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ARTIGO ARTICLE
Saúde Mental e os Planos de Saúde no Brasil
Abstract The article examines the regulatory Resumo O artigo analisa o regime de regulação
regime of mental healthcare implemented by the da assistência à saúde mental implantado pela
National Health Agency (ANS). It describes the Agência Nacional de Saúde Suplementar. Descre-
conditions observed between the provision of ve as condições observadas entre a provisão de ser-
mental health services in the private healthcare viços de saúde mental no setor de planos privados
sector in relation to the international experience de assistência à saúde em relação à experiência
and the Unified Health System (SUS). The arti- internacional e ao Sistema Único de Saúde (SUS).
cle shows that the mental healthcare provision O artigo demonstra que a assistência à saúde men-
by the sector has the failings associated with the tal do setor apresenta as falhas associadas ao mer-
health insurance market. The health insurance cado de seguro saúde. As empresas de planos de
companies have recourse to copayment mecha- saúde adotam mecanismos de copagamento, esta-
nisms, set limits for outpatient use, emphasize belecem limites de utilização para consultas am-
short duration hospitalizations for the treatment bulatoriais, enfatizam o tratamento dos casos gra-
of severe cases and residually offer support servic- ves por internação hospitalar de curta duração e
es to the patient after discharge. Since the decade oferecem residualmente serviços de suporte ao pa-
of 2000 the expansion of the number of psychiat- ciente após a alta. Existem evidências de um des-
ric hospitalizations that resulted in high rates of compasso entre o processo de desinstitucionaliza-
admission compared to the public sector has been ção em curso no SUS e a regulação implantada
observed in Brazil. pela ANS. Em fins da década de 2000, foi observada
Key words Mental health, Health insurance, a expansão da quantidade das internações psiqui-
Prepaid health plans, Brazil, Psychiatric reform átricas que resultaram em taxas elevadas de ad-
missão se comparadas ao setor público no Brasil.
Palavras Chaves Saúde mental, Seguros de saú-
de, Planos de Saúde Pré-pagos, Reforma Psiquiá-
trica
1
Departamento de Ciências
Sociais, Escola Nacional de
Saúde Pública, Fiocruz. Rua
Leopoldo Bulhões 1480/
912, Manguinhos.
21041-21 Rio de Janeiro RJ.
paulofagundes@ensp.fiocruz.br
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Silva PF, Costa NR
Belo Horizonte, 55,6 % no Rio de Janeiro, 59,8 % cipais dispositivos são os Centros de Atenção
em São Paulo e 75,8 % em Vitória14. Assim, o Psicossocial. A integração da saúde mental com
sistema de saúde brasileiro apresenta a peculiari- o cuidado primário em saúde tem sido também
dade da convivência de um subsistema cuja pro- buscada16,17. Esta composição de serviços é con-
posta é o acesso universal e a atenção integral siderada, pela maioria dos autores, menos estig-
com um grande peso do segmento privado no matizante e mais acessível18,19.
financiamento e provisão dos serviços.
A aquisição ou acesso aos planos de saúde A regulação da assistência à saúde mental
está fortemente associado à renda. Como mos- no setor de planos de saúde no Brasil
tra a Tabela 1, quanto maior é a renda familiar,
maior é a proporção de famílias com planos de Até 1998, a atenção aos transtornos mentais
saúde15. estava excluída da quase totalidade dos contratos
O padrão estratificado e socialmente desigual das operadoras de planos e seguros privados de
do acesso aos planos de saúde torna bastante assistência à saúde no Brasil. A partir da promul-
frágil a tese geral do uso compartilhado da rede gação da Lei 9.656/98, a cobertura passou a ser
de serviços hospitalares, ambulatoriais, diagnós- obrigatória a todos os contratos celebrados a par-
tico e de terapias do sistema público e privado de tir de janeiro de 1999 ou nos planos antigos que
planos de saúde. A hipótese alternativa desse es- foram adaptados em consonância com a Lei20.
