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ANTONIO EVALDO ALMEIDA
BARROS é Licenciado em
História pela Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), em Filosofia
pelo Instituto de Estudos
Superiores do Maranhão ([ESMA),
e Mestre e Doutor em Estudos
Éinicos e Africanos pela
Universidade Federal da Bahia
(UFBA). É Professor Adjunto dos
Departamentos de História da
UFMA e da Universidade Estadual
do Maranhão (UEMA), membro do
quadro permanente dos seguintes
Programas de Pós-Graduação:
Políticas Públicas (UFMA), História
(UFMA) e História (UEMA).
Desenvolve ações de ensino,
pesquisa e extensão sobre
práticas e políticas culturais e
educacionais no Brasil e na África
Austral. É membro-fundador do
Núcleo de Estudos, Pesquisa e
Extensão sobre África e o Sul
Global (NEÁFRICA). Desde 2013,
coordena a Ação Escola da
Terra no Maranhão (UFMA). É
autor de “As Faces de John
Dube: Memória, História e
Nação na África do Sul?
(CRV/EDUFMA, 2016).
EM TEMPOS DE FESTAS,
RITUAIS E COMEMORAÇÕES
2º EDIÇÃO

ANTONIO EVALDO ALMEIDA BARROS


MARIA DA GLÓRIA GUIMARÃES CORREIA
Organizadores

ditora
Antonio Evaldo Almeida Barros
Maria da Glória Guimarães Correia
(Organizadores)

EM TEMPOS DE
FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES

2º edição

Editora CRV
Curitiba — Brasil
2019
Copyright O da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Fotos da Capa: Reinilda Oliveira
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE

B223

Barros, Antonio Evaldo Almeida.


Em tempos de festas, rituais e comemorações — 2. ed. / Antonio Evaldo Almeida Barros,
Maria da Glória Guimarães Correia (organizadores) — Curitiba : CRV, 2019.
208 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-444-3181-8
DOI 10.24824/978854443181.8

1. Festas. 2. Rituais. 3. Comemorações. 4. História da festa. I. Correia, Maria da Glória


Guimarães. org. II. Título. III. Série.

CDU 393 CDD 394.2


Índice para catálogo sistemático
1. História da festa 394.2

ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL EM FORMATO DIGITAL.


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2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac(Deditoracrv.com.br
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Conselho Editorial:
Aldira Guimarães Duarte Dominguez (UNB)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO — PT)
Carlos Federico Dominguez Ávila (Unieuro)
Carmen Tereza Velanga (UNIR)
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Três de Febrero — Argentina)
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de La Havana — Cuba)
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de La Havana — Cuba)
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Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...
Os organizadores

E ERA NOITE DE LUAR: festas e festejos sob


o céu de uma cidade (São Luís, 1850-1900) ..........................
Maria da Glória Guimarães Correia

A MORTE NO SERTÃO: as práticas mortuárias


no sertão do Piauí durante o Oitocentos..............
Josilene dos Santos Lima

NA FÉ E NA FESTA: as irmandades religiosas


negras e as festividades na Parahyba do século XIX.............
Matheus Silveira Guimarães

OS INSTRUMENTOS MUSICAIS QUE MAIS


SOAVAM NOS JORNAIS DE SÃO LUÍS NA
SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX...
João Costa Gouveia Neto

OS LAZERES NA SÃO LUÍS DO PERÍODO IMPERIAL.........


Paulo da Trindade Nerys Silva
David Machado Ferreira
Cássia Giovana Nascimento dos Santos
Ilana Maira Carneiro Chagas

MÁSCARAS, NINFAS E FAUNOS OU SOBRE


A PRESENÇA DO PROFANO NAS FESTAS DO BISPO ....
Maria da Glória Guimarães Correia

SUJEITOS, IDENTIDADES E EXPERIÊNCIAS


NUM TEMPO DE FESTAS: algumas questões
teórico-analíticas e possibilidades interpretativas ...................
Antonio Evaldo Almeida Barros

FESTEJO DE SÃO BERNARDO: Memória e Representação


>. nilson de Oliveira Sousa
ane da Silva Viana
3riston Silva Neris
UM JOGO DE CUIDADOS ESPECIAIS: a “liturgia profana”
das relações concubinárias no Maranhão setecentista ................... 125
Raimundo Inácio Souza Araújo

MANOEL TEU SANTO, O “SUMMO PONTIFICE”


DA PAJELANÇA: pajelança em São Luís no final do século XIX...... 141
Thiago Lima dos Santos

A FESTA DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS


DE 1850 A 1875 EM SÃO LUÍS DO MARANHÃO. ......................., 155
Milena Rodrigues de Oliveira

HERÓIS EM TEMPOS DISTINTOS:


Gonçalves Dias, Manuel Beckman
e rituais cívicos no Maranhão na Primeira República ....................... 1Z3
Wendell Emmanuel Brito de Sousa

RITUAIS, DANÇAS E RESISTÊNCIAS EM UMA


ÁFRICA DO SUL SEGREGADA: notas sobre a Zulu Dance
ari Kwazulu-Natal (6. 1948-1004) .ssamasaanssosecsssssea
pascoa tomando 185
Aldina da Silva Melo

SOBRE OS ORGANIZADORES... ceaseruseaceredosdiato


ecos peeeesssanssare 201

SOBRE US AUTORES, assenta ticase paira e 203


APRESENTAÇÃO

Os repertórios festivos, ritualísticos e comemorativos podem constituir


ocasião significativa para se perceber especificidades dos processos sociais
em diferentes tempos e espaços, sendo capazes de traduzir experiências,
expectativas e imagens sociais daqueles que os realizam, apresentando-se
como objeto privilegiado da História e das Ciências Sociais e Humanas, para
se estudar e reconstituir os movimentos de uma determinada coletividade,
população, região, nação.
As festas, rituais e comemorações podem ser interpretadas como ocasião
particular para se observar experiências de diferentes e desiguais sujeitos e
para se perceber, de maneira particular, visões de mundo e práticas dos setores,
grupos e sociedades que os realizam.
A primeira edição deste livro foi publicada em 2012, e foi composta
por 8 artigos. A atual edição é composta por 13 textos. O objetivo deste livro
continua o mesmo: agregar estudos, desenvolvidos por pesquisadores e pes-
quisadores, sobre festas, rituais, comemorações e temas correlatos, atentando
para o lugar dos sujeitos, setores e grupos sociais envolvidos nessas ocasiões.
A coletânea é aberta por Maria da Glória Guimarães Correia em E era
noite de luar: Festas e festejos sob o céu de uma cidade (São Luís, 1850 -1900).
À historiadora nota que “no correr do século XIX, a passagem do tempo, em
São Luís do Maranhão, foi marcada por festas. Festas de toda ordem, para
gosto e regalo de todos”. Este mundo de festas é situado num universo de
“profunda diferença entre concepções de mundo e de vida” que marcavam as
terras do Maranhão, onde se empunhava a bandeira da romanização, “cruzada
essa que tinha como um de seus principais objetivos a extirpação do profano
dos domínios do sagrado, fazendo-o nos marcos do dito processo desencadeado
pela Igreja Católica, com vistas ao enquadramento das percepções e vivências
do sagrado a partir dos dogmas e normas por ela elaboradas”. O objetivo desse
projeto era “pôr fim àquele tipo de festejo em que a grande maioria da gente
da cidade se esbaldava”, dando curso e vazão a “transbordamentos de desejos”
que ensejavam toda sorte de pecadilhos e também a desvios mais graves”.
De todo modo, “sendo certo que essas festas traziam alegria a muita gente,
bom mesmo era que após uma logo vinha outra”. Para a autora, enquanto
“manifestações da religião/Igreja oficial e/ou da piedade dos devotos, as festas
constituíam importantes espaços de sociabilidade onde relações de amor, de
amizade, de solidariedade, de disputa e de poder, eram entretecidas”. Além
disso, “a despeito das diferenças e desigualdades que ressaltavam do conjunto
de homens e mulheres que delas tomavam parte, seus caminhos se cruzavam
10

nesses espaços em que rezavam, cantavam e dançavam juntos, sabe-se lá com


que simpatia ou repulsa, razão por que constituem uma significativa fresta
para que se vislumbrem alguns cenários do viver em São Luís na segunda
metade do século XIX”.
Em 4 Morte no Sertão: as práticas mortuárias no sertão do Piauí durante
o Oitocentos, Josilene dos Santos Lima salienta que “no universo devocional do
catolicismo os rituais de morte situam-se como estratégias de salvação frente
aos medos que acometiam homens e mulheres e demonstram as diferentes
maneiras de expressão da sensibilidade que os sujeitos conferiam aos seus
entes queridos na hora da morte”. Durante o século XIX, destaca a autora, “é
possível perceber muitos dos gestos que compõe essa “serenata da morte””.
No contexto do sertão piauiense no século XIX, a morte “se configura em um
desenho próprio, no qual as pessoas comuns se encarregam de encaminhar a
alma de seus mortos, seja no ritual ou na construção de sua última morada”.
Matheus Silveira Guimarães analisa as irmandades religiosas negras e as
festividades na Paraíba do século XIX. O autor descreve como as irmandades
negras organizavam suas festas religiosas. Partindo da interpretação, alinhada
à História Cultural, de que as festividades são espaços de sociabilidade, em-
prende um esforço para descrever e analisar as irmandades e a organização
das festas na Província da Paraíba. Conclui que “as festas são hoje objetos de
pesquisas que nos permitem compreender alguns aspectos sociais do passado”.
Particulamrnte “na sociedade brasileira oitocentista, as festividades religiosas,
por exemplo, assumiam um papel não apenas de diversão, mas também como
um momento de realçar as identidades e permitir a grupos sociais muitas
vezes excluídos dos espaços de poder, como a população negra, instantes de
reconhecimento público”.
João Costa Gouveia Neto lança um olhar sobre os instrumentos musicais
mais presentes nos jornais de São Luís da segunda metade do século XIX.
Salienta que “os anúncios constantes de venda de instrumentos musicais nos
jornais da cidade” apontam para certos gostos musicais. Lembra que “a partir
do terceiro quartel do século XIX, os instrumentos musicais fabricados com
o intuito de acompanhar a voz humana já estão bem desenvolvidos e disse-
minados por todos os países do mundo”. Nos períodicos analisados, “eram
oferecidos instrumentos de vários grupos ou famílias, como: instrumentos de
cordas, de sopro, de percussão, de teclas”, sendo maior a ocorrência dos pianos
e dos violões. Para o autor, a presença de profissionais, especialistas nesses
instrumentos, “anunciada nos jornais que circulavam na capital da província
maranhense indica a inserção de membros das elites nos novos ditames do
gosto civilizado, uma vez que o gosto é um dos determinantes e diferenciadores
dos hábitos e dos costumes e, através da existência na sociedade ludovicense
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 11

desses profissionais, as elites da capital maranhense se identificavam com as


elites europeias”.
Resgatar a memória das práticas de lazer na cidade de São Luís do Ma-
ranhão no período imperial é o objetivo de Paulo da Trindade, David Ferreira,
Cássia Giovana dos Santos e Ilana Maria Carneiro Chagas. Os autores notam
que “os Códigos de Posturas editados ao longo do século XIX em São Luís
buscaram criar condições concretas para que, através do controle social e
moral, as condutas e até mesmo os corpos estejam permanentemente sendo
objetos de policiamento e vigilância, sendo estabelecidos limites aos com-
portamentos”. Assim, impunham-se “ordenamentos elaborados sob o prisma
de um “paradigma unitário”, que desconsidera as experiências e o “saber
autônomo” dos segmentos sociais não hegemônicos”. Nesse contexto, “as
manifestações dos escravos, como as danças e os cantos são permitidas, desde
que seja conveniente à ordem da cidade, visando preservar além da ordem
e da moral, a força de trabalho e a sua produtividade”. Para os autores, “o
estudo dos lazeres e as situações urbanas nas quais estão inseridos mostram
que a construção da cidade dá-se em função de necessidades de diferentes
parcelas da sociedade que a habita e cujas classes buscam diferenciarem-se
através de diversos cenários urbanos, alguns dos quais o lazer faz parte”. Na
São Luis imperial, “as práticas de lazer pareciam representar a cidade civi-
lizada, distanciando-se do rural e provinciano ao buscar a construção de um
modo de vida cosmopolita”.
Maria da Glória Guimarães Correia analisa a presença do profano nas
festas do Bispo da primeira metade do século XVIII durante o episcopado
de D. Manuel da Cruz em terras do Maranhão. Para a historiadora, “além
dos rituais de caráter propriamente religioso, a entrada solene e a tomada de
posse de D. Manuel da Cruz deram lugar a um conjunto de festividades” que
podem ser interpretadas “como expressão de uma cultura mais ampla, que
dá azo a percepções diversas e multiplicação de seus significados e permite
aquilatar a distância que então separava discursos e práticas, a exemplo da
radical oposição que deveria existir entre sagrado e profano”.
No texto seguinte, Antonio Evaldo Almeida Barros apresenta algumas
questões teóricas envolvidas em pesquisa que tem desenvolvido sobre bumba
meu boi e festas no Maranhão na primeira metade do século XX. O autor
discute acerca dos problemas referentes à possibilidade de reconstituição do
passado através, por exemplo, de inferências de textos escritos ou testemu-
nhos orais. Reflete sobre algumas das respostas dadas pela historiografia à
crise de paradigmas intensificada nos anos 1970, considerando ser necessário
refutar o relativismo tout court, o irracionalismo e a redução do trabalho do
historiador a uma retórica de interpretação textual e não uma interpretação
12

dos acontecimentos. Reconhece, ainda, que a experimentação historiográfica


produz possibilidades históricas e não provas irrefutáveis e considera relevante
a opção por narrativas na qual o leitor participa de todo o processo de cons-
trução do argumento histórico e de interpretações que integrem os registros
sobre o passado ao próprio objeto da pesquisa. Salienta que o fenômeno social
“festa” começou a ser estudado no próprio início da constituição do campo
das ciências humanas, particularmente, na obra de Émile Durkheim e Marcel
Mauss, cujas teses seriam desdobradas por diversos pesquisadores, e que a
“festa” é, em grande medida, um objeto multi e interdisciplinar. Finalmente,
apresenta os prinpicpais elementos de uma história social da festa. Para ele,
“seguindo o ritmo das chamadas festas populares, talvez seja possível recons-
tituir histórias e mostrar que particularmente as pessoas comuns, que davam
muito apreço a determinadas práticas culturais dedicando um significativo
tempo de suas vidas a elas, interferiam nos processos sociais por meio de
suas ações e práticas festivas”.
Em Festejo de São Bernardo: Memória e Representação, Ronilson Sousa,
Keiliane Viana e Wheriston Neris, reconhecendo o conjunto de pesquisas que
têm renovado o interesse de estudo das devoções e festas religiosas no Brasil,
analisam os significados, as continuidades e rupturas do festejo do padroeiro
do município de São Bernardo, Estado do Maranhão. Os autores partem do
pressuposto de que “a festa é uma produção humana, submetida a diferentes
visões, perspectivas e representações”. Analisando diversas entrevistas, re-
conhecem que “os relatos dos entrevistados sobre o festejo fornecem, nesse
sentido, um aporte fundamental tanto para apreensão das interpretações cris-
talizadas na memória coletiva acerca da festa, quanto para a compreensão
das redes de sociabilidade e do processo contínuo de negociação das identi-
dades sociais que perpassa a produção desse ritual coletivo”. Argumentam
que “embora tenhamos encontrado representações. que não são homogêneas
sobre elementos específicos da festa, para os entrevistados, nunca esteve
em questão a importância do evento como algo que faz parte de sua própria
existência social e que desempenha uma importante função coletiva”. Assim,
“a identificação desses agentes com a cerimônia não apenas atesta a importân-
cia do pertencimento religioso, como também indica um grau de identidade
objetiva com todos os outros agentes envolvidos no cotidiano da assistência
à messe”. Dessa forma, “isso ajuda a entender a notável receptividade obtida
pelos pesquisadores ao longo da pesquisa e o interesse presente nos relatos
dos entrevistados em resgatar a própria “memória do festejo”.
Nesta segunda edição ampliada, além dos textos anteriormente mencio-
nados, que compuseram a primeira edição desta coletânea, cinco trabalhos
foram incluídos. O primeiro é Um jogo de cuidados especiais: a “liturgia
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES . 13

profana” das relações concubinárias no Maranhão setecentista, de autoria


de Raimundo Inácio Souza Araújo, que parte do reconhecimento de que “os
documentos produzidos pela Justiça Eclesiástica no Maranhão durante o
período colonial possibilitam a construção de diversos olhares sobre a vida
e o cotidiano da sociedade dos setecentos”. O autor elabora uma reflexão
sobre “práticas das culturas populares naquele momento: relatos de festejos,
produzidos a reboque de narrativas de acusação; supostos feitiços e orações
mobilizadas por europeus, africanos e indígenas; descrição de objetos e rituais
heterodoxos tidos como portadores de eficácia sobre o cotidiano colonial; as
relações conjugais preconizadas ou perseguidas pela Igreja Católica”. Inácio
Araújo destaca que “as práticas sociais driblavam prescrições e proibições,
atuando de forma tática e criativa, acatando e negando simultaneamente, numa
lógica que desconcertava a racionalidade piedosa dos discursos eclesiásticos”.
Thiago Lima dos Santos apresenta um estudo sobre a pajelança em São
Luís de final do século XIX, enfatizando o personagem Manoel Teu Santo, tido
como “Sumo Pontífice da Pajelança” naquela época. Para Thiago dos Santos,
“não podemos negar que a violência era presença constante no cotidiano dos
indivíduos ligados aos terreiros, no entanto, esses indivíduos buscavam for-
mas de recriá-lo, buscando espaços para realizar suas obrigações religiosas”.
Milena Rodrigues de Oliveira apresenta um estudo sobre a festa de Nossa
Senhora dos Remédios, que era muito conhecida e importante para a cidade
de São Luís na segunda metade do século XIX. Para Milena Rodrigues, “as
festas de largo eram eventos muito esperados ao longo do ano e muitas vezes
consistiam na única oportunidade de diversão para uma grande parcela da po-
pulação”. Assim, havia uma “preparação em torno do festejo que perpassava
pela escolha da roupa, pelo dinheiro que poderia ser investido nos leilões ou
em qualquer outra atividade da festa, enfim a sociedade ludovicense apesar
de diversa se sentia reconhecida nestas manifestações e podemos confirmar
isto através do grande público que se fazia presente nestas festas religiosas”.
Heróis em tempos distintos: Gonçalves Dias, Manuel Beckman e rituais
cívicos no Maranhão na Primeira República, de Wendell Emmanuel Brito
de Sousa, parte do reconhecimento de que as primeiras décadas de República
no Maranhão, em especial na capital São Luís, são marcadas por um intenso
processo de invenção das tradições, nos termos de Eric Hobsbawm. Para
Wendell Brito, “a Primeira República foi marcada por um intenso trabalho de
reconstrução dos padrões sociais, para os quais as velhas tradições do Império
brasileiro configuravam-se incompatíveis. Para tanto, o regime republicano
investiu em um arsenal simbólico e ritualístico com o intuito de conectar o
novo cidadão aos novos horizontes instituídos pelo regime”. No Maranhão “o
investimento no arsenal simbólico nesse período foi fundamental para que o
14

novo regime político vertesse — através dos rituais e símbolos criados — coesão
política, social e cultural”. De modo geral, argumenta o autor, as tradições
inventadas no estado, convergiram em políticas de memória. Em São Luís, os
usos políticos no campo mnemônico promoveram importantes modificações
simbólicas como: alteração na nomenclatura de ruas e praças, inauguração
de monumentos e a organização de um calendário cívico. O controle da me-
mória tornou-se um importante mecanismo na produção de identidades sobre
o Maranhão e o maranhense. Wendell Brito conclui que “as comemorações
a Manuel Beckman possibilitaram-me a compreensão dos usos e abusos das
reconfigurações identitárias e imagéticas permitidas pelo contexto republi-
cano, mas, sobretudo, indicam disputas, jogos de poder e a pluralidade das
narrativas mnemônicas no Maranhão”.
Rituais, Danças e Resistências em uma África do Sul segregada, de Al-
dina da Silva Melo, último texto desta coletânea, faz um panorama analítico
do reconhecimento da Zulu Dance como patrimônio nacional sul-africano.
Situando a Zulu Dance no centro das discussões sobre cultura, o texto aborda
como os rituais e danças zulus podem ser lidos como importantes elementos
de resistências ao regime segregacionista, bem como na reconstrução de uma
África do Sul segregada para uma nação “arco-íris”. O intuito é pensar a história
do povo zulu e elucidar as especificidades e dinamicidades das identidades na
cultura zulu, tendo como recorte o Apartheid (1948-1994). O trabalho parte
ainda da perspectiva de que é necessário romper com a vertente da “história
única” que tem apresentado o continente africano de forma homogeneizada,
catastrófica e folclorizada.
Certamente, as festas e festejos e seu universo material, mítico e humano
podem ajudar a compreender histórias de homens e mulheres que viveram
nos contextos aqui enfocados.

Os organizadores
E ERA NOITE DE LUAR: festas e festejos
sob o céu de uma cidade (São Luís, 1850-1900)

Maria da Glória Guimarães Correia

No correr do século XIX, a passagem do tempo, em São Luís do Mara-


nhão, foi marcada por festas. Festas de toda ordem, para gosto e regalo de
todos; dos mais e dos menos exigentes, embora esses e aqueles nem sempre
estivessem de acordo quanto ao bom e ao belo, ao certo e ao errado, muito
especialmente em relação a determinados ajuntamentos de gente, com rezas
e ladainhas, cantos e danças, para uns considerados festividades religiosas,
enquanto, para outros, tudo aquilo eram ofensas às coisas sagradas, pagodeira
pura. A despeito desse desacordo de percepções e juízos contrários, algo sobre
o que não podiam tais partidos discordar era quanto ao fato de São Luís ser
uma cidade festiva; para uns, festeira mais da conta, enquanto para outros,
menos do que deveria, é bom que se diga. De todo modo, tendo como guia
uma Folhinha de Algibeira! preparada para o ano de 1843 e como fiel da ba-
lança o parecer de certa “velha Cira”, há de se concordar com a dita senhora
quando diz que o povo dessa terra só queria saber de festa, principalmente a
arraia miúda, espécie que conhecia muito bem, por ser uma delas e viver em
seu meio, embora criticando o jeito de ser de todas mais.
Fruto da agudeza do olhar de Nascimento Moraes, era a velha Cira per-
sonagem da rica galeria de homens e mulheres criados por ele e por meio dos
quais se empenhava em dar visibilidade a modos de ser e de estar no mundo,
sentimentos e vivências, tensões e conflitos que imprimiam o tom e o ritmo
da vida em São Luís na segunda metade daquele século, especialmente em
sua última década. Tempo, convém que se diga, em que discursos e práticas
pareciam se encontrar ainda em maior desacordo do que antes; em que a dis-
tância entre intenção e gesto se mostrava mais longa, notadamente, em face
das idéias que passavam a circular num chão de história tão diverso daquele
em que haviam brotado, como bem o mostravam seus mirrados frutos.
E se assim o era, para mostrar as contradições que pontuavam o viver
num mundo tão complexo, primeiramente e para uma maior acuidade do

1 Folhinha de Algibeira: Espécie de almanaque em formato pequeno, próprio para ser carregado no
bolso (algibeira), contendo informações de natureza e objetivos os mais diversos, predominando,
todavia, seu caráter eminentemente prático, como a indicação da época mais propícia para a
semeadura de determinados frutos, fases da lua, marés, autoridades, serviços, calendário cívico e
religioso, festivo.
16

pretendido, careceria de se empreender uma exaustiva “discussão sobre as


categorias de humano, inumano e desumano”, para pensar sobre as gentes que
ali viviam. Isto porque, pairando alguma dúvida sobre a humanidade desse
ou daquele ser, alguém haveria de responder: “ele é humano com seus pares,
trata bem as pessoas, ama a música, as artes”2. Cenário que talvez baste para
se intuir como era esse mundo sobre o qual se está falando, como também a
razão e o porque de tanta festa em seus limites.
Dito isso, tem-se ainda que, na São Luís daqueles dias, frações de suas
elites ocupavam grande parte de seu tempo, gastavam muito de seu latim e
punham seu juízo em rodopio a discutir, dentre outras questões, se o Ma-
ranhão permaneceria no atraso ou marcharia para o progresso respeitando
sua “vocação agrícola”, ou se esse só seria alcançado com a implantação
de fábricas, como vociferavam os defensores desta ideia. Perspectiva que
denotava uma visão de mundo e de vida a partir de posições contrárias,
embora tanto uns quanto outros, a seu modo, esperassem que o almejado
progresso se desse como que por passe de mágica, uma vez que a escravidão
estava ali e igualmente se empenhavam para que fosse mantinda enquanto
possível fosse, num testemunho da barbárie que imperava naquele meio
pretensamente civilizado.
Assim, entre o sim e o não, o dito e o não dito, o sonhado e o vivido,
iam correndo os dias sob o céu dessa cidade onde grandes embates, graves
polêmicas e questiúnculas de somenos importância pugnavam para apartar
os que lhe davam vida: peixe grande para cá, arraia miúda para lá; sagrado
de um lado, profano de outro, normas e preceitos aqui e gozo da vida acolá,
o que quase sempre deixava a arraia miúda em apuros. Isso porque esta, em
sua grande maioria, era portadora de sabedoria bastante para perceber que
são “todos os santos bem-vindos”e que do mesmo modo que reverenciava
todos os santos da corte do céu, rezando contrita terços e cantando ladainhas,
também amava bailes e todo tipo de cantoria, dava uma das sete vidas do
gato por um batuque e outra por qualquer folia, mesmo em dia de trabalho,
transformando às vezes terça-feira em domingo.
É, pois, a partir dessa profunda diferença entre concepções de mundo
e de vida que se podem entender as tensões que marcaram o bispado de D.
Antônio Cândido de Alvarenga (1878-1898), prelado que aportou nas terras do
Maranhão empunhando a bandeira da romanização, processo que em nome de
uma moralização da vida religiosa nessas terras representou, de fato, um forte

2 FIGUEIREDO, Eurídice. A reescrita da escravidão como perlaboração em Patrick Chamoiseau,


In: FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de etnicidade: perspectivas interamericanas de literatura
e cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. p. 187.
3 AUGRAS, Monique. Todos os santos bem-vindos. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 17

investimento no sentido da “internacionalização do cristianismo brasileiro”*.


Cruzada essa que tinha como um de seus principais objetivos a extirpação do
profano dos domínios do sagrado, fazendo-o nos marcos do dito processo de-
sencadeado pela Igreja Católica, com vistas ao enquadramento das percepções
e vivências do sagrado a partir dos dogmas e normas por ela elaboradas. Para
tanto, acionava meios de infundir angústias escatológicas e pavor do inferno
no coração dos incautos, como registra D. Manoel Joaquim da Silveira, 17º
bispo do Maranhão, num relato sobre sua visita pastoral à ribeira do Mearim,
nos idos de 1858, a propósito da qual escreve:

Condemnei o uso dos bailes de São Gonçalo, tão frequentes por toda esta
ribeira, acreditando o Povo, que elles são não só cousa muito lícita, mas até
agradável a Deos. Fiz-lhe ver que não há inimigos mais perigosos, do que os
divertimentos nocturnos, como essas dansas immodestas, que obrigão a tantas
despezas ruinosas. Disse-lhe que taes bailes não são cousa de S. Gonçalo, mas
do diabo e só próprios para perverter os costumes, e fazer-nos perder a salvação
eterna, lançando-nos no abysmo do pecado. Em Victória eu comutára o voto
de uma mulher, que não tinha cem mil reis, para pagar os gastos do tal baile.

Tratava-se, pois, de um projeto que atingia diretamente aquilo que se


configurava como um catolicismo brasileiro, o qual se havia desenvolvido
enquanto expressão religiosa do vivenciado por homens e mulheres comuns,
gente e simples, por conseguinte, maioria também dessa cidade e província,
cujas crenças e práticas, sob muitos aspectos, revelavam concepções e pos-
turas bem diversas em relação àquelas concebidas e dissemindas pela Igreja
de Roma como verdadeiras e únicas admissíveis.
Na mira desse cruzado, também se encontravam outros tantos desviantes,
como ateus, livre pensadores, maçons e igualmente quem não era nada disso,
mas conhecido por seu anticlericalismo. Tempos depois, reconstituindo e
analisando esse episcopado, fazendo-o, todavia, com uma visão muito seme-
lhante à do bispo, escreve D. Felipe Conduru Pachêco a respeito do conflitos
desencadeados em decorrência dos ditames daquele prelado:

Ao tomar posse de sua diocese havia no Maranhão crosta atávica de


religiosidade exterior superposta a um fundo de conhecimentos pouco
sólidos da religião. Os dirigentes mesclavam a algum sentimento cristão
idéias filosóficas arrevessadas, importadas de meio mais avançado e nessa
desorientação intelectual geralmente a corrupção moral, que começava a
transbordar em manifestações públicas de impiedade.

HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 132.


q

PACHECO, D. Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. Maranhão: Departamento de


Cultura do Estado, 1968. p. 255.
6 Ibid., p. 398.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 19

festividades em louvor a santas e santos ali eram muitas, arraiais/largos e


bailes eram o que não faltava, de modo que haja noites na rua!
Como essa campanha constituía um esforço de uniformização da Igreja
católica, nos marcos de um processo mais amplo de romanização, implicava
todo um empenho de silenciamento de manifestações de diferença, de apaga-
mento da cor local, a ser alcançado por meio da extripação de tudo que tornava
esse catolicismo tão singular, a fim de a “fé católica apresentar-se com nova
face”!º, uma face romana. Diante dessa violência, no caso de São Luís, no
lado oposto ao do bispo se encontrava o mais dos “protagonistas anônimos
[de sua] história”, no belo dizer de Ronaldo Vainfas, pois que também entre
esses havia quem partilhasse o mesmo espírito do prelado, ainda que contra
o da maioria dos seus.
Como já dito, dentre outros, era objetivo desse projeto pôr fim àquele
tipo de festejo em que a grande maioria da gente da cidade se esbaldava,
dando curso e vazão a “transbordamentos de desejos”!2 que ensejavam toda
sorte de pecadilhos e também a desvios mais graves, porque esses eram dias
regados a bebedeira e marcados por comilança, danças, descantes, disputas
de toda ordem e muito namoro, dos mais inocentes aos que iam engrossar os
anais da polícia. Por outro lado, sendo certo que essas festas traziam alegria
a muita gente, bom mesmo era que após uma logo vinha outra, sobre o que
reclama a velha Cira, dizendo:

Lá vem a festa de São Benedito. São treze dias de pagodeira. Só aqui, na


vizinhança, são três bailes! Não sei onde essa gente arranja tanto dinheiro
para botar fora! E, quando acaba São Benedito, lá vem outro santo, e
depois outro, e assim por diante. Essa gente não passa um mês sem ter
um santo para festejar [...]. O que os santos querem é que a gente reze,
pedindo-lhes perdão pelas faltas cometidas [...]. Mas é só o que essa gente
não faz, porque esses diabos não entram na igreja! Arranjam essas festas
para comer, beber e dançar [...]. Os santos que fiquem por aí!

Com efeito, acompanhando a passagem dos dias naquela já mencionada


folhinha de algibeira, toma-se conhecimento, por exemplo, de que o ano co-
meçava com a “Festa do Menino Deos na Conceição” e que logo após essa
celebração de 1º de janeiro, no dia 6 do mesmo mês, festejavam-se os Santos
Reis com reza e cantoria por toda a cidade e seus subúrbios. Assim, sob o
clarão do luar ou sem o favor da lua, seguiam os grupos de Reis noite adentro,
iluminando seus caminhos com brandões e lamparinas, a fim de homenage-
arem o Menino, dançando para ele em largos, praças e casas de família onde

10 | AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. São Paulo: Ed. Paulinas, 1992. p. 29.
11 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
12 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
13 MORAES, José Nascimento. Vencidos e degenerados. São Luís: Typ. do Frias, 1982. p. 40.

ALA AAA 4 ais


20

havia presépio. E se para completa ciência do caso importa saber!*, diga-se


que se esse deambular e cantorias constituíam motivo de alegria para muitos,
vinha a ser a alegada causa do dissabor de uns poucos, com se vê pelas crí-
ticas que faziam veicular pelos jornais e que iam se tornando cada vez mais
ácidas e intolerantes à proporção que o século avançava e as elites da terra
iam construindo uma imagem de si como a civilizada do mundo. Razão por
que não podiam tolerar esses festejos que lembravam tempos de antanho,
passadas era de atraso.
Ainda no dia 6 de janeiro, também tinha lugar a “Festa dos Pretos na Igreja
do Rozario”, templo que havia sido erigido por “pretinhos irmãos da Virgem
Senhora do Rozario” nuns chãos que lhes haviam sido doados pelos frades
Carmelitas, no local onde a ordem tivera seu primeiro convento, razão por que
era conhecido como Carmo Velho. Ainda em conformidade com essa escritura
que foi lavrada em 17 de maio de 1717, para a efetivação da doação, impunham
os carmelitas como contrapartida a obrigatória edificação de “uma ermida de-
dicada à mesma santa”, o que os ditos “pretinhos” já pretendiam fazer, sendo
“representados nesse instrumento pelo Rei da Irmandade, o preto Luís João da
Fonseca”. Dado que indica duplamente a antiguidade dessa devoção entre
negros em terras do Maranhão e sua organização em uma irmandade em louvor
à Virgem do Rosário, como também da figura de um Rei representando a todos.
No que diz respeito ao templo propriamente, nunca será demais lembrar o
esforço empreendido e as dificuldades que esses irmãos seguramente tiveram
que enfrentar para honrar o compromisso assumido e, principalmente, para
dar forma concreta e visibilidade àquilo que representava a um só tempo a
materialização de um sonho e o agenciamento de um instrumento de luta em
favor de sua dignidade por meio da construção daquele espaço de pertenci-
mento. Então, num processo longo e certamente marcado por altos e baixos
e idas e vindas, habilidosas mãos de diferentes artífices foram transformando
aquela ermida, tal como foi em seus primeiros dias, numa igreja tão bela, tão
bem servida de alfaias e sem par em São Luís, que foi elevada à condição de
catedral por duas vezes.
E se não muda muito perguntar sobre o estado de ruína em que se en-
contrava a catedral tampouco especular sobre a qualidade dos serviços que,
não havia muito, tinham sido realizados nesse recinto sagrado, o certo é que
esse status e a celebração de todos os ofícios divinos que ali tinham lugar
foram transferidos para a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Escolha que
certamente não recaiu sobre ela por ser uma igrejinha de pretos, grande parte
dos quais escravizados, por isso mesmo, igreja de gente sofrida e inferiorizada,

14 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 24.


15 MARQUES, César Augusto. Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão. Rio de
Janeiro: Fon-Fon e Seleta, 1970. p. 558-559.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 21

naquele naquele mundo em que todos se queriam senhores. Para tanto, não
pode pairar dúvida de que fosse a que melhores condições apresentava para
o desempenho de tão elevada função, durante todo o tempo em que a Sé do
bispado estivesse em obras, dando-se como exemplo que confirma sua escolha
o caso do “Convento do Carmo e o Hospício do Bomfim”, que se encontravam
em “péssimo estado e a Igreja mal tratada”!S.
E assim se deu que em “21 de Novembro, o Sr. Bispo canta missa pon-
tífical na Catedral provisória e dá após Bênção Papal, havendo procissão de
praxe”"”, Quanto à procissão que celebrou a elevação da igrejinha de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos ao status de catedral, é de se supor que tenha
observado o estilo e o giro de sempre, até porque uma procissão, antes de
tudo, configura-se como um “espetáculo edificante”!*. Era o ano da graça de
Deus de 1852 e ainda não seria daquela vez que obras realizadas na catedral
fossem executadas com o devido respeito a seus santos e anjos, de modo que
não precisassem andar em busca de abrigo em outras casas santas. Isso por-
que, tendo sido “empossado em julho de 1878, em maio de 1879 dirigia-se
D. Antônio Alvarenga ao Ministro Carlos Leoncio, dentre outros assuntos,
para tratar de reparos que precisavam ser feitos na Sé, pois, a seu juízo, não
poderia haver “no Brazil Diocese alguma cuja Cathedral se ache em peior
estado que a do Maranhão”.
Trata-se de uma apreciação que não parece ter sido ditada por exagero
do bispo nem constituir artifício retórico para convencer o ministro, quando
se tem conhecimento de que em março de 1882, em meio a outras partes que
ameaçavam desabar, “o tecto de toda a Cathedral” estava tão arruinado que
mal poderia suportar aquele “inverno, sendo de muita necessidade no verão
futuro fazer-se essa obra, para não ser destruída a Cathedral”?º. Lembrando
ainda quanto à igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos que, fosse
por reunir condições para tanto e também pela generosidade de ajudar quem
precisava de ajuda, o certo é que se consolidaria como um espaço de grande
significado para vivências do sagrado, por segmentos, instituições, grupos e
pessoas socialmente menos favorecidas, pois além da irmandade que a fizera
erigir, acolhia em suas dependências as de São Benedito e de Nossa Senhora
da Conceição dos Mulatos, até que construíssem a própria igreja.
Desse modo, cumprindo bem a função precípua que lhes dava sentido,
além de espaço de vivências do sagrado, as igrejas, com suas missas, novenas,
procissões e outras celebrações — como era o caso das festividades em louvor
dos santos nelas cultuados -, constituíam espaços de sociabilidade de grande

16 — PACHÊCO, D. Felipe Condurú. Op. cit. p. 213.


17 Ibid.,p. 187.
18 | SARAMAGO, José. Op. cit., p. 53.
19 — PACHECO, D. Felipe Condurú. Op. cit., p. 379.
20 Ibid., p. 380.
22

força coesiva, uma vez que ensejavam o desenvolvimento de sentimentos


de pertença, a criação de marcadores identitários e o surgimento de laços de
solidariedade entre os que deles tomavam parte, mais ou menos ativamente.
Nesse sentido, pensar a festa de Nossa Senhora do Rosário, por exem-
plo, implica ter em mente que a irmandade responsável por sua organização,
mesmo admitindo brancos e mulatos, era majoritariamente constituída de
negros, embora não necessariamente escravizados ou pertencentes a uma
etnia ou ofício; que grande parte dos devotos da Virgem não pertencia a essa
instituição, mas seguia seus ofícios e contribuía para a grandiosidade dos
festejos em sua homenagem. Sem esquecer outro tanto de homens e mulheres
que cumpriam suas obrigações de fiéis em seu templo engrossavam o cortejo
das procissões em seu louvor e folgavam com as brincadeiras, comes e bebes
e outros deleites ensejados por sua festa, tais as brincadeiras que aconteciam
no largo, além dos bailes que marcavam esses períodos festivos, no desenrolar
dos quais amores se encontravam, amores se perdiam. Conjunto de pessoas,
sentimentos e vivências, pois que eram marcados e constituíam marcadores
desses festejos.
Ainda quanto a esses festejos, sabendo-se que eram muitos na cidade
e que aconteciam no correr de todo o ano, uns eram realizados no inverno e
outros no verão, ou seja, na estação das chuvas e no tempo do estio, de janeiro
a junho e de julho a dezembro, respectivamente; um ou outro quando essa
ou aquela “estação [corria] formosa”?!. No primeiro caso, mesmo sabendo
que era a chuva “consolo da pele da terra”,2 tinham os devotos e curiosos
que pisar em lama, saltar poças e atravessar verdadeiras lagoas, sempre com
o risco de escorregões e tombos. No segundo, basta imaginar uma procissão
se deslocando por “ruas escavoucadas e com as pedras soltas a rolarem”,
propícias, portanto, a tombos, principalmente pelos devotos mais contritos
“em virtude do mau calçamento”; sem contar “as nuvens de pó [...] e um
calor asfixiante”, que faziam “acodir à lembrança os tormentos que o Dante
imaginou no seu inferno.?
Isso posto há de se observar que a devoção e os festejos em louvor a
Nossa Senhora do Rosário eram organizados nas terras do Maranhão desde
recuados tempos, tendo em vista que no ano de 1716, em sinal de agrade-
cimento pela definitiva derrota dos otomanos em solo europeu, o papa Cle-
mente XI ordenou “que a festa do Rosário fosse celebrada por toda a Igreja
Católica”, embora não seja possível precisar a partir de que ano começaram
esses festejos. E sendo impossível estimar o quanto terão mudado no decurso

21 SARAMAGO, José. Op. cit. p. 135.


22 Ibid., p. 142.
23 PACOTILHA, 10/11/1894.
24 — AUGRAS, Monique. Op. cit., p. 41.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 23

de tantos anos, é certo que mudanças ocorreram, até porque “assim como não
há uma História imóvel, não há festa imóvel”. Por outro lado, se mudanças
substanciais, profundas, só podem ser percebidas na longa duração, tendo em
vista que “a festa não é uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações,
de transições, de inclusões com uma das mãos e afastamentos com a outra”?
a mudança da época do festejo e as restrições às atividades enquadram-se na
dinâmica dos bens culturais, que só permanecem porque mudam.
Portanto, se a organização dos festejos em louvor de Nossa Senhora
do Rosário continuava a cargo da irmandade criada para seu culto e a serem
realizados na igreja que seus devotos haviam erigido para melhor cultuá-la,
as festividades com que anualmente davam públicas demonstrações de seu
amor e gratidão, pelas graças alcançadas com sua intercessão, mudavam de
data, o que demandaria uma pesquisa mais ampla para a explicação dessas
mudanças. De concreto, percebe-se que, a certa altura, deixaram de ser ce-
lebradas em janeiro, mais precisamente no dia dos Santos Reis, passando a
sê-lo entre os meses de setembro e outubro.
Há, todavia, de se observar que, bem mais do que uma simples alteração
de datas, implicou uma troca da estação, uma vez que os festejos deixaram
de ser realizados no período das águas grandes, passando para o tempo estio.
Mudança que, em grande medida, convinha mais à parte da programação que
tinha lugar ao ar livre, como é o caso das procissões e das atividades realizadas
em arraial, em largo, que, à época, pareciam ser os momentos mais esperados
do conjunto de celebrações que compunham os festejos de cada ano.
O que determinou tal mudança não se sabe, mas expor a imagem da
santa à chuva natural da estação, certamente não era o que os organizadores
da festa desejavam, haja vista o tom de lamentação, e às vezes de mofa, das
notícias sobre essa ou aquela festa que fora prejudicada, perdera seu brilho,
ou nem chegara a ser realizada por conta da chuva. Daí por que, como “para o
homem religioso o cosmo “vive”, “fala””%, perscrutar o horizonte, tentar per-
ceber o que diziam as nuvens, o rumo do vento, o voo dos pássaros, era algo
que todos faziam, mesmo não adiantando nada tantas angústias e simpatias.
Afinal, entre os meses de dezembro e julho, pessoa alguma podia afirmar se
choveria ou não, tampouco explicar o porquê de ter chovido tanto durante o
giro da procissão em louvor do santo dessa irmandade e não ter caído uma
gota sequer na procissão do santo da irmandade rival.
Assim, quando o tempo se mostrava fechado, é de se supor que Rei e
Rainha, Príncipe e Princesa, Juiz e Juíza, todo o corpo, enfim, responsável
pela organização da festividade se visse com o coração “mordido de sustos e

25 VOVELLE, Michel. ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 251.


26 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992. p. 59.
+
24

de dúvidas”?”, por não saber se a procissão faria seu giro sob um ameno sol de
fim de tarde; se um leve e breve chuvisco cairia como água benta espargida
sobre os devotos, para amenizar o afogueado da caminhada; se um rompante
de grossos pingos, daqueles que, sem anúncio, caem por um minuto, deixando
andores, estandartes, luminárias, sobrepelizes, opas e vestimentas de festa
amarfanhadas, como também um álacre cheiro de terra no ar, que uns gostam e
outros acham que é cheiro de enxofre, portanto, cheiro do Belzebu, do Coiso,
do Coisa Ruim, ou se, sem qualquer concessão a promessas e simpatias,
teriam de cumprir sua obrigação sob chuva torrencial, como costumavam
cair a partir de janeiro.
E se a “festa devia ser assim: o risonho termo e começo de tudo, a gente
desmanchando tudo, até o feito com seu suor do trabalho de sempre; e sem
precisar, depois de tornar a refazer”?, salvo se suas majestades, suas altezas
e mais autoridades da nobreza togada, que compunham sua corte e séquito,
tivessem “um sabido anjo da guarda”?, o giro da procissão não seria feito
sob pesadas bagas d'água. Graça que livraria uns e outros de ter seus trajes
enxovalhados, pois mesmo não sabendo o que vestiam, é de se supor que
envergassem trajes condizentes com sua dignidade e em conformidade com
a importância daqueles especialíssimos dias.
Por outro lado, se, a título de exemplo, não é possível afirmar se choveu
ou não na procissão de São Benedito, que saiu da igreja do Rosário em 12 de
fevereiro de 1871 e para a qual a mesa diretora da irmandade havia solicitado
aos fiéis que enviassem “seus anjos [...], assim como offerendas para o leilão”,
para “maior brilhantismo da festividade”*º, é certo que, “apesar da chuva tor-
rencial que cahio antehontem, a procissão de São Benedito sahio a percorrer o
itinerário de costume, com um acompanhamento extraordinário”?!, de acordo
com o que publica a Pacotilha, em 18 de abril de 1887, num testemunho de
sua devoção. Quanto aos anjos, há de se registrar o terminante comunicado
que D. Manoel Joaquim da Silveira enviou ao frei Vicente de Jesus, guardião
do convento de Santo Antônio, em 14 de março de 1853, no qual dizia que,

Sendo informado que na procissão de S. Benedicto, que faz na segunda-


-feira depois do Domingo de Paschoa a Irmandade do mesmo Sancto, se
apresenta um grande número de crianças, entre ellas algumas já púberes,
seminúas — o que é um verdadeiro desacato ao acto religioso e que es-
candaliza ao Povo Christão, fique V. Paternidade na inteligência, de que
não permittimos, que d'ora em diante, acompanhem a dita Procissão taes

27 Ibid. p. 194.
28 Ibid., p. 195.
29 ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguelim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 154.
30 PUBLICADOR MARANHENSE, 04 fev, 1871.
31 PACOTILHA, 18 abr. 1887.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 25

crianças, à quem chamão Anjos, nesse estado de seminudez, com quanto


aliaz muito enfeitadas; mas, se deverão apresentar inteiramente vestidas,
seja qual for a sua condição — livre ou captivo. E se á despeito dessa Nossa
prohibição, ainda assim se apresentarem para acompanhar a Procissão as
ditas crianças, V. Paternidade detenha a sahida da Procissão, até que ellas
se retirem e no caso de insistência, faça recolher a Irmandade, desfaça a
Procissão, e dê o acto por terminado”.

Quanto à dita determinação, primeiramente, cabe observar que “usa cada


qual os olhos que tem para ver o que pode ou lhe consentem, ou apenas parte
do que desejaria, quando não é por simples obras do acaso”*. Em segundo
lugar, tendo em vista que a submissão a determinados ditames quase nunca
se dava sem resistência e de forma imediata, é difícil afirmar que esse caso
tenha se configurado como uma exceção à regra. De todo modo, desenho de
João Afonso, ilustrando página dA Flecha no ano de 1879, mostra que os
anjos andavam então bem vestidinhos, ao gosto da moral, sabe-se lá de quem
mais, além do bispo.
Ainda a respeito desses festejos, notadamente de São Benedito e de Nossa
Senhora do Rosário, convém lembrar que reuniam homens e mulheres de
perfis os mais diversos, de modo que um simples relance de olhar sobre esses
cortejos bastava para dizer quem era quem, uma vez que eram organizados
com “todos observando precedências e preceitos, cometendo plurais vênias”**.
Dessa forma, ainda que sem dizer palavra, mesmo não pronunciando “vo-
cábulo de especialidade” e sem portar insígnias que os identificassem, um
corpo aprumado, uma coluna curva ou mais cambada para um lado, um passo
firme ou bamboleante, constituíam marcas de ofício inscritas na “memória
do corpo”*º de uns e de outros, indicando o lugar de cada um naquele mundo.
Com efeito, mesmo sabendo que vestimentas e adereços representam
“traduções visuais”*'de gênero, de classe e outras variáveis que definem os
diferentes sujeitos, não só por opas, vestidos, casacas, botinas, chinelas, ben-
galas, chapéus e outros signos que portavam, mesmo em dia de festa sabia-se
quem era quem em seu dia a dia, uma vez que eram identificáveis, por exemplo,
pelas marcas de seu labutar que traziam no próprio corpo. Uma coluna mais

32 PACHÉÊCO, D. Felipe Condurú. Op. cit., p. 190.


33 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 89.
34 Ibid., p. 162
35 BOVINI, Emilio. Os vocábulos de origem africana na constituição do português falado no Brasil.
In: FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida. Africa no Brasil: a formação da língua portuguesa. São
Paulo: Contexto, 2008. p. 122.
36 ARANTES, Otília Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Moda caipira. In: ARANTES, Otília
Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Cândido,
Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz & Terra, 1997. p. 87.
37 | SARAMAGO, José. Op. cit., p. 57.
26

ereta, um queixo levantado, um olhar mirando o horizonte, podiam indicar


que por ali passava uma das muitas vendedeiras que, de sol a sol, tabuleiro na
cabeça, subiam e desciam as ladeiras da cidade, como aquela que morava na
Rua do Mocambo, vendia arroz e feijão e a quem certa “Juliana, ex-escrava
de J.G. Teixeira, moradora num cortiço lá no Currupira”, vinha “todos os dias
provocar, [...] por causa de um marceneiro”**.
Dorsos largos, troncos volumosos, musculatura rija, certo jeito de pisar,
muito provavelmente, eram traços que faziam reconhecer carregadores de
canga e de outros meios de transporte de seres e coisas de cataduras, feitios,
tamanhos e volumes diversos, como pianos, por exemplo. Carreto, aliás, que
não faziam “sem ciência e arte, distribuir o peso, combinar as forças [...],
aproveitar o molejo das cordas e do pau para ritmar a passada, enfim, segredos
de ofício que tanto valem como outros, e cuida cada qual que os do seu são
máximos”. “Em dias de semana”, muitos que tinham esse porte e viviam
desse tipo de trabalho, “com suas rodilhas caprichosamente feitas”, reuniam-se
no Canto Pequeno, à espera de contrato e também rindo e fazendo galhofa de
quem passava, o que dava lugar a muitas reclamações às autoridades quanto
ao seu comportamento".
À crer nos jornais que então circulavam, essa galhofa seria ainda mais
intensamente nos dias do Entrudo, quando, repetidamente, eram acusados de
desrespeitar as famílias, entendendo-se como tal aquelas dos segmentos mais
ricos e remediados da sociedade, portanto, de quem, muito mais do que antes,
dormia agora ao pé do Vesúvio, com medo de que lhe sobreviesse o que so-
breviera aos senhores no Haiti, nos inícios daquele século. E se a muitas delas
só restava “uma pequena brisa do que [fora] vento de orgulho”*!, importa que,
por meio da galhofa e de outras formas de resistência, seguiam aqueles negros
de canga sem dobrar a cerviz, que era seu modo de ganhar a vida, em todos os
sentidos. Acerca dessa altivez, dessa negação da tentativa de amesquinhamento
de sua condição humana, rezava a crônica do cativeiro “que se orgulhavam do F
que lhes marcava o ombro, vendo naquilo mais um símbolo de honra do que de
infâmia”*, o que é reiterado por um calhambola ao dizer: “Membro a membro
meu corpo quebrava/ A vontade, ninguém m'a quebrou!”.*
Por seu caminhar, podia-se perceber entre os passantes “mulheres ma-
goadas por intempéries que só elas conhecem”, percebendo-se também

38 PACOTILHA, 05 nov. 1883.


39 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 195.
40 VIEIRA FILHO, Domingos. Breve história das ruas e praças de São Luís. Maranhão: [s.n.], 1971. p. 28.
41 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 74.
42 BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 159.
43 GALVÃO, Trajano. O Calhambola. In: LEAL, Antônio Henriques. Pantheon maranhense: ensaios
biográficos de maranhenses ilustres já falecidos. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987. p. 292. T. |.
44 PEIXOTO, José Luís. Em teu ventre. Lisboa: Quetzal Editora [s.d]. p. 141.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 27

nesses cortejos tipos que pareciam ir “caminhando na ponta dos pés, como
quem pisa nos corações”, visto que, assim como todas as outras, a cidade
tinha lá seus “malandro”, categoria em que se enquadrava certo Dr. Bruxelas,
“Raneur e gigolô, bolso vazio e espocado, [...], figura urbana de nome feio,
que conquista e mente, tem trues magníficos, sorrisos cativantes de adoles-
cente e frases insinuantes, capazes de convencer até o diabo se lhe aparecer
vestido de mulher”. Nunca sendo demais lembrar que além do pisar macio,
o “malandro anda assim de viés”*º ou com umas “passadas monótonas, como
um urubú farejando uma carniça””, tal como devia fazer o dito doutor, que
foi desse modo descrito:

Branco, magro, anguloso; com o nariz vermelho, curto, arrebitado; rizo-


nho; uma pontinha de bigode mal lhe aflorando ao beiço; pernas finas,
cambaias, calças boca de sino, apertadas aos joelhos, sapatos brancos, de
bico chato, palito azul, de lustrim; gestos graves; óculos escuros para não
ser reconhecido. [...]. Afetando a voz e a língua, dava-lhes tonalidades
melífluas, arrastadas de português do Minho [...]*.

E porque, a não ser a quem estava cumprindo pena, trancafiado em ca-


deia, a ninguém mais era proibido tomar parte nessas festas religiosas, nelas
também se podia encontrar mulheres como Maria do Carmo,

uma cabrocha madura, redonda, de dentes ponteagudos, cortados à nava-


lha, e cepo, serrados à lima, os braços tatuados, com signos de Salomão,
e corações atravessados por punhais, cabelos crespos, com dois cachos
caídos à nuca, pescoço grosso, amarrado por uma fita de veludo, fina, donde
se pendurava uma figuinha de oiro; os olhos empapuçados, satisfeitos,
risonha, vinda de pouco de Caxias, [...], maço respeitável de jasmim ao
cocó, para chamar atenção dos que passavam”.

Isso, mesmo sendo sabido que era preciso ter “cuidado com essas mu-
lheres de Caxias, que são da pá virada. Andam de navalha ao cabelo, e de
punhal ao cós da saia”*.
Assim, observando-se o devoto cortejo e atentando-se para a postura, o
caminhar, o falar e outros traços daqueles que passavam, tinha-se fidedigna-
mente registrado um inventário do irremediável, testemunhado nos corpos dos
passantes, ficando a estranheza por conta dos anjos, obrigatória presença entre

45 PINTO, Fulgêncio. Dr. Bruxelas & C. Maranhão: Typ Chaves & Comp., 1924. p. 2.
46 BUARQUE DE HOLANDA, Chico. A volta do malandro. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque.
Malandro. Polygram, 1985. Faixa 1.
47 PINTO, Fulgêncio. Op. cit., p. 54.
48 Ibid., p. 12.
49 — Ibid.,p. 53.
50 — Ibid., p. 50.
28

o comum dos mortais. E tendo em vista a grande quantidade de procissões


que percorriam as ruas da cidade ao longo do ano, parece não ser crível haver,
além da Lisboa setecentista, “outra terra onde mais circulem anjos pelas ruas
do vulgo”, não importando se “não voam”, uma vez que voar efetivamente
não constitui “prova de angelidade”*!.
No que diz respeito ao acatamento ou à rejeição do projeto das autorida-
des máximas da Igreja católica quanto à parte dos festejos que era realizada
em largo, sabe-se que, de acordo com o que noticiou o Diário do Maranhão,
em 09 de janeiro de 1877, naquele ano, a Irmandade mandara levantar um
tablado no meio do largo para a dança dos Congos. Entretanto aquele diver-
timento, que deveria “ter lugar no dia 6 de janeiro, por ocasião da festa de
Nossa Senhora do Rosário, não se efetuou por lhe ser negada a licença pela
polícia”. E embora não se saiba que motivos mais imediatos teriam levado a
essa medida, a hipótese mais plausível é a de que preconceito e intolerância
a tenham determinado, pois na mesma matéria se lê que “os grupos de negros
trajando roupas características, dançando e cantando ao som de atabaques, às
vezes causavam transtornos à polícia”. Tudo, porém, leva a crer que o ponto
alto desses festejos seriam os Congos, pois “como se tivesse anunciado, o
povo para aí acudiu em grande quantidade”, para, “descontente”, “maldizer o
logro” com uma veemência tal que a polícia reviu essa decisão que a própria
imprensa criticara, justamente ela que não se mostrava a favor dos Congos,
pois, observou o articulista:

Temos sempre condenado esses folguedos que atravessam a cidade com


infernal gritaria, muitos deles indecentes e rodeados de desenfreada mole-
cagem; entendemos, porém, que se não deve vedar ao povo que se divirta,
quando ao contrário lhe deve facilitar entretenimentos que distraiam para
que não vá consumir seu tempo em fazer mal. Que se proibisse que a dança
viesse incorporada para o lugar destinado à sua exibição, era justo como
primeiro havia determinado o sr. dr. Chefe de Polícia, mas consentindo
a dança, vindo os figurinos concentrar-se aí. Como nos afiançam [...] os
homens fizeram despesas grandes para se apresentarem decentes, e não é
justo que sejam prejudicados por uma falta de formalidade, devida sem
dúvida à ignorância.

Em 27 de janeiro, publica o mesmo jornal: “os Congos estão bem vesti-


dos, consta-nos que é gente morigerada, que só deseja divertir-se a seu gosto,
divertindo também os seus apreciadores sem perturbação da ordem, ou desgosto
de quem quer que seja”. Devendo-se ainda lembrar que uma dificuldade a mais
para a saída desses grupos se encontrava em várias determinações do Código
de Posturas em vigor, uma vez que seu artigo artigo 124 proibia “os batuques

51 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 169.


EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 29

e danças de pretos [...] fora dos lugares permitidos pela autoridade”, ficando
estipulada uma multa de cinco mil réis por cada um que desrespeitasse o de-
terminado no artigo ou seis dias de prisão, quando não tivessem condições de
satisfazer a multa pecuniária. Pelo artigo 94 não era permitido “fazer voserias,
alaridos e dar gritos nas ruas”, enquanto, além de estabelecer uma multa de dez
mil réis, o artigo 104 ainda previa três dias de prisão a quem andasse embriagado
pelas ruas da cidade. No caso do contraventor ser escravo, seria “entregue a seu
senhor” para que o punisse como bem entendesse.
Tratava-se, pois, de um conjunto de posturas que, como se vê, repre-
sentavam um verdadeiro entrave a determinadas manifestações de devoção,
prazer e alegria de negros e escravizados em geral, como é o caso dos Congos.
Primeiramente, porque eram organizadas em grupos de várias pessoas e, em
segundo lugar, por ser impossível andarem para lá e para cá de bico calado,
mudos como peixes, mais ainda em noite de festa. Além do que devia era
muito difícil resistir a uma boa giribita, por temer as consequências, cenário
que leva a imaginar o quanto tal postura terá sido observada.
Nunca é demais lembrar que com aquela decisão da autoridade poli-
cial, muitos certamente ficaram “na posição do sonhador que vai perder seu
sonho”, mas como gente que sobreviveu resistindo a toda forma de violên-
cia e humilhação, deram a volta por cima e pediram o troco. Pois, se certos
olhares viam os Congos com olhos de membros do santo Ofício, para quem
eram “más todas as vontades boas, e boas todas as razões más”**, nem toda a
gente sentia e pensava do mesmo modo, batendo seu coração em outro ritmos;
no passo e no compasso dos Congos, com “justas e rega-bofes”*. Além do
que aqueles eram dias intensos e confusos, infernais, perturbantes, pois que,
agora, “tanto parecia divertirem-se anjos como zangar-se Deus”*, fazendo o
comum dos mortais dizer a si mesmos “como poderei achar-me nesta floresta
de sim e de não”, como deverei me conduzir num mundo em que leis con-
sentem e autoridades reprimem, conforme seus interesses, partidos ou outras
motivações tão indevidas quanto na tomada de suas decisões?
Refletindo claramente as hierarquias vigentes na sociedade em que era
realizada, merecedora de tratamento radicalmente outro, tanto por parte da
polícia quanto da imprensa, tinha-se a festa de Nossa Senhora dos Remédios,
padroeira do comércio e da navegação. Festejada em outubro, era aguardada
com ansiedade, especialmente pelos mais aquinhoados, dentre outros, por
constituir um importante cenário para a exibição de suas fumaças de grandeza,
diferentemente do que acontecia durante os festejos de Senhora do Rosário,

52 CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAIS DE SÃO LUÍS, 1866.


53 SARAMAGO, José. Memorial do convento. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 210.
54 Ibid., p. 211.
55 BOXER, Charles R. À idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 166.
56 Ibid. p. 196.
30

que reunia pessoas cujo fosso de desigualdades entre elas era muito mais es-
treito e raso. E como aquele era um espaço de congraçamento, mas também
de disputas de prestígio e poder, trajes e outros adereços constituíam discursos
altissonantes acerca de cada um e de todos, razão por que anota o perspicaz
e irônico cronista: “há um mês ou mais antes do dia da milagrosa Senhora,
começa a azáfama da sua festa e as belas perdem o sono, imaginando nos
meios de melhor ataviar-se”*”.
Ainda quanto a essa preocupação que supostamente afligia os corações
femininos e a despeito da crônica do cotidiano ser useira e vezeira em associar
mulheres a superfluidades — que tinham sua expressão máxima na moda, por
ir e vir sem mais razão ou porque -, é certo que “nas sociedades burguesas, o
modo de as mulheres casadas se apresentarem em público constitui um dos
meios de seus maridos se afirmarem prósperos [...] ou socioeconomicamente
bem situados”*. E se a um mês da festa as belas perdiam o sono, preocupa-
das com seus atavios, esse era um sofrimento de que padeciam também os
homens, basta lembrar como um leão da moda se apresentou no largo, no
domingo da festa, sendo eternizado assim pelo atento olhar e jocosa descrição
de João Lisboa:

Um elegante cavalheiro se dirige para mim. Butes de polimento, calças


de casimira azul, casaca verde com botões dourados, colete de seda, chão
cinzento matizado de flores encarnadas e ramalhudas, chicória empregada
ou jabô, lenço de seda atado no pescoço de maneira graciosa e irrepre-
ensível, cadeia de relógio pendente, luvas de pelica cor de canário, leve
varinha na mão, e pendente da algibeira um alvíssimo lenço de cambraia
arrendado, e de lavarinto, recendendo a água de colônia. Como coroa e
complemento, um airoso e bem arrumado chapéu branco.”

Entretanto, como o largo constituía um verdadeiro microcosmo em que


estava representada toda a diversidade de homens e mulheres que devam vida
àquele mundo, entre ariris, bandeiras e medidas de todas as cores, circulavam
“casacas, paletós, jaquetas, calças modernas, antigas martinicas, vestidos, saias,
quinzenas, mantas, visitas, sapatos, chinelos, pés descalços”, sem esquecer
que havia outros tantos “devotos que à míngua de fatos domingueiros” iam
“às missas de madrugada; a devoção não exclui a vaidade e amor próprio”.
O que se explica pela festa representar um campo de forças onde muitas
linhas se cruzavam, formando um emaranhado de sentimentos e vivências
sobremaneira complexo.

57 LISBOA, João Francisco. A festa de Nossa Senhora dos Remédios. São Luís: Legenda, 1992. p. 29.
58 FREYRE, Gilberto. Modos de homem & modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 31.
59 LISBOA, João Francisco. Op. cit., p. 50.
60 Ibid., p. 50.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 31

Como já dito, o complexo aqui denominado festejo é entendido como algo


que era constituído por diferentes espaços, etapas e momentos, cerimônias e
rituais, múltiplas relações e folguedos mil. Assim, tomando como exemplo os
festejos de São Benedito, sabe-se que “eram treze dias de pagodeira” e que
em todo esse tempo os devotos mal entravam na igreja, mais preocupados
que estavam em beber, comer, dançar e se regalar com outros prazeres, pelo
menos de acordo com os resmungos de Cira. Tudo indica que os bailes eram
muitos nessas temporadas festivas, não só porque assim o dizia a velha senhora,
mas também João Lisboa e outros cronistas, notícias de jornal e outros tipos
de registros, cada um a seu modo, com seus efes e erres e cuja fama maior
advinha não só da turma de mala vita que reunia, como pelos sarilhos que
costumavam acontecer em meio às danças e comes e bebes.
Quanto a bailes, quem também informa sobre sua grande quantidade é
Lourenço Gomes Furtado, esse homem de papel criado por Euclydes Faria,
para rir de gentes e dos acontecimentos da cidade, apresentando a tudo e a
todos de forma “brincalhona”, “engraçada”, o que não impede de pensar que
esse tom rizível, que marca seus versos, não seja seu modo de, brincando,
criticar o comportamento de seus pares. Lembrando que “a caricatura con-
siste em tomar-se qualquer particularidade e aumentá-la até que ela se torne
visível para todos”*!, tal como nestes versos em que o poeta fala sobre bailes:

Nesta terra, meu compadre,

Tem mais bailes que dinheiro;


De dia não se descansa, e á noite, que é do socego,
Já não se dorme, se dança.
Eu já não posso commigo,
Vivo em completa canceira,
pois inda na quarta-feira
da semana que passou
levei essa noite inteira
brincando num desses bailes
em casa de Ulysses Salles.
Foi um brinquedo em família,
Sem a menor etiqueta,
todos de gravata preta, e as moças só de cambraia
ou de lanzinha de cores,
sem refolhos na saia.”

