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DIETRICH

BONHOEFFER
,
ETICA
, Esta, obra~~rgiq em m~Jo ~~· I~ Guerra Mun-
dial. Tudo desmoronava. Ex}S'e:rimentava-se a
decadência de todos os valores éticos. Os con-
ceitos clássicos revelavam-se demasiada-
mente ambíguos e relativos. Onde buscar al-
go novo? De onde viria a libertação? Quem
haveria de perseverar? Segundo o autor, so-
mente quem, "apenas preso a Deus se sabe
chamado para a ação obediente e responsá-
vel". Aí não há espaço para teorias abstratas,
nem para uma ética casuística. Em Cristo
não se realiz~ uma idéia abstrata de amor.
Nele o amor de Deus dá sentido a toda a rea-
lidade. Assim a ética cristã coloca a pessoa
crente no meio do mundo. O que importa é o
agir responsável na situação concreta.

-~E<fitora
ISinodal
r
DIETRICH BONHOEFFER

,
ETICA
Compilado e editado por
Eberhard Bethge

Tradução
Helberto Michel

5ª edição

.&.-.
ISínodal
2001
Tl'lllJUtltlo do original Ethik, Dietrich Bonhoeffer, compilado e editado por Eberhard Bethge,
Q" ed. 1 l IJH l, O 1949 Christian Kaiser Verlag München, República Federal da Alemanha.

<)M direitos para a llngua portuguesa foram cedidos à

EDITORA SINODAL 1985


Rua Amadeo Rossi, 467
l 'alxa Postal 11
9300 l ·970 São Leopoldo - RS
Fone/fax: (51) 590-2366
Home-page: www.editorasinodal.com.br

Série: Teologia Sistemática - Ética Teológica

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Instituto Ecumênico


de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana do Brasil.

Revisão: Luís Marcos Sander

ISBN 85-233-0126-7

Impressão: Gráfica Sinodal


SUMÁRIO

Estações no caminho para a liberdade ................. 9


Prefácio de 9 de abril de 1948 ••••• .... li
Prefácio da sexta edição reorganivKla 13
Nota explicativa à 2ª edição brasileira 11

I O amor de Deus e a decadência do mundo


. .
• • • fl • • • • • • • • • • ' • 15
O mundo dos conflitos • • • • • • • • • • • 15
O pudor •••••••• 17
Pudor e consciência .......... 19
O llDJDdo da unidade reencontrada 20
O fariseu •• 20
O examinar ..... ...... . 26
O fazer ..... 29
O amor .............. 32

II lgrtda e mundo • • • • • . • . • • • • • • • . . . . . . • • • . ..... 36


O postulado de totalidade e exclusividade de Cristo 37
Cristo e os bons 38

III - :ftÍca '.como formação 41


O teórico da ética e a realidade .... 41
&ce bOIIlO • • • • • • ~ • • • • • • • .... 44
O desdenhador dos seres humanos ..... 45
O bem-sucedido ••• ........... 47
A idolatria da morte •••••• ...... ... ' 41
Conformação •• • ••• 49
O lugar concreto .. •• 51
3
H"'°"90 ~ ddcadA11ei.a • • • • • • • • • • • . . . •. • . • . • . • • . . • . • • . • 54
Clllpa, justf,ficaçao, renovação 65
A confissão da culpa • • • 65
Justificação e cicatrização 68

IV - As óltlmas e as penúltimas coisas 71


71
Justificação como palavra final
O pendltimo • • • • • • •
Preparação de caminho
.. 74
78
O natural •••••• 83
A vida natural • 86
Suum cui.que 87
O direito à vida :ffsica 89
O suicídio ••••••• 95
Procriação- e vida em formação 98
Liberdade da vida :ffsica •••• 104
Os direitos naturais da vida intelectual 105

V - Cristo, a realidade e o bem 107


Cristo, Igreja e mundo ••• 107
O conceito de realidade 107
A reflexão em duas esferas .... 111
Os quatro mandatos ••••• 116

VI - A história e o bem 120


Obemeavida •• 120
A estrutura da vida responstfvel • 125
Representação • • • • • • • • 125
, •• 127
Conformidade com a realidade ••• 4

o mundo das ooisas - objetividade - política 131


Assumir a culpa 134
A consciência 134
Liberdade 138
O lugar da responsabilidade 141
A profissão • • • • • • • • • 141

VII - O ..,tlco" e o "cristão" como tema 146


A autorização para o discurso ético ....... 146
4
O mandamento de Deus • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 153
O mandamento concreto e os mandatos divinos . . . . . . • • . • . . . • • 158
O conceito de mandato • • • • • • • 158
O mandamento de Deus na Igreja 161

Apêndice • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 167
1 - A doutrina do primas llSllS legis conforme os escritos
confessionais luteranos e sua crftica 167
1. O conceito e sua funcionalidade • • • '167
2. A questão da justificação teológica 168
3. O interesse pelo conceito • 169
4. Definição 169
5. Conteádo 169
6. Finalidade 170
7. Meios de execução 171
8~ O proclamador 111
9. O ouvinte •••• 171
10. O prinws usus e o Evangelho 172
11. Algumas conclusões e perguntas ..... 174
12. Crítica da doutrina dos usus nos escritos confessionais luteranos • 176

II - Etlw.s "pessoal" e "de objeto" 177


1. Ethos pessoal ou de objeto? 177
2. O Novo Testamento • 178
3. Escritos confessionais 180
4. Observações críticas à tese de Dilschneider 180
5. Observações de caráter sistemático sobre as afinnações possíveis
da parte da ética cristã sobre as ordens mundanas . 181

III - Estado e Igreja . • • • • • 184


1. Sobre os conceitos 184
2. A fundamentação da autoridade 18.5
A. Pela natureza do ser humano 18.5
B. Pelo pecado ••••• 18.5
C. A partir de Cristo 186
3; O caráter divino da autoridade • • • • • • • • .• • • • 188
A. Em seu ser • • • • • • ......... )iss
B. Em sua incumbência • ..__.__.,. • 188

5
C. Bm seu direito • • • • • • • • • • • • • • • 190
4. A autoridade e as ordens divinas no mundo 191
5. Oovomo e Igreja • • • • • • • • • • • • • •• ....... 192
A. A reivindicação do governo à Igreja 192
B. A reivindicação da Igreja ao governo 193
C. A responsabilidade eclesiástica do governo 193
D. A respomabilidade polftica da Igreja 194
B. Conclusões .. 195
6. Regime e Igreja 195

IV - Sobre a possibilidade da palavra da Igreja ao mundo ••••••••• 197

V - Que significa dizer a verdade? 202

fac11e11 ............................................. 208

6
ESTAÇÕES NO CAMINHO PARA A LIBERDADE

DISCIPLINA

Se saíres em busca da liberdade, aprende, antes de tudo,


disciplina dos sentidos e de tua alma, para que os desejos
e teus membros não te levem ora para ~ ora para lá.
Casto seja teu corpo e teu espírito, plenamente sob teu domínio
e obediente na procura do alvo que Jhe foi colocado.
Ninguém experimenta o mistério da liberdade a não ser pela disciplina.

AÇÃO

Não qualquer coisa, mas o correto deve ser feito e arriscado;


não se deve flutuar no possível, mas agarrar valentemente o real;
a liberdade não está no vôo dos pensamentos, mas tão-somente na ação.
Sai da medrosa hesitação para a tempestade dos acontecimentos,
sustentado apenas pelo mandamento divino e pela tua fé,
e a liberdade acoJherá teu espírito com j4bilo.

SOFRIMENTO

Maravilhosa transformação. As mãos fortes e ativas


estão amarradas. Impotente e solitário, vês o fim
de tua ação. Não obstante, respiras aliviado e colocas o corretó
tranqüila e confiantemente em mãos mais fortes e te dás por satisfeito.
S6 por um momento tocaste, feliz, a liberdade,
entregando-a e~tão a Deus para gloriosa consumação.

MORTE

Pois v1em, festa máxima no caminho' para a eterna liberdade;


morte, destrói as fatigantes correntes e muralhas · ·
de nosso corpo passageiro e de nossa alma cega,
para que finalmente vislumbremos o que nos é negado ver aqui.
Uberdade, procuramos-te longamente em disciplina, ação e sofrimento.
Morrendo, ie ~~mos agora na face de~-·

7
PREFÁCIO DE 9 DE ABRIL DE 1948
PARA A PRIMEIRA ATÉ QUINTA EDIÇÃO

Este livro não é a ética que Dietrich Bonhoeffer queria publicar. ~a com-
pilação das partes salvas, das concluídas e inacabadas, das que foram substitufdu
por novas idéias e das escritas como material preparatório para a obra planejada.
São os segmentos que, sem ordenação ainda, puderam ser subtraídos do confisco e
deSentérrados dos . esconderijos no jardim, também partes que, em 5 de abril de
1943, o dia do aprisionamento de Dietrich Bonhoeffer, já estavám nas mãos da
Gestapo.
Ao concluir seu trabalho sobre o discipulado*, Bonhoeffer já planejava re•
pensar os problemas da ética cristã. Pensava iniciar com isso a grande obra de suu
vida. Quando, em junho de 1939, o professor John Baillie, em nome do Croall Lec-
tureship Trust, o convidou para preleções em Edinburgo, Bonhoeffer pretendJa
lançar com essas as primeiras bases para o seu livro. A guerra interrompeu os pre•
parativos. S6 quando foi preciso suspender a atividade no Seminário de Pregadorea
em 1940, ao receber a proibição do discurso pllblico em todo o Reich e a Câmara de
Literatura do Reich lhe proibir tôda atividade literária porque não se enquadrara
nem pedira dispensa do enquadramento, o projeÍO começou a progredir. 01
presentes manuscritos surgiram de 1940 a 1943 em Berlim, no Convento Ettal e cm
Kieckow, sofrendo interrupções por missões do Conselho de Irmãos da Igreja
Confessante, por viagens com tarefas políticas e, finalmente, pela prisão.
As obras de Bonhoeffer não cresceram de acordo com um plano firme
e imutável, de capítulo a capítulo; antes, se fundiram aos poucos num todo a partir
de muitos estudos específicos. Títulos e disposições sofriam constantes modifica•
ções. Do outono de 1940 existe um sumário preliminar para à Ética:

I. EMBASAMENTO

Ética como formação


Herança e decadência
Culpa e justificação
Igreja e mundo, Cristo e os mandamentos
As penfiltimas e as derradeiras coisas
O novo ser humano

• N. do E. brasileiro: Publicado pela Editora Sinodal sob o título Discipulado.

9
II. ESTRUTURA

A estrutura da vida pessoal


A estrutura das classes e dos ministérios
A estrutura das comunidades
A estrutura da Igreja
A estrutura da vida cristã no mundo

Como título, anotou as seguintes fommlações caracterfsticas: "Bases e estrutura do


mundo reconciliado com Deus"; "Bases e estrutura de um mundo futmo"; "Bases e
estrutura de um Ocidente unificado"; subtítulo: ''Tentativa de uma ética cristã".
Pouco depois dizia numa carta: "Hoje me ocorreu um possível título para o meu li-
vro: 'Preparação e chegada', de acordo com a divisão em duas partes (as pentlltimas
e as derradeiras ooisas)."
Assim como est.ava o mateiiaI, não havia como organizar claramente os
capítulos existentes por assunto. O leitor achará as primeiras partes conforme o es-
, quema preliminar reproduzido acima. Os outros segmentos. que muitas vezes trat.am
de assuntos já ventilados sob novo aspecto, estão ordenados na seqüência cronológi-
ca de sua gênese, na medida em que 6 possível reconstruí-Ia. Sob a numeração ro-
mana estão compiladas as partes elabonldas indiscutivelmente de forma conexa e
que demonstram uma evidente progressão dentro da problemática abordada. Alguns
subtl'.tulos (caracteri7.ados por itálico) foram introduzidos pelo editor de acordo com
o conteddo.
Em um apêndice foram acrescentados ensaios que Bonhoeffer escreveu
em parte por incumbência do Conselho de Irmãos como parecer (1 e III) ou que ain-
da esboçou em Tegel, na prisão (IV e V). Espero que a publicação futura das partes
tco16gicas desuas cartas do cativeiro mostre como a matéria o ocupou até o fim.
A senhora Anni Llndner teve méritos especÍais na decifração e ordenação
das inillneras anotações.
No dia 18 de novembro de 1943 Dietrich Bonhoeffer escrevia de Tegel:
"Pessoalmente me recrimino por não ter concluído a Ética (em parte ela de certo foi
confiscada), mas conforta-me um tanto que eu te disse o essencial; e mesmo que não
o soubesses, de alguma forma e indiretamente o essencial iria ressurgir. Além disso,
minhas idéias ainda estãvJincompletas.'' E em 15 de dezembro de 1943: ''Às ve-
zes penso que concluí mais u menos a minha vida e deveria apenas acabar ainda a
minha Ética• • :·

Eberhard Bethge

10
PREFÁCIO DA SEXTA EDIÇÃO REORGANIZADA

A discussão em torno da evolução teológica de Bonhoeffer em direção AI


cartas do cativeiro tornou desejável um reexame da ordem cronológica de su1111
abordagens da Ética. O ajustamento desta nova edição a uma apresentação unifonne
das obras de Bonhoeffer motiva uma nova publicação da Ética que tenta mostrar rui
quatro abordagens em sua seqüência cronológica. Há abordagens que pOdem ser
datadas com precisão, outras, que o podem apenas com certo grau de probabilidade,
A. Os capítulos até aqui numerados de IV e V formam a primeira aborda·
gem. "O amor de Deus e a decadência do mundo" bem como "Igreja e mundo" t4m
afinidade com a8 idéias e a linguagem de Discipuládo. É verdade que não há provu
insofismáveis de que os trabalhos da Ética tenham começadÓ com esses segmcnto1.
• Entre as anotações para "O amor de Deus e a decadência do mundo" encontram-•
tipos de papel que Bonhoeffer usou para escrever cartas na primavera e no verão do
1940. Apontamentos e lembretes para "Igreja e mundo" constam em folhas do
agenda de maio de 1939, por exemplo, as passagens bíblicas bitsicas de Me 9.40 e
Mt 12.30. As primeiras laudas de "Igreja e mundo" são do mesmo tipo de papel que
foi usado para as tlltimas páginas de ••o amor de Deus e a decadência do mundo".
Estes capítulos devem ter surgido em 193911940. Provavelmente foram interrompi•
dos antes de agosto de 1940.
B. A segunda abordagem pode ser datada com mais precisão. As primeira
páginas de "Ética como formação", até aqui o primeiro capítulo, sem dúvida foram
escritas em setembro de 1940, na faz.enda em Klein-Krõssin (Kieckow). Isto sianl·
'fica que sua temática tomou forma depois que Borihoeffer tinha passado pelos prl•
meiros e importantes encontros com o coronel Oster da contra-espionagem. NesH
tempo - até outubro de 1940 - ele escreveu também o sumário preliminar citado nu
primeira edição (v. também G. S. II, p. 376). Assim. a confissão de culpa da Igreja
foi redigida depois que Hitler obtivera sua mais estupenda vitória.
C. O que tem sido o capítulo Ill até aqui, "As últimas e as pentlltimas coi·
sas", forma a terceira abordagem. Surgiu em Ettal entre final de novembro de 1940
e meados de fevereiro de 1941, foi interrompido pela primeira viagem à Sufça e
nunca mais retomado. Contudo, constitui o segmento mais coeso da obra. A OX.•
pressão "As últimas e as penúltimas coisas" já aparece antes em bilhetes de Kloln-
Krõssin. Depois disso, Bonhoeffer não conseguiu mais um período de trabalho
comparavelmente longo.
Incerta é a datação do até aqui capítulo Il, "Cristo, a realidade e o bem".
Ocupou este lugar porque correspondia, a grosso modo, ao esquema de Klein·
Krõssin, de 1940. O papel usado é aquele que a senhora von Kleist costumava colo·
tare preparar para Bonhoeffer em Klein-Krõssin. (A obtenção de papel apropriado
ficara diffcil naquele temp<9 Assim, o Capítulo pode ~r oaScido no verão de 1940,

11
como tamb6m no verão de 1941, por ocasião de nova estada na Pomerânia. Inclino-
mci para 1941. As páginas do manuscrito terminam, com letra de Bonhoeffer, no
ndmoro 14, enquanto a numeração de ..A história e o bem" começa com 15, se bem
que om tipo de papel bem diferente. O 11ltimo capítulo s6 foi iniciado no decorrer de
1941.
D. Sendo correto o enquadramento acima sugerido, então à primeira abor-
dagem a partir do ctiscipulado, à seauncJa a partir da confomiação, à~ a partÍr
da justificação teria se seguido agora a quarta, onde partia da encarnação...A his-
tória e o bem", até agora o capítulo VI, provavelmente foi iniciado no verão de
1941, como prova o uso de papel de agosto de 19.41 em Klein-Krõssin. Veio então a
segunda viagem à Suíça, em setembro, e a pneumonia, em novembro. Depois disso
trabalhou com interrupções até começar, em abril de 1942, um longo e intensivo
período de viagens. Bonhoeffer trabalhou este capítulo, o mais político de todos, no
auge de suas atividades conspirativas. Um primeiro esboço, já bastante desenvolvi-
do, foi por ele abandonado (publicado em G. S. Ili, pp. 455ss.) e depois elaborado
novamente, com mais detalhes. Considerando a colocação do problema, no entanto,
a primeira e mais concisa tentativa alcançou bem mais. A segunda versão cita o co-
mentário ao Evangelho de João, de Bultmann, publicado em 1941. · ·
Durante o inverno de 1942143 deve ter surgido o capítulo VII, "O 'ético' e
o 'cristão' como tema". Por ocasião do aprisionamento, a escrivaninha estava repleta
de anotações para esta temática. Entre elas estava também a expressão "existir para
o mundo".
Com esta disposição temática da Ética a evolução interior de Bonhoeffer,
desde Discipulado até o limiar das cartas do cárcere, torna-se mais visível, e, por
isso, a reordenação pode ser justificada.
No Apêndice 1 temos "A doutrina do primus usus legis•• .'',surgido como
estudo encomendado por uma comissão sinodal para os trabalhos preparatórios de
uma declaração a respeito do quinto mandamento. Esta comissão se reuniu em
Magdeburgo, sob a presidência de G. Harder, em 10 de agosto de 1942 e 15 de
março de 1943. Bonhoeffer provavelmente apresentou seu trabalho na segunda
reunião, quer dizer, pouco antes de sua prisão. No final, ela contém uma clara re-
ntincia a uma pregação demmriadamente apocalfptica e fala de uma mundanalidade
autêntica, contra uma cristianização ou eclesialização das ordens seculares (v. p.
175), advogando até a colaboração entre cristãos e não-cristJog em determinados
assuntos e tarefas concretas. "Ethos pessoal e de objeto" foi escrito como crítica
à ética de Dilschneider pouco depois da edição desta, em 1940. Quanto à parte
"Estado e Igreja", até aqui falta uma pista sobre motivo e época de elaboração; duas
anotações revelam apenas o papel usado em Klein-~rõssin. "Sobre a possibilidade
da palavra da Igreja ao mundo" consta de papel usado nos t11timos tempos e de tão
baixa qualidade que só podia ser usado para anotações a lápis. Por isso suponho que
tenha surgido em Tegel; entretanto, não temos certeza disso. "Que significa dizer a
verdade" pertence indiscutivelmente à época de Tegel.
Entre os trabalhos éticos de Bonhoeffer naquela época pode ser contado
também "Gedanken zu William Paton's The Church and the New Order", de se-
tembro de 1941 (v. G. S. I, pp. 356-71), e ainda os fragmentos literários de Tegel
(v. G. S. Ili, 478ss.).

12
\
Junto aos manuscritos se encontram, ainda, bem mais de 100 difcrentol
bilhetes, em parte s6 com ~tes, ein
parte coni fraseS desenvolvidas e rascunhol4

Julho de 1962. Eberhard Bethae

NOTA EXPLICATIVA À 2ª EDIÇÃO BRASILEIRA

Uma das características mais marcantes da teologia de Dietrich Bonhoef·


fer é a criação e o uso - muitas vezes geniais - de conceitos-chave. A tradução
nem sempre consegue reproduzir com exatidão o que o original expressa e suae·
re. A prática com a 1ª edição em português tem demonstrado algumas dificulda·
des específicas. Assim, além das N. do T. já incluídas na 1ª edição, ao pé de p,.
gina, chamamos a atenção para os seguintes conceitos:
Conformação (p. 49; original: Gleichgestaltung): como já em Lutero, o
termo designa a vinculação estreita do crente com Jesus Cristo, uma con-forma·
çlo. Já conformidade com a realidade (p. 127; original: Wirklichkeitsgemassheit)
Indica a boa adequação à realidade. Nenhum dos dois conceitos tem qualquer co·
notação de "conformismo". Ao contrário, é sua própria negação.
No capítulo sobre as últimas e as penúltimas coisas (pp. 71-83) - as ques·
tões decisivas e as que lhes antecedem - , Bonhoeffer rejeita tanto a solução radl·
cal quanto a solução de compromisso (pp. 74-8). A primeira equivale a uma fu.
ga entusiasta ao envolvimento do cristão com o mundo, a segunda a uma aceita·
ção e adaptação acríticas ao mundo.
O conceito de mandato (pp. 116-9) é empregado por Bonhoeffer em subs-
tituição ao de "ordem da criação", que lhe era por demais estático e era abusa-
do como legitimação para a ideologia e o arbítrio nazistas. O mandato expressa·
va a orientação divina, bem como o compromisso com a vontade de Deus, que
lhe era inerente. Analogamente, as ordens mundanas (pp. 181-3; original: weltll·
che Ordnungen) são entendidas como designativas do âmbito profano ou secular,
contudo submetido ao senhorio de Cristo. Não há conotação de degradação moral.
Representação (pp. 125-7; original: Stellvertretung) indica uma substitui·
ção plena: Cristo "em nosso lugar" e, eventualmente, o ser humano tomando,
•m. regpcnsabilidade, o lugar de seu semelhante. Portanto, não deve ser confundi·
do com ,;encenação". Thmbém poderia ser traduzido, corretamente, por "vicarla·
lo''. mas essa palavra se prestaria a ambigüidades de outra espécie.
Reivindicação (pp. 192-3; original: Anspruch) do governo à Igreja, e vi·
ce-versa, indica a demanda feita legitimamente à outra instância, a partir da atrl·
buição específica inerente a cada instituição. Logo, não se trata de um pleito em
causa própria.

Walter Altmann
São Leopoldo, setembro de 1991

13
O AMOR DE DEUS E A DECADÊNCIA DO MUNDO

O Mundo dos Coriflitos

~noção do bem e do mal parece ser o alvo de toda reflexão étical. A pri-
meira tarefa da ética cristã consiste em suspender este saber. Com este ataque às
premissas das demais concepções éticas ela está em posição tão solitária, que cabe a
pergunta se faz sentido falar em ética cristã. Se assim mesmo o fazemos, isto só po-
de significar que a ética cristã reivindica tematizar a origem de toda preocupação
~tica, pretendendo, como critica a toda ética, ser a concepção ética única.
A ética cristã reconhece já na possibilidade da noção do bem e do mal o
rompimento com a origem. O ser humano, em sua origem, s6 sabe de uma coisa:
Deus. A outra pessoa, as coisas, a si mesmo ele só conhece na unidade de seu saber
de Deus. Conhece tudo s6 em Deus e Deus em tudo. O saber do bem e do mal assi-
nala a separação* já acontecida da origem.
No conhecimento do bem e do mal, o ser humano não se entende na reali-
dade de sua determinação pela origem, mas sim nas suas possibilidades próprias, ou
seja, ser bom ou mau. Tem conhecimento de si ao lado de Deus, fora de Deus, e isto
significa que só conhece a si mesmo e não mais a Deus. Pois s6 pode sabér de Deus
se sabe unicamente dele. A noção do bem e do mal constitui, portanto, a separaçãÓ
de Deus. Do bem e do mal o ser humano só pode saber contra Deus.
Todavia, o ser humano não se livra de sua origem. Em vez de se saber na
origem de Deus, deve entender agora a si próprio como origem. Compreendendo-se
de acordo com suas possibilidades, ou seja, de ser bom ou mau, o ser humano se en-
tende como origem do bem e do mal. Eritis sicut deus. "Eis que o ser humano se
tomou como um de nós, conhecedor do bem e do mal", diz Deus (Gn 3.22).

1 Se a 6ti.ca moderna substitui os conceitos do bem e do mal por moral e imonl, 0111 por com va-
lor e sem valor, ou -na: filoaofia ~ - por ser autêntico e ;n811tentico, isto não faz dife-
rença para a questão aqui tratada.
• N. do T.: Entzweiung, no original. Este 1mmo, centmlna argumcn1açlo de Bonhoriffer, designa
lltmalmente o ato ou efeito de dividir em dois e ser4 traduzido, dependendo do comexto, por
..eoperaçlo", '"desuoilo", "~mia", "diacordAnc:ia", "cisão~~"djsscmsllo".

15
A origirutria seme1hança com Deus se converteu em igualdade roubada.
Enquanto o ser humano como imagem de Deus vive exclusivamente de sua origem
em Deua, o ser hwnano que se tomou igual a Deus esqueceu sua origem e se trans-
fonnou cm seu próprio criador e juiz. O que Deus deu ao ser humano este quis ser
Biora por si mesmo. Dddiva de ~us, por6m, é, essencialmente, ~va de Deus. A
origem constitui a dádiva. Com a origem a dádiva se transforma. Na verdade, a dá-
diva consiste em sua origem. O ser humano como imagem de Deus vive da origem
divina; o ser humano que ' se tomou igual a Deus vive de origem própria. Com o
roubo da origem, o ser humano incorporou um mistério divino - a Sagrada Escri-
tura descreve este processo como o comer da fruta proibida - no qual ele perere.
Sabe, agora, o que é bom e o que é mau. Não que tivesse enriquecido, com i&io, o
conhecimento que tinha até então com um novo saber; antes, a noção do bem e do
mal resulta numa inversão total do seu conhecimento, que até então era unicamente
um conhecimento de Deus como sua origem. Sabendo do bem e do mal, sabe o que
somente a origem, Deus, pode e deve saber. É só com extrema reserva que a própria
Bíblia nos indica que Deus é o conhecedor do bein e do mal. É a primeira referência
à predestinação, ao mistério de uma eterna desunião que tem sua origem no eterna-
mente Uno, ao mistério de uma eterna escolha e eleição por aquele em quem não há
escuridão, mas somente luz. Saber do bem e do mal significa compreender a si mes-
mo como origem do bem e do mal, como fonte de uma eterna escolha e eleição.
Como isto é possível continua sendo o mistério daquele em quem não M dicotomia,
porque ele mesmo é a ónica e eterna origem e a superação de toda dicotomia. O ser
humano rouboo de Deus este mistério, ao pretender-ser ele mesmo origem. Em vez
de conhecer apenas o bondoso Deus e tudo nele, entende agora a si mesmo como
fonte do bem e do mal; em vez de aceitar a escolha e eleição divinas, deseja escolher
mesmo, ser origem da escolha; assim, de certa forma, traz o mistério da predestina-
ção em si mesmo. Em vez de saber de si tão-somente na realidade de ser eleito e
amado por Deus, tem que entender-se na possibilidade de escolher, de ser origem do
bem e do mal. Tomou-se como Deus, mas contra Deus. Eis o embuste da serpente.
O ser humano sabe o que é bom e o que é mau; mas, como ele não é a origem, como
adquire este saber unicamente na separação da origem, o bem e o mal que conhece
não são o bem e mal de Deus, mas bem e mal contra Deus. É bem e mal de escolha
própria, contra a eterna eleição divina. O ser humano tornou-se igual a Deus como
antideus.
Isto se manifesta no fato de o ser humano ciente do bem e do mal -ter-se
desvinculado definitivamente da vida, da vida eterna tal como emana da eleição de
Deus. "Assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e co-
ma, e viva eternamente! ••• e ele o expulsou e colocou os querubins diante do jardim
do &ien com a espada desnuda que golpeava, para guardar o caminho da árvore da
vida." (Gn 3.22, 24.) O ser humano que sabe do bem e do mal contra Deus, contra
sua origem, sem Deus por escolha própria, que se entende em suas possibilidades
discordes, está separado da vida unificadora e conciliadora em Deus, está entregue à
morte. O mistério que roubou de Deus o faz perecer.

16
O Pudor

Em lugar de Deus, o ser humano enxerga a si mesmo. "'E abriram·SO•lhll


s olhos." (Gn 3.7.) O ser humano se reconllece em sua desunião em relação a Deut
" ao semelhante. Reconhece que está nu. Sem a proteção, sem a cobertura que Dou1
e o outro significam, ele se sente exposto. Nasce o pudor. É a indestrutível lembran·
ça do ser humano da sua separação da origem. é a dor decorrente desta separaçlo e
o desejo impotente de desfazê-la. O ser humano se envergonha porque perdeu alao
que faz parte de sua essência original e de sua integridade. Tem vergonha de suu
nudez. Tal qual no conto a árvore se embaraça pela falta de seu adorno, o ser hum&•
no se peja pela desaparecida unidade com Deus e os semelhantes. Vergonha e arre-
pendimento geralmente estão trocados. O ser humano se arrepende quando orrou,
sente vergonha porque lhe falta algo. A vergonha é mais original do que o arrepen·
climento. O peculiar fato de baixannos o olhar quando o1hos estranhos nos encon•
tram não é sinal de arrependimento por algum erro; é a vergonha que, sabendo-11
vista, lembra-se de algo que agora lhe falta, da perdida integridade da vida, con1·
cientizando-se da própria nudez. Agüentar o olhar estranho, como se exige, por
exemplo, no juramento pessoal de fidelidade, tem algo de violento; no amor, que
procura o olhar do outro, há algo de nostálgico. Em ambos os casos é a dolorosa
tentativa de recuperar unidade perdida através da superação interna da vergonha
como sinal da separação, por consciente decisão ou apaixonada dedicação2.
"E fizeram cintas para si." O pudor procura encobrimento para superar a
cisão. O encobrimento, contudo, significa, ao mesmo tempo, a confirmação da IO•
paração havida e não pode curar o mal. O ser humano se encobre, se esconde doe
aemelhantes e de Deus. O encobrimento é necessário porque mantém viva a vergo-
nha e, com isso, a lembrança da cisão com a origem; além disso, porque o ser hwna·
no, cindido como está, tem que suportar-se a si mesmo e viver na· ocultação. Do
contrdrio, cometeria traição contra si próprio. ''Todo espírito profundo precisa de
uma mc1scara" (Nietzsche). Esta mdscara. porém, não é simples disfarce e trapaça
para os outros; é sinal necessário da condição dicotômica dada, devendo, por :Isto,
ser respeitada. Debaixo da máscara continua vivo o desejo pelo restabelecimento da
unidade perdida. Onde este desejo irrompe, como na união sexual, onde duas pe1•
soas se tomam uma s6 carne (Gn 2.24), e na religião, onde o ser humano procura
a sua unidade com Deus, onde, pois, se rasga o encobrimento, justamente ali o pudor
cria sua mais profunda ocultação. Kant via no fato de se envergonhar, quando sur•
preendido em oração, um argumento contra a oração. Não entendeu que a oraglo,
justamente por natureza, tem seu lugar no quarto fechado; não compreendeu o sen•
tido fundamental do pudor para a existência humana.

2 A. HUXLEY, Point-COimter Point. p. 154: "Sbame isn't spontaneous, (•••) its artiflolll, lt'a
acquired. You can make people ashamed of anytbing. Agonizingly ashamed of wearinJ brown
boots with a black coat, or speaking with the wrong sort of accent. (•••) The Chr11tlanl
lnvented it, justas the tailors in Savile Road invented the shame of wearing brown bootl wlth a
black coat. ••" Quanto a isso convém dizer: 1. Inibição, insegurança não deve ser contundida
com vergonha. 2. Pudor pode manifestar-se tambêm .em coisas bem exteriores - iaao varia do
peaaoa para pessoa de acordo com os princípios de caráter de cada um. Pudor pode surp onde
quer que a cisão humana seja vivenciada; por que, então, não no vestumio7

17
Uma vez que a vergonha contém taDto o sim como o não à separação, o ser
humano vive entre encobrimento e descobrimento, entre ocultar-se e revelar-se,
ont.rc aolidlo e comunhão. Por conseguinte, é precisamente na solidão - isto é, ao
confirmar a cisão - que ele pode experimentar a comunhão - se bem que como co-
munhão cindida - de forma mais intensa do que na pr6pria comunhão. No entanto,
ambaa t&n que estar sempre presentes. Nem a mais profunda comunhão pode des-
truir o mistério do ser humano desunido. Por isso mesmo, articular em palavras o
relac!onamento mótuo e, com ~o, revelar-se e pôr-se a descoberta perante si
mesmo pode ser sentido como negação do pudor. A mais profunda alegria própria,
wmo a mais profunda tristeza própria, não admitem o desnudamento em palavras.
Da mesma forma, o pudor protege de toda exibição do relacionamento com Deus.
Por fim, o ser humano também conserva em relação a si mesmo um último véu,
auarda seu mistério perante si mesmo, negando-se, por exemplo, a tornar-se cons-
ciente de si em tudo aquilo que surge em seu interior.
Sob o manto do pudor está também tudo que vem a ser e brota do desejo
do ser humano de recuperar a unidade perdida3. O mistério do pudor cobre a capa-
cidade criadora que lhe cabe na união dos desunidos, por ele mesmo buscada. É a
lembrança do roubo e da separação de Deus que se expressa nisso. I~o vale tanto
o
para a gestação da vida humana como para surgimento da obra de arte, da desco-
berta científica e de toda e qualquer obra criativa nascida da união do ser humano
com o mundo das coisas. S6 com a vida já nascida, com a obra completada, a alegria
aberta e jubilosa rompe o mistério do pudor. Mas o mistério de sua gênese ela carre-
aa consigo para sempre.
A dialética entre encobrimento e descobrimento é apenas sintoma do pu-
dor. Este não é superado por ela, antes confirmado. A superação do pudor só pode
acontecer onde a unidade primitiva for restabelecida, onde o ser humano for nova-
mente revestido por Deus no outro ser hwÍJano, pela "habitação celestial", o taber-
mculo de Deus (2 Co 5.2ss.). A superação do pudor s6 acontece ao suportar um ato
de extremo envergonhamento, qual seja, a revelação do saber diante de Deus. "(•.•)
para que te envergonhes, e nunca mais possas abrir tua boca por causa de tua ver-
1onha, quando eu te houver perdoado tudo quanto fizeste, diz o Senhor." (Ez
16.63.) "(•••) Farei isso (•••) e tereis que vos envergonhar e ficar vermelhos de
vergonha por causa de vossa maneira de ser." (Ez 36.32.) O pudor só é vencido na
humilhação pelo perdão do pecado, isto é, pelo restabelecimento da comunhão com
Deus e perante os semelhantes. Isto se concretiza na confissão perante Deus e os
outros. O revestimento do ser humano com o perdão divino, com o "novo ser hu-
mano" que ele veste, com a comunidade de Deus, com a habitação celestial, está
resunúdo na estrofe: "O sangue e a justiça de Cristo são meu adorno e minha roupa
de gala." (Leipzig, 1638.)

' 3 N. do E.: Em carta escrita no presídio, de 26.11.1943, Bonhoeffer pergunta, ap6s um ataque
dz'eo: .. As pessoas daqui falam abertamente do medo que tiveram. Não sei bem o que pensar a
l'Olpelto, pois eIÍl si o medo é algo de que o ser humano se envergonha. Tenho a impressie
que dele sd se poderia falar no confessionário. Caso contrário, facilmente pode haver nisso t>
como falta de pudor. Nem por isso se pn:cisa bancar o henSi. Por outro lado, uma sincerik
lna&nua pode desarmar; mas existe também uma sinceridade cínica, fmpia. que pode se eJ-
YUU tanto m bebedeira como na putaria, dando mm uma impressão cadtica. Será que t-
b&n o medo não pertence às coisas pudorosas, que deviam ser escondidas?"

18
Pudor e Conscilncia

Enquanto o pudor lembra o ser humano de sua desunião com Deus,


1 conscllncia é o sinal da desunião do ser humano .consigo mesmo. A consciência
11ta1 mais distante da ·o rigem do que o pudor. Já pressupõe o cisma em relação a
1>oua e ao semelhante e sinaliza apenas a cisão consigo mesmo por parte do ser hu-
nuano separado da origem. É .a voz da vida apóstata, que deseja permanecer ao me-
nos cm unidade consigo mesma. É o chamado para a Unidade do ser humano consigo
mc1mo. Isto já se depreende do fato de a voz da consciência ter exclusivamente ca-
... tcr de proibição: "Não deves ••• não deverias ter•• ~,, A consciência está tranqüila
quando a proibição não é transgredida. O que não está proibido, é permitido. Diante
dn consciência, a vida se dívide em coisas permitidas e proibidas. Não há manda-
mento. A consciência não registra mais o fato de que o ser humano está em desunião
com sua origem também naquilo que é permitido, que a consciência identifica com o
bom. Decorre disso também que a consciência não abrange a vida toda, como o pu-
dor, mas reage apenas a uma ação especffica. É bem verdade que ela é iJileiedosa,
vendo na prática do proibido. a vida toda colocada em risco, isto é, a desunião consi-
ao mesmo, e, ao tomar presentes coisas remotas, tomando esta desunião como irre-
medlavelmente acontecida; não obstante, o parâmetro decisivo permanece a unidade
oonligo mesmo, que sõ corre perigo de caso em caso, na transgressão do proibido. ·
Bntretanto, está fora do campo de percepção da consciência o fato de que essa pró- -
prla unidade já pressupõe a cisão em relação a Deus e aos seres humanos; não per-
cebe que, bem além da proibição transgredida, já a própria proibição, como voz da
oonaciencia, nasce da separação da origem. Conseqüentemente, a consciência não
lrnta da relação do ser humano com Deus e com o semelhante, mas do relaciona-
monto do ser humano consigo mesmo. Um relacionamento do ser humano consigo
mc11mo desvinculado do relacionamento com Deus e com os semelhantes s6 existe
pela igualação do ser humano a Deus na separação.
A própria consciência inverte esta ordem. Ela faz o relacionamento com
l>cus e com os semelhantes surgir do relacionamento do ser humano consigo mes-
mo. Ela se diz voz de Deus e norma do relacionamento com os outros. Logo, pelo
relacionamento adequado consigo mesmo o ser humano deve recuperar o relacio-
namento certo com Deus e os semelhantes. Esta inversão é a pretensão do ser hu-
mano que se fez igual a Deus em sua noção do bem e do mal. Ele próprio se tomou
n orlsem do bem e do mal. Não nega o mal que nele existe, mas, na consciência,
uhama a si mesmo, que se tomou mau, de volta para a sua identidade autêntica e
melhor, para o bem. Este, que consiste na unidade do ser humano colisigo mesmo,
deve ser agora a fonte de todo bem. É o bem de Deus, o bem para o próximo. Tra-
zendo cm si o conhecimento do bem e do mal, o ser humano se tomou juiz de Deus
dos seres humanos, como é o seu pr6prio juiz.
Sabendo do bem e do mal na separação da origem, o ser humano passa a
refletir sobre si mesmo. Sua vida, agora, consiste na autocompreensão, como origi-
lirdmente consistia em seu saber de Deus. O autoconhecimento se tomou parâmetro
objetivo da vida. Isto também não muda ali onde o ser humano transcender os li-
• ~tee da própria identidade. Autoconhecim.ento é o interminável esforço do ser hu-
1~0 de superar, mediante o pensamento, a desunião consigo mesmo, distinguindo-
lncessantemente de si mesmo, é o interminável esforço do ser humano de chegar

19
& unidade consigo mesmo.
Todo conhecer baseia-se agora no autoconhecimento• .A percepção origi-
nal de Deus, dos seres humanos e das coisas transformou-se em atentado* contra
Deus, os seres humanos e as coisas. Agora tudo é arrastado para dentro do processo
de desunião. Conhecer significa agora estabelecer o relacionamento consigo mesmo,
significa reconhecer a si mesmo em tudo e tudo em si mesmo. Desta forma, tudo se
divide para o ser humano separado de Deus: o ser e o dever, a vida e a lei, saber e
fazer, idéia e realidade, razão e instinto, dever e desejo, opinião e proveito, o ne-
cessário e o opcional, o conquistado e o genial, o geral e o concreto, o individual e o
coletivo; mas também verdade, justiça, beleza e amor se polarizam, bem como pra-
z:er e tédio, felicidade e sofrimento - pode1Íamos continuar prolongando esta lista,
e o curso da história humana aumenta-a constantemente. Todas estas dicotomias são
variações da dicotomia no saber do bem e do mal. "O ponto decisivo da experiência
especificamente ética é sempre o conflito."4 Ora, no conflito invoca-se o juiz. Este,
no entanto, é o conhecimento do bem e do mal, é o ser humano.

O Mundo da Unidade Reencontrada

Quem quer que leia o Novo Testamento, ainda que superficialmente, há de


notar que aqui o mundo da divisão, do conflito, da problemática ética está como que
desaparecido. Não a desintegração do ser humano em relação a Deus, ao semelhan-
te, às coisas, a si mesmo, mas a unidade reencontrada, a reconciliação é a base de
onde se fala, tomou-se o "ponto decisivo da experiência especificamente ética". A
vida e a ação das pessoas não têm nada de problemático, penoso, sombrio, mas algo
natural, alegre, certo, claro.

O Fariseu

É no encontro de Jesus com o fariseu que o antigo e o novo ficam clara-


mente evidentes. A compreensão correta deste encontro é da maior importância
para o entendimento do Evangelho todo. No caso do fariseu, não se trata de um fe-
nômeno acidental da época, mas do ser humano que, em toda a sua vida, só deu im-
portância ao conhecimento do bem e do mal, isto é, do ser humano da desunião co-
mo tal. Toda descrição distorcida dos fariseus elimina a seriedade e importância da
disputa de Jesus com eles. O fariseu é o ser humano sumamente digno de admiração,
que coloca toda a sua vida sob o conhecimento do bem e do mal, que é um juiz ri-
goroso tanto de si mesmo quanto do próximo - para a honra de Deus, de quem, hu-
mildemente, recebe seu saber. Para o fariseu, cada momento da vida se toma uma

• N. do T.: Bonhoeffer faz aqui um jogo de palavras com os termos Begreifen ("percepção")
e Slchvergreifen ('-atentado").
4 SPRANGER, Lebensjormen, 1. ed., p. 283. O conceito de conflito de Sprangcr, entretanto, é
bem mais restritivo do que o nosso.

20
situação de conflito em que deve escolher entre o bem e o mal. Para não errar, sua
atenção está concentrada dia e noite em refletir antecipadamente sobre a imenu
quantidade de posdveis conflitos, em decidir a respeito e em determinar a pr6pda
escolha. Nessa tarefa, há inúmeras coisas a observar, a combater e a distinguir.
Quanto mais precisas as distinções, tanto maior a probabilidade da decisão certa. A
observação abrange a vida em toda a sua riqueza de situações; não se pretende bater
com a cabeça na parede; situações especiais e de emergência têm tratamento eape·
cial; a seriedade do conhecimento do bem e do mal não exclui bondade e generoai·
dade; antes, são expressão dessa seriedade. Nada há aí de irrefletida jactancia, do
soberba e de auto-avaliação negligente. Sabe-se perfeitamente dos próprios erro1,
do dever da humildade e da gratidão para com Deus. Não obstant.e, evidentemente
há diferenças entre o pecador e aquele que se esforça pelo bem, entre aquele que se
toma transgressor da lei a partir de uma situação culposa e aquele que o faz por ne·
cessidade, diferenças essas que de modo algum devem ser desconsideradas. Quem
desprezar estas diferenças, quem não considerar tudo em cada uma das im1.meru
aituações de conflito, peca contra o conhecimento do bem e do mal.
Estes homens de olhar incorruptivehnente objetivo e desconfiado não po•
dem defrontar-se com o semelhante sem analisá-lo quanto a suas decisões nas situa·
ções de conflito da vida. Assim, eles precisam, não. podem deixar de tentar arrastar
também Jesus para os conflitos, as decisões, para ver como ele se sairia. É assim que
tentam a Jesus. Basta ler o capítulo 22 do Evangelho segundo Mateus, com a ques·
tio do tributo, da ressurreição dos mortos, do supremo mandamento, e mais a bis·
tdria do bom samaritano (Lc 10.25) e a discussão sobre a santificação do sábado (M t
12.11), para se ter a mais nítida impressão disso. O decisivo em todas essas pol&ni·
cas consiste no fato de Jesus não se deixar arrastar a nenhuma dessas decisões con·
fUtuosas. Com cada uma das suas respostas ele simplesmente se sobrepõe à situação
conflituosa. Sempre que se trata de malícia consciente da parte dos fariseus, a res-
posta de Jesus consiste em desviar-se soberanamente da astuta armadilha, ao que,
possivelmente, não faltou um sorriso do lado dos fariseus. Mas nisso não reside o
•sencial. Assim como os fariseus não podem senão colocar Jesus diante de situa·
ções de conflito, da mesma forma Jesus não pode reagir de maneira diferente do que
nlo aceitando essas situações. Assim como a pergunta e a t.entação da parte dos fa-
rllous provêm da desunião do saber do bem e do mal, da mesnia forma a réplica do
Jeaus emana da unidade com Deus, com a origem, da desunião já superada do ser
humano com Deus. Os fariseus e Jesus falam de nfveis completamente diferente&.
Por isso acontece este estranho desencontro de suas palavras, por isso as respostu
de Jesus não se parecem com respostas, mas com acusações suas aos fariseus, o quo
de fato são.
O que acontece entre Jesus e os fariseus é mera repetição daquela primeira
tentação (Mt 4.1-11) na qual o diabo tentou prender Jesus em uma discordãncia• na
palavra de Deus·e que Jesus venceu a partir de sua unidade essencial com a palavra
de Deus. Esta tentação, por sua vez, tem o seu prólogo na pergunta com que a ser·
a
pente levou Adão e Eva à queda no paraíso: "É assim que Deus disse.•• ?" a per·
pnta que contém em si toda a desunião, contra a qual o ser humano é impotente
porque constitui sua essência; é a pergunta que só pode ser - não respondida, maa -

... N, do T.: Zwiespalt, no original.

21
1uperada do além da dissensão. Por fim, todas estas tentações se repetem nas ques-
te.1 em que também n6s sempre nos confrontamos com Jesus, em que nós, em si-
tuaç&os de conflito, o invocamos pedindo uma decisão, em que nós, portanto, ten-
tamos onvolvê-Io em nossas questões, conflitos e dicotomias para cobrar-lhe uma
toluçlo. J4 no Novo Testamento não consta uma pergunta sequer que pessoas te-
nham dirigi.do a Jesus e em que ele, para respondê-la, entrasse no mérito da alterna-
tiva humana implicada em cada pergunta. Cada resposta à pergunta de seus inimigos
e do seus amigos deixa esta alternativa para trás de uma maneira que causa vergo-
nha. Ele não quer ser invocado como árbitro em questões da vida; rejeita prender-se
b alternativas humanas: "Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre v6s?"
(Lo 12.14.)
Muitas vezes parece que Jesus nem entende o que as pessoas perguntam,
tendo-se a impressão de que ele está respondendo a bem outra coisa do que foi per-
pntado. Parece que sua resposta não diz respeito à pergunta, mas inteiramente ao
Interlocutor. Ele fala a partir de uma liberdade total, não sujeita à lei das alternativas
ldgicas. Aos olhos dos fariseus, esta liberdade com que Jesus deixa todas as leis para
trds tem que parecer uma destruição de toda ordem, de toda piedade e de toda fé.
Para eles, Jesus é um niilista, uma pessoa que s6 conhece e respeita a sua própria lei,
um egocên~co, um blasfemador, porque derruba todas as diferenciações pelas
quais os fariseus se empenham conscienciosamente; porque permite aos seus discí-
pulos comerem das espigas do campo no sábado, embora com certeza não teriam
morrido de fome; porque cura no sábado uma enferma que já estava doente há 18
anos e certamente poderia ter esperado mais um dia (para as emergências legítimas
tamb6m o fariseu deixou espaço em seu sistema); porque Jesus se desvia de todas as
perguntas claras que desejam comprometê-lo para sempre. Por outra, nada há em
Josus que denote a insegurança, a timidez de quem age arbitrariamente; sua liberda-
de dá a ele e aos seus em seu agir algo peculiannente seguro, indiscutível, brilhante,
algo vencido e vencedor. A liberdade de Jesus não é a escolha arbitrária de uma en-
tre incontáveis possibilidades; antes, consiste justamente na completa simplicidade
de sua ação, para a qual nunca existem várias opções, conflitos e alternativas, mas
eempre uma coisa s6. Esta ánica coisa Jesus define como a vontade de Deus. Diz ele
que praticar essa vontade é seu alimento. Esta vontade de Deus é a vida de Jesus.
Ele vive e age não a partir do conhecimento do bem e do mal, mas a partir da vonta-
de de Deus. Existe .uma única vontade de Deus. Nela a origem está recuperada, nela
se baseia a liberdade e a singeleza de toda ação.
Procuraremos evidenciar o novo que veio em Jesus na interpretação de al-
aumas das suas palavras.
"Não julgueis, para que não sejais julgados." (Mt 7.1.) Não se trata de uma
exortação à prudência e tolerância no juízo sobre o semelhante, que o fariseu, aliás,
tam~m conhecia; é, isto"Sim, a 'est.ocada no coração do ser humano ciente do bem e
a
do mal. a palavra daquele que fala a partir da unidade com Deus, daquele que nãó
veio para julgar, mas para salvar (Jo 3.17). Para o ser humano da desunião, o bem
oonlilt.e no julgar, cujo tlltimo padmetro é o próprio ser humano. Ao saber do bem
e do mal. o ser humano é essencialmente juiz. Como juiz, ele se iguala a Deus, com a
diferença de cada yeredito .que profere atingir a ele mesmo. Ao atacar. o ser
humano como juiz, Jesus exige a conversão de tOdo o seu ser, expondo-o, justa-
mente na extr~ma realização do seu bem, como fmpio, como pecador. Jesus exige

22
a superação do conhecimento do bem e do 'nial, exige a unidade com Deus. O jutzo
aobre o semelhante sempre já pressupõe a desunião com ele, int.erpõe·se como im•
pedhnentQ à ação. O bem a que Jesus se refe~ consiste integrahnente na ação, não
no julgamento. Julgar o próximo significa sempre uma demora na pr6pria ação.
Aquele que julga nunca chega à ação, ou melhor, mesmo aquilo que tem a mostrar
como ação - e isto pode ser muita coisa - é sempre s6 avaliação, juízo, educa e
acusação aos outros. O agir do fariseu é, manifestamente, um julgar do semelhante,
pois procura a notoriedade do julgamento - mesmo que seja apenas perante o pró·
prlo eu -, pois quer ser visto, avaliado e reconhecido como bom - ainda que s6 pe-
rante o pr6prio eu. "Praticam todas as suas obras com o fim de serem vistos pelas
pessoas." (Mt 23.5.) O agir do fariseu é apenas uma detenninada forma de expres-
1lo do seu conhecimento do bem e do mal e, conseqüentemente, de sua desunião
com o pr6ximo e consigo mesmo. Por isso, é o maior obstáculo para chegar à verda-
deira ação que emana da unidade redescoberta do ser humano com os semelhantes e
consigo mesmo. Por conseguinte, é neste sentido, baseado na existência dicotomiza-
d1 - não no sentido de uma maldade consciente -, que a ação do fariseu, isto é, do
aer humano que pratica o conhecimento do bem e do mal até as últimas conseqiiên-
clu, é um fazer aparente, uma hipocrisia.
Dessarte, há realmente uma profunda contradição entre o discurso e a ação
do fariseu. "Eles dizem e não fazem." (Mt 23.3.) Não que os fariseus não fizessem
nada, que fossem preguiçosos para boas obras. Bem pelo contrário. No entanto, a
1Lu1 ação não é ação autêntica, porque a ação destinada a superar a cisão do ser hu-
mano em bem e mal não alcança este objetivo e só aprofunda a cisão. Assim, para o
Cariacu a prática do bem, que deveria sanar a desunião interna e a desunião com o
llmelhante, acaba agravando a desunião e levando à persistência na defecção da
orlpm. O fato de que essa desunião daquele que julga os semelhantes se manifesta
om procedimentos psicologicamente inteligíveis - por exemplo, que uma pessoa sé-
a
ria descarrega seus instintos de vingança contra uma leviana, quem. no fundo in-
veja; ou que o próprio ponto fraco, quando observado no outro, leva a uma conde-
naçlo especialmente severa; que, portanto, no campo da falsidade dissimulada, da
revolta desesperada e da negligência resignada para com a própria fraqueza o espí-
rito julgador produz flores particularmente venenosas - isso tudo não deve levar a
uma errônea interpretação da verdade básica:. o julgar não nasce daqueles vícios e
maldades do coração humano, por profundas que sejam; ao contrário, o julgar é a
raiz de todos estes fenômenos psicologicamente perceptíveis. o julgar, portanto,
nlc.> está errado por brotar de motivações tão obscuras - assim entendia Nietzsche -,
mnN porque o próprio julgar é a defecção, por isso é mau e é por isso que produz
mnuH frutos no coração humano. Tampouco há como negar que, analisando psicolo-
poamente, podem ser descobertas motivações das mais nobres que norteiam aquele
que Julsa. Isso, no entanto, não pode alterar a substância. "Julgar" não é um desta-
oado vfcio e maldade do ser humano dicotomizado; é a sua essência, que se revela
nm 1cu discurso, no seu agir e sentir. Esta forma de conhecer o fariseu s6 é possível,
lftb'etanto, a partir da unidade já recuperada, ou seja, a partir de Jesus. O próprio
f'art1cu só pode entender-se nas suas virtudes e vícios, mas não .e m sua essência, em
•nm defecção da origem. A conversão e transformação de toda a existência do fari-
•u 1d pode nascer do conhecimento superado do bem e do mal; s6 Jesus pode der-
rubar u autoridade do fariseu baseada na noção do bem e do mal. Na boca de Jesus o
1

23
"nlo Julauels" cS o chamado daquele que é a reconciliação dirigido ao ser humano
clndldo, 6 o chamado para a reconciliação.
Como há um fazer humano - ainda que ilegítimo - que é um julgar, assim
há - por muita surpresa - também um julgar que é um - legítimo - fazer do ser hu-
mano, vale dizer, um "julgartt que procede da unidade realizada com a origem, com
Jesus Cristo. Há um "saber" que nasce do reconhecimento de Jesus Cristo como re-
conciliador. "O ser humano espiritual julga todas as coisas e não é julgado por nin-
gu6m." (1 Co 2.15.) "Vós possuís a unção que vem daquele q~e é santo e tudo sa-
beis." ( 1 J o 2.20.) Este julgar e este saber provêm da unidade, não da cisão. Conse-
qüentemente, não produzem nova cisão, e sim reconciliação. Assim como o juízo de
Jesus Cristo consistia precisamente no fato de ele não ter vindo para julgar, mas
para salvar- "O juízo é este: que a luz veio ao mundo" (Jo 3.19); cf. os versículos
17 e 18 -, da mesma forma os que em Cristo estão reconciliados com Deus e os se-
res humanos tudo julgarão justamente sem serem juízes, bem como tudo saberão
como aqueles que não sabem do bem e do mal. O seu juízo consistirá em ajudar,
confortar, levar ao caminho certo, admoestar e aconselhar fraternalmente (Gl 6; Mt
18.15ss.), e, se preciso for, também na suspensão temporária da comunhão, mas de
tal forma que o espírito seja salvo no dia do Senhor Jesus (1Co5.5). Será um julgar
da reconciliação, não da separação, um julgar através do não-julgar, um julgar como
prática da reconciliação. Não mais sabendo do bem e do mal, e sim de Jesus como
origem e reconciliação, o ser humano tudo saberá. Sabendo, pois, de Jesus, conhece
e reconhece a eleição de Deus que lhe diz respeito; não está mais a escolher entre o
bem e o ~ isto é, na dissensão, mas como eleito, que não pode mais escolher por-
que já escolheu ao estar na liberdade e unidade do fazer da vontade divina. Com is-
so, ele se encontra num saber novo, no qual o conhecimento do bem e do mal está
superado. Encontra-se no conhecimento de Deus, mas não como quem se igualou a
Deus, e sim como quem leva a imagem de Deus. S6 conhece ainda "Jesus Cristo, o
crucificado" (1 Co 2.2), e nele tudo conhece. Como não-sabedor, tomou-se sabedor
somente de Deus e_, nele, de tudo. Quem conhece a Deus em sua revelação em Jesus
Cristo, quem conhece o Deus crucificado e ressuscitado, conhece tudo que há no
céu, na terra e debaixo da terra. Ele conhece a Deus como a suspensão de toda dis-
sensão, de todo julgar e condenar, como aquele que ama e vive. O saber dos fariseus
era morto e estéril; o saber de Jesus e dos que estão unidos a ele é vivo e frutífero; o
saber dos fariseus é dissolvente, o novo saber é redentor e reconciliador; o saber dos
fariseus é a destruição de toda ação autêntica, o saber de Jesus e dos seus consiste
apenas na ação.
"Tu, porém, _ao dares esmola, ignore a tua esquerda o que faz a tua direita,
para que a tua esmola fique em secreto." (Mt 6.3ss.) Também o fariseu sabia que
não devia vangloriar-se de sua esmola e que por todo bem que praticava devia gra~
tidão a Deus. Se Jesus quisesse dizer apenas isso, sua palavra teria sido supérflua.
Acontece que Jesus justamente não quis manifestar este pensamento razoável e pie-
doso, mas uma coisa bem diferente, exatamente o contrmo. O fariseu que, pelo bem
que praticava, oferecia sua gratidão a Deus (Lc 18) ainda era aquele que vivia no
conhecimento do bem e do mal, que proferia seu próprio julgamento e então, é ver-
dade, agradecia a Deus por esta capacidade. O fariseu sabe do bem que fez. Com
sua palavra, Jesus não atinge a jactância e o auto-elogio de quem fez algum bem,
mas, mais wna ve~, vai ao coração do ser humano que vive na dissensão. Ele profbe

24
a quem raz o bem saber ctesse bem. u novo saber a respeito da reconciliaçlo efetua
da em Jesus, da suspensão da dissensão, elimina completamente o saber prõprto cio
próprio bem. O saber sobre Jesus se esgota completamente na açlo, sem rcflexlc ,
sobre si mesmo. Agora, o bem pr6prio fica oculto ao ser humano. Não s6 que o K'IJ"'
humano não tenha que ser mais juiz do bem que faz, não, já não deve nem qumtr
•b8·lo; mais ainda, não deve sabê-lo, não o sabe mais. Tão inquestion4vel se tornou
sua ação, ele está tão dedicado e absorto em sua ação, sua ação está tão longe do 11crr
uma opção entre muitas, sendo a 11nica, o que importa, a von~~ de Deus, quo o .,..
ber nem pode mais se interpor como obsticulo, que aqui literalmente nlo se podo
perder tempo que detivesse a ação, a questionasse e julgasse. O julgamento perma•
noce oculto, não s6 perante os semelhantes, mas também diante do tribunal do prd·
prio saber. Está bem claro: sabendo acerca de Jesus, o ser humano não pode mm
saber do seu próprio bem; sabendo do seu próprio bem, não poderá mais saber dtt
Jesus. O ser humano não pode viver, ao mesmo tempo, na reconciliação e na do1u •
nllo, na liberdade e sob a lei, na simplicidade e na discordancia. Aqui não há tranll -
çlo ou degraus, mas somente uma ou outra. No entanto, como ao ser humano 6 im· ·
posaf'vel suspender e superar o saber de seu próprio bem por força própria - a nlo
aer que se engane a si mesmo, confundindo a metódica repressão deste saber com
MUU suspensão -, esta palavra de Jesus a respeito da mão direita que não deve saber
oquo a esquerda faz, portanto, do caráter oculto do próprio bem, significa o chama·
mento para sair da dicotomia, da defecção; do saber do bem e do mal, para a recon •
qlliaçlo, para a unidade, para a origem, para a nova vida que está somente em Jo1u1.
ftQ chamado libertador para a simplicidade, para a conversão; é o chamado que 1u11
pende até o velho saber da defecção e concede o novo saber a respeito de Jesua, o
llber que ~ totalmente absorvido pela pnttica da vontade de Deus. Quão profunda.
mont.e esta palavra calou em sua comnnidade evidencia-se do fato de, onde quer que
fale do dar nas admoestações apost6licas, encontrarmos o acréscimo de que deve
aoontecer "em simplicidade" (Rm 12.8; 2 Co 8.2; 9.11,13 e semelbantes). A recor·
dlçlo da palavra do Sermão do Monte é flagrante. Contudo, também o prdprlo
Dous dá "simpJesmente" (Tg 1.5) a quem lhe pede sem pensamentos conflitant.9
(mlün dlakrinomenos). O "homem com as duas almas", por6n, o anêr dipsychol, o
antipoda do sím.plice, não pode esperar que receba dMivas de Deus (Tg 1.7). Mu
quem recebe com simplicidade há de dar com simplicidade.
Na parábola do juízo final (Mt 25.31ss..) o que afirmamos recebe sua com·
plementação e conclusão. Quando Jesus efetuar o julgamento, os seus não saborlo
ttue lho deram de comer, de beber, que o vestiram e visitaram. Não conhecerão o
r.Spdo bem; Jesus o revelará a eles. Então terá chegado o tempo para o qual aqui
1in torra não havia tempo, o tempo que revelará o oculto e dará a recompensa publl·
unente, o tempo do veredito e do juízo. Mas também então todo avaliar, saber o
JulMW' ostará do lado de Deus e de Jesus Cristo, e n6s seremos os que se admiram
recebem. Esta mensagem de poder receber o bem unicamente do saber, do jul11·
monto 0: da mão de Jesus deve ser incompreensível e desprezível para o fariseu que
u hava poder antecipar e preparar o juízo final no juízo objetivo e sério de ai mo1·

"" A suspensão do saber do bem e do mal realmlda em Jesus, bem como tudo
• <1uc a• disse a respeito de liberdade e simplicidade, estariam totalmente mal cnten
dldc>a onde 08 concebêssemos como _fatores psicologicamente oonstativeis, onde •

25
voltauc a refletir sobre sua ocorrência em si mesmo ou em outras pessoas. Sob o
upecto psicológico é realmente impossível que a mão direita não saiba o que a es-
querda faz, que a simplicidade faça sempre s6 a tinica coisa, sem saber de alternati-
vas. A causa disto é que a própria an~ psicológica sempre se encontra sob a lei da
cisão. A psicologia nunca poderá descobrir, portanto, a simplicidade, a liberdade e a
açlo visadas por Jesus; ela sempre descobrirá atras da suposta simplicidade, liberda-
de e ausência de reflexão uma dltima reflexão, um &timo catiVeiro, uma t1ltima ci-
são. Entretanto, com isso não se atinge aquilo que Jesus queria di7.er. Aquele que
no cliscipulado de Jesus se tomou sfmplice e livre pode ser, sob o prisma psicológi-
co, uma pessoa de complicada reflexão, assim como, por outro lado, existe uma sim-
plicidade psíquica que nada tem a ver com a simplicidade de uma vida reconciliada
com Deus. Assim, a Bíblia fala de um justificado e necessário perguntar pela vonta-
de de Deus e de uma igua]men~ justificada e necessária auto-avaliação, sem, contu-
do, incorrer em contradição com o fato de que, para os que vivem na suspensão do
saber a respeito do bem e do mal, não há mais escolha entre m"61tiplas alternativas;
existe sempre s6 o fato da eleição para a símplice prática da una vontade divina, não
mais podendo haver para o seguidor de Jesus noção do próprio bem.

