulhados em mundos de transforma- UFPE, cofundador da
Joy Street, pesquisador
ções digitais rápidas e intensas, inclusive na escola e na academia, ainda do CNPq, colaborador
que desigualmente distribuídas. Importante pontuar que computadores da CESAR School,
em geral, smartphones incluídos, não são apenas “mais um” instrumen- associado efetivo do
to de aprendizagem, como às vezes se diz. O alcance das tecnologias di- Todos pela Educação,
gitais vai muito além de seu papel mais óbvio na busca, produção e Lemann Fellow.

52 53
ARTIGO

circulação de informações e na comunicação, para permi- dizagem, além de oferecer aos gestores da rede de os grandes desafios
tir a simulação de mundos fantásticos e responsivos, com ensino uma inteligência educacional que facilita a
alta densidade de feedback e monitoramento intensivo de tomada de decisões sobre, por exemplo, a formação
da educação
dados de uso. de professores em conteúdos específicos. pedem respostas
Por outro lado, uma arquitetura de inovação educacional Agora temos no Brasil um novo instrumento que pretende
multidisciplinares,
depende menos da introdução de tecnologias digitais no orientar a oferta de experiências significativas de aprendiza- construídas por
ambiente escolar e muito mais da reengenharia dos am- gem, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A BNCC do
bientes de aprendizagem e da formação de professores em ensino fundamental, por exemplo, apresenta os direitos de
meio da inovação
massa. Por exemplo, na oferta de espaços de fabricação aprendizagem das crianças, assim como dez competências
digital (maker spaces), é menos importante o investimen- gerais que “explicitam o compromisso da educação brasilei-
to na aquisição de impressoras 3D do que um esforço no ra com a formação humana integral e com a construção de
redesenho didático das aulas de modo que os artefatos fa- uma sociedade justa, democrática e inclusiva”3.
bricados resolvam problemas relevantes e
emprestem materialidade e significado aos Listo três das competências gerais – aque-
conceitos da matemática, da língua, das sentem muito engajados com a escola, nos últimos anos do las que se somam de forma complementar da de forma eficiente e produtiva a paradigmas de aprendizagem
ciências etc. ensino médio essa taxa já é apenas cerca de 30%. às visões já explicitadas acima –, tendo em associados ao pensamento crítico, à criatividade, à argumenta-
vista a formação do jovem para uma par- ção e à cidadania, entre outras competências gerais previstas na
Então, o que os sistemas de ensino deveriam Experiências significativas de aprendizagem são atividades ticipação autoral na transformação de suas BNCC.
estar fazendo agora para, além de otimizar autênticas que oferecem a estudantes e professores um sen- comunidades e na produção de novas for-
todo esse potencial da computação, pre- so de propósito, como na abordagem orientada ao desenvol- mas de vida em nossa sociedade: Esses grandes desafios da educação requerem respostas multidis-
parar de verdade as crianças, os jovens, os vimento de projetos, nas práticas PBL (Problem Based Lear- ciplinares, desenhadas com o esforço orquestrado de gestores
educadores e as famílias para uma partici- ning. Aprendizagem baseada em problemas) ou nos • Pensamento científico, crítico e criativo: públicos, designers, tecnólogos, educadores, pedagogos e tantos
pação efetiva, democrática e transforma- ambientes digitais gamificados (que empregam mecânicas e investigar causas, elaborar e testar hipó- quantos se interessarem pela criação de uma sociedade mais jus-
dora na sociedade? estratégias de videogames para engajamento e melhoria do teses, formular e resolver problemas e criar ta e igualitária. Acredito, adicionalmente, que as respostas mais
desempenho). No Porto Digital, em Recife, desenvolvemos soluções; significativas e perenes serão construídas por meio da inovação,
Primeiro, precisamos melhorar radicalmen- e operamos uma Olimpíada de Jogos Digitais e Educação (OJE) em uma arquitetura em camadas que inclui as seguintes ações:
te as experiências de aprendizagem ofere- que usa gamificação e jogos digitais para envolver os estu- • Argumentação: formular, negociar e
cidas na escola, tendo em vista tratar o de- dantes na resolução de problemas. A OJE foi desenhada, en- defender ideias, pontos de vista e decisões 1.  Transformar os espaços físicos de aprendizagem e in-
sengajamento crônico e o desempenho tre outras coisas, com base em quatro características funda- comuns, com base em direitos humanos, centivar o uso de uma grande diversidade de artefatos
pífio dos nossos estudantes desde o ensino mentais das salas de aula que operam com máxima consciência socioambiental, consumo res- digitais e analógicos.
básico. Desnecessário reproduzir aqui os performance e baixo custo, segundo a Education Endowment ponsável e ética;
dados históricos ou mais recentes dos testes Foundation2: 2.  Desenhar novas experiências imersivas e significativas
nacionais e internacionais das escolas e jo- • Responsabilidade e cidadania: tomar de aprendizagem e práticas didáticas inovadoras em
vens brasileiros no Ideb ou Pisa; são muito 1. Os estudantes se organizam em times colaborativos decisões com base em princípios éticos, todos os campos de conhecimento.
ruins, inclusive nos sistemas privados de para realizar conquistas e vencer desafios que te- democráticos, inclusivos, sustentáveis e
ensino. Mas, em uma outra perspectiva, a matizam competências acadêmicas. solidários.” (Porvir, 2017) 3.  Construir relações entre os agentes que pensam e ope-
do engajamento dos estudantes com a es- ram os ambientes educacionais, especialmente relações
cola a partir de sua própria percepção, o 2.  Dentro de cada time, os estudantes desenvolvem No documento da BNCC, competências são afetivas e intelectuais entre professore e alunos.
Instituto Gallup mostra, em pesquisa anual estratégias de tutoria recíproca (peer tutoring), re- apenas abstrações. Um de nossos grandes
com centenas de milhares deles, que, se no distribuindo os fluxos de aprendizagens na escola. desafios para a educação nos próximos anos 4.  Promover o compartilhamento em rede de soluções
5º ano do ensino fundamental, cerca de 75% será construir uma realidade escolar (e de testadas com sucesso e de políticas públicas fundadas
dos estudantes estadunidenses ainda se 3.  Estudantes convidam os educadores para participa- aprendizagem ao longo da vida) que respon- na democracia.
rem como professores-aliados, que apoiam os jovens
no desenvolvimento de habilidades metacognitivas. Esse é, de novo, tempo de “hackear” os sistemas de ensino,
incentivar a participação autoral dos agentes de mudança na
4.  A plataforma digital, assim como os bons videogames, escola (famílias, estudantes, educadores, gestores), montar
oferece alta densidade de feedback que orienta es- ecossistemas de inovação baseados em competências diversi-
2. EEF, 2016, econ.st/2B6WGKs tudantes e professores em diferentes trilhas de apren- 3. Porvir, 2017, https://bit.ly/2rHCGwN ficadas. E, de novo, só temos agora para começar!

55
54
ARTIGO
por paulo feldmann

Chegamos à
eletronização
Equipamentos cada vez mais inteligentes
desempenharão muitas das atividades
que requerem raciocínio lógico

A
meaças de que as má- Por que agora será diferente? A res-
quinas vão eliminar posta está no fato de que com a inte-
empregos e gerar o caos ligência artificial o ser humano perde
existem há mais de 200 o monopólio da capacidade cognitiva.
anos. Mas elas nunca se Ou seja, até há pouco tempo as má-
concretizaram porque quinas e computadores apenas con-
sempre foi possível des- seguiam desempenhar atividades re-
cobrir novas atividades ou então criar petitivas e substituir o trabalho braçal. paulo feldmann
novos setores, de tal forma que pro- Daqui para a frente, atividades que é professor da
fissões apareceram e empregos proli- requerem raciocínio lógico, capaci- Faculdade de Economia,
Administração e
feraram. Mesmo com o advento da dade de decisão e inteligência poderão Contabilidade da
tecnologia da informação há cerca de ser desempenhadas por robôs ou com- Universidade de São
70 anos, o temor que se tinha do de- putadores. Para Wolfgang Streeck, um Paulo (FEA-USP),
semprego causado pelo computador dos mais importantes sociólogos ale- professor visitante da
ou pela automação logo se dissipou e mães, enquanto no século 20 vivemos Pécs e da Universidade
Corvinus (ambas
um número enorme de novas profis- a era da mecanização, daqui para a da Hungria) e autor
sões surgiram desde então, dos pro- frente vai predominar a eletronização, de Robô: ruim com ele,
gramadores de computador aos web em que os equipamentos passam a pior sem ele (1988,
designers, só para citar algumas. contar com inteligência. editora Trajetória).

56 57
ARTIGO

Assim, a ameaça de desemprego agora informatização são os empregos?). Nes-


recai sobre profissões que se julgava se estudo eles afirmam que, até 2030,
serem impossíveis de serem substituí- cerca de 45% dos empregos americanos
das ou eliminadas, como a de médico poderão ser eliminados. Eles examina-
ou a de advogado. A IBM lançou um ram dezenas de profissões e calcularam a escola e a universidade devem ter
sistema cognitivo, chamado Watson, a chance de cada uma ser extinta nos
que consegue ler, analisar e emitir lau- próximos 12 anos. Concluíram que al-
como objetivo que o estudante saiba
do para mil tomografias em 10 minutos, gumas atividades importantes como o que deve fazer para aprender
com a mesma margem de erro que cem operadores de telemarketing, conta-
médicos fariam em dois dias. dores, auditores e corretores de imóveis,
entre muitas outras, deixarão de exis-
A combinação de novas tecnologias, tir, enquanto algumas poucas vão per-
denominada indústria 4.0, está pro- manecer, como, por exemplo, dentis-
movendo uma transformação enorme tas, cuidadores de doentes ou idosos,
nos métodos de produção e pode, sim, treinadores de esportes. Infelizmente,
provocar uma devastação nos empre- o estudo aponta para um crescimento automação mostram-se cada vez mais
gos. Fala-se de robôs, inteligência ar- enorme do desemprego. sofisticados, aptos a desempenhar um
tificial e de impressoras 3D há muitos número crescente de funções. Ou seja,
anos, mas seu custo era muito alto e Outro fato novo e preocupante é que não se deve apostar que a criação de fazer para aprender, pois daqui para a
sua aquisição, quase impossível para até pouco tempo se imaginava que a postos de trabalho não previstos pode- frente ele não fará outra coisa que não
a grande maioria das empresas. De sociedade pós-industrial seria capaz rá resolver o problema do desemprego. seja estudar para, com isso, aprender
cerca de três anos para cá isso mudou de gerar ocupações em novos setores, e adquirir uma nova capacitação ou
completamente. Esses produtos fica- sobretudo ligados à área de serviços, Nesse cenário assustador, precisamos competência. Ainda mais revolucio-
ram mais sofisticados, seus preços se para absorver os trabalhadores deslo- pensar em como educar hoje as nossas nário é o professor David Autor, do
tornaram mais baixos e isso fez com cados da indústria. Essa perspectiva crianças para o mundo que encontrarão MIT. Ele prega que a ênfase seja muito
que começassem a proliferar pelo mun- foi descartada, pois é justamente nos daqui a 20 ou 30 anos. Um dos maiores mais na educação técnica/tecnológica
do todo. Talvez a maior mudança que setores de serviços que os robôs e equi- estudiosos do assunto é o professor Joel de curta duração e menos na formação
venha a acontecer seja com a globali- pamentos dotados de inteligência ar- Mokyr, da Universidade Northwestern, acadêmica, em uma universidade.
zação, pois mão de obra barata está tificial são mais utilizados. nos Estados Unidos. Ele afirma que é
deixando de ser algo atraente para as impossível prever quais serão as profis- Através do exame do que falam os maio-
grandes multinacionais e elas começam As ocupações criadas como decorrên- sões do futuro, assim como em 1990 res especialistas, o que podemos con-
a preferir produzir nos países onde cia das novas tecnologias são em quan- ninguém poderia prever que profissões cluir é que ainda sabemos muito pou-
estão suas matrizes e sedes, em vez de tidade diminuta. Estudo de 2017 feito como projetista de videogame ou espe- co sobre o que pode advir no mundo
sair pelo mundo buscando aquele fa- no Canadá mostra que, na hipótese cialista em cibersegurança ou blockchain do trabalho e do emprego. A verdade
tor de produção. mais otimista, os novos empregos não seriam profissões importantes de nosso é que estamos vivendo o início de uma
chegam a 4% do total de postos de tempo. Mokyr acredita que diante des- era ainda mais revolucionária do que a
O que assusta é que muitos estudos vêm trabalho existentes naquele país (vale sa dificuldade o sistema educacional que vivemos nos últimos 40 anos. Como
sendo feitos, principalmente nos Esta- ler “The impact of automation on Ca- deveria desencorajar muita especiali- sempre, a educação será um dos fato-
dos Unidos e no Reino Unido, para nada’s labour market”, O impacto da zação e estimular uma formação mais res mais importantes. Aliás, sempre foi
quantificar o tamanho do desemprego automação no mercado de trabalho do geral para o aluno. Segundo ele, o erro assim: os países que estão sobressain-
que advirá, e os resultados são preocu- Canadá, de Matthias Oschinski e Ro- hoje é formar um profissional que co- do agora são aqueles que investiram
pantes. O mais famoso desses estudos salie Wyonch). nhece cada vez mais de menos, ou seja, pesadamente em seus sistemas educa-
foi feito por dois economistas, Michael altamente especializado e com pouca cionais, como fizeram a China, a Coreia
Osborne e Carl Frey, ambos da Univer- Os estudos mais sérios e mais bem ela- capacidade de desvio de rumo em sua do Sul ou Israel. Está claro, também,
sidade de Oxford, no Reino Unido, e borados concluem que é muito peque- profissão caso ela seja extinta. que agora não se trata apenas de inves-
denominado “The future of employ- na a probabilidade de que surjam novas tir. É necessário reformar as estruturas,
ment: how susceptible are jobs to com- atividades e profissões nas quais a pre- A saída, para Mokyr, é que as escolas as práticas e as políticas do sistema
puterisation?” (em tradução livre: O sença de seres humanos seja impres- e universidades tenham como objeti- educacional para deixá-lo preparado
futuro do emprego: quão suscetível à cindível. Robôs e equipamentos de vo que o estudante saiba o que deve para esses novos tempos.

58 59
entrevista
com eugênio bucci

Como as
fake news podem
afetar o destino
da democracia
a grande ameAça Está na forma com
que se dá a propagação de mentiras

C
ada vez menos, a informação política que circula
nas redes sociais e nos serviços de mensageria pres-
ta contas aos fatos; sua função é reafirmar precon-
ceitos, promover a reafirmação narcísica das mul-
tidões homogêneas.