Como se vê, a vida era uma festa para essa gente, pois que se dava o
luxo de dançar a semana inteira, desperdiçando o dinheiro que tinha nesse

61 PROPP Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo; Ática, 1992. p. 134.


62 FARIA, Euclydes. Cartas ao compadre Tibúrcio. São Luís: Livraria Econômica, 1907. p. 46.
32

tipo de ajuntamento ou o fazendo mesmo sem ter cabedais para tanto, numa
tentativa, talvez, de manter uma aparência do que não era. Em outros termos,
cultivando assim um terrível desconforto, senão uma angústia seguramente
muito diversa daquelas que atazanavam o juízo de quem dançava no baile
que foi denunciado nos seguintes termos:

Na rua da Inveja n.41, reúnem-se mulheres e praças do 5º batalhão e até


escravos, que ao som de uma rabeca, danção das nove e meia ás quatro
da madrugada. Isto seria muito natural se a visinhança não fosse incom-
modada pela gritaria que faz o par marcante. Uma reflexão. Todos os
quintaes próximos a essa casa de baile tem sôffrido uma limpeza geral.
Não ha mais gallinhas.&

Para o bem e para o mal, os tempos festivos marcavam a passagem da


vida de toda gente, pois, muitas vezes, tinha como referência marcos tais como
antes, no correr ou depois desta ou daquela festa, muito particularmente no
que dizia repeito a questões de amores. Afinal, as festas eram oportunidades
de ver e ser visto, davam ensejo a encontros e desencontros, ao nascimento e
à morte desse conhecido e estranho sentir, que todos sabem como começa e
jamais como termina, tal como aconteceu com a infeliz Corina, “seduzida e
abandonada” pelo caixeiro da quitanda de João Emygdio, e de cuja história
só se tem conhecimento porque foi registrada em anais da polícia.
Fosse ou não porque o gasômetro não tivesse potência suficiente para ga-
rantir a iluminação das casas, ruas e largos, o certo é que, a depender da data, a
lua era a única a iluminar esses espaços onde ocorria uma importante parte dos
festejos. Importância além da qual se deve acrescentar que, além de iluminar, “a
lua colore a noite”, que “toda gente sabe que a noite tem outro cheiro quando
faz luar,” de modo que “até um cego, incapaz de distinguir a noite do dia, dirá
Está luar”S, o que acontece com menos intensidade quando a lua se apresenta
como “delgado crescente, curva navalha, afiadíssimo alfanje”.“Situação que
» como se pode imaginar, inspirava versos e apadrinhava namoros, não neces-
sariamente primorosos os primeiros ou felizes os segundos. Exemplo disso foi
o caso de Corina Margarida de Jesus, filha de Sophia de Jesus Moreira, que
tinha treze anos quando foi seduzida e abandonada pelo caixeiro da quitanda
de João Emygdio, que “servindo-se de bilhetes e de pequenos presentes”, além
de lhe prometer casamento, deflorou Corina, mas se recusou a casar com ela,
alegando que quando de seu relacionamento, “ela já era mulher, prostituta”, o
que ficara sabendo em conversas com seus camaradas.

63 — PACOTILHA. São Luís, 16 abr. 1883.


64 SARAMAGO, José. Op. cit., p. 76.
65 | Ibid., p. 152.
66 Ibid., p. 169.

o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 33

Na versão de Corina, “em dias de abril”, teria o acusado conseguido


os seus intentos entrando em casa da ofendida na ausência de sua mãe e
deflorando-a, depois de haver arredado às irmãs menores”. Para tanto, tendo
antes fallado com ella algumas vezes, tinha lhe enviado um bilhete e lhe
dado dez tostões em dinheiro, um papel de agulhas, uma lata de tomates,
[...], em hum dia o qual [...] não se recorda,” prendas que por si só denotam
o padrão de riqueza desse malfadado par. O que é confirmado pelo fato de
que todos moradores na Fonte das Pedras, endereço de homens e mulheres
socialmente inferiorizados, como era o caso dos que testemunharam a favor
de Corina, a saber: Sebastiana Maria da Conceição, preta liberta, de trinta e
cinco anos, que vívia de suas agências; Antonio Julião Marques, de vinte sete
anos, oficial carpinteiro, casado; Raimundo Nonato Valle, pardo de trinta e
sete anos, solteiro, oficial carapina, morador à rua da Cruz, no sahir da Fonte
das Pedras; Miguel Archanjo Marques, oficial sapateiro, trinta e dois anos,
solteiro, e Mariana Ennes, vinte e sete anos, solteira, que trabalhava em ser-
viço doméstico, que afirmaram perante o promotor publico, Celso da Cunha
Magalhães, que Corina não tinha nenhum comportamento que a desabonasse,
razão por que enquadrou o “Reo incurso no artigo 219 do Código Criminal”.
Levado a júri em 1º de outubro de 1876, “não por unanimidade de votos”,
os jurados responderam: “O reo [...] não deflorou a menor de nome Corina”.
Veredicto que pôs um ponto final a um sonho que teve seu início “no dia de
sexta-feira que teve logar a procissão do Bom Jesus da Cana Verde” e terminou
na “terça feira da semana da festa de São Benedito”, ambas em abril, quando,
cedendo aos apelos de João Emygdio, foi Corina “fallar com elle no lugar
indicado”, no caso, “a sua quitanda”, lugar onde não tendo “cama ou rede a
deitou numa meia saba, deitando-se também o accuzado”, o que igualmente
interrompeu seu futuro de moça casadoira, uma vez que infamadas ficavam
todas as mulheres que por amor, desejo ou absoluta inocência tinham sua
história registrada como esses.
Porque a vida seguia em frente, aos dias de muita vergonha e grandes
preocupações, como aquele em que tudo aconteceu e no qual Corina “tomou
três banhos”, denotando assim quanta sujeira supunha estar impregnada em
seu corpo, devem ter sucedido, pelo menos, horas de alegria, quando sorrisos
devem ter iluminado seu rosto. O que bem podia acontecer em festas religio-
sas que pontuavam os meses, configurado ciclos festivos que marcavam o
calendário anual da alegria e do prazer, na cidade, tal como se pode deduzir
por meio do programa abaixo, organizado para o festejo da virgem e mártir
Santa Severa, a ser iniciado em 1º setembro de 1881.

Ao amanhecer do dia 13 de setembro próximo vindouro, diversas girândolas


de foguetes e uma salva de 21 tiros de canhão annunciarão aos habitantes
desta capital que vão começar os festejos, e duas bandas muzicais postadas
nos seus coretos, expressamente preparados para isso, tocarão lindas e
variadas peças de seus repertórios.
Domingo 4 às 71/2 da manhã será celebrada na Egreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição uma missa solemne applicada a dos devotos.
Das quatro às dez horas da noute estarão as referidas bandas de muzica
em seus respectivos coretos, tocando além de belíssimas peças, uma valsa
expressamente escripta para esse dia, por uma distincta maranhense, a qual
por modéstia excessiva não deseja publicar seu nome.
Às 5 horas da tarde uma comissão estará à porta do antigo e popular tem-
plo de Sam Thiago, hoje completamente abandonado, quase em ruínas,
devido a um mal entendido capricho, distribuirá esmolas de quinhentos
reis a todos os mendigos que ali se apresentarem.
Ás 9 horas da noute um curioso fará experiência de uma magnífica “machina
termostatica”. Sem desejar colher os louvores que no mundo scientifico
almeje o Sr. Ribeiro, do Pará, este nosso modesto e intelligente patrício,
provará que a “descoberta” da direcção de taes machinas é velha e não
merece o inventor tantos elogios e dinheiro.
Às 10 horas será “queimado” um lindo e variado fogo de artifício capri-
chosamente preparado para esse dia, por um habilissimo artista,
Para divertimento do povo molecório estará no largo collocado um “pau
de cebo”, um pato assado e dez mil reis em moeda de papel.
21 tiros de canhão e uma girândola de 100 foguetes, com preparados ainda
não vistos nesta província, annunciará que os festejos estão terminados.
O largo convenientemente preparado estará giornicamente illuminado.
São estes os festejos que o abaixo assignado tem a honra de annunciar e
pedir aos pacíficos devotos muita ordem e muito respeito, afim de que os
festejos se tornem mais pomposos e mais agradáveis. Maranhão, 18 de
agosto de 1881.
Pedro José Teixeira”.

Como já dito, enquanto manifestações da religião/Igreja oficial e/ou da


piedade dos devotos, as festas constituíam importantes espaços de sociabilidade
onde relações de amor, de amizade, de solidariedade, de disputa e de poder,
eram entretecidas. E se assim o era, a despeito das diferenças e desigualda-
des que ressaltavam do conjunto de homens e mulheres que delas tomavam
parte, seus caminhos se cruzavam nesses espaços em que rezavam, cantavam
e dançavam juntos, sabe-se lá com que simpatia ou repulsa, razão por que
constituem uma significativa fresta para que se vislumbrem alguns cenários
do viver em São Luís na segunda metade do século XIX.

67 PACOTILHA, 24 ago. 1881.


A MORTE NO SERTÃO:
as práticas mortuárias no sertão do
Piauí durante o Oitocentos

Josilene dos Santos Lima

No universo devocional do catolicismo os rituais de morte situam-se como


estratégias de salvação frente aos medos que acometiam homens e mulheres
e demonstram as diferentes maneiras de expressão da sensibilidade que os
sujeitos do conferiam aos seus entes queridos na hora da morte. Em meio aos
sufrágios dedicados a cada um, é possível perceber a dedicação colocada nas
missas, nos sinais, nos repiques nos acompanhamentos e na construção de
cemitérios. Mas em cada tempo, em cada lugar e em cada sujeito as atitudes
diante da finitude ganha um rito e um desenho próprio. Durante o século XIX,
é possível perceber muitos dos gestos que compõe essa “serenata da morte”.
Para Higino Cunha%$, no decorrer do século XIX, a Igreja modificou a
forma de converter os moribundos ilustres. O processo de conversão procura
fazer crer que o enfermo se reconciliou com a religião e que facilitou por
si mesmo, as cerimônias póstumas de encomendações, das missas e águas
bentas. Os funerais assim realizados atendiam muito mais as aparências,
conveniências e prestígio social, e ocorriam especialmente por intermédio das
famílias. Diante dessa tentativa de conversão dos livres pensadores nos últimos
momentos dos moribundos onde estes talvez não pudessem mais indeferir
acerca de tais rituais, Higino Cunha, enquanto um livre pensador avisa que:

Por minha extrema velhice, já estou com os pés na beira da sepultura e nada
mais espero desta vida, declaro, alto e bom som, desde já, a todos os que
ouvirem ou lerem, que recuso todo e qualquer oficio religioso, antes e depois
da morte e em proveito de uma vida futura, em que absolutamente não creio.“

Para Higino, “se não fosse o poder do habito”, que homem de ciência
seria capaz de aceitar tais ritos? De todo modo, o autor diz não condenar
aqueles que acreditam ou as famílias que cercam seus mortos de cerimônias
religiosas, pois segundo ao autor, “são usanças tradicionais com raízes pro-
fundas no inconsciente da alma humana, que devemos respeitar”.

68 Higino Cicero da Cunha nasceu em 1858 na localidade de Flores, Maranhão — atual Timon — e
mudou-se para Teresina, Piauí aos doze anos de idade. Em 1881, partiu para Recife a fim de cursar
a Faculdade de Direito de Recife. Faleceu em 16 de novembro de 1943.
69 CUNHA, Higino. Memórias: traços autobiográficas. Teresina: Imprensa Oficial, 1939. p. 131.
36

Essas usanças tradicionais acompanham o homem em toda sua trajetória


social. Para o homem religioso, diferente da postura de Higino Cunha, existia
a crença de que a morte não era necessariamente um fim, tratava-se de uma
passagem, já que se acreditava na imortalidade da alma. As cerimônias, a
simbologia e todo o “tratamento dispensado ao morto visava integrá-lo o
mais breve possível em seu lugar, para seu próprio bem e paz os vivos”.
Em meio ao “catolicismo barroco”?! do século XIX, as atitudes diante
da morte são em grande medida vivenciadas a partir de uma “economia da
salvação”??. Para alcançar a morada final no paraíso era necessário negociar
com o plano sobrenatural e se preparar, utilizando-se de todos os recursos
disponíveis na cultura material e no imaginário social do período.
Os sermões do padre Antonio Vieira funcionam como uma instrumen-
talização do tema da morte, em meio a essa economia da salvação, fortale-
cendo a crença. Para autor “não resta de todos eles outra memória, mais o
que os poucos versos de suas sepulturas”, no entanto conclui tal afirmação
dizendo que até mesmo para as pedras e os nomes a morte vem?. Segundo
os sermões de Vieira é necessário entender que se homem do pó veio, ao
pó terá de retornar, e diante dessa única certeza que circunda o homem, a
questão que se encontra no cerne desse discurso é a de anunciar aos cristãos
que a vida deve operar-se para uma preparação para imortalidade.
Neste sentido, o juízo das ações são feitos ainda em vida, no presente,
e as escolhas que se fazem em vida decIbid., portanto a salvação ou conde-
nação. Em seus sermões, o Padre evidencia a ideia de se morrer em vida, e
aviva a memória dos cristãos para dois grandes temores: a morte repentina
e a incerteza da morte.

Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se


cada dia imos chegando mais à morte, e ela a nós; não se acabe com este
dia a memória da morte. [...] De vinte e quatro horas que tem o dia, porque
se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil
penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta Quaresma.
Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco, cuidemos
de nossa morte e de nossa vida.”

Vieira versa, portanto de anunciar para os vivos de que a vida terrena


deve servir de preparação para a imortalidade. Se não pode fugir da morte, é
mais racional aceitá-la e se preparar para ela.

70 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRE, Luis Felipe de
(Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1997. p. 96-97. 2 v.
71 ABREU, Martha. Festas religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no século
XIX. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 183-208.
72 VIEIRA, Pe. Antonio. A Arte de morrer. os Sermões de Quarta-feira de Cinza de Antonio Vieira.
In: PECORA, Alcir (Org.). São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
73 Ibid.,p. 58.
74 Ibid., p. 68-62.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 37

Tais perspectivas não parecem desenraizadas no oitocentos. O ritual de


preparação encontra-se vivo, nele é possível perceber a tradição da crença
no além-túmulo que percorre a tradição cristã e chega ao XIX, certamente
envolvida a muitas outras questões, mas ainda presentes a sensibilização
diante da finitude do homem e da fragilidade da alma.
A presença constante da morte que acompanha o homem em todos os
tempos e em toda sua trajetória social. Mas cada homem e cada trajetória social
— cairem

ganha feições próprias diante das incertezas e dos meios que acompanham a
preparação para esse momento.
Neste período da história piauiense, é perceptível a tentativa de redenção,
ea

o medo, ou, em outros termos, a necessidade de segurança que ultrapassasse a


vida terrena. Talvez, estas estratégias de salvação ocorressem principalmente
pelo medo do além-túmulo, particularmente, o temor de ficar no purgatório ou
passar a eternidade no inferno. Estes medos ficavam mais evidentes quando,
em vida, não eram cumpridas as determinações divinas, como uma vida
regrada e decente.
Segundo Claudia Rodrigues, no Brasil do século XIX, o temor da morte
estava ligado à crença no dia do Juizo Final, quando o Cristo voltaria para
Julgar os homens, condenando para todo o sempre os maus e conduzindo os
justos para o Céu, para a vida eterna.

Associado a esse medo, havia a preocupação com a morte repentina, pois


o homem podia não estar devidamente preparado para ela. Para ser consi-
derada uma “boa morte”, era necessário que fossem tomadas determinadas
medidas antecipadamente, para que um imprevisto não impedisse o fiel de
demonstrar o arrependimento pelos seus “atos maus”, de fazer penitência
e de partir com o perdão dos seus pecados.”

A morte repentina, como o assassinato ou acidentes era temida e a pre-


paração para uma boa morte, quando possível, era cuidadosamente planejada
através da feitura de testamentos e da filiação à irmandades.
Ao falecer, era de direito, concedido nas Constituições, dos fies terem
seu corpo enterrado somente após ser encomendado por algum pároco ou
sacerdote e recomendam que nenhum defunto possa ser enterrado sem pri-
meiro ser encomendado pelo seu pároco ou outro sacerdote de seu mandado.
E antes mesmo de encomendar:

Saberá se fez testamento e aonde se manda enterrar, e se deixa alguns lega-


dos pios ou obrigações de missas, ou se ao tempo da sua morte declarou de
palavra alguma coisa destas, par com brevidade as fazer cumprir. E depois

75 RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações
fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. p. 150.
38

de saber tudo isto, o encomendará no lugar onde estiver, com sobrepeliz


e estola preta ou roxa, guardando a forma que dispõe o Ritual Romano.

Os acompanhamentos deveriam acontecer com toda decência, em forma


de procissão, “com compostura e gravidade”. No caso dos acompanhamentos
de irmandade, nas freguesias onde houvesse, durante as procissões a Irman-
dade da Misericórdia deveria seguir a frente. Em seguida a bandeira diante
das cruzes da freguesia, e posteriormente as outras irmandades, sendo que as
mais antigas seguiriam a frente das mais novas.
Na prática, os enterramentos poderiam acontecer de maneira diversa. Filia-
dos as irmandades, ou não, sob a orientação dos párocos, ou não, com pompa ou
cerimônias simples. Era assim que do mesmo modo como a morte chega para
todos, cada sujeito, diante dessa ceifadora de gentes, expressa seus sentimentos.
Nos sertões do Norte e do Nordeste, apresenta o folclorista piauiense
Pedro Silva, algumas das formas que ganham esta serenata. Aqui, informa o
autor, é costume se rezar pelos defuntos. “A moda” do sertanejo, seja ele do
campo ou das pequenas cidades, acredita-se que o cadáver ainda estando sobre
a terra possa ser salvo do inferno, não apenas pelas encomendações e pelas
missas, como também por “rezas tradicionais, passadas de geração a gerações
a gerações, que continuam a ser entoadas com o máximo fervor e respeito”””.
Para o autor é a tradição que perpassa o cotidiano desse sertanejo e nesta
trajetória a serenata da morte é cantada “em vozes altas e em tonalidade aguda
em sabor de lamento”. Sob a invocação de São Miguel Arcanjo, é feito o
chamamento de uma alma, que se supõe, esteja no inferno há três dias:

Ô Miguel, ô Miguel,
Ouve a voz de quem de chama!
No inferno tem uma arma,
Que há três dia te recrama.”*

Os sentimentos envoltos neste momento dão o tom da melodia. Chorosa,


alta e vagarosa da a entender as sensações colocadas em prol da alma dos
mortos. Este rito demonstra assim a intervenção dos leigos ao encaminhar a
alma do falecido.
A hora da morte desse homem sertanejo era também carregada de prepa-
rativos. A forma como era estendido o corpo, as velas dispostas ao seu lado,
a mortalha. Ainda conforme descreve Pedro Silva:

76 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. JANCSO, Istvan;
PUNTINI, Pedro (Orgs.). São Paulo: Edusp, 2010. p. 432-433.
77 SILVA, Pedro. Velórios. In: O PIAUÍ no Folclore. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
1988., p. 74.
78 SILVA, Pedro. Velórios. Op. cit., 1988.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 39

Verificado o óbito, o corpo é piedosamente, colocado sobre uma esteira


de palhas de carnaubeira ou da palmeira do babaçu, forrada com alviís-
simo lençol de algodãozinho e já amortalhado, ou vestido numa espécie
de batina branca, de morim ou de fazenda preta enfeitada com galões
dourados, a que chamam, simplesmente, mortalha; o defunto fica com
ambas as mãos cruzadas sobre o peito, nas quais se coloca uma imagem
de Cristo crucificado. Um lenço branco cobre-lhe o rosto; um segundo
une-lhe os pés; e um terceiro é amarrado debaixo do queixo passando pela
Cabeça, para que não fique o cadáver com a boca aberta. Após tudo isso,
acendem-se velas de cera estearina, ou de carnaúba, colocadas em bocas
de garrafas vazias, na falta de castiçais. Em volta do corpo comumente
são acesas somente três velas: uma junto à cabeça e duas outras nos pés,
simbolizando a Família Sagrada, as três pessoas da Santíssima Trindade
— Padre, Filho e Espírito Santo.”

E os benditos continuam sendo entoados. Em volta corpo os sentinelas


se aglomeram a se dispor noite e dia em rezas, a encaminhar o corpo na hora
da difícil passagem. O velório nestas regiões é regado a café, “um bom gole
de aguardente para todos para afastar o sono”. Nesse ambiente as senhoras
cuidam de realizar as suas incelências. Assim, quando disposto o cadáver
adequadamente começavam a entoar os benditos.
No que concerne ao trato com a morte, Tânia Brandão esclarece que
quanto aos enfermos, diante da autonomia vivenciada pela deficiência de uma
estrutura eclesiástica mais presente, ao se tratar de crianças não batizadas
e mesmos de adultos carentes da extrema unção, restavam as orações das
rezadeiras e de leigos piedosos para encaminhar a alma".
Talvez, remonte daí o trabalho desempenhado pela antropóloga piauiense
Jaqueline Sousa, sobre Seu Zé. No interior do Piauí, o exortador de corpos
mesmo não sendo clérigo realizava o trabalho de encaminhar a alma dos
moradores das localidades próximas. Seu Zé era uma pessoa simples:

um oficiante da morte, que cuida dos moribundos até o seu falecimento. Os


cuidados especiais são necessários para que não falte uma vela acessa na
mão direita quando a morte chegar. Seu Zé, o exortador, anuncia achegada da
morte com os dizeres sagrados que ajudam o moribundo a morrer em paz.*!

Ao andar pelas regiões da Bahia, Goiás e Piauí, Artur Neiva e Belisario


Pena observam que no interior das cidades onde as moradias eram distantes

79 bid., p. 74-75.
80 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. A religiosidade na colônia: catolicismo adaptado ao modo de vida.
Revista do Instituto Histórico Brasileiro, p. 6, 2005.
81 SOUSA, Jaqueline Pereira de. Exortando corpos: por uma antropologia dos ritos fúnebres. 2011.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia, Universidade
Federal do Piauí, Teresina, 2011. p. 12.
40

umas das outras os cadáveres das pessoas não eram carregado em caixões,
mas em redes, onde eram conduzidos até os cemitérios.

Quando na redondeza existe algum cemitério, o cortejo fúnebre se faz


algumas legoas afim de levar o cadáver mas, nos lugares onde as ha-
bitações são raras, o corpo é levado em rêde ao cair da tarde. O cortejo
desloca-se rapidamente na frente, conduzindo uma luz, marcha um homem
que intermitentimente brada: “irmãos das almas”. Trata-se dum apêlo feito
aos moradores e aos viajantes que por acaso passam, afim de auxiliarem
o transporte do cadáver.*

Nas andanças pelo interior do Piauí puderam assim experienciar a morte


na sua forma sertaneja. Em junho de 1912, os autores contam que em uma
determinada casa, na região de Parnaguá, estava guardado o cadáver de um
homem vitimado pelo implaudurismo. O enterro foi realizado à tardinha,
carregado o cadáver em uma rede e acompanhado por todos os moradores
do lugar, sempre acompanhado por muita cantoria e algazarra e finalizam
afirmando que mais parecia uma festa do que um ato fúnebre*.
Nenhum momento ensejou ao cristão da diáspora maior autonomia, un-
gindo sua capacidade criadora e interpretativa, do que a morte em sua
circunstância sertaneja. Evidencia-se e interferência mínima e secundária
do ministro, na cessão dos diversos passos e procedimentos mantidos por
uma tradição laica.

Candido da Costa e Silva localiza em meio a religiosidade sertaneja, a


maneira como a morte se configura. Nos sertões a memória do morto permanece
em meio aos vivos, por meio de pedidos feitos pelo próprio defunto em sonhos
ou aparições para pedir rezas e pagamentos de dívidas que havia deixado.
No sertão o próprio ritual ganha suas especificidades edificado em uma
realidade que possivelmente não da margem à ideia da boa morte alcançada
por meio dos grandes acompanhamentos, das infinitas missas, das dezenas de
badalar de sinos, afinal morria melhor nesta perspectiva de boa morte aque-
les que tinham condições financeiras de pagar. No sertão da Bahia, afirma
Candido, por sua vez:

não se cogita do rito exequial em latim que ao pároco compete presidir.


Nenhuma oração sua à saída de casa, nem a presença no acompanhamento,
sequer uma prece à beira da cova, uma exortação aos acompanhamen-

82 EIVA, Artur; PENA, Belisário. Viagem científica pelo norte Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do
Piauí e de norte de Goiás. Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 169.
83 NEIVA; PENA. Op. cit., 1999.
84 SILVA, Candido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia.
São Paulo: Ática, 1982. p. 26. ,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 41

tos. O comum é o passo corrido, o gole de cachaça, as tiradas de humor


pelo caminho, e a enxada e a pá escavando e recobrindo com a terra do
esquecimento. Nesse sertão a morte não comporta os cortejos pomposos,
as ecas piramidais, os mausoléus artísticos, a profusão dos sufrágios que
o aval executor das irmandades e confrarias assegura com as capelas de
missas. Nem aos mais abastados escapam a esta penúria.

Neste cenário, uma pedagogia orientada pelo medo. Uma mentalidade


orientada onde a penitência deve ser “um inferno temporal”, para que assim
os corpos pecadores possam gozar da justiça divina, incrustada na punição,
alimentada nas imagens da morte. A presença da morte seria neste sentido, um
modo de conversão daquele povo pronunciada na vida dos santos, no cenário
cósmico do julgamento coletivo final e uma pedagogia preocupada em mostrar
mais os castigos da Divina Justiça do que mesmo a bondade de Deus. É desta
forma que segundo Candido Silva se desenha a vida e a morte no sertão.
No Piauí tal perspectiva se reflete não apenas no ritual, mas na forma
como eram depositados os restos mortais das pessoas. Enquanto grande parte
da literatura se dedica a analise dos cemitérios construídos a luz da moderniza-
ção e do discurso médico-higienista, nos sertões a construção destes espaços
santos nem sempre seguiam essa lógica. No início do século XX, Artur Neiva
e Belisario Pena durante a expedições pelos sertões do nordeste trazem assim
a descrição de um desses Campos Santos:

A cóva é sempre raza, sobre elas plantam uma cruz e colocam flores, as
quais de vez em quando são renovadas, mesmo pelos viajantes. Quando
o numero de habitantes é grande, constro-se então cemitério; trata-se dum
cercado de grossas estacas e que não possue porta; para se entrar, deslocas-
-se alguns pãos; no centro, ergue-se dominando o recinto grande cruzeiro
e madeira. Cemiterios murados só nas grandes povoações.

Ainda hoje percorrendo o interior de algumas cidades é possível encon-


trar os registros materiais de construções simples, com sepulturas cobertas
apenas com pedras, no meio do mato, no interior das fazendas. O que aponta
para a autonomia com que se edifica a religiosidade nos sertões do Piauí*”.
Nos locais onde não haviam igrejas, ou dadas as circunstâncias da morte
nem sempre era possível seguir com os ritos apropriados ou estabelecidos
pelas Constituições Primeiras do Arcebispado a Bahia. E os locais onde iriam
descansar os restos mortais nem sempre eram osmais ostentosos.
Em 1836, Dona Zeferina Maria de Jesus pede junto ao Arcebispado de
São Luís a justificação de óbito de Francisco de Sousa com quem foi casada

85 SILVA, Candido da Costa e. Op. cit., 1982, p. 26.


86 NEIVA; PENA. Op. cit. 1999, p. 168-169.
87 | BRANDAO, Tanya Maria Pires. Op. cit., p. 2005.
42

na Igreja. A autora da petição informa que o então seu marido falecera no mês
de junho do ano de 1834 de um tiro. O corpo do defunto:
sem sacramento algum por expirar violentamente foi sepultado na mesma
fazenda por não haver quem o conduzisse para lugar sagrado, por cujo,
motivo não foi encomendado e nem lavrado o se o enterramento.**

O enterro nem sempre seguia o rito característico da boa morte. Dadas


as circunstancias da morte, em especial as distancias, os enterros poderiam
ser feitos em qualquer lugar. Demandava daí a necessidade da construção de
cemitérios mais próximos onde se pudesse enterrar dignamente e celebrar
pela salvação de suas almas.
Os pedidos de ereção e benzimento de cemitérios atestam esta necessi-
dade. Eram comuns os cemitérios ligados as fazendas, criados por iniciativa
do próprio fazendeiro. Ou mesmo por iniciativa de clérigos que em viagens
percebendo os lugares inadequados onde eram enterradas as pessoas mencio-
nava a necessidade de criação de cemitérios e o benzimento, para dar a estes
espaços o caráter de sagrados. As circunstancias eram varias, mas a intenção
girava em torno do mesmo sentimento, dar uma sepultura digna e zelar pela
memória dos mortos.
O Capitão José Antonio da Cunha, proprietário da Fazenda Bom Jardim,
localizada na Passagem Santo Antonio, Freguesia de São Gonçalo do Amarante,
preocupado com a alma dos seus falecidos, familiares e circunvizinhos pedira
licença para poder erigir um cemitério em sua fazenda devido a distancia que
se tinha da igreja Matriz de São Gonçalo e da povoação mais próxima que
seria a da Barra do Poty.

Fazemos saber que o Capitao Jose Antonio da Cunha residente na passagem


de Santo Antonio Freguesia de Sam Gonçalo de Amarante da província
do Piauhy, por sua petição. Nos enviou a dizer que distante elle e vários
povos circunvizinhos do mesmo lugar vinte e quatro léguas da Matriz
e doze legoas da Povoação da Barra do Potty lhes hera dificultoso fazer
enterramento dos mortos na Igreja de sua Parochia pedindo-nos por fim
de sua suplica lhe mandar-mos passar provisão de Licença para erigir hum
cemitério na sua fazenda Bom Jardim para utilidade sua e daqueles povos
circunvizinhos daquela mesma passagem de Santo Antonio.*

Da Câmara Episcopal de São Luis para conceder a licença exigem que o


pároco informe sobre a real necessidade de ereção do cemitério, em termos de

88 AUTOS de justificação de óbito. N. S. do Amparo vila do Poty, 1836, caixa 100, maço 487, nº 3421.
Arquivo Eclesiástico do Maranhão.
89 CUNHA, Antonio José da. Autoamento de uma petição para ereção de cemitério. São Gonçalo do
Amarante. 1833, nº 6322, caixa 195. Ereção de cemitérios. Arquivo Eclesiástico do Maranhão.

pe" di
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 43

povoação e das distancias que José Antonio da Cunha argumenta. Esclarecidos


estas exigências o pedido de licença fora concedido em 2 de agosto de 1831.

Atendendo pois a sua suplica sendo ouvido o nosso R. Promottor de Juizo


e informação de Rdo. Vigario Collado da Freguesia de Sam Gonçalo lhe
Mandamos passar a presente pelo theor da qual concedemos licença ao
sobredito José Antonio da Cunha para que possa erigir cemitério murado
na sua fazenda Bom Jardim o qual ficará de forma cercado que não entre
nelle as [feras] e nem se faça nelle usos alguns profanos sendo separado da
mesma fazenda do que nos representara certidão que se acha feito [trecho
ilegível] passadas pelo Reverendo Parocho [trecho ilegível].”º

Estes espaços nascem clericalizados. Dentre as exigências estaria o pedido


de uma petição para benzer o cemitério e só assim “poderem-se sepultar nelle
os cadáveres dos fiéis sem o que de nenhum modo se poderá sepultar algum”.
Além disso, deveria ser murado “de Pedra e barro ha parede com três palmos
de largura e sete de altura e com vinte e huma braca de cumprimento e doze
de largura” acrescendo ainda da necessidade de fazer assento dos cadáveres
sepultados no mesmo cemitério.
Em meios a tais práticas é possível perceber que a morte acompanha o
homem em toda sua trajetória. De diferentes maneiras, mas é sempre ela, a
morte. Nos sertões de dentro ela se configura em um desenho próprio, no qual
as pessoas comuns se encarregam de encaminhar a alma de seus mortos, seja
no ritual ou na construção de sua última morada.

90 CUNHA, Antonio José da. Op. cit., 1833.


NA FÉ ENA FESTA:
as irmandades religiosas negras e as
festividades na Parahyba do século XIX?!

Matheus Silveira Guimarães

Introdução

Passava-se pouco mais de uma década do século XIX quando o


inglês Henry Koster, por motivos de saúde, transferiu-se para a cidade
do Recife para morar. Todavia, o mesmo não se restringiu às fronteiras
da capital de Pernambuco. Fez uma viagem por quase toda a região que
hoje conhecemos por Nordeste, deixando ricos relatos sobre aspectos do
cotidiano da população de muitas províncias que visitou, sistematizados
em sua publicação Viagens ao Nordeste do Brasil. Uma de suas descrições
diz respeito às danças de negros livres em festas organizadas por estes.
De acordo com o autor, “as danças lembravam as dos negros africanos”.
Mais adiante, ao tratar das festividades dos negros escravizados, Koster
admite que “quando dois dias santos se sucediam ininterruptamente, os
escravos continuavam a algazarra até a madrugada”?.
Das duas curtas citações feitas pelo viajante inglês podemos destacar dois
pontos: as tradições culturais africanas reconfiguradas pelos escravizados no Brasil
e as festividades santas como momentos em que havia comemoração e “algazarra”
da população escravizada, ou seja, configurava-se como espaço de sociabilidade e
diversão. As irmandades religiosas apresentavam-se, diante dos pontos destacados,
como uma instituição que permitia aos negros e negras fortalecerem seus laços de
identidades, reorganizarem seus símbolos — muitas vezes arrancados e proibidos
com a escravidão —, e festejarem, tendo nas festas momentos de certa autonomia.
O objetivo deste trabalho é apresentar como as irmandades negras orga-
nizavam as festas religiosas na província da Parahyba do Norte no decorrer do
século XIX. Para que isso seja possível, seguiremos dois passos: o primeiro é
apresentar a importância dos estudos das festividades como um instrumento
da população negra na construção de um espaço de ação social; em seguida,

31 Este trabalho foi resultado de pesquisa de Iniciação Científica intitulada Gente negra na Paraíba
Oitocentista coordenado pela professora Dra. Solange P Rocha (PPGH-UFPB).
S2 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução Luís Câmara Cascudo. 12. ed. Rio-São
Paulo-Fortaleza: ABC Editora, 2003. p. 315.
2 KOSTER, Henry. Op. cit., 2003, p. 316.
46

trabalharemos como as irmandades exerciam um papel importante nas organi-


zações de festas no Brasil oitocentistas, destacando a experiência da Parahyba.

Festividades: espaços de sociabilidade

O objetivo do presente trabalho, como já referimos, é discorrer sobre as


festas na Parahyba do Norte do século XIX. Sendo esta temática recente na
historiografia brasileira, cabe-nos perguntar: qual a importância dos estudos
sobre as festividades?
Podemos destacar dois pontos iniciais para responder a esse questiona-
mento. O primeiro deles diz respeito ao desenvolvimento dos estudos acerca
da história cultural nos últimos anos. Peter Burke ao descrever as várias pre-
ocupações e percepções do que consistiria a história cultural, afirma que dois
dos principais paradigmas da chamada “nova história cultural” consistiam nas
práticas e nas representações”. Essa perspectiva histórica permitiu que novas
abordagens e temas fossem melhor estudados. Com efeito, as festas passaram,
a partir disso, a fazer parte de pesquisa dos historiadores.
O segundo aspecto a ser destacado refere-se aos avanços historiográficos
sobre a escravidão no Brasil. Desde a década de 1980, muitas pesquisas têm
sido desenvolvidas no âmbito acadêmico e um denominador comum consiste na
perspectiva de percepção da população escravizada como agente histórico ativo.
Baseados na produção da chamada história social, os autores passaram a destacar
as experiências vividas no cotidiano das pessoas mais simples e perceber suas es-
tratégias de inserção social e busca por “brechas” no sistema escravista brasileira”.
Assim sendo, as festas emergem como momentos importantes para ascensão
social de alguns indivíduos do Brasil oitocentista, caracterizando como espaço
“político e de construção/fortalecimento de identidades. Ou, nas palavras de
Martha Abreu e Larissa Viana, “As festas religiosas e os batuques propiciavam
caminhos para sujeitos sociais nem sempre valorizados comunicarem-se e expri-
mirem seus interesses culturais e políticos, seus direitos e patrimônios”**. Tais
autoras sustentam ainda que, por causa disso, as festas apresentavam-se como
um instrumento de exercício de uma cidadania que muitas vezes era negada.
Mary Del Priore, por sua vez, defende as festas como “fato político, reli-
gioso ou simbólico””. Exatamente por isso, os momentos festivos permitiam
a alguns grupos duas situações: “reafirma, igualmente, laços de solidariedade
ou permite aos indivíduos marcar suas especificidades e diferenças”.

94 BURKE, Peter O que é história cultural? Tradução Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005.
95 Para uma maior discussão dos avanços historiográficos sobre a escravidão no Brasil, ver Machado
(1988), Reis e Silva (1989) e Schwartz (2001).
98 ABREU; VIANA. Op. cit., 2011, p. 238.
97 DELPRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 10.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 47

Diante dessas duas características, as autoridades políticas começaram


a ver nas festividades uma oportunidade de conflitos. Primeiro por realçar a
solidariedade, fazendo com que escravizados, por exemplo, se organizassem
para possíveis revoltas ou, no fortalecimento das diferenças, grupos distintos
podiam se enfrentar nos momentos de lazer. A solução encontrada para a ma-
nutenção da “ordem” foi tentar controlar tais expressões culturais, destarte,
“pelo lado de senhores e autoridades oficiais, as festas negras tornaram-se
local, especialmente na alçada municipal, de constante vigilância, regulação,
discussão e até mesmo conflitos internos”.
As festas, dessa maneira, apresentam-se como objeto de pesquisa que
muito pode nos auxiliar na compreensão da sociedade brasileira do século
XIX. Sociedade esta marcada por fortes traços da religiosidade católica que
se reconfigurou com elementos de outras religiosidades africanas e indígenas.
Nesse sentido, instituições de caráter religioso como as irmandades muito
contribuíram na organização dessas festividades, sendo, muitas vezes, indis-
sociável a relação entre irmandades religiosas e as festas.

As irmandades e a organização das festas na província


da Parahyba

As irmandades religiosas no Brasil oitocentista assumiam um importante


papel na organização das festas. Na província da Parahyba não era distinto.
Os compromissos dessas instituições não nos permitem analisar profunda-
mente como se davam as festas, mas alguns aspectos podem ser ressaltados”.
O primeiro deles diz respeitos à morte. Como nos descreve João José Reis!ºº,
a morte na sociedade oitocentista brasileira era uma festa. Os ritos fúnebres
eram acompanhados por diversas pessoas que não se atinham apenas a chorar,
mas também a tocar música, dançar etc. E, no caso dos funerais da população
negra, estes últimos aspectos eram ainda mais destacados.
A proposta mais importante de uma irmandade era a preparação para uma
“boa morte”, de condições para que o morto pudesse ter uma boa entrada no
céu, segundo a crença católica. Dessa maneira, as celebrações da morte eram
momentos especiais. Nos estatutos das irmandades existem várias normas a
serem cumpridas no momento do falecimento de um irmão.

58 ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Festas religiosas, cultura e política no Império do Brasil.
In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial. Volume Ill: 1870-1889. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009. p. 236.
33 Os compromissos ou estatutos eram documentos que definiam as regras o funcionamento
das Irmandades
+00 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
48

+ m
As irmandades da Parahyba não se diferenciam das demais em relação

MH
a isso. Geralmente, havia a procissão com todos os irmãos acompanhando o
falecido. Era obrigatória a presença de todos, implicando a ausência em pu-

E
nição. A cerimônia dividia-se, basicamente, em três: antes, durante e depois
do enterro. Antes de iniciar a procissão em homenagem ao falecido, todos

am
os irmãos se reuniam, e em seguida “irão [iriam] de cruz alçada, e o Juiz de
vara, acompanhar e conduzir o cadaver do irmão fallecido ao último jazigo”!'!,

a
como ocorria em Taquara, povoado próximo à capital da província.

tt
Após a procissão, retornavam todos à igreja e lá deveriam fazer uma

a
série de orações previstas pelo compromisso e rezavam missas em prol da
alma do irmão. Além disso, os sinos deveriam ser tocados em homenagem ao
falecido. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, “Fallecendo
qualquer irmão, será [seria] prevenido o Juiz ou Escr[iv]ão que mandará dar
logo os signaes, a que tem direito, e reunir a Irm[andalde para o enterro”,
como define o artigo 33º do compromisso!º,
João José Reis (1991) argumenta que o barulho era fundamental no
momento da morte, quanto mais barulho, mais o morto mostrava que tinha
construído uma vida de prestígio. Além dos sinos, “alguns pediam, além de
padres e irmãos, o acompanhamento de músicos, que formavam pequenas
e grandes orquestras”. Essas festas externas demonstram a constante in-
terrelação entre o profano e o sagrado na expressão religiosa brasileira oito-
centista. Enquanto dentro das igrejas aconteciam os rituais religiosos, fora
a festa animava as pessoas!”. Essas festas externas não eram previstas nos
compromissos, mas assim como se deu em outras províncias, na Parahyba
do Norte também ocorriam com frequência.
Todavia, festejava-se não só para o falecido, mas também para aqueles
que continuavam em vida. Um dos motivos destacados por João Reis para
estas comemorações de um falecimento tinham como objetivo também a
consolação dos vivos. Para ele,

a produção fúnebre interessava sobretudo aos vivos, que por meio dela
expressavam suas inquietações e procuravam dissipar suas angústias.
Pois, embora variando em intensidade, toda morte tem algo de caótico
para quem fica!º,

À preocupação com a vida não se resumia aos que perdiam algum parente
próximo. A devoção do santo padroeiro era de extrema importância para os

101 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, AEPB, fl. 5, 1866.
102 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Taquara, AEPB, fl. 5, 1866.
103 REIS, João José. Op. cit. 1991, p. 153.
104 Ibid., 1991.
105 Ibid., p. 138.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 49

irmãos e as festas apresentavam-se como uma maneira de homenageá-los. Era


ponto obrigatório nos compromissos das irmandades a definição das regras
de festividades em homenagem aos/às santos/as padroeiros/as.
As irmandades expressavam a preocupação tanto em garantir uma boa
entrada no céu após a morte, como garantir proteção durante a vida. Assim,
nas festas “a idéia era exatamente esta: celebrar bem os santos de devoção
representava um investimento ritual no destino após a morte — além de tornar
a vida mais segura e interessante”!%. Eram as festas dedicada aos santos que
permitiam aos irmãos

serem reconhecidos, através da irmandade como parte de um corpo social,


não como um escravo, mas como um rei, ou rainha, andador, juiz, mesário
e integrante de uma irmandade. Deixavam de lado o fato de ser liberto,
alforriado ou escravo e passavam a ser parte constituinte daquela procissão,
momento em que todos parariam e admirariam a imagem homenageada e
a organização daquele grupo que se dedicava e se preparava diariamente
para aqueles momentos!?”.

Nessas festas de devoção, os irmãos saiam vestidos especialmente. Tais ves-


Ementas tinham uma simbologia e promoviam uma diferenciação dos integrantes
das irmandades em relação aos demais. Ainda no período colonial, nos afirma
Mary Del Priore que nas festas das irmandades, “Os reis negros vestiam-se como
a corte europeia branca, exagerando até mesmo no uso de joias e tecidos caros”!º,
No caso da Irmandade do Glorioso São Benedito, que se localizava na capital
da província da Parahyba, de acordo com o artigo 30º do estatuto, “os irmãos
usarão geralmente em todos os atos da Irmandade de opa de cor branca e murça
roxa, e o irmão Juiz trará de mais uma vara prateada”!º. O distintivo deveria ser
não só dos irmãos com os demais, como internamente, na figura do Juiz — maior
cargo da Irmandade —, que deveria carregar outro elemento de distinção: a vara
prateada. Vestidos dessa maneira, saíam os irmãos e irmãs pelas ruas da capital
da província dançando e tocando em homenagem a São Benedicto.
Todas essas festividades deveriam ser ornamentadas com a maior pompa
possível. Assim, a população negra mostrava sua importância social e tentava
fugir de sua realidade opressiva!!º. Tudo isso tinha um custo e esse era uma grande
preocupação dos irmãos. Na irmandade do Glorioso São Benedito, no artigo

*06 REIS, João José. Op. cit., 1991, p. 61.


+07 ALVES, Naiara Ferraz Bandeira. Irmãos de Core de Fé: irmandades negras na Parahyba do século
XIX. 2006. Dissertação (Mestrado). João Pessoa: UFPB/CCHLA, 2006. p. 87.
*08 DEL PRIORE, Mary. Op. cit. 2000, p. 85.
+29 COMPROMISSO da Irmandade do Glorioso São Benedicto, AEPB, fl.1, 1866.
*40 Maria Vitória de Lima, traz-nos o caso de Honorato, um escravizado urbano e membro da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário da capital e que via nessa irmandade um importante espaço de
prestígio. Esse exemplo nos mostra a importância social que tinhas as irmandades para essas
pessoas (LIMA, 2010, p. 95-97).
mm
50

29º, o compromisso definia que “Todos os anos no domingo do Divino Espírito


Santo fará a Mesa uma festa ao Glorioso São Benedito conforme suas posses,
tendo em vista que a despesa seja sempre inferior à receita da Irmandade”, Em
quase todos os compromissos essa preocupação com as finanças da irmandade
na ocasião da festa estava presente. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
da Capital, nenhuma decisão sobre a festa era tomada sem antes o tesoureiro ser
consultado. De acordo com o compromisso,

O Juis, tendo se entendido anteriormente com o Thesoureiro sobre o es-


tado da Caixa da Irmandade, explicarã à Mesa as circunstancias do cofre,
e havendo meios, e querendo à Mesa fazer a Festa de Nossa Senhora se
descutirã sobre este assumpto; e o que se resolver será observado!!2,

Para arcar com a pompa da festa, então, os membros da irmandade bus-


cavam apoio na caridade cristã, comum à sociedade oitocentista brasileira.

Em ambos [rituais fúnebres e festas de devoção], a pompa fazia parte da


tradição cerimonial, por serem as festas faces públicas das irmandades.
A preparação da festa ocorria no período entre quinze dias a dois meses
antes da sua culminância e era mantida pelas esmolas doadas aos irmãos.
Existia nas irmandades a figura do esmoler [sic], que percorria as ruas das
povoações, das vilas e das cidades para recolher as esmolas, nos sábados
ou domingos. Somente quando as esmolas não eram suficientes era que as
Irmandades usavam os rendimentos do seu patrimônio para complementar
os gastos que seriam realizados com a festa!!.

O momento da festa, dessa maneira, era também quando ocorria uma das
práticas mais comuns entre as irmandades que eram as esmolas. Muitos são os
relatos de viajantes que destacam esta característica!!4. O ato da esmola tinha
(e ainda tem), na tradição cristã, a simbologia da caridade, para quem doa, e
da humildade, para quem pede, representando, assim, algo muito importante.
Além do mais, estas esmolas poderiam servir também para sanar as possíveis
dificuldades financeiras encontradas pelas irmandades para a festa.
Na Irmandade de Nossa Senhora de Alagoa Nova, por exemplo,

No dia 31 de Dezembro em que a Irmandade he obrigada a festejar o


orago, reunir-se-hão todos os Irmãos de qualquer sexo, estado, condição, e

111 COMPROMISSO da Irmandade do Glorioso São Benedicto, AEPB, fl. 4-5, 1866.
112. COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Capital, fl. 10, AHWBD, 1867.
113 LIMA, Maria Vitória Barbosa de. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos na
Paraíba escravista (século XIX). 2010. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de
Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História,
Recife, 2010. p. 94.
114 Ver, por exemplo, DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução de Sérgio
Milliet. 6. ed. São Paulo; Brasília: Martins; INL, 1975.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 51

qualidade para assistirem a Festa; e bem assim o Juiz, Escrivão e Mesarios


para receberem as esmollas de entradas e annuaes; de que fará o Escrivão
lançamento no livro respectivo, e carga ao Thesoureiro, logo que lhe fiser
entrega dºessa importancia, e das esmollas que algum Irmão voluntaria-
mente queira dar para auxilio, e explendo da mesma festividade!!S.

No caso de algumas irmandades havia uma função específica dedicada ao es-


moller. Este seria responsável por, em linhas gerais, “tirar esmollas pelas ruas desta
Villa nos dias de sábado; e fazer entregar de tudo qfuan]to arrecadar ao Procurador,
que lhe dará recibo para ser apresentado á Mesa na sua primeira reunião”.
Além das festas em homenagem aos santos, os irmãos festejavam também
o ato da posse da mesa regedora e coroação dos reis. A irmandade de Nossa
Senhora do Rosário da cidade de Sousa, interior da província, apresenta-nos
indicações em relação a isso. A composição da mesa regedora de tal irmandade
era um pouco distinta das demais na Parahyba. De acordo com seu compro-
misso, “A mesa se-comporá do Rei, Juiz, Escrivão, Thesoureiro, Procurador e
mais oito Irmãos; e será presidida pelo Rei, que será substituído pelo Conde,
este pelo Marques, e assim por diante guardada a ordem hierarchica”!"”.
Ou seja, na estrutura administrativa, havia a reprodução de cargos nobiliár-
quicos como conde, marques e rei. Mais adiante, o Compromisso desta Irmandade,
admite, no dia da posse, “O dia da festa he o designado para a posse da nova
mesa”!!8, Além de comemorarem a padroeira, os irmãos comemoravam a nova
mesa regedora e a coroação do Rei. Marina de Mello e Souza mostra-nos que
essas coroações constituíam-se como uma reorganização das tradições africanas
na América, trazidas pelos escravizados e que, geralmente, “os cargos reais só
podiam ser ocupados por africanos vindos de uma região específica” da África
de acordo com as “nações” que cada irmandade representava". Não podemos
afirmar se as mesmas exigências eram feitas na Parahyba. Acreditamos que não,
pois todas as irmandades pesquisadas — da segunda metade do século XIX, quando
a entrada de vários grupos em uma mesma irmandade era mais flexível — havia
a possibilidade da participação de “pretos” de várias nações, como é caso da Ir-
mandade de Nossa Senhora do Rosário da Capital que era “composta de pessoas
de côr preta, assim homens, como mulheres, livres, libertos, ou escravas, seja
qual for a nação a que pertenção, com tanto que professem a Religião Catholica,
e Apostólica Romana”!?º, Mas, muito provavelmente, o cargo de Rei, presente
em algumas irmandades da Parahyba, era uma herança cultural africana.

115 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Alagoa Nova, AHWBD, 1859.
116 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Alagoa Nova, AHWBD, 1859.
117 Ibid., 1859.
118 Ibid., 1859.
119 SOUZA, Marina de Melo e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de Coroação de Rei
Congo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. p. 193.
120 COMPROMISSO da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Capital, fl. 01, AHWBD, 1807.
52

Em tais festividades, muitas expressões culturais que hoje nos parecem


comuns se formaram e se fortaleceram no passado. Uma delas, por exemplo,
foi o maracatu. Maria Vitória de Lima, baseada em Adhemar Vidal, afirma que,
na Parahyba, “de acordo com Vidal (1944), era a Irmandade de São Benedito
o sustentáculo do Maracatu na capital da província. Ela gozava de prestigio
social, entre escravos e senhores. Quando deixou de funcionar, aos poucos, o
Maracatu também desapareceu”?!. Organizando os maracatus, os irmãos do
Glorioso São Benedicto saíam dançando pelas principais ruas da cidade!?,
As festas religiosas organizadas pelas irmandades, dessa maneira, exerceram
importante função na preservação de traços culturais característicos da região.
Diante do que foi apontado, na Província da Parahyba do Norte, as festas
também se apresentavam como característica importante da sociedade, bem
como as lutas pela população negra para encontrar melhores condições de
vida. Construía-se nessa província espaços de sociabilidade representado
pelas irmandades religiosas que expressavam nas festas importante momento
de diversão, mas também de fortalecer laços e obter reconhecimento social.

Considerações finais

As festas são hoje objetos de pesquisas que nos permitem compreender


alguns aspectos sociais do passado. Na sociedade brasileira oitocentista, as
festividades religiosas, por exemplo, assumiam um papel não apenas de di-
versão, mas também como um momento de realçar as identidades e permitir a
grupos sociais muitas vezes excluídos dos espaços de poder, como a população
negra, instantes de reconhecimento público.
Dessa maneira, havia uma grande mobilização para a organização de uma
“festa. As irmandades religiosas exerciam uma função importante nisso. Elas eram
responsáveis pela organização de festas religiosas em homenagem aos irmãos
falecidos e de devoção aos seus santos protetores. Assim, em seus compromissos,
há sempre tópicos específicos definindo regras para a organização das festas.
A partir dessas regras, conseguimos identificar alguns aspectos a respeito de
festividades religiosas na Província da Parahyba do Norte no século XIX.
Com efeito, conseguimos inferir, a partir do cruzamento da documen-
tação encontrada com as pesquisas realizadas em outras regiões do país,
que na província supracitada havia a organização de várias festas por parte
das irmandades e que muitas características presentes em outras províncias
expressava-se, guardada as devidas especificidades, também na Parahyba.

121 LIMA, Maaria Vitória Barbosa. Op. cit., 2010, p. 112.


122 A tese da professora Maria Vitória de Lima, descreve todo o percurso feito pelas irmandades de
Nossa Senhora do Rosário da Capital e do Glorioso São Benedicto (LIMA, 2010).
OS INSTRUMENTOS MUSICAIS
QUE MAIS SOAVAM NOS JORNAIS
DE SÃO LUÍS NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX

João Costa Gouveia Neto

O primeiro indício da existência, em alguns membros das elites ludo-


vicenses, do gosto musical, são os anúncios constantes de venda de instru-
mentos musicais nos jornais da cidade. Não obstante a voz ser o instrumento
musical por excelência dos homens e das mulheres, nem todos possuem
este instrumento vocal adequado para a prática musical. A partir do terceiro
quartel do século XIX, os instrumentos musicais fabricados com o intuito
de acompanhar a voz humana já estão bem desenvolvidos e disseminados
por todos os países do mundo. É evidente que existia grande dificuldade no
transporte desses instrumentos, ainda mais quando se tratavam dos pianos,
no entanto, mesmo depois de algum tempo de espera, eles acabavam che-
gando aos seus destinatários.
Segundo Alencastro!?, o piano só seria conhecido em todo Brasil a partir
da segunda metade do século XIX, pois enquanto:

flauta, rabeca e violão apareciam como os instrumentos europeus mais


comuns no país até meados do século XIX. Harpa, citara e cravo circulavam
menos, € O piano só entrara em poucos sobrados do Rio, do Recife e da
Bahia, sendo praticamente desconhecidos em outras partes!*.

Não há como precisar quais são as “outras partes” às quais Alencastro


se refere, mas no Maranhão, mais precisamente em São Luís, temos conhe-
cimento de piano desde 1822, através de anúncio no jornal O Conciliador de
5 de junho, citado por Viveiros!?* “quem quiser comprar um piano forte, de
muito boa qualidade, fale com André Ferreira da Silva Pôrto, e à vista dêle
se ajustará o seu preço”.

123 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe
(Org.). História da Vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 45. 2 v.
124 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Op. cit., 1997, p. 45.
125 VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895). São Luís: Associação
Comercial do Maranhão, 1954. p. 378-379. 1 v.
54

Nos jornais que circulavam pela cidade semanalmente ou quinzenalmente,


eram frequentes os anúncios de venda, aluguel de instrumentos musicais e
tudo o que fosse necessário para a sua boa utilização. Nesses periódicos eram
oferecidos instrumentos de vários grupos ou famílias, como: instrumentos de
cordas, de sopro, de percussão, de teclas!?.
Apesar da existência, no século XIX, de uma grande variedade de instru-
mentos musicais, os de maior ocorrência nos jornais da província maranhense
eram os pianos e os violões. Algumas possibilidades podem ser aventadas
para a predominância de tais instrumentos, como: no caso do piano, por ser
o instrumento musical por excelência das elites, visto que era símbolo não só
de refinamento como também de riqueza, devido ao seu elevado preço e os
altos custos com o transporte da Europa para o Brasil. A despeito da pouca
facilidade em adquirir um piano, nos periódicos da capital da província do
Maranhão era possível encontrar pianos à venda anunciados por particulares
e não por lojas especializadas no gênero. Aliás, é importante salientar que não
havia em São Luís nenhuma organização comercial especializada e dedicada
somente à música. Os instrumentos musicais eram oferecidos geralmente
por livrarias, na melhor das hipóteses, e nos armazéns que vendiam gêneros
diversos, como veiculou o jornal a Moderação:

A Livraria da rua grande que pertence a Antonioo Moreira da Rocha,


mudou-se para a rua formosa, n. 2 apegado ao Sr. Olivier; e n'ella existem
a venda, vindo pelo navio ultimamente chegado, os seguintes objectos:
Altas de Delamare
Bordoes de piano
Cordas para violão e rabeca;
Muzicas de piano e canto,
Instrumentos,
Papel de todas as qualidades,
Dezenhod muito finos,
Tintas em caixinhas
Livros e muitas quinquilharias,
Alamires para afinar instrumentos,
Homeopatia em caixas e avulsas.
Tambem marca-se papel com o nome do comprador!?”.

Antônio Pereira Ramos d” Almeida fazia concorrência a Antônio Moreira


da Rocha no ramo comercial das livrarias, o que aumentavam as chances dos
diletantes adquirirem na própria província as partituras e/ou os instrumentos
musicais que almejavam. O jornal 4 Imprensa veiculou anúncio com os úl-
timos ornamentos para casa e artigos referentes à música:

126 Sobre as subdivisões dos instrumentos musicais Cf. BENNETT, Roy. Uma breve história da música.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
127 ALIVRARIA... A Moderação, São Luís, ano 3, n. 6, terça-feira, 12 abr. 1859.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 55

Tapeçaria de bordados
Chegou para livraria e papelarua de Antonio Pereira Ramos d” Almeida,
bom sortimento d"estampas de tapeçaria e bordados de muito lindos gostos,
paizagens, figuras, passaros &&
Rabecas, Flautas e Clarinetas
Rabecas de muito boas qualidades finas e entrefinas, Flautas de luxo de 1
chave e bomba, ditas de ebano de 4 e 5 ditas, Clarinetas de buxi e ebano
de si e dó com 9 a 13 chaves, todos instrumentos escolhidos. Muzicas,
grande sortimento de methodos, para Piano, Violão, Rabeca, Flauta, e
estudos, fantazias, danças && as mais modernas.!*

Em contraponto ao piano estava o violão, considerado instrumento de


bademneiro e desocupado, mas que tinha a venda de cordas constantemente
anunciada nos jornais da cidade, como diz o anúncio a seguir:

Verdadeiras cordas para VIOLÃO


De seda e fita branca, Bordões de aço
Vendem
David, Rabello & C.
Rua da Palma
Livraria Americana.!?”

Os jornais, onde estão as principais referências deste estudo, através dos


seus anúncios traziam as ideias de mudança e progresso, assim como o gosto
e a regras de civilidade". Em relação aos artigos relacionados à música não
será diferente, a quantidade de anúncios de venda de cordas para violão era
superior aos demais artigos ligados à música. No entanto, os anúncios de venda
de violão não correspondem à quantidade de cordas que são oferecidas aos
maranhenses. Ainda assim, o jornal Publicador Maranhense veiculou notícia
sobre a Exposição Maranhense de 1872, na qual está escrito que no Maranhão
a fabricação de violões é importante, como segue:

A indústria da fabricação dos violões é relativamente importante no


Maranhão, exportando-se muitos deles ao interior da Província e às pro-
víncias vizinhas.
De todos os fabricantes, um só apresentou-se na Exposição, o Sr. Cláudio
Antonio de Oliveira que concorreu com um cavaquinho que nos pareceu
muito bem-feito.
Se não nos enganamos, temos passado em revista todos os expositores,
salvo um: o Sr. Fernando Antônio Corrêa que expôs um objeto do qual
não nos lembramos, pedindo-lhe desculpas por essa falta involuntária.

128 TAPEÇARIA de bordados. A Imprensa, ano 5, n. 43, sábado, 1 jun. 1861.


129 VERDADEIRAS cordas para violão. Diário do Maranhão, São Luís, n. 7875, quinta-feira, 30 nov. 1899.
130 MONTEIRO, Maurício. A construção do gosto: música e sociedade na corte do Rio de Janeiro. 1808-
1821. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 76.
56

[...] Em resumo a Exposição Maranhense de 1872, sem ser mais concorrida


que a de 1871, apresenta sobre a Província uma vantagem importante, que
é o maior número de indústrias que foram representadas neste concurso
de trabalhadores [...].!º

Essa notícia levanta duas questões importantes não só para o desenvolvi-


mento da música no Maranhão, mas também em relação ao desenvolvimento
das técnicas dos luthiers em São Luís e da indústria como um todo. Interessante
é que, nas fontes levantadas, este é o único artigo que versa sobre indústria
de violões. Talvez esse fato explique a grande quantidade de cordas que eram
oferecidas nos jornais ludovicenses.
Inversa era a quantidade de anúncios de pianos que apareciam nos
jornais da capital da província do Maranhão. Essa “quantidade” é analisada
aqui partindo do pressuposto de que um piano custava muito caro, pois vinha
exclusivamente da Europa, o que encarecia ainda mais o seu preço por conta do
transporte. Todavia, ao longo da segunda metade do século XIX, os anúncios
de venda de pianos sempre aparecem nos jornais de São Luís.
Outro ponto que ratifica a ideia de que o número de anúncios de piano
era grande, levando-se em consideração o fabricante, o preço e o custo do
transporte da Europa para a América do Sul, é o fato de poucas pessoas terem
conhecimentos musicais para executá-lo. No entanto, por conta da simbologia
que envolvia esse instrumento, por vezes era adquirido como representação
de refinamento, de distinção social e de poderio econômico da família, que o
apresentava em uma sala especialmente decorada e preparada para recebê-lo.
Nos jornais de São Luís não eram anunciados apenas pianos novos. Pessoas
físicas, por motivos que fogem ao conhecimento do pesquisador, colocavam
seus pianos à venda, como consta no anúncio que foi veiculado no jornal O
Observador: “Vende-se um piano de construção forte, mas usado, e por preço
commodo: quem o pretender dirija-se á casa n 37 rua do Sol desta Cidade”!2,
Geralmente nesses anúncios de pianos usados vinha especificado “em bom
estado”, ou “com pouco uso”, mas não vinha expresso o valor do instrumento,
dado que ajuda a pensar se estava mesmo em bom estado, visto que os pianos
eram instrumentos musicais de alto valor econômico. O Diário do Maranhão
assim anunciou: “Vende-se um baratíssimo na officina de Cypriano Baptista
rua do Sol 19 podendo ser examinado por pessoa habilitada ou quem pretendel-
-0”133, Ainda no referido jornal aparece anúncio de usado: “Nºesta typographia
se informa quem precisa comprar um piano com algum uso porem bom”!*.

