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Revista Psicologia e Transdiciplinaridade

Copyright © 2021. Associação dos Psicólogos da Região do Bolsão-MS

Cotidiano universitário e sofrimento: iniciativas desmedicalizantes na produção


coletiva de cuidados

University life and suffering: demedicalizing initiatives in collective care production

Cotidiano universitario y sufrimiento: iniciativas no medicalizantes en la producción


colectiva de cuidados

Thaís Seltzer GOLDSTEIN1


Irene Guillien DEMOULIERE2
Maíra Ferreira dos SANTOS3
Sáshenka Meza MOSQUEIRA4

Resumo: O trabalho aborda o processo de (re)produção de sofrimentos e adoecimentos no ensino superior. O


objetivo é compartilhar reflexões e experiências relacionadas à produção coletiva de cuidados psicossociais na
universidade, sob perspectiva crítica à medicalização, à meritocracia e ao produtivismo que vigoram nas
sociedades neoliberais. A Psicologia Escolar e Educacional de perspectiva crítica, referências do pensamento
descolonial e o campo da pesquisa-ação constituem a proposta teórica e metodológica. Constatou-se a natureza
processual e multifatorial da produção de sofrimentos e adoecimentos, bem como das respectivas redes de
cuidados. A análise de práticas discursivas do cotidiano universitário evidenciou contradições. Inovações
disputam espaço com forças conservadoras em territórios sociais, institucionais e psíquicos. Diante do
predomínio da branquitude nas estruturas de poder, promover deslizamentos epistemológicos viabilizaria
possibilidades que contemplem, respeitosamente, a diversidade. A parceria entre gestores, professores, técnicos
e estudantes fortaleceria os vínculos e o reconhecimento de responsabilidades individuais e coletivas.
Palavras-chave: Cuidado. Sofrimento Psíquico. Cotidiano Universitário. (Des)medicalização. Estratégias
coletivas.

Abstract: This article presents the process of (re) production of suffering and illness in higher education. The
objective is to share reflections and experiences related to the collective production of psychosocial care at the
university, from a critical perspective of medicalization, meritocracy and productivism that prevail in neoliberal
societies. School and Educational Psychology from a critical perspective, references of decolonial thinking and
the field of action research constitute the theoretical and methodological proposal. It was verified the procedural
and multifactorial nature of the production of suffering and illnesses, as well as the respective care networks.
The analysis of the discursive practices of the university day-to-day showed contradictions. Innovations coexist,
competing for space with conservative forces in social, institutional and psychic territories. In view of the
predominance of whiteness in power structures, promoting epistemological landslides brought about
possibilities that respectfully contemplate diversity. The partnership between managers, teachers, technicians
and students strengthens the bonds and calls for the recognition of individual and collective responsibilities.
Key words: Care. Psychic Suffering. University Life. Demedicalization. Collective strategies.

Resumen: El trabajo presenta processo de (re)producción de sufrimiento y processos de enfermedad en la


enseñanza superior. El objetivo es compartir reflexiones y experiencias relacionadas a la producción colectiva

1Mestre em Ciências Sociais (FFCH-UFBA), Doutora em Psicologia (IP-USP), Professora Adjunta da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED-UFBA), e-mail: gold.thais@gmail.com, ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4995-6559
2Graduada em Psicologia (FFCH-UFBA) e em Letras Vernáculas Língua Estrangeira Francês (IL-UFBA); Pós-
graduada em Psicopatologia Clínica (UCB-RJ). e-mail: igdemouliere@hotmail.com, ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9966-7582
3 Graduada em Direito (MACKENZIE-SP); Especialista em Direito Público (FDDJ-SP); Licencianda em Geografia
(IGEO-UFBA), e-mail: mairafdossantos@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4572-8647
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4 Mestre e Doutora em Psicologia (IP-USP), Professora Adjunta da Universidade Paulista (UNIP-SP), e-mail:
sashenkameza@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2019-3113

Revista Psicologia e Transdisciplinaridade, Paranaíba-MS, v. 1, n.1, p. 59-81, Jan./Jun., 2021


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de cuidados psicosociales, en perspectiva crítica a la medicalización, a la meritocracia y al productivismo vigentes


en la sociedade neoliberal. La Psicología Escolar y Educacional de perspectiva crítica, referencias del pensamento
descolonial y la investigación-acción constituyen la propuesta teórica y metodológica. Se hizo notar la naturaleza
processual y multifactorial de la producción de sufrimiento y enfermedad psíquica, así como de la creación de
redes de cuidado. El análisis de prácticas discursivas del cotidiano universitário mostró contradicciones.
Innovaciones coexisten, disputando espacio com fuerzas conservadoras em territórios sociales, institucionales y
psíquicos. Frente a la preponderancia de la blanquitud en estructuras de poder, provocar despliegues
epistemológicos permite contemplar de forma respetuosa la diversidad. Acuerdos de cuidado entre gestores,
profesores, técnicos y estudiantes, en una lógica horizontal, pueden fortalecer vínculos y convocar al
reconocimiento de responsabilidades individuales y colectivas.
Palabras clave: Cuidado. Sufrimiento psíquico. Cotidiano universitario. (Des)Medicalización. Estrategias
colectivas.

Na comunidade da sala de aula, nossa capacidade de gerar


entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso interesse uns
pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros, por reconhecer a
presença uns dos outros. [...] qualquer pedagogia radical
precisa insistir em que a presença de todos seja reconhecida.
[...] O entusiasmo é gerado pelo esforço coletivo.
(bell hooks)

INTRODUÇÃO

O presente trabalho discute alguns aspectos envolvidos no processo de (re)produção


de sofrimentos e adoecimentos no ensino superior. Seu intuito é compartilhar reflexões e
experiências relacionadas à produção coletiva de cuidados, de uma perspectiva crítica à
medicalização, à meritocracia e ao produtivismo que vigoram nas sociedades neoliberais.
Falamos enquanto membros do grupo de extensão e pesquisa “Sankofa: pedagogias marginais
e diversidade” 5, vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Desse
grupo fazem parte estudantes de diferentes cursos, colaboradores (psicólogos, advogada e
docente de outra universidade) e uma docente da Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Bahia. Desde 2017, temos escutado estudantes, professores/as e técnicos/as, em
busca de compreender os modos pelos quais o cotidiano universitário comparece na produção
de sofrimentos, gerando evasão estudantil e demandas crescentes de atendimento médico-
psicológico; de outro lado, buscamos também perceber como, nesse cotidiano, se podem criar
enfrentamentos coletivos para minimizar e/ou prevenir esses sofrimentos. Apresentaremos
três intervenções que, dentro de seus limites, remaram na contracorrente de respostas
simplistas e medicalizantes, tendo em vista a complexidade do fenômeno e as determinações
supra individuais presentes nos processos de sofrimento e adoecimento.
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5 Ostrabalhos de extensão e pesquisa aqui descritos contaram com a colaboração de outros integrantes do grupo:
Klessyo do Espírito Santo Freire, Levi Santos Barbosa, Márcia Regina Araújo da Cruz, Marcos Vinícius Santos de
Araújo, Roberta Erika Ferreira Morais e Talita Pereira dos Santos.

