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1ª Edição
ISBN: 978-65-87221-60-1
Ficção norte-americana 2. Romance Fantasia I. Título
Esta obra foi revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio
eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso da
internet, sem permissão expressa da autora (Lei 9.610 de 19/02/1998).
SINOPSE:
***
A congregação acontecerá dentro de quatro horas, no final da
tarde; é tempo suficiente para ir para casa, reabastecer minha cesta
e me arrumar. Não sou a única com a ideia de fazer negócios antes
da reunião; alguns dos pescadores trouxeram seus carregamentos.
Vejo alguns cidadãos exibindo seus bordados. Todo mundo está
muito feliz por ter outra coisa em que se concentrar – ou fingir fazê-
lo – além da chegada iminente dos elfos.
No entanto, rumores e teorias zumbem no ar ao meu redor como
abelhas em um campo. Ouço os sussurros e especulações. O que
vai acontecer? A rainha será encontrada?
Eu ignoro tudo, concentrando-me em meus deveres. Não há como
a guerra irromper após três mil anos de paz. Foi nisso que decidi
pensar para manter as mãos firmes enquanto distribuía meus potes
e sacolinhas.
— Ouçam, ouçam, cidadãos de Capton — grita o pregoeiro, de
cima do tablado na extremidade da praça. Um grupo de homens e
mulheres cansados se alinha atrás dele – meu pai entre eles. —
Convocamos esta reunião do Conselho de Capton.
Paro com o resto dos habitantes da cidade, ouvindo os vários
anúncios. Há alguns assuntos administrativos a serem resolvidos –
algumas disputas sobre territórios de pesca com Lanton, um acordo
para derrubar um antigo armazém, mas todo mundo está
aguardando a parte que realmente importa.
— Em relação ao assunto da Rainha Humana — meu pai diz; ele
está com a chefe dos Guardiões. — O Conselho ouviu suas
preocupações e decidiu…
Ele não consegue terminar.
— Olhem lá! — alguém grita.
Todas as cabeças se voltam na direção das longas escadas que
levam da cidade ao templo. Sobre elas, uma pequena legião
marcha. São liderados por um homem que monta um cavalo feito de
sombra, sua forma se contorcendo e desaparecendo como névoa a
cada movimento.
Seus longos cabelos negros se espalham sobre os ombros; posso
ver um brilho do que parece ser roxo, ou azul, à luz do sol
fulminante. Faixas de ferro se entrelaçam quase organicamente em
torno de suas têmporas, antes de se projetarem em um leque de
pontas afiadas na parte de trás de sua cabeça – quase como
espinhos enormes – para formar uma coroa. Suas orelhas se
estendem para longe de seu rosto em pontas que combinam com as
de sua coroa. Quando ele e seus soldados estão à beira da nossa
praça, posso ver que seus olhos são de um cerúleo brilhante, quase
do mesmo tom que os pilares do templo.
Ele não é nada parecido com o monstro antigo e retorcido que
imaginei ou as histórias o fizeram ser. A única coisa que essas
histórias parecem ter retratado com precisão é o poder absoluto que
irradia do homem.
O rosto do Rei Elfo, etéreo, bonito, jovem, duro como diamante, é
tão bonito quanto aterrorizante. Ele é como uma flor venenosa:
impressionante e mortal. Esta, percebo quando seus olhos piscam
em um azul ainda mais brilhante, é a face da morte.
três
Estou tonta e sem ar. Meu corpo sibila e estala com a eletricidade.
O poder inexplicável que eu não deveria possuir ameaça me
destruir.
A magia explode de mim em rajadas, como fogos de artifício. Ela
atinge os postes de iluminação que cercam a praça – os vidros se
quebram e caem no chão como pétalas de flores de cerejeira. Onde
antes havia ferro, agora há árvores.
Um tapete exuberante de musgo e grama se desenrola sobre os
paralelepípedos da praça. Moitas e trepadeiras brotam do chão e se
arrastam pelas construções, como tentáculos sencientes e
contorcidos tentando reivindicar os prédios. O mundo ao meu redor
é transformado, indo de construído para natural. É como se a
natureza surgisse dos meus pés para se opor à audácia da
arrogância da humanidade de se opor a ela.
Posso ver agora. Ver o quê? Tudo. Posso ver tudo.
Meus olhos nunca estiveram tão abertos. Vejo cada pulso de
magia – de vida – naqueles ao meu redor. Vejo a essência crua da
existência, e ela me tira o fôlego e a compostura.
Lágrimas frias e amargas escorrem pelo meu rosto. De repente,
estou quente. Sou fogo derretido em um mundo que se tornou gelo.
O rei finalmente me solta, e tropeço, caindo sentada com os
braços para trás para me apoiar. O musgo cresce sobre meus
dedos. Pequenas trepadeiras brotam, agarrando meus pulsos. Puxo
minha mão e seguro minha camisa sobre meu peito, ofegante. Meu
cabelo ruivo cobre meu rosto e aproveito um breve segundo de
privacidade, fechando meus olhos com força.
Isso não pode ser real. Diga-me que tudo isso é um pesadelo!,
quero gritar.
Mas quando me endireito, não consigo não ver. A praça virou algo
saído de um livro de histórias. Plantas e humanos pulsam com uma
luz esverdeada, enquanto objetos inanimados estão cinza.
Eu pisco várias vezes, observando as auras aparecerem e
desaparecerem da minha consciência. Tudo ao meu redor está
inundado com a mesma cor… exceto por ele.
O rei é de um azul pálido. A aura que o cerca é diferente da magia
quieta e ordenada da vida. Sua magia é contorcida, raivosa e
violenta. Muito parecida com a carranca em seu rosto. A visão que
me foi concedida, o que quer que tenha sido, enfraquece enquanto
continuo a olhar boquiaberta para ele.
Ele olha para mim, olhos inescrutáveis, testa franzida.
— O que… — pigarreio, tentando encontrar minha voz. — Como?
Ele inclina a cabeça para o lado.
— Então você realmente não sabia.
— Eu… — Minha garganta se fecha e me engasgo com o ar.
Sabia?.
Sabia que era a Rainha Humana, ele quis dizer.
— Me diga o que está acontecendo — consigo falar, mas sou
ignorada.
— Então a pergunta agora é, quem? — O rei se vira, varrendo os
olhos pela praça. As pessoas que conheci, meus amigos e
familiares, olham em choque e admiração. — Quem a escondeu?
Quem deu isso a ela? — Exige, segurando o colar que tirou do meu
pescoço.
— Isso… — No momento em que falo, os olhos do Rei Elfo estão
de volta em mim, acusatórios e opressivos. Mesmo se tivesse a
capacidade de mentir, não conseguiria. Meus olhos já me traíram
enquanto se lançam sobre meu amigo de infância enjaulado. —
Luke. Foi um presente de Luke.
— Como ousa — Luke olha para mim e murmura, furioso. Sua
expressão é feia, horrível. É uma expressão de ódio. Os olhos com
os quais sonhei – olhos que, horas atrás, me olhavam com
admiração quando declarou que se casaria comigo – agora não
consigo reconhecer. — Amei você, quis protegê-la; agora você me
condena?
— Ficariam sabendo de alguma maneira. — Defendo minhas
ações por instinto. Isso só o faz ficar com ainda mais raiva. Ele não
consegue ver que o melhor caminho a seguir é a honestidade?
Tenho certeza de que tudo isso é algum tipo de mal-entendido. Tem
que ser.
— Qual o significado disso? — a Guardiã-Chefe demanda.
— O que você fez? — outro Guardião pergunta.
Luke não diz nada. Ele continua a me apunhalar com os olhos, me
prendendo ao chão como se não passasse de sujeira para ele.
Ele disse que me amava.
O rei anda em direção a Luke e a prisão de pedra que o contém se
desfaz. Ele agarra seu rosto com tanta força que as unhas cravam
em seu queixo, tirando sangue.
— Diga a eles o que você fez —, rosna o soberano.
— Não fiz nada — afirma o Guardião.
O Rei Elfo lança Luke no centro da praça, em um círculo aberto
entre todos os reunidos ali. Luke cambaleia e gira, procurando
alguém para ficar do seu lado; contudo, todos pudemos ouvir a
mentira em sua voz. Seus olhos pousam em mim: eles imploram por
algo que não sei se posso dar. Posso ter sido capaz algum dia, mas
não mais.
— Diga a ela o que você fez —, ordena o rei.
