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O Terceiro Homem

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Para Carol Reed

Com admiração e afeto, e em memória das muitas horas vienenses, de manhã cedo, no Maxim’s, no
Casanova, no Oriental.

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O Terceiro Homem

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O Terceiro Homem não foi escrito para ser lido, só para ser visto. Como muitos casos amorosos, começou
numa mesa de refeição e continuou com muita dor de cabeça em muitos lugares: Viena, Veneza, Ravello,
Londres, Santa Mônica.
Suponho que os romancistas, em sua maioria, carreguem na cabeça ou nos blocos de anotações esboços de
histórias que jamais chegarão a ser escritas. Por vezes elas são examinadas, vários anos depois, e o autor
percebe, pesaroso, que teriam sido boas um dia, numa época já defunta. Faz muitos anos escrevi na aba de
um envelope o seguinte parágrafo de abertura: “Eu havia dado meu último adeus a Harry uma semana
antes, quando seu caixão desceu ao solo congelado de fevereiro, e por isso acompanhei incrédulo sua
passagem pelo Strand, entre a multidão de rostos anônimos, sem dar o menor sinal de me reconhecer.”
Assim como meu herói, eu não havia perseguido Harry; portanto, quando sir Alexander Korda pediu-me
para escrever um roteiro cinematográfico para Carol Reed - na seqüência de O Ídolo Caído - eu não tinha
nada a oferecer, exceto aquele parágrafo. Embora Korda quisesse fazer um filme sobre a ocupação de
Viena pelas quatro potências, permitiu-me seguir a pista de Harry Lime.
Para mim é praticamente impossível redigir um roteiro cinematográfico sem antes contar a história. Um
filme não depende só da trama, pede certa construção de personagens, ambiente e atmosfera; essas coisas
me parecem quase impossíveis de capturar de imediato na linguagem enxuta e insípida de um roteiro.
Pode-se reproduzir o efeito capturado em outro meio, mas não se pode realizar o ato inicial da criação em
forma de script. É preciso ter a sensação de sobra de material, para prosseguir. O Terceiro Homem,
portanto, embora não se destinasse a ser publicado, precisava começar como relato, antes de passar pelas
aparentemente intermináveis transformações de um tratamento para outro.
Carol Reed e eu trabalhamos juntos nesses tratamentos, percorrendo quilômetros de carpete a cada dia,
representando cenas um para o outro. Ninguém mais participava de nossas reuniões; há muito valor na
discussão clara e franca entre duas pessoas. Ao romancista, claro, seu romance é o melhor que ele pode
fazer com determinado tema; não pode deixar de ressentir muitas das mudanças necessárias para
transformá-lo em filme ou peça teatral. Mas O Terceiro Homem nunca ansiou ser mais do que matéria-
prima para cinema. O leitor notará as inúmeras diferenças entre o texto e o filme, e não deve imaginar que
essas alterações foram impostas a um autor contrariado: com maior probabilidade, foram sugeridas pelo
próprio autor. Na verdade, o filme resulta melhor que o conto, pois neste caso ele é o conto em seu estado
definitivo.
Algumas mudanças ocorreram por razões obviamente superficiais. A escolha de um ator norte-americano
em vez de inglês exigiu diversas alterações. Por exemplo, o sr. Joseph Cotten, com ampla razão, se opôs ao
nome Rollo. O nome precisava ser absurdo, e o nome Holley me ocorreu quando lembrei de uma figura
curiosa, o poeta norte-americano Thomas Holley Chivers. Além disso, um norte-americano dificilmente
seria confundido com o grande escritor inglês Dexter, em cuja personalidade literária o gênio brando do sr.
E. M. Forster por vezes ecoa. A confusão de identidades teria sido impossível, mesmo se Carol Reed não
houvesse objetado acertadamente a uma situação meio forçada que exigia explicações numerosas, capazes
de alongar ainda mais um filme já muito longo. Outro ponto menor: em atenção à opinião norte-americana
um romeno substituiu Cooler, uma vez que a participação do sr. Orson Welles já nos fornecera um vilão
norte-americano. (Incidentalmente, a popular fala a respeito do relógio-de-cuco suíço foi incluída no
roteiro pelo próprio sr. Welles.)
Uma das principais e raras disputas entre mim e Carol Reed se referia ao final, e o tempo acabou por lhe
dar razão absoluta. Eu sustentava que um entretenimento deste tipo era uma obra leve demais para suportar
o ônus de um final triste. Reed, por sua vez, pressentia que meu final - embora indeterminado, sem
palavras de explicação - chocaria o público que acabara de ver Harry morrer como sendo
desagradavelmente cínico. Confesso que fui apenas parcialmente convencido; temia que poucos
permanecessem em seus lugares durante a longa caminhada da moça desde o túmulo, e que sairiam do
cinema com a impressão de que o final era tão convencional quanto o meu, e mais inconclusivo. Eu não
levei suficientemente em conta a direção magistral de Reed, e naquela altura, claro, nenhum de nós poderia
ter antecipado a brilhante descoberta de Reed: o sr. Karas, instrumentista de cítara austríaca.
O episódio em que os russos seqüestram Anna (incidente perfeitamente possível em Viena) acabou
eliminado quase na fase final. Não se articulava satisfatoriamente com a narrativa e ameaçava fazer do
filme uma obra propagandística. Não tínhamos a menor vontade de despertar as paixões políticas do
público; queríamos entreter as pessoas, assustá-las um pouco, provocar seu riso.
A realidade, de fato, servia apenas com pano de fundo para um conto de fadas; mesmo assim a história do
golpe da penicilina se baseou num caso verdadeiro, ainda mais pavoroso por serem muitos dos agentes

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mais inocentes que Joseph Harbin. Outro dia, em Londres, um cirurgião levou dois amigos para ver o
filme. Surpreendeu-se ao vê-los calados e deprimidos por uma fita da qual gostara. Eles lhe contaram que,
no final da guerra, quando serviam na Real Força Aérea, eles próprios venderam penicilina em Viena. As
possíveis conseqüências de seu atos nunca se lhes havia ocorrido.

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Nunca se sabe onde o raio vai cair. Quando vi Rollo Martins pela primeira vez, fiz a seguinte anotação a
seu respeito, para meu arquivo policial de segurança: “Em circunstâncias normais, um sujeito animado.
Bebe em demasia e pode causar pequenos problemas. Sempre que passa uma mulher, ergue a sobrancelha e
emite algum comentário, mas tenho a impressão de que no fundo não se importa com isso. Nunca
amadureceu de verdade, e talvez isso explique o modo como idolatrava Lime.” Usei ali a frase “em
circunstâncias normais” porque eu o conheci no funeral de Harry Lime. Era fevereiro, os coveiros foram
forçados a usar britadeira para varar o solo congelado no Cemitério Central de Viena. Parecia até que a
natureza esforçava-se ao máximo para rejeitar Lime, mas finalmente conseguimos sepultá-lo, e por cima
jogamos pedaços de terra duros como tijolos. Assim que o enterramos Rollo Martins afastou-se
rapidamente, como se as longas pernas magras quisessem correr dali, e lágrimas de menino escorreram por
seu rosto de homem de trinta e cinco anos. Rollo Martins acreditava em amizade, por isso o que aconteceu
depois foi para ele um choque pior do que teria sido para você ou para mim (no seu caso, porque você
descartaria tudo como ilusão, e para mim porque uma explicação racional - por mais equivocada que fosse
- teria vindo à mente). Se pelo menos ele tivesse me contado tudo na época, quanta confusão teria sido
evitada.
Para compreender esta história estranha e bastante triste é preciso que se tenha ao menos uma impressão do
cenário - a lúgubre e alquebrada cidade de Viena, dividida em zonas pelas quatro potências: zonas russa,
britânica, norte-americana e francesa; regiões marcadas apenas por placas indicativas. E, no centro da
cidade, rodeado pelo Ring, com seus pesados prédios públicos e suas estátuas eqüestres, situava-se o Innere
Stadt, sob controle de todas as quatro potências. Naquele centro da cidade antes elegante cada potência se
reveza, uma por mês, no que chamamos de “o comando”, e se torna responsável pela segurança; de noite,
se você for tolo o suficiente para desperdiçar seus xelins austríacos numa casa noturna, terá uma razoável
chance de ver o Poder Internacional em ação - quatro policiais militares, um de cada país, comunicando-se
entre si, quando se comunicam, na língua comum de seus inimigos. Não conheci Viena antes das guerras, e
sou muito jovem para me lembrar da antiga Viena, com a música de Strauss e seu encanto fácil fictício.
Para mim não passa de uma cidade de ruínas indignas que se tornou naquele fevereiro uma imensa geleira
de neve e granizo. O Danúbio era um rio cinza lamacento plácido ao longe, para lá do Segundo Bezirk, a
zona russa onde o Prater jazia arruinado e desolado e cheio de mato, só a roda-gigante girava lentamente
acima das fundações dos carrosséis que mais pareciam pedras de moinho abandonadas, o aço enferrujado
dos tanques destroçados que não haviam removido, no mato ralo coberto de geada onde a neve estava fina.
Faltava-me imaginação para visualizar como havia sido, assim como não consigo ver o Sacher Hotel de
outro modo, a não ser como um hotel transitório para oficiais ingleses, ou a Kärntnerstrasse como rua da
moda em vez de uma rua que só existe, em sua maior parte, até a altura dos olhos, reconstruída apenas no
térreo. Um soldado russo com gorro de lã passa, rifle ao ombro; escassas putas circulam nas imediações do
Departamento de Informação Norte-americano, e homens de sobretudo bebericam imitações de café nas
janelas do Old Vienna. De noite é melhor permanecer nos limites do centro ou das zonas das três potências,
embora seqüestros ocorram inclusive ali - por vezes nos parecem seqüestros sem nenhum sentido - uma
moça ucraniana sem passaporte, um velho que já passou da idade de trabalhar, e às vezes, claro, um técnico
ou traidor. Esta era basicamente a Viena à qual Rollo Martins chegou no dia sete de fevereiro do ano
anterior. Recompus o caso da melhor maneira que pude, a partir de meus arquivos e do que Martins
contou. Está o mais preciso possível, embora eu não possa comprovar as lembranças de Martins; uma
história medonha, se deixarmos a moça de fora: horrível, triste e sobressaltada, se não fosse pelo episódio
absurdo do conferencista no British Council.

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Um cidadão britânico ainda pode viajar, caso se conforme em levar consigo apenas cinco libras, que não
pode gastar no exterior, e se Rollo Martins não tivesse recebido um convite de Lime, do Departamento
Internacional de Refugiados, não teria permissão para entrar na Áustria, que ainda é considerado um
território ocupado. Lime sugeriu que Martins poderia abordar a questão do tratamento dos refugiados
internacionais, e embora este não fosse o tema habitual de Martins ele concordou. Ganharia assim as férias
que tanto precisava após um incidente em Dublin e outro incidente em Amsterdã. Ele sempre tentava
descartar as mulheres como “incidentes”, coisas que simplesmente aconteceram a ele sem qualquer desejo
de sua parte, meros casos fortuitos aos olhos dos corretores de seguros. Quando chegou em Viena tinha
uma aparência lamentável e o hábito de olhar por cima do ombro que, por um tempo, despertou suspeitas
em mim, até eu me dar conta de que ele vivia com medo de que uma das seis pessoas pudesse surgir
inesperadamente. Ele me contou, algo vago, que andara misturando bebidas - era uma outra maneira de
descrever o caso.
A atividade normal de Rollo Martins era escrever livros ordinários de faroeste sob o pseudônimo de Buck
Dexter. Seu público era grande, mas pouco lucrativo. Ele não poderia viajar a Viena se Lime não se
oferecesse para pagar as despesas durante a estadia, usando uma verba de propaganda mal explicada. Lime
poderia fornecer também bônus das forças armadas inglesas, a única moeda aceita nos hotéis e clubes
inglesas, de um centavo em diante. Portanto, foi com exatamente cinco libras inúteis que Martins chegou a
Viena.
Um incidente curioso ocorreu em Frankfurt, onde o avião vindo de Londres fez escala de uma hora.
Martins comia um hambúrguer na cantina norte-americana (uma companhia aérea simpática fornecia aos
passageiros um vale de sessenta e cinco centavos, para refeição), quando um sujeito que ele identificou
como jornalista a seis metros de distância aproximou-se de sua mesa.
- É o senhor Dexter? - perguntou.
- Sim - Martins disse, pego de surpresa.
- Parece mais jovem do que nas fotografias - o sujeito disse. - Gostaria de dar uma declaração? Trabalho
para o jornal das forças locais. Gostaríamos de saber o que pensa a respeito de Frankfurt.
- Cheguei não faz nem dez minutos.
- Compreendo - o sujeito disse. - E como vê o romance norte-americano?
- Não os leio - Martins disse.
- Famoso pelo humor corrosivo - o jornalista disse. Ele apontou para um homem baixo, grisalho, com
dentes protuberantes, que mordiscava um pãozinho. - Sabe me dizer se aquele ali é Carey?
- Não faço idéia. Que Carey?
- J. G. Carey, claro.
- Nunca ouvi falar nele.
- Romancistas como vocês vivem mesmo em outro mundo. Ele é a minha pauta verdadeira. - E Martins o
viu atravessar o salão para abordar o grande Carey, que o recebeu com um falso sorriso de manchete e
deixou de lado o pão. Dexter não era a pauta do repórter, mas Martins não pôde evitar sentir um certo
orgulho - ninguém se referira a ele como romancista, antes; a sensação de orgulho e importância o ajudou a
superar a decepção por Lime não ter ido buscá-lo no aeroporto. Nunca nos acostumamos a ser menos
importantes a outras pessoas do que elas são para nós - Martins sentiu uma pontada de rejeição, parado na
porta do ônibus, observando a neve cair lentamente, tão fina e fofa que a neve amontoada entre os prédios
destruídos adquirira um ar de permanência, como se não fosse o resultado daquela nevada e estivesse ali
para sempre, acima da linha das neves perpétuas.
Não havia nenhum Lime a esperá-lo no Hotel Astoria, ponto final do ônibus que o transportou, nem recado
- só uma mensagem cifrada de alguém de quem nunca ouvira falar, chamado Crabbin. “Esperávamos sua
chegada no vôo de amanhã. Por favor, fique onde está. Fique por perto. Quarto reservado no hotel.” Mas
Martins não era o tipo de pessoa que ficava por perto. Se permanecesse num saguão de hotel, mais cedo ou
mais tarde haveria um incidente; acabaria misturando as bebidas. Posso ouvir Rollo Martins a me dizer: -
Cansei dos incidentes. Chega de incidentes. - Isso foi antes de ele mergulhar de cabeça no mais sério de
todos os incidentes. Havia sempre um conflito em Rollo Martins - entre o nome absurdo e o sobrenome
holandês vigoroso (de quatro gerações). Rollo olhava para todas as mulheres que passavam, e Martins
renunciara a todas para sempre. Não sei qual dos dois escrevia os livros de faroeste.

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Martins tinha o endereço de Lime e não sentia curiosidade alguma a respeito do homem chamado Crabbin;
obviamente alguém se equivocara, embora ele não houvesse ainda relacionado isso com a conversa em
Frankfurt. Lime declarara que poderia hospedar Martins em sua casa, um espaçoso apartamento nos limites
de Viena, requisitado ao proprietário nazista. Lime pagaria o táxi quando ele chegasse, por isso seguiu
direto para o local, na terceira zona (britânica). Pediu ao motorista do táxi para esperar enquanto subia ao
terceiro andar.
Como a pessoa se dá conta do silêncio, mesmo numa cidade silenciosa como Viena, quando a neve se
deposita paulatinamente. Martins ainda não havia chegado ao segundo andar e já se convencera de que não
encontraria Lime em casa, mas o silêncio era mais profundo do que o de uma simples ausência - era como
se ele não fosse encontrar Lime em lugar algum de Viena, nem em qualquer outro lugar do mundo, pois ao
atingir o terceiro andar viu a fita negra enorme pendurada acima da maçaneta. Claro, um cozinheiro
poderia ter falecido, um zelador, qualquer um menos Harry Lime, mas ele sabia - percebeu que sentira isso
vinte degraus antes - que Lime, o Lime que venerava como herói havia vinte anos, desde seu primeiro
encontro no corredor sombrio da escola, enquanto a sineta rachada soava para indicar o horário das
orações, se fora. Depois que ele tocou a campainha meia dúzia de vezes um senhor baixo de ar emburrado
pôs a cabeça para fora da porta de outro apartamento e lhe disse em tom atormentado: - Não adianta bater.
Não tem ninguém aí. Ele morreu.
- Herr Lime?
- Herr Lime, claro.
Martins me disse, depois: - No início, isso não significou nada. Foi apenas uma informação compacta,
como os parágrafos em The Times que eles chamam de “Notícias Resumidas”. Eu lhe perguntei: - Quando
foi? Como foi?
- Atropelado por um carro, - respondeu o homem. - Quinta-feira passada. - Ele acrescentou emburrado o
seguinte, como se nada fosse de sua conta: - Será enterrado esta tarde. Por pouco você não os pega aqui.
- Quem?
- O féretro e uns amigos.
- Ele não estava no hospital?
- Não faria sentido levá-lo ao hospital. Ele morreu aqui, na porta de casa, instantaneamente. O pára-lama
direito o atingiu no ombro e o jogou longe, como se fosse um coelho.
Martins revelou que somente quando o sujeito usou a palavra “coelho” o falecido Harry Lime ganhou vida,
tornou-se o rapaz armado que ensinou a Martins alguns métodos de caça: um menino parado no meio dos
areais de Brickworth Common a gritar: - Atire, seu idiota, atire! Ali! - E o coelho fugiu mancando, ferido
pelo tiro de Martins.
- Onde ele será enterrado? - Ele perguntou ao sujeito do outro apartamento.
- No Cemitério Central. Vai dar trabalho, com a terra congelada.
Ele não fazia idéia de como iria pagar o táxi, ou se em Viena poderia conseguir um quarto onde pudesse
ficar por cinco libras inglesas, mas este problema teria de ser adiado até que se despedisse de Harry Lime.
Ele seguiu direto do centro para os subúrbios (zona britânica), onde se situava o cemitério. Para atingi-lo
era preciso passar pela zona russa e pegar um atalho pela zona americana, inconfundível por causa das
sorveterias a cada esquina. Os bondes trafegavam ao longo do muro alto do Cemitério Central, e por um
quilômetro e meio, do outro lado dos trilhos, erguiam-se as oficinas de marmoraria e as floriculturas - uma
seqüência aparentemente interminável de lápides a aguardar seus donos e coroas a aguardar pranteadores.
Martins ainda não percebera o tamanho daquele imenso parque coberto de neve onde realizaria seu último
encontro com Lime. Foi como se Harry lhe houvesse deixado uma mensagem: “Encontre-me no Hyde
Park”, sem especificar um local entre a estátua de Aquiles e o Lancaster Gate; as alamedas dos túmulos,
cada uma delas identificada por números e letras, se espalhavam como raios de uma roda enorme; eles
seguiram por uns oitocentos metros para o norte, viraram para o sul... A neve davam aos pomposos
túmulos familiares um ar de comédia grotesca; uma meia-peruca de neve escorregou pela lateral de um
rosto angélico; um santo exibia um bigode branco espesso, e um barrete alto de neve equilibrava-se sobre o
busto de um funcionário público de escalão superior chamado Wolfgang Gottmann. Até o cemitério fora
repartido entre as potências: a zona russa era marcada pela falta de gosto das estátuas enormes de homens
armados, as ruas francesas pelas fileiras anônimas de cruzes de madeira e uma bandeira tricolor rasgada e
desbotada. Martins então lembrou que Lime era católico e dificilmente seria sepultado na zona britânica
onde o procuravam em vão. Por isso retornaram até o centro de uma floresta onde as lápides pareciam
lobos sob as árvores a piscar de olhos brancos sob a melancolia das sempre-vivas. A certa altura, debaixo

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das árvores, viram emergir um grupo de três homens de estranhos uniformes ao estilo do século XVIII, em
preto e prata, com chapéus tricornes, que empurravam uma espécie de maca: eles cruzaram uma rua na
floresta de lápides e desapareceram novamente.
Foi por pura sorte que acharam o funeral a tempo - uma mancha no parque enorme onde a neve fora
removida com pás de modo a permitir a reunião de um pequeno grupo, agora aparentemente entretido com
questões muito confidenciais. O padre acabara de falar, suas palavras voavam sibilantes pela neve rala
paciente, e o caixão estava a ponto de ser baixado ao solo. Dois homens de terno estavam parados na beira
do túmulo. Um deles carregava uma coroa que obviamente se esquecera de colocar sobre o caixão, pois seu
companheiro o cotovelou para que ele avançasse um passo, assustado, e depositasse as flores. Havia uma
moça meio afastada, com as mãos a cobrir-lhe o rosto, e eu parei a vinte metros, na frente de outro túmulo,
observando aliviado o enterro de Lime e observando cuidadosamente quem estava lá - para Martins eu não
passava de um sujeito de capa. Ele se aproximou de mim e disse: - Sabe me dizer quem está sendo
enterrado?
- Um senhor chamado Lime, - falei, atônito ao ver lágrimas surgirem nos olhos daquele desconhecido: não
parecia ser um homem que chorava, nem Lime era o tipo de pessoa que na minha opinião atrairia alguém a
seu enterro - pranteadores genuínos com lágrimas genuínas. Havia a moça, claro, mas a gente considera as
mulheres exceção, nessas generalizações.
Martins ficou lá parado, até o final, perto de mim. Ele me disse mais tarde que, na condição de amigo
antigo, não queria se intrometer nas atividades dos novos amigos - a morte de Lime pertencia a eles, que
assim fosse. Vivia sob a ilusão sentimental de que a vida de Lime - vinte anos dela, pelo menos - pertencia
a ele.
Assim que a cerimônia acabou - não sou um homem religioso, sempre sinto uma certa impaciência com o
rebuliço que cerca a morte - Martins afastou-se sobre suas longas pernas, que pareciam a ponto de se
enredarem, na direção do táxi. Ele não tentou falar com ninguém, e as lágrimas agora corriam soltas, pelo
menos as poucas gotas que qualquer um de nós consegue verter nesta idade.
A ficha de alguém, veja bem, não se completa; um caso nunca é realmente encerrado, mesmo após um
século, quando os participantes todos já estão mortos. Por isso, segui Martins: conhecia os outros três:
queria conhecer o estranho. Alcancei-o antes que entrasse no táxi e disse: - Estou sem condução. Poderia
me dar uma carona até o centro?
- Claro - ele disse. Eu sabia que o motorista do meu jipe veria quando saíssemos e nos seguiria
discretamente. Conforme nos afastávamos percebi que Martins nunca olhava para trás - quase sempre os
pranteadores e amantes insinceros fazem questão da última olhada, do aceno na plataforma de embarque
em vez da saída rápida sem olhar para trás. Talvez por se amarem tanto queiram permanecer à vista dos
outros, até dos mortos?
Falei: - Meu nome é Calloway.
- Martins - ele disse.
- Era amigo de Lime:
- Sim. - A maioria das pessoas hesitaria antes de admitir até isso, na semana anterior.
- Chegou faz tempo?
- Cheguei esta tarde, da Inglaterra. Harry me convidara para ficar em sua casa. Eu não sabia de nada.
- Um choque e tanto, não?
- Sabe de uma coisa? - Ele disse. - Preciso tomar um drinque, mas não tenho nenhum dinheiro, exceto
cinco libras esterlinas. Ficaria imensamente grato se me convidasse para beber alguma coisa.
Minha vez de dizer: - Claro. - Ponderei por um momento e dei ao motorista o nome de um bar pequeno em
Kärntnerstrasse. Calculei que ele não gostaria de ser visto num bar inglês lotado, cheio de militares em
trânsito acompanhados pelas esposas. Aquele bar - quem sabe por cobrar preços exorbitantes - raramente
contava com mais de um casal enamorado por vez. Outro problema era servir apenas um drinque - um licor
de chocolate que o garçom reforçava com cognac por um preço extra. Mas tive a impressão de que Martins
não teria objeções a qualquer bebida, desde que lançasse um véu sobre o presente e o passado. Lia-se à
porta o aviso costumeiro, informando que o bar abria das seis às dez, mas bastava empurrar a porta e
atravessar as salas da frente. Conseguimos ficar a sós numa saleta. O único casal ocupava a sala ao lado, e
o garçom, que me conhecia, nos deixou em paz com alguns canapés de caviar. Felizmente nós dois
sabíamos que eu tinha conta ali.
Martins disse, depois de beber rapidamente o segundo drinque: - Sinto muito, mas ele foi meu melhor
amigo.