Thaís Seltzer GOLDSTEIN; Irene Guillien DEMOULIERE; Maíra Ferreira dos SANTOS; Sáshenka Meza MOSQUEIRA
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Dentre os dispositivos de atendimento médico e psicológico na UFBA, destacamos o


Serviço Médico Universitário Rubens Brasil (SMURB), que acolhe pessoas da comunidade
universitária ambulatorialmente e o Plantão PsiU que, desde 2017, compõe o Programa de
Saúde Mental e Bem estar na Universidade, oferecendo atendimentos psicológicos individuais
sem a necessidade de inscrição prévia, sediado na Pró Reitoria de Ações Afirmativas e
Assistência Estudantil (PROAE-UFBA) e conta com uma equipe de profissionais voluntários6.
Cabe à universidade pública a tarefa educacional de produzir conhecimentos e formar
pessoas que apoiem a construção da justiça social, uma vez que o Brasil é um país desigual,
violento e injusto, há mais de cinco séculos. A vigência de novas leis e políticas afirmativas 7,
incidindo em institutos e universidades federais provocou uma mudança de perfil do corpo
discente; contudo, a presença de alunos de escolas públicas, em sua maioria negros, não
garante a permanência nem a finalização da formação superior.
O adoecimento e o sofrimento psíquicos – expressos nos relatos de crises de ansiedade,
autoculpabilização, insônia, sensação de fracasso pessoal, incompetência estão intimamente
relacionados à intensificação da lógica neoliberal e seus impactos sobre corpos, rotinas,
valores, trabalho e convívio social. Têm sido fontes de sofrimento: a meritocracia, o
produtivismo, a sobrecarga, a rivalidade entre colegas – fomentada pela lógica seletiva do
coeficiente de rendimento – e as tantas opressões que se naturalizam no cotidiano das
instituições. É verdade que políticas afirmativas para o ensino superior público ampliaram o
acesso de grupos periféricos e historicamente marginalizados às universidades, modificando
o perfil dos estudantes nas últimas décadas e ampliando a diversidade. Todavia evidenciaram
algumas contradições: por exemplo, o fato de que, por via das leis, realizaram-se políticas de
inclusão e permanência, enquanto processos de discriminação e evasão seguem acontecendo
nos espaços de convivência universitária. Sobre as contradições que pulsam e ganham
visibilidade, Viégas e Carvalhal (2020) analisam uma manifestação dessa natureza encontrada
no banheiro da Faculdade de Educação:

Como é comum em espaços públicos, a porta interna dos banheiros da Faculdade é cheia de
pichações. Em uma cabine, alguém escreveu: ‘Conecções mentais são raras! Conecte-se’. No
espaço mais ‘privado’ da instituição, o picho ao mesmo tempo partilha dor e esperança.
Denunciando em ato a dificuldade de conexão, o texto foi corrigido e comentado por outra

6 No contexto da pandemia, em 2020 e 2021, esse serviço passou a ser oferecido de maneira remota.
7Destacamos o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que, desde 1998, ampliou o acesso a universidades
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públicas; o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) que
em 2007, que além de ampliar o acesso, abriu novos campi no território brasileiro; a implementação do Sistema
de Seleção Unificada (SISU), em 2010; a aprovação da Lei nº 12.711/2012, “Lei de Cotas”; Lei de Cotas.

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pessoa: ‘Ainda mais com quem não sabe escrever coneXões’, o X assim acentuado. O ‘debate’
não terminou aí, esperança alimentada na tréplica: ‘Pouco importa se conexões se escreve com
X ou Ç. O importante é se conectar. Ame +’. Encorajados, novos comentários fortaleceram as
possibilidades de conecção. Do espaço mais privado aos ambientes mais públicos, tais
confrontos dão vida à instituição. (VIÉGAS; CARVALHAL, 2020, p. 43).

Não só nas cabines de banheiros, mas em conversas de corredor, murais, redes sociais,
sala de aula, espaços de convívio, aparecem sofrimentos relacionados a marcadores sociais de
desigualdade: são agressões relacionadas à classe, raça, gênero, território, sexualidade, modo
de falar etc.
As intervenções relatadas neste artigo problematizam, a partir de relatos do cotidiano
universitário, a necessidade de atenção à pauta da responsabilização que cada um deve
assumir, desde seus respectivos lugares. Estudantes, professoras/es, técnicas/os e todos que
constituem a dinâmica institucional universitária são desafiadas/os a se implicar na
desconstrução da lógica colonial que marca as relações cotidianas na universidade, pois
conforme Gomes (2020):

Não bastam apenas o reconhecimento e a vontade política para descolonizar a mente, a política,
a cultura, os currículos e o conhecimento. Essa descolonização tem de ser acompanhada por
uma ruptura epistemológica, política e social que se realiza também pela presença negra nos
espaços de poder e decisão; nas estruturas acadêmicas; na cultura, na gestão da educação, da
saúde e da justiça: ou seja, a descolonização para ser concretizada precisa alcançar não somente
o campo da produção de conhecimento, como também as estruturas sociais e de poder. (p.226).8

A diversidade sócio-cultural, crescente nas duas últimas décadas, tem revelado a


universidade como um território pulsante de contradições, na tensão entre continuísmos e
rupturas no tecido institucional estruturado em relações de dominação. De um lado, a
ideologia hegemônica segue produzindo obediência, concorrência, crença na meritocracia e
autoculpabilização por questões que são institucionais, políticas e sociais. De outro lado, parte
da comunidade universitária começa a perceber as faltas e contradições do sistema: estudantes
têm apresentado a docentes referências até então desconhecidas por eles. Assim vão sendo
tensionadas as epistemologias tradicionais e novas pedagogias são discutidas nos espaços
acadêmicos. Para bell hooks (2017), o exercício de teorizar a experiência e nomear esses
fenômenos, do ponto de vista de quem os vivencia, tem potencial curativo e libertador.
Diante da percepção de um mal-estar nas relações acadêmicas, alguns autores têm
enfatizado a necessidade de pensarmos na universidade como um espaço de produção de
conhecimentos, situado no interior de uma sociedade capitalista complexa e
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8 Além da presença negra destacada por Gomes, acrescentamos a presença de indígenas, pessoas com deficiência,
quilombolas, ribeirinhos e pessoas da zona rural.

