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Diálogos com a História 2

Trabalhos apresentados na 3ª Semana de História da UFF


(março de 2015)

Márcia Maria Menendes Motta | Alan Dutra Cardoso


Sarah Vanessa Santos Correia | Vanessa Costa Ferreira
Organizadores

ISBN: 978-85-63735-20-1
Diálogos com a História 2
Trabalhos apresentados na 3ª Semana de História da UFF
(março de 2015)
Diálogos com a História 2
Trabalhos apresentados na 3ª Semana de História da UFF
(março de 2015)

Organizadores:

Márcia Maria Menendes Motta


Alan Dutra Cardoso
Sarah Vanessa Santos Correia
Vanessa Costa Ferreira

Niterói,
PPGHistória-UFF
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello


Vice-Reitor: Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História:
Ana Maria Mauad de Souza Andrade Essus e Samantha Viz Quadrat

Copyright © dos autores, 2016.

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo


ou em parte, constitui violação do copyright.

Diagramação: Alan Dutra Cardoso


Revisão: Alan Dutra Cardoso e Vanessa Costa Ferreira
Apoios:

Ficha catalográfica

M319 Diálogos com a História 2: trabalhos apresentados na 3ª Semana de


História da UFF (março de 2015) / Márcia Maria Menendes Motta,
Alan Dutra Cardoso, Sarah Vanessa Santos Correia, Vanessa Costa
Ferreira (orgs.).
Niterói-RJ: PPGHistória-UFF, 2016.
540 páginas
ISBN: 978-85-63735-20-1
1. História. 2. Teoria, Metodologia e Ensino da História. 3.
Antiguidade 4. Idade Média. 5. Época Moderna. 6. Contemporaneida-
de.
CDD: 902
Capítulo 2: A CRÍTICA ESTÉTICO-POLÍTICA DO SURREALISMO: UM DEBATE EM
TORNO DE WALTER BENJAMIN, MICHAEL LÖWY E GEÖRGY LUKÁCS

Cairo de Souza Barbosa1

“Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para
manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única
aspiração legítima”2.

INTRODUÇÃO

Com essas palavras, o escritor e poeta André Breton, um dos líderes do


Surrealismo francês, definiu claramente o objetivo maior do movimento: a busca pela
liberdade. Os surrealistas, comumente tratados como pertencentes a uma corrente
literária ou artística fruto do caldo das vanguardas modernistas européias, teciam
suas críticas ao modelo de arte burguesa, mas também voltavam suas penas para o
realismo soviético stalinista e a possibilidade de uma “arte dirigida” e comprometida
com a emancipação do proletariado. Nesse movimento, o Surrealismo é percebido
como algo além de uma mera acepção estética: ao afastar-se das formas operacionais
de arte até então existentes situava-se, assim, no campo simbólico, como uma espécie
de “rebeldia” do espírito frente à modernidade capitalista no bojo de sua
aproximação com a leitura marxista (antistalinista) do mundo.

A tese acima, do sociólogo franco-brasileiro Michel Löwy, em linhas gerais,


ancora sua discussão na idéia de que o Surrealismo não era um mero fenômeno
literário, mas sim uma espécie de inconformidade frente os limites do mundo à época.
No livro A estrela da manhã: marxismo e surrealismo há dois movimentos analíticos: no
primeiro, busca caracterizá-lo como um “machado forte” cujo objetivo é quebrar as
correntes racionalizantes da modernidade capitalista; depois, procura mostrar os
diversos cruzamentos entre marxismo, anarquismo e a crítica surrealista. É seu

1
Graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista de Iniciação
Científica FAPERJ. Email: kairu172@hotmail.com
2
BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Tradução de Eliana Aguiar Nau, Rio de Janeiro, 2001, 1 pp.

26
objetivo maior a busca do reencantamento do mundo, ou seja, a tentativa de
restabelecimento do “brilho” da vida humana apagado pela civilização burguesa3.

Esse argumento, porém, encontra sua raiz na genialidade de Walter Benjamin.


Se o Surrealismo era “o último instantâneo de inteligência europeia”, como aponta o
título de seu ensaio, significava, portanto, que sua forma, ao levar ao limite a
possibilidade de representação do mundo, transfigurava-o, pautando a transparência
ou um afastamento da tendência pequeno-burguesa e arrivista da descrição. Se a
hostilidade burguesa contra toda a liberdade espiritual gerava um ostracismo crítico,
o Surrealismo, por outro lado, procurou trilhar um caminho “revolucionário”,
emancipador e crítico da modernidade capitalista europeia. Sendo uma espécie de
iluminação profana, inspirada nas condições materiais da vida, não se furtou às
galerias da grande arte: buscou a liberdade maior do mundo, a humana.

