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Inclui bibliografia.
1. Ética (Filosofia moral). 2. Feminismo. 3. Ecofeminismo. I. Título.
CDD 170
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Dedicado à memória de
Marielle Franco e Berta Cáceres
SUMÁRIO
PRÓLOGO
Sandra Guimarães
APRESENTAÇÃO
Daniela Rosendo, Fabio A. G. Oliveira, Príscila Carvalho e Tânia A. Kuhnen
PARTE 1
fundamentos teóricos do ecofeminismo
CAPÍTULO 1
A contribuição do ecofeminismo para a ética animal
Marti Kheel (in memoriam)
CAPÍTULO 2
Ecofeminismo: una alternativa a la globalización
androantropocéntrica
Alicia H. Puleo
CAPÍTULO 3
De la lógica de la dominación al respeto y la empatía: hacia
una relación ecofeminista con los animales y la naturaleza
Angélica Velasco Sesma
CAPÍTULO 4
Por um ecofeminismo animalista: contribuições de Carol
Adams e Greta Gaard
Mayara Carrobrez e Patrícia Lessa
CAPÍTULO 5
Dominação e sofrimento: Um olhar ecofeminista animalista a
partir da vulnerabilidade
Daniela Rosendo e Ilze Zirbel
PARTE 2
práxis ecofeministas interseccionais
CAPÍTULO 6
A inserção do Ecofeminismo no contexto acadêmico
brasileiro
Daniel Kirjner
CAPÍTULO 7
Um projeto ecofeminista para a complexidade da vida
Janyne Sattler
CAPÍTULO 8
A Perspectiva dos Funcionamentos: entroncamentos entre
ecofeminismo e decolonialidade
Maria Clara Dias, Suane Soares e Letícia Gonçalves
CAPÍTULO 9
Conhecimento e luta política das mulheres no movimento
agroecológico: diálogos ecofeminista e descoloniais
Maria da Graça Costa
AS AUTORAS E OS AUTORES
PRÓLOGO
Em 2017, um acontecimento me fez compreender definitivamente a
conexão entre a opressão humana e não-humana. Fato que me levou, no
ano seguinte, a me interessar pelo ecofeminismo e, principalmente, por
sua vertente animalista.
Eu estava entrando no campo de refugiados de Aida, em Belém
(Palestina), quando um gato, saído de uma janela com um pedaço de
galinha na boca, atravessou correndo o meu caminho. Sem refletir muito,
me aproximei da janela a qual ele havia saído e o que vi me chocou em
vários sentidos. Descobri um porão escuro e abafado, onde uma mulher
abatia uma galinha. Ela me olhou sorrindo e eu sorri de volta; mas meu
sorriso desapareceu quando percebi que uma das paredes daquele porão
estava coberta de gaiolas, umas por cima das outras, cheias de galinhas.
Elas eram todas brancas, um tipo de frango produzido exclusivamente
para abate. Quase sem penas, com a pele ferida e as patas deformadas,
amontadas por cima de suas companheiras e presas em gaiolas
minúsculas. Parei de respirar por alguns segundos ao perceber que a
mulher, ainda sorrindo, abatia as galinhas na frente das companheiras
engaioladas, que teriam o mesmo destino.
Continuei o caminho com o coração apertado e me sentindo muito
mal. Eu estava indo para a casa de Islam, uma amiga palestina com
quem trabalho há anos. Pensei que chegando lá contaria o ocorrido e
tentaria abrir uma discussão sobre opressão não-humana com ela e,
quem sabe, talvez levasse o assunto aos ouvidos da vizinha que possuía
o abatedouro no porão.
Mal tive tempo de cumprimentar minha amiga quando ela avisou que
tinha algo urgente pra resolver fora de casa, mas que eu ficasse à
vontade. Fiquei ali, tomando o chá feito por ela, na mais completa
incompreensão. Islam voltou meia hora depois, sentou-se ao meu lado e,
enquanto servia-se de chá, explicou-me o que tinha ido fazer. Descobri
que no exato momento em que eu me espantava com a situação cruel
das galinhas naquele porão escuro, soldados israelenses invadiam o
outro lado do campo de refugiados. O lado onde fica o campo de futebol
e o parquinho, únicos espaços de lazer das crianças. Os meninos
jogavam futebol e os soldados atiraram gás lacrimogêneo neles antes de
invadirem o campo. Mahmud, filho de Islam, conseguiu escapar, mas
várias crianças foram detidas pelos soldados, a mais nova tinha apenas 7
anos, dentre elas estava Abdala, 16 anos, sobrinho de Islam. Cheguei à
sua casa no exato momento em que a notícia de que o sobrinho tinha
sido detido pelos soldados chegava aos seus ouvidos. Como a cunhada
de Islam, mãe de Abdala, não estava em casa, ela foi correndo tentar
resgatar o sobrinho. Segue o que ela me contou enquanto bebia o chá e
retomava o fôlego: “Ao chegar no portão da base militar israelense dentro
do campo, para onde os soldados levam as pessoas detidas, encontrei as
mães das outras crianças já no local, gritando para os soldados liberarem
as crianças. Eu fiquei com medo dos soldados jogarem gás lacrimogêneo
na gente, pois eles sempre fazem isso quando nos aproximamos do
portão e você sabe que sofro de asma e posso morrer sufocada por
causa desse gás. Mas eu não podia deixar Abdala ser preso. Como eu
era a única mulher ali que falava Inglês, aproximei-me do soldado que
abriu uma janelinha no portão e falei pra ele soltar o meu filho. Você sabe
que quando uma criança palestina é presa pelos soldados se torna o filho
ou a filha de todas as mães daqui. Expliquei que meu filho não havia feito
nada de errado, apenas jogava futebol com as outras crianças e que
nenhuma delas merecia estar presa. O soldado riu e disse que sabia que
as crianças não tinham feito nada de errado, mas que continuariam
detidas. Eu olhei nos olhos dele e disse: ‘Eu não tenho medo de vocês.
Ouviu? Eu não tenho medo de vocês! Vocês roubaram as terras dos
nossos avós, expulsaram nossas famílias de suas casas, ocuparam o
nosso país, roubaram nossos recursos. O que mais querem de nós?
Levar nossas crianças? Traga o meu filho de volta. Agora!’ Pela janela no
portão eu podia ver Abdala e as outras crianças algemadas, no meio de
alguns soldados. Depois de muito gritar e bater no portão com as outras
mães, o soldado trouxe Abdala. Mas do lugar onde ele estava detido até
onde eu estava ele veio apanhando. Os soldados continuaram batendo
nele até eu conseguir alcançar o seu corpo e trazê-lo pro meu lado. Sem
soltar Abdala, virei pros soldados e exigi que as outras crianças também
fossem liberadas. Um deles disse que já tinha devolvido o meu filho e
gritou pra eu ir embora. Mas depois de insistir com as outras mães, todas
as crianças foram liberadas. Abdala está em casa, esperando a mãe
voltar. Ele está coberto de hematomas. Meus joelhos ainda estão
tremendo.” Ela apontou para os joelhos trêmulos enquanto ria, não sei se
de nervoso ou de alívio. Provavelmente ambos.
Islam me contou que daquela vez tinha conseguido resgatar as
crianças, mas sabia que os soldados voltariam, provavelmente no meio
da noite, como é de costume. Ficava a certeza de que nada poderia
fazer para impedir o exército israelense de arrancar seu filho, sobrinhos
ou vizinhos de suas camas e os jogarem nos jipes militares que os
conduzem para serem interrogados sem a presenças dos pais, além de
torturados físico e emocionalmente, e presos sem nenhuma acusação
formal ou julgamento.
Depois de ter ouvido minha amiga narrar como tinha arriscado a vida
para resgatar as crianças do campo, eu não consegui contar para ela a
história das galinhas presas em condições cruéis, vendo as
companheiras sendo assassinadas e sabendo que seriam, em algum
momento, as próximas vítimas. As palestinas expulsas de suas terras,
amontoadas em campos de refugiados desde 1948, passaram a criar
galinhas nos porões de suas casas humildes como uma das únicas
alternativas para produzirem alimentos para a comunidade. Privadas da
terra, essas filhas e netas de agricultores viram nesse tipo de atividade a
única alternativa para alimentarem suas famílias, mas elas próprias, e
suas famílias, se encontram em uma prisão maior: a ocupação e
colonização israelense na Palestina. E sabem que a privação total de
liberdade, a tortura e a morte de seus entes queridos nunca estão muito
distantes. A pergunta nunca é se, mas quando.
Não há como separar o debate da emancipação humana do debate
da emancipação animal e do meio-ambiente. As relações entre
colonialismo, capitalismo e patriarcado e as consequências negativas
dessas ideologias na Palestina são as mesmas vistas em outros lugares
do mundo, incluindo o Brasil. O ecofeminismo animalista vem com a
missão de quebrar a relação instrumental que os seres humanos têm
com a natureza e propõe a construção de uma ponte conectando todas
as lutas antiopressão.
Sandra Guimarães
Feminista, cozinheira vegana potiguar,
ativista pela causa humana e não-humana,
escritora e autora do blog Papacapim
APRESENTAÇÃO
Ao longo dos últimos anos, no Brasil e no mundo, muitas pessoas
têm assumido um olhar feminista para pensar a questão animal e
ambiental em diferentes áreas das humanidades. A fim de contribuir para
que esse olhar se amplie e se consolide, esta obra de caráter
interdisciplinar reúne colaborações teórico-empíricas compondo uma rede
conectada de pensamento em torno do paradigma ecofeminista. A
presente coletânea procurou reunir trabalhos em diferentes linhas de
pesquisa, de forma que a base comum, e associada, que produz a
opressão e exploração de mulheres, animais não humanos e da natureza
fosse elucidada e considerada em sua extensão, amplitude,
complexidade e totalidade.
Entende-se que o pensamento ecofeminista, a partir de suas
diferentes abordagens, vozes, formas e localizações apresenta um
potencial teórico para pensar criticamente as relações humanas com
outros animais e com a natureza, bem como permite realizar um
diagnóstico e propor saídas para o não-lugar ocupado pelas minorias
políticas ainda assentadas em toda sorte de dominações e exclusões.
Apesar disso, os ecofeminismos ainda são pouco conhecidos e
estudados no âmbito acadêmico do Brasil e, quando emergem, acabam
geralmente ocupando um espaço à margem nos campos teóricos,
geralmente tomados por problemas e pensadores clássicos nas
diferentes áreas de pesquisa das humanidades. Talvez as mulheres
estejam mais próximas às atividades e engajamentos ecofeministas no
Brasil à medida que estão organizadas em sua maioria em movimentos
sociais. Porém, elas ainda não priorizaram uma expressão mais
demarcada no campo teórico acadêmico, embora as vizinhas latino-
americanas já sinalizem perspectivas decoloniais promissoras.
Diante desse cenário, e da existência de poucos trabalhos em língua
portuguesa que levem em conta as abordagens ecofeministas na análise
filosófica e sociológica de questões da ética e política animal e ambiental,
esta obra busca contribuir para ampliar esse debate. As questões
apontam as diferenças de raça, classe, gênero e espécie como fatores
agravantes das desigualdades sociais, além de formarem interconexões
entre esses modos de exploração, por meio da junção de diferentes
propostas de escrita individuais e coletivas, com seus respectivos
recortes teóricos pautados em contribuições desenvolvidas no âmbito do
pensamento ecofeminista.
Buscou-se, a partir de cada um dos capítulos apresentados,
constituir uma obra que represente a diversidade dos ecofeminismos por
meio da representação dos diferentes modos de pensar as conexões
existentes entre a dominação das mulheres, da natureza e dos animais
considerados individualmente, ainda que não se pretenda chegar a um
panorama geral acerca das produções ecofeministas. Assim, as
investigações, perspectivas e diálogo ora apresentados não se propõem
a oferecer um manual ecofeminista, tampouco dar conta de todas as
sutilezas, singularidades, originalidades e controversas expressas no
interior do pensamento ecofeminista. Menos ainda se busca formar uma
voz uníssona em torno do termo ecofeminismo. Não obstante, tratando-
se de uma visão conectada das opressões, procurou-se incluir a
opressão animalista, algumas vezes esquecida ou não contemplada em
algumas perspectivas ecofeministas.
Na tentativa de contrapor-se ao modelo de manutenção de
hierarquias de opressão, esta coletânea, ao reunir diferentes abordagens
do ecofeminismo, pretende contribuir ainda para superar a ausência dos
ecofeminismos no ambiente acadêmico, tornando mais conhecidas e
lidas as mulheres escritoras ecofeministas, que se ocupam tanto de
questões teóricas quanto práticas. Por isso, não se trata de uma obra
alinhada exclusivamente à filosofia ecofeminista, mas de uma tentativa de
alcançar, pelo menos em alguma medida, a integração entre teoria e
prática, amparada em leituras interseccionais. A epistemologia e a práxis
nas abordagens ecofeministas são construídas de forma inter-relacional,
conforme se pode observar nos textos apresentados ao longo desta obra,
o que corrobora o fato histórico de que o diálogo entre a teoria e a
prática, como forma de rejeição ao binarismos hierárquicos de valor,
sempre foi uma marca central do ecofeminismo. Nessa acepção, pode-se
perceber uma interação entre os capítulos, conforme serão apresentados
a seguir. Composta por nove capítulos, a obra se estrutura em duas
partes: a primeira possui cinco capítulos sobre os fundamentos teóricos
do ecofeminismo, ao passo que a segunda parte é constituída por quatro
capítulos sobre as práxis ecofeministas interseccionais.
Inaugurando a primeira parte, Marti Kheel (in memoriam) relata sua
trajetória de encontro com a questão animal e o caminho teórico
percorrido até chegar ao ecofeminismo, em um texto traduzido por
Daniela Rosendo. Trata-se de uma produção apresentada originalmente
em sua vinda ao Brasil em 2010, em uma palestra realizada em
Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina, no âmbito do
projeto Feminismo ecoanimalista: Contribuições para a superação da
violência e da discriminação, coordenado pela professora Dra. Sônia T.
Felipe. Ao longo de seu capítulo, Kheel procura salientar as contribuições
de uma ética do cuidado holista e ecofeminista para a ética animal. Para
tanto, considera a ética do cuidado fundamental para fazer frente ao
modelo dominante na ética ocidental que atua mais voltada para a
correção de danos do que na prevenção de situações que causem
sofrimento aos animais, bem como promovem a destruição ambiental.
Em contraposição à ética tradicional, ela propõe uma abordagem ética
pautada na prevenção de ações danosas por meio de práticas educativas
que estimulem a empatia em todos os seres humanos, sobretudo nos
homens que, em razão da formação de gênero que associa
masculinidade à violência, são em geral dessensibilizados e frustrados no
desenvolvimento de vínculos baseados na empatia. A autora desenvolve
seus argumentos em torno de quatro elementos-chave que representam
condições a serem satisfeitas dentro de uma ética do cuidado
ecofeminista, quais sejam: 1) priorizar a prevenção do dano à natureza
por meio do desenvolvimento da empatia para com outras formas de
vida; 2) avaliar ações morais a partir da reconstrução do entorno
contextual no qual tal ação se apresenta na forma de um problema ou
dilema moral em detrimento de comandos universais abstratos; 3) manter
o foco em atos de atenção paciente pautados no despertar de uma
consciência interna responsável; e 4) adotar uma prática vegana que
reconhece a alimentação como um ato com impacto social e político. A
partir desses elementos, é possível caminhar para uma sociedade de
não-violência para com todos os seres vivos.
No capítulo desenvolvido por Alicia Puleo, a pensadora parte do
diagnóstico contemporâneo da devastação ambiental - que resulta na
intensificação sem precedentes das mudanças climáticas-, para sustentar
um outro mundo possível direcionado para uma ecojustiça que proteja os
mais vulneráveis dos efeitos negativos desses processos, inclusive os
animais não humanos até então domesticados e escravizados, bem como
os silvestres extirpados de seus ambientes naturais de vida. Fazendo
frente à desconfiança que foi atrelada ao termo ecofeminismo, Puleo
apresenta uma proposta construtivista descolada de conceituações
essencialistas que ainda se filiam ao antropocentrismo. A concepção da
autora contempla a reivindicação da preservação dos direitos sexuais e
reprodutivos das mulheres; a defesa de uma tecnologia e um
conhecimento científico compatível com o princípio da precaução e à
conscientização sobre o pertencimento ao tecido da vida múltipla e
multiforme do planeta. Puleo propõe que a diferença cultural seja tratada
em sua dimensão de troca e aprendizagem intercultural, sem veneração
ou hierarquia, ao mesmo tempo em que se procura eliminar diferentes
formas de opressão internas às culturas. Além disso, Puleo chama a
atenção para a necessidade da sororidade entre as mulheres, cabendo
às habitantes do Norte a consciência de que a pujança de suas
sociedades advém da exploração das sociedades do Sul que prejudica,
sobretudo, mulheres e crianças; assim como o desvelamento da lógica
androcêntrica a partir da qual se mede o valor de tudo. Em seu lugar,
Puleo propõe a valorização da empatia e de práticas do cuidado
responsável nas inter-relações entre humanos e nas relações dos
humanos com membros das demais espécies. Ainda especificamente
com relação aos animais não humanos, Puleo destaca a necessidade de
o feminismo se unir ao animalismo para desafiar a ordem patriarcal
especista e buscar relações livres de violência e exploração entre
humanos e os demais animais.
