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ANTONIO EVALDO ALMEIDA
BARROS é Licenciado em
História pela Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), em Filosofia
pelo Instituto de Estudos
Superiores do Maranhão ([ESMA),
e Mestre e Doutor em Estudos
Éinicos e Africanos pela
Universidade Federal da Bahia
(UFBA). É Professor Adjunto dos
Departamentos de História da
UFMA e da Universidade Estadual
do Maranhão (UEMA), membro do
quadro permanente dos seguintes
Programas de Pós-Graduação:
Políticas Públicas (UFMA), História
(UFMA) e História (UEMA).
Desenvolve ações de ensino,
pesquisa e extensão sobre
práticas e políticas culturais e
educacionais no Brasil e na África
Austral. É membro-fundador do
Núcleo de Estudos, Pesquisa e
Extensão sobre África e o Sul
Global (NEÁFRICA). Desde 2013,
coordena a Ação Escola da
Terra no Maranhão (UFMA). É
autor de “As Faces de John
Dube: Memória, História e
Nação na África do Sul?
(CRV/EDUFMA, 2016).
EM TEMPOS DE FESTAS,
RITUAIS E COMEMORAÇÕES
2º EDIÇÃO
ditora
Antonio Evaldo Almeida Barros
Maria da Glória Guimarães Correia
(Organizadores)
EM TEMPOS DE
FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES
2º edição
Editora CRV
Curitiba — Brasil
2019
Copyright O da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Fotos da Capa: Reinilda Oliveira
Revisão: Os Autores
B223
Bibliografia
ISBN 978-85-444-3181-8
DOI 10.24824/978854443181.8
DISPONÍVEL NO 4. Baixar na
> Google Play Gg App Store |
2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac(Deditoracrv.com.br
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Aldira Guimarães Duarte Dominguez (UNB)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN)
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Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
APRESENTAÇÃO...
Os organizadores
novo regime político vertesse — através dos rituais e símbolos criados — coesão
política, social e cultural”. De modo geral, argumenta o autor, as tradições
inventadas no estado, convergiram em políticas de memória. Em São Luís, os
usos políticos no campo mnemônico promoveram importantes modificações
simbólicas como: alteração na nomenclatura de ruas e praças, inauguração
de monumentos e a organização de um calendário cívico. O controle da me-
mória tornou-se um importante mecanismo na produção de identidades sobre
o Maranhão e o maranhense. Wendell Brito conclui que “as comemorações
a Manuel Beckman possibilitaram-me a compreensão dos usos e abusos das
reconfigurações identitárias e imagéticas permitidas pelo contexto republi-
cano, mas, sobretudo, indicam disputas, jogos de poder e a pluralidade das
narrativas mnemônicas no Maranhão”.
Rituais, Danças e Resistências em uma África do Sul segregada, de Al-
dina da Silva Melo, último texto desta coletânea, faz um panorama analítico
do reconhecimento da Zulu Dance como patrimônio nacional sul-africano.
Situando a Zulu Dance no centro das discussões sobre cultura, o texto aborda
como os rituais e danças zulus podem ser lidos como importantes elementos
de resistências ao regime segregacionista, bem como na reconstrução de uma
África do Sul segregada para uma nação “arco-íris”. O intuito é pensar a história
do povo zulu e elucidar as especificidades e dinamicidades das identidades na
cultura zulu, tendo como recorte o Apartheid (1948-1994). O trabalho parte
ainda da perspectiva de que é necessário romper com a vertente da “história
única” que tem apresentado o continente africano de forma homogeneizada,
catastrófica e folclorizada.
Certamente, as festas e festejos e seu universo material, mítico e humano
podem ajudar a compreender histórias de homens e mulheres que viveram
nos contextos aqui enfocados.
Os organizadores
E ERA NOITE DE LUAR: festas e festejos
sob o céu de uma cidade (São Luís, 1850-1900)
1 Folhinha de Algibeira: Espécie de almanaque em formato pequeno, próprio para ser carregado no
bolso (algibeira), contendo informações de natureza e objetivos os mais diversos, predominando,
todavia, seu caráter eminentemente prático, como a indicação da época mais propícia para a
semeadura de determinados frutos, fases da lua, marés, autoridades, serviços, calendário cívico e
religioso, festivo.
16
Condemnei o uso dos bailes de São Gonçalo, tão frequentes por toda esta
ribeira, acreditando o Povo, que elles são não só cousa muito lícita, mas até
agradável a Deos. Fiz-lhe ver que não há inimigos mais perigosos, do que os
divertimentos nocturnos, como essas dansas immodestas, que obrigão a tantas
despezas ruinosas. Disse-lhe que taes bailes não são cousa de S. Gonçalo, mas
do diabo e só próprios para perverter os costumes, e fazer-nos perder a salvação
eterna, lançando-nos no abysmo do pecado. Em Victória eu comutára o voto
de uma mulher, que não tinha cem mil reis, para pagar os gastos do tal baile.
10 | AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. p. 29.
11 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
12 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
13 MORAES, José Nascimento. Vencidos e degenerados. São Luís: Typ. do Frias, 1982. p. 40.
naquele naquele mundo em que todos se queriam senhores. Para tanto, não
pode pairar dúvida de que fosse a que melhores condições apresentava para
o desempenho de tão elevada função, durante todo o tempo em que a Sé do
bispado estivesse em obras, dando-se como exemplo que confirma sua escolha
o caso do “Convento do Carmo e o Hospício do Bomfim”, que se encontravam
em “péssimo estado e a Igreja mal tratada”!S.
E assim se deu que em “21 de Novembro, o Sr. Bispo canta missa pon-
tífical na Catedral provisória e dá após Bênção Papal, havendo procissão de
praxe”"”, Quanto à procissão que celebrou a elevação da igrejinha de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos ao status de catedral, é de se supor que tenha
observado o estilo e o giro de sempre, até porque uma procissão, antes de
tudo, configura-se como um “espetáculo edificante”!*. Era o ano da graça de
Deus de 1852 e ainda não seria daquela vez que obras realizadas na catedral
fossem executadas com o devido respeito a seus santos e anjos, de modo que
não precisassem andar em busca de abrigo em outras casas santas. Isso por-
que, tendo sido “empossado em julho de 1878, em maio de 1879 dirigia-se
D. Antônio Alvarenga ao Ministro Carlos Leoncio, dentre outros assuntos,
para tratar de reparos que precisavam ser feitos na Sé, pois, a seu juízo, não
poderia haver “no Brazil Diocese alguma cuja Cathedral se ache em peior
estado que a do Maranhão”.
Trata-se de uma apreciação que não parece ter sido ditada por exagero
do bispo nem constituir artifício retórico para convencer o ministro, quando
se tem conhecimento de que em março de 1882, em meio a outras partes que
ameaçavam desabar, “o tecto de toda a Cathedral” estava tão arruinado que
mal poderia suportar aquele “inverno, sendo de muita necessidade no verão
futuro fazer-se essa obra, para não ser destruída a Cathedral”?º. Lembrando
ainda quanto à igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que, fosse
por reunir condições para tanto e também pela generosidade de ajudar quem
precisava de ajuda, o certo é que se consolidaria como um espaço de grande
significado para vivências do sagrado, por segmentos, instituições, grupos e
pessoas socialmente menos favorecidas, pois além da irmandade que a fizera
erigir, acolhia em suas dependências as de São Benedito e de Nossa Senhora
da Conceição dos Mulatos, até que construíssem a própria igreja.
Desse modo, cumprindo bem a função precípua que lhes dava sentido,
além de espaço de vivências do sagrado, as igrejas, com suas missas, novenas,
procissões e outras celebrações — como era o caso das festividades em louvor
dos santos nelas cultuados -, constituíam espaços de sociabilidade de grande
de tantos anos, é certo que mudanças ocorreram, até porque “assim como não
há uma História imóvel, não há festa imóvel”. Por outro lado, se mudanças
substanciais, profundas, só podem ser percebidas na longa duração, tendo em
vista que “a festa não é uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações,
de transições, de inclusões com uma das mãos e afastamentos com a outra”?
a mudança da época do festejo e as restrições às atividades enquadram-se na
dinâmica dos bens culturais, que só permanecem porque mudam.
Portanto, se a organização dos festejos em louvor de Nossa Senhora
do Rosário continuava a cargo da irmandade criada para seu culto e a serem
realizados na igreja que seus devotos haviam erigido para melhor cultuá-la,
as festividades com que anualmente davam públicas demonstrações de seu
amor e gratidão, pelas graças alcançadas com sua intercessão, mudavam de
data, o que demandaria uma pesquisa mais ampla para a explicação dessas
mudanças. De concreto, percebe-se que, a certa altura, deixaram de ser ce-
lebradas em janeiro, mais precisamente no dia dos Santos Reis, passando a
sê-lo entre os meses de setembro e outubro.
Há, todavia, de se observar que, bem mais do que uma simples alteração
de datas, implicou uma troca da estação, uma vez que os festejos deixaram
de ser realizados no período das águas grandes, passando para o tempo estio.
Mudança que, em grande medida, convinha mais à parte da programação que
tinha lugar ao ar livre, como é o caso das procissões e das atividades realizadas
em arraial, em largo, que, à época, pareciam ser os momentos mais esperados
do conjunto de celebrações que compunham os festejos de cada ano.
O que determinou tal mudança não se sabe, mas expor a imagem da
santa à chuva natural da estação, certamente não era o que os organizadores
da festa desejavam, haja vista o tom de lamentação, e às vezes de mofa, das
notícias sobre essa ou aquela festa que fora prejudicada, perdera seu brilho,
ou nem chegara a ser realizada por conta da chuva. Daí por que, como “para o
homem religioso o cosmo “vive”, “fala””%, perscrutar o horizonte, tentar per-
ceber o que diziam as nuvens, o rumo do vento, o voo dos pássaros, era algo
que todos faziam, mesmo não adiantando nada tantas angústias e simpatias.
Afinal, entre os meses de dezembro e julho, pessoa alguma podia afirmar se
choveria ou não, tampouco explicar o porquê de ter chovido tanto durante o
giro da procissão em louvor do santo dessa irmandade e não ter caído uma
gota sequer na procissão do santo da irmandade rival.
Assim, quando o tempo se mostrava fechado, é de se supor que Rei e
Rainha, Príncipe e Princesa, Juiz e Juíza, todo o corpo, enfim, responsável
pela organização da festividade se visse com o coração “mordido de sustos e
de dúvidas”?”, por não saber se a procissão faria seu giro sob um ameno sol de
fim de tarde; se um leve e breve chuvisco cairia como água benta espargida
sobre os devotos, para amenizar o afogueado da caminhada; se um rompante
de grossos pingos, daqueles que, sem anúncio, caem por um minuto, deixando
andores, estandartes, luminárias, sobrepelizes, opas e vestimentas de festa
amarfanhadas, como também um álacre cheiro de terra no ar, que uns gostam e
outros acham que é cheiro de enxofre, portanto, cheiro do Belzebu, do Coiso,
do Coisa Ruim, ou se, sem qualquer concessão a promessas e simpatias,
teriam de cumprir sua obrigação sob chuva torrencial, como costumavam
cair a partir de janeiro.
E se a “festa devia ser assim: o risonho termo e começo de tudo, a gente
desmanchando tudo, até o feito com seu suor do trabalho de sempre; e sem
precisar, depois de tornar a refazer”?, salvo se suas majestades, suas altezas
e mais autoridades da nobreza togada, que compunham sua corte e séquito,
tivessem “um sabido anjo da guarda”?, o giro da procissão não seria feito
sob pesadas bagas d'água. Graça que livraria uns e outros de ter seus trajes
enxovalhados, pois mesmo não sabendo o que vestiam, é de se supor que
envergassem trajes condizentes com sua dignidade e em conformidade com
a importância daqueles especialíssimos dias.
Por outro lado, se, a título de exemplo, não é possível afirmar se choveu
ou não na procissão de São Benedito, que saiu da igreja do Rosário em 12 de
fevereiro de 1871 e para a qual a mesa diretora da irmandade havia solicitado
aos fiéis que enviassem “seus anjos [...], assim como offerendas para o leilão”,
para “maior brilhantismo da festividade”*º, é certo que, “apesar da chuva tor-
rencial que cahio antehontem, a procissão de São Benedito sahio a percorrer o
itinerário de costume, com um acompanhamento extraordinário”?!, de acordo
com o que publica a Pacotilha, em 18 de abril de 1887, num testemunho de
sua devoção. Quanto aos anjos, há de se registrar o terminante comunicado
que D. Manoel Joaquim da Silveira enviou ao frei Vicente de Jesus, guardião
do convento de Santo Antônio, em 14 de março de 1853, no qual dizia que,
27 Ibid. p. 194.
28 Ibid., p. 195.
29 ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguelim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 154.
30 PUBLICADOR MARANHENSE, 04 fev, 1871.
31 PACOTILHA, 18 abr. 1887.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 25
nesses cortejos tipos que pareciam ir “caminhando na ponta dos pés, como
quem pisa nos corações”, visto que, assim como todas as outras, a cidade
tinha lá seus “malandro”, categoria em que se enquadrava certo Dr. Bruxelas,
“Raneur e gigolô, bolso vazio e espocado, [...], figura urbana de nome feio,
que conquista e mente, tem trues magníficos, sorrisos cativantes de adoles-
cente e frases insinuantes, capazes de convencer até o diabo se lhe aparecer
vestido de mulher”. Nunca sendo demais lembrar que além do pisar macio,
o “malandro anda assim de viés”*º ou com umas “passadas monótonas, como
um urubú farejando uma carniça””, tal como devia fazer o dito doutor, que
foi desse modo descrito:
Isso, mesmo sendo sabido que era preciso ter “cuidado com essas mu-
lheres de Caxias, que são da pá virada. Andam de navalha ao cabelo, e de
punhal ao cós da saia”*.
Assim, observando-se o devoto cortejo e atentando-se para a postura, o
caminhar, o falar e outros traços daqueles que passavam, tinha-se fidedigna-
mente registrado um inventário do irremediável, testemunhado nos corpos dos
passantes, ficando a estranheza por conta dos anjos, obrigatória presença entre
45 PINTO, Fulgêncio. Dr. Bruxelas & C. Maranhão: Typ Chaves & Comp., 1924. p. 2.
46 BUARQUE DE HOLANDA, Chico. A volta do malandro. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque.
Malandro. Polygram, 1985. Faixa 1.
47 PINTO, Fulgêncio. Op. cit., p. 54.
48 Ibid., p. 12.
49 — Ibid.,p. 53.
50 — Ibid., p. 50.
28
e danças de pretos [...] fora dos lugares permitidos pela autoridade”, ficando
estipulada uma multa de cinco mil réis por cada um que desrespeitasse o de-
terminado no artigo ou seis dias de prisão, quando não tivessem condições de
satisfazer a multa pecuniária. Pelo artigo 94 não era permitido “fazer voserias,
alaridos e dar gritos nas ruas”, enquanto, além de estabelecer uma multa de dez
mil réis, o artigo 104 ainda previa três dias de prisão a quem andasse embriagado
pelas ruas da cidade. No caso do contraventor ser escravo, seria “entregue a seu
senhor” para que o punisse como bem entendesse.
Tratava-se, pois, de um conjunto de posturas que, como se vê, repre-
sentavam um verdadeiro entrave a determinadas manifestações de devoção,
prazer e alegria de negros e escravizados em geral, como é o caso dos Congos.
Primeiramente, porque eram organizadas em grupos de várias pessoas e, em
segundo lugar, por ser impossível andarem para lá e para cá de bico calado,
mudos como peixes, mais ainda em noite de festa. Além do que devia era
muito difícil resistir a uma boa giribita, por temer as consequências, cenário
que leva a imaginar o quanto tal postura terá sido observada.
Nunca é demais lembrar que com aquela decisão da autoridade poli-
cial, muitos certamente ficaram “na posição do sonhador que vai perder seu
sonho”, mas como gente que sobreviveu resistindo a toda forma de violên-
cia e humilhação, deram a volta por cima e pediram o troco. Pois, se certos
olhares viam os Congos com olhos de membros do santo Ofício, para quem
eram “más todas as vontades boas, e boas todas as razões más”**, nem toda a
gente sentia e pensava do mesmo modo, batendo seu coração em outro ritmos;
no passo e no compasso dos Congos, com “justas e rega-bofes”*. Além do
que aqueles eram dias intensos e confusos, infernais, perturbantes, pois que,
agora, “tanto parecia divertirem-se anjos como zangar-se Deus”*, fazendo o
comum dos mortais dizer a si mesmos “como poderei achar-me nesta floresta
de sim e de não”, como deverei me conduzir num mundo em que leis con-
sentem e autoridades reprimem, conforme seus interesses, partidos ou outras
motivações tão indevidas quanto na tomada de suas decisões?
Refletindo claramente as hierarquias vigentes na sociedade em que era
realizada, merecedora de tratamento radicalmente outro, tanto por parte da
polícia quanto da imprensa, tinha-se a festa de Nossa Senhora dos Remédios,
padroeira do comércio e da navegação. Festejada em outubro, era aguardada
com ansiedade, especialmente pelos mais aquinhoados, dentre outros, por
constituir um importante cenário para a exibição de suas fumaças de grandeza,
diferentemente do que acontecia durante os festejos de Senhora do Rosário,
que reunia pessoas cujo fosso de desigualdades entre elas era muito mais es-
treito e raso. E como aquele era um espaço de congraçamento, mas também
de disputas de prestígio e poder, trajes e outros adereços constituíam discursos
altissonantes acerca de cada um e de todos, razão por que anota o perspicaz
e irônico cronista: “há um mês ou mais antes do dia da milagrosa Senhora,
começa a azáfama da sua festa e as belas perdem o sono, imaginando nos
meios de melhor ataviar-se”*”.
Ainda quanto a essa preocupação que supostamente afligia os corações
femininos e a despeito da crônica do cotidiano ser useira e vezeira em associar
mulheres a superfluidades — que tinham sua expressão máxima na moda, por
ir e vir sem mais razão ou porque -, é certo que “nas sociedades burguesas, o
modo de as mulheres casadas se apresentarem em público constitui um dos
meios de seus maridos se afirmarem prósperos [...] ou socioeconomicamente
bem situados”*. E se a um mês da festa as belas perdiam o sono, preocupa-
das com seus atavios, esse era um sofrimento de que padeciam também os
homens, basta lembrar como um leão da moda se apresentou no largo, no
domingo da festa, sendo eternizado assim pelo atento olhar e jocosa descrição
de João Lisboa:
57 LISBOA, João Francisco. A festa de Nossa Senhora dos Remédios. São Luís: Legenda, 1992. p. 29.
58 FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 31.
59 LISBOA, João Francisco. Op. cit., p. 50.
60 Ibid., p. 50.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 31
Como se vê, a vida era uma festa para essa gente, pois que se dava o
luxo de dançar a semana inteira, desperdiçando o dinheiro que tinha nesse
tipo de ajuntamento ou o fazendo mesmo sem ter cabedais para tanto, numa
tentativa, talvez, de manter uma aparência do que não era. Em outros termos,
cultivando assim um terrível desconforto, senão uma angústia seguramente
muito diversa daquelas que atazanavam o juízo de quem dançava no baile
que foi denunciado nos seguintes termos:
o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 33
Por minha extrema velhice, já estou com os pés na beira da sepultura e nada
mais espero desta vida, declaro, alto e bom som, desde já, a todos os que
ouvirem ou lerem, que recuso todo e qualquer oficio religioso, antes e depois
da morte e em proveito de uma vida futura, em que absolutamente não creio.“
Para Higino, “se não fosse o poder do habito”, que homem de ciência
seria capaz de aceitar tais ritos? De todo modo, o autor diz não condenar
aqueles que acreditam ou as famílias que cercam seus mortos de cerimônias
religiosas, pois segundo ao autor, “são usanças tradicionais com raízes pro-
fundas no inconsciente da alma humana, que devemos respeitar”.
68 Higino Cicero da Cunha nasceu em 1858 na localidade de Flores, Maranhão — atual Timon — e
mudou-se para Teresina, Piauí aos doze anos de idade. Em 1881, partiu para Recife a fim de cursar
a Faculdade de Direito de Recife. Faleceu em 16 de novembro de 1943.
69 CUNHA, Higino. Memórias: traços autobiográficas. Teresina: Imprensa Oficial, 1939. p. 131.
36
70 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRE, Luis Felipe de
(Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1997. p. 96-97. 2 v.
71 ABREU, Martha. Festas religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no século
XIX. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 183-208.
72 VIEIRA, Pe. Antonio. A Arte de morrer. os Sermões de Quarta-feira de Cinza de Antonio Vieira.
In: PECORA, Alcir (Org.). São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
73 Ibid.,p. 58.
74 Ibid., p. 68-62.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 37
ganha feições próprias diante das incertezas e dos meios que acompanham a
preparação para esse momento.
Neste período da história piauiense, é perceptível a tentativa de redenção,
ea
75 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações
fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 150.
