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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

Science in the feminine: of what is made our writing?

Ciencia en el femenino: ¿de lo que se hace nuestra escritura?

Marília Silveira1

Josselem Conti2

Resumo

A partir de nossas experiências de pesquisa e construção coletiva, narramos a colocação do problema do


feminino na ciência, de modo a questionar que lugar é esse que desejamos afirmar. Ao mesmo tempo,
deixamos os rastros das conexões que tecemos e nos fizeram pensar. Este artigo é registro desse processo
de pesquisar, pensar e escrever e do modo como nos atravessam as questões do feminino e quais
possibilidades se constituem para nós a partir dela. Afirmar uma ciência no feminino é um risco que
vamos assumir neste artigo.
Palavras-chave: PesquisarCOM, feminino na ciência, metodologia de pesquisa, políticas de escrita.

Abstract

From our research experiences and collective construction, we narrate the placement of female issue in
science, to question what this place we want to speak about is. At the same time, we left traces of
connections that we weaved and made us think. This article is the record of this process of researching,
thinking and writing, the record of how the female issues pass throughout us, and of what possibilities are
constituted for us from it. Affirming a science in the female is a risk that we take in this article.
Keywords: ResearchWITH, feminine in science, research methodology, writing policies.

Resumen

Desde nuestras experiencias de investigación y construcción colectiva narramos el desarrollo del


problema del femenino en la ciencia, para cuestionar que lugar deseamos afirmar desde ahí. Al mismo
tiempo, dejamos las huellas de las conexiones que tejimos y nos ayudaron a pensar. Este artículo es un
registro del proceso de investigar, pensar y escribir y de la manera como nos tocan las cuestiones del
femenino y cuáles son las posibilidades que se construyen para nosotras a partir de ella. Decir que hay un
femenino en la ciencia es un riesgo que asumimos en este artículo.

1
Professora Substituta - Instituto de Psicologia - Departamento de Psicologia Geral e Experimental –
UFRJ, Doutoranda em Psicologia – UFF Email: - mariliasilveira.rs@gmail.com
2
Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Psicologia pelo Programa
de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense E-mail: -
josselemconti@gmail.com

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

Palabras-clave: InvestigarCON, femenino en la ciencia, metodología de investigación, políticas de


escrita

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

por ocultar também as controvérsias de


Introdução
sua constituição.
É chegada a fatídica hora de
O modo de reencantar o mundo
sentar e escrever. Não sem antes
que temos trabalhado em nossas
dificultar a tarefa lendo (mais) um texto
pesquisas (em 2015 que é quando
acadêmico que possa iluminar os
escrevemos esse artigo, mas desde
caminhos nublados de nossa questão. A
muito antes3) está intimamente ligado às
folha antes branca e vazia se enche de
narrativas. Essas que vamos escrevendo
clichês e será preciso desmontá-los e
com o que nos passa, nos toca e nos
rasgar a tela para que algum texto se
acontece no campo de pesquisa. As
torne possível. “Não se escreve com as
narrativas são tratadas como parte do
próprias neuroses. Escrever não é contar
tecido da experiência, uma parte sem a
as próprias lembranças, suas viagens,
qual a ciência que fazemos não seria
seus amores e lutos, sonhos e
possível e por isso tornam-se parte de
fantasmas” (Deleuze, 1997, p. 12). Ora,
uma política de pesquisa que desejamos
mas então com que espécie de matéria
afirmar neste artigo. Decidimos
escreve o pesquisador sua pesquisa? Ah
partilhar entre nós, as autoras, e com
sim, ele escreve com a experiência.
você, leitor (a), algumas narrativas que
Aquela que Jorge Larrosa Bondía
fizemos em nossas pesquisas. Para isso
(2002) define como “o que nos passa, o
pensamos que era preciso lhes avisar de
que nos acontece, o que nos toca” (p.
que somos feitas, cada uma e como nos
21). É o que nos passa, nos toca, nos
encontramos. Essa breve história vai
acontece. Em última instância é o que
entrar no texto na primeira pessoa,
me passa, me toca e me acontece. Mas é
marcando quem é cada uma e de que
o que nos passa e nos acontece quando
lugar falamos. Depois, essa marcação
nos colocamos em relação com o campo
vai sendo diluída no texto, nesse nós
de pesquisa.
que formamos também com o grupo de
Então, voltamos ao ponto de pesquisa ao qual pertencemos. Um nós
partida: mas como é que se escreve? E que permite partilhar a autoria desse
ainda, como se escreve a ciência? Diz texto sem apagar completamente as
Vinciane Despret (2012) que a ciência singularidades de nossos trabalhos, um
moderna perdeu seu encanto ao separar nós que permite o trabalho de
a coisa estudada da narrativa que a pensamento a partir do que emerge em
compõe e a permitiu existir. Diz ainda nossas pesquisas.
que o trabalho de pesquisa da ciência
Eu, Marília Silveira, gaúcha,
contemporânea poderia ser o de
psicóloga, chegada ao Rio de Janeiro há
reencantar o mundo, devolvendo-lhe as
um ano e meio e tendo levado cerca de
histórias que o fizeram. Teríamos assim
um ano para constituir um corpo
de entender que, por exemplo, a ideia de
possível para essa aventura carioca,
uma ciência que evolui “deixando para
trago as marcas de um lugar, um
trás aquilo de que não mais se ocupa”
sotaque e o hábito do chimarrão para
(Stengers, 1989, p. 428) é uma versão
compor com um grupo de pesquisa,
de como contar a história da ciência.
uma cidade, novos amigos e novos
Vinciane Despret e Isabelle Stengers
trabalhos. Realizei parte de meu campo
(2011) vão se ocupar de contar outras
de pesquisa de doutorado no Rio
versões de histórias de mulheres
cientistas, essas mulheres que não foram
reconhecidas no contar da história de
3
glórias da ciência, glórias que terminam Silveira& Ferreira (2013); Silveira (2013);
Conti (2015); Conti, Moraes, Cavalcanti et al.
(2014).

