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Juliana Bueno
USP, Programa de Pós-graduação Interunidades no Ensino de Ciências
jubueno@usp.br
Martha Marandino
USP, Faculdade de Educação
marmaran@usp.br
Resumo
Mudanças na economia, na sociedade e no mundo do trabalho deram destaque à educação não
formal ao longo da segunda metade do século XX, gerando uma maior valorização dos
processos de ensino e aprendizagem por meio de ações em museus de ciências. A
transformação do conhecimento científico com fins de ensino e divulgação nos museus pode
ser analisada a partir da Teoria Antropológica do Didático (TAD), proposta por Yves
Chevallard e colaboradores, permitindo identificar os saberes produzidos pelos museus por
meio de suas ações educativas. Neste texto apontamos como a ideia de Organização
Praxeológica (OP), pertencente a TAD, pode ser usada para identificar as intenções sobre o
que e o como ensinar nos museus.
Abstract
Changes in the economy, society and the world of work gave prominence to non-formal
education during the second half of the twentieth century, generating a greater appreciation of
the processes of teaching and learning through activities in science museums. The
transformation of scientific knowledge with the purposes of teaching and dissemination in
museums can be analyzed from the Anthropological Theory of the Didactic (TAD), proposed
by Yves Chevallard and employees, allowing identify the knowledge produced by museums
through its educational activities. In this text we point as the idea of Praxeological
Organization (OP), belonging to TAD, can be used to identify the intentions about what and
how to teach in museums.
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Educação em espaços não formais e divulgação científica
X Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências – X ENPEC
Águas de Lindóia, SP – 24 a 27 de Novembro de 2015
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o visitante pode vivenciar experiências que se projetam para além do deleite e da diversão.
Programas e projetos educativos são gerados nestes locais, com base em modelos sociais e
culturais, em que seleções de parte da cultura produzida são realizadas com o intuito de torná-
la acessível ao visitante (MARANDINO, 2005). Esta obra também propõe o contato do
visitante com outras obras, como por exemplo, as exposições, os objetos, os aparatos
científicos, os guias e manuais de exposição, entre outros.
Marandino (2012) propõe que o objeto de estudo da Didática inclui outros contextos
educacionais, que não somente a escola, como os museus, considerando, para isso, aspectos
peculiares desses locais a partir de elementos como: a linguagem, o lugar, o tempo e a
importância dos objetos. A autora aponta a ideia de que a exposição é uma mídia, diferente da
escola e de outras mídias, mesmo quando usam técnicas comuns de comunicação. Esses
elementos compõem as especificidades pedagógicas dos museus e, para a autora, constituem
parte da didática museal, definida pela pesquisadora da seguinte maneira:
[...] a didática museal é definida considerando a tensão existente entre a
perspectiva de uma didática geral, detentora de conhecimentos próprios, que
são os conhecimentos pedagógicos, referentes a um campo de produção de
saberes no âmbito da educação, e a perspectiva de uma didática específica
relativa aos conhecimentos dos campos disciplinares, que agrega
especificidades das áreas de referência na conjunção com as práticas e os
saberes genuinamente produzidos nos processos de ensino e aprendizagem
de tais disciplinas (MARANDINO, 2012: 145).
Marandino (2012) indica, ainda, que para Chevallard a didática deveria ser definida como a
ciência da difusão do conhecimento em um grupo social e, a natureza do conhecimento ser
expressa em termos de "corpos" de conhecimento. Essa é a formulação que Chevallard usou
no âmbito da Teoria da Transposição Didática. Entretanto, para ir além do conceito
desenvolvido nessa teoria, faz-se necessário levantar uma outra questão: o conhecimento cuja
transformação deve ser estudada é o conhecimento de quê? Em outras palavras, o que é o
objeto desse conhecimento?
A resposta de Chevallard para esse questionamento está formulada em termos da noção da
praxeologia, que o autor descreve da seguinte forma:
(...) alguns dicionários definem praxeologia como o estudo da ação humana
e de sua conduta. Até certo ponto, não é estranho o uso dessa “palavra-
chave” na abordagem antropológica da didática - desde que inclua no estudo
da praxeologia não só “o que as pessoas fazem”, e “como fazem” isso, mas
também “o que pensam”, e “como assim o fazem”. Nesse sentido, a didática
inclui a praxeologia, ou pelo menos parte dela, porque o conhecimento
produzido pela sociedade modifica as formas humanas de fazer e pensar: a
didática da matemática, por exemplo, é obrigada a acomodar uma
"praxeologia da matemática", isto é, tem a intenção de retratar um corpo
científico de conhecimento - como quando é aplicado a alguém que se
esforça em instruir uma outra pessoa- mesmo quando ele não é bem-vindo
ou não necessário. (CHEVALLARD, 2005: 3. Tradução nossa).
