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O CAMINHO CHASSÍDICO PARA A ALEGRIA

Rabi Shloma Majeski

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Índice

Prefácio

Capítulo Um

Compreensão, a Fonte da Alegria

Capítulo Dois

Felicidade em Todos os Momentos

Capítulo Três

A Luz no Final do Túnel

Capítulo Quatro

Expandindo Horizontes

Capítulo Cinco

Busca Sob a Superfície

Capítulo Seis

Enfrentando Desafios

Capítulo Sete

Controle da Mente

Capítulo Oito

Crescer na Dor

Capítulo Nove

Ir Além do ‘Eu’

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Capítulo Dez

Deixar para Lá

Capítulo Onze

Simchá: Uma Dinâmica do Fortalecimento

Capítulo Doze

Um Pára-raios para os Reinos Espirituais

Trechos Escolhidos de Sichot de Shabbos Parshas Ki Seitzei, 5748

Trazendo Mashiach com Felicidade

Glossário

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Prefácio

Simchá, a alegria, embora seja uma das qualidades mais desejadas, é uma das mais fáceis de adquirir.

As dificuldades que uma pessoa sente na verdade indicam que ela está seguindo o caminho errado, pois

a genuína felicidade constitui expressão da compreensão e da verdade interior, qualidades inerentes a

todos nós. Por outro lado, a tristeza e a depressão incapacitam milhares de indivíduos inteligentes e

capazes, além de tirar a alegria de viver de muitos outros.

O que temos na base deste fenômeno? Por que determinados indivíduos se refazem depois de sofrer os

horrores do Holocausto, reconstruindo suas vidas de forma magnífica, enquanto a outros basta perder a

chave do carro para mergulhar numa crise profunda?

Por mais de dois séculos os ensinamentos místicos do Chassidismo produziram indivíduos admirados

por sua alegria e inspiração. Essa energia e vida radiante resultam da profunda conscientização

espiritual e da clareza absoluta de seu rumo. São pessoas que têm um propósito, e cuja vitalidade nele

se funda.

Observei, nos anos em que fui Diretor do Machon Chanah Women’s College de Crown Heights e nas

séries de conferências proferidas em todo o país, os efeitos positivos de levar os ensinamentos

Chassídicos a pessoas imbuídas de valores contemporâneos, com pouco envolvimento no Judaísmo.

Muitos homens e mulheres, com disposição e entusiasmo, foram capazes de aplicar essas verdades a

suas vidas e iniciar a jornada no conhecido caminho para a pura felicidade interior.

Eles me inspiraram a preparar fitas de áudio com essas lições. E o amplo interesse nas fitas serviu como

motivação para que eu levasse adiante a tarefa de comunicar a mesma mensagem em forma de livro.

***

Embora se possa sentir alegria a sós, a felicidade é estimulada pela presença dos outros. De fato, a

celebração exuberante só pode ser vivenciada na companhia de outras pessoas. Dentro da mesma linha

de raciocínio, esse livro reflete a união dos esforços de muitas pessoas. Meus agradecimentos a:

Dvorah Huntsman Klein e Ruth Pepperman, pela transcrição das fitas;

Eli Touger, por ajudar a transferir o material de seu formato verbal para um texto legível;

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Ira Jacobson, pela edição de texto;

Yosef Yitzchok Turner pela programação visual e digitação; e

Rabi Yonah Avtzon, Diretor do Sichos (*) In English, cujo apoio e encorajamento em todas as fases do

projeto tornou esse livro possível.

(*) Usamos Sichot, em geral. No caso, manter pois é nome de instituição, ou substituir tudo por “Sichot

em Inglês.”

Que a felicidade por nós sentida na presente época prenuncie o regozijo absoluto que todos nós

desfrutaremos com a chegada da Redenção, quando os Judeus do mundo inteiro seguirão para Eretz

Yisrael, nossa Terra Santa, “coroados de eterna alegria”. (1)

(1) Yeshayahu 35:10, 51:11

***

A verdadeira fonte de inspiração para sair e divulgar os ensinamentos de Chassidut, bem como o

conceito Chassídico da alegria, é o próprio Rebe de Lubavitch, que nos estimula, encoraja e inspira

constantemente a compartilhar a beleza de Chassidut com todos aqueles que estão ao nosso alcance.

Desde o 3 de Tammuz, quando ocorreu o passamento do Rebe, muitas pessoas tentaram expressar seus

sentimentos a respeito da grandeza do Rebe, e contudo todos chegaram à mesma conclusão, sintetizada

nas palavras de Akdomos: “Se todas as árvores fossem penas e todos os oceanos tinta, todos os céus

pergaminhos e todas as pessoas escribas”, tudo isso ainda seria insuficiente para expressar o que

realmente sentimos. A magnitude da grandeza do Rebe e suas conquistas em absolutamente todas as

áreas de Yiddishkeit estão totalmente além da capacidade de descrição.

Não obstante, com referência à questão de Simchá/Alegria, podemos afirmar com segurança que o Rebe

e o conceito Chassídico de alegria são completamente iguais!

A atitude do Rebe em relação a tudo na vida dá ênfase ao lado positivo e a Simchá. Isso é mais do que

evidente em suas palestras, suas cartas e seus conselhos às pessoas durante Yechidus (audiências

particulares).

O próprio Rebe personifica Simchá e transmite a todos que o rodeiam esperança, vitalidade e alegria.

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Quando ele entrava ou saía da sinagoga, entoava sempre uma canção de Simchá. Nos Farbrenguens

(encontros Chassídicos) jamais faltavam os cantos de regozijo. Onde quer que o Rebe fosse, enquanto

caminhava ele movia as mãos, estimulando o alegre canto Chassídico.

Quem entrava em contato com ele, fosse doente, pobre, órfão, viúvo, solitário, confuso ou meramente

pessimista, percebia que o Rebe tinha consciência e compreensão da dor sob o ponto de vista da pessoa,

encontrando sempre um jeito de tocá-las, proferindo as palavras adequadas ou simplesmente acenando e

sorrindo, de modo a animar, inspirar e levar Simchá a todos.

No mês de Elul, durante o ano de 5748, o Rebe introduziu Simchá como o modo de agir fundamental

para promover a chegada do Mashiach. Essa palestra descreve a ligação entre Redenção e Simchá, e foi

colocada no final do livro, pois após a compreensão da abordagem Chassídica da alegria será possível

apreciar melhor as palavras do Rebe.

O Rebe reiterou que nossa geração será certamente a última geração do exílio e a primeira geração a

experimentar a Redenção. O Rebe divulgou a profecia de que a chegada do Mashiach é iminente, e o

que devemos fazer agora – ele disse – é aceitar o Mashiach. Ele declarou que o Mashiach já está aqui e

revelado, ele já começou a promover as mudanças maciças no mundo (a saber, o processo de redução

dos armamentos nucleares e o movimento no sentido da paz mundial), declarando abertamente que “seu

nome é Menachem”. Portanto, acalentamos e manifestamos a esperança de merecer imediatamente ver

o Rebe Melech HaMashiach num corpo físico; ele nos conduzirá ao final do exílio e promoverá a

verdadeira alegria ilimitada para o povo Judeu e para o mundo inteiro.

Rabi Shloma Majeski

Purim, 5755

Crown Heights, N. Y.

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Capítulo Um

COMPREENSÃO, A FONTE DA ALEGRIA

Simchá, a alegria, é um dos elementos mais essenciais do modo de vida chassídico. De fato, nos

estágios iniciais do movimento Chassídico, antes que a palavra chassidim fosse cunhada, um dos nomes

provisórios usados para definir os chassidim era di freilicha, que significa “os felizes”. Como se pode

identificar e definir um chassid? Vendo se ele é b’simchá, feliz e contente.

Os Rebeim, líderes do movimento chassídico, sempre enfatizam a importância da felicidade e exortam

seu seguidores a se empenharem na eliminação de todos os traços de tristeza e depressão. R. Shlomo de

Karlin dizia que a depressão é a porta para a entrada de todo o mal. Em outra ocasião, R. Shlomo disse

que, embora os 365 mandamentos negativos não incluam um mandamento proibindo a depressão, o

dano que a melancolia e a depressão podem causar é pior do que o dano causado por qualquer pecado.

Segundo o Baal Shem Tov (1), quando o yetzer hará (a inclinação para o mal) tenta persuadir uma

pessoa a cometer um pecado, pouco lhe importa se a pessoa chegará ou não a pecar. Seu objetivo é vê-

la, após o pecado, afundar na depressão e melancolia. Em outra palavras, a depressão que acompanha o

pecado pode causar mais prejuízo espiritual do que o próprio ato de pecar.

(1) Tzavos HaRivosh, cap. 44.

A ênfase chassídica na alegria tem raízes nos ensinamentos da Kabalá. Seguindo essa linha, o AriZal

ressalta que a Torá (2) nos alerta para as inúmeras punições rigorosas que virão “em troca de não teres

servido ao Eterno, teu D’us, com alegria e com bondade de coração.” Outros comentários (3) explicam

que a intenção do versículo é mostrar que os castigos virão por que as pessoas não serviram a D’us em

tempos de alegria e prazer. O AriZal sustenta (4), porém, que o versículo deve ser entendido

literalmente. Qual a razão para as punições que afligirão nosso povo? Que a seu serviço Divino faltava

simchá; faltavam a vitalidade, energia e ligação com D’us que a alegria confere ao serviço Divino.

(2) Deuteronômio, 28:47.

(3) Rashi, loc. cit.

(4) Ver Likkutei Sichot, Vol. XX, p. 552.

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A energia de uma pessoa triste ou deprimida se esvai; enfraquecida, ela pode ser dominada por sua

inclinação para o mal. Uma analogia ilustra isso: quando dois homens lutam, se houver um mais forte

ele derrotará o mais fraco. No entanto, se ao lutador mais forte faltar vitalidade, em conseqüência da

depressão, então um oponente fraco, porém cheio de energia, poderá derrotar o mais forte. (5)

(5) Ver Tanya, Capítulo 26.

Poderíamos perguntar: Por que esses ensinamentos se identificam com o pensamento chassídico? Tais

conceitos, à primeira vista, seriam aceitos por elementos de todos os setores do pensamento judaico. Na

verdade, se forem ligeiramente ampliados, poderiam ser compreendidos e aceitos por pensadores

seculares, também. Ora, por que então eles se identificam com o Chassidismo?

A resposta (6) é que a base teórica capaz de permitir que uma pessoa transfira esses ideais do plano

abstrato para o factual é inerente ao Chassidismo. O Chassidismo ensina que a vitalidade e até a própria

existência do mundo inteiro dependem totalmente de D’us. Cada elemento da criação é uno com D’us.

Sem essa energia Divina, nada poderia existir.

(6) Ver Tanya, Iggeres HaKodesh, Epístola 11.

Isso conduz à apreciação de hashgachá pratit, a Divina Providência. Tudo que ocorre, e não apenas o

que acontece às pessoas, mas também tudo que se passa com objetos inanimados, acontece como

resultado direto da vontade de D’us. Não só todos os entes do mundo existem em conseqüência da força

vital de D’us; todos os eventos que se passam no mundo também resultam do fato de D’us fazer com

que ocorram. (7)

(7) Ver o ensaio intitulado Master Plan: The Baal Shem Tov’s Unique Conception of Divine

Providence (Sichot in English, 5752).

A conscientização desses conceitos leva diretamente à simchá. Pois uma pessoa consciente de que tudo

que lhe acontece é controlado por D’us, certamente vive feliz. De fato, quando uma pessoa não sente tal

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felicidade, está insinuando – que os céus nos livrem – que o ocorrido não ligação com D’us, ou que

D’us provocou o evento, mas – que os céus nos livrem – D’us não é bom.

Se alguém se levanta e declara que tudo o que acontece não vem de D’us, então está negando a unidade

de D’us. Mesmo quando alguém evita tais declarações, mas age de maneira a deixá-las implícitas – por

exemplo, ficando triste – as implicações são as mesmas.

Atos falam mais alto que as palavras, sem dúvida. Ao se mostrar melancólica, a pessoa nega a unidade

de D’us. Nega o fato de que tudo no mundo está permanentemente ligado a D’us, e que todos os

acontecimentos são controlados pela Divina Providência.

É por isso que o Chassidismo, que enfatiza com muita clareza e energia a ligação entre a criação e

D’us, dá tanta importância a simchá. Além da contribuição de simchá ao nosso divino serviço – pois,

como foi dito acima, quando uma pessoa está triste ela se torna fraca e vulnerável, e a inclinação para o

mal pode tomar conta dela – algo muito maior do que a personalidade individual está em questão. A

felicidade e seu oposto estão ligados à consciência da unidade de D’us e Sua providência constante.

Nesse contexto podemos compreender um conceito original, ensinado por nossos Sábios. Nossos Sábios

declaram (8) que uma pessoa, se perder a calma, é considerada igual a quem adora ídolos. Qual é a

relação entre perder a calma e idolatria?

Perder a calma é obviamente indesejável. Indica falta de controle; é socialmente inaceitável; no entanto,

qual sua relação com a adoração de ídolos? A resposta é a seguinte: quando uma pessoa perde a calma,

no fundo está negando que um fato veio de D’us. Se acredita que tudo vem de D’us, que D’us é bom e

que todos os atos de D’us são bons, não há motivo para se perder a calma, assim como não há condição

para depressão e tristeza.

Certa vez, um homem procurou o R. Dob Ber, o Maggid de Mezeritch, e perguntou: “Rebe, nossos

Sábios dizem que devemos agradecer a D’us quando algo de bom acontece, e também que devemos

agradecer a D’us da mesma maneira quando acontece alguma coisa negativa. (9)Como isso pode ser

entendido?”

(9) Berachos 54a.

O Maggid de Mezeritch sugeriu: “Procure um aluno meu, R. Zushya. Ele lhe explicará isso.”

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Ao encontrar R. Zushya o homem viu, olhando para o rosto e para as roupas do estudante, que ele não

se alimentava bem, por falta de dinheiro, e também não podia comprar roupas decentes. Tudo nele

indicava privação, mas seu rosto irradiava felicidade. “Trata-se certamente de uma pessoa capaz de

responder minha pergunta”, disse de si para si.

Ele contou a R. Zushya que o Maggid dissera para procurá-lo, para que explicassem como uma pessoa

poderia agradecer a D’us pela adversidade.

R. Zushya o olhou, intrigado. “Não sei como responder essa pergunta”, retrucou. “Essa questão deve

ser respondida por alguém que já sofreu. E eu jamais experimentei o sofrimento em minha vida.”

R. Zushya estava dizendo ao homem que todos os acontecimentos são obra de D’us e controlados pela

Divina Providência. Ele sabia com certeza que D’us é bom. Para ele, era claro como o dia que tudo que

acontecia era bom. Sendo assim, jamais experimentara o sofrimento em sua vida.

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Capítulo Dois

Felicidade em Todos os Momentos

Os conceitos anteriores são meras teorias, ou podemos aplicá-los em nossas vidas, para valer? Como

podemos aprender a lidar com as coisas desagradáveis que nos acontecem? Por vezes, elas são muito

dolorosas, e nos magoam. Como afirmar que todos os acontecimentos – mesmo os dolorosos – são

bons, pois se originam de D’us?

O Talmud conta a história de dois sábios, Rabi Akiva e seu mestre, Nachum Ish Gamzu, cuja conduta

nos dá exemplos ilustrativos de como resolver essas questões. Rabi Akiva costumava repetir

continuamente uma frase, Kol mah d’oveid Rachmono, l’tov oveid, que significa: “Tudo que D’us faz é

para o bem.” (1)

(1) Berachos 60b.

Nachum Ish Gamzu usava uma frase similar. Ele dizia gam zu l’tovah, ou seja, “Isso também é para o

bem.” (2) De fato, ele repetia a frase tantas vezes que as pessoas o chamavam de Nachum Ish Gamzu,

ou seja, Nachum, o homem de Gamzu – o homem que sempre diz gam zu l’tovah.

(2) Taanis 21a. Ver também Likkutei Sichot, Vol. II, p. 393ff, que explica os contrastes entre os

caminhos do serviço Divino ensinados por esses dois Sábios.

À primeira vista, parece que ambos estão dizendo a mesma coisa, embora usem palavras diferentes.

Mas a verdade é que a diferença entre eles vai além da semântica. Cada um adotava uma abordagem

diferente, e tinha um nível diferente de percepção de como tudo que acontece vem de D’us e é bom. A

diferença entre eles é mostrada nas histórias que o Talmud conta a respeito de cada um deles,

mostrando como seus lemas eram aplicados à experiência real.

O Talmud conta que, certa vez, Rabi Akiva precisava de um lugar para dormir, durante uma viagem.

Ele bateu na porta de uma das casas da cidade pela qual passava, mas o dono não o convidou a entrar.

Ele não se irritou, pois sabia que “Tudo que D’us faz é para o bem.”

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Ele bateu em outra porta, mas novamente não lhe ofereceram hospitalidade. Sua reação continuou

sendo a mesma, “Tudo que D’us faz é para o bem.” Mesmo depois de seguir de porta em porta,

percebendo que ninguém naquela cidade o aceitaria como hóspede, ele continuou dizendo: “Tudo que

D’us faz é para o bem.”

Ele não teve escolha senão dormir no bosque que havia na periferia da cidade. Viajava com um

jumento, que carregava sua bagagem, um galo para acordá-lo pela manhã e uma lamparina a vela para

estudar à noite. Pouco depois que montou seu acampamento, um leão devorou o jumento e o galo foi

morto por outro predador. Além disso, o vento forte apagou sua vela. Depois de todos esses eventos,

Rabi Akiva disse: “Tudo que D’us faz é para o bem.”

O Talmud prossegue, dizendo que ele estava certo. Na manhã seguinte, descobriu que uma legião

romana havia atacado a cidade durante a noite, capturando seus moradores. Se tivesse sido aceito como

hóspede numa das casas, ele também teria sido aprisionado.

Se o jumento ou o galo estivessem vivos, os sons que emitiam teriam atraído a atenção dos legionários.

Se a lamparina estivesse acesa, sua presença no bosque teria sido notada. “Tudo que D’us faz é para o

bem.”

A história de Nachum Ish Gamzu ocorreu no seguinte cenário: O imperador romano emitira um decreto

terrível contra os Judeus de Eretz Yisrael. Os Judeus enviaram Nachum Ish Gamzu como representante,

para pedir ao imperador que anulasse o decreto. Ele recebeu um baú cheio de pedras preciosas, para

entregar ao imperador como presente, na esperança de agradá-lo.

No caminho, Nachum Ish Gamzu parou numa hospedaria. O dono se deu conta de que o Rabi carregava

jóias em seu baú. Durante a noite, ele e a família removeram as gemas e encheram o baú de areia.

Quando Nachum acordou na manhã seguinte e se preparava para seguir viagem, notou a mudança no

peso. Embora percebendo que as jóias haviam sido roubadas e substituídas por areia, ele não se abalou.

Ele disse gam zu l’tovah, “isso também é para o bem”, e seguiu para Roma. Chegando lá, conseguiu

uma audiência com o imperador, entregando o presente do povo Judeu antes de fazer o pedido.

Quando o imperador abriu o baú e viu a areia, ficou furioso e ordenou que o Rabi fosse atirado ao

calabouço. Um dos conselheiros do rei – na verdade, segundo o Talmud, não se tratava realmente de

um conselheiro, e sim de Elijah, o Profeta, disfarçado – manifestou-se em favor do Rabi.

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“Acha que os Judeus perderam o juízo?” Ele perguntou ao imperador. “Eles vieram aqui para agradá-lo

e pedir um favor. Por que lhe fariam um desaforo? O Rabi sabe que poderia ser morto, por trazer

areia.”

“Essa não pode ser uma areia comum. Deve ter algo de especial. Segundo a tradição judaica, seu

antepassado Abraham usou areia especial para derrotar os inimigos. Ele lutou contra três reis

poderosos. Como conseguiu vencê-los? Jogando areia para o alto, pois a areia se transformava em setas

e lanças. Talvez essa areia seja aquela mesma areia especial.”

O imperador aceitou experimentá-la. Os romanos travavam uma guerra, naquela época, e levaram a

areia para a frente de batalha. Lá, o milagre se repetiu. Eles atiraram a areia para o alto e ela se

transformou em setas e lanças. Atônito e apavorado, o inimigo foi rapidamente derrotado.

Desnecessário dizer, o imperador ficou muito contente com a notícia. Ordenou que Nachum Ish Gamzu

fosse tirado da masmorra e agradeceu o magnífico presente que ele havia trazido. Anulou o decreto

contra os Judeus, encheu o baú que o Rabi lhe dera com pedras preciosas e o devolveu, como presente.

As duas histórias têm uma semelhança fundamental. Tanto Rabi Akiva quando Nachum Ish Gamzu

acreditavam com firmeza que tudo que acontecia era positivo por natureza. Mesmo quando

confrontados com a adversidade, após um curto intervalo de tempo eles viram que suas crenças tinham

fundamento. Apesar das circunstâncias desfavoráveis em que se encontravam chegaram a um desfecho

positivo.

Não obstante, se examinarmos as duas histórias em detalhe, poderemos discernir as diferenças nas

abordagens dos dois Sábios. A afirmação de Rabi Akiva, “Tudo que D’us faz é para o bem”, pressupõe

que D’us está por trás da situação, uma vez que ela foi provocada pela Divina Providência. Portanto,

podemos ter certeza de que, no final, chegaremos a um resultado favorável.

Em outras palavras, a situação em si pode ser dolorosa ou desagradável, mas resultará num desfecho

positivo. Se conhecêssemos os resultados positivos desde o início, teríamos concluído que valia a pena

enfrentar a experiência negativa, em prol da experiência positiva. Rabi Akiva ensinava que uma pessoa,

mesmo sem ter esse conhecimento prévio, devia manter a fé de que D’us estava controlando a

experiência, e portanto aceitar tudo com alegria.

Uma analogia ilustra isso: Vamos pensar numa pessoa que está sendo operada. Se alguém não souber

nada a respeito da medicina moderna, entrará na sala de cirurgia e ficará apavorado com a cena. Verá

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uma pessoa deitada numa mesa, com as mãos e os pés atados. Um sujeito mascarado se debruça, com

uma faca na mão, e começa a cortar a carne do paciente.

Não seria surpresa se o sujeito gritasse: “Assassino!” Contudo, ele gritaria só por causa de sua

ignorância, pois ele não sabe qual o objetivo da cirurgia. Reagiria de modo diferente se soubesse que se

trata de um procedimento de cura, para melhorar a saúde do paciente. Na verdade, o paciente está

pagando caro pela operação, e talvez tenha esperado semanas, ou meses, até chegar sua vez.

Qual é o sentido dessa analogia? A cirurgia é um procedimento doloroso, desconfortável, desagradável.

No entanto, a pessoa se dispõe a passar por tal experiência, pois acredita que o resultado será positivo, a

ponto de tudo valer a pena.

Era assim que Rabi Akiva via tudo na vida. Ele sabia que tudo vinha de D’us. E acreditava que até

mesmo as experiências dolorosas e negativas conduziriam a algo positivo, no final. Esses conceitos

estão presentes na história contada anteriormente. Rabi Akiva enfrentou a adversidade. Da experiência

negativa, porém, surgiu algo de bom. E, de fato, o bom desfecho valia as experiências negativas que o

precederam.

A atitude de Nachum Ish Gamzu foi ainda mais profunda. Ele acreditava que todas as situações eram

produzidas pela Divina Providência, e que não apenas uma situação aparentemente desfavorável

conduzia a um desfecho positivo, como ela era, em si, um evento positivo. “Isso também é para o bem.”

No caso da história contada anteriormente, a troca das gemas por areia foi uma coisa positiva. Embora

no momento ninguém percebesse que era positiva, Nachum Ish Gamzu tinha fé. Depois de alguns dias,

todos descobriram que ele tinha razão.

A troca funcionou de maneira mais eficiente do que se poderia imaginar. Quem poderia afirmar que as

pedras preciosas e jóias impressionariam o rei? Gemas não eram novidade, para ele. A areia, por outro

lado, foi capaz de impressionar o rei, provocando um forte impacto.

Por que nós não podemos, assim como Nachum Ish Gamzu, sermos felizes em todas as situações?

Vamos falar sem rodeios: somos cegos e ignorantes. Não nos aprimoramos; ademais, mesmo a pessoa

mais elevada não pode ter a mesma compreensão que D’us. Portanto, nem sempre conseguimos ver ou

entender que a situação é boa.

Vamos pensar num outro exemplo, o da mãe que alimenta o filho. Uma pessoa, passando pela frente da

casa, talvez ouça gritos e choro, pensando que a criança está histérica. O passante espia pela janela e vê

a mãe na frente do filho. Com uma colher cheia na mão, tenta alimentar a criança.

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O que se poderia dizer? Que a mãe está fazendo algo negativo, que acabará provocando um resultado

positivo, ou o que ela faz é positivo em si? Não precisamos de muito tempo para chegar à resposta; na

verdade, a pergunta nem precisa ser formulada. A mãe está fazendo algo muito positivo. Ela contribui

para o fortalecimento, para a saúde e para o desenvolvimento do filho.