Contudo, há certa vertente da crítica, especialmente as conhecidas como


“textualistas”, que consideram a arte como algo relativamente autônomo, ou seja, um
corpus onde os choques sociais se fazem pouco presentes, sendo ela em geral tida
como alheia aos grandes problemas do mundo. Nada prende o artista: nem
formalidade, nem regras, nem leis relacionadas ao conteúdo. Ele é independente de
qualquer moral. O principal motor da arte seria, portanto, seu estado de espírito
particular no momento da criação. Essa discussão, travestida do tópico “autonomia
da arte”, diz respeito, no fundo, ao fundamental debate da Ideologia, onde cabe uma
pergunta clássica: até que ponto há mesmo essa independência com relação às idéias
e, sobretudo, às concepções dominantes que circulam na sociedade? Ou melhor:
partindo da perspectiva lukacsiana acerca do binômio arte dirigida x arte livre, o
objetivo é discutir como o mundo moderno pensa a liberdade artistica como sinônimo
de soberania da expressão individual imediata de experiências particulares.

SURREALISMO: “A ESTRELA DA MANHÔ

Em linhas gerais, o Surrealismo ficou conhecido como um


“movimento artístico e literário” nascido em Paris na década de 1920, inserido no
contexto das vanguardas que comporiam o modernismo no período entre as duas

3
LOWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, 9 pp.

27
Grandes Guerras Mundiais. Fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de
Sigmund Freud (1856-1939), enfatizou o papel do inconsciente na atividade criativa,
pautando uma arte emancipadora com relação à mecanização da vida moderna. Em
linhas gerais, o Surrealismo tratava-se de “um protesto contra a racionalidade
limitada, o espírito mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro de nossa
sociedade capitalista-industrial, e a aspiração utópica e revolucionaria de ‘mudar a
vida’” 4.

Contudo, a modernidade capitalista à qual se referiam os surrealistas, de modo


geral, não surgiu assim unificada. Modernidade e capitalismo não são
necessariamente a mesma coisa. O paradigma que chamamos de modernidade surgiu
entre os séculos XVI e XVIII, antes mesmo de o capitalismo industrial dominar a cena
européia ocidental. Ao longo dos séculos, cruzaram-se até se tornarem uma espécie
de cronótopo “tempo histórico”5, se tornando também um modo de produção da vida.
Em linhas gerais, Karl Marx (1818-1883) pensa a modernidade como fruto de um longo
e radical processo de construção material a partir do choque de opostos, a saber, a
luta das classes. Para ele, trata-se de um conjunto de transformações revolucionárias
nas relações econômicas e políticas da sociedade, que permitiu, com isso, a afirmação
do modo de produção capitalista. Alavancada por um processo material e cristalizado
em dimensões superestruturais, a modernidade, calcada na necessidade de produzir
e reproduzir, objetifica a classe explorada em um padrão normativo, moral e político
no qual ela se vê obrigada a vender, como forma de sobrevivência, sua força de
trabalho como mercadoria, consumando-se assim uma expropriação do trabalhador
dos meios de produção6.

Já na leitura de Georg Simmel (1858-1918), muitas vezes complementar à de


Marx, a modernidade germina a partir da cisão entre sujeito e objeto, em um processo
de autonomização recíproca, mas inegavelmente condicionado pelo desenvolvimento
dos conteúdos objetificados da cultura. Este processo, fruto da moderna divisão do

4
Idem.
5
Essa definição se ancora na análise daquilo que Hans Gumbrecht chama de “terceiro momento da
modernidade”, a intitulada alta-modernidade, baseada, a partir das vanguardas de início do século XX,
na compreensão geral do moderno como constante autossuperação. Ver ARAUJO, Valdei Lopes. Para
além da auto-consciência moderna: a historiografia de Hans Ulrich Gumbrecht. Varia História, v. 22, p.
314-328, 2006.
6
CARVALHO, R. C. M. R.; MUDESTO, R. P. Crítica e sentido na modernidade: Marx e Simmel. CSOnline
(UFJF), v. 1, 2008, p. 215.

28
trabalho e da monetarização das relações sociais, consolida a modernidade sob o
triunfo da tragédia da cultura. Em suma, ambos procuram denotar o caráter alienante
(no sentido marxista) da modernidade capitalista, que racionaliza a vida cotidiana em
prol de uma ordem econômica e social estabelecida. É preciso, por isso mesmo, uma
espécie de ação efetiva contra o engessamento do mundo moderno e capitalista. E a
arte, nesse amalgama, é indispensável, ainda que haja uma discussão fundamental
sobre seu potencial pretensamente “libertário” e seu caráter “dirigido” 7.

