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Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo

Campus Jacareí
Licenciatura em Pedagogia

ROGER FERREIRA LEITE SILVA

VOZES DA EDUCAÇÃO:
A INFLUÊNCIA DOS DISCURSOS SOBRE O QUE É EDUCAÇÃO NA
FORMAÇÃO DO PROFESSOR

Jacareí
2022
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo
Campus Jacareí
Licenciatura em Pedagogia

ROGER FERREIRA LEITE SILVA

VOZES DA EDUCAÇÃO:
A INFLUÊNCIA DOS DISCURSOS SOBRE O QUE É EDUCAÇÃO NA
FORMAÇÃO DO PROFESSOR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo, Campus Jacareí, como
requisito para obtenção do grau de Licenciado em
Pedagogia.

Orientação:
Prof. Me. Héctor Luis Baz Reyes

Jacareí
2022
AGRADECIMENTOS

Nossas trajetórias são marcadas por diversas pessoas, que acabam por se
tornar parte do que somos. Comigo não poderia ser diferente, por isso gostaria de
aproveitar para agradecer a cada pedaço que compõe esse pedagogo em devir que
sou.
A minha mãe, sempre pronta a me apoiar e aconselhar.
Aos meus amigos, cuja presença e empatia me impediram de desistir nos
momentos que o caminho se tornou mais tortuoso.
Ao pequeno Arthur Gabriel e sua mãe Bruna, que foram essenciais para que
eu me entendesse e crescesse como pessoa.
Ao meu professor de filosofia do ensino médio que fez com que eu desse
mais uma chance aos estudos.
Ao meu orientador, professor Héctor Luis Baz Reyes, por ter aceitado trilhar
esse caminho em conjunto e ter me dado a confiança necessária para a realização
deste memorial.
RESUMO

O presente trabalho versa sobre a influência dos discursos sobre a educação


presentes durante minha escolarização e graduação em Pedagogia na minha
concepção do que é educação, e em como eu penso a minha futura prática como
professor. Para tanto, tem como objetivo resgatar discursos que trazem em si
concepções sobre o que é educação a partir de enunciados testemunhados por mim
dentro das instituições de educação formal onde estudei, buscando seus impactos
na instituição escolar e nas práticas dos docentes. As metodologias utilizadas são: o
resgate de memórias a serem revistadas à luz das discussões e estudos realizados
durante o período da graduação e análise de discurso a partir de enunciados numa
perspectiva foucaultiana. O referencial teórico utilizado consiste em Foucault (1996,
2008 e 2014) para fundamentar a análise de discurso e enunciados, e Saviani (2013,
2014 e 2018) para dialogar com alguns desses discursos e seus desdobramentos. O
trabalho está estruturado em três capítulos, o primeiro discorre sobre minha
trajetória na pré-escola, o segundo sobre os ensinos fundamental e médio, o terceiro
sobre a graduação, o quarto sobre o estágio remunerado e a conclusão onde realizo
uma reflexão sobre esses discursos e uma proposição sobre o que dessa reflexão
vou levar para minha prática a fim de evitar a armadilha desses discursos.

Palavras-chave: Memorial de formação; discursos; formação de professores;


educação.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................6
1. A SEMENTE PLANTADA.............................................................................8
2. CULTIVO.....................................................................................................11
3. FLORESCER...............................................................................................13
4. DA FLOR, O FRUTO...................................................................................15
CONCLUSÃO...................................................................................................18
REFERÊNCIAS................................................................................................21
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INTRODUÇÃO

