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KATARINA KARTONERA

Datados
[2014 / 2018]

juniores

FLORIANÓPOLIS

2022

1
Capa feita com papelão coletado na via pública de São Thomé das
Letras-MG e pintada à mão, em maio de 2022, no
atelier itinerante da
KATARINA KARTONERA

Datados
[2014 / 2018]

Editor responsável e projeto gráfico Evandro Rodrigues


Conselho editorial Sérgio Medeiros e Dirce W. do Amarante

SILVA, Arlindo Rodrigues da. Datados [2014 / 2018]. Florianópolis — SC.


Katarina Kartonera, 2022.

Agradecemos ao autor pela cooperação, autorizando a publicação deste livro.

www.katarinakartonera.wikidot.com

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição poderá ser reproduzida
sem autorização desta editora.

2
SUMÁRIO

Faz algum tempo (...), p.5


Datados [2014 / 2018], p.9
Sobre o autor, p.80
Sobre a editora, p.81

3
4
Faz algum tempo que surgiu, na Argentina, Buenos Aires, 2003, o
fenômeno editorial “cartonero”. A palavra tem origem em “cartón”,
papelão em espanhol. Os catadores de papelão são chamados de
“cartoneros”. Foi aí que Washington Cucurto, escritor, e Javier Barilaro,
artista plástico, criaram pela primeira vez o objeto livro feito a partir de
capa de papelão, “cartón”, com uma cooperativa de publicação de livros,
aliados aos trabalhadores “cartoneros”. Deram o nome de Eloisa
Cartonera: “Mucho más que libros”. Transformaram o lixo em luxo.
Publicaram escritores consagrados ou não, entre outros, Cesar Aira e
Douglas Diegues. Vendem as pequenas obras no atelier, instalado na
região onde está o famoso estádio do Boca Juniors. Também
comercializam os produtos pelas ruas, praças, bares, etc.
A iniciativa chamou atenção de leitores e da imprensa internacional.
Foram convidados a participar de inúmeros eventos, inspirando outros
agentes culturais, escritores, leitores, artistas e pesquisadores sem
fronteiras. Estiveram em 2007 na 27ª Bienal de São Paulo, em contato
com Lúcia Rosa, incentivaram na criação do coletivo Dulcinéia Catadora,
que destaca seus títulos mais relevantes Homens de Papel, de Plínio
Marcos (teatro), O Monstro e o Minotauro, de Laerte e Paulo Scott
(cartoon e poesia) e Auto-retrato aos 90 anos, de Manoel de Barros
(poesia).
Aos poucos, “brotam como flor na bosta da vaca”, diz Diegues, se
expandem pelos países da Sudaka Ameríndia até América do Norte,
Europa e África. Essas editoras perfazem em centenas, mais que centenas
de títulos publicados, com milhares de exemplares comercializados. A arte
contemporânea pede outras vias de passagem. Segundo o francês Nicolas
Bourriard, curador e crítico de arte, anuncia então projetos por espaços
públicos e privados, buscando sobreviver nas relações de contato e
convivência:

5
A questão não é mais ampliar os limites da arte, e sim testar sua
capacidade de resistência dentro do campo social global. Assim,
a partir de um mesmo conjunto de práticas, vemos surgir duas
problemáticas totalmente diversas: ontem, a insistência sobre as
relações internas do mundo artístico, numa cultura modernista
que privilegiava o ‘novo’ e convidava à subversão pela
linguagem; hoje, a ênfase sobre as relações externas numa
cultura eclética, na qual a obra de arte resiste ao rolo compressor
da ‘sociedade do espetáculo’. As utopias sociais e a esperança
revolucionária deram lugar a microutopias cotidianas e a
estratégias miméticas: qualquer posição crítica ‘direta’ contra a
sociedade é inútil, se baseada na ilusão de uma marginalidade
hoje impossível, até mesmo reacionária. Há quase trinta anos,
Félix Guattari já saudava essas estratégias de proximidade que
fundam as práticas artísticas atuais (BOURRIAUD, 2009, p.43).