— Tentei te levar embora — Luke respira. Posso ver que seus
olhos estão vermelhos e se enchem de lágrimas. — Por que você
não foi comigo?
— Como ela conseguiu isso? — O Rei Elfo empurra o colar que
Luke me deu na cara dele.
— Alguém me ajude! Por que ninguém me ajuda? — Luke se vira,
implorando aos habitantes da cidade.
Ninguém se apresenta.
— O que aconteceu? — Finalmente encontro minha voz. Usando o
que resta da minha força, eu me levanto, recompondo-me e
recolhendo minha bolsa de onde ela caiu ao meu lado. — Me conte
— exijo.
Ele murcha.
— Eu… nunca quis que você se machucasse. Nunca quis que
nada disso acontecesse. — Posso ver a mentira nos olhos
inconstantes de Luke enquanto fala. Mentiras, mentiras, mentiras. —
Achei… achei que poderíamos encontrar outra maneira.
— Do que você está falando? — sussurro. Os olhos de Luke se
voltam para mim.
— Você se lembra do dia em que fui com você e Emma para a
floresta, quando tínhamos doze anos? Foi a primeira vez que ela
teve um daqueles ataques e você fez um elixir para ela. — Lembro
exatamente como ele conta. — Foi quando vi você usar magia sem
perceber. Vi flores minúsculas brotarem em suas pegadas por entre
a grama atrás de você sem você saber. As árvores pareciam
farfalhar em saudação quando você passava, e ainda assim você
sempre pensava que era o vento.
A floresta parecia tão viva quando era criança, como se fosse uma
pessoa – uma amiga, tanto quanto um lugar. Pensei que fosse algo
que acabou desaparecendo com a idade e maturidade. Mas agora
não tenho certeza.
— Sabia que você era a rainha — ele admite. Os habitantes da
cidade arquejam.
A Guardiã-Chefe dá um passo à frente.
— Como você ousou? — Ela profere a pergunta que todos estão
se fazendo.
— Mas não poderia desistir de você. Não poderia! Eu te amava
então como amo agora — Luke continua, falando apenas para mim.
— Então encontrei o colar guardado entre os pertences dos
Guardiões e dei a você. Achei que isso iria mantê-la escondida e,
quando tivéssemos idade suficiente, eu…
— Me levaria embora — termino com um sussurro. Ele engole em
seco e assente.
Como que pegando a deixa, o rei joga no tablado o colar que
arrancou do meu pescoço. Ele cai aos pés da Guardiã-Chefe.
— Um amuleto feito por elfos. Não trocamos mercadorias desse
tipo com Capton há séculos, então não tenho dúvidas de que estava
muito bem guardado. Obsidiana negra para silenciar seus poderes,
e labradorita para protegê-la do Saber, caso ela encontrasse algum
elfo que tentasse descobrir seu nome verdadeiro.
Olho para o colar e depois de volta para Luke.
— Você disse que isso me protegeria.
— Estava tentando poupá-la — Luke implora, com uma voz aguda
e chorosa que nunca ouvi antes. — Pensei que poderia salvá-la de
um futuro terrível.
As ações de Luke, minhas habilidades de cura, o fato de que
sempre senti como se tivesse um dever para com a cidade, tudo faz
sentido agora. Um sentido horrível. Terrível.
— Luella. — Luke cambaleia em minha direção. — Eu te amo
desde aquela época. Fui feito para você e você foi feita para mim.
Um braço esguio bloqueia o caminho de Luke, impedindo-o de
chegar mais perto de mim. Nunca pensei que seria grata ao Rei
Elfo, mas não sei o que faria se Luke ousasse me tocar agora. Já é
difícil o suficiente permitir que ele olhe para mim.
— Não — sussurro para Luke. — Você não me ama, você nunca
amou.
Ele tenta desviar do Rei Elfo, mas este continua se colocando em
seu caminho, agarrando o pulso de Luke.
— Você tem que acreditar em mim. Tudo o que fiz foi tentar salvá-
la deste futuro miserável.
— Você tentou me salvar às custas de todos que amo! Você os
veria sofrer e morrer porque queria me manter escondida para si
mesmo.
— Por causa do amor!
— Isso não é amor! — Permito que minha voz seja levada até o
topo das montanhas. As árvores estremecem com a minha raiva.
Suas raízes abalam a fundação da terra bem abaixo dos meus pés.
O vento uiva, e a tempestade se aproxima no horizonte. — Amor é
escolha — continuo, antes que ele possa dizer outra palavra. —
Você… você queria ser meu dono. Você queria me guardar para si,
independente de como estivesse me sentindo. Você nunca me
permitiu tomar a decisão por conta própria e agora nossa cidade,
nosso povo, sofreu por causa de seu egoísmo. Estremeço ao
pensar no que poderia ter acontecido com todo o nosso mundo se
você tivesse conseguido o que queria.
Eu relembro todos os funerais a que assistimos dos moradores da
cidade mortos antes do tempo por causa da Fraqueza. Vejo Luke,
de pé com os outros Guardiões, lamentando sua perda como se
realmente se importasse, como se suas ações não tivessem levado
à morte deles. Suas lágrimas não tinham sentimento algum àquela
época, e seu remorso agora significa tanto quanto significou então.
— Luella…
— Pare — sussurro. — Nunca mais diga meu nome. — Quase
desejo que a terra se abra e o engula inteiro. Da forma como me
sinto agora, ela até poderia atender ao meu comando. — Livre-se
dele. Quero que ele suma — peço a ninguém em particular. Não me
importa quem atenda ao pedido.
É o Rei dos Elfos quem me atende. Ele arranca o bracelete de
Guardião de Luke sem um segundo de hesitação. Seus olhos
piscam com um azul brilhante: ele cruza os braços à sua frente e,
em seguida, lentamente os separa – como se estivesse esticando
bala de noiva entre as mãos. Luke enrijece, erguendo-se na ponta
dos pés de uma forma não-natural. Os dedos do rei ficam ainda
mais tensos, puxando. Um som patético e lamentoso escapa de
Luke enquanto ele se contorce. O ar se enche de estalos. Os
habitantes da cidade começam a gritar.
— Não! Não o machuque! — Corro até o Rei Elfo e agarro seu
braço. Ele olha para minha mão em contato com ele com um ar de
choque e ofensa. — Não o quero morto. — Meu coração está sendo
dilacerado; não suporto testemunhar Luke sendo rasgado em dois.
O Rei Elfo tenta se desvencilhar de mim, mas seguro firme,
cravando meus calcanhares no chão. — Ele deve ser julgado pelo
Conselho de Capton. Ele deve expiar seus crimes como é justo e
razoável.
O Rei Elfo estreita os olhos para mim em uma careta e, por um
momento, acho que pode me ignorar. Mas não paro de encará-lo. O
que mais ele pode querer tirar desta cidade? Ele já tem minha vida.
Se sou a Rainha Humana – e sou, não há como negar depois da
exibição que acabou de acontecer – ele não deveria precisar de
mais nada.
— Luke não importa para você — digo, minha voz fraca. — Meu
povo fará justiça. Você já tem a mim; deixe-o ir.
O rei solta Luke e ele cai no chão, ofegante. Dois Guardiões
avançam e o agarram por baixo dos braços. Eles começam a
arrastá-lo para longe, enquanto ele implora e murmura desculpas o
tempo todo.
Nenhum dos habitantes da cidade ouve. Eles o encaram
abertamente, seus rostos frios e fechados.
O Rei Elfo se vira para mim.
— Venha, Rainha, devemos partir imediatamente. Você é
necessária para além do Desvanecer — diz gravemente.
Estou entorpecida do topo da cabeça aos dedos dos pés. Ele
agarra meu braço, me chamando de volta à realidade. Olho feio
para ele. Mil objeções estão na ponta da minha língua, e ainda
assim não consigo reunir forças para dizer nenhuma delas.
Desde menina, me ensinaram qual era o destino da Rainha
Humana. Se contar a ele sobre meus deveres como curandeira,
meus apelos cairão em ouvidos surdos. Se implorar para que me
deixe ficar um pouco mais, sei que ele vai recusar, porque é assim
que as coisas acontecem.
Se me recusar a ir, meu mundo morre.
— Não há tempo. Você e eu devemos nos casar.
cinco
***
***
Canto para mim mesma. É uma das músicas que me lembro de ter
cantado quando criança, mas não consigo identificar onde ou com
quem aprendi. É uma música macabra sobre um humano que se
apaixona por uma criatura da floresta profunda, e canto muito mal,
mas é melhor do que o silêncio.
