Com o papel caro, o livro pela hora da morte, as tipografias abar-
rotadas, o livreiro se esconde, recusa de longe as ofertas de es- critas que inundam o mercado. Pois sei de editor rigoroso que andou em busca de um literato inédito, desconhecido, tão desco- nhecido que até lhe ignorávamos o nome.
Talvez seja conveniente narrarmos este absurdo, pois o autor em
questão, depois de longo silêncio e longas viagens, surgiu de re- pente, causando barulho em jornais e revistas. Acho-me em boa situação para considerá-lo sem exageros e contar um sururu ar- tístico sucedido há quase dez anos. Alguns leitores apreciam tais leviandades, em falta delas criam anedotas, supondo interessan- te a vida dos sujeitos que usam pena e tinta. Engano: é chatice. Ora, em maçada horrível, das piores, que sempre nos facultam como prova de consideração, respeito, etc., senti-me envolvido em 1938. Um concurso, precisamente o concurso Humberto de Campos, da livraria José Olímpio. Pertenci ao júri. Que remédio? Ante o sorriso amável e assassino do negociante de papel im- presso, aceitei o convite, amarelo, disposto a não ler nada, jogar o trabalho sobre o resto da comissão. É o que pensamos ao tomar semelhantes incumbências.
– Que influi o meu parecer? Confio no juízo dos outros, voto com a maioria – e está acabado.
No julgamento percebe-se que todos procederam do mesmo
jeito e prorroga-se o negócio. Com certeza há nova dilatação, até que alguém resolva amolar-se.
Pois nesse júri de 1938 aconteceu que cinco indivíduos, murchos
com o golpe de 10 de novembro, indispostos ao elogio, enfastia- dos, decidiram ler mais de cinqüenta volumes. Podem imaginar como a tarefa se realiza. A gente folheia o troço, bocejando, fa- zendo caretas, admite enfim que a leitura é desnecessária; solta- -o, pega um papel, rabisca um título, um pseudônimo, um zero, às vezes qualquer reflexão enérgica. E passa adiante. Alguma coisa razoável é posta de lado e mais tarde se examina.
Aborrecendo-me assim, abri um cartapácio de quinhentas pági-
nas grandes: uma dúzia de contos enormes, assinados por certo Viator, que ninguém presumia quem fosse. Em tais casos roga- mos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir ao fim. Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: monta- nhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magnífi- cos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente feitiço, a patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável, dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho Bembém. Por outro lado enjoei um doutor impossível, feito cava- dor de enxada, o namoro de um engenheiro com uma professori- nha e passagens que me sugeriam propaganda de soro antiofídi- co.
Houve discussão e briga. No dia do julgamento, eliminadas com-
posições menos sólidas, ficamos horas no gabinete de Prudente de Morais, hesitando entre esse voluma desigual e outro, Maria Perigosa, que não se elevava nem caía muito. Optei pelo segundo – e, em consequência, Marques Rabêlo quis matar-me: gritou, es- pumou, fez um número excessivo de piruetas ferozes. Defendi- -me com três armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídi- cas. – Ora, essa! Discutimos literatura de ficção. Deixemos em paz o Instituto de Butantã. Dias da Costa apoiou-me. Prudente de Morais sustentou Mar- ques. E Peregrino Júnior, transformado em fiel de balança, exigiu quarenta e oito horas para manifestar-se Escolheu Maria Perigo- sa – e assim Luís Jardim obteve o prêmio Humberto de Campos em 1938.
Viator desapareceu sem deixar vestígio. Desgostei-me: eu dese-
java sinceramente vê-lo crescer, talvez convencer-se de que me havia enganado preterindo-o. Afinal os julgamentos são precá- rios – e naquele tínhamos vacilado. Eu, pelo menos, vacilara. Às vezes assaltava-me vago remorso e perguntava a mim mesmo onde se teria escondido Viator. Em conversa com José Olímpio, referi-me a ele. Se se cortasse alguns contos, publicar-se-ia um bom livro. E o meu amigo, com entusiasmo fácil, logo se pôs em busca do escritor misterioso, chegou a sugerir-me um artigo, es- pécie de anúncio. Todas as pesquisas foram inúteis.
Em fim de 1944, Idelfonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-
-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa.
– O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
– Como era o seu pseudônimo? – Viator. – Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando. Idelfonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e lite- rato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada. – Sabe que votei contra o seu livro? – Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, es-
tendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa con- cordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emen- dara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica. Falei na intenção de José Olímpio, mas julgo que o meu novo companheiro já tinha compromisso. Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal – Rio – 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Elimina- ram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O burrinho pedrês, A volta do marido pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao ro- mance. Achariam aí campo mais vasto as suas admiráveis quali- dades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar mi- núcias na aparência insignificantes, uma honestidade quase mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado nesse rigor, indicara a Prudente de Morais numerosos versos para efeito onomatopaico intercalados na prosa. Vou reencon- trá-los. Lá estão, à página 25, fixando a marcha dos bois nos ca- minhos sertanejos, dois períodos (o primeiros feito de adjetivos aplicáveis ao gado) composto de pentassílabos: “Galhudos, gaio- los, estrelos, espécios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, sambraias, chamurros, churriados, corombos, coruetos bocaleos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros… E os toscos da testa do mocho macheado, e as rugas antigas do boi corualão…” Notem que temos aí dez aliterações. O rumor dos cascos no chão duro se prolonga – e à página 26 ainda é martela- do em dezesseis versos de cinco sílabas: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estratos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…”
Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais
leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista – movimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito me agrada.
A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele
o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de ca- boclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.
Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham
bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irracionais di- reitos, exibidos com peladuras, esparavões e os necessários mo- vimentos de orelhas e de rabos. Talvez o hábito de examinar essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com lentidão bovina.
Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se
for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se.