Os eleitores também parecem não estar nem aí


para o fato de a informação supostamente política virar um
item de entretenimento, uma vez que mais e mais tomam suas
decisões com base em fanatismos e mistificações, estimulados
pela performance do histrião da vez. Se o que ele diz é verda-
de ou mentira, isso é um detalhe irrelevante.

Por que notícias abusivamente mentirosas – como a de que o


papa teria dado seu apoio a Trump – ganharam tanta adesão
de tantos americanos? A resposta é tão simples quanto desa- EUGÊNIO BUCCI
lentadora. As calúnias, infâmias e invencionices extraem sua é professor doutor da Escola
de Comunicações e Artes
força do desejo do eleitor. Passam longe da razão. Se a notícia
(ECA) e pesquisador visitante
falsa cai no agrado das fantasias que ele nutre, será proclama- do Instituto de Estudos
da verdade suprema naquele instante de puro prazer, susten- Avançados (IEA) da
ta o professor da ECA-USP e Universidade de São Paulo.
colunista do jornal O Estado de É colunista do jornal
O vídeo desta entrevista O Estado de S.Paulo e do site
S. Paulo Eugênio Bucci, em en- está disponível em app. Observatório da Imprensa.
trevista concedida à jornalista cadernosglobo.com.br
Cristina De Luca.

60 61
entrevista

QUEm diz que as fake news Não são


novidade porque a mentira existe
na política desde sempre está
incorrendo em um equívoco

É claro que a distorção não vem de hoje. Nem de Você tem sido uma referência no tema fake news... antigo, fundador da linguagem. Nós falamos para gens, que até tentaram produzir conteúdos contra
ontem. A própria expressão “pós-verdade” – elei- Referência é algo sempre relacional. Depende sem- informar e para criar uma ilusão para nós mesmos. Trump, ou coisas pró-Hillary, mas isso dava “menos
ta pelo Dicionário Oxford como “a palavra do ano” pre de quem olha. Fico contente de vocês dizerem Há esquemas de dissimulação na própria nature- Ibope”. Não rendia tanto. Eles encontraram um
de 2016 – entrou no circuito ainda em 2004, quan- que eu sou referência. E espero que as pessoas te- za, em outros códigos que não a linguagem hu- nicho de mercado, que era o eleitorado que gostava
do foi título de um livro de Ralph Keyes, The pos- nham o juízo de levar em conta que uma referên- mana. Na política, especificamente, a mentira é de Trump e detestava Hillary, e consumia e repli-
t-truth era: dishonesty and deception in contempo- cia também é relacional. Ela pode ter razão. Mas o antiga. Na filosofia, Platão, em A República (Politeía), cava mais conteúdos pró-Trump. Então investiram
rary life (em tradução livre, A era da pós-verdade: mais importante é apresentar as razões da razão admite o instrumento da mentira para preservar nesse mercado condizente com as métricas e com
desonestidade e decepção na vida contemporânea, de quem é a referência, para que as coisas sejam a cidade, garantir unidade, mesmo abominando os sistemas de remuneração adotados pelos sites de
sem edição brasileira). postas de forma dialógica. De forma que cada um os mentirosos... Faz até um paralelo da mentira busca e pelas redes sociais naquele período. Eles
crie o seu próprio sistema de referência. na política, quando necessária, com uma espécie ganhavam dinheiro fazendo aquilo. Se era para uma
E não é só a comunicação política que segue cada de mentira piedosa. opinião política, ou para a outra, era irrelevante. Isso
vez mais as regras, os formatos e os ritmos estabe- Tomando esse cuidado então, queríamos ouvir é a novidade. A transformação da mentira política
lecidos pelo entretenimento. A comunicação como como você está vendo esse fenômeno denomi- A mentira é, portanto, uma ferramenta do exercício em uma oportunidade de mercado meio marginal.
um todo tem enverado por esse caminho, segundo nado fake news. É um fenômeno novo? da política. Não podemos ter aí uma postura mora-
Bucci, colocando lado a lado o jornalismo e o entre- Sim, é um fenômeno novo. Mas nos falta clareza lista, que, aliás, é um grande problema da nossa Precisam então dessa nova forma de distribui-
tenimento, no mesmo espaço. Sem separação, a para entender por que é novo. E isso me preocupa. cultura política contemporânea. ção de informação para existir?
credibilidade jornalística segue exposta e acaba Vamos fazer um raciocínio rápido para que fique Isso mesmo. As fake news são a produção e a di-
alimentando fenômenos como as fake news. mais perceptível o porquê de ser novo. Quem diz que as fake news não são novidade porque fusão de mentiras, ou de verdades forçadas, em
a mentira existe na política desde sempre está in- uma determinada era de fabricação de valor na
“Optamos, também no jornalismo, por conteúdos A mentira, na imprensa ou na linguagem, é tão an- correndo em um equívoco. A mentira existe e exis- indústria do imaginário, onde estão as redes so-
cada vez mais produzidos e difundidos de acordo tiga quanto a cultura... quanto a humanidade. Falar tirá enquanto houver humanidade. Mas as fake news ciais, onde está toda a cultura digital...
com a predileção emocional dos públicos”, co- é mentir. A correspondência, que é uma ideia ne- constituem uma modalidade de produção da men-
menta Bucci nesta entrevista concedida especial- cessária para o entendimento do que é uma menti- tira que não tem a ver com o que se passava antes. E onde estão, principalmente, os algoritmos que
mente ao Caderno Globo. ra factual, quer dizer, a existência de uma corres- traçam perfis com base em nossos interesses e
pondência entre o que se anuncia e aquilo que se Por quê? comportamentos...
As notícias fraudulentas fazem exatamente o mes- passa na natureza ou no mundo sensível, é sempre A mentira presente nas fake news é industrialmen- Isso. Quando nós falamos fake news, estamos
mo, diz. São impactantes. Dialogam mais com a inexata. A fala ou o discurso é uma construção de te produzida, a despeito da opinião política daque- fazendo alusão a uma era histórica da indústria
emoção do que com a razão. Com um agravante: representações que vão encontrar algumas corres- le que a fabrica. O caso do Trump é muito ilustrati- do imaginário que produz relatos fraudulentos
sua produção e seu fluxo estão sendo determinados pondências com as coisas, mas que em grande me- vo com relação a isso. Ficou evidente a participação
por algoritmos, regras matemáticas enigmáticas dida não vão. Então, só pela existência dessa cor- de jovens na Macedônia, produzindo conteúdos
que não dominamos. respondência, não temos uma precisão acabada pró-Trump que tiveram algum impacto na decisão
sobre o que se fala e sobre aquilo do que se fala. final do eleitorado norte-americano.
Além disso, a dissimulação é um componente Esses jovens contam, em documentários e reporta-

62 63
entrevista

as pessoas passam boatos e fake news adiante


por carência afetiva ou por vazios de ordem
do desejo e por ódio, por intolerância

como negócio. Não se trata necessariamente de para exposição, fruição, imposição de fantasias, tornando o carro-chefe do relato, mesmo factual. ecoar o ódio ao que não é espelho, aquela carência
uma disputa de opinião política, de hegemonia sensações, emoções e formas variadas de gozo. É meritório que existam programas que não se que cada um trás dentro de si.
ou, como está na moda dizer, disputa de narrati- Com o incremento das tecnologias, dos meios de deixem conduzir por ele. Mas, via de regra, o sen-
va. Isso também comparece aí, mas não é o de- comunicação de massa, a imprensa, que era um sacionalismo vem ganhando terreno. Pode-se Aí o sujeito recebe uma mensagem no celular, bate
terminante. O determinante é o meio de produção. pedaço de papel com matérias escritas que inter- fazer sensacionalismo sobre assuntos policiais, da o olho e fala: “Eu sabia. Esse cara nunca me enga-
pelavam a razão e o pensamento, e falavam para a área de saúde, e por aí vai. A sensação não pode nou”, e passa adiante. Ou recebe uma bobagem no
E arrisco dizer que isso pode ser visto também como elite, vai virando coadjuvante de uma vertente faltar na comunicação, e faz com que o relato jor- celular e pensa: “Minha turma vai adorar isso aqui,
um prolongamento de tendências industriais que muito mais poderosa: a do entretenimento. Com nalístico precise apelar um pouco para o desejo. eu vou ser bem popular, amado”, e repassa.
estavam postas desde antes. O sensacionalismo, por o surgimento do rádio, da TV, o entretenimento, Hoje, nas redes sociais, esse apelo é o motor central.
exemplo, é uma maneira de distorcer a percepção que era assessório no jornal impresso do século 19, A pesquisa do MIT baseada no Twitter fala dis-
da realidade factual a partir de apelos que fisgam o se tona o principal. Estou falando do melodrama, O que você está descrevendo é muito da técnica so. Os robôs são usados para jogar uma infor-
público pelas sensações. Pelo advento do medo. Pela do folhetim, dos cartoons, do horóscopo... por trás do viés de confirmação usada na cons- mação para uma audiência mais sensível ao
pulsão da violência. Pelo desejo, erótico ou porno- trução das fake news... argumento utilizado e, a partir daí, é a audiên-
gráfico, dependendo da angulação. Isso deságua nas Uma releitura dos faits divers... Sim. Com a diferença que essa nova indústria do cia que se encarrega de espalhar a mensagem.
fake news, que têm uma marca de sensacionalismo Isso. Mas o fait divers já envolve algo de jornalismo. entretenimento criou monopólios globais, como Isso. Insisto nesse ponto. A tecnologia, os robôs,
bastante acentuada. Elas apelam diretamente para Estou falando principalmente daquelas pequenas Google, Facebook, Twitter e outros tantos... É nes- os algoritmos fazem muito nesse processo... Isso
as emoções do público. Para medos, ódios, intole- ilhas que não tinham compromisso com o debate se ambiente que trafegam as fake news. E eles se está sendo medido. Mas as mensagens só entram
rância. Uma coisa tende a outra, embora o discurso público, o debate das opiniões, nem com o relato remuneram pela captura do olhar, em uma inten- na circulação da humanidade quando os huma-
do ódio possa usar fake news ou não, e a fake news factual. Eram momentos de relaxamento do olhar, sidade maior que a da indústria da mídia eletrônica. nos se apossam delas e passam para a frente. As
possa descambar para o discurso do ódio. da cabeça... A TV e o rádio são meios de entrete- pessoas passam boatos e fake news adiante por
nimento dentro dos quais existem ilhas de jorna- Para capturar o olhar, essa nova indústria do entre- carência afetiva ou por vazios da ordem do de-
O que levou o sensacionalismo a ganhar tan- lismo. O motor, a locomotiva desses novos meios tenimento da era digital foi aprendendo a produzir sejo e por ódio, por intolerância. Por vontade de
ta relevância? Foi a busca desenfreada por de comunicação de massa eletrônicos, é o entre- carícias no ego, afagos na autoestima de uma mul- ampliar a possibilidade de eliminação do con-
audiência? tenimento. O jornalismo, aí, precisa fazer alguma tidão que é carente afetiva e vetor de ódio. Os 15 traditório. Estamos lidando com o ideal de hu-
Também aí a gente pode identificar raízes. A raiz concessão à linguagem do entretenimento ou vira minutos de fama de Andy Warhol hoje seriam um manidade de um só.
do sensacionalismo tem a ver com a transformação algo impossível de ser assistido. Continua sendo ou dois segundos de popularidade dentro de uma
da instituição da imprensa, que, no início, no seu um relato factual, mas, em alguma medida, pre- turminha... de uma bolha. Você está dizendo que as redes sociais reforçam
ideal, e até o século 19, historicamente, é uma cisa negociar com a linguagem que aciona a emo- essa ideia da comunicação de um para muitos,
arena de debates de interesse público em um circo ção no espectador, o sentimento e as sensações. O relato político precisou se amoldar a isso... A lin- pseudopersonalizada?
guagem publicitária dos marqueteiros políticos se Então... É muito revelador que a gente precise en-
Dependendo do grau, esse jornalismo transborda reduz a algo que cabe em 15 segundos. Que vai contrar iguais nesse nível. As pessoas parecem re-
para o sensacionalismo nos jornais impressos mais capturar o olhar dos eleitores não por algo que seja unidas em bolsões de mesmos. São outros que se
apelativos e atinge o seu ápice no rádio e na TV, se racionalmente demonstrado, mas por algo que faça reafirmam como um só.

