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A mística no MST: prática e técnica do (e para o) pensamento

Proponente
Fernanda Arêas Peixoto

1. Apresentação
O projeto propõe uma investigação sobre a mística no Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST), entendida como técnica do pensamento, prática e experiência, que envolve
também estados de ânimos e ideais, mostrando-se ainda uma ferramenta mnemônica. A
mística, categoria amplamente utilizada, é central do MST e em todas as suas articulações,
como uma forma de engajar os militantes, informando-os e formando-os, fazendo-os lembrar
das agendas, bandeiras e projetos do movimento. Ela se faz presente nas rotinas e na vida diária
dos assentamentos, nos materiais e documentos produzidos, e em eventos públicos. Trata-se de
acompanhar suas aparições, seus usos, sentidos e efeitos em função de uma pesquisa de caráter
etnográfico e documental. O interesse e originalidade da proposta residem na forma como ela
se aproxima dos movimentos sociais e da política em função de uma perspectiva antropológica
centrada nas noções de criação, técnica, memória e imaginação.

2. Justificativa
Criado em 1980 com o objetivo de promover uma reforma agrária fundamentada em
ideias anticapitalistas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), se articula e age
com o auxílio de táticas de ocupação de terras em situação de irregularidade legal. Como forma
de pressionar as autoridades governamentais a conceder terras aqueles que não as possuem, o
movimento ocupa terras improdutivas, estabelece acampamentos e criando núcleos
comunitários.
A autogestão é uma das características centrais do MST; sua forma de organização
política traduz as linhas centrais de um projeto que se concretiza na vida social partilhada. O
objetivo da reforma agrária é posto em prática em níveis locais nas comunidades, que se
responsabilizam pela regulação do quotidiano: trata-se de famílias que se dispõem a ocupar e
a viver juntas em um mesmo espaço com base em ideais comuns. É possível observar, assim,
uma cultura política própria, cultivada no dia a dia, amparada na tentativa de constituir práticas

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e pensamentos comuns que definem o solo de sua convivência. É nesse contexto que a mística
pode, e deve, ser observada1.
Podendo ser compreendida como categoria nativa, a mística é uma prática que ocorre
pela combinação de ânimos, ideias e ações que, na perspectiva sem terra, são politicamente
orientadas. A mística deve concretizar, por meio de ações comunitárias, ideias e emoções
ligadas ao projeto mais amplo de reforma social e política. Isso significa que a mística tem
lugar quando ações coletivas são capazes de suscitar certos estados de ânimos que, juntos, têm
o efeito de ativar e rememorar as bases ideológicas do MST.
A natureza da mística é, assim, modulável e criativa; quaisquer ânimos, ações práticas
e valores ideológicos podem ser postos em associação para compor a prática. Ela não é pré-
definida, o que importa não é seu conteúdo exato, mas o modo como os elementos que a
compõem se associam. Cantar o hino do MST e sentir esperança enquanto se pensa em reforma
agrária pode configurar a mística, mas cantar em roda e sentir solidariedade por companheiros
sem terra mortos ou feridos em confrontos também faz com que ela tenha lugar. O que é
essencial para a realização da mística é o resgate de elementos compartilhados pela
comunidade, de modo que as ações, ânimos e ideias estão sempre sendo rearranjadas e
renovados de modo situacional. A centralidade da mística para o MST liga-se a sua capacidade
adaptativa, o que faz com que seja possível localizá-la em ramificações do movimento, tais
quais o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), com suas circunstâncias e especificidades; na CPT, por exemplo, a mística se expressa
e se atualiza na forma de rezas católicas (DE ALMEIDA, 2005).
Diante disso, a mística pode ser entendida como método de engajamento político dos
sem terra (PELOSO, 1998) e como forma de criar experiências e solos comuns capazes de
resgatar os princípios móveis ideológicos do movimento. Assim, ela é uma técnica que
interpela tanto o sujeito individual quanto o coletivo, e, como tal, parece ser um caso exemplar
de prática mnemônica, de acordo com as formulações de Mary Carruthers (2011). Embora
tratando de um universo distinto (as retóricas e a meditação monástica na Idade Média), a
autora lança sugestões importantes para que pensemos as “artes da memória”; memória que
deve ser compreendida, segundo ela, como prática e técnica, pensamento e imaginação, e que
é "colorida" pelos sentimentos. Dessa forma, continua, a rememoração se dá à medida que
ideias e afetos são acionados.

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Há uma ampla bibliografia sobre o MST, sua história, objetivos, atuação e dissensões, que deve ser levantada e
tratada pelo bolsista ao longo da pesquisa.