Esse livro fetiche, em formato cartonero, que chamou minha


atenção, em 2008, para uma pesquisa de bacharelado, letras, na
Universidade Federal de Santa Catarina, fez nascer, no mesmo ano, a
Katarina Kartonera. Katarina se refere ao estado de Santa Catarina (BR);
Kartonera é uma referência ao modelo de produção dos livros. Publicamos
poucas dezenas de títulos, mas de alto nível, sejam escritores experientes
ou aqueles que buscam oportunidade para demonstrar seu trabalho ao
público. O conselho editorial, nossa referência, trata-se de Dirce Waltrick
do Amarante e Sérgio Medeiros. São reconhecidamente professores
titulares UFSC, escritores, tradutores e ensaístas. Este espaço é para a
poesia, como a poesia é para todos, “desde que se sustente”. Apresentamos
agora juniores, ex-colega de graduação, “irmão”, pesquisador, que há
muito tempo desenvolve suas habilidades tanto na escrita quanto pela
música, cantor e letrista. Amadureceu e inaugura aqui, para nosso prazer,
Datados [2014/2018]. Poesia.

Seja bem-vindo!

Do editor

6
“Todo me lo has dado, Señor.
Me diste a mi padre y la muerte de mi padre,
a mi madre y su muerte,
a mi hermano Juan y a su destino,
a Jorge, el verdadero y el fantasma,
a mi mujer, Chepita, y a mis hijos,
a mi cama me diste y a mis huesos
que reclaman más tiempo.
Me diste todo, sí,
y me he entregado
a vivir y a morir con calendario.
Sólo te pido que me dejes solo
a punto de las ocho porque es hora
de dormir.”

(Jaime Sabines, 1991: 489)

7
8
[26/09/14]
Eu preparo
um prato novidade
eu encarno a pedra
presente é passado
as preocupações voam
com as gotas de sabão
pano de prato
na panela lavada
lava lava lava
de pronto o pranto
de cebola que
passado é presente

[26/09/14]
O prato vazio
antes da refeição de não vem
o prato no armário
quando vai sair
dar-se ao mundo
o prato de esmalte carcomido
lembra
da comida de dias
e de noite cala
nos sonhos ecoa o arranhar
dos garfos aposentados
que, do fundo da gaveta,
roncam sem nenhuma culpa

9
[06/02/15]

o que me resta
ri
dessa miséria
que me testa

10
[12/03/15]

Paira o ponto no ar
no fim
de tarde
eu acordo pro mundo
mudo
de roupa e de cabelo
de olhar pesado
pesadesço
as escadas
e imagino o que seria
uma alameda
os pontos pairando
nem alados nem flutuados
no fim de tarde
guardando esse mistério
de não ter mistério algum

[12/03/15]

JAZZ
sinto essa confusão
fudida

11
[12/03/15]

Vou sair
só a porta impede
mas com jeitinho
eu peço
ela cede
e se torna cúmplice
desse tolo escapismo

[12/03/15]

Todo o resto -
este caroço
esta casca
esta gota no piso
este fiapo no sorriso -
me pertence

[12/03/15]

“Furniture” -
junto com “queue” -
é minha palavra preferida em inglês
há muitos anos
vi um gringo num palco
maravilhado
com a palavra “guardanapo”

12
[24/03/15]

Toda pedra
perda
toda perca
peco
todo preço
peço
todo prego
pego

noite e martelo

13
[02/09/15]

Não vou me adaptar


creio que não
porque crer é adaptar
se
somente se
a folha cai
isso deveria bastar
gostaria muito
de não crer
em folhas que flutuam

[02/09/15]

O caminho corre
uma corrida injusta
cada passo passa
mas o caminho fica
(pegada indecifrável
que a chuva enlameia)

14
[09/09/15]

A poesia é uma dor de barriga


você não pensa sobre
até ela acontecer

[09/09/15]

As asas recolhidas
não escondem
você ser um Anjo
seja bem-vindo
Estrela da manhã

[09/09/15]

para Gabriel Veppo

O turista -
sem acidente -
assemelha-se à paisagem

O turista -
incidentalmente -
assemelha-se à paisagem

15
[09/09/15]

Quando eu quis silêncio


saí por aí
pra ver
que o conjunto do mundo
é grande e pequeno
é azul e plano
e pulsa:
impossível música

[09/09/15]

A criança imóvel
o mundo sem margens
lágrimas plácidas

[09/09/15]