131 AINDÚSTRIA... Publicador Maranhense, São Luís, 8 fev. 1873.


132 VENDE-SE... O Observador, São Luís, ano 8, n. 554, quinta-feira, 14 set. 1854.
133 VENDE-SE... Diário do Maranhão, São Luís, ano 28, n. 7191, sábado, 21 ago. 1897.
134 VENDE-SE... Diário do Maranhão, São Luís, ano 27, n. 676, quinta-feira, 12 mar. 1896.
= TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 57

Alguns desses anúncios de venda de piano trazem informações valiosas


como o nome do vendedor e a rua onde residia e, através dessas informações,
algumas conjecturas podem ser levantadas a respeito das condições de vida
das elites ludovicenses, pois, dependendo do lugar onde o anunciante residia,
é possível ter uma ideia da sua condição social e econômica. Essas indicações
podem ser feitas a partir do anúncio seguinte:

D. Antonia Martins vende um piano-forte francez, do fabricante Alphonse


Blondel (de Pariz) sem uso quase nenhum, de vozes avelludadas e de
armario. Tem sete oitavas e é de madeira preta, com ornatos despolidos.
Quem o pretender pode examinal-o em casa de sua residencia, á rua
Grande, n. 69.13

Através desse anúncio é possível aventar algumas hipóteses. O dona


“D.” era um qualificativo usado por senhoras que tinham uma posição na
sociedade do Brasil Imperial. D. Antonia! era uma senhora de posse, pois
residia na Rua Grande, local onde habitavam as elites na capital da província
do Maranhão. Outra informação valiosa é que, provavelmente, ela podia ser
viúva, uma vez que mulheres da “boa sociedade” só anunciavam alguma
coisa em jornais em benefício de causas beneficentes, visto que as suas vozes
eram as dos maridos. E a terceira informação é que o piano tinha sido pouco
usado. Sobre esta última, é possível inferir duas coisas: a citada senhora pos-
suía outro piano, ou não precisava mais dele para dar aulas. Provavelmente,
necessitava de dinheiro, e este talvez fosse o único bem de valor que possuía.
Finalmente, ao anunciar em um jornal a venda do seu piano particular, mostra
que a sociedade ludovicense da segunda metade do século XIX já passava por
mudanças, pois foi “a própria vida na cidade que se encarregou do processo
de exteriorização da mulher”.
Além das expressões “pouco uso” e “bom estado”, utilizadas para qua-
lificar os pianos postos à venda, e que lhe diminuíam os preços, ainda havia
os que serviriam para aprendizes, pois um pianista concertista não compraria
um piano com estas qualificações devido à falta de alguns atributos essenciais
de afinação e resposta da tecla ao toque que, provavelmente, fossem mais ir-
regulares nesses pianos. No entanto, instrumentos desse tipo eram oferecidos
nos jornais: “Piano — No escriptorio do “Diario” está um que se vende por
preço commodo para quem precisar de aprender” !º.
Assim como havia anúncios que apresentavam muitas informações sobre
o conhecimento de diversos aspectos das vivências das elites durante o século

135 PIANO-FORTE. O País, São Luís, ano 14, n. 140, sexta-feira, 15 set. 1876.
136 E possível que esta D. Antônia Martins seja a mesma D. Antônia Gertrudes Martins que anuncia
aulas de piano em 1873 no Almanak do Maranhão.
137 Kátia Muricy apud RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas
distinções, Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 63.
138 PIANO. Diário do Maranhão, São Luís, ano 16, n. 3456, terça-feira, 3 mar. 1885.
58

XIX, existiam outros que deixavam dúvidas, como o que veiculou o jornal O
Paiz: “Albino Lopes Pastor vende dous bons pianos, sendo um inglez e outro
francez, com excellentes vozes preço muito razoavel. Á rua de Nazareth,
n. 347139. À dúvida está na expressão “bons pianos”, pois um piano usado pode
ainda receber essa qualificação, assim como um novo, mas o de uma marca
regular também pode ser um “bom” instrumento musical.
Contudo, para atender aos anseios de refinamento, civilidade e moder-
nidade das elites ludovicenses, os comerciantes também anunciavam pianos
novos vindos da Europa, uma vez que eram os que faziam os olhos dos
membros das elites brilharem de tanto contentamento. E é o jornal O Paiz
que veiculou esta notícia, para alegria dos amantes do referido instrumento:
“Candido Cezar da Silva Roza recebeu novos pianos de Hamburgo. Um
destes pianos, cuja caixa é de - NOGUEIRA — é primorosamente acabado,
merece ser apreciado pelos entendedores da arte, e collocado em alguma das
sumptuosas salas desta bella cidade”.
Interessante como essas notas direcionavam a informação a um determi-
nado estrato da sociedade ludovicense, indicativo de que os pianos deveriam
ser colocados em salas “sumptuosas”, isto quer dizer que, somente pessoas
com grande poder aquisitivo poderiam/deveriam adquiri-los, porquanto so-
mente nos grandes casarões colossais existiam salas com essas características.
Da família dos instrumentos de teclas não era somente o piano que era
oferecido nos periódicos da capital maranhense. O órgão, mais solene e não
menos refinado que o piano, aparecia nos anúncios também já direcionado
para quais lugares era mais apropriado, como diz a notícia:
Duchemin & C.º vendem:
Um orgão Harmonium proprio para sala ou para qualquer Igreja pequena
preco de 4008000.
PIANOS
Entre elles um grande de concerto, o melhor que ha nesta cidade e o
mais seguro.
Binoculos para theatro, muito superiores e por preços moderados.
Espelhos para salas.
Diversos tamanhos com caixilhos dourados.!*!

Durante praticamente toda a segunda metade do século XIX, como ratifica


o anúncio supra, São Luís careceu de uma livraria, loja ou comércio onde os
músicos ou aspirantes a este ofício pudessem encontrar em um só lugar o que
necessitassem para os seus estudos. Somente nos últimos anos do século XIX,
através do anúncio seguinte, é que esta falta começa a ser suprida, como diz a

139 PIANOS. O País, São Luís, n. 86, quarta-feira, 18 abr 1877.


140 | PIANOS de Hamburgo... O País, São Luís, n. 56, quinta-feira, 12 maio 1864.
141 DUCHEMIN & C.º vendem. O País, São Luis, n. 86, terça-feira, 26 jul, 1864.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 59

notícia: “Deposito de pianos e musica — Grande sortimento de pianos e todos


os instrumentos de musica. Alberto Fred & Comp. --- Pará”!2,
Apesar da dualidade ordem/desordem representada, respectivamente,
pelo piano e pelo violão, os ludovicenses, independente dos estratos so-
ciais onde estavam inseridos, tinham acesso a outros tipos de instrumentos
musicais. Dentre o universo dos instrumentos já disponíveis na segunda
metade do século XIX, a rabeca é um dos que também eram anunciados
nos jornais da cidade:

Despachado no 10 do corrente — Rabecas muito superiores com caixas,


arcos para ditas igualmente superiores, resina e clina para as mesmos;
tem a venda na Livraria de Antonio Pareira Ramos de Almeida, largo de
Palacio, casa n.20. Vindo no vapor Parabé para a mesma Livraria: Arith-
metica, Algebra e Geometira por Christiano Benedito Ottoni; Cathecismos
da doutrina christã, aprovados pelo bispo do Rio de Janeiro.
Julho de 18581.
Boa rabeca!!!
Vende-se na rua Grande n. 119 uma muito boa rabeca sem uso nenhum,
com methodo, por preço muito commodo!“*.

É importante continuar pontuando a falta de um lugar dedicado especial-


mente aos amantes da música. Com efeito, na notícia apresentada acima ainda
aparecem outros objetos oferecidos ao público em geral, juntamente com os
instrumentos musicais. E, apesar dos instrumentos que predominavam serem
o piano e o violão, respectivamente, das elites e dos populares, outros sons
também eram ouvidos pelas casas e ruas da cidade, como veiculou o jornal
O Paiz: “Srs. Muzicos, ophcleids, pistons e clarinetes, quando precisarem,
procurem no armazem pegado a alfandega”!*.
Nos Almanaques do Maranhão, que também serviram de fonte para este
trabalho, é possível saber quais os outros instrumentos musicais existentes na
capital maranhense, embora não aparecessem anunciados nos jornais consul-
tados. Nos almanaques aparecem apenas os nomes de professores de outros
instrumentos além do piano e do violão.
Para todos os instrumentos anunciados nos jornais, precisava-se de
profissionais que cuidassem da sua conservação. No entanto, somente
os afinadores de pianos colocavam seus préstimos à disposição dos lu-
dovicenses. A presença de afinadores nas páginas dos jornais pode ser
entendida dada a especialização que esse profissional deveria possuir e

142 DEPÓSITO... Diário do Maranhão, São Luís, n. 6363, terça-feira, 20 nov. 1894.
143 | DESPACHADO... A Moderação, São Luís, ano 2, n. 22, sábado, 31 jul. 1858.
144 BOArabeca! O País, São Luís, n.84, segunda-feira, 14 jul. 1873.
145 SRS. MUSICOS... O País, São Luís, n. 86, terça-feira, 26 jul. 1864.
60

pela clientela que precisava de seus préstimos. No jornal O Observador,


João Evangelista do Livramento “faz publico que se acha habilitado para
afinar pianos; offerece portanto, o seu préstimo à aquellas pessoas que o
quizerem obzequiar com sua protecção. Pode ser procurado em sua caza
na rua de Sant” Anna n.44, mística a que mora o Sr. Dr. Ferrão”148.
Nos Almanaques que saíam anualmente em São Luís, os afinadores
e consertadores de pianos anunciavam seus serviços aos proprietários dos
referidos instrumentos, juntamente com os professores. No ano de 1858,
constavam no Almanak como afinadores e consertadores de pianos e órgãos
Antônio de Freitas Ribeiro, residente na rua do Egito, nº 23; Ayres da Serra
Burgos, que afina e conserta pianos, harmônicas, realejos, na rua da Cotovia;
João Evangelista do Nascimento, residente na rua Direita, nº 18; Joaquim
Ferreira da Ponte, que afina e conserta pianos, órgãos, acordeons e realejos,
e fabrica pianos, na rua da Madre de Deus, nº 20 e Mocambo!*. O que mais
chama a atenção é Joaquim da Ponte anunciar que fabrica pianos, visto que
somente no século XX é que fábricas de piano são instaladas no Brasil, porém
tiveram vida curta.
Na lista dos afinadores de pianos do ano de 1873 do Almanak!* constavam
os nomes de Antônio de Freitas Ribeiro, agora residindo na Rua Formoza, nº
3; João Batista Ferreira Pontes e Francisco Ferreira Pontes Júnior, pai e filho,
morando, respectivamente, na Rua Grande, nº 377 e na Rua dos Afogados, nº 72.
Já no ano de 1879, os afinadores de pianos que anunciam seus serviços no
Almanak!“ não aparecem nos anos anteriores que foram analisados. São eles
Faustino da Cruz Rabello, residente no Beco dos Barbeiros, e José Firmino
Ewerton Vieira, na Rua da Viração.
Nos anos finais do século XIX, encontrei três anúncios de afinadores de
pianos em anos diferentes, sendo que, possivelmente, dois deles se refere à
- mesma pessoa, e todos veiculados no jornal Diário do Maranhão. O primeiro
diz o seguinte: “Pianos — Na rua dos Remédios junto à casa do sr. Pedro
Souza Guimarães, tem pessoa habilitada para concertar toda e qualquer qua-
lidade, assim como afina-se por modico preço”!*º. E os outros dois versando
o seguinte: “Pianos, harmonios etc., Na rua de São João, junto ao quartel
do mesmo encontra-se pessoa habilitada para concertar e afinar por modico
preço, a qual pode ser procurada a qualquer hora; assim como tem alguns
pianos para alugar”!!. E “Pianos — Na rua de S. João caza n, 57 afina-se e
concerta-se, na mesma tem para alugar”!

146 ATTENÇÃO. O Observador, São Luís, ano 8, n. 408, quinta-feira, 6 jun. 1855.
147 | Almanaque do Maranhão para o ano de 1858, São Luís, 1858, p. 118.
148 Almanaque do Maranhão para o ano de 1873, São Luís: Editor João Candido de Moraes Rego, 1873, p. 202.
149 Almanaque do Diário do Maranhão para o ano de 1879, São Luís: Typ. Do Frias, 1879, p. 84.
150 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, n. 6305, terça-feira, 11 set. 1894.
151 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, ano 26, n. 6612, sábado, 14 set. 1895.
152 PIANOS. Diário do Maranhão, São Luís, n. 7180, quinta-feira, 12 maio 1897.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 61

Não foi possível saber onde esses profissionais aprenderam esse ofício e
nem se eram brasileiros. Talvez num estudo posterior essa categoria profissional
possa ser melhor estudada e explique de modo mais completo a história das
vivências musicais no Maranhão.
Assim, a presença desses profissionais anunciada nos jornais que cir-
culavam na capital da província maranhense indica a inserção de membros
das elites nos novos ditames do gosto civilizado, uma vez que o gosto é um
dos determinantes e diferenciadores dos hábitos e dos costumes e, através da
existência na sociedade ludovicense desses profissionais, as elites da capital
maranhense se identificavam com as elites europeias!*.

153 MONTEIRO, Maurício. Op. cit., 2008, p. 70.

A ans is e TTTEEJOoo
OS LAZERES NA SÃO LUÍS
DO PERÍODO IMPERIAL
Paulo da Trindade Nerys Silva
David Machado Ferreira
Cássia Giovana Nascimento dos Santos
Ilana Maria Carneiro Chagas

Resgatar a memória das práticas de lazer na cidade de São Luís (MA) no


período imperial é o objetivo deste trabalho. Para tanto, recorremos à biblio-
grafia pertinente ao assunto, periódicos e documentos — Códigos de Postura
de São Luís de 1842] e 1866.
O crescimento da cidade de São Luís, assim como o de outras cidades
brasileiras no final do século XIX, esteve associado às transformações do
país que buscava se inserir nos marcos internacionais do desenvolvimento do
capitalismo, tanto em relação ao modelo econômico, quanto pela assimilação
de valores, padrões e modos de vida europeizados.
O século XIX foi o palco de muitas transformações na Europa, princi-
palmente no campo das ideias que as elites brasileiras tomaram conhecimento
por intermédio dos seus filhos que para lá se deslocaram para estudar. De volta
ao Brasil, eles tentavam reformular o país de acordo com os novos modelos
políticos. As elites de São Luís, capital da província do Maranhão, lutavam
para se adequar e fazer com que a população assimilasse os hábitos e práticas
irradiados tanto da capital do país, onde estava instalado o poder central e a
corte imperial, quanto da Europa. Buscavam também modernizar a estrutura
urbana das províncias carentes de serviços de saneamento básico. A economia
do Maranhão se robustecia ancorada no modelo agrário exportador baseado
na cultura do algodão, com a alta do preço em consequência da Guerra de
Secessão nos Estados Unidos.
Nesse período São Luís foi invadida por muitas novidades: sob o co-
mando de estrangeiros fábricas de tecidos se multiplicaram, acompanhadas
pelos telégrafos, telefones e energia elétrica. Em 1840, havia seis fábricas no
Maranhão e em 1895, o estado contava com 27 fábricas em São Luís, Caxias
e Codó, o que rendeu ao Maranhão o título de “Manchester do Norte”!*.
154 MARANHÃO. Edital à Câmara de São Luís, referente às posturas aprovadas pelo Conselho Geral da
Província. São Luís: Tip. da Temperança, 1842.
155 VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895). São Luís: Associação
Comercial do Maranhão, 1954. 1 v.
64

À implantação do parque fabril trouxe avanços tecnológicos e mudanças no


perfil urbanístico da cidade. Com a riqueza baseada no algodão, na segunda

W
metade do século XIX, a Rua do Giz (28 de Julho) tornou-se um centro fi-

mA
nanceiro com a instalação de algumas casas bancárias. A cidade lançou-se
em reformas mais estruturais com a construção de sobrados azulejados e
amirantados, construção de estradas ligando, o bairro central (Praia Grande e

iam
adjacências) aos arrabaldes como João Paulo. Houve também a continuação
das obras do Cais da Sagração; a criação da Cia. de Águas de São Luís em
1847, assentamentos de trilhos para o bonde com tração animal'*.
O desenvolvimento da cidade impunha o estabelecimento de regras urba-
nas e de conduta entre os moradores, necessitando para tal a edição de Códigos
de Posturas. Para efeito deste estudo, além das formas de lazer praticadas em
São Luís, examinamos os Códigos de Posturas promulgados em 1842 e 1866.
Os códigos fixaram normas básicas relativas ao comércio, salubridade, espaço
público (construções, comportamento, trânsito e segurança). Desse modo,
orientavam as atividades econômicas (licença para abrir estabelecimentos
comerciais, tabernas e botequins), regulava o comércio (restrição ao mono-
pólio de gêneros e controle de pesos e medidas) e os costumes (proibição de
algazarra nas ruas e atos atentatórios ao pudor, entre outros).
Conforme Norbert Elias!*”, os Códigos de Posturas podem ser pensados
como eixos norteadores do processo civilizatório em que as mudanças nos
comportamentos humanos, em direção à “civilidade”, e que resultam da exe-
cução de planos e ações que implicam na reorganização dos relacionamentos
humanos e cujo resultado provisório é nossa forma de conduta e sentimentos
“civilizados”. Os códigos funcionavam como mecanismos que visavam
à segregação dos atores sociais a um processo civilizador. Este processo se
consolidava na medida em que as transformações nas maneiras de lidar com
o outro se tornavam necessárias e perceptíveis. Assim, esse tipo de legislação
se modificava de modo a organizar o uso e a ocupação do espaço urbano e
normatizar as condutas dos sujeitos que o ocupam.
Gebara!” diz que no século XIX as posturas municipais, funcionavam
como um mecanismo de controle social, referindo-se a um grande número
de questões pertinentes à administração pública municipal, relacionadas a
aspectos da vida diária como os costumes e problemas enfrentados pelos
atores sociais que constituíam a urbe.

156 RIBEIRO JÚNIOR, José Reinaldo. Formação do Espaço Urbano de São Luís: 1612-1991. São Luis:
Ed. FUNC, 1999.
157 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: a formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993.
158 Ibid., p. 195.
159 GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 65

Em São Luís, constatamos que qualquer manifestação no campo dos


lazeres e divertimentos era regulada pelos Códigos de Postura. Considerando
que a cidade encontrava-se inserida num contexto social de base escravocrata,
nos permite supor a necessidade de muitas posturas voltadas especificamente
para normatizar a ação dos sujeitos escravizados. Desse modo, os senhores
eram os idealizadores e aplicadores do modelo de cidade pensado através da
legislação municipal e pretendiam adequar os escravos às normas de conví-
vio social, legitimadas nos discursos das elites locais. É neste sentido que os
Códigos de Postura de São Luís revelam parte da realidade de sua época, pois
normatizam permissões e proibições, práticas que são aceitas ou rejeitadas, a
ação social disseminada ou criminalizada.
A cidade desenvolveu-se, neste contexto, entre o que é estabelecido
como legal e ilegal, incorrendo na separação dos grupos sociais. De um lado,
aqueles que podem ser considerados “pessoas de bem” por cumprirem com
as obrigações legais estabelecidas, em sua maior parte, pelo próprio grupo a
que pertencem; de outro lado, os escravos constituíam parte considerável da
população à margem do direito privado e da ordem urbanística!*.
Com efeito, os lazeres também obedeceram a essa distinção: lazer da
elite e lazer de escravos e pobres, sempre sob a vigilância dos Códigos de
Posturas — no caso, os códigos de 1842 e 1866.

Os lazeres na São Luís do período imperial

Ás pesquisas de Vaz, Ferreira, Vaz!*!, registradas no Atlas do Esporte no


Brasil, examinam os lazeres praticados em São Luís no período oitocentista.
Informam que a partir de 1820 o bilhar francês passou a fazer parte da vida
da cidade, instalado no Teatro União já em 1822.1%

160 SELBACH, Jeferson Francisco. Códigos de postura de São Luis. São Luís - MA: EDUFMA, 2010.
161 VAZ, Leopoldo Gil Dulcio; FERREIRA, Hélton Mota; VAZ, Delzuite Dantas Brito. São Luís — MA.
In: COSTA, Lamartine Pereira da (Org.). Atlas do esporte no Brasil. Rio de Janeiro: CONFEF, 2006.
p 3-2.38 — 3-2.483.
162 Os ingleses introduziram no Brasil os principais substitutos esportivos e recreativos das cavalhadas
coloniais: o turfe, o tênis, a bicicleta e o futebol. Em 1826 há notícias da existência de vários deles em
bares e entre os anos de 1838 e a Proclamação da República, eram frequentados pelos alunos do
Liceu Maranhense — colégio criado para atender aos anseios educacionais da elite local. Os jogos
de sinuca desembarcaram no Brasil por volta do século XIX para distrair a elegante e burguesia
brasileira. Em pouco tempo já estava disseminada pelos melhores clubes e bares de práticas
esportivas. Na nobreza os jogos de sinuca eram marcados pelo silêncio. Os cavalheiros se portavam
como numa cerimônia séria e intelectualizada, cheia de requinte e fidalguia. Ao mesmo tempo, foi na
periferia que ele cresceu e se desenvolveu de verdade. Os jogos de sinuca foram crescendo junto
com a urbanização e a industrialização do país, e assim pipocavam as casas públicas de jogos de
sinuca e a partir daí o crescimento foi inevitável. Em pouco tempo os maiores apreciadores seriam
os trabalhadores das camadas sociais mais baixas.
66

Outras atividades de lazer praticadas em São Luís e registradas no Atlas


do Esporte no Brasil são as caminhadas, as cavalgadas e a caça. Além desses,
a partir de 1827 há registros do jogo da péla, que daria origem ao law tennis.
A dança é outro exemplo de manifestação lúdica bastante praticada desde
o século XIX, atingiu seu apogeu em 1829 quando foi anunciada a primeira
aula, pelo italiano Carlos Carmini oficial de dança, a partir daí foi se desen-
volvendo chegando a fazer parte dos programas das escolas particulares que
se abriam na cidade já em 1842.
De acordo com o Atlas dos Esportes, a capoeira foi confirmada por no-
tícia de jornal de 1835. Em 1855 e anos seguintes, a prática é proibida pela
polícia e em 1877, aparece sob a forma de competição. No ano de 1841 surge
o anúncio de Manoel Dias de Pena propondo-se a ensinar a esgrima. Com
a criação da Escola de Aprendizes Marinheiros, em 1861, a esgrima passa a
fazer parte da instrução militar dos alunos, prosseguindo até seu fechamento.
Nos anos de 1870, na casa dos Abranches (família importante da cidade),
foi montada uma sala de ginástica com pesos na qual os companheiros do
Liceu de Dunshe de Abranches iam se exercitar. A partir de fins dos anos de
1880, a elite maranhense passa a praticar a ginástica sueca.
Em 9 de agosto de 1881 o inglês Septimus Summer, fundador do Racing
Club Maranhense tenta implantar o turfe em São Luís. O clube durou até dezem-
bro do mesmo ano. Em janeiro de 1893, por iniciativa de Virgílio Albuquerque,
no bairro do João Paulo, ergue-se o Prado Maranhense, o qual após algumas
poucas programações de corridas encerra suas atividades em 28 de maio de 1893.
Ribeiro ao se referir às danças populares no Maranhão oitocentista destaca
o Fandango, o Bumba meu boi, a Chegança, a Caixa do Espírito Santo e a
“Dansa” do Congo'$. Entre as festas religiosas ou festas de largo cita como as
mais importantes: as festas do período natalino (presépios e reisados), de Nossa
Senhora dos Remédios, de Santa Filomena, de Santo Antônio e a de São Benedito.
Conforme Ribeiro a festa de Nossa Senhora dos Remédios, a maior das
festas de largo do século XIX, rivalizava com a festa de Santa Filomena!*.
Nessas festas, nas praças, restaurantes e cafés a elite ludovicense tinha a
oportunidade de mostrar a beleza, a elegância, as roupas da moda e o prestígio
para compor as colunas sociais. Nessas festas as pessoas podiam deliciarem-se
com comidas vendidas por negras de tabuleiro, participar de sorteios, leilões,
brincar de carrossel, balanços e conhecer as máquinas precursoras do cinema,
que frequentemente apresentavam-se em locais de grande afluência popular.
Em relação às manifestações das religiões africanas praticadas em São
Luís, no caso o Tambor de Mina, os registros dos requerimentos para as festas
situam-se em sua quase totalidade em locais de periferia, alguns mesmo fora

163 RIBEIRO, Maria José Bastos. O Maranhão de outrora - Memórias de uma época (1819-1924). Rio de
Janeiro: Jornal do Commercio, Rodrigues & CIA, 1942. p. 142.
164 RIBEIRO, Emanuela Sousa. Igreja Católica e Modernidade no Maranhão, 1889 — 1922. 2003.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
Pernambuco, 2003.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 67

da área urbana; certamente com o intuito de não perturbar as famílias de elite


que poderiam fazer alguma queixa à Chefatura de Polícia. Quanto ao Divino
Espírito Santo, parece ser festejado por pessoas de diferentes condições socio-
econômicas, não seguindo um mesmo perfil de requerentes, como acontece nas
solicitações de Mina, feitas por pessoas de classe economicamente inferior!,
As festas denominadas de “Surpresa” eram organizadas por amigos e pa-
rentes de uma pessoa no dia de seu aniversário. Outro costume de S. Luís era o
de reunir pessoas nas praias de desembarque de barcos que chegavam do litoral
trazendo melancias para serem saboreadas ali mesmo na praia. Havia, ainda, as
“brincadeiras” que consistiam em reuniões de moças nas casas das amigas para
recitar poesias ao som do piano. “Depois, vinha a parte dos jogos: “Correios” e
o jogo de pagar prendas. Havia, ainda, a “Noiva”, a “Chave de Roma”, o jogo
dos Disparates, a “Berlinda” e muitos outros”. Além da frequência aos teatros,
festas de largo, bailes e banhos de rio era comum a roda de amigos, reunião que
faziam à noite à porta das casas ou nos largos, no dos Remédios, principalmente!*.
Vários autores escreveram sobre as manifestações carnavalescas em São
Luís.'º” Em seguida, passaremos aos lazeres praticados na cidade de São Luís,
à luz dos Códigos de Posturas.

São Luís, lazeres e Códigos de Posturas (1842 e 1866)

O Código de Posturas de 1842'$

O primeiro Código de Posturas da cidade de São Luís do Maranhão data


de 1842 e traz 113 artigos sem divisão sistematizada em partes ou capítulos.
De maneira geral, os artigos podem ser classificados em três grandes áreas:

165 RIBEIRO, Emanuela Sousa. “Requerimentos de Licenças para Festas na Secretaria de Polícia de
São Luís (1873-1933)”. Relatório de pesquisa do projeto “Religião e Cultura Popular”, coordenado por
Sérgio Figueiredo Ferretti, São Luís, 1998.
166 RIBEIRO, E. S. Op. cit., 1942.
167 Outra grande festa era o carnaval de rua. “Não havia “cordões” nem “samba”. De casa em casa,
de janela a janela, de grupo para grupo, do alto das casas para a rua as pessoas se divertiam
com batalhas de água (cabacinhas cheias d'água colorida ou perfume); usavam também alvaiade,
farinha de trigo e até fuligem de chaminés. Assunção (2000-2001) dá notícia do Entrudo no carnaval
maranhense desde 1854. Segundo Martins (2005) o povo da rua encenava o seu próprio teatro com
grandes passeatas de “congos”, “cheganças”, “fandangos”, “turés”, “caninha verde” e o “baralho”
com autos dramáticos, que disputavam o espaço público com o grupo dominante e que a câmara e a
polícia tratavam de reprimir, de forma recorrente. Outra manifestação central do carnaval maranhense
era o baralho, descrito por Domingos Vieira Filho (1971) como consistindo essencialmente de bandos
de negros e negras esmolambados, pintalgados de tapioca de goma, empunhando sombrinhas e
chapéus de sol desmantelados e sem pano, que percorriam as ruas da cidade aos gritos e ao som
de reco-recos, pandeiros e violões.
Em São Luís, uma segunda fase do carnaval, ue Martins (1998) chama de “Carnaval dos Cordões”,
se iniciaria a partir do final do século XIX, eram famosos os ori e ranchos de ursos, apresentando
autos com “ursos caprichosos”, cachorros e outros personagens.
188 MARANHÃO. Op. cit., 1842.
68

atividades relativas ao comércio, salubridade e espaço público (construções,


comportamento, trânsito e segurança).
Pertinente ao espaço público, dez artigos tratavam da ordenação do
comportamento, dentre elas estavam às circunscritas aos lazeres tais como
soltar foguetes, batuques e fazer espetáculos. Seis artigos (36, 37, 46, 47, 85
e 87) tratavam, entre outros, de vozerias e batuques nas ruas da cidade em
horas de silêncio, da permanência em locais de jogatina, dos jogos de parar
no meio do trânsito — cartas, dados ou de outra qualquer natureza, inclusive
rifas. Entretanto, o art. 47 prevê exceção — “exceptuão-se os bilhares e jogos
privados, que deverão ter depois daquela hora a porta fechada”.
Os escravos tinham papel de destaque no cenário urbano, uma vez que
eram tratados como mercadorias ao mesmo tempo em que representavam uma
ameaça à sociedade. As proibições que se estendiam aos lazeres previam a
permanência em locais de jogos e danças, em tabernas ou botequins.
A esse respeito, Alcântara Junior, Selbach (2009) informam que uma
das medidas relativas à segurança, tinha o cuidado de controlar os escravos
negros, sempre considerados uma ameaça à sociedade dita civilizada. Escra-
vos encontrados portando cassetes seriam presos e castigados publicamente
(art. 43). Os bodegueiros deveriam zelar para que em seus estabelecimentos
os escravos não jogassem ou dançassem (art. 47). De igual modo, o art. 109
prevê que ficam sujeitos às penas do art. 47 os que consentirem em botequins
ou casas públicas, escravos entretidos em quaisquer objetos de distração. Nas
ruas, era terminantemente proibido ajuntamento de mais de trezes escravos
(art. 87), a não ser para prestar algum serviço reconhecido sob a vigilância da
polícia, visto que aglomerados deste tipo causavam medo na população livre.
Todas essas exigências legais previam multas e aprisionamento, de acordo
com o caso e a gravidade. Refletiam explicitamente a vontade da minoria —
normalmente de origem branca e acostumada com hábitos europeus mais
refinados — sobre a maioria — composta basicamente por escravos negros.
O objetivo era segurar a pressão social existente por conta dos costumes ditos
incivilizados, que faziam da rua a extensão do espaço privado.

O Código de Posturas de 1866

Editado como Lei nº 775, de 4 de julho de 1866'º, quando Lafayette


Rodrigues Pereira era o presidente da província do Maranhão. Os seus 211
artigos foram divididos, pela primeira vez em partes ou títulos: Título 1
— Regularidade e aformoseamento, com 65 artigos; Título II — Cômodo e

169 MARANHÃO. Diário Oficial do Estado. Prefeitura Municipal de São Luiz. Lei nº. 775, de 4 de julho
de 1866. Aprova o Código de Posturas da Câmara Municipal da Capital. Coleção de leis, decretos e
resoluções da província do Maranhão. São Luís: Tip. do Frias, v. 1865-1866, p. 67-99, 1866.
=! TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 69

seguridade, com 64 artigos; Título III — Salubridade, com 54 artigos e o Título


IV— Disposições geraes, com 16 artigos. Muitos dos artigos repetiam normas
anteriores. O primeiro tema — regularizações e aformoseamento urbano — re-
gulava dentre outras questões o jogo e os escravos.
Nesse regulamento, destacam-se os disciplinamentos quanto ao uso dos
carros, ao exigir matrícula dos veículos junto à Câmara Municipal: normatiza
o padrão mecânico dos veículos e, também, determinava os cuidados neces-
sários para trafegar com carros a tração animal. As infrações eram aplicadas
através do pagamento de multas ou da prisão, quando o infrator não as pudesse
gar. A população de São Luís manteve-se em torno de 30 mil habitantes,
distribuídos em 72 ruas, 19 vielas, 10 praças, 55 edifícios públicos, 2.764
casas, sendo 450 com mais de um andar!”?º.
Ao comentar o código, Domingos Vieira Filho informa sobre as proi-
bições aos escravos quanto ao ir e vir pelas ruas e praças além das 9 horas
da noite, sem autorização por escrito de seu dono!?!. O art. 115 proibia reu-
niões de mais de quatro escravos em quitandas ou casas de comércio onde
se vendessem bebidas espirituosas e se praticassem rifas e jogos. O art. 124
proibia a realização de batuques fora dos lugares permitidos pelas autoridades
competentes. Informa também que a polícia de São Luís, no século passado,
frequentemente proibia a realização de folguedos de negros pois poderiam
degenerar em perturbações da ordem pública. Dentre esses folguedos o
Bumba meu boi foi um dos sofreram perseguições implacáveis. Só podiam
se apresentar em locais distantes do centro da cidade.

Considerações finais

Os Códigos de Posturas editadas ao longo do século XIX em São Luís,


buscaram criar condições concretas para que, através do controle social e
moral, as condutas e até mesmo os corpos estejam permanentemente sendo
objetos de policiamento e vigilância, sendo estabelecidos limites aos com-
portamentos. Impõem-se ordenamentos elaborados sob o prisma de um “pa-
radigma unitário”, que desconsidera as experiências e o “saber autônomo”
dos segmentos sociais não hegemônicos. Dessa forma, ocorre a montagem de
espaços de intensa dominação e vigilância no interior da cidade, verdadeiros
“euetos” cujos indivíduos são expropriados do direito de usufruir da cidade
que eles próprios constroem.
As manifestações dos escravos, como as danças e os cantos são permi-
tidas, desde que seja conveniente à ordem da cidade, visando preservar além

170 MARQUES, César Augusto. Notas críticas e históricas sobre a viagem de P Yves D'Evreux. In:
D'EVREUX, Yves. Continuação da história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão
nos anos 1613 e 1614. Brasilia/DF: Senado Federal, Conselho Editorial, 2007.
171 VIEIRAFILHO, Domingos. Breve história das ruas e praças de São Luís. São Luís: Editora Olímpica, 1971.
70

da ordem e da moral, a força de trabalho e a sua produtividade. Aos escravos


são proibidos ajuntamentos nas ruas e casas de “bebidas espirituosas”.
Como se pode analisar a elite brasileira do século XIX estava sob o
ideal civilizatório, onde as manifestações populares eram tidas como exóticas
marginais e incivilizadas porque os seus agentes sociais eram desprovidos de
educação, renda e status social. Por isso eram tidos como perturbadores da
ordem pública, geradores da violência e propagadores da desordem. Era patente
a polaridade entre cultura popular e erudita. A elite percebia o bumba meu boi
como uma atividade bárbara, feita por “bárbaros”, isso porque a brincadeira
era desenvolvida pelas classes populares que faziam parte da periferia que
não tinham absorvido os valores europeus de civilidade.
Praticamente todas as festas frequentadas pela população pobre preci-
savam de licenças da Secretaria de Polícia, desde as festas absolutamente
laicas, como os Bailes Públicos, até as festas religiosas, como as Danças de
Mina, Festas de Reis e Festas do Divino Espírito Santo, passando também
pelas festas juninas como o Bumba-Boi e carnavalescas — Caninha Verde,
Chegança e Fandango.
O estudo dos lazeres e as situações urbanas nas quais estão inseridos mos-
tram que a construção da cidade dá-se em função de necessidades de diferentes
parcelas da sociedade que a habita e cujas classes buscam diferenciarem-se
através de diversos cenários urbanos, alguns dos quais o lazer faz parte. No
caso de São Luís, as práticas de lazer pareciam representar a cidade civilizada,
distanciando-se do rural e provinciano ao buscar a construção de um modo
de vida cosmopolita.
MÁSCARAS, NINFAS E FAUNOS
OU SOBRE A PRESENÇA DO
PROFANO NAS FESTAS DO BISPO

Maria da Glória Guimarães Correia

No correr de quase todo um reinado que se estendeu de 1706 a 1750,


“D. João V gozara sempre de boa saúde”, em testemunho do que, além de sua
“constituição robusta”!?2, tem-se o jeito de ser e de viver deste rei que “criou,
na galeria dos monarcas portugueses, um tipo próprio, original”!?, Entronizado
na força da idade e “empolgado pela riqueza do ouro e diamantes do Brasil”,
a distinguir-lhe dentre as demais cabeças coroadas destacava-se por seu enten-
dimento de que “uma corte não podia ser uma sacristia, nem um picadeiro, nem
um claustro”. Muito pelo contrário, pensava este afilhado do Rei Sol que a sua
corte “devia ser alguma coisa de vivaz, de brilhante, de luminoso, de magnífico,
um gineceu doirado, onde o galo real passeasse, ruflando a asa e encrespando
a crista”!$, o que realmente pôs em prática, de modo que “jamais houve em
Portugal um reinado tão frívolo e suntuoso como o de D. João V”17S. Apreciação
que cristaliza apenas uma das faces de D. João, esse monarca paradoxal, de
“personalidade rica de qualidades e defeitos, contrates luminosos e crepuscu-
lares”, pois sabido também que “as imensas riquezas, que nessa época vieram
do Brasil, não foram consumidas improdutivamente”"””.
Controvérsias à parte, importa que este luminoso reinado — sob os auspí-
cios do qual e graças à Sua Majestade “a mulher saiu da clausura do lar para
aparecer em público”, “o fidalgo deixou de duelar para jogar e galantear”, “o
desembargador abandonou a justiça para fazer maus versos” e, entre outras
mudanças de espavento, os elegantes passaram a ser denominados “franças ou
francelhos, porque o reinado joanino foi o domínio da francesia”!S — seguia

472 ARAÚJO, Maria Benedita. O ritual da morte: as exéguias celebradas na defunção de El-Rei D. João
V. In: SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (Coord.). Comunicações apresentadas no Ill Congresso
Internacional A FESTA. Lisboa: Edição Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1992. p. 795.
473 SOARES, Alvaro Teixeira. O Marquês de Pombal: a lição do passado e a lição do presente. Rio de
Janeiro: Editora Alba Ltda., 1961. p. 67.
174 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., 1961.
175 DANTAS, Júlio. O amor em Portugal no século XVIII. Porto: Livraria Chardron de Lelo & Irmão, 1916. p. 57.
176 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., p. 67.
477 BARBOSA, |. de Vilhena. Luxo e magnificência da corte de Dom João V. Archivo Pitoresco, Lisboa,
v. XI, p. 86, 1868.
178 SOARES, Alvaro Teixeira. Op. cit., p. 68.
72

seu curso quando, “sem que qualquer sintoma o fizesse prever”, sofreu D. João
um violento ataque de paralisia “que lhe baldou o braço, a perna, e todo o lado
esquerdo,”!”º começando ali os sofrimentos que, “sem queixas”, padeceria o
dito senhor até que a morte lhes viesse pôr termo. E entendidos que eram então
os males físicos como visíveis sinais de castigo divino, ante a certeza de que
o padecer do rei representava uma punição por pecados cometidos por ele ou
por gente sua, cada um e todos se viam agora a estimar sua cota de culpa no
corpo padecente de seu senhor e a rogar pelo fim de seus sofrimentos.

O receio pela morte do monarca [...] e o pouco sucesso dos remédios da


medicina encaminhavam para piedade divina as esperanças de seus sú-
ditos. Não apenas em Lisboa, [...], nas igrejas repletas faziam-se orações
especiais por intenção das melhoras do augusto enfermo.!8º

Tinha-se aí o pano de fundo da ambiência de júbilo que se seguiria a esse


quadro de angústias verificado aquém e além-mar, quando, tendo sua saúde
melhorada e em sinal de piedoso agradecimento, D. João rogou ao papa a
criação de uma diocese em seus vastos domínios na América, tão necessita-
dos que se viam de assistência espiritual. Como não poderia deixar de ser,
enquanto pano de fundo, sobre ele se elevariam cenários diversos, em que
sucessos e emoções de toda ordem se alternariam, dando vida a um roteiro
que só teria um ponto final quando, triunfalmente, o bispo responsável pelo
novo bispado fizesse sua entrada solene em sua respectiva sede. No caso,
fizesse D. Frei Manoel da Cruz sua entrada em Mariana, cidade que sediaria
a primeira diocese das Minas do Ouro.
Assim, sendo certo que em vista do “sistema de atitudes diante do
- perigo, da doença e da morte”!8!, não se podem minimizar os efeitos desse
quadro de vulnerabilidades e posturas dele decorrentes obre os atos do rei,
em outros termos, tendo como certo que seu empenho para a criação de uma
diocese na capitania de Minas Gerais tenha sido movido pela expectativa de
que lhe rendesse benefícios futuros, no outro mundo, há de se observar que
motivações mais afeitas ao plano material igualmente contaram para tanto.
Isso, levando-se em conta o contexto mais amplo e nos marcos do qual a vila
do Carmo não só foi alçada à condição de cidade, como também passaria a
sediar o bispado que se criava nas referidas Minas.
Nesse sentido, mesmo considerando que a morte no imaginário de então
era entendida “como um grande momento, do qual dependia a salvação da
alma”, razão por que representava “continuidade e, ainda, possibilidade de uma

179 ARAÚJO, Maria Benedita. Op. cit., p. 795.


180 Ibid., p. 796.
181 VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história: fantasmas e certezas nas mentalidades desde
a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997. p. 113.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 73

vida no céu”!2, deve-se relativizar o peso desse medo nos encaminhamentos


do soberano que desde a morte passou a rondar seu leito. Também porque,
dando-se crédito ao testemunho de Antonil, naquelas Minas, onde ouro e dia-
mante haviam sido descobertos, reinava o caos, daí a premente necessidade
da firme intervenção de seu soberano sobre elas. No que dizia respeito ao
temporal, dizia o jesuíta que até então não teria havido ali “governo algum
bem ordenado, ministros nem justiças” que pudessem “tratar do castigo dos
crimes”, e no que concernia ao espiritual, o caos reinaria igualmente. Dentre
outros, por conta das disputas de jurisdição entre autoridades eclesiásticas, de
modo que ficavam aqueles rebanhos sem saber a que pastor deviam seguir,
sem contar que a vida escandalosa de muitos não contribuía para apascentar
aquelas ovelhas desgarradas, menos ainda para trazê-las ao redil da Igreja!*.
Por outro lado, se o Estado e a Igreja não se tinham feito sentir naquelas
partes de tanta importância para a grandeza do império, afirmava Antonil que
os comerciantes constituíam uma poderosa presença nos ditos sertões, pois,

tanto que se viu a abundância do ouro que se tirava e a largueza com que
se pagava que lá, logo se fizeram estalagens e logo começaram os mer-
cadores a mandar às minas o melhor que chega nos navios do Reino e de
outras partes, assim de mantimentos, como de regalo e de pomposo para
vestirem, além de mil bugiarias de França.!**

Nesse sentido, corroborando com o que Antonil havia escrito nos inícios
do século, em seus meados, uma anônima testemunha registra que “o país das
Minas, que é o mais útil entre os vastos domínios da Lusitania, não só se acha
falto das utilidades temporais”, como também “de toda a cultura espiritual
para a salvação de suas almas”. Cenário que a seu juízo se devia ao abandono
em que as Minas se achavam, em vista da grande distância que as separava
do Rio de Janeiro, sede do bispado a que pertenciam,!'* o que seria alegado
como motivo bastante para a criação da nova diocese.
Diante disso, e fundado numa pedagogia da dor que informava as sen-
sibilidades setecentistas, entendia Antonil que assim como não havia “causa

182 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na capitania de Minas Gerais —
século XVIII. Revista do Departamento de História- UFMG, Belo Horizonte, p. 21, 1987.
183 ANDREONI, João António (André João Antonil). Riqueza e opulência do Brasil. São Paulo:
Melhoramentos, 1976. p. 168.
184 | Ibid,, p. 169.
185 ANÔNIMO. Aureo Throno Episcopal collocado nas Minas do Ouro ou Noticia Breve de creação do
Novo Bispado Marianense, de sua falicissima posse, e pomposa entrada do seu meritíssimo, primeiro
Bispo, e da jornada que fez do maranhão o Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor D. Fr. Manoel
da Cruz, com a Collecção de algumas obras academicas, e outras, que se fizeram na dita função,
author anonymo, dedicado ao Illustrissimo Patriarca S. Bernardo, e dado à luz por Francisco Ribeiro
da Silva, Clerigo Presbytero e Conego da nova Sé Marianense. Lisboa: Officina de Miguel Manescal
da Costa, Impressos do Sto. Offício, Anno 1749, p. 1.
T4

tão boa” que não pudesse “ser ocasião de muitos males”!%, razão por que
a riqueza advinda das minas de ouro e diamantes, ali existentes, viria a ser
a perdição daqueles gerais, caso não se fizesse sentir neles o peso da Mão
de Deus e do Rei. Homem de seu tempo e partindo da mesma perspectiva
do padre, também aquela anônima testemunha teorizava sobre um estado
de coisas, partindo do pressuposto de que “o pecado é o que nos sujeita ao
domínio estranho”, mesmo percebendo a virtude como medida da “grandeza
do dom que recebemos”!*”. Percepção que, de par com o ato de piedade real
que criara o primeiro bispado na região das Minas Gerias, é tomada como
pista para que se explique a escolha do Carmo para sua sede.
Afinal, não fora na dita vila que o Conde de Assumar se refugiara quando
da sublevação daqueles povos, num eloquente testemunho acerca da fidelidade
de sua gente ou, pelo menos, de parte dela a seu Rei, ao acolher e continuar
respeitando a autoridade daquele seu agente? Assim, em vista da aliança do
Rei com Deus, mostrava-se o Carmo merecedor e devidamente habilitado
para receber um trono episcopal e para se afirmar como espaço privilegiado
de poder nos gerais, como reconhece e determina o Decreto de 23 de abril de
1745, por meio do qual a dita vila foi elevada à condição de “Cidade Mariana”,
como querem alguns, ou tão somente “Mariana”, como ajuízam outros quanto
ao nome da sede do novo bispado. Tudo isso acontecendo justamente quando
o Carmo jazia prostrado por inundações do seu ribeirão, “contra os desígnios
errados dos homens, ou contra os discursos dos homens errados” !!8º
Em face de tais preocupações e cuidados, para ocupar o novo trono epis-
copal, Dom João V escolheu D. Manuel da Cruz, que então respondia pelo
bispado do Maranhão, numa escolha a que procedeu sem que explicação ou
nota de conforto tenha sido dirigida às ovelhas do dito pastor. De todo modo,
* se aos reis não se lhes obriga a dar satisfações por seus rompantes e menos
ainda sobre suas mais bem pensadas decisões, é de se supor que para sua
tomada de decisão o Rei “Magnânimo” tenha levado em conta a formação e a
vida do escolhido, sem, todavia, esquecer que tal decisão se deu nos marcos
de uma cultura política cuja tônica era a indissociável relação entre mercê
e serviço, no mais perfeito “toma lá, dá cá”, como se diria nos dias de hoje.
Assim e a despeito dos critérios e arranjos empreendidos para tanto, não é
demais lembrar que depois de longa vacância do trono episcopal do Maranhão,
em 2 de julho de 1738, o nome de D. Manuel da Cruz fora “apresentado por
D. João V e nomeado por Clemente XII”, para responder por esse bispado!*º;

186 ANDREONI, João António (André João Antonil), p. 194.


187 ANÔNIMO. Op. cit., p. 18.
188 Ibid., p. 11.
189 PACHECO, D. Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: Departamento de
Cultura do Estado do Maranhão, 1968. p. 26.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 75

que, assim como se lê em todos os relatos sobre a chegada de autoridades civis


e eclesiásticas naquelas terras, também a sua, a qual se deu em 15 de junho
de 1739, teria causado “alegria geral aos diocesanos, privados de Pastor havia
quinze annos”; que a solenidade de sua posse “fez-se em dia de S. Pedro com
uma pompa desusada”!”º, e que cumprindo um cerimonial em que as hierarquias
deviam ser devidamente respeitadas, fez D. Manuel da Cruz sua entrada solene
“a cavalo, pegando-lhe o estribo o Capitão-General Castelo Branco”?!
Dito isso, registre-se que o episcopado de D. Manuel da Cruz em terras do
Maranhão não fugiu à regra, reproduzindo de alguma forma o acontecido em
outros, pois, “na ordem do clero, vemos bispos, e os juízes eclesiásticos, desde
a primitiva, assinalarem-se por abusos, violências e usurpações da jurisdição
civil”'?2, Realidade da qual se tem conhecimento por meio não só das muitas
cartas que escreveu para autoridades civis e eclesiásticas, parentes e amigos,
como também das queixas apresentadas contra ele por quem se sentiu perse-
guido e injustiçado por seus atos, no rol das quais se contavam não poucos
desafetos. O certo é que, tendo aportado em São Luís, depois de cinquenta
longos dias de viagem, e havendo cumprido as devidas solenidades de posse,
deu início a um episcopado que não seria dos mais calmos, ressaltando-se,
todavia que, em detrimento das malquerenças de parte a parte, se esforçou
para criar condições para melhor funcionamento das instituições eclesiásti-
cas e para estender sua atuação a todos os rincões sob sua autoridade, o que
circunscrevia a capitania do Piauí.
Para tanto, primeiramente tratou de organizar o corpo capitular do bispado,
uma vez que, malgrado ser ele o sexto bispo do Maranhão, a catedral não existia
“nem no nome nem na realidade”, pois mesmo tendo seu antecessor nomeado
“algumas dignidades”, como estas não haviam sido “confirmadas por Vossa
Majestade, nem coladas pelo ordinário não podiam de jure constituir Cabido,
nem ter jurisdição alguma nem cobrar côngruas da Fazenda Real, como de fato
não cobram”!3, como informou a El-Rei em carta de 05 de setembro daquele
ano. Paralelamente a isso, dando encaminhamento à determinação do próprio
monarca, caiu em campo a fim de fundar um seminário, para o que já contava
com sete seminaristas e com “petições de muitos pretendentes do sertão”,

190 SILVA, D. Francisco de Paula e. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia:
Typographia de S. Francisco, 1922. p. 115.
191 PACHECO, D. Felipe Condurú. Op. cit., p. 26.
192 LISBOA, João Francisco. Jornal de Timon: apontamentos, notícias e observações para servirem à
História do Maranhão. Brasília: Alhambra, [s.d.]. p. 43. 2 v.
193 CRUZ, D. Frei Manuel da. Carta a El-Rei. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.). Copiador de cartas particulares
do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana. Brasília: Editora do Senado,
2008. p. 10-11.
194 CRUZ, D. Frei Manuel da. Carta ao Padre Frei Gaspar da Encarnação. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.).
Copiador de cartas particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana.
Brasília: Editora do Senado, 2008. p. 15.
76

de acordo com o que escreveu a frei Gaspar da Encarnação, em 29 de agosto


de 1740. Afinal aquela seria uma obra muito do agrado de Sua Majestade e a
respeito da qual informa ainda na mesma carta:

Além de ma persuadir eficazmente em Lisboa, me mandou agora um


vestido feito para servir de molde para todos os mais de que hão de usar
os seminaristas do Maranhão, que de cor roxa, e na forma que trazem
os seminaristas da Santa Patriarcal. Dou conta a Vossa Reverendíssima
para que encomende a Deus esta sua obra, e em favor dela escreva uma
cartinha para o pano.!º%

Empenhou-se ainda D. Manuel para que a Sé adquirisse uma dignidade


mínima a fim de que fosse reconhecida como tal, o que nos leva a imaginar
qual seria seu estado, visto que findava seu episcopado e ele ainda era en-
contrado solicitando paramentos e outros petrechos necessários à celebração
dos ofícios divinos!*%, ao mesmo tempo que dava continuidade à tarefa muito
mais difícil de reformar os costumes de seu rebanho. Afinal, se a vida corria
sempre “entre o pecado e a penitência”!””, nas terras do Maranhão parecia
seguir na trilha do pecado, campeando solta, no litoral e no sertão, por ilhas e
continente, contra o que se armou com a arma das pastorais, como aquela com
que ameaçou clérigos e fiéis, exortando-os a que, em meio a tantas práticas
desviantes, “por nenhum modo” concorressem para a encenação de comédias
amatórias, bailes e outros divertimentos profanos.
Assim, como o mais verdadeiro e convicto jacobeu, terçou D. Manuel da
Cruz renhido combate contra tudo que considerava nocivo aos bons costumes
das repúblicas e que teria sido a “causa dos maiores e mais horrorosos casti-
gos”, tal como sucedera “a aquelas infames cidade de Sodoma e Gomorra”,
“Ameaça que, a seu juízo, pairava sobre as terras do Maranhão, daí por que,
tendo conhecimento de que “a malícia do Demônio, e a perversidade dos
homens” tinham introduzido naquela capitania “uns bailes, danças vulgo “O
Plantão” torpes, e desonestas, que servindo de escândalo à república serviram
de ruína espiritual a muitas almas”, sem concessão a dia ou ensejo, decretou:
mandamos sob pena de excomunhão maior ipso facto incurrenda, e de
vinte cruzados a metade para o denunciante, a metade para a fábrica da
matriz, que nenhuma pessoa assim de um como de outro sexo, de qual-

195 - Ibid., 2008.


196 AHU, Maranhão, Cx. 28, D. 2863; Cx. 29, D. 2980.
197 SARAMAGO, José. Memorial do convento. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 78.
198 CRUZ, D. Frei Manuel da. Pastoral que o Excelentíssimo e Reverendíssimo Senhor Bispo mandou
publicar na sua visita geral de todo o bispado no ano de 1742. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.). Copiador
de cartas particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana. Brasília:
Editora do Senado, 2008. p. 93.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 77

quer estado, qualidade, e condição que seja, toque, cante, dance ou assista
semelhantes danças.!”

Diante disso, considerando que a punição por uma dança podia ser tão
severa, imagine-se os tormentos com que esse trovão ameaçador não faria os
acusados de crimes de maior monta expiarem sua culpa, como era o caso do
amancebamento em que viviam muitos casais, pois esse era um crime cometido
contra a moral e contra a fé. Isso porque, assim como outros prelados que o
haviam precedido e sucederiam, Sua Reverendíssima não levava em conta
as imensas dificuldades que precisavam enfrentar todos os que pretendiam
contrair matrimônio, razão por que muitos nem o tentavam fazer, por não reu-
nirem as mínimas condições para tanto.?º Sem contar que assim como havia
acontecido em Portugal entre os séculos XVI e XVII, nesse mundo novo, as
mulheres ficavam e os homens se iam, e que mesmo que fizessem “diligências
para saber notícias do paradeiro do marido”?!, aqui e acolá, acontecia de se
deparar com situações extremas como a daquela “mulher casada duas vezes”,
sobre quem D. Manuel da Cruz fala com toda a veemência de sua censura??.
Ainda quanto aos empenhos do dito bispo, sua façanha maior parece mesmo
ter sido a visita que fez a todo o seu bispado, por ter “informações da relaxação
da disciplina eclesiástica, corrupção dos costumes dos moradores destes sertões”,
a qual foi relatada ao Cardeal Patriarca de Lisboa, numa carta em que diz:

Parti do Maranhão em fins de agosto do ano passado (1743), e chegando a


esta vila (da Mocha, pertencente à capitania do Piauí) em doze de janeiro
do presente ano, tendo caminhado duzentas léguas, e vencido grandes
dificuldades, e muitos trabalhos, e perigos no mar, na terra, e também na
visita de inumeráveis povos que residem naquele distrito. Passei nesta vila
parte do inverno, e a Santa Quaresma bastantemente ocupado na visita
desta grande freguesia, missão, e outras grandes dependências da minha
ocupação e qualquer dia parto para o sertão do Parnaguá, jornada muito mais
extensa, e trabalhosa pelo áspero dos caminhos, e também mais perigosa
pela infestação do gentio bárbaro, que ainda aparece algumas vezes por
aquelas partes, se não tiver algum incidente maior, que me demore, me
poderei recolher ao Maranhão por todo o mês de janeiro de 1744, tendo
concluído a visita de todo o bispado, e andado perto de oitocentas léguas.*

199 - Ibid., p. 93-94.


200 CORREIA, Maria da Glória Guimarães. Do amor nas terras do Maranhão: um estudo sobre o
casamento e o divórcio, entre 1750 e 1850. Tese de Doutorado em História. Universidade Federal
Fluminense — UFF Niterói, 2004.
201 MEA, Elvira Azevedo. Mulheres na teia da expansão. Actas do Congresso Internacional O rosto
feminino da expansão portuguesa. Cadernos Condição Feminina, Lisboa, v. |, n. 43, p. 67.
202 CRUZ, D. Frei Manuel da. Carta para o Doutor João Rodrigues Coveite. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.).
Copiador de cartas particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana.
Brasília: Editora do Senado, 2008. p. 39.
203 CRUZ, D. Frei Manuel. Pastoral que o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Bispo mandou
publicar na sua visita geral de todo o bipado no ano de 1742. In: LEONI, Aldo Luiz (Org.). Copiador
de cartas particulares do Senhor Dom Frei Manuel da Cruz, Bispo do Maranhão e Mariana. Brasília:
Editora do Senado, 2008. p. 93-94.

om
78

De torna viagem e não se sabendo com que grau de satisfação se en-


contrava em face dos resultados alcançados em giro tamanho, não demorou
muito, seria D. Manuel da Cruz surpreendido com sua escolha para responder
por um novo bispado, cuja bula de criação era de 6 de dezembro de 1745 e a
de sua transferência de 26 do mesmo mês e ano?*. Diante disso e sem levar
em conta o emaranhado de relações a partir do qual D. Manuel da Cruz fora
sagrado bispo de Mariana, acompanhar sua partida do Maranhão e a longa
jornada que cumpriu para assenhorear-se de seu novo trono permite-nos
perceber o “encanto do paradoxo”2% desse processo que culmina com a sua
entrada solene e tomada de posse do dito bispado.
Além dos rituais de caráter propriamente religioso, a entrada solene
e a tomada de posse de D. Manuel da Cruz deram lugar a um conjunto de
festividades que, na presente análise, são tomadas como expressão de uma
cultura mais ampla, que dá azo a “percepções diversas e multiplicação de seus
significados”? e permite aquilatar a distância que então separava discursos
e práticas, a exemplo da radical oposição que deveria existir entre sagrado
e profano. Afora isso, sendo tomados como “fatos sociais totais”2””, tais
festejos permitem perceber e estimar como também estimar perdas e ganhos
que permearam essa troca de bispados, tendo em mente a grande diferença
existente entre os mundos que recobriam, para o que é importante vislumbrar
que Maranhão era esse que D. Manuel da Cruz deixava para trás, tendo como
referência uma descrição do bispado, feita a partir da visita que empreendera
a seus diocesanos de latitudes diversas.
Isso posto, há de se observar o Maranhão que descrito nesse importante
registro é o Maranhão visto pelos olhos de quem o viam, portanto, por olhos
orientados pela “representação ocidental do mundo”, a qual era marcadamente
construída mediante “oposições duais que recortam antiteticamente o real”?º8.
Assim, ante uma natureza exuberante e estranha, as águas do Maranhão
chamam muita atenção: as do rio Mearim, porque “nele faz pororoca o mar
com tanta violência que se quando enche a maré acha alguma canoa junto
de baixio, a faz infalivelmente em pedaços, o que faz muitas léguas pelo rio
acima”, fantástico fenômeno que “por mais que se tenha indagado a razão
daqueles mares fazerem naquele rio tanta força e violência até agora nenhum

204 SILVA, D. Francisco de Paula e. Op. cit, p. 120.


205 NEIVA, Eduardo. Sob o signo da História: resposta aos meus comentadores. Anais do Museu
Paulista/Nova Série, n. 1, p. 144, 1993.
206 THEODORO, Janice. América barroca: tema e variações. São Paulo: EDUSP 1992. p. 143-144.
207 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Lisboa:
Edições 70, 2001.
208 GRUZINSKI, Serge. A guerra de imagens e a ocidentalização da América. In: VAINFAS, Ronaldo
(Org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 199.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 79

douto a deu”?ºº, as de Pindaré, porque nas cabeceiras do dito rio haveria muito
ouro, pois alguns índios haviam dito que “seus parentes do beiço furado”,
que viviam naquela zona, “faziam dele botoques para os mesmos beiços e
orelhas”, acrescentando-se que ali ainda haveria várias castas de pedrarias
preciosas, tão resplandecentes que na noite mais tenebrosa dão claridade”21º,
As do Anil, na Ilha do Maranhão, destacam-se por serem “salutíferas para os
indivíduos” e as do Iguará, exatamente por serem o seu contrário, uma vez
que “que quem a bebe infalivelmente adoece”, como aconteceria aquém tinha
a infelicidade de beber água do Iguará”?!!,
Mar de águas calmas e também de águas violentas cercava a Ilha
do Maranhão e se estendia por suas terras continentais, tanto assim que
“em todo o tempo é perigoso” no Boqueirão e ainda nas proximidades da
ilha do Maranhão, pois próximo à vila do Icatu, na baía do Apercha, “o
Excelentíssimo bispo dom frei Manuel da Cruz, junto com sua comitiva,
esteve quase submergido”, pelos “mares naquela baía serem comumente
bravíssimos pela severidade de suas empoladas ondas”?!2. Espanto que
não desaparecia quando se tratava da abundância e diversidade de peixes
e mariscos que viviam em suas águas, chamando atenção “nos mares
circunvizinhos” de São Luís “uns peixes chamados quatro olhos, que na
realidade os têm; dois lhes servem para se vigiarem das aves que os co-
mem e dois dos peixes que os devoram”, também “outra espécie de peixe
chamado baiacu, que quem come cozido infalivelmente morre se não lhe
tiram o fel”, e ainda aquele de nome poraquê, “quando pega no anzol faz
adormecer o braço, e o mesmo sucede àqueles que lhe dão com algum
instrumento e ainda estando fora d'água”? ficando o espanto maior por
conta de uns “monstros” que viviam naqueles rios, “principalmente quando
estes têm suas cabeceiras em buritizais, [...] chamados mães-d'água, que
têm cara, mão e pés como gente”?!*.
De acordo com esse registro, a terra não só era bela como boa, uma vez
que “muito abundante de carne e peixe, frutas, farinhas, arroz, milho e feijão
e todos os mais legumes que costumam produzir os brasis”?!º, e em termos
da satisfação de outras necessidades, dizia que “hoje já lá vão todos os anos

209 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (Coord.). Códice Costa Matoso.
Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da
Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749. Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos Culturais, 1999. p. 933.
210 Ibid., p. 933.
211 Ibid., p. 933.
212 Ibid,p. 929.
213 Ibid., p. 928.
214 Ibid., p. 934.
215 Ibid, p. 928.
80

12 navios, pouco mais ou menos, na frota”?!6. Dado que nos leva a observar
que esse movimento variava, pois se apenas um navio aportou no Maranhão em
1718 e continuou a haver anos em que não vinha frota a essa capitania, este fato
adiou a partida de D. Manuel da Cruz para as Minas, pois “a estação do anno”
em que havia chegado a frota de 1745 “já não dava lugar a fazer a perigosa tra-
vessia, que pelo sertão determinou S. Exma. Rvema. seguir para a Capitania das
Minas Gerais”, uma vez que “a equipagem e a provisão necessária para a derrota
também não se poderiam aprontar com facilidade”. Diante disso, comunicou a
El-Rei “que só no anno de 1746 podia por-se a caminho”2", previsão que não
se realizaria, pois “Deus não permitiu que se pudesse conseguir o premeditado
intento, porque no anno de 1746 não foi a Frota ao Maranhão, sem o que não se
podiam prover os viveres necessários para a digressão de caminho tão longo. Isso
se remedeou com a Frota de 174728,
Na avaliação do responsável pela descrição do bispado, os habitantes do
Maranhão eram “nimiamente preguiçosos e inclinados a beber, fumo e latração de
vidas alheias e outros vícios”, que, por modesto, se recusava a registrar. Realidade
que nasceria “de terem [os homens] poucos negócios de que se ocupem”, o mesmo
não acontecendo com as mulheres, pois “que além de serem admiráveis no seu
procedimento e formosura”, trabalhavam “de dia e de noite para sustentarem as
obrigações de suas casas, tanto em bater e fiar como em coser e fazer rendas'”?",
numa percepção de postura e desempenho das mulheres que se choca com as con-
sagradas representações acerca de sua eterna dependência em relação aos homens.
No que diz respeito a São Luís, é interessante cnamar atenção para o fato
de que sua feição urbana e arquitetônica não merecem grandes considerações,
limitando-se as informações ao dado de que tinha então vinte e quatro ruas,
registro que não vem acompanhado de nenhuma menção ao seu casario. Em
termos de equipamentos e outras condições de vida em seus limites, é dito que
tinha duas fontes, “a fonte das Pedras, com duas bicas de água admirável”, que é
identificada como construção dos “holandeses no tempo que foram senhores do
Maranhão” e como serventia do povo mesmo quando havia seca rigorosa. Além
dela, “assim de inverno como de verão”, a fonte dos Armazéns fornecia “água
com muita abundância”, mas ficava “fora da cidade quase um carreira de cavalo”,

216 Ibid., p. 927.


217 ANÔNIMO. Aureo Throno Episcopal (“Áureo Throno Episcopal colocado nas Minas do Ouro ou Noticia
Breve de creação do Novo Bispado Marianense, de sua falicissima posse, e pomposa entrada do seu
meritíssimo, primeiro Bispo, e da jornada que fez do maranhão o Excellentissimo, e Reverendissimo
Senhor D. Fr. Manoel da Cruz, com a Collecção de algumas obras academicas, e outras, que se fizeram
na dita função, author anonymo, dedicado ao Illustrissimo Patriarca S. Bernardo, e dado à luz por
Francisco Ribeiro da Silva, Clerigo Presbytero e Conego da nova Sé Marianense. Lisboa: Officina de
Miguel Manescal da Costa, Impressos do Sto. Offício, Anno 1749, p. 5.
218 Ibid., p. 6.
219 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (Coord.). Op. cit., p. 928.