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desigual. Carvalho et al (2020), ao analisar os impactos subjetivos das opressões que


estruturam as sociedades capitalistas, afirmam que precisamos “abordar o sofrimento mental
contemporâneo em uma perspectiva inter(trans)disciplinar e integradora” (2020, p. 137).
Afinados à nossa percepção de que a universidade seria um campo de forças em contradição
e movimento, discutem o papel dos “Encontros de Saberes”. Implementados em 2010, em
algumas universidades públicas, questionam atitudes colonizadoras e visam a retomar a
universidade como “espaço de produção de encontros, de vida e de cura” (p. 139). Para tanto,
mestres de saberes tradicionais são convidados a adentrar os espaços acadêmicos. Outra
iniciativa que pretende abordar a questão do sofrimento é a oferta de disciplinas e atividades
de extensão sobre temas de saúde mental, com chamadas de divulgação que ressaltam
diagnósticos psiquiátricos.
Leão, Ianni e Gotto (2019), embasando-se nas ideias de Dardot e Laval (2016) sobre a
sociedade neoliberal, lançam um olhar crítico a essa estratégia, com foco na
instrumentalização de membros da comunidade acadêmica para identificar e prevenir doenças
e situações de suicídio, inervindo sobre elas, o que poderia reforçar, equivocadamente, a ideia
de que bastariam autorregulação e autocuidado para atingir a saúde mental e o bom
desempenho ideal. Nesse sentido, Viégas e Carvalhal (2020) alertam para o risco de que até
mesmo estratégias bem-intencionadas – oficinas para desenvolver organização, autocontrole,
motivação e resiliência – acabam por reforçar mecanismos de controle e adaptação ao sistema,
ao invés de encorajar as pessoas a questioná-lo. Esses autores desnudam o enfoque individual
e individualizante dessas estratégias psicoeducativas e questionam as modalidades clínico-
terapêuticas que excluem a influência de fatores supra-individuais. Temos percebido, por
exemplo, como questões pedagógicas e institucionais têm significativa relação com as
reprovações e a não obtenção de êxito acadêmico. De acordo com Patto (1999), apesar de o
fracasso escolar decorrer de um projeto histórico-político de manutenção das desigualdades
sociais e raciais, ele gera culpabilização individual e/ou familiar.
A partilha discente de sentimentos de incompetência pessoal, fracasso, culpa,
vergonha, solidão, raiva, vontade de largar o curso, quando não, vontade até de tirar a própria
vida, presentes em variados cenários institucionais, podem ser entendidos como denúncias de
problemas que também dizem respeito à instituição, a suas estruturas político-
administrativas, pedagogias e epistemologias engessadas. Trabalhar com essas estruturas não
é tarefa fácil, mas foi com o intuito de pensar nelas de forma complexa e transdisciplinar, que
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passamos a circular pelo território da UFBA e a ouvir sua comunidade. O grupo vem

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realizando projetos que articulam temas de saúde mental à vida universitária. Partimos do
reconhecimento de que a produção de sofrimentos e adoecimentos se dá de modo processual
e multifatorial e as estratégias de enfrentamento devem ser variadas, complementares e
singulares: podem ser individuais e/ou grupais, intersetoriais e transdisciplinares.
Complementamos iniciativas de atenção e cuidado já existentes, com projetos de escuta e
observação dos atores sociais no tecido institucional.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Promover ações para avançar coletivamente no âmbito institucional é tarefa delicada


que implica, segundo Machado (2011), desestabilizar crenças e representações, por via do
acesso a forças minoritárias que são frequentemente invisibilizadas. Refletindo sobre a
psicologia no ambiente escolar, a autora aponta um campo comum onde reverberam
representações e crenças tornadas verdades, por efeito da dominação de forças hegemônicas.

Caminhar em um trabalho de intervenção/intercessão que pretende afetar o outro implica,


portanto, uma atitude que legitime e afirme os saberes instituídos, buscando fortalecer outros
possíveis que tenham potência de contágio. Ou fazemos isso e nossas práticas agem nas forças
hegemônicas presentes na produção do fracasso e adoecimento, ou não fazemos, e nossas
práticas aliviam e reproduzem o instituído. (MACHADO, 2011, s/n).

Tomando emprestada a ideia de “campo comum” e “cotidiano escolar” utilizada por


pesquisadoras da Psicologia Escolar e Educacional de perspectiva crítica, este trabalho
objetivou investigar o papel do cotidiano universitário na produção de sofrimentos, mapeando
práticas que reproduzem o sofrimento e as que questionam as forças hegemônicas do
instituído.
Inserimo-nos no campo da pesquisa-ação de cunho qualitativo. Antes e durante a
pesquisa, foram importantes as observações, escutas, rodas de conversa e encontros que
aconteceram em diferentes espaços dos campi universitários. Observamos elementos comuns
e, também, especificidades presentes nos discursos dos estudantes de diferentes cursos,
regiões e turnos. Buscamos as condições de generalidade e de singularidade, que nos
permitissem uma teorização e problematização das práticas, crenças e discursos que
atravessam o cotidiano universitário, este objeto complexo, com tantas nuances e
contradições. Implicadas nesse cotidiano, do qual também participamos, percebíamos os
impactos de práticas excludentes e individualizantes sobre seus atores sociais. Elaborar essas
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questões e atravessamentos, em equipe, impulsionou nosso desejo de transformação desta


realidade.

A aplicabilidade dos conhecimentos na área da educação depende do desenvolvimento de


compreensões apropriadas, o que depende das condições de rigor nos cuidados investigativos,
o que não quer dizer seguimento de rígidos protocolos, mas, sim, de domínio flexível de
métodos e instrumentais necessários à aproximação significativa do real. Não podemos abrir
mão do compromisso com a produção de conhecimentos confiáveis, se queremos que tenham
impacto sobre a situação educacional em nosso país, pois só assim estaremos contribuindo para
tomadas de decisão mais eficazes, substituindo as improvisações e os modismos que têm guiado
as ações em nossa área. Nesse sentido, a busca de relevância e do rigor nas pesquisas é também
uma meta política. (ANDRÉ & GATTI, s/n)

Nas ações coletivas desenvolvidas9 buscamos mirar não apenas as fragilidades, mas
também as potencialidades dos sujeitos e grupos. As ações relatadas a seguir situam-se nas
franjas da saúde e educação e foram realizadas com pessoas de diferentes cursos, identidade
étnico-racial, gênero, idade, sexualidade, classe social, território de origem. Pela própria
diversidade do corpo discente e de nossa equipe, as reuniões de estudo, planejamento, as ações
e suas análises propiciavam um “encontro de saberes” e tensionamentos inescapáveis ao
convívio com a diversidade, marcada por abissais desigualdades.
Carvalho et al (2020) apontam dois dualismos colonizantes na organização do saber
acadêmico, frutos da reprodução, nas nossas universidades no início do século XXI, de um
modelo educacional consolidado na Europa: o dualismo separando o sujeito conhecedor do
objeto a ser conhecido; e aquele que separa as ciências sociais e humanas, das exatas. Esses
autores questionam a exclusão das epistemologias indígenas e afro-brasileiras das
universidades, por vezes, sob pretexto de não serem científicas.
Temos funcionado de modo a não reforçar o primeiro dualismo, uma vez que
percebemo-nos imersos nas questões que pesquisamos. Foram justamente nossas angústias
cotidianas que motivaram a elaboração de iniciativas que nos permitiram perceber algumas
contradições importantes nesse universo, fora e dentro de nós. Contamos com as
contribuições de Sato e Souza (2001) que abordam, dentre outros, o processo de convivência
entre pessoas no trabalho de campo. Para elas, entrevistadora e entrevistada são ambas
pesquisadoras.

9 Entre 2017 e 2019, realizamos conversas com estudantes de diferentes cursos, com lideranças estudantis de
residências universitárias, participamos de debates e rodas de conversa sobre saúde mental, medicalização,
racismo e suicídio em diferentes unidades: Instituto de Saúde Coletiva; Liga de Medicina da FM-UFBA, Rádio
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Faced, IFBA/Camaçari, Faculdade de Museologia, Faculdade de Letras, registrando elementos comuns e


especificidades de cada queixa, bem como o anseio de se poder contar com uma rede de atenção dentro e fora
das instituições.