Ao se filiar à concepção teórica ecofeminista de Alicia Puleo, no
capítulo três Angélica Velasco Sesma explora as conexões entre os
sistemas de opressão que tornam o especismo antropocêntrico e o
sexismo patriarcal igualmente condenáveis e associáveis através do que
chama de ideologia da subordinação-dominação-exploração. Ao fazê-lo,
Sesma chama atenção para a ineficácia e incoerência do isolamento dos
movimentos em defesa animal e dos movimentos feministas. A autora
mostra que já entre algumas feministas sufragistas havia uma
preocupação com o sofrimento animal, ao passo que em outras
feministas mais teóricas tal preocupação não aparece. Sesma endossa a
contribuição de Carol Adams em evidenciar a similitude entre a
dominação das mulheres como objetos sexuais e a de animais não
humanos como objetos comestíveis, assim como destaca sua análise
sobre a violência e opressão autorizada pela feminização dos animais
não humanos e animalização das mulheres, que Adams conceitua de
antropornografia. O argumento de Sesma para tornar indefensável o
sofrimento animal é a condição senciente da natureza animal. Além
disso, pensando o especismo como o estabelecimento de uma visão de
superioridade, hierarquização e dominação, a autora reúne esforços para
demonstrar que para combater as formas de violência contra as
mulheres, estruturais e culturais, é preciso combater a lógica que
sustenta tanto o patriarcado como o especismo. Esses sistemas de
dominação seriam regidos por uma lógica conceitual que permite aos
homens se autoproclamarem como superiores e se portarem como
dominadores opressivos em nível estrutural, tanto com relação aos
animais como com mulheres. Contra essas estruturas opressivas, Sesma
apresenta a defesa da paz sustentada por uma noção de justiça
associada à Ética do Cuidado, desenvolvida pela teórica Carol Gilligan.
Devido ao fato de seu enfoque contextual e relacional ser capaz de
atribuir valor à empatia, a não violência etc., Sesma atribui ao cuidado o
status de virtude ética universalizável para mulheres e homens. Para a
autora, complementando a Ética da Justiça, centrada nos direitos, a Ética
do Cuidado é uma Ética das Virtudes. Originalmente desenvolvida por
Aristóteles, a Ética das Virtudes na forma proposta por Sesma é
defendida como apoio para o desenvolvimento do caráter, considerado
pela autora indispensável no engajamento humano para a construção de
uma cultura da paz. Por essa, razão ela conclui que as éticas feministas e
animalistas deveriam tomá-la como central. Concluindo que a cultura da
paz não será possível enquanto houver opressões e injustiças, a autora
enfatiza a urgência de desenvolver relações ecofeministas baseadas no
respeito empático, na ética do cuidado, na consciência da interconexão e
interdependência entre natureza e todos os animais e na ruptura com o
androcentrismo, o classismo, o racismo, o especismo e com qualquer
forma de opressão.
No capítulo quatro, escrito por Mayara Carrobrez e Patrícia Lessa,
parte-se do reconhecimento multidisciplinar dos feminismos, para
apresentar o ecofeminismo como um questionamento ao dualismo
antagônico homem-cultura e mulher-natureza. A proposta é enfatizar que
apesar de ser um produto da construção ocidental patriarcal, as mulheres
poderiam subvertê-lo ao ocupar a parte cultural do dualismo que as afeta
mais profundamente ao redor do mundo, colocando em questão sua
subjugação, assim como a da natureza. Com o objetivo de pensar um
feminismo vegano, as autoras destacam as contribuições das
ecofeministas Greta Gaard e Carol Adams, que dialogam entre si pela via
da problematização da exploração dos animais como uma face do
dualismo cultura-natureza. Gaard contribui com a defesa de uma dieta
vegetariana, cuja ruptura com o dualismo hierárquico desautoriza
também a dominação dos animais. Além disso, a autora é referida por
defender um ecofeminismo plural e queer capaz de colocar em questão a
heteronormatividade também pressuposta na natureza, apontando para a
fertilidade de um ecofeminismo renovado por meio de novas
epistemologias a fim de combater a exploração especista. Adams é
chamada a contribuir com suas análises sobre feminismo e veganismo,
bem como sobre a relação entre o patriarcado e a prática do consumo de
animais como alimentos. Carrobrez e Lessa concluem o capítulo
alertando para a necessidade de ressignificar a visão humana sobre os
animais e ampliar a percepção humana sobre si e a natureza, buscando
construir rotas de fuga das formas de dominação inerentes à cultura
patriarcal.
O capítulo de Daniela Rosendo e Ilze Zirbel oferece uma
caracterização da vulnerabilidade, ressaltando a necessidade de se dar
atenção a seus aspectos positivos e não apenas negativos, como a
literatura sobre o tema em geral parece pressupor. Evidencia-se que
prevalece uma lógica de ignorância programada sobre a vulnerabilidade
associada a modelos de dominação, quando se nega sua existência em
indivíduos privilegiados, como se a vulnerabilidade não fosse uma
disposição inerente à vida, humana e não humana. Nessa lógica, a
vulnerabilidade representa uma expressão de fraqueza de todos aqueles
que não integram o grupo dominador. Por isso, ao proporem a superação
da lógica da dominação, conforme caracterizada por Karen Warren, a
partir da qual modelos dualistas de valor hierarquicamente organizados
sustentam diferentes ismos de dominação (sexismo, especismo,
classismo, heterossexismo, racismo etc.), Rosendo e Zirbel defendem a
importância de se pensar uma filosofia política ecofeminista como teoria
em processo sensível ao cuidado e à condição da vulnerabilidade,
inclusiva e não discriminatória, seja em relação aos humanos, aos
animais não humanos ou à natureza. Trata-se de uma abordagem que
parte da unidade na diversidade e encontra nas intersecções e na
interdependência a chave para colocar permanentemente em questão
diferentes sistemas de dominação que assumem configurações diversas,
mas sempre promovem separação, irresponsabilidade, prejuízos,
sofrimento e dano ao redor do mundo.
Inaugurando a segunda parte da obra, direcionada à práxis
ecofeminista, Daniel Kirjner investiga a presença do ecofeminismo como
teoria de gênero que intersecciona gênero, raça e espécie nas revistas
feministas brasileiras. Elegendo duas revistas de alcance internacional,
Estudos Feministas (REF) e Cadernos Pagu, Kirjner explicita as diversas
razões que as qualificam como referência plural e de qualidade, entre
elas o perfil feminista associado às instituições de ensino de excelência
do país, a saber, a UFSC e a Unicamp, respectivamente. Além de serem
abrangentes, ambas promovem espaço para diálogo e trocas entre
academia e movimentos sociais. Para o autor, o ecofeminismo se
restringiu a uma realidade branca, cristã e elitista, que se revela pelos
elementos que aproximam autoras como Carol Adams, Marti Kheel, Lori
Gruen, Patricce Jones e Lisa Kemmerer, por exemplo. A proximidade
entre suas origens sociais, nacionalidade e raça denota esse lugar a
partir do qual elas produzem suas teorias ecofeministas. Kirjner faz
exceção à ecofeminista indiana Vandana Shiva e destaca que no
ecofeminismo latinamericano a feminista mais renomada é a brasileira
filiada à Teologia da Libertação, Ivone Gebara. Kirjner pontua que apesar
de Gebara fazer questionamentos importantes quanto ao eurocentrismo,
androcentrismo e antropocentrismo, ela identificaria pessoas
empobrecidas com a ideia de necessidade de caridade e a salvação e
não como donas de suas identidades. Para o autor, isso criaria uma
distância entre aqueles que salvam e a população vitimizada, o que
causaria um um limite importante do ecofeminismo em relação à
realidade brasileira. Kirjner reconhece o papel descolonizador nas
contribuições de Vandana Shiva e Bina Agarwal, porém não o estende à
contribuição brasileira, quando toma Ivone Guebara como exemplo
paradigmático. O autor observa que embora as publicações feministas na
REF e na Pagu pautem a militância acadêmica e social antiracista, o
ecofeminismo não o faria se considerado o universo editorial sem a
presença de uma posição expressamente descolonialista ou antiracista. A
desestabilização da ideia de humanidade é o aspecto crítico que Kirjner
destaca das contribuições ecofeministas que se opõem ao especismo e
ao antropocentrismo, caso das perspectivas ecofeministas animalistas,
mas que as mesmas não aparecem na linha editorial das revistas
brasileiras mais destacadas. Ao destacar a luta histórica do movimento
negro para o reconhecimento de mulheres negras como humanas conclui
que o feminismo racial de terceiro mundo se arriscaria mais ao interceder
pelos animais, que as feministas brancas dos EUA e da Europa. Não
obstante, tomando diversas autoras como referências, Kirjner sustenta
que o fato do especismo constituir-se como ferramenta racista e sexista
torna importante para a reflexão brasileira a perspectiva feminista
interespécies, que atualmente se encontra ainda marginalizada entre as
publicações brasileiras.
No capítulo de Janyne Sattler, filiada às contribuições teóricas de
Vandana Shiva e Silvia Federici, é apresentada uma narrativa sobre a
eliminação histórica, social e epistemológica dos saberes da terra pelo
seu envolvimento nas redes capitalistas regidas pela lógica monocultural,
que compõem uma realidade disciplinar e bioimperialista. Essa lógica
permanece lado a lado com a racionalidade progressista ocidental que
sustenta um projeto de desenvolvimento excludente e exploratório e
mede o valor das coisas desde a expectativa e meta da produção
mercadológica, da maximização do lucro e a curto prazo. Tudo o que
resiste a essa lógica tem seu valor negado, é caracterizado como
ineficaz, inconveniente, improdutivo, maligno, danoso, e, por isso, pode
ser objeto das políticas de eliminação, que perpassam os sistemas
sexuais, raciais e classistas. Nesse contexto, os povos comunais, com
seus modos de vida cooperativos e sustentáveis de se relacionar com a
terra, que lhes garante a subsistência, constituem uma insurreição e
subversão à ordem privatista, individualista e desagregadora do
capitalismo. Sattler chama a Filosofia à responsabilidade por contribuir,
com seus contorcionismos teóricos, para essas políticas da eliminação
levadas a cabo pelo sistema capitalista monocultural, quando sua
linguagem molda a realidade dicotômica, valorativa e hierarquicamente. A
superação das monoculturas requer, na concepção da autora, um projeto
alternativo para a liberdade humana e não humana que pode ser
chamado de ecofeminista, ao pretender resgatar memórias do saber
político localizado das mulheres em direção ao reconhecimento da
complexidade da vida, da valorização da biodiversidade e dos
ecossistemas. Trata-se de uma construção em rede menos abstrata, mais
cooperativa, dinâmica, democrática, compreensiva, fluída, não autoritária
e não dogmática que esteja atenta à diversidade das formas de vida
humanas e não humanas, e afastada das formas históricas de controle e
hierarquização da vida. Tal projeto coloca seriamente em questão o
agronegócio e direciona-se para a defesa de concepções agroecológicas
que dependem da compreensão da diversidade e da complexidade da
vida, bem como da valorização de saberes localizados e memória
contextualizada da produção de alimentos, em relação estreita com a
fauna e com a flora locais.
No oitavo capítulo, Maria Clara Dias, Suane Soares e Letícia
Gonçalves apresentam um encontro entre o ecofeminismo e as teorias
decoloniais. Para estabelecer tal aproximação, as autoras reconhecem a
exploração e escravização tanto dos povos originários quanto dos
animais e das plantas das Américas, África e Ásia. Neste sentido, haveria
elementos que permitiriam não somente traçar diagnósticos e
associações simbólicas e materiais acerca da exploração e subjugação
da mulheres, natureza, animais não humanos e população humana do
Sul global, mas existiriam caminhos possíveis para problematizar e
enfrentar a colonialidade e o eurocentrismo, a partir de uma matriz
ecofeminista decolonial. As autoras assentam suas discussões a partir
das críticas às epistemologias dominantes que visam a produzir discursos
identitários generalizantes que não somente reduzem e simplificam a vida
do indivíduo dominado, mas o subalternizam. Tal subalternização,
segundo as autoras, permite a operação de um complexo sistema de
opressão, dominação e exploração. Esse sistema, situado em uma lógica
patriarcal, cisheterocentrada, racista, elitista, urbana e especista só pode
ser pensado criticamente à luz de um ecofeminismo comprometido com
tais lutas. As autoras destacam que essa resposta reconhece que a
colonização não funciona sem a exploração da natureza, que por sua vez
não funciona sem a colonização dos povos do Sul global. Por fim, Dias,
Soares e Gonçalves invocam a Perspectiva dos Funcionamentos como
teoria moral que descreve tal enfrentamento enquanto um problema de
justiça. Trata-se, segundo as autoras, de um enfoque que permite
estabelecermos as bases para o reconhecimento de uma vida plena a
cada indivíduo.
No último capítulo, Maria das Graças da Costa nos traz o cenário em
que a agroecologia se desenvolve. Em ruptura com a modernização
agrícola produzida pelos EUA e pela ONU em fins de 1940 – a chamada
revolução verde –, a agroecologia se torna um movimento social, técnico
e teórico mobilizado tanto por profissionais das ciências agrárias quanto
por organizações não governamentais, bem como posteriormente por
comunidades rurais e movimentos sociais. Para Costa, no Brasil
encontram-se duas abordagens agroecológicas diferentes, quais sejam, a
técnico-científica e a dos movimentos sociais. As contribuições de ambas
representariam o debate ético e político travado no campo da
agroecologia. Os movimentos sociais se diferenciam adotando em suas
agendas políticas inúmeras propostas de políticas públicas pautadas em
um modelo de desenvolvimento rural baseado na produção orgânica. A
crítica à monocultura, à poluição das águas, ao empobrecimento da vida
de trabalhadores(as) torna-se ponto importante desse modelo de
desenvolvimento que se tornará parte da agenda da Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA), fazendo surgir para o debate público a
agroecologia como modo de vida e como projeto de sociedade. É nesse
contexto que o capítulo de Costa procura inserir o pano de fundo
antropocêntrico, racista, capitalista, colonialista e patriarcal no âmbito das
ciências, das tecnologias e das relações sociais. Procura também inserir
o papel de relevância do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC),
indígenas e negras tanto na criação da agroecologia brasileira quanto no
feminismo ambientalista brasileiro e latinoamericano. Não obstante, é
ainda nesse contexto que Costa situa a questão das desigualdades no
interior da agroecologia no que tange às questões de gênero, defendendo
a necessidade de decolonização dos saberes e dos discursos na
agroecologia a fim de dar lugar às mulheres indígenas, negras,
camponesas em geral e demais subalternizadas(os) por meio de um
debate interseccional.
Propor e reunir os textos e apresentá-los nesta obra, situa-nos em
um momento que, desde um olhar crítico aos paradigmas androcêntricos,
antropocêntricos, especistas e ecocidas faz produzir novos panoramas e
discursos que se consolidam na práxis ecofeminista. Reconhecer e
defender a necessidade de incorporação do olhar ecofeminista diante do
mundo implica, portanto, em restaurar a dignidade do coletivo mulheres
na luta socioambiental, aqui compreendida de forma ampla e integrada
como uma luta por justiça. As variações de interpretações,
epistemologias e cosmovisões que se encontram nos ecofeminismos
representam justamente a dinâmica e pluralidade de ações dessas
perspectivas frente às violências e às injustiças epistêmicas produzidas
secularmente contra grupos de mulheres, natureza, povos tradicionais e
animais não humanos. Desse modo, confrontar os processos de
violência, exploração, marginalização, invisibilidade, precariedade,
subalternidade e negação de direitos básicos em um cotidiano marcado
pela tentativa de naturalização dessas práticas pela estrutura patriarcal,
especista e ecocida são questões sobre as quais as teorias ecofeministas
se debruçam. Tais problematizações são apresentadas e trabalhadas nos
textos aqui reunidos. Por essas, e outras razões, agradecemos às
pesquisadoras que aceitaram o desafio de pensar, conjuntamente, a
práxis ecofeminista e seus desdobramentos para construirmos formas de
destituir paradigmas opressivos e construir propostas mais justas.
Igualmente agradecemos à ilustradora da capa, a artista Camila Rosa,
que gentilmente elaborou e cedeu a arte que simboliza a diversidade dos
ecofeminismos; a Denis Duarte, pela parceria e generosidade na
elaboração detalhada e cuidadosa da capa e contracapa desta obra; e a
Sandra Guimarães por compartilhar conosco no prólogo deste livro a
importância de se pensar no ecofeminismo como uma via para a luta
antiopressão humana e não-humana, de forma interseccionada.
Para finalizar esta apresentação, sinaliza-se um cenário promissor
nos estudos ecofeministas no Brasil que aos poucos vai alcançando
autonomia discursiva, epistemológica e ética, com força teórica
compatível com as produções internacionais - também exemplificadas
aqui por meio das contribuições das autoras espanholas que integram
esta coletânea. É importante frisar que as autoras e o autor que
compõem a rede ecofeminista deste livro são integralmente responsáveis
pelo conteúdo de seus capítulos, interpretações realizadas e
compreensões teóricas desenvolvidas ao longo de suas produções.
