Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract: This article presents the process of (re) production of suffering and illness in higher education. The
objective is to share reflections and experiences related to the collective production of psychosocial care at the
university, from a critical perspective of medicalization, meritocracy and productivism that prevail in neoliberal
societies. School and Educational Psychology from a critical perspective, references of decolonial thinking and
the field of action research constitute the theoretical and methodological proposal. It was verified the procedural
and multifactorial nature of the production of suffering and illnesses, as well as the respective care networks.
The analysis of the discursive practices of the university day-to-day showed contradictions. Innovations coexist,
competing for space with conservative forces in social, institutional and psychic territories. In view of the
predominance of whiteness in power structures, promoting epistemological landslides brought about
possibilities that respectfully contemplate diversity. The partnership between managers, teachers, technicians
and students strengthens the bonds and calls for the recognition of individual and collective responsibilities.
Key words: Care. Psychic Suffering. University Life. Demedicalization. Collective strategies.
1Mestre em Ciências Sociais (FFCH-UFBA), Doutora em Psicologia (IP-USP), Professora Adjunta da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED-UFBA), e-mail: gold.thais@gmail.com, ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4995-6559
2Graduada em Psicologia (FFCH-UFBA) e em Letras Vernáculas Língua Estrangeira Francês (IL-UFBA); Pós-
graduada em Psicopatologia Clínica (UCB-RJ). e-mail: igdemouliere@hotmail.com, ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9966-7582
3 Graduada em Direito (MACKENZIE-SP); Especialista em Direito Público (FDDJ-SP); Licencianda em Geografia
(IGEO-UFBA), e-mail: mairafdossantos@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4572-8647
Página59
4 Mestre e Doutora em Psicologia (IP-USP), Professora Adjunta da Universidade Paulista (UNIP-SP), e-mail:
sashenkameza@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2019-3113
INTRODUÇÃO
5 Ostrabalhos de extensão e pesquisa aqui descritos contaram com a colaboração de outros integrantes do grupo:
Klessyo do Espírito Santo Freire, Levi Santos Barbosa, Márcia Regina Araújo da Cruz, Marcos Vinícius Santos de
Araújo, Roberta Erika Ferreira Morais e Talita Pereira dos Santos.
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
Como é comum em espaços públicos, a porta interna dos banheiros da Faculdade é cheia de
pichações. Em uma cabine, alguém escreveu: ‘Conecções mentais são raras! Conecte-se’. No
espaço mais ‘privado’ da instituição, o picho ao mesmo tempo partilha dor e esperança.
Denunciando em ato a dificuldade de conexão, o texto foi corrigido e comentado por outra
6 No contexto da pandemia, em 2020 e 2021, esse serviço passou a ser oferecido de maneira remota.
7Destacamos o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que, desde 1998, ampliou o acesso a universidades
Página61
públicas; o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) que
em 2007, que além de ampliar o acesso, abriu novos campi no território brasileiro; a implementação do Sistema
de Seleção Unificada (SISU), em 2010; a aprovação da Lei nº 12.711/2012, “Lei de Cotas”; Lei de Cotas.
pessoa: ‘Ainda mais com quem não sabe escrever coneXões’, o X assim acentuado. O ‘debate’
não terminou aí, esperança alimentada na tréplica: ‘Pouco importa se conexões se escreve com
X ou Ç. O importante é se conectar. Ame +’. Encorajados, novos comentários fortaleceram as
possibilidades de conecção. Do espaço mais privado aos ambientes mais públicos, tais
confrontos dão vida à instituição. (VIÉGAS; CARVALHAL, 2020, p. 43).
Não só nas cabines de banheiros, mas em conversas de corredor, murais, redes sociais,
sala de aula, espaços de convívio, aparecem sofrimentos relacionados a marcadores sociais de
desigualdade: são agressões relacionadas à classe, raça, gênero, território, sexualidade, modo
de falar etc.