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Não resisti e disse, por saber o que eu sabia e por estar ansioso para constrangê-lo - a gente descobre muita
coisa assim: - Soa como frase de novela ordinária.
- Eu escrevo novelas ordinárias - ele respondeu na hora.
Eu havia conseguido descobrir algo, afinal. Até ele terminar a terceira dose tive a impressão de que não
seria muito falante, e intuí que era do tipo que se tornava desagradável depois da quarta.
Pedi: - Fale de você e de Lime.
- Por favor - ele disse. - Quero muito beber outro drinque, mas não posso abusar de um desconhecido.
Poderia trocar algumas libras por dinheiro austríaco?
- Não se preocupe com isso - falei, chamando o garçom. - Pode retribuir quando eu for a Londres de
licença. Não vai me contar como conheceu Lime?
O copo de licor de chocolate poderia ser de cristal, a julgar pelo modo como o virava de um lado para
outro e o examinava. Ele disse: - Foi há muito tempo. Duvido que alguém conheça Harry como eu. -
Pensei na pasta grossa com os relatórios dos agentes em minha sala, em que todos diziam a mesma coisa.
Eu acreditava em meus agentes, haviam sido detalhadamente investigados.
- Há quanto tempo?
- Vinte anos, ou um pouco mais. Eu o conheci no primeiro ano da escola. Ainda me lembro do local. Posso
ver o quadro de avisos e o que estava escrito lá. Ouço o som da sineta. Ele era um ano mais velho e já sabia
tudo. Ele me ensinou muitas coisas. - Ele tomou um gole e depois girou o cristal, como se quisesse ver
melhor o que ali havia. Ele disse: - Curioso. Não consigo me lembrar tão bem de nenhuma mulher que
conheci.
- Ele se destacava pela inteligência, na escola?
- Não do jeito que esperavam. Mas ele inventava cada coisa! Era um planejador e tanto. Eu era bem melhor
que Harry em matérias como História e Gramática, mas bancava o idiota quando se tratava de pôr seus
planos em prática. - Ele riu: já começava, com ajuda da bebida, a se livrar do choque da morte. - Eu era
sempre quem eles pegavam.
- Conveniente para Lime.
- O que quer dizer com isso? - Ele perguntou. A irritação alcoólica se manifestava.
- Não era?
- A culpa cabia a mim, não a ele. Poderia ter escolhido alguém mais esperto, se quisesse, mas gostava de
mim. - Sem dúvida, pensei, a criança é o pai do adulto, pois eu também havia considerado Lime um sujeito
paciente.
- Quando esteve com ele pela última vez?
- Ele esteve em Londres há seis meses, num congresso médico. Sabe, ele se formou em medicina, embora
nunca tenha exercido a profissão. Isso era típico de Harry. Ele sempre queria ver se conseguia fazer algo, e
depois perdia o interesse. - Isso também era verdade. Interessante como o Lime que ele conhecia
assemelhava-se ao Lime que eu conhecia: ele apenas via a imagem de Lime sob outro ângulo, ou outra luz.
- Uma das coisas que eu apreciava em Harry era seu senso de humor. - Ele abriu um sorriso que lhe tirou
cinco anos da idade. - Sou um palhaço, adoro bancar o idiota, mas Harry não, ele tinha senso de humor de
verdade. Sabe, poderia ter sido um compositor de operetas de primeira linha, se resolvesse dedicar seu
talento a isso.
Ele assobiou uma melodia, curiosamente familiar a meus ouvidos. - Sempre me lembro disso. Vi quando
Harry a compôs em alguns minutos, no verso de um envelope. Sempre assobiava esta canção quando algo
não lhe saía da cabeça. Era sua assinatura melódica. Ele assobiou novamente e na segunda vez eu me
lembrei quem a escrevera - não fora Harry, claro. Quase lhe revelei isso, mas de que adiantaria? A melodia
tremulou e se foi. Ele olhou para o copo, esvaziou seu conteúdo e disse: - Realmente uma pena que ele
tenha morrido daquele jeito.
- Foi a melhor coisa que já lhe aconteceu - falei.
Ele não entendeu o sentido de imediato: a bebida o entorpecera um pouco. - A melhor coisa?
- Isso mesmo.
- Quer dizer que ele não sofreu?
- Teve sorte também neste aspecto.
Meu tom de voz, e não o sentido das palavras, atraiu a atenção de Martins. Ele perguntou, educada e
perigosamente - vi sua mão direita se crispar. - O que quer dizer com isso?

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Não há vantagem em exibir coragem física em todas as situações: recuei a cadeira o suficiente para ficar
fora do alcance de seus punhos. E disse: - Quero dizer que o caso dele estava pronto, no quartel da polícia.
Teria cumprido pena - uma pena muito longa - se não fosse pelo acidente.
- Qual crime?
- Ele deve ter sido o pior vigarista que já ganhou dinheiro sujo nesta cidade.
Notei que ele media a distância entre nós, concluindo que não me alcançaria de sua cadeira. Rollo queria
atacar, mas Martins se mostrava cauteloso, firme. Martins, comecei a perceber, era perigoso. Perguntei-me
se não me enganara redondamente: não imaginava Martins comportando-se como o valentão que Rollo
delineava. - Você é da polícia? - Perguntou.
- Sim.
- Sempre odiei policiais. São sempre corruptos ou estúpidos.
- É isso que escreve em seus livros?
Vi que girava a cadeira um pouco, para bloquear minha fuga. Olhei para o garçom e ele entendeu o recado
- sempre há vantagens em usar o mesmo bar para conversas.
Martins disse calmamente, abrindo um sorriso superficial: - Tenho de chamá-los de xerifes.
- Conhece os Estados Unidos?
- Não. Isso é um interrogatório?
- Apenas interesse.
- Se Harry era criminoso, então eu também devo ser. Sempre trabalhamos juntos.
- Imagino que ele desejasse incluí-lo - em algum setor da organização. Não me surpreenderia se jogasse a
bomba no seu colo. Era seu método na escola - você mesmo me contou, certo? E, bem, o diretor já estava
começando a desconfiar.
- Você não nega a raça, né? Aposto que havia uma fraude qualquer com gasolina, e você não conseguiu pôr
a culpa em mais ninguém, por isso escolheu um morto. Típico de um policial. Você é policial de verdade,
calculo?
- Sim, da Scotland Yard. Mas eles me fazem usar uniforme de coronel quando estou a serviço.
Ele interrompia meu trajeto até a porta. Não tinha como levantar da mesa sem me colocar a seu alcance.
Não sou lutador e ele tinha quase vinte centímetros de vantagem, de todo modo. Falei: - Não foi gasolina.
- Pneus? Sacarina? Por que vocês não pegam uns assassinos, para variar?
- Pode-se dizer que assassinato fazia parte das atividades dele.
Ele empurrou a mesa com uma das mãos e tentou me acertar com a outra; a bebida prejudicou seus
cálculos. Antes que pudesse tentar novamente meu motorista o abraçou por trás. - Não o machuque, é
apenas um escritor que bebeu demais - falei.
- Por favor, acalme-se, senhor - meu motorista disse. Ele exagerava no tratamento cortês. Provavelmente
teria chamado Lime de “senhor”, também.
- Escute aqui, Callaghan, ou seja lá qual for seu nome...
- Calloway. É inglês, e não irlandês.
- Graças a mim ganhará o papel de maior idiota de Viena. Você não conseguirá empurrar os crimes sem
solução para este morto.
- Entendo. Você vai identificar o verdadeiro criminoso? Isso parece mais uma de suas histórias.
- Pode mandar me soltar, Callaghan. Prefiro vê-lo passar por idiota do que deixá-lo de olho roxo. Você
precisaria apenas passar alguns dias na cama, por causa do olho roxo. Mas, quando eu terminar de
desmoralizá-lo, fugirá de Viena.
Enfiei algumas libras em bafs no bolso de sua camisa. - Com isso você poderá se virar esta noite. E aposto
que haverá lugar para você no avião que parte amanhã para Londres.
- Você não pode me expulsar. Minha documentação está em ordem.
- Sei disso, mas esta é uma cidade como as outras: precisa de dinheiro, aqui. Se trocar libras no mercado
negro eu o pegarei em vinte e quatro horas. Solte-o.
Rollo Martins ajeitou a roupa e disse: - Obrigado pelos drinques.
- Não foi nada.
- Fico contente em saber disso, não preciso me sentir grato. Suponho que tenham saído da verba para
despesas.
- Isso mesmo.

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- Voltarei a procurá-lo daqui a uma ou duas semanas, quando tiver as provas. - Eu sabia que ele estava
furioso. Mas não acreditei naquele momento que falava a sério. Imaginei que se iludia para preservar seu
amor próprio.
- Posso me despedir de você amanhã.
- Não perca seu tempo. Não estarei lá.
- Paine lhe mostrará o caminho até o Sacher. Terá um quarto e comida lá. Providenciarei isso.
Ele deu um passo lateral, como se abrisse o caminho para o garçom, e desferiu um golpe contra mim.
Desviei a tempo, mas tropecei na mesa. Antes que ele pudesse tentar de novo Paine o derrubou com um
soco na boca. Ele caiu no vão entre as mesas e se levantou com o lábio a sangrar. - Pensei que você tinha
prometido não brigar - falei.
Ele limpou o sangue na manga e disse: - Nada disso. Afirmei que faria você bancar o idiota. Mas não disse
que não lhe daria um olho roxo também.
Meu dia fora longo, eu já estava cansado de Rollo Martins. Disse a Paine: - Leve-o em segurança até o
Sacher. Não bata mais nele enquanto se comportar. - Afastei-me dos dois e fui para o bar interno (merecia
mais um drinque). Ouvi Paine dizer com todo o respeito ao sujeito que acabara de nocautear: - Por aqui,
senhor, por favor. Fica logo ali na esquina.

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3

Eu não soube o que aconteceu em seguida por Paine, e sim por Martins, muito tempo depois, ao
reconstituir a cadeia de eventos que acabou por provar - embora não do modo que ele esperava - que eu era
mesmo um idiota. Paine simplesmente o acompanhou até a recepção do hotel e explicou ao recepcionista: -
Este senhor chegou de Londres, de avião. O coronel Calloway pediu que providenciassem um apartamento
para ele. - Tendo deixado isso claro, disse: - Boa noite, senhor - e se foi. Provavelmente o lábio de Martins,
a sangrar, o constrangia um pouco.
- O senhor tem reserva? - Perguntou o recepcionista.
- Não, creio que não tenho - Martins disse com voz abafada pelo lenço que segurava na boca.
- Pensei que poderia ser o senhor Dexter. Temos um apartamento reservado para o senhor Dexter, por uma
semana.
Martins disse: - Sim, sou o senhor Dexter. - Ele me contou depois que lhe pareceu que Lime devia ter
reservado o apartamento com aquele nome por ser Buck Dexter e não Rollo Martins quem serviria a seus
propósitos de propaganda. Uma voz disse, em seu cotovelo, - Lamento que não tenhamos nos encontrado
no aeroporto, senhor Dexter. Meu nome é Crabbin.
Seu interlocutor era um adulto corpulento de meia idade com tonsura natural e os óculos de tartaruga mais
grossos que Martins já vira. Ele prosseguiu com as justificativas. - Um membro de nossa equipe telefonou
para Frankfurt e soube que estava no avião. A sede cometeu mais um de seus erros e enviou um telegrama
informando que o senhor não viria. Alegaram algo sobre a Suécia, mas o texto chegou muito truncado.
Assim que recebi a confirmação de Frankfurt fui ao aeroporto, mas nos desencontramos por pouco.
Recebeu meu recado?
Martins, mantendo o lenço na boca, disse, obscuro: - Sim. Recebi?
- Devo dizer que estou muito emocionado por conhecê-lo, senhor Dexter.
- Que bom.
- Desde menino eu o considero o maior romancista do nosso século.
Martins fez uma careta. Era doloroso abrir a boca para protestar. Ele olhou sério para o sr. Crabbin, mas
seria impossível suspeitar que o rapaz fosse capaz de uma brincadeira de mau gosto.
- Seu público austríaco é imenso, senhor Dexter, tanto no caso dos romances quanto das traduções.
Especialmente por The Curved Prow, meu favorito pessoal.
Martins tentava concatenar os pensamentos. - Falou em reserva por uma semana?
- Isso mesmo.
- Muita gentileza sua.
- O senhor Schmidt fornecerá tíquetes diariamente, para todas as refeições. Calculo, porém, que precisará
de algum dinheiro para outras despesas. Vamos providenciar. Imaginamos que gostaria de tranqüilidade,
amanhã, para passear um pouco.
- Sim.
- Estamos todos à sua disposição, se precisar de um guia. Depois de amanhã realizaremos um pequeno
debate no Instituto - sobre o romance contemporâneo. Pensamos que poderia dizer algumas palavras, para
estimular os participantes, e depois responder perguntas.
Martins, naquele momento, estava disposto a concordar com qualquer proposta, só para se ver livre do sr.
Crabbin e também assegurar uma semana de hospedagem e comida grátis. Rollo, claro, como eu
descobriria futuramente, sempre estivera pronto a aceitar qualquer sugestão - fosse bebida, mulher,
diversão ou novidade. Ele disse: - Claro, claro - por trás do lenço.
- Com licença, senhor Dexter, está com dor de dente? Conheço um dentista muito bom.
- Não, alguém me agrediu, só isso.
- Meu Deus! Tentaram roubá-lo?
- Não, foi um soldado, quando tentei dar um soco no olho de um coronel idiota. - Ele removeu o lenço para
Crabbin ver o corte na boca. Contou-me que Crabbin ficou completamente sem palavras. Martins ignorava
o motivo, pois nunca havia lido a obra do grande escritor Benjamin Dexter, seu contemporâneo: sequer
ouvira falar nele. Admiro imensamente Dexter, por isso compreendo o desconcerto de Crabbin. Dexter
exibia um estilo comparável ao de Henry James, tendo porém uma faceta feminina bem mais abrangente
que seu mestre – seus inimigos chegaram a descrever seu estilo sutil, complexo, hesitante, como prosa de

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solteirona. Para um homem de quase cinqüenta anos seu interesse passional por bordado e seu hábito de
acalmar a mente não muito tumultuada com bilros – peculiaridade adorada por seus discípulos – sem
dúvida parecia um tanto afetada aos outros.
- Já leu um livro chamado The Lone Rider of Santa Fé?
- Não, creio que não.
Martins disse, - O melhor amigo do cavaleiro solitário foi abatido a tiros pelo xerife de uma cidade
chamada Lost Claim Gulch. O livro conta como ele perseguiu o xerife - totalmente dentro da lei – até
consumar sua vingança.
- Nunca imaginei que lesse livros de faroeste, senhor Dexter – Crabbin disse, e foi preciso empregar toda a
força de vontade de Martins para evitar que Rollo dissesse: - Ora, mas eu os escrevo.
- Bem, pretendo adotar a mesma postura em relação ao coronel Callaghan.
- Nunca ouvi falar nele.
- Ouviu falar em Harry Lime?
- Sim – Crabbin disse, cauteloso. – Mas não o conheço pessoalmente.
- Eu, sim. Era meu melhor amigo.
- Jamais poderia imaginar que ele... se interessasse por literatura.
- Nenhum dos meus amigos se interessa.
Crabbin piscou nervoso, atrás dos óculos de tartaruga. Disse, em tom conciliador: - Ele se interessava por
teatro, contudo. Uma amiga dele – atriz, entende – está aprendendo inglês no Instituto. Ele passou lá para
buscá-la, algumas vezes.
- Jovem ou idosa?
- Jovem, bem jovem. Não é uma boa atriz, na minha opinião.
Martins lembrou-se da moça ao lado do túmulo, com as mãos a cobrir o rosto, e disse: - Eu gostaria de
conhecer uma das amigas de Harry.
- Ela provavelmente comparecerá a sua palestra.
- Austríaca?
- Alega ser austríaca, mas suspeito que seja húngara. Trabalhava na Josefstadt.
- Por que alega ser austríaca?
- Os russos se interessam pelos húngaros, às vezes. Não me surpreenderia saber que Lime a ajudou a
conseguir documentos. Ela diz se chamar Schmidt. Anna Schmidt. Você pode imaginar uma jovem atriz
inglesa adotando o nome de Smith? Ela é muito bonita, também. O nome sempre me pareceu anônimo
demais para ser verdadeiro.
Martins percebeu que não conseguiria mais nada de Crabbin, por isso alegou cansaço, um longo dia,
prometeu telefonar na manhã seguinte, aceitou dez libras em bafs para despesas urgentes e subiu para seu
quarto. Ficou com a impressão de que estava ganhando dinheiro depressa – doze libras em menos de uma
hora.
Ele estava cansado: percebeu isso quando se deitou na cama de botas. Em um minuto deixou Viena para
trás e passou a caminhar numa densa mata, com neve até o tornozelo. Uma coruja piou, de repente ele se
sentiu sozinho e apavorado. Marcara encontro com Harry numa árvore específica, mas numa mata tão
densa, como distinguir uma árvore das outras? Então ele viu uma figura e correu em sua direção: assobiava
uma canção familiar, e seu coração se desanuviou, alegre por não estar sozinho, afinal de contas. A pessoa
se virou e não era Harry – apenas um desconhecido que sorriu para ele num pequeno círculo molhado de
neve lamacenta derretida, enquanto a coruja piava novamente. Ele acordou subitamente, ouvindo o telefone
tocar ao lado da cama.
Uma voz com sotaque estrangeiro – só vestígios – disse: - É o senhor Rollo Martins?
- Sim. – Já era uma mudança, ser ele e não Dexter.
- O senhor não me conhece – a voz acrescentou desnecessariamente – mas eu era amigo de Harry Lime.
Outra mudança, ouvir alguém se declarar amigo de Harry. O coração de Martins se encheu de simpatia
pelo estranho. Ele disse: - Seria um prazer conhecê-lo.
- Estou aqui do lado, no Old Vienna.
- Não poderia deixar para amanhã? Tive um dia horrível, aconteceram várias coisas.
- Harry pediu que eu verificasse se estava tudo bem. Eu estava com ele, quando morreu.
- Pensei... – Rollo Martins disse, depois parou. Ia dizer: - Pensei que tivesse morrido instantaneamente. –
Mas algo lhe sugeria cautela. Em vez disso, falou: - Ainda não me disse seu nome.
- Kurtz – a voz disse. – Gostaria de ir a seu encontro, mas, sabe, os austríacos não podem entrar no Sacher.

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- Poderíamos nos encontrar no Old Vienna amanhã de manhã.
- Certamente – a voz disse, - se tem absoluta certeza de que ficará bem até lá.
- O que quer dizer com isso?
- Harry calculava que não teria um tostão. – Rollo Martins, deitado na cama, com o telefone no ouvido,
pensou: Vim a Viena ganhar dinheiro. Era o terceiro desconhecido que lhe oferecia dinheiro em menos de
cinco horas. Disse, cauteloso: - Ah, posso dar um jeito, até encontrá-lo. – Não havia motivo aparente para
desprezar uma boa oferta, até saber qual era a oferta.
- Podemos marcar às onze horas, então, no Old Vienna, na Kärntnerstrasse? Usarei terno marrom e portarei
um de seus livros.
- Muito bem. Como conseguiu um exemplar?
- Ganhei de Harry. – A voz esbanjava charme e sensatez, mas depois de dar boa noite e desligar, Martins
não pôde deixar de se perguntar por que Harry, estando consciente pouco antes de falecer, não pedira para
mandarem um telegrama dizendo a ele para não vir. Callaghan não informara que Harry morrera na hora –
sem sofrimento, talvez? – ou ele estava pondo palavras na boca de Callaghan? Foi então que uma idéia se
instalou com firmeza na mente de Martins, a de que havia algo de errado com a morte de Lime, algo que a
polícia fora por demais obtusa para descobrir. Ele tentou desvendar o caso com a ajuda de dois cigarros,
mas pegou no sono sem jantar, sem solucionar o mistério. Fora um longo dia, mas não longo o suficiente
para isso.

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- O que me desagradou nele, à primeira vista – Martins me contou – foi o chinó. Era uma daquelas
peruquinhas óbvias – achatada, amarelada, com o cabelo cortado reto na parte traseira, que não encaixava
direito. Sem dúvida há algo de falso num homem que não aceita a calvície com elegância. Além disso, ele
possuía um rosto daqueles em que a linhas haviam sido postas cuidadosamente, como maquiagem, nos
lugares certos – para indicar charme, excentricidade, linhas no canto do olho. Fora feito para atrair
colegiais românticas.
Esta conversa transcorreu alguns dias depois – ele fez o relato quando a pista já estava quase fria.
Estávamos sentados no Old Vienna, na mesa que ocupara na primeira manhã com Kurtz, e quando soltou o
comentário sobre as colegiais vi seus olhos assustados se concentrarem subitamente. Era uma menina –
como qualquer outra, pensei, que passava correndo lá fora, apesar da neve que caía.
- Bonita?
Seus olhos voltaram a se fixar em mim e ele disse: - Estou fora disso para sempre. Sabe, Calloway, chega
um momento na vida de um homem em que ele desiste de todas essas coisas...
- Entendo. Pensei que estivesse olhando para a moça.
- Estava. Mas só porque ela me lembrou Anna, por um momento – Anna Schmidt.
- Quem é? Não é uma moça?
- Sim, de certo modo.
- Como assim, de certo modo?
- Ela era namorada de Harry.
- Vai ficar com ela?
- Ela não faz esse gênero, Calloway. Não a viu no enterro dele? Não estou mais misturando bebidas. Peguei
uma ressaca que pode durar a vida inteira.
- Você estava falando de Kurtz.
Consta que Kurtz o aguardava sentado, dedicando-se ostensivamente à leitura de The Lone Rider of Santa
Fé. Quando Martins sentou-se à mesa ele disse, com falso entusiasmo indescritível: - É impressionante
como você consegue manter a tensão.
- Tensão?
- O suspense. É um mestre nisso. Ao final de cada capítulo a gente fica tentando adivinhar...
- Então você era amigo de Harry – Martins disse.
- O melhor, creio – Kurtz disse, acrescentando após uma pausa quase imperceptível, durante a qual sua
mente deve ter registrado o erro – com exceção de você, claro.
- Conte-me como ele morreu.
- Eu estava em sua companhia. Saímos do prédio de apartamentos onde morava e Harry viu um amigo do
outro lado da rua – um norte-americano chamado Cooler. Ele acenou para Cooler e iniciou a travessia da
rua, quando um jipe dobrou a esquina em alta velocidade e o derrubou. A bem da verdade, foi culpa de
Harry, e não do motorista do jipe.
- Fui informado de que ele morreu instantaneamente.
- Antes fosse. Ele morreu antes que a ambulância pudesse chegar até nós, porém.
- E pôde falar, portanto?
- Sim. Mesmo sofrendo, preocupava-se com você.
- O que ele disse?
- Não consigo me lembrar das palavras exatas, Rollo – posso chamá-lo de Rollo, certo? Ele sempre se
referia a você assim, conosco. Fez questão de que eu cuidasse de você, quando chegasse. Queria lhe
garantir um bom tratamento. Comprar sua passagem de volta. – Quando me contou, Martins disse: - Eu
estava colecionando passagens de volta, além de dinheiro, como vê.
- E por que não mandaram um telegrama avisando para eu não vir?
- Fizemos isso, mas não deve ter chegado a tempo. Temos censura, divisão em zonas, um telegrama pode
demorar até cinco dias.
- Houve uma investigação?
- Claro que sim.
- Sabe que a polícia veio com a alegação maluca de que Harry se envolvera com algum tipo de crime?