Por que a criança chora? Porque é pequena, e não entende que a mãe age em seu benefício. Sente-se

desconfortável com a colher na boca e a comida que cai por todo lado. Em conseqüência de sua falta de

compreensão, embora a mãe faça algo em seu benefício, o filho chora.

Uma criança, no final das contas, é apenas alguns anos mais nova do que sua mãe, e a diferença entre os

níveis de entendimento é perceptível. Mesmo assim, a criança sofre de uma incapacidade de

compreender que a impede que ver que a mãe está fazendo algo em seu benefício.

Tudo isso que foi dito não se aplica mais ainda em relação a D’us, que é infinito? Na verdade, quando

falamos de D’us, nem mesmo o termo “infinito” serve como descrição suficiente. Portanto, não admira

que nem sempre possamos entender o que D’us está fazendo, nem a razão pela qual Ele age de

determinada maneira, nem que Seus atos são na verdade benéficos. A dificuldade, contudo, deriva

apenas de nossa capacidade limitada de compreensão; na verdade, tudo que Ele faz é bom.

Uma vez que a Divina Providência controla tudo, uma pessoa jamais deve se considerar vítima das

circunstâncias. O que quer que lhe aconteça é ordenado por D’us, com um propósito que em última

instância faz bem à própria pessoa. Apenas, existem dois tipos de bem: o bem óbvio e o bem

disfarçado, que exige um estado de espírito como o de Nachum Ish Gamzu ou de Rabi Akiva para ser

percebido.

Creio que todos nós podemos entender isso, pois cada um de nós já passou por situações incômodas e

viu, pouco depois, que tudo acabou dando certo. Quantas vezes uma pessoa perde um compromisso, e

por perder esse compromisso salva-se de um investimento desfavorável ou se vê livre para usar o tempo

de maneira diferente, descobrindo uma oportunidade muito positiva?

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Capítulo Três

A Luz no Final do Túnel

Lançamos, anteriormente, as fundações para o conceito de que tudo acontece para o bem, postulando

que isso se dá porque tudo que acontece é determinado pela Divina Providência. Nada acontece por

mero capricho da natureza; se D’us não deseja que aconteça, não pode ocorrer.

Além disso, D’us age com intenção. Sendo assim, uma vez que D’us é a epítome da bondade, tudo que

acontece tem uma razão positiva. Quando mais compreendemos essa conexão entre D’us e nosso

mundo – que são na verdade uma coisa só – e quanto mais compreendemos como D’us controla todos

os eventos, mais conseguimos compreender que tudo é bom, em última análise.

Contudo, acontecem certas coisas na vida que não conseguimos conceber que são boas. Tentamos

adotar uma nova perspectiva, olhá-las de um novo ângulo, adotar outros ponto de vista, e mesmo assim

tais coisas não parecem boas. Na história de Rabi Akiva ou na de Nachum Ish Gamzu, demorou um dia,

ou vários dias, até todos conseguirem ver que o ocorrido era bom. Há, porém, momentos em que não

conseguimos estabelecer essa ligação. De fato, por vezes vemos uma pessoa praticar uma ação boa, ou

particularmente agradável, e depois de algum tempo ela acaba sofrendo em conseqüência dela.

Como isso pode ser explicado? Uma das explicações clássicas deriva de uma história do Midrash (1),

que descreve a jornada empreendida por um de nossos Sábios, Rabi Yehoshua bem Levi, na companhia

de Eliyahu HaNovi, o Profeta Elijah.

Certa vez, quando o Rabi Yehoshua encontrou Eliyahu HaNovi, ele pediu a Eliyahu que permitisse

acompanhá-lo, para que aprendesse observando sua conduta. Eliyahu recusou, explicando que o Rabi

Yehoshua não conseguiria entender as coisas que veria. Pelo contrário, sua mente moral faria

incontáveis perguntas, mas não haveria tempo para explicações.

Mesmo assim, o Rabi Yehoshua bem Levi insistiu, pedindo e implorando; prometeu não fazer pergunta

alguma. Eliyahu finalmente cedeu, com a condição de que se separariam no momento em que Rabi

Yehoshua começasse a fazer perguntas.

Eles iniciaram a jornada, juntos. Perto do final da tarde, chegaram a uma choupana velha e instável. Na

porta, havia um casal de velhos sentados. Embora suas fisionomias revelassem muita dignidade, eles

eram obviamente pobres. A pobreza, porém, não diminuiu o entusiasmo com que receberam os

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visitantes. Ao verem os dois viajantes, levantaram-se animados e os convidaram a entrar em sua casa,

oferecendo-lhes comida e um lugar para dormir.

As acomodações eram precárias, pois o casal não tinha muitas posses. Entretanto, mostravam-se

dispostos a compartilhar tudo que possuíam, fazendo o máximo para observar a mitzvá de hachnosas

orchim, ou seja, demonstrar hospitalidade.

Na manhã seguinte, os dois viajantes se despediram do casal e retomaram seu caminho. Pouco depois

da partida, Rabi Yehoshua bem Levi viu que Eliyahu HaNovi orava. Ele apurou os ouvidos. O que

Eliyahu pedia? O casal que os hospedara possuía uma vaca. Esse era seu bem mais precioso, e a maior

parte da renda deles provinha do leite dessa vaca. No entanto, Eliyahu rezava para que a vaca morresse.

Quando Rabi Yehoshua ouviu isso, ficou chocado. O casal fora tão hospitaleiro, tão gentil, tão

agradável. Por que mereceriam a morte da vaca? Contudo, ele não podia fazer pergunta alguma: era

esse o combinado.

Conforme prosseguiam a jornada, eles começaram a conversar. Rabi Yehoshua esperava que Eliyahu

desse uma explicação para o ocorrido, ou pelo menos uma pista que o ajudasse a entender o caso. Mas,

que nada; em vez disso, ele desviava a conversa para outros assuntos. Quando a tarde caía, chegaram a

uma mansão magnífica. Embora muitos residentes os vissem, ninguém lhes ofereceu pousada.

Eles pediram ao dono da casa, um homem muito rico, permissão para passar a noite lá. Relutante, o

sujeito concordou. Tratou-os, porém, com muita frieza; não ofereceu comida e pouco conversou com

eles.

Na manhã seguinte, depois que haviam retomado a caminhada, Rabi Yehoshua percebeu que Eliyahu

estava rezando novamente. O que pedia em suas orações, agora? Um dos muros da mansão estava

rachado e fraco. Eliyahu rezava a D’us para que o muro fosse reforçado e voltasse a ser forte e sólido.

O Rabi Yehoshua não conseguiu entender nada. O sujeito era um miserável, tratara-os sem a menor

consideração. Mesmo assim, Eliyahu orava a D’us para que o muro rachado recuperasse a solidez e a

firmeza. Novamente, porém, ele cumpriu o combinado: nada de perguntas.

Finalmente, os dois viajantes chegaram a uma linda cidade; cada canto refletia a opulência e a

prosperidade de seus ocupantes. Eles seguiram para a sinagoga, um prédio magnífico, construído com

elegância e bom gosto. Até os bancos eram maravilhosos.

Rabi Yehoshua bem Levi pensou que numa cidade daquelas jamais enfrentariam problemas para se

hospedarem. No entanto, não foi bem assim. As pessoas não foram nada gentis. Quando as preces se

124
encerraram, ninguém se aproximou deles, nem perguntou onde pretendiam comer ou dormir. No final,

tiveram de passar a noite na sinagoga, deitados nos bancos magníficos, sem jantar.

Na manhã seguinte, enquanto se aprontavam para partir, Eliyahu abençoou os habitantes da cidade,

desejando que todos se tornassem líderes. Mais uma vez, Rabi Yehoshua ficou intrigado. Por que

Eliyahu abençoava pessoas que negavam a hospitalidade?

Ao anoitecer, chegaram a outra cidade. Obviamente, não se tratava de uma comunidade próspera como

a anterior; a sinagoga perdia muito para a outra, em beleza. Por outro lado, as pessoas eram cordiais,

gentis e receptivas. Fizeram o possível para garantir o conforto dos viajantes. Antes de deixar a cidade,

Eliyahu disse a elas: “Que D’us os ajude, fazendo com que apenas um dentre todos se torne um líder.”

Naquela altura, Rabi Yehoshua já não conseguia mais conter sua curiosidade. Ele disse a Eliyahu: “Sei

que perderei o direito de acompanhá-lo, se fizer alguma pergunta, mas não agüento mais prosseguir

dessa maneira. Por favor, explique os quatro incidentes para mim.”

E Eliyahu começou a explicar: “O casal idoso que encontramos no começo era maravilhoso. Os dois

realizaram atos de imensa generosidade. Por isso, eu quis abençoá-los. Estava escrito que a mulher

faleceria naquele dia; seria o último dia de sua vida.”

“Contudo, ao nos hospedar, ela teve a oportunidade de realizar uma mitzvá. E o mérito da mitzvá da

hospitalidade, que ela realizou, foi grande o bastante para revogar o decreto, embora não

completamente. Por isso, rezei para que a vaca – tão importante para eles, pois era sua fonte de renda –

morresse. Com a morte da vaca, aquela senhora teria ainda muitos anos de vida. Portanto, a morte da

vaca foi, na verdade, uma bênção para eles.”

“Quanto ao sovina, havia um imenso tesouro enterrado sob o muro de sua mansão. No entanto, o muro

estava fraco, a ponto de desabar. Como ele foi muito miserável e se comportou de modo rude, orei para

que o muro continuasse em pé, evitando que ele se beneficiasse do tesouro.”

“No caso das pessoas da cidade rica”, Eliyahu prosseguiu, “minha prece pedia que todos se tornassem

líderes, o que não é benéfico para cidade alguma; na verdade, ocorre o contrário. A coisa mais

destrutiva que pode acontecer a uma cidade é que todos se tornem líderes.”

“Na outra, onde as pessoas foram gentis, ofereci uma bênção genuína: um, e apenas um dentre todos, se

tornaria um verdadeiro líder.”

A história contém uma lição para todos nós. Assim como Rabi Yehoshua bem Levi, precisamos nos dar

conta de que a vida é um imenso quebra-cabeças, com inúmeras peças, e que nós possuímos apenas

124
uma pequena parte delas. Sendo assim, é claro que temos muitas dúvidas. Isso é natural. Por o que

sabemos a nosso respeito e a respeito dos outros representa apenas uma pequena parcela de um quebra-

cabeças de 5.000 peças. Não admira que essas poucas peças dêem a impressão de que nada significam.

A forma das peças, a figura formada por sua combinação, não se parece com coisa alguma, nem parece

levar a lugar algum.

Isso se dá, porém, apenas porque temos poucas peças do quebra-cabeças de 5.000 peças. Quando

recebemos as quatro mil e novecentas e tantas peças restantes, adicionando as nossas poucas peças, tudo

se encaixa e vemos exatamente a cena formada.

Por isso, devemos ser pacientes e entender que não vemos a cena inteira. Não vemos de modo completo

nem a nossa vida, nem o que acontece perante nossos olhos, nem o que vai acontecer depois em nossas

vidas, nem as pessoas da comunidade, nem mesmo nossos pais e filhos. Portanto, nossa visão é muito

limitada, e não compreendemos muitas coisas que vemos.

124
Capítulo Quatro

Expandindo Horizontes

Como foi explicado no capítulo anterior, a expansão de nosso campo de visão conduz à possibilidade de

que existam processos causais em curso no mundo dos quais não temos consciência. Há questões,

todavia, que permanecem sem resposta. Como fica uma pessoa que – D’us nos livre – sofre de uma

doença crônica incurável? Ou - D’us nos livre – alguém que sofre um acidente e perde a vida? O que se

pode dizer, num caso assim? Como afirmar que isso conduz a algo de bom?

A resposta é que a pergunta continuará no ar, se a pessoa acredita apenas no mundo físico. No entanto,

nosso mundo não é o único ambiente da existência. Uma verdadeira concepção da realidade vai muito

além do mundo que enxergamos com nossos olhos materiais.

Para começar, existe uma outra vida, Olam HaBá, o Mundo que Virá. Olam HaBá é o mundo das

almas; depois que a alma deixa o corpo, ela ascende ao mundo espiritual. Contudo, esse não é o final da

jornada da alma.

No final, a alma descerá novamente, retornará ao mundo físico, ocupará outra vez seu corpo original.

Um dos Treze Princípios da Fé (1) é que na Era da Redenção os mortos serão ressuscitados. (2) Sendo

assim, a vida da alma não termina em nosso mundo material. Pelo contrário, ela vive eternamente em

Olam HaBá, e no final dos tempos ressuscitará em nosso mundo.

(1) Comentário de Rambam sobre Mishná, Introdução ao Décimo Capítulo de Sanhedrin. Uma forma

abreviada desses treze princípios (cada um deles começando por Ani Ma’amin) é impressa no final das

preces matinais de muitos siddurim.

(2) Ver os comentários de Rambam em Shaar HaGamul, no qual ele explica que a Era da Ressurreição

representará a recompensa final da alma, superando até mesmo as recompensas recebidas em Olam

HaBá.

Esse conhecimento amplia ainda mais a visão e nos dá um ponto de vista privilegiado para analisar

qualquer sofrimento surgido no decorrer da vida. É verdade que, na vida, uma pessoa pode sofrer, mas

124
em Olam HaBá, na vida da alma, ela receberá a recompensa e os benefícios que correspondem a cada

sofrimento.

Assim, em seu comentário sobre o Livro de Iyov (Jó) (3), Rambam afirma que uma pessoa, mesmo

sofrendo por um período de 70 anos – D’us nos livre – como Job, isso é insignificante, em comparação

com período de sofrimento, mesmo breve, que a alma passa em Guehinnom.

(3) Ver a explicação deste conceito em Tanya, Iggeres HaTeshuvá, capítulo 12.

Guehinnom indica o reino espiritual no qual a alma passa por um período de limpeza e correção, depois

que deixa nosso mundo material. Em alguns textos, esse processo de purificação e correção é chamado

de punição. O termo é algo enganoso, pois não há intenção de punir – que os céus nos livrem. Trata-se,

isso sim, de um processo de refinamento e correção. Contudo, é um processo doloroso, muito mais do

que qualquer dor que sejamos capazes de conceber. Como já foi dito, setenta anos consecutivos de

sofrimentos no mundo material, como no caso de Jó, são insignificantes quando comparados a um

instante de sofrimento em Guehinnom.

(O mesmo vale para o prazer. Todo o prazer que uma pessoa pode experimentar neste mundo é

insignificante, perto de um instante de prazer do mundo que virá.(4) )

(4) Pirkei Avot 4:17.

Em Sua gentileza, D’us permite que o sofrimento experimentado neste mundo tome o lugar do

sofrimento em Guehinnom. O movimento do sol serve como analogia para explicar isso. No espaço, o

sol se move a milhões de quilômetros por hora, mas nesse mesmo intervalo a sombra lançada pelo sol

num muro se move apenas alguns centímetros. Um centímetro de movimento aqui equivale a milhões

de quilômetros de movimento lá. (5)

(5) Ver Tanya, loc. cit.

De forma similar, um momento de sofrimento neste mundo físico compensa um sofrimento muito

maior no Mundo que Virá. E, nesse sentido, todo o sofrimento que uma pessoa enfrenta neste mundo

124
serve a um propósito benéfico, em última análise. Enquanto vivemos no mundo físico, nem sempre

temos consciência disso, mas reconheceremos finalmente essa realidade, no Mundo que Virá ou na Era

da Redenção.

Quando temos consciência desse conceito, a maneira com que vemos a vida ao nosso redor se

transforma. Certa vez, o Rebe de Lubavitch Anterior foi preso na Rússia, por divulgar as práticas

judaicas. Os indivíduos que prenderam o Rebe eram também Judeus; eles pertencia a uma facção

judaica do partido Comunista, conhecida como Yevseksia. Talvez sua própria origem judaica os tenha

levado a tentar reprimir a observância dos princípios judaicos com tanta crueldade e dureza. Eles

exigiram que o Rebe desse informações sobre a rede de yeshivás e chadarim clandestinos que montara,

revelasse a localização dos matadouros kosher, mikvaot e outros lugares. O Rebe Anterior não ficou

intimidado, recusando-se a revelar qualquer informação.

Finalmente, seu inquisidor pegou uma arma e a apontou para o Rebe, dizendo: “Está vendo esse

brinquedo? Ele já fez muita gente falar. E vai fazer com que você fale, também.”

O Rebe respondeu com firmeza: “Esse brinquedo só consegue amedrontar pessoas que têm só um

mundo, e muitos deuses. Uma pessoa que tem um único D’us e dois mundos não se intimida com esse

seu brinquedinho.”

O Rebe Anterior queria dizer que as pessoas conscientes da verdade absoluta e atentas aos dois mundos

– este mundo, físico, e também o mundo espiritual que virá – não se amedrontam com a possibilidade

da morte física, pois a vida não termina com ela. Portanto, o que aparenta ser uma tragédia neste mundo

pode ser o melhor, em última análise.

Esse conceito pode ser aceito facilmente, num sentido limitado. No entanto, muitos reclamarão se for

ampliado sem limites. Vamos pensar no Holocausto, por exemplo. Existe alguma maneira de explicar

que a morte cruel de seis milhões de Judeus foi benéfica?

A verdade é que não podemos explicar como tragédias desse porte são benéficas. Pelo contrário,

qualquer explicação ou racionalização que o homem possa elaborar parece vulgar e crassa. Afinal,

nenhum homem pode se considerar D’us e determinar as razões pelas quais uma pessoa deva viver ou

morrer.

Contudo, devemos ter em mente que nossa incapacidade de compreender e explicar não altera o fato de

que o Holocausto e outros eventos terríveis que ocorrem neste nosso mundo, assim como qualquer

outro que ocorra aqui, até uma folha soprada pelo vento, são controlados pela Divina Providência. E, se

124
todos os eventos são controlados pela Divina Providência, então sem dúvida D’us tem seus motivos

para promovê-los. Não conseguimos entender Suas razões, pois Ele e Sua sabedoria são infinitos, mas

nossa falta de capacidade para compreender essas razões não as invalidam.

A diferença entre D’us e um ser humano é a diferença entre o finito e o infinito. De modo algum

podemos esperar entender os eventos que refletem o caráter infinito de D’us. Podemos ilustrar esse

conceito com uma comparação física precária: Se uma pessoa sair à noite, olhar para o céu e disser:

“Não há nada na lua, pois não posso ver nada lá”, ou “não há nada para lá da lua, pois não posso ver

nada”, todos rirão dela.

Bem, por que não podemos ver? Porque a lua, os planetas e as estrelas estão a milhões de quilômetros

de distância, e não podemos enxergar tão longe. Algumas estrelas não se encontram a milhões de

quilômetros de distância, e sim a muitos anos-luz. Sendo assim, embora sabendo que existem, não

podemos saber nada a respeito do que acontece com elas.

Não obstante, todo espaço físico, mesmo a centenas de anos-luz, é uma distância finita. Quando nos

referimos a nossa distância de D’us, ou de Sua sabedoria, estamos falando de uma distância infinita.

Sendo assim, se no que diz respeito a questões físicas estamos preparados para aceitar a idéia de que

certas coisas existem, mesmo que não possamos vê-las, então devemos ser capazes de aceitar que D’us

tem razões para fazer com que todas as coisas aconteçam, mesmo que não possamos alcançar tais

razões com nossas mentes mortais. Não existe maneira de elaborar uma explicação para os benefícios

decorrentes de eventos como o Holocausto, pois nossas mentes limitadas não conseguem compreender

algo infinitamente distante delas. Mas não existe a possibilidade de que D’us permita que algo aconteça

sem que seja para o bem.

Há, porém, outro aspecto que precisa ser esclarecido. Se uma pessoa sofre em conseqüência de um ato

de D’us – que os céus nos livrem – seja tempestade, terremoto ou doença – podemos entender que há

um benefício oculto. Isso está implícito na própria expressão “ato de D’us”. Contudo, quando uma

perda é causada por outro indivíduo – por exemplo, um ato de violência, ou um furto – como podemos

afirmar que isso é, na essência, um benefício? Por que comparar isso a um ato de D’us? Pelo contrário,

a outra pessoa possui o livre arbítrio, para decidir se cometerá o crime ou não.

Aparentemente, a pessoa que sofre é vítima dos impulsos malignos da outra pessoa. À primeira vista, se

a outra pessoa não tivesse escolhido fazer o mal, a primeira não sofreria a perda. Como podemos dizer,

então, que a perda foi boa, na essência, pois veio de D’us, quando outro ser humano a causou?

124
A resposta, novamente, é que tudo que acontece foi ordenado pela Divina Providência. Mesmo quando

a perda é causada por outro indivíduo, se não estivesse determinado que a primeira pessoa sofresse uma

perda, ela jamais teria ocorrido. (6) Embora a pessoa que comete o crime tenha escolhido agir assim,

independentemente, a pessoa que sofreu a perda só a sofreu porque estava destinada a isso. Se não fosse

esse seu destino, a pessoa que cometeu o crime jamais teria sido capaz de cometê-lo. Por exemplo, se

um ladrão resolve roubar alguém, a vítima está destinada a perder seu dinheiro. Se o ladrão não tivesse

decidido roubar, a vítima perderia o dinheiro de algum outro jeito.

(6) Ver Tanya, Iggeres HaKodesh, Epístola 25, na qual os conceitos mencionados aqui são explicados

em profundidade.

(Isso não absolve o ladrão da responsabilidade por seu ato. Embora a pessoa estivesse destinada a

perder o dinheiro, D’us tem muitos emissários à Sua disposição. (7) O ladrão desconhece o plano de

D’us. Ele roubou por escolher fazer o mal, e portanto será punido.

(7) Zohar III, 36b.

O Mishná (8) conta que Hillel viu certa vez um crânio flutuando na água. Ele disse: “Assim como você

afogou outros, você foi afogado; e, no final, aqueles que o afogaram também se afogarão.” Hillel estava

explicando o processo da causalidade. A pessoa fez uma escolha errada e afogou outras. Uma vez que

D’us pune “medida por medida” (9), um afogamento conduz a outros. Em cada caso, a pessoa que

sofreu o afogamento recebeu a punição por um motivo. Mesmo assim, a pessoa que serviu como

instrumento para administrar a punição agiu por sua própria vontade, e portanto foi punida por ter

efetuado tal escolha.)

(8) Pirkei Avot 2:6.


a
(9) Nedarim 32 .

124
Portanto, o fato de alguém sofrer uma perda provocada por outra pessoa não deve impedi-la de ser

b’simchá. Pelo contrário, ela deve reconhecer que sua perda foi determinada por D’us, e que é boa na

essência, portanto.

Por esses motivos, uma pessoa deve ser sempre b’simchá, pois tudo que acontece a ela vem de D’us, e

D’us é bom. Por vezes, os benefícios e bênçãos de D’us podem ser percebidos claramente. Em outras

oportunidades, o bem chega disfarçado, e não pode ser percebido imediatamente. Até mesmo essas

coisas, porém, não boas na sua essência.

124
Capítulo Cinco

Busca Sob a Superfície

Procuramos, até agora, explicar que uma pessoa deve estar sempre feliz, pois tudo que acontece a ela é

bom. A única diferença está na manifestação clara do bem, ou em sua manifestação disfarçada. A

própria tese, porém, pede uma explicação. Por que D’us às vezes nos dá o bem de modo disfarçado?

Qual é o objetivo, por trás disso?

Há uma história a respeito do Maggid de Mezeritch. Certa vez, seu filho o procurou, chorando. O

Maggid o consolou, perguntando por que chorava. O menino explicou que estava brincando de

esconde-esconde com os amigos.

Ele e os amigos se esconderam. Permaneceram muito tempo nos esconderijos, acreditando que estavam

muito bem escondidos, e que o menino que deveria procurá-los não conseguia encontrá-los. Logo,

porém, cansaram-se de esperar. Saíram dos esconderijos para descobrir que haviam sido enganados. O

menino que deveria procurá-los tinha ido embora. Pregara-lhes uma peça. Assim que se esconderam,

ele voltou para casa, em vez de tentar achar os outros garotos. Por isso o filho de Maggid e seus

amiguinhos choravam.

Enquanto ouvia essa história, o Maggid de Mezeritch também começou a chorar. O filho perguntou por

que chorava. E o Maggid disse a ele que D’us também tinha a mesma queixa.

O que o Maggid quis dizer? Está escrito, (1) “És um D’us que se esconde.” E D’us diz: “Escondo-Me

de ti, mas o propósito de meu ocultamento é fazer com que saias e busques por Mim. Mas, em vez de

buscares por Mim, tu te afastas e te ocupas de outras coisas.”

(1) Isaiah 45:15

Vamos aplicar o conceito à questão em pauta: Quando algo negativo acontece e a pessoa se sente

desesperada, a razão para o desespero não é o evento negativo em si. Como foi explicado antes, muitas

pessoas enfrentam dificuldades, sem que se sintam arrasadas. Uma pessoa se desespera por que não

reconhece que D’us está escondido, que o propósito do evento negativo é motivá-la a procurar e

encontrar D’us, mesmo que Ele esteja oculto. Se a pessoa se dá conta disso, não se desespera.

