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CONSELHO EDITORIAL

Ana Luisa Rocha Mallet - Universidade Federal do Rio de Janeiro


Bethânia Assy - Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro
Carlos Dimas Ribeiro -Universidade Federal Fluminense
Carolina M. P. Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Cinara M. L. Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria A. Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Diana Perez - Universidad de Buenos Aires | Argentina
Diogo G. V. Mochcovitch - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Guilherme Dias da Fonseca - Université Clermont Auvergne | França
José Sérgio Duarte da Fonseca - Universidade Federal do Piauí
Letícia Gonçalves - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Luciana Simas C. de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Luan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Murilo Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi - Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Ioris - University of Denver | Estados Unidos
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Copyright desta edição ©2019 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda

Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004


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contato@apeku.com.br
www.apeku.com.br
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

R813e Rosendo, Daniela (Org.).


Ecofeminismos: fundamentos teóricos e práxis interseccionais /
Daniela Rosendo, Fabio A. G. Oliveira, Príscila Carvalho, Tânia A.
Kuhnen (Org.). – Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019.
232 p.; 23 cm.

ISBN 978-65-80154-11-1 versão digital


ISBN 978-65-80154-12-8 versão impressa

Inclui bibliografia.
1. Ética (Filosofia moral). 2. Feminismo. 3. Ecofeminismo. I. Título.

CDD 170

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Dedicado à memória de
Marielle Franco e Berta Cáceres
SUMÁRIO

PRÓLOGO
Sandra Guimarães

APRESENTAÇÃO
Daniela Rosendo, Fabio A. G. Oliveira, Príscila Carvalho e Tânia A. Kuhnen

PARTE 1
fundamentos teóricos do ecofeminismo

CAPÍTULO 1
A contribuição do ecofeminismo para a ética animal
Marti Kheel (in memoriam)

CAPÍTULO 2
Ecofeminismo: una alternativa a la globalización
androantropocéntrica
Alicia H. Puleo

CAPÍTULO 3
De la lógica de la dominación al respeto y la empatía: hacia
una relación ecofeminista con los animales y la naturaleza
Angélica Velasco Sesma

CAPÍTULO 4
Por um ecofeminismo animalista: contribuições de Carol
Adams e Greta Gaard
Mayara Carrobrez e Patrícia Lessa

CAPÍTULO 5
Dominação e sofrimento: Um olhar ecofeminista animalista a
partir da vulnerabilidade
Daniela Rosendo e Ilze Zirbel
PARTE 2
práxis ecofeministas interseccionais

CAPÍTULO 6
A inserção do Ecofeminismo no contexto acadêmico
brasileiro
Daniel Kirjner

CAPÍTULO 7
Um projeto ecofeminista para a complexidade da vida
Janyne Sattler

CAPÍTULO 8
A Perspectiva dos Funcionamentos: entroncamentos entre
ecofeminismo e decolonialidade
Maria Clara Dias, Suane Soares e Letícia Gonçalves

CAPÍTULO 9
Conhecimento e luta política das mulheres no movimento
agroecológico: diálogos ecofeminista e descoloniais
Maria da Graça Costa

AS AUTORAS E OS AUTORES
PRÓLOGO
Em 2017, um acontecimento me fez compreender definitivamente a
conexão entre a opressão humana e não-humana. Fato que me levou, no
ano seguinte, a me interessar pelo ecofeminismo e, principalmente, por
sua vertente animalista.
Eu estava entrando no campo de refugiados de Aida, em Belém
(Palestina), quando um gato, saído de uma janela com um pedaço de
galinha na boca, atravessou correndo o meu caminho. Sem refletir muito,
me aproximei da janela a qual ele havia saído e o que vi me chocou em
vários sentidos. Descobri um porão escuro e abafado, onde uma mulher
abatia uma galinha. Ela me olhou sorrindo e eu sorri de volta; mas meu
sorriso desapareceu quando percebi que uma das paredes daquele porão
estava coberta de gaiolas, umas por cima das outras, cheias de galinhas.
Elas eram todas brancas, um tipo de frango produzido exclusivamente
para abate. Quase sem penas, com a pele ferida e as patas deformadas,
amontadas por cima de suas companheiras e presas em gaiolas
minúsculas. Parei de respirar por alguns segundos ao perceber que a
mulher, ainda sorrindo, abatia as galinhas na frente das companheiras
engaioladas, que teriam o mesmo destino.
Continuei o caminho com o coração apertado e me sentindo muito
mal. Eu estava indo para a casa de Islam, uma amiga palestina com
quem trabalho há anos. Pensei que chegando lá contaria o ocorrido e
tentaria abrir uma discussão sobre opressão não-humana com ela e,
quem sabe, talvez levasse o assunto aos ouvidos da vizinha que possuía
o abatedouro no porão.
Mal tive tempo de cumprimentar minha amiga quando ela avisou que
tinha algo urgente pra resolver fora de casa, mas que eu ficasse à
vontade. Fiquei ali, tomando o chá feito por ela, na mais completa
incompreensão. Islam voltou meia hora depois, sentou-se ao meu lado e,
enquanto servia-se de chá, explicou-me o que tinha ido fazer. Descobri
que no exato momento em que eu me espantava com a situação cruel
das galinhas naquele porão escuro, soldados israelenses invadiam o
outro lado do campo de refugiados. O lado onde fica o campo de futebol
e o parquinho, únicos espaços de lazer das crianças. Os meninos
jogavam futebol e os soldados atiraram gás lacrimogêneo neles antes de
invadirem o campo. Mahmud, filho de Islam, conseguiu escapar, mas
várias crianças foram detidas pelos soldados, a mais nova tinha apenas 7
anos, dentre elas estava Abdala, 16 anos, sobrinho de Islam. Cheguei à
sua casa no exato momento em que a notícia de que o sobrinho tinha
sido detido pelos soldados chegava aos seus ouvidos. Como a cunhada
de Islam, mãe de Abdala, não estava em casa, ela foi correndo tentar
resgatar o sobrinho. Segue o que ela me contou enquanto bebia o chá e
retomava o fôlego: “Ao chegar no portão da base militar israelense dentro
do campo, para onde os soldados levam as pessoas detidas, encontrei as
mães das outras crianças já no local, gritando para os soldados liberarem
as crianças. Eu fiquei com medo dos soldados jogarem gás lacrimogêneo
na gente, pois eles sempre fazem isso quando nos aproximamos do
portão e você sabe que sofro de asma e posso morrer sufocada por
causa desse gás. Mas eu não podia deixar Abdala ser preso. Como eu
era a única mulher ali que falava Inglês, aproximei-me do soldado que
abriu uma janelinha no portão e falei pra ele soltar o meu filho. Você sabe
que quando uma criança palestina é presa pelos soldados se torna o filho
ou a filha de todas as mães daqui. Expliquei que meu filho não havia feito
nada de errado, apenas jogava futebol com as outras crianças e que
nenhuma delas merecia estar presa. O soldado riu e disse que sabia que
as crianças não tinham feito nada de errado, mas que continuariam
detidas. Eu olhei nos olhos dele e disse: ‘Eu não tenho medo de vocês.
Ouviu? Eu não tenho medo de vocês! Vocês roubaram as terras dos
nossos avós, expulsaram nossas famílias de suas casas, ocuparam o
nosso país, roubaram nossos recursos. O que mais querem de nós?
Levar nossas crianças? Traga o meu filho de volta. Agora!’ Pela janela no
portão eu podia ver Abdala e as outras crianças algemadas, no meio de
alguns soldados. Depois de muito gritar e bater no portão com as outras
mães, o soldado trouxe Abdala. Mas do lugar onde ele estava detido até
onde eu estava ele veio apanhando. Os soldados continuaram batendo
nele até eu conseguir alcançar o seu corpo e trazê-lo pro meu lado. Sem
soltar Abdala, virei pros soldados e exigi que as outras crianças também
fossem liberadas. Um deles disse que já tinha devolvido o meu filho e
gritou pra eu ir embora. Mas depois de insistir com as outras mães, todas
as crianças foram liberadas. Abdala está em casa, esperando a mãe
voltar. Ele está coberto de hematomas. Meus joelhos ainda estão
tremendo.” Ela apontou para os joelhos trêmulos enquanto ria, não sei se
de nervoso ou de alívio. Provavelmente ambos.
Islam me contou que daquela vez tinha conseguido resgatar as
crianças, mas sabia que os soldados voltariam, provavelmente no meio
da noite, como é de costume. Ficava a certeza de que nada poderia
fazer para impedir o exército israelense de arrancar seu filho, sobrinhos
ou vizinhos de suas camas e os jogarem nos jipes militares que os
conduzem para serem interrogados sem a presenças dos pais, além de
torturados físico e emocionalmente, e presos sem nenhuma acusação
formal ou julgamento.
Depois de ter ouvido minha amiga narrar como tinha arriscado a vida
para resgatar as crianças do campo, eu não consegui contar para ela a
história das galinhas presas em condições cruéis, vendo as
companheiras sendo assassinadas e sabendo que seriam, em algum
momento, as próximas vítimas. As palestinas expulsas de suas terras,
amontoadas em campos de refugiados desde 1948, passaram a criar
galinhas nos porões de suas casas humildes como uma das únicas
alternativas para produzirem alimentos para a comunidade. Privadas da
terra, essas filhas e netas de agricultores viram nesse tipo de atividade a
única alternativa para alimentarem suas famílias, mas elas próprias, e
suas famílias, se encontram em uma prisão maior: a ocupação e
colonização israelense na Palestina. E sabem que a privação total de
liberdade, a tortura e a morte de seus entes queridos nunca estão muito
distantes. A pergunta nunca é se, mas quando.
Não há como separar o debate da emancipação humana do debate
da emancipação animal e do meio-ambiente. As relações entre
colonialismo, capitalismo e patriarcado e as consequências negativas
dessas ideologias na Palestina são as mesmas vistas em outros lugares
do mundo, incluindo o Brasil. O ecofeminismo animalista vem com a
missão de quebrar a relação instrumental que os seres humanos têm
com a natureza e propõe a construção de uma ponte conectando todas
as lutas antiopressão.

Sandra Guimarães
Feminista, cozinheira vegana potiguar,
ativista pela causa humana e não-humana,
escritora e autora do blog Papacapim
APRESENTAÇÃO
Ao longo dos últimos anos, no Brasil e no mundo, muitas pessoas
têm assumido um olhar feminista para pensar a questão animal e
ambiental em diferentes áreas das humanidades. A fim de contribuir para
que esse olhar se amplie e se consolide, esta obra de caráter
interdisciplinar reúne colaborações teórico-empíricas compondo uma rede
conectada de pensamento em torno do paradigma ecofeminista. A
presente coletânea procurou reunir trabalhos em diferentes linhas de
pesquisa, de forma que a base comum, e associada, que produz a
opressão e exploração de mulheres, animais não humanos e da natureza
fosse elucidada e considerada em sua extensão, amplitude,
complexidade e totalidade.
Entende-se que o pensamento ecofeminista, a partir de suas
diferentes abordagens, vozes, formas e localizações apresenta um
potencial teórico para pensar criticamente as relações humanas com
outros animais e com a natureza, bem como permite realizar um
diagnóstico e propor saídas para o não-lugar ocupado pelas minorias
políticas ainda assentadas em toda sorte de dominações e exclusões.
Apesar disso, os ecofeminismos ainda são pouco conhecidos e
estudados no âmbito acadêmico do Brasil e, quando emergem, acabam
geralmente ocupando um espaço à margem nos campos teóricos,
geralmente tomados por problemas e pensadores clássicos nas
diferentes áreas de pesquisa das humanidades. Talvez as mulheres
estejam mais próximas às atividades e engajamentos ecofeministas no
Brasil à medida que estão organizadas em sua maioria em movimentos
sociais. Porém, elas ainda não priorizaram uma expressão mais
demarcada no campo teórico acadêmico, embora as vizinhas latino-
americanas já sinalizem perspectivas decoloniais promissoras.
Diante desse cenário, e da existência de poucos trabalhos em língua
portuguesa que levem em conta as abordagens ecofeministas na análise
filosófica e sociológica de questões da ética e política animal e ambiental,
esta obra busca contribuir para ampliar esse debate. As questões
apontam as diferenças de raça, classe, gênero e espécie como fatores
agravantes das desigualdades sociais, além de formarem interconexões
entre esses modos de exploração, por meio da junção de diferentes
propostas de escrita individuais e coletivas, com seus respectivos
recortes teóricos pautados em contribuições desenvolvidas no âmbito do
pensamento ecofeminista.
Buscou-se, a partir de cada um dos capítulos apresentados,
constituir uma obra que represente a diversidade dos ecofeminismos por
meio da representação dos diferentes modos de pensar as conexões
existentes entre a dominação das mulheres, da natureza e dos animais
considerados individualmente, ainda que não se pretenda chegar a um
panorama geral acerca das produções ecofeministas. Assim, as
investigações, perspectivas e diálogo ora apresentados não se propõem
a oferecer um manual ecofeminista, tampouco dar conta de todas as
sutilezas, singularidades, originalidades e controversas expressas no
interior do pensamento ecofeminista. Menos ainda se busca formar uma
voz uníssona em torno do termo ecofeminismo. Não obstante, tratando-
se de uma visão conectada das opressões, procurou-se incluir a
opressão animalista, algumas vezes esquecida ou não contemplada em
algumas perspectivas ecofeministas.
Na tentativa de contrapor-se ao modelo de manutenção de
hierarquias de opressão, esta coletânea, ao reunir diferentes abordagens
do ecofeminismo, pretende contribuir ainda para superar a ausência dos
ecofeminismos no ambiente acadêmico, tornando mais conhecidas e
lidas as mulheres escritoras ecofeministas, que se ocupam tanto de
questões teóricas quanto práticas. Por isso, não se trata de uma obra
alinhada exclusivamente à filosofia ecofeminista, mas de uma tentativa de
alcançar, pelo menos em alguma medida, a integração entre teoria e
prática, amparada em leituras interseccionais. A epistemologia e a práxis
nas abordagens ecofeministas são construídas de forma inter-relacional,
conforme se pode observar nos textos apresentados ao longo desta obra,
o que corrobora o fato histórico de que o diálogo entre a teoria e a
prática, como forma de rejeição ao binarismos hierárquicos de valor,
sempre foi uma marca central do ecofeminismo. Nessa acepção, pode-se
perceber uma interação entre os capítulos, conforme serão apresentados
a seguir. Composta por nove capítulos, a obra se estrutura em duas
partes: a primeira possui cinco capítulos sobre os fundamentos teóricos
do ecofeminismo, ao passo que a segunda parte é constituída por quatro
capítulos sobre as práxis ecofeministas interseccionais.
Inaugurando a primeira parte, Marti Kheel (in memoriam) relata sua
trajetória de encontro com a questão animal e o caminho teórico
percorrido até chegar ao ecofeminismo, em um texto traduzido por
Daniela Rosendo. Trata-se de uma produção apresentada originalmente
em sua vinda ao Brasil em 2010, em uma palestra realizada em
Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina, no âmbito do
projeto Feminismo ecoanimalista: Contribuições para a superação da
violência e da discriminação, coordenado pela professora Dra. Sônia T.
Felipe. Ao longo de seu capítulo, Kheel procura salientar as contribuições
de uma ética do cuidado holista e ecofeminista para a ética animal. Para
tanto, considera a ética do cuidado fundamental para fazer frente ao
modelo dominante na ética ocidental que atua mais voltada para a
correção de danos do que na prevenção de situações que causem
sofrimento aos animais, bem como promovem a destruição ambiental.
Em contraposição à ética tradicional, ela propõe uma abordagem ética
pautada na prevenção de ações danosas por meio de práticas educativas
que estimulem a empatia em todos os seres humanos, sobretudo nos
homens que, em razão da formação de gênero que associa
masculinidade à violência, são em geral dessensibilizados e frustrados no
desenvolvimento de vínculos baseados na empatia. A autora desenvolve
seus argumentos em torno de quatro elementos-chave que representam
condições a serem satisfeitas dentro de uma ética do cuidado
ecofeminista, quais sejam: 1) priorizar a prevenção do dano à natureza
por meio do desenvolvimento da empatia para com outras formas de
vida; 2) avaliar ações morais a partir da reconstrução do entorno
contextual no qual tal ação se apresenta na forma de um problema ou
dilema moral em detrimento de comandos universais abstratos; 3) manter
o foco em atos de atenção paciente pautados no despertar de uma
consciência interna responsável; e 4) adotar uma prática vegana que
reconhece a alimentação como um ato com impacto social e político. A
partir desses elementos, é possível caminhar para uma sociedade de
não-violência para com todos os seres vivos.
No capítulo desenvolvido por Alicia Puleo, a pensadora parte do
diagnóstico contemporâneo da devastação ambiental - que resulta na
intensificação sem precedentes das mudanças climáticas-, para sustentar
um outro mundo possível direcionado para uma ecojustiça que proteja os
mais vulneráveis dos efeitos negativos desses processos, inclusive os
animais não humanos até então domesticados e escravizados, bem como
os silvestres extirpados de seus ambientes naturais de vida. Fazendo
frente à desconfiança que foi atrelada ao termo ecofeminismo, Puleo
apresenta uma proposta construtivista descolada de conceituações
essencialistas que ainda se filiam ao antropocentrismo. A concepção da
autora contempla a reivindicação da preservação dos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres; a defesa de uma tecnologia e um
conhecimento científico compatível com o princípio da precaução e à
conscientização sobre o pertencimento ao tecido da vida múltipla e
multiforme do planeta. Puleo propõe que a diferença cultural seja tratada
em sua dimensão de troca e aprendizagem intercultural, sem veneração
ou hierarquia, ao mesmo tempo em que se procura eliminar diferentes
formas de opressão internas às culturas. Além disso, Puleo chama a
atenção para a necessidade da sororidade entre as mulheres, cabendo
às habitantes do Norte a consciência de que a pujança de suas
sociedades advém da exploração das sociedades do Sul que prejudica,
sobretudo, mulheres e crianças; assim como o desvelamento da lógica
androcêntrica a partir da qual se mede o valor de tudo. Em seu lugar,
Puleo propõe a valorização da empatia e de práticas do cuidado
responsável nas inter-relações entre humanos e nas relações dos
humanos com membros das demais espécies. Ainda especificamente
com relação aos animais não humanos, Puleo destaca a necessidade de
o feminismo se unir ao animalismo para desafiar a ordem patriarcal
especista e buscar relações livres de violência e exploração entre
humanos e os demais animais.
Ao se filiar à concepção teórica ecofeminista de Alicia Puleo, no
capítulo três Angélica Velasco Sesma explora as conexões entre os
sistemas de opressão que tornam o especismo antropocêntrico e o
sexismo patriarcal igualmente condenáveis e associáveis através do que
chama de ideologia da subordinação-dominação-exploração. Ao fazê-lo,
Sesma chama atenção para a ineficácia e incoerência do isolamento dos
movimentos em defesa animal e dos movimentos feministas. A autora
mostra que já entre algumas feministas sufragistas havia uma
preocupação com o sofrimento animal, ao passo que em outras
feministas mais teóricas tal preocupação não aparece. Sesma endossa a
contribuição de Carol Adams em evidenciar a similitude entre a
dominação das mulheres como objetos sexuais e a de animais não
humanos como objetos comestíveis, assim como destaca sua análise
sobre a violência e opressão autorizada pela feminização dos animais
não humanos e animalização das mulheres, que Adams conceitua de
antropornografia. O argumento de Sesma para tornar indefensável o
sofrimento animal é a condição senciente da natureza animal. Além
disso, pensando o especismo como o estabelecimento de uma visão de
superioridade, hierarquização e dominação, a autora reúne esforços para
demonstrar que para combater as formas de violência contra as
mulheres, estruturais e culturais, é preciso combater a lógica que
sustenta tanto o patriarcado como o especismo. Esses sistemas de
dominação seriam regidos por uma lógica conceitual que permite aos
homens se autoproclamarem como superiores e se portarem como
dominadores opressivos em nível estrutural, tanto com relação aos
animais como com mulheres. Contra essas estruturas opressivas, Sesma
apresenta a defesa da paz sustentada por uma noção de justiça
associada à Ética do Cuidado, desenvolvida pela teórica Carol Gilligan.
Devido ao fato de seu enfoque contextual e relacional ser capaz de
atribuir valor à empatia, a não violência etc., Sesma atribui ao cuidado o
status de virtude ética universalizável para mulheres e homens. Para a
autora, complementando a Ética da Justiça, centrada nos direitos, a Ética
do Cuidado é uma Ética das Virtudes. Originalmente desenvolvida por
Aristóteles, a Ética das Virtudes na forma proposta por Sesma é
defendida como apoio para o desenvolvimento do caráter, considerado
pela autora indispensável no engajamento humano para a construção de
uma cultura da paz. Por essa, razão ela conclui que as éticas feministas e
animalistas deveriam tomá-la como central. Concluindo que a cultura da
paz não será possível enquanto houver opressões e injustiças, a autora
enfatiza a urgência de desenvolver relações ecofeministas baseadas no
respeito empático, na ética do cuidado, na consciência da interconexão e
interdependência entre natureza e todos os animais e na ruptura com o
androcentrismo, o classismo, o racismo, o especismo e com qualquer
forma de opressão.
No capítulo quatro, escrito por Mayara Carrobrez e Patrícia Lessa,
parte-se do reconhecimento multidisciplinar dos feminismos, para
apresentar o ecofeminismo como um questionamento ao dualismo
antagônico homem-cultura e mulher-natureza. A proposta é enfatizar que
apesar de ser um produto da construção ocidental patriarcal, as mulheres
poderiam subvertê-lo ao ocupar a parte cultural do dualismo que as afeta
mais profundamente ao redor do mundo, colocando em questão sua
subjugação, assim como a da natureza. Com o objetivo de pensar um
feminismo vegano, as autoras destacam as contribuições das
ecofeministas Greta Gaard e Carol Adams, que dialogam entre si pela via
da problematização da exploração dos animais como uma face do
dualismo cultura-natureza. Gaard contribui com a defesa de uma dieta
vegetariana, cuja ruptura com o dualismo hierárquico desautoriza
também a dominação dos animais. Além disso, a autora é referida por
defender um ecofeminismo plural e queer capaz de colocar em questão a
heteronormatividade também pressuposta na natureza, apontando para a
fertilidade de um ecofeminismo renovado por meio de novas
epistemologias a fim de combater a exploração especista. Adams é
chamada a contribuir com suas análises sobre feminismo e veganismo,
bem como sobre a relação entre o patriarcado e a prática do consumo de
animais como alimentos. Carrobrez e Lessa concluem o capítulo
alertando para a necessidade de ressignificar a visão humana sobre os
animais e ampliar a percepção humana sobre si e a natureza, buscando
construir rotas de fuga das formas de dominação inerentes à cultura
patriarcal.
O capítulo de Daniela Rosendo e Ilze Zirbel oferece uma
caracterização da vulnerabilidade, ressaltando a necessidade de se dar
atenção a seus aspectos positivos e não apenas negativos, como a
literatura sobre o tema em geral parece pressupor. Evidencia-se que
prevalece uma lógica de ignorância programada sobre a vulnerabilidade
associada a modelos de dominação, quando se nega sua existência em
indivíduos privilegiados, como se a vulnerabilidade não fosse uma
disposição inerente à vida, humana e não humana. Nessa lógica, a
vulnerabilidade representa uma expressão de fraqueza de todos aqueles
que não integram o grupo dominador. Por isso, ao proporem a superação
da lógica da dominação, conforme caracterizada por Karen Warren, a
partir da qual modelos dualistas de valor hierarquicamente organizados
sustentam diferentes ismos de dominação (sexismo, especismo,
classismo, heterossexismo, racismo etc.), Rosendo e Zirbel defendem a
importância de se pensar uma filosofia política ecofeminista como teoria
em processo sensível ao cuidado e à condição da vulnerabilidade,
inclusiva e não discriminatória, seja em relação aos humanos, aos
animais não humanos ou à natureza. Trata-se de uma abordagem que
parte da unidade na diversidade e encontra nas intersecções e na
interdependência a chave para colocar permanentemente em questão
diferentes sistemas de dominação que assumem configurações diversas,
mas sempre promovem separação, irresponsabilidade, prejuízos,
sofrimento e dano ao redor do mundo.
Inaugurando a segunda parte da obra, direcionada à práxis
ecofeminista, Daniel Kirjner investiga a presença do ecofeminismo como
teoria de gênero que intersecciona gênero, raça e espécie nas revistas
feministas brasileiras. Elegendo duas revistas de alcance internacional,
Estudos Feministas (REF) e Cadernos Pagu, Kirjner explicita as diversas
razões que as qualificam como referência plural e de qualidade, entre
elas o perfil feminista associado às instituições de ensino de excelência
do país, a saber, a UFSC e a Unicamp, respectivamente. Além de serem
abrangentes, ambas promovem espaço para diálogo e trocas entre
academia e movimentos sociais. Para o autor, o ecofeminismo se
restringiu a uma realidade branca, cristã e elitista, que se revela pelos
elementos que aproximam autoras como Carol Adams, Marti Kheel, Lori
Gruen, Patricce Jones e Lisa Kemmerer, por exemplo. A proximidade
entre suas origens sociais, nacionalidade e raça denota esse lugar a
partir do qual elas produzem suas teorias ecofeministas. Kirjner faz
exceção à ecofeminista indiana Vandana Shiva e destaca que no
ecofeminismo latinamericano a feminista mais renomada é a brasileira
filiada à Teologia da Libertação, Ivone Gebara. Kirjner pontua que apesar
de Gebara fazer questionamentos importantes quanto ao eurocentrismo,
androcentrismo e antropocentrismo, ela identificaria pessoas
empobrecidas com a ideia de necessidade de caridade e a salvação e
não como donas de suas identidades. Para o autor, isso criaria uma
distância entre aqueles que salvam e a população vitimizada, o que
causaria um um limite importante do ecofeminismo em relação à
realidade brasileira. Kirjner reconhece o papel descolonizador nas
contribuições de Vandana Shiva e Bina Agarwal, porém não o estende à
contribuição brasileira, quando toma Ivone Guebara como exemplo
paradigmático. O autor observa que embora as publicações feministas na
REF e na Pagu pautem a militância acadêmica e social antiracista, o
ecofeminismo não o faria se considerado o universo editorial sem a
presença de uma posição expressamente descolonialista ou antiracista. A
desestabilização da ideia de humanidade é o aspecto crítico que Kirjner
destaca das contribuições ecofeministas que se opõem ao especismo e
ao antropocentrismo, caso das perspectivas ecofeministas animalistas,
mas que as mesmas não aparecem na linha editorial das revistas
brasileiras mais destacadas. Ao destacar a luta histórica do movimento
negro para o reconhecimento de mulheres negras como humanas conclui
que o feminismo racial de terceiro mundo se arriscaria mais ao interceder
pelos animais, que as feministas brancas dos EUA e da Europa. Não
obstante, tomando diversas autoras como referências, Kirjner sustenta
que o fato do especismo constituir-se como ferramenta racista e sexista
torna importante para a reflexão brasileira a perspectiva feminista
interespécies, que atualmente se encontra ainda marginalizada entre as
publicações brasileiras.
No capítulo de Janyne Sattler, filiada às contribuições teóricas de
Vandana Shiva e Silvia Federici, é apresentada uma narrativa sobre a
eliminação histórica, social e epistemológica dos saberes da terra pelo
seu envolvimento nas redes capitalistas regidas pela lógica monocultural,
que compõem uma realidade disciplinar e bioimperialista. Essa lógica
permanece lado a lado com a racionalidade progressista ocidental que
sustenta um projeto de desenvolvimento excludente e exploratório e
mede o valor das coisas desde a expectativa e meta da produção
mercadológica, da maximização do lucro e a curto prazo. Tudo o que
resiste a essa lógica tem seu valor negado, é caracterizado como
ineficaz, inconveniente, improdutivo, maligno, danoso, e, por isso, pode
ser objeto das políticas de eliminação, que perpassam os sistemas
sexuais, raciais e classistas. Nesse contexto, os povos comunais, com
seus modos de vida cooperativos e sustentáveis de se relacionar com a
terra, que lhes garante a subsistência, constituem uma insurreição e
subversão à ordem privatista, individualista e desagregadora do
capitalismo. Sattler chama a Filosofia à responsabilidade por contribuir,
com seus contorcionismos teóricos, para essas políticas da eliminação
levadas a cabo pelo sistema capitalista monocultural, quando sua
linguagem molda a realidade dicotômica, valorativa e hierarquicamente. A
superação das monoculturas requer, na concepção da autora, um projeto
alternativo para a liberdade humana e não humana que pode ser
chamado de ecofeminista, ao pretender resgatar memórias do saber
político localizado das mulheres em direção ao reconhecimento da
complexidade da vida, da valorização da biodiversidade e dos
ecossistemas. Trata-se de uma construção em rede menos abstrata, mais
cooperativa, dinâmica, democrática, compreensiva, fluída, não autoritária
e não dogmática que esteja atenta à diversidade das formas de vida
humanas e não humanas, e afastada das formas históricas de controle e
hierarquização da vida. Tal projeto coloca seriamente em questão o
agronegócio e direciona-se para a defesa de concepções agroecológicas
que dependem da compreensão da diversidade e da complexidade da
vida, bem como da valorização de saberes localizados e memória
contextualizada da produção de alimentos, em relação estreita com a
fauna e com a flora locais.
No oitavo capítulo, Maria Clara Dias, Suane Soares e Letícia
Gonçalves apresentam um encontro entre o ecofeminismo e as teorias
decoloniais. Para estabelecer tal aproximação, as autoras reconhecem a
exploração e escravização tanto dos povos originários quanto dos
animais e das plantas das Américas, África e Ásia. Neste sentido, haveria
elementos que permitiriam não somente traçar diagnósticos e
associações simbólicas e materiais acerca da exploração e subjugação
da mulheres, natureza, animais não humanos e população humana do
Sul global, mas existiriam caminhos possíveis para problematizar e
enfrentar a colonialidade e o eurocentrismo, a partir de uma matriz
ecofeminista decolonial. As autoras assentam suas discussões a partir
das críticas às epistemologias dominantes que visam a produzir discursos
identitários generalizantes que não somente reduzem e simplificam a vida
do indivíduo dominado, mas o subalternizam. Tal subalternização,
segundo as autoras, permite a operação de um complexo sistema de
opressão, dominação e exploração. Esse sistema, situado em uma lógica
patriarcal, cisheterocentrada, racista, elitista, urbana e especista só pode
ser pensado criticamente à luz de um ecofeminismo comprometido com
tais lutas. As autoras destacam que essa resposta reconhece que a
colonização não funciona sem a exploração da natureza, que por sua vez
não funciona sem a colonização dos povos do Sul global. Por fim, Dias,
Soares e Gonçalves invocam a Perspectiva dos Funcionamentos como
teoria moral que descreve tal enfrentamento enquanto um problema de
justiça. Trata-se, segundo as autoras, de um enfoque que permite
estabelecermos as bases para o reconhecimento de uma vida plena a
cada indivíduo.
No último capítulo, Maria das Graças da Costa nos traz o cenário em
que a agroecologia se desenvolve. Em ruptura com a modernização
agrícola produzida pelos EUA e pela ONU em fins de 1940 – a chamada
revolução verde –, a agroecologia se torna um movimento social, técnico
e teórico mobilizado tanto por profissionais das ciências agrárias quanto
por organizações não governamentais, bem como posteriormente por
comunidades rurais e movimentos sociais. Para Costa, no Brasil
encontram-se duas abordagens agroecológicas diferentes, quais sejam, a
técnico-científica e a dos movimentos sociais. As contribuições de ambas
representariam o debate ético e político travado no campo da
agroecologia. Os movimentos sociais se diferenciam adotando em suas
agendas políticas inúmeras propostas de políticas públicas pautadas em
um modelo de desenvolvimento rural baseado na produção orgânica. A
crítica à monocultura, à poluição das águas, ao empobrecimento da vida
de trabalhadores(as) torna-se ponto importante desse modelo de
desenvolvimento que se tornará parte da agenda da Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA), fazendo surgir para o debate público a
agroecologia como modo de vida e como projeto de sociedade. É nesse
contexto que o capítulo de Costa procura inserir o pano de fundo
antropocêntrico, racista, capitalista, colonialista e patriarcal no âmbito das
ciências, das tecnologias e das relações sociais. Procura também inserir
o papel de relevância do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC),
indígenas e negras tanto na criação da agroecologia brasileira quanto no
feminismo ambientalista brasileiro e latinoamericano. Não obstante, é
ainda nesse contexto que Costa situa a questão das desigualdades no
interior da agroecologia no que tange às questões de gênero, defendendo
a necessidade de decolonização dos saberes e dos discursos na
agroecologia a fim de dar lugar às mulheres indígenas, negras,
camponesas em geral e demais subalternizadas(os) por meio de um
debate interseccional.
Propor e reunir os textos e apresentá-los nesta obra, situa-nos em
um momento que, desde um olhar crítico aos paradigmas androcêntricos,
antropocêntricos, especistas e ecocidas faz produzir novos panoramas e
discursos que se consolidam na práxis ecofeminista. Reconhecer e
defender a necessidade de incorporação do olhar ecofeminista diante do
mundo implica, portanto, em restaurar a dignidade do coletivo mulheres
na luta socioambiental, aqui compreendida de forma ampla e integrada
como uma luta por justiça. As variações de interpretações,
epistemologias e cosmovisões que se encontram nos ecofeminismos
representam justamente a dinâmica e pluralidade de ações dessas
perspectivas frente às violências e às injustiças epistêmicas produzidas
secularmente contra grupos de mulheres, natureza, povos tradicionais e
animais não humanos. Desse modo, confrontar os processos de
violência, exploração, marginalização, invisibilidade, precariedade,
subalternidade e negação de direitos básicos em um cotidiano marcado
pela tentativa de naturalização dessas práticas pela estrutura patriarcal,
especista e ecocida são questões sobre as quais as teorias ecofeministas
se debruçam. Tais problematizações são apresentadas e trabalhadas nos
textos aqui reunidos. Por essas, e outras razões, agradecemos às
pesquisadoras que aceitaram o desafio de pensar, conjuntamente, a
práxis ecofeminista e seus desdobramentos para construirmos formas de
destituir paradigmas opressivos e construir propostas mais justas.
Igualmente agradecemos à ilustradora da capa, a artista Camila Rosa,
que gentilmente elaborou e cedeu a arte que simboliza a diversidade dos
ecofeminismos; a Denis Duarte, pela parceria e generosidade na
elaboração detalhada e cuidadosa da capa e contracapa desta obra; e a
Sandra Guimarães por compartilhar conosco no prólogo deste livro a
importância de se pensar no ecofeminismo como uma via para a luta
antiopressão humana e não-humana, de forma interseccionada.
Para finalizar esta apresentação, sinaliza-se um cenário promissor
nos estudos ecofeministas no Brasil que aos poucos vai alcançando
autonomia discursiva, epistemológica e ética, com força teórica
compatível com as produções internacionais - também exemplificadas
aqui por meio das contribuições das autoras espanholas que integram
esta coletânea. É importante frisar que as autoras e o autor que
compõem a rede ecofeminista deste livro são integralmente responsáveis
pelo conteúdo de seus capítulos, interpretações realizadas e
compreensões teóricas desenvolvidas ao longo de suas produções.
Às leitoras e aos leitores, desde logo, desejamos uma ótima leitura.

Daniela Rosendo, Fabio A. G. Oliveira,


Príscila Carvalho e Tânia A. Kuhnen.
PARTE 1
fundamentos teóricos do ecofeminismo
CAPÍTULO 1

A contribuição do ecofeminismo para a ética


1
animal
Marti Kheel (in memoriam)
Há trinta anos eu não sabia nada sobre ecofeminismo ou libertação
animal. Então, tive um encontro com um animal que mudou o curso da
minha vida. Eu morava em Montreal e estava dirigindo em uma rua
movimentada quando encontrei uma gatinha abandonada correndo no
meio da estrada. Eu parei imediatamente, coloquei a gatinha no meu
carro, levei-a para casa e iniciei o processo de encontrar um lar para ela.
Durante a minha busca, entrei em contato com uma organização pelos
direitos animais que informava as pessoas sobre todas as formas de
abuso animal na sociedade moderna, não somente sobre cães e gatos
abandonados, mas também animais em fazendas industriais, fazendas
de peles, laboratórios etc. Também me deram o livro de Peter Singer
(1975), Libertação Animal, e imediatamente após sua leitura eu me tornei
vegana. Na época eu pensei que minha transformação foi devida ao
impacto dos seus argumentos filosóficos, mas, em retrospecto, penso
que o que mais me influenciou foi a sua descrição detalhada e tocante
das condições dos animais nas fazendas industriais.
Eu, então, tornei-me interessada em compreender a visão de mundo
na qual tal abuso poderia existir e o que poderia ser feito para acabar
com isso. Assim, comecei a ler a literatura sobre os direitos animais.
Aprendi que ao longo da história religiosa e filosófica ocidental, o único
fundamento para protestar contra a crueldade para com os animais era
baseado no impacto que essas ações tinham sobre o caráter moral
humano.
Também aprendi que o início do movimento de proteção animal
ocorreu na Inglaterra, na primeira parte do século XIX. Apesar do fato de
que as mulheres não poderiam ocupar o cargo de presidente de qualquer
organização animal, o movimento era composto principalmente por elas.
O foco de seus protestos era a vivissecção e o abuso de animais usados
para o trabalho. Em 1824, mulheres também formaram uma organização
chamada Bands of Mercy (Bandas de Misericórdia), que organizava
clubes de bondade em várias escolas, nos quais as crianças prometiam
tratar bem os animais. As mulheres nessas organizações falavam
abertamente sobre a importância do sentimento e da compaixão pelas
criaturas de Deus.
Descobri uma orientação diferente na literatura sobre os direitos
animais do século XX. Teóricos dos direitos animais procuraram
estabelecer uma base racional para deveres diretos para com os animais,
omitindo qualquer papel para a emoção. Para Peter Singer (1975), o
fundamento era baseado na teoria utilitarista com sua ênfase na
maximização do prazer e minimização da dor e, para Tom Regan (1983),
era baseado na deontologia, com sua noção de que animais (ou mais
especificamente mamíferos a partir dos dois anos de idade) eram sujeitos
de uma vida merecedora de direitos. Ambos os teóricos orgulhosamente
proclamaram que em nenhum lugar em seus livros encontrar-se-á
qualquer referência à emoção ou afirmações que não poderiam ser
suportadas pela lógica rigorosa; é a lógica sozinha que pode obrigar a
conduta correta. E ainda assim eram os sentimentos de empatia e
cuidado que em primeiro lugar me trouxeram para o movimento animal.
Eu sentia que algo estava faltando.
Então eu comecei a me interessar por examinar o campo maior da
ética ambiental na esperança de que isso poderia me oferecer insights
sobre uma ética da natureza mais abrangente, que valorizasse a
importância moral da empatia, mas logo também me desiludi com esse
campo. Embora alguns teóricos ambientais discutam a importância da
empatia, seu foco principal são constructos abstratos mais abrangentes,
tais quais espécies, o ecossistema, ou a terra, sobre e para além de
seres individuais. Alguns teóricos chegam tão longe a ponto de tolerar a
caça e os experimentos laboratoriais, enquanto outros, como o renomado
teórico ambiental Holmes Rolston (2006), chegam a afirmar que a
preocupação moral pelo sofrimento animal é antiecológica e indicativa de
falta de maturidade moral. Também descobri que nenhuma das principais
organizações ambientais nos Estados Unidos condenava a caça e
nenhuma defendia o vegetarianismo, tampouco o veganismo, e elas
geralmente citavam os experimentos com animais ao pedir a eliminação
do uso de determinados químicos ou pesticidas no meio ambiente.
Estava começando a parecer que o movimento ambientalista não
oferecia um lugar hospitaleiro para aqueles que abraçavam a empatia e o
cuidado pelos animais.
Eu me voltei em seguida para o campo da ecofilosofia, na esperança
de encontrar um tratamento mais empático com os animais. Ao invés de
enfatizar teorias axiológicas, ecofilósofos focaram no impacto moral das
visões de mundo e da experiência. Descobri o campo da ecologia
profunda e, em particular, os teóricos que trabalhavam com a noção
apresentada pelo filósofo norueguês Arne Naess (1986) de um self
expandido, identificado com o mundo natural mais amplo. A presunção
era de que tal identificação expandida iria prevenir a violência contra a
natureza, visto que seria percebida como um dano a si mesmo.
Descobri, entretanto, que vários ecologistas profundos, a exemplo
George Sessions e Bill Devall (1985), listavam a caça como uma das
atividades que era útil para alcançar o senso de um self ampliado. Onde,
perguntava-me, estava a identificação com o animal sendo morto quando
esses caçadores estavam experimentando um senso expandido do self?
Parecia que os defensores da ecologia profunda estavam ignorando o
modo pelo qual as diferenças de gênero na constituição do self poderiam
influenciar como o senso de um self mais amplo foi alcançado.
Minha próxima jornada filosófica me levou ao campo do
ecofeminismo. Quando comecei a ler, fiquei decepcionada com a falta de
referências diretas aos animais na literatura. No entanto, eu finalmente
passei a acreditar que o ecofeminismo oferecia a possibilidade de uma
filosofia holista que incluía a empatia e o cuidado pelos seres individuais.
A maioria das ecofeministas não estava tentando desenvolver
argumentos fundacionais para o porquê as pessoas deveriam cuidar da
natureza, mas sim examinavam as visões de mundo que explicavam em
primeiro lugar por que a empatia e o cuidado pela natureza estavam
faltando. Além disso, o foco do ecofeminismo na empatia e no cuidado
parecia oferecer um lugar positivo para os animais no campo da ética da
natureza.
Antes de discutir a natureza da contribuição de uma ética do
cuidado, gostaria de oferecer um breve panorama sobre o ecofeminismo
para aquelas que não estão familiarizadas com esse campo. O
ecofeminismo é tanto um campo teórico de estudo quanto um movimento
social que surgiu em resposta à degradação crescente do mundo natural.
O termo ecofeminismo foi cunhado em 1974 por uma francesa chamada
Françoise D’Eaubonne (1974), embora ele pareça ter surgido de forma
independente em outros lugares por volta da mesma época. Embora não
haja uma filosofia única do ecofeminismo, certos temas principais são
comuns ao campo. No nível mais amplo, o ecofeminismo refere-se à ideia
de que a desvalorização das mulheres e da natureza tem andado de
mãos dadas na sociedade ocidental patriarcal. Essa desvalorização se
reforça mutuamente, por exemplo, as mulheres são associadas com a
natureza e por isso são desvalorizadas; e a natureza é vista como
feminina e por isso também é desvalorizada. A desvalorização das
mulheres é também comumente vista como conectada com outras formas
de opressão, tais quais racismo, classismo [classism], heterossexismo e
especismo.
Embora o ecofeminismo tenha sido recebido com entusiasmo na
década de 1970, posteriormente, teóricos pós-modernos criticaram esse
campo, devido à percepção de que o ecofeminismo implica
reivindicações essencialistas sobre a natureza das mulheres e dos
homens. Apesar de a grande maioria das feministas que trabalha no
campo ter dirigido suas críticas às visões de mundo culturalmente
construídas, essa percepção continua a existir. Alguns teóricos têm
também procurado se distanciar do termo ecofeminismo em razão da
crença de que o termo sugere uma associação muito próxima entre
mulheres e natureza. Alguns teóricos, por exemplo, preferem usar termos
como feminismo ecológico ou feminismo e o ambiente ou eco-feminismo,
que coloca um espaço entre eco e feminismo. Sugiro que esse esforço
para criar uma distância entre as categorias das mulheres e da natureza
é uma forma de ecofeminismofobia [ecofemphobia].
Ecofeministas apontam para uma série de dualismos que permeiam
a cultura ocidental, incluindo racional/irracional, autônomo/dependente,
bom/mau, sagrado/profano, consciente/inconsciente, ativo/passivo e
masculino/feminino. O lado positivo do dualismo é associado com aquele
que transcende a terra e o lado negativo é associado com o mundo
material mais modesto da matéria [matter] (palavra que deriva da mesma
raiz que a palavra “mãe” [mother]). Nessa visão dualista, o sagrado é
visto como materializado num Deus masculino situado no céu, que cria e
governa sobre a Terra imaginada feminina.
Duas imagens alternadas - a besta e o corpo [the Beast and the
Body] -, ilustram como esses dualismos têm funcionado ao longo da
história ocidental em relação às mulheres e aos animais. Nas suas
imagens de bestas, mulheres e animais são vistos como selvagens,
irracionais, seres do mal que precisam ser conquistados e subjugados
por uma força masculina agressiva. A reconstituição dessa conquista é,
então, vista como fonte de entretenimento, como em touradas, caça e
rodeios, ou na representação de mulheres em revistas pornográficas. Em
seu aspecto de corpo, por outro lado, mulheres e animais são vistos
como objetos ou matérias inanimadas que existem para servir as
necessidades dos humanos, em particular as do Homem. De acordo com
essa concepção, não há necessidade de conquista, visto que a natureza
já foi seguramente relegada a um reino inferior (não-racional). A imagem
da natureza como matéria inanimada pode ser vista hoje na prática da
pecuária, na qual seres vivos são concebidos como fábricas para a
produção de carne ou outros produtos de origem animal. Uma atitude
parecida pode ser encontrada na visão de que a principal função das
mulheres na vida é produzir a prole para os homens.
A conquista da natureza externa também é acompanhada da ideia
de que os humanos devem subjugar sua natureza animal. Nessa
percepção, a besta é vista como existente dentro da nossa própria
natureza humana. Vemos novamente a associação entre mulheres e
animais e a ligação entre eles com base em uma conduta primitiva. Na
história bíblica do Jardim do Éden, nos é contado que Eva cometeu o
pecado original, trazendo o mal ao mundo. E qual foi o ato terrível que ela
cometeu? Ela comeu uma maçã, uma boa comida vegana! A razão pela
qual isso foi percebido como pecado mortal foi porque mostrou
desobediência a Deus. Eva teve a audácia de ouvir as palavras de um
animal, uma cobra, ao invés da palavra de Deus. O legado cultural que
nos chegou a partir dessa história é que falta às mulheres a disciplina
necessária para conquistar suas paixões animais. Se as paixões são
controladas pela obediência à palavra de Deus ou pelas leis da razão, a
lição na visão de mundo patriarcal é que nossos instintos “bestiais” não
são confiáveis e devem ser controlados.
Apesar dessas imagens da besta e do corpo, da natureza como
selvagem e má, ou como inanimada, possam parecer diferentes, elas têm
um tema comum, a saber, a necessidade dos homens de se separarem
das mulheres e da natureza e de se conceberem como o outro. A filósofa
francesa Simone de Beauvoir (2010) foi a primeira a desenvolver o
conceito de mulher como o outro. As mulheres, de acordo com essa
visão, estão relacionadas ao reino da natureza pelos processos
biológicos como gravidez, menstruação e parto. Homens, pelo contrário,
são capazes de transcender a natureza através de atividades heroicas
que colocam a vida em risco, como a caça, a pesca e a guerra. Ao
transcender o mundo natural eles se tornam sujeitos humanos completos,
diferentemente das mulheres que permanecem objetos no mundo natural.
Enquanto as mulheres estão ligadas aos ciclos repetitivos da natureza, os
atos de heroísmo dos homens os permitem viver na história, alcançando
desse modo a imortalidade. A análise de Beauvoir ajuda a demonstrar
que o próprio conceito de ser humano na sociedade patriarcal é
perpassado por gênero. As mulheres não são consideradas humanos
completos, devido a sua natureza animal.
Enquanto Beauvoir desenvolveu a noção das mulheres como o
outro, diversas teóricas feministas recorreram a teorias psicológicas,
como a teoria das relações objetais, para sugerir que é mais preciso
afirmar que são as identidades dos homens que são construídas como o
outro. De acordo com essa linha de pesquisa, o amadurecimento de
meninos implica um processo de construção de uma identidade que não
é simplesmente distinta das mulheres, mas diretamente oposta a elas.
Parte dessa literatura também sugere que as identidades dos homens
têm sido estabelecidas não somente pela negação do mundo feminino,
mas pela negação de todo o reino da natureza.
Nancy Chodorow (1999) argumenta que tanto meninos quanto
meninas começam a vida experimentando uma sensação de unicidade
com a figura materna. A criança, então, desenvolve um senso de si [self]
pelo processo de desvencilhamento dessa cosmovisão unificada.
Contudo, diferentemente das meninas, os meninos passam por um
processo de dois estágios. Eles devem não apenas se desvincular da
figura materna, mas, para se identificarem como homens, devem negar
tudo que é feminino dentro de si mesmos, bem como seu envolvimento
com o mundo feminino. A mãe, portanto, torna-se um objeto na transição
do menino para o papel de não-mãe e não-feminino.
Uma das ironias dessa construção da identidade é que os meninos,
então, precisam das meninas para saber quem eles não são. Alguns
teóricos têm argumentado que essa dependência com relação às
mulheres explica a compulsão dos homens para repetidamente provar a
identidade masculina por atos contínuos de domínio e controle. Conforme
argumenta o psicólogo Stephen Ducat (2004, p. 230), “a identidade
masculina será sempre uma realização psicológica instável enquanto for
baseada na repressão - no repúdio de qualquer coisa que seja construída
como feminina”.
A caça e o sacrifício animal exemplificam o corte da conexão com as
mulheres e os animais. Através da história, a caça tem sido tanto uma
atividade predominantemente masculina quanto um ritual prototípico para
2
entrar na idade viril . O objetivo da iniciação é separar o menino dos seus
laços naturais de afeição, ensiná-lo que um homem não age com base
em sentimentos, mas sim por um padrão externo de masculinidade que é
focado na exibição do controle sobre os outros. O rito da iniciação
simboliza um segundo nascimento para o jovem menino que agora se
alinha com o mundo dos homens. É significativo que o jovem menino
deve evitar o contato com mulheres antes e depois da caça.
Na mesma linha, a antropóloga Nancy Jay (1992) sugere que o
sacrifício funciona como uma forma de segundo nascimento para os
sacrificadores masculinos. Ela argumenta que os homens realizam os
sacrifícios num esforço para alcançar o senso de continuidade através
das gerações, do qual as mulheres são dotadas pela natureza. A lógica
dos sacrificadores, que são universalmente masculinos, é regida pelo
desejo de replicar o processo de nascimento em um plano supostamente
mais espiritual. Ao fazer isso, eles procuram estabelecer uma herança
patrilinear que transcende a vida. Sua conexão através das gerações é
alcançada não por meio do nascimento, mas pela morte.
Muitas pessoas se sentem desconfortáveis ao discutir diferenças de
gênero em função do medo de reforçar estereótipos de gênero. Mas ao
ignorar as diferenças de gênero que incontestavelmente existem,
podemos estar cometendo um dano ainda maior. A evidência de
diferenças de gênero na violência e em atitudes em relação à natureza é
esmagadora. Entre os humanos é estimado que 90% dos crimes
violentos são cometidos por homens. Os ecologistas sociais Stephen
Kellert e Joyce Berry (1987, p. 365) relatam que “atitudes masculinas vs.
femininas em relação à natureza são dramáticas” e que “gênero está
entre as influências demográficas mais importantes sobre atitudes
voltadas aos animais em nossa sociedade.” Mulheres têm uma
pontuação mais alta de “atitude humanista”, assim como têm uma
pontuação “moralista” mais alta, “indicativa de uma preocupação maior
por uma variedade de questões sobre a crueldade com animais,
enquanto homens têm pontuações mais altas no utilitarismo e na
dominionística”. Os resultados na escala dominionística indicam uma
tendência maior entre os homens para obter satisfações pessoais a partir
do domínio e do controle dos animais.
Como, então, o ecofeminismo pode contribuir para a ética animal?
3
Um caminho é através de uma ética do cuidado ecofeminista . Ao
contrário da abordagem do pastoreio cuidadoso endossada por muitos
teóricos ambientalistas, a ética do cuidado que eu proponho inclui
respeito pela integridade de animais individuais, tanto domésticos quanto
silvestres.
A tradição feminista do cuidado na ética é geralmente criticada por
filósofos por prover uma base inadequada para a conduta ética. O
cuidado é visto como pertencente à esfera da família e das relações
pessoais, associada às mulheres. Uma ética da justiça ou de direitos, ao
contrário, é associada à esfera pública e aos homens. Uma ética do
cuidado também é vista como uma ética não confiável, em razão da
influência do viés pessoal. Acredita-se que lhe falta a força substanciada
na razão universal ou na lei, característica da esfera pública. Enquanto é
verdade que a empatia e o cuidado não podem ser exigidos, também é
verdade que leis e princípios abstratos e regras universais não são tão
eficientes quanto se presume. As mulheres têm o direito de não serem
estupradas, mas isso não as têm protegido da violência dos homens.
Como sugere Sarah Hoagland (1988), enquanto não vivermos em um
mundo no qual o estupro é inconcebível, as mulheres não estarão a salvo
da violência dos homens. A ética, para Hoagland (1988), trata de habilitar
a agência moral, ao invés de impor restrições morais. A questão, então, é
entender como a empatia e o cuidado por animais podem ser produzidos
e porque isso tem sido tão ausente na história ocidental.
Eu irei propor quatro elementos chave para meu entendimento de
uma ética do cuidado ecofeminista: 1) foco na prevenção do abuso da
natureza pela remoção de bloqueios conceituais que impedem o
desenvolvimento da empatia em relação à natureza; 2) uma abordagem
contextual que procura situar dilemas éticos no seu contexto social,
psicológico e histórico; 3) foco em atos de atenção; 4) prática vegana (por
vegana, quero dizer uma dieta que exclui todos os produtos de origem
animal).
Todos os elementos anteriores são inspirados pelo campo da saúde
holística. A medicina alopática procura tratar os sintomas da doença ao
invés de entender o contexto ou solo interno no qual surge a doença. É
baseada no modelo de atacar a doença e suprimir os sintomas ao invés
de fortalecer o sistema imunológico e identificar os fatores que o
enfraqueceram. O primeiro elemento-chave para uma ética do cuidado é,
portanto, identificar as razões pelas quais existem condutas abusivas em
relação à natureza, com vistas a remover os bloqueios mentais e
emocionais que impedem o desenvolvimento da empatia e do cuidado.
Assim, por que as pessoas devem cuidar dos animais pode ser menos
importante do que por que elas não cuidam.
Um número crescente de psicólogos humanistas tem procurado
ampliar a definição do bem-estar para incluir empatia por outros animais.
A suposição desses psicólogos é que humanos desenvolverão
naturalmente a empatia, ao menos que eles sejam frustrados por forças
externas. Mas se a empatia é uma resposta natural ao sofrimento, por
que então que ela falha com tanta frequência nas nossas relações com
animais não humanos?
Muitas teóricas do cuidado notaram que o condicionamento
ideológico desempenha um papel importante no bloqueio dos caminhos
naturais para a empatia. Conforme nota Donovan (2006, p. 323-324),
“levar as pessoas a ver o mal e se preocuparem com o sofrimento é uma
questão de superar racionalizações ideológicas que legitimam a
exploração e a crueldade com animais.” Evidentemente, múltiplas
influências contribuíram para os bloqueios conceituais que frustram nossa
capacidade de empatia, incluídas nossas tradições religiosas e
filosóficas. Entretanto, a construção cultural da identidade masculina
representa um impedimento central para a empatia que não deve ser
negligenciado. Enquanto os meninos forem criados para suprimir seus
sentimentos de empatia, vamos continuar tendo práticas baseadas no
domínio e controle da natureza. As normas incorporadas na construção
oposicionista da identidade masculina devem ser desafiadas nas escolas,
na família e na mídia.
Assim como a abordagem holística de cura implica a construção do
sistema imunológico do corpo, uma ética do cuidado holística também
implica apoiar o potencial para a empatia que existe dentro de todos nós.
Isso, por sua vez, requer a compreensão de que os humanos não operam
de acordo com as leis da racionalidade abstrata. Com frequência os
defensores dos animais acreditam que citar estatísticas de abusos levará
as pessoas a agirem. Mas a pesquisa mostra que um entorpecimento
psíquico ocorre em face da violência genocida. Conforme demonstra o
psicólogo Paul Slovic (2010), quanto maior o número dos afetados pela
violência, menos provável é que as pessoas venham em seu auxílio.
Então, o que é necessário é algo que possa romper o entorpecimento
psíquico que bloqueia a capacidade para a empatia. Uma estratégia
negligenciada é através da arte – filmes, literatura, música e outras
formas de expressão que alcançam as pessoas em um nível emocional.
O conhecido filme Babe, o porquinho atrapalhado, que conta a história de
um porco individual que tenta escapar do seu destino como carne, sem
dúvida gerou mais vegetarianos do que incontáveis ferramentas
educacionais. Em contraste com os argumentos que se baseiam em
simples estatísticas e argumentos abstratos, a arte auxilia as pessoas a
empatizar com um ser singular. Na verdade, a pesquisa tem mostrado
que histórias sobre seres individuais são o modo mais efetivo de gerar
empatia, contrastando com relatos de sofrimento em massa que
geralmente excedem nossa capacidade de compreensão.
A segunda característica de uma ética do cuidado ecofeminista é o
pensamento contextual. Uma abordagem contextual situa os problemas
morais dentro de seu contexto narrativo mais amplo. Por exemplo,
quando experimentadores tentam justificar a experimentação animal
perguntando “quem você salvaria de um afogamento, sua filha ou seu
cão”, uma abordagem contextual pode solicitar um contexto mais amplo.
Ao invés de aceitar a estrutura dualista da questão, devemos perguntar,
para começar, por que a criança está doente. Foi por causa dos
hormônios encontrados na carne com a qual ela foi alimentada, ou foi
talvez devido ao consumo de drogas que se mostraram seguras após
testes em animais? E por que o cachorro estava se afogando, para
começar? Alguém jogou o cachorro na água (ou melhor, no laboratório)
acreditando que de alguma maneira, pela morte do cachorro, a vida de
uma criança pequena seria salva?
Uma abordagem contextual também reconhece que uma ética do
cuidado não opera como um mandato universal. Uma mulher que está
em um relacionamento abusivo não precisa cuidar do seu agressor; ao
contrário, ela precisa sair da sua situação de abuso e direcionar seu
cuidado para si. De modo similar, uma ética do cuidado para com animais
silvestres é diferente de uma ética do cuidado para com animais
domesticados. Para animais silvestres, o maior ato de cuidado pode ser
deixá-los sozinhos. O que é necessário é descrito com mais precisão
como cuidado apropriado.
O terceiro elemento chave de uma ética do cuidado é o ato de
4
atenção. Iris Murdoch contrastou a ideia de ética como um comando
exterior com o senso interno de chamar, decorrente do ato de atenção.
Ela sugere que se uma pessoa direciona uma consideração amorosa
paciente sobre uma pessoa, uma coisa ou uma situação, o indivíduo
agirá com senso de obediência interna. Claramente, a sociedade
machista obstruiu nossa habilidade de alcançar esse tipo de
consideração atenciosa. Parte da tarefa de direcionar para os animais
uma consideração amorosa paciente é percebê-los como seres
individuais com emoções, necessidades e desejos.
Isso leva ao quarto e último aspecto de uma ética do cuidado, a
prática vegana. Feministas enfatizaram a noção de que o pessoal é
político, por exemplo, as ações que nós tomamos no dia a dia, em nossas
vidas, têm impactos sociais e políticos. Uma filosofia parecida se aplica a
conexão entre nossas dietas e o tratamento de animais. A principal forma
de contato que a maioria das pessoas têm com animais é no prato.
Pouco se sabe sobre o que os animais passaram antes de chegar ao
nosso prato. É importante que as pessoas conheçam os fatos sobre os
abusos dos animais para que tomem decisões éticas informadas.
Feministas que denunciam a noção de controle reprodutivo podem ficar
perturbadas, por exemplo, ao saber o que o controle reprodutivo significa
em fazendas industriais. Sessenta e seis por cento das vacas, nos
Estados Unidos, são inseminadas artificialmente; o mesmo ocorre com
85% das porcas e 100% das peruas, uma vez que são criadas tão
grandes que não são mais capazes de acasalar. Laticínios também são
baseados no corte do vínculo mãe/criança, que é sem dúvida o vínculo
mais forte na natureza. Quando as vacas dão a luz, a prole é geralmente
arrancada delas no primeiro dia de vida, uma experiência angustiante
para a vaca e o bezerro, que muitas vezes berram por dias. Vacas
leiteiras são mantidas em um estado contínuo de lactação até os 5 ou 7
anos de idade, ponto no qual sua produção de leite começa a cair.
Quando as pessoas comem os produtos obtidos por essas práticas, elas
estão, num sentido real, apoiando a cultura do estupro.
Adotar uma dieta vegana não só beneficia os animais e a saúde
humana mas também o ambiente de forma mais abrangente. De acordo
com um extenso relatório da Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e Agricultura (FAO), de 2006, a pecuária é “uma das duas ou
três principais contribuintes mais relevantes para os problemas
ambientais mais sérios, em qualquer escala, do local ao global. [...] O
impacto é tão significativo que é necessário tratá-lo com urgência” (FAO,
2006). Enquanto o relatório da ONU descobriu que a pecuária é
responsável por 18% dos gases de efeito estufa, um relatório mais
recente da World Watch (2009) situa esse número em 51%.
Grande parte da tradição ética ocidental é baseada na presunção de
impulsos agressivos que os constructos racionais devem controlar. Em
contraste, uma filosofia ecofeminista holística, como eu a concebo,
concentra-se menos em como controlar a conduta agressiva e mais em
prevenir sua manifestação. Uma das maneiras mais diretas de prevenir a
violência contra as mulheres e à natureza é educar as crianças pequenas
(especialmente os meninos) antes que o condicionamento cultural de
aceitar e se engajar na violência torne-se arraigado.
Uma ética do cuidado ecofeminista opera de acordo com as leis da
ecologia. Ela reconhece que a devastação que nós causamos à natureza
externa também foi dirigida contra nossa natureza interna. Da mesma
forma que ambientalistas estão recuperando as paisagens devastadas,
nós precisamos regenerar nossas paisagens internas, incluindo nossa
capacidade de empatia pelos outros animais. O primeiro passo nessa
recuperação é remover os fatores mentais e emocionais que impedem o
desenvolvimento e florescimento de nossa capacidade de empatia. Assim
como o mundo natural opera de acordo com as leis da ecologia, também
há uma ecologia do cuidado. Se nós pudermos acessar essa capacidade,
vamos percorrer um longo caminho, para transformar nossas interações
com o mundo natural, aproximando-nos de um mundo de paz e não
violência para todos os seres vivos.

