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Direito e ciências sociais – Norberto Bobbio

1. A Ciência Jurídica sente a necessidade de estabelecer novas e mais estreitas relações com as
ciências sociais.
1.1. Representação de que a sociedade atravessa um período de profunda transformação.
1.1.1. Exemplos históricos: movimento do direito livre e a descoberta da sociologia jurídica
na Alemanha.

2. A necessidade de mudança vem acompanhada da noção de que o direito não ocupa a posição
privilegiada que tradicionalmente lhe fora atribuída.
2.1. Comte e a condenação do “fetichismo da lei”: no Estado positivo desaparece
irrevogavelmente a ideia do direito.
2.2. Marx e a ideia de que “… o vosso direito é apenas a vontade da vossa classe elevada a lei”:
o direito enquanto um momento superestrutural.

3. Enquanto os iluministas colocavam o direito no centro do estudo das diversas civilizações,


andavam à procura da natureza e das linhas de desenvolvimento de um povo no “espírito das
leis” e acreditavam que para mudar a sociedade bastava mudar o direito, no séc. IX, à medida
que se tomava consciência da grande mudança histórica produzida pelo advento da sociedade
industrial na “sociedade civil”, antes mesmo que na sociedade política, o direito passou a ser
considerado cada vez mais um epifenômeno, um momento secundário do desenvolvimento
histórico, e visto com desconfiança cada vez maior como instrumento de mudança social.

4. Atualmente, questiona-se também se o direito realiza sua função primária, qual seja, o controle
social. Duas tendências apontam para o sentido de uma minoração desta função:
4.1. O que caracteriza o direito como instrumento de controle social é, por um lado, o uso de
meios coercitivos (a chamada “coação” como elemento distintivo do ordenamento jurídico
em relação a outros ordenamentos normativos) e, por outro lado, o uso dos meios coercitivos
em função repressiva (entende-se por “repressão” o oposto de “prevenção”).
4.1.1. Com a ampliação dos meios de comunicação em massa, ampliou-se o controle social
de tipo não coativo, mas persuasivo, cuja eficácia - em última instancia - é confiada não
à força física, como ocorre em qualquer ordenamento jurídico, mas ao condicionamento
psicológico.
4.1.1.1. O direito, neste caso, deixaria de ser necessário, formando-se, pois, uma
sociedade não só livre, como preconizada por Marx, mas também conformista,
assim como previu Orwell.
4.1.2. O direito só é necessário onde os homens são nem todos livres nem todos
conformistas, isto é, em uma sociedade em que os homens precisam de normas (e,
portanto, não são livres) e nem sempre conseguem observá-las (e, portanto, não são
conformistas).
4.2. Além da formação e do predomínio de um controle social de outro tipo, está em vias de
formação, em uma sociedade tecnologicamente avançada, um outro fenômeno de vastas
proporções (mesmo que ainda não predominante), destinado a reduzir o espaço do controle
jurídico, ao menos na forma pela qual ele foi, em geral, exercido até agora.
4.2.1. Trata-se do fenômeno do controle antecipado, traduzido no deslocamento da reação
social do momento subsequente para o momento precedente ao comportamento ou
evento não desejado; na passagem da repressão à prevenção.
4.2.1.1. Nesta égide, observa-se uma tendência de utilizar os conhecimentos cada vez
mais adequados que as ciências sociais estão à altura de fornecer - sobre
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motivações do comportamento desviante e sobre as condições que o tornam
possível - com o objetivo não de recorrer às reparações quando ele já houver sido
praticado, mas de impedir que ocorra.
4.2.1.1.1. Uma sociedade na qual, no limite, qualquer forma de desvio é derrotada
antes que possa ser realizada é uma sociedade sem direito, ou, pelo menos,
sem aquele aparato judicante e repressivo em que fizemos consistir, por longa
tradição a essência mesma do direito.