38
Ô Miguel, ô Miguel,
Ouve a voz de quem de chama!
No inferno tem uma arma,
Que há três dia te recrama.”*
76 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. JANCSO, Istvan;
PUNTINI, Pedro (Orgs.). São Paulo: Edusp, 2010. p. 432-433.
77 SILVA, Pedro. Velórios. In: O PIAUÍ no Folclore. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
1988., p. 74.
78 SILVA, Pedro. Velórios. Op. cit., 1988.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 39
79 bid., p. 74-75.
80 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. A religiosidade na colônia: catolicismo adaptado ao modo de vida.
Revista do Instituto Histórico Brasileiro, p. 6, 2005.
81 SOUSA, Jaqueline Pereira de. Exortando corpos: por uma antropologia dos ritos fúnebres. 2011.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia, Universidade
Federal do Piauí, Teresina, 2011. p. 12.
40
umas das outras os cadáveres das pessoas não eram carregado em caixões,
mas em redes, onde eram conduzidos até os cemitérios.
82 EIVA, Artur; PENA, Belisário. Viagem científica pelo norte Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do
Piauí e de norte de Goiás. Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 169.
83 NEIVA; PENA. Op. cit., 1999.
84 SILVA, Candido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia.
São Paulo: Ática, 1982. p. 26. ,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 41
A cóva é sempre raza, sobre elas plantam uma cruz e colocam flores, as
quais de vez em quando são renovadas, mesmo pelos viajantes. Quando
o numero de habitantes é grande, constro-se então cemitério; trata-se dum
cercado de grossas estacas e que não possue porta; para se entrar, deslocas-
-se alguns pãos; no centro, ergue-se dominando o recinto grande cruzeiro
e madeira. Cemiterios murados só nas grandes povoações.
na Igreja. A autora da petição informa que o então seu marido falecera no mês
de junho do ano de 1834 de um tiro. O corpo do defunto:
sem sacramento algum por expirar violentamente foi sepultado na mesma
fazenda por não haver quem o conduzisse para lugar sagrado, por cujo,
motivo não foi encomendado e nem lavrado o se o enterramento.**
88 AUTOS de justificação de óbito. N. S. do Amparo vila do Poty, 1836, caixa 100, maço 487, nº 3421.
Arquivo Eclesiástico do Maranhão.
89 CUNHA, Antonio José da. Autoamento de uma petição para ereção de cemitério. São Gonçalo do
Amarante. 1833, nº 6322, caixa 195. Ereção de cemitérios. Arquivo Eclesiástico do Maranhão.
pe" di
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 43
Introdução
31 Este trabalho foi resultado de pesquisa de Iniciação Científica intitulada Gente negra na Paraíba
Oitocentista coordenado pela professora Dra. Solange P Rocha (PPGH-UFPB).
S2 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução Luís Câmara Cascudo. 12. ed. Rio-São
Paulo-Fortaleza: ABC Editora, 2003. p. 315.
2 KOSTER, Henry. Op. cit., 2003, p. 316.
46
94 BURKE, Peter O que é história cultural? Tradução Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005.
95 Para uma maior discussão dos avanços historiográficos sobre a escravidão no Brasil, ver Machado
(1988), Reis e Silva (1989) e Schwartz (2001).
98 ABREU; VIANA. Op. cit., 2011, p. 238.
97 DELPRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 10.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 47
58 ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Festas religiosas, cultura e política no Império do Brasil.
In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial. Volume Ill: 1870-1889. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. p. 236.
33 Os compromissos ou estatutos eram documentos que definiam as regras o funcionamento
das Irmandades
+00 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
48
+ m
As irmandades da Parahyba não se diferenciam das demais em relação
MH
a isso. Geralmente, havia a procissão com todos os irmãos acompanhando o
falecido. Era obrigatória a presença de todos, implicando a ausência em pu-
E
nição. A cerimônia dividia-se, basicamente, em três: antes, durante e depois
do enterro. Antes de iniciar a procissão em homenagem ao falecido, todos
am
os irmãos se reuniam, e em seguida “irão [iriam] de cruz alçada, e o Juiz de
vara, acompanhar e conduzir o cadaver do irmão fallecido ao último jazigo”!'!,
a
como ocorria em Taquara, povoado próximo à capital da província.
tt
Após a procissão, retornavam todos à igreja e lá deveriam fazer uma
a
série de orações previstas pelo compromisso e rezavam missas em prol da
alma do irmão. Além disso, os sinos deveriam ser tocados em homenagem ao
falecido. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, “Fallecendo
qualquer irmão, será [seria] prevenido o Juiz ou Escr[iv]ão que mandará dar
logo os signaes, a que tem direito, e reunir a Irm[andalde para o enterro”,
como define o artigo 33º do compromisso!º,
João José Reis (1991) argumenta que o barulho era fundamental no
momento da morte, quanto mais barulho, mais o morto mostrava que tinha
construído uma vida de prestígio. Além dos sinos, “alguns pediam, além de
padres e irmãos, o acompanhamento de músicos, que formavam pequenas
e grandes orquestras”. Essas festas externas demonstram a constante in-
terrelação entre o profano e o sagrado na expressão religiosa brasileira oito-
centista. Enquanto dentro das igrejas aconteciam os rituais religiosos, fora
a festa animava as pessoas!”. Essas festas externas não eram previstas nos
compromissos, mas assim como se deu em outras províncias, na Parahyba
do Norte também ocorriam com frequência.
Todavia, festejava-se não só para o falecido, mas também para aqueles
que continuavam em vida. Um dos motivos destacados por João Reis para
estas comemorações de um falecimento tinham como objetivo também a
consolação dos vivos. Para ele,
a produção fúnebre interessava sobretudo aos vivos, que por meio dela
expressavam suas inquietações e procuravam dissipar suas angústias.
Pois, embora variando em intensidade, toda morte tem algo de caótico
para quem fica!º,
À preocupação com a vida não se resumia aos que perdiam algum parente
próximo. A devoção do santo padroeiro era de extrema importância para os
101 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, AEPB, fl. 5, 1866.
102 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, AEPB, fl. 5, 1866.
103 REIS, João José. Op. cit. 1991, p. 153.
104 Ibid., 1991.
105 Ibid., p. 138.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 49
O momento da festa, dessa maneira, era também quando ocorria uma das
práticas mais comuns entre as irmandades que eram as esmolas. Muitos são os
relatos de viajantes que destacam esta característica!!4. O ato da esmola tinha
(e ainda tem), na tradição cristã, a simbologia da caridade, para quem doa, e
da humildade, para quem pede, representando, assim, algo muito importante.
Além do mais, estas esmolas poderiam servir também para sanar as possíveis
dificuldades financeiras encontradas pelas irmandades para a festa.
Na Irmandade de Nossa Senhora de Alagoa Nova, por exemplo,
111 COMPROMISSO da Irmandade do Glorioso São Benedicto, AEPB, fl. 4-5, 1866.
112. COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Capital, fl. 10, AHWBD, 1867.
113 LIMA, Maria Vitória Barbosa de. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na
Paraíba escravista (século XIX). 2010. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de
Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História,
Recife, 2010. p. 94.
114 Ver, por exemplo, DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução de Sérgio
Milliet. 6. ed. São Paulo; Brasília: Martins; INL, 1975.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 51
115 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Alagoa Nova, AHWBD, 1859.
116 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Alagoa Nova, AHWBD, 1859.
117 Ibid., 1859.
118 Ibid., 1859.
119 SOUZA, Marina de Melo e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de Coroação de Rei
Congo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p. 193.
120 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Capital, fl. 01, AHWBD, 1807.
52
Considerações finais
123 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe
(Org.). História da Vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 45. 2 v.
124 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Op. cit., 1997, p. 45.
125 VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895). São Luís: Associação
Comercial do Maranhão, 1954. p. 378-379. 1 v.
54
126 Sobre as subdivisões dos instrumentos musicais Cf. BENNETT, Roy. Uma breve história da música.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
127 ALIVRARIA... A Moderação, São Luís, ano 3, n. 6, terça-feira, 12 abr. 1859.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 55
Tapeçaria de bordados
Chegou para livraria e papelarua de Antonio Pereira Ramos d” Almeida,
bom sortimento d"estampas de tapeçaria e bordados de muito lindos gostos,
paizagens, figuras, passaros &&
Rabecas, Flautas e Clarinetas
Rabecas de muito boas qualidades finas e entrefinas, Flautas de luxo de 1
chave e bomba, ditas de ebano de 4 e 5 ditas, Clarinetas de buxi e ebano
de si e dó com 9 a 13 chaves, todos instrumentos escolhidos. Muzicas,
grande sortimento de methodos, para Piano, Violão, Rabeca, Flauta, e
estudos, fantazias, danças && as mais modernas.!*
135 PIANO-FORTE. O País, São Luís, ano 14, n. 140, sexta-feira, 15 set. 1876.
136 E possível que esta D. Antônia Martins seja a mesma D. Antônia Gertrudes Martins que anuncia
aulas de piano em 1873 no Almanak do Maranhão.
137 Kátia Muricy apud RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas
distinções, Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 63.
138 PIANO. Diário do Maranhão, São Luís, ano 16, n. 3456, terça-feira, 3 mar. 1885.
58
XIX, existiam outros que deixavam dúvidas, como o que veiculou o jornal O
Paiz: “Albino Lopes Pastor vende dous bons pianos, sendo um inglez e outro
francez, com excellentes vozes preço muito razoavel. Á rua de Nazareth,
n. 347139. À dúvida está na expressão “bons pianos”, pois um piano usado pode
ainda receber essa qualificação, assim como um novo, mas o de uma marca
regular também pode ser um “bom” instrumento musical.
Contudo, para atender aos anseios de refinamento, civilidade e moder-
nidade das elites ludovicenses, os comerciantes também anunciavam pianos
novos vindos da Europa, uma vez que eram os que faziam os olhos dos
membros das elites brilharem de tanto contentamento. E é o jornal O Paiz
que veiculou esta notícia, para alegria dos amantes do referido instrumento:
“Candido Cezar da Silva Roza recebeu novos pianos de Hamburgo. Um
destes pianos, cuja caixa é de - NOGUEIRA — é primorosamente acabado,
merece ser apreciado pelos entendedores da arte, e collocado em alguma das
sumptuosas salas desta bella cidade”.
Interessante como essas notas direcionavam a informação a um determi-
nado estrato da sociedade ludovicense, indicativo de que os pianos deveriam
ser colocados em salas “sumptuosas”, isto quer dizer que, somente pessoas
com grande poder aquisitivo poderiam/deveriam adquiri-los, porquanto so-
mente nos grandes casarões colossais existiam salas com essas características.
Da família dos instrumentos de teclas não era somente o piano que era
oferecido nos periódicos da capital maranhense. O órgão, mais solene e não
menos refinado que o piano, aparecia nos anúncios também já direcionado
para quais lugares era mais apropriado, como diz a notícia:
Duchemin & C.º vendem:
Um orgão Harmonium proprio para sala ou para qualquer Igreja pequena
preco de 4008000.
PIANOS
Entre elles um grande de concerto, o melhor que ha nesta cidade e o
mais seguro.
Binoculos para theatro, muito superiores e por preços moderados.
Espelhos para salas.
Diversos tamanhos com caixilhos dourados.!*!
142 DEPÓSITO... Diário do Maranhão, São Luís, n. 6363, terça-feira, 20 nov. 1894.
143 | DESPACHADO... A Moderação, São Luís, ano 2, n. 22, sábado, 31 jul. 1858.
144 BOArabeca! O País, São Luís, n.84, segunda-feira, 14 jul. 1873.
145 SRS. MUSICOS... O País, São Luís, n. 86, terça-feira, 26 jul. 1864.
60
146 ATTENÇÃO. O Observador, São Luís, ano 8, n. 408, quinta-feira, 6 jun. 1855.
147 | Almanaque do Maranhão para o ano de 1858, São Luís, 1858, p. 118.
148 Almanaque do Maranhão para o ano de 1873, São Luís: Editor João Candido de Moraes Rego, 1873, p. 202.
149 Almanaque do Diário do Maranhão para o ano de 1879, São Luís: Typ. Do Frias, 1879, p. 84.
150 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, n. 6305, terça-feira, 11 set. 1894.
151 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, ano 26, n. 6612, sábado, 14 set. 1895.
152 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, n. 7180, quinta-feira, 12 maio 1897.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 61
Não foi possível saber onde esses profissionais aprenderam esse ofício e
nem se eram brasileiros. Talvez num estudo posterior essa categoria profissional
possa ser melhor estudada e explique de modo mais completo a história das
vivências musicais no Maranhão.
Assim, a presença desses profissionais anunciada nos jornais que cir-
culavam na capital da província maranhense indica a inserção de membros
das elites nos novos ditames do gosto civilizado, uma vez que o gosto é um
dos determinantes e diferenciadores dos hábitos e dos costumes e, através da
existência na sociedade ludovicense desses profissionais, as elites da capital
maranhense se identificavam com as elites europeias!*.
A ans is e TTTEEJOoo
OS LAZERES NA SÃO LUÍS
DO PERÍODO IMPERIAL
Paulo da Trindade Nerys Silva
David Machado Ferreira
Cássia Giovana Nascimento dos Santos
Ilana Maria Carneiro Chagas
W
metade do século XIX, a Rua do Giz (28 de Julho) tornou-se um centro fi-
mA
nanceiro com a instalação de algumas casas bancárias. A cidade lançou-se
em reformas mais estruturais com a construção de sobrados azulejados e
amirantados, construção de estradas ligando, o bairro central (Praia Grande e
iam
adjacências) aos arrabaldes como João Paulo. Houve também a continuação
das obras do Cais da Sagração; a criação da Cia. de Águas de São Luís em
1847, assentamentos de trilhos para o bonde com tração animal'*.
O desenvolvimento da cidade impunha o estabelecimento de regras urba-
nas e de conduta entre os moradores, necessitando para tal a edição de Códigos
de Posturas. Para efeito deste estudo, além das formas de lazer praticadas em
São Luís, examinamos os Códigos de Posturas promulgados em 1842 e 1866.
Os códigos fixaram normas básicas relativas ao comércio, salubridade, espaço
público (construções, comportamento, trânsito e segurança). Desse modo,
orientavam as atividades econômicas (licença para abrir estabelecimentos
comerciais, tabernas e botequins), regulava o comércio (restrição ao mono-
pólio de gêneros e controle de pesos e medidas) e os costumes (proibição de
algazarra nas ruas e atos atentatórios ao pudor, entre outros).
Conforme Norbert Elias!*”, os Códigos de Posturas podem ser pensados
como eixos norteadores do processo civilizatório em que as mudanças nos
comportamentos humanos, em direção à “civilidade”, e que resultam da exe-
cução de planos e ações que implicam na reorganização dos relacionamentos
humanos e cujo resultado provisório é nossa forma de conduta e sentimentos
“civilizados”. Os códigos funcionavam como mecanismos que visavam
à segregação dos atores sociais a um processo civilizador. Este processo se
consolidava na medida em que as transformações nas maneiras de lidar com
o outro se tornavam necessárias e perceptíveis. Assim, esse tipo de legislação
se modificava de modo a organizar o uso e a ocupação do espaço urbano e
normatizar as condutas dos sujeitos que o ocupam.
Gebara!” diz que no século XIX as posturas municipais, funcionavam
como um mecanismo de controle social, referindo-se a um grande número
de questões pertinentes à administração pública municipal, relacionadas a
aspectos da vida diária como os costumes e problemas enfrentados pelos
atores sociais que constituíam a urbe.
156 RIBEIRO JÚNIOR, José Reinaldo. Formação do Espaço Urbano de São Luís: 1612-1991. São Luis:
Ed. FUNC, 1999.
157 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: a formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993.
158 Ibid., p. 195.
159 GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 65
160 SELBACH, Jeferson Francisco. Códigos de postura de São Luis. São Luís - MA: EDUFMA, 2010.
161 VAZ, Leopoldo Gil Dulcio; FERREIRA, Hélton Mota; VAZ, Delzuite Dantas Brito. São Luís — MA.
In: COSTA, Lamartine Pereira da (Org.). Atlas do esporte no Brasil. Rio de Janeiro: CONFEF, 2006.
p 3-2.38 — 3-2.483.
162 Os ingleses introduziram no Brasil os principais substitutos esportivos e recreativos das cavalhadas
coloniais: o turfe, o tênis, a bicicleta e o futebol. Em 1826 há notícias da existência de vários deles em
bares e entre os anos de 1838 e a Proclamação da República, eram frequentados pelos alunos do
Liceu Maranhense — colégio criado para atender aos anseios educacionais da elite local. Os jogos
de sinuca desembarcaram no Brasil por volta do século XIX para distrair a elegante e burguesia
brasileira. Em pouco tempo já estava disseminada pelos melhores clubes e bares de práticas
esportivas. Na nobreza os jogos de sinuca eram marcados pelo silêncio. Os cavalheiros se portavam
como numa cerimônia séria e intelectualizada, cheia de requinte e fidalguia. Ao mesmo tempo, foi na
periferia que ele cresceu e se desenvolveu de verdade. Os jogos de sinuca foram crescendo junto
com a urbanização e a industrialização do país, e assim pipocavam as casas públicas de jogos de
sinuca e a partir daí o crescimento foi inevitável. Em pouco tempo os maiores apreciadores seriam
os trabalhadores das camadas sociais mais baixas.
66
163 RIBEIRO, Maria José Bastos. O Maranhão de outrora - Memórias de uma época (1819-1924). Rio de
Janeiro: Jornal do Commercio, Rodrigues & CIA, 1942. p. 142.
164 RIBEIRO, Emanuela Sousa. Igreja Católica e Modernidade no Maranhão, 1889 — 1922. 2003.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, 2003.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 67
165 RIBEIRO, Emanuela Sousa. “Requerimentos de Licenças para Festas na Secretaria de Polícia de
São Luís (1873-1933)”. Relatório de pesquisa do projeto “Religião e Cultura Popular”, coordenado por
Sérgio Figueiredo Ferretti, São Luís, 1998.
166 RIBEIRO, E. S. Op. cit., 1942.
167 Outra grande festa era o carnaval de rua. “Não havia “cordões” nem “samba”. De casa em casa,
de janela a janela, de grupo para grupo, do alto das casas para a rua as pessoas se divertiam
com batalhas de água (cabacinhas cheias d'água colorida ou perfume); usavam também alvaiade,
farinha de trigo e até fuligem de chaminés. Assunção (2000-2001) dá notícia do Entrudo no carnaval
maranhense desde 1854. Segundo Martins (2005) o povo da rua encenava o seu próprio teatro com
grandes passeatas de “congos”, “cheganças”, “fandangos”, “turés”, “caninha verde” e o “baralho”
com autos dramáticos, que disputavam o espaço público com o grupo dominante e que a câmara e a
polícia tratavam de reprimir, de forma recorrente. Outra manifestação central do carnaval maranhense
era o baralho, descrito por Domingos Vieira Filho (1971) como consistindo essencialmente de bandos
de negros e negras esmolambados, pintalgados de tapioca de goma, empunhando sombrinhas e
chapéus de sol desmantelados e sem pano, que percorriam as ruas da cidade aos gritos e ao som
de reco-recos, pandeiros e violões.
Em São Luís, uma segunda fase do carnaval, ue Martins (1998) chama de “Carnaval dos Cordões”,
se iniciaria a partir do final do século XIX, eram famosos os ori e ranchos de ursos, apresentando
autos com “ursos caprichosos”, cachorros e outros personagens.
188 MARANHÃO. Op. cit., 1842.
68
169 MARANHÃO. Diário Oficial do Estado. Prefeitura Municipal de São Luiz. Lei nº. 775, de 4 de julho
de 1866. Aprova o Código de Posturas da Câmara Municipal da Capital. Coleção de leis, decretos e
resoluções da província do Maranhão. São Luís: Tip. do Frias, v. 1865-1866, p. 67-99, 1866.
=! TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 69
Considerações finais
170 MARQUES, César Augusto. Notas críticas e históricas sobre a viagem de P Yves D'Evreux. In:
D'EVREUX, Yves. Continuação da história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão
nos anos 1613 e 1614. Brasilia/DF: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007.
171 VIEIRAFILHO, Domingos. Breve história das ruas e praças de São Luís. São Luís: Editora Olímpica, 1971.
70
472 ARAÚJO, Maria Benedita. O ritual da morte: as exéguias celebradas na defunção de El-Rei D. João
V. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (Coord.). Comunicações apresentadas no Ill Congresso
Internacional A FESTA. Lisboa: Edição Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1992. p. 795.
473 SOARES, Alvaro Teixeira. O Marquês de Pombal: a lição do passado e a lição do presente. Rio de
Janeiro: Editora Alba Ltda., 1961. p. 67.
174 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., 1961.
175 DANTAS, Júlio. O amor em Portugal no século XVIII. Porto: Livraria Chardron de Lelo & Irmão, 1916. p. 57.
176 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., p. 67.