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Ao optarmos por uma abordagem etnográfica, optamos por nos inserir num local com
pretensões de pesquisa, onde nós somos os pesquisadores e as pessoas do local o ‘objeto’ a ser
pesquisado. Porém, esse é um ponto de vista nosso, pois há outros - o das pessoas do local -
para as quais nós também nos constituímos em objeto de pesquisa e isso tem implicações para
o ‘estar no campo’ e para a condução a ser adotada nessa relação entre pessoas. (SATO e
SOUZA 2001, p. 35).

No que diz respeito ao segundo dualismo, autores da antropologia e da psicologia em


perspectiva crítica trazem uma discussão fundamental sobre a “falsa dicotomia entre as
ciências biomédicas versus as ciências sociais e humanas”, que repercutem na perigosa “ilusão
de que pesquisas em ciências humanas e sociais não implicam em riscos éticos” (VIÉGAS,
HARAYAMA e SOUZA, 2015, p.2183).

INICIATIVAS DESMEDICALIZANTES DE PRODUÇÃO COLETIVA DE CUIDADOS


NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

No intuito de contextualizar os princípios que nortearam nossas intervenções,


apresentamos a concepção de medicalização que embasa este trabalho. Segundo o Manifesto
Desmedicalizante e Interseccional (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO, 2019):

a medicalização envolve uma racionalidade que naturaliza a vida humana, e, no mesmo


giro reducionista e determinista, formata quais são os tipos ‘naturalmente’ valorizados
ou desvalorizados, desejáveis ou indesejáveis. Sua penetração na vida cotidiana se dá a partir
de diversos dispositivos estratégicos e práticos, instalados em todos os espaços e instituições
(escolas, postos de saúde, igrejas, templos, banheiros, ônibus, ruas, mídias...), que operam
em torno de matrizes normativas e ideais regulatórios, prescrevendo padrões (de
desenvolvimento, comportamento, aprendizagem, inteligência, afetividade, linguagem,
gênero, sexualidade, eficiência, estética...) que devem ser seguidos à risca por todos,
invisibilizando a complexidade da existência e camuflando o fato de que as condições de vida
são absurdamente desiguais (p. 12).

O grupo vem realizando estudos e ações que trafegam na contramão dos processos de
medicalização da vida. Nesse sentido, o foco do trabalho foi propor ações desenvolvidas junto
a coletivos, por vezes híbridos (composto por docentes, discentes ou técnicos). As práticas de
produção de cuidados e acolhimento implicavam todos, não apenas aqueles com formação em
saúde e/ou nas áreas de psicologia clínica. Relatamos a seguir três intervenções na UFBA: o
“Ciclo Formativo sobre Orientação Acadêmica”, a “Oficina de Acolhimento” e o “Guia d_
Estudante”10.
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10A escolha por deixar o termo em aberto, grafado com _ (Guia d_ estudante) foi proposital, para contemplar
todos os gêneros.

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a) CICLO FORMATIVO SOBRE ORIENTAÇÃO ACADÊMICA: UMA PROPOSTA NA


DOBRADIÇA ENTRE SAÚDE E EDUCAÇÃO

Soubemos, em diferentes unidades da UFBA, entre 2017 e 2018, que a Ouvidoria vinha
recebendo queixas de alunos de determinada unidade, relacionadas à conduta inadequada de
alguns professores. A coordenadora daquele colegiado relatou-nos sua preocupação com a
limitação do protocolo esperado: o de, na condição de coordenadora, “puxar a orelha” dos
colegas professores denunciados. Para ela, eles precisariam ser sensibilizados e capacitados a
lidar com o novo perfil de alunos e se abrirem a novas formas didáticas; muitos docentes
daquela unidade, apesar de concursados, não tinham formação em Licenciatura nem
disposição para rever suas práticas didáticas. A demanda feita por aquele colegiado era a de
desenvolvermos um projeto junto aos professores da casa, preparando-os para acolher os
alunos ingressantes no ano seguinte e, principalmente, capacitando-os a realizar a
“Orientação Acadêmica”11. Após alguns encontros com essa coordenadora, compreendemos
sua demanda e planejamos, em conjunto, uma intervenção naquela faculdade. O projeto, a
princípio destinado às/aos docentes, foi expandido para incluir técnicos e estudantes.
Propusemos um curso de extensão na forma de “Ciclo Formativo” para refletir sobre a vida
universitária e seus desafios, realizado de outubro a dezembro de 2018, com cinco encontros,
totalizando 20 horas, com direito a certificados emitidos pelo Sistema de Registros e
Acompanhamento de Atividades de Extensão da UFBA – Siatex. Devido à sobrecarga e
acúmulo de funções (ensino, pesquisa, extensão e gestão), buscamos uma brecha no sistema
institucional, para atrair a participação docente por meio da contabilização deste curso na
progressão profissional. De um lado, isso atendia a exigências próprias à lógica produtivista;
de outro, propiciava refletir sobre experiências cotidianas e, eventualmente, problematizar
essa mesma lógica. Planejamos e organizamos atividades disparadoras de diálogos,
priorizando um percurso que acolhesse temas, inquietações e demandas espontâneos.
Nomeamos “Ciclo formativo”, menos como ensino/aprendizagem, e mais como uma
oportunidade formativa; ou ainda, conjugando aprendizagem e formação, já que “a

11No Regulamento de Ensino da UFBA (2015), em capítulo “Da Orientação Acadêmica”, consta: “contribuir para
a integração dos estudantes à vida universitária, contemplando aspectos pedagógicos, itinerário curricular,
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informações sobre políticas e normas da Universidade, assistência estudantil [...] realização de estágios e
aconselhamento acadêmico-profissional” (Art.138). Diversos colegiados de cursos da UFBA ainda não a
implementaram, por razões diversas, que mereceriam uma outra pesquisa.

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aprendizagem só é formativa na medida em que opera transformações naquele que aprende.


É como se o conceito de formação indicasse a forma como nossas aprendizagens e experiências
nos constituem como um ser singular no mundo” (Carvalho, 2016, p. 101). A seguir,
apresentamos passagens significativas desse Ciclo Formativo.

1º dia - Professora: “A partilha de hoje é um momento que nunca tinha acontecido


antes entre colegas”

Sentamos em círculo e cada participante se apresentou, tecendo reflexões sobre seu


cotidiano na universidade e apontando suas expectativas em relação aos encontros seguintes.
Escutamos: “o que posso fazer para ajudar essa aluna?”, “Não me sinto preparada para lidar
com essas coisas!”. Essas professoras apontam problemas em relação a alunos: defasagem de
conteúdo, possíveis transtornos, baixa autoestima, falta de abraço. Até o sono entrou na
questão quando uma delas disse: “Nós temos essa cultura de virar a noite” e veio uma primeira
conclusão: “eu penso que todas essas questões são da contemporaneidade”. Foram lançadas
duas provocações: “será que o curso reforça isso?”, “Seria possível fazer diferente?”.
Tínhamos planejado comentar “a medicalização do sofrimento” no mundo atual, após
as apresentações. Mas o que coube foi nos apresentarmos, bem como a proposta do Ciclo,
escutá-los, e ver que eles também se escutavam “como nunca tinha acontecido antes”, segundo
um testemunho. Um estudante pediu a palavra: “Antes eu achava que tinha tempo pra tudo,
mas depois descobri que não dá tempo de fazer tudo com a qualidade que espero”. Priorizando
a qualidade do “ciclo formativo”, adiamos o comentário sobre medicalização do sofrimento.

