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COPYRIGHT © 2020 ELISE KOVA

COPYRIGHT © 2022 EDITORA CABANA VERMELHA


Título original: A DEAL WITH THE ELF KING
Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Referências a pessoas reais, eventos, estabelecimentos,


organizações ou localidades destinam-se apenas a fornecer autenticidade e são usados
ficticiamente. Todos os outros personagens, e todos os incidentes e diálogos, são extraídos
da imaginação do autor e não devem ser interpretadas como reais.

Diretora Editorial: Elaine Cardoso


Tradução: Renata Broock
Preparação: Elaine Cardoso
Revisão: Rebecca Pessoa
Revisão final: Elaine Cardoso
Ilustrador/Capa: Gonzalo M.
Adaptação de capa e Diagramação digital: Elaine Cardoso

1ª Edição

ISBN: 978-65-87221-60-1
Ficção norte-americana 2. Romance Fantasia I. Título

Esta obra foi revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio
eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo o uso da
internet, sem permissão expressa da autora (Lei 9.610 de 19/02/1998).
SINOPSE:

Os elfos vêm para duas coisas: guerra e esposas. Em ambos os


casos, eles trazem morte.
Há três mil anos, humanos eram caçados por raças poderosas,
possuidoras de magia da natureza, até que o tratado fosse formado.
Agora, por séculos, os elfos vêm buscar uma jovem da vila de Luella
para ser sua Rainha Humana.
Ser escolhida é visto como uma marca para a morte pelos
habitantes da cidade. Uma marca da qual Luella, de dezenove anos,
está grata por ter escapado quando menina. Como não foi
escolhida, dedicou sua vida a estudar herbologia e se tornar a única
curandeira da cidade.
Isto é, até que o Rei Elfo chega inesperadamente...
para buscá-la.
Tudo o que Luella achava que sabia sobre sua vida e sobre ela
mesma era mentira. Levada para uma terra cheia de magia da
natureza, Luella é forçada a ser a nova rainha de um Rei Elfo frio,
mas extremamente bonito. Uma vez lá, ela aprende sobre um
mundo moribundo, que só ela pode salvar.
A terra mágica de Midscape puxa seu coração para um lado,
enquanto seu lar e as pessoas de sua vila puxam para o outro...
Mas, o que realmente vai quebrá-la, é uma paixão que ela nunca
quis.
O Acordo com o Rei Elfo é uma história completa e independente,
inspirada no mito de Hades e Perséfone, bem como em A Bela e a
Fera, com um final “felizes para sempre”. É perfeito para os fãs de
romance de fantasia que procuram a quantidade certa de hot e slow
burn, com um casal de fazer suspirar.
Sumário
um
dois
três
quatro
cinco
seis
sete
oito
nove
dez
onze
doze
treze
quatorze
quinze
dezesseis
dezessete
dezoito
dezenove
vinte
vinte e um
vinte e dois
vinte e três
vinte e quatro
vinte e cinco
vinte e seis
vinte e sete
vinte e oito
vinte e nove
trinta
trinta e um
trinta e dois
trinta e três
trinta e quatro
trinta e cinco
trinta e seis
trinta e sete
trinta e oito
trinta e nove
Agradecimentos
SOBRE A AUTORA
um

Há apenas duas razões pelas quais os elfos vêm ao nosso mundo:


guerra ou esposas. Em ambos os casos, eles trazem a morte. Eles
vêm hoje.
Minhas mãos tremem quando pego o próximo frasco. Meu consolo
e calma estão escondidos em algum lugar entre os recipientes
cheios de ervas que se alinham nas prateleiras da minha botica. Se
olhar mais fundo nas prateleiras, procurar entre os frascos e
continuar misturando seu conteúdo, posso encontrar alguma
aparência de paz. Tenho mais dois cataplasmas, uma poção para
dormir, um elixir fortalecedor e várias pomadas curativas para
fazer… cerca de cinco horas de trabalho, e apenas duas horas para
fazer tudo.
Se a Rainha Humana não for encontrada entre as mulheres de
Capton, a guerra cairá sobre nós, o que levaria à destruição de toda
a humanidade pelo poder da magia silvestre dos elfos. Encontrá-la
cumpriria o tratado, e garantiria a segurança da humanidade por
mais um século, mas se você é essa mulher, você pode muito bem
já estar morta.
A falta de uma rainha está deixando todos na cidade ansiosos,
inclusive eu.
O toque do sino acima da porta desvia minha atenção do meu
trabalho meditativo.
— Sinto muito, só atenderei emergências hoje… — Paro enquanto
coloco o pote pesado de raiz de valeriana seca no balcão. Há um
reflexo familiar na superfície – um homem com cabelos castanhos
claros e olhos de corça, carregando uma bolsa grande. Olho para
cima rapidamente, confirmando minha suspeita. — Luke! O que está
fazendo aqui tão cedo?
Luke veste trajes mais tradicionais do que normalmente usaria
como um Guardião do Desvanecer. Suas calças escuras estão
passadas e sua túnica azul brilhante não tem nenhum vestígio de
sujeira. Os Guardiões do Desvanecer cuidam do templo e da
floresta que fica nos limites da cidade, no sopé da grande
montanha. São eles que, por tradição, lidam com os elfos e
impedem que qualquer pessoa em Capton atravesse
acidentalmente o Desvanecer – a barreira que separa nosso mundo
da terra dos elfos e da magia silvestre.
Logo esqueço meu trabalho. Abro a bancada e passo para o outro
lado. Luke larga a bolsa pesada, que faz barulho atingindo o chão, e
me pega em seus braços. O abraço dura um pouco mais do que o
habitual para amigos se cumprimentando.
Ele relaxa um pouco, mas não me solta. Seus braços ficam
frouxos na minha cintura, e não sei o que fazer com minhas mãos.
Finalmente as acomodo em seus ombros, embora eu queira mesmo
tocar seu peito.
— Precisava vir vê-la. — Ele passa os dedos no meu rosto. Inclino
minha cabeça para cima e engulo em seco.
Quero beijá-lo.
Venho sentindo essa vontade há pelo menos seis meses,
provavelmente mais. Soube disso quando ele foi comigo numa
expedição para encontrar raízes de inverno nas profundezas dos
pântanos gelados. Soube quando ele me disse que a falta da
Rainha Humana significava que seus deveres como um dos
Guardiões do Desvanecer iriam triplicar, impedindo-o de passar
tanto tempo comigo.
Provavelmente já queria beijá-lo antes mesmo de realmente
entender o que era beijar – quando éramos crianças brincando na
floresta, no início da nossa amizade de toda a vida, mas perceber
que você quer beijar alguém torna tudo agonizante. Se ainda
pensasse que éramos apenas amigos, poderia tê-lo beijado várias
vezes como um desafio, um capricho, ou se ele pedisse. Poderia ter
continuado em sua companhia sem ficar sentindo esse frio no
estômago.
Mas esse querer torna cada movimento entre nós insuportável.
Especialmente porque não posso beijá-lo. Fazê-lo seria cruel… para
nós dois.
— Bem, você me viu. — Finalmente me afasto, alisando meu
avental.
Fico em guerra comigo mesma perto dele. Cada segundo dói.
Quero que ele me pegue em seus braços novamente, mas não
posso querer isso. Sei que não posso, do fundo do meu coração.
Não tenho tempo para ele; o dever me chama. Ele já é muito
perturbador como amigo.
— Tenho certeza de que você está ocupado com os Guardiões,
preparando-se para a chegada da delegação élfica esta noite.
Podemos ir para a floresta amanhã. — Supondo que haja um
amanhã.
— Quero levar você hoje — diz em um tom que eu pensava estar
reservado apenas para os meus sonhos. — Mas quero ir além da
floresta.
— Do que você está falando? — pergunto, voltando para o outro
lado do balcão, onde continuo adicionando várias ervas secas em
um dos meus bens mais valiosos – uma chaleira de prata.
Foi um de dois presentes de Luke. Ele me deu a chaleira quando
me formei em meus estudos de herbologia na Academia, em
Lanton, do outro lado do estreito que leva ao continente. O outro
presente, um colar, ele me dera quando eu era apenas uma menina,
e nunca mais saiu do meu pescoço. Ambos são de tirar o fôlego.
Mas os objetos élficos geralmente são impressionantes. E
extremamente raros. Sempre mantenho o colar escondido para
evitar chamar a atenção para o fato de que tenho dois itens feitos
por elfos em minha posse. Não quero trazer problemas para Luke
por favoritismo.
— Quero levar você embora. — Ele aponta para a bolsa a seus
pés. — Preparei suprimentos de viagem. Há um barco no porto,
pronto para irmos.
Balanço a cabeça, como se pudesse mexer as palavras e fazer
com que elas caíssem lá dentro em uma ordem que fizesse sentido.
— Viajar? Barco?
— Vamos começar em Lanton, obviamente. Você ainda tem
conhecidos de seus dias de Academia, certo? Talvez pudéssemos
ficar com alguns de seus velhos amigos enquanto seguimos nosso
caminho — Luke sugere casualmente, como se estivéssemos
falando sobre caminhar até os penhascos ao sul da cidade. Ele não
quebra o contato visual comigo – é assim que sei que ele está
falando sério. O temor tem um gosto tão metálico quanto o medo. —
E depois, quem sabe para onde iremos? Quer explorar os vastos
desertos do sul? Ou talvez as Montanhas de Ardósia a oeste?
Dou uma risada forçada. Gostaria de poder fingir que ele está
brincando.
— O que deu em você? Não podemos simplesmente ir embora.
Tenho obrigações aqui, e você também. Quem vai consertar ossos
quebrados, baixar febres e garantir que a Fraqueza seja mantida
sob controle se eu for embora? — Embora pouco possa fazer
quanto a esse último. A Fraqueza é uma doença devastadora que
vem afligindo o povo de Capton. Supera a cada passo minhas
tentativas de combatê-la.
— Nosso trabalho é o que fazemos, não quem somos. Nada nos
prende aqui. Não somos como os velhos da cidade, que só são
mantidos vivos pelo rio Desvanecer. Podemos ir embora. Vamos
conseguir.
— Mesmo que pudéssemos ir embora, os elfos estão vindo hoje.
Tenho que terminar meu trabalho antes da reunião na praça da
prefeitura; não posso desapontar a população. O senhor Abbot
precisa de seu chá, e Emma precisa de seu elixir fortalecedor, ou
seu coração não vai…
— Luella, temos que ir. Luke se aproxima e apoia os cotovelos no
balcão. Sua voz cai para um sussurro quando ele olha para cima.
— Eles ainda não acordaram — digo sobre meus pais. O quarto
deles fica em cima da minha botica, e houve silêncio nas últimas
duas horas enquanto eu trabalhava.
— Os Guardiões ainda não encontraram a Rainha Humana. A
magia na linhagem humana está desaparecendo há algum tempo.
— Dizem que o poder da Rainha Humana é passado para a próxima
quando sua antecessora morre. Ninguém sabe o que aconteceria se
não houvesse uma Rainha Humana para ser levada. Seria inédito.
— Alguns dos Guardiões pensam que talvez ela simplesmente não
esteja aqui, ou talvez a magia tenha acabado – o que é mais uma
razão para irmos embora enquanto ainda podemos.
Desde que o tratado entre os elfos e humanos foi assinado, há três
milênios, uma Rainha Humana é escolhida em Capton a cada cem
anos precisamente. Encontrá-la nunca foi difícil; ela é a única
humana com magia, afinal. Mas, desta vez, nenhuma jovem da
cidade consertou algo com um pensamento, ou fez plantas
crescerem da terra estéril, ou fez animais jurarem sua lealdade a
ela.
Agora, já se passaram cento e um anos desde que a última
Rainha Humana foi escolhida, e a cidade está sofrendo por causa
disso.
— Se ela não estiver aqui, nesse caso não posso mesmo sair. A
Fraqueza está se espalhando pela cidade. As pessoas estão
morrendo cedo, com cento e dez anos. Tenho que fazer o possível
para impedir. — E, se houver uma guerra, os curandeiros serão
mais necessários do que nunca, mas não consigo dizer. Mal posso
pensar nisso.
— Se não houver rainha, você não pode fazer nada. A conexão da
cidade com o Desvanecer está morrendo e as pessoas morrerão
com ela. A expectativa de vida deles foi reduzida a nada além
daquelas além da nossa ilha. — Luke agarra minhas mãos. — Os
elfos estão chegando, eu tive um sonho terrível com isso. Por favor,
vamos embora agora.
— Luke — digo suavemente, estendendo a mão para acariciar a
sombra dourada em seu queixo. A barba por fazer é novidade. Não
sei se ele a está deixando crescer, ou apenas mantendo-a bem
aparada. De qualquer forma, acho que gosto. —, parece que você
não dormiu. Você tem um longo dia pela frente, e será muito
estressante. Vou fazer uma bebida fortificante, além de algo para
você tomar hoje à noite, para ajudá-lo a dormir.
— Não dormi porque estava me preparando para sair antes que a
guerra começasse. — Luke se afasta do balcão e passa por baixo
da portinhola. Estou encurralada – balcão de um lado, prateleiras de
ervas do outro, Luke na minha frente, sem saída atrás. — Quero
levar você. Quero mantê-la segura.
— Luke — digo cautelosamente, suplicando. Quero fingir que ele
está brincando, mas consigo perceber a seriedade em suas
palavras. — Não posso simplesmente ir embora.
— Sim, você pode. Claro que pode. — O tom de sua voz me faz
refletir. A maneira como está olhando para mim me tira o fôlego.
Tenho que me lembrar de respirar. — Quero te levar embora e
passar um tempo com você, e só você, Luella. Certamente, você
sabe… eu te amo há muito tempo.
Abro e fecho a boca várias vezes. Sim, sei. Também o amo. O
suficiente para ter sonhado com este momento. Mas, em meus
sonhos, estava vestindo algo melhor do que meu avental de
trabalho, e não cheirava a óleo de lavanda.
Ele parece desanimar conforme meu silêncio se prolonga.
— Ah, entendo… E eu que pensava que você poderia…
— Também te amo. — Assim que digo as palavras, a sensação
volta. O formigamento desaparece dos meus dedos dos pés. Meu
corpo explode em riso. — Eu te amo desde criança.
— Então fuja comigo, Luella. — Ele agarra minhas mãos e passa
os polegares pelos meus dedos.
Minha alma está voando acima do telhado. No entanto, meus pés
estão profundamente enraizados na terra das pessoas que jurei
servir.
— Você sabe que não posso — sussurro.
— Mas você me ama.
— Amo.
— Então vamos. — Ele puxa minhas mãos.
— Não posso. — Não me movo. Seu rosto mostra uma expressão
que não reconheço. — Até quero, Luke. Gostaria de poder ir com
você, mas não posso simplesmente ir embora. Esta cidade investiu
tanto em mim. Preciso estar aqui quando precisarem.
O povo de Capton pagou por meus anos na Academia quando
meus pais não tinham condições; pagaram por moradia e
alimentação. Eles me apoiaram a cada passo, com o dinheiro suado
e o troco encontrado no fundo de seus bolsos.
— Além disso — continuo suavemente —, se a Rainha Humana
não for encontrada e o Conselho não puder resolver as coisas com
os elfos, não há lugar para onde possamos fugir. Toda a
humanidade estará condenada. Prefiro ficar aqui com nosso povo e
enfrentar o que vier.
— Nós poderíamos encontrar uma maneira — ele insiste. Balanço
minha cabeça. — Se você me ama, realmente me ama, então isso é
tudo o que você precisa. Nosso amor é suficiente.
— Mas… — Não consigo terminar.
Em um passo largo, ele acaba com a distância entre nós. Um
braço se enrola na minha cintura, o outro segura meu rosto. Ele
inclina minha cabeça para cima e não luto – não quero lutar.
Os lábios de Luke encontram os meus quando meus olhos se
fecham.
A barba por fazer roça áspera no meu rosto, mas mal noto: meu
único foco é beijá-lo. Quanto movimento é demais, quanto é pouco,
quando se trata de beijar?
De repente, queria desesperadamente ter cedido aos garotos da
Academia e permitido que eles “me ensinassem a beijar” quando
tinham descoberto que nunca fora beijada antes. Estava esperando
por esse momento. Estava esperando por esses lábios.
No entanto… quando ele se afasta, fico insatisfeita e me sinto
estranha. Não é exatamente como imaginava que aconteceria. Não
estou flutuando. Meu coração não está vibrando. Tem alguma coisa
em mim que está desconectada e… triste?
Um suave aham vem da porta atrás de nós. Luke se vira. Meu
rosto está quente quando encontro os olhos sorridentes de minha
mãe, do mesmo castanho avelã dos meus. Para piorar a situação
embaraçosa e estranha, minha chaleira começa a chiar, e o elixir
para dormir que estava fazendo agora está fervendo e derramando
sobre meu balcão.
— Ah! — Corro, começando a limpar a bagunça.
Minha mãe cruza a botica rindo e ajuda a tirar a chaleira do fogo.
— Luke, é bom ver você. Gostaria de ficar para o desjejum esta
manhã?
— Eu adoraria. — Ele dá um sorriso galanteador. Espero que a
necessidade de encher o estômago o distraia de sua ideia insana de
fugir – e que quando estiver satisfeito, sua cabeça fique mais
equilibrada.
— Tenho que trabalhar — desnecessariamente lembro a ambos.
— E trabalhar com o estômago vazio é inútil. — Minha mãe prende
algumas mechas rebeldes do cabelo cor de fogo, do mesmo tom
brilhante que o meu, de volta em seu coque. — Faça uma pausa,
minha filha trabalhadeira. Você não vai salvar uma vida nos vinte
minutos que leva para comer um bolinho e um ovo cozido.
— Um bolinho é uma ótima pedida, Sra. Torrnet.
— É Hannah, Luke, você sabe disso. — Minha mãe dá uma
risadinha e reviro os olhos. — Agora subam, vocês dois.
Há um prato de bolinhos no centro da mesa: de lavanda e laranja.
É incrível o número de plantas diferentes que crescem na ilha de
Capton. São tantas que deveria ser impossível, mas a principal fonte
de água da ilha flui através do próprio Desvanecer, tornando o
impossível possível aqui.
Meu pai está sentado à cabeceira da mesa. Seus óculos estão
pendurados na ponta do nariz enquanto ele examina a papelada –
sem dúvida, revisando o discurso que fará na prefeitura hoje.
— Bom dia, Luke — ele diz sem olhar para cima. Luke vem à
minha casa desde que começamos a andar, e é um item básico
nesta cozinha, tanto quanto a panela de ferro da minha mãe ou meu
canteiro de ervas na janela dos fundos. — Estou surpreso em vê-lo
hoje — fala —, embora suponha que hoje seja o dia que você
habitualmente acompanha Luella até a floresta.
— Achei que poderíamos terminar antes que o sol estivesse alto.
Dessa forma, eu poderia voltar aos meus deveres como Guardião —
Luke diz cordialmente enquanto se senta, servindo-se de um
bolinho. Nenhuma menção de tentar me sequestrar, felizmente.
— O que os Guardiões estão fazendo acerca de tudo isso? —
minha mãe pergunta trás de mim, trabalhando com sua frigideira.
Nossa cozinha tem metade do comprimento da casa – estilo cozinha
de navio, marinheiros diriam.
— Mãe…
— Estamos fazendo o nosso melhor para encontrar a Rainha
Humana — responde Luke calmamente.
— Bem, talvez não devesse haver uma Rainha Humana — minha
mãe bufa.
— Hannah — meu pai a repreende.
— É verdade, Oliver, e você sabe disso. O Conselho de Capton é
tão ruim quanto os Guardiões. — Minha mãe está agressiva como a
água fervente de onde ela tira os ovos.
— Podemos apenas tomar um bom café da manhã, por favor? —
imploro.
Estou cansada dessa história de os Guardiões acusarem o
Conselho por não serem mais agressivos na tentativa de encontrar
a Rainha Humana, interrogando os habitantes da cidade; e o
Conselho apontando o dedo para os Guardiões, por não
compartilharem mais de suas relíquias élficas ou histórias que
possam ajudar a identificar a Rainha Humana.
Meu pai acha que os Guardiões devem estar escondendo algo.
Luke afirma o contrário, e diz que o Conselho não compartilha
informações suficientes com o templo. Cada um espera que eu fique
do seu lado, e preciso me esforçar para lembrá-los de que só o que
me importa é manter as pessoas desta ilha saudáveis – não estou
apostando em ninguém, e não tenho nada a ganhar.
— Se não houver uma Rainha Humana, a humanidade terá uma
morte horrível enquanto eles usam sua magia silvestre para
arrancar nossa pele dos ossos, nos transformar em feras das
profundezas das florestas, coagular nosso sangue e coisas piores.
Acho que é seguro dizer que nenhum de nós quer isso. — Meu pai
folheia o jornal.
— Estamos morrendo agora. — Minha mãe coloca os ovos numa
travessa, que põe sobre a mesa. — Você já ouviu falar sobre a
Fraqueza. Homens e mulheres estão caindo. Estamos morrendo
como se fôssemos humanos normais do continente.
— Uma vez que haja uma Rainha Humana, a ordem será
restaurada e o tratado será cumprido — diz meu pai. — A Fraqueza
acabará.
— Será que isso é verdade? Temos certeza de que as coisas vão
voltar ao normal? — Minha mãe se vira para Luke.
— Assim dizem os textos que descrevem o tratado. — Luke
descasca um ovo.
Ela suspira e pega um bolinho, tirando um pedaço e resmungando:
— Embora eu odeie a ideia desse negócio de Rainha Humana, se
isso precisa acontecer, então que seja logo. Meu coração sangra
pela família cuja filha será levada embora… — Minha mãe aperta
minha mão. Estou muito velha – historicamente as rainhas já
demonstravam tendências mágicas aos dezesseis ou dezessete
anos. Lembro-me de quando meus pais me observavam como um
falcão caçando. Felizmente, não há um pingo de magia em mim. —
Que circunstância sombria para ver sua filha se casar.
— Falando em casamentos — Luke diz casualmente —, Luella já
disse a vocês dois?
Meus pais trocam um olhar comigo. Olho nervosamente deles para
Luke. Não tenho ideia do que ele está falando.
— Disse o quê? — é meu pai quem pergunta.
— Luella aceitou casar comigo.
dois

Cuspo a água de volta no meu copo, engasgada.


— Luella, você deveria ter nos contado! — Minha mãe suspira e
bate palmas. — Esta é uma notícia maravilhosa!
— Achei que você estava muito ocupada com sua botica para
pensar em namoro… — Meu pai arqueia as sobrancelhas. Ainda
estou colocando meu pulmão para fora com a tosse. Ele acrescenta
— Você está bem?
— Bem, eu… — Tusso. — Desculpem, a água desceu pelo
caminho errado.
Casar-me com ele? Quando concordei com isso? Ah, certo, não
concordei. Olho para Luke de canto de olho. Ele está sorrindo de
orelha a orelha.
Não posso me casar com ninguém. Já disse isso a ele. Já disse
isso para todo mundo, para que as amigas da minha mãe parassem
de meter o nariz nos meus assuntos.
Não tenho tempo para casamento. Não tenho tempo para o que
quer que seja que Luke e eu já estamos fazendo. Nunca nem pensei
nessa possibilidade.
Durante cada um dos meus dezenove anos, soube que estava
destinada a me casar com árvores e ervas e com o meu dever, em
vez de com um homem. Estou contente – realizada, até – só com
isso, mas casamento? Maternidade? Deveres de uma esposa?
Tenho coisas mais importantes para me concentrar… como manter
pessoas vivas.
Levanto e digo:
— Mãe, Pai, com licença, por favor. Tenho que fazer uma ronda
antes da congregação dos cidadãos, e não quero afastar Luke de
suas obrigações por muito tempo. — Dirijo a Luke um olhar
aguçado. — Vamos até a floresta agora?
— Sim, nós lavamos a louça, vão e divirtam-se. — Minha mãe está
radiante. Meu pai, no entanto, me dirige um olhar cauteloso e
expressivo.
Eu me sinto mal por deixar meus pais lavarem a louça quando
foram eles que cozinharam, mas preciso escapar. Preciso falar com
Luke e resolver essa coisa de casamento.
Praticamente arrasto o rapaz de volta para o andar de baixo, para
a minha botica, passamos por sua bolsa estúpida ainda na porta, e
saímos para a manhã fresca de Capton.
— O que foi aquilo? — Viro-me para ele quando estamos na rua.
— Casamento?
— Você disse que me amava.
— Posso ser inexperiente nisso tudo, mas dizer “eu te amo” não é
a mesma coisa que dizer “vou me casar com você”.
Ele inclina a cabeça com um sorriso gentil e descansa as mãos
nos meus ombros.
— Não é isso que você sempre quis?
— O quê?
— Você e eu, juntos. Nós nos amamos, Luella, há anos. Não há
ninguém mais perfeito para você do que eu.
— Não é bem essa a questão — murmuro.
Ele engancha o braço no meu, guiando-nos pela rua ladeada por
sobrados de pedra geminados na área residencial da cidade.
— Você precisa se soltar mais, e parar de ser tão obcecada pelo
seu trabalho.
— Meu trabalho me faz feliz.
— Eu não te faço feliz?
— Sim, mas… — Ele beija a ponta do meu nariz, silenciando-me.
— Então sou tudo de que você precisa. Seu pai mesmo pode
realizar o casamento…
Luke divaga sobre seda e flores e brindes durante toda a
caminhada, descendo a rua e depois subindo as escadas estreitas
que levam a um caminho de pedra que serpenteia preguiçosamente
pelo topo dos penhascos com vista para o oceano. Um rio passa à
distância, antes de cair em uma cachoeira para a espuma do mar
além. Suas deslumbrantes águas azuis estão sob a proteção dos
Guardiões, assim como a floresta para a qual nos dirigimos.
Nossa ilha é pequena, bem perto da costa do continente, do lado
oposto a Lanton. Aninhada na única baía protegida da ilha está a
cidade solitária de Capton. Cresci enfiada nesta estreita faixa entre
a cordilheira e o oceano.
A densa e retorcida floresta de sequoias se estende do sopé da
grande montanha que paira sobre nós até a cidade. O templo
funciona como uma espécie de ponte entre os dois.
Historiadores de Capton dizem que o templo foi construído há
muito tempo, antes da grande guerra que resultou no tratado, mas é
difícil para mim pensar em algo tão antigo ainda de pé. O mais
provável é que algum dos Guardiões originais o construiu para
abrigar sua ordem.
Saindo pela lateral do templo há um despretensioso caminho
formado por arcos. Nunca tinha andado por aqui antes; é proibido,
mesmo com a escolta de um Guardião. Esse caminho é destinado à
Rainha Humana e aos elfos. Luke me diz que ele leva até a parte
mais escura da floresta, ao pé da montanha.
É o caminho que leva ao Desvanecer – a divisão entre o mundo
humano e a natureza mágica.
Capton é uma espécie de meio-termo, pelo menos é assim que
imagino. Está no “lado humano”, no “lado não-mágico”, do
Desvanecer, mas a nossa proximidade com o Desvanecer e o rio
que o atravessa confere à nossa ilha uma fauna e flora
diversificadas, e às pessoas daqui, uma expectativa de vida
extremamente longa. O custo desses benefícios é a Rainha
Humana. Fornecemos uma das nossas habitantes a cada cem anos
para honrar o tratado. Esse é o fardo que Capton carrega, pelo bem
da humanidade.
Eu me pergunto, não pela primeira vez, como é o Desvanecer. Se
estivesse diante dele, saberia que estou na fronteira entre a
humanidade e a magia silvestre? Será que o ar emite estática, como
antes de uma tempestade de verão? Iria me abalar com o vento
uivante nas saliências da montanha? Ou poderia tropeçar numa
linha sem saber, como dizem os contos populares, e me perder para
sempre?
Esses pensamentos são perigosos, e os afasto da minha cabeça.
O que não falta é mistério em torno do Desvanecer, mas uma coisa
sabemos com certeza: a rainha é o único humano que pode ir para
além do Desvanecer e voltar vivo.
— O que é? — Luke pergunta.
— Nada.
— Você estava pelo menos me ouvindo?
— Claro que estava.
— O que eu disse então?
— Hum…
Ele ri e se inclina para frente. Gentilmente, roça minha têmpora
com a ponta de seu dedo, levando uma mecha do meu cabelo
rebelde para trás da minha orelha. Eu o beijei, disse que o amava,
de alguma forma fiquei noiva dele, e ainda assim fico vermelha.
— Você deveria deixar crescer novamente. — Seus olhos se
concentram no local em que ele prende o cabelo. Tento evitar me
arrepiar quando seus dedos param lá. — Gostava mais dele
comprido.
— Fica preso em espinheiros quando estou coletando ervas —
explico, desculpando-me, embora não saiba exatamente pelo quê.
Ele sabe por que o cortei durante meus anos na Academia.
— Talvez para o nosso casamento.
— Certo…
— No que você estava pensando realmente? — ele pergunta
quando chegamos à beira da floresta. Começo a colher pequenas
flores que crescem ao pé das sequoias – estrelas da manhã, como
as chamo, porque florescem ao amanhecer –; são boas para
fortalecer o corpo e a mente, e eu as uso para Emma e o Sr. Abbot.
Quando era criança, imaginava que elas cresciam só para mim,
mas a floresta toda parecia mais viva naquela época. Continua viva
agora, só que de uma forma entorpecida e silenciosa. Com a idade
e o tempo, perdi um amigo imaginário.
— Luella? No que você estava pensando? — ele repete, uma nota
de agitação em seu tom de voz.
Eu gostaria de poder falar abertamente que a ideia de noivado me
faz querer vomitar em seus sapatos. Que gosto dele – que o amo –,
mas fiz um voto ao povo de Capton de sempre estar lá para servir, e
isso sempre virá em primeiro lugar. Talvez eu só queira que ele
explique o que realmente deu nele.
— Estava pensando naquela época em que éramos crianças e nos
embrenhamos muito para dentro da floresta e vimos o lobo.
Era uma fera enorme de escuridão e sombra, olhos amarelos
brilhantes cortando o ar estranhamente espesso da floresta fechada.
Olho por entre as árvores, imaginando aqueles olhos agora.
Estranhamente, não senti medo naquele dia, embora mais tarde
tenha dito a Luke que estava mais apavorada do que ele – ele não
teria lidado bem com o fato de estar com mais medo do que eu, se
soubesse.
Havia conhecimento nos olhos daquela fera. Conhecimento e
segredos. Segredos que sempre senti que estava prestes a
conhecer, mas ainda estão fora do meu alcance.
— Nada, nenhuma fera ou homem jamais irá machucá-la
enquanto eu estiver por perto. — Luke se agacha ao meu lado,
descansando a mão na minha nuca. Ele mexe nas contas escuras e
vítreas do colar que me deu. — E enquanto você usar esse colar.
— Nunca o tirei. — Toco o pingente suspenso pelas contas. É uma
pedra que parece um arco-íris pego na rede de um pescador. Luke
usa uma semelhante em seu pulso. É uma pedra especial,
geralmente reservada aos Guardiões.
Mais uma razão pela qual sempre mantive esse presente
escondido sob minhas roupas.
— Ótimo. Use sempre, e nunca entre na floresta sem mim.
— Nunca entrarei. — Rio e balanço a cabeça. — Você está
sempre com tanto medo de que eu vá para a floresta.
— Não gosto de pensar em você sozinha na floresta — murmura.
Luke se levanta, virando para o leste. O horizonte está escondido
atrás da montanha, mas podemos ver os primeiros raios de sol
delineando o topo em laranja. — Ainda podemos ir embora, você
sabe — ele sussurra.
— Não posso — repito.
— Nós seremos marido e mulher. É normal sair de casa.
— Não para as pessoas de Capton, e não para mim. — Levanto-
me, tendo colhido as flores de que preciso. — Você deveria ir. Os
Guardiões precisam da sua ajuda hoje.
— Vou levá-la de volta.
Quase peço que não o faça. Ele está com um ar estranho hoje.
Um ar que quase torna meu melhor amigo irreconhecível.
Mas ele está cansado. Acredito quando ele diz que teve um
pesadelo sobre os acontecimentos do dia. Dados os pedidos
recentes à minha botica, acho que metade de Capton mal consegue
dormir de ansiedade.
Ele está agindo precipitadamente porque de fato acredita que
nossas vidas estão prestes a terminar.
De volta à botica, ele me beija mais uma vez à porta. Mais uma
vez, o beijo é vazio. Tento me segurar aos sentimentos que acho
que deveria ter por ele e ao sonho de sermos um casal com todas
as minhas forças.
— Se você mudar de ideia, — sussurra, — o barco está pronto.
Fuja comigo, por favor.
— Luke, eu…
Antes que possa dizer mais alguma coisa, ele se vai. Observo-o
enquanto anda rapidamente pela rua; ele nem sequer olha para trás.
Dou as costas com um suspiro e entro.
Quando o sol termina de nascer, começo minhas rondas do dia.
Não esperamos os elfos antes do anoitecer. Metade das poções
ainda estão quentes, os frascos batendo uns nos outros dentro da
minha cesta. Tenho uma longa lista de todos os pacientes que
preciso visitar em minha mente, mas só conseguir ver metade deles
esta manhã – as pessoas que estão fracas, feridas ou doentes
demais para ir à congregação mais tarde.
Farei o resto das minhas entregas quando os destinatários
estiverem convenientemente todos em um só lugar. Espero que, até
lá, tenha tido tempo suficiente para terminar os vários
medicamentos.
O primeiro é Douglas, um pescador que está de cama há duas
semanas após um incidente de caça submarina. Normalmente, uma
ferida como essa seria curada com uma simples lavagem nas águas
do Rio Desvanecer. No entanto, ainda está inflamado e supurando.
Hoje ele também está com febre.
Depois disso é Cal. Sua filha pegou um resfriado durante o inverno
que simplesmente não melhora. E então Amelia – seu sangramento
mensal é agonizante, e está ainda mais intenso este mês. Em
seguida, Dan, que não consegue encontrar forças para sair da cama
e cumprir seus deveres como carpinteiro.
Sem parar, vou de porta em porta, verificando e certificando-me de
que eles têm o que precisam ou, no mínimo, o melhor que posso
oferecer. Não parece suficiente. Cada um parece pior do que o
outro, como se suas doenças estivessem se agarrando a eles com o
propósito expresso de zombar de tudo o que estou tentando fazer.
Tornei-me herbalista para ajudar as pessoas, mas neste ano em
que estou em Capton, desde que terminei meus estudos na
Academia, as coisas só pioraram. Dizem que estou fazendo um bom
trabalho, que os problemas acontecem pela falta de uma Rainha
Humana; no entanto, não posso deixar de me perguntar se não
poderia estar fazendo algo mais.
O bondoso Sr. Abbot é o último da minha lista para esta manhã.
Felizmente, ele ainda está bem. Duvido que conseguiria manter a
compostura se ele não estivesse.
— Entre, entre. — Ele acena para que eu entre com pequenos
movimentos trêmulos de sua mão envelhecida.
— Senhor Abbott, receio não poder ficar hoje, mas trouxe seu chá
para que o senhor possa preparar.
— Já coloquei a chaleira no fogo. — Ele anda para lá e para cá na
cozinha. — O chá nunca tem o mesmo sabor quando sou eu quem
prepara.
— Tenho certeza de que sim. — Entretanto, coloco minha cesta
quase vazia no balcão.
— Não funciona tão bem — ele insiste, como de costume.
— Acho que o senhor gosta é de ter companhia. — Sorrio e
começo a trabalhar enquanto ele se acomoda em uma cadeira em
sua mesa.
— Você pode culpar esse velho?
— Não.
O Sr. Abbot não é a primeira pessoa a afirmar que não pode
replicar minhas infusões, pomadas e cataplasmas em casa, mesmo
quando vendo as ervas exatas e dou instruções detalhadas –
suspeito que seja por causa da minha chaleira élfica. Os Guardiões
dizem que um pouco da magia silvestre dos elfos vive nas coisas
que eles criam usando-a. Se isso for verdade, talvez parte das
minhas habilidades se deva ao colar que Luke me deu.
Não importa o motivo, fico feliz que meus dons possam ser úteis.
Se minhas mãos devem ser as únicas a fazer as infusões para que
elas funcionem, então que assim seja. Mais uma razão pela qual
devo ficar em Capton.
— A cidade está tão movimentada hoje. — O Sr. Abbot olha pela
grande janela na frente de sua casa. Ele mora perto do cais, não
muito longe da grande praça onde acontece a congregação.
— Os elfos estão vindo — relembro.
— Ah, verdade.
— O senhor deveria ficar em casa, não precisa desse tipo de
excitação — encorajo.
— Se minha curandeira ordenou, suponho que devo mesmo. —
Ele ameaça uma careta antes de levar à boca a xícara que lhe
entreguei. Seus olhos parecem estar enxergando uma memória
distante. — Eles vão levar outra jovem, não vão?
— Infelizmente. — Passo o dedo ao longo da borda da minha
xícara, pensando na conversa à mesa do café da manhã. — No
entanto, nenhuma das mulheres de Capton demonstrou quaisquer
tendências mágicas.
— Os Guardiões geralmente estão atentos a qualquer sinal.
Lembro-me de quando Luke foi designado para mim por três anos
– dos quinze até meu aniversário de dezoito. Ele e meus pais
ficavam de olho em tudo o que eu fazia quando estava em Capton.
Luke, inclusive, foi até Lanton algumas vezes para me observar.
Minha mãe uma vez até suspeitou que meu dom para herbologia
era uma manifestação mágica, mas Luke garantiu a ela que era
apenas fruto do bom treinamento na Academia.
— Eles ainda o fazem. — Tomo um gole do chá. — Mas eles não
encontraram ninguém que possa ser a Rainha Humana.
Ele suspira.
— Todo esse negócio é uma ferida que nunca cicatriza.
— Que negócio? — Acho que ele está falando sobre o tratado.
Estou errada.
— Perder sua família para os elfos. Eles levam uma filha, uma
irmã, para sempre.
— A Rainha Humana pode retornar a Capton todo verão —
lembro, desnecessariamente. Ele mora nesta cidade há muito mais
tempo do que eu – o Sr. Abbot está chegando aos cento e vinte
anos.
— Eles nunca são os mesmos depois; Alice nunca foi.
Alice… Esse era o nome da última Rainha Humana. Certamente,
não poderia ser apenas coincidência…
— Quem é Alice?
Ele vira seus olhos leitosos para mim.
— Minha irmã. E antes que você pergunte, ela foi, sim.
— Sua irmã foi a última Rainha Humana? — pergunto, de qualquer
maneira. Ele assente. Como nunca soube disso? Por que isso
nunca fora mencionado? Há um ano o Sr. Abbot vem à minha botica
dia sim, dia não. Já fazia cataplasmas e poções para ele muito
antes de ter qualquer treinamento formal. — Não fazia ideia — digo,
sentindo-me um pouco culpada.
— Uma coisa que você aprenderá em breve é que o nome da
noiva desaparece rapidamente da língua das pessoas. Quem quer
que vá embora será esquecida, como se nunca tivesse feito parte
desta cidade. Ela se tornará a “Rainha Humana” das histórias, e
nada mais.
Estremeço. Aprendemos sobre as Rainhas Humanas na escola
primária. Mesmo antes disso, não há um morador de Capton que
não conheça as histórias. Ver a rainha partir é um rito de passagem
para uma geração. E é só neste momento – até que a última Rainha
Humana se torne alguém mais do que apenas uma ideia para mim –
que percebo que Alice deve ter vindo visitá-lo durante o verão, e
nunca a vi.
— Acho que as pessoas fazem isso, conscientemente ou não, por
bondade — continua o Sr. Abbot com um sorriso cansado. — Como
se, ao dizer menos o nome dela, doesse menos saber que ela se
foi. Como se uma pessoa pudesse ser eliminada tão habilmente de
uma família e comunidade.
— Nunca pensei nisso dessa maneira — sussurro.
— Manter a paz entre os mundos é um assunto desagradável. —
Sua mão treme quando ele ergue a xícara para tomar um gole
tímido. Quando a traz de volta ao pires, no entanto, seus
movimentos são muito mais suaves. Fico aliviada ao ver que a
infusão está tendo os efeitos pretendidos.
— O senhor se encontrava com ela durante o verão? — pergunto,
genuinamente curiosa. Tento imaginá-lo com uma Rainha Humana,
sentados à mesma mesa arranhada em que estamos agora.
— Sim, e nos correspondíamos por cartas.
— Cartas podem cruzar o Desvanecer? — Mil perguntas queimam
minha língua enquanto rodopiam no chá escaldante.
— Não, mas os elfos podem. Eles traziam as mensagens para o
templo, geralmente quando vinham para os últimos ritos ou para
negociar com os Guardiões.
— Como ela dizia que era além do Desvanecer?
— Ela não dizia muito. — Ele balança a cabeça. — Alice dizia que
seu papel como rainha era meramente existir.
Eu me perco olhando para dentro da minha xícara de chá.
Os elfos virão e levarão uma mulher de sua família e casa para
cumprir um tratado que poderiam facilmente cancelar. Eles a
sentarão em um trono para fazer o quê? Existir? Sem ter nenhum
poder ou responsabilidade?
Qual é o sentido do acordo que os elfos fizeram se tudo o que eles
queriam era um fantoche? Por que levar um de nós?
Para nos lembrar que não somos nada, minha mente responde.
Eles detêm todo o poder. O que os elfos querem, estamos aqui para
lhes dar. Tenho certeza de que eles nos diriam para sermos gratos
pelo fato de que tudo o que eles levam é uma mulher a cada século.
Que isso é uma gentileza.
Meu estômago embrulha; preciso ir ou arriscar dizer algo que
aborreça o gentil senhor.

***
A congregação acontecerá dentro de quatro horas, no final da
tarde; é tempo suficiente para ir para casa, reabastecer minha cesta
e me arrumar. Não sou a única com a ideia de fazer negócios antes
da reunião; alguns dos pescadores trouxeram seus carregamentos.
Vejo alguns cidadãos exibindo seus bordados. Todo mundo está
muito feliz por ter outra coisa em que se concentrar – ou fingir fazê-
lo – além da chegada iminente dos elfos.
No entanto, rumores e teorias zumbem no ar ao meu redor como
abelhas em um campo. Ouço os sussurros e especulações. O que
vai acontecer? A rainha será encontrada?
Eu ignoro tudo, concentrando-me em meus deveres. Não há como
a guerra irromper após três mil anos de paz. Foi nisso que decidi
pensar para manter as mãos firmes enquanto distribuía meus potes
e sacolinhas.
— Ouçam, ouçam, cidadãos de Capton — grita o pregoeiro, de
cima do tablado na extremidade da praça. Um grupo de homens e
mulheres cansados se alinha atrás dele – meu pai entre eles. —
Convocamos esta reunião do Conselho de Capton.
Paro com o resto dos habitantes da cidade, ouvindo os vários
anúncios. Há alguns assuntos administrativos a serem resolvidos –
algumas disputas sobre territórios de pesca com Lanton, um acordo
para derrubar um antigo armazém, mas todo mundo está
aguardando a parte que realmente importa.
— Em relação ao assunto da Rainha Humana — meu pai diz; ele
está com a chefe dos Guardiões. — O Conselho ouviu suas
preocupações e decidiu…
Ele não consegue terminar.
— Olhem lá! — alguém grita.
Todas as cabeças se voltam na direção das longas escadas que
levam da cidade ao templo. Sobre elas, uma pequena legião
marcha. São liderados por um homem que monta um cavalo feito de
sombra, sua forma se contorcendo e desaparecendo como névoa a
cada movimento.
Seus longos cabelos negros se espalham sobre os ombros; posso
ver um brilho do que parece ser roxo, ou azul, à luz do sol
fulminante. Faixas de ferro se entrelaçam quase organicamente em
torno de suas têmporas, antes de se projetarem em um leque de
pontas afiadas na parte de trás de sua cabeça – quase como
espinhos enormes – para formar uma coroa. Suas orelhas se
estendem para longe de seu rosto em pontas que combinam com as
de sua coroa. Quando ele e seus soldados estão à beira da nossa
praça, posso ver que seus olhos são de um cerúleo brilhante, quase
do mesmo tom que os pilares do templo.
Ele não é nada parecido com o monstro antigo e retorcido que
imaginei ou as histórias o fizeram ser. A única coisa que essas
histórias parecem ter retratado com precisão é o poder absoluto que
irradia do homem.
O rosto do Rei Elfo, etéreo, bonito, jovem, duro como diamante, é
tão bonito quanto aterrorizante. Ele é como uma flor venenosa:
impressionante e mortal. Esta, percebo quando seus olhos piscam
em um azul ainda mais brilhante, é a face da morte.
três

O Rei Elfo, montado em seu corcel de sombra, olha para nós


como se não fôssemos mais do que formigas. Uma legião de elfos
vestindo armaduras e portando armas está atrás dele, embora,
surpreendentemente, ele esteja sem armadura.
Enquanto ele desmonta, percebo que nunca testemunhei um
estudo mais perfeito de contrastes: seu corpo parece feito de
mármore, mas seus movimentos são tão fluidos quanto o tecido de
seda que lhe cobre os ombros. Sua túnica prateada de mangas
compridas é ajustada ao corpo, e tão bem passada que quase dá a
ilusão de aço martelado; no entanto, posso imaginar meus dedos
deslizando sobre o tecido macio em todo o seu tórax largo.
Eu rapidamente olho para os meus pés, tentando afastar qualquer
feitiço mágico que ele tenha lançado sobre si, mas meus olhos são
atraídos de volta para ele contra a minha vontade. Não consigo não
olhar para ele. Não quando ele dispensa o cavalo como se nada
mais fosse do que fumaça na brisa. Não quando seus cavaleiros
blindados começam a se mover. E certamente não quando ele
marcha para a plataforma em que estão a Guardiã-Chefe, o
Conselho da cidade e meu pai.
— Vossa Majestade. — A voz da Guardiã-Chefe treme quando ela
se curva. — Estávamos esperando uma delegação, um embaixador
ou algum…
— Vocês tiveram um ano — diz ele lentamente, derramando
desgosto em cada palavra. — Tenho sido paciente. Enviei uma
delegação ao templo dos Guardiões; no entanto, ainda não tenho
uma rainha.
— Estávamos…
— Silêncio. — Ele fervilha com a ira, se inclinando para perto dela.
— Você esquecem quem sou? Você só falará quando eu ordenar
que fale.
Os cavaleiros elfos se movem ao nosso redor, nos rodeando como
se fôssemos gado. Vejo alguns saindo aos pares pelas ruas da
cidade. O que eles estão procurando? Retardatários?
Eu mordo a bochechas para resistir à vontade de dizer algo.
Certamente eles não arrancariam um homem de seu leito apenas
para aterrorizá-lo nas ruas… arrancariam?
— Terei minha rainha, aqui e agora. Não podemos permitir mais
atrasos — continua o Rei. Ele se vira para encarar os cidadãos de
Capton. — Sei que vocês a esconderam, manipulando forças que
sequer entendem.
— Vossa Majestade. — As palavras soam estranhas vindas da
boca do meu pai. Gostaria que ele ficasse em silêncio. A última
coisa que quero são aqueles olhos élficos sem emoção se voltando
para ele. — Talvez não haja rainha este ano…
— Ela está aqui, disso tenho certeza. Simplesmente escondida. —
Ele indica a multidão com um aceno. — Entreguem-na, ou
vasculharei todas as casas à procura dela. Entreguem-na, ou
pegarei todas as jovens de idade e as levarei através do
Desvanecer, uma por uma, até ter minha rainha.
Ser levada através do Desvanecer sendo uma humana normal
significaria a morte. Ele mataria todas as mulheres para encontrar
uma. Aperto os dentes com força.
— Luella. — Os dedos de Luke se fecham ao redor dos meus.
Olho para ele, surpresa. Onde ele estava escondido? — Vamos,
ainda podemos sair escondidos.
— Você está louco? — sibilo.
— Ainda temos tempo — insiste. — Vamos. Os elfos me deixarão
passar como Guardião, o barco ainda está esperando e…
Um grito o interrompe.
— Emma, Emma! — Ruth grita. — A Fraqueza, ela a está
reivindicando!
Tento me mexer, mas Luke segura firme.
— Me solta.
— Agora é a nossa chance, enquanto há uma distração.
— Eu disse me solta! — Arranco minha mão da dele e corro,
empurrando as pessoas que não se separam para me dar
passagem. Ruth, a mãe de Emma, está ajoelhada ao lado da filha,
chorando alto; as lágrimas escorrem pelo seu rosto.
— Eles trouxeram o Desvanecer sobre nós! Estão aqui para a
guerra. Estamos condenados! — ela grita.
— Ruth, Ruth, por favor. — Rapidamente me ajoelho, derrubando
a bolsa e a cesta no chão ao meu lado. — Deixe-me vê-la.
— Você disse que não sabe o que é a Fraqueza. O que você pode
fazer? Você nem mesmo deu o elixir para ela esta manhã. — Ruth
me fere com a verdade.
— Você tem razão. Não sei o que causa a Fraqueza — admito,
mantendo minha voz baixa e uniforme, esperando que ela se
acalme e faça o mesmo. — Mas não é isso. A Fraqueza apenas
reivindica os mais velhos entre nós — até agora, penso —, fazendo
os moradores de Capton falecerem no mesmo tempo que um
humano normal faria. Emma só tem dezenove anos. — Minha idade.
— A Fraqueza tomou seu coração… sua bebida… ela… isso é por
causa dele! — Ruth aponta para o Rei Elfo, segurando Emma contra
o busto. Os cachos dourados das duas se agitam em todas as
direções com os movimentos bruscos de Ruth. — Ele fez isso. Ele a
matou primeiro. Ela não era sua rainha, então você a matou!
— Ruth, pare — digo com firmeza, me esticando para agarrar seu
braço. É tarde demais. O Rei Elfo já voltou sua atenção para nós,
como se não o tivesse feito desde o momento em que a comoção
começou. — Emma está respirando, viu? — Puxo a mão de Ruth
em direção à boca de Emma. Ela sente as respirações lentas e
superficiais que eu já tinha notado, e seu rosto se contorce de alívio.
— Oh, abençoados sejam os deuses antigos. — Ruth balança
para frente e para trás. — O que há de errado com ela?
— Provavelmente é apenas a emoção. Sem seu elixir, foi demais
para ela — digo pensativa. Espero que seja só isso. É por isso que
não poderia fugir com Luke; apenas uma manhã de folga, tomando
café da manhã com ele e meus pais, e tenho uma paciente no chão,
inconsciente. — Deite-a, por favor.
O coração de Emma é fraco. Tem sido assim desde que éramos
colegiais. Ela foi na verdade minha primeira paciente, e tratá-la me
traz nostalgia até hoje. Fugíamos para a floresta, às vezes com
Luke, às vezes não. Fazia para ela misturas de bagas, folhas, água
do rio, flores, às vezes até lama, e ela tomava minhas beberagens
com obediência.
Mesmo que estivéssemos brincando de faz-de-conta, sempre quis
ajudar. Ela sempre jurava que minhas poções funcionavam, mesmo
naquela época.
Felizmente, nunca saio de casa sem minha bolsa. Minha cesta tem
criações feitas sob medida: adaptadas às necessidades individuais
de cada pessoa. Mas minha bolsa carrega uma despensa básica
dos itens essenciais do herbalista e meu caderno de anotações.
Nunca posso ter certeza do que alguém pode me pedir por impulso,
ou do que posso precisar a qualquer momento.
Pego uma série de ervas e as esmago em um pequeno almofariz
de madeira. Estou tão absorta que nem percebo que atraí um
público. Uma sombra eclipsa a luz do sol, me lançando na
escuridão.
Ruth chora, barulhenta e incoerentemente, olhando para o homem
alto. Viro meu olhar na direção do céu, encontrando os olhos do Rei
Elfo, que parece pairar sobre mim.
— Continue. — Sua voz é um sussurro macio como seda.
— Eu…
— Não toque nela! — Luke grita, passando pela grossa fila de
pessoas que abriram espaço para Ruth, Emma e eu. — Não
encoste nem um dedo nela.
— Luke, pare. — Qualquer afeição que senti por ele está
desaparecendo rapidamente. É como se ele tivesse se transformado
em um estranho nas últimas vinte e quatro horas; há outra pessoa
ocupando o corpo do homem que conheci e amei.
O rei se vira lentamente para encarar Luke. Ele inclina a cabeça,
como se estivesse olhando para um gato, um rato, ou mesmo uma
mosca – isso é provavelmente tudo o que somos para ele.
A temperatura cai de repente. Um frio invernal faz meus dentes
baterem e minhas mãos tremerem. Estou dividida entre continuar
ajudando Emma e ver o que acontece com Luke.
Luke toca seu bracelete de Guardião, segurando-o.
— Sim, Guardião do Desvanecer — o Rei Elfo diz, suave e
pretensioso como seda. — Toque sua labradorita. Ela protegerá
você do Saber, mas não fará nada para proteger o mundo ao seu
redor.
O Saber? Nunca ouvi falar disso antes. Mas não posso me
demorar no pensamento enquanto as pedras sob os pés de Luke de
repente ganham vida. Elas sobem, curvando-se de forma não
natural e tecendo uma cela de prisão ao redor de dele. Encaro a
magia silvestre com admiração e horror.
O Rei Elfo olha de volta para mim.
— Vamos, cure-a — ordena, impaciente.
Assisto impotente enquanto Luke luta contra sua prisão, mas as
barras de pedra não se movem – ele é tão indefeso quanto o resto
de nós diante do poder que desafia todas as leis da natureza.
Gostaria de poder fazer algo por ele, mas sei que não posso. Não
há nada na minha sacola de ervas que possa reverter a magia
silvestre.
O gemido suave de Emma traz minha atenção de volta para ela.
Ela é quem mais precisa de mim agora, e a quem posso ajudar.
Independente das ordens do Rei Elfo, curá-la é meu dever.
Pondo as últimas ervas no almofariz, coloco-o cuidadosamente no
chão diante de mim. Na minha bolsa há um pequeno kit para
acender fogo. Acendo uma lasca de sequoia seca e coloco no
potinho. Ela brilha e queima rapidamente, incinerando as ervas
esmagadas e chamuscando a borda.
Faço uma oração silenciosa aos deuses antigos para que isso
funcione. Mergulho meu dedo na fuligem e nas cinzas, e faço uma
linha debaixo do nariz de Emma – parece um bigode ridículo,
desses que desenhávamos uns nos outros quando crianças quando
alguém adormecia durante o intervalo entre as aulas.
Emma sente o cheiro das cinzas ao respirar superficialmente, e
acorda.
— Emma. — Fico numa posição adequada para que eu seja
primeira pessoa que ela vê, e não o Rei Elfo; ela não precisa de
mais sustos. — Emma, como você se sente?
— Luella? Eu… O que aconteceu? — ela murmura.
Olho para Ruth.
— Leve-a de volta para casa, ela precisa descansar. Passarei
mais tarde levando um elixir fortalecedor.
— Tudo bem.
— Agora entendo. —A voz do Rei Elfo nos paralisa.
A respiração de Emma é rápida e superficial; ela vai desmaiar de
novo com tanta excitação. Levanto-me do chão e fico entre a jovem
e o Rei Elfo.
— Vão — digo a elas. — Vão para casa. Ninguém vai impedir.
Elas se levantam lentamente e começam a se afastar, quando o
rei diz:
— Você não fala por mim.
— Emma não é sua rainha. — Viro-me para encará-lo. Minhas
entranhas parecem se liquefazer; no entanto, jurei fazer o melhor
pelos meus pacientes; jurei ajudar esta cidade. E se ajudar Emma
significa enfrentar o Rei dos Elfos, então este é apenas mais um dia
de trabalho. — Ela precisa descansar. Você deve deixá-la ir.
— Ela está livre para ir. — O rei acena para seus cavaleiros e eles
permitem que Emma e Ruth passem. — Porque você está certa, ela
não é minha rainha. Encontrei a mulher que procuro.
— Bom, então vá embora — murmuro. Mas quando meu olhar
volta, encontro sua atenção voltada para mim. O peso de seu olhar
me lembra o quão ousada fui e minhas entranhas enfraquecem
novamente.
— Você se escondeu — ele diz em um tom perigosamente baixo.
— Não tenho ideia do que você está falando.
Ele dá um grande passo à frente, invadindo meu espaço. Tão
perto que posso sentir seu cheiro: o ar ao redor dele é perfumado
por uma mistura de sândalo, musgo e uma nota fresca e brilhante
como o ar antes de uma tempestade. É um aroma adorável, terroso
e inebriante, que contrasta fortemente com a expressão de desgosto
que ele tem.
Eu tento me afastar, mas estou presa. Ele estende a mão,
deslizando as pontas dos dedos pelo meu pescoço. Tremo,
paralisada.
Os dedos do rei engancham no colar que Luke me deu tantos
anos atrás. Ele os desliza até o pingente e fecha o punho. Sua
expressão se torna quase sinistra, e me pergunto se deveria estar
implorando por minha vida.
Sua outra mão está na minha nuca, segurando minha cabeça.
Seus dedos se movem. Ele está prestes a quebrar meu pescoço? É
assim que morro?
— Você terá, em breve — sentencia, antes de arrancar o colar.
O mundo fica branco, depois se enche de gritos.
quatro

Estou tonta e sem ar. Meu corpo sibila e estala com a eletricidade.
O poder inexplicável que eu não deveria possuir ameaça me
destruir.
A magia explode de mim em rajadas, como fogos de artifício. Ela
atinge os postes de iluminação que cercam a praça – os vidros se
quebram e caem no chão como pétalas de flores de cerejeira. Onde
antes havia ferro, agora há árvores.
Um tapete exuberante de musgo e grama se desenrola sobre os
paralelepípedos da praça. Moitas e trepadeiras brotam do chão e se
arrastam pelas construções, como tentáculos sencientes e
contorcidos tentando reivindicar os prédios. O mundo ao meu redor
é transformado, indo de construído para natural. É como se a
natureza surgisse dos meus pés para se opor à audácia da
arrogância da humanidade de se opor a ela.
Posso ver agora. Ver o quê? Tudo. Posso ver tudo.
Meus olhos nunca estiveram tão abertos. Vejo cada pulso de
magia – de vida – naqueles ao meu redor. Vejo a essência crua da
existência, e ela me tira o fôlego e a compostura.
Lágrimas frias e amargas escorrem pelo meu rosto. De repente,
estou quente. Sou fogo derretido em um mundo que se tornou gelo.
O rei finalmente me solta, e tropeço, caindo sentada com os
braços para trás para me apoiar. O musgo cresce sobre meus
dedos. Pequenas trepadeiras brotam, agarrando meus pulsos. Puxo
minha mão e seguro minha camisa sobre meu peito, ofegante. Meu
cabelo ruivo cobre meu rosto e aproveito um breve segundo de
privacidade, fechando meus olhos com força.
Isso não pode ser real. Diga-me que tudo isso é um pesadelo!,
quero gritar.
Mas quando me endireito, não consigo não ver. A praça virou algo
saído de um livro de histórias. Plantas e humanos pulsam com uma
luz esverdeada, enquanto objetos inanimados estão cinza.
Eu pisco várias vezes, observando as auras aparecerem e
desaparecerem da minha consciência. Tudo ao meu redor está
inundado com a mesma cor… exceto por ele.
O rei é de um azul pálido. A aura que o cerca é diferente da magia
quieta e ordenada da vida. Sua magia é contorcida, raivosa e
violenta. Muito parecida com a carranca em seu rosto. A visão que
me foi concedida, o que quer que tenha sido, enfraquece enquanto
continuo a olhar boquiaberta para ele.
Ele olha para mim, olhos inescrutáveis, testa franzida.
— O que… — pigarreio, tentando encontrar minha voz. — Como?
Ele inclina a cabeça para o lado.
— Então você realmente não sabia.
— Eu… — Minha garganta se fecha e me engasgo com o ar.
Sabia?.
Sabia que era a Rainha Humana, ele quis dizer.
— Me diga o que está acontecendo — consigo falar, mas sou
ignorada.
— Então a pergunta agora é, quem? — O rei se vira, varrendo os
olhos pela praça. As pessoas que conheci, meus amigos e
familiares, olham em choque e admiração. — Quem a escondeu?
Quem deu isso a ela? — Exige, segurando o colar que tirou do meu
pescoço.
— Isso… — No momento em que falo, os olhos do Rei Elfo estão
de volta em mim, acusatórios e opressivos. Mesmo se tivesse a
capacidade de mentir, não conseguiria. Meus olhos já me traíram
enquanto se lançam sobre meu amigo de infância enjaulado. —
Luke. Foi um presente de Luke.
— Como ousa — Luke olha para mim e murmura, furioso. Sua
expressão é feia, horrível. É uma expressão de ódio. Os olhos com
os quais sonhei – olhos que, horas atrás, me olhavam com
admiração quando declarou que se casaria comigo – agora não
consigo reconhecer. — Amei você, quis protegê-la; agora você me
condena?
— Ficariam sabendo de alguma maneira. — Defendo minhas
ações por instinto. Isso só o faz ficar com ainda mais raiva. Ele não
consegue ver que o melhor caminho a seguir é a honestidade?
Tenho certeza de que tudo isso é algum tipo de mal-entendido. Tem
que ser.
— Qual o significado disso? — a Guardiã-Chefe demanda.
— O que você fez? — outro Guardião pergunta.
Luke não diz nada. Ele continua a me apunhalar com os olhos, me
prendendo ao chão como se não passasse de sujeira para ele.
Ele disse que me amava.
O rei anda em direção a Luke e a prisão de pedra que o contém se
desfaz. Ele agarra seu rosto com tanta força que as unhas cravam
em seu queixo, tirando sangue.
— Diga a eles o que você fez —, rosna o soberano.
— Não fiz nada — afirma o Guardião.
O Rei Elfo lança Luke no centro da praça, em um círculo aberto
entre todos os reunidos ali. Luke cambaleia e gira, procurando
alguém para ficar do seu lado; contudo, todos pudemos ouvir a
mentira em sua voz. Seus olhos pousam em mim: eles imploram por
algo que não sei se posso dar. Posso ter sido capaz algum dia, mas
não mais.
— Diga a ela o que você fez —, ordena o rei.
— Tentei te levar embora — Luke respira. Posso ver que seus
olhos estão vermelhos e se enchem de lágrimas. — Por que você
não foi comigo?
— Como ela conseguiu isso? — O Rei Elfo empurra o colar que
Luke me deu na cara dele.
— Alguém me ajude! Por que ninguém me ajuda? — Luke se vira,
implorando aos habitantes da cidade.
Ninguém se apresenta.
— O que aconteceu? — Finalmente encontro minha voz. Usando o
que resta da minha força, eu me levanto, recompondo-me e
recolhendo minha bolsa de onde ela caiu ao meu lado. — Me conte
— exijo.
Ele murcha.
— Eu… nunca quis que você se machucasse. Nunca quis que
nada disso acontecesse. — Posso ver a mentira nos olhos
inconstantes de Luke enquanto fala. Mentiras, mentiras, mentiras. —
Achei… achei que poderíamos encontrar outra maneira.
— Do que você está falando? — sussurro. Os olhos de Luke se
voltam para mim.
— Você se lembra do dia em que fui com você e Emma para a
floresta, quando tínhamos doze anos? Foi a primeira vez que ela
teve um daqueles ataques e você fez um elixir para ela. — Lembro
exatamente como ele conta. — Foi quando vi você usar magia sem
perceber. Vi flores minúsculas brotarem em suas pegadas por entre
a grama atrás de você sem você saber. As árvores pareciam
farfalhar em saudação quando você passava, e ainda assim você
sempre pensava que era o vento.
A floresta parecia tão viva quando era criança, como se fosse uma
pessoa – uma amiga, tanto quanto um lugar. Pensei que fosse algo
que acabou desaparecendo com a idade e maturidade. Mas agora
não tenho certeza.
— Sabia que você era a rainha — ele admite. Os habitantes da
cidade arquejam.
A Guardiã-Chefe dá um passo à frente.
— Como você ousou? — Ela profere a pergunta que todos estão
se fazendo.
— Mas não poderia desistir de você. Não poderia! Eu te amava
então como amo agora — Luke continua, falando apenas para mim.
— Então encontrei o colar guardado entre os pertences dos
Guardiões e dei a você. Achei que isso iria mantê-la escondida e,
quando tivéssemos idade suficiente, eu…
— Me levaria embora — termino com um sussurro. Ele engole em
seco e assente.
Como que pegando a deixa, o rei joga no tablado o colar que
arrancou do meu pescoço. Ele cai aos pés da Guardiã-Chefe.
— Um amuleto feito por elfos. Não trocamos mercadorias desse
tipo com Capton há séculos, então não tenho dúvidas de que estava
muito bem guardado. Obsidiana negra para silenciar seus poderes,
e labradorita para protegê-la do Saber, caso ela encontrasse algum
elfo que tentasse descobrir seu nome verdadeiro.
Olho para o colar e depois de volta para Luke.
— Você disse que isso me protegeria.
— Estava tentando poupá-la — Luke implora, com uma voz aguda
e chorosa que nunca ouvi antes. — Pensei que poderia salvá-la de
um futuro terrível.
As ações de Luke, minhas habilidades de cura, o fato de que
sempre senti como se tivesse um dever para com a cidade, tudo faz
sentido agora. Um sentido horrível. Terrível.
— Luella. — Luke cambaleia em minha direção. — Eu te amo
desde aquela época. Fui feito para você e você foi feita para mim.
Um braço esguio bloqueia o caminho de Luke, impedindo-o de
chegar mais perto de mim. Nunca pensei que seria grata ao Rei
Elfo, mas não sei o que faria se Luke ousasse me tocar agora. Já é
difícil o suficiente permitir que ele olhe para mim.
— Não — sussurro para Luke. — Você não me ama, você nunca
amou.
Ele tenta desviar do Rei Elfo, mas este continua se colocando em
seu caminho, agarrando o pulso de Luke.
— Você tem que acreditar em mim. Tudo o que fiz foi tentar salvá-
la deste futuro miserável.
— Você tentou me salvar às custas de todos que amo! Você os
veria sofrer e morrer porque queria me manter escondida para si
mesmo.
— Por causa do amor!
— Isso não é amor! — Permito que minha voz seja levada até o
topo das montanhas. As árvores estremecem com a minha raiva.
Suas raízes abalam a fundação da terra bem abaixo dos meus pés.
O vento uiva, e a tempestade se aproxima no horizonte. — Amor é
escolha — continuo, antes que ele possa dizer outra palavra. —
Você… você queria ser meu dono. Você queria me guardar para si,
independente de como estivesse me sentindo. Você nunca me
permitiu tomar a decisão por conta própria e agora nossa cidade,
nosso povo, sofreu por causa de seu egoísmo. Estremeço ao
pensar no que poderia ter acontecido com todo o nosso mundo se
você tivesse conseguido o que queria.
Eu relembro todos os funerais a que assistimos dos moradores da
cidade mortos antes do tempo por causa da Fraqueza. Vejo Luke,
de pé com os outros Guardiões, lamentando sua perda como se
realmente se importasse, como se suas ações não tivessem levado
à morte deles. Suas lágrimas não tinham sentimento algum àquela
época, e seu remorso agora significa tanto quanto significou então.
— Luella…
— Pare — sussurro. — Nunca mais diga meu nome. — Quase
desejo que a terra se abra e o engula inteiro. Da forma como me
sinto agora, ela até poderia atender ao meu comando. — Livre-se
dele. Quero que ele suma — peço a ninguém em particular. Não me
importa quem atenda ao pedido.
É o Rei dos Elfos quem me atende. Ele arranca o bracelete de
Guardião de Luke sem um segundo de hesitação. Seus olhos
piscam com um azul brilhante: ele cruza os braços à sua frente e,
em seguida, lentamente os separa – como se estivesse esticando
bala de noiva entre as mãos. Luke enrijece, erguendo-se na ponta
dos pés de uma forma não-natural. Os dedos do rei ficam ainda
mais tensos, puxando. Um som patético e lamentoso escapa de
Luke enquanto ele se contorce. O ar se enche de estalos. Os
habitantes da cidade começam a gritar.
— Não! Não o machuque! — Corro até o Rei Elfo e agarro seu
braço. Ele olha para minha mão em contato com ele com um ar de
choque e ofensa. — Não o quero morto. — Meu coração está sendo
dilacerado; não suporto testemunhar Luke sendo rasgado em dois.
O Rei Elfo tenta se desvencilhar de mim, mas seguro firme,
cravando meus calcanhares no chão. — Ele deve ser julgado pelo
Conselho de Capton. Ele deve expiar seus crimes como é justo e
razoável.
O Rei Elfo estreita os olhos para mim em uma careta e, por um
momento, acho que pode me ignorar. Mas não paro de encará-lo. O
que mais ele pode querer tirar desta cidade? Ele já tem minha vida.
Se sou a Rainha Humana – e sou, não há como negar depois da
exibição que acabou de acontecer – ele não deveria precisar de
mais nada.
— Luke não importa para você — digo, minha voz fraca. — Meu
povo fará justiça. Você já tem a mim; deixe-o ir.
O rei solta Luke e ele cai no chão, ofegante. Dois Guardiões
avançam e o agarram por baixo dos braços. Eles começam a
arrastá-lo para longe, enquanto ele implora e murmura desculpas o
tempo todo.
Nenhum dos habitantes da cidade ouve. Eles o encaram
abertamente, seus rostos frios e fechados.
O Rei Elfo se vira para mim.
— Venha, Rainha, devemos partir imediatamente. Você é
necessária para além do Desvanecer — diz gravemente.
Estou entorpecida do topo da cabeça aos dedos dos pés. Ele
agarra meu braço, me chamando de volta à realidade. Olho feio
para ele. Mil objeções estão na ponta da minha língua, e ainda
assim não consigo reunir forças para dizer nenhuma delas.
Desde menina, me ensinaram qual era o destino da Rainha
Humana. Se contar a ele sobre meus deveres como curandeira,
meus apelos cairão em ouvidos surdos. Se implorar para que me
deixe ficar um pouco mais, sei que ele vai recusar, porque é assim
que as coisas acontecem.
Se me recusar a ir, meu mundo morre.
— Não há tempo. Você e eu devemos nos casar.
cinco

Vamos nos casar. Eu. E o Rei Elfo. Não consigo pensar.