Nesse sentido, verificamos que para fundamentar os conceitos antropológicos da TAD,
Chevallard (2006) desenvolveu a noção da praxeologia. O uso dessa palavra contém,
etimologicamente, a dimensão da prática e da teoria. Todos os usos dela parecem implicar a
amálgama da prática e do discurso teórico, ou a relação entre o saber ensinado e o de
referência. Chevallard parece usar essa palavra para criar uma entidade mais refinada ao
incorporá-la à TAD.
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O que Chevallard (2005) chama de praxeologia é, de alguma maneira, a unidade básica pela
qual se pode analisar a ação humana:
Afinal, o que é exatamente uma praxeologia? Podemos contar com a
etimologia da palavra para nos guiar: a praxeologia permite analisar o ser
humano em dois componentes principais inter-relacionados: por um lado, a
praxis, ou seja, a parte prática, e, por outro lado, o logos. "Logos" é uma
palavra grega que, desde os tempos pré-socráticos, tem sido usada
constantemente para se referir ao pensamento e ao raciocínio humano-
particularmente sobre o cosmos (CHEVALLARD, 2005. Tradução nossa).
Na abordagem antropológica, todas as formas humanas de atividade devem resultar em um
jogo de praxeologias. Um exemplo simples, da vida cotidiana, que pode exemplificar essa
relação é trazida por Chevallard (2005) da seguinte maneira: o modo como cada pessoa assoa
o nariz pode gerar uma praxeologia que varia de acordo com a cultura na qual cada pessoa
está inserida, assim como o modo de andar, também compõe uma praxeologia que pode muito
bem variar de acordo com o gênero, o ambiente em que se está, e assim por diante.
Outro ponto que podemos estabelecer sobre o conceito de praxeologia é baseado no
pensamento anterior e se refere a uma generalização da noção de "corpo de conhecimento".
Para a maioria das praxeologias da vida comum é negado o status de "corpo de
conhecimento" - que aceitaria que o assoar o nariz ou o caminhar em um parque significa
trazer algum "corpo de conhecimento" devidamente aprendidos. Em geral, descreve-se a ação
humana sem perguntar se as pessoas, geralmente, a consideram como "verdadeiros" corpos de
conhecimento ou apenas como um simples saber-fazer (know-how), ou mesmo como um dom
"natural". Por exemplo, a maioria das pessoas acha que a respiração é algo natural e não algo
aprendido na cultura em que está inserida. Contudo, tal prática implica um “corpo de
conhecimento” aprendido.
Uma última observação sobre a praxeologia diz respeito à necessidade de estar aberto à
mudança, adaptação e aprimoramento do processo didático. Podemos então, definir que a
praxeologia origina-se como ferramenta da TAD e designa o estudo da estrutura mais simples
da atividade humana, ou melhor, é uma organização antrópica, que em linguagem biológica
significa dizer que é a ação humana sobre um meio. O significado traduzido é: prática calcada
em conhecimentos, do grego praxis (prática, ação) e logos (fundamentos, conhecimentos).
A Praxeologia divide-se em dois componentes: a práxis, parte prática da atividade,
compreendendo a tarefa (ação humana) e a técnica (o “como" realizar a tarefa); o logos, parte
racional, é a explicação da ação, compreendendo a tecnologia (conjunto racional de noções e
argumentos organizados que explica ou justifica a técnica) e a teoria (uma explicação e
justificativa da tecnologia). Nesse sentido, podemos usar a praxeologia como ferramenta para
análise do estudo na produção e compreensão de um objeto museal. Em outras palavras, a
praxeologia permite verificar como se dá o processo de ensino, logo, o processo didático, de
um objeto em uma exposição de um museu de ciência. Neste trabalho desenvolvemos uma
metodologia de análise praxeológica com base no trabalho de Mortensen (2010).
Metodologia
O entendimento dos dioramas como objetos didáticos, produzidos com a finalidade de ensino
e aprendizagem, implica estudá-los na perspectiva praxeológica tanto da intenção de quem
elabora a exposição quanto da observação que é realizada pelo visitante. O estudo da
praxeologia em museus foi recentemente desenvolvido por Mortensen (2010) e por
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(OB’) (OB’’)
Organização
Didática/Museográfica
(OM)
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conjunto destes dados foi usado para a identificação do bloco prático e do bloco teórico da
OB”. A seguir encontra-se um trecho da descrição do diorama, realizada a partir da
metodologia proposta por Oliveira (2010):
Descrição Plano posterior superior: dois troncos sem a copa, que descem até o solo e deles saem cipós que
Parcial se emaranham. Plano anterior: troncos de árvores cortadas cobertos de trepadeiras e bromélia
com flor vermelha. Ao lado dela: sauim (Calliithix chrysolena) segurando fruta alaranjada;
abaixo: outro sauim (Saguinus fusicollis), mais abaixo: macaco-de-cheiro (Saimiri boliviensis)
segurando um alimento marrom. Próximo ao solo: dois esquilos (Sciurus spadiceus) sobre
troncos cortados, um deles segurando fruta amarelada. Solo: coberto por vegetação arbustiva de
20 a 30 cm de altura, com elevações, representando rochas ou raízes expostas de plantas, com
musgo em algumas regiões.