As intervenções relatadas neste artigo problematizam, a partir de relatos do cotidiano
universitário, a necessidade de atenção à pauta da responsabilização que cada um deve
assumir, desde seus respectivos lugares. Estudantes, professoras/es, técnicas/os e todos que
constituem a dinâmica institucional universitária são desafiadas/os a se implicar na
desconstrução da lógica colonial que marca as relações cotidianas na universidade, pois
conforme Gomes (2020):
Não bastam apenas o reconhecimento e a vontade política para descolonizar a mente, a política,
a cultura, os currículos e o conhecimento. Essa descolonização tem de ser acompanhada por
uma ruptura epistemológica, política e social que se realiza também pela presença negra nos
espaços de poder e decisão; nas estruturas acadêmicas; na cultura, na gestão da educação, da
saúde e da justiça: ou seja, a descolonização para ser concretizada precisa alcançar não somente
o campo da produção de conhecimento, como também as estruturas sociais e de poder. (p.226).8
8 Além da presença negra destacada por Gomes, acrescentamos a presença de indígenas, pessoas com deficiência,
quilombolas, ribeirinhos e pessoas da zona rural.
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
passamos a circular pelo território da UFBA e a ouvir sua comunidade. O grupo vem
realizando projetos que articulam temas de saúde mental à vida universitária. Partimos do
reconhecimento de que a produção de sofrimentos e adoecimentos se dá de modo processual
e multifatorial e as estratégias de enfrentamento devem ser variadas, complementares e
singulares: podem ser individuais e/ou grupais, intersetoriais e transdisciplinares.
Complementamos iniciativas de atenção e cuidado já existentes, com projetos de escuta e
observação dos atores sociais no tecido institucional.
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
Nas ações coletivas desenvolvidas9 buscamos mirar não apenas as fragilidades, mas
também as potencialidades dos sujeitos e grupos. As ações relatadas a seguir situam-se nas
franjas da saúde e educação e foram realizadas com pessoas de diferentes cursos, identidade
étnico-racial, gênero, idade, sexualidade, classe social, território de origem. Pela própria
diversidade do corpo discente e de nossa equipe, as reuniões de estudo, planejamento, as ações
e suas análises propiciavam um “encontro de saberes” e tensionamentos inescapáveis ao
convívio com a diversidade, marcada por abissais desigualdades.
Carvalho et al (2020) apontam dois dualismos colonizantes na organização do saber
acadêmico, frutos da reprodução, nas nossas universidades no início do século XXI, de um
modelo educacional consolidado na Europa: o dualismo separando o sujeito conhecedor do
objeto a ser conhecido; e aquele que separa as ciências sociais e humanas, das exatas. Esses
autores questionam a exclusão das epistemologias indígenas e afro-brasileiras das
universidades, por vezes, sob pretexto de não serem científicas.
Temos funcionado de modo a não reforçar o primeiro dualismo, uma vez que
percebemo-nos imersos nas questões que pesquisamos. Foram justamente nossas angústias
cotidianas que motivaram a elaboração de iniciativas que nos permitiram perceber algumas
contradições importantes nesse universo, fora e dentro de nós. Contamos com as
contribuições de Sato e Souza (2001) que abordam, dentre outros, o processo de convivência
entre pessoas no trabalho de campo. Para elas, entrevistadora e entrevistada são ambas
pesquisadoras.
9 Entre 2017 e 2019, realizamos conversas com estudantes de diferentes cursos, com lideranças estudantis de
residências universitárias, participamos de debates e rodas de conversa sobre saúde mental, medicalização,
racismo e suicídio em diferentes unidades: Instituto de Saúde Coletiva; Liga de Medicina da FM-UFBA, Rádio
Página65
Ao optarmos por uma abordagem etnográfica, optamos por nos inserir num local com
pretensões de pesquisa, onde nós somos os pesquisadores e as pessoas do local o ‘objeto’ a ser
pesquisado. Porém, esse é um ponto de vista nosso, pois há outros - o das pessoas do local -
para as quais nós também nos constituímos em objeto de pesquisa e isso tem implicações para
o ‘estar no campo’ e para a condução a ser adotada nessa relação entre pessoas. (SATO e
SOUZA 2001, p. 35).