Sou arrastada pelas ruas da cidade para mais e mais longe. A luz
brilhante do sol está esmaecida. Uma silhueta aparece diante de
mim — chifres e ângulos agudos, asas finas que se estendem de
uma forma pouco natural de suas costas.
Aquela criatura que vi com Aria.
— Continue segurando, ela ainda está acordada — um homem
rosna.
Pisco lentamente e luto contra todos os instintos de inalar grandes
lufadas de ar. Meus pulmões estão revoltados. Vou ser obrigada a
respirar em breve. Espero que, se acharem que desmaiei, removam
o pano.
Tão naturalmente quanto consigo, fecho enfim meus olhos e
permito que meu corpo fique pesado. Eldas havia dito que temos
inimigos. Por que não escutei? Por que não levei mais a sério?
O movimento para quando ouço gritos ao longe. São palavras
distorcidas e frenéticas. A escuridão atrás das minhas pálpebras
está rapidamente se tornando mais do que fingimento. Vou
desmaiar em breve.
No entanto, quando penso que estou prestes a perder minha
batalha com a consciência, o trapo é removido. Luto contra o desejo
de inalar grandes lufadas de ar fresco; ao invés disso, inspiro
lentamente para não alertar meus agressores.
— Vá e despiste-os. — Meus olhos ainda estão fechados, mas
posso reconhecer o homem com chifres apenas pela voz. — Vou
escondê-la.
— Você não tem nenhum rito preparado — outra voz sibila, tão
baixo que mal consigo ouvir as palavras. Ritomancia… é a magia
silvestre dos feéricos…
É Aria? Acho que quem está falando é uma mulher… mas não
tenho certeza. Há mais movimento. Há três ou quatro pessoas aqui
agora?
Meu coração retumba no peito. Quero pedir ajuda, quero chamar
Eldas; ele Andou pelo Desvanecer e me encontrou quando tentei
fugir. Não sei como o Desvanecer funciona, mas ele virá se eu
chamar, certo? Duvido… não tem como ele me ouvir. Ele acha que
ainda estou segura em seu castelo.
No entanto, o pensamento acende uma ideia.
Rinni deve ter olhado para trás e notado que eu sumi. A comoção
que ouço aumentando à distância deve ser ela guiando os
cavaleiros na minha direção. Só tenho que aguentar e lutar o
suficiente para que eles não possam me levar muito longe.
Eu consigo fazer isso, não consigo?
Duas mãos me agarram, me levantando. Ouço o zumbido de asas
poderosas. Sinto um oco no estômago e parece que estou sem
peso.
Estamos voando?
Abro os olhos e vejo o bater borrado das asas de libélula do
homem com chifres. Ele vai me levar embora voando, percebo.
Respiro fundo e penso na praça em Capton. Usei minha magia para
transformar coisas feitas por mãos humanas em natureza de novo.
Transformei ferro em árvores. Transformei pedra em musgo. Posso
fazer algo para me salvar.
É agora ou nunca. Entreabro os olhos e olho para o rosto do
homem com chifres – ele ainda não percebeu que não estou tão
incapacitada quanto pensava. Estou surpresa com o quão humano
seu rosto parece, apesar de suas asas e chifres. Mas não me
permito distrações.
Estendo a mão para o colar de contas em volta de seu pescoço e
fecho meus dedos. Ele olha para baixo, quase me derrubando. Um
silvo e um palavrão lhe escapam.
Transforme, ordeno, transforme-se em trepadeiras, galhos de
árvores, qualquer coisa! As contas estremecem, quase ganhando
vida. Ele me empurra em seus braços, esticando o pescoço para
longe. Tento me concentrar na minha magia, mas escorrego dos
braços do homem.
O colar arrebenta e caio no chão, aterrissando com um baque
forte. Felizmente, não estava muito alto ainda, mas estava alto o
suficiente para que o impacto me tirasse o fôlego.
Ele pousa ao meu lado, espreitando com um rosnado.
— Como se atreve, humana?
Nem perco tempo respondendo. Minha magia ainda pode ser
muito ineloquente para que eu a comande assim de supetão, mas
sei outra coisa que vai me atender.
Levando meus dedos aos lábios, solto um assobio estridente.
— Hook, venha! — grito. O homem com chifres se lança na minha
direção e vejo o ar ao lado dele brilhar. Hook salta das sombras. —
Hook!
Meu lobo emite o que soa quase como um rugido em vez de um
rosnado e corre em direção ao homem com chifres. Meu atacante
mal tem chance de reagir antes de ser atacado. Hook salta sobre
ele e afunda os dentes em suas asas, o que o faz soltar um grito de
agonia.
Eu me afasto até que minhas costas atingem uma das paredes
sujas de um prédio.
— Hook! —chamo, fraca. A fera se transformou em nada além de
raiva e dentes. Hook arranca uma das asas do homem. — Hook,
pare! — Fico em pé.
Ele me atacou. Tentou me sequestrar. E, no entanto, assim como
com Luke, não consigo vê-lo mutilado pelos ataques cruéis do lobo.
— Hook…
— Lá! — A voz de Rinni ecoa por sobre a minha. Ela está na
entrada do beco. Soldados passam por ela, correndo em nossa
direção. O homem está no chão. Hook tem seu joelho entre as
mandíbulas e se recusa a soltar.
Ainda assim, o homem levanta as mãos, entrelaça os dedos e os
abaixa na cabeça de Hook.
— Pare! — grito. Os cavaleiros não vão nos alcançar rápido o
suficiente. Ele continua batendo em Hook até que o lobo o liberte e,
mesmo depois, não cede. — Eu disse pare!
Ele estende a mão para mim enquanto corro para segurar seus
braços. O homem tira uma lâmina de sua manga e me puxa para
perto. A prata fria está debaixo do meu queixo; a ponta perversa e
afiada me cutucando.
— Não se aproximem! Ou aproximem-se, e vou matá-la.
— Mate-a e você condenará a todos, seu tolo! — A voz de Eldas
vem de trás de nós e é a encarnação da malícia. Ela desliza pelo
chão, sobe e enche o ambiente. As sombras parecem se alongar. A
temperatura do ar cai.
O homem com chifres fica rígido. Ele tenta se virar, mas não
consegue. Seus braços se desvencilham de mim e vejo seu corpo
bater frouxamente contra a parede oposta. Tremendo, olho para sua
forma ensanguentada, contorcendo-se e estalando.
Uma mão segura meu cotovelo. Eldas me puxa contra si. Seu
braço desliza em volta da minha cintura e agora estou colada a ele.
Protegida. Segura. O Rei Elfo olha para o mundo com raiva e
poder distorcidos. No entanto, sou a antítese de tudo isso. Ele me
segura com firmeza, mas gentilmente.
— Eldas… — sussurro. — Não. — Meus olhos disparam do
homem para Hook. O lobo geme baixinho. Apenas a visão do meu
agressor batendo na cabeça dele quase me faz querer retirar
minhas palavras.
— Luella, este não é o seu mundo — ele me lembra. Ouço nas
entrelinhas, este não é Luke. — Esta escória feérica quis machucá-
la, e vai morrer por isso.
— Se você… se você nos tivesse devolvido nossas terras… isso
não teria acontecido — meu aspirante a sequestrador sibila. —
Entremundo está morrendo sob o domínio dos elfos. Não vamos
parar até que consigamos o que é nosso e fiquemos livres para
controlar nosso próprio destino.
— Ele deveria ser levado à justiça, levado cativo para julgamento.
— Olho para Eldas, implorando para a estátua de um homem que
tem raiva fervendo atrás de seus olhos; mais quente do que
qualquer emoção que já vi nele.
— Isso é justiça. Minha justiça.
Afasto meu olhar, pressionando meu rosto no peito de Eldas
enquanto um som horrível de algo sendo despedaçado enche meus
ouvidos. Posso ter gritado. O braço de Eldas se aperta ainda mais
ao meu redor e o mundo fica escuro enquanto me leva pelo
Desvanecer com ele.
vinte
Eldas me leva até meu quarto e conjura sem palavras um fogo que
começa a crepitar na lareira. Sento-me no chão diante das chamas,
e sinto um cobertor ser colocado suavemente sobre meus ombros
trêmulos. Ele murmura que estarei segura.