Referências

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2010.

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and the Sociology of Gender. Berkeley: University of California Press,
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CAPÍTULO 2

Ecofeminismo: una alternativa a la


globalización androantropocéntrica
Alicia H. Puleo

Introducción
Vivimos una emergencia ecológica planetaria cada vez más
evidente. A la tala de bosques, la pérdida de la biodiversidad y la
contaminación de agua, aire y tierra, se suma ahora la evidencia del
cambio climático. La globalización es también esto. Hay quien continúa
en posiciones negacionistas. Otros, cada vez más numerosos, reconocen
que este cambio es una realidad y concluyen que se puede entender
como un buen negocio para los países más desarrollados. Estos, se nos
dice, podrán protegerse de las transformaciones ecosistémicas y vender
tecnología para ello a aquellos países que por subdesarrollo técnico no
hayan sido capaces de poner en marcha mecanismos adaptados a los
fenómenos debidos a la desestabilización climática tales como la subida
del nivel del mar, las sequías, inundaciones, tornados, hambrunas y
escasez de agua potable. Se empieza a oír cada vez más el término
Antropoceno para denominar a la época que se abrió con la
industrialización, un período en que adquirimos una potencia técnica
inédita de modificar la Tierra (RIECHMANN, 2016). Cambio climático
patente y acelerado, desertización, deforestación, ecocidio, graves
enfermedades producidas por la contaminación ambiental son la cara
perversa de esta nueva era.
A esta altura de la degradación ambiental, no se trata sólo de
defender los derechos de las generaciones futuras (un objetivo que sigue
siendo correcto y relevante, sin duda), sino de actuar en defensa de las
personas que viven hoy en el mundo, en particular de las poblaciones
más vulnerables de los países empobrecidos, y entre ellas, de las
mujeres y las niñas y niños, primeras víctimas de la devastación
ambiental. La justicia social implica hoy una ecojusticia que atienda a los
conflictos ecológicos distributivos tal como lo ha demostrado la Economía
Ecológica con su concepto de ecologismo de los pobres (MARTÍNEZ
ALIER, 2004). Y la ecojusticia sería incompleta si no se tiene en cuenta
también a los millones de animales no humanos que nuestra especie
esclaviza y condena a muerte, a los que roba sus vidas en las granjas
industriales (JOY, 2013) y a los animales silvestres acosados en sus
territorios. Un potente movimiento animalista internacional está dando por
fin voz a los que no tienen voz.
Hace casi medio siglo, diversos informes científicos alertaron sobre
los nuevos peligros medioambientales y sobre la posibilidad de un
colapso en el siglo XXI. El ecologismo inició su andadura como
movimiento organizado en los países industrializados, en aquellos en que
la población, o al menos su juventud más educada, se había cansado del
espejismo hedonista contemporáneo que prometía la felicidad a través de
la acumulación de un sinfín de objetos materiales. En la actualidad, a ese
ecologismo urbano se le ha sumado, en algunas zonas rurales de los
países empobrecidos, un nuevo ecologismo que, a menudo, ni siquiera
se autodenomina así pero que también se inspira en un modelo diferente
de lo que es la calidad de vida y, sobre todo, se activa por la
desesperación de quien todo lo pierde: sus tierras, su cultura y hasta su
vida. La desesperada resistencia de la población indígena y campesina a
los proyectos extractivistas de megaminería y de monocultivos
transgénicos en América Latina es hoy una referencia para el movimiento
ecologista mundial. Frente a la racionalidad reducida del homo
oeconomicus se yerguen paradigmas alternativos como la Ecología
Social, el Decrecimiento y la Soberanía Alimentaria. La Ecología en tanto
ciencia nos ha enseñado a pensar la Naturaleza en términos holísticos y
éstos han mostrado ser incompatibles con los cálculos basados en el
beneficio económico individual a corto plazo.
Las bases del movimiento ecologista mundial son mayoritariamente
femeninas. Este hecho es aún más marcado en el caso del movimiento
animalista. Se han avanzado diversas hipótesis sobre este interés de las
mujeres. Las explicaciones han sido fundamentalmente de dos tipos: las
de orden biologicista que enfatizaban su papel en la reproducción de la
especie y las de tipo constructivista que analizaban la posición marginal
del colectivo femenino en el sistema productivo existente. Algunas formas
del ecofeminismo no dudaron en asumir las primeras tesis en su teoría y
su praxis, legitimando sus propuestas alternativas en tanto madres y
cuidadoras de la vida. Pero esta estrategia generó rápidamente un
profundo malestar y un comprensible temor en el pensamiento y la teoría
feministas. ¿No se estaría aceptando la tesis patriarcal que había
reducido a las mujeres a la posición subordinada de Segundo Sexo?
¿Pretender resignificar desde la impotencia no es acaso un acto de
ingenuo voluntarismo? Incluso aunque se hiciera desde bases
constructivistas, el compromiso de las mujeres con un nuevo movimiento
social suscitó dudas bien fundadas: ¿No estaríamos ante una nueva
alianza ruinosa (AMORÓS, 2005), ese fenómeno repetido una y otra vez
en la historia del feminismo, por el que las mujeres postergan sus justas
reivindicaciones en favor de una causa supuestamente superior? ¿Cómo
evitar que se vuelva a producir este sacrificio tan típicamente femenino
(PULEO, 2015)?

Filosofía, teoría feminista y naturalización de “la Mujer”


El feminismo es un movimiento con una historia mucho más extensa
que el ecologismo. Recordar sus orígenes como filosofía nos lleva a los
siglos XVII y XVIII, a las ideas de igualdad de todos los seres humanos
que prepararon el ambiente cultural que desembocaría más tarde en la
abolición de los privilegios de los nobles (PULEO, 1993). Evocar su
desarrollo como movimiento social nos remite al sufragismo surgido de la
lucha por la abolición de la esclavitud en el siglo XIX (AMORÓS y DE
MIGUEL, 2005). Una parte de las mujeres y de los hombres que
denunciaban el racismo legitimador de la sociedad esclavista comprendió
la necesidad de enfrentarse también a los prejuicios sexistas y reivindicar
la igualdad de derechos para las mujeres. Tras décadas de movilización,
el sufragismo conseguirá, entre otros logros, el voto femenino y el acceso
de las mujeres a la educación superior. En la segunda mitad del siglo XX,
el feminismo volverá a resurgir con nuevas reivindicaciones, entre las que
destacan los derechos sexuales y reproductivos y la conquista de una
igualdad efectiva, más allá de aquel primer paso que se había centrado
(en especial, aunque no exclusivamente) en reclamar la igualdad ante la
ley.
A efectos de comprender el encuentro entre feminismo y ecologismo,
es importante tener presente que el feminismo supo mostrar que uno de
los mecanismos de legitimación del patriarcado ha sido la naturalización
de La Mujer, realizada a través de la conceptualización de la Mujer como
Alteridad, como Naturaleza, como Vida Cíclica casi inconsciente, por
parte del Hombre (Varón) que se reservaba, así, los beneficios de la
civilización. Recordemos, por ejemplo, que en la obra de Hegel, la Mujer
es presentada como un ser más próximo a formas de vida consideradas
inferiores - animales o vegetales - que el Varón, a quien el filósofo asigna
las características de lo plenamente humano. Este no es un caso aislado
en la historia del pensamiento. Por el contrario, forma parte de una larga
tradición que en Filosofía se remonta a los griegos.
El movimiento filosófico de la Ilustración que fundamentó e impulsó la
implantación de las democracias modernas tuvo una doble cara para las
mujeres. ¿Qué significaba el término hombres en la concepción de la
igualdad de todos los hombres? Unos pocos pensadores y pensadoras
reivindicaron la igualdad de todos los seres humanos: Poulain de la
Barre, Olympe de Gouges, Condorcet, Mary Wollstonecraft… En cambio,
la mayoría interpretó hombres como varones y sostuvo que el lugar
natural de las mujeres era el ámbito doméstico. El mismo Kant, pensador
de la autonomía del individuo, aseguró que las mujeres no eran capaces
de juicio moral autónomo y habían de ser consideradas como eternas
menores de edad a las que un tutor, padre o esposo, guiarían
convenientemente.
La corriente triunfadora fue la segunda. A pesar de la decidida
participación de numerosas mujeres en el ambiente intelectual y en las
acciones revolucionarias, las democracias modernas nacidas de la crítica
ilustrada terminaron excluyendo a las mujeres del mundo de lo público
con el argumento de que eran más cercanas a la Madre Naturaleza e
inaptas, por lo tanto, para la elevada racionalidad del ámbito de lo
público. Suponían, en cambio, que los varones pertenecían, por sus
capacidades intelectuales (aunque con diferencias, según clase y raza) al
mundo de la Cultura. Con la Modernidad, racismo, sexismo, homofobia,
clasismo y antropocentrismo extremo dejaron de ser legitimados desde
narraciones bíblicas y comentarios teológicos para pasar a ser
justificados con un discurso secularizado. La filosofía y la ciencia
facilitaron nuevas razones para antiguas jerarquías. La homosexualidad
dejó de ser un pecado nefando castigado con la muerte para convertirse
en una patología que debía erradicarse a través de la intervención
terapéutica (FOUCAULT, 1984). Y en nombre de la maternidad,
Rousseau recluirá a las mujeres en el mundo doméstico, negándoles la
participación política. Su función es criar ciudadanos, no serlo ellas
mismas, afirmará. La responsabilidad de Eva en la Caída dejó de ser el
argumento predilecto para mantener al colectivo femenino en una
posición subordinada. La ciencia tomó el relevo. Los médicos-filósofos
de los siglos XVIII y XIX afirmaron la inferioridad biológica femenina y, por
consiguiente, la conveniencia de mantener las puertas de la Universidad
cerradas a criaturas destinadas a la reproducción de nuestra especie. El
perfeccionamiento de la civilización fue concebido, en cambio, como
tarea del sexo masculino cuyo cerebro, sostenían, era más apto para la
creación cultural.
El famoso lema feminista “no se nace mujer, se llega a serlo”, forjado
por Simone de Beauvoir, es una denuncia del carácter cultural,
construido, de los estereotipos femeninos y, al mismo tiempo, un alegato
en favor del reconocimiento del derecho de las mujeres, en tanto seres
humanos portadores de un proyecto existencial, a acceder al mundo de la
Cultura (BEAUVOIR, 1949). En ese clásico del feminismo que es El
Segundo Sexo, la vindicación de Beauvoir se basaba en el dualismo
Naturaleza/Cultura. La Naturaleza era concebida por la filósofa francesa
como eterno retorno de lo mismo, indiferenciación y carencia de
conciencia. El mundo humano, en cambio, dejaba atrás la inmanencia de
las cosas sometidas a la causalidad ciega para erigirse como
trascendencia, como flecha ascendente hacia individuos y sociedades
que avanzaban en la Historia como producto de la elección libre. Impedir
que las mujeres accedieran a ese proyecto era condenarlas a no poder
realizar su esencia propiamente humana: la autoconstrucción, la libertad.
Reconocer que las mujeres son plenamente humanas es, pues, abrirles
las puertas del mundo de lo público, del trabajo, de la política y del
quehacer cultural. Hemos de agradecer a esta pensadora esta demanda
y hacerla nuestra. De hecho, los feminismos liberal, socialista y radical de
principios de los años setenta del siglo XX recogieron esta reivindicación
consiguiendo romper, al menos en gran parte, la prisión doméstica en la
que se hallaban encerradas las mujeres de la época.
El pensamiento feminista tiene una larga andadura en la
tematización de los problemas medioambientales. Ya en los años setenta
del siglo XX acepta el desafío de reflexionar sobre la crisis ecológica
desde sus claves propias. El resultado es la aparición en escena del
ecofeminismo: un intento de esbozar un nuevo horizonte utópico,
abordando la cuestión medioambiental desde las categorías de
patriarcado, androcentrismo, cuidado, sexismo y género. En sus
pensadoras, he encontrado reflexiones originales y muy sugerentes sobre
la civilización tecnológica que nos ha tocado vivir. Todas ellas aportan luz
a distintos aspectos de lo que podemos llamar, en alusión a un clásico de
la hermenéutica de la sospecha, el malestar en la cultura y en la
Naturaleza. La preocupación ambiental, la desconfianza hacia los
discursos de los expertos y las soluciones que hoy llamaríamos tecno-
entusiastas llevó a parte del feminismo radical a interesarse por el
ecologismo y buscar una ginecología alternativa frente a los tratamientos
invasivos de médicos y grandes laboratorios farmacéuticos. Al hilo de la
crítica a la ciencia y la técnica, hacia finales de los setenta, algunos
grupos del feminismo radical reconsideraron la oposición
Naturaleza/Cultura, recuperando la antigua identificación patriarcal de
Mujer y Naturaleza para darle un nuevo significado. Invirtieron la
valoración de este par conceptual que en los pensadores tradicionales
servía para sostener la inferioridad de la Mujer y afirmaron que la Cultura
masculina, obsesionada por el poder, había conducido a guerras suicidas
y al envenenamiento de la tierra, el agua y el aire. En el Hombre, vieron la
agresividad; en la Mujer, la esperanza de conservación de la Vida.
Algunos grupos se organizaron en torno al pacifismo, otros desarrollaron
un espiritualismo ecofeminista con cultos a la Diosa Tierra que buscaban
el reencantamiento del mundo frente a su desacralización
instrumentalizadora que de Terra mater lo había reducido a mera materia
prima. Eros se oponía a Thanatos en esta perspectiva esencialista de lo
que más tarde recibió el nombre de ecofeminismo clásico. La palabra
ecofeminismo todavía evoca hoy desconfianza y rechazo entre las
feministas, sobre todo en el mundo de habla hispana, porque se la
asocia con este ecofeminismo que identificaba a las mujeres con la
naturaleza y con la maternidad. Esta imagen uniforme y monolítica del
ecofeminismo ya no corresponde a la realidad. Actualmente, el panorama
de tendencias es variado. Incluso se ha llegado a decir que hay tantas
corrientes del ecofeminismo como teóricas ecofeministas. Desde mis
propias coordenadas vitales e intelectuales en diálogo y polémica con las
suyas, he elaborado un planteamiento ecofeminista que evita apelar a las
definiciones esencialistas de la diferencia sexual. Tampoco es un
ecofeminismo de corte religioso, como el de la excelente teóloga
brasileña Ivone Gebara que busca devolver Dios al mundo (GEBARA,
1998), una propuesta para la que se necesita el componente de la fe,
algo que se posee o no, independientemente de la voluntad.

Mi propuesta ecofeminista
Tras años de lectura y reflexión sobre teoría feminista y ecológica, he
perfilado una propuesta constructivista a la que he llamado ecofeminismo
crítico como una revisión y corrección del paradigma ilustrado (PULEO,
2008, 2011). Ha sido asumida como base teórica por la Red Ecofeminista
ibérica creada en Madrid en 2012 y también ha sido recogida y divulgada
por activistas ecologistas. Es el resultado de mi larga búsqueda de una
teoría ecofeminista que sea capaz de eludir los peligros que encierra para
las mujeres la renuncia al legado de la Modernidad. Es evidente que
todos los ecofeminismos son críticos en la medida en que critican el
sistema actual pero he elegido este adjetivo como una referencia a las
promesas incumplidas de la Ilustración y a su vinculación con los nuevos
retos del milenio. Resumo sus ejes principales en los apartados que
siguen.

Revisión crítica de la Modernidad


Como he apuntado, el proceso de desarrollo de la Modernidad
presenta ambigüedades y múltiples caras y no todas ellas son deseables.
Los principios y convicciones de libertad e igualdad han estado
acompañados de nuevas formas de opresión y explotación. Sin embargo,
puede decirse que la crítica al prejuicio y la idea de la igualdad de todos
los hombres han sido decisivas para el surgimiento imparable de
numerosos movimientos emancipatorios, incluido el de liberación animal.
Igualdad, libertad, autonomía han impulsado las reivindicaciones de
las mujeres (AMORÓS, 2005, VALCÁRCEL, 1991). Hoy podemos hablar
de más de dos siglos de teoría y praxis feministas. En las cinco últimas
décadas, el neofeminismo ha manifestado una extraordinaria multiplicidad
de intereses y de marcos teóricos y ha sabido responder a los retos de
distintos debates emergentes con propuestas innovadoras y fecundos
análisis que no habrían podido ser elaborados desde una perspectiva
ciega a la desigualdad de género. Los enfoques de clase, raza y
diversidad sexual, las teorías sobre el sujeto, la ética y la filosofía política
se han visto notablemente enriquecidos por un pensamiento que da la
voz a las mujeres en un impulso emancipatorio inédito.
En su vertiente tecnocientífica, la racionalidad moderna nos ha
aportado grandes cotas de bienestar pero, en la actualidad, descubrimos
que ha traído también una destrucción nunca vista del tejido de la vida
que nos sustenta, así como amenazas al ecosistema global
insospechadas hasta hace poco tiempo. De ahí el desarrollo de la Ética
Ambiental como gabinete de crisis ante lo que ha sido definido como The
Death of Nature (MERCHANT, 1981). Asimismo, como racionalidad
reducida del homo oeconomicus, la Modernidad ha instalado nuevas
formas de explotación y desigualdad. Hoy, estos problemas inéditos
aparecen en el marco de un período de desconcierto y apatía ciudadana,
en una época de Caída de los Grandes Relatos que recuerda a un
helenismo escéptico y hedonista convencido de su impotencia para
enderezar la marcha del mundo.
Mi propuesta conserva el legado ilustrado de igualdad y autonomía al
tiempo que reivindica el sentido fuerte de eco, es decir, que no se limita a
un simple ambientalismo feminista antropocéntrico en el que las
relaciones con los animales no humanos y con el resto de la Naturaleza
se limiten a proponer una buena gestión de los recursos. Se trata de
pensar y pensarnos con otra mirada en la urgencia de los tiempos del
cambio climático sin desandar el camino recorrido por el feminismo ni
abandonar los fundamentos que nos han permitido avanzar en él.

Derechos sexuales y reproductivos de las mujeres


Conservar las conquistas del feminismo implica, en primer lugar, la
reivindicación de los derechos sexuales y reproductivos. Insistir en la
figura de la mujer-madre-naturaleza como lo han hecho algunas
corrientes ecofeministas, puede significar un retroceso con respecto al
principio feminista de la maternidad como opción libre y personal.
Reivindicar la igualdad y la autonomía implica promover los derechos
sexuales y reproductivos. Frente a una difusa exaltación de la Vida que
esconde la tradicional negativa a dar autonomía sexual a las mujeres, el
ecofeminismo crítico que propongo defiende el derecho a la
anticoncepción y al aborto. Es importante recordar que el texto en el que
por primera vez se utilizó el término ecofeminismo era un artículo de
Françoise d’Eaubonne publicado en 1974 que sostenía que la
sobrepoblación del planeta, tema que preocupaba a los ecologistas, era
el resultado de la negación patriarcal del derecho a decidir de las mujeres
sobre sus propios cuerpos. Esta idea se ha debilitado en los desarrollos
ecofeministas posteriores basados en la Santidad de la Vida. Algunas
teóricas incluso rechazan todo recurso tecnológico y hasta la separación
entre placer y reproducción por considerarlo elemento de dominación del
patriarcado capitalista (MIES). Vuelven, así, a la imagen de la mujer
definida por su rol de madre. Por otro lado, algunas formas del
ecologismo están actualmente impulsando un discurso esencialista y
antifeminista que reactivará probablemente el justificado temor de las
5
mujeres al ecologismo . Esto es muy negativo tanto para las mujeres
como para el ecologismo. Sostengo que, entre el hedonismo nihilista
irresponsable y carente de objetivos solidarios y el retorno a la
sacralización de los procesos biológicos, existe una alternativa: la
consciencia ecológica que preserva su plena autonomía. El futuro del
ecofeminismo pasa por un posicionamiento claro a favor del acceso de
las mujeres a la libre decisión en materia reproductiva. Las mujeres
deben ser reconocidas como sujetos con poder de decisión en cuestiones
demográficas, es decir, sujetos de su propia vida que eligen si van o no a
tener hijos y, en el caso de que los deseen, cuándo y cuántos dar a luz en
el marco de una cultura ecológica de la igualdad. Esto requiere, en
ocasiones, el concurso del conocimiento científico y de la tecnología.

Actitud frente a la ciencia y a la tecnología


No se trata de volver a un pasado natural idealizado ni de tener una
confianza ciega en la ciencia y la tecnología. Mi planteamiento
ecofeminista no es ni tecnofóbico ni tecnólatra. Exigirá el cumplimiento
efectivo del principio de precaución asumido por la Unión Europea en el
año 2000 pero actualmente en vías de ser abandonado, sobre todo si se
firman tratados de libre comercio como el CETA o el TTIP.
Según este principio, cuando haya incertidumbre científica con
respecto al riesgo de un daño irreversible que pueda entrañar, para el
medio ambiente o la salud, una nueva actividad o producto, se impondrá
la prudencia. No será necesario que se haya demostrado de manera
concluyente su carácter nocivo para que se tomen medidas de control y
prevención. La carga de la prueba recae en quien pretende introducir el
nuevo producto o actividad, no en los eventuales afectados. Frente a las
pretensiones de quienes priorizan las ganancias sobre los riesgos, el
principio de precaución plantea la transparencia y la participación
democrática en el debate.
Para un ecofeminismo de fundamentos materialistas, el problema de
las modificaciones tecnocientíficas de la Naturaleza no reside en la
alteración de un orden sagrado, sino en lo rudimentario y tosco de la
intervención humana actual sobre adaptaciones sistémicas complejas con
un pasado de millones de años. Frente al avance de lo que podemos
llamar tecnolatría, una creencia ciega en la técnica como solución mágica
de todo, hemos de tener claro que la técnica no puede ser un nuevo ídolo
ante el cual postrarse renunciando al pensamiento crítico. Los daños
colaterales y la posible irreversibilidad de los cambios introducidos hacen
que debamos examinar las innovaciones a la luz de los Derechos
Humanos _particularmente el derecho a la salud en un medio ambiente
sano de la biodiversidad, del sufrimiento de los demás seres vivos y de la
herencia que dejamos a las generaciones futuras. Una de las razones por
las que la ecología se convierte en una cuestión feminista es el hecho de
que la contaminación tiene particular incidencia en la salud de las
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mujeres y en la salud reproductiva. Los seres humanos somos cuerpos
que han de adquirir la autoconciencia de pertenecer al tejido de la vida
múltiple y multiforme del planeta que vivimos, y que su destrucción es, a
medio o largo plazo, la nuestra. La tecnología que crea problemas en vez
de solucionarlos, que pretende adueñarse de la Naturaleza para
convertirla en esclava y mero objeto de compra y venta, es hybris, es
desmesura irracional.

Interculturalismo
Ninguna cultura conocida es perfecta pero todas pueden mejorar con
el aprendizaje intercultural. Debemos aprender de la interculturalidad que
ofrece el amplio espacio latinoamericano. Frente a un multiculturalismo
extremo que beatifica cualquier práctica con tal de que esté fundada en la
tradición, el aprendizaje intercultural nos permite comparar, criticar y
criticarnos. Hemos de aprender de culturas sostenibles como oportuno
correctivo a nuestra civilización suicida pero hacerlo sin caer en una
admiración beata. También tenemos que ser capaces de reconocer en lo
propio algo que ofrecer a los demás. Se trata de construir en conjunto
una cultura ecológica de la igualdad, no de venerar toda costumbre sólo
por ser parte de la tradición cultural, de la nuestra o la ajena. Todas las
culturas han sido y son injustas con las mujeres y los animales no
humanos. Los criterios mínimos de comparación que propongo para
presidir la ayuda mutua intercultural del ecofeminismo crítico son la
sostenibilidad, los derechos humanos, con especial atención a los de las
mujeres por ser los más ignorados transculturalmente y el trato dado a los
animales. Interculturalismo es saber aprender de los otros y pensar que
también se tiene algo para dar. Toda cultura tiene algo que dar y mucho
que recibir. Así, por ejemplo, si comparamos esta carrera tecnológica
desaforada, este mercadocentrismo del capitalismo neoliberal en el que
estamos y lo comparamos con la idea de los pueblos originarios
latinoamericanos sobre el respeto debido a la Pachamama, resulta
patente que éstas muestran mayor sabiduría. El respeto a la Tierra y sus
ciclos es un ejemplo de lo que podemos aprender de la interculturalidad.
Para el feminismo, para las mujeres, un multiculturalismo indiscriminado
es problemático. En algunas ocasiones, el ecologismo ha caído en una
veneración acrítica hacia culturas tradicionales por su sostenibilidad
ambiental, sin preocuparse por la situación de intensa opresión que
mantenían sobre las mujeres debido a su carácter patriarcal. Esta
indiferencia también se puede constatar con respecto a las minorías
sexuales o a los animales no humanos. El ecofeminismo ha de enseñar al
ecologismo a superar este punto ciego.

Ecojusticia para las mujeres de países empobrecidos


Frente a la globalización neoliberal, considero imprescindible
reivindicar la ecojusticia y la sororidad. Es necesario tener muy claro que
si el feminismo quiere mantener su vocación internacionalista, deberá
pensar también en términos ecologistas ya que las mujeres pobres del
llamado Sur son las primeras víctimas de la destrucción del medio natural
llevada a cabo para producir objetos suntuarios que se venden en el
Primer Mundo. El nivel de vida de los países ricos no es exportable a todo
el planeta. Los recursos naturales son consumidos sin atender a la
posibilidad o imposibilidad de su renovación. El expolio no tiene límites en
aquellos países en los que la población carece de poder político y
económico para hacer frente a la destrucción de su medio natural. Así,
por ejemplo, los elegantes muebles de madera tropical que proliferan hoy
en las tiendas de decoración de los países del Norte son, por lo general,
lo que queda de los bosques indonesios, sistemáticamente arrasados.
Como bien ha mostrado Vandana Shiva (1995), las mujeres rurales
de la India que viven en una economía de subsistencia han visto su
calidad de vida disminuir trágicamente con la llegada de la explotación
racional dirigida al mercado internacional. Si antes disponían de leña
junto al pueblo, ahora deben caminar kilómetros para encontrarla. Esa es
la modernización que les llega. Si en nombre de la justicia pensamos que
toda la humanidad debe acceder a una vida digna, este modelo de
desarrollo debe cambiar y hacerse sustentable. La Soberanía alimentaria
y la Agroecología (SILIPRANDI, 2011) han mostrado ser excelentes
compañeras de viaje del ecofeminismo en la construcción de este nuevo
modelo que no sólo atiende al equilibrio medioambiental sino que
empodera a las mujeres en su cotidianeidad.

Androcentrismo y valores del cuidado


Los problemas ecológicos y sociales de nuestro tiempo exigen el
análisis y denuncia de los intereses económicos implicados en la
devastación medioambiental. Pero la crítica a las identidades de género
también es necesaria si queremos una transformación ético-política
profunda que vaya más allá de una gestión racional de los recursos.
Habrá que proceder al desvelamiento del androcentrismo que hace del
varón (andros) la medida de todo valor. Androcentrismo es un concepto
clave para la comprensión de la ideología del dominio. El sesgo
androcéntrico de la cultura proviene de la bipolarización histórica extrema
de los papeles sociales de mujeres y varones. En la organización
patriarcal, la dureza y carencia de empatía del guerrero y del cazador se
convirtieron en lo más valorado, mientras que las actitudes de afecto y
compasión relacionadas con las tareas cotidianas del cuidado de la vida
fueron asignadas exclusivamente a las mujeres y fuertemente
devaluadas. En el mundo moderno capitalista, bajo la búsqueda
insaciable de dinero y el omnipresente discurso de la competitividad, late
el antiguo deseo de poder patriarcal. De ahí que una mirada crítica a los
estereotipos de género sea también necesaria para alcanzar una cultura
de la sostenibilidad. No se trata de caer en esencialismos ni en un
discurso del elogio que haga de las mujeres las abnegadas salvadoras
del ecosistema, sino de reconocer como sumamente valiosas las
capacidades y actitudes de la empatía y el cuidado atento, enseñarlas
desde la infancia también a los varones y aplicarlas más allá de nuestra
especie, a los animales - esclavizados y exterminados a una escala sin
precedentes - y a la Tierra en su conjunto. La crítica al modelo neoliberal
de desarrollo basado en la competitividad del mercado que explota y
oprime ha de tener también una perspectiva de género.
Es hora de exigir, enseñar y compartir actitudes, roles y virtudes,
porque elogiar las virtudes del cuidado sin una mirada crítica que
denuncie las relaciones de poder desemboca en un discurso edulcorado
e inane. La universalización de una ética del cuidado ecológica y
postgenérica es una tarea pendiente en la vida cotidiana. Gran parte de la
emancipación femenina se ha apoyado en la industrialización, por
ejemplo, en los artículos envasados o de usar y tirar, nefastos para el
medio ambiente. Si no hemos planteado la igualdad en el cuidado ¿cómo
organizaremos la infraestructura cotidiana sostenible sin sacrificar los
todavía inciertos márgenes de libertad de las mujeres? También es una
tarea pendiente en la educación esta universalización de la ética del
cuidado ecológica y postgenérica. La Educación Ambiental predominante
sigue sin visibilizar suficientemente a las mujeres y sin facilitar una
conciencia crítica de los roles de género. Tampoco favorece demasiado el
surgimiento de los sentimientos empáticos con respecto al mundo natural.
En este punto opera el dualismo razón/emoción que tiene una larga
historia patriarcal. Puede decirse que, salvo contadas excepciones, los
desarrollos de la Educación Ambiental no superan un examen crítico
ecofeminista. Necesitamos una reconceptualización del ser humano que
integre razón y emoción, un sentido moral más desarrollado que se
aplique a los animales no humanos, compañeros de vida en la Tierra,
capaces de sufrir y amar, y una ética de la responsabilidad acorde con el
nuevo poder tecnológico de la especie. Estas transformaciones de la
conciencia moral han de estar acompañadas de leyes.

La relación con los animales no humanos


No todos los ecofeminismos incluyen la consideración moral hacia
los animales no humanos en tanto individuos como una pieza
fundamental de la teoría. Numerosas teóricas adoptan, en la línea del
ambientalismo ecocéntrico, como ha observado críticamente Marti Kheel
(1999) una visión holista en la que, por ejemplo, la caza tradicional es
vista como una forma apropiada de respeto hacia los animales. Así, por
ejemplo, podemos constatarlo en el tratamiento de Karen Warren de la
práctica sioux de la caza como modelo para una ética ecofeminista
contextual (WARREN, 1996). Otras posiciones ecofeministas, por el
contrario, subrayan la conexión entre la violencia hacia los animales y la
violencia hacia las mujeres (COLLARD, 1988, ADAMS, 1990, KHEEL,
1999, PULEO, 2015, OLIVEIRA, 2016, VELASCO SESMA, 2017, entre
otras).
Los animales no humanos sirven, a menudo, de medio para la
construcción de una identidad viril concebida históricamente como
separación con respecto a los sentimientos de empatía y compasión por
el Otro. Pensemos, por ejemplo, en la tortura y muerte de animales como
diversión de la pandilla de niños o adolescentes, o en la caza deportiva
que podemos definir como guerra sistemática declarada a los animales
silvestres por individuos generalmente de sexo masculino. En la
actualidad, las redes sociales son una ventana abierta a esta violencia
desatada contra los animales, tanto para mal (individuos que cuelgan los
videos sádicos que han grabado o las fotos de sus supuestas hazañas)
como para bien (campañas de denuncia y peticiones de castigo judicial
de los abusos). Esta violencia contra criaturas indefensas tiene dos
objetivos fundamentales: experimentar la voluntad de poder y afirmar y
solicitar el reconocimiento de su identidad de género bipolarizada
obtenida por la represión de los sentimientos de compasión. El duro es un
resultado de técnicas de género específicas que proceden a extirpar
características previamente definidas como propias del sexo femenino. La
construcción del héroe es una peligrosa empresa que no siempre resulta
exitosa y puede, fácilmente, producir villanos.
En esta lógica patriarcal, la mujer aparece como figura caracterizada
por la emocionalidad y la debilidad de la que hay que diferenciarse para
ser superior, inconmovible e imperturbable ante espectáculos o acciones
violentas que ella, se supone, no sería capaz de realizar. De ahí que
algunas (felizmente escasas) mujeres traten de lograr un reconocimiento
similar al del varón exhibiendo conductas carentes de toda compasión en
actividades como la caza o el toreo. Tratan, así, de desafiar las normas
de género y la discriminación sexista, sin ver que, de esta forma, están
aceptando el canon androcéntrico que ha devaluado virtudes del cuidado
calificadas de femeninas y sobreestimado y hasta exigido en los varones
actitudes y costumbres destructivas que se han considerado masculinas.
Considero a los varones que defienden a los animales no humanos
como disidentes de lo que llamo orden patriarcal especista. Lo son,
consciente o inconscientemente, al menos en ese aspecto porque en la
causa de los animales late una potente redefinición de la masculinidad.
En el caso de las mujeres, he sostenido (PULEO, 2011) que el amor y el
cuidado que tantas muestran hacia los animales pueden ser concebidos
como una huelga de celo al patriarcado, en tanto se trata de un desvío
del flujo de energía que habitualmente se traspasa desde el colectivo
femenino al masculino sin reciprocidad.
La causa de los animales llama a una evolución ética y un salto
cualitativo de la humanidad que conecta con el ecofeminismo. La
igualdad de género puede ser comprendida y concretada de dos
maneras. La primera, androcéntrica, como inclusión de las mujeres en el
modelo patriarcal, exige el abandono de la conexión emocional, la
empatía y los valores del cuidado y la compasión por parte de las
mujeres. La segunda, resultado de una conciencia crítica ecofeminista
animalista, implica el desarrollo de esa conexión y esos valores por parte
de todos los seres humanos independientemente de su sexo-género.
Esta es una de las razones por las que veo con claridad un lazo profundo
entre feminismo y animalismo, a pesar de todos los desencuentros e
incomprensiones mutuas que aún los separan. A través del
ecofeminismo, el feminismo puede redefinir a los animales humanos y no
humanos y establecer nuevas formas de relación despojadas de
explotación y violencia.