477 BARBOSA, |. de Vilhena. Luxo e magnificência da corte de Dom João V. Archivo Pitoresco, Lisboa,
v. XI, p. 86, 1868.
178 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., p. 68.
72
seu curso quando, “sem que qualquer sintoma o fizesse prever”, sofreu D. João
um violento ataque de paralisia “que lhe baldou o braço, a perna, e todo o lado
esquerdo,”!”º começando ali os sofrimentos que, “sem queixas”, padeceria o
dito senhor até que a morte lhes viesse pôr termo. E entendidos que eram então
os males físicos como visíveis sinais de castigo divino, ante a certeza de que
o padecer do rei representava uma punição por pecados cometidos por ele ou
por gente sua, cada um e todos se viam agora a estimar sua cota de culpa no
corpo padecente de seu senhor e a rogar pelo fim de seus sofrimentos.
tanto que se viu a abundância do ouro que se tirava e a largueza com que
se pagava que lá, logo se fizeram estalagens e logo começaram os mer-
cadores a mandar às minas o melhor que chega nos navios do Reino e de
outras partes, assim de mantimentos, como de regalo e de pomposo para
vestirem, além de mil bugiarias de França.!**
Nesse sentido, corroborando com o que Antonil havia escrito nos inícios
do século, em seus meados, uma anônima testemunha registra que “o país das
Minas, que é o mais útil entre os vastos domínios da Lusitania, não só se acha
falto das utilidades temporais”, como também “de toda a cultura espiritual
para a salvação de suas almas”. Cenário que a seu juízo se devia ao abandono
em que as Minas se achavam, em vista da grande distância que as separava
do Rio de Janeiro, sede do bispado a que pertenciam,!'* o que seria alegado
como motivo bastante para a criação da nova diocese.
Diante disso, e fundado numa pedagogia da dor que informava as sen-
sibilidades setecentistas, entendia Antonil que assim como não havia “causa
182 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na capitania de Minas Gerais —
século XVIII. Revista do Departamento de História- UFMG, Belo Horizonte, p. 21, 1987.
183 ANDREONI, João António (André João Antonil). Riqueza e opulência do Brasil. São Paulo:
Melhoramentos, 1976. p. 168.
184 | Ibid,, p. 169.
185 ANÔNIMO. Aureo Throno Episcopal collocado nas Minas do Ouro ou Noticia Breve de creação do
Novo Bispado Marianense, de sua falicissima posse, e pomposa entrada do seu meritíssimo, primeiro
Bispo, e da jornada que fez do maranhão o Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor D. Fr. Manoel
da Cruz, com a Collecção de algumas obras academicas, e outras, que se fizeram na dita função,
author anonymo, dedicado ao Illustrissimo Patriarca S. Bernardo, e dado à luz por Francisco Ribeiro
da Silva, Clerigo Presbytero e Conego da nova Sé Marianense. Lisboa: Officina de Miguel Manescal
da Costa, Impressos do Sto. Offício, Anno 1749, p. 1.
T4
tão boa” que não pudesse “ser ocasião de muitos males”!%, razão por que
a riqueza advinda das minas de ouro e diamantes, ali existentes, viria a ser
a perdição daqueles gerais, caso não se fizesse sentir neles o peso da Mão
de Deus e do Rei. Homem de seu tempo e partindo da mesma perspectiva
do padre, também aquela anônima testemunha teorizava sobre um estado
de coisas, partindo do pressuposto de que “o pecado é o que nos sujeita ao
domínio estranho”, mesmo percebendo a virtude como medida da “grandeza
do dom que recebemos”!*”. Percepção que, de par com o ato de piedade real
que criara o primeiro bispado na região das Minas Gerias, é tomada como
pista para que se explique a escolha do Carmo para sua sede.
Afinal, não fora na dita vila que o Conde de Assumar se refugiara quando
da sublevação daqueles povos, num eloquente testemunho acerca da fidelidade
de sua gente ou, pelo menos, de parte dela a seu Rei, ao acolher e continuar
respeitando a autoridade daquele seu agente? Assim, em vista da aliança do
Rei com Deus, mostrava-se o Carmo merecedor e devidamente habilitado
para receber um trono episcopal e para se afirmar como espaço privilegiado
de poder nos gerais, como reconhece e determina o Decreto de 23 de abril de
1745, por meio do qual a dita vila foi elevada à condição de “Cidade Mariana”,
como querem alguns, ou tão somente “Mariana”, como ajuízam outros quanto
ao nome da sede do novo bispado. Tudo isso acontecendo justamente quando
o Carmo jazia prostrado por inundações do seu ribeirão, “contra os desígnios
errados dos homens, ou contra os discursos dos homens errados” !!8º
Em face de tais preocupações e cuidados, para ocupar o novo trono epis-
copal, Dom João V escolheu D. Manuel da Cruz, que então respondia pelo
bispado do Maranhão, numa escolha a que procedeu sem que explicação ou
nota de conforto tenha sido dirigida às ovelhas do dito pastor. De todo modo,
* se aos reis não se lhes obriga a dar satisfações por seus rompantes e menos
ainda sobre suas mais bem pensadas decisões, é de se supor que para sua
tomada de decisão o Rei “Magnânimo” tenha levado em conta a formação e a
vida do escolhido, sem, todavia, esquecer que tal decisão se deu nos marcos
de uma cultura política cuja tônica era a indissociável relação entre mercê
e serviço, no mais perfeito “toma lá, dá cá”, como se diria nos dias de hoje.
Assim e a despeito dos critérios e arranjos empreendidos para tanto, não é
demais lembrar que depois de longa vacância do trono episcopal do Maranhão,
em 2 de julho de 1738, o nome de D. Manuel da Cruz fora “apresentado por
D. João V e nomeado por Clemente XII”, para responder por esse bispado!*º;
190 SILVA, D. Francisco de Paula e. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922. p. 115.
191 PACHECO, D. Felipe Condurú. Op. cit., p. 26.
192 LISBOA, João Francisco. Jornal de Timon: apontamentos, notícias e observações para servirem à
História do Maranhão. Brasília: Alhambra, [s.d.]. p. 43. 2 v.
193 CRUZ, D. Frei Manuel da. Carta a El-Rei. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.). Copiador de cartas particulares
do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana. Brasília: Editora do Senado,
2008. p. 10-11.
194 CRUZ, D. Frei Manuel da. Carta ao Padre Frei Gaspar da Encarnação. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.).
Copiador de cartas particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana.
Brasília: Editora do Senado, 2008. p. 15.
76
quer estado, qualidade, e condição que seja, toque, cante, dance ou assista
semelhantes danças.!”
Diante disso, considerando que a punição por uma dança podia ser tão
severa, imagine-se os tormentos com que esse trovão ameaçador não faria os
acusados de crimes de maior monta expiarem sua culpa, como era o caso do
amancebamento em que viviam muitos casais, pois esse era um crime cometido
contra a moral e contra a fé. Isso porque, assim como outros prelados que o
haviam precedido e sucederiam, Sua Reverendíssima não levava em conta
as imensas dificuldades que precisavam enfrentar todos os que pretendiam
contrair matrimônio, razão por que muitos nem o tentavam fazer, por não reu-
nirem as mínimas condições para tanto.?º Sem contar que assim como havia
acontecido em Portugal entre os séculos XVI e XVII, nesse mundo novo, as
mulheres ficavam e os homens se iam, e que mesmo que fizessem “diligências
para saber notícias do paradeiro do marido”?!, aqui e acolá, acontecia de se
deparar com situações extremas como a daquela “mulher casada duas vezes”,
sobre quem D. Manuel da Cruz fala com toda a veemência de sua censura??.
Ainda quanto aos empenhos do dito bispo, sua façanha maior parece mesmo
ter sido a visita que fez a todo o seu bispado, por ter “informações da relaxação
da disciplina eclesiástica, corrupção dos costumes dos moradores destes sertões”,
a qual foi relatada ao Cardeal Patriarca de Lisboa, numa carta em que diz:
om
78
douto a deu”?ºº, as de Pindaré, porque nas cabeceiras do dito rio haveria muito
ouro, pois alguns índios haviam dito que “seus parentes do beiço furado”,
que viviam naquela zona, “faziam dele botoques para os mesmos beiços e
orelhas”, acrescentando-se que ali ainda haveria várias castas de pedrarias
preciosas, tão resplandecentes que na noite mais tenebrosa dão claridade”21º,
As do Anil, na Ilha do Maranhão, destacam-se por serem “salutíferas para os
indivíduos” e as do Iguará, exatamente por serem o seu contrário, uma vez
que “que quem a bebe infalivelmente adoece”, como aconteceria aquém tinha
a infelicidade de beber água do Iguará”?!!,
Mar de águas calmas e também de águas violentas cercava a Ilha
do Maranhão e se estendia por suas terras continentais, tanto assim que
“em todo o tempo é perigoso” no Boqueirão e ainda nas proximidades da
ilha do Maranhão, pois próximo à vila do Icatu, na baía do Apercha, “o
Excelentíssimo bispo dom frei Manuel da Cruz, junto com sua comitiva,
esteve quase submergido”, pelos “mares naquela baía serem comumente
bravíssimos pela severidade de suas empoladas ondas”?!2. Espanto que
não desaparecia quando se tratava da abundância e diversidade de peixes
e mariscos que viviam em suas águas, chamando atenção “nos mares
circunvizinhos” de São Luís “uns peixes chamados quatro olhos, que na
realidade os têm; dois lhes servem para se vigiarem das aves que os co-
mem e dois dos peixes que os devoram”, também “outra espécie de peixe
chamado baiacu, que quem come cozido infalivelmente morre se não lhe
tiram o fel”, e ainda aquele de nome poraquê, “quando pega no anzol faz
adormecer o braço, e o mesmo sucede àqueles que lhe dão com algum
instrumento e ainda estando fora d'água”? ficando o espanto maior por
conta de uns “monstros” que viviam naqueles rios, “principalmente quando
estes têm suas cabeceiras em buritizais, [...] chamados mães-d'água, que
têm cara, mão e pés como gente”?!*.
De acordo com esse registro, a terra não só era bela como boa, uma vez
que “muito abundante de carne e peixe, frutas, farinhas, arroz, milho e feijão
e todos os mais legumes que costumam produzir os brasis”?!º, e em termos
da satisfação de outras necessidades, dizia que “hoje já lá vão todos os anos
209 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (Coord.). Códice Costa Matoso.
Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da
Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos Culturais, 1999. p. 933.
210 Ibid., p. 933.
211 Ibid., p. 933.
212 Ibid,p. 929.
213 Ibid., p. 928.
214 Ibid., p. 934.
215 Ibid, p. 928.
80
12 navios, pouco mais ou menos, na frota”?!6. Dado que nos leva a observar
que esse movimento variava, pois se apenas um navio aportou no Maranhão em
1718 e continuou a haver anos em que não vinha frota a essa capitania, este fato
adiou a partida de D. Manuel da Cruz para as Minas, pois “a estação do anno”
em que havia chegado a frota de 1745 “já não dava lugar a fazer a perigosa tra-
vessia, que pelo sertão determinou S. Exma. Rvema. seguir para a Capitania das
Minas Gerais”, uma vez que “a equipagem e a provisão necessária para a derrota
também não se poderiam aprontar com facilidade”. Diante disso, comunicou a
El-Rei “que só no anno de 1746 podia por-se a caminho”2", previsão que não
se realizaria, pois “Deus não permitiu que se pudesse conseguir o premeditado
intento, porque no anno de 1746 não foi a Frota ao Maranhão, sem o que não se
podiam prover os viveres necessários para a digressão de caminho tão longo. Isso
se remedeou com a Frota de 174728,
Na avaliação do responsável pela descrição do bispado, os habitantes do
Maranhão eram “nimiamente preguiçosos e inclinados a beber, fumo e latração de
vidas alheias e outros vícios”, que, por modesto, se recusava a registrar. Realidade
que nasceria “de terem [os homens] poucos negócios de que se ocupem”, o mesmo
não acontecendo com as mulheres, pois “que além de serem admiráveis no seu
procedimento e formosura”, trabalhavam “de dia e de noite para sustentarem as
obrigações de suas casas, tanto em bater e fiar como em coser e fazer rendas'”?",
numa percepção de postura e desempenho das mulheres que se choca com as con-
sagradas representações acerca de sua eterna dependência em relação aos homens.
No que diz respeito a São Luís, é interessante cnamar atenção para o fato
de que sua feição urbana e arquitetônica não merecem grandes considerações,
limitando-se as informações ao dado de que tinha então vinte e quatro ruas,
registro que não vem acompanhado de nenhuma menção ao seu casario. Em
termos de equipamentos e outras condições de vida em seus limites, é dito que
tinha duas fontes, “a fonte das Pedras, com duas bicas de água admirável”, que é
identificada como construção dos “holandeses no tempo que foram senhores do
Maranhão” e como serventia do povo mesmo quando havia seca rigorosa. Além
dela, “assim de inverno como de verão”, a fonte dos Armazéns fornecia “água
com muita abundância”, mas ficava “fora da cidade quase um carreira de cavalo”,
— O
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 81
o que explicava ter a cidade “perto de quatrocentos poços, porque querem ter nos
seus quintais água para o serviço das suas casas”?,
Talvez pelo fato de a cidade não apresentar nada de especial e/ou por se
tratar da descrição de um bispado, aquele que se ocupa deste encargo volta
seu olhar para o que mais diretamente se relaciona com sua vida religiosa, daí
suas observações sobre as igrejas e conventos nela existentes. Registra que
tem sete igrejas: Misericórdia, Rosário dos Pretos, São João, Nossa Senhora
dos Remédios, Conceição dos Mulatos, Nossa Senhora do Desterro e Nossa
Senhora da Boa Hora; que Misericórdia, Desterro e Conceição dos Mulatos
tinham apenas um altar, o que talvez também fosse o caso de Nossa Senhora
da Boa Hora, que ficava fora da cidade, situação em que também se encontrava
a igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Dado que indica os estreitos limites
que a circunscreviam — conhecendo-se hoje a localização daquela igreja — e
se mostra em perfeita concordância com o fato de só haver “de confissão e
comunhão 998 pessoas, pouco mais ou menos, [...] no rol da desobriga”??.
A Sé e catedral de Nossa Senhora da Vitória possuía cinco altares e
de acordo com a apreciação deste observador a capela-mor era “admirável,
tanto na grandeza quanto nos paramentos; o coro dela [...] à imitação da
patriarcal de Lisboa, porque os assentos dos capitulares são todos cobertos
de panos verdes”, razão por que se há de perguntar qual o motivo de esse
templo ter sido posto abaixo e a ser transferida para a igreja do colégio dos
jesuítas, depois de sua definitiva expulsão em 1761. Quanto ao seu corpo
sacerdotal, informa com um tom de admiração que “os prebendados andam
vestidos de capas magnas e murças encarnadas, imitando a dita Patriarcal,
de onde são sufragâneos, e os meio-cônegos andam vestidos de roxo”22,
admiração que pode ter a ver com o fato de esse corpo sacerdotal ter sido
instituído por D. Manuel da Cruz.
A cidade tinha quatro conventos, a saber: “um de Nossa Senhora do Monte
do Carmo”, no qual havia perto de quarenta religiosos e nele se ensinava “Fi-
losofia e Teologia, mas não é sempre”; o colégio de Nossa Senhora da Luz, da
Companhia de Jesus, onde viviam sessenta religiosos, pouco mais ou menos;
Santo Antonio, de religiosos capuchos, com trinta ou quarenta religiosos.
Nesse convento havia estudos de Filosofia e Teologia, mas em seus bancos
só tinham assento estudantes filhos de Portugal, “porque naquele convento,
por ordem especial que há, não aceitam filhos da terra”; Nossa Senhora das
Mercês, “de religiosos mercedários”, abrigava trinta para quarenta religiosos.
Havia ainda os conventos da Madre de Deus, que ficava “distante da cidade
1: EEEEEETOE o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 83
e “em todas as partes daquele bispado, não se ouviram mais que lágrimas e
suspiros”, de acordo com quem se ocupou com a crônica dessa jornada, dos
eventos auspiciosos e dos acontecimentos nefastos que a pontuaram.
Assim, por meio desse relato em que hierarquias estão presentes em quase
tudo, sabe-se, por exemplo, que hierarquizadas foram as possibilidades de dar
o último adeus ao bispo, uma vez que até a grande barca que o faria subir o
rio Itapecuru, a fim de deixar o Maranhão para sempre, somente o acompa-
nharam “religiosos, ministros régios, capitães da frota e principais da terra”.
Na praia, sem tamanho privilégio e em meio a um “confuso estrondo e rumor
de lágrimas”, ficara a plebe “dando emboras e vivas ao navegante prelado”,
que começava ali a jornada que o anônimo cronista se encarregaria de regis-
trar, fazendo anotações que deram conta das coisinhas mais insignificantes
do dia a dia aos episódios de maior monta. A exemplo, dos mosquitos que
atormentaram sua reverendíssima, dos sustos que assaltaram seu coração e o
de seus acompanhantes nos quinze primeiros dias de viagem, especialmente
na travessia das cachoeiras que pontuavam o curso do rio, até chegarem a
Aldeias Altas, lugar onde fez uma pausa de quinze dias, para repouso e para
“formar cavalaria necessária”, a fim de que a comitiva episcopal pudesse
cruzar os caminhos que a levaria às barrancas do rio São Francisco, até se
fazer às Minas.
Tratou-se de uma viagem longa, pois daquele dia 3 de agosto de 1747,
em que a plebe ficara na praia a chorar a partida do bispo, muito tempo e
águas passaram até que, em novembro do ano seguinte, a comitiva episcopal
cruzasse a fronteira do território em que o bispo assentaria seu trono. Distância,
==mpo e caminhos que necessariamente fariam dela uma viagem perigosa e que
teve como perigo maior e mais concreto o de ataque de índios, a exemplo dos
poderiam lhe advir por parte dos guegué “que infestavam, bárbara e atrevida-
mente aqueles desertos”. Isso numa percepção que invertia a história, tendo
em vista que infestar significa infectar, mas também invadir, o que, a despeito
desse povo ter vivido naquelas terras desde imemoriais tempos, estaria agora
a invadir terras que não eram suas e a impor auto proclamados verdadeiros
donos a necessidade de se juntarem “em muitas tropas de gente para passarem
unidas” terras que se encontravam invadidas por aqueles selvagens.
Atentando-se para as circunstâncias do lugar e tempo, era quase impos-
sível que em tão longa viagem vidas não se perdessem, tal como aconteceu
com escravos e “moços de serviço” de D. Manuel, tendo o próprio prelado
sofrido grandes riscos, e não apenas em consequência das moléstias que o
acometeram em sua estada no Piauí, capitania onde se deteve durante sete
meses. Ali foi hospedado pelo capitão-mor Antonio Gonçalves Jorge, e tam-
bém onde, para dar cabo ao mal que o afligia, foi submetido a uma sangria
84
que lhe acrescentou outros tantos, sem contar as armadilhas que a natureza
lhe preparou nas curvas dos rios. Contudo, se ventos e tempestades fizeram
soçobrar a barca em que viajava, também revestiu essa viagem uma capa de
milagres, quando não de mistérios, tendo em vista que apurados os fatos após
o sinistro, não se descobriu de onde partira o grito que foi ouvido nas outras
embarcações, pedindo socorro para a salvação do bispo.
Viagem longa e perigosa, mas no curso da qual a devoção andou de par
com a diversão, como se verificou durante os sete meses em que a comitiva
esteve parada no Piauí, por causa das chuvas e da moléstia que acometia o
bispo. Com efeito, se para a espera do tempo do estio e da recuperação de sua
saúde determinou o bispo que os ofícios religiosos fossem cumpridos onde
quer que se encontrassem, sua determinação ensejou ajuntamentos que não
se limitaram a rezas e missas, mas deram lugar a bailes, inclusive, sem contar
que as visitas feitas que lhe eram feitas nas paragens onde passava, tiravam
seus habitantes da sensaboria de dias que apenas se repetiam.
Por outro lado, se o narrador fala de “ermos, sertões e desertos”, não
fazendo menção, depois de certa altura, a viventes que tenham cruzado com
a tropa do bispo ou tenham fundeado ao lado de sua barca, a comunicação se
dava larga e precisa, espalhando por todas aquelas brenhas a nova de que por
ali andava um bispo. Assim, depois de deixar a “cavalaria” e mais uma vez se
fazer ao rio, às povoações ribeirinhas onde parava, para renovar suas forças
e se prover de víveres, acorriam gentes vindas de distâncias de até cinquenta
léguas, para cumprir suas obrigações religiosas, como ainda “para ver na-
queles desertos um prelado sagrado, pois não tinham memória de que algum
outro se expusesse às asperezas daquele sertão”. E se numa chave de leitura
é possível pensar que a curiosidade e os divertimentos talvez suplantassem
a preocupação que levava aquelas gentes a vencer distâncias tamanhas para
cumprir suas obrigações religiosas, isso não diminui a força com que sagrado
e profano se uniam, não esmaecia a aura que envolvia a figura do bispo, afinal
quem, além dele, havia corrido aqueles sertões, com tantas penas e riscos,
como ressalta o seu cronista?