A educação
pela pedra
pela perda
perdão

16
[24/09/15]

Os gatos me seguem
pela casa
pelos muros
espreitam
atravessam a rua
quando é de noite
sabem meus destinos
gastam
suas sete ou nove
vidas
aparecendo e deslizando
sobre minha sombra
os gatos sabem
que quando sorrio
algo falta
mas fingem que tudo
está muito bem
eles piscam
olham à sua volta
e voltam pros becos
eu sigo -
seguido -
e alcanço a servidão
Saudade

17
[24/09/15]

Caminheiro noturno
vai que a rua é sua
é caminho de estrelas
é chão madrugada
oirado e perfumado
por essas mulheres -
flores trans -
tramas da noite
tecidos solares
sodomas e
salmouras
sexo e tédio -
na mesma moeda?

18
[27/09/15]

Quando eu era pequeno


eu podia ir ao altar
pedir licença a Cosme
e Damião
e pegar balas pra chupar

essa deve ter sido


provavelmente
minha maior conexão
com o sagrado

19
[29/09/15]

Seguir junto
nessa estrada
que se chama
solidão
rumo a todos
os corações
de partidas e chegadas

[29/09/15]

Mala é um saco
nela cabe o apenas

[29/9/15]

Vou soltar sua mão


vou voltar a fita
rever a trilha
brilhar de tarde
pra ninguém perceber
que pelas ruas
transita um fantasma
que me segue
e aparece
em todas as vitrines

20
[10/03/16]

Me movo com atenção


removo a carne desse prato
de fome
Paris nunca me foi
juiz de mim
nunca me fui
fui apenas o que não fui
um Sertanejo
[forte]
o sol
[forte]
o Cangaço
como instituição
o rio
seco
que corre em veias
secas
e seu curso me diz
de uma pele seca e árida
de um zanzar
desalojar
de represas
e presas fáceis
um
curso que
não para
para
conversa fiada

21
[03/05/16]

Universo
me vem à mente
um inverso simples
datado
ditado de estrelas -
extraterrestres
ets
etc.

[03/05/16]

Doce
de tudo
visível imediato
como pode tanto saber
nessa tarde de passeio
não adianta inventar
não adianta
a via vai pra lá
pra passar na faixa
tem que dar o passo
assim

22
[03/05/16]

Incrível
que no tempo
que no tampo
que no trampo
rompe a gota
e escorre e corre e cor
rompe a gota

e o sol invoca um tempo em que o mar era a casa

23
[06/05/16]

Uma imagem
sempre a margem
sempre à margem
do não visto
imprevisto
ruído branco
surdo
o ponto cego
não importa se
trezentos e sessenta

24
[06/05/16]

Sobre o Sol paira


um infinito se ofusca
a busca o bosque
o toque
a língua da linguagem
afora além
aflora
antes e depois
nada é durante
porque passou
o sentido é
e sentido
o mundo é
essa lacuna
{espaçamento}
movimento

o ciclope se acalma
ninguém passa
mas o nunca
{nunca} tem fim

25
[19/o5/16]

documento
doc
cu
memento
me
em
si
mento
:
ductibilidade

[19/05/16]

célula:
cédula:
onde circula
verdadeiramente
a vida

26
[19/05/16]

Num canto
a vida
de gaiola
violada
voou
voou
voou
vou ou

27
[25/05/16]

Acontece:
a qualquer momento
mono
de um lado
tudo igual
sereia do entulho
me chamou e não ouvi
prefiro Iara
que fala na cara
e encurrala
solidão é sólida
é trajeto
rio cinza e duro
nas margens, fuligem
fogem os bichos
com o som do canto
com o tom do tanto
o tato ausente
: encanto

28
[12/07/16]

Eu nunca fui ao espaço


pra saber se
o silêncio existe
entre homens e mulheres
e o farfalhar de olhares
a inundação
de gestos
é possível não ouvir
um sorriso?
onde uma alma encontra esse refúgio?
seria o silêncio
um refugo dos deuses
inalcançável
ou o silêncio é
tudo isso
tudo menos o barulho
tudo menos a voz
o silêncio seria
um nó?
ou um traçado
um salto sem pulo
o estanque do sentido
o sentido do nulo