124
Podemos usar aqui uma analogia: O pai quer avaliar o quanto seu filho é inteligente. Ele deseja

estimular e desenvolver a inteligência da criança, e com esse objetivo em mente, esconde-se. Se o filho

é tolo, começa imediatamente a chorar, pois não consegue localizar o pai. Uma criança mais madura

reflete sobre o que está acontecendo, e percebe que o pai está brincando. Por isso, começa a procurar o

pai, até encontrá-lo.

O propósito do pai não é ficar longe do filho. Pelo contrário, ele quer ser encontrado, deseja que a

criança o localize. Mas quer que o filho se esforce, procurando-o e descobrindo onde ele se esconde.

Essa analogia se aplica ao nosso caso. A razão para D’us se disfarçar e esconder é que Ele deseja que O

procuremos e O encontremos em seu disfarce, quer que procuremos lá no fundo, até descobrirmos onde

Ele se esconde.

Essa analogia nos revela outro conceito muito valioso: (2) Simchá não é importante apenas por refletir a

verdade. Quando uma pessoa é b’simchá, isso faz, por si, com que o disfarce seja abandonado, trazendo

os benefícios e bênçãos para a superfície.

(2) Ver Tanya, Iggeres HaKodesh, Epístola 11.

Por quê? Retornando à analogia, quando o filho segue buscando o pai e descobre onde ele se esconde, o

que acontece?

O pai continua escondido? Não. Assim que o filho o encontra, está tudo terminado, e ele sai do

esconderijo. Ele quer que o filho o procure, mas quando é encontrado não tem mais motivo para

continuar escondido.

Isso vale para D’us e os Judeus. O propósito de D’us se esconder e usar disfarces é nos levar a procurá-

Lo e aprender a encontrá-Lo. Quando uma pessoa é b’simchá, percebe a presença de D’us; é como se

dissesse, “Sim, D’us está oculto, mas posso reconhecê-Lo e identificá-Lo nesses eventos, embora Ele

esteja escondido.”

Então, a máscara é tirada e D’us emerge de seu esconderijo. Ou, usando outras palavras, os benefícios e

bênçãos sobem à superfície.

Essa é uma qualidade decisiva que simchá possui, fazer com que o bem apareça claramente. Essa é a

virtude especial que caracterizava Rabi Akiva e Nachum Ish Gamzu. Eles viram claramente que tudo

ocorre graças a D’us, sabiam que tudo é definitivamente bom. Portanto, eles eram sempre b’simchá.

124
Pouco depois, a dificuldade que se apresentava foi transformada. A benção implícita e o bem oculto se

revelaram. Como eles reconheciam a D’us e pressentiam o bem disfarçado, o disfarce foi rapidamente

abandonado e o benefício escondido se manifestou.

Resta, porém, uma questão: Por que D’us se disfarça? Por que Ele deseja que o procuremos? No caso

do pai e do filho, sabemos que o jogo é uma forma de entretenimento. O pai quer que o filho o procure,

para que o filho mostre o quanto é esperto. Tal raciocínio é aceitável, no caso de seres humanos.

Em nosso relacionamento com D’us, contudo, deve haver um motivo mais profundo para que D’us se

esconda, e para Seu desejo de que O procuremos. Por que Ele se oculta? Sem dúvida, há um objetivo

positivo em Seu ocultamento.

124
Capítulo Seis

Enfrentando Desafios

Explicamos previamente que uma pessoa deve ser sempre feliz, pois tudo que acontece a ela, mesmo as

dificuldades e eventos indesejáveis, é controlado pela Divina Providência. Portanto, uma pessoa deve

ser sempre b’simchá, confiando que existe uma intenção Divina positiva para cada aspecto de sua vida.

Conseguimos aceitar essa explicação com referência às dificuldades no plano material. Quando algo

desagradável acontece a uma pessoa, podemos compreender que se trata de um benefício disfarçado.

Mas, e quanto aos eventos espiritualmente indesejáveis, que afetam a alma da pessoa, tanto quanto seu

corpo, coisas que atrapalham o cumprimento de uma mitzvá ou impedem o crescimento espiritual do

indivíduo? Como podemos dizer que algo é realmente bom, quando contraria a Torá e suas mitzvot?

Como dizer que algo é controlado pela Divina Providência, quando se opõe à vontade de D’us? À

primeira vista, não pode ser bom, pois entra em conflito com a Torá e impede que a pessoa cresça

espiritualmente.

A solução desta dificuldade envolve muitas questões profundas do pensamento judaico. A origem da

resposta encontra-se no princípio citado anteriormente – tudo acontece só por que D’us faz com que

aconteça. Nada ocorre de modo independente; a natureza não possui poder autônomo de espécie

alguma.

Cada entidade existe em virtude da energia Divina nela imbuída. Cada evento que tem lugar – mesmo

os aparentemente negativos – tem origem no sagrado. Caso contrário, não pode existir. Portanto,

mesmo as experiências que parecem indesejáveis, numa perspectiva espiritual, devem ser entendidos

como benefícios disfarçados.

Explicando melhor: Algo que parece interferir com o crescimento individual, impedindo que uma

pessoa faça o bem, é chamado de nissayon, um teste. D’us está testando a pessoa para ver o quanto ela

está comprometida com a Torá e suas mitzvot; pois, está escrito (1): “porque o Eterno, vosso D’us, vos

está experimentando para saber se amais o Eterno, vosso D’us, com todo vosso coração, e com toda

vossa alma.”

(1) Deuteronômio, 13:4

124
Mesmo quando uma pessoa nota um empecilho à observância, ela precisa entender que D’us está por

trás de tudo. Ele é responsável pelo que está acontecendo, e por meio do desafio Ele decide testar a

pessoa.

Qual é o propósito desse teste? Superficialmente, parece que o propósito de D’us é determinar o quanto

a pessoa é leal e comprometida. Contudo, essa explicação apenas não basta. Quando falamos de

relacionamentos com outras pessoas, não sabemos o que se passa no coração ou na mente do outro.

Portanto, se queremos determinar o grau de envolvimento alheio, precisamos testar a pessoa. Não temos

escolha.

Por exemplo, se uma pessoa quer saber se outra a ama de verdade, precisa criar certas circunstâncias e

testar a outra pessoa, para saber como ela reage na situação. Não tem outro modo de verificar o que se

passa na mente e no coração do outro. Contudo, não podemos dizer isso de D’us. Um dos princípios

básicos da fé é que D’us sabe o que se passa na mente e no coração de cada pessoa.

Então, por que ele precisa nos testar? Sem nos submeter a testes, Ele pode olhar para nossos corações e

mentes e saber o quanto estamos comprometidos. Antes do início do teste, Ele já saber se

conseguiremos passar no teste, ou – que os céus nos livrem – ou se não conseguiremos passar no teste.

Alguns comentários (2) explicam que o propósito do teste não é que D’us possa verificar o

compromisso da pessoa, mas sim que a pessoa se conheça. Às vezes, ela não tem noção da força de seu

comprometimento. Por isso, D’us põe a pessoa em teste, e quando ela supera o desafio, atinge um nível

de percepção mais realista de seu potencial; sabe que seu compromisso é forte. (3) Portanto, o objetivo

dos desafios que uma pessoa enfrenta é seu conhecimento interior, e não o de D’us.

(2) Ver Likkutei Sichot, Vol. 20, p. 286, fn. 35 e fontes ali citadas, Derech Mitzvosecha, p. 370.

(3) Podemos também dizer que o fracasso serve a um propósito, pois ele elimina os sentimentos de

falso orgulho e leva a pessoa a se dar conta da necessidade de crescimento e desenvolvimento.

Chassidut nos fornece uma explicação mais profunda para os objetivos desses testes e desafios, uma

explicação capaz de permitir a apreciação da grandeza de D’us contida nessa experiências e nos

preparar para o conceito de que eles são, na essência, um bem oculto. A palavra l’nasos, que significa

“testar”, também quer dizer “elevar”. Os testes e desafios que encaramos têm a intenção de nos permitir

124
alcançar um nível espiritual mais elevado. De fato, o modo que D’us escolhe para permitir que a pessoa

alcance um nível espiritual mais alto é apresentar tais desafios e testes.

Por que fazer isso? Uma pessoa tem duas dimensões em sua personalidade: a dimensão revelada – isto

é, os aspectos da personalidade que ela normalmente expressa – e uma dimensão oculta, de poder

interior que nem sempre chegam à superfície. Esse poder interior contém recursos ocultos de imensa

força.

Podemos ver esse conceito expresso em termos físicos. Cada um é capaz de erguer um determinado

peso, em circunstâncias normais. Certas pessoas conseguem levantar 25 quilos com facilidade; outras,

levantam 50 quilos, enquanto outras chegam a erguer 100 quilos.

Há ocasiões, porém, em que esses limites ordinários não significam nada. Sabemos que, numa

emergência – um incêndio, inundação ou similar – uma pessoa consegue saltar distâncias enormes,

vergar barras de ferro, levantar pesos e fazer coisas que seriam impossíveis a ela em circunstâncias

normais.

Recordo-me de uma história que aconteceu a um amigo, quando ele estava consertando o carro. O

veículo havia sido levantado com auxílio de um macaco, e a filha estava sentada ao lado dele, com um

dos pés sob o carro. O macaco cedeu e o carro caiu em cima do pé da menina. Com uma das mãos, meu

amigo ergueu o carro, e com a outra puxou cuidadosamente o pé da filha. Depois disso, levou-a

correndo para o hospital. Ela foi engessada e se recuperou rapidamente.

Mais tarde, quando se acalmou, ele ficou intrigado. Como havia sido capaz de levantar um carro?

Tentou levantar o carro, com as duas mãos. Mesmo usando toda a sua força, ele não conseguiu erguer o

automóvel até a altura que havia conseguido com apenas uma das mãos. Na biologia, encontramos uma

explicação para esse fenômeno. Quando percebemos uma emergência, o hormônio adrenalina é lançado

na corrente sangüínea, e isso nos permite empregar uma força muito superior ao normal.

Essa força extraordinária é criada no momento da emergência ou existe o tempo inteiro? A resposta é

que está sempre presente. No entanto, até surgir a emergência, ela permanece oculta. Não aparece, em

circunstâncias normais. Quando se revela? Quando a pessoa percebe o perigo, ou um desafio.

Existe um paralelo no nível emocional. A mãe, por exemplo, sente um amor imenso pelo filho. O que

acontece se – D’us nos livre – a criança for raptada? Além do fato de a mãe tentar tudo que estiver ao

seu alcance para encontrar o filho e trazê-lo de volta, ela sente um aumento dos sentimentos de amor e

saudades, em relação a circunstâncias normais.

124
Isso significa que o seqüestro do filho gerou novos sentimentos amorosos? Claro que não. O amor da

mãe sempre existiu, mas em circunstâncias ordinárias um amor profundo como esse não assoma. Como

a relação com o filho sofreu ameaças e passa por um desafio, esse sentimento amoroso mais profundo e

poderoso sobre à superfície.

De fato, só assim um amor dessa natureza consegue se expressar. Em circunstâncias normais, por mais

que a mãe tente, ela não consegue sentir um amor tão forte.

Também encontramos um paralelo no intelecto. Por exemplo, quando uma pessoa estuda, compreende

o assunto conforme sua capacidade. Mas há momentos em que a mente é desafiada; a pessoa se depara

com questões e dificuldades, e isso propicia a compreensão num nível mais profundo.

Nesse contexto, podemos entender a famosa afirmação do Talmud: (4) “Recebo muito de meus mestres;

recebo mais ainda de meus colegas. E, de meus alunos, ganho mais do que de qualquer outro.” Os

estudantes desafiam o professor com perguntas. Essas questões forçam o professor a analisar o tema de

um modo diferente do habitual (pois a mente do aluno funciona de maneira diferente da sua). Ao se

esforçar para encontrar um quadro referencial capaz de explicar o conceito aos estudantes, o professor

atinge uma compreensão mais profunda e completa do assunto.

(4) Taanis 7a.

Percebemos um padrão similar nos três exemplos. Em circunstâncias normais, o que aparece é a

dimensão externa, superficial da personalidade. O único modo de conseguir que a dimensão mais

profunda se manifeste é um desafio. (5)

(5) Ver Sefer HaMaamarim 5666, p. 78ff.

Esse é o propósito de um teste. Quando uma pessoa serve a D’us, em circunstâncias normais,

desenvolve um amor por Ele, mas esse amor é limitado, refletindo apenas a dimensão externa de sua

personalidade. Cada um de nós carrega o potencial para um amor muito mais profundo. Mas esse amor

não aparece em circunstâncias ordinárias. Só um desafio ao compromisso da pessoa com D’us pode

fazer com que essa dimensão mais profunda do amor se manifeste.

124
Quando uma pessoa enfrenta um desafio, ao observar as mitzvot, ou algo acontece que aparentemente a

impede de estudar a Torá, duas coisas estão ocorrendo simultaneamente. Por um lado, seu

relacionamento com D’us está sendo restrito. Não obstante, a motivação intrínseca a esse desafio é o

desejo de D’us de que a pessoa possa experimentar uma dimensão mais profunda do amor, que ela seja

elevada a um plano mais alto. Pois, como já foi mencionado, a palavra l’nasos, “testar”, em hebraico

também significa “elevar”.

Essa concepção nos permite compreender uma declaração de nossos Sábios que provoca reflexão (6)

“No local em que um baal teshuvá (pessoa que se arrepende e retorna a D’us) se encontra, um tzadik

(indivíduo correto) é incapaz de ficar.”

(6) Berachos 34b.

Como pode um baal teshuvá se encontrar num nível superior ao de um tzadik? Um tzadik é alguém que

jamais pecou na vida. Sua existência sempre foi pura; durante a vida inteira, ele se esforça para

progredir, passando de bom para ótimo.

O baal teshuvá, por sua vez, superou a inclinação maligna, e no momento é um exemplo de bondade.

Mas, e seu passado? Sua vida foi marcada pelo pecado. Depois que ele se voltou a D’us, em teshuvá,

D’us apagou todos os pecados; é como se eles jamais tivessem existido. No entanto, como podemos

dizer que essa pessoa se encontra num nível mais alto do que um tzadik, alguém que devotou a vida

inteira ao desenvolvimento espiritual?

A resposta é que o tzadik nunca enfrentou os desafios que se apresentaram ao baal teshuvá. Um tzadik

está sempre ao serviço de D’us, e nunca se sentiu distante de D’us. Seu amor a D’us tornou-se parte

integrante de sua natureza e de sua personalidade.

Embora essa seja uma grande conquista, ela indica uma certa limitação, pois os poderes de todos os

mortais têm limites. Se, por outro lado, uma pessoa se sente afastada e muito distante de D’us, ela luta

para estabelecer com vínculo com Ele, sentindo um amor muito maior do que um tzadik poderia

experimentar.

Por quê? Porque a pessoa está enfrentando um desafio interior. Sabe que está afastada de D’us e que

precisa lutar para restabelecer a ligação. Por meio desse esforço ela aciona a dimensão mais profunda

do amor, que todos os Judeus possuem no coração. (7)

124
(7) Tanya, cap. 7.

Há algo de semelhante em muitas situações. Quando uma pessoa enfrenta uma experiência negativa,

passa a valorizar muito mais o que é positivo. Na verdade, é impossível desenvolver a mesma

capacidade de valorização sem passar primeiro por uma experiência negativa. Por exemplo, se uma

pessoa – D’us nos livre – perde a visão por dois ou três anos, e depois a recupera, considera o dom da

visão algo muito mais precioso do que as outras pessoas o consideram. Quem pensa seriamente a

respeito do dom da visão percebe o quanto ele é precioso. Mesmo assim, não há meio de alguém o

valorizar tanto quanto quem já foi cego.

Vamos pensar em outro exemplo: um casal que – D’us nos livre – não foi abençoado com filhos, apesar

de casado há muitos anos. Todos os casais amam os filhos; contudo, não há como comparar o amor dos

pais que tiveram filhos logo após o casamento com o de um casal finalmente abençoado com um bebê

depois de muitos anos de espera. Novamente, a experiência negativa tornou o casal mais sensível.

O mesmo raciocínio se aplica ao baal teshuvá. Seu amor por D’us e seu comprometimento com a Torá

e as mitzvot são muito mais profundos do que os de uma pessoa que não passou por experiências

negativas.

A explicação acima também lança uma luz sobre outro conceito encontrado no Talmud. Nossos Sábios

(8) ensinam que uma pessoa que diz: “Vou pecar e depois me arrepender” não tem oportunidade de se

arrepender.

(8) Yoma, 87a.

Num nível mais simples, isso significa que a pessoa, na verdade, está dizendo: “Quero o melhor dos

dois mundos. Quero comer o bolo e levá-lo para casa. Primeiro, pecarei e desfrutarei os prazeres do

mundo material. Mas eu não preciso me preocupar com D’us nem com a recompensa ou punição no

Mundo que Virá. Basta que eu me arrependa, e sairei limpo. Na verdade, meus pecados serão

considerados méritos.”

124
Para tal pessoa, nossos Sábios fazem um alerta: “Você talvez não receba a oportunidade de se

arrepender.” Uma vez que a pessoa confia em teshuvá, e só porque tem essa opção ela peca, D’us retira

essa oportunidade de arrependimento.

(Devemos enfatizar que essa pessoa, caso se esforce muito, e realmente sinta arrependimento, então

D’us aceitará esse teshuvá também. (9) Nossos Sábios afirmam que, em contraste com outros que são

auxiliados em seu caminho para teshuvá, tal pessoa não receberá assistência alguma. Na verdade, talvez

encontre obstáculos. Mesmo assim, se ela lutar para superar tais obstáculos e se arrepender do fundo do

coração, seu teshuvá será aceito.)

(9) Tanya, Iggeres HaTeshuvá, Capítulo 11.

O pensamento Chassídico nos dá um modo diferente de entender essa passagem. Não estamos tratando

necessariamente de uma pessoa que quer pecar por causa de sua incapacidade de controlas os desejos

naturais. Essa passagem pode se referir também a uma pessoa muito espiritualizada. No entanto, essa

pessoa tem uma dificuldade. Ele é um tzadik, um indivíduo perfeitamente correto, que jamais pecou. E

essa pessoa sente inveja de um baal teshuvá. Além disso, ele quer desenvolver uma ligação mais

profunda com D’us, e o amor mais profundo que deriva da experiência de teshuvá. Contudo, não

entende como isso seria possível, pois jamais pecou. (10)

(10) Estamos falando de modo algo impróprio. Na verdade, uma pessoa, mesmo um homem correto

que jamais pecou, tem o potencial de se voltar para D’us em teshuvá. Pois o mero fato de existir

enquanto mortal neste mundo material, com a consciência de sua personalidade, implica que seu

processo consciente se separou do âmago sagrado de D’us. E, portanto, teshuvá é necessário. Ver o

ensaio intitulado “Teshuvá – Return, not Repentance” (Retorno, e não Arrependimento), em Timeless

Patterns in Time (Padrões Intemporais no Tempo) (Kehot, N. Y., 1993).

E, por isso, ele pensa: “Talvez então eu cometa um pecado.” Não pensa isso por querer pecar – que os

céus nos livrem – mas porque ao passar pelo ciclo de pecado e teshuvá, ele terá a oportunidade de

desenvolver uma ligação mais profunda com D’us.

124
Quando uma pessoa deseja pecar por esses motivos, sua intenção é boa, mas seu pensamento

subdesenvolvido. É como se a pessoa dissesse: “Vou me colocar numa situação na qual corra risco de

vida, e a adrenalina começará a fluir. Poderei saltar grandes distâncias e ganharei uma força notável.”

Que os céus livrem essa pessoa de cometer um pecado por essas razões.

Um Judeu deve querer fazer apenas o que é correto, e jamais procurar situações de desafio. Como

oramos todas as manhãs, (11) “Não me leve ao pecado... ou ao desafio”. Mesmo assim, nossa conduta

nem sempre é apropriada, e se uma pessoa percebe que realmente cometeu um pecado, ela não deve se

desesperar. Pelo contrário, deve perceber que o pecado tinha o objetivo de dar uma oportunidade para o

retorno a D’us em teshuvá, e o desenvolvimento de um amor mais profundo por Ele.

(11) Siddur Tehillat HaShem, p. 9.

Portanto, como já dissemos, não já nada que seja verdadeiramente negativo. Tudo, mesmo os atos

contra a vontade de D’us, podem conduzir ao bem e a D’us. O que ocorre, apenas, é que eles estão

dissimulados.

Portanto, quando algo negativo acontece, mesmo que seja espiritualmente negativo, não devemos cair

em depressão. Isso seria um erro de interpretação da dinâmica que está em ação; a pessoa não se dá

conta do verdadeiro propósito desses eventos.

Vamos pegar, por exemplo, uma pessoa a quem o médico recomenda exercícios. Se a pessoa segue a

recomendação, apenas, sem tentar entender o objetivo do que está fazendo, considerará o exercício um

peso, uma provação. Por que precisa fazer tanto esforço?

Mas uma pessoa não consegue se manter saudável sem exercícios. E, quando se dá conta disso, ela não

os considera mais uma provação. Entende que um pouco de ginástica a torna mais forte e saudável.

Vamos aplicar isso a uma situação cotidiana: Há uma escadaria na loja de departamentos, e ao lado dela

uma escada rolante. Quando a pessoa compreende o benefício do exercício, é como se houvesse um

aviso ali, dizendo: “Se você quer ter um coração saudável, suba pela escada.” A escada rolante é mais

fácil e rápida; a escada comum exige mais empenho. Contudo, galgar os degraus mantém o coração

sadio.

124
Podemos usar outra analogia. Uma criança volta da escola para casa, e diz à mãe: “Não quero fazer a

lição. Por favor, faça a tarefa para mim.” A mãe acredita que deve ser agradável e gentil, fazendo a

lição para o filho. Além disso, é mais fácil agir assim do que convencer o filho a fazer a lição.

Se a mãe seguir esse caminho, porém, está prejudicando o filho. Ele jamais desenvolverá seu

raciocínio, desse jeito. Só quando uma criança enfrenta o desafio e é forçada a sentar para descobrir

sozinha as respostas, ela consegue crescer intelectualmente. Se nunca se esforçar, crescerá com sua

capacidade mental muito limitada.

O mesmo vale com referência a nisyonos, os desafios com os quais nos deparamos em nosso serviço

Divino. Eles nos ajudam a desenvolver uma ligação mais profunda e forte com D’us e Suas mitzvot.

A partir dessa base, podemos explicar outro conceito que costuma intrigar as pessoas. Por que a alma

desce ao mundo? Nossos corpos são concebidos por nossos pais, e o corpo precisa da alma, para viver.

A alma existia no reino espiritual, antes do nascimento da pessoa. A concepção desenvolve a ligação

entre a alma e o corpo, mas antes mesmo que a conexão seja desenvolvida, a alma existia no mundo

espiritual. Na verdade, sua existência no mundo espiritual é mais vital do que sua existência corpórea

posterior.

No reino espiritual, a alma vê apenas o que é Divino, ouve o que é Divino, experimenta o que é Divino.

Não há limitações físicas, e não há mal algum lá. Não existe nada negativo.

No mundo físico, em contraste, é impossível apreciar o que é Divino diretamente. E os limites do corpo

reduzem o poder da alma. Ademais, somos forçados a enfrentar desafios e provações. Por que isso é

necessário? Por que a alma não pode simplesmente permanecer no reino espiritual, e “sentir prazer pela

irradiação da presença Divina”? (12) Por que ela deve descer ao mundo material?

(12) Berachos 17a.

Para explicar o propósito disso, seria útil emprestar – fora de contexto – um conceito de nossos Sábios.

Nossos Sábios explicam (13) que uma descida com propósito de ascensão não é considerada uma

descida. Embora ninguém possa negar que está ocorrendo uma descida, uma vez que essa descida tem

apenas um objetivo, a subida que vem a seguir, ela não é considerada uma descida, mas sim uma fase

da ascensão.

124
(13) Cf. Makkos 7b; Likkutei Sichot, Vol. 29, p. 11ff.

Similarmente, a descida da alma a nosso mundo material tem apenas um objetivo: que a alma alcance

um nível espiritual mais alto. Determinadas forças e certos potenciais, além de um nível mais profundo

de amor, não assomam quando a alma está no reino espiritual.

Por que ela não sobe à superfície, nesse reino? Porque não há desafio. Só por meio da descida da alma a

este mundo físico, onde seu amor a D’us é ameaçado por todas as tentações da existência material, a

alma pode atingir seu auge.

Como está sendo ameaçada, a alma procura utilizar seus recursos interiores, e ao fazer isso se nutre de

uma fonte mais profunda e poderosa de amor do que as disponíveis no reino espiritual. Dessa maneira,

a descida da alma a conduz a um patamar mais alto.

O mesmo se aplica ao conceito explicado anteriormente: Ainda que algo seja espiritualmente negativo,

que pareça estar em contradição com o observância da Torá e de suas mitzvot, serve a um propósito

positivo.

Quando percebemos que tudo só acontece por que D’us deseja que aconteça, podemos alcançar que em

tudo há um propósito, e que esse propósito é bom. Tudo que existe e todos os eventos resultam da

energia Divina intrínseca a tudo; caso contrário, não existe. Isso se aplicam até às experiências

aparentemente negativas; elas ocorrem em função de um propósito Divino positivo.

Isso nos leva à noção de que uma ocorrência que parece negativa é meramente um teste. Sua dimensão

negativa não passa de um disfarce; na verdade, trata-se de um meio que permite atingir um patamar

nível espiritual mais alto.