Ele desaparece e retorna mais uma vez, desta vez com Hook em
seus braços. Eldas coloca o lobo aos meus pés. Hook choraminga e
seus olhos geralmente brilhantes estão distantes e vítreos. Mas ele
responde bufando suavemente quando coço sua cabeça.
Olho para trás para agradecer a Eldas por trazer o meu lobo, por
garantir sua segurança, mas ele se foi. E estou sozinha com o som
miserável de um corpo se partindo ao longe ecoando em meus
ouvidos.
Eldas: civil e brutal; frio e quente; capaz de bondade, mas
consegue facilmente ser cruel. Ele chamou Entremundo de um lugar
duro quando o ouvi conversando com Rinni. Não tinha entendido
completamente até este momento.
Este… este não é o meu mundo, lembro-me outra vez. As regras
que sempre soube não se aplicam aqui. Fui tola em pensar que
essas regras estavam relacionadas apenas à magia e às pessoas
que a exercem.
Não é apenas magia. Tudo é diferente.
Como poderia me encaixar aqui?
O sol está mais alto no céu quando o Rei Elfo retorna. Ele não
Anda pelo Desvanecer para chegar ao meu quarto. Desta vez, usa a
porta.
Eldas hesita na entrada, esperando por algo. Não consigo olhar
para ele. Não sei o que vou ver. Será um assassino? Será o homem
cuja carícia acende meu desejo?
Enterro as mãos no pelo de Hook em busca de força. Fecho os
olhos com força e inspiro, trêmula. Tudo o que vejo é o rosto de um
homem – um feérico – morto… morto por Eldas…
Olho fixamente para o fogo, tentando queimar as memórias. Não
quero enfrentar essa verdade. Não consigo lidar com as coisas se
tornando mais complicadas. O peso de Eldas aparecendo de
repente ao meu lado me tira do transe. Só percebo que estou
tremendo quando ele me envolve timidamente com um braço.
Aconchego-me involuntariamente. Parte de mim acha que deveria
temê-lo; a outra parte precisa dele e de toda a estabilidade que
pode oferecer.
Como se sentisse essa necessidade, Hook levanta a cabeça
cautelosamente, apoiando-a pesadamente no meu joelho.
— Quis protegê-la — ele diz baixinho, finalmente. Tenho um
sobressalto com a quebra repentina no silêncio em que fui sufocada
a tarde toda. — Foi por isso que disse para ficar no castelo. —
Consigo ouvir sua voz vacilar, como se estivesse lutando contra o
mau humor. Mas, pela primeira vez desde que o conheço, ele luta e
vence. — Independentemente do motivo pelo qual aconteceu,
lamento que você tenha tido que suportar isso.
— Você está certo — sussurro, continuando a encarar o fogo. —
Deveria ter ouvido. Deveria ter ficado no castelo. Só queria ter um
momento de liberdade, algo que fosse meu. Mas se eu tivesse feito
o que você pediu, então aquele homem ainda estaria vivo. Por
minha causa…
— Não — Eldas diz com firmeza, não me permitindo terminar o
pensamento. Seu toque é suave em contraste com a palavra dura.
Sua mão livre descansa no meu queixo, sua carícia suave
substituindo a memória da lâmina na minha garganta enquanto guia
meu rosto para olhar para o seu. — Isso não foi culpa sua. Entendo,
Luella. Mesmo que eu desejasse que você tivesse ouvido meus
avisos e não tivesse ido embora. Entendo querer escapar deste
lugar. — Vejo anseio e nostalgia brilhando nas águas de uma
profunda tristeza em seus olhos. — Aquele homem morreu porque
tentou atacar a Rainha Humana.
— Por quê? Por que me atacar? — Seguro a camisa de Eldas
gentilmente, como se estivesse me agarrando a uma resposta que
provavelmente não está lá. — Não quero machucar pessoas. Eu
trouxe a primavera!
— Nem todo mundo ama a Rainha Humana — Eldas diz
solenemente.
— Mas…
— Alguns veem você como uma noção ultrapassada. Alguns
desejam se juntar ao Mundo Natural e conquistar a humanidade. —
Sinto um arrepio, e Eldas me puxa para mais perto. Eu permito.
Assassino e protetor, as duas palavras rondam minha cabeça
enquanto meu corpo é pressionado contra o dele. O movimento
parece ter sido inconsciente, porque, por um momento, ele está tão
assustado quanto eu com isso. Limpando a garganta, Eldas
recupera a concentração. — Outros já sentiram que a linhagem de
Rainhas Humanas está desaparecendo; cada rainha é mais fraca do
que a anterior.
— Meu poder realmente é mais fraco? — A mim sempre pareceu
tão forte. Apesar disso, as palavras de Luke sobre os próprios
Guardiões saberem que o poder da rainha estava desaparecendo
voltam à minha mente.
— Você pode achar difícil de acreditar — ele admite, como se
estivesse lendo minha mente —, mas é. Pense em como o trono a
devastou na primeira vez em que se sentou nele. Além disso, a
natureza em Entremundo não é estável como antes, e isso está
criando dificuldades à medida que os alimentos se tornam mais
escassos e a terra viável é mais valorizada do que nunca.
Abaixo a cabeça.
— E eles culpam a Rainha Humana pela situação da terra.
— Eles não entendem que a rainha faz tudo o que pode.
Balanço a cabeça.
— Precisamos encontrar uma maneira de quebrar o ciclo.
— Eu sei. — Eldas se mexe. Sua expressão é dura, mas não
fechada; ele é resoluto, tudo o que eu esperaria de um rei. Seus
olhos estão pesados enquanto encaram as chamas. Pergunto-me o
que ele vê na luz dançante. — Devemos isso ao nosso mundo e aos
futuros reis e rainhas. Temo que você possa ser a última rainha.
Mas mesmo que nada disso fosse verdade, ninguém deveria ter que
suportar o que você precisa… o que você vai continuar a suportar. E
nenhum outro rei deveria… — Ele se detém.
— Deveria o quê?
— Deveria ter que ver sua rainha com uma faca na garganta. —
Seu olhar se volta para mim. Está cheio de uma emoção que não
ouso nomear; uma expressão irremediavelmente presa entre o
desespero e o desejo.
Minha respiração fica presa em minha garganta.
— Você estava… preocupado comigo?
Ele ri suavemente. Nossos rostos estão próximos o suficiente para
que o ar que sai de sua boca acaricie minha face e provoque meu
cabelo.
— É claro que estava preocupado com você. É meu dever
protegê-la. — Eldas estende a mão e coloca uma mecha rebelde de
cabelo atrás da minha orelha. O movimento terno contrasta com
suas palavras secas.
Sinto um peso no estômago.
— Não sou nada mais do que um dever para você? — Não sei o
que quero que ele diga, e arrependo-me instantaneamente de
perguntar.
— Você é… — Seus olhos se estreitam um pouco, como se
estivesse tentando me ver melhor.
A pausa é terrível.
Meu cérebro tenta adivinhar mil palavras presas atrás de seus
olhos enigmáticos. Imagino-o dizendo sim. Consigo ouvi-lo dizer
não. Endireito o corpo, tentando me distanciar dele e da pergunta.
— Está tudo bem — digo apressadamente. — Não precisa
responder. Entendo o peso do dever. — E meu dever me faz
procurar uma maneira de terminar este ciclo. Acabar com isso seria
a melhor ajuda para Capton, não seria? E então eu poderia voltar e
escapar desta terra de magia silvestre.
Eldas alivia a tensão mudando de assunto.
— Hook parece estar bem. — Ele estende a mão para coçar atrás
das orelhas do lobo, que permite, mas não sai do lugar.
— Graças aos Deuses Esquecidos.
— Você realmente se importa com a criatura.
— Eu me importo com todos os meus amigos. — Olho em sua
direção. Espero que ele ouça o que estou insinuando: seja meu
amigo e me importarei com você também. Eldas segura meus olhos
atentamente, como se esperasse que eu dissesse mais. Mas minha
garganta está muito pegajosa. Ao invés disso, procuro uma
alternativa. — Posso te perguntar outra coisa?
— Você pode me perguntar qualquer coisa. — Sua sinceridade me
assusta, mas rapidamente dispenso o sentimento. Falar de política
vai esfriar o calor que sobe em minha face.
— A criatura era um feérico, certo?
Ele assente.
— Todos são daquele jeito? Chifres de veado e asas de libélula?
— Muitos são. Embora suas características variem. No entanto,
muitas vezes eles usam glamour para se disfarçar.