— Quando? — consigo perguntar.
— Agora. O tempo é essencial — diz a Guardiã-Chefe.
Minha atenção se desvia da Guardiã-Chefe para um homem ao
lado dela: meu pai. Minhas costelas parecem se fechar sobre meus
pulmões e solto um suspiro que se transforma em uma emoção
mais crua do que lágrimas.
— Mas… — começo.
— Não há tempo — diz o rei com rispidez. — O fato de eu poder
vir aqui e usar tanta magia silvestre neste plano é prova suficiente
de que o Desvanecer está oscilando. As linhas entre nossos
mundos estão se confundindo – o que, deixe-me assegurar, é algo
que você não quer.
Procuro por algum lampejo de bondade ou resignação nos olhos
dele, mas tudo o que encontro é pura determinação. Pergunto-me
se ele está suportando isso apenas por força de vontade; o que ele
está escondendo debaixo de sua superfície cuidadosamente
composta. Talvez ele não esteja escondendo nada e seja apenas
um homem de pedra e magia.
— Faremos isso agora — diz a Guardiã.
Procuro minha mãe na multidão, mas não consigo encontrá-la.
Procuro por entre o mato e as árvores, criadas magicamente, e
apesar do fato de quase toda Capton estar reunida, ela não está em
lugar algum. Volto-me para o meu pai; sua boca está pressionada
em uma linha dura, mas não profere uma palavra.
Ele sabe que isso deve ser feito, assim como eu. Não há escolha.
Marchamos em um grande grupo até o Templo. Estou em silêncio,
rígida, caminhando ao lado do Rei Elfo. Tento manter minha cabeça
erguida, mas estou cansada, muito cansada. Em um momento
estava na praça da cidade. No próximo, estou no salão principal do
templo sendo ungida com óleo, moradores da cidade me cercando,
enquanto a Guardiã-Chefe folheia um tomo gigante no altar.
A luz do sol desce através do vitral atrás da Guardiã-Chefe. Ela
atinge meus ombros, mas não ilumina o buraco escuro que cresce
dentro de mim. Estou cercada – as pessoas estão amontoadas nas
fileiras de bancos de sequoia, esculpidos nas árvores imponentes
que cercam o templo –, mas me sinto sozinha. Não tenho nem
coragem de admirar a arquitetura orgânica do templo como
normalmente faria, com o teto abobadado sustentado por galhos
retorcidos, como se tivesse sido cultivado, e não construído à
sombra da grande sequoia em seu coração.
Um silêncio ensurdecedor ecoa em meus ouvidos enquanto estou
diante do rei. Estou prestes a me casar… com o Rei Elfo. Esse
pensamento quase me faz vomitar.
— Podem me dar um momento? — sussurro.
— Não há tempo — a Guardiã-Chefe sussurra de volta, mas não
rudemente.
— Para o banheiro, por favor. — Vou vomitar. Ou desmaiar. Talvez
ambos, um após o outro.
— Isso vai acabar em breve. — Ela encontra a página que
procurava e começa a ler a partir dela. — Antes dos deuses antigos,
nos restos da fortaleza do reino de Alvarayal, à sombra da pedra
angular original, honramos o pacto feito…
Não vomite. Não vomite. Não ouço mais a voz da Guardiã-Chefe.
Tudo o que ouço é essa frase se repetindo várias vezes em minha
mente.
O Rei Elfo levanta as mãos. A sensação dos seus olhos
perfurando minha testa traz meus olhos de encontro aos dele.
Engulo em seco.
— Unam as mãos pela primeira vez — a Guardiã-Chefe repete
com firmeza e alguma agitação. Deve ser a segunda vez que ela diz
isso – mal resisto a gritar com ela que não tenho ideia do que está
acontecendo.
Normalmente, a Rainha Humana é identificada aos dezesseis ou
dezessete anos. Após isso, tem entre um e três anos para estudar
no templo com os Guardiões. Ela é alimentada com comida de além
do Desvanecer, aprende os costumes élficos, e estuda o
conhecimento secreto que os Guardiões protegem.
O Rei Elfo estende as mãos em expectativa. Levanto meus dedos
trêmulos e os coloco nos dele. Suas mãos frias se fecham ao redor
das minhas. Seus olhos piscam em um azul brilhante, assim como
antes de ele construir uma prisão para Luke.
Suponho que eu esteja indo para um tipo diferente de prisão.
Uma brisa fria passa por mim; é rápida, revigorante, mas não me
faz tremer. Eu me empertigo. O gelo se condensa na parte de trás
da minha cabeça, irradiando uma compostura fria pela minha
espinha e pelos meus membros. Meus olhos estão presos nos dele
enquanto minha boca se move.
— Vou honrar o pacto — digo. Acho que estou repetindo a
Guardiã-Chefe, mas não tenho certeza – não tenho certeza de nada
além do Rei Elfo diante de mim. Já pus os olhos em alguém – em
algo – mais perfeito antes? Como poderia ter medo disso?
Isso está certo. É assim que o mundo deveria ter sido o tempo
todo. Uma profunda sensação de calma não-natural me preenche.
— Vou honrar o pacto — ele repete.
— Vou cumprir minha obrigação com este mundo e com aquele do
outro lado do Desvanecer. — Começamos a repetir um ao outro. —
Vou defender as pedras angulares. Usarei os poderes que correm
em meu sangue através do destino para o bem de todos nós – para
a paz. Vou defender a ordem que é natural e trabalhada.
— Vou honrar meu marido.
— Vou honrar minha esposa.
Aham, certo, minha mente deixa escapar de modo traiçoeiro. Mas
o pensamento é congelado pela minha determinação. Estou me
casando com um rei de gelo. Terei que ser uma rainha frígida para
combinar.
O Ancião diz algumas palavras, e a cerimônia está concluída.
Soltamos nossas mãos e pela segunda vez neste dia encaro as
minhas. Que magia foi feita aqui? O que eu fiz?
Eu me casei. Foi isso que fiz.
Sempre que me imaginava casada – se me imaginava casada –
era Luke quem estava de pé na minha frente. Volto meu olhar para o
Rei Elfo, vendo seus brilhantes olhos azuis ainda em mim.
— Devemos nos dirigir ao Desvanecer — diz.
Eu assinto com a cabeça.
O rei estende a mão para mim e eu a pego. Sua pele é lisa e fria
ao toque, seu aperto inesperadamente gentil. Ele me conduz de
uma maneira estranha e rígida. Saímos do santuário, contornamos
sua lateral e começamos a descer um caminho lateral. Sei, sem
precisar que me digam, que isso nos levará em direção ao
Desvanecer.
Os habitantes da cidade se reúnem atrás de nós, movendo-se
silenciosamente para o começo da trilha. A floresta está úmida; as
árvores emaranham seus galhos no nevoeiro como dedos no cabelo
de um amante. Vejo botões de flor abrirem, desabrochando ao meu
lado enquanto ando. Elas se abrem e se viram para mim, como se
me dessem um adeus deste mundo.
Adeus… Sinto um arrepio, mas o pensamento fica na minha
mente. Adeus, estou indo embora. Estremeço de novo, desta vez
com mais violência, e quase consigo imaginar o gelo invisível
sacudindo dos meus ombros. O núcleo frio na parte de trás da
minha mente se fratura.
— Luella! — Ouço a voz de minha mãe, quebrando o silêncio e o
decoro.
Minha frágil compostura se despedaça.
Olho por cima do ombro; fomos mais longe do que pensava. Minha
mãe e meu pai estão na entrada do caminho, perto do santuário.
Meu pai a segura com força, desgrudando o cabelo cor de rubi de
suas bochechas manchadas de lágrimas. Ele murmura algo que não
consigo ouvir, mas posso ver que as palavras são fisicamente
dolorosas para ele.
— Luella! — ela grita novamente.
— Mãe! — Meu coração está acelerado mais uma vez. O calor
inunda meu corpo e minhas bochechas. Solto minha mão da do rei e
começo a correr.
Ele agarra meu cotovelo, me virando no lugar.
— Devemos ir para além do Desvanecer. Temos muito pouco
tempo.
Os olhos do Rei Elfo estão de volta à sua cor natural. A magia
brilhante que cintilava neles se foi. É então que percebo o que ele
fez.
— Você usou magia em mim — sussurro, compreendendo. Aquele
frio gelado, seus olhos brilhantes, ambas as características que
estou começando a associar com magia élfica. O ódio se mistura
com o horror em minhas entranhas e torce meu rosto. — A
cerimônia…
— Você precisava obedecer.
— Desgraçado. — Separo-me dele mais uma vez. Maldito seja
seu Desvanecer. Maldito casamento. Malditos homens que pensam
que podem me manipular para que me case.
Um juramento feito sob influência mágica não deve ser mantido.
Mas sei que ninguém vai ficar do meu lado.
Eu sou a Rainha Humana. Mesmo que não tenha sido treinada
para o meu papel, sei o suficiente das histórias que estão
enraizadas mais profundamente no tecido social de Capton do que
nas árvores ao meu redor para saber que a Rainha Humana não
tem escolha. Por magia ou circunstância… o juramento que fiz foi
forçado.
— Como você se atreve — ele fervilha de ódio com minha ofensa.
— Deixe-me dizer adeus.
— Ainda não acabou.
— Acabou sim — falo ríspida e olho feio para ele.
Ele dá mais um passo à frente, encurtando a distância mais uma
vez com seu longo passo. Lembro-me então que estou lidando com
uma criatura perigosa: ele pode parecer um homem, mas sei a
verdade.
Ele não é nada mais do que uma tempestade de furiosa magia.
— Muito bem. — Ele abaixa a voz para que apenas eu ouça. —
Vou atender a essa sua vontade como minha futura rainha. E
também porque sei que você não teve o benefício de ser
devidamente educada. Você não foi treinada para ser minha noiva.
Mas espero que você aprenda rápido, porque não vou tolerar minha
rainha falando comigo dessa maneira.
Ele quer que me submeta e ele. Meus joelhos estão batendo em
resposta à demanda silenciosa, mas projeto meu queixo para a
frente de modo desafiador. Estou cansada demais para pensar com
sensatez – bravura e estupidez são dois lados da mesma moeda.
Se ele acha que pode me “treinar”, vou precisar mostrar a ele que
há muito o que esperar dessa rainha.
— Vou me despedir.
O rei olha feio para mim, mas fica parado enquanto me afasto.
Seus olhos se turvam mais uma vez, e sua magia me libera do seu
domínio frio. Ele sabe que sou dele, agora e para sempre, então
pode lidar com o fato de não estar no controle por mais cinco
minutos, para que eu possa abraçar meus pais uma última vez.
Corro para os braços acolhedores de minha mãe. Ela salta de
perto do meu pai para me pegar. Estendo um braço e ele se junta
também.
— Luella, Luella — Minha mãe chora, como se meu nome fosse a
única coisa que sabe dizer. — Sinto tanto.
— Não fazia ideia — meu pai diz.
— Eu sei. Eu também não. — Estamos todos juntos nesta situação
terrível, prestes a ser destruídos para sempre, e é tudo culpa de
Luke. Provavelmente sempre estive destinada a ir, mas ele me
privou de uma despedida adequada. Espero que apodreça
esquecido em uma cela por tudo o que fez.
— Sinto muito por não termos preparado você para isso. Se
soubéssemos, teríamos feito. — Minha mãe me aperta com mais
força. Se ela continuar me segurando com tanta firmeza, vai acabar
espremendo as lágrimas que estou segurando.
— Eu sei — repito e me afasto. — Não chore, está tudo bem. —
Tento acalmá-la, enquanto minha própria voz falha ao ver suas
lágrimas. — Sei que teriam me preparado para ser a rainha. Vocês
não sabiam. Nenhum de nós sabia. Não é nossa culpa. — Engulo
em seco, tentando afogar minhas emoções. — Mas agora posso ir e
fazer a diferença. A Fraqueza chegará ao fim. Não é como gostaria,
mas ainda posso ajudar Capton.
Aperto meus pais com força mais uma vez e paro de tentar
segurar as lágrimas. Respiro trêmula e choro com minha família.
Tenho a impressão de que é a última coisa que faremos juntos.
— Solstício de verão — minha mãe diz.
— Vou tentar. — Penso no que disse o Sr. Abbot e sobre como
nunca ouvi falar da Rainha Humana deixando o templo antes.
Espero que eu seja diferente.
— Luella. — A voz insensível do Rei Elfo nos separa. — Devemos
ir.
Eu rapidamente me volto para meus pais.
— Vocês dois, fiquem seguros, tudo bem? Vou tentar enviar
cartas. Amo muito vocês dois.
— Não vá. — Minha mãe segura minha mão.
— Ela precisa ir. — Meu pai a envolve com os braços, como se a
estivesse afastando de mim.
Eu dou um passo para longe, e depois outro. Os dedos da minha
mãe se enrolam nos meus, agarrando-os como as trepadeiras que
crescem na praça. Nós nos separamos e a emoção que me atinge
se assemelha a uma corda de harpa se rompendo – ela nunca vai
ressoar novamente. A visão do rosto de minha mãe, o som de seus
soluços, silenciaram qualquer sentimento feliz para sempre.
— Sinto muito — sussurro. Sinto por muito mais do que posso
compreender neste momento.
Dando as costas para eles e para o mundo que conhecia,
lentamente me arrasto até o homem que é rei, marido e um
completo estranho para mim.
— Obrigado por isso — digo a contragosto.
— Quero que saibam que sou gentil — responde rispidamente e
estende a mão para mim. Seus olhos permanecem normais – sem
flashes brilhantes –, então hesitantemente a seguro e ando de bom
grado com ele para dentro da floresta ao longo do caminho que
serpenteia em direção à base da montanha mais alta da ilha. O som
dos soluços da minha mãe desaparece. O eco da explosão de
emoção do meu pai quando ele desmorona com minha mãe mal
chega aos meus ouvidos, faz muito tempo que parou de ressoar
entre as árvores.
A legião de elfos nos segue nas sombras escuras da floresta
profunda. Vou para o grande desconhecido que é o Desvanecer
como uma rainha estranha. O caminho torna-se acidentado e mais
coberto de vegetação. Os paralelepípedos vão ficando mais
distantes uns dos outros.
Logo, não há mais caminho. Fui mais longe na floresta do que
nunca, e a escuridão do que suponho ser o Desvanecer se fecha ao
meu redor.
A névoa espessa e sombria encobre as árvores, se desenrolando
em torno de nós, e na escuridão vejo contornos de figuras vagando
à distância. Alguns parecem humanos, enquanto outros parecem
feras. Estremeço, e não só de frio.
Meus dedos se fecham com um pouco mais de força ao redor dos
do rei.
Certamente devemos estar no sopé da montanha agora. Olho para
trás e não vejo nada além de elfos e escuridão. A floresta profunda
vibra com uma energia ansiosa. Há poder aqui, esticado ao meu
redor, vibrando sob a tensão.
Então, ao longe, tenho um vislumbre de luz. A escuridão preta
torna-se um túnel – as árvores estão tão próximas umas das outras
que formam uma parede quase perfeita. Trepadeiras e galhos se
erguem à medida que a luz cresce.
Piscando, emerjo para o outro lado do Desvanecer pela primeira
vez, e dou meus primeiros passos na cidade dos elfos.
seis

Estamos no topo de uma longa escadaria – não tão longa quanto


aquela que vai de Capton ao terreno do templo. Atrás de mim, há
algo que se assemelha a uma parede cortada na encosta da
montanha. A única falha na pedra lisa é uma mancha escura onde
fica a passagem da qual acabamos de sair.
Abaixo de nós, uma cidade cinzenta se espalha no vale aninhado
em uma depressão entre montanhas. Ventos de inverno uivam por
entre as construções e árvores estéreis, beliscando minha pele.
Parece frio e fechado, desanimador; nada como a alegria calorosa
que sempre imaginei pairando sobre Capton.
— Bem-vinda ao seu novo lar — diz o rei, soando tudo, menos
acolhedor.
— Não é o que esperava. — Minha voz falha, cansada das ondas
de emoção em que estou navegando.
— O que você esperava?
— Algo mais… luxuoso. — As casas são simples, não mais
bonitas do que as que temos em Capton, embora com um estilo de
construção diferente. Nossas casas são mais pragmáticas e
quadradas. Essas construções têm telhados de palha, e o segundo
e o terceiro andares são recuados, o que as faz parecer castelos de
cartas oscilantes.
Mesmo que seja diferente, é… enfadonho. Esperava por um
mundo repleto de vida e magia. Mas o que me recebe parece uma
pintura sombria, onde o artista se esqueceu que existem mais cores
além do azul e do cinza.
— Por que você pensaria isso?
— Elfos me pareciam seres extravagantes, com base nas
mercadorias que os Guardiões sempre mantiveram trancadas. —
Dou de ombros. O sentimento me lembra dos poucos pertences em
meu quarto no sótão, da chaleira élfica ainda na minha botica.
Agarro a bolsa que levei comigo para a congregação esta manhã.
Pelo menos tenho alguma coisa de casa. Graças aos deuses nunca
saio sem meu diário e itens essenciais.
Ele bufa, mas não diz mais nada sobre o assunto, se contentando
com um simples:
— Venha.
Eu o sigo escada abaixo com os dentes batendo. A legião marcha
atrás de nós. Ainda que fosse um crepúsculo agradável em Capton,
aqui é um amanhecer de inverno bastante fresco. A cidade está
acordando. As ruas ainda estão quase vazias. Tudo está
estranhamente quieto e coberto de geada, combinando com o céu
cinzento.
No centro da cidade há um grande lago. Um rio corre dele até a
montanha atrás de nós, presumivelmente até Capton. No centro
deste lago há uma escultura de um homem elfo e uma mulher
humana.
Eu paro. O rei para também, assim como a legião, vários passos
atrás.
— Esta é a primeira Rainha Humana?
Ele hesita por um momento, como se estivesse debatendo consigo
mesmo se deveria responder.
— É sim. Com um dos meus antecessores, há muito tempo.
— Antecessores? — Olho para ele. — Você não é o Rei Elfo?
— Que pergunta estranha. — Ele estreita os olhos para mim. —
Como você pode duvidar, depois de tudo o que aconteceu?
— Não, eu… — Aperto a ponte do meu nariz e suspiro. Foi um dia
muito longo. — Pensei que todas as Rainhas Humanas fossem
casadas com o mesmo Rei Elfo.
Ele inclina a cabeça para trás e ri. Seria um som adorável se ele
não estivesse rindo às minhas custas.
— Você pensou que fosse um mesmo homem, vivo há três mil
anos?
— Bom…
— Os rumores sobre a expectativa de vida dos elfos são muito
exagerados em suas histórias humanas. Nós vivemos tanto quanto
os humanos de Capton. — O rei olha para mim. — Sua vida e a
minha são ligadas uma à outra no momento em que nos casamos.
Quando você morrer, estarei marcado para morrer não muito tempo
depois.
— Então seu pai era o rei casado com Alice?
Ele fica rígido, tenso, os músculos de sua mandíbula aparentes
enquanto ele luta para não dizer o que quer que tenha sido seu
primeiro instinto.
— Era.
Sem outra palavra sobre o assunto, continuamos em frente, mas
daria qualquer coisa para parar e sondar as profundezas das
emoções que ele estava tentando esconder. O que Alice significava
para ele? E qual era realmente o lugar dela neste mundo?
Olho de volta para a estátua dos primeiros Rei Elfo e Rainha
Humana. O rei segura uma grande placa em suas mãos,
levantando-a para o alto. A rainha está de joelhos diante dele, com
as mãos pressionadas no chão a seus pés, como em servidão.
Eu estudo a escultura, os detalhes desgastados pelo tempo,
tentando coletar todas as informações que puder a partir dela. Mas
as feições do rei e da rainha desapareceram e estão cobertas de
gelo e neve. Ainda assim, quero encontrar algo para sentir por ela –
a primeira mulher a se colocar voluntariamente em minha posição
para manter a paz entre os humanos e as criaturas mágicas de além
do Desvanecer.
A magia dela está em mim agora, se as histórias são verdadeiras
sobre a magia ser passada de rainha para rainha.
— Como você pôde dizer que eu era a rainha? — pergunto
enquanto andamos rumo a um castelo à distância. Encravado entre
duas montanhas, o castelo abrange toda a largura da abertura que
liga este vale a qualquer mundo que esteja além. O rei olha para
mim e não posso dizer se está ou não chateado por eu ter quebrado
o silêncio mais uma vez. Continuo, de qualquer maneira:
— Entendo que o colar estava tentando me esconder – esconder
minha magia. Mas como você sabia antes de tirá-lo?
— Vi você a usando.
— Mas a obsidiana negra não deveria esconder a magia em mim?
— Algumas pessoas nunca podem ser escondidas; são feitas para
serem vistas.
— Você tinha certeza — insisto, sem aceitar sua resposta vaga e
poética.
— Toquei em você — diz ele simplesmente.
— E você soube com um toque?
— Você ouviu. O colar era de labradorita e obsidiana negra. A
obsidiana negra era para esconder seu poder; labradorita é uma
pedra rara extraída aqui em Entremundo, que pode me impedir, ou
outro elfo, de realizar o Saber. Normalmente, a labradorita bloqueia
o Saber tanto pela visão quanto pelo toque. Contudo…
— Espere, o que é o Saber? — interrompo.
Ele suspira, como se a conversa estivesse rapidamente se
tornando tediosa. Azar o dele, não me importo em ser um incômodo;
eu me importo com as respostas.
— O Saber é quando um elfo identifica o nome verdadeiro de um
objeto, criatura ou pessoa. Um nome verdadeiro é o som dado à
essência crua daquilo – algo único para cada criatura e coisa. Elfos
realizam o Saber pela visão ou toque, e por nossa magia inata —
diz. — Uma vez que o nome verdadeiro é conhecido, o elfo pode
manipular a criatura ou coisa à vontade.
— Um elfo pode fazer qualquer coisa com algo ou alguém de
quem ele sabe o nome verdadeiro? — Penso em Luke,
contorcendo-se dolorosamente.
— Quando um elfo sabe o nome verdadeiro de algo, ele é limitado
apenas por seus próprios poderes e imaginação.
Não consigo evitar um calafrio.
— E você sabe meu nome verdadeiro agora?
— Sim. Pude sentir seu nome verdadeiro apesar da labradorita
quando nos tocamos – algo que não deveria ter sido capaz de fazer.
A labradorita deveria tê-la protegido, no entanto, pude sentir seu
nome verdadeiro porque você é a Rainha Humana e está destinada
a mim desde o nascimento. E, como disse, mesmo que não a
tivesse tocado, vi você realizar magia rudimentar sem perceber. —
Seus pés desaceleram até parar quando nos aproximamos de uma
praça diante de uma gigantesca ponte levadiça. — Falando em
labradorita, você precisará disso durante sua estada aqui. Sua mão,
por favor.
Obedeço. Ele pega um anel feito da mesma pedra arco-íris – que
agora conheço como labradorita – e o coloca no meu dedo anelar
esquerdo. Luto contra o desejo de arrancá-lo. Tudo o que vejo é um
amuleto feito daquela pedra terrível, colocado em mim por um
homem que quer me reivindicar. Só consigo pensar em Luke.
— Preciso mesmo? — sussurro.
— Sim — diz com firmeza, mas hesita antes de soltar minha mão.
— Se você deseja mudar o dedo em que está, pode fazê-lo. Não me
importo se não o usar como um símbolo do nosso casamento. É
meramente para protegê-la de outros elfos realizando o Saber em
você. Se alguém souber seu nome verdadeiro, pode ser perigoso.
— Por que alguém me machucaria?
— Qualquer rainha ou rei tem inimigos — responde gravemente,
acenando para a legião atrás de nós.
— Quem… — Antes que possa fazer a pergunta, sou silenciada
pelo que parece ser uma general se aproximando.
Sua pele é de um marrom rico e suas longas madeixas são pretas,
com mechas de um azul brilhante. Seus olhos são da cor do mar
agitado. Uma espada está presa ao seu quadril, e seus movimentos
são secos e rígidos. Três cordas pendem de ombreiras enfeitadas e
botões decorativos estão presos no busto de seu uniforme.
Os botões me lembram dolorosamente o broche ornamentado que
meu pai ganhou quando se tornou membro do Conselho. Respiro
fundo, tentando sufocar uma onda repentina de emoção. Estou
lutando para me sentir confiante em um novo mundo. Não posso
deixar uns botões me fazerem chorar na frente do Rei Elfo e seus
soldados.
— Vossa Majestade. — Ela abaixa a cabeça.
— Leve a rainha para seus aposentos e ajude-a a vestir-se como
convém à sua posição. Não podemos esperar mais nem um
momento. Fica mais frio a cada hora. — As palavras do rei se
condensam em baforadas brancas, como que para dar ênfase.
— Sim, meu soberano.
O Rei Elfo não perde tempo em me deixar ali com essa mulher.
— Espere! — chamo. Ele para, olhando por cima do ombro e
arqueando uma sobrancelha escura.
— Qual é o seu nome?
A linha fina de sua boca se abre em um sorriso sarcástico, como
se não acreditasse que se casou com alguém que não sabe sequer
o seu nome.
— Você pode me chamar de Meu Rei, ou Vossa Majestade, ou
Meu Senhor.
Não aceito essa resposta. Não. Nem por um momento.
— Como o chamaria se fosse um amigo seu? — Minha pergunta o
faz pensar; seu rosto relaxa em algo que quase chamaria de
vulnerabilidade.
— Não tenho amigos — diz fracamente. Outros podem interpretar
o tom como uma fria indiferença, mas ouço uma mágoa que ainda
não entendo flutuando de suas palavras.
— Seus súditos, então?
Ele faz uma careta, mas finalmente cede.
— Rei Eldas. Vejo você em uma hora. Começaremos então.
sete

— Começar o quê? — pergunto. Sei que suas orelhas compridas


podem me ouvir; no entanto, ele não para. Virando uma esquina no
túnel escuro à minha frente, ele desaparece.
Agora estou sozinha com uma elfa desconhecida, que lidera uma
legião de elfos mais desconhecidos ainda, em uma terra
desconhecida de magia silvestre. A Rainha Humana meramente
existe. Parece tão injusto. Mas agora que o traseiro que se sentará
naquele trono é o meu, ficaria feliz em apenas me sentar e
recuperar o fôlego.
Foi um longo, longo dia.
No entanto, se devo apenas sentar… que “trabalho” há para fazer?
— Venha, Vossa Majestade. — A maneira como a general precisa
forçar o pronome de tratamento por entre os dentes cerrados me diz
que ainda que soubesse que a Rainha Humana chegaria, ela não
está exatamente satisfeita por estar respondendo a uma humana
agora. — Vou levá-la a seus aposentos reais.
Quando ela se vira para sair, noto um corte, retorcido e cheio de
crostas, na mão que ela descansa no punho da espada. As bordas
estão avermelhadas por uma infecção.
— Posso dar uma olhada nisso — digo, sem pensar.
A general para, piscando várias vezes para mim. Então, finalmente
pergunta:
— Olhada em quê?
— Sua mão. — Já estou vasculhando minha bolsa. Gastei alguns
suprimentos com Emma, mas ainda deveria ter…
— É apenas um acidente de treinamento — diz com desdém.
— Bem, está infeccionando, e não será nenhum problema para
mim. — Encontro o pote de pomada que estava procurando; é boa
para ferimentos leves.
— Temos um curandeiro no castelo para essas coisas — a general
diz antes mesmo que possa tirar o pote da bolsa.
— Sim, mas tenho…
— Você é uma rainha — ela me interrompe em um tom baixo e
intenso. Seus olhos se voltam para os cavaleiros ainda vários
passos atrás. — Curar alguém como eu está abaixo de você.
Abaixo de mim? Curar e ajudar está… abaixo de mim agora? As
palavras vão contra tudo o que já conheci.
De repente, os tons de cinza deste lugar estão mais escuros, mais
apagados. Tudo fica mais sombrio e sem graça, como se isso fosse
possível. Fui tirada de minha casa, meu povo, minha família; agora
vão me tirar a única coisa em que sou boa? A única coisa pela qual
trabalhei?
Eu tento reunir minha coragem, abrindo minha boca. Mas não
consigo dizer uma palavra.
— Agora venha por aqui, por favor. — Ela diz “por favor” por entre
os dentes, como se minha oferta fosse chocante ou problemática
para ela.
Apenas um suspiro escapa dos meus lábios. Não posso lutar
contra nada disso. Concentrar-me demais nessas coisas vai me
sobrecarregar com a lembrança de tudo o que me foi tirado. A
melhor coisa que posso fazer, por enquanto, é tentar sobreviver.
Não posso julgar esta vida até tentar vivê-la. Espero que me
surpreenda. E, se isso não acontecer… só tenho que lembrar que
minha presença aqui pôs fim à Fraqueza em Capton e garantiu mais
cem anos de paz.
O castelo está mais para uma fortaleza construída diretamente na
encosta da montanha, e me pergunto contra o quê ele está
defendendo esse lugar. Através da fortaleza há um único caminho
de pedra e duas grades levadiças em cada extremidade. A estrada
de paralelepípedos ficou lisa com o tempo; sulcos profundos de
carroças se estendem por toda a extensão do caminho.
Este é o único caminho para dentro ou para fora da cidade,
percebo. Se quiserem tomar a cidade, o castelo deve ser
conquistado primeiro.
Uma terceira grade levadiça está entre as duas entradas do longo
túnel. Atrás dela há um pequeno pátio subterrâneo iluminado por
tochas penduradas em paredes manchadas de fuligem. Elas
iluminam duas portas pesadas.
— Onde vai dar esse caminho? — Aponto para a extremidade do
túnel.
— Nada com que precise se preocupar. — A mulher para, com a
mão na espada. — Vamos por aqui. — Ela aponta para as portas.
— É para além da cidade? — pergunto mesmo assim
— Sim. E não é nada com que precise se preocupar. Agora venha.
Seus soldados devem ter recebido algum comando não-verbal; a
legião agora nos cerca em um semicírculo, como se estivesse nos
protegendo de atacantes invisíveis.
Sem outra opção, sigo-a até o que deve ser a entrada do castelo.
Os olhos da general piscam em um azul brilhante para as portas e
então ela se vira para mim.
— Essas portas são magicamente fechadas. Não adianta tentar
fugir.
— Por que você acha que teria motivos para fugir? — indago,
como se o pensamento já não tivesse passado pela minha cabeça…
mais de uma vez.
— Esperamos que não tenha. — Essa resposta não é exatamente
promissora. Ela empurra as portas e elas se abrem para um
patamar ao pé de uma longa escada.
— Qual o seu nome? — pergunto.
Ela parece relutante em me dizer, mas talvez o fato de eu ter
forçado Eldas a admitir seu nome seja o que a faz ceder:
— Rinni.
— Você é algum tipo de general?
— Você é sempre tão incessante com as perguntas? — Suas
palavras são mais afiadas do que as minhas tesouras de poda.
— Talvez. — Dou de ombros. Em seguida, repito: — Então você
lidera os soldados?
— Às vezes — ela cede. — Sou considerada por muitos a
segunda em comando para o Rei Eldas. — Quase podia vê-la
avaliando suas opções e o que significaria para ela não responder
minhas perguntas. Isso me faz pensar em quanta influência terei
aqui.
Posso ser uma humana na cidade dos elfos, mas sou a rainha
deles. Tenho um tipo de magia que o próprio Rei dos Elfos e uma
legião de soldados dele foram a Capton para conseguir. Olho para o
anel na minha mão esquerda, que carrega o peso de mil pedras.
No topo da escada há uma sala com pé direito alto e pesados
candelabros de ferro. Velas pingam estalactites de cera em direção
ao piso de madeira escura em que agora estamos. Mais duas
escadas, uma de cada lado da sala, erguem-se sinuosas para um
patamar e depois para um mezanino que circunda o corredor.
Entre as escadas há uma parede de vitrais. Desenhos intrincados
foram meticulosamente entrelaçados entre os milhares de pequenos
fragmentos. Eles lançam um padrão rendado no chão – é a única
coisa suave, ou brilhante, neste lugar frio e monótono.
— Venha, seus aposentos ficam na ala oeste. — Ela sobe as
escadas da esquerda e eu a sigo até o patamar.
— É sempre tão quieto? — sussurro para não ter que ouvir minha
voz ecoando neste espaço cavernoso e vazio.
— Sim.
— E as pessoas que cuidam do castelo?
— Há alguns servos. — Ela não olha para mim quando responde.
— Onde?
— Só porque você não os vê, não significa que não estejam aqui.
É impróprio para o povo comum ver a Rainha Humana antes de sua
coroação. Portanto, a equipe aqui é mantida extremamente pequena
e fica fora de vista.
— Lamento pelo trabalho extra que eles devem ter que fazer por
precisarem ficar em menor número. — No entanto, eles têm a magia
silvestre, suponho. O que pode levar dois dias para um humano,
provavelmente leva uma hora para um elfo.
Devo ter esgotado a conversa, porque Rinni não diz mais nada.
Atrás de uma porta há uma área de estar que se conecta a outra.
Passamos por uma série aparentemente interminável de portas
após portas abertas que levam a salas sem nenhum propósito óbvio
a não ser existir. Após a quinta ou sexta sala, há um corredor com
uma escada no final. Subimos três lances e chegamos a um amplo
patamar com apenas uma porta.
— Estes são seus aposentos.
Rinni abre a porta e pisco com a luz que inunda o quarto. O pé-
direito tem a altura do primeiro e segundo andares do sobrado de
pedra da minha família, e fileiras de janelas se alinham na parede
dos fundos. Rinni espera enquanto exploro rapidamente a sala
principal e o quarto anexo – um armário maior do que o sótão que
costumava ser o meu quarto; um banheiro maior do que a minha
botica e uma cama que poderia facilmente acomodar cinco pessoas.
— Por que tudo é gigante? — pergunto, ressurgindo do quarto
para a sala principal vazia.
— Gigante? — Ela arqueia as sobrancelhas.
— As portas são grandes, os tetos são altos, os móveis ocupam
mais espaço do que uma pequena carruagem.
— Tudo tem o tamanho adequado para um castelo. Você vai se
acostumar com isso. E se houver móveis de que não goste, pode
adquirir novos. A rainha geralmente decora seus aposentos com o
que ela escolhe. Eldas decretou que você terá acesso ao cofre real
para encomendar qualquer coisa que torne sua estadia aqui mais
confortável.
Isso é inesperadamente bondoso da parte dele. No entanto, ao
mesmo tempo, não quero o dinheiro dele. Já era difícil o suficiente
receber a caridade de Capton, e vinha de pessoas com quem passei
toda a minha vida – pessoas que jurei ajudar e curar por toda a
minha vida em gratidão. Além disso, desconfio de quaisquer
presentes que possam ter ressalvas – e o dinheiro do Rei dos Elfos
deve ter mil amarras.
Já sinto falta da minha botica e de ganhar meu próprio dinheiro…
mesmo sendo pouco, já que fazia a maior parte do meu trabalho de
graça para pagar o investimento que Capton havia feito em mim.
— Isso explica por que está tão vazio. — Olho em volta, me
perguntando o que Alice escolheu.
— Já demoramos o suficiente; venha, temos que vesti-la para o
rei.
— Vestir-me?
— Você pode ter se casado com o Rei Eldas com esses trapos,
mas certamente não vai se sentar no trono de sequoia com eles. —
Suas palavras transbordam desgosto.
— Não entendi. — Olho para o que estou vestindo. — Minhas
roupas são práticas.
— Para uma camponesa, talvez. Mas agora você é uma rainha e
se vestirá como tal, ainda que não aja da maneira correta.

***

Depois de uma hora sendo empurrada, cutucada e puxada, Rinni


me considera “adequada”.
Olho em um espelho que está de pé em um dos cantos do quarto.
Um colar de pérolas – com o comprimento maior que a minha
própria altura – está enrolado no meu pescoço. Rinni tentou domar
os nós e ondas do meu cabelo, mas falhou. Meu vestido é feito de
uma seda fina da cor das folhas de outono; o corpete estruturado
mantém minha postura ereta. Não costumo usar cores quentes por
causa do meu cabelo. Mas vendo-me agora, pareço feroz.
Pelo menos até olhar nos meus olhos.
Abaixo deles estão sombras escuras que nunca estiveram lá
antes. Inclino-me em direção ao espelho para dar uma olhada
melhor. Eles estão da mesma cor castanho claro que sempre foram,
mas um vazio se estabeleceu onde imagino que a determinação
costumava estar.
— Quem é você? — Murmuro para a mulher olhando para mim.
Não conheço essa mulher cujo vestido está mais em ordem que a
sua vida. Estou acostumada a ter as coisas sob controle. Sempre
tive um plano – da infância à Academia.
Agora… ganhei um castelo e uma coroa que nunca pedi, e perdi
tudo o que sempre quis.
Seja forte, insisto comigo mesma enquanto olho para as raias
verdes em meus olhos cor de mel. Tenho que tentar obter o melhor
da situação. Encontrarei algo que possa fazer aqui, algum propósito.
Mesmo se quisesse escapar – não, nem pense nisso, Luella.
— Aqui. — Rinni emerge do armário após vasculhar por um longo
período. Afasto-me do espelho. Ela traz nas mãos uma coroa de
folhas de sequoia banhadas a ouro, que coloca na minha testa. —
Agora você parece uma rainha; pode até enganar a corte, se não
abrir a boca.
— Não entendi.
— Ouvi todos os palavrões existentes enquanto tentava domar sua
juba. Metade deles eu nem conhecia, e estou no quartel desde os
sete anos. Venha comigo.
— Toda a minha existência será governada por você me dizendo
para onde ir e quando? — pergunto, imóvel.
— Certamente espero que não — Rinni chama, já na outra sala. —
Tenho tarefas mais importantes do que ser sua babá. Então, por
favor, peço que se acostume rapidamente com sua nova posição.
— Ser minha babá? Isso é jeito de falar com sua rainha? — digo,
roubando um último olhar para mim mesma no espelho. Rainha. Eu
sou a rainha. Se disser isso a mim mesma muitas vezes, talvez
acredite. Talvez acabe acreditando que essa é minha nova
realidade.
— Comece a agir como uma rainha e começarei a falar com você
como uma. — A voz de Rinni está mais distante. Ouço a porta do
meu apartamento se abrir. — Agora, a menos que você saiba o
caminho para a sala do trono, sugiro que se apresse.
Puxando minhas saias para cima até expor minhas canelas, faço o
que ela pede.
Descemos as escadas e passamos por outra série interminável de
salas; subimos outro lance de escadas, atravessamos uma
biblioteca, um corredor, depois subimos outro lance de escadas até
uma pequena antecâmara. Rinni pressiona o ouvido contra a porta.
— Espionar é impróprio para uma general – ou cavaleira – o que
você é mesmo?
Ela me olha feio.
— Estou me certificando de que ele não esteja ocupado com algo
importante. — Rinni abre a porta e acena para que eu entre.
A sala do trono da fortaleza fica no centro, acima do átrio principal,
pelo que posso perceber. A parede do fundo é feita do mesmo vitral
do átrio abaixo, mas a cuidadosa estrutura de metal se ramifica em
torno de painéis mais amplos aqui. Posso ver as colinas e vales
além.
Até onde os olhos alcançam, é tudo marrom e cinza. As florestas
são tão estéreis quanto os campos; as árvores tão murchas quanto
as que vi na cidade. Deito o olhar em um mundo frio e cruel.
O panorama é obscurecido por dois grandes tronos. O da direita é
feito de sequoia. Tem uma forma orgânica, como se uma árvore se
tivesse enraizado na pedra da sala e crescido na forma de uma
cadeira. A sequoia está em nítido contraste com o trono frio de ferro
ao seu lado. Um homem, tão duro e insensível quanto o trono em
que se senta – assim como a coroa em sua testa – olha para mim.
Eldas arrasta os olhos sobre cada centímetro do meu corpo,
julgando.
— Você trabalhou bem, Rinni. Até a pedra mais áspera pode ser
polida, ao que parece — diz Eldas finalmente. Giro o anel de
labradorita em volta do meu dedo. É como se estivesse sendo posta
à prova.
— Estou feliz por atender aos seus padrões — digo secamente.
Ele franze os lábios. A tensão irradia dele em uma maré que
quase me derruba.
— Apreciaria se você começasse a manter seus comentários para
si mesma.
— Perdão?
— Há muito a ser feito, e a coisa mais importante a lembrar é que
a rainha tem um dever, um trabalho. — Ele aponta para o trono ao
lado do dele. — Vamos ver o que você pode realizar… Sente-se.
Agarro minhas saias com tanta força que deixo marcas quando
meus dedos se abrem, mas guardo minhas frustrações, pois tenho a
noção de que estou aqui apenas para existir, como uma boneca.
Estou cansada demais para discutir. Posso manter minha boca
fechada e ficar bonita por um tempo enquanto o rei realiza
audiências, ou faz decretos, ou assiste bobos dançando em suas
cabeças, ou o que quer que Reis Elfos façam.
Os saltos dos meus sapatos fazem barulho enquanto marcho
contrariada.
— Rainhas devem flutuar, não andar como cavalos.
Então ele tem permissão para fazer comentários, mas eu não?
Inclino minha cabeça para o lado, meus lábios em uma linha firme.
Ele sorri, entendendo meu jogo silencioso.
— Bom, fico com o cavalo. Pelo menos ele não fala.
Eu relincho para irritá-lo e acho que vejo seu olho tremer.
Eu giro, minhas saias esvoaçando ao meu redor quando chego ao
trono de sequoia – meu trono – e me sento.
No segundo em que me sento no trono, queimo com chamas
invisíveis. A magia me toma pela segunda vez em um dia, me
deixando em carne viva. Minha visão fica em túnel, embaça e
depois se expande mais do que jamais pensei ser possível.
Eu vejo as raízes deste trono – desta árvore – serpenteando por
eras de pedra e argamassa. Elas afundam longe no solo, penetram
no leito rochoso e se estendem até a fundação da própria terra.
Minha cabeça gira. Quero vomitar. Tento gritar, mas acho que
sequer me mexo – bom, meu corpo não se mexe.
Minha mente continua a se espalhar por terra e rocha. Uma raiz
toca outra. Estou nas árvores da cidade, depois nas florestas áridas
bem abaixo do castelo. Sinto a grama nos campos, quebradiça e
seca.
Morrendo. O mundo está morrendo.
Nutrição. Vida! Cada planta e animal grita para mim com uma voz
singular. Dê-nos.
Dê.
Dê, dê!
Suas raízes estão em mim, suas pontas de madeira empurrando
sob minhas unhas, em meu abdômen, serpenteando pela minha
garganta. O próprio mundo está buscando por mim, e sou incapaz
de detê-lo.
A terra está sedenta, e eu sou a chuva. Os animais estão famintos,
e minha carne é seu alimento.
Tomar. Tomar.
Vão me consumir, tomar tudo de mim, rápido demais.
Estou desaparecendo.
Não há o suficiente para mim e para eles. Não há o suficiente
neste mundo. Tudo está morrendo e me implorando por ajuda –
uma ajuda que não sei se posso dar. Não sei como dar.
Duas mãos me libertam. As garras da terra se encolhem e
murcham, gritando silenciosamente em protesto. A luz volta para
mim. Olhos – meus olhos – posso ver novamente. Mas o mundo
está nebuloso. Tudo é muito brilhante e se move muito rapidamente.
O mundo se inclina e me inclino com ele. Bile sobe pela minha
garganta e esguicha para o chão. É o primeiro som que meus
ouvidos escutam. Agora ouço vozes falando e xingando, e pés se
movendo.
— … chame… Poppy… Não… fique… —
Fique.
Dois braços fortes estão ao meu redor. Eles apertam enquanto
estremeço violentamente. Estou apoiada em algo estável – mais
sólido que a própria terra.
— Saraphina. — A palavra me é sussurrada por uma voz familiar.
Não, não é uma palavra. É um nome. É meu nome. Não sei como
sei disso, mas nada jamais ressoou com mais verdade. —
Saraphina — a voz repete, afundando em minha alma. — Calma.
Calma.
Calma.
A palavra se instala em meus ossos com um arrepio gelado. Ela
se espalha por todo o meu corpo, não é estranha, mas também não
é indesejável desta vez.
Congele-me, quero implorar. Envolva-me com gelo, com frio, com
algo que faça desaparecer esse fogo horrível que queima sob minha
pele. Congele-me, ou posso morrer.
— Saraphina, fique comigo.
Não consigo obedecer. O mundo se desvanece em uma escuridão
fria e vou perdendo a consciência.
Mas, desta vez, não há dor.
oito

Abro os olhos e encaro o amanhecer amargamente. Estou de volta


aos meus aposentos, na cama enorme. Penas cutucam minha face
e olhos através da fronha.
Quando vou me sentar, descubro que não consigo. Meus braços
se recusam a sustentar meu corpo. Não consigo nem endireitar os
cotovelos.
Com bastante contorcionismo, consigo virar-me de barriga para
cima, e solto um gemido monumental. Sinto como se tivesse nadado
no estreito agitado entre Capton e Lanton. Sou uma baleia
encalhada, arfando e implorando pela vida.
Implorando pela vida.
Os ecos violentos da terra sedenta voltam para mim. Gemendo,
levo as mãos até os ouvidos. É inútil tentar bloquear as demandas
sussurrantes; o som está vindo de dentro de mim – os gritos
famintos reverberam em minha medula.
— Você acordou — diz um homem ao lado da minha cama.
Eu abro meus olhos e minhas mãos caem frouxamente no
travesseiro. À primeira vista, minha mente me engana e estou de
volta à minha cama. Meu pai está sentado ao meu lado, torcendo
uma toalha para colocá-la de volta na minha testa. Pisco e a ilusão
se foi. Nada mais do que uma lembrança de um conforto que nunca
mais terei.
— Quem é você? — falo, rouca.
— Willow.
— O nome combina com você. — Ele tem braços e pernas longos,
como os de um adolescente, e é esguio como um salgueiro. Seus
olhos são de um tom triste de azul e me observam com pesar.
— Não quero sua pena — murmuro.
— Goste ou não, você a tem. — Ele torce um pano na bacia ao
meu lado e o devolve à minha testa.
— Estou com febre? — pergunto.
— Um pouco. Está baixando. O rei não quis nos dizer seu nome
verdadeiro, e isso limita o que podemos fazer por você — ele diz de
uma forma que me faz perceber que o fato é um ponto de discórdia.
Qualquer um que se oponha ao rei Eldas é meu amigo, decido. —
Então temos que usar medicamentos mais tradicionais.
— Que são?
— Poções, unguentos, quaisquer remédios de ervas que
possamos inventar.
— Você diz isso como se essas coisas fossem insuficientes. —
Olho para ele, talvez com uma expressão um pouco mais afiada do
que percebo, a julgar por sua reação.
— Não quis ofender você.
— Bem, você ofendeu. — Tento levantar da cama uma segunda
vez. Willow me ajuda a me erguer contra a cabeceira maciça e
esculpida, colocando alguns das centenas de travesseiros atrás das
minhas costas para que os desenhos intrincados não machuquem
minha coluna. — O que você está me dando?
— Um elixir.
— Obviamente. — Reviro os olhos. — O que tem nele?
— Uma infusão de manjericão, gengibre e sabugueiro.
— Você não usou salgueiro? — Arqueio minhas sobrancelhas para
ele enquanto afundo nos travesseiros, tentando encontrar uma
posição confortável. Dói estar na minha pele. — Casca de salgueiro
branco, nem se preocupe com canela para o sabor. Um pouco de
filipêndula, se você tiver. — Ele continua a me encarar. — Deixe-me
assegurar, sei do que estou falando: fui para a Academia para
estudar isso. É meu trabalho.
Era meu trabalho. A correção mental me deixa vazia. Tinha uma
vida, um propósito, e agora… não tenho mais.
— Tudo bem. — Willow mal se abstém de revirar os olhos e se
dirige para uma longa mesa que está ao pé da cama. Não me
lembro de estar lá quando investiguei meus aposentos pela primeira
vez.
— Por quanto tempo fiquei desacordada?
— Cerca de doze horas — declara, como se o fato não fosse
nada.
— Doze horas… — repito. Minha atenção se volta para a janela.
— O que aconteceu? — sussurro.
Meus ossos crepitam e meus músculos gritam quando viro o
edredom pesado que tenta me prender. Meus pés descalços tocam
o chão, a barra da camisola caindo na altura das minhas
panturrilhas.
— Vossa Majestade!
Ignoro o chamado e o movimento de Willow. Meu único foco é a
janela. Cambaleio até ela e espio a terra abaixo.
O mundo cinzento que primeiro me cumprimentara encontrou sua
cor.
Flores silvestres brotam em canteiros ao longo dos campos agora
verdes. Vejo folhas novas nas florestas além. Algumas árvores já
têm botões de primavera em seus galhos. Consigo enxergar
fazendeiros começando a lavrar o solo. Até o céu mudou de invernal
para primaveril da noite para o dia.
Isso é mais do que apenas doze horas de mudança. É como se
meses tivessem se passado. Até onde a vista alcança, o mundo é
exuberante e vivo.
— O quê? — Meus joelhos cedem e Willow está ao meu lado. Ele
é mais forte do que parece; passando o braço em volta dos meus
ombros, me ampara na volta para a cama.
— O que aconteceu?
—Você não sabe? — ele pergunta.
— Não sei de nada — respondo secamente.
— Minha rainha… você aconteceu.
— O quê?
Willow suspira e passa a mão pelos cachos pretos e bem
enrolados, cortados quase rente ao couro cabeludo. Seus olhos
brilhantes vão de mim para a janela. Finalmente ele recua,
continuando a mexer a beberagem como instruí. Olho pela janela,
resignando-me a permanecer no escuro. Ninguém aqui vai…
— Levou um ano para encontrar você… um ano longo, frio e
anormal. Houve algum tipo de erro, não houve?
— Apenas um bem grande, chamado Luke — murmuro. Ele olha
fixo para mim e acho que talvez estejamos à beira de um
entendimento. — Você tem razão. Não fui treinada como uma rainha
deveria ser. Não sabia. Minha magia foi escondida de mim antes
mesmo que a descobrisse.
Não foi minha culpa, quero falar. Não foi. Então, por que me culpo
pelas ações de Luke? Foi ele quem fez isso comigo… em nome do
amor.
Faço uma careta e olho para trás, mais amarga que o amanhecer.
Passei anos apaixonada por aquele homem patético cujo único
intento era me fazer sentir inepta e fraca – que tentava enjaular
minhas habilidades. Capton sofreu e perdeu sua única curandeira
por causa dele. É o suficiente para me fazer querer gritar até minha
garganta ficar em carne viva.
Se nunca mais pensar em amor, será cedo demais. Tudo o que
Luke fez por causa do “amor” confirma todas as razões pelas quais
sabia que era uma má ideia me envolver com ele – ou com qualquer
pessoa. O amor é uma distração perigosa.
— Parece que você não teve muita escolha. Bem, não que
qualquer rainha tenha muita escolha em seu destino. Quis dizer que
você não teve muita escolha sobre sua magia ser ocultada. Você
não pode se culpar pelas ações de outra pessoa. — Willow despeja
sua mistura em um copo e traz para mim.
— Não tive escolha nenhuma. Se tivesse tido, as coisas teriam
sido diferentes. —Preparo-me e tomo o elixir em um único gole.
Estremeço com o gosto. Mas é exatamente como deve ser. Penso
em cada remédio que fiz apenas sabendo o gosto. Bastava uma
gota na minha língua para que soubesse quais ervas estavam ali –
magia que nunca vi. — Então não, eu não sei de nada. Deveria ter
aprendido o que quer que seja que os Guardiões ensinam há anos.
Mas não aprendi, e agora estou no escuro. — Olho cansada para o
homem alto. Ele é minha tábua de salvação. — Então, qualquer
ajuda além de poções será muito apreciada.
Willow pega o copo de volta e o segura com as duas mãos.
— O que você quer saber? — ele pergunta finalmente. — As
verdadeiras naturezas do rei e da rainha são mantidas em segredo,
mas vou lhe dizer o que puder.
— Vamos começar com o que, em nome dos Deuses Esquecidos,
aconteceu quando me sentei naquele trono. — Aponto para a
janela, mas é difícil até mesmo levantar o braço. — Então podemos
passar para como as estações mudaram da noite para o dia. E
talvez em algum lugar ao longo do caminho você possa me dizer por
que sinto como se tivesse caído vários lances de escada enquanto
estava com uma febre entorpecente.
— O básico, então. — Ele coloca a xícara de volta em sua mesa e
se encarrega de me acomodar na cama. Quero acenar para ele e
dizer que posso fazer isso sozinha, mas o fato é que não posso.
Além disso, há algo calmante em sua aura, algo que não quero
afastar. — Você sabe como o Desvanecer foi feito?
— Aprendi sobre o tratado de paz entre os humanos e os elfos. —
Aprender é uma palavra bastante forte. Apenas ouvi sobre isso em
contos populares e canções desde a infância. — Sei que os elfos
vivem do outro lado do Desvanecer com todos os outros povos não-
humanos que possuem magia silvestre. E sem o Desvanecer para
nos proteger, humanos sem magia que somos, nosso mundo seria
devastado.
Eu percebo que “nós”, humanos sem magia, não é mais preciso.
Sou a Rainha Humana, e por causa disso herdei magia. Tenho
poderes que nenhum outro humano jamais poderia sonhar, e ao
invés de me sentir forte, eu me sinto… solitária. Já não me encaixo
perfeitamente com o meu povo e, ainda assim, não sou exatamente
uma habitante do lado oposto do Desvanecer. Estou presa no meio,
destinada a não pertencer a nenhum dos dois até o fim dos meus
dias.
— Mais ou menos isso. — Ele meio que se senta, meio que se
inclina na beirada da cama e cruza os braços. — Pelo que
entendo… havia apenas um mundo, há muito tempo. Esse mundo
foi então dividido em dois – o Reino dos Mortais e o Além – com o
que chamamos de Véu. Então, o reino dos mortais foi dividido em
dois novamente, criando Entremundo e o Mundo Natural.
— Há três mundos no total? O Além, Entremundo e o Mundo
Natural? — pergunto.
— Sim, e você vem do Mundo Natural.
— E onde estou agora é Entremundo — raciocino. Willow assente.
— O que é o Além?
— Ninguém sabe. Bem… o Rei Eldas pode saber. Dizem que o
Véu que nos separa do Além foi feito pelo primeiro Rei Elfo para
separar os vivos e os mortos. Ao fazer isso, ele tirou dos elfos a
imortalidade que nos foi dada pelos primeiros deuses. Por isso,
outras raças se ajoelharam aos elfos. Eles honraram o sacrifício de
todos os elfos para dar o descanso final a todos e proclamaram o
Rei Elfo o rei dos reis – governante de todos os mortais.
— As pessoas morriam antes que o Véu fosse feito? — pergunto.
— Não, de acordo com a lenda. — ele pausa. — E antes que você
pergunte, não tenho ideia sobre a logística das pessoas que vivem
mais do que deveriam. As histórias variam, cada uma mais horrível
que a outra.
— Sei como é ouvir histórias inacreditáveis — murmuro, pensando
em todos os contos dos elfos – uma mistura de verdade e folclore
enfeitado. — Então, de certa forma, os elfos são guardiões dos
mortos?
— Você pode pensar assim. É parte do motivo pelo qual nos foi
concedida a capacidade de encontrar os nomes verdadeiros de
pessoas, animais e coisas.
— Encontrar os nomes verdadeiros… isso é o Saber?
— Sim, e é o poder mais forte em Entremundo.
— Como o Desvanecer foi feito? Quando o mundo se dividiu em
Entremundo e Mundo Natural?
Willow olha pela janela.
— Depois que o Véu foi feito, a paz reinou por algum tempo.
Eventualmente, disputas e brigas internas começaram a acontecer.
Elfos, vampirs, feéricos, dríades, sereianos e todas as pessoas com
magia silvestre, todos nós extraímos nosso poder do Além.
Sereianos, vampirs, feéricos, dríades e muito mais. Todas as
criaturas mágicas e mortais das histórias que me contaram quando
criança são reais. Eles sempre foram reais, apenas estavam do
outro lado do Desvanecer. Estremeço com a ideia.
— E os humanos? — pergunto. — Tínhamos magia silvestre e a
perdemos?
— Não, os humanos eram diferentes… Muito tempo depois que os
feéricos descenderam das dríades, os antigos espíritos da natureza
fizeram os humanos com a própria terra. Então, os primeiros
humanos extraíram sua magia da natureza.
Eu tento me imaginar dizendo aos meus amigos da Academia que
os primeiros humanos foram feitos por dríades e que um dia tivemos
magia. Imaginar suas expressões quase me faz rir.
— Então humanos e feéricos são mais parecidos? — pergunto.
— Não… Pense em feéricos como uma evolução que aconteceu
por tempo e acaso. Os humanos foram projetados, feitos pelas
dríades — explica Willow. — Pouco tempo depois, as dríades
morreram, e os primeiros humanos foram rapidamente banidos ao
ostracismo. Alguns os culparam pela morte das dríades, mas acho
que qualquer coisa diferente do habitual é muito facilmente usada
como desculpa para o ódio.
— Então as grandes guerras começaram e, mais uma vez, os
elfos se levantaram para fazer uma barreira, desta vez chamada de
Desvanecer, para separar o Mundo Natural e os humanos que
vieram dele dos vários povos e criaturas de Entremundo —
raciocino. Meu cérebro está operando apenas com metade da
capacidade. Tudo está exausto, incluindo a massa amolecida entre
minhas orelhas. Se não falar tudo em voz alta, posso não entender
o mundo em que me encontro agora.
— Exatamente, Entremundo é um meio-termo. Mas há apenas um
problema. Você consegue descobrir qual é? — Ele me olha e então
desvia o olhar para a janela; meus olhos seguem os seus.
— Se você cria um mundo entre o Mundo Natural e o Além…
então não é natural —percebo.
— Alguém precisava preencher a lacuna — ele encoraja.
A verdade está surgindo em mim mais brilhante do que o sol nos
campos além.
— A Rainha Humana.
— Isso mesmo! — Willow se inclina e dá um peteleco na ponta do
meu nariz. Em seguida, recua, assustado. — Sinto muito, Vossa
Majestade, eu não deveria…
Eu começo a rir e esfrego meu nariz levemente.
— Está tudo bem.
— Você é minha rainha, eu realmente não deveria…
— Willow, está tudo bem — repito com firmeza. — É bom ter
alguém me tratando gentilmente, como um amigo.
Ele parece subitamente desconfortável e se levanta. Quando volta
a falar, sua cabeça está baixa e suas mãos ocupadas limpando suas
ferramentas e separando seus suprimentos.
— De qualquer forma, sim, a Rainha Humana é a conexão de
Entremundo com o Mundo Natural.
— Todo o Entremundo é assim? Sempre primavera? — pergunto.
Ele assente.
— Por causa da Rainha Humana – você – sentada no trono de
sequoia, a natureza pode fluir para este mundo.
— Através de mim — sussurro e estremeço, pensando na magia
que percorreu meu corpo. A dor fantasma das raízes cavando em
mim volta à minha pele. A sensação da minha alma, da minha vida,
sendo arrancada dos meus ossos é muito quente. Sinto mil
necessidades gritando ao mesmo tempo e sou apenas uma mulher;
não poderia satisfazê-las todas.
Tudo o que quero é minha botica, meus pacientes. Quero um
mundo que possa entender e um cantinho para cuidar.
Pedi para cuidar das pessoas, sim… Mas nada me preparou para
isso. Nem meus pais, nem a Academia, nem os Guardiões. Minha
inépcia pode ser mais um prejuízo do que uma ajuda.
— Isso responde às suas perguntas? — Willow interrompe minha
festa de lamentações.
— Mais uma.
— Pois não?
— Por que a Rainha Humana tem magia? — pergunto. — Nenhum
outro humano tem.
— Certo, os humanos perderam a magia quando o Desvanecer foi
erguido.
Resisto em apontar como é injusto que o que mantém os humanos
a salvo da magia silvestre – o Desvanecer – também é o que
removeu sua magia natural.
— A rainha mantém sua magia porque ela se casa com o Rei
Elfo? — Paro. — Não, não pode ser isso… porque a magia vem
para a Rainha Humana antes que ela se case com o Rei.
— A magia da rainha é meio que um mistério. — Parece que ele já
se perguntou isso muitas vezes antes também. — A tradição
predominante é que a primeira Rainha Humana foi, em parte, uma
assistente na construção do Desvanecer. Desde que ela existiu, sua
magia pôde penetrar no Desvanecer, e essa magia é passada de
mulher para mulher na cidade de onde ela veio.
— Entendo. — Suspiro.
— Não é realmente uma resposta satisfatória, é? — Ele interpreta
mal a minha decepção.
— É magia. Estou descobrindo que a magia apenas vagamente
faz sentido. — Balanço a cabeça e murmuro: —Só queria que fosse
diferente, é tudo tão…
Então, continuo, mais forte:
— Você já era nascido quando a última rainha esteve aqui, certo?
— Sim, mas era uma criança.
Lembro-me do que Eldas disse. As histórias dos elfos que vivem
por centenas de anos são muito exageradas. Duvido que Willow
seja muito mais velho do que eu. Na verdade, não ficaria chocada
se ele fosse um ano ou dois mais novo.
— O que ela fez depois que se sentou no trono? — Como será o
resto da minha existência aqui?
— Ela…
— Vossa Alteza, realmente devo insistir! — Há uma comoção, e
uma voz estridente de mulher interrompe Willow. — Ela ainda está
muito fraca.
— Ela o quê? — insisto. Willow olha impotente para mim enquanto
tento obter a informação.
A porta se abre, e não recebo minha resposta. De pé,
emoldurados pela porta, vejo dois novos rostos.
Mais ao fundo está uma mulher com o mesmo tom de pele escura
de Willow, seu cabelo crespo e grisalho puxado em um coque
bagunçado.
Na frente dela está um jovem com o cabelo preto – com reflexos
roxos e azuis, como uma mancha de petróleo – de um tom que é
único demais para ser acaso. Mesmo que só tenha visto um
punhado de vezes, aquele cabelo está gravado na minha memória.
No entanto, o nariz desse homem é um pouco mais achatado, e os
olhos um pouco mais arredondados.
Mesmo com as diferenças, não há como negar minha suposição
inicial: Eldas tem um irmão.
nove

— Se não é a nova Rainha Humana, finalmente. — Ele sorri


largamente para mim e bate palmas. — Que honra finalmente
conhecê-la. Espero não estar interrompendo nada.
— Não, Príncipe Harrow. — Willow olha para os dedos dos pés,
parecendo instantaneamente desconfortável. A inquietação de
Willow faz com que eu sinta um formigamento correndo por meus
braços. A mera presença de Harrow já é algo errado.
— Ótimo. Vocês dois podem ir embora. — O príncipe acena para
Willow e a mulher atrás dele.
— Eu lhe disse, Alteza, ela precisa descansar. — A elfa idosa
coloca as mãos nos quadris enquanto fala com o príncipe como se
ele fosse uma criança. — Você pode se divertir mais tarde.
Divertir? Realmente não gosto do som disso. O formigamento se
transforma em garras rastejando sob minha pele.
— Posso me divertir sempre que me agrada. Esse é um dos
benefícios de ser um príncipe — diz com um sorriso lento abrindo
caminho em seus lábios. — Agora, xô. Vocês dois. Decreto essa
interação um assunto real.
— Eldas vai saber disso. — A mulher ainda não se moveu.
— Corra e diga ao meu irmão. — Harrow revira os olhos. — Você
sempre faz isso, Poppy.
— Alguém tem que mantê-lo sob controle. Coisa que sua mãe não
faz — ela murmura. Mas ao invés de sair, ela se aproxima de mim e
coloca a mão na minha testa. — Sou Poppy, queridinha. Venho de
uma longa linhagem de curandeiros reais. Então, se você precisar
de alguma coisa, mande chamar a mim ou a Willow.
Eu concordo com a cabeça. Algo em seus maneirismos me lembra
o doce e velho Sr. Abbot, e meu coração dói. Nunca consegui me
despedir dele ou de nenhum dos meus outros pacientes. O
pensamento de todas as pessoas que deixei – pessoas que
precisavam de mim – faz meus olhos arderem. Quase choro e
imploro para Poppy ficar, enquanto ela se afasta e sai. Willow a
segue, lançando um último olhar cauteloso.
— Então, você é a Rainha Humana. Estávamos esperando todo
esse tempo por… você? — Harrow me avalia no segundo em que
estamos sozinhos. Mesmo que o elixir de Willow esteja começando
a fazer efeito, nem me incomodo em tentar me endireitar. É
impossível ser intimidante enquanto se está deitado em uma cama.
— Aparentemente — digo, seca.
— Dado o seu show no trono de sequoias, acho óbvio. — Ele
caminha devagar.
— Que bom que pudemos esclarecer isso. Há mais alguma coisa
em que possa ajudá-lo? — Estreito meus olhos.
Seus olhos azuis-marinhos piscam em um tom glacial em resposta
– algo que passei a associar com o Saber. Ele acabou de tentar
encontrar meu nome verdadeiro, e estremeço ao pensar no que ele
poderia fazer com essa informação. Harrow faz uma careta e olha
para o anel de labradorita na minha mão. Fecho o punho. Não
esperava que os inimigos que Eldas mencionou estivessem dentro
do castelo.
— Meu irmão, detalhista como sempre, e perpetuamente bom em
arruinar minha diversão. — Harrow suspira. — Bom, levante-se.
— O quê?
— Eu disse levante-se.
— Você não pode…
— Não posso o quê? — Ele arqueia as sobrancelhas. — Mandar
em você? O que você vai fazer? Você sabe ao menos usar sua
magia?
Faço um bico.
— Você não é a única que usa uma coroa neste castelo. — Ele
bate na coroa de ferro em sua testa para dar ênfase.
— Não, eu não sou. Eldas também usa, e a coroa dele é muito
mais impressionante do que a sua.
Vejo uma expressão de raiva passar por seus olhos, tão rápido
que quase não percebo. Mas é rapidamente esfriada por uma risada
e substituída por uma expressão de diversão perversa.
— Que bom, você não é uma tímida molenga. Seria chato se
fosse. Agora levante-se; quero deixar alguns membros honrados de
sua corte darem uma espiada em sua nova rainha.
— Sua corte pode apodrecer.
Seus olhos se contraem.
— Levante-se, ou vou fazer você se levantar.
— Saia do meu quarto.
— Ou o quê?
Ele está certo. Não tenho ideia de como usar minha magia. E
mesmo que eu tivesse uma maneira de entrar em contato com
Eldas, duvido que ele ficasse do meu lado ou se importasse com
minha situação. Foi ele quem me fez sentar no trono sem aviso e
depois me abandonou. Estou sozinha aqui.
— Imaginei. — Seu sorriso se alarga. Ele se vira para meus
lençóis e seus olhos brilham novamente. Os lençóis me envolvem
como um casulo e sou erguida no ar. Luto contra o tecido me
comprimindo, mas está muito apertado. Meus braços estão presos;
minhas pernas estão esticadas.
A magia acesa nos olhos de Harrow desaparece quando ele me
coloca no chão, de pé, na frente do armário. Os lençóis caem
inofensivamente em um montinho em volta dos meus pés.
— Você vai se vestir sozinha? Ou terei que fazer suas roupas
vestirem você? Você quem sabe.
Com um último olhar para ele, tento entrar no meu armário com
toda a dignidade que meu corpo exausto permite.

***

Harrow chama este lugar de recanto de almoço – o que é um


nome impróprio, já que a sala aparentemente não tem nada a ver
com recantos nem com almoço.
É grande. Claro que é grande. Tão grandioso quanto tudo aqui.
Espelhos dourados revestem a parede à direita da entrada,
refletindo nas janelas com cortinas pesadas que dão para a cidade à
esquerda. Há cinco mesas espalhadas pela sala, quatro menores,
para quatro pessoas cada, e uma grande mesa para seis, onde três
pessoas já estão sentadas. Todos prontamente ignoram a torre de
bolos e salgadinhos no centro da mesa para me encarar.
— Não me deixem distrair vocês. — Aproximo-me da mesa e pego
uma das reluzentes tortas de fruta da camada superior. — Não sou
tão fascinante quanto esta comida.
— Discordamos totalmente. — Uma mulher com cabelos pretos
lisos até a cintura se inclina para frente, colocando os dois cotovelos
sobre a mesa.
— Talvez devêssemos acreditar em sua palavra. Ela certamente
tem autoridade sobre o quão interessante ela é. — Um homem de
pele marrom ajusta seus óculos grossos e toma um gole de chá da
delicada xícara à sua frente.
O terceiro não levanta os olhos do livro que está lendo.
Harrow se senta e põe os pés sobre a cadeira vazia.
— Vossa Majestade, conheça meus amigos. Jalic é o belo
espécime de homem de óculos.
Jalic revira os olhos.
— O tipo forte e silencioso é Sirro — continua Harrow.
O homem olha para mim através de seus longos cílios e ondas de
cabelo castanho. Ele deve finalmente decidir que sou menos
interessante do que seu livro, porque volta a ele com entusiasmo.
— E por último, mas certamente não menos importante, a
acrobata mais adorável de toda Lafaire, a primeira e única…
— Ariamorria — ela termina com um sorriso de dentes tortos. —
Mas me chame de Aria. Encantada em conhecê-la, Vossa
Majestade.
— O prazer é meu — minto, e enfio a torta na boca. Estava
esperando o sabor da cereja. Não esperava que também fosse
misturado com algum tipo de pimenta, tão quente que faz sair vapor
dos meus ouvidos. Tão rápido quanto entra na minha boca, a torta
sai. Cuspo no chão e abano minha língua.
— Ela parece um cachorro! — Aria compartilha uma risada com
Harrow.
— Acho que ela realmente é a verdadeira rainha, se a comida de
Entremundo não tem gosto de cinza. — Jalic tenta – e não
consegue – esconder sua diversão atrás da xícara de chá. Até Sirro
ri.
Corro para me servir de uma xícara de chá. Está quase fervendo,
mas estou pronta para escaldar minhas papilas gustativas se isso
diminuir a queimação que as especiarias causaram. A sala gira e
me encosto em uma das cadeiras.
— Acho que você colocou demais — Aria diz para Harrow. — Ela
parece que vai desmaiar.
— Se ela desmaiar de novo, tenho certeza que meu irmão vai
erguê-la do chão como fez da última vez. Talvez devêssemos a
chamá-la de rainha desmaiada. Poderíamos fazer com que metade
da cidade adotasse o título antes da coroação, se tentássemos.
Mais risadas. Agarro a cadeira com os nós dos dedos brancos e
luto para encontrar minha voz.
— Por quê? — Olho para Harrow e depois desvio o olhar para o
resto deles. Nenhum tem a decência de fingir culpa.
— Oh, não faça essa cara de assassina. — Harrow dá tapinhas na
minha mão. — É só um pequeno teste, só isso. Para termos certeza
de que você é a rainha verdadeira.
— Achei que me sentar no trono de sequoia fosse o suficiente. —
Aponto para as janelas, retendo um dia de primavera. — Aquilo não
foi o suficiente?
— Você nos trouxe a primavera após anos de inverno. O que você
quer, uma medalha? — Ele arqueia as sobrancelhas. — Esse é o
seu trabalho, humana.
O trabalho da Rainha Humana é existir. Essas palavras se
repetem o tempo todo, e a cada vez se tornam mais verdadeiras. A
princípio, pensei que isso significava que a Rainha Humana era
ignorada e deixada de lado, como um peão para manter o tratado de
paz. Então, depois de falar com Willow, achei que a Rainha Humana
tinha que existir para “recarregar” a natureza de Entremundo. Achei,
tolamente, que isso viria com algum respeito ou mesmo reverência.
Não.
Eles não se importam. Sou apenas uma ferramenta para fazer
suas flores desabrocharem e manter seus campos férteis. Sou um
saco ambulante de estrume aos olhos deles.
— Obrigada pelo teste. Estou feliz em poder sanar suas dúvidas.
— Afasto-me da cadeira. Minha boca ainda está em chamas e
minha cabeça está começando a latejar. A dor parece que vai partir
meu crânio, e não sei se é por causa da febre ou da comida
extremamente picante. — Já vou indo. — Começo a sair.
Harrow segura meu pulso.
— Não, fique. Ainda não terminamos com você.
— É raro as pessoas terem uma prévia da rainha antes de sua
coroação – uma verdadeira honra! — Aria diz. — Queremos
conhecê-la melhor.
— Querem me conhecer me torturando?
— Pare de ser tão dramática. — Ela estreita os olhos. —
Realmente, se você não consegue lidar com um pouco de diversão
sombria, você não sobreviverá aqui em Entremundo.
— Apenas espere até que ela veja sua primeira “briga de urso”.
Aposto que vai desmaiar. Vamos encomendar várias como presente
de coroação? — Jalic apoia o queixo na palma da mão e gira a
colher dentro do chá. Nem quero saber o que é uma “briga de urso”.
— Estou indo — digo mais uma vez e arranco meu pulso do aperto
de Harrow.
— Duvido que ela sobreviva à coroação. — Aria ri, e o som parece
cortar minha cabeça.
Eu me recuso a deixá-los me provocar. Vou ser adulta e sair.
Harrow tem outros planos. As portas magicamente se fecham
diante de mim.
— Fique. Devemos informá-la sobre os detalhes de sua coroação
e ritos de primavera, e antes que você perceba, será o solstício de
verão. Você não quer se envergonhar por não conhecer os
fundamentos dos costumes élficos, não é? Especialmente depois de
ter feito meu irmão de bobo por se esconder por um ano.
— Não fiz ninguém de bobo. — Fico de costas para eles e cerro os
punhos.
— Ah, fez sim. Não que eu tenha me importado — continua
Harrow. — Foi bom de assistir. Eldas raramente está fora de
controle.
— Deixe-me ir embora.
— Acho que não.
Eu me viro, corro de volta, e bato na mesa com tanta força que os
pratos fazem barulho. Um dos vasos cheios de rosas recém-
colhidas quase tomba.
— Oh, pare com a cara assustadora. — Aria acena com a mão no
ar como se eu fosse um inseto irritante.
— Se você não me deixar ir…
— Deixe-me reiterar o que disse antes: — Harrow se inclina para a
frente. — o que você vai fazer?
Meu braço se mexe antes que seus olhos possam piscar. Pego
uma das rosas do vaso. Minha intenção era jogar na cara dele –
jogar todo o emaranhado de espinhos e depois bater na cabeça dele
com o vaso.
Mas os espinhos cortam minha própria carne primeiro. O sangue
pinga na toalha de mesa branca e sinto um puxão na palma da
minha mão. É sutil, como um sussurro, um amigo invisível que está
pronto para obedecer às minhas ordens.
Magia. Percebo um segundo antes que seja tarde demais. Essa
sensação é magia. As rosas na mesa estão de repente se
contorcendo como serpentes. Eles explodem para fora do vaso e
Harrow me larga, em choque. Aria praticamente salta da cadeira
para evitar a água e as trepadeiras. O livro de Sirro cai no chão.
Dou um passo para trás, a rosa escorregando dos meus dedos. As
rosas nas mesas já estão vivas. Crescem em tamanho até que os
botões fiquem do tamanho de pires, e os espinhos sejam pequenos
punhais. As trepadeiras serpenteiam por toda a sala, procurando
cortar profundamente essas pessoas cruéis.
— O que… — o príncipe pragueja.
— Abra, Harrow! — Aria implora. As portas se abrem.
— Hora de ir! — Jalic foge da sala antes que as trepadeiras
possam fechar sua rota de fuga. Sirro vai logo atrás.
— Harrow, vamos deixar a rainha em paz. — Aria o puxa.
— Como se atreve? — ele sussurra enquanto é arrastado para a
porta.
— Como você se atreve? — repito de volta, fervilhando de raiva.
— Saia e nunca mais me incomode.
Mesmo com eles recuando, minha raiva alimenta ainda mais as
trepadeiras rebeldes; uma rede espinhosa se espalha pela porta e
rasteja sobre as paredes e o teto. Rosas do tamanho de guarda-
chuvas agora florescem do teto como candelabros.
Caio de joelhos, ofegante. Tento liberar a magia, mas ela tem tanto
poder sobre mim quanto sobre as trepadeiras.
As janelas estão completamente cobertas e fico na escuridão.
Ouço a folhagem senciente esmagando os móveis e quebrando os
espelhos de vidro. O deslizar continua, os galhos aproximando-se
de mim como serpentes. As trepadeiras deslizam sobre minhas
pernas, deixando cortes profundos em seu rastro. Nem grito. Estou
cansada demais para me importar.
Morta por espinhos de rosas. Não era assim que esperava ir.
Fecho os olhos e suspiro.
Não.
Não… Se morrer agora, nunca poderei voltar para Capton. Se
morrer, outra jovem será escolhida, porque o poder passa para a
frente. Ela pode ser como eu e ter objetivos e sonhos próprios. Ela
será tirada de pessoas que precisam dela. Este ciclo miserável
continuará.
Se vivesse, poderia ter uma chance de acabar com isso, não
poderia? O pensamento maroto é como um clarão na escuridão. Um
trovão silencioso, que quase soa como as vozes dos meus pais
murmurando tarde da noite sobre a injustiça de todo esse sistema,
segue o pensamento. Meus olhos se abrem novamente.
Talvez meu pai estivesse certo. Talvez haja uma saída para esta
prisão que foi imposta por séculos às mulheres de Capton. Se os
elfos podem separar mundos, não podemos encontrar uma maneira
de vincular o Mundo Natural a Entremundo? Alguém já tentou?
Mesmo se falhar, não posso voltar para casa se estiver morta.
Capton ainda precisa de mim. De alguma forma, ainda encontrarei
uma maneira de ajudá-los. Jurei aos meus amigos e parentes que o
faria.
— Basta — tento comandar as trepadeiras. — Já foi o suficiente.
Eu tento dominar minha magia e controlá-la, mas o poder é uma
fera espinhosa, tanto quanto as plantas que se alimentam dele.
Empurro as trepadeiras das minhas pernas, soltando um grito de
dor, e tento ficar de pé.
Se minha magia os fez, minha magia pode controlá-los. Tenho que
acreditar que isso é verdade. Consegui sair do trono de sequoia de
alguma forma, não consegui? E o mundo me segurava com garras
muito mais profundas naquele momento.
Este não é o trono que está mergulhado em milhares de anos de
magia. São apenas algumas flores. Elas só têm o poder que dei a
elas.
Concentre-se, Luella.
Em vez de recuar, estendo minha vontade para as trepadeiras.
Lentamente, elas começam a se contrair.
É isto. Não sei se estou encorajando a mim mesma ou às
trepadeiras. Diminuam, deixem-me ver o dia. A luz começa a entrar
pelas janelas à medida que as plantas recuam, pouco a pouco.
De repente, eles estremecem. Assisto à magia murchar, roubada
do meu alcance. A vida dentro das trepadeiras desaparece. Elas
murcham, ficam quebradiças, pretas, e depois se transformam num
pó que desaparece como fumaça.
Em seu encalço, a sala é uma ruína que cheira a rosas, e de pé na
porta está um Eldas carrancudo.
dez

— Não posso deixar você sozinha nem por um dia? — ele


repreende.
— Isso não foi minha culpa. — Oscilo, exausta. Meu rosto queima,
mas não sei se é febre ou vergonha.
— Me poupe.
— Não foi!
— Quem mais aqui poderia ter feito isso? — Eldas se aproxima de
mim. — Alguma outra Rainha Humana com o poder de manipular e
controlar vida? — ele continua falando antes que eu tenha a chance
de responder. — Porque durante toda a minha vida me disseram
que eu estava esperando por uma única mulher. Mas se passei
meus anos isolado e sozinho por nada, então, por favor, me avise.
Adoraria saber quais opções eu tenho.
Isolado e sozinho? As palavras me marcam. Mas sei que ele
apenas reviraria os olhos – na melhor das hipóteses – se tentasse
perguntar. Uma pergunta para fazer a Willow, talvez.
Respiro fundo e digo o mais calmamente possível:
— Tudo isso foi culpa de Harrow.
Seu rosto demonstra surpresa seguida de raiva. Ele rapidamente
afasta as emoções – e volta para aquela máscara fria e indiferente
que o vi usar com mais frequência.
— Harrow foi quem me arrancou da minha cama – literalmente.
Não tinha interesse algum em estar aqui. — Eldas abre a boca para
falar, mas continuo; meu sangue está começando a ferver com a
mera lembrança de Harrow e seus amigos. Aponto meu dedo para
ele, quase tocando seu nariz. — E sabe o que mais? Levei na
brincadeira as provocações deles. Posso lidar com eles rindo às
minhas custas. Posso até lidar com a pegadinha que fizeram comigo
Mas quando ele tentou me segurar aqui contra minha vontade, foi
demais para mim. — Estou tão cansada de ser controlada por
homens como ele, e Luke e você, consegui segurar na ponta da
língua.
Seus olhos turvam de um jeito que, ouso dizer, parecem querer
me… proteger? Certamente devo estar imaginando.
— O que ele fez?
— Me trancou aqui usando sua magia silvestre.
Eldas olha para as janelas. Parte do vidro está quebrado e um
vento revigorante varre a sala. Sua cara feia piora.
— Vou falar com meu irmão. Enquanto isso, postarei Rinni no seu
quarto… pelo menos até que Harrow se canse de você. Ela será
mais efetiva do que Poppy ou Willow para esse fim.
— Poppy tentou dizer a ele que não — digo, não querendo que a
gentil senhora se meta em problemas por algo que certamente não
foi sua culpa.
— Eu sei. Poppy foi me buscar, e vim imediatamente. Acredite ou
não, conheço meu irmão e suas travessuras. — A cara feia piora
ainda mais.
— Então você deveria controlá-lo melhor.
— Eu deveria controlar melhor muitas coisas em meu castelo, mas
elas parecem se deliciar em testar minha paciência. — Ele olha de
volta para mim. — Começando com sua magia. — Eldas me rodeia,
como se eu fosse uma escultura a ser inspecionada em busca de
defeitos. Com base no que sei dele até agora, suspeito que
encontrará muitos. — A magia não é tão difícil. Esperava que você
tivesse um pouco de controle.
— É mesmo? Porque eu não esperava ter magia nenhuma. —
Encontro seus olhos novamente.
— O trono estava com fome e você não conseguiu impedir que ele
se alimentasse de você. Sua magia é fraca e isso quase a matou.
Essas trepadeiras teriam feito o mesmo para se alimentar do seu
poder. — Seus olhos se voltam para minha saia rasgada e minhas
pernas ainda sangrando. — Luella, você é um farol de vida em um
mundo que está mais próximo da terra dos mortos. Entremundo se
aproxima cada vez mais do Véu e do Além, e se distancia do Mundo
Natural. — Lembro-me do que Willow disse sobre como os elfos
extraíram seu poder da terra dos mortos. — Isso faz de você um
alvo fácil aqui. Todos desejamos o que não podemos ter, até mesmo
a própria magia. E você é a personificação de tudo o que foi tirado
deste mundo.
— Teria apreciado esta explicação mais cedo — murmuro.
— Normalmente não é trabalho do rei explicar.
— Nada na nossa situação é normal! — Estico meus braços e
gesticulo para a sala ao nosso redor. O movimento me desequilibra
e eu balanço. Fazer qualquer coisa além de ficar em pé é demais.
Dou um passo para trás; meus joelhos se dobram e tento descobrir
como vou me deitar no chão preservando os restos de minha
dignidade.
Eldas está ao meu lado em um fôlego. Um braço envolve minhas
costas. Ele se inclina para frente e enfia o outro debaixo dos meus
joelhos. Sinto um oco no estômago quando sou erguida.
Ele é mais forte do que parece.
Eu olho para o homem. Seu olhar encontra o meu, e nenhum de
nós diz nada. Minha face fica vermelha e não posso culpar
inteiramente a febre… não quando os fortes músculos de seus
ombros e pescoço estão sob minhas mãos. Será que ele sente a
mesma sensação de formigamento quando nos tocamos? Nós dois
ficamos em silêncio; fui capturada por suas mãos, e ele parece
capturado pelo meu olhar.
— Eldas — digo suavemente. — Preciso da ajuda de alguém aqui.
Não tenho muitas opções. Não importa se é o seu trabalho ou não…
ensine-me, por favor?
Seus olhos nublam com a mera ideia de me ajudar.
— Tenho deveres que não podem ser ignorados.
Eu tento me mexer desconfortavelmente. Isso só me faz chegar
mais perto dele. A sensação de formigamento toma conta de mim e
estou tonta, mas a tontura não é desagradável. Tento me
concentrar.
— Eu sei sobre deveres.
Ele me olha com ceticismo.
— Eu sei —insisto. — Posso não ter tido os mesmos que você tem
como rei. Mas tinha meus próprios deveres em casa.
Ele não acredita em mim; posso perceber. Não estou chegando a
lugar nenhum tentando argumentar com ele.
Vamos tentar outra abordagem, Luella.
— Se estamos falando de dever… um dos seus deveres como rei
não seria ajudar a Rainha Humana a fazer a transição para o seu
papel?
Ele suspira pesadamente e ajeita o modo com está me segurando.
Seus músculos fortes contraem debaixo de mim. Nunca fui
carregada assim antes. Nas poucas vezes em que estive nos braços
de Luke, eles me seguravam mais como uma gaiola. Não percebi
isso na época, mas posso ver agora. O aperto de Eldas é
surpreendentemente firme e cauteloso, como se pudesse escapar
de seu alcance a qualquer momento que quisesse, mas enquanto
ele me segura, não tenho nada a temer. Estou aqui apenas
enquanto nós dois quisermos que eu esteja.
— Por favor. — Não consigo olhar nos seus olhos quando imploro.
Odeio estar tão desamparada, mas não é a primeira vez que tenho
que contar com a bondade dos outros para encontrar instrução, e
certamente não será a última. — Preciso de algo para fazer aqui,
algum tipo de propósito.
— Muito bem — ele diz tão gentilmente que me pergunto se
imaginei.
— De verdade? — inquiro com ceticismo. Não esperava conseguir.
Acho que deveria estar animada, mas a apreensão estrangula a
emoção.
— Por enquanto, vamos colocá-la de volta na cama. Você não vai
aprender nada no estado em que está — soa quase com ternura.
Sinto sua voz tanto quanto a ouço. O som ressoa em seu peito e
reverbera pelo meu tórax. O calor se espalha em mim, descendo da
minha cabeça e acumulando-se na parte inferior do meu abdome.
Controle-se, Luella. Ele pode ser o homem mais atraente que já vi.
Ele também pode ser tecnicamente meu marido… mas ele se
ressente desse casamento tanto quanto eu.
Tudo o que ele quer é minha existência. Quanto mais cedo eu
entender isso, melhor.
Franzo os lábios e permito que o rubor esfrie enquanto Eldas me
carrega de volta para meus aposentos. Poppy está lá esperando por
nós. Ela emite sons de desaprovação enquanto Eldas fala por mim,
dando o resumo do que aconteceu.
— Seu irmão está pior a cada dia — diz a senhorinha de modo
sombrio. — Temo por quaisquer terras sobre as quais ele tenha
poder.
— Ele encontrará sua disciplina quando tiver responsabilidades
reais — diz Eldas friamente. Ele me deita na cama, suas mãos
demorando em mim por apenas um segundo a mais do que acho
que é necessário, e então se afasta apressadamente. Os toques
delicados eram só minha imaginação. Ele está claramente muito
feliz por estar livre do fardo que sou – um fato comprovado quando
se volta para Poppy.
— Cure-a. Ninguém deve entrar ou sair desta sala além de você e
Willow. Nem mesmo ela. — Eldas olha para mim.
— Vamos começar a trabalhar em dois dias. Você deve aprender a
controlar sua magia se quiser sobreviver aqui, e se devo ser seu
professor, que assim seja. Certifique-se de que é forte o suficiente
para acompanhar minha tutela.
Ele caminha em direção à porta. Eu me ergo. Poppy já está
trabalhando nos cortes nas minhas pernas.
— O que acontece se eu não conseguir controlar minha magia? —
Tenho um pouco de medo de perguntar, mas preciso saber.
Eldas olha entre mim e a manga de sua jaqueta, inspecionando
onde sujei de sangue. Ele faz uma careta. Mal posso vê-lo lamentar
as manchas em seu rico cetim azul mais do que lamentou meus
ferimentos.
— Você vai — diz, finalmente. Espero que volte atrás, ou faça
algum outro comentário cortante, mas não o faz. Assisto enquanto o
rei sai em silêncio e fico imaginando se esse é o melhor incentivo
que ele pode proferir. E, se for… então talvez haja alguma
esperança para mim, afinal.
onze

Uma batida firme na porta anuncia Rinni.