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- Não. Mas todos em Viena estão envolvidos. Vendemos cigarros, trocamos xelins por bafs e assim por
diante. Não encontrará um único membro da Comissão de Controle que não tenha quebrado as regras.
- A polícia fala em coisas mais graves.
- Eles desenvolvem teses absurdas, às vezes – disse o sujeito de chinó, cauteloso.
- Permanecerei aqui até provar que estão enganados.
Kurtz virou a cabeça rapidamente e a peruquinha deslocou-se um pouco. Ele disse: - De que adiantaria?
Nada trará Harry de volta.
- Vou providenciar para que o policial responsável seja expulso de Viena.
- Não sei o que poderia fazer.
- Vou começar a investigação pela morte. Você estava lá, assim como o tal sujeito, Cooler, e o chofer.
Poderia me dar o endereço deles?
- Não sei onde o motorista mora.
- Posso obter a informação no arquivo do coronel. E tem a namorada de Harry...
Kurtz disse: - Será penoso para ela...
- Não me preocupo com ela. Estou interessado em Harry.
- Sabe por que a polícia anda tão desconfiada?
- Não, perdi a paciência cedo demais.
- Já lhe ocorreu – Kurtz disse com jeito – que você poderia descobrir algo... bem, desfavorável a Harry?
- Correrei o risco.
- Vai precisar de tempo... e dinheiro.
- Tenho tempo, e você me emprestará um pouco de dinheiro, certo?
- Não sou rico – Kurtz retrucou. – Prometi a Harry que veria se estava tudo bem com você, e que o ajudaria
a pegar o avião de volta...
- Não precisa se preocupar com dinheiro, nem com o avião – Martins disse. – Mas eu gostaria de fazer uma
aposta com você, em libras esterlinas. Cinco libras contra duzentos xelins como há algo de errado com a
morte de Harry.
Era um tiro no escuro, mas ele confiou cegamente em seu instinto de que havia algo de errado, embora
ainda não houvesse adicionado a palavra “homicídio” a seu instinto. Kurtz conduzia a xícara de café aos
lábios, estava na metade do caminho, e Martins observava sua reação. O desafio aparentemente não o
impressionou; a mão firme levou a xícara à boca e Kurtz bebeu o café em goles longos, algo ruidosos.
Depois devolveu a xícara à mesa e disse: - O que quer dizer com errado?
- Era conveniente para a polícia conseguir um cadáver, mas isso não teria sido igualmente conveniente para
os verdadeiros bandidos? – Assim que falou ele se deu conta de que, afinal de contas, talvez Kurtz tenha
sido afetado por sua proposta, reagindo com frieza e cautela deliberadas. As mãos dos culpados não
tremem, necessariamente; só em contos um copo cai da mão, revelando descontrole. A tensão, com
freqüência, se revela nos atos estudados. Kurtz tomara o café como se nada tivesse sido dito.
- Bem... – ele bebeu mais um gole – desejo-lhe muita sorte, claro, embora não acredite que haja algo a
desvendar. Precisando de minha ajuda, basta pedir.
- Quero o endereço de Cooler.
- Certamente. Vou anotá-lo para você. Ei-lo. Fica na zona norte-americana.
- E o seu?
- Já consta, sob o dele. Por azar, resido na zona russa – portanto, não vá me visitar tarde da noite. Coisas
esquisitas podem acontecer por lá. – Ele me brindava com um de seus sorrisos vienenses calculados, no
qual o charme era cuidadosamente pintado com pincel fino nas linhas em torno da boca e dos olhos. –
Mantenho contato – ele disse, - e se precisar de ajuda... mas ainda acho que está sendo muito imprudente. –
Ele tocou a capa de The Lone Rider. – Estou orgulhoso por conhecê-lo. Um mestre do suspense... – Uma
das mãos ajeitou a peruquinha, outra foi passada lentamente pela boca, limpando o sorriso de modo a
parecer que jamais esteve lá.

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Martins sentou numa cadeira logo depois da porta de acesso ao palco do teatro Josefstadt. Enviara seu
cartão de visitas a Anna Schmidt após a matinê, e nele escrevera “amigo de Harry”. Uma galeria de
janelinhas com cortinas de renda, onde as luzes se apagavam uma após a outra, indicava o local em que os
artistas se preparavam para voltar para casa, para a xícara de café sem açúcar e o pão sem manteiga que os
sustentaria até a sessão noturna. Parecia uma ruazinha interna construída num cenário de cinema, mas até lá
dentro fazia frio, um frio capaz de afetar um sujeito encapotado como Martins, que se levantou e ficou
andando para lá e para cá, sob as janelinhas. Contou depois que se sentiu como um Romeu incerto quanto
ao terraço de Julieta.
Tivera tempo para meditar: agora, mais calmo, via Martins preponderar sobre Rollo. Quando a luz se
apagou numa das janelas e a atriz desceu até a passagem onde ele se encontrava, não se deu ao trabalho de
virar o rosto para olhar. Estava cansado daquilo tudo. Kurtz tem razão, pensou. Todos têm razão. Estou me
comportando como um tolo romântico. Conversarei um pouco com Anna Schmidt, direi algumas palavras
de consolo, farei as malas e partirei. Praticamente se esquecera, contou-me, da complicação com o sr.
Crabbin.
Uma voz acima de sua cabeça chamou: - Senhor Martins – e ele ergueu os olhos para a face que o
observava por entre as cortinas, alguns centímetros acima de sua cabeça. Não era um rosto maravilhoso,
explicou-me com firmeza, quando o acusei novamente de misturar as bebidas. Era um rosto honesto,
apenas; cabelo escuro e olhos que naquela luz pareciam castanhos; testa larga, boca generosa que não
tentava encantar. Nenhum perigo ali, deduziu Rollo Martins, daquele momento súbito temerário em que o
perfume do cabelo ou a mão apoiada na cintura muda a vida da gente. Ela disse: - Pode subir, por
gentileza? Segunda porta da direita.
Existem pessoas, ele me explicou cuidadosamente, que instantaneamente identificamos como amigas.
Podemos ficar à vontade com essas pessoas, pois sabemos que nunca correremos perigo, nunca. – Anna era
assim – ele disse, e eu fiquei sem saber se o verbo no passado fora deliberado ou não.
Ao contrário de muitos camarins de atrizes, aquele era despojado; nada de guarda-roupa lotado nem
montanhas de cosméticos e pintura sobre a mesa. O roupão pendurado atrás da porta, um suéter que ele
reconheceu como sendo do segundo ato sobre a única poltrona estofada, uma lata de maquiagem pela
metade e um creme. A chaleira apitava suavemente no fogareiro a gás. Ela disse: - Aceita uma xícara de
chá? Ganhei uma caixa na semana passada. Por vezes os americanos fazem isso, na primeira vez, em vez
de dar flores, sabe?
- Aceito uma xícara – ele disse, mas se odiava uma coisa na vida era chá. Observou-a enquanto ela o
preparava, claro que do jeito errado: água sem ferver direito, bule sem escaldar antes, excesso de chá. Ela
disse: - Nunca entendi por que os ingleses gostam de chá.
Ele bebeu o chá rapidamente, como se fosse remédio, e passou a acompanhar o modo alegre e delicado
com que ela o tomava. Ele disse: - Eu queria muito encontrá-la. Por causa de Harry.
Era o momento tão temido: notou que sua boca se contraía, para enfrentar a situação.
- E?
- Eu o conhecia havia vinte anos. Era amigo dele. Freqüentamos juntos a escola, sabe, e depois... não se
passavam muitos meses sem que fizéssemos contato...
Ela disse: - Quando recebi seu cartão, não pude dizer não. Mas não temos realmente nada a conversar,
certo? Nada.
- Eu queria ouvir...
- Ele morreu. Final da história. Tudo acabou, terminou. De que adianta falar?
- Nós dois o amávamos.
- Não sei. Você não pode saber uma coisa dessas – depois. Eu não sei de mais nada, exceto que...
- Exceto o quê?
- Exceto que eu também quero morrer.
Martins me disse: - Naquele momento, quase fui embora. Que benefício haveria em atormentá-la por causa
de minhas idéias malucas? Em vez disso, porém, fiz uma pergunta. – Conhece um sujeito chamado Cooler?
- Americano? – Ela perguntou. – Creio que foi o homem que me trouxe um pouco de dinheiro, quando
Harry morreu. Eu não queria aceitar, mas ele disse que Harry se preocupou comigo, no último minuto...

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- Então ele não morreu instantaneamente?
- Ah, não.
Martins disse a mim: - Eu comecei a me perguntar por que metera na cabeça aquela idéia, e me dei conta
de que o sujeito do apartamento vizinho fora o único a me dizer isso – ele e mais ninguém. Eu lhe disse: -
Ele deve ter tido muito clareza no final, pois se lembrou de mim também. Isso parece demonstrar que não
sentiu muita dor.
- É isso que digo a mim mesma, o tempo todo.
- Foi ao médico?
- Uma vez. Harry me mandou lá. Era o médico de Harry. Morava aqui perto, entende.
Martins de repente enxergou dentro da curiosa área da mente que constrói tais cenas de modo irracional,
instantâneo: um lugar deserto, um corpo no chão, um grupo de pássaros reunidos. Talvez fosse uma cena
de seus próprios livros, ainda por escrever, formando-se nos umbrais da consciência. Esmaeceu, e ele
considerou esquisito que estivessem todos lá, naquele exato momento, todos os amigos de Harry – Kurtz, o
médico, o tal sujeito, Cooler; só faltavam as duas pessoas que o amavam, pelo jeito. Ele disse: - E o
motorista? Ouviu a versão dele?
- Ele estava preocupado, apavorado. Mas o testemunho de Cooler o livrou. Não foi culpa do pobre coitado.
Eu sempre ouvia Harry comentar o quanto ele era um motorista cuidadoso.
- Ele também conhecia Harry? – Mais um pássaro bateu asas e desceu para se unir aos outros em torno da
figura silenciosa na areia, deitada de bruços. Agora ele já sabia que era Harry, pelas roupas, pela atitude
semelhante à de um menino que dormia na grama ao lado do campo, numa tarde quente de verão.
Alguém chamou, do lado de fora da janela: - Fraülein Schmidt.
Ela disse: - Não gostam que a gente fique aqui muito tempo. Gasta a eletricidade deles.
Ele deixou de lado qualquer noção de poupá-la, e disse: - A polícia afirma que iam prender Harry. Queriam
acusá-lo de fraude.
Ela reagiu à notícia praticamente da mesma maneira que Kurtz. – Todo mundo está envolvido em algo.
- Duvido que estivesse metido em coisas sérias.
- Eu também.
- Mas podem ter armado para cima dele. Conhece um sujeito chamado Kurtz?
- Creio que não.
- Ele usa peruca.
- Ah. – Percebeu que ela o identificara. Ele disse: - Não acha estranho que todos estivessem ali – na hora
da morte? Todos conheciam Harry. Até o motorista, o médico...
Ela disse com calma exasperante: - Também pensei nisso, embora não soubesse nada a respeito de Kurtz.
Cheguei a me perguntar se não o teriam assassinado. Mas de que adianta ficar pensando nisso?
- Vou pegar aqueles filhos da mãe – disse Rollo Martins.
- Não vai adiantar nada. Talvez a polícia tenha razão. Vai ver Harry se meteu em alguma encrenca,
coitado...
- Fraülein Schmidt – a voz chamou novamente.
- Preciso ir.
- Vamos conversando um pouco mais, no caminho.
Escurecera quase que totalmente; a neve cessara de cair por um tempo, e as estátuas enormes do Ring, os
cavalos empinados, as carruagens e águias escureceram de um cinza pólvora naquele final de tarde. –
Melhor desistir e esquecer – Anna disse. A neve iluminada pela lua formava uma camada na calçada que
batia no tornozelo.
- Poderia me dar o endereço do médico?
Pararam, abrigados por um muro, para que ela anotasse o endereço e o entregasse.
- E o seu, também?
- Para que quer saber?
- Talvez eu tenha notícias para lhe dar.
- Não há notícias que possam me ajudar, a esta altura. – Ele a observou de longe enquanto subia no bonde,
com a cabeça baixa por causa do vento, feito um ponto de interrogação preto na neve.

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6

Um detetive amador desfruta de uma vantagem sobre o profissional: não trabalha em horário fixo. Rollo
Martins não se limitava ao dia de oito horas, suas investigações não exigiam intervalo para as refeições.
Num único dia ele avançou tanto quanto um de meus homens em dois dias, e já tinha uma vantagem inicial
sobre nós, sendo amigo de Harry. Pode-se dizer que ele atuava do lado de dentro, enquanto nós ciscávamos
na periferia.
O dr. Winkler estava em casa. Talvez não estivesse em casa se fosse um policial. Novamente, Martins
anotou em seu cartão a frase abre-te-sésamo: “Amigo de Harry Lime.”
A sala de espera do dr. Winkler lembrou a Martins uma loja de antiguidades – um antiquário especializado
em objets d’art religiosos. Havia mais crucifixos do que poderia contar, nenhum deles feito após o século
XVII, provavelmente. Estátuas de madeira e marfim. Diversos relicários: pedacinhos de ossos marcados
com o nome dos santos em molduras ovais com fundo de folha de estanho. Se fossem genuínos, Martins
pensou, que destino bizarro para um pedaço de uma articulação de Santa Susana acabar na sala de espera
do dr. Winkler. Até as cadeiras medonhas de encosto alto davam a impressão de um dia terem servido de
assento a cardeais. Numa caixinha de ouro havia uma lasca da Cruz Verdadeira. Um espirro o assustou.
O dr. Winkler era o médico mais limpo que Martins já vira. Pequeno e asseado, usava casaca preta e
colarinho alto e duro; o bigodinho preto parecia gravata borboleta. Ele espirrou novamente: vai ver sentia
frio por ser tão limpo. O médico disse: - Senhor Martins?
Um desejo irresistível de macular o dr. Winkler apoderou-se de Rollo Martins. Ele disse: Doutor Winkle?
- Doutor Winkler.
- O senhor mantém uma coleção interessante, aqui.
- Sim.
- Esses ossos de santos...
- São ossos de galinha e coelho. – O dr. Martins tirou um lenço branco grande da manga, como se fosse um
mágico a exibir a bandeira de seu país, e por duas vezes, com asseio e minúcia, assoou o nariz, fechando
uma narina por vez. Era de se esperar que dispensasse o lenço após o uso. – Poderia explicar o motivo de
sua visita, senhor Martins? Um paciente me espera.
- Éramos amigos de Harry Lime.
- Eu era seu consultor médico – o dr. Winkler o corrigiu, esperando obstinado entre os crucifixos.
- Cheguei tarde demais para o inquérito. Harry me convidara para vir aqui ajudá-lo em algo. O quê, não sei
dizer. Soube de sua morte após minha chegada, apenas.
- Uma pena – o dr. Winkler disse.
- Naturalmente, nessas circunstâncias, quero saber tudo que puder.
- Não há nada que eu possa lhe dizer que o senhor já não saiba. Ele foi atropelado por um carro. Estava
morto quando cheguei.
- Poderia ter mantido a consciência por algum tempo?
- Ao que parece ele ficou consciente por algum tempo, enquanto o levavam para dentro de casa.
- Sofreu muitas dores?
- Não necessariamente.
- Tem absoluta certeza de que se tratou de um acidente?
O dr. Winkler estendeu a mão para endireitar um crucifixo. – Eu não me encontrava no local. Minha
opinião se restringe à causa da morte. Tem alguma razão para estar insatisfeito?
O amador tem outra vantagem sobre o profissional: pode ser atrevido. Pode relatar verdades desnecessárias
e propor teorias malucas. Martins disse: - A polícia envolveu Harry em sérios crimes. Ao que me parece,
ele pode ter sido assassinado ou mesmo ter cometido suicídio.
- Não sou competente para opinar a respeito – o dr. Winkler disse.
- Conhece um homem chamado Cooler?
- Creio que não.
- Ele estava no local quando Harry foi morto.
- Então eu o vi, com certeza. Usa chinó.
- Este é o Kurtz.
O dr. Winkler não era só o mais limpo dos médicos, era também o mais cauteloso que Martins já
encontrara. Dava declarações tão comedidas que nem por um instante alguém desconfiaria de sua

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veracidade. Ele disse: - Havia um segundo homem por lá. – Se tivesse de diagnosticar um caso de
escarlatina seria capaz de se restringir à afirmação de que uma erupção era visível, que a temperatura era
tal e assim por diante. Jamais cometeria um erro num inquérito.
- Era médico de Harry havia muito tempo? – Parecia-lhe uma escolha curiosa, no caso de Harry, que
preferia homens algo temerários, capazes de cometer erros.
- Cerca de um ano.
- Bem, foi muita gentileza sua me receber. – O dr. Winkler fez uma mesura. Quando se curvou ouviu-se
um leve estalido, como se a camisa fosse feita de celulóide. – Não quero mantê-lo afastado de seus
pacientes por muito tempo. – Dando as costas ao dr. Winkler ele se deparou com outro crucifixo, no qual a
figura estava pendurada com os braços acima da cabeça: a face era uma prolongada agonia à El Greco. –
Estranho, este crucifixo – comentou.
- Jansenista – o dr. Winkler explicou, fechando a boca com força, como a sentir culpa por liberar
informações em excesso.
- Nunca ouvi falar. Por que os braços acima da cabeça?
O dr. Winkler respondeu, relutante: - Porque Ele morreu apenas para os eleitos, na visão deles.

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7

No meu ponto de vista, formado a partir das conversas e dos depoimentos dos diversos envolvidos, ainda
seria possível, naquele momento, que Rollo Martins saísse de Viena em segurança. Demonstrara uma
curiosidade insalubre, mas a doença fora controlada em todas as suas manifestações. Ninguém fizera
revelações comprometedoras. A muralha uniforme da ilusão não exibira rachaduras reais ao toque de seus
dedos, até então. Ao sair do consultório do dr. Winkler, Rollo Martins não corria perigo. Poderia ter ido
para casa e dormido com a mente tranqüila, no Sacher. Poderia até mesmo ter visitado Cooler, naquela
altura, sem problemas. Ninguém fora seriamente incomodado. Infelizmente, para ele – e sempre haveria
períodos de sua vida em que se arrependeria disso amargamente – resolveu retornar ao apartamento de
Harry. Queria conversar com o sujeito retraído que afirmara ter visto o acidente – ou não teria chegado a
dizer tanto? Houve um momento, naquela rua escura e gelada, em que sentiu-se inclinado a ir direto à casa
de Cooler, para completar o quadro dos pássaros sinistros que rodearam o corpo de Harry, mas Rollo,
sendo Rollo, decidiu jogar uma moeda, e a moeda indicava a outra ação, e a morte de dois homens.
Talvez aquele homem miúdo – que atendia pelo nome de Koch – tivesse bebido vinho demais, talvez
tivesse simplesmente passado um dia agradável no serviço, mas desta vez, quando Rollo Martins tocou sua
campainha, ele se mostrou amigável e disposto a falar. Acabara de jantar, havia migalhas no bigode. – Ah,
lembro-me do senhor. Era amigo de Herr Lime.
Ele recebeu Martins com imensa cordialidade e o apresentou à esposa avantajada, a quem obviamente
mantinha sob rigoroso controle. – Ah, nos velhos tempos eu lhe ofereceria uma xícara de café, mas agora...
Martins ofereceu o maço de cigarro e a atmosfera de cordialidade aprofundou-se. – Quando veio ontem eu
fui meio abrupto – disse Herr Koch. – Mas eu estava com enxaqueca e minha esposa tinha saído, por isso
eu mesmo tive de abrir a porta.
- O senhor disse que chegou a ver o acidente?
Herr Koch trocou um olhar com a esposa. – O inquérito já se encerrou, Ilse. Não há mal algum. Pode
confiar no meu julgamento. Este senhor é um amigo. Sim, vi o acidente, mas o senhor é o único a saber
disso. Quando disse que vira o atropelamento, deveria ter dito que o escutei. Ouvi o som da freada e depois
da derrapagem, corri para a janela e cheguei a tempo de vê-los carregar o corpo para dentro de casa.
- Mas não deu nenhuma informação?
- Prefiro não me envolver com essas coisas. Não posso tirar folga no emprego. Falta de pessoal. Além
disso, eu realmente não vi...
- Mas contou ontem como foi que aconteceu.
- Repeti a descrição dada pelos jornais.
- Ele sofreu muito?
- Estava morto. Olhei tudo daqui da janela e vi seu rosto. Sei quando um sujeito está morto. Pode-se dizer
que faz parte do negócio, para mim. Trabalho como chefe do necrotério.
- Mas os outros disseram que ele não morreu na hora.
- Talvez não conheçam a morte tão bem quanto eu.
- Ele estava morto quando o médico chegou, claro. Ele me disse isso.
- Ele morreu na hora. Pode confiar na palavra de alguém que conhece o assunto.
- Creio que deveria ter dado um depoimento, Herr Koch.
- Cada um cuida de si, Herr Martins. Eu não fui o único que deveria ter deposto.
- O que quer dizer?
- Três pessoas ajudaram a carregar seu amigo para dentro de casa.
- Sei disso. Dois homens e o motorista.
- O motorista permaneceu onde estava. Ficou fortemente abalado, coitado.
- Três homens... – Foi como se, subitamente, ao tatear a muralha nua, seus dedos tivessem encontrado não
o que se poderia chamar de rachadura, mas pelo menos uma aspereza que não fora eliminada pela lixa dos
cuidadosos construtores.
- Pode descrever os homens?
Mas Herr Koch não fora treinado para observar os vivos: só o sujeito de peruquinha atraíra sua atenção –
os outros eram apenas homens, nem altos nem baixos, nem magros nem gordos. Ele os vira do alto,
reduzidos, debruçados sobre o cadáver; não ergueram os olhos, e ele logo desviou a vista e fechou a janela,
imediatamente satisfeito com sua sabedoria ao evitar que o vissem.