124
Capítulo Sete

Controle da Mente

Já explicamos que uma pessoa deve ser sempre b’simchá, compreendendo que tudo que acontece vem

de D’us. Nada é acidental, ou ocorre por acaso. A questão, no entanto, está em como estabelecer a

conexão entre o abstrato e o factual. Como nossa consciência desses conceitos afeta os sentimentos?

Embora uma pessoa saiba que tudo vem de D’us, ela entra em depressão ou se desespera quando algo

trágico acontece. Qual é a essência desses sentimentos? A própria experiência provoca a dor e o

sofrimento, ou é o envolvimento com a experiência?

Para esclarecer a questão: Quando ocorre um incidente a uma pessoa, e ela não tem inteligência

suficiente para perceber que ele é prejudicial, não chega a sentir dor. Quando sentimos dor? Quando

compreendemos. E, de fato, como diz Shlomo HaMelech, (1) “Quanto mais a pessoa sabe, mais ela

sofre.” Portanto, quando alguém sente dor, há dois motivos para essa sensação: o evento doloroso e a

consciência dele.

(1) Ecclesiastes, 1:18

No parágrafo anterior, quando mencionamos a “consciência”, referimo-nos à capacidade de

compreensão da pessoa. No entanto, há um outro aspecto envolvido. Uma pessoa pode ser capaz de

compreender a dor de uma situação, mas pode escolher não fazer isso. Se a pessoa está envolvida com o

incidente, sentirá dor, inevitavelmente. Mas a pessoa pode escolher se distanciar – não prestar atenção

ao que acontece. Se fizer isso, e for bem sucedida no controle da mente, não sentirá dor alguma.

O Modzitzer Rebe (*) foi um grande líder Chassídico, autor de inúmeras canções Chassídicas

magníficas. Já idoso, precisou passar por uma cirurgia. Infelizmente, estava enfraquecido por causa da

doença, e os médicos temiam lhe dar a anestesia; eles não sabiam se ele acordaria novamente. Contudo,

sabiam que não viveria se não fosse operado.

(*) Ou Rebe de Modzitz - confirmar

124
Os médicos perguntaram ao Rabi o que fazer, e ele apresentou uma solução original. Comporia uma

canção Chassídica. Quando os médicos percebessem que ele estava profundamente envolvido com a

melodia, poderiam iniciar a cirurgia.

E assim foi feito. Ele fez a canção. Enquanto a cirurgia transcorria, ele cantava, sem sentir dor alguma.

Conhecemos essa canção, ainda hoje. Ela tem 36 estrofes, pois a operação durou muito tempo.

Essa não é uma história sobre o Rebe e um milagre. Sabemos que ele foi um grande Rebe e realizou

milagres, mas esse evento específico foi natural. Ele se concentrou tão profundamente na canção que

não percebia mais nada, e portanto não sentia dor alguma.

Não somos Rebeim, e esse nível de concentração está um pouco acima de nossa capacidade, mas

podemos traçar um paralelo com nossas próprias vidas. Vamos pensar no seguinte exemplo: um

indivíduo volta para casa, do trabalho. Aconteceu qualquer coisa no trem que o deixou furioso, e ele

entra em casa espumando de raiva.

O telefone toca de repente. É um amigo que mora fora da cidade, com quem não fala há meses. Os dois

começam a conversar, e falam por mais de uma hora. Quando o sujeito desliga, percebe que passou

mais de meia hora sem sentir raiva. Por quê? O incidente que o incomodou realmente aconteceu. O

telefonema não mudou esse fato. Contudo, serviu para desviar sua atenção. Enquanto falava, ele não

pensou no problema ocorrido.

É por isso que vemos pessoas sofrendo horrores terríveis – por exemplo, gente que passou pelo

Holocausto – e conseguiram, mesmo assim, reconstruir suas vidas e famílias. No entanto, a outros basta

descobrir que perderam a chave do carro para mergulhar numa crise profunda.

Isso tem a ver com quanto a pessoa permite que as coisas a afetem, e não tanto com o que acontece.

Isso nos leva a uma outra questão. Há ocasiões em que guardamos na memória um evento desagradável

mais do que a situação justifica. Continuamos a pensar no caso dia e noite, desde que o sol surge até o

anoitecer. E pensar no assunto só reforça e amplifica a dor.

Há uma alternativa. Quando paramos de pensar nela, a dor cessa. A esta altura, porém, muitos cometem

um erro básico. As pessoas, em sua maioria, pensam que são capazes de controlar apenas suas ações e

palavras. Elas sabem que podem decidir fazer algo, ou evitar o ato; dizer uma coisa, ou calar. Mas elas

acham que os pensamentos são incontroláveis.

Trata-se de um equívoco. A bem da verdade, é mais difícil controlar o pensamento. Ao contrário da fala

ou da ação, o pensamento é constante; a pessoa pensa durante todos os momentos do dia. Contudo, o

124
que ela vai pensar está sujeito ao seu controle. Cada um possui a capacidade de concentrar o

pensamento no que desejar.

E, se a pessoa percebe que tem a capacidade de parar de pensar num determinado incidente, passa a

fazer isso. Ao fazê-lo, deixa de sentir tanta dor e tristeza.

O que queremos dizer ao falar na capacidade de deixar de pensar, de se desviar de um pensamento

indesejável? Em Tanya, (2) quando menciona o desvio da atenção de um pensamento indesejável, o

Alter Rebe diz que a pessoa deve afastar o pensamento indesejável com as duas mãos. Há duas

possibilidades implícitas em sua declaração: afastar um pensamento com uma das mãos, e afastá-lo com

as duas.

Qual é a diferença? Quando ocorre um incidente, mesmo quando se trata de uma coisa sobre a qual não

queremos pensar, nossa atenção é atraída; naturalmente, a mente se concentra no fato, e nossos

pensamentos se manifestam. Temos três maneiras de lidar com esses pensamentos. Uma é aceitá-los,

continuando a pensar no assunto, mesmo sabendo que ele é indesejável.

Essa abordagem acaba encorajando a volta dos pensamentos. Basta pensarmos na seguinte analogia:

Uma pessoa está sendo incomodada por outra. Um indivíduo toca constante sua campainha, pedindo

para entrar na casa e receber atenção. O dono da casa não aprecia a companhia do outro, mas fica sem

saber o que fazer.

Ele tem três opções. A mais simples é convidar o outro a entrar, quando toca a campainha da casa. O

dono não vê saída. Senta-se em torno da mesa, com o convidado, oferece café e bolo e conversa durante

duas horas.

Embora o dono não se sinta confortável, o convidado gosta. Está recebendo a atenção que deseja. E foi

recebido de maneira cordial, amigável. Sem dúvida, não se sentirá desencorajado a voltar. Pelo

contrário, o retorno é certo, pois foi tratado com muita cortesia.

Há outra possibilidade: O dono não permite que o outro entre em sua casa. Fica parado na porta, grita

com o visitante que deseja atenção, impede que entre.

Nesse caso, embora o visitante não entre na casa, continua a receber atenção. O dono abre a porta e fala

com ele. Não o trata com carinho, está claro; grita e faz escândalo, mas dá ao outro a atenção desejada.

Portanto, continua a haver a possibilidade de que o visitante retorne em busca de mais atenção, por

mais que tenha sido destratado.

124
Existe uma terceira opção: Simplesmente ignorar a pessoa que bate. Nesse caso, ele talvez insista,

voltando uma, duas, três vezes até. Mas ele vai acabar desistindo, pois não recebe nenhum

encorajamento; ninguém lhe dá a menor atenção.

O mesmo raciocínio vale para os pensamentos indesejáveis. Se uma pessoa aceita o pensamento e fica

pensando no assunto (embora o pensamento seja incômodo), está reforçando esse tipo de pensamento.

A atenção dada a ele, nesse padrão de pensamento, encoraja que tais pensamentos passem

continuamente do subconsciente para o consciente, apesar de causarem desconforto.

Pode-se tentar impedir os pensamentos, impedi-los de chegar à mente. Contudo, isso com freqüência

significa que a pessoa está lutando continuamente contra si mesma, ordenando que sua mente não se

ocupe daqueles pensamentos específicos. Mas, como o dono da casa que grita com o visitante, essa

pessoa está dando atenção a tais pensamentos. Isso significa afastar o pensamento com uma das mãos.

Com uma das mãos os pensamentos são afastados, mas com a outra a pessoa o puxa de volta, pois

continua prestando atenção a eles.

Em outras palavras, quando estou pensando que não deveria pensar num assunto específico, ainda estou

prestando atenção aos pensamentos que não quero encorajar. Admito tais pensamentos, e ao fazer isso

convido os pensamentos a passarem do subconsciente para o consciente.

Existe uma alternativa. Quando um pensamento chega à mente da pessoa, ela pode se recusar a prestar

atenção. Nem precisa se esforçar para expulsá-lo da mente. Pode simplesmente ignorá-lo, focalizando a

atenção num assunto diferente. E, quando ignora o pensamento e não dá importância alguma a ele, esse

pensamento acaba por não atrair mais a atenção.

Muita gente pergunta: “Como posso pensar em outra coisa? Esse pensamento não me sai da cabeça.”

Certa vez, uma pessoa procurou o Maggid de Mezeritch com um problema. “Minha mente sempre

devaneia. Como posso controlar meus pensamentos?”

“Procure meu discípulo, R. Zev de Zhitomer. Ele o ajudará”, o Maggid respondeu.

A pessoa saiu em busca de R. Zev. Chegou a Zhitomer à noite, e só com muita dificuldade conseguiu

localizar a casa de R. Zev. Finalmente, ao chegar à morada do tzadik, ele bateu com força, ansioso para

ser convidado a entrar e se proteger do frio.

Ninguém atendeu. Ele bateu novamente, sem obter resposta. Irritado, continuou a bater com força, mas

ninguém atendeu. Furioso, sem outra opção, o sujeito passou a noite do lado de fora.

124
Pela manhã, R. Zev o recebeu calorosamente. O visitante explicou ao tzadik o motivo de sua presença

ali, e R. Zev o convidou a se hospedar em sua casa por quanto tempo desejasse. Ele ficou muito curioso

quanto à diferença entre aquele tratamento cordial e a frieza da noite anterior, mas por respeito ao

tzadik, preferiu se calar.

Ele passou vários dias na casa de R. Zev, conversando com o tzadik, aprendendo muitas coisas pela

observação de seu comportamento diário. Contudo, uma coisa o incomodava. Ele estava ali por um

motivo específico, aprender a controlar seus pensamentos, e R. Zev não lhe dera nenhuma instrução

referente ao assunto.

Finalmente, ele apresentou a questão ao tzadik. “O Maggid me enviou aqui por uma razão”, disse a seu

hospedeiro. “Por que não me ensina a controlar os pensamentos?”

“Mas eu já fiz isso”, respondeu R. Zev.

“Quando?”

“Na noite de sua chegada. Você bateu, insistiu, continuou batendo na porta de minha casa, tentando

entrar. Eu sabia que estava lá, mas resolvi não deixar que entrasse. E fiquei firme nessa decisão, por

mais que insistisse. Este é o segredo para controlar o pensamento.”

Na verdade, isso não é fácil. Mas a pessoa tem uma alternativa. Ninguém consegue pensar em duas

coisas ao mesmo tempo. Sendo assim, quando uma pessoa se obriga a pensar em outra coisa, os

pensamentos indesejados desaparecem.

É certo que eles podem voltar, dez minutos depois. Contudo, a pessoa sabe que tem a possibilidade de

controlar seus pensamentos e se concentrar em outra coisa. Os pensamentos indesejáveis talvez

retornem vinte minutos depois, mas a pessoa, novamente, pode pensar em outra coisa.

No final, se a pessoa ignora os pensamentos indesejáveis por tempo suficiente, eles deixarão de passar

do subconsciente para o consciente. No início, surgirão com menos freqüência. Depois, pararão de

incomodá-la para sempre.

Podemos explicar isso por analogia: Os músculos do corpo ganham força graças a exercícios. Se não

exercitamos um músculo, ele enfraquece. Se uma pessoa fica de cama por vários meses – D’us nos livre

– encontra dificuldade para caminhar, quando finalmente se levanta. A doença talvez não tenha afetado

os músculos do pé, mas a inatividade fez isso.

Muitos pensamentos e experiências se ocultam no subconsciente. Quando permitimos que cheguem ao

nível consciente, isso equivale a exercitar um músculo. Significa que, além de nos concentrarmos

124
nesses pensamentos, encorajamos que eles subam à superfície continuamente, vindos do subconsciente.

(3)

(3) Embora estejamos falando de pensamentos indesejáveis, de pensamentos cuja subida à superfície

procuramos impedir, o mesmo padrão se aplica a pensamentos desejáveis. Quando uma pessoa pensa

continuamente em coisas positivas, tais pensamentos acabam surgindo espontaneamente.

No entanto, quando uma pessoa não permite que um pensamento suba à superfície – isto é, os afasta

com as duas mãos – ela diminui a possibilidade de que esse pensamento retorne no futuro. É possível

que o pensamento volte, talvez várias vezes. Mas, a cada vez, sendo ignorado, ele perde pouco a pouco

a força para insistir.

Quando, por outro lado, a pessoa afasta o pensamento com uma das mãos – ou seja, admite o

pensamento e tenta não pensar naquilo – ela está, na verdade, estimulando esse pensamento; é uma

espécie de exercício. A pessoa permite que o pensamento atraia sua atenção, e isso o encoraja a passar

continuamente do subconsciente para o consciente.

Uma mulher e um homem procuraram o Rabi certa vez, e a mulher disse que queria o divórcio. Ela deu

como motivo as bebedeiras do marido, que chegava em casa e dizia coisas muito desagradáveis à

esposa. Furiosa, ela gritava com ele. O marido começava a atirar coisas, e a mulher revidava. Era o

início da Terceira Guerra Mundial – quase todas as noites.

Apesar das dificuldades, o Rabi viu que o casamento tinha potencial, muito potencial, na verdade, se

aquelas duas pessoas aprendessem a modificar sua conduta. Então, ele pediu à mulher que fizesse mais

uma tentativa, e prometeu que, se não desse certo, ele garantiria a realização do divórcio.

O que o Rabi sugeriu? Ele disse à mulher: “Tenho um antigo livro de Kabalá que contém um remédio

para as desavenças entre marido e mulher.” Ele passou a dar instruções detalhadas para a mulher. Ela

deveria pegar uma garrafa capaz de conter oito onças de mikvé, depois da meia-noite, em Rosh

Chodesh, o primeiro dia do mês. Deveria encher a garrafa de água três vezes, e despejar a água três

vezes. Depois disso, ela precisava encher a garrafa novamente, guardá-la num saco para que ninguém a

visse, e levá-la para casa.

“Quando seu marido chegar em casa”, o Rabi prosseguiu, “pegue uma colher de chá desta água e a

ponha na boca. Não a engula, e não a cuspa antes que seu marido vá dormir.”

124
Com muito esforço, a mulher preparou a garrafa com água. Numa noite de domingo, ouviu o marido

chegar em casa. De longe, percebeu que ele estava embriagado, dizendo desaforos.

Obediente, ela pegou a água, levou uma colher à boca e manteve a água lá. O marido entrou e começou

a gritar e proferir insultos, fazendo escândalo. Claro, ela ficou morrendo de vontade de retrucar, mas

não podia – tinha a água na boca. Por isso, o marido continuou a gritar, por meia hora.

Finalmente, como a mulher não reagia, ele se cansou e foi dormir. Depois que ele pegou no sono,

passada meia hora, a mulher correu para cuspir a água. E começou a gritar e chorar para liberar todo o

antagonismo que se acumulara nela enquanto o marido a insultava. Mas isso não incomodou o marido.

Ele dormia profundamente, e não ouviu nada do que ela disse.

No dia seguinte, a cena se repetiu. Ele voltou para casa, começou a gritar e proferir desaforos. Mas ela

não podia responder, por causa da água em sua boca. No entanto, nesse dia ocorreu uma mudança – ele

gritou durante 25 minutos, e foi dormir.

Dia após dia, a situação se repetiu, mas a cada vez o marido gritava um pouco menos. Logo ele

chegava, gritava durante um ou dois minutos, e parava. Em pouco tempo, parou completamente de

gritar e insultá-la.

Depois que a gritaria cessou, eles puderam dialogar. Como conseguiam conversar, um acabou aceitando

a maneira de ser do outro.

O remédio que o Rabi sugeriu estava escrito na Kabalá? Explicitamente, não, mas a Kabalá ensina as

virtudes da tolerância. No fundo, o Rabi estava dizendo: “Ignore-o, deixe que ele recupere o equilíbrio.

Aí, você verá que se pode dar um jeito nas coisas.” E deu certo.

Quando ignoramos uma atitude, portanto, nós a desencorajamos inteiramente. O mesmo conceito se

aplica a nossos pensamentos. O segredo é afastar um pensamento indesejável com as duas mãos,

concentrando a mente em outra coisa, permitindo que o pensamento indesejável saia de nossa

consciência naturalmente, sem esforço.

Chassis destaca o poder de nossa mente, e ensina que a mente é a chave das emoções. (4) Assim como a

chave com a qual podemos ligar ou desligar o motor de um carro, por meio da concentração ou do

desligamento de nossa atenção mental, podemos controlar nossas emoções.

Mudar eventos que já ocorreram não está ao nosso alcance; eles fazem parte da história. No entanto,

podemos mudar o modo como reagimos a qualquer coisa que aconteça. Temos controle total de nossas

124
mentes, e podemos decidir o que queremos pensar ou o que não queremos pensar. E, quando utilizamos

esse controle, nós nos tornamos senhores de nossas emoções.

Vamos pensar, por exemplo, no sentimento da raiva. Como já mencionamos antes, nossos Sábios

ensinam que uma pessoa, ao perder a calma e dar espaço para a raiva, é considerada igual a quem adora

ídolos. Pode-se perguntar: se uma pessoa é provocada e fica com raiva, não seria melhor pôr a raiva

para fora? A psicologia moderna diz que uma pessoa pode ter problemas, se deixar que muita pressão

se acumule dentro dela. A pessoa vira uma espécie de panela de pressão, o que pode até prejudicar sua

saúde. Contudo, se ela puser a raiva para fora, será capaz de relaxar e voltar ao normal. Por que, então,

a Torá nos manda controlar a raiva?

Há duas soluções para essa questão: Primeiro, é possível sublimar a raiva e liberar a energia de forma

positiva. Desse modo, a pessoa se expressa, sem ter necessidade de ser destrutiva. A mesma energia

pode ser liberada através de canais positivos. Em vez de deixar com que a raiva a domine, a pessoa

cerra os dentes e se empenha muito em superar o desafio.

Ademais, se a energia está queimando dentro de uma pessoa, talvez seja melhor para ela botar tudo para

fora. Mas a Torá exige que a pessoa não chegue a tal ponto, porém – ela nunca deve chegar ao ponto de

permitir que o sangue ferva dentro de si.

Por que uma pessoa fica cheia de raiva? Ela não fica assim por causa do que aconteceu, mas por pensar

no caso, concentrar-se no evento. Mas nós temos uma alternativa. Não há necessidade de alimentar essa

fogueira. Podemos desviar nossos pensamentos do fator de perturbação e concentrarmos a atenção em

outra coisa.

O desafio é não trabalhar em cima dos métodos de liberar a pressão, mas estar sempre um passo à

frente; agir de modo que impeça a pressão de se acumular, desde o início. E isso significa disciplinar o

pensamento.

Esse é o princípio básico da Torá. Assim como uma pessoa deve disciplinar suas ações e palavras, ela

deve disciplinar seus pensamentos. E, quando alguém se esforça para disciplinar o pensamento, acaba

conseguindo controlá-lo.

Vamos pensar na inveja. Se uma pessoa vê algo que outra possui, e sua reação natural é sentir inveja,

talvez não seja fácil mudar essa atitude. Contudo, ela não pode se ocupar apenas com pensamentos

invejosos. Deve haver controle.

124
A pessoa talvez não consiga impedir que um pensamento invejoso passe do subconsciente para o

consciente. Trata-se de uma reação natural. Contudo, ela pode – e deve - exercer o controle, evitando

facilitar e remoer tais pensamentos invejosos.

Sempre que um pensamento invejoso toma conta da mente, é preciso parar e desviar a atenção. O

pensamento pode voltar várias vezes. Mesmo assim, se a pessoa continua a exercer seu controle, esses

pensamentos invejosos se tornarão cada vez menos freqüentes. No final, deixarão de fluir do

subconsciente para o consciente.

O mesmo conceito se aplica aos pensamentos cheios de ódio. A Torá nos ensina a não odiar outro

Judeu. (5) Mas, o que acontece se uma pessoa nos fere profundamente? É natural que surja um

sentimento de ódio. Como podemos controlá-lo?

(5) Leviticus 19:17

A resposta é que realmente é muito difícil mudar nosso íntimo, de modo a não reagir com raiva ou ódio

num momento desses. Talvez esteja além do nosso controle. Uma vez que o evento ocorreu, os

pensamentos cheios de ódios provavelmente subirão à superfície.

Contudo, esse é o momento no qual devemos exercer o controle. Temos a capacidade de pararmos de

ocupar a mente com pensamentos de ódio.

Como podemos impedi-los? Não basta afastar o ódio com uma das mãos, é preciso eliminá-lo

totalmente, concentrando a atenção num tópico inteiramente diferente. Isso impede que os sentimentos

de ódio sejam reforçados e ampliados. Como não serão insuflados, acabarão por fenecer.

Esses pensamentos talvez retornem. Mesmo assim, se os ignoramos uma vez, duas vezes, três vezes,

cem vezes até, eles deixarão de passar do subconsciente para o consciente.

Muitos de nós, ao olharmos para o passado, vemos que, na juventude, estávamos obcecados com certas

coisas. Queríamos algo, e não conseguíamos parar de pensar nisso. Pela manhã, à tarde, durante as

aulas ou refeições, à noite, quando íamos dormir, em nossos sonhos, parecia até que não pensávamos

em outra coisa.

Quando fazemos uma retrospectiva, perguntamos a nós mesmos: “O que aconteceu? Não estou mais

obcecado com aqueles pensamentos? O que mudou?” Com freqüência, a situação não mudou, e não

conseguimos satisfazer o tal desejo.

124
Por que não continuamos a pensar naquilo? A resposta é muito simples. Passaram-se muitos anos, e

nesse ínterim enfrentamos novas situações, novos desejos e novos problemas. Talvez tenhamos

enfrentado até outras obsessões. Dedicamos muito tempo e atenção a esses assuntos, e perdemos

interesse nos anteriores. Demos cada vez menos atenção a eles, e finalmente deixamos totalmente de

pensar neles.

É isso que devemos fazer com os sentimentos de depressão e os pensamentos negativos. Em geral,

devemos ter em mente que tudo que acontece é bom, e portanto que uma pessoa deve ser sempre

b’simchá, cheia de alegria real. Devemos interiorizar essa idéia, torná-la parte de nós. Isso nos ajudará a

não perder o equilíbrio quando coisas indesejáveis acontecerem.

Mas, se ocorrer algo capaz de nos perturbar, devemos saber que existe uma alternativa. Essa alternativa

não inclui meditar sobre o modo como o fator de perturbação é realmente um benefício disfarçado.

Uma pessoa muito contrariada nem sempre seria capaz de chegar com sinceridade a esta conclusão. O

que podemos fazer – e o que devemos fazer, se quisermos preservar nosso equilíbrio interior – é voltar

a atenção para outro assunto – e fazer isso até não sermos mais incomodados pelo pensamento

indesejado. Quando não formos mais controlados por nossos pensamentos depressivos, podemos

concentrar a atenção na verdade ensinada pela Torá: que tudo vem de D’us, sendo, na essência, bom.

124
Capítulo Oito

Crescer na Dor

No capítulo anterior explicamos que um evento pode empurrar a pessoa no rumo da depressão e da

tristeza, e mesmo assim ela é capaz de se manter b’simchá, cheia de alegria. Em vez de permitir que as

inclinações negativas tomem conta de si, a pessoa usa o potencial que possui para disciplinar os

pensamentos e desviar a atenção para outro assunto. Uma vez que não está pensando no incidente, não

sentirá dor e depressão. E será capaz de ampliar os recursos internos que permitem superar o desafio.

Resta, porém, uma questão: Não é importante que a pessoa viva a dor, quando as coisas não estão

dando certo, pois isso a estimula a lutar para melhorar? Se uma pessoa nunca sente dor e sempre evita a

questão, pensando em outra coisa, o problema – seja algo físico ou espiritual – jamais será enfrentado.

No nível físico, os médicos alegam que a dor pode ser uma bênção. Pois, quando a pessoa sente dor, ela

se dá conta do problema. Isso a motiva a ir ao médico, fazer exames, descobrir qual é o problema.

Além disso, um antigo ditado Chassídico diz: “O conhecimento da doença é metade da cura.” Quando

um problema é definido, ele pode ser eliminado.

Se – D’us nos livre – uma pessoa nunca sente dor, a doença ou enfermidade continua a crescer. É

possível que, no momento de sua descoberta, já seja tarde demais para tomar alguma medida. Portanto,

o fato de que a dor chama a atenção da pessoa para sua condição e com isso permite que lide com o

problema é um dado positivo.