29
[18/09/16]

Enquanto espero
perco o foco
esqueço as regras
deixo o leite derramar…

{a espera
esperar
não é algo que se aprende
no máximo
se entende…}

as regras que esqueço


as contas de um terço
como a vida
sementes
dormentes
sem água…

esperança

30
[18/09/16]

Nesses dias sombrios


eu faço eco
não serei um poeta
num mundo caduco
serei o poeta de
um mundo nenhum
não me interessam
fronteiras
só as línguas
no entanto
não me importa
porque chamam Terra
ao planeta
nesses dias sombrios
não cabem os nomes
todos os bois se
contam
bit bytes bulls
e numa praia
num lugar-país
do norte invertido
acendo essa lâmpada
e relembro o juramento
de não ser
nesse mundo
nada
que pareça soberba
ou inessencial

31
[23/08/16]

Eu vivo em pílulas
com horário marcado
alarme-relógio
minha identidade secreta
é secreta
de mim
de todos
a euforia contida de um riso
que eu não sei quem me emprestou
eu conto as gotas do relógio
e quando o monstro acorda
eu engulo a dose
e durmo
de cinco a seis horas-relógio
e acordo
pro pesadelo do ofício
que não sei
quem me deu
quem me empurrou
a dor de cabeça é só
sintoma
eu conto a conta-corrente
me aprisiono
sem vontade

sem rancor

32
[25/09/16]

É uma traição
a/os poetas
não darem títulos

[25/09/16]

Não posso mais celebrar


nada
não me permito
fico apenas
fictício
como quem vê passar
fantasmas de si mesmo
carregando medalhas
honrarias
que ferem o peito

o cansaço e a noite
se misturam
autobiografagia
que as pílulas resolvem

33
[26/09/16]

Eu não nasci pra demandas


nasci pra ser
esse torto
roto e desviado
desavisado
eu não vim
eu estou indo
e onde estive
é a medida do que deve ser medido
o tempo é a minha métrica
nem pra frente
bem pra trás
só o que me resta
é isso
esse pedaço de pão
esse sudário encardido
essa bula não lida
essa melodia tão escassa
esse pixel
esse fracasso
tão planejado

esse plágio

34
[03/10/16]

O que narrar
em manhãs todas nubladas?
o fio de sol conduz
a algum fim?
o que me contam
casas acordando
e corpos adormecidos
em pleno ofício?

35
[03/10/16]

Como ascender essa chama


fazê-la ser vista
revista
ser como um sol
verde
plena de esperança

os homens caminham
as mulheres caminham
o mundo é feito todo dia
{narrativa}

a quem cabe a divisão


do que é fruto
das sementes que eu
semeei
reguei
colhi
mas que não estão em minha mesa

esse sol verde


a quem anuncia
suas raízes
seus matizes
que em plena cortina de fumaça
faz continuar
a espera
esperando
na espera
se
pairando

36
[30/10/16]

Quanto vale a cabeça


de José
agora que ela está
na bandeja
temperada com ervas finas
com uma leve camada de óleo
é tentador falar
dos seus olhos ocos
José não existe
é só sabor
sem saber José
que faltou sal
no prato que se
preparou

[30/10/16]

Jornada
noite madrugada
janela morta
sem alma
requadro triste
no blackout
resiste esse fio de luz
artificial
como o sono que
às pílulas
abre seu caminho

37
[04/11/16]

Abro uma página qualquer e


me salta um qualquer
peixe
não-ornamental
salta-me o que é
elemento
afundo minha mão
no papel e há
um fundo viscoso
quem mora ali
uma mão que se levanta
cumprimento-estrela
sóis e sóis e “sois
somente um”
depois
de passar a onda do tempo
assevera a página
que o seu verso é ensolarado
e verborrágico
mas pra chegar lá
não existe caminho
ou atalho
só a mão - mãe -
do mar

38
[28/11/16]

Ideias amarelas
aladas
esse sol é só
memórias cinzas
cinzeladas
esse Bolor que
afeta o papel
esse Bolor
céu e mel
Bolor Bolor Bolor
não sol
Bolor que embola
minha língua
um dia minha língua provou
e se perdeu no labirinto
do Bolor