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- Não posso lhe dar provas de nada, Herr Martins.
Nenhuma prova, Martins pensou, nenhuma prova! Ele não duvidava mais que um homicídio fora
cometido. Caso contrário, por que mentiriam sobre o momento da morte? Eles queriam calá-lo com ofertas
de dinheiro e passagem de avião os dois únicos amigos que Harry possuía em Viena. E o terceiro homem?
Quem era ele?
Ele disse: - Viu Herr Lime sair?
- Não.
- Ouviu um grito?
- Só o ruído dos freios, Herr Martins.
Ocorreu a Martins não haver nada - exceto as palavras de Kurtz, de Cooler e do motorista – capaz de
provar que de fato Harry fora morto naquele momento preciso. Havia evidências médicas, mas elas não
poderiam provar muita coisa, além de que ele morrera em meia hora, e de todo modo o depoimento médico
tinha a força da palavra do dr. Winkler apenas: aquele sujeito asseado e controlado, rodeado de crucifixos.
- Herr Martins, pensei uma coisa – pretende ficar em Viena?
- Sim.
- Se precisar de acomodações e falar rapidamente com as autoridades, poderia conseguir o apartamento de
Herr Lime. Trata-se de propriedade requisitada.
- Quem tem as chaves?
- Eu as tenho.
- Posso ver o apartamento?
- Ilse, as chaves.
Herr Koch foi na frente, até o apartamento onde residira Harry. No minúsculo hall escuro ainda pairava o
cheiro de cigarro – dos cigarros turcos que Harry sempre fumara. Parecia insólito que o odor de um homem
permanecesse nas dobras da cortina muito tempo depois de o próprio homem se tornar matéria morta, um
gás, podridão. Uma lâmpada numa luminária cheia de contas os pôs na penumbra, tateando pelas
maçanetas das portas.
A sala estava completamente vazia – para Martins, vazia demais. As cadeiras haviam sido encostadas nas
paredes; a mesa onde Harry devia escrever não tinha pó nem papéis. O assoalho refletia a luz como um
espelho; a cama estava arrumada, com lençóis limpos. No banheiro nem mesmo uma lâmina de barbear
usada indicava que, poucos dias antes, um homem vivo o utilizara. Só o hall escuro e o cheiro de cigarro
traíam sua ocupação.
- Como vê – Herr Koch disse, - está prontinho para o novo morador. Ilse fez a faxina.
Quanto a isso não restava a menor dúvida. Após a morte deve ter havido mais lixo do que se via. Um
sujeito não parte súbita e inesperadamente para sua mais longa viagem sem esquecer disso ou daquilo, sem
deixar uma conta por pagar, um formulário governamental sem preencher, a foto de uma moça. – Não
havia papéis, Herr Koch?
- Herr Lime era uma pessoa muito organizada. O cesto de lixo e a pasta dele estavam cheios, mas o amigo
levou tudo.
- Amigo?
- O cavalheiro de peruca.
Era possível, claro, que Lime não tivesse partido para sua jornada assim tão inesperadamente, e ocorreu a
Martins que Lime talvez pensasse que ele chegaria a tempo de ajudá-lo. E disse a Herr Koch: - Creio que
meu amigo foi assassinado.
- Assassinado? – A cordialidade de Herr Koch cessou quando ouviu a palavra. – Eu não o teria convidado
para entrar aqui se soubesse que falaria tamanho absurdo.
- Por que seria absurdo?
- Não há assassinatos nesta zona.
- Mesmo assim seu testemunho pode ser muito valioso.
- Não tenho nada a dizer. Não vi nada. Não me importa. Por favor, saia daqui imediatamente. Foi muito
desatencioso. – Ele apressou Martins através do hall; o cheiro de cigarro já diminuíra um pouco. A última
palavra de Herr Koch antes de bater a porta de sua casa foi: - Não é da minha conta. – Coitado de Herr
Koch! Não escolhemos o que é da nossa conta. Mais tarde, quando eu interrogava Martins, disse a ele: -
Viu alguém na escada, ou do lado de fora, na rua?
- Ninguém. – Ele teria tudo a ganhar se lembrasse de ter visto alguém passar por acaso, e acreditei nele,
que disse: - Notei o quanto a rua inteira parecia calma e morta. Fora bombardeada em parte, entende, e a

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luz refletia nas encostas cobertas de neve. Estava tudo muito quieto. Ouvia meus próprios pés a ranger na
neve.
- Claro, isso não prova nada. Qualquer um que o tivesse seguido poderia se esconder no porão.
- Pode ser.
- Ou sua história inteira é falsa.
- Pode ser.
- O problema é que não vejo motivo para você ter inventado tudo. É verdade que já era culpado de arranjar
dinheiro por meio de ardil. Veio para cá encontrar Lime, talvez para ajudá-lo...
Martins me disse: - O que é o tremendo esquema que vive insinuando?
- Eu lhe teria fornecido todos os fatos quando o vi pela primeira vez, se você não perdesse a calma com
tanta facilidade. Agora não creio que seja uma boa idéia contar-lhe. Estaria divulgando informações
oficiais, e seus contatos não inspiram confiança, entende? Uma moça com documentos falsos fornecidos
por Lime, o tal de Kurtz...
- O doutor Winkler...
- Nada tenho contra o doutor Winkler. Não, se estiver mentindo não precisa da informação, mas isso
poderia ajudá-lo a descobrir o quanto sabemos, exatamente. Nossos fatos ainda não estão completos.
- Aposto que não. Eu poderia criar um detetive melhor do que você durante o banho.
- Seu estilo literário não faz justiça a seu xará. – Sempre que o lembravam do sr. Crabbin, o atormentado
representante do British Council, Rollo Martins ficava vermelho de contrariedade, embaraço, vergonha.
Isso também me levava a confiar nele.
Sem dúvida ele dera a Crabbin horas desconfortáveis. A voltar ao Sacher hotel após a entrevista com Herr
Koch ele encontrou um recado desesperado a sua espera, da parte do representante.
- Tente localizá-lo o dia inteiro – Crabbin escreveu. – Precisamos nos reunir para preparar uma
programação adequada. Esta manhã, por telefone, marquei palestras em Innsbruck e Salzburgo, para a
próxima semana, mas preciso de sua aprovação dos temas, para que os programas sejam impressos.
Gostaria de sugerir duas conferências: “A crise da fé no Mundo Ocidental” (é muito respeitado aqui como
escritor cristão, mas a conferência deve ser apolítica, sem fazer referências à Rússia ou ao comunismo) e
“A técnica do romance contemporâneo”. As mesmas palestras serão proferidas em Viena. Além disso, há
muita gente aqui que gostaria de conhecê-lo, e eu gostaria de promover um coquetel no início da próxima
semana. Antes de tomar providências, precisamos trocar algumas palavras a respeito. – A mensagem se
encerrava com uma nota aguda de ansiedade: - Comparecerá ao debate de amanhã à noite, certo?
Estaremos todos esperando, às 8:30, ansiosos por sua presença, desnecessário dizer. Enviarei alguém para
buscá-lo no hotel às 8:15 em ponto.
Rollo Martins leu o recado e, sem se preocupar com o sr. Crabbin, foi para a cama.

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8

Após duas doses a mente de Rollo Martins sempre se voltava para as mulheres enquanto sexo – num modo
vago, sentimental, romântico, em geral. Depois da terceira, como um piloto que mergulha para descobrir
sua localização, ele passava a se concentrar na moça disponível. Se Cooler não lhe oferecesse a terceira
dose ele provavelmente não teria ido tão depressa à casa de Anna Schmidt, e se – há “ses” demais em meu
modo de escrever, pois minha profissão é ponderar possibilidades, as possibilidades humanas, e a força do
destino não pode encontrar jamais espaço nos meus autos.
Martins dedicara a hora do almoço a ler os relatórios do inquérito, demonstrando novamente a
superioridade do amador sobre o profissional, e isso o tornou mais vulnerável à bebida dada por Cooler
(que um profissional recusaria, durante o serviço). Por volta das cinco da tarde ele chegou ao apartamento
de Cooler, situado em cima de uma sorveteria, na zona norte-americana: o bar do térreo estava cheio de
G.I.s com suas garotas; o tilintar das colheres compridas e os risos livres curiosos o seguiram escada acima.
O inglês que desaprova norte-americanos em geral normalmente tem na cabeça uma exceção do tipo de
Cooler: um sujeito de cabelo desgrenhado, face simpática e atormentada, olhos perdidos ao longe. O tipo
humanitário que aparece numa epidemia de tifo ou numa guerra mundial ou numa epidemia de fome na
China muito antes de seus compatriotas descobrirem o lugar no atlas. Novamente o cartão com os dizeres
“amigo de Harry” funcionou como ingresso. Cooler usava uniforme de oficial, com letras misteriosas no
distintivo, sem indicações de patente, embora o empregado tenha se referido a ele como coronel Cooler.
Seu aperto de mão caloroso e franco foi o gesto mais amigável que Martins encontrara em Viena.
- Qualquer amigo de Harry é bem recebido por mim – Cooler disse. – Claro, já ouvi falar em você.
- Por Harry?
- Sou leitor entusiasmado de livros de faroeste – Cooler disse, e Martins acreditou nele como não havia
acreditado em Kurtz.
- Eu gostaria que falasse a respeito da morte de Harry. Estava lá, certo?
- Foi uma coisa terrível – Cooler disse. – Eu estava atravessando a rua para ir à casa de Harry. Ele e o
senhor Kurtz estavam na calçada. Se eu não tivesse começado a atravessar a rua, talvez ele tivesse
permanecido onde estava. Mas ele me viu, desceu da calçada para ir a meu encontro e o jipe... foi terrível,
terrível. O motorista freou, mas não teve jeito. Tome um Scotch, senhor Martins. Pode parecer ridículo,
mas fico abalado só de pensar nisso – falou, enquanto acrescentava club soda. – Apesar da farda, nunca
tinha visto um homem ser morto antes.
- O outro homem estava no carro?
Cooler bebeu demoradamente, depois avaliou o que restara no copo com seus olhos amáveis e cansados. –
A que homem está se referindo, senhor Martins?
- Fui informado de que havia outro homem lá.
- Não sei como chegou a esta conclusão. Todos os detalhes da ocorrência constam nos relatórios do
inquérito. – Ele serviu mais duas doses generosas. – Éramos apenas três 0 eu, o senhor Kurtz e o motorista.
Além do médico, claro. Suponho que esteja pensando no médico.
- Um senhor com quem conversei olhava pela janela no momento – um vizinho de apartamento de Harry –
e ele disse que viu três homens e o motorista. Isso foi antes de o médico chegar.
- Ele não declarou nada no interrogatório.
- Não queria se envolver.
- A gente nunca vai conseguir ensinar esses europeus a serem bons cidadãos. – Era o dever dele – Cooler
resmungou tristonho, olhando o copo. – Acontece algo curioso com acidentes, senhor Martins. Nunca
temos dois depoimentos coincidentes. Por exemplo, até o senhor Kurtz e eu discordamos em relação a
detalhes. As coisas acontecem subitamente, a gente não está preparado para registrar os eventos até que o
instante fatídico, e depois tem de reconstruir tudo, recordar. Suponho que ele tenha ficado meio confuso,
tentando entender o que aconteceu antes e depois, para distinguir nós quatro.
- Quatro?
- Incluindo Harry. O que mais ele viu, senhor Martins?
- Nada que interesse. Mas afirmou que Harry estava morto quando foi carregado para dentro de casa.
- Bem, estava moribundo, isso não faz muita diferença. Aceita mais um drinque, senhor Martins?
- Acho que não.

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- Bem, eu vou pegar mais um pouco. Gostava muito de seu amigo, senhor Martins, e me incomoda falar
sobre isso.
- Aceito mais um pouco, para lhe fazer companhia. Conhece Anna Schmidt? – Martins perguntou,
enquanto o uísque formigava em sua língua.
- A namorada de Harry? Estive com ela uma vez, apenas. A bem da verdade, Harry providenciou
documentos para a moça. Não deveria confessar coisas assim para um estranho, suponho, mas a gente
precisa quebrar as regras, às vezes. Por dever humanitário, inclusive.
- Qual o problema:
- Ela é húngara, o pai foi nazista, alegam. Temia que os russos a levassem embora.
- E por que fariam isso?
- Nem sempre conseguimos entender por que fazem certas coisas. Talvez simplesmente para mostrar ser
insalubre a amizade com um inglês.
- Mas ela reside na zona britânica.
- Isso não os impediria de agir. Seriam apenas cinco minutos de jipe da Commandatura. As ruas não são
muito iluminadas, não há muitos policiais.
- Levou dinheiro de Harry para ela, certo?
- Sim, mas eu não teria mencionado isso. Ela lhe contou?
O telefone tocou e Cooler esvaziou o copo. – Alô? – disse. – Sim, isso mesmo. Aqui é o coronel Cooler. –
Em seguida, ele sentou com o fone no ouvido e ar de melancólica paciência, enquanto uma voz distante
penetrava na sala. – Certo – disse uma vez. Seus olhos pousaram sobre a face de Martins, mas pareciam
olhar para muito além de onde ele estava: cansados, neutros, afáveis, poderiam estar fitando o oceano. Em
seguida, disse: - Você fez muito bem – num tom elogioso, e depois, com um toque de aspereza: - Claro que
serão entregues. Tem a minha palavra. Até logo.
Ele devolveu o fone ao gancho e passou a mão na testa, fatigado. Dava a impressão de que tentava se
lembrar de algo que precisava fazer. Martins disse: - Ouviu falar nessa história de fraude que a polícia anda
divulgando?
- Sinto muito. O que seria?
- Dizem que Harry estava metido em trapaças.
- Claro que não – Cooler disse. – Isso seria totalmente impossível. Ele tinha um profundo senso de dever.
- Kurtz considera possível.
- Kurtz não compreende como um anglo-saxão se sente – Cooler retrucou.

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9

Escurecia enquanto Martins percorria o caminho que ladeava as margens do canal: do outro lado
estendiam-se os banhos de Diana, semidestruídos, e ao longe o imenso círculo escuro da roda-gigante de
Prater, imóvel acima das casas desmoronadas. Adiante, para lá da água cinzenta, localizava-se o Bezirk, a
área controlada pelos russos. A catedral de St. Stephan projetava a ponta de sua torre alta ferida na direção
do céu, acima do centro da cidade, e, percorrendo a Kärntnerstrasse, Martins passou pela porta iluminada
do posto da Polícia Militar. Os quatro soldados da Patrulha Internacional subiam num jipe. O policial
militar russo sentou ao lado do motorista (pois os russos haviam assumido o lugar naquele dia, pelas
próximas quatro semanas), e o inglês, o francês e norte-americano subiram atrás. O terceiro uísque puro
atingiu o cérebro de Martins e ele se lembrou da moça de Amsterdã, da moça de Paris; a solidão seguia a
seu lado pela calçada cheia de gente. Ele passou pela esquina onde ficava o Sacher e seguiu em frente.
Rollo assumira o controle a seguia no rumo da única mulher que conhecia em Viena.
Perguntei como ele sabia onde ela morava. Ora, disse, na noite anterior ela lhe dera seu endereço, bastou
consultar um mapa, deitado na cama. Gostava de se movimentar por sua conta e era bom em mapas.
Memorizava caminhos e nomes de ruas facilmente, pois preferia sempre a ida à pé.
- A ida?
- Sim, quando vou visitar uma moça, ou alguém.
Claro, ele não tinha como saber que ela estaria em casa, pois a peça não seria encenada no Josefstadt
naquela noite, ou talvez houvesse memorizado isso também, ao ler os cartazes. De todo modo, ela estava
em casa, se fosse possível chamar de estar o ficar sentada sozinha num quarto sem aquecimento, com a
cama disfarçada de divã e um roteiro datilografado aberto na primeira página, sobre a mesa bamba
inadequadamente requintada, pois seus pensamentos estavam muito longe dali. Ele disse, sem jeito (e
ninguém poderia dizer, nem mesmo Rollo, o quanto a falta de jeito fazia parte de sua técnica): - Pensei em
dar uma parada aqui e ver se estava tudo bem. Ia passando...
- Passando? Indo para onde? – Andara mais de meia hora do Centro até os limites da zona inglesa, mas ele
tinha resposta para tudo. – Tomei uísque demais com o coronel Cooler. Precisava andar um pouco, e acabei
aqui perto por acaso.
- Não tenho bebida aqui, a não ser chá. Sobrou um pouco do último pacote.
- Não precisa, obrigado – ele disse. – Você está ocupada – notou, olhando para o roteiro.
- Não passei da primeira linha.
Ele o ergueu e leu: - Louise entra. LOUISE: Ouvi uma criança chorar.
- Posso ficar aqui um pouco? – Disse em tom gentil, mais Martins do que Rollo.
- Gostaria que ficasse. – Ele largou o corpo no divã e me disse, muito tempo depois (pois os amantes
relembram os mínimos detalhes, quando encontrar um ouvinte), que a olhou então de verdade, pela
segunda vez. Ela estava em pé, constrangida como ele, usando calça de flanela velha remendada nos
fundilhos. Mantinha as pernas firmes, ligeiramente afastadas, como se enfrentasse alguém e estivesse
disposta a defender seu território – uma figura miúda sólida, cuja graça fora dobrada e guardada para uso
profissional.
- Teve um dia ruim? – Ele perguntou.
- Sempre é ruim, a esta hora – ela explicou. – Ele costumava passar por aqui, e quando ouvi você tocar
pensei por um instante... – Ela sentou na cadeira, de frente para ele, e disse: - Por favor, fale. Você o
conhecia. Conte qualquer coisa.
E ele falou. O céu escureceu para lá da janela enquanto falava. Ele notou, após algum tempo, que suas
mãos se encontraram. Ele me disse: - Não pretendia me apaixonar, não pela namorada de Harry.
- E quando isso aconteceu? – perguntei-lhe.
- Fazia muito frio, levantei-me para fechar a cortina da janela. Só notei que segurava a mão dela quando a
larguei. Ao me levantar olhei para baixo, para o rosto dela, e vi que ela olhava para cima. Não era um rosto
formoso – este foi o problema. Era um rosto para se conviver, dia após dia. Um rosto para se aceitar. Eu
me senti como se tivesse chegado a um país novo, sem saber falar a língua local. Sempre pensara que a
gente amava a beleza, numa mulher. Fiquei ali parado, na frente da cortina, esperando para fechá-la,
olhando para fora. Não via nada além de minha própria face a olhar para dentro do quarto, para ela, que
disse: - E o que Harry fez, então? – e senti vontade de dizer – Harry que se dane. Ele morreu. Nós dois o
amávamos, mas ele morreu. Os mortos foram feitos para serem esquecidos. – Em vez disso, claro, só o que

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disse foi: - O que acha? Ele apenas assobiou a canção de sempre, como se nada importasse. – E a assobiei
para ela o melhor que pude. Ouvi quando tomou fôlego, olhei em torno e antes de pensar: este é o jeito
certo, a cartada certa, o gambito certo? Eu já havia dito: - Ele está morto. Não pode passar o resto da vida
lembrando dele.
Ela disse: - Eu sei, mas talvez aconteça algo antes.
- o que quer dizer com isso?
- Ora, talvez haja outra guerra, ou eu morra, ou os russos me levem.
- Você o esquecerá, com o passar do tempo. E se apaixonará de novo.
- Eu sei, mas não quero. Não percebe que eu não quero?
Assim, Rollo Martins afastou-se da janela e sentou novamente no divã. Quando se levantara, meio minuto
antes, era o amigo de Harry a consolar a namorada de Harry; agora era um homem apaixonado por Anna
Schmidt que amara um homem que um dia ambos conheceram, chamado Harry Lime. Ele não falou mais
sobre o passado naquela noite. Em vez disso, contou a respeito das pessoas que encontrara. – Winkler me
parece capaz de qualquer coisa – disse a ela. – Mas Cooler não. Gostei de Cooler. Foi o único dos amigos
capaz de defender Harry. O problema é que, se Cooler estiver certo, então Koch está enganado, e eu
realmente acreditava que havia algo estranho ali.
- Quem é Koch?
Ele explicou que havia retornado ao apartamento de Harry, e relatou sua conversa com Koch e a história do
terceiro homem.
- Se for verdade – ela disse – é muito importante.
- Mas não prova nada. Afinal de contas, Koch não declarou nada no inquérito, bem como o desconhecido.
- A questão não é essa – ela disse. – O caso é que eles mentiram: Kurtz e Cooler.
- Podem ter mentido para não comprometer o tal sujeito – caso fosse um amigo.
- Mais um amigo, no local. E como fica a honestidade de Cooler, neste caso?
- O que devemos fazer? Koch se fechou feito uma ostra, e me expulsou do apartamento.
- Ele não me expulsaria – ela disse. – Ilse, pelo menos, não faria isso.
Eles percorreram a longa distância a pé juntos, até o apartamento; a neve grudava nos sapatos e os
obrigava a andar devagar, como condenados presos a ferros. Anna Schmidt disse: - Falta muito?
- Agora já estamos perto. Vê aquele grupo de pessoas, na rua? É mais ou menos por ali. – O grupo era
como uma mancha de tinta na brancura, uma mancha que se mexia, mudava de contorno, se espalhava.
Quando se aproximaram mais Martins disse: - Creio que é nesta quadra. O que acha que é aquilo? Uma
manifestação política?
Anna Schmidt parou. Ela disse: - Com quem mais falou sobre Koch?
- Só falei a você e a Cooler. Por quê?
- Estou com medo. Isso me lembra... – Ela mantinha os olhos fixos na multidão, e ele nunca soube que
lembrança de seu passado confuso se projetara para alertá-la. – Vamos embora daqui – implorou.
- Está louca? Estamos quase descobrindo alguma coisa importante...
- Esperarei por você.
- Mas você precisa falar com ele.
- Descubra primeiro o que esta gente toda... – ela disse, contraditoriamente para alguém que trabalhava no
palco, - eu odeio multidões.
Ele prosseguiu sozinho, lentamente, e a neve se acumulava no salto do sapato. Não era uma manifestação
política, pois ninguém discursava. Teve a impressão de que cabeças se viravam para acompanhar sua
chegada, como se fosse alguém aguardado. Quando chegou na borda do grupo, certificou-se de que o
prédio era o mesmo. Um sujeito o encarou hostil e disse: - Você é um deles, também?
- O que quer dizer?
- Polícia.
- Não. O que estão fazendo?
- Entrando e saindo, o dia inteiro.
- O que todos estão esperando?
- Querem ver a saída.
- De quem?
- Herr Koch. – Ocorreu a Martins que alguém além dele descobrira a recusa de Herr Koch em dar seu
testemunho, embora aquilo não fosse uma questão de polícia. E disse: - O que ele fez?

