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Relações Socioculturais de Gênero em Comunidades Tradicionais na Amazônia: os desafios

vivenciados na comunidade São Lázaro/AM

Itaciara Prestes da Silva Pontes1


Patrício Azevedo Ribeiro2
Camila Fernanda Pinheiro do Nascimento3

Resumo: O debate sobre as relações de gênero na Amazônia vêm se intensificando neste limiar do
século XXI, sobretudo, no campo das populações tradicionais. Este trabalho se propõe a analisar os
desafios atuais das mulheres em comunidades tradicionais na Amazônia, tendo por base o estudo
sobre as condições de vida e as relações socioculturais vivenciadas pelas mulheres moradoras da
comunidade São Lázaro, localizada no município de Caapiranga/AM. As discussões realizadas
fazem parte de um projeto científico e tecnológico intitulado, “Organização e Trabalho das
Mulheres Ribeirinhas Amazônicas: um estudo nas comunidades de Santa Luzia e São Lázaro no
Grande Lago de Manacapuru/AM”, financiado pelo CNPq. A metodologia adotada é a pesquisa-
ação e utiliza-se da abordagem quantiqualitativa com técnicas e instrumentos específicos para
coleta de dados. Compreende-se que, em São Lázaro, a intervenção das políticas públicas é parcial,
bem como a ausência formal de uma organização sociopolítica das mulheres, contribuem para
aguçar um quadro de profundos desafios na atualidade. Embora permeadas por tais situações, essas
protagonistas cuidam dos filhos(as) e serviços domésticos, trabalham na roça e realizam outras
atividades produtivas visando à subsistência e geração de renda na família e comunidade.
Palavras-chave: mulher ribeirinha; comunidade tradicional; relação sociocultural.

Introdução

O presente trabalho se propõe a refletir sobre as condições de vida e as relações


socioculturais vivenciadas pelas mulheres da comunidade São Lázaro, localizada no município de
Caapiranga, Estado do Amazonas. Trata-se de um estudo inicial e faz parte do projeto de pesquisa,
em andamento, intitulado “Organização e Trabalho das Mulheres Ribeirinhas Amazônicas: um
estudo nas comunidades de Santa Luzia e São Lázaro no Grande Lago de Manacapuru/AM”,
financiado pelo CNPq. A metodologia que vem sendo adotada no Projeto é a pesquisa-ação com
abordagem quantiqualitativacom o uso de técnicas e instrumentos específicos para coleta de dados.
O contato com esta comunidade iniciou-se em 2011, mas foi em 2012 que foi estabelecida
parceria com o Grupo de Pesquisa Interdisciplinar de Estudos Socioambientais e de
Desenvolvimento de Tecnologias Sociais na Amazônia – Inter-Ação. Este, por sua vez, tem atuado

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia. Pesquisadora do Grupo
Inter-Ação. Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas.
2
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia. Pesquisador do Grupo
Inter-Ação. Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas – Campus Parintins.
3
Acadêmica de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas. Pesquisadora do Grupo Inter-Ação.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),Florianópolis, 2012. ISSN2179-510X
com estudos na área socioambiental e organização das populações da Amazônia visando criar
subsídios para formulação de políticas públicas que contemplem a realidade sociocultural da região.
Durante as visitas à comunidade São Lázaro percebeu-se a dedicação e empenho das
mulheres nas atividades produtivas, consequentemente, a contribuição para a realidade
socioeconômica destas e de suas famílias. Com isso, procedeu-se ao estudo voltado para as
mulheres da referida comunidade.
Para abordar a discussão deste ensaio procurou-se seccioná-lo em duas partes. A primeira
parte, comportaalgumas noções sobre relações de gênero e divisão sexual do trabalho focalizando a
realidade das mulheres ribeirinhas amazônicas. Na segunda, discutem-se as primeiras sinalizações
referentes às condições de vida e as relações socioculturais estabelecidas entre as mulheres e suas
famílias na comunidade São Lázaro apontando algumas reflexões conclusivas sobre o tema
abordado.