— O
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 81

o que explicava ter a cidade “perto de quatrocentos poços, porque querem ter nos
seus quintais água para o serviço das suas casas”?,
Talvez pelo fato de a cidade não apresentar nada de especial e/ou por se
tratar da descrição de um bispado, aquele que se ocupa deste encargo volta
seu olhar para o que mais diretamente se relaciona com sua vida religiosa, daí
suas observações sobre as igrejas e conventos nela existentes. Registra que
tem sete igrejas: Misericórdia, Rosário dos Pretos, São João, Nossa Senhora
dos Remédios, Conceição dos Mulatos, Nossa Senhora do Desterro e Nossa
Senhora da Boa Hora; que Misericórdia, Desterro e Conceição dos Mulatos
tinham apenas um altar, o que talvez também fosse o caso de Nossa Senhora
da Boa Hora, que ficava fora da cidade, situação em que também se encontrava
a igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Dado que indica os estreitos limites
que a circunscreviam — conhecendo-se hoje a localização daquela igreja — e
se mostra em perfeita concordância com o fato de só haver “de confissão e
comunhão 998 pessoas, pouco mais ou menos, [...] no rol da desobriga”??.
A Sé e catedral de Nossa Senhora da Vitória possuía cinco altares e
de acordo com a apreciação deste observador a capela-mor era “admirável,
tanto na grandeza quanto nos paramentos; o coro dela [...] à imitação da
patriarcal de Lisboa, porque os assentos dos capitulares são todos cobertos
de panos verdes”, razão por que se há de perguntar qual o motivo de esse
templo ter sido posto abaixo e a ser transferida para a igreja do colégio dos
jesuítas, depois de sua definitiva expulsão em 1761. Quanto ao seu corpo
sacerdotal, informa com um tom de admiração que “os prebendados andam
vestidos de capas magnas e murças encarnadas, imitando a dita Patriarcal,
de onde são sufragâneos, e os meio-cônegos andam vestidos de roxo”22,
admiração que pode ter a ver com o fato de esse corpo sacerdotal ter sido
instituído por D. Manuel da Cruz.
A cidade tinha quatro conventos, a saber: “um de Nossa Senhora do Monte
do Carmo”, no qual havia perto de quarenta religiosos e nele se ensinava “Fi-
losofia e Teologia, mas não é sempre”; o colégio de Nossa Senhora da Luz, da
Companhia de Jesus, onde viviam sessenta religiosos, pouco mais ou menos;
Santo Antonio, de religiosos capuchos, com trinta ou quarenta religiosos.
Nesse convento havia estudos de Filosofia e Teologia, mas em seus bancos
só tinham assento estudantes filhos de Portugal, “porque naquele convento,
por ordem especial que há, não aceitam filhos da terra”; Nossa Senhora das
Mercês, “de religiosos mercedários”, abrigava trinta para quarenta religiosos.
Havia ainda os conventos da Madre de Deus, que ficava “distante da cidade

220 Ibid,, p. 927.


21 Ibid, p. 921.
222 Ibid,, p. 920.
82

duas carreiras de cavalo”, e o de Nosso Senhor do Bonfim, dos carmelitas


calçados, “distante da cidade perto de um quarto de léguas de mar”2.
Sexto em termos de escolha régia e bênção papal, mas quarto de efetivo
episcopado, como se sabe, deixou D. Manuel da Cruz o bispado do Mara-
nhão para responder pelo das Minas, não se sabendo sobre o que mais teria
determinado sua escolha para ocupar este trono episcopal, além da repetida
afirmação de que isso se dera por suas “muitas virtudes”. De todo modo, sua
ida para as Minas representava um reconhecimento e valorização de sua pes-
soa, simbolizados no grau de importância da cidade em que tomaria assento,
no contraponto daquela que deixava.
Em termos de perdas e ganhos, se por respeitosa elegância se abstém
o narrador de dissertar sobre as condições da cidade de São Luís, evitando
colocá-la numa posição de inferioridade em relação à Mariana, por meio de
versos, sonetos, epígrafes e glosas, de lavra mineira, assim o faz. Pois, apesar
de dizer que “Maranhão e Mariana [eram] dois mares”, uma vez “que por mar
cada um deles principia”, Mariana era “mar de gosto e de alegria”, porque,
“esclarecida, vive, impera, triunfa e reina”, o mesmo não se podendo dizer
a respeito do Maranhão, que tendo perdido seu “augusto bispo, [...] chorava
oprimido”. Desigualdade de estado de espírito e de importância representada
na imagem de uma Mariana “de ouro” e de um Maranhão “de prata”, de que
muitos poetas se serviram para deixar clara a diferença entre os dois bispados,
ressaltando-a através da hierarquia de nobreza existente entre esses metais.
Quanto à partida de D. Manuel da Cruz de seu antigo bispado, é dito que
tendo a notícia do Decreto de sua transferência chegado, logo os quatro ventos
a espalharam sobre um Maranhão choroso e oprimido pela perda que sofreria.
E fosse porque efetivamente não havia mais tempo hábil para sua partida
ainda naquele ano, porque a estação das chuvas que se aproximava e em seu
curso as estradas de tornavam muito mais difíceis, quando não intransitáveis
ou porque o bispo talvez ainda não estivesse completamente recuperado da
longa e extenuante visita que vinha de fazer aos rincões mais distantes de sua
dilatada diocese, decidiu D. Manuel não expor sua já combalida saúde a mais
riscos. Razão por que escreveu a El-Rei a fim de lhe informar que só partiria
na frota do ano vindouro de 1746, que, aliás, não houve. .
O certo é que, por esse, por aquele ou por todos os motivos juntos, as-
sim que chegou a frota de 1747, tendo-se provido dos víveres necessários e
providenciado o que de mais precisava, D. Manuel da Cruz juntou a família,
parentes, aderentes, auxiliares e criadagem, e tomou o rumo das Minas, fazendo-
-o por caminhos de terra e também d” água, sem que se saiba por que o bispo
tomou a decisão de seguir viagem pelo interior. A partir daí, no Maranhão

223 Ibid,, p. 919-920.

1: EEEEEETOE o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 83

e “em todas as partes daquele bispado, não se ouviram mais que lágrimas e
suspiros”, de acordo com quem se ocupou com a crônica dessa jornada, dos
eventos auspiciosos e dos acontecimentos nefastos que a pontuaram.
Assim, por meio desse relato em que hierarquias estão presentes em quase
tudo, sabe-se, por exemplo, que hierarquizadas foram as possibilidades de dar
o último adeus ao bispo, uma vez que até a grande barca que o faria subir o
rio Itapecuru, a fim de deixar o Maranhão para sempre, somente o acompa-
nharam “religiosos, ministros régios, capitães da frota e principais da terra”.
Na praia, sem tamanho privilégio e em meio a um “confuso estrondo e rumor
de lágrimas”, ficara a plebe “dando emboras e vivas ao navegante prelado”,
que começava ali a jornada que o anônimo cronista se encarregaria de regis-
trar, fazendo anotações que deram conta das coisinhas mais insignificantes
do dia a dia aos episódios de maior monta. A exemplo, dos mosquitos que
atormentaram sua reverendíssima, dos sustos que assaltaram seu coração e o
de seus acompanhantes nos quinze primeiros dias de viagem, especialmente
na travessia das cachoeiras que pontuavam o curso do rio, até chegarem a
Aldeias Altas, lugar onde fez uma pausa de quinze dias, para repouso e para
“formar cavalaria necessária”, a fim de que a comitiva episcopal pudesse
cruzar os caminhos que a levaria às barrancas do rio São Francisco, até se
fazer às Minas.
Tratou-se de uma viagem longa, pois daquele dia 3 de agosto de 1747,
em que a plebe ficara na praia a chorar a partida do bispo, muito tempo e
águas passaram até que, em novembro do ano seguinte, a comitiva episcopal
cruzasse a fronteira do território em que o bispo assentaria seu trono. Distância,
==mpo e caminhos que necessariamente fariam dela uma viagem perigosa e que
teve como perigo maior e mais concreto o de ataque de índios, a exemplo dos
poderiam lhe advir por parte dos guegué “que infestavam, bárbara e atrevida-
mente aqueles desertos”. Isso numa percepção que invertia a história, tendo
em vista que infestar significa infectar, mas também invadir, o que, a despeito
desse povo ter vivido naquelas terras desde imemoriais tempos, estaria agora
a invadir terras que não eram suas e a impor auto proclamados verdadeiros
donos a necessidade de se juntarem “em muitas tropas de gente para passarem
unidas” terras que se encontravam invadidas por aqueles selvagens.
Atentando-se para as circunstâncias do lugar e tempo, era quase impos-
sível que em tão longa viagem vidas não se perdessem, tal como aconteceu
com escravos e “moços de serviço” de D. Manuel, tendo o próprio prelado
sofrido grandes riscos, e não apenas em consequência das moléstias que o
acometeram em sua estada no Piauí, capitania onde se deteve durante sete
meses. Ali foi hospedado pelo capitão-mor Antonio Gonçalves Jorge, e tam-
bém onde, para dar cabo ao mal que o afligia, foi submetido a uma sangria
84

que lhe acrescentou outros tantos, sem contar as armadilhas que a natureza
lhe preparou nas curvas dos rios. Contudo, se ventos e tempestades fizeram
soçobrar a barca em que viajava, também revestiu essa viagem uma capa de
milagres, quando não de mistérios, tendo em vista que apurados os fatos após
o sinistro, não se descobriu de onde partira o grito que foi ouvido nas outras
embarcações, pedindo socorro para a salvação do bispo.
Viagem longa e perigosa, mas no curso da qual a devoção andou de par
com a diversão, como se verificou durante os sete meses em que a comitiva
esteve parada no Piauí, por causa das chuvas e da moléstia que acometia o
bispo. Com efeito, se para a espera do tempo do estio e da recuperação de sua
saúde determinou o bispo que os ofícios religiosos fossem cumpridos onde
quer que se encontrassem, sua determinação ensejou ajuntamentos que não
se limitaram a rezas e missas, mas deram lugar a bailes, inclusive, sem contar
que as visitas feitas que lhe eram feitas nas paragens onde passava, tiravam
seus habitantes da sensaboria de dias que apenas se repetiam.
Por outro lado, se o narrador fala de “ermos, sertões e desertos”, não
fazendo menção, depois de certa altura, a viventes que tenham cruzado com
a tropa do bispo ou tenham fundeado ao lado de sua barca, a comunicação se
dava larga e precisa, espalhando por todas aquelas brenhas a nova de que por
ali andava um bispo. Assim, depois de deixar a “cavalaria” e mais uma vez se
fazer ao rio, às povoações ribeirinhas onde parava, para renovar suas forças
e se prover de víveres, acorriam gentes vindas de distâncias de até cinquenta
léguas, para cumprir suas obrigações religiosas, como ainda “para ver na-
queles desertos um prelado sagrado, pois não tinham memória de que algum
outro se expusesse às asperezas daquele sertão”. E se numa chave de leitura
é possível pensar que a curiosidade e os divertimentos talvez suplantassem
a preocupação que levava aquelas gentes a vencer distâncias tamanhas para
cumprir suas obrigações religiosas, isso não diminui a força com que sagrado
e profano se uniam, não esmaecia a aura que envolvia a figura do bispo, afinal
quem, além dele, havia corrido aqueles sertões, com tantas penas e riscos,
como ressalta o seu cronista?
Nesse sentido, a viagem de D. Manuel da Cruz foi também uma somatória
de chegadas/entradas e partidas, razão por que sua parada aqui e ali “ilumi-
nava a terra com tanto lustre, que bem podia apostar com as funções mais
solenes de algumas cidades da América”, como aconteceu numa povoação
da barra do rio Grande, de “mais de cem vizinhos”, que bem “poderiam fazer
dela uma vila”. Privilégio que não chegou a gozar a vila real do Sabará, pois
apesar das “urbanas súplicas” com que sua Câmara rogou ao prelado para que
“quisesse honrar aquela vila, fazendo por ela caminho”, escusou-se “politica-
mente daquela jornada”, a fim de “evitar as muitas despesas que haviam de
fazer seus moradores [...] com o fasto que preparavam”. Em outros termos,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 85

“politicamente”, a fim de escapar de mais uma chegada e partida solenes,


pois estando já bastante achacado por moléstias, queria o mais brevemente
possível pôr termo à sua longa viagem até as Minas.
Em conformidade com o já dito, esta foi uma viagem de cansaço e doen-
ças, contudo, se D. Manuel “não se poupava de trabalho, [...] crismando por
todas aquelas capelas por onde passava” — fazendo-o mesmo em improvisadas
barracas que moradores e visitantes dos povoados levantavam com a devida
“decência e asseio” —, “com mimos e regalos dos mais deliciosos frutos que
produz a terra”, “todos aqueles habitantes do sertão [...] demonstravam o afeto
que se devia à sua benignidade”. Assim, se Sua Excelência Reverendíssima
crismou “mais de seis mil almas”, também foi mimado com remédios para
curar suas enfermidades e até mesmo “com obséquios cênicos com que ten-
tavam distraí-lo”.
Em resumo, foi com uma comitiva avariada e diminuída na quantidade
de seus membros que o bispo adentrou o território das Minas e desde que
“chegou ao seu bispado o acompanharam os soldados de cavalaria, por ordem
do Excelentíssimo General daquela capitania”. A partir de então, teria D.
Manuel da Cruz começado a receber cartas de autoridades civis e eclesiásti-
cas, querendo saber quando chegaria a Mariana, para que sua entrada solene
fosse preparada à altura da importância de sua pessoa e significado do dia,
sobre o que, preocupando-se sempre em ressaltar uma piedosa humildade do
bispo, diz o cronista que, “para não dar lugar aos excessivos gastos da pompa
e lustre, com que os habitantes daquele dourado Empório da América” cos-
tumavam “ostentar em semelhantes funções”, sempre teria respondido que
somente saberia quando estivesse mais próximo. Desculpa que, segundo o
cronista, disfarçaria “o desígnio oculto de não avisar senão às vésperas de sua
chegada”, para evitar os gastos já referidos, como se fosse possível ocultar
uma comitiva que se arrastava dentro das Minas, sendo precedida e guardada
por uma cavalaria que já lhe conferia não pequena pompa.
Porque mesmo antes de chegar à freguesia de “Ttaubira”, padeceu “moléstia
grave procedida do trabalho e incomodidade do caminho”, teve Sua Reveren-
díssima de fazer parada nesta vila, somando ao rol de outras tantas mais uma
chegada e uma partida, o que se deu depois dos três dias de descanso que o
animaram com pequeno alívio, embora tenha sido em cadeirinha de mão que
seguiu caminho, pois já não lhe era possível viajar em montaria. E assim se
deu que, em 15 de outubro de 1748, “acompanhado de concurso numeroso e
luzido e seguido de um regimento de cavalaria de Vila Rica”, seguiu finalmente
o bispo para Mariana, seguido por um cortejo de maiores autoridades, cuja
ordem respeitava a hierarquia observada na vida de todos os dias.
Chegou, enfim, a Mariana um bispo estropiado, que nem calçar um
dos pés podia e que, dispensando loas e mais gestos de boas vindas, logo se
80

recolheu a seu “palácio que por ordem sua se havia preparado custosamente”.
Mesmo assim, respeitando uma tradição e regra cerimonial que não só ali
se repetia?*, mandou a Câmara que “se acendessem luminárias por toda a
cidade, o que se executou com maestria”. Em seu terceiro dia, de par com
esse espetáculo de luzes que tanto “agrado” fazia aos olhos, para “lisonja dos
ouvidos”, ofereceu-se ao mesmo tempo “a cadenciosa harmonia dos sinos, de
consertos musicais [...] pelas ruas, e em casas, que com suas métricas as vozes
dos poetas competiam [...], principalmente sob a janela do bispo”.
Dessa maneira, mesmo tendo sido abanado, bajulado e carregado por
aqueles sertões, sua travessia deixou D. Manuel da Cruz no limite de suas
forças, uma vez que aquele efetivamente fora um longo tempo de viagem
para um homem na sua idade. Todavia, assim que começou a apresentar me-
lhoras, decidiu este bispo, festejado por dias seguidos, com fogos de artifício
e versos sob sua janela, fazer sua “entrada pública” no dia 24 de novembro,
começando-se oficialmente os preparativos desta data solene, “para o que
se aprestaram logo com diligência os preparos, que já se preveniam”. Para
que se avultasse o acontecimento, durante os oitos dias que precederam essa
solenidade, à tarde, saíam “pela cidade toda vários máscaras, diferentes nos
trajes e na jocosidade dos gestos, os quais em graciosos bandos e poesias, que
espalhavam ao povo, avisavam por célebre estilo as futuras festividades”22.
Acerca desses personagens diz o cronista que “com seu alvoroço fizeram
crescer com a fama dos aparatos de figuras e carros triunfantes que haviam
de exornar o acompanhamento da entrada de sua excelência”. E como era de
esperar, no dia marcado “se ajuntou um numeroso concurso de gente, tanto
da principal, como da plebe de todas as comarcas”. Porém, a chuva que não
“estava no programa “frustrou as diligências dos cidadãos e os desejos do povo,
que na maior parte dele tinha acorrido de fora, e no mesmo dia se retirou para
desgosto geral de não lograrem o prevenido aparato”, o que significa dizer a
transformação da rua principal em “primoroso jardim de bela arquitetura, em
cujas laterais elevavam-se “frondosas árvores silvestres”, de onde se viam
sobressair “vinte duas ninfas de comum estatura, recortadas em madeira,
levantadas em pintura de várias e alegres cores, em diversas ações”. Entre
essas árvores via-se ainda um “alegre lavor de murtas, matizadas de fragrantes
flores” e no seu meio um “alegrete”, em cujo centro de elevava um chafariz,
“ao qual servia de remate um Netuno”.
No plano dos desacertos, das notas destoantes e desagradáveis, teve-se
que a chuva não apenas fez com que voltassem todos para casa, como também

224 KANTOR, Iris. Notas sobre aparência e visibilidade social nas cerimônias públicas em Minas
setecentista. Pós-História, Assis, v. 6, p. 164, 1998.
225 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. São Paulo: Papirus, 1989.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 87

ameaçou destruir a decoração da rua, “e suposto que lhe fizesse alguma des-
truição, com efeito, se renovou para o dia da solenidade, causando grande
admiração”. E como aquela era a estação “fiadora de certas e continuadas
águas no país”, tendo o dia 24 amanhecido nublado, decidiu-se pela festa no
dia seguinte e “seu rumor fez com que tornasse a concorrer infinita gente das
povoações de fora”. Diante disso, enfim se deu que aquela cidade de Mariana,
em que o Senado da Câmara havia ordenado que se armassem nobremente as
janelas com ricas tapeçarias e cobrissem as ruas de areia, espadana e flores,
assistiram nobreza e povo a um cortejo em que o cronista só conseguiu anotar
a presença de seis anjinhos, ofuscado talvez que estivesse pelo brilho de tanto
ouro, pérolas e diamantes, além de damascos, sedas e veludos que ornavam
pajens, delfins, ninfas e sereias.
Por fim, montado em formoso cavalo branco guamecido com damasco da
mesma cor, viu-se o bispo seguir pela rua principal, ladeado por “companhias
de ordenanças as quais serviam não só de ornato, [...], mas também para repri-
mir as desordens do povo”. Segurando as varas do palio que o protegiam, as
rédeas do cavalo que montava ou apenas marchando a seu lado, iam as mais
altas autoridades das Minas, umas mais à frente, outras mais atrás, denunciando
sua proeminência. Depois delas vinham as irmandades e imediatamente após
“seguia uma dança de doze figuras mascaradas uniformemente, as quais em
bem compassados tripúdios, lisonjeavam a vista com a variedade de suas
mudanças”. Depois desse grupo, vinha um dos carros triunfantes, que bem
pode ser tomado como a mais contundente expressão simbólica do espírito
da festa do bispo, no curso da qual o sagrado “Te Deum” teve lugar em meio
a uma dança de máscaras e em presença de ninfas. O carro em que iam era
levantado em “bem metidas cores azuis e branco, recortado com bela airosi-
dade em sereias, delfins e outros relevos, que serviam de troféu de louvor [...]
ao Bago Chapéu e Mitra, [...] tinha na pôpa um sol mitrado, exaltado sobre
uma glória de anjos e serafins”.
Dentro desse carro iam “doze figuras vestidas à trágica”, as quais, com
vozes e instrumentos, recitavam “Maranhão de prata/ Mariana de ouro”, numa
clara alusão ao ganho a que teria auferido D. Manuel da Cruz, em cujas retinas
certamente ainda estavam vivas as cores das paisagens com que tinha se de-
parado pelos caminhos que havia trilhado até chegar àqueles gerais, morros e
aquelas serranias. Mais ainda, talvez guardasse em sua memória a lembrança
de milhares de garças e guarás em meio à verde folhagem dos mangues, num
contrastante, forte e indissociável paleta de cores, diante da qual seu pensa-
mento talvez o levasse às terras do Maranhão, para onde jamais voltaria.
SUJEITOS, IDENTIDADES
E EXPERIÊNCIAS NUM
TEMPO DE FESTAS: algumas questões
teórico-analíticas e possibilidades interpretativas

Antonio Evaldo Almeida Barros

“Conjecturando ou narrando, a história tem sempre em mira o real”


(Carlo Ginzburg)
p .

Há algum tempo tem se reconhecido que a distinção entre as discussões


teóricas dos princípios elementares e o ofício do historiador, que reivindica
contar com aqueles mesmos princípios, é altamente questionável e tem jus-
tificado a aversão convencional que historiadores costumam ter por teoria??.
Esta aversão parece refletir certo esquecimento de que as transformações do
trabalho histórico, acentuadas pelo menos desde o último terço do século XX,
estiveram ligadas menos à crise das ciências e às mudanças de paradiginas?”
do que às próprias práticas de pesquisa e aos princípios de inteligibilidade
que governam os procedimentos históricos?8. As questões de caráter teórico
e não somente aquelas que se poderiam chamar de estritamente empíricas
constituem o trabalho do historiador em todas as suas dimensões, coadunando-
-se na prática historiográfica, mesmo quando, numa dada narrativa histórica,
aborde-se explicitamente mais um que outro daqueles elementos. As discussões
sobre a adoção de um código linguístico ou um estilo narrativo, acerca dos
problemas concretos ligados às fontes e às técnicas de investigação que cada
historiador usa em seu trabalho, por exemplo, levam diretamente a uma análise
das questões referentes às pretensões de verdade do trabalho historiográfico
e ao problema mais amplo sobre como se conhece a realidade?”””.

226 MAH, Harold. Suppressing the text: the Metaphysics of Etnographic History in Darnton's Great Cat
Massacre, History Workshop, v. 31, 1991.
227 Como, por exemplo, o questionamento, refluxo ou abandono do marxismo e do estruturalismo e de
suas ideologias. Contra as determinações imediatas das estruturas impor-se-iam as capacidades
inventivas dos agentes e, contra a submissão mecânica às regras, impor-se-iam as estratégias
próprias das práticas (CHARTIER, 1991, p. 176).
228 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 176,
jan./apr. 1991.
229 GINZBURG, Carlo. Provas e Possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre” de Natalie
Zemon Davis. A Micro-História e outros ensaios. São Paulo: Difel/Bertrand, 1989. p. 193-195.
Diante disso, o que aqui se pretende é apresentar algumas questões te-
óricas envolvidas, com maior ou menor intensidade, em pesquisa que tenho
desenvolvido sobre bumba meu boi e festas no Maranhão na primeira metade
do século XX?º. Apresenta-se um panorama desse trabalho, destacando seu
objeto de estudo, o recorte espacial e temporal e as fontes utilizadas e deline-
ando alguns de seus principais elementos teóricos. Dentre estes, os problemas
referentes à possibilidade de reconstituição do passado através, por exemplo,
de inferências de textos escritos ou testemunhos orais. Salientam-se algumas
das respostas dadas pela historiografia à crise de paradigmas intensificada nos
anos 1970, considerando-se ser necessário refutar o relativismo tout court, o
irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma retórica de inter-
pretação textual e não uma interpretação dos acontecimentos. Reconhece-se,
ainda, que a experimentação historiográfica produz possibilidades históricas
e não provas irrefutáveis e se considera relevante a opção por narrativas na
qual o leitor participa de todo o processo de construção do argumento histó-
rico, e de interpretações que integrem os registros sobre o passado ao próprio
objeto da pesquisa. Apontam-se ainda algumas perspectivas teóricas e analí-
ticas fundamentais para a construção da interpretação do objeto em questão,
salientando o nível das mudanças e das transformações que poderiam ser
percebidas no âmbito da cultura, reconhecendo as perspectivas abertas pela
chamada história social da cultura.

WE
Entre festas, sujeitos e identidades ou nos caminhos de
uma história social dos bumbas em São Luís do Maranhão
(c. 1890-1950)

Os repertórios e organizações culturais e festivos podem constituir ocasião


significativa para se perceber especificidades dos processos sociais ao longo da
história. As festas são capazes de traduzir experiências, expectativas e imagens
sociais daqueles que as realizam, apresentando-se como objeto privilegiado da
historiografia para se estudar e reconstituir os movimentos de uma determinada
coletividade, população, região, nação?!. Da mesma forma que não há uma

230 BARROS, Antonio Evaldo A. O Pantheon Encantado: culturas e heranças étnicas na formação de
identidade maranhense. 2007. 317 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Etnicos e Africanos) — IFCH,
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Etnicos e Africanos, CEAO, Salvador,
UFBA, 2007.
BARROS, Antonio Evaldo A. Renegociando Identidades e Tradições: cultura e religiosidade popular
ressignificadas na maranhensidade ateniense (1940-60). 2005. 200 f Monografia (Graduação
Licenciatura em História) - Centro de Ciências Humanas, São Luís, Universidade Federal do
Maranhão, 2005.
231 ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-
1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: FAPESP 1999.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 91

“História imóvel, não há uma festa imóvel”? e, sobretudo, “através das festas,
pode-se conhecer melhor a coletividade e a época em que aconteceram”.
Nessa perspectiva, organizações festivas, a exemplo dos grupos de
bumba meu boi que circulavam pela Ilha de São Luís do Maranhão durante os
festejos juninos?” da primeira metade do século XX podem ser vistos como
elementos e ocasiões particulares para se pensar a dinâmica e processos de
mudança social nesse período?*.
A partir da análise dessas atividades seria possível reconstituir experiências
de diferentes sujeitos, grupos e setores sociais, e entender aspectos de processos
significativos das histórias maranhense e brasileira, notando-se, por exemplo,
formas de exercício do poder numa sociedade hierarquizada e modos como os
sujeitos lidavam com diferenças e desigualdades naquelas primeiras décadas

BAKHTIN, Mikhail. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François


Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora UNB, 1987.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma história social do carnaval carioca entre 1880
e 1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
DAVIS, Natalie. Z. Culturas do povo. São Paulo: Paz e Terra, 1990. ,
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso. Estudo sobre o carnaval carioca da Belle Epoque ao tempo
de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação G. Vargas, 1998.
DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Ceará: Edições Universidade Federal do Ceará/Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro,1983.
232 VOVELLE, Michel. Ideologia e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 251.
233 ABREU, Martha. Op. cit., p. 38.
234 Quando chegavam os dias dos santos que gostam de fogo, a ilha de São Luís se convertia num
“verdadeiro mundo carnavalesco” - como costumava afirmar-se nos jornais de época, uma ocasião
impar de lazer e devoção, e sobretudo de muitas festas, tempo em que gente de todas as qualidades
se espalhava pelas ruas, caminhos e estradas em busca de celebrações religiosas, bailes e jogos,
danças, brincadeiras e tambores. Nesse tempo de festas, nada despertaria mais atenção da maioria
dos diferentes e desiguais sujeitos que viviam em São Luís do que os grupos de bumba meu boi, que
surgiam de todos os recantos e transformavam a ilha nessa temporada. Essas brincadeiras em geral
resultavam de um pagamento de promessa feita a alguma entidade espiritual, sobretudo os santos
do catolicismo. As vezes, aquele que fazia a promessa era o mesmo que organizava o bumba. Essa
promessa podia passar de geração a geração. Assim, preparando-se para as festas, bem antes do mês
de junho, os grupos se formavam, organizavam-se e ensaiavam suas danças e toadas. Caprichava-se
na montagem do “couro”, uma cobertura de papel, tecido, veludo ou outro material de uma armação
de madeira com o formato de um boi. Um mesmo agrupamento, composto por homens, mulheres e/
ou crianças, e ainda seus acompanhantes, podia ter um ou mais couros, cuidadosamente nomeados,
e também mais de um “miolo”. Este era o homem que pegava o couro, colocava-o sobre o corpo e
balançava-o, dando-lhe ritmo. Enquanto isso, os brincantes, em diferentes funções, tocavam matracas,
pandeiros ou tambores, e repetiam em uníssono as toadas do amo, o cantador e guia do bumba.
Os grupos disputariam ferrenhamente alguns miolos, tocadores e, sobretudo, os amos, embora
estes pudessem ser fiéis às suas “tropas”. De fato, sabe-se que muitos deles eram os donos dos
bois nos quais cantavam, dançavam ou tocavam. Alguns grupos eram contratados para fazer suas
apresentações, outros, entretanto, pareciam fazê-lo gratuitamente, mas quase sempre ao menos em
troca de tiquira (cachaça destilada de mandioca). Terminadas as festas, matava-se ritualmente o boi
(alguns seriam enterrados), uma ocasião de muitas dramatizações e encenações cômicas realizada
geralmente no mês de julho, até que no outro ano ele seria ressuscitado e uma outra festa começava.
235 Certamente, é relevante tentar compreender o papel de certos repertórios culturais na dinâmica e na
mudança social (DAVIS, 1990; THOMPSON, 1998, 2001).
92

do Brasil republicano. Assim, poder-se-ia notar maneiras como determinadas


organizações festivas serviriam para se observar a manifestação de formas e
processos originais de reivindicação e construção do exercício da cidadania.
Além disso, as representações elaboradas por diferentes atores, notadamente
sujeitos letrados, sobre os bumbas são vistas como um bom lugar para analisar
questões sobre “raça”, classe e identidade no Brasil dos anos 1910-40, quando
os ambíguos campos das identidades da região e da nação frequentemente
se interconectavam.?º Se, de um lado, é possível enfocar o nível narrativo,
discursivo e idealista, de outro lado, talvez seja mais relevante dar atenção à
dimensão da “experiência”? desses processos identitários, isto é, reconhecer
que a significação da cultura e a demarcação de sinais diacríticos ou frontei-
ras visando definir diferentes identidades sociais são processos diretamente
vinculados à “experiência” dos indivíduos e dos grupos.
A circulação dos bois pela ilha de São Luís durante os festejos juninos
constituía um fenômeno generalizado. Esses grupos, em sua maioria produ-
zidos por gente das zonas rurais e dos subúrbios, eram capazes de despertar o
interesse de pessoas de diferentes origens, pertencimentos e posições sociais.
De certo modo, seus sentidos mais explícitos eram universais a todos. Antes
de tudo, porém, tenho buscado interpretar essas festas e organizações festivas

236 Enquanto as fogueiras, os bailes e forrobodós, os bares, barracas e terreiros, e as diferentes


organizações festivas davam múltiplos ritmos à Ilha, ocorria uma verdadeira batalha entre diversos
letrados, de pessoas desconhecidas a escritores renomados, passando por articulistas de
diferentes posições políticas e ideológicas, em torno dos significados, origens e autenticidade dos
bumbas e, mais ainda, sobre o(s) lugar(es) que esses repertórios deveriam ou poderiam ocupar
no campo simbólico das tradições, cultura e identidade da região e da nação. Sugiro que estes
debates, às vezes velados, mas sempre difundidos, cujas ideias centrais dialogariam intensamente
com questões análogas de caráter nacional e internacional, estiveram profundamente imbricados
na legitimação de determinadas práticas, em benefício ou prejuízo efetivo de diferentes sujeitos,
setores e grupos sociais. Embora este tenha sido um movimento descontínuo, sobretudo a partir
da década de 1920, diferentes órgãos da imprensa escrita e alguns letrados, contrariamente ao que
costumavam anunciar e defender durante o século XIX e praticamente toda a Primeira República,
passaram a identificar o bumba meu boi como o elemento fundamental do patrimônio cultural
regional, que pertenceria e deveria ser preservado por todos os maranhenses, independentemente
de suas diferenças e desigualdades, enquanto o principal elemento diacrítico da região. Movimento
este que se processaria em intensa aproximação (e distanciamento) com a busca de definição de
“cultura brasileira” e da “identidade nacional”. Esta operação esteve comumente acompanhada de
um conjunto heterogêneo de narrativas, insistentemente repetidas ao longo dos anos, cujo objetivo
era contar e fixar determinadas histórias da origem e significados dos bumbas. Assim, enquanto
alguns afirmavam que os bois seriam uma “usança africana”, outros asseveravam se tratar de uma
“instituição indígena” ou ainda uma “tradição portuguesa”. Mas esta série de interpretações das
origens do boi que tendia a dar-lhe uma única origem, negro-africana, indígena, portuguesa ou
egípcia, parece ter sido fortemente questionada a partir dos anos 1930, quando se consolida uma
interpretação da origem dos bumbas como resultado dos contatos entre as “raças” formadoras da
nação, algo que parece estar diretamente vinculado ao discurso da “democracia racial” e do Brasil
positivamente mestiço.
237 THOMPSON, E. P O termo ausente: experiência. In . A miséria da teoria: ou um planetário
tua

de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 180-201.


EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 93

como uma ocasião para notar as diversas formas como indivíduos e grupos tão
diferentes entre si se apropriavam de um repertório comum, a exemplo dos
bumbas, o que poderia desembocar em encontros amigáveis, mas também em
situações de intensa violência.?º Nesta perspectiva, permitindo múltiplas leitu-
ras, O boi poderia ser interpretado como um símbolo cuja análise revelaria, de
acordo com as circunstâncias, múltiplas formas de contato e interação sociais,
enfim, ocasião para se perceber como diferenças e desigualdades funcionavam
efetivamente no cotidiano desses sujeitos e como estes se submeteriam ou
manipulariam essas heterogeneidades e dessemelhanças.
O enfoque no pós-Abolição e em praticamente toda a primeira metade
do século XX não é fortuito. De um lado, tornar-se possível observar um
tempo em que os bumbas-meu-boi interessavam mais aos próprios brincan-
tes, sendo frequentemente repudiados por diferentes setores, embora alguns
sujeitos desejassem assisti-los (a exemplo do que ocorrera particularmente
até a primeira metade da década de 1920), uma lógica que, embora específica,
teria relação com práticas e representações características do século XIX. De
outro lado, pode-se observar um momento em que essas organizações festivas
cada vez mais caíam no gosto das agendas de diferentes letrados e, particu-
larmente, da imprensa e do folclore (a exemplo do que começara a ocorrer
sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1920). Enfocam-se, portanto,
décadas marcadas por situações sociais, políticas e econômicas diferentes,
cujas especificidades teriam influência marcante no universo das produções
culturais dos mais pobres. Poder-se-ia perceber transformações, permanên-
cias e recriações no universo dessas organizações festivas, nos modos como
os sujeitos que as produziam lidavam com o mundo e com a sociedade em
geral, pressupondo-se que a cultura não é propriamente determinada, mas um
elemento constituinte do social.
Folheando jornais de circulação do Maranhão em suas edições de junho e
julho de 1880 a 1965, é possível observar que houve uma importante mudança
nas pautas da imprensa da época. Penso que esta mudança tem implicações
significativas para o historiador que, hoje, ocupa-se com festas de grande
participação nesse período, já que os jornais de circulação diária poderiam
ser alçados a importantes fontes para uma história social da cultura nesse
contexto. Festejos religiosos realizados pela Igreja Católica, cinema, teatro,
concertos e “elegantes reuniões” que dariam “à nossa elite um permanente
fator de sociabilidade”? eram as atividades mais comumente anunciadas nos

238 A caminho de seus locais de apresentação, como terreiros e arraiais, e à porta de bares, igrejas e
casas, grupos de bois dos mais variados matizes e origens podiam se encontrar, bois de origem rural
e urbana, organizados por sujeitos que se identificariam, de diferentes modos e intensidades, por
amizade, status e profissão, família, sexo e geração, municípios, bairros e vilas. Nesse cenário, era
fácil que os grupos de bois se encontrassem, e nestas ocasiões era relativamente comum que eles
explicitassem com maior ou menor intensidade, usando palavras ou armas, suas diferenças. Estes
(des)encontros, com certa frequência, resultavam em manifestações de violência generalizada.
239 São Luís, Pacotilha, 30 jun. 1919, p. 1.
94

jornais durante o mês de junho até os anos 1910. As atividades produzidas pelos
que viviam nos subúrbios ou nos interiores costumavam aparecer nos jornais
somente quando terminavam em desordem ou quando eram preparadas para se
apresentar em algum local destinado às elites. Mas especialmente a partir dos
anos 1920 esse cenário muda e além daquelas atividades e situações, as festas
realizadas em diferentes lugares e por diferentes setores também se tornariam
conteúdos das reportagens de diversos jornais maranhenses. Esses periódicos
constituem hoje uma fonte primordial para ser reconstituir histórias nas quais
estão presentes os sujeitos produtores dos bumbas e festeiros em geral?º.
Além dos jornais e outros periódicos, é possível chegar a esse mundo vivido
por diferentes homens e mulheres através da análise dos pedidos de licenças para
a organização e saída dos bois, e seus respectivos (in)deferimentos. Mas se as
principais fontes até aqui indicadas podem ser descritas como textuais, podem
ser considerados ainda depoimentos orais transcritos resultado de entrevistas
realizadas por folcloristas e antropólogos com agentes atual ou recentemente
envolvidos com a cultura por eles classificada de popular, alguns tendo vivido
em parte daqueles anos 1910-40, e construindo verdadeiras histórias de vida
nessas coletâneas. Mas é, de fato, possível reconstituir experiências históricas?

Sobre a reconstituição de um vivido festivo: algumas questões


e debates

Muitos historiadores concordariam que “as variedades mais instigantes e


inovadoras da história são as que tentam escavar sob os fatos, para descobrir

240 A imprensa parecia se empenhar na preparação da população para os festejos, divulgando listas
das diferentes organizações que conseguiam licença para brincar, trazendo o nome do responsável,
a localidade de origem, os grupos ou setores que as organizavam, tipos de instrumentos utilizados;
divulgavam-se ainda programações dos festejos dos diferentes arraiais, listando-se, por exemplo,
os grupos de bois que deveriam ali se apresentar Era comum haver anúncios e registros de
ocorrências variadas (como encontros conflituosos e mortes) durante os ensaios, as apresentações
e por ocasião das celebrações de morte dos bois. Simples advertências e diferentes portarias
policiais visando regulamentar os festejos também eram publicadas. Além disso, os homens das
letras, particularmente os folcloristas, enviavam um sem-número de textos não somente com suas
opiniões sobre as origens e significados dos bumbas como também com descrições dessas festas
em diferentes lugares da ilha. E possível acompanhar variações nos modos de vestir, brincar e
cantar dos bumbas especialmente porque estas supostas mudanças incomodariam os letrados,
que as criticavam detalhadamente. De fato, no caso do Maranhão, os ensaios de foleloristas serão
frequentemente publicados nos jornais durante os festejos juninos. Cronistas e poetas também
produziram obras cujo referencial estético eram os bumbas, divulgando-as através da imprensa. Há
também registros da participação de bumbas em ambientes como bares e barracas preparados para
as elites, bem como em clubes ditos aristocráticos. Há ainda diversas fotos, charges e ilustrações
que devem ser incorporadas “como evidências importantes para a análise e não mera reiteração
visual do texto” (CUNHA, 2001, p. 17). Em Ecos da Folia, Cunha (2001), através de uma releitura dos
periódicos da imprensa carioca dos anos 1880-1920, procura esmiuçar a variedade dos significados
que diferentes sujeitos emitiam durante o Carnaval nesse período. Também em A Subversão pelo
Riso, Soihet (1998) lida, sobretudo, com jornais de época.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 95

a condição humana tal como foi vivida por nossos antepassados”?*!. Estariam
também de acordo que o historiador pode tentar “captar o concreto dos pro-
cessos sociais através da reconstituição de vidas de homens e mulheres”??,
que “conjecturando ou narrando, a história tem sempre em mira o real”, que,
enfim, em algum momento do trabalho histórico, a experiência histórica direta
poderá emergir”. A possibilidade de reconstituição do passado tem recebido
críticas de diversos tipos e intensidades particularmente dos historiadores
(mais ou menos) próximos de tendências ditas pós-modernas como a crítica
literária e a etnografia desconstrutivista.?*
Obviamente, deve-se reconhecer que consiste em uma empresa com-
plexa e mesmo arriscada a tentativa de reconstituição de vidas de diferentes
sujeitos através, por exemplo, de inferências de textos escritos, tipologia à
qual corresponde a maior parte das fontes aqui indicadas, como periódicos.
Seria mesmo “extremamente duvidosa a idéia de que se pode fazer alguma
afirmação geral sobre a relação entre a linguagem e as atividades aparente-
mente não linguísticas, porque ao fazer qualquer afirmação estamos inevita-
velmente dentro da linguagem, que se articula de múltiplas formas com essas
atividades”. Neste caso, “pensar o contrário” implicaria “assumir uma posição
transcendental, alheia à linguagem”?*. De fato, enquanto alguns historiadores
tratam os eventos históricos e documentos como registros comportamentais,
outros os veem, sobretudo, como “textos”, algumas vezes repletos de signifi-
cados sociais e simbólicos?”, embora estas duas vertentes possam ter pontos
de encontro e não esgotem as possibilidades de posturas epistemológicas no
campo historiográfico.
Sabe-se que nos anos 1970-80, colocou-se em questão a crença otimista
de que o mundo seria modificado em linhas revolucionárias, pôs-se em dúvida
a ideia de um progresso regular. Muitos cientistas sociais, que construíam
seus aparatos teóricos baseados, sobretudo, no positivismo, assistiram ao

241 DARNTON, Robert. Introdução. In: . O beijo de Lamourette. Mídia, cultura e revolução. São
Paulo: Cia. das Letras, 1990. p. 17.
242 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 181.
243 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 198.
244 JAMES, Daniel. Contos narrados nas fronteiras. A história da Dona Maria, história oral e questões de
gênero. In: BATALHA, Cláudio H. M. et. al. (Orgs.). Culturas de Classe, identidade e diversidade na
formação do operariado. Campinas: Ed. Unicamp, 2004.
245 O rótulo pós-moderno certamente é simplificador, já que tende a homogeneizar um conjunto
heterogêneo de perspectivas, supondo que elas constituem um uníssono, o que não é bem verificável.
O mesmo valeria para o termo “moderno” que pretende aglutinar muitas diferenças. Por isso, uso-os
somente em algumas circunstâncias específicas e procuro fazê-lo com cuidado. Seu uso, como será
visto nas páginas que seguem, tem sido comum entre diversos autores que lidam com questões
discutidas neste ensaio.
246 LACAPRA, Dominick. Chartier, Darnton e o grande massacre do símbolo. Pós-História, Assis-SP
v.3, 1995, p. 238.
247 MAH, Harold. Op. cit., 1991, p. 2.
96 EM TE

questionamento agudo ou à falência dos sistemas e paradigmas existentes. mod


Diante disso, algumas tendências da pesquisa histórica, a exemplo da história se pc
social, ou formas de experimentação historiográfica, como a micro-história, Gest
enfatizaram a redefinição de conceitos e uma análise dos instrumentos e cor€
métodos existentes. Outras, por seu turno, propuseram soluções “absolu- em «
tamente mais drásticas, que com frequência desviam para um relativismo de d
desesperado, para o neo-idealismo ou mesmo para o retorno a uma filosofia popi
repleta de irracionalidade”. De fato, as respostas dadas a essa crise foram quer
diversas e às vezes antagônicas, como se poderia observar no debate acerca da de fi
“textualidade” dos textos”? com os quais o historiador lida, ora enfrentado de a
como uma questão premente para a redefinição do fazer historiográfico e para dive
o aprimoramento da interpretação social, ora visto como evidência de que o regi
historiador pode lidar somente com ideias e textos, ou mesmo que o trabalho pro(
histórico é fundado em premissas epistemológicas falidas e irrecuperáveis. corr
É claro que não se podem confundir dois tipos de lógica, a lógica da
expressão escrita e a lógica que molda aquilo que o senso prático produz”. siste
Nos dias atuais, dificilmente algum historiador consideraria insignificantes as con
questões referentes, por exemplo, à textualidade dos textos, mesmo quando, com
simultaneamente, poderia alertar para a questionável premissa desse postu- espl
lado, a ideia de que os principais materiais do historiador são os textos e seu esq)
método, a leitura desses textos?!, Aceitando-se que é possível elaborar uma
este
interpretação do passado, considerar esse nível textual implica tomar o texto
como texto tentando determinar suas intenções, suas estratégias e os efeitos do 4
texi
produzidos por seu discurso, levando em conta a (des)investidura semântica
entt
dos termos e definindo as instâncias comportamentais e os rituais presentes
no texto com base no modo específico no qual eles foram reunidos ou pro-
nis)
duzidos?2. Esta não é uma tarefa simples, mas, certamente, pode complexi-
ficar e refinar a pesquisa. De algum modo, a dificuldade em lidar com estas can
questões parece se acentuar ainda mais quando aquilo que se estuda não é, mo
por exemplo, a circulação dos textos em uma dada época, tornando-se mais mais!
simples, (e, talvez, às vezes, mais coerente e útil) fazer um uso (que se pode- sur
ria denominar de) instrumental dos mesmos, retirando-lhes as informações e
conteúdos diretamente necessários para o trabalho.
Essa discussão parece produzir resultados mais convincentes e consisten-
tes quando numa determinada análise, narrativa e interpretação os registros e

248 LEVI, Giovani. Sobre a Micro-História. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história. Novas
perspectivas. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 134-135.
249 CHARTIER, Roger. Textos, simbolos e o espírito francês. História: Questões e Debates, Curitiva/PR,
n. 24, p. 19, jan.jul. 1996.
250 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1996, p. 11.
251 FERNANDEZ, James. Historians Tell Tales: of Cartesians Cats and Gallic Cockfights. The Journal of
Modern History, v. 20, n. 1, p. 115-117, mar, 1988.
252 Ibid., p. 25-26.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 97

modos de registrar o objeto tornam-se parte do próprio objeto de estudo, como


e

se poderia observar em algumas pesquisas históricas, a exemplo de Intenção e


Gesto, na qual são estudadas práticas de identificação, as relações entre pessoa,
VODs

cor e a produção da (in)diferença no Rio de Janeiro dos anos 1927-42, momento


em que, no Brasil, “o poder de atribuir identidades configura-se como prática
de dominação”?*. Parafraseando a autora, poder-se-ia interpretar a cultura
dt

popular e/ou folclore não como uma realidade, cuja caracterização e conse-
quente depreciação, penalização, seleção ou louvação teve lugar nos textos
DS

de folcloristas ou nos artigos de diferentes letrados, mas enquanto categoria


de análise e descrição utilizada em uma variedade de situações e atribuída a
dO

diversas práticas e comportamentos considerados tradicionais, específicos da


td

região, pitorescos e bárbaros. É justamente esse momento de gestação e de


SO

produção de sentidos que tenho visto envolver o que, aparentemente, só visa


to

corroborar uma atitude ou prática previamente ocorrida”.


Percebe-se, assim, que uma das principais virtudes desta perspectiva con-
.—

siste em chamar a atenção para o modo como os textos emergem, como eles são
construídos pelo próprio pesquisador e acerca da relação que estes estabelecem
com seus objetos de estudo. Mas é preciso estar atento, pois ao se advogar uma
espécie de paradigma textual, pode-se tender a uma “obscuridade do fato”,
esquecendo-se que existe um repertório extra-textual de significantes e que
este repertório de distintos significados consiste nas convenções ou costumes
do grupo que se estuda?*. Neste caso, “a moda de estudar a realidade como um
texto, poderia ser complementada pela consciência de que o texto não pode ser
entendido sem uma referência a realidades extratextuais”?”.
O estudo da realidade como texto relaciona-se ao chamado pós-moder-
nismo (também dito desconstrutivismo), tendência disseminada em diversos
campos científicos e que teria se desenvolvido como reação aos movimentos
modernos anteriores, e não deve ser confundido com a preocupação de diversos
historiadores com os métodos e técnicas da historiografia. O “moderno” teria
surgido no contexto do desenvolvimento capitalista e da sociedade burguesa,
colocando-se de certo modo contra ele, pretendendo-se crítico, secular e

253 CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e Gesto: pessoa, cor e a produção da (in)diferença no Rio
de Janeiro, 1927-1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002. p. 40.
254 A pesquisadora afirma que tomou “a vadiagem não como uma realidade, cuja caracterização e
consegiente penalização teve lugar no texto jurídico, mas enquanto categoria de acusação utilizada
em uma variedade de situações e atribuída a diversos comportamentos considerados anti-sociais. Foi
justamente esse momento de gestação e de produção de sentidos que vi envolver o que aparentemente
só visava corroborar uma atitude ou gesto previamente ocorrido” (CUNHA, O., 2002, p. 32).
255 FERNANDEZ, James. Op. cit., 1988, p. 115-117.
256 DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa.
2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
257 GINZBURG, Carlo. Checking the Evidence. The Judge and the Historian. Critical Inquiry, v. 18, n. 1,
p. 83-84, 1991.
98

racional. O “pós” acrescido ao moderno indicaria localização histórica, o uso


do pastiche (quando seriam perdidas as bases normativas) e a importância das
imagens, além do fim das metanarrativas. Critica-se, assim, numa perspectiva
que se pretende desconstrutivista, conceitos, ideias e valores que sustentam o
pensamento dito ocidental (clássica e modernamente entendido) como a razão,
o tempo, o espaço e o sujeito. Filósofos como Michel Foucault, Jacques Der-
rida, Giles Delleuze, dentre outros (intelectuais cujas ideias são reelaborados
em diversas disciplinas acadêmicas), influenciados pelo estruturalismo, não
discordarão do pensamento moderno ocidental hegeliano, segundo o qual a
razão é histórica. Entretanto, ao contrário de Hegel, entenderão que essa história
não é contínua, cumulativa, evolutiva e progressiva. Assim, hodiernamente,
para além do estranhamento e do relativismo estaria o pastiche, tempo de
confusão entre o passado, o presente e o futuro, uma visão em que o tempo
não é mais entendido como linear?*, concepção cristã que serviria de base
para a noção de progresso”.
Uma tese epistemológica fundamental das tendências pós-modernas
é de que os problemas são, em primeiro lugar, as representações e, mais
precisamente, a representação de representações de outros, o mundo da
textualidade, “o colapso da relação entre significantes” onde estes são trans-
formados em imagens?*º. Nesta direção, alguns historiadores sugeririam que
as tensões e conflitos, quando existentes, são, antes de mais nada, “lutas de
representação”?*!, devendo ser enfocados enquanto tais. Este procedimento
poderia, entretanto, não recusar a pertinência da interpretação social, mas
somente destacar a necessidade de se “reformular a maneira de ajustar a com-
preensão das obras, das representações e das práticas às divisões do mundo
social que, conjuntamente, significam e constroem”282. De certo modo, essas
argumentações são tornadas possíveis devido às críticas feitas por filósofos
como Wittgenstein, Heidegger e Dewey que, na primeira metade do século
XX, entendiam que seu objetivo não era melhorar a epistemologia, mas sim
Jogar diferentemente, o jogo de hermenêutica, isto é, um conhecimento sem
fundamentos, um saber que se convertia basicamente numa conversação edi-
ficante. Esse entendimento questionava a noção de conhecimento como uma
representação acurada, “possível através de processos mentais e inteligível
através de uma teoria geral da representação”. Imagem esta que teria surgido

258 RABINOW, Paul. Antropologia da Razão: ensaios de Paulo Rabinow, Organização e tradução de
João Guilherme Biehl. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1990. p. 91.
259 TERRA, Ricardo. A política tensa: idéia e realidade na filosofia da história de Kant. São Paulo, 1995. p. 141.
260 RABINOW, Paul. Op. cit., 1990, p. 91. .
261 Chartier (1991, p. 183) evoca Marcel Mauss e Emile Durkheim para elaborar estas ideias. Ele lembra
que esses pesquisadores demonstraram que os esquemas geradores dos sistemas de classificação
e de percepção são verdadeiras instituições sociais.
262 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 188.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 99

no século XVII, desenvolvendo-se numa sociedade específica, a europeia, e


que triunfou filosoficamente “por estar fortemente associada às reivindicações
profissionais de um grupo, professores de filosofia alemães [neokantianos]
do século XIX”28.
Alguns antropólogos, como Adam Kuper?*, e historiadores, como Carlo Gin-
zburg?, afirmam que o limite do pós-modernismo e do seu relativismo, seria, ao
mesmo tempo, cognoscitivo, ético e político. No ceme dos argumentos de diversos
pós-modernos, a exemplo de James Clifford, Rosaldo e Virginia Woolf, há três
proposições compatíveis entre si: 1) nos termos do comércio cultural, houve uma
mudança histórica em todo o mundo, 2) “não é mais possível (se é que alguma vez
foi) construir relatos objetivos de outros modos de vida” e 3) “há uma obrigação
moral de louvar as diferenças culturais e defender aqueles que estão resistindo
à ocidentalização”. Proposições altamente questionáveis. Em primeiro lugar,
“existe uma contradição óbvia entre essa epistemologia relativista e a alegação
de ser capaz de apontar com precisão uma crise cultural cósmica”. Como se pode
dizer que o mundo mudou sem que se possua nenhuma informação objetiva sobre
ele? Em segundo lugar, há um problema moral nos discursos que se fundam em
identidade, o “problema da legitimidade. Quem pode falar pelo Outro.
Ao que tudo indica, disputas entre, de um lado, cultura e civilização
universal e, de outro, culturas e civilizações particulares têm sua raiz em
duas tradições europeias, a francesa e a alemã, uma disputa entre iluministas
e românticos”. Os intelectuais alemães defendiam “a tradição nacional contra
a civilização cosmopolita; os valores espirituais contra o materialismo; as
artes e os trabalhos manuais contra a ciência e a tecnologia”, convocando “as
emoções, até mesmo as forças mais obscuras do nosso íntimo contra a razão
árida”. Os pensadores iluministas tratavam do progresso do ser humano, os
alemães se interessavam pelo destino específico de uma nação. Franceses,
iluministas; alemães, contra-iluministas. “Vozes ancestrais perseguem os
escritores contemporâneos”?%. Com efeito, disputas contemporâneas entre
modernos e pós-modernos podem ser percebidas como reverberações dos
conflitos e antitetismos daquelas duas correntes outrora litigantes.
Concordo que seja necessário refutar “o relativismo?”, o irracionalismo
e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica

263 RABINOW, Paul. Op. cit., 1990, p. 72-74.


264 KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC, 2002. p. 286.
265 GINZBURG, Carlo. Rapporti di forza. Storia, retorica, prova. Milano: Feltrinelli, 2000. p. 42.
266 KUPER, Adam. Op. cit. 2002, p. 286.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
267 KUPER, Adam. Op. cit., 2002.
268 | Ibid., 2002, p. 27; 31.
269 Obviamente, reconhece-se o papel desempenhado pelo relativismo cultural no questionamento do
etnocentrismo. Mas identificar o relativismo com o relativismo tout court e ver todo anti-relativismo
100

que interprete os textos e não os próprios acontecimentos”. A aceitação dos


limites do conhecimento e também da razão pode ser acompanhada de “uma
historiografia capaz de organizar e explicar o mundo do passado”?”, e não
da convicção na inviabilidade do conhecimento e da interpretação social.
Isto, obviamente, não implica num abandono de discussões que se tornaram
fundamentais para a historiografia hodierna, a exemplo da evidência de que
os textos não estão separados de sua materialidade e de que tanto as formas
como a semântica produzem sentido, de que a leitura é uma prática encar-
nada em gestos, espaços e hábitos?”!. Talvez estes processos se tornem mais
evidentes para quem estuda, por exemplo, a circulação do escrito impresso
e sua relação com as formas de sociabilidade e as relações de poder em um
dado período — a exemplo de Chartier, mas também podem lançar luz sobre a
prática historiográfica em geral, particularmente para a lida dos historiadores
com suas fontes textuais. Os “dispositivos materiais e formais pelos quais os
textos atingem seus leitores”??, certamente, atingiam não somente os sujeitos
do passado como também os historiadores que hoje se debruçam sobre um
múltiplo e complexo campo de textos-fonte.
Questões similares podem ser apontadas em relação aos testemunhos
orais. Já é difundida a ideia de que tanto a forma da narrativa oral quanto seu
conteúdo são fundamentais numa análise??. Embora se reconheça o poder de
resistência das tradições orais, há intensos debates e dissensos sobretudo no que
concerne a saber se as fontes orais podem ou não oferecer relatos confiáveis
de acontecimentos passados, problema este que não é exclusivo deste tipo
de fonte. Deve-se lembrar que a alfabetização não necessariamente elimina
certos modos de produção da tradição oral?”, o que complexifica ainda mais
as relações entre o textual e o oral. Além disso, se, de um lado, “as tradições sado as
se perpetuam em grande parte mediante a transmissão oral, com seu repertório e reali
de anedotas e narrativas exemplares”, de outro lado, “sempre que a tradição
Rue vê
oral é suplementada pela alfabetização crescente, os produtos impressos de
amela
maior circulação tendem a se sujeitar a expectativas da cultura oral, em vez
mem si
de desafiá-la com novas opções”2?.
É o qui
Algumas questões, das quais geralmente também não escapam os regis-
tros escritos, têm sido recorrentemente destacadas no que concerne aos usos aconte
dos testemunhos orais, dentre as quais, podem-se destacar: as narrativas dos BDrIOS |
informantes, mesmo ricas, podem ser empiricamente limitadas, pois a memória pelativ)
cão, af
como uma tendência perigosa para considerar algumas culturas como hierarquicamente superiores
a outros, como o faz Clifford Geertz é algo questionável (LEVI, 1992, p. 147).
270 LEVI, Giovanni. Op. cit., 1992, p. 136. Ah
271. CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 178.
272 Ibid,, p. 179.
273 JAMES, Daniel. Op. cit., 2004, p. 291-298.
274 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. 34;36.
275 THOMPSON, E. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia.
das Letras, 1998. p. 18.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 101

é falha e distorce; o testemunho oral não é algo transparente, mas uma ima-
gem refratada; usar a narrativa oral somente como fonte empírica pode levar
à atribuição de um papel passivo ao informante, quando se poderia encontrar
algo a mais na sua narrativa; o informante não é um simples repositório de
dados históricos, ele narra, constrói uma história sobre sua vida, reconstrói
o passado de maneira seletiva, isto é, dá um certo sentido ao passado. Faz-se
necessário, portanto, afastar-se de um realismo ingênuo, da crença de que a
história oral refere-se exclusivamente a processos de verificação para a pes-
quisa histórica. A qualidade subjetiva do testemunho oral precisa ser vista não
como um problema, mas como uma oportunidade?”*.
Uma análise preliminar de depoimentos dados por brincantes de bumba
meu boi?” permite sugerir que é plausível o argumento de que as histórias de
vida, por exemplo, sejam construtos culturalmente baseados em um discurso
público, estruturado pela classe, por convenções culturais e pelo gênero. Aque-
les que narram suas histórias usam múltiplos papéis, repertórios e narrativas
disponíveis. As imagens e convenções (ideologias, por exemplo) presentes na
sociedade e época vivida pelo sujeito são parte do repertório que este dispõe
para reconstruir seu passado. Assim, os veículos culturais e instrumentos in-
terpretativos limitam, definem e estruturam as biografias, histórias de vida e
depoimentos. O sujeito não os absorve mecanicamente, mas seleciona alguns
deles relacionando-os à sua própria história. Para além das determinações dos
padrões dominantes ou contradiscursos dos agentes, há, sobretudo, silêncios e
esquecimentos, e a evidência de que o contador de histórias imbui seus próprios
significados, sua subjetividade, nas ideologias dominantes?S.
Chegando-se a este ponto, cabe salientar que duas perspectivas opostas têm
sido as principais responsáveis pela simplificação da relação entre evidência
e realidade no trabalho historiográfico. De um lado, a perspectiva positivista,
que vê a evidência, o documento histórico, como um meio transparente, uma
janela aberta para se.ter acesso direto à realidade”. A esta tendência pode-
riam ser associados aqueles que esquecem que, muitas vezes, “a notícia não
é o que aconteceu no passado imediato, e sim o relato de alguém sobre o que
aconteceu”, historiadores profissionais “que tratam os jornais como reposi-
tórios de fatos em si, e não como coletâneas de relatos”?*º. De outro lado, os
relativistas céticos contemporâneos, que dão uma resposta oposta a essa op-
ção, afirmando que não é possível ter acesso à realidade, pois os documentos

276 AMES, Daniel. Op. cit., 2004, p. 291-293.


277 MARANHÃO. SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. CENTRO DE CULTURA POPULAR
DOMINGOS VIEIRA FILHO. Memória de Velhos. Depoimentos: uma contribuição à memória oral da
cultura popular maranhense. São Luís: LITHOGRAF, 1997. 5 v.
278 JAMES, Daniel. Op. cit., 2004.
279 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 196-198.
280 DARNTON, Robert. Op. cit., 1990, p. 17-18.
102

constituiriam algo como janelas absolutamente fechadas. Entretanto, sabe-se


que o fato de a abordagem da realidade nunca ser direta, mas inferencial, não
exclui a necessidade da elaboração de um quadro interpretativo?!. Embora a
representação possa ter uma dimensão patológica e devendo-se reconhecer
que o princípio da realidade e a ideologia se entrelaçam, a possibilidade da
representação não se esgota. “Se não tivesse sido capaz de corrigir as suas
imaginações, expectativas ou ideologias sob o influxo das indicações (nem
sempre agradáveis) vindas do mundo exterior, a espécie Homo sapiens ter-se-
-ia extinguido há muito tempo”. Diante disso, a maior consciencialização da
dimensão narrativa não implica numa diminuição das possibilidades cognitivas
da historiografia, mas na sua intensificação”.
É relativamente recente a tradição historiográfica segundo a qual seria
possível estabelecer provas com base na análise de detalhados arquivos; ela é
datada de fim do século XIX, quando se criou, no âmbito historiográfico, uma
atmosfera semelhante a um tribunal. Na tradição grega, esperava-se que os
escritos históricos fossem capazes de transmitir uma vívida representação de
personagens e situações, que nele houvesse uma argumentação convincente não
necessariamente baseada na exibição de provas recolhidas, mas por comunicar
certa visão da realidade. A coleta de provas, até meados do século XVIII, era
uma atividade de antiquários e eruditos. Mas o fato de nas últimas décadas
os historiadores terem optado mais por compreender que julgar, separando-
-se O historiador do juiz, não excluiu a questão da prova como um elemento
fundamental da prática historiográfica?º.
Reconhece-se que a experimentação historiográfica produz possibilidades
históricas e não provas irrefutáveis?. Mas a aceitação de que as conclusões
do historiador podem se conjecturais, invenções ancoradas em vozes do pas-
sado, precisa ser acompanhada do suposto epistemológico desse paradigma, o
reconhecimento da integração entre realidades e possibilidades, não fazendo
sentido contrapor verdade à falsidade. A margem de incerteza aberta pelos
questionamentos colocados pelo historiador diante de uma dada documen-
tação não conduz o historiador à conclusão de que esse documento não lhe
pode permitir chegar à uma interpretação e reconstituição do passado, mas o
obriga a um aprofundamento Da investigação, por exemplo, ligando o caso
específico que analisa ao contexto, isto é, ao campo de possibilidades histo-
ricamente determinadas”. Trata-se portanto de reconhecer que o acesso ao