O grupo vem realizando estudos e ações que trafegam na contramão dos processos de
medicalização da vida. Nesse sentido, o foco do trabalho foi propor ações desenvolvidas junto
a coletivos, por vezes híbridos (composto por docentes, discentes ou técnicos). As práticas de
produção de cuidados e acolhimento implicavam todos, não apenas aqueles com formação em
saúde e/ou nas áreas de psicologia clínica. Relatamos a seguir três intervenções na UFBA: o
“Ciclo Formativo sobre Orientação Acadêmica”, a “Oficina de Acolhimento” e o “Guia d_
Estudante”10.
Página66
10A escolha por deixar o termo em aberto, grafado com _ (Guia d_ estudante) foi proposital, para contemplar
todos os gêneros.
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
Soubemos, em diferentes unidades da UFBA, entre 2017 e 2018, que a Ouvidoria vinha
recebendo queixas de alunos de determinada unidade, relacionadas à conduta inadequada de
alguns professores. A coordenadora daquele colegiado relatou-nos sua preocupação com a
limitação do protocolo esperado: o de, na condição de coordenadora, “puxar a orelha” dos
colegas professores denunciados. Para ela, eles precisariam ser sensibilizados e capacitados a
lidar com o novo perfil de alunos e se abrirem a novas formas didáticas; muitos docentes
daquela unidade, apesar de concursados, não tinham formação em Licenciatura nem
disposição para rever suas práticas didáticas. A demanda feita por aquele colegiado era a de
desenvolvermos um projeto junto aos professores da casa, preparando-os para acolher os
alunos ingressantes no ano seguinte e, principalmente, capacitando-os a realizar a
“Orientação Acadêmica”11. Após alguns encontros com essa coordenadora, compreendemos
sua demanda e planejamos, em conjunto, uma intervenção naquela faculdade. O projeto, a
princípio destinado às/aos docentes, foi expandido para incluir técnicos e estudantes.
Propusemos um curso de extensão na forma de “Ciclo Formativo” para refletir sobre a vida
universitária e seus desafios, realizado de outubro a dezembro de 2018, com cinco encontros,
totalizando 20 horas, com direito a certificados emitidos pelo Sistema de Registros e
Acompanhamento de Atividades de Extensão da UFBA – Siatex. Devido à sobrecarga e
acúmulo de funções (ensino, pesquisa, extensão e gestão), buscamos uma brecha no sistema
institucional, para atrair a participação docente por meio da contabilização deste curso na
progressão profissional. De um lado, isso atendia a exigências próprias à lógica produtivista;
de outro, propiciava refletir sobre experiências cotidianas e, eventualmente, problematizar
essa mesma lógica. Planejamos e organizamos atividades disparadoras de diálogos,
priorizando um percurso que acolhesse temas, inquietações e demandas espontâneos.
Nomeamos “Ciclo formativo”, menos como ensino/aprendizagem, e mais como uma
oportunidade formativa; ou ainda, conjugando aprendizagem e formação, já que “a
11No Regulamento de Ensino da UFBA (2015), em capítulo “Da Orientação Acadêmica”, consta: “contribuir para
a integração dos estudantes à vida universitária, contemplando aspectos pedagógicos, itinerário curricular,
Página67
informações sobre políticas e normas da Universidade, assistência estudantil [...] realização de estágios e
aconselhamento acadêmico-profissional” (Art.138). Diversos colegiados de cursos da UFBA ainda não a
implementaram, por razões diversas, que mereceriam uma outra pesquisa.
2º dia - Técnico e estudante: “Então... Preciso ficar doente para ser validado?!”