tudo é que a utilização dos serviços de saúde A regulamentação da cobertura para os trans-
mental pelos usuários de planos de saúde é resi- tornos mentais foi implantada através da Reso-
dual por duas razões: 1) o dinamismo da oferta lução do Conselho de Saúde Suplementar de nú-
de internações psiquiátricas de curta duração e mero 11 (CONSU 11)21. Nos planos e seguros
2) o foco na oferta de cobertura para transtor- do segmento hospitalar foi estabelecido um li-
nos mentais agudos pelos planos de saúde. mite de cobertura de 30 dias de internação por
No setor público, como já assinalado, encon- ano de contrato em hospital psiquiátrico ou em
tra-se em curso, no campo da assistência pública hospital geral. No caso do uso prejudicial de ál-
em saúde mental, um processo de reforma insti- cool e outras drogas, o limite era de 15 dias e as
tucional, iniciado nos anos 90, que afeta intensa- internações só poderiam se dar em hospitais ge-
mente a configuração de serviços e dispositivos rais. Ultrapassados estes limites, as operadoras
de cuidado às pessoas acometidas por transtor- poderiam estabelecer mecanismos de copartici-
nos mentais graves: a opção pela atenção de base pação crescentes.
comunitária em detrimento ao procedimento de A atualização do Rol de Procedimentos e
internação psiquiátrica, que passa a ser, na nova Eventos em Saúde, implantada pela Resolução
modelagem, uma intervenção de exceção. Con- Normativa 21122 e pela Instrução Normativa 2523,
comitante tem sido implantada uma rede de re- que passou a vigorar a partir de Junho de 2010,
cursos assistenciais de base comunitária. Os prin- abandonou a discriminação em dias de cobertu-
ra entre internações para usuários de drogas e
relativas aos demais transtornos mentais e esta-
beleceu um limite comum de 30 dias. Foi supri-
mida também a especificidade de internação em
Tabela 1. Percentual de pessoas, na população hospitais gerais para as internações motivadas
residente, com cobertura de planos de saúde, pelo uso prejudicial de álcool e outras drogas. A
segundo as classes de rendimento mensal domiciliar partir de Janeiro de 2012, o copagamento para
per capita – Brasil – 2008.
internações psiquiátricas que excedam 30 dias por
Classes de Rendimento % de Cobertura de ano de contrato foi limitado em 50% do valor
Planos de Saúde contratualizado com o prestador24.
Sem rendimento e ¼ do 2,3 Ainda no segmento hospitalar, a assistência
salário mínimo em hospital-dia, instituída em 1999, teve sua co-
Mais de ¼ a ½ salário mínimo 6,4 bertura ampliada em 2010, quando foram supri-
Mais de ½ a 1 salário mínimo 16,1 midos os limites de duração de tratamento, desde
Mais de 1 a 2 salários mínimos 33,7 que fossem preenchidos os critérios de diagnósti-
Mais de 2 a 3 salários mínimos 54,8 co estipulados - transtornos mentais e compor-
Mais de 3 a 5 salários mínimos 68,8 tamentais devidos ao uso de substância psicoati-
Mais de 5 salários mínimos 82,5 va, esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e
Fonte: IBGE. transtornos delirantes, transtornos de humor
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Tabela 3. Oferta de serviços de saúde mental por porte das operadoras - segmento hospitalar - em números
absolutos e percentagem (N=749*).
Porte por beneficiários Operadoras Internação em HP Internação em HG Hospitais-Dia
Pequenas (<20.000) 488 (100 %) 354 (72,5%) 303(62,1%) 220(45,1%)
Medias (<100.000) 196 (100 %) 145 (74%) 120(61,2%) 101(51,5%)
Grandes (>100.000) 65 (100 %) 49 (75,4%) 47(72,3%) 37 (56,9%)
Total 749 (100%) 548 (73,2%) 470(62,8%) 358(47,8%)
Fonte: Requerimento de Informações da ANS 2007-2008; Anuário ANS 2007. *Em face de um grupo de operadoras não terem tido
suas demonstrações contábeis reportadas no Anuário, a amostra analisada foi de 749 operadoras.