281 Ibid., p. 83-84.


282 Ibid., p. 1960-198.
283 Ibid., p. 79; 81; 83.
284 Ibid., p. 180.
285 Ibid,, p. 183.
286 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 103

passado dá-se através de indícios, sinais e sintomas”, e não que é impossível


produzir algum relato sobre o passado, sobre a realidade.
Obviamente, na produção de tal relato o historiador deve estar alerta
“contra uma falsa impressão de familiaridade com o passado”? e também
deve reconhecer que certos tipos de fontes podem impedir, dificultar ou pos-
sibilitar que se observem determinados sujeitos, situações e processos. Ora,
os próprios arquivos, que guardam alguns documentos e não outros, acabam
possibilitando a formação de uma dada memória”, constituindo-se, a um só
tempo, como repositórios de informações e produtores de identidades sociais”.
Os historiadores têm reconhecido que as personalidades e perspectivas
de pessoas comuns são registradas, sobretudo, quando estas têm problemas
com a lei, sendo uma das fontes mais ricas para pesquisas desse gênero os
registros de atos provenientes de tribunais leigos e eclesiásticos?”!. Devem-se
incluir nessa lista de fontes para pesquisas sobre as pessoas comunas aquelas
produzidas por folcloristas, bem como as fontes disponíveis em jornais no
Brasil, sobretudo, quando festas como o Carnaval e o São João se tornariam a
pauta principal de diversos veículos de comunicação, principalmente, a partir
da Primeira República, quando a imagem do Brasil festivo começaria, ainda
que vagarosamente, a ser construída.
Frequentemente vistos como fragmento folclórico, os modos de brincar
e festejar dos envolvidos com bumbas em São Luís teriam muito a dizer sobre
a sociedade e a época na qual eram realizados caso sejam desfolclorizados.
Deve-se reconhecer que essas ocasiões festivas, muitas das quais profundamente
ritualizadas, precisam deixar de ser vistas como fragmento folclórico, como “so-
brevivência”, para ser reinseridas em sem “contexto total”. É importante estudar
determinados rituais, inclusive aqueles que poderiam ser caracterizados como
festivos, exatamente porque eles permeiam a vida social, política e doméstica.
O controle ou a dominação, por exemplo, podem se revestir de uma roupagem
teatral manifesta nessas ocasiões festivas. Longe de encarar esses processos
festivos como algo imaterial, sem substância, deve-se arquitetar a análise para
determinados tópicos, a exemplo das imagens de poder e autoridade, das re-
lações sociais de subordinação e de conflito. A atenção às formas e aos gestos
do ritual pode fornecer significativas contribuições ao conhecimento histórico.
E certas formas só podem ser inteiramente compreendidas se se recupera as

287 LEVI, Giovanni. Op. cit., 1992, p. 14.


288 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. XIV.
289 RIBEIRO, Gladys Sabina Ribeiro. O povo na rua e na justiça, a construção da cidadania e luta por direitos,
1889-1930. In: SAMPAIO, Maria da Penha F. Sampaio et al. (Coords.). Autos da memória: a história
brasileira no Arquivo da Justiça Federal. Rio de Janeiro: TRF 2º região/ND-UFF, 2006. p. 155-223.
290 CUNHA, O. Op. cit. 2002, p. 32.
291 GINZBURG, Carlo. Op. cit., 1989, p. 181-182.
104

crenças da cultura consuetudinária. Não se trata de usar as fontes dos folcloristas


acriticamente, mas de empregá-las seletivamente quando do exame de questões
frequentemente desconhecidas pelos antigos folcloristas??2.
À arquitetura de uma análise, a construção de uma interpretação consiste,
em grande medida, numa ida e vinda entre a narrativa e a documentação, numa
tentativa de delinear a dimensão social do sentido, para então se “pegar” o
evento”23. “A pesquisa histórica não tem a ver apenas com a comunicação dos
resultados em um livro”. Os problemas de prova e demonstração em história,
por meio do relato de momentos concretos, podem ter uma relação próxima
com as técnicas de exposição. Não se trata tão somente de “um problema de
retórica, pois o significado do trabalho histórico não pode ser reduzido à re-
tórica, mas, especificamente, um problema de comunicação com o leitor, que
nunca é um tabula rasa, e por isso sempre coloca um problema de recepção”.
Assim, a narrativa da pesquisa deve, de um lado, “demonstrar, através de um
relato de fatos sólidos, o [...] funcionamento de alguns aspectos da sociedade”,
e de outro, “incorporar ao corpo principal da narrativa os procedimentos de
pesquisa em si, as limitações documentais, as técnicas de persuasão e as cons-
truções interpretativas”. Embora não seja a única opção possível, é sedutora
a possibilidade de se construir uma narrativa tentando envolver o leitor “em
uma espécie de diálogo”, possibilitando que ele participe “de todo o processo
de construção do argumento histórico”.
Atualmente, tem se sublinhado o núcleo fabulatório que se pode encon-
trar nas narrações que se pretendem científicas mais que o núcleo cognitivo
das narrações de ficção, reconhecendo-se que os ritmos da narrativa histó-
rica são tão importantes quanto os ritmos da história (GINZBURG, 1989).
Obviamente, a adoção de um código linguístico relaciona certos aspectos da
realidade, valoriza certas relações e estabelece certas hierarquias, deixando
outros aspectos esquecidos ou subanalisados.
Através da análise das festas, por exemplo, pode-se perguntar sobre como as
pessoas comuns “interpretavam o mundo, conferiam-lhe significado e lhe influ-
íam emoção”, afinal, “as pessoas comuns pensam com coisas, ou com qualquer
material que sua cultura lhes ponha à disposição, como histórias e cerimônias”.
O fenômeno social “festa” começou a ser estudado no próprio início
da constituição do campo das ciências humanas, particularmente, na obra de
Emile Durkheim e Marcel Mauss, cujas teses seriam desdobradas por diver-
sos pesquisadores?*. O interesse por esse objeto vincular-se-ia sobretudo às

292 THOMPSON, E. Folclore, antropologia e História social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio. As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: UNICAMP 2001.
293 DARNTON, Robert. Op. cit, 1990, p. 294-295.
294 LEVI, Giovvanni. Op. cit., 1992, p. 152-153.
295 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. XII-XIV.
296 Para um balanço da questão apontando para as discussões mais historiográficas, ver ALMEIDA
(1994). Almeida propõe uma tipologia dos estudos tentando rastrear o fenômeno festa ao longo do
tempo. Assim, fala em festas antigas, festas medievais, festas do Antigo Regime, Festa e Revolução
B
| t
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 105

grandes transformações ocorridas nos anos 1970, “momento que corresponde


a uma significativa mudança na sociedade de massas, geradora de uma nova
indústria cultural que produz o mundo efêmero e descentralizado da tecnolo-
gia e do consumismo”. Este mundo também é sustentado pela escolarização
universal e pela expansão e domínio da mídia, manifestações que surgem às
margens dos antigos modelos eruditos e letrados dominantes nas sociedades
ditas tradicionais. São, portanto, “tempos em que se impõe um estilo de cultura
que obscurece as fronteiras outrora bem demarcadas entre a “cultura letrada”
e a “cultura popular”, da mesma forma que se apagam as diferenças entre a
arte e a experiência cotidiana”. O interesse pelo objeto festa também estaria
relacionado a duas questões fundamentais no âmbito da historiografia. De
um lado, “a descoberta da cultura popular como um lugar de “subversão”, de
transgressão à normatização disciplinadora do poder”. De outro, “a percepção
que as manifestações populares dão-nos agora direto acesso às experiências
cotidianas de segmentos da população por longo tempo silenciados”?”.
A “festa” é, em grande medida, um objeto multi e interdisciplinar. Em-
bora nem sempre historiadores e antropólogos, por exemplo, coloquem-se
as mesmas perguntas e muito menos tenham interesses similares, o diálogo
entre História e Antropologia pode se mostrar relevante. Não se trata, contudo,
de optar por uma antropologia histórica ou por um “modo antropológico da
história”. De fato, há uma diferença entre a antropologia histórica, como
pensada nos Annales, que consistia num “tratamento histórico de objetos
antropológicos” e o “modo antropológico da história”, como proposto por
Darnton?*, em O Grande Massacre de Gatos, pois aqui se entende que a an-
tropologia (especialmente a chamada antropologia interpretativa de Geertz) é
capaz de dar à história uma noção coerente de cultura, diferente da visão, por
exemplo, das mentalidades. Damton supõe (ainda que implicitamente) que
se a história igualar os procedimentos da antropologia sanará muitos de seus
problemas?”, Entretanto, “podem métodos antropológicos desenvolvidos para
situações face-a-face serem legitimamente aplicados” para qualquer contexto
histórico? (FERNANDEZ, 1988, p. 114).
A relação entre a História e outros campos disciplinares, a exemplo da
Antropologia, têm sido descontínua, embora muito importante para a pró-
pria renovação da historiografia que, por seu turno, tem fornecido algumas

(festas contemporâneas), festas brasileiras. Um balanço teórico das diferentes abordagens sobre
festas numa perspectiva antropológica pode ser encontrado em Amaral (1998).
AMARAL, Rita de Cássia. Festa à Brasileira. Significados do festejar, no país que “não é sério”.
1998. 400 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) — Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
ALMEIDA, James. Op. cit., 1994.
297 SILVA, Maria Manuela Ramos de Souza. A historiografia descobre a “festa”. Hélade, v. 1, n. 1, p. 38, 2000.
298 DARNTON, Robert. Op. cit., 1986, p. 8.
299 LACAPRA, Dominick. Op. cit., 1995, p. 245-246.
106

contribuições para outras áreas, a exemplo da própria Antrogologia””. As


ciências sociais questionaram a história propondo objetos de estudo para além
do econômico e do social e normas de cientificidade extraídas das ciências
exatas. A história captou territórios, técnicas e marcas de cientificidade. As
disciplinas literárias questionaram o empirismo histórico. Os historiadores
responderam anexando territórios (a exemplo de rituais e crenças) antes alheios 3t,
-

(da etnologia e da sociologia, por exemplo). Com a história das mentalidades .l


q

buscou-se ir para além da história das ideias e das conjunturas e estruturas,


enfocando-se os utensílios mentais. Novos tratamentos passaram a ser dados
aos objetos utilizando-se técnicas da linguística e da semântica e métodos
antropológicos*"!.
A relação entre história e antropologia, para que seja frutífera, precisa
considerar alguns elementos: a pesquisa histórica necessita testar, refinar e
redefinir categorias ou modelos derivados de outros contextos ou campos dis-
ciplinares*??. Embora se possa afirmar que “empréstimos antropológicos não
resolvem tudo e pôem outros problemas”*?, é preciso também lembrar que
teorias incompatíveis no campo antropológico não necessariamente o serão
quando redimensionadas para a pesquisa histórica. O estímulo antropológico
para os historiadores sociais se verifica não na construção de modelos, mas
na visualização de novos problemas e de velhos problemas em novas formas,
na ênfase em normas (ou sistemas de valores) e em rituais, atentando para as
expressivas funções das formas de amotinação e agitação, assim como para
as expressões simbólicas de autoridade, controle e hegemonia. Embora a re-
lação entre antropologia social e história social deva ser encorajada, não pode
ser de qualquer tipo. Um terceiro integrante é necessário como mediador, a
filosofia. Algumas vezes se supõe que a antropologia possa fazer descobertas
não apenas acerca de sociedades particulares, mas sobre as sociedades em
geral. Entretanto, a história é uma disciplina do contexto e do processo: todo

RM
significado é um significado-dentro-de-um-contexto e, enquanto as estruturas
mudam, velhas formas podem expressar funções novas, e funções velhas a
o.m
podem achar sua expressão em novas formas. Constantes são fraturadas e
deformadas pelos períodos históricos. Deve-se encontrar a estrutura na par-
fui fa|

ticularidade do “conjunto de relações sociais” e não em um ritual ou em uma


forma particulares isolados dessas relações. Na história, novos fenômenos
jul

acontecem, e sua organização estrutural diante do conjunto muda à medida

300 Se os historiadores têm aprendido com a Antropologia, “certamente a antropologia pode aprender
com a história social” (FERNANDEZ, 1988, p. 113).
301 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 174.
302 THOMPSON, E. Op. cit., 2001, p. 228-229.
303 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 19.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 107

As que muda a estrutura das sociedades. Esse modo de transpor conclusões da


pesquisa antropológica para a histórica não é correto*'*.
as Voltando especificamente à festa, deve-se salientar que ela foi e tem sido
às frequentemente pensada no singular e tomada por historiadores como “um
es tipo de ocasião dotado de funções e formas comuns em qualquer sociedade —
Os eternos rituais de inversão, momentos universais de suspensão de conflitos e
es regras, ou de fusão das diferenças em uma única torrente burlesca, ou satírica,
cujas mudanças só podiam ser observadas na longuíssima duração”. Elas ser-
JS viriam sobretudo para se localizar “elos imemoriais, quase naturais, capazes
Ss de unir significados de diferentes tempos e contextos”. Lugar da tradição e
da permanência, “a festa, constitui, nesta ótica, uma espécie de repositório da
continuidade para o qual muitas imagens, metáforas e exercícios morfológicos
continuam sendo empreendidos”**. Aqui, “a festa” é vista sobretudo como
“repetição do passados,
Entretanto, mesmo “sem ignorar as poderosas inércias da longa duração e
a coesão social, temas cruciais no estudo das festas e rituais, importa também
atentar para os mecanismos de oposição e ruptura, para a descontinuidade
na história”. Assim, através da análise das festas, é possível enfatizar a
diferença e os sujeitos com suas múltiplas relações, práticas, linguagens e
costumes, atentando-se para a mudança e o movimento. É importante lembrar
que diferentes relações e práticas que poderiam ser reconstituídas a partir da
análise do festivo, a exemplo daquelas de caráter hierárquico, podem estar
postas não somente no próprio movimento das festas, como também nos
registros e narrativas sobre elas*ºS.
waWa KV

Esta é uma posição que se insere no que se convencionou denominar


de história social da cultura. Reconhecendo que a história social aglutina um
conjunto heterogêneo de temas e enfoques, Hobsbawm'º? indica que a história
social visava, desde sua origem, os chamados “de baixo”, especialmente nos
registros de protesto, passando a ocupar-se também com a classe, gêneros,
ua

grupos racializados e outras identidades. Como se enfocam as relações, os “de


wa

cima” também são considerados, dando-se atenção sobretudo aos conflitos.


sr

304 THOMPSON, E. Op. cit., 2001, p. 228-229.


305 CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). Carnavais e outras f(restas. Ensaios de História Social de
Cultura. São Paulo: Editora da UNICAMP CECULT, 2002. p. 11.
306 OZOUF, Mona. À festa sob a Revolução Francesa. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.).
História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974. p. 217.
HERRS, Jacques. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.
307 ALMEIDA, Jaime. Todas as festas, a festa? In: LACERDA, Sônia (Org.). História no Plural. Brasilia:
Editora Universidade de Brasília, 1994. p. 168.
308 LARA, S. H. Significados cruzados: um reinado de congos na Bahia setecentista. In: CUNHA, Maria
Clementina Pereira (Org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de História Social de Cultura. São
Paulo: Editora da UNICAMP CECULT, 2002. p. 74.
309 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 84/87.
108 EM TEMI

De outro lado, a história social também se ocupa com os costumes e a vida de um


cotidiana, reconhecendo-se que os processos culturais podem modelar os pro- possil
cessos sociais, estreitando, assim, os laços com a antropologia e a literatura. relaci
Por fim, a história social também surgiu diferenciando-se da chamada história criad:
econômica, cujas análises sedimentavam-se na estatística e na quantificação.
Hoje procura distanciar-se sobretudo das chamadas tendências pós-modernas
que, em última instância, negam a própria possibilitar do fazer histórico?!º.
A História Social vem se transformando. Ao contrário da sua versão
clássica, a Nova História Social?! se interessa em detectar a existência de
agrupamentos de diversos tipos (geracionais, de gênero, parentesco, cor/raça,
religião, territorialidade), observando como se formam ou se reforçam ou trans-
plantam os limites da classe. Enfoca a definição, criação e relações dos grupos
e classes sociais em termos de rivalidade, competência e colaboração. Busca
interpretar as relações como processos sistêmicos e simultâneos: de dominação
e resistência, de rivalidade e cumplicidade, públicos e privados. Embora os
fatores sociais e culturais sejam sobretudo lidos, traduzidos e interpretados,
característica cara à narrativa e interpretação da Nova História Social, também
é possível abordá-los quantitativamente, como na História Social Clássica.
Se nesta a ação histórica tende a desenvolver-se em uma unidade regional,
nacional ou mesmo imperial, na Nova História Social se destacam o local, a
história do particular, cujo sentido é buscado sobretudo através de análises
etnológicas e etnográficas. Aqui, há certamente a possibilidade de construção
de uma etnografia histórica, mas não aquela etnografia que enfatiza as trocas
simbólicas e oblitera as consequências sociais*!2.
É preciso ainda se questionar sobre a compreensão de “como indiví-
- duos, cujas histórias e experiências são diferentes, podem se reunir e, mais
ainda, se reconhecer por intermédio de uma identidade social comum. Em
resumo, tenta-se interrogar sobre a relação entre a racionalidade individual
e a identidade coletiva”*!3. Pois “como definir as margens da liberdade ga-
rantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos
que o governam”?! Este é um problema que embora possa ser diretamente
relacionado à micro-história, por exemplo, atinge a historiografia de maneira
geral. De fato, toda ação social pode ser vista “como o resultado de uma
constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante

310 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit. 2002, p. 12-14.


311. DAVIS, Natalie. Las formas de la historia social. Historia Social, 10, 1991, p. 177-178.
312 Esta é uma crítica que Harold Mah (1991, p. 17) faz à etnografia histórica de Darnton em O Grande
Massacre de Gatos.
313 CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século
XVII. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 198.
314 LEVI, Giovanni. Op. cit., 1992, p. 135-136.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 109

de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas
possibilidades de interpretações e liberdades pessoais”. Há, portanto, “um
relacionamento entre os sistemas normativos e aquela liberdade de ação
criada para os indivíduos por aqueles espaços que sempre existem e pelas
inconsistências internas que fazem parte de qualquer sistema de normas e
sistemas normativos”?!6.
A busca de diferenciar as identidades múltiplas e cambiantes que se
estabelecem entre participantes de uma festa, de diferenciar “uma festa de
outra e dissociar um festeiro de outro em uma mesma celebração!” é uma
abordagem tributária de ideias sobre cultura e tradição como sugeridas por
Thompson. Embora o historiador inglês reconheça os múltiplos usos desses
conceitos pela antropologia, crítica o fato de os usos antropológicos frequen-
temente evocarem na cultura uma totalidade coerente e englobante, sentidos
e significados de totalidade e permanência, destinando pouca atenção para a
diferença e a mudança. Do mesmo modo, a “cultura popular” deve ser situada
no “lugar material que lhe corresponde”, no conjunto das relações sociais,
dando-se particular atenção às “relações de poder mascaradas pelos ritos de
paternalismo e da deferência””!.
De fato, há algum tempo os pesquisadores têm questionado ideias se-
gundo as quais somente algumas pessoas de determinadas sociedades e certas
sociedades possuiriam cultura ou a idéia de que haveria graus evolutivamente
determinados de cultura. Cultura, segundo Mintz?!º, refere-se ao significado
dos distintos modos de vida que definem um grupo, ao passo que a sociedade
significa um grupo organizado ao longo do tempo. Enquanto a cultura seria um
corpo de crenças e valores socialmente adquiridos e modelados que servem
a um grupo organizado como um guia de comportamento, a sociedade seria
a arena na qual as lutas se efetivariam. Mas embora Mintz??º tenha atentado
para o fato de que cultura e classe são processos, sua ênfase recai sobre os
elementos comuns que constituem uma dada cultura, entendida como o corpo
de crenças e valores socialmente adquiridos e modelados que servem a um
grupo organizado como guia de comportamento*”!.
Outros pesquisadores, como Edward Thompson, enfatizariam as fissuras,
diferenças e tensões no interior de uma dada cultura. “O próprio termo cultura,
com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção das
contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do
conjunto”. A cultura seria, antes de tudo, “uma arena de elementos conflitivos”.

315 Ibid., p. 134.


316 Ibid., p. 153.
317 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., 2002, p. 17.
318 THOMPSON, E. Op. cit. 1998, p. 17.
319 MINTZ, Sidney W. Culture: Na Anthropological View, The Yale Review, 1982.
320 - Ibid., 1982.
321 Ibid., 1982.
110 EM TEMF

Tenta-se, portanto, escapar de uma noção holística ou ultraconsensual do termo cultur


cultura*2. De fato, é difícil “postular que as formas simbólicas são organizadas comu:
em um “sistema””, como sugere Darnton em O grande Massacre de Gatos. padrô
“Isso supõe uma coerência entre elas e uma interdependência, que por sua utiliz;
vez supõe a existência de um universo simbólico compartilhado e unificado”. dos *
A sociedade possui múltiplas clivagens, fragmentada por diferenças em idade, haver
sexo, status, profissão, religião, residência, educação etc.” -se-ia
Antropólogos e historiadores têm reconhecido que mais que descrever e ten:

a cultura é necessário examinar seus componentes específicos: “ritos, modos interi


simbólicos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissão do costume entre

de geração em geração e o desenvolvimento do costume sob formas histori-


camente específicas das relações sociais e de trabalho”*. Uma definição de respt
Antropologia como o estudo da cultura pode desprezar fatores sociais, políticos, uma
econômicos e também biológicos. Eis o principal empecilho da teoria da cul- pria
iner
tura: “forças políticas e econômicas, instituições sociais e processos biológicos
não desaparecem como num passe de mágica apenas porque almejamos isso, usar
nem podem ser assimilados em sistemas de conhecimentos e crenças”. Enfim, que
“existem problemas epistemológicos fundamentais, e não vai ser tergiversando
rec
sobre cultura ou apurando definições que esses problemas serão resolvidos.
críti
As dificuldades tornam-se maiores quando a cultura deixa de ser algo a ser
um:
descrito, interpretado ou talvez até mesmo explicado para ser tratada como
pes
uma fonte de explicação propriamente dita”. Faz-se mister “abandonar de
taly
vez a palavra hiper-referencial e passar a falar de forma mais precisa sobre
pes
conhecimento, convicção, arte, tecnologia, tradição ou até mesmo ideologia”.
dec
Apenas separar uma esfera cultural e tratá-la em seus próprios termos não
ces
constituiria uma boa estratégia. “Se não separarmos os vários processos que
estamos agrupando indiscriminadamente sob o título de cultura e olharmos
“além do campo da cultura para outros processos, não iremos muito longe na
nossa compreensão da cultura”.
Outra noção e conceito polêmico é o de “cultura popular”, “desgastado
pelas disputas teóricas e políticas que o envolveram”. Porém, haveria “uma
posição clara, teórica e política ao se utilizar esta expressão”. Trata-se de
destacar na investigação “as pessoas pobres, simples, comuns”, pessoas que,
em geral, compartilham uma série de manifestações, que atuam, criam e
transformam seu próprio mundo, sendo agentes de sua própria história?””, De
fato, há pelo menos duas formas de lidar com o campo de questões envolvidas
pela “cultura popular”. A primeira se inspira em Mikhail Bakhtin, valoriza a

322 THOMPSON, E. Op. cit. 1998, p. 16-7; 22.


323 CHARTIER, Roger. Op. cit., 1991, p. 18-19.
324 THOMPSON, E. Op. cit. 1998, p. 1.
325 KUPER, Adam. Op. cit., 2002, p. 12.
ta

326 Ibid., p. 11-13.


327 ABREU, Martha. Op. cit., 1999, p. 27-28.
€s
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 11

cultura popular como ocasião festiva coletiva marcada pela convivência e pela
comunicação, a perspectiva do compartilhamento e do confronto de valores e
padrões, uma perspectiva “simétrica à dominação de classes” frequentemente
utilizada como parceira “da idéia de resistência inerente às práticas festivas
dos “populares” e de suas tradições”. A segunda parte do pressuposto de que
haveria um repertório disponível a todos os atores através do qual produzir-
-se-ia “uma multiplicidade de significados circulando como objeto de disputas
e tensões, apropriações diversas e re-significações, repressão e sedução, no
interior de um mesmo contexto cultural”; afasta-se assim da divisão da cultura
entre a dos “populares” e a dos “eruditos “2.
De fato, para além de sociologismos simplistas, que estabeleciam cor-
respondências estritas entre vários níveis sociais e formas culturais, “surgiu
uma definição de história primordialmente sensível às desigualdades na apro-
priação de materiais ou práticas comuns”. Tornou-se uma questão premente
inerente a essa história “diferentes modos pelos quais grupos ou indivíduos
usam, interpretam e apropriam-se dos temas intelectuais ou formas culturais
que compartilham com outros”*?.
Enfim, é possível captar o concreto dos processos sociais através da
reconstituição de vidas dos diferentes e desiguais sujeitos, fazendo um uso
crítico e sempre reflexivo dos registros, métodos e outros recursos, arquitetando
uma narrativa e uma interpretação que procurem integrar todas as etapas da
pesquisa historiográfica. Seguindo o ritmo das chamadas festas populares,
talvez seja possível reconstituir histórias e mostrar que particularmente as
pessoas comuns, que davam muito apreço a determinadas práticas culturais
dedicando um significativo tempo de suas vidas a elas, interferiam nos pro-
cessos sociais por meio de suas ações e práticas festivas.

328 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit. 2002, p. 18; CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., 2001.
329 CHARTIER, Roger Op. cit., 1991, p. 15.
FESTEJO DE SÃO BERNARDO:
Memória e Representação

Ronilson de Oliveira Sousa


Keliane da Silva Viana
Wheriston Silva Neris

Inscrito num conjunto de pesquisas que têm renovado o interesse de


estudo das devoções e festas religiosas no Brasil?ºº, o objetivo central deste
trabalho consiste em analisar os significados, as continuidades e rupturas do
festejo do padroeiro do município de São Bernardo, Estado do Maranhão.
O material mobilizado como fonte de informação é constituído fundamental-
mente de entrevistas em profundidade realizadas com lideranças comunitárias,
moradores mais antigos, devotos e organizadores da referida festa, contando
ainda com pesquisa documental em livros, artigos, registros fotográficos
e documentários sobre essa festa religiosa. Na medida em que a pesquisa
avança, diversos outros materiais têm sido levantados de arquivos pessoais,
bem como novas entrevistas vêm sendo realizadas. De maneira geral, este
trabalho se situa em uma agenda de pesquisas sobre as configurações do es-
paço religioso na Microrregião Baixo Parnaíba, região que abrange diversos
outros municípios além de São Bernardo?!, e que vem sendo desenvolvida
no Curso de Ciências Humanas/Campus São Bernardo/UFMA.
No presente trabalho, parte-se do pressuposto de que a festa é uma
produção humana, submetida a diferentes visões, perspectivas e representa-
ções*2. Os relatos dos entrevistados sobre o festejo fornecem, nesse sentido,
um aporte fundamental tanto para apreensão das interpretações cristalizadas
na memória coletiva acerca da festa, quanto para a compreensão das redes de
sociabilidade e do processo contínuo de negociação das identidades sociais que
perpassa a produção desse ritual coletivo. De fato, embora tenhamos encon-
trado representações que não são homogêneas sobre elementos específicos da

330 COUTO, Edilece S. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista Brasileira de História
das Religiões, v. 1, p. 1-10, 2008.
331 Microrregião do Baixo Parnaíba maranhense é uma das microrregiões do estado do maranhão
pertencente à mesorregião Leste Maranhense. Sua população foi estimada em 2006 pelo IBGE
em 129.381 habitantes e está dividida em seis municípios. Possui uma área total de 6.872.865 Km.
Municípios: Agua Doce do Maranhão, Araioses, Magalhães de Almeida, Santa Quitéria do Maranhão,
Santana do Maranhão, São Bernardo etc.
332 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault no
campo da historiografia. In: HISTÓRIA a Arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007.
114 EM TEMPO

festa, para os entrevistados, nunca esteve em questão a importância do evento Todo 4


como algo que faz parte de sua própria existência social e que desempenha
uma importante função coletiva. Em outros termos, a identificação desses O
agentes com a cerimônia não apenas atesta a importância do pertencimento demarc
religioso, como também indica um grau de identidade objetiva com todos podem
os outros agentes envolvidos no cotidiano da assistência à messe. Isso ajuda que oct
a entender a notável receptividade obtida pelos pesquisadores ao longo da padroe
pesquisa e o interesse presente nos relatos dos entrevistados em resgatar a devotc
própria “memória do festejo”. religio
Numa perspectiva mais ampla, este trabalho confirma as constatações batiza
de diversas outras pesquisas quanto à importância que as festas, em suas Santo,
diferentes acepções, têm na própria cultura brasileira e o fato de que as partici
mesmas traduzem, em grande medida, as experiências, as expectativas, as de gru
imagens e as formas de representação da vida social de agentes concretos”. oração
Cumpre ressaltar ainda que pela própria seleção dos entrevistados (em sua agrad:
maioria, membros de famílias tradicionais locais envolvidos na organização
pagas
do festejo), fomos levados a incorporar uma reflexão sobre a forma como a
J
festa é organizada, sua estrutura e também suas hierarquias?*. Foi a atenção
São E
a esses aspectos que permitiu conceber o festejo de São Bernardo como um
de vá
fenômeno social cuja existência não está separada dos princípios que regem
caval
a própria di-visão do espaço social e simbólico em pauta. Assim, se o festejo
riodo
evidencia o universo religioso e a importância das crenças coletivas, também
= tod:
comunica acerca das próprias categorias de representação da vida social em
São Bernardo e sobre o imbricamento entre o social, o político e o cultural. ment

Pode-se, nesse caso, conceber o festejo um pouco além de sua dimensão brilh:
propriamente cerimonial, identificando como através do mesmo realiza-se mont
“uma complexa mediação entre esferas sociais (religiosa, familiar, cultural, prep:
política, social), entre anseios individuais e coletivos, entre passado, presente conv
e futuro, entre o sagrado e o profano**. Cam
Ante o exposto, o texto que segue apresenta a seguinte estrutura: primeiro, artig
realizaremos uma descrição da festa com base nas entrevistas e materiais inter
recolhidos. Em seguida, discutiremos o modo como a festa se organiza do
ponto de vista das funções exercidas por cada um dos organizadores e das mell
modalidades de negociação que permeiam a construção desse ritual coletivo. “rou
Após, discutiremos a questão dos vínculos mantidos com o sagrado através mp
das lembranças sobre um acontecimento traumático, o roubo do santo. Ao cant
término, voltaremos à questão da mediação entre sagrado e profano.

333 AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Festa à brasileira. Significados do festejar, no país que
“não é sério”. 1998. Tese (Doutorado). Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (USP), 1998. p. 387.
334 QUEIROZ, Maria Isaura P Carnaval Brasileiro — o Vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.
335 AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto. Op. cit., 1998.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 115

Todo Ano Tem: o tempo do festejo

O mês de agosto, no Município de São Bernardo, Estado do Maranhão,


demarca um momento distinto na experiência temporal comunitária: algo a que
podemos chamar de tempo do festejo. Esse tempo religioso consiste na festa
que ocorre entre os dias 10 e 20 de agosto em comemoração à São Bernardo,
padroeiro do município. A festa é organizada pelos moradores mais antigos,
devotos, leigos da paróquia e autoridades eclesiásticas. Sua programação
religiosa se estende durante dez dias (missas, novenários, romarias, leilões,
batizados, casamentos, primeira comunhão, pagamentos de promessas ao
Santo, levanto do Mastro, festas Sociais e procissão), e conta com intensa
participação local. Há toda uma programação voltada para os romeiros, através
de grupos de acolhimento, hospedagens e momentos propícios dedicados à
oração e inclusão dos mesmos na festa. Nesse período, diversos devotos vão
agradecer os milagres ao “Santo” e/ou fazer novas promessas para serem
pagas nos anos vindouros.
No tempo do festejo, o fluxo populacional destoa do dia-a-dia da pacata
São Bernardo. Caminhões, ônibus e carros de passeios trazem os romeiros
de várias localidades da região. Alguns destes realizam o percurso a pé e a
cavalo. Como dito, a ambiência comunitária se torna mais intensa nesse pe-
ríodo: além da participação dos populares em momentos centrais do festejo,
é todo o espaço urbano que se dinamiza. Diuturnamente as ruas ficam movi-
mentadas. Na fala de seus moradores, “as ruas do centro antigo se enchem de
brilho, as casas ganham novas cores”, “barracas com suas bebidas e jogos são
montados nos becos e esquinas”. Botecos e botequins feitos de palha de buriti
preparam o ambiente festivo para receber seus frequentadores em busca de
conversas e prosas, esquecendo por um instante as dificuldades do dia a dia.
Camelôs e vendedores ambulantes circulam pela cidade vendendo objetos e
artigos religiosos dentre eles a imagem do “Padroeiro”, despertando assim, o
interesse dos devotos e romeiros que querem levar uma lembrança do festejo.
O comércio “aquece” com o entra e sai de clientes desejosos de levar a
melhor roupa para usar e destacar-se no meio da multidão. Porém, o uso de
“roupas novas” não se restringe à participação nas procissões; são também E

importantes para ganho de visibilidade nos diversos passeios e festas dan- |


|
çantes que são organizadas nos clubes da cidade. Esses bailes tradicionais |

constituem o ambiente de concentração da Elite bernardense. O “baile dos anos


dourados”, por exemplo, que acontece todo ano no dia 18 de agosto, busca
resgatar os primeiros bailes que aconteciam nos anos 1980. Neste baile, as
diversas famílias do meio social e político de São Bernardo marcam presença
transformando o momento em um encontro de aproximação e distanciamento
116 EM TEMPOS

entre as mesmas. Enquanto isso, a “gente comum” também festeja nos bares Ao
e botequins na orla do rio buriti, que banha São Bernardo, onde os diverti- quais se
mentos também são regados à bebidas e comidas típicas da festa. Momento venário
de divertimento, de êxtase e efervescência, a excitação provocada pela festa de músi
também comporta alguns conflitos, e excessos são recordados quando se do “Pac
relembra o “corre-corre” de sujeitos levados pela policia, em meio a gritos do tem
e boatos. É neste ambiente sagrado e profano que se configura o reencontro do San
de pessoas que se confraternizam em um clima efusivo que se monta nos missas
arredores da igreja, nas praças e nas ruas da cidade. romeirt
De maneira geral, a festa de São Bernardo apresenta um caráter misto, 20 tam
oscilando entre dois polos: a cerimônia e a festividade. Nas representações maior :
dos entrevistados, essa divisão é concebida através de uma divisão cate- prociss
gorial entre a vertente “religiosa” e a vertente “social” do festejo. Com própri
base nessa classificação, antes da programação “propriamente religiosa”, São Be
acontece uma festa popular um dia antes do inicio do festejo, com o “Le- torno «

vantamento do mastro”. Esta manifestação é organizada pelos “caboclos com st


de São Bernardo” e consiste em um “movimento popular” que acontece no de anj
dia 09 de agosto com a retirada da árvore mais alta da chapada do povoado procis
“Ladeira”, localizado em um município vizinho à São Bernardo (Santa branc:
Quitéria/Ma). Neste dia são montadas barracas com palhas de palmeira de vida
babaçu atraindo visitantes para passar o dia inteiro comendo e dançando seu S:
ao som de uma bandinha. Terminada a festa, os “caboclos” se reúnem nos do Bi
arredores da árvore levantando a mesma do chão e dando gritos de “VIVA fogos
SÃO BERNARDO”. O Juiz do mastro dá a voz de comando para a saída fiéis é
em direção à matriz, a fim de ser fincado na praça da igreja. Na chegada, à lemb
“meia noite do mesmo dia, na capela de São Sebastião, na entrada da cidade,
é montada outra festa para receber o mastro. Nesse momento, tambores de As
crioula, bumbas e quadrilhas fazem a alegria da moçada. do f
Na tarde do dia seguinte (10), uma grande procissão toma conta da rua
principal da cidade: é o povo carregando nos ombros o mastro com a bandeira
contendo a imagem do santo. A bandinha anima a multidão durante todo o gani
percurso. Os fogueteiros também se encarregam de anunciar que o mastro sões
está chegando. Outra multidão espera ansiosamente nos arredores da igreja. indí
Após adentrar à Igreja, o mastro é jogado três vezes para cima com gritos regi
de “Viva São Bernardo”, demarcando assim a abertura de mais um ano do c
<

festejo. Então o mastro é levado para fora do Santuário. Trata-se de um dos San
momentos-chave da festa: o mastro é fincado no chão e começa a brincadeira. dev
Homens sobem no mastro para agarrar os prêmios que geralmente são “gali- den
nhas e dinheiro”. Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos e pipocas para as Cla
pessoas que se encontram no local onde o mastro é fincado. cor

addons
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 117

Ao longo dos dias de festejo, e especialmente no dia 20 de agosto, nos


quais se concentram os momentos mais cerimoniais (missas, romarias, no-
venário, procissões), desde a manhã pode-se ouvir as batidas da bandinha
de música, animadas por pessoas mais idosas (que mantêm viva a tradição
do “Padre Nestor, Senhora Mimi e Dona Nilza”), e que demarcam a fusão
do tempo profano com o sagrado. O movimento se intensifica aos arredores
do Santuário: a igreja fica lotada de fiéis e romeiros para assistirem as três
missas que acontecem pela manhã na igreja Matriz. E nesta ocasião que os
romeiros, fiéis e devotos pagam suas promessas e acendem suas velas. No dia
20 também ocorre a esperada “Procissão”. Trata-se de um dos momentos de
maior afloramento da emoção. O objeto simbólico de maior importância na
procissão sai de seu Santuário em um andor ornamentado e conduzido pelo
próprio povo. As cantigas são as tradicionais do festejo: “Ó Santo Glorioso
São Bernardo, Padroeiro Sagrado desta Terra.. ”. Uma multidão irmanada em
torno do andor acompanha todo o trajeto. Pagadores de promessas são vistos
com suas túnicas beges ou roupas brancas; pessoas descalças, crianças vestidas
de anjos e pessoas rezando com velas na mão são mais comuns. Ao longo da
procissão, pode-se ver diversas casas enfeitadas com flores, balões e panos
brancos em suas portas e janelas, demarcando a diluição das fronteiras entre
vida pública e particular. Tendo percorrido o trajeto, na chegada em frente ao
seu Santuário, o andor pára por um instante: é o momento de ouvir as palavras
do Bispo, dos Padres e de um dos “Filhos da terra”. Findo o espetáculo de
fogos, a imagem é conduzida novamente ao altar. Nesse momento, diversos
fiéis aproveitam a ocasião para tirar as flores do arranjo para guardarem como
lembrança em suas residências.

As representações quanto ao surgimento e à organização


do festejo

A análise dos relatos dos entrevistados quanto ao surgimento e à or-


ganização do festejo de São Bernardo indica a existência de diferentes ver-
sões. Para alguns, o festejo surgiu a partir do processo de colonização dos
indígenas na região do Baixo Parnaíba. Os Jesuítas teriam vindo para esta
região aproximadamente no ano de 1700, período em que teriam fundado
uma pequena vila, levantado uma casa e uma capela sobre a proteção de um
Santo chamado “São Bernardo”. Alguns relatos afirmam que a opção pela
devoção ao santo deriva do fato de que esses Jesuítas eram membros da or-
dem de Claraval, pertencente ao Mosteiro fundado pelo Monge Bernardo de
Claraval, em Portugal. Porem, essa versão também conta com peculiaridades,
como aquela na qual os Jesuítas teriam escondido a imagem de São Bernardo
118

numa “moita” e que, após ter sido encontrada pelos índios “anapurus” que sua es
habitavam a região, foi interpretada pelos religiosos como um milagre. Para dos re
alguns dos entrevistados, essa representação se apoia, inclusive, no próprio o mit
peso da transmissão memorialística dos antepassados: “Todas essas histórias falas.
dos Jesuítas, vocês podem ter como verdade, porque quem me contou foi das a
meu pai, ele era autoridade, era de uma cultura fora do comum, e ele passava simb
tudo pra mim”. Tal acontecimento teria demarcado a origem da devoção esse
e da festa ao padroeiro para alguns. Para outros, no entanto, essa origem é
inverossímil como no seguinte depoimento: dom
moré
Sabemos que a festa de São Bernardo é bem antiga. A Senhora poderia nos gios(
contar (com suas próprias palavras) um pouco da história desse festejo? intro
Como surgiu o festejo?
para
A festa não é por causa dos jesuítas, eu acredito que a festa é própria da
âm |
igreja. Sempre houve a festa dos padroeiros. Agente sempre houve falar
nessas histórias, dos jesuítas. Essa imagem é francesa, eu acredito que meu
nem foram os jesuítas que trouxeram o santo pra cá. Como é que os índios leml
trouxeram uma imagem francesa pra cá, ela foi doação parece. Já andei real;
em vários lugares e não vi nenhuma imagem parecida com esta. Eu ouço da fi
lendas de como São Bernardo veio para cá.”

Para outros entrevistados, no entanto, a origem do festejo de São Ber- Sruj


nardo esteve associada à vinda de famílias do Estado do Piauí e do Ceará, ates
que migraram para essa região, e entre as quais se encontrava um certo “va- dep
queiro” cujo nome era Bernardo de Claraval. Teria sido esse indivíduo que, Em
em suas andanças à procura de uma vaca, teria caído e achado a imagem de e fa
São Bernardo no alto de um morro onde foi edificada a atual igreja. Tal evento eve
- mítico teria como que “sacralizado o lugar” e desencadeado a festa em
homenagem ao Santo São Bernardo. Outro relato pouco conhecido, mas de
fundamental importância reporta a vinda de um lusitano por nome Bernardo
de Carvalho e Aguiar (capitão) que chegou nesta região nos anos de 1708, este
era pacificador de indígenas no estado da Bahia, Pernambuco e Piauí, sendo
convocado pelo governador do Maranhão (Cristóvão da Costa Freire — 1712)
para pacificar esta região, possibilitando a entrada de Padres Jesuítas para o
processo de catequização.
Para o que importa ressaltar aqui, porém, antes de optar por uma ou outra
versão, importa entender que as representações formuladas sobre a origem da
festa misturam elementos que dizem respeito tanto a aspectos históricos (como
os processos migratórios que fazem da região um local de passagem e conexão),
quanto a dimensões culturais que estão associados à própria cultura campesina e

336 MEAL,
337 CRCLSS.
338 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

1 isto
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 119

sua estrutura social”, É assim que se pode compreender o sentido da presença


dos religiosos, dos anapurus, do Vaqueiro, do capitão, e a própria mescla entre
o mítico e o religioso que se pode identificar nos elementos que estruturam as
falas. Como temos notado em conversas informais, existem outras versões (além
das aqui mencionadas) que também indicam a polivalência dos significados
simbólicos associados á própria explicação da origem do festejo (imaginário
esse que merecerá maior aprofundamento em trabalhos posteriores).
Da mesma forma que a origem do festejo, a própria lógica de organização
do mesmo encontra-se estritamente ligada às histórias, costumes e cultura dos
moradores. Ao que se sabe, a festa começou a ganhar espaço no cenário reli-
gioso da região a partir das iniciativas do “Padre Nestor”, que foi o pioneiro na
introdução de novos elementos no festejo, como a banda de música, os leilões
para angariar fundos e a construção de uma nova igreja em estilo gótico, a
fim de receber seus fiéis e romeiros. Conforme uma das organizadoras, “do
meu conhecimento vem do tempo do Padre Nestor, na época eu era criança e
lembro que ele era um Padre muito dedicado, ele se empenhava mesmo em
realizar a festa, em levar a palavra de Deus e motivar as pessoas na questão
da fé, na presença da igreja, evangelizando os moradores da cidade”**º.
De maneira geral, os organizadores são sempre pessoas ligadas aos
grupos de orações, pastorais e demais movimentos da paróquia, o que
atesta que o festejo é produzido dentro de uma rede comunitária eclesial
dependente de formas de reconhecimento e de posições dentro do grupo.
Embora conte com o auxílio de “Comerciantes, prefeito, devotos, romeiros
e familiares da cidade e dos povoados”**!, a organização e coordenação do
evento é realizada pelo Conselho Pastoral Paroquial (CPP) que se encarrega
da distribuição das funções com antecedência (geralmente nos meses de
junho/julho), dado a repercussão do festejo a nível regional. São os mem-
bros dessa coordenação os responsáveis por “procurar os patrocinadores,
as pessoas que nos apóiam. Os políticos, a polícia e o pessoal que vem de
fora “342 Uma das entrevistadas destaca, por exemplo, que entre os principais
apoiadores da festa encontram-se: “polícia militar, secretaria de cultura,
educação, saúde, da prefeitura e dos moradores mesmo, daqueles que são
devotos. Agente reúne com essas lideranças e cada um contribui dentro do
seu território. Os comerciantes colaboram com “jóias”, e desses prêmios,
Jóias, agente faz bingo, rifas. Eles também participam, tem às noites que eles
participam dentro da programação religiosa”**. Para essa organização, as

339 Para outro contexto ver: PRADO, Regina Paula dos Santos. Todo Ano Tem. As Festas na Estrutura
Social Camponesa. São Luís: PPGCS/GERUR/EDUFMA, 2007. p. 200
M.N.C.N.
FC.
MIM.
M.N.C.N.
120 EM TE

comunidades e os grupos de orações se reúnem e dividem as tarefas a serem


cumpridas nos dez dias de festa. São montados grupos de acolhida e venda
de objetos e artigos religiosos, bem como de comidas típicas. Após as missas
e o novenário acontecem os leilões com doações da própria comunidade,
cuja renda é destinada para os trabalhos da paróquia. Enfim, trata-se aqui,
sem dúvida, de uma festa que combina tanto uma intensa participação da
comunidade em seu conjunto (preparação, organização), quanto fornece
uma representação da mesma para os indivíduos que vêm de fora.
Ao indivíduo que vêm de fora, e que já tenha participado mais de uma
vez na festa, é visível através da realização do festejo (e de momentos-chave
que o marcam como o “tocar o sino”, o “levantamento da bandeira”, ou
o próprio ato de “discursar para a população”) que o mesmo encontra-se
fortemente vinculado à uma rede de famílias antigas que, há várias gera-
ções, não apenas atuam em comum para manutenção das tradições locais,
quanto compartilham um estoque de lembranças e de ligações afetivas que
perpassa a sua própria história familiar, a história do festejo e o pertenci-
mento religioso. De fato, é por se tratar de um evento que engloba a própria
história religiosa do local e que estabelece mediações com a própria vivência
comunitária que podemos compreender ainda a presença de elementos em
comum nas memórias dos entrevistados, como os eventos traumáticos as-
sociados à morte do padre Nestor de Carvalho Cunha e o episódio do furto
da imagem do santo. ,

A memória de um acontecimento traumático: o furto da imagem


do santo

Para Clifford Geertz?*, a religião nunca é apenas metafísica: em todos


os povos, as formas, os veículos e os objetos de culto são rodeados por
uma aura de profunda seriedade moral. Nessa perspectiva, qualquer ato
ou ação que atinja tais símbolos religiosos, sobretudo aqueles dramati-
zados em rituais e celebrações nas quais detêm uma centralidade, afetam
a coletividade como um todo e a dimensão simbólica e afetiva que per-
passa esses símbolos. Tal concepção ajuda a entender o porquê do roubo
da imagem de São Bernardo ser rememorado pelo viés traumático para
os fiéis que testemunharam tal acontecimento. Conforme a narrativa dos
entrevistados, a trama se desenvolve da seguinte maneira:

O “roubo do santo”, bem como de alguns objetos sacros, ocorreu no dia


09 de março do ano de 1976. Segundo os relatos dos moradores entrevis-

344 GEERTZ, C. À Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p. 93.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 121

tados, apareceu na cidade um carro vermelho que causou estranhamento


nos moradores. O cidadão que dirigia o carro entrou na igreja e sentiu |
admiração pelo santo. Pelo que se tornou conhecido posteriormente, o
mesmo era vendedor de imagens e peças sacras. Em um “momento de
distração”, à noite, o sujeito teria entrado na igreja pela janela de trás e
levado o santo. No dia seguinte, a sacristã viu a janela aberta e adentrou
ao templo onde sentiu falta da imagem e correu as pressas para bater o
sino da igreja e avisar os moradores. Em uma cidade fortemente integrada
como São Bernardo, o intercâmbio contínuo de notícias favoreceu uma
rápida difusão do ocorrido. Os entrevistados recordam com certa angús-
tia o desespero gerado nessa ocasião... Rapidamente, porém, diversas
“autoridades” e “filhos da terra”, tanto os que permaneciam em São
Bernardo, quanto aqueles que moravam fora, mobilizaram contatos de
cidade em cidade para conseguir pistas para saber onde estava o santo.
Uma das entrevistadas relatou ter recebido uma carta de uma amiga que
dizia que a imagem de São Bernardo estava na cidade de Bacabal-Ma.
Tendo informado as autoridades acerca do teor da referida carta, rapi-
damente foi destacado um “filho da terra”, que era coronel da policia
militar do Maranhão, para entrar em contato com a polícia da capital
e montar uma estratégia para recuperar a imagem e os demais objetos.
O Coronel foi até a cidade de Bacabal juntamente com alguns homens
da polícia e, sem levantar suspeitas, encontrou o autor do furto. Tendo
ocorrido a investigação, e constatado que se tratava efetivamente do “santo
roubado”, a polícia foi acionada e os objetos furtados foram reavidos.
Relatos afirmam que o santo não fora enviado para São Paulo por que,
conforme o responsável pelo furto, “toda vez que passava pelo santo
se sentia mal e a noite não conseguia dormir com uma coisa ruim no
pensamento”. Depois de reconhecidos os objetos pela Sacristã, as peças
roubadas e a imagem foram abrigadas provisoriamente na residência
de um dos devotos “onde de uma hora para outra a casa ficou pequena
para tanta gente, que em romaria queriam ver a imagem do padroeiro”.
O episódio do retorno do santo resgatado suscitou, assim como o festejo,
uma intensa participação da população, culminando na realização de
uma procissão. Na ocasião, foi celebrada ainda uma missa de recepção
pelo bispo da arquidiocese, seguida de discursos das autoridades. Pouco
tempo depois, a imagem precisou ser restaurada, a fim de corrigir danos
em partes de sua estrutura. Após a restauração alguns fiéis relatam uma
certa insatisfação com o resultado final (“a imagem teria perdido o brilho
do semblante e o olhar reluzente”).

Para o que importa ressaltar aqui, memória do “roubo da imagem do santo”


evidencia alguns elementos importantes acerca dos vínculos subjetivos com
os símbolos sagrados: em primeiro lugar, indicam que a violação do espaço
sagrado (a igreja) e qualquer ato contra os símbolos sacros que abriga cons-
tituem, na realidade, um ataque á própria coletividade; em segundo lugar, a
122 EM TEMPOS

própria interpretação do evento se articula à manutenção de uma interpretação Ur


religiosa de mundo, uma vez que nas narrativas sobre o sumiço do santo o nicípio
seu retorno é reiterado como mais uma prova de que ele é milagroso; por fim, de mar
e não menos importante, pode-se notar que a cerimônia de retorno do santo Esta fe
não diferiu muito da própria realização de um festejo, contando com forte tradiçã
presença popular e também de autoridades civis e eclesiásticas. A questão espaci
é que: tal qual em uma procissão na qual se desloca o objeto sagrado no dores
espaço, tal evento também contribuiu para agudizar a própria percepção da (misse
importância do objeto, de sua centralidade simbólica, de suas propriedades (festa:
e também suas características. não st
É

O festejo de São Bernardo como mediação da fé


visite
e esp
Como nas demais festas religiosas cristãs que acontecem no Brasil a
relação entre o Sagrado e o Profano se estabelece em uma dinâmica indis-
sociável. As manifestações sagradas revelam-se nos ritos e cerimoniais que
tentam transcender a fé do homem, criando as dimensões entre o homem e
o divino. Através das representações sagradas o homem busca consolidar
uma intimidade com aquilo que ultrapassa o humano. Ao mesmo tempo
nessa intima relação que o homem estabelece com o sagrado através de
ritos e ações de festejar divindades, o ambiente é transpassado pelo sagrado
e pelo profano. A religiosidade enraizada na cultura brasileira fez criar e
recrear as representações festivas em homenagens aos Santos. O modelo
do cristianismo encaminhado no processo de colonização fez florescer
um ambiente embebido pelo Sagrado e pelo Profano. A comunicação
mística por meio de cerimônias sacras e outros rituais buscam ultrapassar
as barreiras do profano que se cristaliza tanto no individual quanto no
coletivo. Segundo Mircea Eliade** a relação entre o que é Sagrado e o
que se manifesta como contrário é o fato de que este se mostra como algo
completamente diferente. Dessa forma, o Sagrado e o Profano coexistem
de diferentes posições que são tomadas pelos indivíduos no ato festivo.
No ambiente preparado para invocar o ato de fé por meio da consagração
especialmente em festas dedicadas aos Santos Padroeiros, os sujeitos são
convidados a entrarem neste lugar sagrado confirmando e seguindo os
preceitos religiosos. Quebrar este elo modifica toda a postura tomada pelo
sujeito que pretende manter sempre um ato puro de fé e devoção dentro
dos cerimoniais místicos.

345 ELIADE, Mircea. Op. cit., 1992, p. 17.


EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 123

Um marco que mantêm viva as tradições festivas populares no mu-


nicípio de São Bernardo, identifica-se com aspectos culturais e costumes
de manutenção da religiosidade por meio do festejo de São Bernardo.
Esta festa religiosa atrai milhares de romeiros e devotos que alimentam a
tradição e mantêm viva a ritualização e a fé ocasionando transformações
espaciais e culturais. São momentos de grandes vivencias para os mora-
dores da região que contemplam momentos da representação do sagrado
(missas, novenário, pagamentos de promessas e procissão) e do profano
(festas dançantes, leilões e outros) que acontece de maneira simultânea e
não separados um do outro.
À organização da festa reflete momentos de trabalho e o fortalecimento
da fé das pessoas devotas do Padroeiro, bem como aqueles que vêm apenas
visitar. Dessa forma, coexiste uma relação de aspectos sociais, culturais
e espirituais envolto na festa.
UM JOGO DE CUIDADOS ESPECIAIS:
a “liturgia profana” das relações
concubinárias no Maranhão setecentista**

Raimundo Inácio Souza Araújo

Os documentos produzidos pela Justiça Eclesiástica no Maranhão


durante o período colonial possibilitam a construção de diversos olhares
sobre a vida e o cotidiano da sociedade dos setecentos.
Uma abordagem possível dessas fontes tem sido a análise das en-
grenagens jurídicas da instituição e a reflexão sobre a trajetória de seus
agentes mais destacados. Trata-se de perspectiva relevante e inovadora,
pois, através dela, podemos vislumbrar o funcionamento da estrutura
eclesiástica de observação e controle sobre diferentes grupos sociais**”.
Por outro lado, é possível também utilizar-se desse conjunto indiciário
para pensar os traços gerais do que constituiu o vocabulário lúdico de po-
pulações pobres e marginalizadas do Brasil, suas comédias, seus comeres
e folguedos. Essa esfera de liberdade e oposição podia ser representada
pelo tempo festivo — que frequentemente se distanciava do sagrado e se
emaranhava ao profano — como também pelas práticas do cotidiano, mar-
cado por condições históricas que inviabilizavam a plena realização do
projeto reformador Tridentino**.
Seguindo essa vereda, fragmentos dessa documentação podem nos
levar a refletir sobre práticas das culturas populares naquele momento:
relatos de festejos, produzidos a reboque de narrativas de acusação; su-
postos feitiços e orações mobilizadas por europeus, africanos e indígenas;
descrição de objetos e rituais heterodoxos tidos como portadores de efi-
cácia sobre o cotidiano colonial; as relações conjugais preconizadas ou
perseguidas pela Igreja Católica”.

346 Este texto é a reformulação de um fragmento da monografia “Como se fossem casados: mancebia
e moralidade no Maranhão setecentista”, apresentada ao departamento de História da Universidade
Federal do Maranhão como requisito para conclusão da Licenciatura em História (ARAUJO, 2003).
347 MENDONÇA, Pollyanna Gouveia. Parochos imperfeitos: Justiça Eclesiástica e desvios do clero no
Maranhão setecentista. 2011. Tese (Doutoramento). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011. 341 p.
348 SOUZA, Laura de Melo e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
349 ARAUJO, R. |. S. Discurso, disciplina e resistências: as visitas pastorais no Maranhão setecentista.
São Luís: EDUFMA, 2008. 193 p.
126

O dilema de escrever as práticas el


Dt
at
Esta abordagem é certamente desafiadora, porque não dispõe da mesma
regularidade documental e da profusão descritiva presente acerca dos quadros
eclesiásticos. Entretanto, nos possibilita outras portas de entrada para o estudo
das culturas populares, assim como para a interação e os conflitos entre os
grupos subalternizados daquela sociedade.
O desafio historiográfico presente nessa tarefa é buscar conferir sentido a

Ot
essas atividades que esteja próximo dos valores e da perspectiva de seus agen-

+
tes produtores. Para tanto, é preciso ler ao reverso, pois o discurso onde foram
inscritas as práticas está marcado por uma racionalidade radicalmente diferente

am
dos saberes e fazeres que, através desse mesmo discurso, se buscava reformar
ou suprimir. Vejamos a exposição de Roger Chartier sobre essa questão:

Como pensar as relações entre as produções discursivas e as práticas so-

PED
ciais? Fazer inteligíveis as práticas que as leis de formação dos discursos
não governam é uma empresa difícil, instável, situada à beira do precipício.

AD
Esse projeto é sempre ameaçado pela tentação de esquecer toda diferença

AO
entre lógicas diferentes, mas que estão, mesmo assim, articuladas: a lógica

Ei
que organiza a produção e interpretação dos enunciados e aquela que rege
os gestos e as condutas.?º

rot
reto
Para Chartier, portanto, há lógicas diferentes a reger as práticas e os

am
discursos e o historiador deve estar ciente de que, ao analisar fragmentos das

temo
ações humanas no passado, o faz mediado por uma racionalidade discursiva

ps
que deve estar em consideração, como um limite ao que se pode efetivamente
dizer, para não tomar as coisas da lógica pela lógica das coisas, parafraseando
“o sociólogo Pierre Bourdieu?!,
A prática do concubinato — que correspondia à existência de relação
conjugal sem a consagração da Igreja através do sacramento do matrimônio —
nos oferece uma possibilidade para tentar descrever comportamentos vigiados
e punidos pela Justiça Eclesiástica como indicativos de relação pecaminosa
e, ao mesmo tempo, tentar pensar uma outra lógica que possa explica-los,
considerando as condições de vida daquela sociedade, lugar e temporalidade.
Podemos utilizar o concubinato ou mancebia para nos aproximar do coti-
diano da América portuguesa, notadamente na cidade de São Luís, no período
setecentista. Nesse período, certos “cuidados especiais” eram lidos pela socie-
dade ludovicense e pela Justiça Eclesiástica como sintomáticos da existência
de relações concubinárias, tomadas como alvo preferencial da Igreja Católica,

350 CHARTIER, Roger. Escribir las prácticas: Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996. p. 8.
351 BOURDIEU, P Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996.

dd
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 127

em sua luta para presentificar os ideais do Concílio de Trento, especialmente


no que se refere à consolidação da identidade entre casamento e matrimônio e
ao controle sobre comportamentos sexuais desviantes do padrão estabelecido.

Desejar: olhar para o alto

A grande incidência da mancebia e de filhos naturais ou bastardos no


Maranhão setecentista é perceptível sob diversos aspectos. Autos de denúncia,
divórcios e visitas pastorais contém inúmeros relatos dessa prática. Mesmo os
testamentos — discurso social onde costuma ser frequente a reprodução dos
padrões de comportamento tidos como desejáveis e convencionais — podem
de alguma maneira nos informar sobre a constância dessa prática social no
Maranhão daquela época.
Tomemos em consideração a distância que separa, em cada grupo social,
o dever ser — conjunto de normas e valores ideais que atuam sobre o com-
portamento — das atitudes concretas, tomadas no dia a dia. Historiadores e
demais cientistas sociais podem tomar de forma crítica determinado discurso
idealista ou corpo doutrinário para chegar a indícios das condições de vida
daquela sociedade.
No Maranhão setecentista e na colônia como um todo, esta distância entre
padrões de comportamento e atitudes concretas se exacerba, devido às carac-
terísticas básicas do processo de colonização: instabilidade, conflitos étnicos,
exploração. Aparecem frequentemente doações possivelmente consideradas
generosas a “moças brancas, donzelas e pobres” e a recolhimentos femininos.
É o caso de Gaspar dos Reis, testador em 1744, que deixa

[...] quatrocentos mil reis em dinheiro de contado para se distribuírem


igualmente por quatro moças brancas, donzelas e pobres que vivam nesta
cidade, para ajuda de seus dotes, cuja distribuição se fará na presença do
Reverendo Pároco desta freguesia, que juntamente com os meus testa-
menteiros desta cidade elegerão as que haverão de entrar sendo todas das
qualidades acima [...]; se antes disso falecer ou tiver algum desmancho
qualquer delas na sua honra passara o dito dinheiro com juros vencidos a
outra também eleita por sorte na mesma forma que assim declaro? [...]'*.

A ênfase no ideário eclesiástico — presente nos testamentos, entre outras


razões, devido à pressão psicológica exercida pela proximidade da morte — nos
352 Na citação deste documento e dos que se seguirão optei por alterar a grafia original, com o intuito
de facilitar a leitura deste artigo por um público mais amplo. Foram retiradas também as notações
paleográficas que indicam rasuras ou abreviações no manuscrito. Para conferir a transcrição
convencional dessas fontes, vide ARAUJO, Raimundo |. S. “Como se fossem casados”: mancebia e
moralidade no Maranhão setecentista. 2003. Monografia (Graduação). Departamento de História da
UFMA, São Luís, 2003. 54 p.
353 MOTA, A. S.; SILVA, Kelcilene R.; MANTOVANI, José D. Cripto Maranhenses e seu legado. São
Paulo: Siciliano, 2001. p. 48.

, , A, || TT TT"
128 EMT

revela muito sobre o que pensava um segmento restrito da sociedade e, so-


bretudo, nos ajuda a refletir sobre a vida e a moral da maioria da população,
surda aos apelos de Trento, em maior ou menor grau.
Este idealismo testamentário que deseja promover o bem-estar de “moças
brancas, donzelas e pobres” sugere, ao contrário, os contornos de uma socie-
cia
dade mestiça (sobretudo mameluca neste momento), manceba e eurocentrada.
pre
É a experiência dessa realidade que poderia levar os testadores a “olhar para
o alto”, significado primeiro de desejar. às 1
Também estão presentes nos testamentos observações relacionadas à bus
admoestação moral das futuras gerações para o “viver cristâmente”: imposi- ao
ções para modificar a vida de escravizados, ilegítimos e agregados. Em 1751,
Manoel Gonçalves Torres deixava, por exemplo, pai
na
[...] por amor de Deus a uma menina por nome Vitoriana, filha da negra
Albina [...], quarenta mil reis em dinheiro para que com eles possa lucrar
para a sustentar conservando lhe sempre ditos quarenta mil reis obrigado
com algum lucro que possa adquirir entregar-lhe ao tempo de seu casamento
e caso degenere no procedimento porque não venha a casar, neste caso
lhe dará sempre ditos quarenta mil reis [...] para que em cada ano com a
dita parte se poder vestir, e ter menos ocasião de ofender a Deus por ser
a minha mente a dirigir a dita esmola aquele melhor fim que se pode dar
em tal qualidade de gente [...]'**.

Este desejo possivelmente indica o modo de vida dominante, que não era
orientado pelos princípios cristãos da fidelidade, do matrimônio, da virgindade,
do seguimento da igreja, exteriores e formais para a maioria da população.
As necessidades concretas de sobrevivência e os padrões populares dos se-
“tecentos falavam mais alto.
A dotação pública ou velada de bastardos e filhos “naturais”, ou seja,
tidos fora do casamento consagrado pela Igreja, pode nos servir para destacar
uma leitura a contrapelo destas admoestações morais, observadas seu conteúdo
interno e contrastante: as precárias condições de vida da população, ameni-
zadas, senão pela presença de um marido, ao menos pela ajuda financeira
possibilitada por um generoso testador.
O divórcio da índia Juliana, em 1749, nos traz mais elementos para pensar
esses cenários do viver na colônia portuguesa na América.
Diz Juliana índia forra moradora nesta cidade [de São Luís] que ela por
justas causas quer se divorciar in perpetuum de seu marido João, escravo
do Sargento Francisco Xavier Baldes [...]. A autora sendo casada com o
réu, [...] indo este por mandado do seu senhor para a capitania do Pará

354 Ibid,, p. 65.


EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 129

deixou a autora desamparada que não teve de que pudesse se valer. Para
se alimentar, lhe foi preciso valer-se de seu corpo, o que não nega, para
remir suas necessidades e de seus filhos [..].**

É evidente que muitas estratégias foram tentadas na luta pela sobrevivên-


cia, entre as quais destacaremos a prostituição. Os documentos corroboram a
pressão socioeconômica sobre as então chamadas “solteiras”, nome que se dava
às meretrizes, majoritariamente mestiças. Vê-se que, inclusive no vocabulário,
buscava-se dar a entender a condição do não-casamento como pecaminosa,
ao identificá-la nominalmente a atividade socialmente desqualificada.
Em 1765, a forra Lourença encontrou como opção de trabalho para si e
para outras de seu segmento social a venda de seus corpos em casa alugada
na Praia Grande, conforme denúncia do meirinho** Manoel Vieira da Cunha.