— Como está hoje, Vossa Majestade?
— Estou bem.
Não estou.
Olho pela janela. Estou usando um vestido de seda verde-
esmeralda. As mangas compridas afunilam em pontas nas costas
das minhas mãos. Ao contrário do último vestido que usei, este não
tem corpete e a saia é simples, dando-me mais mobilidade.
— Muito bem, vamos então — diz Rinni pensativa. Tento imaginar
o que está vendo em mim e o que ouviu sobre o incidente de ontem
mas não pergunto. Sigo em silêncio, guardando os últimos
resquícios de esperança de que hoje seja um dia produtivo. Hoje
Eldas vai começar a me ajudar a aprender minha magia e, com esse
conhecimento, posso começar a encontrar meu lugar aqui.
Fazemos o mesmo caminho para a sala do trono. Assim como no
outro dia, Rinni escuta através da porta, presumivelmente para
saber se Eldas está falando com alguém.
— Com quem Eldas costuma conversar? — pergunto baixinho,
antes que ela possa abrir.
— Reis e rainhas dos outros povos de Entremundo, senhores e
damas élficos de Lafaire que supervisionam os vassalos dele, e
cidadãos que vivem no vale aqui em Quinnar.
— Quinnar é a cidade em que estamos agora? E Lafaire é o reino
dos elfos?
— Sim e sim — ela responde minha pergunta sem me fazer sentir
mal por ainda não saber a informação. Na verdade, ela me faz sentir
ainda melhor ao continuar. Espero que seja um bom sinal para o dia
que está por vir. — O Reino dos Elfos, Lafaire, está situado na ponta
do Desvanecer, no extremo sul de Entremundo. A norte-noroeste de
nós estão os clãs feéricos, espalhados pelos campos e florestas.
Costumava ser um único reino feérico, o Reino de Aviness, antes de
lutas internas os separarem dois mil anos atrás. Eles ainda brigam
por território entre si, mas, hoje em dia, raramente disputam
conosco. Os vampir vivem nas montanhas orientais, e os licanos ao
norte, nas florestas verdejantes. Sereianos vivem nas águas do
extremo norte, para além dos pântanos, ao longo da borda do Véu.
Engulo em seco, ainda aceitando a ideia de que há muito, muito
mais do que apenas os elfos do outro lado do Desvanecer.
Rinni continua:
— Lembre-se, todos esses povos aceitaram os elfos – a linhagem
da qual Eldas é o herdeiro – como soberanos quando o Véu foi
criado. Isso significa que, por extensão, eles devem ser submissos a
você
— Vou tentar me lembrar disso sempre que estiver cara a cara
com um vampir de presas compridas — murmuro.
— Improvável… Eles não emergem de suas fortalezas nas
montanhas há séculos. Nem um pio deles. — Rinni vai até a porta.
Impeço-a novamente, agarrando sua outra mão.
— Mais uma pergunta.
— O quê? — Agora ela parece irritada.
— Os vampir, eles realmente… realmente se alimentam de
humanos para viver? — Como diziam as velhas histórias.
— Se realmente se alimentassem de humanos, como ainda
estariam vivos, já que os humanos estão do outro lado do
Desvanecer? — Rinni me dirige um olhar fulminante.
— Bem, você mesma disse que não são vistos há séculos.
— Não significa que estão todos mortos. Ouvimos rumores de
tempos em tempos sobre suas atividades.
— Hm, faz sentido. — Embora meio que desejasse que eles
estivessem extintos. — Mas e outras criaturas, animais, até? O que
estou perguntando é, eles precisam beber sangue para viver?
— Não seja boba. — Ela balança a cabeça e eu respiro de alívio.
— Vampir não precisam de sangue para viver. Eles comem comida
normal, como o resto de nós. Precisam de sangue para praticar
magia. Nunca dê seu sangue a eles, ou podem roubar seu rosto. —
Sinto um nó no estômago. Rinni abre a porta antes que eu possa
perguntar mais alguma coisa.
— Vossa Majestade, trouxe a rainha.
— Você está atrasada. — Eldas se levanta do seu trono no
momento em que entro; seus olhos disparam de mim para Rinni.
— É minha culpa; eu tinha algumas perguntas para Rinni e a
segurei — digo rapidamente. Rinni me dá um olhar apreciativo.
Devolvo um pequeno aceno de cabeça. Não quero que sua
bondade seja punida.
— É verdade? — Ele olha para Rinni. Ela assente. Eldas franze os
lábios. — Que não aconteça novamente. Agora, vá. — Rinni sai, e o
comportamento brusco do rei se volta para mim. — E?
— E o quê?
— Você está atrasada. Não vai se desculpar?
Eu pisco várias vezes. Já se foi o Eldas protetor e levemente
atencioso que vi ontem. Mas, em vez de brigar com ele, eu me
forço:
— Desculpe.
— Já que estamos trabalhando em sua magia, também devemos
trabalhar suas maneiras. Temos pouco tempo antes de sua
coroação e você deve ser uma rainha adequada até lá. Seus súditos
esperaram um ano longo e amargo para conhecê-la. Honre-os
sendo o que eles esperam de você e muito mais. — A maneira
como ele diz isso me faz pensar que o amargo aqui é ele. — Então,
“sinto muito, Vossa Majestade” seria mais correto.
— Mas você é meu marido. — Mesmo que ele não tenha
realmente agido assim e isso seja uma farsa de casamento, vou
pelo menos tentar usar o fato a meu favor. — Isso é realmente
necessário entre nós?
— Sou seu rei antes de ser seu marido. — Os lábios de Eldas se
curvam em uma expressão de desaprovação. — Então, sim, é muito
necessário.
— Tudo bem, Vossa Majestade — me forço a dizer. Já vivi de
acordo com as expectativas das pessoas antes. Posso fazer isso
agora. Só queria que essas expectativas fossem algo mais do que
vestidos bonitos e maneiras extravagantes. Algo mais… útil. — No
entanto, permito que você me chame de Luella.
— Vou chamá-la como me agradar.
— Muito bem. Devemos nos concentrar no assunto em questão,
Vossa Majestade? — A cada vez que digo essas duas palavras,
pronuncio-as mais lentamente. Eldas claramente capta o tom
levemente sarcástico. Seus olhos se estreitam, mas ele não aborda
o assunto. Uma pequena vitória para mim, eu acho. Se quer ser
difícil, então é isso que vai receber em retribuição.
Se quiser ser gentil e atencioso, como os vislumbres que tive
ontem… então talvez receba gentileza e atenção também. Mas não
acho que isso vá acontecer.
— Não há melhor modo de aprender a se controlar do que sentar-
se no trono. Quero que você o faça novamente.
A sugestão me faz recuar fisicamente. Cada parte de mim se
revolta. Tento desesperadamente manter a compostura quando
digo:
— Na verdade, tenho outra ideia.
— Ah? Por favor, diga. Mal posso esperar para ouvir — ele fala
lentamente
— Por acaso não seria possível no começo eu usar… acho que
você tinha dito o nome… obsidiana preta? Suprimiu minha magia
por anos. — Já posso adivinhar que ele vai dizer que não vai
funcionar.
— A obsidiana preta suprime sua magia, sim, para seu uso. Não
elimina ou altera a profundidade do seu poder. Se muito, usar
obsidiana preta só a tornará mais vulnerável a ataques, porque você
não será capaz de se defender efetivamente.
— Mas…
— Além disso — ele interrompe e se aproxima de mim. O homem
não pode nem andar sem ser terrivelmente bonito e intimidador ao
mesmo tempo: a forma como a luz brinca nas bordas afiadas de seu
rosto é irritantemente agradável. — Em algum momento, você será
obrigada a usar magia. O que acontece se você não souber
controlar seus poderes?
— Eu…
— E, a verdadeira questão é… por que você quer se livrar do seu
poder? — Agora ele para. Seus olhos brilham, julgando. — Você é a
Rainha Humana. Você é a personificação da vida e da própria
natureza, e você jogaria tudo isso fora. Você cospe na cara de todas
as mulheres poderosas que vieram antes de você. Você envergonha
seus nomes e memórias.
— Você está indo longe demais — corto. Só porque tive esperança
de que hoje as coisas seriam pacíficas…
— É mesmo? — Ele balança a cabeça e o olhar de julgamento se
transforma injustamente em desgosto. — Há pessoas que precisam
da sua magia. E você viraria as costas para eles. Por quê? Porque é
muito difícil para você? Você prefere voltar para a sua existência
patética naquela cidade abandonada pelos deuses? Você fala de
dever, mas duvido que alguma vez tenha se importado com alguém
além de você.
Dou um tapa em seu rosto, e o som ecoa pela sala. Fiz um
juramento de ajudar os outros, não os ferir. Mas a realeza de
Entremundo está tornando impossível manter esse juramento. Estou
surpresa com o quanto minha mão dói – talvez ele realmente seja
feito de mármore esculpido. Suas maçãs do rosto são tão afiadas
que poderiam ter tirado sangue da minha mão.
O rosto de Eldas mal se move. Mesmo que eu tenha batido nele,
continua a olhar para mim. Mas sua expressão agora é uma lousa
em branco.
Sua face pálida nem vermelha está.
Vim com a melhor das intenções. Estou disposta a aprender. E
ainda assim ele joga na minha cara.
— Não me insulte de novo — digo com firmeza. — Você não sabe
nada sobre mim. Não sabe o que fiz, pelo que lutei, o que mereci.
Passei anos estudando, aprendendo e praticando à custa de querer
qualquer coisa para mim. Ganhei o respeito da minha comunidade e
dos pacientes, o suficiente para que eles me dessem seu dinheiro
suado para que eu obtivesse uma educação que me permitisse
servi-los melhor.
“Minha vida pode não parecer muito para alguém que veio de um
grande castelo. Mas quer saber, Vossa Majestade? — zombo. —
Trabalhei pelo que tinha, e trabalhei todos os dias para mantê-los –
para manter a estima, o respeito e a confiança da minha
comunidade. Trabalhei para isso porque foi o que escolhi para mim.
“Você não sabe nada sobre mim, e ainda me insulta a todo
momento. Tudo bem, dois podem jogar esse jogo, Vossa Majestade.
O que você fez para merecer este castelo? Nasceu? O que você faz
pela sua comunidade? Respira? Perdoe-me por não ficar
impressionada com seus grandes sacrifícios.”
Um silêncio sufocante se instala ao nosso redor. Ele continua a
olhar para mim com aquela expressão cautelosa, mas posso ver
tubarões furiosos nadando nas piscinas frias de seus olhos. Daria
um passo para longe dele se meu corpo se movesse; sua raiva
radiante me prende ao chão.
— Bata-me de novo e será a última coisa que você fará em
liberdade — ele sussurra, mortalmente quieto.
— Você não pode me controlar.
— Tem certeza?
— Tente!
Seus olhos brilham azuis. A palavra – o nome – Saraphina ecoa
em minha mente. Meu sangue gela. Minha pele se arrepia e meus
braços ficam rígidos ao lado do meu corpo.
Eldas mexe um dedo, apontando o trono de sequoia. Com
movimentos curtos e forçados, ando na direção do trono.
Não! Quero gritar, mas minha boca está costurada com uma linha
invisível. O nome Saraphina deve ser meu nome verdadeiro, e ele o
usa contra mim mais cruelmente do que qualquer lâmina.
Eu tento andar para trás, sem sucesso. Luto contra as mãos
invisíveis que me empurram e me puxam. Não adianta. Estou
indefesa.
Se pudesse roubar meu nome da sua mente. Se pudesse tomá-lo
de volta… Fui metaforicamente a marionete de Luke por anos, e
agora sou literalmente a marionete de Eldas.
Seja diferente. As palavras ressoam na minha mente. Outra coisa,
qualquer coisa!
E de uma vez, estou livre. Desabo no chão, com falta de ar. Olho
para a expressão atordoada de Eldas. Em seus olhos há um brilho
que, ouso dizer, parece admiração.
— Você… você mudou seu nome verdadeiro. Você já administrou
o Ser. — Um sorriso desliza em seus lábios. — Então ainda há
esperança para você, quando pressionada. Talvez seja ainda mais
forte do que pensava — acrescenta, esperançoso.
O Ser? Sei que o Saber é quando um elfo encontra um nome
verdadeiro pela visão mágica. O que isso faz do “Ser”? Nem me
incomodo em pedir esclarecimentos quando sei que não vou obter
nenhum – nem quero descobrir por ele. Essa foi a gota d’água.
Eu me levanto atordoada.
— Acabamos por hoje.
— Volte — ele demanda. — Acabamos quando disser que
acabamos.
Começo a caminhar em direção à porta. Seus passos ecoam pelo
corredor. Quem é o cavalo agora?
— Toque-me para realizar o Saber novamente – como fez na
praça da cidade em Capton para contornar a proteção da labradorita
– e nunca vou nem tentar perdoá-lo por isso! — Giro e grito na sua
cara. Diferente da ocasião anterior com Harrow, agora acho que
poderia ser forte o suficiente para cumprir minhas ameaças. — Vim
disposta a aprender, disposta a fazer um esforço, e o que você
acabou de fazer destruiu até a última gota de esperança de um
relacionamento produtivo entre nós.
Ele se assusta, parece perder o equilíbrio, como se ninguém
nunca tivesse falado com ele dessa maneira antes. Pergunto-me se
esta é a primeira vez que ele sofre consequências por suas ações.
— Primeiro você me bate, agora você… — Ele não consegue
formar sentenças coerentes, e estou profundamente satisfeita com o
fato. — Tenho o direito de saber seu nome verdadeiro.
— Você não tem direito a nada meu que não seja dado livremente.
— Sou seu rei. — Eldas dá um passo à frente, e eu me inclino
para trás. Mas ele ainda está muito perto. Sua altura é opressora.
Ele me intimida.
Planto meus pés no chão e me recuso a deixá-lo me fazer sentir
pequena. Serei o botão que brota da rocha cinzenta deste lugar.
Serei a flor que desabrocha apesar de estar à sua sombra.
— Você é um príncipe mal-humorado, glorificado com uma coroa
de ferro espinhosa — retruco. — Você é egoísta e egocêntrico. Você
não tem ideia de como falar com as pessoas ou se relacionar com
elas. Qualquer compaixão e esforço que exerce para conhecer
alguém nada mais é do que um ardil para obter o que deseja
daqueles ao seu redor.
— Estou acima da compaixão e dos relacionamentos — ele
fervilha. — Não tenho motivos para me rebaixar às emoções da ralé.
Ando acima deles.
— Se você está sempre andando acima das pessoas, corre o risco
de pisar nelas, Eldas. E é assim que se faz inimigos.
— Não vou ser repreendido por uma humana que entrou no meu
mundo dias atrás. E certamente não por alguém que nunca
governou um dia em sua vida.
— Bom — digo. — Porque não tenho interesse em dar sermões
para um homem que não quer ouvir. — Giro nos calcanhares e vou
em direção à porta novamente. Felizmente, ele não me segue.
— Você vai me respeitar! — Eldas grita.
— Seja digno de respeito primeiro! — Bato a porta atrás de mim.
doze

Percebo instantaneamente que fui pelo caminho errado. Há seis


portas na sala do trono, três de cada lado. Costumo entrar pela
porta da extrema esquerda, a mais distante dos tronos. Mas ele me
deixou com tanta raiva que me virei e saí pelo lado errado.
Passei pela porta do meio ou da extrema direita? Não tenho
certeza.
Estou cara a cara com um corredor longo e silencioso. As portas
estão à esquerda, as janelas à direita. Cada porta à minha esquerda
tem um cadeado pesado. No final do corredor há uma escada.
Subo as escadas? Ou volto? Isso não é realmente uma pergunta.
Certamente não vou voltar e correr o risco de encontrá-lo. Para
cima, então.
No andar seguinte, há um patamar com um único sofá e uma
pequena mesa em frente a uma tapeçaria luxuosa: provavelmente
uma sala de espera para aqueles que aguardam uma audiência com
o rei. Estou prestes a seguir em frente quando um brilho chama
minha atenção.
Paro, balançando para a frente e para trás. Algo está brilhando na
franja inferior da tapeçaria. Atravesso rapidamente, abaixo e me
aproximo para investigar. A tapeçaria cede à minha mão. Puxo o
tecido pesado de lado, o que revela uma abertura, e rastejo por ela.
O brilho que vi foi a luz do sol entrando por uma janela fininha no
final deste corredor incrivelmente estreito. Tenho que andar de lado
enquanto as paredes tentam me esmagar. Mas, ao fazê-lo, noto que
há pequenas perfurações na pedra. É como se o pedreiro não
tivesse preenchido completamente todas as lacunas com
argamassa.
Através desses buracos, tenho vislumbres da sala do trono abaixo.
Vozes ecoam até mim. Eldas anda de um lado para o outro diante
dos tronos, as mãos agarradas com tanta força na parte inferior das
costas que estou surpreso que seus ossos não estejam quebrando.
Rinni está lá também. Ela está relaxada diante do rei furioso; isso
claramente não é novidade para ela.
— Como posso fazer isso, Rinni?
— Se alguém pode, é você, Eldas.
— Ela não me escuta. Não consigo trabalhar com ela. Esperei por
uma rainha que me foi prometida e não a consegui. — Eldas para,
deslizando o cabelo comprido sobre o ombro. — Seu poder é
apenas uma fração do da rainha Alice. É mais uma indicação de que
a linhagem das rainhas está enfraquecendo. Se o poder da Rainha
Humana secar completamente, nosso mundo estará condenado.
— Essa é uma preocupação para o futuro. Concentre-se no aqui e
agora — aconselha a general calmamente.
— O aqui e agora é que ela pode ser a última Rainha Humana.
— Você está sendo dramático — rebate. Ela está correta, mas há
o fantasma da dúvida vagando em torno de suas palavras. — Vocês
acabaram de começar. Dê-lhe uma chance.
— Como posso “dar uma chance” se ela adora me desrespeitar?
— Eldas para, virando-se para encarar sua general com a palma da
mão na bochecha. — Ela até me bateu.
Um espectro completo de emoções percorre o rosto de Rinni. Vejo
sua testa franzir em preocupação. Então seus lábios se abrem em
choque. Vejo-a fechá-los rapidamente para conter o que parece ser
uma risada.
— Rinni…
— Já estava na hora, Eldas.
— Ela já te conquistou? Já está até roubando meus aliados! —
Eldas faz uma careta e volta a andar pela sala.
— Você se tornou insuportável nos últimos meses. — Rinni não
mede palavras e cruza as mãos presunçosamente. — Alguém
precisava colocar você em seu lugar, e eu certamente não estava
conseguindo.
Eldas aperta a ponte do nariz e abaixa a cabeça, o cabelo preto
caindo sobre os ombros e escondendo o belo rosto.
— Acho que fui um pouco ríspido.
Rinni bufa.
— Um pouco?
Tirou as palavras da minha boca. Não tenho certeza se estou
aliviada por Eldas estar admitindo ou ainda mais irritada. Se sabia
que estava sendo um idiota, por que se permitiu agir dessa
maneira?
Eldas para, olhando para a porta por onde saí. Há uma expressão
sombria nublando seu olhar. Não posso ver a cena com
profundidade e certeza… mas ousaria dizer? Será que é remorso?
Não, não pode ser. Ele foi cruel, e sabe disso. Isso supera todo o
resto. No entanto, quanto mais olho para ele, mais nebulosos meus
próprios sentimentos se tornam. Seu coração é muito mole, Luella,
eu me repreendo.
— Eu me pergunto se… — Eldas murmura.
— Se o que? — Rinni insiste.
— Se ela está bem — Eldas termina. Estava certa, há
preocupação em seus olhos. — Deveria verificar…
— Não. — Rinni chega perto e pega seu cotovelo. —Não sei
exatamente o que você fez, mas suspeito que seria melhor dar a ela
algum espaço. Você é provavelmente a última pessoa que Luella
quer ver agora.
— Duvido…
—Eldas, estou errada? — Rinni o interrompe, impassível e com
um olhar severo.
Não está, eu acho. Não sei o que faria se Eldas tentasse correr
para mim e pedir desculpas agora. Gostaria de pensar que aceitaria,
mas parte de mim quer que ele reflita um pouco mais sobre o que
acabou de fazer e certifique-se de que realmente está arrependido,
antes de aceitar um pedido de desculpas dele.
— Tudo bem — ele murmura. — Vou me desculpar amanhã.
Duvido. Duvido fortemente.
— Atitude sábia — diz a general.
Eldas se arrasta até seu trono, afundando nele pesadamente.
— Primeiro os feéricos, agora ela. O Rei Feérico deixou claro que
pensa que sou mais mole, mais fraco que meu pai. Ele quer que
devolvamos terras a eles, e quer reconhecimento no Conselho dos
Reis.
Eu me aproximo mais das aberturas. Observo Eldas se inclinar,
apoiando-se sobre um cotovelo. Ele apoia a cabeça em uma mão,
como se sua coroa de repente tivesse ficado pesada demais para
suportar. Parece esgotado… vulnerável.
Não parece nada com um rei agora. Parece um homem. Um
homem cansado, exausto.
Então me lembro de como ele usou meu nome verdadeiro contra
mim para me tratar como uma marionete e qualquer simpatia
evapora.
— Esperar por ela no ano passado foi um erro. Fiquei muito tempo
isolado no castelo, mantendo todos afastados, esperando a
coroação — murmura, tão baixinho que quase não ouço. — Meu
povo acha que os abandonei. Os outros reis desta terra pensam que
sou fraco.
— Você ficou isolado no castelo porque estava esperando por sua
rainha e sua coroação, para se apresentar a Entremundo como um
com a Rainha Humana. Não foi um erro; você estava honrando
nossos costumes — Rinni diz, gentil e tranquilizadora. — As
pessoas vão entender quando tudo voltar ao normal.
Eldas estava isolado? Esperando por mim? Ele mencionou algo
sobre isso ontem, mas perdeu-se em meio a toda a excitação.
Minhas unhas arranham levemente a pedra. Só pensei nele como
um poderoso Rei Elfo: frio e insensível. Pensei nele mandando
neste castelo com deleite.
Mas… e se ele for tão prisioneiro desse sistema terrível quanto
eu? O pensamento me trai, despertando uma simpatia que não
quero nutrir por esse homem.
— As estações voltaram e as pessoas estão se regozijando. Os
preparativos já estão começando para os ritos da primavera —
continua Rinni. — Na coroação, os outros governantes verão o
poder dela e não o questionarão.
O broto de simpatia murcha prontamente quando me lembro do
meu papel em relação a ele. Sou uma ferramenta. Dei a primavera
ao mundo dele, e agora reforçarei seu reinado. Meu propósito aqui
nunca terá nada a ver com o que eu quero.
Eldas suspira.
— Espero que seja verdade.
— Tenho certeza que sim.
Eldas olha para um canto distante da sala. Rinni continua de pé,
esperando. Ela vê algo que não vejo. Eu teria tomado isso como o
fim da conversa. Mas ela se demora um pouco.
— Rinni — diz ele, finalmente, sua voz fina. — Você é o único
membro do sexo oposto que já jantou na minha mesa particular.
Você está ao meu lado há mais tempo do que qualquer um dos
meus conselheiros ou magistrados. Você… — Eldas se engasga um
pouco, com mais emoção do que pensava que ele era capaz. —
Você é a única amiga que já tive.
“Diga-me o que devo fazer… A primavera está aqui, mas as
rajadas de inverno sopram do Véu. Se ela não aprender a
administrar seu poder, temo o pior. Tenho medo de falhar com ela.
Temo que ela só conheça este lugar como eu o conheci: como um
lugar de sofrimento. E a coroação se aproxima. Gostaria que ela
encontrasse seu lugar antes disso.”
Fico nas pontas dos pés, encostada na parede para ter uma visão
melhor. Gostaria de poder ver sua expressão. Quero saber se a
preocupação e a sinceridade que ouço em sua voz são genuínas.
Rinni se aproxima lentamente do trono. Observo enquanto ela
estende a mão e a pousa na face do rei. Meu estômago dá um nó
por uma razão que não sei explicar.
Eldas ergue o olhar. Ele olha para ela com olhos ansiosos. Rinni
não tira a palma da mão do rosto dele e Eldas não faz nenhum
movimento para afastá-la. Duvido que fizesse o mesmo se fosse eu
a tocá-lo. No entanto, na primeira vez que toquei o meu marido, foi
para bater nele.
Não deveria estar vendo isso. No entanto, não consigo desviar os
olhos deles.
— Você é um bom homem em seu âmago, Eldas. Mas é muito
áspero. Você sabe disso. —Seu polegar acaricia sua face. Eles
ficam bem juntos: parece certo. Isso deixa meu estômago ainda
mais enjoado. — Ela não entende o motivo por que você não a
deixa entender. E você também não está se esforçando para
entendê-la.
“Admito que tive as mesmas desvantagens. Estava amargurada
com ela por ter se escondido e pelo que sua ausência fez com que
você sofresse no ano passado. Por ter forçado você a gastar tanto
poder mantendo o Desvanecer, e por vê-lo enfraquecendo enquanto
Entremundo morre.
“Mas nada disso foi culpa dela. Acredito nisso, e sei que você
também. Você não pode culpá-la por Entremundo ou suas
circunstâncias. Estou tentando conhecê-la agora, e você também
precisa.”
— Se ela apenas…
— Não invente desculpas — interrompe Rinni com firmeza,
abaixando a mão. — Conheça-a melhor. Alice não era o que você
esperava quando finalmente se abriu para ela. Talvez Luella
também seja assim.
Eldas parece considerar, e por um momento seu rosto está suave
e pensativo. A máscara de mármore deu lugar a um homem. Mas
ele se retira para trás das paredes que construiu quando percebe
que está exposto. Eldas balança a cabeça e se levanta do trono. Ele
pega a mão de Rinni nas suas, dando um aperto.
— Respeito seu conselho, Rinni. Você sabe que sim… Mas Alice
foi uma coisa rara. Não fui feito para o amor…
— Essas são as palavras de sua mãe — diz a general, cortante.
Eldas ignora sua observação.
— Nasci para uma coisa: meu dever para com Entremundo.
— E essas são as palavras de seu pai — ela suspira.
— Qualquer outra coisa é uma distração — Eldas termina,
ignorando completamente as objeções de Rinni. — Não posso dar a
ela o que tinha em Capton. Não posso dar a ela família e
comunidade. Não posso dar a ela o que eu nunca soube. Mas talvez
possa ensiná-la a administrar sua magia e navegar neste mundo
brutal; farei o meu melhor para lhe dar ao menos isso.
treze

Observo Eldas sair e depois me afasto das perfurações na parede.


Estou com cãibras nas panturrilhas de ficar na ponta dos pés. Mudo
meu peso de um pé para outro: ajuda a trabalhar um pouco da
energia nervosa em mim.
Parte de mim gostaria de não estar a par dessa conversa. Não sei
o que pensar de Eldas agora. Uma parte do meu coração já está
querendo ser solidária com ele. E é contrabalançada rapidamente
pela outra, que sangra por Capton e por todos de quem sinto mais
falta a cada hora que passa – todos que a crueldade de Eldas fez
sangrar.
Ele estava certo. Entremundo é brutal, e é um mundo do qual eu
não gostaria de fazer parte.
É seu dever, lembro-me por instinto. Sempre que os tempos
ficavam difíceis, eu me concentrava em meu dever para com o povo
de Capton como curandeira. Mas agora… esse dever se foi, e sem
ele sou pouco mais que uma marionete de Eldas vagando pelos
corredores do castelo.
Não quero que meu propósito seja fortalecer seu governo com
minha mera existência. Tudo em mim anseia por fazer mais. Mas o
que pode ser feito? Meu lugar aqui parece raso e vazio.
Lentamente, subo as escadas. Não sei para onde estou indo, mas
sigo pelo corredor para o qual a escada me levou. Ando de quarto
em quarto até que o cheiro de turfa e terra faz cócegas em meu
nariz, roubando-me dos meus pensamentos.
O cheiro é como um relâmpago em um dia claro: aparece do nada.
Este castelo frio e cinza é desprovido de vida, então qualquer sinal
dela desperta minha curiosidade. Sigo o aroma por um trecho de
salas conectadas que se abrem em um espaço que eu melhor
descreveria como um laboratório.
Prateleiras cheias de potes revestem as paredes acima de balcões
cheios de béqueres coloridos, caldeirões borbulhantes e prateleiras
para secar ervas. Há mesas altas de cada lado, com banquinhos ao
redor e ferramentas espalhadas em cima. A parede oposta é feita de
vidro e está embaçada com a umidade. A vegetação está borrada
pelo vapor.
Gotas de suor pontilham minha pele instantaneamente quando
entro na estufa anexa. A estufa ocupa toda a largura do castelo. Há
pedra abaixo, pedra acima e vidro em ambos os lados voltados para
o norte e para o sul. As plantas crescem ao longo de treliças,
formando arcos até o teto. Há prateleiras de vasos e canteiros
acima do solo.
Aqui sinto o cheiro de lavanda e dente-de-leão misturados com
rosa – o que quase me faz engasgar, depois do incidente no recanto
de almoço – e os aromas terrosos de sálvia e alecrim. Observo
arbustos de sabugueiro, valeriana, prímula, hortelã e erva-cidreira.
Há plantas que nunca tinha visto antes, e outras que só vi em livros.
— Oh. — Com um sobressalto, paro no meio do corredor. O
homem que vi dá um pulo e fica em pé. Acho que quase o matei de
susto. — Olá, Willow — sorrio.
— Luella. — Ele dá um suspiro de alívio. — O que você está
fazendo aqui?
Dou de ombros, pois não estou pronta para falar sobre o que
aconteceu com Eldas.
— Estava passeando por aí.
— Um bom lugar para passear; bem-vinda à estufa real. — Ele tira
as luvas de jardinagem e as coloca na cesta ao seu lado, junto com
suas tesouras de poda e maços de hortelã-pimenta. Ele dá um
sorriso alegre. — Você gostaria que eu lhe mostrasse a estufa?
— Muito — digo sem hesitação. Qualquer coisa para me distrair.
Ele me mostra o intrincado sistema de irrigação e a caixa de
compostagem no canto mais distante. Willow se orgulha
especialmente da organização do galpão de jardinagem e das salas
de secagem. Mas minha atenção permanece onde as plantas estão
crescendo.
Vivas.
Estou ciente delas de uma maneira que nunca experimentei
enquanto ando. Sua aura é como uma saudação sutil, um aviso de
que sentem minha presença. Os girassóis se voltam para mim em
vez de para o sol quando passamos. Estou tão ansiosa para
conhecê-los quanto eles estão para conhecer a mim.
— O que é isso? — Paro diante de uma planta com uma base
preta e bulbosa e folhas vermelhas enceradas, em forma de
coração.
— Raiz de coração. — Willow para ao meu lado. Enquanto fala,
ele checa a planta, procurando por insetos.
— O que essa planta faz? Não acho que temos dessa no Mundo
Natural.
— Estranho — murmura. — Achei que todas as plantas de
Entremundo existissem também no Mundo Natural. Talvez você
simplesmente nunca a tenha visto.
— Talvez — digo. Mas duvido. Passei anos estudando sobre todas
as ervas conhecidas pelo homem. Se eu não conheço, posso dizer
com certeza que ninguém conhece.
— De qualquer forma, as folhas são usadas em muitos antídotos,
para aumentar a potência e a rapidez com que são absorvidos pelo
sangue. Mas a casca, essa é a parte realmente interessante. Você
pode usá-la para desacelerar o coração de uma pessoa a quase
nada: o mínimo para a vida.
— Também é usada em envenenamentos, aposto. — Ele assente,
confirmando minha suspeita. Posso ver como seria útil para retardar
a propagação de um veneno.
— Dizem que a casca também pode ser usada para memórias…
mas é uma função que não foi muito explorada.
— Por que não?
— É mais um boato do que algo sólido. “A raiz de coração se
lembra”, diz o velho ditado. Mas ninguém sabe de onde vem o
ditado. — Willow dá de ombros. — Fiz experimentos, mas nunca
consegui encontrar qualquer tipo de propriedade mental na planta.
— Entendo. — Estendo a mão e toco levemente as folhas lisas da
raiz de coração. Uma vaga sensação de nostalgia me domina.
Eu posso sentir a terra úmida ao meu redor. Quase consigo ver o
contorno de uma mulher usando uma coroa de folhas. Suas mãos
me envolvem; me sinto segura. Então, escuridão. Estou enterrada.
Mais e mais fundo eu cresço, enquanto a terra se move acima de
mim, engrossando, endurecendo.
Memórias que não são minhas, mas que estão guardadas em
algum lugar além de sua base avermelhada, nadam em minha
mente.
Então, a sensação muda. Torna-se mais um puxão. Dois botões
brotam e rapidamente puxo minha mão, segurando-a contra o peito.
— Desculpe.
Willow olha com admiração.
— Não se desculpe; isso é magnífico.
— O quê?
— Geralmente a planta leva trezentos anos para amadurecer.
Esperamos pelas flores. Elas podem curar qualquer veneno. Raiz de
coração só as produz em uma certa época.
— Ah.
— Isso é magnífico. — Ele sorri para mim. Willow acaba de ver
algo maravilhoso. Eu acabo de ver mais um sinal de minha magia
fora de controle.
— Será… que outras propriedades aparecem também em uma
certa época? — proponho. — As de memória?
— Duvido. Mas podemos testar.
— Não… preciso ir. — Empurro as sensações fantasma da minha
mente e olho para as plantas com tristeza. Se eu fosse apenas
Luella, a herbóloga, teria passado horas neste lugar. Mas agora sou
Luella, a Rainha Humana, que pode acidentalmente fazer plantas
crescerem. Serão plantas boas como a raiz de coração? Ou plantas
desagradáveis como as trepadeiras que fiz crescer no recanto de
almoço?
Eu não deveria ficar para descobrir.
— Espere. — Willow segura meu ombro, me impedindo de sair. —
Tem mais uma coisa.
— Willow, me desculpe…
— Diários das rainhas anteriores. — Ele sorri, sabendo que
certamente não vou recusar. — Poppy me contou sobre eles quando
estávamos falando sobre sua situação. Acho que poderiam ajudá-la
a se sentir mais em casa aqui… talvez até ajudar com sua magia…
— Ele começa a voltar para o laboratório enquanto fala, e eu o sigo.
Willow vai até uma estante no canto e pega um banquinho entre ela
e a parede. — Última prateleira. Fique à vontade.
Eu inspeciono a última prateleira. Há vinte e cinco diários, de todas
as formas e tamanhos, com um nome escrito em cada lombada.
Alguns nomes estão repetidos, com números abaixo deles. O último
da fila tem “Alice” escrito.
— Você sempre soube que estavam aqui?
— Verdade seja dita, nunca olho para aquela prateleira. — Ele ri.
— Mas estava conversando com a vovó Poppy sobre você e ela
mencionou que estava pensando em pedir para trabalhar conosco
aqui. Eu me perguntei se Eldas permitiria… mas ela disse que havia
precedentes.
— Precedentes para a Rainha Humana trabalhar? — Não me
atrevo a criar esperanças. Já as tive desfeitas muitas vezes aqui.
— Na verdade, tem sido bastante comum. O que faz sentido,
quando você lembra o que a magia da rainha faz. — Willow sorri, e
é um sorriso um pouco torto. Só de vê-lo assim já sorrio também.
— O que eu faria?
— Você poderia ajudar a cuidar das plantas. Ou fazer poções e
beberagens se precisarmos, de acordo com seu conhecimento.
É um começo.
— Eu poderia ir até a cidade?
— Talvez depois de sua coroação. — Sua expressão agora é
preocupantemente incerta.
— Poderia ter pacientes?
— Acho que não. — Ele franze a testa e minha expressão espelha
a dele. Olho para os diários, desejosa. Como elas eram felizes aqui?
Eram felizes aqui? Acho que só há uma maneira de descobrir. Mas
já posso dizer que, se meu diário vier parar nesta prateleira, ele não
será cheio de alegria enquanto meus dias forem gastos apenas
regando plantas.
— De qualquer forma, as outras rainhas fizeram esses registros —
Willow continua. — Você pode encontrar algo útil em algum lugar
nesses diários que ajude a se acostumar. Poppy já deu sua
permissão.
— Faltam algumas rainhas. Mais precisamente as cinco primeiras.
— Acho que as primeiras rainhas não escreviam diários. Ou talvez
eles tenham sido perdidos ou destruídos. Isso foi há três mil anos.
Temos sorte de ter estes. — Ele dá de ombros e começa a sair. —
Está quase na hora do almoço. Acho que vou pegar comida para
nós. Você tem alguma preferência?
— Nada picante — digo rapidamente. — Fora isso, pode ser
qualquer coisa. — Coloco o dedo no diário de Alice.
— Volto com a comida em breve — ele fala por cima do ombro e
sai andando.
Quando tiro o tomo da estante, o pensamento de levá-lo ao Sr.
Abbot passa pela minha cabeça. Ele sem dúvida adoraria
simplesmente segurar algo que sua irmã tivesse tocado. Pergunto-
me se poderia de alguma forma levar o livro para ele. O pensamento
semeia uma ideia enquanto folheio as páginas.
Se pudesse voltar… faria muito mais bem em Capton. A primavera
está aqui em Entremundo, o povo vai ficar bem, e tenho certeza de
que Eldas pode parecer durão sem mim.
Meus dedos formigam como se o livro estivesse me dando
permissão.
Alice fez anotações organizadas. No topo de cada página há o
nome de uma erva, com um esboço lindo e meticulosamente
detalhado do espécime em questão. À direita do esboço estão as
propriedades e as instruções de preparação.
Sob todos os itens acima, há notas sobre magia – a magia da
rainha – e como usá-la. Coloco o livro na mesa e começo a folhear
as páginas ansiosamente, passando os olhos nas anotações.

FOCO NO EQUILÍBRIO. A NATUREZA DEVOLVE O QUE


RECEBE.
Esta armazena bem a magia; pode ser recarregada com magia
para ser usada para trocas de maior equilíbrio.
Melhor deixar crescer naturalmente para maior potência.
Fácil de manipular e sacrificar para trocas maiores entre vida e
poder.
Mastigue e cuspa antes de fazer ajustes nos padrões climáticos.

Página após página; é um tesouro de informações. Volto para a


estante e pego outro diário ao acaso. Esta rainha montou suas
páginas de modo ligeiramente diferente. O esboço da erva é feito
com menos habilidade e ocupa a página inteira. Cada segmento da
planta é anotado diretamente sobre o esboço. Em seguida, uma
página de informações adicionais e algumas anedotas da vida estão
registradas à direita.
Eu volto para um terceiro diário. Ainda mais informações me
aguardam. Notas pessoais cobrem os cantos das páginas desta
rainha enquanto ela se torna poética sobre sua situação.
Rosa vermelha. Propriedades: amor. O rei me deu uma em nosso
quinto aniversário e trabalharei para mantê-la viva para que possa
guardar o símbolo de sua afeição para sempre.
Dou uma risadinha. Pelo menos alguma rainha, em algum
momento, parecia estar apaixonada pelo rei. Eldas claramente
nunca ouviu esta história. Ele não tem interesse em ser meu amigo,
muito menos me amar.
— Você achou algo divertido? — Willow voltou com um prato de
comida, que colocou na mesa entre nós.
— Sim. — Coloco o diário na mesa e vou pegar outro. Quando
retorno, corto uma fatia do pão de alecrim e mergulho no azeite com
ervas. — Tenho uma ideia.
— É?
— Esses diários são um bom começo. — E muito melhores do que
a tentativa de treinamento de Eldas —, mas quero aprender mais
sobre minha magia e a magia dos elfos. Preciso de um espaço
seguro para praticar.
— Tudo bem — diz Willow com uma nota apropriada de cautela.
— Quero fazer desta minha sala de treinamento. E quero que você
me ensine.
— O quê?
— Conte-me sobre a magia dos elfos e me guie enquanto trabalho
para aprender a minha. — Não posso contar com Eldas.
— Mas…
— Por favor, Willow. — Seguro suas duas mãos. — Você é o único
amigo que tenho aqui.
Ele franze os lábios, olhando de nossas mãos para meus olhos.
Finalmente diz:
— Tudo bem.
Enquanto comemos, ele me conta sobre a onomancia dos elfos: a
magia silvestre dos nomes. Cada grupo de pessoas em Entremundo
tem sua própria magia silvestre única. Os feéricos têm ritomancia:
magia energizada por rituais baseados em ações realizadas de
maneiras preestabelecidas. O vampir tem sanguinomancia: magia
de sangue. E assim por diante.
Concentro-me principalmente na magia dos elfos, já que é com
isso que precisarei lidar. Willow reitera o que Eldas me contou sobre
o Saber e como os elfos o usam para encontrar o verdadeiro nome
de alguém.
Quando um elfo sabe o verdadeiro nome de alguém ou alguma
coisa, pode manipular esse alguém ou coisa como quiser. É como
Eldas disse: as limitações vêm apenas de sua própria imaginação e
da força de sua magia. Willow explica como alguns elfos são
habilidosos em sugerir emoções, outros podem manipular cabelos
em penteados; podem levitar objetos, invocar memórias, comunicar-
se telepaticamente, e muito mais.
Estou cercada por pessoas de imenso poder. Não nasci com
magia, e talvez nunca aprenda o suficiente para ter uma chance – a
minha melhor e mais segura escolha será ir embora.
Willow não sabe nada sobre o “Ser” que Eldas mencionou. Depois
do almoço, passo a tarde vasculhando os diários em busca de
alguma anotação. Não encontro nada sobre isso.
Mas o que encontro é informação suficiente sobre como usar
minha magia, e tenho a esperança renovada e um plano para esta
noite.
O dia se arrasta, até que o toque de um relógio me desperta do
meu trabalho. Willow está terminando de limpar sua bancada.
— Apenas deixe todas as suas coisas onde estão. Podemos
retomar amanhã, se você quiser.
— Claro! —Forço um sorriso e evito dizer que não estarei aqui
amanhã se meu plano der certo.
quatorze

Tinha oito anos na primeira vez que saí de casa escondida.


A pequena janela na parte de trás do sótão tinha o tamanho exato
para que me esgueirasse com o meu corpo de criança. As bordas
que emolduravam as janelas tinham a largura exata para meus pés
ágeis. E eu tinha a quantidade exata de falta de noção para achar
que, já que conseguia subir em árvores altas, seria perfeitamente
capaz de descer do terceiro andar de um sobrado para ir colher
flores raras que só desabrochavam à noite.
Eu era jovem e imprudente.
Agora estou mais velha… e aparentemente ainda imprudente.
O luar entra pelas janelas do recanto de almoço. De alguma forma,
a sala que destruí já foi reconstruída. Um arrepio percorre minha
espinha, e me pergunto se é a sensação fantasma da magia élfica
que sei que deve ter sido usada para reparar o dano, ou se o ar está
realmente mais frio por causa da magia.
Estou com a bolsa a tiracolo e as roupas com as quais cheguei
aqui. Roupas resistentes que podem aguentar escaladas nas
sequoias mais altas da floresta ou descidas na encosta de uma
montanha. O tipo de roupa que eu usaria na minha saudosa botica.
Respiro fundo, debatendo comigo mesma sobre esse plano. O que
acontecerá se realmente for embora? O Rei Elfo precisava de uma
Rainha Humana. Bom, ele encontrou uma. Mesmo se eu estiver
longe, nós ainda somos tecnicamente casados. Entremundo
precisava de uma recarga através da rainha vinda do Mundo
Natural. Isso também está resolvido.
E, com base na conversa que ouvi com Rinni, causei mais mal do
que bem na vida de Eldas. Ótimo, o sentimento é mútuo. Se for
embora, nós dois podemos voltar a viver como quisermos, agora
que cumprimos nossos deveres.
— Tenho que ir — digo em voz alta para fortalecer minha
determinação.
Talvez as outras rainhas não tivessem nada melhor para fazer
além de existir, mas eu tenho meu trabalho. Fiz as árvores
florescerem e Entremundo vicejar. Meu trabalho aqui está feito, até
onde posso dizer. Agora, é hora de ver se há outra opção que
nenhuma rainha ousou tentar explorar: voltar para casa.
Abro a janela. Mesmo que as árvores na cidade abaixo estejam
agora no auge da primavera, os galhos cheios de brotos frescos,
minha respiração congela no ar. Pergunto-me se esta cidade está
perpetuamente gelada por causa da magia de todos os elfos que
vivem nela.
Seja qual for o motivo, anseio pelo clima mais ameno da costa.
Imagino o sol na minha pele enquanto colho flores e ervas que
crescem selvagens nas colinas. Imagino o barulho das ondas sendo
abafado pelas árvores enquanto reúno ramos para encher os potes
da minha botica.
As lembranças me encorajam. A ideia de ficar mais um momento
aqui com Eldas e Harrow é demais para mim. Vou murchar
lentamente se for forçada a viver o resto dos meus dias aqui.
Seguro uma rosa na mão direita; cortei os espinhos desta vez para
evitar que a magia no meu sangue se envolva na equação mágica.
Várias outras flores sem espinhos estão na minha mão esquerda.
Minha bolsa tem manchas úmidas de todas as outras flores que
roubei dos vasos agora vazios do recanto de almoço.
Com base no que os diários disseram e no que vi durante minha
prática com Willow hoje, preciso de matéria-prima para minha
magia. A magia silvestre é poderosa porque desafia as leis da
natureza. Mas sou a personificação do natural, e a natureza
prospera no equilíbrio. Portanto, tudo o que faço deve ser mantido
em equilíbrio.
— Vamos tentar de novo — negocio com a flor. — Desta vez, você
precisa me ouvir, ok?
Ela parece se mexer sob meus dedos. Com certeza é minha
imaginação. Mas, se não, espero que seja um bom presságio.
Mantenho a calma e me lembro do que sou capaz: coloco a flor no
peitoril da janela; pressiono meus dedos da mão direita para evitar
que ela voe. Inalo, como se estivesse sugando a vida e a energia
das flores na minha mão esquerda.
Harmonia e equilíbrio, penso. Tiro vida das flores da minha mão
esquerda e a transfiro para a rosa debaixo da palma da minha mão.
Não estou destruindo, nem criando, apenas mudando e
reorganizando a essência bruta. O poder explode através de mim,
formigando, correndo sob minha pele. Isso me encoraja de uma
maneira que nada jamais fez antes.
Espreitando pela janela, olho para a altura de quase sete andares
até a rua lá embaixo. A rosa estremece e ganha vida. Gavinhas
agarram a rocha. A haste se alonga. Observo enquanto um
entrelaçado de trepadeiras desce a encosta da montanha.
Talvez Eldas esteja certo, e controlar a magia não seja tão difícil
uma vez que você tenha aprendido o básico.
— Espero que aguente. — Sento-me no parapeito e coloco meus
calcanhares na trama de trepadeiras. Estou confiando muito em
alguns diários antigos e uns poucos testes preliminares, mas não
tenho muitas opções no momento. Eldas acha que ainda não
possuo controle algum sobre meus poderes, então agora é a hora
de fugir se quiser ser bem-sucedida. Uma vez que eu comece a
mostrar domínio, ele pode tolher mais ainda minha liberdade.
Com cuidado, desloco meu peso, virando enquanto ainda posso
me segurar no peitoril. Fecho a janela atrás de mim e começo a
descer lentamente.
Passo por algumas outras janelas, mas estão escuras ou cobertas
com cortinas pesadas. Quando meus pés tocam o chão, minhas
mãos e ombros estão doendo, mas a descida não foi tão difícil
quanto eu esperava. As trepadeiras pareciam segurar meus pés e
fazer apoios convenientes para que me apoiasse.
As plantas estavam cuidando de mim, percebo. Sempre cuidaram.
Galhos de árvores se esticando para me apoiar, ou se dobrando
para que pudesse alcançá-los… não era apenas minha imaginação,
mesmo que me dissessem isso quando era uma menina. Todo esse
tempo havia pequenos sinais e dicas sobre quem eu realmente era,
e os ignorei.
Meus pensamentos vagam para Luke. Espero que ele ainda não
tenha sido julgado, porque a primeira coisa que quero fazer quando
voltar é dizer a ele como me sinto. Então, quero explicar exatamente
o que ele estava colocando em risco em Entremundo ao me manter
escondida. Ninguém em Capton parece realmente entender o que
está acontecendo por trás do Desvanecer.
A cidade está tranquila. Postes de luz brilham com fogo azul,
dando a tudo um brilho como que de safira. As casas são tão altas
quanto meu sobrado em Capton, se não mais altas. Posso ver as
lojas fechadas de chapeleiros, marceneiros, ferreiros e sapateiros:
todos os ofícios que se esperaria encontrar em uma cidade, mas as
mercadorias em suas vitrines me fazem desacelerar.
Bens élficos são raros em Capton, e extremamente preciosos.
Aqui, minha chaleira élfica é apenas uma chaleira. Vejo uma igual
na vitrine de um prateiro quando passo.
Tudo que para mim era exótico, precioso e mágico é comum em
Entremundo. De chamas azuis à magia fria e arquitetura perfeita
demais com pináculos pontiagudos em muitos dos edifícios, é uma
terra que é tudo, menos meu lar, mas de alguma forma a sinto assim
agora.
Alguns farristas noturnos estão circulando, mas mantêm distância.
Evito principalmente as tavernas onde parecem estar se reunindo.
Solto o cabelo por cima das orelhas, tentando esconder o fato de
que elas não são pontudas como as de todos por aqui.
Vejo duplas de guardas municipais ocasionalmente patrulhando,
suas roupas exatamente como as dos guardas que chegaram a
Capton com Eldas, mas é uma noite tranquila. A maioria das
pessoas anda sozinha, e ninguém parece suspeitar de mim.
Risos e gritos ecoam pelo lago, chamando minha atenção. Olho
para ver Harrow e seus amigos emergindo de um beco mal
iluminado. Harrow está pendurado entre os dois homens. Aria gira
em torno deles, rindo e cutucando sua forma inerte.
Ando mais rápido.
Quando chego ao final da escada que leva ao túnel da montanha
de onde Eldas e eu saímos, faço uma pausa. Não há maneira furtiva
de subir; há uma faixa de luar iluminando o caminho até o topo.
Olhando para trás, mal consigo distinguir as trepadeiras na lateral
do castelo, como uma fita verde desenrolada da janela. Saberão ao
amanhecer que fugi, mas recolher as trepadeiras e transformá-las
de volta em uma rosa é um risco que não quero correr. Preciso da
minha força para o que está por vir.
Sim, eles saberão que fugi. Então, a melhor coisa que posso fazer
é ter uma vantagem suficiente. Se conseguir chegar a Capton hoje à
noite, então posso explicar que cumpri minha parte do trato aqui, e
espero que o Conselho me proteja. Talvez Luke – por mais que
deteste a ideia de me associar a ele – ainda saiba alguma maneira
de me esconder. Ou talvez possa haver uma exceção para o fato de
que uma pacata cidade litorânea precisa desesperadamente de uma
curandeira.
Respiro fundo e começo a correr.
Elfos não cruzam o Desvanecer por nada além do raro comércio
de mercadorias, esposas ou guerra. Não há razão para um elfo
solitário deixar a cidade a esta hora da noite. Não tenho dúvidas de
que Eldas escolhe pessoalmente quem pode atravessar o
Desvanecer e quando. Corro o mais rápido que posso e rezo para
que ninguém veja.
Não paro de correr quando mergulho na escuridão terrena do
túnel. Corro para a névoa de obsidiana que apaga a luz. Quase bato
a cabeça em uma árvore, parando no último segundo quando ela
surge do nada.
Com as duas mãos evito bater o nariz no tronco. Inclino-me para
trás e olho ao redor: a luz da cidade dos elfos desapareceu; a
escuridão sensciente me cerca.
Não me lembro de ter feito curvas quando Eldas me escoltou pelo
Desvanecer, mas talvez tenhamos feito. Dou a volta na árvore e
avanço mais devagar e deliberadamente desta vez.
Só é possível ver alguns metros à minha frente de cada vez. Toda
visibilidade desapareceu e agora é como se eu fosse a luz. Eu sou a
única entidade que é real aqui. Tudo além de mim é sombra e
pesadelos.
O musgo úmido cede sob meus pés. Procuro pedras e sinais dos
caminhos do templo. Estou andando há algum tempo, não? Embora
talvez pareça mais longo porque estou sozinha. Estou muito, muito
sozinha.

Encontre-me no bosque de árvores,


onde as videiras não crescem.

Canto para mim mesma. É uma das músicas que me lembro de ter
cantado quando criança, mas não consigo identificar onde ou com
quem aprendi. É uma música macabra sobre um humano que se
apaixona por uma criatura da floresta profunda, e canto muito mal,
mas é melhor do que o silêncio.

Encontre-me debaixo dos galhos de prata,


Ninguém mais precisa saber.

Encontre-me sob o véu dos segredos,


Antes que o dia expire.
Pronto, meu amor, vou roubar seu rosto,
Antes que alguém pergunte.

Um galho se quebra atrás de mim. Eu me viro. A melodia


assombrosa paira no ar enquanto mal consigo distinguir o
movimento na escuridão. Ouço o rosnado primeiro, um grunhido
baixo que ativa meu instinto primordial de fugir. Então, um brilho de
luz quebra a névoa: dois olhos amarelos luminosos e brilhantes me
observam.
Passo a passo, a fera gigantesca se aproxima. É o maior lobo que
já vi, com patas quase do tamanho dos meus pés calçados. Sua
pelagem é da cor da ardósia escura, como se ele tivesse nascido da
própria névoa. Seus lábios estão arreganhados, exibindo seus
dentes afiados.
Afasto-me para trás passo a passo.
— Não — a palavra sai em um sussurro tremido. — Por favor, não.
Por que tinha que cantar? Poderia ter basicamente gritado, Aqui
estou eu, feras terríveis do Desvanecer! Venham me comer! Agora
vou morrer sozinha no escuro por causa de uma música de que nem
gosto muito.
Apoio as costas em um grande tronco de árvore e olho em volta,
procurando um lugar para escalar. Maldição. Claro que não há
galhos.
Olho de volta para a fera rosnando, encontrando seus olhos
enquanto alcanço minha bolsa e pego as outras rosas. Se conseguir
fazer um galho crescer, talvez consiga subir alto o suficiente. No
entanto, a julgar por suas pernas poderosas, já estou a uma
distância favorável para seu ataque.
— Não sou uma boa refeição — digo. — Por que não volta para o
lugar de onde veio?
Como se fosse possível, o lobo rosna mais.
Minha mão se fecha em torno da haste da rosa. Pressiono minha
outra palma na árvore atrás de mim. O que quero com isso? Fazer
crescer um ramo? Serei capaz de subir a tempo?
Eu poderia tentar fazer uma gaiola de raízes, como Eldas fez com
Luke. Mas a complexidade de fazer algo grande e forte o suficiente
me deixa nervosa. Enquanto isso, o lobo continua se aproximando.
Escolha, Luella, antes de ser comida.
Escolho tentar fazer crescer um ramo.
As rosas murcham e esfacelam sob meus dedos, mas nada
acontece. A magia brilha em mim e se dissipa inofensivamente no
ar.
O lobo solta um rugido, pronto para atacar. Tento subir na árvore,
inutilmente. No processo, escorrego no musgo úmido e caio para
trás.
O mundo se move lentamente.
É isso. É assim que morro. Minha mãe sempre dizia que eu me
embrenhava muito na floresta. Ela sempre me disse que essa minha
mania de vagar para longe de casa seria minha ruína.
Você estava certa, mãe.
Minhas costas batem na terra e meus ossos chacoalham; quase
mordo minha língua. Sinto uma fisgada nos dentes e um zumbido
nos ouvidos. Imagino a sensação do trono arranhando minha pele.
São as garras de lobo em mim agora. Então haverá os dentes, e
sangue, e…
Sinto um hálito quente na minha orelha. Farejando.
Abro os olhos e encontro o olhar luminoso do lobo. Ele cheira meu
rosto. O garoto – agora posso afirmar – me rodeia. Ele cheira
minhas mãos e enfia o nariz na minha bolsa.
Quando termina sua inspeção, ele se senta, enrola a cauda
espessa em torno de suas patas e olha com expectativa.
— O quê? — Sento-me lentamente. — Você não vai me comer? —
O lobo continua a me observar. — Então para que foi todo esse
rosnado? — Esfrego a parte de trás da minha cabeça; ainda está
doendo. — E o que fez você parar? Não que esteja reclamando.
Ele inclina a cabeça para mim. Suas orelhas se mexem. É então
que noto um corte profundo em sua orelha direita.
— Espere… você é… não, não pode ser… — fico de joelhos,
finalmente dando uma boa olhada no lobo. Ele continua a me olhar
com expectativa. Sua cauda sobe e depois desce pesadamente. —
Você é o mesmo lobo daquele dia na floresta com Luke?
Tem que ser. Ele tem os mesmos olhos brilhantes e conhecedores
do lobo que vimos então… agora que ele não está rosnando para
mim.
— Esta é a segunda vez que você quase me mata de susto? —
Rio alegremente. Uma pessoa sã provavelmente se ressentiria do
animal, mas na verdade estou me divertindo. — Há quanto tempo
você está me observando? Você é atrevido, não é? Você sabia
quem eu era muito antes mim?
Ele inclina a cabeça na outra direção. Talvez seja um sim.
— Você sabe o caminho para sair daqui? — Enlouqueci. Estou
falando com um lobo. — Você pode chegar à borda da floresta,
certo? Onde faz divisa com o templo? Foi onde nos encontramos da
última vez; quero voltar lá.
O lobo continua a me encarar por mais alguns segundos. Com um
suspiro, coloco-me em pé. Lobo-guia? Acho que estou querendo
demais.
— Bem, de qualquer forma, obrigado por não me comer, de novo.
— Estendo minha mão em um aceno baixo.
O lobo se move. Suas pernas são tão poderosas quanto
imaginava, porque antes que possa piscar, ele cruza o espaço entre
nós e pressiona a cabeça na palma da minha mão. Olho
maravilhada enquanto meus dedos afundam no pelo áspero e
denso. Mesmo que ele pareça ter nascido da névoa do Desvanecer,
é sólido. Então, se afasta lentamente, segurando meu olhar.
Ele se vira e desaparece na escuridão.
— Isso foi… — começo, mas sou interrompida por um brilho
dourado. Mal consigo distinguir o corpo do lobo da névoa ondulante,
mas posso ver seus olhos brilhantes. Ele quase parece estar me
esperando. — Você quer que o siga?
O lobo começa a marchar à frente. Corro para acompanhar.
Provavelmente o estou seguindo até sua árvore favorita para fazer
xixi. Nem sei se esse animal faz xixi. É um animal mesmo? Ou uma
fera feita de sombra, como o cavalo que Eldas montou para ir a
Capton?
Não importa. Ele é a melhor chance que tenho de sair deste lugar.
Caminhamos pela floresta escura por provavelmente mais de uma
hora antes que eu solte um gemido de frustração.
— Obrigada por nada — murmuro. — Vou para lá agora. Parece
uma direção tão boa quanto qualquer outra.
Um latido e um rosnado me param.
— O quê?
Outro rosnado baixo.
— Tudo bem, sigo um pouco mais. — Jogo minhas mãos para o
ar, resignada.
Caminhamos até que as árvores cedam lugar a uma clareira
coberta de musgo. Um círculo de pedras circunda um bloco maior
no centro de uma pequena elevação. Quase parece uma lápide;
estremeço.
— Não estamos no terreno do templo — repreendo. O lobo bufa e
caminha até o grande memorial vertical. Ele se deita ao lado. —
Este é o seu lugar favorito, então?
Ele inclina a cabeça e arregala os olhos para mim, como se
dissesse não era aqui que você queria chegar?
— Não, não é onde eu queria chegar — murmuro enquanto me
aproximo da grande rocha.
Há algo escrito nela, desbotado pelo tempo e escondido atrás de
um manto do mesmo musgo verde que cresce na base. Há algo
neste lugar que definitivamente lembra um templo. Faz lembrar os
antigos santuários que pontilham os caminhos esquecidos nas
profundezas da floresta.
— O que está escrito? — sussurro, estendendo a mão para limpar
o musgo das inscrições.
— Nada que você consiga entender. — A voz de Eldas quebra o
silêncio, e nem me incomodo em suprimir um gemido.
quinze

— Surpresa em me ver? — ele pergunta com a voz pesada.


Eu me viro para encará-lo e não consigo decidir se ele é um
fantasma ou um agente dos Deuses Esquecidos. A névoa do
Desvanecer flerta com seu cabelo escuro. A palidez cinzenta de sua
pele é como pedra lapidada, não-natural e etérea neste mundo de
noite viva. Como se fosse possível, ele parece ainda mais poderoso
do que na sala do trono. E muito mais austero. Cruzo os braços
para me proteger de seu julgamento.
— Acho que não deveria estar.
— Não, você não deveria estar. — Eldas faz uma careta. — No
que estava pensando?
— Sentei-me em seu trono; trouxe a primavera. Você claramente
não quer nem precisa mais de mim aqui, e sou pouco mais que um
fardo para você. Estava voltando pra casa.
Ele pisca lentamente e balança a cabeça.
— Você… você achou que era um fardo?
— Do modo como você me tratou, o que mais eu deveria pensar?
— Fiz um esforço para ser civilizado com você.
— Não fez não — estalo, sem pensar. Ele dá um passo para trás,
como se estivesse surpreso por alguém ter coragem de falar com
ele dessa maneira. Dada a nossa experiência na sala do trono, sou
eu que estou surpresa por ainda poder deixá-lo chocado.
— Bem, eu… eu lhe dei um apartamento no castelo. Dei-lhe
dinheiro dos cofres reais para mobiliá-lo. Não tranquei você ou
impedi seu acesso a qualquer lugar do meu castelo, uma decisão
que você me fez lamentar muito.
— Você me tratou como uma marionete! Você me controlou com
meu nome verdadeiro! — digo sem remorso. Já que estou envolvida
até o fundo, aproveito e continuo cavando. — Não quero ser um
fantoche. Não vou passar o resto da minha vida treinando minha
magia só para que você possa assustar outros reis de Entremundo.
Ele dá outro passo para trás. Vejo a raiva no rubor da sua face,
sua testa franzida. Então sua expressão suaviza.
— Desculpe. Estava errado.
— Eu não — Não quero suas desculpas, é o que quero dizer. Mas
recupero minha compostura e reformulo: — Não quero palavras,
quero ação. É fácil pedir desculpas, Eldas. Mas é difícil agir com
sinceridade.
— Vou me esforçar mais então.
— Ou você pode me deixar ir embora. — Um focinho molhado
toca minha mão, como se o lobo estivesse tentando me lembrar de
que ele ainda está aqui. Coço entre suas orelhas, grata por ter
alguém do meu lado. Eldas olha para a fera e estreita os olhos, mas
volta sua atenção para mim. — Você não quer esse casamento; eu
também não. Fiz o que você precisava e trouxe a primavera. Então,
por que estamos tentando viver e trabalhar juntos?
— Porque devemos.
— Mas por quê? — Dou um passo em direção a ele e o lobo me
acompanha. A ideia de confrontar o rei com uma fera do
Desvanecer me encoraja um pouco. — Pare… pare de me excluir,
por favor. Se realmente está arrependido de como agiu, agora é a
hora de mudar. Se quer que eu o ajude, então me ajude com
sinceridade. Ensine-me como pedi, ao invés de me repreender e me
diminuir.
Eldas arregala um pouco os olhos e, pela primeira vez, não se
fecha imediatamente. Ele me estuda, e mantenho-me aberta diante
dele. Esta é a última chance que estou lhe dando, embora não o
diga abertamente.
— A Rainha Humana é nosso elo com o Mundo Natural, e o trono
de sequoia é seu elo com as fundações de Entremundo. A magia flui
através dela, e dela, para nutrir a terra e dar-lhe vida. Essa conexão
é algo que deve ser nutrido. Você não se senta no trono uma vez e
acaba.
— Espere, você está dizendo que devo ser magicamente sugada
pelo trono com regularidade? — digo, horrorizada.
— Sim. Você recarregou a terra de Entremundo, mas a magia que
você colocou vai desaparecer com o tempo. Então você deve
continuar sentando-se no trono para continuar fortalecendo a terra.
— Isso é demais… — abraço a mim mesma, lutando contra a
sensação fantasma do trono me agarrando.
— Sim, eventualmente você ficará esgotada. À medida que sua
força diminui ao longo do ano, Entremundo esfriará e a terra
murchará.
— Então você me deixará de lado porque não sou mais útil?
— Não — diz Eldas bruscamente. — Você realmente pensa tão
pouco de mim?
— Você não me deu muitas razões para pensar bem de você —
admito.
Ele faz uma careta.
— Sua magia se tornará mais fraca, mas você retornará ao Mundo
Natural quando estiver mais forte – no solstício de verão – para
recarregar-se e reafirmar seus laços.
Quando cheguei, o inverno era intenso aqui em Entremundo.
Depois que me sentei no trono, a primavera floresceu. O verão virá
a seguir. À medida que meu poder se desvanece, o mesmo
acontecerá com a terra.
— Estações — percebo. — Você está falando das estações.
Eldas assente.
— Quando for para Capton no solstício de verão, será inverno
novamente em Entremundo, porque meu poder ficará fraco demais
para continuar recarregando a terra.
— Será o solstício de inverno, especificamente. Entremundo vai
estar mais perto do Véu do que do Desvanecer: mais perto da morte
do que da vida. Mas isso faz parte de um ciclo necessário para
sustentar nosso mundo que espelha o seu, ao contrário. Estamos no
processo de restabelecer o equilíbrio agora, mas Entremundo
encontrará seu equilíbrio em breve e tudo deve ficar melhor então.
A natureza requer equilíbrio, penso. Sinto-me mais poderosa do
que jamais imaginei. É por minha causa que as estações se
transformarão em Entremundo e haverá vida.
— Eu também reafirmarei meu poder quando estivermos
separados — Eldas diz.
— Como assim?
— Você é minha antítese, Luella. Você é a rainha da vida.
— E você é o rei da morte — sussurro, olhando em seus olhos
congelados. Floresce em mim uma pontada de medo pelo poder
que este homem detém, não pela primeira vez. E é claro que, como
a pessoa completamente sã que sou, decido transformar isso em
uma piada. — É bom saber que nunca fomos feitos para nos
darmos bem.
Um lampejo de diversão ilumina seus olhos. É a primeira emoção
real que acho que vi nele, e traz um sorriso aos meus lábios. Pelo
menos até ele dar um passo à frente; então minha expressão muda
para desapontamento.
Mas Eldas passa por mim para ficar diante da grande placa de
pedra. Um pulso de magia retumba no ar como um vento de
inverno, enquanto seus dedos varrem levemente as palavras
gravadas. A magia prateada líquida, misturada com o azul profundo
do crepúsculo, se espalha pelas esculturas e empurra o musgo. O
ar ao nosso redor fica mais espesso.
— Então você entende, agora — diz. Levo um momento para
perceber que ele não está falando sobre a magia que ele acabou de
realizar. — Você não pode ficar livre disso, nem eu. Temos que ser
mantidos em equilíbrio, você e eu. É por isso que devemos aprender
a viver e trabalhar juntos, como você disse tão apropriadamente.
— Não, ainda não entendo — digo.
Ele me olha incrédulo, como se não acreditasse que eu pudesse
ser tão estúpida.
— Bem, eu entendo. Mais ou menos. Tanto quanto acho que
posso entender a explicação de alto nível de um antigo poder
forjado há milhares de anos. O que não entendo é: por que todo
mundo concordou com isso esse tempo todo?
— Talvez por que nenhum de nossos predecessores quisesse
condenar um mundo inteiro a ser consumido pela morte do Véu?
— Claro que não quero condenar ninguém à morte. Mas e se
houver outra maneira? — digo.
— Outra maneira?
Estou animada com o lampejo de interesse em seus olhos. Penso
nas discussões com meu pai em torno da mesa de jantar, nas
conversas do Conselho lamentando que não havia alternativa ao
tratado – ou imaginando se existiria outra maneira de ser livre. A
memória de sua voz apaixonada me encoraja. — Por que não
tentamos nos livrar disso?
— Não há como nos livrarmos disso.
— Você já tentou alguma vez? — pergunto. Ele está em silêncio.
— Alguém tentou? — Mais silêncio. — Por que não trabalhamos
para uma solução que não envolva a morte de Entremundo e os
mundos sendo desequilibrados e não envolva a guerra entre a
magia silvestre e a magia natural? Uma solução sem Rainhas
Humanas?
— Você fala de coisas que não entende. — Ele olha de volta para
a pedra, sombrio. — Nossa única esperança é preservar esse
arranjo o maior tempo possível —murmura baixinho. — O que pode
não ser possível por muito mais tempo…
Sua hesitação me dá esperança.
— E você sabe disso porque procurou uma alternativa?
Ele suspira dramaticamente.
— Luella, sei que você olha para mim e vê um homem normal…
— Nada em você é normal — digo rapidamente. Seus lábios se
abrem brevemente e a expressão severa desaparece de seu rosto,
tornando-o ainda mais bonito. Aperto meus lábios e luto contra uma
sensação que não quero ter ao olhar para Eldas.
— Você me vê como um mortal — ele reformula. — Mas meu
poder vai além da sua imaginação. — Ele aponta para a pedra que
estava examinando. — Esta é uma pedra chave do Desvanecer.
Você ao menos sabe o que isso significa?
Balanço a cabeça em negativa.
— É a pedra angular de Entremundo, uma base para o
Desvanecer. Você pode ver seu poder?
Balanço a cabeça novamente.
— Você pode compreender a intrincada magia tecida ao seu redor,
amarrada a esta rocha? Magia que divide mundos?
— Não. — Ele abre a boca para falar de novo, mas sou mais
rápida. — Você pode compreender como é ter mil, cem mil, milhões
de seres vivos gritando por você? Pode imaginar como é ter a terra
arranhando sua pele, raspando seus ossos para obter vida e poder?
Sua mente consegue conceber a tortura de saber que comeriam
você vivo se tivessem a chance?
Ele pisca. Há nele aquela expressão ligeiramente assustada mais
uma vez. Estou descobrindo que gosto muito mais desse lado suave
e desprotegido dele do que do lado severo. Se conseguir mantê-lo
assim, talvez possamos chegar a algum lugar…
— Você está certo — continuo. — Não consigo compreender sua
magia porque, como você diz, sou sua antítese. Mas isso significa
que você também não consegue entender a minha. E talvez
nenhum dos outros reis tenha dado a sua rainha a chance de
realmente explorar seu poder. Talvez haja algo que eu possa criar,
ou construir, como sua pedra angular, que amarre as estações de
Entremundo às do Mundo Natural sem uma Rainha Humana. Hmm?
Ele não diz nada enquanto sua expressão endurece mais uma vez
em algo passivo e ilegível.
— Tudo o que estou dizendo é… me dê uma chance – uma
chance real — imploro. — O que temos a perder?
— Tudo, se não tomarmos cuidado. — Não há nem um pingo de
leveza em sua voz.
— Então me ajude. Meu poder, seu conhecimento, podemos fazer
isso juntos se você deixar.
Eldas pressiona os lábios firmemente em uma linha. Procuro as
águas profundas de seus olhos: procuro algo humano. Não tenho
motivos para pensar que ele me ajudaria. Mas preciso pelo menos
tentar. Devo isso a Capton.
— Por que isso é tão importante para você? — ele pergunta
finalmente. Há um traço de mágoa. É a sombra de algo à espreita
nas correntes mais profundas de sua personalidade. Penso no que
Rinni disse sobre ele se isolar. — Ajude-me a entender.
Tenho a esperança de que ele me ouça.
— Eu tinha uma vida. Você está certo, não sou como todas as
outras rainhas. Não fui preparada para você, para nada disso. Tinha
meus próprios sonhos e planos. Tinha pessoas que dependiam de
mim e jurei protegê-las e servi-las da melhor maneira possível. Eles
deram seu dinheiro suado para a minha educação, e dei minhas
habilidades, minha juventude em troca. Capton precisa de mim tanto
quanto Entremundo; sou a única herbalista que eles têm.
“Talvez seja por isso que nenhuma dessas outras rainhas se
atreveu a questionar se havia uma saída. Elas não tinham nenhuma
expectativa de ser outra coisa além do que eram, porque foram
identificadas como rainhas quando eram jovens o suficiente para
que ser rainha fosse o sonho delas. Mas não sou uma delas. Estou
questionando por mim e por todas as outras jovens que virão depois
de mim.”
O rei olha entre mim e a pedra, como se estivesse escolhendo: eu
ou o mundo que ele sempre conheceu. Nem me incomodo em
prender a respiração. Sei o que ele vai escolher e não é minha ideia
maluca.
E então…
— Tudo bem — diz.
— O quê? — arquejo.
— Concordo em deixar você prosseguir com isso.
— De verdade? — Viro-me para ele. — Você diz com sinceridade?
Basta de concordar em me ensinar e depois agir como um idiota?
Ele se encolhe, mas assente. Há uma vontade de pegar a mão
dele e apertá-la, quase como faria com um amigo. Mas suprimo
essa vontade antes que meu corpo possa agir.
— Quero um acordo nos meus termos. — Ele me olha com
cautela.
— Claro que quer. — Ainda assim, é um progresso. — Quais são
seus termos?
— O primeiro é que você deve me manter a par de seu trabalho.
Você pode não se importar com o destino de Entremundo, mas eu
sou seu guardião jurado.
— Nunca disse que não me importava…
— Não vou deixar você desmanchar acidentalmente o tecido do
meu mundo — termina, ignorando completamente minha objeção.
— Tudo bem, isso é justo. — Não que eu queira desmanchar
alguma coisa.
— Além disso…
— Ah, tem mais. Chocante. — Cruzo os braços. É o fantasma de
um sorriso que vejo em seus lábios? Sou recompensada mais uma
vez com uma pontada de diversão, mais ousada que a anterior. Se
ele continuar me dirigindo sorrisos maliciosos com os olhos
brilhantes, vou pensar que ele está começando a gostar de uma
Luella determinada e um pouco ousada.
— Além disso — continua —, você não vai contar a mais ninguém
sobre essa trama. Não posso e não vou lidar com rumores sobre a
mulher que deveria governar ao meu lado tentando escapar de mim
como se eu fosse muito fraco para conquistá-la. Meu reinado já
passou por vergonha o suficiente pelo tempo que levou para
encontrá-la.
O lobo parece inquieto com a agitação de Eldas. Ele anda entre
nós e estendo minha mão. Ele rapidamente trota e coço entre suas
orelhas até que ele se acomode.
— Eldas, nunca quis que você passasse por dificuldades por
minha causa.
— Poupe-me de sua falsa pena. — Raiva brilha em seus olhos,
embora não seja direcionada a mim; posso perceber.
— Não é falsa — atiro de volta. — Desculpe. De verdade.
Minha empatia o atordoa. Ele cambaleia, demorando tanto para se
recompor que temo que o tenha quebrado.
— Eu…
— Você… — encorajo.
— Sinto muito também, pelo que você suportou.
Parto os lábios num sorriso.
— Foi mesmo tão difícil?
Eldas faz uma careta.
— Você realmente pode ser irritantemente insistente, sabia disso?
— Já fui informada disso pelos meus pacientes. — Não posso
evitar uma risada. — Embora prefira ser chamada de tenaz. — Ele ri
e, por um breve segundo, algo que ouso chamar de paz flui entre
nós. Estou hesitante em quebrá-la. Mas devo… — Há mais algum
termo?
— Sim. Você não tentará escapar novamente, pelas mesmas
razões que já disse. A Rainha Humana não deve ser vista antes de
sua coroação. É uma tradição, mas é também para sua própria
segurança, para que ninguém possa realizar o Saber em você, ou
qualquer outra magia, especialmente antes que você tenha o
controle de seus poderes e possa se defender.
— Posso concordar com isso. — Embora ache que menos
isolamento seja melhor para todos.
— E finalmente, você tem até a coroação, daqui a três meses,
para quebrar o ciclo.
— Três meses? O que posso fazer em três meses?
— Estou ansioso para descobrir — diz, um pouco tímido.
Três meses, terei três meses para encontrar uma maneira de me
libertar.
— Se eu não conseguir em três meses? — atrevo-me a perguntar.
— Mesmo se quisesse te dar mais tempo, não posso. Na coroação
você será totalmente aceita por Entremundo: você fará parte de
Entremundo mais do que do Mundo Natural. Somente nossa comida
irá nutrir você. Somente estas terras serão seu lar. Apesar de você
ainda retornar regularmente para fortalecer sua magia, seu contato
com o Mundo Natural será limitado. Muito tempo fora de
Entremundo poderá matá-la.
— Você está dizendo que depois da coroação não há como voltar
para Capton — sussurro.
— Exceto por alguns dias no Solstício de Verão para recarregar
sua magia, não, não há.
Um arrepio me percorre. Se tiver sucesso, serei livre. Posso voltar
para Capton. Posso ajudar as pessoas a quem jurei minha vida.
Se falhar, estou presa pelo resto da minha vida. Pelo menos assim
há uma chance. Há esperança.
Os olhos de Eldas abrem um buraco no meu crânio, como se
tentassem obter acesso direto ao meu cérebro e ver quais são meus
pensamentos. Estou dividida entre o desejo de desviar os olhos ou
sustentá-lo e ficar presa em transe pela magia em seu olhar.
— Diga-me, você aceita meus termos? — ele pergunta, a voz
profunda e ameaçadora.
— Tudo bem, Eldas, temos um acordo. — Estendo minha mão.
Seus dedos longos e frios apertam os meus. Sinto um arrepio com o
choque da magia que dança sob minha pele com seu contato. Tarde
demais penso no fato de que lhe dei a oportunidade de realizar
outro Saber. Mas, de maneira chocante, em respeito aos meus
desejos, seus olhos não brilham. — Mas devo avisá-lo: sou muito
esforçada. Três meses vai ser tempo suficiente. Vou me libertar.
— Atrevo-me a dizer que estou ansioso pelo que você pode
realizar. — Há uma implicação de respeito ali que me tira o fôlego.
— Vamos voltar, antes que alguém tenha a chance de perceber que
você não está lá.
Antes que possa reagir, um súbito choque de poder me congela no
lugar. Entro em pânico, pensando que ele deve ter usado o Saber,
afinal. Uma névoa escura sai de Eldas, misturando-se com o
Desvanecer. Ela se acumula aos nossos pés, nos envolvendo.
Quero gritar, mas não posso. Não consigo me mexer de jeito
nenhum. A única luz na escuridão é o brilho de seus olhos.
O mundo muda ao nosso redor.
O ar viciado do meu quarto no castelo enche meus pulmões
enquanto expiro o Desvanecer em nuvens de fumaça preta.
Tremores balançam meu corpo, fazendo com que gelo preto caia
dos meus ombros. A magia condensada evapora, dissipando-se.
— Q-quê? — solto através dos meus dentes batendo. Agarro
meus joelhos, tentando recuperar o fôlego antes de me endireitar.
Eldas não se incomoda. — O que foi aquilo?
— Andar pelo Desvanecer. Poucos são capazes de usar essa
técnica.
Eu me pergunto que outros feitos incríveis ele pode realizar. Antes
que possa perguntar, o ar ao lado de Eldas se contorce como o
calor saindo de paralelepípedos num dia muito quente.
Entre as sombras e a luz, um lobo salta. A fera, agora familiar,
trota alegremente até mim, dá a volta ao redor dos meus pés e se
senta ao meu lado.
— O que?!… — Que bom, Eldas está tão confuso quanto eu. O rei
faz uma careta para a criatura. — Mais um sinal de que o
Desvanecer está enfraquecendo. Está se tornando indisciplinado —
murmura. Então mais alto: — Vá, fera.
O lobo inclina a cabeça para o lado.
— Por ordem do Rei Elfo. Você é uma criatura do Desvanecer, e lá
deve permanecer.
O lobo abana o rabo e não me incomodo em suprimir uma
risadinha.
— Acho que ele faz o que quer. — Enfio minha mão no pelo do
lobo.
— Como alguém que conheço. — Eldas me olha de lado e sorrio.
Pela primeira vez, parece que estamos trabalhando juntos, como
iguais.
— Se serve de consolo, ele também não me obedece.
Eldas olha para o céu como se silenciosamente implorasse aos
deuses por ajuda e então solta um suspiro monumental.
— Ele vai voltar em breve. Provavelmente estava apenas seguindo
nosso cheiro através do Desvanecer.
— Andar pelo Desvanecer parece muito menos impressionante
quando um animal também pode fazê-lo. — Não consigo esconder
um sorriso. Eldas estreita os olhos para mim, mas sua carranca
perde um pouco o efeito.
— Ele consegue Andar porque ele é do Desvanecer: uma criatura
que ficou presa na fenda quando os mundos foram separados.
— Ele é um bom menino, é isso o que ele é — arrulho para o lobo.
— Bem. Agora minha escolha é permitir que essa fera fique o
tempo que quiser.
Não sei se ele está dizendo isso para mim, para o lobo ou para si
mesmo.
— Claro que é sua escolha.
— Se você destruir qualquer coisa no meu castelo, vou mandá-lo
de volta à força — ele diz severamente para a fera.
— Vou cuidar dele.
— Não se apegue muito. Ele deve ir embora antes do amanhecer
— Eldas resmunga e vai para a porta. — E você, Luella, vamos
praticar sua magia novamente amanhã.
— Você me deu ainda mais incentivo para aprender — digo com
sinceridade. Ele parece um pouco assustado com meu tom alterado
e dá um pequeno aceno de cabeça. Seguro a vontade de dizer a ele
que se for gentil, provavelmente receberá gentileza de volta.
Eldas boceja.
— Agora, farei um esforço para dormir um pouco, se a Rainha
Humana ficar parada tempo suficiente para deixar.
— Vou permitir que você durma, suponho.
Ele claramente não esperava que eu respondesse. Um sorriso
puxa os cantos de seus lábios. Eldas me dá as costas antes que eu
possa apreciar a expressão.
— Eldas — digo assim que sua mão toca a maçaneta da porta.
— O que é agora?
— Obrigada pelo acordo… É um bom começo para provar que
você não é tão terrível, afinal.
Assim que digo isso, abaixo a cabeça e me concentro em acariciar
o lobo para esconder meu sorriso. Não quero deixá-lo ainda mais
desconfortável. A visão de sua fachada gelada desmoronando com
a gratidão de outra pessoa é satisfação suficiente.
Ele não diz nada e sai do meu quarto, deixando a mim e a meu
inesperado novo companheiro sozinhos.
dezesseis

Rinni abre a porta.