Por isso, a revolta do espírito enquanto demonstração da crise da


modernidade capitalista pode, à escolha do artista, servir como um caminho profícuo
para a liberdade humana. É nessa leitura que se âncora a idéia de ruptura da “gaiola
de aço” que compatibiliza a produção de uma arte crítica dirigida à modernidade
capitalista. Esta leitura Löwy retira de Weber, para quem o mundo se fechou numa
estrutura reificada e alienada, pretensamente racional, que encerra os indivíduos nas
“leis do sistema” em situação análoga à prisão. Por isso, o Surrealismo tinha como
objetivo maior ser um “martelo encantado” que permitisse romper as grades para se
ter acesso à liberdade. Era isso que o tornava mais do que uma corrente artística no
sentindo convencional.

A chamada utopia revolucionária surrealista pretendia “interromper a


rotação monótona da civilização ocidental em torno de si mesma”8, visando criar um
novo movimento, absolutamente livre e harmônico. Essa leitura de mundo é fruto da
adesão dos surrealistas ao materialismo histórico no 2º Manifesto. O percurso começa
com a entrada de alguns membros no Partido Comunista Francês em 1927; a ruptura
com o comunismo stalinista por ocasião do Congresso em Defesa da Cultura, em 1935;
a visita de Breton a Trotski no México, em 1938; a fundação da FIARI (Federação
Internacional da Arte Revolucionária Independente), entre outras.

O Surrealismo representava a mais alta expressão do romantismo


revolucionário no século XX, que por Löwy é entendido como “a vasta corrente de
protesto cultural contra a civilização capitalista moderna, que se inspirava no
passado pré-capitalista, mas que aspira antes de tudo uma utopia revolucionaria
nova”9. O elo entre romantismo e surrealismo manifesta-se não apenas em temas

7
Ibidem, p. 225.
8
LOWY, Michael, op. cit, p. 13.
9
Ibidem, p 15.

29
como o mito novo, mas também no conjunto dos sonhos, das revoltas e utopias do
movimento, ou seja, partilha-se a tentativa de reencantar o mundo, não através da
religião, mas pela poesia. Seguindo Benjamin, Löwy explica que a convergência mais
profunda entre surrealismo e o comunismo estava na idéia do pessimismo
revolucionário.

Não é a crença teleológica em um triunfo rápido e certo que motiva o


revolucionário, mas a convicção profundamente enraizada de que não se pode viver
como um ser humano digno desse nome sem combater com vontade inabalável a
ordem estabelecida10.

Löwy destaca Benjamin Péret, que aparenta ser o surrealista mais engajado na
ação política no seio do movimento operário e revolucionário marxista,
primeiramente como comunista, em seguida, durante os anos 30, como trotskista e,
finalmente, no pós-guerra, como um marxista revolucionário independente. Péret
escreveu, entre 1955-56, um ensaio sobre Palmares, comunidade de negros
quilombolas fugitivos do Nordeste brasileiro que resistiu, ao longo do século XVII, às
expedições holandesas e portuguesas que tentavam dar um fim àquele reduto de
insubmissos. Péret procurou reinterpretar a tese marxista clássica, segundo a qual a
história é o eterno movimento da luta de classes, isto é, a luta dos explorados contra
seus exploradores, dando-lhe uma roupagem libertária, ressaltando os aspectos
“anárquicos e antiautoritários”. Por isso sua admiração pelo quilombo de Palmares,
que para ele se caracterizou pela “ausência de coação” e pela “liberdade total”. O
Surrealismo, portanto, foi atravessado pelo “fio vermelho e negro”, comunismo e
anarquismo, concentrando suas forças na tentativa de uma revolução.

Assim, o Surrealismo é entendido como um movimento capaz de fundir as


idéias de revolta e revolução, comunismo e liberdade, utopia e dialética, ação e sonho.
Por isso, ressalta Löwy, o surrealismo é um astrolábio, pelo qual os viajantes, no
mundo da modernidade capitalista, podem guiar seus caminhos olhando as estrelas.
Em uma clara crítica à ideia de contemplação, sua lógica interna apontava para a
dupla tarefa da inteligência revolucionária: a derrubada da hegemonia intelectual da
burguesia e o estabelecimento de um contato com as massas proletárias. A partir
dessa visão, havia uma percepção clara por parte dos surrealistas acerca da miséria,

10
LOWY, Michael, op. cit, p. 16.

30
não somente a material e social, mas a interior, da escravização, que prendia o homem
moderno nas jaulas racionalizantes.

