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“Tempo”, Tinta, Papel e Palavras

(por Taís Diniz Martins)

“Ao Edgard Cavalheiro para o seu espírito de “elite”


com um abraço do amigo Guilherme de Almeida.
7. XII. 944”

Foi em uma quinta-feira nublada de lua nova que Edgard Cavalheiro e Guilherme de Almeida se
encontraram.

Não sei dizer exatamente onde isso aconteceu nem em que circunstâncias. Os únicos indícios
que possuo deste encontro são os rastros deixados pelos grandes amigos do tempo: tinta, papel
e palavras.

Sabemos que os dois não se encontraram na Casa da Colina, que recentemente tive o prazer de
visitar, pois Guilherme passou a residir nesta casa a partir de 1946. Talvez tenha sido esta a sua
noite de autógrafos, talvez tenham se encontrado por mero acaso, ou então em uma das
reuniões em que Guilherme congregava seus afetos.

Até agora não temos como saber esta informação.

O que me fez subir a Colina? Outra vez eles, os amigos da memória e do tempo: tinta, papel e
palavras. Sou uma das alunas do último curso que foi oferecido pela Casa Guilherme de Almeida
em seu espaço complementar, em atividade desde março de 2014, e que a partir deste ano
infelizmente será desativado.

Que privilégio eu tive - que privilégio eu tenho! -, de ter sido orientada por Marlene Laky a cuidar
e fazer reparos em livros da maneira correta, oferecendo-lhes toda a dignidade que eles
merecem.

Marlene em algum momento disse-nos que livros têm memória vegetal. Ela se referia ao
comportamento físico-químico do papel enquanto substância, mas isso me levou a outro lugar -
ao lugar da relação intrínseca e indissociável entre livros e árvores.

Este exemplar, livro-semente, foi plantado há 79 primaveras. Era 1944 e meu pai nem havia
nascido, mas o exato momento do encontro entre Edgard e Guilherme semearia meu futuro.

Os dois nunca souberem disso nem sequer poderiam imaginar, e acho que esse é o exemplo
perfeito para entendermos como todas nossas ações, inclusive as mais simples, podem impactar
a vida de outra pessoa em um tempo indeterminado.

É como se nossas ações ficassem suspensas no ar reverberando, até que um dia, por algum
motivo desconhecido algo acontece, e tudo toma forma novamente voltando a ser matéria.

Quando Edgard Cavalheiro abriu a porta da sua casa e foi ao encontro de Guilherme, abriu
também uma janela - a minha janela. Saímos nós dois juntos naquele dia - quase que de braços
dados. E Guilherme, quando pôs o último ponto de tinta em sua dedicatória, estava na verdade
selando o meu destino.

Há alguns anos procurei exaustivamente um livro de Guilherme de Almeida que tivesse sido por
ele autografado. Queria presentear um grande amigo, outro Guilherme de Almeida, que recebeu
este nome de sua mãe, professora de literatura, em homenagem ao Príncipe dos Poetas.
O exemplar que parou em minhas mãos pertenceu a Edgard Cavalheiro e deveria estar reunido
aos outros tantos livros que pertenceram a ele, e que hoje estão no CEDAE/UNICAMP. O Dr. Sílvio
Tamaso D’Onofrio, biógrafo de Cavalheiro, conta a trajetória deste exemplar - no decorrer do
século XX -, no artigo que escreveu e que hoje acompanha o livro.

Meu amigo Guilherme e Sílvio, que também tornar-se-ia um grande amigo, são os maiores
responsáveis pelo meu retorno ao mundo acadêmico e literário, entre tantas outras mudanças
significativas que ocorreram em minha vida. Conhecê-los foi obra do acaso, assim como creio
seja também obra do acaso este exemplar ter parado em minhas mãos.

Hoje estou aqui onde um dia Edgard Cavalheiro e Guilherme de Almeida viveram. Ando pelas
ruas por onde andaram, sob o mesmo céu do coração pulsante do Brasil. Se pudesse dizer algo
a estes dois brasileiros com trajetórias de vida excepcionais, diria que aproveitei a oportunidade
que deixaram para mim.

Abri a janela, vi o que precisava ver, vi como tudo pode ser sempre muito mais bonito do que
ousamos sonhar, tal qual cantam os poemas ao atingirem altas voltagens líricas.

O que faz este exemplar ser especial entre outros iguais são as histórias que ele carrega, esse
emaranhado de vidas, destinos e caminhos que se cruzam e se distanciam, deixando raízes
firmes e sólidas de amizade e irmandade.

“Tempo” é semente germinada da mente radiosa de Guilherme de Andrade de Almeida.


Pertenceu a Edgard Cavalheiro, brilhante operário das Letras, ao seu biógrafo Dr. Sílvio D’Onofrio,
ao arquiteto e historiador Guilherme P. de Almeida e a mim.

Eu, Taís, na condição de sua última guardiã, entrego o “Tempo” ao museu biográfico e literário
Casa Guilherme de Almeida, lugar que acredito ele deva estar para que passe a pertencer não
mais somente a mim, mas a todos nós.

São Paulo, 16. IX. 2023.


A Rua das Rimas
(in Tempo, pg.232-3)

A rua que eu imagino desde menino para o meu


[destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos
[portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, tôdas elas belas, singelas,
[amarelas,
doiradas, descabeladas, debruçadas como namo-
[radas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de
aço, baço e lasso;
e algum piano provinciano, cotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando de vez em quan-
[do,
na luz rala de opala de uma sala uma escala clara
[que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das
[crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampeões espiões os bordões dos vio-
[lões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata
[que me mata!);
e depois, o silêncio, o denso, o intenso, o imenso
[silêncio...
A rua que eu imagino desde menino para o meu
[destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer
[uma mulher que bem me quer;
é uma rua como tôdas as ruas, com suas duas
[calçadas nuas,
correndo paralelamente, como a sorte indiferente
[de toda gente, para a frente
para o infinito, mas uma rua que tem escrito um
[nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranquili-
[dade: RUA DA FELICIDADE...

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