Nesse sentido, a viagem de D. Manuel da Cruz foi também uma somatória
de chegadas/entradas e partidas, razão por que sua parada aqui e ali “ilumi-
nava a terra com tanto lustre, que bem podia apostar com as funções mais
solenes de algumas cidades da América”, como aconteceu numa povoação
da barra do rio Grande, de “mais de cem vizinhos”, que bem “poderiam fazer
dela uma vila”. Privilégio que não chegou a gozar a vila real do Sabará, pois
apesar das “urbanas súplicas” com que sua Câmara rogou ao prelado para que
“quisesse honrar aquela vila, fazendo por ela caminho”, escusou-se “politica-
mente daquela jornada”, a fim de “evitar as muitas despesas que haviam de
fazer seus moradores [...] com o fasto que preparavam”. Em outros termos,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 85
recolheu a seu “palácio que por ordem sua se havia preparado custosamente”.
Mesmo assim, respeitando uma tradição e regra cerimonial que não só ali
se repetia?*, mandou a Câmara que “se acendessem luminárias por toda a
cidade, o que se executou com maestria”. Em seu terceiro dia, de par com
esse espetáculo de luzes que tanto “agrado” fazia aos olhos, para “lisonja dos
ouvidos”, ofereceu-se ao mesmo tempo “a cadenciosa harmonia dos sinos, de
consertos musicais [...] pelas ruas, e em casas, que com suas métricas as vozes
dos poetas competiam [...], principalmente sob a janela do bispo”.
Dessa maneira, mesmo tendo sido abanado, bajulado e carregado por
aqueles sertões, sua travessia deixou D. Manuel da Cruz no limite de suas
forças, uma vez que aquele efetivamente fora um longo tempo de viagem
para um homem na sua idade. Todavia, assim que começou a apresentar me-
lhoras, decidiu este bispo, festejado por dias seguidos, com fogos de artifício
e versos sob sua janela, fazer sua “entrada pública” no dia 24 de novembro,
começando-se oficialmente os preparativos desta data solene, “para o que
se aprestaram logo com diligência os preparos, que já se preveniam”. Para
que se avultasse o acontecimento, durante os oitos dias que precederam essa
solenidade, à tarde, saíam “pela cidade toda vários máscaras, diferentes nos
trajes e na jocosidade dos gestos, os quais em graciosos bandos e poesias, que
espalhavam ao povo, avisavam por célebre estilo as futuras festividades”22.
Acerca desses personagens diz o cronista que “com seu alvoroço fizeram
crescer com a fama dos aparatos de figuras e carros triunfantes que haviam
de exornar o acompanhamento da entrada de sua excelência”. E como era de
esperar, no dia marcado “se ajuntou um numeroso concurso de gente, tanto
da principal, como da plebe de todas as comarcas”. Porém, a chuva que não
“estava no programa “frustrou as diligências dos cidadãos e os desejos do povo,
que na maior parte dele tinha acorrido de fora, e no mesmo dia se retirou para
desgosto geral de não lograrem o prevenido aparato”, o que significa dizer a
transformação da rua principal em “primoroso jardim de bela arquitetura, em
cujas laterais elevavam-se “frondosas árvores silvestres”, de onde se viam
sobressair “vinte duas ninfas de comum estatura, recortadas em madeira,
levantadas em pintura de várias e alegres cores, em diversas ações”. Entre
essas árvores via-se ainda um “alegre lavor de murtas, matizadas de fragrantes
flores” e no seu meio um “alegrete”, em cujo centro de elevava um chafariz,
“ao qual servia de remate um Netuno”.
No plano dos desacertos, das notas destoantes e desagradáveis, teve-se
que a chuva não apenas fez com que voltassem todos para casa, como também
224 KANTOR, Iris. Notas sobre aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas em Minas
setecentista. Pós-História, Assis, v. 6, p. 164, 1998.
225 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. São Paulo: Papirus, 1989.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 87
ameaçou destruir a decoração da rua, “e suposto que lhe fizesse alguma des-
truição, com efeito, se renovou para o dia da solenidade, causando grande
admiração”. E como aquela era a estação “fiadora de certas e continuadas
águas no país”, tendo o dia 24 amanhecido nublado, decidiu-se pela festa no
dia seguinte e “seu rumor fez com que tornasse a concorrer infinita gente das
povoações de fora”. Diante disso, enfim se deu que aquela cidade de Mariana,
em que o Senado da Câmara havia ordenado que se armassem nobremente as
janelas com ricas tapeçarias e cobrissem as ruas de areia, espadana e flores,
assistiram nobreza e povo a um cortejo em que o cronista só conseguiu anotar
a presença de seis anjinhos, ofuscado talvez que estivesse pelo brilho de tanto
ouro, pérolas e diamantes, além de damascos, sedas e veludos que ornavam
pajens, delfins, ninfas e sereias.
Por fim, montado em formoso cavalo branco guamecido com damasco da
mesma cor, viu-se o bispo seguir pela rua principal, ladeado por “companhias
de ordenanças as quais serviam não só de ornato, [...], mas também para repri-
mir as desordens do povo”. Segurando as varas do palio que o protegiam, as
rédeas do cavalo que montava ou apenas marchando a seu lado, iam as mais
altas autoridades das Minas, umas mais à frente, outras mais atrás, denunciando
sua proeminência. Depois delas vinham as irmandades e imediatamente após
“seguia uma dança de doze figuras mascaradas uniformemente, as quais em
bem compassados tripúdios, lisonjeavam a vista com a variedade de suas
mudanças”. Depois desse grupo, vinha um dos carros triunfantes, que bem
pode ser tomado como a mais contundente expressão simbólica do espírito
da festa do bispo, no curso da qual o sagrado “Te Deum” teve lugar em meio
a uma dança de máscaras e em presença de ninfas. O carro em que iam era
levantado em “bem metidas cores azuis e branco, recortado com bela airosi-
dade em sereias, delfins e outros relevos, que serviam de troféu de louvor [...]
ao Bago Chapéu e Mitra, [...] tinha na pôpa um sol mitrado, exaltado sobre
uma glória de anjos e serafins”.
Dentro desse carro iam “doze figuras vestidas à trágica”, as quais, com
vozes e instrumentos, recitavam “Maranhão de prata/ Mariana de ouro”, numa
clara alusão ao ganho a que teria auferido D. Manuel da Cruz, em cujas retinas
certamente ainda estavam vivas as cores das paisagens com que tinha se de-
parado pelos caminhos que havia trilhado até chegar àqueles gerais, morros e
aquelas serranias. Mais ainda, talvez guardasse em sua memória a lembrança
de milhares de garças e guarás em meio à verde folhagem dos mangues, num
contrastante, forte e indissociável paleta de cores, diante da qual seu pensa-
mento talvez o levasse às terras do Maranhão, para onde jamais voltaria.
SUJEITOS, IDENTIDADES
E EXPERIÊNCIAS NUM
TEMPO DE FESTAS: algumas questões
teórico-analíticas e possibilidades interpretativas
226 MAH, Harold. Suppressing the text: the Metaphysics of Etnographic History in Darnton's Great Cat
Massacre, History Workshop, v. 31, 1991.
227 Como, por exemplo, o questionamento, refluxo ou abandono do marxismo e do estruturalismo e de
suas ideologias. Contra as determinações imediatas das estruturas impor-se-iam as capacidades
inventivas dos agentes e, contra a submissão mecânica às regras, impor-se-iam as estratégias
próprias das práticas (CHARTIER, 1991, p. 176).
228 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 176,
jan./apr. 1991.
229 GINZBURG, Carlo. Provas e Possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre” de Natalie
Zemon Davis. A Micro-História e outros ensaios. São Paulo: Difel/Bertrand, 1989. p. 193-195.
Diante disso, o que aqui se pretende é apresentar algumas questões te-
óricas envolvidas, com maior ou menor intensidade, em pesquisa que tenho
desenvolvido sobre bumba meu boi e festas no Maranhão na primeira metade
do século XX?º. Apresenta-se um panorama desse trabalho, destacando seu
objeto de estudo, o recorte espacial e temporal e as fontes utilizadas e deline-
ando alguns de seus principais elementos teóricos. Dentre estes, os problemas
referentes à possibilidade de reconstituição do passado através, por exemplo,
de inferências de textos escritos ou testemunhos orais. Salientam-se algumas
das respostas dadas pela historiografia à crise de paradigmas intensificada nos
anos 1970, considerando-se ser necessário refutar o relativismo tout court, o
irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma retórica de inter-
pretação textual e não uma interpretação dos acontecimentos. Reconhece-se,
ainda, que a experimentação historiográfica produz possibilidades históricas
e não provas irrefutáveis e se considera relevante a opção por narrativas na
qual o leitor participa de todo o processo de construção do argumento histó-
rico, e de interpretações que integrem os registros sobre o passado ao próprio
objeto da pesquisa. Apontam-se ainda algumas perspectivas teóricas e analí-
ticas fundamentais para a construção da interpretação do objeto em questão,
salientando o nível das mudanças e das transformações que poderiam ser
percebidas no âmbito da cultura, reconhecendo as perspectivas abertas pela
chamada história social da cultura.
WE
Entre festas, sujeitos e identidades ou nos caminhos de
uma história social dos bumbas em São Luís do Maranhão
(c. 1890-1950)
230 BARROS, Antonio Evaldo A. O Pantheon Encantado: culturas e heranças étnicas na formação de
identidade maranhense. 2007. 317 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Etnicos e Africanos) — IFCH,
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Etnicos e Africanos, CEAO, Salvador,
UFBA, 2007.
BARROS, Antonio Evaldo A. Renegociando Identidades e Tradições: cultura e religiosidade popular
ressignificadas na maranhensidade ateniense (1940-60). 2005. 200 f Monografia (Graduação
Licenciatura em História) - Centro de Ciências Humanas, São Luís, Universidade Federal do
Maranhão, 2005.
231 ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-
1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESP 1999.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 91
“História imóvel, não há uma festa imóvel”? e, sobretudo, “através das festas,
pode-se conhecer melhor a coletividade e a época em que aconteceram”.
Nessa perspectiva, organizações festivas, a exemplo dos grupos de
bumba meu boi que circulavam pela Ilha de São Luís do Maranhão durante os
festejos juninos?” da primeira metade do século XX podem ser vistos como
elementos e ocasiões particulares para se pensar a dinâmica e processos de
mudança social nesse período?*.
A partir da análise dessas atividades seria possível reconstituir experiências
de diferentes sujeitos, grupos e setores sociais, e entender aspectos de processos
significativos das histórias maranhense e brasileira, notando-se, por exemplo,
formas de exercício do poder numa sociedade hierarquizada e modos como os
sujeitos lidavam com diferenças e desigualdades naquelas primeiras décadas
como uma ocasião para notar as diversas formas como indivíduos e grupos tão
diferentes entre si se apropriavam de um repertório comum, a exemplo dos
bumbas, o que poderia desembocar em encontros amigáveis, mas também em
situações de intensa violência.?º Nesta perspectiva, permitindo múltiplas leitu-
ras, O boi poderia ser interpretado como um símbolo cuja análise revelaria, de
acordo com as circunstâncias, múltiplas formas de contato e interação sociais,
enfim, ocasião para se perceber como diferenças e desigualdades funcionavam
efetivamente no cotidiano desses sujeitos e como estes se submeteriam ou
manipulariam essas heterogeneidades e dessemelhanças.
O enfoque no pós-Abolição e em praticamente toda a primeira metade
do século XX não é fortuito. De um lado, tornar-se possível observar um
tempo em que os bumbas-meu-boi interessavam mais aos próprios brincan-
tes, sendo frequentemente repudiados por diferentes setores, embora alguns
sujeitos desejassem assisti-los (a exemplo do que ocorrera particularmente
até a primeira metade da década de 1920), uma lógica que, embora específica,
teria relação com práticas e representações características do século XIX. De
outro lado, pode-se observar um momento em que essas organizações festivas
cada vez mais caíam no gosto das agendas de diferentes letrados e, particu-
larmente, da imprensa e do folclore (a exemplo do que começara a ocorrer
sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1920). Enfocam-se, portanto,
décadas marcadas por situações sociais, políticas e econômicas diferentes,
cujas especificidades teriam influência marcante no universo das produções
culturais dos mais pobres. Poder-se-ia perceber transformações, permanên-
cias e recriações no universo dessas organizações festivas, nos modos como
os sujeitos que as produziam lidavam com o mundo e com a sociedade em
geral, pressupondo-se que a cultura não é propriamente determinada, mas um
elemento constituinte do social.
Folheando jornais de circulação do Maranhão em suas edições de junho e
julho de 1880 a 1965, é possível observar que houve uma importante mudança
nas pautas da imprensa da época. Penso que esta mudança tem implicações
significativas para o historiador que, hoje, ocupa-se com festas de grande
participação nesse período, já que os jornais de circulação diária poderiam
ser alçados a importantes fontes para uma história social da cultura nesse
contexto. Festejos religiosos realizados pela Igreja Católica, cinema, teatro,
concertos e “elegantes reuniões” que dariam “à nossa elite um permanente
fator de sociabilidade”? eram as atividades mais comumente anunciadas nos
238 A caminho de seus locais de apresentação, como terreiros e arraiais, e à porta de bares, igrejas e
casas, grupos de bois dos mais variados matizes e origens podiam se encontrar, bois de origem rural
e urbana, organizados por sujeitos que se identificariam, de diferentes modos e intensidades, por
amizade, status e profissão, família, sexo e geração, municípios, bairros e vilas. Nesse cenário, era
fácil que os grupos de bois se encontrassem, e nestas ocasiões era relativamente comum que eles
explicitassem com maior ou menor intensidade, usando palavras ou armas, suas diferenças. Estes
(des)encontros, com certa frequência, resultavam em manifestações de violência generalizada.
239 São Luís, Pacotilha, 30 jun. 1919, p. 1.
94
jornais durante o mês de junho até os anos 1910. As atividades produzidas pelos
que viviam nos subúrbios ou nos interiores costumavam aparecer nos jornais
somente quando terminavam em desordem ou quando eram preparadas para se
apresentar em algum local destinado às elites. Mas especialmente a partir dos
anos 1920 esse cenário muda e além daquelas atividades e situações, as festas
realizadas em diferentes lugares e por diferentes setores também se tornariam
conteúdos das reportagens de diversos jornais maranhenses. Esses periódicos
constituem hoje uma fonte primordial para ser reconstituir histórias nas quais
estão presentes os sujeitos produtores dos bumbas e festeiros em geral?º.
Além dos jornais e outros periódicos, é possível chegar a esse mundo vivido
por diferentes homens e mulheres através da análise dos pedidos de licenças para
a organização e saída dos bois, e seus respectivos (in)deferimentos. Mas se as
principais fontes até aqui indicadas podem ser descritas como textuais, podem
ser considerados ainda depoimentos orais transcritos resultado de entrevistas
realizadas por folcloristas e antropólogos com agentes atual ou recentemente
envolvidos com a cultura por eles classificada de popular, alguns tendo vivido
em parte daqueles anos 1910-40, e construindo verdadeiras histórias de vida
nessas coletâneas. Mas é, de fato, possível reconstituir experiências históricas?
240 A imprensa parecia se empenhar na preparação da população para os festejos, divulgando listas
das diferentes organizações que conseguiam licença para brincar, trazendo o nome do responsável,
a localidade de origem, os grupos ou setores que as organizavam, tipos de instrumentos utilizados;
divulgavam-se ainda programações dos festejos dos diferentes arraiais, listando-se, por exemplo,
os grupos de bois que deveriam ali se apresentar Era comum haver anúncios e registros de
ocorrências variadas (como encontros conflituosos e mortes) durante os ensaios, as apresentações
e por ocasião das celebrações de morte dos bois. Simples advertências e diferentes portarias
policiais visando regulamentar os festejos também eram publicadas. Além disso, os homens das
letras, particularmente os folcloristas, enviavam um sem-número de textos não somente com suas
opiniões sobre as origens e significados dos bumbas como também com descrições dessas festas
em diferentes lugares da ilha. E possível acompanhar variações nos modos de vestir, brincar e
cantar dos bumbas especialmente porque estas supostas mudanças incomodariam os letrados,
que as criticavam detalhadamente. De fato, no caso do Maranhão, os ensaios de foleloristas serão
frequentemente publicados nos jornais durante os festejos juninos. Cronistas e poetas também
produziram obras cujo referencial estético eram os bumbas, divulgando-as através da imprensa. Há
também registros da participação de bumbas em ambientes como bares e barracas preparados para
as elites, bem como em clubes ditos aristocráticos. Há ainda diversas fotos, charges e ilustrações
que devem ser incorporadas “como evidências importantes para a análise e não mera reiteração
visual do texto” (CUNHA, 2001, p. 17). Em Ecos da Folia, Cunha (2001), através de uma releitura dos
periódicos da imprensa carioca dos anos 1880-1920, procura esmiuçar a variedade dos significados
que diferentes sujeitos emitiam durante o Carnaval nesse período. Também em A Subversão pelo
Riso, Soihet (1998) lida, sobretudo, com jornais de época.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 95
a condição humana tal como foi vivida por nossos antepassados”?*!. Estariam
também de acordo que o historiador pode tentar “captar o concreto dos pro-
cessos sociais através da reconstituição de vidas de homens e mulheres”??,
que “conjecturando ou narrando, a história tem sempre em mira o real”, que,
enfim, em algum momento do trabalho histórico, a experiência histórica direta
poderá emergir”. A possibilidade de reconstituição do passado tem recebido
críticas de diversos tipos e intensidades particularmente dos historiadores
(mais ou menos) próximos de tendências ditas pós-modernas como a crítica
literária e a etnografia desconstrutivista.?*
Obviamente, deve-se reconhecer que consiste em uma empresa com-
plexa e mesmo arriscada a tentativa de reconstituição de vidas de diferentes
sujeitos através, por exemplo, de inferências de textos escritos, tipologia à
qual corresponde a maior parte das fontes aqui indicadas, como periódicos.
Seria mesmo “extremamente duvidosa a idéia de que se pode fazer alguma
afirmação geral sobre a relação entre a linguagem e as atividades aparente-
mente não linguísticas, porque ao fazer qualquer afirmação estamos inevita-
velmente dentro da linguagem, que se articula de múltiplas formas com essas
atividades”. Neste caso, “pensar o contrário” implicaria “assumir uma posição
transcendental, alheia à linguagem”?*. De fato, enquanto alguns historiadores
tratam os eventos históricos e documentos como registros comportamentais,
outros os veem, sobretudo, como “textos”, algumas vezes repletos de signifi-
cados sociais e simbólicos?”, embora estas duas vertentes possam ter pontos
de encontro e não esgotem as possibilidades de posturas epistemológicas no
campo historiográfico.
Sabe-se que nos anos 1970-80, colocou-se em questão a crença otimista
de que o mundo seria modificado em linhas revolucionárias, pôs-se em dúvida
a ideia de um progresso regular. Muitos cientistas sociais, que construíam
seus aparatos teóricos baseados, sobretudo, no positivismo, assistiram ao
241 DARNTON, Robert. Introdução. In: . O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São
Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 17.
242 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 181.
243 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 198.
244 JAMES, Daniel. Contos narrados nas fronteiras. A história da Dona Maria, história oral e questões de
gênero. In: BATALHA, Cláudio H. M. et. al. (Orgs.). Culturas de Classe, identidade e diversidade na
formação do operariado. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
245 O rótulo pós-moderno certamente é simplificador, já que tende a homogeneizar um conjunto
heterogêneo de perspectivas, supondo que elas constituem um uníssono, o que não é bem verificável.
O mesmo valeria para o termo “moderno” que pretende aglutinar muitas diferenças. Por isso, uso-os
somente em algumas circunstâncias específicas e procuro fazê-lo com cuidado. Seu uso, como será
visto nas páginas que seguem, tem sido comum entre diversos autores que lidam com questões
discutidas neste ensaio.
246 LACAPRA, Dominick. Chartier, Darnton e o grande massacre do símbolo. Pós-História, Assis-SP
v.3, 1995, p. 238.
247 MAH, Harold. Op. cit., 1991, p. 2.
96 EM TE
248 LEVI, Giovani. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história. Novas
perspectivas. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 134-135.
249 CHARTIER, Roger. Textos, simbolos e o espírito francês. História: Questões e Debates, Curitiva/PR,
n. 24, p. 19, jan.jul. 1996.
250 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1996, p. 11.
251 FERNANDEZ, James. Historians Tell Tales: of Cartesians Cats and Gallic Cockfights. The Journal of
Modern History, v. 20, n. 1, p. 115-117, mar, 1988.