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A comparação da taxa de internações psiqui- aos seus leitos públicos32. Este movimento orga-
átricas no setor de saúde suplementar com a taxa nizacional está amparado em fortes evidências
do Sistema Único de Saúde em 2010 mostrava que indicam que a atenção centrada em hospi-
uma relevante diferença. Enquanto a taxa na Saú- tais psiquiátricos, principalmente funcionando
de suplementar foi de 284 por 100 mil usuários, desarticulados de uma rede assistencial extra-
no SUS, a taxa foi de 149 por 100 mil habitantes: hospitalar, acarreta barreiras ao efetivo cuidado,
91 % menor (Tabela 5). entre elas o reforço do estigma.
A comparação da evolução do número de in- Os dados disponíveis no SIP não apresentam
ternações psiquiátricas nos dois sistemas mostra discriminação sobre qual modalidade de dispo-
tendências inversas: de redução de 16% no SUS de sitivo hospitalar está sendo utilizado para reali-
2005 até 2010 e um aumento de 28% na saúde zar as internações psiquiátricas. As respostas ao
suplementar no mesmo período (Tabela 6). requerimento de informações da ANS apontam
Estes resultados parecem indicar uma dispa- que é mais comum que o procedimento seja ofer-
ridade entre as políticas de saúde mental nos dois tado em hospitais psiquiátricos (73,2 %) do que
sistemas no que tange a assistência hospitalar. em hospital geral (62,8 %). Com os dados dis-
Como se verificou anteriormente, o aumento de poníveis não é possível avaliar se a significativa
internações psiquiátricas não tem acompanhan- disponibilidade de leitos psiquiátricos em hospi-
do na mesma proporção o crescimento da base tal geral referida pelas operadoras está relacio-
de beneficiários dos planos de saúde com cober- nada com a padronização da ANS vigente em
tura hospitalar, mas este achado não pode ser 2007-2008 de que as internações dos agravos re-
relacionado a nenhum procedimento específico lacionados à abstinência e a intoxicação pelo uso
de desestímulo da hospitalização. de álcool e outras drogas deveriam ser realizadas
Convém destacar que tem sido preconizada em hospital geral (CONSU 11).
uma migração da alocação de leitos localizados Deste ponto de vista, pode-se considerar
em hospitais psiquiátricos especializados para como um retrocesso a supressão da restrição
enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais. Os contida na CONSU 11, através da RN 211, vi-
países com assistência à saúde mental consolida- gente a partir de junho de 2010. Deste momento
da têm feito a conversão de dispositivos de for- em diante, pode-se dizer que o sistema de saúde
ma resoluta. A Itália, cujo modelo assistencial é suplementar não formaliza nenhum mecanismo
frequentemente tomado como referência pelo indutor que possa desestimular o procedimento
Brasil, efetivou a transição completa em relação “internação em hospital psiquiátrico”, o que
sobre a longa permanência hospitalar, que para mia por ocasião da alta40. Entretanto, no panora-
resultar em benefício para os usuários é necessá- ma internacional, esta modalidade de cuidado vem
rio analisar se a limitação não está ocasionando se tornando superada por novas abordagens,
altas prematuras motivadas pela limitação de co- como a atenção domiciliar41 e vem assumindo
bertura. Para fins de desembolso direto das famí- um papel residual no Sistema Único de Saúde bra-
lias, o período que exceder 30 dias pode resultar sileiro, no qual a atenção diária para pacientes
em significativo ônus financeiro para uma parce- com transtornos severos, tanto para situações de
la dos usuários de planos de saúde, podendo che- crise, quanto em situação de atenção de longo
gar a apresentar as características de gasto catas- curso, vem sendo desenvolvida no âmbito dos
trófico, como se convencionou chamar os gastos Centros de Atenção Psicossocial.
