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Mestrado em Ciências Musicais – Musicologia histórica

História da Música Portuguesa

Análise dos escritos de Beckford sobre música e teatro no final do Século XVIII

William Beckford, escritor e colecionador de arte, nasceu em 1760 na cidade de


Londres e morreu aos oitenta e três anos, em 1844, em Bath, no sudoeste do Reino Unido.
Durante a juventude fez várias viagens pela Europa, incluindo uma grand tour1 pelo centro do
continente. Viajador nato, fluente em várias línguas europeias, fixa-se em Portugal durante um
breve período entre Março e Dezembro de 1787, de onde parte para Madrid. Beckford
mantinha um diário com anotações dos vários eventos que se iam sucedendo no decorrer do
seu dia e em 1835 publica o livro Letters from Italy with sketches of Portugal and Spain. Neste
pequeno artigo pretendo realçar os comentários que Beckford faz sobre o panorama cultural e
artístico da Lisboa do final do Século XVIII, contrastando a entradas referentes ao mesmo
evento em ambas as fontes e traçar o ambiente musical que o autor vivenciou.

Como base para o presente artigo servi-me das transcrições e traduções de algumas
entradas quer do diário de Beckford – a partir de agora denominado por diário – e do livro
Letters from Italy with sketches of Portugal and Spain – a partir de agora denominado Sketches
– que foram disponibilizados no âmbito da disciplina de História da Música Portuguesa. Anexa-
se a este documento uma tabela síntese das entradas do diário com a respetiva divisão
temática para facilitar a consulta dos eventos vivenciados pelo milionário inglês.

É possível dividir os acontecimentos culturais que Beckford descreve em cinco grandes


planos, a música religiosa, os serões, a música de câmara, o teatro e a música de dança.
Relativamente a esta última, apesar de os momentos no qual aparece de forma autónoma dos
outros quatro planos serem escassos, é de extrema importância para o autor pelo que o próprio
faz sempre menção especial aos momentos com música de dança [Em que entradas é que
isso acontece?!]

Este gosto pela dança é característico do gosto de Beckford por formas musicais mais
ligeiras, no qual se inclui a modinha, canção em língua portuguesa com mistura de ritmos
indígenas dos povos das várias colónias de Portugal, a que o autor se refere várias vezes e
tecendo-lhe sempre os maiores elogios e admirações. O primeiro contacto com esta forma
acontece a 07 de Junho de 1787 na casa do senhor Horne onde ouviu D. Luísa de Almeida
cantar “modinhas brasileiras” que o autor descreve como algo como nunca ouvira antes e
inspirar “delírios profanos”. Beckford vai descrever mais encontros com esta forma como ocorre

1 Grand Tour é a designação dada às viagens que os jovens da aristocracia e da alta burguesia faziam no
final da sua adolescência. A viagem era um ritual de passagem e uma forma de cultivarem os seus
interesses culturais, percorrendo os principais centros artísticos do centro da Europa.
dois dias mais tarde do primeiro contacto, a 09 de Junho, e no dia 13 de Junho – dia de Santo
António – que aborrecido com a música religiosa que escutara se refugia em casa onde se
“consola com modinhas”. Das primeiras três vezes que ouve modinhas o autor coloca a forma
em grande estima como se pode observar na caracterização que faz: “Trata-se de um género
original de música, diferente de tudo o que alguma vez ouvi, e o mais sedutor, o mais
voluptuoso que se possa imaginar e o melhor calculado para apanhar os santos desprevenidos
e inspirar delírios profanos” [Entrada 21] e o deleite que tem a ouvir esta música tal como o faz
na entrada 30: “Bati em retirada assim que me foi possível e regressei a casa encolhendo os
ombros. O resto do grupo em breve fez o mesmo e consolámo-nos com modinhas.” Ao longo
do diário o autor vai descrevendo os sucessivos encontros com esta forma. Já em Sketches –
onde trata os assuntos de forma mais trabalhada, com linguagem mais cuidada, onde se
observa a preocupação de manter uma imagem imaculada, Beckford faz menção à modinha no
episódio de 14 de Junho na casa dos Lacerdas onde as jovens, acompanhadas pelo mestre de
canto – um frade com olhos esverdeados – trinam modinhas brasileiras, ora esta descrição é
bastante semelhante à que o autor faz no seu diário a 07 de Junho onde a D. Luísa cantava
com o seu mestre de canto – também ele frade de olhos esverdeados – modinhas brasileiras.
Será que Beckford usou parte do episodio de dia 07 de Junho para complementar o que
descreve nos Sketches em data posterior? Ou será o frade o mesmo mestre que influencia as
alunas a cantarem modinhas?