64 65
entrevista

só o jornalismo de qualidade
é capaz de educar o leitor a identificar
o que é uma notícia

O “nós” na cultura, o “nós” na psicanálise, o “nós” Não são tanto as fake news que ameaçam, mas a que estamos sujeitos, as pessoas adotam soluções O jornalismo se ocupa do que fazem as pessoas.
na antropologia é indispensável, porque é o elemen- tudo que as permeia... contrárias àquilo que elas mesmas acreditam ser a Vai relatando a jornada humana. E, para isso, se
to que nos ajuda a distinguir o “eles”. Precisamos Isso. As fake news são a camada visível. Outra ex- base das suas deliberações. Há algo que lesa o pro- ocupa de checar os fatos o tempo todo. Só o jor-
nos perceber pertencentes a um grupo diferente dos pressão que ficou muito em evidência foi pós-ver- cesso autônomo de formação da opinião e da von- nalismo de qualidade é capaz de educar o leitor a
demais. O nós contra eles é um fator de estruturação dade. Mas poderíamos usar outra: o pós-fato. tade de cada um. O sujeito chega a ser induzido a identificar o que é uma notícia. Os políticos saem
dos grupos, que nada mais são que agrupamentos fazer o oposto do que ele imagina estar fazendo. O falando sobre as fake news, dando mostras elo-
narcísicos de um. Por isso esses grupos são tão pro- A pós-verdade é uma expressão tão problemática grau de clareza sobre a própria conduta se reduz. quentes de que não sabem o que são notícias. A
pensos a ter um líder... a cultuar personalidades. O quanto fake news. Ela sugere que até 2016 nós es- cultura política média não entende o que é notícia
culto à personalidade combina muito com esse távamos sob o domínio da verdade. Esse é um en- E qual é o antídoto, na sua opinião? e combate fake news com medidas que na ver-
grupamento narcísico e infantilizado, não perpas- tendimento enganoso. Sempre a mentira esteve aí. Há um caminho viável, que vem sendo empregado dade cerceiam a liberdade de imprensa.
sado pela razão ou pela lógica da democracia. Para Sempre a verdade foi um problema. em alguns casos com muito sucesso, que é o jorna-
efeito desse raciocínio, fazendo uma descrição so- lismo de qualidade. Há nisso até uma ilusão positi- O problema das fake news é que elas são notícias
frível, a democracia é um ambiente em que sujeitos A expressão pós-verdade sugere que há uma pre- vista. Uma ilusão metodológica própria do positi- falsificadas, independentemente de dizerem ver-
autônomos, uns em relação aos outros, conseguem sença menor da verdade do fato, que é um tipo vismo. Às vezes, até penso que o positivismo dades ou mentiras. Elas parecem que são notícias,
debater os temas que dizem respeito à vida comum, particular de verdade no exercício da política. sobreviveu na imprensa. Em todos os outros lugares simulam terem sido produzidas por uma redação
àquilo que é compartilhado, achar acordos para ele já está derrotado. Estou falando da ilusão de que profissional independente. Elas vão a público sem
divergir e formas de adotar encaminhamentos que A verdade do fato tem a ver com juízo do fato. Um temos capacidade de mostrar os fatos como eles que a gente saiba a origem, sem que consiga che-
os representem minimamente. Se não temos a pre- processo político na democracia discute questões realmente aconteceram. car e sem que, verificada a falha, o leitor ou o
missa de sujeitos autônomos, uns em relação aos de fato. A opinião se constrói a partir da constatação objeto da notícia tenha a quem reclamar.
outros, não temos democracia. Temos algum outro dos fatos. Os agentes divergem sobre as interpreta- Relativizando isso um pouco, o discurso jornalísti-
tipo de agrupamento ditado pelo fanatismo, ou pelo ções, mas comungam da constatação dos fatos. co é um discurso sem fim. O jornal nunca termina. A notícia é um relato que se corrige no calor do
medo, que é muito próprio das tiranias. Não entrega uma verdade acabada. O jornal é uma debate público. A imprensa, quando publica erros
O que estamos assistindo agora é ao distanciamen- verdade provisória, precária, de fatos em andamen- – e ela o faz aos montes –, precisa responder por
Não existe muito de democracia na conformação to dos fatos. A política está se articulando menos to. Por definição, toda reportagem é um discurso eles. As fake news nunca serão corrigidas por
dessas tais bolhas. Elas querem, pedem, postulam em torno de problemas reais e mais em torno das com incompletudes. O melhor que o jornalismo quem as produziu. Esse é o problema.
e praticam uma reafirmação do mesmo. O que pro- intolerâncias de cada par. Não estamos debatendo pode conseguir é um relato que será atualizado ho-
blematiza é o ruído. É nesse lugar que as fake news fatos. Estamos debatendo convicções, muitas vezes ras depois. A verdade científica também está em A democracia está ameaçada pela forma com que se
se difundem loucamente. E o resultado é o aumen- sem lastro na verdade factual. processo permanente. Alguém faz uma tese, de- dá a propagação de mentiras sobre os fatos. O des-
to do autoritarismo, da intolerância, das políticas monstra, aquilo carece de comprovação empírica... compromisso com os fatos é absurdo. É importan-
ditas populistas, que são a não política e uma redu- Por isso estamos, como sociedade, cada vez mais Só as religiões prometem verdades acabadas. tíssimo proteger a verdade dos fatos. E educar as
ção dos ambientes democráticos tal como conhe- suscetíveis a relatos e enunciados apelativos e irra- novas gerações para a convivência com a era do es-
cidos. A democracia e as eleições, no mundo, estão cionais. E não só na política. Também na ciência, na petáculo, com a publicidade, com a imprensa e, prin-
sob ameaça. É um período muito difícil. saúde, na economia... Dada a ordem informacional cipalmente, com esse vírus que são as fake news.

66 67
ARTIGO
por PEDRO LENHARD

Batalha
pelas mentes
Robôs estão no centro do debate sobre
manipulação da Informação nas redes
sociais, distanciando-as da imagem de
ferramentas benéficas para a democracia

“F
alo direto do teto do prédio da rádio em Nova York. Os sinos
que vocês ouvem ao fundo servem de aviso para todos eva-
cuarem a cidade antes que os marcianos pousem. O número
estimado de pessoas que já deixaram suas casas, a caminho
do norte, soma três milhões. A rodovia de Hutchinson River
ainda está aberta para o tráfego de veículos… Evitem pontes
para Long Island, estão interrompidas. Todas as comunicações
com a costa de Jersey cessaram dez minutos atrás. Não há mais como se
defender. Nosso exército foi varrido, artilharia, força aérea, tudo se foi. Essa
pode ser a nossa última transmissão, mas ficaremos com vocês até o fim...”
PEDRO
O dramático trecho, que narra a chegada dos marcianos à Terra, foi trans- LENHARD
é mestre em
mitido como notícia em 1938 por uma rádio norte-americana. Dos 6
Administracão
milhões de ouvintes, mais de 1 milhão acreditou se tratar de uma notícia Pública, e bacharel
verdadeira. O pânico se instaurou onde a suposta invasão foi ambientada em Relações
e incluiu fugas, congestionamentos de trânsito e linhas telefônicas. Internacionais,
com ênfase
O famoso episódio em que transmitiram a novela de A guerra dos mun- em marketing
e negócios.
dos mesclava elementos da linguagem do jornalismo com a ficção: a
transmissão tinha reportagens externas, entrevistas com testemunhas
que estariam vivenciando o acontecimento, opiniões de autoridades,
efeitos sonoros, repórteres e comentaristas, mas não passava de uma
programação especial para o Halloween.

O exemplo de A guerra dos mundos ilustra o poder de influência dos meios


de comunicação no comportamento em sociedade. Durante muito tempo
esse poder permaneceu concentrado em empresas midiáticas, que tinham
meios financeiros e legais para alcançar audiências significativas e assim
influenciar no desenrolar das narrativas sociais, políticas e econômicas.

68 69
ARTIGO

A chegada da internet produziu no- proxy para diversos debates, como ciais norte-americanas de 2016; no
vas configurações sociais, políticas algoritmos, automação, políticas Brasil, essas e outras empresas foram DE OLHO NOS ROBÔS
e econômicas, como a descentrali- públicas, entre outros. convidadas a participar do Comitê
zação da produção de conteúdo in- sobre Internet e Eleições, do Tribu- Um conjunto de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas
formativo e a democratização do Robôs e fake news se tornaram nal Superior Eleitoral. desenvolveu uma metodologia de detecção de robôs para o debate
consumo de informações. As tec- sociais digitais, foi elemento central protagonistas no debate sobre as nas redes sociais. Essa metodologia identificou a influência de robôs
nologias de informação e comuni- nos protestos como a Primavera campanhas de desinformação e Hoje, Facebook e Twitter têm atua- em diversos debates, como indicado no quadro abaixo.
cação como a internet se tornaram Árabe, por exemplo, ou o movimen- interferências ilegítimas no deba- do mais ativamente no combate a
centrais em diferentes aspectos da to Occupy, além de centenas de te público eleitoral. O debate elei- perfis falsos e disseminadores de Como identificar robôs?
vida contemporânea. outras manifestações ao redor do toral deste ano está imerso em in- notícias falsas, deletando esses Para isso, os principais atributos de análise em uma base de dados de
mundo. As ruas e as redes começa- certezas. Assim como em outras perfis das plataformas. Tanto nos conversas das redes sociais devem ser considerados.
Mais recentemente, a internet e as ram a convergir, demandando ser- democracias, a guerra de narrativas Estados Unidos como no Brasil, Ao analisarmos os metadados – informações agregadas de um dado
redes sociais se tornaram uma are- viços públicos e criando uma nova é turbinada pela produção de cam- grupos ideologicamente alinhados específico como uma postagem no Twitter –, buscamos por padrões
na de discussão da esfera pública agenda pública conduzida pela so- panhas de desinformação em pe- à direita têm alegado que as ações anômalos que fogem ao comportamento humano. Por exemplo,
em que se constroem discursos e ciedade civil. Nesse sentido, o en- ríodos próximos às eleições. são injustas e que as plataformas mensagens com a escrita idêntica sendo publicadas em um espaço muito
narrativas sobre temas de interesse tendimento dos novos códigos e têm preferência política progres- curto de tempo (diferença de milissegundos) por dezenas de contas.
dos cidadãos e dos governos. práticas próprios da cibercultura e “Ao longo da história, a sista ou de esquerda. Desinforma-
da comunicação digital nas redes comunicação e a informação ção em cima de desinformação. Como visualizar?
Acontece que a transmissão ins- sociais se tornou relevante para a têm sido fontes fundamentais Quando é chegada a hora de personificar os atores e criar influência
tantânea de informações ao redor sociedade contemporânea. de poder e contrapoder, de O que o governo deve fazer? Regu- em uma determinada rede, a SNA (Social Network Analysis) é a
do mundo pelas novas tecnologias dominação e mudança social. lar mais? O que as plataformas devem aposta a fazer. Esse método tem sido usado de diferentes formas e
pode tanto aproximar cidadãos de Segundo o teórico de mídia Douglas Isso porque a batalha fazer? São perguntas sem respostas variações e é baseado na teoria dos grafos como disciplina científica.
governantes, por exemplo, como Rushkoff, vivemos na era do choque fundamental que está sendo claras, e o debate está em construção. É uma batalha pela dominação sobre nós individuais (pessoas) e seus
também distanciá-los ainda mais. com o presente, em que recebemos travada na sociedade é a Jornalistas e pesquisadores têm fei- gráficos sociais. Ao instrumentalizarem e conquistarem nós
um tsunami de informações online batalha sobre as mentes das to um trabalho relevante para apon- individuais, eles são capazes de interferir e influenciar nos gráficos
O cenário de insatisfação e falta de de forma simultânea em uma ve- pessoas. A maneira como as tar caminhos e soluções para o de- sociais que consistem em seus círculos sociais, centenas de amigos,
confiança no establishment políti- locidade que ultrapassa o tempo pessoas pensam determina o safio dos robôs e fake news. colegas e parentes. Exemplo:
co, aliado à diminuição do custo de real. O formato da notícia também destino das normas e valores
organização da sociedade por redes se transforma: fica mais curta, ágil sobre os quais as sociedades Um dos principais pontos dessa GREVE GERAL 28 DE ABRIL
DE 2017 zona vermelha: pró-greve geral
e envelhece mais rápido. são construídas.” reflexão é que devemos qualificar contas suspeitas
o debate sobre interferências ile- espalhadas pelo cluster
contrário à greve e
Não por acaso, os tempos Manuel Castells gítimas na esfera das redes sociais. concentradas no cluster zona azul: contra greve geral
em que Facebook e Twit- Existe uma crescente ambiguida- favorável

ter eram vistos exclusi- Informação > Desinformação de sobre as discussões sobre robôs
O que os governos vamente como ferramen- O impacto das redes sociais para a e a produção e disseminação de 1.460.460 TWEETS
tas benéficas para o democracia passou a receber cada fake news. Primeiro, robôs são um 13/03/2016 00:00 –
devem fazer para aperfeiçoamento da de- vez mais atenção de pesquisadores, fenômeno e fake news, outro. An-
13/03/2016 23:59
Fonte: FGV/DAPP

combater a mocracia acabaram. A jornalistas e gestores públicos. Di- dam de mãos dadas, muitas vezes,
suscetibilidade das pla- versos estudos revelam operações mas nem sempre. Incidência de robôs em eventos de relevância da agenda pública
desinformação? taformas a vários tipos organizadas para supostamente in-
regular mais? E as de manipulação técnico- fluenciar resultados eleitorais, entre Antes de aprofundarmos a discus- robôs interações com robôs
-política ganhou a centra- outras motivações. Um dos resul- são sobre soluções eficientes, se-
plataformas? lidade do debate atual. tados mais imediatos é a atenção jam elas no âmbito do debate legal, 2014 eleições presidenciais 2.1% 13 a 19%
São perguntas sem Dois dos principais me- dada à regulação das plataformas. regulatório, eleitoral etc., preci- 2015 impeachment 2.32% 16 a 21%
canismos dessa manipu- samos difundir e apoiar discussões 2016 eleições SP 4.36% 8 a 11%
respostas claras lação são a utilização de Facebook e Twitter foram chamados sobre o entendimento desses fe- 2017 greve geral 1.35% 18 a 22%
robôs e a proliferação de a testemunhar nas investigações nômenos, suas diferentes defini-
2017 reforma trabalhista 0.94% 1 a 3%
notícias falsas. Esses dois sobre a manipulação digital estran- ções e métodos de identificação e
fenômenos se tornaram a geira durante as eleições presiden- avaliação de impacto. Fonte: FGV/DAPP (http://bit.ly/2Nh3G1H)