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Grande do Sul a partir da experiência de aposta em práticas e narrativas que


disseminação de uma ferramenta, o permitem problematizar as únicas
Guia da Gestão Autônoma da histórias sobre a cegueira e sobre a
Medicação (Guia GAM4) e sua loucura, dei início ao mestrado,
metodologia5na Política de Saúde buscando disseminar, proliferar
Mental do Rio Grande do Sul. De minha histórias que se enlaçam e que
experiência em uma pesquisa anterior, equivocam o sentido de única história8:
coletiva e multicêntrica6,cujo produto, o produzir aberturas, frestas, naquilo que
Guia GAM, ingressa na Política de parece ser dado ou tomado como não
Saúde Mental de um estado, trago o problemático e, assim, povoar o mundo
registro dos encontros com com outros pedaços de histórias, outras
trabalhadores e usuários de saúde versões.
mental e atenção básica, em serviços Foi no grupo PesquisarCom9,
públicos de saúde, bem como os grupo de orientação na Universidade
desafios de colocar um elemento novo Federal Fluminense, que o nosso
numa política pública de saúde. encontro aconteceu. Às quartas-feiras
Eu, Josselem Conti, senti no pela manhã nos reunimos para discutir
corpo a mudança de uma cidade do um texto, tecer a ele as questões de
interior para a capital quando vim cursar nossas pesquisas e compartilhar as
Psicologia na Universidade Federal inquietações. Os temas das pesquisas
Fluminense. Há oito anos no Rio de que compõem o grupo são
Janeiro e é esse o tempo em que me heterogêneos: saúde, educação, dança,
enveredo nas inquietações de uma corpo, cuidado, assistência, clínica,
pesquisa. Com a pesquisa Perceber Sem cidade, movimentos sociais, praças, o
Ver7, orientada pela professora Márcia brincar, mediação escolar, mediação em
Moraes, experimentei no cotidiano com
pessoas cegas e com baixa visão um
8
modo de fazer pesquisa Com o outro e Únicas histórias são histórias que perdem suas
não sobre o outro. Na relação de estar conexões, histórias desconectadas dos lugares
onde foram feitas e que produzem os efeitos das
com o outro experimentei também o definições, categorizam e se tornam universais.
fazer da clínica que se dá através da Diferente das histórias únicas que são histórias
ação do acompanhar, o singulares, abertas a novas versões acerca do
Acompanhamento Terapêutico. E, numa outro. Neste texto, seguimos a definição de
histórias únicas, em detrimento das únicas
histórias. Essa proposta é tecida na dissertação
Margens entre pesquisar e acompanhar: o que
4
Guia da Gestão Autônoma da fazemos existir com as histórias que contamos?
Medicação:http://www.fcm.unicamp.br/fcm/site (Conti, 2015).
s/default/files/paganex/guia_gam_para_dowload
9
_com_correcoes.pdf Grupo PesquisarCom, parte integrante da pós
graduação em Psicologia da UFF. Dele fazem
5
Guia do Moderador: parte mestrandas, doutorandas e pós-
http://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/fil doutorandas. E as nomeamos: Marcia Moraes,
es/paganex/guia_gam_moderador_- Cristiane Bremenkamp, Marília Gurgel, Luiza
_versao_para_download_julho_2014.pdf Teles, Luciana Franco, Carolina Manso,
Amanda Muniz, Raquel Siqueira, Cristiane
6
Onocko-Campos et al. (2012). Moreira, Talita Tibola, Maria Rita Campello
Rodrigues, Maria de Fátima Queiroz, Eleonora
7
A pesquisa Perceber Sem Ver, orientada pela Prestrelo, Marília Silveira, Elis Teles Caetano
professora Marcia Moraes, oferece oficinas de Silva, Alessandra Rotemberg, NiraKauffman,
experimentação corporal para pessoas cegas e Gabrielle Chaves, Camila Alves, Alexandra
com baixa visão, matriculadas no setor de Justino Simbine, Maria Aparecida dos Santos,
reabilitação do Instituto Benjamin Constant Cristiane Knijnik.
(IBC).

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museus. O que existe de comum entre artigo de Isabelle Stengers (1989) sobre
nós é que “gastamos tempo”10 com a o feminino na ciência.
política de pesquisa. Cada uma de nós Stengers nos apresenta a ciência
entrou para o mestrado ou doutorado de Barbara McClintock, mulher,
movida por questões diferentes, cientista, singular, e a intervenção que
buscamos o PesquisarCom como provoca nas ciências com o seu modo
método e o que atravessa todos os de produzir conhecimento. McClintock
nossos trabalhos tem relação com as faz pesquisa com células de milho no
políticas de pesquisas e a escrita. campo da embriologia. Stengers (1989)
Tomamos o método como um modo de aponta que seu modo de fazer pesquisa
fazer política. Nossos encontros são é com o milho e não sobre o milho.
ocasiões para pensar modos de estar Num mundo em que fazer ciência era
com outros e exercitar certo modo de colocado como uma atividade
compor o mundo em que vivemos e de masculina, em que pouco espaço e
articular o "nós" que sustenta nossa pouco reconhecimento era dado às
política de pesquisa. mulheres, McClintock tentava
Desse modo, é importante ultrapassar a questão de gênero e queria
partilhar a tática de escrita que ser reconhecida pelo seu valor como
fabricamos. Diante de experiências em cientista.
campos diferentes, optamos por Para nós e para Stengers, a
misturá-los ao texto, pois apostamos questão de gênero não pode ser deixada
que as experiências podem se entrelaçar de lado. Não se trata de fazer uma
e construir uma escrita afeita às ciência feminina, não é apenas um
questões do cotidiano e que criam adjetivo, mas como fazer ciência no
atravessamentos na prática de pesquisa. feminino? Como queremos construir
As articulações entre as experiências essa ciência? McClintock nos dá pistas
serão tecidas através de um nós feito a valiosas a serem seguidas.
cada encontro. É o momento em que
compartilhamos uma questão e Uma ciência no feminino deixa
compartilhamos sua afetação no campo; o material (no caso o milho) falar, quer
isso acontece não só com quem está no dizer, não coloca a pergunta de partida,
campo, mas também com quem escuta a mas deixa que o material traga os
narrativa. Essa é uma de nossas apostas, problemas. Isso indica uma disposição
caro (a) leitor(a). As narrativas tecidas para entrar em relação com o milho. É
no texto apontam uma escolha pelo que aquilo que os epistemólogos não
é local e pelo que se aceita negociar querem ouvir falar: não é o pesquisador
para fazer novas composições. que coloca o problema, mas sim o
material ou o campo. Significa entender
Criar um problema com o feminino na
que o material ou campo tem uma
ciência
história para contar e que é preciso
Em nosso grupo de orientação aprender a decifrar. Ou ainda, dito de
temos partilhado uma inquietação outro modo, que o campo cria o caso,
quanto às narrativas. Como apresentar nos interroga, nos oferta uma
narrativas (nossas histórias na relação possibilidade para compor uma história
com nossos campos de investigação) desse encontro.
como elementos que compõem a escrita
de nossas teses e dissertações? Essa “Deixar falar o material” é uma
inquietação também se encontrou com o pista. O material, no caso os grãos de
milho, aparecem em sua singularidade.
10
Usando uma expressão de Cristiane O aprendizado das boas questões vem
Bremenkamp da Cruz (2014).