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
remédios, como tem de armas”. A discussão então se expandiu para o campo dos agrotóxicos
na alimentação: “Querem fechar o ciclo: injetam a doença para depois curar”. Uma professora
citou um estudante que, naquela manhã, estando à base de Rivotril, disse-lhe: “Ah, professora,
a senhora não sabe como sou sem isso!” Um técnico administrativo relatou o modo como
costuma lidar com o procedimento de trancamento de matrícula: “Aqui a gente orienta o
estudante a buscar um laudo médico”. Após a discussão sobre o tema da medicalização, ele
pareceu dar-se conta de que essa prática que, para ele, significava ajudar os estudantes, estava
também colaborando para patologizar e medicalizar o sofrimento deles. O grupo de
participantes concluiu que seria importante chamar o estudante para conversar. Seria essa
uma tarefa para o orientador acadêmico? Como escutar as dificuldades discentes, sem
necessariamente medicalizar a questão? Levantaram-se temas que remeteram a questões
éticas: “Será que o aluno está sempre falando a verdade?” No caso do plágio, por exemplo,
outro tema discutido nesse dia, deslocamos a questão do âmbito meramente moral, para
pensar sobre a própria forma como as avaliações são propostas, as ansiedades despertadas nos
estudantes em função da inexperiência com as exigências dos trabalhos acadêmicos. Surgiu
um debate caloroso, descortinando diferenças de expectativas e repertórios entre as gerações.
A intensidade desse encontro deixou no ar a questão: podemos acolher a pluralidade dos
pontos de vista e ampliar a compreensão de temas polêmicos?
início do semestre. Sobre a orientação ser coletiva ou individual, uma professora disse: “Tem
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
estudantes que precisarão de ajuda, outros, não”. Dois estudantes afirmaram que alguns
professores também precisariam de Orientação Acadêmica, estranhando que tão poucos
docentes participassem do Ciclo Formativo. Houve desconforto.
O quarto encontro planejava ativar a sensibilidade dos presentes, para trabalhar três
temas polêmicos - “avaliação”, “sobrecarga” e “racismo”, que haviam permeado o questionário
e alguns encontros anteriores, gerando desconfortos. A equipe organizou uma atividade
cênica, embasada nas técnicas do “Teatro do Oprimido”, proposto por Augusto Boal. Os
participantes deveriam elaborar cenas espelhando conflitos da vida real, as quais operam
como recursos de sensibilização, incitando os espect-atores a participar: primeiro opinando,
depois assumindo os papéis dos personagens. Nesse exercício, surgem novas percepções e
desfechos aos impasses apresentados, de modo a “transformar o espectador, de ser passivo e
depositário, em protagonista da ação dramática”. (BOAL, 1988, p. 28). Boal acreditava que o
teatro servisse como experimentação para a vida, e a libertação da condição de opressão em
cena preparasse as pessoas a se encorajar e se posicionar nas situações concretas do cotidiano.
Esperávamos que o exercício convocasse os presentes a se expressar de outras
maneiras, e criar coragem para agir frente a situações problemáticas e/ou injustas. O grupo
foi dividido em três subgrupos, orientados a elaborar uma cena, em princípio, apenas com
gestos, sobre um dos três temas definidos por sorteio. Cada grupo devia imaginar uma
situação institucional envolvendo o tema e, sem usar palavras, congelar a cena para que os
demais decifrassem. Qualquer um podia intervir na cena para dar-lhe outro desfecho. O grupo
que sorteou o tema do racismo foi composto por três professores brancos que disseram não
saber como encená-lo sem palavras. Chamou-nos atenção que o papelzinho sorteado com a
palavra racismo caiu no chão no início da atividade e lá ficou, esquecido e pisoteado. Uma das
professoras sugeriu que, no momento em que fosse possível falar em cena, se chamasse a
personagem aluna de “Sua preta!” O grupo dramatizou uma situação em que a professora não
atendia às solicitações da aluna negra. Esta reclamava repetidamente desse tratamento, até
que o orientador acadêmico entrava em cena para resolver o problema. Ele tentava acalmá-la,
intermediando a situação junto à professora para que ela não fosse prejudicada. Durante o
ensaio, os estudantes negros de nossa equipe já estavam incomodados, e isso aumentou após
Página71
o encontro: mais uma vez testemunhavam pessoas brancas, escolarizadas, que não percebiam
o racismo gritante; e quem o percebia, não se posicionava. Para o graduando negro, aquelas
cenas pareciam caricatas, contrastando com a realidade do racismo que atravessa o
funcionamento institucional.
