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WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.1 n.2 (jul-dez) 2009
Do Bom Fim para o mundo: entrevista com Moacyr Scliar regina zilberman
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me dado conta (nada como uma mestra da literatu- sob a forma de deboches e zombarias. Isso aconte-
ra para revelar aspectos da obra ao próprio autor...). cia no Bom Fim (onde o sábado de Aleluia era um
Ela realmente descreve minha trajetória. Comecei dia péssimo, com bandos vindos dos mais diversos
lembrando minha vivência na comunidade judaica lugares para hostilizar os meninos do bairro) e, no
do Bom Fim; depois, à medida que a experiência meu caso, também no colégio católico que frequen-
de vida e o horizonte cultural foram se alargando, tei, como resultado da “implicância” de alguns alu-
comecei a explorar a interface judaísmo-Brasil. Já a nos – não de todos, e não dos professores. Mas, ao
temática bíblica ainda é um mistério para mim pró- longo dos tempos, fui observando que estas mani-
prio. Sou um leitor (literário, não religioso) da Bíblia, festações se atenuavam (até por uma maior consci-
acho fantásticas as histórias ali narradas, sobretudo ência do Holocausto) e foram até substituídas por
porque estas histórias, por sua síntese, implicam admiração em relação aos judeus e a Israel (o clímax
desafios; há “lacunas” pedindo para serem preen- ocorreu na Guerra dos Seis Dias, em 1967). Mais
chidas pela ficção. Mas talvez eu esteja voltando a recentemente, e por conta dos acontecimentos no
raízes tão longínquas quanto enigmáticas, tentando Oriente Médio, surgiu um sentimento anti-Israel,
descobrir o que, afinal, existe de comum entre as que eventualmente envolve um componente antiju-
pessoas que nós somos e os personagens bíblicos. daico, nascido da pressuposição de que todos os
Não sei se consigo responder a esta questão, só sei judeus são, antes de mais nada, leais a Israel, isto sem
que o texto bíblico é uma fonte de inspiração. Já a falar no neonazismo, um movimento (ainda) em-
identificação com os personagens de A majestade e brionário. De qualquer modo, e comparando com
de Na noite do ventre é para mim mais óbvia e se en- outros grupos, a situação das comunidades judaicas
caixa nas duas primeiras fases da tua cronologia. melhorou muito em relação à intolerância.
Regina Zilberman: O antissemitismo é também Regina Zilberman: A gente poderia dizer que es
um tema que percorre teus romances, às vezes sa experiência pessoal nutre teu primeiro roman
de modo discreto, às vezes de modo mais eviden ce, A guerra no Bom Fim? Não que haja elemen
te. Mas o que mais me impressionou foi a ma tos autobiográficos na trajetória de Joel, mas
neira como o representaste em Os vendilhões me parece que o livro traduz uma vivência que
do templo. Refiro-me à parte inicial do livro, os judeus do Bom Fim (entre os quais me incluo)
quando expões o que me pareceu a “cena primor tiveram antes, durante e depois da guerra, até
dial”, para usar o termo de Freud, do antissemi o fortalecimento do Estado de Israel, nos anos
tismo, vale dizer, o momento em que o protago 60, visitado pelo protagonista quando adulto.
nista, nomeado apenas por sua profissão de “ven Moacyr Scliar: Certamente. Todo autor é auto
dilhão”, é jogado para a condição de “figura biográfico quando começa e A guerra no Bom Fim é
abominável” (a expressão aparece na p.134 do a minha primeira novela (prefiro esta denominação,
romance). Eu gostaria primeiramente de pergun mais modesta, à de romance). Não posso dizer que
tar como foi tua experiência com o antissemi- me retratei no personagem Joel, mas outros que ali
tismo na infância e, depois, na vida adulta. aparecem são até figuras que realmente existiram.
Moacyr Scliar: Minha geração ainda experimen- E o bairro era aquilo mesmo. Quanto ao período,
tou o antissemitismo, se não agressivo, pelo menos certamente é importante, com as revelações sobre
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o Holocausto, a proclamação do Estado e, no caso revelação dos crimes do Holocausto funcionou co-
da comunidade judaica, um maior entrosamento mo um antídoto poderoso, mas não definitivo, con-
com a cultura brasileira. Neste período, o Bom Fim tra a intolerância, mesmo porque antissemitismo e
deixa de ser o shtetl de Porto Alegre. antissionismo não raro se mesclam. A verdade é que
preconceitos existem, devem ser combatidos, mas
Regina Zilberman: Para pensadores judeus, com tranquilidade e sabedoria, sem paranoia.