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de aprender a escutar essas a nós, pesquisadoras, apontando o que


singularidades. nos afeta em cada encontro.
O milho estudado por McClintock é o Entendemos que, ao pesquisar, não
produto de histórias emaranhadas, a ocupamos um lugar neutro e isento de
história de sua reprodução, a de seu afetações, não somos distantes
desenvolvimento, a de seu impulso no observadoras. Afetamos e somos
campo onde se depara com o sol, o frio, os afetadas e isso inclui a escrita,
insetos predadores, etc... Os cientistas têm,
a propósito do milho, não que acumular tornando-a uma escrita encarnada, local
observações neutras, mas que aprender e situada. Essa escrita revela
dele que questões indagar-lhe, pois o milho posicionamentos, escolhas do que será
é, como todo ser histórico, um ser singular. escrito e do que não será, naquele
(Stengers, 1989, p.429) momento. A escrita não se encerra na
McClintock compreende o milho pesquisadora. Ela se faz e se refaz a
em sua diferença. Cada grão deve ser cada encontro com um novo leitor, a
compreendido em sua singularidade e cada leitura feita em grupo, a cada
não como representante “do” milho. Só discussão. É uma escrita coletiva. Estar
a partir daí que poderemos definir no campo implica estar em uma rede de
“princípios de narração” (mais uma trocas que coloca a pesquisadora em
pista), permitindo contar histórias risco, a repensar suas práticas. São esses
também singulares dos grãos de milho. encontros que possibilitam o
Barbara McClintock [...] conhecia o milho aparecimento de novas questões.
como se conhece uma pessoa no mundo, e A escrita é uma maneira de
este conhecimento, em vez de abrir o
milho a um saber anônimo, de torná-lo
experimentar uma prática desse
acessível a pesquisadores que, idealmente, feminino na ciência. Como nossa
poderiam ser considerados como política de pesquisa, o feminino é o
intercambiáveis, acentuou sua posicionamento que mencionamos
singularidade: para compreender o fio do acima, o modo como tratamos o que nos
raciocínio de McClintock era preciso
aceitar o esforço de se interessar pelo
acontece em campo. Fazer aparecer as
milho, de imergir na multidão de hesitações, as controvérsias, os
problemas que coloca o menor de seus momentos que poderíamos ter deixado
grãos.(Stengers,1989). de fora da escrita, mas decidimos
O princípio de narração que incluir. Aqui, experimentamos a
McClintock nos engaja a pensar é um abertura de frestas (Conti,2015) em
fio de narrativa que o pesquisador pode nossos textos, frestas que nos colocam a
puxar. Podemos dizer que são muitos pensar principalmente que mundos
fios que compõem o campo. Sim, são estamos compondo e queremos produzir
muitos, mas onde queremos interferir? com as nossas pesquisas. Em suma, em
É a partir desta pergunta que puxamos nossa escrita deixamos aparecer o que
um fio. Na verdade, um fio que se puxa importa para essa composição de
do objeto, mas também, do pesquisador. mundo que desejamos. É com trechos
dessas narrativas do que emerge no
Em nossas pesquisas escrevemos campo que seguimos o texto, para
diários de campo. São valiosos meios deixar entrever no próprio texto o modo
para compartilhar os encontros com a como viemos construindo esse modo de
pesquisa; os enviamos por e-mail para o fazer e escrever ciência.
grupo, os lemos em voz alta durante os
encontros de orientação. Ao longo das Hesitar com a escrita
conversas, fomos entendendo que o Um dos primeiros a chegar naquele dia na
diário de campo não é apenas uma Oficina de Experimentação Corporal foi
descrição dos fatos ocorridos, ele inclui um homem com idade em torno de 36 anos
e com baixa visão. Lembrei-me que ele era

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o mesmo homem que eu vi logo cedo Deixar falar o material, como