Estremeço ao pensar que essas criaturas podem estar à espreita
em qualquer lugar. Pela primeira vez, sou grata pelo castelo estar
tão vazio. Continuo o assunto; falar está ajudando a apagar a visão
e o som da morte daquele homem.
— Então qualquer pessoa poderia ser um? — sussurro.
— Água doce apaga o glamour dos feéricos — Eldas diz,
tranquilizador. — A fronteira com os feéricos está bloqueada por um
muro e água doce. As únicas pontes são fortemente vigiadas.
Feéricos não entram em nossas terras sem que saibamos.
— Mas a delegação feérica…
— Eu os mandei embora — diz secamente. — Não suportaria
olhar um segundo a mais para eles. E se tiveram alguma coisa a ver
com essa trama, não os quero em meu território. Ninguém mais
entrará ou sairá até sua coroação ou até… até que você esteja de
volta ao Mundo Natural. Rinni cuidará da remoção deles
pessoalmente.
Mal consigo resistir a pedir para ele não ser muito duro. Mas então
aquele som horrível enche meus ouvidos, e estou lutando contra os
tremores. Este não é o meu mundo, ou a minha justiça.
— Como eles roubaram você de Rinni? — Eldas pergunta.
— Fiquei para trás, por um momento… tudo aconteceu tão rápido
— murmuro. Por mais que não queira pensar nisso, outra coisa vem
à tona nessas memórias manchadas de carmesim. — Aria estava lá
— sussurro.
— O quê? — Eldas faz uma careta. — Com os sequestradores? —
pergunta rapidamente.
— Não, não… eu a vi falando com o homem com chifres pouco
antes.
— Tem certeza de que era o mesmo homem? Tem certeza de que
era ela? — Eldas se move para me olhar diretamente nos olhos. —
Você precisa ter certeza absoluta.
Tento organizar minhas memórias, mas depois de passar o dia
afastando-as e apagando-as… Balanço a cabeça.
— Acho que sim… Com certeza era ela. Talvez tenha sido assim
que me identificaram, já que Harrow permitiu que Aria, Jalic e Sirro
me vissem antes da coroação.
Eldas está em silêncio, olhando para o fogo. Ele vê algo que não
vejo.
— Você acha que ela estava envolvida? — atrevo-me a perguntar.
Não gosto da ideia de alguém que poderia estar envolvido em uma
tentativa de sequestro sendo autorizado a entrar e sair do castelo.
Depois de mais um minuto de silêncio, pressiono:
— Eldas?
— Não — diz, finalmente. — Duvido que esteja…
— Mas como você…
— Aria é a sobrinha do atual Rei Feérico.
— Ela é feérica? — pisco, assustada.
— Meio-feérica. E seu lado elfo é o dominante. O irmão do atual
Rei Feérico era seu pai, embora tenha morrido quando ela era
jovem. Aria foi criada em Quinnar com sua mãe. — Eldas balança a
cabeça. — Os benefícios para a diplomacia por um risco muito
pequeno para nós são parte do motivo pelo qual permito a amizade
de Harrow com ela. Nós a investigamos minuciosamente quando se
tornaram amigos anos atrás. Ela é problemática, sim… — Ele
suspira. — Mas o tipo de problema que Aria pode causar está muito
longe do sequestro de uma Rainha Humana. Seu problema se
manifesta em fazer com que meu impressionável irmão fique fora
até tarde ou beba demais.
— Você tem certeza? — Não consigo evitar a pergunta.
— Se ela estivesse envolvida em um complô para sequestrar
você, estaria agindo contra sua família e seu próprio interesse. Se o
Rei Feérico estiver envolvido, então qualquer vantagem que ele
esperasse ter com os elfos está perdida. E Aria sabe cuidar de si.
Tentar machucar você limitaria severamente as perspectivas dela —
explica. Considero. Faz sentido, suponho. Afinal, o que sei da
política de Entremundo? Muito pouco. Estive tão concentrada em
aprender sobre minha magia e procurar uma maneira de quebrar o
ciclo que não tive a chance de mergulhar mais fundo em todo o
resto.
— Se você tem certeza — murmuro.
— Se ela estiver envolvida, eu mesmo cuidarei disso — Eldas jura.
Rapidamente mudo de assunto, não querendo pensar em Aria
sendo dilacerada membro por membro.
— O homem disse algo sobre querer sua terra, sobre você
devolvê-la. O que ele quis dizer?
Eldas passa a mão pelo cabelo. Observo enquanto a cortina de
seda preta cai sem esforço de volta no lugar.
— Quando os feéricos começaram suas lutas internas, foram anos
de disputas sangrentas que se refletiram na área ao redor. Houve
ataques a assentamentos de elfos quando as fronteiras de nossa
terra eram mais borradas do que são agora. A maioria não foi
provocada; feéricos saquearam recursos ou simplesmente pegaram
nosso povo no fogo cruzado. Isso provocou uma rápida retaliação.
— Retaliação do seu pai? — pergunto-me de onde ele herdou sua
veia brutal.
— Não, bem antes dele. — Eldas olha para o fogo. —
Eventualmente, os elfos ergueram um muro: aquele coberto de água
doce em toda a sua extensão.
Lembro-me do que Harrow havia dito sobre o irmão deles, Drestin,
ter recebido uma posição honrosa em algum muro.
— O muro foi um esforço para impedir a luta. Mas quando a poeira
começou a baixar e os clãs se cansaram de suas guerras,
descobriu-se que a muralha havia invadido uma grande faixa de
território anteriormente feérico.
— E agora eles o querem de volta?
— Eles querem há séculos. Mas no momento que eles deixaram
sua reivindicação clara, nosso povo já havia se estabelecido na terra
há muito tempo. Mesmo que devolvêssemos a eles, é incerto quem
o aceitaria e quem governaria. A delegação feérica que estava aqui
chegou para discutir a absolvição do dízimo para entrar no território
dos elfos para os feéricos. Eles acham que se sua terra ancestral
não pode ser devolvida, eles deveriam pelo menos poder entrar nela
livremente. Mas depois de hoje, duvido que algum dia…
— Não deixe o que aconteceu hoje mudar as coisas — digo
rapidamente. — Aquele homem pagou por seus crimes. A menos
que ele estivesse agindo em nome do Rei Feérico… não deixe que
todos os Feéricos sofram por causa de suas escolhas.
Eldas me estuda tão atentamente que me mexo e puxo o cobertor
mais apertado em volta de mim, como se pudesse me proteger de
seu olhar investigativo.
— Você quer que eu não os rejeite?
— Gostaria que você governasse com justiça, força e honra.
Um sorriso cansado curva os cantos de seus lábios.
— Você me lembra ela, às vezes.
— Quem? — Imagino que alguma amante da qual ele tenha
desistido antes que eu chegasse ao castelo.
— Alice. — Certamente não era quem eu estava esperando.
Agarro o cobertor com mais força.
— Você deve tê-la conhecido bem, não é?
Uma sombra cruza seu rosto e Eldas balança a cabeça, como se
estivesse arrependido de ter dito qualquer coisa. Posso senti-lo
recuar mentalmente antes de recuar fisicamente. Observo-o
enquanto se levanta, lutando contra o estranho desejo de puxá-lo de
volta para perto do fogo comigo.
— Você deveria descansar um pouco — diz suavemente, mas com
firmeza.
— Eldas…
— Vejo você pela manhã para praticar sua magia.
— Mas… — Não consigo terminar. Ele está do lado de fora,
recuando com uma pressa que nunca vi antes. Olho para Hook, que
geme baixinho e inclina a cabeça para mim em resposta.
— Também não o entendo.
O lobo fica em pé, espreguiça-se e vem sentar-se onde Eldas
estava. Inclino-me contra ele em busca de apoio e a fera exala
suavemente, mas não se move. Hook ainda fica mesmo depois que
adormeço em seu ombro peludo.
vinte e um
***
***
***
***
***
***
Eldas volta para Quinnar sozinho. Ele Anda pelo Desvanecer sem
sequer dizer uma palavra para mim. Descobrir através de Drestin
que ele se foi é o maior golpe de todos. A carruagem na volta está
tão fria e solitária quanto os salões do castelo que me esperam.
Nem mesmo a presença de Hook pode afastar o frio. Passo as
horas tendo um longo debate comigo mesma sobre o que poderia
ou deveria ter feito de forma diferente ao longo do caminho.