Às leitoras e aos leitores, desde logo, desejamos uma ótima leitura.
Referências
BEAUVOIR, Simone De. The Second Sex. New York: Random House,
2010.
DUCAT, Stephen. The Wimp Factor: Gender Gaps, Holy War, and the
Politics of Anxious Masculinity. Boston, MA: Beacon Pres, 2004.
SESSIONS, George; DEVALL, Bill. Deep Ecology. Salt Lake City, UT:
G.M. Smith, 1985.
Introducción
Vivimos una emergencia ecológica planetaria cada vez más
evidente. A la tala de bosques, la pérdida de la biodiversidad y la
contaminación de agua, aire y tierra, se suma ahora la evidencia del
cambio climático. La globalización es también esto. Hay quien continúa
en posiciones negacionistas. Otros, cada vez más numerosos, reconocen
que este cambio es una realidad y concluyen que se puede entender
como un buen negocio para los países más desarrollados. Estos, se nos
dice, podrán protegerse de las transformaciones ecosistémicas y vender
tecnología para ello a aquellos países que por subdesarrollo técnico no
hayan sido capaces de poner en marcha mecanismos adaptados a los
fenómenos debidos a la desestabilización climática tales como la subida
del nivel del mar, las sequías, inundaciones, tornados, hambrunas y
escasez de agua potable. Se empieza a oír cada vez más el término
Antropoceno para denominar a la época que se abrió con la
industrialización, un período en que adquirimos una potencia técnica
inédita de modificar la Tierra (RIECHMANN, 2016). Cambio climático
patente y acelerado, desertización, deforestación, ecocidio, graves
enfermedades producidas por la contaminación ambiental son la cara
perversa de esta nueva era.
A esta altura de la degradación ambiental, no se trata sólo de
defender los derechos de las generaciones futuras (un objetivo que sigue
siendo correcto y relevante, sin duda), sino de actuar en defensa de las
personas que viven hoy en el mundo, en particular de las poblaciones
más vulnerables de los países empobrecidos, y entre ellas, de las
mujeres y las niñas y niños, primeras víctimas de la devastación
ambiental. La justicia social implica hoy una ecojusticia que atienda a los
conflictos ecológicos distributivos tal como lo ha demostrado la Economía
Ecológica con su concepto de ecologismo de los pobres (MARTÍNEZ
ALIER, 2004). Y la ecojusticia sería incompleta si no se tiene en cuenta
también a los millones de animales no humanos que nuestra especie
esclaviza y condena a muerte, a los que roba sus vidas en las granjas
industriales (JOY, 2013) y a los animales silvestres acosados en sus
territorios. Un potente movimiento animalista internacional está dando por
fin voz a los que no tienen voz.
Hace casi medio siglo, diversos informes científicos alertaron sobre
los nuevos peligros medioambientales y sobre la posibilidad de un
colapso en el siglo XXI. El ecologismo inició su andadura como
movimiento organizado en los países industrializados, en aquellos en que
la población, o al menos su juventud más educada, se había cansado del
espejismo hedonista contemporáneo que prometía la felicidad a través de
la acumulación de un sinfín de objetos materiales. En la actualidad, a ese
ecologismo urbano se le ha sumado, en algunas zonas rurales de los
países empobrecidos, un nuevo ecologismo que, a menudo, ni siquiera
se autodenomina así pero que también se inspira en un modelo diferente
de lo que es la calidad de vida y, sobre todo, se activa por la
desesperación de quien todo lo pierde: sus tierras, su cultura y hasta su
vida. La desesperada resistencia de la población indígena y campesina a
los proyectos extractivistas de megaminería y de monocultivos
transgénicos en América Latina es hoy una referencia para el movimiento
ecologista mundial. Frente a la racionalidad reducida del homo
oeconomicus se yerguen paradigmas alternativos como la Ecología
Social, el Decrecimiento y la Soberanía Alimentaria. La Ecología en tanto
ciencia nos ha enseñado a pensar la Naturaleza en términos holísticos y
éstos han mostrado ser incompatibles con los cálculos basados en el
beneficio económico individual a corto plazo.
Las bases del movimiento ecologista mundial son mayoritariamente
femeninas. Este hecho es aún más marcado en el caso del movimiento
animalista. Se han avanzado diversas hipótesis sobre este interés de las
mujeres. Las explicaciones han sido fundamentalmente de dos tipos: las
de orden biologicista que enfatizaban su papel en la reproducción de la
especie y las de tipo constructivista que analizaban la posición marginal
del colectivo femenino en el sistema productivo existente. Algunas formas
del ecofeminismo no dudaron en asumir las primeras tesis en su teoría y
su praxis, legitimando sus propuestas alternativas en tanto madres y
cuidadoras de la vida. Pero esta estrategia generó rápidamente un
profundo malestar y un comprensible temor en el pensamiento y la teoría
feministas. ¿No se estaría aceptando la tesis patriarcal que había
reducido a las mujeres a la posición subordinada de Segundo Sexo?
¿Pretender resignificar desde la impotencia no es acaso un acto de
ingenuo voluntarismo? Incluso aunque se hiciera desde bases
constructivistas, el compromiso de las mujeres con un nuevo movimiento
social suscitó dudas bien fundadas: ¿No estaríamos ante una nueva
alianza ruinosa (AMORÓS, 2005), ese fenómeno repetido una y otra vez
en la historia del feminismo, por el que las mujeres postergan sus justas
reivindicaciones en favor de una causa supuestamente superior? ¿Cómo
evitar que se vuelva a producir este sacrificio tan típicamente femenino
(PULEO, 2015)?
Mi propuesta ecofeminista
Tras años de lectura y reflexión sobre teoría feminista y ecológica, he
perfilado una propuesta constructivista a la que he llamado ecofeminismo
crítico como una revisión y corrección del paradigma ilustrado (PULEO,
2008, 2011). Ha sido asumida como base teórica por la Red Ecofeminista
ibérica creada en Madrid en 2012 y también ha sido recogida y divulgada
por activistas ecologistas. Es el resultado de mi larga búsqueda de una
teoría ecofeminista que sea capaz de eludir los peligros que encierra para
las mujeres la renuncia al legado de la Modernidad. Es evidente que
todos los ecofeminismos son críticos en la medida en que critican el
sistema actual pero he elegido este adjetivo como una referencia a las
promesas incumplidas de la Ilustración y a su vinculación con los nuevos
retos del milenio. Resumo sus ejes principales en los apartados que
siguen.
Interculturalismo
Ninguna cultura conocida es perfecta pero todas pueden mejorar con
el aprendizaje intercultural. Debemos aprender de la interculturalidad que
ofrece el amplio espacio latinoamericano. Frente a un multiculturalismo
extremo que beatifica cualquier práctica con tal de que esté fundada en la
tradición, el aprendizaje intercultural nos permite comparar, criticar y
criticarnos. Hemos de aprender de culturas sostenibles como oportuno
correctivo a nuestra civilización suicida pero hacerlo sin caer en una
admiración beata. También tenemos que ser capaces de reconocer en lo
propio algo que ofrecer a los demás. Se trata de construir en conjunto
una cultura ecológica de la igualdad, no de venerar toda costumbre sólo
por ser parte de la tradición cultural, de la nuestra o la ajena. Todas las
culturas han sido y son injustas con las mujeres y los animales no
humanos. Los criterios mínimos de comparación que propongo para
presidir la ayuda mutua intercultural del ecofeminismo crítico son la
sostenibilidad, los derechos humanos, con especial atención a los de las
mujeres por ser los más ignorados transculturalmente y el trato dado a los
animales. Interculturalismo es saber aprender de los otros y pensar que
también se tiene algo para dar. Toda cultura tiene algo que dar y mucho
que recibir. Así, por ejemplo, si comparamos esta carrera tecnológica
desaforada, este mercadocentrismo del capitalismo neoliberal en el que
estamos y lo comparamos con la idea de los pueblos originarios
latinoamericanos sobre el respeto debido a la Pachamama, resulta
patente que éstas muestran mayor sabiduría. El respeto a la Tierra y sus
ciclos es un ejemplo de lo que podemos aprender de la interculturalidad.
Para el feminismo, para las mujeres, un multiculturalismo indiscriminado
es problemático. En algunas ocasiones, el ecologismo ha caído en una
veneración acrítica hacia culturas tradicionales por su sostenibilidad
ambiental, sin preocuparse por la situación de intensa opresión que
mantenían sobre las mujeres debido a su carácter patriarcal. Esta
indiferencia también se puede constatar con respecto a las minorías
sexuales o a los animales no humanos. El ecofeminismo ha de enseñar al
ecologismo a superar este punto ciego.
A modo de conclusión
En estas líneas finales, quiero hacer una referencia a lo que llamo
pactos de ayuda mutua. El concepto de ayuda mutua fue planteado por
un ecologista de primera hora, el pensador anarquista, geógrafo y
naturalista Pyotr Kropotkin. Sus estudios y observaciones sobre la
naturaleza le llevaron a descubrir que en ella no sólo hay competencia,
sino también ayuda mutua. Llevó estos conocimientos a la filosofía social,
concluyendo que la sociedad humana tenía que ser de ayuda mutua. Me
he inspirado en esta idea de ayuda mutua para plantear la necesidad de
pactos de apoyo entre feminismo y ecología, entre materialistas y
espiritualistas, entre gente rural y gente urbana, entre ecocéntricos que
sólo miran el equilibro del ecosistema y defensores de los animales
movidos por la compasión ante el sufrimiento de los individuos, entre
Norte y Sur, porque lo que le pase al Sur marca también el destino del
Norte, entre ecologismo como conservación de la naturaleza y
ecologismo social que relaciona la crisis ambiental con la injusticia
social… Esos pactos de ayuda mutua no excluyen el debate. Sólo
proponen evitar ese enfrentamiento que a menudo presenciamos en la
actualidad, ese mutuo encarnizamiento que olvida al verdadero enemigo.
Una voluntad compartida de no agresión y de apoyo ayudaría a
movimientos y a personas de diferentes concepciones pero objetivos
similares, a avanzar hacia otro mundo posible, un mundo de justicia y paz
en el que no imaginemos ser los únicos protagonistas, sino, de manera
más humilde, realista y gozosa, reconozcamos que, junto a los animales
no humanos, somos parte de la inmensa red de la vida.
Bibliografía
JOY, Melanie. Por qué amamos a los perros, nos comemos a los
cerdos y nos vestimos con las vacas. Una introducción al carnismo.
Madrid-México: Plaza y Valdés ed., 2014.
Bibliografía
FAVER, C.A. y STRAND, E.B. Fear, guilt and grief: harm to pets and the
emotional abuse of women. Journal of Emotional Abuse, 2007, 7, 1, p.
51-70.
FEMENÍAS, M. L. Violencias cotidianas (en las vidas de las mujeres).
volumen 1 de Los Ríos Subterráneos. Rosario: ediciones Prohistoria,
2013.
Considerações finais
Em conformidade com o exposto anteriormente, percebemos a
inegável importância das pesquisadoras e ativistas mencionadas nesse
capítulo. Ressaltamos que a intenção é estimular o debate e nunca
esgotá-lo, visto que o tema é vasto e requer múltiplos olhares e
perspectivas. Gaard e Adams congregam em muitos aspectos, ao
escolher os animais, ou seres mais que humanos, para nosso enfoque,
notamos que a necessidade do debate é frequente e precisa ganhar
espaço nas discussões ecofeministas. Englobar os animais ou
ressignificar nossa visão sobre os mesmos é ampliar nossa percepção
sobre a natureza e sobre nós mesmos. Ao realizar o reconhecimento de
que fazemos parte de um todo e que não somos o centro exige um
exercício e luta contra nosso ego cultural arquetipicamente colonialista.
As noções dicotômicas como natureza/cultura, humano/não humano
e masculino/feminino não podem ser encerradas ou explicadas de modo
muito simples como, por exemplo, igualdade sobrepondo-se aos sujeitos,
diversidade entre seres humanos significando vitimização ou, ao
contrário, situação privilegiada, exploração dos recursos naturais em
nome da ciência, valorização da cultura em detrimento do mundo não-
humano. Há muitas razões pelas quais a ligação mulher-natureza pode
constituir-se em questão central para o ecofeminismo. Um dos motivos
está na compreensão de que essa é uma conexão essencial para a
permanência do tratamento que as mulheres e a natureza recebem na
sociedade contemporânea. Se por um lado essa questão pode levar a
uma importante revelação sobre o modelo de humanidade na qual as
mulheres se inserem, por outro lado, tem sido uma preocupação do
ecofeminismo, que pode iluminar os temas que estão no centro do
feminismo como um todo acerca da masculinização da cultura, da
natureza da dominação do masculino sobre o feminino e das possíveis
rotas para se escapar dessa dominação.
Referências
DORST, Jean. Antes que a natureza morra. São Paulo: Edgard Blücher,
1973.
Introdução
Neste capítulo, nosso objetivo é analisar a dominação a partir da
ótica da vulnerabilidade. Partimos do pressuposto que, por trás da
dominação, há uma lógica dualista que divide e hierarquiza a realidade
em dois grupos: os iguais a mim, não vulneráveis e dominantes do lado
de cima, e os diferentes de mim, vulneráveis e dominados, do lado de
baixo. No intuito de desconstruir essa lógica dualista, propomos que a
vulnerabilidade deve ser percebida como algo comum a todos/as, em
relação de interdependência, seja para o bem (aprender, amar e ser
amado, ser provocado pela realidade a perceber ou criar uma ideia de
belo, por exemplo) ou para o mal (podemos tanto causar quanto sofrer
danos).
Todos/as, nesse sentido, significa ir além da espécie humana, na
medida em que a vulnerabilidade é característica compartilhada também
com outros animais que não humanos. Se podemos causar bem ou mal a
humanos ou não humanos, como conceber uma sociedade justa quando
ampliamos o escopo para outras formas de vida para além do
antropocentrismo? Quando se diz que seres humanos também são
animais, de um modo geral, o que se está a dizer é que “a referência à
espécie de uma criatura não pode, em si, ser uma boa razão para tratá-la
de uma maneira ou de outra” (GAITA, 2011, p. 41).
Para promover essa ampliação, uma perspectiva interseccional se
mostra necessária. Compreender que existe a mesma lógica de
dominação por trás de todos os ismos de dominação (machismo,
racismo, classismo, especismo etc.) permite pensar a superação de
diversas formas de opressão também em conjunto, na medida em que
conectar as opressões revela a mesma maneira de pensar e organizar o
mundo entre os de cima (mais poderosos, valiosos) e os de baixo,
subalternizados pelos que têm poder.
Feita essa ampliação, será preciso construir também um modelo
ampliado de justiça a partir de outros critérios que comportem uma noção
de justiça inclusiva e não discriminatória, inclusive em termos de
espécies. Singularidade e vulnerabilidade, portanto, são apresentados
como pano de fundo dessa concepção, viabilizando uma outra maneira
de pensar as relações entre seres humanos e os outros animais. Trata-se
de compreender não só os aspectos racionais do pensamento, mas as
mais variadas formas de compreensão e organização da realidade,
incluindo também capacidade não cognitivas como a empatia.
Acreditamos que os conceitos de vulnerabilidade e singularidade evocam
esta outra maneira de pensar.
Considerações finais
A descrição da vulnerabilidade característica dos seres vivos como
ruim, negativa e danosa incorre no desejo da invulnerabilidade que, por
sua vez, acarreta consequências indesejáveis para a justiça: não me ver
como vulnerável; jogar a vulnerabilidade apenas sobre os outros; definir
estes outros como inferiores (e não lhes atribuir os aspectos positivos,
construtivos, criativos da vulnerabilidade); ver a mim mesma como mais
forte, dominante, melhor; autorizar-me a definir o que é melhor para os
outros e a agir no lugar destes. Autoriza a produzir uma definição
ontológica, a produzir conhecimento e política (implicações éticas,
epistemológicas e políticas). Impede ainda de ver os aspectos políticos,
éticos, econômicos epistêmicos que produzem novas vulnerabilidades,
todas negativas (associadas a dano). Ou seja: a explorar a
vulnerabilidade alheia sem dar nome aos bois. Acarreta também a não
identificação das relações opressivas e violentas perpetradas pelos que
não se vêm como vulneráveis e que exploram a vulnerabilidade do outro,
seja ele animal ou humano. Isso tudo não é acidental, mas fruto de uma
certa visão reducionista do mundo e dos seres, que possui finalidades
econômicas e políticas.
Referências
ALLEN, Amy. The Politics of Our Selves: Power, Autonomy, and Gender
in Contemporary Critical Theory. New York: Columbia University Press,
2008.
BORDO, Susan. Twilight zones: The hidden life of cultural images from
Plato to O. J. Berkeley: University of California Press, 1999.
Metodologia de Pesquisa
Sobre as Categorias
Após a delimitação do material de análise, de 1755 textos,
permaneceram 913. Trata-se de um universo amostral bem vasto. Por
questões práticas, foram realizadas leituras que buscavam, ao invés de
um entendimento mais profundo de cada artigo, uma identificação de
elementos que indicassem como aqueles textos dialogavam entre si.
Então surgiram dois grupos de classificação mais abrangentes: assunto
e discussão de gênero.