— Vossa Majestade, está pronta?
— Sim. — Estou empoleirada na beirada da minha cama. O diário
de Alice está equilibrado em meus joelhos e estou vasculhando
qualquer informação que possa me dar um ponto de partida para
abordar minha situação.
Já consegui descobrir que o “Ser” é o espelho do “Saber” na
medida em que é a essência do existir e não apenas o
entendimento da existência. É um conceito complicado, mas o
importante é que agora sei que meus poderes podem mudar o
verdadeiro nome de algo.
Minha manhã foi dedicada a uma descoberta útil.
Rinni não diz nada. O silêncio se arrasta o suficiente e olho para
ela. Seus olhos estão focados no lobo que está ocupando quase
todo o pé da minha cama. Ela tem uma expressão confusa,
desnorteada e um pouco assustada.
— Rinni, esse é Hook. — Dei ao lobo o nome do formato de
gancho de sua orelha danificada.
— Hook… Você tem um lobo?
— Sim, e o nome dele é Hook. — Fecho o diário. — Antes que me
pergunte, sim, Eldas sabe que Hook está aqui. E sim, ele concorda
com isso.
— Eldas… Estou perdendo alguma coisa.
— Talvez. — Sorrio e caminho alegre até o armário. Sinto-me
melhor do que há dias. — Me dê um momento enquanto me visto.
Rinni me estuda quando apareço.
— O quê? Escolhi roupas ruins para uma rainha? — pergunto.
— Não é isso. Gostei que você escolheu verde novamente. Realça
seu cabelo. Talvez você tenha um pouco de senso estético.
Dou um arquejo, fingindo susto.
— Rinni, você acabou de dizer algo legal sobre mim?
Ela revira os olhos.
— Você diz isso como se fosse chocante.
— Bem, não achei que você gostasse muito de mim.
— Gosto de você o suficiente. — Rinni dirige o olhar para Hook ao
meu lado. — Você não vai trazer essa fera para a sala do trono.
— Quer tentar dizer a ele que não pode vir?
Hook inclina a cabeça para Rinni. Seus olhos dizem “me faça
carinho”, mas seu longo focinho cheio de dentes afiados diz “tente
me contrariar”. Faz apenas um dia, mas acho que encontrar Hook
foi uma das melhores coisas que poderia ter acontecido. É como se
estivéssemos destinados a ficar juntos desde sempre.
— Tudo bem, mas se Eldas perguntar, eu lhe disse que ele deveria
ficar no seu quarto.
Dou de ombros. Depois de ontem à noite, já estou mais confiante
perto de Eldas. Contanto que ele mantenha sua parte no acordo,
talvez haja esperança.
Talvez, de alguma forma, estejamos nos aproximando um do
outro… um pouco?
Atravessamos a sala principal do meu apartamento. Ainda está
vazia, e comprar móveis está se tornando uma prioridade na minha
lista de afazeres. Está abaixo de “descobrir minha magia” e “parar o
ciclo da Rainha Humana”. Mas pode ser atingido com mais
facilidade do que esses outros objetivos e, além disso, ter um
apartamento mobiliado pode me deixar mais confortável durante
meus – espero que curtos – três meses aqui. No mínimo, seria bom
ter uma mesa de verdade para ler os diários e fazer anotações.
Descemos o mesmo caminho para a sala do trono. Assim como
antes, Rinni escuta através da porta antes de abri-la.
— Vossa Graça, Vossa Majestade e… o lobo de Vossa Majestade.
Eldas está diante da grande janela atrás dos dois tronos: um
criado pela natureza, o outro por mãos mortais. Suas mãos estão
cruzadas atrás das costas e sua longa silhueta é cortada
nitidamente contra a luz da manhã. Acho que ouço o eco de um
suspiro.
— Obrigado. Você pode ir, Rinni.
Rinni faz uma reverência e sai pela mesma porta pela qual
entramos. Eldas se vira para mim, olhando para baixo sobre seu
nariz em forma de lâmina. Seu rosto é tão duro que me pergunto
estranhamente se seria doloroso beijá-lo. Já sei que suas palavras
são mais afiadas que vidro. Será que sua língua também é?
Empurro os pensamentos da minha mente. Estou aqui para
trabalhar.
Ele olha para Hook.
— A fera ainda está aqui.
— O nome dele é Hook.
— Muito bem. — Ele balança a cabeça, resignado. — Temos
trabalho a fazer, com ou sem lobo.
Invoco minha coragem e digo:
— Sim, temos.
— Venha aqui. — Ele sente minha hesitação e acrescenta: — Não
vou forçá-la a sentar no trono.
— É mesmo? — Já está muito melhor do que da última vez.
— De verdade. É óbvio que precisamos começar com o mínimo.
Começaremos com você explorando seus poderes e se
familiarizando com eles. Precisamos aprender o quanto da força das
rainhas passadas você herdou — ele instrui enquanto atravesso a
sala. — Feche os olhos.
Obedeço. Com os olhos fechados, estou de alguma forma mais
consciente de sua presença. Escuto seus passos. Estou bem ciente
do momento exato em que cruza o limite do meu espaço pessoal –
ele está dolorosamente perto e o ar muda enquanto se move ao
meu redor.
Um rosnado baixo quebra o transe.
— Hook, shh. — sussurro. Talvez Rinni estivesse certa sobre
deixá-lo no quarto.
É uma risada suave que ouço? Eldas abafa rapidamente o ruído
agradável. Espio através dos meus cílios, mas ele não está mais na
minha frente.
— Tente alcançar a magia dentro de si. — A ressonância de sua
voz atrás de mim, quase perto o suficiente para mover os pelinhos
da minha nuca, me faz estremecer.
Recomponha-se, Luella.
— Sinta o poder que está lá.
— Não sinto nada.
— Você não vai dominar nada com sessenta segundos de esforço
— diz secamente. Não consigo evitar um sorriso sarcástico. —
Tente de novo. — Suas mãos descansam em meus ombros, leves
como plumas. Estremeço novamente quando ele passa os dedos
pelo veludo que cobre meus braços. — Sinta a magia sendo atraída
pelo ar, o poder que se acumula em suas mãos. Sinta como seus
pés se enraízam na terra. — Sua mão desliza ao redor do meu
quadril. Deixo escapar um suspiro quando seus dedos se abrem na
superfície plana do meu abdome. É como se a cada carícia minha
magia fosse ativada, ansiosa para responder a ele, como se meu
poder pudesse ir de mim para ele. — Você sente? O poder se
reunindo dentro de você? Uma fonte de vida esperando para ser
liberada?
— Eu… — Sinto alguma coisa, sim, senhor.
— Shh — diz, um pouco suave demais. — Concentre-se, Luella.
Por que meu nome soa muito melhor quando ele diz com sua voz
grave? Fecho meus olhos com mais força e tento mudar meu foco.
As únicas coisas que estou sentindo se reunirem dentro de mim são
desejos sombrios que certamente não estou pronta para admitir
para ninguém – inclusive eu mesma – tão cedo.
— Respire — ele sussurra. Faço o que manda. — Expire.
Estou maleável em suas mãos. Inspire, expire, concentre-se.
Eldas está atrás de mim, uma mão na minha barriga e a outra
descansando levemente nos meus dedos. Ele respira em sincronia
comigo. E, lentamente, os impulsos carnais que ele acordou com
seu toque desaparecem.
Respiramos juntos como um só e, na escuridão, algo novo está
florescendo.
O poder flui entre nós. Minha magia é mais como um lago largo e
raso do que um poço profundo; Eldas está na margem mais
distante. Olhamos para céus diferentes, quebrados pela silhueta um
do outro.
Nosso poder está conectado, mas vemos esse poder de forma
diferente. E porque entendemos de maneira diferente, o poder
funciona de forma única para cada um de nós.
Eu vejo vida. Ele vê morte. Dois lados da mesma moeda. Duas
metades que exigem que a outra exista.
Imagino-me ajoelhada à beira do lago. No entanto, meus olhos
nunca o deixam. Nem mesmo quando mergulho minhas mãos na
água.
Não é molhado ou frio como pensava. A água está morna e gira
em torno de meus dedos com um brilho fraco. Quando tiro minhas
mãos do lago, elas têm o mesmo brilho verde.
— Pouco a pouco — murmura Eldas.
Ele vê a mesma coisa que eu? Esta visão está além da minha
própria mente? É real, ou apenas como estou compreendendo o
poder inconstante que nos atrai como uma maré presa entre duas
luas?
— A magia responde a você, Luella. Você manda nela; a magia
não manda em você. Ela existe para servi-la, e você é sua
comandante. Nunca pense o contrário.
Suas mãos deixam meu corpo e reprimo um gemido inapropriado
de frustração. Minha pele está corada e quente onde ele tocou.
— Abra os olhos.
Abro-os enquanto ele anda ao meu redor. A luz da sala do trono é
muito brilhante. Pisco várias vezes, voltando minha mente para o
aqui e agora: o mundo físico.
— Isso foi real? — pergunto.
— Foi sua mente tentando compreender sua magia.
— Você também viu?
Ele parece surpreso que eu queira saber de sua experiência.
— Eu… vi algo. — Eldas se afasta de mim, escondendo a
expressão que acompanha aquelas palavras. Dou um passo à
frente, atraída por ele enquanto ele se afasta. Ele fala antes que
possa investigar mais: — Venha para o trono.
O calor suave que encheu meu corpo desaparece. O trono de
sequoia está diante de mim, alto e imponente. Ameaçador.
A ameaça é suavizada apenas um pouco pela presença de Hook.
O lobo está deitado aos meus pés. Seu queixo está apoiado em
suas patas e ele me observa com seus olhos dourados. De alguma
forma, até o animal parece esperar algo de mim quando se trata
deste trono.
— Você disse que eu não precisaria — sussurro.
— Este é o seu poder — Eldas diz delicadamente. — Você deve
se dedicar a aprendê-lo. Especialmente se você quer ter alguma
esperança de quebrar o vínculo da rainha com o trono.
— Mas…
É preciso apenas dois de seus passos largos para ele estar diante
de mim novamente. Eldas se move lentamente para minha mão e
permito que a pegue na sua. De alguma forma, esse toque é firme e
reconfortante.
— Você consegue. Você deve.
Tremo e forço meu corpo a se mover. É só um trono. Um trono que
quase me matou da última vez. Nada com o que se preocupar.
Certo. Se disser isso a mim mesma muitas vezes, talvez acredite.
Eldas guia minha mão para o trono, segurando-a logo acima do
apoio de braço.
— Só isso, por enquanto. Cumprimente o trono e seu poder, sem
se entregar a ele.
Estou congelada de medo.
— Está pronta? — ele pergunta baixinho.
— Só mais um minuto. — Minha voz treme levemente. Ele me dá
um minuto e mais um pouco, de pé, pacientemente segurando
minha mão na dele. Quando minha compostura está reunida, aceno
e ele pressiona minha mão contra a madeira.
Há uma centelha fervendo sob minha pele. Estalos crepitam nos
meus ouvidos. Mas permaneço aterrada em meu corpo. Desta vez,
não sou puxada para as garras mágicas do trono de sequoia. Pisco,
respiro lentamente. Hook solta um gemido baixo.
Eldas já me soltou. Continuo pressionando minha mão no trono
por minha própria vontade. Minha conexão com ele é estável e
calma desta vez. Posso sentir mais uma vez aquelas raízes
profundas se espalhando abaixo de mim na fundação dos mundos.
— O que você está sentindo? — ele sussurra. Suas mãos estão
atrás das costas novamente, mas a sensação delas ainda está no
meu corpo.
— Sinto o trono… esticando, tentando alcançar algo. Sinto a terra,
poderosa e sólida, enrolada nas raízes. Sinto… — rocha. Uma
camada dura de rocha que as raízes não conseguem penetrar. Em
vez disso, elas se agrupam logo antes dessa camada, em volta de
alguma coisa, como uma gaiola. Não posso dizer o que é essa
“coisa”. É um ponto preto na minha consciência; um lugar onde
meus sentidos limitados vão para morrer. Não me lembro disso na
primeira vez… mas a experiência é apenas um amontoado de dor
em minha mente agora.
— Quando estiver pronta, feche os olhos.
Respiro fundo e faço o que ele instrui mais uma vez.
— Sinta o Desvanecer que você atravessou, ao sul da cidade;
estamos bem no limite de Quinnar. Atravesse as planícies e colinas
para as montanhas orientais. Sinta seus cumes brancos e nevados.
Entre nas florestas profundas dos feéricos. Procure, no horizonte da
água, muito, muito ao norte, onde o Véu separa nosso mundo do
Além. Veja, mas nunca toque.
Enquanto ele fala, faço uma viagem por trás das minhas
pálpebras. Sou empurrada de um lugar para outro. É como se
corresse entre um local e outro para acompanhar suas palavras. À
medida que meus pensamentos mudam, minha consciência também
muda.
Estremeço quando o frio cortante das montanhas roça em mim.
Ouço o chilrear dos pássaros despertando para a primavera nas
florestas. Sinto o cheiro do ar salgado enquanto olho para um
horizonte vasto e escuro à beira do mundo.
Um lugar, e depois o outro. Cada local tenta amarrar gavinhas
mágicas em mim. A terra me suga por instinto. E um pequeno
pedaço de mim é deixado a cada passo.
Abrindo meus olhos, afasto minha mão e tento recuperar o fôlego.
O mundo gira e eu balanço. Eldas se move no canto da minha
visão. Hook é mais rápido.
— Estou bem. — Enterro uma mão no pelo do lobo. Ele vem até
minha coxa e se inclina contra mim para me dar o apoio do qual
odeio precisar. Apenas aquele pouco de magia já me deixou
esgotada. — Só… preciso recuperar o fôlego.
— Melhorou significativamente em relação à última vez.
— Cuidado, Eldas, isso soa como aprovação.
— Bem, sou um rei, devo ser perspicaz em demonstrar aprovação.
— Ele ajeita o casaco, alisando rugas invisíveis. Um movimento que
estou começando a associar à incerteza. Quase acho encantador.
Um sorriso cansado puxa meus lábios.
— Mesmo com sua esposa?
— Especialmente com minha esposa. — Seus olhos encontram os
meus. — Porque ninguém tem maior responsabilidade, ou poder, do
que ela. Sou mais exigente com aqueles que são mais capazes.
— E isso quase soou como um elogio.
— Entenda como quiser. — Ele olha para o trono como se meu
sorriso malicioso o deixasse – o poderoso Rei Elfo – desconfortável.
— O que você sentiu?
— O mundo, de novo. Mas desta vez com mais controle. Não senti
como se abutres estivessem me bicando até os ossos. — Endireito
o corpo, não mais me apoiando em Hook. A sala parou de girar.
— Ainda assim, o trono tirou magia de você — observa Eldas.
Concordo com a cabeça. Ele franze a testa. — Amanhã, vamos
trabalhar para proteger sua magia de forças que tentariam drená-la.
— Existem mais forças que sugariam de mim além da própria
terra? — pergunto.
— A terra pode ser a maior força, mas proteger-se dela pode ser a
tarefa mais fácil. Proteger-se de um ataque de um ser senciente é
muito mais difícil. — Parece que ele está falando por experiência.
— Quem faria isso?
— Você é uma rainha agora. Além disso, você é minha esposa.
Ambos os títulos trazem inimigos.
— Esta não é a primeira vez que você menciona inimigos… Quem
são eles?
— Você não deve se preocupar com isso.
— Claro que devo. — Pisco várias vezes para ele, esperando por
sua concordância. Eldas franze os lábios.
— Você estará segura no castelo. Fique aqui até sua coroação —
é tudo o que ele diz enquanto se afasta em direção a uma das
portas do lado oposto da sala. É como se ele estivesse se afastando
de se permitir chegar muito perto de mim. Como se a própria noção
o deixasse com medo. — Volte amanhã de manhã.
— Aonde você vai?
— Tenho negócios a tratar.
— E eu não poderia ajudar com esses negócios?
Ele pausa.
— Você não tem seu próprio trabalho a fazer para acabar com o
ciclo de rainhas?
— Pensei que você fosse me ajudar a realizar essa tarefa.
— Ajudarei, do meu jeito. — Eldas sorri levemente.
— Mas…
Ele fecha a porta com força atrás de si. Viro-me e estou cara a
cara com os tronos.
— Tudo bem, assim seja — murmuro e vou para a estufa.
Willow está esperando por mim. Hook rapidamente se torna sua
nova obsessão e nossa prática de magia hoje vai devagar por causa
disso. Mas tudo bem; estou cansada e posso me beneficiar de uma
pausa. Trabalhamos até o almoço, quando ele pede licença como
fez ontem para ir buscar comida para nós.
Estou com o nariz enfiado no diário de uma das rainhas do
passado, absorvendo o máximo de informações que posso, quando
Hook se levanta. Vejo, com o canto do olho, o lobo se mover. Ele
solta um rosnado baixo.
Ouço passos na entrada do laboratório.
— Hook, o que é… — Congelo.
Harrow está apoiado no batente da porta.
dezessete

— Olhe só quem está parecendo uma rainha de verdade hoje!


Harrow enrola as palavras. O cabelo do príncipe está pegajoso e
gruda no rosto, que tem uma palidez doentia.
— Já está aqui em cima, passando seus dias com plantas em vez
de com pessoas?
— Plantas raramente me atacam, ao contrário das pessoas. —
Lentamente fecho o livro, resistindo à vontade de correr até ele e
examiná-lo para determinar que doença ele tem.
— Discordo — ele ofega.
— Você precisa de atenção médica.
— Preciso de Poppy. Onde ela está?
— Willow mencionou que ela está em algum tipo de missão
especial. — Acho que foi isso que ele disse antes. Estava muito
focada em estudar os diários e Willow estava muito focado em coçar
atrás das orelhas de Hook para me explicar o que Poppy estava
fazendo.
Harrow amaldiçoa.
— Willow estará de volta em breve.
— Não quero o substituto — Harrow diz com raiva. Seu rosto está
contraído pela dor, o que o torna ainda mais feio do que o normal.
— Então que tal uma rainha?
— Como se fosse deixar você me tocar — diz, sem fazer esforço
algum para sair.
— Hmm — Reviro os olhos para a criancice que está fazendo e
aponto para um dos bancos. — Sente-se.
— Como você ousa…
— Como ouso tentar curá-lo mesmo depois de você ter sido um
idiota? — retruco. — Agora, sente-se, seu príncipe arrogante, antes
que sua teimosia faça você cair ou vomitar. — As duas opções
parecem possíveis.
Harrow me encara inexpressivamente. Seus olhos estão vidrados
e sem brilho; por causa da febre, presumo ao ver o quanto está
suando. Sua camisa gruda na porta e depois volta para sua pele
enquanto ele se move para se sentar. Rapidamente folheio os
diários. Sei como curar doenças, mas pode haver formas ainda mais
eficazes trancadas nestas páginas empoeiradas.
Ousaria usar minha magia justo agora?
— Você acordou se sentindo mal?
Ele ri e nega com a cabeça. Olho para ele. O banco range quando
ele se inclina contra a mesa.
— Então isso aconteceu mais tarde?
— Muitas coisas aconteceram … ontem à noite, esta manhã, em
algum momento… tempo, deslizando entre minhas mãos, dedos…
vida… ah, droga. — Ele não está fazendo nenhum sentido.
— Harrow, me diga o que não está bem.
— Tudo. — Ele bufa e amolece o corpo. Vejo sua cabeça pender,
e Harrow a pega rapidamente, apoiando-se na mesa. Corro até ele,
minha mão em seu ombro.
— Não me toque, humana.
— Pare com isso — digo, mais suave, tentando com todas as
minhas forças tirar o veneno da minha voz. Um canto feio de mim
quer deixá-lo sofrer, mas meu treinamento – tudo a que dediquei
minha vida até este momento – não deixa. — Posso curar você.
Mas preciso saber o que deve ser feito. Suas feridas estão dentro
de você, não posso vê-las, então preciso que me diga o que está
errado.
— Muita festa, é só isso.
Eu o vi ontem à noite, agora me lembro. Parecia estar bem mal.
Mas estava com seus amigos, certamente estavam cuidando dele…
Embora Aria parecesse bastante alegre, mesmo com Harrow
naquele estado…
— Você não parece ter vindo de uma festa — murmuro. — Parece
que você esteve em uma luta e perdeu.
Ele me encara, carrancudo.
— Já terminou de zombar de mim?
— Não tenho certeza. Posso zombar de você até virar um paciente
modelo? — Harrow rosna para mim. E Hook rosna em resposta, um
rugido baixo e feroz.
Harrow pisca, assustado, concentrando-se no lobo pela primeira
vez. Ele aponta e solta uma gargalhada.
— Espere… É um lobo mesmo? Ou estou alucinando de novo?
— É um lobo sim. — Afasto-me com cuidado, ajeitando-o e me
certificando de que ele não desmaie antes de eu voltar. — Vou
pegar algo que vai te fazer melhorar. Por favor, não desmaie nos
próximos cinco minutos.
Movo-me deliberadamente pela estufa. Colho babosa, dente-de-
leão, trevo vermelho, cardo mariano, urtiga e um grande ramo de
manjericão. De volta ao laboratório, misturo todos com açafrão, mel,
gengibre seco e salgueiro. Enquanto inspeciono minha mistura,
outra ideia passa pela minha cabeça.
Alucinando de novo, ele disse. Harrow continua a se inclinar. Se
não der isso a ele logo, vai virar uma poça no chão. Possivelmente
uma poça morta.
Eu não sei o que ele ingeriu, mas corro de volta e cuidadosamente
pego uma única folha da planta do coração. Willow disse que
aumentaria as propriedades de um antídoto. Se houver algo
suspeito em seu organismo, espero que ajude.
Segurando o punhado de manjericão com a mão esquerda, coloco
a outra no pote. Respiro fundo e me preparo. Dou vida para ganhar
uma mistura mais potente, penso alto comigo mesma.
O manjericão murcha enquanto extraio a vida dele. O poder passa
através de mim, misturando-se com o meu próprio. A magia cresce
em mim e a empurro pela palma da mão no caldeirão para a mistura
que criei.
Fortaleça as ervas, comando enquanto a magia muda minha
mistura de uma cor escura para um verde brilhante. Inalo, hesitante.
Tem o cheiro certo. Tudo parece certo.
Mas poderei confiar no meu instinto quando se trata de magia?
Olho de volta para Harrow. Ele está piorando rápido. Tenho a
impressão de que não aguentará até que Willow retorne.
Tenho que tentar.
Lentamente, coloco uma porção da mistura grossa em um copo.
Adiciono água o suficiente para torná-la potável. Harrow olha para
mim com ceticismo quando entrego a ele.
— Você vai me matar agora? — ele sussurra. — Atacar-me agora
que estou fraco para se vingar de mim pelo que fiz com você?
— Por favor. Tenho coisas melhores para fazer com meu tempo do
que matar você. — Trago a caneca para seus lábios. — Beba. E não
ouse reclamar do sabor. Você está com sorte, coloquei mel.
O mel é realmente ótimo na prevenção de inflamações e
infecções. Mas duvido que Harrow saiba disso e prefiro que pense
que lhe fiz um favor.
Harrow bebe devagar. Seu pescoço se move e a cor começa a
retornar às suas bochechas. Quase posso ver sua febre baixando.
Ele se senta mais ereto e enxuga a testa.
Volto para o caldeirão para pegar a segunda xícara. Acabei de
realizar magia sem problemas. Ontem à noite, esta manhã… apesar
do fracasso quando tentei fazer brotar um galho no Desvanecer,
estou melhorando. Talvez ainda haja esperança para mim. Quando
não estou pensando demais ou em pânico, minhas mãos parecem
saber o que fazer.
Embora saiba que seria tolice pensar que o trono de sequoia será
conquistado tão facilmente. Ainda assim, é bom ter algo dando certo
pela primeira vez.
Harrow é muito mais cético em relação a esta caneca do que à
primeira; odeio o fato de que devo tomar isso como um bom sinal de
que ele está voltando ao seu eu teimoso.
— O que tem aqui? — Ele cheira a caneca.
— Você viu tudo o que coloquei. Duvido que entenda o porquê,
apesar de não precisar; apenas beba. Quanto mais tomar do elixir,
melhor.
— É nojento. — Harrow torce o nariz enquanto toma um gole da
minha infusão.
— Mas está claramente ajudando. — Cruzo os braços.
Ele se resigna a beber a mistura em silêncio. Dou as costas para
ele e volto para os diários. Finjo folheá-los, mas estou muito nervosa
com sua presença para me concentrar, e continuo olhando para ele
para ter certeza de que minha magia não vai matá-lo
inesperadamente.
— Por que você me curou? — Sua pergunta interrompe meus
pensamentos e encontro seus olhos. Ele parece muito mais jovem
sem aquele sorriso perverso que estava usando desde a primeira
vez que nos encontramos.
— Porque era a coisa certa a fazer — digo finalmente. — Porque
esse é o meu trabalho.
— Acho que meu irmão mais velho discorda que isso seja seu
“trabalho”.
— Mais velho? — Arqueio as sobrancelhas, concentrando-me
nisso em vez de me demorar em Eldas e seu controle sobre minhas
circunstâncias. Não vou deixar Harrow – justo ele – abalar as bases
do relacionamento que estamos construindo. — Há mais de vocês?
— Pelo menos finja esconder sua decepção com o fato. — Ele
revira os olhos. — Eldas é o mais velho, depois vem Drestin, e
depois eu.
— Vocês todos têm a mesma mãe e pai?
— Que tipo de pergunta é essa? Sim, todos temos a mesma mãe
e pai.
— Sei que a última Rainha Humana não é sua mãe. — Descanso
minha mão levemente no diário de Alice. Ela parecia ter um
relacionamento… estranho com o Rei Elfo anterior.
— Aaaah, está investigando nossa ascendência porque quer saber
se você terá que dar à luz a pequena cria de Eldas? Não se
preocupe, o Rei Elfo tem amantes para gerar herdeiros.
Ignoro as observações. Não vou ficar aqui tempo suficiente para
abordar o assunto de quem vai lidar com herdeiros. Felizmente, o
assunto de consumar nosso casamento não surgiu nem nas
conversas nem nos diários que li. Fico feliz em ver que o
investimento do povo nas cópulas de seus governantes também foi
muito exagerado nas histórias que li quando menina.
— Onde está Drestin?
— Ele está no Posto Oeste. — Harrow toma outro gole de sua
bebida. — Ah, é verdade, você não sabe nada sobre nós. Deixe-me
explicar.
— Posso descobrir por conta própria — digo secamente.
— Posto Oeste é a fortaleza ao longo da grande muralha que faz
fronteira com as florestas feéricas — ele explica, de qualquer
maneira. — Foi construído há algumas centenas de anos e ajuda a
manter as lutas internas longe de nossas terras. Uma nomeação
honrosa para o nobre Drestin. — Harrow olha para o canto da sala,
zangado com algo que não consigo ver.
Eu rio baixinho e balanço a cabeça.
— O que é tão engraçado?
— Nada, é que você me lembra uma amiga. Ela tem duas irmãs, e
as brigas delas são épicas. — Pergunto-me como está Emma.
Espero que seu coração esteja aguentando o suficiente para que
Ruth não perca o controle a cada momento. Ela deve ter elixir
suficiente em estoque para durar alguns dias… Mas ela terá que
pegar a balsa para Lanton para comprar mais quando acabar –
agora é meu coração que está doendo por ela.
— Não me compare com vocês humanos e seus patéticos
problemas plebeus.
Eu rio, alto.
— Perdoe-me, poderoso Príncipe Elfo. Porque você parece muito
acima de nós, gente humilde, quando claramente está com inveja de
seus irmãos.
— Você não sabe nada sobre mim. — Harrow joga a caneca do
outro lado da sala. O pouco líquido que restou respinga no chão
antes que ela caia com um estrondo, estilhaçando.
Eu tenho um sobressalto, mas imediatamente me recomponho.
— Limpe isso, humana. — Ele aponta para a bagunça que fez e
marcha em direção à porta.
Harrow congela quando o rosnado de Hook se transforma em um
latido furioso. Ele se vira e, no momento que seus olhos encontram
os do lobo, Hook avança.
— Hook, não! — grito. A magia pulsa dentro de mim. Vejo o elixir
que fiz para Harrow sair do chão e desaparecer. O equilíbrio atende
minhas demandas por instinto: um pouco do elixir em troca de uma
barreira.
Mudas brotam impossivelmente das tábuas do piso de madeira.
Hook para de repente, latindo para a parede de folhagens que ergui
entre ele e Harrow. O lobo olha para mim com seus olhos dourados,
enquanto Harrow olha de mim para o lobo.
— Hook, não — repito, de alguma forma conseguindo manter
minha voz firme apesar da magia que acabei de fazer. Como fiz
isso? Felizmente Hook recua.
— Você… — os olhos de Harrow ocupam quase tanto espaço em
sua cabeça quanto suas orelhas enormes.
— Essa foi a segunda vez que salvei sua vida hoje. Um obrigado
seria apropriado —digo apertando os olhos.
Tudo o que recebo é um olhar furioso e Harrow foge, deixando-me
com a emoção e o temor da magia ainda formigando em meus
dedos.
dezoito

Não chego a contar a Willow o que aconteceu com Harrow. Não


sei bem o motivo. Sei que Willow ficaria do meu lado e sei também
que ficaria orgulhoso de mim por ter usado habilmente minha magia.
Mas a troca me pareceu privada. Tenho uma noção confusa de
que Harrow não gostaria que as pessoas soubessem do seu estado
vulnerável. Por mais que queira ignorar essa sensação, não posso:
a privacidade dos meus pacientes é sagrada para mim, no Mundo
Natural e em Entremundo.
Willow e eu nos separamos sem falar sobre Harrow, e invento uma
desculpa sobre uma tentativa de poção que deu errado para explicar
as tábuas do piso que ele precisou consertar com sua magia
silvestre.
Naquela noite trabalho até tarde, e ao amanhecer já estou de pé.
Vasculho os diários que trouxe do laboratório, procurando alguma
pista de como o equilíbrio é criado entre a rainha, o trono de sequoia
e as estações do ano. Começo com o diário de Alice.
A qualidade de suas anotações diminui conforme sua idade
aumenta. Sua letra vai ficando trêmula, os desenhos outrora
magistrais viram esboços toscos, vacilantes e difíceis de decifrar.
Sem aviso, eles param completamente.
Isso enche meu peito de uma dor profunda, diferente de qualquer
outra que já senti. Posso vê-la no laboratório, trabalhando até
esgotar suas forças enquanto seus dedos ainda cooperam. Imagino
suas mãos tremendo involuntariamente até que ela não possa mais
segurar a caneta. Imagino-a sozinha, ansiando pelo irmão – pelo
conforto da família – e por sentir o cheiro do ar salgado de Capton
só mais uma vez.
Imagino-me daqui a noventa anos murchando neste lugar frio com
nada além da agonia do trono de sequoia enchendo meus dias. É
um pensamento sombrio, que tento deixar de lado junto com o diário
de Alice.
Depois disso, leio os escritos das rainhas que vieram antes dela. É
mais fácil folhear as páginas que levam ao seu fim definitivo quando
não tenho nenhum tipo de conexão pessoal com elas. Consigo
endurecer minhas emoções depois do terceiro diário: o diário com
as notas amorosas sobre rosas.
Ela ficou com o coração partido pelo pensamento de deixar seu
rei, mesmo na morte.
Uma batida na porta me faz levantar o olhar da página. Esfrego os
olhos. Hook está deitado ao pé da minha cama mais uma vez; há
muito desistiu de tentar colocar o focinho sobre as páginas do meu
livro ou me cutucar para chamar atenção.
— Você está acordada? — Rinni pergunta, ainda na porta.
— Sim. — Estico meus braços, espreguiçando-me, e minha coluna
estala em vários lugares.
A general entra.
— Vim para avisar que surgiu um assunto urgente.
— Ah, é?
— Parece que uma delegação do Rei Feérico chegou ontem à
noite — ela relata.
— Achei que não havia um Rei Feérico, apenas um monte clãs
lutando entre si…
— De vez em quando eles se unem apenas o suficiente para
declarar um rei e jurar para o resto do mundo que são
apresentáveis. Este foi o que durou mais tempo, mas vamos ver se
consegue manter-se assim. Nenhum deles jamais manteve seu
poder por tempo suficiente para chegar ao Conselho dos Reis. —
Rinni dá de ombros. — Independente disso, Eldas me enviou para
informá-la de que não poderá se encontrar com você esta manhã,
conforme o planejado.
— Que pena… — Pulo da cama. — O que você vai fazer hoje?
— O que eu… vou fazer?
— Você está ocupada? — reformulo.
Hook se espreguiça com um gemido baixo e se sacode.
— Normalmente, eu ajudaria Eldas com a delegação… mas ele
me incumbiu de cuidar de você.
— Não consigo dizer se você está chateada com isso ou não. —
Abro um sorriso.
Rinni fica indignada.
— Eu… — Ela limpa a garganta — Vossa Majestade, protegê-la é
uma honra.
— É mesmo? — Arqueio minhas sobrancelhas e ando até o
armário. Deixo a porta aberta enquanto me troco para poder falar
com ela. — Ainda não sei dizer se você gosta de mim ou não.
— Não é meu trabalho gostar de você; meu trabalho é servi-la.
— Sim, mas… — coloco minha cabeça para fora e Rinni
prontamente olha de soslaio para meus ombros nus. — Prefiro que
você goste de mim. Caso não goste, tenho certeza de que podemos
encontrar outro guarda que goste.
Ela bufa e franze os lábios.
— Acho que já lhe disse; gosto de você.
— Ah, que bom. E você tem certeza que não estou te estorvando?
Você parece ser alguém muito importante.
— Sou a mão direita do rei. — A menção me paralisa por um
segundo, trazendo de volta a memória de Rinni tocando a face de
Eldas. Não posso deixar de me perguntar se há mais naquele toque.
Harrow havia mencionado algo sobre o Rei Elfo tendo amantes… —
E é precisamente isso que me fez responsável por você. Não há
mais ninguém em quem ele confie para mantê-la segura.
Por pouco me abstenho de perguntar se há algo que ela possa
fazer sobre Harrow.
— Bem, então gostaria de mobiliar meu quarto hoje. Você disse
que era algo que as rainhas normalmente faziam. — Saio do
armário. Rinni inclina a cabeça, estranhamente espelhando o
movimento de Hook. Mal consigo evitar rir dos dois.
— Sim, mas geralmente elas fazem isso após a coroação, quando
podem ir para a cidade.
— Então estou fadada a ficar sem móveis por três meses?
Rinni franze os lábios.
— Tenho uma ideia: acredito que os móveis das rainhas passadas
estão guardados em algum lugar do castelo. Você poderia começar
com eles por enquanto.
— Tudo bem, mostre o caminho.
Seguimos pelo castelo sem vida até uma sala na parte de trás.
Está claramente sendo usada como depósito, mas é do tamanho de
um pequeno salão de baile. Os únicos dançarinos são fantasmas de
lona apoiados por móveis.
— Tudo isso… pertencia às rainhas do passado?
— Até onde sei.
De certa forma, é como um cemitério. Com uma curiosidade
mórbida, ergo o primeiro lençol e revelo uma cadeira reclinável de
couro marrom flexível. É apenas um móvel, insisto para mim mesma
– mas posso ver o contorno de onde a rainha costumava se sentar.
Um calafrio me percorre, então abaixo o lençol. De repente, a sala
parece dez vezes mais fria.
— Acho que quero comprar novos.
— Mas…
Eu me viro.
— Não há uma maneira de sairmos escondidas? Posso cobrir
minha cabeça, prender meu cabelo e…
— Seus olhos — Rinni interrompe.
— O quê?
— Seus olhos a entregariam. Elfos têm olhos azuis.
Amaldiçoo baixinho.
— Não posso usar nada disso… — balanço a cabeça. — É um
bom esforço, obrigada, de verdade, mas não posso… Seria…
estranho. Como se estivesse vivendo com fantasmas. — Rinni dá
um suspiro solidário. Ela pelo menos parece entender por que sua
sugestão não vai funcionar. — Você tem certeza de que não há
como ir até a cidade para comprar meus próprios móveis?
Ela faz uma pausa, fechando e abrindo os dedos no punho da
espada.
— Rinni?
— Talvez possa haver uma maneira, se formos muito cuidadosas.
— Seus olhos estão vacilantes, como se estivesse duvidando de si
mesma por dizer qualquer coisa.
— Ah? — encorajo, ansiosa.
— Explico enquanto caminhamos. — Rinni gesticula para que a
siga, e rapidamente acompanho o passo.
O plano é bastante simples.
Rinni me leva até os seus aposentos, onde tiro meu vestido e troco
por algumas de suas roupas. Ela tem um apartamento modesto. As
prateleiras de armas eu esperava. Os materiais de pintura não.
Rinni não diz nada sobre seu hobby, então não pergunto – não sei
se deve ser segredo o fato de que a mão direita do rei também é
uma artista. De qualquer forma, não quero arriscar a paz que
encontramos.
Cuidadosamente coloco meu cabelo debaixo de um chapéu.
Mesmo que ninguém me conheça ainda, Rinni diz que o vermelho é
um tom muito distinto para que eu o deixe solto – embora algumas
faíscas vermelho-alaranjadas flutuem teimosamente em volta das
minhas orelhas.
A parte final do meu conjunto é um par de óculos de lentes verdes.
Aparentemente, os elfos terem todos a mesma cor de olhos fez com
que alguns decidissem que era moda usar óculos de diferentes
tonalidades; é como se estivesse usando um dos vitrais do templo
dos Guardiões no meu rosto, mas vou aceitar se isso me ajudar a
sair do castelo sem problemas.
— Acho que vai funcionar. — Rinni me avalia uma última vez. Ela
trocou seu traje habitual por roupas simples.
— Vai ser ótimo. — Avalio a mim mesma em seu espelho
comprido e estreito. — Vamos?
— Uma última coisa. — Rinni olha para Hook. — Ele tem que ficar
aqui.
Franzo meus lábios.
— Hook é…
— Hook vai se tornar rapidamente identificável como “o Lobo da
Rainha”. — Ela cruza os braços. — Se seu cabelo não pode ser
mostrado, Hook também não.
Suspirando, me viro para Hook.
— Você vai ter que ficar aqui. — Ele dá um ganido. — Não, eu
insisto. Rinni está certa, não há outro jeito. — Um latido. — Não use
esse tom comigo. Volte para meus aposentos, agora.
Ele dá um uivo desafiador e pula pela sala. Antes que possa detê-
lo, o ar brilha, as sombras se alongam e o lobo desliza entre elas
para o vazio. Rinni está tão assustada quanto eu.
— O que você fez? — ela sussurra.
— Eu… não sei. — O pânico sobe pela minha garganta e sai da
minha boca num suave “Hook?”
Nada.
— Hook, volte. — Levo as mãos aos lábios e solto um assobio
estridente. O lobo vem saltando de volta ao ouvir o comando, e
enterro meus dedos em seu pelo. — Bom menino. Você ouviu meu
assobio? Você realmente é o melhor dos meninos!
— Isso sim é útil — diz a general com admiração. — Um lobo que
Anda no Desvanecer… já vi de tudo.
— Ok, Hook, volte e brinque no Desvanecer. Eu te chamo mais
tarde.
Ele atende ao meu comando, e Rinni e eu partimos pelos
corredores dos fundos do castelo. Todos os caminhos levam de
volta ao átrio principal e às duas portas que Rinni destranca com
magia.
Respiro fundo no momento que entramos na cidade. Como se
estivesse dando as boas-vindas à primavera com um grande
abraço, estico os braços acima da cabeça e fico nas pontas dos
pés. Os dias estão se tornando inegavelmente mais quentes,
mesmo que ainda estejam um pouco frios demais para o meu gosto
e as noites ainda geladas.
— Você parece feliz — minha acompanhante finalmente comenta
enquanto caminhamos ao redor do grande lago no centro da cidade.
A geada desapareceu da estátua e os detalhes estão mais claros.
A rainha não está apenas ajoelhada… parece que ela está
enterrando alguma coisa, talvez. Vejo um monte de terra suas mãos
e talvez uma pequena muda que quase parece… familiar… Já vi
essas folhas antes, não vi? Mas o significado de ela enterrar algo,
ou o que ela pode estar enterrando, não compreendo. É algo para
procurar nos diários.
É provável que seja apenas a rainha plantando uma árvore
comemorativa ou algo semelhante. Rapidamente mudo meu foco de
volta para Rinni.
— É bom sair do castelo. — Observo sua expressão, procurando
qualquer sinal de que ela saiba sobre minha fuga duas noites atrás.
Não vejo nenhuma indicação.
Ela pensa em sua resposta enquanto andamos.
— Entendo que pode parecer que você é uma refém,
especialmente antes da coroação. Mas uma vez que você seja
apresentada a Entremundo, você poderá explorar Quinnar à
vontade. Rainhas do passado até faziam viagens para as várias
fortalezas e terras em todo o Reino dos Elfos… ou para o chalé real.
E, claro, você cruzará o Desvanecer todos os anos para comungar
com o Mundo Natural.
Franzo os lábios. Posso ver o caminho que seus pensamentos vão
seguir; como sua lógica está configurada. Olho para a longa escada
que leva ao túnel da montanha que cruza de volta ao Mundo
Natural.
— Rinni, por que você quis se tornar cavaleira? — pergunto.
— Eu… Porque meu pai era um cavaleiro e sou a única filha —
diz, levantando ligeiramente seus ombros tensos.
— Então sempre esperaram isso de você? —raciocino. Ela
assente. — Se você pudesse ser o que quisesse… o que seria? —
Com base no que vi no quarto dela, suspeito que já sei a resposta.
— Uma cavaleira, como meu pai, e seu pai antes dele. Venho de
uma longa linhagem de cavaleiros que serviram aos Reis Elfos por
séculos.
— Não. — Paro de andar e Rinni também. — O que você queria?
Esqueça sua família. Finja, por um minuto, que é órfã e não tem
ideia de quem foram seus pais ou o que eles fizeram. O que você
seria?
Rinni franze os lábios. Posso ver que a pergunta é desconfortável
para ela; No entanto, é notável que está se esforçando em busca da
resposta.
— Pintora — diz, finalmente. — Mas…
— Sem mas — interrompo. — Você quer ser pintora. Você é
cavaleira porque é o que se espera de você. E está tudo bem. —
Tento não julgá-la por isso. Willow também me vem à mente,
seguindo os passos de Poppy e dos avós de Poppy. Elfos parecem
gostar de fazer as coisas por tradição. — Mas você não fez essa
escolha por si mesma, não de verdade. Você fez isso porque
presumiram que você o faria e porque, imagino, criaria tensões em
sua família se você não tivesse se tornado cavaleira.
Ela suspira e começa a andar novamente, como se pudesse
deixar o assunto de lado. Ainda não estou pronta para desistir, mas
mudo o foco da conversa.
— Não estou tentando atacar ou chatear você — digo.
— Eu não deixaria você me chatear — ela resmunga.
— Ótimo. — Sorrio e recebo um minúsculo sorriso em troca. — Só
estou tentando dizer que não somos tão diferentes. E, talvez, por
causa disso, você possa entender como me sinto. Também tive
meus próprios sonhos, Rinni. Eu tinha uma botica. Queria ajudar as
pessoas com meu talento para lidar com ervas e poções. A cidade
inteira dependia de mim e investia em mim para que eu pudesse
fazer isso. Essa profissão, herbalista, era minha pintura. Mas o
mundo queria que eu fosse algo diferente. Então, não; eu não sou
refém no sentido literal. Mas me sinto assim, especialmente porque
a vida que tinha planejado para mim está fora do meu alcance.
Rinni suspira e passa a mão pelo cabelo com mechas azuis.
— Suponho que, dito assim, consigo entender.
— Obrigada. — Eu a cutuco e ela me olha, surpresa. Lanço um
sorriso brilhante. — Aprecio o esforço.
Um leve rubor cruza suas bochechas. Sério que está chocada
porque alguém lhe fez um elogio?
— Em todo caso — continua apressadamente. — Chegamos.
— Chegamos?
— O melhor marceneiro de Quinnar.
A loja do marceneiro está repleta de peças de mostruário e livros
com diagramas de móveis intrincados. Pó de serragem vem da sala
aos fundos, o que resulta no marceneiro meticulosamente tirando o
pó de seus balcões. Escolho algumas peças que já estão prontas ao
invés de pedir algo personalizado.
— Suspeito que ele saiba quem eu sou — digo a Rinni quando
saímos da loja.
— Talvez, provavelmente, especialmente depois de me ver com
você, mas ele é de uma longa linhagem de marceneiros — por que
não estou surpresa? — Trabalham para o castelo há gerações,
então confio na sua discrição. Não teria trazido você se não
confiasse.
Estamos a meio caminho de volta ao castelo quando ela faz uma
pausa.
— Oh, aqui há algo que quero que você experimente.
Navegamos pelo fluxo de pessoas na rua. À luz do dia, Quinnar é
uma cidade completamente diferente. Elfos andam de um lado para
o outro; bancas em frente às lojas vendem de tudo: de comida a
joias e a poções suspeitas que me fazem torcer o nariz.
Rinni me leva a um carrinho onde uma mulher está grelhando
massa em uma chapa. Ela pede dois. A mulher pega o bolinho,
corta-o ao meio e recheia com queijo. Depois de mais um minuto na
grelha, ela o entrega à general.
— Aqui. Estão entre os meus favoritos; pego um sempre que estou
patrulhando a cidade na primavera — explica Rinni enquanto nos
dirigimos para a beira do lago e nos sentamos em um banco. —
Começam a vendê-los um pouco antes dos ritos da primavera.
— O que são os ritos da primavera? — Harrow os mencionou
antes.
— Um grande festival de artes para dar as boas-vindas à
primavera. Normalmente as fronteiras do reino são abertas…
provavelmente por isso a delegação feérica está aqui. Há música,
dança, performances, canto e poesia. — Rinni suspira
melancolicamente. — Você vai amar. E então, na noite dos fogos, o
próprio céu é a tela, e o Rei Elfo pinta cores ardentes nele.
— Literalmente? — Não consigo evitar a pergunta.
— Claro! — Rinni dá uma risada. — Eldas é o mais próximo do
Véu, e o mais forte entre nós. Não há quase nada que ele não
possa fazer.
Tento imaginar Eldas pintando com fogo no céu, suas mãos ágeis
comandando a magia com a habilidade de um tecelão em seu tear.
Rinni olha para cima, como se já pudesse ver os traços brilhantes.
Há admiração em seus olhos – o que faz meu estômago revirar:
uma sensação que ignoro prontamente.
— Quando isso acontece?
— Geralmente uma ou duas semanas após a coroação.
— Ah. — Olho para o alimento em minhas mãos e tento evitar
qualquer tristeza. Não preciso ver Eldas fazer pinturas de fogo no
céu. Preciso ir para casa. Preciso cuidar dos meus pacientes. Na
verdade, não quero ver os ritos da primavera. Porque, se os vir, terei
ficado em Entremundo por muito tempo e nunca mais poderei
retornar ao meu mundo novamente.
— Há algo de errado? — a general pergunta, apontando para a
massa frita e interpretando mal a minha expressão. — Prometo que
é bom.
— Ah, tenho certeza. — Rapidamente dou uma mordida. O bolinho
é crocante por fora, mas macio e fofo por dentro. A casquinha meio
queimada adiciona um amargor bom à massa com gosto de milho.
O queijo se estica entre minha boca e o bolinho quando tento
morder, provocando risadas em Rinni e também em mim.
Por um momento, esqueço quem sou e onde estou.
No momento em que percebo que esqueci, o bolinho de queijo já
se foi e o momento despreocupado junto com ele. Mas, por um
breve momento, as coisas não estavam tão ruins. Não estavam
nada ruins. Estava comendo um alimento delicioso e rindo com uma
amiga. Estávamos aproveitando o clima e a movimentação
silenciosa da cidade ao nosso redor.
Foi uma felicidade acidental. Um breve vislumbre de como minha
vida poderia ter sido… talvez devesse ter sido, se estivesse
preparada para isso desde o início. Se tivesse vindo pronta para ser
a rainha, não estaria gastando meu tempo procurando uma maneira
de quebrar o ciclo. Em vez disso, estaria encontrando maneiras de
explorar e aproveitar minhas novas circunstâncias.
Suspiro quando meu olhar volta para a abertura na montanha que
leva através do Desvanecer.
— Devemos voltar para o castelo — digo.
— Sim, antes que alguém a veja.
Começamos a voltar, até que algo chama minha atenção, me
fazendo parar no caminho.
Lá, nos fundos de um beco entre dois prédios, está Aria. Ela fala
com olhares inconstantes e nervosos para uma criatura ágil que tem
chifres de veado brotando do topo de sua cabeça e asas de libélula.
Vejo o homem de chifres entregar a Aria uma pequena bolsa.
Então, seus olhos encontram os meus. Ela fica imóvel e
rapidamente me viro para alcançar Rinni com passos rápidos.
— Você está bem?
— Sim, tudo bem. — Apalpo a aba do meu chapéu, procurando
por fios de cabelo soltos. Ela não pode ter me reconhecido com
essa roupa, certo? — Pensei ter visto algo estranho. Mas há muitas
coisas estranhas aqui, para mim. — Forço um sorriso, e Rinni me
espelha.
— Estaremos de volta ao castelo em breve. — Ela acena para o
castelo à nossa frente e dá dois passos ansiosos. — Isso é pelo
menos um pouco familiar…
Um borrão no canto do meu campo de visão se solidifica em uma
forma atrás de mim. Uma mão prende um pano molhado sobre
minha boca antes que possa dizer qualquer coisa. O cheiro de algo
azedo e adstringente enche meu nariz e prendo a respiração por
instinto.
Mas é tarde demais.
Não sei em que mistura o pano foi embebido, mas não é algo bom.
Meus músculos começam a ficar moles e minha visão se turva.
Meus pulmões já estão queimando de tanto prender a respiração,
mas não posso inspirar. Se inalar mais, vou perder a consciência.
Perco Rinni de vista enquanto sou arrastada entre dois prédios.
Nem consigo gritar.
dezenove

Sou arrastada pelas ruas da cidade para mais e mais longe. A luz
brilhante do sol está esmaecida. Uma silhueta aparece diante de
mim — chifres e ângulos agudos, asas finas que se estendem de
uma forma pouco natural de suas costas.
Aquela criatura que vi com Aria.
— Continue segurando, ela ainda está acordada — um homem
rosna.
Pisco lentamente e luto contra todos os instintos de inalar grandes
lufadas de ar. Meus pulmões estão revoltados. Vou ser obrigada a
respirar em breve. Espero que, se acharem que desmaiei, removam
o pano.
Tão naturalmente quanto consigo, fecho enfim meus olhos e
permito que meu corpo fique pesado. Eldas havia dito que temos
inimigos. Por que não escutei? Por que não levei mais a sério?
O movimento para quando ouço gritos ao longe. São palavras
distorcidas e frenéticas. A escuridão atrás das minhas pálpebras
está rapidamente se tornando mais do que fingimento. Vou
desmaiar em breve.
No entanto, quando penso que estou prestes a perder minha
batalha com a consciência, o trapo é removido. Luto contra o desejo
de inalar grandes lufadas de ar fresco; ao invés disso, inspiro
lentamente para não alertar meus agressores.
— Vá e despiste-os. — Meus olhos ainda estão fechados, mas
posso reconhecer o homem com chifres apenas pela voz. — Vou
escondê-la.
— Você não tem nenhum rito preparado — outra voz sibila, tão
baixo que mal consigo ouvir as palavras. Ritomancia… é a magia
silvestre dos feéricos…
É Aria? Acho que quem está falando é uma mulher… mas não
tenho certeza. Há mais movimento. Há três ou quatro pessoas aqui
agora?
Meu coração retumba no peito. Quero pedir ajuda, quero chamar
Eldas; ele Andou pelo Desvanecer e me encontrou quando tentei
fugir. Não sei como o Desvanecer funciona, mas ele virá se eu
chamar, certo? Duvido… não tem como ele me ouvir. Ele acha que
ainda estou segura em seu castelo.
No entanto, o pensamento acende uma ideia.
Rinni deve ter olhado para trás e notado que eu sumi. A comoção
que ouço aumentando à distância deve ser ela guiando os
cavaleiros na minha direção. Só tenho que aguentar e lutar o
suficiente para que eles não possam me levar muito longe.
Eu consigo fazer isso, não consigo?
Duas mãos me agarram, me levantando. Ouço o zumbido de asas
poderosas. Sinto um oco no estômago e parece que estou sem
peso.
Estamos voando?
Abro os olhos e vejo o bater borrado das asas de libélula do
homem com chifres. Ele vai me levar embora voando, percebo.
Respiro fundo e penso na praça em Capton. Usei minha magia para
transformar coisas feitas por mãos humanas em natureza de novo.
Transformei ferro em árvores. Transformei pedra em musgo. Posso
fazer algo para me salvar.
É agora ou nunca. Entreabro os olhos e olho para o rosto do
homem com chifres – ele ainda não percebeu que não estou tão
incapacitada quanto pensava. Estou surpresa com o quão humano
seu rosto parece, apesar de suas asas e chifres. Mas não me
permito distrações.
Estendo a mão para o colar de contas em volta de seu pescoço e
fecho meus dedos. Ele olha para baixo, quase me derrubando. Um
silvo e um palavrão lhe escapam.
Transforme, ordeno, transforme-se em trepadeiras, galhos de
árvores, qualquer coisa! As contas estremecem, quase ganhando
vida. Ele me empurra em seus braços, esticando o pescoço para
longe. Tento me concentrar na minha magia, mas escorrego dos
braços do homem.
O colar arrebenta e caio no chão, aterrissando com um baque
forte. Felizmente, não estava muito alto ainda, mas estava alto o
suficiente para que o impacto me tirasse o fôlego.
Ele pousa ao meu lado, espreitando com um rosnado.
— Como se atreve, humana?
Nem perco tempo respondendo. Minha magia ainda pode ser
muito ineloquente para que eu a comande assim de supetão, mas
sei outra coisa que vai me atender.
Levando meus dedos aos lábios, solto um assobio estridente.
— Hook, venha! — grito. O homem com chifres se lança na minha
direção e vejo o ar ao lado dele brilhar. Hook salta das sombras. —
Hook!
Meu lobo emite o que soa quase como um rugido em vez de um
rosnado e corre em direção ao homem com chifres. Meu atacante
mal tem chance de reagir antes de ser atacado. Hook salta sobre
ele e afunda os dentes em suas asas, o que o faz soltar um grito de
agonia.
Eu me afasto até que minhas costas atingem uma das paredes
sujas de um prédio.
— Hook! —chamo, fraca. A fera se transformou em nada além de
raiva e dentes. Hook arranca uma das asas do homem. — Hook,
pare! — Fico em pé.
Ele me atacou. Tentou me sequestrar. E, no entanto, assim como
com Luke, não consigo vê-lo mutilado pelos ataques cruéis do lobo.
— Hook…
— Lá! — A voz de Rinni ecoa por sobre a minha. Ela está na
entrada do beco. Soldados passam por ela, correndo em nossa
direção. O homem está no chão. Hook tem seu joelho entre as
mandíbulas e se recusa a soltar.
Ainda assim, o homem levanta as mãos, entrelaça os dedos e os
abaixa na cabeça de Hook.
— Pare! — grito. Os cavaleiros não vão nos alcançar rápido o
suficiente. Ele continua batendo em Hook até que o lobo o liberte e,
mesmo depois, não cede. — Eu disse pare!
Ele estende a mão para mim enquanto corro para segurar seus
braços. O homem tira uma lâmina de sua manga e me puxa para
perto. A prata fria está debaixo do meu queixo; a ponta perversa e
afiada me cutucando.
— Não se aproximem! Ou aproximem-se, e vou matá-la.
— Mate-a e você condenará a todos, seu tolo! — A voz de Eldas
vem de trás de nós e é a encarnação da malícia. Ela desliza pelo
chão, sobe e enche o ambiente. As sombras parecem se alongar. A
temperatura do ar cai.
O homem com chifres fica rígido. Ele tenta se virar, mas não
consegue. Seus braços se desvencilham de mim e vejo seu corpo
bater frouxamente contra a parede oposta. Tremendo, olho para sua
forma ensanguentada, contorcendo-se e estalando.
Uma mão segura meu cotovelo. Eldas me puxa contra si. Seu
braço desliza em volta da minha cintura e agora estou colada a ele.
Protegida. Segura. O Rei Elfo olha para o mundo com raiva e
poder distorcidos. No entanto, sou a antítese de tudo isso. Ele me
segura com firmeza, mas gentilmente.
— Eldas… — sussurro. — Não. — Meus olhos disparam do
homem para Hook. O lobo geme baixinho. Apenas a visão do meu
agressor batendo na cabeça dele quase me faz querer retirar
minhas palavras.
— Luella, este não é o seu mundo — ele me lembra. Ouço nas
entrelinhas, este não é Luke. — Esta escória feérica quis machucá-
la, e vai morrer por isso.
— Se você… se você nos tivesse devolvido nossas terras… isso
não teria acontecido — meu aspirante a sequestrador sibila. —
Entremundo está morrendo sob o domínio dos elfos. Não vamos
parar até que consigamos o que é nosso e fiquemos livres para
controlar nosso próprio destino.
— Ele deveria ser levado à justiça, levado cativo para julgamento.
— Olho para Eldas, implorando para a estátua de um homem que
tem raiva fervendo atrás de seus olhos; mais quente do que
qualquer emoção que já vi nele.
— Isso é justiça. Minha justiça.
Afasto meu olhar, pressionando meu rosto no peito de Eldas
enquanto um som horrível de algo sendo despedaçado enche meus
ouvidos. Posso ter gritado. O braço de Eldas se aperta ainda mais
ao meu redor e o mundo fica escuro enquanto me leva pelo
Desvanecer com ele.
vinte

Eldas me leva até meu quarto e conjura sem palavras um fogo que
começa a crepitar na lareira. Sento-me no chão diante das chamas,
e sinto um cobertor ser colocado suavemente sobre meus ombros
trêmulos. Ele murmura que estarei segura.
Ele desaparece e retorna mais uma vez, desta vez com Hook em
seus braços. Eldas coloca o lobo aos meus pés. Hook choraminga e
seus olhos geralmente brilhantes estão distantes e vítreos. Mas ele
responde bufando suavemente quando coço sua cabeça.
Olho para trás para agradecer a Eldas por trazer o meu lobo, por
garantir sua segurança, mas ele se foi. E estou sozinha com o som
miserável de um corpo se partindo ao longe ecoando em meus
ouvidos.
Eldas: civil e brutal; frio e quente; capaz de bondade, mas
consegue facilmente ser cruel. Ele chamou Entremundo de um lugar
duro quando o ouvi conversando com Rinni. Não tinha entendido
completamente até este momento.
Este… este não é o meu mundo, lembro-me outra vez. As regras
que sempre soube não se aplicam aqui. Fui tola em pensar que
essas regras estavam relacionadas apenas à magia e às pessoas
que a exercem.
Não é apenas magia. Tudo é diferente.
Como poderia me encaixar aqui?
O sol está mais alto no céu quando o Rei Elfo retorna. Ele não
Anda pelo Desvanecer para chegar ao meu quarto. Desta vez, usa a
porta.
Eldas hesita na entrada, esperando por algo. Não consigo olhar
para ele. Não sei o que vou ver. Será um assassino? Será o homem
cuja carícia acende meu desejo?
Enterro as mãos no pelo de Hook em busca de força. Fecho os
olhos com força e inspiro, trêmula. Tudo o que vejo é o rosto de um
homem – um feérico – morto… morto por Eldas…
Olho fixamente para o fogo, tentando queimar as memórias. Não
quero enfrentar essa verdade. Não consigo lidar com as coisas se
tornando mais complicadas. O peso de Eldas aparecendo de
repente ao meu lado me tira do transe. Só percebo que estou
tremendo quando ele me envolve timidamente com um braço.
Aconchego-me involuntariamente. Parte de mim acha que deveria
temê-lo; a outra parte precisa dele e de toda a estabilidade que
pode oferecer.
Como se sentisse essa necessidade, Hook levanta a cabeça
cautelosamente, apoiando-a pesadamente no meu joelho.
— Quis protegê-la — ele diz baixinho, finalmente. Tenho um
sobressalto com a quebra repentina no silêncio em que fui sufocada
a tarde toda. — Foi por isso que disse para ficar no castelo. —
Consigo ouvir sua voz vacilar, como se estivesse lutando contra o
mau humor. Mas, pela primeira vez desde que o conheço, ele luta e
vence. — Independentemente do motivo pelo qual aconteceu,
lamento que você tenha tido que suportar isso.
— Você está certo — sussurro, continuando a encarar o fogo. —
Deveria ter ouvido. Deveria ter ficado no castelo. Só queria ter um
momento de liberdade, algo que fosse meu. Mas se eu tivesse feito
o que você pediu, então aquele homem ainda estaria vivo. Por
minha causa…
— Não — Eldas diz com firmeza, não me permitindo terminar o
pensamento. Seu toque é suave em contraste com a palavra dura.
Sua mão livre descansa no meu queixo, sua carícia suave
substituindo a memória da lâmina na minha garganta enquanto guia
meu rosto para olhar para o seu. — Isso não foi culpa sua. Entendo,
Luella. Mesmo que eu desejasse que você tivesse ouvido meus
avisos e não tivesse ido embora. Entendo querer escapar deste
lugar. — Vejo anseio e nostalgia brilhando nas águas de uma
profunda tristeza em seus olhos. — Aquele homem morreu porque
tentou atacar a Rainha Humana.
— Por quê? Por que me atacar? — Seguro a camisa de Eldas
gentilmente, como se estivesse me agarrando a uma resposta que
provavelmente não está lá. — Não quero machucar pessoas. Eu
trouxe a primavera!
— Nem todo mundo ama a Rainha Humana — Eldas diz
solenemente.
— Mas…
— Alguns veem você como uma noção ultrapassada. Alguns
desejam se juntar ao Mundo Natural e conquistar a humanidade. —
Sinto um arrepio, e Eldas me puxa para mais perto. Eu permito.
Assassino e protetor, as duas palavras rondam minha cabeça
enquanto meu corpo é pressionado contra o dele. O movimento
parece ter sido inconsciente, porque, por um momento, ele está tão
assustado quanto eu com isso. Limpando a garganta, Eldas
recupera a concentração. — Outros já sentiram que a linhagem de
Rainhas Humanas está desaparecendo; cada rainha é mais fraca do
que a anterior.
— Meu poder realmente é mais fraco? — A mim sempre pareceu
tão forte. Apesar disso, as palavras de Luke sobre os próprios
Guardiões saberem que o poder da rainha estava desaparecendo
voltam à minha mente.
— Você pode achar difícil de acreditar — ele admite, como se
estivesse lendo minha mente —, mas é. Pense em como o trono a
devastou na primeira vez em que se sentou nele. Além disso, a
natureza em Entremundo não é estável como antes, e isso está
criando dificuldades à medida que os alimentos se tornam mais
escassos e a terra viável é mais valorizada do que nunca.
Abaixo a cabeça.
— E eles culpam a Rainha Humana pela situação da terra.
— Eles não entendem que a rainha faz tudo o que pode.
Balanço a cabeça.
— Precisamos encontrar uma maneira de quebrar o ciclo.
— Eu sei. — Eldas se mexe. Sua expressão é dura, mas não
fechada; ele é resoluto, tudo o que eu esperaria de um rei. Seus
olhos estão pesados enquanto encaram as chamas. Pergunto-me o
que ele vê na luz dançante. — Devemos isso ao nosso mundo e aos
futuros reis e rainhas. Temo que você possa ser a última rainha.
Mas mesmo que nada disso fosse verdade, ninguém deveria ter que
suportar o que você precisa… o que você vai continuar a suportar. E
nenhum outro rei deveria… — Ele se detém.
— Deveria o quê?
— Deveria ter que ver sua rainha com uma faca na garganta. —
Seu olhar se volta para mim. Está cheio de uma emoção que não
ouso nomear; uma expressão irremediavelmente presa entre o
desespero e o desejo.
Minha respiração fica presa em minha garganta.
— Você estava… preocupado comigo?
Ele ri suavemente. Nossos rostos estão próximos o suficiente para
que o ar que sai de sua boca acaricie minha face e provoque meu
cabelo.
— É claro que estava preocupado com você. É meu dever
protegê-la. — Eldas estende a mão e coloca uma mecha rebelde de
cabelo atrás da minha orelha. O movimento terno contrasta com
suas palavras secas.
Sinto um peso no estômago.
— Não sou nada mais do que um dever para você? — Não sei o
que quero que ele diga, e arrependo-me instantaneamente de
perguntar.
— Você é… — Seus olhos se estreitam um pouco, como se
estivesse tentando me ver melhor.
A pausa é terrível.
Meu cérebro tenta adivinhar mil palavras presas atrás de seus
olhos enigmáticos. Imagino-o dizendo sim. Consigo ouvi-lo dizer
não. Endireito o corpo, tentando me distanciar dele e da pergunta.
— Está tudo bem — digo apressadamente. — Não precisa
responder. Entendo o peso do dever. — E meu dever me faz
procurar uma maneira de terminar este ciclo. Acabar com isso seria
a melhor ajuda para Capton, não seria? E então eu poderia voltar e
escapar desta terra de magia silvestre.
Eldas alivia a tensão mudando de assunto.
— Hook parece estar bem. — Ele estende a mão para coçar atrás
das orelhas do lobo, que permite, mas não sai do lugar.
— Graças aos Deuses Esquecidos.
— Você realmente se importa com a criatura.
— Eu me importo com todos os meus amigos. — Olho em sua
direção. Espero que ele ouça o que estou insinuando: seja meu
amigo e me importarei com você também. Eldas segura meus olhos
atentamente, como se esperasse que eu dissesse mais. Mas minha
garganta está muito pegajosa. Ao invés disso, procuro uma
alternativa. — Posso te perguntar outra coisa?
— Você pode me perguntar qualquer coisa. — Sua sinceridade me
assusta, mas rapidamente dispenso o sentimento. Falar de política
vai esfriar o calor que sobe em minha face.
— A criatura era um feérico, certo?
Ele assente.
— Todos são daquele jeito? Chifres de veado e asas de libélula?
— Muitos são. Embora suas características variem. No entanto,
muitas vezes eles usam glamour para se disfarçar.
Estremeço ao pensar que essas criaturas podem estar à espreita
em qualquer lugar. Pela primeira vez, sou grata pelo castelo estar
tão vazio. Continuo o assunto; falar está ajudando a apagar a visão
e o som da morte daquele homem.
— Então qualquer pessoa poderia ser um? — sussurro.
— Água doce apaga o glamour dos feéricos — Eldas diz,
tranquilizador. — A fronteira com os feéricos está bloqueada por um
muro e água doce. As únicas pontes são fortemente vigiadas.
Feéricos não entram em nossas terras sem que saibamos.
— Mas a delegação feérica…
— Eu os mandei embora — diz secamente. — Não suportaria
olhar um segundo a mais para eles. E se tiveram alguma coisa a ver
com essa trama, não os quero em meu território. Ninguém mais
entrará ou sairá até sua coroação ou até… até que você esteja de
volta ao Mundo Natural. Rinni cuidará da remoção deles
pessoalmente.
Mal consigo resistir a pedir para ele não ser muito duro. Mas então
aquele som horrível enche meus ouvidos, e estou lutando contra os
tremores. Este não é o meu mundo, ou a minha justiça.
— Como eles roubaram você de Rinni? — Eldas pergunta.
— Fiquei para trás, por um momento… tudo aconteceu tão rápido
— murmuro. Por mais que não queira pensar nisso, outra coisa vem
à tona nessas memórias manchadas de carmesim. — Aria estava lá
— sussurro.
— O quê? — Eldas faz uma careta. — Com os sequestradores? —
pergunta rapidamente.
— Não, não… eu a vi falando com o homem com chifres pouco
antes.
— Tem certeza de que era o mesmo homem? Tem certeza de que
era ela? — Eldas se move para me olhar diretamente nos olhos. —
Você precisa ter certeza absoluta.
Tento organizar minhas memórias, mas depois de passar o dia
afastando-as e apagando-as… Balanço a cabeça.
— Acho que sim… Com certeza era ela. Talvez tenha sido assim
que me identificaram, já que Harrow permitiu que Aria, Jalic e Sirro
me vissem antes da coroação.
Eldas está em silêncio, olhando para o fogo. Ele vê algo que não
vejo.
— Você acha que ela estava envolvida? — atrevo-me a perguntar.
Não gosto da ideia de alguém que poderia estar envolvido em uma
tentativa de sequestro sendo autorizado a entrar e sair do castelo.
Depois de mais um minuto de silêncio, pressiono:
— Eldas?
— Não — diz, finalmente. — Duvido que esteja…
— Mas como você…
— Aria é a sobrinha do atual Rei Feérico.
— Ela é feérica? — pisco, assustada.
— Meio-feérica. E seu lado elfo é o dominante. O irmão do atual
Rei Feérico era seu pai, embora tenha morrido quando ela era
jovem. Aria foi criada em Quinnar com sua mãe. — Eldas balança a
cabeça. — Os benefícios para a diplomacia por um risco muito
pequeno para nós são parte do motivo pelo qual permito a amizade
de Harrow com ela. Nós a investigamos minuciosamente quando se
tornaram amigos anos atrás. Ela é problemática, sim… — Ele
suspira. — Mas o tipo de problema que Aria pode causar está muito
longe do sequestro de uma Rainha Humana. Seu problema se
manifesta em fazer com que meu impressionável irmão fique fora
até tarde ou beba demais.
— Você tem certeza? — Não consigo evitar a pergunta.
— Se ela estivesse envolvida em um complô para sequestrar
você, estaria agindo contra sua família e seu próprio interesse. Se o
Rei Feérico estiver envolvido, então qualquer vantagem que ele
esperasse ter com os elfos está perdida. E Aria sabe cuidar de si.
Tentar machucar você limitaria severamente as perspectivas dela —
explica. Considero. Faz sentido, suponho. Afinal, o que sei da
política de Entremundo? Muito pouco. Estive tão concentrada em
aprender sobre minha magia e procurar uma maneira de quebrar o
ciclo que não tive a chance de mergulhar mais fundo em todo o
resto.
— Se você tem certeza — murmuro.
— Se ela estiver envolvida, eu mesmo cuidarei disso — Eldas jura.
Rapidamente mudo de assunto, não querendo pensar em Aria
sendo dilacerada membro por membro.
— O homem disse algo sobre querer sua terra, sobre você
devolvê-la. O que ele quis dizer?
Eldas passa a mão pelo cabelo. Observo enquanto a cortina de
seda preta cai sem esforço de volta no lugar.
— Quando os feéricos começaram suas lutas internas, foram anos
de disputas sangrentas que se refletiram na área ao redor. Houve
ataques a assentamentos de elfos quando as fronteiras de nossa
terra eram mais borradas do que são agora. A maioria não foi
provocada; feéricos saquearam recursos ou simplesmente pegaram
nosso povo no fogo cruzado. Isso provocou uma rápida retaliação.
— Retaliação do seu pai? — pergunto-me de onde ele herdou sua
veia brutal.
— Não, bem antes dele. — Eldas olha para o fogo. —
Eventualmente, os elfos ergueram um muro: aquele coberto de água
doce em toda a sua extensão.
Lembro-me do que Harrow havia dito sobre o irmão deles, Drestin,
ter recebido uma posição honrosa em algum muro.
— O muro foi um esforço para impedir a luta. Mas quando a poeira
começou a baixar e os clãs se cansaram de suas guerras,
descobriu-se que a muralha havia invadido uma grande faixa de
território anteriormente feérico.
— E agora eles o querem de volta?
— Eles querem há séculos. Mas no momento que eles deixaram
sua reivindicação clara, nosso povo já havia se estabelecido na terra
há muito tempo. Mesmo que devolvêssemos a eles, é incerto quem
o aceitaria e quem governaria. A delegação feérica que estava aqui
chegou para discutir a absolvição do dízimo para entrar no território
dos elfos para os feéricos. Eles acham que se sua terra ancestral
não pode ser devolvida, eles deveriam pelo menos poder entrar nela
livremente. Mas depois de hoje, duvido que algum dia…
— Não deixe o que aconteceu hoje mudar as coisas — digo
rapidamente. — Aquele homem pagou por seus crimes. A menos
que ele estivesse agindo em nome do Rei Feérico… não deixe que
todos os Feéricos sofram por causa de suas escolhas.
Eldas me estuda tão atentamente que me mexo e puxo o cobertor
mais apertado em volta de mim, como se pudesse me proteger de
seu olhar investigativo.
— Você quer que eu não os rejeite?
— Gostaria que você governasse com justiça, força e honra.
Um sorriso cansado curva os cantos de seus lábios.
— Você me lembra ela, às vezes.
— Quem? — Imagino que alguma amante da qual ele tenha
desistido antes que eu chegasse ao castelo.
— Alice. — Certamente não era quem eu estava esperando.
Agarro o cobertor com mais força.
— Você deve tê-la conhecido bem, não é?
Uma sombra cruza seu rosto e Eldas balança a cabeça, como se
estivesse arrependido de ter dito qualquer coisa. Posso senti-lo
recuar mentalmente antes de recuar fisicamente. Observo-o
enquanto se levanta, lutando contra o estranho desejo de puxá-lo de
volta para perto do fogo comigo.
— Você deveria descansar um pouco — diz suavemente, mas com
firmeza.
— Eldas…
— Vejo você pela manhã para praticar sua magia.
— Mas… — Não consigo terminar. Ele está do lado de fora,
recuando com uma pressa que nunca vi antes. Olho para Hook, que
geme baixinho e inclina a cabeça para mim em resposta.
— Também não o entendo.
O lobo fica em pé, espreguiça-se e vem sentar-se onde Eldas
estava. Inclino-me contra ele em busca de apoio e a fera exala
suavemente, mas não se move. Hook ainda fica mesmo depois que
adormeço em seu ombro peludo.
vinte e um

Na manhã seguinte, Rinni chega como em todas as outras. Ela


não diz nada sobre me encontrar dormindo no chão. Na verdade,
ela está estranhamente quieta.
Hook ainda está sonolento, e digo a ele para ficar em meu quarto.
Ele não resiste, e já estou pensando no que posso arranjar mais
tarde no laboratório com Willow para fazer com que meu
companheiro se sinta melhor.
— Rinni, sobre ontem… — começo enquanto caminhamos para a
sala do trono. Ela nem se vira para mim. — Quero me desculpar
com você.
Silêncio.
— Você estava certa — continuo com toda a sinceridade que
tenho. — Eu estava errada. Deveríamos ter ficado no castelo.
Mais silêncio.
— Rinni…
— Estarei esperando por você quando terminar com o rei, para
levá-la até Willow — diz, suas palavras sem emoção. Raiva teria
sido mais fácil de lidar.
— Eu posso encontrar Willow sozinha.
— Vossa Majestade me instruiu que você não deve ficar sem
escolta, mesmo no castelo. Eu gostaria de me apressar com este
passeio, no entanto, pois tenho assuntos para discutir com os outros
cavaleiros-chefes sobre patrulhas e segurança da cidade.
— Eldas pareceu pensar que o castelo estaria seguro agora que a
delegação se foi.
— É a vontade do nosso rei — Rinni para diante da porta da sala
do trono. — E não cabe a nós ir contra sua vontade.
Rinni não me dá a chance de dizer mais nada antes de ser
conduzida à sala do trono para mais uma manhã de prática de
magia.
Eldas está distante mais uma vez. É como se toda vez que ele se
aproximasse um pouco que fosse, ele compensasse afastando-se
mais na próxima vez que nos encontrássemos. Ele fica vários
passos longe de mim o tempo todo, o que só me faz pensar ainda
mais sobre suas carícias quando começamos a trabalhar juntos.
Pensava que o espaço me faria sentir melhor. Este homem que
destruiu uma pessoa. Mas a distância entre nós só me faz sentir frio.
De alguma forma, é mais um lembrete do que ele é capaz. Eu quero
o homem terno que veio até mim ontem à noite. No entanto, não sei
onde ou como encontrá-lo.
Minha magia combina com minhas emoções. Às vezes, atende à
minha vontade e à instrução de Eldas. Continuo a explorar o trono
de sequoia, tentando descobrir o que é aquele lugar escuro. Tudo o
que consigo entender antes que minha magia comece a falhar é que
o trono parece ter crescido naquele local.
Assim que Eldas considera a sessão terminada, ele parte sem
dizer palavra. Sequer tenho a chance de discutir o que aconteceu
ontem. Abraço a mim mesma e vou para o laboratório, com Rinni
me escoltando em silêncio.
Felizmente, pelo menos Willow está normal.
Ele me ouve enquanto falo sobre o incidente na cidade,
permitindo-me expor todos os sentimentos confusos que tive desde
ontem à tarde.
— Os feéricos são uma bagunça — ele suspira quando termino. —
O que é triste, porque eles têm uma magia e tradições tão
fascinantes. Ouvi dizer que alguns dos rituais para carregar sua
magia podem levar dias. Às vezes eles caçam por anos para
angariar todos os itens necessários. E os próprios rituais são
repletos de dança, meditação ou, às vezes, até esporte sangrento.
Não quero pensar em sangue.
— Eu sei como os elfos amam tradição — digo, tentando afastar o
pensamento.
Willow ri quando estende a mão sobre a mesa do laboratório e
aperta a minha.
— Estou feliz que esteja bem.
— Eu também. Mas temo que possa ter colocado Rinni em um
monte de problemas.
— Se alguém vai ficar bem, é Rinni. Não há a mínima chance,
daqui até o Véu, de Eldas algum dia puni-la.
Sou levada de volta para aquela sala secreta com vista para a sala
do trono, a mão de Rinni na face de Eldas. Graças aos diários,
confirmei o que Harrow disse: os Reis Elfos têm amantes. O
pensamento dá origem a uma pergunta, para a qual já sei que
preciso de resposta.
— Como é o relacionamento entre Eldas e Rinni? — Reúno minha
coragem e pergunto.
— Rinni é o braço direito do Rei Eldas e a general do exército de
Lafaire.
— E aqui está ela, perdendo tempo me protegendo.
Willow mexe no meu nariz e ri. Não posso deixar de abrir um
sorriso.
— Pare com isso. Você é a Rainha Humana. Proteger você é
tudo, menos perda de tempo. Está mais para a maior honra
de todas.
Suspiro e reformulo minha pergunta anterior.
— Eldas e Rinni são… íntimos?
Willow pisca várias vezes. Posso dizer que ficou instantaneamente
desconfortável.
— Luella, isso não é algo que você deva perguntar sobre o Rei
Elfo.
— Pense em mim como uma mulher perguntando sobre o homem
com quem ela é casada, então.
— Realmente não sei de nada. Não me intrometo em assuntos
reais. Você teria que perguntar a um deles. Não é da minha conta.
Tamborilo os dedos na mesa, pensativa.
— Sabe, essa é uma excelente ideia, Willow. Acho que vou
procurar Rinni quando terminarmos aqui.
— Você não pode estar falando sério.
— Estou.
Willow coça a cabeça, nervoso.
— Tudo bem, mas vamos fazer tortinhas de limão primeiro.
— Tortinhas de limão?
— São as favoritas de Rinni.
— Como você sabe?
— Estou no castelo praticamente desde que nasci. Sempre estou
aqui com Poppy, estudando para ser o próximo curandeiro do
castelo. Mas suponho que ouvi algumas coisas sobre os poucos
outros com quem convivi. — Ele dá de ombros.
Eu mal resisto a apontar que, se ele ouviu “algumas coisas”,
provavelmente ouviu a verdade sobre Rinni e Eldas. Mas eu resisto.
Willow está certo, não é um assunto que ele possa comentar. E
algumas vezes é melhor perguntar direto na fonte.

***

No final do dia Willow me conduz, junto com uma pequena caixa


de tortinhas de limão e laranja que passamos a tarde fazendo, até o
quarto de Rinni. Ele também insistiu em montar um saquinho de
petiscos para Hook: veremos mais tarde se ele vai gostar. Espero
que deixem meu lobo mais animado.
Paramos na porta da general, respiro fundo e bato.
— Pois não? — Rinni abre a porta. Ela está com um avental
amarrado na cintura. Sua armadura e insígnias foram trocadas por
roupas folgadas e manchadas de tinta. O visual combina com ela,
eu acho. Seus olhos se movem de mim para Willow. — O que você
está fazendo aqui?
— Ela insistiu — Willow diz rápido.
— Nós precisamos conversar. — Entro sem sua permissão.
— Tudo bem… — Rinni troca um último olhar com Willow antes de
fechar a porta. — O que posso fazer por você, Vossa Majestade?
— Quero falar sobre… — As palavras me faltam quando vejo o
retrato em que ela está trabalhando. Um familiar par de olhos
calorosos olha para mim com um pequeno e enigmático sorriso. O
nível dos detalhes é incrível – embora o retrato esteja inacabado e a
tinta escorra do rosto da modelo – meu rosto. — Você está
pintando… a mim?
— Sim. — Rinni enxuga as mãos em um pano. — É uma
encomenda.
— De quem?
— Quem você acha? — Rinni limpa a garganta e volta ao tom
formal. — Digo, Vossa Majestade, foi o próprio Rei Elfo quem
encomendou esta peça.
Eldas quer um retrato meu? Com qual propósito? Olho de Rinni
para a pintura. Uma coisa de cada vez. Estendo a caixa de
tortinhas.
— Tome, uma oferta de paz e um pedido de desculpas.
— O que é? — Rinni pega a caixa com ceticismo. Assim que abre,
rosna: — Aquele Willow…
— Ele disse que você gostava de tortinhas de limão — digo
apressadamente.
— Sim. Amo. — No entanto, ela parece tão mal-humorada
respondendo… Rinni afasta algumas tintas da mesa e coloca a
caixa, enfiando uma torta na boca. — Eu simplesmente odeio que
ele compartilhou com você minha única fraqueza.
Eu rio.
— Bem, agora que tenho você em um estado vulnerável… Rinni,
eu realmente sinto muito.
Ela suspira, comendo a segunda tortinha.
— Tudo bem, aceito suas desculpas.
— Obrigada. — Olho de volta para a pintura, pensando na outra
razão pela qual eu vim. Se houvesse alguma coisa entre Eldas e
Rinni, certamente ele não pediria a ela para pintar um retrato meu.
Isso seria cruel. — Somos amigas de novo?
— Oh, muito bem — diz, dramática. Abro um sorriso. — Acho que
somos amigas.
— Bom, porque há algo que quero perguntar.
— Vá em frente, você tem cinco tortas antes que eu levante a
guarda novamente.
— Quero falar sobre Eldas.
As mãos de Rinni congelam. Lá se vai minha vantagem de cinco
tortinhas.
— O que tem ele?
— Você e ele estão romanticamente envolvidos? — pergunto
diretamente. Rinni não olha para mim e meus nervos ficam à flor da
pele. — Porque, se estiverem, eu entendo. Ou se não estão, mas
você sente algo por ele, eu gostaria de saber. Não vou entrar no seu
caminho.
— Você é a esposa dele — diz delicadamente, ainda sem olhar
para mim.
— Sim, e nós somos tudo menos um casal normal. — suspiro.
Sinto uma discreta sensação no estômago, tento acabar com uma
esperança que não sabia que estava começado a brotar. — Sei que
o Rei Elfo tem amantes. Faz sentido, de verdade. Nossas
circunstâncias não são propícias ao companheirismo.
— Luella, não vou ficar entre vocês e impedir que algo cresça. —
Rinni olha para mim com um pequeno sorriso. — Não somos
amantes. E não tenho interesse em ser amante de Eldas.
— Não? — pergunto lentamente. — Mas vocês dois parecem…
Há… — atrapalho-me com as palavras quando descubro que estava
esperando que fossem amantes. Acho que estava procurando um
motivo para acabar com essa frustração que começou a brotar toda
vez que estou perto de Eldas. — Há claramente uma conexão entre
vocês dois.
— Há. — Aprecio a sinceridade de Rinni. — Nós crescemos
juntos. Temos quase a mesma idade. E não tenho certeza se você
sabe… mas o príncipe herdeiro não tem permissão para sair do
castelo enquanto seu pai estiver vivo. Então ele nunca deixou este
castelo quando criança. E depois, fez a escolha de continuar sua
reclusão para ser apresentado ao reino ao seu lado. Ele só não
esperava que demorasse mais um ano…
Sei sobre a escolha de Eldas de ficar isolado.
— Por que o príncipe herdeiro não pode sair do castelo enquanto
seu pai está vivo?
— Porque só pode haver um Rei Elfo. E isso mantém a transição
de poder – de um reinado para o outro – organizada.
Não tenho certeza se concordo com tudo isso.
— Então ele foi mantido no castelo sozinho?
— Sim… — Rinni franze a testa brevemente. Nem mesmo a
próxima tortinha tira a expressão preocupada dela. Mesmo ela,
alguém que conhece as tradições, claramente acha que manter um
menino em cativeiro é um pouco extremo. — Como você pode
imaginar, ele não tinha muitos amigos.
— Isso é claro nele. — As palavras deslizam pelos meus lábios e
sinto uma pontada de arrependimento por elas.
— Talvez. — Rinni sorri levemente. — Ele não tinha muitas opções
de companhia e eu estava aqui o tempo todo, pois meu pai era o
braço direito do pai dele. Nos tornamos próximos. —Rinni cruza os
braços e se encosta na parede dos fundos. Seus olhos encontram
os meus. — Suponho que eu também deveria dizer que sim, em um
momento, nós exploramos um relacionamento romântico.
— Há quanto tempo?
Rinni pensa sobre isso por um momento.
— Há três ou quatro anos… Olhando para trás, acho que ele
estava em pânico ao ver a última Rainha Humana chegando ao fim
de sua vida. Mais do que apenas ser dominado pela dor, acredito
que ele se sentiu confinado ao seu papel, e estava se rebelando à
sua maneira contra a ideia de se casar. Ele tinha idade suficiente
para entender seu destino, e estava perdendo Alice ao mesmo
tempo.
Eu me pergunto se Eldas se vê em mim. Se minha rebelião contra
meu destino está despertando pensamentos negativos ou de
desesperança. Talvez a mera sugestão de que poderia haver uma
saída seja quase mais dolorosa do que a aceitação em que ele caiu.
— Ele procurou conforto onde podia encontrar, e fui receptiva.
Estaria mentindo se dissesse que não tinha pensado nele dessa
maneira até aquele momento. Então, fizemos uma tentativa
desajeitada por alguns meses, apenas dois ou três, na verdade. E,
antes que você pergunte, não fizemos muito mais do que beijar.
Para além disso, não vou dar mais detalhes sobre nosso
relacionamento. Acabou, nós não funcionamos como casal. A tinta
já secou nessa paisagem da minha vida e não tenho vontade de
voltar para a tela.
— Justo — digo. — Obrigada por sua honestidade.
— Claro, eu apoio vocês dois. Eldas e eu estamos melhor como
amigos e aliados. Mais que tudo, a tentativa de sermos amantes nos
aproximou. Então, você está certa, há um vínculo. Não há outro
homem que eu preferiria servir com minha espada, ou de qualquer
outra forma… exceto no quarto.
Dou uma gargalhada. Mas a leveza é cortada com os
pensamentos persistentes de Eldas lutando contra seu destino.
Imagino-o jovem e desajeitado. Meu sorriso desaparece com um
suspiro.
— Rinni, eu sei que pedi muito hoje. Mas posso pedir mais uma
coisa?
— Vou precisar de mais tortinhas.
— Feito. — Rio e continuo: — Quero conhecer Eldas melhor. —
Penso no que Rinni disse na sala do trono sobre ele não estar
tentando me conhecer melhor. Mas, para ser justa, isso vale para os
dois lados. — Gostaria de jantar com ele.
Gostaria de me sentar com ele em sua mesa.
Rinni arqueia as sobrancelhas enquanto um sorriso um tanto
divertido surge em seus lábios.
— Tudo bem, tenho certeza de que isso pode ser arranjado.
— Não quero que seja nada formal. — Penso nos enormes salões
de banquetes do castelo e nas ilustrações que vi nos livros quando
criança. — Eu não quero ser como aquele rei e rainha sentados nas
extremidades de uma mesa tão longa que poderiam estar em salas
separadas.
Rinni ri.
— Eu sei o que você está dizendo.
— Ótimo. Você pode perguntar a ele? Acho que se eu pedir, Eldas
vai dizer não. — Já que ele parece recuar cada vez que nos
aproximamos — E também estou preocupada que a sala do trono
tenha se tornado uma sala de aula ou um campo de batalha para
nós. Se nos encontrarmos lá, então nós…
— Serão incapazes de relaxar — ela termina por mim. — Não diga
mais nada. Vou fazer isso acontecer.
— Obrigada. — Atravesso o espaço e puxo Rinni para um abraço
rápido. Ela está rígida e tão desajeitada quanto Willow na primeira
vez que o abracei, mas parece gostar da ideia um pouco mais
rápido do que meu amigo curandeiro.
— Imagine, Vossa Majestade — diz, toda estranha, quando me
afasto.
— Já passamos das formalidades. — Dirijo-me para a porta. — Me
chame de Luella.
Naquela noite, quando Hook se encolhe ao pé da minha cama,
olho para o teto. Em uma semana consegui dois amigos e um lobo.
Honestamente, não está indo tão mal quanto esperava.
Mas os maiores obstáculos permanecem: cultivar uma amizade
genuína com Eldas e, com sua ajuda, descobrir uma maneira de
quebrar o ciclo.
Eu bocejo.
— Um passo de cada vez — murmuro antes de virar para o lado e
adormecer.