O Examinar

"Transformai-vos pela renovação de vossa mente, para que examineis qual


seja a vontade de Deus." (Rm 12.2 ) "E também faço esta oração: que o vosso amor
aumente mais e mais no conhecimento e em toda capacidade de·percepção, para que
possais examinar as diversas situações (o que é o correto em cada caso)." (Fp l.9s.;
cf. Rm 2.18.) "Agi como os filhos da luz - examinando o que.é agradável ao Se-
nhor." (Ef 5.98&.) Aqui a idéia de que o conhecimento simples da vontade de Deus
devesse acontecer na forma de intuição, de exclusão de todo raciocínio, abraçando
ingenuamente o primeiro pensamento ou sentimento que se ofereça, recebe radical
correção. Trata-se do mal-entendido psicol6~co da simplicidade da nova vida que
surgiu em Jesus. Não há garantia nenhunia de que a vontade.de Deus se imponha ao
coração humano com a evidência de sua exclusividade, que ela seja 6bvia e se iden-
tifique com o que o coração acha. A vontade de Deus pode estar profundamente
oculta sob muitas possibilidades que se oferecem. Sempre de novo deverá ser exa-
mina.do qual é a vontade de Deus, porque ela também não é um sistema de regras
pré-fixadas, mas cada vez nova e diferente nas diferentes situações da vida. Cora-
ção, raciocínio, observação e experiência devem ser conjugadas para este exame. Ele
é tão sério justamente porque já não se trata mais do próprio saber a respeito do
bem e do mal, mas da vontade viva de Deus, justamente porque já não está sob
nosso controle, mas depende exclusivamente da graça de Deus que reconheçamos a
sua vontade, graça que se renova e quer se renovar todos os dias. Nem a voz do
coração, nem alguma inspiração, nem tampouco algum princípio de validade uni-
versal podem ainda ser confundidos com a vontade de Deus que se revela sempre
nova somente a quem sempre procede ao exame. .
Como acontece este examinar ·"qúal é a vontade de Deus"? Decisiva é
aqui a clara pressupOsição de que este discernir sõ existe a partir de uma "meta-
morfose", de uma completa mudança interna da forma anterior, a partir de uma

26
••renovação" da mente (Rm 12.2), a partir de uma postura como filhos da luz (Bt
5.9). Nesta metamorfose s6 pode tratar-se da superação da forma do ser humano
ca1do, Adão, e da conformação com a forma do novo ser humano, Cristo. Iuo 1a
deduz claramente do uso destes conceitos em outras passagens bfblicas. A novn
fonna, por força da qual somente é possível discernir a vontade de Deus, deixou
atn1s e abaixo de si o ser humano que conquistou a noção do bem e do mal na aopa•
ração de Deus. ~ a figura do filho de Deus que vive em linidade com a vontade do
Pai na conformação com o dnico e verdadeiro filho de Deus. _a exatamente a mesma
coisa que Paulo aborda na citada passagem de Filipenses, na qual designa o viver o
aumentar no amor como a pressuposição do examinar, pois viver e crescer no amor
lignifica viver na reconciliação e unidade com Deus e os semelhantes, significa viver
a vida de Jesus Cristo. Não se pode, portanto, discernir simplesmente a partir de li
mesmo qual seja a vontade de Deus, com base no pr6prio saber do bem e do mal;
pelo contrário, somente o pode a pessoa da qual foi tirado todo saber próprio a fel•
peito do bem e do mal e que, por isso, desiste de saber por si mesma a vontade de
Dous, que já vive na unidade da vontade de Deus porque a vontade de Deus jd 11
ooncretizou nela. Examinar qual seja a vontade de Deus s6 é viável a partir do saber
da vontade de Deµs em Jesus Cristo. Somente com base em Jesus Cristo, somente
no Ambito determinado por Jesus· Cristo, somente "em" Jesus Cristo pode-se clll·
cernir qual seja a yontade de Deus.
O que então significa, ainda, o examinar? Por que é necessário? Esta por·
aunta. por mais que pareça logicamente conseqüente, j4 foi mal formuJada. Devido
AO fato de o saber acerca de Jesus Cri.Sto, a metamorfose, a renovação, o amor ou
como quer que se possa chamá-lo, ser algo dinâmico e não algo dado, fixo, possu!do
de uma vez para sempre, todo dia se renova a pergunta: como permaneço (e sou
oonaervado), hoje e aqui e nesta situação, nessa nova vida com Deus e Jesus Cristo?
llxatamente esta pergunta é o sentido do exame de qual seja a vontade de Deus.
Um outras palavras: porque o 's8.ber a respeito de Jesus Cristo inclâi o não-saber a
re1peito do pr6prio bem e mal, porque a noção de Jesus .Cristo remete o ser hwnano
Inteiramente a Jesus Cristo, súrge aqui um discernimento diariamente novo e aut.4n-
doo, que se caracteriz.a justamente pela exclusão de todas as outras fontes de saber a
l'llpeito da vontade de Deus. Este examinar nasce do saber-se guardado, sust.entado
auiado pela vontade de Deus,' do saber acerca da ·graciosa unidade, já concedida,
•,om a vontade de Deus, e procura robustecer este saber dia ap6s dia na vida con·
oreta. Por conseguinte, não é um examinar altivo, nem desalentado, mas humilde o
aonftante, um discernir em liberdade para a palavra de Deus sempre nova, na sim·
plicldade da palavra de Deus sempre una. É um examinar que não questiona maia a
unidade recuperada em Jesus com a origem; antes, a pressupõe e, não obstante, deve
ob~-la sempre de novo.
Sob esta pressuposição, no entanto, deve-se examinar realmente qual 6 a
vontade de Deus, o que é certo em dada situação, o que agrada a Deus, pois vida o
devem ser concretas. Inteligência, capacidade de discernimento, percep;lo
•Ucmta dos fatos entram em intensa ação. Nisto, a oração a tudo abrangem e pene·
l1'1td. Bxperiências feitas se manifestarão para corrigir ou advertir. De modo ne•
nhum 1e há de confiar em intuições imediatas ou esperar por elas, com o que no•
IXporfamos por demais facilmente ao auto-engano. Tendo em vista a causa que 01t4
'Ili Jogo, h4 de imperar um el~vado espúito de sobriedade. Serão avaliadas as poul•

27
bilidades e as conseqüências. Em se tratando de discernir qual é a vontade de Deus,
acrd dinamizado, portanto, todo o aparato das forças humanas. Mas, em tudo isso,
nlo haverá espaço para o tormento de estar diante de conflitos insolúveis, nem para
a prosunçlo de poder resolver todos os conflitos, e tampouco para a entusiástica ex-
peotadva e afirmação de inspiração direta. Haverá a fé de que Deus certamente re-
velard a sua vontade a quem humildemente o pedir. Então, ap6s todo sério exami-
nar, haverá também a liberdade para real decisão e, nela, a confiança de que, através
de tal examinar, Deus mesmo, não o ser humano, impõe a sua vontade. A ansiedade
quanto à correção do que se fez não se converterá nem em desesperado apego ao
proprio bem nem na segurança do saber a respeito do bem e do m~ mas estará su-
primida no saber a respeito de Jesus Cristo, que exerce o juízo gracioso; deixará o
próprio bem oculto no saber e na graça do juiz até o tempo oportuno.
Assim como a unidade com a vontade de Deus não elimina o exame do que
venha a ser a vontade de Deus no momento, antes a exige, da mesma forma, ao lado
da palavra de Jesus de não deixar que a mão esquerda saiba o que a direita faz, está
a advertência de Paulo de examinar-se a si mesmo em relação à fé e à ação. "Exa-
minai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não
reconheceis que Jesus Cristo está em vós?" (2 Co 13.5; cf. Gl 6.4) A simplicidade
do desconhecimento do próprio bem, porque a pessoa, completamente absorta na
ação, s6 olha para Jesus Cristo, não significa leviandade, falta de autoconsideração.
Não existe apenas um auto-exame farisaico, mas também um cristão, isto é, um au-
to-exame que não visa o próprio saber a respeito do bem e do mal e sua concretiza-
ção na vida prática, mas que renova diariamente a percepção de que "Jesus Cristo
está em nós". Para o cristão, não há outra forma de examinar-se a não ser com base
nesta possibilidade, decisiva para ele, de Jesus ter entrado em sua vida, mais: de Je-
sus viver por ele e nele, e isto de tal maneira que Jesus Cristo ocupe nele exatamente
o espaço até agora preenchido pelo pr6prio saber acerca do bem e do mal. Auto-
exame cristão só existe sob a pressuposição de que Jesus Cristo está em n6s. E, ao
declinarmos este nome por completo, fica claro que não se trata de algum neutro,
mas da própria pessoa histórica de Jesus. No auto-exame dos cristãos o olhar não se
desvia de Jesus Cristo para o próprio eu; antes pelo contrário, fica preso em Jesus
Cristo. Sob esta pressuposição da presença e ação de Jesus em nós, de ele nos per-
tencer, pode e deve surgir a pergunta se e como nós lhe pertencemos, nele cremos e
a ele obedecemos na vida cotidiana. A resposta a esta questão, entretanto, não pode
mais ser dada por n6s mesmos; pela essência da causa, a resposta só pode ser dada
por Jesus Cristo mesmo. Não é este ou aquele sinal de eficiência e fidelidade de
nossa parte que pode responder a questão de nosso auto-exame, pois nós não dis-
pomos mrus de nenhum parâmetro pelo qual nos pudé~emos julgar; nosso 11nico
critério é o próprio Jesus Cristo vivo. O auto-exame, portanto, constará sempre da
integral entrega ao juízo de Jesus Cristo, não tirando as próprias conclusões, mas
deixando.. as nas mãos daquele de quem sabemos e reconhecemos que está em nós.
Este processo de auto-exame, porém, não é supérfluo porque Jesus Cristo real-
mente est4 e deseja estar em oos, sendo que este estar em n6s de Jesus Cristo não se
processa simplesmente de forma mecftnica, antes se realiza e se comprova sempre de
novo justamente em tal auto-exame. "Nem eu tampouco julgo a mim mesmo. Por-
que de nada me argói a consciência; contudo, nem por isso me·dou por justificado,
pois quem me julga é o .Senhor." (1 Co 4.3,4) Tal qual a vontade de Deus, por ser,

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precisamente, a vontade do Deus vivo, sempre de novo deve ser discernida e neste
dfacernimento se impõe, assim Jesus Cristo está tota1mente em nós exatamente pelo
fato de n6s nos auto-examinannos nele sempre de novo. O exame da vontade de
Deus é, de certo modo,. parte da própria vontade de Deus da mesma forma como o
auto-exame do cristão é parte da vontade de Jesus Cristo em nós.
Não se suspende ou atrapalha com isso, de modo algum, a nova unidade
com a vontade de Deus e a simplicidade da ação. Para compreender isso temos que
11clarecer ainda o que significa propriainente "fazer" na acepção do Evangelho.

O Fazer

Está claro que a t1nica postura adequada do ser humano perante Deus é a
pr4tica de sua vontade. O Sermão do Monte aí está para que seja praticado (Mt
7,24ss.). É no fazer, apenas, que se consuma a submissão à vontade de Deus. No
oumprimento da vontade de Deus o ser humano desiste de todo direito próprio, de
toda autojustificação. No cumprimento, ele se entrega humildemente ao bondoso
Juiz. Se a Sagrada Escritura tanto insiste no fazer, é porque deseja coitar toda au-
tojustificação humana perante Deus que queira basear-se no próprio saber ares-
peito do bem e do mal. Ela não admite, pois, que ao lado da ação de Deus seja colo-
~ada a ação do próprio ser humano - ainda que como agradecimento, como sacriff-
olo -, mas integra o ser humano completamente na ação de Deus e, ao mesmo tem-
po, submete o ser humano ao fazer divino. Os fariseus não erraram ao apontar, com
todo o vigor, para a necessidade da ação, mas tio fato de eles próprios não chegarem
oo fazer. "Eles não fazem o que ensinam." Se a Escritura exige a ação, ela com isso
nlo remete o ser humano à sua própria capacidade, mas ao próprio Jesus Cristo.
usem mim nada podeis fazer." (Jo 15.5) Esta sentença deve ser entendida ao pé da
lotra. Não há fazer sem Jesus Cristo. As múltiplas coisas que de resto se dão a apa-
rtncia de ação, todos os inúmeros afazeres são, aos olhos de Jesus, como se nada
fora feito. Não há outra palavra da Escritura que testemunhe de forma mais exclu-
liva o atrelamento da ação a Jesus Cristo do que esta palavra de Jesus. Por nenhuma
outra coisa, também, poder-se-á distinguir com maior clareza a ação autêntica do
r.zcr aparente.
Coní estas nossa8 delimitações,' a ação pretendida pela Escritura é protegi.-
da contra mal-entendidos e se torna reconhecfvel em seu caráter peculiar.
O julgamento está em inconciliável confronto com o fazer. "Aquele que
awusa seu irmão, ou julga a seu irmão, acusa a lei e julga a lei; ora, se julgas a lei, não
observador da lei, mas juiz." (Tg 4.111) Há duas posturas diante da lei: julgar e
luer; ambos se excluem reciprocaII1ente. O que julga entende a lei como parlmetro
~uc usa contra os outros e entende a si mesmo como responsável pela imposição da
lo1; com isto, aquele que julga coloca-se acima da lei. Esquece que ''um·sõ é o que
tu. as leis e é juiz, aquele que pode salvar e destruir." Quem com base em seu co-
nhecimento da lei acusa e julga seu irmão, na verdade acusa e julga a própria lei.
pola desconfia que não tenha a força da palavra viva de Deus para impor-se e fazer
valer a si mesma. Ao se arvorar em legislador e juiz, revoga a lei de Deus. Surge,
Mllm. a incurável cisão entre saber e fazer. Aquele que por ~onta de seu conhec:l.-
monto da lei se fez juiz do irmão e ~nte também da lei, nunca mais chega ao

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aumprimonto da ld, por mais coisas que aparentemente faça. O "praticante da lei" -
l cllfeiença do juiz - submete..se à lei. E1a nunca se torna o padmetro que pudesse
UMr contra o irmão. Nunca ela se lhe apresenta de outra forma do que para concla-
rd·lo l açlo pessoal. Também diante do irmão que ermu o "praticante da lei" s6
tDm wna dnica possibilidade de faz.er valer a lei, qual seja, o cumprimento pr6prio. ~
1trav& disto que a lei é honrada, posta em vigor e reconhecida como palavra viva de
Deus que se impõe por força prõpria, dispensando ajuda humana. Portanto, não é
auhn, também, que o praticante da lei se contentasse com sua pr6pria pr«tica, invo-
cando a Deus, com um olhar de soslaio, como juiz do irmão pecador, o qual ele
moamo - lamentavelmente - não deve julgar. Trata-se aqui, realmente, sem soslaio
aJ&um, da d.nica postura adequada face à lei de Deus, qual seja, o cumprimento da lei;
o somente nesta orientação exclusiva para o cumprimento próprio da lei, sem segun-
da intenções, se coD.fere à-lei seu direito e seu poder, que hão de comprovar-se
tambdm no irmão. Não resta, pois, umã 1lld.ma possl'bilidade de julzo ao lado ou
atrav& do cumprimento; antes, o cumprimento é e sera a 4nica e exclusiva postura
diante da lei de Deus; qualquer resto corromperia o cumprimento totalmente,
tnmaformando-o em aparência, em hipocrisia.
O cumprimento pressupõe, evidentemente, que se ouça a lei Mas esta
formulação já é duvidosa na medida em que, por ela, poderia ser diferenciado e se-
parado o ouvir como pressuposição do cumprir qual conseqüência. Onde, porém, o
ouvir se toma independente em relação ao cumprir, adquirindo qualquer direito
próprio, o cumprimento já está desfeito. O praticante da lei por certo deve ser tam-
Wm um ouvinte, mas de tal modo apenas, que o ouvinte seja, ao mesmo tempo, o
pntlcante (fg 1.22). Um ouvir que não se convertesse, no mesmo instante. em fa-
zer, transforma-se naquele "saber" do qual nasce o julgar e, assim, a dissolução de
todo fazer. Se aquilo que se ouve se incorpora àquele "saber'~, ao invés de trans-
formar-se em ação, j4 esUl - por paradoxal que possa parecer - "esquecido" (Tg
1.25). Ainda que seja preservado no saber por muito tempo, seja meditado e 1ratado,
est4 esquecido no que concerne à sua essência, qual seja, como algo que aponta in-
te!ramente para a ação. O ouvinte da Palavra que não é, ao mesmo tempo, seu prati-
cante, acaba necessariamente enganando a si mesmo (Tg 1.22). Ao julgar-se na
posse da Palavra por causa do saber, já a perdeu de novo, porque supõe que se possa
9'-la, ainda que por um instante apenas, de outra forma do que no cumprimento. A
pol.emica de Tiago contra o ouvinte da Palavra corresponde exatamente l polêmica
de Josus contra os fariseus. Não que o diligente ouvinte da Palavra, de quem se trata
aqui. não &esse mtlltiplas coisas, assim como, aJms, o fariseu certamente não era
preguiçoso no fazer; mas esse fazer que, em relação ao ouvir, se constitui em coisa
•pnda, mediada por um saber, que se acrescenta como autônoma ao ouvir - que,
por si e em si, já é algo -, é um fazer aparente, é auto-engano, é, nas palavras de
1oaus, hipocrisia. Trata-se de auto-engano porque aquele que est4 na ação aparente
ao entende realmente como quem está na ação autêntica e deve, portanto, rechaçar
docklldamente a acusação de hipocrisia. A presente contraposição de ouvinte e pra-
dcantc da Palavra recebe errõnea interpretação psicológica sempre que for apre-
IODtada como contraposição entre pensamento e vontade, teoria e pdtica. Também
o farlaeu sabia que a palavra de Deus reclama não s6 o pensamento, mas também a
vontade, não s6 a teoria, mas também a prática; de acordo com isso exercitava tanto
a vontade como a inteligência na obediência à Palavra. Não eram a inteligência e a

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vontade que se cindiam no fariseu, mas preciamenfe o ouvir e o f87.Cl. Para o ou-
vinte da Palavra que concede autonomia ao ouvir vale a palavra: "O praticante sem
bem-aventurado em seu fazer.'' (Tg 1.25.) Praticante, em tudo isso, é aquele que
simplesmente não conhece outra postura diante da palavra de Deus ouvida do que o
cumprimento, que permanece rigorosamente orientado para a própria Palavra, sem
dela haurir wn saber pelo qual se toma juiz do irmão, de si mesmo e, finahnente,
também da própria palavra de Deus.
O que foi tratado aqui fica bem c1aro pela palavra de Jesus a Maria e
Marta, ainda que pareça dizer exatamente o contrário (Lc 10.38ss.). Maria está
sentada aos pés de Jesus e ouve, enquanto Marta "estava muito ocupada para ser-
vi-lo". Marta pede a Jesus que lembre a irmã que ao ouvir deve aàociar-se o fa ..
zer: 61Manda que ela venha me ajudar," Jesus teSpOndeu e 1he disse: "Marta, tu estás
preocupada e atarefada com tantas coisas, mas apenas uma é necesúria. Maria es-
coJheu a boa parte, e esta não Jhe será tirada." Aqui Jesus com todaaclareu dá ra-
zão ao ouvinte diante do praticante. Bem-aventurado 6 o praticante em seu fuer,
diz Tiago; bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam, diz
Jesus; ambos dizem o mesmo. Pais tão pouco como se poderá separar o ouvir do fa-
zer, o fazer poderá ter autonomia diante do ouvir. A bem-aventurança do praticante
inclui o ouvir, da mesma fomia como a bem-aventurança do ouvinte inclui o fazer.
Uma coisa é necessária - não ouvir ou fazer, mas ambos em um sõ, isto .é, estar e
permanecer na unidade com Jesus Cristo e orientado para ele, receber dele palavra e
ação; não se tornar acusador ou juiz do irmão ou me8mo - como Marta - de Jesus
Cristo, nem com base no ouvir nem com base no fazer; pelo contr4rlo: tanto no ou-
vir como no famr, confiar tudo a Jesus Cristo, viver dele, de sua graça e de seu
bondoso jufm, que realizará a seu tempo. Na bem-aventurança. tanto na do que ou-
ve como na do que ag~ é bendito aquele que foi libertado da desunião do proprio
saber acerca do bem e do mal para a unidade com Jesus Cristo. Perante Jesus não
valem nem o fazer em si, a agitação de MarUl, nem o ouvir em si. Há um aparente
fazer, assim como há um aparente ouvir. NIQ temos condições de examinar se o
nosso fazer e ouvir são autênticos ou aparentes; a decisão sobre isto acontecera na
medida em que entregamos ou não esse exame unicamente ao saber e ao jufzo de
Jesus.
O conceito bíblico de ação fica mais claro ainda em duas outras delimita·
ções. 65Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas
aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus." (Mt 7.21.) H" portanto,
uma profissão de fé em Jesus Cristo - numa época, aliás, em que isto não 6 nada
chique, an~ implica, possivelmente, sofrimento e peneguição - que Jesus n=jeita
porque está em contradição com o cumprimento da vontade de Deus. Não se deve
pensar, também aqui, sem mais, em hipocrisia CODSciente, que encobre a má ação
com palavras piedosas; esta confissão pode vir muito bem de coração pessoalmente
sincero. Pode ser que a esta corajosa confissão esteja ligada uma ação igualmente
corajosa e ·dedicada. Esta confisslo e ação podem ser a conseqilência, tirada com
muito caráter, do que se reconheceu c0mo bom e pelo que se está decidido a lutar.
Mesmo assim, Jesus rejeitará esta confissão e ação, exatamente porque provêm do
pr6prio saber do ser humano a respeito do bem e do maL É que aqui se realiza, no
fundo, em surpreendente semelhança exterior com a vontade de Deus, a vontade do
ser humano em desunião com Deus. Por conseguinte, a vontade de Deus justamente

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nlo 6 cumprida. Por isso, também, de nada vale mais aqui invocar a ação - "Em teu
nome não fizemos muitos milagres?H (Mt 7.22), mesmo não ali, onde se pensou tê-lo
feito em nome de Cristo. Erraríamos, mais uma vez, supondo que com esta ação ou
nela também haveria ainda maldade humana de toda espécie, pelo que essa ação se
tomaria abominável. Não; precisamente ali onde nasce das motivações mais puras,
onde leva aos atos mais piedosos e altruístas, é especialmente grande o perigo de que
se trate da fmpia antítese à vontade de Deus, criada a partir do saber próprio a res-
peito do bem e do mal e da desunião com Deus, mas de indistinguível semelhança
com a vontade de Deus. É um obscuro enigma que isto seja PQSsfvel, que haja uma
sincera profissão de fé em Cristo e um discipulado com todas as conseqüências que
precisam ser rejeitados por Jesus com as palavras: "Nunca vos conheci. Apartai-vos
de mim, todos os que praticais a iniqüidaden (Mt 7 .23), é um enigma que tem sua
origem na roubada igualdade do ser humano com Deus, mas é, ao mesmo tempo, um
fato com que Jesus e Paulo contaram.

O Amor

"Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e


toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se
não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os po-
bres, e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver
amor, nada disso me aproveitará." (1 Co 13.28.) Aqui se diz a palavra-chave, na
qual se distinguem o ser humano na dissensão e o ser humano na origem: o amor. Há
um conhecimento de Cristo, uma poderosa fé em Cristo, há uma mentalidade e de-
dicação de amor até a morte - sem amor. É isso aí. Sem este "amor" tudo se desfaz
e é reprová'.vel; dentro deste amor tudo est4 unido e é agradá'.vel a Deus. O que é este
amor?
Depois de tudo que vimos até agora, excluem-se aqui todas as definições
que desejam entender a essência do amor como postura humana, mentalidade, en-
trega, sacrifício, vontade de comunhão, sentimento, fraternidade, serviço e ação.
Tudo isso, sem exceção, pode haver sem "amor", como acabamos de ouvir. Tudo o
que estamos acostumados a chamar de amor, o que vive nas profundezas da alma e
na ação visível, até aquilo que brota do coração piedoso em termos de fraterno ser-
viço ao próximo, pode estar sem "amor'', e isto não porque em todo comportamento
humano continua havendo um resto de egoísmo que obscurece completamente o
amor, e sim porque amor é algo completamente diferente do que aqui se entende.
Amor não é, também, a relação pessoal direta, a compreensão dos aspectos pessoais,
do individual em contraste com a lei da objetividade, da ordem impessoal. Além de
se separar aqui "pessoal" e "objetivo" de forma abstrata e não-bfblica, o amor se
torna aqui um comportamento hµmano e, pior ainda, apenas parcial. O amor seria,
então, um ethos superior de ordem pessoal, que entra como complementação e
aperfeiçoamento ao lado do ethos inferior relativo a questões de ordem e objetivida-
de. Corresponderia a isso, por exemplo, a criação de um conflito entre amor e ver-
dade, de t.a1 modo que se sobreponha o amor, como algo pessoal, à verdade como al-
go impessoal. Com isto se estaria em flagrante contradição com a palavra de Paulo
no sentido de que o amor se regozija com a verdade (1 Co 13.6). O amor justamente

32
não conhece o conflito pelo qual se gostaria de defini-lo; antes, é de sua eaaenota
estar além de toda dicotomia. Lutero, com suá clara visão bfblica, chama o amor que
fere ou neutraliza a verdade um "amor maldito", ainda que se apresente na mall
piedosa roupagem. Um amor que abrange tão-somente o ãmbito das relações pel•
soais, capitulando diante do aspecto objetivo, nunca é o amor que o Novo Teata•
mento prega.
Se não há, portanto, um comportamento humano imaginável que possa acr
conceituado inequivocamente como amor; se amor acontece além de toda desunllo
em que o ser humano vive; se, literalmente, tudo que o ser humano possa entender o
praticar como amor s6 é concebível como comportamento humano dentro da deau•
nião existente, resta um enigma, uma questão abeita, acerca do que possa vir a 1ar
amor para a Bíblia. Ela não nos nega a resposta. Nós a conhecemos muito bem, 16
que, sempre de novo, a distorcemos. Ela diz: Deus é amor (1 Jo 4.16). Esta frase, A
bem dà clareza, deve ser lida primeiramente oom ênfase na palavra Deus, ao
passo que nós nos acostumamos a acentuar a palavra ''amor''. Deus é amor, ou soja,
não um comportamento humano, uma mentalidade, uma ação, mas Deus mesmo d
amor. Só sabe o que é amor quem conhece a Deus, não ao inverso: sabendo prbno!•
ro, e por natureza, o que é o amor, sabe-se então também o que é Deus. Ningudm
conhece a Deus a não ser que Deus se lhe revele. Conseqüentemente, ninguém sabe
o que é amor, a não ser na auto-revelação de Deus. Assim, amor é revelação do
Deus. Revelação de Deus, no entanto, é Jesus Cristo. "Nisto se manifestou o amor
de Deus por n6s, em haver Deus enviado seu Filho unigênito ao mundo, para viver•
mos por meio dele." (1 Jo 4.9.) A revelação de Deus em Jesus Cristo, a divina re·
velação do amor de Deus precede todo o nosso amor a ele. O amor tem sua origem
cm Deus, não em nós; o amor é postura divina, não comportamento humano. "Nisto
consiste o amor, não em que n6s tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou
o enviou o seu Filho para o perdão de nossos pecados." (1Jo4.10.) O que vem a ser
wnor só reconhecemos em Jesus Cristo, mais precisamente em sua ação por n6a •
.. Nisto conhecemos o amor, em que CristO deu a sua vida por n6s." (1 Io 3.16.)
Também aqui não se oferece uma definição genérica do amor, no sentido, por
exemplo, de que a entrega da vida pelos outros fosse amor. Não o genérico, mas n
entrega absolutamente ónica da vida de Jesus Cristo por nós é qualificada aqui do
amor. Amor está ligado de forma indissoltivel ao nome de Jesus CristÕ como revela·
çlo de Deus. O Novo Testamento responde de -forma muito clara a pergunta o quo
vem a ser amor apontando exclusivamente para Jesus Cristo. Ele é a ánica defini·
çlo do amor. Estaríamos desvirtuando tudo, no entanto, se da contemplação de Je•
1us Cristo, de sua obra e seu sofrimento, quis~mos de9uzir uma definição gen•rl·
llll do amor. Amor não é o que ele/az e sofre,· amot é o que ele faz e sofre. Amor
Mmpre é ele mesmo. Amor sempre é o próprio Deus. Amor sempre· é revelação do
1)cus em Jesus Cristo. ·
A rigorosa concentração de todos os pensamentos e afirmações a respeito
do amor no nome de Jesus Cristo não deve degradá-lo a um conceito abstrato; an-
lol, deve ser entendido sempre na plenitude concreta da realidade histórica de um
1or humano de carne e osso. Portanto - mantendo o que dissemos acima -, s6 a açlo
o sofrimento concretos do homem Jesus Cristo tomarão compreensível o que vem
n 1cr amor. O nome uJesus Cristo", no qual Deus revela a si mesmo, oferece 11u1
na
llltlO•lnterpretação na vida e mensagem de Jesus C~ Afinal, o Novo Toata..

33
mento nlo consiste na infindável repetição do nome de Jesus CrisúY, o que este no-
me abrange 6 interpretado por acontecimentos, conceitos e afirmações que nos são
lntellafveis. Assim, o poder do termo "amor", agape~ não é simplesmente arbitrário.
Por mala que este termo receba um sentido completamente novo através da mensa-
pm do Novo Testamento, não est4 ar sem relação alguma com o que, em nossa lfn-
aua, entendemos por "amor". Não é assim, contudo, que o conceito bl>lico de amor
foue uma forma determinada daquilo que, genericamente, sempre j4 entendemos
por ..amor", Diante do conaito bfblico .de amor acontece exatamente o inverso,
evldoocJando-se que tio-somente ele é a baSe, a verdade e a realidade do amor, de
nwielra tal que toda reflexão natural sobre o amor s6 tem verdade e reaHdade na
modlda cm que tem sua origem no amor que o pr6prlo Deus é em Jesus Cristo e na
medida em que participa deste amor.
à pergunta em que consisdria o amor, conúnuamos respondendo com a
Blcrltura: na reconciliação do ser humano com Deus em Jesus Cristo. A desunião
do 8Cl' humano com Deus e com o prdximo, com o mundo e consigo mesmo está
terminada. Por graça, foi-Jhe devolvida a origem.
o amor designa, portanto, à ação de Deus no ser humano atravéS da qual é
IUperada a dicotomia em que o ser humano vive. Esta aÇão se chama Jesus Cristo,
reconciliação. Amor, portanto, é uma coisa que acontece ao ser humano, algo passi-
vo, algo de que ele não dispõe por si mesmo, porque, por definição, está além de sua
existencia na dissensão. Amor significa sofrer a metamorfose de toda a existência
por parte de Deus, ser incorporado ao mundo tal como ele somente pode subsistir
diante de Deus e em Deus. Amor não é escolha do ser humano, mas eleição do ser
humano por Deus.
Em que sentido, então, pode-se ainda falar do amor como uma ação hwna-
na, do amor do ser humano a Deus e ao próximo, como o Novo Testamento o faz
com suficiente clareza? O que quer dizer que também o ser humano pode e d~ve
amar diante do fato de que Deus é o amor? •N& o amamos porque ele nos amou
prlmeiro." (1 Jo 4.19.) Isto significa que o nosso amor se baseia exclusivamente na
clrcunstAncia de sermos amâdos por Deus, em outras palavras, que o nosso amor
outra coisa não pode ser do que a aceitação do amor de Deus em Jesus Cristo. •Se
algudm ama a Deus é conhecido por ele." (1 Co 8.3.) Ser conhecido significa, na
linguagem bfb:&ca. •eJeito, gerado". Amar a Deus quer dizer aceitar sua eJeiçlo, sua
praçlo em Jesus Cristo. A relação do amor divino e do humano não deve ser en-
tendtda como se o primeiro precedesse o segundo com a finalidade de acionar o
amor humano como ação independente, livre e pr6pria do ser humano face ao amor
de Deus. Ao contrafrio, também. para tudo quanto se possa dU.er do amor humano
vale que Deus é o amor. ~ com o amor de Deus, e nenhum outro - porque nlo M
outro amor, autônomo ou livre diante deste -, que o ser humano ama a Deus e ao
próximo. N°JSto o amor humano permanece totalmente passivo. Amar a Deus é ape-
nas o anverso do ser amado por Deus. O amor de Deus inclui o amor a Deus; o
amor a Deus não se justapõe ao ser amado por Deus.
Para elucidar isto é preciso uma palam esclarecedora, neste contexto, so-
bre o conceito de passividade. Trata-se aqui - como sempre que na teologia se fala
da passividade humana! - de um conceito teológico e não psicológico. visando a
exist!ncia do ser humano diante de Deus. Passividade face ao amor de Deus não
significa descanso no amor de Deus sob exclusão de pensamentos, palavras e ações,

34
uon10 se ele s6 me seria dado nest.as "horas de calma". O amor de Deus não ~ aponas
1quele porto de refdgio onde ~ me abrigar do mar grosso. Ser amado por Deus
do modo algum pro.fbe ao ser humano pensamentos fortes e ações alentadas. Somos
amidos e reconciliados por Deus em Cristo éomo seres humanos inteiros. É como
IOl'CB humanos inteiros. raciocinando e agjndo, que amamos a Deus e aos irmios5.

N, do B.: Capftulo inconcluso.

35
li

IGREJA E MUNDO

Iniciamos este capítulo chamando a atenção para uma das experiências


mais admiráveis que tivemos nos anos da perseguição de tudo que era cristão: diante
do endeusamento do irracional, do sangue, do instinto, da fera no ser humano, bas-
tava o apelo à razão, diante da arbitrariedade bastava o apelo à lei escrita, diante da
barbárie era suficiente apelar a formação e humanidade, diante da brutalidade bas-
tava o apelo à liberdade, tolerância e direitos humanos, diante da politização da
ciência, da arte, etc. bastava a lembrança da autonomia das diversas áreas da vida,
para despertar, imediatamente, a consciência de uma espécie de aliança entre os que
defendiam estes valores denegridos e os cristãos. Razão, cultura, humanidade, tole-
rância, autonomia, termos que até há pouco serviram como senhas de luta contra
a Igreja, contra o cristianismo, contra Jesus Cristo mesmo, st1bita e surpreendente-
mente se achavam muito próximos cta área cristã. Isto aconteceu num momento em
que tudo que era cristão era acuado, em que as doutrinas centrais da fé cristã eram
execradas da forma mais cruel e intransigente, afrontando toda razão, cultura, hu-
manidade e tolerância. Sim, na proporção inversa à violenta perseguição e encurra-
lamento de tudo que era cristão, o cristianismo conseguia a aliança de todos estes
termos, adquirindo através deles uma amplitude antes inimaginável. Era evidente, no
entanto, que não fora a Igreja que procurara a proteção e a aliança dos conceitos
mencionados. Ao contrário, eram eles que, de certa forma expatriados, vinham pro-
curar refúgio na área cristã, à sombra da Igreja. Não corresponderia à realidade se
interpretássemos a experiência como sendo puramente uma aliança de luta, uma
união por conveniência que seria desfeita ao término do confronto. O decisivo é que
houve um retorno à origem. Os filhos que se haviam tomado autônomos e desvin-
culado da Igreja voltaram à mãe na hora do perigo. Ainda que, no tempo do distan-
ciamento, aspecto e linguagem houvessem mudado muito, mães e filhos se reconhe-
ceram no momento decisivo. Razão, direito, cultura, humanidade e tantos outros
procuraram e acharam em sua origem novo sentido e renovada força.
Esta origem é Jesus Cristo. No conto de Solowjeff sobre o an~cristo os
líderes da Igreja perseguida discutem, nos áltimos dias antes da volta de Cristo, o
que seria para cada um o mais precioso no cristianismo. A resposta decisiva é: o
mais precioso no cristianismo é Jesus Cristo mesmo. Com isto se afirma que diante
do anti.cristo s6 uma coisa tem poder e persistência: Cristo mesmo. Somente quem
tem parte nele pode resistir e vencer. Ele é o centro e a força da Bíblia, da Igreja, da
teologia mas também da humanidade, da razão, do direito, da cultura. A ele tudo
deve retomar; s6 sob a sua proteção tudo pode prosperar. Talvez seja a partir de

36
uma noção inconsciente que tudo que não deseja curvar-se ao anticristo procun
refdgio em Cristo na hora da dl.tima ameaça.

O postulado de totalidade e exclusividade de Cristo

"Quem não é contra nós, é por n6s." (Me 9.40.) Cristo amplia os limJtc1
dos que lhe pertencem bem maiS do que seus disc(p.ulos o desejam e praticam. No
caso concreto a que se reporta o texto, trata-se de um homem que, sem ser pealOll•
ment.e ctiscfpulo e seguidor de Jesus, expulsa demônios com o nome de Jesus. J01U1
profbe os discípulos de embaraçat-Io nisso; po.is -ninguém que em meu nome fizer
um milagre, me injurlant em seguida" (Me 9.39.) Onde o nome de Jesus ainda for
proferido - seja em ignorincia, seja apenas no reconheciment.o do seu poder objed·
vo, sem que a obediência pessoal suceda, seja balbuciando e cheio de inibição - ele
n_•mo criad para si um espaço ao qual o insulto a Jesus não t.em acesso; 14 ainda
u!ate uma área do poder de Cristo, ali não se deve interferir colocando obatfculot,
liU18 deixar que O nome de Jesus Cristo atue. a uma experiência dos DOSSOS dias que
1, mera citação do nome de Jesus Cristo tem inesperado poder, e a dificuldade que ao
tlm em pronunciar este nome talvez esteja ligada ao pressentimento do poder que
11\i ~ inerente. Onde o nome de Jesus Cristo ~ pronunciado, M proteção e relvin·
1

dloaçlo. Isto vale para todas as pessoas que, em sua luta por direito, verdade, huma-
nidade e liberdade, reaprenderam a pronunciar novamente o nome de Jesus Cristo,
ainda que de forma hesitante e em autêntica timidez. Este nome oferece proteçlo a
1111 e aos valores pelos quais se empenham;· ao mesmo tempo, é uma reivindicaçlo a
iltu pessoas e valores.
"Quem não é por mim, é contra mim." (Mt 12.30.) É o mesmo Jesus que
dlJi estas palavras. Para a abstração, abre .. se aqui uma contradição inconciliável, mas
riii realidade as duas afirmações de Jesus se complementam necessariamente. Tam·
bi1u aqui temos a experiência viva a nosso favor: quando, sob a pressão de poderes
1

lllt:lcrlstãos, se agruparam comunidades de clara profissão de fé, que tiveram que


~n>aurar por uma nítida decisão a favor ou contra Cristo em rigorosa disciplina
1loutrln4ria e ética, quando estas comunidades confessantes, forçadas à luta, tiveram
M · reconhecer na neutralidade de muitos cristãos o supremo perigo da decompoll·
Interna e da dissolução da lgteja e até a hostilidade a Cristo propriamente dita,
aauando a exclusividade da exigência de uma clara confissão de Cristo fez decrescer
vez mais o grupo dos cristãos confessantes, quando, portanto, aquela palavra
11
f1Ulm não é por mim, é contra mim" se tomou experiência concreta para a comu-
nhfide cristã, aí ela obteve, justamente através dessa concentração no essencial, uma
Utlirrdade e abertura interna que a preservou de todas as delimitações tímidas; então
aoqrogaram em tomo dela seres humanos vindos de muito longe e aos quais ola
podia negar sua comunhão e sµa proteção; a! o direito vilipendiado, a verdade
i'tmlda, a humanidade buwihada e a liberdade violentada perguntaram por ola, ou
m•dhor, pelo seu Senhor, Jesus Cristo; aí, a outra palavra de Jesus se converteu em
lw taperl&ncia: "Quem não é contra n6s, é por nds."
Ambas as palavras se integram, necessariamente. Uma, como a reivindica·
\1o exclusividade; a outra, como o postulado da abrangência total de Jesus Cria·
it Quanto mais exclusivo, tanto mais livre. A reivindicação isolada de exclusivida·

37
de, entretanto, leva ao fanatismo e à escravidão; a reivindicação isolada de totalida-
de conduz l mundani7.açlo e à autodissoluçlo da Igreja. Quanto mais exclusiva-
mente reconhecermos e confessamios Cristo como nosso Senhor, tanto mais se des-
cortinará para nós a amplitude de seu senhorio.
Não se trata de especulação met.aflsica, de um postulado teológico do logos
8fnrmatfkos; foi a concreta vivência da supressão do direito, da mentira organizada,
da misantropia e violência, foi a perseguição do direito, da verdade, da humanidade,
da liberdade que conduziu as pessoas que estimavam estes valores à proteção de
Jesus Cristo e, com isso, as colocou sob sua reivindicação; foi através disso que a
Igreja se conscientizou da amplitude de sua responsabilidade. A relação de Igreja e
mundo, hoje, não se nos apresenta sob a forma de um desdobramento tranqüilo e
constante do poder do nome de Cristo, como na Idade M&lia, nem sob a forma dos
ensaios dos apologetas dos primeiros séculos que tentaram conjugar o nome de Je-
sus Cristo com nomes e valores humanos para justi:fic4-lo perante o mundo, para
que fossé ouvido e aceito, para adorná-lo, mas sim sob a foi-ma deste reconheci-
mento da origem que brotou e foi concedido no sofrimento, da fuga a Cristo que
aconteceu no meio da perseguição. Não é Cristo que deve se justificar perante o
mundo mediante o reconhecimento dos valores do direito, da verdade e da liberda-
de; são estes valores que se tomaram carentes de justificação, e ela se chama tão-
somente Jesus Cristo. Não cabe uma "cultura cristã" que tome o nome de Jesus
Cristo aceit.ável perante o mundo; pelo contrário, o Cristo crucificado se tomou
ref6gio, justificação, proteção e exigência para os valores superiores e seus defen-
sores em sofrimento• .É junto ao Cristo que sofre e é perseguido em sua comunidade
que direito, verdade, humanidade e liberdade se refugiam. Procura-se a proteção do
Cristo que não teve abrigo na terra, do Cristo da manjedoura e da cruz, excomun-
gado do mundo, mas que s~ assim revela toda a amplitude do seu poder. A cruz de
Cristo torna verdadeiras as duas palavras: "Quem não é por mim, é ci>ntra mim";
a.Quem não é contra nós, é por nós."

Cristo eos Bons

''Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o


reino dos céus." (Mt 5.10.) Não .se fala ·aqui da justiça de Deus e, portanto, não da
perseguição por causa de Jesus Cristo; são bem-aventurados os perseguidos por
uma causa justa - e, podemos acrescentar, por uma causa verdade~ boa, humana
(cf. 1 Pe 3.14 e 2.20). Com esta bem-aventurança, Jesus contesta veementemente a
etrônea timidez 4aqueles cristãos que evitam todo sofrimento por uma causa justa,
boa e verdadeira, a estreiteza, portanto, que coloca sob suspeição qualquer sofri·
mento por uma causa justa e dele se distancia, alegando que s6 poderiam ter cons-
ciência limpa num sofrimento por causa da explícita confissão de fé em Cristo•.Jesus
se importa com aqueles que sofrem por uma causa justa, mesmo que não seja exata-
mente a confissão de seu nome; int.egra-os em sua proteção, em sua responsabilida-
de e em sua reivindicação. Assim, o perseguido por uma causa justa é conduzido a
Cristo; assim acontece que tal pessoa, na hora do sofrimento e da responsabilidade,
invoca Cristo e se confessa cristão - talvez pela primeira vez em sua vida, para ele
mesmo estranho e surpreendente, Porém com a mais profunda necessidade -, por-
que s6 neste momento descobre que._ pertence a Cristo. Tam~ém isto não é hipótese

38
tiltUI experiência que tivemos e em que o poder de Jesus Cristo se revelou sobro
Aro.os da vida em que, até agora, era desconhecido.
Em tempos de estruturas sólidas, onde impera a lei e seu transgressor sofre
aondenação e banimento, é nas figuras do publicano e da prostituta que o Evangelho
do Jesus Cristo se faz compreensível aos seres humanos. "Os publicanos e as mere-
trizes vos precederão no reino dos céus." (Mt 21.31.) Em tempos conturbados,
quando a ilegalidade e a maldade triunfam descaradamente, o Evangelho se eluci-
durat mais nas poucas figuras comprometidas com o que é justo, verdadeiro e hwna-
nu. Outros tempos presenciaram que os maus encontraram o caminho para Cristo e
01 bons ficaram longe. N 6s presenciamos que os bons redescobrem Cristo e os maus
ob1tlnam-se contra ele. Outros tempos puderam pregar: enquanto não te tornares
W;n pecador como este publicano e esta meretriz, não podents achar nem reconhecer
Cdato. N6s deverfamos dizer: enquanto não te tomares um justo, como estas pes-
'°ª que sofrem e lutam por direito, verdade e humanidade, não poderás reconhecer
1 1ehar Cristo. As duas são colocações igualmente paradoxais, impossíveis a rigor.
Contudo, definem a situação. Cristo pertence aos maus e aos bons; eJe lhes pertence
• condição de pecadores, isto é, como pessoas que, no mal e no bem, se separaram
da orlaem.. Chama-os de volta à origem para que não sejam mais bons e maus, mas
. .ldores justificados e santificados. Mas, antes de afinnannos esta d.ltima coisa em
tll maus e bons se confundem perante Cristo e em que a distinção havida em todos
.'.OI tempos está anulada perante ele, não podemos fugir da pergunta que nos é colo-
Wllfa pela nossa experiência e pelo nosso tempo, qual seja: o que significa o fato de
qlll 01 bons acham Cristo? Em outras palavras: qual 1 a rel.ação de Jesus Cristo com
•bons tJ com o bem?
A Igreja, ao fundamentar-se na Escritura, sempre de novo refletiu sobre a ·
Mlwlo de Jesus Cristo com os maus e com o mal. Nas Igrejas da Refomra esta
_llt4o foi dominante; aliás, foi uma das percepções decisivas da Reforma ter arti·
iil)_Mlo neste ponto a palavra evangélica com profundidade e plenitude neotesta-
n.-nt6ia. A relação do bem com Cristo, no entanto, ficou curiosamente intocada. O
aqui era o fariseu e hip6crita que devia ser convencido de sua maldade, ou era a
IJIJllOn que de sua maldade se convertera para Cristo e estava agora por ele capaci-
, lilla para boas obras. O bem, conseqüentemente, era o splendidum vitium dos pa-
1• 18 ou. então, o fruto do Espírito Santo. Com isso, porém, a questão do relaciona-
njftlto de Jesus Cristo com o bem de modo algum estava esgotada; antes, a descura
dila reduziu o Evangelho ao chamado à conversão e consolo de pecador para alco-
61 u, ad6lteros e viciados de todos os tipos e fê-lo perder a sua força com os
Pouco se sabia dizer sobre a conversão do bom a Jesusl.
Se nos sentimos na obrigação de levantar novamente esta questão e refletir
ola, temos que dizer> preliminarmente, que desejamos entender aqui o termo
lltiiitn" cm sua maior abrangência, portanto, simplesmente em contraste ao perverso,
• a.aaI, ao escandaloso, à transgressão pdblica da lei moral, como o bem em con-
"• ao publicano e à meretriz; em tudo isso, a úea do bem contém as mais diver-
• ',ara<fações, desde a preservação puramente exterior da ordem até o mais profun-

39
do auto·exame e formação do caráter, até o sacriffcio pessoal pelos mais altos va-
lores humanos. Foi justa a rebelião contra a saturação burguesa que entendia o bem
simplesmente como ~t.ágio preliminar da fé cristã e onde a progressão do bem para
a convicção cristã deveria realizar-se mais ou menos sem rupturas. Em prot.esto
contra este cômodo desvirtuamento do Evangelho, foi-nos apresentada, esporadi-
camente no decorrer do século XIX e mais acentuadamente e com muita paixão nos
dltimos 20 anos, outra e igualmente perigosa desfiguração do Evangelho em sentido
inverso. A justificação do bom foi substituída pela justificação do mau; em vez da
JdeaHzação das coisas burguesas, sentiu-se complacência na idealização das ~
antiburguesas, contestadoras da ordem, caóticas, anarquistas e catastrofais. O amor
de Jesus que perdoava a grande pecadora, a meretriz, o publicano, foi desfigurado e
transformado, seja por motivos psico16gicos ou polfticos, numa sanção cristã das
"existências marginais" não-burguesas, das prostitutas e dos traidores da pátria. Do
Evangelho do pecador, de cuja força se tratava, se fez, involuntariamente, uma re-
comendação do pecado. O bem - em seu sentido burguês - tomou-se ridículo2.

2 N. do E.: Ano1açlo em um bilhete: ..Emocionalmente mais ou menos mm: 1ambém o bom


burguês é humilde perante Deus, mas o depravado vive s6 da graça." Capftulo não continuado.

40
preensibilidade particular de maculação por ação responsável no mundo às custas de
auto-ilusão. Com tudo que faz, aquilo que deixa de fazer não lhe pennitirá sossego.
Esta intranqüilidade o destruirá ou o tornará o mais hipócrita dos fariseus.
Quem poderia querer censurar tal fracasso e soçobro? Quem não se senti-
ria atingido, tambémt nisto ou naquilo? A razão 1 o fanatismo ético, a consciência, o
dever, a livre responsabilidade, a virtude discreta são bens e posturas de alto valor
humano. São os melhores que assim sucumbem, com tudo que são e sabem. Relem-
bra-se o imorredouro vulto de Dom Quixote,. o cavaleiro de triste figura que con-
fundia a bacia do barbeiro com o elmo e um esquálido pangaré com um corcel, que
vai a intennináveis lutaS ·. pela soberana eleita do seu coração, que nem sequer existe.
É assim que se parece o aventuroso empreendimento de um mundo velho contra um
novo, de um mundo passado contra o poder superior do cotidiano. A profunda
ruptura que há entre as duas partes da grande narrativa também é característica na
medida em que o autor, na segunda parte, que seguiu após muitos anos à primeira,
se bandeia para o lado do mundo ordinmo e gozador, oontra o seu herói.~ barato
demais desprezar as annas que herdamos de nossos pais, com as quais realizaram
grandes feitos, mas que não podem mais satisfazer na presente luta. Só uma pessoa
sem caráter pode ler as peripécias de Dom Quixote sem participação e emoção.
Assim mesmo, é preciso trocar as armas enferrujadas pelas novas. Só
quem souber conjugar simplicidade e inteligência poderá subsistir. Mas, que é sim·
plicidade? Que é inteligência? Como das duas se fará uma'? Simples é quem, em
meio à perversão, confusão e distorção dos conceitos, mantém os oThos voltados
apenas para a simples verdade de Deus, quem não é um aner dipsychos, um homem
de duas almas (Tg 1.8), e sim homem de coração indiviso. Ele se apega aos man-
damentos, ao juízo e à misericórdia que diariamente emanam da boca de Deus,. por-
que tem e conhece a Deus. Não estando amarrado por princípios, mas comprometi-
do pelo amor a Deus. ele se libertou dos problemas e conflitos da decisão ética. Es-
tes não mais o afligem. Ele pertence unicamente a Deus e à vontade de Deus. Pelo
fato de não olhar o mundo de soslaio, além de DeusJ o simples é capaz de encarar
com liberdade e sem preconceitos a realidade do mundo. Assim a simplicidade se
toma inteligência. Inteligente é quem vê a realidade como ela é, quem olha o fundo
das coisas. Por isso, só é inteligente quem vê a realidade em Deus. Percepção da
realidade não é a mesma coisa que conhecimento dos processos exteriores, mas o
vislumbrar da essência das coisas. O mais bem informado não 6 o mais inteligente.
Precisamente ele corre o perigo de, em meio à grande variedade, desconhecer o
essencial. Por outro lado, o conhecimento de um detalhe aparentemente pouco im-
portante muitas vezes abre a visão para a profundeza das coisas. Destarte, o inteli-
gente procurará obter as melhores informações dos acontecimentos. sem, contudo~
se tomar dependente delas. Inteligência é reconhecer o significativo no fatuaJ. O
inteligente sabe que a realidade tem linútada receptividade para princípios, pois sabe
que ela não se estrutura por princfpios, mas repousa no Deus vivo e criador. Sabe,
portanto, também que não se pode acudir a realidade com os mais puros princípios
nem com a melhor das vontades, mas somente com o Deus vivo. Princfpios são ape-
nas instrumentos na mão de Deus que logo são jogados fora como imprestáveis. O
olhar liberto para Deus e para a realidade tal qual subsiste somente em Deus conjuga
simplicidade e inteligência. Não há verdadeira simplicidade sem inteligência, como
não há inteligência sem simplicidade.

43
Isto pode parecer muito teórico e também o 6 enquanto não ficar evidente
onde eata postura tem seu fundamento na realidade e, conseqüentemente, pode tor-
nar-ae real. "Sede inteligentes como as serpentes e sfmplices como as pombas" é
uma palavra de Jesus (Mt 10.16), recebendo sua interpretação, como todas as suas
palavras, apenas dele. Ninguém é capaz de um olhar indiviso a Deus e à realidade do
mundo enquanto houver ruptura entre Deus e o mundo. Em que pese todo o esfor-
ço, continua o soslaio de um para o outro. Todavia, como há um lugar onde Deus e a
realidade do mundo estão reconciliados, onde Deus e o ser humano se tornaram um
ld, 6 possível, e somente por isso é possível abranger Deus e o mundo com o mesmo
olhar. Este lugar não fica em qualquer parte além da realidade, no mundo das idéias;
ftca em meio à hist6~ como milagre divino; fica em Jesus Cristo, o reconciliador
do mundo. Como ideal, a unidade de simplicidade e inteligência está tão condenada
ao fracasso como todas as outras tentativas de prevalecer diante da realidade; é um
ideal impossfvel, altamente contraditório. Porém o mandamento de Jesus adquire
sentido e contornos de real baseado na realidade do mundo reconciliado com Deus
em Jesus Cristo. Quem olha para Jesus Cristo vê, de fato, Deus e o mundo em um
16; doravante não pode ver mais Deus sem o mundo, nem o mundo sem Deus.

Eccehomo

Ecce homo - vede que ser humano! Nele aconteceu a reconciliação do


mundo com Deus. O mundo é vencido não peJa demolição, mas pela reconciliação.
Somente o amor perfeito de Deus, não ideais, programas, consciência, dever, res-
ponsabilidade, virtude, pode enfrentar a realidade e vencê-la. Mais uma vez, não
4 uma idéia genérica de amor, e sim o amor de Deus realmente vivido em Jesus
Cristo que realiza isto. Este amor de Deus ao mundo não se retrai da realidade para
dentro de almas nobres e ~ do mundo, mas vivencia e sofre a realidade do
mundo da forma .mais impiedosa. O mundo extravasa seu ddio no corpo de Jesus
Cristo. O martirizado, por&n, perdoa ao mundo seu pecado. Assim se cumpre are·
conciliação. Ecce homo.
O vulto do reconciliador, do homem-Deus Jesus Cristo, põe-se entre Deus
e o mundo, coloca-se no centro de tudo que acontece. Nele se desvenda o mistério
do mundo, assim como nele se revela o mistério de Deus. Não há abismo do mal que
possa ficar oculto àquele por quem o mundo é reconciliado com Deus. O abismo do
amor de Deus, entretanto, abrange até mesmo a mais abismal impiedade do mundo.
Numa iricompreensfvel inversão de todo pensamento justo e piedoso, Deus declara a
sl mesmo cu]pado em relação ao mundo, apagando, com ~ a culpa do mundo;
Deus mesmo trilha a humilhante via da reconciliação, absolvendo, com isso, o nmn·
do; Deus quer ser culpado da nossa culpa. assumindo castigo e sofrimento que a
culpa trouxe sobre n6s. Deus responde pela impiedade, o amor pelo &lio, o Santo
polo pecador. Agora não há mais impiedade, ódio e pecado que Deus não tenha to-
mado sobre si, sofrido e expiado. Agora não há mais realidade e mundo que não es-
teja reconciliado com Deus e em paz. Isto Deus fez no seu filho querido Jesus
Cristo. Ecce homo!

44
O Desdenhador dos Seres Humanos

Ecce homo - vede o Deus feito ser humo.no, o imperscrutável mistério do


amor de Deus ao mundo. Deus ama o ser humano. Deus ama o mundo. Não um ser
humano ideal, mas o ser humano como ele é, não um mundo ideal, mas o mundo
real. O que nos parece abominável em sua oposição....a Deus, aquilo de que n6s nos
distanciamos em dor e inimizade, o ser humano, o mundo real, isto para Deus é
motivo de insondável amor, com isto ele se une profundamente. Deus se faz ser hu-
mano, ser humano real. Enquanto n6s nos esforçamos para superar nossa condição
humana, no sentido de deixar o humano atrás de nós, Deus se torna ser humano, e
temos que reconhecer que ele deseja que também n6s sejamos seres humanos, seres
humanos reais. Enquanto nós distinguimos entre piedosos e fmpios, bons e maus,
nobres e ordinários, Deus ama o ser humano real sem distinção. Não admite que di-
vidamos o mundo e os seres humanos de acordo com os nossos parâmetros e nos ar-
voremos em juízes sobre eles. Leva-nos ao absurdo~ tomando-se ele mesmo ser hu-
mano verdadeiro e companheiro dos pecadores, obrigando-nos, com isso, a nos
constituir em juízes de Deus. Deus se coloca do lado do ser humano e do mundo
reais, contra todos os seus acusadores. Consente em ser acusado junto com os seres
humanos e com o mundo. transformando 7 ~im, seus acusadores em acusados.
Não basta dizer, entretanto, que Deus se compadece dos seres humanos.
Esta assertiva se baseia em outra, infinitamente mais profunda e mais imperscrutá-
vel ainda em seu sentido, qual seja: Deus assumiu a humanidade corporahnente na
concepção e no nascimento de Jesus Cristo. Deus coloca o seu amor aos seres hu-
manos acima de qualquer acusação de falta de autenticidade, de ddvida e de incerte-
za, entrando ele mesmo na vida humana como ser humano, assumindo e carregando
corporalmente natureza, essência, culpa e sofrimento humanos. Deus se faz ser hu-
mano por amor ao ser humano. Não procura o ser humano mais perfeito para a ele
se unir; assume a realidade do ser humano tal quaJ é. Jesus Cristo não é a transfigu-
ração de alta humanidade, mas o sim de Deus ao ser humano real, não o desapaixo-
nado sim do juiz, mas o misericordioso sim de quem compartilha o sofrimento.
Neste sim está compreendida toda a vida e esperança do mundo. No ser humano
Jesus Cristo aconteceu o veredito sobre toda a humanidade, novamente não o vere-
dito imparcial do juiz, mas o juízo compasmvo daquele que sofre e carrega o destino
de toda a humanidade~ Jesus não é um ser humano. mas o ser humano. O que acon-
tece com ele, acontece ao ser humano, a todos e, portanto, também a n6s. O nome
de Jesus inclui a humanidade inteira e a totalidade de Deus.
A mensagem da encarnação de Deus ataca o cerne duma época que tem no
desprezo ou na idolatria do ser humano o supra-sumo da sabedoria. Na tempestade
as fraquezas da natureza humana se expõem mais claramente do que no fluxo cahno
de tempos tranqllilos. Medo, ganância, dependência e brutalidade se revelam como
molas mestras da ação da grande maioria diante de inusitadas ameaças e chances. O
desprezador desp6tico dos seres humanos, nestes tempos, aproveita facilmente o que
há de ordinário no coração humano, alimentando-o e dando-lhe outros nomes: medo
passa a ser responsabilidade, ganância chama-se aplicação, dependência se trans-
forma em solidariedade, brutalidade em senhorilidade. Assim, no galanteio das fra-
quezas humanas, o ordinário é constantemente produzido e multiplicado. Debaixo
das mais sagradas juras de amor ao ser humano, o mais vil desprezo pelo ser humano

45
duenvolve sua obscura ação. Quanto mais ordinário o ordínmo ficar, tanto mais
· ddoll e flexível instrumento ele se toma nas mãos dos tiranos. Faz-se escárnio dos
poucos fotegros. Sua valentia é tida por rebelião, sua disciplina por farisaísmo, sua
lndepend~ncia por arbitrariedade~ sua senhorilidade por arrogância. Para o desde-
Dbador tirânico dos seres humanos, a popularidade vale como prova do maior amor
IOI sores humanos; ele esconde sua profunda e secreta desconfiança contra todos os
1eres humanos atrás de palavras roubadas de verdadeira comunhão. Conquanto
d.lante da multidão se declare um deles, fica a vangloriar-se na mais repugnante vai-
dade e despreza o direito do indivíduo. Considera os seres humanos bobos e eles se
tomam bobos, considera-os fracos e fracos se tomam, tem-nos por criminosos e
e1ea se transformam em criminosos. Sua mais santa seriedade não passa de jogo frí-
volo, seus probos e carinhosos cuidados são cinismo insolente. Entretanto, quanto
mais procurar, em profundo desprezo pelos seres humanos, o favor dos despreza-
do1, tanto mais certamente despertará a idolatria de sua pessoa por parte da massa.
De.prezo e idolatria do ser humano estão muito próximos um do outro. O bom, no
tntanto, que com perspicácia vê tudo isto, que enojado se retira dos seres humanos.
entregando-os à própria sorte, que prefere cultivar o seu próprio repolho a se pros-
dtulr na vida pdblica, sucumbe à mesma tentação de desprezar os seres humanos
como o malvado. Seu desprezo à humanidade. sem d6vida, é mais nobre, mais sin-
cero, mas também mais estéril, mais pobre em ação. Diante da encarnação de Deus,
ele pode subsistir tão pouco como o desprezo tirânico pelo ser humano. Quem des-
prem os seres humanos despreza o que Deus amou; e mais: despreza a figura do
próprio Deus feito ser humano.
Contudo, há também um amor ao ser humano de sinceras intenções que
equivale ao desprezo. Ele se baseia na avaliação do ser humano pelos valores que
nele dormitam, sua mais profunda sadde, sensatez e bondade. Este amor floresce,
pralmente, em tempos tranqüilos, mu também nas grandes crises o ocasional apa-
recimento destes valores pode tornar-se a base de um amor às pessoas duramente
conquistado e de sinceras intenções. Com forçada complacência, o mal recebe uma
tnterpretação positiva, desconsiderando-se o ordinário e desculpando o que é con-
den4veL Por razões vúias, tem-se receio de um não claro; por fim, acaba~se dizen-
do sim a tudo. Ama-se uma imagem humana de criação própria que pouca seme-
lhança tem com a realidade e, com .isso, por fim acaba·se desprezando novamente o
,.... ser humano a quem Deus amou e cuja natureza assumiu.
Somente pela encarnação de Deus é possfvel conhecer o ser humano real
eom desprezá--lo. O ser hwnano tal qual é pode viver diante de Deus, e nós podemos
delx4-lo viver ao nosso lado diante de Deus. sem o desprezar ou idolatrar. Não que
ilso fosse realmente um valor em si, mas tão-somente porque Deus amou e aceitou
o ser humano tal qual ~ A causa do amor de Deus ao ser humano não está no ser
humano, mas somente em Deus mesmo. A causa pela qual podemos viver como se-
res humanos reais e amar as pessoas ao no~ lado tais quais são é, por sua vez, ex-
clusivamente a encarnação de Deus, o imperscrutável amor de Deus ao ser humano.