Um outro pormenor interessante que revela o gosto de Beckford e a extensão da


popularidade de Joseph Haydn – que à data da passagem do autor por Lisboa o compositor
teria 55 anos – sendo mencionadas diversas vezes a execução de adágios para piano durante
os serões de Beckford. A primeira menção ocorre a 17 de Junho no palácio dos Marialva e vai
sendo sucessivamente mencionado a 20 de Agosto, referindo que são executados adágios nas
tonalidades mais melancólicas e a 21 de Agosto – onde o autor indica que tocaram o seu
adagio preferido, o que poderá indicar que Beckford levou para Lisboa partituras de Haydn que
terá adquirido nas viagens que efetuara anteriormente pela Europa – e por último a 02 de
Outubro onde se menciona mais um adagio deste compositor.

Ainda no contexto da música nos serões de Beckford podemos traçar alguns


momentos distintos, em primeiro as referências à música para dançar e, em segundo, à música
da câmara. Relativamente à primeira os principais eventos descritos ocorrem nos palácios dos
Marialva e dos Penalva com música para piano e cravo, respetivamente, estando presentes
músicos da capela real, conforme narrado nas entradas 18, 35 e 41. Pelos relatos de Beckford
a música executada neste contexto tanto era de compositores portugueses, como acontece a
06 de Junho no palácio dos Penalva onde se toca Leal Moreira, que à data era mestre-de-
capela da Patriarcal, ou a 10 de Junho na casa do Capitão Scarlatti onde se ouvem árias de
Perez e de João de Sousa, bem como a 22 de Junho quando Jerónimo Lima toca uma ária da
sua autoria. A par com as descrições sobre a execução de música portuguesa, que são
tratadas com distinção pelo autor, por vezes até exoticamente, também nos são descritos
momentos de música de câmara com a execução de obras de Haydn – conforme referido
anteriormente – de peças para piano e violino [entrada 49] de sonatas para piano – que
Beckford afirma detestar – [entrada 41], de minuetes e até mesmo de eventos mais elaborados
como é o caso da descrição que é lhe é transmitida pelo Grão-Prior dos jardins do Palácio dos
condes do Pombeiro [entrada 54].

Relativamente aos segundos momentos, a música de dança, ocupa uma posição


bastante importante no quotidiano de Beckford, sendo o autor dado a dançar sempre que lhe é
possível. As referências a formas musicais de dança e à execução são significativas, sendo
descritas as execuções de minuetes a 24 de Junho [entrada 41], de a 10 de Junho, na casa do
Capitão Scarlatti, dançarem minuetes e contradanças [entrada 24], a 17 de Junho serem
tocados minuetes ao piano [entrada 35] e de nas festas de São João da Cidade de Lisboa –
que ocorriam no dia de S. Pedro e S. Paulo, a 29 de Junho – haver pescadores a dançarem
flamengo [entrada 43] bem como as inúmeras referências a dançar com várias raparigas –
como acontece na entrada 21 – ou na entrada 24 onde, apesar de não estar com disposição,
dançou com a senhora Scarlatti, ou na entrada 96, a 03 de Setembro, onde dançou “dois ou
três minuetes” bem como a descrição do sonho que tem com a Rainha Dona Maria onde o
autor dança com esta. Deduz-se que a música de dança tinha uma grande importância no
protocolo dos serões e festas da alta sociedade portuguesa do final do Século XVIII, estando a
par com o resto da europa com as danças da moda, o minuete emergia como forma de dança
tipicamente cortesã no final do Século XVII e era nesta época apropriado em suites e sinfonias
por diversos compositores. (Little 2001)