andando de um lado para o outro no Stengers (1989) nos engaja a pensar, é
corredor, com a cabeça baixa e os olhos
colados em um caderno. Era o homem-e-
fazer perguntas que interessem ao outro.
seu-caderno, e dele não largava. Dito de outro modo, o outro que
interrogamos é um expert, nos interroga
Nós nos apresentamos e logo ouvimos um
pedido para que escrevêssemos em seu de volta e faz com que refaçamos todo o
caderno. Ele pedia que escrevesse os nosso percurso. Como articular o
horários e as atividades que realizava na homem-e-o-seu-caderno e a Oficina de
reabilitação do Instituto Benjamin corpo? Em um primeiro momento era
Constant (adiante IBC): “9h natação, 10h difícil perceber uma articulação possível
Oficina, 12h Almoço, não esquecer o
cartão”. Escrevi e pedi que ele tirasse o entre Riobaldo e a Oficina, pois o
sapato para começarmos a oficina. mesmo parecia não prestar atenção nas
Na semana seguinte, ele entrou na sala e
atividades propostas. Ele se interessava
repetiu o pedido, e foi assim todas as vezes mais em abrir a mochila e tirar o
que chegava e também durante a oficina. caderno lá de dentro. Seus olhos
Enquanto fazíamos uma atividade como folheavam folha por folha e aquilo nos
encontrar os apoios do corpo, Riobaldo causava angústia por sentir que ele não
(assim o chamarei) se levantava e ia até a
sua mochila encostada na parede num
participava da oficina.
canto da sala. De lá tirava o seu caderno, O incômodo que aquele repetido
que dava um giro de 360 graus diante de pedido nos causava, a angústia em
seus olhos colados nas folhas.
Aproximava-se de mim e perguntava: sentir que Riobaldo parecia não estar
Escreve pra mim? Eu muitas vezes atento às propostas da oficina, a
escrevia; só que isso começou a me fazer hesitação em escrever e, principalmente,
pensar. Hesitamos com essa escrita. Será o que escrever, nos fez levar essas
que devemos escrever sempre que ele questões para a reunião e nos
pede? Para que escrever todos os dias a
mesma coisa? Todas as folhas tinham as colocarmos a pensar as afetações com
mesmas anotações só que escritas com aquele encontro. Qual era a história
letras diferentes. Levei essa questão para a entre o homem e seu caderno? Como
reunião do grupo de pesquisa. Como fazer com que ele participasse de um
incluir o caderno na Oficina? Retirar o
modo mais atento ao que propúnhamos?
caderno seria retirá-lo da Oficina. Como
estar com Riobaldo e seu caderno? (Conti, Quem escreveria em seu
2015, p.59-61). caderno?Começamos a negociar com
ele o momento da escrita. Seria ao final
Hesitar é verbo. O dicionário
da oficina e ele concordou, mas isso não
(Ferreira, 2010) nos alerta que é “ficar
o impedia de, durante as atividades, ir
em estado de irresolução, incerteza,
até a sua mochila e pegar o seu caderno
perplexidade. Exprimir-se com
e nos fazer o pedido: Escreve pra mim?
dificuldade; gaguejar, titubear”. Para
Passamos a incluir outras narrativas em
nós é quando ficamos cara a cara com o
seu caderno, como por exemplo, como
não saber e é justamente esse momento
tinha sido a oficina, o que fizemos, que
que pode nos colocar a pensar com a
parte ele mais gostou. Em outro
diferença, pois é quando perdemos
momento, Riobaldo passou a pedir a
nossas referências, que podemos nos
vez para falar na roda de participantes
reinventar. Repensar o pensamento
da oficina. Falava das atividades que
sobre nós, pesquisadores, e sobre eles,
fazia no IBC e, mais, nos contava que
pesquisados. É nas hesitações que uma
levara a vizinha, já idosa, à igreja, no
transformação pode acontecer e as
final de semana, e que naquele dia havia
questões da pesquisa serem refeitas,
nadado de costas na piscina.
agora a partir e com a diferença.

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É somente acompanhando as práticas relações e afetos. As conexões possíveis


que podemos ver as conexões entre os ficam tanto mais visíveis quanto mais
elementos que participam da cena. “A
questão que interessa ao pesquisador
nos interessamos por Riobaldo e seu
passa a ser a de investigar as conexões, caderno. Ele nos põe a pensar: Que
sempre parciais e locais, entre tais versões de corpo, de escrita, de
realidades e objetos: eles ora se deficiência Riobaldo faz existir?
coordenam, ora se chocam, ora um se
sobrepõem um ao outro” (Moraes & É a partir da articulação e das
Arendt, 2013). conexões que nos afetamos por mais
As conexões se faziam também diferenças e criamos, ao mesmo tempo,
a partir da memória dos encontros, um corpo-pesquisador. Um corpo
narrada no grupo de pesquisa. Era no sensível que registra as articulações e
olhar para o que fazíamos que também acolhe o processo de construção de
iam se constituindo as articulações que, mundos, que se interessa em seguir as
às vezes, no campo, eram difíceis de controvérsias, os impasses, os pontos de
perceber. O homem-e-seu-caderno bifurcação e de indecisão.
pareciam não se articular com a oficina, E, nas experimentações do corpo
como sentíamos a princípio, e foi com a escrita, algo que não havíamos
narrando o que passava no campo, as nos dado conta aconteceu. Fomos
sensações dessa ausência de conexão surpreendidas por Riobaldo. Na oficina
com a oficina, que foi possível em que experimentávamos variados
entender: não era apenas uma questão modos de andar, ele fez uma
de incluir o homem na oficina, mas o descoberta: havia outro caderno ali além
conjunto, o “homem-e-seu-caderno” do dele. Nós não havíamos considerado
precisavam entrar na oficina para que isso. Era o caderno em que escrevíamos
outras conexões pudessem se fazer o diário de campo. E agora, como
visíveis. articular os dois cadernos? O caderno
Por meio do caderno de dele só poderia ser escrito no final da
Riobaldo, conhecemos sua mãe, uma Oficina. E o nosso? Não fazemos
empregada doméstica que trabalhava pesquisa sem o nosso caderno. O
todos os dias, e as anotações no caderno caderno era um emaranhado de
permitiam que ela acompanhasse o dia a conexões. O nosso e também o dele.
dia do filho na reabilitação. Soubemos Começamos a pensar o que incluímos
também que ele não sabe ler nem na escrita do nosso diário de campo, ou
escrever. Ele sabe se escreveram em seu seja, da nossa pesquisa, ao mesmo
caderno pelo desenho da tinta da caneta tempo em que passamos a partilhar o
na folha. Ele sabe o espaço que os que escrevíamos com Riobaldo e com
dados que ele narra ocupam na folha. os outros participantes. No caderno de
Riobaldo, as letras se multiplicavam,
Quando hesitamos no encontro não era mais apenas uma pessoa que
com Riobaldo e ele nos coloca questões escrevia para ele, outras mãos passaram
sobre o que estamos fazendo ali, o a preencher as folhas, com cuidado e
mundo se torna mais largo. Um mundo atenção. O momento de escrever em seu
agora povoado pela sua mãe, pelas caderno se tornou um espaço potente
relações que ele vai construindo pelo em que ele nos dizia o que tinha feito no
seu caminho de casa até a Oficina, a seu dia, o que tinha e o que não tinha
relação com o caderno, a gostado. E também era possível
experimentação do seu corpo em um conversar com a sua mãe por intermédio
espaço afeito a afetações. Há um do caderno.
processo de feitura que se dá no
encontro e faz existir um mundo de