Quando o castelo de Quinnar é visível à distância, erguendo-se
em linha com os cumes das montanhas e elevando-se sobre os
campos, não tenho certeza do que sinto. Uma parte de mim é
estranhamente nostálgica pelo lugar. Outra parte preferiria estar em
qualquer outro lugar que não essa carruagem, aproximando-se cada
vez mais.
Rinni está esperando por mim quando a carruagem para antes do
túnel da entrada do castelo.
— O que aconteceu? — ela pergunta – não, exige.
— Harrow…
— Eu sei o que aconteceu com Harrow. Eu sou a general de
Eldas, então é claro que ele me contou isso. — Rinni se aproxima,
enganchando seu cotovelo no meu e me levando para as portas.
Hook segue logo atrás. Sua voz cai para um sussurro quando ela
olha para trás, para ter certeza de que os soldados que estavam do
lado de fora da minha carruagem não estão nos seguindo. — O que
aconteceu entre vocês dois?
— Nada aconteceu — minto.
— Foi o que ele disse. E é obviamente mentira.
— Rinni…
— Comecei a ver mudanças nele – mudanças para melhor, Luella.
Comecei a ver um lado mais quente e gentil. Deu-me fé e esperança
no homem que nos lidera. — Paramos no grande hall de entrada. A
grande escadaria arqueia-se na extremidade oposta, dividindo-se no
mezanino vazio. Isso me traz lembranças de quando cheguei.
Incrivelmente, acho que tudo era mais simples então. Quando
Eldas não era nada mais que um rei. E eu mal entendia meu papel
como rainha.
— Mas desde que ele voltou de Posto Oeste… Voltou a ser o
mesmo — finaliza Rinni. — E sei que isso deve significar que algo
aconteceu entre vocês.
— Não posso mudá-lo, Rinni. — Dou de ombros como se o peso
do mundo não estivesse sobre mim. Se Rinni acreditar que eu não
me importo, talvez Eldas também acredite, e talvez eu também. E
de alguma forma esse impasse insuportável em que estou pode se
tornar mais fácil.
Ela pisca, assustada.
— Não estou pedindo ou esperando que você o faça. Ele estava
mudando a si mesmo porque acreditava que poderia ser um homem
digno de amor – seu amor.
Não consigo aceitar as palavras dela. Não quero ouvi-las dela.
Queria ouvi-las de Eldas. Não, eu não queria ouvi-las de ninguém. É
impossível, não podemos nos amar. Não nestas circunstâncias, não
tão rapidamente.
Mas o que sei sobre o amor? O que já soube sobre o amor? Nada,
e é por isso que estraguei tudo.
Preciso voltar ao que entendo e ao que não vai me machucar: meu
dever.
— Desculpe, Rinni, acho que você pode estar enganada, mas
realmente não tenho tempo para discutir isso. Os dias estão ficando
mais frios e eu tenho trabalho a fazer. Hook, venha.
Rinni me encara com indiferença enquanto vou em direção ao meu
quarto. Ela eventualmente segue atrás de mim, mas posso dizer que
é apenas por obrigação. Não diz mais nada quando me escondo
para planejar e trabalhar.
Espero que ela acabe ficando do lado de Eldas… ele precisa muito
mais dela do que eu agora.
Eldas não fala comigo por três dias. No quarto, ele quebra o
silêncio com um bilhete. Quatro sentenças simples e sem emoção,
nada mais.
Dito e feito. Ele desistiu de mim. Rinni estava errada; ele não quer
amor, não mais do que eu. Não fomos feitos para o amor. Fomos
feitos para nos concentrar em nosso trabalho.
Então é isso que faço.
No quinto dia em que estou no laboratório, Willow está comigo,
roubando olhares preocupados até que não aguento mais.
— Vá em frente, pergunte — digo sem tirar os olhos do meu diário.
Já tenho os planos quase totalmente delineados. Há apenas mais
uma coisa a ser feita. Posso conversar um pouco com Willow. Ele
tem sido gentil comigo, e nada disso é culpa dele.
— O que realmente aconteceu em Posto Oeste? — Seus olhos
estão ternos, sondando suavemente. — Você não tem sido a
mesma desde que voltou.
— Nada mudou — respondo placidamente. Nada mesmo. Eldas
ainda é o gelado Rei Elfo. Ainda sou forçada a ser sua Rainha
Humana. O que quer que tenhamos vivido naquela cabana foi um
sonho, um momento, tão frágil quanto as asas de uma borboleta.
— Algo aconteceu. — Ele franze a testa e se senta na minha
frente. — Foi o que aconteceu com Harrow que a deixou diferente?
— Como ele está? — pergunto, continuando a permitir que Willow
pense que meu mal-estar geral se origina do incidente com os
feéricos. Desde que voltamos, Willow assumiu o tratamento de
Harrow, mas o príncipe mais jovem ainda não acordou. Isso é outra
coisa para Eldas se ressentir. Não tenho dúvidas de que ele me
culpa pelo estado não-responsivo do irmão, já que fui eu quem o
tratou pela primeira vez.
— Ele está bem, mas ainda sem mudanças. — Willow dá tapinhas
na minha mão. — Tenho certeza que ele vai sair dessa em breve.
— Sim… — acabo de revisar os meus planos. Faltam apenas
duas semanas para a coroação. Mordo o lábio e suspiro. Falta algo
que não estou percebendo para alcançar o equilíbrio, sei disso, mas
meus pensamentos estão espalhados como sementes de dente-de-
leão ao vento.
Parte de mim só consegue pensar em Harrow – estou preocupada
com sua recuperação e me pergunto por que ainda não acordou.
Parte de mim se pergunta se estou fazendo a escolha certa.
Imagino se há alguma outra escolha a ser feita. Então, há Eldas…
— Preciso pegar algumas coisas na estufa — digo, saindo antes
que Willow possa fazer mais perguntas. Fiquei muito frágil. Estou
como um copo cheio. Mais uma gota d’água e derramo os
sentimentos todos que estou carregando de uma vez, para que
outra pessoa possa vê-los – e para que eu não precise carregá-los
sozinha. No entanto, não posso fazer isso. É melhor fingir que os
sentimentos não existem.
O calor gruda em mim desde o segundo em que entro na estufa e
não me solta. Inalo profundamente o cheiro agora familiar – o aroma
único das plantas que crescem aqui, o musgo, a terra, a
compostagem de que Willow cuida meticulosamente nos fundos da
estufa.
— Fiquem bem quando eu for embora — digo baixinho para todas
as plantas. Elas parecem farfalhar em resposta.
Ando pelas fileiras de vasos, procurando o que posso querer levar
comigo. Preciso encontrar algo que espelhe a força do trono de
sequoia. Algo que possa criar raízes profundas no Mundo Natural e
fornecer um contrapeso ao trono neste mundo. Pensei em tirar uma
muda do próprio trono, mas outra rainha tentou isso uma vez por
outras razões e o trono era impermeável a todas as facas e
formões.
A primeira Rainha Humana plantou algo para fazer o trono –
acredito que é isso que a estátua no centro de Quinnar está
mostrando. O Desvanecer e o trono, feitos ao mesmo tempo em um
processo mágico, quase como um ritual, mas o que posso plantar
que possa espelhar o trono em poder? O que ainda está faltando
neste equilíbrio?
Então uma planta pequena e bulbosa chama minha atenção. Olho
para a raiz de coração, piscando várias vezes. É como se eu a visse
pela primeira vez.
— A raiz de coração se lembra — sussurro, ecoando as palavras
de Willow. É esta a semente para a qual minha consciência vai
quando me sento no trono. É a semente da qual o trono nasceu.
Naquele lugar eu senti a vida das rainhas do passado, a energia do
mundo.
Lilian enrolou um pedaço de madeira escura – madeira que
espelha a raiz de coração e aquela semente no centro do trono de
sequoia – em um colar. O colar que ela escondeu na caixa. Um
colar feito da magia que Eldas não consegue entender.
Ela encomendou sua estátua no centro de Quinnar para
representá-la ajoelhada. Não porque ela pretendia que as rainhas
fossem subservientes, mas porque ela estava mostrando como tudo
veio a ser… e como tudo terminaria.
— É isto.
As duas flores que se abriram instantaneamente quando toquei a
planta pela primeira vez parecem piscar para mim, como se
estivessem muito felizes por eu ter entendido tudo. Com cuidado,
pego o vaso que suporta a planta despretensiosa. Quase posso ver
as memórias fantasmas que testemunhei pela primeira vez quando
a toquei, estendendo a mão para mim.
