Você está na página 1de 3

Umas Pernas

(Conto por delcio a. pereira)

Dr. Oto Mendonça, há trinta anos, vem alugando os meus ouvidos, só para neles enfiar
seus contos sobre vitórias e frustrações ocorridas em debates com promotores de justiça,
à frente de juízes e jurados. No entanto, até então, sequer ele me tem quitado o primeiro
mês.
Era uma noite de primavera quando me esbarrei nele, no Bar Obar, mais sim que
não encachaçado. Por mais que me escondesse entre pessoas e dissimulasse não o ter
avistado, impossível me seria livrar do colega advogado, pois ele jamais desistia antes da
quinta tentativa, então, sentei-me à sua mesa e ouvi:
─ Que bom que me achou aqui, meu caro Dr. Guedes! Tenho uma lembrança
que me acompanha desde os tempos de ginásio. Não que ela esteja despertada o tempo
todo dentro da minha cabeça; parece, na verdade, seguir dormindo. Veja! Há pouco, para
tirá-la do sono, uma jovem senhora passou bem perto de mim. Vestia-lhe as belas pernas
uma saia apropriada para quem as tem. E as belas de hoje levaram-me às belíssimas de
outrora.
A professora de matemática do ginásio ─ continuou Dr. Mendonça ─ era uma
moça feita; eu, um projeto de gente em andamento. O prefeito Nicolau a trouxera de
Salvador para Lajinha, no início do bendito ano, que, para mim e Josué, era o último no
ginásio. Cursávamos a 4ª série. Para assistir às aulas das demais matérias, sentava-me às
carteiras mais distantes dos olhos dos professores. No dia da semana em que havia aula
de francês, hum!, escolhia a última da última fila, mesmo sendo bonita a voz de uma
senhora magrinha, branquinha e de olhos graúdos, que abria a boca e fazia com que a
ponta da sua língua tocasse os seus incisivos superiores, só para nos ensinar como melhor
pronunciar palavras em francês. No dia de matemática, o contrário acontecia: madrugava
para não perder para o outro, o Josué, a carteira do meio da primeira fila, bem à frente da
mesa, bem perto das pernas da professora Maria Ester. Para aquele tempo, ela era ousada
e queria ditar uma nova moda; usava saias justas e um tanto curtas, deixando seus joelhos
aos meus olhos. O bronze e o contorno das pernas dela não eram deste nosso mundinho.
Não eram! Machado de Assis, no seu conto “Uns braços”, continua nos lembrando ─ ele
ainda não morreu ─ de que Inácio nunca pôs os olhos nos braços de dona Severina sem
que não se esquecesse de si e de tudo, e ainda culpa a esposa do solicitador em se
apresentar para o jantar, sem o xale que lhe cobriria os braços. Eu, porém, não culpei a
professora Maria Ester por fazer de mim um devaneador.
Num santo dia em que me achava igual a Inácio, um esquecido amplo, Clara se
levantou, não sei de qual carteira, para se achegar à mesa da professora. Com as duas
mãos ajustando às pernas a sua saia azul pinçada, ela caminhava depressa. Mal sabia Clara
que suas passadas delatoras me livrariam do tal esquecimento. Enquanto se aproximava
da mesa, seus passos se tornavam lentos e leves, seus olhos abelhudos se dividiam entre
os envolvidos, e sua face algodão virava face maçã. Posta a boca perto da orelha direita
da professora, seus lábios magros fuxicaram: “Ele não está copiando do quadro o dever
de casa”. Os olhos de Clarinha, piscando fora do comum, diziam a todos que tudo se
referia a mim. Clara fuxicou, mas não encontrou o que caçava. Talvez a menina Clarinha,
por ser tão menina, não soubesse o que queria. Os olhos da professora, porém, me olharam
de um jeito! que somente eu os decifrei.
Lá no quadro-negro, a professora ensinava como multiplicar números por
números. Lá na minha carteira, eu não sabia como conter a multiplicação dos meus
tormentos. Ela ensinava como dividir números por números, eu aprendia que jamais
dividiria com ninguém aquelas pernas. Certo dia, dei-me com Josué, sem piscar, olhando-
as, então, dei-lhe um tostão na coxa e o mandei prestar atenção nas operações.
Na hora em que a sineta da secretaria anunciava o fim do dia escolar, saíamos
rumo às nossas casas. Eu não tinha pressa para chegar à minha, pois, enquanto durasse a
hora do sol, pernas reais e desnudas iam e vinham pela Rua do Centro. Elas
perambulavam à minha frente, me atormentavam, mas nem de longe pareciam com as da
professora. Na hora da lua e do sono, pernas fantasmas me visitavam. E elas dançavam à
minha frente, pulavam sobre mim, corriam, e eu corria atrás delas, mas nunca as
alcançava.
Sem que eu quisesse, pois não queria mesmo ─ reafirmou Dr. Mendonça ─,
chegou o esperado último dia do ginásio. E ele não veio só. Acompanhava-o um fato
trágico, inoportuno, doido e não convidado: um mal súbito, desumano, fez parar o coração
da jovem professora Maria Ester, bem no pátio do colégio. Lajinha inteira acreditou que
ele voltaria a pulsar, ainda que lentamente, isso, porém, não aconteceu. Logo depois
daquele traíra e doloroso fato, deixei, para nunca mais volver, o Colégio de Lajinha.
Como não poderia ser diferente, antes de me debandar, desejei um bom descanso ao
quadro, ao giz, à mesa da professora, à sala e às carteiras, fiz as pazes com Josué e
Clarinha e desejei que voassem logo os filhotes de garrincha, que jaziam aninhados
debaixo da cumeeira da sala do 4º ano.
A professora de matemática caminhou rumo à Praça da Matriz ─ para mim ela
caminhou, não foi levada ─, onde havia uma escada espiralada escorada no tempo. Ela
pisou o seu primeiro degrau, depois o segundo, o terceiro, o quarto, e, com elegância,
galgou os demais. A perna direita antes da esquerda, depois a esquerda antes da direita,
compassadamente, e com a leveza e a beleza do caminhar de uma garça esplêndida e
chique. No vigésimo degrau, contei, ela parou. Apreciei-a e desejei-lhe dez estrelas
resplandecentes a acompanhando. Desejei-as iluminando a nova jornada da minha
professora. Antes de galgar os demais degraus aéreos daquela escada prateada e infinita,
ela me olhou cheia de saudades, acenou-me um adeus e sorriu-me um sorriso. Ah, que
sorriso! Somente quem possuía aquelas pernas possuía lábios para desenhar tal primor.
Se Dom Quixote estivesse ao pé daquela escada, certamente ele o roubaria de mim para
si, só para deitá-lo nos lábios da sua Dulcineia, pois, conforme a descreveu o engenhoso
cavaleiro, ela possuía virtudes prodigiosas e uma beldade incomparável e infinita,
todavia, para sorrir igual a professora Maria Ester ─ que me perdoe Cervantes ─, a
senhora Dulcineia del Toboso não tinha pernas.

Você também pode gostar