2º dia - Técnico e estudante: “Então... Preciso ficar doente para ser validado?!”

De início, propusemos uma atividade na qual os professores experimentassem um


lugar semelhante ao dos alunos: memorizar nomes e verbos enunciados por cada participante
da roda. Intencionávamos criar um momento descontraído, e foi; surgiram falas como: “vou
fazer uma cola” (risos), “eu já fiz aqui” (risos), fazendo-nos perceber tensão e desejo de acertar.
Em seguida, expusemos slides sobre o tema da medicalização. Problematizamos a tendência
de, no campo da educação, se esperar pela avaliação do especialista em saúde e apontamos o
risco de a medicina legislar sobre a vida social. Os participantes relataram situações
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vivenciadas com pessoas próximas e chegaram a conclusões, como: “tem indústria de

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remédios, como tem de armas”. A discussão então se expandiu para o campo dos agrotóxicos
na alimentação: “Querem fechar o ciclo: injetam a doença para depois curar”. Uma professora
citou um estudante que, naquela manhã, estando à base de Rivotril, disse-lhe: “Ah, professora,
a senhora não sabe como sou sem isso!” Um técnico administrativo relatou o modo como
costuma lidar com o procedimento de trancamento de matrícula: “Aqui a gente orienta o
estudante a buscar um laudo médico”. Após a discussão sobre o tema da medicalização, ele
pareceu dar-se conta de que essa prática que, para ele, significava ajudar os estudantes, estava
também colaborando para patologizar e medicalizar o sofrimento deles. O grupo de
participantes concluiu que seria importante chamar o estudante para conversar. Seria essa
uma tarefa para o orientador acadêmico? Como escutar as dificuldades discentes, sem
necessariamente medicalizar a questão? Levantaram-se temas que remeteram a questões
éticas: “Será que o aluno está sempre falando a verdade?” No caso do plágio, por exemplo,
outro tema discutido nesse dia, deslocamos a questão do âmbito meramente moral, para
pensar sobre a própria forma como as avaliações são propostas, as ansiedades despertadas nos
estudantes em função da inexperiência com as exigências dos trabalhos acadêmicos. Surgiu
um debate caloroso, descortinando diferenças de expectativas e repertórios entre as gerações.
A intensidade desse encontro deixou no ar a questão: podemos acolher a pluralidade dos
pontos de vista e ampliar a compreensão de temas polêmicos?

3º dia - Estudante: “A gente precisa desenvolver autonomia, mas os professores


também precisam ver que tem algo errado”

Motivados pelas discussões do encontro anterior, resolvemos levar aos professores


alguns dados do perfil discente ingressante, coletados em questionário sobre a percepção dos
estudantes acerca do cotidiano universitário. Construímos esse questionário coletivamente,
junto com a coordenadora daquele colegiado. Os estudantes apontaram muitas dificuldades
para aprender. Tendo o grupo compreendido e problematizado a tendência de se
patologizarem as diferenças, uma professora, ausente no encontro anterior, questionou esse
dado, já que os alunos não tinham assinalado a necessidade de Atendimento Educacional
Especializado (AEE). Aquecidos pela discussão precedente, ela escutou os demais
participantes e concluiu: “É porque tudo é lido na chave de pessoa com deficiência!” Percebeu,
rapidamente, também em si mesma, a tendência de naturalizar dificuldades acadêmicas
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equivalendo-as a déficits individuais.

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Dentre os problemas mais significativos apontados pelos discentes, destacamos: a) com


relação aos professores: “didática ruim”, “matérias que não têm discussão”, “métodos
engessados de ensino”; “excesso de exigências”; “assédio e racismo”; b) sobre a organização
de currículo: “dificuldade com prazos”, “sobrecarga; “avaliação”; c) sobre a percepção de si
mesmos: “falta de foco”; “falta de tempo para cumprir todo o conteúdo”; problemas pessoais”;
“déficit de atenção”. Diante da queixa comum de sobrecarga, alguns professores
argumentaram que, sem ser assim, o curso não seria “de excelência”. A defesa da carga horária
e dessas exigências, para eles, asseguravam a qualidade do curso e esse argumento fazia um
contrapeso às críticas dos alunos nos questionários, assim como às dos estudantes ali
presentes.
A preocupação com a qualidade do curso já tinha aparecido no primeiro encontro, na
fala de um estudante que posicionava o termo na contramão da sobrecarga. De acordo com
Gomes, Camonian e Araújo (2018), uma pesquisa-intervenção da Liga de Psicologia na Saúde
em universidade do sul de Minas Gerais mostrou que competições, inibições e exclusões
emergiram a partir da impossibilidade de os alunos acompanharem os padrões institucionais
e cumprirem as dinâmicas pedagógicas exigidas. Os estudantes denunciaram a
supervalorização dada às notas, em detrimento do desenvolvimento da aprendizagem. Os
autores concluem que a universidade não deve visar somente à formação profissional, mas
promover o diálogo e problematizar elementos curriculares, institucionais e relacionais com
todos os envolvidos.
No “V Seminário Internacional A Educação Medicalizada: existirmos a que será que se
destina?” (2019) questionou-se: “Por que tanto sofrimento na universidade?”, “E as agências
de fomento, por que viraram agências de sofrimento?”, “Existe um outro modelo de ensino-
pesquisa possível em um currículo no qual até a extensão é disciplina?”, “Por que o projeto de
inclusão, de fato, não ocorre?”. A reunião denunciou o modelo colonizador e ultrapassado de
ensino, o racismo, os cortes orçamentários nas políticas de permanência, a precarização do
trabalho e a meritocracia como fatores que adoecem as relações.
Voltando ao terceiro encontro, a conversa sobre incoerências no currículo e impactos
da sobrecarga levou uma professora a sugerir que a orientação acadêmica poderia cumprir o
papel de promover a adaptação dos alunos, por meio de “organização prévia e autonomia, pois
eles chegam desavisados”. Ainda que a ideia fosse problematizada por uma estudante, a fala
levou o grupo a pensar numa solução prática: uma reunião de apresentação e acolhida no
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início do semestre. Sobre a orientação ser coletiva ou individual, uma professora disse: “Tem

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estudantes que precisarão de ajuda, outros, não”. Dois estudantes afirmaram que alguns
professores também precisariam de Orientação Acadêmica, estranhando que tão poucos
docentes participassem do Ciclo Formativo. Houve desconforto.

4º dia - Estudante: “Dizer que o outro é racista é dar um tiro no pé!”