A modo de conclusión
En estas líneas finales, quiero hacer una referencia a lo que llamo
pactos de ayuda mutua. El concepto de ayuda mutua fue planteado por
un ecologista de primera hora, el pensador anarquista, geógrafo y
naturalista Pyotr Kropotkin. Sus estudios y observaciones sobre la
naturaleza le llevaron a descubrir que en ella no sólo hay competencia,
sino también ayuda mutua. Llevó estos conocimientos a la filosofía social,
concluyendo que la sociedad humana tenía que ser de ayuda mutua. Me
he inspirado en esta idea de ayuda mutua para plantear la necesidad de
pactos de apoyo entre feminismo y ecología, entre materialistas y
espiritualistas, entre gente rural y gente urbana, entre ecocéntricos que
sólo miran el equilibro del ecosistema y defensores de los animales
movidos por la compasión ante el sufrimiento de los individuos, entre
Norte y Sur, porque lo que le pase al Sur marca también el destino del
Norte, entre ecologismo como conservación de la naturaleza y
ecologismo social que relaciona la crisis ambiental con la injusticia
social… Esos pactos de ayuda mutua no excluyen el debate. Sólo
proponen evitar ese enfrentamiento que a menudo presenciamos en la
actualidad, ese mutuo encarnizamiento que olvida al verdadero enemigo.
Una voluntad compartida de no agresión y de apoyo ayudaría a
movimientos y a personas de diferentes concepciones pero objetivos
similares, a avanzar hacia otro mundo posible, un mundo de justicia y paz
en el que no imaginemos ser los únicos protagonistas, sino, de manera
más humilde, realista y gozosa, reconozcamos que, junto a los animales
no humanos, somos parte de la inmensa red de la vida.
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CAPÍTULO 3

De la lógica de la dominación al respeto y la


empatía: hacia una relación ecofeminista con
7
los animales y la naturaleza
Angélica Velasco Sesma
Introducción
En un mundo globalizado en el que pervive de forma dramática la
violencia, la dominación y el odio al Otro diferente, urge reflexionar sobre
los diferentes sistemas de opresión y sobre la vinculación que existe
entre ellos con el fin de avanzar hacia relaciones respetuosas que
favorezcan la construcción de sociedades pacíficas. Sin embargo, las
relaciones basadas en la empatía y en el respeto que son necesarias
para lograr un mundo justo no deben entablarse únicamente entre seres
humanos, sino que tienen que abarcar también a la naturaleza y a los
seres vivos que la habitan.
En su obra Sobre la paz, el sociólogo Johan Galtung afirma que la
violencia estructural es incompatible con un estado de paz verdadera
(GALTUNG, 1985). No sólo habría que combatir la violencia directa – sea
8
ésta física, psicológica o verbal -, sino también la violencia estructural y
9
la violencia cultural que legitiman y perpetúan el uso de la fuerza y de la
coacción (GALTUNG, 1998). Sólo entendiendo la forma en que
interactúan estos tres tipos que conforman el triángulo de la violencia
(GALTUNG, 2003), se puede abarcar la complejidad de las prácticas de
la dominación que se producen tanto a nivel individual como desde las
estructuras sociopolíticas, económicas y culturales. De este modo, la paz
tiene que entenderse como un orden que aspira explícitamente a
liberarse de la dominación y de la injusticia (RÓDENAS, 2014a). Sólo
puede considerarse que una sociedad está en paz cuando se ha logrado
un orden democrático, en el que todos los miembros de la sociedad
poseen la misma libertad. La paz, necesariamente, tiene que ser paz con
10
justicia (RÓDENAS, 2014b).
No obstante, tal y como afirma la filósofa Asunción Herrera Guevara:
“hasta que no tengamos en mente como ideal la abolición del sufrimiento
en todos los seres vivos, no podremos hablar de justicia” (HERRERA
GUEVARA, 2014, p. 169). La justicia, para ser universal, tendrá que ser
necesariamente interespecífica. Debemos rechazar, por tanto, no sólo la
violencia que sufren las personas sino también la sufrida por el resto de
individuos sintientes. De lo contrario, será imposible construir un mundo
no violento, ya que, por un lado, al ser cruel con un individuo que sufre se
está demostrando tener un carácter rechazable para una sociedad no
violenta; y, por otro lado, tal y como muestran numerosos estudios, el
maltrato hacia los animales socializa en la violencia hacia el resto de los
seres humanos, siendo, por lo tanto, un indicador de violencia contra las
personas (CAPACÉS, 2005; DEGUE Y DILILLO, 2009; ONYSKIW, 2007).
Ser cruel con otros seres más pequeños y vulnerables desemboca en el
desprecio hacia los sentimientos de otros seres vivos, ya sean humanos
o animales (FLYNN, 2000a). De este modo, parece obvia la importancia
de trabajar contra la violencia en todas sus manifestaciones, sea de la
11
especie que sea el individuo que la sufre .
Por otro lado, en tiempos del cambio climático, la contaminación
ambiental, la desertificación, la pérdida de biodiversidad o el aumento de
las enfermedades causadas por la utilización masiva de productos
químicos tóxicos tienen que ser motivo suficiente para entender que no
sólo es relevante la opresión que sufren las personas, sino que también
la explotación de la naturaleza imposibilita alcanzar una cultura pacífica.
Potenciar la política ecológica supone favorecer la paz. Como bien afirma
la pensadora, activista y política Petra Kelly, “necesitamos justicia
ecológica: un equilibrio ecológico en el contexto de la justicia económica y
una justicia económica en el contexto del respeto a la ecología” (KELLY,
1990, 142).
El sistema capitalista neoliberal, al estar enfocado únicamente al
crecimiento industrial, destruye sus propias bases, así como el medio
ambiente y la estabilidad social (KELLY, 1988). Como se expone en el
Manifiesto de los Verdes por la paz:
Un modo de vida y de producción que se basa en la inacabable afluencia de materias
primas, y que las maneja con despilfarro, suministra también el motivo para una
apropiación violenta de materias primas ajenas. Frente a esto, un manejo responsable
de las materias primas, en un modo de vida y de economía inspirada en la ecología,
reduce el peligro de que se haga política violenta en nuestro nombre. La política
ecológica dentro de la sociedad crea las condiciones previas para la disolución de las
tensiones y la capacidad para la paz en el mundo. (KELLY, 1988, p. 44)

Obviar nuestra interdependencia con el resto de la naturaleza


supone ignorar que también los seres humanos formamos parte de la red
de interconexión que conforma el planeta y que somos seres vulnerables
que dependen de los procesos cíclicos del mundo natural. La actitud
destructiva con la naturaleza propia del Homo Economicus reproduce el
desprecio por el Otro al que me refería más arriba, desprecio que
conduce a la violencia y a la opresión.
Una de las características fundamentales de los sistemas de
dominación es el uso de la fuerza o la posibilidad de emplear la violencia
contra quienes se encuentran en una situación de inferioridad. El
12
patriarcado es un ejemplo de esto. La violencia contra las mujeres no
se reduce a sucesos aislados, sino que forma parte de la estructura
misma de este sistema social. Lo mismo sucede en el sistema de
13
dominación especista , que se funda sobre la violencia contra los
animales. Tal y como se ha señalado desde el ecofeminismo, los distintos
sistemas de dominación se encuentran vinculados a nivel conceptual a
14
través de la lógica de la dominación . Por lo tanto, las diferentes
opresiones tendrán que ser abordadas de forma conjunta, pues están
basadas en la misma argumentación lógica.
Si echamos un vistazo a la historia de la humanidad,
comprobaremos, por un lado, que las mujeres han sido (y continúan
siendo) tratadas como seres inferiores a los hombres. Ya se haya
empleado un discurso de inferioridad – que sostiene que las mujeres
tienen que estar sometidas a los varones porque sus cualidades físicas,
intelectuales y morales son inferiores - o un discurso de la excelencia –
que determina que las mujeres son más valiosas que los hombres debido
a que poseen cualidades buenas específicamente femeninas como la
compasión -, el resultado ha sido la justificación del sometimiento del
colectivo femenino (DE MIGUEL, 1999). Por otro lado, podremos
comprobar que los animales no humanos no han tenido más suerte que
las mujeres en este sentido. El ser humano ha implantado una jerarquía
de los seres, estableciéndose a sí mismo en la cima. La forma de
conceptualizar tanto a las mujeres como a los animales ha permitido al
hombre autoproclamarse el ser superior. Esta conceptualización de
mujeres y animales como inferiores ha conducido a prácticas brutales de
dominación y explotación. Partiendo de esta constatación, desde de las
claves conceptuales que aporta el ecofeminismo, trataré de mostrar que
el feminismo y el movimiento por la defensa de los animales tienen
mucho que aportarse mutuamente. Establecer un diálogo entre ambos
movimientos resulta fundamental para construir teorías completas sobre
el sexismo y el especismo y para llevar a cabo prácticas exitosas con el
fin de acabar con la dominación de mujeres y animales. Comprobaremos,
asimismo, que la violencia contra las mujeres y la violencia contra los
animales están interconectadas a múltiples niveles y que es imposible
construir una sociedad pacífica, igualitaria y justa si se mantiene la
violencia contra los individuos más vulnerables. Defenderé, en este
sentido, la importancia de la Ética de la virtud, centrada en la cuestión del
carácter, ya que considero imprescindible atender al tipo de virtudes que
deben desarrollar las personas para encajar en el mundo que propone la
15
utopía ecofeminista .

La filosofía ecofeminista: hacia la eliminación de todos los


sistemas de dominación
En Política sexual (1970), la feminista radical Kate Millet escribe:
No estamos acostumbrados a asociar el patriarcado con la fuerza. Su sistema
socializador es tan perfecto, la asunción de sus valores tan firme y su historia en la
sociedad humana tan larga y universal, que apenas necesita el respaldo de la
violencia. Por lo común, sus brutalidades pasadas nos parecen prácticas exóticas o
“primitivas” y los actuales extravíos individuales, patológicos o excepcionales, que
carecen de significado colectivo. Y, sin embargo, al igual que otras ideas dominantes,
como el racismo y el colonialismo, la sociedad patriarcal ejercería un control
insuficiente, e incluso ineficaz, de no contar con el apoyo de la fuerza, que no sólo
constituye una medida de excepcionalidad, sino también un instrumento de
intimidación constante (MILLET, 2010, p. 100).

La idea fundamental que pretende transmitir Millet es que la fuerza y


la violencia son elementos estructurales de todos los sistemas de
dominación. Tanto el racismo como el colonialismo o el sexismo se
fundan sobre la violencia para mantener a los individuos dominados en la
situación de sometimiento. En el caso concreto del patriarcado, su
sistema socializador logra que las propias mujeres se adapten por libre
elección a las normas impuestas. Sin embargo, la violencia y la amenaza
de violencia socializan a las mujeres en el miedo, de forma que, en caso
de no acatar las normas patriarcales, serán víctimas de la violencia de
género. Las mujeres siempre somos víctimas potenciales de este tipo de
violencia (BOSCH, FERRER, 2002; FEMENÍAS, 2013). Es la suerte que
corremos por haber nacido en un sistema de dominación sexista.
En este fragmento, Millet se refiere al patriarcado, al racismo y al
colonialismo como ideas dominantes basadas en la violencia. A pesar de
que esta feminista no lo señale, el sistema de dominación de los animales
no es distinto en este sentido, pues precisa de la violencia para
mantenerse. La psicóloga social Melanie Joy denomina carnismo al
sistema de creencias invisible que subyace a la opción de comer carne
(JOY, 2013). Este sistema condiciona para considerar que unos animales
son comestibles y otros, no. Condiciona, asimismo, para aceptar que
consumimos animales no por una opción personal, sino por nuestra
naturaleza. El carnismo sería una ideología invisible organizada en torno
a la violencia física contra los individuos a los que se asesina para utilizar
sus cuerpos como alimentos. Por este motivo, este sistema no podría
existir sin la violencia. Vemos, por tanto, que hay, al menos, un elemento
común a los diferentes sistemas de dominación: la violencia. Pero,
¿existe algún otro tipo de conexión entre ellos?
Considero que la corriente de pensamiento y acción más
prometedora para tender puentes entre los distintos sistemas de
dominación es el ecofeminismo. Si bien se ha afirmado que existen tantas
corrientes ecofeministas como teóricas ecofeministas, todas ellas
coinciden en señalar que existen múltiples conexiones entre el feminismo
y el ecologismo y que una comprensión adecuada de estos vínculos es
imprescindible para lograr una Ética Ambiental, una teoría feminista y un
movimiento ecologista exitosos. El ecofeminismo sería, por tanto, la
corriente del feminismo que se propone abordar nuestra relación con la
naturaleza desde la perspectiva de género, proponiendo una redefinición
del ser humano y la naturaleza, de forma que nos entendamos
humildemente como parte de ésta y no como superiores y dominadores
de ella (PULEO, 2011). Desde esta postura, se afirma que existen
múltiples conexiones entre la dominación de las mujeres (y otros
oprimidos) y la dominación de la naturaleza, entre las que se incluyen la
conexión histórica, la empírica, la simbólica, la ética, la política o la
conceptual (WARREN, 2003).
Las filósofas ecofeministas han llevado a cabo un análisis de esta
última conexión manteniendo que, a nivel conceptual, las dominaciones
de las mujeres y la naturaleza se encuentran vinculadas por encontrarse
insertas en un mismo marco conceptual opresivo patriarcal (WARREN,
1997). Este marco conceptual se caracteriza por poseer tres elementos:
Por un lado, un conjunto de dualismos valorativos que han estructurado el
pensamiento occidental a lo largo de los siglos. Serían dualismos como
hombre/mujer, humano/animal, cultura/naturaleza, mente/cuerpo,
razón/emoción, civilizado/primitivo, producción/reproducción,
público/privado, etc. (PLUMWOOD, 1993). Por otro lado, un pensamiento
jerárquico-valorativo que clasifica los elementos de estos dualismos de
acuerdo a nociones de inferioridad y superioridad. De este modo, una de
las partes de los pares de opuesto sería considerada superior a la otra
(en los dualismos señalados, el elemento superior sería el de la
izquierda). Y, por último, el marco conceptual opresivo patriarcal se
caracteriza por poseer una lógica de la dominación que sería la estructura
argumental que justifica la dominación del elemento considerado inferior
(WARREN, 1997).
La lógica de la dominación, que se ha puesto de relieve desde el
ecofeminismo, permite legitimar la dominación de aquellos considerados
Otros. Esta lógica vincula los diferentes sistemas de dominación a nivel
conceptual. Es decir, que el proceso conceptual que se sigue para
justificar la dominación de cualquier grupo oprimido es el mismo: Primero,
estructuramos el pensamiento de acuerdo a pares de opuestos. Después,
establecemos una jerarquía entre cada uno de ellos. Y, finalmente,
empleamos la lógica de la dominación para justificar que se domine a
aquello que se considera inferior. Este mecanismo ha sido empleado para
legitimar los sistemas sexista, racista, heterosexista, clasista, capacitista
o de cualquier otro tipo. El ecofeminismo muestra que también ha sido
empleado para explotar a la naturaleza (considerada inferior a la cultura)
y a los animales (considerados inferiores a los humanos).
Como podemos comprobar, el trabajo para eliminar cualquier sistema
de opresión exige eliminar la lógica de la dominación en que se basa. Por
lo tanto, implica trabajar también por eliminar el resto de sistemas de
dominación, que se basan en el mismo proceso conceptual. Vemos, así,
que el ecofeminismo muestra el vínculo profundo que existe entre todos
los sistemas de dominación, incluido el de la dominación de la naturaleza
y, por supuesto, el de los animales. Este planteamiento ecofeminista me
parece fundamental para entender de qué forma se relaciona la
dominación de las mujeres y la de los animales.
No obstante, conviene recordar que el análisis de la problemática de
nuestra relación con los no humanos no sólo ha sido llevado a cabo,
dentro del feminismo, por las pensadoras ecofeministas. Ya en el siglo
XIX, numerosas sufragistas compaginaron sus reivindicaciones feministas
con la defensa de los animales, ya que hallaban muchas semejanzas
entre los experimentos que los hombres realizaban sobre animales y los
abusos que sufrían las mujeres como pacientes en ginecología o como
objetos de la pornografía (MUNRO, 2001). Las mujeres fueron la fuerza
del movimiento anti-vivisección. Los animales maltratados les recordaban
su propia condición en la sociedad (LANSBURY, 1985). Algunas
sufragistas consideraron que la causa contra la vivisección era, al igual
que la reforma moral de la sociedad, una causa típicamente femenina
(GONZÁLEZ, RODRÍGUEZ CARREÑO, 2008). Comprobamos, pues, que
existe una historia olvidada de mujeres feministas que defendían a los
animales del sufrimiento y la tortura.
Un siglo antes, feministas como Olympe de Gouges o Mary
Wollstonecraft, apostaron, también, por el respeto hacia los animales no
humanos. Mary Wollstonecraft, principal referente del feminismo ilustrado
en Inglaterra, sostiene en su Vindicación de los derechos de la mujer
(1792) que el prejuicio que mantiene que las mujeres son
ontológicamente inferiores a los hombres constituye la base sobre la que
se asienta la tiranía a la que éstas están sometidas. Sostiene que los
varones se comportan con la población femenina de la misma forma que
la aristocracia con respecto al pueblo oprimido y afirma que “los hombres,
en general, parecen emplear su razón para justificar los prejuicios que
han asimilado de un modo que les resulta difícil descubrir, en lugar de
deshacerse de ellos” (WOLLSTONECRAFT, 1994, p. 116). En este caso
se está refiriendo al prejuicio sexista pero, ¿qué sucede en el caso del
prejuicio de especie o especismo? Considero que esta afirmación de
Wollstonecraft puede aplicarse al caso de los animales, ya que la idea de
la superioridad humana no es más que un prejuicio inculcado desde la
infancia que se trata de justificar por todos los medios.
Con respecto a las reflexiones de Wollstonecraft sobre el maltrato
hacia los animales, conviene acudir aquí a la siguiente cita:
La justicia, o incluso la benevolencia, no serán una fuente poderosa de acción si no se
extienden a toda la creación; más aún, creo que puede considerarse un axioma que
aquellos que pueden ver el dolor sin sentirse conmovidos, pronto aprenderán a
causarlo (WOLLSTONECRAFT, 1994, p. 361).
Esta afirmación me resulta especialmente relevante por tres motivos.
Primero, porque nos permite comprobar que las luchas por la defensa de
la igualdad entre los sexos y las luchas por el respeto hacia los animales
no humanos pueden darse de forma conectada y, de hecho, esta unión
de luchas cuenta con una larga historia que se remonta, como vemos, al
siglo XVIII, que continúa en el XIX con algunas sufragistas y que se
desarrolla de forma potente en la actualidad. Segundo, porque, con total
coherencia, reivindica ciertos principios ilustrados como la justicia para
toda la humanidad e, incluso, más allá de ésta. Sostener que la justicia y
la benevolencia tienen que aplicarse a hombres, mujeres y animales es
una idea fundamental para construir un mundo mejor. Es más,
Wollstonecraft, como buena filósofa ilustrada, hace hincapié en el poder
de la educación, sosteniendo que la falta de empatía hacia quienes
16
sufren nos enseña a causar daños . Esta cuestión conecta con el tercer
motivo que considero fundamental: causar dolor se considera algo
indeseable. Quien causa dolor a un ser con capacidad de sufrir y gozar
está realizando un acto moralmente reprochable. Y, no sólo eso,
podemos afirmar que maltratar te convierte en mala persona. Cuando
dañas a alguien que no quiere sufrir, demuestras que tienes un carácter
negativo. Precisamente la cuestión del carácter se sitúa en el centro de la
Ética de la Virtud, que analiza qué virtudes deben desarrollarse para
forjar un carácter moralmente admirable. Sostengo que el tema del
carácter debería ocupar un lugar central tanto en la Ética feminista como
en la Ética Animal, ya que resulta fundamental analizar el tipo de persona
que demostramos ser cuando mantenemos actitudes de dominación, ya
sea hacia las mujeres o hacia los animales no humanos.
Pero volvamos ahora a la Vindicación de los derechos de la mujer de
Mary Wollstonecraft. Esta filósofa feminista pretende aplicar a las mujeres
los principios de universalidad de la razón y de los derechos naturales,
mostrando las incoherencias del pensamiento ilustrado patriarcal que
había defendido que los derechos naturales son inherentes a los seres
humanos con el fin de deslegitimar la falta de derechos y el exceso de
obligaciones de los individuos en la sociedad estamental, pero se los
había negado a las mujeres. Tras la publicación de la Vindicación,
apareció de forma anónima una obra titulada A Vindiction of the Rights of
Brutes en la que, de forma satírica, se trataba de desacreditar los
argumentos empleados por Wollstonecraft. El autor desarrolla un
razonamiento por reducción al absurdo, afirmando que los argumentos de
Wollstonecraft podrían emplearse para justificar que los animales tienen
derechos. Como sostener que los animales tienen derechos sería algo
absurdo, los argumentos que emplea Wollstonecraft serían, igualmente,
desechables (TAYLOR, 2001). De esta forma, quedarían desacreditadas
(en opinión del autor – que posteriormente se demostró que era Thomas
Taylor) las ideas feministas.
Creo que este hecho resulta de lo más significativo y revelador.
Pues, ¿por qué se han considerado igualmente absurdas la idea de que
las mujeres tengan derechos y la idea de que los tengan también los
animales? ¿Por qué se han comparado ambas demandas? ¿Es que
existe algún tipo de vinculación entre la situación de inferioridad y
dominación en la que se encuentran las mujeres y la situación de
inferioridad y explotación en la que mantenemos a los animales? ¿El
feminismo y el movimiento de defensa de los animales tienen algo que
aportarse mutuamente o constituyen dos movimientos independientes
entre los que no debe darse diálogo alguno? Responder a estos
interrogantes constituye el objetivo fundamental del presente texto. Con
este fin, examinaré la categoría de Otro y la forma en que se ha situado
en esta categoría tanto a las mujeres como a los animales. Basándome
en la teoría ecofeminista, que establece conexiones entre los diferentes
sistemas de opresión, me centraré en la vinculación entre la dominación
de las mujeres como objetos sexuales y la de los animales como objetos
comestibles. Un análisis de la cuestión del carácter y del tipo de mundo
que queremos construir nos llevará a entender que no se puede alcanzar
la justicia ni la igualdad si basamos nuestras prácticas diarias en la
violencia, ya sea hacia las mujeres o hacia los animales.
Considero que si se acepta (tal y como se propone desde el
17
ecofeminismo) que la dominación patriarcal y la dominación especista
están conectadas estrechamente, el movimiento feminista y el
movimiento por la defensa de los animales tendrán que atender a esta
conexión para lograr teorías y prácticas completas y exitosas. Un
acercamiento entre estos dos movimientos resulta más que deseable en
este momento histórico en el que, por un lado, la dominación de las
mujeres se mantiene, reproduce e, incluso, se intensifica; y, por otro lado,
la violencia contra los animales alcanza límites de extrema crueldad en
prácticas como la ganadería intensiva o la industria peletera. Como
hemos visto, la paz exige la eliminación de todas las formas de
dominación, incluida la de los animales. Esto sólo será posible si a los
esfuerzos políticos e institucionales se une el compromiso personal que
sólo puede alcanzarse si se posee un carácter que rechace todas las
muestras de opresión.
Urge, por tanto, desarrollar relaciones ecofeministas tanto con las
personas como con la naturaleza y con los animales. Cuando hablo de
relaciones ecofeministas me refiero precisamente a formas de interacción
18
basadas en el respeto y en los valores de la Ética del cuidado . Serían
relaciones conscientes de la interconexión e interdependencia de los
humanos entre sí y de éstos con la naturaleza no humana, relaciones
empáticas basadas en el convencimiento de que la dominación no es
legítima y de que la diferencia no justifica la opresión de los Otros. Las
relaciones ecofeministas muestran la necesidad de vivir de acuerdo a
valores no androcéntricos, rechazando, en consecuencia, el sexismo, el
racismo, el clasismo, el especismo y el resto de sistemas dominantes.
Las personas que se relacionan de forma ecofeminista con todo lo que
les rodea son la esperanza para este mundo que agoniza bajo el yugo del
capitalismo patriarcal y especista.

Las mujeres y los animales como los Otros inferiores


Analicemos la siguiente situación: Nos encontramos en unas
jornadas sobre feminismo. En una de las ponencias, se examina el
pensamiento ecofeminista y, con este fin, se cita el siguiente fragmento
en el que se reproduce una conversación entre dos mujeres feministas en
1976. Una de las mujeres tiene conciencia animalista mientras que la otra
no la tiene:
Jean: ¿Pensarías que violar a una mujer está bien si le ocurre a ella y no a ti?
Barbie: No, me sentiría como si me hubiera pasado a mí.
Jean: Bueno, pues así es como nos sentimos algunas de nosotras con respecto a los
animales (ADAMS, 2003, p. 195).

Al acabar la ponencia, una de las asistentes manifiesta a la ponente


su indignación con respecto a esta cita, ya que, como feminista,
considera que no es comparable la violación de mujeres y la explotación
de animales. Relata, además, un suceso en el que, cuando ella sostuvo
que le preocupaba mucho el tema de las violaciones, un hombre
animalista le respondió que a él también le preocupaba mucho el tema de
la tauromaquia, zanjando, así, la conversación. Con toda justicia, nuestra
asistente feminista se sintió indignada por la respuesta de este hombre
animalista (y claramente no feminista). Sin embargo, ¿es cierto que no
existen puntos de contacto entre la violación de mujeres por parte de
hombres y la explotación de animales por parte de seres humanos?
¿Puede ser exitoso un movimiento de defensa de los animales que no
incorpore la perspectiva de género? ¿Hasta qué punto es completo un
feminismo que no atienda al sufrimiento de los animales y a la
explotación de la naturaleza? Estas preguntas se irán respondiendo a lo
largo del texto, especialmente en el último apartado. No obstante, para
llegar hasta allí, tenemos que analizar varias cuestiones indispensables.
En el siglo XX, la filósofa existencialista Simone de Beauvoir
revitaliza el feminismo con su obra El segundo sexo (1949). En su
pensamiento, no encontramos muestras de empatía hacia los animales.
Es más, descubrimos indiferencia ante su sufrimiento, por ejemplo,
cuando reconoce que los corderos muertos que observaba en los
mercados de Atenas le generaban rechazo (BEAUVOIR, 1960). A pesar
de esto, algunas de sus ideas resultan fundamentales para el objetivo
que persigo. El empleo de la categoría de lo Otro, de resonancias
hegelianas, es una de ellas.
Beauvoir aplica esta categoría a sus reflexiones sobre la desigualdad
entre los sexos. Basándose en las teorías que desarrolla Claude Lévi-
Strauss en Las estructuras elementales del parentesco, establece que la
categoría de Otro es una categoría fundamental del pensamiento
humano. Cada colectivo se define como el Uno frente al Otro, por lo que
la idea de Alteridad aparece como relativa y no como absoluta, pues
reconocer la reciprocidad de las relaciones con los demás sería una
obligación. Sin embargo, Beauvoir observa que esta reciprocidad que se
exige en las relaciones con las otras conciencias no está presente
cuando se aplica la noción de lo Otro a la mujer. La mujer sería, por lo
tanto, pura Alteridad, y el hombre sería el único esencial. La humanidad,
sostiene, se concibe como masculina y la mujer se define en relación con
el hombre ya que no es considerada un ser autónomo. Afirma que: “la
mujer se determina y se diferencia con respecto al hombre, y no a la
inversa; ella es lo inesencial frente a lo esencial. Él es el Sujeto, es el
Absoluto: ella es la alteridad” (BEAUVOIR, 2008, p. 50).
Comprobamos, de este modo, que en lo que respecta a las
relaciones entre los sexos, la mujeres aparece como lo Otro inesencial.
Como hemos constatado, la lógica de la dominación permite legitimar la
dominación de aquellos considerados Otros. Y “¿[q]uién ha representado
la Otredad por antonomasia a partir de la cual el ser humano se
autodefine como distinto y superior? Evidentemente, la respuesta a esta
pregunta es: el Animal” (PULEO, 2007, p. 72). Es decir, que en las
relaciones entre hombres y mujeres, la mujer es considerada el Otro
inferior. Del mismo modo, en las relaciones entre humanos y animales,
estos últimos estarían situados también en la categoría de la Otredad.
Como se ha establecido desde el ecofeminismo, la inferiorización de
mujeres y animales está basada en la misma lógica. Analicemos ahora
los procesos conceptuales que subyacen al sistema de dominación
especista.
A lo largo de la historia, el ser humano ha definido al animal en
relación consigo mismo. Por este motivo, las características de los
animales han sido vistas como una negación de las características
humanas. De esta manera, el animal aparece como lo contrario a lo
humano, es decir, como lo no humano, como el Otro. A pesar de todo, el
hombre ha necesitado al animal para definirse a sí mismo. Dado que el
animal es el Otro y el humano es lo esencial, este último aparece como lo
superior con derecho a dominar a los inferiores, esto es, a los animales
(LE BRAS-CHOPARD, 2003). A través de este proceso conceptual, se
establece el sistema de dominación especista antropocéntrico. Como
recuerda la filósofa Alicia Puleo. “En la Filosofía, se ha cavado
laboriosamente y contra toda evidencia empírica y consistencia lógica, un
inconmensurable abismo ontológico que ha servido de legitimación a la
explotación y el sadismo más intensos que se conocen” (PULEO, 2017b,
p. 8).
Pero, ¿qué tipo de persona demostramos ser cuando basamos
nuestras vidas en la dominación y la explotación de Otros? Para
responder a esta cuestión, recurriré a una situación hipotética propuesta
por el filósofo Óscar Horta: supongamos que en el lugar en el que
vivimos, existen grandes botones rojos a disposición de la gente. Si se
presiona uno de estos botones, se obtiene una sensación agradable
aunque, al mismo tiempo, uno o varios animales sufren terriblemente y
mueren. Aunque se puede conseguir de diferentes maneras una
sensación agradable parecida a la que proporcionan los botones rojos
(aunque no igual), la mayor parte de las personas pulsan estos botones
diariamente, tanto por la costumbre como por la sensación que
transmiten. ¿Sería bueno pulsar este botón? “[…] mucha gente […] opina
que no. Y lo opina, además, sin necesidad de pensárselo mucho. Les
parece muy intuitivo que presionar ese botón aun conociendo sus efectos
perversos sería la clase de cosa que nunca haría alguien que fuese
buena persona” (HORTA, 2017, p. 99). Es decir, que la intuición general
dicta que es moralmente reprochable causar sufrimientos a animales por
motivos más o menos triviales. Pero, ¿no son precisamente estos
motivos los que nos llevan a explotar a los animales en industrias como la
de la alimentación, el entretenimiento o la moda? Entonces, “si nos
indignara que la gente pulsara ese botón, ¿no nos debería indignar
también lo que les pasa a los animales en lugares como granjas y
mataderos […]?” (HORTA, 2017, p. 100). Mantengo que, en el caso de
que nos indigne lo primero y no lo segundo, estaremos demostrando una
hipocresía y una incoherencia comparables con las de filósofos ilustrados
como Kant o Rousseau que defendían la igualdad, la libertad, la
autonomía y la fraternidad pero sólo para la mitad de la humanidad: los
varones.
Tal y como sostiene la filósofa Marta Tafalla, cualquier ética que
desatienda nuestra relación con los animales está inacabada, pues ignora
un conjunto de problemas morales relevantes en la actualidad. La
reflexión en torno a nuestras relaciones con otras especies permite
reformular las relaciones entre los seres humanos, contribuyendo a una
mejor comprensión de nosotros mismos (TAFALLA, 2004). Es más, la
infravaloración de los animales y la idea de que, por ser inferiores, se les
puede someter, ha facilitado la opresión de ciertos grupos humanos
considerados más próximos a la animalidad (PATTERSON, 2008). Éste
es el caso de las mujeres. Por lo tanto, comprender los mecanismos que
legitiman la subordinación de los animales favorece a la causa feminista.
Son muchos los filósofos, médicos, psicólogos, sociólogos, artistas o
antropólogos, entre otros, que han sostenido que las mujeres son, si no
animales, más cercanas a la animalidad y, en consecuencia, inferiores a
los hombres. Comprobamos, pues, que la infravaloración de los animales
profundiza la infravaloración de las mujeres. La propia Simone de
Beauvoir sostuvo que las tareas de dar a luz y amamantar llevadas a
cabo por las mujeres no son verdaderas actividades, pues no se
diferencian de aquello que hacen los animales (BEAUVOIR, 2008).
Tenemos, por tanto, un vínculo importante entre la dominación de las
mujeres y la dominación de los animales. Ambos son considerados
inferiores y, de hecho, aparecen asociados en numerosas ocasiones.
Veamos un ejemplo de la cultura popular: Si realizamos una búsqueda en
Google con las palabras mujeres y animales, las imágenes que se nos
muestran representan escenas sexualizadas de mujeres más o menos
fusionadas con los animales. Hallamos, también, frases que reproducen
la idea de que la mujer es el animal más bello de todos. Si realizamos la
búsqueda sustituyendo la palabra mujeres por hombres, las imágenes
que aparecen muestran otro tipo de valores, que no se reducen a la
belleza física o a la sexualidad, sino al poder y al compañerismo.
También en la publicidad encontramos una vinculación entre la
sexualización de las mujeres y la cosificación de los animales. En el libro
La política sexual de la carne (1990), Carol Adams reproduce algunas de
estas publicidades que mantienen y afianzan los prejuicios sexistas y
especistas. Muestra, de este modo, la conexión que existe entre la
19
opresión de las mujeres en ámbitos como la pornografía , las películas
snuff o el lenguaje (donde aparecen como trozos de carne) y la opresión
de los animales en la industria alimenticia (ADAMS, 2011). Las imágenes
en las que los animales hembra aparecen sexualizados y feminizados se
multiplican de forma siniestra dentro de la industria de la alimentación.
20
Esta antropornografía muestra como divertidos y atractivos los
sufrimientos de los animales, así como la degradación de las mujeres
(ADAMS, 2017). Así pues, ¿qué tiene el feminismo que decir a este
respecto? ¿Bastaría con eliminar el sexismo de la explotación animal
para que ésta fuera moralmente aceptable? ¿Y el movimiento de defensa
de los animales? ¿Puede entender la explotación de los animales sin
analizar en profundidad la conexión que existe con la cosificación y
sexualización de las mujeres? ¿Puede ser exitosa una campaña en
defensa de los animales que, por ejemplo, muestre desnuda a una mujer
en pose provocativa lanzando el mensaje de que todos los animales
tenemos las mismas partes; o una campaña en la que las mujeres
aparezcan a cuatro patas con ordeñadores en los pechos, simulando la
situación que viven las vacas explotadas para obtener leche? La
utilización del cuerpo de las mujeres para criticar, por ejemplo, la industria
láctea “refleja, más que desafía, la explotación de los cuerpos femeninos”
(ADAMS, 2017, p. 73). Por lo tanto,
Los activistas veganos […] que buscan que reconozcamos a la vaca como una fuente
de leche materna, lo logran omitiendo la opresión sexual de las mujeres; los cuerpos
femeninos se vuelven vehículos para transmitir la opresión de las vacas pero no
ilustran las opresiones interconectadas (ADAMS, 2017, p. 73-74).
Visto esto, sostengo que es más que evidente que el feminismo y el
movimiento de defensa de los animales tienen mucho que aprender el
uno del otro, pues sus luchas se encuentran interconectadas, tal y como
21
se defiende desde el ecofeminismo .
Podemos afirmar que la violencia contra las mujeres y la violencia
contra los animales están vinculadas de forma profunda, ya que están
basadas en una infravaloración con respecto a los hombres y a los seres
humanos, respectivamente, y en una argumentación que acepta como
legítimo oprimir a aquellos considerados inferiores. ¿Cómo lograr,
entonces, el fin de una forma de opresión sin rechazar la propia lógica de
la dominación que la legitima y que justifica, al mismo tiempo, el resto de
dominaciones? ¿Se puede construir un mundo justo e igualitario entre
hombres y mujeres pero indiferente ante el sufrimiento de los animales?
¿No se correría el riesgo, en este caso, de que, al haberse mantenido la
lógica de la dominación, volviera a ser aplicada para legitimar el
sometimiento de las mujeres por considerarse que son más parecidas a
los animales debido a sus capacidades biológicas, tal y como ha afirmado
el discurso sexista a lo largo de la historia? Dado que la dominación de
las mujeres y la dominación de los animales poseen raíces comunes, es
necesario acabar con estas raíces para evitar que se reproduzca la
dominación. No podemos construir un mundo no sexista pero racista, de
la misma forma que no se puede lograr un mundo igualitario desde el
punto de vista de género pero basado en la explotación de los no
humanos. Estos mundos posibles serían incoherentes y, al mantener la
lógica de la dominación, es decir, al considerar que se puede dominar a
quien es considerado inferior, mantendría abierta la posibilidad de volver
a establecer jerarquías y a someter a los individuos más vulnerables.
Durante el siglo XVIII, la mayor parte de los filósofos ilustrados
pretendían fundar un mundo basado en la igualdad, en la libertad y en la
fraternidad, pero sólo para los varones, excluyendo, por tanto, a la mitad
de la humanidad. ¿Queremos ahora un mundo basado en estos
principios aplicados a todo el género humano, pero construido sobre la
dominación y la explotación más brutales del resto de los animales? He
denominado ideología de la subordinación-dominación-explotación de los
animales al conjunto de creencias que mantienen el derecho de los seres
humanos a satisfacer tanto sus necesidades básicas como sus deseos
triviales mediante la explotación y el sufrimiento de los animales no
humanos (VELASCO SESMA, 2017). Esta ideología considera que las
necesidades básicas de los no humanos (necesidades como mantenerse
con vida o no sufrir torturas) son totalmente irrelevantes o, en el mejor de
los casos, menos importantes que los caprichos de los seres humanos.
La ideología de la subordinación-dominación-explotación de los animales
se fundamenta en unos procesos conceptuales específicos. Como hemos
comprobado, los humanos se han servido de los animales para definir su
propia esencia, estableciendo que los no humanos son inferiores en
todos los aspectos. El animal es, por tanto, el Otro subordinado. La lógica
de la dominación establece que la inferioridad legitima la dominación, con
lo que se considera justo dominar a los animales. Así, del estadio de la
subordinación accedemos al de la dominación y, finalmente, al de la
explotación. De este modo, a través de esta ideología, se legitimaría el
derecho de los humanos a utilizar a los animales sin atender a su
sufrimiento. Rechazar esta ideología de la subordinación-dominación-
explotación de los animales permitiría relacionarnos con los animales de
una manera respetuosa y no jerárquica, con lo que se evitarían las
consecuencias desastrosas que tiene el mantenimiento de la violencia
22
hacia los no humanos .
El concepto ecofeminista de lógica de la dominación permite
establecer vínculos conceptuales entre los distintos sistemas de
dominación. Sin embargo, no es ésta la única conexión que se puede
establecer entre la violencia contra las mujeres y la violencia contra los
animales. Encontramos puntos de contacto entre ambas violencias en los
casos en los que los hombres que maltratan a sus parejas mujeres
amenazan, torturan o asesinan a los animales con los que la víctima
23
comparte su vida (ADAMS, 2006; FLYNN, 2000a). El maltrato hacia los
animales en los sucesos de violencia de género en las relaciones
afectivas constituyen un caso más de violencia psicológica (UPADHYA,
2014). Este maltrato hacia las mujeres, los niños, las niñas y los animales
domésticos se asienta en la cultura patriarcal que acepta que los
24
miembros de la familia son propiedades del hombre (ONYSKIW, 2007).
También la cultura especista (estrechamente relacionada con los valores
androcéntricos patriarcales), que acepta la inferioridad de los animales y
su estatus de objetos para la satisfacción de los deseos humanos,
favorece este tipo de violencia. Un hombre que utiliza al animal con el
que la víctima mantiene una relación profunda de afecto para causarle
daño a ésta está evidenciando no sólo carácter sexista y violento, sino
también un modo de ser basado en la idea de que los no humanos son
medios para nuestros fines.
Otra circunstancia en la que se pone de manifiesto la relación entre
la dominación de las mujeres y la de los animales sería los numerosos
casos en los que la sexualización de las mujeres y la cosificación de los
animales aparecen estrechamente vinculadas. La ideología patriarcal
crea la ontología de mujeres y animales, estableciendo que las primeras
son objetos sexuales y que los últimos son cuerpos comestibles (ADAMS,
2003). De hecho, tal y como recuerda la filósofa ecofeminista Carol
Adams, el lenguaje que se emplea en el sistema patriarcal facilita la
invisibilización de quienes ejercen la violencia. En el caso de la violencia
contra las mujeres, el concepto de mujer maltratada sólo hace referencia
a la víctima, ocultando al maltratador. Del mismo modo, en la explotación
de los animales, el concepto de “carne” oculta dos tipos de violencia:
aquella que ejerce de forma directa la persona que acaba con la vida del
animal en cuestión y aquella que ejerce de manera más o menos
indirecta el consumidor del producto resultante del asesinato del animal.
Como hemos comprobado, el patriarcado es un sistema basado en la
violencia contra las mujeres. También el sistema especista y el carnismo
se fundan en el uso de la fuerza, en este caso contra los animales. Cada
uno de estos sistemas conceptualiza de acuerdo a ideas de inferioridad y
superioridad, estableciendo que las mujeres son inferiores a los hombres
y que los animales son inferiores a los seres humanos, respectivamente.
Ya que son sistemas que aceptan y reproducen la lógica de la
dominación, mantienen la legitimidad de oprimir a estos individuos
infravalorados. Es más, como bien han puesto de manifiesto algunas
teóricas ecofeministas, estos dos sistemas de dominación están
interconectados. Existe un paralelismo entre la explotación de los
animales como objetos comestibles y la de las mujeres como objetos
sexuales. En la actualidad, el empleo de animales para beneficio de los
humanos alcanza límites insospechados y se basa en prácticas terribles.
En lo que respecta al sexismo, la hipersexualización del cuerpo femenino
cosifica a las mujeres, que aparecen como productos a disposición de los
25
hombres .
Mujeres y animales son, al fin y al cabo, objetos de consumo en el
patriarcado especista. Los animales no sólo aparecen como objetos en la
industria alimentaria, sino que son explotados en una infinidad de
prácticas crueles. Las mujeres, por su parte, aparecen sexualizadas
prácticamente en todos los ámbitos de la sociedad, siendo la prostitución
una de las áreas en las que la cosificación femenina es más clara y
evidente. El caso del sistema prostitucional me resulta especialmente
significativo en tanto que la prostitución es, tal y como sostiene la filósofa
Ana de Miguel, una escuela de desigualdad humana en la que priman los
deseos de los hombres y las mujeres aparecen como trozos de carne a
disposición del comprador o prostituyente (DE MIGUEL, 2015). La
prostitución es una institución patriarcal que reproduce y profundiza la
desigualdad entre mujeres y hombres. Sólo aceptando este presupuesto
básico se podría explicar el paradójico hecho de que la industria del sexo
se expanda cada vez más y aumente la trata de mujeres con fines de
explotación sexual en sociedades formalmente igualitarias (NUÑO, DE
MIGUEL, 2017).
El debate sobre la prostitución debería centrarse no ya en la cuestión
del libre consentimiento, sino en el tipo de mundo que queremos
construir. Hay que elegir entre construir un mundo en el que sea normal
que exista un mercado de cuerpos de mujeres disponibles para el uso
sexual o un mundo en el que esto no sea así. Coincido con Ana de
Miguel cuando sostiene que, en el tema de la prostitución, está en juego
el propio concepto de ser humano (DE MIGUEL, 2012). ¿Queremos un
hombre que anteponga sus deseos sexuales a cualquier otro tipo de
consideración o preferimos un hombre que busque relaciones sexuales
igualitarias y respetuosas? Considero que cuestiones similares a éstas
pueden plantearse igualmente en el caso de la explotación de los
animales, que constituye, en mi opinión, una escuela de insensibilización
moral (VELASCO SESMA, 2017). Pues, ¿qué tipo de persona
demostramos ser cuando hasta nuestras prácticas diarias están basadas
en el sufrimiento más atroz de miles de millones de animales? ¿En el
mundo justo, igualitario y pacífico al que aspiramos, queremos personas
que contribuyan de forma activa a las prácticas de explotación o, en el
mejor de los casos, se muestren indiferentes ante ellas; o, por el
contrario, preferimos personas empáticas que rechacen todos los tipos de
dominación?
Considero que, en la cuestión de los animales, al igual que en el
tema de la prostitución, debemos atender a las cuestiones del carácter
personal. Mantengo que la idea de buena persona tendrá que incluir
necesariamente las virtudes de la Ética del cuidado aplicadas tanto a los
humanos como al resto de los animales.
A modo de conclusión: hacia unas relaciones ecofeministas
con las personas y los animales
A lo largo de estas páginas, he tratado de aportar algunas ideas para
comprender que la dominación de las mujeres y la explotación de los
animales están vinculadas y que, por lo tanto, el trabajo del feminismo y
el del movimiento por la defensa de los animales no puede permanecer
ajeno a las propuestas del otro. Veíamos, por ejemplo, que, en
numerosas ocasiones, los maltratadores emplean la violencia contra los
animales para causar un daño psicológico a la víctima. Ante esta
situación, el feminismo se posiciona rechazando este tipo de actos. Sin
embargo, condenar estas prácticas únicamente por el sufrimiento que
causa a la mujer y no por el que causa al animal en sí resulta insuficiente.
Sabemos que la forma en que estas torturas afectan a la mujer víctima de
violencia de género no es la misma que si el maltratador destruyera el
libro favorito o el coche de la víctima. Y si no es lo mismo es porque el
animal no es un objeto y el vínculo que se establece con él trasciende lo
26
puramente material . El feminismo tiene algo que decir a este respecto.
Ya es hora de que retomemos la lucha olvidada de aquellas sufragistas
que fueron capaces de establecer paralelismos entre la violencia contra
las mujeres y la violencia contra los animales. Creo que un mundo en el
que hubiera igualdad entre hombres y mujeres pero que estuviera basado
en la explotación de los no humanos no sería un mundo deseable.
¿Consideraríamos virtuosa a una persona que disfruta a costa del
sufrimiento de los Otros? Sostengo firmemente que no. Esto es
precisamente lo contrario a entablar relaciones ecofeministas con los
animales.
Por lo tanto, al feminismo le toca posicionarse y decidir si rechaza
únicamente la lógica de la dominación en lo relativo a las mujeres o si,
por el contrario, asume la crítica ecofeminista a esta lógica y acepta la
interconexión entre todos los sistemas de dominación.
El movimiento por la defensa de los animales también tiene mucho
trabajo por hacer, pues, ¿es coherente reproducir los prejuicios sexistas
en las acciones a favor de los no humanos dentro de un movimiento que
busca la liberación total? ¿Cómo se explica que, estando el movimiento
animalista mayoritariamente compuesto por mujeres (BALZA, GARRIDo,
2016), los teóricos y los activistas más conocidos a nivel internacional
sean varones? O, ¿por qué motivo pensadores como Peter Singer o Tom
Regan rechazan el recurso a las emociones – históricamente
consideradas femeninas - y al contexto dentro de la Ética Animal
(SINGER, 1999; REGAN, 1983, REGAN 2006)? ¿No están
reproduciendo, de este modo, el androcentrismo de la Ética, que
considera valiosos aquellos elementos tradicionalmente asociados con la
masculinidad como la autonomía, la abstracción o el distanciamiento
emocional?
Aunque los objetivos específicos del feminismo y del movimiento
antiespecista no tienen por qué coincidir en el activismo, muchos de los
valores que defienden están conectados, tal y como hemos comprobado.
Alicia Puleo ha planteado una política de pactos de ayuda mutua entre los
diferentes movimientos sociales y entre las diversas posiciones teóricas
porque,
si bien es cierto que no se deben ocultar las diferencias ni evitar los debates
necesarios, tampoco es bueno que grupos que podrían y deberían apoyarse frente a
un sistema neoliberal y antropocéntrico extremo que está destrozando todo se
mantengan en una total enemistad (PULEO, EN TAPIA, 2017, p. 18).

Feminismo y movimiento por la defensa de los animales deberían,


por tanto, tratar de entender las posturas del otro mediante un diálogo
respetuoso. Es más, tendrían que analizar en profundidad – tal y como he
sostenido a lo largo de estas páginas - los puntos comunes de ambas
luchas.
Retomemos, ahora, la historia de aquella feminista indignada por
haber escuchado una cita en la que se comparaba la violación de las
mujeres y la explotación de los animales. Tal y como relató, un hombre
animalista manifestó su preocupación por lo que les sucede a los toros en
la tauromaquia. Es lógico que esta mujer se sintiera ofendida por esta
afirmación, ya que estaba siendo empleada por el hombre no para
vincular ambas dominaciones y tratar de combatirlas, sino para
desacreditar el discurso de la feminista de forma falaz. Comprobamos,
aquí, la necesidad de esos pactos de ayuda mutua por los que apuesta
Puleo. Pero, ¿qué más vemos en este caso? Nos encontramos
claramente con un individuo que, a pesar de haber descubierto la
injusticia que subyace a la tortura de los animales, no había sido capaz
de deconstruir sus privilegios patriarcales ni de visibilizar la opresión que
sufren las mujeres. Un movimiento animalista que no incorpore la
perspectiva de género y los valores feministas está condenado a
reproducir este tipo de comportamientos injustos y a ser, por tanto,
ineficaz.
¿Y qué podemos añadir con respecto a la postura de la feminista,
que consideraba que no había ninguna posibilidad de comparar estos dos
tipos de dominación? Después de todo lo analizado en estas páginas,
parece obvio que esta mujer rechazaba la lógica de la dominación, pero
sólo en el caso de la dominación patriarcal. No entendía que mantener a
los animales en un puesto de inferioridad y considerar que, por ser
inferiores, es legítimo dominarlos, es el tipo de pensamiento que ha
conducido también a la dominación de las mujeres. Es más, no se había
planteado las cuestiones profundas que subyacen a la tauromaquia, no
sólo desde el punto de vista del sufrimiento animal, sino también desde la
perspectiva feminista. Me estoy refiriendo al androcentrismo inherente a
esta práctica. Es decir, que la tauromaquia reproduce los valores de la
masculinidad hegemónica:
Para disfrutar de la corrida como torero/a, es preciso controlar el miedo; como
espectador/a, se necesita desconectar la compasión, proceso facilitado aquí por el
temor y el desprecio al Otro. Temer por el propio cuerpo y sentir con el que sufre son
dos sentimientos tradicionalmente considerados femeninos y, por lo tanto,
despreciados. Dos sentimientos poco aptos para las empresas de dominación
(PULEO, 2011, p. 389).

¿Queremos las feministas pasar a formar parte de estructuras y


tareas que reproducen los valores del patriarcado, como la dominación
del Otro o la represión de las emociones? La crítica al sexismo siempre
debe unirse a la crítica al androcentrismo. Esta idea ya había sido
sugerida por Petra Kelly cuando defendía que las mujeres no deberían
acceder a terrenos laborales patriarcales que promueven la violencia y la
opresión, como los ejércitos (KELLY, 1992). Es decir, que las feministas,
en lugar de conformarnos con acceder a cualquier ámbito laboral,
deberíamos trabajar por relaciones igualitarias no opresivas. Si logramos
eliminar el sexismo pero mantenemos el androcentrismo, reproduciremos
un mundo violento con un tipo de persona indiferente y sin empatía.
Si la feminista de nuestra historia hubiera tenido en cuenta esta
cuestión, probablemente no se hubiera sentido tan indignada ante la cita
de Carol Adams. Y si el hombre antitaurino hubiera incorporado a su
conciencia animalista la perspectiva de género, con toda seguridad no
hubiera pronunciado unas palabras tan hirientes e injustas. Así pues, sólo
si somos capaces de establecer las vinculaciones entre los distintos
sistemas de opresión (analizando las raíces de la dominación), de firmar
pactos de ayuda mutua entre los diferentes movimientos sociales y de
construir relaciones ecofeministas basadas en el respeto y en el rechazo
a cualquier forma de explotación, podremos –ahora sí- afirmar que
trabajamos por un cultura de paz, de justicia y de igualdad, en la que la
empatía abarque a todos aquellos que son afectados por nuestras
acciones, incluidos los animales no humanos con los que compartimos el
planeta.