OS LIMITES DA LIBERDADE ARTISTICA: A CRÍTICA LUKACSIANA

Para Terry Eagleton, a literatura faz parte da superestrutura social, porém

não é apenas um reflexo passivo da base econômica, podendo


influenciá-la, também, em uma relação dialética: […] os
elementos da superestrutura reagem constantemente à base
econômica e a influenciam. A teoria materialista da História
nega que a arte possa, por si só, mudar o curso da História; mas
ela insiste que a arte pode ser um elemento ativo em tal
mudança11.

Posto que haja claramente uma relação fundamental entre arte, no sentido
lato, e estruturas econômicas é necessário, antes de tudo, pautar os limites da
liberdade artística moderna. György Lukács pensa que a noção de liberdade da arte
não pode ser aplicada de maneira mecânica, sendo apenas continuação das idéias
deste tema no campo da teoria pura ou da filosofia. Isso não significa aderir ao
preconceito moderno que diz que as experiências sociais gerais não teriam ligação
com os problemas da arte. Ao falar da relação entre a explosão de instintos humanos
e o alcance da liberdade da arte, ressalta que até Nietzsche foi cauteloso: para ele a
vida instintiva do artista produz, em sua consciência, o bom e o ruim, o essencial e o
inútil; por isso, o que caracteriza o artista de fato é sua capacidade de escolha nesse
domínio12.

Ao falar da Antiguidade e da Idade Média, e até no Renascimento, ele ressalta


que não havia liberdade artística tal como se observa em sua época. Nesses períodos,
a arte fazia parte da vida publica e os artistas eram guiados, em seus temas e formas,
por sua ideologia. De forma mais objetiva, ele explica que tais artistas estavam
orientados ideologicamente pela classe social à qual pertenciam por nascimento ou
por convicções adquiridas ao longo da vida. Mas não se tratava de uma completa

11
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Tradução de Matheus Corrêa. São Paulo: Editora Unesp,
2011, p. 24-25.
12
LUKÁCS, György. Arte Livre ou Arte Dirigida? In: _______. Marxismo e Teoria da Literatura. Tradução de
Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968, p. 257.

31
submissão; a chamada vida pública, portadora de um momento ideológico e político,
ou seja, um campo de ação, não é uma unidade rígida e imóvel à qual o artista apenas
se incorpora mecanicamente, mas sim uma unidade resultante de contradições, de
forças antagônicas complexas e que mudam constantemente. Assim,

nestas condições se nasce uma obra de arte, uma


representação do conjunto ou de uma parte significativa do
conjunto, seja qual for a coerção relativa à forma e ao
conteúdo, por mais forte que seja a ‘direção’ ideológica e
política, é impossível, por princípio, que no próprio interior
desta sujeição, a lógica necessária das coisas, a realidade
dialética e sua reflexão não criem um certo ‘campo de ação’
para a liberdade ideológica13.

Nesse sentido, um ponto fundamental da concepção surrealista de mundo era


a ideia de deriva, que representava, em linhas gerais, um “alegre passeio” fora do
mundo da razão instrumental, utilizada cotidianamente para guiar os passos no
mundo, cujo objetivo maior era atingir o reino da Liberdade. Como lembra Löwy,
citando Benjamin, a noção de deriva pode se aproximar da idéia, muito forte no XIX,
do perambulante, que, ocioso, “protestava” contra a divisão do trabalho. A diferença,
ponto fundamental, é que, diferente do perambulante, o “derivante” não é
prisioneiro do fetichismo da mercadoria, pois sua cabeça está voltada à noção maior
de Liberdade, e é com ela que se reencontra. O significado profundo da deriva,
portanto, se liga à tentativa de “desracionalizar” e “desinstrumentalizar” a vida, o
que leva diretamente a um estágio de embriaguez, de “graça”.