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Esse encontro coloca uma que havíamos escutado, mas não


questão sobre a escrita na pesquisa: O sabíamos bem como. E assim segue-se
que fazemos existir com a nossa escrita? o diálogo “Que bacana que você faz um
A oficina se tornou mais heterogênea grupo, e entendemos que às vezes em
quando pudemos acolher o homem, o algumas situações é preciso um tanto de
seu caderno e a nossa hesitação. tutela no cuidado, mas o que estamos
querendo colocar com a GAM é como
Entretanto esse não era o único
ajudar essas pessoas que hoje precisam
tipo de problema que vivíamos no
que tu dês o remédio na boca deles e,
campo. Houve um momento em que
quem sabe?, adiante eles mesmos
percebemos ainda outro elemento. Era
possam tomar não é?”. E ela insiste:
preciso ficar com os problemas que o
“Mas eu vou pegar o Guia GAM eu
campo nos trazia. A seguir, contamos
gostei dele, eu vi essas perguntas aqui
outra história, de outro campo de
eu vou fazer essas perguntas pra eles”.
pesquisa que nos ajuda a...
Talvez os trabalhadores tenham
Ficar com o problema
percebido isso que era evidente: a nossa
Anelise estava sentada no meio dificuldade de lidar e construir junto
do auditório, lotado. Era um fórum de com as práticas que não condiziam com
trabalhadores de saúde mental. a que estávamos ali propondo. O
Apresentávamos ali o Guia da Gestão impasse número um era esse: vínhamos
Autônoma da Medicação (Guia GAM) e de uma experiência de pesquisa na qual
sua metodologia, pela primeira vez, a nós acompanhamos usuários
um grande público. Quase quarenta conduzindo grupos GAM, inventando
minutos de um monólogo sobre a projetos, pesquisando conosco. Uma
ferramenta, passo a passo e sua experiência com usuários muito
metodologia. Quando termina o autônomos de saúde mental. Mas numa
monólogo ainda existem insistentes que autonomia que havíamos construído
querem falar (talvez nós mesmas juntos em cinco anos de pesquisa
tivéssemos desistido depois de tanto (Silveira (2013);Silveira, Palombini &
tempo!). Anelise é uma delas; ela se Moraes (2014)). Começar a ofertar a
identificou com a GAM. Essa GAM que ferramenta para quem nunca tinha
apresentamos, que fala sobre ouvido falar da GAM era entrar em
protagonismo, sobre autonomia, sobre contato com essas práticas dos serviços
direitos dos usuários. Essas palavras de saúde que desconhecíamos e que
grandes e imponentes de significado pareciam tutelares, duras, prescritivas.
duvidoso (viemos a descobrir depois!). O desafio era justamente esse:como
Anelise diz: “Eu faço um trabalho fazer para não sermos tutelares, duras e
parecido com a GAM lá com os meus prescritivas na hora de apresentar a
pacientes. Eles tinham problemas, GAM?
internavam muito porque não tomavam
O trabalho na gestão era
o remédio direitinho. Aí eu resolvi
incessante e aquele estranhamento ali
cuidar deles, botei todos num grupo e a
logo se desfez para outros vinte se
gente conversa e eu ajudo eles a tomar o
atravessarem. A questão é que Anelise
remédio, dou o remédio na boquinha
insiste e outra vez nos encontra meses
deles na hora certa. Depois disso
depois numa oficina GAM durante um
ninguém mais internou”. A
evento.
coordenadora de saúde da região nos
olha apreensiva, é a primeira vez que Eu comecei a fazer as perguntas do GAM
nos vemos diante daquela situação e pra eles! Eu peguei as perguntas do Guia e
comecei a fazer para os pacientes. Alguns
percebemos que era preciso acolher o demoram para entender, outros não

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conseguem escrever. Aí eu chego do lado pesquisa, como uma pesquisadora.


deles e pergunto no ouvido, eles me ditam Salta aos olhos os principais resultados
a resposta e eu escrevo. Eles tão gostando apontados por ela como efeitos do
porque eu faço esse grupo que dura a grupo GAM: a maior adesão dos
manhã toda e eles sempre perguntam usuários ao medicamento e o fato de
quando vamos ler o livrinho. (Diário de que, desde que iniciaram o grupo, esses
campo, 2013). usuários não tiveram mais internações
(Diário de campo, 2014).
Ainda outros meses e, numa
roda de conversa sobre a GAM, em que Anelise nos coloca de partida
participavam trabalhadores e usuários, um problema. Aquilo que havíamos
nós reencontramos Anelise. Uma roda construído de uma expertise sobre o que
grande, reunindo vários municípios de era e como deveria ser um grupo GAM
uma mesma região carregada de afetos e era colocado em xeque a cada novo
histórias. Anelise também quer contar a encontro com pessoas que não
sua. conheciam a proposta. E ela insiste em
nos reencontrar e fazer pensar mais uma
Nesse dia Anelise aparece no encontro
com os usuários participantes do grupo vez em suas questões, a cada vez que
GAM. Diz que pegou o carro da apresenta o que vem realizando com a
prefeitura, o motorista ignorou a regra GAM. Quando narramos essas cenas
do município de que o carro só poderia pela primeira vez no grupo de
levar servidores e trouxe os usuários
orientação nas quartas-feiras, nos vimos
para o encontro. Os usuários, super
tímidos, não sabiam bem o que fazer criticando o trabalho de Anelise, numa
naquela roda tão grande, tão cheia de reprodução quase explícita das
gente desconhecida. Anelise estava reclamações que escutávamos os
ansiosa para contar sua experiência e trabalhadores fazerem sobre os usuários
começou a contá-la apresentando os
(que não fazem as coisas como o
usuários pelos seus diagnósticos e pelas
suas histórias de internação. Os combinado na consulta, que não tomam
usuários ao lado em silêncio e eu me o remédio direito, que não comparecem
sentindo muito mal, vendo suas aos grupos, que não se engajam no
histórias expostas assim, sem nem lhes tratamento). Escrevemos com toques
perguntarem se queriam falar. Tento
ácidos de sarcasmo sobre esses
interrompê-la e ofertar a palavra aos
usuários, que apenas assentem que encontros e isso produziu em nossas
“sim, é como ela contou”. Usuários de primeiras leitoras (o grupo
outros municípios contam outras PesquisarCOM) um grande
histórias e diluem o meu mal estar estranhamento. Elas perguntaram: o que
(Diário de campo, 2013).
vocês querem fazer aparecer com essa
No quarto encontro, uma Mostra narrativa? Anelise havia trazido dois
Regional de Saúde da Atenção Básica, problemas, dos grandes: um era de
reúne-se outra roda GAM. Lá está como compor com suas práticas e aliá-
Anelise outra vez, ansiosa para las à GAM e a outra era como escrever
apresentar seu trabalho. sobre isso sem soterrar a experiência em
Dessa vez ela está sozinha, lamenta não nossos pré-conceitos. Queríamos que
ter conseguido trazer os usuários. aparecessem na narrativa as pequenas
Trouxe um PowerPoint com toda a variações no seu discurso, como ela vai
história do grupo, ilustrada por fotos aprendendo a ser afetada (Saada, 2005;
dos usuários e dos trabalhos que Latour, 2008) e transformando sua
fizeram, especialmente um painel com
as caixas dos medicamentos e algumas prática a cada nova vez que reconta sua
informações. Anelise apresenta os experiência. De alguém que dá o
resultados de seu trabalho, colhidos remédio na boca até uma pesquisadora
através de entrevistas com os outros que entrevista os colegas para saber que
profissionais da equipe e com as falas mudanças perceberam a partir do
de alguns usuários. Apresenta sua