5. É evidente que o problema do lugar e da função do direito na sociedade não pode ser enfrentado
senão pelo jurista, que deverá sair do próprio casulo.
5.1. Não existe uma única ciência jurídica, mas tantas “ciências jurídicas” quantas são as
imagens que o jurista tem de si mesmo e da própria função na sociedade.
5.1.1. Duas são as imagens típico-ideais da função dos juristas: o jurista como conservador e
transmissor de um corpo geral de regras já dadas, de que é o depositário e o guardião, e
o jurista como criador, ele mesmo, de regras que transformam - a ele integrando-se e
inovando-o - o sistema dado, do qual não é mais apenas receptor mas também
colaborador ativo e, quando necessário, crítico.
5.1.1.1. O primeiro executa sua função através da interpretação do direito enquanto o
segundo tem sua atividade principal exercida através da pesquisa do direito.
5.1.2. As duas imagens da função do jurista na sociedade podem depender:
5.1.2.1. Do diferente tipo de sistema jurídico dentro do qual o jurista trabalha (variável
institucional).
5.1.2.1.1. Variações ocorridas em face da distinção entre sistemas fechados e
abertos.
5.1.2.1.1.1. Sistema fechado é aquele em que o direito foi consubstanciado
em um corpo sistemático de regras que almejam a completude ao menos
potencial, sendo suas fontes formais rigidamente predeterminadas
5.1.2.1.1.2. Sistema aberto é aquele em que a maioria das regras estão, ou são
consideradas, em estado fluido e em contínua transformação. Há uma
espécie de nebulosidade entre as fontes materiais e formais do direito, de
modo que ao jurista cabe a tarefa de colaborar no trabalho de criação do
novo direito, junto ao legislador e ao juiz.
5.1.2.2. Da diferente situação social em que o jurista desenvolve o próprio trabalho
(variável social).
5.1.2.2.1. Sociedades estáveis em contraposição a sociedades em transformação
5.1.2.3. Da diferente concepção do direito e da relação direito-sociedade que forma a
ideologia do jurista em um dado momento histórico (variável cultural).
5.1.2.3.1. Direito como sistema autônomo ou autossuficiente em relação ao
sistema social, de modo que o trabalho do jurista desenvolve-se inteiramente
dentro dele, em oposição ao direito como subsistema de um sistema global ou,
então, como superestrutura social, cabendo ao jurista a tarefa de adaptar o
direito vigente à realidade social adjacente ou subjacente.
5.1.3. Tais variáveis podem ser consideradas independentes ou dependentes entre si, a
depender do ponto de vista, e a elas correspondem três modelos antitéticos de ciência do
direito:
5.1.3.1. (i) Vinculada x livre; (ii) Conservadora x inovadora; (iii) Formalista x realista.
5.1.4. No caso hipotético de um direito em um sistema fechado, em uma sociedade estável,
com uma ideologia da autonomia do direito em face da sociedade, a jurisprudência
deveria ser vinculada, conservadora e formalista.
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5.1.4.1. De acordo com essa concepção, o objeto da ciência jurídica seria o conjunto
de regras postas e transmitidas que - em determinado momento - são
aplicáveis a um juiz.
5.1.4.1.1. A tarefa do jurista, neste caso, não é de inovar, mas sim de interpretar
(reconhecer) as regras já existentes. Pertencem à atividade de reconhecimento
do sistema dado as quatro seguintes atividades:
5.1.4.1.1.1. A determinação do significado das regras (interpretação
em sentido estrito).
5.1.4.1.1.2. Conciliação das regras aparentemente incompatíveis.
5.1.4.1.1.3. Integração das lacunas (entendidas aqui como as lacunas técnicas,
e não as ideológicas)
5.1.4.1.1.4. Elaboração sistemática do conteúdo das regras, assim
interpretadas, conciliadas e integradas.
5.1.4.1.2. Faz-se - neste modo de pensar - compreensível a extrema valoração das
fontes do direito e dos critérios com base nos quais é possível distinguir as
regras pertencentes ao sistema (válidas) e a ele aplicáveis.
5.1.5. No extremo oposto, no caso de um direito em um sistema aberto, em uma sociedade
em transformação, com uma ideologia do direito como reflexo da sociedade,
desenvolve-se o modelo de uma ciência do direito livre, inovadora e realista.
5.1.5.1. Segundo esta concepção, o direito não é um sistema de regras já dadas e
transmitidas, mas um conjunto de regras em movimento, a serem postas e
repropostas continuamente, sendo o objeto da ciência jurídica não tanto as
regras, mas sim os próprios fatos sociais dos quais as regras jurídicas são
valorações.
5.1.5.1.1. Nessa perspectiva, a principal atividade do jurista não é mais a
interpretação de um direito já construído, mas a pesquisa de um direito a ser
construído, não tanto a convalidação, com base em uma análise das fontes
formais do direito que é, mas a legitimação com base em princípios
materiais de justiça, do direito que deve ser.
5.1.5.1.1.1. As sucessivas operações dessa pesquisa são:
5.1.5.1.1.1.1. A análise da situação para a qual se quer encontrar a regra ou as
regras apropriadas, mediante as técnicas de pesquisa elaboradas e
praticadas pelas ciências sociais.
5.1.5.1.1.1.2. A análise e o confronto dos diversos critérios de valorada com
base nos quais a situação pode ser regulada (entre tais critérios de
valoração estão também as regras postas ou transmitidas).
5.1.5.1.1.1.3. A escolha da valoração e a formulação da regra.