39
[06/04/17]

Como o rádio se parece com a morte


alguém distante que acena
antena atenta
como o rádio
se parece com a morte
todas as vozes
lounge
todas, às vezes,
longe
como me distraio
o rádio
como a morte
essa morte em ondas
constantes
me distraio de costa a costa
o rádio me custa muito
porque se parece
não comigo
como eu espero
o rádio se parece com a morte
e isso é algo
de que não posso duvidar
o rádio se parece com a morte

40
[17/10/17]

Eu sou um alvo
indescritível
sempre sabem
onde me acertar

[17/10/17]

Passa uma década


como minutos
as Horas
cansadas praguejam
demasiado esforço fazem
as pessoas
vão
carne de asfalto
fome de cão
o pão da padaria avisa
que é hora
e é hora
é hora
de tudo
menos de
começar

41
[17/10/17]

Sumiu uma alma do purgatório


então o purgatório
sumiu
e começou na cabeça das mulheres
e dos homens
uma ideia de humanidade
furada
ninguém vai mais ao inferno
já não se ia ao céu
os mistérios permanecem
pra quem quer
quem quer que seja
pode ser o milagre
esse truque esvaziado
que vaza
balão de fim de festa
metamorfose pra lavar
com água e sabão
neutro

ou de
coco

42
[17/10/17]

Nas malhas da tensão

a atenção

se

des

43
[09/11/17]

Quero o sol
e o que eu puder…
não se eleva nada
sem dor

[10/11/17]

Ó formas alvas
brancas e musselinosas
que me assombram
na voz negra d’O assinalado

44
[13/11/17]

Cada agulha
é um palheiro
cada poema
é um
ponteiro inerte
sem de morte
precisão
previsão

[13/11/17]

Cabeças cabeças
cabeças
serão almas
serão
mortuários
peças de um museum
num futuro esquecido

45
[28/12/17]

Sou um homem
quase
poeta
quase
fiz uma música
quase chiclete
e agora
quando me pedem pra cantar
quase engasgo
rio amarelo
e
quase não sei o tom
pra pedir desculpa

[28/12/17]

Não seria difícil


cantar aquela canção
mas canção é coisa de acadêmico
ou de criança
o que rola solta
é a música
e música tem estilo
e não gênero

46
[28/12/17]
Não é preciso apagar a luz
nosso relógio
não tem hora
eu fecho os olhos
e tudo está iluminado
pelas velas das almas
talvez
pelo amanhecer sem aviso
pelo rio de sol
dos olhos
da única testemunha
um homem cego
uma mulher mágica

nesse mundo ninguém sente falta


da fartura das trevas
da sua textura esponjosa
carne suculenta
da sua sintaxe
que só casa
com a dos amantes

há uma onomatopeia
de puro brilho
que morre e morre
entranhada
nas gargantas dos anjos

faça-se o breu

47
[28/12/17]

Um espectro -
lá fora, as cores de
uma bandeira
com a qual brincam
os velhos crianças
mimados
cá dentro, uma raiva
sem alvo
pois pra todos os lados
voam os patos

[28/12/17]

As retas
as arestas
os cristais na mesa
um sonho de ateliê
morsas
e madeira
metal e parafusos
ferramentas em punho
e toda essa lembrança
que não se tornou
mobília

48
[28/12/17]

Todas as pontes do mundo


vão pro lado de lá
não tem volta
porque sempre é caminho a seguir
ir reverso
um nem foi
seria
melhor
mas lá estão as pontes
ou melhor
cá estão as pontes
ou ainda
cá estamos
nós
balançando
vindas e idas
pro lado que é sempre
um só

49
[28/12/17]

Eu fujo do mundo e me escon


do atrás desse muro de vidro
sou todo ouvidos e frames des
focados mas sou stéreo essas
linhas minhas linhas não falam
disso porque é banal o meu se
ntir diante de quem finge que
não sente remorso ontem eu
sentei a semana inteira papel
e caneta na mão essa tinta
é na verdade verde e não fa
z sentido a não ser que tudo
renasça sem morrer

50
[29/12/17]

(A doença pode ser


você
casca purulenta
acne inflamada
um mal que fere
olhares
e que mata de dentro
- de você -
pra dentro
- outros -
passe uma pomada
tome uma cápsula
ou corte o mal pela raiz
livrai-nos do desprazer
de morrer dia a dia
pelo teus olhos
cansados:
estamos)
Boa noite e até amanhã!