Eu vi a Rainha Lilian pegando a raiz de coração e plantando na
primeira vez que entrei em contato com a planta. Isto é o que ela
estava plantando na estátua. Agora sei. Sinto com cada parte de
mim. Foi dessa semente que o trono de sequoia cresceu e essa
semente ajudará a equilibrar o Mundo Natural.
— Era esse seu plano o tempo todo, Lilian? — murmuro. Uma
mulher humana que negociou a paz com um Rei Elfo em guerra. Ela
foi inteligente. Direcionou a raiz de coração intencionalmente
apenas para Entremundo. Fez os mundos desequilibrados. Lilian
construiu uma saída para as Rainhas Humanas para quando
chegasse a hora certa – quando a paz fosse estável e as Rainhas
Humanas não fossem mais necessárias como troféus. Deixou pistas
para trás – iniciando a tradição dos diários, a estátua, usando a raiz
de coração que prenderia as memórias dela – esperando que
alguém as encontrasse.
Vou voltar para casa.
Correndo de volta para o laboratório, coloco a planta na mesa e
puxo Willow para um abraço apertado. Ele fica rígido, assustado, e
assim que se move para devolver o abraço eu já estou me
afastando.
— Obrigada, obrigada — digo.
— Pelo quê? — ele pisca.
— Foi por sua causa, por causa da raiz de coração, que – oh, não
importa. Escute, preciso que você faça algo para mim.
— Tudo bem. — Willow assente lentamente. — O que devo fazer?
— Pegue. — Cuidadosamente corto uma das flores. Willow
arregala os olhos. — Faça um elixir para Harrow. A raiz de coração
ajudou na cura de Harrow antes. A flor será exatamente o que ele
precisa – uma fusão das propriedades do corpo e da mente da
planta.
— A flor, mas é para… — Ele para.
— Envenenamentos, eu sei. Não consigo explicar o motivo, mas
acho que vai ajudar — digo me desculpando. — Por favor, apenas
confie em mim porque preciso me concentrar em meu outro
trabalho.
— Oh… tudo bem. — Willow lentamente começa a se mover,
fazendo como eu instruo. Enquanto isso, estou revisando meus
planos. Procuro no laboratório tudo o que precisarei sacrificar ao
equilíbrio para fazer a raiz de coração se propagar mais rápido.
Minhas mãos param antes que a magia saia delas. Se isso
funcionar… irei para casa antes do anoitecer. Estou tonta de
excitação e apreensão.
Então, outro pensamento passa pela minha cabeça. Se isso
funcionar, será a última vez que vejo Eldas. Meus dedos tremem e
engulo em seco.
O ciclo deve terminar, lembro-me com firmeza e volto ao trabalho.
Antes que eu perceba, estou diante da porta da sala do trono. Não
vi Rinni na semana que passou. Talvez tenha sido porque fiquei
trancada em meu quarto. Ou talvez seja porque Eldas finalmente
contou tudo a ela e eu estava certa em pensar que ela ficaria do
lado dele. Talvez, quando eu me for, ela e Eldas tentem o romance
novamente. O pensamento me dá náuseas, e concentro-me na raiz
de coração em minhas mãos.
— Você está atrasada — Eldas diz secamente enquanto eu entro.
— Convoquei você para se sentar no trono uma hora atrás.
— Eu sei. — Encontro seus olhos e meu peito aperta ainda mais.
Aqueles olhos gelados são os mesmos que me olharam na
escuridão com tanto desejo… desejo que ousei pensar que poderia
ser amor. — Mas não importa. Isso tudo está prestes a acabar.
O ciclo.
Nós.
— Você descobriu — ele sussurra, sem expressão.
— Sim, e vou embora hoje. — Espero para ver um lampejo de
emoção em seu rosto. Há algo em seus olhos, mas nem mesmo eu
consigo ler. Pode ser tanto alívio quanto arrependimento. E, porque
não consigo ler, é assim que tenho certeza de que estou tomando a
decisão certa. Nada disso ficará claro para mim até que eu esteja de
volta a um mundo que conheço, um lugar que faça sentido, e tenha
alguma liberdade para lidar com essa confusão de sentimentos
tentando me estrangular.
— Então eu lhe darei passagem pelo Desvanecer — ele diz
lentamente —, e espero que você nunca retorne.
trinta e seis
***
Três dias depois, estou mais uma vez no meu antigo quarto do
sótão, no sobrado da minha família.
— Não é muito, mas é meu — sussurro. Isso é o que eu
costumava dizer.
Há o colchão de feno, meus livros alinhados em um canto, minha
cômoda de roupas e tudo o que já vi como minha vida – exceto pela
minha botica – em um só lugar. Esta é a primeira vez que vejo tudo
desde que voltei dos grandiosos salões de Entremundo. Esperava
achar o lugar confortável e reconfortante. E é reconfortante… mas
de uma forma nostálgica. Como um velho par de sapatos, amaciado
do jeito certo, mas que já não serve mais depois que crescemos.
— Luella? — Meu pai diz, subindo as escadas estreitas que levam
ao sótão. Ele segura duas canecas em suas mãos. O cheiro familiar
da mistura de chá de menta que fiz para ele anos atrás enche o ar.
— Achei que você poderia querer algo para acalmar seus nervos.
— Obrigada. — pego uma caneca e tomo um gole.
— Sua mãe e eu temos algo novo para você usar hoje. — Ele
acena para o vestido colocado na cama. É um lindo vestido de
verão de algodão amarelo brilhante, amarrado com uma fita de seda
branca. — Claro, provavelmente não é muito comparado aos
vestidos que você usou como Rainha Humana, mas suspeito que
você se divertirá muito mais nele. — Ele dá uma risadinha.
— Estou certa de que vou. — Tudo o que quero são minhas calças
de lona. Tudo o que quero é minha botica. Tudo o que quero é ser
normal mais uma vez.
Mas não sei mais o que é normal. Não sei como encontrar algo
que não reconheço.
— Você vai adorar o novo parque da cidade. — Meu pai bebe seu
chá, sorrindo de orelha a orelha. Ele já queria ter me mostrado, mas
os Guardiões não queriam arriscar que eu fosse vista antes da
“grande revelação”. Então voltamos para casa; assim poderia me
arrumar no meu próprio quarto, com minhas próprias coisas, como
minha mãe insistiu.
— O Conselho está até falando em batizá-lo de Parque Luella.
Rio baixinho.
— O que vem a seguir, uma estátua minha lá?
— Engraçado, a ideia foi lançada e bem recebida. — Meu pai ri
também, mas eu fico em silêncio.
Uma estátua da primeira rainha em Quinnar. Uma estátua da
última rainha em Capton. O equilíbrio continua a ser mantido. Faz
sentido que eu fique aqui, que tenha deixado Eldas, quando olho
para isso de uma perspectiva da ordem natural. A primeira rainha
ficou com seu rei. Eu deixei o meu.
Finco as unhas na caneca.
— O que foi? — meu pai pergunta, percebendo meu silêncio
pesado.
— Nada. — Balanço a cabeça. — Você estava certo, estou um
pouco ansiosa, é só.
— Vai ficar tudo bem. Todos ficarão muito felizes em vê-la. Uma
resolução perfeita depois de toda a feiura que Luke trouxe para nós.
Será um bom encerramento para todos.
— Espero que sim — murmuro.
— Deixe-a em paz, Oliver — minha mãe chama do andar de baixo.
— Ela precisa se preparar. E você também!
— Indo, Hannah! Meu pai me dá um beijo no alto da cabeça como
fazia quando eu era menina, e vai embora.
—Pai — digo timidamente, segurando-o. — Depois de hoje, tudo
vai voltar ao normal, certo?
Ele olha, confuso.
— Por que não voltaria?
— Por nada. Ótimo. É só isso. Obrigada novamente pelo chá. —
Bebo enquanto o observo sair, esperando que ele esteja certo.
Quando minha caneca está vazia, coloco o vestido que meus pais
escolheram. É até o joelho, saia folgada, com charmosos cadarços
na frente e mangas curtas. Sinto-me muito melhor, finalmente sem
as roupas de Entremundo e as vestes emprestadas dos Guardiões.
Vagando escada abaixo enquanto espero pelos meus pais, dou
uma volta pela minha botica. Posso ver que Poppy fez alguns
ajustes enquanto estava fora. Vou precisar colocar algumas coisas
de volta no lugar.