Por que, então, devemos evitar a dor emocional? Por que não dizer que é positivo quando a pessoa

sente dor devido a um evento determinado, pois a dor a força a mudar? Há uma inércia imensa quando

se trata de mudarmos nossa personalidade, e sem motivação é duvidoso que a pessoa possa realmente se

modificar.

Um farbrenguen é um encontro no qual os chassidim sentam-se juntos e cantam músicas chassídicas.

Normalmente, um chassid mais maduro fala aos colegas mais jovens, encorajando-os a melhorar seu

serviço divino. Certa vez, um grupo de chassidim estava sentado num porão escuro, dedicando-se a

uma dessas reuniões. Uma pessoa ouviu a canção, ao passar, reconheceu a melodia e perguntou: “Onde

você estão? Onde é o farbrenguen?”

124
Um dos chassidim respondeu, dizendo à pessoa que descesse ao porão. Depois de descer alguns degraus

da escada, o indivíduo hesitou, pois estava muito escuro. Ele gritou novamente: “Como posso descer

aí? Está muito escuro. Não consigo ver para onde estou indo.”

Um dos chassidim, sentado à mesa, disse a ele: “Não se preocupe, se permanecer sentado aqui tempo

suficiente, seus olhos se acostumarão à escuridão.”

O chassid estava lembrando um fato fisiológico simples. Quando ficamos sentados no escuro por muito

tempo, nossas pupilas se expandem e podemos ver melhor do que no momento em que entramos no

local. Contudo, o chassid mais velho que estava conduzindo o farbrenguen queria chamar a atenção

para uma dimensão diferente. “O problema”, explicou aos ouvintes, “é que, se você ficar muito tempo

sentado no escuro, acostuma-se. Não se dá conta da necessidade da luz.”

Por isso, pode ser positivo que uma pessoa sinta dor numa determinada situação. Pois, se sofrer, saberá

que há algo errado, e isso estimulará a mudança. Caso contrário, a pessoa permanece complacente,

acaba fazendo as pazes com o problema, sem tentar resolvê-lo.

Sempre que uma pessoa tem problemas – sejam eles físicos, financeiros ou espirituais – é muito

importante que ela reconheça a existência da dificuldade e a necessidade de agir para solucionar a

questão. Por que, então, dizemos para desviar a atenção e ignorar o assunto? Que valor permanente

possui tal atitude?

Por outro lado, tristeza e depressão nem sempre são valiosas. Pelo contrário, esses sentimentos

costumam exercer uma influência paralisante, capaz de sugar a vitalidade da pessoa e impedi-la de

resolver os problemas que se apresentam.

Portanto, parece haver dois tipos de sentimentos ruins: um, que estimula a transformação proveitosa, e

outro que reforça o lado negativo. Como podemos reconhecer a diferença entre eles? Na verdade,

enquanto a pessoa passa por sentimentos de remorso, arrependimento ou mágoa, ela talvez nem seja

capaz de reconhecer qual tipo de sentimento possui. Mais tarde, contudo, podemos distingui-los pelos

resultados.

Vamos tomar um exemplo: Uma pessoa fica acordada até tarde, pensando: “Eu pretendia fazer muitas

coisas, no mês passado. Mas não fiz nada. Faltou fazer isso, faltou fazer aquilo.” E a pessoa continua a

seguir essa linha de pensamento, até chegar à conclusão: “Sou um fracassado.”

A pressão do mês anterior se acumulou, e a pessoa está arrasada, deprimida. O que isso provoca? Ela

desiste de enfrentar o mundo. Fica na cama, se enrola nos cobertores e dorme.

124
Talvez tenhamos exagerado a cena. Contudo, queremos destacar que um sentimento ruim pode sugar a

energia da pessoa, sem motivação para fazer nada, exceto fugir do mundo.

A mesma situação – a pessoa fica acordada à noite, e percebe que falhou no cumprimento de seus

objetivos, durante o mês – pode produzir uma reação inteiramente diferente. Em vez de sentir vontade

de dormir, apenas, a pessoa se sente cheia de energia, decidida a realizar as tarefas.

O que provoca tais sentimentos? A sensação ruim de as tarefas propostas não foram executadas. Neste

caso, sentir-se mal gera energia e vitalidade.

Em Tanya, (1) o Alter Rebe diferencia esses dois tipos de sentimentos ruins. A depressão que embota a

sensibilidade da pessoa e que deve ser evitada é chamada por ele de atzvut. O tipo de sentimento ruim

que estimula a pessoa a agir positivamente é chamada de merirut, “amargura”.

(1) Capítulo 31.

Para distinguir os dois, a pessoa precisa se perguntar: “Por que estou me sentindo mal? Trata-se de uma

preocupação com o passado ou com o futuro?” Se a pessoa está incomodada com algo que aconteceu, e

só consegue pensar no quanto aquilo foi ruim, então trata-se de atzvut. Não há absolutamente nenhum

propósito na concentração em tais pensamentos; o evento já passou. Nada se pode fazer a respeito. A

pessoa deve afastar os pensamentos referentes a ele inteiramente.

Contudo, se ao pensar a respeito de um problema a pessoa está sendo estimulada a fazer algo a respeito,

então temos merirut; trata-se do sentimento ruim que é valioso. Claro, a pessoa sente arrependimento e

remorso, mas seus sentimentos são canalizados no sentido da mudança. Ela se pergunta: “O que posso

fazer para corrigir a situação?” E “o que posso fazer para evitar que isso se repita?”

Contudo, temos um problema. O ser humano não é um robô, sendo difícil discernir a linha tênue que

separa esses pensamentos positivos de remorso e arrependimento dos pensamentos indesejáveis e

depressivos. Como podemos ter certeza de que nossos pensamentos negativos serão canalizados para

um objetivo positivo?

A resposta, novamente, encontra-se no controle da mente. Devemos controlar o tempo que dedicamos a

pensar nessas coisas. Isso nos permite exercer controle sobre os pensamentos, em vez de deixar que

esses pensamentos nos controlem. A amargura é uma condição positiva, mas apenas em pequenas

doses, e somente no momento apropriado.

124
Ela pode ser comparada a um antibiótico. Esse remédio é útil, capaz de curar doenças. No entanto, as

pessoas tomam antibióticos em doses pequenas, em geral uma colher de chá, duas ou três vezes ao dia.

Quanto bebemos suco de maçã, ou de laranja, podemos tomar um copo cheio, até dois. E com a

freqüência que quisermos. No entanto, não tomamos antibióticos em quantidades assim tão grandes,

nem com tanta freqüência.

Por que não? Porque os antibióticos são, fundamentalmente, um agente destrutivo. É verdade que

destróem os germes causadores da doença. Mas eles podem – se forem tomados com freqüência

excessiva – destruir os sistemas vitais do corpo, indispensáveis para a nossa saúde.

Portanto, eles são ingeridos apenas em pequenas doses. Isso permite que a atividade destruidora seja

controlada, e dirigida para a destruição das bactérias causadoras da enfermidade, sem afetar o bem-estar

geral do organismo.

Conceitos similares se aplicam ao remorso e ao arrependimento. Senti-los é um negativo. Por vezes, no

entanto, é eficiente retificar uma situação indesejável. Contudo, uma vez que se trata de sentimentos

fundamentalmente destrutivos, eles devem ser controlados e empregados dentro de certos limites. Só

nessas condições eles podem ser controlados e dirigidos para uma finalidade positiva. Caso contrário,

levarão à depressão e sugarão a energia da pessoa.

Vamos pensar numa analogia: Certas atividades são muito boas, e as consideramos importantes mitzvot.

Mesmo assim, se essas atividades forem realizadas em momento inadequado, ou local errado, podem

perder seu valor positivo e até se tornarem negativas. Por exemplo, comer matzá é uma grande mitzvá.

Mas, quando? Quando comemos matzá na noite de Pesach, no seder. Saborear matzá em qualquer outro

momento não é uma mitzvá. E comer matzá na noite de Yom Kippur é considerado pecado, uma

violação muito severa da Lei da Torá.

O mesmo é válido em relação ao jejum. Trata-se, também, de uma grande mitzvá. Mas, quando? No

Yom Kippur, o dia mais sagrado do ano. Em outras épocas, não é tão importante. E, se jejuarmos na

noite de Pesach, quando devemos comer matzá, estaremos fazendo uma coisa errada.

A mesma idéia se aplica ao pensamento a respeito dos problemas, sejam eles espirituais ou materiais,

que uma pessoa deve corrigir. Há um valor positivo nesse pensamento, e ele deve ser encorajado.

Apenas, porém, no momento apropriado, e do modo correto. Caso contrário, o pensamento não é

positivo, e pode até se tornar destrutivo.

124
Como os pensamentos podem se tornar destrutivos? Aqui, podemos aprender por meio de um conceito

interessante do idioma hebraico. A palavra hebraica para “tristeza” é atzvut. E a palavra hebraica para

preguiça é atzlut. Elas são escritas de maneira muito similar. A única diferença é que uma contém um

beis, e a outra um lomed.

Qual a relação entre depressão e preguiça? A relação funciona dos dois lados. A depressão conduz à

preguiça. Quando uma pessoa está deprimida, ela perde energia. E a inatividade ganha vida própria; a

pessoa torna-se preguiçosa.

O inverso, contudo, também funciona. A preguiça leva à depressão. Uma pessoa se permite ficar

deprimida, pois trata-se de uma alternativa cômoda. Caso contrário, teria de enfrentar o problema,

encarar a si mesma e buscar uma solução. Mas isso tudo exige esforço; é muito mais fácil largar o

corpo e ficar deprimido.

Muitas vezes, quando uma pessoa está deprimida, um amigo bate à sua porta e diz: “Venha conosco.

Vamos sair, e a convidamos para ir junto.” E a pessoa se recusa a ir com eles. Sabe que, se for junto

com o amigo, será capaz de sair da depressão. Começaria a pensar no que estaria acontecendo no

momento, e isso afastaria sua mente das causas da depressão. Apesar disso, ela não vai.

Por que não vai? Porque é muito mais fácil continuar afundada na depressão. Assim, tem uma

justificativa para largar o corpo e não fazer nada – está deprimida – e as pessoas aceitarão essa

desculpa. Com isso, a pessoa não precisa enfrentar o desafio da vida.

Quando alguém enfrenta seus problemas e lida consigo mesmo, não é difícil alcançar uma solução.

Muita gente diz que passa um bocado de tempo pensando a respeito de um problema, mas nunca chega

à solução. Por quê? Porque, desde o início, os pensamentos não estão dirigidos no sentido de obter uma

solução.

Pelo contrário, o que o indivíduo deseja fazer – embora talvez não tenha consciência disso – é continuar

a pensar no quanto a situação é devastadora, em tudo que ela tem de ruim, e como poderia piorar ainda

mais, se isso ou aquilo acontecesse.

Há momentos em que gostamos de concentrar o pensamento nas coisas negativas. Isso é ilógico.

Sabemos que esses pensamentos não são realmente relevantes, e que não trarão satisfação genuína, nem

conduzirão a uma solução prática. Mesmo assim, continuamos a pensa. Por quê? Porque não estamos

prontos para sair e encarar a vida. Preferimos mergulhar no poço do desespero em vez de lutar para

resolver o problema.

124
Se o indivíduo elimina totalmente a negatividade e se concentra numa coisa – como resolver o

problema que tem pela frente – ele se surpreenderá ao descobrir que, em pouco tempo, imaginará uma

série de soluções possíveis para aquele ou qualquer outro problema.

Um dos mashpi’im (mentores espirituais) no yeshivá de Lubavitch era R. Yechezkel Feigen. Ele

ensinava filosofia chassídica e, de tempos em tempos, reunia os estudantes para conduzir um

farbrenguen para eles.

Certa vez, durante um desses farbrenguen, ele exigiu muito dos estudantes. Disse que queria ver um

envolvimento mais profundo com as orações, com o estudo, com o desenvolvimento pessoal. Suas

palavras, imbuídas de intensidade, foram ditas aos estudantes, mostrando a cada um deles os pontos em

que deveriam concentrar esforços.

Eles se comoveram muito com o que ele disse; alguns começaram a chorar. De repente, em pleno

farbrenguen, o homem encarregado de vigiar chegou correndo, para avisar que a KGB estava dando

uma busca naquela área.

Isso representava um perigo real. Desnecessário dizer, uma reunião como aquela era proibida; todos os

participantes poderiam ser mandados para campos de trabalhos forçados. Imediatamente, todos

começaram a sugerir alternativas. Um deles disse: “Vamos fugir”. Outro sugeriu apagar a luz, contando

com a proteção da escuridão. Um terceiro pensou em colocar jornais e livros de ciência política sobre a

mesa, para mostrar que se dedicavam a atividades aceitas pelo governo.

Graças a D’us, a KGB não chegou àquela sala. Eles saíram da região abruptamente, como haviam

chegado, e o Rabi pôde sentar-se novamente com os estudantes, para retomar o farbrenguen. O Rabi

dirigiu-se aos alunos, dizendo: “Acabo de presenciar um fato muito estranho. Espero que possam

explicá-lo para mim.”

Os estudantes o encararam, intrigados, enquanto ele prosseguia: “Digam-me, o que os afeta mais, uma

dificuldade em questões espirituais ou um problema referente a assuntos materiais?”

Os estudantes eram honestos consigo mesmos e com ele. Imediatamente, responderam que os assuntos

materiais os afetavam mais intensamente.

“Por que, então”, ele perguntou, “quando falei a respeito do bem-estar espiritual, todos choraram, mas

quando ouviram dizer que a KGB estava por perto ninguém chorou?”

124
Um dos estudantes o olhou, atônito, e disse: “O que esperava que fizéssemos? Que nos sentássemos,

chorando? De que isso adiantaria? Precisávamos descobrir um jeito de fugir ou nos escondermos, antes

que eles chegassem.”

R. Feigen já estava esperando tal resposta. “Certo. Compreendo. Quando precisam agir rapidamente,

sabem que chorar não adianta. Mas, quando se trata de questões espirituais, é aceitável chorar.”

Ele repetiu o conceito e o explicou até que todos o entendessem bem. Os estudantes compreenderam

que chorar pode ser apenas uma desculpa. Não resolve o problema, de modo algum. Só funcione como

catarse, para a pessoa. Por outro lado, quando alguém pretende realizar uma mudança de verdade, não

tem tempo para chorar. Cada momento é precioso, e precisa ser utilizado para pôr em prática uma

solução. É assim que deve ser.

Em suma, o que estamos dizendo é que Chassis nos ensina que há duas maneiras de reagir aos fatores

negativos – sejam eles físicos ou espirituais. Uma delas é positiva, merirut, que se traduz como

amargura, e a outra é negativa, atzvut, que traduzimos como depressão.

Existem quatro diferenças fundamentais entre as duas maneiras:

a) atzvut não contém vitalidade alguma; é o tipo de sentimento ruim que esgota a gente. A pessoa perde

a disposição para fazer qualquer coisa. Merirut, por sua vez, desperta a energia; tem dinamismo e

vitalidade.

b) Atzvut se perpetua. A sensação de depressão permanece por muito tempo. Com merirut, sentir-se mal

é temporário. A energia positiva que produz ativa a vontade de agir em pouco tempo.

c)Atzvut não aponta uma solução prática. Não é um meio para um fim; é um fim em si. Basta, para a

pessoa, remoer o quanto tudo é terrível. Merirut, em contraste, volta-se para o futuro e se concentra na

solução e no porvir. A pessoa se pergunta: o que eu posso fazer a respeito do problema?

d)Atzvut faz com que a pessoa se isole, volte-se apenas para dentro. Ela pensa mais e mais em si

mesma. O dinamismo de merirut, por outro lado, estimula a pessoa a pensar nos outros.

Há ramificações na diferença entre estas duas posições. Por exemplo, certa vez fizeram uma sugestão

para lembrar os seis milhões de Judeus que morreram no Holocausto, deixando uma cadeira vazia na

mesa do seder, na noite de Pesach. Ver que falta alguém em nossa mesa do seder nos levaria a lembrar

dos seis milhões.

124
O Rebe de Lubavitch discordou dessa sugestão, por duas razões. Primeiro, Pesach é uma festa, uma

época em que não se permite pensar em questões associadas à tristeza e à lamentação. Mesmo que ele

apreciasse a idéia, o momento era impróprio.

Segundo, o Rebe enfatizou que a sugestão centrava o foco no lado negativo. O Rebe concordava que

deveria haver uma cadeira extra no seder. Mas por que, ele perguntou, deveria estar vazia? Que fosse

ocupada por uma pessoa que não estaria num seder, caso não tivesse recebido aquele convite.

O Rebe não estava oferecendo uma sugestão diferente. Ele preferia uma abordagem inteiramente

diferente da questão. Em vez de ter uma cadeira vazia como resultado da lembrança da perda de seis

milhões de Judeus, ele queria que a emoção despertada fosse direcionada para um objetivo positivo.

O pode ser feito para compensar a perda dos seis milhões? Antes de mais nada, e principalmente, algo

positivo. Vamos pegar os Judeus que estão vivos agora, e se encontram no rumo da assimilação total –

que nem mesmo procuram tomar parte de um Seder em Pesach – e vamos fazer com que se sintam

parte do povo Judeu. Isso se contrapõe aos esforços de Hitler e demonstra que nada – nem o Faraó, nem

Hitler, nem mesmo a abertura da sociedade norte-americana – pode romper a ligação que um Judeu tem

com sua herança espiritual.

Vamos pensar num outro exemplo. Uma das maiores preocupações das pessoas que mudaram seu modo

de vida e começaram a observar a Torá e seus mitzvot é kashrut. Quando as pessoas começam a

manter-se kosher e aprendem o quanto isso é importante, em geral começam a se preocupar muito por

terem comido alimentos não-kosher durante tantos anos.

Conheço um certo número de pessoas que escreveram cartas ao Rebe de Lubavitch pedindo conselho a

respeito do que deveriam fazer para se penitenciarem por toda a comida não-kosher que ingeriram. Elas

esperavam que o Rebe sugerisse que jejuassem algumas poucas vezes por semana, evitassem comidas

que lhes dessem prazer ou fizesse outra indicação desse tipo. O Rebe, porém, adotou uma abordagem

totalmente diferente. Ele disse que encorajassem e instruíssem outros Judeus a observar as leis de

kashrut.

O que o Rebe estava dizendo era: não se concentre na dor que você está sentindo em conseqüência de

seus erros; transforme essa dor em energia positiva e produtiva. Estenda a mão para outra pessoa e

compartilhe com ela suas descobertas.

124
Para que merirut seja um instrumento eficaz de estímulo para o aprimoramento da conduta, não pode

ser deixado por conta da espontaneidade. O crescimento pessoal depende do controle da pessoa sobre

seus sentimentos, e esse controle não surge espontaneamente.

Por esse motivo, deve haver um momento determinado para pensarmos nos diferentes problemas que

nos afligem. Eles podem ser físicos, financeiros ou familiares, não podemos permitir que nos

assombrem o dia inteiro. Tampouco devemos negligenciar o controle, quando pensamos nos problemas.

Precisamos reservar um momento em que estamos preparados para enfrentá-los.

Mesmo no que diz respeito ao fracassos espirituais, devemos lidar com os problemas só no momento

explicitamente reservado para este propósito. Chassis fala em reservarmos um tempo para pensar em

nosso bem-estar espiritual. Esses pensamentos são chamados de chesbon hanefesh, que significa,

literalmente, “fazer a contabilidade da alma”.

Vários momentos diferentes são destinados a isso: no final do dia, antes de irmos para a cama; perto do

final da semana, na noite de quinta-feira; no final do mês, no último dia, conhecido como Yom Kippur

Katan, ou “miniatura de Yom Kippur”; e no final do ano, durante o mês de Elul.

Essas práticas enfatizam que, como mencionado anteriormente, deve haver um momento designado

para pensar nesses assuntos. Não podemos deixar que tais pensamentos simplesmente caiam sobre nós,

a qualquer momento. Vemos também que o momento determinado situa-se sempre no final do período

em questão.

Durante o dia, uma pessoa deve ser ativa e produtiva, concentrando-se nas tarefas. Não é o momento

adequado para parar e rever situações; é tempo de agir. Quando o dia se aproxima do final, e a pessoa

se prepara para o dia seguinte, ela deve parar e se perguntar: “Como esse dia transcorreu?” e “O que

posso fazer para que amanhã seja melhor do que hoje?”

O mesmo conceito se aplica ao ciclo semanal, mensal e anual. No final devemos fazer um balanço de

nossas atividades, de modo a estarmos preparados para o novo ciclo que se aproxima. Mas, antes do

final do ciclo, devemos nos ocupar das atividades, fazer coisas produtivas que resultarão em benefícios

para nós e para os outros. (2)

(2) Ver Likkutei Sichot, Vol. 16, p. 272.

124
Com essas base, podemos explicar a conclusão à qual chegamos anteriormente. Uma pessoa deve

afastar os pensamentos negativos da mente, isso é verdade – mas, quando estamos sentindo depressão, e

não amargura. Ou, mesmo quando estamos sentindo amargura, se for o momento errado, quando

devemos trabalhar, fazer as preces, estudar ou cuidar da família, esses pensamentos devem ser

afastados.

Em todos os momentos, precisamos manter o controle. Devemos dar atenção ao assunto desagradável

quando quisermos, e lidar com ele da melhor maneira possível. Esta é uma abordagem positiva.

124
Capítulo Nove

Ir Além do ‘Eu’

No capítulo anterior mostramos a diferença entre merirut, “amargura”, que explicamos como um tipo

de sentimento ruim que leva à ação positiva, e atzvut, que traduzimos como depressão. Merirut envolve

um reconhecimento dos próprios erros, mas se baseia numa sensação positiva de bem-estar que nos

empurra em direção a uma solução. Atzvut é uma sensação desvitalizada, que não produz resultados

positivos. Ela conduz à inatividade e causa danos pessoais.

Por que uma pessoa sente atzvut e outra merirut? Qual é a fonte desses sentimentos diferentes, que o

que nos torna receptivos a um tipo ou outro?

Outra questão que toca num assunto correlato: Nos capítulos anteriores, explicamos que uma pessoa, se

for tomada pela depressão, deve afastar os pensamentos perturbadores da mente. Em última análise,

deve reconhecer que tudo bem de D’us, e que portanto tudo é, em essência, bom. Contudo, num nível

imediato e prático, o modo mais eficaz de lidar com um problema é recusar mentalmente os

pensamentos negativos e depressivos. Pois a causa direta do desprazer que sentimos não é o evento

negativo em si, mas sim o fato de que estamos pensando nele. Se uma pessoa consegue afastar da mente

o pensamento que a perturba, não sentirá tanto desconforto.

Esse conceito também exige explicação. Se é tão mais confortável simplesmente afastar os pensamentos

negativos da mente, por que não o fazemos com facilidade? Por que vemos que uma das coisas mais

difíceis, para as pessoas, é tirar esses pensamentos negativos da cabeça? Por que é tão difícil ignorá-los?

Por que nos agarramos a uma coisa tão destrutiva?

Há um elemento no âmago das duas questões: Yeshus. Significa obsessão com o eu. É importante que

uma pessoa tenha uma boa imagem de si. Ela deve se sentir forte, confiante, capaz de se relacionar.

Sem esses sentimentos positivos, não conseguimos agir adequadamente no relacionamento com os

outros – e nem em nosso relacionamento com D’us. (1)

(1) Maamar VaYasufu Anavim (Sefer HaMaamarim 5710, p. 237ff.)

Contudo, yeshus vai além de uma imagem positiva de si; é uma abordagem na qual o eu se posiciona no

centro da pessoa e domina – consciente e inconscientemente – a atitude da pessoa perante a vida. Essa

124
atitude constitui a origem da depressão. Tudo que acontece a uma pessoa assim, qualquer evento de sua

vida, gira em torno de uma única questão: como isso afeta seu eu?

A qualquer pessoa acontecem coisas que não se encaixam em seu ideal de como tudo deve ser. É

provável que, de vez em quando, todos nós fracassemos na tentativa de atingir certos objetivos ou que

sejamos magoados pelos outros. Quando uma pessoa está envolvida pelo ego, esses fatores afetam seu

amor próprio, fazendo com que se sintam mal. Mas, o que é pior, essa pessoa se agarra à dor e não

permite que ela passe. Não pode permitir que passe, pois seu eu está em jogo, e seu eu é a única coisa

que a interessa.

Uma pessoa que não pensa só em si pode deixar isso de lado. Nem sempre temos sucesso. Nem sempre

realizamos nossos sonhos, e nem todos os relacionamentos dão certo. Uma pessoa menos auto-

referente, porém, olha adiante do fracasso momentâneo, segue tocando a vida, e faz tudo isso com

alegria.

Não há distinções absolutas, no caso; todos pensam em si. No entanto, a questão é: “de que maneira?”

Vamos pensar num exemplo. Um médico trata certo paciente, que sofre de uma doença grave, e

consegue curá-lo. Sente-se feliz, certamente; mas há duas razões possíveis para sua felicidade.

A primeira está focalizada no bem que ele conseguiu fazer. Uma pessoa sofria, corria perigo de vida, e

agora poderá viver, ser feliz, produzir, levar alegria à família.