71
70
ARTIGO

Determinar a exata influência das -eleitoral ou de políticas públicas


fake news e dos robôs nas eleições ao redor do mundo. Foi assim nas aprendendo com a desinformação
é um grande desafio, que depen- últimas eleições gerais dos Estados
de de vários fatores. Unidos, da França, do México, na O que são fake news? Como apareceram...
votação do Brexit e tem sido assim Até aqui, todos os especialistas que já se • Uma forma emergente de especulação
Robôs (ou, simplesmente, bots) são em diversos momentos no Brasil. debruçaram sobre essa tarefa chegaram à cínica.
geralmente definidos como agentes começaram a notar que essas po- mesma conclusão: as fake news são mais • Um motor para energizar a Alt-Right e
automatizados que funcionam em líticas da plataforma possibilitaram Estudo recente da Diretoria de Aná- do que simplesmente notícias falsas ou outras mobilizações políticas em todo o
uma plataforma online. Chatbots, a criação de uma população ampla lise de Políticas Públicas da Fun- erradas. São conteúdos noticiosos falsos ou mundo.
spambots, crawlers, indexers, sybils, de contas automatizadas para fins dação Getulio Vargas (FGV/DAPP) errados feitos com a intenção de causar • Um biproduto indesejado ou efeito
cyborgs, scrappers, trolls, farms são maliciosos, inicialmente dissemi- do qual tive a honra de ser coautor dano a alguém/algo, criar uma percepção colateral das mídias sociais.
alguns dos subgêneros dos bots. A nando spam e malware. Desde en- revela que perfis automatizados equivocada, mudar um pensamento • Uma sinalização do colapso do consenso
terminologia técnica é vasta, mas, tão, várias formas de automatiza- motivaram debates no Twitter em coletivo ou gerar lucro. E produzidos para em torno de instituições estabelecidas,
em resumo, o que diferencia um ção em plataformas de redes sociais situações de repercussão política viralizar de forma a ampliar ao máximo seu anunciando uma nova era “pós-verdade”
tipo de robô do outro é, sobretudo, são referidas como social bots. brasileira desde as eleições de 2014. impacto em uma audiência específica. na política e na vida pública.
sua motivação e a forma de intera- O surgimento de contas automa-
ção com plataformas e humanos. Assim como Gourwa e Guilbeault, tizadas permitiu que estratégias de
Ferrara sugere que a compreensão manipulação, disseminação de
A origem dos social bots ilustra a geral de um social bot é a de um boatos e difamação, comumente
origem da discussão atual sobre a “programa que automaticamente usadas em disputas políticas, ga-
manipulação do debate eleitoral. produz conteúdo e interage com nhassem uma dimensão ainda Como identificar
Os pesquisadores R. Gourwa e D. humanos em redes sociais”. De for- maior nas redes sociais. Segundo o International Federation of Library Associatons and Intitutions (IFLA):
Guilbeault lembram que a ascensão ma complementar a essa definição,
do Twitter levou à proliferação de podemos acrescentar que os social A participação ostensiva de robôs Fonte: http://fakenews.publicdatalab.org
contas automatizadas, devido a bots tentam mimetizar comporta- no ambiente virtual tornou urgen-
políticas que incentivaram desen- mentos humanos no ambiente on- te a necessidade de identificar suas
volvedores a criar ferramentas e line. Os social bots direcionados para atividades e, consequentemente,
aplicações criativas na plataforma. propósitos políticos podem ser cha- diferenciar quais debates são legí- Considere a fonte Leia mais
No início desta década, cientistas mados de political bots. Um grande timos e quais são forjados. Sem esse Clique fora da história Títulos chamam a atenção
grupo de social bots orga- discernimento, é muito difícil en- para investigar o site, para obter cliques. Qual
nizado pelo mesmo ator, tender, filtrar e denunciar o uso e a sua missão e contato. é a história completa?
ou com o mesmo propósi- disseminação de informações falsas
to, de forma orquestrada, ou manipulativas.
pode ser chamado de bot- Isso é uma piada? Consulte especialistas
A participação net. Para nos aprofundar- Portanto, como concluímos no Caso seja muito estranho, Confira em um site de
mos nas definições e tipos estudo da FGV, para que as redes pode ser uma sátira. Pesquise verificação gratuito.
ostensiva de BOTS de robôs, sugiro ler o tex- sociais continuem sendo um es- sobre o site e o autor.
no ambiente to “Unpacking the social paço democrático de opinião e in-
media bot: a typology to formação, é necessário identificar
virtual tornou guide research and policy” a organicidade dos debates. Para Verifique o autor Verifique a data
urgente a (Desempacotar o robô das que as redes se tornem mais trans- Faça uma breve pesquisa Repostar notícias antigas
mídias sociais: uma tipo- parentes, é também fundamental sobre o autor. Ele é não significa que sejam
necessidade de logia para orientar pesqui- que os responsáveis por esse tipo confiável? Ele existe mesmo? relevantes atualmente.
identificar suas sas e políticas, 2018). de ação coordenada comecem a
ser identificados, buscando-se
atividades São diversas as evidências compreender os interesses por trás Fontes de apoio? É preconceito?
de utilização de robôs nas da contratação desses serviços de Clique nos links. Avalie se seus valores
redes sociais para inter- automatização e propagação de Verifique se a informação próprios e crenças podem
ferir no debate político- desinformação. oferece apoio à história. afetar seu julgamento.

73
72
74
3.
Avante, de olho no retrovisor

76
Informação sob a pele

80
Cidades inteligentes

86
O futuro: tão high tech quanto humanista?
92

O choque do novo

100
Glossário

102
ONDE
PARA
VAMOS?

75
ARTIGO
por Luli Radfahrer

Avante,
de olho no
retrovisor
Para onde vamos? Um exercício de
futurologia: o que vem por aí em termos
de tecnologia? Novos produtos E técnicas

H
á futuros para todos os tável do que é hoje. A má é que Tomem-se, como exemplo, duas
tipos e gostos. Como ainda não se descobriu um jeito de tecnologias fáceis de compreender,
diz William Gibson, o melhorar as dinâmicas sociais com embora difíceis de realizar: re-
autor de ficção cien- tecnologia. Em outras palavras, a combinação genética e impressão
tífica responsável pe- situação pode piorar um bocado tridimensional. Aparentemente
los termos “Matrix” e antes de começar a melhorar. Mas desconexas, quando combinadas
“ciberespaço”, o futu- deverá melhorar. Até hoje, pelo elas podem levar a uma revolução
ro já chegou. Infelizmente, mal menos, sempre melhorou. Como no transplante de órgãos e na re-
distribuído. Nos próximos anos a disse o dinossauro para seu colega construção de nichos ecológicos.
mudança tecnológica estará à flor ao ver o proverbial meteoro se apro- Integradas a técnicas de inteligên-
da pele, espalhada por boa parte ximar, “não se preocupe: acaba- cia artificial e bases de dados co-
dos objetos cotidianos, acessível a remos todos passarinhos”. letados na natureza, elas poderão
custos baixíssimos. Isso é boa e má promover uma bela transformação
notícia. A parte boa é que a vida Prever o futuro hoje é muito mais no meio ambiente, da reciclagem
neste Admirável Mundo Novo ten- difícil do que já foi na época em que de lixo à criação de novos parques
derá a ser mais saudável e confor- se sonhava com a Era de Aquário. temáticos.
São tantas as inovações, vindas de
tantas áreas, que só a tarefa de ima- O desenvolvimento que está para
ginar o efeito da sobreposição das chegar tem uma escala exponencial.
mudanças já é trabalho considerá- Como toda exponencial, quando se
Luli Radfahrer vel. Levando-se em conta que cada olha para trás, o progresso parece
é livre-docente, professor
associado de Comunicação Digital área influenciará o desenvolvimen- horizontal, quase nulo. Passado o
da ECA-USP há 21 anos e autor to de várias outras, as probabilida- ponto de inflexão, a taxa de mudan-
do livro Enciclopédia da Nuvem. des beiram o inimaginável. ça parece vertical, inimaginável de

76 77
ARTIGO

tão grande. Cada nova revolução faz gram), vídeos (YouTube), lojas virtuais. Os três parecem ter pre-
o salto vertical de antigamente pa- digitais (Amazon) e boa parte des- visto as redes sociais. Na verdade
recer minúsculo em comparação ao sas empresas com modelos de ne- não foi essa a sua intenção. Seus
que está por vir. A Revolução Indus- gócios baseados em publicidade e comentários diziam respeito à
trial foi gigantesca para as comuni- emburrecimento do usuário, mui- Tendemos a criar “Datacracias”, transformação da sociedade nor-
dades agrícolas que a vivenciaram. to menos inovadores do que o foram te-americana, que em menos de
Depois do surgimento do transpor- o rádio e a TV quando surgiram, mas
nas quais a quantidade de uma década deixou para trás a vida
te aéreo, da microeletrônica e da que o Vale do Silício insiste em cha- informação armazenada sobre pacata em cidadezinhas para se
Internet, parece minúscula. mar de “unicórnios”. amontoar nas futuras megalópoles.
um indivíduo tomará decisões
Um exemplo mais próximo está ao Hoje as promessas de algo realmen- em seu nome Quando todo mundo é estrangeiro
alcance da mão. Boa parte dos lei- te novo estão distribuídas em di- e não há referências comuns de
tores deste Caderno já era nascida versas áreas: blockchain, por exem- família, escola, profissão, igreja
no final do século passado, época plo, promete revolucionar a forma etc., é natural que as antigas fron-
em que se podia viver sem celulares como são administradas as transa- teiras desapareçam, que todos pro-
e internet, em que a ideia de uma ções financeiras, o registro de di- teligência artificial e aprendizado jante do tempo certamente ques- curem seus minutos de fama e que
“banda larga móvel” e de supercom- reitos autorais e boa parte das formas de máquina não devem criar cére- tionaria a teimosia com que se dos princípios éticos que a regem e os papéis de identidade sejam re-
putadores de bolso a criar novos de voto, tecnologias sociais em vi- bros eletrônicos, mas mudarão de- insiste nos mesmos velhos erros. do uso que é feito dela. Não foi por inventados. Quando a internet veio
canais de informação, ameaçar a gência desde a Antiguidade. Im- finitivamente as ferramentas de Vindo do passado, sua increduli- ter inventado as pirâmides que o para reforçar a ideia de uma so-
imprensa e colocar a democracia pressoras 3D são pequenas máqui- negócios usadas hoje, a ponto de dade estaria na incapacidade de Egito faliu, nem a invenção da pól- ciedade conectada, a tendência já
em risco não seria imaginada nem nas de fabricação digital que podem torná-las tão poderosas quanto resolver problemas sociais óbvios. vora afundou a China. Mas a relu- estava estabelecida. O que esses
pelo maior paranoico. No entanto... transformar boa parte do comércio incompreensíveis. tância em fazer as mudanças sociais três e tantos outros mostraram é
e da logística, levando máquinas de Errar, infelizmente, é humano. Ao necessárias para que as novas tec- que não há forma melhor de pre-
Ideias hoje consideradas por muita produção industrial para dentro das Todo esse registro constante e aná- longo da história não são poucos os nologias fossem assimiladas acabou ver o futuro do que tirar os óculos
gente específicas demais para ga- lojas. Não tardará para que uma loja lise dinâmica de volumes colossais exemplos de vacilos estratégicos em determinando o seu fracasso. de nostalgia virtual e encarar o
nharem o público geral podem logo de roupas tenha uma máquina que de dados tenderão a criar “datacra- culturas prósperas, que não só des- presente por inteiro.
transformar indústrias e criar novas tome as medidas de seus consumi- cias”, em que a enorme quantidade perdiçaram boa parte de suas con- O que leva à frase-título deste ar-
estruturas de poder. Na época em dores (caso eles sejam primitivos de informação armazenada a res- quistas como quase afundaram o tigo, escrita por Marshall McLuhan. A estratégia continua válida para se
que computador era coisa de nerd e ou desleixados o suficiente para não peito de um indivíduo pode tomar resto da civilização no processo. Não O teórico da comunicação - que, prever o futuro. Só assim ficará cla-
hackers viviam nas casas de suas ter seu registro milimetricamente - e certamente tomará - uma série causa surpresa saber de sociedades como outros nestes tempos de pou- ro como a sociedade contemporânea
mães, não se imaginaria que Google, preciso, armazenado na nuvem e de decisões em seu nome, influen- avançadas que murcharam a ponto ca leitura e muito compartilhamen- ainda está presa a ideologias do sé-
Apple, Facebook, Microsoft e Ama- atualizado diversas vezes por dia), ciando políticas públicas e criando de não sobrar quase nada de sua to, é mais citado do que lido - disse culo 19 travestidas de futuro: um
zon surgiriam para pulverizar mo- cortar o tecido e costurá-lo instan- estruturas de vigilância e de segre- grandeza. Egito e Grécia são exem- que, em face de uma nova situação, taylorismo que mede tudo em nome
nopólios estabelecidos há décadas. taneamente. Da mesma forma, pro- gação muito menos permeáveis do plos populares no Ocidente, mas tendemos a nos apegar a objetos de uma eficiência cujos parâmetros
dutos de plástico e até algumas co- que o mundo quase feudal em que China e Índia não são menos im- que remetam ao passado recente, não são claros; um comunismo que
Como é impossível prever o futuro, midas poderão ser sintetizados na se vive hoje, como já imaginaram pressionantes. Como é possível que marchando de costas para o futuro, defende que todo conteúdo seja
o que resta é analisar o que é hoje hora, eliminando intermediários as piores distopias. os inventores do papel, da pólvora sem o desejo de abrir mão das re- gratuito, pouco importa a forma
pequeno e promissor, com a cons- em uma escala sem precedentes. e de boa parte da matemática te- galias conquistadas. do subsídio; e um darwinismo que
ciência de que algumas inovações O Homo sapiens parece ter a mania nham se tornado cafundós miserá- nega as conquistas do animal social
são ideias à procura de um inventor. A imaginação desconhece limites: de evoluir em espiral: cada avanço veis no século 19? O que impede as Os anos 1960 foram uma época rica em nome de individualismo e com-
Não há dúvidas de que o smartpho- veículos autônomos transformarão significativo costuma ser acompa- culturas aparentemente inquebran- em ideias e questionamentos sociais. petitividade selvagens em que não
ne surgiria mesmo se a Apple não o desenho de cidades e rodovias; nhado de um retrocesso de similar táveis de hoje de terem o mesmo Naquela época McLuhan concebia há certeza nem mesmo de que o
propusesse o iPhone. O mesmo pode máquinas “inteligentes” combi- intensidade e sentido contrário, destino impiedoso dos impérios uma “aldeia global” enquanto mais forte sobreviverá.
ser dito de um mecanismo de bus- narão informações contextuais com restando pouco mais do que me- Otomano, Inca e Songhai? Andy Warhol demandava 15 mi-
ca baseado em relevância (Google), o histórico de seus usuários para lhorias residuais. O planeta é con- nutos de fama para todos e Timo-
uma locadora de vídeos (Netflix), fazer recomendações precisas; in- quistado e transformado com a Quando o desenvolvimento tecno- thy Leary propunha identidades
uma rede social (Twitter e Face- força de um evento geológico, no lógico é encarado com pessimismo,
book), ambientes de troca de men- entanto, velhos problemas persis- a culpa não costuma ser da técnica,
sagens (WhatsApp), fotos (Insta- tem. Se viesse do futuro, um via- mas das motivações que a geraram,

78 79
entrevista
com ANDRÉS OCHOA

Informação
sob a pele
Como o acesso à biotecnologia vai
revolucionar o conhecimento sobre o
corpo e as possibilidades de vida

e
nquanto as grandes Em sua fabulação de futuro, Ha-
religiões monoteístas rari identifica possibilidades de o
continuam a disputar homem usar a tecnologia para fa-
espaços físicos e sim- zer-se Deus ou utilizar os algorit-
bólicos – em alguns mos eletrônicos para superar os
casos, como em Jeru- algoritmos bioquímicos. Já no Vale
salém, tudo ao mesmo do Silício dos dias de hoje, essas
tempo agora –, o mundo que se fantasias se misturam com ques-
desenha está fazendo migrar suas tões como a democratização do
apostas para novos centros e pro- acesso aos dados e a ruptura de
messas de salvação. É o caso da- barreiras do conhecimento. Dessas áreas deverão vir, antes
quilo que o historiador e escritor do que imaginamos, novas ten-
israelense Yuval Noah Harari, au- Um dos maiores objetos de pesqui- dências e comportamentos para
tor de Homo Deus – Uma breve sa, como não poderia deixar de ser, lidarmos com nossa saúde. Os
história do amanhã, chama de tec- é o corpo humano e tudo que o que estão mais perto de virar rea-
norreligiões, que, baseadas em afeta. Composto por mais bactérias, lidade são a extração de células
algoritmos e genes, compõem vírus e fungos do que células, o sanguíneas para a edição de genes
uma espécie de novo contrato corpo, tradução material da vida, problemáticos e reinserção no
social cujo centro gravitacional é é um campo quase infindável de paciente; a engenharia de tecidos,
o Vale do Silício. dados à espera de leitura e enten- com o armazenamento de célu-
dimento. Nas últimas décadas – e, las-tronco para utilização futura
sobretudo, nos últimos anos, com na construção de órgãos a partir
o desenvolvimento da ciência de de material da própria pessoa, o
dados – ele vem sendo cada vez que reduziria o problema da re-
mais destrinchado, em especial por jeição; e o estudo do DNA dos
áreas da biologia, como microbio- indivíduos, para que as medica-
logia, genética, genômica, biotec- ções sejam dosadas segundo o
nologia e biologia sintética. metabolismo de cada um.