252 Ibid., p. 25-26.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 97
popular e/ou folclore não como uma realidade, cuja caracterização e conse-
quente depreciação, penalização, seleção ou louvação teve lugar nos textos
DS
siste em chamar a atenção para o modo como os textos emergem, como eles são
construídos pelo próprio pesquisador e acerca da relação que estes estabelecem
com seus objetos de estudo. Mas é preciso estar atento, pois ao se advogar uma
espécie de paradigma textual, pode-se tender a uma “obscuridade do fato”,
esquecendo-se que existe um repertório extra-textual de significantes e que
este repertório de distintos significados consiste nas convenções ou costumes
do grupo que se estuda?*. Neste caso, “a moda de estudar a realidade como um
texto, poderia ser complementada pela consciência de que o texto não pode ser
entendido sem uma referência a realidades extratextuais”?”.
O estudo da realidade como texto relaciona-se ao chamado pós-moder-
nismo (também dito desconstrutivismo), tendência disseminada em diversos
campos científicos e que teria se desenvolvido como reação aos movimentos
modernos anteriores, e não deve ser confundido com a preocupação de diversos
historiadores com os métodos e técnicas da historiografia. O “moderno” teria
surgido no contexto do desenvolvimento capitalista e da sociedade burguesa,
colocando-se de certo modo contra ele, pretendendo-se crítico, secular e
253 CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção da (in)diferença no Rio
de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. p. 40.
254 A pesquisadora afirma que tomou “a vadiagem não como uma realidade, cuja caracterização e
consegiente penalização teve lugar no texto jurídico, mas enquanto categoria de acusação utilizada
em uma variedade de situações e atribuída a diversos comportamentos considerados anti-sociais. Foi
justamente esse momento de gestação e de produção de sentidos que vi envolver o que aparentemente
só visava corroborar uma atitude ou gesto previamente ocorrido” (CUNHA, O., 2002, p. 32).
255 FERNANDEZ, James. Op. cit., 1988, p. 115-117.
256 DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa.
2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
257 GINZBURG, Carlo. Checking the Evidence. The Judge and the Historian. Critical Inquiry, v. 18, n. 1,
p. 83-84, 1991.
98
258 RABINOW, Paul. Antropologia da Razão: ensaios de Paulo Rabinow, Organização e tradução de
João Guilherme Biehl. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1990. p. 91.
259 TERRA, Ricardo. A política tensa: idéia e realidade na filosofia da história de Kant. São Paulo, 1995. p. 141.
260 RABINOW, Paul. Op. cit., 1990, p. 91. .
261 Chartier (1991, p. 183) evoca Marcel Mauss e Emile Durkheim para elaborar estas ideias. Ele lembra
que esses pesquisadores demonstraram que os esquemas geradores dos sistemas de classificação
e de percepção são verdadeiras instituições sociais.
262 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 188.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 99
é falha e distorce; o testemunho oral não é algo transparente, mas uma ima-
gem refratada; usar a narrativa oral somente como fonte empírica pode levar
à atribuição de um papel passivo ao informante, quando se poderia encontrar
algo a mais na sua narrativa; o informante não é um simples repositório de
dados históricos, ele narra, constrói uma história sobre sua vida, reconstrói
o passado de maneira seletiva, isto é, dá um certo sentido ao passado. Faz-se
necessário, portanto, afastar-se de um realismo ingênuo, da crença de que a
história oral refere-se exclusivamente a processos de verificação para a pes-
quisa histórica. A qualidade subjetiva do testemunho oral precisa ser vista não
como um problema, mas como uma oportunidade?”*.
Uma análise preliminar de depoimentos dados por brincantes de bumba
meu boi?” permite sugerir que é plausível o argumento de que as histórias de
vida, por exemplo, sejam construtos culturalmente baseados em um discurso
público, estruturado pela classe, por convenções culturais e pelo gênero. Aque-
les que narram suas histórias usam múltiplos papéis, repertórios e narrativas
disponíveis. As imagens e convenções (ideologias, por exemplo) presentes na
sociedade e época vivida pelo sujeito são parte do repertório que este dispõe
para reconstruir seu passado. Assim, os veículos culturais e instrumentos in-
terpretativos limitam, definem e estruturam as biografias, histórias de vida e
depoimentos. O sujeito não os absorve mecanicamente, mas seleciona alguns
deles relacionando-os à sua própria história. Para além das determinações dos
padrões dominantes ou contradiscursos dos agentes, há, sobretudo, silêncios e
esquecimentos, e a evidência de que o contador de histórias imbui seus próprios
significados, sua subjetividade, nas ideologias dominantes?S.
Chegando-se a este ponto, cabe salientar que duas perspectivas opostas têm
sido as principais responsáveis pela simplificação da relação entre evidência
e realidade no trabalho historiográfico. De um lado, a perspectiva positivista,
que vê a evidência, o documento histórico, como um meio transparente, uma
janela aberta para se.ter acesso direto à realidade”. A esta tendência pode-
riam ser associados aqueles que esquecem que, muitas vezes, “a notícia não
é o que aconteceu no passado imediato, e sim o relato de alguém sobre o que
aconteceu”, historiadores profissionais “que tratam os jornais como reposi-
tórios de fatos em si, e não como coletâneas de relatos”?*º. De outro lado, os
relativistas céticos contemporâneos, que dão uma resposta oposta a essa op-
ção, afirmando que não é possível ter acesso à realidade, pois os documentos
292 THOMPSON, E. Folclore, antropologia e História social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio. As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP 2001.
293 DARNTON, Robert. Op. cit, 1990, p. 294-295.
294 LEVI, Giovvanni. Op. cit., 1992, p. 152-153.
295 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. XII-XIV.
296 Para um balanço da questão apontando para as discussões mais historiográficas, ver ALMEIDA
(1994). Almeida propõe uma tipologia dos estudos tentando rastrear o fenômeno festa ao longo do
tempo. Assim, fala em festas antigas, festas medievais, festas do Antigo Regime, Festa e Revolução
B
| t
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 105
(festas contemporâneas), festas brasileiras. Um balanço teórico das diferentes abordagens sobre
festas numa perspectiva antropológica pode ser encontrado em Amaral (1998).
AMARAL, Rita de Cássia. Festa à Brasileira. Significados do festejar, no país que “não é sério”.
1998. 400 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) — Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
ALMEIDA, James. Op. cit., 1994.
297 SILVA, Maria Manuela Ramos de Souza. A historiografia descobre a “festa”. Hélade, v. 1, n. 1, p. 38, 2000.
298 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. 8.
299 LACAPRA, Dominick. Op. cit., 1995, p. 245-246.
106
RM
significado é um significado-dentro-de-um-contexto e, enquanto as estruturas
mudam, velhas formas podem expressar funções novas, e funções velhas a
o.m
podem achar sua expressão em novas formas. Constantes são fraturadas e
deformadas pelos períodos históricos. Deve-se encontrar a estrutura na par-
fui fa|
300 Se os historiadores têm aprendido com a Antropologia, “certamente a antropologia pode aprender
com a história social” (FERNANDEZ, 1988, p. 113).
301 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 174.
302 THOMPSON, E. Op. cit., 2001, p. 228-229.
303 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 19.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 107
de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas
possibilidades de interpretações e liberdades pessoais”. Há, portanto, “um
relacionamento entre os sistemas normativos e aquela liberdade de ação
criada para os indivíduos por aqueles espaços que sempre existem e pelas
inconsistências internas que fazem parte de qualquer sistema de normas e
sistemas normativos”?!6.
A busca de diferenciar as identidades múltiplas e cambiantes que se
estabelecem entre participantes de uma festa, de diferenciar “uma festa de
outra e dissociar um festeiro de outro em uma mesma celebração!” é uma
abordagem tributária de ideias sobre cultura e tradição como sugeridas por
Thompson. Embora o historiador inglês reconheça os múltiplos usos desses
conceitos pela antropologia, crítica o fato de os usos antropológicos frequen-
temente evocarem na cultura uma totalidade coerente e englobante, sentidos
e significados de totalidade e permanência, destinando pouca atenção para a
diferença e a mudança. Do mesmo modo, a “cultura popular” deve ser situada
no “lugar material que lhe corresponde”, no conjunto das relações sociais,
dando-se particular atenção às “relações de poder mascaradas pelos ritos de
paternalismo e da deferência””!.
De fato, há algum tempo os pesquisadores têm questionado ideias se-
gundo as quais somente algumas pessoas de determinadas sociedades e certas
sociedades possuiriam cultura ou a idéia de que haveria graus evolutivamente
determinados de cultura. Cultura, segundo Mintz?!º, refere-se ao significado
dos distintos modos de vida que definem um grupo, ao passo que a sociedade
significa um grupo organizado ao longo do tempo. Enquanto a cultura seria um
corpo de crenças e valores socialmente adquiridos e modelados que servem
a um grupo organizado como um guia de comportamento, a sociedade seria
a arena na qual as lutas se efetivariam. Mas embora Mintz??º tenha atentado
para o fato de que cultura e classe são processos, sua ênfase recai sobre os
elementos comuns que constituem uma dada cultura, entendida como o corpo
de crenças e valores socialmente adquiridos e modelados que servem a um
grupo organizado como guia de comportamento*”!.
Outros pesquisadores, como Edward Thompson, enfatizariam as fissuras,
diferenças e tensões no interior de uma dada cultura. “O próprio termo cultura,
com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das
contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do
conjunto”. A cultura seria, antes de tudo, “uma arena de elementos conflitivos”.
cultura popular como ocasião festiva coletiva marcada pela convivência e pela
comunicação, a perspectiva do compartilhamento e do confronto de valores e
padrões, uma perspectiva “simétrica à dominação de classes” frequentemente
utilizada como parceira “da idéia de resistência inerente às práticas festivas
dos “populares” e de suas tradições”. A segunda parte do pressuposto de que
haveria um repertório disponível a todos os atores através do qual produzir-
-se-ia “uma multiplicidade de significados circulando como objeto de disputas
e tensões, apropriações diversas e re-significações, repressão e sedução, no
interior de um mesmo contexto cultural”; afasta-se assim da divisão da cultura
entre a dos “populares” e a dos “eruditos “2.
De fato, para além de sociologismos simplistas, que estabeleciam cor-
respondências estritas entre vários níveis sociais e formas culturais, “surgiu
uma definição de história primordialmente sensível às desigualdades na apro-
priação de materiais ou práticas comuns”. Tornou-se uma questão premente
inerente a essa história “diferentes modos pelos quais grupos ou indivíduos
usam, interpretam e apropriam-se dos temas intelectuais ou formas culturais
que compartilham com outros”*?.
Enfim, é possível captar o concreto dos processos sociais através da
reconstituição de vidas dos diferentes e desiguais sujeitos, fazendo um uso
crítico e sempre reflexivo dos registros, métodos e outros recursos, arquitetando
uma narrativa e uma interpretação que procurem integrar todas as etapas da
pesquisa historiográfica. Seguindo o ritmo das chamadas festas populares,
talvez seja possível reconstituir histórias e mostrar que particularmente as
pessoas comuns, que davam muito apreço a determinadas práticas culturais
dedicando um significativo tempo de suas vidas a elas, interferiam nos pro-
cessos sociais por meio de suas ações e práticas festivas.
328 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit. 2002, p. 18; CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., 2001.
329 CHARTIER, Roger Op. cit., 1991, p. 15.
FESTEJO DE SÃO BERNARDO:
Memória e Representação
330 COUTO, Edilece S. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista Brasileira de História
das Religiões, v. 1, p. 1-10, 2008.
331 Microrregião do Baixo Parnaíba maranhense é uma das microrregiões do estado do maranhão
pertencente à mesorregião Leste Maranhense. Sua população foi estimada em 2006 pelo IBGE
em 129.381 habitantes e está dividida em seis municípios. Possui uma área total de 6.872.865 Km.
Municípios: Agua Doce do Maranhão, Araioses, Magalhães de Almeida, Santa Quitéria do Maranhão,
Santana do Maranhão, São Bernardo etc.
332 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault no
campo da historiografia. In: HISTÓRIA a Arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007.
114 EM TEMPO
Pode-se, nesse caso, conceber o festejo um pouco além de sua dimensão brilh:
propriamente cerimonial, identificando como através do mesmo realiza-se mont
“uma complexa mediação entre esferas sociais (religiosa, familiar, cultural, prep:
política, social), entre anseios individuais e coletivos, entre passado, presente conv
e futuro, entre o sagrado e o profano**. Cam
Ante o exposto, o texto que segue apresenta a seguinte estrutura: primeiro, artig
realizaremos uma descrição da festa com base nas entrevistas e materiais inter
recolhidos. Em seguida, discutiremos o modo como a festa se organiza do
ponto de vista das funções exercidas por cada um dos organizadores e das mell
modalidades de negociação que permeiam a construção desse ritual coletivo. “rou
Após, discutiremos a questão dos vínculos mantidos com o sagrado através mp
das lembranças sobre um acontecimento traumático, o roubo do santo. Ao cant
término, voltaremos à questão da mediação entre sagrado e profano.
333 AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à brasileira. Significados do festejar, no país que
“não é sério”. 1998. Tese (Doutorado). Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (USP), 1998. p. 387.
334 QUEIROZ, Maria Isaura P Carnaval Brasileiro — o Vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.
335 AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Op. cit., 1998.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 115
entre as mesmas. Enquanto isso, a “gente comum” também festeja nos bares Ao
e botequins na orla do rio buriti, que banha São Bernardo, onde os diverti- quais se
mentos também são regados à bebidas e comidas típicas da festa. Momento venário
de divertimento, de êxtase e efervescência, a excitação provocada pela festa de músi
também comporta alguns conflitos, e excessos são recordados quando se do “Pac
relembra o “corre-corre” de sujeitos levados pela policia, em meio a gritos do tem
e boatos. É neste ambiente sagrado e profano que se configura o reencontro do San
de pessoas que se confraternizam em um clima efusivo que se monta nos missas
arredores da igreja, nas praças e nas ruas da cidade. romeirt
De maneira geral, a festa de São Bernardo apresenta um caráter misto, 20 tam
oscilando entre dois polos: a cerimônia e a festividade. Nas representações maior :
dos entrevistados, essa divisão é concebida através de uma divisão cate- prociss
gorial entre a vertente “religiosa” e a vertente “social” do festejo. Com própri
base nessa classificação, antes da programação “propriamente religiosa”, São Be
acontece uma festa popular um dia antes do inicio do festejo, com o “Le- torno «
festejo. Então o mastro é levado para fora do Santuário. Trata-se de um dos San
momentos-chave da festa: o mastro é fincado no chão e começa a brincadeira. dev
Homens sobem no mastro para agarrar os prêmios que geralmente são “gali- den
nhas e dinheiro”. Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos e pipocas para as Cla
pessoas que se encontram no local onde o mastro é fincado. cor
addons
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 117
numa “moita” e que, após ter sido encontrada pelos índios “anapurus” que sua es
habitavam a região, foi interpretada pelos religiosos como um milagre. Para dos re
alguns dos entrevistados, essa representação se apoia, inclusive, no próprio o mit
peso da transmissão memorialística dos antepassados: “Todas essas histórias falas.
dos Jesuítas, vocês podem ter como verdade, porque quem me contou foi das a
meu pai, ele era autoridade, era de uma cultura fora do comum, e ele passava simb
tudo pra mim”. Tal acontecimento teria demarcado a origem da devoção esse
e da festa ao padroeiro para alguns. Para outros, no entanto, essa origem é
inverossímil como no seguinte depoimento: dom
moré
Sabemos que a festa de São Bernardo é bem antiga. A Senhora poderia nos gios(
contar (com suas próprias palavras) um pouco da história desse festejo? intro
Como surgiu o festejo?
para
A festa não é por causa dos jesuítas, eu acredito que a festa é própria da
âm |
igreja. Sempre houve a festa dos padroeiros. Agente sempre houve falar
nessas histórias, dos jesuítas. Essa imagem é francesa, eu acredito que meu
nem foram os jesuítas que trouxeram o santo pra cá. Como é que os índios leml
trouxeram uma imagem francesa pra cá, ela foi doação parece. Já andei real;
em vários lugares e não vi nenhuma imagem parecida com esta. Eu ouço da fi
lendas de como São Bernardo veio para cá.”
336 MEAL,
337 CRCLSS.
338 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
1 isto
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 119
339 Para outro contexto ver: PRADO, Regina Paula dos Santos. Todo Ano Tem. As Festas na Estrutura
Social Camponesa. São Luís: PPGCS/GERUR/EDUFMA, 2007. p. 200
M.N.C.N.
FC.
MIM.
M.N.C.N.
120 EM TE
344 GEERTZ, C. À Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p. 93.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 121
346 Este texto é a reformulação de um fragmento da monografia “Como se fossem casados: mancebia
e moralidade no Maranhão setecentista”, apresentada ao departamento de História da Universidade
Federal do Maranhão como requisito para conclusão da Licenciatura em História (ARAUJO, 2003).
347 MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no
Maranhão setecentista. 2011. Tese (Doutoramento). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011. 341 p.
348 SOUZA, Laura de Melo e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
349 ARAUJO, R. |. S. Discurso, disciplina e resistências: as visitas pastorais no Maranhão setecentista.
São Luís: EDUFMA, 2008. 193 p.
126
Ot
essas atividades que esteja próximo dos valores e da perspectiva de seus agen-
+
tes produtores. Para tanto, é preciso ler ao reverso, pois o discurso onde foram
inscritas as práticas está marcado por uma racionalidade radicalmente diferente
am
dos saberes e fazeres que, através desse mesmo discurso, se buscava reformar
ou suprimir. Vejamos a exposição de Roger Chartier sobre essa questão:
PED
ciais? Fazer inteligíveis as práticas que as leis de formação dos discursos
não governam é uma empresa difícil, instável, situada à beira do precipício.
AD
Esse projeto é sempre ameaçado pela tentação de esquecer toda diferença
AO
entre lógicas diferentes, mas que estão, mesmo assim, articuladas: a lógica
Ei
que organiza a produção e interpretação dos enunciados e aquela que rege
os gestos e as condutas.?º
rot
reto
Para Chartier, portanto, há lógicas diferentes a reger as práticas e os
am
discursos e o historiador deve estar ciente de que, ao analisar fragmentos das
temo
ações humanas no passado, o faz mediado por uma racionalidade discursiva
ps
que deve estar em consideração, como um limite ao que se pode efetivamente
dizer, para não tomar as coisas da lógica pela lógica das coisas, parafraseando
“o sociólogo Pierre Bourdieu?!,
A prática do concubinato — que correspondia à existência de relação
conjugal sem a consagração da Igreja através do sacramento do matrimônio —
nos oferece uma possibilidade para tentar descrever comportamentos vigiados
e punidos pela Justiça Eclesiástica como indicativos de relação pecaminosa
e, ao mesmo tempo, tentar pensar uma outra lógica que possa explica-los,
considerando as condições de vida daquela sociedade, lugar e temporalidade.
Podemos utilizar o concubinato ou mancebia para nos aproximar do coti-
diano da América portuguesa, notadamente na cidade de São Luís, no período
setecentista. Nesse período, certos “cuidados especiais” eram lidos pela socie-
dade ludovicense e pela Justiça Eclesiástica como sintomáticos da existência
de relações concubinárias, tomadas como alvo preferencial da Igreja Católica,
350 CHARTIER, Roger. Escribir las prácticas: Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996. p. 8.
351 BOURDIEU, P Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.
dd
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 127
, , A, || TT TT"
128 EMT
Este desejo possivelmente indica o modo de vida dominante, que não era
orientado pelos princípios cristãos da fidelidade, do matrimônio, da virgindade,
do seguimento da igreja, exteriores e formais para a maioria da população.
As necessidades concretas de sobrevivência e os padrões populares dos se-
“tecentos falavam mais alto.
A dotação pública ou velada de bastardos e filhos “naturais”, ou seja,
tidos fora do casamento consagrado pela Igreja, pode nos servir para destacar
uma leitura a contrapelo destas admoestações morais, observadas seu conteúdo
interno e contrastante: as precárias condições de vida da população, ameni-
zadas, senão pela presença de um marido, ao menos pela ajuda financeira
possibilitada por um generoso testador.
O divórcio da índia Juliana, em 1749, nos traz mais elementos para pensar
esses cenários do viver na colônia portuguesa na América.
Diz Juliana índia forra moradora nesta cidade [de São Luís] que ela por
justas causas quer se divorciar in perpetuum de seu marido João, escravo
do Sargento Francisco Xavier Baldes [...]. A autora sendo casada com o
réu, [...] indo este por mandado do seu senhor para a capitania do Pará
deixou a autora desamparada que não teve de que pudesse se valer. Para
se alimentar, lhe foi preciso valer-se de seu corpo, o que não nega, para
remir suas necessidades e de seus filhos [..].**
Denuncia perante vossa mercê o meirinho geral deste Juízo Manoel Vieira
da Cunha de Lourença Cafuza forra que mora na Praia Grande em uma loja
das casas das Monteiras que tem alugada por sua conta, porque devendo ser
temente a Deus e as justiças e guardar os divinos e eclesiásticos preceitos,
o faz muito pelo contrário, por que na sua casa consente desonestar-se
várias mulheres com vários homens que a ela vão para esse efeito como
seja uma Brígida mameluca (que hoje se acha presa) com o sargento José
Pedro Pinto, e um filho de Antonio Gomes de Souza o estudante mais
velho por nome Inácio José Gomes de Souza com uma mameluca casada
por nome Cizília e outras que as testemunhas declararão.**”.