O quarto encontro planejava ativar a sensibilidade dos presentes, para trabalhar três
temas polêmicos - “avaliação”, “sobrecarga” e “racismo”, que haviam permeado o questionário
e alguns encontros anteriores, gerando desconfortos. A equipe organizou uma atividade
cênica, embasada nas técnicas do “Teatro do Oprimido”, proposto por Augusto Boal. Os
participantes deveriam elaborar cenas espelhando conflitos da vida real, as quais operam
como recursos de sensibilização, incitando os espect-atores a participar: primeiro opinando,
depois assumindo os papéis dos personagens. Nesse exercício, surgem novas percepções e
desfechos aos impasses apresentados, de modo a “transformar o espectador, de ser passivo e
depositário, em protagonista da ação dramática”. (BOAL, 1988, p. 28). Boal acreditava que o
teatro servisse como experimentação para a vida, e a libertação da condição de opressão em
cena preparasse as pessoas a se encorajar e se posicionar nas situações concretas do cotidiano.
Esperávamos que o exercício convocasse os presentes a se expressar de outras
maneiras, e criar coragem para agir frente a situações problemáticas e/ou injustas. O grupo
foi dividido em três subgrupos, orientados a elaborar uma cena, em princípio, apenas com
gestos, sobre um dos três temas definidos por sorteio. Cada grupo devia imaginar uma
situação institucional envolvendo o tema e, sem usar palavras, congelar a cena para que os
demais decifrassem. Qualquer um podia intervir na cena para dar-lhe outro desfecho. O grupo
que sorteou o tema do racismo foi composto por três professores brancos que disseram não
saber como encená-lo sem palavras. Chamou-nos atenção que o papelzinho sorteado com a
palavra racismo caiu no chão no início da atividade e lá ficou, esquecido e pisoteado. Uma das
professoras sugeriu que, no momento em que fosse possível falar em cena, se chamasse a
personagem aluna de “Sua preta!” O grupo dramatizou uma situação em que a professora não
atendia às solicitações da aluna negra. Esta reclamava repetidamente desse tratamento, até
que o orientador acadêmico entrava em cena para resolver o problema. Ele tentava acalmá-la,
intermediando a situação junto à professora para que ela não fosse prejudicada. Durante o
ensaio, os estudantes negros de nossa equipe já estavam incomodados, e isso aumentou após
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o encontro: mais uma vez testemunhavam pessoas brancas, escolarizadas, que não percebiam

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o racismo gritante; e quem o percebia, não se posicionava. Para o graduando negro, aquelas
cenas pareciam caricatas, contrastando com a realidade do racismo que atravessa o
funcionamento institucional.
Para a maioria das pessoas brancas, imersas em privilégios naturalizados por “pactos
narcísicos” próprios à branquitude, conforme proposto por Bento (2002), a problemática racial
seria uma questão do outro, do não branco, daquele que supostamente teria uma identidade
étnico-racial. A autora afirma que o colonizador europeu disseminou a crença de que a
referência universal seria o homem branco. Interessante perceber que, em sala de aula, é
comum que alunos brancos jamais tenham se pensado como “brancos”. Já para negros, a
percepção da identidade étnico-racial se coloca cedo, de modo marcante: desde crianças são
impactados por situações de racismo. Como o racismo incide sobre os corpos negros de
maneira crônica e secular, sem ser notado por pessoas brancas, produz-se uma segunda
violência: a do ocultamento, da descaracterização ou da negação. Características violentas e
ambíguas do racismo brasileiro silencioso, fato que o torna ainda mais difícil de identificar e
combater.
O desafio de, naquele encontro, mudar os rumos da situação encenada, foi difícil para
os estudantes negros. Uma desistiu de intervir na cena; o outro sequer se aproximou;
preferiram ficar em silêncio e observar. Ficaram profundamente impactados com o fato de a
questão racial ter sido expressa de modo tão caricato e colonial; a solução proposta também
incomodou por ter sido uma ação particularizada, não coletiva. Sobre os impactos desse
encontro em nossa equipe, a aluna negra que saiu da cena, afirmou sua incapacidade de
sensibilizar as pessoas, porque: “Dizer que o outro é racista é dar um tiro no pé!”. Cabe tentar
compreender o silêncio e o recuo provocados pela sensação de impotência frente ao que
testemunharam. A fala da aluna revela a percepção de não ser fácil encontrar espaço ou meio
para comunicar a violência que percebe na interação. O receio de apontar ou denunciar o
racismo - e vir a se prejudicar por ser lida como alguém que compreende errado, ou que age
de modo agressivo - sugere que tal dificuldade já fora vivida em outros momentos. Kilomba
(2019) indica que o falar e o silenciar fazem parte de uma negociação entre quem fala e quem
escuta:

Ouvir é, nesse sentido, um ato de autorização em direção à/ao falante. Alguém pode falar
(somente) quando sua voz é ouvida. Nessa dialética, aquelas/es que são ouvidas/os são também
aquelas/es que ‘pertencem’. E aquelas/es que não são ouvidas/os se tornam aquelas/es que ‘não
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pertencem’ (p.42-43).

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Frente ao desnudamento do racismo na encenação e o que ela provocou, seria


necessário alcançar condições para sua explicitação, enunciação e desconstrução. Como
desnaturalizar a violência do racismo estrutural expresso em interações que, por vezes,
passam inadvertidas? Cabe interrogar se estratégias de sensibilização têm mais chances de
suscitar autocrítica do que as de acusação. Para as/os estudantes negras/os, a mera acusação
pode enfraquecer a luta antirracista, esvaziando a dimensão coletiva do problema,
despolitizando e abordando-o como fenômeno individual, o que reforça a naturalização do
racismo cotidiano.

5º Dia - “O que devemos?” “O que precisamos?” “O que podemos?” “O que queremos?”

A partir das falas de cada um sobre como tinha sido participar do Ciclo Formativo, foi
construída, coletivamente, uma proposta-síntese das discussões que servisse de referência à
prática da Orientação Acadêmica, a se iniciar no ano seguinte. Abaixo o quadro-síntese:

Figura 1: Quadro-síntese elaborado pelos participantes da prática de Orientação Acadêmica

Fonte: Arquivo do Grupo Sankofa

Ao fim dessa experiência, constatamos que o caráter “formativo” deste Ciclo esteve
menos atrelado à transmissão de conhecimentos e técnicas psicológicas voltadas às situações
críticas (demanda inicial feita à equipe), e mais, à possibilidade de sustentarmos um espaço
grupal de práticas democráticas, com questões enunciadas e desveladas coletivamente, nas
franjas das relações entre docentes, discentes e técnicos. Algumas partilhas e encorajamentos
pareceram ampliar o repertório de saberes, experiências e possibilidades. O ciclo formativo
com esse grupo heterogêneo permitiu pensar coletivamente sobre temas, práticas e valores
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institucionais que (re)produzimos no piloto automático, e que contribuem para fazer sofrer e

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adoecer. As violências precisam ser percebidas, nomeadas e superadas, para que não impeçam
a construção de relações de igualdade em meio à diversidade.