Assunto
O grupo de classificação assunto primeiramente foi categorizado
como temática, o que não funcionou muito bem. A ideia de temática diz
respeito a aspectos mais basilares dos textos, que referem à sua
abordagem central. Mas o diálogo feminista é extremamente
interdisciplinar. A quantidade de ideias que podem ser acessadas para se
propor um argumento nos textos estudados é bem vasta. De forma que
muitas vezes os argumentos centrais das obras se conectam tanto
quanto os periféricos ao contexto em que estão inseridos. Minha atenção
foi mais voltada para os assuntos coadjuvantes, e não necessariamente
temáticas principais que povoam a amostra. Assuntos são aqueles
elementos que não são menções superficiais em uma nota de rodapé,
mas que podem ser (e não necessariamente são) temas centrais. São
eles que criam, em diferentes importâncias e alcances, suportes
relevantes para se construir um argumento.
Foram, portanto, estabelecidos os 13 assuntos: movimento de
mulheres; família; trabalho; política; violência doméstica; literatura;
religião; educação; marxismo; meio ambiente; sexualidade; ciência;
humanidade e animalidade. Além destas categorias simples, também
foram pensadas outras que, por serem mais próximas entre si, foram
definidas como grupos e sub-grupos. O assunto mais abrangente
sexualidade foi associado à corpo e reprodução e, dentro de reprodução,
a categoria aborto. Da mesma forma, no assunto ciência, criaram-se os
sub-assuntos bioética, objetividade e medicina. Merecem ser ressaltados
os critérios de escolha destes assuntos. Por mais que se tentasse
estabelecê-los somente de acordo com as menções que julgou-se mais
recorrentes e relevantes, muitas variáveis que eram interessantes para a
pesquisa ficaram de fora. Por isto, foram incluídos assuntos que, mesmo
não tão presentes nas revistas, diziam algo sobre as temáticas
abordadas pelo ecofeminismo e estudos animais em geral. O resultado
final foi uma mistura entre assuntos reincidentes, como família e trabalho
e outros que se fizeram presentes pelas afinidades com as temáticas
abordadas pelo ecofeminismo, como humanidade e animalidade.
Provavelmente, alguns tópicos importantes foram preteridos, mas as
variáveis criadas contemplaram satisfatoriamente as pretensões
analíticas da pesquisa.
Os assuntos, portanto, são: 1. movimento de mulheres diz respeito a
referências encontradas nos textos às lutas, à exaltação da prática da
militância ou da herança histórica deixada por mulheres organizadas
politicamente; 2. família engloba referências concernentes às dinâmicas
familiares na construção de relações sociais, políticas e afetivas; 3.
trabalho diz respeito à discussão da condição da mulher nas dinâmicas
trabalhistas brasileiras: desigualdade de tratamento, salários, direitos e
outros temas afins. 4. política é referente às dinâmicas institucionais que
movem o governo no Brasil; ou seja, lobby, projetos de lei, demandas
pelo reconhecimento de direitos, cidadania e tópicos afins; 5. violência
doméstica diz respeito a referências ou problematizações do abuso moral
e ou físico identificados no âmbito da intimidade interpessoal; 6. literatura
consiste em referências ou problematizações de textos ou movimentos
literários; 7. religião, alusão ou discussão de experiências, construções e
identidades ligadas ao espiritual e ao religioso; 8. educação, menções
marcantes ou discussões acerca de parâmetros e atividades ligadas a
instituições ou práticas de ensino; 9. marxismo, referências às teorias ou
às práticas marxistas e marxianas nas idéias, trajetórias ou militâncias
das autoras. Enquadra-se aqui também discussões ou alusões relevantes
à luta de classes, quando colocada nos termos da referida tradição. 10.
meio ambiente refere-se a discussões ou menções relevantes que dizem
respeito à relação assimétrica dos seres humanos com os ambientes não
humanos que o cercam. 11. humanidade e animalidade refere-se a
assuntos e discussões mais profundas sobre o caráter constitutivo da
condição humana e da animal. As duas categorias, não são excludentes:
a animalidade pode ajudar a definir a humanidade e vice-versa. 12.
sexualidade diz respeito às reflexões sobre o desejo associado ao sexo e
como este influencia as relações de gênero. Associados a este estão
mais três assuntos: a abordagem do corpo como personagem da reflexão
feminista e não simplesmente matéria; comentários importantes ou
discussões acerca das dinâmicas de reprodução e, como subcategoria de
reprodução, a questão específica do aborto. 13. ciência, traz uma relação
parecida com os assuntos a ela conectados. Geralmente, a discussão ou
menções importantes sobre objetividade estão relacionadas à
problematização da ciência. Da mesma forma, a medicina pode ser vista
do ponto de vista da experiência e não se referir ao seu aspecto
científico. Já a questão da bioética é científica por natureza e bastante
relacionada à medicina. Todos esses assuntos passam por caminhos
muito próximos, por isso foram relacionados para fins analíticos, apesar
de analisados individualmente.
Discussão de Gênero
O segundo grupo de classificação, denominado discussão de gênero
refere-se às lentes através das quais as teorias de gênero ganharam
dimensões ou perspectivas diferentes. Elas moldaram as prioridades e a
forma como os assuntos são abordados. Pode-se argumentar que não
existe, de fato, uma zona indefinida na separação entre assunto e
discussão de gênero. Certos assuntos podem servir de lentes para a
teoria da mesma forma que é possível que certas discussões de gênero
aqui propostas sejam vistas simplesmente como assuntos. Mas esta falta
de precisão filosófica não comprometeu a análise. As perspectivas
escolhidas mudaram os rumos de vários assuntos abordados nas revistas
e no feminismo em geral.
O grupo de classificação discussão de gênero, portanto, é composto
por: ecofeminismo, ética do cuidado, queer, masculinidade, pós-
colonial/decolonial, linguagem e racial. A idéia de raça primeiramente foi
abordada como um assunto. Contudo, à medida que a análise se
desenvolveu ficou cada vez mais claro que as questões raciais moldaram
as discussões de gênero brasileiras nas últimas décadas. Elas
trespassam praticamente todos os assuntos e ressignificam as
discussões. Não é só uma lente a ser levada em conta, é a principal lente
do feminismo brasileiro desde a década de 1990, argumento que será
melhor explicado na análise de dados deste artigo.
A discussão de gênero nomeada linguagem foi um artifício para
juntar sob a mesma variável as análises de discurso e conteúdo de obras
e narrativas, que são muito frequentes nas duas publicações. No decorrer
da pesquisa, tornou-se mais sugestiva a forma como o feminismo
brasileiro valoriza a análise dos relatos e experiências. A visibilização do
discurso, enriquecida com conteúdos interpretativos da linguística,
filosofia e antropologia, por exemplo, parece ter uma função
empoderadora e também a vocação de trazer à tona discussões políticas
e sociais.
Já parte da teoria pós-colonial/decolonial parte, entre outras autoras,
da obra da indiana Gayatri Spivak, uma das autoras que conectou os
pontos entre pós-colonialismo e feminismo na década de 1980 (Spivak,
1988). A decolonialidade, por sua vez, é uma linha de pensamento
relativamente nova, em recente processo de formação, mas que tem
potencial de ressignificar os estudos de gênero na América Latina. Trata-
se de uma contestação ao feminismo dito mainstream que tem
aproximações com o pensamento pós-colonial. Este foi desenvolvido
principalmente em países de colonização francesa e inglesa que
conquistaram a independência recentemente e, por isso, possuem laços
específicos com o colonizador em termos culturais. A América Latina
jamais se inseriu completamente nesta lógica, por possuir uma história de
colonização mais distante e problemas de alcance linguístico na
comunidade internacional. O pós-colonialismo que fala inglês, francês e
dialoga com a elite da comunidade européia não possui tanta entrada
para as colonialidades latino-americanas (Costa, 2013). Contudo, há uma
razão para que pós-colonialismo e decolonialismo compartilhem a mesma
categoria. Há ainda muita confusão acerca das diferenças entre as duas
abordagens. Muitos autores usam o termo pós-colonialismo para
defender o que alguns entendem como decolonialidade e vice-versa.
Portanto, por serem teorias relativamente próximas, que possuem um
intenso e recente diálogo, ela ocupa a mesma classificação.
Conclusão
O universo teórico do feminismo está diretamente ligado a suas
bases na militância como ao seu impacto sobre as realidades futuras das
vivências de gênero. Ele não segue um ideal de pureza acadêmica e
questiona os princípios que regem a academia. Nesta dinâmica, a
perspectiva de raça é relevante, pois ela serve para legitimar discussões
e isto é uma realidade recente. Até o início dos anos noventa, raça
ocupava apenas uma posição marginal no feminismo brasileiro. O fato de
serem duas revistas estruturadas em universidades importantes do país
(UFSC sedia a REF e Unicamp, a Pagu) só evidencia o alcance do
movimento e das lutas feministas, em especial das mulheres negras,
como conquistas históricas e acadêmicas no país. Por outro lado, a
questão animal aparece em uma posição marginal, de pouca
representatividade e diálogo nestas publicações, embasada pela teoria
de feministas brancas, rejeitada e acusada de essencialismo no Brasil
(CARMO, 2013).
Do ponto de vista teórico, a causa animal não exclui nenhuma outra,
mas a falta de representatividade, comunicação, assim como afinidade
com as discussões mais importantes, exclui os animais da consideração
acadêmica por círculos relevantes do feminismo brasileiro. Obviamente, a
REF e a PAGU não são a amostra de todo feminismo nacional, mas
apenas de foros acadêmicos importantes. Se o ecofeminismo pretende
se popularizar no contexto brasileiro, ele deve obrigatoriamente ocupar
estes espaços e outros congêneres (investigações científicas, palestras,
aulas, grupos de estudos, dentre outras atividades de ensino, pesquisa e
extensão das universidades), através de uma maior associação à
militância e questões raciais, da forma como se apresentam no Brasil e
na América Latina.
Referências
Minhas avós e meus avôs eram todos agricultores. Talvez nem todos
o fossem de coração, mas o eram também por força das circunstâncias.
O que sobra, afinal, para os colonos colonizados pela descentralização
do seu mundo? Eu nunca os soube de outro modo senão pelo modo da
roça. Como se minha avó já tivesse nascido com o cheiro da terra e do
leite.
E, no entanto, não fora sempre assim. Como depois eu soube,
houve, em pelo menos um par de avós, um elemento de urbanidade que
se perdeu naquela aparência de um saber contínuo sobre as coisas do
campo, mas um saber – agora eu sei – duplamente extorquido:
construído ao longo de décadas sobre a terra indígena e à mercê da
cultura monopolista do celeiro brasileiro. A mata era empecilho para a
agricultura a céu aberto; a caça não resolvia apenas a fome, mas
também o desejo de controle sobre tudo o que pudesse soar, andar e
viver como praga; dos tatus às saracuras, que jamais gerariam renda, e
destoariam para sempre da domesticidade, da submissão e do máximo
46
aproveitamento dos animais para o mercado; os indígenas deveriam
ser acotovelados às periferias deste mundo rural e sua nomeação
generalizada como bugres legitimava sua pecha de vagabundagem e
prostituição.
Deste modo, perdeu-se o saber dos povos das florestas no saber
das agriculturas engolidas pela engrenagem capitalista. Com o tempo,
nem mesmo a agricultura familiar e de subsistência resistiu ao fumo e ao
seu concomitante abuso de agrotóxicos, às sementes de alto rendimento
e à criação, em ritmo frenético e absolutamente antinatural, de carne de
primeira qualidade para exportação. A ponto de não se plantar mais a
própria mandioca e o próprio feijão. Sobreviver também tinha se tornado
uma questão de mercado e, por isso, o saber da roça – que, para começo
de conversa, nunca tinha sido o saber da floresta – se imiscuiu no ritmo
da eficiência a curto prazo.
Algum resquício do saber da terra persistiu, no entanto, no relato das
experiências e das virtudes das avós – mais do que naquele dos avôs. É
um relato subversivo, cuja diferença me parece residir na resistência
embrionária, mas intrínseca, da vivência de um outro tempo e de um
outro ritmo, inimigo da pressa e do rendimento. Posição subversiva que
tem a ver também com o seu (quase sempre único) lugar de resistência
no seio de um sistema patriarcal. Porque se é verdade que a força laboral
empenhada no campo não faz distinções profundamente marcadas entre
homens e mulheres, também é verdade que às mulheres ainda se atribui
(concomitantemente) aquelas tarefas tipicamente femininas de nossa
cultura e que são imprescindíveis à reprodução da força de trabalho, mas
não por isso menos opressiva e violentamente vilipendiadas; na solidão
da roça, contudo, os saberes da horta, do herbário, da cozinha, da
gestação e da sororidade geograficamente improvável assumem
contornos insurretos: tempo, paciência, espera, leniência, cooperação,
memória. Saberes que gestam um poder – ainda que localizado e parcial
– sobre os seus corpos assim como sobre os dos outros.
Saberes que podem ter sido detidos em sua memória, mas de cujos
resquícios eu gostaria de me apossar para o que não passa, por ora, de
um esboço em direção a um projeto moral e político que possa vir a ser
qualificado ao mesmo tempo como anticapitalista, como antipatriarcal,
feminista e agroecológico – ou permacultural – e, talvez, num horizonte
mais longínquo, como vegetariano. Seu delineamento requer, porém, em
primeiro lugar, o traçado do pano de fundo contra o qual se inscreve a
sua crítica – tal como se segue.
As políticas de eliminação
As virtudes do tempo, da paciência, da espera, da leniência, da
cooperação e da memória caracterizam os sistemas agroecológicos ou
as permaculturas que dependem dos saberes heterogêneos para a
manutenção mesma da diversidade. Esta postura política diante dos
sistemas dominantes de cultivo e de saber constitui aquilo que Vandana
Shiva chama de insurreição do saber subjugado (SHIVA, 2003). Porque
não se trata, na verdade, da instauração de uma novidade, mas do
resgate de visões plurais de mundo aplainadas pela homogeneização da
lógica monocultural.
É Vandana Shiva quem nomeia os processos de uniformização do
saber a partir dos processos de uniformização da agricultura e da
silvicultura de monoculturas da mente (SHIVA, 2003). Sua posição teórica
reforça os aspectos políticos de uma área considerada filosófica por
excelência e, no que se segue, eu gostaria de mencionar os vínculos
existentes entre a tradição epistemológica ocidental e suas consequentes
47
políticas de eliminação.
Evidentemente, o critério de tais políticas é sempre o resguardo do
controle e do poder em vista da concentração e da maximização do
capital financeiro. Se é verdade, como argumenta Silvia Federici em
Calibã e a Bruxa, que “o capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu
as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal” (FEDERICI,
2017, p. 44) – uma luta social por igualdade também a nível de gênero –
e que ele é imediatamente anterior, portanto, às excursões europeias
colonizadoras, então a compreensão da realidade bioimperialista vivida
por nós hoje talvez encontre na linguagem, no discurso e nas bases
epistemológicas compartilhadas pelo medievo e pela contemporaneidade,
a explicação para aquilo que passa como justificação para uma
colonização que é agora também mental. É neste sentido que a
Revolução Verde é o nome fantasia que exacerba a incursão
centralizadora (de poder econômico e político, ao mesmo tempo) da
indústria agrícola, da indústria florestal e da indústria cultural – que pode
tomar a forma do argumento de autoridade científico, da publicidade
insidiosa e unilateral ou da massificação do entretenimento.
Neste sentido, a lógica monocultural é uma lógica maniqueísta que
emparelha sob denominações aparentemente positivas e aparentemente
negativas as velhas dicotomias filosóficas que são patriarcais e
discriminatórias, embora carreguem em seu bojo uma pretensão de
isenção política, porque naturalizadas, e de imparcialidade moral, porque
os seus fins são supostamente humanitários; no caso da Revolução
Verde, quem desejaria contrariar o argumento da segurança alimentar? É
essencial para a colonização mental aquilo que Shiva (2003) chama de
distorção cultural, que não passa de manipulação linguística, quando
opõe as Variedades de Alto Rendimento ou as sementes avançadas ou
de elite, “criadas por especialistas modernos em centros internacionais de
pesquisa agrícola ou por grandes empresas transnacionais de sementes”
(SHIVA, 2003, p. 67) à sementes primitivas ou à sistemas autóctones ou
48
tradicionais.
Ora, tais pares de opostos estão firmemente assentados sobre a
construção teórico-conceitual ocidental – da Modernidade, sobretudo,
mas não apenas – que privilegia uma determinada compreensão da
racionalidade humana cuja maior conquista é o domínio sobre o indômito,
encarnado aqui pela natureza (caótica, selvagem, insubmissa), pela
mulher, pela emotividade, pelas populações não brancas – e pela lentidão
ineficaz do tempo de cada coisa. Afinal, esta é também uma concepção
evolutiva de racionalidade que supõe o seu aperfeiçoamento como
utilização máxima daquelas qualidades vinculadas ao controle. Daí ser
tão fácil associar o progresso ao científico, ao tecnológico, à
industrialização, à mecanização, à globalização – e a um conceito crucial
49
que resta ainda ser melhor perscrutado, o de liberdade.