***

Eldas e eu não nos encontramos no dia seguinte, ou no próximo,


então me ocupo com os diários e com Willow no laboratório. Ainda
que Eldas não me ajude, continuarei procurando uma saída deste
ciclo: para mim, para ele e para nossos mundos.
Estou preocupada, achando que Rinni lhe perguntou se jantaria
comigo e foi mais horrível do que eu poderia esperar. No terceiro
dia, a general me informa que ele assumiu algumas novas
negociações com os feéricos e é isso que o está distraindo.
Penso em nossa conversa e me pergunto se essas novas
negociações foram, em parte, inspiradas por mim. Atrevo-me a
pensar que podem ter sido, o que me enche com uma sensação
efervescente, como se eu fosse uma bebida borbulhante mantida
sob pressão.
Por sorte, sou distraída no quarto dia, quando meus móveis
chegam. O marceneiro faz a entrega pessoalmente e se encarrega
de ajudar Rinni e eu a organizarmos os móveis no espaço. Ele é um
senhor gentil, e não posso deixar de notá-lo massageando seus
dedos quando terminamos.
Depois que tudo está arrumado de acordo com nossos padrões,
levo-o comigo ao laboratório e dou-lhe um cataplasma semelhante
ao que fiz para o Sr. Abbot. Felizmente, nem Willow nem Rinni me
dizem que ajudar um “plebeu” está “abaixo de mim”.
O marceneiro fica acanhado, mas, encorajado por Willow, aceita o
presente. Passo o resto do dia trabalhando com Willow,
experimentando minha magia e aprendendo com os diários
deixados pelas rainhas do passado.
Janto no meu quarto, acompanhada apenas por Hook. Meu lobo
se enrosca sob minha nova mesa que dá para as janelas da sala
principal, em vez de para a porta.
Percorro delicadamente as frágeis páginas das vidas das mulheres
que vieram antes de mim em busca de pistas. O diário mais antigo
tem pouco mais de dois mil anos. Não há registros deixados pela
rainha original ou suas sucessoras imediatas. Então, estou
aprendendo com mulheres que estavam tão no escuro quanto eu.
Na noite do quinto dia, finalmente encontro algo que pode ser útil.
É mais ou menos na metade do diário da rainha Elanor – quatro
rainhas antes de mim. Aparentemente, eu não fui a primeira pessoa
a pensar em quebrar esse ciclo.

A cada nova rainha, o trono de sequoia cobra um preço maior.


Nosso poder parece estar diminuindo geração após geração. É
possível que em breve não haja mais uma Rainha Humana.
Suspeito que o próprio trono esteja buscando equilíbrio com o
outro lado do Desvanecer – com o Mundo Natural. A Rainha
Humana não traz equilíbrio suficiente sozinha. As leis da natureza já
estão sendo forçadas demais.
Se houvesse alguma maneira de equilibrar os dois mundos, talvez
Entremundo não precisasse mais de uma Rainha Humana. Mas não
tenho como provar essa teoria…

Na manhã seguinte, estou me preparando para ir ao laboratório


quando ouço a batida distinta de Rinni.
— Posso entrar?
— Estou decente — chamo de volta.
— Que roupas são essas? — Rinni pergunta assim que coloca os
olhos em mim.
— São algo que Willow me ajudou a encontrar. — Corro as mãos
sobre calças pesadas de lona. — Não me diga: quando eu
finalmente me atrevo a não usar um vestido, Eldas quer se
encontrar comigo?
Rinni sorri.
Eu gemo.
— É verdade, não é?
— É, mas você tem até esta noite para se trocar.
— Ele aceitou meu convite para jantar? — Não sei dizer se a
agitação no meu estômago são as asas de borboletas ou vespas.
Estou animada ou nervosa? Ambos. Há toda uma guerra de insetos
alados acontecendo aqui dentro.
— Sim, finalmente — murmura Rinni. Ela leva a mão à boca e
tosse, como se tentasse esconder o fato de que a última palavra
escapou. Faço um favor a ela e não comento. — Sim, ele aceitou.
Vocês vão jantar na Ala Leste esta noite.
— Oooh, a misteriosa Ala Leste. — Eu mexo meus dedos no ar. —
Que emocionante e ilustre.
— É sim; apenas a família real tem permissão para entrar lá.
Não deixo de perceber que não sou considerada parte da “família
real”. Posso manter Entremundo vivo, mas claramente não mereço
a honra de ser vista como um deles. Meus pensamentos vagam
para Harrow. Ainda não o vi desde que o curei. Deveria ser grata por
isso, mas estou estranhamente preocupada.
Ainda que Eldas não parecesse muito preocupado com Aria, não
posso deixar de pensar que ela pode estar tramando algo… Ou não,
pode ser apenas o meu medo do homem com chifres colorindo
minhas opiniões sobre ela.
Empurro os pensamentos para longe. Harrow é apenas mais uma
razão pela qual estou feliz por não fazer parte dessa família. Vou
embora em dois meses – em contagem regressiva.
— Obrigada por me avisar. A que horas devo estar pronta?
— Eldas espera você às oito.
— Ah, que bom, posso passar o dia todo no laboratório e ainda
terei tempo para me trocar.
— Você gostaria que eu a ajudasse a se arrumar esta noite?
Penso em aceitar a oferta. Definitivamente, há vestidos em que
não consigo alcançar todos os fechos sozinha.
— Não, obrigada — finalmente decido. Se Eldas vai se encontrar
comigo, ele deve se encontrar com meu verdadeiro eu – não com o
penteado ou o vestido que Rinni achar apropriado.
— Então voltarei às sete e quarenta e cinco. — Rinni faz uma
reverência e sai.
O dia é uma estranha mistura de muito longo e muito curto. As
horas parecem se arrastar enquanto estou no laboratório. Toda vez
que olho para o relógio de pêndulo, tenho certeza de que metade do
dia já passou, mas só se passaram cinco minutos.
Mal consigo me concentrar.
Cedo demais estou de volta ao meu quarto e Rinni está batendo
na porta mais uma vez.
— Entre — chamo.
Ela aparece na porta do meu banheiro.
— Você escolheu isso para vestir hoje?
— Não é negociável — declaro. — Ele se encontra comigo assim
ou não me encontra de jeito nenhum.
— Muito bem. — Rinni esboça um sorriso enquanto me guia.
Felizmente ela não fala nada sobre Hook ir junto. Ele se tornou
minha sombra no castelo, já que fico muito mais à vontade com ele
por perto. Neste ponto, encontrar-me envolve encontrar Hook.
Atravessamos a sala do trono para chegar à Ala Leste. Suponho
que era um caminho mais direto do que descer para o átrio principal.
Rinni me conduz pela porta em que Eldas geralmente desaparece.
Ela atravessa corredores silenciosos, repletos de intrincadas
armaduras, pedras pontiagudas em pedestais, tapeçarias e retratos.
Há menos espaço aberto aqui do que na Ala Oeste. Menos salões,
salas de jantar, quartos sem uso aparente. Aqui são substituídos por
escadas em espiral e uma quantidade infinita de portas que
bloqueiam meus olhos curiosos.
Finalmente chegamos ao nosso destino, uma porta comum, como
qualquer outra. Rinni dá uma batida suave.
— Vossa Majestade — diz. — Sua rainha está aqui para se juntar
a você.
vinte e dois

Pauso rapidamente com as palavras “sua rainha”. Giro o anel de


labradorita no meu dedo, subitamente ciente de sua presença mais
uma vez. Não quero ser de ninguém. Não quero ser possuída.
Quase começo a correr, mas consigo me manter no lugar.
Um senso de propriedade não é o que essas palavras pretendiam
implicar. Vim aqui por vontade própria. Quis esse jantar para ver se
o homem gentil que vislumbrei está realmente lá. Se pode confiar
em mim. Se talvez nossa parceria possa fortalecer sua base, para
que possamos realmente conseguir tirar Entremundo do aperto em
que está. Não estou aqui por obrigação, ou medo, ou porque ele
ordenou que estivesse.
— Mande-a entrar. — A voz grave de Eldas ressoa em mim.
A porta abre para o corredor e Rinni dá um passo para o lado.
Entro e tento andar ereta, uma mão enterrada no pelo de Hook para
me dar força. Quando a porta se fecha atrás de mim, as vespas
derrotam as borboletas no meu estômago e pressiono meus lábios,
tentando não deixar as palavras nervosas saírem.
Eldas está diante de uma grande lareira. Há uma mesa entre nós
que parece acomodar confortavelmente quatro pessoas, mas está
posta para dois. A comida brilha na penumbra: carne assada,
bandejas de legumes e algum tipo de bolo redondo e gelado – com
o que espero que não sejam asas de borboleta de verdade
decorando o topo.
Inspeciono a comida o máximo possível até meus olhos vagarem
para o homem que estou aqui para ver. Eldas está vestindo uma
camisa adornada, da cor da meia-noite. Pequenos botões de
pérolas costurados em seu peito dão a aparência de estrelas
espalhadas. Sua compleição contrasta com suas roupas escuras,
fazendo-o parecer um rei das estrelas, em vez de rei da morte.
— A coroa é realmente necessária? — deixo escapar,
completamente desarmada por sua mera aparência. Quase parece
que ele se esforçou por mim.
— Não entendi. — A surpresa interrompe sua expressão educada
e sua mão vai parar na linha escura de ferro em sua cabeça. Eldas
deixa cair a mão de repente, como se estivesse envergonhado com
o movimento. — Sou um rei, por que não usaria minha coroa?
— Porque é só comigo que você está se encontrando.
— Mais uma razão. Sou seu rei. Por que não me vestiria
adequadamente?
Seu rei. As palavras retumbam em contraste com “sua rainha”. Se
eu sou sua rainha, isso significa que ele é meu rei? Ao invés de ele
me possuir, nós possuímos um ao outro? Nós compartilhamos um
ao outro?
Pela primeira vez, gostaria de ter pensado mais em todo esse
negócio de relacionamento e romance quando estava na Academia,
no lugar de me concentrar exclusivamente em herbologia. Talvez eu
fosse menos desajeitada e menos inclinada a pensar demais em
tudo.
— Eu…— As palavras me faltam. Em vez disso, ando até ele e
sinto seus olhos me seguirem a cada passo. Hook espera no lugar,
como se, de alguma forma, soubesse que preciso fazer isso
sozinha. — Vim aqui como “eu” simplesmente; apenas Luella. —
Estendo minhas mãos e o deixo olhar para a saia de cintura alta e o
top esvoaçante que escolhi – tecidos simples, modelos simples, o
que eu usaria em Capton. — Esperava que pudesse…
Estendo a mão e ele recua; mantenho-as mãos assim e espero.
Eldas se acomoda e permite que meus dedos peguem sua coroa –
é mais pesada do que eu esperava, tão pesada que me pergunto
como ele mantém a cabeça erguida.
—… encontrar-me com Eldas, e não com o Rei Elfo. — Coloco a
coroa na moldura da lareira, grata por não tê-la deixado cair.
— O Rei Elfo é quem e o que sou. Não há mais nada.
Essas palavras espelham coisas que eu disse muitas vezes antes.
Ele não pretendia que elas machucassem, e ainda assim
machucam. Meus ossos parecem querer se bater com tremores
internos: os nervos estão tentando me vencer, porque nunca me
senti tão vulnerável.
Pela primeira vez, percebo que as roupas, a coroa, aquela sala do
trono horrível e cheia de ecos… são todas diferentes formas de
armadura para ele. Protegem-no de qualquer um que possa ver o
homem por trás deles. E, agora, estou ainda mais curiosa sobre
quem esse homem realmente é.
— Entendo — sussurro.
— Você não entende. — Ele olha de volta para o fogo como se
não pudesse lidar com meu escrutínio. Como se soubesse o que
descobri.
— Entendo sim — insisto. — Porque eu tinha minha própria
armadura. Tinha minha botica, meu trabalho, meu dever. Tive que
me manter longe de tudo, porque se me expusesse por um
momento, talvez pudesse me machucar; talvez pudesse perder o
controle.
Seus olhos piscam de volta para mim. O fogo estala e um tronco
cai.
— Não me ajudou em nada — murmuro. Mesmo tentando me
proteger, Luke desferiu um golpe quase mortal no meu coração. Seu
olhar suaviza. — Então não vou recuar. Bem, estou tentando não
recuar. Quero conhecê-lo melhor, Eldas.
— Por quê? — Ele parece chocado que alguém o queira conhecer.
— Que tipo de pergunta é essa? — Rio alegremente. No entanto,
seus ombros tensos indicam que a pergunta era genuína. — Sou
tecnicamente sua esposa.
— Apenas uma formalidade… E eu forcei você a fazer os
juramentos. — Ele leva um copo de cristal lapidado aos lábios. mal
escondendo uma careta. — Sinto muito por minhas ações no templo
em Capton. Deveria ter me desculpado antes.
Um pedido de desculpas sincero e espontâneo? Por muito pouco
me abstenho de deixar escapar um suspiro chocado. Progresso,
isso é progresso real.
— Obrigada por se desculpar. — Franzo meus lábios. Parte de
mim não quer perdoá-lo. No entanto… — Honestamente, sem a sua
ajuda, eu provavelmente teria vomitado nos seus sapatos.
Agora ele não esconde a careta.
— Talvez agora eu esteja menos arrependido.
Rio levemente. É um som frágil, para combinar com nossas
explorações delicadas.
— O que está tomando?
— Isso? — Ele gira o copo. O gelo tilinta. — É hidromel feérico.
Foi enviado com as desculpas do rei pelo incidente em Quinnar.
— Posso experimentar? — Há um bar estreito com um copo
adicional e uma garrafa de líquido da mesma cor do copo de Eldas.
— Não achei que você iria querer, já que é de fabricação feérica.
Só abri porque é forte e porque esta noite… precisava de um pouco
de força.
— Precisava de força para me encontrar? — Ergo as
sobrancelhas.
— Você é, talvez, a única coisa em Entremundo que acho
aterrorizante.
Rio enquanto me sirvo de um pouco de licor. Enquanto coloco no
copo, Hook toma meu lugar ao lado da lareira. Lobo e homem se
olham com cautela enquanto volto e estendo meu copo para Eldas,
distraindo-o de Hook.
— Para dar força esta noite.
Ele olha para o meu gesto por tempo suficiente para eu ficar
desconfortável.
— Vocês costumam brindar aqui?
— Costumamos. — Pela primeira vez, seu olhar reservado parece
convidativo. Seus olhos são frios, no entanto; mais como uma
manhã de inverno que você está pronto para saudar. Eldas ergue o
copo. — Para este mundo. Para o próximo. Para as pessoas que
encontramos e os laços que compartilhamos. — Ele bate levemente
seu copo contra o meu e toma um gole. Faço o mesmo.
— Isso é um brinde élfico? — pergunto.
— É sim.
— É adorável.
Ele não parece saber como responder ao elogio, então muda de
assunto.
— Vejo que a fera ainda insiste em vagar pelo meu castelo.
— Hook — corrijo suavemente. — Sim, ele ainda fica comigo.
— Você deve retornar ao Desvanecer em algum momento —
Eldas repreende levemente. No entanto, apesar de seu tom, ele se
inclina para frente e alcança Hook. O lobo fica tenso, mas permite
que Eldas coce suavemente entre suas orelhas.
— Ele vai e volta quando precisa. Às vezes foge por vontade
própria, mas sempre volta. E é um bom companheiro sempre que
está aqui. — Não quero pensar em Hook me deixando para
sempre, como sugere o tom de Eldas.
— Ótimo. Este castelo pode ser solitário. — Ele franze os lábios
levemente, como se fosse algo que não pretendia dizer.
— Você sabe disso, não é?
— Tanto quanto você. — Eldas volta o sentimento para mim e sou
silenciada. Tomamos longos goles do hidromel.
— Você realmente ficou trancado aqui enquanto esperava por
mim? — a pergunta sai fraca. Tenho medo da resposta.
— Rinni contou, não foi? — Ele não olha para mim quando diz
isso. Duvido que goste de se sentir vulnerável. Mas não vou me
desculpar por ter interesse em seu bem-estar.
— Contou. Não fique zangado com ela.
— Você continua me dizendo com quem posso ou não ficar
zangado. — Eldas olha para mim de soslaio. Quase posso vê-lo
lutando contra um sorriso, e isso me diverte.
— Considere meu conselho como qualquer outro: apenas uma
recomendação. — Tomo outro gole e a conversa parece adormecer.
Espero mais. Nada. — Você não respondeu minha pergunta.
— Sim, continuei a me isolar. Queria me apresentar ao mundo ao
mesmo tempo que minha rainha, mas… — Ele passa a mão pelo
cabelo e balança a cabeça. — Nada estava indo conforme o
planejado. Então veio você… E sua natureza destruiu até o último
pedaço dos meus projetos cuidadosamente preparados. Você
realmente não é nem um pouco o que eu esperava. — Antes que eu
possa comentar sobre o sentimento quase terno, ele se vira para a
mesa. — Vamos comer?
— Muito bem. — Sou rápida em abandonar o assunto “o que
Eldas esperava de mim”. Estou quase com medo da resposta.
Não… não é isso… tenho medo do que espero que seja a resposta:
não sou nada do que ele esperava de uma forma que ele poder
estar gostando. Um sentimento que é perigosamente mútuo. —
Você cozinhou tudo isso?
Ele torce o nariz em desgosto.
— Claro que não. Eu tenho alguém que faz isso.
— No entanto, o castelo parece tão vazio. — Tomo meu lugar e ele
toma o dele. — Estive me perguntando quem faz toda a comida.
— Existem passagens internas. Pense nelas como um castelo
dentro do castelo. Os empregados operam lá. São poucos os que
podem ser vistos deste lado. — Ele faz uma pausa, os olhos se
voltando para os meus. — A magia também ajuda.
— A magia ajuda — repito com uma risada. — Suponho que sim.
— Bem, eu sei que você não pode invocar uma costela de cordeiro
com um pensamento em seu mundo.
— Você pode…
Antes que eu possa terminar, Eldas levanta a mão, apontando
para o canto da sala. Uma névoa azul se acumula em seus dedos,
ao mesmo tempo que se forma uma pequena nuvem no canto. Com
uma explosão, ela se condensa em – claro – uma costela de
cordeiro.
— Aproveite, Hook. — Eldas se recosta na cadeira, gira o copo e
toma um gole. Quando olha para mim, explode em gargalhadas. —
Você achou que não era possível.
— Como?
— Aprendi o verdadeiro nome daquela costela de cordeiro e posso
criar cópias dela.
Enquanto ele fala, Hook rói sua oferenda.
Tenho mil perguntas, mas tudo o que consigo dizer é:
— Você deve gostar muito de cordeiro.
Eldas solta uma gargalhada e rapidamente cobre a boca com a
mão. Sua expressão envergonhada leva à minha própria explosão
de riso. De repente, estamos rindo juntos.
— Como houve falta de comida em Entremundo se isso pode ser
feito?
— Somente elfos podem fazer isso, e muito poucos entre nós
possuem a habilidade. E essa comida não é tão nutritiva quanto
algo natural – algo real.— Ele me encara por cima do copo
enquanto toma um gole. Alguma coisa nos músculos de sua
garganta se contraindo é estranhamente fascinante.
Volto rapidamente à minha comida, mudando de assunto para
saber mais sobre os ritos da primavera. Eldas está ansioso para me
contar, especialmente sobre sua parte neles. Ele se demora em
seus deveres como o Rei dos Elfos – como ele abre e fecha as
cerimônias, como ele é visto apresentando a rainha como portadora
da primavera. Eu não posso deixar de sorrir enquanto ele continua,
e continua.
Ele está genuinamente animado por ser rei, por finalmente
governar. E, no entanto, estamos trabalhando para encerrar o ciclo.
Não estarei aqui para ver esses ritos. Não serei apresentada ao
povo.
Enquanto conversamos, vamos nos servindo. Eldas é deveras
cavalheiro, quase ao ponto de me fazer sentir desconfortável. Faz
questão de que minha bebida seja reabastecida sempre que o copo
está quase vazio – o que acontece bastante, já que o hidromel é
doce e efervescente. Ele me atende quando demonstro interesse
em experimentar alguma coisa.
Enquanto comemos, não fico surpresa ao descobrir que tudo é
delicioso. A comida em Entremundo tem seu próprio tipo de magia.
Todos os sabores parecem mais intensos, únicos e ricos. Parece até
que eu não sentia o gosto das coisas antes.
— Ouvi dizer que você está ajudando na estufa. — Eldas tenta
falar amenidades.
— Willow tem sido bom para mim. — Vou instantaneamente em
sua defesa, embora não haja nada no tom de voz de Eldas que
sugira que eu não poderia estar ajudando. — Ele não apenas me
deixou ajudar com as plantas, mas me deu acesso aos diários das
rainhas anteriores e me ensinou mais sobre magia élfica.
Ele inclina a cabeça ligeiramente quando falo sobre os diários.
— Sim, ouvi dizer que você se sente em casa lá, ao ponto de o
boato da capacidade da rainha de curar doenças se espalhar pela
cidade.
— Tenho certeza de que não sou a primeira rainha a fazer isso. —
Lembro-me do pequeno cataplasma que fiz para o marceneiro.
— As rainhas não têm interesse em se encontrar com o povo
comum de Quinnar, ou com o povo comum em geral.
Eu rio sarcástica da observação.
Eldas larga o garfo e arqueia as sobrancelhas.
— Eu disse algo engraçado?
— Não é que as rainhas não tenham interesse. Elas não foram
autorizadas a ter interesse.
— Isso não é verdade.
— Ah não? — Abro um sorriso, que desliza facilmente pelas
minhas bochechas coradas. Em qual copo de hidromel eu já estou
mesmo? — Talvez você devesse ler alguns dos diários das antigas
rainhas. Você pode achar suas vidas esclarecedoras. Se está
fazendo um esforço para me conhecer, então pode fazer o mesmo
com elas.
— Fiz um esforço com Alice.
— Fez mesmo? — Sorrio, mas abandono a expressão quando seu
tom se torna inesperadamente pensativo.
Ele hesita, a voz repentinamente pesada e triste.
— Ela… Ela era uma mulher bondosa.
— Eu tenho o diário dela, se você quiser ler — digo gentilmente.
Ele para e uma excitação quase infantil brilha em seus olhos.
— Gostaria muito.
— Empresto para você; já o terminei.
— Isso seria muito gentil de sua parte.
— Quero ser gentil com você.
Eldas ocupa a boca com um longo gole de sua bebida e depois se
concentra na comida ainda em seu prato. Talvez seja apenas a luz
do fogo, mas acho que vejo um leve rubor em sua face. Eu me dou
por vencida, voltando para minha própria comida.
— Você está certa — diz sem levantar o olhar de seu prato. É
bom, porque não vai ver minha surpresa. Eu estou certa? — Nunca
tive tempo para me esclarecer adequadamente sobre as rainhas
passadas além de Alice, e isso é algo que devo remediar se quiser
ser um rei eficaz tanto para você quanto para meu futuro herdeiro.
Ele ainda está operando sob a suposição de que ficarei aqui por
mais de dois meses. Mal me abstenho de apontar o fato. Esta noite
foi cordial e há algo no pensamento de ir embora que me deixa triste
agora.
Mas nenhuma tristeza que um pouco mais de hidromel não
resolva.
— Vou recomendar passagens além de Alice, então — digo,
finalmente. — Algumas sobre a vida das rainhas. E algumas
curiosidades sobre sua magia, que descobri que podem nos ajudar
a acabar com esse ciclo.
— Você ainda acha que pode acabar com a necessidade de uma
Rainha Humana?
—Meu plano não mudou.
Eldas se levanta e vai até a lareira novamente. Ele se apoia na
moldura, sua forma imponente marcando uma linha escura contra a
luz do fogo. Coço atrás das orelhas de Hook, observando… não,
admirando-o.
A luz atinge suas maçãs do rosto da maneira certa, fazendo com
que elas fiquem ainda mais altas. Seus olhos estão destacados,
assustadoramente lindos. E os arco-íris ocultos de seu cabelo preto
nunca foram tão perceptíveis.
— É para nós dois, você sabe — digo cautelosamente, de pé,
copo na mão também. A sala balança e isso quase arranca uma
risadinha dos meus lábios. Mas agora não é hora de rir. Ainda tenho
bastante inteligência para saber disso. — Assim como para o
benefício de todos após. Pense no que podemos mudar, Eldas.
Sonhe como a vida de seu herdeiro poderia ser diferente – como
sua vida poderia ser diferente.
— Há muito que superei a idade de sonhar. — Seus olhos frios e
preocupados apenas confirmam a da veracidade da declaração.
— Talvez você devesse tentar começar de novo. É fácil: apenas
sonhe, Eldas, e depois siga esses sonhos. — Toco seu cotovelo
levemente, atraindo seus olhos para os meus.
— Não fui feito para sonhar. Fui feito para governar.
— Acho que você foi feito para ser o que quiser.
— Você não me conhece nem um pouco. — A preocupação
permeia suas palavras.
— Acho que estou começando a conhecê-lo. Sei que quero fazer
isso. — Meus dedos percorrem seu braço, até sua mão. Eles
dançam em sua pele lisa, brincando com o punho de sua camisa,
pedindo mais. — O que você queria quando criança? Conte-me
suas esperanças.
Eldas olha do meu toque para meus olhos. Inala lentamente. Suas
pupilas estão dilatadas.
— Passei toda a minha vida me preparando para ser rei: servir
meu povo, proteger a Rainha Humana e o ciclo. Meu pai nunca me
avisou…
— Que ela seria a única a tentar destruir esse ciclo? — Sinto um
aperto no peito.
— Que ela seria a pessoa de quem eu precisaria me proteger.
— Só bati em você uma vez. — Uma leve risadinha escapa e eu
trago o copo até meus lábios, grata por ele parecer divertido
também. — Perdão, novamente.
— Perdão por insultá-la. Devemos considerar um empate?
— É um começo.
— O começo do que, exatamente? — Quando ele chegou tão
perto? Nós nos inclinamos como árvores em uma tempestade de
vento, para frente e para trás, nos aproximando do espaço pessoal
um do outro até que quase não haja nenhuma lacuna.
Hook cutuca a parte inferior das minhas costas. Ele não estava
encolhido no canto um momento atrás? Eu já estava muito
desequilibrada. Tropeço para frente. Derrubo minha bebida na
camisa de Eldas, e caio contra a mancha úmida que agora cobre
seu peito. Ele me segura, mas não me afasta, como esperaria. Ele
olha para mim, o rosto rosado de uma forma que me deixa tonta.
A linha dura de seus lábios é, de repente, mais suave, brilhando
com o hidromel feérico. A luz em seu rosto o lava em ouro, não em
mármore. Pergunto-me qual seria o gosto dele se eu o beijasse
agora.
É disso que eu tenho fugido toda a minha vida? É assim que é se
interessar por alguém? O pensamento maroto vagueia pela minha
mente enquanto olho para ele. Como poderia querer me esconder
disso?
— Desculpe — murmuro. — Não foi minha intenção. Foi culpa de
Hook.
Um sorriso preguiçoso cruza seus lábios. Ele está escondendo
algo. Isso é o que essa expressão diz. Mas não consigo sondar. Ele
me distrai com uma mão em meu rosto, seu polegar nos meus
lábios.
— Peça desculpas à bebida. Porque, em vez de estar na sua
língua, agora está apenas nas minhas roupas – um lamentável
rebaixamento.
— Eldas — sussurro, um pouco grogue. Minha cabeça se apoia
ligeiramente em sua palma. Tenho uma dor em mim, uma
necessidade profunda à qual nunca cedi, e tudo em mim me grita
que ceder é a pior ideia possível. Não consigo pensar. Com o
hidromel e seu toque, não quero pensar.
— Luella? — Meu nome é uma pergunta. O que ele está
perguntando?
— Sim. — O que quer que seja, sim.
Ele me aperta mais e puxa meu rosto para cima. Minha boca
encontra a dele. Seu braço se estreita ao meu redor, me puxando
ainda mais perto. Sentimos cheiro de mel e sabor de sonhos
esquecidos. Nos movemos como o desespero.
O copo que eu estava segurando cai, estilhaçando; quase
quebrando esse transe com o ruído. Mas Eldas passa a língua pelos
meus lábios e solto um gemido que não sabia que estava preso em
mim. Permito que ele entre na minha boca e sua língua desliza
contra a minha gentilmente… tão gentilmente.
No entanto, seus movimentos são um tanto rudes e carentes. Ele
é um homem de contrastes. Macio e duro. Frio, mas que me deixa
em chamas.
Minhas costas estão contra a moldura da lareira. Meus ombros
arqueiam e eu me aperto contra ele. Ele segura meu rosto até que
nós dois fiquemos tontos e ofegantes, parando para respirar.
Eldas me encara, os lábios brilhantes entreabertos. Encontro seu
olhar com choque e admiração. O fogo queima tão azul quanto seus
olhos. Os cacos do meu copo quebrado agora são pétalas de rosa.
— Nós… eu… — Eldas respira pesadamente. Então, sem aviso,
ele se afasta. Há pânico em seus olhos e medo em seus
movimentos. — Você vai embora.
— Estou bem aqui. — Alcanço-o; todo o meu bom senso me
deixou.
— Não, você vai deixar Entremundo. Deixar a mim. Nós… eu não
posso. — A verdade nos deixa sóbrios. — Preciso ir.
— Eldas…
Ele se vai antes que eu possa dizer mais do que seu nome. O fogo
queima laranja mais uma vez e os únicos vestígios do rei são fiapos
do Desvanecer pelo qual ele acabou de fugir.
vinte e três

A caminhada até a sala do trono é muito, muito longa na manhã


seguinte.
— Você está bem? — Rinni pergunta, parando logo antes de
entrarmos.
— O quê? Eu… sim, claro que estou. Por que pergunta? Estou
perfeitamente bem.
— A-ham… — a general larga a porta e cruza os braços sobre o
peito. — O que está acontecendo?
— Nada. Agora, se você me der licença, vou me atrasar e Eldas
vai… — Tento chegar à porta, mas Rinni me bloqueia. Hook rosna
para ela, mas eu o paro com um sinal. Ela conhece meu lobo bem o
suficiente agora, e não está nem um pouco intimidada.
— Sim, você não quer se atrasar. Então desembucha; como foi a
noite passada?
— Foi boa — digo um pouco rápido demais.
— Boa? — Ela arqueia as sobrancelhas e repete: — Boa? Você
torceu as mãos pelo menos cinquenta vezes no caminho até aqui.
Algo aconteceu.
— Não, nada.
— Está mentindo.
Gemo e enterro meu rosto em minhas mãos. A expectativa de ver
Eldas novamente me deixou ansiosa a manhã toda, a ponto de não
conseguir ficar parada. Precisei ler meus diários enquanto andava
de um lado para o outro antes que o sol nascesse ou a energia
inquieta em mim poderia acender relâmpagos.
Durante toda a noite, a visão de sua silhueta delineada em pura
magia azul iluminou minha mente. Durante toda a noite, ouvi os
sussurros dos tons mais suaves de sua voz; suas expressões mais
delicadas me assombraram. A sensação fantasma de seus lábios
nos meus me fizeram suspirar e ofegar de uma maneira que me
envergonhou ao amanhecer.
— Realmente, correu tudo bem. Vamos ter que ver como o resto
vai ser daqui para a frente.
Rinni me estuda por mais um longo minuto. Mas então finalmente
se afasta da porta.
—Tudo bem. Mas se você quiser conversar sobre qualquer coisa,
estou aqui.
— Obrigada. — Embora ela provavelmente fosse a última pessoa
com quem eu falaria sobre querer que seu rei me pressionasse
contra uma parede e fizesse coisas obscenas com os dedos em
algum lugar entre os meus – pare com esses pensamentos agora,
Luella.
— Se serve de consolo, Eldas parecia um pouco irritado esta
manhã.
Aposto que sim, penso, mas não falo, e entro na sala do trono.
Eldas está sentado em seu trono de ferro. O tornozelo direito
repousa sobre o joelho oposto. Equilibrado na coxa está um diário
familiar. Seu queixo repousa levemente no punho enquanto seus
olhos percorrem a página.
Ando silenciosamente e fico bem diante dele. Mas ele não olha
para cima. Suas maçãs do rosto fortes emolduram seus lábios finos,
levemente franzidos em pensamento para combinar com o leve
sulco em sua testa. Eu sei como são esses lábios agora – não frios,
não cortantes, mas aveludados.
Eu me pergunto se ele não sabe que estou aqui. Parece
impossível, mas ele está tão concentrado…
— Acho que preciso agradecê-la, — diz, finalmente. Quase pulo
para fora da minha pele quando as palavras ecoam pela sala do
trono.
— Pelo quê? — Minha mente ainda está na noite passada.
Eldas segura o diário de Alice.
— Por me dizer que isso existia. Fui buscá-lo no laboratório ontem
à noite. — Ele se levanta e estica o braço. — Aqui. Você se importa
de devolvê-lo ao laboratório para mim?
— Você… terminou? — pergunto, cruzando a sala e pegando o
diário. Ele está agindo normalmente. Mas também não está. Há uma
bondade aqui, um calor que não existia antes.
Será que ele quer me beijar de novo? Não sei a resposta, e odeio
isso. Quero conhecê-lo tão bem que eu saiba toda vez que ele quer
me beijar e toda vez que ele quer me deixar beijá-lo. Será que quero
beijá-lo de novo? Não consigo colocar meus pensamentos em
ordem.
— Sim.
— Isso deve ter levado…
— A noite toda. — Mas ele não parece diferente do normal. Sua
pele tem o mesmo tom e não há olheiras sob seus olhos. Se parecer
revigorado depois de passar a noite toda lendo é uma habilidade
élfica, vou me sentir extremamente ludibriada como humana. —
Fiquei completamente enlevado.
— É mesmo? Quer dizer, que bom. — Tento não deixar minha
surpresa dar a ele uma impressão errada e forço um sorriso. Tudo
está desajeitado entre nós.
Eldas me olha com uma expressão cautelosa.
— Eu gostaria que me recomendasse o próximo.
— Perdão?
— Você tem outros, correto?
— Sim, mas… — Eldas já está atravessando a sala. — Aonde
você vai?
— Para o seu apartamento — diz, como se o fato fosse óbvio.
— Não entendi.
— Os outros diários estão lá, sim? Gostaria de começar o próximo
que você recomendar. Admito que passei direto por algumas das
notas mais detalhadas sobre plantas, no entanto. Então, por favor,
me dê um com mais anotações na margem e anedotas pessoais
além da herbologia.
— Tudo bem — digo, como se essa conversa fosse totalmente
normal. — Na verdade, venha por aqui. — Dirijo-me à porta na parte
de trás da sala do trono.
— Mas…
— Há dois específicos que quero recomendar a você. Bem, três,
mas ainda não terminei o terceiro. O último está em meu
apartamento, mas os outros já devolvi ao laboratório.
— Muito bem, vá na frente.
Se ele está tentando ser normal, também vou tentar. Se ele não
quer falar sobre ontem à noite, então também não preciso. Ignorar é
a melhor, mais saudável e mais madura resposta, certo? Certo.
Hook passa por mim quando abro a porta. O lobo corre até o meio
da escada, parando para olhar para mim, como se estivesse
frustrado por não estar indo rápido o suficiente. Claramente já sabe
para onde estamos indo.
— Vá em frente — encorajo. — Estaremos logo atrás. — Hook
solta um pequeno latido e salta para longe.
— Comecei a fazer outras pesquisas ontem à noite — diz Eldas.
— Outras pesquisas? — Rio. — Você teve tempo para pesquisar
algo mais e ler todo o diário?
— Eu já disse que pulei as seções de herbologia — responde com
um pouco de remorso, como se a própria ideia de não ler cada
palavra de um livro fosse embaraçosa para ele.
— Justo. O que você pesquisou? — Suponho que ele quer que eu
pergunte. Caso contrário, por que trazer o assunto à tona?
— Se houve outros casos de feras do Desvanecer vagando por
Entremundo.
— E?
— Não é totalmente inédito. Mas, geralmente, não ficam tanto
tempo. As feras do desvanecer são os animais que foram pegos no
meio quando os mundos se separaram. Eles podem parecer e se
sentir mortais… mas eles são parte do próprio Desvanecer.
— Parte do próprio Desvanecer — repito. — Então todo animal,
árvore, criatura, ficou preso no lugar quando Entremundo se
separou do Mundo Natural?
Eldas assente.
— O Desvanecer é quase como uma criatura em si mesmo, então.
Não?
Paro na escada, notando que Eldas ficou para trás. Ele me encara
com seus olhos azuis brilhantes, de um jeito que eu nunca tinha
visto antes – com anseio, se eu tivesse que descrever o sentimento.
— Correto — diz suavemente. — O Desvanecer é muito parecido
com algo vivo, que respira e pensa.
— E preso em estase. — De alguma forma, tenho pena daquela
névoa escura e primordial.
— Ninguém jamais reconheceu isso antes — diz com uma nota de
surpresa.
— Tenho certeza que já.
— Não, ninguém reconheceu — insiste e dá outro passo em minha
direção. Eu me pergunto se ele vai me beijar novamente. Eu me
pergunto como vai ser agora que nós dois estamos sóbrios e
sensatos. Estou fazendo um péssimo trabalho ao tentar ignorar
esses pensamentos.
— O fato de você gostar tanto de algo do Desvanecer me dá
esperança.
— Por quê?
— Mostra o quanto você é capaz de compaixão. O Desvanecer é
um lugar frio.
Frio como eu, percebo que é o que ele quer dizer. Se o
Desvanecer vem do Rei Elfo, e eu gosto de algo do Desvanecer,
isso significa que eu gosto dele? É isso que ele vê? Essa é a
verdade?
— O Desvanecer… — Essa parede aparentemente senciente é
parte de Eldas. — Pensei que a primeira Rainha Humana tinha
ajudado a criá-lo.
— Sim, a magia da Rainha Humana, seu dom da terra e os
poderes do Rei Elfo concedidos pelo Véu. Foi criado pelos dois.
— Vê? Somos mais fortes quando trabalhamos juntos — murmuro.
Estou contra a parede novamente e ele paira sobre mim.
— Talvez você esteja certa. — Eldas abre um pequeno sorriso e
continua subindo as escadas. Dou um suspiro de alívio. Eu não sei
o que eu teria feito com a atenção dele em mim assim por mais um
momento.
Quando chegamos ao laboratório, Willow está de joelhos, coçando
uma barriga de lobo com a maior empolgação que já vi. Hook
claramente está amando toda a atenção, com a cauda balançando e
se contorcendo todo.
— Quem é o melhor, Hookie? Você é o melhor, Hookie! O melhor
garoto ganha muita coceirinha na barriga! Ganha sim, ganha sim!!
— Oh, Hook, meu feroz defensor, o que vou fazer com você? —
Rio e volto para a estante. Willow nem me cumprimenta. — Você o
mima demais, sabia?
— Ele é o melhor garoto e merece ser mimado — Willow diz
defensivamente. — Ah, estive trabalhando na receita do biscoito.
Vamos ver se finalmente achamos algo que você vai querer comer.
— Hook não tem interesse em comida, para desgosto de Willow. O
que quer que as feras do Desvanecer comam, não é nada do que
Willow tenha inventado. Na melhor das hipóteses, Hook aceita
educadamente para ganhar mais carinho. — Eles estão logo ali…
oh. Oh! Vossa Majestade!
Olho por cima do ombro para ver Willow curvado diante de Eldas.
Hook continua deitado de costas, como se estivesse satisfeito em
envergonhar o pobre homem. Reviro os olhos.
— Vejo que é assim que meus recursos estão sendo gastos — diz
Eldas, novamente brusco. — Para fazer biscoitos para criaturas do
Desvanecer.
— Eu… Bem, isso é… Quer dizer…— Willow ainda não se
endireitou. Consigo vê-lo tremer.
— Deixe-o em paz, Eldas, — repreendo e desço do banco, com o
diário na mão. Atravessando a sala, o entrego para o Rei Elfo. —
Ele é o melhor curandeiro que este castelo já teve e você sabe que
não vai se livrar dele só porque ele quer mimar meu lobo.
Especialmente quando Poppy está fora.
Eldas estreita os olhos para mim, mas não diz nada. Eu me atrevo
a sorrir para ele. Quase posso vê-lo lutando contra um sorriso.
O movimento atrás de Eldas chama minha atenção. Qualquer
resposta que eu tinha em mente se transforma em um lamento:
— Ah, não…
Harrow está largado contra um homem com cílios longos e
cabelos castanhos ondulados. Ele era o que estava quieto com o
nariz no livro quando conheci Harrow e sua equipe heterogênea.
Sirro, esse era o nome dele.
Sirro tem uma expressão de pânico enquanto luta para levar
Harrow ao laboratório. Harrow, por sua vez, mal consegue ficar de
pé. Sua cabeça está caída e cada passo parece cair mais,
arrastando frouxamente os pés no chão.
— O que… — Eldas se vira e para. Vejo todo o seu corpo ficar
tenso. A sala está notavelmente mais fria. — O que significa isso?
— inquire, sua voz mortalmente suave.
— Harrow, ele…— Sirro olha de mim para o rei. Fico surpresa
quando seus olhos pousam em mim. — Ele me disse para vir aqui e
encontrar você.
— Encontrar a mim?
— Ele disse que você poderia curá-lo novamente.
Amaldiçoo baixinho. Não tinha contado a ninguém sobre aquele
dia. Certamente não era assim que eu esperava que Eldas e Willow
descobrissem.
— Coloque ele aqui. — Aponto para o banquinho em que o curei
da última vez. — Quer me dizer o que aconteceu?
— Nós… Bem, nós…— Sirro olha entre mim e Eldas enquanto
continua a trazer Harrow para a frente.
— O que quer que tenha acontecido, preciso saber. — Nem
imagino toda a libertinagem que eles têm feito. — Posso garantir
que o rei ficará muito mais irritado se você não me contar o que está
acontecendo e algo terrível acontecer com seu irmão.
— Você não fala por mim — diz Eldas, talvez por instinto. Estico o
queixo e olho feio para ele. — Mas a rainha está certa — cede.
Aperto a boca para evitar que ela se abra em choque. Ele admitiu
que estou certa sem que eu insistisse. — E estou mais interessado
em saber por que meu irmão está neste estado. Willow, você pode
ir.
— Luella, você precisa… — Willow tenta perguntar, mas Eldas não
o deixa dizer mais nem uma palavra.
— Luella claramente não precisa de ajuda se o está curando
novamente. — A maneira como Eldas diz a última palavra parece
dar um nó no meu estômago, mas eu reprimo o sentimento
desafiadoramente. Não vou me arrepender de ajudar um homem
necessitado. — Vá, Willow — ele ladra.
Willow olha para mim e sai apressadamente. Hook rosna com o
tom de Eldas, e provavelmente porque seu “coçador de barriga”
acabou de sair correndo. Estou muito concentrada em Harrow para
me preocupar com Hook ou Willow agora.
— Conte-me, Sirro — falo e olho o homem bem nos olhos. Há
apenas você e eu agora, quero dizer. Ignore o poderoso Rei Elfo ao
seu lado. — O que há de errado com ele? O que ele fez?
— Estávamos no Recanto da Harpia — Sirro começa, ainda
olhando para Eldas.
— Recanto da Harpia? Aquele antro…
— Eldas, chega — interrompo-o bruscamente. — Sirro, olhe para
mim; o que aconteceu?
Ele respira fundo.
— Ontem à noite fomos ao Recanto da Harpia, nós quatro. Aria
estava comemorando porque acabou de ganhar um papel na Trupe
de Máscaras e descobriu que começará a turnê com eles antes dos
ritos da primavera, começando em Carron daqui a algumas
semanas. Havia hidromel feérico e eu me lembro de dançarinas…
— Sirro balança a cabeça. — Eu não…
— Você está indo muito bem — encorajo. — Ele só tomou
hidromel?
— Foi só o que vi. Mas ele saiu com Jalic um pouco… Talvez com
Aria… Não tenho certeza. Acho que foi o que aconteceu. Jalic
estava interessado em um pouco de sino-doce que eu tinha. Dei-lhe
um pouco no início do dia. Talvez eles tenham usado…
— Sino-doce? — Nunca tinha ouvido falar disso antes.
Eldas faz uma careta.
— É uma substância patética que alguns dizem potencializar os
efeitos do álcool. Eles ouvem sinos e risos, e dançam com os
espíritos sob a lua cheia quando usam.
— É inofensivo. Ou eu pensei que era. Você não acha que talvez
houvesse algo mais, acha? — Sirro diz preocupado.
A visão de Aria no beco com o feérico com chifres volta à minha
mente. Não posso deixar o ataque do feérico me influenciar contra
Aria. Se Eldas ainda não descobriu nada – e tenho certeza de que
me diria se tivesse descoberto –, então não vou me preocupar.
— Tenho certeza de que ele deve ter usado demais — minto e vou
para o solário.
— Você pode sair — Eldas comanda Sirro.
— Mas… e Harrow?
— Saia.
Uma palavra faz Sirro correr. Quase posso ver gelo se formar no
vidro da estufa enquanto a raiva de Eldas aumenta. Ignoro, por
enquanto.
Mais uma vez, sigo os passos para fazer um remédio para o
príncipe doente. Mais uma vez, adiciono uma folha da raiz de
coração e outras ervas para desintoxicar. Eu não sei o que o sino-
doce faz, mas se Harrow usou mais alguma coisa, então ele vai
precisar de toda a ajuda que puder para limpar seu organismo.
Também adiciono algumas outras ervas que me vêm à mente com
base em minhas leituras dos diários das rainhas anteriores. Eldas
mal me observa. Em vez disso, seu braço está em torno de seu
irmão, apoiando-o enquanto este cambaleia no banco.
— O que aconteceu antes? — Eldas pergunta enquanto trago a
mistura. — A última vez que você o curou.
— Ele estava igual. Claro que eu não consegui nenhuma
informação sólida dele.
— Claro — Eldas murmura. A preocupação está estampada em
seu rosto, uma expressão frenética e dolorida que eu já vi uma vez
antes – quando ele pensou que eu estava em apuros.
Harrow mal responde quando levo a caneca aos seus lábios.
— Vamos, beba.
Os olhos de Eldas piscam em azul. Um calafrio passa por mim
como um vendaval de inverno. Harrow estremece e eu vejo sua
garganta tensa enquanto ele engole.
— O que você fez?
— Concentre-se, Luella. Suponho que ele precise tomar tudo. —
Eldas ainda não tirou os olhos do irmão.
Graças ao controle mágico de Eldas sobre Harrow, fazemos com
que ele tome a caneca inteira de poção.
— Harrow! — Eldas diz quando seu irmão amolece em seus
braços.
— Ele está apenas dormindo. — Descanso minha mão
encorajadoramente no ombro de Eldas. Está duro como rocha com
a tensão. — A poção ajudará seu organismo a se limpar… mas o
melhor remédio, muitas vezes, é descansar e permitir que o corpo
trabalhe por conta própria. Coloquei algumas ervas para ajudá-lo a
dormir; com alguma sorte, ele vai ficar dormindo e acordará bem
melhor.
— Tudo bem. — Eldas suspira. — Vamos então, irmão. — Ele
ergue Harrow com facilidade em seus braços fortes. Posso ver o
contorno dos músculos tensos saltando sob sua camisa. A
preocupação em seu rosto está se transformando em alívio. Um
alívio que ajudei a criar. O pensamento me traz uma onda de alegria
que não sentia há algum tempo.
Isto é o que eu deveria fazer: ajudar as pessoas. Sinto mais falta
da minha botica e de Capton do que em semanas, mas afasto esses
pensamentos. Eles estão mais cortantes do que nunca e preciso me
concentrar.
— Aqui está, quando ele acordar vai precisar de outra dose. Mais
descanso… e então ele deveria…
— Eu não posso carregar Harrow e mais metade do laboratório.
Por favor, traga o que ele vai precisar e me siga até o quarto dele.
vinte e quatro

O quarto de Harrow é o último lugar em que quero estar. Mas eu


não posso dizer isso abertamente. E não posso abandonar um
paciente.
— Claro. — Coloco rapidamente todos os itens essenciais em que
consigo pensar e mais alguns em uma cesta e vou atrás de Eldas.
— Hook, vá — comando; não quero levá-lo ao quarto de Harrow.
Não seria surpresa se o jovem príncipe descobrisse depois e
tentasse tirar Hook de mim de alguma forma. Hook olha para mim
com seus olhos amarelos e inclina a cabeça. — Está tudo bem,
Hook, volte para o Desvanecer. Assobio para você mais tarde.
Hook se esconde entre as sombras do mundo enquanto Eldas e
eu partimos. Atravessamos o castelo tranquilo e entramos na Ala
Leste. Reconheço os corredores apertados cheios de relíquias e
tapeçarias do jantar da noite anterior. Chegamos a um corredor não
muito diferente do meu e entramos em um apartamento bagunçado.
Sinais de libertinagem espalham-se pelo chão; roupas estão
espalhadas, resquícios de uma festa que aconteceu há muito
tempo, esperando tempo suficiente para ser limpa para que um
cheiro rançoso paire no ar.
Eldas para e dá um suspiro pesado. Ele olha por cima do ombro
para mim.
— Sinto muito por isso… O quarto é nesta direção.
Andamos cuidadosamente por cima de objetos suspeitos enquanto
passamos por um arco revestido com cortinas transparentes. Atrás
há uma grande cama circular que está tão bagunçada quanto o
resto do quarto. Eldas coloca Harrow na cama e eu tomo a liberdade
de limpar uma mesa lateral para colocar meus objetos de trabalho.
— Diga-me do que ele vai precisar. — Eldas gentilmente coloca os
cobertores em volta de seu irmão mais novo.
— Quando acordar, vai precisar beber o resto disso. Então,
depois, esse pó deve ser misturado com água e ele deve engolir
tudo de uma vez. Mas posso voltar depois para cuidar dele.
Eldas olha para mim da beirada da cama. Seu joelho quase toca
minha coxa quando ele se move para me ver melhor. Continuo a me
concentrar em minhas ervas e pomadas.
— Você faria isso pelo meu pobre irmão miserável?
— Até os miseráveis precisam de cuidados. — Paro e olho para
Harrow. Ele não é mais o terror antagônico que conheci pela
primeira vez. Adormecido, ele parece mais jovem e mais suave –
quase vulnerável. — Não… ele não é um miserável, apenas um
pouco equivocado, eu aposto. — As pessoas que agem da pior
maneira muitas vezes são as que mais estão sofrendo. — Ele
precisa especialmente de cuidados. — Mais do que posso dar.
Suspeito que os problemas de Harrow sejam mais profundos do que
fisiológicos.
— Ele precisa — Eldas concorda fracamente. — É minha culpa
que ele esteja assim. — Fico em silêncio enquanto fala. —
Gerenciar herdeiros substitutos para o Rei Elfo tem sido complicado
ao longo da história. O Rei Elfo sempre foi capaz de ascender ao
trono, em parte graças às proteções que cercam o herdeiro desde o
nascimento. Então, substitutos nunca foram necessários… Com o
nosso irmão Drestin foi simples. Ele é motivado, e aceitou de bom
grado sua colocação no Posto Oeste.
“Mas Harrow… Nossa mãe sempre foi mole com ele. Ele era o
único filho a quem ela poderia se agarrar por mais tempo. Ela o
adora; me pai também o adorava. E eu…”
— Você se ressente dele por isso — termino.
— Sim. — Eldas fecha os olhos e enterra o rosto nas mãos. — Eu
era o herdeiro de todo o Entremundo e invejava meu irmãozinho.
— Sua vida não foi fácil. — A tristeza brota em mim. É como se eu
finalmente tivesse penetrado através da parede esmagadora de gelo
permanente que cerca este homem e visto algo real, algo quente:
dor. — Você não podia sair. Você era o herdeiro desde o momento
em que nasceu e se preparou para tal. Seu pai estava em uma
situação complicada entre sua mãe e a rainha dele. Estar entre ele,
ela e Alice não deve ter sido fácil…
— Alice foi minha salvadora — ele interrompe. — Sem ela, eu teria
enlouquecido.
— Ah. — Todas as suas menções anteriores a Alice assumem um
novo significado.
— Ela foi boa comigo. Minha mãe sabia que eu estava destinado a
ser rei e que o destino me tiraria dela. Desde o momento em que
nasci, ela me entregou às amas de leite e lavou as mãos.
Jantares de família passam diante dos meus olhos. Ainda posso
ouvir meus pais me colocando na cama, garantindo-me que não
havia monstros à espreita nos cantos do nosso sótão. Lembro-me
da primeira vez que minha mãe me levou para o campo para me
mostrar o que sabia sobre ervas e plantas. Seu choro quando saí de
Capton enche meus ouvidos, e a visão dos olhos vermelhos do meu
pai está viva na minha memória.
Eldas me odeia, então? Ele me odeia pela família que eu tinha,
que a ele foi negada? Ele me arrancou deles tão insensivelmente
por despeito?
As perguntas ardem em minha língua enquanto as lágrimas ardem
em meus olhos. É provável que seja verdade. Provavelmente eu
deveria odiá-lo ainda mais agora.
Mas… não. Não posso. Algo em mim está mudando agora que o vi
assim e sei o que sei. Está me mudando mais do que de beijos
contra uma parede mudaram. Talvez eu nunca mais consiga olhar
para ele da mesma maneira.
Talvez eu não queira. Meus sentimentos por ele são mais
profundos do que eu esperava, e isso não é ruim.
— Alice teve pena de mim quando ninguém mais tinha — ele
continua, alheio à minha confusão. — Ela era a melhor coisa que eu
tinha. E eu lamentei sua morte diariamente por muito tempo.
Assim como lamento sua partida quando ela ainda nem
aconteceu… quase posso ouvir as palavras não ditas, e me
pergunto se as inventei.
— Eldas, eu…
— Onde ele está? — Uma voz rude corta o ar quando a porta da
sala principal se abre. Falando em mãe… — Onde está meu menino
querido? — Uma mulher com feições afiadas e olhos tão frios
quanto os de Eldas entra bruscamente, cortinas esvoaçando atrás
dela. Pergunto-me se parte da razão pela qual ela não conseguiu
tolerar Eldas era por causa do quanto se parece com ela. — O que
você fez com ele?
Eu pisco, percebendo que sua atenção repousa apenas em mim.
— Quem, eu?
— Você veio para este castelo e causou a meus filhos nada além
de tormento — ela repreende e contorna o outro lado da cama. —
Você nem deveria estar na Ala Leste. Vá para o seu lugar, rainha. —
Ela diz como se fosse um insulto.
— Eu…
— Mãe, Luella está ajudando Harrow — Eldas diz secamente,
levantando-se da beirada da cama. — Sem ela…
— Sem ela, meu bebê não estaria nessa confusão; basta olhar
para ele. — Ela afasta o cabelo escuro de Harrow de seu rosto
suado.
Quero ter pena dessa mulher. Quero encontrar simpatia por ela
como tenho por Eldas. Tento me imaginar na posição dela. Ela é a
amante de fato do rei anterior, mas sem título real algum. Desde o
primeiro momento em que buscou um relacionamento com o pai de
Eldas, ela devia saber que seu filho primogênito seria tirado dela.
Tento buscar lá no fundo por compaixão, mas olhares assassinos
dirigidos a mim tornam isso muito difícil.
— Você sabe o que Harrow vai precisar em seguida — digo a
Eldas. — Se precisar de mim ou tiver dúvidas, sabe como me
encontrar.
— Obrigado, Luella. — A maneira como diz isso não deixa dúvidas
de que fala sério.
— Ele não tomará nada que essa garota tenha feito. — A mulher
olha para a mesa de cabeceira cheia de suprimentos.
— Mãe.
— Ela tem o quê? Dezoito anos?
— Dezenove — corrijo calmamente.
— Uma criança. Mande buscar Poppy.
— Não posso — Eldas diz friamente. — Enviei Poppy em uma
missão importante que ainda levará pelo menos dois meses; e eu
não vou chamá-la de volta. Então, se você deseja que Harrow
receba cuidados, você permitirá que Luella…
— O neto de Poppy. Mesmo aquele rato seria melhor do que ela.
Vejo as mãos de Eldas se apertarem atrás das costas a ponto de
os nós dos dedos ficarem brancos como papel. Os músculos de sua
mandíbula ficam tensos. Mas seus olhos estão cheios de tristeza e
nostalgia, mesmo quando ele fala com todo o gelo amargo que já
ouvi o homem reunir.
— Sou o rei, e o que acontece no meu castelo é de minha
responsabilidade.
— “Seu castelo.” Você não me domina. Eu sou sua mãe.
— É uma pena que você tenha falhado em agir como tal.
— Eldas — toco seu cotovelo levemente, tentando tirá-lo da
discussão.
— Como você se atreve a falar assim comigo?
— Como você se atreve a falar com minha esposa desse jeito? —
As palavras de Eldas reverberam em mim. Elas me protegem contra
o frio cada vez maior e geram um calor que sobe pelos meus braços
e se instala na minha face.
Ele não está defendendo você, Luella, não de verdade. Sou
apenas uma oportunidade fácil para ele provocar a mãe. Olho para
longe deles, escondendo meu rosto enquanto tento mentir para mim
mesma.
— Harrow precisa de descanso — digo baixinho.
— Sim, vamos embora. — Eldas se vira e sua mão grande
descansa nas minhas costas enquanto me conduz para fora da sala.
Ele fica em silêncio enquanto me leva de volta ao meu apartamento.
O tempo todo, sua mão permanece em mim. Está quente para um
homem tão frio. Não faço nenhum esforço para quebrar o contato.
Hook já está de volta, e solta um ganido suave no momento que
nos vê, levantando a cabeça.
— Perdão por mandar você embora — peço desculpas a Hook e
finalmente me afasto de Eldas para agachar e coçar o lobo atrás
das orelhas. — Não queria arriscar Harrow acordando e sendo
malvado com você.
— Ninguém neste castelo prejudicará Hook. Quem o fizer terá que
enfrentar minha ira.
Olho para Eldas. Ele parece balançar um pouco. A exaustão está
começando a aparecer, e resisto à vontade de correr para o
laboratório e fazer algo para ajudá-lo a relaxar e dormir
profundamente.
— Por que ele é parte de você?
— Não, não tem nada a ver comigo. Porque você gosta dele.
Você, e qualquer coisa que seja sua, são minha responsabilidade de
proteger.
— Responsabilidade — sussurro, e dou uma risada triste.
— São minha honra proteger — Eldas esclarece sem hesitar.
— Obrigada — é tudo o que digo. O que mais posso dizer em
resposta a essa declaração firme? Traz o calor de volta às minhas
bochechas.
— Sou eu quem agradece, Luella. — Seus olhos permanecem em
mim, quase expectantes. — Por…— Ele balança a cabeça, como se
não conseguisse encontrar as palavras.
— Por ontem à noite?
Uma expressão de pânico passa por ele. Eldas parece se inclinar
para a frente, como se atraído na minha direção pela lembrança do
nosso beijo. Não me importaria se ele me beijasse de novo,
finalmente admito para mim mesma. O pensamento desperta meu
próprio pânico e engulo em seco. Vendo isso, ele imediatamente se
afasta.
— Melhor que deixemos a noite passada no fundo da garrafa de
hidromel — diz finalmente.
— Essa é sua maneira de dizer que estava bêbado? — pergunto.
A decepção me inunda. Tento erigir barragens antes que ela possa
me ultrapassar.
— Nós dois bebemos demais.
E essa é sua maneira de dizer que se arrepende. Eldas me estuda
pelo canto do olho, claramente esperando minha resposta.
— Certo, bebemos demais — forço-me, embora dolorosamente, a
concordar. Se ele quiser recuar, vou deixar. Estou tentando ir
embora, de qualquer maneira.
Ele tem seus deveres. Tenho o meu. Ignorar a noite passada e
qualquer coisa que possa estar cozinhando entre nós é o melhor. Só
estaremos destinados à mágoa se continuarmos.
No entanto, Eldas parece murchar um pouco, mas rapidamente
endireita seus ombros, sem dúvida chegando à mesma conclusão
que eu.
Sem outra palavra, ele parte. Eu o observo ir e entro com Hook em
nosso apartamento.
Pela primeira vez desde que encontrei Hook, me sinto solitária nos
meus vastos aposentos. Pela primeira vez, e apesar de meu bom
senso me dizer para não fazer isso, pergunto-me como seria se
Eldas ficasse.
vinte e cinco

— Acordou cedo! — diz Willow ao entrar no laboratório.


— Sim; bem, eu queria resolver algumas coisas antes de ir ver
Harrow.
— Como foi ontem? — Willow se senta em um dos balcões. Ele
está mais interessado em mim do que em começar seus deveres do
dia – ou coçar a barriga de Hook, e isso é alguma coisa.
Hook não está contente com essa mudança.
— Eu… — Minhas mãos pairam sobre a cesta que carrego. — Foi
estranho. Harrow está bem, ou deve estar. Em breve saberemos. —
Recapitulo os eventos de ontem, deixando de fora alguns detalhes
importantes da tensão familiar íntima e o estranho vai e volta entre
Eldas e eu. Duvido que ele ou Harrow gostariam que falasse sobre o
primeiro. O último, não estou pronta para falar.
— Então você a conheceu, Herdeira Mãe Sevenna.
— Sevenna. Só o nome já soa severo. — Combina com a mulher
enérgica que conheci ontem.
— Eles a chamam na cidade de assombração do castelo — Willow
confidencia.
— A assombração do castelo e o rei do gelo. Quinnar certamente
tem opiniões fortes sobre sua família real.
— Palavras de outras pessoas, não minhas — Willow acrescenta
apressadamente. — Nunca interagi muito com a família real, apesar
de estar aqui.
— Você disse. E mesmo que essas fossem suas palavras, eu não
o denunciaria a Eldas. — dou uma piscadela para Willow e o
observo relaxar mais uma vez. Ele abre um de seus sorrisos
sinceros. Não, eu não faria nada que pudesse prejudicar Willow, não
depois de tudo que ele fez por mim.
— Ela não sai muito do castelo. Bem, não sai nunca. Dizem que
ela morreu com o último rei e agora é o fantasma dela que vagueia
pelos corredores.
Sevenna deve ter amado o rei. Certamente. Mais uma vez eu tento
encontrar simpatia por ela, por mais difícil que seja.
— Posso lhe assegurar que é muito real. Oh, falando nela, ela
mencionou algo; ou melhor, Eldas mencionou.
— O quê?
— Eldas disse que mandou Poppy em uma missão e ela não
voltará por pelo menos mais dois meses. — Termino de reunir os
suprimentos que acho que vou precisar e prossigo para verificá-los
novamente. — Lembro-me de você dizer que ela estava em algum
tipo de viagem um tempo atrás… É a mesma viagem? Está tudo
bem?
— Ele a enviou para o Mundo Natural.
— O quê? — suspiro um pouco assustada.
— Pensei que você soubesse…— Preocupação cruza brevemente
seu rosto. — Desculpe, teria te contado antes.
— Não, tudo bem. Para que ele a mandou?
— Ele estava preocupado que a cidade do outro lado do
Desvanecer não tem mais seu curandeiro depois que você partiu, ou
foi o que minha avó me disse. Parece um pouco estranho, se me
perguntar. Nunca ouvi falar de um rei enviando ajuda para o seu
lado.
Finjo me concentrar na minha cesta enquanto minhas entranhas
dão um nó. Lembro-me da conversa que tivemos no Desvanecer e
dos medos que lhe confidenciei. Aqui estava eu fazendo minhas
obrigações, alheia a essa gentileza… Eu apenas imaginei que
Poppy estivesse ocupada em outro lugar em Entremundo. Por que
Eldas não disse nada?
— Você está bem?
— Sim, estou bem. — Passo meu braço pela alça da cesta. —
Você se importa de cuidar de Hook enquanto eu faço essa tarefa?
Se for um problema, você pode mandá-lo embora.
Ele arqueja:
— Eu nunca mandaria meu Hookie embora! — Willow salta de
seu poleiro para agarrar o rosto de Hook com as duas mãos. Está
pronto? Vamos fazer biscoitos hoje. Sim, vamos. Sim, vamos! —
Sua fala de cachorrinho traz um sorriso ao meu rosto e saio
sabendo que Hook está em boas mãos por enquanto.
Lembro-me do caminho de volta aos aposentos de Harrow de
cabeça. Vou devagar, adivinhando cada passo. O ritmo vagaroso
me dá tempo para pensar sobre o gesto de Eldas em mandar Poppy
de volta, assim como em Sevenna, Harrow, Eldas e a família não
convencional da qual não faço realmente parte.
Bato na porta de Harrow e rezo para que Sevenna não esteja lá.
Não há resposta, o que considero um bom sinal. É possível que ele
ainda esteja dormindo.
— Olá? — digo quando abro a porta.
— É a rainha do meu irmão? — Harrow rouqueja.
— E sua curandeira particular —respondo e fecho a porta atrás de
mim. Alguém limpou o quarto. Há muito menos bagunça para eu
dançar em volta enquanto caminho até sua cama.
— Sorte a minha — diz ríspido.
— Nós dois temos a melhor sorte, ao que parece — retruco, tão
seca quanto.
— Justo. Você teve que acabar casada com o bastardo do meu
irmão.
— Ele não é metade do bastardo que você é.
Harrow bufa e dá um sorriso cansado enquanto verifico os
remédios que deixei. Tanto o pó quanto a segunda dose da poção
se foram. E a julgar pela cor que retornou às bochechas de Harrow,
minhas misturas funcionaram.
— Cuidado, Luella, se você continuar falando assim eu posso
acabar gostando de você.
— O horror!
Ele bufa.
— Acho que prefiro a companhia de pessoas que me tratam mal.
— E por quê? — pergunto casualmente, embora esteja
genuinamente curiosa pela resposta.
— Quem sabe? Talvez por que saiba que não valho nada? —
Harrow fala enquanto acabo de fazer a poção que comecei no
laboratório. Um maço de tomilho vira pó em meus dedos enquanto o
líquido na caneca que estou segurando muda de cor para um
marrom escuro. A magia formiga na palma da minha mão. Tenho
mais controle de meus poderes, acho; mais confiança, pelo menos.
— Não é verdade — digo e entrego a caneca para ele. Sento-me
na beirada da cama. Ele observa o movimento, mas não me diz
para sair… o que é um progresso que eu não sabia que estava
procurando.
— E o que você sabe? — diz, meio escondido atrás da caneca.
— Todos são dignos de decência. É por isso que estou ajudando
você, afinal.
— E aposto que você se acha muito melhor do que eu por causa
disso — zomba, mas sua expressão não tem o veneno que já teve,
ou talvez eu tenha me tornado imune à sua marca particular de
veneno.
— Não sou melhor que ninguém — suspiro. — Embora eu
desejasse ser melhor para mim mesma. — Se fosse, poderia ter
sabido que era a rainha mais cedo. Poderia ter sido capaz de
descobrir uma maneira de parar o ciclo e consertar as estações de
Entremundo agora. Poderia ter visto a bondade de Eldas. Poderia
não estar ignorando o sentimento que ele desperta em mim.
— Não desejamos todos?
— Então, o que aconteceu? — Desvio o assunto e meus
pensamentos. — Diga-me o que realmente aconteceu com você
desta vez.
— Para que você possa reportar ao meu irmão?
— Vai ficar entre nós. Juro. — Olho Harrow direto nos olhos.
— Você jura? — Ele arqueia as sobrancelhas.
— Levo a sério o relacionamento que tenho com meus pacientes,
Harrow. Você tem minha palavra de que não direi nada a Eldas – ou
a qualquer outra pessoa.
— Acho que posso acreditar nisso. Você não contou da última vez
— suspira. — Eu… posso ter me envolvido com algo que não
deveria.
— O quê? — pergunto enquanto ele passa a caneca de uma mão
para a outra.
— Não acredito que estou dizendo isso a uma humana —
murmura.
— Sou sua curandeira; pense em mim dessa maneira e nada
mais.
— Certo… Bem… não sei como isso aconteceu. Não era pra
acontecer.
— O que aconteceu?
— Algumas semanas atrás, acho que usei Vislumbre pela primeira
vez. Tem que acreditar em mim, foi completamente por acaso. Eu
nunca teria ido atrás — diz defensivamente.
— Eu não sei o que é Vislumbre.
— Ah, claro, humana. — Ele revira os olhos e eu reviro os meus
de volta. — Vislumbre é uma substância feita pelos feéricos.
Aumenta a conexão com o Véu e, por isso, pode melhorar a magia
élfica. A sensação de poder fluindo através de você é como
nenhuma outra. Como se você estivesse a meio caminho do Além –
a meio caminho da imortalidade que já tivemos. Algumas pessoas
usam para realizar atos incríveis. Outras… por prazer.
— E como você…
— Eu lhe disse, não pretendia. Não originalmente…
Eu franzo a testa. Na Academia havia alunos que experimentavam
várias substâncias, naturais e criadas. Alguns eu até ouvi falar que
vendiam substâncias nas ruas de Lanton, mas nunca dei muita
atenção ao assunto, optando por me distanciar o máximo possível
dos atos mais sombrios. Meus estudos me afastavam de tudo que
eu não podia cultivar na terra.
— Estávamos em uma festa. As pessoas estavam se divertindo.
Acho que colocaram algo na minha bebida. Só pode ter sido isso,
mas depois… eu… eu ansiava por mais. Apenas um pouco de cada
vez, mas o fascínio do Véu é irresistível.
Resisto em franzir a testa. Não quero que ele interprete minha
preocupação como julgamento. Em vez disso, mantenho o rosto
passivo, e escuto.
— Além disso, quando uso, não penso em nada. O mundo desliza
para aquele vazio azul nebuloso. — De repente, a raiva brilha em
seus olhos. — Você sabe como é procurar a vida toda por um lugar
onde você pode simplesmente existir?
— Sim — respondo honestamente. Ele se assusta. — É algo que
sempre busquei – um lugar só meu, construído por minhas próprias
mãos – um canto do mundo pelo qual posso me responsabilizar.
Não pelas mesmas razões que você, Harrow… mas conheço o
sentimento.
— Olhe só para mim, me identificando com uma humana. Nunca
acreditariam nos salões e bares se ouvissem — Harrow murmura.
— Tempos estranhos, de fato. — Sorrio levemente, mas minha
expressão rapidamente se torna séria. — Harrow, você não pode…
— Antes que você diga, eu sei. Sei que não posso continuar
usando. Eu não quero, mas o canto da sereia… — Ele olha para o
nada, como se pudesse ouvi-lo mesmo agora: a atração desta
substância conhecida como Vislumbre. — É chamado de Vislumbre
porque os elfos realmente têm um “vislumbre” de sua imortalidade.
Agora que provei, quero mais. Eu não sei o que fazer com a fissura.
— Vou ajudá-lo — declaro. Não gosto do jeito que ele fala sobre
estar mais perto do Véu. Então, acrescento — Isto é, se você quiser.
— O que você pode fazer?
Gostaria de ter acesso à biblioteca da Academia e sua riqueza de
conhecimento em todos os tópicos. Ou que pudesse escrever para
um dos meus antigos professores que lidavam com alunos que
ficaram viciados nas substâncias que eles criaram, mas pode ser
que eu tenha algo tão bom quanto isso aqui.
— Plantas são coisas magníficas. Elas podem criar algo tão
poderoso quanto o Vislumbre, e também podem criar maneiras de
evitar o vício. — Olho Harrow nos olhos. — Você gostaria que eu
tentasse fazer algo para você?
Harrow termina de beber da sua caneca e passa para mim. Desvia
o olhar como uma criança obstinada. No entanto, apesar de toda a
sua linguagem corporal dizer contrário, fala:
— Tudo bem, acho. Não acredito que possa te impedir. Bebo tudo
o que você coloca na minha frente, de qualquer maneira.
— Tudo bem. — Pego a caneca e coloco na mesa. — Verei o que
posso fazer. Enquanto isso, não saia do castelo.
— Mas…
— Não, Harrow. Se precisar, traga Jalic, Sirro e Aria aqui. —
Contraio-me por dentro com a sugestão. Eles são as últimas
pessoas que eu quero aqui, mas se isso ajuda Harrow, então é o
que deve ser feito. O bem-estar dos meus pacientes vem em
primeiro lugar, sempre.
Lembro-me de Aria no beco passando algo para aquele feérico.
Mordo meu lábio. Mesmo que ela não esteja envolvida com o feérico
com chifres que tentou me sequestrar, ela ainda pode estar
tramando algo, mas se eu levantar suspeita agora, Harrow
provavelmente ficará na defensiva. Não posso arriscar que ele se
feche para mim. Em vez disso, simplesmente digo:
— Certifique-se de que eles não tragam nada mais forte do que
álcool.
— Vou tentar.
— Ótimo. — Sei que isso é tudo que ele pode fazer. Ele está
deslizando numa ladeira escorregadia, mas felizmente ainda está
virado para a direção certa. Quanto mais cedo eu agir, melhor. — É
melhor eu ir.
— Sim, saia do meu quarto, humana. — Mesmo a palavra
“humana” não soa mais tão ácida.
— Com prazer, príncipe. — Digo a palavra com ofensa, mas
Harrow sorri para mim. Uma expressão que eu espelho – como se
agora compartilhássemos um segredo.
Suponho que compartilhemos mesmo.
A porta do quarto se fecha atrás de mim, e estou folheando meu
catálogo mental de ervas quando começo a andar pelo corredor.
Estou tão concentrada em encontrar um bom ponto de partida para
Harrow que não noto alguém no meu caminho e quase dou de cara
com Eldas. Ele me para com uma mão forte no meu ombro, o que
me tira do transe.
— Ah! E-eu sinto muito.
— Está tudo bem. — Ele sorri – sorri! É como se o sol nascesse
em seu rosto, mas as nuvens rapidamente voltam e a expressão
desaparece quando ele me solta, como se tivesse acabado de
perceber o que fez. — Na verdade, eu estava vindo procurar por
você.
— Você me encontrou.
— Encontrei. — Ele olha por cima do meu ombro. — Onde está
Hook?
Mesmo que a fera faça parte dele, não posso deixar de me sentir
aquecida pelo fato de estar perguntando pelo meu lobo.
— Ele está com Willow. Achei que ele iria gostar mais de ficar lá
do que vir ver Harrow comigo.
— Ah, como está meu irmão?
— Bem o suficiente para ser cortante. — Uma sombra cruza a
expressão de Eldas. Sua mandíbula enrijece instantaneamente.
Levanto as mãos. — Não, não, foi tudo bem. Sei que seus gracejos
significam que ele está melhorando. — Sorrio. — Além disso, estou
me acostumando com ele.
— Você está… se acostumando com meu irmão?
— Pessoas podem beber veneno se o tomarem em doses
pequenas o bastante por tempo suficiente — retruco
Eldas bufa, outro lampejo de diversão cruzando seu rosto. Gosto
de diverti-lo. Gosto de seus pequenos sorrisos e olhares travessos.
— Como ele está?
— Vai ficar bem. Só precisa aproveitar menos a vida noturna.
Disse a ele que ele deveria ficar no castelo por um tempo e
descansar: nada de sair.
— Espero que ele a ouça. Certamente não ouve a mim —
murmura Eldas.
— Vamos ver… Mas não estou confiante de que terei muito
sucesso. — Olho por cima do ombro de volta para a porta de
Harrow. Na verdade, estou de olho em Sevenna. Só posso aguentar
um pouco de veneno de cada vez, não tenho energia para seu olhar
fulminante hoje. — De qualquer maneira, eu deveria voltar ao
trabalho.
— Eu também — diz Eldas. No entanto, nós dois continuamos
parados. — Ah, quase esqueci, queria devolver isso. — Ele estende
um diário familiar. — Foi um pouco mais demorado que o último
para ler inteiro.
— Ainda assim foi em tempo recorde. — Pego o diário com as
duas mãos e estico os dedos em busca do choque que acontece
quando nos tocamos, mas o tomo é muito grande, e nossas mãos
não se encontram.
— Sim, eu vou precisar de outro — diz ele pensativo, sua voz
baixa. — Será que eu…— Ele limpa a garganta e isso diminui um
pouco da rouquidão em sua voz. Eu prefiro a rouquidão. — Tudo
bem se eu fosse buscar outro em seu apartamento mais tarde? —
Eldas pergunta com toda a formalidade e decoro que se espera de
um rei.
Eu seguro uma risada, só sorrio.
— Claro, Eldas. Você é bem-vindo a qualquer hora.
— Ótimo. — Ele afirma com a cabeça e se vai como se as coisas
não tivessem mudado fundamentalmente mais uma vez entre nós.
— Verei você mais tarde, Luella.
Há algo na maneira como meu nome rola de sua língua, ou o
sussurro que ele deixa quando passa, que me prega no lugar,
envergonhada, muito depois de ele ter desaparecido no quarto de
Harrow.
vinte e seis