Em suma, os serões de Beckford, se não tivesse nenhum evento, eram passados na


companhia de membros da aristocracia – como D. Pedro – Marquês de Marialva – ou do clero
– como o grão-prior – ou músicos como Franchi – com quem desenvolve um afeto especial –
Jerónimo Lima e, no final da sua estadia em Lisboa, os seis músicos que contrata. Algumas
vezes passa o serão com outros convidados, da mesma forma que toma o pequeno-almoço na
casa destes [entrada 16] e a música é sempre um assunto de destaque, ou por se falar desta,
ou porque também comparecem músicos como Lima – mestre-de-capela da Patriarcal - ou
porque são procedidos de momentos musicais. A excentricidade do autor fazia com que a
música que era tocada em sua casa durante estes serões fosse, maioritariamente do seu
agrado e para seu grande deleite, se bem que nem sempre conseguia esses objetivos – refira-
se a vez em que são tocadas sonatas ao piano e quando os seus convidados martelam os
fortepiano sem o seu consentimento [entrada 49]. Serões com alguns amigos, onde se
cantava, dançava e ouvia música para piano, onde Beckford se fazia rodear de um grupo
bastante firme de amigos aos quais se juntavam convidados que o autor tentava deslumbrar
através da música e das coleções de obras de arte que possuía.
Uma das atividades culturais com bastante popularidade em Lisboa no final do Século
XVIII é o teatro. Sabe se quem em Lisboa existiam três teatros durante o referido período, o
teatro da Ajuda – que, entretanto, ardera – o teatro da Rua do Salitre e teatro da Rua dos
Condes. Beckford faz referência ao primeiro na entrada 121 de 11 de Outubro, sendo
mencionada uma opera à qual o autor tece vários comentários pejorativos sobre a produção,
os atores e a interpretação: “Um rapaz de andar arrastado e olhos turvos, vestido com roupas
negras de luto, guinchou e berrou alternadamente o papel de uma princesa viúva. Outro
rapazola desajeitado, cambaleando nos sapatos de salto alto, representava Sua Majestade a
rainha do Egipto, e trinou duas árias com toda a doçura nauseante de um falsete aflautado.
Podia-lhe ter dado um murro nos ouvidos por me ter enchido os meus de tanta porcaria”. Em
relação ao teatro da Rua dos Condes o autor faz mais referências mas mantém comentários
bastante críticos relativos ao panorama que Portugal vivia, em especial a restrição régia da
presença feminina em palco. “(…) no que se refere aos bailarinos, entre os quais se vêem uma
pastora robusta vestida de branco virginal, com uma suave barba azulada e uma maçã de
Adão proeminente, apertando um ramalhete de flores num punho que poderia quase ter
derrubado Golias, e um grupo de jovens leiteiras seguindo-lhe as pegadas enormes e
levantando a cada passo os saiotes acima da cabeça. Semelhante maneira de esbracejar, de
andar aos solavancos e de fazer carinhas foi coisa que nunca tinha visto e que espero nunca
mais voltar a ver” [Sketches, entrada 32], estes eventos tiveram tanto impacto na visão de
Beckford que faz questão de os publicar em Letters from Italy with sketches of Portugal and
Spain. As críticas de Beckford também se dirigem à estrutura dos teatros, mencionando que
são estreitos, pouco profundos e de pouca qualidade como refere na entrada 32. Este teatro é
novamente mencionado nas entradas 122 e 132, sendo que na última foi convencido a ir
porque iria ouvir a sua modinha preferida, ao que o autor, mais uma vez, refere que foi mal
cantada face à execução anterior.

Presume-se que Beckford fosse anglicano, quer pela origem, quer pelo sepultamento
em cemitério desta confissão, contudo a presença do autor em cerimónias religiosas católicas
é bem expressiva ao longo das sucessivas entradas quer no diário, quer em Sketches, sendo
que menciona algumas vezes o tédio que passas nas longas celebrações e as críticas que faz
à música. Apesar de tudo não é estranho que o autor esteja presente em celebrações católicas
num país predominantemente católico, com uma corte onde se sente um fervor religioso e
onde todos os seus amigos nobres também participavam – deve-se entender a celebração
religiosa mais como evento social do que como cultro devocional – e, além de tudo isto,
Beckford faz-se rodear do grão-prior e necessita das suas amizades para aceder à Patriarcal,
aos seus músicos e, em especial, a Franchi.