Para a maioria das pessoas brancas, imersas em privilégios naturalizados por “pactos
narcísicos” próprios à branquitude, conforme proposto por Bento (2002), a problemática racial
seria uma questão do outro, do não branco, daquele que supostamente teria uma identidade
étnico-racial. A autora afirma que o colonizador europeu disseminou a crença de que a
referência universal seria o homem branco. Interessante perceber que, em sala de aula, é
comum que alunos brancos jamais tenham se pensado como “brancos”. Já para negros, a
percepção da identidade étnico-racial se coloca cedo, de modo marcante: desde crianças são
impactados por situações de racismo. Como o racismo incide sobre os corpos negros de
maneira crônica e secular, sem ser notado por pessoas brancas, produz-se uma segunda
violência: a do ocultamento, da descaracterização ou da negação. Características violentas e
ambíguas do racismo brasileiro silencioso, fato que o torna ainda mais difícil de identificar e
combater.
O desafio de, naquele encontro, mudar os rumos da situação encenada, foi difícil para
os estudantes negros. Uma desistiu de intervir na cena; o outro sequer se aproximou;
preferiram ficar em silêncio e observar. Ficaram profundamente impactados com o fato de a
questão racial ter sido expressa de modo tão caricato e colonial; a solução proposta também
incomodou por ter sido uma ação particularizada, não coletiva. Sobre os impactos desse
encontro em nossa equipe, a aluna negra que saiu da cena, afirmou sua incapacidade de
sensibilizar as pessoas, porque: “Dizer que o outro é racista é dar um tiro no pé!”. Cabe tentar
compreender o silêncio e o recuo provocados pela sensação de impotência frente ao que
testemunharam. A fala da aluna revela a percepção de não ser fácil encontrar espaço ou meio
para comunicar a violência que percebe na interação. O receio de apontar ou denunciar o
racismo - e vir a se prejudicar por ser lida como alguém que compreende errado, ou que age
de modo agressivo - sugere que tal dificuldade já fora vivida em outros momentos. Kilomba
(2019) indica que o falar e o silenciar fazem parte de uma negociação entre quem fala e quem
escuta:
Ouvir é, nesse sentido, um ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar
(somente) quando sua voz é ouvida. Nessa dialética, aquelas/es que são ouvidas/os são também
aquelas/es que ‘pertencem’. E aquelas/es que não são ouvidas/os se tornam aquelas/es que ‘não
Página72
pertencem’ (p.42-43).
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
A partir das falas de cada um sobre como tinha sido participar do Ciclo Formativo, foi
construída, coletivamente, uma proposta-síntese das discussões que servisse de referência à
prática da Orientação Acadêmica, a se iniciar no ano seguinte. Abaixo o quadro-síntese:
Ao fim dessa experiência, constatamos que o caráter “formativo” deste Ciclo esteve
menos atrelado à transmissão de conhecimentos e técnicas psicológicas voltadas às situações
críticas (demanda inicial feita à equipe), e mais, à possibilidade de sustentarmos um espaço
grupal de práticas democráticas, com questões enunciadas e desveladas coletivamente, nas
franjas das relações entre docentes, discentes e técnicos. Algumas partilhas e encorajamentos
pareceram ampliar o repertório de saberes, experiências e possibilidades. O ciclo formativo
com esse grupo heterogêneo permitiu pensar coletivamente sobre temas, práticas e valores
Página73
institucionais que (re)produzimos no piloto automático, e que contribuem para fazer sofrer e
adoecer. As violências precisam ser percebidas, nomeadas e superadas, para que não impeçam
a construção de relações de igualdade em meio à diversidade.