A segunda razão se concentra na própria capacidade de realização do médico. Ele se sente orgulhoso e

feliz por ter sido capaz de obter a cura. É seu ego satisfeito que lhe dá a sensação de felicidade.

O mesmo vale quando – D’us nos livre – a situação é inversa. O médico faz o possível para salva a vida

do paciente, mas vê que não consegue. Um tipo de pessoa ficará muito incomodada, pois alguém está

morrendo. Ele vê os rostos tristes dos membros da família, e isso o fere, provoca dor.

O outro tipo de pessoa também se sente incomodada, mas seu pensamento principal é: “Eu falhei”.

Ficará contrariada por não ter sido capaz de curar o paciente – não tanto por causa do próprio paciente

quanto por si mesma. Sente-se mal quando não triunfa.

Todos nós somos motivados por esses dois impulsos. Cada um de nós possui um certo grau de

sensibilidade em relação aos outros, e cada um de nós possui uma dose de auto-referência. A questão,

porém, é qual é o principal fator de motivação de cada um.

Uma pessoa yesh, auto-centrada, preocupada com si mesma, é motivada pelo ego. É isso que a conduz

até o final do dia. Em contraste, uma pessoa batel, altruísta, concentra-se em seus objetivos. Também

124
tem noção de si. No entanto, seu ego – no caso de sucesso ou fracasso – não é a principal preocupação.

Ela concentra a atenção em objetivos e metas.

Vamos pensar no seguinte exemplo: uma pessoa se dirige a uma multidão de 500 ouvintes, para dar

uma palestra. Em tal situação, está muito consciente de si e do que está fazendo. Vamos imaginar a

mesma pessoa numa situação totalmente diferente; ela sobre no ônibus e paga a passagem. Ela sabe que

está subindo no ônibus? Sim. Sabe que está pagando a passagem? Sim. Está pensando em si da mesma

maneira que pensa quando levanta-se para falar a uma multidão? Certamente que não.

Quando realizamos as tarefas cotidianas, temos noção do que estamos fazendo, mas não atribuímos

importância subjetiva aos feitos. Nossa atitude é objetiva, lidamos com a situação que se apresenta.

Mas, quando subimos num palco, ou nos encontramos em outras situações em que atraímos a atenção,

tornamo-nos conscientes de nós; pensamos na maneira como somos vistos pelos outros e no que eles

pensam de nós.

Podemos perceber, portanto, que há duas maneiras diferentes de atuar. Uma delas é concentrar a

atenção no que estou fazendo, nas tarefas a desempenhar. E a outra é concentrar a atenção no fato de

que sou eu que estou fazendo, ver a mim mesmo mais do que a tarefa a realizar.

Um yesh é a pessoa que se concentra em si. Seus pensamentos giram em torno do eu, e na maneira

como tudo que encontra afetam seu ego.

Bitul, por sua vez, é o oposto de yesh, significando a anulação do eu. Isso não quer dizer esmagar a

personalidade, no entanto. Significa dedicar-se a um propósito mais elevado do que o eu, e lutar

constantemente para alcançar esse propósito. Quando uma pessoa é batel, ela age sem ter noção de si.

Isso é saudável e natural. O contrário, ser auto-centrado, é anormal.

Um professor de anatomia ensinava aos alunos o movimento do pé. Explicou como eram os diversos

nervos, músculos, tendões e ossos, e o modo como atuavam harmoniosamente, permitindo que

caminhássemos. Terminada a aula, ele saiu da classe e saiu andando pelo campus, a caminho de casa.

Começou a pensar na dinâmica do movimento, na maneira como a movimentação do pé exigia o

funcionamento sincronizado de tantas partes diferentes do corpo. E tentou sentir todas as diferentes

funções em ação, conforme caminhava.

Podem imaginar o que aconteceu? Quanto mais ele pensava, mais desengonçado seu tornava seu passo,

até que não conseguia mais caminhar. Seus pés não se mexiam.

124
Como fez para andar de novo? Tirou o assunto da cabeça, inteiramente. Começou a pensar em outra

coisa e não deu mais atenção aos pés. Assim, pôde voltar a caminhar. Pois, quando uma pessoa se

envolve demais com algo que está fazendo, perde a capacidade de agir naturalmente.

Temos uma outra história, similar: Um Rabi caminhava certa vez pela rua. Um passante o deteve,

admirando a longa barba branca. O Rabi sorriu, graciosamente. E o passante fez uma pergunta: “Rabi,

quando dorme, à noite, a barba fica sob as cobertas ou por cima delas?”

O Rabi disse, intrigado: “Para dizer a verdade, não tenho a menor idéia.”

O passante não entendeu. “Você usa barba há quarenta anos. Não sabe o que acontece com ela à noite?”

O Rabi disse, apenas: “Simplesmente, não sei.”

Nas duas semanas seguintes, o Rabi não conseguiu dormir. Primeiro, punha a barba debaixo das

cobertas, e sentia desconforto. Depois, a colocava por cima, e sentia desconforto. Não encontrava uma

posição satisfatória.

Como conseguiu dormir bem durante quarenta anos? Enquanto não pensava no assunto, jamais tivera

aquele problema. Quando seus problemas começaram? Quando ele começou a pensar conscientemente

em algo que deveria ocorrer naturalmente.

E isso vale para muitas outras coisas. Quando estamos ocupados com nossas vidas, cumprindo tarefas,

não pensamos nas coisas que fazemos. Quando nossas mentes se concentram no que deve ser feito,

agimos naturalmente, alcançando o sucesso. Mas, quando uma pessoa só pensa em si, e começa a

pensar no modo como tudo a afeta, afasta-se do caminho natural e começa a ter problemas.

A diferença entre yesh e bitul também se encontra no centro da diferença entre atzvut e merirut,

mencionada antes. Perguntamos: Por que uma pessoa acha tão difícil deixar algo de lado? Se ela for

yesh, não consegue se libertar porque a vida gira em torno da noção que tem de si mesma. Pode até

entender que é melhor deixar algo de lado, mas não consegue. Embora só sinta irritação e desconforto,

continua remoendo uma questão qualquer, obcecado pelos detalhes, sem parar nunca. Como se não

tivesse alternativa. Está preso demais ao eu; afinal, sua vida se concentra nisso.

No entanto, uma pessoa em harmonia com a dimensão mais profunda de seu ser, sintonizada com o

aspecto Divino interior, não está ligada ao eu num grau tão intenso. Se algo desagradável acontece, está

preparada para superar o problema. Tem outras coisas na cabeça; pensa nos outros objetivos que deseja

alcançar e olha para o futuro, não para o passado. Ademais, uma pessoa caracterizada por bitul aceita

124
melhor D’us e Seu plano. Em contraste, quando uma pessoa é yesh, sua preocupação consigo mesma

interfere na aceitação da vontade de D’us, pois o ego não aceita abandonar o controle.

Outra diferença entre merirut e atzvut é que uma pessoa passando por atzvut não pensa em termos de

soluções práticas. Ela só pensa em termos do quanto algo é ruim e no quanto pode piorar, no que os

outros acham dela, no quanto ela não é tão má assim, no fundo; basta compará-la ao irmão, à irmã, ao

primo ou ao vizinho. Esses são os pensamentos que dominam a mente de uma pessoa deprimida. E, de

certo modo doentio, esses pensamentos dão a ela uma espécie de satisfação.

Uma pessoa que passa por merirut, por outro lado, encontra motivação na busca de uma solução para

seu problema. Não se concentra apenas em si; compromete-se com objetivos e metas, analisa o que está

acontecendo em sua vida e à sua volta usando esses objetivos como referência. Está preparada para

enfrentar os problemas que surgem, encarar suas limitações e até seus erros. No momento em que

experimenta merirut, sente dor – uma dor real, o tipo de dor que vem com a análise honesta de uma

situação que exige aprimoramento, e não a dor auto-gerada que deriva da obsessão pelo eu; contudo,

trata-se apenas de um sentimento temporário. No fundo, a pessoa é feliz, pois possui o sentido profundo

da felicidade, que deriva de se dedicar a um objetivo e encontrar nele a realização.

Em última análise, yeshus provoca a depressão, sendo a obsessão da pessoa com seu ego que a impede

de se concentrar em seu propósito na vida e na intenção que D’us tem para ela. Tal pessoa continuará

obcecada com si mesma e incapaz de sentir a verdadeira alegria que vem da aceitação total de D’us e de

Seu plano, com o conseqüente envolvimento ativo em sua realização.

124
Capítulo Dez

Deixar para Lá

Era uma vez um rei que estava muito doente. (1) Todos os médicos o desenganaram. Contudo, um

curandeiro sugeriu um remédio: Se o rei vestisse a camisa de uma pessoa absolutamente feliz, estaria

curado.

(1) Ver Sefer HaMaamarim

Imediatamente, emissários foram despachados para os quatro cantos do país, em busca de uma pessoa

totalmente feliz, para pegar sua camisa e trazê-la para o rei. Em primeiro lugar, procuraram o homem

mais rico do reino, e perguntaram a ele: “Você é feliz?”

“Claro”, ele respondeu. “Sou o homem mais rico desta terra.”

“Mas, você é absolutamente feliz?”

Ele hesitou. “Absolutamente é uma palavra difícil. Como posso ser absolutamente feliz? Preciso

proteger minha posição, sempre. Por exemplo, há um comerciante no norte. Seus negócios estão se

expandindo rapidamente, e eu me preocupo com a ameaça de competição. Sofri alguns revezes, nos

últimos tempos...”

Os mensageiros o deixaram com seus pensamentos. Viram que, apesar da riqueza, ele viva preocupado,

sem saber o que era a verdadeira felicidade.

Em seguida, procuraram a maior autoridade educacional do país. “Você é feliz?” perguntaram. “Sim”,

ele respondeu. “Absolutamente feliz?” Nesse momento, a coisa mudou de figura. Ele falou em desejos

insatisfeitos e ameaças que sofria de algumas pessoas. Eles viram que o professor tampouco sabia o que

era a felicidade absoluta.

E assim eles foram, de um em um, ouvindo sempre a mesma história. Algumas pessoas eram felizes

exteriormente, outras internamente. Ninguém, contudo, era absolutamente feliz. Todos, lá no fundo,

tinham suas preocupações, temores e ansiedades.

Após uma longa jornada, eles decidiram regressar, apesar do fracasso; perceberam que não poderiam

encontrar alguém que conhecesse a felicidade absoluta. No caminho de casa, pouco antes de chegarem

124
ao palácio, ouviram uma linda melodia. Alguém cantava maravilhosamente, e eles perceberam que se

tratava de um sujeito realmente feliz.

Dirigindo os cavalos para a direção do som, eles viram um sujeito embriagado, cambaleando, com um

sorriso nos lábios. “Vocês é feliz?” Perguntaram. “Sou a pessoa mais feliz do mundo”, ele respondeu.

“Absolutamente feliz?” “Sim. Não tenho preocupação alguma.”

Eles viram que o homem dizia a verdade. Ele não se preocupava; não sentia medo ou ansiedade. E

perceberam que ali estava o homem pelo qual procuravam. Então, disseram: “Senhor, precisamos de

sua camisa. O rei está doente, mas o curandeiro disse que pode ser curado, se vestir a camisa de um

homem feliz. Empreste-nos sua camisa, por algum tempo. Prometemos que será ricamente

compensado.”

O sujeito respondeu: “Gostaria muito de ajudar o rei, e não preciso de recompensa. Há, porém, um

problema. Eu não tenho camisa.”

A moral da história é: ele não tem camisa, e por isso é o homem mais feliz do mundo.

Por um lado, a história parece boa. Ela nos mostra que muitos se preocupam com o que são e o que

têm, sem conseguir relaxar e serem felizes. As preocupações com nós mesmos nos impedem de sentir a

verdadeira felicidade.

Há uma verdade básica nessa mensagem. Contudo, sob a superfície, encontramos algo negativo. A

pessoa não tem nada, nenhum objetivo ou propósito na vida, não trabalha para nada, não busca coisa

alguma. É verdade que nada o impede de ser feliz. Mas falta a ele a verdadeira base da felicidade; sua

vida é vazia.

Quando uma pessoa quer atingir uma meta – seja egoísta, como ganhar dinheiro, ou altruísta, como

ensinar ou ajudar os outros – define a felicidade em termos da conquista do objetivo. Há momentos em

que obtém sucesso, outros em que fracassa. Uma vez que a vida tem seus altos e baixos, ela jamais será

absolutamente feliz. Por que o bêbado da nossa história se considera feliz? Porque ele não

absolutamente nada que o incomode. Mas isso é trágico, e não alegre.

Jamais um animal procurou um psicólogo para se queixar que se sente insatisfeito, que não realizou o

bastante. Um animal não pensa desse modo. Vamos ver o cachorro: ele acorda pela manhã, late um

pouco, rola no chão, corre por aí, come bastante, dorme de novo, brinca, dorme e acorda para mais um

dia. Assim vive, ano após ano. Para um cão, isso é ótimo; sua natureza não exige mais nada dele. Ele

nunca se sente insatisfeito.

124
Um ser humano, todavia, é diferente. Tem cérebro e alma, e a não ser que realize seu potencial, jamais

se sentirá satisfeito. O bêbado se considera feliz por que não tem camisa, ou seja, não tem nada de seu.

Mas isso não é a verdadeira felicidade. Em hebraico, chamamos isso de holelut (frivolidade), e não de

simchá (alegria). Trata-se de um modo animal de obter satisfação, no qual a pessoa não faz jus ao seu

potencial.

Podemos combinar simchá e responsabilidade? É possível termos um propósito e um rumo na vida, e

ao mesmo tempos nos sentirmos leves e soltos?

Sim. Esse é o tipo de felicidade que vem de kabalat ol, aceitar a servidão a D’us. Por uma lado, a

pessoa deixa para lá a auto-referência, sem mergulhar no vazio; ela se une a uma força muito maior que

seu ego. Os atos de deixar para lá e se conectar são as fontes de simchá.

Vamos retornar à analogia usada na história. A felicidade vem de “não possuir uma camisa”, ser capaz

de ir além das preocupações com o eu. A questão, porém, é que a pessoa anda por aí despida, isto é,

sem seu potencial humano. Ela não poderia – como faz um mestre de kabalat ol – continuar usando a

camisa, mas transferir sua propriedade para D’us?

A felicidade do bêbado é destrutiva; ela arruína sua capacidade de construir uma vida para si e para as

pessoas próximas a ele. A verdadeira alegria envolve a transcendência – e, mais do que isso, a criação

de uma ligação com sua própria essência sagrada. Isso resulta em força pessoal. Uma pessoa que

conhece a verdadeira felicidade cresce e se torna capaz de superar as limitações pessoais que antes a

seguravam. É aberta e cordial com os outros, transmitindo alegria a todos. Ela irradia confiança em

D’us e reconhecimento pelo bem que Ele dá a todos nós.

Em outros palavras, há um tipo de felicidade que destrói a pessoa, e há um tipo de felicidade que torna

a pessoa mais forte do que antes. Quando uma pessoa deixa tudo de lado, sem direção, está sendo

destrutiva. Imaginem largar o volante ao fazer uma curva fechada. O caminho da vida exige tanta

atenção quanto qualquer estrada.

Há momentos, porém, em que transferimos o controle, como um aviador ao ligar o piloto automático.

Apesar de tirarmos as mãos no volante, não paramos de pensar no rumo do vôo. Apenas, Alguém está

dirigindo a aeronave. De todo modo, tirar as mãos do volante não é uma analogia adequada, pois na

vida real nossas mãos continuam no volante; devemos assumir a responsabilidade por nossas vidas.

Contudo, observando a Torá e suas mitzvot, adotamos um modo de vida que leva à auto-

transcendência.

124
Uma pessoa que não acredita em D’us e não reconhece o elemento Divino que existe no centro de seu

próprio ser não pode experimentar jamais a verdadeira alegria. Vive envolvido consigo mesma, ou leva

uma vida vazia. Não tem alternativa, pois não tem consciência de nada, além de si mesma.

Quando, ao contrário, uma pessoa reconhece D’us e se dá contra do elemento Divino no centro de seu

ser, pode realmente deixar de lado seu ego. E sentir a genuína felicidade.

Holelut significa deixar tudo de lado, diminuindo o que ela realmente é. A pessoa esquece de si e de

tudo que tem significado, conteúdo e propósito. No extremo, isso significa tornar-se um bêbado ou

tomar drogas que roubam o controle da pessoa. No entanto, esse sentimento tem outras formas bem

mais comuns de se manifestar. Uma pessoa acredita que o único modo de ser feliz é esquecer de tudo,

menos do prazer sensorial que está recebendo num momento. E vive para o momento.

Isso pode ser muito destrutivo. Pois, quando uma pessoa ignora a responsabilidade, arrisca-se a se

machucar, ferindo a família e todos que estão em volta.

A alegria, simchá, também inclui deixar muita coisa de lado, embora esse deixar de lado seja muito

difícil. A pessoa não perde o controle – o transfere. Quando uma pessoa experimenta a alegria

verdadeira, deixa seu ego de lado, mas se liga a algo mais alto, D’us. Ela se liberta do egoísmo e torna

possível que uma dimensão de sua identidade que é mais profunda e verdadeira apareça.

Esse é um dos motivos pelos quais simchá é considerado um alto nível de serviço Divino. Essa ligação

despojada com D’us – além de todas as vantagens decorrentes de se livrar da depressão – é um objetivo

que vale a pena perseguir.

É disso que tratam o Shabat e as festividades. Nesses dias, nos elevamos acima das experiências

cotidianas e sentimos a verdadeira alegria.

Vocês já viram pessoas dançando durante horas, em Simchat Torá. As pessoas que celebram são seres

humanos, e não anjos. Elas têm sua própria dose de preocupações e problemas. Mas, em Simchat Torá,

elas não se preocupam com essas questões. Não pensam em si mesmas. Enquanto cantam e dançam,

estão conectadas a uma dimensão mais profunda, que existe no fundo de seu ser. É daí que vem simchá.

O Rebe Anterior costumava dizer (2) que em Simchat Torá a própria Torá quer dançar. Uma vez que

foi além de sua própria identidade, ele não é nada além dos pés da Torá, e pode se regozijar em

completo abandono. Contudo, sua vida será preenchida com o significado e o propósito que brota da

Torá que está carregando.

124
(2) Sefer HaSichot 5704, p. 36.

124
Capítulo Onze

Simchá: Uma Dinâmica do Fortalecimento

A alegria é importante, não somente como antítese da depressão, mas também como um elemento

fundamental do serviço Divino propriamente dito. Assim como o amor a D’us e o temos a D’us são

necessários para que nosso serviço Divino seja completo, a alegria é essencial para nosso

desenvolvimento espiritual. Todos os mitzvot que uma pessoa cumpre e tudo que ela faz, enquanto

expressão de sua ligação com D’us, devem ser inspirados pela alegria.

Isso está registrado nos Salmos, que dizem: (1) “Sirva a D’us com alegria; apresente-se perante D’us

em celebração.” Ou seja, a celebração é o meio que nos permite chegar a D’us e sentir Sua presença. O

Rambam explica claramente esse conceito, ao escrever (2):

(1) 100:2.

(2) Mishné Torá, Hilchos (*) Lulov 8:15.

(*) Ou Hilchot?

A alegria com que uma pessoa deve se regozijar no cumprimento das mitzvot e no amor a D’us... é um

grande serviço... Não há outra grandeza ou honra maior do que a celebração perante D’us.

Similarmente, no que diz respeito à profecia, o Rambam menciona (3)vários pré-requisitos para a

profecia, que tipificam o desenvolvimento pessoal: “A profecia é dada apenas a um sábio de grande

conhecimento e força de caráter, que nunca é vencido pelas inclinações naturais de qualquer tipo. Em

vez disso, com a mente, ele supera as inclinações naturais, em todos os momentos.”

(3) Mishné Torá, Hilchos (*) Yesodei HaTorá 7:1.

(*) Ou Hilchot?

Não obstante, ele enfatiza (4) que “a profecia não pode resistir em uma pessoa quando esta está triste e

lânguida, mas apenas quando está feliz.” A experiência da profecia envolve a manifestação da Presença

Divina dentro da pessoa, e isso só é possível quando ela está feliz.

124
(4) Ibid.:4.

Esse conceito também se aplica no que diz respeito a Beit HaMikdash, a morada permanente para a

Presença de D’us. Está escrito (5): “Força e contentamento estão em Seu lugar.” Seu lugar, o Beit

HaMikdash, se caracteriza pela felicidade, como se evidencia nas canções que os Levitas cantam e

tocam em seus instrumentos.

Similarmente, em relação ao tempo: Shabat, o dia mais sagrado da semana, e as festividades, dias

reservados por sua santidade, são dias de felicidade e regozijo. Pois a felicidade nos aproxima de D’us.

Não somente simchá é um elemento importante no serviço a D’us de um Judeu, como, em certo

sentido, servir a D’us com simchá pode ser considerado mais elevado do que todos os outros caminhos

do serviço Divino. Vamos examinar a história sobre o Rabi Levi Yitzchok de Berditchev. Certa vez, no

dia anterior a Yom Kippur, um estalajadeiro Judeu que morava perto de Berditchev foi preso pelo dono

da propriedade em que se localizava a hospedaria do Judeu.

O Judeu não pagava o aluguel havia muito tempo. Ele não estava tentando enganar ninguém;

simplesmente, não tinha o dinheiro. Os negócios não iam bem; ele tinha uma família grande; e no dia

do pagamento do aluguel não havia dinheiro, simplesmente.

Naquela época, os proprietários de terras eram muito poderosos. Em seus territórios, governavam como

reis. Depois de esperar alguns dias pelo dinheiro, e de mandar recados ameaçadores, o dono da terra

prendeu o estalajadeiro Judeu e sua família, bem na véspera de Yom Kippur. Ele disse à comunidade

judaica que, a não ser que pagassem o aluguel devido – 300 rublos, uma quantia considerável naquela

época – a família apodreceria no calabouço pelo resto da vida.

Uma das mitzvot mais importantes é pidyon sh’vuyim, a redenção dos cativos. Por isso, um dos

chassidim de Berditchev encarregou-se de coletar o dinheiro necessário para a redenção da família.

Embora a soma estivesse fora de suas posses, ele queria fazer um esforço, pois sabia que as vidas

daquela família dependiam disso. Eles não tinham mais ninguém com quem pudessem contar, e se o

dinheiro não fosse conseguido, ficariam presos no calabouço do dono da terra até morrerem.

Ele começou a coleta. Como era véspera de Yom Kippur, as pessoas estavam mais sensíveis, e

contribuíram generosamente. Contudo, não deram o bastante. Não que se recusassem – assim como o

estalajadeiro não tinha dinheiro suficiente para pagar a dívida, eles tampouco tinham recursos para

ajudar. Depois de passar muitas horas na coleta, o homem juntou menos de cinqüenta rublos.

124
Ele sabia que precisava de trezentos, e se deu conta de que, naquele ritmo, não reuniria o dinheiro

necessário antes de Yom Kippur, e que talvez jamais o conseguisse. Decidiu agir de modo mais ousado,

e seguiu para o bairro onde viviam os Judeus livres-pensadores. Eram pessoas jovens, que trabalhavam

para proprietários de terras não-Judeus. Eram ricos, mais sua preocupação com os outros Judeus e com

as práticas judaicas era pequena. Mesmo assim, sendo véspera de Yom Kippur, não haveria momento

mais apropriado para abordá-los.

Quando chegou ao bairro, viu um salão lotado de gente. Havia Judeus sentados ali, jogando cartas. O

fato de que em poucas horas os Judeus do mundo inteiro diriam Kol Nidrei não parecia interessá-los.

Eles estavam mais voltados para jogar cartas, beber vodca e apostar.

O chassid viu que as mesas estavam cobertas de dinheiro. Em qualquer uma delas havia o suficiente

para libertar a família. Ele se aproximou de uma das mesas e disse: “Esta noite é Yom Kippur, o

momento em que D’us perdoa a todos. Por que não se preparam para o dia? Tenho uma sugestão

construtiva para usarem esse dinheiro. Uma família passa por apuros terríveis. Em vez de

desperdiçarem dinheiro jogando, vocês poderiam doá-lo para uma boa causa.”

No início, as pessoas simplesmente o ignoraram. Mas o chassid era persistente. Finalmente, um dos

jogadores lhe disse: “Quer saber de uma coisa? Está vendo aquela vodca em cima da mesa? É finit un

ninesiker.” Finif un ninesiker significa 95%. A garrafa continha 95% de álcool. Isso não quer dizer 95

proof, e sim 190 proof. O sujeito encheu um copo comum, para água, e lhe disse: “Se você beber um

copo desta finif un ninesiker, vamos doar 100 rublos para sua causa, só aqui nesta mesa.”

A reação natural do chassid foi: “Como posso tomar um copo de uma bebida que é 95% álcool? Em

poucas horas, será Kol Nidrei. Depois de um copo dessa bebida, estarei arrasado. Não conseguirei me

concentrar nas preces.” Mas um outro pensamento lhe ocorreu. “Se eles me derem cem rublos, terei um

terço da quantia necessária para salvar aquela família. Com o que devo me preocupar mais? Em ter um

Yom Kippur mais espiritual para mim ou em fazer o possível para salvar a família? Quem poderia saber

quanto tempo levaria para reunir cem rublos, de outro modo?” Sendo assim, ele tomou a decisão de

tomar o copo de vodca.