Ao pautar abertamente a noção de liberdade artística como forma de


enfrentamento à reificação do mundo, o Surrealismo, contudo, era limitado pelas
condições materiais de existência. Como diz Lukács, o objetivo da arte é “imagetizar”
a realidade, refletindo o movimento, a direção e suas orientações essenciais no que
tange à sua existência, permanência e transformação. Essa realidade social, por sua
vez, cria uma coerção. Com o modo de produção capitalista se desenvolvendo no
caminho de sua “perfeição”, a idéia de liberdade passa a pairar absoluta, fazendo
cessar qualquer coerção temática; por isso, a liberdade total de invenção torna-se

13
Ibidem, p. 258.

32
liberdade de servidão. O que se sucede, portanto, é que este novo artista se encontra
na situação de mero produtor de mercadorias em relação ao mercado abstrato. Ocorre
que sua liberdade é tão grande quanto à do produtor de mercadorias em geral, mas
há a clara sobreposição das leis do mercado. A evolução capitalista, com isso,
transformou em mercado as relações entre o público e todas as produções artísticas.
A arte de modo geral - tanto a boa como a ruim, tanto a obra-prima como a mais
convencional vulgaridade, tanto a arte mais clássica como a mais moderna, foi
subordinada ao capitalismo.

Até mesmo a originalidade e a invenção artísticas, que podem ser entendidas na chave
da autonomia do produtor, são concessões do capital, como fala Lukács:

a liberdade assim produzida, a ‘individualidade’ assim tornada


valor, estão longe de garantir que o que foi criado desta
maneira seja realmente arte. Muito pelo contrário. O que
caracteriza, na literatura capitalista, o abacaxi ‘qualificado’ e
superior é, precisamente, o exagero da originalidade, da
invenção artística livre14.

A noção de liberdade é, para o artista moderno, uma noção abstrata, formal e


negativa: ela só contém a reivindicação de proibir quem quer que seja de intervir
nesta suprema autoridade pessoal. Por isso, a liberdade moderna da arte pode ser
definida, então, como a “liberdade subjetivamente soberana da expressão individual
imediata de experiências artísticas individuais”15. Aqui se encontra o ponto de
convergência com a noção de deriva: como um ato individual de revolta frente às
condições “naturalizantes” do mundo moderno, os artistas surrealistas, imersos
nessa forma de produção artistica e voltando-se inteiramente para dentro de si,
reproduzem a lógica da arte moderna de renunciar à conquista da realidade objetiva
em troca da exacerbação da liberdade subjetiva interna. Em outras palavras, o
protesto, como expressão artística, é respeitável, mas a experiência subjetiva do
simples protesto não garante a elevação à superioridade positiva, nem do ponto de
vista ideológico, nem do ponto de vista artístico.

14
Ibidem, p. 264.
15
Ibidem, p. 265.

33
Ou seja, ao afastar-se das formas operacionais de arte, tentando levar ao limite,
através da transfiguração, a representação do mundo, em um combate claro à
tendência moderna e burguesa da pura descrição, o Surrealismo também se
distanciou da objetividade do mundo exterior buscando salvar a soberania subjetiva.
Assim, “de uma maneira paradoxal, o mais violento dos protestos contra os efeitos
desumanizadores da sociedade capitalista produziu, em suas consequências, a
desumanização do artista”16. Citando Ortega y Gasset (1883-1955), Lukács afirma que
não é necessário mudar a essência das coisas, mas sim mudar seus valores, isto é, criar
uma arte onde os traços secundários da vida estejam no primeiro plano. E citando
Liev Tolstoi (1828-1910), reafirma a necessidade de retomada das formas de vida
popular com a finalidade de retirar a arte autêntica do labirinto da vida moderna.

A crítica lukacsiana, portanto, se dirige à ilusão da arte livre. O desenvolvimento do


seu argumento, por outro lado, também constituiu uma forte crítica à “direção” dada
à arte, sobretudo no contexto do realismo soviético. Ao voltar suas atenções para o
utopismo, isto é, uma tentativa de antecipação do futuro, aponta os perigos inerentes
ao fechamento de possibilidades dentro do campo flexível da realidade. Por isso,
ressalta que as questões de estilo não são apenas imposições exteriores, mas sim
questões relacionadas à dialética mental interna do artista. Esse artista, por sua vez,
vive em sociedade, e há claramente uma influência recíproca. Seu ponto, portanto,
está diretamente ligado à questão da ligação da criação artistica com a Ideologia.

Por fim, sentencia:

O artista antigo sabia exatamente a quem se dirigia com suas


obras; o artista novo encontra-se – objetivamente considerada
a função social da arte – na situação do produtor de
mercadorias em relação ao mercado abstrato. Sua liberdade é
– na aparência – tão grande quanto a do produtor de
mercadorias em geral (sem liberdade não há mercado). Na
realidade, objetivamente, as leis do mercado dominam o
artista pela mesma razão por que, dominam, em geral, o
produtor de mercadorias17.

16
Ibidem, p. 269.
17
Ibidem, p. 262

34

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