80 81
entrevista

Potencial para dobrar a expec-


tativa de vida Canadá, cujo sistema (ainda que
Quem lista essas três frentes, entre A engenharia de tecidos é a que bem menor) tem características
outras tendências, é o pesquisador chama mais atenção por seu po- de atendimento universal como
e empreendedor Andrés Ochoa, tencial revolucionário para a me- dem ser colhidas no líquido A previsão de que a expectativa o SUS brasileiro, estão interes-
colombiano de 33 anos, oito deles dicina. Segundo Ochoa, ela pode amniótico de mulheres grávi- sados em fazer sequenciamento
vividos no Brasil, onde se tornou dobrar a expectativa de vida da das, já há algum tempo faz
de vida chegue a 150 anos do DNA desde o nascimento dos
doutor em biotecnologia pela Uni- população mundial, cuja média é experiências para criação de antes da metade do século cidadãos. Isso possibilitaria
versidade de São Paulo. Hoje radi- hoje de 70 anos. “Imagino que isso órgãos em impressoras 3D. Em identificar os genes de risco para
cado na Califórnia, lidera com di- possa acontecer nos próximos 20 2011, apresentou em um TED
se tornará realizável doenças de maior incidência,
versos sócios brasileiros uma anos”, diz. Teria papel equivalen- um rim que havia feito um dia como as cardiovasculares, dia-
empresa que busca reverter o en- te no século 21 ao que os antibió- antes, com células-tronco e betes ou câncer, e começar a
velhecimento da pele usando dados ticos tiveram no século passado. materiais biológicos. A im- prevenção antes de sua mani-
de genômica. É, também, um adep- pressão levou sete horas. festação. Mais ou menos como
to do biohacking, por meio do qual “Talvez seja normal no futuro, da- no caso da atriz Angelina Jolie,
faz um trabalho paralelo, de de- qui a uns cinco ou dez anos, que Atualmente, há outros pesqui- que, ao detectar uma alta proba-
mocratização da biotecnologia, comecemos a trocar nossos órgãos sadores tentando criar pulmões, pessoas que bebem dez xícaras de desconhecidos, pode-se verificar bilidade de contrair câncer de
para que pessoas de fora da uni- como hoje fazemos cirurgia plás- fígados e outros órgãos, entre café por dia e não sentem nada. Do que há muitas possibilidades e mama, resolveu extraí-las antes
versidade possam também ter aces- tica. Alguém que tem uns 40 anos aqueles em que há mais recor- mesmo jeito, quando você toma um desafios. Nos testes hoje dispo- da ocorrência da doença. As so-
so ao trabalho com genes. e não está com os pulmões bons rência de transplantes. Com uma medicamento e metaboliza muito níveis, o que temos é a leitura de luções, no entanto, talvez não
faz um transplante de um órgão enorme vantagem adicional em rápido, ele não faz efeito”. Nesse apenas algumas partes do DNA, precisem sempre ser tão radicais.
“Acredito que uma das tecnologias criado a partir das próprias célu- relação ao transplante de órgãos caso, seria preciso aumentar a do- muitas relacionadas a doenças.
mais adiantadas, que já está no FDA las”, imagina o pesquisador. de terceiros: o fato de o proces- sagem ou trocar o medicamento. Biohackers e a democratização
[Food and Drug Administration], é so não requerer as altas dosagens Pelo que hoje já se conhece, outra das decisões
a edição de genes quando sabemos Caso isso efetivamente ocorra, a de imunossupressores para que DNA, racismo e prevenção tendência que toma corpo é a uti- Um dos pontos críticos de todos
exatamente qual gene tem proble- previsão de que a expectativa de não haja rejeição do órgão, o Com a questão do racismo em pau- lização de autoquantificadores, esses novos caminhos é o expo-
ma”, avalia Ochoa. O procedimen- vida alcance algo em torno de 150 que costuma causar sérios efei- ta mundo afora nos últimos anos, com a medição de alguns parâ- nencial encarecimento da medi-
to consiste na extração das células anos antes da metade deste sé- tos colaterais. uma ferramenta que fez bastante metros com aparelhos chamados cina. E, pelo menos num primei-
sanguíneas e na eliminação dos culo se tornará, ao menos para sucesso foi aquela que, por meio weareables, por meio dos quais ro momento, o acesso limitado
defeitos genéticos por meio de rádio alguns, realizável. O que signifi- Outro passo próximo é o aprofun- de um teste de DNA, permite iden- poderíamos ir “corrigin-
ou de quimioterapia. Depois disso, caria um salto de três a quatro damento dos estudos do DNA, que tificar a origem geográfica de uma do rotas” de hábitos e
faz-se a edição do gene que apre- vezes em relação ao início do sé- permitiria tanto diagnósticos pessoa retrocedendo até mil anos. consumo. A pressão está
sentava a anomalia por meio de uma culo passado. Naquela época, ain- como terapias mais precisas para Com um banco de dados com 100 alta? Diminua o consumo
ferramenta de edição (CRISPR Cas) da antes da descoberta da peni- cada indivíduo, ao identificar mil assinaturas de DNA e marca- de sódio. O nível de gor- Biohacking
e se reintroduz o gene no paciente cilina, a expectativa de vida como os genes que dizem respei- dores de ancestralidade que iden- duras passou do aceitável?
para tentar repovoar suas células. estava em torno de 35 anos. to ao metabolismo reagem em tificam a região de origem, os re- Corte a carne por uns dias. Com mais de uma vertente, o biohacking
cada pessoa com relação a dife- sultados entregam, com 98% de pode tanto ser voltado para a pesquisa
O pesquisador Anthony rentes compostos. Ochoa dá um probabilidade de acerto, os per- Mas isso tende a se sofis- em biologia, com uma linha batizada de
Atala, diretor do Instituto exemplo corriqueiro, porém bem centuais que comporiam o histó- ticar. Segundo Ochoa, “Do yourself biology”, quanto para o implante
O DNA de Medicina Regenerativa conhecido, para essa diferença de rico da pessoa. Um vídeo que ficou pesquisadores ligados à de chips e acessórios corporais, os grinders.
Wake Forest, é um dos pio- assimilação de substâncias: “Há famoso nas redes sociais mostra- área de saúde pública do No caso da linha mais ligada à pesquisa
O ácido desoxirribonucleico é uma cadeia neiros nessa área e já rea- va pessoas se surpreendendo com biológica, é caracterizado pela defesa do
de nucleotídeos – guanina, citosina, lizou um transplante de suas origens – caucasianos com livre acesso à tecnologia e à democratização
timina e adenina. Combinados, eles formam bexiga a partir de células- sangue africano, alemães com do conhecimento. Seus adeptos buscam
um composto orgânico que contém as tronco do paciente. Atala, sangue inglês e assim por diante. entender sistemas e desenvolver e baratear
informações genéticas dos seres vivos. que em 2007 havia mos- equipamentos. Para quem quiser instruções
Localizados no núcleo das células, no interior trado, com uma equipe de A brincadeira é interessante e des- para montar o seu “laboratório de garagem”,
dos cromossomos, armazenam informações pesquisadores de Harvard, mistificadora, mas, quando se o site da SyntechBio (http://www.syntechbio.
para a formação das proteínas. que as células-tronco po- pensa no volume de dados ainda com) traz um manual em português.

82 83
entrevista

condições de entender para onde nova molécula de fita dupla, com


vamos como sociedade. E atuar a aparente vantagem de não ter
em defesa própria. limitações em relação à organiza-
ção do nucleotídeo. possível que os caminhos das pes-
Uma das fronteiras do Biohacking “Quando falamos de biotecnologia quisas tenham novas guinadas. E,
genética, estamos falando de um Hoje, para que isso se realize, depois que a fronteira dos genes for
é justamente essa expansão do tipo de tecnologia muito impor- o pesquisador, mesmo aquele vin- ultrapassada, restará ainda muita
processo de síntese do DNA tante, porque isso é parte do que culado a universidades ou empre- coisa a desvendar sobre a vida e o
somos feitos. Então, a discussão sas que façam a síntese, deve com- coli, normalmente presente no sis- ser humano. Mas, antes dos dese-
sobre essas tecnologias tem de ser prar esse processo de companhias tema digestivo, teria, com a mo- jos de eternidade ou longevidade,
mais horizontal. Mesmo não sen- especializadas. Dependendo do dificação, aumentada sua capaci- a ciência deve buscar soluções para
do cientista, a sua opinião preci- pedido e da finalidade, o processo dade de absorver a amônia. aqueles que estão morrendo ou
sa ser escutada”, defende Ochoa, é ou não autorizado. O controle é sofrendo hoje, lembra o pesquisa-
fundador e diretor da SyntechBio, imprescindível, pois pode implicar Fora do corpo humano, no entanto, dor. Em meio a tantas fronteiras,
uma rede de pesquisadores latino- riscos. “Estamos caminhando para já há exemplos bem-sucedidos do equilibrar-se entre esses mundos
-americanos que incentiva o “Do que em cinco ou dez anos, talvez, uso de biologia sintética. A artemi- tão diversos será outro desafio.
somente àqueles que têm muito yourself biology”, ou “Faça biologia possamos realizar sínteses de DNA sinina, droga produzida a
dinheiro. De resto, é algo que já você mesmo”, com instruções de fora das empresas. Há questões partir da extração de um
ocorre hoje, em outra proporção, como montar laboratórios de bio- técnicas e éticas a serem superadas, composto de uma planta,
com os atuais aparelhos diagnós- tecnologia. A ideia de hacking está pois talvez a gente não queira que para uso contra a malária,
ticos e terapias de ponta. ligada à modificação de sistemas todo mundo tenha acesso a isso”, é hoje produzida em labo- O desafio ético
ou programas para a obtenção de resume Ochoa. ratório, com um processo
Ou seja, aquilo que é um algo que ainda não estava dispo- de fermentação similar ao O desenvolvimento tecnológico e o
direito social acaba sub- nível. Biologia sintética da cerveja, com microrga- conhecimento, em si próprios, não são bons
metido a regras de mer- Outro campo que promete novi- nismos e leveduras. ou ruins. O que os torna eticamente
cado. Porém, isso também Essa pulverização da pesquisa em dades para os próximos anos é o aceitáveis ou não é o uso que se faz deles. A
Churrasco sintético dá espaço para que novos vários nichos com pessoas que tal- da biologia sintética, que reúne Em meio a toda essa dis- manipulação genética abre um sem-número
formatos de empresas e vez não pudessem testar suas ideias áreas como bioinformática, bio- rupção provocada pela ace- de possibilidades. Entre elas, algumas
Outra área em que a síntese genômica negócios se constituam. É em grandes laboratórios tem a van- química e engenharia genética. leração do acesso aos dados, também temerárias. Para a comunidade
está sendo bastante pesquisada e aí que entra a ação de tagem de diversificar os objetos a Seu objetivo é modificar o com- outro passo importante será biohacker, essa linha divisória parece ser
que pode ganhar relevância é a produção Ochoa como biohacker: serem investigados e buscar formas portamento de microrganismos a digestão de tudo isso. “An- clara. “A manipulação dessa tecnologia para
de alimentos. Empresas americanas não visando benefício fi- mais baratas de atingir esses resul- para que atuem no sistema celular, tes, nosso problema era que fazer coisas boas é relativamente segura,
têm demonstrado interesse em produzir nanceiro para criar novos tados. O paralelo mais frequente é visto como um circuito eletrônico. não conseguíamos produzir basta seguir a regulamentação brasileira ou
carnes e peixes em laboratório. Não estamos negócios, mas para fazer com o universo da computação, que, dados, era muito difícil ler mundial”, resume Andrés Ochoa, para quem
longe de essa produção se tornar real. o conhecimento da bio- com o advento dos computadores Assim, uma bactéria geneticamen- um pedacinho do DNA. a definição de biohacker é de pessoas que
Isso ajudaria na preservação do ecossistema tecnologia e suas possibi- pessoais, passou a permitir que mui- te modificada poderá ser introdu- Agora, produzimos tantos usam a tecnologia visando ao bem comum.
terrestre e amenizaria questões que, lidades ganharem outro ta gente os explorasse e chegasse ao zida no corpo humano para com- dados que não conseguimos Mas, como se está trabalhando com
cada vez mais, são colocadas em xeque, tipo de visão fora do mun- grau de sofisticação dos celulares bater um problema metabólico. entender o que está acon- materiais bastante tóxicos, a ação fora
como os maus-tratos aos animais. do acadêmico e das gran- atuais, por exemplo. Estudos já adiantados com bacté- tecendo. Cada amostra que da regulamentação pode ser destruidora
No que se refere aos peixes, o tema tem des empresas. Até mesmo rias Escherichia coli com DNA mo- olho tem 300 mil genes sen- para a própria pessoa que manipulá-los.
sido mais comentado desde que, nos últimos para que mais gente tenha Uma das fronteiras deste momen- dificado indicam que o microrga- do modificados”, diz Ochoa. Isso dificulta a ação dos bioterroristas,
anos, pesquisas começaram a encontrar to é justamente essa expansão do nismo poderá atuar para absorver pois os custos para dispor de uma proteção
resíduos de plástico no aparelho digestivo de processo de síntese do DNA. Sin- amônia em pessoas que têm um Por isso, justifica, é preci- que impeça a contaminação ou acidentes
peixes. Ou a identificar que há contaminação tetizá-lo, explica Ochoa, é fazer a distúrbio no ciclo da ureia. Os por- so investir em machine de outra ordem são muito altos. A questão,
por mercúrio em mares como o da Argentina. escritura do DNA. É possível fazer tadores desse distúrbio não con- learning (aprendizado de no entanto, também está relacionada
Investidores como Bill Gates apostam uma síntese do DNA diferente da- seguem eliminar nitrogênio em máquina) e inteligência ar- à predisposição de democratizar as
que esse pode ser um jeito mais sustentável quela que ocorre na própria célu- nível suficiente, e ele se transforma tificial. Assim que esses informações sobre biotecnologia para leigos.
de produzir proteína para consumo humano. la, pois prescinde de uma sequên- em amônia, de alta toxidade quan- dados se transformarem Afinal, decidir sobre as mudanças em curso
cia preexistente para chegar a uma do chega ao cérebro. A Escherichia em informação digerida, é não pode ser responsabilidade de poucos.