Ele bebeu tudo. Os jogadores cumpriram a palavra, entregando-lhe o dinheiro. Depois disso, ele

cambaleou até a mesa seguinte e disse: “Vocês viram? Seus amigos acabaram de dar 100 rublos para

ajudar uma família pobre. Por que não fazem o mesmo?”

124
As pessoas lhe disseram: “Sabe de uma coisa? Vamos fazer o mesmo, mas você também. Se tomar

outro copo de finif un ninesiker, ganhará mais 100 rublos.”

O chassid tentou argumentar com eles. “Por favor, esta noite é Kol Nidrei. Desse jeito, ficarei tonto.

Mas, se tomar outro copo, vou desmaiar. Vocês pretendem dar o dinheiro, de todo modo. Por que me

obrigar a isso?”

No entanto, aquelas pessoas queriam se divertir. “Beba ou vá embora”, disseram. E o chassid pensou,

novamente: “O que é mais importante? Minha experiência espiritual em Yom Kippur ou o fato de que

poderei tirar a família do calabouço mais depressa?” Ele não precisou pensar muito. Dedicara a vida

inteira aos outros, não a si mesmo. Aceitou servir de diversão aos outros e tomou o copo de vodca. Eles

lhe deram os cem rublos, e todos ficaram felizes.

Depois disso, ele cambaleou até uma terceira mesa, e pediu que contribuíssem para a causa. Explicou

que agora precisa menos de cem rublos. Faltavam algumas horas para Yom Kippur, e eles poderiam

fazer com que uma família pobre passasse o feriado fora da cadeia.

Eles não se interessaram pelas explicações, mas queriam continuar a brincadeira. Por isso, fizeram a

mesma oferta: cem rublos por um copo de finif un ninesiker. Ele não precisou pensar muito. Depois de

dois copos de vodca, estava tudo claro para ele: “Esqueça o Yom Kippur mais espiritual. Pense na

família. Com mais um copo, você poderá tirá-los da cadeia ainda hoje.” Ele bebeu o terceiro copo e

ganhou os 100 rublos. Agora, tinha o dinheiro necessário para tirar a família da prisão.

Ele pediu aos jogadores: “Por favor, alguém poderia me ajudar a ir até a casa do dono da terra, para que

eu possa entregar o dinheiro? Realmente, o espírito de Yom Kippur estava no ar, pois um dos jogadores

pediu licença e conduziu o chassid até a casa do dono da terra, em sua carruagem.

O proprietário não gostou de ver um bêbado batendo em sua porta, mas adorou receber os trezentos

rublos. Depois de contar o dinheiro, ordenou que a família fosse solta. Naturalmente, todos ficaram

felizes. O dono da hospedaria abraçou o chassid, agradecendo emocionado. O chassid não estava

interessado em receber agradecimentos. Não via nada de especial no que fizera. E só pediu ao

estalajadeiro um favor: “Não conseguirei chegar à sinagoga sozinho. Poderia me ajudar a ir até lá?”

Desnecessário dizer, o estalajadeiro fez isso de bom grado, levando o chassid para a sinagoga. Ele se

deitou num banco. Sabia que não conseguiria orar, mas queria ao menos dormir na atmosfera do Yom

Kippur.

124
Logo as pessoas começaram a chegar à sinagoga para o Kol Nidrei. Cada um tomou um Tehilim nas

mãos e rezou. Quando o alarido das preces aumentou, o chassid despertou. Olhou para cima e viu a arca

aberta. As pessoas pegavam os rolos da Torá. Embora isso também seja feito antes das preces de Kol

Nidrei, a associação mais natural que uma pessoa faz, quando os rolos da Torá começam a ser retirados,

à noite, particularmente quando está intoxicado, é com a celebração de Simchat Torá.

Por isso, o chassid levantou-se do banco e correu para o bimah, a plataforma em que todos estavam em

pé, e começou a gritar Atah Horeisa, a oração recitada antes de Simchat Torá Hakafot. Todos o

olharam, intrigados. “Será que ele não entende? Essa noite é Yom Kippur, em poucos momentos

estaremos recitando Kol Nidrei. Que brincadeira de mau gosto é esta? Ele está bêbado?” As pessoas já

estavam dispostas a agarrá-lo e jogá-lo para fora da sinagoga.

Mas o Rebe, R. Levi Yitzchok de Berditchev virou-se e disse: “Ninguém deve tocá-lo. Ele tem o direito

de agir assim.” R. Levi Yitzchok era um tzadik, uma pessoa espiritualizada. Sabia tudo que ocorrera

com o chassid.

Ele começou a explicar à congregação que as festividades de Tishrei ocorrem em seqüência. Não é

mera coincidência que Rosh HaShaná é seguida por Yom Kippur, e depois por Sukot, Shemini Atzeres

e Simchat Torá. Uma iniciativa espiritual começa em Rosh HaShaná e continua, intensificando-se, até

chegar ao auge em Simchat Torá.

“Essa pessoa”, ele disse, apontando para o chassid embriagado, “realizou um mesirus nefesh imenso

(sacrifício pessoal). Ele sacrificou a experiência de Yom Kippur para salvar uma família judaica. Mas

ele não desistiu de Yom Kippur, só o saltou. Seu sacrifício pessoal lhe permitiu passar por todos os

níveis intermediários e chegar ao nível de Simchat Torá, o zênite de nosso serviço Divino durante

Tishrei.”

Podemos aprender muitas coisas com essa história. Um dos conceitos está relacionado com o tema de

nossa discussão, a proeminência do serviço de simchḠalegria. Como explicamos, as festividades de

Tishrei são equivalentes a uma escada espiritual, na qual cada festa funciona como um degrau para a

seguinte. Qual é o último feriado, o degrau mais alto alcançado durante o mês? Simchat Torá.

Em Simchat Torá não aumentamos especialmente o tempo dedicado ao estudo; basicamente, cantamos

e dançamos com os rolos da Torá. Simchá, alegria, é a principal característica dessa festa.

124
Embora Rosh HaShaná e Yom Kippur sejam os Dias de Reverência, os mais sagrados do ano, Simchat

Torá é o clímax da experiência de Tishrei, indicando que servir a D’us com alegria é o degrau mais alto

da escada da ligação espiritual com D’us.

Isso pode ser difícil de entender, para muitos de nós. Em Rosh HaShaná e em Yom Kippur a pessoa

deve procurar penetrar nas profundezas da espiritualidade, e despertar o que há de Sagrado na essência

de seu ser. Não temos dificuldade para entender que essa é uma experiência espiritual poderosa. É

muito mais difícil compreender que cantar e dançar são atividades espirituais, e tão espirituais que o

regozijo de Simchat Torá supera as preces comoventes de Rosh HaShaná e Yom Kippur.

A solução dessa dificuldade depender de um conceito fundamental: que a essência da ligação de um

Judeu com D’us é bitul, desprendimento, sentir-se uno com D’us. Bitul significa não se ver como uma

entidade separada, independente, e D’us como outra entidade separada, independente, mas sim

reconhecer que toda a existência – incluindo a do próprio eu – é uma manifestação e expressão de D’us.

Isso muda a concepção que a pessoa tem de si. Em vez de considerar seu verdadeiro eu uma entidade

individual, ele vê a alma, a presença de D’us dentro de si. Isso também nos dá uma nova compreensão

das mitzvot: cada mitzvá que realizamos traz essa unidade interna à superfície e a intensifica. Nosso

serviço Divino não se resume a uma lista de quantas mitzvot realizamos e de quanto estudamos a Torá,

mas sim um processo que nos afasta de yeshus, a consciência de si como uma entidade independente, e

nos conduz a bitul, a união com D’us que supera o ego.

De certa maneira, simchá, alegria, é a mais forte e poderosa demonstração dessa união. Quando uma

pessoa é b’simchá, eleva-se acima da preocupação individualista; não pensa em si. É capaz de

reconhecer que existe algo maior e mais profundo além do eu: D’us. E pode tomar consciência da

presença de D’us dentro de si.

Simchá nos permite o nível mais completo de ligação com D’us. Quando uma pessoa realiza uma

mitzvá, uma boa ação, não transcende o ego, necessariamente. Por exemplo, quando alguém pratica a

caridade, certamente está distribuindo seu dinheiro, mas talvez não o deixe para trás completamente.

Com freqüência, a pessoa sente a satisfação de ter dado. Seu sentido individual ainda se manifesta.

O mesmo vale para as outras mitzvot; elas não levam necessariamente a pessoa inteiramente para além

do ego. Isso pode ser verdade mesmo no caso da mitzvá de amar a D’us. Embora esse amor deva ser

um sentimento real de ligação – e não apenas um conceito abstrato – como em todo relacionamento, a

pessoa envolvida percebe sua própria identidade.

124
Simchá, ao contrário, por definição exige que a pessoa vá além de si. O único modo pelo qual alguém

pode experimentar realmente simchá é abandonar total e completamente sua individualidade. A não ser

que se disponha a se entregar dessa maneira, sempre haverá coisas que a oprimem. Enquanto a pessoa

pensa em si, em suas preocupações – sejam materiais ou espirituais – a impedem de ser b’simchá. Só

quando a pessoa deixa o ego para trás e se conecta com D’us ela pode experimentar a verdadeira

alegria.

Isso se relaciona à frase famosa de nosso Rabi (6), simchá poretz gader, “a alegria rompe barreiras”.

Quando uma pessoa é feliz, sua alegria a enche de energia, permitindo que rompa quaisquer barreiras

que surjam em seu caminho.

(6) Sefer HaMaamarim, p. 223ff.

Por esse motivo, vemos que as pessoas, quando são felizes, podem superar certas fraquezas com as

quais não conseguem lidar em circunstâncias normais. Todos têm limitações e fraquezas que impedem

de obter progressos reais. Ser simchá possibilita que se vá além dessas fraquezas. Uma vez que simchá

revela a dimensão verdadeira e profunda da identidade da pessoa, a essência não está confinada pelas

limitações relacionadas ao ego.

Encontramos exemplos na história. Uma das atividades dos reis, no dia de sua coroação, ou de seu

casamento, é perdoar prisioneiros. Qual a relação entre perdoar condenados e um casamento ou

coroação? A idéia é que nesses momentos o rei é b’simchá, e os problemas criados pela conduta

anterior do prisioneiro não mais existem para ele. Sim, o prisioneiro cometeu uma falta, mas há

felicidade no ar, e quando isso ocorre não pode haver obstáculos que impeçam o relacionamento íntimo

que o rei mantém com seus súditos. Portanto, ele os perdoa.

Simchá gera energia; nos empurra para a frente e nos dá uma sensação de produtividade e crescimento.

Isso não significa que vamos meramente esquecer o problema e fingir que ele não existe. Significa que

recebemos uma dose renovada de energia que nos possibilita superar quaisquer problemas que surjam.

O mundo secular começa a reconhecer o poder da alegria. Pesquisadores descobriram que até

problemas psicológicos e doenças podem ser superados com mais facilidade com simchá. Eles chamam

isso de “cura pelo riso”. Sabemos que há pessoas com câncer ???, que foram tratadas sem sucesso.

124
Mesmo assim, quando essas pessoas são levadas a um estado de espírito de intensa alegria, elas

descobrem que o câncer desaparece!

Com freqüência, o corpo possui recursos para se curar, mas a depressão contém o corpo e impede que

esses recursos entrem em ação. Simchá, em contraste, estimula a energia e dá ao corpo a oportunidade

de superar a enfermidade.

Sem dúvida, esse conceito se aplica ao funcionamento de nossas mentes e corações. Simchá não tira

nossa atenção das dificuldades, apenas; desperta a energia interior ilimitada que nos permite superar

problemas, fraquezas e limitações. Estimula nossa criatividade e nos dá o potencial para levarmos uma

vida produtiva, avançando continuamente para patamares mais elevados.

124
Capítulo Doze

Um Pára-raios para os Reinos Espirituais

O potencial positivo de simchá é destacado pela interpretação (1) do Maggid de Mezeritch dos

ensinamentos de Pirkei Avot (2): “Saiba o que está acima de você.” Literalmente, o Mishná está nos

ensinando a tomar consciência de que, alegoricamente falando, nos reinos espirituais existe um olho a

ver tudo que fazemos, um ouvido a escutar tudo que dizemos e uma mão a anotar tudo que acontece.

(1) Citado em Or HaTorá al Aggodos Chazal, p. 112b.

(2) 2:1; Ver In Paths of Our Fathers, p. 43 (Kehof, N.Y., 1994).

O Maggid de Mezeritch ampliou o alcance desse ensinamento. Ele dizia: “Saiba que tudo que está em

cima”- tudo que transcorre no reino espiritual – é “de você”, dependente de sua conduta. Cada um de

nós influencia o que ocorre no reino espiritual. Sendo assim, quando uma pessoa é feliz, não somente

eleva os espíritos de quem está em volta dela, como gera alegria também no reino espiritual.

Vamos explicar como isso funciona: Um dos conceitos fundamentais discutidos na Kabalá e na

filosofia Chassídica é a interligação entre o reino espiritual e nossa realidade material. O Zohar (3)

afirma que nosso mundo material existe paralelamente ao mundo espiritual. É como um espelho a

refletir o objeto ou pessoa à sua frente. Quando vemos uma pessoa movendo a mão na frente do

espelho, percebemos que há uma pessoa real movendo a mão na frente do espelho. Mesmo que não

possamos ver a pessoa, a imagem do espelho é suficiente.

a
(3) I, 38 , 205b; c. f. Berachos 58a; Zohar I, 197a, III, 176b.

Conceitos similares se aplicar à interligação entre o reino físico e o espiritual. Nossos espelhos do

mundo físico reproduzem a realidade espiritual. Tudo que ocorre em nosso plano tem um paralelo – e

nos dá a compreensão – no funcionamento da existência espiritual. Embora não tenhamos talvez a

consciência direta da realidade espiritual, podemos compreender muitas coisas por meios os

paralelismos que vemos em nosso mundo.

124
Esse conceito tem ainda uma dimensão mais profunda. Quando falamos de um espelho e de uma

pessoa, nos referimos a duas entidades separadas, sem relação; uma reflete a outra, apenas. No que diz

respeito ao espiritual e ao físico, não temos o reino espiritual como uma forma de existência, e o físico

como outra, tendo D’us criado os dois de modo que um corresponda ao outro. Nesse caso, os dois estão

mais intimamente relacionados. Nossa existência material é apenas uma extensão da espiritual.

Não conhecemos uma analogia adequada para ilustrar esse ponto. Um dos exemplos mais próximos é o

relacionamento entre a alma e o corpo. Nossos Sábios nos dizem (4) que, assim como a alma preenche

o corpo, D’us preenche o mundo. Portanto, se quisermos desenvolver uma compreensão melhor da

interação entre D’us e o mundo – ou, em outras palavras, entre o reino espiritual e o físico – podemos

nos concentrar na relação entre o corpo e alma, o neshamah e o guf.

A atividade da alma de uma pessoa é refletida em seu corpo. Se a pessoa está muito preocupada, pode-

se perceber isso só de olhar para ela. Um exame de sua expressão facial e dos olhos conta a história

inteira. O mesmo vale quando ela está irritada, ou triste. E, sem dúvida, isso é verdade também quando

ela está feliz. Quando uma pessoa é realmente b’simchá, seu rosto irradia alegria. Pois o que uma

pessoa experimenta internamente se revela em seu corpo físico.

Só poderia ser assim. A alma e o corpo funcionam como uma única entidade. Embora tenham

diferentes origens, enquanto a pessoa está viva o corpo e a alma compartilham uma mesma identidade,

e o corpo expressa o que está acontecendo dentro da alma da pessoa.

Um conceito similar se aplica no que diz respeito à interação entre o reino espiritual e o físico. Quando

vemos algo acontecendo no reino físico – chuva, por exemplo – o que vemos é, na essência, uma

reflexão do que está acontecendo no reino espiritual. No reino espiritual está havendo uma grande

descarga de gentileza, que se manifesta no mundo como chuva.

E isso vale para todos os eventos que ocorrem em nosso mundo – neve, vento, terremoto. Desde o

evento mais inusitado até o mais cotidiano e mundano, tudo que ocorre em nosso mundo é resultado – e

reflexo – de algo que está ocorrendo no mundo espiritual.

Há, porém, uma natureza dual na dinâmica da causalidade. Assim como o que ocorre em nosso reino

material é resultado do que está ocorrendo no reino espiritual, o que ocorre no reino espiritual pode ser

determinado pelos eventos de nosso mundo. Esse é o significado do ensinamento do Maggid de

Mezeritch citado anteriormente. Ele explicou que o Mishná em Pirkei Avot está nos dizendo: “Saiba

124
que tudo que está em cima”- tudo que transcorre no reino espiritual – é “de você”, dependente de sua

conduta. Nós, mortais, determinamos a natureza das influências ativas no reino espiritual.

Por que o homem apresenta tal potencial? Porque “e criou D’us o homem à sua imagem.”(5)

Desnecessário dizer, isso não significa que D’us tem a mesma forma física que o homem; D’us é

infinito e não tem forma ou corpo. (6) Chassis e Kabalá, não obstante, explicam que há uma

contrapartida espiritual para todas as nossas características corporais. D’us não possui olhos, mas Ele

tem meios de percepção que operam – de uma maneira mais completa do que nossa percepção jamais

poderia alcançar – de maneira comparável à nossa faculdade de visão. Ele não possui boca, mas tem

meios de expressão que correspondem à nossa faculdade de falar. Similarmente, cada elemento de

nosso ser tem sua contrapartida no reino espiritual.

(5) Genesis 1:27.

(6) Ver Rambam, Mishné Torá, Hilchos (*) Yesodei HaTorá 1:7-12.

(*) Ou Hilchot?

Sendo assim, quando movemos as mãos, também ativamos a contrapartida espiritual de nossas mãos.

Tudo que fazemos – todas as nossas atividades e tudo que ocorre em nossas vidas, no plano físico – tem

um efeito no mundo espiritual.

Por exemplo, quando alguém não está bem, que D’us nos livre, e um amigo resolve fazer caridade em

seu benefício, a dádiva do amigo ativa o atributo de D’us de chesed (compaixão) no reino espiritual.

Isso, por sua vez, se manifesta em nosso mundo na forma de melhoria da condição da pessoa doente.

O Baal Shem Tov explica uma idéia similar (7), comentando o versículo (8) “D’us é nossa sombra”.

Literalmente, o versículo nos diz que, assim como a sombra nos protege do sol, D’us nos defende. O

Baal Shem Tov, porém, oferece uma interpretação ampliada, explicando que, assim como uma sombra

espelha – e amplifica – as ações da pessoa, D’us revela influência, que numa escala maior reflete a

natureza de nossas atividades.

(8) Tehilim 121:5

A mesma idéia é refletida na interpretação de Maggid do Mishná, “Saiba o que está acima de você”-

que “o que está acima” depende de “você”. Tudo que acontece no reino espiritual é determinado pelo

124
nosso comportamento, pois cada ato que praticamos ativa a contrapartida no reino espiritual. E a

atividade espiritual provoca mudanças em nosso mundo. Quando mostro compaixão por outra pessoa,

isso motiva D’us a mostrar compaixão.

Vamos analisar outro exemplo dessa idéia. Quando duas pessoas se casam, a união reflete a criação de

um vínculo similar no reino espiritual. Pois, dentro do reino espiritual, há dois aspectos; um chamado

de Malchus, que reflete a dimensão feminina, e outro, chamado Zaer Anpin, que reflete a dimensão

masculina. Quando um homem e uma mulher se casam, eles promovem a união entre esses atributos, no

reino espiritual. Essa união, por sua vez, estimula o fluxo de influência positiva em nosso mundo

material.

Conceitos similares se aplicam à fala. Tudo que é dito em nosso reino ativa uma contrapartida no reino

espiritual. Por isso, quando dizemos coisas boas, as influências positivas são geradas no reino espiritual.

E se, D’us nos livre, dizemos algo desfavorável, influências negativas são geradas.

Essa é uma das explicações para a declaração de nossos Sábios (9), “Não considerem a bênção de uma

pessoa comum frivolamente.” Sabemos que as bênçãos dadas por um tzadik, uma pessoa correta, pode

provocar mudanças miraculosas em nossas vidas. Mas a verdade é que, sempre que alguém dá uma

bênção, essa bênção tem poder. Pois a declaração da pessoa gera efeito não apenas em nosso mundo,

mas também no reino espiritual. Quando ela pronuncia palavras de bênção, está na verdade gerando

uma bênção no mundo espiritual. E essa bênção pode efetuar mudanças em nosso mundo.

(9) Berechos 7a.

(O reverso também vale. E, por essa razão, a Torá proíbe amaldiçoar outra pessoa. Pois isso também

pode, que os céus nos livrem, ter um efeito.)

Nossos pensamentos também provocam mudanças no reino espiritual. Nesse mundo o pensamento não

tem efeito aparente, mas a dinâmica da causalidade espiritual é tal que toda expressão de nosso ser –

seja ela pensamento, discurso ou ato – gera um efeito espiritual. E o efeito espiritual pode, mais tarde,

provocar mudanças em nosso mundo. Realmente, vemos que o pensamento intenso sobre outra pessoa

pode produzir efeitos muitos positivos. (10)

124
(10) Likkutei Dibburim, Vol. I, p. 6 (Tradução inglesa).

Houve certa vez um chassid cujo filho ficou muito doente. Após uma prolongada enfermidade, os

médicos finalmente disseram que não havia esperança. Nada mais poderiam fazer; não sabiam se a

criança sobreviveria.

O chassid ficou desolado. Correu para Lubavitch e procurou Tzemach Tzedek, o terceiro Rebe de

Lubavitch. Sufocado pela dor, mal conseguiu verbalizar o pedido de uma bênção.

O Rebe respondeu laconicamente, em iídiche: Tracht gut, vet zein gut. “Pense positivamente, e o

desfecho será bom.” (11)

(11) Ver Sefer HaSichot 5687, p. 113, e fontes citadas lá; explicado em Likkutei Sichot, Parshas

Shemos 5751.

Enquanto caminhava para fora dos aposentos do Rebe, o chassid se recuperou. Adotou um novo estado

de espírito, que irradiava grande confiança. Ele sabia que D’us o ajudaria e curaria o filho. Ele

acreditava que isso aconteceria.

Quando voltou para casa, foi informado de que ocorrera uma súbita mudança na condição do filho. Os

médicos não tinham explicação, mas a criança sem dúvida melhorara. Quando o chassid indagou, soube

que a melhora ocorrera no exato momento de sua visita ao Rebe.

A história nos mostra que o pensamento positivo provoca dois efeitos:

a) quando a pessoa eleva o espírito, ela funciona melhor; e

b) pensar de maneira positiva provoca, por si, mudanças positivas. Ao visualizar mentalmente o bem, a

pessoa cria uma influência espiritual positiva, que lhe permite que a imagem se materialize.

Essa é a base para a explicação chassídica para um dos princípios fundamentais do Judaísmo, bitachon.

Bitachon significa confiança e fé na ajuda de D’us. Acreditar que D’us pode nos ajudar a qualquer

momento é uma questão de fé. E isso é muito fácil de aceitar. Afinal, se Ele é D’us, Ele é capaz de

fazer qualquer coisa que desejar. Bitachon significa mais do que isso, porém; exprime nossa confiança e

fé de que Ele vai realmente ajudar.

124
Bitachon não é um escapismo eufórico; não absolve o indivíduo de assumir responsabilidade por seu

futuro, nem de agir corretamente. Mas significa que uma pessoa, ao agir, sabe que seus esforços

dependem da providência Divina, e confia em D’us, confiando totalmente em Sua ajuda.

Além de dar confiança e força interior à pessoa, para enfrentar desafios, essa abordagem também dera

uma influência Divina positiva. Quando uma pessoa confia em D’us e conta com Ele, D’us cria

situações que permitirão o uso das energias de maneira positiva e benéfica. (12) Nossos pensamentos

positivos funcionam como catalisadores que promovem circunstâncias favoráveis para nós.

(12) Ver Sefer Halkkarim, Discurso 4, Capítulo 47.

Podemos agora apreciar a importância de simchá. Quando uma pessoa é genuinamente feliz e ver as

coisas de uma maneira positiva, cria simchá no reino espiritual. Pois “tudo que acontece lá em cima

depende de você.”

A alegria acionada no reino espiritual não é restrita, mas abrangente, e flui para fora, levando alegria a

muitos outros em nosso mundo. Quando somos b’simchá, tanto no plano físico quanto no espiritual,

geramos alegria para nós, para nossas famílias e para todos que nos rodeiam.

E, como explicamos no capítulo anterior, essa alegria não tem um potencial apenas passivo. Pelo

contrário, “a alegria derruba barreiras”, destruindo todos os obstáculos e dificuldades que possam se

apresentar.

Quando uma pessoa está feliz, ela se ergue acima de suas limitações e fraquezas. Consegue fazer coisas

que normalmente não faria. Pode perdoar o pior inimigo. Sua alegria gera uma energia interna que

rompe e derruba as barreiras que surgem no caminho.