Bibliografía

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CAPÍTULO 4

Por um ecofeminismo animalista:


contribuições de Carol Adams e Greta Gaard
Mayara Carrobrez
Patrícia Lessa
Introdução
Os debates feministas ampliam seu campo de atuação a cada
década. Atualmente a agenda feminista acadêmica abrange: o estatuto
do conhecimento, as relações entre produção e consumo de produtos, a
desnaturalização dos corpos, a performatividade dos gêneros, a
sexualização das identidades, a biologização do feminino, as relações
multiespécies dentre outros assuntos. Ao questionar a hierarquização dos
gêneros na sociedade, os feminismos foram responsáveis pela
configuração de uma área de estudos sobre as relações de gênero nos
anos 1980. Anteriormente, algumas feministas já propunham um
feminismo vegetariano, vegano ou animalista para organizar os diálogos
interespécies. As teorias não estão dissociadas das ações políticas e
ativistas, assim como, não estão dissociadas a ação política e o
pensamento ecológico nas suas conexões com as lutas feministas dos
anos 1970. Ambas atravessam diferentes áreas do saber, o que instiga
um debate multidisciplinar.
Ao pensarmos nas relações entre o pensamento feminista e o
ecológico, definitivamente não estamos tratando de algum assunto
específico de mulheres, uma vez que o problema não está nas mulheres,
mas no processo de deterioração ambiental e da vida planetária, sendo
assim,
Uma característica do nosso tempo é o fato de estarmos enfrentando problemas que
se entrelaçam numa complexa rede de relações sociais e ecológicas. Sofremos a
ameaça de esgotamento de recursos naturais [...] O ecossistema mundial e a
evolução da vida correm o perigo de um desastre ecológico em larga escala, ao
mesmo tempo em que a tecnologia industrial contribui para a deterioração do meio
ambiente natural do qual dependemos (DI CIOMMO, 1999, p. 16).
A noção humana do que vem a ser a natureza perpassa, muitas
vezes, pela representação que vemos da mesma, seja na mídia, no
próprio contato com a terra ou através das ambições humanas em
explorar. Sendo assim, “a ciência moderna nasceu da esmagadora
ambição de conquistar à Natureza e subordiná-la às necessidades
humanas” (BAUMAN, 1999, p. 48). A natureza compõe o planeta terra,
juntamente com os animais não humanos e os minerais, há muito mais
tempo do que o ser humano, o que poderia significar uma hierarquia onde
o respeito e a preservação da mesma prevaleceriam. A integração com a
natureza, que era percebida como o meio fértil que possibilitava a vida, é
uma característica dos povos que habitaram a terra antes do advento das
ações imperialistas, do capitalismo e, em última instância, da
modernidade líquida, (BAUMAN, 2011). O tratamento conferido à
natureza tem seguido a orientação de explorá-la, de forma compulsiva e
inconsequente. O esgotamento dos recursos já não é mais um temor
para o próximo milênio, mas bate à nossa porta a cada árvore cortada. As
ações dos seres humanos no que diz respeito à exploração e desrespeito
àquilo que nos mantém vivos, têm sido questionadas pelos grupos que
nadam contra acorrente.
Como acontece em relação a muitos outros problemas que hoje
enfrentamos, trata-se de encontrar confluências e propostas de novas
formas de organização e de convívio, fundamentadas nas ações de
reciprocidade entre os seres humanos e deles com as demais espécies.
Esse foi um debate que emergiu com o ecofeminismo. Para algumas
teóricas do ecofeminismo, como por exemplo Bila Sorb (1992) e Maria
Mies (1992), existe uma íntima ligação entre o velho paradigma, ou seja,
o padrão de pensamento e de comportamento do homem ocidental e da
cultura patriarcal. Essa ligação manifesta-se na obsessão pela
dominação e pelo controle, tanto sobre as mulheres quanto sobre a
natureza. Desse modo, a crítica feminista propôs um sinal de igualdade
entre a relação mulher-natureza e homem-cultura, que foi entendida
como um tipo de binarismo social que divide em dois polos assimétricos,
no qual o homem e a cultura estariam em vantagem sobre a mulher e a
natureza, ambas a serviço dos primeiros.
Os movimentos em defesa do meio ambiente trouxeram em seu bojo
um caráter de libertação das mulheres, assim como o ecofeminismo
busca uma reidentificação positiva entre as mulheres e a natureza. Muito
significativamente são as mobilizações em defesa da qualidade de vida e
do meio ambiente as que mais atraem as mulheres. Podemos ver essa
aproximação entre mulheres e movimentos ambientalistas na
representatividade das mulheres, em termos qualitativos e quantitativos,
que são as suas principais lideranças. O patriarcado influenciou nossas
ideias mais fundamentais sobre a natureza humana e sobre nossa
relação com o universo, são elas, a natureza do homem e a relação deste
com o universo, na linguagem patriarcal. Trata-se do único sistema pouco
contestado de maneira aberta antes da primeira onda feminista, no final
do século XIX, cujas doutrinas são a tal ponto universalmente aceitas que
parecem leis da natureza.
Val Plumwood (1993) chama o ecofeminismo de terceira onda do
feminismo, por se tratar de um movimento político que representa a
disposição das mulheres de, ao superar a anterior inclusão desvalorizada
na natureza, reagirem contra sua antiga exclusão da cultura e postarem-
se ao lado dos problemas ambientais contra as formas destrutivas e
binárias de separação entre natureza e cultura. A autora aborda a
educação ambiental a partir de uma perspectiva ecofeminista para
repensar as relações humanas, ambientais e socioculturais.
O ecofeminismo sugere, portanto, uma terceira direção: o
reconhecimento de que, apesar do dualismo natureza-cultura ser um
produto da construção cultural ocidental, podemos conscientemente
escolher a aceitação da conexão mulher-natureza participando da cultura,
reconhecendo que a desvalorização da doação da vida terá
consequências negativas para o ambiente e para as mulheres. O
binarismo natureza-cultura parece estar no centro das dificuldades que
envolvem as tentativas de reverter os valores atribuídos ao feminino e à
natureza, aqui entendendo as relações que envolvem a humanidade, as
relações interespécies, sejam elas: animais, vegetais ou minerais. A
afirmação do binarismo passa pelo processo no qual alguns conceitos
antagônicos foram construídos como opostos e excludentes e foram
apropriados pelo julgamento moral da lógica da dominação e utilitarismo
consumista. É uma forma de construir a diferença em termos de uma
lógica hierárquica, em que o lado de valor mais alto (por exemplo, seres
humanos masculinos ou simplesmente seres humanos) é construído com
uma natureza diferente. São seres de ordem diferente dos que estão do
outro lado (seres humanos femininos e/ou seres não humanos e/ou
plantas e minerais), que são tratados como carentes de qualidades que
possam elevá-los ao estatuto de importantes para a vida planetária.
A ligação entre mulher e natureza e as razões pelas quais ambas
são consideradas como de nível inferior não é assunto do passado, mas
parece continuar a dirigir a degradação do meio ambiente natural, a
caracterizar a atividade feminina e a marcar, de maneira geral, a esfera
da reprodução. Essa ligação contém inúmeras questões importantes
sobre as causas da subordinação das mulheres e a existência de uma
natureza feminina. Enquanto as mulheres forem definidas universalmente
em termos de um papel amplamente materno e doméstico, esta será uma
matriz importante da sua subordinação aceita como universal. A
universalidade da subordinação feminina, conforme estudado pelas
feministas desde a primeira onda, constitui um verdadeiro desafio para as
reflexões das ciências humanas, sociais e ambientais.
Tendo em vista as questões ecofeministas e suas relações com os
animais não humanos nossos objetivos neste texto são revisitar as obras
de duas ecofeministas: Greta Gaard e Carol Adams para pensar as
relações que ambas estabelecem entre as questões ecofeministas e
animalistas e/ou veganas, bem como suas especificidades e
aproximações. Para isso dividimos nosso capítulo em duas partes: na
primeira investigamos o trabalho de Greta Gaard, que compartilha com
Carol Adams a perspectiva de um ecofeminismo voltado para a
problematização da exploração dos animais, relacionando tal
subordinação àquela sofrida pelas mulheres. Na segunda parte, o
conceito de referente ausente na obra de Carol Adams e a constituição
de um campo nomeado de feminismo-vegano a partir de sua obra The
Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, escrita
inicialmente em 1990 e com posterior revisão e ampliação conceitual.

Greta Gaard: por um ecofeminismo plural


A pluralidade de enfoques possíveis para a relação entre feminismo
e vegetarianismo é evidente na epistemologia apresentada pela ativista,
professora e escritora Greta Gaard. Tendo como foco alguns de seus
escritos, apresentaremos uma síntese de suas teorias a respeito dos
possíveis desdobramentos do ecofeminismo e sua relação com as formas
de opressão desenvolvidas pelo patriarcado.
A teoria de Gaard reivindica um espaço no feminismo onde seja
possível problematizar a exploração da natureza. Logo, a conexão que se
estabelece é a de que a exploração e a opressão sofridas pelas mulheres
assemelha-se àquela sofrida pela natureza, e seu apelo para uma
abertura feminista incluí uma abordagem queer, que será demonstrada
adiante. Em linhas gerais, é preciso ter em mente que o ecofeminismo
para Gaard engloba todas as formas de vida e os reinos, e que a
opressão da natureza está diretamente ligada ao racismo, sexismo e
demais formas de opressão, como demonstra nessa sentença: “na raiz
do ecofeminismo está a compreensão de que os vários sistemas de
opressão se reforçam mutuamente” (GAARD, 2011, p. 198).
Os animais não humanos, ou “mais que humanos” se usarmos a
expressão de Alaimo, são assunto recorrente na bibliografia de Gaard,
sua hipótese, assim como a de Adams, é a de que a opressão sofrida
pelas mulheres está relacionada a exploração da natureza, nesse
sentido, a autora defende uma ressignificação dos pressupostos que
atingem as premissas culturais para que haja a libertação não só dos
animais como das classes, etnias e sexualidades. Essa percepção traduz
os questionamentos sofridos pelo ecofeminismo no início da década de
1990 na qual os discursos passaram por momentos de instabilidade, visto
que a mídia acreditava que o discurso ecofeminista visava salvar o
mundo e por isso, perdera um pouco de sua credibilidade. Posteriormente
houve a retomada e com o surgimento da ressignificação do movimento
que gerou algumas fragmentações em linhas mais específicas.
A natureza, vista como uma mãe fértil que tudo dá e que deve ter
seus recursos esgotados, pois existe exclusivamente para uso do ser
humano, é problematizada por Gaard. A autora nos mostra como certas
instituições, por exemplo as chamadas religiões do livro – judaísmo,
cristianismo e islamismo – reforçaram essa ideia ao longo dos anos. Ao
nos debruçarmos sobre a bíblia encontramos já no livro de Genesis, mas
também em outras passagens, registrado que Deus colocou a natureza à
disposição do homem:
A retórica e a instituição do cristianismo, juntamente com os impulsos imperialistas de
Estados-Nação militarizados, têm sido usadas por quase dois mil anos para retratar a
heterossexualidade, o sexismo, o racismo, o classismo e a opressão do mundo
natural como divinamente ordenado (GAARD, 2011, p. 207).

Em seu artigo Ecofeminism and Native American Cultures: Pushing


27
the Limits of Cultural Imperialism? Gaard reconhece seu local de fala
enquanto feminista branca além de ressaltar que as feministas brancas e
acadêmicas tentam criar uma teoria que englobe todas as classes e
raças, mas que essas questões não podem se dar por resolvidas. Gaard
dissertou a respeito das culturas nativo-americanas e o consumo de
carne em comparação ao homem branco, realizando uma crítica a
filosofia ecofeminista de Karen Warren, que, de acordo com Gaard, não
deixa espaço para os animais não humanos (1996). Visto que Gaard
defende uma interação do ser humano com a natureza pautada no
reconhecimento dos animais como parte de um todo que deve ser
respeitado e, por isso, livre de opressão e sofrimento, por crítica realizada
à teoria de Warren enfatiza que a filósofa se esquece da questão dos
animais ao não propor maneiras para que haja essa interação, além disso
Gaard critica a posição de Warren que defende que a ética ecofeminista
deve partir de um contexto. É nessa perspectiva que se pode entender
que, para Warren, de acordo com Gaard (1996), uma pedra é mais digna
de preocupação moral do que um animal.
Um conceito utilizado por Gaard é o da lógica da dominação,
proposto por Warren, que serve para exemplificar a questão da matança
de animais para consumo humano. Podemos ilustrar a aplicação do
conceito quando Gaard menciona que o ato de matar animais para
consumo se concretiza na medida em que o desejo humano passa a ser
mais importante que a vida do animal, ou seja, matar animais para fins de
consumo é um ato de dominação. É nessa perspectiva que se pode
entender uma outra ideia também apresentada no capítulo de que, se o
ecofeminismo se opõe a dominação da natureza não humana, então o
ecofeminismo deve se opor a matança de animais (1996).
Gaard (1996), então, defende uma dieta vegetariana que é preferível
visto que é uma escolha que envolve menos dominação e opressão,
congregando então com aquilo que a autora defende ser o ecofeminismo.
Para a defesa de seu posicionamento, a autora argumenta que, na
América a partir da década de 1990, a maioria das pessoas não
precisava dos animais para se vestir ou se alimentar, e ainda reforça que
as questões nutricionais tampouco necessitam dos alimentos de origem
animal. É a subordinação desses seres vivos que sustenta a matança,
fazendo com que o desejo do consumo humano seja maior que a
necessidade de viver dos seres mais que humanos.
Em outro texto, presente no mesmo livro, intitulado “living
interconnections with animals and nature”, Gaard expõe que “o
ecofeminismo exige que façamos conexões” (GAARD, 1996, p.7) isto é,
sua preocupação é que a filosofia ecofeminista alcance todos os públicos,
acadêmicos, ativistas, etc. O ecofeminismo para Gaard é plural, abrange
vários campos como podemos observar na sentença a seguir:
A teoria ecofeminista tem florescido explorando as conexões entre muitas questões:
racismo, degradação ambiental, economia, política eleitoral, libertação animal,
políticas reprodutivas, biotecnologia, biorregionalismo, espiritualidade, práticas de
saúde holística, agricultura sustentável entre outras (GAARD, 2011, p. 198)

A teoria ecofeminista, então, não se limita estreitamente a relação


das mulheres com a natureza, mas expande seu campo afim de
comtemplar diversas formas de opressão.
Ao expandir o campo de ação dentro do ecofeminismo, Gaard
discorre sobre a necessidade de um ecofeminismo queer, conforme seu
artigo Rumo ao ecofeminismo queer (2011) publicado em português pela
Revista de Estudos Feministas. Para a autora, há a necessidade de uma
mudança nos rumos do ecofeminismo, visto que a natureza é
heterossexualizada e que é preciso dialogar a respeito dos trânsitos entre
natureza e sexualidade.
Ao englobar o queer ao ecofeminismo, as discussões se tornam mais
amplas e os sujeitos mais abrangentes. Nesse sentido, ao olharmos a
heterossexualidade, ou seja, as práticas heterossexuais percebidas como
comportamento adequado com base no naturismo, que é amplamente
criticado no feminismo, percebemos que a homossexualidade é
enxergada de maneira antinatural. A defesa desses discursos muitas
vezes está atrelada a percepção tradicional da biologia, pautada em
preceitos religiosos. Essas relações fazem com que os sujeitos sejam
cristalizados, padronizados e as identidades aparentem ser algo fixo, e é
nesse sentido que Gaard propõe o queer como uma alternativa para
ressignificar tais preceitos.
Nesse momento, cabe discorrermos sobre o conceito de naturismo
abordado por Gaard, que auxilia no entendimento da sua relação
proposta para a problematização mencionada no parágrafo acima.
Naturismo, para a autora, seria algo como a ideia de que a natureza foi
criada para ser desfrutada pelo ser humano, ou seja, pressupõe a
exploração desenfreada e ‘justificada. Em uma perspectiva mais ampla, o
naturismo também está associado a heterossexualização da natureza,
que percebe a mesma como algo que funciona de forma heteronormativa,
como se os seres ‘mais que humanos’ congregassem todos na
heterossexualidade, assim como os humanos, etc. O naturismo também
engloba o racismo, sexismo e variadas formas de opressões ditas
naturais, que justificam a inferiorização de seres humanos e mais que
humanos.
A lógica da dominação, a subordinação do outro é explicada pela
questão de identidade e diferença onde a desvalorização do outro ocorre
pela falta de algo.
Para o ecofeminismo evoluir, ele precisa englobar a teoria queer
(GAARD, 2011), e dentro dessa teoria, Gaard explicita que,
O primeiro argumento que liga o ecofeminismo e a teoria queer é baseado na
observação de que a desvalorização do erótico da cultura ocidental dominante é
paralela à desvalorização das mulheres e da natureza; com efeito, essas
desvalorizações se reforçam mutuamente (GAARD, 2011, p. 199).

Citando Adams (1993), Gaard argumenta que os vínculos


conceituais entre mulheres e natureza servem como dispositivo para
inferiorização das mesmas, visto que estão relacionadas simbolicamente
à questão arquetípica de feminilização ou animalidade e refletem algo
com uma conotação ruim. A feminilização da natureza também é
apontada por Gaard, devida a subordinação decorrente das questões de
gênero, que enfatiza a exploração: “como afirmei anteriormente, quando
a natureza é feminizada e, assim, erotizada, e a cultura é masculinizada,
a relação natureza-cultura torna-se uma das formas de
heterossexualidade compulsória” (GAARD, 2011, p. 217).
Além das contribuições mencionadas, Gaard apresenta uma visão de
ecofeminismo que tem muito a oferecer, porque congrega valores
múltiplos e expande os horizontes. Ainda que a epistemologia de Gaard
seja muito recente no meio acadêmico como aponta Brandão (2017),
Gaard vem construindo um campo crítico renovador no tocante a teoria
feminista, pois dialoga com outras noções de opressão. Gaard também
propõe que haja a revisão do termo ecofeminismo, uma vez que o
contexto histórico da palavra e da filosofia não contribuem para uma
visão positiva do mesmo, como aponta Brandão (2017, p. 821) “acaba
conduzindo quem não tem conhecimento do assunto a entender essa
crítica como voltada unicamente para questões essencialistas”. Ao propor
a revisão de tudo que o termo ecofeminismo agrega, Gaard nos convida
a repensar as razões e pressupostos do ecofeminismo, propondo uma
constante renovação dos conhecimentos e indagações.
As diferentes perspectivas assumidas ao longo da construção de
uma bibliografia feminista apontam para novas perspectivas e
desconstruções. O ecofeminismo segue um caminho de margens
instáveis, mas férteis, incorporando diversas epistemologias. O papel de
Greta Gaard, com sua maneira didática (BRANDÃO, 2017) de dissertar, é
proporcionar o alcance amplo das discussões que precisam ultrapassar
os muros da academia. Além de expandir a visão daquilo que é atribuído
ao ecofeminismo, Gaard mescla o ativismo com a pesquisa visando a
complexidade teórica ecofeminista, que, ao mesmo tempo, é a
simplicidade de se compreender que somos um todo na natureza, e que
há espaço para todos no planeta sem que haja exploração especista.

Carol Adams e o referente ausente


Carol Adams é uma escritora feminista, ativista pelos direitos dos
animais, educadora vegana e espiritualista que acredita na valorização de
todas as formas de vida. Nos anos 1970 mudou-se para Boston para
estudar com Mary Daly, autora e pesquisadora que foi muito importante
na sua constituição como feminista-vegana, como afirma a própria Carol
(2017, p. 10):
Eu escutei o termo ecofeminismo pela primeira vez em Boston, quando era estudante
de graduação e cursei a disciplina de ética feminista, ministrada por Mary Daly, em
1974. Ela havia traduzido trechos de um artigo da feminista francesa Françoise
d’Eaubonne (1974) Le féminisme ou la mort. Aproximadamente um mês depois desse
primeiro contato, eu experienciei um momento transformador, quando me atentei para
a conexão entre feminismo e vegetarianismo: percebi que a cultura patriarcal é o que
legitima o ato de comer carne.

Adams é uma escritora atuante, publicou suas ideias sobre o


vegetarianismo, veganismo, os direitos dos animais, a violência
doméstica e o abuso sexual em artigos, livros, revistas, sites e
enciclopédias ampliando o campo de atuação para muito além do
ambiente universitário. Dentre os livros que escreveu há dois deles que
tratam, particularmente, da ligação entre a opressão das mulheres e dos
animais não humanos são eles: The Sexual Politics of Meat: A Feminist-
Vegetarian Critical Theory, primeira edição em 1990; e, The Pornography
of Meat em 2003.
Outros livros importantes da autora nas discussões sobre as
relações entre mulheres e animais não humanos são: Ecofeminism and
the Sacred de 1993; Neither Man nor Beast: Feminism and the Defense
of Animals de 1994; Animals and Women: Feminist Theoretical
Explorations, com Josephine Donovan publicado em 1995; The Inner Art
of Vegetarianism publicado em 2000; e Animals, and Social Justice de
2011. Mais recentemente, publicou no Brasil o prefácio da obra: Relações
Multiespécies em Rede: Feminismos, Animalismos, Veganismo (LESSA;
GALINDO, 2017).
Após vinte anos de publicação da primeira edição, a obra As
Políticas Sexuais da Carne foi lançada no Brasil. Em uma resenha sobre
este lançamento fizemos algumas críticas a tradução, uma delas com
relação ao novo subtítulo: A relação entre carnivorismo e a dominância
masculina, lembrando que o original teve como subtítulo: “A Feminist-
Vegetarian Critical Theory”, o que nos forneceu um importante elemento
para questionarmos se as teorias feministas foram/são aceitas no Brasil?
A questão é importante à medida que o subtítulo do original em inglês
sugere uma proposta teórica feminista e, portanto, a sua negação ou
mesmo a sua ocultação pode representar, por outro lado, um descaso
com as teorias que dão sustentação a tese central de Carol Adams.
Alguns dados colaboram para pensarmos que a resposta é negativa, já
que existe uma baixa produção de traduções feministas ou mesmo a
escassez destes diálogos internacionais.
Adams propõe e discute uma análise mais apurada das ligações
entre feminismo e veganismo, bem como a relação entre o patriarcado e
a prática de comer carne, propondo em suas análises a libertação animal.
Na análise que a autora faz a partir de textos literários e filosóficos ela
está em sintonia com outras ecofeministas de sua época, diz:
Eu fiz parte de uma comunidade feminista, vibrante e radical na região de Boston-
Cambridge, Estados Unidos. Apesar de Peter Singer ser comumente reconhecido
como pai do moderno movimento de libertação animal, discussões contundentes
sobre a condição animal já eram travadas em comunidades feministas bem antes de
suas ideias aparecerem. Discussões essas que logo se tornaram parte de um
movimento ecofeminista que surgia (ADAMS, 2017, p. 09).

Seu livro As Políticas Sexuais da Carne é paradigmático na


discussão sobre a libertação animal. Ela descreve o que nomeou de
estrutura do referencial ausente, que, neste contexto, é a separação
realizada, já no produto final, entre a carne e o animal morto ou seja,
quando a vida animal torna-se mercadoria para o sistema patricapitalista.
A função do referencial ausente é manter a carne separada de qualquer
ideia de que ela era um animal (ADAMS, 2012. p. 79).
As mulheres são referenciais ausentes em nossa cultura, também, à
medida que são vistas como um corpo a ser consumido e usado pela
indústria de carnes e de corpos. É justamente neste sentido que a teoria
feminista se torna um importante instrumento de análise e bandeira de
luta social, porque nos ajuda a entender o modus operandi de como as
opressões estão interligadas. O livro mostra como os animais são
consumidos, literalmente, e como as mulheres são consumidas,
visualmente, através de acesso sexual de seus corpos estupráveis.
Ela cunhou o termo antropornografia que significa mostrar animais
como seres que pedem para serem comidos. Segundo a autora esta
perspectiva é um dos alicerces do patriarcado. A antropornografia é o
conceito central criado nessa primeira parte que está no bojo da análise
dos textos referentes à carne que compõe a sequência. Carol Adams
(2012) pergunta-nos se nós somos predadores ou não somos? Ela diz
que na tentativa de nos vermos como seres naturais, algumas pessoas
argumentam que os seres humanos são simplesmente predadores como
alguns outros animais. Simplificando e coisificando o corpo dos animais.
Para a autora o vegetarianismo é então visto como não natural, enquanto
o carnivorismo dos outros animais é transformado em paradigmático.
Os animais se tornam coisas a serviço dos prazeres carnais, ditos
naturais, pelos machos humanos, ditos predadores. Assim os direitos
animais são criticados e as desanalogias mais profundas com animais
carnívoros permanecem intocadas porque a noção de seres humanos
como predadores é consoante com a ideia de que precisamos comer
carne. Diz a autora que, de fato, o carnivorismo é verdadeiro para apenas
vinte por cento dos animais não humanos segundo a biologia atual.
Em As políticas sexuais da carne, ela nomeou este processo
conceitual no qual o animal desaparece de estrutura do referencial
ausente. Animais em nome e corpo são feitos ausentes como animais
para que a carne exista. Se animais estão vivos eles não podem ser
carne. Logo, um cadáver substitui o animal vivo e animais se tornam
referenciais ausentes. Os animais são feitos ausentes através da
linguagem, que renomeia cadáveres antes que consumidores e
consumidoras participem em comê-los. O referencial ausente nos permite
esquecer do animal como uma entidade independente. O assado no
prato é desincorporado do porco o qual ela ou ele um dia foi. O
referencial ausente resulta de, e reforça, o cativeiro ideológico: a
ideologia patriarcal estabelece o padrão cultural de ser humano e de
animal. Na política sexual da carne, é simplesmente impossível ser
homem sem comer carne.
Ao longo do texto a autora aborda alguns romances onde aparecem
personagens vegetarianas. Ela entende que a teoria feminista é a base
para essa crítica literária já que a história da carne é feita não somente de
textos de carne, mas, principalmente do apagamento da palavra feminista
e vegetariana. Diz ela: “Mudar um animal do seu estado original, fazendo-
o se transformar em comida, compara-se a mudar um texto do seu
estado original, fazendo-o se transformar em algo mais agradável”
(ADAMS, 2012, p. 22). Para as escritoras abordadas a questão do
vegetarianismo torna-se uma mediação feminina complexa entre as
relações de poder estabelecidas tanto no especismo quanto no sexismo.
Com o subtítulo: Coma arroz, tenha fé nas mulheres, ela lança sua
proposta de uma teoria crítica feminista-vegetariana argumentando que a
defesa dos animais é a teoria e o vegetarianismo é a prática, assim como
o feminismo é a teoria e o vegetarianismo faz parte de suas práticas, ou
seja, para o leque de práticas feministas é necessário pensar a carne
como elemento viril da cultura patriarcal. O consumo da carne é de
domínio mais masculino e o vegetarianismo, então, age como um sinal de
doença da cultura patriarcal expressa em três modos: na revelação da
nulidade da carne, na nominação das relações e na recusa do consumo
de carne e da cultura patriarcal.
A obra é sobre uma teoria crítica feminista-vegetariana, como sugere
o último capítulo. Optamos pelo termo feminismo-vegano, pois, a palavra
veganismo aparece no texto de Adams nos comentários da vigésima
edição, isso está dado pelas condições de produção, já que a
terminologia veganismo aparece na literatura acadêmica somente no final
dos anos 1990. Quando o livro foi escrito era comum a palavra
vegetarianismo, que está relacionada à questão da alimentação e serve
para diferenciar as pessoas que não comem nenhum tipo de carne,
enquanto a palavra veganismo é mais ampla significa a prática de não
utilizar produtos derivados de animais não só na alimentação, mas
também no vestuário, nos produtos domésticos dentro outros.

Considerações finais
Em conformidade com o exposto anteriormente, percebemos a
inegável importância das pesquisadoras e ativistas mencionadas nesse
capítulo. Ressaltamos que a intenção é estimular o debate e nunca
esgotá-lo, visto que o tema é vasto e requer múltiplos olhares e
perspectivas. Gaard e Adams congregam em muitos aspectos, ao
escolher os animais, ou seres mais que humanos, para nosso enfoque,
notamos que a necessidade do debate é frequente e precisa ganhar
espaço nas discussões ecofeministas. Englobar os animais ou
ressignificar nossa visão sobre os mesmos é ampliar nossa percepção
sobre a natureza e sobre nós mesmos. Ao realizar o reconhecimento de
que fazemos parte de um todo e que não somos o centro exige um
exercício e luta contra nosso ego cultural arquetipicamente colonialista.
As noções dicotômicas como natureza/cultura, humano/não humano
e masculino/feminino não podem ser encerradas ou explicadas de modo
muito simples como, por exemplo, igualdade sobrepondo-se aos sujeitos,
diversidade entre seres humanos significando vitimização ou, ao
contrário, situação privilegiada, exploração dos recursos naturais em
nome da ciência, valorização da cultura em detrimento do mundo não-
humano. Há muitas razões pelas quais a ligação mulher-natureza pode
constituir-se em questão central para o ecofeminismo. Um dos motivos
está na compreensão de que essa é uma conexão essencial para a
permanência do tratamento que as mulheres e a natureza recebem na
sociedade contemporânea. Se por um lado essa questão pode levar a
uma importante revelação sobre o modelo de humanidade na qual as
mulheres se inserem, por outro lado, tem sido uma preocupação do
ecofeminismo, que pode iluminar os temas que estão no centro do
feminismo como um todo acerca da masculinização da cultura, da
natureza da dominação do masculino sobre o feminino e das possíveis
rotas para se escapar dessa dominação.

Referências

ADAMS, Carol. A política sexual da carne: a relação entre o


carnivorismo e a dominância masculina. Tradução Cristina Cupertino. São
Paulo: Alaúde editorial, 2012.

ADAMS, Carol. Prefácio. In: LESSA, Patrícia; GALINDO, Dolores.


Relações multiespécies em rede: feminismos, animalismos, veganismo.
Tradução Daniel Kirjner. Maringá: Eduem, 2017, p. 9-15.

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humana. In: ANDRADE, Silvana (Org.). Visão abolicionista: ética e
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2011.

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Paulo: editora Uniube, 1999.

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ecocrítica mais ecofeminista. In: BRANDÃO, Izabel et al. (Orgs.)
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e Maceió: Mulheres, Edufsc e Edufal, 2017. pp. 783-818

GAARD, Greta. (ed.). Ecofeminism: women, animals, nature.


Philadelphia: Temple University Press, 1993.

LESSA, Patrícia; ALCÂNTARA, Michelle. Uma teoria feminista-vegana: a


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WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma


sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia da Letras, 2010.

WARREN, Karen J. Ecofeminist Philosophy: A Western Perspective on


What It Is and Why It Matters. Ed. Rowman & Littlefield Publishers, 2000.
CAPÍTULO 5

Dominação e sofrimento: Um olhar


ecofeminista animalista a partir da
vulnerabilidade
Daniela Rosendo
Ilze Zirbel

Introdução
Neste capítulo, nosso objetivo é analisar a dominação a partir da
ótica da vulnerabilidade. Partimos do pressuposto que, por trás da
dominação, há uma lógica dualista que divide e hierarquiza a realidade
em dois grupos: os iguais a mim, não vulneráveis e dominantes do lado
de cima, e os diferentes de mim, vulneráveis e dominados, do lado de
baixo. No intuito de desconstruir essa lógica dualista, propomos que a
vulnerabilidade deve ser percebida como algo comum a todos/as, em
relação de interdependência, seja para o bem (aprender, amar e ser
amado, ser provocado pela realidade a perceber ou criar uma ideia de
belo, por exemplo) ou para o mal (podemos tanto causar quanto sofrer
danos).
Todos/as, nesse sentido, significa ir além da espécie humana, na
medida em que a vulnerabilidade é característica compartilhada também
com outros animais que não humanos. Se podemos causar bem ou mal a
humanos ou não humanos, como conceber uma sociedade justa quando
ampliamos o escopo para outras formas de vida para além do
antropocentrismo? Quando se diz que seres humanos também são
animais, de um modo geral, o que se está a dizer é que “a referência à
espécie de uma criatura não pode, em si, ser uma boa razão para tratá-la
de uma maneira ou de outra” (GAITA, 2011, p. 41).
Para promover essa ampliação, uma perspectiva interseccional se
mostra necessária. Compreender que existe a mesma lógica de
dominação por trás de todos os ismos de dominação (machismo,
racismo, classismo, especismo etc.) permite pensar a superação de
diversas formas de opressão também em conjunto, na medida em que
conectar as opressões revela a mesma maneira de pensar e organizar o
mundo entre os de cima (mais poderosos, valiosos) e os de baixo,
subalternizados pelos que têm poder.
Feita essa ampliação, será preciso construir também um modelo
ampliado de justiça a partir de outros critérios que comportem uma noção
de justiça inclusiva e não discriminatória, inclusive em termos de
espécies. Singularidade e vulnerabilidade, portanto, são apresentados
como pano de fundo dessa concepção, viabilizando uma outra maneira
de pensar as relações entre seres humanos e os outros animais. Trata-se
de compreender não só os aspectos racionais do pensamento, mas as
mais variadas formas de compreensão e organização da realidade,
incluindo também capacidade não cognitivas como a empatia.
Acreditamos que os conceitos de vulnerabilidade e singularidade evocam
esta outra maneira de pensar.

Vulnerabilidade e desejo de invulnerabilidade


A vulnerabilidade é uma característica geral, abrangente e
fundamental dos seres vivos. Diz respeito a todos os indivíduos de todas
as espécies, afetando suas vidas de inúmeras e imprescindíveis
maneiras. De igual forma, trata-se de algo particular, uma vez que cada
indivíduo vivencia sua vulnerabilidade de forma distinta ao se encontrar
posicionado dentro de um ambiente específico e de uma teia de relações
que lhe é própria.
Dentre nós, seres humanos dotados de sentimentos morais e
produtores de instituições (familiares, religiosas, políticas, econômicas...),
a consciência da vulnerabilidade gera (ou deveria gerar) obrigações
éticas e políticas. Em geral, ela é associada a imagens de risco, dano,
necessidade, dependência e exploração, o que demanda um trabalho
teórico para compreender e evidenciar suas nuances e conexões
conceituais.
Pesquisadores e pesquisadoras do campo da Ética do Cuidado, da
28
Bioética, da Ecologia Política, da teoria das capabilidades , da Teoria
Crítica e dos estudos sobre o corpo têm se dedicado ao tema da
vulnerabilidade. Cada uma dessas áreas possui um foco específico, mas
todas têm contribuído de maneira significativa para pensar e definir
29
vulnerabilidade. Nas ciências sociais, ela é geralmente reconhecida
como capacidade reduzida de um indivíduo, grupo ou comunidade para
agir em seu próprio interesse (WISNER, 2004 e HILL, 2001). No entanto,
crescem os estudos que fazem uso de uma abordagem mais contextual
para a descrever como um conceito de dimensões múltiplas. Nessa
abordagem, a vulnerabilidade não é algo fixo e objetivo, mas fluído,
resultado de certas condições e fatores - ambientais, sociais... (WISNER,
2004; MORROW, 1999, e CARDONA, 2004).
Na filosofia, Mackenzie, Rogers e Dodds (2014) procuraram fazer
uma taxonomia da vulnerabilidade utilizando-se de parte do material
30
produzido pela Ética do Cuidado e a Bioética. Com base nesse
material, as pesquisadoras identificam, inicialmente, dois grandes tipos
de resposta à pergunta sobre o que é a vulnerabilidade: a ontológica e a
social.
A vulnerabilidade ontológica é comumente pensada a partir da
palavra latina vulnus (ferida) e atrelada a capacidade humana de sofrer,
tanto corporal quanto socialmente. Assim, ser vulnerável é ser suscetível
à ferimentos e sofrimentos, sendo esse um aspecto inevitável, universal e
31
duradouro da condição humana (e aqui acrescentamos: dos demais
seres vivos). Longe de caracterizar um estado transitório que deve ser
ultrapassado, a vulnerabilidade é pensada como uma modalidade
irredutível da relação de cada indivíduo e cada grupo para com o seu
meio. No centro desse pensamento está o tema da condição física de
cada indivíduo, propensa a doenças, acidentes e envelhecimento.
A vulnerabilidade social enfatiza o caráter interdependente da
vulnerabilidade e suas contingências. Segundo essa visão, influenciada
pelas ciências sociais, indivíduos vulneráveis são aqueles cujas
capacidades de poder e controle sobre seus próprios interesses estão
reduzidas, em comparação a outros sujeitos. A ênfase é dada nas
maneiras mediante as quais “as desigualdades de poder, dependência,
capacidade ou necessidade tornam alguns agentes vulneráveis ao dano
ou exploração por outros” (MACKENZIE et al., 2014, p. 6).
No debate entre as duas visões, a vulnerabilidade ontológica
universal recebe críticas por incorrer no risco de ser um conceito
potencialmente vazio uma vez que rotula a todos os indivíduos como
(igualmente) vulneráveis, o que limitaria a capacidade de resposta a
vulnerabilidades mais específicas e contextuais de indivíduos ou grupos
em risco. Por outro lado, a ênfase em uma vulnerabilidade pontual e
contingente, relativa a alguns grupos ou indivíduos, pode resultar em
estereótipos, discriminações e/ou respostas paternalistas injustificadas e
injustas (LUNA, 2009).
A partir dessa primeira divisão dentro da literatura trabalhada,
Mackenzie, Rogers e Dodds (2014) oferecem uma complexa taxonomia
constituída por três fontes de vulnerabilidade e dois estados. Suas fontes
seriam a inerente (universal e intrínseca), a situacional (atrelada ao
contexto) e a patogênica (resultante de opressão ou injustiça). Quanto
aos estados, estes podem ser disposicionais ou correntes.
A vulnerabilidade inerente (que equivale à ontológica) seria algo
intrínseco à condição de seres corpóreos, afetivos e sociais. Por conta
dessa característica, se é constante e inerentemente vulnerável à fome,
sede, privação do sono, danos físicos, hostilidade emocional, isolamento
etc. A vulnerabilidade inerente implica certas necessidades e
dependências, podendo variar de acordo com uma série de fatores
(estado de saúde, idade, sexo, característica do corpo), gerando
vulnerabilidades específicas (de saúde, mobilidade etc.). Além disso, ela
também pode variar de acordo com a resiliência e a capacidade de
enfrentamento do indivíduo em questão.
A vulnerabilidade situacional, por sua vez, encontra-se ligada ao
contexto. Pode ser causada ou agravada por fenômenos naturais ou
ações humanas (sociais, políticas, econômicas, ambientais), assim como
pode ser de curto prazo, intermitente ou persistente. Catástrofes naturais
(inundações, furacões, deslizamentos), por exemplo, podem gerar
vulnerabilidade generalizada para animais humanos e não humanos e
seus efeitos podem ser mediados pelo contexto social.
As fontes de vulnerabilidade inerentes não são categoricamente
distintas das situacionais uma vez que ambas são experimentadas no
corpo. Além disso, as características do ambiente no qual os indivíduos
nascem e são criados também refletem sobre eles de forma inerente
(fatores ambientais e sócio-econômicos influenciam estados de saúde,
por exemplo) e as questões situacionais têm maior ou menor efeito de
acordo com a capacidade de resistência dos indivíduos que, por sua vez,
são um produto de influências genéticas, sociais e ambientais. Ainda
assim, a distinção entre vulnerabilidade situacional e inerente possibilita
identificar a variedade e a especificidade do contexto que funciona como
fonte de vulnerabilidade.
Essas duas fontes de vulnerabilidade podem ser disposicionais ou
correntes. No primeiro caso, trata-se de uma vulnerabilidade possível (por
exemplo, todas as fêmeas em idade fértil podem engravidar) enquanto
que a segunda é a que realmente aconteceu. Um indivíduo ou grupo
pode ter disposição para um certo tipo de vulnerabilidade, mas esta
torna-se corrente por conta de uma série de fatores, tanto inerentes
quanto situacionais (saúde física, localização geográfica, normas culturais
e sociais vigentes etc.). A distinção entre vulnerabilidade disposicional e
corrente auxilia a distinguir as vulnerabilidades suscetíveis ou não de
perigo e as que exigem medidas imediatas para limitar os danos,
possibilitando ações específicas no sentido de reduzir os riscos de
vulnerabilidades disposicionais e prestar assistência a quem se encontra
em uma situação de vulnerabilidade corrente.
Uma terceira fonte de vulnerabilidade é identificada pelas autoras e
classificada como patogênica. Seria um subconjunto das vulnerabilidades
situacionais, resultante tanto de relações interpessoais quanto
sociopolíticas com características abusivas e/ou injustas.
Vulnerabilidades patogênicas também podem surgir quando algo é feito
no sentido de melhorar uma vulnerabilidade inerente ou situacional, mas
seu efeito é contrário, aumentando ou mesmo gerando novas formas de
vulnerabilidade (MACKENZIE, et al., 2014, p. 9). Tanto as instituições
humanas quanto as relações entre os indivíduos podem ser fontes de
vulnerabilidade patogênica.
A taxonomia proposta por Mackenzie, Rogers e Dodds, não
apresenta, no fundo, uma definição simples e clara do que vem a ser a
vulnerabilidade. Além disso, ainda que as autoras tenham apresentando
uma boa visão da questão situacional da vulnerabilidade (que nos auxilia
a fazer diferença entre uma disposição inerente e aspectos situacionais
da vulnerabilidade), elas seguem na linha de uma tradição que vê a
vulnerabilidade como um aspecto negativo, associado preferencialmente
a danos, fragilidades e fraquezas.
Elaborar um conceito mais positivo de vulnerabilidade é necessário
para enfrentar o que Erinn Gilson (2011) classificou de ignorância da
vulnerabilidade, uma prática que procura negar essa disposição
fundamental em humanos e sustenta ideias e ideais contrários a ela,
como o ideal da autossuficiência ou da invulnerabilidade. A negação da
vulnerabilidade pode ser considerada uma prática perigosa do ponto de
vista ético e político, uma vez que interfere na identificação e diagnóstico
de relações opressivas e violentas tanto entre indivíduos da espécie
humana como entre animais humanos e não humanos.
Ao discutir a ignorância da vulnerabilidade, Gilson provê uma
definição que é, simultaneamente, mais clara e menos negativa do que
outras. Para ela, a vulnerabilidade é uma condição de potencial plástico e
ambivalente que torna possível uma série de outras condições. Trata-se
de uma forma básica de abertura para sermos afetados, tanto de
maneiras nocivas quanto positivas ou benéficas (GILSON, 2011, p. 310).
Ser vulnerável é ser passível de sofrimento, violência ou dano, mas
também de aprender, experimentar conforto, estabelecer laços afetivos e
produzir empatia. Muitos dos aspectos considerados base para certas
estruturas fundamentais da subjetividade, da linguagem e da
sociabilidade podem ser associados a esse potencial de caráter
intersubjetivo e contingente.
As particularidades das condições em que um indivíduo (seja ele um
animal humano ou não humano) nasce e vive podem ser radicalmente
diferentes das de outros indivíduos e subjetivamente vividas. No entanto,
a condição (de vulnerabilidade, de estar suscetível a ser afetado) é
objetiva. E enquanto característica geral, ela pode ser tomada como base
para nossas concepções de dano (quando tornada patológica) e bem-
estar (possibilitando o crescimento e o desenvolvimento de cada
32
indivíduo e suas habilidades), assim como de interesses e direitos.
Um dos efeitos do pressuposto negativo sobre a vulnerabilidade e
sua associação direta com a ideia de dano é a sua rejeição, o que pode
implicar na negação da sua existência. A rejeição costuma ser dupla: não
se quer a vulnerabilidade associada a si e não se quer pensar sobre ela.
Como consequência, é comum a projeção da vulnerabilidade sobre os
outros (sejam eles humanos ou não humanos) aliada à ideia de que são
diferentes de mim. Gilson (GILSON, 2011, p. 312) considera a rejeição
relativa à vulnerabilidade uma forma de ignorância cultivada que, por sua
vez, pode ser entendida por meio da análise das práticas e hábitos que
propagam o seu oposto, o desejo da invulnerabilidade.

O desejo de dominação e a negação da vulnerabilidade


Para Gilson (2011, p. 312), a negação da vulnerabilidade atua como
uma forma de ignorância motivada pelo desejo – consciente ou não – de
manter uma determinada forma de subjetividade privilegiada em sistemas
socioeconômicos como os ocidentais (capitalistas): a do sujeito
dominante, individualista e consumidor de produtos e recursos naturais.
Para esse modelo de sujeito, o fato de ser vulnerável e afetado pelas
ações e presença de outros seres representa uma falha. O desejável é o
oposto: controlar e dominar a si, a natureza, a sociedade e as mais
diversas situações, sem ser abalado ou afetado por elas.
A busca da Invulnerabilidade é uma posição que nos capacita a
ignorar certos aspectos da existência humana que podem ser vistos
como inconvenientes, desvantajosos ou desconfortáveis. Seu ideal
alimenta a ignorância da vulnerabilidade e sustenta outros tipos de
ignorância, uma vez que exige um fechamento relativo não apenas às
formas como somos afetados, mas às formas como afetamos a natureza
e os animais humanos e não humanos.
Nancy Tuana (2006, p. 14) ao fazer uma taxonomia da ignorância,
apresenta-nos um modelo de ignorância ativa e intencional que é
continuamente mantida e cultivada mediante a negação (como a negação
do próprio sexismo/racismo, ou da pedofilia e do incesto praticados por
33
pessoas da classe a qual pertencemos). Prefere-se ignorar porque isto
nos mantém seguros e nos impede de perceber que sustentamos
determinadas práticas que implicam privilégios para nós e danos para
outrem. Tal ignorância é mantida mediante a não-investigação de certas
questões, pela retenção de conhecimentos adquiridos sobre
determinados grupos ou pessoas e por meio de práticas e hábitos sociais
diversos.
No caso da vulnerabilidade, quando a ignoramos, não estamos
afirmando sua falsidade ou veracidade. Em vez disso, a repudiamos
“tanto no pensamento quanto na prática de tal forma que estamos
comprometidos, não com a verdade da invulnerabilidade, mas com sua
utilidade social para nós” (GILSON, 2011, p. 314, Grifo das autoras). Uma
vez que o ideal de subjetividade das sociedades modernas é a do sujeito
não-vulnerável, incorporamos a invulnerabilidade como norma e a
implementamos suprimindo emoções, assumindo riscos, demonstrando
força e domínio etc.
A aversão à vulnerabilidade é explorada nos discursos que procuram
eliminar fraquezas ou falhas perceptíveis (marcas de envelhecimento, de
diferenças físicas, fraqueza moral ou falta de controle), contra as quais
devemos lutar continuamente, controlando o próprio metabolismo, caso
seja necessário e possível (BORDO, 1999, p. 59). Gilson (2011),
seguindo o raciocínio de Maria Mies e Vandana Shiva (1993) sobre a
prática do reducionismo na epistemologia da ciência ocidental, argumenta
que a norma da invulnerabilidade é amparada, igualmente, por padrões
34
de pensamento que dão suporte a ideias reducionistas.
Mies e Shiva (1993, p. 24) defendem que o método reducionista da
ciência ocidental foi generalizado de tal maneira que representa,
atualmente, uma cosmovisão. Tal cosmovisão tornou-se dominante e seu
reducionismo estreita as perspectivas e remove do mundo muitas das
suas características, permitindo inúmeras formas de ignorância
deliberada. Além disso, o domínio dessa perspectiva reducionista não
deveria ser visto como um acidente epistemológico, mas como uma
resposta às necessidades de uma determinada forma de organização
econômica e política. Para Gilson (2011, p. 317), a concordância teórica,
econômica e política do reducionismo (por meio de um entrelaçamento
entre teoria e prática) produziria e reforçaria os hábitos que criam a ideia
da invulnerabilidade, tornando-os pervasivos (generalizados) e normais.
O reducionismo envolve um fechamento com antecedência e,
portanto, é um modo de ignorância deliberada. O sujeito para o qual o
reducionismo epistêmico e o reducionismo axiológico é uma virtude é
também um sujeito para o qual a vulnerabilidade é um vício implícito: ser
afetado pelo que é irrelevante ou o que vai criar um viés é ser um agente
epistêmico fraco” (GILSON, 2011, p. 318).
A norma da invulnerabilidade não é vista como norma de um
determinado tipo de sistema sócio-político-econômico, mas como
representativa do ser humano, em geral. Da mesma forma que a
vulnerabilidade é entendida como um tipo de falha não desejável,
associada mais ao feminino (também visto como um desvio relativo ao
modelo de humano) e a grupos que não atendem ao modelo idealizado
de sujeito. Ao buscarmos a invulnerabilidade, deixamos de compreender
tanto os processos pelos quais nos tornamos, alegadamente,
invulneráveis quanto o fato de que participamos de tais processos
ativamente. Assim, deixamos de perceber uma norma não reconhecida
funcionando como padrão de existência que carece de reconhecimento e
que poderia ser interrogada e contestada.
A invulnerabilidade sustenta ainda uma segunda forma de ignorância
que diz respeito à nossa constituição como seres humanos: a ignorância
da nossa interdependência. Compreender-se como um ser vulnerável
envolve uma visão de si como alguém que é afetado pelos demais seres
que habitam o planeta e pela natureza que nos mantém. A recusa da
vulnerabilidade não é apenas um repúdio à nossa capacidade de
abertura, mas uma forma de permanecer ignorante em relação à nossa
dependência profunda e inescapável da natureza e sua complexa teia de
relações, o que permite dar seguimento à práticas discriminatórias,
opressivas, injustas e especistas.
O fechamento do eu em uma postura de invulnerabilidade e de
ignorância intencional é um fechamento ético, assim como epistêmico.
Trata-se de uma recusa tácita à percepção de que partilhamos com a
natureza e os animais não humanos essa característica fundamental e
que estamos, por conta dela, interligados de diversas maneiras. De igual
forma, implica uma recusa em perceber a nossa responsabilidade no
processo de destruição da natureza e de produção e manutenção de
situações opressivas que exploram as vulnerabilidades dos mais variados
seres vivos e as intensificam (tornando-as patológicas). “Negar a
vulnerabilidade e seus aspectos relacionais inerentes é, portanto, negar
também o poder das nossas próprias ações em afetar os outros”
(GILSON, 2011, p. 324) e a natureza.