Como salienta Monique Wittig (num outro contexto e registro de
investigação), a questão conceitual e discursiva é importante porque a
linguagem cria e marca a realidade: “Porque mesmo as categorias
filosóficas abstratas agem sobre o real como social. A linguagem lança
feixes de realidade sobre o corpo social, estampando-o e moldando-o
violentamente” (WITTIG, 2002, p. 391, tradução minha). E os pares
dicotômicos acima mencionados, assim como sua valoração ético-
política, estão longe de ter sido superados e continuam servindo às
políticas de eliminação. Até porque, esta marca da linguagem sobre a
realidade determina a identidade (cultural e narrativamente construída) e
a auto-compreensão daqueles e daquelas que devem permanecer no
lado negativo das oposições, além de continuamente informar e enformar
as categorias mentais daqueles e daquelas que participam
(voluntariamente e sabidamente ou não) dos procedimentos
monoculturais voltados para o mercado e para o rendimento a curto
prazo.
É por isso que me parece equivocada a asserção de Shiva de que
“agora tem aceitação universal a afirmação de que não existem termos
observacionais neutros nem nas mais rigorosas das disciplinas
científicas, como a física. Todos os termos são estabelecidos pela teoria”
(SHIVA, 2003, p. 56). Isso pode ser verdade para uma determinada
parcela do universo teórico científico – devido, inclusive, à influência de
um nome tal como o de Thomas Kuhn no escopo da filosofia da ciência; e
pode ser verdade também que já estejamos razoavelmente de sobreaviso
quanto à não-universalidade do sistema dominante de saber, já que ele “é
apenas a versão globalizada de uma tradição local extremamente
provinciana” (idem, p. 21). No entanto, eu diria que esta é uma aceitação
deveras pontual e extremamente incipiente, sobretudo no espaço
acadêmico (especialmente na filosofia, por impressionante que isso
possa parecer), no espaço mercadológico de produção de conhecimento
que é atravessado por diferentes relações de poder, e no discurso do
senso comum, partilhado e replicado por meio daqueles argumentos
anteriormente mencionados (relativos à autoridade científica, à
publicidade paga pelo poder hegemônico e ao entretenimento de massa).
Se assim não fosse, as alternativas epistemológicas existentes – e eu
penso aqui nas diferentes propostas das epistemologias feministas,
marxistas e nas epistemologias (decoloniais) do Sul – não soariam
assustadoramente como bizarrices culturais e relativistas aos ouvidos dos
teóricos universalistas. Evidentemente, a colonização mental supõe e
depende da adoção inquestionada dos pressupostos e dos valores dos
colonizadores.
Esse é especialmente o caso do currículo filosófico acadêmico. E
minha ênfase sobre este ponto se deve novamente aos motivos
aventados por Wittig e à minha forte suspeita quanto à responsabilização
ético-política a que está sujeita a filosofia relativamente às políticas de
eliminação levadas a cabo pelo sistema capitalista monocultural. Se a
linguagem cria a realidade e se nossa linguagem perpetua
categorizações hierárquicas, é preciso reconhecer a que(m) serve a
uniformidade, a regularidade, a ordem, o progresso, a linearidade, a
universalidade, a imparcialidade, a neutralidade, e até mesmo os
parâmetros estéticos associados a tais conceitos. Estes são os critérios,
que respondem ao mercado, mas que formam também o fundamento
senão todo o edifício epistemológico da tradição filosófica, na filosofia da
ciência tanto quanto na ética e na filosofia política. O que estou querendo
dizer é que a epistemologia (monocultural) da tradição filosófica participa,
e coaduna, com as políticas de eliminação quando sua linguagem molda
a realidade dicotomicamente, valorativamente, hierarquicamente. Mesmo
agora, os pares negativos das oposições iniciadas pela razão versus
natureza continuam, por isso, no limbo ou às margens dos critérios
universalistas.
As políticas de eliminação são, ao mesmo tempo, políticas sexuais,
raciais, classistas, e econômicas, porque a sua medida, aplicada global e
descontextualizadamente – algo que funciona muitas vezes também
como o seu salvo-conduto – é a utilidade, assumida como produtividade,
rendimento e benefício. O quanto as teorias éticas utilitaristas
contribuíram para que a sinonímia entre o bom e o útil vigorasse como
lugar-comum é algo que não posso explorar aqui, mas que me parece
passível de reflexão. Evidentemente, a utilidade é transitiva e o seu
benefício nunca é universal, mas com sua máscara ecumênica ela é
capaz de justificar a maior parte das ações de extermínio – inclusive ao
cooptar a colaboração de certas classes e camadas apenas parcial (e
talvez apenas aparentemente) favorecidas.
Assim, por exemplo, a descriminalização do estupro de mulheres de
classe baixa por homens proletários ou jovens burgueses resolvia o
problema das insurreições urbanas na Idade Média ao desestabilizar “a
solidariedade de classe que se havia alcançado na luta antifeudal”
(FEDERICI, 2017, p. 104), assim como a institucionalização estatal da
prostituição “foi vista como um remédio útil contra a turbulência da
juventude proletária, que podia desfrutar na Grande Maison – como era
chamado o bordel estatal na França – de um privilégio antes reservado
aos homens mais velhos” (idem, p. 105), o que também resolvia em parte
o problema da homossexualidade, cuja consequência informada seria o
aumento do despovoamento depois da Peste Negra. A mesma
concepção seletiva servia à proteção (inclusive legal) de estupradores
brancos e de mulheres brancas de classe alta nos Estados Unidos pré e
pós-escravidão ao costurar numa mesma razão o mito do estuprador
negro e a disponibilidade sexual da mulher negra, “ambos elaborados
para servir de desculpa e para facilitar a exploração continuada de
homens negros e de mulheres negras” (LERNER apud DAVIS 2016, p.
179). Exploração cujos efeitos, no entanto, reverberaram também sobre
mulheres brancas, sobretudo de classe baixa, e sobre mulheres de outras
etnias, nas continuadas incursões colonizadoras que apenas replicaram,
e replicam ainda contemporaneamente, a justificativa da inexorabilidade
do imperialismo construída sempre de novo sobre oposições
hierarquizantes concebidas como políticas econômicas e militares, tal
como aquele dever militar necessário incutido nos soldados americanos
durante a Guerra do Vietnã: “encorajar o estupro [de mulheres
vietnamitas] de maneira sistemática, já que se tratava de uma arma de
50
terrorismo de massa extremamente eficaz” (DAVIS 2016, p. 182) . Davis
se pergunta o quanto tais atos podem ter perturbado as atitudes dos
homens “em relação às mulheres como um todo” (ibidem) – e o quão
carregado de significados violentos, eu me pergunto, é o conceito de
eficácia quando vinculado aos termos instrumentais do progresso e da
ordem em nome de figuras conceituais positivas supostamente universais
(o repovoamento da Europa devastada pela peste, a justiça feita aos
estupradores bestiais compulsivos, a democracia das guerras
imperialistas sobre os povos inferiores). Outrossim, a outorga parcial de
poder facilitada pela ideologia da supremacia masculina é altamente
benéfica à estrutura de classe do capitalismo quando ressarce aos
homens da classe trabalhadora o controle sobre os corpos femininos e
quando “encoraja homens que detêm o poder econômico e político a se
tornarem agentes cotidianos da exploração sexual” (DAVIS, 2016, p.
202): “Como lado violento do sexismo, a ameaça de estupro persistirá
enquanto a opressão generalizada contra as mulheres continuar a ser
51
uma muleta essencial para o capitalismo” (idem, p. 203).
Essa opressão generalizada toma a forma de uma exploração
multifacetada, de uma expropriação de saberes locais e específicos, ou
bem, de sumária execução – todas elas acontecendo, na maior parte das
vezes, simultaneamente sobre um mesmo corpo feminino. Por um lado,
porque as mulheres são consideradas como politicamente subversivas –
no sentido negativo do termo, naturalmente – e a importância de sua
participação nas lutas camponesas, comunais, revolucionárias e políticas,
do medievo às Revoluções Socialistas contemporâneas, deve ser
imediatamente extinguida e historicamente obliterada. Por outro lado,
porque o processo de acumulação capitalista transforma o “corpo em
uma máquina de trabalho [cujo crescimento exponencial demanda] a
sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho”
(FEDERICI, 2017, p. 119) – in loco europeu ou nas colônias, tanto faz. O
cumprimento com máxima eficácia destes intentos exige algumas
estratégias combinadas que funcionam num espectro variegado de
violências: a privação da educação às mulheres as encerra no círculo
vicioso dos interesses matrimoniais e domésticos que por sua vez as
encerram às únicas oportunidades disponíveis do matrimônio e do
cuidado doméstico; obviamente, este é um vaticínio cujo viés (sobretudo)
52
moderno é classista, já que o foco não é a educação da classe
trabalhadora quando, entre tantos outros, os filósofos do Iluminismo
excelem em argumentos arguciosos para justificar a exclusão das
mulheres da cidadania política, moral e epistêmica – afinal, trata-se aqui
da parodização ad nauseam dos modelos filosóficos polarizados já
mencionados anteriormente, tanto pelos contratualistas quanto por Hegel
e Kant, por exemplo – cuja contorção teórica em prol da exclusividade da
racionalidade masculina em detrimento da coerência de seu própria
53
filosofia é o ponto de análise de Nancy Hirschmann (2008). Aqui, a
subversão política é evitada com o iletramento e a consequente escusa
de que a inferioridade – política, moral e epistêmica – da mulher é
natural, específica de seu sexo, resultando em seu contínuo
confinamento às tarefas privadas da alienação doméstica (lembrando que
à altura dos salões modernos e da rebeldia das liberais letradas que tanto
escandalizavam a Kant e a Rousseau, a maior parte das bruxas já havia
sido queimada; ainda assim, e talvez por isso mesmo, Olympe de
Gouges vem a perder a sua cabeça em plena Luz da Revolução). No
entanto, isso ainda não resolve precisamente a questão do poder social e
da crescente independência feminina sincrônica aos movimentos
heréticos, aos movimentos populares urbanos, camponeses, comunais,
antifeudais. A conquista de relativa autonomia social e econômica
oportunizada pela urbanização (massivamente feminina) que se segue à
monetização ou comercialização da vida medieval (FEDERICI, 2017) –
que havia resultado num primeiro momento naquilo que hoje
nomearíamos como feminização da pobreza, mas posteriormente na
ampla ocupação de trabalhos antes e depois considerados como
54
masculinos – e pela “elevada posição social das mulheres” (idem, p. 83)
nos movimentos heréticos cujos ideais de igualdade, cooperação e
partilha se inscrevem ao mesmo tempo contra a dominação ideológica e
econômica da Igreja e do Feudo, requer uma reação e uma resposta
típicas do capitalismo. Além de desarticular a solidariedade de classe
com as políticas de exploração sexual e de com isso estabelecer novos
padrões de misoginia e de controle masculino, trata-se de obstar e
asfixiar todo e qualquer vislumbre de poder que as mulheres possam
demonstrar individual ou coletivamente. Aqui, a subversão política é
evitada com a desapropriação do seu saber, esteja ele relacionado à sua
profissão, à sua lida com a terra ou à sua função reprodutiva, um
conhecimento acumulado a respeito do próprio corpo vinculado ao
conhecimento básico de plantas medicinais, abortivas e contraceptivas, e
aos ciclos da natureza. A crise de trabalho e a crise populacional da
Idade Média, falsamente aliadas a motivos de virtude religiosa, são os
pretextos perfeitos para a criminalização do controle reprodutivo e para a
demonização do saber a ele conjugado – sobretudo porque associado às
seitas heréticas protagonizadas principalmente por mulheres em suas
próprias comunidades ou em comunidades igualitariamente
compartilhadas com os homens. Se a escassez de mão-de-obra
intensificada pela Peste Negra melhora a vida de uma parte da classe
trabalhadora durante um curto período de tempo ao valorizar e onerar o
seu trabalho, ela incide imediatamente sobre a vida das mulheres de
maneira especialmente nefasta, já que a resposta para a derrocada do
modelo feudal que a acompanha é a resposta da acumulação primitiva de
capital, que exige a reprodução maximizada da força de trabalho. Daí a
utilidade sempre renovada da distinção conceitual entre o público e o
privado que vigora inquestionadamente no universo das teorias
filosóficas, políticas e sociais, e que se desdobra em público versus
55
doméstico para desespero das mulheres aí enclausuradas.
Evidentemente, a domesticação dos corpos das mulheres e o controle
sobre o seu saber (e, portanto, sobre o seu incipiente poder) é
compulsório: aqui, qualquer pretensão de subversão política é evitada
com sua sumária eliminação. Se feudo e igreja antes lutavam contra os
movimentos heréticos na tentativa de restabelecer a ordem da
dependência e da servidão, a partir de agora trata-se sobretudo de caça
às bruxas: “(...) a figura do herege se tornou, cada vez mais, a de uma
mulher, de forma que, no início do século XV, a bruxa se transformou no
principal alvo da perseguição aos hereges” (FEDERICI, 2017, p. 86).
A nova condição de subordinação das mulheres sob a égide da caça
às bruxas não é exclusiva da Europa, sendo replicada nas colônias
sempre que necessário, também como mecanismo de controle das
populações colonizadoras e das populações não brancas – à revelia das
56
especificidades de suas culturas aborígenes. Aqui, a fusão da
inutilidade com a malignidade é o elemento que permite fazer da caça às
57
bruxas uma empreitada bendita em nome das gentes de bem.
Malignidade, inutilidade, insubordinação, subversão e insurreição passam
então a significar a mesma coisa: “O que não é útil é maligno”, segundo
Cotton Mather, o perseguidor das bruxas de Salem (SHIVA, 2003, p. 42),
e a atribuição deste valor ajusta-se maleavelmente às pessoas, aos
animais não humanos e à diversidade biológica como um todo. Mais uma
vez, a continuidade da opressão sobre as mulheres, como “uma muleta
essencial para o capitalismo”, segundo Davis (2017, p. 203), se vale da
afinidade e da identificação conceitual entre o feminino e a natureza,
entre o feminino e o irracional, entre o feminino e o indócil, para a
continuidade da exploração da terra, da expropriação de bens e saberes
e da erradicação das inutilidades impeditivas à estabilidade econômica
das classes privilegiadas. Bruxas, povos indígenas e negros, florestas e
ervas-daninhas passam então pelo mesmo filtro do significado da
inconveniência – um significado homogeneizado que permite a unificação
do controle para as políticas de eliminação e de extinção.
Evidentemente, a centralização do domínio sobre os corpos
humanos, sobre os corpos animais e sobre a terra encontra um tenaz
obstáculo nas vivências e nas concepções democráticas e comunais,
cujo tempo não é regido pela maximização da produtividade. Neste
sentido, os argumentos para o processo de privatização da terra, que em
sua origem coincide com as incursões coloniais, salientam os aspectos
da eficiência agrícola e da modernização da agricultura em vista da
“expansão do abastecimento de alimentos” (FEDERICI, 2017, p. 135) – a
lentidão e a partilha das terras comunais vistas, neste caso, como
antípodas da utilidade; daí a facilidade da alcunha de vagabundagem,
preguiça, atraso e primitivismo dada aos camponeses medievais
58
trabalhando em campos abertos coletivos. Mas, se a falsidade da
abundância alimentar sugerida pelos defensores dos cercamentos de
terra é escancaradamente provada pela fome reiterada e pelo
empobrecimento massivo dos camponeses, tanto de ontem como de
hoje, a exacerbação neoliberal da privatização e da monocultura, sempre
ainda vinculada ao pressuposto do avanço tecnológico altamente
produtivo e eficiente, estabelece e mantém um elemento essencial à
persistência do capitalismo ao minar toda e qualquer forma de
autossuficiência política, econômica e social. A cooperação entre
camponeses e camponesas e entre estas e as terras comunais ou as
florestas e pradarias resulta não apenas em subsistência alimentar e
sustentabilidade ecológica como em solidariedade e sociabilidade
campesina – o que constitui por si só insurreição e subversão à ordem
privatista, individualista e desagregadora do capitalismo. Mesmo aqui, no
entanto, o prejuízo econômico e social da exploração mercadológica da
terra incide novamente sobre as mulheres mais do que sobre os homens:
A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres,
que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais
dependentes das terras comunais para a subsistência, a autonomia e a sociabilidade.
(...) elas foram o centro da vida social das mulheres, o lugar onde se reuniam,
trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam formar um ponto de vista próprio –
autônomo da perspectiva masculina – sobre os acontecimentos da comunidade.
(FEDERICI, 2017, p. 138).
A complexidade da vida
A insurreição do saber longamente subjugado traz consigo a
necessidade de uma compreensão igualmente furtada à vista pelo
predomínio da uniformidade e da homogeneização epistêmica e cultural:
o reconhecimento da complexidade.
Se o critério mercadológico da utilidade é unívoco em seu
regramento e em sua conceituação sobre o mundo, o modo como o saber
dominante investe o seu poder é, como vimos, multifacetado e
complexamente estrutural. Isso me parece significar e exigir uma
resposta que seja igualmente abrangente e ramificada, compreendida a
partir de uma rede de conceitos interdependentes, dialógicos e não
hierárquicos. Contra a univocidade do sistema dominante de saber, isso
me parece também significar e exigir o estabelecimento da complexidade
como critério de reflexão e como horizonte moral e político em vista da
democratização do saber e da salvaguarda da diversidade ecológica
tanto quanto epistêmica. O entendimento da complexidade requer, por
isso, uma atitude de abertura, de flexibilidade e de humildade que nos
permita ouvi-la e reconhecê-la como característica da vida – para um
vasto sentido de vida. Nesta senda, qualquer projeto alternativo às
monoculturas mentais deve ser ele mesmo dinâmico, democrático,
compreensivo, fluido, não-autoritário e não-dogmático.