Quando uma pessoa cria alegria no reino espiritual, ocorre a mesma coisa. No reino espiritual também

há limitações e barreiras, pois D’us escolheu estabelecer uma ordem natural, através da qual ele

controla nosso mundo. Assim como há leis na natureza que governam o mundo físico que nos rodeia,

há princípios de causalidade que governam os efeitos produzidos por nossa conduta. Pois, como foi

dito, tudo que fazemos gera um efeito no reino espiritual, que por sua vez produz um efeito em nosso

mundo. De maneira geral, essas regras seguem o seguinte princípio: (13) Quando uma pessoa faz o

bem, recebe benefícios que lhe permitem prosseguir nesse caminho. Se deixa de fazer o bem, enfrenta

124
dificuldades que tornam óbvia a necessidade de mudar de atitude. Esses são os padrões de causalidade

que D’us escolheu estabelecer para o reino espiritual.

Sendo assim, quando uma pessoa é b’simchá ela gera alegria no reino espiritual; o próprio D’us, por

assim dizer, também se torna b’simchá. Isso leva D’us a revelar sua dimensão transcendente, que não

está presa às leis causais mencionadas antes. Em termos simples, isso significa que D’us dará bênçãos

maiores e fará com que aconteçam fatos positivos, mesmo que normalmente tais bênçãos não sejam

concedidas.

Quando, D’us nos livre, acontece uma situação em que as coisas não estão correndo bem, devemos nos

dar conta de que isso é resultado das leis de causalidade que D’us estabeleceu. Precisamos, porém,

perceber também que, ao irradiar simchá, podemos despertar simchá lá em cima, e provocar uma

alteração radical na situação que temos à nossa frente.

Isso demonstra o poder que a alegria possui. Com simchá podemos mudar a disposição do reino

espiritual, e, dessa maneira, atrair bênçãos e todas as formas de benefícios para nós, nossas famílias e

todo o povo Judeu.

124
Trechos Escolhidos de Sichot de Shabbos Parshas Ki Seitzei, 5748

Trazendo Mashiach com Felicidade

(Não haveria como considerar completa uma abordagem do conceito chassídico de alegria sem

referência a este sichah clássico, proferido pelo Rebe de Lubavitch. Em sua forma original, o sichah

discute conceitos relacionados à data no qual foi pronunciado, o décimo-quarto de Elul, às datas dos

casamentos do Rebe Anterior e do Rebe Rashab com as quais guarda proximidade, ao significado dos

anos 5748 e 5749, além de outras. Omitimos essas partes, selecionando os aspectos do sichah que

apresentam natureza mais genérica.)

O conceito de simchá possui um vínculo com a Redenção Futura. Pois na Era da Redenção

experimentaremos o nível perfeito de simchá. Nesse tempo, todas as influências indesejáveis serão

negadas, como consta no versículo (1) “E o Senhor D’us enxugará as lágrimas de todas as faces”.

Realmente, todas as influências negativas serão transformadas em positivas. (2)

(1) Isaiah, 25:8

(2) Como fica evidente no dito de Rambam (na conclusão de Hilchos (*) Taanios na Mishné Torá: “No

futuro, todos esses jejuns (comemorativos) serão negados, na Era do Mashiach. Ademais, eles se

tornarão então festivais, e dias de regozijo e alegria.”

(*) Ou Hilchot?

Isso ampliará em muito a simchá que sentiremos, permitindo atingir a completa perfeição. Portanto, os

que retornam a Eretz Yisrael são descritos (3) como sendo “coroados pela eterna alegria”. A relação

entre os conceitos de simchá e Redenção é reforçado pelo fato de que as raízes das palavras simchá

(????) e Mashiach (????) (4) compartilham as três letras ???.

(3) Yeshayahu 35:10, 51:11

(4) O ? da palavra ???? alude ao conceito de extensão e expansão (como explicado em Iggeres

HaTeshuvá, cap. 4), enquanto o ? da palavra ???? se refere ao fato de que o Mashiach reflete o ponto

essencial de Chochmah. Pode-se explicar com isso que simchá tem o potencial de expandir e revelar a

influência do Mashiach.

124
Vamos explicar a conexão entre as duas. Simchá irrompe, abre (poretzes, em hebraico) todos os

caminhos (5). Essa também é a natureza do Mashiach, que é um descendente de Peretz (6) e citado

como haporetz, “aquele que abre o caminho”, pois está escrito (7) “aquele que lhes abre o caminho irá à

frente deles.” Pois o Mashiach abrirá o caminho, rompendo todas as barreiras e limitações.

(6) Ver as conclusões do Livro de Ruth.

(7) Michah 2:13

Sobre o versículo (8), “Zion (Sião) por ninguém ambicionada” nossos Sábios comentam (9), “Isso

indica que se deve ambicioná-la”, sugerindo que devemos exigir a Redenção. Similarmente, devemos

buscar a alegria, incluindo a alegria suprema, a alegria da Redenção. Devemos exigir que D’us nos

conceda a alegria completa da Era da Redenção.

(8) Yirmeyahu 30:17

(9) Rosh HaShaná 31a.

Eu, portanto, ofereço a seguinte sugestão e pedido: que aumentemos nosso regozijo com a intenção de

realmente trazer o Mashiach e a verdadeira e absoluta Redenção.

Através dos anos de exílio, o povo Judeu desejou a Redenção, orando por ela com sinceridade,

diariamente. Seguramente isso se aplica aos tzadikim, e aos nesiim do povo Judeu, que têm um desejo

incontido e poderoso pelo Mashiach. De fato, como relatado nos anais de nossa história nacional,

alguns (10) literalmente sacrificaram suas vidas para forçar o Mashiach a vir mais cedo (embora exista

um alerta específico contra fazer isso). (11)

(10) Por exemplo, R. Yosef DiLorino e o Vidente de Lublin.

(11) Ver Kesuvos 111a e o comentário de Rashi. Pode-se explicar que o alerta contra forçar a Redenção

antes do momento é necessário por causa do imenso desejo do povo Judeu de obter a Redenção. Tão

poderoso é esse desejo que torna-se imperioso alertar o povo para que não tente trazer a Redenção antes

do momento.

124
Não obstante, essas atividades iniciais não podem ser comparadas com a tempestade pela vinda da

Redenção causada pelo Rebe Anterior com seu grito (impresso (12) mais de quarenta anos atrás):

L’alter leteshuvah, l’alter legeulah, “Imediatamente a teshuvá, imediatamente à Redenção”. (13) E seu

intento, com a palavra “imediatamente”, era simples: nesse instante, agora.

(12) No Kol Korei (aviso) publicado em HaKriah VeHaKedushah (Sivan-Tammuz, 5701; Elul, 5702).

(13) No interior da própria expressão, a ênfase está em “Imediatamente à Redenção”, como se percebe

pelo fato de que “Imediatamente à Redenção” é mencionado várias vezes no anúncio, separadamente,

sem o antecedente “Imediatamente a teshuvá”. “Imediatamente a teshuvá” é necessário apenas como

um prelúdio para a Redenção, como afirma o Rambam (Mishné Torá, Hilchos (*) Teshuvá 7:5): “A

Torá promete, em última instância, que na conclusão do exílio Israel se voltará para D’us em teshuvá, e

imediatamente depois, [a nação] será redimida.”

(*) Ou Hilchot?

Ademais, isso não é considerado forçar a Redenção a vir antes da hora. Pois o tempo para a Redenção

chegou. Como o Rebe Anterior disse várias vezes: todo o serviço necessário foi concluído; só é

necessário é polir os botões (14) e esperar pela chegada do Mashiach.

Vamos explicar isso de um modo mais específico: Por diversas gerações, antes do Rebe Anterior,

esforços especiais foram empreendidos para promover a vinda do Mashiach, incluindo – e com ênfase

especial – a revelação dos ensinamentos de Chassidut pelo Baal Shem Tov. Pois, em resposta à questão

do Baal Shem Tov, “Quando virás?” Mashiach respondeu: “Quando fontes de teus ensinamentos se

espalharem.” (15)

(14) Ver Sichot Simchat Torá, 5689

Nota do Editor: O Rebe pronunciou essa sichah em 5748. Subseqüentemente, do verão de 5751 em

diante, ele costumava dizer, “os botões já estão polidos”, ou seja, o estágio final do serviço divino

também foi completado.

(15)Ver a conhecida carta do Baal Shem Tov, impressa no início de Kesser Shem Tov.

124
Depois disso, esses ensinamentos se ampliaram e expandiram por meio dos ensinamentos de Chabad,

que permitiram que fossem compreendidos e absorvidos dentro do contexto de nossa capacidade

intelectual. (16) Citando a analogia mencionada pelo Alter Rebe (17): a pedra preciosa na coroa do rei

foi esmagada e misturada com água, para que pudesse ser despejada na boca do filho do rei e salvar sua

vida.

(16) Vale a referência à analogia da fonte: uma fonte com freqüência flui em gotas. Embora essas gotas

tenham grande poder, como se pode constatar na lei (Hilchos (*) Mikvaot 9:8) de que uma gota d’água

de uma fonte, independentemente de seu tamanho, é capaz de restaurar a condição de pureza ritual de

um objeto. Não obstante, através dos ensinamentos de Chabad, essas fontes se expandiram e alargaram.

(17) HaTamim, Vol. II, p. 49.

(*) Ou Hilchot?

De geração em geração, os Rebeim mantiveram e expandiram os esforços para espalhar as fontes de

Chassidut. Esses esforços atingiram seu zênite na época do Rebe Anterior (18), que espalhou esses

ensinamentos de uma maneira incomparável, até atingir todas as localidades do mundo e cada uma

delas, ampliando as fontes de Chassidut a todos os recantos possíveis, mesmo os mais remotos.

Similarmente, seus esforços incluíram a tradução de textos Chassídicos (inclusive os conceitos mais

profundos de Chassidut) em línguas estrangeiras. (19) Ele não se contentou apenas com a tradução para

o iídiche, o idioma falado pela maioria dos Judeus de sua época (e a língua na qual o Baal Shem Tov e

os Rebeim seguintes transmitiram os ensinamentos Chassídicos), espalhando os ensinamentos para

setenta idiomas seculares, também. (20)

(18) A ligação entre o Rebe Anterior e a disseminação das fontes de Chassidut se reflete na fundação na

Yeshivá de Lubavitch, a Yeshivá Tomchei Temimim, durante a semana de celebração de seu casamento.

Naquela época, o Rebe Rashab disse, “Ao iniciar esta yeshivá,... estou mantendo acesa a chama que o

Baal Shem Tov e os Rebeim subsequentes nos legaram, para cumprir a promessa de expandir as fontes,

para apressar a vinda do Mashiach”(Sefer HaMaamarim 5702, p. 133)

124
(19) Embora a tradução de Chassidut para línguas seculares represente uma queda em relação ao

original, o Rebe Anterior encorajou esse passo para ampliar os esforços de disseminar os ensinamentos

de Chassidut e assim apressar a vinda do Mashiach.

(20) Dessa maneira, não somente os Judeus, mas também os gentios têm o potencial de compreender

esses conceitos espirituais. E, realmente, podemos ver isso no momento atual.

Não obstante, nas gerações anteriores (e mesmo no início da época do Rebe Anterior), a ênfase

fundamental era a disseminação das fontes de Chassidut e não (tão intensamente) a meta deste processo

– trazer o Mashiach. Sabe-se que o objetivo dessas tarefas era trazer o Mashiach, e de tempos em

tempos (por exemplo, durante os farbrenguens de Yud Tes Kislev e similares) isso foi dito abertamente,

mas esse propósito não era o centro das atenções.

Depois que o Rebe Anterior lançou o chamado, “Imediatamente a teshuvá, imediatamente à Redenção”

e continuando até os dias de hoje, em contraste, a ênfase tem sido colocada em realmente trazer o

Mashiach, na medida em que todas as fases de nossos esforços em nosso serviço Divino (inclusive as

tarefas de disseminar as fontes de Chassidut) devem estar permeados pela intenção de trazer o

Mashiach. Pois essa é a missão de nossa geração: trazer de fato a Redenção.

Muitas décadas se passaram desde o momento da proclamação do Rebe Anterior, “Imediatamente a

teshuvá, imediatamente à Redenção” e a tempestade de atividades iniciadas para trazer o Mashiach.

Não obstante, o Mashiach ainda não veio.

Não há explicação para isso. Nossos Sábios disseram (21), “Todas as épocas marcadas para a vinda do

Mashiach já passaram.” Embora eles prosseguissem, “e a questão depende apenas de teshuvá”,

certamente já nos voltamos para D’us em teshuvá. De fato, por meio de um único pensamento de

teshuvá, uma pessoa se transforma num perfeito tzadik (22) E, inquestionavelmente, não existe um

único Judeu que não tenha tido diversos pensamentos de teshuvá.

(21) Sanhedrin 97b

O que resta a fazer? Tehilim, os Salmos de David, o [primeiro] rei ungido, nós os dissemos em

abundância. Farbrenguens foram realizados em numerosas ocasiões. Disseminar a fonte por várias

gerações, desde o Baal Shem Tov, esforços foram feitos, e eles resultaram em sucessos prodigiosos.

124
Pode-se dizer que esforços ainda maiores poderiam ser realizados, de modo que essas atividades sejam

conduzidas – emprestando uma frase da liturgia (23) – “de acordo com os mandamentos de Vossa

vontade.” Mas isso é possível apenas como foi dito na mesma prece, “aqui”, no Beit HaMikdash.

(23) Kiddushin 49b (de acordo com o texto citado pelo Or Zerua)

D’us faz exigências a um indivíduo apenas conforme o potencial que ele possui (24). E, realmente, se

D’us deseja que realizamos esse serviço de um modo perfeito, cabe a Ele criar o ambiente que nos

permitirá fazê-lo, trazendo a Redenção. Depois disso, o serviço dos Judeus será seguramente “de acordo

com os mandamentos de Vossa vontade”, em consumada perfeição.

(24) Ver Midrash Tanchuma, Naso, sec. 11.

E, portanto, é natural perguntar: o que podemos fazer para trazer o Mashiach que ainda não foi feito?

Em resposta, seria possível sugerir, como acima, que o serviço Divino necessário é a expressão da

alegria pelo objetivo de trazer o Mashiach.

Simchá rompe barreiras, inclusive as barreiras do exílio. Ademais, simchá tem um potencial único para

promover a Redenção. Como explicado na série de discursos intitulada Samach Tisamah (25), embora a

frase (26) “o dia de regozijo em Seu coração” seja interpretada como uma referência à construção do

Beit HaMikdash (27), durante o Primeiro e o Segundo Batei HaMikdash, a felicidade de D’us não era

completa. Só no Beit HaMikdash a ser construído na Era da Redenção haverá a felicidade perfeita.

“Então a felicidade refletirá a essência de Ein Sof.”

(25) Sefer HaMaamarim 5657, pgs. 233, 252.

(26) Shir HaShirim 3:11.

O maamar continua a explicar que essa alegria essencial pode ser despertada pela experiência de

simchá relacionada a uma mitzvá. Realmente, a simchá eleva-se mais do que a própria mitzvá,

precipitando a expressão da alegria essencial da Era da Redenção.

124
Nas gerações anteriores, certamente as pessoas vivenciaram simchá vinculada ao cumprimento das

mitzvot. Pois a experiência dessa simchá é um elemento fundamental do serviço Divino, pois está

escrito, (28), “Servi ao Senhor com alegria.” Mesmo assim, nas gerações anteriores, a ênfase estava no

serviço a D’us, e esse serviço se impregnava de alegria. A sugestão de usar simchá como catalisador

para trazer o Mashiach, em contraste, enfatiza a própria simchá, em seu estado puro e consumado.

(28) Tehilim 100:2. Ver a explicação deste versículo no Zohar, Vol. III, p. 56a. Ver também a

conclusão de Hilchos (*) Lulav na Mishné Torá.

(*) Ou Hilchot?

(Desnecessário dizer, para um Judeu, mesmo essa pura expressão de alegria deve estar vinculada a seu

serviço Divino na Torá e suas mitzvot, pois está escrito (29) “Retos são os preceitos do Senhor, alegram

o coração.” Mesmo assim, a ênfase está na própria simchá, não nos fatores que provocam simchá. E

esse serviço de simchá deve ter como seu objetivo – trazer o Mashiach.)

(29) Tehilim, 19:9

Alguém poderia perguntar: Por que as gerações anteriores – especialmente após a declaração do Rebe

Anterior “Imediatamente à Redenção”, não se enfatizou trazer o Mashiach por meio de simchá? Tudo

que era possível fazer, para trazer o Mashiach, foi feito. Podemos nos referir à analogia previamente

citada: a pedra preciosa na coroa do rei foi pulverizada para que pudesse ser colocada na boca do filho

do rei – e, realmente, a pedra preciosa se multiplicou por setenta idiomas, de modo que até um gentio

pudesse apreciá-la – e, mesmo assim, não houve esforço para trazer o Mashiach através de simchá.

A solução desta questão é óbvia. Enquanto o povo Judeu inteiro – e o Shechinah (*) – estiverem na

escuridão do exílio, a dor do exílio impede a expressão pura e arrematada de simchá.

(*) Shechiná ?

Não obstante, isso não deve tolher nossos esforços nessa direção, pois, em última análise, nós devemos

promover a Redenção. E, portanto, o serviço da simchá pura e completa é necessário. Mais ainda, as

dificuldades do exílio não devem constituir um impedimento, pois uma vez que esse serviço é

124
necessário para promover a Redenção, está garantido o potencial de se atingir a simchá pura e

completa.

Entender isso está ao alcance de qualquer indivíduo. Por meio da meditação na iminência da chegada

do Mashiach e do conhecimento de que em tal momento a perfeita simchá se espalhará pelo mundo

inteiro é possível experimentar um microcosmo dessa simchá no presente.

Realmente, a explicação extensa desse conceito não é cabível, o mais importante é o ato. Devem ser

realizadas as proclamações a respeito da importância de aumentar simchá com a intenção de trazer o

Mashiach. E, se alguém questionar a eficácia dessa proposta, que essa pessoa a coloque em teste para

que veja sua eficácia.

E essa simchá conduzirá, certamente, para a simchá definitiva, o regozijo da Redenção, quando “nossas

bocas se encherão de alegria.” (30)

(30) Ibid. 126:2

124
Glossário

O asterisco indica uma referência cruzada nesse Glossário.

AriZal (literalmente, “o leão de abençoada memória”): R. Isaac Luria (1534-1572), um dos principais

luminares da Kabalá (*)

atzvut (literalmente, “tristeza”): uma sensação opressiva de depressão

Beit HaMikdash: O Templo de Jerusalém

batel: desprendimento, altruísmo; ver (*)bitul

bitachon (literalmente, “confiança”): confiança na assistência Divina onipresente

bitul: auto-anulação, desprendimento, sentir-se uno com D’us; erguer-se acima das preocupações

individuais e dedicar as energias a um objetivo maior, ou a um nível de consciência superior

Chabad (acrônimo para as palavras hebraicas que significam “sabedoria, compreensão e

conhecimento”): a abordagem do Chassidismo que filtra seu poder espiritual e emocional pelo intelecto;

um sinônimo para Chabad é (*)Lubavitch, nome da cidade onde esse movimento floresceu

originalmente

cheder, pl. chedarim (literalmente, “sala”): Escola da Torá para crianças pequenas

chassid (pl. Chassidim): adepto do movimento chassídico (ver (*)Chassidut)

Chassidismo: ver (*)Chassidut

chassidut: Chassidismo, ou seja, o movimento do Judaísmo Ortodoxo fundado na Rússia Branca por R.

Yisrael, o Baal Shem Tov (1698-1760), que enfatiza: envolvimento emocional na prece, serviço a D’us

por meio do universo material; dedicação total ao serviço Divino; dimensão mística além da dimensão

formal do Judaísmo; poder da alegria e da música; amor que deve ser demonstrado por todos os Judeus,

incondicionalmente; e responsabilidade mútua, física e moral, pelos membros da irmandade chassídica

informal, cada chassid cultivando uma ligação espiritual a seu líder santificado e carismático, o (*)

Rebe; (b) a filosofia e a literatura desse movimento; ver também Chabad (*)

Eretz Yisrael: a terra de Israel

farbrenguen: reunião informal dos chassídicos para edificação mútua e crítica fraterna

Guehinnom: purgatório

Hakafot: a dança celebrada com a Torá em Simchat Torá

124
hashgachá pratit: Divina Providência, a maneira pela qual D’us controla todos os aspectos da

existência

holelut (literalmente, “frivolidade”): alegria despojada de significado ou propósito

Kabalá (literalmente, “tradição recebida”): a tradição mística judaica

kabalat ol (literalmente, “aceitação da servidão [a D’us]”): um comprometimento inabalável e

desprendido com a observação da Vontade de D’us

kashrut: condição de ser próprio para uso, sendo o termo mais freqüentemente usado com referência ao

alimento

Kol Nidrei: prece recitada antes do serviço noturno em Yom Kippur

Lubavitch: nome do vilarejo na Rússia Branca que foi, por um século, o lar dos Rebeim de (*)Chabad,

e que desde então é usado como nome do movimento

mashpia, pl. mashpiim: (literalmente, “fonte de influência”): Na terminologia chassídica, um mentor

espiritual

matzá: o pão ázimo ingerido em Pessach

merirut: (literalmente, “amargura”): sentimentos negativos que estimulam a pessoa à ação positiva

Midrash: a coleção dos ensinamentos homílicos clássicos dos Sábios sobre a Torá, no nível não-literal

de derush

mikvé, pl. mikvaot: Um banho ritual no qual a pessoa mergulha como parte da transição da impureza

para a pureza, ou de um estado mais baixo de santidade para um mais elevado.

Mishná: A compilação fundamental da Lei Oral, compilada pelo Rabi Yehudah HaNasi.

Mitzvá (pl. mitzvot): uma obrigação religiosa; um dos 613 Mandamentos

nissayon (literalmente, um teste): desafio no serviço Divino de uma pessoa

Olam HaBá (literalmente, “o mundo que virá”): o reino espiritual das almas na outra vida; também

usado com referência à Era da Ressurreição

Pirkei Avot: A Ética de nossos Pais, o tratado da (*) Mishná que contém os ensinamentos éticos de

nossos Sábios

Rambam: (acrônimo para Rabi Moshe bem Maimon; 1135-1204): Maimônides, um dos mais

importantes pensadores Judeus da Idade Média; sua Mishné Torá é um dos pilares da lei judaica, e seu

Guia para os Perplexos um dos clássicos da filosofia judaica

124
Rebe: (literalmente, “meu professor [ou mestre]”): líder santificado da Torá que serve como guia

espiritual aos seguidores do chassidismo

Seder (literalmente, “ordem”): a ordem do serviço observada nos lares nas duas primeiras noites de

Pessach

shul: sinagoga

simchá: felicidade, alegria com significado

Talmud: compêndio básico da lei, pensamento e comentários bíblicos judaicos, formado por (*)Mishná

e Guemará; quando não-especificado, refere-se a ao Talmud Bavli, a edição realizada na Babilônia e

editada no final do século quinto E. C.; o Talmud Yerushalmi é a edição compilada em (*)Eretz Yisrael

no final do século quarto E. C.

Tanya: o texto clássico do pensamento (*)Chabad chassídico, da autoria do Alter Rebe

Tehilim: o Livro dos Salmos

teshuvá (literalmente, “retorno [a D’us]”): arrependimento

tzadik (pl., tzadikim): (a) indivíduo completamente correto; (b) (*) Rebe

yesh (literalmente, “ele existe”): na terminologia chassídica, uma entidade que é limitada e auto-

centrada

yeshivá, pl. yeshivot: academia da Torá para estudantes avançados

yetzer hará: a Inclinação para o Mal

Zohar (literalmente, “radiância”): obra clássica que abrange os ensinamentos místicos da (*)Kabalá

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Observações

1. Trechos da Torá foram traduzidos usando a edição fornecida. Nos outros textos citados – Salmos,

Profetas etc. – manteve-se o sentido da tradução inglesa do original, com recurso à tradução do

Pontifício Instituto Bíblico de Roma, que se baseia diretamente no texto hebraico dos rabinos

massoretas.

2. Opções de título:

A Abordagem Chassídica da Alegria

Alegria para um Chassid

A Alegria do Ponto de Vista Chassídico

Essas opções apresentam um pequeno desvio do sentido original, mas podem ser adequadas, se o

objetivo for um título com mais impacto.

3. Foram mantidos os itálicos conforme o original, exceto em casos como mitzvá, chassid e outros

termos de uso mais freqüente. Sempre que possível, deve-se evitar o excesso de itálico, que fragmenta a

leitura.

4. As notas estão indicadas entre parênteses (2), por exemplo, e aparecem ao final do parágrafo.

5. Estou à disposição para conversar sobre dúvidas que possam surgir durante a edição do texto. Basta

telefonar ou marcar uma hora para que eu possa esclarecer as dificuldades pessoalmente.

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Cara D. Frida

Informo que o texto tem um total de 90 laudas de 2.100 toques. A R$ 15,00 por lauda temos um valor

final de R$1.350,00 (hum mil e trezentos e cinqüenta reais).

Favor depositar o valor na seguinte conta bancária:

Antonio Celso Nogueira Leite

Banco Bradesco

Agência Vila Clementino – 0548-7

Conta 75.116-2

Grato

Celso Nogueira

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