como Hanna Arendt, o antissemitismo ocupa
um papel central, se se deseja entender os pro- Regina Zilberman: Gostaria de que comentas-
cessos políticos dos séculos XIX e XX, que têm ses o processo de criação de teus romances. A
o totalitarismo como ponto de chegada. Freud, redação de alguns deles, como A estranha nação
em Moisés e o monoteísmo, busca na história de Rafael Mendes ou Cenas da vida minúscula,
do povo judeu as origens do sentimento tomou um longo tempo, em decorrência da
antissemita. Em A guerra no Bom Fim, pareces reelaboração da narrativa. Os vendilhões do
dar razão a Hanna Arendt; em Os vendilhões templo também parece ter sido um projeto de-
do templo, acho que ultrapassas a interpretação morado, desde a ideia original até a publicação
proposta por Freud. Como explicarias o antis- do romance. Poderias contar como funciona
semitismo, se pudesses usar como exemplo tua tua “oficina” de escritor?
própria obra ficcional? Moacyr Scliar: No meu caso o processo criati
Moacyr Scliar: As causas do antissemitismo vo começa com algum “fator desencadeante”, que
variam ao longo do tempo. Na Idade Média, e tam pode ser um episódio histórico, uma pessoa que
bém em boa parte da modernidade, tinham a ver conheci, uma história que me contaram, uma notí-
com a função econômica, sobretudo a usura, que cia de jornal... Daí em diante é uma incógnita. Sou
realmente era exercida pelos judeus (até que os ban muito rápido escrevendo para jornal, mas quando
cos, com muito mais pompa e circunstância, assu- se trata de uma ficção mais longa é diferente; aí pe-
miram a administração do dinheiro...), na verdade ríodos de rapidez se alternam com outros de muita
uma coisa imposta: usura era proibida pelo cristia lentidão, resultante de dúvidas que vão desde a ques-
nismo (e pelo judaísmo), mas o senhor feudal ne- tão do foco narrativo até a incerteza quanto à vali-
cessitava de dinheiro para financiamento de expedi dade do projeto (não foram poucos os que aban-
ções guerreiras e de bens de luxo. Solução: delegar donei). No caso de Vendilhões, foram dezesseis anos
o empréstimo a um grupo marginalizado que podia desde a ideia inicial até a conclusão; reescrevi mui-
ser simplesmente exterminado em caso de inadim- tas vezes. Mas isto é normal numa tarefa que, afinal,
plência do devedor. Os usurários, e os comerciantes, implica uma aventura no desconhecido de nossas
tornaram-se assim os equivalentes do vendilhão do mentes...
Templo (mas meu personagem tem veleidades mo-
dernizantes...). Mais adiante, outros motivos foram Regina Zilberman: Mas o esforço, parece-me,
encontrados, como a suposta conspiração judaico- valeu a pena: Vendilhões é um dos grandes ro
comunista (muito denunciada no Brasil). E, final mances brasileiros contemporâneos. Poderias
mente, existem as razões de ordem cultural e psi comentar também a produção de outros dois
cológica, estas nascidas da pura irracionalidade. A romances de alta qualidade e que formam uma
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espécie de díptico, Sonhos tropicais e A majes- daquela fase, mas da literatura brasileira con
nas
tade do Xingu? temporânea. Pergunto primeiramente como te
Moacyr Scliar: De fato, formam uma dupla vês enquanto contista e como descreverias tua
(díptico me parece meio exagerado...), no sentido trajetória, sobretudo nas primeiras décadas de
de que em ambos figuram médicos que trabalharam teu percurso literário.