84 85
CIDADES INTELIGENTES móveis, portais da Web, mídias sociais, sensores, siste-
mas de rastreamento e outras ferramentas para me-
formações a partir do uso ativo de dispositivos e
aplicativos móveis que facilitam cada vez mais o
lhorar a administração pública e promover o desenvol- monitoramento e a colaboração com as políticas
Elas não são ficção científica. No Brasil, vimento sustentável e a qualidade de vida dos cidadãos. de seus governantes.

ainda podem parecer um conceito distante, De acordo com a definição da cartilha do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), uma ci-
A tecnologia digital não é um fim, mas um meio que
permite transformar a infraestrutura tradicional da
do futuro, mas em muitos países mundo afora, dade inteligente é aquela que coloca as pessoas no
centro do desenvolvimento, incorpora tecnologias
cidade em um ecossistema vivo e sustentável que
trabalha em uma via de mão dupla, captando dados
em especial nos mais desenvolvidos, da informação e comunicação na gestão urbana e
utiliza esses elementos como ferramentas que esti-
e levando benefícios para as pessoas e as empresas
que ali vivem e trabalham.
já são parte do presente. Há muitos governos mulam a formação de um governo eficiente, que
engloba o planejamento colaborativo e a partici- Hoje, mais da metade da população mundial vive em
municipais fazendo uso de tecnologias como pação cidadã. As pessoas têm um papel tão ou mais centros urbanos. E estudos apontam que esse montan-
importante que as tecnologias na sua construção, te chegará a 75% em 2050. Para gerenciar e melhorar
redes sem fio, Big Data, analytics, aplicativos enquanto beneficiárias e participantes das trans- o funcionamento das cidades, será preciso conhecer

como a tecnologia iluminação pública


Sensores inteligentes nos postes
ENERGIA
Sensores instalados na rede
CIDADÃO CONECTADO
Com uso de aplicativos
pode fazer uma de iluminação ligam e desligam elétrica doméstica, associados móveis e smartphones

cidade melhor
automaticamente as lâmpadas a recursos de Smart Grid, com câmera, os cidadãos
de acordo com a luz ambiente permitem ao cidadão controlar podem receber alertas
ou movimento do pedestres a energia em casa e economizar e informações úteis,
bem como enviar dados
à gestão

86 87
bem o que ocorre nelas, em suas diferentes regiões, e as fronteiras do conhecimento em física de partículas. • s er sustentável: usar a tecnologia digital para reduzir hackers idealistas, em sua maioria jovens e de mentali-
isso só será possível com mudanças nas estruturas de custos e otimizar o consumo de recursos de modo que dade cívica, que estão tentando tornar o governo mais
governo e nos processos de comunicação e participação Segundo o BID, o entendimento dos dados gerados pelo sua administração presente não comprometa o uso responsivo e liberar dados governamentais que possam
dos diferentes atores que atuam em sua gestão. ambiente urbano e pela população permite corrigir inú- pelas gerações futuras; aumentar a transparência das agências públicas. Mui-
meros problemas que afetam a vida diária dos cidadãos • s er inclusiva e transparente: ter canais de comunica- tos desses ativistas digitais compartilham a crença de
Justamente por isso, um dos grandes desafios das cida- e prejudicam a eficiência e a resiliência das cidades, além ção diretos com os cidadãos, operar com dados que os cidadãos capacitados pela tecnologia podem
des inteligentes é fornecer segurança e privacidade de de aprimorar uma série de aspectos relativos à qualida- abertos e permitir acompanhar suas finanças; fazer por si mesmos muito do que eles agora dependem
dados eficazes. Outro é garantir que uma miríade de de da gestão local, gerando instrumentos para retroali- • gerar riqueza: oferecer infraestrutura adequada para do governo para fazer – e fazê-lo melhor e mais barato.
departamentos trabalhe em harmonia, trocando dados. mentar um planejamento mais integrado no futuro. geração de empregos de alta qualidade, inovação,
competitividade e crescimento dos negócios; Em vez de se concentrarem em tornar mais eficiente a
As cidades atuais já geram grandes quantidades de A jornada para a modernização e transparência dos • s er feita para os cidadãos: usar a tecnologia digital função de infraestrutura de uma cidade (papel dos
dados – e gerarão muito mais no futuro próximo, à governos exige, portanto, evoluir do modelo de gestão para melhorar a participação cidadã e dar acesso governantes), os hackers cidadãos estão mais interes-
medida que a densidade de sensores conectados con- tradicional para um modelo de gestão inteligente, rápido a serviços públicos mais eficientes. sados em usar a tecnologia digital para conectar os
tinuar a crescer. Muitas áreas urbanas produzirão mais combinando tecnologias, pessoas e processos de for- moradores de uma cidade para compartilhar e cola-
dados do que o Grande Colisor de Hádrons, o instru- mas inovadoras. Nesse sentido, uma cidade inteligen- Não por acaso, um caminho fundamental para tornar borar uns com os outros. Com a democratização da
mento científico multibilionário que está explorando te deve ter quatro focos importantes, segundo o BID: as cidades mais inteligentes baseia-se nos esforços de tecnologia, os dispositivos móveis (que já superam em

CONSUMO INTELIGENTE GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS SEGURANÇA NAS RUAS SEMÁFOROS INTELIGENTES GESTÃO DO TRÂNSITO
Nas casas, sistemas digitais Sensores de pressão de água Sensores de movimento Semáforos controlados Câmeras instaladas em
inteligentes permitem na tubulação monitoram o fluxo na rua, associados às remotamente permitem cruzamentos e semáforos,
ao cidadão acompanhar de água e identificam eventuais câmeras nos cruzamentos, mudar o tempo de fechamento combinadas com sensores
e controlar o consumo vazamentos na rede da cidade monitoram trânsito e abertura de acordo com de movimento instalados
individual de água e a segurança urbana o fluxo de veículos, evitando nas ruas, permitem controlar
congestionamentos e dirigir melhor o tráfego

88 89
número o total da população global) são a platafor- Também no Brasil, as universidades desempenham um plantadas. A com maior índice de adoção é o uso de Como mudar? O primeiro passo é ter em mente que
ma fundamental para esse tipo de colaboração. papel fundamental para o desenvolvimento das cida- bilhete ou cartão eletrônico como forma de pagamen- o processo de transição para cidades inteligentes
des inteligentes e humanas. Algumas delas chegaram to no transporte público, presente em 81% das capitais. não se faz sem colaboração, tanto interna, no âmbi-
Outro sinal promissor de progresso é o crescente inte- a desenvolver projetos de campus inteligentes, como to da administração pública, quanto externa, na sua
resse de fundações e pesquisadores em explorar a a Universidade Federal do Pará, com o objetivo de Semáforos inteligentes, que podem ser controlados relação com os cidadãos. Enquanto os funcionários
“ciência das cidades”, impulsionado em grande parte melhorar a infraestrutura e vivência dentro dos campi à distância para melhorar o fluxo de veículos, são da administração são importantes porque possuem
pelo crescimento explosivo de dados cívicos e a dispo- universitários e também desenvolver e testar soluções usados por 69% das capitais. Quase três a cada cin- conhecimento a respeito dos desafios e das virtudes
nibilidade de ferramentas analíticas que podem ser capazes de impulsionar a inovação urbana. co capitais instalam equipamentos de GPS na frota da gestão, os cidadãos representam o início e o fim
usadas para entender como as cidades operam. Em de ônibus para acompanhar em tempo real onde os do ciclo de avaliação dos projetos.
2014, por exemplo, a Fundação MacArthur lançou a Há muito a ser feito no país. De acordo com a pesquisa veículos estão e a que velocidade trafegam. Metade
iniciativa “Cidades, Informação e Governança”, que já TIC Governo Eletrônico 2017, do Centro Regional de delas já instala sensores em áreas de risco para mo- Quer viver em uma cidade inteligente? Fomente o diá-
concedeu subvenções para apoiar programas de pes- Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da In- nitorar a probabilidade de ocorrerem enchentes, logo das entidades da sociedade civil com os órgãos
quisa urbana em Harvard, na Universidade de Nova formação (Cetic.br), só 18% das prefeituras brasileiras deslizamentos e outros desastres naturais. de governo e, especialmente, com o seu prefeito. Nes-
York, na Universidade de Chicago, na London School of têm planos de cidade inteligente. Apesar do baixo ín- se caso, como em nenhum outro, é a união que promo-
Economics, na RAND Corporation e no Santa Fe, insti- dice de administrações municipais com planos de cida- Muito pouco, perto de tudo o que pode ser feito (con- ve a mudança.
tuto que usará Big Data de maneiras inovadoras. de inteligente, algumas ações nessa linha já estão im- fira no infográfico).

SERVIÇOS DE EMERGÊNCIA nível e qualidade de água CONTROLE DE RISCOS AMBIENTAIS CONTROLE DE POLUIÇÃO
Dispositivos de GPS Com o uso de sensores também Sensores instalados nas fábricas Sensores de fumaça, gases
nos veículos de emergência é possível acompanhar o e no ambiente permitem monitorar tóxicos e temperatura,
permitem localizá-los e, nível de água dos rios, mares, a qualidade do ar (poluição associados a câmeras
usando câmeras e semáforos reservatórios e a qualidade ambiente e nível de CO2) de ambiente e a sistemas
inteligentes, direcioná-los da água potável da cidade e vazamentos químicos na água de alerta, evitam
para as melhores rotas desastres ambientais

Fonte: Caminho para as smart cities: da gestão tradicional para a cidade inteligente – Banco Interamericano de Desenvolvimento, 2016

90 91
ARTIGO
por luciana bAZANELLA

O futuro:
tão high tech
quanto
humanista?
até que ponto os seres humanos
LUCIANA BAZANELLA
conseguirão resgatar sua é publicitária, mestra
relevância diante dos algoritmos? em Comunicação Social
e professora de Marketing
e Marketing Digital dos
programas de MBA da
Fundação Getulio Vargas.

e
m sua visão, o mundo pior. Não é difícil encontrar razões
está piorando ou me- para não confiar no governo, na
lhorando? Pode pare- polícia, nas grandes corporações.
cer até alienação dizer No entanto, esse colapso do sis-
que estamos vivendo tema pode ser encarado como um
uma era de ouro da sinal do apocalipse ou como um
humanidade quando despertar coletivo que nos coloca
a maioria acredita1 no contrário. na aurora de um novo mundo. De-
No mundo inteiro, vivemos uma fendo a segunda hipótese, elabo- 1. https://bbc.in/2QC3eJM
crise de confiança nas instituições2. rando a tendência “humanism 2. https://glo.bo/2MHOVQI
No Brasil, esse cenário é ainda renaissance”3. 3. https://www.whiterabbittrends.com.br/

92 93
ARTIGO

tecnológica, privilegia o uso eficien-


O Renascimento é reconhecido te de recursos, com níveis de auto-
como um importante marco his- mação elevadíssimos, através da
tórico por suas mudanças rápidas utilização de sistemas ciberfísicos,
e relevantes em muitos domínios, combinando computação em nuvem,
como cultura, sociedade, economia, inteligência artificial, automação,
política e religião. Naquele período, robótica e internet das coisas.
a Europa observou a queda da taxa
de mortalidade, resultado da con-
juntura econômica e do aumento
A diferença fundamental do perío-
do atual é que temos evidências
O design como ferramenta
da segurança. A produção agríco- para compreender que a evolução de transformação
la aumentou e a indústria evoluiu tecnológica está a serviço do siste-
em função do aumento da procura ma que a produz, e, se esse sistema O design centrado no ser humano é uma expressão bem evidente e contemporânea que
tanto de produtos artesanais quan- não estiver voltado para o bem-es- pode ser compreendida como uma ponte entre a evolução tecnológica sem escrúpulos
to manufaturados. tar humano, teremos problemas e a perspectiva humanista. A utilização do modelo mental do design para a solução
difíceis de resolver, como o dilema dos problemas complexos com que lidamos ao pensar serviços globais e inclusivos
ético dos veículos autônomos dian- é desenvolvida no nosso trabalho com a tendência “Omni Design”1. A partir do simples
te da possibilidade de acidentes. questionamento: “não deveríamos sentir que a tecnologia está ao nosso lado?”,
muitos profissionais estão redefinindo as fronteiras do design2 a fim de criar standards,
Temos evidências suficientes para Vivemos um momento em que toda políticas e negócios que estejam profundamente alinhados com os anseios de uma
tecnologia é vista com um poten- nova sociedade focada no bem-estar humano em primeiro lugar. Designers desta nova
compreender que a evolução cial ambíguo, que só se realiza de era, como John Maeda3 e Tristan Harris4, encontram largo espectro de atuação em
tecnológica está a serviço do acordo com a visão dos seres hu- grandes corporações que estão implementando essas práticas a fim de se alinharem
manos que a utilizam como fer- ao Zeitgeist que exige corresponsabilidade, transparência e propósito.
sistema que a produz ramentas de criação entre os mun-
dos físico e digital. Projetos como os fones de ouvido Knops (foto acima), projetados para gerar silêncio, ou
a função ScreenTime prevista para o iPhone, com o objetivo de policiar o uso exagerado
Tecnologia como ameaça de “telas”, indicam uma tentativa de criar momentos de descompressão/desintoxicação
A tecnologia é a ferramenta mais com relação ao meio externo e à própria tecnologia. Plataformas como o Ghostery
avançada da expansão da consciên- ajudam pessoas no mundo inteiro a proteger suas pegadas digitais5, enquanto
Nesse processo, o ser humano re- cia coletiva humana: contém em si iniciativas como a Humanetech6 e trabalhos de pesquisa como o Design in Tech Report7
vestiu-se de uma nova dignidade, mesma tanto o potencial destrutivo trazem tanto uma nova perspectiva como boas práticas e benchmarks para os
centralidade, originando-se daí a como o criador. Paradoxalmente, é profissionais que querem ser os designers dessas novas experiências (inclusive
principal corrente de pensamento o avanço tecnológico exponencial repactuando o significado um tanto restrito com que usamos o termo “designer”).
do período, o humanismo. Também que nos traz a um patamar inédito
houve uma grande crise das insti- da necessidade de revisitar o pro-
tuições como ignição da mudança. pósito desse desenvolvimento. A 1
https://www.whiterabbittrends.com.br/
humanidade sempre acreditou que 2
https://vimeo.com/123488311
O século 20, pautado pela Revolução novas tecnologias andavam juntas 3
https://maedastudio.com/
Industrial, associou o desenvolvi- com o apocalipse. Há quatro aspec- 4
http://www.tristanharris.com/
mento da tecnologia ao ideal posi- tos que fazem com que agora seja a 5
https://en.wikipedia.org/wiki/Ghostery
tivista do progresso linear. A tese de hora de levar essa ideia a sério: 6
http://humanetech.com/take-control/
que mais tecnologia equivale a mais 7
https://designintech.report/
progresso era fácil de defender e ain- • a chegada dos supercomputado-
da está presente no inconsciente res e a maturidade da inteligên-
coletivo. Hoje, o progresso é expo- cia artificial, criando sistemas
nencial, e o que se convencionou preditivos que podem manipular
chamar de Quarta Revolução Indus- o ser humano de formas pouco
trial, também pautada pela evolução entendidas ou previstas;