6. Das duas imagens da função do jurista anteriormente delineadas, a predominante - ao menos no


universo dos países de estrutura econômico capitalista e de primazia do regime liberal-
democrático, é a segunda. Faz-se a seguinte observação em relação aos três pares de variáreis
indicados:
6.1. Sistema fechado ou aberto?
6.1.1. Amplia-se o questionamento sobre as fontes tradicionais das normas jurídicas e é
atribuído maior valor às fontes extra legislativas.
6.1.1.1. O surgimento de novas fontes do direito acaba por minar o monopólio da
produção jurídica detida pela lei e, desta forma, contrapõe-se ao ideal positivista.

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6.1.1.1.1. As áreas em que o fenômeno da produção jurídica extra legislativa se
manifesta com maior evidência são precisamente aquelas que caracterizam a
sociedade industrial (direito de empresa, direito do trabalho e sindical).
6.1.2. Chama-se a atenção para a função não apenas de reconstrução, mas também
normativa do trabalho dos juristas.
6.1.2.1. Tem-se no contrato coletivo, inserido numa sociedade industrial de tipo
conflituoso, uma fonte de regras de importância muito mais vital do que a maioria
das leis emanadas pelos órgãos legislativos, assim como os costumes - toda forma
de produção espontânea de regras que o uso e o consenso dos utentes tornam
eficazes.
6.1.3. O jurista torna-se cada vez mais sensível ao fenômeno da práxis - a todos aqueles
comportamentos efetivos e reiterados à margem de, ou em acréscimo a, ou em contrates
com as normas formais, que constituem o tecido vinculante de uma instituição e
permitem àqueles que dela participam ou desfrutam prever o seu crescimento e agir
prudentemente.
6.2. Sociedade estável ou sociedade em transformação?
6.2.1. Entre as tendências das transformações do direito, tidas como os reflexos das
mudanças sociais sobre as mudanças jurídicas, ressalta-se aquela para a qual chamou
repetidamente a atenção o economista F. A. Hayek, que, para caracterizar a passagem do
Estado liberal clássico para o Estado assistencial, recorreu à distinção entre normas de
conduta e normas de organização, afirmando que essa passagem consistiu, do ponto de
vista estrutural, em um progressivo aumento das normas de organização em relação às
de conduta.
6.2.1.1. O fenômeno do aumento das normas de organização refere-se à formação das
grandes organizações tanto no âmbito do Estado quanto no da sociedade civil, isto
é, às grandes concentrações de poder na sociedade moderna, das quais o Estado, no
sentido específico e restrito da palavra, nada mais é que uma manifestação.
6.2.1.1.1. A diferença entre normas de conduta e de organização indica uma
diferença entre duas funções distintas do direito: tornar possível a convivência
de indivíduos (ou grupos) que perseguem, cada qual, fins individuais e tornar
possível a cooperação de indivíduos (ou grupos) que perseguem um fim
comum.
6.2.2. Há, ainda, a passagem de um controle social fundado predominantemente sobre
normas providas de sanção para o controle social confiado a normas técnicas, cuja força
deriva da relação meio-fim (do fato de que praticar ou não praticar certas ações não
permite atingir o fim desejado ou imposto (normas instrumentais, quando prevê um
determinado meio como necessário para atingir um fim, ou normas finais, quando indica
o fim a ser atingido pelo meio mais adequado).
6.2.3. A passagem da função tradicionalmente repressiva do direito para uma função
promocional ressalta o aspecto transformador da sociedade.
6.2.3.1. Para que os objetivos do Estado assistencial sejam realizados é necessário um
trabalho contínuo de estímulo a comportamentos considerados economicamente
vantajosos.
6.2.3.1.1. A diferença entre repressão e promoção passa pelo uso de duas técnicas
sancionarias diferentes, ou seja, a técnica da sanção negativa (se fizer x, algo
de ruim lhe acontecerá), no primeiro caso, e a técnica da sanção positiva (se
fizeres y, algo de bom lhe acontecerá), no segundo caso.
6.3. Direito como sistema autônomo ou direito como subsistema do sistema global da sociedade?