que excedem intensamente a capacidade financei- Esta disposição está explicitada de forma ca-
ra das famílias, ou acarretar a procura do serviço tegórica em documento do Ministério da Saúde
público para continuação do tratamento. de 2007, conforme trecho abaixo:
Considere-se que o período de 30 dias está “O hospital-dia de saúde mental [...] é hoje
dentro de padrões aceitáveis para a evolução de em dia um serviço em processo de superação,
uma crise em ambiente hospitalar até a data da especialmente face ao papel desempenhado pe-
alta, apesar de muitos países operarem com um los Centros de Atenção Psicossocial [...], o Mi-
tempo médio de internação superior37. Entretan- nistério da Saúde deverá recadastrar nos próxi-
to, por exemplo, na Itália, estudo de âmbito na- mos anos os hospitais-dia que já funcionam
cional, realizado em 2001, apontou que a percen- como CAPS, e rediscutir aqueles que permanece-
tagem de pacientes em “revolving door”, defini- rem com um perfil hospitalar, os quais têm mos-
dos como os pacientes que tiveram três ou mais trado baixa efetividade na reintegração social dos
admissões na mesma unidade psiquiátrica pú- pacientes egressos de internações. Espera-se que
blica de internação no período de um ano, foi de a implantação de serviços comunitários (CAPS e
8,7% do total de internados. Além disso, 22,3% ambulatórios) e a expansão da atenção psiquiá-
dos pacientes internados estavam em sua segun- trica em hospitais gerais conduza à superação
da internação no mesmo ano38. Como a cober- progressiva deste dispositivo, que teve importân-
tura da ANS se restringe a 30 dias por ano de cia histórica na mudança do modelo de atenção
contrato, a soma dos dias de mais de uma inter- em saúde mental”.
nação pode impedir a cobertura integral por parte A intenção dos formuladores da política do
da operadora. SUS, ao diminuir a ênfase na implantação e de-
No período analisado, que vai de meados de senvolvimento dos hospitais-dia, parece estar
2007 até começo de 2008, o dispositivo hospital- relacionada com a ligação implícita dessas estru-
dia ainda se encontrava em processo de expan- turas com os hospitais psiquiátricos e pelas difi-
são. Na Resolução Normativa 211/2010 é defini- culdades de se constituírem como referência para
do como “recurso intermediário entre a interna- o restante da rede assistencial em um modelo
ção e o ambulatório, que deve desenvolver pro- que se pretende marcado pela territorialização e
gramas de atenção e cuidados intensivos por equi- pela integração com a atenção primária.
pe multiprofissional, visando substituir a inter- Porque a ANS, em sua revisão do rol que foi
nação convencional...” (Parágrafo 1° do artigo 18). implantada em junho de 2010, manteve a mode-
Pode-se depreender pela definição, adotada da lagem dos hospitais dia como única modalidade
Portaria SNAS 224 de 1992 do Ministério da Saú- de cuidado extra-hospitalar, além das consultas
de39, e pelo seu posicionamento no segmento hos- de cunho ambulatorial, apesar do flagrante des-
pitalar dos planos de saúde, que o dispositivo está colamento com as políticas desenvolvidas pelo
direcionado para pacientes em situação aguda ou SUS? Provavelmente porque acarretaria na neces-
de crise, funcionando o dispositivo hospital-dia sidade da constituição pelas operadoras de novos
como uma alternativa à internação convencional, serviços, de modalidade diversa dos já constituí-
mas não direcionado para portadores de trans- dos, com o consequente aumento das despesas
tornos mentais severos em quadro persistente, operacionais, mas também e fundamentalmente
que necessitam de abordagem específica, voltada porque implicaria na assunção da cobertura mais
para a reabilitação psicossocial. A literatura dis- abrangente voltada para pacientes com transtor-
ponível sugere que a utilização de hospitais-dia nos severos persistentes, no espectro da cronici-
para pacientes em crise pode ser tão efetiva quan- dade e do cuidado de longo curso.
to a internação usual, com vantagens no que tan- Um dos mais importantes achados na epide-
ge à capacidade de reintegração social e à autono- miologia da esquizofrenia em termos de impli-
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Colaboradores Referências
Apresentado em 08/09/2011
Aprovado em 30/09/2011
Versão final apresentada em 05/10/2011
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