Relações de Gênero e Divisão Sexual do Trabalho: considerações sobre as mulheres


ribeirinhas na Amazônia

Segundo Scott (1995, p. 75-76), na história de construção teórica da categoria analítica


gênero é possível verificar tal expressão sendo enunciada, em livros e artigos, como sinônimo de
mulheres. Isto prevaleceu por muito tempo e só houve uma maior preocupação no desmonte desta
compreensão a partir das décadas finais do século XX. Desde então, o debate ampliou e o termo
gênero passou a ser “utilizado para designar as relações sociais entres os sexos”, embora deva ficar
claro que “não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade”.
Nesta direção, o uso do gênero deve assentar-se num sentido amplo que vai desde o
vínculo de parentesco e transcorre pelo mercado de trabalho, a educação, a economia e o sistema
político (SCOTT, 1995), elementos estes que se imbricam diretamente nas relações entre o homem
e a mulher. Ou seja, “a categoria gênero deve estar articulada [a elementos distintos, mas
complementares entre si, como] classe, etnia e geração” (BARRETO, 2009, p. 144).
Disso decorre que, em tempos contemporâneos, falar de relações de gênero perpassa pela
compreensão do ponto de vista de classes, conforme sinalizou Barreto (2009). Isso porque, a
sociedade capitalista engendra um processo de divisão do trabalho que incide diretamente no
cotidiano das famílias reproduzindo, em formatos históricos, a divisão sexual e social do trabalho.

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Na obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, Engels (1987, p. 75)
lança como um dos aportes centrais de discussão a questão da opressão do sexo feminino pelo
masculino. Afirma que a mulher, num certo nível de formação da família, perde o controle sobre o
trabalho e isto supõe a “proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, em toda a
pré-história”. A pedra basilar para tal processo é, então, o surgimento da propriedade privada e da
sociedade de classes.
Neste sentido, Durham (1983, p. 16) argumenta que:

Todas as sociedades humanas conhecidas possuem uma divisão sexual do trabalho, uma
diferenciação entre papéis femininos e masculinos que encontra na família sua
manifestação privilegiada. É verdade que as formas dessa divisão sexual são extremamente
variadas, assim como variam a extensão e a rigidez da separação entre as tarefas
consideradas próprias aos homens e aquelas atribuídas às mulheres.

Segundo a autora, a família se assenta como lócus privilegiado para as manifestações da


divisão sexual do trabalho. Não obstante, é interessante observar que dependendo do contexto
sociocultural de cada sociedade pode haver uma rigidez ou não em relação à separação de papeis,
isto é, muitas tarefas que são determinadas para a mulher pode, igualmente, ser compartilhada com
o homem e vice-versa.
Para Kergoat (2002), a discussão sobre a divisão sexual do trabalho está ratificada em duas
esferas: a primeira designa ao homem o papel produtivo; e a segunda institui à mulher a função de
reprodutora. No entanto, a autora pontua que este processo varia no tempo e no espaço. Indo além
desta compreensão, considera-se que pode variar de população para população, assim como entre o
meio rural e o urbano, tendo em vista que em muitos casos a mulher acaba por assumir, da mesma
maneira que o homem, o posto de produtividade.
Diante disso, é importante compreender que a divisão sexual do trabalho se coloca como
questão central para a discussão das relações socioculturais dos povos ribeirinhos na Amazônia,
aonde a mulher vem se destacando como sujeito que contribui significativamentenas atividades
produtivas de subsistência. Tais questões socioculturais findam, sobremaneira, na organização do
trabalho, no ethoscotidiano4 e nas práticas culturais desenvolvidas.
De acordo com alguns autores (CHAVES, 2001; DIEGUES, ARRUDA, 2001; CHAVES,
BARROSO, LIRA, 2009) os ribeirinhos são agrupamentos humanos moradores de terra firme ou
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Importante ressaltar um breve entendimento sobre o termocotidiano. Segundo Heller (2008), o cotidiano é permeado
por complexidades e é em grande parte heterogêneo. O homem da vida cotidiana não consegue absorver inteiramente os
aspectos da realidade, assim, atua sobre ela com base em probabilidades e possibilidades de mudanças.