Isso não quer dizer, entretanto, que qualquer projeto seja válido – se
não respeitar estas qualidades. Assim, o critério de reflexão teórica tanto
quanto o horizonte de enfrentamento prático devem poder ser
construídos cooperativamente, à escuta da diversidade biológica.
Para Vandana Shiva, a subversão das monoculturas agrícolas e
mentais em vista da democratização do saber e da liberação humana
passa por uma “redefinição do saber local e diversificado” (SHIVA, 2003,
p. 81) com a valorização da concretude em oposição à abstração do
(supostamente) universal e global: “Essa passagem da globalização para
o saber local é importante para o projeto de liberdade humana porque
libera o saber da dependência de formas estabelecidas de pensamento,
tornando-o simultaneamente mais autônomo e mais autêntico” (ibidem). A
sobrevivência da natureza e a sobrevivência humana dependem dessa
mudança de paradigma e é por isso que Shiva fala de um imperativo
ecológico e político de diversidade em prol dos “direitos de todas as
espécies” (idem, p. 19) e da descentralização do controle sobre a terra –
e sobre nossos modos de vida.
Contudo, um saber local não está livre dos marcadores de opressão,
de autoritarismo e de dogmatismo pelo simples fato de ser localizado, e
deveríamos estar atentos para um compromisso que não legitime
tradições, memórias e práticas por elas mesmas em detrimento de
ninguém. Um compromisso balizado, por isso, pelo respeito à diversidade
e à complexidade da vida e por um ideário não excludente – uma questão
de saber a cada momento, à maneira freiriana, se nosso projeto é
inclusivo ou excludente.
Aqui, eu gostaria de propor algumas qualificações que poderiam nos
ajudar a levar tal programa adiante – qualificações ainda não exaustivas,
cujas definições são também ainda provisórias e passíveis de emenda ou
reforma ou substituição e que almejam uma harmonização conceitual
permitida por um tipo diverso de teorização e de reflexão moral alheio às
tendências normativas da ética contemporânea. E é por isso que eu
antes falava de uma rede de conceitos interdependentes, dialógicos e
não hierárquicos, assim como poderíamos falar de uma gramática
59
filosófica. Evidentemente, esta rede conceitual deve ser devidamente
contextualizada em termos geográficos, biológicos e culturais no que diz
respeito à sua aplicabilidade e conveniência – contextualização esta que
nos ajuda novamente a excluir de nosso horizonte político as
derrapagens dogmáticas, categóricas e centralizadoras típicas do ensejo
de controle e domínio.
Na contramão de sua vigência globalizada, este deve ser um projeto
anticapitalista – e, por isso, obviamente, anti-neo-liberal. Por todos os
motivos acima expostos, qualquer tentativa de conciliação está fadada ao
fracasso, já que a orientação para a acumulação e para o mercado
exigem e pressupõem a exploração de mão-de-obra humana e a
exploração dos animais não humanos e da terra em prol da utilidade, da
eficácia e do lucro. Neste sentido, o consumo consciente é uma
contradição em termos, assim como a concepção de um capitalismo
social. Ou, nas palavras de Federici:
Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um
retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a
contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a
degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo
em qualquer época. (FEDERICI 2017, p. 27).
Referências
Feminismo e Decolonialidade
O termo colonialismo foi designado, a princípio, para nomear um tipo
específico de estratégia de dominação geopolítica, ou seja, situada em
um contexto de exploração geográfica, datada entre os séculos XVI e
XVIII. O cenário de expansão marítima e comercial europeia teve como
objetivo a expropriação de especiarias, produtos tropicais e metais
preciosos. Em associação a este processo houve também a objetificação,
o racismo e o especismo como formas centrais que fundamentaram este
novo modelo geopolítico. Povos originários das Américas, África e Ásia
bem como animais e plantas destes mesmos locais foram tratados de
forma exploratória, escravizados, dizimados e comercializados em prol
dos interesses religiosos, culturais, econômicos e políticos dos europeus.
A lógica foi ampliada no século XIX, com a ênfase na busca de
mercados consumidores para o excedente de capital e rebatizada de
imperialismo ou neocolonialismo. Os dois momentos são marcados,
como mencionado, pela dominação de territórios, dos animais, plantas e
dos povos originários. A possibilidade de dominação e exploração de tais
povos se sustentou, especialmente, em teorias racistas que, de partida,
criaram distinções hierarquizadas entre a população humana, construindo
a ideia de superioridade do branco europeu e inferioridade de povos
africanos, asiáticos e, posteriormente, latinos americanos. A ideia de raça
surge como um eixo fundamental da colonialidade do poder como modo
de classificação social (QUIJANO, 2000) para atribuir diferenciação
prévia, pautada em aspectos biológicos, que será imediatamente lida em
termos hierárquicos. Quijano propõe pensar a modernidade como um
projeto de operacionalização do sistema global de dominação capitalista.
Acrescentaremos à compreensão de colonização, como fenômeno
geopolítico, econômico, religioso, cultural, racial e social, seu caráter
também especista, como será abordado mais à frente.
Como críticas aos estudos sobre colonialidade e eurocentrismo,
autoras terceiro mundistas, questionam as pautas feministas postas pelas
suas vertentes hegemônicas, dotadas de caráter universalista e de
retórica salvacionista. Inserem a noção de gênero também como
produção colonial, defendendo a inseparabilidade da raça, classe e
gênero como complexos sistemas que se cruzam na produção de
opressões (LUGONES, 2003; MOHANTY, 2008; BIDASECA, 2011). O
feminismo decolonial critica matrizes epistemológicas dominantes em
suas limitações estruturais de compreensão da totalidade e sua
pretensão a universalização homogênea do Outro. Estas feministas
extraem dos estudos sobre colonialidade a compreensão do
etnocentrismo ocidental como padrão superior que constrói as demais
culturas e povos como o outro inferior. Este mecanismo, se efetiva,
sobretudo, com a homogeneização de povos com diferentes histórias,
linguagens, memórias e identidades, configurando um genocídio massivo
da população originária e de qualquer diversidade que compõe um povo.
Chandra Mohanty, no texto Bajo los ojos de occidente. Academia
Feminista y discurso coloniales, publicado em 2008, com atualizações às
duas versões anteriores, a de 1988 e a de 1984, toma a colonização,
sobretudo, pela sua concepção discursiva, como modo de produção
homogênea do Outro, na tarefa, pretensamente, descritiva de teorias
hegemônicas. A autora está se referindo, precisamente, ao discurso
feminista eurocêntrico na compreensão da colonialidade e seus efeitos,
negando a leitura que coloca o sistema patriarcal, de modo isolado, como
raiz de todos os problemas. O discurso que constrói as mulheres do
terceiro mundo como não europeias, reifica, pela negação, a própria
posição como universal. Tal discurso universalista e dotado de retórica
salvacionista, manifesto no uso da noção mulher, ou mesmo mulheres,
como categoria de análise, produziu algumas consequências
generalizantes, como alguns dos exemplos citados por Mohanty (2008),
em que tal leitura compreende as mulheres necessariamente como:
vítimas da violência masculina, a partir de uma compreensão binária e
pautada em estereótipos de gênero; como vítimas de modo geral, do
colonialismo, do desenvolvimento econômico; como dependentes
universais. Podemos acrescentar outro exemplo: a leitura generalizada
das mulheres como sem capacidade de agência moral e fala, produzindo,
por consequência, uma leitura de que aqueles sujeitos hegemônicos
deveriam ceder o direito ao exercício da agência moral e fala. Isto porque
o mesmo discurso que se apresenta apenas descritivo de opressões
produz e cristaliza as posições e relações que sugere enfrentar. Tal tese
foi amplamente seguida e, mais notoriamente divulgada no Brasil, por
Judith Butler, com o livro Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade, publicado originalmente em 1990, e traduzido para o
português em 2003.
Ainda que o termo colonização possua distintas concepções, que
apontam para fenômenos diversos, a tônica de Mohanty é no seu efeito
de eliminação ou, de modo mais velado, ocultamento da heterogeneidade
dos sujeitos. Neste sentido, a autora tenta evidenciar que a busca por
implementação de justiça, pautada em demandas homogêneas, que
tomam ‘mulher’ como uma categoria monolítica representativa, se opõe
às mulheres reais, em contextos muito mais complexos
interseccionalmente. Retomando, na proposição de Mohanty (2008) seria
este o aspecto central de compreensão da colonialidade. Quanto à crítica
ao uso da noção mulher como categoria de análise, Mohanty (2008)
explica que:
(...) estoy refiriéndome a la premissa crucial de que todos los membros del género
feminino, independentemente de classe y cultura, están constituídos como un grupo
homogéneo identificado de forma previa al processo de análises. Esta es uma
premisa que caracteriza a gran parte del discurso feminista. La homogenedad de las
mujeres como grupo se produe no em base a un esencialismo biológico, sino a
conceptos sociológicos y antropológicos secundários y universales. (MOHANTY, 2008,
p. 5)
Ecofeminismo
O ecofeminismo, tal como desenvolvido por autoras como Lori
64
Gruen pode ser caracterizado como uma perspectiva moral, ancorada
65
na ética do cuidado . Desta última, retiram-se a crítica às perspectivas
morais universalistas, pautadas pela racionalidade e pelo dogma da
imparcialidade. A então caracterizada como uma ética feminina, procura,
em contrapartida, valorizar os afetos e os vínculos estabelecidos, como
determinantes para a adoção de atitude moralmente adequada. Enquanto
a tradição kantiana ostenta a superioridade da razão, característica
distintiva da suposta espécie humana, sobre as emoções e afetos, o
discurso ético feminino aposta na sensibilidade, nos afetos e no cuidado,
como base para construção de relações autenticamente construtivas.
Seguindo esta orientação que frequentemente opõe razão e
sensibilidade, masculinidade e a feminidade, uma faceta do
ecofeminismo irá ressaltar a relação do feminino com a natureza - com o
meio ambiente e com animais não humanos – denunciar a opressão, a
subalternidade e a violência de que têm sido vítimas, tanto o meio-
ambiente, como as fêmeas de todas as espécies.
O ecofeminismo reune, assim, uma parte do movimento ecológico e
uma parte do movimento feminista centradas na relação entre a mulher e
a natureza e na crítica à dominação patriarcal que a ambas subjuga e
explora. Mas como podemos compreender esta relação entre a mulher ou
o feminino no âmbito da perspectiva ecofeminista?
A primeira possibilidade, mais clássica, se assim pudermos
caracterizá-la, seria atribuirmos características, ditas naturais ou
intrínsecas a ambos os sexos. Tal perspectiva, contudo, parece incorrer
em dois problemas. Em primeiro lugar, supõe uma dicotomia entre o que
seria da ordem da natureza - supostamente compreendida como a ordem
biológica - e a cultural, entendida como uma construção social. Em
segundo lugar suporia uma concepção fixa e pré-determinada da
natureza humana, mais particularmente, do homem e da mulher. Nesta
medida, ao homem estariam vinculadas características como a
racionalidade, a competitividade, a agressividade etc. À mulher estaria
associada a sensibilidade, a espirituosidade, o cuidado e a conservação.
Embora este modelo pareça bastante familiar ao modo como até hoje
muitos compreendem a diferenciação entre os sexos, pretendemos
rechaçá-lo, por considerarmos, não apenas que qualquer atribuição de
características inatas aos sexos carece de fundamentos científicos, mas,
sobretudo, por entendermos que tal visão reforça padrões de
subordinação dominantes e inibem o potencial crítico do feminismo.
A forma como consideramos apropriado pensar a relação das
mulheres com outros seres subjugados ou alvos de opressão não apela a
nenhum tipo de natureza intrínseca ou a características próprias ao
feminino, mas sim ao modo como as estruturas, tais como o patriarcado e
a heteronormatividade, moldaram relações de dominação e geraram um
potencial de resistência e empatia entre as partes oprimidas. A mesma
matriz ideológica que justifica o racismo e o sexismo é também a que
justifica o especismo e partindo dela são desenvolvidas as formas atuais
de exploração animal e ambiental que garantem o bom andamento do
capitalismo enquanto ideologia e sistema econômico. O status moral dos
demais animais não costuma ser localizado historicamente como
construído a partir da colonização nem mesmo por discursos que buscam
combater este status. Entendido desta forma, o ecofeminismo tem sido
ferramenta importante enquanto corrente de pensamento que denuncia
as imbricações entre sistemas opressores que atingem – partindo de uma
matriz comum – mulheres (humanas assim nominadas) e animais (de
outras espécies, especialmente fêmeas). Assim sendo, o ecofeminismo
se apresenta como uma corrente teórico e prática que imbrica a luta das
mulheres, do meio ambiente e dos animais por meio da identificação de
elementos, ou, de pontos de partida comuns para suas opressões.
66
O ecofeminismo partindo de países do Sul apresenta-se
necessariamente como uma teoria que pauta questões próprias do
contexto da colonização. Entretanto, algo mais precisa ser pensado
quando falamos sobre ecofeminismo. É necessário compreender que a
expansão europeia, ou seja, a colonização que se deu por volta de 1400
d.C. nas regiões que hoje em dia abrigam os chamados países do Sul
ocorreu principalmente a partir de uma coalização de forças de entidades
que representavam o poder europeu para conquistar e destruir
epistemologias, por meio do epistemicídio de povos e culturas de uma
região que hoje pode ser considerada o Sul global. Região esta com
características ecológicas próprias, a saber, uma natureza ou clima
tropical capaz de produzir insumos – animais e plantas – que vieram a
ser empregados de forma muito lucrativa pelo mercantilismo, pelo
capitalismo e pelo neoliberalismo, atualmente. Ou seja, é preciso
destacar que sem a associação entre uma dominação cultural e uma
dominação geográfica no sentido ecológico da dominação, a colonização
nunca teria ocorrido, ou, pelo menos, não se daria da forma como se deu.
Com isto queremos dizer que ecofeminismo e feminismo decolonial
são – apesar de originados em pontos diferentes do globo – associáveis
por meio de uma percepção de que a colonização não funciona sem a
exploração da natureza e a exploração da natureza não funciona sem a
colonização dos povos que habitam determinadas regiões. Que regiões
são essas? Justamente as regiões tropicais. Os chamados países do Sul
compõem a massiva população explorada nas regiões tropical e
subtropical. Estamos tentando propor ou evidenciar algo que não é difícil
de ser compreendido, mas que normalmente não é trabalhado de forma
unificada.
Desta forma, buscamos descrever uma perspectiva ecofeminista
decolonial que busca acima de tudo ampliar o espectro dos concernidos
morais identificando que para além de defendermos mulheres, animais e
o meio ambiente precisamos também defende-los de forma conjunta, ou
seja, compreender em que medida estas opressões se conectam, se
fortalecem e se transformam em outras. Propomos uma análise
ecofeminista do feminismo decolonial porque apesar de importantes
contribuições na crítica ao aspecto da colonização, da aculturação e de
transformações nas relações de gênero por meio da inclusão da
dominação europeia dos hoje países do Sul global, identificamos a
ausência da conexão desta luta com as lutas ecofeministas, ou seja,
aquelas que pautam direitos das mulheres vinculados com direitos
ecológicos e ambientais. No ecofeminismo, por sua vez, apesar de
algumas autoras renomadas o proporem a partir de regiões ex-colônias,
como Vandana Shiva, há a hegemonia de um pensamento ecofeminista
produzido por mulheres europeias ou estadunidenses que ignoram a
questão de classe e raça na composição e na percepção de discursos
opressores que partem destas regiões. Um ecofeminismo decolonial
precisaria propor justamente uma visão a partir de mulheres que vivem
em países do Sul (ex-colônias de exploração, se assim podemos chamar
de forma generalista) e buscam a conexão de aspectos fundamentais
como a questão de raça, classe e decolonização conectadas com a visão
ecológica.
Conclusão
Neste artigo, procuramos reunir elementos para a defesa de uma
perspectiva de justiça feminista, decolonial, não antropocêntrica, visando,
assim, um enfrentamento das diversas formas de opressão que operam
nas sociedades atuais e coíbem a plena realização de diversas formas de
vida. O feminismo decolonial e o ecofeminismo contribuem para o
desvelamento de complexos e interseccionais sistemas de opressão,
exploração e discriminação que, hierarquizam ou excluem os diversos
sistemas funcionais, comprometendo a implementação da justiça. Dos
feminismos decoloniais é possível extrair a crítica à leitura generalizada,
pautada em estereótipos de gênero, que intenciona universalizar a
experiência das mulheres, enquadrando-as em uma categoria monolítica,
contribuindo para a reificação da subalternização, vitimização e ausência
de capacidade moral. A negativa da retórica salvacionista permite pensar
a implementação de justiça como partindo de sujeitos hegemônicos para
aqueles marginais, mas recolocando a possibilidade de horizontalização
dos diversos indivíduos. Tal perspectiva nega lógicas abstratas de
compreensão dos sujeitos e das realidades sociais, ressaltando a
necessidade de consideração de sujeitos concretos, inseridos em
realidades interseccionalmente produzidas. Pactuamos com a ampliação
da consideração moral do ecofeminismo, que inclui a crítica ao
especismo, lacuna destacada no feminismo decolonial, negando, porém,
qualquer leitura biologizante que afirme a ideia de uma certa natureza
humana fixa e essencialmente binária. Neste sentido, defendemos a
Perspectiva dos Funcionamentos, como perspectiva decolonial e
ecofeminista, que endossa o enfrentamento aos diversos sistemas de
opressões como necessário a implementação ampla da justiça, negando
qualquer tentativa prévia de hierarquização dos diversos indivíduos,
entendidos como sistemas funcionais complexos e flexíveis.