Faço meu jantar na minha mesa, mais determinada do que nunca


a vasculhar os diários das rainhas. Especificamente, procuro
informações sobre a raiz de coração. A recuperação de Harrow, em
ambos os casos, superou minhas expectativas. Como todas as
outras ervas são aquelas com as quais estou familiarizada e já usei
muitas vezes antes, só posso supor que a variável esteja na raiz de
coração.
Para minha alegria, Willow se junta a mim para jantar e ficamos
até tarde da noite discutindo a raiz de coração e suas propriedades
mágicas. Ele me ajuda a folhear os diários em busca da primeira
rainha a trabalhar com a erva rara. A única coisa que encontramos é
uma única menção no diário da rainha que trouxe aquela raiz de
coração dos pântanos do norte – a mesma rainha que falou em
encerrar o ciclo. Procuro para ver se os dois estão conectados de
alguma forma, mas quando a busca não rende nada, sei que estou
apenas vendo o que quero ver.
Willow está sentado à minha frente, ocupando metade da minha
mesa. Sento-me do outro lado, a comida esquecida enquanto
vasculhamos. Hook está enrolado entre nossos pés, aceitando
carinhos de bom grado.
O relógio que encomendei soa nove horas, e sou tirada de um
transe. Levanto o olhar da mesa pela primeira vez desde que
começamos e esfrego meus olhos turvos. Sombras pálidas e
nebulosas dançam do lado de fora das janelas do meu quarto.
— Ah…
Willow também ergue os olhos, virando-se de mim para as janelas
atrás dele. Ele para, lábios franzidos, estudando a neve caindo com
tanta intensidade quanto fazia com o diário momentos atrás.
— Se na primavera nevar, o rei vou avisar. Se no verão neve eu
vir, a rainha ainda está a dormir.
— O quê?
Willow repete.
— Não, eu ouvi você… o que é isso?
— Ah, é uma rima antiga. — Ele se afasta da janela. — Se na
primavera nevar, o rei vou avisar – acho que isso implica que pode
haver algo errado com a rainha. Porque não devemos ter neve
quando a primavera chegar. Se no verão neve eu vir…
— A rainha ainda está a dormir — completo. — Ou seja, ela ainda
não voltou. A última rainha está morta, e é inverno quando deveria
ser verão. — Willow assente. Olho para a neve caindo em flocos
grandes e a apreensão enche minhas entranhas. Ela zomba da
primavera que estava aqui há poucas horas. — Acho que você
deveria ir.
— Você tem certeza?
— Preciso ver Eldas. — Essas palavras doem, e a dor delas será
apenas o começo da agonia desta noite.
Willow suspira e fecha o diário que estava folheando, deixando
dentro do livro as anotações que estava fazendo. Ele se levanta e
Hook se levanta com ele. Willow coça as orelhas do lobo.
— Vejo você amanhã, Hook. E você também, Luella.
Eu gostaria que ele não soasse um pouco preocupado e duvidoso
dizendo isso.
— Vejo você amanhã. — Espero.
— Se você precisar de mim, me chame, não importa a hora. —
Willow sai e eu ando de um lado para outro na frente das grandes
janelas do meu quarto.
Não me surpreendo quando alguém bate à minha porta.
— Entre, Eldas.
A porta se abre e eu nem me incomodo em olhar. Mas,
confirmando, sua voz corta meus pensamentos desenfreados.
— Como sabia que era eu?
— Sorte. — Olho e dou de ombros.
— Não tenho o hábito de vir ao seu quarto à noite.
— Bom, como está nevando…
Seu olhar muda, como se ele estivesse vendo apenas a mim
desde que abriu a porta. Um muxoxo se forma em seus lábios. Seus
olhos estão duros e severos.
— Está mesmo.
— Não foi por isso que veio?
— Vim para buscar um novo diário. Mas você está certa, este é
um assunto mais urgente.
— Preciso sentar-me no trono novamente, não é? — giro o anel de
labradorita na minha mão direita nervosamente.
— Precisa. — Ele soa pesaroso, as palavras cheias de
preocupação.
— Então vamos.
— Agora? — Ele parece assustado com a ideia.
— Se não agora, quando? Precisa ser feito, e eu prefiro acabar
com isso agora, que tenho a noite toda para tentar me recuperar. —
Está mais para enquanto tenho coragem. Antes que o medo
realmente se instale.
— Luella, você vai ficar bem. — Nem ele parece convencido.
Dou de ombros. Sei o que eu li. O trono não fica mais fácil.
Rainhas apenas se acostumam com ele. Não tenho escolha a não
ser suportar o mundo tentando drenar cada gota de vida de mim.
— Luella. — A suavidade na voz de Eldas atrai meus olhos para
ele. — Você teve tempo para permitir que sua magia se estabeleça
e se acostume a Entremundo. Você sabe o que está por vir.
— Eu só quero acabar com isso — digo, fraca. — Por favor, me
leve até lá.
— Muito bem. — Ele obedece.
Parece que o tempo não passou e já estamos na sala do trono.
Está tão frio que minha respiração condensa, e luto contra um
arrepio. Estou com um vestido simples — de manga longa,
felizmente — mas o algodão não é grosso o suficiente para esse
frio.
— Pelo menos quando eu me sentar no trono novamente, vai ficar
mais quente. — Tento sorrir, mas Eldas não reflete a emoção, então
ela rapidamente desaparece do meu rosto. Ele exala preocupação a
cada passo.
— Estarei aqui o tempo todo — diz quando paramos diante do
trono. — Eu vou puxá-la como da última vez, se for necessário.
Última vez. O pensamento faz meu corpo doer. Enfrento o trono.
Se eu consegui sair de casa, ir para Lanton, tornar-me uma
herbóloga, tornar-me a Rainha Humana e manipular a terra, então
consigo fazer isso. Eu me recuso a deixar um trono me controlar.
— Vamos acabar com isso — digo, soando mais estável do que
me sinto.
Virando-me, inclino-me para trás e me permito cair no assento. Se
eu tentar me sentar devagar, posso me afastar no último segundo. O
medo me derrotar e transformar o inevitável em algo mais
insuportável do que já é.
Logo antes de meu corpo atingir o trono, olho para cima, e tudo
que vejo é Eldas.
Estou aqui, seus olhos parecem dizer. Estarei aqui.
Não tenho a chance de agradecê-lo. O ar é sugado de meus
pulmões e estou mergulhado na escuridão. Fique calma, Luella,
comando a mim mesma. Sei o que está por vir e não vou deixar o
choque roubar meus sentidos.
Cada vez mais fundo, afundo no núcleo da terra. A sensação fica
entre a primeira e a segunda vez que interagi com o trono. Estou tão
imersa como na primeira. Mas é menos violenta, como na segunda.
Sinto o fantasma da mão de Eldas se espalmar onde imagino que
meu estômago estaria, se eu tivesse um estômago nessa forma.
Concentre-se, posso ouvi-lo dizer. A magia responde a você. Você
manda nela; a magia não manda em você.
Lentamente, minha percepção entra em foco. Não é bem como
enxergar; é mais como se minha consciência estivesse se
aguçando. Estou dentro de um casulo aninhado nas raízes do trono
de sequoia. Estou em um ponto escuro que antes não conseguia
ver, presa em uma gaiola de raízes retorcidas.
Tudo se estende a partir daqui. Tudo se origina deste local.
A semente, lembro-me de ler no diário de uma outra rainha. A
partir desta semente, a vida de Entremundo é sustentada. Esta é a
semente da árvore que nutre o mundo da magia silvestre. O
Desvanecer cria as bordas, mas sem a semente, seria um ninho
vazio.
A primeira Rainha Humana e o Rei Elfo trabalharam juntos para
fazer o Desvanecer. O pensamento maroto vagueia pela minha
cabeça como se alguém o sussurrasse para mim.
Olá? Tento chamar.
Silêncio.
Tento apalpar o mundo ao meu redor, mas não sinto nada.
No entanto, minhas mãos parecem tocar tudo. Neste lugar obscuro
de começos primordiais, vejo uma imagem nebulosa.
Uma mulher com uma coroa, estendendo a mão. Plantando…
Plantando? Plantando o quê? Já vi isso antes?
A raiz de coração lembra.
Lembra o que?
Mas as imagens fugazes se foram, e com elas a exaustão segue
em seu rastro. Devo manter o foco na minha tarefa. Os ecos de mil
rainhas existem neste vazio escuro e não posso me perder entre
eles.
Magicamente, cutuco as grandes raízes que sustentam
Entremundo. Ouço os mesmos gritos de toda a terra, mas estão
menos famintos e exigentes desta vez.
Sabem que eu voltei, percebo. As plantas, os animais — a própria
vida em Entremundo sabe que a rainha voltou para servi-los. Não
estão mais gritando no vazio de um inverno aparentemente
interminável, mas fazendo com que suas necessidades sejam
conhecidas para que o verão possa surgir em um mundo que está
acordando.
Tudo bem, cedo. Peguem o que precisam.
Assim que a permissão é dada, sinto os tentáculos se enroscando
sob minha carne. Cravam em mim com uma violência inevitável.
Cerro os dentes para tentar segurar a dor. Estou entorpecida
quando o mundo começa a drenar a magia de dentro de minha
medula.
Basta, tento exigir. Já basta.
Mas Entremundo não escuta. Este mundo não natural é carente e
faminto. Mais, mais, mais, parece dizer. Tudo está desequilibrado e
não sabe quando parar.
Basta!
As trepadeiras se apertam ao meu redor. Não consigo emitir uma
palavra. Elas se contorcem dentro de mim. Vão me despedaçar
neste lugar escuro e solitário.
De repente, os tentáculos invisíveis se soltam. Meus pulmões são
meus. Minha mente é livre e existe apenas dentro de minha própria
cabeça.
Estou pressionada contra algo sólido e quente. Duas raízes ainda
se agarram a mim, mas – não, não são raízes. São braços. Eu pisco
na penumbra da sala do trono.
Eldas é tudo o que vejo.
Ele embala minha forma trêmula contra ele; seu abraço é a única
coisa que impede meus ossos de se separarem. Quero agradecer,
mas estou muito exausta. Falar é difícil. Pensar é difícil.
— Você se saiu bem — ele murmura. Minha cabeça repousa em
seu ombro na curva de seu pescoço.
— Foi o suficiente? — pergunto, rouca.
— Foi o suficiente. Você é mais do que suficiente.
Espero que sim. Meus olhos se fecham. Parece o suficiente. Este
mundo outrora frio agora está quente. No fundo da minha mente,
percebo que conheço essa sensação. Já senti isso antes.
Ele me segurou assim quando mal me conhecia, depois da
primeira vez que me sentei no trono. Os pensamentos vagos
deslizam entre meus dedos, tão vítimas da escuridão avassaladora
quanto eu.
Acordo na minha cama várias horas depois.
A manhã chegou, pintando o quarto em uma aquarela de tons de
lavanda e madressilva. Sinto como se tivesse corrido uma
maratona. Não que já tenha feito uma coisa dessas na minha vida
antes, mas vi meus colegas fazerem em Lanton, e parecia
exaustivo.
Quando me forço para fora da cama, um coro de estalos em meus
ossos acorda Hook. Ele choraminga e pula ansioso na minha cara.
Nariz molhado, língua quente e hálito morno são minha festa de
boas-vindas de volta à realidade.
— É bom ver você também — digo suavemente, correndo meus
dedos por seu pelo escuro. — Desculpe por te preocupar.
Assim que Hook tem certeza de que não estou morta – apesar de
meu corpo tentar dizer o contrário – coloco as pernas para fora da
cama e tento ficar de pé. Estou dolorida, e caminhar até o banheiro
já me deixa sem fôlego. Não é tão ruim quanto da primeira vez, mas
ainda não consigo me imaginar fazendo isso regularmente. Já tenho
que sofrer todo mês por causa do meu corpo de mulher. Não
gostaria de sofrer a cada mês, ou mais, por causa da minha magia.
Um suspiro suave interrompe o silêncio e faço uma pausa,
olhando para a porta do meu quarto. Há algo na sala principal. As
orelhas de Hook se mexem, mas ele já está sentado ao pé da cama,
apenas levantando a cabeça quando percebe que não vou voltar.
Afasto a ideia de algum ladrão ou assassino feérico vasculhando
minhas coisas. Já que Hook não considera o som uma ameaça, ou
mesmo que valha a pena investigar, não fico preocupada.
Silenciosamente, entro na sala principal. Lá, no meu sofá
ricamente estofado, está um Eldas encolhido. Suas longas pernas
estão dobradas contra um braço do sofá, os joelhos pendurados na
borda. Um cobertor fino que encontrei no fundo do meu armário e
tinha colocado como um complemento ao veludo exuberante da
mobília está jogado sobre ele. É comicamente pequeno, quase
como se o homem esguio estivesse usando um guardanapo para se
aquecer.
Caminhando com os pés leves, eu me esgueiro de volta para o
quarto.
— Levante-se, Hook — sussurro e puxo o edredom dobrado ao pé
da cama Não preciso disso para me aquecer desde que Hook
passou a viver comigo. — Vai.
Ele geme e cede.
Arrasto o cobertor de volta para a sala principal. O tecido sussurra
sobre o tapete e Eldas se mexe, resmungando em seu sono. A
gravidade ameaça puxar o edredom dos meus dedos cansados,
mas eu seguro firme, esperando que ele se acomode mais uma vez.
Com cuidado, coloco o cobertor sobre ele.
Eldas se mexe um pouco, mas não acorda. Seus olhos não abrem
até pelo menos uma hora depois. Estou recostada numa cadeira, o
diário no colo, pés apoiados na mesa enquanto olho atentamente,
absorta em pensamentos. Há algo em minha mente. Algo que me
lembro de ter lido que se conecta com…
Ouço-o se mexer e olho por cima do ombro.
— Bom dia — digo.
— Meu…— Ele pisca para espantar o sono, esfregando os olhos.
— Meu? — Repito com um pequeno sorriso. Um Eldas cansado e
um pouco vulnerável não é uma visão terrível logo pela manhã. O
brilho cor de tangerina que ainda sobra do nascer do sol beija sua
pele, fazendo-o parecer mais homem do que criatura etérea de
magia silvestre e morte.
— Meu Deus… seu cabelo.
— O que tem meu cabelo? — Levanto a mão para minhas
madeixas ainda sem pentear, meu sorriso se transformando em um
muxoxo. A última vez que pensei no meu cabelo foi quando Luke
comentou que queria que eu deixasse crescer de novo.
— É como fogo nesta luz — ele murmura.
— Cabeça de fogo. Sim, já ouvi isso antes. — Fecho o diário e
suspiro, deixando-o cair sobre a mesa com mais força do que
pretendia. — O tempo todo na escola. Não deixe a cabeça de fogo
com raiva, pode sair fumaça de seus ouvidos. A cabeça de fogo…
— Você parece uma deusa — Eldas emenda. — Eu não mudaria
nada em você, Luella. — Meu coração traidor pula com suas
palavras. Então, como se lembrando de onde está, ele limpa a
garganta e se senta, o cobertor caindo em seu colo. — De onde
isso…
— Minha cama. Você parecia estar com frio esta manhã —
respondo à pergunta inacabada. Parece que Eldas tem dificuldade
em formar pensamentos completos logo pela manhã, e há algo
surpreendentemente cativante nisso.
— Estou acostumado. — Ele ri, sombrio. — Já me chamaram de
Rei de Gelo.
— Que bom que você tem uma Rainha de Fogo, então. — As
palavras saem antes que eu possa pensar exatamente no que estou
dizendo. Um rubor sobe para minha face.
— Ah, e por que isso é bom? — Ele se levanta, lábios se curvando
ligeiramente. Eu não respondo, a língua pesada e grudenta na boca
enquanto Eldas se aproxima. — Você vai me esquentar?
Uma única sobrancelha se arqueia e de alguma maneira é isso
que me deixa em chamas. Aperto os lábios, tentando pensar em
algo espirituoso para dizer. Tentando evitar que meus nervos me
façam dizer algo estúpido. Tentando não me lembrar da sensação
daqueles lábios sorridentes nos meus.
Achei que tínhamos concordado, mais ou menos, em não seguir
esse caminho depois de alguns tropeços bêbados…
— Acho que já esquentei. — Aponto para o cobertor que agora
está no chão.
— Ah, claro… — Ele dá uma risadinha. — Verdade. — Ouço uma
nota de decepção em sua voz? Com certeza estou imaginando.
Eldas estuda meu rosto enquanto faço o rubor esfriar. — Você está
corada; está com febre de novo?
— Não, estou bem. — Levanto-me, um pouco rápido demais, e o
mundo balança. Eldas me pega com a mão firme.
— Não está.
— Estou. — Toco as costas de sua mão levemente. Quero dizer a
mim mesma que é apenas para tranquilizá-lo. Mas, na verdade, eu
quero o choque que dispara dos meus dedos direto para o meu
peito sempre que o toco. Quero a sensação dele ali comigo, em
mim. Em mim? Minha mente se engasga.
— Deixe-me levá-la de volta para a cama
Não está ajudando, Eldas! Quero gritar.
— Obrigada, mas vou ficar bem. Não preciso da sua ajuda. — Eu
me atrapalho com as palavras, tentando não pensar em todas as
implicações que ele certamente não quis dar.
O transe é quebrado. Como se percebesse que sua mão ainda
estava em mim, ele subitamente se afasta. Eldas fala enquanto
dobra apressadamente o edredom. Um rei dobrando um edredom é
uma visão que vale a pena se recostar na mesa e assistir.
Especialmente porque os músculos de suas costas largas se
contraem contra a camisa fina que ele está vestindo.
— Bem, você deve continuar a dormir o quanto puder para reunir
suas forças. Amanhã você vai se encontrar com a melhor costureira
da cidade.
— Tenho roupas suficientes.
Ele faz uma pausa e gentilmente coloca o edredom no sofá.
Quando fala novamente, não olha para mim.
— Ela vai medir você para o seu vestido da coroação. É uma
honra para a melhor costureira vestir a rainha para o evento.
— Entendo… — murmuro.
— Claro, ela não sabe que você pretende ir embora. — Eldas se
vira e as costas largas que eu estava admirando agora se tornaram
uma parede de gelo que nunca poderei escalar.
— Eldas, eu…
Não consigo terminar antes que ele feche a porta atrás de si. O
som da porta ressoa em meus ouvidos mais alto do que o silêncio
que cai sobre mim quando ele sai.
vinte e sete

A costureira monta um ateliê improvisado no castelo. Ela agora é


uma das poucas pessoas que pode me ver e, pelo que entendi, foi
intensamente escrutinada por Eldas. É difícil acreditar que já se
passou mais de uma semana desde o ataque. De certa forma,
parece que foi ontem. Ainda estou tendo sobressaltos a cada som e
movimento quando dobro esquinas nos corredores. Por outro lado,
parece que passou uma eternidade.
Rinni me acompanha até uma sala com grandes janelas com vista
para Quinnar em três lados, quase como uma varanda fechada.
Aqui, a costureira montou três mesas, embaixo de cada janela, com
metros de tecido, renda e joias brilhando à luz do sol. Sou orientada
a ficar em um pedestal no centro da sala enquanto Rinni e Hook
ficam de guarda do lado de fora da porta.
A costureira se aproxima de mim. Ela estala os dedos e gelo
invisível passa sobre minha pele enquanto fitas métricas se
desenrolam pelos meus braços e pernas. Faço o que ela instrui,
estendendo um braço e depois o outro. As medidas são infinitas,
isso dá tempo à minha mente para vagar além das vidraças.
Quinnar está vestida como uma donzela primaveril. Pesadas
guirlandas de flores silvestres colhidas dos campos que vejo do meu
quarto foram magicamente penduradas em toldos, sacadas e
varandas. Os menestréis começaram a andar pelas ruas, cantando
suas canções de pé em bancos ao redor do lago central.
É uma fachada alegre em um mundo moribundo. O trono estava
menos agressivo, mas de alguma forma mais cansativo que da
última vez. O preço que pago não é tão sentido no meu corpo, mas
sim na minha magia – parece que esvazia meus poderes.
Meu poder – o poder que resta de uma longa linhagem de Rainhas
Humanas – está diminuindo, e temo por este mundo se Eldas e eu
não pararmos o ciclo.
Franzo a testa com o pensamento.
— Desculpe, Vossa Majestade, eu a espetei? — A costureira
pergunta, olhando por cima do tecido com que está cobrindo meu
corpo.
— Ah, não, estou bem. — Forço um sorriso. Fiz uma careta ao
perceber que comecei a me importar com este mundo – não apenas
da maneira que me importo com qualquer coisa viva. Não… eu me
importo mais profundamente. Talvez seja o trono, ou talvez seja
Eldas, mas estou começando a me importar com Entremundo como
se fosse um lar para mim.
Olho para a estátua da primeira Rainha Humana, ajoelhada diante
do primeiro Rei Elfo, e não posso deixar de me perguntar se algum
dia eles farão uma estátua minha – a última rainha. Não há como ter
certeza de que sou a última… Mas uma ideia incômoda sussurra
que certamente sou. De uma forma ou de outra, o ciclo de Rainhas
Humanas terminará comigo.
O que você faria? Pergunto com o coração dolorido, desejando
que a primeira rainha pudesse me ouvir. Se você pudesse me
guiar…
— Vossa Majestade! — a costureira grita quando desço do
pedestal, interrompendo seu trabalho. O tecido cai dos meus
quadris.
— Desculpe, só um momento, preciso dar uma olhada melhor em
algo. — Rapidamente vou até a janela, olhando para a estátua.
Deste ponto de vista, posso ver detalhes que estão escondidos
pelas mãos da rainha quando estou no nível do solo. Aninhado em
suas mãos em concha está um broto. Eu estava certa, ela não está
ajoelhada diante do rei; ela está enterrando alguma coisa. E esse
algo é uma planta.
— Quando aquela estátua foi construída? — pergunto.
— Perdão?
— Aquela estátua no centro do lago, quando foi erguida?
A costureira murmura enquanto pensa.
— Não tenho certeza. Sempre esteve em Quinnar. Talvez tenha
sido feita pela segunda ou terceira Rainha Humana.
Uma das primeiras cinco rainhas – alguém cujo diário está
perdido.
— Se é tão antiga, como os detalhes ainda são preservados?
— Eu acredito que o Rei Elfo cuida da preservação. — Ela aponta
de volta para o centro da sala. — Podemos retomar, Vossa
Majestade?
Volto ao pedestal, a mente zumbindo. A escultura foi uma criação
inicial, quando o trono era jovem e a memória da primeira rainha
estava fresca. Há um significado escondido nela? Ou é realmente
apenas para homenagear aquela rainha antiga? Essas perguntas
me levam a imaginar o que realmente pode estar representando… É
a criação do Desvanecer, ou do trono de sequoia, talvez?
Meus pensamentos continuam girando em torno do que li nos
diários, procurando uma ligação para essa revelação da verdadeira
natureza da estátua. Eu posso estar deduzindo demais. Precisamos
encontrar uma maneira de quebrar o ciclo. Essa é a única solução.
Se eu não fizer isso, Entremundo estará em perigo.
E depois, volto para Capton e tudo que eu sempre quis.
Mas o que eu quero?
— O que você quer? — A costureira alegre ecoa meus
pensamentos.
— Desculpe, o que? — Pisco e volto à realidade. Ela aponta para
as mesas de tecidos.
— Para o seu vestido, Vossa Majestade. O que você quer? Seda
ou veludo? Ou talvez chifon? Acho que, para sua pele, cores vivas,
mas quero ter certeza de incorporar sua opinião. Afinal, a beleza
natural de uma mulher é mais bem realçada por sua própria
confiança.
Ela poria um ovo se soubesse que o que melhoraria minha
confiança seria um par de calças de lona resistentes e algum tipo de
camisa ou túnica de tecido fresco que eu não me importasse de ficar
absolutamente imunda.
— Eu confio no seu julgamento — digo, finalmente.
Seu rosto cai um pouco.
— Você… você tem certeza? Nada do que eu trouxe é do seu
gosto? Porque se não for eu posso…
— Não, é tudo maravilhoso — interrompo. Não quis ofendê-la. —
Vamos ver… — Desço para passar as mãos sobre os tecidos,
parando em um fino e leve como o ar. — Este, qualquer que seja a
cor que você achar melhor, mas este aqui.
— Oh, seda feérica. — Ela praticamente ronrona enquanto passa
os dedos sobre o tecido. — Você tem bom gosto, Vossa Majestade.
— Fico feliz em ouvir isso. — Rio, mas um pensamento cruza
minha mente à menção de algo feito por feéricos. — Ouvi dizer que
os feéricos são bons artesãos.
— Os feéricos são hábeis em seus teares, sim; mas os elfos são
os melhores artesãos da terra. — Ela se gaba.
— Ah, claro. Do meu lado do Desvanecer não há nada mais
valioso do que produtos feitos por elfos. — Sorrio e ela continua a
saborear meu elogio. Espero que ela baixe a guarda o suficiente
para que eu aproveite a oportunidade. — Ouvi muito sobre as coisas
que os feéricos podem fazer… especialmente para celebrações.
— Como hidromel feérico?
— E tem mais, parece. — Não tenho certeza de como abordar o
assunto casualmente, e já consigo perceber que estou pesando a
mão.
Uma sombra cruza seu rosto, mas ela o ilumina com um sorriso
forçado quase que imediatamente.
— Você honra a todos nós por ter um interesse ativo em todos os
habitantes de Entremundo.
— É o meu papel como Rainha Humana. — Justo quando estou
prestes a desistir de aprender mais sobre Vislumbre, ela me
surpreende.
— Não tenho certeza do que você ouviu, Vossa Majestade… — A
costureira mantém a cabeça baixa, anotando em um livro que ela
trouxe. — Mas eu…
— Você…
— Não se se devo. — Sua caneta para no papel.
— Por favor, me diga — encorajo. — Esta ainda é uma terra nova
para mim. Tenho muito a aprender. — O que não é nem um pouco
mentira.
— Eu suspeito que você pode ter ouvido algo parecido do jovem
príncipe Harrow. — Não preciso confirmar o fato; meu silêncio é
suficiente para instigá-la a continuar. — Por favor, tenha cuidado,
Vossa Majestade. Nós nas cidades vimos os recentes… flertes do
príncipe. Especialmente desde a chegada da delegação feérica.
— Como assim?
Ele balança a cabeça.
— Eu não deveria ter dito nada. Perdoe-me, Vossa Majestade. Por
favor, se você puder… se em sua imensa bondade você puder evitar
mencionar ao rei que eu disse alguma coisa…
— Garanto que não vou mencionar — digo apressadamente,
tentando deixá-la à vontade. — Mas preciso saber, pois estou
morando no mesmo castelo que Harrow. Por favor, diga-me se há
algo de que eu deveria estar ciente.
— Eu realmente não sei de nada. — Ela balança a cabeça e eu
deixo o assunto em paz. Se ela sabe de alguma coisa, está muito
nervosa para dizer.
Nós terminamos logo depois e eu peço licença do salão. No
momento em que saio, fico cara a cara com Harrow, Jalic, Sirro e
Aria.
— Vossa Majestade. — Jalic é o primeiro a me notar e abaixa a
cabeça. Os outros seguem o exemplo. Mesmo a etiqueta relutante é
uma melhoria significativa em relação à primeira vez e me pergunto
se minhas interações com Harrow tiveram alguma coisa a ver com a
mudança de tom.
Hook passa por mim. Ele circula Aria duas vezes, rosnando baixo.
Aria se aproxima de Harrow, agarrando-se em seu braço.
— Esta fera está babando nas minhas saias. — Aria dá um tapa
de leve no nariz de Hook quando ele o enfia entre as camadas de
tecido. — Xô, xô!
— Hook, venha — comando. Hook olha de mim para Aria e bufa,
frustrado, mas obedece. No entanto, sua concentração continua
firme na mulher. É divertido ver Aria lutar contra uma cara feia. —
Boa tarde, vocês quatro. Onde vão? — pergunto.
— Por quê? Gostaria de vir? De divertir-se conosco? — Jalic enfia
as mãos nos bolsos e dá um sorriso casual.
— Particularmente, não.
— Isso é jeito de falar com sua rainha? — Rinni pergunta e Jalic
olha de soslaio.
— Vou ver a costureira — Aria anuncia, estufando o peito
levemente. — É uma honra ser vestida pela mesma mulher que
veste a rainha. — Ela acaricia levemente o braço de Harrow. Não há
dúvida de quem deu essa “honra” a ela.
— Bom, a costureira parece muito talentosa — digo suavemente.
Sinto algum prazer em ver a expressão de quase decepção no rosto
de Aria, com a minha falha em demonstrar ira por ela ser vestida
pela mesma pessoa que eu. — Na verdade, acho que todos devem
ter suas roupas feitas por ela para a coroação.
— Não vou fazer roupas para a coroação. — A maneira como Aria
estica o pescoço, como se ela estivesse tentando competir contra a
minha altura, evocativa para mim a imagem de um cisne brigando
por território. — Vou fazer roupas para a Trupe de Máscaras.
— Ah, certo, você mencionou que Aria estava se apresentando em
algum lugar. Carron, não foi? Olho de volta para Harrow.
— Você contou para ela? Era meu segredo — Aria sibila. Então,
rapidamente se recompõe. — É uma grande honra.
— Parabéns.
— Obrigada, Vossa Majestade. — Ela age como se eu tivesse
acabado de conceder uma medalha a ela, curvando-se com um
dramático floreio. — Vou sair em turnê em breve com eles. Mas não
se preocupe, estaremos de volta para a noite da coroação. Tenho
certeza que será uma performance que valerá a pena ser lembrada.
— Mal posso esperar para ver — minto. Mesmo que eu não
estivesse tentando sair antes da coroação, não tenho interesse em
nada com Aria.
— Ótimo. — Ela sorri levemente. — Vamos embora; não queremos
atrapalhar a rainha em… o que quer que ela faça.
Rinni dá um passo à frente, mas eu não me movo, ainda
bloqueando a entrada do salão.
— Eu leio muito. — Encontro os olhos de Aria.
— Bom para você. — Seu sorriso está rapidamente se enchendo
de escárnio. — Carron não fica longe do Posto Oeste, não é? Bem
ao longo do muro que faz fronteira com a região feérica?
— Sua compreensão da geografia Entremundo é surpreendente —
Aria fala de modo arrastado.
— Você vai ver sua família lá?
Aria estreita os olhos enquanto todo o seu corpo fica tenso. É uma
mudança sutil, que ela corrige rapidamente com sua postura de
atriz, mas foi um vislumbre de algo real.
Fiquei muito boa em perceber quando alguém abaixa a guarda,
em grande parte graças a Eldas.
— Toda a família com a qual me convivo regularmente está aqui
em Quinnar, Vossa Majestade. Se me dá licença, gostaria de
respeitar o tempo da costureira. — Ela parece ansiosa demais para
descartar toda a conversa. — Já está tarde e temos uma soirée hoje
à noite.
— Uma soirée? — Olho para Harrow.
— Aqui, no castelo — diz, acenando intencionalmente com a
cabeça para mim. Então, sua voz volta para os tons mais
descuidados e um tanto cruéis que ouvi dele pela primeira vez. —
Duvido que você se interesse.
— Sim, nada com que você tenha que se preocupar. Nós já
sabemos que vocês humanos não acham divertida o mesmo tipo de
coisa que nós, elfos, achamos — Aria diz, um tanto sarcástica.
Eu não posso deixar de me perguntar se ela quer dizer Vislumbre.
— Tenho outros assuntos mais importantes para tratar, de
qualquer forma. — Abro um sorriso e me afasto. — Divirtam-se.
Os quatro entram no salão, fechando a porta atrás deles. Eu
prontamente estendo a mão e Hook está ao meu lado. Eu coço
atrás de suas orelhas, olhando para a porta.
— Rinni, me leve para Eldas. — Mas ele…
— Agora — digo com firmeza. Em seguida acrescento, mais
suavemente: — Por favor. Há algo que eu preciso discutir com ele
com urgência.
— Muito bem. — Rinni acena com a cabeça e começa a descer o
corredor. Ela não parece zangada comigo, mas uma breve
sensação de desconforto passa por mim.
Pela primeira vez, dei uma ordem a alguém em Entremundo, como
uma rainha faria.
E fui obedecida.
vinte e oito

Rinni me leva à passagem secreta com vista para a sala do trono.


Eu finjo surpresa em seu benefício. Ela coloca um dedo sobre os
lábios e nos movemos silenciosamente, olhando para baixo.
Uma tela foi colocada no centro da sala, dividindo o espaço. Eldas
está de um lado, sentado em seu trono de ferro. Do outro está um
homem vestido de veludo exuberante e madrepérola. A tela é
intrincadamente tecida, obscurecendo principalmente a aparência
de Eldas. Ele continua a se isolar, tanto quanto possível, mesmo
sendo forçado a governar devido ao atraso na coroação.
— Foi assim que ele governou no ano passado, — Rinni sussurra
em meu ouvido. — Enquanto ele esperava por você.
Tudo o que vejo é uma gaiola. Uma barreira física separando
Eldas de qualquer tipo de conexão real com qualquer pessoa além
de Rinni, Harrow, Sevenna, Poppy ou Willow. Eu me pergunto como
deve ter sido finalmente escapar do castelo quando ele marchou
para Capton. Foi nesse dia que ele sucumbiu? O dia em que não
aguentou mais a solidão arrebatadora da sala do trono?
Ele está acorrentado pelas tradições de sua posição e, de repente,
quero libertá-lo do ciclo tanto quanto a mim e todo Entremundo.
Como ele seria sem os grilhões do dever? Ele disse que nunca se
permitiu sonhar… o que ele desejaria, se tivesse se permitido? Ele
iria me querer? uma voz traiçoeira sussurra.
Os dois homens discutem sobre os campos ao redor de Quinnar.
— As plantas não crescem. O solo é como cinzas — diz o lorde.
— A rainha acaba de recarregar o trono — Eldas responde
calmamente. — Dê tempo às coisas.
— A rainha Alice não precisava de tempo.
— A rainha Alice teve cem anos para aperfeiçoar suas habilidades.
— Podemos não ter cem anos antes que Quinnar morra de fome
se os campos não se tornarem viáveis.
— Sei que são tempos tensos, mas você deve ser paciente. — A
voz de Eldas permanece calma, mas ouço um tom protetor.
— Diga isso para as pessoas que estão passando fome. Que
estão procurando por nozes e raízes comestíveis na terra árida há
meses! — O homem estende as mãos, então faz uma pausa e se
curva. — Perdoe-me, Vossa Majestade, por falar dessa maneira
inapropriada.
— Que não aconteça de novo — Eldas diz com perigosa
suavidade. Inclino-me em direção à parede enquanto vislumbro o
tipo de governante que ele é, do homem duro que conheci. — Vou
abrir os celeiros do castelo. Você terá um lote de três vagões. Divida
como achar melhor.
O homem dá um passo para trás, curvando-se e murmurando
agradecimentos durante todo o caminho até a saída dos fundos.
Rinni aperta minha mão e nós deslizamos para fora e descemos as
escadas. Ela não hesita antes de abrir a porta lateral da sala do
trono.
— Vossa Majestade? — ela diz.
— Rinni? Você sabe que eu…— Eldas olha para mim e sua
carranca cai no momento em que me vê. Hook passa correndo para
o trono. Eldas franze a testa levemente, mas suas mãos se
enterram no pelo nos lados da cabeça de Hook. — O que está
acontecendo? O que há de errado?
— Preciso falar com você sobre uma coisa. — Aproximo-me dele.
Eldas olha para as portas traseiras que estão obscurecidas pela
tela. — Sei que você tem outras pessoas para ouvir, mas…
— Você é minha prioridade — diz, quase como se fosse um
decreto. Tento não enrubescer.
— O que é?
— Duas coisas. Primeiro, Aria.
— O que ela fez agora?
— Nada, especificamente… Mas não confio nela — começo.
— Eu mesma investiguei Aria após o incidente na cidade — diz
Rinni.
— Eu sei. Mas é outra coisa. Acho que ela está… — e paro.
Prometi a Harrow que não trairia sua confiança. Eldas arqueia as
sobrancelhas. — Acho que ela talvez esteja envolvida em alguma
coisa.
— Não acho que ela seja capaz de atacar a coroa. — Rinni franze
a testa.
— Talvez nada tão sério, mas ainda sério? — Danço em torno do
tema. — Não sei o quê, mas ela parece suspeita.
— Luella — diz Eldas pensativo, descendo do trono. Suas mãos
estão cruzadas atrás das costas. Ele é o modelo de um rei, mas a
voz de um amigo – de… não ouso pensar em como meu nome soa
em sua língua. — Você ainda está cansada do trono. Sei do impacto
que ele causa.
— Essa é a segunda coisa… mas vou terminar a primeira dizendo,
investigue Aria, por favor. Ela vai para Carron. Ela tem conexões
com os feéricos. E, desde que a delegação feérica esteve aqui,
coisas ruins aconteceram com a família real – a doença suspeita de
Harrow, meu sequestro.
— Seu sequestro foi realizado por um grupo desonesto – Acólitos
da Floresta Selvagem – que está tentando reivindicar o trono
feérico. Eles farão qualquer coisa para mostrar seu poder… exceto
expor seus líderes — diz Rinni.
— E Harrow sempre foi problemático. Sua doença é pouco mais
do que uma noite de muita farra. — Eldas suspira com uma nota de
finalidade. Eu quero gritar. Não sei de que outra forma posso
soletrar isso para eles.
— Acho que Harrow não… — Não consigo terminar antes que
Eldas continue falando.
— Agora, qual é a segunda coisa relacionada ao trono?
Eu não tinha vindo aqui para isso, mas, depois do que ouvi, não
posso ignorar.
— Preciso sentar-me nele de novo.
— Luella…
— Agora. — Olho nos olhos de Eldas e vejo apreensão temperada
com o que eu ouso dizer que é admiração. — Ouvi a discussão. Seu
povo precisa de campos férteis e florestas cheias de caça.
— Você ainda está muito fraca.
— Estou forte o suficiente.
Ele dá um passo à frente e suas mãos se soltam de suas costas
para pegar as minhas. Estou chocada que ele esteja me tocando na
frente de Rinni. A expressão terna em seu rosto é uma que eu
nunca pensei que veria à luz do dia, e certamente não na frente de
outros.
— Não posso arriscar que algo aconteça com você.
— Pelo bem de Entremundo? — sorrio fracamente.
— Pelo… — Ele hesita. Espero com expectativa, mas seja lá o
que ele pretendia dizer, ele não vai ser direto. Então retiro-me para
onde os tópicos de conversa são seguros – nossas
responsabilidades.
— Este é o meu dever — digo suavemente. Seus olhos se
arregalam ligeiramente. — Tanto quanto cuidar de Capton, é meu
dever cuidar de Entremundo.
— Muito bem, mas sente-se só um pouco — ele cede.
Assinto com a cabeça e ele solta minhas mãos. Passo por ele e
acho que o vejo se contorcer, como se estivesse resistindo à
vontade de esticar as mãos e me pegar de volta. Algo em mim
anseia por ele, anseia que Eldas me envolva em seus braços para
que eu possa sugar toda a força que puder.
Mas não paro.
Vou direto para o trono e me preparo para a dor que estou prestes
a sentir.

***

Por duas semanas, danço com o trono.


Acordo e tomo café da manhã no meu quarto enquanto tento ler os
diários, mas na segunda semana, estou cansada demais para ler.
Eldas começa a tomar café comigo também, lendo sem parar.
Pergunto-me se ele está tentando compensar minha fadiga. Ele
nunca fala muito – como se soubesse que estou cansada demais
para uma conversa agradável – então espero que de alguma forma
ele saiba que sou grata por sua presença silenciosa e reconfortante.
Nos dias em que estou forte o suficiente, volto ao laboratório.
Willow expressa preocupação com minha face encovada e as
sombras que se alongam lentamente sob meus olhos, mas não
reclamo. Não quero que ninguém saiba o quão vazia o trono está
me deixando. Mal posso confiar essa verdade a Eldas. Toda vez que
sou honesta com ele, sua expressão escurece, e quase posso ver
mais preocupação florescendo nos jardins sombrios de sua mente.
Não importa o que aconteça, eu me certifico de ser forte o
suficiente para cumprir minha promessa a Harrow, criando chás e
pós para ajudar em sua constituição. Como eu suspeitava, ele ficou
em pior estado depois da noite com Aria; mas ele fica na defensiva
no momento em que tento tocar no assunto.
Não descubro se ele cedeu ao Vislumbre novamente.
No final da segunda semana, fico acordada na cama, olhando para
o teto. Minha pele está muito pesada. Minhas articulações doem.
Meu cabelo perdeu o brilho.
O trono está me matando. Está compensando o que não tenho em
magia com minha própria vida.
— Tem que haver uma maneira de pará-lo — sussurro para o ar.
— Preciso pará-lo.
Repetindo esse mantra, eu me liberto das cobertas quentes da
minha cama e me arrasto até minha mesa. Os diários estão
espalhados abertos em todas as superfícies planas do apartamento.
Anotações tanto com minha letra quanto a de Eldas rabiscadas em
todos eles, mas não há nada útil. Já passamos por eles inúmeras
vezes e não encontramos nada.
Penso na estátua, na primeira rainha que fez o trono de sequoia e
ajudou a fazer o Desvanecer. Se ao menos eu tivesse o diário dela,
ou os diários daquelas que vieram depois, talvez eu fosse capaz de
juntar a parte final deste grande quadro que estou perdendo.
Então, uma ideia me ocorre.
Um cavaleiro está postado na minha porta. Eu o reconheço
vagamente da legião que foi me buscar em Capton. Rinni tem
colocado soldados de seu esquadrão principal para me proteger
sempre que não pode devido ao dever ou necessidade – como
dormir.
O homem se assusta com a minha presença, mas abaixa a
cabeça.
— Vou dar um passeio — declaro. — Hook, fique aqui e guarde o
quarto. — O lobo obedece e o guarda segue atrás de mim enquanto
nos conduzo a um grande salão ocupado por fantasmas.
Olho para as lonas colocadas sobre cada peça de mobília
comprada pelas rainhas passadas. Algum dia, minha escrivaninha,
minha cadeira, a mesinha e o sofá em que Eldas dormiu serão
empilhados ordenadamente aqui e cobertos como lápides
esquecidas. O luar entra pelas janelas altas do salão de baile. Onde
a luz pousa, tudo está branco como osso. Onde não há luz, tudo é
envolto em um cinza sinistro.
O cavaleiro fica na entrada enquanto eu ando pelo labirinto de
móveis. Na metade do caminho, pego um punhado de lona e puxo.
A poeira sobe em uma nuvem e eu tusso.
As partículas brilhantes se acomodam no sofá, brilhando ao luar,
quase como o gelo da magia dos elfos.
Descarto a lona no chão e continuo me movendo para o fundo do
salão. É como se eu estivesse revelando essas rainhas esquecidas
mais uma vez ao mundo. Elas sacrificaram muito para serem
empurradas para um canto do castelo e uma prateleira solitária no
laboratório. Encontro escrivaninhas, mesas de jantar, sofás de todas
as formas e tamanhos. O desenho dos móveis muda do estilo
utilitário que o marceneiro criou para mim para algo mais
ornamentado e dourado. A mudança no senso de design de Quinnar
parece me levar numa viagem de volta no tempo.
Chovem confetes de poeira ao meu redor enquanto puxo as lonas.
Finalmente chego ao fundo da sala, onde uma peça final foi
empurrada contra a parede oposta. Se houver algum diário antigo
remanescente das primeiras cinco rainhas, este é o último lugar em
que posso pensar em procurá-lo. Um rastro de tecido cobre o chão
atrás de mim, os móveis expostos. Pegando a lona com ambas as
mãos, puxo e exponho uma longa escrivaninha.
Um rangido alto enche o ar. A mesa geme como se a lona fosse a
única coisa segurando a madeira desgastada pelo tempo e comida
pelos vermes. Com um estalo, a madeira se desfaz e toda a peça
desaba.
Pulando para trás e tossindo, tento evitar os insetos que tentam
escapulir correndo pelo chão. Quando a serragem assenta, olho
para a pilha de madeira quebrada e lascas.
—Perdão. — Não tenho certeza se estou me desculpando com a
mesa de outrora ou com a memória da rainha. Uma onda de tristeza
passa por mim, como se esta mesa fosse a última coisa segurando
sua presença neste mundo. — A quem será que você pertencia? —
murmuro.
Aqui atrás, deve ter sido uma rainha muito antiga, afastada e
esquecida pelo tempo. Eu não sei o que eu esperava. Qualquer
coisa que sobrevivesse a ela seria pouco mais que serragem agora.
Agachando-me, vasculho a madeira, tentando encontrar algo que
me dê uma pista de a qual rainha a escrivaninha pode ter
pertencido. Embora eu saiba que a missão é inútil. Ou, pelo menos,
eu acho que é, até o luar brilhar em uma pequena caixa de metal no
que antes era uma gaveta.
— O que é você?
Erguendo a caixa dos destroços, abro-a com delicadeza. Há um
pequeno diário dentro, ao lado de um colar. Inspeciono o colar
primeiro.
Envolta em filigrana de prata está uma pedra preta brilhante. Ou
acho que é uma pedra no começo por causa de quão
brilhantemente polida ela é. Quando meus dedos acariciam o
pingente, eu o acho quente ao toque. Madeira. Uma madeira escura
e densa, polida e cuidadosamente colocada como pingente em uma
corrente de prata.
Há magia viva aqui. Memórias fazem minha mente formigar e a
parte de trás da minha cabeça coçar enquanto o poder dança sob
meus dedos – o vislumbre de um mulher e então estou enterrada.
Já vi essas memórias antes, não vi? Há algo de nebuloso e
desconfortável nos pensamentos evocados pelo pingente.
Rapidamente o coloco de lado e pego o diário.
As páginas estão ao ponto de esfarelar sob meus dedos, e
abandono a ideia de inspecioná-lo aqui. Preciso levá-lo para o meu
quarto. Vou copiar quaisquer notas que ainda estejam legíveis em
um livro novo.
Carrego a caixa com as duas mãos e caminho gentilmente de
volta ao meu quarto, tomando cuidado para não a chacoalhar. O
cavaleiro está em silêncio durante todo o caminho de volta. Pelo
menos até encontrarmos minha porta entreaberta. O homem coloca
a mão em sua espada, avançando em direção à porta.
— Você está dispensado. — A voz de Eldas quebra o silêncio frio.
O guarda abaixa a cabeça e vai embora.
Empurro a porta e encontro Eldas no meu sofá, o nariz enfiado em
um livro e uma mão coçando preguiçosamente a barriga de Hook. O
lobo está esparramado no chão ao lado dele, com a língua
pendurada.
— Que bom cão de guarda você é.
— Hook sabe que não tem nada a temer de mim — diz Eldas sem
tirar os olhos do diário. Eu consigo dizer que ele está prestes a
terminar mais um. Nós dois juntos já lemos tudo o que há duas
vezes, o que torna o conteúdo da caixa ainda mais empolgante. —
E olá para você também.
— A que devo a honra de sua presença, Vossa Majestade?
Eu uso o título como um gracejo e Eldas não se incomoda em
esconder sua diversão. Ele hesita ao olhar para mim. Imagino que
estou um pouco angustiante de se ver agora.
— Vim para ver como você está — diz ele suavemente.
— Ver como estou?
— Já fiz isso uma ou duas vezes, admito. Normalmente, quando
tenho algo que desejo discutir me mantendo acordado. Ou quando
estou atormentado com pesadelos de sequestradores feéricos
roubando você de sua cama. — Estremeço e afasto o pensamento
admirando-o. Há algo diferente em Eldas esta noite. Algo… Oh, seu
cabelo está preso. Ele o amarrou frouxamente na nuca. Mechas
finas escapam do laço e emolduram seu rosto, descansando
levemente contra sua clavícula e tórax. — Felizmente, eu ouvi você
vindo pelo corredor e entrei.
— Você tem o hábito de entrar quando vem ver como estou? —
ergo as sobrancelhas.
— Você disse que eu seria bem-vindo a qualquer momento.
— Eu disse, mas não achei que você entraria no meu quarto
enquanto eu estivesse dormindo. — Dirijo a ele um olhar mordaz,
que me rende uma risada.
— Eu lhe asseguro, na maioria das vezes venho contando com a
chance de você estar acordada, ou apenas para me assegurar de
que ninguém a levou embora. Não me demorei, e nunca toquei em
você enquanto você dormia. — Ele pondera e acrescenta: — Bem,
uma vez, o cobertor tinha escorregado de seus ombros e você
parecia estar com frio.
— Entendo. — Gostaria de ter uma resposta melhor. Suspeito que
deveria ficar mais desconcertada com a ideia de ele vir me ver, mas
acho isso reconfortante. A ideia de um feérico me levando para
longe na noite também está em minha mente. Dirijo-me para a
escrivaninha. Ouço Eldas se mover atrás de mim quando eu
gentilmente coloco a caixa na mesa.
— Você saiu furtivamente para roubar o quê do meu castelo?
— Eu não roubei nada — insisto rapidamente.
Ele ri e o som é extremamente prazeroso para mim. É um som
áspero e pouco habitual, mas nem um pouco desagradável.
— Tudo neste castelo é seu, Luella. Você não pode roubar de si
mesma.
Cravo as unhas levemente contra o metal. Tudo aqui é meu. Há
muito nessas quatro palavras para analisar agora.
— De qualquer forma, encontrei no salão dos móveis das antigas
rainhas.
— Salão dos móveis de antigas rainhas? — Ele inclina a cabeça
para o lado.
— Não me diga… primeiro os diários; agora eu sei mais alguma
coisa sobre este castelo que você não sabe?
— É um castelo muito grande. — Ele acena em direção à caixa. —
Você vai abrir?
— Talvez. Diz por favor?
— Reis não dizem por favor. — Ele olha para mim através de seus
longos cílios com um sorriso preguiçoso, braços cruzados sobre o
peito. Lamento todas as oportunidades anteriores que perdi de
apreciar de perto a maneira como seus braços musculosos forçam a
costura apertada de suas mangas.
— Tecnicamente, você acabou de dizer. Foi o suficiente, por
agora. — Ele revira os olhos para mim e eu desvio o olhar, tentando
me concentrar enquanto abro a caixa.
— Um colar e um diário… Posso? — Sua mão paira sobre o colar.
— Vá em frente, mas o diário é muito frágil. Trouxe-o de volta para
poder transcrever o que puder antes que as páginas se
desintegrem.
— Não precisa se preocupar com isso. — Eldas mexe um pouco
no colar e o coloca de lado. Não posso dizer com certeza, mas
suspeito que não sinta as mesmas sensações que senti quando
meus dedos entraram em contato com a madeira polida. A única
explicação que consigo pensar é que o colar contém um pouco da
magia da rainha – intrinsecamente diferente da de Eldas.
— Por quê?
Em vez de responder, Eldas olha atentamente para o diário. Seus
olhos piscam em um azul pálido e a temperatura na sala despenca.
Quando ele ergue a mão, um brilho azul traça os contornos de seus
dedos. O brilho condensa em um piscar de olhos. Em um segundo,
sua mão está vazia, no seguinte seus dedos se fecham em torno de
um diário idêntico.
— Duplicação de nome verdadeiro — digo, pegando o diário e
lembrando da costela de cordeiro que ele criou durante o nosso
jantar.
— Você pode precisar de mais de um para passar por todas as
páginas, mas assim não destruirá o original.
— Obrigada. — É um gesto atencioso, que eu aprecio
profundamente.
— É o mínimo que posso fazer. — Uma expressão preocupada
curva os cantos de seus lábios. Ele balança a cabeça. Mais mechas
escorregam do laço frouxo em sua nuca, e mal resisto à vontade de
colocá-las atrás de sua orelha. — Eu tentei ler todos esses diários
para entender sua magia, mas ainda mal comecei a entender. O que
significa que não tenho ideia de como ajudá-la.
— Você…
— Você é um enigma para mim, Luella — ele sussurra, desejoso.
Há um peso nessa simples declaração. Nós seguramos o olhar um
do outro enquanto meu coração ameaça rasgar meu peito e cair a
seus pés como uma humilde oferenda. Eu respiro tensa e
lentamente.
— Eldas, você faz mais do que suficiente — sussurro.
Eldas, seu corpo esguio banhado pelo luar, uma sombra formada e
delineada pelo brilho suave da lâmpada do meu quarto… Ao olhar
para ele, lembro-me mais uma vez que ele realmente é o homem
mais bonito que já vi. E perdi metade do meu tempo com ele
desperdiçando minhas horas em projetos e missões que me
afastarão dele.
Seria tão ruim se você ficasse? uma voz hesitante no fundo da
minha mente pergunta. Você poderia ficar aqui, com ele, para
sempre.
Mas então vejo o trono de sequoia cutucando meus ossos, me
arranhando até que eu murche e não sobre nada para estar com
Eldas. Vejo uma vida esvaziada até não ter mais energia para
desejá-lo.
Vejo minha mãe e seu rosto coberto de lágrimas quando saí. Vejo
meus pais sozinhos sentados à mesa. Vejo Emma no chão,
morrendo de uma crise que não passa. Imagino gentilmente o Sr.
Abbot vindo à minha botica por instinto, apenas para se lembrar ao
chegar que eu não estou lá. Todos em Capton, minha casa, meus
pacientes – meu dever para com eles e, por extensão, Entremundo
– puxam um lado do meu coração.
Eldas puxa o outro.
Não importa o que aconteça, não sobreviverei intacta ao fato de
ter me tornado a Rainha Humana.
— Tive uma ideia de algo que gostaria de fazer por você – algo
que acho que pode ajudá-la.
— O que é? — Viro-me para encará-lo. Isso me coloca meio passo
mais perto. Minha atenção se volta para seus lábios. Posso pensar
em várias coisas que gostaria que ele fizesse para me “ajudar”.
Cada toque dele nas últimas semanas tem sido uma agonia.
Agonia porque minha pele está em chamas por causa do trono de
sequoia. Agonia porque posso senti-lo se segurando, com a
memória pungente de seu beijo. Posso senti-lo se esquivando do
que quer que esteja crescendo entre nós.
— Meu irmão, Drestin. Sua esposa está grávida — diz, sem jeito.
— Oh, parabéns! — Tento não deixar minha surpresa com essa
revelação repentina, e portanto a mudança de tom, diminuir minha
sinceridade. Não era para onde eu esperava que as coisas fossem.
— Sim, ele está muito animado. — Eldas esboça um sorriso, mas
a doçura da expressão está marcada pela nostalgia. Pergunto-me
se ele está se imaginando como um futuro pai. — De qualquer
forma, sua esposa chegará ao termo logo após a coroação.
Naturalmente, eles não virão.
— Compreensível.
— Sim, e como irmão do rei, ele tem liberdades que outros lordes
não podem ter. — Resisto à tentação de dizer que qualquer lorde
deveria poder estar em casa para o nascimento de seu filho.
Felizmente, Eldas continua antes que eu arrisque insultar seu povo
e seus modos. — Mas ele se ofereceu para nos hospedar no Posto
Oeste antes da coroação. É o jeito dele de pedir desculpas e tentar
se tornar querido pela nova rainha. — Eldas olha para mim. — Eu
não disse a ele que você vai embora em breve.
Não me olhe com tanto anseio, quero implorar. Já posso ouvir meu
coração se partindo. Ele se parte como gelo muito fino. Ele crepita,
como os sentimentos que Eldas teceu em mim sem que eu
percebesse.
— Acha que realmente vou conseguir? — Corro o dedo ao longo
da lombada do diário.
— Se alguém pode, é você — Eldas diz suavemente, sua voz
grave com emoção. — E você está certa, isso deve ser feito. O
poder da rainha está diminuindo… Não aguento ver mais um dia
você morrendo diante dos meus olhos. O ciclo deve terminar e você
deve ir.
Minha respiração parece presa na garganta. Ele se preocupa
comigo. Está realmente comprometido em me ajudar na minha
missão de encerrar o ciclo. No entanto, a maneira como diz essas
palavras, quase na expectativa, esperando para ver se eu o
contradigo – como se houvesse alguma saída que me permitisse
ficar…
Uma voz sussurra no fundo da minha mente, Isso é o que você
queria, não é?
Bem, Luella, não é?
— De qualquer forma, não tenho uma boa razão para não aceitar
o convite de meu irmão — Eldas continua após meu silêncio.
— O trono ficará bem se eu sair?
— Vamos recarregá-lo mais uma vez antes de irmos — ele
responde solenemente. — Mas, independente da situação de
Entremundo, você precisa de uma pausa. Você não será eficaz se
continuar se forçando assim.
Não consigo argumentar. Assim como ainda não consigo olhar nos
olhos dele.
— Vou arrumar minhas coisas. Quando partimos?
— Em uma semana. — Uma semana de trabalho, depois viajamos
por quem sabe quanto tempo. Mais uma semana, talvez? Isso só
me deixará cerca de duas semanas antes da coroação, e o tempo
de meu acordo com Eldas está se esgotando. — A menos que…
— A menos que? — Eu olho para ele, que parece assustado com
minha súbita ansiedade.
— A menos que você e eu saiamos um pouco mais cedo — diz
cautelosamente, olhos inquisidores.
— Para onde iríamos?
— Há algo que eu acho que você gostaria e que deve revitalizá-la.
— Isso é tudo que você vai me dizer?
— Acho que sim. — Os cantos de seus lábios se erguem em um
sorriso. — Foi-me negado mostrar-lhe meu castelo. Willow me
venceu para dividir o conservatório com você. — Resisto em
informá-lo de que poderia ter me mostrado o castelo a qualquer
momento naqueles primeiros dias, mas as coisas entre nós eram
diferentes naquela época. É impressionante o quanto mudou em um
punhado de semanas. — Gostaria de compartilhar isso com você.
— As pontas de seus dedos trilham levemente do meu ombro ao
meu cotovelo, descansando lá enquanto ele espera pela minha
resposta. Tremo, mas não de frio. De repente estou queimando.
Percebo que quero aquele toque preguiçoso dele em todos os
lugares. Quero seus dedos gelados em meus braços, minhas
pernas, meu abdome…
— Sim. — A palavra é quase um coaxar. Minha língua ficou
pesada e inútil. — Gostaria de ver essa surpresa.
Seu rosto se ilumina mais do que na manhã em que ele ficou no
meu sofá, quando a aurora iluminou sua face.
— Então vamos sair pela manhã.
— Pela manhã? Tão cedo?
— Vai demorar cerca de um dia para chegar lá. E então outro dia
para o Posto Oeste. — Eldas se afasta, indo para a porta com um
andar quase eufórico. Meu peito se enche ao vê-lo assim, sabendo
que tenho uma parcela de culpa nessa euforia. — E acho que você
vai querer passar mais de uma noite lá.
— Tudo bem. — Não consigo não rir. — Vou arrumar minhas
coisas hoje à noite.
— E eu venho buscá-la assim que amanhecer.
vinte e nove

Um carro dourado nos aguarda no longo túnel que se estica sob o


castelo e através da serra que envolve Quinnar. Eldas me informou,
quando veio me buscar, que iríamos de carruagem.
— Eu quero que você saiba como chegar lá sem mim — ele
explicou quando eu questionei por que nós não fomos apenas
Andando pelo Desvanecer.
Isso só me deixou mais curiosa para saber o que tem “lá”.
Trouxe apenas uma coisa comigo – uma mala de viagem que
encontrei no meu armário. Minha única mala é colocada pelos
lacaios na parte de trás da carruagem, em cima de várias outras.
Lanço um olhar na direção de Eldas, mas abstenho-me de
comentar até que estejamos na carruagem.
— Você acha que está trazendo o suficiente?
— Suspeitei que você levaria muito pouco. Então eu me certifiquei
de que os empregados trouxessem malas extras para você, para o
caso de precisar de algo. Você pode me agradecer quando estiver
vestida adequadamente no Posto Oeste. — Eldas se acomoda em
seu assento e eu me seguro para não rir da sua presunção
brincalhona. A carruagem parecia grande o suficiente do lado de
fora. Mas, de alguma forma, nossas coxas ainda estão se tocando
no banco de dentro. Há outro assento em frente, mas ele escolheu
se sentar ao meu lado.
Tento ignorar a presença sólida dele. O esforço torna-se mais fácil
à medida que a carruagem avança, arrastando-se pelo longo túnel e
emergindo para a luz do sol na outra extremidade. Afasto as
pesadas cortinas de veludo, pressionando o nariz contra o vidro
enquanto emergimos pela estrada sinuosa entre os campos que
vejo há semanas das janelas do meu quarto.
— Assim — Eldas diz. Ele se inclina para meu lado e o que antes
era apenas sua coxa agora é metade de seu corpo encostando em
mim. Eu me aperto contra a parede e a janela, fingindo me
concentrar mais no cenário do que em suas mãos hábeis amarrando
as cortinas. Eldas volta a se recostar em seu assento e pega um
diário gasto da pequena bolsa que trouxe para a carruagem.
— O que é isso? — pergunto.
Ele ri.
— Pensei que você estava mais interessada no cenário.
— Estou mais interessada em você. — Assim que digo essas
palavras, volto a olhar para as janelas com um movimento súbito,
para esconder o profundo rubor escarlate subindo pelo meu
pescoço, contornando minhas orelhas e pintando meu rosto.
Aguardo um comentário inteligente, mas ele me poupa. Embora eu
ouça o ruído suave de uma risada que transforma minha barriga em
gelatina.
— Você acreditaria em mim se eu dissesse que as rainhas não
são as únicas a manter diários?
— Eu acreditaria. — Meu rosto está começando a esfriar enquanto
me distraio com a paisagem sinuosa. Campos se alinham contra
pastagens com casas de fazenda encravadas entre eles. Ao longe,
posso ver a terra subindo em colinas. Há a silhueta tênue de uma
fortaleza no topo de um monte ao longe.
— Meu pai me ensinou a importância de catalogar meus
pensamentos e manter diários — continua Eldas. — Inclusive, tenho
comparado os diários dos reis com os das rainhas para ver se
consigo coletar algo importante para nossa pesquisa.
Nossa pesquisa. Não só minha. Não mais. Ele realmente se
comprometeu com essa missão. Eu mordo o interior das bochechas
e espero antes de falar para meu estômago se desfazer.
— Então significa que você está ocultando informações?
Ele ri novamente. Nunca ouvi Eldas rir tanto antes. À medida que o
castelo cinza e oco encolhe atrás de nós, parece que o vazio em
seu peito – o poço frio e amargo que eu não consegui atravessar
quando nos conhecemos – está desaparecendo.
— Sim, Luella. Eu estive ocultando informações. Depois de tudo o
que lhe dei, pensei que seria de bom tom negar-lhe algo agora.
— Eu sabia! — Eu me remexo no assento, tentando encontrar
uma posição confortável depois que os buracos na estrada
balançaram a carruagem e quase me colocam no colo de Eldas. —
Por que você me deu tanto? — pergunto suavemente.
— Hmm? — A caneta de Eldas para. Estou surpresa que ele
possa escrever com o balanço da carruagem.
— Nunca esperei que você fosse o marido amoroso.
— E esse é o verdadeiro crime em tudo isso, não é?
Eu pretendia fazê-lo se sentir melhor com o comentário, mas sua
resposta azeda e cansada me fez procurar seus olhos, seu rosto.
Que expressão ele tinha ao dizer isso? Qualquer que fosse, perdi.
Estava muito focada em minha saia, e agora Eldas está olhando
pela janela à sua esquerda.
— Bem, essa não é bem uma situação normal.
— Não para você — admite. Ele vem se preparando para isso a
vida toda. No entanto, não parece tê-lo realmente preparado para
uma Rainha Humana.
— Não, não para mim — Seguro um suspiro e olho pela minha
própria janela. Se ao menos o trono não estivesse tentando me
matar. Se ao menos eu não estivesse no final de uma linhagem de
três mil anos de rainhas. Se ao menos tivesse sido mais forte, ou
mais preparada, ou ainda fosse capaz de desejar ser rainha como
alguém treinada para isso desde jovem. — Eu gostaria que tudo
fosse diferente — penso alto com um sussurro.
Não queria que ele ouvisse. Mas, com aquelas orelhas compridas,
eu deveria saber.
— Eu não — Eldas diz, também com um sussurro. Tenho que me
esforçar para ouvi-lo com a carruagem rangendo.
— Você não? — Olho para ele, mas ainda está virado para a
janela.
— Se as coisas fossem diferentes, você não seria você. — Ele
finalmente olha de volta para mim. Seus olhos outrora gelados são
agora piscinas mornas tão convidativas e quentes quanto os riachos
em que eu me desnudaria e nadaria sob as sequoias nas
profundezas das florestas ao redor do templo. — E descobri que
gosto muito da mulher que você é. Não mudaria uma única coisa.
Eu não sei como responder a isso, então não respondo. Desgrudo
meus olhos dos dele e olho para a janela. Eldas retorna ao seu
diário. Agradeço silenciosamente à carruagem por ser tão
barulhenta que acho que vai esconder meu coração acelerado.

***

— Luella, — Eldas sussurra. — Luella, chegamos.


Em algum momento devo ter cochilado. Mesmo com o trono me
deixando tão exausta, não consigo dormir o suficiente esses dias.
Pisco lentamente e a escuridão me cumprimenta. Eldas deve ter
puxado as cortinas, porque agora estão bem fechadas. A pouca luz
que passa é cor de mel e está diminuindo. A cópia do diário que
Eldas me fez está no meu colo, a maior parte ainda não lida.
E minha cabeça…
Endireito-me rapidamente.
— Desculpe — murmuro. Em algum momento relaxei em meu
sono e minha cabeça acabou apoiada em seu ombro.
Eldas dá um sorriso irônico.
— Tudo bem. — Isso é tudo o que ele diz, e ainda assim me pego
tentando ler entre as palavras.
Controle-se, minha mente comanda, mas já descobri que meu
coração é um mau ouvinte.
O rei bate na porta e ela se abre. Ele sai primeiro, depois se vira
para me ajudar. Pego sua mão fria, notando que seu toque não é
mais de um frio enregelante. Talvez algo tenha mudado nele. Talvez
eu tenha me acostumado com sua magia. Ou talvez seja apenas o
fato de eu querer aqueles dedos frios contra a minha pele.
— Onde estamos? — Cascalho estala sob meus pés quando
desço. A carruagem está estacionada no extremo de um amplo arco
na estrada. Sebes altas contornam todos os lados e continuam ao
longo das bordas do que suponho ser uma única propriedade. Elas
se estendem por um lado de uma estrada arborizada.
Na nossa frente está uma casa de campo pitoresca. O telhado de
palha está em boas condições e o amplo alpendre da frente foi
lixado e repintado. Há o mesmo cheiro no ar que o templo tem todo
verão, quando os Guardiões o enfeitam antes das celebrações.
— É sua — diz Eldas, guiando-me. Enquanto nos afastamos da
carruagem, o lacaio volta a seu banco e impulsiona os cavalos
presos à carruagem.
— Há uma cidade a apenas uma hora de distância — Eldas
responde à minha pergunta não dita. — O lacaio vai ficar lá, não há
lugar para ele aqui.
— Entendo… — Sem servos. Sem atendentes. Sozinha com Eldas
no meio de colinas ondulantes e florestas verdejantes aninhadas à
sombra de uma montanha que quase me lembra meu lar.
— Vá em frente — ele encoraja, mostrando para a porta enquanto
caminhamos até o alpendre. — É sua, afinal.
— Você continua dizendo que é minha. — Minha mão paira sobre
a maçaneta. — Mas o que quer dizer com isso?
— Esta é a casa de campo da rainha. — Eldas sorri com orgulho.
— Foi presenteada à rainha três gerações antes de você, como uma
fuga particular para Vossa Majestade. Perto o suficiente de Quinnar
para que você possa fazer a viagem em um dia. Longe o suficiente
para parecer uma fuga. E, como mencionei anteriormente, não há
necessidade de depender do Andar no Desvanecer de um rei para
chegar até aqui. No entanto, eu e os reis do passado colocamos
fortes proteções em torno deste lugar, então mesmo que esteja
longe do castelo, é igualmente seguro.
Abro a porta e vejo o chalé mais adorável que já vi.
É como as pinturas a óleo de campos idílicos que eu via às vezes
nos mercados de Lanton, prometendo um mundo que a maioria das
pessoas nunca conhecerá. Vigas largas se estendem pelo teto. Vejo
ganchos para secar ervas em cada um deles, implorando por
vegetação. O andar de baixo é dividido por uma escada central. À
esquerda há uma cozinha com grandes panelas de latão e azulejos
avermelhados; à direita há uma área de estar com assentos
emoldurando uma grande lareira.
Meus dedos deslizam suavemente na madeira do corrimão
quando subo as escadas. O segundo andar é menor que o primeiro,
e vejo imediatamente por que Eldas disse que não havia lugar para
o lacaio. É um quarto pequeno… com apenas uma cama.
— O que você acha? — Eldas pergunta enquanto eu avalio o
edredom que cobre a cama.
— Só tem uma cama.
Minha observação é recebida com gargalhadas.
— Não se preocupe, vou dormir lá embaixo. — Ele sorri, alheio à
pontada de decepção que me apunhala. Tento ignorar a sensação
também.
— Mas você…
— Eu dormia no sofá quando menino quando visitava Alice aqui.
— Ele começa a descer novamente. Enquanto sigo, noto que minha
mala e um baú extra foram carregados até aqui e as coisas dele
estão no canto da sala.
— Mas você não é mais um menino.
— E, no entanto, eu já dormi em um sofá por você.
Lembro-me do sofá do meu quarto.
— Mas eu nem pedi…
— Você estava fraca depois do trono, e eu estava preocupado. E
se você precisasse de algo? E se o trono tivesse tirado mais poder
do que pensávamos?
Não tenho uma resposta, especialmente depois de como foi a
primeira vez que me sentei no trono.
— Você não precisava me pedir para cuidar de você. E eu deveria
ter feito um trabalho melhor o tempo todo.
— Eu nunca te agradeci por isso.
— Você nunca precisou me agradecer.
— Obrigada — insisto em dizer de qualquer maneira.
— De nada. — O sorriso que enfeita seus lábios é breve, mas
caloroso. Ele olha para as portas que se alinham na parte de trás do
chalé. — Infelizmente, acho que os jardins serão mais
impressionantes durante o dia. Vamos nos recolher?
— Ainda estou um pouco cansada —admito. Longe vão os dias
em que um longo cochilo poderia me manter acordada a noite toda.
— É por isso que estamos aqui, para que você possa descansar.
Rainhas do passado disseram que acham este lugar
rejuvenescedor.
— Tenho certeza que será, mas acho que ainda não serei capaz
de aquietar minha mente o suficiente para ir para a cama. — Meus
pensamentos ainda estão presos em Eldas e eu aqui, em um local
pitoresco, juntos, sozinhos… com só uma cama.
— Então talvez um vinho doce ajude a entorpecer algum
pensamento acelerado… — Eldas vai para a cozinha.
— Vinho? Não hidromel? — Atravesso o piso, descansando meus
cotovelos na bancada gasta da cozinha. Estou momentaneamente
fascinada por Eldas arregaçando as mangas até os cotovelos,
expondo os antebraços definidos.
— Os feéricos fazem hidromel. Elfos fazem vinho. E é um crime
que você ainda não tenha provado o último. — Eldas dá uma
piscada. Uma piscada. Eu tenho que me sentar em um dos bancos
para não cair de susto. Este é o mesmo Rei Elfo que conheci
semanas atrás? Foi-se o mármore; aqui está o homem em toda a
sua glória. Espero que ele fique.
— Bem, de quem é a culpa? — pergunto brincando.
— Ainda mais culpa para colocar em mim. Vou precisar de uma
vida inteira para compensar minhas transgressões contra você. —
Mas só tenho mais algumas semanas, ouço o não dito.
Eldas alcança uma garrafa empoeirada de uma prateleira inferior.
Ele se move agilmente pela cozinha. Sabe exatamente onde estão o
saca-rolhas e as taças. Seus movimentos para abrir o vinho são
fluidos, como se já tivesse feito isso uma centena de vezes.
— Eu não esperava que um rei parecesse tão… natural na
cozinha, — avalio.
— Até os reis têm hobbies. — Eldas enche a taça generosamente.
— Alice era uma cozinheira incrível. Aprendi com ela. — Lembro-me
da infinidade de notas relacionadas a culinária em seu diário.
— No entanto, você parecia tão ofendido quando perguntei se
você cozinhou nosso jantar algumas semanas atrás. — O jantar em
que ele me beijou. Quase posso ver o momento em que Eldas tem o
mesmo pensamento; seus movimentos diminuem para uma breve
pausa, da qual ele se recupera rapidamente.
— As coisas eram diferentes naquela época.
— As coisas mudam rapidamente conosco, aparentemente.
— Talvez seja porque não temos muito tempo. — Seus olhos
encontram os meus quando ele coloca a garrafa ao lado dos copos.
Há desespero neles. Conheço o olhar de um homem que quer
alguma coisa, mas nunca senti meu corpo reagir de tal maneira a
um olhar como esse. Estou em chamas, o calor chegando ao meu
abdome mais rápido do que o vinho derramando na taça. Cada
parte de mim está tão sensível que apenas o toque de minhas
roupas é quase demais.
— Você… — limpo a garganta. — Você vinha aqui com Alice? —
tento desviar o assunto de nós enquanto aceito a taça.
O vinho dentro é uma cor profunda de ameixa, que parece o
crepúsculo girando quando inclino meu copo. Pergunto-me se um
humano normal acharia ameaçador. Pergunto-me se eu deveria
achar ameaçador. Em vez disso, estou em transe.
Que uvas foram usadas? Que outras frutas? Que processo deu ao
vinho essa cor mágica? Tenho uma pontada de arrependimento
quando percebo que provavelmente não estarei em Entremundo
tempo suficiente para chegar nem na superfície deste mundo
mágico.
— Eu vinha sempre que me era permitido. Foi um dos meus
poucos refúgios, tanto quanto para Alice.
— Eu ainda não entendo… Por que os elfos insistem em manter
um jovem preso só porque ele é um herdeiro? — Parecia tão injusto.
— Existem razões lógicas, como proteção ou garantir que ele não
se envergonhe ao se meter em problemas. Muito provavelmente
porque é assim que sempre foi, e quaisquer razões que possam ter
existido originalmente foram perdidas no tempo. — Eldas dá de
ombros como se não fosse nada, mas eu vi as cicatrizes deixadas
em seu espírito por aqueles anos de solidão – seus maneirismos,
sua aparência, sua hesitação e estranheza em lidar com alguém
novo entrando em seu mundo.
— Assim como os elfos seguem os passos de seus pais? —
Penso em Willow e Rinni.
— Humanos também têm costumes bastante estranhos. Ouvi dizer
que você tem permissão para ter seus próprios sonhos e estudar
para o que quer fazer, independentemente de seus pais e seus
desejos ou sua sabedoria. Parece um pouco egoísta, não? — Ele dá
um sorriso tímido.
Eu desato a rir.
— Justo. Ambos podemos ser estranhos. Embora eu ache que os
humanos ganham nessa. — Eldas ri e estende seu copo de vinho
para um brinde, e eu ergo o meu. — A que vamos brindar desta
vez? — pergunto.
Ele pensa por um momento.
— Ao amanhã.
— O que tem amanhã?
— Tudo. Que o amanhã nos traga todas as possibilidades. E que
possamos ser ousados e ambiciosos o suficiente para tomá-las para
nós.
O brinde é sincero e improvisado, ao contrário da última vez, e
alegremente bato meu copo no dele. O vinho é quente em meus
lábios, espelhando o calor que o sentimento gera em meu abdome.
Eldas dá um sorriso dissimulado por trás de seu copo, um sorriso
que eu retribuo.
Pela primeira vez desde que cheguei a Entremundo, percebo,
neste momento, que não quero estar em nenhum lugar além de
aqui.
trinta