46
O Bem·Sucedido

Ecce homfJ - vede o ser humano condenado por Deus. a figura da miséria
e da dor. É assim que se apresenta o reconciliador do mundo. A culpa da humanida-
de caiu sobre ele e lança-o ao opróbrio e à morte sob o juízo de Deus. Este 6 o preço
que Deus paga pela reconciliação com o mundo. Somente pelo ju!w executado por
Deus em si mesmo pode haver paz entre ele e o mundo e entre o ser humano e seu
semelhante.. Por6m o mistério deste ju&.o, deste sofrimento e desta morte ~ o amor
· de Deus ao mundo, ao ser humano. O que aconteceu a Cristo acontece, nele, a tod~
os seres humanos. S6 como julgado por Deus o ser humano pode viver diante dele;
somente o ser humano crucificado está em paz com Deus. Na figura do crucificado
o ser humano reconhece e descobre a si mesmo. Aceita por Deus, julgada e reconci-
liada na cruz: eis a situação real da humanidade.
A um mundo em que o sucesso é o parimetro e a justificação de todas as
coisas, a figura do condenado e crucificado pennanece estranha e, na melhor das hl-
p6tesest digna de compaixão. O mundo quer e deve ser vencido através do sucesso.
Os atos decidem, não idéias ou opiniões. Somente o sucesso justifica injustiça havi-
da. A culpa cicatriza no sucesso. Não faz sentido acusar o bem-sucedido de suas
desvirtudes. Com isso se encalha no passado, enquanto o bem-sucedido vai progre..
clindo de ação em ação, conquistando o futuro e tomando o passado irreversível. O
bem·sucedido cria fatos consumados que nunca mais podem ser revogados; o que
ele destrói nunca mais pode ser reconstruído; o que ele constrói adquire direito de
existência ao menos na geração seguinte. Não há acus~ão que possa restabelecer a
culpa que o bem-sucedido deixou atrás de si Com o tempo, a acusação emudece;
o sucesso fica e determina o curso da história. Os juízes da história são tristes íigu-
ras ao Jado de seus protagonistas. A história passa por cima deles. Não há poder no
mundo que possa ousar invocar com tamanha liberdade e naturalidade a tese de que
o fim.justifica os meios como a histcSria o faz.
No que foi dito se trata de fatos. ainda nlo de avaliaçlies. Hi tr& tipos di-
ferentes de postura dos seres humanos e das 6pocas em relação a est.es fatos.
Onde a figura de alguém bem-sucedido se evidenciar de forma particnlar-
mente marcante, a maioria sucumbe à idolatria do sucesso. Ela se torna cega para
justiça e injustiça, verdade e mentira. decência e canalhice. Só enxerga a ação, o su-
resso. A capacidade de discernimento ético e intelectual se embota diante da gldrla
do bem-sucedido e ·da vontade de abocanhar alguma parte deste sucesso. Falta até o
reconhecimento de que a culpa cicatriza no sucesso, pois a culpa nem ~ mais reco-
nhecida. O sucesso é o bem por excelência. Esta postura s6 6 autêntica e perdoável
num estado de delfrio.. Quando cair em si, o ser humano sõ pode continuar nela à
custa de profunda mendacidade interior e auto ..ilusão consciente. Isso acaba nwna
corrupção interna da qual dificilmente haverá cura.
A tese de que o sucesso é o bem é contestada pela outra que enfoca as
condições do sucesso durável, ou seja, a tese de que s6 o que é bom tem sucesso.
Aqui se preserva a capacidade de discernimento diante do sucesso; aqui justiça con-
tinua sendo justiça. injustiça não deixa de ser injustiça. Aqui não se fecha wn olho
no momento decisivo, para abri-lo somente depois de consumada a ação. Reconhe-
ce·se, também, consciente ou inconscientemen~ uma lei do mundo de acordo oom
a qual a longo prazo direito, verdade e ordem são mais estáveis do que violência,

47
nwntlra e arbitrariedade. Não obstante, esta tese otimista engana: ou é necessário
falaU1car os fatos históricos para comprovar o insucesso do mal, e sem demora se
aMaar' de novo à tese inversa de que o sucesso é o bem, ou se fracassa com o oti-
mlamo diante dos fatos e se acaba nunia difamação de todos os sucessos históricos..
/\ eterna lamentação dos acu8adores da história é que todo sucesso proce-
di do maL Preso l cdtica estéril e· farisaica do aconteçido~ nunca se chega l atuali-
1

. dadc, h awlo, ao sucesso, vendo justamente nisto de novo a confirmação da maldade


do bom-sucedido. Mas, sem querer, também aqui se faz do sucesso o parâmetro de·
todu as coisas, ainda que de forma negativa; não há substancial diferença em ser
o •\ICOUO o par4metro positivo ou negativo de todas ~ coisas. . ·
1
, A figura do crucificado desautoriza todo raciocfnio orientado pelo sucesso1
DOll a1ta maneira de pensar corresponde a uma negação do juízo. Afinal, nem o
ilúnfo do bem-sucedido nem o 6dio ~argo do fracassado ao bem .. sucedido dão
r,almcnte conta do mundo. Jesus certamente não é advogado dos bem-sucedidos na
hlltdrln, mas também não comanda a rebelião das existências fracassadas contra
elo1. Não se trata, com ele, de sucesso ou insucesso, e sim de pronta aceitação do ~
Juko do Deus. S6 no juízo há reconciliação com Deus e entre os seres humanos •.
Ai todo racioclnio que gravita em tomo de sucesso ou insucesso Jesus contrapõe o·.
11.f hµmano julgado por Deus, tanto o bem-sucedido como o malsucedido. Deus jul-
p q Jer humano porque quer fazer com que este subsista perante ele por puro amor.
O que Deôs lança em Cristo sobre o ser humano é um juízo da graça. Na cruz de'
Crfato peus mostra, frente ao bem-sucedido, a santificação da dor,. da miséria; do
t'lacasso, da póbreza, da ~olidão; do desespero. Não que tudo isso tivesse um valor
om si mesmo. Recebe sua santificação, no entanto, pelo amor de Deus, que assume ·
tudo isso epmo juízo. O sim de Deus à cruz é o jufzo sobre o bem-sucedido. O mal-
1\4CCdido, por sua vez, tem que reconhecer que não é o seu insucesso, sua marginali- ·
~lo como tal, mas tão-somente a aceitação do jufzo do amor divino que lhe possi~ ·
bWta subsistir perante Deus. O fato de que a cruz de Cristo, seu fracasso no mundo,
portaoto, leva por sua vez ao sucesso histórico" é um mistério do governo universal
da Deus que não pode ser transformado em regra, ·mas que se repete, aqui e acolá.
QQI aofrimentos de sua comunidade. , · : ~
A humanidade s6 adquire sua verdadeira forma na cruz de Cristo, isto é,
04j)QlO submetid~ a jufZo. -

. A Idolatria da Morte

1
' Ecce homo - v~e o ser humano aceito por Deus. condenado por Deus
1' rtaauscltado por Deus para uma nova vida; vejam o ressu"eto! O sim de Deus =
ao
I01" humano chegou ao alvo passando por jufzo e morte. O amor de Deus ao ser hu-
mano foi mais poderoso do que a morte. Pelo milagre divino foi criado um novo ser
hwnano, urna nova vida,. uma nova criação•.uA vida saiu vitoriosa, ela engoliu ~ a
: · morteo" O amor de Deus se tomou o fim da morte e a vida do ser humano, A hwna~
nldade se fez nova em Jesus Cristo, o encarnado, crucificado e ressurreto. O que
aconteceu com Jesus, aconteceu com todos, porque ele foi o ser humano. O novo
1.
1er hwnano está criado.

· ·

48
O milagre da ressurreição de Cristo tira dos eixos a idolatria da morte na
forma que impera entre nós. Onde a morte é a derradeira coisa. o medo dela e a
obstinação se conjugam. Onde a morte é a 6Itima coisa, a vida terrena é tudo ou na-
da. A obstinação por eternidades terrenas se alia então a um leviano brincar com a
vida, a convulsiva aceitação da vida se alia então a um indiferente desprezo pela vi-
da. Não há nada que denote mais claramente a idolatria da morte do que a pretensão
de uma época de construir para a eternidade, conquanto nessa época a vida não va-
Tha nada, quando se enche a boca a respeito de um novo ser humano, um novo mun-
do. uma nova sociedade que hão de ser criados, conquanto toda esta novidade s6
consista na destruição da vida existente. A radicalidade do sim e do não à vida ter-
rena revela que sõ a morte tem valor. Mas tanto o arrebatar tudo como o jogar tudo
fora assinalam a postura de quem acredita fanaticamente na morte.
Onde, poréID.t se reconhece que o poder da morte foi quebrado, onde o
milagre da ressurreição e da nova vida já ilumina o mundo da morte, não se exigem
coisas eternas da vida; ali se aceita da vida o que ela dá, não na alternativa de tudo
ou nada, mas coisas boas e coisas ruins, imponantes e secundárias, alegria e dor; ali
a pessoa não se apegarll convuJsivamente à vida, mas tamb6m não a jogará fora le-
vianamente; ali o ser humano se contenta com o tempo limitado, sem atribuir eterni-
dade a coisas terrenas; ali se concede à morte o limitado direito que ela ainda retém.
O novo ser humano e o novo mundo se esperam tão-somente do al~m da morte, do
poder que a superou.
O Cristo ressuscitado traz em si a nova humanidade, o último e glorioso
·sún de Deus ao novo ser humano. A humanidade, de fato, ainda vive no antigo, mas
ehi ja está além dele; ela vive ainda num mundo da morte, mas já está além da morte;
ela vive ainda num mundo de pecado, mas ,í' o deixou para trás. A noite não passou,
mas o clia j' está se aowiciando.
Jesus Cristo é o ser humano aceito, julgado e despertado para uma nova
yjda e nele a humanidade toda o é, nõs o somos. Somente a forma de Jesus Cristo
enfrenta o mundo vitoriosamente. É desta forma que emana toda formação de um
mundo reconciliado com Deus.

ConfermaçiW*

O termo "formaç!So"'** desperta nossa suspeita. Estamos fartos dos pro-


gramas cristãos, enfastiados, também, do lema impensado e superficial de um dito
cristianismo prático em lugar de um assim chamado dogmático. Vimos que as forças
plasmadoras do mundo vêm de bem outro lado do que do cristianismo e que o assim
chamado cristianismo prático no m!nimo fracassa tanto no mundo como o dito dog-
mático. É preciso entender sob o termo ...formação" uma coisa bem diferente da-
quela a que estamos habituados. De fato, a Sagrada Escritura fala de formação num
sentido bem estranho para nõs no primeiro momento. Ela não trata, em primeira li~

• N. do T .: G/eichgestallung, no original.
** N, do T.: Gestdlttmg, no origio.al; também poderia ser traduzido por "configuração'', "es-
bururaçlo" ou "moldagem".

49
aba. da estruturação do mundo através de planos e programas; em toda fonnação
4Ja ao interessa tão-somente por aquela ónica forma* que venceu o mundo, isto ~.
,.ia forma de Jesus Cristo. Formação só há a partir dela. porém mais uma vez não
,,_,, .IMlm que a doutrina de Cristo ou os assim chamados princfpios crist§os devessem
-. ' •r aplicados de maneira direta ao mundo e que este devesse ser formado de acordo
oom ele11. Formação só existe como incorporação à forma de Jesus Cristo, como
oontormação com a fonna t1nica do encarnado, crucificado e ressurreto.
Isto não se realiza através do esforço de "tomar-se parecido com Jesus",
oomo estamos acostumados a interpretar, mas pelo fato da forma de Jesus Cristo
qh' sobre n6s por força própria a ponto de moldar a nossa forma de acordo com a
deli (014.19). Cristo permanece o t1nico formador. Não são os cristãos que moldam •
o mundo conforme suas idéias, mas é Cristo que molda os seres humanos para a
oonfonnaçllo com ele. Mas, assim como a fonna de Cristo é mal interpretada onde
• quer entendê-lo como mestre de uma vida piedosa e boa, da mesma forma tam-
Wm a formação do ser humano seria mal entendida se lhe atribufssemos, apenas,
a tnatruçlo para uma vida de piedade e bondade. Cristo é o encarnado, o crucificado
1 o nasuscitado, como a fé cristã o confessa. O sentido da formação de que a Bíblia
tala' ser transformado em sua forma (2 Co 3.18; Fp 3.10; Rm 8.29; 12.2).
Conformado com o encarna.do - isto significa ser realmente humano. O
.-.( 181' humano pode e deve ser humano. Toda mania de super-home~ todo esforço de
. IUperar o humano em si mesmo, todo herofsmo, toda feição de semideus elimi-
nam-se para o ser humano, porque não são verdadeiros. O ser humano real não é
objeto de desprezo nem de idolatria, e sim objeto do amor de Deus. Aqui não se
violenta a variedade da riqueza criadora de Deus através de falsa uniformidade,
IUbmetendo as pessoas à força a um ideal. a um tipo, a uma determinada :imilgem de
·.wr llOf humano. O ser humano real pode, em liberdade, ser a criatura de seu criador.
Ser confonnado com o encarnado significa poder ser o ser bwnano que na realidade
IO IS. Renegam-se as aparências, a lúpocrisia, a convulsão, a compulsão de ser algo
diferente, melhor, mais ideal do que de .fato se é. Deus ama o ser humano real. Deus
fiz.se ser humano real.
Conformado com o crucificado - isto significa ser um ser humano conde-
nado por Deus; o ser humano carrega consigo, todos os dias, a sentença de morte,
~rctada por Deus, a necessidade de ter que morrer diante de Deus por causa do
pecado. Ele testemunha com a proprla vida que perante Deus nada pode subsistir a
nlo ser no juízo e na graça. O ser humano morre, diariamente, a morte do pecador.
Humildemente traz em seu corpo e alma as cicatrizes e as feridas que o pecado lhe
causou. Não pode exaltar-se sobre nenhum outro ser humano nem oferecer-se co-
." mo exemplo, porque se reconhece como o maior dos pecadores. Consegue desculpar
o pecado do outro; o proprio, nuncã. Suporta todo sofrimento que lhe for imposto
na noção de que lhe servirá para morrer com sua vontade própria e para que Deus
tenha razão a seu respeito. S6 está certo perante Deus dando razão a Deus contra si
e quanto a si mesmo. ·~ no sofrimento que o mestre imprime sua imagem de valida-
de universal aos corações e esp1ritos." (K. F. Hartmann.)

• N, cio T~ Gestalt, no original. Também poderia ser traduzido por "figura", Preferimos usar
••torma" para reproduzir o jogo de palavras feito pelo autor.

50
Conformado com o ressuscítado - isto significa ser um novo ser humano
perante Deus. Vive em meio à mort.e, é justo em meio ao pecado, é novo em meio ao
antigo. Ao mundo, seu mistério fica oculto. Vive porque Cristo vive, e vive somente
nele. "Crist.o é a minha vida." (Fp 1.21.) Enquanto a g16ria de Cristo estiver oculta,
também estará "oculta com Cristo, em Deus" (Cl 3.3) a glõria de sua nova vida.
Mas quem sabe das coisas já vislumbra aqui e acolá um raio do futuro. O novo ser
humano vive no mundo como qualquer outro; muitas vezes sõ se düerencia dos ou-
tros em pouca coisa. Também não é sua intenção destacar-se, mas tão-somente
destacar Cristo por causa dos irmãos. Ainda que transfigurado para a forma do
ressuscitado, aqui ele só carrega o sinal da cruz e do juízo. Ao carregá-lo de boa
vontade, revela-se como quem recebeu o Espírito Santo e está unido a Jesus Cristo
em incomparável amor e comunhão.
A forma de Jesus Cristo adquire forma no ser humano. O ser humano não
adquire uma forma própria, autônoma; o que lhe dá forma e o conserva na forma
nova sempre s6 é a forma do próprio Jesus Cristo. Não se trata, portanto, de uma
imitação, de uma repetição de sua forma, mas de sua própria forma que ganha for-
ma no ser humano. Por outro lado, o ser humano não é transfonnado em uma foro1a
que lhe fosse estranha, na de Deus, mas na sua própria forma, na que lhe pertence e
lhe é essencial. O ser humano se torna humano, porque Deus se fez ser humano.
Porém o ser humano não se torna Deus. Assim, não é ele que pode promover a
transformação da sua forma; o próprio Deus muda sua fonna na forma do ser hu-
mano para que este possa ser, se bem que não Deus. humano perante Deus.
Em Cristo foi recriada a forma do ser humano perante Deus. Não foi uma
questão de lugar, época, clima, raça, indivíduo, sociedade, religião ou gosto, mas a
quest.ã.o__qa vida por excelência da humanidade que ela reconhecesse aqw sua ima-
gem e espefunç~. O que aconteceu a Cristo, aconteceu à humanidade. O fato de que
s6 uma parte da humanidade reconhece a forma de seu redentor é um mistério para
o qual não há explicação. O desejo do encarnado de tomar forma em todos os seres
humanos até hoje permanece insatisfeito. Aquele que assumiu a forma do ser huma-
no só pode tomar forma num pequeno grupo: este constitui sua Igreja.
"Formação" significa, J>Or conseguinte, em primeiro lugar que Jesus Cristo
adquire forma em sua Igreja. É a forma do próprio Jesus Cristo que ganha forma
aql.Ú. Em profunda e clara conceituação da matéria em apreço. o Novo Testamento
chama a Igreja de corpo de Cristo. O corpo é a forma. A Igreja, portanto, não é
wna comunidade religiosa de admiradores de Cristo, mas o Cristo que tomou forma
entre os seres humanos. A Igreja pode chamar-se corpo de Cristo porque no corpo
de Jesus Cristo foi assumido realmente o ser humano e, portanto, todos os seres
humanos. A Igreja traz agora a forma que, na verdade, vale para toda a humanida-
de. A imagem de acordo com a qual e1a é formada é a imagem da humanidade. O
que nela se realiza, acontece de forma exemplar e representativa para todos os seres
humanos. É preciso enfatizar, no entanto, que também a Igreja não tem uma forma
própria e autônoma ao lado daque1a de Jesus Cristo, que ela, portanto, não pode rei-
vindicar para si um caráter, direto, autoridade ou dignidade próprios e aut.ônomos
ao lado de Jesus Crist.o. A Igreja nada mais é do que aquela parte da humanidade em
que Cristo realmente tomou forma. É tão-somente da forma de Jesus C~to que se
trata e de nenhuma outra a seu lado. A Igreja é o ser humano humanizado, julgado e
ressuscitado para uma nova vida em Cristo. Ela não trata, por isso, primeira e essen-

51
c!almente, das assim chamadas funções religlosu do ser humam, :e sinl' do ser hu·
mano como um todo na sua existência no mundo e com todos os seus relaciona·
mentol. A causa da Igreja não 6 a religião, mas a forma de Cristo e seu tomar forma
num grupo de pessoas. Se cairmos no menor desvio desta visão, estaremos, inevita-
wlmente, recaindo naqueles programas de formação ética ou religiosa do mundo
dos quais partimos nesta anSise.
Constatamos que numa reflexão cristã e ética s6 podemos falár de forma·
çlo com vistas A forma. Formação não é um processo ou estado aut&nomo e de al·
goma forma desvinculável desta forma. Ela s6 existe 11 partir de e em direção a essa
forma de Jesus Cristo. O ponto de parti.da da ética cristã 6 o corpo de Cristo, a
forma de Cristo na forma da Igreja, a formação da Igreja de acordo com a forma de
Cristo. Somente pela circunsdncia de aquilo que acontece na Igreja na realidade di-
zer respeito a toda a. hnmamdade o termo "fonoação" adquire, indiretamente, sua
impordncia para todos os seres humanos. Não que a Igreja fosse apmientada como
exemplo para o mundo; de formação e mundo s6 se poded falar no sentido de uma
mterpelaçlo da humanidade com vistas a sua verdadeira forma, que lhe 6 pr6pria,
que já iecebeu, que s6 não oompreendo e aceita, qual seja. a forma de Jesus Cristo,
que Jhe pertence, e, assim, no sentido de uma incoJ:poração - por antecipação, de
certo modo - da humanidade AIgreja. Permanece o fato de que também ali onde se
fala em tennos de plasmar o mundo estamos falando da forma de Jesus Cristo.
A forma de Cristo é tínica e idêntica em todos os tempos e lupre.s. Tam·
bém a Igreja de Cristo 6 uma s6 através de todas as gerações. Assim mesmo, Cristo
não é um principio de acordo com o qual todo o mundo devesse ser estruturado.
Cristo nlo 6 arauto de um sistema daquilo que fosse bom hoje, aqui e em todos os
tempos. Não ensina uma ética abstrata que devesse ser imposta a qualquer preço.
Cristo não foi essencialmente professor, Jcgjslador, mas ser humano, ser humano
real como n6s. Por isso, ele não quer que em oosm> tempo sejamos alunos, repre·
sentantes e defensomJ de determinada doutrina, mas seres humanos, seres humanos
reais perante Deus. Cristo não amava, como o especialista em 61ica, uma teoria so·
bre o bem; amava, isto sim, o ser hwnano real. Seu interesse não se voltava, como o
ao
do fildsofo, às "coisas de validade universal", mas àquilo que serve ser humano
real e concreto. Não o importava se a gente pudesse transformar •a mdxima de uma
ação em princípio de uma legislação genf' (Kant), mas se minha ação agora ajuda
ao próximo a ser um ser humano perante Deus. Não se lê que Deus se fez idé"ia,
prlndpio, programa, validade universal, lei, mas que Deus se fez ser humano. Isto
significa que a fonna de Cristo, tão certo como 6 e permanece t\nica e idêntica, de-
seja ganhar forma no ser humano real, vale dh.er, de maneira muito diversificada.
Cristo não elimina a realidade em favor de uma idéia que exigisse realização contra
toda a realidade; antes, faz vigorar a realidade, afirma-a; na verdade, ele 6 o ser hu·
mano real e, 888im, o fundamento de toda realidade humana. Conformação de acor·
do C()m a forma de Cristo inclui. pois, as duas coisas: que a forma de Cristo penna•
nece uma e a mesma, não como idéia geral, mas 'Õnica como e1a é, o Deus encarnado,
crucificado e ressuscitado, e, por outra, que justamente por causa da forma de
Cristo seja preamva4a a forma do ser humano real e que, usim. o ser humano real
assimile a forma de Cristo.

52
O Lugar Concreto

Isto nos afasta de qualquer ética abstrata e nos remete a uma ética con-
creta. A questão não é poder e ter que dizer o que é bom de uma vez para sempre, .
mas como Cristo ganha forma entre n6s hoje e aqui. A tentativa de definir o que se-
ria bom para todos os tempos sempre fracassou por si mesma. Ou o postulado se
tornava tão formal e genérico que não continha mais significado em termos de con-
teódo, ou a tentativa de abranger e organizar a plenitude de todos os conte6dos
imagináveis, para de antemão dizer o que seria certo em cada caso, levou a uma ca-
suística tão incontrolável, que nem o genérico nem o concreto foram devidamente
contemplados. A ética cristã concreta está além do formalismo e da casuística; en-
quanto formalismo e casuística partem da luta do bem com o real, a ética cristã pode
partir da reconciliação já acontecida do mundo com Deus e com o ser humano Jesus
Cristo, da aceitação do ser humano real por parte de Deus.
A questão de como Cristo ganha fomia entre n6s hoje e aqui, isto é, como
somos conformados com sua forma, contém outras difkeis perguntas: que significa
"entre nõs", "hoje", "aqui"? Se é impossível definir para todos os tempos e· espaços
o que venha a ser o ~ pergunta-se para que tempo e espaço, afinal, pode haver
resposta para nossa pergunta. Não deve haver ddvida, por um momento sequer, de
que o segmento que agora tratamos deve ser entendido justamente como apenas um
segmento da humanidade como· um todo. Em qualquer parte de sua hist6ria, o ser
humano é simplesmente aquele que foi aceito por Cristo. Portanto, tudo que se há
de dizer da parte extrapolará para o todo. Não obstante, é precisó responder a per-
gunta que tempos e espaços temos em mente quando queremos falar da foonação
pela forma de Cristo. Trata-se, inicialmente e de fonna genérica, dos tempos e es-
paços que nos dizem respeito, dos quais temos experiência e que são realidade para
nós. São os tempos e espaços que nos formulam questões concretas, nos colocam
tarefas e impõem responsabilidade. No "entre nós", •'hoje" e "aqui,. trata-se, por-
tanto, do espaço de nossas decisões e confrontos. Individualmente, este espaço é,
sem d6vida, de abrangência muito diversa, e poder-se-ia achar, em decorrência
disto, que estas definições ~ ser diluídas até o completo individualismo.
Contrapõe-se a isso, porém, o fato õe-que nossa história nos coloca objetivamente
· em detenninado contexto de experiências)'1esponsabilidades e decisões do qual não
podemos fugir sem abstração. Não importa se temos ou não conhecimento dos de-
talhes: nós, de fato, vivemos neste contexto. Além do mais, ele será caracterizado de
forma especial pelo fato de que, até os nossos tempos, a forma de Cristo foi o seu
fundamento sustentador, conscientemente aceito e reconhecido. Como seres históri-
cos, estamos em meio a um processo de concretização de Cristo num segmento da
hist6ria da humanidade que ele mesmo escolheu. Neste sentido, entendemos como
espaço para o qual desejamos falar o Ocidente, o mundo dos povos da Europa e
América até aqui unido pela fonna de Cristo. Limites menos amplos, uma limitação
à Alemanha, por exemplo, não levaria em conta o fato de que a fonna de Cristo
constitui a unidade dos povos ocidentais e que, por isso mesmo, nenhum deles pode
existir ou ser concebido como existente em isolamento. Limites mais amplos des-
considerariam a misteriosa circunstância da autonomia do mundo ocidental.
No que se segue, não será desenvolvido um programa de moldagem do
mundo ocidental. Não obstante, tratar·se-á de como a forma de Cristo toma fonna

53
..
' 11111. Noaaes formulações não deverão ser nem abstratas nem casufsticas, mas bem
oonorotas. Permanece o postulado de que nenhuma outra fonna pcxle ser colocada
• IO lado daquela de Jesus Cósto, pois s6 ele é o vencedor e reconciliador do mundo.
lomootc esta fonna pode ajudar. Por conseguinte, tudo que se dirá concretamente
eobre o tomar forma desta forma entre n6s, hoje e aqui, se reportará rigorosamente
""ª oaaa forma de Jesus Cristo. Por outro lado, na encarnação de Cristo temos a ga-
rantia de que ele deseja tomar forma entre nós, aqui e agora.
Etica como formação é, portanto, o risco de falar do processo em que a
forma de Jesus Cristo ganha forma em nosso mundo, sem falar de maneira abstrata
• nem casuística, nem de mâneira programática nem meramente reflexiva. Julgamen-
to• e decisões concretas deverão ser arriscadas aqui. Decisão e ação não podem mais
Mr remetidos à consciência pessoal do indivíduo; ao contrário, aqui existem manda-
mentos e instruções concretas para as quais se exige obediência.
ética como formação s6 é possfvel com base na atual presença da forma de
J11ua Cristo em sua Igreja. A Igreja é o lugar onde se proclama e acontece o proces-
-•. ' IO mi que Jesus Cristo toma forma. A ética cristã está a serviço desta prociamação e
deite acontecimento.

. HERANÇA E DECADÊNCIA

Só podemos falar de herança Iústórica no âmbito do mundo ocidental


wtlo. Certamente também no continente asiático há tradições, até mais antigas
que as nossas. Mas elas participam da intemporalidade da existência de lá, e mesmo
onde se processou a melhor integração à existência ocidental, como no Japão, a
' htat6ria guarda caráter mitológico. O primeiro artigo da atual (N. do E.: escrito em
1940) constituição japonesa exige que se acredite na descendência do imperador,
Tonno, da divindade solar. O conceito de herança histórica, ligado à consciência da
llmporalidade e avesso a qualquer interpretação mitológica, só é possível onde a
111trada de Deus na história em determinado lugar e momento, isto é, a encarnação
de Deus em Jesus Cristo, consciente ou inconscientemente detemúna o raciocínio.
Aqui a história se torna séria. sem que seja canonizada. O sim e o não de Deus ã
hlltória que apreendemos na encarnação e crucificação de Jesus Cristo introduzem
uma infinita e irremovfvel tensão ·em qualquer momento histórico. A história não se
torna portador passageiro; ao contrário, pela vida e morte de Jesus Cristo ela setor-
.·· na omincntemente temporal. Ela é lústória aceita por Deus precisamente em sua
fllnporalidade. A questão da herança histórica. portanto, não é a pergunta intem-
poral pelos valores eternamente válidos do passado. Aqui, o ser humano rolocado na
biltõria presta contas a si mesmo sobre o presente, como foi aceito por Deus em
Crilto.
Os antepassados não são, para nós, os ancestrais a quem se presta culto. O
lntercase por genealogias muito facilmente descamba para a mitografia; isso o Novo
T11tamento já sabe (1 Tm 1.4). Os antepassados são testemunhas da entrada de
Deus na história. O fato da aparição de Jesus Cristo há 1.900 anos, por nada mais
u.pllcável, é que conduz o nosso olhar de volta aos ance8trais e desperta a pergunta
pela herança histórica.

54
O Jesus Cristo hist6rico é a continuidade de nossa históri~ Mas, como
Jesus Cristo foi o Messias prometido do povo judeu-israelita, a linhagem de nossos
ascendentes. retrocede além do aparecimento de Jesus Cristo até o povo de Israel.
Pela vontade de Deus, a história ocidental está inseparavelmente ligada a ele, não ·
aÍJenas de forma genética, mas em legítimo e intemrinável confronto. O judeu man-
tém aberta a questão do Cristo. Ele é o sinal da livre escolha da graça e da rejeita-
dora ira de Deus...Considerai a bondade e a seriedade de Deus." (Rm 11.22.) Uma
expulsão dos judeus do Ocidente terá como conseqüência a expulsão de Cristo, pois
Jesus Cristo foi judeu.
De modo bem diferente e extremamente indireto faz parte de nossa heran-
ça histórica a Antiguidade greco-romana. Uma relação diferente, ainda, temos com
o nosso próprio passado nacional pré-cristão.
A Antiguidade tem uma dupla relação com o ~arecimento de Jesus Cris-
to. É a era em que o tempo de Deus se cumpriu, em que L .... i.ls se fez ser humano; é o
mundo que Deus assumiu na encarnação, do qual Deus se serviu para espalhar a
mensagem cristã. A invocação dos direitos de cidadão romano pelo ap6stolo Paulo e
sua apelação ao imperador tomam claro que Roma é colocada a serviço de Cristo.
Contudo, é também a Antiguidade para quem o mais sagrado sinal da presença de
Deus, a cruz, é sinal da mais extrema ignomfn.ia e afastamento de Deus. Nesta dupla
relação da Antiguidade com Cristo ela se toma herança histórica nossa, em sua pro-
ximidade bem como em sua oposição a Cristo.
A herança romana se torna o representante da ligação e assimilação da
Antiguidade com o cristianismo, a grega se constitui em representante de oposição e
hostilidade a Cristo. Enquanto os povos da Europa ocidental, França, Holanda, In-
glaterra e Itália procuraram preponderantemente a herança romana na Antiguidade,
o relacionamento dos alemães com a Antiguidade está preponderantemente marcado
pelo helenismo. Enquanto a herança romana veio a nós em tradição ininterrupta
através da Igreja Cat6lica Romana, na Reforma aconteceu o recurso às fontes gre-
gas. O relacionamento dos povos ocidentais com a Antiguidade é de caráter positivo
e fundamental. Ela se constitui em sólido sistema de vida, especialmente na educa-
ção e na política, tendo como conteúdo o elemento cristão. Os humanistas franceses,
holandeses e ingleses estão a serviço da conciliação da Antiguidade com o cristia-
nismo. Na Alemanha, a tensão, para não dizer rompimento, entre Antiguidade e
cristianismo foi muito sentida nesse amor ao helenismo que, aos olhos dos humanis-
tas ocidentais, é quase irritantemente unilateral. De Winkelmann a Nietzsche há aqui
uma atualização conscientemente anticristã da herança grega. A razão deste relacio-
namento com a Antiguidade, na Alemanha tão diferente daquele dos povos ociden-
tais, está sem dúvida na feição que o Evangelho adquiriu na Alemanha através da
Reforma. Nietzsche só pôde surgir no solo da Refõrmaàie~ã. A oposição do natu-
ral contra a graça se confronta energicamente com a concilia.Ção de natureza e graça
que se encontra na herança romana. A partir daí era possível que Nietzsche rece-
besse - coisa incompreensível para os povos ocidentais - crítica positiva de certa
teologia reformat6ria alemã.
No Ocidente s6 há herança legítima da Antiguidade na medida em que se
relaciona com Cristo. Desvinculada desta relação, a Antiguidade é coisa intempo-
ral, de museu. Somente através de Cristo a Antiguidade se constitui em herança
histórica propriamente dita. Onqe a encarnação de Cristo preponderar no pensa-

55
mento cristão, há de se procurar pela conciliação de Antiguidade e cristianismo.
Onde a cruz de Cristo dominar a pregação cris~ há de se enfatizar o rompimento
ontro Cristo e Antiguidade. Como. no entanto, Cristo é tanto o encarnado quanto o
orucificado e como tal quer ser reconhecido em igual clareza, a correta recepção da
herança histórica da Antiguidade permanece tarefa inacabada do Ocidente, em cuja
10lução comum os povos ocidentais e os alemães hão de se aproximar mais,
Em singular diferença de nossa relação com a Antiguidade, nosso passado
1t11.clonal pré-cristão não tem conosco relação de uma herança histórica, mas de um
contexto natural de crescimento. O motivo disto está no fato indeduz!vel de que só
IUl história alemã - como também francesa e inglesa - a partir do encontro com
C:rlato, a saber, na fonna do cristianismo romano. Também a separação de Roma.
oomo sede do papa. não levou nem na Inglaterra nem na Alemanha ao recurso ao
próprio passado pré-cristão. Na Inglaterra, a herança romana continua até hoje pra-
dcBJnente intocada em sua substância. A nova doutrina da Reforma não mudou
quue nada nisso. Na Alemanha, o rompimento com Roma atinge também o funda-
mento da herança histórica romana; assim mesmo, também aqui não se pensa colo-
onr em seu lugar o próprio passado anterior à cristianização. O motivo não é uma
lrrosponsável alienação das origens nacionais, mas o simples fato de aqui não haver
aut!ntica herança histórica, Recentes tentativas de estabelecer uma conexão com
esse próprio passado pré-cristão vão de mãos dadas com uma mitologização da his-
tória, procedimento este que não tem mais perspectivas de subsistência no mundo
ocidental. Assim, nosso próprio passado pré-cristão permanece conosco como algo
natural, como fudole, ou, se quisermos, como raça. Herança hist6rica ele não é e ja- ..
mais poderá ser.
Bem diferente é o caso de nosso próprio passado cristão. Ele efetivamente
6 herança histórica e, por sinal, herança comum do Ocidente. Jesus Cristo fez do
Ocidente uma unidade histórica. Os grandes marcos da história abrangem todo o
Ocidente. A unidade do Ocidente não é mera idéia, mas uma realidade histórica cuja •
d.nica causa é Cristo. Os grandes movimentos intelectuais doravante são patrimônio
de todo o Ocidente. Até as guerras ocidentais visam a unidade do Ocidente. Não são
auerras de destruição e extermfnio, como nos tempos pré-cristãos e como ainda são
..
poestveis hoje em dia no continente asiático. Por isso, enquanto pretenderem ser
aucrras ocidentais, nunca são guerras totais. A guerra total vale-se de todos os re-
cursos imagináveis que possam servir à causa da preservação nacional. Tudo que
sorve a própria causa é bom e pennitido. As guerras ocidentais sempre fizeram uma
dJltinção entre recursos lícitos e illcitos, corretos e criminosos na condução da
auerra. A desistência dos meios da eliminação de inocentes, da judiação, da extor-
1lo, etc. - talvez eficazes mas anticristãos - foi possfvel por causa da fé num go·
vemo justo do mundo por Deus. A guerra sempre permaneceu algo assim como uma 1
Invocação do juízo de Deus, ao qual ambos os lados estavam dispostos a curvar-se.
á 16 com a perda da fé cristã que o ser humano tem que se valer de todos os recur-
101, inclusive dos criminosos, para forçar a vitória de sua causa. Assim, a guerra ca-
valheiresca travada entre povos cristãos visando a unidade sob o veredito histórico
do Deus, se transformou em guerra de destruição total, na qual tudo se justifica. o
crime inclusive, desde que sirva a própria causa, e na qual o inimigo, com ou sem
armas, é transformado em criminoso. Somente com o advento da guerra total a uni-
dade do Ocidente está ameaçada.

56
A unidade do Ocidente através da forma de Jesus Cristo é a herança que
recebemos dos prirrWrdios de nossa história. Papas e imperadores lutam pela forma-
ção desta unidade. Jesus Cristo é a indiscutível unidade 6ltima acima de ambos. No
papado, a mais alta autoridade cristã, o representante de Cristo na terra, reclama
para si também o supremo poder político com a finalidade de erigir na terra o reino
de Cristo. O poder imperial deduz de sua autoridade máxima em assuntos políticos o
direito aos mais amplos poderes na cristandade. A forma da unidade ocidental é,
para o papa, a Igreja Romana, para o imperador, o imp!irio. Imperador e papa não
procuram derrubar-se reciprocamente; lutam, juntos ou em campos opostos, pela
unidade de Igreja e império, pela unidade na fé e na forma política do Ocidente. A
partir de sua mais profunda pretensão só podem vencer juntos ou cair juntos. Com o
cisma ocidental, também o império entra em decadência. O corpus christianum, a
ordem histórica cristã-ocidental abrangida e governada pelo imperador e pelo papa
por incwnbência de Jesus Cristo, fragmenta-se com a Reforma. A herança da Idade
Média ainda está presente em nosso tempo sob a forma da Igreja Romana. A Igreja
Romana, contudo, é o papado. Este postulado ela proclamou solenemente, em im-
pressionante protesto, justamente na época da decadência interna alemã. É sua rei-
vindicação inignorável que s6 há uma Igreja e uma fé, e que a cristandade precisa de
um cabeça visível. de um supremo pastor que a guie e que em paterna bondade cuide
dos fiéJ.S. Enquanto houver um papado, porém, não poderá morrer a nostalgia do
império ocidental perdido, do corpus christianum, no qual imperador e papa con-
juntamente são os guardiães da unidade do Ocidente cristão.
Com-a Reforma desfez-se a unidade da fé. Não porque Lutero assim o
quisesse; ao contrário, seu pleito era a verdadeira unidade da Igreja. Mas, sob o po-
der da palavra bíblica, ele reconheceu que a unidade da Igreja só podia consistir no
Cristo vivo em sua palavra e sacramento, não nalgum poder político. Com isto ele
despedaçou o arcabouço da Igreja fundamentada na tradição romana. O pastor da
cristandade unida s6 poderia ser um papa que se submetesse, sem restrições, à pala-
vra da Bíblia. Como o papa não podia realizar esta submissão devido às amarras da
tradição, rompeu-se a unidade da crist.andade. O corpus christianum se· decompõe
em seus legítimos componentes: o corpus Christi e o mundo. Em sua Igreja, Cristo
não governa com a espada mas tão-somente com sua palavra. Unidade de fé s6
existe sob a verdadeira palavra de Jesus Cristo. A espada, porém, pertence ao poder
secular, que, à sua maneira, serve ao mesmo Senhor Jesus Cristo no bom exercfcio /
de seu mandato. Existem dois reinos que, enquanto o mundo durar, nunca devem ser
confundidos e misturados, mas também nunca devem ser separados: o reino da pala-
vra de Deus procJamada e o reino da espada, o reino da Igreja e o do mundo, o reino
do offcio espiritual e o da autoridade secular. A espada jamais pode criar a unidade
da Igreja e da fé; nunca a pregação poderá governar os povos. Contudo, o Senhor
de ambos os reinos é o Deus que se revelou em Jesus Cristo. Ele governa o mundo
através do ministério da Pa1avra e do da espada. Os portadores destes ministérios
devem-lhe prestação de contas. S6 há uma Igreja, qual seja, a Igreja da fé, governa-
da somente pela palavra de Jesus Cristo, Esta é a verdadeira Igreja católica, que ja-
mais sucumbiu e que subsiste, oculta, mesmo na Igreja de Roma. Ela é o corpo de
Cristo - corpus Christi -, ela é a verdadeira unidade do Ocidente. Para Lutero, a
questão da unidade política do Ocidente não era tão importante. Entendia que ainda
estava assegurada pela figura do imperador. S6 o reconhecimento do direito de re-

57
..
llldnc:la armada ao imperador por parte dos p11ncipes. ao qlie os amigos o levaram
· 6'duas dJscussões, evidencia também a mptura polflic:a. Em continuação ao
piDlllDellto de Lutero, dever-se-ia direr. de certo, que aiwüdade po]ttk:a consistiria
i.. ''no f1el· oxerclcio do ministério da autoridade p'dblica em cada lugar e que uma auto-
. rtdlde reta acharia o mais s6lido fundamento da unidade política justamente no re-
oonheclmento da verdadeira unidade da fé. A Guerra dos Trinta Anos revelou fi-
nalmente. a fragmentação polltica que o Ocidente acabou sofrendo pelo cisma da f~
O IOOrdo de paz da WestfQia selou a divisão confessional como destino e herança
do Ocidente. Com o reconhecimento desta culpa e desgraça comuns da cristandade
ooldontal que seres humanos não podem mais desfazer tem início, ao mesmo tempo,
"'' uma nova consciência da unidade ocidental dentro e apesar da divisão. A culpa da
Wt.andade ocidental em relação a Jesus Cristo não deveria. como culpa comum,
dlltrulr a unidade do Ocidente existente no nome de Jesus Cristo, que é invocado ~
•IL
Apesar disso se inicia rapidamente e em toda a linha o grande processo de
1"1Ularizaç4o à cuja etapa final hoje assistimos. Do lado protestante achou·se na
mal Interpretada doutrina luterana dos dois reinos a libertação e canonização do
mundo e do natural. Autoridade, razão, economia e cultura reclamam o direito de se
Npr por leis próprias, porém sem entender-se, nessa autonomia, em oposição ao
orlatlaniamo. Antes pelo contrário, entendem estar aqui no verdadeiro culto a Deus
aiafdo pelo cristianismo reformatório. Caiu em profundo esquecimento aqui a
• mensagem originalmente reformatória de que não existe santidade do ser humano
..... nem no profano nem no sacro em ~ mas apenas pela graciosa palavra de Deus que
perdoa pecados. Exalta-se a Reforma como a libertação do ser humano no que diz
•peito a sua consciência, razio, cultura, como a justificação do mundano em si. A
N bfbllco-reformat6rla em Deus desdivinizava o mundo radicalmente. Com isso,
preparou-se o campo para o florescimento das ciências racionais e empíricas. e, en-
quanto os
cientistas dos séculos X VII e X vmainda eram cristãos de fé, com o
dNaparccimento da fé em Deus s6 restou um mundo racionalizado e mecanizado.
Do lado católico, o processo de secularização rapidamente tomou feições
rwvoluclooariamente anti-eclesiásticas, anticristãs até. Assim, foi na França católica

que aconteceu a primeira abertura revolucionária. A Revolução Francesa foi e con-
tinua sendo até hoje o símbolo do Ocidente moderno. Em admirável concentração e
aom f'dria elementar, os pensamentos, reivindicações e movimentos de muitas gera-
p. IUb&eqilentes subitamente são jogados à luz da história. O culto à razão, a divi-
nlllção da natureza, a fé no progresso e a crítica da cultura, a revolta da burguesia e
a rebe.1ilo da massa, nacionalismo e hostilidade à Igreja, direitos humanos e terror
1
dlcatorial - tudo isso irrompe caoticamente como algo novo na história do Ocidente.

A. Revolução Francesa é a revelação do ser humano liberto com seu poder enorme e
om sua mais terrível desfiguração. O ser huinano b"berto significa aqui a razão li-
berta, a classe liberta, o povo liberto. A Revolução Francesa deixou em todo o Oci....
·' dente um profundo assombro diante da imagem deste novo ser humano e um pavor
doe abismos do descaminho. Sentia-se o realmente novo com todas as suas promis-
l&ef, ao mesmo tempo que se receava sobretudo a repetição do horror. Querendo ou
nlo, entretanto. tinha-se que ceder ao novo.
A razão h"bertada sê projetou até uma magnitude inimaginávcL Sua livre
apllcaçlo criou uma atmosfera de veracidade, clareza e lucid~ Os ventos frescos

58
da clareza intelectual sopraram beneficamente nos preoonceitos, presunção social,
falsas etiquetas e sentimentalismo apático: sinceridade intelectual em todas as coisas,
inclusive nas questões da fé, era o grande dote da razão libertada, fazendo parte
desde então dos indeclináveis postulados éticos do ser humano ocidental. O despre-
zo pela época do racionalismo é sinal suspeito de deficiente necessidade de veraci-
dade. O fato da sinceridade intelectual não ser a 1lltima palavra sobre as coisas, da
clareza do raciocínio freqüentemente acontecer às custas da profundeza da realida-
de nunca mais dispensa do dever de consciência de usar a razão de forma honesta e
correta. Não podemos mais voltar atras de Lessing e Lichtenberg. .
A razão libertada provou sua imensurável força menos nas questões da fé
e da vida do que na descoberta da misteriosa correi.ação entre as leis do pensamento
e as da natureza. A razão se toma hipótese de trabalho, princípio heurfstico, e leva,
com isso, ao incomparável desenvolvimento da tecnologia. Trata-se aqui de algo
fundamentaJmente novo na história universal. Das pirâmides egípcias aos templos da
Grécia, das catedrais da Idade Média até o século XVIII a tecnologia era questão de
artesanato. Ela servia à religião, aos reis, à arte e às necessidades cotidianas do ser
humano. A tecnologia do Ocidente moderno libertou-se de qualquer reJação de ser-
viço; na verdade, em essência ela não é serviço mas domfnio, a saber, domínio da
natureza. É uma mentalidade completamente nova que a produz e com cujo desa-
parecimento ela também cessará: é a mentalidade da subjugação violenta da natureza
ao ser humano que pensa e experimenta. A tecnologia se torna um fim em si mesma,
tem sua própria alma; seu s!mbolo é a máquina, a materializada violentação e ex-
ploração da natureza. Por isso, os protestos da ingênua credulidade voltam-se ape-
nas contra a tecnologia da modernidade, o que é bem compreensfveL Ela sente aqui
a arrogancia humana que procura criar um contramwido contra aquele criado por
Deus e vê na tecnologia, que supera limites de tempo e espaço, uma iniciativa con-
trária a Deus. Os beneffcios da tecnologia apagam-se diante dos aspectos demonfa-
cos.
Não se deve ignorar que a tecnologia se desenvolveu unicamente no Oci-
dente, quer dizer, no mundo marcado pelo cristianismo e, de modo especial, pela
Reforma. Ao penetrar em países orientais, ela adquire um sentido completamente
diferente, deixando de ser um fim em si mesma. O desenvolvimento tecnológico no
mundo islâmico, por exemplo, permanece totalmente a serviço da fé em Deus e da
construção da história islâmica. Ibn Saud teria dito numa entrevista: "Não me isolo
da civilização européia, mas a uso de uma forma que corresponda à Antbia, à alma
árabe e à vontade de Deus. Mandei buscar mltquinas da Europa, mas a irreligiosida-
de eu não quero. Os povos muçuJmanos têm que despertar do seu longo sonho. Eles
precisam de armas, porém a arma mais poderosa é a fé em Deus e a humilde obe-
diência às leis divinas. O ódio não vem de Deus. A Europa, repleta de 6dio, vai des-
truir-se com suas próprias annas.'' .
A h'bertaçlo da raz.ão para o domínio sobre a natureza foi que levou ao
triunfo da tecnologia. A era tecnológica é uma autêntica herança de nossa história
ocidental. Temos que nos defrontar com ela; não podemos voltar a um ponto ante-
rior aela.
Foi da razão liberta que se originou a desooberta dos eternos direitos hu-
manos. Eles foram encontrados no direito à liberdade que cada pessoa traz consigo
ao nascer, na igualdade de todas as pessoas diante da lei e no comprometimento

59
fraternal de todos quantos são gente. A partir de um eterno direito de sua natureza,
o ser humano se livra de torpe coação, da tutela de Estado e Igreja, de violentação
soclal e econômica, invoca o direito à dignidade humana, à livre formação, ao reco-
nhecimento do trabalho e vê em outros o irmão ou o inimigo dos direitos humanos.
DJantc deste ataque, a ditadura centralista e absolutista, a tirania intelectual e social,
~reconceitos e privilégios de classe e pretensões eclesiásticas de poder não resistem.
B o humanismo e o idealismo alemão. As classes desfavorecidas começam a mobili-
zar-se. "Para nenhuma parte da nação, nem para algum indivíduo, há privilégio ou
exceção diante do direito público francês." "A lei é a expressão da vontade geral."
(Declaração dos Direitos Humanos.) Primeiro é a burguesia que, como nobreza do
sucesso, conquista sua posição de igualdade de direitos ao Jado da nobreza de berço.
A razão impõe seu direito contra a descendência. Desde então, burguesia e razão
são inseparáveis. Atrás da burguesia, no entanto, avulta obscura e ameaçadora a
massa, a quarta classe, em nome de nada mais do que a própria massa e sua miséria.
Os milhões que não têm nem podem ter outra nobreza do que a miséria de que não
têm culpa, levantam sua acusação e reivindicação contra a nobreza tanto de sangue
como de sucesso. A massa despreza as leis do sangue como da razão e cria para si
a lei da miséria. É uma lei violenta e de curta duração. Nós, contemporâneos, esta-
mos no auge e no ponto crítico desta revolta.
Em curioso contraste com os pensamentos até aqui expostos, preocupados
com a humanidade toda, a Revolução Francesa também se torna o berço do nacio·
nalismo moderno. Quando existia, a consciência nacional tinha até então essencial·
mente caráter dinástico. A revolução, no entanto, foi a libertação do povo do abso·
lutismo do ••o Estado sou eu". O conceito revolucionário de nação formou-se em
oposição a um exarcebado absolutismo dinástico. O povo considerou-se emancipa-
do, capaz de tomar em suas próprias mãos o curso de sua história, tanto no plano
interno como externo; reivindicou o direito de liberdade e desenvolvimento nacio·
nais, o direito de ter um governo com o suporte da nação. "A nação é a origem do
toda soberania." (Declaração dos Direitos Humanos.) A nação é um conceito revo-
lucionário, que toma o partido do povo contra a autoridade, do devir contra o ser,
do orgfurlco contra o institucional. É um raciocínio que parte de baixo contra aquele
que parte de cima. Por isto, é um dos grotescós enganos históricos considerar exa-
tamente a Prússia como o berço e representante do nacionalismo. Não havia Estado
de posição mais reservada e até hostil ao nacionalismo do que a Prússia. Ela era um
Estado, mas não uma nação. Defendia a causa da autoridade, do ser e do institucio-
nal. É bem verdade que defendia tudo isto, em contraste a Luís XIV, segundo o
princfpio de Frederico o Grande: "Eu sou o primeiro servidor do Estado." Em rela·
ção à causa nacional alemã, a Prússia mantinha·posição de profunda desconfiança,
1
que até os tempos da criação do império, e além deles até, sempre de novo se mani·
festava em círculos genuinamente prossianos. A Prússia, com sadio instinto, sentiu o
sabor revolucionário no conceito de nação e o rejeitou. Ao combater o nacionalis·
mo, o prussianismo combatia a revolução da '"grande nação" e seu desdobramento
na Alemanha. O nacionalismo provoca, como movimento contrário, o internaciona·
lismo. Ambos são igualmente revolucionários. Aos dois, a Prússia contrapôs o Esta·
do. Ela não quis ser nacionalista nem internacional. Com isso, seu raciocfnio foi maia
ocidental do que o da revolução. .
Mas a revolução se impôs. Tecnologia, movimentos de massa e nacionalla·

60
ll1<> são a herança ocidental da revolução. Os três têm fntima relação mótua ·e, ao
mesmo tempo, fortes contrastes. Ainda que a tecnologia promova o surgimento das
massas, e estas, por sua vez, exijam aprimoramento tecnol6gico, a tecnologia em si é
coisa de personalidades fortes e intelectualmente superiores. O engenheiro e o em-
presário não faz.em parte da massa, e a questão 6 se, com o tempo, a crescente mas-
sificação não acabará nivelando o desempenho intelectual de tal forma que o desen-
volvimento tecnológico atinja um ponto de estagnação, o que significaria seu co-
lapso. Tecnologia e massa nasceram e estão vinculadas a populações nacionais1·mas
têm irresistível tendência de superar as barreiras do nacionalismo. Massa e naciona-
lismo são hostis à razlo 0 tecnologia e massa são antinacionalistas; nacionalismo e
tecnologia são hostis à massa.
A Revolução Francesa criou a nova unidade espiritual do Ocidente. Con-
siste na libertação dosseres humanos como razão-, massa e povo. Durante a luta peJa
libertação, os três são aliados; depois de obtida a liberdade, tomam-se inimigos
mortais. Por conseguinte, a nova noidacJe j4 traz em si. o germe da decadência.. Evi-
dencia-se, de resto - e nisso se revela uma lei búica da história -, que o desejo de
liberdade absoluta conduz o ser humano à mais profunda servidão. O senhor da má-
quina torna-se seu escravo, a máquina se converte em inimigo do ser humano. A
criatura volta-se contra o seu criador - estranha repetição da queda do ser humano.
A libertação da ·massa desemboca no horroroso imp6rio da guilhotina. O naciona-
lismo inevitavelmente conduz à guerra. A libertação do ser humano, como ideal
absoluto, leva à autodestruição humana. No rmal do caminho que se iniciou com a
Revolução Francesa está o niilismo.
A nova unidade que a Revolução Francesa trouxe para a Europa e a cuja
crise estamos assistindo hoje é, portanto, a impkdade ocidental. ~ completamente
diferente do ateísmo de isoJados pensadores gregos, indianos, chineses e ocidentais.
Não é a negação teórica da existência de um deus. Antes, ela própria constitui-se em
religião, religião por hostilidade a Deus. ~ precisammte nisso que é ocidental. Não
pode livrar-se de seu passado, tem que ser essencialmente religiosa. É isso que a
toma, no entender humano, tão perdidamente ímpia. A impiedade ocidental esten-
de-se desde a religião do bolchevismo até o interior das Igrejas cristãs. Justamente
na Alemanha, mas tamb&n DOS países anglo-saxões, ela 6 impiedade marcadamente
cristã. Sob todas as formas possíveis de cristianismo, sejam nacionalistas, socialistas,
racionalistas ou místicas, ela se volta contra o Deus vivo da Bfblia, contra Cristo.
Seu Deus é o novo ser· humano, náo importando se a "fábrica do novo ser humano"
6 bolchevista ou cristã. A diferença fundamental para com todo paganismo 6 que ali
se adoram deuses sob forma humana, ao passo que aqui, sob a forma de Deus, de
Jesus Cristo até. adora-se o ser humano.
A grande descoberta de Lutero referente à liberdade do cristão e a errônea
doutrina católica da boa ~ncia do ser huniano acabaram juntas no en<fe.nsameuto
do ser humano, O endeusamento do ser humano, pordm. 6, compreendendo corre.;.
tamente, a proclamação do niilismo. Ao destroçar a f6 b1blica em Deus e_todos os
mandamentos e ordenações divinas, o ser humano se destt6i a Bimesmo. Surge um
vitalismo desenfreado que traz consigo a dissolução de todos os valores, sossegando,
apenas, na autodestruição final. no nada.
De,wde a Revolução Francesa, o Ocidente se tornou basicamente hosâl à
Igreja. Invectivas antieclesibticas têm especial sucesso em demago~ modernas.