Referências Bibliográficas
Considerações finais
Neste trabalho busquei refletir sobre a interpelações que os
feminismos vêm trazendo para o campo da agroecologia e como o aporte
ecofeminista e o aporte das teorias descolonais podem contribuir para
ampliar esse debate. Vemos que, apesar de se tratar de um campo que
busca descontruir com o paradigma moderno de hierarquização de
saberes e práticas, não há um consenso acerca do reconhecimento do
protagonismo e dos saberes aportados pelas mulheres na agroecologia,
em especial quando se trata do campo institucional da ciência. Nesse
sentido, cabe questionar se é possível construir a agroecologia enquanto
projeto de transformação social sem romper com as epistemologias
dominantes e sem as desigualdades, apropriações e silenciamentos das
contribuições dos saberes constituídos pelas mulheres.
Frente a isso, as mulheres da agroecologia, em diálogo com os
feminismos plurais, com as tradições campesinas e cosmovisões afro-
ameríndias, vêm construindo conhecimentos e estratégias políticas que
deslocam os lugares instituídos de saber e poder e ressignificam tais
tradições. Assim, elas tornam evidente a necessidade de investir no
projeto de descolonização dos saberes e dos discursos na agroecologia.
Tal processo passa, necessariamente, por trazer à tona os saberes,
práticas e estratégias políticas construídos por grupos subalternizados,
notadamente as mulheres negras, indígenas e camponesas, no centro do
debate a partir dos seus lócus de enunciação.
Referências
ORGANIZADOR/AS
Daniela Rosendo
Doutoranda e Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Graduada em Direito pela Universidade da
Região de Joinville (UNIVILLE). Coordenadora de Direitos Humanos e
Educação do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH).
Coordenadora Pedagógica da Pós-Graduação em Direitos Fundamentais
e Políticas Públicas da ACE/FGG. Professora de Direito Ambiental e
Urbanístico na UniSociesc. Coordenadora do projeto de pesquisa Adalah:
Observatório da Palestina. Membra do Comitê Latino Americano e do
Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM Brasil).
Pesquisadora do Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA/UFF).
Autora do livro Sensível ao Cuidado: Uma perspectiva ética ecofeminista.
Fabio A. G. Oliveira
Doutor em Filosofia (2014) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), com estágio na Australian National University (ANU) -
CNPq-2012/2013, Pós-doutorado em Bioética pelo PPGBIOS/UFRJ; e
Filosofia pela Universidad de Valladolid, Espanha (UVa). Professor
adjunto na Universidade Federal Fluminense (UFF), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde
Coletiva (PPGBIOS/UFF), colaborador externo do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia (PPGF/UFRJ). Coordena o Laboratório de Ética
Ambiental e Animal (LEA/UFF) e integra o Instituto Latinoamericano de
Estudios Críticos Animales (ILECA). Membro do Núcleo de Inclusão
Social (NIS/UFRJ), do Núcleo de Ética Aplicada (NEA/UFRJ) e do
Antígona: Laboratório de Filosofia e Gênero (UFRJ). Autor do livro
Responsabilidade Individual Frente às Mudanças Climáticas Globais
(2015; 2019) e organizador da obra Ética Animal: Um Novo Tempo
(2018).
Príscila Carvalho
Professora de Filosofia. Doutorou-se pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Integra o Laboratório Antígona de Filosofia e
Gênero (UFRJ), Laboratório de Ética Ambiental e Animal (LEA-UFF) e o
Núcleo de Ética Aplicada (NEA/UFRJ). Dedica-se às seguintes subáreas
da Filosofia: Filosofia Política, Ética normativa, Ética Aplicada, Filosofia
Prática, concentrando-se nos temas relacionados às Teorias da Justiça,
Teorias da Democracia,Estudos de Gênero, Ecofeminismos, Teorias Pós-
colonialista e Decolonialista.
Tânia A. Kuhnen
Professora adjunta na Universidade Federal do Oeste da Bahia
(UFOB), vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Humanas e Sociais (PPGCHS – UFOB). Possui Doutorado em Filosofia
(2015) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio
de pesquisa na Humboldt Universität zu Berlin (DAAD/CAPES - 2012).
Suas pesquisas e publicações versam sobre problemas do campo da
Filosofia Moral Contemporânea, especialmente Filosofia Moral Feminista.
Integra os grupos de pesquisa Corpus Possíveis: Educação, Cultura e
Diferenças e Gestão, Inovação e Desenvolvimento, ambos vinculados à
UFOB, além de colaborar com o Laboratório de Ética Ambiental e Animal
(LEA-UFF) e o Grupo IPÊS (FURB).
ILUSTRADORA
Camila Rosa
Ilustradora e designer brasileira nascida em Joinville/SC, hoje
morando em São Paulo. Começou sua trajetória como artista em 2010
com o Coletivo Chá, um coletivo feminino de street art. Desde então tem
exposto seu trabalho nas ruas, em exibições, revistas, livros e internet.
Seu trabalho apresenta mulheres, a partir de uma perspectiva alternativa:
latino-americanas, corajosas, fortes e não contempladas pelo padrão de
beleza hegemônico.
AUTORAS E AUTOR
Alicia H. Puleo
Doutora em Filosofia, Professora Titular de Filosofia Moral e Política
da Universidad de Valladolid (UVa), Espanha. Membra do Conselho da
Cátedra de Estudos de Género da UVa e do Conselho do Instituto de
Investigações Feministas da Universidad Complutense de Madrid. É
autora da obra Ecofeminismo para otro mundo posible e organizadora do
livro Ecología y género en diálogo interdisciplinar. Foi diretora da
Colección Feminismos, da Editora Cátedra, em colaboração com a
Universitat de València.
Daniel Kirjner
Pesquisador, músico e ativista, doutorado pela Universidade de
Brasília. Sociólogo de formação, pesquisou, em seu doutoramento, as
conexões entre teorias de gênero e estudos animais. Já deu palestras em
diversas universidades e coletivos brasileiros, além de conferências na
Europa, Estados Unidos e Índia. Publicou artigos e capítulos em edições
nacionais e internacionais. Atualmente dedica-se à carreira docente e ao
ativismo, como coordenador do grupo Veganize, em Brasília.
Ilze Zirbel
Doutora em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em
Sociologia Política (UFSC) e Graduada em História pela Fundação
Universidade Regional de Blumenau (FURB) e em Teologia pela Escola
Superior de Teologia da (IECLB - EST).
Janyne Sattler
Docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutora em
Filosofia pela Université du Québec à Montréal (2011). Pesquisadora do
Núcleo de Ética e Filosofia Política (NÉFIPO), do Grupo de Estudos em
Reflexão Moral Interdisciplinar e Narratividade (GERMINA) e do Instituto
de Estudos de Gênero (IEG) da UFSC. Vice-coordenadora do GT de
Filosofia e Gênero da ANPOF (2018-2020). Atua especialmente nos
temas seguintes: ética e estética em Wittgenstein; literatura e filosofia;
estudos de gênero e feminismo.
Letícia Gonçalves
Doutoranda em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva
(PPGBIOS), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em
parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade Federal Fluminense
(UFF). Psicóloga e Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de Minas Gerais.
Mayara Carrobrez
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM) e graduada em História pela mesma instituição.
Patrícia Lessa
Doutorado em História, na área de Estudos Feministas, pela
Universidade de Brasília (UnB), Pós-Doutorado em Letras pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), atualmente trabalha na
Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Suane Soares
Professora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada (NUBEA) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do
Laboratório sobre Justiça, Direitos Básicos e Políticas Públicas
(JUDIPP/NUBEA) e do Nós: dissidências feministas que, dentre outras
atividades, inclui a pesquisa Lesbocídio: as histórias que ninguém conta.
Membra do Núcleo de Inclusão Social (NIS/UFRJ), do Laboratório de
Ética Ambiental e Animal (LEA/UFF)e do Núcleo de Ética Aplicada
(NEA/UFRJ) e integra o Instituto Latinoamericano de Estudios Críticos
Animales (ILECA).
Notas
[←1]
Traduzido por Daniela Rosendo. Revisado por Tânia A. Kuhnen.
[←2]
Sobre a conexão entre a caça e a identidade masculina, ver, por exemplo, GILMORE,
David. Manhood in the Making: Cultural Concepts of Masculinity. New Haven: Yale University
Press, 1990, e CARTMILL, Matt. A View to a Death in the Morning: Hunting and Nature
Through History. Cambridge: Harvard University Press, 1993. (Nota da autora)
[←3]
Note-se que eu uso a palavra care em inglês, que não equivale por completo a palavra
portuguesa cuidado A palavra inglesa cuidado não tem a conotação de tomar cuidado, como
a palavra cuidado tem em português. A palavra empatia às vezes pode chegar mais perto
desse significado, mas empatia sugere mais um estado emocional do que uma orientação
mais ativa, como sugere a palavra cuidado em inglês. Então, por enquanto, vamos usar a
palavra cuidado, mantendo em mente as diferenças entre as palavras em inglês e
português. (Nota da autora)
[←4]
No artigo original, a autora não menciona o ano de publicação e a edição da obra. (N.T.)
[←5]
La revista The Ecologist en su versión para España y Latinoamérica es el principal
portavoz de estas posiciones. Con un discurso de corte conspiratorio, acusa al feminismo y
al capitalismo de controlar la fertilidad natural, poniendo en un mismo plano las técnicas de
cultivo con transgénicos y los métodos anticonceptivos usados por las mujeres. Predica a
éstas el retorno al hogar y a la maternidad y la crianza como único objetivo y las insta a
abandonar los estudios universitarios. Ver el Monográfico La Revolución calostral ha
empezado del nº 48.
[←6]
Entre sus efectos, se cuentan la incidencia creciente de la Sensibilidad Química Múltiple
(SQM diagnosticada errónea y rutinariamente como alergia), la Fatiga Crónica, la
Fibromialgia y el incremento del Cáncer de Mama (VALLS-LLOBET, 2015, p. 21-36).
[←7]
Este trabajo ha sido realizado en el marco del proyecto I+D El desván de la razón:
Cultivo de las pasiones, identidades éticas y sociedades digitales: PAIDESOC (FFI2017-
82535-P).
[←8]
Es decir, la violencia inherente a los sistemas sociopolíticos y económicos, que se
sustentan en estructuras de marginación, represión o dominación.
[←9]
La violencia cultural hace referencia a aquellos aspectos culturales y simbólicos que se
utilizan para legitimar la violencia directa y la violencia estructural.
[←10]
No se reduce, pues, a ser ausencia de guerra, sino que exige que se elimine la
dominación en todos los ámbitos de la sociedad, tanto a nivel nacional como internacional.
[←11]
Y no sólo porque la violencia contra los animales desemboque en la violencia contra las
personas, sino también por el propio animal que sufre el maltrato. Defiendo que la violencia
contra un individuo que siente, sea de la especie que sea, es un acto inmoral en tanto que
atenta contra los intereses de ese ser.
[←12]
El antropólogo Marvin Harris define las sociedades patriarcales como aquellas donde
los puestos clave de poder – político, económico, religioso y militar - están mayoritaria o
exclusivamente en manos de los varones (HARRIS, 2000). De acuerdo con esta definición,
sostiene que todas las sociedades conocidas, tanto del pasado como las actuales, son
sociedades patriarcales. El patriarcado, a pesar de variar a lo largo del tiempo, es un
sistema metaestable (Amorós, 2005). Todas las sociedades, en tanto que patriarcales, han
oprimido y desvalorizado a las mujeres en nombre de su supuesta proximidad con la
naturaleza (ORTNER, 1979; ORTNER, 2006).
[←13]
Hablamos de especismo para referirnos al prejuicio que establece la superioridad de la
especie humana sobre el resto de las especies animales.
[←14]
Esta cuestión se explicará en profundidad a lo largo del presente artículo.
[←15]
Ha sido la filósofa ecofeminista Alicia Puleo quien ha hablado del ecofeminismo como
una utopía (PULEO, 2017a).
[←16]
Desde 2016, el propio FBI registra el maltrato animal como un delito contra la sociedad
que, en numerosos casos, se relaciona estrechamente con otros crímenes como los
asesinatos en serie o la violencia de género en las relaciones afectivas. Tal y como han
puesto de manifiesto ciertas investigaciones, el hecho de que niños y adolescentes estén
expuestos a situaciones de maltrato animal puede generar psicopatologías, depresión,
ansiedad o aislamiento social, entre otros (MCPHEDRAN, 2009). Sería conveniente, con el
fin de detectar ciertas patologías, incluir la cuestión del bienestar animal en las instituciones
a favor de la infancia y la familia (RANDOUR, 2007).
[←17]
También la dominación de la naturaleza y la de todos los grupos oprimidos están
conectadas con estas dos dominaciones, tal y como hemos comprobado. Me refiero
concretamente a la dominación de las mujeres y la de los animales por los objetivos que
persigue este texto.
[←18]
La Ética del cuidado aparece como una ética distinta y complementaria de la Ética de la
justicia basada en los derechos y en los principios abstractos. La Ética del cuidado se centra
en las relaciones y en el contexto y revaloriza virtudes como el amor, el cuidado, la no
violencia y la interdependencia (GILLIGAN, 1985). Esta ética tiene que ser una ética
universal, practicada tanto por mujeres como por hombres (GILLIGAN, 2013).
[←19]
En su obra The Pornography of Meat (2004), reproduce numerosas imágenes que
muestran la conexión entre la explotación de los animales como objetos comestibles y la de
las mujeres como objetos sexuales. Afirma que “un aspecto de la pornografía es incluir, en
la escena, un animal no humano para sugerir la animalización de la mujer” (ADAMS, 2004,
104). La traducción es mía.
[←20]
Con este término, Carol Adams se refiere a “la incitación de actitudes opresivas
mediante la feminización y sexualización de los animales y la animalización de las mujeres”
(ADAMS, 2017, p. 75).
[←21]
Si bien desde posturas diversas y, en algunos casos, enfrentadas. La forma en que las
distintas autoras abordan el tema de la explotación animal presenta importantes diferencias.
La oposición fundamental pasaría por la división entre una corriente atomista, centrada en
los individuos y otra corriente holista que considera que lo que tiene valor son los
ecosistemas y las especies. Véase, por ejemplo, el enfrentamiento entre Carol Adams y Val
Plumwood (PLUMWOOD, 2004).
[←22]
Consecuencias tales como construir un carácter violento incapaz de empatizar con el
sufrimiento ajeno, ya sea sufrimiento animal o humano. Véase lo señalado en el tercer
párrafo de la introducción.
[←23]
Numerosos estudios muestran que es muy frecuente que las mujeres maltratadas
presencien escenas de maltrato hacia los animales con los que conviven (ASCIONE y otros,
2007; FLYNN, 2000b).
[←24]
En estos casos de violencia doméstica y violencia de género en las relaciones afectivas,
habría que redefinir el concepto de víctima, de forma que abarque a todos que sufren
violencia y que consideramos miembros de nuestra familia, incluyendo a los animales
(BERNUZ, 2015, LORING y otros, 2007).
[←25]
Sin embargo, esta cosificación se muestra como empoderamiento, de forma que las
mujeres interiorizan que el éxito y el poder se logra a través de una perfección física irreal
(WALTER, 2010).
[←26]
Habría que prestar más atención, tanto desde la perspectiva social como legal, al hecho
de que el maltratador ejerce la violencia contra un ser vivo, lo cual implica un grado de
violencia más alto que en el caso en el que ejerce la violencia contra un objeto (FAVER Y
STARND, 2007).
[←27]
GAARD, Greta. (ed.). Ecofeminism: Women, Animals, Nature. Philadelphia: Temple
University Press, 1993.
[←28]
No inglês: capabilities.
[←29]
Enquanto que na Ética do Cuidado procura-se destacar o significado normativo da
vulnerabilidade e a sua importância para as teorias morais e políticas, na Bioética há uma
ênfase maior na identificação de pessoas e grupos humanos que demandam um cuidado
extra e possuem sua autonomia, dignidade e integridade ameaçada (ROGERS, 2014, p. 60-
87; DALL’AGNOL, 2012). A Ecologia Política se concentra nas relações humanas com o
meio ambiente e com as forças, valores e instituições sociais, culturais e econômicas, dando
especial atenção aos riscos e desastres presentes ou eminentes nestas relações e a
capacidade de resiliência dos indivíduos e grupos (BANKOFF, FRERKS, e HILHORST,
2004; BAKER, 2009). A Teoria Crítica procura oferecer um diagnóstico empiricamente
fundamentado de patologias sociais que impedem a transformação social e a agência dos
indivíduos (ALLEN, 2008). Judith Butler (2004), por sua vez, explora as implicações éticas
da vulnerabilidade do corpo humano exposto a ação de outros e podendo provocar uma
ampla gama de respostas ambíguas, negativas - violência, abuso e desprezo - e/ou
positivas - cuidado, generosidade e amor (ver também Butler, 2009).