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- Ninguém sabe, ainda. Não conseguem chegar a uma conclusão, lá dentro. Pode ser suicídio, sabe, ou
então assassinato.
- Herr Koch?
- Claro.
Um menino pequeno aproximou-se de seu informante e puxou-lhe a manga. – Papa, papa. – Ele usava
gorro de lã na cabeça, como um gnomo; o rosto estava contraído e azulado de frio.
- Sim, querido, o que foi?
- Ouvi as pessoas conversando do lado de lá.
- Ei, vejam só que menino esperto. Conte o que ouviu, Hansel.
- Ouvi Frau Koch chorando, papa.
- Foi só isso, Hansel?
- Não. Ouvi o homem grande falar, papa.
- Como você é esperto. Conte ao papa o que ele falou.
- Ele disse: - Frau Koch, pode nos descrever o estrangeiro?
- Rá rá, está vendo? Eles acham que foi assassinato. E quem pode afirmar que estão errados? Por que Herr
Koch cortaria a própria garganta, no porão?
- Papa, papa.
- O que foi, Hansel?
- Quando olhei lá dentro, vi sangue no carvão.
- Você é demais. Como sabe que era sangue? A neve molha tudo. – O sujeito voltou-se para Martins e
disse: - Este menino tem muita imaginação. Talvez se torne escritor quando crescer.
O rosto contraído fitou Martins solenemente. E o menino disse: - Papa.
- Sim, Hansel?
- Ele também é estrangeiro.
O homem soltou uma gargalhada, fazendo com que doze cabeças virassem. – Ouça o menino, senhor – ele
disse, orgulhoso. – Acha que foi você, só por ser estrangeiro. Como se não houvesse mais estrangeiros do
que vienenses aqui, no momento.
- Papa, papa.
- Sim, Hansel.
- Eles estão saindo.
Um grupo compacto de policiais cercava a maca coberta, que desceram com cuidado pelos degraus, por
medo de escorregar na neve compactada. O homem disse: - A ambulância não entra nessas ruas por causa
das ruínas. É preciso levar a maca até a esquina. – Frau Koch saiu também, no fim do pequeno cortejo;
enlutada à moda antiga, usava xale na cabeça. Sua figura robusta lhe dar ares de boneco de neve quando ela
afundou na neve acumulada na beira da calçada. Alguém lhe estendeu a mão e ela olhou em volta com ar
perdido, fitando a multidão desconhecida. Se havia amigos no meio, ela não os reconheceu, percorrendo os
rostos um a um. Martins abaixou-se quando ela passou, para atar o cordão do sapato, mas ao erguer a vista
do chão deparou-se com o olhar frio de gnomo do pequeno Hansel, na altura de seus olhos.
Olhou para trás uma vez, ao retornar pela rua no rumo de onde Anna ficara. O menino puxava o pai pela
mão, e ele viu os lábios formarem as sílabas repetidas, como se fosse o refrão de uma balada austera: -
Papa, papa.
Ele explicou a Anna: - Koch foi assassinado. Vamos embora daqui. – Ele caminhou o mais rápido que a
neve permitia, dobrando esquinas aqui e ali. A suspeita e o alerta da criança pareciam se espalhar sobre a
cidade que nem uma nuvem – eles não conseguiam andar o suficiente para se afastarem de sua sombra. Ele
não deu atenção quando Anna lhe disse: - Então o que Koch falou era verdade. Havia um terceiro homem.
– E nem depois, quando ela insistiu: - Só pode ter sido homicídio. Não se mata alguém para esconder um
crime menor.
Os bondes passavam brilhando como pingentes, no final da rua: estavam de volta ao Ring. Martins disse: -
Acho melhor você voltar para casa sozinha. Permanecerei distante por algum tempo, até as coisas se
esclarecerem.
- Mas ninguém suspeita de você.
- Eles querem saber quem foi o estrangeiro que visitou Koch ontem. Isso pode criar problemas por um bom
tempo.
- Por que não procura a polícia?

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- Eles são idiotas. Não confio neles. Basta ver as acusações falsas a Harry. Além disso, tentei agredir o tal
Callaghan. Eles vão me acusar. No mínimo, serei expulso de Viena. Mas, se eu ficar escondido só uma
pessoa pode me entregar. Cooler.
- E ele não vai querer fazer isso.
- Não, se for culpado. Mas não consigo acreditar que seja.
Antes de deixá-lo ela disse: - Tome cuidado. Koch não sabia quase nada, e foi assassinado. Você sabe tanto
quanto Koch.
O alerta ecoou em sua mente durante a trajetória até o Sacher: depois das nove horas as ruas ficam desertas,
ele virava a cabeça sempre que ouvia passos atrás de si, como se o terceiro homem a quem protegiam
inescrupulosamente o seguisse feito carrasco. O sentinela russo na frente do Grand Hotel parecia rígido de
frio, mas era humano, tinha uma face, um rosto honesto de camponês com olhos mongóis. O terceiro
homem não tinha rosto: só o alto da cabeça, avistado de uma janela. No Sacher o sr. Schmidt disse: - O
coronel Calloway está aqui à sua procura, senhor. Creio que o encontrará no bar.
- Já volto. – Martins disse, saindo imediatamente do hotel: precisava de tempo para refletir. Mas assim que
saiu um homem aproximou-se, tocou o boné e disse: - Senhor, por favor. – Ele abriu a porta de um
caminhão com a bandeira britânica pintada no pára-brisa e com firmeza fez Martins entrar. Ele obedeceu
sem protestar; mais cedo ou mais tarde, com certeza, seria detido; fingira otimismo para Anna Schmidt.
O motorista dirigia muito depressa pelas ruas cobertas de gelo, e Martins queixou-se. Só recebeu como
resposta um grunhido emburrado e uma sentença contendo a palavra “ordens”. – Recebeu ordens de me
matar? – Martins perguntou zombeteiro, sem receber resposta. Avistou os titãs no Wolfburg, a equilibrar
imensas bolas de neve sobre as cabeças, depois eles mergulharam nas ruelas mal iluminadas adiante, onde
perdeu totalmente o senso de direção.
- É longe? – Mas o motorista não prestava a menor atenção. Pelo menos não me prenderam, Martins
pensou: não mandaram guardas; estou sendo convidado – não é esta a palavra que costumam usar? – a
visitar a delegacia para dar meu depoimento.
O carro parou e o motorista o orientou a subir dois lances de escada; tocou a campainha na frente de portas
duplas altas, e Martins escutou diversas vozes do outro lado. Ele se voltou bruscamente para o motorista e
disse: - Mas que diabos...? – Contudo, o motorista já descera metade da escada e a porta se abria. A luz
forte interna o cegou momentaneamente, vinha do escuro. Ouviu, mas praticamente não viu quando
Crabbin avançou. – Senhor Dexter, estávamos tão ansiosos. Bem, antes tarde do que nunca. Gostaria de
apresentar a senhorita Wilbraham e a Condessa von Meyersdorf.
Uma mesa posta, com xícaras de café; uma chaleira a ferver; um rosto feminino reluzente pelo esforço;
dois rapazes de ar inteligente e feliz dos estudantes do curso pré-universitário; e, retraídos no canto, como
rostos num álbum familiar, uma multidão de fisionomias de leitores sinceros, satisfeitos, constantes,
antigos, maltrapilhos. Martins olhou para trás, mas a porta estava fechada.
Ele disse ao sr. Crabbin, desesperado: - Mas eu não...
- Não pense nisso nem por um momento – o sr. Crabbin retrucou. – Uma xícara de café e depois vamos
iniciar o debate. Temos um grupo muito bom esta noite. Eles farão com que dê o melhor de si, senhor
Dexter. – Um dos rapazes entregou uma xícara, o outro a encheu de açúcar antes que pudesse explicar que
gostava do café puro. O mais novo soprou no seu ouvido: - No final, poderia autografar um de seus livros,
senhor Dexter: - Uma senhora alta de vestido de seda aproximou-se e disse: - Não me importo se a
Condessa me escutar, senhor Dexter, mas não gosto de seus livros, não os aprovo. Creio que um romance
deve contar uma boa história.
- Eu também – comentou Martins, desanimado.
- Senhor Bannock, por favor, aguarde a hora das perguntas.
- Sei que sou muito franca, e tenho certeza de que o senhor Dexter aprecia críticas honestas.
Uma senhora idosa, que calculou ser a Condessa, disse: - Não leio muitos livros em inglês, senhor Dexter,
mas me disseram que os seus...
- Não poderia beber seu café? – Crabbin disse, e o empurrou para a sala interna, onde um grupo de pessoas
idosas estava sentada num semicírculo de poltronas, com ar de melancólica paciência.
Martins não foi capaz de contar muita coisa a respeito do encontro; sua mente ainda estava atrapalhada por
causa do assassinato. Quando olhava para cima esperava ver a qualquer momento o menino Hansel e ouvir
seu refrão persistente: - Papa, papa.
Ao que consta, Crabbin deu início ao debate, e pelo que conheço de Crabbin ele sem dúvida traçou um
panorama muito lúcido, muito justo e nada preconceituoso sobre o romance inglês contemporâneo. Eu já o

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ouvi fazer esta palestra com freqüência, só varia a ênfase dada à obra do visitante inglês específico. Ele
deve ter tocado de leve nos diversos problemas relacionados à técnica – o ponto de vista, a passagem do
tempo – e depois declarado que estava aberta a sessão para perguntas e argumentos.
Martins não entendeu nada da primeira questão, mas felizmente Crabbin interferiu e a respondeu
satisfatoriamente. Uma mulher de chapéu marrom e um pedaço de pele em volta do pescoço disse, com
interessa passional: - Posso perguntar ao senhor Dexter se ele está trabalhando num livro novo?
- Claro, claro.
- Posso perguntar qual é o título?
- O Terceiro Homem – Martins disse, adquirindo confiança espúria ao conseguir articular uma resposta.
- Senhor Dexter, poderia nos revelar qual autor mais o influenciou?
Martins disse, sem pensar: - Grey. – Claro, referia-se ao autor de Riders of the Purple Sage, e ficou
contente ao ver que sua resposta agradou a todos – com exceção de um austríaco idoso que perguntou: _
Grey? Que Grey? Não conheço este nome.
Martins, sentindo-se seguro, disse: - Zane Grey – não conheço nenhum outro. – E se surpreendeu com os
risos abafados da colônia inglesa.
Crabbin interferiu rapidamente, para salvar os austríacos. – Trata-se de uma brincadeira do senhor Dexter.
Ele se refere ao poeta Gray – um gênio suave, sutil – com quem a afinidade é perceptível.
- E ele se chama Zane Grey?
- Esta foi a brincadeira do senhor Dexter. Zane Grey escreveu livros de faroeste – novelas populares
ordinárias sobre cowboys e pistoleiros.
- Ele não é um grande escritor?
- Não, nem de longe – Crabbin disse. – No sentido estrito eu nem sequer se poderia chamá-lo de escritor. –
Martins me disse que sentiu uma pontada inicial de revolta ao ouvir a frase. Jamais se considerara um
escritor antes, mas a arrogância de Crabbin o irritou – até o modo como a luz refletia nos óculos de
Crabbin era um fator adicional de irritação. Crabbin disse: - Ele não passa de um autor popular, de
entretenimento.
- E o que tem isso de mais? – Martins disse, agressivo.
- Bem, eu só quis dizer que...
- O que foi Shakespeare?
Alguém muito ousado respondeu: - Um poeta.
- Já leu Zane Grey?
- Não posso dizer que...
- Então você não sabe do que está falando.
Um dos jovens tentou socorrer Crabbin. – E James Joyce, onde situaria James Joyce, senhor Dexter?
- O que quer dizer com situaria? Não quero situar ninguém em lugar nenhum – Martins disse. Tivera um
dia cheio: bebera demais com o coronel Cooler; apaixonara-se; assassinaram um homem – e agora tinha a
impressão algo injusta de que o atacavam. Zane Grey era um de seus heróis: não pretendia aturar bobagens
a seu respeito.
- Quero dizer, o senhor o incluiria entre os gênios?
- Se quer mesmo saber, nunca ouvi falar nele. O que escreveu?
Ele não se dava conta, mas estava causando uma impressão formidável. Só um grande escritor poderia dar
uma resposta tão arrogante, tão original. Diversas pessoas anotaram o nome de Zane Grey nas costas dos
envelopes e a Condessa sussurrou asperamente a Crabbin: - Como se soletra Zane?
- Para ser sincero, não tenho certeza.
Uma série de nomes foram despejados em cima de Martins, simultaneamente. Nomes curtos afiados e
pontudos como Stein, pedras redondas como Woolf. Um jovem austríaco de topete intelectual ergueu a
voz: - Daphne du Maurier. – O sr. Crabbin franziu o cenho e olhou de soslaio para Martins, dizendo em
voz baixa: - Seja gentil com eles.
Uma senhora de rosto amável e blusa de tricô disse, ávida: - Não concorda, senhor Dexter, que ninguém
escreveu sobre sentimentos de um modo tão poético quanto Virginia Woolf? Na prosa, claro?
Crabbin sussurrou: - Poderia dizer algo sobre o fluxo de consciência?
- Fluxo do quê?
Um toque de desespero contaminou a voz de Crabbin. – Por favor, senhor Dexter, esses são seus genuínos
admiradores. Querem conhecer seus pontos de vista. Se soubesse como eles sitiaram o Instituto.

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Um austríaco idoso perguntou: - Há algum escritor na Inglaterra atual com a estatura do falecido John
Galsworthy?
Seguiu-se uma explosão de revides irados durante a qual os nomes de Du Maurier, Priestley e um sujeito
chamado Layman foram disparados pelos dois lados. Martins recostou desanimado e viu a neve, a maca, o
rosto desesperado de Frau Koch novamente. Pensou: se eu não tivesse voltado, se nunca tivesse feito
perguntas, será que o homenzinho ainda estaria vivo? Em que ajudara Harry ao fornecer outra vítima –
uma vítima para mitigar o medo de quem? Herr Kurtz, o coronel Cooler (não conseguia acreditar nisso), o
dr. Winkler? Nenhum deles parecia adequado ao crime repulsivo mas banal do porão; ainda ouvia o
menino dizendo: - Vi sangue no carvão. – E alguém se virou para ele, com rosto liso, sem feições, como
um ovo de plastilina cinza, o terceiro homem.
Martins não soube explicar como enfrentou o resto do debate. Talvez Crabbin tenha aparado os golpes.
Talvez tenha sido auxiliado por alguém da platéia que iniciou uma discussão animada sobre a versão para o
cinema de um conhecido romance norte-americano. Ele não se recorda de quase nada do que aconteceu, até
a hora em que Crabbin fez um discurso final em sua homenagem. Depois um dos rapazes o levou até uma
mesa cheia de livros e pediu que os autografasse. – Permitimos apenas um livro a cada membro.
- O que devo fazer?
- Apenas assinar. É só o que esperam. Este é meu exemplar de The Curved Prow. Ficaria imensamente
grato se escrevesse uma coisinha a mais...
Martins apanhou a caneta e escreveu: “De B. Dexter, autor de The Lone Rider of Santa Fé”. O rapaz leu a
dedicatória e a estudou com expressão atônita. Enquanto Martins sentava e passava a autografar a página
de rosto dos livros de Benjamin Dexter ele pôde ver no espelho que o jovem mostrava a inscrição a
Crabbin. Sorrindo desanimado, Crabbin passava a mão no queixo, para cima e para baixo, para cima e para
baixo. “B. Dexter, B. Dexter, B. Dexter”, Martins assinava rapidamente – afinal de contas, não era mentira.
Um a um dos livros foram recolhido por seus donos. Frases entrecortadas de agradecimento e regozijo
serviram como mesuras – era isso que era ser escritor? Martins começou a sentir uma patente irritação
contra Benjamin Dexter. Aquele cretino pomposo, complacente, maçante, pensou, autografando a
vigésima-sétima cópia de The Curved Prow. A cada vez que erguia a vista notava a expressão especulativa
e preocupada de Crabbin. Os membros do Instituto aos poucos iam para casa com seus troféus: a sala
esvaziava. De repente, no espelho, Martins viu um policial militar. Pelo jeito, discutia com um dos jovens
assessores de Crabbin. Martins pensou ter captado o som de seu nome. Foi então que ele perdeu a calma, e
com ela qualquer resíduo de bom senso. Restava só mais um livro para autografar. Ele despejou o
derradeiro “B. Dexter” e seguiu para a porta. O jovem, Crabbin e o policial conversavam na entrada.
- Este é o senhor? – Perguntou o policial.
- Sim, é o senhor Benjamin Dexter – disse o rapaz.
- Lavatório. Onde é o lavatório? – Martins disse.
- Soube que o senhor Rollo Martins veio para cá num carro de vocês.
- Engano. Obviamente, um equívoco.
- Segunda porta à esquerda – disse o rapaz.
Martins pegou o casaco na chapelaria e desceu a escada. Na plataforma do primeiro andar ele ouviu alguém
subindo a escada, e ao olhar para baixo avistou Paine, que eu havia despachado para identificá-lo. Abriu
uma porta, aleatoriamente, e a fechou atrás de si. Ouviu quando Paine passou. A sala em que entrara estava
escura; um gemido esquisito fez com que se virasse para encarar quem quer que estivesse ali.
Não viu nada, e o gemido parou. Ao fazer um pequeno movimento o barulho recomeçou, como se
respirassem. Ele parou e o som sumiu. Alguém lá fora gritou: - Senhor Dexter, senhor Dexter. – E um
novo som começou. Era como se alguém sussurrasse – um monólogo longo e contínuo na escuridão.
Martins disse: - Tem alguém aí? – E o som parou de novo. Não agüentou mais. Sacou o isqueiro. Passos
soavam na escada, acima e abaixo. Ele girou a rodinha, mas não conseguiu acender. Algo se moveu na
escuridão, e algo tilintou no ar, como uma corrente. Ele perguntou mais uma vez, com a raiva do medo: -
Tem alguém aí? – E apenas o clic-clic do metal respondeu.
Martins tateou desesperado, em busca do interruptor, primeiro à direita, depois à esquerda. Não ousava ir
mais longe, pois não conseguia localizar seu companheiro: o sussurro, o gemido, o tilintar, tudo cessara.
Então sentiu medo de ter perdido a localização da porta e procurou nervoso a maçaneta. Sentia menos
medo da polícia do que do escuro, e não tinha idéia do barulho que estava fazendo.
Paine o escutou, na beira da escada, e voltou. Ele acendeu a luz da plataforma e o brilho sob a porta deu a
Martins a orientação de que precisava. Ele abriu a porta e, sorrindo timidamente para Paine, virou-se para

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examinar novamente a sala. Os olhos de um papagaio, acorrentado a um poleiro, o encaravam arregalados.
Paine disse, respeitoso: - Estávamos à sua procura, senhor. O coronel Calloway deseja trocar algumas
palavras consigo.
- Eu me perdi – Martins disse.
- Claro, senhor. Imaginamos que isso tivesse acontecido.

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10

Mantive um registro minucioso dos movimentos de Martins desde que soube que ele não havia subido no
avião e voltado para casa. Ele fora visto com Kurtz, e no teatro Josefstadt. Eu sabia de sua visita ao dr.
Winkler e ao coronel Cooler, da volta ao prédio onde Harry morava. Por algum motivo meu agente o
perdeu entre os apartamentos de Cooler e Anna Schmidt. Ele relatou que Martins perambulara durante
muito tempo, e nós dois ficamos com a impressão de que ele deliberadamente se livrara de quem o seguia.
Tentei encontrá-lo no hotel, e o perdi por pouco.
Os acontecimentos se precipitaram de maneira preocupante, e me pareceu que era chegada a hora de uma
nova conversa. Ele precisava explicar muita coisa.
Posicionei uma bela e larga escrivaninha entre nós dois e dei-lhe um cigarro. Encontrei-o emburrado mas
disposto a falar, dentro de limites estritos. Perguntei a respeito de Kurtz e ele pareceu-me que deu uma
resposta satisfatória. Depois quis saber sobre Anna Schmidt, e concluí pela resposta que ele devia ter
estado com ela depois de visitar o coronel Cooler; isso preencheu uma das lacunas. Tentei extrair algo
sobre o dr. Winkler e ele retrucou na hora: - Você investigou um bocado. – Respondi: - Um pouco. E você,
descobriu algo sobre seu amigo?
- Claro que sim – ele disse. – Estava debaixo do seu nariz, mas você não viu.
- O quê?
- Que ele foi assassinado. – Aquilo me pegou de surpresa. Eu havia contemplado a idéia de suicídio, por
algum tempo, mas a descartara.
- Prossiga – falei. Ele tentou eliminar da história todas as menções a Koch, mencionando um informante
que vira o acidente. Isso tornou o relato muito confuso, e eu não compreendi de pronto por que atribuía
tanta importância ao terceiro homem.
- Ele não se apresentou no momento do inquérito, e os outros mentiram para que ficasse de fora.
- Não dou muita importância ao fato do tal homem não ter aparecido. Se foi um acidente genuíno, todos os
elementos necessários estavam lá. Por que envolver mais alguém no caso? Talvez a esposa pensasse que ele
estava fora da cidade. Talvez seja um militar em folga não-autorizada – as pessoas costumam viajar para
Viena, vindas de lugares como Klagenfurt. Os encantos da cidade grande, veja você.
- A questão é bem mais complicada do que lhe parece. O sujeito que me revelou o fato – eles o
assassinaram. Entende, obviamente eles não sabiam o que mais o homem testemunhou.
- Chegamos onde interessa – falei. – Refere-se a Koch.
- Sim.
- Pelo que sabemos, você foi a última pessoa a vê-lo com vida. – Eu o interroguei, como expliquei, para
descobrir se fora seguido até a casa de Koch por alguém mais esperto que meu policial, discreto o bastante
para não ser visto. Falei, - A polícia austríaca está ansiosa para acusá-lo do crime. Frau Koch disse a eles
que você perturbou o marido dela, com sua visita. Quem mais sabia de sua ida?
- Contei a Cooler. – E disse, excitado: - Suponha que ele tenha telefonado a alguém assim que saí,
contando a história – ao terceiro homem. Eles precisavam fechar a boca de Koch.
- Quando você falou a respeito de Koch com o coronel Cooler o sujeito já estava morto. Naquela noite ele
ouviu algo, saiu da cama e desceu para verificar...
- Bem, isso me livra. Eu estava no Sacher.
- Mas ele tinha ido dormir cedo. Sua visita fez voltar a enxaqueca. Levantou-se pouco depois das nove.
Você voltou ao Sacher às nove e meia. Onde esteve, antes disso?
Ele disse, desolado: - Andando por aí, tentando entender os acontecimentos.
- Alguma prova de seus movimentos?
- Não.
Eu queria assustá-lo, por isso não faria sentido informar que ele havia sido seguido o tempo inteiro. Sabia
que não cortara a garganta de Koch, mas não tinha plena certeza de que era tão inocente quanto alegava. O
proprietário da faca nem sempre é o verdadeiro assassino.
- Posso fumar mais um cigarro.
- Sim.
Ele disse: - Como sabe que fui até a casa de Koch? Foi por isso que me trouxeram para cá, certo?
- A polícia austríaca...
- Eles não me identificaram.