61
1fd uma ampla frente de ressentimento antieclesiástico através da Europa toda. O
fato do a quantidade daqueles que efetivamente se desligam da Igreja ser surpreen-
dentemente pequena, indica uma circunstancia importante: a ambigüidade da pos-
tura antieclesiástica. Não é possfvel identificar simplesmente a impiedade ocidental
wm a hostilidade à Igreja. Ao lado da impiedade de aparência religioso-cristã. que
chamamos de impiedade sem esperança, existe uma impiedade promissora de lin-
tuaaem anti-religiosa e antiecleswtica. É o protesto contra a impiedade devota, na
medida em que esta corrompeu as Igrejas, e conserva, com isso, de certa ÍOl"IIlit ain-
da que eIJ • sentido negativo, a herança duma verdadeira fé em Deus e duma Igreja
aultntlca. ~ aqui que se encaixa a afirmação de Lutero de que Deus talvez pretira
ouvir as imprecações dos ímpios do que o aleluia dos piedosos. Essa impiedade pro-
mtaaora é, assim como aquela sem esperanças,· um fenômeno especificameote oci-
dental. A renegação completa da Igreja - relativamente rara, apesar da essencial
holdlidade à Igreja - tem que ser compreendida nesta perspectiva: uns procuram na
Impiedade devota um dltimo sustentáculo, para não despencar no vazio; raramente
11eaparlo da queda, no entanto. Aos outros, a impiedade promissora impede de
cbepr ao rompimento com o lugar de uma possível e autêntica fé em Deus. Da
mesma forma os desligamentos da Igreja não são inequívocos. Também eles podem
ICOntccer tanto a partir da impiedade sem esperanças como da promissora, indepen-
dentemente da questão se o desligamento da Igreja não é possível, ou, sob determi-
nadas circunstancias, até necessário, a partir de autêntica fé em Deus.
Neste ponto é preciso lembrar o desenvolvimento especial havido nos pat-
s•s anglo-saxões, especialmente na Amirica. Apesar de ter acontecido quase que
lfmultaneamente e não faltarem interligações poJfticas, a Revolução Americana se
dlldngue profundamente da francesa. A democracia americana não se baseia no ser
humano Uberto; ao contdrio, fundamenta-se no reino de Deus e na limitação de to-
00. os poderes do mundo pela soberania de Deus. ~ verdadeiramente significativo
r
que, à diferença da diclaration des droits de homtM, historiadores americanos
pouam afirmar que sua constituição foi redigida por homens que sabiam do pecado
orlainal e da maldade do coração humano. Aos detentores do poder terreno, mas
tamb6m ao povo, são impostos limites por causa da inata ambição de poder do ser
hwnano e do exclusivo poder de Deus. Com essas idéias oriundas do calvinismo,
Ilia-se outra, basicamente oposta, nascida do espiritualismo dos dissenters fugidos
para a América, no sentido de que o reino de Deus na terra não pode ser construído
ptlo poder do Estado, mas tio-somente pela comunidade dos crentes. A Igreja pro-
ollma os princípios da ordem social e poHtica, cabendo ao Estado providenciar os
meJos técnicos para sua concreti2:ação. As duas argumentações, completamente es-
tranhas entre si, desembocam na exigência de democracia, sendo que o espiritualis-
mo ontusiástico passa a caracterizar o pensamento americano. A partir da( se explica
o curioso fenômeno de que, na Europa continental, nunca se conseguiu fundamentar
wna democracia com princípios cristãos, enquanto que nos pafses anglo-saxões a
democracia é tida como o regime cristão por excelência. A perseguição e expulsão
doa capiritualistas do continente teve as maiores conseqüências políticas aqui. Se
tamb6m os povos anglo-saxões, apesar disso, sofrem grave processo de seculariza-
çlo, convém lembrar que 11 raiz deste não está na mal entendida diferenciação dos
dou ministérios, respectivamente dois reinos, mas na deficient.e diferenciação dos
minist6rios e reinos de Estado e Igreja nos grupos entusUsticos. A pretensão da co-

62
munidade de fé no sentido de organizar o mundo com princípios cristãos leva a
Igreja. como uma olhada no bolhetim eclesiástico de New York mostra claramente,
à total capitulação frente ao mundo. A ausência de uma hostilidade radical contra
a Igreja explica-se pela falta de diferenciação dos ministérios. A impiedade fica mais
velada. Priva a Igreja, no entanto, da bênção do sofrimento e do possível renasci-
mento que dele pcxle advir.
· Com a perda da unidade criada pela fonna de Jesus Cristo, o Ocidente está
diante do nada. As forças soltas esbraveiam umas contra as outras. Tudo que existe
está ameaçado de destruição. Não é uma crise entre outras, mas um conflito dos
derradeiros tempos. O mundo ocidental sente a singularidade do momento em que
vive e se atira aos braços do nada; os cristãos falam entre si do juízo final que está
próximo. O nada para o qual o Ocidente se encaminha não é o fim natural, a morte,
o desaparecimento de uma florescente história de povos; é, mais uma vez, um nada
especificamente ocidental, isto é, um nada de rebelião, violênciã:i-de hostilidade a
Deus e aos seres humanos. Como apostasia de tudo quanto existe, é o desdobra-
mento máximo de todas as forças contrárias a Deus. É o nada como Deus; ninguém
conhece seu alvo e sua medida; impera de fonna absoluta. É um nada criativo, que
-insufla seu Mlito antidivino em tudo que existe, dando-lhe, aparentemente~ nova vi-
_da, ao mesmo tempo que lhe suga a sua essência própria, até que se desfaça como
casca morta e seja jogado fora. Vida, história, famflia, povo, língua, fé - a lista po-
deria ser estendida ao infinito, porque o nada não poupa nada - tornam-se vítimas
do nada.
Em vista do abismo do nada, cessa a pergunta pela herança histórica, cuja
recepção implica, ao mesmo tempo, elaboração no presente e transferência para o
futuro. Não há futuro nem passado. Só existe ainda o momento salvo do nada e a
caça ao próximo momento. Até o que foi ontem cai no esquecimento, e o amanhã
está distante demais para comprometer hoje. Sacode-se o fardo do ontem, ao glori-
ficar tempos pré· históricos; foge-se do compromisso com o amanhã, ao falar dos
próximos mil anos. Nada fica e nada compromete. O filme que coro seu término já
se elimina da lembrança é símbolo da profunda falta de memória desta era. Aconte-
cimentos marcantes para a história universal, bem como crimes inéditos, não conse-
guem deixar um rasto na alma esquecidiça. Brinca-se com o futuro. Apostas e lote-
rias que devoram somas quase inimagináveis e muitas vezes o pão de cada dia do
trabalhador, procuram no futuro tão-somente o improvável acaso. A perda de pas-
sado e futuro faz a vida oscilar entre brutal gozo do momento e aventureiro jogo de
azar. Toda formação interior, todo processo de lento amadurecimento a nível pes-
soal e profissional é interrompido abruptamente. Não .há destino pessoal e, conse-
qüentemente, não há dignidade pessoal. Não se suportam tensões sérias, tempos de
espera interiormente necessários. Isto se evidencia tanto no campo do trabalho co-
mo na área do erotismo. A dor lenta é mais temida do que a morte. Desconhece-se,
e até se ridiculariza, o valor do sofrimento como elemento fonnador da vida através
da ameaça da morte, A alternativa é satide ou morte. Não se suportam autênticas
tensões. O que é tranqüilo, constante e essencial é ignorado. No lugar das "grandes
convicções" e da procura de caminho próprio aparece o leviano velejar conforme o
vento. No campo político, o inescrupuloso desfrute do momento recebe o nome de
maquiavelismo e brincar com a vida se diz ser heroíSmo e ação livre. O que não for
maquiavélico nem heróico só ~de ser entendido como "hipocrisia", exatamente

63
porque não se compreende mais a lentà e penosa luta entre a percepção do correto e
.'iJ' u necessidades do momento, esta autêntica poHd.ca ocidental, portanto, repleta de
rndncias e de real responsabilidade livre. Assim se confunde funestamente força
., oom fraqueza. vinculação histórica com decadência. Como não M nada de caráter
duradouro, quebra-se a base da vida histórica, a confiança, em toda forma. Como
nlo existe confiança na verdade, a propaganda sofista toma seu lugar. Como não há
oonflança na justiça, declara-se justo aquilo que é de proveito. Mas também a con-
ftança não-declarada no próximo, que se baseia na constância, se transfonna em re-
iular e suspeitosa observação recíproca das pessoas. S6 há uma resposta para a per-
JUnta pelo que permanece: o medo do nada. A mais assombrosa constatação que
hoje fazemos é que, diante do nada, abandona-se tudo: o juízo próprio, ser humano,
o próximo. Onde este medo é explorado inescrupulosamente não há liinites para o
que se pode conseguir.
S6 duas coisas podem preservar da queda final no abismo: o milagre de um
1

novo avivamento da fé e o poder que a Bfblia chama de ..aquele que detém", kate-
ahon (2 Ts 2..7). isto é, o poder da ordem equipado com vigorosa força ffsica que
oom êxito bloqueia o caminho dos que estão a despencar no abismo, O milagre é a
a;lo salvadora de Deus, que intervém a partir de cima, do além do historicamente
alcançável e provável, que do nada cria nova vida, é ressurreição dos mortos. "A-
quilo que detém" é o poder que se toma eficaz dentro da lúst6ria pelo governo de
Deus sobre o mundo, colocando limites ao mal. "Aquele que detém" não é Deus,
não está sem culpa, porém Deus se vale dele para preservar o mundo da destruição.
O lugar onde se anuncia o milagre de Deus é a Igreja. "Aquele que detém" é o po- ti
dor de Estado a impor ordem. Por mais diferentes que ambos sejam quanto a sua
...encia, diante do caos iminente se aproximam muito, e o 6dio das forças destrui-
doras visa ambos de igual modo como inimigos mortais.
O Ocidente está a negar a recepção de sua herança histórica como tal. Ele
• BC tomou hostil a Cristo. Esta é a situação fmpar de nossa ~. e trata-se de au-
t6ntica decadência. Em meio à dissolução de tudo estão as Igrejas cristãs como "
auardiãs da herança da Idade Média e da Reforma, e sobretudo como testemunhas
do milagre de Deus em Jesus Cristo "ontem, hoje e em eternidade" (Hb 13.8). A seu
lado, porém, está ••aquele que detém", aquele resto de poder de ordem que se opõe
. com efickia à decomposição. A tarefa da Igreja é fmpar. O corpus christianum se
tragmentou, O corpus Christi enfrenta um mundo hostil. A Igreja tem que testemu-
nhar Jesus Cristo como o Senhor vivo a um mundo que dele se apartou depois de
lt-lo conhecido.. Como portadora de herança histórica, está comprometida com o
futuro histórico em meio à espera pelo dia do jufzo final. A perspectiva do fim de
IOdas as coisas não deve paralisá-la em sua responsabilidade histórica. Ela deve
confiar a Deus tanto o fim como a possibilidade de que a história vá continuar; há de
considerar ambas as coisas. Ao cuidar de seu assunto especffico, isto é, da pregação
de Jesus Cristo ressuscitado, a Igreja golpeia mortalmente o cspfrito da destruição.
"Aquele que detém", o poder da ordem, vê na Igreja o aliado, e tudo que ainda sub-
slatc de elementos da ordem procura a proximidade da Igreja. Direito, verdade,
cl4ncia, arte, cultur~ humanidade, liberdade, amor à pátria conseguem retomar à
oziaem ap6s longos descaminhos. Em tudo isso a Igreja se mostra tanto mais efi-
ciente quanto mais central for a sua mensagem, e seu sofrimento 6 perigo incompa-
ravchnente maior para o espfrito da destruição do que o eventual poder poHtico re-

64
manescente. Com sua mensagem a respeito de Jesus Cristo. o Senhor, a Igreja ma-
nifesta, no entanto, que para ela não se trata, apenas, da preservação de coisas do
passado. Ela obriga justamente também os poderes da ordem a ouvir, a converter-
se. Assim mesmo, não repele aqueles que vêm a ela, que procuram sua proximidade.
Deixa por conta do governo de Deus sobre o mundo se ele concede êxito aos pode-
res da ordem e se a ela mesma - resguardada a distinção, mas em sincera aliança
com eles - é permitido transmitir ao futuro a herança histórica que traz consigo
tanto a bênção como a culpa dos antepassados.

CULPA, JUSTIFICAÇÃO, RENOVAÇÃO

A confissão da culpa

Está em jogo o tomar fonna da fonna de Cristo entre n6s. Trata-se, por-
tanto. do ser humano real, julgado e renovado. O ser humano real, julgado e reno-
vado não existe senão na forma de Jesus Cristo e, conseqüentemente, na conforma-
ção com ele. Somente o ser humano aceito em Jesus Cristo é o ser humano verda-
deiro; somente o ser humano atingido pela cruz de Cristo é o ser humano julgado;
somente o ser humano que tem parte na ressurreição de Cristo é o ser humano re-
novado. Desde que Deus se fez ser humano em Cristo, qualquer pensamento sobre o
ser humano sem o Cristo se converteu em abstração estéril. A antítese do ser huma-
no integrado na forma de Jesus Cristo é o ser humano como seu próprio criador, seu
pr6prio juiz e seu próprio renovador; é o ser humano que vive à margem de sua ver-
dadeira humanidade e, por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde se destrói a si mes-
mo. A apostasia do ser humano em relação a Cristo é, ao mesmo tempo, sua aposta-
sia de sua própria essência.
Conversão s6 há através do reconhecimento da culpa em relação a Cristo.
O que deve ser reconhecido como culpa não são erros e desvios isolados, trans-
g:ress&s de uma lei abstrata, mas a apostasia de Cristo, da forma que deseja tomar
forma em nõs e nos conduzir à nossa verdadeira forma. Verdadeiro reconhecimento
de culpa não nasce das experiências de dissolução e decadência, mas para nõs. que
nos encontramos com a forma de Cristo, somente face a ela mesma. Pressupõe,
portanto, um certo grau de comunhão com esta forma. P~ente por isso é que
é milagre; pois como poderia ter comunhão com Cristo quem dele se apartou, a não
ser pela graça com que o próprio Cristo retém o apóstata, preservando-lhe a comu-
nhão? Reconhecimento de culpa s6 existe por causa da graça de Cristo, por causa da
mão de Cristo que se oferece ao ap6stata. Neste reconhecimento de culpa inicia-se o
processo de conformação do ser humano com Cristo. Nisto esse reconhecimento de
culpa se distingue de qualquer outro que é autoproduzido e estéril.
O lugar onde~ reconhecimento de culpa se torna realidade é a Igreja.
No entanto, isto não deve ser entendklo como se a Igreja, ao lado de outras coisas
que ela é e faz, fosse também o lugar de legítimo reconhecimento de culpa. Antes, a
Igreja é justamente a comunidade de pessoas que, pela graça de Cristo, foram leva-
das ao reconhecimento. da culpa em relação a Cristo. E, portanto, uma afirmação

65
tautol6pca dizer que a Igreja é o lugar·de reconhecimento de culpa. Se diferente
t , · louo. a Igreja não seria mais Igreja. Hoje em dia, a Igreja é a comunhão de pessoas
que, atingidas pelo poder da graça de Cristo, reconhecem. confessam e assumem seu
peoldo pessoal e a apostasia do mundo ocidental como culpa em relação a Jesus
Crllto. B nelas que Jesus realiza sua forma em meio ao mundo. Por isso, tam~ s6
D !areja ~de ser o lugar de renascimento e renovação pessoal e comunitma.
É sinal da ativa presença de Cristo que há pessoas nas quais o recooheci- •
monto da apostasia de Jesus Cristo d mantido vivo não apenas no sentido de cons- •
tati-la em outros, mas de tal forma que elas mesmas se confessam culpadas desta
lpOltaafa. A confissão de culpa acontece sem olhar de soslaio para os que também
alo culpados. É rigorosamente exclusiva. assumindo toda a culpa. Onde ainda se •
ptA e se calcula. a estéril moral da autojusti:ficaçlo ocupa o lugar da confissão de
aulpa diante da forma de Cristo. Justamente por nlo serem erros isolados, mas a
fonna de Cristo a origem da confissão de cuJpa, ela d incondicional e compJeta. Pois
por nenhuma outra coisa Cristo nos dobra mais do que pelo fato de ter assumido a
·: :• OOllBA culpa de maneira incondicional e completa, dizendo-se culpado da nossa culpa
• deixando-nos livres. A visão desta graça de Cristo livra completamente da olha· ·
dola para a culpa dos outros e faz com que o ser humano dobre seus joelhos diante .
de Cristo com a confissão: mea culpa. mea maxima culpa.
Com esta confwão, a culpa do mundo todo recai sobre a Igreja, sobre os
criltllos, e, ao não ser negada mas confessada aqui, abre-se a possibilidade do per-
dia. Coisa completamente incompreensível para o moralista, aqui não se procura o
verdadeiro culpado; não se exige a justa expiação em termos de castigo para o mau e
l'ICOmpensa para o bom; o mau não é coll8iderado presa de sua maldade (de acordo
com a afirmação apocalfptica: "Quem é mau que continue a sê-lo" - Ap 22.11); são
, ot seres hwnanos que assumem realmente toda culpa - não por alguma her6ica de-
alllo de sacrifício, mas shnplesmente dominados por sua própria culpa para com
Criato - e que neste momento não conseguem mais pensar em justiça retnbutiva
para os "culpados principais", mas tão-somente no perdão de sua própria grande
oulpa.
Em primeiro lugar, é o pecado bem pessoal do indivíduo que aqui se iden-
. Wlca como fonte de veneno para a comunidade. Até o pecado mais secreto do incli-
vfduo 6 contanünação e destruição do corpo de Cristo (1 Co 6.15), Da concupis-
• cfncja que há em nossos membros nascem assassinato, inveja, briga. guerra (fg
4.lu.). Não posso tranqüilizar-me, alegando que minha parcela seja fnfima; aqui não
,... IO fazem contas; ao contrário, devo reconhecer que exatamente o meu pecado é
.. ,,...oausa de tudo. Sou culpado de desejos desordenados, sou culpado de covarde &il&-.
elo onde deveria ter falado, sou culpado de hipocrisia e -de falta de veracidade
diante da violência. sou culpado de falta de miseric6rdia e de renegar os mais pobres
doa irmãos, sou culpado de infidelidade e apostasia de Cristo. Que é que importa a
vocts se outros também têm culpa? Qualquer pecado de outro posso desculpar, s6 o
,. meu próprio pecado permanece culpa que jamais posso desculpar. Não se trata duma
dlltorçllo doentia e egocêntrica da realidade; antes, constitui a essência do autêntico
reconhecimento de culpa o fato de não poder mais calcular e disputar, mas reconhe-
cer o próprio pecado de Adão. Não faz sentido, também, querer provar o absurdo
-deite reconhecimento indicando que são incontáveis indivíduos, dos quais cada um
Oltll consciente desta forma de sua culpa no todo. Estes muitos indivíduos se unem

66
no eu global da Igreja. Neles e atrav&; deles a Igreja confessa e reconhece sua culpa.
A Igreja confessa não ter procedido com abertura e c1are7.ll suficientes em
sua pregação do Deus 1hlico que se revelou por todos os tempos em Jesus Cristo e
não tolera outros deuses a ·seu lado. Ela confessa 'Sua temerosidade, seus desvios,
'suas perigosas concessões. Muitas vez.es ela descurou de seu ministério de vigilb.cia
e de seu oficio de consolação. Com isso, negou muitas vezes a devida misericórdia
aos marginaUzados e desprezados. Calou onde.devia gritar, porque o sangue de ino-
centes clamava aos ~us. Não achou a palavra certa na forma certa e ao tempo cer-
to. Não resistiu ate! ao miximo à apostasia e se tomou culpada da impiedade das
massas.
A Igreja admite ter mal-usado o nome de Jesus Crism, ao envergonhar-se
dele diante do muildo e não ter combatido ,com a necessMia veemência o abuso deste
, nome para fins infames; ela assistiu, passivamente, acontecerem violência e injustiça
sob o manto do nome de Crism. Deixou sem réplica, também. o escárnio páblico do
santfssimo nome, favorecendo, com isso, tal escárnio. Reconhece que Deus não dei-
xará impune aquele que, como ela, abusar assim do seu nome.
A Igreja se confessa culpada da perda do dia santo, do esvaziamento de
seus cultos, do desprezo do descanso dominical. Ela se tomou culpada da agitação e
inquietação, mas também da exploração da força de trabalho além do dia d.til, por-
que sua prédica de Jesus Cristo foi fraca e seu culto insípido.
A Igreja confessa ser culpada do desmoronamento da autoridade dos pais.
Ela não se opôs ao desprezo da velhice e à idolatria da juventude por medo de per-
der a juventude e com isso o futuro, como se a juventude fosse .o seu futuro. Ela não
teve a coragem de proclamar a dignidade divina dos pais contra uma juventude em
agitação revolucionária e fez a tentativa bem terrena de "acompanhar a juventude".
Desta forma se tomou culpada da destruição de intúneras famflias, da traição dos
fiJhos aos seus pais, do auto-endeusamento da juventude e, com isso, de seu aban-
dono à apostasia de Cristo.
A Igreja confessa que viu o arbitdrio emprego de violência brutal, o so-
frimento psíquico e fTaico de inocentes sem ntbnero, bem como opressão, ódio e as-
sassinato, sem erguer sua voz a seu favor, sem ter achado caminhos para socorrê-
los. Ela se tomou culpada da vida dos irmãos mais fracos e indefesos de Jesus Cris-
to.
A Igreja confessa não ter achado uma palavra de orientação e auxílio sobre
a dissolução de toda ordem no relacionamento recfproco dos sexos. Ela não soube
opor nada v'1ido e vigoroso ao escárnio da castidade e à prociamaçãÕ da licenciosi-
dade sexual. Não conseguiu passar de ocasional indignação moral. Com isso, tor-
nou-se cu1pada dos problemas de pureza e sadde da juventude. Não soube anunciar
com a devida ênfase que nosso corpo faz parte do corpo de Cristo.
A Igreja confessa que assistiu, silenciosamente, a espoliação e exploração
dos pobres, bem como a enriquecimento e corrupção dos poderosos.
A Igreja confessa ter culpa para com os mdmeros cuja vida foi destrufda
por difamação, denWicia e desonra. Não mostrou o erro ao caluniador e abandonou,
assim, o caluniado a.sua própria sorte.
A Igreja confessa ter aspirado a segurança, sossego, paz, posse e honra-
rias, coisas a que não tinha direito, e que assim não refreou mas estimulou a cobiça
das pessoas.

67
A Igreja confessa sua culpa em relação a todos os dez mandamentos e,
oom lao, confessa sua apostasia de Cristo. Ela não testemunhou a verdade de Deus
de tal forma que toda investigação da verdade, toda ciência reconhecesse sua origem
. ·. nuta verdade; não testemunhou a justiça de Deus de forma que todo verdadeiro
direito visse nela a fonte de sua própria essência; não conseguiu tomar a providência
de Deus tão digna de crédito que toda atividade econômica humana assumisse sua
tarefa a partir dela. Pelo seu próprio silêncio, a Igreja se tomou culpada da perda de
1qlo responsável, de coragem de defender uma causa e de disposição de sofrer pelo
que se reconheceu como certo. Tomou-se culpada pela defecção das autoridades em
nlaçlo a Cristo. .
Foi dito demais? Acaso alguns inteiramente justos gostariam de levan-
tar·ec e provar que a culpa não é da Igreja, e sim exatamente dos outros? Acaso al-
IJUDI líderes da Igreja desejariam repelir tudo isso como grosseira xingação e, na
pr11unção de terem sido chamados para exercer o cargo de juh:es do mundo, pon-
derar e distribuir o peso da culpa aqui e ali? A Igreja, por acaso, não estava impedi-
da e amordaçada por todos os lados? Não é verdade que todo o poder secular estava
contra ela? Seria lícito que a Igreja colocasse em risco seu dl.timo reduto, seus cultos
· e sua vida comunitruia, assumindo a luta contra as forças anticristãs? Assim fala a
dllcrença, que não vê na confissão de culpa a recuperação da fomla de Cristo, que
carregou os pecados do mundo, mas apenas uma perigosa degradação moral. A livre
QOnfissão de culpa não é algo que se possa ou não fazer, e sim a irrupção da forma
do Jesus Cristo na Igreja. Ou ela aceita essa irrupção ou então deixa de ser Igreja de
Crllto. Quem sufoca ou perverte a confissão de culpa da Igreja se toma irremedia-
velmente culpado para com Cristo,
A Igreja, ao confessar a culpa, não dispensa os indivíduos de sua confissão
pueoal; antes, chama-os para se integrarem na comunhão da confissão de culpa. A ..
humanidade apóstata só pode subsistir perante Cristo como julgada por ele. A Igreja
cooclama a todos que possa atingir para se colocarem sob este juízo.

li
Justificação e Cicatrização 1

A Igreja e o indivíduo, julgados em sua culpa, são justificados por aquele


que assume e perdoa toda culpa humana, Jesus Cristo, A justificação da Igreja e do
iocUvfduo consiste em participarem da forma de Cristo. ~ a forma dos seres huma-
nos julgados por Deus, entregues à morte de pecador e ressuscitados por Deus para
:a
wna nova vida. a fonna do ser humano como na realidade é perante Deus. Só na
qualidade de incorporados na infâmia da cruz como morte pd.blica do pecador é que
a Igreja e o indivtauo obtêm a comunhão da gl6ria daquele que foi ressuscitado para
nova justiça e nova vida.

~
1

A justificação do Ocidente apartado de Cristo está unicamente na justifi- i


cação divina da Igreja, que conduz a mesma à confissão plena de culpa e à fomia da
cruz. A renovação do Ocidente, por seu lado, depende unicamente da divina reno-
vação da Igreja, que a conduz à comunhão de Jesus Cristo ressuscitado e vivo.
Ou será que palavras como justificação e renovação do Ocidente são hi·
p6rboles ínadmissf~is, uma vez que jamais todo o Ocidente poderá ser justificado e

68
·renovado pela fé em Jesus Cristo? É de se lembrar, contudo, que é preciso falar em
outro sentido da justificação e renovação da Igreja do que da justificação e renova-
ção do Ocidente. A Igreja é justificada e renovada pela sua fé em Cristo, isto é. pela
submissão à forma de Cristo, O Ocidente, como grandeza hist6rico-polltica, s6 pode
ser "justificado e renovado" indiretamente pela fé da Igreja. A Igreja experi-
menta na fé o perdão de todos os seus pecados e um novo oomeço pela graça. Para
os povos só existe uma cicatrização da culpa com o retorno à ordem, ao direito, à
paz, à liberdade da Igreja na pregação de Jesus Cristo. Desta forma, os povos carre-
gam a herança de sua culpa; ainda assim, pelo bondoso regimento divino na hist6ria,
pode acontecer que aquilo que iniciou na maldição se transforme finalmente em
bênção para os povos, que o poder usurpado se converta em direito, rebelião em or-
dem, derramamento de sangue em paz. Na usurpação da coroa evidenciou-se, fre-
qüentemente, que arbitrariedade e violência fizeram o começo e que então a força
imanente da própria coroa, o poder da divina instituição da autoridade, aos poucos
se manifestou de forma lenitiva e cicatrizante. No decurso de um expansionismo
imperialista que se processou mediante desprezo do direito e com a violentação do
mais fraco, sempre de novo aconteceu uma lenta guinada para o direito, para a paz,
até para a felicidade das vítimas da violência de antes, o que importava numa cica-
trização da culpa cometida. Com isso não se justifica, não se suspende nem se per-
doa a culpa; ela permanece, mas a ferida que havia feito cicatrizou. Enquanto que
para a Igreja e o indivíduo cristão só pode haver um rompimento radical com a cul-
pa e um novo começo dado pelo perdão do pecado, na vida histórica dos povos sem-
pre poderá haver apenas um processo gradativo de cura. O detentor da coroa que a
conquistou injustamente, mas ao correr do tempo promoveu o direito, a ordem e a
paz, não pode ser- simplesmente obrigado a renunciar à coroa; o conquistador que
levou os povos subjugados à paz, prosperidade e felicidade não pode ser simples-
mente obrigado a desistir de sua conquista. Pela rem1ncia à coroa e a desistência da
conquista agora poderiam surgir desordem e culpa maiores. Na vida lústórica dos
povos conserva-se a continuidade com a culpa do passado que, na Igreja e na vida
dos fiéis, é rompida pela penitência e pelo perdão. Importa tão-somente que a culpa
do passado tenha realmente cicatrizado. Neste ponto há algo assim como perdão
também na confrontação histórica dos povos em termos de polftica interna e exter-
na, ainda que seja apenas uma fraca sombra daquele perdão que Jesus Cristo conce-
de à fé. Aqui se dispensa a plena expiação da injustiça cometida pelo culpado; reco-
nhece-se que o passado não pode ser reconstruído por nenhum poder humano, que a
roda da história não pode ser volvida para trás. Nem todas as feridas abertas podem
ser curadas, porém o decisivo é que não se abram novas. A lei da retaliação do .. olho
por olhot dente por dente" (Êx 21.24) fica reservada para Deus, o juiz dos povos,
Nas mãos dos seres humanos s6 produziria nova desdita. Pressuposição para este
perdão intra-histórico é que a culpa tenha cicatrizado ao converter a violência em
direito, arbitrariedade em ordem e guerra em paz. Onde isso não for o caso, onde
a injustiça continuar imperando firmemente e a provocar sempre novas feridas, não
se pode cogitar de tal perdão; ali, a primeira preocupação devera ser a de combater a
injustiça e provar aos culpados a sua culpa.
"Justificação e renovação" do Ocidente s6 haverá, portanto, com a res-
tauração, de alguma maneira, do direito, da ordem e da paz, "perdoando-se" então
a culpa do passado, abandonando-se toda ilusão de poder desfazer o acontecido

69
atravds de ações punitivas e dando-se espaço entre os povos à Igreja de Jesus Cria-
m, como fonte de todo perdão, justificação e ienovaçlo. Assim como a apostasia de
Crlato 6 uma culpa comum do Ocidente, por mais diferenciado que seja o peso do
erro c4 ou 1', do mesmo modo t.a.mb6m s6 havenf uma justificação e renovação co·
mum. Qualquer tentativa de salvar o Ocidente excluindo um de seus povos estará
fadada ao malogro.

'


1

70
IV

AS ÚLTIMAS E AS PENÚLTIMAS COISAS

_ Jusdficaçao conw Palavra Final

Origem e essência de toda vida cristã estão contidas naquele um aconteci-


mento que a Reforma chamou de justificação do pecador somente pela graça. O que
nos explica a vida cristã não é o que o ser humano é em si, mas o que ele é nesse
acontecimento. Aqui a extensão e a amplitude da vida humana estão concentradas
em um s6 momento, um s6 ponto; neste evento se abrange a totalidade da vida. O
que acontece aqui? Algo derradeiro, inatingível ao ser, à ação ou ao sofrimento hu-
manos. O escuro poço da vida humana, trancado de fora e de dentro e a perder-se
cada vez mais em abismos e impasses, é aberto com poder; a palavra de Deus irrom·
pe para dentro dele; pela primeira vez. o ser humano reconhece Deus e o próximo
na luz redentora. O labirinto de sua vida pregressa vem abaixo. O ser humano está
livre para Deus e seus irmãos. Conscientiza-se de que há um Deus que o ama e
aceita. que a seu lado há um irmão que Deus ama da mesma forma como a ele, que
há futuro junto ao tritino Deus com sua comunidade, Cr6, ama. tem esperança.
Passado e futuro de toda a vida se fundem em uma só coisa na presença de Deus. O
passado todo está abrangido pela palavra "perdão", todo o futuro está guardado na
fidelidade de Deus. O pecado do passado foi afundado no abismo do amor de Deus
em Jesus Cristo e nele superado, o futuro - sem pecado, será uma vida nascida de
Deus (1 Jo 3.9), A vida se reconhece estendida e sustentada de um a outro pilar da
eternidade, da eleição antes do tempo do mundo até a salvação eterna; reconhece-se
como membro de uma comunidade e de uma criação que entoa o louvor do trilÍno
Deus. Tudo isso acontece quando Cristo vem aos seres humanos. Em Cristo tudo
isto é verdade e realidade, e justamente por não ser mero sonho, a vida do ser hu-
mano que experimenta a presença de Cristo doravante não está mais perdida, mas se
tornou uma vida justificada, justificada somente pela graça.
Não s6 pela graça apenas, e sim somente pela fé, também. Assim ensinam
a Escritura e a Reforma. Somente a fé justifica uma vida, não o amor ou a esperan-
ça. Pois somente a fé alicerça a vida sobre base nova, e somente esta nova base jus-
tifica que eu possa viver diante de Deus. A base é a vida, morte e ressurreição de
Jesus Cristo, o Senhor. Sem esta base não há justificação para uma vida diante de
Deus. Está abandonada à morte e à condenação. Viver com vistas à vida, morte e
ressurreição de Cristo é justificação de vida perante Deus. Fé, porém, quer dizer
achar e manter esta base, jogar a âncora sobre ela e, assim, ser mantido por ela. Fé
significa fundamentar a vida num fundamento fora de mim mesmo, num funda-

71
monto eterno e santo, em Cristo. Fé significa ser cativo do olhar de Jesus Cristo.
nlo 1nxergar nada mais do que ele. ser arrancado do cativeiro do próprio eu, estar
Ublrto por Jesus Cristo. Fé é um deixar acontecer, e apenas dentro deste acontecer
4 um agir; assim mesmo, estes conceitos são insuficientes para expressar o mistério
1qul contido. Somente a fé é certeza; fora dela. tudo está sujeito a dávida. Jesus
Crilto, somente, é a certeza da fé, Eu confio no Senhor Jesus Cristo que minha vida
Ntlja justificada. Não há outro acesso à justificação da minha vida, portanto, do que
IOmCntc a fé.
Entretanto, a fé nunca está sozinha; tão certo como ela é a verdadeira
pneença de Cristo, com ela estão tamMm amor e esperança. Seria uma fé falsa,
aparente, hip6crita, de invenção própria, que jamais justifica, se amor e esperança
nlo estivessem com ela. Seria uma repetição memorizada de doutrinas, fé morta, se
nlo estivesse acompanhada das obras da penitência e do amor. Por nenhwn mo-
minto fé e maus propósitos podem coexistir. No acont.ecimento da justificação o ser
humano recebe tudo, mas s6 a fé justifica. No encontro com Cristo tudo o que
Crllto é e tem é tomado propriedade do ser humano, mas a minha vida só esut justi-
dcada por aquilo que pertence a Cristo, nunca pelo que me foi transferido.
Abrem-se, assim, os céus sobre o ser humano, e a boa nova da salvação de Deus em
111\11 Cristo vem do céu à terra como brado de alegria, e o ser humano cré e, ao
onr, recebeu a Cristo e tem tudo. Ele vive diante de Deus.
Nunca dantes soube o que é a vida. Não entendia a si mesmo. S6 podia
tentar compreender-se e justificar a sua vida a partir de suas possibilidades ou suas
obras. Assim se justifica perante si mesmo e seu deus ima,ginado. Todavia, inacessí-
veil tinham que pennanecer-Jhe as poimbilidades e obras do Deus vivo, inconcebf-
vel uma vida a partir de suas possibilidades e obras. Uma vida em base estranha, a
partir de força alienígena, de auxflio alheio, isso tinha que permanecer-lhe estranho.
Ble achou esta vida quando Cristo o justificou à sua maneira. Perdeu sua própria vi-
da para Cristo; Cristo, agora, se tornou sua vida. "Já não sou eu que vivo, mas
Crilto vive em mim." (Gl 2.20.) Vida cristã é vida de Cristo.
Diz1amos, no início, que o evento da justificação de um pecador seria algo
dlrradeiro. Nós o afirmamos em sentido estrito. A misericórdia divina com um pe-
Clldor quer e s6 pode ser ouvida como áltima palavra de Deus, ou não é ouvida de
modo algum. O caráter fmal desta palavra contém um duplo sentido: é qualitativa-
mente derradeira, isto é, pelo seu conteõdo. Não há palavra de Deus que suplante
a aua graça. Não existe algo mais do que uma vida justificada perante Deus. Por
conter o rompimento completo com tudo que até agora havia. com as coisas pendl-
dmaa, de modo que e1a jamais é o fim natural ou necess4rio do caminho jtí trilhado,
antce sua condenação e desvalorização completa, por ser a palavra livre, por nada
extorquida e própria de Deus, por isso é palavra irreversivelmente final, realidade
dldma. Exclui, pois, qualquer método de consegui-la por caminhos próprios. Não M
mltodo luterano nem paulino de chegar até a dltima palavra. Nem o caminho de
Paulo, ou seja, o gloriar-se da lei e a conseqüente hostilidade a Cristo, nem o cami-
nho de Lutero, isto é, o convento e o desesperador malogro diante da lei, foram jus-
dflcados pela derradeira palavra; bem ao conllirio, ambos os caminhos caíram na
condenação final. e foram os pecadores Paulo e Lutero, não os seus pecados, que
foram justificados pela graça de Deus por causa de Cristo. A derradeira palavra foi,
ao mesmo tempo, o juízo sobre as pen41timas coisas e caminhos. Por conseguinte, a

72
palavra qualitativamente derradeira profbe-nos de antemão o olhar para 011 caml·
nhos de Lutero e de Paulo, como se tivéssemos que trilhá-lhos novamente. Slo viu
condenadas. A rigor, o caminho de Lutero deve ser repetido por nda tão pouoo
quanto aquele da mulher addltera, do bandido na cruz, do Pedro renegado e do
Paulo que com ardor se empenhava contra Cristo. A pa]avra qualitativamente der·
radeira exclui, uma vez por todas, qualquer método. Pois é a palavra que perdoa e
que justifica somente pelo perdão. Ao contrário do que não raro se pode ouvir hoje
em dia, não faz sentido nem é correto pregar a uma comunidade cristã hodierna que
cada um deveria primeiro tomar-se como Maria Madalena, como o pobre L~,
como o ladrão na cruz, deveria tornar-se como estas pQidas "figuras margina.la"
antes de poder ouvir a derradeira palavra de Deus. Por mais que deste modo se
queira sublinhar o caráter final da palavra de Deus, de fato está-se minando esta
qualidade. O conteódo da mensagem cristã não é tomar-se como uma daquelas fl.
goras bíblicas, mas ser como o próprio Cristo. Não há método que conduza a Is·
so, apenas a fé. De outra forma, o EvangeJho perderia sua preciosidade, seu valor.
A graça preciosa se tornaria barata.
A palavra justificadora de Deus, no entanto, é também derradeira palavra
em sentido cronológico. Há sempre algo de pentiltimo que a precede, um agir, so-
frer, ir, querer, sucumbir, erguer-se, pedir, esperar - portanto, com toda a serieda-
de, um espaço de tempo em cujo termo ela está. S6 pode ser justificado o que já so·
freu acusação no correr do tempo. Supõe que a criatura se tomou culpada. Não 6 a
qualquer hora que é tempo da graça, mas agora, exatamente agora e definitivamente
agora é o "dia da salvação" (2 Co 6.2). Tempo da graça é tempo tiltimo no sentido
de que jamais é possível contar com outra e futura palavra de Deus além daquela
que agora me atinge. Há um tempo de tolerincia, de espera e de preparação por
parte de Deus e há um tempo final que julga e interrompe o pentiltimo. Lutero teve
que passar pelo convento, Paulo teve que passar pela devoção à lei e o ladrão por
culpa própria teve que enfrentar a cruz, para ouvir a tiltima palavra. Era preciso ter
percorrido um caminho, era preciso ter atravessado toda a extensão do itinerário das
pentiltimas coisas, cada um tinha que cair de joelhos sob o fardo destas coisas - e
assim mesmo a derradeira palavra não foi o coroamento, mas o rompimento radical
com o pentil.timo. Frente à palavra til.ti.ma, Lutero e Paulo não estavam em posição
diferente do que o ladrão na cruz.. É mister que se trilhe um caminho, portanto,
apesar de não haver estrada que leve ao alvo, e este caminho tem que ser andado até
o final, quer dizer, até ali onde Deus Jhe põe termo. O pentiltimo continua existindo,
portantO, apesar de ser totalmente suspenso e revogado pelo derradeiro.
A graça justificadora de Deus jamais abandona sua posição de tiltima pala-
vra, jamais se oferece como resultado conquistado que poderia ser colocado tão bem
· no começo como no fim, jamais se pode eliminar a caminhada do pentiltimo ao der-
radeiro. A palavra permanece irreversivelmente o tiltimo, do contrário estaria redu-
zida a algo calculável, a uma mercadoria, e, com isto, despojada de seu caráter divi-
no. A graça ficaria barata; não seria dádiva.

73
O Penúltimo

Uma vez que a justificação por graça e fé somente permanece derradeira


palavra cm todos os sentidos, é preciso, agora, falar também das pendltimas coisas;
nlo como se tivessem algum valor pr6prio, mas de fonna que sua relação com o
derradeiro se torne visíveL Por causa do derradeiro é necessário tratar do penúlti-
a
mo. isso que cabe tomar inteligível agora.
Formulamos aqui a questão, sem dar-lhe resposta já, se o ser humano pode
viver unicamente do derradeiro, se a fé pode ser distendida cronologicamente, por
assim dizer, ou se ela não se concretiza, apenas, sempre como o derradeiro de um
espaço de tempo, de muitos períodos da vida. Não estamos falando aqui da lembran-
ça da fé de tempos passados ou da repetição de artigos da fé, mas da fé viva que
justifica uma vida. Perguntamos se esta fé é e deve ser praticável dia a dia, de hora
em hora, ou se também aqui é preciso atravessar sempre de novo a extensão dope-
011ltimo em função do derradeiro. Perguntamos, pois, pelas penmtimas coisas na vi-
da dos cristãos, se a sua negação é uma piedosa auto-ilusão ou se implica em culpa
tomá-las a sério em suas peculiaridades. Com isto perguntamos também se a Pala-
vra, o Evangelho, pode ser estendido através do tempo, se em qualquer época pode
ser anunciado da mesma forma, ou se também aqui coisas pendltimas e derradeiras
se distinguem. Para deixar bem c1aro: por que é que precisamente em situações bem
sérias - por exemplo, face a alguém duramente atingido pela perda de um ente que-
rido - eu me decido freqüentemente por uma postura "pendlti.ma" - por exemplo,
por uma comunhão no desamparo, testemunhada através do silêncio, diante de tão
duro acontecimento-, em vez de pronunciar, especialmente diante de cristãos, as
palavras bíblicas de consolo que em si conheço e estão à minha disposição? Por que
muitas vezes se fecha minha boca que deveria articular o derradeiro e eu me decido
por uma solidariedade humana de carater pendltimo? ~ desconfiança quanto ao po-
der da derradeira palavra, é medo das pessoas, ou a legitimidade objetiva de tal
comportamento estaria no fato de que o conhecimento e a disponibilidade da Pala-
vra, o domínio espiritual da situação, por assim dizer, s6 teria aparência de coisa tíl-
tima, sendo na realidade algo totalmente pentíltimo? A consciente permanência nas
coisas penl1.ltimas não seria aqui e aco1' a forma mais autêntica de apontar para o
derradeiro, que Deus a seu tempo dirá, se bem que s6 por boca humana também?
Não seria necessário, sempre de novo, o pentilti.mo justamente em função do derra-
deiro, devendo ser praticado de boa e não de má consciência? Nesta questão não se
inclui apenas um caso isolado, mas, em tese. todo o campo de convivência crisd e,
especialmente, toda a área da poimêoica cristã. O que se diz de cada caso isoJado
vale im1meras vezes para a convivência cotidiana de cristãos e para o campo da pre-
gação cristã da comunidade.
A relação de pentí11imo e derradeiro na vida cristã pode ser solucionada de
duas formas extremas, "radicalmente" e como compromisso, devendo-se observar
logo que a solução de compromisso também é uma solução extrema.
A solução radical só vê o derradeiro e nele só o total rompimento com o
pendltimo. Derradeiro e pem1J.timo estão em oposição excludente. Cristo é o des-
truidor e inimigo de tudo que é penl1.ltimo, e tudo que é pendlti.mo é hostil a Cristo.
Cristo é o sinal de que o mundo está maduro para ser entregue ao fogo. Não há di-
ferenciações aqui; tudo irá a juízo. Só há uma distinção: a favor ou contra Cristo.

74
"Quem não esU( comigo, esU( contra mim." (Mt 12.30.) Tudo que é de canttcr pi•
mlltimo no comportamento humano, é pecado e renegação. Face ao impendente fim,
para o cristão só há palavra e postura derradeiras ainda. O que for feito do mundo
por causa disso, não importa; o cristão não tem responsabilidade nisso, e o mundo,
de qualquer maneira, deve perecer. Nem que toda ordem do mundo se faça em po·
daços sob a palavra de Cristo, aqui vale tudo ou nada. A palavra final de Deus, quo
é palavra da graça, se converte aqui na gélida e dura lei que despreza e quebra qual·
quer resistência (cf. a figura de Brandem lbsen).
A outra solução é a solução de compromisso. Aqui se separa, por princípio,
a derradeira palavra de todas as pentlltimas. O pentlltimo mantém seu direito em si
mesmo, mas não é mais posto em perigo ou ameaçado pelo derradeiro. O mundo
ainda está af; o fim ainda não chegou. Contudo, dentro da responsabilidade por este
mundo que Deus criou, coisas pem11timas têm que ser feitas. Ainda se deve contar
com os seres humanos tais quais são. (O grão-inquisidor em Dostoiewsk:i.) O delTa·
deiro pemíanece inteiramente além do cotidiano e com ~o. finahnente, como eterna
justificação de tudo quanto existe, como purificação metafisica da acusação que
pesa sobre tudo que há. Da livre palavra da graça se faz a lei da graça que reina so·
bre tudo que é pentlltimo, o justificando e confirmando.
Ambas as soluções são de igual modo extremas e contêm de igual modo
verdades e erros. São extremas porque confrontam coisas pentlltimas e tlltimas em
oposição excludente: num caso, o derradeiro destrói o pentlltimo; no outro, o derra·
deiro é excluído do campo do pentlltimo. Na primeira, o derradeiro não suporta o
pentlltimo; na segunda, o pentlltimo não agüenta o derradeiro. Ambas são absoluti·
zações illcitas de idéias que em si são igualmente certas e necessárias. A solução ra·
dical desenvolve seu pensamento a partir do fim de todas as coisas, de Deus como
juiz e salvador; a do compromisso parte do Criador e Conservador das coisas. Uns
absolutiza.m o fim, os outros fazem o mesmo com o que existe. Desta maneira, cria·
ção e redenção, tempo e eternidade entram em conflito insolúvel, e se desfaz a pró -
pria unidade de Deus; a fé em Deus se destroça. Aos representantes da solução radi·
cal temos que dizer que Cristo não é radical no sentido que eles entendem; aos
adeptos da solução de compromisSo há que se dizer, igualmente, que Cristo não faz
compromissos. Conseqüentemente, vida cristã não é coisa de radicalismo nem de
compromisso. A discussão em torno da maior seriedade de uma ou de outra posição
é irrelevante diante da seriedade exclusiva de Jesus Cristo, que põe a nu a falta de
seriedade de ambas as soluções. Nem a idéia de um cristianismo puro em si, nem a
idéia do ser humano tal como é em si, são sérlaS; sérias são, tão-somente, a realidade
de Deus e a realidade do ser humano que se tornaram uma só em Jesus Cristo. Não
é qualquer cristianismo, mas Jesus Cristo mesmo que é sério. Em Jesus Cristo, no
entanto, no lugar do radicalismo e do compromisso surge a realidade de Deus e dos
seres humanos. Não há um cristianismo em si; teria que destruir o mundo. Não
existe o ser humano em si; teria que excluir Deus. Ambos são idéias; s6 existe o
Deus-ser humano Jesus Cristo que é real e através do qual o mundo será conserva·
do até que esteja maduro para seu fim.
O radicalismo sempre se origina de um 6dio consciente ou inconsciente
contra o existente. O radicalismo cristão, tanto o que foge do mundo como aquele
que quer reformá-lo, nasce do ódio à criação. O radical não pode perdoar a Deu1
sua criação. Ele está de mal com o mundo criado, o Ivan Karamasow, que ao mesmo
'

75
\
tempo cria a :flgura do Jesus radical na lenda do grão-inquisidor. Quando o mal se
torna poderoso no mundo, mjeta simultaneamente no cristão o veneno do radicalis-
mo. A rcoonciliação com o mundo fal qual é, dada ao cristão por Cristo, é conside-
rada então como traição e renegação de Cristo. Em seu lugar aparecem amargura,
desconfiança, desprezo dos seres humanos e do mundo. Do amor que tudo crê, tudo
suporta, tudo espera, do amor que ama o mundo exatamente em sua maldade com o
amor de Deus (Jo 3.16), se faz a farisaica negação do amor aos maus e sua restrição
ao círculo fechado dos devotos. A Igreja aberta de Jesus Cristo que serve ao mundo
at6 o dltimo mstante se transforma em algum suposto ideal de comunidade cristã
primitiva, que, por sua vez, confunde a realidade de Jesus Cristo vivo com a realiza-
ção de uma idéia cristã. Assim um mundo que se tomou mau consegue tomar maus
também os cristãos. É o mesmo germe que desagrega o mundo e toma os cristãos
radicais. Ambas as vezes é o ódio contra o mundo, seja o ódio dos ímpios ou dos de-
:a
votos. a negação do .artigo da criação por ambos os lados. Com Belzebu, no en-
tanto, não se expulsa o diabo•.
o compromisso nasce sempre do ódio ao derradeiro. o espírito de com-
promisso cristão se orighla do ódio à justificação do pecador somente pela graça. É
preciso proteger. o mundo e a vida que nele M desta -irrupção em seu âmbito. É pre~
ciso dar conta do mundo unicamente com recursos do mundo. O derradeiro não tem
voz ativa na forma da vida no mundo. Até a pergunta pelo derradeiro, a tentativa de
fazer valer a palavra de Deus em sua autoridade para a vida no mundo, é qualificada
agora de radicalismo, de falta de amor às ordens estabelecidas do mundo.e aos seres
humanos a elas vinculados. A liberdade do mundo que Cristo deu aos cristãos e a
ren6ncia a ele (1 Jo 2.17) é tachada de alienação do mundo e dos seres humanos,
desnatural e contrária à ordem da criação, ou até de hostilidade a eles. Em lugar
disso, propõe-se adaptação ao mundo até a resignação, ou insípida esperteza mun-
dana como legítima abertura e mnor cristão ao mundo.
O radicalismo odeia o tempo, o compromisso odeia a eternidade. O radica-
lismo odeia a paciência, o compromisso a decisão. O radicalismo odeia prudência, o
.compromisso a smgeleza. O radicalismo odeia a medida, o compromisso, o imensu-
ráveL O radicalismo odeia o real, o compromisso odeia a Palavra.
Estas contraposições deixam suficientemente claro que ambas as posturas
são de igual modo contrárias a Cristo. Pois o que aqui se defronta em hostilidade é
um em Jesus Cristo. Por conseguhlte, a pergunta pela vida cristã não será decidida e
respondida nem com o radicalismo nem com o compromisso, mas com Jesus Cristo.
Só nele soluciona-se o relacionamento de derradeiro e pendltimo. Em Jesus Cristo
cremos o Deus feito ser humano, crucificado e ressuscitado. Na encarnação reco-
nhecemos o amor de Deus a sua criatura, na crucificação o juízo de Deus sobre toda
carne, na ressurreição o propósito de um novo mundo por parte de Deus. Nada seria
mais errado do que desarticular estas três peças, porque em cada uma o todo está·
contido. Tão inadequado como é elaborar uma teologia da encarnação, uma da cruz
ou uma da ressurreição para contrapô-las entre si pela errônea absolutização de uma
das peças, tão errado é este procedimento também para a reflexão sobre a vida
cristã. Uma ética cristã calcada somente sobre a encarnação facilmente levaria à so-
lução de compromisso; uma outra calcada somente na cruz ou na ressurreição de
Jesus seria presa fácil do radicalismo e do entusiasmo. S6 na unidade o conflito se
desfaz.

76
_ Jesus Cristo, o ser humano, isto significa que Deus entra na realidade orla·
da, que podemos e devemos ser seres humanos perante Deus. A destruição da hu·
manidade é pecado e se constitui em obstáculo para Deus redimir o ser humano.
Mesmo assim, a humanidade de Jesus Cristo não significa simplesmente a confirma·
ção do mundo existente e da natureza humana. Jesus foi ser humano "sem pecado"
(Hb 4.15). Este é o aspecto decisivo. Entre os seres humanos Jesus viveu, no en·
tanto, em extrema pobreza, permaneceu celibatário e morreu como criminoso. Deste
modo a humanidade de Jesus contém uma dupla condenação do ser humano, a ab·
soluta condenação do pecado e a relativa condenação das ordens humanas existen•
tes. Contudo, inclusas estas condenações, Jesus é realmente ser humano e quer que
sejamos seres humanos. Ele deixa que a realidade humana permaneça, sem tomt1-la
autônoma e sein destruí-la, como coisa penaJ.tima, como coisa pen-última que, à sua
maneira, deve e não deve ser levada a sério, como coisa pen-última que se tomou in·
v61ucro do derradeiro.
Jesus Cristo, o crucificado, isto significa que Deus profere seu juízo defl·
nitivo sobre a criação caída. Na rejeição de Deus na cruz de Jesus Cristo está incluf·
da a rejeição da espécie humana, sem exceções. A cruz de Jesus é o veredito de
morte para o mundo. Aqui o ser humano não pode vangloriar-se de sua hwnanida·
de, nem o mundo de suas ordens divinas. Aqui a glória humana chegou ao seu termo
final na visão da face açoitada, ensangüentada e cuspida do crucificado. Contudo, a
crucificação de Jesus não significa simplesmente a aniquilação da criação; cabe aos
seres humanos continuar vivendo sob esse signo de morte da cruz, para seu próprio
juízo se o desprezarem, porém para sua salvação se o aceitarem. O derradeiro se fez
realidade na cruz como juízo sobre o pen-último, mas ao mesmo tempo como graça
para o penfiltimo que se dobra ao juízo do derradeiro.
Jesus Cristo, o ressuscitado, isto significa que Deus, por amor e onipotl!n•
eia, põe termo à morte e suscita uma nova criação, dando nova vida. "Passaram-se
as coisas antigas." (2 Co 5,17.) "Eis que faço tudo novo." (Ap 21.5.) A ressurreiçlo
já iniciou em meio do velho mundo como derradeiro sinal de seu fim e de seu futuro
e, ao mesmo tempo, como viva realidade. Jesus ressuscitou como ser humano; assim,
presenteou os seres humanos com a ressurreição. Assim, o ser humano continua ser
humano, embora seja um ser humano novo e ressuscitado, que de nenhuma forma se
assemelha ao antigo. Contudo, 'ele, que com Cristo já ressuscitou, permanece at6 o
limite de sua morte no mundo das coisas pen-últimas no qual Jesus entrou e onde se
ergue a cruz. Desta maneira, também a ressurreição não suspende o pen-último en·
quanto a terra existir, mas a vida eterna, a nova vida irrompe cada vez com mais vi•
gor na vida terrena e cria nela seu espaço.
Tentamos evidenciar unidade e diferenciação de encarnação, cruz e res-
surreição. Vida cristã é vida com Jesus Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado,
cuja palavra como totalidade se encontra conosco no Evangelho da justificaçlo do
pecador pela graça. Vida cristã significa ser gente no poder da encarnação, significa
estar julgado e perdoado no poder da cruz, significa viver uma nova vida no poder
da ressurreição. Uma não existe sem a outra.
Para a questão do relacionamento com o pen-último, do que foi exposto atd
aqui resulta que a vida cristã não denota nem destruição nem aprovação do pendlti•
mo, de maneira que em Cristo a realidade de Deus se encontra com a realidade do
mundo, fazendo-nos partícipes deste real encontro. É um confronto além de qu&l•
1

77
quer radicalismo e compromisso. Vida cristã significa participar do encontrá de
Cristo com o mundo.
Como ficou claro que a partir do derradeiro é mantido aberto um certo es-
paço para o pentlltimo, teremos que analisar este de forma inais precisa.