95
94
ARTIGO

A sociedade começa a apresentar O assunto de armas autônomas tem


sinais de fadiga com relação ao ganhado atenção mundial, como
estresse e à própria tecnologia4. nos casos dos funcionários do Goo-
• a relação umbilical e simbiótica Criamos novas doenças5 pelo uso gle que se revoltaram com a presta-
que passamos a ter com a tecno- excessivo do nível inédito de co- ção de serviços para o Pentágono, as
logia, tão entranhada na nossa nectividade que o celular nos trou- sucessivas demonstrações dos robôs
rotina, bem como na nossa forma xe. A mecânica de máquina caça- rança das crianças. A boneca My da Boston Dynamics (que mesmo
de compreender e experimentar -níquel das grandes plataformas Friend Cayla também teve seu não sendo armas são assustadoras),
o mundo, uma vez que temos um digitais (recompensas variáveis e lançamento cercado por discus- o vídeo de conscientização sobre
supercomputador no bolso, ou intermitentes) é uma verdadeira sões de privacidade, uma vez que armas autônomas do The Future of
acoplado ao corpo, através dos cocaína para nosso cérebro. Neu- as falas das crianças eram enviadas Life Institute, ou o robô F.E.D.O.R.,
dispositivos vestíveis; rologistas, antropólogos, designers para a nuvem para serem proces- treinado para atirar com pistolas.
e programadores sabem disso e sadas, gerando desconfiança sobre
criam sistemas usando esse conhe- o destino dessas gravações. Em um sistema ainda dirigido pelo
cimento para nos manter plugados lucro, sempre há o risco de haver
eternamente, temendo estar per- Crianças indefesas não são o único um Lex Luthor por aí desenvolven-
dendo algo, pois este é produto da alvo quando o assunto é privacida- do IA sem se importar em destruir
mídia: o seu tempo. Sabe aquela de. Recentemente, a assistente Ale- o mundo, desde que sua conta ban-
A urgência de recolocar o humano história de que, se o produto que xa, da Amazon, gravou a conversa cária esteja polpuda. A boa notícia
você consome é de graça, o produ- de um casal e a enviou por e-mail é que os grandes players estão se
no centro do desenvolvimento to na verdade é você? Pois é… para um funcionário do marido. O comprometendo publicamente com
tecnológico está fazendo nascer episódio, que felizmente não reve- o desenvolvimento ético dessa tec-
Quando nos perguntamos por que lou informações críticas, gerou pro- nologia7 – o que talvez seja a maior
uma nova geração de utópicos nossas telas nos deixam mais infe- fundo desconforto quanto ao fato prova do renascimento do huma-
lizes6, podemos resumir a resposta de um assistente inteligente estar nismo. A má notícia é que, apesar
em uma ideia bastante simples: elas constantemente escutando os diá- da coordenação desses esforços,
não foram pensadas para expandir logos transcorridos à sua volta. Se existem possibilidades reais de essa
o nosso bem-estar e a nossa felici- o assunto é manipulação, o recen- tecnologia maléfica ser criada por
dade, e sim para contribuir para o te escândalo Cambridge Analytica acidente, “bad design” ou autoapri-
lucro das grandes empresas. O bem- é uma pequena amostra do que é moramento descontrolado8.
-estar humano, apesar de estampar possível inferir das pegadas digitais
• a enorme influência da mídia e grande parte das linhas de visão, que deixamos registradas no uso Todas essas ameaças explicam por
da tecnologia sobre a forma missão e valores, ou mesmo lindas diário e intensivo da tecnologia. E que a visão distópica prevalece no
como nos percebemos, o nosso frases de propósito corporativo, ain- esses são apenas alguns exemplos que chamamos de futurismo e fic-
nível de autoestima e a nossa da não é o KPI número um das ins- dos impactos econômicos e sociais ção científica. Charlie Brooker, cria-
aceitação perante o mundo ex- tituições que criam, disseminam e que o mau uso da tecnologia digital dor da série Black Mirror, questiona:
posto pelas telas; controlam essas plataformas, bem pode provocar. “Se tecnologia é uma droga – e pa-
como das empresas que as financiam rece ser uma droga –, então quais
• e a falta de consciência com a com o seu capital de risco e a sua No que diz respeito à escalada ar- são, precisamente, os efeitos cola-
qual fornecemos informações verba publicitária. mamentista, é impossível fechar os terais? O ‘espelho negro’ da aber-
sobre o que fazemos, dizemos e olhos para iniciativas com potencial tura da série é o espelho que você
pensamos, em troca de supostos A hiperconectividade e o déficit de destruição e de promoção da encontrará em cada parede, em cada
benefícios e conveniências ofe- de atenção coletivo não são a úni- desigualdade social, como o desen- mesa, na palma de cada mão: a tela
recidos por quem as está rece- ca forma de perceber a tecnologia volvimento de armas autônomas e fria e brilhante de uma TV, de um
4. https://www.google.com.br bendo e utilizando com finali- como ameaça: esbarramos no po- de armas “invisíveis”, ou a recente monitor, de um smartphone”.
5. http://bit.ly/2xfaVx5 dades nem sempre perceptíveis. lêmico assistente para crianças, polêmica sobre os modelos de fuzis
6. http://bit.ly/2Qz5Wj5 cujo lançamento foi cancelado pela para impressão 3D, não detectáveis
7. https://www.partnershiponai.org Mattel após discussões que ques- por sistemas baseados no reconhe-
8. http://bit.ly/2xnGeW5 tionavam a privacidade e a segu- cimento da presença de metal.

96 97
ARTIGO

o que é ser humano?


A urgência de recolocar o humano Se queremos desenvolvimento tecnológico nossa identidade e de nossos vínculos sociais. e construir um futuro empático?” questiona
no centro e como propósito maior pensado para o ser humano na aurora das Vivemos em mundo de catracas invisíveis, Bruce Sterling, jornalista, futurista, viajante
do desenvolvimento tecnológico máquinas inteligentes, é natural que renasça onde precisamos passar nosso “crachá” com e autor de ficção científica conhecido por
está fazendo nascer uma nova ge- o movimento cultural que indaga “o que nos nossa identidade de trabalhador para receber definir a cena cyberpunk - em sua celebrada
ração de “utópicos”. faz humanos?”. Entre tese e antítese desse os códigos tácitos de conduta. fala de encerramento no SXSW de 2018
movimento, os próximos anos prometem (cujo tema, aliás, foi a disrupção da distopia).
A propósito, você já reparou como nos apontar também para uma era em que É por isso que a exclusão do mundo do Começa a parecer possível quando os
a palavra “utopia” é normalmente falaremos da humanidade de máquinas. trabalho, em suas mais variadas formas, é tão grandes ícones do novo mercado defendem
utilizada para descrever algo longe alienante e opressora. Vivemos extremamente a perspectiva da abundância3.
da realidade, fantasioso e que não Espera-se (ou deseja-se) que novas técnicas identificados com nossa “persona”
tem chances de acontecer? Essa e tecnologias permitam a redução dos custos trabalhadora, motivo pelo qual o tema UBI 1
https://existenz.us/volumes/Vol.8-2Ferrando.pdf
visão dualista começa a ter uma produtivos, facilitando (em tese) o acesso (Universal Basic Income) encontra ainda muita 2
https://www.businessinsider.com/entrepreneurs-
endorsing-universal-basic-income-2016-11
nova leitura9 quando pensamos que a bens de consumo e elementos de primeira resistência. A ideia de viver uma vida não
3
https://www.youtube.com/watch?v=BltRufe5kkI
é possível, sim, criar um mundo necessidade à grande maioria das pessoas, centrada no trabalho nos deixa sem chão.
que seja voltado para o ser huma- independentemente de seu poder aquisitivo. No entanto, qualquer pessoa minimamente
no. Assim como o Exterminador Em outras palavras, espera-se que a envolvida no desenvolvimento e pesquisa
do Futuro recebe uma mensagem tecnologia esteja a favor do ser humano. sobre inteligência artificial é familiarizada com
do mundo distópico ao qual pre- Muitos defendem que estamos na era do esse tema, pois a inexorável automação em
cisa voltar para impedir a destrui- pós-humano1, pois, como profetizou McLuhan, velocidade exponencial traz urgência para se
ção mundial, também podemos “primeiro nós moldamos as ferramentas, pensar o que fazer com os bilhões (sim, bilhões)
fazer esse exercício de imaginar o depois elas nos moldam”. Quando falamos de pessoas que não terão ocupação nos termos
hoje como passado de um futuro sobre ciborgues e upload da mente, parece que entendemos hoje pelo simples fato de
possível de bem-estar e de pros- estranho olhar para esses assuntos como se que máquinas se ocuparão de suas atividades
peridade, como nos convida a “Let- estivessem isolados na linha do tempo em vez com ganhos extremos de produtividade e
ter from Utopia”10, que afirma: “Se de olhar para eles como uma evolução das qualidade. Muitos grandes líderes da indústria
sua empatia puder perceber so- tecnologias, produtos e experimentos atuais. tecnológica de ponta indicam essa como a
mente os contornos dessa visão, melhor, quando não a única alternativa
sua capacidade de realização po- Literalmente, entre a vida na floresta e a possível para garantir bem-estar nesse futuro
derá torná-la real”. vida eterna pelo upload da mente para uma automatizado em níveis ainda imprevistos2.
máquina, existe a vida fictícia do Facebook,
a realidade aumentada e a realidade virtual. Com as tarefas mais básicas sendo
Se por um lado essa perspectiva torna menos executadas por sistemas de AI, teremos mais
assustadora a ideia de uma vida digital, tempo de desenvolver a nossa humanidade,
por outro ela convida à reflexão sobre deixando de perder o que nos diferencia
9. http://bit.ly/2MCpm3o
quais efeitos colaterais já estamos vivendo de qualquer outro ser/máquina que é
10. http://bit.ly/2Or7oCt
e que se intensificarão à medida que a essência humana: sentir, recordar e criar,
11. https://www.whiterabbittrends.com.br
“evoluirmos” nesse assunto. incessantemente. “Será que podemos
reconectar tecnologia com humanidade
Questionamentos profundos não param por
aí e chegam a um dos aspectos definidores da
existência na sociedade industrial: o trabalho.
Ele não só ocupa a maior parte do nosso
tempo, como é um elemento estruturante de

98 99
CRônica
por cora rÓnai

O choque
cora rónai é
jornalista e colunista
de O Globo.

do novo

N
ão há consenso sobre datas exatas nos pri- tudo conseguiam se meter, os que derrubavam portões e ceiramente inclusive. Mas o principal problema do ponto A humanidade se comunica, hoje, de outra maneira. Ponto.
mórdios da internet. Ela nasceu de pesqui- abriam janelas, libertando a informação e, consequente- de vista cultural é que há sempre um elemento de utopia Nós, que viemos de longe, estranhamos. Mas não há volta.
sas feitas ainda nos anos 1960, mas só che- mente, seres humanos). abortada por trás das invenções (assim como das revoluções). Era melhor antes? Não sei, era diferente. Era mais diferente
gou ao grande público a partir da década ainda quando não havia telefone e as pessoas mandavam
de 1990. Certo mesmo é que, em menos de Como a maioria das pessoas que estavam lá nesse primei- Cada vez que leio entrevistas de founding fathers desconso- recado por bilhetinhos. E, antes disso, por sinais de fumaça.
30 anos, afetou o mundo irreversivelmen- ro momento eram bastante parecidas entre si, tinham lados diante do atual estado da internet, percebo o luto pela
te, atingindo todas as áreas da experiência educação, cultura e ideais semelhantes, o ciberespaço utopia. A humanidade como um todo é, afinal, muito dife- As redes sociais são um fenômeno recente, um território
humana. Até a vida das (poucas) pessoas que nunca viram um parecia a concretização de um sonho, a utopia digital de rente daquela meia dúzia de rapazes educados em Stanford, novo, perigoso, frequentemente hostil. Não temos distan-
computador ou um celular sofre a sua influência. onde nasceria uma nova sociedade, aberta, esclarecida e muito diferente do que eles imaginavam, muito diferente ciamento crítico ou histórico para perceber o seu alcance,
igualitária. dos nerds que trocavam ideias de madrugada numa aven- ou o impacto que terão – ou já têm – na formação das gera-
Nunca o mundo mudou tão rápido, e de forma tão drástica; tura intelectual sem precedentes. ções. Algoritmos, que muita gente nem sabe o que são, in-
nunca o mundo teve uma percepção tão vasta e abrangen- Hoje, com o mundo praticamente todo conectado, vê-se fluenciam opiniões, criam bolhas, interferem na formação
te de si mesmo, nunca o mundo se conheceu tanto e tão que o sonho era maior e mais bonito do que a realidade – Há também quem se queixe que as pessoas não saem mais orgânica dos diálogos.
minuciosamente. O resultado de tantas mudanças e de como, aliás, acontece sempre. A internet continua sendo dos smartphones, que não conversam mais ao vivo, que es-
tanto conhecimento, no entanto, não é sempre positivo – ou, uma ferramenta extraordinária, mas traiu seus fundadores tão vivendo em bolhas. Mas sempre vivemos em bolhas – as Pode ser que, num dia distante, olhando para trás, a huma-
pelo menos, nem sempre é percebido como algo positivo. ao se revelar também perigosa, gananciosa, divisiva; hu- bolhas da família, do trabalho, do clube. A única diferença é nidade fique perplexa com o que ocorria naquela época
mana, enfim. que a bolha agora cabe na palma da mão. A tendência do ser distante de 2018, mais ou menos como nós olhamos hoje
A internet nasceu e cresceu sob o signo da contracultura. humano é procurar outros seres humanos que pensem de para os robber barons norte-americanos do final do século
Seus principais mentores vinham de um universo que lu- De modo que agora a moda é acusá-la de todos os males, e forma parecida. Acho até que a internet tem nos dado mais 19, e nos perguntamos, chocados:
tava contra o sistema e pregava a liberdade individual. Aque- apontar as redes sociais, onde acontece a parte principal da chances de encontrar “o outro” do que jamais tivemos; talvez
la seria a ferramenta mais poderosa que indivíduos jamais nossa vida online, como exemplo do que a humanidade tem a hostilidade exacerbada das redes venha disso. – Mas como isso era permitido?!
tiveram contra o Estado e contra o establishment. A ideia era de pior. Dia sim outro também leem-se entrevistas e de-
criar uma rede indomável, o oposto da vida real onde somos poimentos amargurados do povo das antigas, que está sain- Quanto a não sair dos smartphones: estamos apenas viven- Ainda vivemos uma época em que nativos digitais se mistu-
submetidos a normas, a regras e à burocracia. A adrenalina do das redes e voltando para a conversa da tribo ao pé da do uma mudança de paradigma de comunicação. Quando ram com gente que nasceu antes da internet e dos computa-
vinha não só da descoberta de um mundo novo, mas da fogueira. o telefone foi inventado, também encontrou resistência. Meu dores. Padrões de comportamento e percepções sociais ain-
criação desse mundo. avô, que vinha de um tempo em que o aparelho era apenas da estão em choque entre si e ainda estão se desenvolvendo.
É verdade que Facebook, Twitter e Google concentram usado para recados urgentes e quase telegráficos, não en- É curioso ver como se consolidarão, e aonde nos levarão.
(Em sua acepção inicial, a palavra “hacker” tinha conotações muito mais poder do que deveriam concentrar, e que fugi- tendia como eu podia passar a noite inteira conversando
positivas, e designava os magos que tudo sabiam e que em ram de qualquer dimensão controlável, econômica e finan- com as amigas (que, aliás, tinha acabado de encontrar). O mundo gira.