b) OFICINA DE ACOLHIMENTO
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
caminhos e becos sem saída, inseguranças, dilemas, como o da escolha entre a universidade
pública e a privada; a confusão corriqueira e perigosa entre liberdade e licenciosidade.
Há uma riqueza de questões e incertezas que coexiste com algumas certezas que
atravessam a vida na universidade pública, como greves, drogas, exigências de estudo,
monitoria, pesquisa e mercado de trabalho. Importante destacar que o labirinto é um símbolo
bastante representativo do modo como a universidade é vivenciada por quem nela ingressa;
mas, muitas vezes, quem está nela há algum tempo também se sente perdido e tem que refazer
percursos. Adentrar um universo-labirinto com inúmeras passagens e impedimentos,
aberturas que geram angústias, dilemas e aprendizados, permitirá desembocar em diferentes
saídas, certamente, de um jeito diferente do que se entrou. A multiplicidade de escolhas e os
distintos caminhos possíveis levam os que entram pelo labirinto a se perder, transformando
passagens difíceis numa jornada mais desafiadora do que se imaginava.
E assim chegamos a mais uma ação de nossa equipe: desenvolvida por estudantes, com
o fito de oferecer uma espécie de mapa para ajudar a comunidade a se situar no labirinto que
é a universidade, e prestar algum auxílio aos demais estudantes, com informações nem sempre
explicitadas nos materiais oficiais.
O Guia d_ Estudante12 foi desenvolvido por nossa equipe como projeto paralelo, para
proporcionar aos alunos uma linha-guia para a sobreviver na Universidade. Ele foi elaborado
por estudantes do grupo para os estudantes da UFBA, iniciativa de veteranos para apoiar
calouros, na I Semana de Acolhimento. A direção do Instituto aprovou o projeto e obteve da
Editora da UFBA (Edufba) a impressão de 200 cópias para os ingressantes.
Para preparar o Guia, foram levantadas informações quanto a matrículas; trancamento
e exclusão de componentes; modalidades de bolsa; bibliotecas; representações estudantis;
roteiros e pontos do ônibus da UFBA (Buzufba); xerox; restaurantes e cantinas, entre outras
informações úteis. Foram incluídos, também, dados sobre a estrutura do Instituto que sediou
a Oficina de Acolhimento, laboratórios, grupos de pesquisa, programas de pós-graduação etc.
O material impresso e distribuído aos calouros contou, ainda, com um mapa do campus
principal da UFBA, com os principais prédios, serviços, além de QR code´s que possibilitam o
acesso direto a sites importantes, como o do Salvadorcard, que dá direito à tarifa estudantil.
O Guia d_ Estudante foi formatado como um arquivo editável, passível de ser enviado
para diferentes unidades, permitindo incluir e atualizar informações específicas, com a
finalidade de expandir seu uso e alcance.
Longe de pretender englobar todas as informações referentes à complexidade de uma
universidade com 112 cursos, 3 campi e cerca de 38 mil alunos na capital, o projeto visava a
auxiliar os estudantes ingressantes, por vezes recém-saídos do ensino médio ou de cursinhos
pré-vestibulares, que experimentam sentimentos contraditórios, pois junto com o entusiasmo
diante do novo, o ambiente desconhecido pode ser percebido como hostil e muito desafiador.