Denuncia perante vossa mercê o meirinho geral deste Juízo Manoel Vieira
da Cunha de Lourença Cafuza forra que mora na Praia Grande em uma loja
das casas das Monteiras que tem alugada por sua conta, porque devendo ser
temente a Deus e as justiças e guardar os divinos e eclesiásticos preceitos,
o faz muito pelo contrário, por que na sua casa consente desonestar-se
várias mulheres com vários homens que a ela vão para esse efeito como
seja uma Brígida mameluca (que hoje se acha presa) com o sargento José
Pedro Pinto, e um filho de Antonio Gomes de Souza o estudante mais
velho por nome Inácio José Gomes de Souza com uma mameluca casada
por nome Cizília e outras que as testemunhas declararão.**”.

O que restaria a “tal qualidade de gente” fazer naquela sociedade misó-


gina e escravista se não optasse pelas “desonestidades”? O aleijado João do
Valle, provável antigo proprietário de Lourença, depoente no caso, pode nos
indicar uma direção:

Disse conhece a denunciada Lourença cafuza forra por ter [ela] morado
em casa dele testemunha [...] sabe que consente na sua casa se desonesta-
rem várias mulheres [...] por cujos consentimentos da denunciada na casa
dele testemunha a repreendeu a sua madrinha por nome Francisca mulata
escrava de Luzia Monteira dizendo lhe: “Para que era velhaca e para que
consentia em sua casa a dita mameluca Cizília para se desonestar com o
dito estudante e outros, e que por isso não tinha ela denunciada querido
ir para a roça [...]>*

355 ARQUIVO Público do Estado do Maranhão (APEM). Acervo da Arquidiocese de São Luis. Livro de
Queixas e Denúncias (1762/1782). São Luís, manuscrito, 5765.
356 Funcionário do Juízo Eclesiástico responsável pela notificação dos denunciados e depoentes, con-
forme SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e Meirinhos: A Administração no Brasil Colonial. Rio de Ja-
neiro: Nova Fronteira, 1985.
357 APEM. Op. cit. Livro de Denúncias, fl. 72v.
358 APEM. Op. cit., Livro de Denúncias, fl. 72v, grifo nosso.
130 EMT

Podemos aventar a hipótese de que as “desonestidades” praticadas pela


cafuza Lourença eram a alternativa encontrada por ela para “não ir para a roça”, e pt
ou seja, não submeter-se a trabalhos exaustivos e de parca ou nenhuma remune- lud
ração. Seria a venda do corpo uma forma de fugir à submissão e ao senhorio de
alguém sobre si? Difícil dizer com certeza, mas para a madrinha da denunciada, cut
ao que tudo indica, os vícios de Lourença eram uma fuga à dureza do mundo e nec
prova de fraqueza moral. Ela e outros indivíduos eram representantes do “es- det;
cândalo público” diante das imperfeições da sociedade colonial maranhense.
RC

Cuidados especiais: a liturgia profana do concubinato

Em 1986, o cantor e compositor Toquinho criou a música “Caso Sério”,


con
em cuja letra se pode ler: “Nosso caso é um caso sério, porque ele não é sério
sua
demais. E um jogo descuidado, com cuidados especiais”. Podemos tomar
sua
esse fragmento como inspiração para descrever os atos dos concubinados,
res
que mesclavam gestos recorrentes e significativos da existência de relação
este
conjugal ao “descuido” de expor tais comportamentos à vigilância de morado-
dite
res e eclesiásticos. Consideremos aquilo que afirma Laura de Mello e Souza:
os]
para pulverizar a perseguição, agentes eclesiásticos atiçavam memórias,
do:
introjetando interpretações que recriavam detalhes do cotidiano sob a ótica
aut
do pecado (SOUZA, 2009, p. 399).
sec!
Em sua monografia de conclusão de curso, Rosiana Freitas argumenta
dad
que o amancebamento seria uma relação “menos exigente”, por seu caráter
a dé
instável e passageiro. Segundo a autora,
muitos homens preferiam as relações concubinárias ao matrimônio, pois
havia uma cobrança social para que o marido fosse o responsável pelo
sustento da esposa. O mesmo não ocorria no caso das concubinas, o que
transformava as mancebias em relações bem menos “exigentes”.

Essa é também a opinião de Ronaldo Vainfas. O próprio alcance limitado


do matrimônio, segundo ele, derivaria da conformidade desse tipo de relação
ao cotidiano colonial.

Amancebavam-se por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria,


num mundo instável e precário, onde o estar concubinado era contingência
da desclassificação, resultado de não ter bens ou ofício, da fome e da falta de
recursos, não para pagar a cerimônia de casamento mas para almejar uma vida
conjugal minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e a ética oficial.

359 SILVA, Rosiana Freitas. 4 Família Possível: relações concubinárias no Maranhão setecentista
(1740/1799). 2000. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História). Universidade Federal
do Maranhão, São Luís, 2000. p. 50.
,
+
a

360 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p. 94.
,
,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 131

Mesmo concordando com esses autores ao enfatizarem o caráter instável


e passageiro das relações concubinárias, denúncias feitas à Justiça Eclesiástica
ludovicense no século XVIII complexificam essa caracterização.
De fato, podia ocorrer relação duradoura de solidariedade entre os con-
cubinos, baseada em compromissos e práticas especiais. O cotidiano expunha
necessidades e rituais de sociabilidade, sobretudo da parte do homem. Vejamos,
detalhadamente, o que poderia caracterizar aquelas “uniões ilícitas”.

“Como se fossem casados”

O residir juntos, definitiva ou temporariamente, parece ter sido visto


como algo muito significativo pelos denunciantes. Essa coabitação consen-
sual longa era denominada “viver de portas adentro” e tem como uma de
suas expressões o processo movido contra um clérigo, o Pe. Thomas Ai-
res?º!, Citado em vários processos por roubo, concubinato e fuga da prisão,
este sacerdote parece ser a figura diametralmente oposta ao exigido pelos
ditames reformadores do Concílio de Trento. Sua existência ajuda a pensar
os limites do projeto moralizante eclesiástico bem como a inserção social
do sacerdote no Maranhão setecentista. A presença frequente de padres nos
autos, inclusive apresentando o mesmo repertório de comportamentos dos
seculares, amplia possibilidades de generalização, apontando para causali-
dades históricas relacionadas aos “pecados” punidos pela Igreja. Vejamos
a descrição de uma das testemunhas:

Antonio da Luz Cordeiro [...] cabo de esquadra da guarnição desta praça


da companhia do Sargento Mor natural e morador desta cidade de idade
que disse ser de vinte e dois anos pouco mais ou menos [...] disse que
conhece muito bem ao denunciado, o padre Thomas Aires de Figueiredo
e a denunciada Ana Margarida, por alcunha Amêndoa, mulher solteira,
e sabe pelo ver e ser vizinho do denunciado que a denunciada entrava
e saía de noite e de dia e a quaisquer horas que lhe parecia em casa do
denunciado donde estava muitos dias inteiros e a tinha e mantinha de
todo o necessário dando lhe um pescador para lhe assistir com peixe
sendo público, notório e escandaloso andarem amancebados e sabe que o
denunciado estava estabelecendo sítio e casa no sítio de Manoel Dias de
Souza nesta Ilha para onde levou a denunciada e a mãe desta, morando
todos juntos em uma mesma casa como marido e mulher, com grande
escândalo dos moradores e vizinhos daquelas roças e desta cidade, e sabe
que o denunciado está solto debaixo de alvará de fiança por crimes que
tinha e mais não disse [...].'º

361 Paraos interessados em uma investigação mais profunda sobre este e outros sacerdotes denunciados
ao Juizo Eclesiástico nesse período, cf. MENDONÇA, 2011, capítulos V e VI.
362 APEM. Op. cit. Livro de Denúncias, fl. 12v.
132 EM TEMPC

Antônio da Luz destaca a presença frequente da manceba em casa do Ig


Pe. Thomas, a coabitação ocasional dos dois, a publicidade da relação, a Maurice
manutenção do núcleo familiar ilícito com comida e casa, além da má fama porta d
daquele sacerdote. Esses eram elementos que, à época, indicavam claramente casa da
a existência de relação concubinária, pois tais “cuidados”, arrolados como Ps
prova, deveriam existir apenas entre aqueles unidos pelo matrimônio. conviv
Na denúncia feita contra Lauriana Cafuza e Luiz Carvalho, no ano de visitas
1766, podemos observar como esse conjunto de atos e gestos só era social- eram «
mente admitido entre os cônjuges consagrados pela Igreja. forma.
sobre :
Denuncia perante Vossa Reverendíssima [...] de Luís Carvalho, morador
na Freguesia de São Bernardo, homem solteiro que vive amancebado a denun:
tantos anos com Lauriana Cafuza, a qual a forrou só para se amancebar horas
com ele sendo primeiro sua escrava, e a tem de portas adentro como se Ã
fosse casado com ela sem temer dos Divinos preceitos nem ter pejo nem popul:
vergonha de Deus nem do Mundo pois é tão escandaloso que a todos os pelas
seus vizinhos escandaliza com a má vida que tem, pois está vivendo com
em 17
ela como marido com mulher, vivendo juntos e morando, [...].º$
segun
Parece-nos que a coabitação por longo período expressava ostensivamente que iz
disse
a relação então tida como ilícita, pois o meirinho e as testemunhas não se dão
para :
ao trabalho de dissecar o comportamento destes acusados. Não era necessário,
folgu
pois o “viver de portas adentro como se fossem casados” pressupunha todo o
(
resto. O meirinho limita-se a ressaltar o “escândalo e a notoriedade” do caso
ticipa
para a vizinhança, sobretudo pelo diferencial de tratar-se do desdobramento home
de uma relação entre o senhor e uma escravizada. Entretanto, nos é difícil
precisar de fato a que correspondiam estas percepções para determinados
grupos daquela sociedade. O concubinato, registrado como crime pela igreja,
pode ter sido apreendido de forma bem mais tolerante pelo povo.
Além da vida continuada, durante longo período de tempo, como na
denúncia acima citada, havia o mero contato diário e frequente, embora com
graus variáveis de proximidade e comprometimento. Em 1767, o oficial de
alfaiate Raimundo Pestana era acusado de “trato ilícito” com Adriana Cafuza.
Segundo o Cônego Francisco Matabosque, promotor do juízo eclesiástico, com]
Pestana, já reincidente no delito, “tem continuado na mesma culpa, indo de feita;
noite, e de dia, e a toda hora à casa dela [...]” 3% das )
Mig:
Da mesma forma, diz a denúncia contra o padre Manoel Jose de Araújo,
no ano de 1763, que ele e Ana Maria “[...] vivem amancebados desde que o
Denunciado veio assistir para esta Cidade [...] sendo visto da dita vizinhança
quando a vai buscar para sua casa que é todas as noites [...]" 2
2a
356
363 Ibid., fl. 308. 357
364 Ibid., fl. 150v. 368
365 Ibid., fl. 47v, grifo nosso. 309
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 133

Igualmente pecaminoso parece a Silvestre Antonio ver que Alexandre


Maurício, amancebado com Inácia das Serejas, “as mais das noites passa pela
porta dele testemunha acompanhando-a e trazendo-a para a banda da mesma
casa da Denunciada [...]”.3%
Para o meirinho eclesiástico e, em algum grau, para a população, a
convivência em festas, eventos religiosos, ou mesmo o simples passeio, as
visitas frequentes de parte a parte, sobretudo em determinados horários,
eram atividades reservadas aos já devidamente comprometidos. Dessa
forma, soa digno de menção por Pedro Hipólito dizer ao inquiridor, ainda
sobre a mesma denúncia que “[...] sabe ele Testemunha por ser vizinho da
denunciada e ver ir o denunciado quase todas as noites das nove para as dez
horas buscar a denunciada à casa de sua Senhora e leva-la para a sua”.
Apesar disso, os concubinos iam juntos a eventos sociais, como festas
populares ou missas; encontravam-se no ponto de passagem constituído
pelas fontes de água. O Pe. Joaquim Mendes, capelão da catedral da Sé
em 1762, foi visto por soldados da guarnição acompanhado da índia Rosa,
segundo o depoente Francisco Antonio, “quando o prenderam uma noite
que ia a denunciada em sua companhia para casa de uma Benta Garcia,
disse publicamente no corpo da guarda que ele levava a dita denunciada
para a casa da dita Benta Garcia donde se olhava o denunciado em um
foleuedo [..<]"
Onofre Soares também surpreendia a população por ser afeito a par-
ticipar de folguedos desse tipo, em companhia de sua concubina, sendo
homem casado. Ouçamos o que diz o Sargento Antônio Carneiro a respeito:

[...] o Denunciado vive amancebado com a denunciada à casa da qual vai


todas as vezes que lhe parece e ele testemunha algumas vezes tem visto
ir o denunciado e em alguns ajuntamentos de danças dançar o denunciado
com a denunciada e depois sair com ela com escândalo de todos que os
viam e vivem assim amancebados há muito tempo, e por causa da dita
mancebia dá o denunciado desgostos a sua mulher [...].'*º

A coabitação e a convivência, além dos demais traços registrados no


comportamento dos concubinos seculares, aparecem também nas denúncias
feitas contra os clérigos. Tais comportamentos provavelmente faziam parte
das necessidades sociais imediatas do cotidiano. Na denúncia contra o Pe.
Miguel de Morais, amancebado com Inácia Maria, registrava o meirinho:

[...] vive amancebado com uma Inácia Maria por alcunha “a Paurá” e isto
há bastantes anos com público e notório escândalo com quatro ou cinco

366 Ibid., fl. 42v.


367 Ibid., fl. 42v.
368 Ibid., fl. 1.
369 Ibid,, fl. 128.

gta
EM TEM

filhos e a tem na sua roça acima do Rio das Bicas onde o dito Padre vai Denv
todas as vezes que quer a estar o tempo que lhe parece sem pejo nem east
vergonha do mundo assistindo lhe com todo o necessário [...].7º
por €
A esfera privada da intimidade entre os concubinos não é objeto outre
de registro dos autos, salvo raras exceções. Isto as torna tanto mais mam
instigantes quanto maior o interesse da sociedade contemporânea pelo e bel
cotidiano. Essa vontade de saber encontra, em Miguel e Inácia, um públ
fragmento interessante.
que
[...] também presenciou ele testemunha várias vezes estar a denunciada
que
doente ou fazer-se doente dizendo que era melancólica, mas tanto que
dific
chegava o denunciado com palavras e afagos amatórios, logo se achava
boa a denunciada.” o mi

Os mancebos faziam juntos as refeições, o que escandalizava o meiri- liare

nho e a população. Aquelas eram consideradas sagradas, momento íntimo casc


reservado aos cônjuges e aos familiares, de preferência na privacidade do
lar. Em 1766, o nosso já conhecido amante de danças, Onofre Soares, acu-
sado de amancebamento com a índia Lourença, tinha contra si, na linha de
argumentação do meirinho, a presença constante do acusado nas refeições
de Lourença. Vejamos a justificativa do soldado Vicente Ferreira para seu
depoimento de acusação contra Onofre. Segundo ele, o denunciado “[...]
anda amancebado com a Denunciada [...] pelo ver ir à casa dela repetidas
vezes e quase todos os dias em cuja casa e com a qual tem ele testemunha
visto jantar várias vezes [...)”.37?
Havia formas alternativas de dizer este comportamento: “come e bebe”, oe
àr
ou “passar dias e meios dias”; alusões claras às refeições; a primeira, utilizada
mo
no mesmo auto por outros depoentes para referir o mesmo fato. Vejamos a Mi
fala de Filipe Lopes:
[...] sabe por ser público que vive amancebado com a denunciada Lourença,
à casa da qual vai repetidas vezes e nela come e bebe como se fosse sua
própria casa, o que ele testemunha tem visto várias vezes, passando ele
testemunha pela rua estar o denunciado jantando com a denunciada como
se fora sua própria mulher [...].”º

O mesmo ocorre no auto de denúncia de 1763 contra Alexandre Maurício.


Segundo Valério Garcia, “[...] a Denunciada vai outras vezes para a casa do

370 Ibid., fl. Gy, grifo nosso.


371 Ibid,, fl. 6x.
372 - Ibid., fl. 128.
373 Ibid,, fl. 130v.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 135

Denunciado e lá passa dias e meios dias; e isto sabe por ver ela faltar de casa,
e as amas queixarem se disso [...]”.**
Raimundo Pestana, repreendido e condenado a pagar multa pecuniária
por estar amancebado com Adriana Cafuza, tinha o mesmo hábito. Entre
outras coisas, o meirinho acusava a presença de Raimundo nas refeições da
manceba: “[...] indo de noite, e de dia, e a toda a hora à casa dela, onde come
e bebe, e a tem e mantém como sua manceba, da qual tem filhos, tudo com
público e notório escândalo [...]”.*7º
Denunciantes e testemunhas referem-se, assim, à grande proximidade do
que é visto com o ideal de vida matrimonial, o que sugere uma mentalidade
que incorporou em alguma medida um padrão de vida conjugal e que tem
dificuldades para categorizar aquela situação, utilizando então como referência
o modo de vida que se espera daqueles que são oficialmente casados.
São confrontados o desejável e o possível. Relatam-se conflitos fami-
liares. Ouçamos o depoente Hermenegildo José, em referência ao já citado
caso de Onofre Soares:

[...] E sendo-lhe perguntado pelo conteúdo na petição de denúncia, disse


que conhece muito bem aos denunciados e sabe por ser público e notório
que vivem amancebados há muito tempo e ele testemunha várias vezes
tem visto ir o denunciado à casa da denunciada, onde come e bebe como
se fosse sua própria casa com público e notório escândalo dando por este
respeito má vida à sua própria mulher a qual algumas vezes se tem quei-
xado perante ele testemunha da mancebia do dito seu marido; também o
tem visto ir lá de noite e mais não disse [...].*7

Os bens e favores materiais proporcionados pelo concubino são em geral


o elemento de maior regularidade nas denúncias, fazendo referência explícita
à responsabilidade assumida pelo homem: comida, vestimenta, escravizados e pe
moradia eram deveres masculinos e necessidades prementes da população. O Pe. |
Miguel de Morais, por exemplo, amigado com Inácia Maria em 1762, “[...] trata E
da denunciada assistindo-lhe com o necessário e quando estava por vigário na |
Vila de Vinhais de lá lhe mandava frangos, galinhas, farinha, lenha e índios para o | Sa
que a denunciada carecia, como ele testemunha muitas vezes presenciou [...]” 7
A viúva Thereza de Britto, 60 anos, ao depor contra Onofre Soares, este
já em envolvimento posterior com outra concubina, Maria de Lemos, em
1767, destacava, de forma semelhante, que aquele “[...] vinha repetidas vezes
à casa da denunciada [...] de noite e de dia e até lhe mandava carne pelo seu
negro para comer [...]”78

374 Ibid,, fl. 44y, |


375 bid,, fl. 151.
376 Ibid., fl. 131v, grifo nosso.
377 Ibid., fl. Bv.
378 Ibid., fl. 143, grifo nosso.
136 EM TEA

Na denúncia contra o alfaiate Alexandre Maurício e a mulata Inácia das por s


Serejas, em 1763, reaparece este elemento da relação concubinária. O depoente servi
Valério Garcia assim o atesta: “[...] e o sobredito sabe pelo ver entrar e sair denu
pela parte do quintal e o rapaz ou discípulo do denunciado vir com recados escre
dele para ela trazendo-lhe algum sustento como carne e farinha [...]”.3” relaç
À casa integrava o conjunto de necessidades da manceba e provavelmente a pai
era um grande desejo feminino. Em 1767, a nova concubina do inveterado Onofre
Soares, Maria de Lemos, ao enfrentar a oposição de seus sobrinho e irmã para a com
união que vivia com um homem casado, justificou em alto e bom som sua atitude: Thoi
de st
[...] respondeu ela que ninguém a governava, e que corrigisse a seus fi-
lhos, e depois de alguns dias estando ela testemunha tratando de uma sua
filha que tinha doente de bexigas, começou a denunciada a arrumar-se à com
boca da noite para se ir embora, e dizendo lhe ela testemunha para que a Ast
deixava só com a criança doente, respondeu que ela tinha quem lhe dava cebz
casas para morar [...].*º
e tei
A casa foi o principal argumento de Maria. Podemos supor que ela a utilizava
naquela ocasião como metáfora incisiva de independência pessoal e econômica
em relação à irmã que até então a sustentara. A recente mancebia com Onofre
seria sua garantia disto. O Pe. Miguel providenciou também casa à sua concubina,
parentes e prole natural, segundo dizia Simão do Couto, oficial de tanoeiro,

[...] comprou nesta cidade sobre a fábrica do Belfort umas casas ao sargento
mor dos auxiliares para a denunciada onde esta assistiu mais de um ano
e pelo não pagar lha tomou a tirar o vendedor e comprou o denunciado o
sítio que foi de Joaquim da Serra e pôs lá a denunciada junto com os seus
filhos e uma prima dela e um moleque dele [...].*!

Também o oficial de alfaiate Raimundo Pestana garantiu casas a sua


amante. E o que garante Manoel Joaquim Mendes, em 1767: no
que
[...] conhece muito bem ao denunciado e denunciada por ser sua vizinha, por
e pela mesma razão sabe que andam amancebados com público e notório
ent
escândalo de toda a vizinhança e ele o tem visto várias vezes entrar em
casa dela de dia, e a noite, e tem já de entre ambos vários filhos, e lhe
comprou as casas em que ela mora [...].**2

O amante por vezes compartilhava seus próprios escravizados com a


manceba. E o caso da denúncia feita contra o Pe. Thomas Aires: “[...] Sabe
O
(a)
a

379 Ibid,., fl. 44y.


»

da
o do

380 Ibid., fl. 141v, grifo nosso.


» (ud

381 Ibid., fl. Bv.


do do

382 Ibid., fl. 8u, grifo nosso.


4.0
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 137

por ser seu vizinho e ver que [...] a tem e mantém a sua custa mandando-a
servir pelos seus escravos e até as escravas do denunciado acompanham a
denunciada quando esta vai às Igrejas, como se fossem casados [...]”**. Alguns
escravizados podiam atuar como veículos de transmissão e conhecimento das
relações ilícitas. Muitos depoentes afirmam ter tomado conhecimento destas
a partir de negros, nomeados como “sente de pouca conta”.
Estar concubinada com um padre, diga-se de passagem, poderia ter
como corolário uma vida de maiores privilégios. Ana Maria, manceba do Pe.
Thomas Aires, recebia, além do já dito, “[...] todo o necessário e [ele] a veste
de seda e damasco encarnado manto [...]**.
O número de filhos dos casais, em torno de dois ou três, além dos demais
compromissos evidenciados demonstram relacionamentos mais duradouros.
As testemunhas da denúncia de Raimundo Pestana, oficial de alfaiate, aman-
cebado com Adriana Cafuza, são unânimes em afirmar “[...] que o denunciado
anda amancebado com a denunciada, em casa da qual vai continuadamente,
e tem vários filhos de entre ambos [... “8.
Os filhos eram reconhecidos pelos pais; senão pública — devido às pres-
sões da Igreja —- ao menos privadamente. As relações sociais poderiam criar
formas de disfarce, necessários para a manutenção daquele costume. O menino
João, filho do Pe. Joaquim Mendes, indagado por João do Vale sobre “[...]
quem era seu pai, me disse que era um clérigo sem declarar o nome [...]*º.
O auto de denúncia contra Lauriana Cafuza e Luiz Carvalho também faz
referência a filhos. O índio João Gonçalves, perguntado pelo amancebamento
dos dois, diz que “[...Jconhece muito bem aos denunciados e sabe por ver que
moram ambos juntos de portas adentro como marido com mulher [...] e já
tem ele uma filha o que sabe pelo ver*.
A filha nascida dessa relação pode ter sofrido algum tipo de resistência
no contato social. Entretanto, alguns indícios sugerem que a moral popular
que sanciona negativamente o costume possui uma face de tolerância e incor-
poração da mancebia, a ponto de garantir a esta e a seus produtos um lugar
entre os filhos de Deus.

Onofre Gabriel de Jesus [...] perguntado pelo conteúdo na denúncia


disse L.. .] [que] sabe pelo ouvir dizer publicamente [que] a alguns
anos vivia amancebado com a denunciada Lauriana Cafuza [...] e disse
que vindo seu irmão dele Testemunha o Reverendo pároco daquela

383 Ibid., fl. 12v.


384 Ibid., fl. 12v.
385 Ibid., fl. 152v, grifo nosso.
386 Ibid., fl. 5v.
387 Ibid., fl. 311v,, grifo nosso.
138 EM TEMPO

freguesia fazer um batizado em uma criança filha da denunciada e socieda


querendo fazer o assento perguntou quem era o pai daquela criança, e no séct
lhe foi respondido que o pai da criança era o Denunciado, o que sabe naquele
por ser voz pública.
Pa
nadore
Com o nome do pai pronunciado publicamente durante o assento do rito
consta
batismal, podemos pensar em uma atitude de ambiguidade naquela comuni-
da cult
dade e indagar se aquela referência era feita ao estilo de denúncia ao padre
mulher
ali presente ou como indício de conhecimento e aceitação daquela realidade
crições
por parentes e vizinhos.
simult;
dos dis
Considerações finais

Se por um lado esse compêndio dos traços apontados pelas de-


núncias feitas ao Juízo Eclesiástico nos possibilitam conhecer mais
concretamente as exigências feitas pela Igreja Católica em seu projeto
reformador dos costumes no século XVIII, acreditamos que eles vão
além do ideário tridentino, possibilitando-nos ver também elementos
das práticas sociais vigentes.
O meretrício e as relações concubinárias, detratados e negativados na
documentação eclesiástica, podem ter sido táticas utilizadas pela popula-
ção, sobretudo os grupos marginalizados, envoltos em realidades e socia-
bilidades que dificultavam a realização plena das projeções eclesiásticas.
Além disso, tais atos podem ter sido informados por valores culturais
e padrões de comportamento diferentes daqueles trazidos pelos europeus,
padrões esses que aproximavam e mesclavam práticas tidas como distintas
no ideário reformador. Segundo Laura de Mello e Souza, o que incomodava
aos eclesiásticos era exatamente essa capacidade disruptiva do “viver em
colônias”, capaz de aproximar o sagrado e o profano, a regra e a exceção, o
pecado e a virtude”.
Por essa razão, a liturgia profana do concubinato, que envolvia a co-
abitação, a manutenção do lar, o compartilhamento das refeições, o ir e vir
juntos e a presença de filhos era um sinal de pecado, porque, inversamente, tais
gestos eram prescritos e esperados, embora apenas nos núcleos consagrados
pelo sacramento matrimonial.
De certa forma, portanto, o que a Igreja censurava não eram os atos
em si, mas o não estarem eles debaixo de seu poder normatizador naquela

388 Ibid., fl. 311v.


389 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Bras?
colonial. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. 542 p. (1. ed.: 1986).
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 139

sociedade, o que contribui para compreendermos o papel dessa instituição


no século XVIII, bem como algumas características dos relacionamentos
naquele momento.
Para além dos ideais tridentinos, podemos citar também como orde-
nadores da sociedade colonial ludovicense a escravidão — que perpassa
constantemente os relatos sobre o concubinato — bem como a misoginia
da cultura ibérica, que definia espaços estreitos de atuação pública para a
mulher. Diante dessas e outras variáveis, as práticas sociais driblavam pres-
crições e proibições, atuando de forma tática e criativa, acatando e negando
simultaneamente, numa lógica que desconcertava a racionalidade piedosa
dos discursos eclesiásticos.
MANOEL TEU SANTO, O “SUMMO
PONTIFICE” DA PAJELANÇA: pajelança
em São Luís no final do século XIX

Thiago Lima dos Santos

“Ouvimos ter sido novamente preso o conhecido pajé Manoel


Teu Santo”.

Desde as primeiras horas da manhã havia circulação de pessoas em dire-


ção à Igreja de São Pantaleão. Depois da missa o Mercado Central as pessoas
desciam a rua das cajazeiras em direção ao Mercado Central ou à praia de
Santiago para adquirir o alimento do dia, a ser feito com a água originada da
fonte do Apicum ou do Bispo, transportada em jarras, latas, tinas ou baldes.
Assim era um dia de domingo no bairro da Madre Deus no ano de 1895.
Mas esse movimento diminuía conforme a tarde caia e lua ganhava espaço no
céu. Portas e janelas fechavam-se para a rua e nela sobravam os bêbados e
os praças da polícia, dormindo nos batentes ou vigiando esquinas. O silêncio
era companheiro do vento que chacoalhava as folhas das árvores do subúrbio,
que em oposição à área conhecida como central ainda possuía terrenos livres,
atrativo para aqueles que não tinham condições de pagar por um aluguel ou
comprar um terreno.
Ora ou outra um novo som ocupava essa paisagem, que era urbana e rural
ao mesmo tempo. Não era incomum o afluxo de pessoas para uma das casas
da Rua do Passeio, de onde se ouvia o bater de palmas, tambores, pandeiros,
latas e certo vozerio de pessoas que pareciam entoar estrofes de cânticos
repetidos e alternados.
De olho em toda a movimentação do que se assemelhava uma festa, os
inspetores de quarteirão já haviam mandado buscar informações na subde-
legacia sobre a emissão de licenças para aquele endereço, suspeitando que o
aparente samba, como eram designadas reuniões festivas do tipo, não passava
de um ritual de pajelança, proibido por lei.

390 Nota sobre a prisão de Manoel Teu Santo, publicada pelo Jornal Pacotilha em 05 de junho de 1899.
O texto desse tópico não diz respeito propriamente à essa pequena nota, mas reúne dezenas de
referências sobre a prisão de Manoel Teu Santo e outros pajés unidas em torno de uma narrativa
criada com o objetivo de introduzir o artigo.
142 EM TEN

Ciente do ocorrido e por instrução dos inspetores, o delegado de polícia,


Juntamente com um piquete da cavalaria, organizou uma batida policial para refer
averiguar a festa, que não tinha licença e que às onze horas da noite perturbava nicas
a sossego público. E assim foi feito, os cavalos deram cerco à casa, invadiram as re
pela porta central e por ordem do delegado os praças prenderam Manoel Teu XIX
Santo, que foi conduzido à pé pela rua de São Pantaleão, descendo um trecho
pela Rua Grande até chegar à Chefatura de Polícia, no largo da Igreja de São cons
João. Ali, em uma das celas do sobrado passou a noite detido. rativ
Prisões de pajés eram rotineiras. Os jornais não noticiavam como novidade pela
e eram tantos e tão comuns que semanalmente algo era publicado em qualquer cont:
parte das folhas dos periódicos, às vezes até mesmo na capa e com letras gar-
rafais. A sensação era que havia um pajé em cada esquina e que a polícia não
dava conta, ou porque não tinha contingente e aparato ou porque era conivente.
Parecia ser a melhor explicação, a conveniência. Esse era o burburinho
que se escutava nas mediações da chefatura. Havia uma suspeita de que o
delegado mandava organizar batidas todas as vezes que queria se consultar
com Manoel Teu Santo, tanto que no outro dia o pajé foi liberado, como das
outras vezes ocorreram. Não se sabe se isso ocorria ou se era intriga da opo-
sição política da época, que associava os agentes públicos da situação aos
pajés, tentando atacá-los publicamente.
Manoel fez novamente o caminho de volta à pé, acompanhado pelos rest
mesmos olhares daqueles que o viram passar alta madrugada, atado ao cavalo eat
de um praça da cavalaria. Ainda de branco retornara à sua residência para que
saber que os praças, acreditando terem participado de uma boa operação
per
policial sem armação, recolheram todos os objetos rituais, obrigando o pajé Mu
a empenhar parte do que recebera pela consulta dada ao delegado na compra
de novos itens para seus rituais.
Logo a notícia sobre a prisão logo caiu no esquecimento, sendo novamente
substituída por outra semelhante. Esse era o cotidiano citadino.

Pajelança e Tambor de Mina

A partir da leitura de centenas de matérias de jornais no século XIX, o


pesquisador mais criativo não teria dificuldade de criar cenas do cotidiano
urbano por meio dos detalhes e descrições dadas pelos articulistas. O texto
do tópico anterior foi criado a partir de uma notícia sobre a prisão de Manoel
Teu Santo, publicada no Jornal Diário do Maranhão em 20 de maio de 1895º1.

391 Hontem pelas onze horas da noite o sr. delegado de policia em louvavel atividade, auxiliado pelos
inspectores de quarteirão alferes Gastão Lopes Varella e Antonio Furtado e praças do Piquete 392
de Cavallaria, deu um cerco em casa do conhecido pagé Manoel de tal vulgo <<Teu Santo>>;
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 143

O texto não é de todo ficcional, na medida em que reúne citações ou


referencia trechos de jornais — embora não os cite conforme as normas téc-
nicas acadêmicas — consultados ao longo de pesquisa desenvolvida sobre
as religiões afro-brasileiras em São Luís do Maranhão entre o fim do século
XIX e início do século XX.
Embora não seja algo visto com bons olhos pelos historiadores mais
conservadores, a escrita da história perpassa pela capacidade de criar uma nar-
rativa, que seja o resultado de conexões entre os indícios e rastros produzidos
pela pesquisa histórica e ao mesmo tempo propondo conexões que visem dar
conta de um determinado contexto, como destaca Durval Muniz Albuquerque:

O historiador conta uma história, narra; apenas não inventando os dados de


suas histórias. Consultando arquivos, compila uma série de textos, leituras
e imagens deixados pelas gerações passadas, que, no entanto, são reescritos
e revistos a partir dos problemas do presente e de novos pressupostos, o
que termina transformando tais documentos em monumentos esculpidos
pelo próprio historiador, ou seja, o dado não é dado, mas recriado pelo
especialista em História. O que chama de evidência é fruto das perguntas
que se fazem ao documento e ao fato de que, ao serem problematizados
pelo historiador transforma-se, em larga medida, em sua criação”.

O texto de introdução não pretende ser acadêmico, embora faça uso dos
resultados de uma pesquisa, a intenção seria asseverar a capacidade criadora
e até mesmo poética que a história enquanto disciplina tem, na medida em
que nos é permitido inferir inúmeras conexões nos vazios deixados pelas
perguntas não respondidas durante a pesquisa. Ainda nas palavras de Durval
Muniz Albuquerque:

O conhecimento histórico torna-se assim, a invenção de uma cultura par-


ticular, num determinado momento, que, embora se mantenha colado aos
monumentos deixados pelo passado, à sua textualidade e à sua visibilidade
tem que lançar mão da imaginação para imprimir um novo significado
a estes fragmentos. A interpretação em história é a imaginação de uma
intriga, de um enredo para os fragmentos do passado que se tem na mão.
Esta intriga para ser narrada requer o uso de recursos literários como as
metáforas, as alegorias, os diálogos, etc. Embora a narrativa histórica
não possa ter jamais a liberdade de criação de uma narrativa ficcional ela
nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e, portanto, guarda

encontrando-o em adorações ao seu idolo fel-o, recolher à cadeia.


Apprehendeu diversos utensilios do officio, os quaes foram levados para a chefatura de policia.
Entre os obejctos aprehendidos destacam-se duas cartas, que dizem-nos vão ser publicadas, e
quantidade de rozarios de contas esquisitas e variadas cores.
Foi uma boa diligencia que recommenda o zelo da auctoridade e a actividade dos seus auxiliares.
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria
da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. p. 62-63.
144 EM TEM

uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando recorta seus


objetos e constrói, em torno deles, uma intriga'”. XIX,
e tam
Criar, no sentido de fazer, elaborar, construir também perpassa pela aber- comt
tura de um universo interpretativo que permite ao historiador tentar superar terrei
certas limitações. A diferença entre ficção e artigo científico é que em textos inter
acadêmicos formais, muitas das possíveis respostas e conexões criadas para duçã:
certos problemas de análise não podem ser levados em consideração, embora
possam muito bem estar relacionados com o contexto ao redor dos sujeitos e esses
das práticas humanas objetivadas pelo pesquisador. bem
Essa possível abertura nos permite avançar bastante quando abordamos dem
o contexto das populações subalternizadas, em que o silenciamento sistemá- sáve
tico é parte de uma engenharia social dominante que pretendia ser branca e expr
europeia, que tentou relegar africanos e seus descendentes à espaços de infe-
riorização. Seja nos subúrbios, nas celas das cadeias, nas notícias policiais, para
nos quartos de cortiços esses sujeitos estariam abandonados à própria sorte e abra
fadados ao desaparecimento. ao 1
Mas é justamente esse abandono da coisa pública que age no sentido busc
oposto ao projeto de extinção. Sendo obrigados à sobreviver em um ambiente pula
hostil a criatividade torna-se o principal mecanismo forjador de sociabilidades emb
e culturas. Nesse sentido pretendemos abordar os pajés do século XIX a partir nos
dessa perspectiva em que a repressão por parte das instituições públicas foi
responsável pela criação disso que chamamos de religiões afro-brasileiras. pod
No Maranhão esse conjunto de manifestações religiosas de origem africana de Í
é comumente chamado Tambor de Mina, expressão que faz referência aos gen
tambores e à origem da manifestação, associada aos africanos que embarcaram não
como escravos pelo forte de São Jorge da Mina, atualmente Gana, na costa
des
ocidental do continente africano. O Tambor de Mina está associado à duas
tradições bem definidas. A primeira é ligada a Casas das Minas e ao culto dos
voduns, entidade de origem jeje ligadas à família real do Daomé. A segunda
é ligada à Casa de Nagô de origem iorubá, em que se manifestam entidades
africanas, os orixás e entidades não africanas, os caboclos”.

393 - Ibid., p. 62-63.


394 As características específicas desses rituais já foram bastante estudadas por Sergio Ferretti e
Mundicarmo Ferretti e encontram-se publicadas em farta bibliografia.
FERRETTI, Mundicarmo. Identidade e resistência em um terreiro de São Luís-MA: A Casa de Nagô.
In: QUADROS, Eduardo Gusmão de; SILVA, Maria da Conceição (Orgs.). Sociabilidades Religiosas:
mitos, ritos e identidades. São Paulo: Paulinas, 2011. (Coleção ABHR).
. Pajelança do Maranhão no século XIX: o processo de Amelia Rosa. São Luís: CMF:
FAPEMA, 2004.
. Pajelança e cultos afro-brasileiros em terreiros maranhenses. Revista Pós Ciências Sociais,
São Luís, EDUFMA, v. 8, n. 16, p. 91-105, 2011.
. Revisitando Boto e Mãe d'Água. (Mimeo).
. Um caso de polícia! Pajelança e Religiões Airo-brasileiras no Maranhão 1876-1977. São
Luís: EDUFMA, 2015.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 145

Sem data precisa, a fundação desses terreiros remente a meados do século


XIX, razão pela qual são considerados os terreiros mais antigos de São Luís
e também pela qual a cidade, capital do estado do Maranhão, é considerada
comumente como terra do Tambor de Mina. Desde a década de 1940 esses
terreiros vêm recebendo bastante atenção da produção acadêmica nacional e
internacional, produção essa que contribuiu em muito na produção e repro-
dução dessa ideia.
Dessa forma o Tambor de Mina e as características dos rituais ligados à
esses dois terreiros acima citados são tomados como centro de um universo
bem mais variado, marcado pela presença de entidades de origens e forma
de manifestações diversas que fogem desse modelo “minacêntrico”, respon-
sável pela associação automática entre a ideia de religiões afro-brasileiras à
expressão Tambor de Mina e especificamente à Casa das Minas.
Pensando nesse cenário, o presente artigo pretende apresentar subsídios
para a reflexão sobre a encantaria, expressão que dá conta de forma mais
abrangente desse vasto universo religioso que não se restringe unicamente
ao Tambor de Mina. Para tanto fazemos uso das fontes jornalísticas para
buscar referências sobre as várias formas de expressão da religiosidade po-
pular que no século XIX foram largamente chamadas de pajelança, muito
embora Tambor de Mina e Dança das Minas já fossem expressões correntes
nos documentos policiais.
Se o Tambor de Mina e a Pajelança são nomes conhecidos do século XIX,
podemos inferir que havia algum tipo de diferenciação entre esses rituais,
de forma que não podemos afirmar que os periódicos tratavam de forma tão
genérica assim e que já sabiam a distinção entre templos religiosos, ainda que
não fossem assim considerados pelos redatores das notícias.
Segundo Raimundo Inácio, a pajelança é uma expressão utilizada para
designar um

Conjunto diversificado de práticas lúdico-terapêutico-religiosas, que


entrecruza referências de diferentes tradições culturais, notadamente do

FERRETTI, Sergio Figueiredo. Festa do Divino no Tambor de Mina: estudo de ritos e símbolos
na religião e na cultura popular. Trabalho apresentado na Sessão Temática: Les religions afro-
americaines aujourd"hui: permanences ettransformations, durante a XXV Conférence de la Société
Internationale de Sociologie des Religions (SISR), Bélgica, 1999. (disponível em: <http:/Anww.gpmina.
ufma.br/pastas/doc/Festa%20d0%20Divino%20no%20Tambor%20de%20Mina.pdf>. Acesso em: 8
nov. 2014).
. Querebentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.
. Repensando o sincretismo: Estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: editora da
Universidade de São Paulo; São Luis: FAPEMA, 1995.
. Preconceitos e proibições contra religiões e festas populares no Maranhão. Trabalho
apresentado no GT Religião Afro-brasileira e Kardecismo no IX Simpósio anual da Associação
Brasileira de História das Religiões em Viçosa, MG de 01 a 04/05/2007. <Disponivel em: <http://wwmw.
gpmina.ufma.br/pastas/doc/Preconceitos. pdf>.
. Festa do Divino em São Luís. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, n. 07, p. 2-3, 1997.
146 EM"

tambor de mina e do catolicismo popular e que tem na proeminência do ec


negro seu denominador comum?. coi
do:
Embora a pajelança seja apontada como uma reunião de práticas e saberes
com uma complexidade menor que o Tambor de Mina, algo que a literatura há
18!
muito deixa entrever”, sigo a compreensão de Didier Laveleye, para o qual:
que
A “pajelança” refere-se a um conjunto de práticas e rituais e de representações da
da natureza e do corpo, típica das populações amazônicas, aplicada principal- tro
mente pelos pajés na cura das doenças e aflições. Habitualmente considera-se,
em Antropologia, que um tal “conjunto” (de ritos e mitos) enraíza-se na cultura
pa
de cada povo. Existem, assim, tantas pajelanças quanto povos diferentes
existem no Norte do Brasil, tanto nas sociedades indígenas quanto no mundo
“caboclo” ou camponês. [...] Assim, uma característica geral da pajelança está
nessa flexibilidade cultural, permitindo uma importante heterogeneidade de
conjuntos rituais e míticos, e uma larga distribuição em todo o espaço social”.

Sendo, portanto, extremamente plural e com inúmeras particularidades, a


pajelança maranhense do século XIX não pode ser vista como uma mera detur-
pação de um ritual original e puro. Laura de Mello e Souza'”* e Nicolau Parés””
indicam a possibilidade dos rituais de cura mágico-religiosa ter origem africana,
sei
sendo um repertório de práticas que teriam entrado em contato com aquelas que
já existiam aqui no Brasil, praticadas pelos índios e as de origem portuguesa.
Ta
da
Manoel Teu Santo, um pajé que publica pe

Além disso, considerar como impuro ou uma deturpação tudo aquilo que si
“se distancia do Tambor de Mina (que não é puro), representa o esvaziamento tê
de qualquer tentativa de se enveredar pelo campo da encantaria maranhense
pr
hil
395 ARAUJO, Raimundo Inácio. O reino do Encruzo: história e memória das práticas de pajelança no tes
Maranhão (1946-1988). Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2017. p. 70. eli
396 Nunes Pereira (A Casa das Minas — 1947), Oneida Alvarenga (Tambor de Mina e Tambor de Crioulo
— 1948) e Roger Bastide (As religiões africanas no Brasil - 1960) são alguns trabalhos em que os
autores destacam que o Tambor de Minas seria uma religião africana pura, enquanto as outras são
deturpadas ou degeneradas em função de se distanciarem ou diferirem da estrutura ritual do que se
via na Casa das Minas. Embora relativamente distantes no tempo essa produção orientou por muito
tempo o entendimento sobre a ideia de pureza africana no Maranhão.
ALVARENGA, Oneyda. Tambor de Mina e Tambor de Crioulo. Prefeitura Municipal de São âulom 1948.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuições a uma sociologia das interpenetrações
de civilizações. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1971. 2 v.
397 LAVELEYE. Didier de. Distribuição e heterogeneidade no complexo cultural da “pajelança”. In:
PAJELANÇA e Religiões Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008. p. 113.
398 SOUZA, Laura de Mello e. As religiosidades como objeto da historiografia brasileira. Revista Tempo,
v. 6, n. 11. Rio de Janeiro: 7Letras, julho de 2001, dossiê Religiosidades na História. Entrevista
concedida a Ronaldo Vainfas, p. 251-254. 40
399 PARES, Luis Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. 2. ed. rev. 40
Campinas, SP: Editora da UNICAMP 2007.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 147

e conhecer sua pluralidade de objetos, rituais, saberes, fazeres e sujeitos,


como os pajés, tal e qual o personagem que abre o artigo, Manoel Zeferino
dos Santos, ou mais conhecido como Manoel Teu Santo.
Seu nome aparece na documentação de Polícia entre os anos de 1896 e
1898 solicitando licenças para realização de Tambor de Mina em seu terreiro
que se localizava na Rua do Passeio, nº 72, Bairro da Madre Deus, subúrbio
da cidade de São Luís, já apresentado em linhas gerais na nossa história in-
trodutória, e onde se localizam a Casa das Minas e a Casa de Nagô.
Até o momento sabemos pouco sobre ele, apesar de sua importância
para o cenário religioso afro-maranhense. Pai Euclides Ferreira, falecido pai
de santo e grande curioso sobre a história dos terreiros afirmava que Manoel
Teu Santo era nigeriano e o seu ritual era nagô, originado da cidade de Tapa-
-Nupe*?º. No entanto, não há, na documentação, muitos indícios que possam
corroborar com a tese da africanidade, o que se sabe é que Manoel Teu Santo
pedia licenças como mineiro e era acusado de realizar curas como pajé.
Ademais, é necessário registrar, que o modelo ritual do terreiro de Manoel
Teu Santo foi continuado por suas filhas de santo, entre as quais podemos
indicar Anastácia Lúcia, ou Mãe Anastácia e Mãe Doca. A primeira teria aberto
seu próprio terreiro, o da Turquia, ainda no final do século XIX, a segunda
fundou seu terreiro em Belém. Ambos os terreiros estão ligados à história do
Tambor de Mina, o primeiro é considerado como um dos quatro mais antigos
da capital maranhense e a segunda mãe de santo é tida como a responsável
pela introdução do Tambor de Mina no Pará.
Isso significa que os terreiros não eram mundos isolados e fechados em
si e que em certos casos a linha que dividia Tambor de Mina e Pajelança era
tênue. Além disso, destaca-se que as tentativas de fugir das perseguições e
proibições policiais também foram responsáveis pelo aprofundamento dos
hibridismos culturais dos terreiros de São Luís, uma vez que é corrente nos
terreiros mais antigos a afirmação de que alguns pajés teriam incorporado
elementos da pajelança para poder enganar a polícia.

A perseguição policial obrigou os curadores de São Luís a estabelecerem-se


em sítios afastados e realizarem ali seus rituais. E, segundo os pesquisa-
dores Maria do Rosário e Manuel dos Santos Neto'!, como a Mina era
menos perseguida, os “pajés” começaram a “mascarar-se” de “mineiros” e
a abrir terreiros com linha de Mina e Cura. E provável que o surgimento
desses terreiros tenha sido também encorajado pela abertura de novas
casas de Tambor de Mina por pessoas ligadas à Casa de Nagô, tanto na
cidade como nos subúrbios e em que sítios da zona rural (onde também

400 FERREIRA, Euclides Menezes. Itan de Dois Terreiros. São Luis, Maranhão, 2008.
401 SANTOS, Maria do Rosário C.; SANTOS NETO, Manoel dos. Boboromima: Terreiros de São Luís,
uma interpretação sociocultural. São Luís, SECMA/SIOGE, 1989. p. 119.
148 EMT

eram realizados rituais de Cura), o que, segundo Costa Eduardo (1948)'2,


começou a ocorrer por volta de 191019.

Foram encontrados seis pedidos em nome de Manoel Zeferino dos Santos


em que eram solicitadas licenças para Tambor de Mina. Comparativamente,
o calendário ritual (ou parte dele) que foi possível identificar a partir da do-
cumentação se aproxima bastante da Casa das Minas. Coincidência ou não,
Sergio Ferretti informou que dançantes antigas falavam que Manoel Teu Santo
costumava frequentar os rituais da casa de origem daomeana.
O mesmo Manoel Teu Santo que solicitava licenças para Tambor de
Mina também era conhecido como pajé. No mesmo período em que estão
de :
circunscritas as licenças policiais para a realização de Tambor de Mina tam-
bém encontramos registros de suas prisões. Pensar que os pajés passaram a exp
praticar rituais do Tambor de Mina para fugir da repressão, ou seja, como No
uma máscara, é uma explicação que se aproxima bastante a ideia de ilusão da fala
catequese, cunhada por Nina Rodrigues“ e que reforça o sentido da pureza
dos rituais africanos, escondidos atrás de uma capa católica. mes
Creio que a ideia de mascaramento ou disfarce pode passar uma com- Mir
preensão vazia de sentido para o processo de entrecruzamento entre mina
e pajelança, se partirmos do pressuposto que em algum ponto do passado zad
mineiros e pajés eram representantes de sistemas religiosos completamente
diferente ou até mesmo opostos. Além disso, essa estratégia parece não ter atu
surtido efeito, pois Manoel Teu Santo foi preso ao menos quatro vezes entre volt
os anos de 1895 e 1899. tam
E provável ainda que tenham ocorrido mais prisões, pois uma matéria de terri
1895 afirmava que o pajé era um velho conhecido da polícia. É de se ques- que
tionar como a mesma polícia que o prendia eventualmente sob a acusação
- de pajelança, fosse a mesma que liberava suas licenças para realização de de e
Tambor de Mina, mesmo quando as informações dos documentos apontam mec
para uma proximidade entre os rituais da casa de Manoel com os que ocorriam bor
nos terreiros de Mina. relis
Em 1895, pouco mais de dois meses depois da matéria que afirma ser
liga
Manoel Teu Santo um velho conhecido da polícia, um novo registro dá conta
das festas em seu terreiro. chel

Manoel teu Santo


Com este nome existe na rua do Passeio, em frente a da Boiada uma nova
casa de minas ca da terra dirigida por um tal Manoel teu santo que se

402 EDUARDO, Octávio da Costa. The Negro in Northern Brazil: a study in acculturation. New York:
Augustin Publisher, 1948.
403 FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma: o caboclo no Tambor de Mina em um terreiro de São
Luís — a Casa Fanti-Ashanti. São Luís: EDUFMA, 2000. p. 68.
404 RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de. Janeiro, UFR-
Biblioteca Nacional, 2006.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 149

emprega a fazer felicidade que para este fim juntou meia duzia de vadias
que o ajudavam para tal bandalheiras.
O tal papai Mané auxiliado por um tal fiscal do mercado, servem-se aos
instrumentos: tambor, lata, cabaça, contas e reque, para baterem todos
os dias a procura da felicidade de modo que os batugues dos taes ins-
trumentos para a dormida dos moradores da vizinhança e para este fim
chamamos atençao das illustres auctoridades para que façam concluir
taes abusos não obstante dizer o dito papai achar-se auxiliado por altas
patentes da milicia civil**.

Por algum tempo considerei a palavra pajelança como um termo utilizado


de forma indiscriminada nos jornais, tratando de caracterizar todo tipo de
expressão religiosa relacionadas à população afro-brasileira e aos terreiros.
No entanto, percebe-se que há uma diferenciação entre os rituais, pois o jornal
fala do terreiro de Manoel teu Santo como uma “casa de minas ca da terra”.
Essa diferenciação poderia ser em relação a sua origem não africana ou
mesmo em relação à perceptíveis diferença entre o seu terreiro e a Casa das
Minas. Em uma das notícias de sua prisão, é citado o uso de latas, reques**,
tambores e cabaças. Pandeiros, assim como cabaças são instrumentos utili-
zados durante os rituais de pajelança.
Segundo Mundicarmo Ferretti, entre os instrumentos utilizados nos
rituais de Tambor de Borá ou Canjerê, que ocorrem na Casa Fanti Ashanti,
voltados para entidades espirituais indígenas, são utilizados diversos tipos de
tambores, triângulo, reco-reco, tambor onça (cuíca) e violão. Nesse mesmo
terreiro, nos rituais ligados ao Candomblé, é realizado o Samba Angola em
que, além dos tambores, também são utilizados pandeiros.
À existência de tais instrumentos possibilita pensarmos a possibilidade
de existência de outras tradições religiosas africanas que não a jeje-nagô, na
medida em que instrumentos que não são considerados específicos do Tam-
bor de Mina indicam para a existência de rituais que não estão na estrutura
religiosa da Casa da Minas e da Casa de Nagô.
O Baião (palavra derivada de Bailão), ou Baião das Princesas é um ritual
ligado à Cura que ocorre na Casa Fanti-Ashanti e que segundo o seu falecido
chefe teria surgido no final do século XIX no extinto Terreiro do Egito.

O Baião é um ritual alegre e descontraído onde se canta, em português,


músicas de ritmos variados (toadas, valsas, baiõdes, etc.) ao som de instru-
mentos musicais desconhecidos no Tambor de Mina: sanfona (acordeon),
cavaquinho, violão — tocados por músicos contratados, e de pandeiros
(instrumentos obrigatórios na Cura) tocados por pessoas da casa””.

405 Pacotilha, 07 ago. 1895.


406 Instrumento musical de origem portuguesa que consiste em duas partes em que uma, ao ser
friccionada contra os frisos da outra, gera o som.
407 FERRETTI, M. Op. cit. p. 238, 2000.
150 El

Figura 1 — Baião de Princesas e seus instrumentos


(Museu Afro Digital do Maranhão)
a

C;
ut

di
dc
ol
cc
Esses instrumentos, provavelmente traziam uma sonoridade bem dife-
rente das demais casas, a ponto de ser definido com um samba grosso. Como
Pai Euclides afirma ter dado continuidade a herança que recebeu do Terreiro
do Egito e do Terreiro da Turquia é provável que tais rituais e instrumentos
- possam ser úteis para compreender o terreiro de Manoel Teu Santo.

Na casa á rua de S. Pantaleão n. 199, está installada a nova sala de audien-


cia do chefe supremo da pagelança nºesta cidade, o conhecido da policia
-- Manoel teu santo.
A affluencia de partes, muitas até desinteressadas, tem obrigado o Juiz
ql
a dar audiencias, á noute, o que não é prohibida pelas leis da feitiçaria.
Hontem após os trabalhos, por alvitre lembrado pelo chefe -- Manoel teu
santo --, formou-se um samba grosso, no meio do qual, alli pelas tantas o pao
rolou devéras, sendo precisa intervenção do juiz para acalmar os animos.
O nosso informante ignora se depois do rôlo, ainda continuou a festança”.

No dia seguinte, o jornal Diário do Maranhão corrigiu a matéria publicada


por ter informado o endereço errado.

40
408 Diário do Maranhão, 05 dez. 1895. 41
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 151

Disseram-nos hoje que na casa á rua d S. pantaleão n 199 reside a mulher


Luiza Rosa da Silva e não o thaumaturgo — Manoel teo santo.
Ali, affirmou-nos o nosso informante, houve uma festa de santa Barbara,
com previa licença da policia, e não deo-se facto algum desagradavel. E”
possivel que no mesmo dia o heroico Manoel teu santo celebrasse uma das
suas conferencias milagrosas, no lugar em que mora ou outro qualquer e
que se confundisse a casa dos milagres com a dos devotos de S. Barbara'”.

O endereço citado na primeira matéria era o endereço da Casa das Minas,


à época chefiada por Mãe Luíza Rosa da Silva. Suspeito que a correção tenha
sido realizada a pedido de alguém daquela casa para evitar a associação entre
o endereço e a pajelança. Se estivesse tendo festa no terreiro de Manoel Teu
Santo, pela data é provável que também tivesse relação com as comemorações
do dia de Santa Bárbara.
Novamente é verificável que houve um tratamento diferenciado, pois a
Casa das Minas foi classificada como de devotos de Santa Bárbara e não como
uma casa de milagres associada à pajelança, como era a de Manoel Teu Santo.
No entanto, essas referências não são suficientes para dizer que as referências
diferenciadas nos jornais fossem comprobatórias de uma situação diferente
dos terreiros frente aos agentes públicos, que não passavam incólumes dos
olhares críticos dos jornais quando de sua presença nos rituais de pajelança,
como descrito na matéria abaixo.

Quem entende a vida é o guarda-fiscal Pereira, do Mercado.


Metteo-se numa confraria de pagés, na rua do Passeio, e só apparece na
Praça por fructa.
Apresenta-se as oito horas da manhã, demora-se até as 9 e safa-se para
a pagelança.
Ora para que havia de dar o Pereira! ...410

Se haviam pessoas que protegiam ou eram benfeitores dos terreiros a


matéria acima não nos permite ir além. Em todo caso o que salta aos olhos é
que havia inúmeras representações negativas de Manoel Teu Santo

O summo Pontifice Manoel Teu Santo teve no sabbado ultimo motivo de


serio desgosto.
Com o maior desacato a sua alta personalidade, foi a sua residencia cer-
cada pela policia, sem que a diligencia tivesse sido por elle requisitada.
O conclave estava reunido. O maracá e o pandeiro troavam, animando a
dansa, que dentro do Vaticano de Manoel Teu Santo se desenvolvia com
verdadeiro enthusiasmo.

409 Diário do Maranhão, 06 dez. 1895.


410 Pacotilha, 09 jan. 1895.
152

Com o espirito entregue aos folgares, mal pensava o Pontifice da rua do


Passeio, que tao grande disabor lhe estava sendo preparado.
Manoel Teu Santo, na frente dos dansantes puxava a fieira, á toada dos
seus instrumentos predilectos, quando a polícia appareceu e pertubou-
-lhe o socego.
Resultado: foram todos recolhidos ao xadrez.
Consta que a diligencia foi occasionada por queixa que dera a mãe
duma criança que havia sido espancada na porta do templo, por uma
das sacerdotisas'!!.

A matéria fala da prisão ocasionada por uma denúncia de espancamento


ocorrido na porta do terreiro, onde ocorria um ritual no qual Manoel Teu Santo
dançava juntamente com outras pessoas do terreiro, provavelmente em transe.
Essa prisão deu origem a uma nova publicação na qual o secretário de Manoel
Teu Santo, Thomaz Teu Santo Rocha, explica o ocorrido.

Da ordem do Santissimo Papai Manoel Teu Santo, faço publico que a


noticia dada hontem neste jornal do triste acontecimento de sabbado no
seu templo, sobre o espancamento da criança, não foi na porta do refe-
rido templo, porque esse lugar é muito <<respeitado>> e sim na porta de
minha residencia á rua da Cotovia, pela minha querida Canuta que não
contava com tão energica punição. Quando todos se achavam reunidos
para as devoções, (com exepção de mim que me achava em urgente
serviço particular), foram surprehendidos pela policia que procurava a
minha referida Canuta, e como esta lhe era indispensavel para o culto ja
em principio, recusou entregal-a, resultando dºahi o disturbio, que foram
todos dormir no palacete de S. João, donde só foram postos em liberdade
no dia seguinte ás seis horas da manhã; agradecendo a dois amigos que
toda noite trabalham para esse fim visto que no sabbado nada conseguiram.
Continuamos sem alteração com as nossas devoções.
O secretario
Thomaz Teu Santo

Tentando explicar a situação, Thomaz Teu Santo afirma que o espancamento


não tinha relação com o ritual conduzido por Manoel Teu Santo, tendo ocorrido na
sua casa e envolvido a sua querida Canuta (sua esposa?) que teria sido procurada
pela polícia quando já estava reunida com os demais no terreiro. Impedida pelo
pai de santo de sair do ritual, todos foram levados presos à chefatura de polícia.
Essa publicação permite identificar a organização do Terreiro de Manoel
Teu Santo, que contava com filhos de santo que desenvolviam funções espe-
cíficas, sendo um deles considerado como secretário do pai de santo.

Da ordem do santissimo Papai Manoel Teu Santo, faço publico que se-
guindo para o Estado da Bahia no paquete <<Planeta>>, em serviço da

411 Pacotilha, 17 fev. 1896.


EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 153

ordem, encarrega do cargo de presidente interino da mesma santidade a


nossa distincta e adestrada irmã Canuta Rocha Teu Santo, e a quem dá
plenos e illimitados poderes. A todos abençoa.
2 de março de 96.
O secretário
Thomaz Teu santo Rocha*?.

O motivo da viagem para a Bahia não é claro*? e afirmar que esta viagem
tinha motivos religiosos pode ser precipitado, embora não seja impossível, como
é possível entrever na afirmação de que estaria viajando a serviço da ordem.
Parecia, portanto, haver uma consciência de grupo, que os mantinha coesos
dentro de uma institucionalidade marcada por uma hierarquia e divisões de
funções e não uma simples reunião eventual de pessoas por ocasião de rituais.
Havia um secretário, encarregado de determinadas funções e uma “mãe
pequena”, ou seja, uma pessoa na linha de sucessão e que assumiu as funções
de chefe na ausência de Manoel Teu Santo. Destaca-se também o reconheci-
mento público por parte das pessoas que frequentavam o terreiro, provável
motivo pelo qual a nota teria sido publicada no jornal.
Esse reconhecimento e a necessidade de publicizar informações mostram
que Manoel Teu Santo sabia que ocupava o espaço público e que não tinha
problemas em fazê-lo, mesmo que fosse perseguido. Lançar uma notícia no
jornal seria a melhor forma de comunicar sobre a sua ausência a todas as pes-
soas que compareciam aos seus rituais ou que procuravam o seu atendimento.
Seja por proteção de pessoas influentes, seja porque a demanda social
pelos seus serviços garantia a ele a segurança em seus atos, o pajé falava,
arriscava a exposição pública no jornal.

Publicações a Pedido
Alguem repara a critica que anda nesta capital, ou em todo Estado de Mané
Teu Santo, será a primeira? antes d"esta tem tido muitas, com pessoas
bem collocadas.