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várzea e vivem às margens dos rios possuindo profundos conhecimentos sobre os recursos naturais
e buscando utilizá-los de forma sustentável. São povos resultantes da miscigenação do branco,
índio, nordestino e outros povos e culturas que para Amazônia migraram desde o período da
colonização até o apogeu da borracha.Os ribeirinhosjuntamente com outras modalidades de grupos
formam o quadro de populações tradicionais indígenas e não-indígenas na Amazônia.
É possível observar com base em Chaves (2004), que as relações de gênero permeiam todo
desenvolvimento organizativo sociopolítico e cultural das comunidades tradicionais ribeirinhas na
Amazônia, uma vez que estas populações diferenciam e tornam evidente o papel de cada um –
homens e mulheres – no convívio comunitário.
Wagley (1988, p. 44), assim se reporta ao sistema de relações nas comunidades
amazônicas:

Nas comunidades existem relações humanas de indivíduo para indivíduo, e nelas, todos os
dias, as pessoas estão sujeitas aos preceitos de sua cultura. É nas suas comunidades que os
habitantes de uma região ganham a vida, educam os filhos, levam uma vida familiar,
agrupam-se em associações, adoram seus deuses, têm suas superstições e seus tabus e são
movidos pelos valores e incentivos de suas determinadas culturas.

As relações de gênero no contexto comunitário estão entrelaçadas diretamente à questão


cultural. O agir cotidiano que varia deste as tarefas realizadas dentro de casa até as atividades
produtivas que envolvem a comunidade precisam considerar a cultura local. Neste processo há o
engajamento dos indivíduos e, ao mesmo tempo, certa divisão entre homens e mulheres no acesso
aos ambientes:

[...] as áreas de floresta, dos lagos e de outros ambientes que estão longe do contexto
doméstico, constituem espaços principalmente ou exclusivamente masculino, onde
ocorrem as atividades tidas como as mais significativas para a economia do grupo. Nos
espaço doméstico, quintais, área das fruteiras e canteiros de hortaliças, o agente
principal é a mulher, atuando num espaço onde são realizadas as atividades
consideradas de importância ‘menor’, pois não geram renda, muito embora os grupos
dependam delas para sua subsistência (CHAVES, 2004, p. 73).

É importante destacar a relevância do papel da mulher e seu trabalho no desenvolvimento


das relações socioculturais na comunidade, pois assumem, dentro de suas características de caboclas
ribeirinhas, a polivalência no contexto comunitário baseado no saber-fazer (CHAVES, 2001). Para
Souza (2010), além de mães e esposas elas são agricultoras, pescadoras, comerciantes, parteiras,
rezadeiras, artesãs, professoras, ou seja, são mulheres que desenvolvem diversas atividades no seu
fazer cotidiano.

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Neste ínterim, as mulheresvêm se destacando como sujeito partícipe no processo de
produção, a exemplo da agricultura familiar.Importa ressaltar que, “a mulher quando assume uma
posição de liderança ou chefe de família no contexto rural, esta é vista como ‘perigosa’ no sentindo
de que é uma mulher de fibra, pois ela limpa o roçado, planta, colhe, comercializa e ainda garante a
alimentação de toda sua família” (SILVA; ROCHA, 2010, p. 10). São essas mulheres ribeirinhas
que protagonizam, via de regra, a realidade das famílias rurais amazônicas hoje.
Na concepção de Rodrigues (2009), esta mulher é uma grande colaboradora do espaço
onde vive principalmente que diz respeito à vida familiar, pois se dedica a casa e a família, da
mesma forma que ajuda nas atividades produtivas para garantir a subsistência da família, estabelece
também relacionamento individual e social, construindo formas de participação no âmbito familiar
e comunitário.
Para Wagley (1988) caracterizar a mulher amazônica (a exemplo da mulher ribeirinha)
consiste no estudo do seu modo de vida, do seu trabalho e consecutivamente das relações sociais
oriundas no cotidiano comunitário e desenvolvimento do trabalho. Assim sendo, explicita o autor:

[...] quase toda mulher ajudam os maridos nas roças, plantando e colhendo mandioca e são
elas que fabricam praticamente sozinhas, a farinha de mandioca. Muitas até extraem a
borracha, encarregando-se das estradas5 de seus maridos quando esses adoecem e, às vezes,
defumam também o látex. Muitas mulheres de seringueiros pescam enquanto os maridos
percorrem as estradas (WAGLEY, 1988, p.172).

Portantoa mulher exerce atividades produtivas nas áreas rurais na Amazônia. Ela se
configura como sujeito que intervém por meio do seu trabalho diretamente no processo de
subsistência da família. Nesta ótica, para Torres (2012, p. 199) as mulheres fazem parte do sistema
produtivo sendo “sujeitos vivos do sistema simbólico do trabalho”.

Condições de vida e relações socioculturais das mulheres na comunidade São Lázaro:


considerações gerais

A comunidade ribeirinha de São Lázaro, mas conhecida entre os comunitários como


Dominguinhos, está localizada na área rural do município de Caapiranga/AM às margens do Grande
Lago de Manacapuru. Para chegar até a sede do município leva-se em média 5h via fluvial e para o
município de Manacapuru/AM o tempo é de 9h, sendo o barco, o meio de transporte mais utilizado

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É o caminho percorrido pelos seringueiros aonde localizavam as seringueiras.

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pelos comunitários, além de voador6 e rabeta7. No entorno de São Lázaro, situam-se outras
comunidades ribeirinhas como Taboca, Cachoeira, Bararuá I, II, e III, Patauá, Daris entre outras.
Esta comunidade é composta por 40 famílias que totalizam aproximadamente 130
moradores. As casas estão organizadas de forma aleatória e equivalem ao total de 33; a maioria
delas é construída de madeira com telhado brasilit ou zinco; apenas 07 casas possuem fossas
sanitárias fechadas, as demais são abertas do tipo “buraco negro”.
A infraestrutura da comunidade São Lázaro é considerada básica é está disposta da
seguinte maneira: 1 escola; 1 posto de saúde, que está desativado tanto pela falta de recursos
materiais quanto de pessoal qualificado para tal; 1 centro social; dois campos de futebol; 1 telefone
público, que praticamente não funciona; 1 motor de luz, à base de combustível; a água para
consumo é retirada do poço da escola e distribuída pelo encanamento à comunidade, porém não
atende toda as casas, neste caso, para uso domestico e higiene pessoal, a água é obtida diretamente
do rio; e 1 igreja católica.Os líderes da comunidade é o Sr. Bira e sua esposa.
A época de maior dificuldade para os comunitários é no período da vazante dos rios, visto
que a comunidade fica praticamente isolada o que implica, sobremaneira, no deslocamento para a
sede do município e outras localidades. Conforme relato das mulheres, este período se assenta de
forma preocupante, pois no caso do aparecimento de alguma doença grave fica complexo levar o
enfermo até a cidade mais próxima. Ademais, a cesta básica de alimentação é comprada bem antes
da descida das águas e os componentes familiares precisam economizar por um bom período até
que o deslocamento esteja mais acessível para a sede do município.
As relações socioculturais podem ser identificadas nas atividades desenvolvidas pelos
moradores e perpassam por toda uma lógica de construção social. Deste modo, Wagley (1988)
menciona que é a cultura que determina os fins para os quais os homens de certa área fazem uso de
sua técnica e é o sistema social que determina a organização do trabalho e a distribuição dos
produtos. Neste sentido, as mulheres de São Lázaro fazem parte de cada momento desse processo,
conforme as sinalizações a seguir.
Todos os anos é realizada a festa católica na comunidade, cujo santo é “São Lazaro” que
dá nome a este lugar. A festa religiosa conta com a participação dos comunitários, momento em que
as mulheres também têm sua parcela de contribuição, principalmente nos cultos, uma vez que é uma
mulher que exerce a função de Ministra de Eucaristia na comunidade. De acordo com Torres (2012,