Disse conhece a denunciada Lourença cafuza forra por ter [ela] morado
em casa dele testemunha [...] sabe que consente na sua casa se desonesta-
rem várias mulheres [...] por cujos consentimentos da denunciada na casa
dele testemunha a repreendeu a sua madrinha por nome Francisca mulata
escrava de Luzia Monteira dizendo lhe: “Para que era velhaca e para que
consentia em sua casa a dita mameluca Cizília para se desonestar com o
dito estudante e outros, e que por isso não tinha ela denunciada querido
ir para a roça [...]>*
355 ARQUIVO Público do Estado do Maranhão (APEM). Acervo da Arquidiocese de São Luis. Livro de
Queixas e Denúncias (1762/1782). São Luís, manuscrito, 5765.
356 Funcionário do Juízo Eclesiástico responsável pela notificação dos denunciados e depoentes, con-
forme SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e Meirinhos: A Administração no Brasil Colonial. Rio de Ja-
neiro: Nova Fronteira, 1985.
357 APEM. Op. cit. Livro de Denúncias, fl. 72v.
358 APEM. Op. cit., Livro de Denúncias, fl. 72v, grifo nosso.
130 EMT
359 SILVA, Rosiana Freitas. 4 Família Possível: relações concubinárias no Maranhão setecentista
(1740/1799). 2000. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Federal
do Maranhão, São Luís, 2000. p. 50.
,
+
a
360 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p. 94.
,
,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 131
361 Paraos interessados em uma investigação mais profunda sobre este e outros sacerdotes denunciados
ao Juizo Eclesiástico nesse período, cf. MENDONÇA, 2011, capítulos V e VI.
362 APEM. Op. cit. Livro de Denúncias, fl. 12v.
132 EM TEMPC
[...] vive amancebado com uma Inácia Maria por alcunha “a Paurá” e isto
há bastantes anos com público e notório escândalo com quatro ou cinco
gta
EM TEM
filhos e a tem na sua roça acima do Rio das Bicas onde o dito Padre vai Denv
todas as vezes que quer a estar o tempo que lhe parece sem pejo nem east
vergonha do mundo assistindo lhe com todo o necessário [...].7º
por €
A esfera privada da intimidade entre os concubinos não é objeto outre
de registro dos autos, salvo raras exceções. Isto as torna tanto mais mam
instigantes quanto maior o interesse da sociedade contemporânea pelo e bel
cotidiano. Essa vontade de saber encontra, em Miguel e Inácia, um públ
fragmento interessante.
que
[...] também presenciou ele testemunha várias vezes estar a denunciada
que
doente ou fazer-se doente dizendo que era melancólica, mas tanto que
dific
chegava o denunciado com palavras e afagos amatórios, logo se achava
boa a denunciada.” o mi
Denunciado e lá passa dias e meios dias; e isto sabe por ver ela faltar de casa,
e as amas queixarem se disso [...]”.**
Raimundo Pestana, repreendido e condenado a pagar multa pecuniária
por estar amancebado com Adriana Cafuza, tinha o mesmo hábito. Entre
outras coisas, o meirinho acusava a presença de Raimundo nas refeições da
manceba: “[...] indo de noite, e de dia, e a toda a hora à casa dela, onde come
e bebe, e a tem e mantém como sua manceba, da qual tem filhos, tudo com
público e notório escândalo [...]”.*7º
Denunciantes e testemunhas referem-se, assim, à grande proximidade do
que é visto com o ideal de vida matrimonial, o que sugere uma mentalidade
que incorporou em alguma medida um padrão de vida conjugal e que tem
dificuldades para categorizar aquela situação, utilizando então como referência
o modo de vida que se espera daqueles que são oficialmente casados.
São confrontados o desejável e o possível. Relatam-se conflitos fami-
liares. Ouçamos o depoente Hermenegildo José, em referência ao já citado
caso de Onofre Soares:
[...] comprou nesta cidade sobre a fábrica do Belfort umas casas ao sargento
mor dos auxiliares para a denunciada onde esta assistiu mais de um ano
e pelo não pagar lha tomou a tirar o vendedor e comprou o denunciado o
sítio que foi de Joaquim da Serra e pôs lá a denunciada junto com os seus
filhos e uma prima dela e um moleque dele [...].*!
da
o do
por ser seu vizinho e ver que [...] a tem e mantém a sua custa mandando-a
servir pelos seus escravos e até as escravas do denunciado acompanham a
denunciada quando esta vai às Igrejas, como se fossem casados [...]”**. Alguns
escravizados podiam atuar como veículos de transmissão e conhecimento das
relações ilícitas. Muitos depoentes afirmam ter tomado conhecimento destas
a partir de negros, nomeados como “sente de pouca conta”.
Estar concubinada com um padre, diga-se de passagem, poderia ter
como corolário uma vida de maiores privilégios. Ana Maria, manceba do Pe.
Thomas Aires, recebia, além do já dito, “[...] todo o necessário e [ele] a veste
de seda e damasco encarnado manto [...]**.
O número de filhos dos casais, em torno de dois ou três, além dos demais
compromissos evidenciados demonstram relacionamentos mais duradouros.
As testemunhas da denúncia de Raimundo Pestana, oficial de alfaiate, aman-
cebado com Adriana Cafuza, são unânimes em afirmar “[...] que o denunciado
anda amancebado com a denunciada, em casa da qual vai continuadamente,
e tem vários filhos de entre ambos [... “8.
Os filhos eram reconhecidos pelos pais; senão pública — devido às pres-
sões da Igreja —- ao menos privadamente. As relações sociais poderiam criar
formas de disfarce, necessários para a manutenção daquele costume. O menino
João, filho do Pe. Joaquim Mendes, indagado por João do Vale sobre “[...]
quem era seu pai, me disse que era um clérigo sem declarar o nome [...]*º.
O auto de denúncia contra Lauriana Cafuza e Luiz Carvalho também faz
referência a filhos. O índio João Gonçalves, perguntado pelo amancebamento
dos dois, diz que “[...Jconhece muito bem aos denunciados e sabe por ver que
moram ambos juntos de portas adentro como marido com mulher [...] e já
tem ele uma filha o que sabe pelo ver*.
A filha nascida dessa relação pode ter sofrido algum tipo de resistência
no contato social. Entretanto, alguns indícios sugerem que a moral popular
que sanciona negativamente o costume possui uma face de tolerância e incor-
poração da mancebia, a ponto de garantir a esta e a seus produtos um lugar
entre os filhos de Deus.
390 Nota sobre a prisão de Manoel Teu Santo, publicada pelo Jornal Pacotilha em 05 de junho de 1899.
O texto desse tópico não diz respeito propriamente à essa pequena nota, mas reúne dezenas de
referências sobre a prisão de Manoel Teu Santo e outros pajés unidas em torno de uma narrativa
criada com o objetivo de introduzir o artigo.
142 EM TEN
391 Hontem pelas onze horas da noite o sr. delegado de policia em louvavel atividade, auxiliado pelos
inspectores de quarteirão alferes Gastão Lopes Varella e Antonio Furtado e praças do Piquete 392
de Cavallaria, deu um cerco em casa do conhecido pagé Manoel de tal vulgo <<Teu Santo>>;
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 143
O texto de introdução não pretende ser acadêmico, embora faça uso dos
resultados de uma pesquisa, a intenção seria asseverar a capacidade criadora
e até mesmo poética que a história enquanto disciplina tem, na medida em
que nos é permitido inferir inúmeras conexões nos vazios deixados pelas
perguntas não respondidas durante a pesquisa. Ainda nas palavras de Durval
Muniz Albuquerque:
FERRETTI, Sergio Figueiredo. Festa do Divino no Tambor de Mina: estudo de ritos e símbolos
na religião e na cultura popular. Trabalho apresentado na Sessão Temática: Les religions afro-
americaines aujourd"hui: permanences ettransformations, durante a XXV Conférence de la Société
Internationale de Sociologie des Religions (SISR), Bélgica, 1999. (disponível em: <http:/Anww.gpmina.
ufma.br/pastas/doc/Festa%20d0%20Divino%20no%20Tambor%20de%20Mina.pdf>. Acesso em: 8
nov. 2014).
. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
. Repensando o sincretismo: Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: editora da
Universidade de São Paulo; São Luis: FAPEMA, 1995.
. Preconceitos e proibições contra religiões e festas populares no Maranhão. Trabalho
apresentado no GT Religião Afro-brasileira e Kardecismo no IX Simpósio anual da Associação
Brasileira de História das Religiões em Viçosa, MG de 01 a 04/05/2007. <Disponivel em: <http://wwmw.
gpmina.ufma.br/pastas/doc/Preconceitos. pdf>.
. Festa do Divino em São Luís. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 07, p. 2-3, 1997.
146 EM"
Além disso, considerar como impuro ou uma deturpação tudo aquilo que si
“se distancia do Tambor de Mina (que não é puro), representa o esvaziamento tê
de qualquer tentativa de se enveredar pelo campo da encantaria maranhense
pr
hil
395 ARAUJO, Raimundo Inácio. O reino do Encruzo: história e memória das práticas de pajelança no tes
Maranhão (1946-1988). Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2017. p. 70. eli
396 Nunes Pereira (A Casa das Minas — 1947), Oneida Alvarenga (Tambor de Mina e Tambor de Crioulo
— 1948) e Roger Bastide (As religiões africanas no Brasil - 1960) são alguns trabalhos em que os
autores destacam que o Tambor de Minas seria uma religião africana pura, enquanto as outras são
deturpadas ou degeneradas em função de se distanciarem ou diferirem da estrutura ritual do que se
via na Casa das Minas. Embora relativamente distantes no tempo essa produção orientou por muito
tempo o entendimento sobre a ideia de pureza africana no Maranhão.
ALVARENGA, Oneyda. Tambor de Mina e Tambor de Crioulo. Prefeitura Municipal de São âulom 1948.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuições a uma sociologia das interpenetrações
de civilizações. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1971. 2 v.
397 LAVELEYE. Didier de. Distribuição e heterogeneidade no complexo cultural da “pajelança”. In:
PAJELANÇA e Religiões Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008. p. 113.
398 SOUZA, Laura de Mello e. As religiosidades como objeto da historiografia brasileira. Revista Tempo,
v. 6, n. 11. Rio de Janeiro: 7Letras, julho de 2001, dossiê Religiosidades na História. Entrevista
concedida a Ronaldo Vainfas, p. 251-254. 40
399 PARES, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. 2. ed. rev. 40
Campinas, SP: Editora da UNICAMP 2007.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 147
400 FERREIRA, Euclides Menezes. Itan de Dois Terreiros. São Luis, Maranhão, 2008.
401 SANTOS, Maria do Rosário C.; SANTOS NETO, Manoel dos. Boboromima: Terreiros de São Luís,
uma interpretação sociocultural. São Luís, SECMA/SIOGE, 1989. p. 119.
148 EMT
402 EDUARDO, Octávio da Costa. The Negro in Northern Brazil: a study in acculturation. New York:
Augustin Publisher, 1948.
403 FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo no Tambor de Mina em um terreiro de São
Luís — a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: EDUFMA, 2000. p. 68.
404 RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de. Janeiro, UFR-
Biblioteca Nacional, 2006.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 149
emprega a fazer felicidade que para este fim juntou meia duzia de vadias
que o ajudavam para tal bandalheiras.
O tal papai Mané auxiliado por um tal fiscal do mercado, servem-se aos
instrumentos: tambor, lata, cabaça, contas e reque, para baterem todos
os dias a procura da felicidade de modo que os batugues dos taes ins-
trumentos para a dormida dos moradores da vizinhança e para este fim
chamamos atençao das illustres auctoridades para que façam concluir
taes abusos não obstante dizer o dito papai achar-se auxiliado por altas
patentes da milicia civil**.
C;
ut
di
dc
ol
cc
Esses instrumentos, provavelmente traziam uma sonoridade bem dife-
rente das demais casas, a ponto de ser definido com um samba grosso. Como
Pai Euclides afirma ter dado continuidade a herança que recebeu do Terreiro
do Egito e do Terreiro da Turquia é provável que tais rituais e instrumentos
- possam ser úteis para compreender o terreiro de Manoel Teu Santo.
40
408 Diário do Maranhão, 05 dez. 1895. 41
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 151
Da ordem do santissimo Papai Manoel Teu Santo, faço publico que se-
guindo para o Estado da Bahia no paquete <<Planeta>>, em serviço da
O motivo da viagem para a Bahia não é claro*? e afirmar que esta viagem
tinha motivos religiosos pode ser precipitado, embora não seja impossível, como
é possível entrever na afirmação de que estaria viajando a serviço da ordem.
Parecia, portanto, haver uma consciência de grupo, que os mantinha coesos
dentro de uma institucionalidade marcada por uma hierarquia e divisões de
funções e não uma simples reunião eventual de pessoas por ocasião de rituais.
Havia um secretário, encarregado de determinadas funções e uma “mãe
pequena”, ou seja, uma pessoa na linha de sucessão e que assumiu as funções
de chefe na ausência de Manoel Teu Santo. Destaca-se também o reconheci-
mento público por parte das pessoas que frequentavam o terreiro, provável
motivo pelo qual a nota teria sido publicada no jornal.
Esse reconhecimento e a necessidade de publicizar informações mostram
que Manoel Teu Santo sabia que ocupava o espaço público e que não tinha
problemas em fazê-lo, mesmo que fosse perseguido. Lançar uma notícia no
jornal seria a melhor forma de comunicar sobre a sua ausência a todas as pes-
soas que compareciam aos seus rituais ou que procuravam o seu atendimento.
Seja por proteção de pessoas influentes, seja porque a demanda social
pelos seus serviços garantia a ele a segurança em seus atos, o pajé falava,
arriscava a exposição pública no jornal.
Publicações a Pedido
Alguem repara a critica que anda nesta capital, ou em todo Estado de Mané
Teu Santo, será a primeira? antes d"esta tem tido muitas, com pessoas
bem collocadas.
Quem vê eu chorar
Não se ria tenha dó
417
414 Pacotilha, 25 fev, 1896.
A FESTA DE NOSSA SENHORA
DOS REMÉDIOS DE 1850 A 1875
EM SÃO LUÍS DO MARANHÃO
Milena Rodrigues de Oliveira
[...] se apresenta de pé, com o Menino Jesus nu, sentado em seu braço
esquerdo, e a mão direita estendida como para socorrer os seus devotos.
Está vestida de uma túnica, um manto que envolve o corpo e um véu curto
cobrindo parcialmente os seus cabelos... Sob seus pés aparecem cabeças
de anjos (como em quase todas as imagens desta invocação) e tem na mão
direita uma fita azul. Nem ela nem Jesus são coroados e, ás vezes, tanto
ela quanto o menino seguram bentinhos nas mãos.*””
415 MOREIRA, Francisco Adail Martins. Festas litúrgicas de Jesus e Maria. São Paulo: Edições Loyola,
2008. p. 209.
416 SOUZA, Daniela dos Santos. Devoção e Identidade: o culto de Nossa Senhora dos Remédios na
Irmandade do Rosário de São João del-Rei — séculos XVIII e XIX. 2010. 180 f. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de São João Del Rei, 2010. p. 123.
417 MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil: história — iconografia — folclore.
Petrópolis: Vozes, 1998. p. 425.
dai
156 EN
diferentes fases da sua vida através das iconografias. Nossa Senhora dos Re-
médios era uma das imagens mais pn que abarcava o menino Jesus e pc
todo o seu simbolismo. nK
lé
A Festa dos Remédios e a sua história em São Luís cc
se
Em São Luís a irmandade foi fundada em 1799 e respeitava o simbolismo di
da iconografia mais tradicional dos Remédios. Tinha uma igreja própria, era
cc
composta basicamente por comerciantes e no seu compromisso que data de 22
es
de julho de 1854 não há restrição sobre o grupo étnico que deveria ingressar na
irmandade, porém essa limitação era feita segundo ditames da tradição local.
No compromisso citado anteriormente não percebemos menção a detalhes
pr
da festividade, no máximo informações sobre a obrigatoriedade da missa e da
de
novena, o que é detalhado diz respeito ao dia da festividade que aconteceria
Ní
no segundo domingo de outubro, onde seria celebrado, que no caso seria na
capela de Nossa Senhora e quem seria responsável pelos rendimentos da
irmandade para organização da festa'!s,
Cada membro deveria fazer uma oferta para a plena realização do festejo.
Por exemplo, o juiz não poderia ultrapassar quatrocentos mil réis, “a da juíza
de trezentos mil réis, a dos mesários de quinze mil réis, e de cada mordoma
a de dez mil réis, não se fixa oblação a respeito dos officiais”*"º. Os oficiais
prestavam serviço a irmandade por isso não tinham obrigação de contribuir. es:
Além dessas quantias a festa também contava com a prática de esmolas para já
o seu financiamento. da
O compromisso da Irmandade dos Remédios não tinha muitos artigos co
a respeito da festa, por esta situação resolvemos ampliar nosso olhar com a ec
introdução de jornais. No Maranhão o jornalismo literário apareceu quase ao
mesmo tempo em que o político, e isso aconteceu em “decorrência da intensa Re
atividade tipográfica que ali se instalou em começos do século XIX”*2. tey
Um dos primeiros jornais a circular em São Luís no século XIX foi O tin
Conciliador do Maranhão. Sua data inicial foi no mês de abril de 1821 e tinha m
um caráter político que se manifestou “na preocupação do governo provin- lite
cial, que o patrocinava, em aplacar a crescente exaltação dos ânimos entre
portugueses e maranhenses, que viviam permanente litígio”. pe
qui
418 MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura do. Lei nº 360, de 22 de julho de 1854. Aprova 0
Compromisso da Irmandade da Virgem Santíssima Senhora dos Remédios desta cidade. Coleção de
Leis, decretos e resoluções da província do Maranhão. São Luiz: Typographia Const.de |. J, Ferreira, 422
1854. Arquivo Público do Estado do Maranhão. 423
419 Ibid., 1854, 424
420 MARTINS, Ricardo André Ferreira. Breve panorama histórico da imprensa literária no Maranhão 425
oitocentista. Dissertação (Mestrado em Comunicação).UFSM. jul./dez. 2010. p. 108. 18 v. 426
421 JORGE, Sebastião. A imprensa do Maranhão no século XIX (1821-1900). São Luís, 2008. p. 21.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 157
EEE
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 159
não foram mencionados nem no folhetim e muito menos nos jornais sobre a
festa dos Remédios.
Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís em 14 de
abril de 1857, da infância à adolescência estudou em São Luís e trabalhou como
caixeiro e guarda livros, logo depois morou no Rio de Janeiro e frequentou a
Imperial Academia de Belas Artes, porém em 1878 seu pai faleceu e Aluízio
retornou para sua cidade iniciando assim a carreira de escritor.
Em 1880 Aluízio lança o seu primeiro romance Uma Lágrima de Mulher e
no ano seguinte lança O Mulato. No início foi muito bem recebido e contou até
com propaganda enganosa em A Pacotilha (naturalmente sob encomenda), onde
se inserem “assinados com desconhecidos nomes de mulher, missivas e sueltos,
falando sobre o novo livro, gabando-o, enaltecendo-o, pondo-o nas nuvens...”**,
O romance retrata a cidade de São Luís e os seus moradores em uma
perspectiva realista, essa maneira de observação desagradou grande parte da
sociedade maranhense inclusive D. Ana Leger, “amiga de longa data, que
figura — todos o sabem — como sendo aquela bisbilhoteira levada da breca que
circula no volume com o nome de D. Amância Souselas...”4º.
Este livro também comenta sobre a festa dos Remédios. César Marques
explicou em sua obra a origem dessa festa. Segundo ele em 8 de maio de 1719
o Capitão Manoel Monteiro de Carvalho tomou posse de um terreno para
construção de uma ermida, porém um escravo fugido matou nesse lugar o seu
senhor fazendo com que os romeiros abandonassem a devoção. O governador
Joaquim de Mello e Póvoas em 1775 mandou abrir uma larga estrada que hoje
é conhecida como Rua dos Remédios, esse ato reavivou a antiga devoção, e
com o passar do tempo a capela foi destruída, e o ermitão Francisco Xavier
“em 1818 conseguiu através de esmolas que ela fosse construída novamente.
Essa reconstrução da capela possibilitou que a festa dos Remédios
acontecesse todos os anos a partir de 1818. César Marques também explica
em seu livro sobre outra reforma que aconteceu no século XIX, mais espe-
cificamente em 1860.