Ninguem se julgue feliz


Ainda que se ache em bom estado
Que bem o revez da furtuna
Faz de um feliz desgraçado

Quem vê eu chorar
Não se ria tenha dó

412 Pacotilha, 04 mar. 1896.


413 As latas que são faladas em uma das matérias sobre Manoel Teu Santo teriam alguma relação com
o Samba Angola do Candomblé baiano? A viagem para a Salvador teria relação com influências
baianas ou origem dos rituais do seu terreiro?
154

Pois os trabalhos deste mundo


Christo não fez pra mim só.
Peço desculpas ao publico
Manoel Zeferino dos Santos
(Conhecido por Mané Teu Santo)*!*

Mané pedia desculpas ao público logo após o incidente envolvendo a irmã


Canuta e a prisão das pessoas em seu terreiro. Mas as desculpas não são sinal
de subserviência ou de dominação uma vez que ele se mostra combativo frente
ao que lhe pareciam injustiças. Novamente destaca-se que Manoel Teu Santo
utilizava o jornal com meio de comunicação para atingir um determinado público.
Não podemos negar que a violência era presença constante no cotidiano p
dos indivíduos ligados aos terreiros, no entanto, esses indivíduos buscavam a
formas de recriá-lo, buscando espaços para realizar suas obrigações religiosas. e
Isso nos mostra que os sujeitos das religiões de terreiros no século XIX não eram
meros expectadores passivos de toda sorte de violência que se abatia sobre eles. a:
É preciso lembrar que na primeira matéria apresentada aqui sobre Manoel S
Teu Santo, foi registrada a apreensão de duas cartas que seriam publicadas, e
segundo informações do jornal. Esse dado nos mostra que os sujeitos ligados a
encantaria possuíam formas de ocupar o espaço público e que os jornais eram re
um mecanismo de comunicação que Manoel Teu Santo lançava mão para fazer d
a sua comunicação pública. sé
No entanto, não podemos generalizar. Sobretudo porque não conhecemos O
por meio dos periódicos a realidade de todos os terreiros, pais e mães de santo
do século XIX. Os jornais também dão conta de inúmeros outros terreiros ou
in
locais em que os pajés atendiam, mas essas referências não passavam de pe-
quenas denúncias ou suspeitas.
Sobre esses casos muito pouco se sabe, e até mesmo se de fato eram
terreiros propriamente ditos ou apenas salas em que os pajés consultavam.
Não é possível sequer identificar se tais denúncias não eram fruto de suspeitas
infundadas e assim os jornais funcionavam como divulgadores de informações
sobre a pajelança, com o sentido de reprimi-la.
Observa-se, no entanto, no caso de Manoel Teu Santo, que os jornais foram
reconfigurados de um mecanismo unicamente de repressão para um mecanismo de
comunicação entre ele e aqueles que mantinham com ele algum vínculo religioso
: a : : : en
criando assim um canal de comunicação efetivo que inclusive aponta para a neces-
sidade dos historiadores e demais pesquisadores repensarem a noção de sujeitos Es
. . “4 se . .. L
silenciados, ponderando a possibilidade desses indivíduos fazerem sua voz ser di
ouvida por outros mecanismos, ou até mesmo os mecanismos usuais da repressão. Até

417
414 Pacotilha, 25 fev, 1896.
A FESTA DE NOSSA SENHORA
DOS REMÉDIOS DE 1850 A 1875
EM SÃO LUÍS DO MARANHÃO
Milena Rodrigues de Oliveira

À festa de Nossa Senhora dos Remédios era muito conhecida e importante


para a cidade de São Luís na segunda metade do século XIX. Afirmamos isso
a partir das várias referências em periódicos acerca da festa e de alguns livros
escritos na época que fazem menção ao festejo nas suas mais variadas dimensões.
Nossa Senhora dos Remédios era bastante invocada no século XIX e
assim era chamada em “consequência da crença e da profunda fé de que Nossa
Senhora é medianeira de todas as graças, espirituais e materiais, da saúde do
corpo e da alma, concedida por Deus aos homens”*!º.
A devoção dos Remédios é bem antiga e foi difundida na Lusitânia por
religiosos franceses da Ordem Hospitalar da Santíssima Trindade e Redenção
dos Cativos. Estes religiosos estiveram em Lisboa nas primeiras décadas do
século XIII, e o nome Remédios também remete ao auxílio desenvolvido pela
Ordem aos Enfermos e Necessitados*!*.
A iconografia dos Remédios varia de acordo com o lugar em que está
inserida, porém a imagem tradicional e mais conhecida,

[...] se apresenta de pé, com o Menino Jesus nu, sentado em seu braço
esquerdo, e a mão direita estendida como para socorrer os seus devotos.
Está vestida de uma túnica, um manto que envolve o corpo e um véu curto
cobrindo parcialmente os seus cabelos... Sob seus pés aparecem cabeças
de anjos (como em quase todas as imagens desta invocação) e tem na mão
direita uma fita azul. Nem ela nem Jesus são coroados e, ás vezes, tanto
ela quanto o menino seguram bentinhos nas mãos.*””

As imagens tinham a importante função de educar as pessoas que eram


em sua maioria iletradas, no caso específico de Nossa Senhora observamos

415 MOREIRA, Francisco Adail Martins. Festas litúrgicas de Jesus e Maria. São Paulo: Edições Loyola,
2008. p. 209.
416 SOUZA, Daniela dos Santos. Devoção e Identidade: o culto de Nossa Senhora dos Remédios na
Irmandade do Rosário de São João del-Rei — séculos XVIII e XIX. 2010. 180 f. Dissertação (Mestrado).
Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de São João Del Rei, 2010. p. 123.
417 MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil: história — iconografia — folclore.
Petrópolis: Vozes, 1998. p. 425.

dai
156 EN

diferentes fases da sua vida através das iconografias. Nossa Senhora dos Re-
médios era uma das imagens mais pn que abarcava o menino Jesus e pc
todo o seu simbolismo. nK

A Festa dos Remédios e a sua história em São Luís cc

se
Em São Luís a irmandade foi fundada em 1799 e respeitava o simbolismo di
da iconografia mais tradicional dos Remédios. Tinha uma igreja própria, era
cc
composta basicamente por comerciantes e no seu compromisso que data de 22
es
de julho de 1854 não há restrição sobre o grupo étnico que deveria ingressar na
irmandade, porém essa limitação era feita segundo ditames da tradição local.
No compromisso citado anteriormente não percebemos menção a detalhes
pr
da festividade, no máximo informações sobre a obrigatoriedade da missa e da
de
novena, o que é detalhado diz respeito ao dia da festividade que aconteceria

no segundo domingo de outubro, onde seria celebrado, que no caso seria na
capela de Nossa Senhora e quem seria responsável pelos rendimentos da
irmandade para organização da festa'!s,
Cada membro deveria fazer uma oferta para a plena realização do festejo.
Por exemplo, o juiz não poderia ultrapassar quatrocentos mil réis, “a da juíza
de trezentos mil réis, a dos mesários de quinze mil réis, e de cada mordoma
a de dez mil réis, não se fixa oblação a respeito dos officiais”*"º. Os oficiais
prestavam serviço a irmandade por isso não tinham obrigação de contribuir. es:
Além dessas quantias a festa também contava com a prática de esmolas para já
o seu financiamento. da
O compromisso da Irmandade dos Remédios não tinha muitos artigos co
a respeito da festa, por esta situação resolvemos ampliar nosso olhar com a ec
introdução de jornais. No Maranhão o jornalismo literário apareceu quase ao
mesmo tempo em que o político, e isso aconteceu em “decorrência da intensa Re
atividade tipográfica que ali se instalou em começos do século XIX”*2. tey
Um dos primeiros jornais a circular em São Luís no século XIX foi O tin
Conciliador do Maranhão. Sua data inicial foi no mês de abril de 1821 e tinha m
um caráter político que se manifestou “na preocupação do governo provin- lite
cial, que o patrocinava, em aplacar a crescente exaltação dos ânimos entre
portugueses e maranhenses, que viviam permanente litígio”. pe
qui
418 MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura do. Lei nº 360, de 22 de julho de 1854. Aprova 0
Compromisso da Irmandade da Virgem Santíssima Senhora dos Remédios desta cidade. Coleção de
Leis, decretos e resoluções da província do Maranhão. São Luiz: Typographia Const.de |. J, Ferreira, 422
1854. Arquivo Público do Estado do Maranhão. 423
419 Ibid., 1854, 424
420 MARTINS, Ricardo André Ferreira. Breve panorama histórico da imprensa literária no Maranhão 425
oitocentista. Dissertação (Mestrado em Comunicação).UFSM. jul./dez. 2010. p. 108. 18 v. 426
421 JORGE, Sebastião. A imprensa do Maranhão no século XIX (1821-1900). São Luís, 2008. p. 21.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 157

Outros jornais também apareceram nesta década de cunho político,


podemos enumerar O Argos da Lei, de 1825, de Odorico Mendes, O Censor,
no mesmo ano, de João Antônio Garcia Abranches, e Farol Maranhense, de
1827, de José Cândido de Moraes e Silva*2. Todos esses periódicos citados
continuaram exaltando possíveis rixas entre portugueses e maranhenses.
As revistas literárias como mencionado anteriormente também tiveram o
seu espaço de atuação em São Luís e os seus assuntos eram variados podendo
discorrer sobre “lavoura, saúde, costumes, ciência, filosofia, religião, indústria,
comércio, geografia e, sobretudo, literatura”*?. Essas revistas tiveram alguns
escritores famosos, dentre eles podemos citar João Lisboa.
Vários jornais com a temática literária começaram a circular no século
XIX. Podemos mencionar o Jornal de Instrução e Recreio que foi um dos
primeiros a se direcionar para esses temas, e o Eco da Juventude que circulou
de 1864 a 1865 ajudando ainda mais a consolidação desse estilo de jornal.
Notamos que ele,

Chegou ao n 24, somando 192 páginas. Não deu explicações para o


encerramento das atividades. Como jornal que se anunciava dedicado à
literatura, foi mais além, tratou da filosofia e da cultura de um modo geral
e com certa competência”.*?

Na segunda metade do século XIX vários fatores contribuíram para que


esses periódicos se tornassem mais acessíveis para o grande público. Um que
já foi mencionado foi o aumento da indústria tipográfica, outro “foi o aumento
da oferta de espaços destinados à publicação de textos diversos e propagandas
comerciais”*?. Esses fatores ajudaram na circulação de jornais mais baratos
e de mais fácil entendimento para a população em geral.
Na nossa pesquisa encontramos muitas informações sobre a festa dos
Remédios nesses jornais literários. Um desses foi intitulado de A Sentinela e
teve alguns subtítulos. O primeiro foi Jornal Semanário em 1855, já o segundo
tinha como subtítulo a expressão Social e Recreativo no ano de 1856. Essa
mudança aconteceu “porque a folha tornou-se um periódico mais dedicado à
literatura, com publicações de poemas e pequenos romances”,
No ano de 1855 o jornal tinha a seguinte estrutura, começava com uma
pequena introdução, esboçava logo depois uma tabela, um romance histórico
que provavelmente foi reproduzido de outro jornal, uma poesia e na última

422 Ibid,, p. 24.


423 MARTINS, Ricardo André Ferreira. Op. cit., 2010, p. 110.
424 JORGE. Op. cit., 2008, p. 284.
425 MARTINS. Op. cit., 2010, p. 127.
426 MARANHÃO, Secretaria de Estado da Cultura do. Catálogo de jornais maranhenses do acervo da
Biblioteca Pública Benedito Leite: 1821-2007. São Luís: Edições SECMA. p. 33.
158 EM

página um resumo intitulado A Semana, no qual descrevia os principais acon-


tecimentos da sociedade ludovicense. No ano de 1856 a estrutura do jornal va
mudou em alguns aspectos, notamos a partir desse momento a continuidade da do
introdução, da poesia, a criação de mais uma seção de poemas e duas seções na
novas uma era nomeada de Pensamentos e a outra Advertência. (se
Notamos também outras diferenças de um ano para outro. Em 1855 o Li:
jornal era publicado todos os sábados, custava 6000 réis por ano e aceitava esc
qualquer artigo sobre o tema do jornal. Para ser publicado o artigo precisava pe:
ser mandado para a redação em carta fechada. Em 1856 o ano de assinatura
continuava custando 6000 réis, porém, a publicação passava a ser aos do- 0e
mingos e o nome da tipografia foi citado logo no início da primeira página. vin
Percebemos a partir dessa informação que a tipografia queria alcançar alguma er
projeção evidenciando seu nome logo no início do jornal.
cor
Outro periódico que retratou com detalhes a festa dos Remédios foi O nãc
Ramalhete. Este se intitulava um jornal literário e recreativo com periodici-
ger
dade bimensal, começou a ser redigido em 1863, era impresso na Tipografia
do Comércio de Augusto Vespúcio e custava 800 réis por bimestre. A orga-
dic:
nização do jornal seguia a seguinte estrutura: geralmente começava o jornal
tinl
com um provérbio que continuava nos números seguintes, depois vinha uma
par
seção chamada Zig zag que comentava sobre a sociedade ludovicense, depois
ere
outra seção conhecida como Remessa que tinha a mesma característica da
anterior, uma outra coluna intitulada como Variedade e em alguns números
list:
dos periódicos encontramos uma poesia para finalizar.
asu
Outro noticiário conhecido na época era o Publicador Maranhense, ele
ao j
“era noticioso e oficial, que se dizia neutro em relação aos partidos”?”. A par-
mai
tir de 1854 surgiu outro subtítulo intitulado folha oficial, política, literária e
AF
comercial. Este jornal começou a ser redigido em 1842 e prolongou-se até
1886 tendo sua periodicidade variável.
sim]
A assinatura variava de 12 mil réis por ano a 7 mil réis por semana com critc
pagamento adiantado, a assinatura tinha também algumas vantagens, uma delas irôn
era a possibilidade de anunciar no jornal sem nenhum pagamento adicional, e Li
notamos que esse jornal era bem mais dispendioso do que outros que foram
citados, isso se deu pela projeção do Publicador Maranhense que na época ente
era um dos mais procurados para publicação de anúncios e outras notícias. époc
Os assuntos eram abordados no jornal de uma maneira variada e correspondiam Age

[...] A cartas do leitor, fuga e prisão de escravos, transcrição de matérias


429
nacionais estrangeiras, textos assinados, notícias e comentários sobre
430
as Câmaras Municipais e teatro, anúncios de objetos perdidos, produtos
embarcados para o exterior, venda de imóveis,cavalos e rapés*2. 431
432
427 Ibid., 2007, p. 24.
428 JORGE. Op. cit. 170. 433

EEE
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 159

Além destes assuntos o Publicador Maranhense foi um dos primeiros a


valorizar os folhetins, que eram fragmentos de romances que eram publica-
dos diariamente nos jornais. Podemos citar alguns que ficaram conhecidos
na época como Corsários no tempo de Filipe II, por V. Joly, A Pena de Talião
(sem autor), Um duelo, de Carlos Melville, Eduardo Vernilier etc.'?? João
Lisboa foi um dos primeiros redatores do Publicador Maranhense sendo que
escreveu diversos folhetins, dentre todos um vai interessar diretamente nossa
pesquisa e se chamava A festa de Nossa Senhora dos Remédios.
Antes de falar desse conhecido folhetim gostaríamos de comentar sobre
o escritor da obra, João Francisco Lisboa. Este nasceu em Pirapemas na pro-
víncia do Maranhão em 22 de março de 1812, muito jovem veio para São Luís
e resolveu se dedicar aos estudos como autodidata. Dentre os mestres mais
conhecidos podemos citar Sotero dos Reis; apesar desse empenho João Lisboa
não frequentou nenhum curso superior, mesmo assim adquiriu uma cultura
geral extraordinária, sobretudo no campo dos conhecimentos históricos*º.
João Lisboa teve uma intensa atividade jornalística, escreveu em perió-
dicos diversos, dentre os mais conhecidos tivemos a Crônica Maranhense que
tinha um caráter mais explícito de “jornal de combate, especialmente criado
para defender os interesses do seu partido, o Partido Liberal, à data oprimido
e reproduzira a história viva das lutas políticas que defiuíram na província”*!.
Apesar dessa defesa ao Partido Liberal João Lisboa foi dispensado da
lista de candidatos a deputado geral em 1840, esse acontecimento influenciou
a sua retirada da política e do jornalismo, porém em 1842 João Lisboa retorna
ao jornalismo dessa vez sendo redator do Publicador Maranhense. Os folhetins
mais conhecidos dessa época foramA Festa de Nossa Senhora dos Remédios,
A Festa dos Mortos ou a Procissão dos Ossos e Teatro São Luiís*?,
O folhetim A festa dos Remédios foi publicado em 1851 e não era uma
simples descrição, na verdade foi “registro dos costumes de uma época, é es-
crito em estilo ágil, às vezes poético e sempre penetrante, além de finalmente
irônico”*3, Notamos os mais diversos grupos sociais interagindo nessa festa
e Lisboa trouxe uma visão divertida e irônica de como isto acontecia.
Nossa pesquisa utilizou o livro A festa dos Remédios para auxiliar no
entendimento da estrutura do festejo. Além do folhetim utilizamos jornais da
época específica do nosso recorte e também o romance O Mulato de Aluízio
Azevedo, apesar de ter sido escrito em 1881 ele nos traz informações que

429 - Ibid., p. 170.


430 NISKIER, Arnaldo. João Francisco Lisboa: o timon maranhense. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2012. p. 25.
431 Ibid., p. 30.
432 LISBOA, João Francisco. A Festa de Nossa Senhora dos Remédios. São Luís. Editora Legenda,
1992. p. 12.
433 Ibid., p. 12.
160

não foram mencionados nem no folhetim e muito menos nos jornais sobre a
festa dos Remédios.
Aluízio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís em 14 de
abril de 1857, da infância à adolescência estudou em São Luís e trabalhou como
caixeiro e guarda livros, logo depois morou no Rio de Janeiro e frequentou a
Imperial Academia de Belas Artes, porém em 1878 seu pai faleceu e Aluízio
retornou para sua cidade iniciando assim a carreira de escritor.
Em 1880 Aluízio lança o seu primeiro romance Uma Lágrima de Mulher e
no ano seguinte lança O Mulato. No início foi muito bem recebido e contou até
com propaganda enganosa em A Pacotilha (naturalmente sob encomenda), onde
se inserem “assinados com desconhecidos nomes de mulher, missivas e sueltos,
falando sobre o novo livro, gabando-o, enaltecendo-o, pondo-o nas nuvens...”**,
O romance retrata a cidade de São Luís e os seus moradores em uma
perspectiva realista, essa maneira de observação desagradou grande parte da
sociedade maranhense inclusive D. Ana Leger, “amiga de longa data, que
figura — todos o sabem — como sendo aquela bisbilhoteira levada da breca que
circula no volume com o nome de D. Amância Souselas...”4º.
Este livro também comenta sobre a festa dos Remédios. César Marques
explicou em sua obra a origem dessa festa. Segundo ele em 8 de maio de 1719
o Capitão Manoel Monteiro de Carvalho tomou posse de um terreno para
construção de uma ermida, porém um escravo fugido matou nesse lugar o seu
senhor fazendo com que os romeiros abandonassem a devoção. O governador
Joaquim de Mello e Póvoas em 1775 mandou abrir uma larga estrada que hoje
é conhecida como Rua dos Remédios, esse ato reavivou a antiga devoção, e
com o passar do tempo a capela foi destruída, e o ermitão Francisco Xavier
“em 1818 conseguiu através de esmolas que ela fosse construída novamente.
Essa reconstrução da capela possibilitou que a festa dos Remédios
acontecesse todos os anos a partir de 1818. César Marques também explica
em seu livro sobre outra reforma que aconteceu no século XIX, mais espe-
cificamente em 1860.

Este concerto consta — de cinco grandes arcos, sendo na separação da


capella mor do corpo da igreja, dous em cada uma das paredes lateraes,
occupando os lugares das tribunas, do pulpito e das janelas; quatro salões,
correspondentes aos arcos laterais, e que estão mobilhados; o altar mór
e o retábulo todo novo; dous altares também novos e elegantes, o côro
reformado, e substituída a antiga grade de madeira por outra de ferro?”.

434 MENEZES, Raimundo de. Aluízio Azevedo: uma vida de romance. São Paulo: Editora Martins, 1958.
p. 122.
435 Ibid., p. 122.
438 MARQUES, César. Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão. Typographia do Frias,
1870. Disponível em: <www2.senado.leg.br/bdsflitem/id/221726>. Acesso em: 29 out. 2015. p. 482.
437 Ibid., p. 173.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 161

No século XX ainda aconteceram grandes reformas e a Igreja atual é um


produto dessas inúmeras reconstruções que foram financiadas por comerciantes.
O largo dos Remédios está localizado na Praça Gonçalves Dias sendo que a
capela ainda contém “grades de ferro por dois lados e uma escada que desce
para a praia do mar”.
Depois destas considerações sobre a origem da festa dos Remédios, sobre
os jornais da época € seus escritores, vamos começar a analisar o festejo es-
pecificando de forma detalhada todas as suas etapas. A etapa inicial acontecia
um mês ou mais antes da festa oficial, as senhoras compravam fora do país
as vestimentas que seriam usadas e aguardavam com ansiedade a chegada
desses navios que traziam “os chapéus, as luvas, os vestidos, as quinzenas,
as cassas, as sedas, as plumas, as rendas, as fitas, as flores, as pomadas, os
cheiros, todos mais gêneros*º.
As roupas tinham um significado social muito forte para quem comprava,
elas serviam como códigos específicos de determinados grupos, portanto se uma
mulher ou homem usava sedas, plumas, luvas importadas especialmente para a
festa dos Remédios, isto remetia a uma admiração ou até mesmo sentimentos
não tão agradáveis de determinados segmentos que não podiam fazer o mesmo.
O transporte dessas roupas era muito caro, mas mesmo assim acontecia
com frequência todos os anos. Freitas, personagem do livro O Mulato fala o
seguinte: “mete pena o dinheirão que se gasta naquela festa! Faz dó ver as sedas,
os veludos, as anáguas de renda, arrastarem-se pela terra dos Remédios”.
Apesar da terra descrita por Freitas as pessoas queriam ir com suas roupas
mais luxuosas e não se importavam com alguns empecilhos.
Os sapateiros, alfaiates e modistas eram muito procurados nas vésperas
do festejo e de acordo com os jornais da época o devoto usava uma roupa
para cada dia da festa dos Remédios. Isto abrangia as novenas e somente
encerrava com o último dia de festa. A preocupação também perpassava
pelos cabeleireiros que faziam penteados à moda francesa e as joalherias
famosas como “Chevance, Ferdinand Fouquet, Thoverez e Krause que
vendiam muitos contos em jóias. Além delas, o ourives e cravador Pierre
Borel atendia aos caprichos femininos confeccionando bijoux”*!. As roupas
novas não eram propriedade exclusiva dos grupos mais abastados. Notamos
“o maior luxo possível, tanto do lado das famílias, como mesmo das clas-
ses inferiores; de sorte que por toda a parte só se ouvia o ciciar de lindas,
custozas e variadas sedas”**?2.

438 Ibid., p. 482.


439 LISBOA. Op. cit. 1992, p. 28.
440 AZEVEDO, Aluisio. O Mulato. São Paulo: Editora Escala Ltda, 2008. p. 73.
441 LACROIX, Maria de Lourdes Lauande. A fundação francesa de São Luís e seus mitos. São Luís:
Editora UEMA, 2008. p. 51.
442 ASENTINELLA. Op. cit., 1855.
162

As roupas novas não ficavam restritas ao segmento livre da sociedade.


Aluísio Azevedo fala que “as pretas minas cativas, ou forras surgem com os
seus ouros e as suas ricas telhas de tartaruga, as suas ricas toalhas de rendas,
suas belas saias de veludo, suas chinelas de polimento, seus anéis em todos
os dedos”*?. A festa era o lugar para ver e ser visto por isso era importante
causar uma boa impressão.
A ostentação do largo também foi assunto de jornais e obras da época.
Segundo Aluízio de Azevedo a ermida era toda branca, seus bancos estavam
circundando o local, muitos ariris, muita bandeira, muito foguete e muito
toque de sino”. César Marques também faz referência a um largo todo em-
bandeirado à espera do público, também no mesmo local encontramos “toda
sorte de estabelecimentos volantes”.
A bandeira era um sinal de que a festa iria acontecer neste local, os fo-
guetes e os toques de sino anunciavam momentos importantes da festividade,
já os estabelecimentos volantes eram uma das formas de se alimentar durante
a festa, porém era limitado a uma parcela do público, “enfim todo aquelle,
que para lá levar dinheiro, encontrará muita cousa boa em que empregá-lo”$.
No dia acertado começavam as novenas que eram anunciadas a partir de
foguetes, toques de sinos e outras possibilidades. João Lisboa divide a novena
em dois momentos, a primeira era a externa e abrangia o povo que logo ao
anoitecer afluía de todos os pontos da cidade em direção ao Largo dos Remé-
dios, uns parados, outros passeando e cada um vestido segundo seu capricho**”.
As festas religiosas que aconteciam em São Luís mobilizavam um grande
público. A dos Remédios era uma das mais conhecidas da cidade, portanto,
quando chegava setembro as pessoas já estavam preparadas para todas as suas
“etapas. A novena citada por João Lisboa abrangia uma grande manifestação
porque era o momento inicial e daria o ritmo das outras etapas do festejo.
Nas novenas as comidas também já começavam a ser vendidas. João Lis-
boa até faz um comentário significativo sobre a mudança da alimentação, que
anteriormente as barracas serviam costelas, lombos de porco, tortas de camarão,
escabeches, guisados de peixe, mas agora são servidos “doces leves e delicados,
as queijadas, os bolinhos de amor, os pães de ló de macaxeira, canudinhos,
capelinhas, rebuçados, melindres e suspiros, a que todo mundo se atira”.
Ele atribui essa mudança na alimentação à “civilização” que condena
certos tipos de comida que supostamente favoreceriam indigestões. Realmente

443 AZEVEDO, Aluísio. Op. cit., p. 74.


444 Ibid., p. 73.
445 — Ibid., 1855.
446 Ibid., 18.
447 LISBOA. Op. cit, 1992, p. 29.
448 — Ibid., p. 30.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 163

os doces tomaram uma projeção muito grande nas festas religiosas. Em ter-
mos de comparação as barracas de doce se tornaram até mais numerosas do
que as demais. No livro O Mulato observamos outra descrição detalhada dos
doces que eram vendidos nas festas: “trouxas de doce seco, corações unidos
de cocada, navios de massa de mastreação de alfenim, jurarás dourados...
frascos de compota de murici, bacuri, buriti”**º.
João Lisboa comenta sobre essa mudança no hábito da alimentação no
ano de 1851. Já Aluízio Azevedo fala sobre o mesmo assunto trinta anos
depois. Provavelmente no final do século XIX essas mudanças alimentares
eram bem mais evidentes do que em 1851. Aluízio Azevedo nem comenta
sobre os lombos de porco e escabeches. Se ele não escreveu sobre isso talvez o
número de barracas não fosse suficiente para merecer uma descrição no livro.
Estas doceiras também recebiam encomendas e aproveitavam a festa para
aumentar os seus rendimentos. Outra atração era o cosmorama, uma espécie de
aparelho óptico de ampliação no qual eram observadas vistas e paisagens, em
1851 “a entrada custava meia pataca”*º. No jornal A Sentinella o cosmorama
também é mencionado mais com outro nome, Galeria Optica, a entrada nesta
época tinha aumentado para 80 réis mas a vista continuava sendo interessante
abrangendo “cidades da Europa: assim como o funeral do Grande Napoleão
na ilha de S. Helena; o que nos causou bastante impressão”*.
A Galeria Optica oferecia atrações que também eram recorrentes dentro da
festa de largo, o comércio associado com diversão pública. A Galeria poderia
até ser considerada uma atração cultural dentro da festividade. De fato, as
imagens transportavam as pessoas para uma outra realidade e na época poucos
em São Luís tinham a possibilidade de usufruir de uma viagem internacional.
As bebidas também eram vendidas nas barracas e tinham até letreiro com
os dizeres “Refrescos e petiscos”. Ao chegar neste local havia duas grandes
portas que direcionavam para um botequim. Nele havia licores de todas as
qualidades*2, A bebida era frequente dentro das festas porém encontramos
poucos relatos acerca desse assunto. O jornal A Sentinella tinha um viés lite-
rário talvez por isso tinha uma liberdade maior para fazer certos comentários.
A Igreja nesta época queria controlar todas as manifestações profanas
dentro da festa. Se as danças e músicas acontecessem elas deveriam ser “o
espelho das demandas eclesiásticas. Tudo com muito bom tom e decência”.
A bebida era vista com muita desconfiança, mas mesmo assim não foram
impedidas totalmente de circularem dentro da festividade.

449 AZEVEDO, Aluísio. Op. cit., 2008, p. 74.


450 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 32.
451 A SENTINELLA. Jornal Semanario, 4 série. 28 jul. 25 agos. 01 set. 13 out. 23 out. 8 dez. 15 dez.
1855. Localização: REG 195 M/R 135, Biblioteca Pública Benedito Leite.
452 Ibid., 1855.
453 DEL PRIORE, Mary Lucy. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 103.
Na festa dos Remédios os Educandos Artifícies também tocavam com
certa regularidade. Além deles tocava também a banda de cometas do Corpo
Fixo, porém nem todos gostavam da sua melodia, pois os “instrumentos pare-
cem velhos e rachados, e estão certamente desafinados. Será prudente aplicar
o ouvido e a atenção a outros objetos” (LISBOA, 1992, p. 32). Notamos a
partir das nossas pesquisas que eles eram bem requisitados talvez por isso os
instrumentos estavam gastos e precisavam ser repostos.
De outro lado, podemos supor que João Lisboa talvez queria destratar a
banda de cornetas do Corpo Fixo e a forma de fazer isso era através da crí-
tica aos instrumentos que segundo ele pareciam velhos e rachados, portanto,
é necessário observar os diferentes contextos de uma obra para conseguir
perceber as intenções do autor.
Também havia segundo Lisboa a novena interna que acontecia dentro da
Igreja. Ele diz que esta era pequena e estava atulhada de pretas e mulatas. As
brancas frequentavam as tribunas, as janelas e até os púlpitos. A preferência
por estas salas acontecia porque era um ambiente mais fresco e mais propício
para a meditação religiosa, ao contrário do interior que era muito quente***.
Notamos a partir dessas informações que a diferenciação acontecia de uma
maneira informal dentro da própria Igreja e cada grupo pelo menos na visão
de Lisboa respeitava os limites.
O interior dos templos deveria ser um espaço de silêncio, porém, per-
cebemos pelo relato acima que não era bem assim. Esta preocupação com
a meditação no interior dos locais sagrados esteve relacionado às reformas
impostas pelo Concílio de Trento que delimitou o templo como um local que
deveria estar preenchido com absoluta piedade e devoção**.
Com o passar dos dias as novenas se tornam mais movimentadas, in-
clusive durante esses dias também haviam apresentações de cantores, “além
dos conhecidos, cantou mais o Sr. Lisboa, e no dia da festa a Sra. D Eugenia
Camara”*%. A música era muito importante para o festejo dos Remédios e
poderia ser produzida através de bandas como também por meio de cantores
contratados especialmente para a ocasião. Ainda nessa mesma edição o Padre
Brito mostrou sua voz no festejo e ganhou admiração do jornal.
Na tarde que precedia a festa, o largo estava bem movimentado e mui-
tas pessoas dispensavam a novena daquela noite para não perder lugar na
festa principal. Enquanto a novena acontecia, “vamos nós diver-tir-nos, e
passear... passear não, dar e receber encontrões, rodear, saltar e romper as

454 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 35.


455 DEL PRIORE. Op. cit., 2000, p. 108.
456 O RAMALHETE. Jornal Litterario e Recreativo, ano |, 01 agos. 26 agos. 10 out. 6 nov. 1863.
Localização: REG 190 MIR 145, Biblioteca Pública Benedito Leite.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 165

densas e enredadas filas de bancos e cadeiras que por ali estão”. No dia do
festejo todos queriam se fazer presentes de alguma forma. Em virtude disso
Aluízio Azevedo compara o largo dos Remédios a uma espécie de romaria na
qual as famílias levavam consigo “potes de água, cuscuz, castanhas assadas,
biscoitos e o mais“.
A novena era muito requisitada por todas as pessoas que acompanhavam
a festa dos Remédios, porém, no último dia a curiosidade com relação à festa
de largo era maior, por isso acontecia essa mobilização de um grande público
que vinha de todas as partes da cidade ou até mesmo do interior do estado para
acompanhar o festejo. A comida nos potes mencionada por Aluízio Azevedo
era uma possibilidade para quem não podia comprar ou queria economizar.
O balão também era um elemento importante dentro da festa e era anun-
ciado nos jornais da época como atração, geralmente era visto por todos no final
da novena e era esperado com muito entusiasmo pela maioria das pessoas que
acompanhavam a festa. Isto acontecia talvez pela curiosidade em presenciar
“a obra de uma associação de artistas, e produto de uma subscrição nacional,
ou provincial”. Durante o festejo vários balões poderiam ser soltos. Temos
o exemplo de 1855 quando às sete horas soltou-se um balão e às oito outro
que acabou incendiando-se**º.
Os foguetes também eram usuais dentro da festa e eram utilizados desde
o período colonial, geralmente abriam a celebração da festa, anunciavam a
partida de cortejos processionais, mas também à sua chegada à Igreja ou à
praça onde se davam os principais eventos da festa'”". As opiniões sobre os
fogos até convergiam nessa época. João Lisboa disse que o melhor do fogo
foi a brevidade com que ardeu*2, já A Sentinella informava que aquele ano
“foi um dos peiores que até hoje temos visto quemarse nesta cidade“.
Percebemos pelos periódicos que com o passar do tempo não houve uma
melhora na estrutura dos fogos, na verdade eles até atrapalharam. “No dia
da festa houve fogo artificial, o qual em parte esteve sofrível; porem algumas
peças houverão cujo efeito não se podião ver, porque era só fumaça”**. A festa
dos Remédios era uma das mais conhecidas e extravagantes de São Luís, por
isso a população esperava ver muitos fogos e quando isso não acontecia as
páginas dos jornais eram uma forma de mostrar este descontentamento.

457 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 43.


458 AZEVEDO, Aluízio. Op. cit, 2008, p. 75.
459 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 33.
460 A SENTINELLA. Op. cit.
461 DEL PRIORE. Op. cit., 2000, p. 38.
462 LISBOA. Op. cit, 1992, p. 45.
463 A SENTINELLA. Op. cit, 1855.
484 O RAMALHETE. Op. cit, 1863.
166

As festas da época tinham o costume de anunciar a sua programação


em jornais de grande circulação. Nestes anúncios os fogos tinham um caráter
ostentatório e serviam como uma vitrine, no qual “brilharão algumas peças
novas — como seja huma figurando hum lindo barco de vapor, que fará todos os
movimentos como se estivesse navegando”“*. Portanto, para os organizadores
da festa o fogo de artifício pensado por eles era algo totalmente inovador, ao
contrário das outras visões que observamos anteriormente.
Os bailes também aconteciam nas vésperas e nas noites posteriores. João
Lisboa não foi convidado para nenhum baile por isso ele não explicou de forma
detalhada como eles aconteciam, mas mesmo assim expressou sua opinião: “Re-
provo estes abusos, desvios, excrecências e superfetações que desnaturam a festa,
e contrariam a sua índole e caráter todo popular, universal e sem exclusões”.
O baile era a representação da esfera privada da festa e Lisboa se incomodava
com esse aspecto. O Ramalhete também fez referência a baile, citou danças e
um rapaz que cantou com uma maravilhosa voz novas modinhas'”, porém não
tivemos informação se esse baile era privado ou público.
João Lisboa ao falar dos bailes comentou que estas manifestações des-
naturam o caráter popular da festa. O termo “popular” como foi mencionado
na introdução por Peter Burke nos passa uma falsa impressão de unidade, na
verdade a “cultura popular” tem divisões dentro dela mesma. Partindo dessa
perspectiva não havia unidade dentro do baile, o que ocorria era que grupos
mais privilegiados faziam a sua própria festa e procuravam limitar possíveis
intromissões que não eram desejadas naquele momento.
O periódico A Sentinella também menciona a existência de bailes, mais
especificamente dois grandes bailes no Salão de Flora. Neste lugar foi cons-
tatado um grande número de senhoras e de público variado**. Não foi men-
cionado no jornal se era necessário convite para participar do evento, porém
sabemos que foi muito disputado a entrada no Salão.
Em um segundo momento do folhetim, João Lisboa detalhou a festa dos
Remédios logo depois de terminada as novenas, ele disse que acordou cedo
e caminhou em direção a Rua do Sol chegando em breves minutos a Rua dos
Remédios. Quando chegou era mais ou menos cinco e meia e já encontrou
várias pessoas”, que foram até a Igreja dos Remédios porque seria realizada
naquele dia a missa que daria início a festa oficial.

465 O PUBLICADOR MARANHENSE. Folha official, política, litteraria e comercial. Ano IX, 4,30 jul.,
15,27, 31 agos., 14, 20,21, 24 set., 10,19,22 out., 10, 19 dez.1850. Localização: REG 216 MIR 71-
112, Biblioteca Pública Benedito Leite.
466 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 45.
467 O RAMALHETE. Op. cit., 1863.
468 A SENTINELLA. Op. cit., 1855.
469 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 46.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 167

As missas tinham algumas diferenciações acerca do seu cerimonial.


Existiam as solenes que eram celebrações pontificais ministradas por bispos
ou qualquer outra autoridade da Igreja, a rezada que tinha como foco as preces
litúrgicas e “por último, a missa cantada em posição intermediária, incluía
orações cantadas e alguns pormenores do ritual solene”. A missa dos Re-
médios provavelmente se enquadrava neste último caso.
Aluízio Azevedo faz na sua obra uma exposição do quanto as pessoas
gastavam para participar das missas e das outras etapas da festividade,

Para a missa das seis e para a missa das dez na quais, dizia ele circuns-
pectamente, reúne-se a nata da nossa judiciosa sociedade!.. Era tudo em
folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse dia todos luxavam, desde o
capitalista até a ralé caixeiro de balcão: velho ou moço, branco ou preto,
ninguém já ja , sem se haver preparado da cabeça aos pés; não se encon-
trava nenhuma roupa velha, nem coração triste”,

Porém, nem todos que apareciam no largo dos Remédios estavam in-
teressados em assistir à missa. Alguns nem entravam no recinto da Igreja e
ficavam do lado de fora observando. João Lisboa até sugeriu “mandar servir
meia dúzia de bandejas ao escolhido público que ali se costuma congregar
àquelas horas”*?2. A missa durante a festa era bem movimentada por isso era
até difícil conseguir entrar no recinto se não se chegasse cedo.
Os periódicos também gostavam de descrever a missa e a decoração da
Igreja. Segundo um deles a Igreja estava forrada toda de damasco, ricamente
adornada e bastante iluminada. Nesse dia havia muitas pessoas e uma excelente
música que se deixava ouvir no alto do coro*”. Realmente a decoração deveria
estar bem luxuosa porque o jornal A Sentinella não fazia muitos elogios nas
suas páginas a festa dos Remédios.
Muitas pessoas conhecidas e importantes de São Luís frequentavam esta
missa. Além das pessoas a imagem de Nossa Senhora também chamava aten-
ção, ela estava no seu altar “com a boca cheia de riso, o semblante banhado
de inefável e suavíssima bondade, como que alegre e satisfeita de receber as
melodiosas homenagens das amáveis cantoras, prometendo a todas favor e
proteção”**. Notamos uma descrição bem subjetiva da imagem, como se ela
pudesse se emocionar com as saudações prestadas.
Logo depois do término da missa acontecia a famosa festa de largo de
Nossa Senhora dos Remédios. Uma das principais atividades do festejo era a

470 TAVARES, Mauro Dillmann. /rmandades, Igreja, devoção no sul do império do Brasil. São Leopoldo.
Oikos, 2008. p. 192.
471 | AZEVEDO. Op. cit. p. 73, 2008.
472 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 53.
473 ASENTINELLA. Op. cit., 1855.
474 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 56.
168

venda ou troca das medidas e medalhas da Virgem, “as medidas são fitas de
uma vara de comprimento, de toda largura, e de todas as cores, em que se vêem
estampados em ouro ou prata o nome e a imagem de Nossa Senhora”*?. Todos
os participantes da festa utilizavam essas medidas e medalhas como um orna-
mento e haviam preços diferenciados para quem podia pagar um pouco mais.
A preocupação com as medidas e medalhas era tanta que foi colocado
em 1850 um anúncio avisando do extravio de uma relação de pessoas que
compraram medidas e medalhas, havia uma suspeita do que poderia ter acon-
tecido, “sabe-se que por engano se embrulharão nela duas medidas e duas
medalhas, porém ignora-se o nome da pessoa que a levou”. Não tivemos
informação se foi encontrado a relação, porém percebemos o empenho da
irmandade em realizar isto.
O leilão também era usual dentro da festa dos Remédios. Geralmente a
barraca era construída perto da Igreja com toldo de lona e era separada por
uma cerca, os objetos que faziam parte do leilão eram em sua maioria doa-
dos pelos próprios devotos e eram variados: “doces, plantas, flores, frutas,
segredos, galanterias, animais domésticos, selvagens, terrestres, aquáticos,
anfíbios, aves e quadrúpedes, xerimbabos e bichinhos”*”.
O leilão também era realizado com peças de maior valor, porém essa
doação que foi notícia no Publicador Maranhense era direcionada em primeiro
lugar aos membros da Irmandade dos Remédios. “Roga por tanto aos mes-
mos Irmãos e Irmãs, e mais devotos da mesma Senhora hajão de concorrer
com alguma joia para o leilão que terá lugar no dia da festa”**. Realmente a
Irmandade incentivava a caridade dos seus membros e isto poderia ser feito
também na festa religiosa.
As práticas de caridade visavam sensibilizar o devoto do seu papel en-
quanto membro efetivo da Igreja e das irmandades, a quantidade de doações
era bem significativas e demonstrava o empenho das pessoas em fazer parte
destas doações, portanto o mais importante era disponibilizar algo que era
seu, mesmo que financeiramente não tivesse um valor alto.
Além dos leilões aconteciam também a venda dos mais variados ma-
teriais e rifas, inclusive algumas pessoas aproveitavam a oportunidade para
rifar objetos seus, temos o caso de um jovem que “fazia a sua fortuna, rifando
diversos objectos, taes como, espelhos, bonecos, caixas de colchetes, ..., e
muitas outras cousas pelo diminuto preço de 320 rs por cada peça”*?”. O leilão
e as rifas também podem ser enquadradas como práticas comerciais dentro das

475 Ibid., p. 58.


476 O PUBLICADOR MARANHENSE. Op. cit., 1850.
477 LISBOA. Op. cit. 1992, p. 59.
4718 O PUBLICADOR MARANHENSE. Op. cit., 1851.
479 | ASENTINELLA. Op. cit, 1855.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 169

festas religiosas, sendo assim a devoção era importante mas outros aspectos
também eram valorizados e procurados dentro destes festejos.
Não existiam somente barracas improvisadas para as rifas. Algumas eram
até bem criativas e havia “uma grande barraca, completamente iluminada por
balões chineses, e em cujo topo tremulava uma grande bandeira nacional,
dir-se-hia ser ali a habitação retirada de algum China, porém não, era uma
outra casa de rifa”,
Na festa também havia pessoas que prestavam algum tipo de serviço, os bar-
beiros eram um exemplo e a sua decoração consistia em “velhos panos de Igreja,
e decoradas com alguns quadros santos, e outros profanos; com alguns relógios
de tempo imemorial, e espelhos já usados”*!, No século XIX havia os conheci-
dos barbeiros que faziam as funções de médicos e cirurgiões, mas notamos que
provavelmente os barbeiros mencionados no jornal eram os que cortavam cabelo.
O entretenimento era uma preocupação dos organizadores, além dos
cavalos de madeira existia também “dous balouços, onde aqueles pelo dimi-
nuto preço de 40 réis se divertião até mais não poder”**2. A festa era uma das
poucas possibilidades de aproveitar estas atividades e apesar do preço eram
bastante requisitadas pelo grande público.
A festa de largo como foi mencionado anteriormente associava diversão
com comércio, sendo assim os barbeiros se faziam presentes nestas locali-
dades como uma forma de obter clientes, já o entretenimento para crianças e
para outros públicos era necessário porque possibilitava uma diversidade de
atividades em uma mesma festa, dessa forma a tendência era atrair um grande
número de pessoas, mesmo que não estivessem diretamente interessados nas
atividades religiosas de Nossa Senhora dos Remédios.
As possibilidades de entretenimento marcavam o aumento do número
de pessoas no largo. Se anteriormente o público se dividia entre as novenas,
agora todos queriam se fazer presentes no auge da festa, dentre eles encontra-
mos “pretos, brancos, homens, mulheres, grandes e pequenos, rindo, falando,
assobiando, grunhindo, balando, miando, exprimindo, e denunciando enfim
por todos os sons”*8. A festa era um lugar de sociabilidade e nem sempre esse
encontro acontecia de uma forma harmoniosa.
A cultura segundo Thompson é uma arena de elementos conflitivos, a
festa não é diferente e o controle que se tentava exercer sobre ela ratifica a
festa como um local de disputas. No ambiente festivo uma diversidade de
pessoas se faziam presentes. Isto possibilitava uma troca de informações que
enfatizava ainda mais a diversidade entre os grupos que frequentavam o festejo.

480 Ibid., p. 58.


481 Ibid., p. 58.
482 Ibid., p. 58.
483 LISBOA. Op. cit., 1992, p. 60.
170 El

A partir das oito horas o largo estava totalmente tomado de pessoas que
vinham de todos os cantos da cidade e traziam com elas “equilibradas nas

vetimoao
cabeças imensas pilhas de cadeiras, e com estas cadeiras, formam-se grandes
rodas mesmo na praça ao ar livre”**. Estas cadeiras facilitavam a reunião de
grupos que conversavam sobre os mais variados assuntos tendo como pano-
rama a visão da festa. Em 1855 o jornal A Sentinella estimou que em uma
das noites havia cerca de cinco mil pessoas no largo.

04
Este mesmo jornal explicou em suas páginas que o largo ficava mais
tomado de pessoas um pouco mais cedo às sete horas da noite. Contudo, ele
concorda com Aluísio Azevedo quando ele diz que pessoas de todas as con-
dições frequentavam juntas o mesmo lugar**. Apesar da festa dos Remédios
ser financiada pelos comerciantes isto não impedia o livre trânsito de todo
estilo de público dentro da festa.
Este horário da noite era ideal para a iluminação de todo o largo, era armado
de grandes e “deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da santa e
os emblemas do Comércio e da Navegação, que Nossa Senhora dos Remédios
é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa”. A santa era a grande
atração da noite por isso ela deveria constar em todos os recantos do largo.
Os arcos transparentes com a imagem da santa não foram mencionados
em nenhum jornal que pesquisamos. Pelo relato de Aluízio Azevedo, os arcos
pareciam ser luxuosos e representavam toda a riqueza dos organizadores da
festa. Nós acreditamos que isto acontecia pela devoção que os comerciantes
tinham a Nossa Senhora dos Remédios e também pela possibilidade de de-
monstrar todo o seu poderio econômico através dos símbolos.
Aluísio Azevedo explicou que no apogeu da festa soltavam-se balões de
papel fino, vendia-se roletos de cana, sorvetes, sentiam-se arder charutos de
canela, gastavam-se os últimos cartuchos, ardia-se o fogo de artifício, então
tocavam as bandas de música todas ao mesmo tempo e no meio disso tudo
aparecia a imagem de Nossa Senhora dos Remédios, sendo assim,

Foguetes de lágrimas voam aos milhares pelo espaço; o céu some-se.


Todos se descobrem em atenção á santa, e abrem o chapéu de sol com
medo das tabocas. Há uma chuva de luzes multicolores; tudo se ilumina
fantasticamente; todos os grupos, todas as fisionomias, todas as casas,
tomam sucessivamente, as irradiações do prisma. Durante esta apoteose
o povo se concentra numa contemplação mística, terminada a qual, está
terminada a festa!”

484 AZEVEDO. Op. cit., 2008, p. 75.


485 ASENTINELLA. Op. cit., 1855.
486 AZEVEDO. Op. cit., 2008, p. 75.
487 Ibid.,p. 75.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 171

O apogeu da festa envolvia uma gama de acontecimentos e uma das prin-


cipais era o grande número de fogos de artifício. Aluísio Azevedo faz menção a
chapéus de sol que eram colocados como forma de proteção contra as tabocas,
estas eram um estilo de foguete caseiro que era colocado num gomo de bambu,
tudo isto era necessário na época para uma melhor contemplação em torno da
imagem de Nossa Senhora dos Remédios. As festividades proporcionavam
prazer para quem participava e atendia “as necessidades dos mais fervorosos
fiéis católicos, através do estímulo dos sentidos da visão (“ricos dourados e
“ornamentos elegantes” e da audição (“harmonia dos cânticos”).
Depois da aparição de Nossa Senhora, os participantes segundo Aluísio
Azevedo saíam em disparada cada um querendo chegar mais rápido em casa,
havia assim

Gritos, gargalhadas, gemidos, rinchos de cavalos, tabuleiros de doces


derramados, vestidos rotos, pés esmagados, crianças perdidas, homens
bêbados; mas de súbito, como por encanto, esvazia-se o largo e desa-
parece a multidão”.“*º

Essa descrição tão inusitada do desfecho não encontramos em nenhum


jornal da época e demonstra o outro lado da festa que era o seu final. O des-
fecho de uma festa também ajuda a entender um pouco do seu contexto, se o
festejo terminava dessa forma rápida com a maioria dos participantes querendo
chegar ansiosamente nas suas casas, isto demonstrava que o mais importante
era a aparição de Nossa Senhora dos Remédios e se isto já havia acontecido
não havia mais motivo de continuar no festejo.
A Festa dos Remédios demonstra a diversidade da própria sociedade da
época, por um lado notamos os financiadores do festejo que mostravam todo
- O luxo da sua decoração, por outro observamos o público em geral, que apesar
de não ser comerciante era figura frequente dentro da festa e era indispensável
para medir se aquele evento era socialmente relevante ou não.

Considerações finais

Falar sobre festas religiosas em São Luís é percorrer um caminho que


leva a muitas informações cujas conexões apenas uma pesquisa histórica
atenta poderá indicar. A quantidade de referências nos jornais sobre as fes-
tas não significava necessariamente informações sobre a estrutura de como
acontecia o ritual, geralmente as notícias eram relacionadas a um festejo que
iria acontecer em uma determinada data e era estipulado de forma superficial
as atrações, exceção a esta regra observamos somente nos jornais literários.

488 TAVARES. Op. cit, 2008, p. 220.


489 AZEVEDO. Op. cit., 2008, p. 76.
172

Observamos que as festas de largo eram eventos muito esperados ao


longo do ano e muitas vezes era a única oportunidade de diversão para uma
grande parcela da população, por isto percebemos uma preparação em torno
do festejo que perpassava pela escolha da roupa, pelo dinheiro que poderia
ser investido nos leilões ou em qualquer outra atividade da festa, enfim a
sociedade ludovicense apesar de diversa se sentia reconhecida nestas mani-
festações e podemos confirmar isto através do grande público que se fazia
presente nestas festas religiosas.

Cc

re

A
1
MES
e
e
e.
HERÓIS EM TEMPOS DISTINTOS:
Gonçalves Dias, Manuel Beckman e rituais
cívicos no Maranhão na Primeira República

Wendell Emmanuel Brito de Sousa

Considerações iniciais

Gonçalves Dias e Manuel Beckman foram elevados à galeria de heróis


republicanos locais no alvorecer das primeiras décadas do século XX. Dentre
os inúmeros personagens que figuraram no calendário cívico maranhense, o
poeta timbira e o Bequimão, simbolizaram projetos e concepções de república
totalmente distintos. A memória evocada, em ambos os casos, tornou-se uma
síntese ou, de certo modo, uma tentativa de grupos e instituições em remodelar
a imagem da região e de seu povo.
Compreendo o contexto republicano no Maranhão, em especial na capital
São Luís, como um intenso processo de invenção das tradições. À luz das
considerações feitas por Eric Hobsbawm'”, as tradições inventadas seriam um
conjunto de práticas, reguladas por regras ou aceitas de forma aberta, direcio-
nadas e orientadas para a construção de normas e valores comportamentais
através da repetição. Com isso, as práticas inventadas teriam como objetivo
criar uma certa continuidade com o passado através de ações no campo do
ritualístico e simbólico.
A Primeira República foi marcada por um intenso trabalho de reconstrução
dos padrões sociais, para os quais as velhas tradições do Império brasileiro
configuravam-se incompatíveis. Para tanto, o regime republicano investiu em
um arsenal simbólico e ritualístico com o intuito de conectar o novo cidadão
aos novos horizontes instituídos pelo regime. No Maranhão não seria diferente,
o investimento no arsenal simbólico nesse período foi fundamental para que o
novo regime político vertesse — através dos rituais e símbolos criados — coesão
política, social e cultural.
De maneira geral, as tradições inventadas no estado, convergiram em
políticas de memória. Em São Luís, os usos políticos no campo mnemô-
nico promoveram importantes modificações simbólicas como: alteração na

490 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das Tradições: Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
174 EM TEA

nomenclatura de ruas e praças, inauguração de monumentos e a organização civil


de um calendário cívico. O controle da memória tornou-se um importante o qu
mecanismo na produção de identidades sobre o Maranhão e o maranhense. data
Nesse sentido, o Maranhão e o maranhense não devem ser compreendidos (AC
como categorias naturalizadas. “Ao contrário, trata-se de uma região e de um tipo dos
regional editados por narrações identitárias que vêm sendo continuamente reescritas loc:
erevistas[...]º!. Assim, de certo modo, o uso da memória, enquanto ação pretérita, oq
eleva tais narrativas a um vínculo naturalizado e contínuo com o passado rememorado. Dic
Ao problematizar conceito de memória coletiva, o antropólogo Joel Candau*”? de
elabora o conceito de metamemória, ou seja, “um enunciado que membros de um
grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os pa
membros desse grupo”. Preocupado em desconstruir o seu sentido horizontal, Candau alt
chega à conclusão de que o entendimento da memória coletiva deve perpassar por
to
uma leitura de suas clivagens histórias, sociais e culturais.
fc
As considerações feitas pelo pesquisador permitiram-me, metodologi-
camente, trilhar outros caminhos possíveis para compreensão das transfigu-
rações e variantes ritualístico-simbólicas das comemorações no Maranhão, a
partir especificamente de São Luís. Tal entendimento me foi possível por dois
caminhos: o enredo (narrativa) e o contexto histórico em que se realizaram
algumas comemorações sinalizaram para pluralidade e uma tentativa de (re)
escrita identitária da região.
Trato desta questão aqui porque considero de suma importância para o
debate historiográfico a respeito da Primeira República do Maranhão, tendo
em vista que grande parte dos trabalhos locais negligenciaram o mosaico dos
rituais e comemorações cívicas. Nesse contexto de diversidade, mas também de
disputa simbólica pelos rumos identitários é que Gonçalves Dias e Bequimão
ascendem ao quadro cívico e comemorativo na capital.
Localizados em um mesmo contexto político, o culto aos “heróis” está
situado simbolicamente, em tempos e concepções de República que, de certa
maneira, se anulam. O texto tem como objetivo compreender as concepções
de república, bem como as transfigurações narrativas dos rituais e comemo-
rações, através de uma análise comparativa das celebrações em homenagem
a Gonçalves Dias e Manuel Bequimão em São Luís na Primeira República.

Gonçalves Dias: um presente que olha para o passado

As comemorações a Gonçalves Dias surgiram no contexto da fundação


de algumas agremiações e publicações de obras cujo objetivo era promover o

491 BARROS, A. E. A. Invocando deuses no templo ateniense: (re) inventando tradições e identidades no
Maranhão (1940-1960). Outros Tempos, São Luís, v. 3, n. 3, p. 156, 15 jun. 2006.
492 CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. p. 24.

Saddam
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 175

civilismo*? no Maranhão no início do século XX. Nos primeiros anos de 1900,


o quadro cívico de personalidades locais foi montado. Além do calendário de
datas nacionais e locais, agremiações como a Associação Cívica Maranhense
(ACM) sentiram a necessidade incluir no calendário de comemorações os feitos
dos homens da terra. Basicamente o que se viu foi a assunção de personalidades
locais que, direta ou indiretamente, estavam ligados a literatura. Em suma,
o quadro inicial de heróis da terra foi formado por nomes como: Gonçalves
Dias, Odorico Mendes, João Lisboa, José Candido de Moraes e Silva, Gomes
de Souza, Sotero dos Reis, Felliciano Antônio Falcão e Belarmino de Mattos.
Segundo Mata**, todo culto cívico está associado a heróis'?, princi-
palmente, em momentos de rupturas, onde o culto cívico emerge como uma
alternativa. No caso maranhense, nome de maior projeção, Gonçalves Dias
tornou-se símbolo maior da República no Maranhão. Segundo Barros, o poeta
foi “o edifício mítico das letras maranhenses. Não à toa usa-se como sinônimo
de “terra ateniense” a expressão “terra gonçalvina”. Em diversas festas, espe-
cialmente as cívicas, ele é lembrado, seu busto é espaço de rememoração, de
reatualização da crença”.
A glorificação em homenagem a Gonçalves Dias também reativou velhos
lugares da cidade de São Luis. A vida do poeta renascia em seu local fundador:
o antigo largo dos Remédios que, a partir de 3 de novembro de 1900”, passou
a se chamar praça Gonçalves Dias. O local foi espaço mais cultuado da capi-
tal durante os primeiros anos do regime republicano. Além das celebrações
em homenagem ao poeta, o logradouro será ponto de partida e chegada de

493 Sobre as agremiações, a mais famosa foi a Associação Cívica Maranhense (ACM). Fundada em 1901,
a agremiação foi composta por membros das elites locais, sobretudo, por integrantes da Oficina dos
Novos. Esta outra agremiação era formada por intelectuais que aspiravam as glorias literárias, assim
como, soerguer o Maranhão do estado de letargia e decadência. Deste grupo, surgiriam anos depois
os Novos Atenienses. A respeito das obras publicadas, a mais famosa foi Instrução cívica (1900) de
Barbosa de Godois. O livro tinha como objeto pôr fim a ausência de materiais que pudessem prover
a educação cívica no estado.
494 MATA, Sérgio da. Passado e Presente da Religião Civil. Varia História, Belo Horizonte, 2000, n. 23,
p. 180-20, Jul. 00.
495 A título de exemplo, na Revolução francesa o herói evocado foi Marat, instituído como santo e
mártir. Nos Estados Unidos os chamados founding fathers são cultuados como a gênese da nação.
Em Portugal as glorificações ao poeta Luís de Camões estavam aliadas ao sentimento de defesa
das colônias portuguesas em 1880. Recomento como leitura o livro de Fernando Catroga para
a compreensão dessas experiências. CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito: religião civil e
comemoracionismo (EUA, França e Portugal). Fortaleza: Edições NUDOC/ Museu do Ceará, 2005.
Além do trabalho de Sérgio da Mata, uma reflexão sobre a religião civil. MATA, Sérgio da. Passado
e Presente da Religião Civil. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 23, p. 180-20, Jul. 00.
496 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Op. cit., 2006, p. 108.
497 Deixo claro que as homenagens ao poeta timbira sem foram recorrentes. Logo após sua morte,
algumas obras foram produzidas em sua homenagem, o que culminou com a construção do
monumento em memória as suas contribuições literárias em 1873, embora os cortejos e rituais
cívicos tem iniciado suas atividades nos primeiros anos de 1900.
176 EMTI

inúmeras outras celebrações cívicas**. Defronte ao seu monumento ocorreram gios


recitais de poesias, discursos e espetáculos musicais. aal
Arecorrência das celebrações em homenagem ao poeta, realizadas sempre Ad
na data de seu falecimento, evidencia a importância de sua memória para alguns do:
setores sociais, sobretudo aqueles ligados as elites. Dentre as comemorações, tor
as de maior apelo foram as que marcariam o sexagésimo aniversário de morte
do literato no ano de 1904. O episódio foi descrito pelos jornais como uma por
verdadeira sagração póstuma em prol das glórias e tradições literárias. mú
Além das celebrações ocorridas na capital, outras comemorações foram em
organizadas respectivamente nos municípios de Caxias e Barra do Corda.
A capital federal também prestou suas homenagens com o batismo de uma
rua em homenagem ao poeta. A divulgação ficou a cargo da ampla e irrestrita
cobertura dos jornais. O cortejo cívico seguiu por algumas ruas da cidade nas
primeiras horas da manhã, alguns fogos de artifício anunciaram o início do
translado. Nele estiveram representadas todas as classes e categorias sociais,
com destaque para os representantes das instituições locais, assim como os
integrantes da Oficina dos Novos. Também foram utilizados alguns objetos,
como uma coroa de louros e um pedaço do navio em que morreu o poeta*”.
O cortejo teve o seu destino final na praça Gonçalves Dias.

Junto a estátua falaram Antônio Lobo e alferes do 5º batalhão de Infantaria,


Flávio e Belteza.
Usaram igualmente a palavra dois alunnos do Externato Gonçalves Dias
e do collegio 15 de novembro — um recitando bellissima poesia, outro
oferecendo uma corôa, que foi depositada aos pés da estátua.

fi
Os discursos de encerramento são parte importante dos cortejos cívicos.
e
Segundo Ramalho, tais ações estão relacionadas a uma antiga tradição reli-

498 Em uma das primeiras celebrações cívicas organizadas, a Associação Cívica Maranhense...
promoveu as comemorações do 13 de maio de 1901, conhecida como o dia da fraternidade entre os
brasileiros. O local escolhido para o ponto de partida do cortejo foi a praça Gonçalves Dias de onde
discursou no pé da estátua Fran Pacheco sobre o tema. A escolha do local, não foi aleatória, já que
passou a ser recorrente sintetizar a figura do poeta as três raças brasileiras. Em primeiro lugar, a sua
descendência biológica era sempre exaltada como expressão máxima da brasilidade. Mestiço, filho
de europeu com a mestiça Vicência Ferreira. Em segundo lugar, o poeta soube assaltar a beleza do
indígena. O cortejo cívico que circulou por outros pontos como o então Largo do Carmo, Rua Grande,
Largo do Palácio, rua Grande e Largo do Quartel (praça Deodoro) contou com um carro alegórico
intitulado de LIBERDADE seguido por oficiais e civis pelas ruas e praças da capital fazendo paradas
em lugares estratégicos onde discursaram alguns intelectuais.
499 Para maiores informações sobre o cortejo, recomendo a consulta do periódico Pacotilha de 3 de
ra

novembro de 1904.
500 PACOTILHA, 03 nov. 1904.
cm

501 RAMALHO, Daniel Felipe Quinzerreis. Comemorações do 25 de abril: política e memória (1975-
1986). 2015. Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea). Universidade de
cm

Lisboa, 2015.
.—
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 177

giosa, onde os participantes desses cortejos confirmam seus laços e vínculos


a algo ou a alguém que de alguma forma modificará sua vida para melhor.
Ademais, era muito importante que esses discursos fossem proferidos ao pé
do monumento, “onde se reafirmavam os valores e se defendia a unidade em
torno dos objetos que os levavam aquele lugar simbólico”,
No seguir da programação, pela tarde, a praça Gonçalves Dias foi tomada
por um número significativo de pessoas. Por volta das 16 horas, bandas de
música entoaram o hino do Maranhão para a colocação da pedra comemorativa
em frente ao monumento do poeta.

A solenidade da colocação da Pedra Commemorativa, que foi assistida


pelas autoridades civis e militares, representantes dos municípios do inte-
rior e de diversa corporações da capital, effectuou-se ás 6 horas da tarde.
O sr. Governador do estado depositou no cofre para isso destinado, um
exemplar da polyanthéa Gonçalves Dias e dois de cada jornal da capital
que dedicou a sua edição de hontem á data da morte do cantor do Tymbiras.
Deitado o alludido cofre no logar competente, foi, pela Commissão Cen-
tral, colocada a Pedra Commemorativa, que é de mármore acinzentado,
tendo gravada em letras douradas, a inscripção por nós publicada há dias.
[...] Pronunciou ligeira alocução alusiva ao acto, o dr. João Nepomuceno
Machado, representante de Caxias.
De outros oradores que usaram a palavra, três apenas conseguimos ouvir:
o dr. Domingos Americo, o talentoso poeta Corrêa de Araujo, que recitou
vibrante poesia, e um representante da colônia syria.'

Sepultada em frente ao monumento do poeta, a pedra comemorativa car-


regava consigo os seguintes dizeres: PEDRA COMMEMORATIVA em glori-
ficação a Gonçalves Dias — II- XI- MCMIV. O sentido da monumentalização
está associado à prática de legitimidade, ou seja, recorre-se a memória do morto
com o objetivo de reforçar determinados papeis e hierarquias sociais. O poeta
Viriato Corrêa, em depoimento, sintetizou as pretensões dos evocadores:

[...] Invejei-o como vivo, mas invejei-o também depois de morto, aurelado
pela Fama, immortalisado pelo Monumento, eternizado pela Immortalidade.
[...] E desejei que todo aquelle povo me fitasse demoradamente quando eu
estivesse a deitar meu peito para ficarem sabendo que eu era alguma coisa
homem já tinha aspirações na vida, porque já sabia compreender um Poeta.**

Para os evocadores, mais do que rememorar e impedir o esquecimento


do poeta, a memória de Gonçalves Dias auxiliaria no reforço de posições
sociais legitimadas através de um continuísmo com o passado rememorado.