Quando iniciei o curso de Licenciatura em Pedagogia eu pensava ter uma boa


noção do que é educação e sobre as implicações do ato de educar, afinal eu passei
a maior parte da minha vida frequentando escolas e sendo educado nelas. Na
primeira semana de licenciatura vi essas certezas se desmancharem como castelos
de areia.
Após o período de acolhimentos e apresentações da primeira semana de
aula, na primeira aula da disciplina de Filosofia da educação I, nos foi perguntado o
que é educação. Éramos poucos alunos, várias das vagas seriam preenchidas nas
próximas chamadas, e isso permitiu que todos pudessem responder. Em todas as
respostas foi possível ver um pouco das experiências de cada estudante sobre um
fundo de senso comum. Minha resposta não foi muito diferente da dos meus
colegas, eu lembro de ter respondido que a educação é a preparação dos indivíduos
para a vida em sociedade. Nossas respostas foram ouvidas e discutidas pelo
professor, que nos ofereceu uma definição para educação na forma de uma frase,
que ouviríamos novamente diversas vezes durante o curso e em todas as aulas
magnas públicas para as turmas iniciantes. A frase em questão, como
aprenderíamos posteriormente, é uma paráfrase de uma citação tirada de um dos
livros do professor Dermeval Saviani (2013, p. 13), onde ele conceitua o trabalho
educativo (que nosso professor adaptou para educação no contexto da aula) como
“o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.
Uma definição que pode não ter sido compreendida em sua totalidade por nós
naquele momento, mas que se relaciona intimamente com o que aprenderíamos
durante o curso.
Podemos entender essa definição como parte de um discurso sobre a
educação, um enunciado. Um discurso que influencia o quê, onde e como
aprendemos no nosso curso, e que nessa primeira semana percebemos ser
diferente dos discursos que tivemos contato antes, pois sendo pedagogia a ciência
da educação, podemos assumir o grande impacto que esses discursos têm em
como nos entendemos como pedagogos.
7

Esse discurso não é único. Nossas respostas à pergunta “o que é educação?”


feita em aula traz em si fragmentos de outros discursos que moldaram nosso
entendimento do que é educação. Com a oportunidade de retornar para a escola por
meio do estágio não-obrigatório pude perceber que muitos desses discursos
permanecem influentes e podem ser ouvidos nas falas de diversos professores da
educação básica. Alguns dos enunciados que compõem esses discursos são
extremamente similares e até mesmo idênticos aos que ouvi durante meu período de
escolarização, como se estivessem enraizados na própria instituição escolar. Essa
relação entre enunciados e as instituições pode ser compreendida no seguinte
fragmento:

Uma instituição comporta ela mesma enunciados, por exemplo, uma


constituição, uma carta, contrato, inscrições e registros. Inversamente, os
enunciados remetem a um meio institucional sem o qual os objetos surgidos
nesses lugares do enunciado não poderiam ser formados, nem o sujeito que
fala de tal lugar (por exemplo, a posição do escritor numa sociedade, a
posição do médico no hospital ou em seu consultório, em determinada
época e o surgimento de novos objetos). (DELEUZE, 1988, p. 21)

Meu objetivo com esse memorial de formação é então resgatar enunciados


com os quais tive contato durante minha trajetória pessoal, que compõem discursos
sobre o que é educação nas escolas de educação básica que frequentei e no curso
de Licenciatura em Pedagogia do nosso campus. Mas o que eu quero dizer quando
falo de discurso e enunciado?
Entendendo o discurso como um grupo de enunciados que se relacionam
entre si por determinadas razões e formam uma espécie de regularidade, um campo,
sendo estes enunciados acontecimentos, o dito, emissões de singularidades
produzidas em determinados momentos. Para melhor entendermos o que buscamos
quando olhamos para os enunciados e suas relações com o discurso gostaria de
destacar os seguintes trechos:

Eis a questão que a análise da língua coloca a propósito de qualquer fato de


discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e,
consequentemente, segundo que regras outros enunciados semelhantes
poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do discurso
coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado
enunciado, e não outro em seu lugar? (FOUCAULT, 2008, p. 30).

Portanto:
8

A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente;


trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua
situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites
da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros
enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação exclui. (FOUCAULT, 2008, p. 31).

Com o resgate desses discursos tratarei dos impactos que eles tiveram na
minha percepção do que é educação e na minha relação para com a escola, e como
espero levar isso para a minha atuação como docente. Para tanto, este memorial
será organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo tratarei do meu ingresso
no ensino formal e experiências na pré-escola, focando em um evento específico
que me marcou bastante, que foi minha retenção. O segundo capítulo terá como
foco a minha passagem pelo ensino fundamental e médio, que se deram
inteiramente no âmbito da educação pública. No terceiro capítulo tratarei do meu
ingresso na graduação e no meu contato com novos discursos, muito diferentes do
que eu conhecia até então, nas falas dos professores e autores estudados nas
disciplinas. Finalmente, no quarto capítulo, trarei algumas questões que concernem
ao meu retorno para dentro da escola por meio do estágio não obrigatório, fazendo
paralelos com minha própria escolarização e salientando a mudança de paradigma
que os estudos da graduação trouxeram para minha visão sobre educação.