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- Assim que deixou o coronel Cooler, ele ligou para mim.
- Então, isso o exclui. Se estivesse preocupado, não permitiria que eu lhe contasse minha história. A
história de Koch, quero dizer.
- Ele poderia presumir que você fosse um sujeito sensato, e que viria a mim assim que soubesse da morte
de Koch. Por falar nisso, como soube?
Ele me contou, sem rodeios, e acreditei nele. Foi então que passei a acreditar nele totalmente. Disse: -
Ainda não consigo aceitar que Cooler estivesse preocupado. Seria capaz de apostar qualquer coisa em sua
honestidade. É um daqueles norte-americanos dotado de verdadeiro senso de dever.
- Certo – concordei. – Ele me falou nisso, quando telefonou. Pediu desculpas. Disse que é a pior parte de
ter sido educado para acreditar em cidadania. Ele explicou que se sentia um puritano. A bem da verdade,
Cooler me irrita. Claro, ele não sabe que estou a par de suas negociatas com pneus.
- Ele também está metido em trapaças?
- Não é nada sério. Calculo que tenha faturado vinte e cinco mil dólares. Mas não sou um bom cidadão. Os
norte-americanos que cuidem de sua própria gente.
- Essa não. – E acrescentou, pensativo: - Harry andou metido em coisas desse tipo?
- Não. As dele não eram assim inofensivas.
Ele disse: - Sabe, esse negócio, a morte de Koch, me abalou. Talvez Harry tenha mesmo se envolvido em
algo ruim. Talvez estivesse tentando sair do esquema, e por isso o mataram.
- Também pode ser – falei – que eles quisessem uma parte maior dos lucros. Ladrões brigam muito.
Desta vez ele ouviu isso sem ficar com raiva. E disse: - Não concordamos quanto aos motivos, mas creio
que você investigou os fatos muito bem. Lamento, quanto ao outro dia.
- Não foi nada. – Há momento em que temos de tomar uma decisão repentina, e aquele era um deles. Eu
lhe devia um favor, em troca das informações que me dera. E falei: - Vou revelar alguns fatos do caso
Lime, para que você entenda a situação. Mas prepare-se. Levará um choque.
Não poderia deixar de ser um choque. A guerra e a paz (se chamarmos aquilo de paz) abrem caminho para
um grande número de esquemas criminosos, mas nenhum era mais vil que aquele. Os operadores do
mercado negro de comida pelo menos fornecem comida, o mesmo se aplica a todos os outros criminosos
que vendem artigos escassos a preços exagerados. Mas o esquema da penicilina era uma jogada
completamente diferente. Na Áustria a penicilina era fornecida apenas a hospitais militares. Nenhum
médico civil, nem mesmo num hospital civil, pode obter o medicamento por meios legais. Quando o
esquema começou, era relativamente inofensivo. A penicilina era furtada por militares atendentes de
enfermagem e vendido a médicos civis austríacos por preços muito altos – um frasco pode chegar a setenta
libras. Pode-se considerar esta uma forma de distribuição – distribuição injusta, pois beneficiava apenas
pacientes ricos, mas a forma original de distribuição tampouco poderia ser considerada mais justa.
O negócio seguiu normalmente. Ocasionalmente apanhavam e prendiam um atendente, mas o perigo só
servia para aumentar o preço da penicilina. Logo o esquema se sofisticou: gente graúda viu dinheiro alto na
jogada, e os ladrões originais passaram a ganhar menos, mas desfrutavam de uma certa segurança. Se algo
lhe acontecesse, cuidariam dele. A natureza humana tem razões curiosas e pervertidas que o coração
certamente ignora. Aliviava a consciência de muitos sujeitos simples saberem que trabalhavam para um
empregador: eram quase tão respeitáveis a seus próprios olhos quanto os trabalhadores regulares;
pertenciam a um grupo, e se havia problemas os líderes levavam a culpa. Um esquema criminoso funciona
como um partido totalitário.
Este foi o chamado segundo estágio. O terceiro começou quando os organizadores decidiram que os lucros
não eram suficientemente altos. Não seria impossível obter penicilina legitimamente para sempre; queriam
mais dinheiro, dinheiro rápido, enquanto o negócio ia bem. Começaram a diluir penicilina em água
colorida, e no caso da penicilina em pó, com areia. Mantenho um pequeno museu numa das gavetas de
minha escrivaninha, e exibi amostras para Martins. Ele não estava gostando da conversa, e ainda não havia
entendido o problema, e disse: - Suponho que isso torna a penicilina inútil.
Eu disse: - Não me importaria muito se fosse só isso, mas pense bem. A pessoa pode ficar imunizada para
os efeitos da penicilina. No mínimo, pode-se dizer que o uso daquele material tornaria o tratamento com
penicilina ineficaz no futuro, para o paciente em questão. Não é engraçado, claro, se você estiver com uma
doença sexualmente transmissível. O uso de areia numa ferida que precisa de penicilina não é saudável.
Homens perderam pernas, braços e vidas assim. Mas o que me horrorizava ainda mais era visitar o hospital
infantil daqui. Eles haviam comprado penicilina como medicamento contra meningite. Algumas crianças

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simplesmente morreram, outro tanto sofreu problemas mentais. Você pode visitá-las na ala dos pacientes
psiquiátricos.
Sentado na minha frente, do outro lado da mesa, ele olhava para as mãos, carrancudo. Falei: - Se a gente
examina o caso de perto, vê que é revoltante, insuportável, não acha?
- Você ainda não mostrou nenhuma prova de que Harry...
- Estamos chegando neste ponto – falei. – Continue sentado e ouça com atenção. – Abri a ficha de Lime e
comecei a ler. No início, as evidências eram puramente circunstanciais, e Martins se mostrou arisco.
Grande parte não passava de coincidência – relatórios de agentes indicando que Lime fora visto em
determinado lugar, a certa hora; o acúmulo de oportunidades; seu relacionamento com certas pessoas. Ele
protestou, a dada altura: - Mas as mesmas evidências podem ser usadas contra mim – agora.
- Espere um pouco – falei. Por alguma razão Harry Lime começara a se descuidar: ele pode ter dado conta
de que suspeitávamos dele e ficou abalado. Ocupava uma posição de razoável destaque na Organização de
Apoio, e um homem nesta condição se assusta facilmente. Infiltramos um de nossos agentes no Hospital
Militar Britânico: sabíamos naquela altura o nome do intermediário, mas nunca havíamos conseguido
acompanhar o esquema até a fonte. De todo modo, não vou incomodar o leitor como incomodei Martins na
época, com todas as etapas – o longo esforço para conquistar a confiança do intermediário, um sujeito
chamado Harbin. Conseguimos finalmente encurralar Harbin, e o pressionamos até que confessasse. Este
tipo de investigação policial é muito similar ao trabalho do serviço secreto: a gente procura um agente
duplo que possa controlar realmente, e Harbin era o homem adequado para nós. Até ele, porém, só poderia
nos levar até Kurtz.
- Kurtz! – Martins exclamou. – E por que não o prenderam?
- A hora da verdade se aproxima – falei.
Kurtz representou um grande passo à frente, pois Kurtz mantinha contato direto com Lime – fazia um
serviço pequeno, relaciona à assistência social internacional. Com Kurtz, Lime registrava algumas coisas
em papel – se fosse pressionado. Mostrei a Martins uma cópia fotostática de um recado. – Identifica a
letra?
- É a caligrafia de Harry. – Ele leu tudo. – Não vejo nada de errado.
- Não. Mas leia agora este recado de Harbin para Kurtz – que nós ditamos. Atente para a data. Este é o
resultado.
Li os dois textos, duas vezes.
- Entende o que quero dizer? – Se alguém viu um mundo desabar, ou um avião cair, suponho que não tenha
ânimo para bater papo. E sem dúvida para Martins um mundo chegara ao fim, um mundo de amizade fácil,
de um herói idolatrado, de uma amizade que se iniciara vinte anos antes, nos corredores escolares. Todas as
lembranças – tardes no gramado, caçadas ilegais em Brickworth Common, sonhos, caminhadas,
experiências comuns – foram simultaneamente maculadas, como o solo de uma cidade bombardeada
atomicamente. Não se pode andar em segurança lá, por muito tempo. Enquanto estava sentado, olhando
para as mãos sem dizer nada, tirei uma preciosa garrafa de uísque do armário e servi duas doses duplas
generosas. – Beba isso – falei, e ele me obedeceu como se eu fosse seu médico. Servi outra dose.
Ele disse, devagar: - Tem certeza de que ele era mesmo o chefe?
- Pelo que descobrimos até agora, sim.
- Sabe, ele sempre conseguiu cair fora antes de ser apanhado.
Não o contradisse, mas não era aquela a impressão que transmitira antes, sobre Lime. Ele procurava algum
consolo.
- Vamos supor – ele disse – que alguém tivesse algo contra ele, e o forçasse a entrar no negócio, como você
forçou Harbin a delatar...
- É possível.
- E eles o assassinaram para evitar que falasse, quando fosse preso.
- Não é impossível.
- Fico feliz em saber que fizeram isso – ele disse. – Eu odiaria saber que Harry delatou alguém. – Ele fez
um movimento curioso com a mão no joelho, como se o limpasse, querendo dizer: - Então foi isso. – Em
seguida, falou: - Vou voltar para a Inglaterra.
- Seria melhor que não o fizesse, por enquanto. A polícia austríaca emitiria uma ordem de prisão, caso
tentasse deixar Viena agora. Sabe, o senso de dever de Cooler fez com que entrasse em contato com eles
também.
- Entendo – ele disse, desolado.

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- Quando tivermos encontrado o terceiro homem... – falei.
- Eu gostaria que ele delatasse todo mundo – disse. – Aquele filho da mãe. Desgraçado.

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11

Depois de nossa conversa Martins seguiu direto para o bar, para beber até cair. Escolheu para tanto o
Oriental, uma casa noturna terrível, minúscula e enfumaçada que se ergue atrás de uma falsa fachada
oriental. As mesmas fotos de mulheres seminuas na escada, os mesmo norte-americanos meio embriagados
no balcão, o mesmo vinho ruim e os gins extraordinários – ele poderia estar em qualquer espelunca de
qualquer capital arruinada da Europa arruinada. A certa altura, já de madrugada, a Patrulha Internacional
foi dar uma espiada no cenário, e um soldado russo subiu a escada correndo ao perceber sua chegada,
movendo-se de cabeça baixa, como um animalzinho em fuga durante a colheita. Os norte-americanos nem
se mexeram, e ninguém mexeu com eles. Martins tomou um drinque após o outro; provavelmente teria
escolhido uma mulher também, mas as bailarinas do cabaré já haviam ido para casa e não restava
praticamente nenhuma mulher no local, exceto por uma linda jornalista francesa de olhar astuto, que emitiu
um comentário para sua colega e pegou descaradamente no sono.
Martins seguiu em frente: no Maxim’s alguns casais dançavam meio desanimados, e num lugar chamado
Chez Victor o aquecimento estava quebrado, e as pessoas bebiam coquetéis usando capotes. Naquela altura
tudo balançava na frente dos olhos de Martins, e ele sentiu-se oprimido pela sensação de abandono. Sua
mente reverteu para a moça de Dublin, e a de Amsterdã. Há uma coisa que não engana a gente – o drinque
direto, o simples ato físico: não se espera fidelidade de uma mulher. Sua mente girava em círculos – do
sentimento ao desejo, e novamente da confiança ao cinismo.
Os bondes pararam de circular, e obstinadamente ele resolveu encontrar a namorada de Harry a pé. Queria
fazer amor com ela – assim, sem mais nem menos: sem besteiras, sem sentimentos. Seu humor tornara-se
violento, e a rua coberta de neve ondulava como um lago, conduzindo sua mente a um novo caminho, no
rumo da dor, do amor eterno, da renúncia. Num canto do muro ele vomitou na neve.
Por volta das três da manhã ele subiu a escada do apartamento de Anna. Estava quase sóbrio naquela altura,
e tinha uma única idéia na cabeça, que ela precisava saber a respeito de Harry, também. Ele achava que, de
algum modo, saber disso pagaria os bens inalienáveis que a memória destina aos seres humanos, e ele teria
alguma chance com a namorada de Harry. Se o sujeito está apaixonado nunca lhe ocorre que a moça não
sabe disso: acredita que revelou isso claramente, no tom de voz, no toque da mão. Quando Anna abriu a
porta para ele, atônita ao vê-lo ali, ele não imaginava que ela estava abrindo a porta para um estranho.
Ele disse: - Anna, descobri tudo.
- Entre – ela disse. – Caso contrário, acordará a casa inteira. – Ela usava camisola. O divã se transformara
em cama, uma cama desarrumada que revelava a insônia de seu ocupante.
- Muito bem – ela disse, parada, caçando as palavras. – O que foi? Pensei que não ia voltar mais. A polícia
o procura?
- Não.
- Você não matou aquele homem, certo?
- Claro que não.
- Você está bêbado, certo?
- Um pouco – ele admitiu, emburrado. O encontro descambava para um lado ruim. Ele disse, furioso: -
Lamento.
- Por quê? Eu também gostaria de estar bebendo.
Ele disse: - Estive com a polícia britânica. Eles acreditam em minha inocência. E soube de tudo por meio
deles. Harry estava metido num esquema criminoso – dos piores. – Ele disse, desanimado. – Ele não
prestava. Estávamos enganados, nós dois.
- Acho melhor me contar – Anna disse. Ela sentou na beirada da cama e ele lhe contou tudo, balançando
um pouco ao lado da mesa onde o roteiro datilografado continuava aberto na primeira página. Imagino que
tenha feito um relato confuso, concentrando-se naquilo que marcara mais sua mente, as crianças mortas de
meningite, as crianças na ala psiquiátrica do hospital. Ele parou, os dois fizeram silêncio. Ela disse: - Isso é
tudo?
- Sim.
- Estava sóbrio quando lhe contaram? Eles realmente provaram isso?
- Sim – ele acrescentou, desolado. – Então, como pode ver, Harry era assim.
- Ainda bem que está morto – ela disse. – Eu não gostaria que ele apodrecesse vários anos na prisão.

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- Mas você consegue entender como Harry... seu Harry, meu Harry... se meteu nessa encrenca? – Ele disse,
desanimado. – Para mim até parece que ele nunca existiu, que nós o sonhamos. Estaria ele rindo de idiotas
como nós o tempo inteiro?
- Pode ser. Que diferença faz? – Ela disse. – Sente-se. Não se preocupe. – Ele se imaginara consolando a
moça, e não o contrário. Ela disse: - Se estivesse vivo agora, poderia nos explicar tudo, e devemos lembrar
dele como era para nós. Sempre há muitas coisas que ignoramos a respeito de uma pessoa, mesmo sendo
uma pessoa amada. Coisas boas, coisas ruins. Precisamos deixar muito espaço para elas.
- Aquelas crianças...
Ela retrucou, furiosa: - Pelo amor de Deus, pare de definir as pessoas pela sua imagem! Harry era real. Não
era apenas seu herói e meu amante. Era Harry. Andava envolvido com crimes. Fez coisas ruins. E daí? Ele
era o homem que conhecíamos.
Ele disse: - Não me venha com essa história. Não percebe que eu a amo?
Ela o encarou, atônita: - Você?
- Sim, eu mesmo. Não mato pessoas com remédios falsos. Não sou um hipócrita capaz de persuadir os
outros que sou o máximo – sou apenas um escritor ruim que bebe demais e se apaixona por moças...
Ela disse: - Mas eu nem sei a cor de seus olhos. Se me telefonasse agora, perguntando se você era moreno
ou louro, se usava ou não bigode, eu não saberia responder.
- Não consegue tirá-lo da cabeça?
- Não.
Ele disse: - Assim que esclarecer essa história do assassinato de Koch, partirei de Viena. Não me interessa
mais saber se Kurtz matou Harry – ou se foi o terceiro homem. Pouco importa quem o matou, fez justiça,
de certa forma. Talvez eu mesmo o matasse, nessas circunstâncias. Mas você ainda o ama. Você ama um
vigarista, um assassino.
- Amei um homem – ela disse. – Já lhe falei, um homem não muda quando a gente descobre mais coisas
sobre ele. Continua sendo o mesmo homem.
- Odeio o modo como fala. Estou com uma dor de cabeça danada, e você fala sem parar...
- Não pedi que viesse.
- Você me ofende.
Ela riu, subitamente. E disse: - Você é uma piada. Mal o conheço, e aparece aqui às três da manhã, dizendo
que me ama. Depois fica bravo e começa a brigar. O que espera que eu diga – ou faça?
- Gosto de sua risada. Já vi você rindo antes. Ria de novo.
- Não tenho disposição para rir de novo.
Ele a segurou pelos ombros e a sacudiu de leve, dizendo: - Farei caretas engraçadas o dia inteiro. Plantarei
bananeira e olharei para você com a cara entre as pernas. Aprenderei muitas anedotas nos livros sobre
conversas para depois do jantar.
- Afaste-se da janela. Não há cortinas.
- Não há ninguém à vista. – Mas ele não tinha tanta certeza, e automaticamente duvidou de sua afirmação:
uma longa sombra se movera, talvez em função da passagem das nuvens na frente da lua, e parara
novamente. Ele disse: - Você ainda ama Harry, não é?
- Sim.
- Talvez eu ame. Não sei. – Ele baixou as mãos e disse: - Vou embora.
Saiu andando, rapidamente. Não se deu ao trabalho de verificar se estava sendo seguido, de investigar a tal
sombra. Mas, ao passar pelo final de uma rua virou por acaso e viu, bem na esquina, encostado no muro
para não ser percebido, uma figura corpulenta, baixa. Martins parou e olhou fixamente. Havia algo de
familiar naquela figura. Talvez, pensou, eu tenha me acostumado inconscientemente com ele, durante as
últimas vinte e quatro horas. Talvez ele seja um dos que assiduamente acompanham meus movimentos.
Martins ficou parado, a uns vinte metros, observando a figura silenciosa e imóvel na rua escura, que o
olhava também. Um espião da polícia, quem sabe, ou um agente dos outros homens, dos homens que
corromperam Harry primeiro e depois o mataram – possivelmente, até, o terceiro homem?
A familiaridade não estava no rosto, pois não conseguia distinguir mais do que a linha do maxilar; nem os
movimentos, pois o corpo permanecia imóvel a ponto de levá-lo a desconfiar que tudo não passava de uma
ilusão provocada pelas sombras. Ele gritou, agressivo: - Quer alguma coisa? – sem receber resposta.
Insistiu, irascível por conta da bebida: - Responda, diacho! – e a resposta veio, pois a cortina de uma janela
se abriu petulante, puxada por um morador qualquer que ele havia acordado, e a luz varou a rua estreita,
iluminando as feições de Harry Lime.

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- Acredita em fantasmas? – Martins perguntou-me.


- Você acredita?
- Agora sim.
- Também creio que sujeitos embriagados vêm coisas – ratos, às vezes, ou até algo pior.
Ele não viera a mim imediatamente, para contar a história – apenas o perigo que Anna Schmidt corria o
empurrara de volta a minha sala, como um náufrago que o mar lançara à praia, descabelado, barba por
fazer, assombrado por uma experiência incompreensível. Ele disse: - Se fosse apenas pelo rosto, eu não me
preocuparia. Andava pensando em Harry, poderia facilmente confundir um estranho com ele. A luz foi
apagada logo depois, sabe. Só pude dar uma espiada rápida, e o homem afastou-se, seguindo rua abaixo –
caso fosse mesmo um homem. Não teria por onde escapar, por um bom trecho, mas eu estava tão chocado
que lhe dei mais uns trinta metros de vantagem. Ele chegou a um quiosque de propaganda e o perdi de
vista por um momento. Corri atrás dele. Levei apenas dez segundos para chegar ao quiosque, e ele deve ter
ouvido o barulho quando corri, mas o pior foi que o sujeito desapareceu totalmente. Cheguei ao quiosque.
Não havia ninguém ali. A rua estava deserta. Ele não poderia ter chegado à porta de uma casa sem que eu o
visse. Ele simplesmente sumiu.
- Algo natural, no caso de fantasmas ou alucinações.
- Não posso acreditar que eu estava bêbado, e que foi só isso!
- O que fez em seguida?
- Eu precisava tomar outro drinque. Meus nervos estavam em frangalhos.
- E isso fez com que ele reaparecesse?
- Não, mas me levou de volta à casa de Anna.
Creio que ele sentiu vergonha de vir a mim com aquela história absurda, se não fosse o atentado contra
Anna Schmidt. Minha teoria, quando ouvi a história dele, era que alguém o observava – mas a bebida e a
histeria deram ao homem as feições de Harry Lime. Seu perseguidor o acompanhara até a casa de Anna, e
um membro da quadrilha da penicilina fora alertado por telefone. Os eventos daquela noite se
desenrolaram rapidamente. Vale lembrar que Kurtz residia na zona russa – no Segundo Bezirk, para ser
exato, numa rua larga, vazia, desolada que termina na Prater Platz. Um sujeito como ele provavelmente
mantinha contatos influentes. Seria a ruína para um russo ser observado em relacionamento amigável com
um norte-americano ou inglês, mas o austríaco era um aliado em potencial – e, de qualquer jeito, ninguém
temia a influência dos arruinados e derrotados.
É preciso compreender que naquele período a cooperação entre os Aliados ocidentais e os russos havia
cessado, praticamente, mas não de todo.
O acerto inicial de policiamento em Viena, entre os Aliados, confinava a polícia militar (que se
encarregava de lidar com os crimes que envolviam pessoal aliado) a sua zona específica, a não ser que
recebessem permissão para entrar na zona de outra potência. Este acordo funcionou satisfatoriamente entre
as três potências ocidentais. Bastava eu pegar o telefone e falar com meu correspondente das zonas norte-
americana e francesa antes de mandar meus homens realizarem uma prisão ou investigarem um crime.
Durante os primeiros seis meses de ocupação isso funcionou relativamente bem com os russos: talvez
quarenta e oito horas transcorressem até eu receber a autorização, e na prática há poucas ocasiões em que é
necessário agir mais rápido do que isso. Nem sempre se obtém um mandado de busca ou ordem de prisão
contra um suspeito, mesmo em minha terra, com mais rapidez. Depois, porém, as quarenta e oito horas de
transformaram em uma semana ou duas, e eu me lembro de que meu colega norte-americano resolveu
repassar seus registros e descobriu que havia quarenta casos com mais de três meses de espera, sem que
tivesse recebido sequer um aviso de que os pedidos estavam sendo analisados. Então começaram os
problemas. Passamos a recusar ou a não responder os pedidos russos, e por vezes eles mandavam a polícia
sem permissão, e ocorriam incidentes... Na época desses acontecimentos as potências ocidentais
praticamente haviam deixado de encaminhar as solicitações ou responder aos pedidos dos russos. Isso
significava que eu só poderia pegar Kurtz fora da zona russa, embora sempre fosse possível que suas
atividades pudessem ofender os russos, e neste caso a punição seria mais rápida e severa que a possível
para nós. Bem, o caso de Anna Schmidt foi um desses casos: quando Rollo Martins retornou embriagado,
às quatro da manhã, para dizer a Anna que vira o fantasma de Harry, o porteiro assustado, ainda sem
conseguir dormir novamente, o avisou que ela havia sido levada pela Patrulha Internacional.