Preparação de Caminho

Que é ~te pentlltimo? É tudo quanto precede o derradeiro - a justificação


do pecador somente pela graça - e é tratado como pentlltimo a partir do derradeiro
encontrado. É, ao mesmo tempo, tudo quanto segue ao derradeiro para novamente
precedê-lo. Não há, portanto, pentlltimo em si, assim que qualquer coisa pudesse
justificar-se em si como algo pentlltimo; antes, algo s6 se toma pentlltimo através do
derradeiro, isto é, no momento em que já foi revogado. O pentlltimo não é condição
para o derradeiro; ao contrário, o derradeiro condiciona o pentlltimo. O pentlltimo
não é, então, um estado de coisas em si, mas uma sentença do derradeiro sobre o que
o precedeu. A justificação do pecador pela graça lembra aqui concretamente duas
coisas como penúltimo: ser humano e ser bom. Seria errado e até um aviltamento do
derradeiro considerar o ser gente,. por exemplo, como condição da justificação pela
graça. Antes, s6 a partir do derradeiro se pode reconhecer o que significa ser huma-
no; assim, o ser gente é condicionado e fundamentado através da justificação. Con-
tudo, é um fato que o ser gente precede ajustificação e que, visto a partir do derra-
deiro, tem que precedê-lo. Através do pentlltimo não se suspende a liberdade do
derradeiro; pelo contrário, pela liberdade do derradeir() o pentlltimo adquire valida-
de. Deste modo, podemos considerar o ser gente - coni todas as restrições necessá-
rias - como pentlltimo para a justificação pela graça; S6 o ser humano pode ser jus-
tificado, pelo simples fato de que s6 o justificado se torna realmente "ser humano".
Decorre disto algo decisivamente importante: o pentlltimo tem que ser
preservado em função do derradeiro. Uma destruição arbitrária do pen61timo impli-
ca em sério prejuízo para o derradeiro. Onde, por exemplo, uma vida humana for
privada das condições que fazem parte do ser gente, a justificação de tal vida por
graça e fé, ainda que não impossibilitada, é seriamente dificultada. Concretamente: o
escravo privado de disponibilidade de tempo a ponto de não poder mais ouvir apre-
gação da Palavra, em todo caso não pode ser levado à fé justificadora por esta pala-
vra de Deus. Decorre deste fato a necessidade de, através da pregação da derradeira
palavra de Deus, da justificação do pecador pela graça somente, preocupar-se tam-
bém com as coisas pentlltimas no sentido de que o derradeiro não seja impedido pela
destruição do pentlltimo. O pregador da Palavra que ao mesmo teinpo não fizer tudo
para que essa Palavra possa realmente ser ouvida, não corresponde à reivindicação
da Palavra por curso livre e caminho aberto. ~'preciso preparar o caminho para a
Palavra. Ela pr6pria exige isso.
Preparação de caminho para a Palavra: é dissQ que se trata em tudo que se
diz das coisas pentlltimas. "Preparai o caminho do Senhor, aplainai as suas veredas!
Todos os vales serão aterrados, todos os montes e colinas serão abaixados; as vias
sinuosas se transformarão em retas, e os caminhos acidentados serão nivelados; e
toda carne verá o salvador de Deus." ~ 3.4ss.) É beD:} verdade que Cristo, quando

78
vier, abrirá seu próprio caminho; ele é "aquele que rompe todos os grllhõu" (Mq
2.13). "Ele quebra as portas de bronze e despedaça as trancas de ferro." (SI 107. J6,)
"Depõe os poderosos de seus tronos e exalta os humilde&• (Lc 1.52.> A sua entrada •
um desfile de vitória sobre seus inimigos. Mas, para que o poder de sua chegada nlo
derrobe em ira os setes humanos, antes os encontre como humildes expectantol, o
a
chamado à preparação do caminho precede entrada. Esta preparação do caminho
não é apenas um acontecimento de foro íntimo, mas ação formativa de ampla e vilf·
vel abrangência. "Os vales serão levantados." (Is 40A.) O que-=foi empurrado para
as profundezas da miséria humana, o envilecido e humilhado deverá ser erguido. Hat
uma profundeza de falta de liberdade, pobreza e ignorAncia humana que impede a
vinda misericordiosa de Cristo. "Os montes e colinas serão abaixados." (Is 40.4,)
Para a vinda de Cristo, tudo que é orgulhoso e altivo deverá curvar-se. Há uma mo·
dida de poder, de riqueza e de saber que se constitui em obstáculo para Cristo o 11ua
graça. "As vias sinuosas se transformarão em retas." (Lc 3.5.) O caminho de Crlato
é um caminho reto. Há um grau de envolvimento na mentira, na culpa, no próprio
trabalho, na própria obra (SI 9.17) e no amor de si mesmo que dificulta eapocial~
mente a vinda da graça. Por isso, deve-se tomar reto o camhlho no qual Cristo vem
ao ser humano. "Os caminhos acidentados serão nivelados.'' (Lc 3.5.) Obstinaçlo,
pertinácia e rejeição podem ter endurecido o ser humano a tal ponto que Jesus 16
pode destruir em ira o contumaz, mas não penetrar nele em graça, de modo quo OI•
teja posto o ferrolho à vinda de Cristo em graça e não se abra nenhuma porta para
aquele que bate.
Cristo vem e abre o seu cammho, não importando se o ser humano estiver
mais ou menos preparado. Ninguém pode impedir sua vinda, porém nõs podemot
opor-nos à sua vinda em graça. Há situações do coração, da vida e do mundo que
estorvam de modo especial o :reoebimento da graça, isto 6, que dificultam finalmente
a po88Iõilidade de crer. Estamos dizendo que dificultam, estorvam, mas não afirma·
mos que a tomam impossfveL Sabemos muito bem que mesmo o caminho plano, o
afastamento dos obstáculos não pode forçar a vinda da graça, que também a milori·
cordiosa vinda de Cristo sempre tem que quebrar ainda portas de bronze e despeda•
çar trancas de ferro (Sl 107.16), que a graça, em óltima análise, sempre tem que
abrir e aplainar mesmo seu caminho, que apenas ela, sempre de novo, tem que tor•
nar possível o imposstveL Entretanto, tudo isso não nos dispensa de preparar o ca·
minho para a vinda da graça, tirando tudo que a estorva e dificulta. Não~ indife•
rente em que estado a graça nos encontre, mesmo que o fato de vir a n6s nunca seja
outra coisa do que graça. Entre outras coisas, podemos criar dificuldades para cho•
garmos a fé. Para aquele que sofre de extrema infâmia, abandono, pobreza e falta de
assistência, toma-se diflcil crer na justiça e bondade de Deus; tem dificuldade para
ouvir os .mandamentos de Deus em fé aquele cuja vida sofre de desordem e indi1ci·
plina; para os satisfeitos e poderosos, é diflcil compreender o juízo e a graça de
Deus. Dificilmente uma pessoa que se desiludiu com heresias e interiormente ae
transformou em indisciplinada encontrant o caminho para entregar com simpllcldl•
de seu coração a Jesus Cristo. Não dizemos isto nem para desculpar, nem para deu..
nimar os que nisso se enquadram. Pelo contt*io, devem saber que, em Jesus Crllto,
Deus se inclina exatamente para o abismo da queda, da culpa, da mis&:ia, que o dl·
reito e a graça de Deus estão pr6ximos justamente dos injustiçados, humilhadOI 1
explorados, que o auxflio e a força de Cristo se oferecem ao indisciplinado, que n

79
verdade quer reassentar em bases firmes os errados e desesperados.
Tudo isso não exclui a tarefa da prCJparação do caminho. Antes, é uma
mildo do enorme responsabilidade para todos 4uantos sabem da vinda de Cristo. O
faminto precisa de pão, o desabrigado de moradia. o lltjustiçado de direito, o isolado
de comunhão, o indisciplinado de ordem, 0 escf8VO de liberdade. Deixar o faminto
com sua fome, alegando que na miséria 0 ~ estaria mais perto de Deus, seria
blasfemar a Deus e ao próximo. Por causa do aP10f de Cristo, que tanto vale para o
faminto como para mim, repartimos 0 pão com ele, compartilhamos o teto. Se o fa-
minto não chegar à fé, a culpa recai sobre aq~ que lhe negaram o pão. Providen-
ciar pio para o faminto é preparação para a vind'l da graça.
Entretanto, é coisa pendltima que aq1'i acontece. Dar o pão ao faminto
ainda não significa anunciar-lhe a justificação e a graça de Deus, e ter recebido pão
ainda não importa em crer. Mas, para aquele que sabe do derradeiro e em sua fun-
ção o faz, estas coisas pendltimas estão relaeiÍonadas com · o de~o. ~ 3.lgo
pena/timo. A vinda da graça é o derradeiro. N6s, no entanto, temos que falar da
preparação do caminho, das coisas pendltimas par causa daqueles que fracassaram
com seu radicalismo que nega as coisas pendltmJllS e correm perigo agora de serem
rechaçados para aquém das coisas pentlltimas; p0r causa daqueles, também, que fi-
cam presos nas coisas penúltimas e se contentam com elas e que devem ser reivindi-
cados para o derradeiro. Falamos das coisas peoáltimas. finalmente, e talvez sobre-
tudo, por causa daqueles que nem sequer cheg~ às coisas pentlltimas, para os
quais ninguém presta este serviço, para os quais ninguém preparou o caminho, mas
que agora necessitam de auxffi.o para que a pa1tivra de Deus, o derradeiro, a graça
possa chegar a eles.
Seria um equívoco, evidentemente, u r que primeiro o escravo deveria
ter sua hõerdade, o injustiçado seu direito e o fatJÜllfO seu pão, isto é, que os valores
deveriam ser colocados em ordem antes que ~ tornar-se cristão. Contra isso
está o testemunho do Novo Testamento e da IJisiória eclesiástica, e talvez o afasta-
mento da fé tenha sido especialmente expressivo e assustador em épocas em que o
mundo aparentemente gozava de relativa orden'- Na preparação do caminho para
Cristo não pode tratar:se, portanto, da, simples criação de condições desejáveis e
funcionais, ou seja, da concretização de ôm pro~ de reformas sociais. Tão certo
como na preparação do caminho se trata de intetferências concretas no mundo visf-
vel, tão palpáveis e visfveis quanto o são fome e alimentação, tudo depende de que
essa ação seja uma realidade espiritual, exatamente porque, em tlltima análise, não se
trata de uma reforma das condições do mundo, mas da vinda de Cristo. A miseri-
cordiosa vinda do Senhor s6 sucederá a uma preparação espiritual do caminho. Ora,
isto significa que os atos visíveis que devem acoJJtecer para preparar pessoas para o
recebimento de Jesus Cristo têm que ser atos de humilhação perante o Senhor que
vem; em outras palavras, devem ser ações de penitência. Preparação do caminho
significa penitência (Mt 3.lss). Penitência, poréA quer dizer conversão concret,a;
penitência exige ação. Mesmo assim, a preparaç40 do caminho visa condições espe-
dficas a serem criadas. Na tentativa de articular pasiâvamente as condições visadas
pela preparação do caminho, chegamos aos dois c0nceitos de ser humano e ser bom.
Somente a chegada do Senhor trará a plenitude do ser gente e do ser bom.
Contudo, do vindouro Senhor já cai uma luz 80vre o ser gente e o ser bom, mos-
trando o que deles se espera para a boa prontidão e expectativa. Por conseguinte, s6

80
6 possível saber o que é humanidade e bondade a partir do Senhor que voto e hd de
vir. Exige-se de n6s que sejamos humanos e bons porque Cristo vem. Afinal, Crlato
não vem ao inferno, mas "ao que é seu" (Jo 1.11). Vem à sua criação que, apeaar d1
queda, continuou sendo sua criação. Cristo não vem aos demônios, mas a seres hu·
manos, certamente a seres humanos pecadores, perdidos e condenados, mas a acrc11
humanos. Que a criação cafda ainda continuou sendo criação, que o ser humano pe·
cador ainda continuou sendo ser humano conclui-se justamente do fato de quo
Cristo vem a eles, de que Cristo os redime do pecado e do poder do diabo. A partir
de Cristo, o mundo caSdo se toma compreensível como mundo conservado e preMr·
vado por Deus para a vinda de Cristo, como mundo em que podemos viver "bln(',
como seres humanos, em ordens estabelecidas. Contudo, onde o ser humano se toma
objeto, mercadoria,~ onde as estruturas são destrurdas arbitrariamente, on•
de não se distingue mais entre "bom" e "mau", ali se coloca, além da pecaminolida•
de e da perdição geral do mundo, mais um obstáculo à aceitação de Cristo. Ali o
mundo se autodestr6i e ameaça tomar-se seriamente diabólico. Em meio a eato
mundo caído e perdido, faz diferença perante Deus se o ser humano respeita ou
quebra a ordem do matrimõnio, se pratica direito ou arbitrariedade. Não há: ddvida
de que continua pecador, também, quem respeita o matrimônio e protege o direito,
mas permanece a diferença se as coisas pentUtimas são observadas e levadas a s.!rio
ou não. Faz parte da preparação do caminho respeitar o penúltimo e fazê-lo vigoru
por causa do derradeiro que se aproxima.
a da pecutiarldade da revelação divina pela Palavra, que devo ir à prcgaçlo
se quiser ouvi-la; pois "a fé vem da pregação" (Rm 10.17). Se, portanto, a Palavra '
para poder chegar até a mim, o óltimo ato da preparação do caminho, a áltima açlo
do pendltimo é que eu vá até onde aprouve a Deus oferecer sua palavra. Na preaer·
wção da ordem existente, a ida à igreja é o limite extremo daquilo que é exigido no
Ambito do pendltimo. Nossos pais ainda podiam falar assim. Pressupunha-se, com
isso, que cada um tinha a possibilidade externa. a aptidão ffsica, bem como um mt•
nimo de concentração interior e capacidade de pensar para cumprir esta exig&lcia.
Se constatarmos, no entanto, que estes pressupostos um dia não existem mais, que o
chamado à pregação não pode mais ser atendido por motivos bem externos, a preo·
cupação pelo pemUtimo adquire outra feição. Antes de tudo, é preciso cuidar para
que haja a possibilidade externa de ouvir e atender o chamado da pregação. Isso po·
de significar que o ser humano primeiro tem que ficar gente de novo para poder ser
interpe1ado dessa maneira. Não se toma a sério a preparação do caminho do Senhor
onde esta tarefa não for assumida. A misericórdia para com as pessoas e a responsa·
bilidade diante de Cristo, que deseja vir a todos os seres humanos, obriga a tal pro·
cedimento.
Em tudo isso, não pode ser dito com demasiada ênfase que apenas o Se·
nhor que há de vir pode preparar o seu caminho, que ele conduzir' o ser humano a
uma humanidade completamente nova e à bondade, e que o fmal de toda preparaçlo
de caminho para Cristo deve consistir justamente no reconhecimento de que nÕI
mesmos jamais podemos preparar o caminho, que justamente a exigência de pnpa·
rar o caminho nos leva à penitência sob todos os aspectos. "Por graça e bondade,
Jesus, Senhor meu, prepara-me o pobre, para o santo tempo teu." (Valentin ThUo.)
É precisamente nisso que a preparação de caminho para Cristo se diferencia do to•
dos os caminhos próprios para Cristo. De fato, não há, como dizf'amos de início, no
1

81
nhum "método", nenhum caminho para chegar ao derradeiro. A preparação doca-
minho, distinguindo-se de todos os IMtodos, parte da clara condncia de que
Cristo mesmo deve farer o caminho. Não é nosso caminho a ele, mas o seu a n6s
que deve ser preparado e que s6 pode ser preparado na clara noção de que ele mes-
mo deve prepará-lo. Método é caminho do pentlltimo ao derradeiro. Preparação de
caminho é a via do derradeiro ao penóltimo. Saber que Cristo vem por vontade, po-
der e amor próprios, que ele pode e quer superar todos os obstáculos, mesmo os
maiores, que ele é o seu próprio preparador de caminho - isto, e somente isto, nos
faz preparadores de caminho seus. Como não haveríamos de querer e dever ser
preparadores de caminho de tal Senhor, como não haveríamos de nos deixar trans-
formar por ele, por aquele que vem, em preparadores de caminho seus, em pessoas
que o esperam com seriedade? Por esperá-lo, por saber que ele vem, por isso, e ape-
nas por isso, preparamos o seu caminho.
Somente Cristo cria a fé; mesmo assim, há situações em que crer se toma
mais difícil ou mais fWJ.l. Há graus de empedernimento e obstinação. Somente
Cristo nos traz o derradeiro, a justificação da nossa vida perante Deus; apesar disso,
ou melhor, por causa disto não ficamos livres e dispemados do pentlltimo. O pentll-
timo será tragado pelo derradeiro; não obstante, conserva sua necessidade e seu di-
reito enquanto o mundo existir.
Vida cristã é o início do derradeiro em mim, a vida de Jesus Cristo em
mim. M~ &efilEre é tamb6m vida no campo do pentlltimo à espera do derradeiro. A
seriedade da vida cristã. está unicamente no derradeiro; contudo, o pentlltimo tam-
bém possui a sua seriedade, que consiste justamente em não confundir o pentlltimo
com o derradeiro, em considerar o pentlltimo um gracejo diante do derradeiro, para
que ambos, derradeiro e pen11ltimo, preservem sua seriedade. Mais uma vez se evi-
dencia aqui a inviabilidade de todo cristianismo radical, bem como de todo cristia-
nismo de compromisso, frente à realidade de Cristo e de sua vinda ao mundo.
A situação intelectual da cristandade ocidental, no que tange ao nosso pro-
blema, se caracteriz.a pelo seguinte: pelo questionamento do derradeiro, como vem
acontecendo de forma crescente nos d.ltimos 200 anos, ameaça-se ao mesmo tempo
o pendltimo, que aqui estava intimamente ligado ao derradeiro, em sua existência
e se o leva ao caminho da dissolução. O desmoronamento do pen11ltimo, por sua vez,
tem como conseqfiência uma crescente desvalorização e menosprezo do derradeiro.
Derradeiro e pen61timo estão intimamente ligados. Cabe aqui, pois, reforçar o pe-
nd.ltimo através de uma pregação mais enfática do derradeiro, bem como proteger o
derradeiro atrav6s da preservação do pendltimo. Por outro Jado, na cristandade oci-
dental de hoje há um apreciável grupo de pessoas que estão apegadas e pretendem
continuar apegadas às coisas pendltimas, mas sem entender claramente o relaciona-
mento com o derradeiro ou então sem reco~lo como decisivo, mesmo que não
888UJDam qualquer postura hostil diante dele. Aqui a perda do derradeiro mais cedo
ou mais tarde teria que levar ao debacle do pentlltimo, se não for possível reclamar
novamente o pemlltimo a partir do derradeiro. Tudo que for encontrado de humano
e bom neste mundo caído pertence ao lado de Jesus Cristo. Decididamente, é uma
rcdúÇlo do Evangelho anunciar s6 aos alquebrados.e maus a proximidade de Jesus
Cristo, diminuir o amor do pai ao filho que fkou em casa por causa de seu amor ao

1 Cf.DUap ' "'"~ capftulo 1.

82
filho perdido. Certamente o humano e bom de que aqui falamos não são o humano '
bom de Jesus Cristo; não poderão subsistir no juízo, mas assim mesmo Jesus amu o
mancebo que tinha guardado os mandamentos (Me 10.17ss.). Não se pretendo que o
humano e bom obtenha um valor em ~ mas pode e deve ser reclamado para Je1u1
Cristo, especialmente ali onde figurar como resíduo inconsciente de uma ligaçlo
com o derradeiro no passado. Pode parecer mais sério considerar uma pessoa ncata
' situação simplesmente um pagão e pressioná-la no sentido de conf~ sua falta do
fé. Seria mais cristão, no entanto, considerar como cristão justamente uma pesSOll
dessas, que não mais ousaria dizer-se cristã, e ajudá-la,. com muita paciência, ache~
gar a confessar Cristo. Os próximos dois capítulos devem ser entendidos tamb6m
sob este aspecto.

O NATURAL

O conceito do natural caiu em descrédito na ética evangélica. Para una,


perdeu-se completamente na escuridão da pecaminosidade geral, para outros, ao
contrário, adquiriu o brilho dos prim6rdios da história. Ambos foram graves abusoa,
que tiveram como conseqüência que se eliminou completamente o conceito do na·
turaI do pensamento evangélico, deixando-o para a ética católica. Porém isto signl•
ficou uma pesada perda de substância para o pensamento evangélico, porque daf em
diante se enfrentavam as questões práticas da vida natural mais ou menos sem
orientação. O significado do natural para o Evangelho tomou-se intransparente, o a
Igreja evangélica perdeu a palavra clara e orientadora para as ardentes questões da
vida natural. Com isso, deixou inómeras pessoas sem resposta e auxOio em decisõea
vitais e perdeu-se mais e mais numa defesa ortodoxamente estática da graça divina.
Já que todo humano-natural submergia na noite do pecado diante da luz da graça,
não se ousava mais levar em conta as diferenças relativas no âmbito do humano-
natural, receando que a graça como tal pudesse ser diminuída. Foi no conceito do
natural que mais se evidenciou que esse pensamento evangélico já não conhecia mala
a correta relação do derradeiro com o pentlltimo. As conseqüências desta perda fo·
ram graves e amplas. Se dentro da criação caída não havia mais diferenças relatl.vu,
então o caminho estava aberto para toda arbitrariedade e desordem, então a vida
natural com suas decisões e ordens concretas não era mais responsável diante do
Deus. O natural tinha como tinica antftese a palavra de Deus, mas não mais o dei•
natural, pois natural e desnatural estavam sob a mesma condenação diante da pala·
vra de Deus. Isso significa dissolução completa no âmbito da vida natural.
Por conseguinte, é preciso recuperar novamente o conceito do natural ll
partir do Evangelho. Falamos do natural em vez do criatura! para incluir o fato da
queda no pecado; falamos do natural em diferenciação do pecaminoso para incluir o
criatura!. Natural é tudo que, ap6s a queda, está orientado para a vinda do Jeaua
Cristo. Desnatural é tudo que, ap6s a queda, se fecha à vinda de Jesus Cristo, A dl·
ferença entre o que se orienta no sentido de Cristo e o que a ele se fecha 6 relativa;
o natural não foIÇa a vinda de Cristo, assim como o desnatural não a impede. Bm
ambos os casos, a verdadeira vinda é um acontecimento da graça. e s6 pela vinda dt
Cristo o natural é confimiado. em sua qualidade de pentlltimo e o desnatural d doR·

83
nitivamonte exposto como destruição dO pendlwno. Perrnanea\ pois, também diante
de Cristo, uma diferença entre o natural e o desnatural que não pode ser diluída sem
graves danos.
O conceito do natural, que deriva de nasci-natura, contém, em distinção
do criatura!, que deriva de creare-creatura, um aspecto de autonomia, de desenvol-
vimento próprio perfeitamente' adequado ao assunto. Pela queda, a "criatura" se
transforma em "natureza". A úncdiatez da natureza em relação a Deus se converte
na relativa hõerdade da vida natural. Dentro desta hõerdade existe a difeicnça do
correto e inadequado uso da liberdade e, com isso, a diferença entre natural e des-
natural; bit, portanto, a relativa abertura e o relativo fechamento a Cristo. Contudo,
é extremamente importante que esta liberdade relativa não seja confundida com uma
liberdade absoluta para Deus e para o próximo que somente a pr6pria palavra de
Deus advinda cria e concede; mesmo assim, esta hõerdade relativa continua sendo
importante também .para aquele a quem Cristo deu a liberdade para Deus e para o
pr6ximo..
A vida natural não deve ser interpretada simpJesmcnte como es~o pre-
linúnar para a vida com Cristo; antes. é s6 peJo próprio Cristo que ela recebe sua
confirmação. O pr6prio Cristo assumiu a vida natural, e somente pela encarnação de
Cristo ela se toma o pem1ltimo que está orientado para o denadeiro. S6 pela encar-
nação de Cristo temos o direito de convidar para a vida natural, bem como vivê-Ja
pessoalmente.
Como se reconhece o natural? O natural é a forma de vida que Deus pre-
servou para o mundo caído e que está orientada por Cristo para a justificação, re-
denção e renovação. Por conseqüência, o natural tem uma detemrinaç.ão formal e
outra de oonte4do. Formalmente o natural está determinado pela vontade divina de
preservação e pela orientação para Cristo. Em seu aspecto formal, portanto, o na-
tural s6 pode ser reconhecido a partir do pr6prio Jesus Cristo. A determinação de
conteddo do natural consiste na própria forma da vida preservada, com abrangência
de toda a humanidade. De acordo com o aspecto de conte4do, a ••razão" do ser hu-
mano é o 6rgão de reconhecimento do natural. A ra7Ao não é um princfpio divino de
saber e ordem, superior ao natural, existente no ser humano; e1a própria é parte
desta forma de vida preservada, a saber, aquela parte apta a trazer à oonsciência, a
·~rceber" como uma unidade o todo e geral existente no real. A razão, portanto,
está totalmente embutida no natural. É a percepção consciente do natural em sua
realidade dada. O natural e a razio se correspondem como forma de ser e forma de
consciência da vida preservada. A adequação da razão. para a compreensão do na-
tural não tem sua causa na espontaneidade da ruão, que primeiro criaria o natural,
nem no cantter divino da 1'87.ão, capaz de se adaptar ao natural, mas no fato da que-
da, na qual a razão está tão envolvida como o resto do mundo. Certamente que ara-
zio não deixa de ser razão, mas agora é ra7.lo caf'da, que s6 percebe a realidade dada
do mundo caído, e isto exlusivamente sob o aspecto de conte6do.
A razão percebe o genl nas coisas dadas. Assim, o natural dado, tal como
o percebo a razio, é algo geral. Abrange toda a natureza humana. A razão reconhe-
ce o natural como algo universalmente estabelecido, independentemente da possibi-
lidade de controle empfrico2. ·

2 O 111pndito ae dJstingue da 1eoria catdlica, 1!! porque entmdcmos que a ndo foi totalmente

84
Disso se segue algo muito importante, ou seja, que o natural jamaJa pode
ser algo estabelecido por uma parte qualquer, por uma imtAncia qualquer dentro do
mundo caído. Nem o indivíduo, nem algum grupo ou instituição dentro do mundo
preacrvado estabelecem e decidem o qrie venha a ser natural; antes,.i' está estabele·
cido e decidido, de tal forma que o indivíduo, o grupo e a instituição têm oolo a sua
respectiva participação. Não é possfvel determinar o que é natural por postulado ar·
bitrário; antes, todo postulado arbitntrio pretendido por um indivíduo, grupo ou
instituição terá que despedaçar-se JY'0'8&malllf!1J.te no natural já estabelecido o aca-
bar destruindo a si mesmo. Uma lesão e violentação do natural vinga-se no violen·
tador.
A causa disto é que o natural é, ao mesmo tempo, a legítima protoçlo da
vida preservãda. Assim, ao reconhecimento do natural pela "nu.ão" correspondi 11
aprovação do natural pela "vontade fundamental" da vida preservada. Maia unua
vez, não é asmm que esta º'vontade fundamental" fosse um resto divino no ser hu·
mano, não atingido pela queda, capaz de concordar com a ordem divina; esta vonta•
de fundamental está embutida e imersa na queda e no mundo da mesma forma como
a razão; é por isso que também ela se volta exclusivamente ao aspecto de cooteddo
do natural e o ap6ia, porque vê e acha nele a proteção da vida. O natural 6 a preaer-
vaçlo da vida diante do desnatural. Em dltima anaise, é a própria vida que tende
para o natural e sempre de novo se volta contra o desnatural, levando-o ao fracuao,
Aí está a mais profunda raz.ão de sadde e recuperação ffsica e psíquica. A vida, aoja
a do indivíduo ou do grupo, é seu pr6prio médico; eJa rejeita o desnatural como alao
destrutivo, e é s6 quando a própria vida não pode sustentar mais esta defesa nocea..
. 8'ria que as fOIÇ88 de destruição do desnatural alcançam a vit6ria3.
A destruição do natural significa destruição da vida. Conhecimento o
vontade de viver acabam em desordem e confusão, visam objetos errados. O dea•
natural é hostil à vida.
Como, afinal, pode acontecer a lesão do natural, está suficientemente OX•
plicado pela relativa hõerdade da vida preservada. Nesta relativa liberdade abUlldl,
algo dado dentro do mundo cailo se absolutiza, se diz a fonte do natural e oorrdl,
com isso, a vida natural. Na luta que então se inicia entre desnatural e natural, o
desnatural podent impor-se, por algum tempo, pela força, pois o desnatural conliltl
essenciaJmente na organização, ao passo que não é poss(vel organizar o natural; u~
simplesmente aí. Por exemplo, pode-se organizar a desmoraliz.ação do respeito w.>•
pais, enquanto o reçei.to aos pais é simplesmente praticado e. devido à sua naturoz1t
não permite organização. Por este motivo pode acontecer que, transitoriamente, o
desnatural se imponha ao natural. A longo praw, toda organização desmol'ODI; o
natural, no entanto, subsist.e e se impõe por seu próprio dinamismo, pois a prdprla
vida está do lado do natural. Não obstante, 6 bem poss(vel que haja antes profundol

eowlvidá na queda, ao plll8I) que na dosm*ic:a Clldlica da pt'Clllel\'8 uma integridade CllCIDnOl.Qll
• '1Jl pcll'qUO, de acmdo com a doutdm catdBca. ando pode perceber tam~ a~
fonnal do natural, o que, por 111111 wz. wnwpoocle ao J&iu:w:ixo princfpio. Do l1wnAnlomrm •
distingue o que dislemos pela fntylrneNaçl<> do mtmal na relliclade ob.iedftlllllllde dod!J, •
nlo na C11pODCllDeidadc subjedva da mio.
3 Aqui Cid a mio dlll obrai c:mctmioldgicas de Fr. Ktlnkel, em que eempn do llO"IO ... vida"
fitara como o wnmvo audatico e dllimo da demltunlidado e enfermidacle pdqulcm.

85
abalos e modificações nas formas exteriores da vida. Enquanto a vida se mantiver,
por6m, o natural abre novamente o seu caminho.
Neste contexto, o otimismo relativo à história -humana tem seu funda-
mento e sua razão de ser, desde que se mantenha nos limites do mundo caído. Deve
ter ficado suficientemente claro, no entanto, que este otimismo nada tem a ver com
a id6ia de uma gradativa superação do pecado. Trata-se aqui de um otimismo intei-
ramente imanente, baseado no natural. Contudo, entre os sinais do fim do mundo
que se aproxima, es~ de acordo com as Escrituras, também a destruição do natural
em todos os sentidos (Lc 21.16). Neste ponto está o limite do otimismo imanente; a
profecia bfblica desaloja-o, de uma vez por todas, de seu papel de princípio e quieti-
vo histórico. Permanece uma esperança não injustificada, mas puramente-imanente
e, por isso, nunca certa.
Com estas pressuposições podemos iniciar a descrição do natural como
a forma da vida preservada por Deus depois da queda e orientada para a vinda de
Cristo.

A Vida Natural

Vida natural é vida formada. O natural é forma inerente à própria vida e


está a seu serviço. No entanto, se a vida se desvincula desta forma, se procura sua
afirmação independentemente dela, se não quer se deixar servir pela forma do na-
tural, ela se destrói até as raízes. A vida que se coloca como algo absoluto, como fi-
nalidade em si mesma, auto-aniquila-se. Vitalismo acaba necessariamente em niilis-
mo, no destroço de tudo quanto é natural. A vida em si - em sentido conseqüente -
é um nada, um abismo, uma queda; é movimento sem fim, sem alvo, movimento em
direção ao nada. Não descansa enquanto não tiver arrastado tudo neste movimento
aniquilador. Este vitalismo existe tanto na vida individual como social. Nasce da
falsa absolutização de uma idéia em si certa, qual seja, que a vida não é apenas meio
para um fim, mas também um fim em si mesma. Também ij!SO vale tanto para a vida
individual como social. Deus deseja a vida e lhe dá uma forma que a toma viável,
porque, entregue a si mesma, s6 pode destruir-se. Ao mesmo tempo, porem, esta
fonna coloca a vida a serviço de outra vida e do mundo; toma a vida, dentro de
certos limites, meio para um fim. Assim como há uma absolutização da vida como
fim em si mesma, o vitalismo, que destr6i a vida, também há uma absolutização da
vida como meio para um fim que tem as mesmas conseqfiênclas; também isso vale
novamente para o indivfduo como para a comunidade. Podemos chamar esse desca-
minho de mecaniz.ação da vida. Aqui s6 se entende o indivíduo no seu valor utilitário
para o todo, e a comunidade na sua serventia para uma instituição, organização ou
idéia de ordem superior. O coletivo é o Deus ao qual se sacrifica a vida individual e
comunitária em seu total processo de mecanização. Aqui se apaga a vida, e a forma
que existe para servir à vida assume o domínio irrestrito sobre ela. Toda álltofinali-
dade da vida está superada, a vida afunda no nada. Pois, como a mecaniz.ação extin-
guiu toda vida, a pr6pria mecaniz.ação, que hauria sua força exclusivamente dela,
haverá de desmoronar. .
A vida natural está entre os extremos do vitalismo e da mecanização, é ao

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IDC8DlO tempo vida como fim em si mesma e como JDtlio para um fim.. Vitalismo e
mecanização, no sentido descrito, s!o de igual modo formas de expressão de uma
desesperaaça - talvez inconsciente - em relação à vida natural, duma hostilidade
para com a vida, dmn cansaço da vida e duma inaptidlo para a vida. O gosto pelo
natural cedeu lugar aos encantos do desoaturaL F.nquBDto entendemo&, a partir do
Jesus Cristo, a finalidade em si mesma, própria da vida, como criaturalidade, e a vi·
• da como meio para ·um fim como pm1icipaçfo no reino de Deus, no ãmbito da vida
• natural a fimdidade em si mesma se expressa nos direitos e a vida como meio para
um fim nos deveres que s!o dados à exist&lcia bUIJ)8IUle Deste _modo, a vida natural
mm que ser vivida dentro de determinados direitos e deveres por causa de Cristo
e sua vinda. Onde estes climitos e deveres sfo negadOS. suspensos ou destruldos, es"
semeio colocado um scSrio obst4culo à vinda de Jesus. A gratidão, que preserva a vida
recebida com profundo respeito, colocando-a, ao ~ tempo, a serviço do Cria·
dor, é aqui ferida na raiz.
Pode parecer estranho a um raciocínio jdealista que, numa ética crisd, se
fale primeiro dos direitos e s6 depois dos deveres. Acontece que nossa posição não 6
a
junto a Kant, mas junto às Sagiadas EscriturU. juStameDte por isso que é precúo
falar primeiro dos direitos da vida natural, isto 6, daquil? '!ue é ~o à vida, e s6
então do que dela se exige. Deus dá antes de exigir. Nos direitos da vida natural nlo
se venera a criatura, mas sim 0 Criador: reooet.ece-se a abundância de suas dádivas.
. Não hlt direito perante Deus. o ~ 81e111+•1• :ote dado, se transforma em dl·
reito frente ao ser humano. Os direitos da vida natural slo reflexo da glõria do Deus
· criador em meio ao mundo caído. Não são em pmneir& linha aquilo que o ser hu-
mano possa exigir em seu pr6prlo in1eresse, mas aquDP _que Deus mesmo garante.
~ de~~ se originam dos próprios direitos,~ ~mo as ~fas das di-
divas. Estão mclusos nos direitos. Ao falarmos sempre pnmcuo dos direitos, no am-
bito da vida natural, e s6 então dos deveres, damoS c.9P8'0 para o Evangelho na vida
natural.

Suumcuique

A fomrnlaçlo mais genérica dos ctireit.os dados com o natural reza, na


versão do direito romano: suum cuique _ a cada wn o seu. Nesta sentença se ex·
~ por um .Jado. a pluralidade do natural e dos seus respectivos direitos, e, por
outro, a noidade do direito preservada na pluraJidade. :este postulado est.ant sendo
desvirtuado onde for suspema a pluralidade ou a unidade dos direitos dados com o
natural ~ o caso onde se quer entender ..0 sou" coJilO "o mesmo", destruindo, com
isso, a pluralidade do natural a favor de um.a lei abstt&ta. ou onde a detcmúm'ÇID
do "seu" acontece de forma arbitrma e subjetiva, eliJDÜJando a unidade dos dircitol
em favor da livre arbitrariedade. Em ambos 08 casos o próprio natural é violentado.
O "seu" que cabe a cada um é, ao mesmo tcmp0, algo diferenciado e desigual em
cada caso (mas de modo algum arbitririol) e, assim mesmo, fundamentado objetl-
vamentc no natural dado e por isso genérico (mas juBtmJW>te não algo formaJ .. ab1·
Crato).
Se existe um direito que tem suas ra!7.es no que está dado naturalmente,

87
lato ., "um direito que nasce com a gente", então este não deve ser suspenso ou
doltrutdo por wn direito que venha de fora, sob pena de se forçar o próprio natural
a uma rebclllo contra um direito desnatural. O suum cui.que reconhece a prioridade
dol dlniltoa dados DO natural sobre qualquer direito posi1iw. No entanto. pro.
teae o natural de irrupções arbitrmias e revolucionúias ao apontar para o direito
que cabo ao outro, que pertence ao direito natural tanto quanto o meu. Portanto, s6
existe direito natural próprio na medida em que M respeito pelo direito natural
alheio. Com isso, no entanto, o suwn cuique já atinge os seus limites. Este postulado
repousa sobre a premissa de que os direitos naturais existentes são conciliáveis entre
si, que não M, portanto, direitos naturais conflitantes por princípio. Tais ocorrências
- conflitos entre direitos fundamentados no natural - têm que ser interpretadas, a
partir disso, como imperfeições, mal-entendidos e deficiências na oonceituação dos
direitos. Não são, contudo, atnbufdas à esfl'utura do próprio mundo tal qual é; por-
tanto, não se procurant sua causa no pecado como está atuante DO natural. O suum
cuique, como supremo preceito jurídico, não conta com o conflito de direitos exis-
tente no próprio natural. Este conflito existente, porém, exige o direito positivo, isto
é, o direito estabelecido a partir de fora da natureza, e isso como direito positivo
humano e divino4. '"
Este limite do suwn cuique não elimina, no entanto, o seu relativo acerto.
Onde se procura o direito no que está dado naturalmente, a vontade e a dMiva do
Criador estão sendo honradas, mesmo no mundo que se encontra em conflito. Ao
mesmo tempo, aponta-se para o cumprimento de todo direito, qWmdo Jesus Cristo,
através do Espírito Santo, der a cada um o que é seu. Assim, a observância desta
máxima pode ser considerada legitimamente coisa pentlltima, qualificada a partir do
derradeiro.
O suwn cui.que contém, entretanto, ainda uma outra premissa decisiva, que
não ficou inconteste e cuja contestação sempre de novo abalou as bases naturais da
vida. Trata-se da pressuposição de que "cada um", isto é, o indivíduo, nasce com
um direito natural. Contradizem esta sentença os que concedem um direito natural à
comunidade, mas não ao indivíduo. Este, aq~ s6 é meio para um fim a serviço da
comunidade. A felicidade da comunidade está acima do direito natural do indivíduo.
Como princípio, esta afirmação significa a procJamação do eudemonismo social e a
violação de todos os direitos individuais. Com isso, no entanto, a própria vida natu-
ral está sendo atacada, e, com a destruição dos direitos do indivíduo, inicia-se a
destruição de todo e qualquer direito e se trilha o caminho do caos. Não é por acaso
que a conseqüência do eudemonismo social tem sido, sempre de novo, a destruição
dos direitos da comunidade peJa tirania; o direito do indivfduo é a força sustentadora
do direito da comunidade, assim como a comnnidadC, por 8ua vez. sustentae protC- ·
ge o direito do indivfduo. O fato de haver um direito natural do indivíduo procede
da vontade de Deus de criar o indivíduo e conceder-Jhe a vida eterna. -a este fato
que, reconhecido ou não, sempre de novo se manifesta na vida natural e oferece vi-
toriosa resistência à desnaturalidade do eudemonismo social. O fato de que Deus

4 N. do B.: A respeito disso o manuscrito cont6m uma anomçlo à 1'pis: "Nc:ceasi1a de deeenvol-
vimento pofderiorl No final do capftulo llObre os direitos naturais ou no pnSximo capftulo &Obre
o bem."

88
criou o indivfduo e o chamou para a vida eterna repercute na vida natural, um
inobservaocia tem perigosas conseqii&icias. Portanto, no Ambito da vida naturll,
atribuição da razão cuidar do direito do indivíduo, mesmo sem que o fundo divino
deste direito seja reconhecido. o adversúio natural do eudemonismo social eompro
foi, por isso, a razão, o órgão que "pcroebc" a realidade do mundo caído e a tru. a
consciência. O eudemonismo socla1, por sua vez, alia-se a um voluntarismo coao em
"irracional" e incompreensível superestima do poder da vontade diante da realidade
da própria vida natural. :á uma verdade inacessível a este voluntarismo que a razio
está mais próxima da realidade do que a vontade cega que reclama para ai juata•
mente mixima proximidade da realidade. O suum cuique é o conhecimento maia alto
possível da razão adequada à realidade e que, no Ambito da vida natural, diloerne o
direito que.Deus (a quem ela não conhece) concedeu ao indivíduo.
Ao tratarmos, daqui em diante, dos direitos da vida natural em termo1 dl
conteddo, sempre de novo se tornará imperiosa a pergunta pelo fiador dcst.ca dlrol
tos. Quem assume efetiva garantia pelos direitos da vida natural? ~ preciso repodr
aqui o que já foi dito: em primeira linha é Deus mesmo que garante esses direitoa.
Para tanto, porém, ele se serve, sempre de novo, da própria vida, que, cedo ou tarde
se impõe contra toda violentação do natural. É preciso contar aqui com espaço1 do
tempo que podem exceder a duração de vida do indivíduo. A razão disso 6 quo, 110
fu:nbito da vida natural, não se trata tanto do indivíduo quanto da preservação da vi•
da humana como espécie e que a vida natural necessariamente sempre de novo pu11
por cima do indivíduo. O direito individual destruído, que possivelmente não tenha
reparaç4o, serve então à capacidade de resistência da vida natural, para que ola"º
imponha novamente na próxima ou subseqüente geração. O problema de wna toodl
céia, que aqui se anuncia, só pode ser solucionado mais tarde. Se é Deus e, atravdl
dele, a própria vida que age com eficácia em defesa dos direitos que lhe são increm
tes, então é de somenos importância, quanto à efickia, o que o indivíduo podo f111.or
para a preservação dos seus direitos naturais. O que ele de fato faz dependord do
muitas considerações que aqui ainda não podem ser examinadas. Em todo cuo,
. sempre se há de considerar que seu mais poderoso aliado é a própria vida. A (Xlf•
gunta se o indivíduo pode defender seus direitos naturais deve ser respondida com
um claro sim. Se, como e quando deve defendê-los é uma outra questão, a ser doei
elida mais tarde. De qualquer forma, deverá defendê-los de tal maneira que se torno
crível não ser o indivíduo, mas Deus quem garante o direito.

O Direito à Vida Hsica

A vida ffsica, que recebemos sem concurso nosso, traz em si o dirolto A


preservação. Não é um direito roubado ou conquistado por nós, mas um direito quo,
· em sentido próprio, "nasceu conosco", direito recebido, portanto, cuja exis~nola •
anterior à nossa vontade, que repousa sobre o próprio ente*. Como, de acordo com
a vontade de Deus, vida humana só existe na terra couio vida flsica, o corpo tam
~ito à preservação em função do ser humano todo. Como todos os direitol

*N. do T.: Das im Seienden selbst ruht, no original.

89
sam com a morte, a preservação da vida ffsica é o fundamento de todos os direitos
naturais, estando revestida, por isso, de especial importância. O direito original da
vida natural é a defesa da natureza contra danos, violentação e destruição intencio-
nais. Isto pode parecer bastante sóbrio e pouco heróico. Mas o corpo está a( em
primeiro lugar para ser preservado, não para ser sacrificado. Que de outras e supe-
riores razões possa resultar o direito e até o dever de sacrificar o corpo, já pressu-
põe o direito original de preservação da vida física.
A vida ffsica é, como a vida em geral, tanto um meio para um fim como
um fim em si mesma. Entender o corpo exclusivamente como meio para um fim é
wn ponto de vista idealista, mas não cristão. O meio perde a razio de ser tão logo o
fim tenha sido alcançado. A isso corresponderia a interpretação do corpo como cár-
cere da alma imortal que, por ocasião da morte, abandona o corpo para sempre. De
acordo com a doutrina cristã, o corpo tem dignidade maior. O ser humano é um ser
corpóreo e o será eternamente. Corporalidade e humanülade estão inseparavelmente
ligadas. Assim, a corporalidade, que foi desejada por Deus como fonna de existên-
cia do ser humano, tem direito à auto:finalidade. Isso por certo não exclui que o cor-
po, ao mesmo tempo, permaneça subordinado a um fim superior. Porém é impor-
tante que dos direitos da vida :ffsica faça parte não s6 sua preservação como meio
para um fim, mas também como fim em si mesma. No aro.bito da vida natural, a au-
tofinalidade do corpo se expressa nos prazeres do corpo. Se o corpo fosse apenas
meio para um fim, o ser humano não teria direito ao prazer :ffsioo. Não se deveria
ultrapassar então um mínimo funcional de goro corporal. Isso teria sensíveis conse-
qüências para a avaliação cristã de todos os problemas ligados à vida :ffsica e refe-
rentes a moradia, alimentação, vestumo, Iazer, jogo e sexualidade. Se, no entanto,
cabe ao corpo uma finalidade em si mesmo, então existe um direito a prazeres ffsi.
cos, sem que estes tenham que subordinar-se sem mais a uma finalidade superior. É
da ess!ncia do prarer que ele é pervertido por idéiaS de funcionalidade. Mais tarde,
quando falarmos do direito à felicidade, teremos que retomar a isso. Os prazeres do
corpo são, no âmbito da vida natural, a referência à eterna alegria prometida por
Deus aos seres humanos. Onde um ser humano é privado da possibilidade de praz.e-
res :ffsicos, de tal forma que seu corpo é usado exclusivamente como meio para um
fim, acontece uma interferência no direito original da vida ffsica. "Não é melhor
para o ser humano comer e fazer com que sua a1ma gore o bem do seu trabalho? No
entanto vi também que isto vem da mão de Deus." (Ec 2.24.) "Por isso percebi que
não há nada melhor nisso do que alegrar-se e passar bem na vida." (3.12.) "Come
teu pão com alegria e bebe contente o teu vinho, porque tua obra agrada a Deus.
Sejam brancas as tuas vestes e não falte ungüento em tua cabeça. Desfruta a vida
com a JDulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz que Deus te concedeu de-
baixo do sol, os anos todos de tua vida efêmera; pois essa é a tua porção na vida e no
trabalho que fues debaixo do soL" (9.7ss.) "Jovem, regozija-te na tua mocidade e
alegre-se o te~ coração na flor da idade; faz o que apraz a teu coração e agrada aos
teus olhos e saibas que por tudo isso Deus te levará a ju&.o." (11.9.) "Qµem pode
comer e beber com alegria e deleitar-se sem ele?'' (2.25.)5

S N. do E.: Entre as anotaç&s preparatdrias de BoDhoeffer encontramos a seguinte sentença:


HHA uma medida de altrufsmo 1-'luico que 6 pipr tio que egofsmo nu. H! uma bela libmlade
de expreallo de de8ejos prdprlos jusmmeme entre os •espiri1uabnmte' altru.rslas."

90
A moradia do ser humano não tem apenas o sentido de proteção contra D
mau tempo e a escuridão e de lugar de criação dos filhotes, como a toca dos anima!I;
é o espaço em que o ser humano pode desfrutar as alegrias de uma vida pessoal nn
intimidade e segurança dos seus e de sua propriedade. Comida e bebida não servem
apenas para manter o corpo sadio, mas também ao prazer natural na vida ffsica. O
vestumo não tem apenas a função de cobrir precariamente o corpo; deve ser, 110
mesmo tempo, um adorno. O lazer não tem apenas o sentido de possibilitar umu
maior capacidade de trabalho; proporciona ao corpo a medida de descanso e prazor
que lhe cabem. O jogo, por sua natureza, esbt longe de qualquer funcionalidade,
sendo a mais clara expressão para a inerente autofinalidade da vida corporal. A IO•
xualidade não serve apenas à procriação, mas tem, no âmbito do matrimônio, o sou
prazer no amor mtituo de duas pesso$, independente de tal função. Do que foi dilo
decorre que o sentido da vida ffsicajamais se esgota em sua funcionalidade, mas quo
s6 se completa na satisfação do direito ao prazer que lhe é inerente.
Com que intensidade a vida ffsica esbt dirigida ao prazer evidencia-se, tal•
vez com a .maior clareza, no fato de que o corpo sente prazer também ali onde ~ co·
locado a serviço de finalidades necessárias de forma correta e em árduo esforço,
Contudo, isso será o caso apenas enquanto, a par da funcionalidade, se conceder o
devido direito à finalidade que o corpo tem em si mesmo.
O corpo é sempre "meu corpo"; jamais poderá pertencer a outro como 11
mim, nem mesmo no matrimônio. ~ o meu corpo que me separa espacialmente do
outros e me coloca como ser humano diante dos demais seres humanos. A agreado
ao meu corpo é uma ingerência na minha existência ~ai. O respeito que devo no
outro se manifesta na nítida preservação de distancia em relação à sua vida ffsica. O
castigo fYsico s6 tem l'll7.io de ser na medida em que a pessoa em questão ainda nlo
pode ser considerada existência independente e em que, precisamente atravda do
castigo ffsico, se pretende dar expressão a esta falta de independência com o fito do
promover a necessma independência. Não é possfvel estabelecer uma regra t1rme
para determinar quem deve ser considerado existência autônoma. Não obstante, ao·
bretudo o limite da infância será determinante, e, sem dtivida, o adulto, que j4 11
conscientizou dos seus direitos naturais. deve ser tratado como existência indepon·
dente. Outra coisa são punições ffsicas para criminosos. Serão defensáveis onde,
pelo ordinarismo e a infame baixeza do crime, conscientemente se procura dealu1•
trar o n!u e onde a criminosa agressão à vida ffsica de outrem exige castigo no corpo
do autor.
Entre pessoas livres e independentes, a agressão consciente do corpo do
outro significa a destruição do primeiro direito natural do ser humano e, com lato,
sua fundamental proscrição, bem como destruição da vida natural.
O primeiro direito da vida natural consiste na preservação da vida ffsica do
morte arbitrária. De morte arbitrária terá que se falar onde vida inocente for tirada
premeditadamente. Neste contexto, é inocente toda vida que não promove uma
agressão consciente de vida alheia e não pode ser culpada de uma ação crimino11
que merecesse a morte. De acordo com isso, a eliminação do inimigo na guerra nlo
é arbitrária. Pois, mesmo que não tenha culpa pessoal, ele participa conscientcmcnt.ci
do ataque de seu povo contra a vida do meu, tendo que assumir, portanto, as conac
qfiências da culpa coletiva. Naturalmente que não é arbitrária a execução do bandido
que feriu vida alheia. Tampouco é arbitrária a destruição de vidas de civis na guerra,

91
deade que nlo seja diretamente intencionada, e sim apenas infeliz conseqDência du-
ma açlo militar necessária. Arbitrária seria, no entanto, a matança de prisioneiros ou
feridos indefesos, que não podem mais tomar-se culpados de agressão l minha vida.
Arbitrdrio é o assassinato de uma pessoa inocente por paixão ou por causa de algu-
ma vantagem. Arbitnhia é qualquer eliminação consciente de vida inocente.
Esta dltima frase não ficou sem contestação. O problema que aqui se
apresenta descreve-se com o termo "eutanfsia". A questão bmca aqui é a seguinte:
é ltcito aniquilar, por meios indoloies, vida inocente que não vale mais a pena viver?
Uma dupla motivação subjaz a esta pergunta: consideração com os doentes e consi-
dcraçlo com os sadios. Entretanto, antes de uma arutlise do conteddo da questão, é
preciso constatar, como princípio, que a decisão sobre o direito de eliminar vida
humana.nunca pode decorrer de uma soma de razlleS. Ou uma razio é tio imj>C-
riosa que pode hnpor esta decisão, ou não é eonvincente; neste caso, mesmo intbne-
ras outras ruões jamais podem justificar tal decisão. S6 pode haver eliminação de .
vida alheia com base em neces&dade absoluta. Então terá que ser praticada, mesmo
contra muitas outras e boas razões. Mas a eliminação de vida alheia nunca deve ser
apenas uma possibilidade entre outras, embora seja uma opção muito bem funda-
mentada. Onde houver ainda que a menor possibilidade defensável de deixar o outro
com vida, a aniquilação da vida seria matança arbitrú.ia, assassinato. Para a decisão,
matar ou deixar viver nunca são coisas do mesmo peso. A conservação da vida tem
incomparável preferência sobre a eliminação. A vida pode invocar todas as razões;
para a eliminação s6 vale um dnico motivo. Onde isto não é considerado, interfe-
re-se na obra do Criador e Conservador da vida. Portanto, onde se procura susten-
tar o direito da eutanúia por razões várias e diversas, já se incorre desde o princípio
em injustiça, ao admitir de modo indireto que não existe uma ónica razão absoluta-
mente imperiosa.
Assim., na arutlise desta questão, temos que examinar cada argumento iso-
ladament.e, examinando-os quanto ao seu caráter imperioso. Nunca devemos tentar
compensar a fragilidade de um argumento através de um outro. A consideração para
com um doente incurável e a gravidade do seu sofrimento exige a terminação pro-
posital de sua vida através de uma forma humana de morte? :É evident.e, nesta ques-
tão, que se deve pressupor a concordAncia, respectivamente o desejo, do enfermo.
Onde este desejo não é ou não pode ser manifestado expressamente, como no caso
de idiotas, sim, onde o desejo de viver se exprime de maneira inequfvoca, honesta-
mente não se pode mais falar de consideração para com o doente. Ora, quem pode
avaliar com quanta intensidade m~mo um doente mental incurável se apega à vida
apesar do seu sofrimento e quanta sensação de felicidade ele ainda consegue arran-
car de sua pobre existência? Hã inclusive fortes indícios de que a afirmação da vida
nestes casos é especialmente vigorosa e desenfreada. Aqui, pois, a comideração pelo
enfermo em todo caso não poderia (deveria?) ser transformada em argumento a fa-
vor da extinção de sua vida. No caso inverso, quando alguém que sofre de grave de-
pressão pede que se ponha um fim à sua vida, será que podemos ignorar que se trata
de pedido de um doente que não é senhor de si? A réplica de que é justamente ~te o
caso também do idiota apegado à vida, não leva em conta que o direito à vida tem
prioridade sobre o direito de matar. Suponhamos, no entanto, que um doente incu-
rável concorde,. em clara consciência, com a eliminação de sua vida, até a peça. Po-
de tal pedido conter uma exigência imperiosa para a aplicaçlo da eutanásia? Sem

92
dt1~ não se pode falar de exigência imperiosa enquanto a vida do doente coloca
suas próprias exigências, por conseguinte, enquanto o médico ainda tem compro·
misso não s6 com a vontade, mas também justamente com a vida do enfermo. A
questão da eliminação de vida alheia se desloca aqui para aquela da admissibilidade
da terminação da pr6pria vida e da colaboração para isso em caso de gravfaalma
doença. Esta questão trataremos no contexto do problema. do suicídio. A objeçlo do
que, em certos casos, os médicos não ~ariam mais todo o possível para prolonsar
uma vida artificialmente, que, por eiremplo, talvez não se levasse mais para um sa·
nat6rio um idiota com doença pulmonar e que tal comportamento não se distinguiria
de uma terminação proposital de sua vida, toca numa questão muito séria. Assim
mesmo, é importante manter a distinção entre deixar morrer e matar. Na vida cm
geral não podemos aplicar em cada caso todos os meios concebíveis para protelar a
morte; não obstante, permanece aqui uma diferença decisiva para com a eliminaçlõ
intencional. Concluímos, portanto, que a consideração para com, o doente não pode
valer como motivo suficiente pam a necessidade de eliminação de vida humana.
Por outra, pode a consideração para com os sadios tornar necessária a ell·
minação de .vida inocente? O pressuposto da resposta afirmativa é a concepção de
que toda vida deve ter um certo valor utilithio para a comunidade e que, com a
cessação desta utilidade, a vida não teria mais direito de ser, podendo ser eliminada,
eventualmente; mesmo ali onde se evita esta versão radical da idéia há, ao menos,
uma diferente avaliação do direito rt vida de pessoas socialmente 1iteis e socialmente
ind.teis, sendo que, também aqui, se trata exclusivamente de vida inocente. Esta va·
loração diferente, no entanto, é impraticável na.vida porque teria conseqüências im·
possíveis. Ela proibiria, por exemplo, o emprego natural de vida socialmente 1itil em
caso de guerra ou em situações de risco de vida, a favor de vidas possivelmente me-
nos valiosas para a sociedade. Já disto decorre que o socialmente valioso não esta·
belece diferenças quanto aos direitos da vida. Precisamente ele está disposto a em-
penhar a sua vida pelo menos importante, o forte pelo fraco, o sadio pelo enfermo.
Justamente o forte não perguntará pela utilidade que o fraco tem para ele - talvez o
fraco faça isso; a necessidade do fraco o levará a novas tarefas, ao desenvolvimento
de seu valor social. O forte não verá no fraco uma diminuição de seu vigor, antca
um incentivo para aç6es mais nobres. A idéia de eliminar uma vida que perdeu sua
utilidade social nasce da fraqueza, não do vigor.
Sobretudo, porem. esta idéia parte da premissa errada de que a vida con-
sistiria tão-s6 de sua utilidade social. Ignora-se, aqui, que a vida criada e preservada
por Deus tem um direito inerente, de todo independente de sua utilidade social. O
direito A vida está na existência, não em quaisquer valores. Diante de Deus não hd
vida que não valha a pena ser vivida, pois Deus valoriza a vida em si. O fato do
Deus ser o criador, preservador e redentor da vida torna a mais mísera exis~ncla
digna de ser vivida diante de Deus. O pobre Lázaro, o leproso que jazia à porta do
rico e a quem os cães lambiam as feridas, este homem sem utilidade social alguma,
esta vítima daqueles que julgam a vida pela sua utilidade, é considerado digno da vi•
da eterna por Deus. Onde, senão em Deus, poderia estar o parftmetro para o valor
d.ltimo de uma vida? Na afirmação subjetiva da vida? Nisso muito gênio pode ser
superado por um idiota. No julgamento da comunidade? Neste caso, bem logo 1C
evidenciaria que o juízo sobre vida socialmente 1itil ou in1itil estaria sujeito às necea·
'sidades do momento e com isso à arbitrariedade, e que a sentença de morte atingi.ria

93
1"" e ora Cllte, ora aquele grupo. A distinção entre vida digna ou indigna de ser vivida ce-

. ~ ou tardO destr6i a Pidpria vida. Depois deste esclarecimento bfsioo, resta-nos di-
: r.er, aindJl.uma palavra sobre a utilidade puramente social da vida que parece inátil e
-. sem 1DDtido. Nã:> há como negar o fato de que justamente esta vida assim chamada
Indigna de viver de ~tes incuráveis desenc;adeia nos sadios, nos médioos, enfer-
moiroa e parentes o l:tllÜs alto grau de êspfrito de sacriffcio social e verdadeiro hc-
rotsmo e que desta dedicação de vida sadia a vida enferma.nasceram l'e8is valoMS de
utilidade para a cornunidade.
. Não há como negar, entretanto, que certas doenças hereditmias graves e
lncuráveh constituem um sério problema e um certo risco para a coletividade. A
quesdo ~ apenas, se podemos enfrentar esses risoos apenas através da eliminação
desta vida. F.sta colocação deve ser inequivocamente negada. O internamento de tais
doentes é medida suficiente do ponto de vista sanit:mo. Sob o aspecto econõmico,
por sua vez, o tratamento de tais doentes jamais poder4 comprometer seriamente o
nível de vida dum Po"<>. Jamais as despesas com o cuidado de tais enfermos foram
comparáveis, ainda que de longe, com os gastos com artigos de luxo. Precisamente o
sadio, no entanto, sentpre estará disposto a assumir certos encargos limitados a fa-
vor dos doentes - já Pe>r causa da incerteza quanto a seu futuro pessoal, um motivo
bem natural, portanto.
Mas serit que a doença heredithia incuravel não deve ser considerad.a uma
agressão à existência da comunidade tanto quanto o ataque inimigo na guerra, por
exemplo? Aqui há uma dupla diferença a ser observada: primeiro, este ataque pode
ser repelido com outros meios do que através da extinção da vida. Segundo, no caso
de doentes hereditários trata-se de vida inocente. Se é que se pode falar de culpa
aqui, então em todo caso ela por certo não atinge o doente, e sim a própria comuni-
dade. Seria, portanto. 1ltn farlsatsmo insuporblvel se a comunidade quisease tratar o
doente como culpado e arrogar-se o direito às suas custas. A eliminação dos blo-
centes seria altamente arbitntria.
A pergunta se nos casos de idiotia congênita ainda se trata de vida humana
6 tio ingênua que dificilmente necessitaria de resposta. ~ vida nascida de seres hu-
manos, vida doente, que não pode ser outra coisa do que vida humana, ainda que
profundamente infeJh. Deveria dar o que pensar aos sadios o fato de que exata-
mente a vida humana também pode ·ter um aspecto tio terrivelmente desfigurado.
Um caso-limite para todas essas consi.deraç&s haveria, por exemplo, se
num navio que não dveaae condições de isolamento irrompesse a peste e se, segundo
a previsão humana, os ~ s6 pudessem ser salvos pela morte dos doentes. Neste
caso a decisão deveria ficar em aberto.
No fundo, PC>rdm, a tese da aceitabilidade da extinção de vida doente e
inocente a favor da sadia não tem rafz.e8 sociais, econômicas ou sanitirias; mas
ideol6gjcas. Pretende-se farer a tentativa sobre-humana de livrar a sociedade hu-
. ,. mana de doença aparentemente sem sentido. Inicia-se uma luta com o destino ou,
,:,como também podelll<>s dizer, éom a .essência do pr6prlo mundo caf<to, Tem-se a
,opinilo de poder criar uma humanidade nova e sadia com meios racionais. Ao mes-
mo Cempo, considera-se a sadde o valor supremo, ao qualtodos os outros devem ser
.. aacriflcados. Racionalismo e radicalização dos aspectos biol6giros da vida humana
se aliam neste empieclldimento impossfvel, pelo qual o direito l vida de toda cria-
tura, e com isso por tini de toda ~. tS destruído.

94
Ao concluirmos que também a consideração para com os sadios não 1u1·
tenta o direito de extinção deliberada de vida doente e inocente, a questão da euta•
násia tem resposta negativa. As Sagradas Escrituras resumem esta decisão na sen·
tença: "Não matants o inocente." (Ex 23.7.)