b) OFICINA DE ACOLHIMENTO

A experiência da oficina aconteceu em um Instituto da UFBA, na Semana de


Acolhimento aos alunos ingressantes do segundo semestre de 2019, por iniciativa de algumas
estudantes integrantes da equipe Sankofa. O intuito da semana, idealizada por um grupo de
alunas e professores era o de possibilitar conversas, por meio de grupos de discussão e oficinas
oferecidas a calouros e veteranos, utilizando temas variados: os diversos fazeres e o papel
daquela área de conhecimento e atuação profissional na atualidade; a universidade e seus
espaços de poder; o compromisso social da universidade pública, dentre outros. Apostamos
na proposta de uma prática coletiva de acolhimento, oferecendo uma oficina intitulada
“Existir na Universidade”. Assim como no Ciclo Formativo, a ideia era trabalhar com um
grupo heterogêneo, composto por docentes, discentes, técnicos e funcionários terceirizados.
Contudo, participaram somente estudantes do início, do meio e do fim do curso.
Uma das propostas foi a confecção de cartazes como um duo, utilizando a frente e o
verso da cartolina para expressar, de um lado, “aquilo que vejo/sinto/experiencio na
universidade”; e do outro, aquilo que gostaria de ver na universidade. Após breve
aquecimento, os participantes foram convidados a confeccionar cartazes, usando colagens,
mosaicos, desenhos, escritas, para descrever sua visão e seus anseios em relação à
Universidade, inserindo pontos positivos e negativos. Para ilustrar esse exercício e apresentar
a riqueza das discussões que ali emergiram, escolhemos um dos trabalhos, intitulado: “Perdido
no labirinto”.
O cartaz, cuja fotografia apresentamos a seguir, foi elaborado pelo membro mais jovem
do grupo, ingressante na universidade. Expressando-se do lugar de quem acaba de chegar e
ainda não tem uma visão própria da universidade, ele optou por situar verso e o reverso na
mesma face do cartaz, nela inscrevendo dúvidas, anseios e possibilidades de percurso,
mesclando aspectos institucionais, sociais e existenciais. O estudante desenhou um labirinto,
em cujo centro, encontra-se a pergunta “Quem eu sou?” As aberturas desse labirinto - entrada
e saída - dependem de encarar as questões: “Quem eu quero ser?”; “Quem eu vou ser?” -
sugerindo que, não necessariamente nos tornamos quem queremos ser. Dentro do labirinto,
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mais dúvidas: “Futuro promissor?”, “trocar de curso?”, “Engenharia?” Nele aparecem

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caminhos e becos sem saída, inseguranças, dilemas, como o da escolha entre a universidade
pública e a privada; a confusão corriqueira e perigosa entre liberdade e licenciosidade.

Figura 2: Perdido no labirinto

Fonte: Arquivo do grupo Sankofa

Há uma riqueza de questões e incertezas que coexiste com algumas certezas que
atravessam a vida na universidade pública, como greves, drogas, exigências de estudo,
monitoria, pesquisa e mercado de trabalho. Importante destacar que o labirinto é um símbolo
bastante representativo do modo como a universidade é vivenciada por quem nela ingressa;
mas, muitas vezes, quem está nela há algum tempo também se sente perdido e tem que refazer
percursos. Adentrar um universo-labirinto com inúmeras passagens e impedimentos,
aberturas que geram angústias, dilemas e aprendizados, permitirá desembocar em diferentes
saídas, certamente, de um jeito diferente do que se entrou. A multiplicidade de escolhas e os
distintos caminhos possíveis levam os que entram pelo labirinto a se perder, transformando
passagens difíceis numa jornada mais desafiadora do que se imaginava.
E assim chegamos a mais uma ação de nossa equipe: desenvolvida por estudantes, com
o fito de oferecer uma espécie de mapa para ajudar a comunidade a se situar no labirinto que
é a universidade, e prestar algum auxílio aos demais estudantes, com informações nem sempre
explicitadas nos materiais oficiais.

c) GUIA D_ESTUDANTE: PARA NÃO SE PERDER NO LABIRINTO


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O Guia d_ Estudante12 foi desenvolvido por nossa equipe como projeto paralelo, para
proporcionar aos alunos uma linha-guia para a sobreviver na Universidade. Ele foi elaborado
por estudantes do grupo para os estudantes da UFBA, iniciativa de veteranos para apoiar
calouros, na I Semana de Acolhimento. A direção do Instituto aprovou o projeto e obteve da
Editora da UFBA (Edufba) a impressão de 200 cópias para os ingressantes.
Para preparar o Guia, foram levantadas informações quanto a matrículas; trancamento
e exclusão de componentes; modalidades de bolsa; bibliotecas; representações estudantis;
roteiros e pontos do ônibus da UFBA (Buzufba); xerox; restaurantes e cantinas, entre outras
informações úteis. Foram incluídos, também, dados sobre a estrutura do Instituto que sediou
a Oficina de Acolhimento, laboratórios, grupos de pesquisa, programas de pós-graduação etc.
O material impresso e distribuído aos calouros contou, ainda, com um mapa do campus
principal da UFBA, com os principais prédios, serviços, além de QR code´s que possibilitam o
acesso direto a sites importantes, como o do Salvadorcard, que dá direito à tarifa estudantil.
O Guia d_ Estudante foi formatado como um arquivo editável, passível de ser enviado
para diferentes unidades, permitindo incluir e atualizar informações específicas, com a
finalidade de expandir seu uso e alcance.
Longe de pretender englobar todas as informações referentes à complexidade de uma
universidade com 112 cursos, 3 campi e cerca de 38 mil alunos na capital, o projeto visava a
auxiliar os estudantes ingressantes, por vezes recém-saídos do ensino médio ou de cursinhos
pré-vestibulares, que experimentam sentimentos contraditórios, pois junto com o entusiasmo
diante do novo, o ambiente desconhecido pode ser percebido como hostil e muito desafiador.

Assim, junto com o alívio e alegria pelo ingresso na universidade, há também certo desamparo
gerado pela experiência de perda de referências anteriores. Ter que lidar por conta própria com
um grande volume de exigências, tanto acadêmicas quanto administrativas, é uma experiência
que pode provocar sentimentos de estar perdido e com pouca motivação. A ausência de uma
orientação com relação aos processos burocráticos universitários também é percebida como
um obstáculo à adaptação, na medida em que dificulta a ambientação do calouro à instituição
e suas rotinas. (TEIXEIRA et al, 2008, p.192).

Assim, o Guia d_ estudante surge como mais uma estratégia de produção de cuidado
e acolhimento aos alunos da UFBA, com informações úteis. Cabe ressaltar que as informações
desse Guia foram selecionadas a partir da experiência vivida por estudantes veteranos,
preocupados em oferecer uma boa recepção aos colegas ingressantes e os ajudar a percorrer
esse labirinto angustiante e fecundo.
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12 Para mais informações e visualização do Guia: sankofaufba@gmail.com