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O que aconteceu foi o seguinte. A Rússia, como se sabe, estava no comando no que dizia respeito do Innere
Stadt, e quando a Rússia comandava certas irregularidades eram esperadas. Na ocasião, no meio da
patrulha, o policial russo desconsiderou os colegas e guiou o carro até a rua onde Anna Schmidt residia. O
policial militar inglês daquela noite era novo na função: não se deu conta, até ser avisado pelos colegas, de
que estavam dentro da zona inglesa. Ele falava pouco alemão e nenhum francês, e o francês, um típico
parisiense cínico e tarimbado, desistiu de explicar o caso a ele. O norte-americano encarregou-se da tarefa.
– Por mim tudo bem – ele disse. – E quanto a você, tudo bem também? – O policial militar inglês bateu no
ombro do russo, que virou o rosto mongol e lançou uma torrente de palavras eslavas incompreensíveis. O
carro seguiu em frente.
Na frente da casa de Anna Schmidt o norte-americano interferiu e perguntou em alemão o que estava
acontecendo. O francês encostou no capô e acendeu um cigarro caporal fedorento. O caso não envolvia a
França, e se não envolvia a França não tinha importância genuína para ele. O russo pronunciou algumas
palavras em alemão e mostrou uns papéis. Pelo que entenderam um cidadão russo procurado pela polícia
russa morava ali, sem ter os documentos adequados. Eles subiram e o russo tentou abrir a porta de Anna. O
trinco estava fechado com firmeza, mas ele forçou a porta com o ombro e arrebentou o trinco, sem dar a
chance ao morador de abrir para sua entrada. Encontrou Anna na cama, embora eu duvide que estivesse
dormindo, após a visita de Martins.
Essas situações são uma grande comédia para quem não está envolvido diretamente. Mas basta um passado
de terror na Europa Central, pai pertencente ao lado derrotado, desaparecimentos e buscas na casa, para que
o medo supere a comédia. Sabe, o russo recusou-se a sair da sala enquanto Anna se vestia; o inglês
recusou-se a permanecer no local. O norte-americano não ia deixar uma moça desprotegida, com um
soldado russo, e o francês – bem, creio que o francês achava tudo engraçado. Pode imaginar a cena? O
russo cumpria seu dever e vigiava a moça atentamente, sem dar o menor sinal de interesse sexual. O norte-
americano permanecia de costas, cavalheiresco, mas atento, aposto, a cada movimento; o francês fumava o
cigarro e observava, com distanciado interesse, o reflexo no espelho do guarda-roupa da moça que se
vestia; e o inglês esperava no corredor, pensando em como deveria agir.
Não gostaria de dar a idéia de que o policial inglês se saiu mal no caso. No corredor, sem o cavalheirismo
para atrapalhar, ganhou tempo para pensar, e seus pensamentos o levaram ao telefone do apartamento
vizinho. Ele ligou direto para mim, em meu apartamento, arrancando-me de um sono profundo. Por isso,
quando Martins telefonou uma hora depois, eu já sabia o que o incomodava. Isso lhe deu uma impressão
imerecida porém útil de eficiência, a meu respeito. Nunca mais ouvi comentários negativos sobre policiais
ou xerifes, depois daquela noite.
Devo explicar outro ponto dos procedimentos policiais. Se a Patrulha Internacional faz uma prisão tem de
alojar o prisioneiro por vinte e quatro horas no Quartel Internacional. Durante este período será
determinado qual potência pode legitimamente reclamar o prisioneiro. Os russos não pretendiam
desobedecer esta regra. Como poucos de nós saber falar russo e os russos estavam praticamente isentos de
defender seu ponto de vista (tente explicar um ponto de vista sobre qualquer assunto numa língua que não
domina – não é tão fácil quanto pedir uma refeição), estávamos inclinados a considerar qualquer
desobediência a um regulamento, por parte dos russos, como uma atitude deliberada e nociva. Creio ser
perfeitamente possível que eles considerassem que esta regra se aplicava unicamente a prisioneiros sobre os
quais houvesse alguma disputa. É verdade que havia disputa relativa a quase todos os prisioneiros que eles
faziam, mas não havia disputa na concepção deles, e ninguém tem um senso de responsabilidade maior que
um russo. Até em suas confissões o russo é responsável – faz as revelações, mas não se justifica, ele não
precisa dar desculpas. Tudo isso precisava ser levado em conta na tomada de uma decisão. Dei minhas
instruções ao cabo Starling.
Quando ele voltou ao quarto de Anna deparou-se com uma disputa. Anna dissera ao norte-americano que
tinha documentos austríacos (o que era verdade), e que estavam em ordem (o que era uma extensão da
verdade). O norte-americano disse ao russo em alemão ruim que eles não tinham o direito de deter um
cidadão austríaco. Ele pediu os documentos de Anna, e quando ela os mostrou o russo o arrancou de sua
mão.
- Húngara – disse, apontando para Anna. – Húngara – e exibiu os documentos: - Mau, mau.
O norte-americano, cujo nome era O’Brien, disse: - Devolva os documentos para a moça. – Mas o russo
não entendeu nada, naturalmente. O norte-americano levou a mão ao coldre, e o cabo Starling disse,
diplomático: - Vamos com calma, colega.
- Se os documentos não estão em ordem, temos o direito de olhar.

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- Deixe para lá. Veremos os documentos no Quartel Internacional.
- Se chegarmos ao Quartel Internacional. Não dá para confiar nesses motoristas russos. Aposto que vai
seguir direto para a zona dele.
- Veremos – Starling disse.
- O problema de vocês ingleses é nunca saberem quando fincar o pé.
- Tenha dó – Starling disse; mas estivera em Dunquerque e sabia quando calar a boca.
Eles voltaram para o carro, levando Anna, que sentou na frente, entre os dois russos, morta de medo.
Assim que avançaram um pouco o norte-americano tocou o russo no ombro. – Caminho errado – disse. – O
Quartel fica para lá. – O russo respondeu em seu próprio idioma, fazendo um gesto conciliatório, enquanto
seguiam em frente. – Como eu disse – O’Brien falou a Starling. – Eles vão levá-la para a zona russa. –
Anna olhou pelo pára-brisa, aterrorizada. – Não se preocupe, moça – O’Brien disse. – Vou dar um jeito
neles agora mesmo. – Seus dedos apalpavam novamente a arma. Starling disse: - Ei, colega, este é um caso
britânico. Você não precisa se envolver.
- Você é novo por aqui. Não conhece esses filhos da mãe.
- Não vale a pena criar um incidente.
- Pelo amor de Deus – O’Brien disse. – Não vale a pena... aquela moça precisa de proteção. – O
cavalheirismo norte-americano sempre é cuidadosamente orientado, me parece – ainda não vimos um santo
norte-americano capaz de beijar as chagas de um leproso.
O motorista freou repentinamente: bloqueio na rua. Eu já sabia que eles teriam de passar pelo posto de
inspeção militar se não seguissem para o Quartel Internacional, no centro. Aproximei a cabeça da janela e
disse ao russo, em sua própria língua, hesitante: - O que estão fazendo na zona britânica?
Eles resmungou que recebera “ordens”.
- Ordens de quem? Quero vê-las. – Notei a assinatura, uma informação útil. E disse: - As ordens mandam
deter um cidadão húngaro, criminoso de guerra, que vive com documentos falsos na zona britânica. Quero
ver os documentos.
Ele iniciou uma longa explicação, mas eu vi os papéis em seu bolso e os puxei. Ele tentou sacar a arma, e
dei-lhe um soco na cara – senti-me realmente mal ao fazer isso, mas era a conduta esperada por eles no
caso de um oficial furioso, e isso lhe devolveu o bom senso – isso e a aproximação de três soldados
britânicos, iluminados pelos faróis. Falei: - Para mim, esses documentos parecem estar em ordem, mas
vamos investigar o caso e enviar um relatório detalhado para seu coronel. Ele pode solicitar a extradição
desta senhora a qualquer momento, claro. Só queremos provas de suas atividades criminosas. Creio que
não consideramos os húngaros cidadãos russos. – Ele olhou para mim (meu russo devia ser quase
incompreensível) e eu disse a Anna: - Desça do carro. – Ela não conseguia sair por causa do russo, e tive de
puxá-lo primeiro. Depois pus um maço de cigarro em sua mão e disse: - Fume bastante. – Acenei para os
outros e soltei um suspiro de alívio. Fim do incidente.

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Enquanto Martins relatava seu retorno à casa de Anna, para descobrir que ela fora levada embora, fiquei
pensando no caso, profundamente. Não me satisfazia a história do fantasma, nem que o sujeito com a
fisionomia de Harry Lime fosse apenas a alucinação de um bêbado. Peguei dois mapas de Viena e os
comparei. Telefonei para meu assistente e perguntei se já havia localizado Harbin, enquanto mantinha
Martins quieto com uma dose de uísque. Ele disse que não; constava que Harbin deixara Klagenfurt na
semana anterior, para visitar a família na zona adjacente. As pessoas sempre querem fazer tudo sozinhas;
precisamos nos cuidar para não culpar os subalternos; creio que eu jamais teria deixado Harbin escapar ao
nosso controle, mas provavelmente teria cometido inúmeros erros que meus comandados teriam sabido
evitar. – Tudo bem – falei. – Continue tentando localizá-lo.
- Lamento muito, senhor.
- Esqueça. Essas coisas acontecem.
Uma voz jovem entusiasmada – se pelo menos a gente ainda sentisse aquele entusiasmo juvenil por uma
tarefa rotineira; quantas oportunidades e revelações deixamos passar simplesmente porque uma tarefa
tornou-se apenas uma tarefa – tiniu na linha. – Sabe, senhor, não posso deixar de pensar que descartamos a
possibilidade de assassinato cedo demais. Há um ou dois aspectos que...
- Ponha tudo no papel, Carter.
- Sim, senhor. Acho, senhor, se me permite dizer – (Carter é um rapaz muito novo) – que é melhor
desenterrar o sujeito. Não há nenhuma prova concreta de que ele morreu quando os outros afirmaram.
- Concordo, Carter. Acione as autoridades.
Martins tinha razão. Eu havia feito papel de idiota, mas vale lembrar que a atividade policial numa cidade
ocupada não é igual ao trabalho da polícia em sua terra natal. Tudo é alheio: os métodos dos colegas
estrangeiros, as regras de coleta de provas, até mesmo os procedimentos nos inquéritos. Suponho que eu
estivesse no estado de espírito em que a pessoa confia demais em seu julgamento pessoal. A morte de Lime
me dera um alívio enorme. A versão de acidente me satisfez.
Falei a Martins: - Olhou dentro do quiosque, ou ele estava trancado?
- Bem, não era um quiosque de jornais – ele disse. – E sim um daqueles sólidos, de ferro, que vemos por
toda a parte, cobertos de cartazes.
- Acho melhor me mostrar o local.
- Mas, e Anna? Ela está bem?
- A polícia está vigiando seu apartamento. Eles não tentarão mais nada, por enquanto.
Eu não queria assustar a vizinhança com a presença de uma viatura policial, por isso pegamos bondes –
vários bondes – e após várias trocas, aqui e ali, chegamos ao distrito à pé. Não usava uniforme e duvidava,
de todo modo, que após o fracasso da tentativa de pegar Anna, eles arriscassem nos seguir. – Vamos virar
aqui – Martins disse, entrando numa travessa. Paramos na frente do quiosque. – Sabe, ele passou por aqui e
simplesmente desapareceu – engolido pela terra.
- Onde foi exatamente que ele desapareceu? – Perguntei.
- Como assim?
Um transeunte ordinário não repararia que havia uma porta no quiosque. Além disso, estava escuro quando
o sujeito desapareceu. Abri a porta e mostrei a Martins a escadinha em caracol que desaparecia no chão.
Ele disse: - Meu Deus! Então não foi só minha imaginação!
- É um dos acessos ao sistema central de esgoto.
- E qualquer um pode descer?
- Qualquer um. Por algum motivo, os russos não querem que seja trancado.
- E até onde alguém pode ir?
- Até o outro lado de Viena. As pessoas usavam o local como proteção, durante os bombardeios aéreos,
alguns prisioneiros nossos passaram até dois anos escondidos ali. Os desertores o usavam – e os ladrões. Se
conhecer o caminho, pode sair em praticamente qualquer lugar da cidade, usando um bueiro ou outro
quiosque como este. Os austríacos têm uma polícia especial para patrulhar os esgotos. – Fechei novamente
a porta do quiosque, e falei: - Então foi aqui que seu amigo Harry desapareceu.
- Acredita mesmo que era Harry?
- As pistas apontam neste sentido.
- E quem eles enterraram, então?

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- Ainda não sei, mas logo saberemos, pois vamos exumar o corpo. Tenho a má impressão, porém, de que
Koch não foi o único homem inconveniente que eles mataram.
Martins disse: - Isso é um choque terrível.
- Sim.
- O que pretende fazer a respeito?
- Ainda não sei. Não adianta recorrer aos russos, e pode apostar que neste momento ele está escondido no
setor russo. Não temos como pegar Kurtz agora, pois Harbin foi desmascarado – deve ter sido, ou eles não
teriam encenado a morte e o funeral.
- Mas é curioso, não acha, que Koch não tenha reconhecido o rosto do defunto, pela janela?
- A janela fica distante do local, e suponho que o rosto tenha sido desfigurado antes que tirassem o corpo
do carro.
Ele disse, pensativo: - Gostaria de poder conversar com ele. Sabe, não consigo acreditar em muita coisa,
disso tudo.
- Talvez você seja o único que possa falar com ele. Contudo, é um grande risco, pois sabe demais.
- Ainda não consigo acreditar – só vi seu rosto por um momento. O que devo fazer?
- Ele não sairá da zona russa, por enquanto. Talvez por isso tenha tentado pegar a moça – está apaixonado?
Sente-se inseguro? Não sei. Mas sei que a única pessoa capaz de persuadi-lo a se entregar é você – ou ela,
se ele ainda acreditar que você é amigo dele. Mas primeiro você precisa falar com ele. Não sei como.
- Posso procurar Kurtz. Tenho o endereço dele.
- Lembre-se – falei, - Lime talvez não queira que você saia da zona russa depois que estiver lá, e não posso
protegê-lo.
- Eu só quero esclarecer essa história de uma vez por todas – Martins disse. – Mas não pretendo ser apenas
um chamariz. Conversarei com ele. Isso é tudo.

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O domingo lançou sua falsa paz sobre Viena; o vento amainou, não nevava havia vinte e quatro horas. Os
bondes circularam cheios pela manhã, seguindo para Grinzing, onde se bebe vinho novo e há encostas
cobertas de neve, nos morros vizinhos. Atravessando o canal pela ponte militar de campanha, Martins se
deu conta do vazio daquela tarde: os jovens passavam com seus trenós e esquis, em volta dele imperava a
modorra após o almoço. Uma placa avisava que ele estava entrando na zona russa, mas não havia sinais de
ocupação. Encontrava-se mais soldados russos no centro do que ali.
Ele não informara a Kurtz que pretendia visitá-lo, deliberadamente. Melhor descobrir que o sujeito não
estava em casa do que dar tempo para que ele lhe preparasse uma recepção. Tomou a precaução de levar
consigo todos os documentos, inclusive o laissez-passer das Quatro Potências que o autorizava a se
movimentar livremente pelas quatro zonas de Viena. Era extraordinariamente calmo ali, do outro lado do
canal, e um jornalista melodramático teria descrito a cena como de silencioso terror, mas a verdade era
simplesmente que havia ruas mais largas, danos maiores dos bombardeios e menos gente por causa do
domingo. Não havia nada a temer, mesmo assim, naquela rua imensa onde alguém ouvia sempre o som de
suas passadas, era difícil não olhar para trás.
Não encontrou dificuldade para localizar o prédio de Kurtz, e quando tocou a campainha a porta foi aberta
rapidamente pelo próprio Kurtz, como se ele esperasse um visitante.
- Ah – Kurtz disse – é o senhor Martins – e fez um gesto de perplexidade, levando a mão à parte traseira da
cabeça. Martins tentava descobrir por que ele parecia tão diferente, e logo percebeu. Kurtz não usava o
chinó, e viu que Kurtz não era calvo. Tinha cabelo suficiente, mas cortado curto. Ele disse: - Teria sido
melhor telefonar primeiro. Quase não me encontra, eu estava de saída.
- Posso entrar por um instante?
- Claro.
No hall havia um armário aberto, e Martins viu o sobretudo de Kurtz, sua capa de chuva e um par de
chapéus moles e, pendurado num gancho sonolento, como se fosse um cachecol, o chinó de Kurtz. Ele
disse: - Fico feliz em ver que seu cabelo cresceu – e viu, pelo espelho na porta do guarda-roupa, a raiva
corar o rosto de Kurtz. Quando virou-se Kurtz sorriu para ele como um conspirador, e disse, vago: -
Mantém a cabeça aquecida.
- A cabeça de quem? – Martins perguntou, pois ocorreu-lhe subitamente o quanto o chinó pode ter sido útil
no dia do acidente. – Esqueça – emendou rapidamente, pois seu plano não era pegar Kurtz. – Vim aqui
para falar com Harry.
- Harry?
- Quero conversar com ele.
- Ficou maluco?
- Estou com pressa, então vamos presumir que sim. Mas preste atenção na minha loucura. Se encontrar
Harry – ou seu espectro – informe-o que desejo falar com ele. Um fantasma não teme um homem, certo?
Sem dúvida, ocorre o oposto. Estarei esperando na Prater, ao lado da roda-gigante, nas próximas duas
horas. Se consegue manter contato com os mortos, então corra. – E acrescentou: - Lembre-se de que eu era
amigo de Harry.
Kurtz não disse nada, mas alguém pigarreou numa sala adjacente ao hall. Martins abriu uma porta; quase
esperou ver um morto ressuscitar outra vez, mas era apenas o dr. Winkler, que se levantou de uma cadeira
de cozinha, na frente do fogão, e fez uma mesura rígida e correta, com o mesmo estalo de celulóide.
- Doutor Winkle – Martins disse. O dr. Winkler parecia extraordinariamente fora de lugar numa cozinha.
Os restos de um lanche sujavam a mesa, e os pratos sujos combinavam muito mal com o asseio do dr.
Winkler.
- Winkler – o médico corrigiu, com paciência pétrea.
Martins disse a Kurtz: - Fale a respeito de minha loucura com o doutor. Ele deve ser capaz de fazer um
diagnóstico. E lembre-se do local – ao lado da roda-gigante. Ou será que os fantasmas só se manifestam de
noite? – E saiu do apartamento.
Ele esperou por uma hora, andando de um lado para o outro, mantendo-se aquecido, nas imediações da
roda-gigante. O Prater esmagado, com seus ossos projetados grosseiramente para fora da neve, estava
quase deserto. Uma banca vendia bolos finos e chatos, parecidos com rodas de carroça, e as crianças
formavam fila com seus cupons. Raros casais de namorados, reunidos numa única cabine da roda-gigante,

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giravam lentamente até o alto, cercados por cabines vazias. Quando a cabine chegava ao ponto mais alto da
roda esta parava de girar por alguns minutos e lá no alto os rostos minúsculos eram comprimidos contra o
vidro. Martins pensava em quem viria encontrá-lo. Restava amizade suficiente por ele em Harry para vir
sozinho, ou um grupo de policiais surgiria? Era óbvio, pela operação no apartamento de Anna, que ele
tinha um certo poder. E, quando o ponteiro do relógio passou para a nova hora ele pensou: foi tudo
invenção da minha mente? Estão mesmo exumando o corpo de Harry agora, no cemitério central?
Em algum ponto atrás da banca de doces um homem assobiava, e Martins reconheceu a canção. Ele se
virou e esperou. Era o frio ou a excitação que fazia seu coração bater forte, ou apenas a lembrança que a
música despertava, pois a vida sempre acelerava quando Harry surgia, assim como surgia agora, como se
nada de mais tivesse acontecido, ninguém sido enterrado ou encontrado com a garganta cortada num porão,
surgia com seu jeito alegre, agressivo, tipo pegar-ou-largar – e, claro, a gente sempre pegava.
- Harry.
- Oi, Rollo.
Não vejam Harry Lime como um vigarista envolvente. Ele não era nada disso. O retrato que tenho em meu
arquivo é excelente: ele foi fotografado por um fotógrafo de rua, com as pernas grossas afastadas, os
ombros largos um pouco recurvados, uma barriga havia muito tempo acostumada a muita boa comida, e no
rosto um ar alegremente maroto, cordial, em reconhecimento de que sua felicidade faria a festa do mundo.
Ele não cometeu o erro de estender a mão, que poderia ser rejeitada, e em vez disso apenas tocou Martins
no cotovelo, dizendo: - Como vão as coisas?
- Precisamos conversar, Harry.
- Claro.
- A sós.
- Estamos mais a sós do que nunca, aqui.
Ele sempre sabia se virar, mesmo no parque arruinado ele deu um jeito, subornando a responsável pela
roda-gigante para conseguir um carro só para eles. Harry disse: - Os amantes costumavam fazer isso nos
velhos tempos, mas agora não têm dinheiro para gastar, pobres diabos. – E olhou pela janela da cabine que
balançava e subia, vendo as figuras se apequenarem lá em baixo com o que parecia ser genuína
comiseração.
Lentamente, para um lado, a cidade afundava. Lentamente, para outro, os braços imensos da roda-gigante
surgiam. Conforme o horizonte deslizava para longe o Danúbio se tornava visível, e os píeres do
Reichsbrücke se erguiam acima das casas. – Bem – Harry disse – é bom ver você de novo, Rollo.
- Fui a seu enterro.
- Aquela foi uma jogada esperta minha, concorda?
- Não foi tão esperta assim para sua namorada. Ela também estava lá... chorando.
- Ela é uma gracinha – Harry disse. – Gosto muito dela.
- Não acreditei na polícia, quando me contaram coisas a seu respeito.
Harry disse: - Eu não teria pedido a você que viesse se soubesse o que ia acontecer. Mas não imaginava que
a polícia estivesse atrás de mim.
- Você vai me pôr na jogada?
- Até hoje nunca deixei você fora de nada, meu caro. – Ele deu as costas para a porta, conforme a cabine
subia, e sorriu para Rollo Martins, que se lembrava dele com a mesma atitude, num canto discreto da
escola, a dizer: - Descobri um jeito de sair de noite. É totalmente seguro. Você vai ser o único a saber. –
Pela primeira vez Rollo Martins olhou para trás sem admiração, e pensou sobre aqueles anos todos: Ele
nunca cresceu. Os demônios de Marlowe levavam bombinhas na cauda: o mal, como Peter Pan, carrega
consigo a terrível e apavorante dádiva da eterna juventude.
Martins disse: - Você visitou o hospital infantil? Viu algumas de suas vítimas?
Harry olhou para a paisagem de brinquedo lá embaixo e se afastou da porta. – Nunca me sinto seguro
nessas cabines – disse. Tateou a porta como se ela fosse abrir e atirá-lo no espaço entrelaçado de aço. –
Vítimas? – perguntou. – Não seja melodramático, Rollo. Olhe lá – prosseguiu, apontando pela janela as
pessoas que se mexiam como moscas escuras na base da roda-gigante. – Você sentiria realmente pena de
um daqueles pontinhos, se ele parasse de se mexer para sempre? Se eu dissesse que você receberia vinte
mil libras para cada pontinho que parasse, você me diria para ficar com meu dinheiro, meu caro, sem
hesitar? Ou calcularia quantos pontinhos poderia descartar? Sem impostos, meu caro. Sem imposto de
renda. – Ele abriu seu sorriso juvenil de conspirador. – É o único jeito de economizar um pouco, hoje em
dia.