Eu também posso ver o fantasma de Luke, parado na porta, mas
mesmo essa memória odiosa não é tão amarga quanto antes. Tudo
que ele arriscou, por mais tolo que ele fosse… talvez fosse por
causa do que ele fez que Eldas e eu finalmente pudemos nos
entender. Se eu não estivesse tão desesperada por uma saída,
poderia ter aceitado Eldas como ele era. Não como o homem que
ele estava se tornando.
A sensação fantasma de suas mãos na minha pele me dá um
arrepio, mas a memória é imediatamente afugentada pela voz de
minha mãe.
— Está pronta? — Ela e meu pai estão ao pé da escada.
— Sim — digo, e vamos.
Pegamos o caminho mais longo pela cidade e acabamos atrás de
onde ficava o palco. Posso ver sinais das novas melhorias feitas
nesta área. Há restos das videiras que cresceram sobre as casas
empilhados na rua, esperando para serem queimados ou usados
para compostagem.
Meu pai me conduz pela lateral do palco. Tenho um vislumbre de
toda a cidade – as pessoas pelas quais voltei. As pessoas que amo
e a quem devo. Respiro fundo.
— Vamos — diz ele.
Sou levada ao palco antes que possa me recompor. Acho que fui
anunciada pelo Chefe do Conselho ou pela Guardiã-Chefe. Talvez
por ambos. Olho para a frente, de pé onde Eldas estava meses
atrás, olhando para os rostos de todos que eu conhecia.
Meu coração está na minha garganta, tentando me estrangular.
Errado, isso está errado, algo em mim grita, a Rainha Humana não
deve ser vista antes de sua coroação. Não estou no lugar certo,
percebo. Não deveria estar aqui, com essas pessoas. Por mais que
os ame, e mesmo que eles sempre façam parte do meu coração,
nunca mais me encaixarei neste mundo.
Com todos os olhos em mim, viro-me e corro.
trinta e oito
***
Meu coração bate tão alto em meus ouvidos que quase abafa as
vozes dos meus pais no andar de baixo enquanto faço as malas.
Minha mãe se encarrega de explicar as coisas ao meu pai. Forço os
ouvidos, querendo saber sua reação. Sua voz suave ressoa até
mim, mas não consigo entender o que diz. No momento em que
desço as escadas, com a mochila no ombro, ele tem um sorriso
cansado, mas de aparência genuína.
Eles me desejam boa sorte e me abraçam com tanta força que
meus ossos estalam. Digo que posso estar de volta em dez minutos,
mas também é possível que eu não volte por uma semana, um mês
ou um ano. Não faço ideia das mudanças que meu retorno pode
causar em Entremundo. Não tenho ideia se Eldas vai me deixar
ficar, ou se a coroação me fará parte daquele mundo a ponto de não
conseguir voltar. A magia mudou, e os resultados disso serão uma
aposta.
Pela primeira vez na minha vida, estou agindo sem um plano e
sem um dever para me guiar. Tudo o que estou ouvindo é a batida
frenética do meu coração.
Agora estou no limiar do Desvanecer mais uma vez. Estou
arriscando tudo aqui, mas o que há de novo nisso?
Respiro fundo e entro no Desvanecer; um dedo de gelo percorre
minha espinha. Levando os dedos aos lábios, solto um assobio que
ecoa no silêncio antinatural.
— Hook? — Chamo e chamo novamente. Quando estou prestes a
desistir, os olhos dourados de Hook piscam para mim na escuridão.
— Hook! — Ele se aproxima de mim e eu caio de joelhos. O lobo
lambe meu rosto e não perco tempo. — Preciso voltar. Preciso
chegar até Eldas. Você pode me levar até lá?
Muito parecido com a minha primeira vez no Desvanecer, Hook
inclina a cabeça para a esquerda e para a direita antes de
finalmente se afastar. Ele se arrasta na escuridão e eu reúno minhas
forças para seguir atrás, esperando que ele não me leve de volta a
uma pedra angular. No momento em que vejo a luz suave da lua
entrando na boca de uma caverna, começo a correr.
Hook salta ao meu lado com um latido feliz. Eu dou um sorriso e
ele pula de alegria ao meu redor. Bem-vinda de volta! seus
movimentos parecem dizer.
Derrapo até parar e observo Quinnar. O ar da primavera está
quente agora, mesmo à noite, e é quase pegajoso comparado ao
frio do Desvanecer. Flores dançam com a brisa, farfalhando nas
árvores. Elas complementam as serpentinas e flâmulas que foram
espalhadas pela cidade.
Música paira no ar. As pessoas estão nas ruas, dançando, rindo e
bebendo. Há faíscas de magia no ar e vejo animais e pássaros de
papel ganharem vida e se alegrarem entre os habitantes que
festejam. Sinto o cheiro dos bolos que Rinni e eu provamos. Vejo
acrobatas girando em aros impossivelmente suspensos sobre o
lago.
Vejo uma cidade em festa – como se de alguma forma soubessem
que eu estava prestes a voltar. O mundo que vi pela primeira vez
morto e cinza está agora em plena floração. É mágico e eu poderia
mesmo chamar de lar.
O focinho quente de Hook pressiona minha mão e eu me agacho
para coçar atrás das orelhas dele. — Obrigado por me guiar através
do Desvanecer. Saia e brinque, não quero atenção agora. — Ele
choraminga. — Vou assobiar para você de novo — prometo.
Hook se senta, insistente.
— Ah, tudo bem. Venha então. — Rio, em parte por nervosismo e
em parte por uma alegria que não esperava ter novamente.
Começo a correr escada abaixo, quase tropeçando em mim
mesma. Por sorte, troquei o vestido por calças, então quando caio
de pernas para o ar, não termino com minhas saias perto das
orelhas na frente das pessoas em festa.
— Espere — uma elfa diz — você…
Não a espero terminar. Corro mais rápido. Hook sabe, como
sempre, para onde estou correndo. Ele avança pela multidão,
latindo e uivando e afastando as pessoas, e tento
desesperadamente acompanhá-lo.
Chegamos à entrada do túnel do castelo, bloqueada por uma
fileira de cavaleiros. Derrapo e paro diante deles. Hook volta para
trás de mim, mantendo a multidão afastada.
—Eu… eu preciso… — Ofego e pego algo na minha bolsa. Não
saí da botica despreparada. Tomo um gole do elixir fortificante que
trouxe e fico mais ereta, tomando fôlego. — Preciso ver o rei.
— Você é…
— Mas você é…
— Você não é?…
Todos os guardas parecem falar ao mesmo tempo. Eles são
silenciados por uma voz familiar.
— Deixem-me passar! — Rinni grita, abrindo caminho. Ela para,
piscando para mim até que um sorriso dissimulado aparece em sua
face. — Você está quase atrasada.
— Desculpe por deixá-los esperando. — Sorrio. — Perdi a noção
do tempo do outro lado do Desvanecer. Perdi a coroação?
— Ainda não. — Rinni me guia pelo túnel. Eu ouço o ruído de uma
massa de pessoas do outro lado das portas do castelo. Rinni as
abre com um piscar de olhos.
Entro no castelo e, pela primeira vez, vejo cores. Tapeçarias azuis
brilhantes e verdes vibrantes se estendem do teto ao chão,
penduradas ao longo das largas colunas que sustentam a grande
entrada. Mais guirlandas de flores estão penduradas nas grades do
mezanino.
Vasos de flores se alinham no grande salão atrás da multidão
reunida. Homens e mulheres de todas as cores e formas estão aqui
e todos os seus olhos se movem de onde o Rei Elfo está na escada
– presumivelmente tendo acabado de fazer um discurso – para
pousar em mim.
Mas os olhos dele são os únicos em que me concentro. Sua boca
está ligeiramente aberta. O choque quebrou sua máscara habitual e
ele me encara em um silêncio atordoado.
Sei que há pessoas importantes aqui – lordes e damas. Povo do
seu reino, nosso reino, se ele me deixar compartilhar. Sei que estou
diante deles com os joelhos sujos e com o que eles consideram
roupas de mendigo. Sei que tive uma chance de fazer valer essa
primeira impressão e a estraguei. Arruinei os anos de planejamento,
sacrifício e sofrimento de Eldas até este momento. Nada saiu
conforme o planejado.
Não cheguei nem a pensar no que vou dizer. Então abro minha
boca e digo a primeira coisa que me vem à mente. Deixo minhas
palavras ecoarem no topo do salão.
— Rei Eldas, eu amo você!
trinta e nove
***