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

trabalho do grupo. Numa medida e num traições que os trabalhadores vão


tempo muito diferente do que havíamos fazendo da GAM, assim como fizemos
experimentado na pesquisa GAM a nossa ao traduzir-trair o material
(Silveira, 2013), ela havia passado pelas original criado em Montréal no Canadá
mesmas coisas que nós; havia aprendido (Onocko-Campos et al., 2012).
a se afetar com as histórias dos usuários Ficar com o problema não é
(ainda que precisasse contar por eles), estagnar a prática diante do que parece
havia viajado com eles, havia estudado impossível, mas é esperar o tempo de
com eles, trouxera outros profissionais ação dos atores, as alianças estranhas
para o engajamento no grupo, partilhara que podem fazer e os efeitos que de
sua experiência. Havia se transformado modo algum podemos controlar. Ficar
naquele encontro com a ferramenta. com o problema é levá-lo adiante, andar
Assim como nós havíamos sentido e com ele, para que se mova, se
registrado (Silveira, 2013).Era isso que transforme, recoloque as nossas
precisava aparecer. A pergunta que perguntas, nos recoloque em nossa
levávamos no início do trabalho era: posição no campo.
como cuidar de uma experiência quando
ela se coloca em grande escala? Ela fora Criar caso - fazer histórias
transformada em outras – “que Todas as quartas-feiras pela
engajamentos são possíveis com a manhã nós nos reunimos para faire
GAM, a partir de práticas já histoire. Esta é uma expressão de
existentes?”; “quais concepções são Despret e Stengers (2011) e é também o
necessárias na feitura da GAM como título do livro “As fazedoras de
ferramenta de uma política de saúde? – histórias”. Esse título em francês é
tomando a formulação de Donna marcado por uma ambiguidade: poderia
Haraway (2014), em sua fala no também ser traduzido por “as criadoras
Simpósio Os Mil Nomes de Gaia11,de de caso” no português coloquial.
que devemos ficar com o problema, Inspiradas nessa ambiguidade, seguimos
levá-lo adiante para que se transforme, criando caso e fazendo histórias,levando
para que algum engajamento (por mais adiante a nossa política de fazer ciência
estranho que seja) se torne possível. As no feminino. Foi nesse fazer histórias
alianças, como diz Haraway (2014), nas quartas-feiras que começamos a
podem ser as mais estranhas ou não pensar no tema do feminino e a estudar
pensadas, elas acontecem “dentro da os textos que citamos neste artigo.
barriga do monstro”, inclusive dentro da Despret e Stengers (2011) retomam o
política, o que pode torná-la uma prática grito de Virgínia Woolf quando diz que
hegemônica, prescritiva. Mas, ainda as mulheres não deveriam aceitar de
assim, dentro dela a agência dos atores é bom grado o convite dos homens cultos
sempre inesperada, eles fazem a GAM a integrarem a universidade. Porque
fazer coisas que não havíamos pensado sabia que não seria em pé de igualdade
e nos obrigam a concessões que não que isso ocorreria. Entretanto, Despret,
acreditávamos ser interessantes, mas Stengers e muitas de nós, hoje, estamos
que precisam ser feitas para que o na universidade e pouco nos ocupamos
trabalho possa andar. Em suma, nesse de pensar se faz diferença ser mulher
processo se criam o que Despret (2012) nas rodas acadêmicas, embora talvez
chama de “versões”, que são traduções- todas nós tenhamos pelo menos uma
história para contar sobre isso. É esse o
convite que Despret e Stengers (2011)
11
Disponível em: fazem a outras dez mulheres que
https://www.youtube.com/watch?v=1x0oxUHO escrevem no livro As Fazedoras de
lA8

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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