em saúde pública, ambos figuras extremamente ex- Moacyr Scliar: De fato, comecei como contis-
pressivas na conjuntura cultural brasileira. Oswaldo ta e queria ser contista. Para começar é um gênero
Cruz, o criador da saúde pública no Brasil, é um que está na origem da literatura; toda ficção come-
personagem complexo, que conjuga enorme co ça assim, como narrativas curtas. Além disso, quan-
nhecimento e competência com aquele autoritarismo do comecei, o conto estava em alta no Brasil, e havia
que, durante muito tempo, foi a marca registrada espaço para conto em jornais e revistas. Mudei eu
da profissão médica, sobretudo dos chamados sa- e mudou a situação. Comecei a pensar em projetos
nitaristas (este termo, hoje, é mal visto, exatamente mais longos – romances – e, ao mesmo tempo, os
por causa dessa conotação). Sabia exatamente o que editores pressionavam os autores nessa direção. Ho-
fazer, mas, por falta de um maior entrosamento com je, paradoxalmente, escrevo um conto todas as se-
a população, não conseguiu enfrentar a inconformidade manas, mas é uma experiência peculiar, ligada a jor-
que culminou com a Revolta da Vacina (1904). Já nalismo (Folha de S. Paulo): a proposta deles (feita a
Noel Nutels que, como sanitarista foi muito menos três outros escritores, que, no entanto, desistiram)
importante, sempre me interessou por causa de sua era de um texto ficcional elaborado a partir de uma
origem judaica. Ele é para mim o símbolo do sin- notícia de jornal, o que tem um aspecto lúdico e li-
cretismo judaico-brasileiro, e o trabalho que fez com terário. Fora disso escrevo contos raramente, mas
índios na região do Xingu é um belo exemplo disso. continuo achando que é o grande gênero literário,
Conheci Noel, admirava-o, e há muito tempo queria apesar de difícil ou justamente por causa disso. Na-
escrever sobre ele. Só não o fazia porque não sabia da bate um conto bem realizado.
como narrar a história, já que eu não queria sim-
plesmente “ficcionalizá-lo”. Mas então me ocorreu Regina Zilberman: Minha segunda pergunta
a ideia de um outro personagem, imigrante judeu- sobre o Moacyr Scliar contista tem a ver com o
russo como ele, e isso resolveu a questão. A partir que respondeste: publicaste a maioria de teus
daí foi fácil escrever... livros de contos até meados dos anos 1980; de
pois, o romance tomou conta de tuas preocu-
Regina Zilberman: Gostaria de comentar tua pações enquanto ficcionista. Por quê?
atividade como contista. Teus primeiros livros, Moacyr Scliar: Em parte, porque segui a traje-
publicados nos anos 1960, com destaque para tória comum a muitos escritores, pelo menos no
O carnaval dos animais, reuniram contos. Na Brasil: começamos pelo conto, depois vamos para
década de 1970, lançaste vários livros de contos, a ficção mais longa. Existe aí um componente de
contribuindo para o fortalecimento do gênero maturidade emocional. Escrever contos é algo que
literário que marcou o período. Teu “Os contis começa na juventude, ao passo que o romance exige
tas”, de Histórias da terra trêmula, de 1976, su uma certa experiência de vida que, diz-se, não ocor-
mariza as tendências do conto brasileiro não ape re antes dos 40 anos. No meu caso, o fato de escre
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v er um texto de ficção semanal (para a Folha de S. É claro que ter leitores, inclusive no exterior, é im-
Paulo) satisfaz um pouco a necessidade de escrever portante, sobretudo quando a gente se sente parte
contos. de uma cultura tão cosmopolita e tão marcante co
mo é a cultura judaica. Não nego que, cada vez que
Regina Zilberman: E o que representa escrever viajo para a Europa, para os Estados Unidos e pa
para o público infantil e juvenil? ra Israel e encontro pessoas que me leram e que gos
Moacyr Scliar: Foi algo mais tardio, desenca- tam do que escrevi, sinto-me orgulhoso – afinal, para
deado, devo dizer, pelo convite de editoras. A pater quem foi um menino do Bom Fim já é alguma coi-
nidade ajudou muito; fez-me voltar aos livros para sa... Mas nenhum elogio, nenhum prêmio, nenhuma
público infantil e juvenil, uma literatura que eu, na tradução no exterior iguala-se, em satisfação, à sen-
realidade, sempre admirei muito – até hoje tenho, em sação que temos quando, depois de escrever um
minha casa, várias prateleiras com clássicos do gê- texto, nós o relemos e concluímos (tanto para nos-
nero: Monteiro Lobato, Viriato Corrêa, Charles sa alegria quanto para nosso alívio) que aquilo não
Kingsley, Lewis Carroll (e Erico Verissimo também). está mau.
É um enorme desafio à imaginação, mas por outro
lado impõe certos limites: os personagens têm de
ser jovens ou crianças, o sexo fica muito limitado.
Mas uma vez que a gente “entra” nesse mundo – e
no meu caso é mais o mundo juvenil, porque acho
literatura infantil algo muito difícil – descobrimos
novas possibilidades. Claro, é preciso evitar a tenta
ção do didatismo, de querer ensinar os leitores co
mo pensar, o que, para quem passou por militância
política como eu, é sempre um risco. E é preciso,
sobretudo, “acordar” o leitor jovem ou criança que
todos temos diante de nós, o que é uma experiência
humana sempre reconfortadora.
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