51
[29/12/17]

Acordo
estando acordado
é a noite que se estende
os sinais chegam
o sol não passa
pela espessa cortina
a tevê permanece
ligada
na minha imaginação
o corujão
nunca acaba

52
[29/12/17]

Admiro quem cria


com os cacos alheios
o novo cheirando a cola
o mofo saboroso
tantas referências
-
e intertextos
-
interferências pensadas

eu só consigo fazer
pastel de vento

e eu tento tanto
que me dá até
azia

53
[29/12/17]

Essa caneta descreve


o tédio com tanta
precisão
que é preciso esquecê-la
lá no fundo do papel
castigo, por
assim dizer,
tão irrealizado,
o mundo

54
[29/12/17]

Nada derreterá o sol


porque o tempo
que passa pra nós
é um cisco pras estrelas
nada derreterá
essas mãos
enquanto elas puderem guardar
os trapos que as
sombras da noite
esquecem pelo mundo
afora

55
[29/12/17]

Desnoite:
tudo
que pode
acontecer
deve ficar
no guarda-volumes

[29/12/17]

Pedra
terra
raiz
impossível anular essa
voz

56
[29/12/17]

Um coração cheio de agulhas


fora do corpo
pulsando
quem colocou meu coração
no meio-fio
com etiqueta
e título
e preço a combinar?
pra mim
só a calçada
a pausa do semáforo
e a dor
de um passeio calmo

57
[29/12/17]

Confundo as pedras
qual será valiosa?
pedras são como vinhos?
o rótulo define o valor
boca
nariz
olhos
alguém escuta as pedras
antes do esmeril?
tenho ouvido
mas
só escuto a mim mesmo

58
[30/12/17]

A chuva cai
- já é dia trinta -
e estala
como labaredas
lambidas de tinta
na ferida aberta
da vida
o sopro veio
do mar
a vida alerta
voltar também é
caminhar o meio
certeza são cinzas
como as transições
em Escher

quem daria a vida


por uma vida
sem repetições

sem meio termo


a roda gira
a terra gira
a pomba voa
e nunca toca
o solo
nunca toca

59
pois a flauta é oca
sem o ar
da vida doada

quem daria a vida


por uma vida
sem restrições

são camadas
dessa pele que chora
sem hora de parar
não importa
o quanto doa
e se repita
crepita a chuva
e é sempre a
mesma
o mesmo gesto
o musgo
a flor que se abre

quem daria a vida


por uma vida
sem resoluções

os titãs se levantam
o titânio os contém
lendas são lentas
para surgir

60
para parar
para sumir
como a chuva
que é uma ideia
que não se vai mesmo
quando não vem

quem daria a vida


por uma vida
sem revelações

o fogo tem voz


numa língua distante
que nunca entenderemos
sem momentos ausentes
mas sempre estamos
abertos aos domingos
e feriados

negociando férias

(quem
já entendeu a voz
aquela voz do fogo
já estendeu as mãos
e saudou a chuva)

61
[31/12/17]

Querer morrer sozinho


é uma ambição
nunca se está sozinho -
até a última sinapse -
quem sabe
morrer
morre junto
mãos entrelaçadas
até a última
gota -
metáfora da vida -

quem quer nascer


de novo
e de novo
não precisa saber
nada -
mapa da memória -
basta estar na hora
e lugar
marcados
um mercado
de pulgas -
balança do Universo

62
[31/12/17]

Devemos caminhar leves


sobre a Terra
copular o barro
brotar flores
incandescentes
sabotar o acaso
com um plano simples:

andar de lado
e voltar de costas

63
[02/01/18]

Há na tela
um movimento que assombra
nunca se viu
tamanha virtude
em verdade, nunca se viu
o monstro da caverna
na tela
o horror herda a tez
a tela é espelho
nela te vejo
e repito
a pantomima sórdida
uma bomba atômica
não mudaria uma vez
o fantasma
alegoria
a mancha no pano de projeção

64
[02/01/18]