Histórias. Convite a que nós também outrora atavam os pulsos das mulheres
nos sentimos convocadas a pensar, com escritoras. Entretanto, quando nos
o “pensar nós devemos”, que reunimos nas quartas-feiras, para fazer
retomamos também dos escritos de histórias, quando hesitamos com nossa
Virgínia Woolf. Será que ser mulher é escrita, quando ficamos com o
igual a ser homem? E a que ser mulher problema, quando deixamos o material
nos engaja? Vamos também passar pela falar, estamos também criando caso
literatura, a ver se Clarice Lispector com a ciência dita neutra.
pode nos ajudar... Colocar o problema da língua é
[...] faz de conta que ela não ficava de considerá-lo um dos fios que compõe
braços caídos de perplexidade quando isso que vamos definir aqui como
os fios de ouro que fiava se
embaraçavam e ela não sabia desfazer
modos de narrar a ciência. Um fio de
o fino fio frio, faz de conta que ela era um grande emaranhado, levantado para
sábia bastante para desfazer os nós de ser visto. Podemos pensar a partir daí,
corda de marinheiro que lhe atavam os da linguagem. Com quantos artigos
pulsos... (Lispector, 1998 p. 14) indefinidos se produz um discurso de
Aprendemos de pequena a fazer neutralidade? Quanto será que a
de conta que ser mulher não tem linguagem influencia na questão do
diferença. Fazemos de conta que é igual neutro na ciência? E ainda do neutro
a ser homem. Até que crescemos, então profundamente atrelado ao universal?
muda. Faz de conta que queremos ser Aqui contamos histórias tecidas no
pesquisadoras e que ser mulher não faz encontro, de duas pesquisadoras, de um
diferença Embora o corretor ortográfico grupo que sustenta o trabalho de
marque um erro nessa última frase, para fazerCOM o campo de pesquisa, que
que mudemos “pesquisadoras” para sustenta uma política de pesquisa,
“pesquisadores”. Faz de conta que marcada pelo feminino.
ontem brincávamos de carrinho e Consideramos que vivemos
jogávamos bola, e era bom. Faz de nossas experiências de pesquisa no
conta que hoje escutamos as dores de corpo, que somos afetadas pelo nosso
outros. Faz de conta que inventamos campo de pesquisa, que o encontro e
essa realidade enquanto escrevemos. conexões entre nós, o grupo de
Faz de conta que nossa curiosidade nos pesquisa, o campo e as teorias que
faz pesquisar. Faz de conta que somos estudamos nos transformam. Com isso
mulheres E cientistas. nos perguntamos: o quanto a linguagem
Para tudo ficar igual, precisa científica nos ajuda fazer valer e fazer
começar diferente. E é nesse ponto que aparecer tudo que afeta nosso corpo
a língua pega, porque no português a quando pesquisamos? A validação da
voz do neutro é masculina. E nós não neutralidade encontra-se também na
podemos escrever artigos científicos no linguagem e, por consequência, um
feminino, sob o risco de ser mal achado neutro facilmente se torna
interpretadas. Sob o risco de deixar de universal. Mas essa é a história que já
fora os homens cientistas que nos lerão. conhecemos, que as grandes narrativas
Mas os homens ao escreverem no nos contam sobre a ciência e os homens
neutro masculino fazem de conta que cientistas. Nós aqui queremos falar de
não excluem as mulheres, leitoras e uma ciência feita no singular, marcada
cientistas. pelo feminino. Que tipo de marca seria
essa?
O problema da língua é um nó.
Desses de marinheiro que atam os O feminino que evocamos aqui
pulsos das mulheres cientistas, como não se refere ao gênero mulher, mas

Pesquisas e Práticas Psicossociais 11 (1), São João del Rei, Janeiro a junho de 2016.
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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

muito mais a um modo de estar no de Donna Haraway (1995) quando ela


campo e se ocupar dele, desse modo que diz que este tem o privilégio da
viemos contando em nossas perspectiva parcial, porque lá onde está,
experiências, de hesitar, de ficar com o no contexto, no tempo, na experiência é
problema, de deixar o campo trazer as onde o saber está encarnado e por isso
questões. Isso não são apenas as não pode ser generalizado.
pesquisadoras do gênero feminino que Quando Deleuze diz que a
são capazes de fazer e pode não ser feito minoria é todo mundo, refere- se a cada
por pesquisadoras do gênero feminino. um; é, pois, da singularidade que se
O feminino a que nos referimos está trata. A singularidade é o que aparece
próximo daquilo que Deleuze (em seu quando narramos uma história de nosso
Abecedário12) chamou de “devir campo de pesquisa, quando produzimos
mulher”, quando afirma que mesmo uma narrativa encarnada no campo. A
uma mulher precisa “devir mulher”, narrativa permite que o(a) leitor(a)
considerando o devir como algo possa dizer “eu também”, possa se
minoritário, não óbvio, não dado. reconhecer naquilo, mesmo que não
Deleuze e Guattari (1997) vão tenha passado nem de perto por aquela
fazer uma crítica à ciência natural em situação. Mas se reconhece na
cima da afirmação de Lévi-Strauss estranheza, no gaguejar, no hesitar de
sobre o estruturalismo que organiza os nosso fazer. Há um trabalho a fazer que
seres numa ligação de origem e é independente do sexo ou do gênero do
evolução que não opera com as pesquisador. O que queremos colocar é
variações. Então, seria o mesmo que uma aposta de um lugar ético
estamos tentando resgatar aqui: a comprometido com o que a pesquisa
ciência que produzimos e que trabalha produz.
com as variações, as singularidades e o Do ponto de vista das feministas que
feminino é essa variação, essa adotaram a noção de gênero, é evidente
singularidade. Porque o padrão já está que a ciência se apresenta como neutra.
dado, já é hegemônico, já é um padrão Pois o gênero não designa apenas uma
construção sócio-histórica, mas uma
vazio como diz o próprio Deleuze. Para
construção assimétrica. Há um gênero
ele todos os devires são minoritários: “não marcado”, que se apresenta como
“as mulheres não adquiriram o ser “normal” e, por contraste, define-se o
mulher por natureza. Elas têm um devir- “gênero marcado”. A diferença entre
mulher [...]. As crianças não são marcado e não marcado se encontra
cada vez que uma categoria “invisível”,
crianças por natureza. O homem macho
o que ela designa, se torna sinônimo de
adulto não tem devir porque ele é um um parâmetro, permitindo caracterizar
padrão vazio”.13Deleuze pondera que as o que “marca” aqueles ou aquelas que
pessoas se identificam com esse padrão se afastam da norma. Assim a categoria
vazio, talvez o consumam. Por isso ele “homem” é considerada como um
universal, tornando invisível o fato dela
recoloca o problema: “a maioria é
não designar senão 45% da
ninguém e a minoria é todo mundo”. humanidade. Mas um parâmetro pode
Aqui aparece o encontro entre o devir esconder outro. Foi o que descobriram
minoritário com o conhecimento situado as feministas quando “as mulheres de
cor” interpelaram suas irmãs “brancas”
e contestaram a maneira pela qual elas
12
Deleuze, G.Abecedário. Disponível em representavam nos dois sentidos o
https://www.youtube.com/watch?v=yu55SONC “gênero mulher”. Essas tiveram que
A28&list=PL9410288DA0B684BA.
13
aceitar que “branco” era também uma
Deleuze. Ser de esquerda. Vídeo disponível categoria “não marcada” e que sua
em: análise das relações de gênero as
https://www.youtube.com/watch?v=_Wer1VGB
Zi8.