502 RAMALHO, Daniel Felipe Quinzerreis. Op. cit., 2015, p. 46.


503 PACOTILHA, 04 nov. 1904.
504 Clorificação a Gonçalves Dias, 1904.
178

A metamemória gonçalvina, ou seja, a narrativa criada pelos evocadores

tmoadmi
foi de suma importância, sobretudo porque tais manifestações ecoavam a
reconstrução dos tempos áureos, frente a uma ideia de letargia e decadência
do presente. Para tanto, comemorar o poeta timbira possibilitaria reviver as
glórias pretéritas através da ideia/imagem da Athenas brasileira.

mus
Ainda hoje, podemos dizer que o Maranhão e o maranhense expressam
ideias ligadas a erudição e ao letramento. Acredito que o relampejo dessas
ideias no presente, (re)escritas e (re)imaginadas, sejam reflexo de uma leitura


cristalizada que, em parte, negligenciou a historicidade da memória coletiva
local. Nesse sentido, como podemos interpretar os rituais e comemorações
cívicas em homenagem a Gonçalves Dias?
Pois bem, vimos que a metamemória gonçalvina foi instituída através
de comemorações e rituais cívicos em que estiveram envolvidas as agre-
miações literárias. Tais celebrações contaram com a participação de outros
setores sociais (militares, políticos e representantes da sociedade civil). O 3
de novembro seria uma espécie de ode à “restauração das tradições” a partir
da memória-sintese da Athenas brasileira, Gonçalves Dias.
Nesse sentido, no que diz respeito aos papéis sociais, as comemorações
projetaram os letrados como responsáveis pela formação dos novos cidadãos,
assim como teriam eles função primordial na transformação da realidade local.
Esse direcionamento narrativo foi construído através de uma ideia de tempo
regressivo. A memória do poeta timbira reforçava um sentimento de desilusão
em torno do presente. A solução seria incorporar as qualidades do literato
para pôr fim ao estado de letargia em que se vivia na região. O drama cênico
das comemorações possibilitaria transformar o passado em futuro possível.
Acredito que, para além do reforço dos papéis e hierarquias sociais, a
partir da ideia de continuísmo com uma suposta tradição literária, cabe aqui
um estudo mais ligado a psicologia social e o apelo que a metamemória
gonçalvina alcançou na primeira década do século XX. Apesar de amplos
defensores do novo regime político, havia claramente um descontentamento
por parte das classes dominantes locais em relação aos rumos econômicos
e sociais ocasionados pela implementação do regime republicano no Brasil.
O culto a Athenas brasileira, através da memória de Gonçalves Dias,
indica que, para grande parte das elites locais, o regime republicano parecia
ser uma ideia fora do lugar. Apesar de não ter significado mudanças profundas
no cenário político do estado, o que indicava a manutenção das hierarquias e
do poder político na mão velhos atores, havia um claro desconforto em razão
da ausência de qualquer projeção do estado no novo rearranjo político que
pôs fim ao Império brasileiro.
Por outro lado, o culto ao poeta que cantou o exilio não estaria rela-
cionado a uma experiência concreta de isolamento da capital maranhense?
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 179

Em um estudo comparado dos mapas da capital, entre os séculos XIX e XX,


Camêlo** conclui que o difícil acesso a capital, somente possível pela via
fluvial, pouco modificou o aparelho e a vida urbana de São Luís.
Historicamente, a urbe esteve muito mais próxima de suas conexões
atlânticas. A via marítima, utilizada de forma frequente ao longo do século
XIX no desembarque de escravos e no embarque de moradores rumo a Eu-
ropa, tem suas atividades diminuídas entre o final do Oitocentos e no inicio
do novo século. Em termos de estrutura urbana, os tempos republicanos não
trouxeram grandes mudanças no aparelho urbano de São Luís*º. A cidade
ainda estava ligada ao “acervo arquitetônico — cerca de 3,5 mil construções
que ocupam uma área aproximada de 250 hectares — foi tombado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1955507.
Em suma, o culto ao poeta que cantou a saudade da terra não se traduzia
em uma experiência de isolamento, frente as modificações impostas pelo
regime republicano no primeiro quartel do século XX? A experiência do
urbano não expressaria uma ideia da cidade enquanto impossibilidade? Tais
indícios, apresentados anteriormente, apontam para uma resposta positiva
a essas questões, sobretudo se compararmos a outras experiências urbanas
que modificaram a estrutura urbana e introduziram novas posturas sociais no
início do século.
Embora a memória do poeta traduzisse grande parte dos anseios e an-
gústias das classes dominantes locais, o quadro cívico de heróis da terra foi
reconfigurado apresentando novos personagens que refletiriam na implementa-
ção de outras ideias e projetos na tentativa de conectar o estado a experiências
e simbologias mais próximas do regime republicano.

Manuel Beckman: Um herói para presente-futuro

Próximo ao cais da Sagração, no então parque 15 de novembro, foi inau-


gurado o monumento em homenagem a Manuel Beckman. Para a ocasião, foi
preparado um ritual cívico em memória ao “rebelde”. No dia 28 de julho de

505 CAMÉLO, Júlia Constança Pereira. Fachada da Inserção: a saga da civilidade em São Luís do
Maranhão. São Luís: Café & Lápis; Editora UEMA, 2012.
506 Comparando os dados populacionais do censo de 1890 e recenciamento republicano de 1900.
Percebe-se uma estagnação da população de São Luís. Em parte, a estagnação pode ser explicada
a partir de uma série de epldemias que acometeram a cidade. Muitos habitantes, inclusive, deixaram
a capital e rumaram para o interior da ilha. Para maiores informações recomendo a leitura: Jesus,
Matheus Gato de. Negro, porém republicano: investigações sobre a trajetória intelectual de Raul Astolfo
Marques (1876-1918). 2010. Dissertação (Mestrado em Sociologia). FFLCH-USP São Paulo, 2010.
507 SELBACH, Jeferson Francisco. Mobilidade urbana nos Códigos de Postura de São Luís — MA.
In: ALCANTARA JUNIOR, José O.; SELBACH, Jeferson Francisco (Orgs.). Mobilidade urbana em
São Luís. São Luís - MA: EDUFMA, 2009. p. 23.
180 EM TEM

1910 a região foi tomada por autoridades civis, militares, instituições esco-
lares, intelectuais e curiosos. A simbologia em torno de Bequimão, em nada tas gl
lembrava as evocações a Gonçalves Dias. O rito consistia em transformá-lo parec
em mártir da liberdade. Segundo a metamemória, o Bequimão teria sacrificado os ho
sua vida na tentativa de libertar o Maranhão. do gc
Além disso, as homenagens tinham um público alvo: o herói deveria mem
servir como exemplo aos militares maranhenses. Para tanto, seguiu-se uma simb
ritualística que pudesse também reforçar a autoridade do então governador do M
Luiz Domingues. O evento também contou com o discurso de Antônio Lobo, as aç
representando o corpo civil. Barbosa de Godois** compôs a letra da música
em homenagem ao “mártir”, que foi cantada pelas alunas da Escola Normal. trou>
O monumento foi decorado com vasos de flores e uma placa com a seguinte das «
mensagem: Manuel Bequimão e o povo maranhense 28 de julho de 1910; a pa:
Aqui foi enforcado Bequimão 2 de novembro de 1685”. Nos meses seguin- se le
tes, novas homenagens foram feitas. No dia de finados, data do possível É ne
enforcamento do mártir, o local foi novamente utilizado como um espaço de alizs
ritualização por ordem do governador Luiz Domingues. Segue um trecho da poss
nota: “O governador do estado mandara decorar com flores, durante todo o ume
dia de manhã, com as bandeiras da União e do Estado em funeral, o monu- már
mento que assinala, o local onde foi enforcado nesse dia, em 1685, o mártir
da liberdade Bequimão”*!9. legi
Pois bem, falamos inicialmente que simbolismo em torno da metame- de?
mória dos rituais ao rebelde se distinguia daqueles ofertados à memória de sen'
Gonçalves Dias. Quais tipos de interpretações ou hipóteses para a assunção ao |
do Bequimão ao panteão de heróis locais? Acredito que esta narrativa mne- do
mônica esteja mais próxima das concepções de República do centro político cor
do país, pois se distinguia do clima melancólico dos rituais pertencentes à
tradição ateniense. tór
Segundo Schwarcz”!!, o regime republicano seria o momento de con-
512
solidação econômica e política da região Sudeste. Cidades como São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte tornaram-se modelos e reflexos da nova po-
lítica instituída com advento do novo regime. As três capitais sofreram com
intervenções urbanas — Belo Horizonte foi projetada para ser a nova capital
de Minas Gerais — que tinham com finalidade absorver as novas concepções
econômicas, políticas, sociais e culturais.

508 Barbosa de Godois também é o autor da letra do hino do Maranhão a partir da lei Nº 552, DE 30 DE
MARÇO DE 1911 determinou uma concorrência pública para a definição da letra.
509 PACOTILHA, 01 jul. 1910.
510 PACOTILHA, 01 nov. 1910.
511 | SCHWARCZ, Lilia Moritz. População e Sociedade. In: SCHWARCZ, Lilian Moritz (Org.). A abertura
para o mundo: 1889-1930. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 3 v.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 181

Na capital maranhense, enquanto a memória de Dias reavivava as supos-


tas glórias do passado as quais sentiam-se vinculados os evocadores, ao que
parece, a memória de Bequimão estaria muito mais preocupada em guarnecer
os horizontes republicanos, sobretudo porque sofreu uma forte intervenção
do governo do estado que tratou de assegurar um caráter mais oficioso às co-
memorações. Uma marca das celebrações do período foi o investimento em
símbolos que pudessem legitimar ainda mais os rituais. A bandeira e o hino
do Maranhão foram dispositivos cênicos de suma importância. Legitimaram
as ações simbólicas, assim como a autoridade dos evocadores.
A aproximação das comemorações locais com o enredo cívico nacional
trouxe consigo uma concepção mais historicista. Se, por um lado, grande parte
das celebrações a Gonçalves Dias reforçava uma leitura mítica do passado
a partir da imagem da Athenas brasileira, celebrações como a de Bequimão
se legitimavam através de uma concepção mais cientificista sobre o passado.
É nesse período que Ribeiro do Amaral*!? surge como um consultor das ritu-
alizações. Exercendo o papel de historiador, foi o intelectual que indicou o
possível local da execução de Bequimão. De maneira geral, apesar de ter sido
uma comemoração cívica destinada diretamente aos militares, a memória do
mártir reforçava também, como vimos, outros papéis sociais.
Embora a História, enquanto ciência, teve um papel fundamental na
legitimação das comemorações ao mártir, a narrativa em torno da memória
de Manuel Beckman apresentou uma ideia de tempo progressivo ao criar um
sentido crescente de expectativas sobre o presente e o futuro. Os ritos cívicos
ao herói — considerado o primeiro mártir na luta pela independência econômica
do Maranhão — construídos através do esquema barbárie versus civilização,
convertiam-se a uma lógica que negava o passado, tido como opressor.
Este tipo de enredo, portanto, seria uma tentativa de construir laços his-
tóricos com a tradição republicana. A memória de Bequimão, forjada pelo

512 Ribeiro do Amaral nasceu em São Luís em 3 de maio de 1853 e faleceu na mesma cidade em
30 de abril de 1927. Foi educador grande parte de sua vida exercendo a função de professor de
História e Geografia do Liceu Maranhense, onde também esteve como diretor. Além disso, fundou
o Colégio São Paulo onde também lecionou. Foi diretor da Imprensa Oficial e colaborador do Diário
Oficial. Ribeiro do Amaral era um homem arquivo, grande colecionador de documentos sobre
Maranhão. Parte desse acervo, os jornais, se encontra na Biblioteca Benedito Leite para consulta. Na
República, publicou várias obras e artigos nos jornais entre o final do XIX e início do século XX todas
relacionadas ao Maranhão principalmente sob a temática histórica. Apesar de uma produção intensa
e diversificada a respeito da história do estado sem dúvida sua obra que recebeu mais atenção foi
A fundação do Maranhão em ocasião das comemorações do tricentenário da capital maranhense
em 1912. A obra ganhou edições póstumas sendo a mais recente a publicada em 1911. Ribeiro
do Amaral foi presidente da Academia Maranhense de Letras e membro do Instituto Histórico e
Geográfico do Maranhão. Além de consultor, no governo Luís Domingues — de quem era amigo -
Ribeiro do Amaral foi diretor da Biblioteca Pública entre os anos 1910 e 1913. A partir do governo
Domingues, o professor passou ser figura de destaque no teatro cívico da capital como autoridade
reconhecida por todos quando ao tema história do Maranhão.
182 EM TE

sacrifício, se aproximava de outro personagem elevado à categoria de herói expt


nacional: Tiradentes. Por outro lado, este enredo que negativou o passado am
em detrimento do presente, configura-se como parte do projeto republicano com
que tinha como objetivo “promover a “regeneração” da nação através da
criação de um “novo povo”. Tal plano visou abarcar todas as esferas da vida Co
pública no sentido de modificar a estrutura urbana das cidades, a economia
e as relações sociais”.
Retomando a análise das comemorações em homenagem a Manuel Beck-
man, considero que a música de Ignacio Billio - composta para a inauguração ace
do monumento — ilustrará as considerações aqui apresentadas. Go
nai
Ao Beckman do
Onde as creanças, pálidas, tremiam
ante o supplicio deshumano, atroz
venhão as creanças ledas e sorriam
E” outra a scena! Em vez de luto há festa!
E” a alegria a nota de semblante!
E em vez da força um monumento atesta
As luzes novas — num porvir distante.
(PACOTILHA, 01 de ago. de 1910)

A composição enaltece o jogo de oposições: tristeza/felicidade, luto/

pio
festa, velho/novo, sofrimento/resistência, esquecimento lembrança. O poema
se utiliza dos contrastes para comparar os dois momentos: a da execução de
Bequimão marcada por tristeza e dor e as comemorações enaltecidas pela

ES
festa e lembrança no presente. Além disso, havia uma atmosfera de evolução

O
social e cultural nas estrofes de Bíllio. O regime republicano trouxe consigo o

3
vislumbre de um futuro melhor através da liberdade conquistada e a assunção
da memória do mártir, outrora condicionada ao esquecimento.
Por fim, acredito que a possibilidade de realização do ritual, muito mais
próximo das concepções de República do centro político país, tenha a ver com
algumas modificações, ainda que tímidas, no aparelho urbano de São Luís.
No início de 1910, a cidade já contava com algumas fábricas, além disso as
políticas sanitárias diminuíram as ocorrências de epidemias na capital. No
mesmo ano, implementou-se um projeto de construção de uma linha férrea
que ligaria a capital São Luís e o interior do estado, assim como no campo dos
divertimentos o ano de 1910 seria marcado pela inauguração das primeiras
salas fixas de cinema na capital*!*. Tais indícios me levam a crer que tais novas

513 SOUSA, Wendell Emmanuel Brito. Política, memória e cidade: as comemorações do II Centenário
de Fundação da Capital Maranhense pelos Franceses em 1912. 2016. Dissertação (Mestrado).
Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em História 2016. p. 127.
514 Trato dessa questão em meu trabalho monográfico. Para maiores informações: SOUSA, Wendell
Emmanuel Brito de. Luz e sombras nas projeções: O cinema na São Luís moderna (1897-1914).
2012. Monografia em História Licenciatura. Universidade Estadual do Maranhão, 2012.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 183

experiencias com a cidade tenham propiciado novas formas de contato com


a memória por parte das classes dominantes e, por conseguinte, romperam
com a experiencia de isolamento da capital.

Considerações finais

O estudo promoveu, através do método comparativo, algumas reflexões


acerca de alguns dos principais rituais cívicos em homenagem a heróis locais.
Gonçalves Dias e Manuel Beckman trilharam caminhos distintos quanto as
narrativas impressas nos rituais responsáveis por remodelar a memória dos
dois personagens.
Assim, o breve estudo preocupa-se em desconstruir algumas interpretações
que leram o período que denominamos como Primeira República no Maranhão
sob o prisma da atuação de um grupo de intelectuais com aspirações literárias.
A memória, e por tabela, o imaginário e a identidade local no período não se
restringiram a ideia-imagem da Athenas brasileira. O mosaico dos rituais e
personagens, como vimos, foi desenhado por diversas cores e tons.
A comparação das duas comemorações me possibilitou historicizar
as tramas que envolveram as construções mnemônicas locais. O método
permitiu-me fugir de uma leitura cristalizada do Maranhão e de seu povo.
As comemorações a Manuel Beckman possibilitaram-me a compreensão dos
usos e abusos das reconfigurações identitárias e imagéticas permitidas pelo
contexto republicano, mas, sobretudo, indicam disputas, jogos de poder e a
pluralidade das narrativas mnemônicas no Maranhão.
RITUAIS, DANÇAS E RESISTÊNCIAS
EM UMA ÁFRICA DO SUL
SEGREGADA: notas sobre a Zulu Dance
em Kwazulu-Natal (c. 1948-1994)*!º

Aldina da Silva Melo

“A História é a vida crescente do grupo, é engendrada na prática”.


(Ki-Zerbo, 2010)

Homogeneizada, silenciada ou enclausurada à dimensão do esquecimento


durante muito tempo pela sobreposição e supervalorização das epistemologias
eurocêntricas, a história do continente africano traz importantes reflexões
para o campo da cultura, e muito tem a contribuir no movimento de demo-
cratização do conhecimento. Numa rápida análise das Ciências Humanas,
por exemplo, temos a historiografia que até o final do século XX, tendeu, e
muito, a desconsiderar as especificidades dos grupos étnicos africanos e de
suas culturas. Isso foi mudando, embora lentamente, a partir do que ficou
conhecido como revolução historiográfica provocada pela Nova História. Essa
“revolução” historiográfica teve como principal nome Marc Bloch e Lucien
Febvre, que fundam, em 1929, a revista Annales, com a qual “[...] fez nascer
anova história”*!s. A Antropologia, por seu turno, nasceu e produziu seus pri-
meiros resultados como uma disciplina atrelada ao colonialismo. A Filosofia,
talvez um dos ramos menos sujeitos à mudança, ao menos no que concerne ao
reconhecimento da importância da produção científica de África, pautou-se
historicamente na produção intelectual europeia.
Desse modo, este trabalho parte da perspectiva de que é necessário romper
com a vertente da “história única” que tem apresentado o continente africano
de forma homogeneizada, catastrófica”"” e folclorizada. Se, como afirma Val-

515 Este trabalho consiste em um recorte da pesquisa que realizei sobre a zulu culture durante o curso
de Mestrado em História, Ensino e Narrativas na Universidade Estadual do Maranhão (PPGHIST/
UEMA) entre 2015 e 2017, sob orientação do prof. Dr. Antonio Evaldo Almeida Barros.
516 LE GOFF Jacques. Memória. In: HISTÓRIA e Memória. Campinas, SP: Unicamp, 2012. p. 108.
517 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. Disponível em: <https:/Avww.youtube.com/
watch?v=EC-bh1YARsc>. Acesso em: 20 jul. 2014.
186 EM TE

demir Zamparoni!s, a ideia de África homogênea precisa ser rompida e esse loca
processo de rompimento tem se dado gradativamente, é importante tomar de s
África no seu sentido multi e pluricultural, mostrando quão dinâmicos são os Afr
povos africanos sob qualquer prisma de análise. Desse modo,é preciso pensar pat
e interpretar o continente africano em sua singularidade, heterogeneidade e cas
dinamicidade*!º. Para tal, uma chave analítica a considerar é a dimensão da
cultura que será aqui problematizada, a partir da Zulu Dance, como movimento qu
de resistência e luta contra o racismo e em prol da democracia em uma África Zu
do Sul segregada. Toma-se a cultura também como espaço para se pensar as de
desigualdades sociais em diferentes níveis'?. di
Esta pesquisa faz parte de um conjunto de análises que têm posicionado a
África no centro do debate acadêmico, destacando a necessidade de melhor A
compreensão acerca da dinâmica cultural daquele continente. Considerando fc
a importância de produzir novas pesquisas sobre África, sem, é claro, descon- |
siderar a significativa ampliação dos estudos africanos no Brasil, principal- E
mente após a lei 10.639/03, este trabalho traz um panorama dos processos de
patrimonialização da Zulu Dance, pensando-a desde as lentes da resistência
contra a política segregacionista na Africa do Sul.

lui
Situa-se a Zulu Dance no centro das discussões sobre cultura, uma vez que

sm
aos africanos e negros a condição de produtores de cultura foi historicamente

ae
negada. Admite-se, muitas vezes, apenas o uso do termo folclore para qualificar


os elementos e práticas culturais no contexto africano, enquanto atribui-se
ao europeu a condição de portador de uma “cultura superior e civilizada”.
A Zulu Dance é uma expressão derivada do inglês para se referir a um
conjunto de danças sul-africanas características do povo zulu. Na África do Sul,
as danças zulus têm sido realizadas em diferentes contextos e situações, empre-
gadas muito comumente em rural areas ou townships e em centros turísticos e
culturais. O ritual da Zulu Dance faz parte do repertório cultural do continente
africano e muito elucida sobre os movimentos de lutas contra o Apartheid.
Orecorte temporal da análise faz alusão ao período do regime do Apartheid
(1948-1994) na África do Sul, se concentrando mais precisamente a partir dos
anos 1950, quando da popularização das danças zulu no contexto sul-africano
e do momento da consolidação de certas práticas, como o teste da virgindade,
capazes de muito explicar os lugares e papéis femininos e masculinos na cultura

518 ZAMPARONI, Valdemir. A África e os estudos africanos no Brasil: passado e futuro. Disponível
em: <hitp://cienciaecultura.bvs.br/scielo. php?pid=S0009-67252007000200018&script=sci arttext>.
Acesso em: 20 nov. 2011.
519 DEVES-VALDES, Eduardo. O Pensamento Africano Sul-Saariano: conexões e paralelos com o pensamento
Latino-Americano e o Asiático (um Esquema). São Paulo: Clacso- EDUCAM, 2008. Disponível em: <http://
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/arhibros/coedicionvaldes/>. Acesso em: 10 set. 2009.
ZAMPARONI, Valdemir. Op. cit, 2011.
520 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Cultura, Patrimonialização e Desigualdade no Brasil e na África
Austral. Revista de Políticas Públicas, São Luís, p. 41-62, 2018.

a
DD — Too Pi o
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 187

local, até os anos 1990, marcado pela abertura democrática e pelo fim da política
de segregação racial, quando as danças zulus começaram a ganhar projeção na
África do Sul, passando a ser vista pelo governo local pós-Apartheid como um
patrimônio cultural que atrai diferentes turistas e movimenta a economia. Neste
caso, é possível pensar a cultura como fator de desenvolvimento nacional”?!.
O campo da História Social da Cultura muito tem contribuído nesta pes-
quisa, uma vez que possibilita identificar os modos como a/as identidade(s)
Zulu são (re)construídas, pensadas e dadas a ler. Assim, partindo do pressuposto
de que o conhecimento é possível? e de que a maioria das fontes satisfaz
a ambição e os compromissos de seus autores, tal análise foi empreendida
a partir de levantamento bibliográfico e de trabalho de campo realizado na
Africa do Sul entre 2016 e 2017. O cuidado na operacionalização com as
fontes foi muito rigoroso e algo que se prezou durante toda a análise, afinal,
“[...] reconhece-se que, “embora qualquer teoria ou explicação do processo
histórico possa ser proposta, são comprovadamente falsas todas as teorias que
não estejam em conformidade com as determinações das fontes”.
Os estudos sobre memória e sobre processos que envolvem a patrimonia-
lização de práticas culturais, das construções teóricas acerca da ideia de “raça”
e a afirmação de identidades são norteadores neste trabalho. Considerando
essas questões, este trabalho está estruturado em dois eixos complementa-
res. Primeiro, traz-se um panorama sobre a história e cultura zulu. O intuito
é pensar a história do povo zulu, situar esses sujeitos no centro das análises
e elucidar as especificidades e dinamicidades da identidade na cultura zulu.
Segundo, aborda-se o processo de patrimonialização da Zulu Dance e como
tal processo pode ser lido como importante elemento na reconstrução de uma
Africa do Sul segregada para uma nação “arco-íris”.

The zulu kindom awaits you”: identidades e cultura zulus num


país segregado

Conhecidos como um povo guerreiro que resistiu às invasões imperia-


listas bôer (desde o século XVII) e britânica (no XIX) ao sul da África os
zulus compõem a maior etnia em meio aos vários grupos étnicos existentes
na África do Sul (xhosas, suazis, sothos dentre outros), além de representar
aproximadamente um quarto da população na atual África do Sul.

521 CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: Ill ENECULT: terceiro
encontro de estudos multidisciplinares em cultura. Salvador, 2007. p. 1-18.
522 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
523 CHALHOUB, Sidney. Diálogos políticos em Machado de Assis. In.: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA,
Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no
Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
524 COMAROFF, John; COMAROFF, Jean. Ethnicity, Inc. Chicago: University of Chicago Press, 2009. p. 12.
188

O povo zulu, bem como sua respectiva cultura, ultrapassa os limites ge-
ográficos das fronteiras estabelecidas entre os países no continente africano.
Eles habitam a parte do continente africano que abrange territórios corres-
pondentes à África do Sul, Lesoto, Suazilândia, Zimbábue e Moçambique.
Ao habitarem tanto o território da África do Sul quanto o de outros países
parecem compor uma espécie de “Nação Zulu”. Assim, uma nação está para
além das fronteiras geográficas e/ou físicas demarcadas pelos homens e pela
natureza. Concorda-se com Fernand Braudel** quando afirma que as fronteiras
que delimitam uma nação também são culturais, políticas, sociais e, sobre-
tudo, determinadas a partir das relações humanas. As fronteiras deveriam ser
interpretadas, portanto, como fluidas.
Segundo Benedict Anderson'% nação significaria uma comunidade ima-
ginada. Imaginada porque é construída pelos sujeitos históricos. Imaginada
“porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a
maioria dos seus compatriotas. É imaginada como limitada, porque até mesmo
a maior delas [...] possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das
quais encontram-se outras nações. É imaginada como soberana, porque [...]
as nações sonham em ser livres [...]”*7.
Ora, no campo de debate sobre nação, a memória ocupa uma função
extremamente importante. Nesse debate, Michael Pollak*? sinaliza que a me-
mória possui como função reforçar o sentimento de pertencimento a grupos,
manter a coerção interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem
em comum. Maurice Halbwachs”? aponta que essa coerção social é dada,
sobretudo, pela adesão afetiva ao grupo, também chamado de “comunidade
afetiva”. A priore, é fundamental entender que a memória é um instrumento de
vínculo social e de identidade individual e coletiva”, E, a memória nacional,
construída a partir da memória coletiva, é responsável pelo fortalecimento do
sentimento de identidade nacional de um grupo?! e pela fabricação de uma
identidade nacional*2, no caso deste trabalho, da identidade nacional zulu.
O debate acerca das (re)afirmações de identidade tem ocorrido em várias
partes do mundo, a saber, nas Américas, na Europa e na África como Já apontara

525 BRAUDEL, Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe !l. 2. ed. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1995. ,
526 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1983.
527 Ibid., p. 14.
528 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro. Estudos Histórico, v. 2, p. 3-15, 1989.
529 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
530 LE GOFF Jacques. Op. cit., 1990.
531 HALBWACHS, Maurice. Op. cit., 2006.
532 OLIVA, Anderson Ribeiro. Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a Identidade e o ensino
de História da Africa nas escolas brasileiras. In: ENSINO da História da Africa e da Cultura Afro-
brasileira. Revista História Hoje: ANPUH, 2012. p. 29-44.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 189

Anderson Oliva*?. Como nos identificamos? Como identificamos aos Outros?


São questões importantes nas reflexões sobre identidade. Anderson Oliva lembra
que “sejam eles, ou sejamos nós, o que formos, falamos sobre os critérios de des-
crição, atribuição, reconhecimento ou negação de uma ou várias identidades”**,

Motivados por [...] contextos complexos, há alguns anos, vários teóricos


têm se dedicado ao estudo dessas realidades. Dentre esses, um grupo tem
chamado a atenção pelo seu formato híbrido: são teóricos/cientistas, mas
são também integrantes de experiências diaspóricas ou pós-coloniais, que
procuram explicar, entender e vivenciar*s.

A partir da dança zulu pode-se problematizar como os próprios sujeitos


zulu se identificam e até mesmo quais as identidades são acionadas durante as
exibições da Zulu Dance. A dança é considerada um dos ritmos comunitários
mais importantes da cultura zulu, sendo representada, pelos sul-africanos,
como forte marca da cultura e identidade do país. O historiador Roger Chartier
(1991) lembra que as representações são meios pelos quais os seres huma-
nos criam e recriam o mundo, dando sentido ao mundo ao qual pertence. As
representações culturais muito revelam sobre um determinado povo, suas
identidades, crenças, costumes, seus modos de ver e sentir o mundo. Isso é
notório na fala do guia turístico de Shaka Land'**:

As pessoas às vezes me perguntam sobre a importância de continuarmos


com nossa cultura e nossos costumes. Mas acontece que quando você me
vê vestido com uma roupa de zulu, ou falando zulu, por exemplo, sabe
de onde eu venho, de que povo eu pertenço e, assim, conhece um pouco
da minha história. Isso é identidade — argumenta o guia.”

Observa-se ainda que os modos de vestir podem ser interpretados como meca-
nismos de (re)afirmação de identidades, além de estarem carregados de representações
e muito revelarem sobre a identidade do povo zulu, sobre sua história e cultura.
A identidade é construída e se produz sempre em referência aos outros.
A identidade é marcada pela diferença. Ela ocorre tanto por meio de sistemas
simbólicos de representações quanto por meio de formas de exclusão social”.
É constituída a partir do momento que o “eu” reconhece o “outro”, em suas
particularidades e diferenças. Ela se molda e emerge nas narrativas de (re)

533 Ibid., 2012.


534 Ibid.,p. 31.
535 Ibid., p. 31.
536 Shaka Land é um hotel em KwaZulu-Natal que oferece uma variedade de pontos turísticos.
537 Guia turístico de Durban em entrevista ao repórter do Globoesporte.com em 2010, Rafael Pirrho.
538 POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, p. 200-212, 1992.
539 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In. SILVA,
Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2000.
190

afirmações constantes de diferença frente ao outro. Essas constantes (re)


afirmações implicam num processo de disputas simbólicas e políticas dentro
de uma cultura.
É preciso compreender que a contemporaneidade é marcada por uma
crise de identidades culturais, momento em que novas identidades começam
a emergir no cenário global enquanto outras começam a declinar.

A questão da “identidade está sendo extensamente discutida na teoria


social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que
por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo
surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno [...].*!

Para Stuart Hall”! esse sujeito fragmentado e essas novas identidades têm
emergido com força no mundo contemporâneo. Ele defende que há uma multipli-
cidade de identidades e sinaliza para uma fragmentação do indivíduo, indicando
que aquele “[...] sujeito do iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa
e estável, foi descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias,
inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”**2, Na perspectiva de Hall
uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpretado ou representado, a identificação não é automática, mas pode
ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes,
descrito como constituindo uma mudança de uma política de identidade
[...] para uma política de diferença.

Ora, durante as exibições da Zulu Dance nota-se a emergência de múl-


tiplas identidades assumidas pelos sujeitos zulus e que repercurtem em uma
escala local e global. Para Lady Selma Albernaz, estudiosa das relações de
gênero em um dos maiores patrimônios culturais brasileiros — o bumba meu
boi do Maranhão —, a “[...] cultura popular é um dos principais símbolos de
afirmação de identidade regional frente à nação, e dentro dela o bumba meu
boi assume uma posição de centralidade [...]”**. Segundo Sérgio Ferretti
(1998), estudioso da cultura popular no Brasil,

[...] a noção de cultura popular é relativamente recente, tendo surgido na


Europa com o movimento romântico de inícios do século XIX, justamente

540 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
541 Ibid., 2005.
542 Ibid., p. 46.
543 Ibid., p. 16.
544 ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. As dimensões do gênero no bumba meu boi maranhense:
reafirmação da “mulata brasileira”? Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/L/
Lady Selma Ferreira Albernaz 56.pdf>. Acesso em: 12 set. 2013. p. 1.
545 FERRETTI, Sérgio E. Sincretismo Afro-Brasileiro e Resistência Cultural. Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, n. 8, jun. 1998,
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 191

quando aumentou a separação entre cultura de elite e cultura popular. A cultura


popular [...] [pode ser entendida] como produção simbólica da classe subal-
terna, como elemento de reflexão sobre a realidade e a identidade social”.

O diálogo com Edward Thompson*” nos ajuda em tal reflexão. Conside-


rado um importante historiador inglês de orientação marxista do século XX,
Thompson traz profundas reflexões para o campo da cultura, tomando esta
como um espaço de elementos conflitivos, dinâmicos, complexos e contra-
ditórios. Partindo da problematização da cultura como

um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre


o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole;
[como] uma arena de elementos conflitivos, que somente sob uma pressão
imperiosa — por exemplo, o nacionalismo, a consciência de classe ou a
ortodoxia religiosa predominante — assume a forma de um “sistema”.**

Edward Thompson*” afirma que na “[...] verdade o próprio termo “cultura”,


com uma invocação confortável de um consenso, pode distrair nossa atenção
das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro
do conjunto”. Mesmo assim, alerta o historiador social, não podemos esquecer
que cultura também foi por muito tempo usada para denotar “[...] um sistema de
atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas simbólicas (dese-
nhos e artefatos) em que se acham incorporados”*!. Deste modo, neste trabalho
a cultura é pensada a partir da perspectiva do conflito, das contradições, das
reivindicações, como espaço para se pensar as desigualdades sociais.

[...] A “cultura” é um termo emaranhado, que, ao reunir tantas atividades e


atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções
que precisam ser feitas. Será necessário desfazer o feixe e examinar com
mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos
culturais da hegemonia, a transmissão do costume de geração em geração
e o desenvolvimento do costume sob formas historicamente específicas
das relações sociais e de trabalho*?,

Thompson chama a atenção para a problematização da cultura desde


outra chave analítica diferente daquela do campo da história cultural que a
pensa a partir, especificamente, do âmbito das representações simbólicas.
Para além do mundo das representações, é preciso considerar que a cultura

546 Ibid., p. 2.
547 THOMPSON, E. P Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
548 Ibid., p. 17.
549 Ibid., 1998.
550 | Ibid., p. 17.
551 Ibid., p. 17.
552 Ibid., p. 22.
192

parte da materialidade do social e é, geralmente, acionada como mecanismo


de reivindicações por justiça e igualdade. :
Do outro lado do Atlântico, em KwaZulu-Natal (Africa do Sul), a cultura
popular também é apreendida como mecanismo de reflexão e (re)afirmação de
identidades e a Zulu Dance também pode ser considerada um dos principais
símbolos desses marcos de identificação frente à ideia de nação. Compartilha-se
assim da perspectiva de Antonio Evaldo A. Barros*º quando sugere que cultura
seja pensada como espaço para se notar como os “subalternos” pensam e se
situam no mundo. Nesse sentido, é possível sugerir que o reconhecimento de
expressões culturais dos zulus como patrimônios culturais, a exemplo da Zulu
Dance, torna-se importantes para se problematizar a (re)invenção da nação
sul-africana quando do estabelecimento da “democracia” na África do Sul.

Patrimonializar para além da pedra e do cal: o caso da


Zulu Dance

Não é objeto deste estudo a análise dos processos formais de patrimo-


nialização no sul global. A intenção é, antes, problematizar os processos
que antecedem a patrimonialização de artefatos da cultura imaterial de uma
nação. A análise pauta-se, portanto, no processo de pré-patrimonialização
e reconhecimento da Zulu Dance como símbolo da identidade zulu e como
patrimônio cultural da Africa do Sul.
Não é de hoje que quando se fala em patrimônio logo vem à mente a
imagem de grandes construções históricas, como igrejas barrocas, palácios,
casas-grandes e centros históricos, além de museus e sítios arqueológicos.
Pensar patrimônio apenas em termos de grandes construções históricas seria,
no mínimo, reduzir essa noção a materialidades sólidas, e desconsiderar que
práticas culturais referentes à vida cotidiana, as imaterialidades subjetivas,
também se constituem enquanto patrimônio, neste caso, como patrimônio
cultural. Para Maria Cecília Fonseca” é preciso uma ampliação na noção de
patrimônio cultural, é preciso pensar na produção de patrimônios culturais
não apenas como a seleção de edificações, sítios e obras de arte que passam a
ter proteção especial do Estado. Fonseca** diz que é preciso ampliar a noção
de patrimônio, e pensar patrimônio para além da pedra e do cal.
Patrimônio cultural corresponde a todos os bens — materiais ou imate-
riais — que são reconhecidos como parte da identidade cultural de um povo
ou nação e, por isso, devem ser preservados ao longo do tempo e repassados

553 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. Op. cit., 2018.


554 FONSECA, Maria Cecília L. Para Além da Pedra e do Cal: por uma concepção ampla de
Patrimônio Cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e Patrimônio: ensaios
contemporâneos. RJ: DP&A, 2003. p. 57-80.
555 Ibid., 2003.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 193

às futuras gerações. Dessa perspectiva, “os objetos, os espaços agregados a


conhecimentos, as manifestações com valor referencial para a comunidade
são alguns dos elementos que podem ser reconhecidos como patrimônios
imateriais”. E, na cultura zulu, são exemplos de patrimônio imaterial os
nomes próprios, as canções, os mitos, as danças e os diversos rituais.
Nas últimas décadas temos assistido uma ampliação nos debates sobre
patrimônio, especificamente a partir de 2003 quando durante a 32º Conferência
Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), realizada em Paris no ano de 2003, são estabelecidas orientações
na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Para
Eduardo de Oliveira (2010) essa ampliação tem se dado “na medida em que
se concebe que objetos, espaços, conhecimentos e manifestações tornam-se
“patrimônio imaterial” porque tem valor referencial para a comunidade”.
Segundo Antonio Motta,

[...] desde suas origens, o vocabulário [patrimônio] vem conhecendo diver-


sos sentidos e significados [...]. Em épocas passadas, o termo patrimônio
(patrimonium), de origem latina, e corrente a partir do século XVI, remetia
essencialmente à ideia de propriedade (bens materiais) transmitida here-
ditariamente a um determinado grupo em linha sucessória, princípio que
pauta ainda hoje, no direito civil, as regras sobre heranças. Nos séculos
subsequentes houve um progressivo deslizamento dessa noção que, do
domínio estritamente privado, inerente ao grupo familiar (pater familias),
começou também a contemplar a ideia de esfera pública (coletividade) cujo
corolário, a partir de então, firmou-se no pressuposto do legado histórico
transmitido pelos antepassados.

Atualmente, a noção de patrimônio sofreu mudanças, dando lugar à


ordem discursiva e política que tem o colocado em termos mercantilistas.
A Zulu Dance, por exemplo, reflete na África do Sul, assim como a Timbila
em Moçambique, essa nova maneira de apreender patrimônio, evidenciando
que a noção deste tem se convertido em importante produto cultural a ser
comercializado no mercado turístico mundial**”.
Esses novos discursos sobre patrimonializar envolvem diferentes mo-
dos de agenciamentos, à base de conflitos, de negociações e de construções
culturais, assim como questões relacionadas ao modo de entendimento e de
interpretação de processos culturais*º.

556 OLIVEIRA, Eduardo Romero de. Memória, história e patrimônio: perspectivas contemporâneas da
pesquisa histórica. Fronteiras, Dourados, MS, v. 12, n. 22, p. 146, 2010.
557 Ibid., p. 131.
558 MOTTA, Antonio. Patrimônio. In: SANSONE, Lívio; FURTADO, Claudio Alves (Orgs.). Dicionário
crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 379.
559 Ibid., 2014,
560 XULU, Smangele. Gender, Tradition and Change: the role of rural women in the commoditization of
zulu culture at selected tourist attractions in Zululand. 2005. 146f. Tese (Doutorado em Filosofia). In
194

Historicamente, as expressões de Zulu Dance puderam ser observadas em


diferentes localidades da África Austral. Com o processo de independência da
região, de instituição e superação do Apartheid (1948-1994) enquanto regime
político-institucional, será sobretudo na África do Sul e, mais particularmente,
na Zululand, município de Kwazulu-Natal, que esse repertório cultural passaria
a ser produzido mais comumente e construíria uma relação profunda, sendo
apreendido pós-Apartheid como patrimônio da nação zulu.
Apesar da política discriminatória e hierárquica do Apartheid, na década
de 1950 é dada paulatinamente a materialização e popularização da Zulu Dance
no contexto sul-africano. A visibilidade da Dança Zulu se deu, em grande
medida, pela consolidação de certas práticas, como o teste da virgindade,
capazes de muito explicar os lugares e papéis femininos e masculinos na cul-
tura local. O festival da virgindade é um ritual zulu no qual jovens mulheres
submetem-se a um teste para provar à comunidade que não tivera nenhuma
relação sexual, ainda conservando-se virgens — uma condição importante para
o casamento na África do Sul. Esse ritual já é realizado há mais de 200 anos
em Kwazulu-Natal, embora tenha sido proibido em 1879 pela colonização
britânica. A partir de 1984 passou a ser novamente aceito no país, quando
também deu-se início a várias tentativas de recuperação do ritual pelo rei zulu
e por demais membros daquela província.
Em 2005 o rei zulu Goodwill Zwelithini ao se referir ao festival da
virgindade, uma das modalidades da Dança Zulu, destacou que “o ritual da
virgindade foi resgatado porque os europeus insistem em tirar fotos das ná-
degas das meninas!” Diante disso, o rei solicitou que as jovens virgens, que
dançavam apenas vestidas de pérolas e saias de franjas curtas, usassem “rou-
pas íntimas para se preservarem dos flashs de turistas europeus”, Ressaltou
ainda que o festival da virgindade não tinha por finalidade atrair olhares para
as partes íntimas daquelas jovens e que durante a dança “há momentos em
que as moças virgens têm que cantar e dançar e por conta dos movimentos
corporais acabamos vendo certas partes íntimas do seu corpo que não deve-
riam ser vistas”,
Mas, as visões dos zulus acerca da participação de mulheres virgens na
Zulu Dance e no Festival da Virgindade ora ou outra divergem entre si. Há
visões controversas em torno da necessidade de que mulheres jovens façam
parte deste tipo de ritual. De um lado, as famílias e a comunidade têm visto
essa participação como algo necessário e como motivo de orgulho e digni-
dade. Por outro lado, há opiniões contrárias à realização de rituais desse tipo,

the department of IsiZulu Namagugu, University of Zululand, Zululand, 2005.


561 As dançarinas geralmente não usavam roupas íntimas porque a Dança Zulu era projetada para ser
uma exibição orgulhosa de sua inocência e pureza.
562 ZULU king tells... Daily Mail Reporter, 15 out. 2005.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 195

tendo em vista a exposição das participantes a riscos de estupro, devido a uma


crença local segundo a qual um homem com AIDS poderia alcançar a cura
após ter relações sexuais com uma virgem. Desta perspectiva, o festival da
virgindade e todos os rituais a ele atrelados passariam, mais contemporanea-
mente, sobretudo após a expansão da pandemia de HIV no país, a representar
uma insegurança para as jovens locais.
De acordo com Deborah Posel “[...] durante a época do apartheid, a dis-
seminação da [AIDS] na África do Sul permaneceu relativamente lenta; sua
aceleração ocorreu na alvorada da democratização”*$. Atualmente, Kwazulu-
-Natal encontra-se entre as províncias da África do Sul como aquela com maior
índice de contaminação pelo vírus. Segundo Viviane de Oliveira Barbosa”
outro aspecto que tem contribuído para a feminização do vírus da AIDS em
Kwazulu-Natal tem sido a prática de estupro de mulheres para consumação
do casamento, nos casos em que a mulher viúva teria, pela lógica costumeira
local, de casar-se com o irmão do marido morto.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o festival da virgindade tem sofrido
contemporaneamente um processo de reinvenção, como parte da tradição
zulu. Trata-se, portanto, nas palavras de Eric Hobsbawm e Terence Ranger'*,
de uma das muitas invenções de tradição que podem ser entendidas como

um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou


abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado***.

De algum modo, as diferentes modalidades de dança zulus têm sido


vistas como bens culturais de grande relevância para a história, a memória e a
identidade da Rainbow Nation — epíteto congregador e gerador de uma nova
sensibilidade social nacional sul-africana, que deveria ser marcada pelos contatos
entre diferentes e desiguais sujeitos das mais diversas origens étnico-raciais**”.
As danças zulus que são produzidas e agenciadas, sobretudo, por sujeitos
e setores sociais subalternos aos quais se têm no passado e no presente negado

563 POSEL, Deborah. A controvérsia sobre a AIDS na África do Sul: marcas da política de vida e morte
no pós-apartheid. Afro-Asia, Salvador, n. 34, 2006, p. 40. .
564 BARBOSA, Viviane de Oliveira. Mulheres rurais e lutas sociais no Brasil e na África do Sul. Mujimbo,
2012. Disponível em: <http://wwwmujimboposafro.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/2012/03/3.-
Mulheres-Rurais-Viviane,pdf >. Acesso em: 15 jun. 2014.
565 HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997b.
566 Ibid., p. 9. ,
567 BARROS, Antonio Evaldo Almeida. As faces de John Dube: memória, história e nação na Africa do
Sul. 2012, 205 f. Tese (Doutorado em Estudos Etnicos e Africanos). Programa Multidisciplinar de
Pós-Graduação em Estudos Etnicos e Africanos, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da
Universidade Federal da Bahia, 2012.
196

acesso à cidadania, a liberdade e até pertencimento à humanidade, poderiam ser


interpretadas como elementos e ocasiões privilegiadas para se pensar processos
e dinâmicas de mudança e transformação social, levados a cabo por homens
e mulheres comuns de regiões periféricas de países em desenvolvimento, do
sul do mundo, a exemplo da África do Sul e de Moçambique, entre o fim do
século XX e os dias atuais'*.
Tais constatações sugerem que a visibilidade da Zulu Dance pode ser
vista como resultado de reivindicações históricas de diversos setores sociais,
particularmente dos sujeitos envolvidos com sua produção. Diferentes for-
mas da dança vêm sendo tomadas pelas políticas estatais como Patrimônio
Cultural da África do Sul, o que parece ter se intensificado a partir de 1994,
quando o Apartheid é substituído pela democracia naquele país, abrindo-se
um processo de reinvenção institucional e simbólica da nação**º.
Na perspectiva do Estado sul-africano, expressões de dança zulu tais
como ingoma, indlamu, imvunulo, isicathamiya, virginity festival e Reed
dance, bem como outros elementos culturais identificados como originários e
costumeiramente produzidos entre os zulus, seriam “examples of symbols of
national heritage”. O reconhecimento da dança como símbolo da identidade
sul-africana e do povo zulu foi visível durante a Copa do Mundo sediada na
África do Sul, em 2010, quando uma variedade de Zulu Dance foram apre-
sentadas como atrações principais da cultura dos sul-africanos aos vários
turistas que visitaram aquele país. Após o Mundial, a Zulu Dance ultrapassou
as fronteiras dos territórios zulus e foi representada no mundo inteiro como
símbolo não só da província da qual é originária, mas de toda a África do Sul,
o que fortaleceu a política de patrimonialização da mesma e impulsionou a
mercantilização de bens materiais ligados a ela.
A Dança Zulu tem movimentado o turismo na África do Sul, o que tam-
bém tem contribuído para o seu processo de patrimonialização. Sansone*”
diz ser evidente a progressiva globalização dos processos de preservação e
patrimonialização, assim como das categorias e critérios que os norteiam.”
Ele retoma Camaroff para afirmar que “muita [...] “cultura” antiga ou presente
precisaria ser resgatada e preservada, seja quando há demandas por parte das
populações interessadas, seja quando algum projeto de desenvolvimento de
uma determinada região na base do turismo cultural o exige”?

568 | Ibid., 2012.


569 Ibid., 2012.
570 DEPARTMENT..., [s. d.], p. 225.
571 SANSONE, Lívio. Memórias da Africa: patrimônios, museus e políticas das identidades. Salvador:
EDUFBA, 2012a. p. 7.
572 SANSONE, Lívio. A política do intangível: museus e patrimônios em nova perspectiva. Salvador:
EDUFBA, 2012b. p. 7-11.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 197

Diversos estudos têm apontado para a intensificação do processo de


mercantilização dos diferentes elementos da cultura zulu sobretudo via indús-
tria do turismo na África do Sul. Tem-se observado que a cultura zulu e seus
produtos culturais, como a música, a dança e o artesanato sobretudo desde os
anos 1990 tem se consolidado como elementos do turismo.
Lívio Sansone afirma que

a política de valorização do patrimônio na própria África e o renovado


interesse por aspectos da cultura popular de origem africana no Novo
Mundo têm criado uma nova economia e um mercado, com distintas
contradições, mas também com outras possibilidades. O campo de estudo
— e de luta — torna-se assim mais amplo. Não deve ser por acaso que na
nova geração de estudos africanos realizados no Brasil haja uma ênfase
sempre renovada, e com perspectivas inovadoras, na construção de cate-
gorias de raça e etnia e, mais recentemente, de patrimônio, de memória
e diversidade cultural”,

E, segundo Wilson Trajano Filho, atualmente as pesquisas sobre

os processos de patrimonialização em África sugerem que as políticas


estatais de monumentalização, que criam lugares de memória atuantes
e ativos nos processos de construção nacional, têm sido reforçadas por
agências internacionais como a UNESCO, que promovem tecnologias do
patrimônio para a produção e a reificação de passados e futuros domesti-
cados, sempre circunscritos à dimensão oficial da vida coletiva”.

Entretanto “[...] a ideia de patrimônio não se restringe aos processos


oficiais de reconhecimento dos bens culturais como representativos da cultura
e da história locais ou nacionais [...]”**. De modo geral, “o processo formal
de patrimonialização não nasce da pura decisão arbitrária do Estado. Ele é
precedido de um processo de pré-patrimonialização despoletado frequente-
mente por atores não estatais: pelos atores sociais locais e pela intelectualidade
nacional”. O reconhecimento como patrimônio também é atribuído, sobre-
tudo, pelos sujeitos que vivenciam determinada prática cultural. Percebe-se
que, se por um lado, patrimonializar significa fazer escolhas, selecionar,
reconhecer; de outro, requer o cuidado em transferir para a letra impressa o
ritualístico e o subjetivo, que apesar dos esforços, sempre são fragmentadas,
por refletir apenas a visão parcial sobre uma prática cultural.

573 Ibid., 2012b., p. 9.


974 TRAJANO F, Wilson. Patrimonialização dos artefatos culturais e a redução dos sentidos.
In: SANSONE, Livio (Org.). Memórias da Africa: patrimônios, museus e políticas das identidades.
Salvador: EDUFBA, 2012. p. 16.
575 Ibid., p. 14.
576 Ibid., p. 38.
198

Patrimônio é uma categoria de pensamento cujo trânsito entre as culturas


não se faz sem turbulências, com potencial de produzir grandes flutuações
semânticas*”. Eduardo Oliveira”, em estudo sobre a relação entre memó-
ria, história e patrimônio, chama a atenção para a importância da memória
no estudo de patrimônio imaterial, ressaltando a urgência de uma educação
patrimonial voltada para a ressignificação dos espaços e/ou “lugares de me-
mórias” nas palavras de Pierre Nora*”. Nora**º aponta a existência de “lugares
de memória” como espaços de resistência, de definição e caracterização do
grupo. Para o teórico, “a memória pendura-se em lugares, como a história
em acontecimentos”.
Para Oliveira, toda discussão sobre memória coloca em xeque os novos
debates posto pelo patrimônio histórico e imaterial, a saber: a identidade, a
diversidade cultural e as relações de significado. Nesse sentido, a memória
coletiva atua como elemento constituinte de uma identidade social? “É por
isso que os Estados Nacionais, os grupos étnicos e diferentes instituições pas-
saram a desenvolver políticas de registro e difusão de sua memória coletiva”
como vem ocorrendo atualmente na África do Sul.
Em diálogo com Pedro Funari, Ricardo Pacheco diz que

as políticas culturais da memória partem da definição dos objetos culturais


significativos para aquela comunidade de sentidos. Uma vez selecionados,
esses objetos [ou expressões culturais como a Zulu Dance] se tornam
metáforas que dizem aos membros da comunidade quem somos “nós” em
relação ao “outro”.

Para Pacheco (2010), “a crescente luta de diferentes grupos sociais pelo


reconhecimento de sua identidade tem exigido [como aponta Hall] a inclusão
de novos discursos identitários”*S. Vale ressaltar que a patrimonialização
da Zulu Dance tem sinalizado as mudanças que estão ocorrendo na própria
África do Sul. Mudanças e movimentos que reinserem esse país no cenário
mundial a partir de outras lentes: as das resistências, a da Rainbow Nation,
como nos lembra Nelson Mandela no seu discurso de posse como presidente
da África do Sul em 1994.

577 Ibid., p. 13.


578 OLIVEIRA, Eduardo. Op. cit., 2010.
579 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. São Paulo: PUC, 1981.
580 | Ibid., 1981,
581 Ibid., p. 25
582 OLIVEIRA, Eduardo. Op. cit. 2010, p. 145.
583 PACHECO, Ricardo Aguiar. Educação, memória e patrimônio: ações educativas em museu e o
ensino de história. Revista Brasileira de História [on-line], v. 30, n. 60, p. 145, 2010.
584 Ibid., p. 145.
585 Ibid., p. 145.
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 199

Cabe ressaltar que este trabalho não pretendeu, em momento algum


construir uma “única história” sobre a história e cultura zulu ou mesmo
sobre o continente africano. Tratou-se, antes de tudo, de uma microanálise
exploratória, situada e específica sobre o movimento que tem envolvido o
reconhecimento da Zulu Dance como patrimônio nacional da África do Sul.
A intenção foi ainda contribuir para uma reescrita de cunho humanista sobre
um pedaço do continente africano.
De fato, pode-se argumentar que a Zulu Dance muito revela sobre a
identidade e história do povo zulu, mas também sobre a própria história da
África do Sul. As danças zulus apresentam, mesmo que em um recorte espe-
cífico e situado, outra história de uma parte do continente africano, regada
de cores, sabores, ritmos e movimentos. Nesse sentido, a Zulu Dance pode
ser pensada como um convite às reinterpretações sobre práticas culturais dos
sujeitos “subalternos”, um convite à própria ressignificação da cultura, das
festas e rituais de sujeitos populares como espaços de resistências e como
espaços para se refletir as desigualdades sociais em diferentes níveis e di-
mensões no Sul Global.
SOBRE OS ORGANIZADORES

Antonio Evaldo Almeida Barros


É Licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão (IESMA) e
Mestre e Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). É professor adjunto dos Departamentos de História da
UFMA e da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), membro do quadro
permanente dos seguintes Programas de Pós-Graduação: Políticas Públicas
(UFMA), História (UFMA) e História (UEMA). Desenvolve ações de ensino,
pesquisa e extensão sobre práticas e políticas culturais e educacionais no Brasil
e na África Austral. É membro-fundador do Núcleo de Estudos, Pesquisa e
Extensão sobre África e o Sul Global (NEÁF RICA). Desde 2013, coordena
a Ação Escola da Terra no Maranhão (UFMA). É autor de “As Faces de John
Dube: Memória, História e Nação na África do Sul” (CRV/EDUFMA, 2016).

Maria da Glória Guimarães Correia


É Licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
Graduada em Maitrise en Histoire e Mestre em Langues, Litteratures et Civi-
lisations des Pays d'Expression Espagniole pela Universidade de Paris VIII,
Mestre e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
É Professora Adjunta do Departamento de História da UFMA. Tem experiên-
cia de ensino e pesquisa na área de Relações de Gênero, Festas, Maranhão
Colonial, Igreja, Família, Urbanização e Trabalho. É autora de “Nos Fios da
Trama: Quem é essa mulher? Cotidiano e Trabalho no operariado feminino
em São Luís” (EDUFMA, 2006).
SOBRE OS AUTORES

Aldina da Silva Melo


É Licenciada em Ciências Humanas - Sociologia pela Universidade Federal
do Maranhão (UFMA/Campus Bacabal), Especialista em Docência no Ensino
Superior pelo Instituto de Ensino Superior Franciscano (IESF), Mestre em
História, Ensino e Narrativas pela Universidade Estadual do Maranhão (PP-
GHIST/UEMA), Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal
do Maranhão (PPGPP). É pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e
Extensão sobre África e o Sul Global (NEÁFRICA), e do Grupo de Pesquisa
em Religião e Cultura Popular (GPMINA). Tem desenvolvido pesquisas no
campo dos Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, com temáticas ligadas às
Políticas Culturais, aos Processos de Patrimonialização no/do Sul Global, à
Cultura Popular, aos Estudos de Memória, às questões de Gênero, ao Ensino
de História e ao Ensino de História da África no Brasil e na África do Sul.

Antonio Evaldo Almeida Barros


É Licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
em Filosofia pelo Instituto de Estudos Superiores do Maranhão (TESMA) e
Mestre e Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). É professor adjunto dos Departamentos de História da
UFMA e da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), membro do quadro
permanente dos seguintes Programas de Pós-Graduação: Políticas Públicas
(UFMA), História (UFMA) e História (UEMA). Desenvolve ações de ensino,
pesquisa e extensão sobre práticas e políticas culturais e educacionais no Brasil
e na África Austral. É membro-fundador do Núcleo de Estudos, Pesquisa e
Extensão sobre África e o Sul Global (NEÁFRICA). Desde 2013, coordena
a Ação Escola da Terra no Maranhão (UFMA). É autor de “As Faces de John
Dube: Memória, História e Nação na África do Sul” (CRV/EDUFMA, 2016).

Cássia Giovana Nascimento dos Santos


E Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal do Mara-
nhão (UFMA).

David Machado Ferreira


E Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA) e docente do Instituto Alcance de Ensino Superior no Maranhão.
204

Ilana Maira Carneiro Chagas


E Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal do Mara-
nhão (UFMA).

João Costa Gouveia Neto


E licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e
em Música pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Especialista
em Educação Musical pelo Claretiano- Centro Universitário de Batatais -SP.
Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
É professor e pesquisador na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA),
onde atua como docente do Curso de Música Licenciatura, ministrando as
cadeiras de História da Música e Metodologia do Ensino da Música. Possui
experiência nas áreas de História e Música, com ênfase em Musicologia
Histórica, e desenvolve pesquisas sobre as vivências musicais com análise
da produção artística maranhense do oitocentos. Assessor da Pró-Reitoria
de Graduação (PROG /UEMA). É um dos organizadores do livro A escrita
e o artefato como textos: ensaios sobre História e cultura material (PACO
EDITORIAL, 2016).

Josilene dos Santos Lima


E graduada e mestre em História pela Universidade Federal do Piauí.

Keliane da Silva Viana


Graduanda em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Maranhão
(Campus de São Bernardo).

Maria da Glória Guimarães Correia


E Licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
Graduada em Maitrise en Histoire e Mestre em Langues, Litteratures et Civi-
lisations des Pays d'Expression Espagniole pela Universidade de Paris VIII,
Mestre e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UF F).
É Professora Adjunta do Departamento de História da UFMA. Tem experiên-
cia de ensino e pesquisa na área de Relações de Gênero, Festas, Maranhão
Colonial, Igreja, Família, Urbanização e Trabalho. É autora de “Nos Fios da
Trama: Quem é essa mulher? Cotidiano e Trabalho no operariado feminino
em São Luís” (EDUFMA, 2006).

Matheus Silveira Guimarães


É mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo
sua dissertação Diáspora africana na Paraíba do Norte: trabalho, tráfico e
sociabilidade na primeira metade do século XIX premiada pela ANPUH-PB no
EM TEMPOS DE FESTAS, RITUAIS E COMEMORAÇÕES 205

Concurso de Dissertação (2014-2016) e publicada em formato e-book no ano


de 2018 (Editora do CCTA). É licenciado em História pela UFPB e bacharel
em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
É doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
desenvolvendo pesquisa sobre o comércio de africanos no século XVIII. Atua
como professor de História na Rede Pública Municipal de João Pessoa.

Milena Rodrigues de Oliveira


É Bacharel, Licenciada e Mestre em História pela Universidade Federal do
Maranhão, Especialista em Didática Universitária pela Faculdade Atenas Ma-
ranhense. Tem realizado pesquisas sobre os seguintes temas: festas de largo,
procissões, século XIX, assistencialismo, história do Maranhão, irmandades
e festas em geral.

Paulo da Trindade Nerys Silva


É Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), Mestre em Educação Física e Doutor em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). É professor Adjunto do Departamento de
Educação Física (UFMA), atuando no ensino e na pesquisa na área de História
da Educação Física e Sociologia e Antropologia da Educação Física, Esportes
e Lazer. É organizador dos livros “O desenvolvimento humano: perspectivas
para o século XXI —- Memórias, lazer e atuação profissional” (EDUFMA, 2013)
e “O desenvolvimento humano: perspectivas para o século XXI — Atividade
física e saúde, inclusão social e formação profissional” (EDUFMA, 2013).

Raimundo Inácio Souza Araújo


É licenciado em História pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UFMA e doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atua como professor
de História do Colégio Universitário, Escola de Aplicação da Universidade
Federal do Maranhão (COLUN-UFMA). É membro dos grupos de pesquisa
Religião e Cultura Popular (GPMINA) e História, Religião e Cultura Mate-
rial (REHCULT). Suas pesquisas se direcionam para a história da Igreja no
período colonial e as religiosidades afro-brasileiras.

Ronilson de Oliveira Sousa


Graduando em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Maranhão
(Campus de São Bernardo) e em História pela Faculdade Cidade de Guanhaes.
206

Thiago Lima dos Santos


Doutor e Mestre em Ciências Sociais pelo do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. Licenciado em
História pela Universidade Federal do Maranhão. Professor do Colégio de
Aplicação da Universidade Federal do Maranhão (COLUN UFMA). Desen-
volve pesquisa no campo da História e da Antropologia das Religiões, abor-
dando temas como sociedade e religião, religião e cultura popular, práticas
terapêuticas religiosas e história e cultura afro-brasileira.

Wendell Emmanuel Brito de Sousa


É Licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Atualmente, atua como professor substituto do Departamento de
História da UFMA (2018-2020) e do Departamento de História do Campus
de Caxias da Universidade Estadual do Maranhão (2017-2019).

Wheriston Silva Neris


É Professor Adjunto de Sociologia do Campus III da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA) e Docente do Quadro Permanente do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
É Licenciado em História (UFMA), Mestre em Ciências Sociais (UFMA) e
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com estada
de doutoramento junto à École des Hautes Études en Sciences Sociales e à
Ecole Normale Supérieure (Paris). Seus estudos se concentram nos domínios
da Sociologia Histórica do Catolicismo, das formas de Construção Social do
Político, Usos Políticos da Memória, Elites e Grupos Dirigentes e da Socio-
logia Política das Instituições. Coordenador do Observatório da Educação do
Campo na Ação Escola da Terra no Maranhão.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 X 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)
MARIA DA GLÓRIA GUIMARÃES
CORREIA é Licenciada em
História pela Universidade
Federal do Maranhão (UFMA),
Graduada em Maitrse en
Histoire e Mestre em Langues,
Litteratures et Civilisations des
Pays d'Expression Espagniole
pela Universidade de Paris VIII,
Mestre e Doutora em História
pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). É Professora
Adjunta do Departamento de
História da UFMA. Tem experi-
ência de ensino e pesquisa na
área de Relações de Gênero,
Festas, Maranhão Colonial,
Igreja, Família, Urbanização e
Trabalho. É autora de “Nos Fios
da Trama: Quem é essa mulher?
Cotidiano e Trabalho no opera-
riado feminino em São Luís”?
(EDUFMA, 2006).

t Editora

ia
a
EM TEMPOS DE FESTAS,
RITUAIS E COMEMORAÇÕES
2º EDIÇÃO

Segunda edição ampliada de obra organizada pelos historiadores


Maria da Glória Guimarães Correia e Antonio Evaldo Almeida Barros, o livro
reúne treze trabalhos, alguns dos quais apresentados e discutidos em even-
tos científicos realizados no Maranhão, a partir de 2008, coordenados por
aqueles organizadores. Oito desses trabalhos foram publicados na primeira
edição, e quatro foram acrescentados nesta reedição.
Os trabalhos incluídos na coletânea versam sobre festas, rituais e come-
morações ocorridas em diferentes épocas no Brasil - no Maranhão, Piauí,
Paraíba; um sobre ritual na África do Sul; e um aborda questões teórico-analí-
ticas e interpretativas. A maioria deles é baseada em pesquisa documental de
seus autores, e um deles na memória oral de pessoas entrevistadas.
As festas, rituais e comemorações religiosas e profanas são apresenta-
das pelos autores da coletânea como importantes espaços de sociabilidade
entre a elite e as pessoas comuns, de reconhecimento público de segmen-
tos sociais excluídos, de demonstração de resistências, e de enfrentamen-
tos de proibições e preconceitos.

Mundicarmo Maria Rocha Ferretti


Doutora em Antropologia e Pesquisadora da Religião e Cultura Popular
Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação-em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Maranhão

NEAFRICA- y
Núcleo de Estudos África e o Sul Global

ISBN 978-85-444-3181-8

ICRV a + dy |

No 4

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