Assim, junto com o alívio e alegria pelo ingresso na universidade, há também certo desamparo
gerado pela experiência de perda de referências anteriores. Ter que lidar por conta própria com
um grande volume de exigências, tanto acadêmicas quanto administrativas, é uma experiência
que pode provocar sentimentos de estar perdido e com pouca motivação. A ausência de uma
orientação com relação aos processos burocráticos universitários também é percebida como
um obstáculo à adaptação, na medida em que dificulta a ambientação do calouro à instituição
e suas rotinas. (TEIXEIRA et al, 2008, p.192).
Assim, o Guia d_ estudante surge como mais uma estratégia de produção de cuidado
e acolhimento aos alunos da UFBA, com informações úteis. Cabe ressaltar que as informações
desse Guia foram selecionadas a partir da experiência vivida por estudantes veteranos,
preocupados em oferecer uma boa recepção aos colegas ingressantes e os ajudar a percorrer
esse labirinto angustiante e fecundo.
Página76
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
problemas e insatisfações que emergiam, na maioria das vezes, envolvendo dimensões supra
individuais. A partir dessas problematizações, pode-se ressignificar e perceber uma potência
questionadora de alguns comportamentos vistos como problemáticos – porque hesitantes,
inquietos, agressivos, contestatórios – mas que, no fundo, recusavam-se a se adaptar a um
sistema que nos adoece. Assim, comportamentos de estudantes que, para alguns professores,
podem ser considerados aviltantes revelam o desejo de mudança de uma estrutura opressora
ou abusiva, que quer reservar ao corpo estudantil a posição de aquiescência frente a situações
de violência.
Alunas e alunos sabem que é preciso estar em alerta e tensão permanentes contra essa força
tão poderosa e atuante. As juventudes negra e indígena almejam uma literatura, uma filosofia
e uma história fora dos padrões tradicionais. As mulheres e todas as pessoas LGBTQIA+ que
hoje chegam à universidade questionam a visão de mundo formulada pela dominação
masculina, branca e heterocisnormativa sobre a vida intelectual, acadêmica e científica. Se, para
alguns, a queixa de estudantes parece impulsionada por individualismo, negligência e
consumismo, para nós ela expressa uma profunda insatisfação com a permanência do
pensamento colonial e patriarcal neste espaço, a universidade, que deveria nutrir a visão crítica
com liberdade, autonomia intelectual e democracia. (LIMA et al, 2021).
Muito embora esta pesquisa se situe no escopo de uma pesquisa-ação, cabe ressaltar
que esta condição pode acarretar alguns desafios nas análises, pois somos afetadas por
também fazermos parte do corpo docente e discente da instituição. Isso pode ser visto como
uma possibilidade de aproximação do campo, facilitando a compreensão das experiências
compartilhadas; por outro lado, pode vir a ser um limite, conforme cada uma de nós –
pessoalmente e como equipe - elabora o que nos afeta. Nesse sentido, seria interessante pensar
a possibilidade de um trabalho com a participação de mediadores/as externos à instituição.
As ações e reflexões acima apresentadas são apenas possibilidades de encontros,
escutas e iniciativas que não pretendem ser protocolos a serem seguidos por outras
universidades, equipes ou unidades, até porque cada contexto tem demandas e dilemas
específicos. Considerando a situação atual de pandemia e a sobreposição de crises - política,
sanitária, econômica, ambiental e ética - outros estudos se farão necessários para analisar os
impactos do acirramento das desigualdades na atual conjuntura. Tecer ações de cuidado
envolve um fazer que é coletivo e singular, acontecendo no caso a caso, encontro a
encontro. Cientes de que a universidade, como parte de uma sociedade complexa e
abissalmente desigual, também reproduz relações opressoras e rotinas questionáveis em seu
cotidiano, salientamos ser este um território onde se vêem flores brotando no asfalto,
Página78
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
A análise crítica dos processos históricos revela que inovações coexistem e disputam
espaço com forças conservadoras nos diferentes territórios sociais, institucionais e psíquicos.