O amanhecer é claro e branco, e pisca para mim através da


pequena janela do segundo andar na parede ao pé da cama. Rolo
para o lado, puxando as cobertas ao meu redor.
Minha cabeça lateja um pouco. Provavelmente um pouco de vinho
élfico demais na noite passada. Achei que não estava muito
embriagada, mas agora sei que estava sim. Infelizmente, ao
contrário da última vez, não houve beijos embriagados.
Abro os olhos, lembrando-me de onde estou. Este quarto evoca
memórias do meu sótão em casa. Desde a madeira exposta dos
pisos e paredes, até a poeira que paira no ar como o que eu uma
vez imaginei que fossem fadas.
Mais cinco minutos, eu teria implorado naquela época. Dormir por
cinco minutos a mais era sempre um prazer. Eu tinha trabalho para
fazer naqueles dias. Haveria pescadores que vinham buscar coisas
para si ou para suas famílias antes de sair para o mar pela manhã.
Sabia quando cada cliente iria aparecer e sempre tinha que estar
me preparando para as visitas surpresas ao longo do dia.
Agora… não tenho certeza de onde eu devo estar.
Devo estar no trono? Em Capton? Com Eldas? A incerteza me
enche de vergonha. Eu deveria saber inequivocamente a que lugar
pertenço; sempre soube. O dever em que sempre confiei me guia.
Tantos se sacrificaram por mim – meus amigos, meus pais, todos de
Capton. Qualquer hesitação parece uma traição.
— Não faça isso — imploro baixinho ao meu coração. Aperto os
olhos com as palmas das minhas mãos até ver estrelas. Não pedi
isso, nada disso. E agora… agora há uma parte de mim que não
quer desistir de tudo. Metade do meu coração está criando raízes
aqui, tão profundas quanto as do trono de sequoia. Há muito deste
mundo que ainda tenho que ver e explorar. Tanta magia que poderia
aproveitar, se ousasse.
Ouço o chiado de algo batendo em uma panela quente e abaixo as
mãos. No segundo em que o cheiro de bacon atinge meu nariz, meu
estômago ronca alto e estou fora da cama. Se devo me repreender,
posso fazê-lo de barriga cheia.
Vestindo um roupão de seda por cima da minha camisola, desço
as escadas na ponta dos pés. Sabia que a casa é pequena demais
para qualquer tipo de empregado. Também sabia que Eldas gosta
de cozinhar, mas há algo fascinante em realmente ver o homem
trabalhando na cozinha.
Ele está com uma simples túnica de algodão, fina e modesta, de
colarinho largo que expõe suas clavículas. Claro, é de manga
comprida, mas ele mais uma vez arregaçou as mangas. Um avental
de lona está amarrado em torno de sua cintura estreita, com
manchas antigas e novas, e esconde as calças pretas e justas por
baixo. Mechas escuras de cabelo se libertaram do laço com que ele
prendeu metade do cabelo para emoldurar sua mandíbula e
pescoço. A outra metade do cabelo se move em mechas da cor da
meia-noite.
Descanso o queixo na palma da minha mão e o observo se mover.
Ele é gracioso, resoluto e calmo. Confortável, percebo
imediatamente. Este é o olhar de um homem em seu ambiente. Sua
testa não está pesada com coroa de ferro, mas sim franzida
levemente com concentração. Os olhos de Eldas são atentos e
intensos, mas ele tem um pequeno sorriso nos lábios, como se cada
volta da colher e da espátula o deliciasse.
É quase impossível imaginar que este é o mesmo homem severo
que conheci no templo todas aquelas semanas atrás. E é seu
marido, eu me lembro. Isso me leva olhar novamente para ele, e de
outra maneira.
É tão agonizantemente bonito quanto eu sempre soube que era…
como eu raramente me permiti apreciar. Sua atratividade me
desarmou em muitas ocasiões, mas permitir-me apreciá-lo como
uma esposa faria deixa minhas coxas tensas.
Algumas mulheres matariam para ser você. Para ter tudo isso,
repreendo a mim mesma. E você quer fugir.
É como se ele sentisse minha agitação. Porque ele me olha com
aqueles olhos azuis deslumbrantes, surpreso ao me ver. Tento
esboçar um sorriso e despreocupadamente continuo descendo as
escadas, como se eu não estivesse apenas admirando-o
descaradamente.
— Bom dia.
— Bom dia — ele repete. — Como você dormiu?
— Muito bem. As rainhas anteriores estavam certas; este lugar é
surpreendentemente revigorante depois do trono de sequoia. —
Deixo de mencionar o latejar maçante na minha cabeça. A última
coisa que quero é que ele sugira que não tomemos vinho esta noite,
dado o quão delicioso estava. — E você?
— Excelentemente — e sorri.
Olho para o sofá. Tenho minhas dúvidas sobre isso. Claro, seria o
suficiente para um menino, mas não há como ele se esticar ali.
— Você pode dormir na cama esta noite. Podemos revezar.
— Luella…
— É justo.
Eldas tem um brilho travesso nos olhos.
— Eu sou o rei; acho que eu decido o que é justo.
— Eu acho que você está errado. A rainha também tem o poder de
julgar
— Se ela insiste, eu seria um tolo em discutir com ela.
— Que bom que você finalmente percebeu. — Assumo o mesmo
assento de ontem à noite, admirando a mesa que ele pôs. — Você
não estava brincando sobre gostar de cozinhar.
— Não é muito.
— Humildade não combina com você. — Lanço um sorriso
provocante e começo a comer. Há fatias de bacon, ovos fritos, pão
de fermentação natural torrado na frigideira, e cada alimento tem um
gosto melhor que o anterior.
— Devagar, ninguém vai tirar a comida de você — diz.
— Não posso deixar de notar que você enche seu prato tanto
quanto eu. — Eldas apenas sorri.
Quando terminamos, Eldas coloca os pratos na pia e me manda
para cima para que me vista. Tento ser o mais rápida possível.
Minha mãe sempre insistia que quem cozinhava na casa não
limpava, mas estou atrasada. Quando estou de volta ao andar de
baixo com minha própria camisa e calça, ele está secando as mãos
no avental, uma satisfação ligeiramente presunçosa brilhando em
seus olhos.
— Cozinhar e depois limpar? — Arqueio as sobrancelhas. — Você
é realmente o mesmo Eldas do castelo?
— Aqui estou livre do castelo e livre de seus fardos. Este lugar é
uma fuga para mim também. — Ele fica um pouco mais ereto, como
se não fosse mais esmagado pelo peso de sua posição ou trauma
daquelas paredes que o assombram. Resisto por pouco a dizer que
ele deveria viver aqui, para sempre. — Acho que é hora de mostrar
os arredores.
Saímos pelas portas duplas na parte de trás da cozinha. As
trepadeiras cobrem uma pérgula, oferecendo uma área sombreada
sobre um pátio. Os ladrilhos revestem um parapeito, descem a
escada e contornam uma piscina de um azul cintilante. Ando até o
muro baixo de pedra ao lado da escada.
— Este lugar é… — As palavras escapam como um sussurro.
À esquerda da piscina há um bosque de árvores cercado por um
pomar que vai na direção montanha até ser totalmente reivindicado
pela floresta ao sopé. À direita da piscina há um campo de flores
silvestres. Há mais jardins na extremidade mais distante e posso ver
o brilho da água entre as fileiras de plantas que, suspeito, só
crescem em ambientes pantanosos.
— É seu — Eldas me lembra novamente. Sua respiração mexe o
cabelo na minha nuca. Meu corpo inteiro dói ao som de sua voz tão
perto.
Diante de mim está um jardim com o qual eu não poderia sonhar
se tentasse. Atrás de mim está uma casa, simples e confortável.
Uma casa que eu desejaria se alguma vez tivesse pensado em me
mudar para o campo.
— É maravilhoso.
— Estou feliz que você tenha gostado. As Rainhas Humanas
cuidaram daqui ao lado do Rei Elfo. Estas plantas foram transferidas
do Mundo Natural. Alice disse que elas sempre ajudaram a restaurar
seu poder quando ela não podia retornar ao Mundo Natural.
— Você pode transferir coisas entre mundos? — Levanto minhas
sobrancelhas.
— É preciso uma quantidade significante de magia e cuidado, mas
sim. Do Mundo Natural a Entremundo, e o inverso. — Eldas
assente. — Escondido no Mundo Natural há um jardim espelhado
com este. Alice me disse que isso mantém as plantas vivas aqui e
pode ajudar a revitalizar a Rainha – por isso pensei que vir aqui
poderia ajudar você. Ela sempre disse que um pouco da magia de
seu mundo fluía por aqui, o suficiente para fortalecê-la.
Espelho – equilíbrio, é o que ele quer dizer. É magia natural – a
magia da rainha – suspensa entre os mundos. Será que isso pode
de alguma forma ser usado para controlar as estações? Iria requerer
muito mais magia do que apenas para manter algumas plantas
vivas, mas poderia ser um começo… não poderia?
A palma de sua mão pousa nas minhas costas, me distraindo. Fico
um pouco mais reta.
— Vá em frente, explore.
Passamos o dia inteiro vagando pelo terreno. Preciso me conter
para não desmontar a cabana para encontrar um diário novo, para
que eu possa começar a catalogar todas as várias plantas e anotar
suas necessidades. Isto é um sonho, digo a mim mesma. É um lindo
sonho do qual, em algum momento, vou acordar. Mas, por
enquanto, vou aproveitar. Vou me deliciar com os jardins luxuriantes,
os arbustos selvagens e a magia que parece pairar tão alegremente
no ar como abelhas ansiosas zumbindo de flor em flor.
— O que há lá em cima? — O caminho de cascalho que começa
entre canteiros elevados serpenteia entre as árvores, deslizando na
floresta densa e na sombra da montanha no crepúsculo.
— A última coisa que eu gostaria de mostrar a você.
— O que é? — exijo, com certa firmeza. A trilha me lembra o
templo e a longa caminhada que me levou através do Desvanecer.
— Isso leva ao Desvanecer. — Ele afirma minha suspeita sem
perceber.
— Mas eu pensei que Capton era a única entrada do
Desvanecer…
Eldas suspira. É a única indicação que tenho de que ele está
carregando um fardo de preocupação que não entendo.
— Capton é o lugar de onde a Rainha Humana é escolhida. Esse
ato honra o antigo pacto feito entre os elfos e humanos, já que a
casa da primeira rainha estava naquela ilha e a primeira pedra
fundamental foi colocada lá – e foi de onde o próprio Desvanecer se
desdobrou. No entanto… não é o único ponto onde o Desvanecer
pode ser cruzado.
— É mesmo? — Eu ouvia sussurros em Lanton de tempos em
tempos… comerciantes espalhando rumores sobre ataques de
vampirs ao sul ou navios afundando ao norte devido a feras com
magia silvestre aterrorizando os mares, mas achava que essas
histórias eram como todas as outras histórias de magia da minha
infância – grosseiramente exageradas e baseadas mais em ficção
do que em fatos.
— Posso te mostrar? — Ele estende a mão. — Eu vou nos levar
Andando pelo Desvanecer até lá, se você permitir. Caso contrário, é
uma longa caminhada.
— Pode. — Pego sua mão e a névoa escura de seu poder nos
envolve.
Atravessamos o crepúsculo e entramos em um reino de escuridão
rodopiante. Cada vez que ando com Eldas através do Desvanecer
torna-se um pouco mais fácil do que a anterior. Ainda assim, esse
lugar entre mundos – não exatamente um mundo ou outro – faz
parecer que insetos invisíveis correm pela minha pele.
Não pertenço a este lugar, e a entidade que é o Desvanecer
insiste em me lembrar disso.
— Reconheço este lugar. — É a mesma clareira coberta de musgo
que encontrei com Hook. Um círculo de pedras menores circunda
uma grande tabuleta no centro de uma pequena elevação.
— Você acha que sim — corrige Eldas. — Você nunca pisou aqui
antes.
Olho para a pedra e sua escrita desbotada.
— Outra pedra angular do Desvanecer?
— Sim. — Sombras giram em volta de Eldas enquanto ele se
move em direção à pedra. Elas entendem-se na direção dele
avidamente. Gavinhas se enrolam ao redor dele ansiosamente.
Não, percebo. O Desvanecer não se estende para ele. Ressoa a
partir dele. Estava cega para o fato na última vez que estivemos
aqui, mas agora que entendo sua magia, posso ver a aura de
escuridão noturna que irradia em ondas a cada movimento seu.
Eldas estende a mão para a pedra e um pulso de magia ecoa dele.
Seu poder não me amedronta mais, e sim ecoa em uma parte vazia
e carente de mim, que clama por ser preenchida.
Um crepúsculo estrelado ilumina as palavras gravadas. A escrita
que não entendo brilha junto com os olhos de Eldas. O poder afunda
na terra e o Desvanecer ao nosso redor fica mais espesso.
Ele puxa a mão de volta e seus ombros cedem um pouco.
— É obrigação do Rei Elfo cuidar de todas as pedras angulares do
Desvanecer. Nós as recarregamos com nosso poder para garantir
que o Desvanecer permaneça forte. As pedras angulares
enfraquecem com o tempo, e quando estão fracas… o Desvanecer
pode ser atravessado por criaturas inferiores.
— Um homem apenas não é suficiente para cuidar de todas as
pedras angulares. — Suponho que foi assim que começaram os
rumores de criaturas mágicas vagando pelo meu mundo de tempos
em tempos.
Eldas balança a cabeça, sombrio.
— Entremundo tem um equilíbrio frágil, cada vez mais por um fio.
Geração após geração, imaginamos se estes serão os últimos anos
de paz. A maioria dos reis se concentra no Véu. Manter a ordem da
vida e da morte é muito mais importante do que manter os humanos
no Mundo Natural e o povo mágico aqui.
— Deixe-me ajudar — ofereço sem pensar.
Ele ri e seus olhos cansados vão da pedra para os meus.
— Certamente, logo após você de alguma forma conseguir
quebrar o ciclo das rainhas, criando estações naturais neste mundo
artificial. E então mudar fundamentalmente sua magia para se tornar
algo que possa manipular o Desvanecer.
Eu franzo meus lábios, não querendo que meu instinto leve a
melhor sobre meu cérebro. Eldas está diante de mim, seus olhos
voltando para seu tom natural de azul enquanto o pico de magia se
dissipa. Ele ergue a mão e lentamente traça o contorno do meu
queixo com os dedos.
Seu cabelo é uma cascata de noite, camuflando-se em suas
roupas e sendo eclipsado pela escuridão viva ao nosso redor. Sua
pele está cinzenta, como se uma mortalha o tivesse coberto. Ele
tem um pé no Além. Eu tenho um pé no mundo da vida.
A única coisa que está nos ligando é seu toque que me acende.
— Além disso, você me deixará assim que tiver sucesso. Você não
seria capaz de ficar e ajudar.
Você poderia ficar, a voz em minha mente agora está gritando.
Fique com ele!
É isso que realmente quero? Ou estou sendo levada no momento?
Talvez ele tenha realmente me transportado para um mundo novo
com um passeio de carruagem; ele me levou para um lugar onde
minha guarda está baixa e posso fingir que tudo vai dar certo. Um
lugar onde posso ignorar que estou permitindo que meu coração
seja partido.
Ou realmente não sinto nada por ele? Será que todo esse anseio e
desejo perturbador é de alguma forma a magia da Rainha Humana
tentando garantir sua própria preservação me obrigando a ficar com
ele?
Fecho os olhos com força e respiro, estremecendo. Não sei as
respostas, mas eu as quero. Preciso delas. Se ficar em Entremundo,
deve ser minha escolha. Eu devo finalmente fazer uma escolha, por
minha própria vontade, livre das influências de qualquer homem, e
da posição em que estou. Tenho que seguir meu próprio conselho e
escolher o que quero para mim, não o que os outros querem para
mim. E não vai ser minha escolha se eu não conseguir quebrar o
ciclo. O que realmente quero pode nem importar mais, se eu falhar.
— Estou aqui agora — sussurro, finalmente abrindo meus olhos
para olhar para o rosto da minha antítese. — Esqueçamos amanhã.
Vamos viver o hoje.
Não sei exatamente o que estou dizendo, mas sei o que quero
neste momento: Eldas. Os olhos dele se abrem um pouco mais, e é
assim que eu sei que ele ouve e entende.
Eu inclino minha cabeça ligeiramente para cima. Sua mão ainda
paira sobre minha pele. Seus dedos prendem meu queixo.
— Beije-me de novo — exijo, sem fôlego. — Beije-me como
naquela noite no castelo. Vamos ceder a esse sonho, Eldas.
— Não — ele murmura. Tudo em mim estremece com sua
negação, mas então ele me puxa para ele, me prendendo com o
toque mais leve possível. — Não vou te beijar como naquela noite.
— Minha respiração trava. Através dos meus cílios, vejo-o se
inclinar para frente. — Vou te beijar melhor.
Seu outro braço vem da escuridão, de repente contornando minha
cintura. Eldas me envolve enquanto puxa meu corpo para o dele
pela primeira vez. Sua forma esbelta é longa e firme contra mim.
Minhas mãos, desajeitadas e inexperientes, pousam em seus
quadris, tremendo como pássaros nervosos prestes a levantar voo.
Tudo em mim é anseio nesse momento. O segundo em que sua
respiração bate em meu rosto é o segundo mais longo da minha
vida. Eu estava certa quando percebi todos aqueles meses atrás
que querer beijar alguém faz toda a diferença.
E nunca quis beijar alguém mais do que Eldas. Isso não é desejo
embriagado. Isso não é solidão ou necessidade não atendida.
Quero que ele me beije. Agora. Aqui. Para sempre.
Ele me encara até o último momento. Seus lábios encontram os
meus, e pego fogo.
Solto um gemido. Ele me puxa para mais perto, atendendo ao meu
comando tácito, tentando sufocar a agonia ardente em mim com seu
corpo frio.
Sua língua corre ao longo dos meus lábios, buscando entrada, e
eu concedo. Eldas aprofunda o beijo com cruel preguiça.
Mais, meu corpo exige com uma necessidade que me faz corar.
Quero que suas mãos se movam. Quero que esses dedos longos
rocem a curva do meu pescoço, meu busto, meu quadril. Quero
sentir coisas que só conheci em teoria. Quero que ele me ensine e
me guie por todos esses caminhos carnais que ainda tenho que
trilhar.
Mas, para meu supremo desgosto, ele se afasta. Seus lábios têm
um brilho molhado na escuridão e se curvam em um sorriso
misterioso. A cor inunda seu rosto, dando-lhe um tom natural mais
uma vez.
— Luella — ele sussurra, rouco e grave. — Você está brilhando.
Percebo que é verdade. Um brilho quase imperceptível cobre
minha pele e dança com a escuridão. Nossos poderes se irradiam
juntos, misturando-se, envolvendo-se em uma dança de opostos.
— Então — respondo com um tom sensual que eu não sabia que
tinha em mim — acho que você deve continuar me beijando. Para
que possamos investigar adequadamente esse estranho fenômeno.
Seu rosto se transforma em um sorriso presunçoso, e Eldas se
inclina para frente mais uma vez com os olhos semicerrados.
— Minha rainha, sempre a investigadora.
Minha rainha. As palavras me deixam com os joelhos bambos. Já
não me enchem de medo. Minha rainha. Essas duas palavras são
quase tão doces quanto me perder no gosto de sua boca.
— Meu rei — murmuro em resposta. — Eldas, meu rei. — Eu sou
dele, e ele é meu.
Eldas me abraça com força no momento em que digo seu nome.
Ele avança e espero que caiamos no chão coberto de musgo
abaixo, mas as sombras se erguem ao nosso redor e deslizamos
entre mundos.
trinta e um

Minhas costas se acomodam no edredom que joguei sobre a cama


esta manhã. O colchão suspira ao meu redor, aceitando meu peso e
o de Eldas. Meus braços o envolvem, puxando-o para mais perto.
Dobro um joelho e pressiono meus quadris para cima contra os
dele.
Sou desajeitada e sem dúvida desastrada, mas Eldas se move
comigo com fluidez. Ele responde a cada movimento meu com
atenção ansiosa. Move-se exatamente quando eu preciso e minha
respiração falha quando ele se esfrega em mim pela primeira vez.
Eldas se apoia com uma mão, liberando a outra para percorrer
meu corpo. Contorna-me com seus dedos. Eu sou dele para ser
moldada e esculpida – dele para ser tirada da própria noite. Com o
dedo indicador, ele desenha constelações em minha roupa. Cada
ponto conectado por uma necessidade ansiosa diferente, que nunca
soube que poderia sentir tão intensamente.
Seus lábios se afastam e meus olhos se abrem quando seus
dentes afundam levemente na carne do meu pescoço. Eldas me
beija como a criatura das trevas que é, determinado a consumir até
o último lampejo da minha luz. Outro gemido desliza pelos meus
lábios e desaparece em um suspiro de prazer.
— Luella — ele rosna meu nome, tão quente e carente quanto sua
respiração. Nunca soube que meu nome poderia ser uma
combinação tão erótica de sons e carícias.
— Eldas — respondo em igual medida. Ele fricciona contra meu
corpo com força. Um suspiro me escapa ao senti-lo.
— Posso ir embora. — No entanto, enquanto ele fala, seu corpo o
contradiz. Ele continua a me beijar. Sua mão levanta minha camisa,
deslizando sobre meu abdome. Como eu desejei que ele me
tocasse lá de novo…
— Vá embora, e vou atrás — sussurro, sem fôlego, em resposta.
— Deixe-me aqui, insatisfeita e ansiosa, e vou caçá-lo, Eldas.
Seus lábios encontram a concha da minha orelha e seus dedos
finalmente chegam ao meu peito. O gemido que seu toque
desencadeia quase abafa seu sussurro.
— Oh, Luella, eu nunca sonharia em deixá-la insatisfeita ou
ansiosa.
Então, como se quisesse cumprir essa promessa, seus lábios
esmagam os meus. Seu peso me pressiona ainda mais contra a
cama e minhas mãos ganham vida com uma permissão que eu não
sabia que estava esperando. Minhas unhas cravam nos músculos
de suas costas enquanto sua mão se fecha ao redor do meu seio.
Durante anos, meu corpo esteve adormecido. Agora, como um
galho morto voltando à vida, choques e pontadas dançam por todo o
meu ser. Nunca tinha sentido nada verdadeiramente antes. Arqueio
as costas para cima, pressionando contra ele, implorando-lhe sem
palavras para me tocar mais – para me dar todos esses desejos
deliciosos que me foram negados.
Consuma-me, quero dizer, mas tudo o que me escapa são
gemidos entre beijos cada vez mais ansiosos. As sombras
escurecem, fechando em torno de nós enquanto ele tira minha
blusa. Aproveito a oportunidade para fazer o mesmo e explorá-lo
avidamente com olhos, mãos e boca no segundo em que seu peito
largo é exposto.
Ele está inicialmente tenso ao meu toque. Seus olhos seguem
minhas mãos, exploram meu rosto, esperando algum tipo de reação.
A única reação que posso oferecer a ele é uma mistura de espanto,
admiração e desejo. As cristas de seus músculos são iluminadas
pelo brilho fraco de nossa magia. Os sons que ele libera enquanto
minhas unhas roçam levemente seus mamilos me descontrolam.
Quero ir devagar. Quero ir rápido. Eu quero tudo de uma vez e
quero que o relógio pare para que eu possa saborear cada segundo.
Estou muito distraída com o gosto de sua boca para ficar
envergonhada com minha própria nudez. O desejo é forte demais
para questionar minhas mãos enquanto elas puxam
desajeitadamente seu cinto e sua calça. Os dedos de Eldas deixam
meu corpo para me ajudar, e solto um gemido que me faria corar em
qualquer outra circunstância.
Mas não tenho dúvida alguma neste momento. Meu mundo
encolheu para que eu me concentre apenas neste homem. Este
homem? Não. Meu marido.
Marido. A palavra passa pela minha mente, tão erótica quanto
suas carícias. Parece tão certo quanto seu peso sobre mim e sua
boca sobre mim. Este incrível e poderoso ser é meu marido. Por
uma reviravolta do destino que eu nunca esperei, nossas vidas
foram entrelaçadas para sempre. Eu engancho uma perna ao redor
de seus quadris, implorando para que ele se aproxime com o
movimento.
Eldas paira acima de mim, seu cabelo uma cachoeira de meia-
noite que se acumula no travesseiro ao redor da minha cabeça.
Seus olhos estudam os meus. Posso vê-lo procurando alguma
hesitação, esperando que eu recue.
Enrosco meus dedos em seus cabelos negros e puxo sua boca
para a minha mais uma vez. Não há nada além de magia e ele.
Convido a ambos com um silvo e um suspiro.
Eldas permanece imóvel e por um momento nós simplesmente
existimos, como um só. Suas mãos acariciam meu rosto enquanto
ele continua a observar, esperando por mais permissão. Uma vez
que estou acostumada com ele, dou um pequeno aceno de cabeça
e ele sai, apenas para retornar rapidamente.
Nossos corpos se movem juntos, implacáveis. Somos um coro de
suspiros e gemidos. Eu nunca soube que havia tantos tons de
sombra até conhecer esse homem. Ele se move com todos eles –
através de todos eles – tão etéreos, eternos e incompreensíveis
quanto o próprio Desvanecer.
Nesse momento, existimos além do tempo. Existimos para todos
os reis e rainhas que vieram antes de nós, pois o tratado é cumprido
mais do que só no nome. Os tronos de sequoia e ferro estão
finalmente unidos mais uma vez.

***

Em algum lugar distante, um relógio soa. Pela segunda vez,


acordo confusa e exausta. Os eventos da noite anterior estão tão
frescos quanto uma chuva quente de verão em minha memória. São
tão reais quanto o peso do braço de Eldas em volta da minha
cintura.
O brilho que cobria minha pele desbotou com a noite que nos
envolveu. Eu me pergunto se foi minha magia respondendo à dele.
Ou talvez fosse minha magia avançando em um instinto equivocado
para me proteger contra meu eterno oposto enquanto ele me
tomava com paixão feroz.
Com um suspiro que quase soa contente, deixo meus olhos se
fecharem mais uma vez e entrelaço meus dedos com os dele. Ele
retorna meu aperto, mas sua respiração permanece regular. Mesmo
em seu sono, ele quer me tocar. Seu braço aperta, como se
afirmando meu pensamento maroto.
Eu poderia ficar assim para sempre. Não adianta negar. Este
homem espinhoso, desajeitado e um tanto emocionalmente
econômico se tornou meu. E querendo ou não, eu me permiti me
tornar dele.
Mas pensamentos errantes do que deve ser feito – do meu dever
para com este mundo e o meu próprio – finalmente me puxam da
cama e daquele abraço caloroso. Eu saio despercebida em uma
madrugada cinzenta. Eldas murmura enquanto pego meu roupão e
saio do quarto na ponta dos pés.
Ele me encontra algumas horas depois no terraço, com vista para
as piscinas e os jardins. O diário que ele duplicou para mim está
escrito na língua antiga. Consigo entender, mas as palavras são
empoladas e a gramática estranha, o que torna a leitura lenta. Estou
procurando algum tipo de explicação do equilíbrio entre os dois
mundos. Não consigo tirar esse pensamento da minha cabeça,
mesmo agora.
Mas quando ouço a porta atrás de mim se abrir, sei que qualquer
esperança que eu tenha de me concentrar no diário dessa rainha
perdida se evaporou como o orvalho. Um Eldas deliciosamente sem
camisa atravessa até onde estou sentada debaixo do caramanchão
coberto de trepadeiras e coloca na mesa uma caneca fumegante de
chá.
Eldas se senta na cadeira à minha frente e olha para os jardins.
Olho para ele com o canto do olho, mas ele não parece notar. Seu
foco repousa apenas no cume da montanha. Posso imaginá-lo
traçando o caminho que leva ao Desvanecer. Eu me pergunto se ele
está pensando em todas as outras pedras angulares que precisam
ser verificadas.
— Obrigado — diz, finalmente. As palavras são suaves e um tanto
tímidas. Elas trazem um calor suave para minhas bochechas.
— Por ontem à noite? — Ergo as sobrancelhas. — Deveria estar
agradecendo por isso também.
Ele desvia o olhar, os olhos distantes, mas a expressão relaxada,
aberta, terna – todas as emoções que eu nunca pensei que ele
fosse capaz.
— Por me permitir não me sentir tão sozinho. Por me mostrar cada
lado magnífico de você. Por me dar algo que eu não merecia, mas
que vou guardar para sempre – não apenas a noite passada, mas
todo o nosso tempo juntos até este momento.
Quando ele olha de volta para mim, não sei como reagir. Meu
coração inchou a ponto de empurrar minhas costelas
dolorosamente. Mordo o lábio, tentando me impedir de dizer algo
tolo.
O mundo não mudou. Ainda é o mesmo. Meus medos, meus
deveres ainda complementam e contrastam com os dele. No
entanto, de alguma forma, o mundo parece ter mudado, mesmo que
apenas ligeiramente. Como se algo finalmente se encaixasse.
— Eu deveria te agradecer também. A noite passada foi
excepcional. — Finalmente alcanço a caneca fumegante e a levo
aos meus lábios. Conheço metade das ervas na infusão apenas
pelo cheiro, e as confirmo e identifico o resto pelo sabor. — Está
muito bom — interrompo o que Eldas estava prestes a dizer em
seguida. — Você fez esse blend?
— Gostaria de poder levar o crédito. — Ele sorri também e
qualquer constrangimento inicial após nossa primeira noite juntos
evapora como orvalho. — Mas, infelizmente, não posso, e você
provavelmente me acusaria de mentir no momento em que eu
tentasse.
Abro um sorriso.
— Talvez você tenha mantido em segredo um dedo verde e
afinidade por plantas esse tempo todo. Você escondeu de mim seu
dom de cozinhar, afinal.
— Se eu tivesse tal afinidade, você acha que eu manteria isso em
segredo quando isso podia me trazer seu afeto? — Ele dá uma
risadinha. — Não, este é o resto de um dos blends de Alice.
— Ah. Olho para o líquido marrom na caneca. Hortelã, casca de
limão, morango seco e Camellia sinensis seca sob um sol quente,
tudo dança na minha língua. — Tem gosto de verão.
— A estação favorita dela para tomar desse chá — afirma. —
Vocês duas teriam se dado bem.
— Teria sido bom conhecê-la. — Tomo outro gole. O sabor tornou-
se um pouco triste e cheio de saudade. — Eu teria tantas perguntas.
— Talvez você possa me perguntar. — Eldas passa um de seus
dedos muito hábeis pela borda de sua caneca. Eu me mexo, meu
assento de repente muito menos confortável quando o movimento
evoca memórias de nossa noite juntos.
— Neste momento, seriam principalmente perguntas sobre minha
magia.
— Entendo. — Ele pausa. — Neste momento?
Tomo outro longo gole para não ter que responder imediatamente.
Tenho que escolher minhas próximas palavras com cuidado.
— No princípio, posso ter querido perguntar como uma rainha
aguentava essa situação. Como ninguém mais foi intransigente em
encontrar uma… solução.
— Uma saída, você quer dizer. As palavras saem descontraídas,
mas há algo frio em seu tom. Um que agora interpreto facilmente
como mágoa. Ele me vê como mais uma pessoa fugindo dele,
condenando-o à reclusão. Seus olhos se dirigem para o diário sobre
a mesa, quase o acusando de tentar me levar embora.
— Uma maneira de fortalecer Entremundo — insisto. É disso que
se trata a minha missão agora. Garantir a segurança de
Entremundo. Fazer isso é a melhor maneira de ajudar a todos aqui
e, além disso, será a única maneira de saber se o que estou
sentindo por Eldas é real. Ou se todas essas emoções profundas e
complexas nascem apenas da proximidade e da aparência da
necessidade.
O amor é uma escolha, eu disse a Luke, há o que parece ter sido
uma eternidade, e nunca achei que fosse mais verdadeiro. Não
posso ter certeza do que sinto por Eldas se não o escolher
livremente.
— Mas você não tem mais essas perguntas? — Ele olha para mim
através de cílios longos e escuros.
— Não, não tenho. — Movo um braço em direção ao terreno. —
Isso é o paraíso. E a estufa no castelo é um bálsamo de boas-
vindas que bastaria entre as viagens para cá.
— Entendo. — Ouço desapontamento em seu tom?
— Além disso… — No segundo em que falo, Eldas olha para mim
com intenção. Não deveria ter dito nada. A esperança iluminou seu
rosto mais do que o sol, mais do que o rubor mágico que revestiu
minha pele na noite passada quando fizemos amor. — Entendo
como algumas rainhas encontraram companheirismo em seus reis.
Faço uma tentativa de lhe dar um sorriso coquete e enfatizo a
palavra “companheirismo”. Não amor. Não posso falar essa palavra
ainda. O que aconteceria se eu fosse bem-sucedida e depois
voltasse para casa e descobrisse que não posso sair novamente
quando estiver cercada por minha botica e pacientes? E se o
Desvanecer tirar esses sentimentos de mim no momento em que eu
emergir de volta no Mundo Natural? E se eu realmente gostar dele,
mas não puder sair da minha botica novamente?
Ele ficaria arrasado. E essa é uma queda para a qual nem vou
arriscar prepará-lo. Quero deixá-lo pensar que isso é um prazer
casual. Já passei do ponto de ser capaz de resguardar meu
coração. Estou impotente para as consequências, mas e ele? Talvez
eu ainda possa poupá-lo.
Claro, tudo isso pressupõe que ele sinta algo por mim. Só porque
ele não esteve com Rinni não significa que ele nunca tenha estado
com uma mulher. Sua habilidade na cama torna difícil para mim
imaginar que ontem à noite foi sua primeira vez. Embora… nunca
tendo estado com um homem antes, não tenho exatamente uma
grande lista de comparações de habilidade.
Empurro os pensamentos para fora da minha mente. Recuso-me a
imaginá-lo com outra mulher e não consigo imaginar que esses
sentimentos que ameaçaram me queimar viva ontem à noite sejam
unilaterais. Por enquanto, vamos ignorar perigosamente todas essas
incógnitas como ignoramos a qualidade finita do nosso tempo juntos
aqui. Isso é mais seguro para nossos corações.
Eldas ri, ignorando minhas inúmeras preocupações sobre o que o
futuro nos reserva.
—E diga, minha rainha, eu fui um companheiro suficiente — o jeito
que ele diz a palavra é um pouco frio, mas com um tom de
brincadeira — para você ontem à noite? Porque se você me achou
deficiente de alguma forma, isso será algo que devo remediar
imediatamente. — Ele passa a língua nos lábios sobre seu sorriso
sedutor e isso me agita no meu âmago.
— Bem, você me conhece. Sou exigente em minha coleta de
informações sobre um tópico. Mais dados são necessários.
Ele solta um rosnado baixo antes de agarrar meu rosto e esmagar
seus lábios contra os meus. Eu alegremente obedeço enquanto ele
me puxa para seu colo. Meu corpo rígido tenta protestar, mas eu me
movo assim mesmo. Estou com uma perna de cada lado dele e ele
se esfrega em mim.
Mordo seu lábio inferior, o que provoca um som delicioso. Ele se
levanta, me segurando com as duas mãos, minhas pernas
enroladas em sua cintura. Com um movimento de sua mão e uma
explosão de sua magia gelada, as xícaras desaparecem da
existência. Mal noto quando minhas costas batem na pequena
mesa.
Ele puxa as amarras do meu roupão enquanto meus dedos
tateiam suas calças com igual fervor. Por que nos preocupamos em
nos vestir? Como se não soubéssemos que isso era o que
acabaríamos fazendo.
Por mais nus que estivéssemos ontem à noite, Eldas não perde
tempo. Seus quadris colidem com os meus novamente e eu solto
um grito de prazer. Estou cheia de um profundo desejo e saciedade
ao mesmo tempo. Meu corpo está exausto, mas ansioso para se
mover com ele – ansioso por seu toque.
Nossos gemidos e suspiros enchem o vale enquanto toda
vergonha e hesitação são esquecidas e continuamos a sonhar
aquele sonho insaciável de tudo o que poderíamos ser.
trinta e dois

Três dias depois, e cedo demais, a carruagem retorna.


Fizemos as malas na noite anterior e, por minha insistência, as
empilhamos perto da porta. Eldas se recusou a me deixar ajudar o
lacaio a carregar. Então prepará-las para ir era o mínimo que eu
podia fazer.
Quando o lacaio começa a carregar as malas, ando de volta pela
cozinha, já como o fantasma de outra rainha esquecida – uma das
muitas que flutuam por este mundo, desfrutam de seus prazeres e
depois são varridas. Seguro meus cotovelos, olhando para a
piscina, lembrando de Eldas flutuando nela na tarde anterior. O sol
brilhando em seu corpo perfeito, molhado e deliciosamente nu.
Parecia tão delicioso que tive que dar uma mordida…
— Você está bem? — ele pergunta baixinho. Nem o ouvi se juntar
a mim aqui fora desta vez.
— Gostaria de não ter que sair daqui — admito.
Suas mãos pousam levemente em meus quadris. Eldas dá um
pequeno passo para mais perto e planta um beijo doce na curva do
meu pescoço.
— O dever chama, por enquanto; mas poderíamos voltar depois
de ver meu irmão. — Ele faz uma pausa, me aperta mais forte,
então acrescenta solenemente: — E depois de recarregar o trono
mais uma vez.
O ar já está esfriando ao nosso redor. Estou mais forte do que
estive em semanas, graças à magia natural que vive neste lugar.
Forte o suficiente para resistir à tentação de voltar aqui. Foi um
sonho lindo, e como em todo sonho, preciso acordar. Ainda há
trabalho a ser feito e ciclos de três mil anos para terminar. Eu
balanço minha cabeça.
— Estaremos muito perto da coroação. — Muito perto de quando
serei cimentada a este mundo e todas as possibilidades de escolha,
juntamente com a busca da verdade, desaparecerão. Após a
coroação, não pode haver retorno e nunca explorarei livremente os
sentimentos que tenho por ele. — Devemos voltar para Quinnar e
continuar procurando a maneira de encerrar o ciclo.
— O tempo é implacável — ele murmura. Sou forçada a
concordar. Eu tinha dito a mim mesma que meu tempo aqui era um
sonho e eu aproveitei como em um sonho. Agora, o amanhecer é
cruel e me pergunto se algum dia encontrarei outro tipo de manhã.
— Obrigado por me trazer aqui, por me mostrar isso, por me dar
descanso…
— Não te dei tanto descanso. — Ele sorri e eu não consigo evitar
beijar sua face entre risadas.
— Obrigada por tudo — sussurro em seus lábios.
— Você parece ter aproveitado. — Sua voz tem um tom encantado
e sensual. Ele sabe muito bem que eu aproveitei muito, em todo o
lugar. Ele era a fonte da maior parte desse aproveitamento.
— Foi até que bom. — Abro um sorriso.
Ele me solta, horrorizado.
— Até que bom?
— Talvez você devesse trabalhar mais duro. — Olho por cima do
ombro e é a vez de ele reclamar meu sorriso tímido com a boca.
Nossos beijos ainda são do tipo faminto que o faz quase me
empurrar contra a parede e subir minhas saias. Mesmo quando
demoram, estão cheios de um desejo mais profundo do que
qualquer emoção que já conheci.
— Não me desafie — Eldas rosna, mordendo meu lábio inferior e
soltando um gemido. — Ou posso exceder suas expectativas.
— Talvez seja isso o que eu quero.
— Ah, eu sei que é o que você quer; mas você pode lidar com
isso?
Mesmo quando olho para ele, determinada, estremeço de prazer.
Ele é um sonho sensual de homem. O lacaio nos salva antes de
cedermos aos instintos mais básicos.
— Vossas Majestades. — Ele se curva e mantém os olhos no
chão. Eldas dá meio passo para longe de mim, mas sua palma
ainda descansa na parte inferior das minhas costas. Ele não tem
mais medo de me tocar na frente dos outros, um fato que acho que
poderia gostar. — A carruagem está pronta quando estiverem
prontos.
— Não vamos demorar — declara Eldas.
Uma pontada de saudade contrai os músculos ao redor do meu
coração quando passo pela soleira da cabana. Posso imaginar os
arabescos das videiras se contorcendo para mim, estendendo-se
como as mãos de crianças. A própria terra implora por mim com um
sussurro que sinto mais do que ouço. Ele ressoa através dos meus
pés.
Com um último olhar para o oásis da rainha em um deserto de
magia silvestre e castelos cinzentos, entro na carruagem.
Ficamos em silêncio durante a maior parte do caminho até Posto
Oeste. O silêncio é um terceiro companheiro confortável, alguém
que conhecemos uma noite enquanto suados, cansados e
satisfeitos, e agora conhecemos bem. O diário de Eldas está de
volta em seu colo e passamos a maior parte da jornada escrevendo
e lendo. Finalmente tenho algumas horas ininterruptas de leitura
quando não estou muito distraída com a presença dele para me
concentrar.
— Oh — expiro. Meus olhos estão presos a uma página. Eu sei de
quem é esse diário. Meu coração dispara. Talvez este diário
estivesse esperando naquela escrivaninha, se segurando para este
momento. Minha busca naquela noite foi recompensada.
Estou segurando o diário da primeira rainha.
— Chegamos — diz Eldas com uma nota de afirmação. Ele
interpretou mal o som que eu fiz. Ergo a cabeça, prestes a corrigi-lo,
mas sou distraída quando a carruagem anda lentamente por uma
ampla ponte levadiça. Eldas aponta por cima do meu ombro para
uma parede que se estende para o céu e corre em direção ao
horizonte leste e oeste. — Essa é a fronteira élfica — diz. — Meu
tataravô foi quem construiu o muro para manter a luta feérica e
outros agitadores fora das terras dos elfos. Há o rio de que lhe falei
como proteção adicional.
— Feéricos perdem seu glamour sempre que entram em contato
com água doce, certo?
Ele assente.
A conversa sobre feéricos traz de volta aquele dia na cidade. Tento
não estremecer e me concentro nos outros pensamentos que os
feéricos me trazem – Harrow e Vislumbre. Estive fora apenas alguns
dias, mas parece muito tempo.
— Harrow virá também?
— Sim, e nossa mãe também, já que é uma viagem em família —
diz Eldas com uma nota de desculpas.
— Se ela for civilizada, eu também serei. — Há muito tempo
aprendi que é impossível esperar que todos gostem de você. Claro,
a mãe de Eldas, justo ela, eu teria preferido que pelo menos me
tolerasse; mas se minhas suspeitas estiverem corretas, ela odeia
Alice e a dinâmica entre ela e o pai de Eldas, e não a mim. O melhor
que posso esperar é que, no futuro, se eu ficar – se eu voltar –, ela
possa aprender a me aceitar. Mas, por enquanto, coloco Sevenna
de lado.
— Veremos. — Eldas não soa muito esperançoso.
Do outro lado da água há uma cidade. Quando a cidade não podia
mais crescer, ela subiu. Vejo a arquitetura familiar de Quinnar aqui
nos prédios imponentes e nas pedras cinzentas. No coração da
cidade há uma grande fortaleza aninhada dentro da muralha. Muito
parecido com o castelo de Quinnar, um túnel de muitos portões
serpenteia pela base da fortaleza – a única entrada e saída, eu
presumo, para as terras feéricas.
Saímos da carruagem e uma linha de servos se curva para nos
cumprimentar. Ando ao lado de Eldas, arrumando a saia. Eu
gostaria que ele tivesse me ajudado sugerindo que eu usasse algo
um pouco mais formal. Não foi por isso que ele trouxe tanta
bagagem para mim? Talvez minha missão de o acostumar com as
roupas que costumo usar tenha sido bem-sucedida demais.
O irmão de Eldas, Drestin, é o diferente entre seus irmãos. Ele não
herdou o cabelo preto de sua mãe. O dele é de um tom escuro de
marrom que presumo que pertenceu ao pai deles. Está cortado
ainda mais curto do que o de Harrow e lhe dá o ar distinto de um
militar.
A esposa de Drestin, Carcina, está pronta para dar à luz a
qualquer momento. Durante todo o caminho para o nosso quarto,
ela caminha ao nosso lado com uma mão em sua barriga grávida,
pedindo desculpas por ser incapaz de fazer uma reverência ou se
curvar adequadamente. Garanto a ela que não se preocupe, mas
isso só parece deixá-la ainda mais perturbada.
— O que achou deles? — Eldas pergunta no primeiro momento
em que estamos sozinhos.
— São agradáveis — respondo honestamente.
— São mesmo muito agradáveis.
— Posso perguntar algo sobre eles? — Tiro minha capa de
viagem, colocando-a sobre um sofá perto de uma lareira.
— Qualquer coisa.
— Carcina é a esposa de Drestin.
— Sim.
— E é a mãe do filho dele? — pergunto um pouco tímida.
— Por que não seria?
— Bem… — não sei por que estou dançando em torno deste
tópico. Limpo a garganta e me recomponho. — Sei que sua mãe
não foi a última Rainha Humana. E que os Reis Elfos costumam ter
amantes. Sei que os elfos valorizam a tradição, mas temo que ainda
não descobri o que é 'tradição' quando se trata de lordes elfos
gerando herdeiros.
— Ah, é verdade. Nunca tivemos a conversa sobre herdeiros.
Um fato que eu estava pronta para deixar de lado quando cheguei,
já que até o pensamento de ter intimidade com Eldas era
impenetrável, mas agora…
— Eu não quero insinuar que nós, que eu… —Começo a
acrescentar apressadamente, pensando nos nossos últimos dias.
Ele me corta com uma risada.
— É uma pergunta justa; não acho que você quis insinuar nada.
Eldas desabotoa o casaco, distraindo-me por um momento com os
movimentos elegantes dos dedos. — O Rei Elfo tem permissão para
ter amantes e a Rainha Humana também. Tem sido tradição para o
Rei dos Elfos gerar seu herdeiro com uma amante – como minha
mãe – porque isso garante que o Rei dos Elfos será totalmente elfo,
e sua profunda conexão com o Véu não estará em risco.
— Entendo. — Pondero o assunto. — Então nunca houve um filho
de um Rei Elfo e uma Rainha Humana?
— Não. Não é…
— Tradicional? — termino com um leve sorriso. Entro no quarto,
parando quando percebo que há apenas uma cama.
— Achei que não seria um problema. — A voz de Eldas é grave
com uma pitada de travessura. Ele se inclina contra o batente da
porta, sua túnica prateada como metal líquido sobre seus ombros
magros. — Meu irmão ofereceu quartos separados, no entanto…
— Claro que não. — Suspiro com uma máscara de ofensa
simulada. — Como você ousa sugerir que nós os incomodemos
ainda mais!
—Não, nós não queremos isso, não é mesmo? Ele sorri, as mãos
deslizando em volta da minha cintura, me puxando para seu corpo
duro.
— Embora eu deva insistir que preciso de tempo para trabalhar um
pouco à noite. — Retiro o pequeno diário do bolso do meu casaco,
tentando mostrá-lo a ele.
Eldas não quer saber. Empurra o diário para longe e prende meu
queixo.
— Muito bem, mas ainda não é noite — ele rosna sobre meus
lábios. — O que significa que eu tenho todo o direito de distraí-la
agora.
Eu tremo, meu corpo respondendo a ele, o diário esquecido. Estou
indefesa, maleável, enquanto suas mãos deslizam pelos meus
lados, agarrando meus seios através das minhas roupas. Inalo
bruscamente e ele esmaga sua boca contra a minha.
Há tanto que preciso dizer a ele. Há muito trabalho a ser feito e
coisas para se preocupar. Este diário é a chave pela qual estávamos
esperando, mas suas carícias enquanto ele me leva para a cama
que compartilharemos afastam a minha vontade de ir embora.
As cores do mundo ao meu redor embaçam e borram sob suas
mãos suaves até que ele seja a única coisa em foco. Caímos de
volta no edredom e passamos a tarde focados apenas um no outro.

***

— Harrow e minha mãe já deveriam estar aqui. Drestin olha para o


relógio de pêndulo alto enfiado entre as estantes cheias no salão em
que nos reunimos para beber e conversar antes do jantar.
— A chuva pode tê-los segurado. — Eldas está ao lado de uma
lareira em chamas, a luz laranja lançando sua forma na sombra. Lá
fora, a chuva bate no vidro.
— Não é a chuva. Harrow ainda é cheio de travessuras. Ouço os
rumores do príncipe mais jovem mesmo em Posto Oeste. Não tenho
dúvidas de que ele é a causa desse atraso. — Drestin toma um
longo gole de sua bebida. A minha está inacabada. — Precisamos
acabar com isso, casá-lo e dar-lhe terras. Quanto mais cedo ele
colocar a responsabilidade real em seus ombros, melhor.
— Ele não está pronto — protesta Eldas.
— Eu não estava pronto quando você me deu Posto Oeste e era
apenas um ano mais velho do que Harrow é agora. Foi a melhor
coisa que poderia ter sido feita por mim. — Os olhos azuis brilhantes
de Drestin se movem para Carcina. Ela está sentada ao meu lado
no sofá e parece significativamente mais confortável do que em
nosso encontro anterior. —Melhor coisa, além de conhecê-la, é
claro.
— Você não tem que me lisonjear. Eu sei que sou apenas algo que
veio com o título — diz Carcina com um sorriso brincalhão.
— Ah, sim, me perdoe. Isso é tudo que você é, mãe do meu filho,
luz do meu mundo, deusa entre as mulheres – apenas mais uma
bolinha que eu tinha que preencher na lista. — Drestin brinca de
volta e fico feliz em ver carinho genuíno em seus olhos. Esses olhos
se movem para mim e depois voltam para Eldas com a mesma
rapidez. Foi apenas um olhar, mas eu sei o que ele está pensando.
Um casamento feito por necessidade, mas sustentado por um
amor genuíno que cresceu contra todas as probabilidades. Tomo um
gole da minha bebida para evitar dizer qualquer coisa sobre o
assunto. Se Eldas está ciente da sugestão sutil, ele não diz nada.
— Deveríamos jantar — sugere Eldas, olhando para o relógio mais
uma vez. — Carcina, você não deveria ficar tanto tempo sem comer.
— Estou bem. — Carcina acaricia sua barriga. — Talvez se este
bebê estiver com fome o suficiente, ele venha rastejando até a mesa
e exija comida. — Ela ri. — Estou ansiosa para que termine.
— A maioria das mulheres fica assim nesta fase — digo. Ela olha
para mim com um olhar curioso. — Em Capton, de onde eu vim —
eu esclareço, sem saber o quanto eles sabem do outro lado do
Desvanecer, — estudei na Academia para ser herbalista. Não me
especializei em obstetrícia, mas trabalhei com curandeiros
obstetras. Existem muitos bálsamos e elixires que você pode usar
para ajudar com vários sintomas nesta fase… como pés inchados
ou dores nas costas. — Percebi ambos quando ela estava
mancando conosco para nossos quartos.
— Talvez você possa contar aos meus curandeiros sobre este
conhecimento do Mundo Natural. Preciso de qualquer ajuda que
puder obter.
— Eu ficaria feliz em fazer para você, se houver suprimentos. —
Vossa Majestade.
— Apenas Luella, por favor — lembro, não pela primeira vez.
— Luella — ela diz timidamente. — Eu não gostaria de incomodá-
la.
— Não incomodaria, me daria imensa alegria. — Sorrio.
— É melhor não a contrariar quando ela se decide — Eldas
acrescenta com um pequeno sorriso. Lembro-me que não muito
tempo atrás ajudar os outros estava “abaixo de mim” como uma
rainha. Agora, é inquestionável.
— Então talvez depois do jantar eu lhe mostre o laboratório do
curandeiro. — Carcina pousa a mão na minha. — Muito obrigada,
Luella.
— Não há de quê, mesmo.
O jantar é reservado. Como Harrow e Sevenna ainda não
chegaram, passamos para uma sala de jantar menor e mais
informal, que eu vi pela primeira vez a caminho do salão. Isso me
lembra o primeiro jantar que Eldas e eu compartilhamos.
Normalmente, o pensamento daquele jantar me faria lutar contra
as fantasias persistentes dele me empurrando contra uma lareira,
mas não esta noite. Preocupação com Harrow e o que poderia tê-lo
segurado incomoda minha mente.
No entanto, egoisticamente, sou grata pela ausência de Sevenna.
Dá-me a oportunidade de conhecer melhor Carcina e Drestin. E
para eles me conhecerem sem que as opiniões de Sevenna
envenenem o ar.
Depois do jantar, os homens decidem por uma bebida, enquanto
Carcina e eu fugimos para o laboratório e os jardins de Posto Oeste.
Isso dá aos irmãos a oportunidade de conversar, e a mim a chance
de encontrar o caminho para o estoque de suprimentos de cura em
Posto Oeste. A paranoia agora se estabeleceu no fundo da minha
mente, pois ainda não há notícias de Harrow.
Algo está errado e o ar está espesso com o que quer que seja.
— Chegamos — Carcina acende as lâmpadas da sala com um
movimento de sua mão e um piscar de seus olhos. Pequenas coisas
sobre magia silvestre me deixam com inveja de seu flagrante
desrespeito à lógica.
O laboratório é semelhante ao de Quinnar. Em vez de uma estufa
anexa, ele se abre através de portas em arco para um jardim com
terraço de frente para a cidade de Posto Oeste. A planta é um
pouco diferente, mas uma rápida varredura da sala mostra onde os
curandeiros guardam suprimentos semelhantes.
— Tudo o que precisamos está aqui — digo enquanto enfio o nariz
nos armários. — Eu poderia levar para você pela manhã.
— Eu não gostaria de deixá-la sozinha aqui.
— É perigoso? — Não consigo evitar a pergunta.
— Adicionamos segurança extra para sua visita. — Ela sorri
orgulhosa.
— Então está tudo bem. Estou acostumada a trabalhar sozinha. É
como eu trabalharia na minha botica. Meu horário favorito eram as
primeiras horas da manhã, antes que alguém pudesse me perturbar.
— Sua botica?
— Eu tinha uma botica, que abri depois que terminei a Academia.
— Parece que já faz anos. O tempo se distorceu enquanto eu
passava pelo Desvanecer. Deve passar mais rápido em Entremundo
porque as memórias dos meus balcões gastos e tigelas ásperas
estão deixando meus dedos. Parece que eu estive em Entremundo
o tempo todo.
O desvanecimento dessas conexões me aterroriza. Tenho que
voltar. Não posso saber quem eu realmente sou ou o que estou
sentindo até que eu volte.
— Entendo. — Ela está claramente confusa, mas aceita a
observação com calma e não investiga mais.
— De qualquer forma… Se não a incomoda que eu trabalhe
sozinha no laboratório de seus curandeiros, não me importo de ficar.
Você parece cansada, e precisa descansar.
— Esta criança ainda nem veio ao mundo e já está minando minha
energia e paciência. — Seu corpo enfatiza o ponto com um bocejo.
— Vá e descanse; estará pronto no café da manhã.
— Obrigada, Luella. — Ela se dirige à saída, mas faz uma pausa
antes. — Não sabia o que esperar da Rainha Humana. Admito…
estava um pouco nervosa, mas estou feliz que seja você.
Não consigo pensar em nenhuma resposta antes de Carcina pedir
licença e se recolher para a noite.
Enquanto trabalho, tento entender a sensação dolorosa e inquieta
que está impulsionando minhas mãos com um propósito frenético.
Culpa, eu finalmente percebo. Me sinto culpada, mas por quê?
Por querer ir embora.
Franzo a testa para o líquido borbulhando em um pequeno
caldeirão. Não tenho nada para me culpar. Estou fazendo a coisa
certa para nossos dois mundos e para nós. Eu nunca poderia ficar
com Eldas e ser feliz, não de verdade, a menos que eu saiba que
vou ficar por minha própria vontade.
— É mais eficaz quando você faz essa cara? — A voz de Eldas
corta meus pensamentos. Meu corpo estremece, alarmado, e eu o
encaro. Ele está recostado em uma mesa, braços cruzados,
parecendo deliciosamente presunçoso.
— E há quanto tempo você está aqui?
— O suficiente para ver você trabalhar.
Devo estar realmente perdida em meus pensamentos para não ter
notado Eldas chegando.
— E é uma visão maravilhosa.
— O quê? — digo enquanto expiro, já tentando pescar todas as
emoções complexas que ele de alguma forma encaixa nas
pequenas poças de azul que são seus olhos. Há admiração, uma
nota de tristeza, saudade, resignação… Mais, não posso nomear.
— Você nasceu para isso — diz.
— Você já me viu trabalhar antes. — Corro meu dedo ao longo do
topo de um frasco antes de guardá-lo.
— Já vi, mas eu nunca realmente assisti. Nunca prestei atenção.
— A tristeza que vejo nele está nítida. — Luella… se não formos
capazes de quebrar o ciclo antes da coroação… eu farei o que
puder, mesmo assim, para ajudá-la a suportar o trono. O que você
precisar, eu lhe darei. Talvez possamos até encontrar uma maneira
de você trabalhar como curandeira em Quinnar também. Talvez,
mesmo que você faça parte de Entremundo, possamos até explorar
opções para você visitar Capton mais do que apenas no solstício de
verão.
Meu estômago revira, e quando falo não consigo olhar para ele.
Eu sei que está tentando ajudar, mas essa conversa desenterra a
massa emaranhada de emoções que não consigo entender
completamente quando se trata de pensar na minha vida antes, na
minha vida agora e no que me espera no futuro.
— Isso não seria pouco convencional para uma rainha?
— Sim, mas convenções são sempre novas em algum momento.
Eu li os diários também. Outras quiseram algo semelhante – um
propósito além do trono de sequoia. Ajudar os curandeiros não era
suficiente. É tarde demais para elas, mas para você, para futuras
rainhas… — Ele passa a mão pelo cabelo e desvia o olhar. Eu o
vejo se mover com o canto do meu olho. — Se houver futuras
rainhas, é isso.
— Falando nisso. — Eu me viro e me apoio no balcão. — Tem
uma coisa que eu preciso te dizer.
— Sim? — Eldas está claramente assustado com minha mudança
repentina de humor. — O diário que estou lendo… descobri hoje de
quem foi.
— De quem?
— Rainha Lilian.
— Lilian — ele sussurra. Ele sem dúvida ouviu o nome de histórias
que lhe contaram durante toda a sua vida. — A primeira rainha.
Então…
Eu assinto, sabendo o que ele vai dizer em seguida.
— Acho que sei como as estações, o trono de sequoia e a magia
da rainha estão ligados. Acho que entendo o que a primeira rainha e
o rei fizeram e como tudo funciona. — Descobri um grande mistério.
Deveria estar mais feliz. E ainda assim assisto com pavor enquanto
Eldas se levanta. Estamos de pé em uma beirada da qual não há
como voltar atrás. — Preciso ler mais e pesquisar, é claro. E só
porque eu entendo como o Desvanecer foi feito e as estações
mudam não garante que eu serei capaz de fazer qualquer coisa com
a informação, mas…
Suas mãos apertam meus ombros. Eldas tem um sorriso brilhante,
mas seus olhos estão dolorosamente tristes.
— Isto é excelente. Se alguém pode descobrir isso, é você. Disse
isso o tempo todo, e agora você tem o que precisava.
— Eu sei, mas…
— Mas? — Ele vacila.
Não fique feliz com isso, quero dizer. Não quero nem que ele finja
estar feliz por eu ir embora. O fato de que ele estaria feliz incha meu
coração ao ponto de doer. O sorriso em seu rosto zomba de mim e
me pego duvidando dos traços de mágoa em seus olhos; são reais,
ou estou apenas imaginando que sejam porque quero que sejam?
— Eldas, o que você sente por mim? — Atrevo-me a perguntar,
pequena e com medo.
— O quê? — Suas mãos caem dos meus ombros. Talvez essa
seja uma resposta suficiente.
— O que você sente por mim? — pergunto novamente, mais alto e
com mais certeza.
— Quando você diz…
— Você me ama?
Parece que minhas palavras se materializaram e o atingiram entre
as costelas. A boca de Eldas abre e fecha várias vezes. Talvez ele
tenha calculado os números em nossa equação e chegado ao
mesmo resultado que eu – que é melhor não pensar sobre o que
realmente eram esses sentimentos. É melhor não perguntar ou
saber, para nós dois.
Enquanto ele me encara agora, mortalmente silencioso, quero que
o ar espesso da noite me envolva. Eu quero que me leve e me
carregue através do Desvanecer aqui e agora. Não aguento esperar
pela resposta dele.
Se ele disser que não me ama, meu coração será esmagado. Se
ele disser que sim, meu coração ainda ficará esmagado se –
quando – eu inevitavelmente for embora. E se eu não for embora…
vou me perguntar se os sentimentos dele, como os meus, poderiam
ter sido de alguma forma manipulados por magia ou circunstância.
Se alguma vez foram reais, ou um modo do coração sobreviver. Vou
questionar tudo para sempre e só isso seria nossa ruína.
— Não responda isso — balanço a cabeça. — É melhor se você…
— Luella, eu…
Nenhum de nós consegue terminar. Drestin vem correndo. Está
ofegante como se estivesse correndo há algum tempo. Seus olhos
passam por mim e pousam em Eldas.
— É Harrow — ele ofega. — Houve um ataque.
trinta e três

— Um ataque? — Eldas repete, parecendo um pouco atordoado.


Também estou assustada com a mudança repentina na conversa.
— Antes de nos sentarmos para comer, enviei cavaleiros. Estava
preocupado. Eles se encontraram com nossa mãe em sua
carruagem nos arredores de Posto Oeste, mas Harrow não estava
com ela. Ela disse que ele queria parar em Carron antes de vir para
cá e ela não conseguiu dizer não – claro que não, não para seu
querido Harrow. Então ela o deixou ir. O cavalo e o guarda foram
encontrados eviscerados nos arredores de Carron. Não há sinal de
Harrow.
— Carron, por que ele estava…
— Aria — interrompo Eldas. — Ele foi ver Aria se apresentar. Ela
mencionou que estava se apresentando em Carron com a Trupe de
Máscaras nas apresentações que antecederam a Coroação. — Olho
para os dois homens. — A que distância fica Carron?
— É no muro, a uma hora de Posto Oeste — Drestin responde.
— Vamos.
— Você deveria ficar aqui — Eldas diz com firmeza.
— Eu vou — insisto com tanta força que quase posso ouvir o eco
em seus crânios. —Vocês dois vão precisar de mim. — Drestin olha
de mim para Eldas, sobrancelhas arqueadas com um olhar um tanto
surpreso. Rinni pode estar familiarizada a comunicação confortável
entre mim e Eldas, mas parece que Drestin ainda não.
— Vossa Majestade.
Ignoro sua surpresa e dispenso sua objeção.
— Existe um portão para as terras feéricas em Carron?
— Não — responde Eldas.
— Não há como atravessar o muro? Eu insisto.
— Não — repete Eldas.
— Bem… — seu irmão começa, e Eldas arqueia as sobrancelhas.
— Há relatos de lugares onde o muro foi enfraquecido. Fazendeiros
conversando, espalhando rumores de feéricos passando, mas ainda
não confirmei…
Minha mente está se movendo tão rápido quanto minhas mãos
frenéticas. Enquanto os homens falam, termino a poção que estava
fazendo e a coloco em uma bolsa de couro que roubo de um cabide
perto da porta para o jardim. Eu os deixo por um momento para
procurar nos jardins qualquer coisa fresca que eu possa precisar
para magia ou cura de emergência.
Infelizmente, não consigo encontrar nenhuma raiz de coração.
Parece que a menção inicial de Willow da planta ser incrivelmente
rara é verdadeira.
— Luella, fique… — Eldas tenta dizer quando volto ao laboratório.
— Eu já disse a vocês dois, eu vou junto. — Olho ambos os elfos
em seus olhos cerúleos, tentando comunicar com minha postura
que isso não é uma negociação. — Tenho informações que vocês
podem precisar.
— Que informações seriam essas? — Drestin pergunta.
— Estamos perdendo tempo, apenas confie em mim. — Olho para
Eldas. — Por favor.
Ele assente e estende a mão.
— Para Carron.
Meus dedos se fecham ao redor dos de Eldas. Juntos, entramos
na névoa escura que sobe sob os pés de Eldas. Caminhamos pelo
Desvanecer até uma estrada lamacenta bem perto de uma cidade
do tamanho de Capton. Drestin emerge de uma névoa ao nosso
lado. Redemoinhos escuros giram no ar por apenas um momento
antes de se dissipar no vento e deixar um homem onde antes
estavam.
Carron está encostada no muro, exatamente como Drestin disse.
De modo semelhante a Posto Oeste, há uma ponte que atravessa
esse trecho mais fino do rio. Se eu fosse um feérico querendo
infiltrar algo no território dos elfos, este certamente seria o lugar
onde eu tentaria fazer isso.
Nos campos à direita da cidade, barracas foram erguidas. O
interior delas brilha, cores vivas como doces na escuridão luminosa
que se segue na noite após a chuva. Bandeiras pequenas por causa
da distância flutuam na brisa noturna. Podemos ouvir aplausos
fracos pelos campos.
— Vá e investigue a Trupe de Máscaras — Eldas ordena a seu
irmão. — Procure qualquer sinal de atos criminosos.
— E você?
— Vou à cena do crime. — Eldas não espera que Drestin
responda; já estamos nos movendo pelo Desvanecer novamente.
Nós emergimos um pouco além na estrada em uma cena de
carnificina. Um cavalo foi esfolado e suas entranhas derramadas.
Seu cavaleiro – um guarda cujo rosto não reconheço, mas usa a
armadura da cidade de Quinnar – foi rasgado quase ao meio.
— Lobos? — pergunto, notando as marcas de garras.
— Não foi um lobo — Eldas diz sombriamente. — Essas são
garras feéricas.
Estremeço e penso na criatura com chifres no beco. Então feéricos
podem ter asas, chifres e garras. Eles são as criaturas que
assombraram meus pesadelos, não elfos.
Eldas se agacha, procurando alguma dica sobre quem pode ter
feito isso ou o que aconteceu com Harrow. Continuo olhando para o
elfo morto: olhos arregalados, poça de sangue na lama. Afasto meu
olhar e o varro as planícies que cercam a estrada. Na minha mente,
tento recriar a cena que aconteceu.
Não há lugar para se esconder, o que significa que Harrow e seu
guarda teriam que ver seus atacantes chegando. Glamour feérico?
Olho para a estrada. Não.
— Eldas, algo não está certo aqui.
— Sim — ele rosna. — Meu irmão pode estar morto! — Eldas
levanta a voz. — Algo está muito errado. Precisamos fazer uma
busca na área. Eles não devem ter ido longe.
Permaneço calma diante de sua raiva e pânico. Já tive famílias
descontando em mim sua dor por parentes doentes. A preocupação
transforma o coração dos homens em algo irreconhecível, mas o
bom senso acaba prevalecendo, mais cedo ou mais tarde.
— Olhe — aponto para a estrada. — Choveu durante o jantar, o
que significa que qualquer glamour feérico não teria funcionado.
Você disse que a água doce neutraliza o glamour, certo? — Ele faz
uma pausa, assentindo lentamente. Continuo: — Além disso,
quaisquer pegadas também devem ter sido apagadas. Aqui está o
nosso. Então, há estas… — Há dois conjuntos de pegadas com
água empoçada. Um conjunto é de pegadas de botas, o outro é de
patas, maiores do que quaisquer outra que eu já tenha visto.
Maiores que as de Hook.
Falando de… Levo os dedos aos lábios e solto um assobio
estridente.
— Hook, venha — ordeno. O lobo salta por entre as sombras da
noite. É bom vê-lo novamente depois de alguns dias – bom saber
que ele ainda vem quando chamo, mas este não é o Hook fofinho
que eu conheço. Ele solta um rosnado baixo para a cena de
carnificina. Seus olhos estão alertas e suas orelhas pressionadas
contra sua cabeça. — Hook. — Chamo sua atenção para mim. —
Você pode encontrar Harrow para nós?
Como de costume, Hook parece entender meu comando. Ele
caminha até os cavalos, farejando ao redor deles. Enquanto
presumo – espero – que Hook esteja sentindo o cheiro de Harrow,
Eldas pergunta:
— Aonde você quer chegar? — Posso vê-lo tentando tirar a
preocupação de sua mente para que possa pensar com clareza
mais uma vez.
— Acho que os corpos foram plantados aqui.
— Por quê?
— Para nos fazer perder tempo procurando ao longo dos campos
e estradas. — Olho de volta na direção de Carron. — Harrow foi ver
Aria se apresentar. Aria, presumivelmente, sabia que ele viria. Ela
pode ter avisado um grupo feérico que ele estava a caminho.
— Aria não agiria contra sua família. Prejudicar Harrow prejudica
as chances de seu pai.
Minhas suspeitas persistem fortemente apesar deste lembrete,
mas transmiti-las agora não vai ajudar.
— Ela não pode ter feito isso sem querer, dizendo a coisa errada
para a pessoa errada?
Eldas resmunga com a ideia de seu irmão ser traído, mas
finalmente não se opõe.
— Precisamos vasculhar a cidade. — Agarro a bolsa ao meu lado
com força e os potes de ervas que trouxe comigo ressoam
suavemente ao redor das plantas soltas. Quando devo dizer a Eldas
que estou preocupada com o estado em que podemos encontrar
Harrow? Por quanto tempo mais posso manter o segredo de Harrow
antes que seja um prejuízo para ele? — Leve-nos.
Eldas não diz nada e segura minha mão. Eu enterro meus dedos
livres no pelo de Hook e nós três Andamos pelo Desvanecer nas
ruas lamacentas de Carron. Imediatamente, o nariz de Hook está no
chão.
Ele fareja ao longo da rua, procurando, até encontrar um rastro.
— Eu posso ir com Hook, você pode procurar…
— Eu não vou deixar você — Eldas diz com firmeza e vai atrás de
Hook.
A pequena cidade está estranhamente silenciosa. Todos os
residentes se trancaram e foram ver a apresentação da Trupe de
Máscaras. O brilho fluido das lamparinas reflete em vidraças
escuras e paira nos cantos, lançando nos becos as sombras mais
escuras e ominosas que já vi.
Seria um momento perfeito para atacar um príncipe. Harrow foi
atraído por Aria e, se minha suspeita estiver correta, pelo apelo do
Vislumbre que ela poderia estar fornecendo a ele. Posso imaginá-lo
andando por essas ruas silenciosas, mandando seu guarda ficar
para trás enquanto comprava a substância para preservar seu
segredo. Imagino a sombra dele no beco para o qual Hook nos leva.
Imagino mãos trocando dinheiro por Vislumbre, enquanto seu
guarda era eviscerado. Aria sorrindo docemente, sabendo que ela
se juntou à Trupe de Máscaras com o único propósito de se
apresentar neste local – para deixar Harrow perto das terras
feéricas.
Quando Harrow percebesse alguma coisa, já seria tarde demais.
— Não entendo. — Eldas mantém a voz baixa. Ele se move com
graça e silêncio, quase como um gato. — Harrow deveria ter sido
capaz de dominar alguns feéricos. Ele tem tanta conexão com o Véu
quanto Drestin e, embora possa ser um pouco obtuso, ele é esperto
o suficiente para não cair em suas meias-verdades.
— A menos que fosse mais do que alguns feéricos… — E a
menos que ele tivesse usado tanto Vislumbre que não estivesse em
seu juízo perfeito.
— Com seu guarda…
— A menos que ele tenha dito a seu guarda para esperar em outro
lugar.
— Por que ele faria isso? — Eldas para e se volta para mim.
Minha expressão deve trair alguma coisa, porque seus olhos se
estreitam. — O que você sabe?
Já falei demais e sei disso.
— Não sei nada além do fato que temos que encontrar Harrow.
— Você está mentindo para mim — ele sibila. Sua testa está
franzida de raiva, mas seus olhos mostram mágoa. — Conheço-a
bem o suficiente para saber como o ar muda ao seu redor quando
tenta enganar alguém.
Engulo em seco.
— Não há tempo agora…
— Diga-me o essencial, então.
— Estou tentando respeitar meu paciente — digo debilmente.
— Isto é um comando.
— Mas…
— Luella! — ele força, preocupação contrastando com a frustração
em sua voz.
— Harrow estava usando Vislumbre — deixo escapar.
— O quê? — O branco dos olhos de Eldas luta para consumir a
parte colorida, enquanto suas pálpebras se mantêm dolorosamente
abertas. — Como você…
— Ele me contou — digo rapidamente. Então a ansiedade e o
medo me levam a falar ainda mais rápido. Conto apressadamente a
Eldas o que vi no beco em Quinnar – o que eu suspeito que foi
Vislumbre sendo passado para Aria de um cúmplice feérico. Do que
Harrow me disse em sua cama e sua confusão de como ele se
tornou viciado na substância que ele nunca quis usar em primeiro
lugar. Minha teoria de que Aria o teria usado para atrair Harrow aqui,
sozinho.
— Eles estavam planejando isso… Pegar você naquele dia não foi
nada mais do que uma oportunidade inesperada. Foi por isso que a
tentativa de sequestro pareceu tão aleatória. Foi um crime de
conveniência, mas o verdadeiro objetivo era Harrow o tempo todo,
porque os instigadores feéricos sabiam que tinham uma mulher que
tinha sua atenção — Eldas ferve. Espero que a raiva em seus olhos
seja dirigida aos feéricos e não a mim, mas não tenho certeza. —
Você e eu discutiremos sua escolha de esconder tudo isso com
mais detalhes quando meu irmão estiver seguro.
— Tudo bem. — Quero objetar que tentei dizer a ele respeitando
os desejos do meu paciente, mas sei que não é a hora nem o lugar.
Ele está certo. A segurança de Harrow é prioridade agora.
Hook solta um ganido baixo e começamos a segui-lo novamente.
O lobo nos leva a um canto esquecido da cidade. Pilhas de lixo
cobrem a parede e enchem o ar com o fedor. Eldas tapa o nariz,
recuando. Já senti cheiros piores, de algumas plantas raras, mas o
aroma ainda me surpreende.
De alguma forma, Hook consegue acompanhar o rastro mesmo
assim, e nos leva a uma série de tábuas encostadas na parede,
escondidas pelo lixo empilhado na frente deles. Hook arranha e
depois solta um rosnado baixo. À medida que Eldas e eu nos
aproximamos, ouvimos o eco fraco de pessoas falando, palavras
indiscerníveis. Através de rachaduras nas tábuas, é visível a linha
escura de um túnel na parede.
— Fique aqui — ele sibila.
— Mas você precisa…
— Não preciso de você. Você é um risco; não posso permitir que
algo aconteça com você. E se tivesse sido franca comigo desde o
início, tudo isso poderia não ter acontecido — ele rosna com uma
raiva que eu não achava que Eldas pudesse abrigar em relação a
mim. Cambaleio para trás como se ele tivesse me batido. No
entanto, sua preocupação e compaixão por mim aparecem mesmo
através de sua raiva. Isso me lembra que o Eldas que conheci e
com quem me importo ainda é o homem que está diante de mim. —
Fique aqui, esconda-se e fique segura com Hook. Se algo acontecer
com você, serei forçado a destruir todos os feéricos com minhas
próprias mãos.
Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, Eldas empurra as
tábuas para o lado, sai para a escuridão e me deixa sozinha. Cerro
os dentes. Hook solta outro gemido baixo e cava.
Imagens de Eldas emboscado, ferido e sangrando enchem minha
mente. Certamente Aria sabia que ele viria atrás de Harrow… A
menos que eles pensassem que poderiam levar Harrow para longe
antes que alguém percebesse? Esses pensamentos giram em torno
da imagem de Harrow, drogado ao ponto da incoerência.
Encontro os olhos dourados luminescentes de Hook.
— O que você faria? — sussurro. O lobo olha de volta para o
buraco na parede. — Se você insiste, não vou discutir.
Pesco da minha bolsa um pequeno ramo de roseira-brava. Escolhi
cuidadosamente as plantas que tirei dos jardins de Posto Oeste.
Cada uma por um motivo diferente, baseada nos insights de alguma
rainha do passado. Há semanas venho lendo e praticando os
métodos delas.
A memória do meu último ataque permanece. Não estava
confiante com minha magia naquele dia. Precisava de Hook e Eldas
para ter uma chance, mas não sou mais a mesma mulher. Sei como
usar meus poderes e confio na terra sob meus pés para me manter
segura.
— Vamos. — Aceno para a abertura e Hook entra na escuridão,
sem medo. Tento imitá-lo, seguindo logo atrás. Enquanto
caminhamos, transmito magia da minha mão para o ramo,
carregando-o com energia suficiente para uma grande explosão.
O silêncio é quebrado ao longe por um grito agudo sendo
interrompido com um estalo doentio.
— Vá! — Encorajo Hook e ele salta na frente. Tropeço na
escuridão, correndo minha mão ao longo da parede rústica que me
machuca, mas continuo pressionando com firmeza.
Logo, um facho de luz me guia. Consigo distinguir a sombra de
Hook, correndo. Ele cruza para a clareira diante de mim. Os ruídos
da luta aumentam em meus ouvidos. Continuo me forçando a
continuar.
Nunca estive em uma luta de verdade antes. Estudei como curar,
não como ferir, mas nunca tinha me casado antes, cruzado o
Desvanecer, feito magia, dormido com um homem ou amado desse
jeito antes. Lidei com calma com todas essas primeiras vezes.
Eu consigo agora.
Emerjo em uma floresta. Instantaneamente, noto como as terras
feéricas são diferentes do Reino dos Elfos. Partículas de magia
flutuam no ar entre as árvores, corando tudo em tons de azul e
verde. Trepadeiras floridas que não reconheço estão penduradas
como cortinas nos galhos frondosos das árvores. Até a terra parece
diferente sob meus pés; é mais selvagem, mágica e muito mais
parecida com o que eu acho que originalmente esperava de
Entremundo.
O rosnado de Hook seguido por um grito me traz de volta à
realidade. Corro mais rápido, contornando as árvores e chegando
em uma clareira baixa. Dois feéricos jazem mortos, suas gargantas
cortadas com uma violenta linha escura. Eldas enfrenta uma besta
com patas que combinam com as pegadas que vimos na estrada. O
animal é do tamanho de um urso, coberto de pelos em volta do rosto
e das patas, mas o resto do corpo é coberto de escamas de
aparência úmida, como as de uma serpente.
O gemido de Hook chama minha atenção através da clareira para
onde o lobo foi derrotado por outro feérico com chifres de carneiro.
Os olhos do homem brilham em um violeta vivo e suas mãos se
movem pelo ar, magia vaporosa traçando seus movimentos. Tanto a
besta quanto o homem usam colares de labradorita em volta do
pescoço.
Seguro a roseira-brava e afundo meus pés no chão.
Um braço se fecha ao meu redor e a lâmina de uma adaga está na
minha garganta.
— Rei Eldas! — Aria grita por cima do meu ombro. Meus ouvidos
zumbem. Eu tinha razão; era ela o tempo todo. Nunca estive tão
brava por estar certa. — Se você não quer negociar conosco pelo
seu querido irmão, então talvez queira por sua rainha.
Os olhos brilhantes de Eldas deixam a besta para nos encarar.
Uma raiva diferente de qualquer outra que eu já vi torce seus belos
traços em pura maldade. Ondas de sombra irradiam dele e a
presença do Desvanecer engrossa com sua magia.
— Solte-a — ele rosna.
— Deixe-nos ir e concorde em nos dar as terras que são nossas
por direito! — Ela empurra a adaga para mais perto da minha
garganta.
— Aria, não faça isso — diz o homem com chifres de carneiro, a
voz fraca de emoção. — Você deveria ter fugido. — Vejo algo que
reconheço – uma emoção que já vi em Eldas inúmeras vezes.
Admiração, compaixão. Estou começando a juntar as peças do que
parece ser um enredo simples… Aria se apaixonou por um dos
rebeldes feéricos. O amor é a única coisa que poderia fazer alguém
agir contra seus próprios interesses.
— Você insulta a tentativa de diplomacia de seu povo – de sua
família – e fere sua causa com isso. — Eldas estende os braços
para os lados e várias lâminas de prata aparecem. Ele invocou cada
uma com nada mais do que um pensamento – o nome verdadeiro
de uma arma que ele aprendeu e guardou em sua memória ao
longo de sua vida. — Mate-a, e matará a todos nós.
— Nossas terras são frias e cruéis — grita Aria. — Ela só torna
viável para comida e caça o Reino dos Elfos.
— Não é… — Não consigo dizer mais nenhuma palavra. Aria me
puxa com mais força e o punhal pressiona minha garganta quando
me atrevo a falar. Sangue escorre pela lâmina, caindo na terra.
— Silêncio — ela rosna para mim. — Nós temos uma solução em
que você não é mais necessária. Um ritual que restaurará esta terra.
Ritomancia… Willow explicou que era o ato de realizar rituais para
ganhar magia. Eu nunca esperei que Aria fosse a única a me dar a
peça que faltava para finalmente montar o quebra-cabeça de como
terminar o ciclo, mas ela o fez.
Eu só tenho que sobreviver o suficiente para testar minha teoria.
— Não dê mais nem um passo — Aria grita enquanto Eldas
começa a se mover, com olhos cheios de pânico ainda colados em
mim. — Eu o conheço. Você não ousaria arriscar a vida da Rainha
Humana.
A mão que cortei na parede já vem pingando sangue há mais de
um minuto, sangue que se mistura com aquele que pinga do meu
pescoço por causa da lâmina. Sorrio; aprendi muito cedo o quão
perigoso meu sangue pode ser quando misturado com a natureza.
— Ele não vai arriscar — sussurro. — Mas eu vou.
A magia explode ao meu redor com uma força que eu não sentia
desde a tarde com Harrow no recanto de almoço. Libero-a do meu
controle e ela flui para a terra sem restrições.
Sou como um flagelo para o terreno. A morte se espalha ao meu
redor enquanto o poder é consumido e sugado da própria terra.
Equilíbrio, tudo requer equilíbrio.
A roseira-brava cai dos meus dedos, se contorce e cresce. As
trepadeiras espinhosas envolvem Aria e ela solta um grito. Posso
sentir pequenas adagas cavando em sua carne como se as
gavinhas e espinhos fossem parte do meu próprio corpo.
No entanto, nenhum dos espinhos me toca. Aria está encasulada
em uma prisão perversa – presa, mas não morta – e eu estou livre
para me afastar enquanto as trepadeiras puxam a mão que segura a
adaga para longe da minha garganta como cordas violentas de
marionetes. A terra racha sob meus pés enquanto ando. A roseira
espinhosa e raivosa me segue e corre em direção à besta enquanto
aponto em sua direção.
A criatura com garras e escamas tenta fugir, mas não pode
escapar da minha magia. O ar muda quando Eldas volta sua
atenção para os feéricos. As armas que ele invocou caem como
uma chuva de aço sobre o homem remanescente. Aria solta um
grito de pura angústia – frio e persistente.
Abaixo minha mão no momento em que o último feérico está
envolto em ramos. De repente, a energia deixa meu corpo e caio de
joelhos. Bato no chão rochoso, agora rachado e seco – sem
qualquer vida, exceto por minhas trepadeiras.
trinta e quatro

Hook corre para perto de mim, lambendo meu rosto enquanto me


sustento em quatro apoios. É como se eu tivesse acabado de me
sentar no trono de sequoia. Meu corpo treme e dói. A exaustão
nubla minha visão.
— Você o matou! — Aria grita. — Meu amor, meu amor… — Suas
palavras se transformam em soluços. Não tenho certeza se ela para
de falar, ou se minha mente para de prestar atenção nela –
concentrando-se em me manter consciente.
Realmente fui feita para trazer vida, e não morte. Esta última,
mesmo que usada como método para alcançar o equilíbrio, cobra
um preço. Ondas de magia se propagam em mim como um mar
agitado e balanço levemente. Estou toda viscosa, escorregadia de
suor, como se meu corpo estivesse tentando eliminar a sensação
desconfortável de tornar a terra estéril.
— Luella…
— Estou bem —, digo quando Eldas se ajoelha ao meu lado. Olho
para ele e de volta para Aria. Ela agora olha entorpecida para o
mundo ao seu redor, minhas trepadeiras afundando em sua carne
em vários pontos. Não importa o que ela tenha feito, não poderia
matá-la. Simplesmente não sou capaz. Então vou deixar para Eldas
e sua justiça decidir o que acontecerá a seguir. — Você lida com ela.
Eu cuidarei de Harrow.
— Vou levar vocês dois de volta para Posto Oeste — ele declara.
— Volto e lido com eles quando souber que você está segura.
— Mas…
— Eles não vão a lugar nenhum nos próximos cinco minutos. —
Eldas acena para as touceiras que nos cercam. — Você realmente é
incrível — ele murmura enquanto desliza o braço sob meus ombros.
Com sua ajuda, cambaleio até onde Harrow está. Ele está em algum
tipo de torpor; seus olhos estão turvos e meio abertos, sem foco. A
boca de Eldas se fecha em uma expressão sombria.
— Vou curá-lo — digo.
— Sei que vai. — Eldas se inclina para frente, apoiando a palma
da mão em Harrow. Ele acrescenta, com um resmungo amargurado:
— Ajudá-lo a todo custo parece ser um dos seus pontos fortes.
As sombras engrossam ao nosso redor antes que eu possa
comentar sua observação e então são prontamente afugentadas
pelas luzes da entrada de Posto Oeste. Dois guardas se assustam
com nossa aparição repentina. Eldas dá ordens e desaparece mais
uma vez, deixando Harrow e eu para trás. Percebo que Hook não se
juntou a nós e espero com egoísmo que esteja cuidando de Eldas
nas terras feéricas enquanto ele lida com Aria e as consequências.
A meu pedido, Harrow é levado para uma sala não muito longe do
laboratório. Cada passo é mais difícil que o anterior, mas o barulho
dos potes das preparações em minha bolsa me mantém em
movimento. Harrow precisa do remédio que fiz e muito mais.
Não tenho ideia de onde está Sevenna enquanto estou tratando
Harrow: uma bênção. Posso me mover sozinha e sem
impedimentos durante a primeira hora de seu tratamento. Depois
disso, sou cercada por outros curandeiros. Harrow está estável o
suficiente, e fujo antes que o que quer que esteja segurando
Sevenna ceda.
Meus aposentos estão frios e vazios quando volto para eles logo
após o amanhecer. Olho para a cama, mas a ideia de dormir
sozinha sem Hook ou Eldas para me manter aquecida não é
atraente. Em vez disso, tomo banho, lavando os acontecimentos da
noite, e depois me enrodilho no sofá da nossa antessala,
adormecendo apesar de tudo.
Metade do dia já passou quando acordo. Eldas é a primeira coisa
que vejo. O diário de Lilian está em seu joelho, aberto no meio.
Mesmo com sua velocidade de leitura sobre-humana, se já chegou
na metade ele provavelmente não dormiu.
— Você está acordada — diz ele sem olhar para cima.
— Parece que sim. — Ergo-me na cama. Cada músculo meu grita
em protesto. Poderia facilmente dormir mais dois dias. — Como está
Harrow?
— Estável, disseram-me. Os curandeiros já trataram a… como
você chamou? Febre que ele pegou por ter tomado chuva? Embora
ele ainda não tenha acordado. — Os olhos de Eldas finalmente se
voltam para mim.
— Achei que você não gostaria que todos soubessem sobre o
Vislumbre — digo com cautela.
— Você faz muitas suposições. — Ele fecha o diário lentamente.
— Você supôs que eu não gostaria que as pessoas soubessem que
meu irmão está envolvido com Vislumbre.
— Supus errado?
— Você supôs que eu não deveria saber.
— Estava tentando respeitar o desejo dele — digo calmamente.
— Claramente ele não era confiável para saber o que é bom para
si próprio se estava usando Vislumbre!
— Não era uma escolha minha.
— Você supôs — cada vez que ele repete, a palavra se torna uma
acusação — que poderia navegar em uma situação para a qual não
estava nem um pouco preparada.
— Eldas — digo suavemente, mas com firmeza. Seus olhos estão
apreensivos e cansados. Agora não é hora de ter essa conversa.
Respiro fundo e tento começar do início. — Não contei sobre o
Vislumbre porque não queria trair a confiança de Harrow. Duvido
que ele tenha contado a alguém sobre isso – exceto talvez Jalic ou
Sirro, que também podem estar envolvidos na trama de Aria. Não
sei. Se eu traísse a confiança que ele depositava em mim,
provavelmente teria recuado ainda mais e mantido esse segredo
guardado até o túmulo. — Um túmulo que poderia ter vindo cedo
demais se a noite passada tivesse terminado de forma diferente. —
Realmente temia por ele, Eldas. E achei que se eu lhe desse
motivos para afastar a única pessoa com quem tinha começado a se
abrir, isso seria muito mais prejudicial do que qualquer outra coisa.
Lamento não ter imaginado nada disso acontecendo.
O rei franze os lábios e olha para a janela. Ele apoia um cotovelo
no braço da poltrona em que está sentado e leva a mão aos lábios,
como se estivesse tentando se forçar a não dizer algo de que se
arrependerá.
— Os feéricos eram parte de um grupo chamado Acólitos da
Floresta Selvagem. Eles não são capazes de mentir. Com isso,
pode ser fácil interrogá-los a partir de um certo momento.
Lembro-me de Rinni dizendo o nome uma vez antes e ignoro suas
observações sobre interrogá-los. Não acho que tenho interesse em
saber o que quis dizer.
— Aria os estava ajudando a se infiltrar na corte de seu tio. Era
assim que podiam se encontrar com dignitários, mas sem que o Rei
Feérico estivesse ciente. Não consigo acreditar que permiti que ela
entrasse em minha casa. — Eldas direciona sua frustração para si
mesmo. Nem parece estar falando comigo.
— O que você fez com Aria? — Preciso perguntar. Posso não
querer saber, mas preciso.
— Ela será presa, e a chave ficará perdida por um tempo — Eldas
diz, finalmente. — Posso ter querido matá-la ali mesmo, mas ela
ainda é sobrinha do Rei Feérico; ele deve decidir seu destino.
Permitir que ele decida será uma demonstração de boa vontade, e
com isso saberei se ele considera nossa relação com seriedade ou
não.
Faço uma careta para a ideia de ter que julgar um membro da
família – alguém que amo.
— E o resto do grupo?
— Aqueles que pude caçar enfrentaram minha justiça. — Não há
uma pitada de leveza em sua voz. Mortos, então. Engulo em seco e
tento não julgar Eldas pelo que ele deve fazer como rei. —
Esperamos que o fato de esse plano ter sido frustrado os afaste por
um tempo. Então, quando encerrarmos o ciclo, isso realmente
acabará com suas afirmação de favoritismo em relação aos elfos
pela Rainha Humana e suas reclamações pela morte da terra. O
que estamos fazendo vai ajudar a todos… mesmo que eles ainda
não saibam.
— Falando nisso, acho que sei como quebrar o ciclo — digo. Ele
arqueia as sobrancelhas. — Acho que a solução é mais simples do
que imaginávamos. É uma questão de restaurar o equilíbrio entre
Entremundo e o Mundo Natural – como o jardim da rainha. — Posso
ver a solução começar a iluminar os olhos de Eldas enquanto falo.
— Acho que com algo semelhante à ritomancia feérica podemos
reunir os requisitos necessários para encontrar o equilíbrio. O que
pode fazer sentido – a magia da Rainha Humana é mais parecida
com a dos feéricos do que com a dos elfos… provavelmente porque
os feéricos estão mais próximos das dríades. — Acredito que minha
lógica esteja correta, já que os feéricos descendem das dríades e as
dríades mais tarde criaram os humanos, mas já faz um tempo desde
que Willow e eu discutimos a história de Entremundo.
— Ótimo. — No entanto, ele se contradiz balançando a cabeça em
negativa quando se levanta.
— Você não parece feliz. — Observo enquanto ele encara o fogo
crepitante na lareira atrás de sua cadeira.
— Claro que não estou feliz — ele murmura, sombrio.
Sinto um aperto no peito. Esperava que ele estivesse com raiva,
mas não imaginava o quão doloroso seria.
— Eldas, eu…
— Meu irmão poderia ter se machucado. Você poderia ter se
machucado. — Ele olha por cima do ombro.
— Não sabia a extensão da situação, na verdade. Só pensei que
seu irmão estava em uma situação difícil. Não pensei sobre a
política que poderia estar envolvida. — Lentamente me levanto,
permitindo que o mundo gire e se restabeleça. Minha magia e meu
corpo estão exaustos.
— É melhor assim — ele murmura.
— O que é melhor assim?
Eldas se vira e sua expressão é irreconhecível. Não vejo esses
olhos frios desde o nosso casamento.
— É melhor que você parta em breve.
— Você acha mesmo? — sussurro.
— Claro que acho. É o que você queria, não é? Você teve uma
ideia e, com base no que li desse diário, não está longe da solução.
— Eldas olha para mim. — Você não será mais necessária aqui e
poderá ir. Ficará livre de mim. Nenhum rei jamais terá que sofrer
com uma Rainha Humana novamente.
— Pare com isso — sussurro. Cada palavra é como uma ferida
física, me cortando mais fundo do que eu pensava ser possível.
Estou chocada que o chão não esteja ensanguentado. — Sei que
está chateado e… tem razões para estar zangado comigo, mas
Eldas, eu…
— O que você sente por mim? — Ele se vira para mim e joga a
pergunta de volta. Inclino-me contra a cadeira para me estabilizar.
Caso contrário, posso ser atropelada por seu olhar.
— Você não me respondeu também — lembro, debilmente.
— Se você perguntou, então você deve ter uma ideia do que eu
posso estar sentindo. — Eldas se endireita. — Mas quero saber de
você, Luella. O que você sente por mim? Você me ama?
Cada poro, cada parte crua da minha essência grita, sim! Mas
meus lábios não se movem. Eles estremecem silenciosamente e
meus olhos queimam. Sim, diga sim, Luella, mas se eu disser sim
agora… sempre duvidarei de mim mesma.
— Diga-me, Luella, você me ama? — Sua voz assume uma nota
quase que de súplica.
Fecho os lábios com mais força, lutando contra todos os instintos.
Minha mente está em guerra com meu coração. Meu senso de
dever para com Capton e Entremundo contra uma tendência
impulsiva que esses sentimentos despertaram em mim. O silêncio é
a melhor coisa para nós, mesmo que ele não o veja agora.
— Diga-me agora, ou desistirei de você para sempre.
Como posso fazê-lo entender?
— Eldas, eu…
— Sim ou não, você me ama? — Sua voz aumenta um tom.
Vejo como ele se despedaça sob meu silêncio e hesitação.
— Não. Claro que não. Quem poderia? — Ele ri e balança a
cabeça. — Eu já suspeitava que você não me amava, já que
escolheu guardar tantos segredos.
— Eldas, não é tão simples assim.
— Sim, é. — Ele me fura com o olhar; não consigo respirar. — É
uma pergunta simples, com uma resposta simples. Suas ações e o
que você não consegue falar me dizem tudo o que preciso saber.
— Eu queria… nossa situação é… não podemos ter certeza… eu
tenho que ir para saber… — É impossível para mim formar uma
frase coesa. O mundo está tremendo sob meus pés. Eu ouço
gemidos e gelo rachando ao meu redor. Fazê-lo entender; tenho que
fazê-lo entender, mas quando mais preciso de palavras, todas elas
me falham, mesmo as sem sentido. — Eldas…
Ele fecha a porta atrás dele. O clique suave da fechadura me
atinge como um tambor. Eu titubeio, corro para a porta e a abro,
mas já sei o que me espera: um salão vazio.
Ele se foi.
trinta e cinco

Eldas volta para Quinnar sozinho. Ele Anda pelo Desvanecer sem
sequer dizer uma palavra para mim. Descobrir através de Drestin
que ele se foi é o maior golpe de todos. A carruagem na volta está
tão fria e solitária quanto os salões do castelo que me esperam.
Nem mesmo a presença de Hook pode afastar o frio. Passo as
horas tendo um longo debate comigo mesma sobre o que poderia
ou deveria ter feito de forma diferente ao longo do caminho.
Quando o castelo de Quinnar é visível à distância, erguendo-se
em linha com os cumes das montanhas e elevando-se sobre os
campos, não tenho certeza do que sinto. Uma parte de mim é
estranhamente nostálgica pelo lugar. Outra parte preferiria estar em
qualquer outro lugar que não essa carruagem, aproximando-se cada
vez mais.
Rinni está esperando por mim quando a carruagem para antes do
túnel da entrada do castelo.
— O que aconteceu? — ela pergunta – não, exige.
— Harrow…
— Eu sei o que aconteceu com Harrow. Eu sou a general de
Eldas, então é claro que ele me contou isso. — Rinni se aproxima,
enganchando seu cotovelo no meu e me levando para as portas.
Hook segue logo atrás. Sua voz cai para um sussurro quando ela
olha para trás, para ter certeza de que os soldados que estavam do
lado de fora da minha carruagem não estão nos seguindo. — O que
aconteceu entre vocês dois?
— Nada aconteceu — minto.
— Foi o que ele disse. E é obviamente mentira.
— Rinni…
— Comecei a ver mudanças nele – mudanças para melhor, Luella.
Comecei a ver um lado mais quente e gentil. Deu-me fé e esperança
no homem que nos lidera. — Paramos no grande hall de entrada. A
grande escadaria arqueia-se na extremidade oposta, dividindo-se no
mezanino vazio. Isso me traz lembranças de quando cheguei.
Incrivelmente, acho que tudo era mais simples então. Quando
Eldas não era nada mais que um rei. E eu mal entendia meu papel
como rainha.
— Mas desde que ele voltou de Posto Oeste… Voltou a ser o
mesmo — finaliza Rinni. — E sei que isso deve significar que algo
aconteceu entre vocês.
— Não posso mudá-lo, Rinni. — Dou de ombros como se o peso
do mundo não estivesse sobre mim. Se Rinni acreditar que eu não
me importo, talvez Eldas também acredite, e talvez eu também. E
de alguma forma esse impasse insuportável em que estou pode se
tornar mais fácil.
Ela pisca, assustada.
— Não estou pedindo ou esperando que você o faça. Ele estava
mudando a si mesmo porque acreditava que poderia ser um homem
digno de amor – seu amor.
Não consigo aceitar as palavras dela. Não quero ouvi-las dela.
Queria ouvi-las de Eldas. Não, eu não queria ouvi-las de ninguém. É
impossível, não podemos nos amar. Não nestas circunstâncias, não
tão rapidamente.
Mas o que sei sobre o amor? O que já soube sobre o amor? Nada,
e é por isso que estraguei tudo.
Preciso voltar ao que entendo e ao que não vai me machucar: meu
dever.
— Desculpe, Rinni, acho que você pode estar enganada, mas
realmente não tenho tempo para discutir isso. Os dias estão ficando
mais frios e eu tenho trabalho a fazer. Hook, venha.
Rinni me encara com indiferença enquanto vou em direção ao meu
quarto. Ela eventualmente segue atrás de mim, mas posso dizer que
é apenas por obrigação. Não diz mais nada quando me escondo
para planejar e trabalhar.
Espero que ela acabe ficando do lado de Eldas… ele precisa muito
mais dela do que eu agora.
Eldas não fala comigo por três dias. No quarto, ele quebra o
silêncio com um bilhete. Quatro sentenças simples e sem emoção,
nada mais.