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Tal como observado para as artes mnemônicas examinadas pela autora, a mística tem
um papel cognitivo e cognoscente a desempenhar, quer dizer, opera, como prática e método,
em prol do conhecimento e da pedagogia políticos. As ações e o ânimo que a configuram,
sempre referidos às dimensões internas às comunidades, podem ser entendidos como “lugar
comum” ou solo partilhado para a produção e reafirmação de determinados saberes (idem).
Carruthers nos inspira assim a pensar a mística como ancorada em um inventário de ações e
ânimos que podem assumir múltiplas configurações, nas quais as causas do movimento se
expressam e podem ser reconhecidas.
A pesquisa aqui proposta visa, portanto, investigar a mística do MST como técnica do
(e para o) pensamento, que é socialmente construída e eminentemente engajada, trazendo novas
inspirações e nova bibliografia para o exame dos movimentos sociais e da política; por
exemplo, a mística ganha outra compreensão em suas relações com a memória, sobretudo pelo
modo como interpela a construção de mundos futuros.

3. Objetivos
O objetivo central desta pesquisa é formular um entendimento da mística como técnica
do pensamento e ferramenta mnemônica, uma vez que essa parece engajar relações
interpessoais e reflexivas, ambas culturalmente orientadas, movimentando temporalidades,
passadas, presentes e futuras. O estudo visa realizar uma descrição detalhada dos diversos
sentidos e usos da mística, tendo como eixos suas relações com saberes e memória, técnica e
criação, atenta às relações que ela produz e engaja. A pesquisa irá trabalhar com a perspectiva
e as compreensões "nativas", com a ajuda de pesquisa documental e etnográfica, amparada
também na bibliografia específica sobre o assunto e na literatura antropológica mais ampla.
Muito já foi pesquisado sobre o MST em relação à mística. Compreende-se que ela
forma sujeitos históricos, mostrando-se relevante para promover a consciência de classe dentre
os sem terra (SOUZA, 2012; MARTINS e SANTOS, 2013). É vista também como capaz de
produzir uma identificação dos indivíduos com o movimento que integram (INDURKY, 2014).
Entretanto, os estudos realizados tendem de modo geral a destacar o que a mística produz em
termos de consciência e de movimento políticos, deixando de lado o seu caráter de método,
técnica e processo como dimensões a serem exploradas, o que deve ser feito de uma perspectiva
etnográfica, isto é, a partir do ponto de vista dos sujeitos que a pensam, usam e praticam.
O projeto se relaciona a uma das linhas de pesquisa da prof. Fernanda Arêas Peixoto,
voltada para as relações entre criações e memória e tem como objetivo central iniciar estudantes
de graduação na pesquisa documental e de campo sob a aua supervisão, familiarizando-os

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também com uma bibliografia de timbre teórico, fundamental para a sua formação como
pesquisadores.

4. Método e detalhamento das atividades a serem realizadas pelo bolsista


Trata-se de realizar uma revisão bibliográfica exaustiva sobre o tema e observações de
campo, assim como pesquisa documental em arquivos e materiais produzidos pelo MST ao
longo do tempo. A revisão bibliográfica estará voltada para trabalhos acadêmicos já publicados
sobre a mística, tais quais teses de mestrado, doutorado e artigos universitários. Além do
levantamento, o bolsista deve ser capaz de organizar as leituras, resumi-las e extrair delas os
elementos centrais para a compreensão da mística, de acordo com os objetivos do projeto. Ao
lado disso, devem ser realizadas leituras de teoria antropológica, que serão discutidas com a
supervisora e membros de seu grupo de pesquisa.
O trabalho de campo de cunho etnográfico mostra-se imprescindível para que a
pesquisa cumpra os seus objetivos. Estão previstas incursões etnográficas nos acampamentos
Lélia Gonzalez, Estrela Vermelha, Elza Soares e Luiza Mahin, em São Paulo. Foram escolhidas
comunidades da articulação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), braço
urbano do MST, por conta de sua localização no município de São Paulo, e pelo fato desses
núcleos franquearem o acesso aos visitantes (nota-se que os militantes coordenadores desses
acampamentos se conhecem, o que facilita o trânsito por entre essas comunidades). Nesta etapa,
o aluno deve aprender a produzir anotações de campo e realizar entrevistas não estruturadas ou
semiestruturadas. A organização do material de campo e a transcrição de entrevistas fazem
parte das atividades do bolsista. A pesquisa documental é a outra face do trabalho de pesquisa:
o aluno deve proceder ao levantamento de materiais publicados e produzidos pelo MST -
documentos políticos, manuais de caráter pedagógico, e outros de divulgação; deverá também
utilizar as bibliotecas digitais dos sites do MST e MTST, que reúnem artigos de jornal, teses e
materiais educativos sobre o MST e MTST, a partir de uma “curadoria” feita por seus
militantes. Nessa etapa da pesquisa caberá a ele, mais uma vez, organizar os materiais
coligidos, recuperando o que dizem e mostram sobre a mística.