O historiador Eric Hobsbaum (1998), ao indagar sobre o papel social da história e o que ela
pode nos dizer sobre as sociedades contemporâneas, afirma que não se pode predizer o que
acontecerá, mas apontar os problemas que teremos que resolver: combinando perspectiva
histórica e experiência histórica. Tal como o pássaro africano “Sankofa”, que volta sua cabeça
à cauda e sugere a importância do retorno ao passado para ressignificar o presente e construir
o futuro, nossa equipe busca conhecer o trabalho de intelectuais, educadores populares e
comunicadores com perspectivas críticas, amparadas em saberes ancestrais e formas de luta e
resistência coletivas diante de violações históricas. Em comum, essas referências apontam
para a necessidade de pensarmos num mundo pós capitalista, posto que esse sistema tem
aprofundado seu caráter desumanizador, predatório e eco-suicidário. À universidade, caberia
desenvolver pedagogias que não medicalizem o sofrimento e o adoecimento como se fossem
inescapáveis à formação acadêmica, optando por estratégias que dialoguem com a realidade
social concreta dos estudantes.
Lembramos que não basta, por meio de leis e decretos, “incluir” quem está à margem.
Entre a lei e o chão das universidades, há lacunas e rachaduras. O cenário presente e futuro é
delicado sob muitos aspectos, exigindo enfrentamentos fora e dentro de nós. As universidades
públicas, hoje mais plurais e democráticas do que há vinte anos, têm sido alvo de ataques
políticos, orçamentários e ideológicos. E como vimos, no cotidiano universitário, pulsam
tensionamentos e possibilidades: confrontam-se forças de opressão e resistência, tradição e
ruptura, obediência e insurgência, medicalização e desmedicalização, que desvelam a urgência
de superarmos injustiças históricas repaginadas, e de construirmos, coletivamente, outros
futuros possíveis. Esperamos que a divulgação dessas iniciativas possa semear discussões em
outros ambientes educacionais e impulsionar a produção coletiva de cuidados em rede,
práticas inclusivas e democráticas, assim como rupturas com aquilo que nos adoece.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOAL, Augusto. (1988) Jogos teatrais para atores e não atores, Cosac Naify, São Paulo,
2015.
CARVALHO, José Sérgio. Por uma pedagogia da dignidade. Memórias e Reflexões sobre
a experiência escolar. São Paulo. Summus Editorial, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
hooks, bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática de liberdade. São Paulo.
WMF Martins Fontes, 2017.
hooks, bell.O feminismo é para todo mundo. Políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 2020.
LEÃO, Thiago Marques; IANNI, Aurea Maria Zollner; GOTO, Carine Saiuri.
Individualização e sofrimento psíquico na universidade: entre a clínica e a empresa de si.
Página80
Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
Revista Psicologia e Transdiciplinaridade
Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS
LIMA, Elizabeth Araújo et al. Diálogos Possíveis. Revista Piauí. 17 de fev. de 2021.
Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/dialogos-possiveis/#. Acesso em 23/02/2021.
MOURA, Fabrício Rodrigues de; FACCI, Marilda Gonçalves Dias. A atuação do psicólogo
escolar no ensino superior: configurações, desafios e proposições sobre o fracasso escolar.
Psicol. Esc. Educ., Maringá, v. 20, n. 3, p. 503-514, Dec. 2016.
SATO, Leny; SOUZA, Marilene Proença Rebello de. Contribuindo para desvelar a
complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em Psicologia. Psicol. USP, São
Paulo, v. 12, n. 2, p. 29-47, 2001.
VIÉGAS, Lygia de Sousa; HARAYAMA, Rui Massato; SOUZA, Marilene Proença Rebello de.
Apontamentos críticos sobre estigma e medicalização à luz da psicologia e da antropologia.
Ciência & Saúde Coletiva, 20(9), p. 2683-2692, 2015.
Este artigo está licenciado sob a licença: Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International
Página81
License. Ao submeter o manuscrito o autor está ciente de que os direitos de autor passam para a Revista
Psicologia & Transdisciplinaridade.