Dominação, vulnerabilidade e sofrimento


O olhar direcionado à dominação a partir da vulnerabilidade envolve
a percepção de que as relações sociais podem produzir sofrimento que,
embora faça parte da própria condição animal (humana ou não humana),
em algumas situações pode ser injusto ou evitável, quando causado
pelas formas de organização social discriminatórias e opressoras,
marcadas pela lógica da dominação.
Dessa forma, para pensar em justiça é necessário considerar
também o sofrimento social e estrutural causado pela forma de
organização de uma sociedade, pelas suas instituições e crenças quando
silencia e não reconhece a vulnerabilidade. Todo sofrimento social,
perpetrado em larga escala, é resultado de uma dominação sistêmica
(PINZANI, 2018), portanto é injusto e carece de quem seja
responsabilizado por ele.
Mas em que sentido há causas sociais no sofrimento dos indivíduos?
O sofrimento aponta para uma das verdades mais básicas de nossa
humanidade: somos vulneráveis. Podemos, contudo, ir além e entender
que vai além da humanidade e diz respeito a nossa própria animalidade,
na medida que as demais espécies animais e a própria natureza são
também vulneráveis. Dessa forma, teorias que invocam a nossa
responsabilidade diante dos demais seres, como as teorias do cuidado,
possibilitam o diálogo também com as teorias que discutem a dominação
e maneiras de superá-la.
Como teoria em processo, ainda estamos construindo nossa
compreensão sobre a dimensão de tudo isso e ainda não temos uma
linguagem suficientemente adequada. Entretanto, o papel da imaginação
para fazer analogias entre um sofrimento pelo qual nunca passei (fome,
privação d’água e aprisionamento que são infligidas aos animais) parece
fundamental na construção de uma relação empática. A percepção do
sofrimento de outrem implica qualidades básicas de observação,
percepção (estar atento), morais e político-éticas (importar-se e agir).
Há uma constelação de emoções ligadas ao conceito de sofrimento
socialmente provocado, da mesma forma em que há uma carga moral e
política forte que demanda mudanças: algo deve ser feito. Sentimentos
morais são necessários para tratar de opressão e vulnerabilidades. O
sofrimento social é um conceito que diagnostica uma realidade que pode
nos levar a perceber suas causas e, muitas vezes, a opressão está entre
elas. Aponta para uma organização social destrutiva e injusta. Se é
35
social, é resultado de uma força coletiva. Nos termos de Proudhon : é
mais do que a soma da força dos indivíduos, é uma força organizada.
Para modificá-lo é preciso uma força social/coletiva (o que é difícil
quando já existem forças sociais organizadas no sentido contrario, como
é o caso do mercado, do estado, dos hábitos culturais, do discurso
religioso que legitima os abusos).

Interconexões empíricas e conceituais: Lógica da dominação


em perspectiva ecofeminista

Ao trabalhar com uma perspectiva ecofeminista, um dos primeiros


questionamentos que podem ser feitos é, afinal, qual a relação entre a
opressão das mulheres, dos animais e da natureza? As correntes
ecofeministas apresentam diferentes respostas para essa pergunta, por
36
isso podemos chamar de ecofeminismos (no plural). Na literatura
ecofeminista, podem ser identificadas diversas interconexões entre a
dominação das mulheres, dos animais e da natureza: histórica,
conceitual, empírica, socioeconômica, linguística, simbólica e literária,
espiritual e religiosa, epistemológica, política e ética (WARREN, 2000).
Todas essas interconexões reforçam a necessidade de analisar
criticamente os dualismos a partir dos quais nossa sociedade está
estruturada, especialmente rompendo a barreira da espécie e, a partir da
ampliação do círculo de moralidade, considerar também moralmente os
animais e a natureza. Embora todas sejam importantes para corroborar a
necessidade de um olhar atento às relações entre diferentes formas de
opressão, a conexão empírica evidencia de maneira explícita essa
necessidade: são as mulheres, ao lado de outros grupos em situação de
vulnerabilidade, que sofrem mais com os problemas ambientais
(WARREN, 2000). Embora todas as pessoas possam estar sujeitas a
eles, há uma justaposição dos papéis de gênero feminino com a questão
ambiental: são as mulheres e crianças, por exemplo, que precisam
caminhar longas distâncias para buscar água onde há escassez, por
exemplo.
As questões tradicionalmente associadas à injustiça social, como a
distribuição desigual de riquezas, afetam desproporcionalmente as
pessoas pela sua classe, idade, gênero, localização geográfica etc.
Consequentemente, há tanto a infantilização quanto a feminização da
fome, por exemplo, que afeta os países do sul de maneira desigual em
relação ao norte global (GAARD; GRUEN, 2005).
Tendo gênero como categoria de análise, a filosofia ecofeminista
entende que sexismo, especismo e outros ismos de dominação
(classismo, heterossexismo, racismo etc.) funcionam sob a mesma lógica
de dominação pautada nos dualismos de valor hierarquicamente
organizados (WARREN, 2000). É justamente por isso que a filosofia
ecofeminista pode contribuir com argumentos em favor da superação da
discriminação e opressão, seja contra humanos ou outros que não
humanas/os.
A lógica de dominação faz parte de algo mais amplo, que a filósofa
Karen J. Warren (2000) chama de estruturas conceituais opressoras,
entendidas como um conjunto de crenças básicas, valores, atitudes e
pressupostos que dão forma e refletem como alguém vê a si mesmo e ao
mundo, funcionando como uma lente socialmente construída a partir da
qual se percebe a realidade. Elas não são intrinsecamente opressoras,
mas passam a ser quando são afetadas por fatores diversos (gênero,
raça/etnia, idade, orientação sexual, espécie etc.). A partir de então elas
são usadas para explicar, manter e justificar as relações de dominação e
subordinação injustificadas. Assim, uma estrutura conceitual opressora
de viés machista, por exemplo visa ‘justificar’ a subordinação das
mulheres pelos homens. A base conceitual dessas estruturas de
dominação está localizada nos dualismos de valor hierarquicamente
organizados: homem/razão/branco/cis/humano/cultura de um lado, e
mulher/emoção/negra/trans/animal/natureza do outro.
Em virtude de as mulheres, a natureza e os animais estarem
associados ao mesmo lado do dualismo (o lado de baixo – subordinado),
e os homens ao outro (o lado de cima), é relevante pensar em conjunto
na superação dessas dicotomias e nas diferentes formas de dominação,
independentemente da espécie, mas a partir da singularidade e da
vulnerabilidade (FELIPE, 2014b) da qual decorre a possibilidade de ser
negativamente afetado pela subordinação. Assim, da mesma maneira
como sexismo e especismo fazem sentido juntos, considerando que há
uma mesma lógica de dominação que visa justificar, mesmo que
injustificadamente, a subordinação de mulheres e dos animais, também
faz sentido pensar a superação dos ismos de dominação de maneira
conjunta.
Como para as pessoas com deficiências mentais graves, o critério para ter um status
moral (considerabilidade) e até mesmo ser um sujeito de direitos, que impõe limites ao
direito humano, é a vulnerabilidade. Essa noção, que se refere à sensibilidade como
suscetibilidade à dor e ao sofrimento, implica também que o indivíduo tem interesses
subjetivos a preservar e que vivencia sua vida em primeira pessoa. (PELLUCHON,
2014, p. 19)

De acordo com essa concepção de Pelluchon (2014), a


vulnerabilidade deveria ser o critério moral a guiar regras políticas que
impõem limites ao direito humano para com animais e outros humanos.
Entretanto, a autora ressalta que “a consideração da vulnerabilidade
como um critério suficiente para conferir um status moral e legal a um
indivíduo que se torna titular de direitos negativos pode ser objeto de um
consenso que vai além das divisões ideológicas clássicas e até mesmo
do pertencimento cultural” (PELLUCHON, 2014, p. 20). Trata-se, portanto
de levar os seres humanos a medir as consequências do seu modo de
vida sobre outros seres vivos com quem compartilham uma
vulnerabilidade comum.
Na medida em que as diferentes formas de opressão são reforçadas
mutuamente, as ecofeministas entendem que não é mais possível discutir
mudanças quanto às questões ambientais sem pensar também em
mudanças sociais. Do mesmo modo, não é possível pensar
adequadamente a opressão das mulheres sem pensar na degradação
ambiental.
À primeira vista, o atual sistema de desigualdade global, violência
interpessoal e internacional, e degradação ambiental pode parecer fora
do escopo de análise feminista. Entretanto, se uma atividade ou prática
proposta contribui para a subordinação das mulheres, então,
necessariamente, ela é ou deve ser uma preocupação feminista.
Certamente o lixo tóxico, a poluição do ar, os lençóis freáticos
contaminados, o aumento da militarização e similares não são
exclusivamente questões de mulheres; elas são questões humanas que
afetam todo mundo. Porém, ecofeministas alegam que essas questões
ambientais são questões feministas porque são as mulheres e as
crianças as primeiras a sofrer as consequências da desigualdade e da
destruição ambiental e que sofrem essas consequências
desproporcionalmente em relação aos homens adultos. (GAARD;
37
GRUEN, 2005, p. 161, Grifo das autoras)
Nesse sentido, uma concepção interseccional busca manter a
coerência, seja prática ou teórica, na defesa das mulheres, dos animais
ou de quaisquer outros grupos em situação de vulnerabilidade. Assim,
romper com a lógica binária que hierarquiza e relega um espaço inferior
às mulheres e aos animais (em contraposição aos homens e aos
humanos, respectivamente) significa romper também com a defesa da
justiça somente para humanos ou de forma abstrata e universal.
“Questões ambientais são questão de justiça social” (GAARD; GRUEN,
2005, p. 157).

Filosofia política ecofeminista: Justiça por meio do quilt


ecofeminista

Ao apontar os limites da igualdade para proteger os interesses


singulares de indivíduos vulneráveis, Felipe afirma que as leis positivas
que coíbem ações destrutivas e estão no âmbito dos deveres negativos
são insuficientes para a defesa de qualquer forma de vida. É necessário
também manter a vida pela “ação contínua de defesa, provimento e
interação criativa” (FELIPE, 2014b, p. 281), ou seja, pela via dos direitos
positivos. As leis, por sua vez, garantem essas ações, mas de forma
muito genérica. Para além dos direitos, é necessário o dever de cuidar da
vida.
Se as exigências de um princípio ético são a universalidade,
generalidade, imparcialidade e justiça, então a restrição do critério de
justiça aos seres racionais ignora a vulnerabilidade de sujeitos vivos não-
racionais, tais quais animais e ecossistemas. Nesse sentido, Felipe
(2006) sugere que seja feita uma distinção entre sujeitos capazes de
assumir contratos, e sujeitos que podem sofrer os danos em
consequência das ações daqueles, como bebês, crianças, senis, animais
e quaisquer espécies vivas, os quais podem ser “prejudicados por uma
distribuição atual desigual das liberdades, embora não possam defender
seus interesses” (FELIPE, 2006, p. 11).
Essa mesma crítica em direção às concepções que abrangem
somente direitos negativos é formulada por Sue Donaldson e Will
Kymlicka (2011). Para além da defesa aos direitos universais negativos
(deveres negativos de não matar, confinar, torturar etc.), os autores
entendem que diferentes formas de se relacionar, como as que existem
entre humanos, animais domesticados, animais selvagens etc., geram
também deveres positivos, como o dever de cuidado, de hospitalidade,
acomodação, reciprocidade.
Embora não se filiem à critica feminista direcionada ao machismo
impregnado na concepção de direitos, essa nova estrutura é proposta a
partir da abordagem política de tais relações, isto é, há um estreitamento
entre as esferas ética e política. Os animais são associados também com
questões tradicionalmente relacionadas à esfera política, tais quais
soberania, território, colonização, migração. Nesse sentido, a proposta de
Donaldson e Kymlicka (2011) parece dialogar com o debate, ainda que
escasso, realizado pelas ecofeministas no campo da teoria política.
Os autores buscam essa inclusão por meio de um alargamento da
ideia de cidadania e reconhecimento de direitos individuais universais
também para não humanos, a partir de uma concepção liberal, na medida
em que ela pode abarcar tanto direitos universais individuais quanto
direitos especiais para grupos. Contudo, esse liberalismo é criticado por
Warren (2000) por manter o modelo institucionalizado por homens a fim
de assegurar seu poder no sistema capitalista, em virtude de centrar suas
reivindicações em ideais originalmente masculinos, isto é, na busca pela
igualdade, autonomia e livre expressão da sexualidade (FELIPE, 2014a).
A partir desse outro paradigma, seria possível superar a tricotomia
moral, segundo a qual existem três modelos éticos aparentemente
irreconciliáveis: um para humanos, outro para animais e outro para o
meio ambiente (FELIPE, 2006). Contudo, considerando que do
pensamento mecanicista oriundo do século XVII, a ciência, o direito e a
filosofia herdaram uma concepção de natureza, animais e mulheres como
objetos, situados do lado oprimido dos dualismos cultura/natureza,
humano/animal, masculino/feminino, é preciso lembrar, como visto
anteriormente, que esses binômios são produzidos pela mesma lógica de
dominação que instrumentaliza e buscam justificar a opressão de um
sobre o outro (FELIPE, 2014b).
Nesse sentido, não só as mulheres, mas todos os grupos oprimidos,
só conseguirão se libertar efetivamente quando todos os grupos,
humanos e não humanos, forem libertos. O feminismo não se restringe
mais somente às mulheres, pois ele questiona os valores do modo de
vida humano de forma mais abrangente (FELIPE, 2014b).
Assim, da mesma forma como as feministas socialistas fizeram na
década de 1970, nos Estados Unidos, trazendo a perspectiva
interseccional a fim de analisar a opressão tanto do patriarcado quanto do
capitalismo, ecofeministas têm desenvolvido uma abordagem
multissistemas a partir da qual se evidenciam as diferenças formas de
opressão contra mulheres, negros e negras, crianças, pobres, animais
outros que não humanos e a natureza. Dessa forma, a própria crise
ambiental de âmbito global é entendida como resultado de ideologias que
se reforçam mutuamente: racismo, sexismo, classismo, imperialismo,
38
especismo e naturismo (GAARD; GRUEN, 2005, p. 169-170).
A filosofia, por sua vez, tem trabalhado com esferas diferentes,
pensando a justiça de forma dicotomizada, ou tricotomizada, como afirma
Felipe (2006). Entretanto, a partir do momento no qual um grupo sofre
discriminação e é necessário pensar se a afirmação da igualdade é
suficiente para superá-la, ou se o reconhecimento da diferença pode
reforçá-la, por exemplo, e que disso depende uma concepção de justiça,
então será necessário conceber uma teoria que não incorra em nenhuma
forma de discriminação.
Por fim, a teoria ecofeminista deve ser entendida como uma teoria
em processo (GAARD; GRUEN, 2005; WARREN, 2000). Isso significa
que ela não é estática e deve ser contextualizada no tempo e no espaço,
sendo construída com base no conhecimento e nos valores da
comunidade, permeados por inclusão, flexibilidade e reflexão da
comunidade na qual ela é gerada. Um dos princípios que orienta essa
construção é o da unidade na diversidade.
O que se considera importante em um momento histórico e cultural
específico pode não ser importante para ecofeministas em outro lugar e
outro momento. Embora a visão de um futuro justo e sustentável para
todos seja compartilhado pelas ecofeministas, como esse futuro se
parece e como ele chegará varia de acordo com as diversas vozes e
experiências daquelas pessoas engajadas em desenvolver a teoria
ecofeminista (GAARD; GRUEN, 2005, p. 173) (grifo nosso).
Warren (2000), quando aponta essa concepção de teoria em
processo como uma das caraterísticas da ética ecofeminista, usa também
39
a metáfora do quilt . Teorias são como quilts e as condições necessárias
para a teoria são como seus limites: eles estabelecem as fronteiras da
teoria sem ditar antecipadamente seu interior. O design do quilt surge a
partir da diversidade de perspectiva dos que contribuem com ele. Isso
significa que, para Warren, existem algumas condições necessárias para
a teoria feminista, pois, caso contrário, não seria possível chamá-la de
teoria. No entanto, não é possível determinar quais são as condições
suficientes para uma conduta humana moralmente aceitável, pois elas
dependem dos contextos histórico, material e social de cada uma das
condições.
Um quilt ecofeminista filosófico, portanto, é formado por diferentes
partes e por pessoas de contextos sociais, históricos e materiais diversos.
A partir dessa visão contextualizada, os diferentes quilts ecofeministas
revelam um potencial para constituição de uma teoria política inclusiva e
não discriminatória, seja em relação aos humanos, aos animais não
humanos e à natureza. Para Warren (2000), isso é possível por meio da
ética sensível ao cuidado, que critica o viés machista de éticas
tradicionais formuladas a partir de critérios exclusivamente imparciais. No
entanto, para a filósofa, a moralidade deve incorporar também outros
valores, como o cuidado, que são comumente afastados da ética por
serem considerados parciais.
Para se afastar das críticas que essa complementaridade na ética
poderia suscitar, o cuidado ao qual Warren se refere deve ser entendido
“em uma acepção política, de cuidado com a saúde das instituições, que,
adoecidas, oprimem. O cuidado, nesse sentido, desnaturaliza a opressão
e sai da esfera do cuidado somente de si, para o cuidado do outro e das
instituições, isto é, o cuidado político com as práticas institucionalizadas”
(ROSENDO, 2015, p. 195).

Considerações finais
A descrição da vulnerabilidade característica dos seres vivos como
ruim, negativa e danosa incorre no desejo da invulnerabilidade que, por
sua vez, acarreta consequências indesejáveis para a justiça: não me ver
como vulnerável; jogar a vulnerabilidade apenas sobre os outros; definir
estes outros como inferiores (e não lhes atribuir os aspectos positivos,
construtivos, criativos da vulnerabilidade); ver a mim mesma como mais
forte, dominante, melhor; autorizar-me a definir o que é melhor para os
outros e a agir no lugar destes. Autoriza a produzir uma definição
ontológica, a produzir conhecimento e política (implicações éticas,
epistemológicas e políticas). Impede ainda de ver os aspectos políticos,
éticos, econômicos epistêmicos que produzem novas vulnerabilidades,
todas negativas (associadas a dano). Ou seja: a explorar a
vulnerabilidade alheia sem dar nome aos bois. Acarreta também a não
identificação das relações opressivas e violentas perpetradas pelos que
não se vêm como vulneráveis e que exploram a vulnerabilidade do outro,
seja ele animal ou humano. Isso tudo não é acidental, mas fruto de uma
certa visão reducionista do mundo e dos seres, que possui finalidades
econômicas e políticas.

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PARTE 2
práxis ecofeministas interseccionais
CAPÍTULO 6

A inserção do Ecofeminismo no contexto


40
acadêmico brasileiro
Daniel Kirjner
Para o presente artigo, foi feita uma análise da possibilidade de
inserção no contexto brasileiro das teorias de gênero que transcendem a
barreira de espécies, em especial o ecofeminismo. Para tal, fez-se um
mapeamento de duas das maiores revistas feministas nacionais: a
Estudos Feministas e a Cadernos Pagu. Não se tratam de publicações
que encerram ou definem o feminismo brasileiro, mas representarem uma
faceta muito importante da produção acadêmica feminista no país, por
estarem associadas à instituições de ensino e pesquisa relevantes e por
elencarem em suas páginas várias das autoras que influenciaram os
rumos do feminismo e do movimento de mulheres no Brasil e no mundo.
Outro fator que torna estas revistas particularmente interessantes para os
objetivos deste artigo é o fato de que foram fundadas em uma época de
revoluções importantes nas teorias de gênero latino-americanas e
mundiais, que vieram a possibilitar que o pensamento teórico feminista, e
pós-feminista, pudesse questionar seu lugar tradicional, restrito a uma
ideia milenar de humanidade.

Metodologia de Pesquisa

Sobre a Escolha das Revistas


A escolha da Estudos Feministas (REF) e Cadernos Pagu para fazer
este mapeamento da realidade brasileira baseou-se nos seguintes
critérios: 1. estas duas publicações conjuntamente produziram, em vinte e
três anos, 49 volumes e 105 edições, entre 1992 e 2015. Ao se levar em
41
conta as sessões de artigos, dossiês e ensaios , foram baixados 1755
arquivos na fase de pesquisa exploratória; 2. fundadas no início dos anos
1990, experienciaram uma época de grandes mudanças no feminismo
mundial; 3. a vocação interdisciplinar. O Brasil possui outras publicações
de importância incontestável, mas poucas reuniram a diversidade de
perspectivas teóricas e temáticas que caracterizam a REF e a Pagu; 4. o
alcance internacional. Não só estas revistas discutiram tendências
relevantes dos estudos de gênero na América Latina e em diversas
partes do mundo, como serviram de expoentes do pensamento brasileiro
no exterior, por possuírem tiragem e reputação internacional (SCAVONE,
2013; BELELI, 2013); 5. a legitimação na academia. São publicações que
conseguiram um alcance em termos de tiragem e captação de recursos
que ainda não tinham sido vivenciados pelo feminismo brasileiro. A Pagu
nasceu aliada à Unicamp, uma das universidades mais prestigiadas do
país, e conseguiu financiamentos públicos importantes do CNPq,
FAPESP e FAEP (PISCITELLI, BELELI e LOPES, 2003). A REF foi criada
junto à UFRJ, através de um grande investimento privado da Ford Motors
(GROSSI, 2004; SCAVONE, 2013); 6. a acessibilidade. Estas duas
revistas disponibilizam todas as suas publicações para download em
formato de texto. Fornecem gratuitamente uma base de dados pronta,
acessível e abrangente.
Raras publicações nacionais cumprem simultaneamente estes seis
critérios acima citados como REF e a Pagu o fazem. Portanto, se não
podem ser consideradas vitrines, são mapas bastante abrangentes da
produção acadêmica feminista brasileira. Nelas, é possível se analisar
várias dinâmicas das relações entre academia e movimentos sociais;
entender os assuntos que são priorizados pela teoria feminista brasileira
e interpretar a influência e aspectos do feminismo estrangeiro no país.

Sobre a Definição do Material de Análise


A maioria dos critérios para a delimitação do material de análise foi
estabelecida no decorrer da pesquisa exploratória. Decidiu-se que seriam
analisados apenas artigos de autoras e autores brasileiros. Isto porque os
textos de estrangeiros muitas vezes refletem tendências internacionais
consideradas importantes pelos conselhos editoriais das revistas, mas
que não necessariamente possuem impacto no contexto brasileiro, de
forma que constituem uma amostragem que poderia influenciar os dados
negativamente. Também não foram considerados os textos de autoras
brasileiras que versam sobre realidades específicas de outros países. A
intenção não é desmerecer estes trabalhos, também relevantes para as
revistas. Contudo, eles não refletem a experiência de gênero brasileira,
foco da pesquisa, mas sim um deslocamento, uma perspectiva única
acerca de outras realidades.
Também foram desconsideradas as resenhas, por serem
análises das mais variadas bibliografias feministas, mas que não
necessariamente refletem a realidade do feminismo e dos estudos de
gênero brasileiros. Muitas vezes são discussões de obras que não
necessariamente dialogam com as tendências mostradas por outras
seções. O caráter específico das resenhas tornou impraticável uma
associação qualitativa entre elas e os outros textos das revistas e por isto
não foram incluídas na pesquisa.

Sobre as Categorias
Após a delimitação do material de análise, de 1755 textos,
permaneceram 913. Trata-se de um universo amostral bem vasto. Por
questões práticas, foram realizadas leituras que buscavam, ao invés de
um entendimento mais profundo de cada artigo, uma identificação de
elementos que indicassem como aqueles textos dialogavam entre si.
Então surgiram dois grupos de classificação mais abrangentes: assunto
e discussão de gênero.

Assunto
O grupo de classificação assunto primeiramente foi categorizado
como temática, o que não funcionou muito bem. A ideia de temática diz
respeito a aspectos mais basilares dos textos, que referem à sua
abordagem central. Mas o diálogo feminista é extremamente
interdisciplinar. A quantidade de ideias que podem ser acessadas para se
propor um argumento nos textos estudados é bem vasta. De forma que
muitas vezes os argumentos centrais das obras se conectam tanto
quanto os periféricos ao contexto em que estão inseridos. Minha atenção
foi mais voltada para os assuntos coadjuvantes, e não necessariamente
temáticas principais que povoam a amostra. Assuntos são aqueles
elementos que não são menções superficiais em uma nota de rodapé,
mas que podem ser (e não necessariamente são) temas centrais. São
eles que criam, em diferentes importâncias e alcances, suportes
relevantes para se construir um argumento.
Foram, portanto, estabelecidos os 13 assuntos: movimento de
mulheres; família; trabalho; política; violência doméstica; literatura;
religião; educação; marxismo; meio ambiente; sexualidade; ciência;
humanidade e animalidade. Além destas categorias simples, também
foram pensadas outras que, por serem mais próximas entre si, foram
definidas como grupos e sub-grupos. O assunto mais abrangente
sexualidade foi associado à corpo e reprodução e, dentro de reprodução,
a categoria aborto. Da mesma forma, no assunto ciência, criaram-se os
sub-assuntos bioética, objetividade e medicina. Merecem ser ressaltados
os critérios de escolha destes assuntos. Por mais que se tentasse
estabelecê-los somente de acordo com as menções que julgou-se mais
recorrentes e relevantes, muitas variáveis que eram interessantes para a
pesquisa ficaram de fora. Por isto, foram incluídos assuntos que, mesmo
não tão presentes nas revistas, diziam algo sobre as temáticas
abordadas pelo ecofeminismo e estudos animais em geral. O resultado
final foi uma mistura entre assuntos reincidentes, como família e trabalho
e outros que se fizeram presentes pelas afinidades com as temáticas
abordadas pelo ecofeminismo, como humanidade e animalidade.
Provavelmente, alguns tópicos importantes foram preteridos, mas as
variáveis criadas contemplaram satisfatoriamente as pretensões
analíticas da pesquisa.
Os assuntos, portanto, são: 1. movimento de mulheres diz respeito a
referências encontradas nos textos às lutas, à exaltação da prática da
militância ou da herança histórica deixada por mulheres organizadas
politicamente; 2. família engloba referências concernentes às dinâmicas
familiares na construção de relações sociais, políticas e afetivas; 3.
trabalho diz respeito à discussão da condição da mulher nas dinâmicas
trabalhistas brasileiras: desigualdade de tratamento, salários, direitos e
outros temas afins. 4. política é referente às dinâmicas institucionais que
movem o governo no Brasil; ou seja, lobby, projetos de lei, demandas
pelo reconhecimento de direitos, cidadania e tópicos afins; 5. violência
doméstica diz respeito a referências ou problematizações do abuso moral
e ou físico identificados no âmbito da intimidade interpessoal; 6. literatura
consiste em referências ou problematizações de textos ou movimentos
literários; 7. religião, alusão ou discussão de experiências, construções e
identidades ligadas ao espiritual e ao religioso; 8. educação, menções
marcantes ou discussões acerca de parâmetros e atividades ligadas a
instituições ou práticas de ensino; 9. marxismo, referências às teorias ou
às práticas marxistas e marxianas nas idéias, trajetórias ou militâncias
das autoras. Enquadra-se aqui também discussões ou alusões relevantes
à luta de classes, quando colocada nos termos da referida tradição. 10.
meio ambiente refere-se a discussões ou menções relevantes que dizem
respeito à relação assimétrica dos seres humanos com os ambientes não
humanos que o cercam. 11. humanidade e animalidade refere-se a
assuntos e discussões mais profundas sobre o caráter constitutivo da
condição humana e da animal. As duas categorias, não são excludentes:
a animalidade pode ajudar a definir a humanidade e vice-versa. 12.
sexualidade diz respeito às reflexões sobre o desejo associado ao sexo e
como este influencia as relações de gênero. Associados a este estão
mais três assuntos: a abordagem do corpo como personagem da reflexão
feminista e não simplesmente matéria; comentários importantes ou
discussões acerca das dinâmicas de reprodução e, como subcategoria de
reprodução, a questão específica do aborto. 13. ciência, traz uma relação
parecida com os assuntos a ela conectados. Geralmente, a discussão ou
menções importantes sobre objetividade estão relacionadas à
problematização da ciência. Da mesma forma, a medicina pode ser vista
do ponto de vista da experiência e não se referir ao seu aspecto
científico. Já a questão da bioética é científica por natureza e bastante
relacionada à medicina. Todos esses assuntos passam por caminhos
muito próximos, por isso foram relacionados para fins analíticos, apesar
de analisados individualmente.

Discussão de Gênero
O segundo grupo de classificação, denominado discussão de gênero
refere-se às lentes através das quais as teorias de gênero ganharam
dimensões ou perspectivas diferentes. Elas moldaram as prioridades e a
forma como os assuntos são abordados. Pode-se argumentar que não
existe, de fato, uma zona indefinida na separação entre assunto e
discussão de gênero. Certos assuntos podem servir de lentes para a
teoria da mesma forma que é possível que certas discussões de gênero
aqui propostas sejam vistas simplesmente como assuntos. Mas esta falta
de precisão filosófica não comprometeu a análise. As perspectivas
escolhidas mudaram os rumos de vários assuntos abordados nas revistas
e no feminismo em geral.
O grupo de classificação discussão de gênero, portanto, é composto
por: ecofeminismo, ética do cuidado, queer, masculinidade, pós-
colonial/decolonial, linguagem e racial. A idéia de raça primeiramente foi
abordada como um assunto. Contudo, à medida que a análise se
desenvolveu ficou cada vez mais claro que as questões raciais moldaram
as discussões de gênero brasileiras nas últimas décadas. Elas
trespassam praticamente todos os assuntos e ressignificam as
discussões. Não é só uma lente a ser levada em conta, é a principal lente
do feminismo brasileiro desde a década de 1990, argumento que será
melhor explicado na análise de dados deste artigo.
A discussão de gênero nomeada linguagem foi um artifício para
juntar sob a mesma variável as análises de discurso e conteúdo de obras
e narrativas, que são muito frequentes nas duas publicações. No decorrer
da pesquisa, tornou-se mais sugestiva a forma como o feminismo
brasileiro valoriza a análise dos relatos e experiências. A visibilização do
discurso, enriquecida com conteúdos interpretativos da linguística,
filosofia e antropologia, por exemplo, parece ter uma função
empoderadora e também a vocação de trazer à tona discussões políticas
e sociais.
Já parte da teoria pós-colonial/decolonial parte, entre outras autoras,
da obra da indiana Gayatri Spivak, uma das autoras que conectou os
pontos entre pós-colonialismo e feminismo na década de 1980 (Spivak,
1988). A decolonialidade, por sua vez, é uma linha de pensamento
relativamente nova, em recente processo de formação, mas que tem
potencial de ressignificar os estudos de gênero na América Latina. Trata-
se de uma contestação ao feminismo dito mainstream que tem
aproximações com o pensamento pós-colonial. Este foi desenvolvido
principalmente em países de colonização francesa e inglesa que
conquistaram a independência recentemente e, por isso, possuem laços
específicos com o colonizador em termos culturais. A América Latina
jamais se inseriu completamente nesta lógica, por possuir uma história de
colonização mais distante e problemas de alcance linguístico na
comunidade internacional. O pós-colonialismo que fala inglês, francês e
dialoga com a elite da comunidade européia não possui tanta entrada
para as colonialidades latino-americanas (Costa, 2013). Contudo, há uma
razão para que pós-colonialismo e decolonialismo compartilhem a mesma
categoria. Há ainda muita confusão acerca das diferenças entre as duas
abordagens. Muitos autores usam o termo pós-colonialismo para
defender o que alguns entendem como decolonialidade e vice-versa.
Portanto, por serem teorias relativamente próximas, que possuem um
intenso e recente diálogo, ela ocupa a mesma classificação.

Sobre a análise dos dados


A análise dos dados foi facilitada com a utilização do aplicativo de
análise qualitativa Nvivo 11. Nele, foi utilizada a ferramenta de busca que
pesquisa termos específicos nos textos. A identificação de recorrências
de palavras-chave, quando colocadas em conjunto (por exemplo raça and
ações afirmativas) possibilitou um acesso ainda mais completo ao
conteúdo. Seu recurso de busca textual permitiu uma apreciação dos
textos através de trechos específicos que carregam associações
importantes entre palavras-chave. Desta forma, foi possível catalogar
mais eficientemente referências que poderiam ser negligenciadas.
Todas as variáveis contidas nos grandes grupos de classificação
assunto e discussão de gênero foram transformadas em nós (nodes), ou
seja, unidades de significado associadas a trechos ou aos textos como
um todo. Cada artigo foi categorizado com os nós que lhes cabiam:
alguns apresentaram apenas 3 e outros chegaram a conter 18. Associou-
se 4166 nós a 913 textos, uma média de 4,5 nós por texto. Além dos nós,
foram também criados casos, ou caixas (cases), que consistem em um
tipo específico de nó. Tratam-se de unidades de observação que
representam tipos de pessoas, lugares, instituições, ou seja, atributos da
amostra que podem ser colocados em forma numérica ou textual.
Portanto as variáveis ano (que compreendem 23 unidades numéricas
consecutivas que vão de 1992 a 2015) e revista (composta das
categorias REF e Cadernos Pagu) foram classificadas desta forma.
Uma vez concluída a fase de criação e classificação dos nós,
passou-se à estruturação de matrizes de codificação. Trata-se de uma
ferramenta do Nvivo que permite que diferentes tipos de nó sejam
analisados comparativamente entre si e em relação aos casos (ou caixas)
em questão. De forma que pode-se organizar uma análise dos assuntos e
discussões de gênero em relação às revistas e aos anos de publicação,
assim como a conexão entre determinados assuntos e discussões de
gênero e assim por diante. Uma vez construídas as matrizes de
codificação, o programa gerou tabelas que foram transportadas para o
Excel, e lá foram criados gráficos referentes a elas.
É importante ressaltar que nenhuma das categorias (nós) criadas
são exclusivas. Ou seja, a existência de um assunto não implica no
impedimento de outro. Por isto, na maioria das vezes não se trabalhou
com gráficos de porcentagem, somente quando assim se fez necessário,
pois as categorias em questão não são pedaços que formam um todo,
mas interações que mapeiam um panorama. Utilizou-se então, em boa
parte das análises, a quantidade de artigos contemplados por
determinados nós ou pela interação entre diferentes nós através das
revistas ou dos anos, por exemplo.

Um Feminismo que Nasce na Prática e Cresce nas Ciência


Sociais
A primeira pesquisa exploratória já apontava para a confirmação de
uma suspeita que, após realizada a pesquisa, tornou-se comprovada: as
duas principais revistas feministas brasileiras não publicaram, até 2015,
trabalhos originais sobre a reflexão gênero x espécie, seja na abordagem
ecofeminista ou em qualquer outra. Então, duas perguntas logo se
tornaram imperiosas para a presente pesquisa: por que isso acontece e
como introduzir o tema no Brasil?

A Discussão dos Assuntos


Os assuntos dizem muito sobre a visibilidade da prática feminista na
produção acadêmica. As categorias movimento de mulheres e política se
destacam como as mais numerosas (Figura 1). A primeira representa
referências às lutas e histórias femininas no país enquanto a segunda
envolve o alcance institucional, seja na forma de conquistas ou
discussões destas mesmas lutas e histórias. São duas classificações
intimamente conectadas sobre os processos de consolidação prática do
feminismo brasileiro. Os dados confirmam a tese de que estes estudos
que se desenvolveram desde os anos noventa são largamente baseados
nas lutas e reivindicações de mulheres que o precederam e
acompanharam.
Tal argumento também é comprovado pela constância dos dados. Há
uma grande flutuação de assuntos nestas revistas e isso se dá pela
prática de sessões temáticas e dossiês que possuem. Estas são decisões
dos comitês editoriais que publicam artigos ligados a um tema específico,
considerado relevante para o momento político, social, histórico da
publicação. O assunto ciência, por exemplo, vinha sendo abordado de
1992 a 1997 de maneira relativamente regular (Figura 2); referenciado
por, no máximo, três artigos por ano. Em 1998, a Pagu (número 10)
lançou uma edição temática sobre ciência e tecnologia e a REF (volume
6, número 1) um dossiê sobre tecnologias reprodutivas. De um ano para
o outro, o assunto pulou de 2 para 17 referências. Os conselhos
editoriais, portanto, possuem este poder discricionário de priorizar o que
acham importante. Quase todos os dados são radicalmente influenciados
por estas escolhas. Mas o assunto movimento de mulheres é o que
menos muda ou depende deste impacto. Independente de haver um
dossiê ou uma sessão temática que aborde discussões próximas a ele,
movimento de mulheres está entre os mais citados (Figura 2).
Esta constância é resultado não apenas de um processo natural,
mas faz parte da política editorial da REF: “O eixo central da política
editorial da REF pode ser definido pelos seus objetivos de publicar textos
que ‘apresentem reflexões teóricas consistentes e inovadoras [...]
ampliando as fronteiras dos debates acadêmicos no campo de estudos
feministas e de gênero, instrumentando as práticas dos movimentos
sociais’, conforme expresso em sua Missão” (SCAVONE, 588, 2013). Já a
Cadernos Pagu, foi vocacionada inicialmente como uma fonte de saber
acadêmico (PISCITELLI, BELELI e LOPES, 2003), mas admite seu
representativo impacto social e político:
Cadernos Pagu dirige-se a um público acadêmico, sendo uma publicação procurada
por bibliotecas de várias universidades em todo o país, além de grande demanda por
parte de alunos de pós-graduação. Mais recentemente, órgãos governamentais e não-
governamentais que tratam de questões e políticas voltadas às mulheres,
homossexuais e transgêneros também têm buscado adquirir a coleção da revista.
(PISCITELLI, BELELI e LOPES, 2003)

Figura 1: Quantidade de textos que referenciam assuntos por Revista.


A verdade é que mesmo se houvesse uma intenção da Cadernos
Pagu em se isolar da experiência da militância, isso não aconteceu.
Certamente, ela é menos ligada a esta realidade que a REF (Figura 1). A
Estudos feministas, por exemplo, criou a sessão dossiê com o objetivo
42
específico de dialogar com a militância . No entanto, a conexão ainda é
bastante relevante. Trata-se da revista de tiragem menor entre as
43
duas . Ainda assim, entre os 21 assuntos pesquisados, movimento de
mulheres é o quarto mais citado na revista, e política o quinto. É justo
dizer com base nos dados e na interpretação dos textos que o feminismo
brasileiro pode até ser muito tributário de teorias importadas mas, para o
período analisado, é largamente baseado em demandas provindas da
militância feminista no país.
Na outra ponta do grupo de classificação assunto encontra-se
animalidade, humanidade e meio ambiente (Figuras 1 e 2). Estas são
categorias criadas para mapear as ausências encontradas nas
publicações; mais precisamente, a ausência do ecofeminismo animalista.
Não basta habitar as margens da sociologia nacional, a questão animal e
ambiental também está às margens da teoria feminista brasileira que, por
sua vez, também se encontra às margens da sociologia nacional. Mas
qual o motivo deste feminismo acadêmico brasileiro não atuar na
discussão animal? A resposta encontra-se ainda na Figura 1. Uma das
formas mais eficientes de uma temática ser abordada por estas revistas é
se constituir, consolidar, dentro do movimento de mulheres e suas
políticas. Os dados mostram que não há uma continuidade entre esta
realidade prática da militância e os assuntos ligados à opressão dos
animais. Muito pelo contrário, dos textos catalogados que abordam as
questões de animalidade e humanidade, nenhum deles problematiza o
especismo, ou reflete sobre a subjugação e o sofrimento animal. As
publicações ainda não mostram uma visão politizada sobre não humanos.
Isso não significa, no entanto, que não haja uma militância feminista no
Brasil que advogue pela causa animal. A autora Íris Nery do Carmo já
mostrou em sua dissertação de mestrado de 2013 (CARMO, 2013) que
ela existe. Contudo, trata-se de um movimento relativamente recente e
que não tem como saber seu alcance proporcional no feminismo
brasileiro como um todo. O fato é que a abordagem animal ainda não foi
percebida, ou sequer reconhecida de maneira significativa, pelas revistas;
o que é um indicador expressivo de sua marginalidade como assunto nos
movimentos sociais feministas.
É possível, no entanto, encontrar discussões no feminismo brasileiro
que se relacionam, como foi mostrado nos capítulos anteriores, à questão
animal. Um deles é a problematização da ciência, tanto como saber
pragmático, hegemônico, como definidor das funções, assim como limites
e propriedades do corpo, através da medicina. A bioética feminista é um
dos assuntos que melhor abordam estas relações:
São teorias da bioética que procuram desvendar as sutilezas das relações morais que
envolvem jogos desiguais de força (sejam eles frutos de hierarquia, poder ou de
quaisquer outras desigualdades sociais), isto é, teorias que procuram modificar o
caráter da bioética: de facilitadora da ciência e da medicina para uma instância crítica
de seus pressupostos (DINIZ e VELEZ, 1998, p. 4).

Figura 2: Quantidade de textos que referenciam os Assuntos por Ano.

A bioética feminista desestabiliza as certezas do que é humano e o


que não é, assim como questiona a autoridade moral da ciência sobre os
corpos e suas funções reprodutivas. Trata-se de um assunto que se
mostrou relativamente constante nas revistas a partir de 1997 e atingiu
picos em 1998 e 2003 (Figura 3). Mesmo que bioética seja um dos
assuntos menos referenciados, a discussão da medicina e da ciência
pela lente feminista mostrou crescimento relativamente regular nestas
revistas, assim como uma simetria significativa de 1994 em diante: a
partir deste ano, ciência e medicina mantiveram números bem próximos
e, quando isto não aconteceu (nos anos de 2006, 2009 e 2014), ambos
os assuntos apresentaram crescimentos significativos em relação ao ano
anterior (Figura 3). É possível perceber uma relação na flutuação das
duas categorias através dos anos. A partir de 1998, ambos os assuntos
ganharam dimensões consideráveis conjuntamente que, de maneira
geral, persistiram até 2015. Isto significa que mesmo que o termo
específico bioética ainda possua uma representatividade relativamente
baixa, a discussão sobre ciência e medicina cresceu e que há uma
relação estatística muito forte entre elas. Isso porque a medicina é uma
abordagem pragmática do corpo, que o objetifica e o extirpa, muitas
vezes, de sua complexidade simbólica. As justificativas científicas da
medicina para a moralidade e a abordagem dos indivíduos é um dos
temas recorrentes nas revistas.
A saúde pública tem como base a medicina moderna do final do
século XVII, que, sob o véu da cientificidade, legitimou a crescente
medicalização do espaço social, ancorada na polícia médica e na
medicina social de normatização e controle das sociedades. Sua principal
estratégia é combater as epidemias e as endemias, esquadrinhando e
controlando o espaço urbano com dispositivos sanitários. Em nome da
ciência, legitimam-se práticas de marginalização de diferentes segmentos
sociais, visto que o discurso naturalista da Medicina finge que não existe
uma dimensão política nas práticas sanitárias (MEDEIROS e
GUARESCHI, 1993, p. 43).

Figura 3: Quantidade de textos que referenciam as variáveis do grupo


Ciência por ano.

É possível ver a recorrência da desestabilização da ideia de


humanidade na análise feminista da relação entre ciência e medicina.
Através da polarização entre doença e saúde, da economia das forças e
fragilidades (dos corpos grávidos, por exemplo) criam-se táticas de
controle social que implicam na expulsão de indivíduos de uma ideia
privilegiada de humanidade. Desta forma, é muito importante a presença
da discussão científica e das relações que ela tem com a bioética e a
medicina, a primeira inescapável e a segunda observada tanto nas
articulações das teorias, quanto nas flutuações numéricas (Figura 3).
Outro assunto muito relevante relacionado à ciência é a discussão da
objetividade. O questionamento e a problematização da neutralidade
objetiva, imparcial, da ciência é um assunto constante, que só não foi
referenciado no ano 2003 (Figura 3). A rejeição das emoções como
dimensão do conhecimento é uma das principais armas de afirmação do
masculino como representação do espírito humano. O estigma de gênero
guiado pelas emoções relegou historicamente as mulheres a uma
condição se sub-humanidade. A epistemologia feminista, além de
questionar este estereótipo, exaltou o valor das emoções na construção
do saber.
A crítica feminista buscou eliminar a condição de subordinação das mulheres no
tocante ao seu pertencimento ao campo das práticas científicas no que diz respeito às
diversas formas de opressão, nem sempre explícitas, sobre a capacidade feminina,
suas reflexões e pontos de vistas. Assim, a crítica feminista alertou que o
conhecimento científico não é uma entidade objetiva, afinal é parte da condição
cultural dos atores sociais. (BANDEIRA, 2008, p. 224).

A maior contribuição desta perspectiva foi a de problematizar a


exclusão das mulheres dos saberes científicos e exaltar o valor da
vivência, experiência, sensibilidade e sensciência na interpretação do
mundo. Esta discussão, constante nas publicações, apesar de não tão
expressiva numericamente, indica uma abertura para vivências que não
se encaixam em um modelo tradicional de racionalidade e abre uma
possibilidade para se reconhecer a ausência de outro tipo de ator social
que ainda não foi plenamente reconhecido pelo feminismo brasileiro ou
pela sociologia, como os animais, por exemplo.
As discussões sobre o corpo têm incitado boa parte dos
questionamentos acerca do ideal de humanidade fixo, essencial, racional.
E isso não se deu só através das lupas da ciência. Na verdade, a
corporalidade se relaciona bem mais intensamente com as ideias de
reprodução e sexualidade. E essas relações entre corpo, sexualidade e
reprodução se tornaram mais fortes nos anos 2000 (Figura 4). Em 1993,
principalmente em função dos dossiês da REF Mulheres e direitos
reprodutivos (volume 1, número 2) e Mulher e violência (volume 1,
número 1), os assuntos sexualidade, aborto e reprodução foram muito
abordados. Mas chama atenção como o assunto corpo quase não
aparece. Isto aconteceu pelo fato de estas leituras ainda não
apresentarem a ideia de corpo como uma dimensão expressiva de
gênero. Ao contrário, são concepções mais conjunturais e
questionamentos políticos institucionais sobre violência e direitos
reprodutivos. Esta ideia de corpo simbólico, ativo, ainda teria que
amadurecer por alguns anos.
Em 1998, há um pico de artigos que referenciam corpo associado a
aumentos nas variáveis reprodução e sexualidade (Figura 4). Mais uma
vez, esta ligação de pontos foi causada pelo dossiês e especiais
temáticos. Os artigos que referenciaram masculinidade (da categoria
discussão de gênero), trouxeram esta nova acepção de corpo significado
e significador de sexualidade, que não apenas uma matéria física, mas
um elemento ativo nas economias simbólicas. Isto ocorre no texto de
Joaquim Fontes, no qual ele exalta como, para Sêneca, os corpos são
“sempre, e superlativamente expressivos” (FONTES, 1998, p. 354); assim
como Margareth Rago, que argumenta que o estupro é uma forma de
suprimir a expressividade da mulher e condicionar o corpo a uma
disponibilidade sexual, tida como natural (RAGO, 1998); ou mesmo
Heilborn, que aborda as dinâmicas de representação dos corpos nas
primeiras relações sexuais de homens no Rio de Janeiro (HEILBORN,
1998).