Era uma farsa


teu nome
e algumas palavras
num papel
-
nunca falei que cheiroso
-
não eram você
-
que alguma vez encarnei
-
eram ecos de mim
retornando tarde
-
nem um pouco me entrego
-
batendo na cara ao entrar
-
sentando direto no sofá
-
e sem esforço
empurrando na garganta
-
corredor da alma
-
tudo que a agulha no
vinil
não captou
-
agonia doce do adeus

65
[03/01/18]

O poder das estrelas


o poder de uma estrela
é brilhar
até não mais poder
e depois cair
em sérias tentações
continuum
essa série
de desventuras
até onde nenhum

mais esteve
uma estrebaria
galáctica
onde apeiam
vilões
anti-heróis e gente comum
viajantes
que vão e vêm
que veem estrelas
o tempo todo
mas o grande enigma
que me persiste:
de onde vem o ar
que essa gente respira

66
[03/01/18]

Quando a humanidade crescer


demais
não haverá espaço para
todos
apenas poucos poderão
ir para o espaço
e a geleia de corpos
vai ser feita lá
e aqui
nós não nos ligamos ainda
que pro Cosmos
não importa o sabor

67
[03/01/18]

Uma mente desconectada


vale mais
palavras
que mil

Uma mente desavisada


devassa um mar
de mil
imagens

Uma mente criptografada


não vale menos
que um
bitcoin

68
[05/01/18]

Unhas
são constelações
nos mostrando a passagem
do tempo
unhas não têm volta
apontam o futuro
são feitas
de puro passado
não deixam
furos e são
marcas da vida
de cada universo
e são camadas um
sambaqui
de memórias
unhas não contam histórias
elas são
você
eu
o Cosmos
enquanto são varridas
pra debaixo
do tapete

69
[10/01/18]

Quando a coisa saiu dos trilhos?


os filhos das filhas
de deus
tiveram certeza e
elas foram tomadas
tal qual uísque barato
ratos rondaram a cara
do rei
o ornamento era
a pele
pelos cantos a peste
pelos olhos da plebe
lágrimas negras
nos campos de batalha
as máquinas
nos céus
os drones
o dedo de deus no
botão que dizem vermelho
a falta de juízo
afinal
sempre faltarão dois
minutos

70
[21/06/18]

Nesses dias em que


eu penso em
pôr fim a
tudo
eu ouso dizer ou
gritar de dentro
por dentro
porque ela escuta
eu ouso declarar que
por mais que ela
marque pesado
meu domínio é preciso

a vida, por mais


que seja dura
não supera a minha
ossadura

71
[12/06/18]

Eu sempre falo do caminho


como um caminho algum
leva a lugar nenhum e,
num lugar comum, se
você quiser, caminho em
alto e bom som se,
assim sozinho, alcanço
um balanço e faço, do
aço e concreto, um lugar
de descanso

72
[19/06/18]

Faço pausas para rever


rever
em reverso
verso sobre tudo e
sobretudo eu
ainda não tive
sinal que ative enfim
o final da frase
em que estive
sim
só corre o que socorre
de fato
só foge o que esconde
no mato a alma
e encarna no nó
que escorre em
escarlate
como a língua do cachorro
que esconde o choro
que choro quando late
em desespero que
revela
toda a ausência que cabe
nessa noite que ele
impaciente
vela

73
[21/06/18]

Associo coisas
a coisas e coisas
nenhuma
é a mesma coisa
só o fato de ser tão
possível
só o olfato impossível
desse cão
já enche de medo
todas as coisas
mas o que o cão não
sabe
são as palavras das
coisas
o cão não sabe da
seiva
de som com cor e letra
do cinza da gaiola
sabe
o apertado da coleira

74
[26/07/18]

Não há sono
se alguém morre agora
se há o sol banhando do lado de lá
um bêbado e
uma criança ao mesmo tempo
eu economizo
porque acho que se morre
alguém
não há sono no
além

75
[25/11/18]

Tão cedo o azedume


se declara e,
cara, resume-se a
isto e
isso aqui:
o peso das eras
assim como eras
pedra
e viraste amor
assim como era
ardor
e a dor foi o que
se viu em seus olhos
que eram olhar
e hoje, sãos, são
o oco
e pouco a pouco
somem os sons
do delírio urbano
um ano e já era
se foi
pra longe
mas não por um caminho
tão longo.
Tudo se traduz nessa luz
verde
que te impele a não mais
parar