1. A SEMENTE PLANTADA

Minha relação com a escola começou bastante cedo, minha mãe trabalhou
por muitos anos em um hospital de Jacareí, e próximo a ele havia uma escola para
os filhos dos funcionários, um Jardim de Infância, como era denominado.
Curiosamente, aquela que talvez seja minha memória mais antiga é de esperar
minha mãe voltar do trabalho para me contar mais sobre a escola, onde meus avós
haviam me contado que eu estudaria. Lembro de ficar muito empolgado com a ideia
de ir para um lugar onde haveriam outras crianças com quem eu poderia brincar.
Naquela época o ingresso dos alunos nas escolas só era obrigatório a partir
da 1º série do ensino fundamental (equivalente ao 2º ano do fundamental na
organização atual), para as crianças que completariam 7 anos, e por isso havia
pouca oferta de vagas nas escolas públicas para crianças mais novas, então posso
dizer que comecei minha escolarização mais cedo do que a maioria das pessoas
9

com a minha idade. Essa escola era privada, e pelo convênio que ela mantinha com
o hospital era possível matricular os filhos e pagar com uma porcentagem do salário,
isso permitiu que minha mãe me matriculasse mesmo não ganhando muito.
A escola ficava em um terreno extenso, todo gramado e arborizado, com um
caminho cimentado que levava ao centro da propriedade, onde ficavam as
construções. Apesar do tamanho do terreno a parte construída era bem pequena,
com um pátio, a sala da gestão, o refeitório, os banheiros, uma horta e três salas de
aula. A quantidade de alunos por sala também era pequena, muito menor que em
todas as escolas públicas que frequentei posteriormente.
E assim eu comecei a ir para a escola, cheio de expectativas que acabaram
não sendo correspondidas. Sempre fui curioso e gostei muito de aprender, mas a
verdade é que fora da sala de aula era muito mais interessante. Eu passava a maior
parte do meu tempo no pátio, explorando o campo, subindo nas árvores,
principalmente em uma goiabeira que tinha por ali, na qual podíamos pegar goiabas
a vontade. Além disso, eu descobri que brincar com as outras crianças não era tão
legal assim, eu me divertia bastante sozinho e tinha mais liberdade para fazer o que
quisesse.
Ao final do meu primeiro ano nesse lugar, eu tinha de 4 para 5 anos na época,
fui retido e tive que refazer aquela etapa, que naquela escola era denominada
Jardim I. Eu nunca, em toda minha vida, conheci qualquer outra pessoa que tenha
sido retida na pré-escola, e sempre senti muita vergonha disso. Naquela época era
política comum nas escolas reter os alunos, não havia a progressão continuada, e
em todas as turmas que eu estudei desde meu ingresso no fundamental sempre
tiveram pelo menos um aluno que havia sido retido, que eram vulgarmente
chamados de “repetentes”. Mas como eu fui retido em uma escola em que sequer
éramos avaliados quantitativamente?
Anos depois, conversando com minha mãe, perguntei qual foi a razão de
terem me retido naquele ano. A resposta foi que a professora achou melhor me reter
por conta da minha dificuldade de socialização. Me reter naquele ano não ajudou de
maneira nenhuma a sanar essa dificuldade, eu continuo com ela até hoje e se
aprendi a conviver e contorná-la não foi por causa da escola.
Permita-me neste momento fazer um desvio do percurso das minhas
memórias e retomar aquela pergunta que nos foi feita no começo da graduação: “o
que é educação?” Se a minha resposta naquele momento foi que educar é preparar
10

para a vida em sociedade, essa experiência foi um dos momentos que contribuíram
para que eu internalizasse esse discurso. Não bastava que eu aprendesse o que era
ensinado na escola, eu precisava participar, me integrar naquele grupo. Uma
concepção de educação que traz em si um discurso de uma educação que tem
como objetivo a integração dos indivíduos na sociedade, de preparação para a vida
nela. Essa concepção pode ser observada no seguinte fragmento:

[…] a sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo à


integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno
acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus
membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só
pode como deve ser corrigida. A educação emerge aí como um instrumento
de correção dessas distorções. Constitui, pois, uma força homogeneizadora
que tem por função reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir
a integração de todos os indivíduos no corpo social. (SAVIANI, 2018, p. 4)

Nesse fragmento, o professor Dermeval Saviani fala das teorias educacionais


que entendem a educação como um instrumento de equalização social, que tem
como alvo aqueles que estão à margem da sociedade, os marginalizados. Para ele,
na teoria escolanovista, o marginalizado seria o rejeitado. E sendo a educação esse
instrumento, ela passa então a agir sobre os marginalizados, como denotado no
trecho a seguir:

A educação, como fator de equalização social, será um instrumento de


correção da marginalidade na medida em que cumprir a função de ajustar,
de adaptar os indivíduos à sociedade, incutindo neles o sentimento de
aceitação dos demais e pelos demais. (ibidem, p. 7)

Olhando em retrospecto, eu consigo ver uma grande influência do


escolanovismo nessa escola, começando pela autodenominação como Jardim de
Infância, que é um termo criado pelo pedagogo alemão Friedrich Fröbel que foi uma
grande influência para os pensadores da escola nova, passando pela organização
das salas e métodos de ensino. Essa escola, se não era escolanovista de fato, foi
fortemente influenciada pelos seus discursos.

Voltando às minhas memórias, depois de ser retido eu ainda completei mais


um ano letivo nessa escola, e no ano seguinte me mudaram de período, do
vespertino para o matutino. Eu não lembro das razões que levaram a essa mudança,
mas eu não consegui me adaptar a esse novo horário. Ao perceber essa minha
11

dificuldade de adaptação, minha mãe resolveu me trocar de escola, e conseguiu


uma vaga numa pré-escola pública da cidade no período da tarde.
Essa nova escola trazia em si uma realidade completamente diferente. Era
um espaço pequeno, tinha um pátio que tinha um quarto do tamanho do da outra
escola, a sala de aula, um banheiro e uma pia de cozinha. A única funcionária em
toda a escola era a professora, que também era a diretora, merendeira e
responsável pela limpeza. Apesar da pouca estrutura, eu me adaptei muito melhor a
essa escola e em um determinado momento passei até a ajudar a professora,
auxiliando os outros alunos na realização das atividades.
Devido ao espaço reduzido e a grande quantidade de alunos, eu podia ficar
sozinho e passar despercebido sempre que eu precisasse, a escola não ficava
tentando me forçar a me integrar ao grupo, eu não era o marginalizado. Enquanto no
discurso da escola nova o marginalizado é o rejeitado, no da escola tecnicista ele é
o incompetente, o improdutivo, como identificado por Saviani (2018). Esse era o
discurso predominante nessa escola e em todas as escolas que estudei desde
então, e como tinha facilidade em realizar as atividades, deixei de ser o
marginalizado para ser o aluno perfeitamente integrado. Isso fica evidente ao olhar
para todos os outros “repetentes” que conheci durante minha escolarização e
constatar que o motivo deles terem sido retidos eram suas dificuldades em cumprir
com o que era proposto por conta de suas dificuldades de aprendizado ou
concentração.

2. CULTIVO

Entrar no ensino fundamental foi um choque de realidade. Essa etapa do


ensino já era obrigatória e a escola em que estudei ficava na região central, por isso
era abarrotada de salas, que por sua vez eram abarrotadas de alunos. Lembro que
no primeiro dia de aula, durante a apresentação do corpo docente, me envolvi em
uma briga e fui levado para a diretoria. No Jardim de infância também tinha uma
diretora, mas lembro que as poucas vezes que a vi foi porque minha mãe precisou
resolver alguma questão burocrática com ela, foi estranho ver que naquela escola a
diretora era uma figura ligada a ideia de punição, uma pessoa a ser temida pelos
alunos.
12

Apesar daquele episódio, eu sempre fui considerado um “bom aluno”, fazia as


atividades com facilidade e ficava quieto a maior parte do tempo. Esse era o mesmo
comportamento que eu apresentava fora da escola, onde era chamado pelos adultos
de “muito educado”. É curioso pensar que na escola, o lugar da educação por
excelência, não se usa o termo “educado” para se referir aos alunos, muito pelo
contrário, na escola um dos enunciados que ouvimos é que “educação vem de casa”
e que “escola é lugar de ensinar”. Essa separação entre ensino e educação, tão
recorrente no senso comum, é aceita dentro da escola e reproduzida pelos
professores, as pessoas entendem educação como uma espécie de comportamento
socialmente aceito, que deveria ser aprendido no seio da família.
Voltando à inexorável pergunta: “O que é educação?”. Não seria contraditório
de minha parte responder que educação é a preparação dos indivíduos para a
sociedade, quando um dos discursos que mais ouvi é de que esse comportamento
exigido pela sociedade, a tal da educação, deve ser ensinada pelas famílias dentro
de seus lares? De maneira nenhuma, essa “educação” não é o que escolas buscam
enquanto preparação dos indivíduos para a sociedade, nem mesmo como
comportamento. É por isso que essa função é vista como algo exterior à escola,
apesar da escola ser o local em que a educação é formalizada. O comportamento
que a escola impõe não é “a educação”, mas a disciplina, controle exercido sobre os
corpos dos alunos. Mais importante do que fazer com que assumam uma posição de
submissão para com os adultos e falem com eles de determinada maneira, é
discipliná-los a passar grande parte do seu dia em um lugar fechado, a viver uma
vida regulada por horários que devem ser seguidos à risca, comer somente em
determinado local e hora, se deslocar de um lugar para outro sempre com um
propósito claro e numa determinada velocidade. Esse é o comportamento
necessário não só em preparação para a vida em sociedade, mas para a reprodução
da mesma, e é dele que a escola se ocupa. Para elucidar o que quero salientar
como disciplina, trago o seguinte fragmento:

A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela


sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce
de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o
espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso
das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar as “disciplinas” (FOUCAULT, 2014, p. 135)
13

Deixando os “devaneios” de lado e voltando às minhas memórias, o resto da


minha escolarização foi bem monótona. Com a entrada no segundo ciclo do
fundamental eu passei a me sentir cada vez mais desestimulado, e comecei a fazer
o mínimo possível para passar de ano. Eu só precisava “ficar na minha” e fazer as
provas, mesmo quando eram passados trabalhos que valiam nota eu não fazia, e
conseguia a pontuação necessária nas recuperações. Essa apatia generalizada só
foi rompida no 3º ano do ensino médio, quando meu professor de filosofia me
chamou para conversar e me convenceu a dar uma chance para os estudos. A partir
daquele momento, eu comecei a estudar de novo, não pela escola, mas por mim,
pela minha sede de aprender. E foi essa sede de aprender que me motivou a
ingressar no ensino superior.

3. FLORESCER

Apesar do desejo de continuar meus estudos e cursar o ensino superior, eu


nunca me enxerguei dentro de uma universidade. Ninguém da minha família fez
faculdade e eu não tinha meios de pagar uma particular. Mesmo assim, todo ano eu
prestava o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), mesmo acreditando que se eu
conseguisse uma vaga não teria condições de me manter em outra cidade. Antes de
entrar na faculdade eu sequer sabia da existência de políticas públicas voltadas à
permanência de estudantes de baixa renda.
Inicialmente, eu queria cursar filosofia. Desde que aquele professor do ensino
médio abriu meus olhos para os estudos, passei a ler os livros didáticos da disciplina
e pesquisar sobre o tema na internet, principalmente por conta do meu interesse em
política. Mas não foi no curso de filosofia que eu encontrei meu lugar.
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
surgiu na minha vida como uma grata surpresa. Eu tinha prestado o ENEM de 2017
e estava conversando com um amigo sobre possibilidades de curso e foi quando ele
me falou que existia uma universidade pública na cidade em que moramos, Jacareí,
e que por coincidência ficava em um bairro próximo a minha casa. Eu não sabia se
eu encontraria o curso que queria, mas era uma oportunidade boa demais para
deixar passar. Então, no momento de fazer minha inscrição no Sistema de Seleção
Unificada (SiSU) eu pesquisei o campus e passei a ponderar sobre qual curso eu
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concorreria. Administração e Análise e Desenvolvimento de Sistemas não condiziam