Figura 4: Quantidade de textos que referenciam assuntos do grupo


Sexualidade por ano.
O corpo em relação a si e o corpo do outro estão entre os maiores
edificadores da ideia de masculinidade, especialmente no que se refere à
sexualidade. É interessante observar como estas seções especiais das
publicações contribuem para a proliferação de uma discussão, mesmo
que de maneira indireta e secundária. Após 1998, o assunto corpo atinge
uma proporção maior universalmente que possuía até então (Figura 4).
Entre 1992 e 1997 o assunto obteve 21 referenciações; entre 1998 e
2003, foram 63, um aumento de 200%. É implausível afirmar que o
dossiê sobre masculinidade causou sozinho este aumento, mas ele
externalizou uma marcha que já estava em movimento. O feminismo da
época estava em processo de pensar a corporalidade em um lugar
teórico mais expressivo e isso se refletiu nos resultados da pesquisa.
Outra discussão que surge da interpretação da Figura 4 é a relação
episódica entre aborto e reprodução. Poder-se-ia especular que a
discussão do primeiro possuísse um nexo causal com o segundo, mas
não é o caso. Nos anos em que reprodução é mais discutido, o assunto
aborto não apresenta crescimento significativo. Isso se dá por dois
motivos: em primeiro lugar, reprodução é uma discussão muito ampla.
Pode se referir a direitos reprodutivos, à saúde reprodutiva, discussões
de maternidade e paternidade, e mesmo o caráter da heterossexualidade
compulsória e essencialização dos corpos das mulheres. Ela é muito
discutida como uma forma de apropriação social dos corpos femininos.
A mãe que não assume determinados cuidados corporais sofre importantes formas de
discriminação nas sociedades que cultuam o corpo e, sobretudo, nos serviços de
saúde. Nesse sentido é que observamos que, aos poucos, os cuidados corporais
assumem um lugar de diferenciação, chegando a funcionar, nos dias atuais, como
formas de in-exclusão. (SCHWENGBER e MEYER, 2011, p. 309-310)

Em segundo lugar, há uma descontinuidade do assunto aborto. Os


dados presentes na Figura 4 revelam hesitação e desconforto com a
temática por parte do feminismo brasileiro. Os dois únicos anos em que o
assunto aparece referenciado em uma quantidade significativa de textos
são 1993 e 2008. Nas duas ocasiões foi impulsionado por dossiês da
Estudos Feministas (volume 1, número 2 e volume 16, número 2). Isto
significa, primeiramente, que aborto aparece mais como temática que
como assunto, ou seja, quando proposto como tema central da reflexão.
Em segundo lugar, implica que esta temática é dependente de decisões
dos conselhos editoriais das revistas para ser mais explorada. Se por um
lado os dossiês podem ser símbolos de mudanças que acontecem nas
revistas, também podem evidenciar a resistência a certas temáticas.
Enquanto os textos referenciados à ciência abordaram a supremacia
da mente sobre o corpo, as discussões ligadas à sexualidade
desconstruíram a supremacia da biologia sobre o corpo. Além de ambas
as discussões terem rompido as barreiras hierárquicas do público sobre o
privado, debateram, indiretamente, as barreiras racionais e as certezas
biológicas que separam seres humanos e animais.
Já a representatividade amostral das reflexões feitas acerca da ideia
de humanidade são bastante baixas (Figura 5). Nos raros momentos em
que elas são feitas, estão, em sua maioria, separadas de uma reflexão
sobre animalidade. Não há um debate significativo sobre as relações
interespécies. Há textos na amostragem analisada que refletem sobre
humanos e animais (GRAF e COUTINHO, 2012; ADELMAN, 2011; DIAZ-
BENÍTES, 2012; MOTTA, 2008). Porém, neles os não humanos
aparecem apenas como acessórios da reflexão sobre alguma atividade
humana como equitação, rodeios, zoofilia ou domesticação de animais.
Não refletem sobre a condição não humana em si. Mesmo nos artigos
englobados na Figura 5, nas poucas vezes que a animalidade é
referenciada, ela apareceu como alguma forma de degradação feminina
ou mesmo para afirmar, por contraste, o humano:
Da beleza do luxo da alta prostituição, referida por Bataille, passa-se à baixa
prostituição. Enquanto a alta prostituição valoriza o preço pago pela quebra da
interdição, a baixa prostituição confunde o baixo preço com a não existência de
interdito. Na fala de Y., o estupro referenciado a um quase não ser, a um animal,
busca se distanciar de qualquer idéia de se contrapor a qualquer interdito. Bataille nos
fala da imagem da “baixa prostituição”, associada às “porcas” em muitas civilizações e
Y. nos fala de uma jovem que não é direita, associada à imagem das “cachorras”.
(MACHADO, 2013, p. 242)

Figura 5: Quantidade de textos que referenciam as varáveis Humanidade


e Animalidade por ano.

Análise de Discussão de Gênero


A Figura 6 traz um outro lado da questão, indispensável para se
entender a conjuntura brasileira em relação à aceitação ou não da
temática animal pela teoria feminista. O grupo de classificação discussão
de gênero é mais assimétrico que o de assuntos. O debate racial é pelo
menos duas vezes mais referenciado que qualquer outro. É maior que a
soma das codificações linguagem e masculinidade (Figura 6). É uma
discussão predominante tanto na REF quanto na Cadernos Pagu. Isto
porque raça evidencia uma peculiaridade nos processos históricos do
feminismo brasileiro. A legitimação desta discussão no Brasil foi a
principal mudança do feminismo a partir dos anos 1990. Durante a
pesquisa exploratória, a quantidade de textos estrangeiros publicados
pelas revistas foi uma surpresa. Isso causou a falsa impressão de que o
feminismo brasileiro só olhava para o estrangeiro e tinha uma parca
noção de si mesmo.
O que surpreende na interpretação da Figura 6 é que a discussão
que melhor representou um pensamento original do país - que se
mostrou mais associada ao movimento de mulheres e menos dependente
de traduções estrangeiras - é também a principal nas revistas. E não é de
maneira próxima às outras; está distante na ponta como a mais
referenciada. Não pretende-se afirmar que o feminismo negro
estadunidense, por exemplo, não seja uma influência importante para a
discussão racial no Brasil; mas é fato que a questão racial brasileira está
associada à realidade do país de tal forma que expressa sua
originalidade. A maioria dos textos sobre raça a descrevem como um dos
mais importantes elementos na construção de gênero no Brasil. As
mulheres negras brasileiras não são privadas somente dos privilégios,
mas do discurso sobre a própria opressão. Isto fica claro nas discussões
sobre a figura da mulata:
Assumindo de maneira plena a idéia (sic) de que são símbolos sincréticos da
brasilidade, as mulatas incorporam também a representação segundo a qual são
portadoras de qualidades intrínsecas passíveis de manipulação em rituais de sedução
do homem branco (no caso, sobretudo, o gringo). (GIACOMINI, 2006, p. 100)

A sociedade sexualiza as mulheres negras como símbolos da


identidade brasileira, mas as nega reconhecimento racial. A história das
raças no país não é edificada por um consenso sexual lúdico e
compulsório, ou pela expressão livre do eros; mas sim por uma dinâmica
de tensões e negações que definem a economia dos corpos no Brasil. Ao
ser privada do acesso politizado a sua opressão, a mulher negra é
obrigada a naturalizar o próprio desconforto. Isto não é um assunto que
afeta apenas mulheres negras, apesar de afetá-las infinitamente mais;
mas é parte constituinte da formação das assimetrias de gênero
brasileiras. O racismo condiciona também a opressão e os privilégios de
mulheres brancas.
A minha mulher era mulata mas desde que casou comigo ela não é mais. As variáveis
que delimitam esta categoria também funcionam juntas. A idade, peso, região
geográfica, roupa, modo de falar, profissão e identidade mestiça figuram entre os
marcadores mais salientes. Também é a intenção dos homens para com a mulher que
força esta definição. A mulher sexualizada é empurrada até uma posição de
subjetividade de mulata. A percepção do comportamento dela determina essa
realidade. O que Martinez-Alier notava para Cuba abrange também o Brasil. As
mulheres brancas podem perder a honra pelo comportamento delas, porem esta lhes
é atribuída a priori. As mulheres negras têm que lutar para adquiri-la. (GILLIAN e
GILLIAN, 1995, p. 530).

Figura 6: Quantidade de textos que referenciam discussões de gênero


por revista.
No outro extremo da Figura 6 está a categoria ecofeminismo, que
aparece com baixa amostragem e representatividade. O contraste entre a
ausência dela e a presença majoritária da discussão racial justifica uma
reflexão importante. O ecofeminismo nasceu associado a duas correntes
de pensamento que se identificaram entre si: o feminismo radical e o
espiritual. Defendia uma essência feminina justificada por uma maior
conexão espiritual com a natureza. Muitas autoras, como Mary Daly,
acreditavam em uma superioridade inata das mulheres, emanada de uma
série de fatores provindos de suas vivências, espiritualidades e valores.
Contudo, como apontou Audre Lorde, todos estes elementos indicadores
do gênero feminino como superior remetiam à experiência das mulheres
brancas norte-americanas (LORDE, 2012). Deidades africanas não
tinham espaço neste discurso e valores dissidentes também não. E mais:
o ecofeminismo defendia uma luta universalista de mulheres, o que
suprimia as manifestações das subjetividades das mulheres negras no
processo.
Como resultado, o movimento ficou majoritariamente concentrado
em uma realidade branca, cristã e elitista. Mesmo após o ecofeminismo
ter se afastado dos posicionamentos mais radicais de Daly, não adquiriu
força expressiva para transcender as barreiras que ele mesmo criou.
Claro que existem exceções; a indiana Vandana Shiva é uma das
militantes ambientalistas mais atuantes hoje no mundo, identificada com
a filosofia ecofeminista (SHIVA, 1988). Contudo, mesmo assim, as
principais autoras do ecofeminismo animalista (Carol J Adams, Marti
Kheel, Lori Gruen, Patricce Jones, Lisa Kemmerer), por exemplo,
possuem a mesma nacionalidade, mesma raça e origens sociais muito
parecidas. O ecofeminismo latino-americano, apesar de existente, não é
representativo como o norte-americano. Mesmo assim, a ativista
ecofeminista de mais renome na América Latina é brasileira (RESS,
2006). Mesmo sem nunca ter publicado na REF ou na Cadernos Pagu,
Ivone Gebara foi alvo de Dossiê recente (2014) da revista Mandrágora e
é apontada como um dos principais nomes da teologia da libertação na
América Latina (RUETHER, 2014; RESS, 2006).
Ela defende que a teologia deve questionar a fixidez dogmática e se
adaptar a novos contextos e realidades marginais. Assim, questionou a
imagem eurocêntrica, androcêntrica e antropocêntrica de Deus, além de
argumentar que ele não deveria ser concebido acima da história, pois
desta forma jamais representaria a mulher latino-americana. Para ela, a
própria teologia da libertação deveria ser reformulada para ser menos
sexista e androcentrada (RESS, 2006; GEBARA, 2000).
Sobre seu contexto de fazer teologia, Gebara diz está imersa em “ruído e lixo”,
exatamente o contrário da solidão monástica ou da torre acadêmica de marfim de
calma que tem sido o lugar tradicional dos cristãos para cultivar a espiritualidade e a
reflexão teológica. O ruído do seu bairro é a poluição sonora de um industrialismo
moderno disfuncional, com carros e caminhões sem silenciadores, bem como as
respostas barulhentas dos pobres que moram nessa área, rádios e vozes brigantes
das pessoas que vivem em condições de superlotação. O lixo é o resíduo descartado
pelos pobres que não possuem saneamento básico adequado. Viver a espiritualidade
e fazer sua teologia no meio do ruído e do lixo é praticá-las em meio à opressão e à
violência, mas também em meio à vitalidade dos pobres, que conseguem sobreviver e
até mesmo celebrar nela e apesar dela (RUETHER, 2014, p. 180).

Por um lado, Gebara desconstrói as ideias tradicionais de virtude em


sua teologia, e traz a religião para um contexto mais palpável, brasileiro.
Contudo, a abordagem e jargão que utiliza em seus textos, e aqui é
reproduzido por Ruether, são bem problemáticos. Ela identifica o pobre
como objeto de salvação, caridade, e não como autônomo, dono da
própria identidade; de forma que cria um abismo, um afastamento entre
clero salvador e população vitimizada. Nos anos noventa, quando boa
parte de sua obra foi escrita, o movimento no feminismo brasileiro,
evidenciado pelos dados nas figuras 6 e 7, concentrou-se em uma
afirmação de identidade e empoderamento crescente das expressões
raciais; Gebara propôs uma filosofia baseada em noções arcaicas de
classe, provindas da tradição católica. Simbolizou, portanto, o abismo
moral, simbólico, social, que o ecofeminismo possui em relação à
realidade brasileira. Ela não apresentou uma teoria com impacto
decolonizador e empoderador que Vandana Shiva ou Bina Agarwal
alcançaram nos movimentos de mulheres na Índia.
A REF e a Pagu apresentaram um movimento racializado e situado
na militância, duas coisas que o ecofeminismo ainda não é. Por isso, há
uma relação entre a presença significativa de uma discussão e a
ausência de outra: 114 dos 242 textos referenciados pela discussão racial
associam-se ao assunto movimento de mulheres, ou seja, quase 47% de
toda a discussão tem uma relação com a militância (Figura 8).
Proporcionalmente, os dados sobre ecofeminismo também são
significativos (11/17 ou 64%), no entanto, o fato da amostragem ser tão
pequena depõe contra sua importância para o movimento. Caso a
militância fosse significativamente ligada ao ecofeminismo,
provavelmente este teria mais textos referenciados no universo analisado
do que possui, pois movimento de mulheres se mostrou como um dos
principais assuntos motivadores e legitimadores deste universo editorial.

Figura 7: Quantidade de textos que referenciam Discussões de Gênero


por ano.
Há também uma falta de representatividade dos assuntos (meio
ambiente, animais e humanidade) e discussões de gênero (ecofeminismo
e ética do cuidado) tradicionalmente ligados ao debate ecofeminista
44
animalista internacionalmente (Figura 9) . Deve-se levar em conta que
as variáveis não se excluem entre si; uma marcação só é feita uma vez
em cada artigo; mas um artigo pode possuir várias marcações. Ao se
considerar todos os elementos dos grupos de classificação, assunto e
discussão de gênero, foram feitas 4166 marcações. Estes assuntos e
discussões tradicionalmente ligados ao ecofeminismo, somados,
agregam apenas 113. Trata-se de cerca de 3% de todo o mapeamento. O
ano de 1994 não possui nenhuma marcação, o de 2000 apenas duas e
2005 uma.

Figura 8: Quantidade de textos que referenciam Discussões de Gênero


relacionadas ao assunto Movimento de Mulheres.
Há também um relativo descolamento da discussão ecofeminismo do
assunto meio ambiente (Figura 9). Esperava-se uma implicação
necessária entre a primeira variável e a segunda. Em vários anos (1993,
1998, 2006, 2011), isso não acontece. Como é possível que se discuta
ecofeminismo e não meio ambiente concomitantemente? A resposta
mora na filosofia. O ecofeminismo não nasceu como uma abordagem
prática, na forma como é visto na Índia por exemplo. Assim como o
Marxismo, ele primeiro foi um modelo teórico, criado por intelectuais,
principalmente no meio do feminismo radical norte-americano, para
inspirar uma revolução ou ao menos uma mudança radical nas dinâmicas
sociais. Isso significa que até chegar na abordagem direta de proteção do
meio ambiente ele passa por diversas outras considerações morais e
simbólicas, como reflexões sobre a condição humana e de gênero,
sistemas de opressão e assim por diante. Carol Adams foi abraçada pelo
ecofeminismo após publicar As políticas sexuais da carne (de 1990)
mesmo sem fazer quase nenhuma reflexão sobre meio ambiente nesta
obra. Portanto, trata-se de uma articulação teórica que se ocupa de
assuntos que transcendem e muitas vezes não incluem a ideia de
ecologia.

Figura 9: Quantidade de textos que referenciam os assuntos


Humanidade, Animalidade e Meio Ambiente; as Discussões de Gênero,
Ética do Cuidado e Ecofeminismo por ano.
O fato de o ecofeminismo provir de uma articulação filosófica tem
certas implicações sobre a interpretação da Figura 9. Como foi visto no
capítulo 3, ele está diretamente relacionado, além das questões
ambientais, à desestabilização da ideia de humanidade, à reflexão sobre
a animalidade e à ética do cuidado. A relação entre ecofeminismo e a
discussão de animalidade varia de acordo com o tipo de perspectiva
abordada (animalista ou não); mas a questão da ética do cuidado e da
humanidade são temáticas constantes. Praticamente em todos os anos,
com exceção de 2004, as marcações ecofeminismo e humanidade
aparecem; com relação à ética do cuidado, o ecofeminismo é discutido
em seis anos em que ela não é referenciada (1993, 1996, 1997, 2003,
2004, 2013); já a animalidade, não é relacionada em sete ocasiões
(1992, 1993, 2003, 2004, 2007, 2010, 2011). Estes dados mostram que o
pouco ecofeminismo que existe nas revistas está desarticulado em
relação às suas ferramentas. Ao se cruzar os dados, nota-se que nenhum
texto marcado como ecofeminismo nas revistas também foi referenciado
como ética do cuidado; no caso do assunto animais só houve uma
equivalência (Figura 10). Estes dados ressaltam ainda mais a ausência
do ecofeminismo no panorama brasileiro. Trata-se de uma perspectiva
pouco mencionada e bastante desarticulada, principalmente no tocante à
questão animal. Pode-se argumentar que a não coordenação da
discussão de gênero com suas principais temáticas em muitas ocasiões
provém de uma originalidade peculiar ao ecofeminismo brasileiro. O
ecofeminismo animalista é ainda uma realidade praticamente inexistente
nos trabalhos originais de duas das principais revistas acadêmicas
brasileiras, apesar de ser o principal foco de reflexões sobre animais
dentro feminismo, internacionalmente.

Figura 10: Quantidade de textos que referenciam Ecofeminismo


relacionados a assuntos e discussões de gênero que são fundamentais
para o Ecofeminismo internacional.

A ideia de humanidade é debatida nas revistas majoritariamente sob


a ótica da discussão racial (Figura 11). Faz sentido, uma vez que o
racismo é uma forma de desumanização.
Exatamente porque nos acreditamos um modelo de democracia racial, e porque
fundamos nossa identidade nacional (entre outros elementos) num ideal de
mestiçagem, nem nos aceitamos racistas nem muito menos imaginamos que os
comportamentos discriminatórios possam conter e/ou exercer a intolerância.
Intolerância tomada aqui na sua acepção mais forte em que a representação do outro
o destitui do sentido de semelhante, do sentido de humanidade compartilhada que
constitui um território comum para a relação social entre um ego qualquer e um alter
que lhe seja socialmente significativo. Intolerância, nesse sentido, é parceira, ou
quando menos ante- sala, da violência (GUIMARÃES, 2001, p. 262).
Ao se levar em conta que a discussão racial é tão relevante no país,
é natural que o questionamento da ideia de humanidade seja mais
presente sob tal perspectiva. Esta conexão influencia também a ideia de
animalidade, que geralmente aparece com uma carga muito negativa. Ela
é usada pela sociedade hegemônica para degradar os indivíduos e
perpetuar a opressão racial. O especismo é implícito neste tipo de
ofensa. Só porque ele é tão aceito e naturalizado (animais são
automaticamente vistos como aberrantes e inferiores), a conexão entre
as duas discriminações se mostra ser bastante profunda e até
automática.
Barbosa confirmando os resultados de outros pesquisadores que observaram e
entrevistaram professores no Rio de Janeiro e São Paulo, observa que a escola
simplesmente não oferece nenhum elemento que ajude na formação da identidade
racial e alem disso reforça os estereótipos negativos que atrapalham o processo de
socialização. Durante sua pesquisa em uma sala de aula em Campinas (SP), Martins
de Oliveira observou que outros estudantes chamavam uma garota negra de macaca,
feia, preta, escuridão e fedorenta. (REICHMANN, 1995, p.504).

Figura 11: Quantidade de textos que referenciam Discussões de Gênero


relacionadas aos assuntos Humanidade e Animalidade.
A animalidade nas questões raciais, portanto, é algo a ser
combatido, principalmente no movimento de mulheres. Não é
surpreendente, portanto, que nas revistas em questão, em um contexto
dominado pela militância acadêmica e pela discussão de raça, a
problematização da animalidade seja incipiente. O movimento negro no
país lutou longamente por uma maior inclusão da mulher negra dentro da
categoria humano e, por outro lado, o ecofeminismo animalista, principal
alternativa para se pensar em uma moralidade feminista interespécies,
chegou ao país sob a imagem de feministas brancas, católicas, da elite
do primeiro mundo, sem uma teoria que verse mais profundamente sobre
raça ou colonialidade. O feminismo racial de terceiro mundo tem muito
mais a perder ou a arriscar ao interceder pelos animais que as feministas
brancas estadunidenses ou européias. Os números indicam que a falta
de expressão da causa animal nos movimentos de mulheres negras é um
barreira relevante para se expandir esta reflexão. Por outro lado, as
leituras mostram que o especismo é uma das principais armas de
perpetuação do racismo e do sexismo e que, mesmo que implicitamente,
é um aspecto importante desta reflexão no Brasil (SOUZA, 2006;
FERREIRA e HEMLIN, 2010; REICHMMAN, 1995, OLIVEIRA, 1995).

Conclusão
O universo teórico do feminismo está diretamente ligado a suas
bases na militância como ao seu impacto sobre as realidades futuras das
vivências de gênero. Ele não segue um ideal de pureza acadêmica e
questiona os princípios que regem a academia. Nesta dinâmica, a
perspectiva de raça é relevante, pois ela serve para legitimar discussões
e isto é uma realidade recente. Até o início dos anos noventa, raça
ocupava apenas uma posição marginal no feminismo brasileiro. O fato de
serem duas revistas estruturadas em universidades importantes do país
(UFSC sedia a REF e Unicamp, a Pagu) só evidencia o alcance do
movimento e das lutas feministas, em especial das mulheres negras,
como conquistas históricas e acadêmicas no país. Por outro lado, a
questão animal aparece em uma posição marginal, de pouca
representatividade e diálogo nestas publicações, embasada pela teoria
de feministas brancas, rejeitada e acusada de essencialismo no Brasil
(CARMO, 2013).
Do ponto de vista teórico, a causa animal não exclui nenhuma outra,
mas a falta de representatividade, comunicação, assim como afinidade
com as discussões mais importantes, exclui os animais da consideração
acadêmica por círculos relevantes do feminismo brasileiro. Obviamente, a
REF e a PAGU não são a amostra de todo feminismo nacional, mas
apenas de foros acadêmicos importantes. Se o ecofeminismo pretende
se popularizar no contexto brasileiro, ele deve obrigatoriamente ocupar
estes espaços e outros congêneres (investigações científicas, palestras,
aulas, grupos de estudos, dentre outras atividades de ensino, pesquisa e
extensão das universidades), através de uma maior associação à
militância e questões raciais, da forma como se apresentam no Brasil e
na América Latina.

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CAPÍTULO 7

Um projeto ecofeminista para a complexidade


da vida
Janyne Sattler
45
Take your time

Minhas avós e meus avôs eram todos agricultores. Talvez nem todos
o fossem de coração, mas o eram também por força das circunstâncias.
O que sobra, afinal, para os colonos colonizados pela descentralização
do seu mundo? Eu nunca os soube de outro modo senão pelo modo da
roça. Como se minha avó já tivesse nascido com o cheiro da terra e do
leite.
E, no entanto, não fora sempre assim. Como depois eu soube,
houve, em pelo menos um par de avós, um elemento de urbanidade que
se perdeu naquela aparência de um saber contínuo sobre as coisas do
campo, mas um saber – agora eu sei – duplamente extorquido:
construído ao longo de décadas sobre a terra indígena e à mercê da
cultura monopolista do celeiro brasileiro. A mata era empecilho para a
agricultura a céu aberto; a caça não resolvia apenas a fome, mas
também o desejo de controle sobre tudo o que pudesse soar, andar e
viver como praga; dos tatus às saracuras, que jamais gerariam renda, e
destoariam para sempre da domesticidade, da submissão e do máximo
46
aproveitamento dos animais para o mercado; os indígenas deveriam
ser acotovelados às periferias deste mundo rural e sua nomeação
generalizada como bugres legitimava sua pecha de vagabundagem e
prostituição.
Deste modo, perdeu-se o saber dos povos das florestas no saber
das agriculturas engolidas pela engrenagem capitalista. Com o tempo,
nem mesmo a agricultura familiar e de subsistência resistiu ao fumo e ao
seu concomitante abuso de agrotóxicos, às sementes de alto rendimento
e à criação, em ritmo frenético e absolutamente antinatural, de carne de
primeira qualidade para exportação. A ponto de não se plantar mais a
própria mandioca e o próprio feijão. Sobreviver também tinha se tornado
uma questão de mercado e, por isso, o saber da roça – que, para começo
de conversa, nunca tinha sido o saber da floresta – se imiscuiu no ritmo
da eficiência a curto prazo.
Algum resquício do saber da terra persistiu, no entanto, no relato das
experiências e das virtudes das avós – mais do que naquele dos avôs. É
um relato subversivo, cuja diferença me parece residir na resistência
embrionária, mas intrínseca, da vivência de um outro tempo e de um
outro ritmo, inimigo da pressa e do rendimento. Posição subversiva que
tem a ver também com o seu (quase sempre único) lugar de resistência
no seio de um sistema patriarcal. Porque se é verdade que a força laboral
empenhada no campo não faz distinções profundamente marcadas entre
homens e mulheres, também é verdade que às mulheres ainda se atribui
(concomitantemente) aquelas tarefas tipicamente femininas de nossa
cultura e que são imprescindíveis à reprodução da força de trabalho, mas
não por isso menos opressiva e violentamente vilipendiadas; na solidão
da roça, contudo, os saberes da horta, do herbário, da cozinha, da
gestação e da sororidade geograficamente improvável assumem
contornos insurretos: tempo, paciência, espera, leniência, cooperação,
memória. Saberes que gestam um poder – ainda que localizado e parcial
– sobre os seus corpos assim como sobre os dos outros.
Saberes que podem ter sido detidos em sua memória, mas de cujos
resquícios eu gostaria de me apossar para o que não passa, por ora, de
um esboço em direção a um projeto moral e político que possa vir a ser
qualificado ao mesmo tempo como anticapitalista, como antipatriarcal,
feminista e agroecológico – ou permacultural – e, talvez, num horizonte
mais longínquo, como vegetariano. Seu delineamento requer, porém, em
primeiro lugar, o traçado do pano de fundo contra o qual se inscreve a
sua crítica – tal como se segue.

As políticas de eliminação
As virtudes do tempo, da paciência, da espera, da leniência, da
cooperação e da memória caracterizam os sistemas agroecológicos ou
as permaculturas que dependem dos saberes heterogêneos para a
manutenção mesma da diversidade. Esta postura política diante dos
sistemas dominantes de cultivo e de saber constitui aquilo que Vandana
Shiva chama de insurreição do saber subjugado (SHIVA, 2003). Porque
não se trata, na verdade, da instauração de uma novidade, mas do
resgate de visões plurais de mundo aplainadas pela homogeneização da
lógica monocultural.
É Vandana Shiva quem nomeia os processos de uniformização do
saber a partir dos processos de uniformização da agricultura e da
silvicultura de monoculturas da mente (SHIVA, 2003). Sua posição teórica
reforça os aspectos políticos de uma área considerada filosófica por
excelência e, no que se segue, eu gostaria de mencionar os vínculos
existentes entre a tradição epistemológica ocidental e suas consequentes
47
políticas de eliminação.
Evidentemente, o critério de tais políticas é sempre o resguardo do
controle e do poder em vista da concentração e da maximização do
capital financeiro. Se é verdade, como argumenta Silvia Federici em
Calibã e a Bruxa, que “o capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu
as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal” (FEDERICI,
2017, p. 44) – uma luta social por igualdade também a nível de gênero –
e que ele é imediatamente anterior, portanto, às excursões europeias
colonizadoras, então a compreensão da realidade bioimperialista vivida
por nós hoje talvez encontre na linguagem, no discurso e nas bases
epistemológicas compartilhadas pelo medievo e pela contemporaneidade,
a explicação para aquilo que passa como justificação para uma
colonização que é agora também mental. É neste sentido que a
Revolução Verde é o nome fantasia que exacerba a incursão
centralizadora (de poder econômico e político, ao mesmo tempo) da
indústria agrícola, da indústria florestal e da indústria cultural – que pode
tomar a forma do argumento de autoridade científico, da publicidade
insidiosa e unilateral ou da massificação do entretenimento.
Neste sentido, a lógica monocultural é uma lógica maniqueísta que
emparelha sob denominações aparentemente positivas e aparentemente
negativas as velhas dicotomias filosóficas que são patriarcais e
discriminatórias, embora carreguem em seu bojo uma pretensão de
isenção política, porque naturalizadas, e de imparcialidade moral, porque
os seus fins são supostamente humanitários; no caso da Revolução
Verde, quem desejaria contrariar o argumento da segurança alimentar? É
essencial para a colonização mental aquilo que Shiva (2003) chama de
distorção cultural, que não passa de manipulação linguística, quando
opõe as Variedades de Alto Rendimento ou as sementes avançadas ou
de elite, “criadas por especialistas modernos em centros internacionais de
pesquisa agrícola ou por grandes empresas transnacionais de sementes”
(SHIVA, 2003, p. 67) à sementes primitivas ou à sistemas autóctones ou
48
tradicionais.
Ora, tais pares de opostos estão firmemente assentados sobre a
construção teórico-conceitual ocidental – da Modernidade, sobretudo,
mas não apenas – que privilegia uma determinada compreensão da
racionalidade humana cuja maior conquista é o domínio sobre o indômito,
encarnado aqui pela natureza (caótica, selvagem, insubmissa), pela
mulher, pela emotividade, pelas populações não brancas – e pela lentidão
ineficaz do tempo de cada coisa. Afinal, esta é também uma concepção
evolutiva de racionalidade que supõe o seu aperfeiçoamento como
utilização máxima daquelas qualidades vinculadas ao controle. Daí ser
tão fácil associar o progresso ao científico, ao tecnológico, à
industrialização, à mecanização, à globalização – e a um conceito crucial
49
que resta ainda ser melhor perscrutado, o de liberdade.
Como salienta Monique Wittig (num outro contexto e registro de
investigação), a questão conceitual e discursiva é importante porque a
linguagem cria e marca a realidade: “Porque mesmo as categorias
filosóficas abstratas agem sobre o real como social. A linguagem lança
feixes de realidade sobre o corpo social, estampando-o e moldando-o
violentamente” (WITTIG, 2002, p. 391, tradução minha). E os pares
dicotômicos acima mencionados, assim como sua valoração ético-
política, estão longe de ter sido superados e continuam servindo às
políticas de eliminação. Até porque, esta marca da linguagem sobre a
realidade determina a identidade (cultural e narrativamente construída) e
a auto-compreensão daqueles e daquelas que devem permanecer no
lado negativo das oposições, além de continuamente informar e enformar
as categorias mentais daqueles e daquelas que participam
(voluntariamente e sabidamente ou não) dos procedimentos
monoculturais voltados para o mercado e para o rendimento a curto
prazo.
É por isso que me parece equivocada a asserção de Shiva de que
“agora tem aceitação universal a afirmação de que não existem termos
observacionais neutros nem nas mais rigorosas das disciplinas
científicas, como a física. Todos os termos são estabelecidos pela teoria”
(SHIVA, 2003, p. 56). Isso pode ser verdade para uma determinada
parcela do universo teórico científico – devido, inclusive, à influência de
um nome tal como o de Thomas Kuhn no escopo da filosofia da ciência; e
pode ser verdade também que já estejamos razoavelmente de sobreaviso
quanto à não-universalidade do sistema dominante de saber, já que ele “é
apenas a versão globalizada de uma tradição local extremamente
provinciana” (idem, p. 21). No entanto, eu diria que esta é uma aceitação
deveras pontual e extremamente incipiente, sobretudo no espaço
acadêmico (especialmente na filosofia, por impressionante que isso
possa parecer), no espaço mercadológico de produção de conhecimento
que é atravessado por diferentes relações de poder, e no discurso do
senso comum, partilhado e replicado por meio daqueles argumentos
anteriormente mencionados (relativos à autoridade científica, à
publicidade paga pelo poder hegemônico e ao entretenimento de massa).
Se assim não fosse, as alternativas epistemológicas existentes – e eu
penso aqui nas diferentes propostas das epistemologias feministas,
marxistas e nas epistemologias (decoloniais) do Sul – não soariam
assustadoramente como bizarrices culturais e relativistas aos ouvidos dos
teóricos universalistas. Evidentemente, a colonização mental supõe e
depende da adoção inquestionada dos pressupostos e dos valores dos
colonizadores.
Esse é especialmente o caso do currículo filosófico acadêmico. E
minha ênfase sobre este ponto se deve novamente aos motivos
aventados por Wittig e à minha forte suspeita quanto à responsabilização
ético-política a que está sujeita a filosofia relativamente às políticas de
eliminação levadas a cabo pelo sistema capitalista monocultural. Se a
linguagem cria a realidade e se nossa linguagem perpetua
categorizações hierárquicas, é preciso reconhecer a que(m) serve a
uniformidade, a regularidade, a ordem, o progresso, a linearidade, a
universalidade, a imparcialidade, a neutralidade, e até mesmo os
parâmetros estéticos associados a tais conceitos. Estes são os critérios,
que respondem ao mercado, mas que formam também o fundamento
senão todo o edifício epistemológico da tradição filosófica, na filosofia da
ciência tanto quanto na ética e na filosofia política. O que estou querendo
dizer é que a epistemologia (monocultural) da tradição filosófica participa,
e coaduna, com as políticas de eliminação quando sua linguagem molda
a realidade dicotomicamente, valorativamente, hierarquicamente. Mesmo
agora, os pares negativos das oposições iniciadas pela razão versus
natureza continuam, por isso, no limbo ou às margens dos critérios
universalistas.
As políticas de eliminação são, ao mesmo tempo, políticas sexuais,
raciais, classistas, e econômicas, porque a sua medida, aplicada global e
descontextualizadamente – algo que funciona muitas vezes também
como o seu salvo-conduto – é a utilidade, assumida como produtividade,
rendimento e benefício. O quanto as teorias éticas utilitaristas
contribuíram para que a sinonímia entre o bom e o útil vigorasse como
lugar-comum é algo que não posso explorar aqui, mas que me parece
passível de reflexão. Evidentemente, a utilidade é transitiva e o seu
benefício nunca é universal, mas com sua máscara ecumênica ela é
capaz de justificar a maior parte das ações de extermínio – inclusive ao
cooptar a colaboração de certas classes e camadas apenas parcial (e
talvez apenas aparentemente) favorecidas.
Assim, por exemplo, a descriminalização do estupro de mulheres de
classe baixa por homens proletários ou jovens burgueses resolvia o
problema das insurreições urbanas na Idade Média ao desestabilizar “a
solidariedade de classe que se havia alcançado na luta antifeudal”
(FEDERICI, 2017, p. 104), assim como a institucionalização estatal da
prostituição “foi vista como um remédio útil contra a turbulência da
juventude proletária, que podia desfrutar na Grande Maison – como era
chamado o bordel estatal na França – de um privilégio antes reservado
aos homens mais velhos” (idem, p. 105), o que também resolvia em parte
o problema da homossexualidade, cuja consequência informada seria o
aumento do despovoamento depois da Peste Negra. A mesma
concepção seletiva servia à proteção (inclusive legal) de estupradores
brancos e de mulheres brancas de classe alta nos Estados Unidos pré e
pós-escravidão ao costurar numa mesma razão o mito do estuprador
negro e a disponibilidade sexual da mulher negra, “ambos elaborados
para servir de desculpa e para facilitar a exploração continuada de
homens negros e de mulheres negras” (LERNER apud DAVIS 2016, p.
179). Exploração cujos efeitos, no entanto, reverberaram também sobre
mulheres brancas, sobretudo de classe baixa, e sobre mulheres de outras
etnias, nas continuadas incursões colonizadoras que apenas replicaram,
e replicam ainda contemporaneamente, a justificativa da inexorabilidade
do imperialismo construída sempre de novo sobre oposições
hierarquizantes concebidas como políticas econômicas e militares, tal
como aquele dever militar necessário incutido nos soldados americanos
durante a Guerra do Vietnã: “encorajar o estupro [de mulheres
vietnamitas] de maneira sistemática, já que se tratava de uma arma de
50
terrorismo de massa extremamente eficaz” (DAVIS 2016, p. 182) . Davis
se pergunta o quanto tais atos podem ter perturbado as atitudes dos
homens “em relação às mulheres como um todo” (ibidem) – e o quão
carregado de significados violentos, eu me pergunto, é o conceito de
eficácia quando vinculado aos termos instrumentais do progresso e da
ordem em nome de figuras conceituais positivas supostamente universais
(o repovoamento da Europa devastada pela peste, a justiça feita aos
estupradores bestiais compulsivos, a democracia das guerras
imperialistas sobre os povos inferiores). Outrossim, a outorga parcial de
poder facilitada pela ideologia da supremacia masculina é altamente
benéfica à estrutura de classe do capitalismo quando ressarce aos
homens da classe trabalhadora o controle sobre os corpos femininos e
quando “encoraja homens que detêm o poder econômico e político a se
tornarem agentes cotidianos da exploração sexual” (DAVIS, 2016, p.
202): “Como lado violento do sexismo, a ameaça de estupro persistirá
enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser
51
uma muleta essencial para o capitalismo” (idem, p. 203).
Essa opressão generalizada toma a forma de uma exploração
multifacetada, de uma expropriação de saberes locais e específicos, ou
bem, de sumária execução – todas elas acontecendo, na maior parte das
vezes, simultaneamente sobre um mesmo corpo feminino. Por um lado,
porque as mulheres são consideradas como politicamente subversivas –
no sentido negativo do termo, naturalmente – e a importância de sua
participação nas lutas camponesas, comunais, revolucionárias e políticas,
do medievo às Revoluções Socialistas contemporâneas, deve ser
imediatamente extinguida e historicamente obliterada. Por outro lado,
porque o processo de acumulação capitalista transforma o “corpo em
uma máquina de trabalho [cujo crescimento exponencial demanda] a
sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho”
(FEDERICI, 2017, p. 119) – in loco europeu ou nas colônias, tanto faz. O
cumprimento com máxima eficácia destes intentos exige algumas
estratégias combinadas que funcionam num espectro variegado de
violências: a privação da educação às mulheres as encerra no círculo
vicioso dos interesses matrimoniais e domésticos que por sua vez as
encerram às únicas oportunidades disponíveis do matrimônio e do
cuidado doméstico; obviamente, este é um vaticínio cujo viés (sobretudo)
52
moderno é classista, já que o foco não é a educação da classe
trabalhadora quando, entre tantos outros, os filósofos do Iluminismo
excelem em argumentos arguciosos para justificar a exclusão das
mulheres da cidadania política, moral e epistêmica – afinal, trata-se aqui
da parodização ad nauseam dos modelos filosóficos polarizados já
mencionados anteriormente, tanto pelos contratualistas quanto por Hegel
e Kant, por exemplo – cuja contorção teórica em prol da exclusividade da
racionalidade masculina em detrimento da coerência de seu própria
53
filosofia é o ponto de análise de Nancy Hirschmann (2008). Aqui, a
subversão política é evitada com o iletramento e a consequente escusa
de que a inferioridade – política, moral e epistêmica – da mulher é
natural, específica de seu sexo, resultando em seu contínuo
confinamento às tarefas privadas da alienação doméstica (lembrando que
à altura dos salões modernos e da rebeldia das liberais letradas que tanto
escandalizavam a Kant e a Rousseau, a maior parte das bruxas já havia
sido queimada; ainda assim, e talvez por isso mesmo, Olympe de
Gouges vem a perder a sua cabeça em plena Luz da Revolução). No
entanto, isso ainda não resolve precisamente a questão do poder social e
da crescente independência feminina sincrônica aos movimentos
heréticos, aos movimentos populares urbanos, camponeses, comunais,
antifeudais. A conquista de relativa autonomia social e econômica
oportunizada pela urbanização (massivamente feminina) que se segue à
monetização ou comercialização da vida medieval (FEDERICI, 2017) –
que havia resultado num primeiro momento naquilo que hoje
nomearíamos como feminização da pobreza, mas posteriormente na
ampla ocupação de trabalhos antes e depois considerados como
54
masculinos – e pela “elevada posição social das mulheres” (idem, p. 83)
nos movimentos heréticos cujos ideais de igualdade, cooperação e
partilha se inscrevem ao mesmo tempo contra a dominação ideológica e
econômica da Igreja e do Feudo, requer uma reação e uma resposta
típicas do capitalismo. Além de desarticular a solidariedade de classe
com as políticas de exploração sexual e de com isso estabelecer novos
padrões de misoginia e de controle masculino, trata-se de obstar e
asfixiar todo e qualquer vislumbre de poder que as mulheres possam
demonstrar individual ou coletivamente. Aqui, a subversão política é
evitada com a desapropriação do seu saber, esteja ele relacionado à sua
profissão, à sua lida com a terra ou à sua função reprodutiva, um
conhecimento acumulado a respeito do próprio corpo vinculado ao
conhecimento básico de plantas medicinais, abortivas e contraceptivas, e
aos ciclos da natureza. A crise de trabalho e a crise populacional da
Idade Média, falsamente aliadas a motivos de virtude religiosa, são os
pretextos perfeitos para a criminalização do controle reprodutivo e para a
demonização do saber a ele conjugado – sobretudo porque associado às
seitas heréticas protagonizadas principalmente por mulheres em suas
próprias comunidades ou em comunidades igualitariamente
compartilhadas com os homens. Se a escassez de mão-de-obra
intensificada pela Peste Negra melhora a vida de uma parte da classe
trabalhadora durante um curto período de tempo ao valorizar e onerar o
seu trabalho, ela incide imediatamente sobre a vida das mulheres de
maneira especialmente nefasta, já que a resposta para a derrocada do
modelo feudal que a acompanha é a resposta da acumulação primitiva de
capital, que exige a reprodução maximizada da força de trabalho. Daí a
utilidade sempre renovada da distinção conceitual entre o público e o
privado que vigora inquestionadamente no universo das teorias
filosóficas, políticas e sociais, e que se desdobra em público versus
55
doméstico para desespero das mulheres aí enclausuradas.
Evidentemente, a domesticação dos corpos das mulheres e o controle
sobre o seu saber (e, portanto, sobre o seu incipiente poder) é
compulsório: aqui, qualquer pretensão de subversão política é evitada
com sua sumária eliminação. Se feudo e igreja antes lutavam contra os
movimentos heréticos na tentativa de restabelecer a ordem da
dependência e da servidão, a partir de agora trata-se sobretudo de caça
às bruxas: “(...) a figura do herege se tornou, cada vez mais, a de uma
mulher, de forma que, no início do século XV, a bruxa se transformou no
principal alvo da perseguição aos hereges” (FEDERICI, 2017, p. 86).
A nova condição de subordinação das mulheres sob a égide da caça
às bruxas não é exclusiva da Europa, sendo replicada nas colônias
sempre que necessário, também como mecanismo de controle das
populações colonizadoras e das populações não brancas – à revelia das
56
especificidades de suas culturas aborígenes. Aqui, a fusão da
inutilidade com a malignidade é o elemento que permite fazer da caça às
57
bruxas uma empreitada bendita em nome das gentes de bem.
Malignidade, inutilidade, insubordinação, subversão e insurreição passam
então a significar a mesma coisa: “O que não é útil é maligno”, segundo
Cotton Mather, o perseguidor das bruxas de Salem (SHIVA, 2003, p. 42),
e a atribuição deste valor ajusta-se maleavelmente às pessoas, aos
animais não humanos e à diversidade biológica como um todo. Mais uma
vez, a continuidade da opressão sobre as mulheres, como “uma muleta
essencial para o capitalismo”, segundo Davis (2017, p. 203), se vale da
afinidade e da identificação conceitual entre o feminino e a natureza,
entre o feminino e o irracional, entre o feminino e o indócil, para a
continuidade da exploração da terra, da expropriação de bens e saberes
e da erradicação das inutilidades impeditivas à estabilidade econômica
das classes privilegiadas. Bruxas, povos indígenas e negros, florestas e
ervas-daninhas passam então pelo mesmo filtro do significado da
inconveniência – um significado homogeneizado que permite a unificação
do controle para as políticas de eliminação e de extinção.
Evidentemente, a centralização do domínio sobre os corpos
humanos, sobre os corpos animais e sobre a terra encontra um tenaz
obstáculo nas vivências e nas concepções democráticas e comunais,
cujo tempo não é regido pela maximização da produtividade. Neste
sentido, os argumentos para o processo de privatização da terra, que em
sua origem coincide com as incursões coloniais, salientam os aspectos
da eficiência agrícola e da modernização da agricultura em vista da
“expansão do abastecimento de alimentos” (FEDERICI, 2017, p. 135) – a
lentidão e a partilha das terras comunais vistas, neste caso, como
antípodas da utilidade; daí a facilidade da alcunha de vagabundagem,
preguiça, atraso e primitivismo dada aos camponeses medievais
58
trabalhando em campos abertos coletivos. Mas, se a falsidade da
abundância alimentar sugerida pelos defensores dos cercamentos de
terra é escancaradamente provada pela fome reiterada e pelo
empobrecimento massivo dos camponeses, tanto de ontem como de
hoje, a exacerbação neoliberal da privatização e da monocultura, sempre
ainda vinculada ao pressuposto do avanço tecnológico altamente
produtivo e eficiente, estabelece e mantém um elemento essencial à
persistência do capitalismo ao minar toda e qualquer forma de
autossuficiência política, econômica e social. A cooperação entre
camponeses e camponesas e entre estas e as terras comunais ou as
florestas e pradarias resulta não apenas em subsistência alimentar e
sustentabilidade ecológica como em solidariedade e sociabilidade
campesina – o que constitui por si só insurreição e subversão à ordem
privatista, individualista e desagregadora do capitalismo. Mesmo aqui, no
entanto, o prejuízo econômico e social da exploração mercadológica da
terra incide novamente sobre as mulheres mais do que sobre os homens:
A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres,
que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais
dependentes das terras comunais para a subsistência, a autonomia e a sociabilidade.
(...) elas foram o centro da vida social das mulheres, o lugar onde se reuniam,
trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista próprio –
autônomo da perspectiva masculina – sobre os acontecimentos da comunidade.
(FEDERICI, 2017, p. 138).

Ora, esta é uma característica específica do patriarcado capitalista


em sua réplica contemporânea globalizada do modelo medieval que
“continua devastando a vida em todos os cantos do planeta” (idem, p.
119), ao apartar os trabalhadores e trabalhadoras de qualquer
possibilidade de autossuficiência e independência financeira – criando
assim uma dupla dependência do mercado em termos de trabalho e em
termos de subsistência, – ao expropriá-los, e sobretudo às mulheres, do
saber coletivo cumulativo proporcionado pelo convívio comum com a
diversidade da terra e da floresta, – mas também da cidade, se
pensarmos nas diferentes ocupações usurpadas das mulheres quando de
seu insulamento ao ambiente doméstico que é social, política e
economicamente hierarquizado em termos de gênero e de raça, a partir
de uma lógica colonialista cujo controle é corporal, mas também mental.
Neste sentido, a exacerbação (neoliberal) da acumulação capitalista é o
sucesso das monoculturas agrícolas infestadas de agrotóxicos cujas
justificativas plagiam os motivos das crises (alimentares, populacionais)
aventadas em seu início; mas é também o sucesso das monoculturas da
mente que reproduzem em pequena e média escala a dependência do
mercado, o empobrecimento epistêmico, a hierarquização de gênero,
classe e raça, assim como a ojeriza ao inútil, ao ineficaz, ao maligno, ao
improdutivo, à erva-daninha, à floresta, à sazonalidade, à lentidão, à vida
democrática e comunista.
Combinam-se, assim, as políticas sexuais, raciais e classistas de
eliminação às políticas monoculturais de extinção agrícola e silvicultora
num mesmo vocabulário, num mesmo arcabouço epistemológico cuja
passagem das monoculturas para a diversidade deve se dar também pela
passagem e abertura aos saberes expressos pela ressignificação da
linguagem e pela compreensão das opressões como advindas, muitas
delas de maneira interdependente, do mesmo ponto central de poder. A
superação das monoculturas requer, por isso, o reconhecimento deste
sistema dominante de saber como bioimperialista para um vasto sentido
de bio – e como política e epistemicamente disciplinar:
O saber ocidental moderno é um sistema cultural particular com uma relação
particular com o poder. No entanto, tem sido apresentado como algo que está acima
da cultura e da política. Sua relação com o projeto de desenvolvimento econômico é
invisível e, por isso, tornou-se parte de um processo de legitimação mais efetivo para
a homogeneização do mundo e da erosão de sua riqueza ecológica e cultural. A
tirania e os privilégios hierárquicos que fazem parte do impulso de desenvolvimento
também fazem parte do saber globalizante no qual o paradigma de desenvolvimento
está enraizado e do qual deriva sua argumentação lógica e sua legitimação. O poder
com o qual o sistema dominante subjugou todos os outros torna-o exclusivista e
antidemocrático. (SHIVA, 2003, p. 81).
Até aqui, eu tentei tornar visíveis algumas intricadas relações deste
projeto de desenvolvimento econômico e de suas múltiplas violências
sobre as mulheres em seu vínculo com a terra, chamando a atenção para
o modo como a linguagem cria a realidade. No que se segue, eu gostaria
de esboçar um projeto alternativo que talvez possa vir a ser nomeado
como ecofeminista a partir de um registro dilatado do termo, no intuito de
elaborar determinadas memórias do saber localizado das mulheres para
além de uma mística da natureza.