100 101
Conheça os principais Dados – São conjuntos de valores
ou ocorrências não trabalhados, a
Hackers – Assim como os crac-
kers, são indivíduos com conheci-
termos utilizados partir dos quais são obtidas infor-
mações. Os dados podem ser estru-
mento e capacidade para decodifi-
car e modificar sistemas operacionais.
nos artigos, para turados (organizados por meio de
tabelas, com identificação de pa-
O que os distingue é o fato de que
os hackers são pautados por uma
facilitar a compreensão drões e separados por tipos de ocor-
rências) ou não estruturados, sem
ética, agem para o bem. Assim, por
exemplo, ao identificarem falhas em
e futura interação formatação de ordem alguma. um sistema de segurança, ajudam
na solução para corrigi-las.
em conversas a Data brokers – Empresas es-
pecializadas em coletar, analisar e Inteligência Artificial
respeito de temas enriquecer dados sobre consumido-
res, para depois vendê-los ou licen-
É a área da ciência da computação
que se propõe a criar sistemas que
tratados no Caderno ciá-los. Geralmente a coleta é feita simulem o raciocínio humano. As
em variadas fontes, na internet ou primeiras pesquisas de IA datam dos
nos dispositivos móveis, muitas vezes anos 1950. Hoje o termo é usado
ALGORITMOS - São sequências
GLOSSÁRIO

ras de software que desejam ter o como estratégia de validação de trada, definida por um mesmo ator sem o conhecimento do consumidor. para descrever “diversos métodos,
de passos necessários para resol- seu sistema integrado a produtos transações e registros, como uma ou servindo a um mesmo propósi- algoritmos e técnicas que tornam
ver um problema ou desempenhar de outras empresas. Um bom exem- cadeia de elos (blocos), e a cripto- to, podem ser chamados de Botnet Feed – Fluxo de informação na in- um software inteligente no sentido
uma tarefa. Podem ser simples (por plo é a inclusão de conteúdo de re- grafia, para aumentar a seguran- (rede de bots). É comum ver redes ternet, como um todo, ou sem servi- humano da palavra”, segundo a
exemplo, uma receita de bolo) ou des sociais no seu próprio site. ça. Ganhou notoriedade por ser a compostas por várias máquinas e ços específicos como as redes sociais. definição de Lynne Parker, diretora
extremamente complexos (combi- tecnologia que suporta as opera- dispositivos infestados por bots Na prática, Feeds são usados para da divisão de sistemas de informa-
nações e arranjos matemáticos Big Data - Grandes conjuntos de ções com criptomoedas como o espalhando malwares, links de con- que um usuário acompanhe os novos ção da Fundação Nacional de Ciên-
para definir probabilidades em um dados armazenados, processados BitCoin e o Ethereum. teúdo malicioso e fake news. Com- artigos e conteúdos de um site ou cias dos Estados Unidos. Visão com-
jogo de xadrez). Na computação, e analisados com base em cinco binados com técnicas de inteligên- blog, até mesmo sem que precise putacional, processamento de
escritos em linguagem de progra- critérios: velocidade, volume, varie- BOT – Vem da palavra robots (ro- cia artificial, estão ficando mais visitá-los (caso dos RSSFeeds). linguagem natural, robótica e tópi-
mação, são o componente básico, dade, veracidade e valor. No mundo bôs). Em programação, são apli- sofisticados, tomando decisões de cos relacionados são parte integran-
assim como o átomo é para física, dos negócios digitais, o Big Data é cações autônomas que desempe- forma automática e interagindo Gadget – Termo que originalmen- te da IA.
ou o DNA para a biologia. No mun- utilizado por empreendedores para nham algum tipo de tarefa prede- com humanos de modo natural. te designava pequenas bugigangas.
do dos dados, são os responsáveis definição de estratégias e análise terminada. Hoje, estão por toda No mundo tecnológico classifica um Machine Learning
por todo o trabalho, uma vez que do mercado. Áreas relacionadas parte. Entre os mais antigos, estão Clickbait – Conhecido em por- dispositivo complexo, desenvolvido É um tipo de inteligência ar-
controlam o funcionamento inter- com inteligência de mercado anali- os de SMS, no celular. Pequenos tuguês como caça-clique, é o con- com a melhor tecnologia disponível tificial que facilita a capaci-
no de todos os sistemas, dos caixas sam os dados para a construção de torpedos falando sobre seu saldo teúdo, de natureza sensacionalista no momento e que tem por finali- dade de um computador
eletrônicos às redes sociais. novas propostas de negócios ou ou algum serviço e pedindo que se ou provocativa, cujo principal obje- dade facilitar as tarefas de quem o aprender e se autodesen-
para a redefinição de um produto responda com um sim ou não para tivo é atrair atenção do internauta utiliza. Por isso passou a designar volver à medida que é ex-
API – Acrônimo de application pro- ou serviço. No marketing digital, ele inserir mais créditos ou contratar para gerar audiência ou receita com os pequenos dispositivos de mão, posto a novos dados. Os
gram interface (em português, inter- pode ser utilizado para definição de algo. Entre os mais famosos estão a visualização de publicidade. como celulares, carregadores, HDs principais elementos de
face de programação de aplicações, público e insights para ações de re- os das redes sociais (social bots), externos etc. Existe controvérsia so- um software tradicional
ou de aplicativos). Designa um con- lacionamento nas redes sociais, por usados para conversar com os Crackers – No mundo da com- bre a etimologia do termo. Há de- são análise estatística
junto de rotinas, protocolos e ferra- exemplo. Ou, ainda, melhorar as usuários (os chatbots) , automati- putação, são aqueles que quebram fensores de que tenha se originado e análise preditiva,
mentas para construir aplicações. técnicas de SEO repensando os con- zar processos de compra e venda ou encontram brechas em sistemas de gachette, do francês, relativo a usadas para detectar
Na prática, é uma espécie de “cola teúdos e os seus formatos. e compartilhar informações, com operacionais ou softwares, agindo peças de mecanismo de disparo. padrões e encontrar
digital” entre duas pontas, ou seja, os mais diversos propósitos, como ilegalmente contra eles. O termo foi Outros dizem que é um termo inglês, insights escondidos nos
consegue trazer a informação de um Blockchain – É um tipo de influir em um debate (político, prin- criado por hackers, na tentativa de usado desde o século 19 na marinha dados observados, sem
sistema, de maneira eficiente, pa- base de dados distribuída que cipalmente, e por isso chamados diferenciar as ações dos dois grupos, para designar um aparelho. ser programado sobre
dronizada e segura, para integração guarda um registro permanente political bots) ou aplicar golpes sendo os crackers autores de ações onde procurar.
com outro sistema. São muito utili- das transações, à prova de viola- através da prática de spams. de roubo e vandalismo.
zadas por empresas desenvolvedo- ções. Utiliza a descentralização Quando agem de forma orques-

102 103
Media Literacy – Letramento Problem Based Learning
em mídia, ou alfabetização midiá- (aprendizagem baseada em proble-
tica. Busca destrinchar o funciona- mas) – Metodologia de aprendiza-
mento e a linguagem das novas mí- gem ativa. Pressupõe que o estudan-
dias, para que os usuários possam te tenha como ponto de partida a
fazer bom uso delas e, ao mesmo busca pela resolução de situações
tempo, se proteger de ações indevi- concretas, do mundo real, e não a
das ou de superexposição. simples exposição da teoria. Esta
costuma ser introduzida após a so-
Metadados – São dados sobre lução das situações-problema, como
os dados, ou que vão além dos da- forma de sistematização do conhe-
dos de origem. São informações cimento.
trabalhadas computacionalmente,
com resumos de forma ou conteúdo Ransomware – Tipo de soft-
da fonte originária. Não constituem ware malicioso que pode expor pu-
a parte central da informação, mas blicamente os dados de um usuário,
trazem elementos importantes, ou bloquear seu acesso a eles. Al-
como definições e regras de negó- gumas vezes, o desbloqueio é sim- Remarketing – Sinônimo de
cios, detalhes de segurança ou in- ples, mas há também uma técnica retargeting, técnica de publicidade
formação de domínios. chamada cryptoviral extortion, em digital que se vale de contato ante-
que o invasor exige um resgate do rior do usuário com marca ou pro-
Podcast – Um conteúdo de mídia dono dos dados para permitir no- duto para veicular anúncios direcio-
(geralmente áudio) transmitido na vamente o acesso a eles. nados, baseados no seu interesse.
internet através de streaming. Ge- Tem nove tipos principais, sendo dois
ralmente tem o formato de um pro- Rastreamento – Monitora- deles os mais comum: search retar-
grama de rádio, porém com uma mento de tudo o que fazemos na geting, com base em pesquisas do
vantagem primordial: o conteúdo nossa jornada digital diária, seja internauta em buscadores (Google,
fica disponível sob demanda. Você na internet ou pelo uso dos dispo- por exemplo); site retargeting, com
pode ouvir quando e onde bem en- sitivos móveis, através de diversas base nas pessoas que visitaram o
tender. Basta acessar um dos servi- técnicas (uso de cookies – códigos seu site. Os demais são o SEO, o
ços que servem de repositório para que acompanham a navegação e-mail, o contextual, o engagement,
os arquivos de áudio. Seus arquivos web –, geolocalização por sinal de o social, o ad e o video retarketing.
são mais leves de que os dos vídeos, GPS ou triangulação das antenas
pois imagens carregam bem mais de celular etc.). Feito sem a permis- SEO – Acrônimo de search engine
informação do que áudio. são dos usuários, é considerado optimization (otimização para me-
invasão de privacidade. canismos de busca). Técnicas usa-
Pós-verdade – Em inglês, post- das para aumentar os acessos das
-truth, eleito termo do ano em 2016 páginas do seu site por meio de um
AsAsopiniões
opiniõesexpressas
expressasnos
nosartigos
artigos
pelo Oxford Dicitionaries, departa- conjunto de estratégias que per-
assinados
assinadossão
sãode
deinteira
inteira
mento da Universidade de Oxford mitem melhorar o seu posiciona-
responsável por seus dicionários. mento nos resultados orgânicos responsabilidade
responsabilidadede
deseus
seusautores.
autores.
Além de eleger um termo anualmen- em buscadores como o Google. Todo
Todomaterial
materialincluído
incluídonesta
nesta
te, a instituição também o define. Quanto melhores as estratégias publicação
publicaçãotem
temautorização
autorizaçãodos
dos
Neste caso: um substantivo “que se adotadas, mais chances de um site autores
autoresou
oude
deseus
seusrepresentantes
representantes
relaciona ou denota circunstâncias aparecer nas primeiras páginas
legais.
legais.Nenhuma
Nenhumaparte
parte dos
dos artigos
artigos
nas quais fatos objetivos têm menos dos resultados da busca.
pode
podeser
serreproduzida
reproduzidasem
semaa
influência em moldar a opinião pú-
blica do que apelos a emoções e a autorização
autorizaçãoexpressa
expressada
daGlobo,
Globo,
crenças pessoais”. dos
dosautores
autoresou
ouseus
seusrepresentantes.
representantes.

104
O Caderno Globoééuma
Caderno Globo umapublicação
publicaçãoperiódica,
periódica,
com edições
edições temáticas
temáticasque quesesededicam
dedicama a
aprofundar oo debate
aprofundar debateeeestimular
estimularaareflexão
reflexão
sobre assuntosrelevantes
sobre assuntos relevantespara
paraaasociedade.
sociedade.
Concebido eeproduzido
Concebido produzidopela
pelaGlobo,
Globo,o oCaderno
Caderno
fazparte
partede
deum
umamplo
amploprojeto
projetode
derelacionamento
relacionamento
da empresa
empresacom
comoomeio
meiouniversitário,
universitário,estudantes
estudantes
e jovens, queinclui
jovens, que incluiaarealização
realizaçãode deseminários,
seminários,
encontros eeatividades
encontros atividadesquequepromovem
promovemaaescuta,
escuta,
a troca
trocaeeaadisseminação
disseminação dede conhecimento.
conhecimento.

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