5. Cronograma
1o mês: Levantamento bibliográfico; leitura e organização de materiais disponíveis sobre a
mística, primeiros contatos de campo
2o mês: Levantamento bibliográfico; leitura e organização de materiais disponíveis sobre a
mística, primeiros contatos de campo; início da pesquisa documental

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3o mês: Levantamento e sistematização de bibliografia de apoio, início do trabalho de campo,
continuação da pesquisa documental
4o mês: Levantamento e sistematização de bibliografia de apoio e das primeiras observações
de campo; organização dos documentos coligidos
5o mês: Elaboração e redação do Relatório Parcial
6o mês: Finalização da redação e entrega do Relatório Parcial
7o mês: Trabalho de campo e pesquisa documental
8o mês: Trabalho de campo e pesquisa documental
9o mês: Análise dos materiais
10o mês: Análises do material e redação
11o mês: Elaboração do relatório final
12o mês: Elaboração e entrega do relatório final

6. Resultados previstos e seus respectivos indicadores de avaliação


Trata-se de um trabalho exequível em um período de doze meses. A pesquisa permitirá
que o bolsista aprenda a realizar revisão bibliográfica, trabalho etnográfico e pesquisa
documental, além de organizar e relacionar materiais diversos, apresentando-os na forma de
uma escrita acadêmica.
Os contatos continuados entre a supervisora e do bolsista permitirão acompanhar a
realização adequada das atividades projetadas. Os relatórios previstos na programação,
permitirão a avaliação detida do trabalho. Durante o ano de trabalho, além de reuniões com a
supervisora, o bolsista deve participar das reuniões mensais do Coletivo ASA. Artes, saberes,
antropologia, coordenado pela profa. Fernanda A. Peixoto. Resultados do trabalho realizado
devem ser aí apresentados e discutidos; devem também ser veiculados na página do grupo e
em publicação, digital e/ou impressa.

Fontes
PELOSO, Ranulfo; BOGO, Ademar; BOFF, Leonardo. MST. Caderno de formação n. 27:
Mística – uma necessidade no trabalho popular e organizativo. Março de 1998.
https://mst.org.br/download/caderno-de-formacao-no-27-mistica-uma-necessidade-no-
trabalho-popular-e-organizativo/
FERNANDES, Vivian. Vigília contra despejos no Paraná completa uma semana: "Renovou a
mística", diz líder. Brasil de Fato, Maringá, Paraná, 4 jan. 2020. Disponível em:

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https://www.brasildefato.com.br/2020/01/04/vigilia-contra-despejos-no-parana-completa-
uma-semana-renovou-a-mistica-diz-lider. Acesso em: 18 maio 2022.
LACERDA, Nara. Acampamento Marielle Vive celebra quatro anos de resistência em ato
contra a violência no campo. Brasil de Fato, São Paulo, 16 abr. 2022. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2022/04/16/acampamento-marielle-vive-celebra-quatro-
anos-de-resistencia-em-ato-contra-a-violencia-no-campo. Acesso em: 19 maio 2022.

Referências Bibliográficas
CARRUTHERS, Mary. A Técnica do Pensamento: Meditação, retórica e a construção de
imagens. Campinas: Editora Unicamp, 2011. cap. 1, p. 31-98.
DE ALMEIDA, Antônio Alves. A mística na luta pela terra. Revista Nera, [s. l.], ano 8, ed. 7,
p.22-34, 2005. Disponível em:https://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1449.
Acesso em: 17 maio 2022.
MARTINS, Suely Aparecida; SANTOS, Franciele Soares dos. "A formação política de
militantes do MST: relatos de pesquisa". Germinal: Marxismo e Educação em Debate, [S. l.],
v. 4, n. 1, p. 82-91, 24 maio 2013.
SOUZA, Rafael Bellan Rodrigues de. A mística do MST: mediação da práxis formadora de
sujeitos históricos. 2012. 147 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara), 2012. Disponível
em: <http://hdl.handle.net/11449/106259>. Acesso em: 26 abr. 22.
INDURKY, F. "O ritual da mística no processo de identificação e resistência", RUA [online].
2014, Edição Especial - ISSN 1413-2109. Consultada no Portal Labeurb - Revista do
Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade. Disponível
em: <http://www.labeurb.unicamp.br/rua/> . Acesso em: 26 abr. 22.

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