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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

situava como “mulheres brancas”. considerando nossa aposta no fomento


(Despret e Stengers, 2011, p. 20). de um mundo mais denso, mais
É preciso insistir que há sim uma complexo e por que não, mais
marca, que ela faz parte de uma encantado?
composição daquilo que a(o) Considerações finais temporárias
pesquisadora(o) é, do que viveu, do que
passou. A pesquisadora Elis Teles Este texto, assim, é também
Caetano Silva (que compõe nosso grupo parte da pesquisa, um modo de pensar
de pesquisa), ajuda a fomentar essa com a escrita, com a maneira de narrar
ideia quando diz que talvez o conceito essas hesitações, esse gaguejar, os
que melhor exprima isso seja o de fracassos, deixá-los à vista, nos
objetividade encarnada de Donna posicionar com eles, dizer que não
Haraway. sabemos. Apostamos que esses sejam os
elementos que trazem a questão do
Assim, retomamos a questão: “Com o
feminino na ciência.
sangue de quem foram feitos os meus
olhos?” Provocamos uma atenção aos Nem todos os pesquisadores e
modos como o conhecer é produzido, pesquisadoras, por mais cuidadosos e
ou seja, conhecer implica uma
artificialidade, na qual nós cuidadosas que sejam no campo,
pesquisadores nos incluímos. deixam aberto no texto final da pesquisa
Interferimos naquilo que pretendemos seus erros, seus tropeços e suas
conhecer, nossos mundos forjam contradições. Isso é algo que inquieta a
nossas lentes e os encontros as todas nós e nos faz sustentar uma aposta
ampliam e as transformam. Há na
questão de Haraway uma convocação diferente na formulação da ciência.
para a responsabilidade de nossos Mostrar do que somos feitas e em que
percursos na ciência; deixemos claro contexto produzimos conhecimento
que nossas posições não são oriundas falam de uma posição que é ética e
de uma identidade com nossos objetos, política. Ética porque engloba uma série
mas de uma conexão parcial a eles; que
evidenciemos a processualidade com a de procedimentos de cuidado, porque
qual construímos conexões parciais e nos colocamos a fazer COM o outro e
saberes localizados. (Silva, 2015, p. 17) não sobre ele, e política porque estamos
É preciso dizer que se marcamos sustentando e produzindo com essa
um feminino na ciência e não uma posição certa visão de mundo.
ciência feminina é também para marcar As palavras agem, elas
uma posição política no meio performam mundos. Quando deixamos
acadêmico, nesse meio acadêmico que no texto as hesitações de nosso
trata sem pestanejar os homens como pensamento, os mal-entendidos no
rigorosos cientistas e nós, contadoras de campo, nós estamos performando um
histórias, como “pesquisadoras modo de fazer ciência que é contra-
sensíveis”. As histórias que escrevemos hegemônico porque mostra as falhas e
sustentam um mundo que queremos, não apenas as glórias de nossa pesquisa.
com o qual nos responsabilizamos.
Nossa escrita e nossa pesquisa
Responsabilizar não no sentido decriar
são feitas também desses mal-
uma lista de obrigações, mas como
entendidos, de elementos que só vemos
afirma Haraway (2014): “Não é ser
no compartilhar com o grupo de
responsável, é mais como cultivar a
pesquisa, ou somente depois que os
capacidade de reagir” no tempo e no
escrevemos uma primeira vez, como na
espaço. Não queremos apagar nossa
história com Riobaldo e seu caderno e
sensibilidade, mas queremos que nossas
na história com Anelise. Nossa escrita e
narrativas tenham lugar em pé de
nossa pesquisa se fazem com os erros
igualdade na comunidade científica,

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Conti, Josselem; Silveira, Marília. Ciência no feminino: do que é feita a nossa escrita?

também, com os momentos de não Cruz, C. B. (2014). Movimentos de


saber, de não conseguir ficar com o conversão da atenção e
problema. Nossa escrita e nossa experiência de transformação de
pesquisa se fazem também com medos e si e do mundo. Dissertação de
angústias no campo e nos nossos Mestrado, Instituto de Ciências
corpos. Deixar essas marcas de como Humanas e Filosofia,
aprendemos a pesquisar a cada vez que Departamento de Psicologia,
pesquisamos, deixar nossos pré- Programa de Pós-graduação em
conceitos e hesitações à mostra no texto Psicologia, Universidade Federal
e também o fato de como, às vezes, não Fluminense, Niterói.
percebemos questões óbvias no campo é Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil
marcar essa experiência no singular, é Platôs: Capitalismo e
fazer história, criar caso com as glórias Esquizofrenia (Vol. 3). São
da ciência ou, na proposição de Despret Paulo: Ed. 34.
(2012), isso é reencantar o mundo;
trazer à tona diferentes versões que Deleuze, G. Crítica e Clínica. São
tornam o mundo mais denso e mais Paulo: Ed. 34, 1997.
complexo. Tudo isso compõe o que Despret, V. & Stengers, I. (2011). Les
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Edição Digital. São Paulo:
Programa de Pós-graduação em
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Estudo, 18, 313-321. Aprovado em 30/03/2016

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Fluminense, Niterói.
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territórios na mão: Loucura
corpo e escrita no
PesquisarCOM. 134 f.
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Psicologia Social e Institucional,
Instituto de Psicologia,
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre.
Silveira, M. & Ferreira, L. (2013)
Escritas de si, escritas do
mundo: Um olhar clínico em
direção à escrita. Athenea
Digital, 13(3), 243-263.

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