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CONVERSA DE BASTIDORES

Graciliano Ramos [16/maio/1944]

Com o papel caro, o livro pela hora da morte, as tipografias abar-


rotadas, o livreiro se esconde, recusa de longe as ofertas de es-
critas que inundam o mercado. Pois sei de editor rigoroso que
andou em busca de um literato inédito, desconhecido, tão desco-
nhecido que até lhe ignorávamos o nome.

Talvez seja conveniente narrarmos este absurdo, pois o autor em


questão, depois de longo silêncio e longas viagens, surgiu de re-
pente, causando barulho em jornais e revistas. Acho-me em boa
situação para considerá-lo sem exageros e contar um sururu ar-
tístico sucedido há quase dez anos. Alguns leitores apreciam tais
leviandades, em falta delas criam anedotas, supondo interessan-
te a vida dos sujeitos que usam pena e tinta. Engano: é chatice.
Ora, em maçada horrível, das piores, que sempre nos facultam
como prova de consideração, respeito, etc., senti-me envolvido
em 1938. Um concurso, precisamente o concurso Humberto de
Campos, da livraria José Olímpio. Pertenci ao júri. Que remédio?
Ante o sorriso amável e assassino do negociante de papel im-
presso, aceitei o convite, amarelo, disposto a não ler nada, jogar
o trabalho sobre o resto da comissão. É o que pensamos ao
tomar semelhantes incumbências.

– Que influi o meu parecer? Confio no juízo dos outros, voto com
a maioria – e está acabado.

No julgamento percebe-se que todos procederam do mesmo


jeito e prorroga-se o negócio. Com certeza há nova dilatação, até
que alguém resolva amolar-se.

Pois nesse júri de 1938 aconteceu que cinco indivíduos, murchos


com o golpe de 10 de novembro, indispostos ao elogio, enfastia-
dos, decidiram ler mais de cinqüenta volumes. Podem imaginar
como a tarefa se realiza. A gente folheia o troço, bocejando, fa-
zendo caretas, admite enfim que a leitura é desnecessária; solta-
-o, pega um papel, rabisca um título, um pseudônimo, um zero,
às vezes qualquer reflexão enérgica. E passa adiante. Alguma
coisa razoável é posta de lado e mais tarde se examina.

Aborrecendo-me assim, abri um cartapácio de quinhentas pági-


nas grandes: uma dúzia de contos enormes, assinados por certo
Viator, que ninguém presumia quem fosse. Em tais casos roga-
mos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir
ao fim. Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia.
Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: monta-
nhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magnífi-
cos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente feitiço, a
patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável,
dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho
Bembém. Por outro lado enjoei um doutor impossível, feito cava-
dor de enxada, o namoro de um engenheiro com uma professori-
nha e passagens que me sugeriam propaganda de soro antiofídi-
co.

Houve discussão e briga. No dia do julgamento, eliminadas com-


posições menos sólidas, ficamos horas no gabinete de Prudente
de Morais, hesitando entre esse voluma desigual e outro, Maria
Perigosa, que não se elevava nem caía muito. Optei pelo segundo
– e, em consequência, Marques Rabêlo quis matar-me: gritou, es-
pumou, fez um número excessivo de piruetas ferozes. Defendi-
-me com três armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídi-
cas.
– Ora, essa! Discutimos literatura de ficção. Deixemos em paz o
Instituto de Butantã.
Dias da Costa apoiou-me. Prudente de Morais sustentou Mar-
ques. E Peregrino Júnior, transformado em fiel de balança, exigiu
quarenta e oito horas para manifestar-se Escolheu Maria Perigo-
sa – e assim Luís Jardim obteve o prêmio Humberto de Campos
em 1938.

Viator desapareceu sem deixar vestígio. Desgostei-me: eu dese-


java sinceramente vê-lo crescer, talvez convencer-se de que me
havia enganado preterindo-o. Afinal os julgamentos são precá-
rios – e naquele tínhamos vacilado. Eu, pelo menos, vacilara. Às
vezes assaltava-me vago remorso e perguntava a mim mesmo
onde se teria escondido Viator. Em conversa com José Olímpio,
referi-me a ele. Se se cortasse alguns contos, publicar-se-ia um
bom livro. E o meu amigo, com entusiasmo fácil, logo se pôs em
busca do escritor misterioso, chegou a sugerir-me um artigo, es-
pécie de anúncio. Todas as pesquisas foram inúteis.

Em fim de 1944, Idelfonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-


-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado
da Europa.

– O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.


– Como era o seu pseudônimo?
– Viator.
– Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.
Idelfonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e lite-
rato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada.
– Sabe que votei contra o seu livro?
– Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.

Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, es-


tendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa con-
cordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emen-
dara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica.
Falei na intenção de José Olímpio, mas julgo que o meu novo
companheiro já tinha compromisso.
Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal – Rio – 1946), que
o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita
consistência ganhou em longa e paciente depuração. Elimina-
ram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As
partes boas se aperfeiçoaram: O burrinho pedrês, A volta do
marido pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e vez de
Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao ro-
mance. Achariam aí campo mais vasto as suas admiráveis quali-
dades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar mi-
núcias na aparência insignificantes, uma honestidade quase
mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado
nesse rigor, indicara a Prudente de Morais numerosos versos
para efeito onomatopaico intercalados na prosa. Vou reencon-
trá-los. Lá estão, à página 25, fixando a marcha dos bois nos ca-
minhos sertanejos, dois períodos (o primeiros feito de adjetivos
aplicáveis ao gado) composto de pentassílabos: “Galhudos, gaio-
los, estrelos, espécios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos,
caldeiros, sambraias, chamurros, churriados, corombos, coruetos
bocaleos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros… E
os toscos da testa do mocho macheado, e as rugas antigas do boi
corualão…” Notem que temos aí dez aliterações. O rumor dos
cascos no chão duro se prolonga – e à página 26 ainda é martela-
do em dezesseis versos de cinco sílabas: “As ancas balançam, e
as vagas de dorsos das vacas e touros, batendo com as caudas,
mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros,
estratos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do
gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade
dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…”

Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais


leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista –
movimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos mais
ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco
nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito me
agrada.

A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele


o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos
dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de ca-
boclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo
é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de
cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto
quanto possível, da língua do interior.

Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham


bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irracionais di-
reitos, exibidos com peladuras, esparavões e os necessários mo-
vimentos de orelhas e de rabos. Talvez o hábito de examinar
essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com
lentidão bovina.

Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se


for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus
ossos começarem a esfarelar-se.

Fonte:http://blog.opovo.com.br/pliniobortolotti/graciliano-ra-
mos-o-editor-de-guimaraes-rosa

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