Quadro 1: Descrição parcial do diorama: “Floresta Amazônica” – MZUSP/SP.
Logos A diversidade de espécies vegetais e animais da Floresta Amazônica; As relações ecológicas inter
e intraespecíficas das espécies vegetais e animais que habitam a Floresta Amazônica.
Práxis Compor um ambiente que mostre a diversidade de espécies vegetais e animais e que revele as
relações ecológicas entre os seres vivos que habitam a Floresta Amazônica.
Com base na OB”, procedeu-se a identificação das tarefas e das técnicas presentes no
diorama. Na construção da praxeologia, identificar a tarefa significa determinar “a ação que
se pretende realizar” em relação ao objeto/aparato e, compreende uma atividade humana
como, por exemplo, a ação de “informar e representar diferentes extratos de vegetação que
existem na Floresta Amazônica”. Identificar a técnica significa estabelecer o “como realizar”
a tarefa, ou seja, escolher uma ferramenta para se realizar a tarefa. Assim, para a tarefa
identificada acima, podemos relacionar a técnica: “Ilustrar por meio de imagem (foto) e
expor, por meio de modelos, uma vegetação rasteira, arbustiva e arbórea”.
A seguir, apresentamos o exemplo de um quadro praxeológico com a teoria identificada no
diorama da Floresta Amazônica e suas respectivas técnicas e tarefas:
Tarefas Técnicas
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t5 Discriminar a diversidade Ler a legenda; identificar, na legenda, o nome popular e científico dos
inter-específica em sauim organismos; observar o diorama; relacionar o nome popular e científico
(Família: Cebidae) dos organismos aos exemplares de diferentes espécies de sauims
taxidermizados e expostos no diorama; levantar suposição de causa e
efeito.
t6 Discriminar a diversidade Ler a legenda; identificar, na legenda, o nome popular e científico dos
intra-específica de esquilos organismos; observar o diorama; relacionar o nome popular e científico
dos organismos aos dois exemplares da mesma espécie de esquilos
taxidermizados e expostos no diorama; levantar suposição de causa e
efeito.
A construção da praxeologia implica na escolha dos elementos presentes nos dados que
expressam conceitos e ideias sobre a temática explorada. Tais elementos surgiram das falas
dos entrevistados, dos documentos analisados e/ou da observação/descrição do diorama. Por
exemplo, ao observarmos a apresentação de dois espécimes diferentes do sauim (de gêneros
diferentes como apontado na legenda) no cenário, estabelecemos que a tarefa 5, t5, revela uma
intenção do objeto em expressar a diversidade inter-específica. Do mesmo modo, ao
observarmos dois esquilos da mesma espécie (como consta na legenda), estabelecemos que a
tarefa 6, t6, revela uma intenção do diorama expressar a diversidade intra-específica. Nesse
caso, pode-se, ainda, estabelecer que a diversidade genética (ou seja, a variação genética
dentro de cada espécie) está potencialmente representada.
Desse modo, considera-se que a Teoria Antropológica do Didático pode auxiliar na análise do
processo de ensino no museu, sendo um importante instrumento para revelar a estrutura
teórico-prática das atividades expositivas, pois possibilita a identificação das tarefas (práxis)
propostas para o objeto expositivo, correlacionando-as com um corpo de conhecimento
conceitual (logos) que sustenta sua execução. Isso é relevante porque, ao identificar as tarefas
que envolvem o objeto da exposição, no caso do diorama da “Floresta Amazônica”, com a
elaboração da praxeologia intencionada, é possível caracterizar, de maneira objetiva, as
finalidades envolvidas ao elaborar tal objeto para ensinar e divulgar em museus de ciências.
Essa identificação fornece subsídios para possíveis reformulações dos objetos presentes em
exposições de museus de ciências, tornando seu discurso mais próximo das intenções
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Agradecimentos e apoios
Agradecemos ao Museu de Zoologia da USP pela realização da pesquisa e ao Programa de
Bolsa Mestrado & Doutorado da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.
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