Parece que vai nevar novamente em breve.


Meu reino precisa que você se sente no trono, ou quebre o ciclo.
Qual será?
Quanto tempo mais até que você termine e vá embora?

Dito e feito. Ele desistiu de mim. Rinni estava errada; ele não quer
amor, não mais do que eu. Não fomos feitos para o amor. Fomos
feitos para nos concentrar em nosso trabalho.
Então é isso que faço.
No quinto dia em que estou no laboratório, Willow está comigo,
roubando olhares preocupados até que não aguento mais.
— Vá em frente, pergunte — digo sem tirar os olhos do meu diário.
Já tenho os planos quase totalmente delineados. Há apenas mais
uma coisa a ser feita. Posso conversar um pouco com Willow. Ele
tem sido gentil comigo, e nada disso é culpa dele.
— O que realmente aconteceu em Posto Oeste? — Seus olhos
estão ternos, sondando suavemente. — Você não tem sido a
mesma desde que voltou.
— Nada mudou — respondo placidamente. Nada mesmo. Eldas
ainda é o gelado Rei Elfo. Ainda sou forçada a ser sua Rainha
Humana. O que quer que tenhamos vivido naquela cabana foi um
sonho, um momento, tão frágil quanto as asas de uma borboleta.
— Algo aconteceu. — Ele franze a testa e se senta na minha
frente. — Foi o que aconteceu com Harrow que a deixou diferente?
— Como ele está? — pergunto, continuando a permitir que Willow
pense que meu mal-estar geral se origina do incidente com os
feéricos. Desde que voltamos, Willow assumiu o tratamento de
Harrow, mas o príncipe mais jovem ainda não acordou. Isso é outra
coisa para Eldas se ressentir. Não tenho dúvidas de que ele me
culpa pelo estado não-responsivo do irmão, já que fui eu quem o
tratou pela primeira vez.
— Ele está bem, mas ainda sem mudanças. — Willow dá tapinhas
na minha mão. — Tenho certeza que ele vai sair dessa em breve.
— Sim… — acabo de revisar os meus planos. Faltam apenas
duas semanas para a coroação. Mordo o lábio e suspiro. Falta algo
que não estou percebendo para alcançar o equilíbrio, sei disso, mas
meus pensamentos estão espalhados como sementes de dente-de-
leão ao vento.
Parte de mim só consegue pensar em Harrow – estou preocupada
com sua recuperação e me pergunto por que ainda não acordou.
Parte de mim se pergunta se estou fazendo a escolha certa.
Imagino se há alguma outra escolha a ser feita. Então, há Eldas…
— Preciso pegar algumas coisas na estufa — digo, saindo antes
que Willow possa fazer mais perguntas. Fiquei muito frágil. Estou
como um copo cheio. Mais uma gota d’água e derramo os
sentimentos todos que estou carregando de uma vez, para que
outra pessoa possa vê-los – e para que eu não precise carregá-los
sozinha. No entanto, não posso fazer isso. É melhor fingir que os
sentimentos não existem.
O calor gruda em mim desde o segundo em que entro na estufa e
não me solta. Inalo profundamente o cheiro agora familiar – o aroma
único das plantas que crescem aqui, o musgo, a terra, a
compostagem de que Willow cuida meticulosamente nos fundos da
estufa.
— Fiquem bem quando eu for embora — digo baixinho para todas
as plantas. Elas parecem farfalhar em resposta.
Ando pelas fileiras de vasos, procurando o que posso querer levar
comigo. Preciso encontrar algo que espelhe a força do trono de
sequoia. Algo que possa criar raízes profundas no Mundo Natural e
fornecer um contrapeso ao trono neste mundo. Pensei em tirar uma
muda do próprio trono, mas outra rainha tentou isso uma vez por
outras razões e o trono era impermeável a todas as facas e
formões.
A primeira Rainha Humana plantou algo para fazer o trono –
acredito que é isso que a estátua no centro de Quinnar está
mostrando. O Desvanecer e o trono, feitos ao mesmo tempo em um
processo mágico, quase como um ritual, mas o que posso plantar
que possa espelhar o trono em poder? O que ainda está faltando
neste equilíbrio?
Então uma planta pequena e bulbosa chama minha atenção. Olho
para a raiz de coração, piscando várias vezes. É como se eu a visse
pela primeira vez.
— A raiz de coração se lembra — sussurro, ecoando as palavras
de Willow. É esta a semente para a qual minha consciência vai
quando me sento no trono. É a semente da qual o trono nasceu.
Naquele lugar eu senti a vida das rainhas do passado, a energia do
mundo.
Lilian enrolou um pedaço de madeira escura – madeira que
espelha a raiz de coração e aquela semente no centro do trono de
sequoia – em um colar. O colar que ela escondeu na caixa. Um
colar feito da magia que Eldas não consegue entender.
Ela encomendou sua estátua no centro de Quinnar para
representá-la ajoelhada. Não porque ela pretendia que as rainhas
fossem subservientes, mas porque ela estava mostrando como tudo
veio a ser… e como tudo terminaria.
— É isto.
As duas flores que se abriram instantaneamente quando toquei a
planta pela primeira vez parecem piscar para mim, como se
estivessem muito felizes por eu ter entendido tudo. Com cuidado,
pego o vaso que suporta a planta despretensiosa. Quase posso ver
as memórias fantasmas que testemunhei pela primeira vez quando
a toquei, estendendo a mão para mim.
Eu vi a Rainha Lilian pegando a raiz de coração e plantando na
primeira vez que entrei em contato com a planta. Isto é o que ela
estava plantando na estátua. Agora sei. Sinto com cada parte de
mim. Foi dessa semente que o trono de sequoia cresceu e essa
semente ajudará a equilibrar o Mundo Natural.
— Era esse seu plano o tempo todo, Lilian? — murmuro. Uma
mulher humana que negociou a paz com um Rei Elfo em guerra. Ela
foi inteligente. Direcionou a raiz de coração intencionalmente
apenas para Entremundo. Fez os mundos desequilibrados. Lilian
construiu uma saída para as Rainhas Humanas para quando
chegasse a hora certa – quando a paz fosse estável e as Rainhas
Humanas não fossem mais necessárias como troféus. Deixou pistas
para trás – iniciando a tradição dos diários, a estátua, usando a raiz
de coração que prenderia as memórias dela – esperando que
alguém as encontrasse.
Vou voltar para casa.
Correndo de volta para o laboratório, coloco a planta na mesa e
puxo Willow para um abraço apertado. Ele fica rígido, assustado, e
assim que se move para devolver o abraço eu já estou me
afastando.
— Obrigada, obrigada — digo.
— Pelo quê? — ele pisca.
— Foi por sua causa, por causa da raiz de coração, que – oh, não
importa. Escute, preciso que você faça algo para mim.
— Tudo bem. — Willow assente lentamente. — O que devo fazer?
— Pegue. — Cuidadosamente corto uma das flores. Willow
arregala os olhos. — Faça um elixir para Harrow. A raiz de coração
ajudou na cura de Harrow antes. A flor será exatamente o que ele
precisa – uma fusão das propriedades do corpo e da mente da
planta.
— A flor, mas é para… — Ele para.
— Envenenamentos, eu sei. Não consigo explicar o motivo, mas
acho que vai ajudar — digo me desculpando. — Por favor, apenas
confie em mim porque preciso me concentrar em meu outro
trabalho.
— Oh… tudo bem. — Willow lentamente começa a se mover,
fazendo como eu instruo. Enquanto isso, estou revisando meus
planos. Procuro no laboratório tudo o que precisarei sacrificar ao
equilíbrio para fazer a raiz de coração se propagar mais rápido.
Minhas mãos param antes que a magia saia delas. Se isso
funcionar… irei para casa antes do anoitecer. Estou tonta de
excitação e apreensão.
Então, outro pensamento passa pela minha cabeça. Se isso
funcionar, será a última vez que vejo Eldas. Meus dedos tremem e
engulo em seco.
O ciclo deve terminar, lembro-me com firmeza e volto ao trabalho.
Antes que eu perceba, estou diante da porta da sala do trono. Não
vi Rinni na semana que passou. Talvez tenha sido porque fiquei
trancada em meu quarto. Ou talvez seja porque Eldas finalmente
contou tudo a ela e eu estava certa em pensar que ela ficaria do
lado dele. Talvez, quando eu me for, ela e Eldas tentem o romance
novamente. O pensamento me dá náuseas, e concentro-me na raiz
de coração em minhas mãos.
— Você está atrasada — Eldas diz secamente enquanto eu entro.
— Convoquei você para se sentar no trono uma hora atrás.
— Eu sei. — Encontro seus olhos e meu peito aperta ainda mais.
Aqueles olhos gelados são os mesmos que me olharam na
escuridão com tanto desejo… desejo que ousei pensar que poderia
ser amor. — Mas não importa. Isso tudo está prestes a acabar.
O ciclo.
Nós.
— Você descobriu — ele sussurra, sem expressão.
— Sim, e vou embora hoje. — Espero para ver um lampejo de
emoção em seu rosto. Há algo em seus olhos, mas nem mesmo eu
consigo ler. Pode ser tanto alívio quanto arrependimento. E, porque
não consigo ler, é assim que tenho certeza de que estou tomando a
decisão certa. Nada disso ficará claro para mim até que eu esteja de
volta a um mundo que conheço, um lugar que faça sentido, e tenha
alguma liberdade para lidar com essa confusão de sentimentos
tentando me estrangular.
— Então eu lhe darei passagem pelo Desvanecer — ele diz
lentamente —, e espero que você nunca retorne.
trinta e seis

É tão tarde que a primeira névoa do amanhecer já está beijando o


céu.
Apenas Willow e Rinni vieram se despedir de mim. Eldas me
permitiu partir sem nem mesmo um adeus. Ele me dispensou
daquela vasta e solitária sala do trono com pouco mais que um
desejo de boa sorte. Ninguém mais vai se despedir de mim porque
esta missão ainda é nosso grande segredo. Se eu tiver sucesso, o
Entremundo se alegrará com uma segurança que nunca conheceu;
não dependerá mais de uma única pessoa para o bem-estar de
suas terras. Se eu falhar… Eldas virá me buscar antes da coroação
e ninguém saberá que sua rainha “tentou escapar dele”.
Sou como um pedaço de carvão, sendo lentamente esmagado sob
tudo o que me cerca. Embora eu não saiba se me tornarei um
diamante… ou pó.
Willow me encara com olhos vermelhos e brilhantes, fungando.
— Eu pensei… eu não tinha ideia de que você estava indo
embora. Não assim… eu teria… eu teria…
Puxo-o para um abraço apertado, que ele retribui sem hesitação.
— Está tudo bem. Desculpe por não ter contado a você, mas eu
precisava guardar segredo. — Willow foi minha única insistência
para Eldas e Rinni sobre essa partida – ele saberia para onde eu
estava indo e estaria aqui. Ele foi bom demais para mim para eu
simplesmente ir embora sem dizer nada. E ele notaria que eu tinha
ido embora e isso o alarmaria caso ele não soubesse o motivo.
Então manter isso em segredo dele não era mais uma opção.
— Está tudo bem — diz com uma voz trêmula. — Eu não estou
bravo, eu… há tanto de Quinnar e Entremundo que eu queria
mostrar a você… Queria que você estivesse aqui para os ritos da
primavera, e depois os festivais da colheita e o festival de inverno.
Meu coração se parte um pouco por tudo que eu não vou ver, mas
ainda me pergunto se essas fraturas serão suavizadas no segundo
em que eu retornar a Capton. Será que toda a nostalgia e afinidade
que sinto em relação a este mundo mágico desaparecerá quando
não estiver mais operando sob a suposição de que devo estar aqui?
— Adoraria vê-los com você. E, de repente, poderei. Meu plano
pode falhar. Posso estar de volta para a coroação em duas
semanas. — Eldas deixou isso bem claro para mim antes de eu sair
– nosso acordo era de três meses. Não importa se estou em
Entremundo ou em Capton. Se o cronômetro acabar sem que o ciclo
seja quebrado, virei para a coroação.
Nós nos separamos e esfrego seus ombros. O homem mal está
segurando as lágrimas e isso faz meus próprios olhos arderem.
Nunca imaginei quando comecei a procurar uma saída que ir
embora seria tão difícil.
— Além disso — digo, cimentando minha expressão de coragem,
— comigo em Capton, você terá Poppy de volta. Não ficará tão
sobrecarregado.
— Estava conseguindo — ele murmura. Então, em uma exibição
incomum, Willow me envolve em seus braços com força. — Cuide-
se, Luella.
— Você também. — Quando nos afastamos desta vez, me viro
para Rinni. Seu rosto está mais torcido pela emoção do que eu
esperava. Justo quando eu pensei que ela estava começando a
abandonar qualquer amizade que poderíamos ter forjado.
— Isso é um erro — ela finalmente diz.
— Não, a linha de rainhas está ficando mais fraca. Lilian não
pretendia que isso durasse tanto. Nós devemos…
— Você deixá-lo é um erro — ela interrompe. Willow olha para
seus pés, claramente desejando que não estivesse aqui para esta
conversa em particular. — Ele a ama, Luella.
Então por que ele não disse isso?
Por que eu não disse?
Eu forço um sorriso através da profunda tristeza que está
enraizando meu coração. Por enquanto, as raízes são tão finas e
retorcidas quanto a raiz de coração que estou levando comigo. Mas,
com o tempo, elas vão engrossar com determinação ou
arrependimento. Espero que seja determinação.
— Algumas coisas simplesmente não são para ser.
— Essa é uma desculpa patética e você sabe disso.
— Rinni — Willow diz com uma nota de repreensão.
— Está fugindo dele porque tem medo, porque sabe que é real. —
Rinni alfineta, encarando-me. — Você foi corajosa o suficiente para
vir aqui de cabeça erguida. Foi ousada o suficiente para tentar fugir
quando chegou, embora não tivesse ideia do que faríamos com
você por isso. Foi forte o suficiente para enfrentar os Acólitos da
Floresta Selvagem pelo bem de Harrow – justo Harrow.
— Mas…
— Mas você foge de sentir algo real. — Ela me interrompe. — Por
quê?
Balanço a cabeça.
— Não espero que entenda.
— Bom, porque não entendo mesmo. — Rinni me surpreende
dando um passo à frente e me puxando para ela. O abraço é duro,
como se ela se odiasse por fazer isso, mas soubesse que iria se
odiar mais se não o fizesse. — Ouça — Rinni sussurra. — O
Desvanecer só responde a Eldas e sua magia. Somente a
aprovação dele lhe permitirá voltar, mas uma vez que você estiver
lá, lembre-se de que você tem algo que poucos têm: um guia.
Quando seu bom senso a alcançar, estaremos esperando.
— Eu não…
— Agora, vá e conserte as coisas. — Rinni quase me empurra em
direção ao arco. Ela se vira e não olha quando eu passo. Já está
voltando para a cidade. Willow ainda fica. Seus olhos tristes são as
últimas coisas que vejo antes do Desvanecer me cercar.
A magia de Eldas está em volta dos meus tornozelos enquanto
ando sozinha na escuridão. Concedo-lhe passagem, disse ele, e me
outorgou a magia como imagino que um rei outorgue um título de
cavaleiro, mas este manto em meus ombros é frio e solitário.
Um ganido baixo quebra meus pensamentos.
Paro e me viro para a fonte do ruído. Hook está sentado em uma
pedra. A escuridão se funde com seu pelo e tudo o que posso ver
são seus olhos, mas sei que é ele.
— Venha aqui. — Abaixo-me e Hook se aproxima. Ele me olha
com tristeza, como se soubesse. Como se pudesse sentir o cheiro
da tristeza em mim. — Eu preciso — sussurro para a primeira parte
de Eldas que amei, muito antes de saber que Hook era uma
extensão dele de uma maneira estranha e bonita. — Por favor, saiba
que eu tenho que fazer isso. Não há lugar para mim em
Entremundo. Isso é para ambos os nossos mundos e para todas as
jovens que poderiam vir depois de mim.
Hook solta um ganido novamente e eu abaixo a cabeça. O lobo se
aproxima e meus braços deslizam ao redor de seu pescoço peludo.
A barragem que construí contra as lágrimas se rompe. Eu soluço no
pelo de Hook.
Lamento a perda de tempo. Lamento por tudo o que poderia ter
sido. Lamento pelas doces memórias que nunca terei a chance de
construir porque o amor que ouso dizer que floresceu entre nós foi
condenado pelas circunstâncias antes que pudesse realmente
começar. Já tenho saudade de sua pele sob as pontas dos meus
dedos, seu cabelo sedoso roçando em mim, o ressoar de sua voz
grave. Até acho que já sinto falta da vista de Quinnar através das
janelas do castelo e dos festivais que nunca pude ver.
Não tenho certeza de quanto tempo estou encurvada no
Desvanecer, chorando, mas choro até não sobrar nenhuma lágrima.
Com as palmas das mãos, seco minhas bochechas e ajeito meu
rosto. Minha respiração ainda está irregular quando me levanto. Já
chorei tudo, e tudo o que resta é minha determinação.
— Vamos, você e eu, uma última vez.
Hook caminha comigo pelo Desvanecer. Os tentáculos de névoa
que me cercam começam a diminuir e uma floresta crepuscular
começa a entrar em foco. A linha entre o meu mundo e o dele se
afina, e o momento em que atravesso é como uma rachadura na
parte de trás da minha cabeça.
O restinho de magia de Eldas me deixa, desaparecendo no vento,
como se nunca tivesse estado lá para começar. Dou dez passos
quando um ganido final me alerta para o fato de que agora estou
andando sozinha. Paro e olho de volta para Hook. Ele se senta à
beira do Desvanecer, não ousando ir mais longe. Suas orelhas e
cauda estão baixas e imóveis, a fronte enrugada pela tristeza.
— Volte — ordeno fracamente. — E obrigada, por tudo. Hook late
uma vez, e late de novo. — Cuide-se, Hook — forço-me a dizer.
Um uivo solitário ecoa pela floresta de sequoias manchada de sol
enquanto desço o caminho até o templo.
Não olho para trás. Mantenho meus olhos no mundo do qual senti
tanta saudade. O ar está como eu me lembro – o cheiro doce da
turfa, da seiva de sequoia e um aroma de maresia. O final da
primavera está na floresta e me enche de uma vitalidade que não
pode ser replicada em Entremundo. Suaviza as dores da partida,
revigorando meus passos. Isto é vida, não apenas a ilusão que
reinava em Entremundo.
Um Guardião varrendo a área em frente ao templo principal é o
primeiro a me ver. Ele franze a testa e inclina a cabeça, como se
tentasse descobrir por que alguém de Capton está saindo da
floresta densa perto do Desvanecer.
— Você… — Sua vassoura bate contra a passarela de pedra
quando ele solta o cabo. Os músculos de sua mandíbula se
contraem. Suas palavras falham. — Você… Você… Você é…
— Preciso falar com a Guardiã-Chefe. Olho para o santuário à
sombra da montanha que se eleva acima de Capton. A montanha
parece a mesma do outro lado do Desvanecer, como um espelho. E
onde o castelo fica em Quinnar, o templo fica em Capton.
O homem foge sem outra palavra. Ele volta não apenas com a
Guardiã-Chefe, mas também com o resto dos Guardiões do
Desvanecer. Eles estão em estado de choque e admiração,
parecendo que todos acabaram de ser atingidos na cabeça.
— Luella? — a Guardiã-Chefe sussurra. — É você mesma?
— Sou eu — concordo com a cabeça. — Estou aqui em uma
missão para nossos dois mundos.
— Uma missão? — ela sussurra quase com reverência. Eles me
encaram como se eu fosse algum tipo de deusa encarnada,
caminhando entre eles. Suponho que sou a primeira rainha que
voltou fora do Solstício de Verão. E voltou sem uma hoste de elfos
ao seu redor.
— Posso andar livremente pelos terrenos do templo? — Pergunto.
Sei que existem alguns lugares relegados apenas aos Guardiões do
Desvanecer.
— Claro, Vossa Majestade. — A Guardiã-Chefe se curva e entro
no santuário, não me incomodando com a discussão de títulos
ainda. Não sei como as pessoas em Capton vão se referir a mim.
Nem sei ainda se vou ficar.
Faço uma pausa no altar diante do qual Eldas e eu ficamos há
quase três meses. Parece uma vida inteira. Uma dor surda retumba
através de mim como um tambor baixo a cada batida do meu
coração até que eu não aguento mais olhar.
Se minha teoria estiver correta, e o equilíbrio deve ser restaurado,
então o templo é um espelho para o castelo de Quinnar, e o que os
Guardiões chamam de santuário é apenas o saguão de entrada.
Virando-me, ando como se estivesse de volta a Entremundo, mas
ao contrário. Eu progrido lentamente, os Guardiões me seguindo,
até chegar a uma clareira no centro do terreno do templo. Diante de
mim está a maior sequoia da floresta.
— O trono foi a raiz para esta árvore — sussurro. Uma energia
semelhante zumbe dentro de seu poderoso tronco. Chove dos
galhos frondosos que se elevam acima de mim.
— Perdão? — A Guardiã-Chefe fica ao meu lado.
— Desculpe, explicarei em breve.
Cruzo o limiar de pedra e grama e caminho até a árvore. Tudo foi
feito para estar em equilíbrio, para que funcionasse. Lilian baseou
sua parte da magia na ritomancia – a ideia de que o arranjo de itens
e ações no tempo pode conter magia inerente. Não é idêntico, pois
não há nada igual à magia da rainha, mas é perto o suficiente para
que Lilian pudesse deixar um pedaço fora do lugar.
Ando até a grande árvore – que espelha o trono no Mundo Natural.
Em sua base, ajoelho-me e coloco a raiz de coração no chão ao
meu lado. Começo a cavar com as mãos.
Este solo… a terra que nutriu esta árvore e as jovens que dela
vieram por décadas. Nele vou plantar a primeira raiz de coração no
Mundo Natural. Eu removo o colar que encontrei com o diário de
Lilian do meu pescoço e o enterro primeiro. Então, eu
cuidadosamente tiro a raiz de coração do vaso e arrumo suas raízes
ao redor da semente.
A árvore representa o trono.
O colar de Lilian representa aquele lugar escuro para onde minha
consciência ia.
A raiz de coração envolve tudo. Ela restaura o equilíbrio. A raiz de
coração lembra onde esteve, e minhas mãos apertam a terra com
força ao redor dela.
Um espelho perfeito de Entremundo no Mundo Natural, agora
completo. A peça faltante que mantinha os mundos desequilibrados,
restaurada. Sento-me nos calcanhares, olhando para a árvore com
um pequeno sorriso. Bastou uma planta, um colar e um pouco de
compreensão.
— Obrigada por simplificar, Lilian — sussurro.
— O que você fez? — A Guardiã-Chefe pergunta.
Os Guardiões me cercam, olhando confusos. Eles não podem
sentir a magia que está começando a fluir através desta árvore. Não
sabem que a essência deste mundo está sendo absorvida pelos
galhos que raspam as nuvens e empurrada através do Desvanecer
– através de um emaranhado de raízes – para Entremundo.
Eles não estão cientes de nada disso, mas eu sim. Porque mesmo
que eu nunca mais volte a Entremundo, eu sempre serei a última
Rainha Humana.
Eu finalmente digo:
— Encerrei o ciclo.
trinta e sete

Por cinco dias, espero.


Ordenei aos Guardiões que mantivessem minha presença em
segredo. É uma exigência dolorosa. Passo todas as noites olhando
pela janela do quarto que me deram, olhando para as luzes
brilhantes de Capton e duvidando da minha escolha, mas sei que foi
a escolha certa. Se estiver errada, dar a meus pais e Capton
esperança de que o ciclo acabou e, em seguida, tirá-la
imediatamente seria muito cruel.
Não durmo muito. Tudo é muito… normal. Este lugar, essas
pessoas… conseguiram continuar com suas vidas como se nada
tivesse acontecido. Foi meu mundo que mudou nos últimos três
meses, não o deles. Um fato que faz com que eu me revire na
minha cama – de repente muito pequena – como se estivesse
deitada em alfinetes.
Por causa disso, estou acordada quando o mensageiro elfo chega.
Um Guardião vem ao meu quarto com pressa, sem fôlego.
— Vossa Majestade, precisamos… Há um mensageiro aqui de
além do Desvanecer.
— O que ele disse? — Eu me afasto da minha janela.
— Nada além de que só vai falar com você.
— Não vamos deixá-lo esperando, então. — Não tenho certeza do
que esperar dessa interação, mas reuni coragem para perguntar: —
O Rei Elfo está com ele?
— Não, graças aos Deuses Esquecidos — o Guardião murmura.
Ele nem se incomoda em se desculpar. Ele assume que o
sentimento é mútuo. Afinal, quem em Capton poderia pensar em
Eldas como algo bom depois de sua última exibição durante a última
assembleia? Levei semanas para me acostumar com ele.
O mensageiro usa a armadura de um cavaleiro de Quinnar e
reconheço-o vagamente como um dos que vieram me buscar. Ele
espera no centro do santuário, relaxado diante dos olhares
cautelosos dirigidos a ele pelos Guardiões. Eu vejo alguns deles
tocando sua labradorita por instinto e não consigo reprimir um
sorriso. Lembro-me de ser como eles, com medo à mera visão de
um elfo.
— Vossa Majestade. — O elfo inclina a cabeça para mim.
— Notícias de Quinnar? — pergunto, um pouco ansiosa. Presumo
que a presença desse homem significa que houve um sinal do meu
sucesso ou fracasso. Quando saí, o trono precisava ser carregado.
Preparo-me para ouvir palavras geladas, para ouvir as exigências
de Eldas canalizadas através deste homem, ordenando que eu
volte.
Mas então ele diz:
— O trono de sequoia tem galhos brotando e folhas novas. A
General Rinni me pediu para lhe dizer que o Rei Elfo a parabeniza.
Que seus esforços em nome do Mundo Natural e Entremundo
funcionaram.
— Se isso for verdade… — A Guardiã-Chefe dá um passo à
frente, olhando para mim. — Então o que você nos explicou em sua
chegada aconteceu?
A primeira noite foi uma longa explicação com a Guardiã-Chefe e
alguns de seus conselheiros mais confiáveis. Informei a eles sobre
os traços gerais da minha missão e o que estava ocorrendo em
Entremundo e eles me disseram que Luke havia sido enviado para a
prisão em Lanton pelo que ele havia feito.
— Acredito que sim. — Eu sorrio mas só no exterior. O mundo não
parece brilhar ou cintilar de alegria. Fiz algo considerado impossível.
Ajudei a salvar dois mundos. E ainda… estou oca. Há um vazio em
mim que não pode ser preenchido. Nada é nítido, brilhante ou
colorido como eu esperava que seria.
— Com isso — o mensageiro elfo continua —, o rei conclui que
seus negócios estão encerrados, e deseja-lhe felicidades. Vou pegar
Poppy e partiremos.
Nada parece muito real enquanto deslizo de uma sala para outra.
Falo com as pessoas, eu acho, mas não posso ter certeza. Há uma
vaga sensação de que agradeci a Poppy por seu trabalho, dizendo a
ela para abraçar Willow com força por mim antes de me despedir
dela. Os Guardiões continuam a me fazer perguntas que dou meu
melhor para responder o máximo que posso – o quanto eu acho que
eles vão entender.
O ciclo acabou. Eu o encerrei. Nunca terei que voltar a
Entremundo. Eldas não virá me exigir.
Deveria estar animada. E ainda…
O mundo volta ao foco no segundo em que vejo minha mãe
parada na entrada do santuário, meu pai ao lado dela. Corro até
eles, tentando abraçar os dois ao mesmo tempo. É um abraço
estranho e choroso, mas sinto mais do que senti em dias.
— Luella, é você de verdade. — Minha mãe inutilmente enxuga os
olhos quando nos separamos.
— A Guardiã disse que você tinha voltado, mas não conseguimos
acreditar — diz meu pai.
— Entendo, mas sou eu. E estou aqui para ficar — digo, mas as
palavras saem desajeitadas da minha boca.
Como posso estar tão feliz e tão triste ao mesmo tempo? Limpo
meu rosto e abraço minha mãe mais uma vez.
— Este é realmente um motivo de celebração — diz meu pai.
— Não poderia concordar mais. — A Guardiã-Chefe assente. —
Estava pensando que deveríamos homenagear o retorno de Luella
com uma grande festa na praça.
— Na praça? Mas eu…
— Já consertamos. — Minha mãe tira o cabelo do meu rosto. —
Principalmente aceitando seu “paisagismo” e transformando-a mais
em um parque do que uma praça.
Meu pai ri. Solto uma risada sufocada também. Ele se volta para a
Guardiã-Chefe.
— Vou discutir isso com o Conselho.
— Eu não acho que uma celebração seja necessária — oponho-
me fracamente.
— Claro que é! — Meu pai dá tapinhas nas minhas costas. —
Você fez algo incrível, Luella. A cidade inteira vai querer
homenagear você.
— A cidade já fez o suficiente por mim.
— Eles vão querer celebrar que nenhuma de suas jovens
mulheres terá que suportar o título de Rainha Humana e cruzar o
Desvanecer novamente.
— Certo… — Seguro um suspiro.
— O que foi, Luella? — minha mãe pergunta.
— Nada. — Forço um sorriso. — Estou ansiosa para voltar à
minha botica, só isso.
— No devido tempo — meu pai encoraja. — Por enquanto,
desfrute de um merecido descanso.

***

Três dias depois, estou mais uma vez no meu antigo quarto do
sótão, no sobrado da minha família.
— Não é muito, mas é meu — sussurro. Isso é o que eu
costumava dizer.
Há o colchão de feno, meus livros alinhados em um canto, minha
cômoda de roupas e tudo o que já vi como minha vida – exceto pela
minha botica – em um só lugar. Esta é a primeira vez que vejo tudo
desde que voltei dos grandiosos salões de Entremundo. Esperava
achar o lugar confortável e reconfortante. E é reconfortante… mas
de uma forma nostálgica. Como um velho par de sapatos, amaciado
do jeito certo, mas que já não serve mais depois que crescemos.
— Luella? — Meu pai diz, subindo as escadas estreitas que levam
ao sótão. Ele segura duas canecas em suas mãos. O cheiro familiar
da mistura de chá de menta que fiz para ele anos atrás enche o ar.
— Achei que você poderia querer algo para acalmar seus nervos.
— Obrigada. — pego uma caneca e tomo um gole.
— Sua mãe e eu temos algo novo para você usar hoje. — Ele
acena para o vestido colocado na cama. É um lindo vestido de
verão de algodão amarelo brilhante, amarrado com uma fita de seda
branca. — Claro, provavelmente não é muito comparado aos
vestidos que você usou como Rainha Humana, mas suspeito que
você se divertirá muito mais nele. — Ele dá uma risadinha.
— Estou certa de que vou. — Tudo o que quero são minhas calças
de lona. Tudo o que quero é minha botica. Tudo o que quero é ser
normal mais uma vez.
Mas não sei mais o que é normal. Não sei como encontrar algo
que não reconheço.
— Você vai adorar o novo parque da cidade. — Meu pai bebe seu
chá, sorrindo de orelha a orelha. Ele já queria ter me mostrado, mas
os Guardiões não queriam arriscar que eu fosse vista antes da
“grande revelação”. Então voltamos para casa; assim poderia me
arrumar no meu próprio quarto, com minhas próprias coisas, como
minha mãe insistiu.
— O Conselho está até falando em batizá-lo de Parque Luella.
Rio baixinho.
— O que vem a seguir, uma estátua minha lá?
— Engraçado, a ideia foi lançada e bem recebida. — Meu pai ri
também, mas eu fico em silêncio.
Uma estátua da primeira rainha em Quinnar. Uma estátua da
última rainha em Capton. O equilíbrio continua a ser mantido. Faz
sentido que eu fique aqui, que tenha deixado Eldas, quando olho
para isso de uma perspectiva da ordem natural. A primeira rainha
ficou com seu rei. Eu deixei o meu.
Finco as unhas na caneca.
— O que foi? — meu pai pergunta, percebendo meu silêncio
pesado.
— Nada. — Balanço a cabeça. — Você estava certo, estou um
pouco ansiosa, é só.
— Vai ficar tudo bem. Todos ficarão muito felizes em vê-la. Uma
resolução perfeita depois de toda a feiura que Luke trouxe para nós.
Será um bom encerramento para todos.
— Espero que sim — murmuro.
— Deixe-a em paz, Oliver — minha mãe chama do andar de baixo.
— Ela precisa se preparar. E você também!
— Indo, Hannah! Meu pai me dá um beijo no alto da cabeça como
fazia quando eu era menina, e vai embora.
—Pai — digo timidamente, segurando-o. — Depois de hoje, tudo
vai voltar ao normal, certo?
Ele olha, confuso.
— Por que não voltaria?
— Por nada. Ótimo. É só isso. Obrigada novamente pelo chá. —
Bebo enquanto o observo sair, esperando que ele esteja certo.
Quando minha caneca está vazia, coloco o vestido que meus pais
escolheram. É até o joelho, saia folgada, com charmosos cadarços
na frente e mangas curtas. Sinto-me muito melhor, finalmente sem
as roupas de Entremundo e as vestes emprestadas dos Guardiões.
Vagando escada abaixo enquanto espero pelos meus pais, dou
uma volta pela minha botica. Posso ver que Poppy fez alguns
ajustes enquanto estava fora. Vou precisar colocar algumas coisas
de volta no lugar.
Eu também posso ver o fantasma de Luke, parado na porta, mas
mesmo essa memória odiosa não é tão amarga quanto antes. Tudo
que ele arriscou, por mais tolo que ele fosse… talvez fosse por
causa do que ele fez que Eldas e eu finalmente pudemos nos
entender. Se eu não estivesse tão desesperada por uma saída,
poderia ter aceitado Eldas como ele era. Não como o homem que
ele estava se tornando.
A sensação fantasma de suas mãos na minha pele me dá um
arrepio, mas a memória é imediatamente afugentada pela voz de
minha mãe.
— Está pronta? — Ela e meu pai estão ao pé da escada.
— Sim — digo, e vamos.
Pegamos o caminho mais longo pela cidade e acabamos atrás de
onde ficava o palco. Posso ver sinais das novas melhorias feitas
nesta área. Há restos das videiras que cresceram sobre as casas
empilhados na rua, esperando para serem queimados ou usados
para compostagem.
Meu pai me conduz pela lateral do palco. Tenho um vislumbre de
toda a cidade – as pessoas pelas quais voltei. As pessoas que amo
e a quem devo. Respiro fundo.
— Vamos — diz ele.
Sou levada ao palco antes que possa me recompor. Acho que fui
anunciada pelo Chefe do Conselho ou pela Guardiã-Chefe. Talvez
por ambos. Olho para a frente, de pé onde Eldas estava meses
atrás, olhando para os rostos de todos que eu conhecia.
Meu coração está na minha garganta, tentando me estrangular.
Errado, isso está errado, algo em mim grita, a Rainha Humana não
deve ser vista antes de sua coroação. Não estou no lugar certo,
percebo. Não deveria estar aqui, com essas pessoas. Por mais que
os ame, e mesmo que eles sempre façam parte do meu coração,
nunca mais me encaixarei neste mundo.
Com todos os olhos em mim, viro-me e corro.
trinta e oito

Corro pela cidade, e meu coração está acelerado mesmo antes


que eu esteja sem fôlego. Corro segurando a saia na altura dos
joelhos, o cabelo solto ao vento, as lágrimas escorrendo pelo meu
rosto, mas não sei do que estou fugindo… ou para onde estou indo.
Não sei por que estou chorando.
Tudo o que sei é que existe essa mágoa dentro de mim, mais
profunda do que jamais conheci. É corrosiva, insaciável e impossível
de descrever. Mesmo que eu tenha acalmado o trono de sequoia,
suas raízes ainda estão em mim, chamando de volta.
Não, essas não são as raízes do trono de sequoia. Estas são
raízes que eu mesma criei. Essas raízes cresceram de algo que
nunca pedi e nunca quis. Elas abalaram a própria fundação do meu
mundo – meu dever –, e agora estou caindo em um abismo
profundo do qual talvez nunca escape.
Eu corro para além dos limites da cidade, diminuindo a velocidade
quando chego às colinas no limite da floresta. Vejo o rio que
atravessa a floresta, serpeando pelo Desvanecer. Penso em segui-
lo, mas a magia de Eldas não está mais em mim. Eu ficaria tão
deslocada no Desvanecer quanto na primeira vez que me perdi.
Também não consigo entrar na floresta. Não pertenço a ela. Essas
árvores crescem muito perto de minhas memórias. Olho por cima do
ombro e volto para a cidade. A maioria das pessoas ainda está na
praça. Posso imaginar a confusão e a dor deles.
Meu rosto úmido queima. Terão raiva de mim. Depois de tudo que
investiram em mim, depois de tudo o que fiz para voltar para eles,
fugi.
E fugi porque… porque… porque não tenho mais um lugar em
Capton. Minha antiga posição na comunidade ainda está aqui, mas
nada parece certo. Este lugar não é mais minha casa. Vou passar o
resto dos meus dias aqui desejando estar em outro lugar? Fazendo
poções com apenas metade do empenho? Viro-me para o mar,
vagando em direção aos penhascos, e olho para a linha do
horizonte, olhando para a vasta extensão de terra além de Capton.
Poderia explorar o mundo agora, suponho. Se não pertenço mais
a Capton, e não pertenço a Entremundo, então talvez me encontre
lá fora. Quando penso, a culpa surge em mim, afogando os
pensamentos.
Meu peito aperta e solto um soluço estrangulado. Não exatamente
um soluço, não exatamente uma risada.
— Bem, você conseguiu o que queria, Luella — murmuro com
uma nota de raiva dirigida a mim mesma. — E agora?
— E o que você queria? — A voz da minha mãe corta meus
pensamentos. Viro-me, surpresa ao vê-la parada ali. Seu cabelo
vermelho ardente está lutando para escapar da trança com a brisa
do mar.
— Mãe… — digo debilmente. — Me perdoe.
— Não se desculpe; você passou por muita coisa e eu suspeito
que os Guardiões – embora bondosos – não tenham cuidado de
você adequadamente — ela diz delicadamente. — Podemos nos
sentar?
— Claro. — Sento-me na grama onde ela aponta.
Minha mãe se senta ao meu lado, puxando a saia ao redor dela
enquanto eu faço o mesmo.
— Disse ao seu pai que era demais, cedo demais para você. Ele
tem estado preocupado. Engraçado, acho que ele está mais
preocupado agora do que quando você foi embora.
— O quê? — Viro-me para encará-lo. Minha mãe tem um sorriso
terno, mas de outra forma ilegível. — Mas estou de volta…
— E você não é mais a mesma. — Ela coloca uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha. — O que você queria? — ela repete a
pergunta.
— Queria corresponder às expectativas de todos. Não queria
decepcionar o povo de Capton depois que investiram tanto em mim
— digo. — Queria liberdade. Queria propósito. Queria…
— Você queria…? — ela incentiva.
— Queria saber se o que eu sentia por ele era real — admito,
tanto para ela quanto para mim. As palavras são pequenas e
frágeis, como se dizê-las em voz alta pudesse quebrar esses
sentimentos trêmulos em meu peito.
— Ele — ela diz baixinho. — Você quer dizer o Rei Elfo?
— Sim, Eldas.
— O que você sentia por ele? — Sua expressão é ilegível. Vai ficar
zangada se eu admitir que encontrei uma maneira de amar alguém
que ela só conheceu como um homem bruto? Ela entenderia que,
embora tenha me tirado dela, há nele um lado gentil e atencioso?
Que mandou Poppy de volta, e ficou comigo quando eu estava fraca
depois do trono porque se importava, e faz bacon no café da
manhã, e faz aquela coisa com a língua que eu…
Coro e me volto para o oceano, o calor chegando até minhas
orelhas.
— Não sei.
— O que você acha que sente? — Minha mãe não vai me deixar
escapar tão facilmente.
— Amor — admito.
— E por que você acha isso? — ela diz naquela voz simples, sem
nenhuma pista sobre o que ela realmente poderia estar pensando.
Respiro fundo e conto a ela sobre meu tempo em Entremundo. Ao
contrário da Guardiã, que obteve a visão geral necessária dos fatos
básicos, conto tudo à minha mãe, exceto os momentos que
compartilhamos no chalé que ainda me fazem corar. Ela ouve sobre
todas as emoções feias, bonitas e improváveis que descobri dentro
daquelas paredes cinzentas do castelo.
Minha voz está tão crua quanto meu coração em carne viva
quando termino e as estrelas estão surgindo em um céu distante.
— Entendo — ela diz pensativa.
O silêncio que se segue é pesado na minha garganta e difícil de
engolir. Eu queimo em agonia e minha mãe tem um sorriso
enigmático no rosto enquanto olha para as águas escuras que se
estendem entre nós e Lanton.
— Por que você está sorrindo? — finalmente pergunto.
— Muitas coisas. Estou sorrindo porque ainda tenho muito orgulho
da minha filha, por ser forte e capaz. Por fazer algo tão
impressionante que mal consigo compreender. — Minha mãe ficou
um pouco perdida quando tentei explicar o Desvanecer, o trono de
sequoia e as estações tanto na primeira vez quanto desta vez. —
Estou sorrindo porque estou feliz que minha filha encontrou um
lugar ao qual ela pertence e onde pôde ser feliz. Realmente, isso é
tudo que uma mãe e um pai sempre quiseram.
— Mas… — Eu estava feliz? A imagem de Eldas flutuando na
água da piscina do chalé enquanto eu cuidava do jardim passa pela
minha mente. Acho que estava.
— Então, o que vai fazer agora? — Ela ignora minha hesitação.
— Não tenho certeza — admito.
— Vai voltar para Entremundo?
Puxo os joelhos para o peito e os abraço.
— Não posso ir embora.
— Por quê?
— Não posso deixar você e papai.
— Minha querida… — Ela passa um braço em volta dos meus
ombros. — Todo filho deve partir em algum momento. Às vezes, é
para uma casa na mesma rua. Outras vezes, é para algum lugar
muito distante, mas se essa filha acabar onde ela pertence, se for
feliz e amada… isso é tudo que uma mão e um pai querem.
Suas palavras doem de uma maneira nostálgica. É a mesma
sensação de quando o verão termina para uma criança, a mesma
sensação que tive quando olhei para o meu antigo quarto. Dói por
causa de quão feliz eu fui aqui, mas sei que não posso mais ser.
— Não posso abandonar as necessidades de Capton.
— Capton vai ficar bem — ela insiste.
— Vocês tinham Poppy. — Olho para ela com um olhar um pouco
acusador. — Poppy se foi e ela não vai voltar. Agora, quem cuidará
dos idosos de Capton? Dos doentes? Dos feridos? — Minha mãe
abre a boca, mas continuo apressadamente. — E não diga que as
pessoas vão ficar felizes por mim. Elas merecem receber de volta o
que investiram. Todo mundo se sacrificou muito; você e meu pai
também. Se eu for embora, não aproveitarei a educação acadêmica
que todos ajudaram a pagar. — Eu os decepcionaria, eu quero dizer,
mas não consigo.
Ela respira fundo. Posso dizer pelo jeito que ela inala que há
muitos pensamentos que ela está prestes a compartilhar. Eu me
preparo.
— Em primeiro lugar, parece-me que você já colocou essa
educação em prática, salvando Entremundo e interrompendo o ciclo
de futuras rainhas. Esse é um resultado muito bom de seus estudos.
Se alguém merece um descanso, é você.
— Mas não foi…
— Não foi por isso que você foi para a Academia? — Minha mãe
arqueia as sobrancelhas com um jeito não brinque comigo, mocinha.
— Não explicitamente, mas houve aplicação e resultado dignos de
seus estudos, você não acha?
— Mas curar…
— Sim, essa questão de curar. Primeiro, conseguimos nos virar e
continuaremos muito bem com ou sem você. Luella, você é
talentosa e incrivelmente capaz, mas a cidade não precisa de você
para sobreviver. —Suas palavras tristes, mas fortes, me abalam
profundamente. Fico imóvel, tentando me concentrar apenas na
grama balançando ao meu redor e no chão abaixo de mim. Resumi
tudo o que pensei que era e que precisava ser aqui nessa cidade.
Se não sou necessária… então o que devo fazer? — Mas se está
tão preocupada, então devo contar que seu pai e o Conselho
receberam notícias esta manhã de Royton.
— Royton? — repito. A Academia de Royton é conhecida por
produzir alguns dos melhores herbalistas de todo o país. Fica mais
ao sul na costa, aninhada em terras mais quentes e tropicais, onde
todos os tipos de plantas podem ser cultivados durante o ano todo.
— O que tem Royton?
— Estão enviando uma egressa da Academia. Ela estará aqui
dentro de uma semana para ajudar com qualquer coisa que Capton
precise enquanto você se acomoda – pelo tempo que for
necessário. Dizem que ela foi paga integralmente por pelo menos
cem anos e podemos dispor de seus serviços pelo tempo que
quisermos.
— Mas Royton está a dias de distância… — Meus dedos tremem.
Eldas fez isso. Ele mandou avisar Royton. Tratou para que alguém
viesse, para que eu não precisasse me preocupar enquanto me
acomodava. Pagou honorários dignos de um rei para que sirvam a
esta pequena cidade. Não há outra explicação para o fato de uma
egressa de Royton saiba, e para ter vindo justo para cá.
O que Eldas estava pensando quando arranjou essa nova
curandeira?
A cética em mim diria que ele estava tentando provar que eu não
era tão necessária para esta comunidade quanto pensava. Que ele
fez isso para tirar meu propósito de mim e me forçar a ficar em
Entremundo. Mas, se essa fosse sua intenção… ele sem dúvida
teria me dito antes de eu sair.
Ele estava me dando uma escolha – a escolha de ficar em Capton
ou ir embora, não importa se fosse para Entremundo ou não.
Amor é escolha.
É fácil: apenas sonhe, Eldas, e depois siga esses sonhos.
Tenho que ir para saber.
Palavras que eu disse a ele, achando que não o alcançariam,
ecoando de volta para mim. Ele me ouviu. De novo e de novo. Eldas
é imperfeito e limitado. Pode ser cruel e frio, mas está disposto a
tentar me ouvir. De alguma forma, ele ouviu coisas que eu nem
sabia que estava dizendo. Ele ouviu… e não fiz o mesmo.
Nossas interações cruzam minha mente. Sua aparência, seus
toques, mesmo na frente dos outros. A maneira como ele me
abraçava durante a noite. A forma como a nossa magia ressoava
em conjunto. As promessas que ele me fez.
Eldas, o que você sente por mim? Minha pergunta ecoa de volta, e
agora posso ver nas entrelinhas. Ele te ama mais do que tudo, sua
idiota.
— Luella. — A voz gentil de minha mãe me assusta e traz de volta
ao presente. — A única coisa que sempre foi mais importante para
seu pai e para mim foi sua felicidade. Onde você será mais feliz?
— Vai ficar tudo bem? — Não quero dizer apenas com eles, ou
aqui em Capton, sem mim. Eu quero que ela me diga que tudo vai
ficar bem.
— Eu a conheço. Você vai fazer com que tudo fique bem. — Ela
aperta minha mão.
— Se eu voltar… se eles me quiserem de volta… eu me tornarei
mais parte daquele mundo do que deste.
— Mas você ainda pode visitar de vez em quando, certo? — ela
pergunta. — Concordo com a cabeça. — Então, como pode ser
diferente do que qualquer pai ou mãe suporta? Os filhos devem
crescer e viver suas próprias vidas. Se você quer, Luella, vá.
— Mesmo se eu quisesse voltar… não posso. — O pânico cresce
em mim. Eu deveria ter pedido por uma maneira de voltar. Por que
não encontrei uma razão para pedir a Eldas que me desse sua
bênção para voltar?
— Por que não?
— Porque o único que pode atravessar o Desvanecer – ou dar aos
outros a capacidade de fazê-lo – é o próprio Eldas. — Mesmo sendo
a Rainha Humana, não consegui sair do Desvanecer quando tentei
fugir. Eu estava perdida, andando em círculos, sem esperança até
que ele veio me resgatar.
— As duas vezes que passei foram com a bênção de sua magia
ou com ele como guia.
Um guia. Rinni havia dito que eu tinha um guia através do
Desvanecer. Hook. Rinni estava falando de Hook.
— Espere — sussurro para o horizonte. — Posso voltar.
Minha mãe sorri como se ela soubesse o tempo todo.
— Então o que está esperando?
— Mas…
— Vá — ela insiste uma última vez. — Vá e seja feliz.

***

Meu coração bate tão alto em meus ouvidos que quase abafa as
vozes dos meus pais no andar de baixo enquanto faço as malas.
Minha mãe se encarrega de explicar as coisas ao meu pai. Forço os
ouvidos, querendo saber sua reação. Sua voz suave ressoa até
mim, mas não consigo entender o que diz. No momento em que
desço as escadas, com a mochila no ombro, ele tem um sorriso
cansado, mas de aparência genuína.
Eles me desejam boa sorte e me abraçam com tanta força que
meus ossos estalam. Digo que posso estar de volta em dez minutos,
mas também é possível que eu não volte por uma semana, um mês
ou um ano. Não faço ideia das mudanças que meu retorno pode
causar em Entremundo. Não tenho ideia se Eldas vai me deixar
ficar, ou se a coroação me fará parte daquele mundo a ponto de não
conseguir voltar. A magia mudou, e os resultados disso serão uma
aposta.
Pela primeira vez na minha vida, estou agindo sem um plano e
sem um dever para me guiar. Tudo o que estou ouvindo é a batida
frenética do meu coração.
Agora estou no limiar do Desvanecer mais uma vez. Estou
arriscando tudo aqui, mas o que há de novo nisso?
Respiro fundo e entro no Desvanecer; um dedo de gelo percorre
minha espinha. Levando os dedos aos lábios, solto um assobio que
ecoa no silêncio antinatural.
— Hook? — Chamo e chamo novamente. Quando estou prestes a
desistir, os olhos dourados de Hook piscam para mim na escuridão.
— Hook! — Ele se aproxima de mim e eu caio de joelhos. O lobo
lambe meu rosto e não perco tempo. — Preciso voltar. Preciso
chegar até Eldas. Você pode me levar até lá?
Muito parecido com a minha primeira vez no Desvanecer, Hook
inclina a cabeça para a esquerda e para a direita antes de
finalmente se afastar. Ele se arrasta na escuridão e eu reúno minhas
forças para seguir atrás, esperando que ele não me leve de volta a
uma pedra angular. No momento em que vejo a luz suave da lua
entrando na boca de uma caverna, começo a correr.
Hook salta ao meu lado com um latido feliz. Eu dou um sorriso e
ele pula de alegria ao meu redor. Bem-vinda de volta! seus
movimentos parecem dizer.
Derrapo até parar e observo Quinnar. O ar da primavera está
quente agora, mesmo à noite, e é quase pegajoso comparado ao
frio do Desvanecer. Flores dançam com a brisa, farfalhando nas
árvores. Elas complementam as serpentinas e flâmulas que foram
espalhadas pela cidade.
Música paira no ar. As pessoas estão nas ruas, dançando, rindo e
bebendo. Há faíscas de magia no ar e vejo animais e pássaros de
papel ganharem vida e se alegrarem entre os habitantes que
festejam. Sinto o cheiro dos bolos que Rinni e eu provamos. Vejo
acrobatas girando em aros impossivelmente suspensos sobre o
lago.
Vejo uma cidade em festa – como se de alguma forma soubessem
que eu estava prestes a voltar. O mundo que vi pela primeira vez
morto e cinza está agora em plena floração. É mágico e eu poderia
mesmo chamar de lar.
O focinho quente de Hook pressiona minha mão e eu me agacho
para coçar atrás das orelhas dele. — Obrigado por me guiar através
do Desvanecer. Saia e brinque, não quero atenção agora. — Ele
choraminga. — Vou assobiar para você de novo — prometo.
Hook se senta, insistente.
— Ah, tudo bem. Venha então. — Rio, em parte por nervosismo e
em parte por uma alegria que não esperava ter novamente.
Começo a correr escada abaixo, quase tropeçando em mim
mesma. Por sorte, troquei o vestido por calças, então quando caio
de pernas para o ar, não termino com minhas saias perto das
orelhas na frente das pessoas em festa.
— Espere — uma elfa diz — você…
Não a espero terminar. Corro mais rápido. Hook sabe, como
sempre, para onde estou correndo. Ele avança pela multidão,
latindo e uivando e afastando as pessoas, e tento
desesperadamente acompanhá-lo.
Chegamos à entrada do túnel do castelo, bloqueada por uma
fileira de cavaleiros. Derrapo e paro diante deles. Hook volta para
trás de mim, mantendo a multidão afastada.
—Eu… eu preciso… — Ofego e pego algo na minha bolsa. Não
saí da botica despreparada. Tomo um gole do elixir fortificante que
trouxe e fico mais ereta, tomando fôlego. — Preciso ver o rei.
— Você é…
— Mas você é…
— Você não é?…
Todos os guardas parecem falar ao mesmo tempo. Eles são
silenciados por uma voz familiar.
— Deixem-me passar! — Rinni grita, abrindo caminho. Ela para,
piscando para mim até que um sorriso dissimulado aparece em sua
face. — Você está quase atrasada.
— Desculpe por deixá-los esperando. — Sorrio. — Perdi a noção
do tempo do outro lado do Desvanecer. Perdi a coroação?
— Ainda não. — Rinni me guia pelo túnel. Eu ouço o ruído de uma
massa de pessoas do outro lado das portas do castelo. Rinni as
abre com um piscar de olhos.
Entro no castelo e, pela primeira vez, vejo cores. Tapeçarias azuis
brilhantes e verdes vibrantes se estendem do teto ao chão,
penduradas ao longo das largas colunas que sustentam a grande
entrada. Mais guirlandas de flores estão penduradas nas grades do
mezanino.
Vasos de flores se alinham no grande salão atrás da multidão
reunida. Homens e mulheres de todas as cores e formas estão aqui
e todos os seus olhos se movem de onde o Rei Elfo está na escada
– presumivelmente tendo acabado de fazer um discurso – para
pousar em mim.
Mas os olhos dele são os únicos em que me concentro. Sua boca
está ligeiramente aberta. O choque quebrou sua máscara habitual e
ele me encara em um silêncio atordoado.
Sei que há pessoas importantes aqui – lordes e damas. Povo do
seu reino, nosso reino, se ele me deixar compartilhar. Sei que estou
diante deles com os joelhos sujos e com o que eles consideram
roupas de mendigo. Sei que tive uma chance de fazer valer essa
primeira impressão e a estraguei. Arruinei os anos de planejamento,
sacrifício e sofrimento de Eldas até este momento. Nada saiu
conforme o planejado.
Não cheguei nem a pensar no que vou dizer. Então abro minha
boca e digo a primeira coisa que me vem à mente. Deixo minhas
palavras ecoarem no topo do salão.
— Rei Eldas, eu amo você!
trinta e nove

O silêncio é ensurdecedor. Poderia ouvir uma pétala de flor de


cerejeira pousar nesse silêncio. Não sei quais são as reações de
todos. A única pessoa em que me concentro é Eldas. A única
pessoa cuja opinião me importa remotamente aqui é ele.
Seu choque se transforma em algo que ouso dizer que é caloroso.
Depois que o horror inicial da minha explosão – o horror de nada
disso estar de acordo com suas tradições – desaparece, lá estão os
olhos que reconheço. Olhos pelos quais me apaixonei e ansiava por
ver enquanto estava no Mundo Natural.
— E eu a amo — diz, finalmente.
Quatro palavras, e as coisas se encaixam. Tenho muita coisa para
descobrir aqui. Há muitas incógnitas em torno do que serei para
este mundo agora que uma Rainha Humana não é mais necessária
para fazer as estações mudarem, mas vou descobrir tudo, porque o
homem diante de mim é toda possibilidade que quero abraçar.
— Se — Eldas pigarreia — se vocês puderem dar licença à rainha
e a mim por um momento. — Eldas estende a mão e eu atravesso a
sala até ele, tentando dar o meu melhor para andar com elegância e
manter a cabeça erguida.
Posso não parecer com as rainhas que eles conheceram, mas
talvez com o tempo eles abracem o tipo diferente de rainha que já
sou. Subo lentamente as escadas e os dedos de Eldas se
entrelaçam com os meus.
Minha magia chama a dele e faíscas invisíveis voam entre nossas
peles, me deixando sem fôlego.
Ele me leva, subindo as escadas e entrando em uma sala lateral,
fechando a porta rapidamente atrás de nós.
Eldas se volta para mim. Esperava que ele estivesse um pouco
zangado pela maneira como lidei com as coisas, mas há um fogo
em seus olhos que não passa nem perto de irritação. Suas mãos
estão no meu rosto, segurando minha face.
— Diga de novo — ele sussurra, como um suspiro de alívio que
está segurando desde que fui embora.
— Eu amo você — repito, mas desta vez apenas para ele. — Eu o
amo desde a casa de campo. Desde… desde não sei quando. Em
algum lugar ao longo do caminho eu me apaixonei por você. Você e
eu… as circunstâncias em que nos conhecemos foram uma
bagunça, mas eu o amo apesar de tudo.
— Então por que você ficou longe? — ele sussurra. — Por que
você não me contou antes de ir?
— Porque fui covarde — admito em voz alta para ele e para mim.
— Estava com medo de só achar que o amava porque não tinha
outra opção. Achei que o amor foi fabricado para minha própria
sobrevivência, pois achava que não havia outra saída – que ficaria
presa aqui para sempre. Estava com medo de o amor ter vindo da
falta de escolha. Estava com medo de nem saber o que era o amor
porque sei que nunca senti isso antes.
— Mas quando você pôde ir… quando você teve a escolha que
desejava… você voltou. — Eldas passa os olhos por mim e sinto um
frêmito de prazer. Um olhar nunca foi tão íntimo. Fui despida com
apenas um olhar.
— Tive que voltar. Encontrei minha resposta enquanto estava em
Capton: eu o amo por tudo o que é e por tudo que somos juntos.
Não é minha imaginação; não é sobrevivência. Sim, Eldas, tive
liberdade de escolher, e escolhi você. Sei que nada disso aconteceu
de maneira convencional, mas é genuíno. E pensei que, talvez,
pudéssemos tentar.
— Tentar? — Ele arqueia as sobrancelhas escuras e rio baixinho.
— Nós fizemos isso de trás para frente, você sabe. Nós nos
casamos, rolamos na cama, nos apaixonamos. Geralmente é o
contrário.
— Gostei de como fizemos — diz Eldas. Sua voz é como seda
para meus ouvidos. Roça minha pele e meu corpo fica tenso. —
Porque me trouxe você.
— Eu acho que posso concordar — suspiro.
Ele esmaga os lábios contra os meus com um beijo cheio de
desejo reprimido e carícias ansiosas. Pressiona meu corpo contra a
porta, apalpa meu traseiro, puxa meu cabelo. Pela primeira vez na
minha vida, odeio estar usando calças.
Beijo-o com igual fervor. Corro meus dedos por seus cabelos
pretos, soltando-os ousadamente sobre seus ombros e cobrindo
nossos rostos. Acaricio sua face enquanto sua boca se move contra
a minha. Provo sua língua repetidamente e espero que seja apenas
o primeiro gosto de muitos que sinto dele hoje.
E quando ele se afasta, estou com os joelhos fracos e contando
com a porta atrás de mim para me apoiar. Estou pronta para rolar no
chão com ele, nus. Estou pronta para que toda aquela sala ouça
meus gritos de êxtase, desde que isso signifique que ele se mova
dentro de mim mais uma vez.
— E agora? — suspiro, olhando dele para o chão e a porta atrás
de mim.
Eldas me puxa para ele e seu outro braço desliza em volta da
minha cintura.
— Agora — ele rosna nos meus lábios. Seus dedos deslizam em
meu cabelo e eu inclino minha cabeça para trás para lhe dar acesso
total. — Agora, minha rainha, minha esposa, vou levá-la para a
cama.
— Mas as pessoas…
— Deixe-as esperar. Afinal, somos o rei e a rainha. Nossa
coroação ocorrerá quando for a hora.

***

Dois dias escorregam pelos meus dedos facilmente como os


dedos de Eldas pelo meu cabelo quando estamos na cama. Minha
explosão tem sido o assunto da cidade e especulações estão
disparando para a esquerda e para a direita sobre por que a Rainha
Humana veio correndo, o que isso tinha a ver com o anúncio de
Eldas sobre as estações do ano e o motivo de a Rainha Humana
estar vestindo roupas tão simples. Houve até alguma especulação
de que nosso amor foi o que quebrou o ciclo das Rainhas Humanas.
Essa é uma história que certamente reescreverei. O amor é
poderoso, mas o trabalho duro que Eldas e eu fizemos também é. O
trabalho árduo que continuaremos a fazer para sermos bons
governantes para esta terra.
Se dependesse de mim, teríamos ficado em seus aposentos por
toda a eternidade, mas o dever chama, no fim. Mais cedo ou mais
tarde a coroação deve acontecer. Poderíamos protelar por um dia
ou dois, mas mais do que isso passaria de escandaloso para
indecente.
Estamos diante da entrada principal da sala do trono. Aperto a
mão de Eldas na minha até os nós dos meus dedos estarem
brancos.
— Não fique nervosa — ele sussurra.
— Fácil para você dizer — eu respondo e tento alisar as rugas
invisíveis em minha saia. O vestido que a costureira fez para mim é
de tirar o fôlego. Camadas de chifon em forma de folhas quase têm
uma aparência de escamas quando estou parada, mas quando me
mexo, parecem folhas saindo das árvores no final do verão em um
vendaval. Teria sido uma pena ver essa arte ser desperdiçada se eu
não tivesse retornado.
— Tudo o que você precisa fazer é sentar-se.
—Você sabe que foi uma das primeiras coisas que você me disse,
mais ou menos. — Eu sorrio para ele e ele ri, mas a preocupação
rapidamente corrói minha frivolidade. — Devíamos ter
experimentado o trono antes só para ter certeza de que ele não
tentaria me drenar.
— Estávamos ocupados. — Eldas sorri, malicioso. Dou um puxão
em sua mão e roubo a expressão com um beijo. Meu marido não
pode ser tão bonito sem acabar com meus lábios nos dele.
— Depois disso, vamos ficar menos ocupados. Eu quero saber o
que está acontecendo.
— Acontecendo? Onde?
— Em todo lugar — digo. — Estou aqui para governar ao seu lado,
afinal. Sou mais do que apenas um rostinho bonito agora que as
estações estão bem sem mim.
Ele me dá um pequeno sorriso e está prestes a dizer algo quando
Harrow e Sevenna entram. Harrow ainda parece magro e um pouco
mais pálido do que eu gostaria, mas seus olhos estão brilhantes e
afiados. Seus movimentos estão firmes.
Minha mão cai da de Eldas e, ignorando completamente Sevenna,
vou até Harrow e o pego em meus braços.
— Bons deuses, ela está me abraçando — ouço Harrow
murmurar, mas ele relaxa em meus braços. Uma mão até dá um
leve tapinha no meu ombro.
— Eu estava tão preocupada com você. — Solto-o e me afasto.
Eldas trouxe uma atualização sobre a condição de Harrow entre as
sessões sob os lençóis – tínhamos que comer em algum momento –
mas esta é a primeira vez que o vejo.
— Parece que eu preocupei todo mundo. — Ele olha com culpa de
Eldas para Sevenna. Posso dizer que ainda há discussões
acontecendo sobre o incidente de Harrow com Vislumbre e Aria,
mas haverá tempo para isso. E estou aqui agora. Para que eu possa
pelo menos ter certeza de que Eldas não colocará uma punição
exagerada sobre ombros do rapaz.
— Estamos felizes por você estar bem. — Falo com confiança por
todos na sala.
— Harrow, vá falar com seu irmão — Sevenna ordena friamente.
— Eu gostaria de uma palavra com a Rainha Humana.
Ele obedece, olhando de sua mãe para mim antes de nos deixar.
Apesar de Eldas e Harrow conversarem baixinho entre si, eles
olham para nós regularmente. Sevenna ignora seus filhos.
— Harrow me contou o que você fez por ele — ela admite a
contragosto. Suas mãos estão dobradas diante dela – com as juntas
brancas. — E acho que metade do reino sabe sobre sua declaração
para meu filho mais velho.
— Eu sei que não é tradicional…
— Ah, eu acho que você iniciou sua própria tradição — diz ela
secamente. Eu não posso dizer se ela está satisfeita, orgulhosa,
zangada ou chateada, então eu tento manter meu rosto em branco.
Sevenna suspira. — No entanto, Eldas me deu contexto. Ele me
informou de sua escolha.
— Minha escolha?
— Que você teve liberdade e voltou. Você escolheu meu filho e
seu juramento a ele como esposa. — Eu vejo sua garganta se
contrair enquanto ela engole em seco. Sevenna força a próxima
palavra quase violentamente. — Obrigada.
Mal resisto a perguntar a ela o quão difícil foi dizer isso, mas estou
muito chocada que ela tenha dito. Além disso, esta é a mãe do meu
marido e o homem que amo. É hora de começar a suavizar as
arestas em nosso relacionamento pelo bem de todos.
— Não há de quê. — Mesmo que essa mulher me deixe mais
nervosa do que ninguém, posso falar com calma e clareza quando
se trata de meus sentimentos por Eldas.
— Amo seu filho. E quero amar Harrow como um irmão, se ele
deixar. O mesmo com Drestin e Carcina. — Olho por cima do ombro
e vejo Harrow olhando em nossa direção. Ele sem dúvida ouviu seu
nome.
Sevenna bufa suavemente.
— Boa sorte com isso. Meu mais novo é selvagem.
— E eu não sei?
Compartilhamos um sorriso que quase parece camaradagem. Há
mais trabalho a ser feito aqui e mais camadas em Sevenna, mas
terei tempo de investigá-las.
Terei o resto da minha vida em Entremundo.
A mão do meu marido desliza na minha quando as portas se
abrem. Trombetas soam e uma chuva de pétalas cai do teto
magicamente em nossa entrada. O andar de Eldas é tão rígido
quanto sua coroa, seu rosto severo, mas não posso deixar de sorrir
maravilhada enquanto observo a sala.
A mesma massa de pessoas está aqui como antes. Mais cedo,
eles tinham chegado para um anúncio, mas agora eles estão aqui
para uma coroação – a última coroação de uma Rainha Humana. O
salão está cheio de magia silvestre e todas as criaturas que a
exercem. Nele, vejo minha casa – um lugar ao qual pertenço, nada
está faltando. É a casa que eu escolhi.
Eldas me acompanha até meu trono e então se volta para o salão.
— A Rainha Humana voltou. — Sua voz ecoa nas vigas mais altas
do teto. — O ciclo recomeça, mas este ciclo que começamos agora
será eterno. Ele aceita uma coroa de folhas de sequoia douradas de
uma almofada segurada por Willow. Os olhos do jovem brilham com
lágrimas de alegria. — Todos saúdam a Rainha Luella. A última
rainha da primavera.
— Todos saúdam a Rainha Luella! — A sala ecoa enquanto Eldas
coloca a coroa na minha testa.
Juntos, Eldas e eu nos sentamos em nossos tronos e a sala
explode em aplausos. Finalmente relaxo no meu assento. Não há
nada mais do que o sussurro silencioso de magia na minha pele,
zumbindo e vindo do outro lado do Desvanecer – uma magia que
me lembra de onde vim, enquanto olho para onde estou.
Finalmente posso relaxar aqui. Estendo minha mão e Eldas a pega
com um sorriso. Tudo está em equilíbrio, e tudo está certo no
mundo.
Agradecimentos

Amy Braun – sem você desmontar este manuscrito, ele não


estaria nem perto do que é agora. Muito, muito obrigada por
trabalhar comigo, por ser paciente e por criticar tudo. Não consigo
dizer o quanto aprecio o gesto.

Miranda Honfleur – você me ajudou muito a acertar meus


primeiros capítulos e (sejamos sinceras) essa é uma das partes
mais importantes de um manuscrito. Agradeço sua crítica e espero
que possamos trabalhar juntas no futuro.

Alisha Klapheke – mesmo quando tinha tanta coisa acontecendo,


você teve tempo para me ajudar e, por isso, sou eternamente grata.
Obrigada por ajudar este livro a dar o melhor de si.

Melissa Wright – só para você saber, ainda não me arrependo de


você me pressionar para conseguir parceiros críticos. Como pode
ver acima… foi uma das melhores coisas que já fiz. Além disso,
desculpe-me por meu feedback ter demorado tanto. Você pode
culpar este livro.

Danielle Jensen – rainha do romance de fantasia, nunca posso


agradecer o suficiente por quão incrível você é. Você me inspira.
Você me deixa desabafar. Você é incrível e eu tenho muita sorte de
ser sua amiga. Que venham muitos mais anos como amigas e
muitos mais livros!

Lux Karpov-Kinrade – obrigado por ter sido uma das primeiras


líderes de torcida deste livro e por ficar comigo o tempo todo. Você
me ajudou a manter o rumo e manter a cabeça no lugar, mesmo
quando eu estava cheia de dúvidas. Muito obrigada pelo carinho e
amizade.

Kate Anderson – seu entusiasmo é sempre tão motivador.


Obrigada por torcer por mim e por dar uma olhada neste livro
quando ele estava em seus estágios iniciais. Apreciei muito seu
feedback.

Rebecca Heyman – obrigada por me encorajar a cortar


dramaticamente o primeiro ato desta história. Certamente precisava
desse corte.

Melissa Frain – este pode ser o primeiro manuscrito em que


trabalhamos juntas, mas que haja muitos, muitos outros em nosso
futuro.

O Cara – seu amor é minha musa. Um brinde à nossa própria


história de amor e aos próximos anos.

Meus caros da Guarda da Torre – obrigada a todos pela ajuda em


cada passo do caminho. Não posso dizer o quanto significa ter
todos vocês na minha jornada.

As Tartarugas – obrigada, senhoras, por me manterem motivada,


por serem tão solidárias e por terem um canal inteiro dedicado ao
vinho. Eu precisava de tudo isso este ano.

Cada Instagrammer, Facebook Expert, Twitter Maven, Blogger e


outros influenciadores que ajudaram a espalhar a notícia – todos
vocês são os campeões do mundo dos livros. Tenho muita sorte de
ter trabalhado com cada um de vocês para o lançamento e
promoção de O Acordo com o Rei Elfo. Palavras não podem
expressar minha gratidão.
SOBRE A AUTORA

ELISE KOVA é autora best-seller do USA Today. Ela gosta de


contar histórias de mundos fantásticos cheios de magia e
emoções profundas. Ela mora na Flórida e, quando não está
escrevendo, pode ser encontrada jogando videogame,
desenhando, conversando com leitores nas redes sociais ou
sonhando acordada com sua próxima história.

Instagram Cabana Vermelha


Site Cabana Vermelha

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