com o que eu queria estudar, Design de Interiores parecia interessante, mas eu
sempre fui bem desleixado com questões estéticas, foi então que eu vi Licenciatura
em Pedagogia.
A verdade é que eu não sabia o que era pedagogia, mas depois de uma
rápida busca na internet me pareceu ser algo que eu me sentiria motivado a estudar,
pois apesar de não gostar da escola eu gostava de ensinar e ajudar os outros a
aprender. Nesse momento eu tomei a decisão que trouxe até aqui.
“O que é educação?”. Essa pergunta mexeu comigo, não porque eu não sabia
a resposta, mas porque eu nunca tinha pensado sobre isso, eu simplesmente aceitei
sem questionar tudo que era dito sobre educação e deixei isso matar minha vontade
de estudar.
Mas com o curso de Licenciatura em Pedagogia esse questionamento
finalmente veio e nunca mais foi embora, e eu percebi que não estava sozinho.
Todos os professores com quem tivemos aula, todos os autores que lemos, todos
tinham um pouco para falar sobre o que era educação para eles. Começando pelo
professor Demerval Saviani e sua definição do ato de educar, que é dar ao aluno o
que é dele por direito, a cultura que apesar de ter sido construída coletivamente pela
humanidade está concentrada na mão de poucos que decidem o quanto cada um
pode ter dela. Aprendemos que a educação antecede a escola, e que por mais que
tentem tornar a escola a instituição responsável pela educação, local a que ela
pertence, a educação continua acontecendo fora dela, pois é indissociável do mundo
da cultura. Vimos nas aulas de história da educação e educação infantil, que fora da
nossa forma social atual as crianças eram educadas a partir de suas participações
na vida social de sua comunidade. Fizemos trabalhos de Prática como Componente
Curricular sobre espaços de educação não formal, que existem como espaços de
educação fora da escola, do ensino formal, que educam das mais diversas formas.
Mesmo na educação formal, no “chão da escola”, não há apenas uma
concepção de educação. Quando aprendemos sobre as teorias crítico
reprodutivistas, que entendem a escola como uma ferramenta de reprodução da
sociedade e naturalização do status quo, passei a enxergar que o que eu entendia
como preparar para a sociedade era também reproduzi-la. De repente, todo o
desinteresse e apatia que criei pela escola passou a fazer sentido, eu me sentia
empurrado para uma vida que eu não queria viver em um mundo hostil e imutável.
15

Eu me recusava, mesmo que inconscientemente, a contribuir para a reprodução da


minha própria miséria e de outros iguais a mim. O enunciado que diz que “tem que
estudar para ser alguém na vida” passa a ter um significado completamente cruel
quando entendemos o discurso por trás dele. Esse discurso diz que as pessoas
devem participar ativamente para a reprodução de uma sociedade desigual e
excludente, ou serão elas as vítimas da desigualdade e exclusão.
No nosso curso de Licenciatura em Pedagogia, porém, aprendemos que por
mais que a escola tenha essa função reprodutora, nós como professores não temos
que aceitar passivamente tudo que ela nos impõe. A escola passa então a ser um
campo de disputas, onde os professores devem buscar constantemente os meios de
despertar a potência transformadora da educação, força de resistência na relação de
poder com a instituição escolar e seus saberes e discursos. Podemos buscar na
história exemplos dessas disputas, que confirmam essa potência pelas tentativas de
destruição e cooptação sofridas, de Francisco Ferrer y Guardia a Paulo Freire e
muitos outros.
Compreender a escola como lugar de luta serve então a dois propósitos que
se complementam. Primeiramente, torna o trabalho docente menos desestimulador,
ser professor é uma profissão, e como indivíduos que vivem em uma sociedade
capitalista temos que trabalhar para sobreviver. Essa compreensão nos impede de
sermos “engolidos” pelas obrigações e práticas impostas pela instituição escolar, nos
permitindo buscar as “brechas” por onde é possível transformar a educação em um
processo menos violento tanto para os alunos quanto para os professores. Além
disso, essa compreensão nos permite realizar um trabalho crítico, que mostre aos
alunos que eles também podem e devem lutar por um mundo melhor. Uma
educação que não vise preparar os alunos para a sociedade, mas formá-los para
eles possam construir coletivamente uma vida outra.

4. DA FLOR, O FRUTO

Voltar a escola ajudou a colocar tudo em perspectiva, essa volta ter


acontecido concomitantemente ao curso serviu para criar uma “via de mão dupla”,
onde foi possível levar a teoria estudada no curso para dentro da escola e trazer a
prática nela para dentro das aulas do curso. Por dois anos, que tiveram seu início
16