[←30]
Os trabalhos de Judith Butler sobre a vulnerabilidade do corpo também são citados
pelas autoras, mas elas o deixam de lado sob o argumento de que são “resistentes à
investigação ética-normativa” (p. 3).
[←31]
Partilham dessa visão, teóricos os mais diversos como Judith Butler (citada na nota de
rodapé acima), Alasdair MacIntyre (Dependent Rational Animals, 1999), Martha Nussbaum
(Fronteiras da Justiça, 2006), Paul Ricoeur (Autonomy and vulnerability, 2007) e Bryan. S.
Turner (Vulnerability and Human Rights, 2006).
[←32]
A instituição dos direitos, por exemplo, protege nossos interesses na medida em que
reconhece haver uma relação entre a privação de direitos e o aumento de vulnerabilidades
entendidas como injustas ou negativas.
[←33]
Tuana (2006) apresenta cinco tipos de ignorância, diferenciadas pelas suas condições
de origem (conjuntos de interesses e dinâmicas de poder). Dois deles implicam
desconhecimento involuntário (não sabemos que não sabemos e não sabemos porque
outros [privilegiados] não querem que saibamos), enquanto que dois deles implicam
ignorância voluntária ou intencional (saber que não sabemos, mas não nos importarmos
com isso e preferimos não saber). O quinto tipo (p. 15) é identificado por ela como uma
postura aberta ao conhecimento, uma habilidade de não saber (aceitar o que não se pode
conhecer, em relação à natureza e aos outros, e adotar uma postura de respeito e
encantamento diante disto).
[←34]
Segundo Mies e Shiva (1993, p. 23), o método reducionista ocidental das ciências teria
dois efeitos centrais: o da redução da riqueza do conhecimento humano plural a um
pequeno grupo de conhecedores e formas autorizadas de conhecer; e o da redução da
natureza e seus processos naturais regenerativos a meros objetos fragmentados e inertes,
passíveis de manipulação. A uniformidade obtida pelo método é tanto ontológica quanto
epistemológica e possui uma perspectiva mecanicista que considera todos os sistemas
(naturais e sociais) divisíveis e manipuláveis, podendo cada peça ou indivíduo ser alienada
do todo (objetivada). Assim, a objetividade almejada e o conhecimento produzido é alheio
ao contexto.
[←35]
Em especial, nas suas obras O Que é a Propriedade? Ou princípio do direito e do
governo (1840); Da criação da ordem na Humanidade (1843) e Sistemas das Contradições
Econômicas ou Filosofia da Miséria (1846).
[←36]
Importante ressaltar que nem todas elas incluem a consideração ética de animais, como
indivíduos, razão pela qual esse capítulo se alinha com o ecofeminismo animalista.
[←37]
Tradução livre do original.
[←38]
Naturismo é o termo cunhado por Karen J. Warren (2000) para designar a dominação
injustificada da natureza.
[←39]
Quilt é o trabalho manual, geralmente feito por mulheres, por meio do qual se unem
diferentes retalhos de tecidos, formando uma única peça. O quilt também pode ser a
aplicação de um tecido sobre a estampa ou parte da estampa de outro, dando-lhe uma nova
textura e tornando-o tridimensional.
[←40]
Artigo adaptado de um capítulo da tese ENTRE GÊNERO E ESPÉCIE: à margem
teórica das Ciências Sociais e do Feminismo, defendida em 11 de junho de 2016.
[←41]
Resenhas não foram analisadas nesta pesquisa por motivos que serão explicados mais
tarde neste mesmo capítulo.
[←42]
“Os Dossiês são uma seção da REF1 dedicada ao diálogo e às articulações entre a
produção acadêmica e intelectual e a militância, o ativismo e as políticas feministas em
relação a temas específicos. São publicados tanto artigos e ensaios no estilo acadêmico,
trazendo análises e reflexões teóricas quanto outros gêneros textuais, como testemunhos,
relatos, entrevistas, entre outros, buscando dar uma panorâmica do tema em questão e
defrontando reflexão teórica com práticas, ações e políticas feministas” (MALUF, 2004, p.
235).
[←43]
A partir de 2004, a Estudos feministas passou a publicar três números por ano,
enquanto a Pagu permaneceu com dois.
[←44]
Desconsidere o ano de 1992 neste gráfico como indicador relevante. Neste ano ainda
não existia a Cadernos Pagu e foi editado apenas um número da REF (volume 0, número
0), especial sobre a Eco92, onde foi comentada a participação de ecofeministas na
conferência, em especial a indiana Vandana Shiva. Trata-se portanto de uma amostra
viciada, que foi mantida no gráfico somente para exaltar o contraste em relação aos anos
seguintes.
[←45]
Ludwig Wittgenstein, em Culture and Value: This is how philosophers should greet each
other: “Take your time!” (Wittgenstein, 1980, p.80).
[←46]
É verdade, no entanto, que o capitalismo transforma em mercadoria, com o tempo e por
meio das justificativas adequadas, até mesmo o silvestre e a praga, vendidos muitas vezes
como iguaria e extravagância luxuosa.
[←47]
Políticas de eliminação é uma expressão usada pela própria Shiva. Mas a ideia de que
a “política atravessa a epistemologia tradicional” (ALCOFF e POTTER, 1993, p. 13) está
presente em todo o corpo das epistemologias feministas que a compreendem também, de
algum modo, como sendo monocultural.
[←48]
Curiosamente, o tradicional pode ser usado de modo diverso para justificar a
manutenção do status quo: no domínio da filosofia, é a tradição que carrega autoridade e
legitimidade, mas em áreas mais afins aos paradigmas científicos propriamente ditos, a
tradição pode ser sinônimo de atraso e subdesenvolvimento.
[←49]
Margaret Atwood levanta uma pista para a compreensão dos (ab)usos que se faz, e que
já se fez, deste conceito ao colocar na boca de Tia Lydia que “existe mais de um tipo de
liberdade. Liberdade para, a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de,
que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos de anarquia, era liberdade para. Agora
a vocês está sendo concedida a liberdade de. Não a subestimem” (ATWOOD, 2017, p. (36).
Talvez a ênfase do discurso monocultural esteja dada para a liberdade de, mesmo quando
ela vem mascarada de empoderamento para (já que o empoderamento de algumas pode se
dar às custas da sujeição de outras): estar livre de pestes, de pragas, de insegurança
(alimentar, urbana, emocional), de violência, de fome, de corrupção. Novamente, quem
desejaria contrariar tal argumento? Embora essa questão não possa ser aprofundada aqui,
ela me parece estar relacionada a uma compreensão especificamente moderna – Iluminista
e frequentemente (mas nem sempre) liberal – de liberdade, cuja construção conceitual
centrada sobre o indivíduo autônomo racional é, de novo, ocidentalizada (masculina,
branca, europeia).
[←50]
Naturalmente, o estupro como arma de guerra não é novidade e exceção
contemporânea. Cf., entre outras, Copelon (1999), Hayden (2000), Martins (2016), Peres
(2011), Smigay (1999), Vito, Gill e Short (2009).
[←51]
Significativamente, as ondas conservadoras e liberais do Brasil do golpe de 2016 têm
manifestado cotidianamente e sem pudores nossa imersão em uma cultura do estupro, para
ameaçar, dominar e punir; muito simbólicos são, neste sentido, os elogios feitos
publicamente em rede nacional desde o púlpito estatal aos torturadores estupradores da
Ditadura Brasileira, durante a votação no processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff. Cf. também Quinalha (2016), a respeito do golpe como um golpe contra a
diversidade.
[←52]
E racista igualmente – embora este seja um traço tão evidente da maior parte dos
filósofos Iluministas que me sinto quase escusada em lembrá-lo.
[←53]
Assim como o de Carole Pateman, é claro: Pateman (1993). E que é o que me leva a
enfatizar as questões conceituais e epistemológicas que seguimos reproduzindo
acriticamente na filosofia acadêmica.
[←54]
Cf. a amostragem das ocupações femininas nas cidades medievais fornecida por
Federici (2017, p. 64-65).
[←55]
Distinção fortemente criticada pela teoria política feminista contemporânea, também nos
termos conceituais e epistemológicos aqui salientados. Cf., principalmente, Pateman (1993),
Okin (2008), Miguel e Biroli (2013).
[←56]
Para alguns números aproximados a respeito da caça aos hereges tal como
regimentada pela colonização espanhola e portuguesa sobre residentes e convertidos no
Novo Mundo cf. Novinsky (2012).
[←57]
À guisa de ilustração, as autodenominadas gentes de bem de Ypres do século XII
haviam implorado “ao rei que não permitisse que os bastiões internos do povoado em que
viviam fossem demolidos, dado que os protegiam da ‘gente comum’” (FEDERICI, 2017, p.
95), assim como o editorial do Estado de S. Paulo de 13 de março de 2016 apregoava um
“Basta!” replicado do Correio da Manhã de 31 de março de 1964: “Chegou a hora de os
brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não honra o cargo que ocupa e
que hoje é o principal entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto
e bom som: basta!” (LOPES, 2016, p. 120-121). Que a execução política sumária se tenha
dado sobre a figura de uma mulher violentamente difamada pela mídia por sua carência de
feminilidade é algo digno dos autos inquisitoriais das gentes de bem.
[←58]
Alcunha não coincidentemente semelhante àquela atribuída ao Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra.
[←59]
Este é um traço característico de minhas reflexões como oriundas das lições
aprendidas com a filosofia de Ludwig Wittgenstein. Para questões especificamente
metodológicas que são críticas à tradição (moderno-contemporânea) da ética normativa, cf.
Sattler (2016).
[←60]
Por ora, estou tratando estas concepções como intercambiáveis, embora elas
comportem diferenças de origem, localização e abrangência, e requeiram maior
detalhamento a ser feito em momento posterior.
[←61]
Um riqueza recuperada em benefício da soberania alimentar e da agrobiodiversidade
está relacionada às Plantas Alimentícias Não Convencionais (as PANC), cuja obra de
expressão mais recente no Brasil é de Lorenzi e Kinupp (2017): “As PANC estão
intrinsecamente ligadas aos Alimentos Orgânicos, Agroecologia, Sustentabilidade,
Resiliência, Segurança e, especialmente, Soberania Alimentar” (p. 26), além de constituir
uma fonte de resistência à indústria de alimentos.
[←62]
Sobre questões ligadas à biopirataria e à indústria farmacêutica no contexto da
colonização capitalista e neoliberal cf. Shiva (2001).
[←63]
Eu integraria o vegetarianismo ou o veganismo a esta rede de conceitos – ao menos
como idealidade – mas de modo tal que o seu imperativo fosse, de novo, inclusivo e não
excludente, a partir da consideração da diversidade dos contextos geográficos e em prol,
aliás, da conservação mesma da própria biodiversidade. Um veganismo elitista é
desrespeitoso da vida como o é o carnivorismo das elites, e um veganismo dogmático pode
ser também epistemicamente discriminatório – além de ser contraproducente. Ainda assim,
me parece óbvio que as políticas sexuais de eliminação e de extinção sejam políticas
sexuais da carne, emanando da mesma centralização de poder do patriarcado. Contudo,
vou deixar para estabelecer em outro momento as relações deste meu projeto com a
Política sexual da carne de Carol J. Adams (2012).
[←64]
Ver: LORI GRUEN (ed.) Ecofeminism: Feminist Intersections with Other Animals and the
Earth. Bloomsbury Academic, 2014.
[←65]
Sobre a ética do cuidado, ver CAROL GILLIGAN. In a Different Voice: Psychological
Theory and Women’s Development. Cambridge M.A: Harvard University Press, 1982.
[←66]
A ideia de Sul global é política e não geográfica, ainda que esteja conectada com a
questão espacial, e está relacionada a trajetória histórica de cada país, continente e região.
Assim, os termos Sul Global, países do Sul e outras variantes referem-se aos povos e
regiões que sofreram com os processos colonizadores impostos pelos povos brancos
eurocêntricos, principalmente a partir do que se chama expansão marítima. A ideia de Sul
também guarda relação com as questões climáticas, raciais, religiosas, patriarcais, culturais,
tecnológicas entre outras.
[←67]
O resultado de algumas destas pesquisas pode ser encontrado em DIAS, Maria Clara
(Org.). A perspectiva dos funcionamentos: por uma abordagem moral mais inclusiva. Rio de
Janeiro: Pirilampo, 2015. Destacamos também as pesquisas de Michelle C. B. Teixeira
(TEIXEIRA, M. C. B. Justiça Social na formação em Saúde: o que ocorre nos corredores
universitários?. 1. ed. Curitiba: CRV, 2016.); Vera Cecília Frossard (FROSSARD, Vera
Cecília. Viver com esquizofrenia: estudo de caso em uma comunidade virtual. 2015. 194 f.
Tese (Doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva) -
UFRJ/UFF/UERJ/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2015.); Suane Soares (SOARES, Suane
Felippe. Um estudo sobre a condição lésbica nas periferias do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva) – Programa
de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.); Maria Clara Dias, Milena Peres e Suane Soares
(PERES, Milena C. C.; SOARES, Suane F.; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no
Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Ape’Ku, 2019) e Maria Clara Dias e Letícia
Gonçalves (DIAS, Maria Clara. GONÇALVES, Letícia. O debate sobre aborto no Brasil:
bioética, biopolítica e a Perspectiva dos Funcionamentos como horizonte de justiça. In.:
Metaxy – Revista Brasileira de Cultura e Política em Direitos Humanos – NEPP-DH/UFRJ.
v.1, n. 2, 2017, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).
[←68]
Este texto é fruto da tese em Psicologia da autora. Agradeço à CAPES pelo
financiamento da pesquisa.
[←69]
Processo de modernização agrícola promovida pelos Estados Unidos e por agências da
ONU desde o final dos anos 1940. Através do desenvolvimento em sementes, fertilização do
solo e utilização de máquinas no campo que aumentam a produção, teve grande impacto
nas formas de se fazer agricultura. Ao mesmo tempo, trouxe à tona problemas ligados a
produção em grande escala: empobrecimento dos solos pelas monoculturas, aumento do
uso de agrotóxicos, precarização das relações de trabalho no campo, poluição das águas,
entre outras questões.
[←70]
Sementes nativas, mais adaptáveis e resistentes a diversos tipos de ambiente. Elas não
podem ser vendidas, apenas compartilhadas entre agricultoras e agricultores familiares.
[←71]
O trabalho de Ortner será revisto por várias autoras feministas que vão considerar a
relação entre natureza e sexo feminino traçada por Ortner como essencialista, binarista e
heteronormativa, de forma que a própria autora anos depois assumirá as críticas levantadas
e irá rever seu trabalho (DEBERT; ALMEIDA, 2006). Em que pese as críticas tecidas ao seu
trabalho, Ortner vai influenciar o desenvolvimento de diversas correntes teóricas que vão
pensar a questão de gênero em sua relação com a questão ambiental, como o
Ambientalismo Feminista e o Ecofeminismo.
[←72]
É importante frisar que vários autores já faziam uma crítica contundente ao colonialismo
antes disso, como Fanon, Cesaire e Memmi.
[←73]
O termo pós-colonialismo refere-se aqui tanto aos processos emancipatórios a partir do
colonialismo dos países da América, Ásia e África, enquanto forma de dominação político-
administrativa, quanto ao movimento teórico que será analisado ao decorrer do texto.
[←74]
“What knowledge is being acknowledged as such? And what knowledge is not? What
knowledge has been made part of academic agendas? And what knowledge has not?
Whose knowledge is this? Who is acknowledged to have the knowledge? And who is not?
Who can teach knowledge? And who cannot? Who is at the centre? And who remains
outside, at the margins? ”
[←75]
“When they speak it is scientific. When we speak is unscientific.
objective / subjective;
neutral / personal;
rational / emotional;
impartial / partial;
they have facts, we have opinions;
they have knowledge, we have experiences”.
[←76]
O projeto de lei quer mudar o nome dos agrotóxicos para defensivos agrícolas e
produtos fitossanitários. Vai liberar licenças temporárias, e também prevê que a análise dos
produtos proíba apenas as substâncias que apresentem risco inaceitável.
[←77]
Para Haraway (1995), toda a produção de conhecimento implicaria em reconhecer um
ponto de partida que se relacionada com o exercício da produção e o que será produzido.
Table of Contents
PRÓLOGO
APRESENTAÇÃO
PARTE 1
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
PARTE 2
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
AS AUTORAS E OS AUTORES
ORGANIZADOR/AS
Daniela Rosendo
Fabio A. G. Oliveira
Príscila Carvalho
Tânia A. Kuhnen
Camila Rosa
AUTORAS E AUTOR
Alicia H. Puleo
Angélica Velasco Sesma
Daniel Kirjner
Ilze Zirbel
Janyne Sattler
Letícia Gonçalves
Maria Clara Dias
Maria da Graça Costa
Marti Kheel (in memoriam)
Mayara Carrobrez
Patrícia Lessa
Suane Soares
Notas