A complexidade da vida
A insurreição do saber longamente subjugado traz consigo a
necessidade de uma compreensão igualmente furtada à vista pelo
predomínio da uniformidade e da homogeneização epistêmica e cultural:
o reconhecimento da complexidade.
Se o critério mercadológico da utilidade é unívoco em seu
regramento e em sua conceituação sobre o mundo, o modo como o saber
dominante investe o seu poder é, como vimos, multifacetado e
complexamente estrutural. Isso me parece significar e exigir uma
resposta que seja igualmente abrangente e ramificada, compreendida a
partir de uma rede de conceitos interdependentes, dialógicos e não
hierárquicos. Contra a univocidade do sistema dominante de saber, isso
me parece também significar e exigir o estabelecimento da complexidade
como critério de reflexão e como horizonte moral e político em vista da
democratização do saber e da salvaguarda da diversidade ecológica
tanto quanto epistêmica. O entendimento da complexidade requer, por
isso, uma atitude de abertura, de flexibilidade e de humildade que nos
permita ouvi-la e reconhecê-la como característica da vida – para um
vasto sentido de vida. Nesta senda, qualquer projeto alternativo às
monoculturas mentais deve ser ele mesmo dinâmico, democrático,
compreensivo, fluido, não-autoritário e não-dogmático.
Isso não quer dizer, entretanto, que qualquer projeto seja válido – se
não respeitar estas qualidades. Assim, o critério de reflexão teórica tanto
quanto o horizonte de enfrentamento prático devem poder ser
construídos cooperativamente, à escuta da diversidade biológica.
Para Vandana Shiva, a subversão das monoculturas agrícolas e
mentais em vista da democratização do saber e da liberação humana
passa por uma “redefinição do saber local e diversificado” (SHIVA, 2003,
p. 81) com a valorização da concretude em oposição à abstração do
(supostamente) universal e global: “Essa passagem da globalização para
o saber local é importante para o projeto de liberdade humana porque
libera o saber da dependência de formas estabelecidas de pensamento,
tornando-o simultaneamente mais autônomo e mais autêntico” (ibidem). A
sobrevivência da natureza e a sobrevivência humana dependem dessa
mudança de paradigma e é por isso que Shiva fala de um imperativo
ecológico e político de diversidade em prol dos “direitos de todas as
espécies” (idem, p. 19) e da descentralização do controle sobre a terra –
e sobre nossos modos de vida.
Contudo, um saber local não está livre dos marcadores de opressão,
de autoritarismo e de dogmatismo pelo simples fato de ser localizado, e
deveríamos estar atentos para um compromisso que não legitime
tradições, memórias e práticas por elas mesmas em detrimento de
ninguém. Um compromisso balizado, por isso, pelo respeito à diversidade
e à complexidade da vida e por um ideário não excludente – uma questão
de saber a cada momento, à maneira freiriana, se nosso projeto é
inclusivo ou excludente.
Aqui, eu gostaria de propor algumas qualificações que poderiam nos
ajudar a levar tal programa adiante – qualificações ainda não exaustivas,
cujas definições são também ainda provisórias e passíveis de emenda ou
reforma ou substituição e que almejam uma harmonização conceitual
permitida por um tipo diverso de teorização e de reflexão moral alheio às
tendências normativas da ética contemporânea. E é por isso que eu
antes falava de uma rede de conceitos interdependentes, dialógicos e
não hierárquicos, assim como poderíamos falar de uma gramática
59
filosófica. Evidentemente, esta rede conceitual deve ser devidamente
contextualizada em termos geográficos, biológicos e culturais no que diz
respeito à sua aplicabilidade e conveniência – contextualização esta que
nos ajuda novamente a excluir de nosso horizonte político as
derrapagens dogmáticas, categóricas e centralizadoras típicas do ensejo
de controle e domínio.
Na contramão de sua vigência globalizada, este deve ser um projeto
anticapitalista – e, por isso, obviamente, anti-neo-liberal. Por todos os
motivos acima expostos, qualquer tentativa de conciliação está fadada ao
fracasso, já que a orientação para a acumulação e para o mercado
exigem e pressupõem a exploração de mão-de-obra humana e a
exploração dos animais não humanos e da terra em prol da utilidade, da
eficácia e do lucro. Neste sentido, o consumo consciente é uma
contradição em termos, assim como a concepção de um capitalismo
social. Ou, nas palavras de Federici:
Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um
retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a
contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a
degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo
em qualquer época. (FEDERICI 2017, p. 27).

Ao invés disso, um projeto alternativo que respeite a diversidade e a


complexidade da vida deve ser qualificado como comunista para um
sentido recuperado e reinterpretado de comunismo, em prol de uma
“ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa
às hierarquias e ao autoritarismo” (idem, p. 45), em prol de uma vivência
comunal do trabalho, de um saber coletivamente construído e mantido
sobre a terra e sobre sua produção. Um passo importante (embora ainda
pequeno) nesta direção é a reforma agrária, assim como a resistência ao
imperialismo industrial, biotecnológico e mesmo teórico e cultural do
assim chamado primeiro mundo sobre os assim chamados países em
desenvolvimento – um outro nome para a colonização mental e a
colonização de fato.
Neste sentido, é imperativo que se questione o significado e o
sentido deste desenvolvimento quando acoplado às noções dominantes
de racionalidade, instrumentalidade, controle e progresso – e mesmo de
sustentabilidade, termo que serve amiúde como moeda de troca para a
continuidade do sistema capitalista, com o que um capitalismo
sustentável é novamente uma contradição em termos.
Ao invés disso, um projeto efetivamente sustentável não pode ser
monocultural, e a forte propaganda do agronegócio – com suas fatigadas
escusas de segurança e abundância alimentar – deve ser impugnada
com um retorno à agroecologia. Concepções agroecológicas –
agroflorestais e permaculturais – dependem da compreensão da
diversidade e da complexidade da vida e as mantêm, porque são
60
sistemas complexos e diversos por definição. São também concepções
prioritariamente comunais de agricultura, tanto pela mútua cooperação e
coletivização do trabalho – o que concorda, portanto, com o aspecto
anticapitalista e comunitário acima mencionado – quanto pela comunhão
e colaboração estabelecida com a própria natureza – sua sazonalidade,
sua dinamicidade, sua interdependência ecológica. Tudo isso requer,
obviamente, a recuperação de saberes localizados e da memória
contextualizada da produção de alimentos, mas também de sua estreita
relação com a fauna e a flora locais. O conceito de sustentabilidade não
pode, neste caso, ser antropocêntrico. Qualquer projeto efetivamente
agroecológico deve ser sustentável para a integralidade da
biodiversidade. Isso requer também, entretanto, a renúncia ao controle
absoluto sobre a terra e sobre a vida, e a aceitação do tempo de cada
coisa: um aprendizado que ao fim e ao cabo dispensa o uso de
agrotóxicos, de insumos externos ao sistema agroflorestal, dos critérios
quantitativos reguladores da produção, dos critérios estéticos reguladores
do valor de mercado, e que é biodiverso tanto em termos da manutenção
61
da vida agrícola, florestal e selvagem quanto em termos alimentares.
O sistema cooperativo da agroecologia é anticapitalista também
porque (idealmente) autossuficiente sob vários aspectos – sobretudo se
construído coletivamente junto a pequenas comunidades: desde o
aspecto de sua produção descentralizada e não regulada pela demanda
mercadológica – livre, portanto, das pressões unilaterais e monológicas
de consumo – até o aspecto de sua salubridade. Afinal, o ciclo de
dependências criado pela monocultura abundante em agrotóxicos, pobre
em alimentação nutritiva, e mantenedora e multiplicadora, por isso
mesmo, do estado insalubre e doente (sobretudo, mas não apenas) das
populações do hemisfério Sul, e que beneficia a indústria farmacêutica
detentora das patentes dos seus próprios recursos naturais, é quebrado
quando o saber e a memória salutar e curativa da agricultura biodiversa e
florestal é restituída de modo autogovernado aos seus sujeitos
62
produtores.
O saber e a memória da agrofloresta é também o saber e a memória
das mulheres. E é principalmente de sua autossuficiência e
independência que se trata – como vimos – quando o controle e o
monopólio capitalista se apossam da terra e de seus alimentos. A
agroecologia e a Reforma Agrária são remédios necessários aos abusos
e opressões sexistas do sistema dominante de saber, e devolvem
parcialmente às mulheres assim como aos povos diversamente
colonizados (ainda hoje globalmente) uma parte de sua independência
social e epistêmica.
Mas é também por isso que um projeto econômico e político
alternativo que respeite a diversidade e a complexidade da vida humana
e natural deve ser qualificado como feminista. A vida comunal, a
experiência comunitária, a vivência integrada à terra e aos seus saberes
particulares não é o bastante se os resíduos do patriarcado persistirem
com suas marcas de violência, simbólica ou de fato. Se a sistemática
opressão das mulheres é necessária à continuidade mesma do
capitalismo, e se o capitalismo encarna e exige a exacerbação do
domínio e do controle masculino por meio de suas políticas de
eliminação, sua derrocada não significa pura e simplesmente a cessação
da dominação masculina. Ademais, se é verdade que às mulheres do
medievo se permitia algum espaço de liberdade e autonomia em seu
saber e até mesmo em sua luta contra os senhores feudais, ou certas
bolhas geograficamente específicas de independência e poder social,
também é verdade que a dicotomização e inferiorização do feminino é
quase tão velha quanto a existência da humanidade. Assim, comunismo
e agroecologia não bastam se as tarefas do cuidado (com a prole, com os
idosos, com os doentes, com as sementes, com o alimento), do
doméstico, da reprodução e da educação das crianças, persistirem como
tarefas femininas quando deveriam ser responsabilidades comunais
compartilhadas, e se o espaço do poder social, político e econômico não
for um espaço igualitário e aberto às experiências diversamente
generificadas – o que não precisa justamente significar indistinção de
gênero; o que não deve também pretender ou aparentar universalidade e
neutralidade diante da ciência de sua impossibilidade. Um projeto
feminista não é, por isso, um projeto ‘feminino’ e não é um projeto de e
para mulheres, mas é um projeto de construção e respeito mútuo em
direção a uma sociedade de cooperação igualitária – também porque
necessita repensar a sua relação com outros marcadores sociais como
raça, classe, e localização geográfica, e porque os sujeitos do feminismo
são também gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Finalmente, um
projeto feminista no sentido aqui proposto em seu diálogo com os
imperativos ecológico, político e econômico não é um projeto de
empoderamento cujo assentimento é dado acriticamente à lógica
capitalista, liberal e masculinizante das hierarquias classistas, racistas e
colonialistas. Ao invés disso, trata-se de um projeto de qualificação
feminista em vista da diversidade e da complexidade da vida humana que
possa prescindir e, em última instância recusar, ordenações
supremacistas e autoritárias. Daí a importância do reconhecimento da
complexidade como critério moral e político em oposição a quaisquer
critérios centralizadores e classificatórios, porque mesmo as relações
coletivas e cooperativas estabelecidas sobre uma base igualitária não
são (e não podem ser) aplainadas por parâmetros uniformes. A
complexidade como critério me parece estabelecer um horizonte reflexivo
politicamente responsável em relação àquilo mesmo que podemos
compreender como sendo, a cada momento, feminista, a fim de saber se
estamos sendo inclusivas – ou excludentes, e tão somente reproduzindo
ou trocando uma violência por outra.
Os termos aqui pensados para formar uma possível rede de
conceitos interdependentes, dialógicos e não-hierárquicos são, portanto,
aqueles que estabelecem um projeto econômico, político e social
comunista (de início, ao menos anticapitalista), agroecológico e feminista.
Deve-se notar que no escopo do presente texto tais conceitos possuem
definições altamente incipientes e que eles necessitam ser estofados e
aperfeiçoados positivamente – mas também para que se evite quaisquer
mal-entendidos e quaisquer preconcepções inibidoras de sua
compreensão e reflexão. Entretanto, dado o horizonte da complexidade
da vida estabelecido como preceito de cuidado e consideração, ainda
quando tais conceitos estiverem melhor definidos e aprofundados, eles
devem estar abertos a mudanças, emendas e reavaliações, o que
colabora sem dúvida para que o projeto aqui almejado mantenha seu
caráter democrático e antidogmático e diverso – sem cair, no entanto,
num relativismo moral que seja tão pernicioso quanto qualquer
dogmatismo, já que os conceitos de comunismo, agroecologia e
feminismo devem funcionar como balizas reflexivas contra arbitrariedades
e abusos (mesmo aqueles supostamente justificados culturalmente ou
tradicionalmente). Ademais, a salvaguarda contra o autoritarismo, o
dogmatismo e o ensejo de controle é corroborada pela noção de uma
gramática conceitual, no sentido de que os conceitos de comunismo,
agroecologia e feminismo sejam mutuamente corretivos e
autoreguladores (em sua interdependência e diálogo) e, assim, não
hierárquicos. Embora certos contextos e especificidades locais possam
demandar a precedência da aplicação de um sobre o outro, eu gostaria
de sugerir que rede implica entrelaçamento e que um projeto
ecofeminista deve ser ao mesmo tempo agroecológico e comunista –
porque a organicidade do ecofeminismo se insere, em seu sentido e
63
propósito, na luta anticapitalista.
Por fim, a inscrição deste projeto se coloca, evidentemente, contra o
sistema econômico, político e social dominante em sua lógica
monocultural, a favor da biodiversidade e da complexidade estrutural de
nossos ecossistemas. Como ressaltado anteriormente, no entanto, a
vigência da monocultura é também mental e o imperativo ecológico e
político aqui salientado depende igualmente de um imperativo
epistemológico que reconheça e responsabilize o arcabouço teórico-
conceitual da filosofia ocidental (sobretudo, mas não apenas) moderna
por sua colaboração, por seu assentimento, por sua conivência e por seu
silenciamento para com as políticas de eliminação e de extinção levadas
a cabo em nome de um ideário aparentemente universal mas inequívoca
e violentamente excludente, controlador e imediatista. E é por isso que a
resistência às monoculturas passa necessariamente também pela
linguagem e pela maneira como esta cria, reproduz e reapresenta
realidade. Daí a necessidade de se conceber este projeto a partir de uma
revisão conceitual da história da filosofia na direção de uma história
feminista da filosofia e na direção de uma metodologia alternativa à
teorização pretensamente universal mas dicotômica, pretensamente
neutra mas normativa e eminentemente abstrata do academicismo
contemporâneo – e que fuja à mesma ordenação mercadológica a curto
prazo em prol do tempo, da maturação, da memória, da paciência e da
compreensão da complexidade.
Como no tempo das avós, neste mundo de pressa produtiva, a
leniência filosófica pode ser politicamente subversiva.

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CAPÍTULO 8

A Perspectiva dos Funcionamentos:


entroncamentos entre ecofeminismo e
decolonialidade
Maria Clara Dias
Suane Soares
Letícia Gonçalves
Os diversos esforços apresentados por movimentos sociais e
perspectivas teóricas de implementação de um mundo mais justo têm,
efetivamente, colaborado com dois importantes sentidos de busca por
justiça: 1) o desvelamento de estruturas e mecanismos que limitam tal
busca, seja por processos de dominação, exploração ou outras
violências; e, 2) o enfrentamento a tais sistemas, alterando, de maneiras
diversas, suas existências, seus alcances e seus efeitos. Nomear, como
ato de visibilizar como estranhamento modos de existência e produção
social injustos, têm caracterizado os feminismos, como movimentos e
como teorias críticas de justiça. A pretensão de alcance de um ou outro
sentido, citado anteriormente, não significa, porém, a eliminação de
lógicas, por vezes reducionistas, que ao elegerem um foco de
preocupação moral, acabam por desconsiderar e, ainda mais, se opor a
garantia ampliada de acesso à justiça. Este não é propriamente um
problema se considerarmos a possibilidade de entroncamento de
perspectivas. Este texto tem como objetivo, discutir, em linhas gerais, o
ecofeminismo e o feminismo decolonial, nas suas conexões e
divergências, resgatando a potencialidade de ambos de ampliação da
justiça. Considerando as formas de opressão e subordinação que
enfatizam, defenderemos, por fim, a Perspectiva dos Funcionamentos, a
partir de uma concepção moral estendida, desenvolvida a partir de um
ponto de vista decolonial.

Feminismo e Decolonialidade
O termo colonialismo foi designado, a princípio, para nomear um tipo
específico de estratégia de dominação geopolítica, ou seja, situada em
um contexto de exploração geográfica, datada entre os séculos XVI e
XVIII. O cenário de expansão marítima e comercial europeia teve como
objetivo a expropriação de especiarias, produtos tropicais e metais
preciosos. Em associação a este processo houve também a objetificação,
o racismo e o especismo como formas centrais que fundamentaram este
novo modelo geopolítico. Povos originários das Américas, África e Ásia
bem como animais e plantas destes mesmos locais foram tratados de
forma exploratória, escravizados, dizimados e comercializados em prol
dos interesses religiosos, culturais, econômicos e políticos dos europeus.
A lógica foi ampliada no século XIX, com a ênfase na busca de
mercados consumidores para o excedente de capital e rebatizada de
imperialismo ou neocolonialismo. Os dois momentos são marcados,
como mencionado, pela dominação de territórios, dos animais, plantas e
dos povos originários. A possibilidade de dominação e exploração de tais
povos se sustentou, especialmente, em teorias racistas que, de partida,
criaram distinções hierarquizadas entre a população humana, construindo
a ideia de superioridade do branco europeu e inferioridade de povos
africanos, asiáticos e, posteriormente, latinos americanos. A ideia de raça
surge como um eixo fundamental da colonialidade do poder como modo
de classificação social (QUIJANO, 2000) para atribuir diferenciação
prévia, pautada em aspectos biológicos, que será imediatamente lida em
termos hierárquicos. Quijano propõe pensar a modernidade como um
projeto de operacionalização do sistema global de dominação capitalista.
Acrescentaremos à compreensão de colonização, como fenômeno
geopolítico, econômico, religioso, cultural, racial e social, seu caráter
também especista, como será abordado mais à frente.
Como críticas aos estudos sobre colonialidade e eurocentrismo,
autoras terceiro mundistas, questionam as pautas feministas postas pelas
suas vertentes hegemônicas, dotadas de caráter universalista e de
retórica salvacionista. Inserem a noção de gênero também como
produção colonial, defendendo a inseparabilidade da raça, classe e
gênero como complexos sistemas que se cruzam na produção de
opressões (LUGONES, 2003; MOHANTY, 2008; BIDASECA, 2011). O
feminismo decolonial critica matrizes epistemológicas dominantes em
suas limitações estruturais de compreensão da totalidade e sua
pretensão a universalização homogênea do Outro. Estas feministas
extraem dos estudos sobre colonialidade a compreensão do
etnocentrismo ocidental como padrão superior que constrói as demais
culturas e povos como o outro inferior. Este mecanismo, se efetiva,
sobretudo, com a homogeneização de povos com diferentes histórias,
linguagens, memórias e identidades, configurando um genocídio massivo
da população originária e de qualquer diversidade que compõe um povo.
Chandra Mohanty, no texto Bajo los ojos de occidente. Academia
Feminista y discurso coloniales, publicado em 2008, com atualizações às
duas versões anteriores, a de 1988 e a de 1984, toma a colonização,
sobretudo, pela sua concepção discursiva, como modo de produção
homogênea do Outro, na tarefa, pretensamente, descritiva de teorias
hegemônicas. A autora está se referindo, precisamente, ao discurso
feminista eurocêntrico na compreensão da colonialidade e seus efeitos,
negando a leitura que coloca o sistema patriarcal, de modo isolado, como
raiz de todos os problemas. O discurso que constrói as mulheres do
terceiro mundo como não europeias, reifica, pela negação, a própria
posição como universal. Tal discurso universalista e dotado de retórica
salvacionista, manifesto no uso da noção mulher, ou mesmo mulheres,
como categoria de análise, produziu algumas consequências
generalizantes, como alguns dos exemplos citados por Mohanty (2008),
em que tal leitura compreende as mulheres necessariamente como:
vítimas da violência masculina, a partir de uma compreensão binária e
pautada em estereótipos de gênero; como vítimas de modo geral, do
colonialismo, do desenvolvimento econômico; como dependentes
universais. Podemos acrescentar outro exemplo: a leitura generalizada
das mulheres como sem capacidade de agência moral e fala, produzindo,
por consequência, uma leitura de que aqueles sujeitos hegemônicos
deveriam ceder o direito ao exercício da agência moral e fala. Isto porque
o mesmo discurso que se apresenta apenas descritivo de opressões
produz e cristaliza as posições e relações que sugere enfrentar. Tal tese
foi amplamente seguida e, mais notoriamente divulgada no Brasil, por
Judith Butler, com o livro Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade, publicado originalmente em 1990, e traduzido para o
português em 2003.
Ainda que o termo colonização possua distintas concepções, que
apontam para fenômenos diversos, a tônica de Mohanty é no seu efeito
de eliminação ou, de modo mais velado, ocultamento da heterogeneidade
dos sujeitos. Neste sentido, a autora tenta evidenciar que a busca por
implementação de justiça, pautada em demandas homogêneas, que
tomam ‘mulher’ como uma categoria monolítica representativa, se opõe
às mulheres reais, em contextos muito mais complexos
interseccionalmente. Retomando, na proposição de Mohanty (2008) seria
este o aspecto central de compreensão da colonialidade. Quanto à crítica
ao uso da noção mulher como categoria de análise, Mohanty (2008)
explica que:
(...) estoy refiriéndome a la premissa crucial de que todos los membros del género
feminino, independentemente de classe y cultura, están constituídos como un grupo
homogéneo identificado de forma previa al processo de análises. Esta es uma
premisa que caracteriza a gran parte del discurso feminista. La homogenedad de las
mujeres como grupo se produe no em base a un esencialismo biológico, sino a
conceptos sociológicos y antropológicos secundários y universales. (MOHANTY, 2008,
p. 5)

Deste modo, não mais a biologia é utilizada como base para a


produção de discursos identitários generalizantes, mas também a cultura.
Considerando estes elementos, destacamos alguns aspectos, extraídos
do feminismo decolonial, que nos interessam especialmente para as
interlocuções aqui propostas: a) a crítica ao pretenso sujeito universal,
marcadamente situado em uma lógica patriarcal, cisheterocentrada,
racista, elitista, urbana e, acrescentamos, especista; b) a localização,
portanto, de complexos sistemas de opressão, dominação e exploração,
que se entrecruzam, limitando a implementação de uma concepção
ampliada de justiça; c) a impossibilidade de proposições hegemônicas e
homogêneas de justiça, sem a incorporação singularizada dos diversos
concernidos morais, aqui tidos em termos de sistemas funcionais, como
será explicitado a partir da Perspectiva dos Funcionamentos.
Destacamos a compreensão de que a colonialidade patriarcal racializada
não se limita a um padrão de dominação global centrado na população
humana, mas se expande às outras espécies, como será destacado pelo
ecofeminismo.

Ecofeminismo
O ecofeminismo, tal como desenvolvido por autoras como Lori
64
Gruen pode ser caracterizado como uma perspectiva moral, ancorada
65
na ética do cuidado . Desta última, retiram-se a crítica às perspectivas
morais universalistas, pautadas pela racionalidade e pelo dogma da
imparcialidade. A então caracterizada como uma ética feminina, procura,
em contrapartida, valorizar os afetos e os vínculos estabelecidos, como
determinantes para a adoção de atitude moralmente adequada. Enquanto
a tradição kantiana ostenta a superioridade da razão, característica
distintiva da suposta espécie humana, sobre as emoções e afetos, o
discurso ético feminino aposta na sensibilidade, nos afetos e no cuidado,
como base para construção de relações autenticamente construtivas.
Seguindo esta orientação que frequentemente opõe razão e
sensibilidade, masculinidade e a feminidade, uma faceta do
ecofeminismo irá ressaltar a relação do feminino com a natureza - com o
meio ambiente e com animais não humanos – denunciar a opressão, a
subalternidade e a violência de que têm sido vítimas, tanto o meio-
ambiente, como as fêmeas de todas as espécies.
O ecofeminismo reune, assim, uma parte do movimento ecológico e
uma parte do movimento feminista centradas na relação entre a mulher e
a natureza e na crítica à dominação patriarcal que a ambas subjuga e
explora. Mas como podemos compreender esta relação entre a mulher ou
o feminino no âmbito da perspectiva ecofeminista?
A primeira possibilidade, mais clássica, se assim pudermos
caracterizá-la, seria atribuirmos características, ditas naturais ou
intrínsecas a ambos os sexos. Tal perspectiva, contudo, parece incorrer
em dois problemas. Em primeiro lugar, supõe uma dicotomia entre o que
seria da ordem da natureza - supostamente compreendida como a ordem
biológica - e a cultural, entendida como uma construção social. Em
segundo lugar suporia uma concepção fixa e pré-determinada da
natureza humana, mais particularmente, do homem e da mulher. Nesta
medida, ao homem estariam vinculadas características como a
racionalidade, a competitividade, a agressividade etc. À mulher estaria
associada a sensibilidade, a espirituosidade, o cuidado e a conservação.
Embora este modelo pareça bastante familiar ao modo como até hoje
muitos compreendem a diferenciação entre os sexos, pretendemos
rechaçá-lo, por considerarmos, não apenas que qualquer atribuição de
características inatas aos sexos carece de fundamentos científicos, mas,
sobretudo, por entendermos que tal visão reforça padrões de
subordinação dominantes e inibem o potencial crítico do feminismo.
A forma como consideramos apropriado pensar a relação das
mulheres com outros seres subjugados ou alvos de opressão não apela a
nenhum tipo de natureza intrínseca ou a características próprias ao
feminino, mas sim ao modo como as estruturas, tais como o patriarcado e
a heteronormatividade, moldaram relações de dominação e geraram um
potencial de resistência e empatia entre as partes oprimidas. A mesma
matriz ideológica que justifica o racismo e o sexismo é também a que
justifica o especismo e partindo dela são desenvolvidas as formas atuais
de exploração animal e ambiental que garantem o bom andamento do
capitalismo enquanto ideologia e sistema econômico. O status moral dos
demais animais não costuma ser localizado historicamente como
construído a partir da colonização nem mesmo por discursos que buscam
combater este status. Entendido desta forma, o ecofeminismo tem sido
ferramenta importante enquanto corrente de pensamento que denuncia
as imbricações entre sistemas opressores que atingem – partindo de uma
matriz comum – mulheres (humanas assim nominadas) e animais (de
outras espécies, especialmente fêmeas). Assim sendo, o ecofeminismo
se apresenta como uma corrente teórico e prática que imbrica a luta das
mulheres, do meio ambiente e dos animais por meio da identificação de
elementos, ou, de pontos de partida comuns para suas opressões.
66
O ecofeminismo partindo de países do Sul apresenta-se
necessariamente como uma teoria que pauta questões próprias do
contexto da colonização. Entretanto, algo mais precisa ser pensado
quando falamos sobre ecofeminismo. É necessário compreender que a
expansão europeia, ou seja, a colonização que se deu por volta de 1400
d.C. nas regiões que hoje em dia abrigam os chamados países do Sul
ocorreu principalmente a partir de uma coalização de forças de entidades
que representavam o poder europeu para conquistar e destruir
epistemologias, por meio do epistemicídio de povos e culturas de uma
região que hoje pode ser considerada o Sul global. Região esta com
características ecológicas próprias, a saber, uma natureza ou clima
tropical capaz de produzir insumos – animais e plantas – que vieram a
ser empregados de forma muito lucrativa pelo mercantilismo, pelo
capitalismo e pelo neoliberalismo, atualmente. Ou seja, é preciso
destacar que sem a associação entre uma dominação cultural e uma
dominação geográfica no sentido ecológico da dominação, a colonização
nunca teria ocorrido, ou, pelo menos, não se daria da forma como se deu.
Com isto queremos dizer que ecofeminismo e feminismo decolonial
são – apesar de originados em pontos diferentes do globo – associáveis
por meio de uma percepção de que a colonização não funciona sem a
exploração da natureza e a exploração da natureza não funciona sem a
colonização dos povos que habitam determinadas regiões. Que regiões
são essas? Justamente as regiões tropicais. Os chamados países do Sul
compõem a massiva população explorada nas regiões tropical e
subtropical. Estamos tentando propor ou evidenciar algo que não é difícil
de ser compreendido, mas que normalmente não é trabalhado de forma
unificada.
Desta forma, buscamos descrever uma perspectiva ecofeminista
decolonial que busca acima de tudo ampliar o espectro dos concernidos
morais identificando que para além de defendermos mulheres, animais e
o meio ambiente precisamos também defende-los de forma conjunta, ou
seja, compreender em que medida estas opressões se conectam, se
fortalecem e se transformam em outras. Propomos uma análise
ecofeminista do feminismo decolonial porque apesar de importantes
contribuições na crítica ao aspecto da colonização, da aculturação e de
transformações nas relações de gênero por meio da inclusão da
dominação europeia dos hoje países do Sul global, identificamos a
ausência da conexão desta luta com as lutas ecofeministas, ou seja,
aquelas que pautam direitos das mulheres vinculados com direitos
ecológicos e ambientais. No ecofeminismo, por sua vez, apesar de
algumas autoras renomadas o proporem a partir de regiões ex-colônias,
como Vandana Shiva, há a hegemonia de um pensamento ecofeminista
produzido por mulheres europeias ou estadunidenses que ignoram a
questão de classe e raça na composição e na percepção de discursos
opressores que partem destas regiões. Um ecofeminismo decolonial
precisaria propor justamente uma visão a partir de mulheres que vivem
em países do Sul (ex-colônias de exploração, se assim podemos chamar
de forma generalista) e buscam a conexão de aspectos fundamentais
como a questão de raça, classe e decolonização conectadas com a visão
ecológica.

Perspectiva dos Funcionamentos


A Perspectiva dos Funcionamentos (PdF) é uma teoria moral com
pretensão a fornecer um paradigma de justiça. Ela procura identificar os
concernidos pelo nosso discurso moral e o foco sob o qual todos os
indivíduos devam ser considerados como igual objeto de respeito. Neste
sentido, ela não investiga propriamente as razões das exclusões e das
desigualdades, mas endossa a crítica aos diversos sistemas de opressão
que impedem o florescimento de diferentes formas de existência.
Endossa, portanto, a crítica ao patriarcado, à heteronormatividade, ao
imperialismo, ao capitalismo, ao racismo e ao especismo.
Ao deslocar o foco da moralidade e da justiça para indivíduos
enquanto sistemas funcionais a PdF promove, em primeiro lugar, um
deslocamento do referencial teórico tanto de perspectivas de base
contratualista - que se sustentam no duplo atributo da
racionalidade/liberdade -, como de perspectivas utilitaristas, cujo critério
de inclusão é também uma capacidade ou funcionamento específico, a
saber, a capacidade de experienciar o prazer e a dor, ou seja, a
senciência. Em segundo, permite estender o escopo da moralidade a
outros sistemas funcionais, tais como ao meio ambiente e a objetos
inanimados, estes últimos caracterizados muitas vezes como sistemas
acoplados (DIAS, 2016), objetos caracterizados, na PdF, como parte
indissociável da totalidade de sistemas que integram nossa própria
identidade.
Desta forma, a PdF busca uma nova ordenação das prioridades que
não estabeleça hierarquias prévias – baseadas em atributos naturais,
sociais ou econômicos –, injustificáveis sob o ponto de uma moral que se
quer cada vez mais inclusiva. Neste sentido, embora reconheçamos que
para certos indivíduos, ou grupos de indivíduos, o exercício de
capacidades específicas como a racionalidade, liberdade ou, ainda, a
senciência é fundamental para sua realização, a posse de tais
funcionamentos não justifica uma atribuição de valor moral superior aos
mesmos. As prioridades admitidas serão aquelas que correspondem aos
elementos centrais para que cada indivíduo tenha a chance de viver uma
vida plena ou realizada, seja ele racional, livre, senciente ou não.
A PdF pode ser, então, endossada por uma perspectiva feminista
decolonial que reconheça, para além das opressões de gênero e do
imperialismo, seja ele racial, cultural, religioso ou epistêmico, a opressão
especista. Do mesmo modo, poderá ser também endossada por uma
perspectiva ecofeminista que reconheça, para além das opressões do
patriarcado e do especismo, as opressões raciais, socioculturais,
religiosas e epistêmicas impostas pela forma de dominação imperialista.
Aliada a uma ampla frente de combate a todas as possíveis formas de
opressão e dominação, a Perspectiva dos Funcionamentos insiste na
pretensão de universalidade do princípio moral do respeito.
Trata-se, portanto, de uma perspectiva moral universalista, mas que
não adere à concepção abstrata, desencarnada e desenraizada do
agente e concernido moral. Mas especificamente, a PdF rejeita o
paradigma de um agente moral universal, dotado de uma forma de
pensar e deliberar comum a todos os seres racionais e a identificação
deste agente moral abstrato com os concernidos morais. Em outras
palavras, a PdF distingue os indivíduos capazes de deliberar e agir
moralmente, os indivíduos, portanto, moralmente responsáveis por suas
ações, e os concernidos morais, ou seja, todos aqueles aos quais
devemos respeito ou consideração moral. Distingue, assim, a pretensão
de validade universal de uma norma ou princípio moral e o conteúdo
específico ao qual o mesmo se aplica. O princípio universal do respeito,
aqui, exige que investiguemos, em cada caso, portanto, para cada
indivíduo, em que consiste o seu bem viver ou, na terminologia da PdF,
quais são e como podemos promover os seus funcionamentos básicos.
A dominação e a opressão são formas de violência que impedem o
florescimento de qualquer indivíduo sobre o seu efeito. Qualquer que
sejam suas causas históricas ou estruturais, elas são moralmente
condenáveis. Neste sentido, a crítica a uma forma de opressão, deve
igualmente conter o subsídio à condenação de todas as demais. Sob o
ponto de vista da moralidade e da justiça, todas as formas de opressão
são condenáveis e devem ser combatidas, crítica e moralmente. Nisto
consiste a anteriormente mencionada pretensão de universalidade que a
Perspectiva dos Funcionamentos busca preservar.
Tanto o feminismo decolonial, quanto o ecofeminismo, enquanto
teoria crítica, buscam identificar os fatos e as razões da opressão. A
identificação de tais fatos e das razões da exclusão, da opressão e das
desigualdades é fundamental para traçarmos estratégias de ação e
desenharmos um novo modelo de relações. Ao focar em indivíduos
existentes, mais especificamente, nos funcionamentos, capacidades
realizações e demandas próprias de cada indivíduo, a Perspectiva dos
Funcionamentos não pode pressentir de uma investigação empírica
acerca das demandas geradas pelos diversos grupos e/ou indivíduos e o
ambiente sociocultural no qual tais demandas são geradas. Desta forma,
a PdF assume o olhar de uma perspectiva ecofeminista decolonial.
A implementação da PdF no âmbito político deverá estar pautada em
uma investigação empírica das demandas existentes e dos fatos que
impedem sua plena realização. Aqui, apesar de insistirmos na
necessidade de estarmos atentos à especificidade das demandas
geradas por cada indivíduo, precisamos assumir que, sob o ponto de
vista da geração de políticas públicas, a alternativa será identificar
demandas compartilhadas e buscar mecanismos que busquem satisfazê-
67
las de modo mais eficaz. A PdF tem realizado pesquisas no sentido de
identificar quais são os funcionamentos básicos de determinados grupos
de indivíduos marginalizados, com o objetivo de promover políticas
públicas adequadas aos mesmos e capazes de promover o seu
florescimento. No tocante ao paradigma proposto pela PdF para a
geração de políticas públicas, além da ênfase na investigação empírica,
destaca-se a necessidade de formas diferenciadas de escuta e
identificação das demandas. Isso porque, ao não assumir a capacidade
de escolha como característica dos concernidos a PdF permite a inclusão
de indivíduos pouco ou nada racionais e pouco ou nada autônomos.
Indivíduos, portanto, cuja forma de expressão pode passar ao largo de
um observador pouco atento e/ou com uma ótica viciada através de uma
epistemologia especista e se tornar incapaz de observar de forma
consciente, de forma animalista, seu entorno, ou, os sistemas funcionais
que realmente estão contidos na equação em questão e demandam por
transformações no âmbito da justiça.

Conclusão
Neste artigo, procuramos reunir elementos para a defesa de uma
perspectiva de justiça feminista, decolonial, não antropocêntrica, visando,
assim, um enfrentamento das diversas formas de opressão que operam
nas sociedades atuais e coíbem a plena realização de diversas formas de
vida. O feminismo decolonial e o ecofeminismo contribuem para o
desvelamento de complexos e interseccionais sistemas de opressão,
exploração e discriminação que, hierarquizam ou excluem os diversos
sistemas funcionais, comprometendo a implementação da justiça. Dos
feminismos decoloniais é possível extrair a crítica à leitura generalizada,
pautada em estereótipos de gênero, que intenciona universalizar a
experiência das mulheres, enquadrando-as em uma categoria monolítica,
contribuindo para a reificação da subalternização, vitimização e ausência
de capacidade moral. A negativa da retórica salvacionista permite pensar
a implementação de justiça como partindo de sujeitos hegemônicos para
aqueles marginais, mas recolocando a possibilidade de horizontalização
dos diversos indivíduos. Tal perspectiva nega lógicas abstratas de
compreensão dos sujeitos e das realidades sociais, ressaltando a
necessidade de consideração de sujeitos concretos, inseridos em
realidades interseccionalmente produzidas. Pactuamos com a ampliação
da consideração moral do ecofeminismo, que inclui a crítica ao
especismo, lacuna destacada no feminismo decolonial, negando, porém,
qualquer leitura biologizante que afirme a ideia de uma certa natureza
humana fixa e essencialmente binária. Neste sentido, defendemos a
Perspectiva dos Funcionamentos, como perspectiva decolonial e
ecofeminista, que endossa o enfrentamento aos diversos sistemas de
opressões como necessário a implementação ampla da justiça, negando
qualquer tentativa prévia de hierarquização dos diversos indivíduos,
entendidos como sistemas funcionais complexos e flexíveis.

Referências Bibliográficas

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em: 10 mai. 2019.
CAPÍTULO 9

Conhecimento e luta política das mulheres no


movimento agroecológico: diálogos
68
ecofeministas e descoloniais
Maria da Graça Costa
Introdução
A visibilidade dos movimentos e ações de mulheres campesinas se
confundem com o fortalecimento da agenda feminista no movimento
ambientalista brasileiro (e na América Latina como um todo) e com a
consolidação da agroecologia enquanto projeto em comum de vários
movimentos sociais de esquerda. A resistência das mulheres em defesa
dos seus territórios é, entretanto, ancestral (MIES; SHIVA, 1993). Ao
analisar o histórico de lutas locais contra a destruição do meio ambiente
ao redor do mundo, as mulheres sempre aparecem na linha de frente e
em maior número, mesmo quando não são reconhecidas como principais
lideranças. A luta das mulheres indianas no Movimento Chipko pela
proteção das suas florestas; a resistência das campesinas bolivianas
contra o processo de privatização das águas que ficou conhecida como a
guerra da água no país; a mobilização das mulheres em Altamira contra a
construção da barragem de Belo Monte; e a experiência das mulheres
quenianas em torno do Movimento Cinturão Verde, são alguns exemplos
de como, a partir dos seus diferentes contextos, as mulheres,
especialmente em áreas periféricas e rurais, comunidades tradicionais e
povos originários do Sul Global, constroem laços de solidariedade e
mobilização social que se mostram centrais na luta pela justiça
socioambiental, ao apontarem a relação entre a mercantilização da
natureza e da vida e as desigualdades de gênero.
As ações coletivas levadas a cabo no Brasil através dos movimentos
de mulheres campesinas e da agroecologia apontam para propostas
éticas, epistemológicas e políticas atravessadas por debates
ecofeministas, agroecológicos e descoloniais na construção de
feminismos campesinos, quilombolas, indígenas, comunitários, periféricos
e populares. No presente trabalho busco refletir sobre os processos de
luta das mulheres no movimento agroecológico brasileiro, a partir suas
contribuições para a construção de um saber situado que vem trazendo
importantes interpelações às formas de organização política dos
feminismos, da agroecologia e de produção de conhecimento.

A emergência das mulheres enquanto sujeitas políticas no


movimento agroecológico
A agroecologia se desenvolve com a busca por suporte teórico e
técnico para as diferentes correntes de agricultura alternativa que se
constituíram na contramão do que vinha se consolidando na agricultura
69
convencional com o advento da Revolução Verde na segunda metade
do século XX. Aos poucos, entretanto, os movimentos sociais, em
especial aqueles ligados à luta pela terra foram se apropriando da
bandeira agroecológica. Esta foi sendo ressignificada para além de uma
ciência ou um conjunto de tecnologias de produção, se articulando
enquanto movimento social, como diretriz de políticas governamentais, e
como parte do sistema de educação formal, com a constituição de cursos
técnicos e de graduação na área.
Dessa forma, podemos dizer que existem no Brasil pelo menos dois
campos e entendimentos majoritários sobre agroecologia: o campo
técnico-científico e o dos movimentos sociais. Essa polissemia reflete a
abrangência desse debate, que gradativamente vem ganhando espaço
também no que se refere às discussões na esfera ética e política
(NORDER et al., 2016). Como veremos mais adiante, quando a
agroecologia começa a ser entendida como um modo de vida, utopia e
um projeto de sociedade, ela faz brotar debates, práticas sociais e
políticas que colocam em questão as relações capitalistas, colonialistas,
racistas, antropocêntricas e patriarcais que estruturam as ciências, as
tecnologias e a sociedade de maneira geral.
Se durante os anos de 1980 e 1990, as organizações não
governamentais, as comunidades alternativas e os profissionais
relacionados ao campo das ciências agrárias atuavam como os principais
disseminadores dos saberes agroecológicos, esse cenário começa a
mudar a partir dos anos 2000 quando os movimentos sociais do campo
incorporam a agroecologia em suas agendas políticas, pautando a
formulação de políticas públicas voltadas para a produção orgânica de
alimentos e a agroecologia enquanto modelo para o desenvolvimento
rural. Nesse contexto se dá a construção da Articulação Nacional de
Agroecologia (ANA) enquanto espaço principal de articulação entre
movimentos, redes e organizações da sociedade civil engajadas em
experiências concretas de promoção e construção da agroecologia e
alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural, e dos Encontros
Nacionais de Agroecologia (ENA), encontros organizados pelos
movimentos através da ANA para promover debates e trocas de
experiências sobre o tema, entre os movimentos sociais e a sociedade
civil como um todo.
A partir deste ponto, já é possível notar a emergência das mulheres
enquanto sujeitas políticas deste debate ao reivindicarem nesses espaços
o protagonismo na luta em defesa do território e da agroecologia e o
papel de guardiãs dos saberes tradicionais sobre as ervas, sobre os
70
alimentos e as sementes crioulas . A partir da organização em torno de
movimentos autônomos como o Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC) e o grupo de trabalho de Mulheres da ANA (GT Mulheres da
ANA), elas começam a encabeçar a mobilização pelo desenvolvimento
sustentável no Brasil, promovendo a agenda feminista (combate a
violência contra mulher; equidade na distribuição de terras e insumos;
reconhecimento do trabalho feminino no campo; justa divisão do trabalho
doméstico; maior participação em instâncias de decisão política; etc.) em
espaços importantes de negociação de políticas públicas e de diálogo
com a sociedade.
É através da articulação entre os movimentos feministas que os
debates sobre as interseccionalidades entre raça, gênero, sexualidade e
outros atravessamentos passam a ser debatidos com maior profundidade
dentro do movimento agroecológico, com o reconhecimento das
contradições e desigualdades reproduzidas também dentro da
agroecologia. Essas desigualdades se expressam em diversas esferas,
tanto nas práticas, quanto na militância e nas abordagens teóricas.
A frase “sem feminismo, não há agroecologia” foi um mote
construído a partir da organização do GT Mulheres da ANA no VIII
Congresso Brasileiro de Agroecologia realizado em Porto Alegre no ano
de 2013, como forma de chamar atenção para as desigualdades de
gênero dentro do movimento agroecológico e na agricultura familiar, tais
como a invisibilidade do trabalho das mulheres nas áreas rurais, a
sobrecarga de trabalho doméstico, e o apagamento e a apropriação dos
saberes produzidos por mulheres, apontando as contradições dentro do
movimento ao mesmo tempo em que põe em cheque a ideia de
neutralidade do conhecimento técnico e científico.
Entretanto, como argumentam Márcia Lima e Vanessa de Jesus
(2017), apesar dos avanços no debate de gênero, ainda não há a
incorporação dessa categoria enquanto uma dimensão central para
pensar a agroecologia pela maior parte dos teóricos e do movimento
como um todo. As questões de gênero aparecem de forma marginal, e
muitas vezes são encaradas como questões que só interessam às
mulheres. Dessa forma, faz-se mister refletir sobre quem é autorizado a
falar e quais conhecimentos são considerados válidos, levantando
algumas pistas sobre o processo de invisibilização dos problemas de
gênero na esfera da agroecologia.