O Suicídio

O ser humano, ao contrário do animal, tem sua vida não como uma com·
pulsão da qual não pudesse livrar-se; tem sua vida na liberdade de aceitá-la ou doa·
truí-Ia. O ser humano pode o que não está ao alcance de nenhum animal: pôr fim à
vida espontaneamenté. Enquanto -o animal se identifica com sua existência fislca,
o ser humano pode distinguir-se dela. A liberdade em que o ser humano tem a sua
vida :ff.sica faz com que a aceite livremente e, ao mesmo tempo, o remete para além
da existência :tlsica; fá-lo entender sua vida ffsica como dádiva a ser cultivada e co·
mo sacriffcio a ser oferecido. O ser humano pode sacrificar sua existência ffsica em
beneficio de um bem maior porque é livre para morrer. Sem a liberdade para o sa·
criffcio da vida na morte não há liberdade para Deus, não existe vida humana.
O direito à vida quer ser preservado no ser humano através da liberdade.
Não é, pois, wn direito absoluto, mas condicionado por liberdade. Ao direito à vida,
de wn lado, contrapõe-se, do outro, a liberdade de empenhar e oferecer a vida como
sacriflcio. No sentido de sacriffcio o ser humano tem, portanto, hõerdade e direito A
morte, porém apenas de tal modo que o alvo do empenho da vida não seja a destrul·
ção da própria vida, mas o bem visado no sacriflcio.
Com a liberdade para a morte foi dado aos seres humanos um poder Úl•
comparável, que pode facilmente conduzir ao abuso. De fato, através dela o ser hu·
mano pode tomar-se senhor de seu destino terreno, ao esquivar-se por livre decisão
de uma derrota atravé.5 da auto-eliminação, roubando assim a vit6ria ao destino,
Patet exitus (Sêneca) - esta é a proclamação da liberdade humana diante da vida.
Será diffcil convencer uma pessoa que, na luta com o destino, perdeu sua honra, seu
trabalho, a dnica pessoa amada e cuja vida com isso foi destruída, de não fazer uso
desta possibilid8de, desde que lhe tenha sobrado a coragem para este ato de sua li·
herdade e vitória. Não há como negar que o ser humano, com este gesto, joga e faz
valer mais uma vez sua humanidade - mal-entendida, talvez - contra o destino cego
e desumano. O suicfdio é um ato especificamente humano, e não é nada estranho
que, como tal, tenha recebido, sempre de novo, apoio e justificação por pessoas de
nobre espírito. Este gesto, desde que levado a efeito em liberdade, está acima de to-
do julgamento mesquinho e moralizante no sentido de covardia e fraqueza. O sulc(·
dio é a dltima e extrema autojustificação do ser humano como tal e, com isso - visto
somente ,do lado humano-. até de certa forma a auto-expiação por uma vida des·
perdiçada. A causa propriamente dita do suicídio não é o desespero no qual geral•
mente é praticado, mas a liberdade do ser humano de promover uma suprema auto·
justificação mesmo no seu desespero. Mesmo que o ser humano não possa justificar•
se em sua felicidade e sucesso, ainda lhe resta a possibilidade de fazê-lo no deses·
pero. Se não puder afirmar o seu direito a uma vida humana na sua existência flsi.
ca, pode fazê-lo, ainda, através da destruição do seu corpo. Se não conseguir forçar

95
o reconh~nto do seu direito pelo mundo, ainda pode obtê-lo por si mesmo em
iSlllma aólldão. O suicídio é a tentativa do ser humano de conferir um tlltimo sentido
humano à uma vida que, pelos critérios humanos, perdeu o sentido. A involuntária
. . IO!llllÇ~ de arrepio que nos acomete diante do fato de um suicídio não se deve ao
~•ter vituperioso da ação, mas à sua terrível solidão e liberdade, na qual a a:firma-
çlo da vida sõ consiste ainda na sua destruição.
Se, apesar disso, temos que falar do caráter condenável do suicídio, isso
não acontece diante do tribunal da moral ou dos seres humanos, mas apenas diante
daquele de Deus. O suicida se torna culpado somente diante de Deus, o Criador e
Senhor de sua vida. O suicídio é condenável como pecado da falta de fé por haver
um Deus vivo. Falta de fé, no entanto, não é um defeito moral; ela é capaz de moti-
vações e gestos nobres, bem como de onfuWios. A falta de fé não conta com o Deus
vivo, nem no bem, nem no mal. Este é o pecada. A falta de fé é a causa pela qual
o ser humano procura sua autojustificação e a tlltima possibilidade desta no suicídio,
i;>orque não crê numa justificação divina. A falta de fé oculta ao ser humano, de
forma funesta, o fato de que também o suicídio não o livra da mão de Deus que lhe
preparou seu destina. A descrença não reconhece, na d«.diva da vida trsi.ca, o Criador
e Senhor que tem o direito exclusivo de dispor de sua criação. Aqui topamos com o
fato de a vida natural não ter seu direito em si mesma, mas em Deus. A liberdade
para a morte, que foi dada à vida humana no âmbito da vida natural, é pervertida
onde não é usada na fé em Deus.
o
Deus se reservou direito sobre o fim da vida porque só ele sabe a que al-
vo quer conduzi-Ia. Ele quer ser o dnico a justificar ou condenar uma vida. Diante
dele, a autojustificação se toma o pecado por excelência, e por isso também o suicí-
dio. Não há outra razão imperiosa que tome o suicídio condenável a não ser o fato
de haver um Deus acima do ser humano. O suicídio nega este fato.
Não é a baixeza dos motivos que toma o suicídio vituperáveL Pode haver
apego à vida por m0tivos mesquinhos e por motivos nobres pode-se pôr termo a ela.
A vida ffsica como tal não tem um direito tlltimo em relação ao ser humano. Este
encara com liberdade a sua vida ffsica, e "a vida não é o maior dos beos". A socie-
dade humana também não pode fundamentar, como afirma Aristóteles, um derra-
deiro direito à existência ffsica do indivíduo. Frente à sociedade, o ser humano tem,
por nature?.a, um direito tlltimo de dispor de si mesmo. A sociedade pode punir o
suicídio (Inglaterra; a "atimia" em Arist6teles, Ética a Nic8maco m, 11); ao próprio
autor ela não podera provar convincentemente que tem um direito imperioso sobre a
sua vida. Finalmente, não basta, também, o argumento largamente difundido na
Igreja cristã de que o suicídio impossibilitaria o arrependimento e, por isso, o per-
dão. Muitos cristãos se foram por morte sóbita sem arrependimento dos pecados.
Aqui há uma supervalorização do tlltimo instante. Todos estes argumentos ficam a
meio caminho; contêm algo de certo sem declinar o decisivo e não são concludentes.
Deus, o Criador e Senhor da vida, cuida também do seu direito. Não é pre-
ciso que o ser humano se mate para justificar a sua vida. Não o deve porque não o
precisa. É um dado curioso que a Bíblia em parte alguma proíbe expressamente o
suicídio, mas que este sempre de novo (ainda que não exclusivamente) aparece como
conseqüência de grave pecado, por exemplo no caso dos traidores Aitofel e Judas.
A causa disso não é que a Bíblia aprove o suicídio, e sim que no lugar da proibição
do suicídio ela quer colocar o chamamento do desesperado para a graça e a penitên-

96
eia. Quem está à beira do su!cfdio não tem mais ouvidos para proibição ou manda-
mento; ele s6 é capaz de ouvir o misericordioso chamado de Deus para a f~, o lllva-
ção, a conversão. Nenhuma lei que apele à própria força pode salvar o desesperado:
s6 o empurra para desespero mais profundo. Quem desespera da vida só pode
auxiliado pela ação salvadora de um outro, pela oferta de uma nova vida, que nlo
seja vivida por força própria, mas pela graça de Deus. Quem não tem mais-condi·
ções de viver não pode ser auxiliado pela ordem de que deve viver, mas tão-somente
por um novo espfrito.
Deus defende o direito à vida também contra aquele que está farto dela.
Ele dá ao ser humano a liberdade de empenhar a sua vida para algo mais importante,
porém não quer que esta liberdade se volte arbitrariamente contra a própria vida. O
ser humano não deve atentar contra a sua própria vida, tão certo como deve sacrifi·
car sua existência a favor de outros. O ser humano deve colocar sua vida terrena
mteiramente na mão de Deus da qual veio, também ali aonde ela se lhe toma l'lnJ
ma.rtfrio, e não tentar livrar-se por conta propria. Ainda que morra, s6 cai de novo
na mão de Deus que em vida lhe foi dura demais.
Bem mais difícil do que estas considerações básicas é a avaliação do caso
concreto. Como o suicídio é um gesto de solidão, os óltimos e decisivos modvo1
quase sempre permanecem ocultos. Mesmo ali onde precedeu uma catástrofe exte·
rior na vida, a causa mais íntima e profunda da ação se subtrai aos olhos de outrem.
A avaliação do gesto concreto carece de base porque os limites entre a liberdade de
sacrificar a vida e o abuso desta liberdade para o suicídio são muitas vezes pradca·
mente imperceptíveis para o observador humano. Certamente que o atentado contra
a própria vida permanece distinto do risco a que se submete a pr6pria vida num em
penho necessário. Seria falta de visão, no entanto, equiparar simplesmente todas as
formas de auto-eliminação ao suicídio. Pois ali onde a auto-eliminação implica um
sacriffcio consciente da própria vida a favor de outros, o julgamento ao menos deve
. ficar em suspenso porque neste caso se atingiu o limite do conhecimento humano.
r
i Auto-eliminação toma-se suicídio apenas onde se age exclusiva e conscientemente

~.
em consideração à própria pessoa. Mas quem arriscaria dizer algo com certeza sobre
esta exdusividade e consciência? Onde um prisioneiro se mata porque receia trair
seu povo, sua família e seus amigos sob a aplicação de torturas, onde um goveman·
te, cuja entrega o inimigo exige sob pena de represálias contra seu povo, s6 pode
poupar sua nação de graves danos pela sua morte espontinea, o suicídio se enquadra
tão fortemente no motivo de sacriffcio que a condenação do gesto se toma imposat-
veL Se um doente incurável nota que os cuidados com sua pessoa vão provocar o
debacle econômico e psíquico de sua família e, por decisão própria, os livra deste
fardo, certamente podem existir restrições várias contra um ato tão arbitr4rio, mM
também aqui uma·condenação não sera po~íveL Uma absolutização da proibição da
. auto-eliminação frente à liberdade de sacriffcio da vida dificilmente poderá ser sus-
tentada diante de tais casos. Mesmo os antigos pais da Igreja consideravam a auto·
eliminação admissível para os cristãos em detenninadas circunstancias, por exemplo
quando a castidade estava ameaçada pela força, se bem que já Agostinho discordava
disso e absolutizou a proibição da auto-eliminação. Contudo, parece impossível dl•
ferenciar basicamente os casos relatados do natural dever cristão pelo qual, por
exemplo, por ocasião de um naufrágio, o cristão cede o 4ltimo lugar no barco salva•
vidas a um outro e enfrenta a morte de olhos abertos, ou então onde um amigo 00•

97
bre o corpo do outro com o próprio corpo para protegê-lo de uma bala. A decisão
própria aqui se toma causa da própria morte, mesmo existindo ainda a diferença
entre a auto-eliminação direta e o empenho da vida em que esta é colocada nas mãos
de Deus. Diferente é a situação, evidentemente, quando circunstâncias estritamente
pessoais levarem ao suicídio, tais como honra ferida, paixão erótica, debacle finan-
ceiro, dívidas de jogo ou graves erros pessoais e quando, portanto, através da auto-
eliminação não se pretende proteger vida alheia, mas justificar exclusivamente a
própria. Claro que, no caso concreto, também aqui a idéia do sacriffcio não faltará
totalmente. Em todo caso, preponderará aqui a salvação da própria pessoa de ver-
gonha e desespero sobre todos os outros motivos, de sorte que a falta de fé se tor-
nará a razão dltima do gesto. Não se crê aqui que Deus possa dar novamente sentido
e direito a uma vida fracassada, e mais: que justamente através do próprio fracasso
urna vida possa chegar a sua verdadeira realização. Por isso, a terminação da vida
perman~ce a dltima possibilidade dq ser humano de ele mesmo devolver sentido e
direito à sua vida, ainda que seja no momento da sua destruição. Também aqui se
toma mais uma vez bem claro que uma avaliação puramente moralista do suicídio
não é possível e que ele, aliás, pode muito bem subsistir diante duma ética ateísta. O
direito do suicfdio só se desfaz em relação ao Deus vivo.
À parte de todos os motivos externos, porém, há uma tentação para o sui-
cídio que acomete especialmente o crente, uma tentação de abusar da liberdade dada
por Deus contra a própria vida. O ódio .da imperfeição da própria vida, a experi!Sn-
cia da renitência da vida terrena contra uma realização efetuada por Deus, a tristeza
decorrente disso e a dóvida quanto a todo e qualquer sentido de vida, em geral, po-
dem levar a momentos perigosos. Lutero sabia dizer muita coisa a esse respeito. Não
há então lei humana ou divina que possa evitar o gesto; somente o consolo da graça
e o poder da intercessão fraternal podem ajudar em tal provação. Não é o direito à
vida, mas a graça de poder continuar vivendo sob o perdão de Deus que pode resis-
tir a essa tentação do suicfdio. Mas quem haveria de afirmar que a graça de Deus
não possa abranger e carregar também o fracasso diante desta mais dura tentação?

Procriação e Vida em Formação

No direito à preservação da vida física está contido o direito à procriação.


O ser humano, em distinção do animal, não é simplesmente dominado pelo obscuro
instinto inconsciente de preservação da espécie geral; antes, o instinto da procriação
nele se manifesta como desejo consciente de filho próprio; a procriação, portanto,
não constitui simplesmente uma necessidade geral da espécie, mas é uma decisão
pessoal; por isso, cabe ao. ser humano, como pessoa, um direito de escolha pessoal
do cônjuge. Isto não significa, de forma alguma, que nessa escolha s6 entrem em
consideração desejos individuais, mas pressupõe a concordância, vale dizer, a livre
decisão do indivíduo por ocasião do casamento. O anseio pelo filho próprio inclui o
direito de escolha da mulher, respectivamente do homem. que deverão tomar-se
mãe ou pai da criança. Nesta escolha própria o ser humano realiza, ao mesmo tem-
po, sua determinação de multiplicação da espécie humana. Quando da constituição
do matrimônio aliam-se, no ser humano, os aspectos mais individuais com os mais

98
gen6rioos, passando por cima de todu as inst.âncias intermedimas. Trata•ae aqui d1
união de duas pessoas como pessoas, com base na livre decisão de cada uma. 81"
direito a natureza humana invocard enquanto existir. A negação deste direito
motivos vários que não procedem do Ambito totalmente individual nem do humano
"°'
em geral, dia mais, dia menos, sempre de novo M de mostrar-se ineficiente diante
do vigor da vida naturaL Nem motivos de classe social, nem de ordem ccontimlal,
nem de fundo ideo16gico-religioso, nem de ordem biol6gica podem questionar om
caráter definitivo o direito do ser humano ao filho pr6prio e, com isso, o da eaoolha
do consorte. O desejo de procriação do ser humano nunca deve ser interprotado
como obrigação meramente e~ econõmica, religiosa ou biol6gica. Certamon•
todos estes aspectos podem e devem ser ponderados na pr6pria escolha, maa nlo
poderão eliminar a livre decisão. No matrimOnio, une-se indivfduo a indlvfduo,
pessoa com pessoa. Vinculações econômicas. confessionai<;. sociais e étnicu ln·
fluenciam a decisão do indivíduo, porém não podem eliminá-la ou antecipd·la. A
causa de tudo isso é que o desejo do filho pr6prio, respectivamente a livre eeoolha
do c&tjuge, ou seja. o matdm6nio humano, 6 a IDIÜs antiga das estruturas humanu •
por isso não pode ser condicionada por aquelas.
O matrimõoio já existiu antes que quaisquer outras estruturas da comunl·
dade humana se desenvolvessem. Ele foi constituído com a criação do primeiro 110r
humano. Seu direito jaz nos prim6rdios da humanidade.
A limitação do direito de matrimônio pela exigencia de ambos os cõqjua•
_pertencerêm a uma determinada confisslo, :respectivamente a qualificação de todoa
os casamentos não-religiosos como concubinatos, como ensina a doutrina cat6ll·
co-romana sobre o matrimõnio, priva-o de seu carilter e direito essenciahnente na·
turais e faz de uma ordem da natureza wna ordem da graça ou da salvação, bem l
moda de uma limitação étnico-nacional do direito de contrair matrimônio, atravdl
da qual o matrimônio, pela privação de seu direito humano universal, é declarado
uma estrutura da etnia tão-somente. Em ambos os casos, diminui-se arbitrariamente
a rique7.a do matrimOnio o. com isso, a multiplicação da espécie humana deaejlda
por Deus. lnstancias estranhas reivindicam o direito de conduzir e fonnar a deecen•
dência e depauperam a riqueza da criação de Deus, que deseja desdobrar·se atravlfl
do desejo pc1o fi1ho pr6prio e não pela geração compul86ria de um certo tipo huma-
no, interferindo assim, funestamente, na ordem natural do mundo. Na preocupada
int.ençlo de garantir a descendência da religião, respectivamente da etoJa, e com
muito pouca confiança em naturais inibições e escolhas, perdem-se voluntarlamena
forças humanas inimagináveis.
· Os matrimônios não são realizados pela Igreja nem pelo Estado e tampou•
co recebem o seu direito de ser por estas lnsiituiç&s. A realização do matrim&nlo
acontece, antes, por ambos os cônjuges. O fato de o matrimônio ser contraido publl·
camente diante do Estado e diante da Igreja outra coisa não significa do que o reco•
nbecimento p'6blico, civil e religioso, do matrimônio e de seus direitos inercntee. llto
é doutrina luterana.
Onde existem, de fato, restrições eclesiúticas e estatais ao direito ao CI•
sarnento, surge- sem prejuízo da validade do que foi dito acima- a questão gorai do
dever de obediência à autoridade eclesiútica e estatal. assunto esse que ainda nlu
pode ser tratado neste contexto. Em todo caso, a exist!ncia de restrições e1talaia
a respeito, desde que não tenham nascido da arbitrariedade, lembrarão que eacolha 1

99
lniblçõel naturais não ofereceram garantias suficientes pára evitar que; ~vés de
orroa o delvios, acontecessem prejuízos fatais à sociedade. O natural recebe aqui a
Umltaçlo o regulamentação eventualmente necessdria através do direito positivo do
B1tado. Ao matrimônio está ligado o reconhecimento do direito da vida em forma-
çlo como um direito que não fica a critério dos cônjuges. Sem o reconhecimento
b411co deste direito, um matrimônio deixa de ser matrimõnio e se transforma num
ouo. No reconhecimento, entretanto, dá-se espaço ao livre poder criador de Deus,
que pode fazer surgir vida nova deste matrimõnio, de acordo com a sua vontade. O
oxtormrnio do fruto no ventre .oiaterno é atentado ao direito de vida conferido por
Doua à vida em formação. A discussão da pergunta se aqui já se trata de um ser hu-
mano sõ leva confusão ao simples fato de que Deus, em todo caso. quis criar um ser
humano aqui e que deste ser humano em formação se tirou a vida deliberadamente.
On, isso outra coisa não é do que assassinato. Os motivos que levam a tal ato po-
dom ser bem variados; mais: ali onde se trata de um gesto de desespero em extrema
10lid4o e miséria humana ou econõmica a culpa cabe mais à sociedade do que ao in-
dlvt'duo; finalmente, neste ponto o dinheiro pode encobrir muita leviandade, en-
quanto justamente entre os pobres o ato cometido ap6s dura luta de consciência
aparece mais facilmente; tudo isso indiscutivelmente afeta, de forma decisiva, a
po1tura pessoal e poimênica diante do autor, mas não pode mudar nada no fato do
asBaBSinato em si6.
Uma ingerência no direito da vida em formação acontece também ali onde
num matrimônio se impede, por princípio, o surgimento de nova vida, onde um casal
exclui, por princípio, o desejo de ter filhos. Esta postura fundamental está em con-
tradição com o próprio sentido do matrimõnio e com a bênção que Deus colocou
nele através do nascimento da criança. Contudo, da negação de desoendentes por
princípio num matrimônio certamente deve ser distinguido o controle da natalidade
concreto e responsável7. Na procriação humana não deve simplesmente prevalecer o
Instinto cego e então invocar ainda especial benevolência divina, precisamente por-
que se trata do desejo do filho próprio; peJo contrmo: a razão responsável deverá
participar da decisão. Pode haver, de fato, razões de muito peso que, em casos
concretos, recomendem uma limitação do nthnero de filhos. Que o problema do
controle da natalidade nos 61.timos cem anos se tenha tornado assunto de mui1a
atualidade e que em vastos cfrculos de todas as confissões tenha recebido soluções
positivas, não pode ser debitado a apostasia e a falta de confiança em Deus; antes,
lua es~ indiscutiveJmente ligado l crescente dominaçlo da natureza pela tecnologia
om todos os campos da vida e i\s inegáveis vitórias que a tecnologia conquistou no
mais amplo sentido_ sobre fatos da natureza, por exemplo, na redução da mortandade

6 A veemente rejeição, por parte da Igreja Cat6lica, do extennfnio da criança no ventre materno
quando a mãe corre risco de vida, dá o que pensar seriamente, sobretudo em vista da prática
pneralizada. Se a criança recebeu de Deus um direito l vida e se já tem condições para tanto,
aeu extennfnio proposital se constitui em ato altamente discutível diante da suposm morte na-
IUJ'al da mãe. } • vida da mãe está na mio de Deus, a vida da criança, no entanto, é eliminada ar-
bitrariamente. A questão do maior valor da vida, se da mie ou da criança. parece ser humana-
mente impossível de decidir.
7 Bm oposição a isso, o Cat. Rom. 2.8.13 equipara anticoncepção e aborto e qualifica ambos co-
mo auassinato.

100
infantil e no significadvo aumento da m&tia de vida. A população europ& muldpli·
cou-se nos dltimos cem anos em ndme~ absolutos apesar da constante reduçlo do
fndice de natalidade. A diminuição da mortandade infantil - vista sob o aspecto da
preservação da espécie - exige menos nascimentos para garantir a continuidade da
raça humana. Por conseguinte, ao acusar a tecnologia de haver acostumado tio mal
o ser humano, a ponto de não mais querer assumir os sacriffcios de uma família
grande, não se deve ignorar o fato de que foi justamente o progresso t.ecnol6gico
que possibilitou o estupendo crescimento demográfico europeu. Essas considerações
poderiam fazer com que o controle da natalidade, hoje amplamente praticado, fosse
interpretado como uma reação natural contra o crescimento praticamente incontro-
lável da população européia, um natural compasso de espera, por assim dizer, da
na.torei.a humana. No entanto, essas observações de ordem geral não nos dispensam
da pergunta pelo direito do próprio controle da natalidade. A teologia moral católica
e, em conseqüência, a instrução relativa à confissão contestam-na por princtpio.
Neste sentido, pordm, surgem as seguintes dificuldades: tam~m a teologia moral
cat61ica admite a possibilidade de situação em que deveriam ser evitados mais des-
cendentes num matrimônio, ainda que considere - e com razão - tais casos extre-
mamente raros. Seria, pois, errado acusar a teologia moral cat6lica de dar livre
curso ao instinto cego nessas coisas e de excluir a responsabilidade e razão hwnanas
de qualquer participação nessa ~ Entretanto, a moral católica em princípio co·
nhece um dnico meio para alcançar este objetivo: a completa abstinênciaS. Com isso,
porém, esti minando a base ffsica do matrimônio, ameaça suspender e destruir o
pr6prio matrimônio ao retirar-lhe um direito fundamental. Além do mais, exige,
com isso, coisa impossível de cumprir pela maioria, e é difícil de imaginar que o ar-
rependimento no confession4rio por tais desli2:es possa estar ligado ao propósito
realmente sincero de renunciar para sempre a esse pecado. A teologia moral católica
baseia seu rigorismo na desnaturalidade de um ato que impede premeditadamente o
objetivo natural do matrimônio, a procriação. Ela não limita o objetivo do matrimô-
nio à procriação, como muitos afirmam - esta tese s6 surgiu com Kant-, mas não
quer que haja conflito entre o objetivo secundário, a comunhão sexual, e o principal,
a procriação. Por mais convincente que possa parecer este raciocfnio, ele se emara-
nha em dificuldades insoltiveis. Elimina-se, por certo, a desnaturalidade da contra-
cepção, porém em seu lugar surge a desnaturalidade de um matrimõnio sem comu-
nhão tJsica. Além disso, basicamente não faz diferença, em relação à naturalidade do
ato, se a cooperação da razão responsável é situada na decisão de desistir doravante
da coabitação ou na pr6pria comunhão sexual. Nem o gozo ilimitado do instinto ce-
go, nem a abstinência conjugal, nem o uso de an1iconoepcionais resolvem o proble-
ma aqui coJocado, e nenhuma das tr& J><M!Sibilidades de comportamento leva vanta-
gem sobre outra por razões de princípio. :ê da maior import!ncia que, nesta situação

8 As saídas casuísticas, emanadas principalmente das necessidades da prática confessional, em


que são admitidos certos recursos que não pretendem impedir, mas dificultar conscientemente
a concepção, oneram o princípio catdlico a tal ponto que, em dltima análise, não conseguem
aliviar e limpar a consci~ia, motivo pelo qual também são rejeitados decididamente por
muitos confessores. Seria melhor que essas "concessões" à fragilidade da natureza humana,
que, no fundo, abandonam o princfpio e se distinguem da contracepção praticada com o auxfiio
da técnica apenas pela escolha dos meios, desaparecessem também da teologia moral.

101
du ~ 88 éld~ncias rillo sejam onCradas e afligidas de maneira ei'rada. Certa-
mente pode ser ~ô exigir o m3i8°pesado P<>r causa do mandamento de DeUs.
Mu a lltuaçlo aqói nllo é tão claril assim. Por isso, deve ser dado espaço à liberdade
• da ooruiclencJa qúe prestará contas a Deus. Todo rigorismo i1egftimó pode ter-as
mala funestü ~Dencias, desde o farisafsmo até· o completo afastamento de ·
DeÜa9 r lJ :• , ' . , . • . o
1 ( Nesta qtlêStão, por causa da integridakle do maUimõoio, não h4 como fugir
do íecOhli~nto de um direito ~ plena comunhão fJsica fundamentado 1no amor
reotptoc6 dos cõnjuges, direito este distinto, mas ligado e essencialmente iilsepantvel.
do dlre1to1AptooriaçãolO; ao mesmo 'tempo, deve-se admitir que é precise!> usar;este.
direito da natúreZa .com juízo precisamente porque é um direito humano~l. Como.
e
natureza jtifzO 'Se' relacióruun no caso concreto s6 pode ser decidido e assumido de
ouo em cüsó. Deve-se admitir com franqueza, entretanto, que basicamente não h4
dltWença na aplicação dos meios que a ruia escolhe. avidencia-se que é uma gran-
de feHcidadC, ·que evita, inclusive, muitos conflitos íntimos, quando natmeza e razão
llntonliam a: í>onto ~ não ser necessirio tocar em toda esta probJem41ica no Ambito
do um mat:rhnõnio. Que esta felicidade coube a muito poucos na presente geração
oonstltui umifUcfo ·que· devemos carregar com responsabilidade. Mas é injustific4vel
que, em atitude 'de desConfiança, se desperdice essa felicidade mesmo ali onde po.. .
dor1a Jia\'41..iJál Que, ·por.fimt a fé cristã pode éonquistar esta felicidade pela·graça, é
uma pe~&~f;qiie áq:tú s6 pooe remeter a um tratamento posterior. . . ":' · .
:À fohlla'inaiSradical de eVitar·descendentéS não desejados éa esterilização..
voluntúiatou fürÇada 'por legislação do Estado. Quem quiser chegai"·a uma conclu•
do clara neste"aSslinto não
deve fechar os olhos ante a gravidade e seriedade desta
lnterfer&lciâ ·na-vida pessoaI12. O corpo humano tem·em si um direito àintocabili..
dade. Nem-·eu mesmo nem alguém outro pode arrogar-se um direito absoluto -de
dispor dos membros do meu corpo, que me foram dados por Deus. P<>rtanto, aqui·
e1tlo os limites dà-intocabilidade do corpo. É evidente que posso admitir a amputa- .
çlo1de um-membro enfermo em função da preservação do corpo todo. Na realidade, .
tam06ni a estetilizaçã<i..86..é aventada.em casos de doença; por outro lado, d!4Ve.:-~,
,, . .,! L, 1

9 Nis ~ 'b8~ ddvida que o apego da inonI cat6lica a este princ(pio afugeritou compieti-
llMltll futlméros.homem.do confcssion4iio. Se a Igreja Cat6lica aceita isso COD8clcntemmtc;
por oerto é sinal do vigor de suas convicç&s, mas pode. apesar <fislo, ter conaeqGencias ~-
previa(veis. · · · . ·
;_, . ' ,
10 luo corresponde ao conceito bíblico do matrimônio. Não é o objetivo da procriação, mas a
unilo de w!Dem ~ ~ulher que fundamenta o ma~ônio. A mulher foi dada ao homem eomo
..compaíillell"ll que·lhe corresponda" (Gn 2; 18), e "eles serão uma s6 carne" (Gn 2.23). A rcr-.:.
dlldãde déSSã! união, no entanto, não é wmi Ordem (o que seria inipossfvcl para o pensamento
bíblico e s6 pôde ser entendido assim na era racionalista- tecnolcfgica), e sim uma benção de
Deus (Gn 1.28). Também Paulo concede à sexualidade no matrimônio um direito indepen-
dente do objetivo da procriação (1 Co 7.3ss.; cf. :ê.x 21.10). O pecado de·Gênesis 38·nãoestá ·
no e,buao ~q xgatrmi~q, co~o prc.ssqp~;~ tj:<>l!jl~-~~i!l.C<1.tdli~, mas nqJatq ~o iqnão l!C ,
aopr, con!rll. ll J,ei, a.11Us<:iJ!lr a d~~ po,*ticladé ao seu irmão; · · · , . .· , , . · . ·
li 1 Po3.7« ~ . . . . . . .
12 Nlo 6 ~vel 'eiulminar aqui se ·a esterilU.ação ~ ou não ter as conseqoencias cleSejadas,
~~nte em 'que casos de doenças eapecfiicas ela seria justificada. Iaso 6 8lllUDto da
cllócla ~ca. Aqui partimos do pressuposto de que, em certos casos, a estcrifuaçlo 6 expe-
dJoote e faz aentido do ponto de vista médico.

102
considerar que a esterilização não acontece para manter vivo o corpo todo, mas para
posstõilitar a continuidade de certas funções corporais sem conseqüências perigosas.
Se houvesse a desistência do uso dessas funções, a esterilização seria desnecessária.
Surge, portanto, a pergunta se a intocabilidade da vida própria caduca em função do
exercfcio de certas funções do corpo sujeitas a fortes pressões. Não é possível dar
uma resposta inequívoca a esta indagação. Onde o instinto corporal é tão forte que,
de acordo com conseienciosa auto-análise do envolvido, colocaria em perigo vida
alheia e a prdprla. a intervenção da esterilização em função da preservação da vida
toda será dos males o menor. Onde o autodomfnio sabidamente é possível, a inter-
venção espontAnea não sera
admissível. Em ambos os casos acontece algo contrmo
ao direito natural à procriação e contra o direito da vida em formação, mas a causa
para tanto esd, neste caso, na circunstancia da doença matar a natureza.
A esterili7.ação imposta pelo Estado deriva o seu direito de ser da necessi-
dade de preservação da etnia em geral e da justa desconfiança- aos olhos do Estado
- em relação à poSSl"bilidade de vida em abstinência. Ela significa, sem dávida, uma
grave ingerência no direito do ser humano à intocabilidade de sua vida, e é enonne o
perigo de que ali onde este limite for uma vez transposto - talvez em decisiva res-
ponsabilidade - caiam todas as fronteiras. O fato do Estado também reivindicar o
corpo humano na guerra, por exemplo, é um indício da limitação da intocabilidade
ffsica; distingue-se da esterilização, no entanto, na medida em que na guerra não
acontece uma intervenção direta na vida ffsica do ser humano e que aí sempre se
processa, de certa forma, uma legítima defesa.
Por outro lado, para evitar descendência indesejável podem ser usados ou-
tros caminhos - o internamento dos doentes, por exemplo - que evitam a interven-
ção corporal direta. Os maiores sacrificios econômicos ligados a isso talvez se acei-
tem ali onde se tem clara noção dos perigos que a derrocada dos limites representa
para o indivíduo e a coletividade. Onde, no entanto, já existe uma legislação estatal
referente à esterilização, a postura do enfermo e do médico dependerão do dever de
obediência à autoridade, um assunto que neste contexto ainda não pode ser ventila-
do13. Atinge-se o limite de todas essas considerações diante da palavra de Jesus:
"Portanto, se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o e lança-o de ti. É melhor
para ti que se perca um dos teus membros, e não seja todo o corpo jogado no infer-
no." (Mt 5.29.) Da aqui anunciada suspensão de todos os direitos naturais na fé no
reino dos céus teremos que tratar mais tarde.

13 O radical repddio da esteriliz.açlo por parte de Igreja Cat6lica - cf. a encíclica papal Casti
Connubii de 3.12.1930 e a teologia moral-, que também profbe ao médico a prática desta ci-
rurgia, invoca em primeiro lugar o relacionamento do ser humano com o seu corpo, que ele s6
"pode usar de acordo com seus fins naturais", e, em segundo, os limites do poder da autori-
dade sobre o corpo do indivíduo. Todavia, no primeiro caso concede o direito a uma cirurgia
para preservar a vida, no segundo o intcmamento compuJsdrio do paciente. RULAND
(Handbuch der praklischen Seefsorge, p. 359) cogila, inclusive, da castração como possibili-
dade licita em casos de grave paicopatia. Nestas cireunsdncias, 6 diftcil entender como a este-
Iilimção pode ser compreendida como algo basicamente diferente.

103
Liberdade da Vida Ffsica

Faz parte da preservação da vida :ffsica a proteção contra violação arbitrá-


ria da liberdade do corpo. Jamais o corpo humano se torna simplesmente um objeto
que possa cair no irrestrito poder de outra ~a e possa ser usado por ela exclusi-
vamente como meio para seus fins. O corpo humano vivo é sempre o próprio ser
humano. Violentação, exploração, judiação e privação arbitrária da hõerdade do
corpo humano são graves violações do direito dado ao ser huoiano com a criação e
que, além disso - como todas as violaç5es da vida natUr3J. -, oedo ou tarde terão o
seu castigo.
Violentação é o uso forçado de corpo alheio através do emprego ilegítimo
de violência para fins próprios, especialmente no campo sexual. Contra isso está o
direito do ser humano de oferecer ou negar seu corpo e em especial sua sexualidade,
em plena liberdade. Enquanto o emprego da força ffsica para fins de trabalho em
prol do bem comum pode ser exigido, em certas circunstancias, também sob coação,
a sexualidade do ser humano está fora de qualquer coerção. A tentativa de iIDpor
à força, por alguma razão, certos casamentos ou ligações sexuais, fere, sem dúvi-
da, a liberdade ffsica do ser humano e entra em conflito com aquele fenômeno Msi-
co da vida sexual que representa, em defesa natural, o limite para qualquer ingerên-
cia alheia: o sentimento de pudor. No sentimento natural de pudor expressa-se a li-
berdade essencial do corpo humano em relação ao sexo. A destruição do sentimento
de pudor significa a dissolução de toda ordem matrimonial e sexual, de toda ordem
social até. É evidente que os sentimentos de pudor são variáveis e sujeitos a forma-
ção. Porém sua essência invariável, fundamentada no natural, é a preservação da li-
berdade do corpo humano face a toda e qualquer forma de violentação. Esta hõer-
dade guarda o mistério da corporalidade humana.
Da exploração do corpo humano falamos nos Casos em que as forças fr.si-
cas de uma pessoa se tornam propriedade irrestrita de outra pessoa ou de uma ins-
tituição. Este fenômeno chamamos de escravização do ser humano. Com isso não
nos reportamos simplesmente à estrutura escravocrata da Antiguidade. Há formâs
históricas de escravatura que preservam melhor a liberdade essencial do ser humano
do que certos esquemas sociais em que o termo "escravidão" é abominado, porém
na realidade existe uma escravização completa das pessoas ditas livres. Neste senti-
do se torna compreensível e aceitável a postura de muitos pais da Igreja, e também
de Tomás de Aquino, quando não condenam o termo, mas o fenômeno da escrava-
tura. Este existe ali onde o ser humano de fato se tomou uma coisa sob o poder de
outro ser hwnano, onde se transformou exclusivamente em meio para o fim de ou-
trem. Este perigo sempre se dá ali onde o ser humano não tem a hberdade de esco-
lher seu lugar de trabalho, nem a possibilidade de trocá-lo por outro, nem de deter-
minar o volume de sua produção. Aqui se chega a uma desenfreada exploração das
forças físicas do trabalhador que, no máximo, cuida da manutenção da produtivida-
de da força de trabalho do outro, mas que, por detenninadas razões, às vezes não
respeita nem este limite, levando, então, à exaustão completa. Com isso se rouba
a força ffsica do ser. h~o; seu corpo se converte totalmente em objeto de explo-
ração do mais forte; a liberilade do corpo humano está cJestrufdal4.

14 V. mais sobre isso no capftulo "O trabalho". (Nlo existe. O editor.)

104
A judiação do corpo deve ser diferenciada do castigo &ico oajo objltlvo 1
a educação do men1almente imaturo para a autonomia, como tamWm da pwdvlo
retaliativalS peJa qual ae pretende ID06trar ao CQ)pado de um crime ordin4rto oontl'I
corpo aJheio a sua infAmia através da ofensa ao seu corpo. Por judiação do corpo
entendemos, em geral, a provocaçlo arbitrfria e brotai de dores ffal.caa modlanl8
aproveitamento de uma dada situação de podor e, em especial. para fina de oxtoralo
de confiss6es ou infonnaç&a desejadas. Aqui aoontece abuso e, conaoq0entomenl8,
desonra do oorpo para alcançar objetivos outros, como por exemplo para a eadll...
ção de ambiç6es de poder ou a obtençlo de detenninadas informaç&s. A aenalbW~
dade à dor do corpo inocente é explorada de maneira atormentativa. Al6m da tor-
1ura geralmente ser um recurso inadequado para a descoberta da verdade - oolla
que sd poderia ser levada em consideraçlio ali onde realmente se procuraue a ver-
dade, qualquer judiação do corpo significa a tnais profundà desonra do aer huma
no. E1a produz, por isso mesmo, um &tio profundo e o deaejo ffsico natural de ......
. 1abc1coer a honra ferida pelo uso de violência &ica. Desonra ffsica procura por vln•
gança tlsica no verdugo infame. Assim. a vio]açlo da liberdade &ica do ser humano
. destr6i, também aqui, o fundamento da sociedade.
A privação arbitraria da liberdade através do aprisionamento de indefOIOI
e inocentes (por exemplo, a caça a negros africanos que foram transportado& para a
América como escravos) ou pc1i> confinamento, é violação da liberdade dada com o
corpo humano. Quando o ser humano é separado à força e injustamente de sua mo·
radia, trabalho e famflia, quando é privado do exerefcio de todos os direitos ffalco1 o
tratado como um culpado, tira-se dele a honra ligada à liberdade :fJsica. Entretanto,
onde se roubam a Jiberdade e a honra do inocente, o culpado tem que permanooer
impune e publicamente honrado. Isso significa solapar toda ordem social e cedo ou
tarde terá necessariamente como conseqüeoda o restabelecimento dos direito& da
vida natural.

Os Direitos Naturais da Vida Intelectual

Há tr& posturas b4sicas da vida intelectual em relação à realidade: a do


avaliar, a de agir e a de gozar (brincar, alograr-ae). Nelas o ser humano se defronta
livremente com a realidade a que ele pr6prio pertence, provando assim sua humanl•
dade16.

IS V.acima.
i6 N. do li.;; Este aegmcnto ficou inacabado. Entre as anotaç&:s preparatdrias encontramOl1 entN
outras coisas, a seguinte divisão de subtítulos:
"Os direitos naturais da vida fJsica. os dirciros naturais da vida intelectual, o direito na&ural
a trabalho e propriedade [rofemtte a isso a seguinte observação em outra anoiaç.,: ••Jlw.
soalmente po8llO pd\llll'•mc esponmneamente da millba vida, propriedade. etc. Ma, como 1
propriedade, etc. da minha famOia, do IDCll1 pow, ele, nlo me pertencem, tamb6m nlo pomo
d4-108. Nlo que cenbam em si um direito maior, mas porque fui convocado para a protegia da
propri«ltuk dM Oldmr, para prcaervar ao indivíduo a llberdtuU de dispor do sua vida, pio•
priedade, ele."J. o direito natural l comunidade, o direito natmal ldewçlo, o direi.to natural
l Micicladc, l legfdma defesa da vida tisica e intelectual."

105
A dltima seção iniciada contém um bilhete sobre o que é cultura:
"Não o profissional, especialista. não o coração piedoso, não o polfmata como tal, nio o de-
senvolvimento de potencialidades pr6prias em si, não sociabilidade em si, não sob o prisma da
utilidade.
Saber de estruturas peaoais-bumaoas do mundo;
relação com o todo da exist!ncia natural e intelectual (sem eepecializaçlo);
poder movimentar-se no todo, sempre com soberania; inteirar em si o universo, carte·
gf-fo;
o humanitário;
liberdade, não funcionalidade;
humildade (limite do conhecimento) e amplitude de compreendo;
domínio de /íngllQJI;
c:irpfrito aberto, tamb6m para coisas novas.
:a falta de cultura rir num filme quando aparecem danças de negros;
é falta de cultura menospre7.lll uma atividade;
é falta de cultura deslustrar certas classes sociais;
é falta de cultura aproveitar-se de fraqueu momentlnea; .
é falta de cultura deaconhecer situações e processos elementares da natureza ou da vida in-
telectual;
é falta de cultura z.ombar de algo sd porque é diferente da gente;
é falta de cultura exibir sua 'cultura'.
Ambição e excesso de z.clo ~ falta de cultun. (rato!)
Naturalidade da cultura.
'O que se aprendeu e esqueceu de novo• - não ter memorizado, mas poder dispor dilso in·
telectnalmcmte na discussão concreta e animada.
Ocupação com coisas sem utilidade direta (colégio humanístico).
Cultura atrav& de familia, amllade, pequenos grupos.
Cultura cresce (não é 'adquirida')."

106
V

CRISTO, A REALIDADE E O BEM

CRISTO, IGREJA E MUNDO

O Conceito de Realidade

Há uma exigência singular que se precisa fazer a qualquer um que quelrn


entender a problemática da ética cristã, a saber, a exigência de desistir, desde o prln·
cípio, das duas perguntas que afinal o levaram a ocupar-se com os problemas dtico1:
"Como me tomarei bom?" e "Como farei algo de bom?", reconhecendo que 11llo
inadequadas para o assunto em questão, e, em seu lugar, fazer bem outra pergunta.
infinitamente diferente das duas: a pergunta pela vontade de Deus. Esta exig!ncla •
tão marcante porque pressupõe uma decisão sobre a derradeira realidade, uma do
cisão de fé, portanto. Onde a problemática ética se manifesta essencialmente na por•
gunta peJa bondade própria e pelo fazer do bem, já aconteceu a decisão a favor do
eu e do mundo como última realidade. Toda reflexão ética tem então o sentido Je
que eu seja bom e que o mundo se tome bom através da minha ação. Quando de1co·
brimos, no entanto, que esta realidade do eu e do mundo está integrada numa roa1I
dade derradeira e bem diferente, qual seja, a de Deus, do Criador, Reconciliador 1
Salvador, o problema ético imediatamente toma feições bem novas. De maior lm·
portância não é então que eu me torne bom, nem que a situação do mundo seja mo·
Jhorada por mim, mas que a realidade de Deus se manifeste em toda parte como ll
realidade última. O fato de Deus se reveJar como o bem, com risco de eu e o mundo
não aparecermos como bons, e sim como inteiramente maus, toma-se a fonte d1
preocupação ética onde se crê em Deus como derradeira realidade. Todas as col1u
aparecem distorcidas quando não são vistas e entendidas em Deus. Todos os uulm
chamados dados, todas as leis e normas não passam de abstrações enquanto não 110
crê em Deus como derradeira realidade. Que Deus mesmo é a última realidade, po
rém, não é uma idéia para·a sublimação do mundo existente - não sendo, portanto,
um acabamento religioso duma cosmovisão profana-, mas o sim da fé à automMI
festação de Deus, à sua revelação. Se em relação a Deus s6 se tratasse de umu hldlu
religiosa, não haveria como entender por que atrás desta suposta ''última" realldnd"
não pudesse haver uma derradeira realidade do crepósculo dos deuses, da morte d<
Ies. S6 na medida em que a derradeira realidade for revelação, isto é, autotcstcmu
nho do Deus vivo, sua reivindicação tem fundamento. Neste caso, no entanto, a d~

107
cülo sobro a vida toda acontece na relação com essa realidade dltima. Conhecê-Ia
nlo algntflc,:l apenas uma progresdo gradativa para a descoberta de realidade cada
vez mata pr0funda; este saber é o momento decisivo de todo e qualquer conheci-
mento da r"8lidade. A derradeira realidade aqui se evidencia como realidade pri-
meira, corno primeira e dltima coisa, como alfa e õmega. Toda visão e conhecimento
das coisas e leis sem ele converte-se em abstração, em separação da origem e do al-
vo. A pergunta pela bondade pr6pria, respectivamente pela bondade do mundo, tor-
na-se impossível sem ter feito antes a pergunta pela bondade de Deus; pois que im-
portAncia haveria de ter a bondade do ser humano e do mundo sem Deus? Mas, co-
mo Deus, q1l81 derradeira realidade, é o mesmo que se manifesta. testemunha e re-
vela como Oeus em Jesus Cristo, a pergunta pelo bem s6 pode achar resposta. em
Cristo.
A origem da ética cristã não é a realidade do próprio eu, nem a rêalidade
do mundo, iampouco a realidade das. normas e valores, mas a realidade de Deus na
sua revelaçl<> em Jesus Cristo. Esta é a exigência que, por uma questão de honesti-
dade, deve t;er feita, antes de qualquer outra coisa, a toda pessoa que queira impor-
tar-se com o problema de uma ética cristã. Ela confronta com a suprema decisão, ou_
seja, com q'd«' realidade queremos contar em nossa vida: com a realidade da palavra
de revelaçãO de Deus ou com as imperfeiçaes do mundo, com a ressurreição ou com
a morte. Esta questão, que ninguém pode responder a partir de si 1llCS1lW.por escolha
pr6pria, j4 pressupõe a resposta dada, a sabei: seja qual for a nossa decisão, Deus já
pronunciou a sua palavra de revelação, e, mesmo na realidade errada, não podemos
fazer outra coisa do que viver da verdadeira realidade da palavra de Deus. Pergun-
tar pela dertadeira realidade, portanto, já faz com que sejamos abrangidos por sua
resposta, e dessa abrangência não há mais como sair. Ela mesma nos leva para o
centro da realidade da revelação de Deus em Jesus Cristo, donde ela procede.
o probkma da ética cristã é a concretização da realidade reveladora de
Deus em ctisto entre suas criaturas, assim como o problema da dogmática é a ver-
dade da pre6CJlÇa reveladora de Deus em Cristo. No lugar marcado em todas as ou-
tras éticas pelo contraste de dever e ser, idéia e realização, motivo e obra, aparece,
na ética cristã, a relação entre realidade e concretização, passado e presente, história
e acontecimento (fé) ou então, para declinar o nome inequívoco do assunto em lugar
do conceito ambíguo, a relação de Jesus Cristo e do Espírito Santo. A pergunta pelo
bem se traJJSforma na pergunta pela participação na realidade divina revelada em
Cristo. o bem não é mais uma avaliação do que existe, por exemplo do meu jeito de ·
ser, da minJla mentalidade, das minhas ações ou de uma situação do mundo; não é
mais um predicado conferido a algo que existe por si. O bem é o próprio real, isto é,
não 0 real abstrato. desvinculado da realidade de Deus. mas o real como somente em
Deus t.em realidade. O bem não existe sem esse real; portanto, não é uma fórmula
geral. e es~ real não existe sem o bem. O desejo de ser bom só existe como anseio
pelo que é teal em Deus. Um desejo de ser bom em si, de certa forma como fim em
si mesmo, cOJllO profissão de vida, cai na ironia da irrealidade. Do legítimo esforço
pelo bem aqui se faz a ambição do santarrão. O bem em si não é um assunto autô-
nomo da vida; seria, como tal, o mais louco quixotismo. S6 temos parte no bem par-
ticipando da realidade.
A velha polêmica, se apenas a vontade, respectivamente o ato int.electuaI.
respectivamente a pessoa, pode ser boa ou se podem ser considerados bons também

108
o trabalho, a obra, o sucesso, a situação, e qual precederia ao outro, a qual vnht 1 l 1
maior importância, esta polêmica - que se infiltrou também na teologia, provoo111d11
aqui, como em outras partes, graves descaminhos - parte de colocações inteiram111110
erradas. Divide o que originalmente e em essência é uno, qual seja, o bem e o real, o
ser humano e sua obra. A objeção de que também Cristo teria visado esta dlaUnQlo
entre pessoa e obra em sua palavra sobre a árvore boa que traz bons frutoa (Mt
7.17) desfigura esta palavra de Jesus transformando-a exatamente em seu contr4rto,
O que se pretende dizer aqui não é que primeiro a pessoa seria boa, depoil u obra,
mas que somente as duas juntas podem ser boas ou nuts, portanto, que as duu ld
podem ser cotnpreendidas como unidade. O mesmo vale para a distinção que Roln
hold Niebuhr, filósofo americano da religião, caracterizou com os termos moral"""'
e immoral society. A divisão de indivíduo e sociedade que aqui se pretendo d tllo
abstrata como a de pessoa e obra. Aqui separa-se à força o que é insepardvel e ur1n
lisa-se cada parte, que como tal está morta, em separado. A conseqüência ~ aqUlla
total aporia ética que hoje figura sob o título de "ética social". Entretanto, ondo •
vê o bem na sintonia do ser com o dever, a maciça resistência que a sociedade opie
ao dever deve levar a uma preferência pelo indivíduo em detrimento da sociedade.
(Por outro lado, justamente este fato sugere que se perceba nesta concepçlo dtk.•
sua origem sociológica situada na era do individualismo.) A pergunta pelo bem nlo
deve ser limitada à análise de motivos de ações, respectivamente de seu êxito, 1tr1
vés da aplicação de um parâmetro ético pré-elaborado. Uma ética da mentalidade
é tão superficial como uma ética do sucesso. Pois que direito teríamos de parar nn
mentalidade como fenômeno ético supremo, ignorando que uma ''boa" mcntalldado
pode surgir de nascedouros bem obscuros no consciente e inconsciente humano1 1
que, muitas vezes, de uma "boa mentalidade" resulta o pior; e, se o motivo da AQIU
no fim se perde na inextricabilidade, no passado, também a pergunta pelo succ111m
desaparece sempre em nebuloso futuro. Para ambos os lados não há limites flxo1, 1
não há nada que nos dê o direito de parar num ponto qualquer, arbitrariamente dl•
terminado por nós mesmos, para chegar a uma conclusão definitiva. Se na pr•ttoa
sempre de novo se chega a tais fixações arbitrárias, será uma questão de convenlen-
cia, que depende de cada época, se elas estarão na linha da ética de motivos ou d&•
quela de sucessos. Em princfpio, nenhuma leva vantagem sobre a outra porque ent
ambas a pergunta pelo bem é formulada de forma abstrata e dissociada da rcalidado.
O bem não é a harmonia entre um critério que natureza ou graça nos tivessem colo
cado à disposição e o existente por mim designado de realidade. O bem 6 a pr6prl•
realidade, a saber, a realidade vista e reconhecida em Deus. Com a pergunta polu
bem se abrange o ser humano todo, junto com seus motivos e finalidades, com llCUll
semelhantes, com a criação que o circunda, isto 6, a realidade como um todo, 11u11
tentada em Deus. A divina observação "e era muito bom" (Gn 1.31) refere-• 110
todo da criação. O bem exige a totalidade, não apenas a mentalidade toda, mllll n
obra toda, o ser humano todo, juntamente com os semelhantes que lhe foram dadoa,
Afinal, que sentido poderia ter que uma parte apenas fosse chamada boa, por oxom
pio o motivo, enquanto a obra fosse nIB, ou vice-versa? O ser humano 1 um t()do ln
divisfvel, não só como indivúluo em sua essoa e obra, mas também como nwmbro
co tiVUJade dos seres humanos e das criaturas na qual es mse • péflunta
pelo bêm VISa esta totãiídãde mdívtSivel, JSto é, esta realidade fundamentada e l'ICIO
nhecida em Deus; quanto à sua origem, esta totalidade indivisível se chama ••1 orla

109
glo"• quanto ao seu destino, "o reino de Deus". Ambos estão igualmente distantes e
prdxlmol de nds, pois tanto a criação como o reino de Deus s6 estão presentes para
061 na auto-revelação de Deus em Jesus Cristo.
O sentido da pergunta cris'tã pelo· bem 1 conseguir participar da totalidade
lndivlsfvel da realidade de Deus. Neste ponto faz-se necessário, para evitar um mal-
entendido, esclarecer meJhor o que aqui se entende por realidade.
Existe uma fundamentação da ética no conceito de realidade completa-
mente diferente daquela do cristão; é a empírico-positivista. Ela procura elinúnar
por completo da ética o conceito de normas, por ver nele unicamente a idealização
de formas de comportamento de fato existentes e funcionais.para a vida: o bem, no
fundo, nada mais é do que aquilo que é funcional, útil e serve à realidade. Conse-
qüentemente, não há um bem de validade universal, mas .s6 um bem infinitamente
variado, determinado sempre a partir da "realidade". A vantagem desta concepção
sobre a idealista está em sua indiscutível maior "proximidade à realidade". O bem
aqui não consiste na impossível "realização" do irreal, na concretização de idéias
éticas; a própria realidade ensina o que é bom. A questão é, apenas, se a realidade
subentendida aqui tem condições de satisfazer essa exigência. Evidencia-se, em tudo
isso, que o conceito de realidade subjacente à ética positivista é aquele vulgar do
empiricamente constautvel, um conceito que inclui a renúncia a qualquer funda-
mentação desta realidade na derradeira, em Deus. Ora, essa realidade interpretada
de modo vulgar é inadequada para tomar-se origem do bem porque não pede outra
coisa do que a total dependência do momento, do fato, do acaso, da utilidade mo-
mentânea, porque não reconhece a derradeira realidade, destruindo e abandonando,
assim, a unidade do bem.
A ética cristã tem outro discurso acerca da realidade que é a. origem do
bem. Ela se refere à realidade de Deus como derradeira realidade fora e em tudo
que existe, ela se refere com isso também à realidade do mundo existente, que tem
realidade apenas graças à realidade de Deus. Que a realidade de Deus, por sua vez,·
não é mera idéia, isto a fé cristã deduz do fato de essa realidade de Deus tet-se au-
to-revelado e autotestemunhado em meio ao mundo real. Em Jesus Cristo a reali-
dade de Deus entrou na realidade deste mundo. O ponto em que tanto a pergunta
pela realidade de Deus como aquela pela realidade do mundo acham resposta ao
mesmo tempo é designado unicamente pelo nome "Jesus Cristo,,. Neste nome estão
incluídos Deus e o mundo. Tudo tem sua existência nele (Cl 1.16). A partir daí não
se pode falar adequadamente nem de Deus, nem do mundo sem falar de Jesus Cris-
to. Todos os conceitos de realidade que o ignoram são abstrações. Toda reflexão so-
bre o bem na qual se joga o dever contra o ser ou vice-versa está superada ali onde
o bem se tomou realidade, ou seja, em Jesus Cristo. Não se pode identificar Jesus
Cristo com um ideal, uma norma, nem com o existente. A hostilidade do ideal ao
existente, a imposição fanática de uma idéia contra um ente refratário pode estar tão
longe do bem como o abandono do dever à utilidade. Tanto o dever como a utilidade
recebem em Jesus Cristo um sentido totalmente novo. A incompatibilidade recípro-
ca do dever e do ser acha em Cristo, isto é, na derradeira realidade, sua conciliação.
O verdadeiro sentido da pergunta pelo bem é participar desta realidade.
Em Cristo deparamos com a proposta de participar, simultaneamente, da
realidade de Deus e do mundo, uma não sem a outra. A realidade de Deus não se re-
vela de outra forma do que pela minha completa integração na ~dade do mundo;

110
a realidade °elo mundo, no entanto, eu sempre já encontro sustent.ada, aadta e ro ~m
ciliada na realidade de Deus. Este é o mistério da revelaç!o de Deus no homem Je
sus Cris~ A ética cristã pergunta, agora, pela 00ncret.U.aÇlo, em nosso mundo. delta
realidade de Deus e do mundo dada em Crlsto. Não que o "nosso mundo" foue lllao
fora da realidade de Deus e do mundo que está em Cristo, como se não t1zeue parto
do mundo sustentado, aceito e reconciliado nele; portanto, não que algum ..prtnof..
pio" ainda devesse ser aplicado às nossas condições e à nossa época. A queatlo ..
antes, como esta realidade em Cristo, que há muito abrange a n6s e o nosso mundo,
atua como realidade presente agora, respectivamente como se deve viver nela. Tn·
ta-se, portanto, de ter parte hoje na realidade de Deus e do mundo em Jesus Crl81o,
e isto de tal forma que eu não experimente a l'ealidade de Deus sem a do mundo,
nem a do mundo sem a de Deus.

A Reflexão em Duas Esferas

Ao tentarmos progredir nessa direção, encontramos em nosso caminho,


qual colosso impediente, uma grande parte da reflexão ética cristã tradicional. Doa·
de os prim6rdios da ética cristã depois da época do Novo Testamento, a conccpçlo
básica dominante, consciente ou inconscientemente ·determinadora de tudo na J'eflo-
xão ética, é a da colisão de duas esferas; das quais uma é divina, santa, sobrenatural,
cristã, a outra, porém, mundana, profana, natural, não-cristã. Esta idéia teve seu
primeiro auge na alta Idade Média, o segundo no pensamento pseudo-refonnatdrlo
da época ap6s a Reforma. O todo da realidade se decompõe em duas partes, e o em·
penho ético diz respeito à correta relação das duas. Na alta escolástica, o reino da
naturem é su~o ao reino da graça, no pseudoluteranismo proclama·• a
autonomia das estruturas deste mundo contra a lei de Cristo, no modelo dos entu•
siastas a comunidade dos eleitos luta contra a hostilidade do mundo para erigir o
reino de Deus na terra. Em todas elas, a causa de Cristo se torna uma quest!o par·
cial, provincial dentro da realidade global, conta-se com realidades além da realida..
de em Cristo. Para essas realidades há, conseqüentemente, um acesso próprio sem
Cristo. Por mais importante que se considere a realidade em Cristo, ela permancccd
sempre uma realidade parcial ao lado de outras. Com essa divisão da realidade glo•
bal em uma área sacral e outra profana, uma cristã e outra mundana, cria-se a posai·
bilidade de existência em uma s6 delas: uma existência espiritual, portanto, que não
participa da existência mundana e uma existência mundana que pode reivindicar
autonomia para si e que a faz valer contra a esfera sacral. O monge e o adepto do
protestantismo cultural do século XIX representam estas duas possibilidades. Toda
a história da Idade Média gira em tomo da questão do domínio da esfera espiritual
sobre a profana, do reino da graça sobre o da natureza, assim como a Modernidade
se caracteriza por uma progressiva autonomia do mundano em réfução ao espiritual,
Enquanto Cristo e o mundo forem imaginados como duas esferas que colidem o se
repelem reciprocamente, s6 resta ao ser humano a seguinte poSSlbilidade: rcnun·
ciando à realidade global, ele se posiciona em uma das duas esferas; deseja Crilto
sem o mundo, ou este sem Cristo. Em ambos os casos engana a si mesmo. Ou ontlo,
quer estar ~ultaneamente nas 'duas esferas, tornando-se, com isso, o ser humano

111
do eterno conflito como a era pós-reformat6ria o produziu e como ele mesmo se
proclamou, sempre de novo, cómo 6nica figura de existência cristã adequada à rea-
lidade.
Por mais diffcil que possa ser subtrair-se ao feitiço deste racioctnio em
termos de esferas, é certo que ele contraria profundamente tanto o pensamento bí-
blico como o da Reforma e que, por isso, passa ao largo da realidade. Não há duas
realidades, mas uma s6 realidade, e esta é a realidade de Deus, revelada em Cristo,
na realidade do mundo. Como partrcipes de Cristo estamos simultaneamente na rea-
lidade de Deus e na do mundo. A realidade de Cristo engloba a realidade do mundo.
Este não tem uma realidade independente da revelação de Deus em Cristo. Querer
ser "cristão" sem ver e reconhecer o mundo em Cristo equivale a uma negação da
revelação de Deus em Jesus Cristo. Não exisrem, portanto, duas esferas, mas s6 a
esfera dnica da realização de Cristo, em que a realidade de Deus e a do mundo se
fundem. Assim, a questão das duas esferas, que sempre de novo dominou a história
da Igreja, é estranha ao Novo Testamento.. Aqui se trata tão-somente da concretiza-
ção da realidade de Cristo no mundo atllal já abrangido, ocupado e possufdo por ela.
Não estão lado a lado duas esferas· em concorrência que disputam reciprocamente os
limites, como se a questlo dos limites fosse, constantemente, a decisiva da bist6ria;
antes, a realidade glOba1 do mundo j4 est« incorporada em Cristo e nele resumida, e
é s6 apartir deste centro e em direção a ele que marcha o moWnento da história.
em
o niciocfnio esferas entende as duplas de termos "mundano-cristão",
''natural-sobrenatural", "profano-sacro", "racional-revelacional" como derradeiros
opostos est«ticos, com os quais se designam determinadas grandezas mutuamente
excludentes. Desconhece a unidade original destes opostos na realidade de Cristo,
colocando em seu lugar a unidade posteriormente forçada de um sistema sacro ou
profano que abrange os opostos. A contradição estática, entretanto, subsiste. As
coisas tomam bem outra figura a partir da realidade de Deus e do mundo reconheci·
da em Cristo, O mundo, o natural, o profano e a razão são de saída incorporados em
Deus; tudo isso não existe "em si"; é real apenas na realidade de Deus, em Cristo.
Faz parte do verdadeiro conceito do mundano que seja visto sempre na dinâmica do
ser e estar aceito por Deus em Cristo. Assim como em Cristo a realidade de Deus
entrou na realidade do mundo, da mesma forina o cristão só existe no mtindano, o
"sobrenatural" s6 no natural, o sagrado s6 no profano e o revelacional apenas no
racional. A unidade da realidade de Deus e do mundo estabelecida em Cristo repete-
se, ou, para ser mais preciso, concretiza-se sempre de novo nos seres humanos.
Contudo, o cristão não é idêntico ao mundano, nem o natural ao sobrenatural, nem o
revelacional ao racional; entre ambos existe uma unidade dada somente na realidade
de Cristo, isto é, na fé nessa derradeira realidade. Preserva-se esta unidade na medi-
da em que o mundano e o cristão, etc. se proíbem mutuamente toda autonomia está-
tica de um em relação ao outro, por conseguinte, na medida em que se relacionam de
modo polêmico e, precisamente nisso, testemunham sua realidade comum, sua uni-
dade na realidade de Cristo. Tal como Lutero usou o mundano polemicamente con-
tra a sacralização da Igreja Romana, é preciso contradizer a esse mundano a partir
do cristão, do "sacral", no momento em que corre o risco de tornar-se autônomo,
como aconteceu pouco depois da Reforma e atingiu seu auge no protestantismo
cultural. Em ambos os casos se trata do mesmo processo, ou seja, apontar para a
realidade de Deus e .. do mundo - Jesus Cristo. Todavia, tal como Lutero protestou

112
eitl nome de um cristianismo IÍlais autêntico e com O auxfiio do mundano contra U1111t
prática cristã que se tornara autônoma, se desvincuJara da reaJidade ein Cr.lato, lll1m
também hoje o uso polêmico do cristão contra o secular deve acontecer om nomo d9
uma secularidade melhor e de forma alguma deve conduzir de novo a uma sacraliza·
ção estática que tem seu fim em si mesma. Só nesse sentido de uma unidade poltml•
ca é que a doutrina dos dois reinos de Lutero pode ser assumida; aliás, em sun od•
gem ela deve ter sido entendida assim.
O pensamento em termos de esferas, como raciocínio estático, 6 - 1ob o
ponto de vista teológico - um raciocfnio legalista. É fácil demonstrar isso. Onde o
secular tiver existência e espaço autônomos, nega-se o fato do mundo ter sido aceito
em Cristo, bem como a fundamentação da realidade do mundo na realidade da re•
velação, e, com isso, o Evangelho que vale para o mundo todo. O mundo não 6 visto
como reconciliadÓ por Deus em Cristo; é um espaço que ainda está totalmente 1ob
a exigência do cristão;.· ou então um espaÇo que se opõe ~ lei de Cristo com lei prd•
pria. Onde, por outro lado, o cristão se apresenta como setor autônomo, nega-se no
mundo a comunhão que Deus firmou com ele em Jesus Cristo. Formula-se uma lol
cristã que condena a lei do mundo, aplicando-a implacavelmente contra o mundo
que Deus reconciliou consigo. Como todo legalismo, no entanto, acaba em ilegalida•
de, o nomismo em antinomismo, o perfeccionismo em libertinagem, assim aconteoo
também aqW: Um mundo que subsiste por si, subtnirdoà lei de Cristo, torna•&e vftl·
ma da falta de compromisso e.da arbitrariedade." Uma prática cristã que se subtrai no
mundo toma-se desnatural, irracional e sucumbe à arrogância e arbitrariedade,
Se, então, o raciocínio ético em esferas é superado a partir da fé na revela·
ção da derradeira realidade em Jesus Cristo, isto significa que não há verdadeira vi•
vência cristã fora da realidade do mundo, nem verdadeira secularidade fora da roall·
. dade de Jesus Cristo. Não há um lugar para o qual o cristãq possa bater em retirada
diante do mundo, nem exteriormente nem no âmbito da interioridade. Cada tentad·
.. va de esquivar-se do mundo cedo ou tarde será paga com pecaminosa dependanota
• dele. A experiência mostra que ali onde os grosseiros pecados sexuais foram supo·
rados, florescem os da ganância e avareza, igualmente grosseiros, porém meno1
abominados pelo mundo. O cultivo duma interioridade cristã não afetada pelo mun•
do geralmente terá algo de tragicômico para os olhos do observador mundano. Poia
o mundo perspicaz se reconhece com mais nitidez ali onde a interioridade cristl, cm
sua ilusão, o supõe mais distante. Quem reconhece na realidade de Jesus Cristo aro•
velação de Deus, reconhece, no mesmo gesto, a realidade de Deus e do mundo, poJI
encontra Deus e o mundo reconciliados em Cristo. É exatamente por isso que o
cristão não é mais o ser humano do eterno conflito; assim como a realidade 6 uma ld
em Cristo, da mesma forma ele, que pertence à realidade de Cristo, também 6 um
todo. Sua secularidade não o separa de Cristo, como sua condição de cristão nlo
o separa do mundo. Pertencendo totalmente a Cristo, ele está, ao mesmo tompo,
com os dois pés no mundo.
Vindo da realidade de Cristo, podemos deixar atrás de nós o raciocínio cm
termos de esferas; contudo, uma iJ:nportante pergunta se nos apresenta ahida: nlo
há, realmente, opostos estáticos derradeiros e, com isso, espaços que estão deftntti•
vamente separados? A Igreja de Jesus Cristo não é um tal espaço, separado daquolt
do mundo? E, finalmente, o reino do diabo não constitui um espaço que jamafl 1t
incorporará ao reino de Cristo?