logo no primeiro semestre da faculdade, eu realizei o estágio remunerado em uma


escola pública municipal do primeiro ciclo do ensino fundamental. Essa escola,
coincidentemente, é a mesma em que eu havia estudado durante o meu ensino
fundamental, e apesar de terem se passado 15 anos até esse retorno, percebi que
muitas coisas continuavam iguais.
O estágio remunerado consistia no acompanhamento de alunos
contemplados na modalidade da educação especial, ou seja, pessoas com
deficiência e transtornos globais do desenvolvimento, dentro das salas de aula
regulares. A presença desses alunos nas salas regulares é uma conquista
importante e representa um rompimento com uma política de segregação, lembro
que na época que eu estudei nessa mesma escola esses alunos ficavam todos em
uma única sala multisseriada, separados do resto da escola. Acredito que ainda
tenhamos muito a avançar na perspectiva da educação inclusiva, mas saber que
esses alunos têm o seu direito à educação garantido me faz pensar que, pelo
menos, estamos caminhando nessa questão. Acompanhar esses alunos em sala me
permitiu observar e participar do cotidiano da sala, assim como do funcionamento da
escola.
“O que é educação?” Talvez minha resposta a essa pergunta pudesse ter
mudado com o conhecimento adquirido na graduação, mas as questões que me
fizeram chegar naquela primeira resposta continuavam presentes. Ironicamente, um
dos enunciados que mais ouvi sobre a escola nesse retorno é de como “antigamente
era melhor”, é quase como se os professores cultivassem uma espécie de nostalgia
por uma escola que nunca existiu, uma nostalgia que se traduz em uma
naturalização da precarização da escola e um desprezo às mudanças. Quando
estudei nessa mesma escola anos atrás os alunos eram tão “indisciplinados” quanto
os de hoje, e as salas de aula tinham tantos alunos quanto conseguissem colocar.
As estruturas e condições de trabalho do professor continuam tão precarizadas hoje
quanto eram antes, e as mudanças negativas que notei concernem muito mais a
questões não pedagógicas, como a terceirização dos funcionários da cozinha e da
limpeza. Já de melhoria, além da questão da inclusão citada anteriormente temos
outras como os cardápios das escolas que agora são acompanhados por
nutricionistas, as salas de leitura e vídeo, os pequenos acervos de livros de literatura
infantil disponíveis nas salas de aula, a instituição de uma hora semanal para as
17

crianças poderem brincar fora das salas, entre outras. Enfim, será que antigamente
era mesmo melhor?
Esse discurso é problemático não porque a escola não venha sofrendo
sucateamentos que dificultam o trabalho docente, mas porque ele desvia o foco dos
verdadeiros ataques que acontecem na forma de reformas e a reorganização da
educação pública. Enquanto os professores desejam essa escola de antigamente,
onde havia “ordem”, todas essas mudanças que minam o trabalho do professor são
aceitas facilmente.
Outro enunciado que ouvi bastante durante esse retorno à escola pública, e
que contrasta grandemente com o que aprendemos no curso é “a teoria na prática é
outra” ou “esse monte teoria não serve de nada”. Dentro da escola se tem esse
discurso de que o conhecimento teórico não se sustenta na prática docente, e,
portanto, estudar teoria é uma perda de tempo. Prática essa que vem sendo
esvaziada, com currículos prontos, livros didáticos que parecem querer substituir o
professor em vez de servirem como material de apoio e atividades prontas para
serem aplicadas, há cada vez menos necessidade de uma formação de qualidade
para os professores, e por isso estudar educação passou a ser entendido como
desnecessário. Isso pode ser entendido a partir da influência de um discurso
tecnicista sobre a educação, um discurso presente de maneira institucionalizada no
ensino público desde o período da ditadura militar no Brasil, como denotado no
seguinte fragmento:

Em verdade, a partir da reforma implantada pela Lei n. 5.692/71, a


organização da rede escolar enfatizou a importância dos especialistas,
situando o corpo docente na condição de executores dos planos e
programas formados pelos técnicos e por eles supervisionados. Assim,
segundos os princípios de neutralidade, racionalidade, eficiência e
produtividade, traduzidos na fórmula da busca do máximo de resultados com
o mínimo de dispêndio, tendeu-se a objetivar o trabalho docente, reduzindo-
o a um conjunto de tarefas simplificadas passíveis de serem executadas sem
a exigência de maiores qualificações. (SAVIANI, 2013, p. 103)

E novamente, em:

A política educacional vigente vem guiando-se pelo seguinte vetor: redução


de custos, conforme o princípio do máximo resultado com o mínimo de
dispêndio (investimento). Em relação à formação de professores, isso é
traduzido pelo objetivo de formar um professor técnico e não um professor
culto. Ora, o professor técnico é entendido como aquele que é capaz de
entrar numa sala de aula e, aplicando regras relativas à conduta e aos
conhecimentos a serem transmitidos, se desempenhar a contento diante
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dos alunos. Diversamente, o professor culto é aquele que domina os


fundamentos científicos e filosóficos que lhe permitem compreender o
desenvolvimento da humanidade e, a partir daí, realizar um trabalho
profundo de formação dos alunos a ele confiados. (SAVIANI, 2014, p. 69)

Apesar de conseguir identificar agora esses discursos, eles “passaram


batidos” durante meu período de estágio e ainda que não fossem reproduzidos
diretamente por mim, influenciaram diretamente na minha relação com os alunos e a
escola. Me peguei em diversos momentos tentando convencer, ou até mesmo forçar,
alunos a se encaixarem na lógica da escola, que no final das contas é a lógica da
sociedade. A mesma violência que foi usada contra mim e me levou a aquela
primeira concepção de educação foi a mesma que guiou minhas práticas em
diversos momentos. Por isso escolhi revisitar minha trajetória sob a ótica do
discurso, para compreender como eles formam aquilo que aceito como válido, como
verdade e influenciam diretamente nossas relações com tudo que nos cerca.