434 MENEZES, Raimundo de. Aluízio Azevedo: uma vida de romance. São Paulo: Editora Martins, 1958.
p. 122.
435 Ibid., p. 122.
438 MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão. Typographia do Frias,
1870. Disponível em: <www2.senado.leg.br/bdsflitem/id/221726>. Acesso em: 29 out. 2015. p. 482.
437 Ibid., p. 173.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 161
os doces tomaram uma projeção muito grande nas festas religiosas. Em ter-
mos de comparação as barracas de doce se tornaram até mais numerosas do
que as demais. No livro O Mulato observamos outra descrição detalhada dos
doces que eram vendidos nas festas: “trouxas de doce seco, corações unidos
de cocada, navios de massa de mastreação de alfenim, jurarás dourados...
frascos de compota de murici, bacuri, buriti”**º.
João Lisboa comenta sobre essa mudança no hábito da alimentação no
ano de 1851. Já Aluízio Azevedo fala sobre o mesmo assunto trinta anos
depois. Provavelmente no final do século XIX essas mudanças alimentares
eram bem mais evidentes do que em 1851. Aluízio Azevedo nem comenta
sobre os lombos de porco e escabeches. Se ele não escreveu sobre isso talvez o
número de barracas não fosse suficiente para merecer uma descrição no livro.
Estas doceiras também recebiam encomendas e aproveitavam a festa para
aumentar os seus rendimentos. Outra atração era o cosmorama, uma espécie de
aparelho óptico de ampliação no qual eram observadas vistas e paisagens, em
1851 “a entrada custava meia pataca”*º. No jornal A Sentinella o cosmorama
também é mencionado mais com outro nome, Galeria Optica, a entrada nesta
época tinha aumentado para 80 réis mas a vista continuava sendo interessante
abrangendo “cidades da Europa: assim como o funeral do Grande Napoleão
na ilha de S. Helena; o que nos causou bastante impressão”*.
A Galeria Optica oferecia atrações que também eram recorrentes dentro da
festa de largo, o comércio associado com diversão pública. A Galeria poderia
até ser considerada uma atração cultural dentro da festividade. De fato, as
imagens transportavam as pessoas para uma outra realidade e na época poucos
em São Luís tinham a possibilidade de usufruir de uma viagem internacional.
As bebidas também eram vendidas nas barracas e tinham até letreiro com
os dizeres “Refrescos e petiscos”. Ao chegar neste local havia duas grandes
portas que direcionavam para um botequim. Nele havia licores de todas as
qualidades*2, A bebida era frequente dentro das festas porém encontramos
poucos relatos acerca desse assunto. O jornal A Sentinella tinha um viés lite-
rário talvez por isso tinha uma liberdade maior para fazer certos comentários.
A Igreja nesta época queria controlar todas as manifestações profanas
dentro da festa. Se as danças e músicas acontecessem elas deveriam ser “o
espelho das demandas eclesiásticas. Tudo com muito bom tom e decência”.
A bebida era vista com muita desconfiança, mas mesmo assim não foram
impedidas totalmente de circularem dentro da festividade.
densas e enredadas filas de bancos e cadeiras que por ali estão”. No dia do
festejo todos queriam se fazer presentes de alguma forma. Em virtude disso
Aluízio Azevedo compara o largo dos Remédios a uma espécie de romaria na
qual as famílias levavam consigo “potes de água, cuscuz, castanhas assadas,
biscoitos e o mais“.
A novena era muito requisitada por todas as pessoas que acompanhavam
a festa dos Remédios, porém, no último dia a curiosidade com relação à festa
de largo era maior, por isso acontecia essa mobilização de um grande público
que vinha de todas as partes da cidade ou até mesmo do interior do estado para
acompanhar o festejo. A comida nos potes mencionada por Aluízio Azevedo
era uma possibilidade para quem não podia comprar ou queria economizar.
O balão também era um elemento importante dentro da festa e era anun-
ciado nos jornais da época como atração, geralmente era visto por todos no final
da novena e era esperado com muito entusiasmo pela maioria das pessoas que
acompanhavam a festa. Isto acontecia talvez pela curiosidade em presenciar
“a obra de uma associação de artistas, e produto de uma subscrição nacional,
ou provincial”. Durante o festejo vários balões poderiam ser soltos. Temos
o exemplo de 1855 quando às sete horas soltou-se um balão e às oito outro
que acabou incendiando-se**º.
Os foguetes também eram usuais dentro da festa e eram utilizados desde
o período colonial, geralmente abriam a celebração da festa, anunciavam a
partida de cortejos processionais, mas também à sua chegada à Igreja ou à
praça onde se davam os principais eventos da festa'”". As opiniões sobre os
fogos até convergiam nessa época. João Lisboa disse que o melhor do fogo
foi a brevidade com que ardeu*2, já A Sentinella informava que aquele ano
“foi um dos peiores que até hoje temos visto quemarse nesta cidade“.
Percebemos pelos periódicos que com o passar do tempo não houve uma
melhora na estrutura dos fogos, na verdade eles até atrapalharam. “No dia
da festa houve fogo artificial, o qual em parte esteve sofrível; porem algumas
peças houverão cujo efeito não se podião ver, porque era só fumaça”**. A festa
dos Remédios era uma das mais conhecidas e extravagantes de São Luís, por
isso a população esperava ver muitos fogos e quando isso não acontecia as
páginas dos jornais eram uma forma de mostrar este descontentamento.
465 O PUBLICADOR MARANHENSE. Folha official, política, litteraria e comercial. Ano IX, 4,30 jul.,
15,27, 31 agos., 14, 20,21, 24 set., 10,19,22 out., 10, 19 dez.1850. Localização: REG 216 MIR 71-
112, Biblioteca Pública Benedito Leite.
466 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 45.
467 O RAMALHETE. Op. cit., 1863.
468 A SENTINELLA. Op. cit., 1855.
469 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 46.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 167
Para a missa das seis e para a missa das dez na quais, dizia ele circuns-
pectamente, reúne-se a nata da nossa judiciosa sociedade!.. Era tudo em
folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse dia todos luxavam, desde o
capitalista até a ralé caixeiro de balcão: velho ou moço, branco ou preto,
ninguém já ja , sem se haver preparado da cabeça aos pés; não se encon-
trava nenhuma roupa velha, nem coração triste”,
Porém, nem todos que apareciam no largo dos Remédios estavam in-
teressados em assistir à missa. Alguns nem entravam no recinto da Igreja e
ficavam do lado de fora observando. João Lisboa até sugeriu “mandar servir
meia dúzia de bandejas ao escolhido público que ali se costuma congregar
àquelas horas”*?2. A missa durante a festa era bem movimentada por isso era
até difícil conseguir entrar no recinto se não se chegasse cedo.
Os periódicos também gostavam de descrever a missa e a decoração da
Igreja. Segundo um deles a Igreja estava forrada toda de damasco, ricamente
adornada e bastante iluminada. Nesse dia havia muitas pessoas e uma excelente
música que se deixava ouvir no alto do coro*”. Realmente a decoração deveria
estar bem luxuosa porque o jornal A Sentinella não fazia muitos elogios nas
suas páginas a festa dos Remédios.
Muitas pessoas conhecidas e importantes de São Luís frequentavam esta
missa. Além das pessoas a imagem de Nossa Senhora também chamava aten-
ção, ela estava no seu altar “com a boca cheia de riso, o semblante banhado
de inefável e suavíssima bondade, como que alegre e satisfeita de receber as
melodiosas homenagens das amáveis cantoras, prometendo a todas favor e
proteção”**. Notamos uma descrição bem subjetiva da imagem, como se ela
pudesse se emocionar com as saudações prestadas.
Logo depois do término da missa acontecia a famosa festa de largo de
Nossa Senhora dos Remédios. Uma das principais atividades do festejo era a
470 TAVARES, Mauro Dillmann. /rmandades, Igreja, devoção no sul do império do Brasil. São Leopoldo.
Oikos, 2008. p. 192.
471 | AZEVEDO. Op. cit. p. 73, 2008.
472 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 53.
473 ASENTINELLA. Op. cit., 1855.
474 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 56.
168
venda ou troca das medidas e medalhas da Virgem, “as medidas são fitas de
uma vara de comprimento, de toda largura, e de todas as cores, em que se vêem
estampados em ouro ou prata o nome e a imagem de Nossa Senhora”*?. Todos
os participantes da festa utilizavam essas medidas e medalhas como um orna-
mento e haviam preços diferenciados para quem podia pagar um pouco mais.
A preocupação com as medidas e medalhas era tanta que foi colocado
em 1850 um anúncio avisando do extravio de uma relação de pessoas que
compraram medidas e medalhas, havia uma suspeita do que poderia ter acon-
tecido, “sabe-se que por engano se embrulharão nela duas medidas e duas
medalhas, porém ignora-se o nome da pessoa que a levou”. Não tivemos
informação se foi encontrado a relação, porém percebemos o empenho da
irmandade em realizar isto.
O leilão também era usual dentro da festa dos Remédios. Geralmente a
barraca era construída perto da Igreja com toldo de lona e era separada por
uma cerca, os objetos que faziam parte do leilão eram em sua maioria doa-
dos pelos próprios devotos e eram variados: “doces, plantas, flores, frutas,
segredos, galanterias, animais domésticos, selvagens, terrestres, aquáticos,
anfíbios, aves e quadrúpedes, xerimbabos e bichinhos”*”.
O leilão também era realizado com peças de maior valor, porém essa
doação que foi notícia no Publicador Maranhense era direcionada em primeiro
lugar aos membros da Irmandade dos Remédios. “Roga por tanto aos mes-
mos Irmãos e Irmãs, e mais devotos da mesma Senhora hajão de concorrer
com alguma joia para o leilão que terá lugar no dia da festa”**. Realmente a
Irmandade incentivava a caridade dos seus membros e isto poderia ser feito
também na festa religiosa.
As práticas de caridade visavam sensibilizar o devoto do seu papel en-
quanto membro efetivo da Igreja e das irmandades, a quantidade de doações
era bem significativas e demonstrava o empenho das pessoas em fazer parte
destas doações, portanto o mais importante era disponibilizar algo que era
seu, mesmo que financeiramente não tivesse um valor alto.
Além dos leilões aconteciam também a venda dos mais variados ma-
teriais e rifas, inclusive algumas pessoas aproveitavam a oportunidade para
rifar objetos seus, temos o caso de um jovem que “fazia a sua fortuna, rifando
diversos objectos, taes como, espelhos, bonecos, caixas de colchetes, ..., e
muitas outras cousas pelo diminuto preço de 320 rs por cada peça”*?”. O leilão
e as rifas também podem ser enquadradas como práticas comerciais dentro das
festas religiosas, sendo assim a devoção era importante mas outros aspectos
também eram valorizados e procurados dentro destes festejos.
Não existiam somente barracas improvisadas para as rifas. Algumas eram
até bem criativas e havia “uma grande barraca, completamente iluminada por
balões chineses, e em cujo topo tremulava uma grande bandeira nacional,
dir-se-hia ser ali a habitação retirada de algum China, porém não, era uma
outra casa de rifa”,
Na festa também havia pessoas que prestavam algum tipo de serviço, os bar-
beiros eram um exemplo e a sua decoração consistia em “velhos panos de Igreja,
e decoradas com alguns quadros santos, e outros profanos; com alguns relógios
de tempo imemorial, e espelhos já usados”*!, No século XIX havia os conheci-
dos barbeiros que faziam as funções de médicos e cirurgiões, mas notamos que
provavelmente os barbeiros mencionados no jornal eram os que cortavam cabelo.
O entretenimento era uma preocupação dos organizadores, além dos
cavalos de madeira existia também “dous balouços, onde aqueles pelo dimi-
nuto preço de 40 réis se divertião até mais não poder”**2. A festa era uma das
poucas possibilidades de aproveitar estas atividades e apesar do preço eram
bastante requisitadas pelo grande público.
A festa de largo como foi mencionado anteriormente associava diversão
com comércio, sendo assim os barbeiros se faziam presentes nestas locali-
dades como uma forma de obter clientes, já o entretenimento para crianças e
para outros públicos era necessário porque possibilitava uma diversidade de
atividades em uma mesma festa, dessa forma a tendência era atrair um grande
número de pessoas, mesmo que não estivessem diretamente interessados nas
atividades religiosas de Nossa Senhora dos Remédios.
As possibilidades de entretenimento marcavam o aumento do número
de pessoas no largo. Se anteriormente o público se dividia entre as novenas,
agora todos queriam se fazer presentes no auge da festa, dentre eles encontra-
mos “pretos, brancos, homens, mulheres, grandes e pequenos, rindo, falando,
assobiando, grunhindo, balando, miando, exprimindo, e denunciando enfim
por todos os sons”*8. A festa era um lugar de sociabilidade e nem sempre esse
encontro acontecia de uma forma harmoniosa.
A cultura segundo Thompson é uma arena de elementos conflitivos, a
festa não é diferente e o controle que se tentava exercer sobre ela ratifica a
festa como um local de disputas. No ambiente festivo uma diversidade de
pessoas se faziam presentes. Isto possibilitava uma troca de informações que
enfatizava ainda mais a diversidade entre os grupos que frequentavam o festejo.
A partir das oito horas o largo estava totalmente tomado de pessoas que
vinham de todos os cantos da cidade e traziam com elas “equilibradas nas
vetimoao
cabeças imensas pilhas de cadeiras, e com estas cadeiras, formam-se grandes
rodas mesmo na praça ao ar livre”**. Estas cadeiras facilitavam a reunião de
grupos que conversavam sobre os mais variados assuntos tendo como pano-
rama a visão da festa. Em 1855 o jornal A Sentinella estimou que em uma
das noites havia cerca de cinco mil pessoas no largo.
04
Este mesmo jornal explicou em suas páginas que o largo ficava mais
tomado de pessoas um pouco mais cedo às sete horas da noite. Contudo, ele
concorda com Aluísio Azevedo quando ele diz que pessoas de todas as con-
dições frequentavam juntas o mesmo lugar**. Apesar da festa dos Remédios
ser financiada pelos comerciantes isto não impedia o livre trânsito de todo
estilo de público dentro da festa.
Este horário da noite era ideal para a iluminação de todo o largo, era armado
de grandes e “deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da santa e
os emblemas do Comércio e da Navegação, que Nossa Senhora dos Remédios
é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa”. A santa era a grande
atração da noite por isso ela deveria constar em todos os recantos do largo.
Os arcos transparentes com a imagem da santa não foram mencionados
em nenhum jornal que pesquisamos. Pelo relato de Aluízio Azevedo, os arcos
pareciam ser luxuosos e representavam toda a riqueza dos organizadores da
festa. Nós acreditamos que isto acontecia pela devoção que os comerciantes
tinham a Nossa Senhora dos Remédios e também pela possibilidade de de-
monstrar todo o seu poderio econômico através dos símbolos.
Aluísio Azevedo explicou que no apogeu da festa soltavam-se balões de
papel fino, vendia-se roletos de cana, sorvetes, sentiam-se arder charutos de
canela, gastavam-se os últimos cartuchos, ardia-se o fogo de artifício, então
tocavam as bandas de música todas ao mesmo tempo e no meio disso tudo
aparecia a imagem de Nossa Senhora dos Remédios, sendo assim,
Considerações finais
Cc
re
A
1
MES
e
e
e.
HERÓIS EM TEMPOS DISTINTOS:
Gonçalves Dias, Manuel Beckman e rituais
cívicos no Maranhão na Primeira República
Considerações iniciais
490 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das Tradições: Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
174 EM TEA
491 BARROS, A. E. A. Invocando deuses no templo ateniense: (re) inventando tradições e identidades no
Maranhão (1940-1960). Outros Tempos, São Luís, v. 3, n. 3, p. 156, 15 jun. 2006.
492 CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. p. 24.
Saddam
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 175
493 Sobre as agremiações, a mais famosa foi a Associação Cívica Maranhense (ACM). Fundada em 1901,
a agremiação foi composta por membros das elites locais, sobretudo, por integrantes da Oficina dos
Novos. Esta outra agremiação era formada por intelectuais que aspiravam as glorias literárias, assim
como, soerguer o Maranhão do estado de letargia e decadência. Deste grupo, surgiriam anos depois
os Novos Atenienses. A respeito das obras publicadas, a mais famosa foi Instrução cívica (1900) de
Barbosa de Godois. O livro tinha como objeto pôr fim a ausência de materiais que pudessem prover
a educação cívica no estado.
494 MATA, Sérgio da. Passado e Presente da Religião Civil. Varia História, Belo Horizonte, 2000, n. 23,
p. 180-20, Jul. 00.
495 A título de exemplo, na Revolução francesa o herói evocado foi Marat, instituído como santo e
mártir. Nos Estados Unidos os chamados founding fathers são cultuados como a gênese da nação.
Em Portugal as glorificações ao poeta Luís de Camões estavam aliadas ao sentimento de defesa
das colônias portuguesas em 1880. Recomento como leitura o livro de Fernando Catroga para
a compreensão dessas experiências. CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito: religião civil e
comemoracionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: Edições NUDOC/ Museu do Ceará, 2005.
Além do trabalho de Sérgio da Mata, uma reflexão sobre a religião civil. MATA, Sérgio da. Passado
e Presente da Religião Civil. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 23, p. 180-20, Jul. 00.
496 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Op. cit., 2006, p. 108.
497 Deixo claro que as homenagens ao poeta timbira sem foram recorrentes. Logo após sua morte,
algumas obras foram produzidas em sua homenagem, o que culminou com a construção do
monumento em memória as suas contribuições literárias em 1873, embora os cortejos e rituais
cívicos tem iniciado suas atividades nos primeiros anos de 1900.
176 EMTI
498 Em uma das primeiras celebrações cívicas organizadas, a Associação Cívica Maranhense...
promoveu as comemorações do 13 de maio de 1901, conhecida como o dia da fraternidade entre os
brasileiros. O local escolhido para o ponto de partida do cortejo foi a praça Gonçalves Dias de onde
discursou no pé da estátua Fran Pacheco sobre o tema. A escolha do local, não foi aleatória, já que
passou a ser recorrente sintetizar a figura do poeta as três raças brasileiras. Em primeiro lugar, a sua
descendência biológica era sempre exaltada como expressão máxima da brasilidade. Mestiço, filho
de europeu com a mestiça Vicência Ferreira. Em segundo lugar, o poeta soube assaltar a beleza do
indígena. O cortejo cívico que circulou por outros pontos como o então Largo do Carmo, Rua Grande,
Largo do Palácio, rua Grande e Largo do Quartel (praça Deodoro) contou com um carro alegórico
intitulado de LIBERDADE seguido por oficiais e civis pelas ruas e praças da capital fazendo paradas
em lugares estratégicos onde discursaram alguns intelectuais.
499 Para maiores informações sobre o cortejo, recomendo a consulta do periódico Pacotilha de 3 de
ra
novembro de 1904.
500 PACOTILHA, 03 nov. 1904.
cm
501 RAMALHO, Daniel Felipe Quinzerreis. Comemorações do 25 de abril: política e memória (1975-
1986). 2015. Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea). Universidade de
cm
Lisboa, 2015.
.—
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 177
[...] Invejei-o como vivo, mas invejei-o também depois de morto, aurelado
pela Fama, immortalisado pelo Monumento, eternizado pela Immortalidade.
[...] E desejei que todo aquelle povo me fitasse demoradamente quando eu
estivesse a deitar meu peito para ficarem sabendo que eu era alguma coisa
homem já tinha aspirações na vida, porque já sabia compreender um Poeta.**
tmoadmi
foi de suma importância, sobretudo porque tais manifestações ecoavam a
reconstrução dos tempos áureos, frente a uma ideia de letargia e decadência
do presente. Para tanto, comemorar o poeta timbira possibilitaria reviver as
glórias pretéritas através da ideia/imagem da Athenas brasileira.
mus
Ainda hoje, podemos dizer que o Maranhão e o maranhense expressam
ideias ligadas a erudição e ao letramento. Acredito que o relampejo dessas
ideias no presente, (re)escritas e (re)imaginadas, sejam reflexo de uma leitura
>»
cristalizada que, em parte, negligenciou a historicidade da memória coletiva
local. Nesse sentido, como podemos interpretar os rituais e comemorações
cívicas em homenagem a Gonçalves Dias?
Pois bem, vimos que a metamemória gonçalvina foi instituída através
de comemorações e rituais cívicos em que estiveram envolvidas as agre-
miações literárias. Tais celebrações contaram com a participação de outros
setores sociais (militares, políticos e representantes da sociedade civil). O 3
de novembro seria uma espécie de ode à “restauração das tradições” a partir
da memória-sintese da Athenas brasileira, Gonçalves Dias.
Nesse sentido, no que diz respeito aos papéis sociais, as comemorações
projetaram os letrados como responsáveis pela formação dos novos cidadãos,
assim como teriam eles função primordial na transformação da realidade local.