113
Nlo hd ddvida que no Novo Testamento encontramos afirmações sobre
1 IareJ• quo corrospondem à idéia de um espaço. Basta lembrar a imagem da Igreja
Como templo, como construção, como casa ou também como corpo. Disso resulta
quo, quando se pretende descrever a Igreja como comunidade visível de Deus na
terra, o recurso à idéia de espaço é inevitável. A Igreja, de fato, ocupa no mundo um
determinado espaço, caracterizado pelos seus cultos, pelos seus regulamentos e sua
vida comunitárial; é deste fato, enfim, que parte o raciocínio em esferas. Seria
muito perigoso ignorar isso, negando a visibilidade da Igreja e degradando-a a uma
força meramente espiritual. Com isso, o fato da revelação de Deus no mundo estaria
anulado e o próprio Cristo seria espiritualizado. É pr6prio da revelação de Deus em
JOIUB Cristo que ela ocupe espaço no mundo. Mas seria totalmente errado interpre-
tar CBBe espaço como meramente empírico. Se Deus, em Jesus Cristo, reclama espa-
go no mundo - mesmo que seja apenas um estábulo porque "não havia lugar na hos-
pedaria" (Lc 2.7) -, ele engloba neste diminuto espaço ao mesmo tempo toda a rea-
lidade do mundo e revela seu fundamento illtimo. Assim, a Igreja de Jesus Cristo
também é o lugar - isto é, o espaço no mundo onde se proclama e testemunha o se-
nhorio de Jesus Cristo sobre o mundo todo. Logo, este espaço da Igreja não é algo
que existe em função de si mesmo, mas algo que sempre ultrapassa em muito seus
próprios limites, exatamente por não se tratar de uma sociedade cultuai que tivesse
que lutar por sua própria sobrevivência no mundo, mas o lugar onde se testemunha
a fundamentação de toda realidade em Jesus Cristo. A Igreja é o lugar onde se tes-
tem.unha e se leva a sério que em Cristo Deus reconciliou o mundo consigo, que
Deus amou o mundo de tal maneira que por ele deu o seu Filho. O espaço da Igreja
não existe para disputar uma parte do território do mundo, mas para testemunhar a
este que pode ser o que é: o mundo amado e reconciliado por Deus. Portanto, não é
assim que a Igreja queira ou necessite expandir seu espaço sobre o mundo; ela não
deseja mais espaço do que precisa para servir ao mundo com o testemunho de Jesus
Cristo e de sua reconciliação com Deus através dele. A Igreja s6 pode defender seu
espaço próprio lutando não por ele, mas pela salvação do mundo. Do contrário a
Igreja se transforma em "sociedade religiosa" que luta em causa própria e, com isso,
deixou de ser Igreja de Deus e do mundo. Assim, a primeira incumbência daqueles
que pertencem à Igreja de Deus não é ser algo para si mesmos, criar, por exemplo,
wna organização religiosa ou viver uma vida piedosa, mas ser testemunhas de Jesus
Cristo para o mundo. Para essa tarefa o Espírito Santo equipa aqueles a quem se dá.
Pressupõe-se, naturalmente, que tal testemunho s6 pode acontecer de forma correta
se procede duma vida santificada na comunidade de Deus. Contudo, uma vida san-
tificada na comunidade de Deus distingue-se de toda imitação piedosa por conduzír
o ser humano ao testemunho perante o mundo. Onde este silenciar, é sinal de de- .
composição interna da comunidade, assim como a falta da fruta é sinal de que a itr-
vore está definhando.
Portanto, quem quiser falar do espaço da Igreja deve estar consciente de
que este em cada momento já está rompido, suspenso e superado pelo testemunho da
Igreja a respeito de Jesus Cristo. Com isso se exclui todo falso raciocínio em termos
de esferas como algo prejudicial para~ compreensão ~Igreja.

1 Cf. i>/.rdpulado.

114
- Ate aqw sempre IalaDlOS do mundo como mundo reconciliado com Dcul
em Jesus Cristo. Falamos da realidade sempre como realidade assumida por Deua,
que nele subsiste e foi por ele reconciliada, e neste sentido o raciocínio em termos do
esferas tinha que ser rejeitado. Resta a pergunta, no entanto, se o "mundo", a saber,
o mundo mau e dominado pelo diabo, se a realidade pecamjoosa não deve ser enten-
dida como um espaço a contrapor-se à Igreja, respectivamente ao reino de Cristo.
Não constitui a oposição de reino de Cristo e reino do diabo o derradeiro oposto
estático que justificaria o raciocfnio em esferas? Por mais que esta pergunta, à pri-
meira vista, pareça exigir uma resposta afirmativa, analisando bem ela não é unívo-
ca. Cristo e seu opositor, o diabo, são opostos que se e;x:.cluem reciprocamente, po-
rém de tal forma que também o diabo, contra a vontade, tem que servir a Cristo e,
mesmo querendo o ma;!. sempre de novo tem que fazer o bem, de modo que o espa-
ço do diabo sempre está sob os pés de Jesus Cristo. Se, no entanto, por "reino do
diabo" se quiser entender o mundo mau, o mundo dominado pelo diabo, o raciocínio
em esferas também aqui encontra seus limites. Pois é exatamente o mundo mau que
está reconciliado com Deus em Cristo e que, portanto, teni sua derradeira e verda-
deira realidade em Cristo e não no diabo. O mundo não está repartido entre Cristo e
o diabo; quer o reconheça, quer não, ele é total e completamente de Cristo. O mun-
do deve ser interpelado com vistas a esta sua realidade eni Cristo; assim, deve ser
o
destruída a falsa realidade que ele supõe ter em si mesmo como no diabo. mundo
mau e tenebroso não deve ser entregue ao diabo, mas reivindicado justamente para
aquele que o adquiriu por sua encarnação, morte e ressurreição. Cristo não abre
mão de nada do que conquistou, antes o mantém firme em suas mãos. A partir de
Cristo toma-se, por conseguinte, impossível uma divisão em um mundo endemoni-
nhado e em um mundo cristão. Toda delimitação estática de um setor que pertence
ao diabo de um setor que pertence a Cristo nega a realidade de que Deus reconciliou
consigo o mundo todo em Cristo.
· A mensagem central do Novo Testamento é que, em Cristo, Deus amou o
mundo e· o reconciliou corisigo. Nela se pÍ'essupõe que, apêSar dC carente de recon-
ciliação com Deus, o mundo não pode fazê-lo por força própria. A aceitação do
mundo é um milagre da misericórdia divina. Por isso, o relacionamento da comuni-
dade com o mundo é totalmente determinado pelo relacionamento de Deus com ele.
Há um amor ao mundo que é inhnizade a Deus (Tg 4A) porque nasce da essencia do
mundo em si e não do amor de Deus ao mundo. O mundo "em si", como entende
a si mesmo e como resiste à realidade do amor de Deus ao mundo em Jesus Cristo,
chegando a desprezá-lo, está sujeito ao juízo de Deus sobre toda inimizade a Cristo.
Esse mundo trava uma luta de vida ou morte com a comunidade. Apesar disso, é
tarefa e é da essência da comunidade comunicar a este mundo sua reconciliação com
· Deus e revelar-lhe o amor de Deus contra o qual está a esbravejar cegamente. Desta
maneira, precisamente o mundo perdido e condenado é incluído sem cessar no
evento de Cristo. . ·
É cliffcil largar de uma Ímagem na qual estamos acostumados a enquadrar
nossos pensamentos e conceitos. Não obstante, temos que superar a imagem das
1 duas esferas; a pergunta é se em seu lugar podemos colocar uma figura igualmente

simples e convincente.
Antes de mais nada, nossa atenção deve voltar-se para o corpo do próprio
Jesus Cristo, do encarnado, crucificado e ressu~tado. No corpo de Jesus Cristo

115
Doua eat4 unido com a humanidade, a humanidade toda está aceita por Deus e o
mundo eat4 reconciliado com ele. No corpo de Jesus Cristo Deus assumiu o pecado
de todo o mundo e o carregou. Não há um pedaço deste mundo, por mais perdido e
fmpio que seja, que em Jesus Cristo não tenha sido aceito e reconciliado com Deus.
Quem olha com os olhos da fé para o corpo de Jesus Cristo, não pode mais falar do
mundo como se este estivesse perdido e separado de Cristo, tampouco pode distan-
ciar-se do mundo em arrogância clerical. O mundo pertence a Cristo e s6 em Cristo
ele é o que é. Ele necessita, portanto, nada menos do que o próprio Cristo. Estaria
tudo estragado se quiséssemos preservar Cristo para a Igreja, concedendo ao mundo
apenas uma lei qualquer, de caráter cristão, talvez. Cristo morreu para o mundo e s6
em meio ao mundo Cristo é Cristo. Querer dar ao mundo menos do que o Cristo
nada mais é do que incredulidade, ainda que com boas intenções pedagógicas e, as-
sim mesmo, com certo sabor de clericalismo. Aqui não se levam a sério a encarna-
ção, a morte na cruz e a ressurreição corporal; nega-se o corpo de Cristo.
Se o Novo Testamento transfere o conceito de corpo de Cristo para a co-
munidade, de maneira alguma se pretende afirmar, em primeira linha, que a comuni-
dade deva se distanciar do mundo; ao contrmo, bem na linha das afirmações neo-
testamentárias sobre a encarnação de Deus em Cristo, testemunha-se que no corpo
de Cristo todos os seres humanos foram aceitos, incorporados e assumidos e que a
comunidade dos fiéis tem a tarefa de testemunhar exatamente isso ao mundo através
da palavra e da vida. Aqui não se visa o distanciamento, mas a incorporação do
mundo à comunhão desse corpo de Cristo, ao qual na verdade ele já pertence. ~
apenas repetit6ria conseqüência desta comunhão com o mundo, dada no corpo de
Cristo, o fato de que ~te testemunho da comunidade é estranho ao mundo e que a
comunidade, com este testemunho, sempre de novo se descobre como estranha ao
mundo. A dnica coisa que separa a comunidade do mundo é que ela aceita em fé a
realidade da aceitação por Deus; válida para todos, e, justamente aceitando-a em fé,
a proclama como válida para todo o mundo.
O corpo de Jesus Cristo, tal como aparece em especial na cruz, mostra à fé
o mundo em seu pecado e no amor que Deus lhe tem, bem como a comunidade co•
mo grupo daqueles que reconhecem seu pecado e aceitam o amor de Deus.
Esta união de Deus e mundo fundamentada em Cristo, que não permite
uma divisão estática em espaços, não elimina, entretanto, a diferença de comunidade
e mundo; a questão é como descrever esta diferença sem recair nessas imagens es·
paciais. Aqui é preciso pedir o conselho da própria Bíblia; ela o tem à disposição.

Os Quatro Mandatos

O mundo, como toda a criação, foi criado por Cristo e em função do


Cristo e s6 nele tem consistência (Jo 1.10; a 1.16). Falar do mundo sem Cristo d
mera abstração. O mundo, quer o saiba, quer não, está relacionado com Cristo. Este
relacionamento se concretiza em determinados mandatos de Deus no mundo. A B1·
critura fala de quatro deles: o trabalho, o matrimônio, a autoridade, a Igreja. Fala·
mos de mandatos divinos em vez de ordens porque assim se evidencia com maior
clareza o caráter de incumbência divina frente ao de determinação ontológica. DoUI

116
quer que haja neste mundo trabalho, mat:rbii&nio, autoridade e Igreja, e e:le deeeja
tudo laao por intermédio de Cristo, em função de Cristo e em Crist.o, cada qual l sua
nwieira. Deus colocou os seres humanos sob todos estes Ôlandatos; não colocou ca-
da um sob um desses mandatos, mas todos os seres humanos sob todos os quatro.
Nlo existe, portanto, uma retirada de uma "esfera" "mundana" para uma "espiri·
tual"; existe, apenas, o aprendizado da vida cristã sob os quatro mandatos de Deus.
Nlo ~ admissível, tambdm, que se desmereçam os primeiroS ti& como "seculares"
diante do tlltimo. Trata-se de mandatos "divinos'' em meio ao mundo, seja o traba-
lho, o matrimônio, a autoridade ou a Igreja. Entretanto, os mandatos são divinos
apenas por sua relação original e final com Cristo. Desvinculados deste relaciona·
mento, tomados "em si", eles são tão pouco divinos como o mundo "em si" é divi-
no. Trabalho "em st.,, não é divino, mas trabalho em função de Jesus Cristo, por
cousa da incumbência e do alvo divinos o é. O caráter divino do trabalho não se po·
do fundamentar tendo em vista sua utilidade geral, seus valores, mas somente com
vlltas a sua origem, consistência e alvo em Jesus Cristo. O mesmo acontece com os
outros mandatos. Somente como mandatos de Deus são divinÔS, porém não sim-
pleamente pela sua existência de fato nesta ou naquela forma concreta. Trabalho,
matrimônio, autoridade e Igreja não são ordenados por Deus porque existem; pelo
aontrmio: existem porque são ordenados por Deus, e s6 são mandatos divinos na
medida em que sua existência se submete - consciente ou inconscientemente - à in·
oumbencia divina. A renitente e arbitraria transgressão da incumbência pela forma
concreta de trabalho, matrimônio, autoridade e Igreja faz cessar o mandato divino
no caso concreto. Mesmo assim, o que está concretamente aí recebe uma relativa
Juadflcação pelo mandato divino. _Não é qualquer lapso em relação à incumbência
divina que já descaracteriza fundamentalmente as formas concretas de trabalho,
matrimônio, autoridade e Igreja como mandatos de Deus. O matrimônio, auto-
ridade, etc. existentes sempre têm uma relativa prioridade sobre os que ainda nlo
txlat.em. Erros isolados não nos dão o direito de eliminar e destruir o que existe. Ao
iontrmio, aqui s6 pode tratar-se do retomo à autêntica submissão ao mandato divi·
no, do restabelecimento de verdadeira responsabilidade diante da incumbência divi·
na. Esta verdadeira responsabilidade consiste na orientação das formas coocretu
cio• mandatos divinos para sua origem, consistência e alvo em Jesus Cristo.
De acordo com as Escrituras, já encontramos o manda1o do trabalho com
o primeiro ser humano. Adão recebe a tarefa de "cultiVÚ e ·guardar" o jardim do
éden (Gn 2.15). Também depois da queda o trabalho continua sendo um mandato da
dllolplina e graça divina (Gn 3.17-19). No suor de seu rosto o ser humano consegue
1u 1ustento da terra, e aos poucos o 8mbito do trabalho abrange tudo, da roça l
oonomia, ciência e arte (Gn 4.17ss.). No trabalho, que tem sua origem no parallo,
lr'lta-se de uma atividade_humana que participa da criação. Através dele cria-se um
mundo de coisas e valores destinado à glorificação e ao serviço de Jesus Cristo. Nlo
umu criação a partir do nada como o foi a criação de Deus, mas é um criar de cof...
novas com base na primeira criação de Deus. Nenhum ser humano pode esqui•
11r ·IC desse mandato. Pois naquilo que o ser humano aqui faz por incumbência dl·
1nu nasce aquela imagem do mundo celestial que, para todos quantos conhecom
14 1u11 Cristo, lembra aquele mundo. A primeira criação de Caim foi a cidade, a con-
111partida terrena da cidade eterna de Deus. Segue-se a descoberta de instrwnonto1
oorda e sopro, que na terra nos dão o antegozo da m6sica celestial. Depoil 1urp

117
1 m.IDOl'IWlo e o beneficiamento das riquezas metálicas das entranhas da terra, em ·
parti! para o embelezamento das casas terrenas, oomo também a cidade celeste brilha
de ouro e pedras preciosas, em parte para a produção das espadas da justiça vinga-
dorL Atrav6a do mandamento divino do trabalho deve surgir um mundo que, sa-
bendo ou não, espera por Cristo, está orientado para ele, está aberto para ele, serve
a ele e a ele glorifica. O fato de ser a descendência de Caim que deve cumprir este
mandato projeta as mais densas sombras sobre todo trabalho humano.
Como no caso do trabalho, enoontramos também o ma1Uiato do matrinWnio
com o primeiro ser humano, logo após a criação. No matrimônio as pessoas se tor-
nrun um perante Deus, como Cristo se toma um oom sua Igreja. "O mistério é gran-
de." (Ef 5.31s.) A tal unificação Deus concede a bênção da fertilidade, da geração
de vida nova. O ser humano incorpora-se à vontade de Deus como partícipe da cria-
ção. Através do matrimônio são geradas pessoas para a glorificação e o serviço de
Jesus Cristo e para a ampliação do seu reino. Isso significa que o matrimônio não é
apenas o lugar para gerar, mas também para educar os filhos para a obediência a
Jesus Cristo. Os pais são para a criança representantes de Deus em sua qualidade de
genitores e educadores por incumbência de Deus. Assim como no trabalho são cria-
dos novos valores, no matrimônio são criados novos seres humanos para o serviço
de Jesus Cristo. Mas, como o primeiro füho do primeiro casal, Caim, nasceu longe
do paraíso e se toinou fratricida, também aqui uma sombra escura se projeta sobre
matritnônio e família neste nosso mundo.
O mandato divino da autoridade j4 pressupõe os do trabalho e do matri-
roôni.o. No mundo que domina, ela j4 encontra presentes os dóis mandatos através
dos quais Deus, o Criador, exerce o seu poder criativo, razão pela qual depende ne-
cessariamente deles. A pr6pria autoridade não pode produzir pessoas ou valores; e1a
não é criadora; ela mantém as coisas criadas na ordem que receberam por incum-
bência de Deus; ela protege o que foi criado, estabelecendo leis em reoonbecimento
aos mandatos divinos e fazendo valer estas leis com o poder da espada. Assim, o
matriJDônio não é realizado pela autoridade, mas diante dela. As grandes áreas do
trabalho não são administradas pela própria autoridade, mas estão sujeitas à sua su-
pervisão e, dentro de certos limites, que explicaremos mais tarde, à sua direção. Ja-
mais a própria autoridade pode querer tornar-se sujeito desse âmbito do trabalho,
sob pena de colócar em sério risoo o mandato divino deste como tainbém o seu pro-
prio. Através da legislação e do poder da espada, a autoridade preserva o mundo
para a realidade de Jesus Cristo. Todos devem obediência à autoridade - por causa
de Jesus Cristo.
Diferentemente dos três mandatos citados, no mandato da Igreja trata-se
da tarefa de concret:i7.a.r a realidade de Jesus Cristo através da pregação, ordem
eclesi«stica e vida cristã; trata-se, portanto, da salvação eterna do mundo todo. O
: JDll.Ddato da Igreja estende-se a todos os seres humanos, e isto dentro de todos os
outros mandatos. O ser humano 6 ao mesmo tempo trabalhador, cônjuge e stidito; os
mandatos se sobrepõem na pessoa humana e exigem cumprün,ento simuldneo. Desta
maneira. taníbém o. mandato da Igreja interfere em todos esses mandatos, assim co-
mo, por outro lado, o cristão é, ao mesmo tempo, trabalhador, cônjuge e stidito.
Qualquer divisão em espaços separados é proibida aqui. O ser humano inteiro está
diante de toda a realidade terrena e eterna, como Deus à pieparou para ele em Jesus
Cristo. S6 na resposta completa ao todo da oferta e da exigência o ser humano pode

118
corresponder a esta realidade. É exatamente isso que a Igreja tem que teatomunhu
ao mundo: em todos os demais mandatos não se trata da divisão e dilaceraçlo do 1
humano, mas do ser humano todo diante de Deus, o Criador, Reconciliador e Salvn
dor; logo, a realidade, apesar de tão variada, no final é wna sd, ou seja, no Dou1 en
camado, em Jesus Cristo. Os mandatos divinos no mundo não têm a funçlo de dN•
gastar o ser humano em intermináveis conflitos; eles visam justamente o ser hunww
como um todo, como na realidade ele está diante de Deus. O ser humano nlo d o
ponto onde se deva mostrar a incompatibilidade dos mandatos divinos; pelo contr4
rio, somente nele, em sua vida e ação concretas, cria-se a unidade do "em ai" - lato
é, teoricamente - inconciliável, e isto tão-s6 de tal forma que o ser humano se deixa
colocar diante da realidade consumada da encarnação de Deus, da reconciliaçlo do
mundo com Deus no presépio, na cruz e na ressurreição de Jesus Cristo. Allim.
precisamente a doutrina dos mandatos divinos serve para colocar o ser humano
diante da realidade una e inteira, como ela se nos revela em Jesus Cristo. Na fomua
de uma doutrina de "classes", ela ameaça levar à uma perigosa fragmentação do 111r
humano e da realidade. Destarte, também aqui tudo desemboca mais uma voz 1111
realidade do corpo de Cristo, no qual Deus e o ser humano se tornaram um s6.
Afirmamos, no infcio, que no lugar da pergunta pelo ser bom e fazer <>
bem deve surgir a indagação pela vontade de Deus. A vontade de Deus, no entanto,
outra coisa não é do que a concre&ação da realidade de Cristo entre nós e em nouo
mundo. A vontade de Deus, portanto, não é uma idéia que clama por reallzaglo;
antes, ela mesma já é realidade na auto-revelação de Deus em Jesus Cristo. Podm 1
vontade de Deus também não se identifica simplesmente com o que existe, de modo
que a sujeição ao existente significasse seu cumprimento; antes, é uma realidide que
quer concretizar-se sempre de novo no existente e contra eJe.. A vontade de Deua J•
foi cumprida por Deus mesmo, ao reconciliar o mundo consigo em Cristo. Seria n
mais perigosa recaída no pensamento abstrato ignorar a realidade deste cumpri·
mento e colocar em seu lugar um cumprimento próprio. Depois da vinda de Crllto,
o assunto da ética pode ser um só, ou seja, ter parte na realidade da vontade cumpri•
da de Deus. Mas também esta participação s6 é possível em virtude do fato de tam•
bém eu já estar incluído no cumprimento da vontade de Deus em Cristo e, conlO·
qüentemente, reconciliado com Deus. A indagação pela vontade de Deus nlo pet•
gunta por algo oculto, não cumprido, mas pelo que foi revelado e cumprido. Entre•
tanto, ela permanece uma pergunta válida no sentido de que eu e o mwido que mo
. rodeia somos colocados nessa indagação pela revelação e pelo cumprimento.
A vontade de Deus, como foi revelada e comprida em Jesus Cristo, abran
ge o todo da realidade. Acesso a este todo, sem fragmentar-se pela variedade du
coisas, s6 existe na fé em Jesus Cristo, ''no qual habita corporalmente toda a plcnl
tude da divindade" (Cl 2.9; 1.19), "por meio do qual foram reconciliadaa todu u
coisas, quer na terra, quer nos céus" (Q 1.20), cujo corpo, a comunidade, ' a plenl•
tude daquele que plenifica tudo em todos (Ef 1.23). A fé nesse Jesus Cristo & a dnl·
ca fonte de todo bem.

119
VI

A HISTÓRIA E O BEMl

O Bem e a Vida

A pergunta pelo bem sempre nos encontra numa situação irreversível: nós
vivemos. Isso significa, em todo caso, que não podemos fazer e responder a per-
gunta pelo bem como se primeiro tivéssemos que criar a vida bonita e boa. Pergun-
tamos pelo bem como criaturas, não como criadores. Não nos interessa o que seria
bom se não vivêssemos, sob circunstâncias fictícias, portanto; na verdade, como se-
res vivos, nem podemos fazer esta pergunta com seriedade, porque só podemos efe-
tivar uma abstração da vida como seres ligados à vida e, por isto, não em plena li-
berdade. Não indagamos pelo que é bom em si, mas pelo que o é nas circunstâncias
da ·vida atual e para nós como viventes. Assim, perguntamos pelo bem não igno-
rando a vida, mas entrando nela. A própria pergunta pelo bem faz parte da nossa vi-
da, assim como nossa vida pertence à pergunta pelo bem. A pergunta pelo bem é
formulada e respondida em meio a situações definidas e ao mesmo tempo inacabadas
da nossa vida, Wrlcas e ao mesmo tempo transitórias, em meio a ligações vivas com
pessoas, coisas, instituições, poderes, isto é, em meio à nossa existência histórica. A
pergunta pelo bem é inseparável da indagação pela vida, pela história.
Já superamos, até com o que foi dito anteriormente, uma abstração que
domina ainda boa parte da reflexão ética: a abstração do indivíduo isolado que deve
decidir, de acordo com um parfunetro absoluto de um bem em si, constante e exclu-
sivamente entre este bem claramente reconhecido e o mal reconhecido com igual
clareza. Não existe indivíduo isolado, tampouco temos à nossa disposição aquele pa-
rimetro absoluto de um bem em si, e, finalmente, nem o bem, nem o mal se manifes-
tam em suas formas puras nà história. O esquema básico desta abstração não ati-
na, em .todas as suas partes, com o problema especificamente ético. É pelo menos al-
tamente duvidoso que um indivíduo isolado e desvinculado de sua situação e de in-
fluências históricas po~a ser considerado eticamente relevante; com vistas à sua ir-
realidade é, de qualquer forma, um caso-limite teórico desprovido de interesse. O
parimetro absoluto de um bem em si- supondo que algo assim possa ser imaginado
sem contradições- faz do bem uma lei morta, um Moloque a quem se sacrifica toda

1 Uma prime.ira versão deste capítulo, mais curta mas em relação ao programa mais elucidativa,
foi publicada em GS m, pp. 455ss. .

120
· vida e liberdade, uma lei que pCrde até o caráter compromissivo de um dever leafd•
mo exatamente por ser uma grandeza metafJsica que existe para si, sem relaçlo •·
sencial com a vida. A decisão entre o bem e o mal claramente reconhecidos eximo o
próprio raciocfnio humano de decisão, transfere a questão da ética para a luta entro a
inteligência j~ orientada no bem e a vontade ainda renitente, não atinando oom
· aquela decisão legftima em que o ser humano todo, comJnteligência e vontade. 16
. pode procurar e achar o bem na am.bigflidade duma sitúação hist&ica através do ria·
co da pr6prla ação. Nesta abstração da vida, a questão ética está reduzida a uma OI•
tl:ttica f6rmula Msica que arranca o ser humano da historicidade de sua exist&ola,
colocando-o no v&cuo da mera priv~dàde e do id~ ~:A tarefa 6tlca aqui•
vista como consistindo na imposição de certos princípios, independentemente de sua
relação com a vida. Isso conduz a uma completa privatização da vida, na qual o bom
se restringe à pr6prurfidelidade aos princípios, sem qualquer consideração para com
o semelhante, sendo que a respectiva forma de vida, dependendo do grau de radica•
lismo dos princípios, pode oscilar entre a retirada para a esfera particular da ex.ta•
tência burguesa e o convento. Ou então, o entendimento abstrato do ético leva ao
entusiasmo, sendo que a respectiva forma de vida - mais uma vez de acordo com 01
princípios - abrange os grandes ideólogos e fanáticos políticos até os amaluca.doa
e impertinentes reformadores da vida de todos os matizes. Se temos que dizer, a
respeito de toda8' estas teritátivas, que :fracas8aram e sempre de novo hão de fracu·
sar em relação à pr6prià vida, não entendemos sob este fracasso, simploriament.e,
a falta de sucesso como tal - também a vida de Jesus Cristo, que não füi um santo
em retiro privado nem um entusiasta, termina em insucesso; referimo-nos ao ÍDIU•
cesso idealizador (que até no triunfo passageiro não deixa de ser insucesso) que tom
sua última raiz no fato de não haver acontecido aqui um autêntico encontro com a
vida, com o ser humano; e mais: aqui se descarrega algo alienígena, falso, factício,
fant:Mtico· e extremamente tirano, sem quo·p prdprlo ser húmano tenha sido real·
mente atingido em sua essência, tenha sido transformado e obrigado a decidir-se.
Ideologias que extravasaram sua fiúia sobre o ser humano abandonam-no como um
pesadelo larga a quem desperta. A sua lembrança é amarga. Através d~Ias. o ser
humano não se tornou mais maduro, mais forte, s6 mais pobre e desconfiado. Con1•
titui·uma graça se Deus, na hora desse trágico despertar, se revela aos seres huma-
nos como Criador, diante da qual s6 podem vi\fércomo criaturas, e abençoa, assUn,
a pobreza. . .
A acusação feita ao conceito abstrato do bem - a saber, a de passar ao lar·
go da vida - não significa que aqui se contraponha o bem à vida; queremos dizer
justamente que não se trata de uma contraposição autêntica, mas dum passar ao lar·
go~ A vida foi reduzida a uma quantitl rregligeable da qual não é preciso tomar .
conhecimento. Na melhor das hipóteses, a vida é ti.da como aquele pedaço de ..na•
tureza" que deve sua origem, bem como sua salvação, ao espírito, à idéia. Ora, onde
o bem e a vida devem comportar-se oomo natureza e espírito não acontece uµi.a real
superação da vida; antes, afirma-se um frente-a-frente entendido de modo legalista,
para o qual não há reconciliação, no máximo a violentação de urna parte pela outra.
A essencial esterilidade de um conceito do bem que ignora a vida, quer dizei', que
inclui um conceito de vida que não corresponde à realidade nem serve para superar
a contradição entre o bem e a vida, conduz à pergunta pela própria vida e procura
na resposta a esta pergunta, ao mesmo tempo, orientação para um entendhnento

121
-orreto do bem.
Desde que Jesus Cristo disse de si: "Eu sou a vida" (Jo 14.6; 11.25), ne-
nhuma reflexão cristã nem filosófica pode passar ao largo dessa reivindicação e da
roalldede nela contida. Esta autodefiniçãri de Jesus declara vã e fracassada toda
tentativa de definir a essência da vida em si. Como poderíamos nós dizer o que é a
vida cm si enquanto vivemos e não conhecemos o linúte da nossa vida, a morte? Só
podemos viver a vida, mas não defini-la. A palavra de Jesus vincula todo pensa-
mento sobre a vida com a sua pessoa. Eu sou a vida. Não há indagação pela vida que
possa ir além do "eu sou". A pergunta o que é a vida se converte aqui na resposta
sobre quem é a vida. A vida não é uma coisa, um ser, um conceito, mas uma pessoa
e, por sinal, uma pessoa determinada e dnica; e esta pessoa dnica e determinada é a
vida não naquilo que, entre outras, ela também tem, mas no seu eu, no eu de Jesus.
Este eu Jesus coloca em nítido contraste com todos os pensamentos, conceitos e ca-
minhos que reclamam perfamr a esSencia da vida. Ele também não diz: "Eu tenho",
mas "Eu sou a vida". Assim, a vida nunca mais pode ser separada do eu, da pessoa
de Jesus. Ao proclamar isso, Jesus diz que não é apenas a vida - isto é, qualquer es-
ptrito metafisico que talvez diga :respeito também a mim-, mas precisamente minha,
nossa vida; Paulo caracteriza esta situação de maneira sobremodo objetiva e, ao
mesmo tempo, paradoxal com as palavras: "Cristo é minha vida" (Fp 1.21) e "Cris-
to, nossa vida" (Cl 3.4). Minha vida estt fora de mim mesmo, fora da minha dispo-
nibilidade, minha vida é um outro, um estranho, Jesus Cristo; isto não no sentido fi-
gurado de que minha vida não fosse digna de ser vivida sem aquele outro, que
Cristo conferisse à minha vida uma qualidade e um valor especiais, embora a vida
propriamente dita tivesse a sua consistência pr6pria; ao contrário, Jesus Cristo é a
pr6pria vida. O que vale para a minha vida, neste sentido, vale para toda a criação.
"O que foi feito - nisso ele era a vida." (Jo 1.4.)2
"Eu sou a vida" - isto é palavra, revelação e proclamaç.ão de Jesus Cristo.
Que a nossa vida es1' fora de nós mesmos, em Jesus Cristo, de forma alguma é
fruto do nosso autoconhecimento; é reivindicação que nos atinge de fora e que
contestamos ou aceitamos em f~ Ao sermos atingidos pela palavra- e para isso ela
foi dita - reconhecemos que nos desviamos da vida, da nossa vida, que vivemos em
contradição à vida, à nossa vida. Dessa maneira, ouvimos nesta palavra de Jesus
Cristo o não sobre a nossa vida, que não é vida ou o é apenas na medida em que,
mesmo na contradição, sempre vivemos ainda da vida que se chama Jesus Cristo e
que é origem, essência e objetivo de toda vida e por isso também da nossa vida. O
não sobre a nossa vida apóstata significa que entre ela e a vida que é Jesus Cristo
estt o fim, a aniquilação, a morte. O pr6prio não que ouvimos nos traz essa morte.
Mas, ao nos trazer a morte, o não se transforma num secreto sim a uma nova vida, à
vida que Jesus Cristo ~ ~ a vida que nós mesmos não nos podemos dar, que vem
totalmente de fora, do além, e que, ainda assim, não é uma vida distante, estranha,
que não nos diz respeito, mas é a nossa própria vida concreta e diária. Essa nova vi-
da existe somente como vida oculta sob o signo da morte, do não3. Vivemos agora
o
distendidos entre não e o sim. Não se pode falar da nossa vida sem esta relação
com Jesus Cristo. Prescindindo dele como origem, essência e objetivo da vida, da

2 Cf. BULTMANN,DasEmngeliumduJohannes, pp. 2lss.


3 Cf. ibid., p. 308.

122
nossa vida. sem coilsiderar que somos cri8turas, pessoas reooIJC11iadas e salvu, 116
chegamos a abstrações biol6gicas e ideológicas. Como 'Y:ida criada, reconciliada o
salva, como vida que acha _e~_ Jesus Çristo sua ºrigem, ~ncia e alvo, ll088ll vida
esü distendida entre o sim e o não. Não há outra forma de reconhecer Jesus Cristo
como nossa vida do que no sim e no não. É o sim da criação, da reconciliação e da
redenção e o não do juízo e da morte sobre a vida que abandonou sua origem, ess&o-
cia e objetivo. Mas ninguém que conhece Cristo pode ouvir o sim sem o não e o alo
sem o sim..
É o Sim ao que foi criado, ao devir, ao crescimento, Aflor e à fruta, à sad-
de, à felicidade, à capacidade, ao desempenho, ao valor, ao sucesso, à grandeza, l
honra, enfim, o sim ao desdobramento do vigor da vida. É o não à apostasia da ori-
gem, da essência e do_ objetivo da vida- apostasia esta .i' sempre inerente a toda essa
existência -, o não que significa morte, sofrimento, pobreza, rentmcia, sacrlflcio,
humildade, bunnlhação, autonegação e que nisso .i' con~m o sim à nova vida, uma
vida que não se decompõe no paralelismo de sim e não, como se, por exemplo, um
desenvolvimento irrestrito da vitalidade estivesse, sem nenhuma relação, ao lado
duma atitude de vida ascética e espiritual, ou como se um "criaclonal" estivesse
simplesmente ao lado do "cristão" - com isso, o sim e o não perderiam sua unidade
em Jesus Cristo. Antes, esta nova vida, que é uma só em Jesus Cristo, está de tal
forma distendida entre sim e não que em cada sim já se ouve o não, em cada não,
também o sim. Desenvolvimento do vigor da vida e autonegação, crescimento e
morte, sa6de e sofrimento, felicidade e rentmcia, desempenho e humildade, honra e
auto-hmmlhação formam uma unidade viva, i!idissoluvelmente contraditória.
Qualquer tentativa de isolar um do outro, jogar um contra o outro, inyocar
um contra o outro, destrói irremediavelmente a unidade da vida. Surgem, então, as
abstrações de uma ética da vitalidade e de uma assim chamada ética de Jesus, aque-
las conhecidas teorias das esferas autônomas da vida, que nada têm a ver com o
sermão do monte; acontece aquela ruptura da unidade da vida que ·enfatiza seu co-
nhecimento da realidade particularmente profundo, dando à vida o tenebroso es·
plendor do tdgico-her6ico, e que, assim mesmo, passa ao largo da realidade da vida
como é dada em Jesus Cristo. Como conseqtiência de errôneas abstrações, aqui se
fica preso em conflitos eternamente insoh1veis, que a ação pr.ttica não supera e noa
··quais se desgas~ É evidente que tudo isso esd bem longe do Novo Testamento e
das palavras de Jesus. A ação do cristão nasce da alegria peJa reconciliação já con-
sumada do mundo com Deus, da paz que emana da obra salvfiica realizada em Jesus
Cristo, da vida de abrangência global que Jesus Cristo 6, não da amarga resignação
à ruptura incudvel entre vitalidade e autonegação, entre "secular" e "cristão", en•
tre "ética autônoma" e "ética de Jesus". Já que em Jesus Cristo Deus e o ser huma-
no se tornaram um, por ele o "mundano" e o "cristão" se tomaram um na ação do
fieL Não se contrapõem, qual prlncfpios eternamente hostis; antes, a ação dos crla-
tãos flui da unidade de Deus e mundo criada em Cristo, da unidade da vida. A vida
recobra sua unidade em Cristo, ainda que na contradição do sim e do não; mas esta d
superada sempre de novo_~- ação ~ncreta daquele que crê em Cristo.
Voltando à pergunta pelo bem, por enquanto podemos dizer que, em todo
caso, não se trata duma abstração da vida, por exemplo da concretização de deter·
minados valores ou ideais independentes da vida, mas da própria vida. A vida IS boa
como aquilo que ela é na realidade, isto é, na sua origem, essência e objetivo, vida,

123
11ortanto, no sentido da palavra: "Cristo é minha vida." (Fp 1.21.) Bom não é uma
qualidade da vida, mas a própria "vida". Ser bom significa "viver".
Esta vida se concretiza na contraditória unidade de sim e não que ela acha
fora de si própria, em Jesus Cristo. Jesus Cristo é o ser humano e Deus ao mesmo •
tempo. Nele acontece o encontro original e essencial com o ser humano e com Deus.
Doravante o ser humano não pode ser pensado e reconhecido senão em Jesus Cris-
to, e Deus não pode ser pensado e reconhecido senão na figura humana de Jesus
Crllto. Nele vemos a humanidade qual aceita, sustentada, amada por Deus e recon-

Cil.IAda com Deus. Nele vemos Deus na figura do mais pobre dos irmãos. Não há ser
humano em si, assim como não há Deus em si; ambos são abstrações vazias. O ser
humano é aquele aceito na encarnação de Cristo, amado, julgado e reconciliado em
Crllto; Deus é aquele que se fez ser humano. Não há, também, nenhum relaciona-
mento com seres humanos sem relacionamento com Deus e vice-versa. Por outra, o
relacionamento com Jesus Cristo constitui a base para nosso relacionamento com os
IOl'O!J humanos e com Deus. Assim como Jesus Cristo é nossa vida, da mesma forma
aaora pode ser dito também, a partir dele, que o outro ser humano e que Deus são

nossa vida; isto significa que nosso encontro com o outro, como nosso encontro com
Deus, estão sob o mesmo sim e não como nosso encontro com Jesus Cristo.
N6s "vivemos" quando; em nosso encontro com os semelhantes e com
Deus, o sim e o não se fundem para formar uma contraditória unidade, uma auto-
afirmação altruísta, auto-afirmação na auto-entrega a Deus e aos seres humanos.
N6s vivemos quando respondemos à palavra de Deus que nos foi dirigida
em Jesus Cristo. Como é uma palavra endereçada à nossa vida toda, a resposta terá
que ser também global, dada com a vida toda assim como ela, de caso em caso, se
concretiza na ação. A vida que encontramos em Jesus Cristo como sim e não à nossa
vida quer ser respondida por uma vida que assume e une esse sim e não.
Essa vida como resposta à vida de Jesus Cristo (como sim e não sobre a
nossa vida) chamamos de "responsabilidade". Nesse conceito de responsabilidade
está contida a conjugação da totalidade e da unidade da resposta à realidade que nos
d dada em Jesus Cristo, à diferença de respostas parciais que poderiam surgir de
considerações de utilidade, por exemplo, ou a partir de determinados princípios. Fa-
ce à vida que encontramos em Jesus Cristo, estas respostas parciais não bastam; pelo
contrário, s6 pode tratar-se da resposta total e única da nossa vida. Responsabilida-
de significa, portanto, que se empenhe a vida toda, que o lance seja de vida ou mor-
te.
Com isso, estamos dando ao conceito de responsabilidade uma plenitude de
entido que ele não tem na linguagem comum, nem mesmo ali onde se tornou uma
~deza ética altamente qualificada, como nas reflexões de Bismarck e Max We-
ber. Mas também na Bíblia dificilmente encontramos este termo em posição de tal
relevância, ainda que, onde ocorre, revele características decisivas. Responsabilida-
de, no sentido bíblico, é, em primeiro lugar, a resposta dada com palavras e sob risco
dé vida à pergunta dos seres humanos pelo evento de Cristo (2 Tm 4.16; 1Pe3.15;
Fp 1.7,16), Eu defendo com palavras, correndo risco de vida, aquilo que aconteceu
através de Jesus Cristo. Isso quer dizer que em primeiro plano não estou defenden- .
do ã mim mesmo, minha ação; não estou me justificando (2 Co 12.19), mas respondo
por Jesus Cristo e com isso, não há dúvida, também pela incumbência que dele rece-
bi (1 Co 9.3). A. temeridade com que J6 quer defender o seu caminho perante Deus

124
(Jó 13.15) no fim é destruída pela palavra que Deus dirige a Jó: "O acusador de
Deus que se defenda, e Jó diz: Ah, sou demasia<Jamente pequeno! Que poderei
responder-te? Porei minha mão sobre a boca." (J6 40.2-4.) Trata-se duma conti-
nuação do raciocínio bíblico, se afirmamos: ao defender Jesus Cristo, a vida, diante
dos seres humanos, respondo - e somente assim-, ao mesmo tempo, pelos seres hu-
manos perante Cristo. Estou, simultaneamente, diante dos seres humanos a favor de
Cristo e diante de CriSto a favor dos seres humanos. A responsabilidade que assumo
por Jesus Cristo diante dos ouvidos dos seres humanos chega, ao mesmo tempo, aos
ouvidos de Cristo como minha responsabilidade pelos seres humanos. A responsabi-
lidade por Jesus Cristo diante dos seres humanos é a responsabilidade pelos seme-
lhantes diante de Cristo e somente através disso é minha responsabilização perante
Deus e os seres humanos. Chrunado à prestação de contas pelos seres humanos e por
Deus, só posso responder com o testemunho de Jesus Cristo, que se empenhou por
Deus diante dos seres humanos e pelos seres humanos diante de Deus. Responsabili-
dade acontece diante de Deus e por Deus, diante dos seres humanos e pelos seres
humanos; sempre é responsabilidade pela causa de Jesus Cristo e s6 assim responsa-
bilidade pela própria vida. Responsabilidade só existe no testemunho de Jesus Cristo
com palavras e vida.
Como na dogmática, também na ética não podemos repetir simplesmente a
terminologia bíblica. A problemática ética mudou e exige uma outra terminologia. O
perigo de desvio do assunto, decorrente duma ampliação da terminologia, deve ser
levado em conta- tanto como a circunstância de que também a terminologia bíblica
não pode ser usada sem risco.

A ESTRUTURA DA VIDA RESPONSÁVEL

A estrutura da vida responsável tem duas determinantes: a vinculação da


vida ao semelhante e a Deus e a liberdade da própria vida. É a vinculação da vida ao
próximo e a Deus que a coloca na liberdade da própria vida. Sem essa vinculação
e sem essa liberdade não pode haver responsabilidade. Somente aquela vida que na
vinculação se tomou altruísta está na liberdade da vida e ação mais próprias. A vin-
culação assume a forma da representação e da conformidade com a realidade; a li-
berdade mostra-se no auto-exame da vida e da ação e no risco da decisão concreta.
É sob este ângulo que haveremos de analisar a estrutura da vida responsável.

Representação

Podemos deduzir daquelas circunstâncias em que o ser humano é direta-


mente forçado a agir em lugar de outros - como pai, como estadista, como mestre -
que a responsabilidade se baseia na representação. O pai age em lugar dos filhos,
trabalhando, cuidando, defendendo, lutando, sofrendo por eles. Com isso, assume
realmente o lugar deles. Ele não.é um indivfduo·i.Solado; reóne em si o eu de v4rlaa
pessoas. Qualquer tentativa de viver como se sozinho estivésse, é uma negação do

125
Clldter fatual de sua responsabilidade. Não há como escapar da responsabilidade
dada com sua paternidade. É nesse fato que desmorona a ficção que considera o in-
dMduo isoJado o sujeito de todo comportamento ético. O sujeito para o qual toda
reflexão ética deve dirigir-se não é ele, mas o responsáveL Não importa por quantos
IC 888ume responsabilidade, se por uma pessoa, por uma comunidade ou por grupos
de comunidades. Não há ser humano que possa eximir-se completamente de res-
ponsabilidade, isto é, de representatividade. Mesmo o solitário vive de forma re-
presentativa, e até de maneira muito especial, porque sua vida é vivida em repre-
IOntação do ser humano como tal, da humanidade. O conceito duma responsabilida-
de por si mesmo s6 faz sentido na medida em que visa a responsabilidade que assu-
mo perante mim mesmo como ser humano - porque sou um ser humano, portanto.
Auto-responsabilidade é, na verdade, responsabilidade frente ao ser humano, e isto
quer diz.er frente à humanidade. O fato de Jesus ter vivido sem a responsabilidade
eepecfiica de matrimônio, famflia e profissão, de maneira alguma o exclui do âm-
bito da responsabilidade; pelo contririo, realça ainda mais a sua responsabilidade
e representação por todos os seres humanos. Com isso, no entanto, estamos tocando
nos alicerces de tudo aquilo que foi dito até agora. Porque Jesus - a vida, nossa vida
-, na qualidade de Filho de Deus feito ser humano, viveu representativamente por
n6s, toda vida humana se fez essencialmente representativa através dele. Jesus não
foi um indivíduo em busca de sua pr6pria perfeição; ele viveu somente como aquele
que assumiu e carrega em si o eu de todos os seres humanos. Toda a sua vida, açãO e
morte foi representação. Nele se cumpre o que os seres humanos deviam viver, fa-
zer e sofrer. Nessa representação real, que é o conteódo de sua existência humana,
ele é o responsável por definição. Por ele ser a vida, toda vida por ele se destina à
representação. Mesmo que se rebele, continuará sendo representativa, para a vida
ou para a morte, assim como o pai não deixa de ser pai, para o bem ou para o maL
Iq>reseniação e, por conseguinte, responsabilidad s6 existem na dedica·
çlo integral da pr6pria vida ao semelhante. S6 o abnegado vive responsavelmente,
isto é, s6 o abnegado vive. Quando o sim e não divinos se unem no ser humano vive-
se de maneira responsáveL A abnegação na responsabilidade é tão completa, que
aquela palavra de Goethe a respeito do agente que nunca tem consciência se encaixa
perfeitamente aqui. De dois Jados há ameaça de abuso da vida representativa: atra-
vés da absolutização do prdprio eu e através da absolutizaçlo do semeJhante. No
primeiro caso, a relação de responsabilidade leva à opressão e tirania. Ignora-se que
s6 o abnegado sabe agir responsavelmente. No segundo caso, o bem-estar do outro
ser humano, pelo qual respondo, é absolutizado, desprezando todas as outras res-
ponsabilidades; assim nasce uma arbitrariedade de ação que mmba da responsabili-
dade perante Deus, que em Jesus Cristo é Deus de todos os seres humanos. Em am-
bos os casos desfiguraram-se origem, ess&lcia e objetivo da vida responsável em
Jesus Cristo e a responsabilidade foi transformada num ídolo abstrato de produção
própria.
Como vida e ação representativas, a responsabilidade é essencialmente re-
lação do ser humano com o semelhante. Cristo se fez ser humano e com isso assu-
miu respoDSabllidade representativa pelos seres humanos. Existe, também, uma res-
poD88billdade por coisas, situações, valores, mas apenas sob rigorosa observAncia da
determinação original. essencial e final de todas as coisas, situações e valores para
Cristo (Jo 1.3), o Deus feito ser humano. Através de Cristo, devolve-se ao mundo

126
d8s coisas e valores sua orientaçãó voltadã para o ser humano, conforme a criação.
A freqüente referência à responsabilidade por uma causa tem seu direito de ser so-
mente dentro desses limites. Se passar disso, serve de maneira perigosa àquela per-
versão da vida que consiste na tirania das coisas sobre o ser humano. Há uma dedi-
cação à causa da verdade, do bem, da justiça, da beleza em que a pergunta pela utili-
dade soaria como profanação, mas que, assim mesmo, torna evidente que os mais
altos valores devem servir ao ser humano. Há, também, uma idolatria de todos esses
valores que nada mais tem a ver com responsabilidade, mas que nasce duma obses-
são que destr6i o ser humano, sacrificando-o ao ídolo. Não é a utilidade de uma
coisa para o ser humano e, com isso, o desvirtuamento da sua natureza, e sim o seu
essencial direcionamento para o ser humano que devemos entender por "responsa-
bilidade por uma causa". Está completamente exclufdo o ignóbil pragmatismo que,
nas palavras de Schiller, faz da deusa uma vaca leiteira, ao subordinar à utilidade
h~ de forma direta e míope, o que é valioso em si. Mas o universo das coisas
s6 experimenta sua plena hõerdade e profundidade quando é compreendido em seu
direcionamento original, essencial e objetivo para o mundo das pessoas. Pois, usando
as palavras de Paulo, a criação toda anseia pela revelação da glória dos filhos de
Deus; mais ainda: a própria criação será libertada do cativeiro da transitoriedade
(que consiste também na sua errônea auto-idolatria) para participar da gloriosa li-
berdade dos filhos de Deus (Rm 8.19-21).

Conformidade com a Realidade

O responsável é remetido, dentro de suas reais possibilidades, ao seu pró-


ximo concreto. Seu comportamento não está definido a priori e uma vez por todas,
como que por princípio, mas surge com a situação concreta. Ele mão dispõe de um
princípio de validade absoluta que devesse impor fanaticamente contra toda resis-
tência da realidade, mas vê o que, na situação dada, é necessário, "mandado" captar
e fazer. Para o responsável, a situação existente não é a matéria à qual quisesse im-
por, imprimir sua idéia, seu programa; pelo contrário: ela é incorporada ao agir co-
mo fator que contribui para dar forma concreta à ação. Não se pretende realizar um
"bem absoluto"; antes, faz parte da modéstia de quem age responsavelmente prefe-
rir o relativamente melhor ao relativamente pior e reconhecer que o "bem absoluto"
pode muito bem ser o pior. Ao responsável não cabe impor uma lei alienígena à rea-
lidade; pelo contrário, sua ação prima pela "conformidade com a realidade" no ver-
dadeiro sentido da palavra.
Esse conceito de conformidade necessita, no entanto, de uma definição
mais precisa. Estaria completa e perigosamente desvirtuado se fosse compreendido
como aquela "ment8iidade servil diante do fato consúmado", da qual NietiSche
fala, que costuma ceder às pressões fortes, que sanciona, por princípio, o sucesso e
· escoJhe o oportuno como o que está em conformidade com a realidade. "Conformi·
dade com. a realidade:', neste sentido, seria o contrário de responsabilidade, ou seja,
irresponsabilidade. Contudo, tão pouco como o servilismo diante da facticidado, a
contestação, a rebelião por princípio contra o mesmo, em nome de alguma realidade
ideal mais elevada, pode constituir o verdadeiro sentido da conformidade com a rca-

127
lidado. Ambos os extremos estão igualmente longe do cerne da questão. Reconhe-
ohnonto e contestação do fatual estão indissoluvelmente ligados na ação que corres-
ponde l realidade. A causa disso é que a realido.de é, em primeiro lugar e em l.Utima
ana.e, o real, o Deus feito ser humano e não uma grande7.a neutra. Tudo que é fa-
tual recebe daquele cujo nome é Jesus Cristo sua derradeira fundamentação e sua
dltlma suspensão, sua justificação e sua contestação final, seu dltimo sim e seu dlti-

1 mo nlo. Querer entender a realidade sem aquele que é real4 significa viver numa
abttraçlo na qual o responsável jamais deve cair; significa viver à margem da reali-
dade, equivale à infindável vacilação entre os extremos do servilismo e da rebelião
contra o fatual. Deus fez-se ser humano, assumiu a humanidade em carne e osso
o reconciliou assim o mundo do ser humano com Deus. Deus disse sim ao ser huma-
no e sua realidade porque o assumiu, não o inverso. Deus não aceitou o ser humano
se fez humano porque este e sua realidade tivessem sido dignos do sim de Deus;
l)eus o aceitou e lhe disse sim porque o ser humano e sua realidade mereciam o não
divino, e o fez tomando-se ele mesmo corporalmente ser humano, tomando sobre si
e sofrendo assim a maldição do não divino sobre o gênero humano. A realidade re-
cebe seu sim e não, seu direito e sua limitação a partir desta ação de Deus, a partir
do real, a partir de Jesus Cristo. Aceitação e contestação mesclam-se na ação con-
creta daquele que reconheceu o real. Nem afirmação nem contestação procedem
dum mundo alheio à realidade, duma programação oportunista ou idealista, mas da
realidade da reconciliação do mundo com Deus, como se realizou em Jesus Cristo.
Cop10 toda a realidade foi assumida e resumida em Jesus cristo, o real, tendo nele
sua origem, essência e alvo, uma ação condizente com a realidade s6 é possível nele
e a partir dele. A fonte do agir condizente com a realidade d Jesus, o Deus feito ser
humano, que aceitou o ser humano e, com ele, amou, julgou e feçonciliou o mundo,
e nlo o Cristo pseudoluterano que s6 existe para sancionar o fatuaI, nem o Cristo
radical-entusiasta que deve abençoar toda e qualquer revolução.
Com isso, chegamos à conclusão de que agir em oonfo(midade com Cristo
• qir de forma condizente com a realidade. Esta conclusão não é um postulado
Ideal, mas uma assertiva que emana do reconhecimento da pr6pria realidade. Jesus
Cristo não se defronta com a realidade como alguém alheio a ela. é ele somente que
carregou e experimentou no pr6prio corpo a essência da realidade, que falou a partir
do real como nenhum outro ser humano na terra, o õnico que não sucumbiu a uma
Ideologia; ele é o real por excelência, que carregou e realizou em si a essência da
hilt6ria e no qual está personificada a lei básica da história. Uma vez que ele, como
o real, é origem, essência e alvo de tudo que é real, ele mesmo também é o Senhor e
a lei do real. A palavra de J estis Cristo, portanto, é a explicitação de sua existência
e, com isso, a explicitação daquela realidade em que a história chega a sua consuma-
çlo. As palavras de Jesus são mandamentos divinos para o agir responsável na his-
ldrla na medida em que constituem a realidade da história consumada em Cristo,
a l'llpOnsabilidade pelo ser humano plenamente satisfeita somente nele mesmo. Não
se prestam, conseqüentemente, para uma ética abstrata - n~ são completamente

4 No pdmàro quadro de sua dança da morte, na criaçllo, Hans Holbein apresenta o sol, a lua e o
YllltO de forma penoniticada. De modo ingenuo, ele expw com isso o fa1o de que a reelida·
de, om dltima andliae. consiste no pessoal; justamcnle nisso consiste tamb6m um gdo de vcr-
dldo do animismo primitivo.

128
incompreensíveis e levam a conflitos insoldveis -, mas valem na realidade da hlstdrla
pórque dela procedem. Qualquer tentativa de isolá-las dessa origem" as desfigura,
transformando-as numa pálida ideologia, e as priva de seu poder de testemunhar
a realidade, que elas têm enquanto ligadas ~sua origem.
. . A ação em confornlldade coni Cristo é condizente com a realidade porque
admite que o mundo seja mundo, porque conta com o mwido como tal, e, não obs-
tante, jamais esquece que o mundo foi amado, julgado e reconciliado por Deus em
Jesus Cristo. Com isso, não se contrapõe um "princfpio mundano" a um "princípio
cristão". Essa tentativa de tomar Cristo e o mundo comensuráveis ao menos na
conoepção de um princípio e, desta maneira, poss:t"bilitar em princípio um agir cristão
no mundo, conduz à destruição do mundo reconciliado com Deus em Cristo, tanto
na versão do secularismo, ou seja, da doutrina da autonomia das várias esferas da
vida, de um lado, quanto na versão do entusiasmo, do outro; leva ~ueles eternos
conflitos que são a matéria-prima de toda trag&lia, destruindo, com isso, a unidade
nada trágica de vida e ação cristãs. Onde um princípio mundano e outro cristão se
confrontam, vale como tlltima realidade a lei, ou melhor, uma pluralidade de leis in-
conciliáveis entre si. A essência da tragédia grega é que o ser humano perece no
choque de leis incompatíveis. Creonte e Antígone, Jasão e Medéia, Agamêmnon e
Clitemnestra estão sob a exigência daquelas eternas leis que não podem ser compa-
tibilizadas numa dnica e mesma vida. Paga-se a obediência a uma destas leis com a
cu1pa perante a outra. O sentido de todas as autênticas tragédias não é que um tem
razão e o outro não, mas que ambos se tomam cu1pados perante a própria vida, que
a estrutura da vida consiste em tomar-se culpado diante das leis dos deuses. Esta
profunda sabedoria que a Antiguidade conquistou determina o pensamento ociden-
tal, especia]mente desde a Renascença, de maneira tão decisiva- na Igreja primitiva
e na Idade Média não surgiram trag&lias - que a superação dela pela mensagem
cristã pouquíssimas vezes foi sentida; em todo caso, o pathos do trltgico - sob o qual
também a moderna ética protestante procura descrever o insoldvel conflito dos
cristãos no mundo e com o qual reivindica dar expressão a uma realidade tlltima -
ainda está totalmente dominado pela herança da Antiguidade, sem estar consciente
disso. Não foi Lutero, mas :asquilo, Sófocles e Eurípedes que deram esse aspecto
trágico à vida humana. A seriedade de Lutero, porém, é bem outra que a dos autores
das tragédias clltssicas. Para a Bíblia e para Lutero, o objeto de derradeira seriedade
não é o conflito dos deuses a manifestar-se em suas leis, mas a unidade de Deus e
a reconciliação do mundo com ele em Jesus Cristo, não a inevitabilidade da culpa,
mas a vida sfmplice emanada da reconciliação, não o destino, mas o Evangelho como
a tlltima realidade da vida, não o triunfo cruel dos deuses sobre o ser humano que
perece, mas a eleição do ser humano para ser filho de Deus num mundo reconciliado
pela graça.
Se por um lado é um retrocesso da realidade cristã para a da Antiguidade
contrapor a um princípio mundano um outro de caráter cristão como dltima realida-
de, igualmente errado seria entender o mundano e o cristão como unidade em prin-
cfpio. A reconciliação do mundo com Deus realizada em Cristo consiste exclusiva-
mente na pessoa de Jesus Cristo, na qualidade de quem age em responsabilidade re-
presentativa e de quem, por amor aos seres humanos, é o Deus feito ser humano. Só
a partir dele pode existir ação humana que não se desgasta em conflitos Msicos, mas
que procede da já realizada recenciliação do mundo com Deus, uma ação que, em

129
10briedade e simplicidade, pratica o que condiz com a realidade, uma ação em res-
pouabflidade 1epresentativa. O que vem a ser "cristão" e "mundano" não está mais
deftnfdo a priori; ambos serão reconhecidos em sua particuiaridade e em sua unidade
a6 na iespoosabilidade concreta da ação que flui da reconciliação acontecida em
Jesus Cristo.
Se afirmarmos que, para a ação condiz.ente com a realidade, o mundo per-
manece mundo, isto não pode significar, depois de tudo que foi dito, um isolamento
por princípio, uma declaração de autonomia para o mundo; ao contrário, isso deve
emanar justamente da fundamentação de toda realidade em Jesus Cristo. O mundo
continua sendo mundo porque é o mundo amado, julgado e reconciliado em Cristo.
Nenhum ser humano tem a incumbência de passar por cima dele e convertê-lo em
reino de Deus. Não favorecemos, com isso, aquela piedosa indolência que abandona
o mundo mau ao seu destino e trata de salvar, apenas, a própria virtude. Pelo con-
trário, o ser humano é colocado na responsabilidade CODCJeta, e por isso limitada,
que ieoonheee o mundo como criado, amado, julgado e reconciliado por Deus e que
age nele de acordo com isso. O "mundo", portanto, é a drea de responsabilidade
concreta que nos foi dada em e por Jesus Cristo, e não qualquer conceito genérico,
do qual se pudesse deduzir uma sistem4tica própria. Defrontar-se com o mundo de
maneira condizente com a realidade não significa perceber nele algo que em si fosse
bom ou mau ou um princípio surgido da fusão do bem e do mal; antes, é viver e agir
em responsabilidade limitada e, com isso, descobrir sempre de novo a essência do
mundo.
A ação em conformidade com a realidade está dentro dos limites de nossa
condição de criaturas. Nós não criamos nossas prdprlas condições de ação; j' nos
encontramos nelas. Agindo, estamos dentro de certos limites que não podem sér
transpostos, nem para a frente nem para tras. Nossa responsabilidade não é infinita,
mas limitada. Dentro desses limites, no entanto, ela abrange a realidade global. Não '
pergunta apenas pela boa vontade, mas também pelo sucesso da ação, não apenas
pelo motivo, mas também pelo objeto; procura reconhecer a realidade global exis-
tente em sua origem, essência e alvo; vê-a sob o sim e o não divinos. Como não se
trata da execução de algum princfpio itimitado, é preciso observar, ponderar, avaliar
e decidir na situação concreta, e tudo isso dentro dos limites do conhecimento hu-
mano em geral. ~ preciso arriscar o olhar para o futuro prdximo, é preciso consi-
derar seriamente as conseqüênc:ias da ação, assim como é necesdrio tentar um exa-
me dos pr6prlos motivos, do prdprio coração. A tarefa não pode ser mar o mundo
dos eixos, mas, no respectivo lugar, fazer aquilo que é necessário com vistas à reali-
dade. Em tudo isso, é preciso também indagar pelo que é possfvel; nem sempre pode
ser dado de imediato o óltimo passo. Ação res~vel não pode agir cegamente.
Tudo isso precisa ser assim porque Deus se fez ser humano em Cristo, porque disse
sim ao ser humano e s6 n6s podemos e devemos viver e agir diante de Deus e do
prdximo como seres humanos, na limitação humana de juízo e conhecimento. Mas
como Deus se tomou ser humano, a ação responúvel, ciente do ~ter humano de
sua decisão, não pode antecipar o juízo sobre a pr6pria ação quanto à sua origem,
essência e alvo, mas deve entregá-lo inteiramente a Deus. Enquanto toda a&ão
ideológica sempre ji traz coni;igo sua justificação no bojo do respectivo princfpio, a
ação res~vel renuncia ao conhecimento de sua derradeira justiça. A ação que
acontece sob ponderação respon§vel de todas as circunsdncias pessoais e objetivas,

130
bem como com vistas ao fato de que Deus se tomou ser humano e de que foi D1U1
que se tomóu ser humano, é entregue unicamente a Deus no momento da realização.
O desconhecimento tlltimo do próprio bem e mal, e com isso a dependência da gra•
ça, é parte constitutiva da ação responsável na bist6ria. Quem age com base numa
ideologia vê sua justificação na id&l que defende; a pessoa respons4vel coloca sua
ação nas mãos de Deus e vive de sua graça e bondade.
Faz parte, ainda. da limitação da vida e ação respons4veis o fato de conta-
rem com a responsabilidade das pessoas com as quais se encontram.11 precisamente
nisso que a responsabilidade se distingue da violaçlo: reconhece no semelhante um
responsável, mais ainda: toma o outro consciente de sua responsabilidade. A res-
ponsabilidade do pai ou do estadista é limitada peJa responsabilidade do filho, res-
pectivamente do cidadão; mais ainda: a responsabilidade do pai ou do estadista con-
siste em tornar ooosciente e fortalecer a resPQnsabilidade dos que lhe foram oonfia-
dos. Portanto, jamais pode haver uma responsabilidade absoluta, que não tenha seu
limite essencial na responsabilidade do outro ser humano.
Ao divisarmos o limite da ação responsável no desembocar da ação na gra-
ça e no juízo de Deus e, por outra, na responsabilidade do próximo, notamos, ao
mesmo tempo,.que é precisamente este limite que toma a ação responsáveL Deus e o
próximo, tais como se nos deparam em Jesus Cristo, não constituem apenas o limite,
mas - como j~ verificamos - também a origem da ação responsáveL A ação irres-
ponsável se define justamente pe1a inobservancia deste limite, Deus e o próximo. A
ação respons4vel obtém sua unidade e por fim também sua certeza dessa sua limita-
ção por Deus e pelo próximo. Justamente por não ser soberana, ilimitada, arrogante,
mas pr6pria de criatura e humilde, pode estar sustentada por uma derradeira alegria
e confiança, pode sendr-se abrigada em sua origem, essência e alvo, em Cristo.