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Lancha pequena utilizada pelos moradores para deslocamento entre as comunidades.
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É uma canoa com motor acoplado, utilizado para acessar igarapés, lagos ou qualquer área de difícil acesso.

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p. 21), “a Igreja é também o lugar por excelência dos encontros religiosos da comunidade e seus
cuidados estão reservados às mulheres [...]”.
Para Wagley (1988), as festas religiosas nas comunidades tradicionais da Amazônia se
constituem em alegres reuniões sociais ou como momentos de socialização entre os moradores. É
período por excelência no qual as pessoas se reúnem para festejar a devoção aos santos com
pagamento de promessas e pedidos de proteção para a família e o lugar onde vivem.
O entardecer na comunidade São Lázaro é registrado pelo aglomerado de vários moradores
que se juntam para a prática esportiva. Existe tanto o time dos homens quanto o das mulheres. No
caso destas, o destaque é para a prática do futebol e voleibol. Segundo o relato de algumas mulheres
o esporte serve como momento de lazer e de relações sociais entre os moradores. Isto corrobora as
argumentações de Silva (2012, p. 77) ao evidenciar que “as atividades referentes a esporte
encontram-se entre as principais formas de atividades coletivas desenvolvidas no âmbito
comunitário, como uma maneira de estabelecer relação entre os moradores, independente de gênero
ou faixa etária”.
No contexto comunitário foi possível perceber que o trabalho desenvolvido pelas mulheres
é de extrema contribuição tanto para o cotidiano familiar quanto para a comunidade. Não
diferentemente de boa parte das comunidades amazônicas, em São Lázaro a divisão sexual do
trabalho é parcial. Isso porque, as mulheres constroem os roçados, fazem farinha, carregam
madeiras entre outras atividades. Por outro lado, acabam por realizar múltiplas tarefas, pois além
destas, ainda tem que cuidar das crianças e dos afazeres domésticos.
A prática do trabalho com a mandioca é bem premente na realidade de São Lázaro. Muitas
vezes, devido ao deslocamento dos maridos para outras áreas visando o trabalho com a extração de
madeira, recai às mulheres a tarefa de cuidar do roçado e fabricar a farinha, que é um produto típico
da alimentação amazônica cuja base está nos conhecimentos indígenas. Sobre isto, Wagley (1988,
p. 86) explicita que “o trabalho agrícola exigido pela cultura da mandioca varia muito, entretanto,
conforme o tipo de terra escolhida.A floresta virgem e a capoeira alta são muito mais difíceis de
roçar do que a capoeira baixa, mas são os solos novos que asseguram maior produção”.
A prática cultural da mandioca é visualizada em todo o vale amazônico. Da mesma
maneira que a farinha, têm-se outros produtos originários da mandioca: “o beijú tradicional e o pé
de moleque, a tapioca, a farinha de tapioca, o carimã, a crueira e o tucupi”. Todos estes produtos
são fabricados na chamada “casa de farinha” a qual representa o lócus de produção e manutenção