Esse direcionamento narrativo foi construído através de uma ideia de tempo
regressivo. A memória do poeta timbira reforçava um sentimento de desilusão
em torno do presente. A solução seria incorporar as qualidades do literato
para pôr fim ao estado de letargia em que se vivia na região. O drama cênico
das comemorações possibilitaria transformar o passado em futuro possível.
Acredito que, para além do reforço dos papéis e hierarquias sociais, a
partir da ideia de continuísmo com uma suposta tradição literária, cabe aqui
um estudo mais ligado a psicologia social e o apelo que a metamemória
gonçalvina alcançou na primeira década do século XX. Apesar de amplos
defensores do novo regime político, havia claramente um descontentamento
por parte das classes dominantes locais em relação aos rumos econômicos
e sociais ocasionados pela implementação do regime republicano no Brasil.
O culto a Athenas brasileira, através da memória de Gonçalves Dias,
indica que, para grande parte das elites locais, o regime republicano parecia
ser uma ideia fora do lugar. Apesar de não ter significado mudanças profundas
no cenário político do estado, o que indicava a manutenção das hierarquias e
do poder político na mão velhos atores, havia um claro desconforto em razão
da ausência de qualquer projeção do estado no novo rearranjo político que
pôs fim ao Império brasileiro.
Por outro lado, o culto ao poeta que cantou o exilio não estaria rela-
cionado a uma experiência concreta de isolamento da capital maranhense?
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 179
505 CAMÉLO, Júlia Constança Pereira. Fachada da Inserção: a saga da civilidade em São Luís do
Maranhão. São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2012.
506 Comparando os dados populacionais do censo de 1890 e recenciamento republicano de 1900.
Percebe-se uma estagnação da população de São Luís. Em parte, a estagnação pode ser explicada
a partir de uma série de epldemias que acometeram a cidade. Muitos habitantes, inclusive, deixaram
a capital e rumaram para o interior da ilha. Para maiores informações recomendo a leitura: Jesus,
Matheus Gato de. Negro, porém republicano: investigações sobre a trajetória intelectual de Raul Astolfo
Marques (1876-1918). 2010. Dissertação (Mestrado em Sociologia). FFLCH-USP São Paulo, 2010.
507 SELBACH, Jeferson Francisco. Mobilidade urbana nos Códigos de Postura de São Luís — MA.
In: ALCANTARA JUNIOR, José O.; SELBACH, Jeferson Francisco (Orgs.). Mobilidade urbana em
São Luís. São Luís - MA: EDUFMA, 2009. p. 23.
180 EM TEM
1910 a região foi tomada por autoridades civis, militares, instituições esco-
lares, intelectuais e curiosos. A simbologia em torno de Bequimão, em nada tas gl
lembrava as evocações a Gonçalves Dias. O rito consistia em transformá-lo parec
em mártir da liberdade. Segundo a metamemória, o Bequimão teria sacrificado os ho
sua vida na tentativa de libertar o Maranhão. do gc
Além disso, as homenagens tinham um público alvo: o herói deveria mem
servir como exemplo aos militares maranhenses. Para tanto, seguiu-se uma simb
ritualística que pudesse também reforçar a autoridade do então governador do M
Luiz Domingues. O evento também contou com o discurso de Antônio Lobo, as aç
representando o corpo civil. Barbosa de Godois** compôs a letra da música
em homenagem ao “mártir”, que foi cantada pelas alunas da Escola Normal. trou>
O monumento foi decorado com vasos de flores e uma placa com a seguinte das «
mensagem: Manuel Bequimão e o povo maranhense 28 de julho de 1910; a pa:
Aqui foi enforcado Bequimão 2 de novembro de 1685”. Nos meses seguin- se le
tes, novas homenagens foram feitas. No dia de finados, data do possível É ne
enforcamento do mártir, o local foi novamente utilizado como um espaço de alizs
ritualização por ordem do governador Luiz Domingues. Segue um trecho da poss
nota: “O governador do estado mandara decorar com flores, durante todo o ume
dia de manhã, com as bandeiras da União e do Estado em funeral, o monu- már
mento que assinala, o local onde foi enforcado nesse dia, em 1685, o mártir
da liberdade Bequimão”*!9. legi
Pois bem, falamos inicialmente que simbolismo em torno da metame- de?
mória dos rituais ao rebelde se distinguia daqueles ofertados à memória de sen'
Gonçalves Dias. Quais tipos de interpretações ou hipóteses para a assunção ao |
do Bequimão ao panteão de heróis locais? Acredito que esta narrativa mne- do
mônica esteja mais próxima das concepções de República do centro político cor
do país, pois se distinguia do clima melancólico dos rituais pertencentes à
tradição ateniense. tór
Segundo Schwarcz”!!, o regime republicano seria o momento de con-
512
solidação econômica e política da região Sudeste. Cidades como São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte tornaram-se modelos e reflexos da nova po-
lítica instituída com advento do novo regime. As três capitais sofreram com
intervenções urbanas — Belo Horizonte foi projetada para ser a nova capital
de Minas Gerais — que tinham com finalidade absorver as novas concepções
econômicas, políticas, sociais e culturais.
508 Barbosa de Godois também é o autor da letra do hino do Maranhão a partir da lei Nº 552, DE 30 DE
MARÇO DE 1911 determinou uma concorrência pública para a definição da letra.
509 PACOTILHA, 01 jul. 1910.
510 PACOTILHA, 01 nov. 1910.
511 | SCHWARCZ, Lilia Moritz. População e Sociedade. In: SCHWARCZ, Lilian Moritz (Org.). A abertura
para o mundo: 1889-1930. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 3 v.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 181
512 Ribeiro do Amaral nasceu em São Luís em 3 de maio de 1853 e faleceu na mesma cidade em
30 de abril de 1927. Foi educador grande parte de sua vida exercendo a função de professor de
História e Geografia do Liceu Maranhense, onde também esteve como diretor. Além disso, fundou
o Colégio São Paulo onde também lecionou. Foi diretor da Imprensa Oficial e colaborador do Diário
Oficial. Ribeiro do Amaral era um homem arquivo, grande colecionador de documentos sobre
Maranhão. Parte desse acervo, os jornais, se encontra na Biblioteca Benedito Leite para consulta. Na
República, publicou várias obras e artigos nos jornais entre o final do XIX e início do século XX todas
relacionadas ao Maranhão principalmente sob a temática histórica. Apesar de uma produção intensa
e diversificada a respeito da história do estado sem dúvida sua obra que recebeu mais atenção foi
A fundação do Maranhão em ocasião das comemorações do tricentenário da capital maranhense
em 1912. A obra ganhou edições póstumas sendo a mais recente a publicada em 1911. Ribeiro
do Amaral foi presidente da Academia Maranhense de Letras e membro do Instituto Histórico e
Geográfico do Maranhão. Além de consultor, no governo Luís Domingues — de quem era amigo -
Ribeiro do Amaral foi diretor da Biblioteca Pública entre os anos 1910 e 1913. A partir do governo
Domingues, o professor passou ser figura de destaque no teatro cívico da capital como autoridade
reconhecida por todos quando ao tema história do Maranhão.
182 EM TE
pio
festa, velho/novo, sofrimento/resistência, esquecimento lembrança. O poema
se utiliza dos contrastes para comparar os dois momentos: a da execução de
Bequimão marcada por tristeza e dor e as comemorações enaltecidas pela
ES
festa e lembrança no presente. Além disso, havia uma atmosfera de evolução
O
social e cultural nas estrofes de Bíllio. O regime republicano trouxe consigo o
3
vislumbre de um futuro melhor através da liberdade conquistada e a assunção
da memória do mártir, outrora condicionada ao esquecimento.
Por fim, acredito que a possibilidade de realização do ritual, muito mais
próximo das concepções de República do centro político país, tenha a ver com
algumas modificações, ainda que tímidas, no aparelho urbano de São Luís.
No início de 1910, a cidade já contava com algumas fábricas, além disso as
políticas sanitárias diminuíram as ocorrências de epidemias na capital. No
mesmo ano, implementou-se um projeto de construção de uma linha férrea
que ligaria a capital São Luís e o interior do estado, assim como no campo dos
divertimentos o ano de 1910 seria marcado pela inauguração das primeiras
salas fixas de cinema na capital*!*. Tais indícios me levam a crer que tais novas
513 SOUSA, Wendell Emmanuel Brito. Política, memória e cidade: as comemorações do II Centenário
de Fundação da Capital Maranhense pelos Franceses em 1912. 2016. Dissertação (Mestrado).
Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em História 2016. p. 127.
514 Trato dessa questão em meu trabalho monográfico. Para maiores informações: SOUSA, Wendell
Emmanuel Brito de. Luz e sombras nas projeções: O cinema na São Luís moderna (1897-1914).
2012. Monografia em História Licenciatura. Universidade Estadual do Maranhão, 2012.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 183
Considerações finais
515 Este trabalho consiste em um recorte da pesquisa que realizei sobre a zulu culture durante o curso
de Mestrado em História, Ensino e Narrativas na Universidade Estadual do Maranhão (PPGHIST/
UEMA) entre 2015 e 2017, sob orientação do prof. Dr. Antonio Evaldo Almeida Barros.
516 LE GOFF Jacques. Memória. In: HISTÓRIA e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 2012. p. 108.
517 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. Disponível em: <https:/Avww.youtube.com/
watch?v=EC-bh1YARsc>. Acesso em: 20 jul. 2014.
186 EM TE
demir Zamparoni!s, a ideia de África homogênea precisa ser rompida e esse loca
processo de rompimento tem se dado gradativamente, é importante tomar de s
África no seu sentido multi e pluricultural, mostrando quão dinâmicos são os Afr
povos africanos sob qualquer prisma de análise. Desse modo,é preciso pensar pat
e interpretar o continente africano em sua singularidade, heterogeneidade e cas
dinamicidade*!º. Para tal, uma chave analítica a considerar é a dimensão da
cultura que será aqui problematizada, a partir da Zulu Dance, como movimento qu
de resistência e luta contra o racismo e em prol da democracia em uma África Zu
do Sul segregada. Toma-se a cultura também como espaço para se pensar as de
desigualdades sociais em diferentes níveis'?. di
Esta pesquisa faz parte de um conjunto de análises que têm posicionado a
África no centro do debate acadêmico, destacando a necessidade de melhor A
compreensão acerca da dinâmica cultural daquele continente. Considerando fc
a importância de produzir novas pesquisas sobre África, sem, é claro, descon- |
siderar a significativa ampliação dos estudos africanos no Brasil, principal- E
mente após a lei 10.639/03, este trabalho traz um panorama dos processos de
patrimonialização da Zulu Dance, pensando-a desde as lentes da resistência
contra a política segregacionista na Africa do Sul.
lui
Situa-se a Zulu Dance no centro das discussões sobre cultura, uma vez que
sm
aos africanos e negros a condição de produtores de cultura foi historicamente
ae
negada. Admite-se, muitas vezes, apenas o uso do termo folclore para qualificar
—
os elementos e práticas culturais no contexto africano, enquanto atribui-se
ao europeu a condição de portador de uma “cultura superior e civilizada”.
A Zulu Dance é uma expressão derivada do inglês para se referir a um
conjunto de danças sul-africanas características do povo zulu. Na África do Sul,
as danças zulus têm sido realizadas em diferentes contextos e situações, empre-
gadas muito comumente em rural areas ou townships e em centros turísticos e
culturais. O ritual da Zulu Dance faz parte do repertório cultural do continente
africano e muito elucida sobre os movimentos de lutas contra o Apartheid.
Orecorte temporal da análise faz alusão ao período do regime do Apartheid
(1948-1994) na África do Sul, se concentrando mais precisamente a partir dos
anos 1950, quando da popularização das danças zulu no contexto sul-africano
e do momento da consolidação de certas práticas, como o teste da virgindade,
capazes de muito explicar os lugares e papéis femininos e masculinos na cultura
518 ZAMPARONI, Valdemir. A África e os estudos africanos no Brasil: passado e futuro. Disponível
em: <hitp://cienciaecultura.bvs.br/scielo. php?pid=S0009-67252007000200018&script=sci arttext>.
Acesso em: 20 nov. 2011.
519 DEVES-VALDES, Eduardo. O Pensamento Africano Sul-Saariano: conexões e paralelos com o pensamento
Latino-Americano e o Asiático (um Esquema). São Paulo: Clacso- EDUCAM, 2008. Disponível em: <http://
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/arhibros/coedicionvaldes/>. Acesso em: 10 set. 2009.
ZAMPARONI, Valdemir. Op. cit, 2011.
520 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Cultura, Patrimonialização e Desigualdade no Brasil e na África
Austral. Revista de Políticas Públicas, São Luís, p. 41-62, 2018.
a
DD — Too Pi o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 187
local, até os anos 1990, marcado pela abertura democrática e pelo fim da política
de segregação racial, quando as danças zulus começaram a ganhar projeção na
África do Sul, passando a ser vista pelo governo local pós-Apartheid como um
patrimônio cultural que atrai diferentes turistas e movimenta a economia. Neste
caso, é possível pensar a cultura como fator de desenvolvimento nacional”?!.
O campo da História Social da Cultura muito tem contribuído nesta pes-
quisa, uma vez que possibilita identificar os modos como a/as identidade(s)
Zulu são (re)construídas, pensadas e dadas a ler. Assim, partindo do pressuposto
de que o conhecimento é possível? e de que a maioria das fontes satisfaz
a ambição e os compromissos de seus autores, tal análise foi empreendida
a partir de levantamento bibliográfico e de trabalho de campo realizado na
Africa do Sul entre 2016 e 2017. O cuidado na operacionalização com as
fontes foi muito rigoroso e algo que se prezou durante toda a análise, afinal,
“[...] reconhece-se que, “embora qualquer teoria ou explicação do processo
histórico possa ser proposta, são comprovadamente falsas todas as teorias que
não estejam em conformidade com as determinações das fontes”.
Os estudos sobre memória e sobre processos que envolvem a patrimonia-
lização de práticas culturais, das construções teóricas acerca da ideia de “raça”
e a afirmação de identidades são norteadores neste trabalho. Considerando
essas questões, este trabalho está estruturado em dois eixos complementa-
res. Primeiro, traz-se um panorama sobre a história e cultura zulu. O intuito
é pensar a história do povo zulu, situar esses sujeitos no centro das análises
e elucidar as especificidades e dinamicidades da identidade na cultura zulu.
Segundo, aborda-se o processo de patrimonialização da Zulu Dance e como
tal processo pode ser lido como importante elemento na reconstrução de uma
Africa do Sul segregada para uma nação “arco-íris”.
521 CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: Ill ENECULT: terceiro
encontro de estudos multidisciplinares em cultura. Salvador, 2007. p. 1-18.
522 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
523 CHALHOUB, Sidney. Diálogos políticos em Machado de Assis. In.: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA,
Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
524 COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Ethnicity, Inc. Chicago: University of Chicago Press, 2009. p. 12.
188
O povo zulu, bem como sua respectiva cultura, ultrapassa os limites ge-
ográficos das fronteiras estabelecidas entre os países no continente africano.
Eles habitam a parte do continente africano que abrange territórios corres-
pondentes à África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Zimbábue e Moçambique.
Ao habitarem tanto o território da África do Sul quanto o de outros países
parecem compor uma espécie de “Nação Zulu”. Assim, uma nação está para
além das fronteiras geográficas e/ou físicas demarcadas pelos homens e pela
natureza. Concorda-se com Fernand Braudel** quando afirma que as fronteiras
que delimitam uma nação também são culturais, políticas, sociais e, sobre-
tudo, determinadas a partir das relações humanas. As fronteiras deveriam ser
interpretadas, portanto, como fluidas.
Segundo Benedict Anderson'% nação significaria uma comunidade ima-
ginada. Imaginada porque é construída pelos sujeitos históricos. Imaginada
“porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a
maioria dos seus compatriotas. É imaginada como limitada, porque até mesmo
a maior delas [...] possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das
quais encontram-se outras nações. É imaginada como soberana, porque [...]
as nações sonham em ser livres [...]”*7.
Ora, no campo de debate sobre nação, a memória ocupa uma função
extremamente importante. Nesse debate, Michael Pollak*? sinaliza que a me-
mória possui como função reforçar o sentimento de pertencimento a grupos,
manter a coerção interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem
em comum. Maurice Halbwachs”? aponta que essa coerção social é dada,
sobretudo, pela adesão afetiva ao grupo, também chamado de “comunidade
afetiva”. A priore, é fundamental entender que a memória é um instrumento de
vínculo social e de identidade individual e coletiva”, E, a memória nacional,
construída a partir da memória coletiva, é responsável pelo fortalecimento do
sentimento de identidade nacional de um grupo?! e pela fabricação de uma
identidade nacional*2, no caso deste trabalho, da identidade nacional zulu.
O debate acerca das (re)afirmações de identidade tem ocorrido em várias
partes do mundo, a saber, nas Américas, na Europa e na África como Já apontara
525 BRAUDEL, Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe !l. 2. ed. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1995. ,
526 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1983.
527 Ibid., p. 14.
528 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro. Estudos Histórico, v. 2, p. 3-15, 1989.
529 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
530 LE GOFF Jacques. Op. cit., 1990.
531 HALBWACHS, Maurice. Op. cit., 2006.
532 OLIVA, Anderson Ribeiro. Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino
de História da Africa nas escolas brasileiras. In: ENSINO da História da Africa e da Cultura Afro-
brasileira. Revista História Hoje: ANPUH, 2012. p. 29-44.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 189
Observa-se ainda que os modos de vestir podem ser interpretados como meca-
nismos de (re)afirmação de identidades, além de estarem carregados de representações
e muito revelarem sobre a identidade do povo zulu, sobre sua história e cultura.
A identidade é construída e se produz sempre em referência aos outros.
A identidade é marcada pela diferença. Ela ocorre tanto por meio de sistemas
simbólicos de representações quanto por meio de formas de exclusão social”.
É constituída a partir do momento que o “eu” reconhece o “outro”, em suas
particularidades e diferenças. Ela se molda e emerge nas narrativas de (re)
Para Stuart Hall”! esse sujeito fragmentado e essas novas identidades têm
emergido com força no mundo contemporâneo. Ele defende que há uma multipli-
cidade de identidades e sinaliza para uma fragmentação do indivíduo, indicando
que aquele “[...] sujeito do iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa
e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias,
inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”**2, Na perspectiva de Hall
uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpretado ou representado, a identificação não é automática, mas pode
ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,
descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade
[...] para uma política de diferença.
540 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
541 Ibid., 2005.
542 Ibid., p. 46.
543 Ibid., p. 16.
544 ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. As dimensões do gênero no bumba meu boi maranhense:
reafirmação da “mulata brasileira”? Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/L/
Lady Selma Ferreira Albernaz 56.pdf>. Acesso em: 12 set. 2013. p. 1.
545 FERRETTI, Sérgio E. Sincretismo Afro-Brasileiro e Resistência Cultural. Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, n. 8, jun. 1998,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 191
546 Ibid., p. 2.
547 THOMPSON, E. P Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
548 Ibid., p. 17.
549 Ibid., 1998.
550 | Ibid., p. 17.
551 Ibid., p. 17.
552 Ibid., p. 22.
192
556 OLIVEIRA, Eduardo Romero de. Memória, história e patrimônio: perspectivas contemporâneas da
pesquisa histórica. Fronteiras, Dourados, MS, v. 12, n. 22, p. 146, 2010.
557 Ibid., p. 131.
558 MOTTA, Antonio. Patrimônio. In: SANSONE, Lívio; FURTADO, Claudio Alves (Orgs.). Dicionário
crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 379.
559 Ibid., 2014,
560 XULU, Smangele. Gender, Tradition and Change: the role of rural women in the commoditization of
zulu culture at selected tourist attractions in Zululand. 2005. 146f. Tese (Doutorado em Filosofia). In
194
563 POSEL, Deborah. A controvérsia sobre a AIDS na África do Sul: marcas da política de vida e morte
no pós-apartheid. Afro-Asia, Salvador, n. 34, 2006, p. 40. .
564 BARBOSA, Viviane de Oliveira. Mulheres rurais e lutas sociais no Brasil e na África do Sul. Mujimbo,
2012. Disponível em: <http://wwwmujimboposafro.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/2012/03/3.-
Mulheres-Rurais-Viviane,pdf >. Acesso em: 15 jun. 2014.
565 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997b.
566 Ibid., p. 9. ,
567 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na Africa do
Sul. 2012, 205 f. Tese (Doutorado em Estudos Etnicos e Africanos). Programa Multidisciplinar de
Pós-Graduação em Estudos Etnicos e Africanos, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade Federal da Bahia, 2012.
196
t Editora
ia
a
EM TEMPOS DE FESTAS,
RITUAIS E COMEMORAÇÕES
2º EDIÇÃO
NEAFRICA- y
Núcleo de Estudos África e o Sul Global
ISBN 978-85-444-3181-8
ICRV a + dy |
No 4