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6.4. As chamadas teorias realistas opõem-se à ideia das teorias positivistas de um direito a que o
jurista unicamente deve prestar contas; o fazem ao se voltarem mais à efetividade que à
validade formal das normas jurídicas e acentuam mais as inter-relações entre o sistema
jurídico e o sistema econômico ou político e até mesmo o social como um todo, em oposição
à autossuficiência do sistema jurídico

7. A ciência jurídica não é uma ilha, mas, sim, uma região entre as outras de um vasto continente.
7.1. Daí surge a questão de que o jurista deva estabelecer novos e mais profundos contatos com
psicólogos, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e profissionais de outras áreas.
7.2. Cada um dos ramos tradicionais do direito vem descobrindo, ao seu lado, alguma disciplina
do comportamento humano que o acompanha como a própria sombra;
7.2.1. Considerando a atual tendência sociologizante da ciência jurídica, faz-se necessário
reiterar a diferencia entre o trabalho do jurista e o do cientista social.
7.2.1.1. O problema que o sociólogo e o jurista têm em comum é a relação entre regra e
comportamento.
7.2.1.1.1. O sociólogo usa as regras de comportamento que encontra em seu
caminho para explicar por que certos indivíduos se comportam de um certo
modo, isto é, utiliza as regras como uma das variáveis do procedimento
explicativo e eventualmente preditivo a que visa.
7.2.1.1.2. O jurista usa as mesmas regras para qualificar os comportamentos como
lícitos e ilícitos, ou seja, para estabelecer por que se deve comportar de um
modo em vez de outro.
7.2.1.2. No que concerne à relação entre regra e comportamento, sociólogo e jurista
percorrem um caminho inverso: o sociólogo parte geralmente do comportamento
para chegar à regra que eventualmente possa explicá-lo; o jurista parte da regra
para chegar ao comportamento que seja a realização daquela regra; para o
sociólogo basta que a regra seja eficaz, para o jurista também se faz necessário que
a mesma seja válida.
7.2.1.3. Também se fazem diferentes os fins pretendidos pelo sociólogo e pelo jurista;
para aquele o fim é descrever como vão as coisas ao passo que para este o fim é
descrever como as coisas devem andar.
7.2.1.4. Ciência jurídica e ciências sociais comportam-se como perspectivas distintas.
Apesar da identidade de matéria, explica-se o fenômeno anteriormente
mencionado, da duplicação - pelo qual cada disciplina jurídica tem uma especial
contra-figura em uma disciplina sociológica, e vice-versa -, desejando continuar a
metáfora geográfica, pelo esclarecimento de que, ao invés de regiões distintas do
mesmo continente, estamos diante de mapas distintos, da mesma região, que se
integram.

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