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- Você não poderia ter ficado nos pneus?
- Como Cooler? Não, sempre fui ambicioso.
- Você está acabado. A polícia sabe de tudo.
- Mas eles não vão me pegar, Rollo, entenda isso. E eu continuarei agindo. Eles não conseguem pegar um
sujeito esperto.
A cabine parou no ponto mais alto da curva e Harry deu as costas, olhando pela janela. Martins pensou: um
golpe forte e consigo quebrar o vidro, e viu o corpo caindo, caindo, passando pelas vigas de ferro, como
um pedaço de lixo a se espatifar entre as moscas. Ele disse: - Sabe que a polícia pretende exumar seu
cadáver? O que encontrarão?
- Harbin – Harry respondeu com sinceridade. Afastando-se da janela, disse: - Olhe para o céu.
A cabine, que havia chegado ao alto da roda, permanecia imóvel, enquanto as cores do pôr-do-sol listavam
o céu enrugado como papel, para lá das vigas de ferro negro.
- Por que os russos tentaram levar Anna Schmidt?
- Ela usava documentos falsos, meu caro.
- Quem a denunciou?
- O preço de viver nesta zona, Rollo, é dar o serviço. Eu passo algumas informações a eles, de vez em
quando.
- Pensei que estivesse apenas tentando trazê-la para cá, pois era sua namorada. Não a queria aqui?
Harry sorriu. – Não tenho essa influência toda.
- O que teria acontecido a ela?
- Nada muito sério. Teria sido mandada de volta para a Hungria. Não há nada contra ela, na verdade. Ela
ficaria infinitamente melhor em seu próprio país, em vez de viver aqui atormentada pela polícia britânica.
- Ela não revelou nada a seu respeito.
- Ela é uma gracinha – Harry repetiu com orgulho, satisfeito.
- Ela o ama.
- Bem, eu lhe dei muitas alegrias, enquanto durou.
- E eu a amo.
- Tudo bem, meu caro. Seja bom para ela, a moça merece. Fico contente em saber. – Ele dava a impressão
de ter ajeitado tudo de modo a satisfazer a todos. – E você pode ajudar a mantê-la de boca fechada. Não
que ela saiba de algo relevante.
- Tenho vontade de jogar você pela janela.
- Mas não fará isso, meu caro. Nossas brigas nunca duram muito tempo. Lembra-se daquela terrível em
Mônaco, quando juramos que nunca mais nos veríamos? Eu confio em você em qualquer lugar, Rollo.
Kurtz tentou me persuadir a não vir, mas eu conheço você. Depois ele tentou me convencer a, bem,
providenciar um acidente. Ele me disse que seria muito fácil, nesta cabine.
- Exceto por eu ser mais forte.
- Mas eu tenho a arma. Você acha que um furo de bala vai aparecer, depois que você bater no chão? – A
roda-gigante andou novamente, descendo devagar, até as moscas se transformarem em anões, em seres
humanos identificáveis. – Bancamos os idiotas, Rollo, falando dessa maneira, como se eu fosse capaz de
fazer isso com você, ou você comigo. – Ele virou de costas e apoiou o rosto no vidro. Um golpe... –
Quanto ganha por ano com seus livros de bangue-bangue, meu caro?
- Mil.
- E tem os impostos. Eu ganho trinta mil, limpos. É a moda. Atualmente, meu caro, ninguém pensa em
termos de seres humanos. Os governos não pensam assim, por que deveríamos? Eles falam no povo e no
proletariado, e eu falo em otários. É a mesma coisa. Eles fazem planos qüinqüenais, eu também.
- Você era católico.
- Ora, eu ainda creio, meu caro. Em Deus, na misericórdia e tudo mais. Não estou machucando a alma de
ninguém com minhas atividades. Os mortos são mais felizes mortos. Não estão perdendo grande coisa
daqui, pobres coitados – acrescentou, com um toque de genuína piedade, quando a cabine chegou à
plataforma e os rostos das próximas vítimas, aqueles rostos cansados cheios ansiosos pelo prazer olharam
para eles lá dentro. – Posso incluir você no projeto, sabe? Seria útil. Não me sobrou ninguém no centro.
- Exceto Cooler? E Winkler?
- Você não pode virar policial, meu caro. – Eles desceram da cabine e ele tocou novamente o cotovelo de
Martins. – Brincadeira. Sei que você não faria isso. Teve notícias recentes do nosso amigo Bracer?
- Recebi um cartão de Natal dele.

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- Velhos tempos, meu caro. Bons tempos. Preciso me despedir aqui. Nos vemos por aí, qualquer dia desses.
Se estiver encrencado, pode me achar por meio de Kurtz. – Ele se afastou, acenando com a mão que por ter
tato não ofereceu: era como se o passado inteiro se escondesse atrás de uma nuvem. Martins gritou para
ele, de repente: - Não confie em mim, Harry. – Mas a distância entre eles era grande demais para que as
palavras chegassem ao outro.

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- Anna estava no teatro – Martins me contou, - para a matinê de domingo. Fui obrigado a assistir aquela
comédia medonha inteira, pela segunda vez. Era sobre um compositor de meia-idade, uma moça tola
apaixonada e uma esposa compreensiva – terrivelmente compreensiva. Anna atuava muito mal – ela não
servia para ser atriz, na melhor das hipóteses. Eu a vi depois, no camarim, mas ela estava muito
contrariada. Creio que pensava que eu ia tentar conquistá-la sempre, e ela não queria isso. Contei que
Harry estava vivo – pensei que ela ia ficar contente, e que eu odiaria vê-la tão contente, mas ela sentou na
frente do espelho de maquiar e deixou que as lágrimas manchassem a maquiagem. Eu preferia que tivesse
ficado contente. Ela estava horrível e eu a amava. Depois relatei a conversa com Harry, mas ela não
prestou muita atenção, pois quando terminei ela disse: - Gostaria que ele estivesse morto.
- Ele bem que merecia – falei.
- Quero dizer que ele estaria a salvo – de todos.
Perguntei a Martins: - Você chegou a mostrar a ela as fotos que lhe dei, das crianças?
- Sim. Pensei, isso vai matar ou curar a moça de uma vez por todas. Ela precisava tirar Harry da cabeça.
Apoiei as fotos nos potes de maquiagem. Ela não pôde evitar as cenas. Falei: - A polícia não pode prender
Harry a não ser que consigam atraí-lo para esta zona, e precisamos ajudar a fazer isso.
- Ela disse: - Pensei que ele fosse seu amigo. – Falei: - Ele era meu amigo. – Ela disse: - Nunca o ajudarei
a prender Harry. Não quero vê-lo nunca mais. Não quero ouvir sua voz. Não quero ser tocada por ele, mas
não farei nada para prejudicá-lo.
- Senti amargura – não sei por que, talvez por não ter feito nada por ela, no final das contas. Até Harry fez
mais por ela do que eu. – Falei – Você ainda gosta dele – como se a acusasse de um crime. Ela respondeu:
- Não gosto dele, mas ele está em mim. É um fato, e diferente de amizade. Sabe, quando tenho sonhos
eróticos, o homem sempre é ele.
Incentivei Martins, quando ele hesitou. – E então?
- Ora, eu me levantei e fui embora, apenas. Agora é sua vez de me usar. O que quer que eu faça?
- Quero agira depressa. Era mesmo o corpo de Harbin no caixão, podemos prender Winkler e Cooler
imediatamente. Kurtz está fora do alcance, por enquanto, assim como o motorista. Vamos formalizar um
pedido aos russos, para prender Kurtz e Lime: para deixar nosso arquivo em ordem. Se vamos usar você
como isca, o recado deve chegar a Lime imediatamente – não queremos deixar passar mais vinte e quatro
horas nesta zona. Pelo que consta, você foi trazido para interrogatório assim que chegou ao centro, soube
de Harbin por mim. Somou dois e dois e resolveu alertar Cooler. Vamos deixar Cooler escapar para pegar
o peixe maior. Não temos provas de que ele estava envolvido no esquema da penicilina. Ele fugirá para o
Segundo Bezirk, procurará Kurtz e Lime saberá que você entrou na jogada. Três horas depois enviará uma
mensagem, dizendo que a polícia está atrás de você, que se escondeu e precisa falar com ele.
- Ele não virá.
- Não tenho tanta certeza. Escolheremos seu esconderijo com cuidado – um lugar que ele considerará de
risco mínimo. Vale a pena tentar. Jogaremos com seu orgulho e senso de humor, para que ele o resgate.
Isso calaria sua boca.
Martins disse: - Ele nunca me salvava – na escola. – Era óbvio que ele andara repassando o passado com
cuidado e chegara a algumas conclusões.
- Não havia problemas sérios, nem o perigo de você delatá-lo.
Ele disse: - Falei a Harry para não confiar em mim, mas ele não escutou.
- Concorda?
Ele me dera novamente as fotos das crianças, que jaziam sobre a mesa. Percebi que as olhava intensamente.
Sim – falei. – Concordo.

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Os primeiros arranjos correram conforme o plano. Adiamos a detenção de Winkler, que retornara do
Segundo Bezirk, até que Cooler fosse avisado. Martins gostou de sua rápida conversa com Cooler. Este o
recebeu sem o menor constrangimento, e com considerável condescendência. – Ora, senhor Martins, fico
feliz em revê-lo. Sente-se. Fico satisfeito em saber que tudo foi resolvido, entre o senhor e o coronel
Calloway. Um sujeito muito sério, o Calloway.
- Não foi – Martins disse.
- Espero que não tenha guardado nenhum ressentimento por eu ter alertado a respeito de sua visita a Koch.
Eu imaginei o seguinte: Se fosse inocente, seria fácil se livrar das suspeitas. Se fosse culpado, bem, o fato
de eu simpatizar com você não poderia ser um impedimento. Um cidadão tem deveres.
- Como dar falso testemunho num inquérito.
Cooler disse: - Ora, isso já passou. Lamento que esteja aborrecido comigo, senhor Martins. Entenda o
seguinte: como cidadão, o senhor deve obediência...
- A polícia desenterrou o corpo. Eles procuram você e Winkler. Queria que avisasse Harry...
- Não compreendo.
- Ah, compreende, sim. – E era óbvio que compreendia. Martins foi embora abruptamente. Não suportava
mais aquele ar gentil e solidário.
Só faltava portanto que mordessem a isca. Depois de estudar o mapa do sistema de esgoto cheguei à
conclusão de que um café próximo à entrada principal do esgoto central, que se situava como todas as
outras num quiosque de propaganda, seria o local mais adequado para tentar Lime. Ele só precisava sair
mais uma vez de dentro da terra, andar cinqüenta metros, levar Martins consigo e sumir novamente na
escuridão dos esgotos. Ele não fazia idéia de que seu método de evasão era de nosso conhecimento;
provavelmente sabia que a última patrulha do esgoto encerrava-se antes da meia-noite, e que a seguinte
ocorria só às duas, e portanto à meia-noite Martins sentou-se num pequeno café, no frio, tendo o quiosque
à vista, tomando um café atrás do outro. Emprestei-lhe um revólver. Posicionei meus homens o mais perto
possível do quiosque, e a polícia do esgoto estava a postos para fechar as saídas e iniciar uma busca nos
esgotos, a partir da periferia, no rumo do centro, na hora H. Mas eu pretendia pegá-lo antes que pudesse
sumir no buraco novamente, se fosse possível. Pouparia trabalho e riscos para Martins. Portanto, como já
disse, Martins esperava no café.
O vento crescera de novo, mas não nevava; soprava gelado, vindo do Danúbio, e na pracinha quadrada do
café varria a neve como se fosse a espuma no topo da onda. Faltava aquecimento ao café, e Martins ficou
sentado, esquentando uma mão depois a outra com o café falso – inúmeras xícaras. Normalmente havia um
de meus homens no café com ele, mas eu os trocava a cada vinte minutos, irregularmente. Mais de uma
hora transcorreu. Martins perdera a esperança havia muito tempo, e eu também, que esperava ao telefone, a
várias quadras dali, com uma equipe da polícia do esgoto pronta a descer se fosse necessário. Tivemos mais
sorte que Martins, pois estávamos aquecidos, de bota de cano alto e capotes. Nosso homem mantinha uma
lanterna presa ao peito, mais ou menos do tamanho da metade de um farol de automóvel, e outro homem
levava um maço de tochas. O telefone tocou. Era Martins. Ele disse: - Estou morrendo de frio. Já é uma e
quinze. De que adianta insistir nisso?
- Você não devia telefonar, e sim ficar à vista.
- Tomei sete xícaras deste café nojento. Meu estômago não agüenta mais.
- Ele não pode demorar muito, se pretende vir. Precisa evitar a patrulha das duas horas. Fique mais quinze
minutos, mas afaste-se do telefone.
A voz de Martins disse, subitamente: - Minha nossa, ele está aqui! Ele... – e o telefone ficou mudo. Falei a
meu assistente: - Dê o alarme para vigiarem todas as saídas. – E, ao pessoal da polícia do esgoto: - Vamos
descer.
O que aconteceu foi o seguinte. Martins ainda estava ao telefone quando Harry Lime entrou no café. Eu
não se o que ouviu, se é que ouviu algo. A mera visão de um homem procurado pela polícia, sem amigos
em Viena, falando ao telefone, deve ter sido o suficiente para alertá-lo. Ele saiu do café antes que Martins
pudesse recolocar o fone no gancho. Foi num dos raros momentos em que não havia nenhum de meus
homens no café. Um deles acabara de sair e o outro estava a caminho, ainda na calçada. Harry Lime
esbarrou nele e seguiu para o quiosque. Martins saiu do café e viu meu investigador. Se tivesse gritado
teríamos um alvo fácil, mas suponho que não era Lime quem fugia pela rua, e sim Harry. Martins hesitou

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tempo suficiente para que Lime sumisse atrás do quiosque. Depois, gritou: - É ele! – Mas Lime já
desaparecera debaixo da terra.
Que mundo estranho e desconhecido jaz sob nossos pés: vivemos acima de uma terra cavernosa de
cachoeiras e rios violentos, onde a maré sobe e desce como no mundo superior. Se já leram as aventuras de
Allan Quatermain e o relato de sua viagem pelo rio subterrâneo até a cidade de Milosis poderão visualizar a
cena da última jogada de Lime. O esgoto principal, com metade da largura do Tâmisa, corre sob arcos
enormes, alimentado por afluentes: aqueles afluentes caíram em cascata de alturas superiores e foram
purificados na queda, portanto o ar só é fétido nos canais laterais. A corrente principal exala um odor
fresco e adocicado, com um leve toque de ozônio, e por toda a parte, na escuridão, ouve-se o som de água
caindo e correndo. Passava pouco da maré alta quando Martins e o policial chegaram ao rio: primeiro, a
escada de ferro em caracol, depois uma passagem curta, tão baixa que os obrigou a agachar, depois a água
rasa da beirada lambeu seus pés. Meu investigador apontou a lanterna para a corrente, dizendo: - Ele foi
por ali – pois a correnteza da parte funda, ao se aproximar da borda rasa, ali deixava acumulados os
detritos, de modo que no esgoto o lixo tomava a margem calma, perto da parede, num amontoado de cascas
de laranja, maços de cigarro vazios e outras coisas, e ali Lime deixou uma trilha tão inconfundível que
parecia ter andado na lama. O policial apontou a lanterna para a frente, com a mão esquerda, empunhando
a arma com a direita. Ele disse a Martins: - Fique atrás de mim, senhor. O desgraçado é capaz de atirar.
- E por que você deveria ir na frente, então?
- Meu dever, senhor. – A água chegava até a altura dos joelhos, naquele trecho; o policial mantinha a
lanterna apontada para baixo e para a frente, seguindo a trilha do lixo deslocado, na beira do esgoto. Ele
disse: - O pior é que o sujeito não tem a menor chance. As saídas estão todas vigiadas, e bloqueamos a
passagem para a zona russa. Só o que nossos colegas precisam fazer agora é avançar pelas passagens,
descendo pelas aberturas dos bueiros. – Ele tirou um apito do bolso e soprou. Longe, muito longe, aqui e
ali, vieram as respostas sonoras. Ele disse: - Estão todos lá. Quero dizer, a polícia do esgoto. Conhecem
este lugar como eu conheço Tottenham Court Road. Queria que minha mulher me visse aqui, agora – disse,
e ergueu a lanterna por um momento para focalizar o caminho, e foi então que levou o tiro. A lanterna caiu
de sua mão, na água. Ele disse: - Filho da mãe!
- Está ferido?
- Um tiro de raspão na mão, só isso. Uma semana de folga no serviço. Pegue a outra lanterna enquanto dou
um jeito na minha mão. Não acenda. Ele está numa das passagens laterais. – Por um bom tempo o som do
tiro reverberou: quando o último eco morreu, um apito soou à frente deles, e o companheiro de Martins
respondeu.
Martins disse: - Estranho, isso. Nem mesmo sei seu nome.
- Bates, senhor. – Ele riu alto, na escuridão. – Esta não é a minha área, normalmente. Conhece o
Horseshoe, senhor?
- Sim.
- E o Duke of Grafton?
- Sim.
- Bem, o mundo dá muitas voltas.
Martins disse: - Deixe que eu vá na frente. Duvido que atire em mim, e quero falar com ele.
- Recebi ordens de tomar conta do senhor. Tenha cuidado.
- Tudo bem. – Ele passou por Bates, enfiando o pé na parte mais funda ao fazer isso. Quando ficou na
frente, gritou: - Harry! – e o nome ecoou, - Harry, Harry, Harry! – atravessou a corrente a despertou um
coro de apitos na escuridão. Ele gritou de novo: - Harry! Saia. Não adianta.
Uma voz assustadoramente próxima fez com que grudassem na parede. – É você, meu caro? – O que quer
que eu faça?
- Mostre-se. Saia com as mãos acima da cabeça.
- Não tenho lanterna, meu caro. Não vejo nada.
- Tome cuidado, senhor – Bates alertou.
- Cole na parede. Ele não vai atirar em mim. – Martins disse. E gritou: - Harry, vou acender a lanterna.
Jogue limpo, saia daí. Você não tem a menor chance. – Ele acendeu a lanterna e, a uns cinco metros de
distância, no final do alcance da luz, na beira da água, Harry se mostrou. – Mãos acima da cabeça, Harry. –
Harry ergueu o braço e atirou. A bala ricocheteou na parede, a centímetros da cabeça de Martins, e ele
ouviu o grito de Bates. No mesmo instante outra lanterna, a uns cinqüenta metros, iluminou o canal todo,
centrando o facho em Harry, depois em Martins e nos olhos arregalados de Bates, caído na beira da água,

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com o esgoto lavando sua barriga. Um maço de cigarro vazio deslizou até sua axila e parou ali. Meu grupo
chegara ao local.
Martins tremia, parado acima do corpo de Bates, e Harry Lime ficou entre nós. Não podíamos atirar por
medo de atingir Martins, e a luz da lanterna cegava Lime. Avançamos lentamente, com os revólveres
apontados, à espera de uma chance, e Lime virava para um lado e para outro, como um coelho ofuscado
pela luz. De repente ele saltou e mergulhou no meio da correnteza, na parte mais funda. Quando apontamos
a lanterna para lá ele já havia submergido, e a corrente do esgoto o carregou rapidamente, fazendo com que
ultrapassasse o corpo de Bates e saísse do alcance da lanterna, na escuridão. O que faz com que um
homem, sem a menor esperança, se agarre a mais alguns minutos de existência? Isso é uma qualidade ou
um defeito? Não faço a menor idéia.
Martins parou na borda da área iluminada pela lanterna, olhando para a correnteza. Empunhava a arma
agora, e era o único de nós em condições de disparar com segurança. Pensei ter percebido um movimento e
gritei para ele: - Ali, ali. Atire. – Ele ergueu a arma e atirou, assim como havia atirado ao mesmo comando
anos antes, em Brickworth Common, e como naquela época, imprecisamente. Um grito de dor salpicou a
caverna: uma censura, uma súplica. – Muito bem – falei, parando onde estava o corpo de Bates. Falecera.
Seus olhos permaneciam abertos, olhando para o nada, quando o focalizamos com a lanterna; alguém
empurrou o maço vazio com o pé, para deslocá-lo, e o jogou na corrente, que o fez girar – vislumbre de
amarelo, Gold Flake: sem dúvida ele estava muito longe de Tottenham Court Road.
Ergui os olhos, mas Martins estava fora do alcance da vista, sumira no escuro. Chamei seu nome, que se
perdeu numa confusão de ecos, no ímpeto e no bramido do rio subterrâneo. Então ouvi o terceiro tiro.
Martins me contou, depois: - Desci no sentido da correnteza para procurar Harry, mas devo ter perdido sua
pista, na escuridão. Temia erguer a lanterna: não queria tentá-lo a atirar novamente. Ele deve ter sido
atingido por meu disparo bem no acesso a uma passagem lateral. Suponho que tenha se arrastado pela
passagem, até o pé da escada de ferro. Dez metros acima de sua cabeça havia um bueiro, mas ele não teria
forças para levantar a tampa, e mesmo que o fizesse a polícia estava esperando, em cima. Ele sabia disso,
mas sentia muita dor, e assim como um animal procura a escuridão para morrer, creio que o ser humano
procura a luz. Ele quer morrer em casa, e a escuridão nunca é para nós um lar. Ele começou a subir a
escada, mas a dor era muita e ele não conseguiu prosseguir. O que o levou a assobiar aquele trecho absurdo
da melodia que eu fora estúpido o bastante para acreditar ser de sua autoria? Estaria tentando atrair a
atenção, queria o amigo a seu lado, mesmo que fosse o amigo que o atraíra para uma armadilha, ou
delirava e não tinha mais nenhum objetivo? De todo modo, ouvi o assobio e segui pela beirada, tateando
até chegar ao final da parede e seguir pela passagem onde ele estava. Chamei: - Harry – e o assobio cessou,
bem acima da minha cabeça. Segurei uma alça de metal e comecei a subir. Ainda temia que fosse atirar.
Então, três degraus acima apenas, meu pé pisou em sua mão, e ele estava lá. Apontei a lanterna para ele:
não portava a arma, deve ter caído quando meu tiro o pegou. Por um momento pensei que estivesse morto,
mas ele gemeu de dor. Falei: - Harry, - e ele com muito esforço abriu os olhos e fitou meu rosto. Tentava
falar, e eu me abaixei para ouvir. – Perfeito idiota – ele disse, e foi tudo. Não sei se ele se referia a si
próprio – uma espécie de ato de contrição, por mais inadequado que fosse (ele era católico) – ou a mim,
com minhas mil libras por ano e meus ladrões de gado imaginários que não conseguiam nem acertar um
tiro num coelho? Depois ele começou a gemer novamente. Não suportei mais e atirei nele de novo.
- Vamos esquecer esta parte – falei.
- Eu não vou esquecer nunca.

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O degelo começou naquela noite, por toda Viena a neve derreteu, e as ruínas medonhas ficaram novamente
à vista; postes de aço pendurados feito estalactites, vigas enferrujadas projetadas como ossos para fora da
lama acinzentada. Os enterros se tornaram bem mais simples do que na semana anterior, quando as
britadeiras foram necessárias para romper o solo congelado. Estava quase tão quente quanto num dia de
primavera quando Harry Lime teve seu segundo funeral. Fiquei contente por vê-lo novamente debaixo da
terra, mas isso provocara a morte de dois homens. O grupo ao pé da sepultura diminuíra, agora: Kurtz não
aparecera, nem Winkler – só a moça, Rollo Martins e eu. E não houve derramamento de lágrimas.
Assim que tudo terminou a moça se afastou sem dirigir a palavra a qualquer um de nós, e seguiu pela longa
alameda que dava na entrada principal e no ponto do bonde, pisoteando a neve derretida. Falei a Martins: -
Tenho transporte. Quer uma carona?
- Não – ele disse. – Vou pegar o bonde de volta.
- Você venceu. Provou que sou um idiota.
- Não venci – ele disse. – Perdi. – E o observei enquanto apressava o passo de suas pernas enormes, atrás
da moça. Ele a alcançou e os dois caminharam lado a lado. Não creio que tenha dito nada a ela: era como
um final de história, exceto que ela segurava o braço dele quando sumiram de vista – que é como
geralmente as histórias começam. Ele atirava muito mal, avaliava muito mal o caráter das pessoas, mas
tinha jeito para o faroeste (habilidade em criar tensão) e com as moças (disso eu não sabia). E Crabbin?
Bem, Crabbin ainda está discutindo as despesas de Dexter com o British Council. Eles alegam que não
podem fazer pagamentos simultâneos em Estocolmo e Viena. Pobre Crabbin. Pobres de todos nós, se
pensarmos bem no caso.

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