CONCLUSÃO

Como se esquivar das armadilhas do discurso? Escrever esse memorial me


trouxe uma nova perspectiva que pode me ajudar a responder essa pergunta.
Primeiramente, precisamos reconhecer a existência dos discursos na nossa
vida, aquilo que consideramos como a verdade, o correto não é algo que existe em
si, mas o resultado de diversos discursos. Esses discursos estão presentes em toda
a nossa vida de maneira direta e indireta e nas mais diversas esferas. Na educação
não poderia ser diferente, sendo a escola o espaço designado como o lugar formal
da educação, acaba por se tornar uma peça central na disseminação de discursos.
Porém, um espaço em que o discurso se faz tão presente não poderia deixar de ter
seus próprios discursos.
Eu senti na pele os desdobramentos desses discursos, e se tem uma certeza
que levo da minha formação é que eles ainda estarão nas escolas quando eu nelas
adentrar como professor, e sabendo da sua existência o próximo passo para essa
“esquiva” é entender suas implicações.
As implicações dos discursos não são limitadas ao campo discursivo, eles
mediam nossas relações com a realidade concreta e podem influenciá-la, como
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minha retenção no Jardim de Infância, ou as crianças que por apresentar alguma


dificuldade são rotuladas de “burras” e perdem sua vontade aprender, por exemplo.
Entender essas implicações nos permite assumir o compromisso de não reproduzir
discursos danosos, a partir do entendimento do que eles podem causar à vida das
pessoas.
Entendendo a educação como campo de disputa e os discursos como parte
constituinte de nossa relação com o mundo, e que por isso não pode ser evitada,
gostaria de propor como o passo final para escapar dessa armadilha trazer novos
discursos para nossa prática, discursos que apontem para uma educação
emancipatória. Somente evitar os discursos danosos não é o suficiente, eles
continuarão causando seus danos independentemente de nós; é preciso combatê-
los, mostrando o que está por trás deles e propondo outros mais saudáveis.
Creio que o caminho para conseguir isso seja seguir estudando e me
formando, se foi o estudo que me trouxe até aqui, será ele que me levará além.
Através dos conhecimentos críticos construídos nos meus estudos durante a
graduação, aulas e falas dos professores, conversas com colegas e muita leitura,
pude identificar alguns discursos que me marcaram e que marcam outros iguais a
mim que passam por escolas também muito parecidas com as quais eu passei.
Quais discursos são reproduzidos é uma questão mediada por relações de
poder, e quem sou eu nessas relações? Já fui alvo direto desses discursos, e mais
reprodutor deles do que gostaria de admitir, porém, não consigo pensar em um único
momento em que fui o produtor de qualquer discurso que seja. Olhando em
retrospecto todos os professores que conheci eram meros reprodutores de
discursos, o que me faz pensar que os verdadeiros responsáveis por eles estão fora
das escolas. Talvez eles possam até ter nascido no seio da escola mas sua
concepção é exterior a ela, ainda que os discursos sejam difusos demais para se
determinar com precisão sua origem, esse “pai ausente” continua colhendo seus
frutos.
Com isso em mente, a escola pode até ser um campo em disputa, mas ela
não existe isolada ou separada, fechada em si, ela está em relação dialética com o
mundo que a cerca, influenciando e sendo influenciada. E se a escola não existe
isoladamente nossa luta também não deve ser isolada, deve ser pela transformação
social dentro e fora dela ou, à medida que os discursos nocivos forem sendo
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combatidos, poderão receber reforço externo ou serem substituídos por outros


igualmente problemáticos.
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REFERÊNCIAS

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: editora brasiliense, 1988.

FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2008.

______. A Ordem do Discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

______. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.

SAVIANI, D. Escola e Democracia. 43. ed. Campinas: Autores Associados, 2018.

______. O Lunar de Sepé: Paixão, dilemas e perspectivas na educação. Campinas:


Autores Associados, 2014.

______. Pedagogia Histórico-Crítica. 11. ed. Campinas: Autores Associados, 2013.

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