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Nesse diapasão, é imprescindível que se reconheça que práticas de cuidado e


acolhimento podem despontar de qualquer lugar: não precisam necessariamente ser
assumidas como responsabilidade unicamente de gestores ou especialistas, ou apenas dos
alunos. A composição de forças de diferentes segmentos gera resultados potentes, em que a
comunidade universitária só tem a ganhar. Parece importante sensibilizar gestores para as
necessidades concretas dos alunos, sobre a potência estudantil que se revela, inclusive, em
relação ao cuidado com os seus pares. O estabelecimento de uma parceria de cuidado entre
gestores, professores, técnicos e estudantes, em uma lógica horizontal, pode fortalecer os
vínculos e nos convocar a reconhecer nossas responsabilidades diante dos impasses e desafios
que se apresentam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatamos que a produção de sofrimentos e adoecimentos é processual e


multifatorial. Também o são as redes de cuidados e estratégias para lhes fazer frente, que
podem ser tecidas politicamente, entre pares, grupos e instâncias institucionais. Como os
sofrimentos, as estratégias de enfrentamento também têm natureza híbrida: psíquica e
política; transcendem o psiquismo individual, concebido como fonte do problema e lócus da
intervenção terapêutica.
Destacamos, ainda, que não apenas o racismo, mas também o sexismo alicerçam
modos de subjetivação uma vez que atravessam as estruturas de poder na sociedade capitalista
da qual a universidade faz parte. Nesse sentido, hooks (2020) assinala que “Trabalhar em um
contexto social em que o sexismo ainda é norma, em que há competições desnecessárias
promovendo inveja, desconfiança, antagonismo e maldade entre indivíduos, tornam o
trabalho estressante, frustrante e, com frequência, insatisfatório…” (p.114). Ao mesmo tempo,
isso vem sendo problematizado por meio de novos tensionamentos, co-existências e re-
existências. Como afirma Patto (2005): “as consciências não são totalmente alienadas, e nem
totalmente lúcidas”, e isso nos encoraja a buscar condições para lidar com essas contradições
– as dos outros e as nossas – de modo a emergirem conteúdos silenciados e compreensões
sobre a dimensão histórica e política de insatisfações, sofrimentos e insurgências.
Os registros de nossas ações, leituras e conversas permitiram uma práxis na qual
buscávamos, com cada interlocutor(a) e em cada espaço grupal, criar condições para as
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pessoas falarem e se escutarem, elaborarem hipóteses e estratégias de enfrentamento dos

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problemas e insatisfações que emergiam, na maioria das vezes, envolvendo dimensões supra
individuais. A partir dessas problematizações, pode-se ressignificar e perceber uma potência
questionadora de alguns comportamentos vistos como problemáticos – porque hesitantes,
inquietos, agressivos, contestatórios – mas que, no fundo, recusavam-se a se adaptar a um
sistema que nos adoece. Assim, comportamentos de estudantes que, para alguns professores,
podem ser considerados aviltantes revelam o desejo de mudança de uma estrutura opressora
ou abusiva, que quer reservar ao corpo estudantil a posição de aquiescência frente a situações
de violência.

Alunas e alunos sabem que é preciso estar em alerta e tensão permanentes contra essa força
tão poderosa e atuante. As juventudes negra e indígena almejam uma literatura, uma filosofia
e uma história fora dos padrões tradicionais. As mulheres e todas as pessoas LGBTQIA+ que
hoje chegam à universidade questionam a visão de mundo formulada pela dominação
masculina, branca e heterocisnormativa sobre a vida intelectual, acadêmica e científica. Se, para
alguns, a queixa de estudantes parece impulsionada por individualismo, negligência e
consumismo, para nós ela expressa uma profunda insatisfação com a permanência do
pensamento colonial e patriarcal neste espaço, a universidade, que deveria nutrir a visão crítica
com liberdade, autonomia intelectual e democracia. (LIMA et al, 2021).

Muito embora esta pesquisa se situe no escopo de uma pesquisa-ação, cabe ressaltar
que esta condição pode acarretar alguns desafios nas análises, pois somos afetadas por
também fazermos parte do corpo docente e discente da instituição. Isso pode ser visto como
uma possibilidade de aproximação do campo, facilitando a compreensão das experiências
compartilhadas; por outro lado, pode vir a ser um limite, conforme cada uma de nós –
pessoalmente e como equipe - elabora o que nos afeta. Nesse sentido, seria interessante pensar
a possibilidade de um trabalho com a participação de mediadores/as externos à instituição.
As ações e reflexões acima apresentadas são apenas possibilidades de encontros,
escutas e iniciativas que não pretendem ser protocolos a serem seguidos por outras
universidades, equipes ou unidades, até porque cada contexto tem demandas e dilemas
específicos. Considerando a situação atual de pandemia e a sobreposição de crises - política,
sanitária, econômica, ambiental e ética - outros estudos se farão necessários para analisar os
impactos do acirramento das desigualdades na atual conjuntura. Tecer ações de cuidado
envolve um fazer que é coletivo e singular, acontecendo no caso a caso, encontro a
encontro. Cientes de que a universidade, como parte de uma sociedade complexa e
abissalmente desigual, também reproduz relações opressoras e rotinas questionáveis em seu
cotidiano, salientamos ser este um território onde se vêem flores brotando no asfalto,
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tradições sendo criativamente subvertidas, pedagogias marginais ocupando a cena central.

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A análise crítica dos processos históricos revela que inovações coexistem e disputam
espaço com forças conservadoras nos diferentes territórios sociais, institucionais e psíquicos.
O historiador Eric Hobsbaum (1998), ao indagar sobre o papel social da história e o que ela
pode nos dizer sobre as sociedades contemporâneas, afirma que não se pode predizer o que
acontecerá, mas apontar os problemas que teremos que resolver: combinando perspectiva
histórica e experiência histórica. Tal como o pássaro africano “Sankofa”, que volta sua cabeça
à cauda e sugere a importância do retorno ao passado para ressignificar o presente e construir
o futuro, nossa equipe busca conhecer o trabalho de intelectuais, educadores populares e
comunicadores com perspectivas críticas, amparadas em saberes ancestrais e formas de luta e
resistência coletivas diante de violações históricas. Em comum, essas referências apontam
para a necessidade de pensarmos num mundo pós capitalista, posto que esse sistema tem
aprofundado seu caráter desumanizador, predatório e eco-suicidário. À universidade, caberia
desenvolver pedagogias que não medicalizem o sofrimento e o adoecimento como se fossem
inescapáveis à formação acadêmica, optando por estratégias que dialoguem com a realidade
social concreta dos estudantes.
Lembramos que não basta, por meio de leis e decretos, “incluir” quem está à margem.
Entre a lei e o chão das universidades, há lacunas e rachaduras. O cenário presente e futuro é
delicado sob muitos aspectos, exigindo enfrentamentos fora e dentro de nós. As universidades
públicas, hoje mais plurais e democráticas do que há vinte anos, têm sido alvo de ataques
políticos, orçamentários e ideológicos. E como vimos, no cotidiano universitário, pulsam
tensionamentos e possibilidades: confrontam-se forças de opressão e resistência, tradição e
ruptura, obediência e insurgência, medicalização e desmedicalização, que desvelam a urgência
de superarmos injustiças históricas repaginadas, e de construirmos, coletivamente, outros
futuros possíveis. Esperamos que a divulgação dessas iniciativas possa semear discussões em
outros ambientes educacionais e impulsionar a produção coletiva de cuidados em rede,
práticas inclusivas e democráticas, assim como rupturas com aquilo que nos adoece.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Brasil: origens e evolução In: Simpósio Brasileiro-Alemão de Pesquisa Qualitativa e
Interpretação de Dados (Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, de 26 a 28 de
março de 2008).
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Recebido em 02 de março de 2021


Aceito em 25 de maio de 2021

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License. Ao submeter o manuscrito o autor está ciente de que os direitos de autor passam para a Revista
Psicologia & Transdisciplinaridade.

Revista Psicologia e Transdisciplinaridade, Paranaíba-MS, v. 1, n.1, p. 59-81, Jan./Jun., 2021

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