76
[25/11/18]

Muito trabalho dão


as lutas
assim
como as frutas

77
[25/11/18]

Eu queria uma

ilha

isolada de tudo
que é meu

eu queria o
cálice

a certeza

eu queria ter
o poder de
poder ter

paciência

a espera é uma

ilha

ocupada
pelas saudades incuradas

78
São José da Terra Firme / SC

2014-2018

79
Sobre o autor

juniores é um mineiro de Brasília


radicado em Santa Catarina há mais de vinte anos,
é licenciado em Letras
pela Universidade Federal de Santa Catarina,
mestrando no PPGLit-UFSC
e curador do projeto Tenda Literária
contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle 2019.
Desde 2006 atua como professor na rede estadual catarinense.
Compositor em hiato criativo.

80
Sobre a editora

Os livros da Katarina Kartonera são basicamente feitos à mão,


exclusivos, frutos de uma consciência político-social de inclusão, que
recicla materiais, como os papelões, recuperando-os ecologicamente e
vinculando na produção e comercialização a participação de escritores,
catadores e interessados por confecções de livros artesanais.

KK

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82
KATARINA KARTONERA

Coleção de poesias e narrativas contemporâneas

Ficou gemendo pero ficou sonhando (transcruz&sousainvencione al


portuñol selvagem), Douglas Diegues, 2008; O Sexo Vegetal, Sérgio
Medeiros, 2009; Peças Sintéticas, Dirce Waltrick do Amarante, 2009; O
Gato Peludo e o Rato-de-Sobretudo, Wilson Bueno, 2009; Contos
Maravilhosos, Kurt Schwitters (Tradutores: Maria Aparecida Barbosa,
Walter Sille Krause, Heloísa da Rosa Silva, Gabriela Nascimento
Correa), 2009; A Carne do Metrô, Rodrigo Lopes de Barros, 2009;
Sempre, Para sempre, lá e cá: Poemas de Velimir Khlébnikov (Trad.
Aurora Bernardini), 2009; Arte e Animalidade, Coleção de textos sobre
arte e animalidade. Organizadores: Ana Carolina Cernicchiaro, Evandro
Rodrigues e Sérgio Medeiros, 2009; Os Chuvosos, Wilson Bueno, 2009;
Fio no Pescoço, André do Amaral, 2009; Lo que ocurre en silencio,
Andrew Bernal Trillos, 2010; Las Putas Drogas, Cristino Bogado, 2010;
Triplefrontera Dreams, Douglas Diegues, 2010; Bafo e cinza, Sérgio
Medeiros, 2010; Dez Romances Breves, Luiz Roberto Guedes, 2010;
Mulher Asfalto, Alain-Kamal Martial (Trad. e adapt. Lucrécia Paco), 2011;
Figurantes, Sérgio Medeiros, 2011; Trajeto Kartonero, Evandro
Rodrigues, 2011. Poços, Wiliam de Oliveira, 2012; XupandoXilokona—
xô®xêka— miniantolojia autoerôtika provisoria, Jorge Canese, 2012;
Anúncios, Adolfo Montejo Navas, 2012; As metades do corpo, Ricardo
Aleixo, 2012; Receitas. Edward Lear (Trad. Dirce Waltrick do Amarante),
2012; Deliranjo. Charles A. Perrone, 2013; Histórias do Córrego Grande,
Leandro Durazzo, 2015; Sinapse, Nunes Zarel·leci, 2015; Mínima Alice,
Wilson Bueno, 2015. Ahô-ô-ô-oxe, Amador Ribeiro Neto, 2015; A Ovelha
Negra, Mily Schabbel, 2016; O Menino da sua mãe, Djami. Sezostre,
2016; O gato e el diablo, James Joyce. Tradução Félix Lozano Medina,
2019. Ojepotá e outros três tristes contos tétricos, MORAIS, Alison
Silveira (Org.) et al, 2019. Delicadezas, Clélia Cardoso Camargo, 2020.

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Este livro foi impresso em fonte Georgia.

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