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das práticas sociais. São produtos que servem como alimentação básica dos ribeirinhos e boa parte é
feito pelas mulheres que de forma hereditária vão mantendo a cultura local.
Na concepção de Oliveira (2012, p. 124) a casa de farinha pode se constituir como espaço
das transformações necessárias no que tange ao fortalecimento das mulheres em busca de
empoderamento social e político. “As etnotecnologiase as etnopráticasproduzidas e aplicadas pelas
mulheres no interior da casa de farinha, na roça e nos ambientes domésticos representam um legado
cultural imensurável”.
A partir de setembro de 2012 iniciou-se uma parceria entre a comunidade e o Grupo de
Pesquisa Inter-Ação com o objetivo de desenvolver ações voltadas para o trabalho e geração de
renda de modo a contribuir na condição e melhoria da qualidade de vida dos moradores. Entre as
atividades está ameliponicultura- criação de “abelhas indígenas sem ferrão”, a qual as mulheres
demonstraram interesse e empenho para este trabalho. Para uma das comunitárias, “a criação de
abelhas é uma forma de garantir renda para a família”. Através desta atividade, em implantação, foi
possível visualizar a forma de organização das mulheres no trabalho com as colônias de abelhas,
sobretudo no concerne as relações de gênero na comundiade.
Estaconjuntura demonstra que as mulheres de São Lázaro vêm se organizando e
verificando possibilidades de produção de renda que, para além da dinâmica de subsistência, são
recursos que levam à geração de renda, manutenção das práticas socioculturais, bem como
propiciam mais qualidade na condição de vida das famílias.
Importa ressaltar que as mulheres da comunidade São Lázaro não possuem uma
organização sociopolítica formal o que dificulta, algumas vezes, conseguir recursos para o
desenvolvimento de atividades produtivas que gerem renda. Mas, este é um processo que vem
amadurecendo e recebendo apoio do Grupo de Pesquisa visando à formalização da organização das
mulheres.
O cotidiano pelo qual passa as famílias de São Lázaro nos permite inferir que as políticas
públicas parcialmente tem atingido este público. Seja em nível de federal, estadual ou municipal,
pouco se tem dado apoio para melhorar a condição de vida destas famílias. Os próprios moradores
sinalizam que se “encontram esquecidos pelo poder público”, quando na verdade são sujeitos de
direitos e partícipes na sociedade brasileira.
Evidencia-se que as considerações aqui mencionadas são preliminares e estão sendo
aprofundadas por meio da pesquisa de campo em que está sendo dada especial atenção ao trabalho,
organização, o ethos cotidiano, as práticas socioculturais, isto é, à realidade pela qual passam estas

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protagonistas que fazem parte do cenário amazônico. Este é um processo, indubitavelmente, a ser
explorado e que aos poucos vem sendo desvelado de modo a instigar proposições políticas para
melhor intervenção neste “pedaço da Amazônia”.

Referências

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de Clotilde da Silva Costa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

Sociocultural gender relations in traditional communities in the Amazon: the challenges


experienced in the community Saint Lazarus/AM

Abstract: The debate about gender relations in the Amazon have been intensifying at the threshold
of XXI century, especially in the field of traditional populations. This study aims to analyze the
current challenges of women in traditional communities in the Amazon, based on the study of living
conditions and socio-cultural relations experienced by women living in the community São Lázaro,
located in the municipality of Caapiranga / AM. The discussions are part of a scientific and
technological project titled, "Women and Work Organization Riparian Amazon: a study in the
communities of Santa Lucia and St. Lazarus in Big LakeManacapuru/AM", funded by CNPq. The
methodology is action research and utilizes the quantiqualitative approach with specific techniques
and tools for data collection. It is understood that, in São Lázaro, the intervention of public policy is
partial, and the absence of a formal socio-political organization of women, contribute to sharpen a
picture of profound challenges today. Although permeated by such situations, these protagonists
care for children (as) and domestic services, working in the fields and perform other productive
activities aimed at subsistence and income generation in the family and community.
Keywords: woman riverside; traditional community; relationship sociocultural

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