Colonialidade, saberes subalternos e o discurso científico:


superando dicotomias
A noção de colonialidade remonta às proposições do sociólogo
peruano Aníbal Quijano (2005) acerca dos padrões de poder que
fundamentam hierarquias no capitalismo global a partir da constituição da
ideia de raça, categoria que permeia todas as dimensões do que esse
autor chama de sistema-mundo moderno-colonial e suas classificações
de superior/inferior, desenvolvimento/subdesenvolvimento e povos
civilizados/bárbaros, que não se esgota com o colonialismo enquanto
sistema político e administrativo, mas o reafirma enquanto sistema de
pensamento (CASTRO-GOMEz & GROSFOGUEL, 2007).
A colonialidade se expressa na constituição de uma epistemologia
ocidental hegemônica fundada culturalmente no mundo moderno cristão
e politicamente no contexto do capitalismo colonial. Com as ideias que
deram passo à modernidade a partir do Século XVI assentaram-se as
bases dos atuais modelos de pensamento e das visões filosóficas que
vieram influenciar os séculos seguintes. Junto com esse sistema de
pensamento, criam-se duas noções fundamentais para a consolidação do
capitalismo: o progresso e a dicotomia natureza/cultura. Essas duas
categorias vão balizar a concepção de supremacia do Homem sobre a
Natureza e da necessidade da emancipação e superação permanente
dos seus limites através da ciência e da tecnologia (RODRIGUEZ, 2013).
Em seu livro The Death of Nature (1983), Carolyn Merchant traz uma
importante reflexão sobre como as ciências naturais modernas se
basearam na destruição e subordinação da natureza enquanto um
organismo vivo. Segundo a autora, Francis Bacon – considerado um dos
pais da ciência moderna – trazia como metáfora a aplicação à natureza
de métodos de controle, busca e domínio utilizados nos julgamentos das
Caças às Bruxas pela Inquisição. Ainda segundo Merchant, Bacon e
outros cientistas modernos defendiam que sem romper violentamente
com o todo orgânico - separar elementos da natureza e recombiná-los
arbitrariamente, os dissecando em frações cada vez menores -, os
cientistas não conseguiriam obter conhecimento. Assim, nas palavras de
Maria Mies e Vandana Shiva (1993), a violência e a força são princípios
metodológicos intrínsecos do conceito moderno de ciência e de
conhecimento. Por outro lado, como apontam Boaventura Santos e Maria
Paula Meneses (2010), a transformação desse pensamento no que veio a
se estabelecer enquanto ciência moderna, só foi possível com a força da
intervenção política, econômica e militar do colonialismo e do capitalismo
modernos que se impuseram aos povos e culturas não ocidentais e não
cristãos.
Para teóricas feministas que discutem o campo da ciência a partir do
olhar das mulheres, como Mies e Shiva (1993) e Silvia Federeci (2017), o
rompimento não só com a simbiose com a Mãe natureza, mas também,
com a mãe humana é o ponto de convergência entre (os iniciantes)
método científico, economia capitalista e política democrática. É a partir
dessa cisão que a ideia de supremacia e subordinação do outro enquanto
aquilo que seria diferente e oposto surge com diversas dominações (às
mulheres, aos não brancos, não católicos, não ocidentais, e assim por
71
diante). Autoras ecofeministas clássicas desde Sherry Ortner (1979) ,
argumentam que através dessas hierarquizações dicotômicas, as
mulheres estariam simbolicamente identificadas como ligadas à natureza
– como algo que representa o primitivo, inferior – e os homens, por outro
lado, seriam identificados com a cultura, ou seja, vistos como aqueles
que controlam, transcendem e modificam a natureza. Nesse sentido,
através da lente colonial, as mulheres seriam vistas como menos
humanas que os homens.
Ressalto aqui a importância da interseccionalidade para pensar essa
questão de forma a não homogeneizar e universalizar as experiências
das mulheres e, tampouco, desconsiderar o caráter relacional das
desigualdades de poder, não só entre mulheres brancas e não brancas,
mas também as que atingem os homens negros e mulheres brancas,
entre pessoas cisgêneras e pessoas trans, etc. As mulheres lésbicas não
brancas, a partir da interseccionalidade entre raça, classe, gênero e
sexualidade, em sua tripla exclusão, por exemplo, seriam vistas como
não humanas e não mulheres nessa equação. Dessa forma, vemos não
só a instabilidade das categorias de gênero e raça, mas também da
própria categoria Humano.
A hegemonia do pensamento moderno-ocidental resulta
particularmente visível na contínua afirmação de uma hierarquia de
saberes, produzindo sociedades assumidas como mais desenvolvidas
que outras, reproduzindo-se esta segregação hierárquica em múltiplos
lugares: nas instituições, vocabulário, saberes, imagens, doutrinas, etc.
Esse posicionamento reside na afirmação de uma única ontologia, de
uma epistemologia, de uma ética, de um pensamento único e sua
imposição como universal (MENESES; VASILE, 2014).
A epistemologia ocidental dominou o campo da ciência e filosofia
72
durante dois séculos, até a segunda metade do século XX , quando
vários movimentos teóricos como o pós-colonialismo, os estudos
feministas, os estudos subalternos e o multiculturalismo – e
posteriormente as teorias descoloniais – ganham fôlego apontando para
a geopolítica do conhecimento expressa na invisibilidade e apagamento
dos saberes produzidos por mulheres, por pessoas não brancas e pelos
73
países do Sul global pós-colonial . A emergência dos saberes
subalternos traz uma importante virada para a produção científica ao
contextualizar o campo sociopolítico que envolve a epistemologia
dominante, fazendo emergir outros saberes e sistemas de pensamento,
além de questionar perspectivas teorias e metodologias científicas
universais. Nesse sentido, a filósofa Djamila Ribeiro ressalta que “os
saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente
discriminados, para além de serem contra discursos importantes, são
lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e
geografias” (RIBEIRO, 2017, p. 75).
As teorias feministas trouxeram grande contribuição a esse debate
ao radicalizar a crítica a partir dos saberes subalternos compartilhando
muitas das suas preocupações gerais, ao evidenciarem a intrínseca
relação entre o sistema colonial e a categoria gênero.
Inspirada no projeto de descolonialidade do poder/saber de Quijano
(2005) que busca ressiginificar o sistema de pensamento crítico desde a
ótica da (des)colonialidade, tendo a perspectiva latino-americana como
ponto de partida, María Lugones (2008) propõe a construção de um
feminismo descolonial que considera que os traços históricos da
organização do gênero, no que ela chama de sistema moderno/colonial
de gênero, representado pelo dimorfismo biológico, organização
patriarcal e a heterossexualidade compulsória, são centrais para uma
compreensão diferencial da organização do gênero em termos raciais.
Assim, para a autora, a imposição do sistema de gênero foi tanto
constitutiva da colonialidade do poder quanto a colonialidade do poder foi
constitutiva do sistema de gênero. Logo, o sistema de gênero moderno e
colonial não pode existir sem a colonialidade do poder, já que a
classificação da população em termos de raça é uma condição
necessária para sua possibilidade.
O olhar feminista descolonial e pós-colonial também vai recair sobre
o feminismo produzido no ocidente, através da crítica da representação
das mulheres não ocidentais como o Outro da cultura de forma tripla:
enquanto mulher, enquanto não ocidental e a partir da junção desses dois
termos (ALDEMAN, 2007). Chandra Mohanty (2008) aponta que as
feministas ocidentais tomam a cultura de classe média urbana como
norma e classificam as experiências das mulheres negras, indígenas, de
comunidades tradicionais, etc., do Sul global a partir de uma construção
discursiva acerca das mulheres do ‘terceiro mundo’ como
necessariamente pobres, ignorantes, domésticas, exploradas
sexualmente, e, principalmente, sem agência, ou seja, sem capacidade
de pensar e agir reflexivamente e com intencionalidade sobre a própria
vida e as instituições sociais.
Para a teórica indiana Gayatri Spivak (2010), o sujeito subalterno, em
especial as mulheres não brancas e não ocidentais, não podem falar nos
espaços de poder instituído como a academia, tendo a sua voz
permanentemente eclipsada pelos discursos construídos sobre ele. As
mulheres não brancas e não ocidentais seriam, portanto, o símbolo
máximo do esquecimento da história e da ciência. A artivista e intelectual
Grada Kilomba, em seu livro Plantation Memories: episodes of everyday
racism de 2010, desenvolve um instigante exercício de reflexão sobre a
potência da fala a partir do lugar subalterno, apresentando outros pontos
de vista sobre a questão levantada por Spivak. Esse exercício nos leva a
entender como os conceitos de conhecimento e ciência não são neutros,
como já discutimos anteriormente, mas estão intrinsecamente
relacionados ao poder e à autoridade racial e de gênero. Nesse sentido,
Kilomba nos lança questionamentos importantes:
O que é conhecimento? Que conhecimento é reconhecido como tal? E qual
conhecimento não é reconhecido? Que conhecimento é esse? Quem é autorizado a
ter conhecimento? E quem não é? Que conhecimento tem sido parte das agendas
acadêmicas? Quais conhecimentos não fazem parte? Que conhecimento é esse?
Quem está autorizado a ter esse conhecimento? Quem não está? Quem pode ensinar
esse conhecimento? Quem não pode? Quem habita a academia? Quem está às
74
margens? E, finalmente: quem pode falar? (KILOMBA, 2010, p. 27, Tradução de
Anne Quiangala).

Esse debate expõe, deste modo, as desigualdades, fissuras e


tensões não só no campo do discurso científico, mas também na esfera
dos movimentos sociais, evidenciando as dimensões de colonialidade,
racismo e sexismo que até os discursos progressistas e do campo da
esquerda podem assumir. Apresentamos a seguir duas cenas que
exemplificam como essas desigualdades atravessam todas as esferas,
incluindo o movimento agroecológico e suas tecnologias.
Como argumenta Kilomba (2010), as hierarquias sempre serviram
para silenciar vozes subalternas:
Quando eles falam é científico. Quando falamos é não científico.
universal/específico
objetivo/subjetivo
racional/emocional
imparcial/parcial
Eles têm fatos, nós temos opiniões
75
Eles têm conhecimento, nós temos experiências . (KILOMBA, p.28, 2010, tradução
de Anne Quiangala).

Essa hierarquia, como defende a autora, define quem pode


falar. Quando mulheres não brancas e campesinas – sujeitas
historicamente subalternizadas – são colocadas à margem da memória
da agroecologia – um campo de saberes, práticas e políticas que se
propõem a construir um olhar crítico sobre as estruturas de poder e saber
hegemônicas – evidencia-se como os saberes produzidos pelos sujeitos
subalternos desestabilizam as narrativas oficiais e a epistemologia
ocidental dominante. Como aponta a filósofa panamenha Linda Alcoff
(2016), a epistemologia impõe o domínio da discursividade no ocidente,
situada numa posição de autoridade que lhe permite julgar, por exemplo,
o conhecimento reivindicado por movimentos sociais, as ontologias de
povos originários, a prática médica de povos colonizados e até mesmo
relatos de experiência em primeira pessoa de todos os tipos. Não é à toa
que Caporal reivindica a vigilância epistemológica para justificar sua
crítica ao feminismo enquanto uma teoria dentro do arcabouço da
agroecologia.
Assim, cabe questionar se é possível construir a agroecologia
enquanto projeto de transformação social sem romper com as
epistemologias dominantes. Não se trata, entretanto, de negar a
importância da epistemologia – e especificamente da ciência – para o
desenvolvimento de alternativas de desenvolvimento e de pensamento,
especialmente em um campo discursivo onde pesquisas científicas são
desacreditadas (o que Alcoff chama de ceticismo por conveniência) por
discursos de ódio ou de extremistas religiosos, sendo chamadas de
ideológicas por assumirem uma posição que vai contra interesses
políticos e econômicos dominantes – um exemplo recente são os
questionamentos feitos por políticos ligados à bancada ruralista do
Congresso Nacional em relação às pesquisas realizadas por instituições
como a Fiocruz que mostram uma série de malefícios do uso e consumo
de agrotóxicos e que vieram à tona a partir dos debates travados na
76
Câmara dos Deputados com a votação do Projeto de Lei 6299/02 ,
considerado pelos movimentos sociais e instituições que defendem a
saúde da população, a sustentabilidade e soberania alimentar como o
Pacote do Veneno que visa, entre outros pontos, ampliar o uso de
agrotóxicos no Brasil.
Trata-se antes de retomar o projeto normativo de aprimorar a
produção do conhecimento. Nesse sentido, fica evidente a necessidade
de investir no projeto de descolonização dos saberes e dos discursos na
agroecologia, e que tal processo passa, necessariamente, por colocar os
olhares dos grupos subalternizados, notadamente as mulheres negras,
indígenas e camponesas, no centro do debate a partir dos seus lócus de
enunciação.

Construindo pontes: diálogos ecofeministas e descoloniais


no campo agroecológico
A confluência das crises ambientais, alimentar, econômica e política
na contemporaneidade expõe a crise civilizatória da cultura masculina e
ocidental. Dessa forma, as transformações do paradigma civilizatório
requerem novas narrativas e estratégias alternativas à ordem constituída,
evidenciando a necessidade de pôr o problema epistemológico no centro
da luta política como nos aponta Alcoff (2016).
As perspectivas ecofeministas, feministas descolonais e a
agroecologia dialogam sobre diversos aspectos – tanto no que se refere
às visões de mundo, quanto às estratégias de atuação política – e põe
em cheque três dimensões fundamentais do paradigma moderno
ocidental: o antropocentrismo – a ideia de que a humanidade ocupa uma
posição de centralidade em relação ao universo; o androcentrismo – a
forma como o patriarcado se perpetua em nossa sociedade; e o
etnocentrismo – visão de mundo característica de quem considera o seu
grupo étnico, nação ou nacionalidade socialmente mais importante do
que os demais. Essas três dimensões se articulam através do racismo,
cisnorma, heterossexualidade compulsória e várias outras estruturas de
opressão e se estabelecem enquanto padrões que atravessam e
estruturam nossa sociedade e sistema de pensamento.
O termo Ecofeminismo foi usado pela primeira vez por D’Eaubonne
em 1974. De acordo com Siliprandi (2009), D’Eaubonne defende nesse
trabalho, de forma até então inédita, uma proposta claramente feminista
para atuar em relação as questões ambientais. Essa autora tratava de
uma série de temas caros ao movimento feminista problematizando as
políticas de controle de natalidade e a forma como o modelo econômico
produtivista dominado pelos homens e o padrão de alto consumo dos
países desenvolvidos tinha um caráter sexista e racista submetendo
principalmente as mulheres dos países pobres, ao mesmo tempo em que
contamina o planeta e esgota os recursos naturais (SILIPRANDI, 2009).
A despeito das diferenças entre suas correntes, o Ecofeminismo vai
criticar a apropriação masculina da agricultura e da reprodução biológica,
pensando as consequências do desenvolvimento industrial, militar e
capitalista na vida das mulheres que, por desempenharem o papel do
cuidado e da reprodução, são as mais atingidas por esse sistema
(PULEO, 2004).
Particularmente o trabalho da ecofeminista indiana Vandana Shiva,
têm ajudado a disseminar esse debate nos movimentos sociais em todo o
mundo. Para essa autora e ativista, o modelo econômico e cultural
ocidental constitui-se por meio da colonização das mulheres, dos povos
nativos, das suas terras e da natureza. Assim, Shiva vai criticar as
concepções modernas de economia, progresso e ciência, alertando para
a urgência de adoção de um paradigma que permita a sobrevivência e
uma coexistência digna dos povos e espécies da terra (MIES; SHIVA,
1993). Dessa forma, suas proposições vão ao encontro a uma série de
propostas que vêm sendo desenvolvidas na América Latina que,
inspiradas na cosmopolítica ameríndia e no debate descolonial, vão tratar
a relação natureza/cultura a partir de outras epistemologias.
Ao problematizar as noções ocidentais de gênero, raça e, sobretudo,
de humano, mostrando como esses são conceitos também construídos a
77
partir de saberes situados , o feminismo descolonial e diversas teóricas
ecofeministas vêm abrindo espaço para uma construção mais simétrica
no campo científico, filosófico e político no que se refere ao entendimento
das agencias mútuas entre humano e não humanos. Assim, é importante
ressaltar que, longe de essencializar uma suposta natureza feminina, o
que se busca nesse debate é evidenciar como essa cisão entre
Humanidade-Cultura/Animalidade-Natureza (e as dicotomias daí
derivadas) é arbitrária e tem servido para a apropriação da natureza,
tratada como mercadoria; e do trabalho realizado pelas mulheres,
essencial para o cuidado e reprodução da vida.
Destaco aqui duas contribuições essenciais das mulheres aos
saberes agroecológicos e ao projeto da construção de uma epistemologia
descolonial e ecofeminista: a ética do cuidado e a construção de relações
de reciprocidade com a natureza.
Pensar o cuidado como um estado afetivo vital, uma obrigação ética
e um trabalho prático tem estado desde muito cedo no cerne dos estudos
feministas, tanto nas ciências sociais quanto na teoria política. Enquanto
é justo dizer que o cuidado tem sido e continua a ser um aspecto
essencial do caráter transformador da política feminista e de formas
alternativas de vida e organização (BELLACASA, 2012).
Em mundos feitos de formas e processos interdependentes e
heterogêneos de vida e matéria, cuidar de alguma coisa ou de alguém é
inevitavelmente criar relação. Neste sentido, cuidar guarda o peculiar
significado de ser uma obrigação não normativa (BELLACASA, 2012): é
concomitante à vida – não algo forçado aos seres vivos por uma ordem
moral; ainda assim, obriga, já que para que a vida seja vivida ela precisa
ser nutrida. Isso significa que o cuidado é de alguma forma inevitável:
embora nem todas as relações possam ser definidas como cuidadosas,
nenhuma poderia subsistir sem cuidado.
As mulheres do movimento agroecológico – particularmente as
mulheres campesinas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas – trazem
fortemente esse debate para o movimento. Da concepção de
reciprocidade entre as relações de cuidado entre humanos e não
humanos, constrói-se um outro nós que não passam por uma visão
hegemônica das relações com a natureza. São visões singulares dos
feminismos e da agroecologia com as quais há uma reivindicação do
reconhecimento das suas práticas e modos de vida.
Nesse contexto, mais uma vez, as mulheres dos movimentos
populares campesinos e da agroecologia, a partir de articulações
comunitárias em defesa dos bens comuns aliados as esferas do cuidado,
dos saberes tradicionais, etc., vêm apontando para a construção de
estratégias políticas, epistemológicas e críticas próprias que contribuem
para o diálogo em torno da formulação de um projeto ético político
feminista que questione todos os sistemas de opressão (ROSENDO,
2012).
Na Carta das Mulheres do III ENA, realizado em 2014 na cidade de
Juazeiro, Bahia, uma declaração me chama atenção: “as mulheres
inventaram a agroecologia”. Essa declaração não é apenas um marcador
político, mas também nos traz elementos para pensar as relações que as
mulheres estabelecem com seus territórios. Apesar do grande acúmulo
no debate e mobilização que as relaciona com a agenda agroecológica e
ambiental, seus saberes vêm sendo silenciados, mesmo dentro de
movimentos que lutam pela justiça socioambiental.

Considerações finais
Neste trabalho busquei refletir sobre a interpelações que os
feminismos vêm trazendo para o campo da agroecologia e como o aporte
ecofeminista e o aporte das teorias descolonais podem contribuir para
ampliar esse debate. Vemos que, apesar de se tratar de um campo que
busca descontruir com o paradigma moderno de hierarquização de
saberes e práticas, não há um consenso acerca do reconhecimento do
protagonismo e dos saberes aportados pelas mulheres na agroecologia,
em especial quando se trata do campo institucional da ciência. Nesse
sentido, cabe questionar se é possível construir a agroecologia enquanto
projeto de transformação social sem romper com as epistemologias
dominantes e sem as desigualdades, apropriações e silenciamentos das
contribuições dos saberes constituídos pelas mulheres.
Frente a isso, as mulheres da agroecologia, em diálogo com os
feminismos plurais, com as tradições campesinas e cosmovisões afro-
ameríndias, vêm construindo conhecimentos e estratégias políticas que
deslocam os lugares instituídos de saber e poder e ressignificam tais
tradições. Assim, elas tornam evidente a necessidade de investir no
projeto de descolonização dos saberes e dos discursos na agroecologia.
Tal processo passa, necessariamente, por trazer à tona os saberes,
práticas e estratégias políticas construídos por grupos subalternizados,
notadamente as mulheres negras, indígenas e camponesas, no centro do
debate a partir dos seus lócus de enunciação.

Referências

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AS AUTORAS E OS AUTORES

ORGANIZADOR/AS

Daniela Rosendo
Doutoranda e Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Graduada em Direito pela Universidade da
Região de Joinville (UNIVILLE). Coordenadora de Direitos Humanos e
Educação do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH).
Coordenadora Pedagógica da Pós-Graduação em Direitos Fundamentais
e Políticas Públicas da ACE/FGG. Professora de Direito Ambiental e
Urbanístico na UniSociesc. Coordenadora do projeto de pesquisa Adalah:
Observatório da Palestina. Membra do Comitê Latino Americano e do
Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM Brasil).
Pesquisadora do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA/UFF).
Autora do livro Sensível ao Cuidado: Uma perspectiva ética ecofeminista.

Fabio A. G. Oliveira
Doutor em Filosofia (2014) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), com estágio na Australian National University (ANU) -
CNPq-2012/2013, Pós-doutorado em Bioética pelo PPGBIOS/UFRJ; e
Filosofia pela Universidad de Valladolid, Espanha (UVa). Professor
adjunto na Universidade Federal Fluminense (UFF), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde
Coletiva (PPGBIOS/UFF), colaborador externo do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia (PPGF/UFRJ). Coordena o Laboratório de Ética
Ambiental e Animal (LEA/UFF) e integra o Instituto Latinoamericano de
Estudios Críticos Animales (ILECA). Membro do Núcleo de Inclusão
Social (NIS/UFRJ), do Núcleo de Ética Aplicada (NEA/UFRJ) e do
Antígona: Laboratório de Filosofia e Gênero (UFRJ). Autor do livro
Responsabilidade Individual Frente às Mudanças Climáticas Globais
(2015; 2019) e organizador da obra Ética Animal: Um Novo Tempo
(2018).

Príscila Carvalho
Professora de Filosofia. Doutorou-se pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Integra o Laboratório Antígona de Filosofia e
Gênero (UFRJ), Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA-UFF) e o
Núcleo de Ética Aplicada (NEA/UFRJ). Dedica-se às seguintes subáreas
da Filosofia: Filosofia Política, Ética normativa, Ética Aplicada, Filosofia
Prática, concentrando-se nos temas relacionados às Teorias da Justiça,
Teorias da Democracia,Estudos de Gênero, Ecofeminismos, Teorias Pós-
colonialista e Decolonialista.

Tânia A. Kuhnen
Professora adjunta na Universidade Federal do Oeste da Bahia
(UFOB), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Humanas e Sociais (PPGCHS – UFOB). Possui Doutorado em Filosofia
(2015) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio
de pesquisa na Humboldt Universität zu Berlin (DAAD/CAPES - 2012).
Suas pesquisas e publicações versam sobre problemas do campo da
Filosofia Moral Contemporânea, especialmente Filosofia Moral Feminista.
Integra os grupos de pesquisa Corpus Possíveis: Educação, Cultura e
Diferenças e Gestão, Inovação e Desenvolvimento, ambos vinculados à
UFOB, além de colaborar com o Laboratório de Ética Ambiental e Animal
(LEA-UFF) e o Grupo IPÊS (FURB).

ILUSTRADORA

Camila Rosa
Ilustradora e designer brasileira nascida em Joinville/SC, hoje
morando em São Paulo. Começou sua trajetória como artista em 2010
com o Coletivo Chá, um coletivo feminino de street art. Desde então tem
exposto seu trabalho nas ruas, em exibições, revistas, livros e internet.
Seu trabalho apresenta mulheres, a partir de uma perspectiva alternativa:
latino-americanas, corajosas, fortes e não contempladas pelo padrão de
beleza hegemônico.

AUTORAS E AUTOR

Alicia H. Puleo
Doutora em Filosofia, Professora Titular de Filosofia Moral e Política
da Universidad de Valladolid (UVa), Espanha. Membra do Conselho da
Cátedra de Estudos de Género da UVa e do Conselho do Instituto de
Investigações Feministas da Universidad Complutense de Madrid. É
autora da obra Ecofeminismo para otro mundo posible e organizadora do
livro Ecología y género en diálogo interdisciplinar. Foi diretora da
Colección Feminismos, da Editora Cátedra, em colaboração com a
Universitat de València.

Angélica Velasco Sesma


Doutora em Filosofia pela Universidad de Valladolid (UVa) e pela
Universidad de Salamanca. Atualmente é professora assistente doutora
de Ética e Filosofia Política na Universidad de Valladolid. É secretária
acadêmica da Cátedra de Estudos de Gênero da UVa e integra, também,
seu Conselho de Governo. Entre suas múltiplas publicações destaca-se o
livro La Ética Animal, ¿una cuestión feminista?, publicado na Colección
Feminismos da Editorial Cátedra.

Daniel Kirjner
Pesquisador, músico e ativista, doutorado pela Universidade de
Brasília. Sociólogo de formação, pesquisou, em seu doutoramento, as
conexões entre teorias de gênero e estudos animais. Já deu palestras em
diversas universidades e coletivos brasileiros, além de conferências na
Europa, Estados Unidos e Índia. Publicou artigos e capítulos em edições
nacionais e internacionais. Atualmente dedica-se à carreira docente e ao
ativismo, como coordenador do grupo Veganize, em Brasília.

Ilze Zirbel
Doutora em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em
Sociologia Política (UFSC) e Graduada em História pela Fundação
Universidade Regional de Blumenau (FURB) e em Teologia pela Escola
Superior de Teologia da (IECLB - EST).

Janyne Sattler
Docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutora em
Filosofia pela Université du Québec à Montréal (2011). Pesquisadora do
Núcleo de Ética e Filosofia Política (NÉFIPO), do Grupo de Estudos em
Reflexão Moral Interdisciplinar e Narratividade (GERMINA) e do Instituto
de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC. Vice-coordenadora do GT de
Filosofia e Gênero da ANPOF (2018-2020). Atua especialmente nos
temas seguintes: ética e estética em Wittgenstein; literatura e filosofia;
estudos de gênero e feminismo.

Letícia Gonçalves
Doutoranda em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva
(PPGBIOS), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em
parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal Fluminense
(UFF). Psicóloga e Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de Minas Gerais.

Maria Clara Dias


Doutora em Filosofia pela Freie Universität Berlin (1993), com pós-
doutorado na University of Connecticut (2003), Oxford University
(2006/2007) e University of Tulane (2016). Professora Titular do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), onde integra o Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF)
e o Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde
Coletiva (PPGBIOS). Pesquisadora do CNPq e Cientista do Nosso
Estado (FAPERJ). Idealizadora da Perspectiva dos Funcionamentos e
autora de vários livros, entre eles, Sobre Nós: expandindo as fronteiras
da moralidade.

Maria da Graça Costa


Psicóloga e educadora popular. Feminista vegana e militante da
agroecologia, integra o Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).
Atualmente é aluna do Doutorado em Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN).
Marti Kheel (in memoriam)
Doutora em Ciências Religiosas pela Graduate Theological Union, foi
uma escritora e ativista nas áreas do ecofeminismo, defesa animal e ética
ambiental. Autora de diversos artigos e livros, dentre eles Nature Ethics:
An Ecofeminist Perspective. Foi Professora Visitante no Department of
Environmental Science, Policy, and Management (ESPM), da University
of California, Berkeley.

Mayara Carrobrez
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM) e graduada em História pela mesma instituição.

Patrícia Lessa
Doutorado em História, na área de Estudos Feministas, pela
Universidade de Brasília (UnB), Pós-Doutorado em Letras pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), atualmente trabalha na
Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Suane Soares
Professora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada (NUBEA) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do
Laboratório sobre Justiça, Direitos Básicos e Políticas Públicas
(JUDIPP/NUBEA) e do Nós: dissidências feministas que, dentre outras
atividades, inclui a pesquisa Lesbocídio: as histórias que ninguém conta.
Membra do Núcleo de Inclusão Social (NIS/UFRJ), do Laboratório de
Ética Ambiental e Animal (LEA/UFF)e do Núcleo de Ética Aplicada
(NEA/UFRJ) e integra o Instituto Latinoamericano de Estudios Críticos
Animales (ILECA).
Notas
[←1]
Traduzido por Daniela Rosendo. Revisado por Tânia A. Kuhnen.
[←2]
Sobre a conexão entre a caça e a identidade masculina, ver, por exemplo, GILMORE,
David. Manhood in the Making: Cultural Concepts of Masculinity. New Haven: Yale University
Press, 1990, e CARTMILL, Matt. A View to a Death in the Morning: Hunting and Nature
Through History. Cambridge: Harvard University Press, 1993. (Nota da autora)
[←3]
Note-se que eu uso a palavra care em inglês, que não equivale por completo a palavra
portuguesa cuidado A palavra inglesa cuidado não tem a conotação de tomar cuidado, como
a palavra cuidado tem em português. A palavra empatia às vezes pode chegar mais perto
desse significado, mas empatia sugere mais um estado emocional do que uma orientação
mais ativa, como sugere a palavra cuidado em inglês. Então, por enquanto, vamos usar a
palavra cuidado, mantendo em mente as diferenças entre as palavras em inglês e
português. (Nota da autora)
[←4]
No artigo original, a autora não menciona o ano de publicação e a edição da obra. (N.T.)
[←5]
La revista The Ecologist en su versión para España y Latinoamérica es el principal
portavoz de estas posiciones. Con un discurso de corte conspiratorio, acusa al feminismo y
al capitalismo de controlar la fertilidad natural, poniendo en un mismo plano las técnicas de
cultivo con transgénicos y los métodos anticonceptivos usados por las mujeres. Predica a
éstas el retorno al hogar y a la maternidad y la crianza como único objetivo y las insta a
abandonar los estudios universitarios. Ver el Monográfico La Revolución calostral ha
empezado del nº 48.
[←6]
Entre sus efectos, se cuentan la incidencia creciente de la Sensibilidad Química Múltiple
(SQM diagnosticada errónea y rutinariamente como alergia), la Fatiga Crónica, la
Fibromialgia y el incremento del Cáncer de Mama (VALLS-LLOBET, 2015, p. 21-36).
[←7]
Este trabajo ha sido realizado en el marco del proyecto I+D El desván de la razón:
Cultivo de las pasiones, identidades éticas y sociedades digitales: PAIDESOC (FFI2017-
82535-P).
[←8]
Es decir, la violencia inherente a los sistemas sociopolíticos y económicos, que se
sustentan en estructuras de marginación, represión o dominación.
[←9]
La violencia cultural hace referencia a aquellos aspectos culturales y simbólicos que se
utilizan para legitimar la violencia directa y la violencia estructural.
[←10]
No se reduce, pues, a ser ausencia de guerra, sino que exige que se elimine la
dominación en todos los ámbitos de la sociedad, tanto a nivel nacional como internacional.
[←11]
Y no sólo porque la violencia contra los animales desemboque en la violencia contra las
personas, sino también por el propio animal que sufre el maltrato. Defiendo que la violencia
contra un individuo que siente, sea de la especie que sea, es un acto inmoral en tanto que
atenta contra los intereses de ese ser.
[←12]
El antropólogo Marvin Harris define las sociedades patriarcales como aquellas donde
los puestos clave de poder – político, económico, religioso y militar - están mayoritaria o
exclusivamente en manos de los varones (HARRIS, 2000). De acuerdo con esta definición,
sostiene que todas las sociedades conocidas, tanto del pasado como las actuales, son
sociedades patriarcales. El patriarcado, a pesar de variar a lo largo del tiempo, es un
sistema metaestable (Amorós, 2005). Todas las sociedades, en tanto que patriarcales, han
oprimido y desvalorizado a las mujeres en nombre de su supuesta proximidad con la
naturaleza (ORTNER, 1979; ORTNER, 2006).
[←13]
Hablamos de especismo para referirnos al prejuicio que establece la superioridad de la
especie humana sobre el resto de las especies animales.
[←14]
Esta cuestión se explicará en profundidad a lo largo del presente artículo.
[←15]
Ha sido la filósofa ecofeminista Alicia Puleo quien ha hablado del ecofeminismo como
una utopía (PULEO, 2017a).
[←16]
Desde 2016, el propio FBI registra el maltrato animal como un delito contra la sociedad
que, en numerosos casos, se relaciona estrechamente con otros crímenes como los
asesinatos en serie o la violencia de género en las relaciones afectivas. Tal y como han
puesto de manifiesto ciertas investigaciones, el hecho de que niños y adolescentes estén
expuestos a situaciones de maltrato animal puede generar psicopatologías, depresión,
ansiedad o aislamiento social, entre otros (MCPHEDRAN, 2009). Sería conveniente, con el
fin de detectar ciertas patologías, incluir la cuestión del bienestar animal en las instituciones
a favor de la infancia y la familia (RANDOUR, 2007).
[←17]
También la dominación de la naturaleza y la de todos los grupos oprimidos están
conectadas con estas dos dominaciones, tal y como hemos comprobado. Me refiero
concretamente a la dominación de las mujeres y la de los animales por los objetivos que
persigue este texto.
[←18]
La Ética del cuidado aparece como una ética distinta y complementaria de la Ética de la
justicia basada en los derechos y en los principios abstractos. La Ética del cuidado se centra
en las relaciones y en el contexto y revaloriza virtudes como el amor, el cuidado, la no
violencia y la interdependencia (GILLIGAN, 1985). Esta ética tiene que ser una ética
universal, practicada tanto por mujeres como por hombres (GILLIGAN, 2013).
[←19]
En su obra The Pornography of Meat (2004), reproduce numerosas imágenes que
muestran la conexión entre la explotación de los animales como objetos comestibles y la de
las mujeres como objetos sexuales. Afirma que “un aspecto de la pornografía es incluir, en
la escena, un animal no humano para sugerir la animalización de la mujer” (ADAMS, 2004,
104). La traducción es mía.
[←20]
Con este término, Carol Adams se refiere a “la incitación de actitudes opresivas
mediante la feminización y sexualización de los animales y la animalización de las mujeres”
(ADAMS, 2017, p. 75).
[←21]
Si bien desde posturas diversas y, en algunos casos, enfrentadas. La forma en que las
distintas autoras abordan el tema de la explotación animal presenta importantes diferencias.
La oposición fundamental pasaría por la división entre una corriente atomista, centrada en
los individuos y otra corriente holista que considera que lo que tiene valor son los
ecosistemas y las especies. Véase, por ejemplo, el enfrentamiento entre Carol Adams y Val
Plumwood (PLUMWOOD, 2004).
[←22]
Consecuencias tales como construir un carácter violento incapaz de empatizar con el
sufrimiento ajeno, ya sea sufrimiento animal o humano. Véase lo señalado en el tercer
párrafo de la introducción.
[←23]
Numerosos estudios muestran que es muy frecuente que las mujeres maltratadas
presencien escenas de maltrato hacia los animales con los que conviven (ASCIONE y otros,
2007; FLYNN, 2000b).
[←24]
En estos casos de violencia doméstica y violencia de género en las relaciones afectivas,
habría que redefinir el concepto de víctima, de forma que abarque a todos que sufren
violencia y que consideramos miembros de nuestra familia, incluyendo a los animales
(BERNUZ, 2015, LORING y otros, 2007).
[←25]
Sin embargo, esta cosificación se muestra como empoderamiento, de forma que las
mujeres interiorizan que el éxito y el poder se logra a través de una perfección física irreal
(WALTER, 2010).
[←26]
Habría que prestar más atención, tanto desde la perspectiva social como legal, al hecho
de que el maltratador ejerce la violencia contra un ser vivo, lo cual implica un grado de
violencia más alto que en el caso en el que ejerce la violencia contra un objeto (FAVER Y
STARND, 2007).
[←27]
GAARD, Greta. (ed.). Ecofeminism: Women, Animals, Nature. Philadelphia: Temple
University Press, 1993.
[←28]
No inglês: capabilities.
[←29]
Enquanto que na Ética do Cuidado procura-se destacar o significado normativo da
vulnerabilidade e a sua importância para as teorias morais e políticas, na Bioética há uma
ênfase maior na identificação de pessoas e grupos humanos que demandam um cuidado
extra e possuem sua autonomia, dignidade e integridade ameaçada (ROGERS, 2014, p. 60-
87; DALL’AGNOL, 2012). A Ecologia Política se concentra nas relações humanas com o
meio ambiente e com as forças, valores e instituições sociais, culturais e econômicas, dando
especial atenção aos riscos e desastres presentes ou eminentes nestas relações e a
capacidade de resiliência dos indivíduos e grupos (BANKOFF, FRERKS, e HILHORST,
2004; BAKER, 2009). A Teoria Crítica procura oferecer um diagnóstico empiricamente
fundamentado de patologias sociais que impedem a transformação social e a agência dos
indivíduos (ALLEN, 2008). Judith Butler (2004), por sua vez, explora as implicações éticas
da vulnerabilidade do corpo humano exposto a ação de outros e podendo provocar uma
ampla gama de respostas ambíguas, negativas - violência, abuso e desprezo - e/ou
positivas - cuidado, generosidade e amor (ver também Butler, 2009).
[←30]
Os trabalhos de Judith Butler sobre a vulnerabilidade do corpo também são citados
pelas autoras, mas elas o deixam de lado sob o argumento de que são “resistentes à
investigação ética-normativa” (p. 3).
[←31]
Partilham dessa visão, teóricos os mais diversos como Judith Butler (citada na nota de
rodapé acima), Alasdair MacIntyre (Dependent Rational Animals, 1999), Martha Nussbaum
(Fronteiras da Justiça, 2006), Paul Ricoeur (Autonomy and vulnerability, 2007) e Bryan. S.
Turner (Vulnerability and Human Rights, 2006).
[←32]
A instituição dos direitos, por exemplo, protege nossos interesses na medida em que
reconhece haver uma relação entre a privação de direitos e o aumento de vulnerabilidades
entendidas como injustas ou negativas.
[←33]
Tuana (2006) apresenta cinco tipos de ignorância, diferenciadas pelas suas condições
de origem (conjuntos de interesses e dinâmicas de poder). Dois deles implicam
desconhecimento involuntário (não sabemos que não sabemos e não sabemos porque
outros [privilegiados] não querem que saibamos), enquanto que dois deles implicam
ignorância voluntária ou intencional (saber que não sabemos, mas não nos importarmos
com isso e preferimos não saber). O quinto tipo (p. 15) é identificado por ela como uma
postura aberta ao conhecimento, uma habilidade de não saber (aceitar o que não se pode
conhecer, em relação à natureza e aos outros, e adotar uma postura de respeito e
encantamento diante disto).
[←34]
Segundo Mies e Shiva (1993, p. 23), o método reducionista ocidental das ciências teria
dois efeitos centrais: o da redução da riqueza do conhecimento humano plural a um
pequeno grupo de conhecedores e formas autorizadas de conhecer; e o da redução da
natureza e seus processos naturais regenerativos a meros objetos fragmentados e inertes,
passíveis de manipulação. A uniformidade obtida pelo método é tanto ontológica quanto
epistemológica e possui uma perspectiva mecanicista que considera todos os sistemas
(naturais e sociais) divisíveis e manipuláveis, podendo cada peça ou indivíduo ser alienada
do todo (objetivada). Assim, a objetividade almejada e o conhecimento produzido é alheio
ao contexto.
[←35]
Em especial, nas suas obras O Que é a Propriedade? Ou princípio do direito e do
governo (1840); Da criação da ordem na Humanidade (1843) e Sistemas das Contradições
Econômicas ou Filosofia da Miséria (1846).
[←36]
Importante ressaltar que nem todas elas incluem a consideração ética de animais, como
indivíduos, razão pela qual esse capítulo se alinha com o ecofeminismo animalista.
[←37]
Tradução livre do original.
[←38]
Naturismo é o termo cunhado por Karen J. Warren (2000) para designar a dominação
injustificada da natureza.
[←39]
Quilt é o trabalho manual, geralmente feito por mulheres, por meio do qual se unem
diferentes retalhos de tecidos, formando uma única peça. O quilt também pode ser a
aplicação de um tecido sobre a estampa ou parte da estampa de outro, dando-lhe uma nova
textura e tornando-o tridimensional.
[←40]
Artigo adaptado de um capítulo da tese ENTRE GÊNERO E ESPÉCIE: à margem
teórica das Ciências Sociais e do Feminismo, defendida em 11 de junho de 2016.
[←41]
Resenhas não foram analisadas nesta pesquisa por motivos que serão explicados mais
tarde neste mesmo capítulo.
[←42]
“Os Dossiês são uma seção da REF1 dedicada ao diálogo e às articulações entre a
produção acadêmica e intelectual e a militância, o ativismo e as políticas feministas em
relação a temas específicos. São publicados tanto artigos e ensaios no estilo acadêmico,
trazendo análises e reflexões teóricas quanto outros gêneros textuais, como testemunhos,
relatos, entrevistas, entre outros, buscando dar uma panorâmica do tema em questão e
defrontando reflexão teórica com práticas, ações e políticas feministas” (MALUF, 2004, p.
235).
[←43]
A partir de 2004, a Estudos feministas passou a publicar três números por ano,
enquanto a Pagu permaneceu com dois.
[←44]
Desconsidere o ano de 1992 neste gráfico como indicador relevante. Neste ano ainda
não existia a Cadernos Pagu e foi editado apenas um número da REF (volume 0, número
0), especial sobre a Eco92, onde foi comentada a participação de ecofeministas na
conferência, em especial a indiana Vandana Shiva. Trata-se portanto de uma amostra
viciada, que foi mantida no gráfico somente para exaltar o contraste em relação aos anos
seguintes.
[←45]
Ludwig Wittgenstein, em Culture and Value: This is how philosophers should greet each
other: “Take your time!” (Wittgenstein, 1980, p.80).
[←46]
É verdade, no entanto, que o capitalismo transforma em mercadoria, com o tempo e por
meio das justificativas adequadas, até mesmo o silvestre e a praga, vendidos muitas vezes
como iguaria e extravagância luxuosa.
[←47]
Políticas de eliminação é uma expressão usada pela própria Shiva. Mas a ideia de que
a “política atravessa a epistemologia tradicional” (ALCOFF e POTTER, 1993, p. 13) está
presente em todo o corpo das epistemologias feministas que a compreendem também, de
algum modo, como sendo monocultural.
[←48]
Curiosamente, o tradicional pode ser usado de modo diverso para justificar a
manutenção do status quo: no domínio da filosofia, é a tradição que carrega autoridade e
legitimidade, mas em áreas mais afins aos paradigmas científicos propriamente ditos, a
tradição pode ser sinônimo de atraso e subdesenvolvimento.
[←49]
Margaret Atwood levanta uma pista para a compreensão dos (ab)usos que se faz, e que
já se fez, deste conceito ao colocar na boca de Tia Lydia que “existe mais de um tipo de
liberdade. Liberdade para, a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de,
que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos de anarquia, era liberdade para. Agora
a vocês está sendo concedida a liberdade de. Não a subestimem” (ATWOOD, 2017, p. (36).
Talvez a ênfase do discurso monocultural esteja dada para a liberdade de, mesmo quando
ela vem mascarada de empoderamento para (já que o empoderamento de algumas pode se
dar às custas da sujeição de outras): estar livre de pestes, de pragas, de insegurança
(alimentar, urbana, emocional), de violência, de fome, de corrupção. Novamente, quem
desejaria contrariar tal argumento? Embora essa questão não possa ser aprofundada aqui,
ela me parece estar relacionada a uma compreensão especificamente moderna – Iluminista
e frequentemente (mas nem sempre) liberal – de liberdade, cuja construção conceitual
centrada sobre o indivíduo autônomo racional é, de novo, ocidentalizada (masculina,
branca, europeia).
[←50]
Naturalmente, o estupro como arma de guerra não é novidade e exceção
contemporânea. Cf., entre outras, Copelon (1999), Hayden (2000), Martins (2016), Peres
(2011), Smigay (1999), Vito, Gill e Short (2009).
[←51]
Significativamente, as ondas conservadoras e liberais do Brasil do golpe de 2016 têm
manifestado cotidianamente e sem pudores nossa imersão em uma cultura do estupro, para
ameaçar, dominar e punir; muito simbólicos são, neste sentido, os elogios feitos
publicamente em rede nacional desde o púlpito estatal aos torturadores estupradores da
Ditadura Brasileira, durante a votação no processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. Cf. também Quinalha (2016), a respeito do golpe como um golpe contra a
diversidade.
[←52]
E racista igualmente – embora este seja um traço tão evidente da maior parte dos
filósofos Iluministas que me sinto quase escusada em lembrá-lo.
[←53]
Assim como o de Carole Pateman, é claro: Pateman (1993). E que é o que me leva a
enfatizar as questões conceituais e epistemológicas que seguimos reproduzindo
acriticamente na filosofia acadêmica.
[←54]
Cf. a amostragem das ocupações femininas nas cidades medievais fornecida por
Federici (2017, p. 64-65).
[←55]
Distinção fortemente criticada pela teoria política feminista contemporânea, também nos
termos conceituais e epistemológicos aqui salientados. Cf., principalmente, Pateman (1993),
Okin (2008), Miguel e Biroli (2013).
[←56]
Para alguns números aproximados a respeito da caça aos hereges tal como
regimentada pela colonização espanhola e portuguesa sobre residentes e convertidos no
Novo Mundo cf. Novinsky (2012).
[←57]
À guisa de ilustração, as autodenominadas gentes de bem de Ypres do século XII
haviam implorado “ao rei que não permitisse que os bastiões internos do povoado em que
viviam fossem demolidos, dado que os protegiam da ‘gente comum’” (FEDERICI, 2017, p.
95), assim como o editorial do Estado de S. Paulo de 13 de março de 2016 apregoava um
“Basta!” replicado do Correio da Manhã de 31 de março de 1964: “Chegou a hora de os
brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e
que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto
e bom som: basta!” (LOPES, 2016, p. 120-121). Que a execução política sumária se tenha
dado sobre a figura de uma mulher violentamente difamada pela mídia por sua carência de
feminilidade é algo digno dos autos inquisitoriais das gentes de bem.
[←58]
Alcunha não coincidentemente semelhante àquela atribuída ao Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra.
[←59]
Este é um traço característico de minhas reflexões como oriundas das lições
aprendidas com a filosofia de Ludwig Wittgenstein. Para questões especificamente
metodológicas que são críticas à tradição (moderno-contemporânea) da ética normativa, cf.
Sattler (2016).
[←60]
Por ora, estou tratando estas concepções como intercambiáveis, embora elas
comportem diferenças de origem, localização e abrangência, e requeiram maior
detalhamento a ser feito em momento posterior.
[←61]
Um riqueza recuperada em benefício da soberania alimentar e da agrobiodiversidade
está relacionada às Plantas Alimentícias Não Convencionais (as PANC), cuja obra de
expressão mais recente no Brasil é de Lorenzi e Kinupp (2017): “As PANC estão
intrinsecamente ligadas aos Alimentos Orgânicos, Agroecologia, Sustentabilidade,
Resiliência, Segurança e, especialmente, Soberania Alimentar” (p. 26), além de constituir
uma fonte de resistência à indústria de alimentos.
[←62]
Sobre questões ligadas à biopirataria e à indústria farmacêutica no contexto da
colonização capitalista e neoliberal cf. Shiva (2001).
[←63]
Eu integraria o vegetarianismo ou o veganismo a esta rede de conceitos – ao menos
como idealidade – mas de modo tal que o seu imperativo fosse, de novo, inclusivo e não
excludente, a partir da consideração da diversidade dos contextos geográficos e em prol,
aliás, da conservação mesma da própria biodiversidade. Um veganismo elitista é
desrespeitoso da vida como o é o carnivorismo das elites, e um veganismo dogmático pode
ser também epistemicamente discriminatório – além de ser contraproducente. Ainda assim,
me parece óbvio que as políticas sexuais de eliminação e de extinção sejam políticas
sexuais da carne, emanando da mesma centralização de poder do patriarcado. Contudo,
vou deixar para estabelecer em outro momento as relações deste meu projeto com a
Política sexual da carne de Carol J. Adams (2012).
[←64]
Ver: LORI GRUEN (ed.) Ecofeminism: Feminist Intersections with Other Animals and the
Earth. Bloomsbury Academic, 2014.
[←65]
Sobre a ética do cuidado, ver CAROL GILLIGAN. In a Different Voice: Psychological
Theory and Women’s Development. Cambridge M.A: Harvard University Press, 1982.
[←66]
A ideia de Sul global é política e não geográfica, ainda que esteja conectada com a
questão espacial, e está relacionada a trajetória histórica de cada país, continente e região.
Assim, os termos Sul Global, países do Sul e outras variantes referem-se aos povos e
regiões que sofreram com os processos colonizadores impostos pelos povos brancos
eurocêntricos, principalmente a partir do que se chama expansão marítima. A ideia de Sul
também guarda relação com as questões climáticas, raciais, religiosas, patriarcais, culturais,
tecnológicas entre outras.
[←67]
O resultado de algumas destas pesquisas pode ser encontrado em DIAS, Maria Clara
(Org.). A perspectiva dos funcionamentos: por uma abordagem moral mais inclusiva. Rio de
Janeiro: Pirilampo, 2015. Destacamos também as pesquisas de Michelle C. B. Teixeira
(TEIXEIRA, M. C. B. Justiça Social na formação em Saúde: o que ocorre nos corredores
universitários?. 1. ed. Curitiba: CRV, 2016.); Vera Cecília Frossard (FROSSARD, Vera
Cecília. Viver com esquizofrenia: estudo de caso em uma comunidade virtual. 2015. 194 f.
Tese (Doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva) -
UFRJ/UFF/UERJ/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2015.); Suane Soares (SOARES, Suane
Felippe. Um estudo sobre a condição lésbica nas periferias do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva) – Programa
de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.); Maria Clara Dias, Milena Peres e Suane Soares
(PERES, Milena C. C.; SOARES, Suane F.; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no
Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019) e Maria Clara Dias e Letícia
Gonçalves (DIAS, Maria Clara. GONÇALVES, Letícia. O debate sobre aborto no Brasil:
bioética, biopolítica e a Perspectiva dos Funcionamentos como horizonte de justiça. In.:
Metaxy – Revista Brasileira de Cultura e Política em Direitos Humanos – NEPP-DH/UFRJ.
v.1, n. 2, 2017, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).
[←68]
Este texto é fruto da tese em Psicologia da autora. Agradeço à CAPES pelo
financiamento da pesquisa.
[←69]
Processo de modernização agrícola promovida pelos Estados Unidos e por agências da
ONU desde o final dos anos 1940. Através do desenvolvimento em sementes, fertilização do
solo e utilização de máquinas no campo que aumentam a produção, teve grande impacto
nas formas de se fazer agricultura. Ao mesmo tempo, trouxe à tona problemas ligados a
produção em grande escala: empobrecimento dos solos pelas monoculturas, aumento do
uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho no campo, poluição das águas,
entre outras questões.
[←70]
Sementes nativas, mais adaptáveis e resistentes a diversos tipos de ambiente. Elas não
podem ser vendidas, apenas compartilhadas entre agricultoras e agricultores familiares.
[←71]
O trabalho de Ortner será revisto por várias autoras feministas que vão considerar a
relação entre natureza e sexo feminino traçada por Ortner como essencialista, binarista e
heteronormativa, de forma que a própria autora anos depois assumirá as críticas levantadas
e irá rever seu trabalho (DEBERT; ALMEIDA, 2006). Em que pese as críticas tecidas ao seu
trabalho, Ortner vai influenciar o desenvolvimento de diversas correntes teóricas que vão
pensar a questão de gênero em sua relação com a questão ambiental, como o
Ambientalismo Feminista e o Ecofeminismo.
[←72]
É importante frisar que vários autores já faziam uma crítica contundente ao colonialismo
antes disso, como Fanon, Cesaire e Memmi.
[←73]
O termo pós-colonialismo refere-se aqui tanto aos processos emancipatórios a partir do
colonialismo dos países da América, Ásia e África, enquanto forma de dominação político-
administrativa, quanto ao movimento teórico que será analisado ao decorrer do texto.
[←74]
“What knowledge is being acknowledged as such? And what knowledge is not? What
knowledge has been made part of academic agendas? And what knowledge has not?
Whose knowledge is this? Who is acknowledged to have the knowledge? And who is not?
Who can teach knowledge? And who cannot? Who is at the centre? And who remains
outside, at the margins? ”
[←75]
“When they speak it is scientific. When we speak is unscientific.
objective / subjective;
neutral / personal;
rational / emotional;
impartial / partial;
they have facts, we have opinions;
they have knowledge, we have experiences”.
[←76]
O projeto de lei quer mudar o nome dos agrotóxicos para defensivos agrícolas e
produtos fitossanitários. Vai liberar licenças temporárias, e também prevê que a análise dos
produtos proíba apenas as substâncias que apresentem risco inaceitável.
[←77]
Para Haraway (1995), toda a produção de conhecimento implicaria em reconhecer um
ponto de partida que se relacionada com o exercício da produção e o que será produzido.
Table of Contents
PRÓLOGO
APRESENTAÇÃO
PARTE 1
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
PARTE 2
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
AS AUTORAS E OS AUTORES
ORGANIZADOR/AS
Daniela Rosendo
Fabio A. G. Oliveira
Príscila Carvalho
Tânia A. Kuhnen
Camila Rosa
AUTORAS E AUTOR
Alicia H. Puleo
Angélica Velasco Sesma
Daniel Kirjner
Ilze Zirbel
Janyne Sattler
Letícia Gonçalves
Maria Clara Dias
Maria da Graça Costa
Marti Kheel (in memoriam)
Mayara Carrobrez
Patrícia Lessa
Suane Soares
Notas

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