Observemos os vários relatos que Beckford faz sobre a música sacra que escuta.
Salvo raras exceções – como quando escuta Jomelli na Patriarcal – Beckford não se
deslumbra com o contexto da música sacra em Lisboa, dando-nos referências bastante
importantes sobre que tipo de música existia, como na descrição da Festa de Santa Cecília, ou
nas menções à execução de hino em canto gregoriano acompanhadas ao órgão [entrada 37,
87 e 90, por exemplo]. Um dado importante é a referência ao grande órgão que figurava no
Igreja do Mosteiro dos Jerónimos – presumivelmente de Cerveira – que desapareceu no
Século XIX/XX. Relata várias vezes os longos serviços religiosos e que a música era muitas
vezes enfadonha e executada por músicos de pouca qualidade [entrada 34]. Não deixa de
referir os momentos com execuções de referência como no relato que faz da “nova igreja de
São Pedro de Alcântara” – que anteriormente refutei ser a Igreja de São Pedro em Alcântara,
esta sim é de construção pós-terramoto, e não do convento de S. Pedro de Alcântara junto ao
Príncipe Real – que indica a boa execução da missa por músicos da Capela Real que
menciona estarem entre os melhores executantes da Europa.

Além destes grandes planos onde nos foi possível encaixar os vários momentos
musicais vivenciados por Beckford, são referidos outros momentos com música, como a
tourada que é descrita na entrada 73 de 10 de Agosto: "Havia um grupo de negros que
andavam às cambalhotas por todo o anfiteatro, vestidos de macacos, e que agitavam os rabos
ao som lamentoso de alguns fagotes e violinos miseráveis" e a Banda Regimental no dia em
que visita Guildermeester e à qual o autor concede duas menções distintas, uma no diário e
outra no Sketches.[entradas 66 e 67] Nota-se a preocupação que tem em procurar as
descrições dos momentos musicais e em fazer apreciações crítica dos mesmos.

O documento analisado transcreve as duas fontes já mencionadas o que torna possível


comparar a descrição de Beckford num contexto íntimo, como ocorre no diário, e num contexto
em que é expectável que outros indivíduos tenham acesso aos escritos. Constata-se uma clara
mudança de postura, de cuidado com a linguagem, e de pequenas alterações nas descrições
entre as leituras de um mesmo acontecimento nas duas fontes. A leitura de ambas as fontes é
importante para entender como é que a estadia do autor de desenrolou, bem como para
observar a forma que Beckford deseja passar a imagem do panorama cultural português para o
estrangeiro, ao que se acrescenta as possíveis ilações sobre o ocorrido pelos traços
psicológicos que o autor demonstra ao longo do texto. As descrições do diário são mais
pormenorizadas, como acontece entre as entradas 65 e 66, sendo que a dos Sketches contém
referências ao tipo de publico que observa a banda regimental. Existindo momento em que o
autor modifica o sentido que dá originalmente no diário como entre a entrada 28.02 – “Após
muita música vocal e instrumental de qualidade indiferente” e 29.02 – “Após muita música de
qualidade, vocal e instrumental, executada em pleno galope no mais veloz allegro” no qual
adjetiva a qualidade da música dando um sentido diferente ao comentário crítico.

No espaço de seis meses, Beckford, traça o modo de vida e as atividades culturais da


sociedade lisboeta do último quartel do Século XVIII. As descrições que faz no seu diário
transmitem um panorama mais pormenorizado se bem que algo tendencioso, o caracter de
Beckford é um pouco egocêntrico e faccioso ao denegrir alguns aspetos culturais portugueses
face às experiências anteriores que o autor tem. Nos Sketches preocupa-se em destacar os
principais eventos sem deixar de opinar qualitativamente face aos vários acontecimentos.
Através da leitura de ambas as fontes é possível obter dados importantes para o estudo da
sociedade e do panorama musical português, em especial para o estudo do contexto cultural
doméstico.

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