O Mundo das Coisas - Objetividade - Polftica

Sob a premissa do conhecimento adquirido - a saber, que responsabilidade


sempre é um relacionamento de pessoas entre si, baseado na responsaÍ>ilidade de Je-
sus Cristo pelos seres humanos -, sob a premisSa. portanto, de que origem, essência
e alvo de toda realidade é o real, Deus em Jesus Cristo, podemos e devemos falar
também da re]açlo do responsável com o mundo das coisas. Definimos este relacio-
namento com o termo objetividade. Com isso, afirmamos duas coisas.
Primeiro: objetivo é o relacionamento com as coisas que ti.ver presente sua
reJação original, essencial e final com Deus e os seres humanos. Trata-se de uma
reJaÇão que não desfigura a objetividade, mas a purifica, que não sufoca o fervor da
dedicação a uma causa, ~tes o refina e intensifica. Quanto mais isento e livre de
interesses secunctmos pessoais for o serviço prestado a uma causa, tanto mais eJa
recupera sua relação original com Deus e o ser humano e tanto mais ela liberta o ser
humano de si mesmo. A causa à qual se oferece ó supremo sacrifício pessoal deve
servir aos seres humanos justamente dessa forma. Onde, por exemplo, numa ciência
se procura, por motivos demagógicos, pedagógicos ou moralistas, a utilidade para os
seres humanos de maneira erroneamente direta, se corrompe não s6 o ser humano,
mas a própria ciência. Onde, entretanto, o ser humano na ciência estiver unicamente

131
IOm reservas a serviço do conhecimento da verdade, ele vai achar a si mesmo no
lbandono altrufsta de todos os desejos próprios, e a causa, à qual serviu sem visar
vantagens próprias, no final servirá a ele. Assim, faz parte da objetividade da ação
que C8B8. relação da causa com a pessoa jamais seja ignorada. É bem verdade que não
oonhocemos essa relação senão totalmente conturbada. Ou a causa se torna inde-
pendente da pessoa, ou a pessoa da causa, ou ainda ambas estão lado a lado sem re-
laçlo alguma. Trata-se de restaurar o relacionamento original a partir da responsa-
bllWade fundamental em Jesus Cristo.
Segundo: a partir de sua origem, cada coisa contém uma lei básica, não im-
portando que se trate dum fenômeno da natureza ou dum produto da inteligência
humana, que seja um objeto material ou uma grandeza das idéias. Sob o termo
..oolla" nesse sentido entendemos tudo que contém tal lei básica, não importando se
d llao neutro ou de caráter mais pessoal. Os axiomas da matenmtica e da lógica in- •
cluem-se aqui assim como o Estado ou a famfiia, assim como uma fábrica ou uma
IOCieclade anônima - em todos é preciso descobrir a lei básica que dá consistência
l napectiva grandeza. Quanto mais uma coisa estiver ligada à existência do ser hu-
mano, tanto mais dificil é definir sua lei básica. É mais fácil definir as leis do racio-
cfnlo lógico, por exemplo, do que a lei do Estado. Por outra, é mais fácil detectar
a loi duma sociedade anônima do que aquela de uma grandeza crescida no seio da
famfiia ou do povo. Faz parte da ação responsável condizente com a realidade des- ·
oobrlr e observar essas leis. De início, essa lei se apresenta como uma técnica formal
quo se deve dominar. Quanto mais, no entanto, a coisa de que se trata no caso con-
creto mexer com a existência humana, tanto mais se evidenciará que a lei básica não
IC esgota numa técnica formal, antes questiona toda manipulação técnica. O pro-
blema da técnica da poKtica é o melhor exemplo para o caso, ao passo que a técnica
de fabricação de rádios não oferece maiores problemas. Não há dt1vida que também
a política tem o seu aspecto de técnica (existe uma técnica de administração, de di-
plomacia), à qual, porém, se acrescem, no mais amplo sentido, as ordens jurídicas
po&itivas e os tratados, as normas não fixadas juridicamente e as formas de convi-
v~ncla interna e externa sancionadas pela história e, finalmente, os princípios morais
da vida política que gozam de aceitação geral. Nenhum estadista pode ignorar impu-
ne.monte alguma dessas leis. Seu arrogante desprezo e desrespeito constituem um
delconhecimento da realidade que, cedo ou tarde, se vinga. Ação objetiva manter-
•·« dentro dessas normas e, ao observá-las, não estará apenas fingindo, mas reco-
nhocendo um elemento essencial de toda ordem. Reconhecerá a sabedoria dessas
formas, adquirida pela experiência de muitas gerações, e saberá aproveitá-las. To-
davia, a ação objetiva chegará, justamente aqui, de modo irrefutável, a reconhecer
quo, com essas normas da política, não se abrange de forma cabal a lei básica do
Eatado e que esta, devido à indestrutível ligação do Estado com a existência huma-
na. vai além de tudo que possa ser apreendido por meio de leis. É nesse ponto, ape-
nu, que se alcança a profundidade da ação responsável.

~ Açlo objotiva não está necessariamente ligada a uma formação especializada, como por muito
tempõ se pensou na Alemanha. Para a ação objetiva de grande envergadura, na Inglaterra não
M chama o especialista, mas o diletante. Através dum bom equilíbrio entre especializ.ação e di-
letantismo se garantirá melhor a objetividade da ação sob o ponto de vista sociológico.

132
Ali onde a observância da lei formal dum- Estado, duma empresa, duma
família ou duma descoberta científica, devido ao curso da vida histórica, se choca
com as necessidades b'8icas dos seres humanos, a ação responsável e objetiva sai do
âmbito dos princípios e leis, do normal, do comum, para a situação excepcional de
necessidades óltimas, situação essa que não pode mais ser regulamentada por leis.
Em sua doutrina do Estado, Maquiavel forjou para isso o conceito da necessidade.
Isso significa, para o campo da polftica, que sua técnica se transforma em necessida-
de de Estado. Não há dóvida que tais necessidades ocorrem. Negá-las significa re-
nunciar à ação condizente com a realidade. É certo, também, que tais necessidades,
como fato fundamental da pr6pria vida, não podem mais ser abrangidas por nenhu-
ma lei e tampouco elas próprias podem converter-se em lei. Elas apelam diretamente
à responsabilidade livre do agente, resi)onsabilidade essa que não está vinculada a
nenhuma lei. Criam uma situação excepcional; são essencialmente casos extremos.
Não concedem mais uma pluralidade de opções à razão humana, mas confrontam
o ser humano com a questão do óltimo recurso. Na área poJítica, esse óltimo recurso
se chama guerra, mas também embuste e quebra de tratados em função das necessi-
dades da própria vida. Na área econômica, significa a destruição de existências hu-
manas em função de necessidades comerciais. O óltimo recurso está além das leis da
razão, é ação irracional. Tudo será profundamente pervertido se do óltimo recurso
se fizer de novo uma lei racional, se o caso extremo se converter em normal, se a
necessidade se transformar em técnica. Baldwin tem razão quando diz que s6 existe
um mal maior do que a violência, a saber, a violência como princípio, como lei, co-
mo norma. Ele não quis contestar com isso a necessidade extraordinária do óltimo
recurso, do uso da violência em casos extremos - do contrário, seria um entusiasta e
não um estadista -, mas não quis, por preço algum, que se confundisse o excepcio-
nal, o caso extremo com o normal, com a lei; não quis, portanto, trocar, por causa
do caso extremo, a relativa ordem garantida com o devido cumprimento das disposi-
ções legais pelo caos.
A necessidade extraordinária apela à liberdade das pessoas responsáveis.
Não há lei sob a qual o responsável pudesse achar abrigo nesse caso. Logo, também
não há lei que pudesse forçar o responsável a tomar esta ou aquela decisão diante de
tais necessidades. Diante dessa situação só existe a completa renóncia a qualquer lei,
consciente de que aqui é preciso decidir com livre risco, admitindo honestamente
que aqui se fere, se quebra a lei, que aqui a necessidade viola o mandamento; por
conseguinte, na própria violação o responsável estará reconhecendo a validade da
lei; por fim. nessa renóncia a toda e qualquer lei, e somente assim, acontece a entre-
ga da própria decisão e ação à divina condução da história. ·
E uma questão teórica impossível de decidir se no agir histórico o valor
supremo é a lei eterna ou a livre responsabilidade contra toda lei - mas diante de
Deus. Grandes povos contrastam profundamente neste ponto. Constitui a grandeza
de estadistas ingleses - cito aqui, como exemplo, Gladstone - ter considerado a lei
como óltima instância, e constitui a grandeza de estadistas alemães - estou pensando
em Bismarck - apresentar-se diante de Deus em livre responsabilidade. Nenhum
deles pode invocar aqui um privilégio sobre o outro. A óltima pergunta permanece
em aberto e deve ser mantida assim; pois, de uma ou de outra maneira, o ser humano
se toma culpado e de uma ou de outra maneira só poderá viver da graça e do pordlo
de Deus. Tanto aquele que está comprometido com a lei como aquele que age em li·

133
VR nmpomabi1idade devem ouvir e respeitar a acusação do outro. Nenhum pode
lomar-ae juiz do outro. O julgamento pertence a Deus.

Assumir a Culpa

Do que foi dito, deduzimos que a disposição de assumir culpa, bem como a
IUMrdaü, fuem parte da estrutura da ação responsável.
Se voltarmos nos.so olhar à origem de toda responsabilidade, fica claro o
que deve ser entendido sob a expressão "assumir culpa". Como para Jesus não se
trata da proclamação e realização de novos ideais éticos, nem do pr6prio ser bom,
portanto (Mt 19.17), mas apenas do amor ao ser humano real, ele pode integrar-se
nu comunhão de sua culpa, assumir o ônus de sua culpa. Jesus não quer ser o dnico
perfeito às custas dos seres humanos, não quer, como d.nico inocente, olhar com
dlld6m para a humanidade a sucumbir sob o peso de sua culpa, não pretende fazer
triunfar alguma idéia de um novo ser humano sobre os destroços duma humanidade
fracassada por causa da propria culpa. Ele não quer inocentar-se da culpa sob a qual
01 seres humanos morrem. Um amor que abandonasse o ser humano em sua culpa
nlo teria como objeto o ser humano real Na qualidade de quem age responsavel-
mente na existência histórica dos seres humanos, Jesus se torna culpado. Vale lem-
brar: 6 apenas o seu amor que o torna culpado. ~ a partir de seu abnegado amor, de
11uu alo-pecaminosidade que Jesus entra na culpa dos seres humanos e a assume. Em
Jeeua, estar sem pecado e carregar culpa se fundem de forma indissoltiveL Como
1quele que não tem pecado, Jesus assume a culpa dos irmãos, e, sob o peso desta
culpa, se revela como quem não tem pecado. Toda ação representativa responsável
tem sua origem neste Jesus Cristo culpado sem pecado. Exatamente porque e quan-
do &responsável, porque e quando tem em mira somente o próximo, porque e quan-
do emana do abnegado amor ao irmão real, não pode querer eximir-se da comunhão
da culpa humana. Todo aquele que age com responsabilidade se torna culpado por-
que Jesus assumiu a culpa de todos os seres humanos. Quem, na responsabilidade,
quer eximir-se da culpa, desliga-se, também, do mistério salvífico da inocente cul-
pabWdade de Jesus Cristo e não tem parte na justificação divina que envolve este
llOODtecimento. Coloca sua inocência pessoal acima da responsabilidad pelos outros
o está cego para a culpa mais funesta que com isso chama sobre si, cego também
pa.rn o fato de que a verdadeira inocência consiste em entrar na comunhão da culpa
dele por amor aos semelhantes. Por Jesus Cristo, faz parte da essência da ação res-
pona4vel que o inocente se tome culpado por seu amor abnegado.

A Conscilncia

Contra tudo isso há uma objeção de indiscutt'vel altivez. Vem da alta ins-
tAncia da consciência, que se nega a sacrificar sua integridade por qualquer outro
bom, que se recusa a assumir culpa por causa de outra pessoa. A responsabilidade
polo próximo tem aqui seu limite na inviolabilidade da voz da consciência. Uma res-

134
ponsabiHdade que obrigasse a agir contrà a condncia condenaria a si mesma. O
que está certo e o que está errado nisso?
Certo é que jamais é xecomendável agir contra a pr6pria consciência. Nisso
todos os tratados de ética cristã concordam. Mas o que significa isto? A condncia
é a voz que, provindo duma profundeza situada além da vontade e da r87.ão pró-
prias, clama pela unidade da existência humana consigo mesma. Ela aparece como
acusação pela unidade perdida e como advertência contra a perda de si mesmo. Visa
primordialmente não um determinado faz.er, mas um determinado ser. Protesta
contra um faur que põe em perigo esse ser na unidade consigo me&llO.
Nessa função formal, a consciência permanece uma insdncia que não é
nada recomendiveLcontrariar. O desrespeito à voz da consciência tem necessaria-
mente como conseqüência a destruição do próprio ser, o desmoronamento da exis-
t:ência humana, e não uma entrega que faça sentido. A ação contra a consciência está
na linha da ação suicida contra a pr6pria vida, e não é por acaso que as duas muitas
vezes estão ligadas entre si. Uma ação responsivel que quisesse violentar a cons-
ciência nesta conceituação formal seria realmente condenáveL
Mas a pergunta de maneira alguma se esgota com isso. Se a voz da cons-
ciência procede da periclitante unidade do ser humano consigo mesmo, deve-se per-
guntar também pelo conteádo dessa unidade. Este é, em primeiro lugar, o próprio eu
na sua presunção de ser "como Deus" - sicut deus - no conhecimento do bem e do
mal. A voz da consciência no ser humano natural é a tentativa do eu de justificar-se.
perante Deus, os seres humanos e diante de si mesmo em seu conhecimento do bem
e do mal e de conseguir subsistir nessa autojustificação. O eu, que não tem apoio em
sua individualidade contingente, remonta-se a uma lei geral do bem e tenta achar a
unidade consigo mesmo na concordância com ela. A voz da consciência tem, por-
tanto, sua origem e seu objetivo na autonomia do próprio eu. É mister concretizar
essa autonomia, que tem sua origem além do próprio saber e querer "em Adão",
sempre de novo pela obediência à sua voz. Desta maneira. o ser humano permanece
comprometido em sua consciência com uma lei que ele mesmo inventou e que, no
caso concreto, pode assumir formas diferentes, mas permanece uma lei que não po-
de ser transgredida sem perder a própria identidade.
A grande transformação acontece, como agora compreendemos, no mo-
mento em que a unidade da existência humana não consiste mais em sua autonomia,
mas - pelo milagre da fé - é achada além do próprio eu e sua lei, em Jesus Cristo.
Esse deslocamento do ponto de unidade tem, sob o aspecto formal, sua analogia na
área secular. Se um nacionalsocialista diz: "Minha consciência é Adolf Hitler", ten-
ta-se, com isso, fundamentar a unidade do eu além de si mesmo. Isso tem como
conseqüência a renáncia à autonomia em favor duma incondicional heteronomia, o
que, por sua vez, só é possível se o outro ser humano, no qual procuro a unidade da
minha vida, assumir a função de meu redentor. Teríamos então, aqui, o paralelo se-
cular mais expressivo, bem como a mais expressiva contradição com a verdade
cristã.
Se Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano, se tomou o ponto de
unidade da minha existência, a consciência continua sendo, formalmente, a voz do
meu ser aut.êntico para a unidade comigo mesmo, s6 que essa unidade não pode maia
ser concretizada pelo regresso à minha autonomia alimentada peJa lei, mas na comu-
nhão com Jesus Cristo. A consciência ~ - ainda que seja a mais rigoroaa- re-

135
vela-se agora como a autojustificação mais fmpia; ela é superada pela consciência li-
bertada em Jesus Cristo e que chama para a unidade comigo mesmo em Jesus Cris-
to. Jesus Cristo se tomou minha consciência. Isso implica que s6 posso encontrar a
~ . unidade comigo mesmo oferecendo o meu eu a Deus e aos semelhantes. Origem e
alvo da minha consciência não é uma lei, mas o Deus vivo e o ser humano vivo, co-
mo o encontro em Jesus Cristo. Por amor a Deus e aos seres humanos, Jesus setor-
nou violador da lei: infringiu a lei do sábado para santificá-la no amor a Deus e aos
11eres humanos. Deixou seus pais para estar na casa de seu Pai e purificar, assim, a
obediência aos pais. Comeu com pecadores e rejeitados e, por amor aos seres huma-
nos, experimentou o abandono de Deus em sua hora final. Amando sem pecado, ele
se tomou culpado e quis integrar-se à comunhão da culpa humana. Repeliu a tenta-
ção cio diabo que quis confundi-lo nesse caminho. Assin4 Jesus Cristo é o libertador
da consciência, para que esta sirva a Deus e ao próximo, libertador da consciência
também e de forma especial ali onde o ser humano se integrar na comunhão da culpa
humana. A consciência libertada da lei não havera de temer a participação em culpa
alheia por amor ao semelhante, antes havera de revelar-se justamente nisso em toda
a sua pureza. A consciência libertada não é temerosa como aquela comprometida
com a lei, mas amplamente aberta para o próximo e suas necessidades concretas.
Assim, une-se com a responsabilidade fundamentada em Cristo para assumir culpa
por causa do próximo. Àinda que a ação humana nunca ocorra sem pecado - em
contraste com a impecabilidade essencial de Jesus Cristo -, mas esteja envenenada
pelo pecado original essencial, participa indiretamente, como ação responsável -
distinguindo-se de toda ação autojustificadora e emanada de princfpios -, da ação de
Jesus Cristo. Para a ação responsável existe, portanto, algo assim como uma impe-
cabilidade relativa, que se revela justamente na assunção responsável de cu1pa
alheia.
Se Kant, partindo do princípio da veracidade, chega à grotesca conclusão
, de que eu deveria responder com sinceridade também ao assassin':> que invadiu mi-
nha casa em perseguição a um amigo meu, neste caso a autojustificação da consciên-
cia, exacerbada até a insolência ultrajante, bloqueia a ação responsável Se respon-
sabilidade é a resposta global e condiz.ente com a realidade que o ser humano dá ao
chamado de Deus e do próximo, aqui transparece claramente o caráter parcial da
resposta dada por uma consciência comprometida com princípios. A recusa de ferir
o princípio da veracidade por causa do meu amigo, a recusa de mentir descarada-
mente por causa do meu amigo - pois toda tentativa de minimizar o fato da mentira
procede novamente da consciência legalista e autojustificadora -, a recusa, portanto,
de assumir culpa por amor ao próximo me coleca em contradição com a minha res-
ponsabilidade fundamentada na realidade. Também aqui, na assunção responsável de
culpa e inocência, a consciência terá a melhor oportunidade de provar se está com-
promodda tão-somente com Cristo. .
~ admirável a que proximidade destas idéias Goethe é levado por um co-
nhecimento meramente profano da realidade. No diálogo em que Pflades quer levar
_.lfig8nia à ação respcnsável contra a lei interior, lemos:

Pfiades: Exigências demasiadamente severas são sinal de orgulho oculto.

136
Ifigênia: O coração sd se delicia sem mkula6.
P1lades: Assim te resguardaste muito bem no templo;
a vida ensina-nos menos rigor conosco
e com os outros: tu também o aprenderás.
Esta geração est4 tão maravilhosamente formada,
tanto est4 emaranhada e interligada,
que ninguém pode manter-se imaculado e descomprometido
nem em si mesmo, nem com os outros.
Além do mais, não fomos chamados para nos julgarmos a nós mesmos;
a primeira e mais imediata obrigação do ser humano
é caminhar e observar o seu caminho:
pois poucas vezes avalia corretamente o que fez,
e o que faz, quase não sabe valorizar•••
1
Vê-se que não estás acostumada a perder,
uma vez que, para evitar o grande mal,
sequer uma palavra errada queres sacrificar.
Ifigênia: Quem me dera trazer em meu peito um coração mMculo
que, ao alimentar um propósito audaz,
fecha-se a qualquer outra voz!

Por mais que a consciência libertada em Cristo e a responsabilidad quei-


ram pôr-se de acordo, permanecem numa irrevogável tensão recíproca. A assunção
de culpa, que se torna necessária na ação responsável, encontra duas limitações por
· parte da consciência.
Em primeiro lugar, também a consciência libertada em Cristo é, por sua
essência, o chamado para a unidade comigo mesmo. A assunção duma responsabili-
dade não deve destruir esta unidade. A entrega do eu no serviço abnegado jamais
deve ser confundida com a destruição e aniquilação desse eu, que, com isso, também
não estaria mais em condições de assumir responsabilidade. A medida de culpa a ser
assumida na ação responsável encontra seu limite concreto na unidade do ser huma-
no consigo mesmo, na sua capacidade de carregí-Ja. Há responsabilidade que não
sou capaz de assumir sem ser quebrantado por ela, seja que se trate duma declara-
ção de guerra, dum rompimento de tratado po){tico, duma revolução, ou apenas da
demissão de um pai de famflia que com isso ficaria desempregado, ou mesmo apenas
dum conseJho numa decisão pessoal da vida. É verdade que a capacidade de tomar e
assumir decisões responsáveis deve crescer; verdade também é que qualquer fra-
casso diante duma responsabilidade já constitui uma decisão responsável; mesmo
~ no caso concreto, o chamainento da consciência para a unidade consigo mes-
mo em Jesus Cristo permanece insuperável, e é assim que se explica a infinita varie-
dade de decisões responsáveis.
Segundo: também a consciência libertada em Jesus Cristo coloca a ação
responsável diante da lei, por cujo cumprimento o ser humano é preservado na uni-
dade consigo mesmo baseada em Jesus Cristo e de cujo desprezo s6 pode nascer ir-
responsabilidade. ~ a lei do amor a Deus e ao próximo, como est4 explicitada no

6 Deve-se observar aqui também a mtroduçlo do caracterlstico termo "deliciar".

137
Dlc6J10, no sermão da montanha e na par!nese apostólica. A constatação correta
de que a consciência natural revela surpreendente concordAncia no contetido de sua
lo! com aquela da consciência libertada em Cristo decorre do fato de que, na cons-
ulencla, trata-se da subsistência da própria vida e de que, por isso, ela contém ele·
montoe b'8icos da lei da vida, ainda que desfigurados nos detalhes e pervertidos na
..ancla. Também oomo libertada, a consciência contina sendo o que era, ou seja, o
tlomonto premonitório da transgressão da lei da vida. Mas, como a lei não é mais
• dltima instAncia, e sim Jesus Cristo, na disputa entre a consciência e a responsabi·
Udade concreta deve acontecer a livre decisão por Cristo. ~ não significa um
wnfllto etemo, mas a obtenção da derradeira unidade, pois origem. essência e alvo
da ruponsabilidade concreta 6 o mesmo Jesus Cristo que 6 o senhor da consciência.
Aubn, a responsabilidade se toma prisioneira pela consciência, mas a consicência se
torna livre pela responsabilidade. Evidencia-se, agora, que é a mesma coisa se dize-
IUOI! o respons4vel torna-se culpado sem pecado, ou: s6 o ser humano de consciên-
&:da livre pode assumir resi>onsabilidade.
Quem, em responsabilidade, assumir culpa - e nenhum responsável pode
llOapat disso - atribui essa cuJpa a si mesmo e a ningo6n mais, e responde por ela.
Nlo o faz na injuriosa arrogAncia de seu poder, mas na clara noção de ser forçado a
oua liberdade e de nela depender da graça. Perante os outros, a necessidade justifica
o homem da livre responsabilidade, perante si mesmo é a consciência que o diz ino·
cente, mas diante de Deus ele s6 espera por misericórdia.

Liberdade

Assim, na andlise da estrutura da ação responsável, temos que falar, por


fim. da liberdade.
Responsabilidade e liberdade são conceitos que se correspondem. Res·
ponaabilidade pressupõe substancialmente - não cronologicamente - liberdade, e a
liberdade s6 pode subsistir na. responsabilidad Responsabilidade é a liberdade hu-
mana dada exclusivamente no comprometimento com Deus e o próximo.
Sem cobertura por parte de seres humanos, circunstAnclas ou princfpioa,
11UU1 levando em conta todos os fatores humanos, gerais e bmcos, o responsável age
1111 liberdade do seu próprio eu. O fato de que nada pode defendê-lo, desagravá-lo, a
nlo ser ele mesmo e seu ato, é prova de sua liberdade. Ele mesmo tem que observar,
Jul.pr, ponderar, decidir e agir. Ele mesmo tem que examinar os motivos, as chan-
Oll, as perspectivas, o valor e o sentido de sua ação. Mas nem a pureza da motiva·
glo, a oportunidade das circunstAncias, nem o valor e o sentido da ação pretendida
podem transformar-se em lei para o seu agir, à qual ele pudesse recorrer e invocar,
pela qual pudesse ser desculpado e mocentado7. Do contrário ele não seria ma.li
verdadoiramente livre. A ação do respondvel acontece no comprometimento com
l>oua e o prdximo, como os encontramos em Jesus Cristo, comprometimento este

7 Com llao, toma-se sup&flua também a incabível questão do determinismo e indetmminlamo,


na qual a Cllldncia da decislo espiritual 6 substituída erroneamente pela lei da causalidade.

138
que constitui a t1.nica forma de obter plena hõerdade; tal ação acontece totalmente
,., lmbito ela relatividade, na penumbra que a situação histórica espalha sobre bem e
mal; acontece em meio às incontáveis perspectivas em que tudo que é real aparece.
raJ ação não tem que decidir simplesmente entre justiça e injustiça, bem e mal. mas
ontre direito e direito, injustiça e injustiça. "Direito luta com direito" dizia &quilo.
A ação respo~vel é, precisamente nisso, uma aventura livre, sem justificação por
W alguma, acontecendo, pelo contrmo, na rend.ncia a qualquer autojustificação vá-
lida e, com isso, na rend.ncia a seu conhecimento tlltimo e válido de bem e mal O
bem, na qualidade daquilo que é respo~vel, ac0ntece no desconhecimento do bem,
Dll entrega da ação necessária, e mesmo assim (ou justamente assim!) livre, a Deus,
que vê o coração, pesa o ato e guia a história.
Nisso se revela ~ profundo mistério da história em geral. Precisamente
aquele que age na liberdade da sua mais própria resJ?onsabilidade vê a sua
1Çlo desembocar na divina providência. A ação livre, no final, se reconhece como
obra de Deus, decisão como inspiração, risco como divina necessidade. Na espontâ-
nea rend.ncia ao saber do próprio bem acontece o bem de Deus. Só nessa óltima
perspectiva pode-se falar do bem no agir histórico. Mais tarde, teremos que retor-
l]li.r a esse ponto de nossas reflexões.
Antes, porém, é preciso dar espaço a uma questão decisiva e fundamental
para o esclarecimento: como se relacionam livre responsabilidade e obediência? À
primeira vista, parece que tudo aquilo que foi dito sobre a livre responsabilidade s6
encontra aplicação de fato onde um ser humano ocupar na vida; como costumamos
dizer, "um cargo de responsabilidade", onde, portarito, devem ser tomãdas decisões
prdprias do maior alcance. Mas que é que a rotina de trabalho dimo do bóia-fria, do
operitrio, do humilde funcioruhio, do recruta, do aprendiz e do aluno tem a ver com
111ponsabilidade? Com o granjeiro, o caso já é diferente, como também no caso do
empresmo, do poHtico, governante, comandante, mestre, professor, juiz. Mas
quanto há de técnica e obrigatoriedade e quanto de decisão realmente livre em suas
vidas? Assim, parece que tudo o que dissemos sobre a responsabilidade no fim vale
16 para um diminuto grupo de pessoas e, mesmo para elas, s6 em poucos momentos
de suas vidas, e que, por isso, para a grande maioria das pessoas dever-se-ia falar de
obediência e dever em lugar de responsabilidade. Em conseqüência, surge uma ética
para os grandes, poderosos e mandatários e uma outra para os pequenos, fracos e
IUbaltemos. Lá responsabilidade - aqui obediência, lá hõerdade - aqui servilismo.
Nao há dtivida que na ordem social moderna, especialmente na Alemanha, a existên-
ula do indivíduo es~ tão claramente delimitada, regulamentada e, com isso, assegu-
nda, que s6 poucos têm o privilégio de respirar o ar livre do vasto campo de gran-
doa decisões e de conhecer o perigo inerente à ação própria respo•veL O enqua-
dramento obrigatório de nossa vida numa formação e carreira profissional determi-
nada tomou-a relativamente segura em termos de ética; o ser humano enquadrado
.-te princípio desde a infância es~ castrado eticamente; roubaram-lhe a força ética
dativa, a liberdade. Nisso se revela uma aberração profundamente arraigada em
noasa ordem social moderna, que s6 pode ser combatida com a exposição clara do
f\andamental conceito da responsabilidade. Pela situação das coisas, o principal ma-
l rla:I de experiência referente à questão da responsabilidade deve ser buscado junto
"'* 81'811des líderes políticos, empresitrios e chefes militares. Pois, entre os outros, os
poucos que, em meio às pressões, da vida cotidiana, arriscam uma postura livre e

139
responsável são sufocados pela m~uina da ordem social, da regulamentaÇão geral.
Seria um erro, mesmo assim, ver a questão sob esta perspectiva apenas. Na
verdade, não há uma s6 vida que não pudesse conhecer situação de responsabilidade,
e isso na sua versão mais característica, no confronto com outras pessoas. Portanto,
mesmo ali onde a livre responsabilidade está mais ou menos excluída da vida profis-
sional e ptiblica, o relacionamento com o semelhante continua sendo um relaciona-
mento de responsabilidade, a começar com a fam1lia até o colega de trabalho, e a
assunção de autêntica responsabilidade nestes pontos é a dnica possibilidade sadia de
estender novamente o campo da responsabilidade até a vida profissional e ptiblica.
Onde quer que o ser humano se encontre com o ser humano, inclusive na vida pro-
fissional, surge legítima responsabilidade e nenhum regulamento pode eliminar essas
relações de responsabilidade. Isso não vale apenas para o relacionamento dos ~nju­
ges, de pais e fi1hos, para amigos, mas também para o mestre e seu aprendiz, o pro-
fessor e seu aluno, o juiz e o réu.
Mais um passo podemos dar. Responsabilidade não existe apenas ao lado
das relações de obediência, mas também tem seu espaço dentro destas. O aprendiz,
que deve obediência ao mestre, ao mesmo tempo tem livre responsabilidiide pelo seu
trabalho, sua prodtição
/
e com isso também pelo seu mestre; o mesmo vale para o
aluno, o estud~te, mas também para o empregado nalguma empresa e o soldado na
guerra. Obediêricia e responsabilidade interpenetram-se de tal forma que a respon-
sabilidade não começa s6 onde cessa a obediência; antes, presta-se obediência em
responsabilidade. Sempre haverá relações de obediência e dependência. Importa
apenas que não anulem, como hoje se vê acontecer amplamente, as responsabilida-
des. Para quem é socialmente dependente é mais diffcil saber-se responsável do que
para quem é socialmente livre. Contudo, uma relação de dependência em si de forma
alguma exclui a livre responsabilidade. Patrão e empregado podem e devem estar em
livre responsabilidade redproca, preservando a relação de obediência.
A tiltima razão disso reside no relacionamento dos seres humanos com
Deus que Jesus Cristo concretizou. Jesus está diante de Deus na qualidade de pessoa
obediente e livre. Como obediente, ele cumpre a vontade do Pai em cega obediência
à lei que lhe foi imposta. Como livre, ele confirma esta vontade de conhecimento
próprio, de olhos abertos e de coração alegre, recriando-a, por assim dizer, a partir
de si mesmo. Obediência sem hõerdade é escravidão, liberdade sem obediência é ar-
bitrariedade. A obediência disciplina a liberdade, a liberdade enobrece a obediência.
A obediência vincu1a a criatura ao Criador, a liberdade coloca a criatura em sua se-
melhança a Deus diante do Criador. A obediência mostra ao ser humano que ele tem
que ouvir o que é bom e o que Deus exige dele (Mq 6.8), a liberdade permite que o
próprio ser humano crie o bem. A obediência sabe o que é bom e o faz, a liberdade
arrisca agir e confia a Deus o julgamento sobre bem e mal. A obediência cumpre ce-
gamente, a hõerdade tem olhos abertos •. A obediência age sem perguntar, liberdade
pergunta pelo sentido. A obediência tem mãos amarradas, a liberdade é criativa. Na
obediência, o ser humano cumpre o Decálogo de Deus, na liberdade ele cria novos
decálogos (Lutero).
Na responsabilidade acontecem tanto obediência quanto liberdade. Ela
carrega em si essa tensão. Qualquer autonomia de uma contra a outra seria o fim da
responsabilidade. Ação responsável é, ao mesmo tempo, comprometida e criativa. A
autonomia ~ obediência levaria à ética do dever de Kant, a autonomia da liberdade,

140
à ética dos gênios. O ser humano do dever, bem como o gênio, trazem suajuatlflo1•
ção em si mesmos. O ser humano responsável, que está entre oompromodmonto e li·
herdade, que, como comprometido, tem que arriscar a ação em liberdade. nlo acha 1
sua justificação nem no compromisso. nem na liberdade, mas apenas naquele que o
colocou nessa situação humanamente imposs{vel e lhe cobra a ação. O respona'vt.I
entrega a si e sua ação a Deus.
Depois de termos tentado compreender a estrutura da viJa respo""4wl
através dos conceitos da representatividade, da conformidade com a realid•do, da
assunção de culpa e da liberdade. o desejo de maior concreti7.ação nos leva a per•
guntar se é possfvel definir com maior precisão o lugar em que se realiza vida ret·
ponsáveL A responsabilidade me coloca num campo de atuação sem frontciru ou
me restringe estritamente aos limites dados com minhas tarefas diárias concrotu?
Por que coisas devo assumir responsabilidade de forma autêntica e por quais nlo?
Faz sentido considerar-me responsável por tudo que acontece no mundo ou pouo
assumir o papel de mero espectador diante dos grandes acontecimentos no mUlldo,
desde que meu próprio diminuto espaço esteja em ordem? Devo esfalfar-me em zelo
impotente contra toda injustiça e miséria que há no mundo ou devo, em autocompla·
cente segurança, deixar que o mundo siga seu caminho enquanto eu não puder mu·
dar nada e já tiver feito o que era do meu dever? Qual é o lugar e quais são os liml·
tes da minha responsabilidade?

O LUGAR DA RESPONSABILIDADE

A Projissllo

Se aqui recorremos àquele conceito que teve uma impordnc.ia quaso que
fmpar para a história da ética, a saber, o conceito da profissão, antes de mais nada~
preciso esclarecer o seguinte: 1. Não estamos pensando aqui no conceito seculuif.a-
do da profissão no sentido de "área limitada de atividades" (Max Weber); 2. tam•
pouco pensamos no pseudoluteranismo que na idéia da profissão s6 via a jusdftoa·
ção e a sanção das ordens mundanas em si; 3. mesmo o conceito de profissão de
Lutero não deve ser identificado simplesmente com o do Novo Testamento. Com
muito arrojo, .eJe dá ao conceito neotestamentário um conte6do (1 Co 7:20) que,
mesmo sendo objetivamente justificado - em analogia à tradução de Rm 3.28 -.
transcende o significado semântico. Partimos, :Portantó~ do texto b1blico. 4. O oon·
ceíto da profisSão, assim como o da responsabilidade - que, 8Jiás, em nossa llnaua•
gem, não se identificam com o neotestamentário -, estão numa correspond!ncla tio
peculiarmente feliz, que esta muito sugere sua aplicação.
No confronto com Jesus Cristo o ser humano ouve o chamado de Deua e
nele o chamamento para uma vida na C0JD1>nhão de Jesus Cristo. O ser humano IX•
perimenta a graça divina que o reivindica. Não é o ser huoíano que procura a graça
em seu lugar - Deus "habita numã luz inacessível" (1 Tm 6.16)-, mas é a~· qPI
procura e acha o ser humano em seu lugar - "O Verbo se fez carne" (Jo 1.14) - e
'
141
reivindica-o exatamente aqui. Este é um lugar que, em todo caso e sob qualquer as-
pecto, ost4 onerado com pecado e culpa, seja o trono real, a sala burguesa ou o bar-
raco da ~ria. ~ lugar deste mundo. A visitação da graça ao ser humano aconteceu
na encarnação de Jesus Cristo e ela continua acontecendo na palavra de Jesus Cristo
trazida pelo Espírito Santo. O chamamento atinge o ser humano na condição de pa-
gão ou judeu, escravo ou livre, homem ou mulher, casado ou solteiro. Ele deve ouvir
e atender o chamado lá onde estiver. Não que através disso a escravidão, o matri-
mônio ou o celibato em si recebessem uma justificação; o ser humano pode perten-
cer a Deus tanto aqui como ali. S6 posso viver justificado perante Deus, seja como
escravo ou livre, casado ou celibatário, pelo chamado da graça que percebi em Jesus
Cristo e que me reivindica. Esta vida, vista a partir de Cristo, é doravante minha
profissão, vista a partir de mim mesmo é a minha responsabilidade.
Excluímos, com isso, dois funestos mal-entendidos: o do protestantismo
cultural e o monástico. Não é no fiel cumprimento de seus deveres profissionais
terrenos como cidadão, trabalhador ou pai de famOia que o ser humano desempenha
a responsabilidade que lhe foi imposta, mas ao perceber o chamado de Jesus Cris-
to. É verdade que este chamado também o remete aos deveres profanos, porém
nunca se esgota neles; antes, sempre os transcende, existindo antes e estando atrás
deles. No sentido neotestamentário, a profissão jamais é mera sanção das estruturas
do mundo como tais; o sim que diz a elas contém sempre o mais claro não, o mais
veemente protesto contra o mundo. O retomo de Lutero do mosteiro ao mundo, à
"profissão", é, em autêntico sentido neotestamentário, o mais rigoroso ataque e ar-
remetida contra o mundo desde os tempos do cristianismo primitivo. Dentro do
mundo se assume agora posição contra o mundo; a profissão é o lugar onde se res-
ponde ao chamado de Cristo e se vive de forma responsáveL Assim, a tarefa que me
é colocada na profissão é limitada; ao mesmo tempo, porém, a responsabilidade
diante do chamado de Jesus Cristo rompe todas as fronteiras.
O mal-entendido do monasticismo medieval não está na noção de que o
chamado de Jesus Cristo coloca o ser humano em luta contra o mundo, mas na ten-
tativa de achar um lugar que não fosse mundo e no qual, portanto, se pudesse res-
ponder mais adequadamente a esse chamado. Nessa vã tentativa de fugir do mundo
não se leva a sério o não de Deus ao mundo todo, incluindo o convento, nem o sim
de Deus, no qual ele reconcilia o mundo consigo mesmo. qmseqilentemente, no
empreendimento monástico o chamado de Deus - também no não que contém em
relação ao mundo - é levado menos a sério do que na profissão mundana como Lu-
tero (não o pseudoluteranismo) a entendia. Que no caso concreto a resposta ao cha-
mado de Jesus Cristo também pode consistir no abandono de determinada profissão
em que não se pode mais viver de forma responsável, corresponde perfeitamente às
id€'1.3S de Lutero; s6 o pseudoluteranismo, com sua profissão de fé na santidade do
dever profissional e das ordens do mundo como tais, com sua crença de que o mun-
do é bom em toda parte, não pode aceitar esse pensamento. O protesto monástico
tem razão contra a desfiguração do conceito neotestamentário de profissão. Em seu
retomo para o mundo, Lutero visava a responsabilidade integral diante do chamado
de Cristo. Diante desta, a solução monástica peca em dois sentidos. Ela limita o es-
paço da vida realmente respo~vel aos muros do convento e s6 consegue entender
como falso compi;omisso esta vida em que o sim e o não, contidos no chamado de
Jesus Cristo para a existência no mundo, devem ser unidos na responsabilidade con-

142
ereta diante d~ chamado. Frente a C&Çl interPretação errõnea, Lutero deu à res-
ponsabilidade humana um sentido restrito, mas ao mesmo tempo fundamentado no
limitado; deu ao cumprimento da profissão terrena a consciência livre e alegre que
nasce da comunhão com Jesus Cristo. Portanto, a consciência lhnpa e livre não pro-
vém do cumprimento do dever profissional terreno como tal; aqui o conflito não
solucionado entre vmos deveres permanece uma ferida, e, em conseqüência, s6 po-
de haver sempre um compromisso com reservas. A consciência s6 pode ser livre na
ação concreta onde se exerce a profissão concreta na responsabilidade diante do
chamado de Jesus Cristo, a partir do conhecimento da encarnação de Jesus Cristo,
portanto. Somente o chamado de Cristo, atendido responsavelmente na profissão,
supera o compromisso e a consciência por ele tornada insegura.
Por conseguinte, o lugar da minha responsabilidade está definido, por um
Jado, pelo chamado de Jesus Cristo que me atinge.
A questão do lugar e dos limites da responsabilidade nos levou ao conceito
da profissão. Essa resposta s6 é vQida onde se entender a profissão simultaneamente
em todas as suas dimensões. A profissão é o chamado de Jesus Cristo no senti-
do de pertencer integralmente a ele. Ela é minha requisição por Jesus Cpsto no lu-
gar onde fui atingido por esse chamado; inclui trabalho objetivo e relações pessoais;
exige uma "mea limitada de atividades", porem jamais como valor em si mesmo, e
sim na responsabilidade diante de Jesus Cristo. Por causa desta relação com Cristo,
a "área limitada de atividades" está libertada de qualquer isolamento. As fronteiras
estão rompidas não apenas para o alto, por Cristo, mas também para fora. Se sou
médico, por exemplo, não sirvo apenas ao meu paciente, no caso concreto, mas ao
mesmo tempo ao conhecimento cientffico e com isso à ciência e ao conhecimento da
verdade em geral. Ainda que na prática eu preste o meu serviço no meu lugar con-
creto, à cabeceira do paciente, por exemplo, não perco de vista a responsabilidade
pelo todo e s6 assim cumpro realmente meu dever profissional. Em tudo isso pode
acontecer que, na qualidade de médico, alguma vez eu tenha que reconhecer e cum-
prir minha responsabilidade concreta não mais à cabeceira do meu paciente, mas,
por exemplo, manifestando-me publicamente contra medidas que ameaçam a ciência
médica ou a vida humana, ou a ciência como tal. Exatamente porque profissão é
responsabilidade e porque responsabilidade é uma resposta global do ser humano
todo a toda a realidade, não se admite uma ignóbil autolimitação ao mais estrito de-
ver profissional. Tal limitação seria irresponsabilidade. Quando e em que extensão
um rompimento da "área limitada de atividades" faz parte da profissão e da res-
ponsabilidade perante os semelhantes, não pode ser definido em disposições legais
por causa do caráter da livre responsabilidade. S6 poderá acontecer depois de séria
ponderação dos deveres profissionais imediatos, dos perigos da interferência em
responsabilidade alheia e por fim do todo que está em jogo; será então uma respon-
sabilidade livre diante do chamado de Jesus Cristo, a qual me pode conduzir para
um ou outro lado. A responsabilidade na profissão segue apenas ao chamado de
Cristo. Há uma limitação falsa e uma correta, uma falsa e uma correta expansão da
responsabilidade, há um rompimento entusiútico de todos os limites e uma coloca-
ção legalista de limites. Por mais ditlcil ou impossfvel que seja avaliar de fora se num
caso concreto está-se agindo de forma responsável ou entusiástica, respectivamente
legalista, existem padmetros para o auto-exame; mesmo esses, no entanto, não po-
dem levar à plena certeza quanto ao próprio eu. Tais parâmetros são: nem a limita-

143
çlo, nem a expansão da responsabilidade devem fundamentar-se em princfpios; sua
fundamentação só pode ser o chamado concreto de Jesus. Quando, pelas peculiari-
dades de meu cadter, me conheço como reformista, sabichão, fanático e desmedido,
esta.rei correndo o perigo de expandir arbitrariamente a minha responsabilidade e de
confundir minhas tendências naturais com o chamado de Jesus; quando me conheço
como prudente, medroso, inseguro e legalista, terei que tomar cuidado para não
considerar a limitação da minha responsabilidade a uma área restrita como chamado
de Cristo; enfim, jamais o olhar para mim mesmo pode libertar-me para a responsa-
bilidade autêntica, mas tão-somente o olhar para o chamado de Cristo.
Nietz.Sche, sem sabê-lo, falou de acordo com o espírito do Novo Testa-
mento quando arremeteu contra a desfiguração legalista e caturra· do mandamento
do amor ao pr6ximo com as palavras: "V6s vos acotovelais em tomo do pl'Óximo e
tendes palavras bonitas para isso. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é um
amor próprio de má qualidade. Fugis de vós mesmos para abrigar-vos junto ao pró-
ximo e disso quereis fazer uma virtude; mas eu conheço vosso altnú.smo. (•••) Re-
comendo-vos o amor ao proximo? Antes vos recomendo fugir do proximo e amar o
distante!" Atr'8 do próximo que o chamado de Jesus nos recomenda es1', também
para Jesus, o distante, a saber, Jesus Cristo mesmo, o próprio ~us. Quem não sou-
ber desse distante atr'8 do proximo e desse distante, ao mesmo tempo, como o pró-
ximo, não serve ao semelhante, mas a si mesmo, esse foge do espaço aberto da res-
ponsabilidade para a estreiteza do cômodo cumprimento do dever. Também o man-
damento do amor ao proximo não significa, portanto, uma limitação legalista da res-
ponsabilidade ao próximo em termos de proximidade ffsica, de classe, profissão ou
parentesco. O proximo pode muito bem ser alguém que está distante, e este, por sua
vez, o meu próximo. Quando, em 1931, nos Estados Unidos, por um terrível erro
jurídico, nove jovens negros cuja culpa não pôde ser provada foram condenados à
morte pelo estupro de uma jovem branca de reputação duvidosa, houve uma onda de
indignação que se manifestou em cartas abertas das mais respeitadas personalidade$
européias. Um cristão, preocupado com o assunto, perguntou a um importante líder
eclesi'8tico da Alemanha se também ele faria ouvir sua voz no caso; este se recusou,
invocando a doutrina "luterana" sobre a profissão, isto é, a limitação de sua res':" ·
ponsabilidade. De fato, os protestos vindos do mundo inteiro levaram finalmente
à revisão do veredito. Entendemos aqui, a partir do chamado do prdprio Jesus
Cristo, a palavra de Nietzsche: "Meus irmãos, não vos recomendo o amor ao proxi-
mo; sugiro-vos amar o distante"? Dizemos isso sem chegar a um veredito no caso
relatado. Dizemo-lo para manter os limites abertos.
A instrução da Bfblia no sentido de fazer o que vem à mão (Ec 9.10), de
ser fiel nos detalhes (Lc 16.10; 19~17), de cumprir os deveres domésticos antes de
assumir outros mais abrangentes (1 Tm 3.5), de não se intrometer em oficio alheio
(1 Pe 4.15), não pode ser ignorada. Mesmo assim, estas recomendações permanecem
vinculadas ao chamado de Jesus Cristo e de forma alguma implicam uma delimita-
ção legalista da livre responsabilidade diante deste chamado. No Kirchenkmnpf ale-
mão freqüentemente um pastor se recusava a assumir publicamente posição a favor
dos irmãos angustiados e dos perseguidos de todos os tipos porque sua própria co-
munidade ainda não fora atingida pelo problema, e isso não por covardia ou falta de
disposição para engajar-se, mas tão-somente porque via nisso uma transgressão ina-
ceitável da sua competência profissional de assistir sua comunidade nas provações e

144
ang6stias concretas desta. Quando, mais tarde, _a própria comunidade foi atingi.da,
muitas vezes houve atitudes de vigorosa e libérrima responsabilidade. Também isso
não está dito aqui para antecipar um julgamento, mas para manter o mandamento do
amor ao próximo aberto contra limitações errôneas e preservar, assim, a liberdade
evangélica para o conceito de profissão.
Mas a lei de Deus revelada no Decálogo e os mandatos divinos do matri-
mônio, trabalho e autoridade não estabelecem limites intransponíveis a toda ação
responsável na profissão? Qualquer rompimento desses limites não significaria um
atentado à vontade revelada de Deus? Aqui se recoloca com extrema acrimônia o
problema de lei e liberdade, ameaçando introduzir uma contradição na própria von-
tade de Deus. Certamente não pode haver ação respon8'vel que não leve em conta,
com a maior seriedade, os limites postos pela própria lei de Deus, porém a ação res-
ponsável jamais há de separar esta lei do seu legislador. Ela poderá conhecer o Deus
que mantém este mundo em ordem através da sua lei somente como o ~entor em
Jesus Cristo, reconhecerá Jesus Cristo como a derradeira realidade, em relação à
qual é responsável, e precisamente da parte dele experimentará a libertação da lei
para a ação responsáveL Por causa de Deus e do próximo, isto é, por causa de Cris-
to, há uma liberdade com respeito à santificação do sllliado, à honra devida aos pais,
a toda a lei divina, uma liberdade que transgride essa lei apenas para colocá-la em
vigor novamente. A suspensão da lei s6 pode servir ao seu verdadeiro cumprimento.
Na guerra, por exemplo, mata-se, mente-se e desapropria-se unicamente para faz.er
com que a vida, a verdade e a propriedade entrem em vigor novamente. A trans-
gressão da lei deve ser entendida em toda a sua gravidade - "Bem-aventurado és, se
sabes o que fazes; mas, se não o sabes, és maldito e transgressor da lei." (Lc 6A no
c6dice D.) Se a ação provém da responsabilidade ou de cinismo s6 pode eviden-
ciar-se se a culpa objetiva da transgressão da lei for reconhecida e assumida e se
justamente na transgressão se realiza a verdadeira santificação da lei. Destarte, a
vontade de Deus é santificada na ação proveniente da liberdade. Por se tratar duma
ação que procede da liberdade, o ser humano não se consome em conflitos insuperá-
veis; pelo contrário, na certeza e unidade consigo mesmo, pode faz.er o incrível:
santificar verdadeiramente a lei através da sua transgressãoS.

8 N. do E.: Aqui estava planejada uma continuação sob o título ..Amor e responsabilidade".
Numa folha de anotações achamos, sob o título ..Responsabilidade": 1. O termo em sentido
abrangente. 2. A estrutura da vida responsável: a) liberdade, representação, b) conformidade
com a realidade, e) assunção de culpa, imputar a si mesmo, ser indivíduo, d) liberdade, rilco,
entrega da ação, a questão do sentido. 3. O espaço da responsabilidade: a) os mandamentoe, b)
os mandamentos divinos, e) a profissão concreta, d) a responsabilidade livre, espondnea o...,
sumida (supenção dos respectivos espaços em profundidade e extensão; sou rcepondvol por
qu!'l). 4. Contradição e unidade na responsabilidade: a) amor e responsabilidade, b) polftioa o o
ee:nnão do monte, e) Cristo, a lei ~tal da histthia, d) a forma universal do amor.

145
VII

O "ÉTICO" E O "CRISTÃO" COMO TEMA

A Aurorização para o Discurso Ético

Uma ética cristã deverá iniciar com a pergunta se e em que extensão o "é-
tico" e o "cristão" podem ser tratados como tema. Isso não é tão evidente como po-
deria parecer diante do desaimombro com que aconteceu e acontece. Na verdade, só
se pisa o terreno da ética cristã propriamente dita onde se reconheceu como é ques-
tion4vel fazer do "ético" e do "cristão" assunto das próprias reflexões, discussões

H'
ou até de tratados científicos,
uma maneira de tratar do "ético" que é inacei~vel para a ética cristã.
O sutil e irônico gesto de resistência contra qualquer tentativa de fazer do ético mn
tema .autônomo para discussão, como Fr. Th. Vischer coloca na boca de "Aucb
Einer": "As coisas morais dispensam comentmos" talvez revele, dentro de certos
limites, mais discernimento em relação à ~ncia do "ético" do que muito manual
de ética cristã. Nlo se trata, apenas, da defesa contra a palavra - falada ou escrita -
demasiadamente sonora e importuna, mas tamb6m do respectivo processo interno.
"O mais elevado sempre é evidente por si mesmo. ~ preciso cuidar da base, dos pré-
requisitos", diz "Aucb Einer". A grande decisão, a grave situação, "o andar de ci-
ma" (Vischer) - tudo isso está claro sem muitas palavras, evidente, simples; compli-
cado, problemtico e carente da maior atenção é o "andar inferior dos cruzamentos
desarmônicos", das desordens e dos acasos. "Não os posso calcular nem ordenar;
andam para todos os lados, são indefiníveis, não há plano para o que não tem plano,
não há sistema para o que é assistem'tico", suspira "Aucb Einer''. Em outras Pala-
vras: é o espaço do cotidiano que cria as principais dificuldades; é preciso viven-
m-lo uma vez para sentir quão inadequada, impertinente e inapropriada é a procla-
mação de princípios morais genéricos diante dele. Que eu ajude a quem está em ne-
cessidade, que eu impeça quem judia de animais de fazê-lo, não é problema para
"Auch Einer" - "é evidente por si mesmo" -. mas bem outra coisa é dar conta das
pequenas coisas do cotidiano, por exemplo da "cara virada", da "malícia", "da ten-
denciosidade do objeto", enfim, dos incontáveis atrapalbos do nobre e básico pelo
aecundúio, insignificante, resistente e externo.
O "dtico" como tema tem seu detei'minado tempo e lugar, isso porque o
ser humano é uma criatura viva e mortal num ~undo finito e destrutfvel, e não es-
sencial e exclusivamente um estudante da ética. Faz parte das grandes ingenuidades
- melhor se diria: tolices - dos teóricos da ética, ignorar isso propositalmente e par-
tir da ficção de que o ser humano, em todo e qualquer momento de sua vida, tenha

146
que fazer opções derradeiras e infinitas, que cada momento de sua vida devesse ser
uma decisão consciente entre o bem e o mal. que diante de qualquer ação humana
estivesse a placa, escrita com letras bem claras por uma divina polfcia, dizendo
"permitido" ou então "proibido", que o ser humano devesse fazer constantemente
algo decisivo, servir a uma causa superior, cumprir um derradeiro dever. Isso é des·
consideração da existência humana hist6rica, em que tudo tem seu tempo (Ec 3):
comer, beber, dormir, assim como decisão e ação conscientes, trabalho e descanso,
realizar um prop6sito e estar aí sem prop6sito, cumprir deveres e seguir tendências,
ambicionar e brincar, renunciar e alegrar-se. É a insolente desconsideração desta
existência de criatura que acaba levando à mais deslavada hipocrisia ou à loucura,
que faz do teórico da ética um perigoso atormentador e tirano, um palhaço e uma
figura tragicômica. ...
O assim chamado "fenômeno ético" - ou seja, a vivência do dever, a de·
cisão consciente e básica entre algo bom em princfpio e algo mau em princfpio, a
orientação da vida de acordo com uma norma suprema, o conflito ético e sua solu-
ção - por certo tem seu lugar necessmo e sua hora na existência humana, e por que
não haveria de poder e dever se tomar tema, dentro dessas limitações? Agora, a
correta limitação de espaço e tempo é de importancia decisiva, se quisermos evitar
aquela doentia sobrecarga da vida causada pelos preceitos éticos, aquela fanatização
anormal, aquela completa moralização da vida que leva a uma atitude julgadora ou
admoestadora que se manifesta em constante interferência, intrometimento e tenta-
tiva de correção dos processos da vida concreta, não sujeita a princfpios. A compre-
ensão do "fenômeno ético", no sentido acima exposto, seria radicalmente equivoca-
da se entendêssemos o carater incondicional da vivência do dever no sentido de uma
reivindicação exclusiva de totalidade. Com isso, seria ferida e destruída a integrida-
de cri.aturai da vida. A limitação do fenômeno ético ao seu espaço e tempo não sig-
nifica sua suspensão, mas, pelo contrário, sua entrada em vigor. Não se caça tico-ti-
co com canhões.
O fenômeno ético é um acontecimento-limite, tanto no que se refere ao
contei1do quanto em seu aspecto vivencial. O "dever" destina-se, tanto pelo conteti-
do como pela vivência, a um lugar ou uma situação em que algo não existe, seja por-
que não pode existir, seja porque não é desejado. O fato de eu viver na comunhão
de uma famOia, de um matrimônio, numa ordem de trabalho e de posses, é primor-
dialmente uma vinculação livremente assumida, na qual o "fenômeno ético", o dever
em seus aspectos objetivo e subjetivo, não aparece, dormita. Só quando a comunhão
se destroça ou a ordem é ameaçada, o dever pede a palavra, retirando-se e calando
ap6s o restabelecimento da ordem. Contudo, s6 silencia em sua forma aguda como
exigência e acusação concretas. Como experiência - nascida da desintegração con-
creta de uma comunhão - de que qualquer comunhão propriamente dita es1' sempre
em processo de desintegração, doravante o dever acompanha a vida humana na qua-
lidade de consciência dos pr6prios limites, como autolimitação, como resignação ou
"humildade" no sentido profano do termo; é a analogia profana da doutrina do po-
cado original. Mas, tanto na sua versão aguda como permanente, o dever caracteriza
unicamente uma situação-limite, e significaria a dissolução do dever em sua ess&lcia
se dum conceito-limite se fizesse um método pedagógico. O dever é sempre uma
palavra "derradeira". Onde for transformado em tema, deve ser preservado sempre
esse carater do qualitativamente "derradeiro"; em certos casos, esse aspecto podo

147
ser preservado melhor, não o transformando em tema, por ser coisa que "se entende
por si mesma". Onde o dever, como aquilo que se entende por si mesmo, se trans-
fonnar em tema e objeto de discussão, facilmente perderá o seu caráter de derra-
deiro para se constituir em algo pemlltimo, num método.
Não há dtivida de que ocorrem situações e épocas em que a moralidade não
é algo natural, seja porque não é praticada, seja porque se tornou questionável em
seu contetido. É nesses tempos que o ético se constitui em tema. Por um lado, isso
provoca uma refrescante simplificação dos problemas da vida, uma redução a linhas
mestras, uma obrigação de adotar claras posturas e decisões de foro íntimo; sob tais
circunstâncias, a discussão estará marcada, mais do que em outras ocasiões, por
mentalidade, juízos de valor, convicções, afirmações e pela explosão de natural
indignação e irrestrita admiração. Acontece uma redução geral ao essencial e, com
isso, ao simples; o interesse pelos processos reais da vida em seus mtiltiplos aspectos
e suas ambigüidades cede a primazia às questões de princfpio. Sociologicamente,
isso implica na desautorização duma camada superior de postura preponderante-
mente intelectual, relativista e individualista e da formulação do tema ditada por
essa camada. O assunto de discussão pdblica agora se tornou acessível a todos, de
forma que cada um pode participar. Basta mentalidade íntegra para criar solidarie-
dade diante da corrupção intelectual e material. Por mais purificadoras, renovadoras
e necessárias que sejam para a comunidade humana tais épocas em que o ético se
constitui em tema, elas só podem ser consideradas exceções necessárias, em conso-
nância com o caráter dessa temática. Ao vigorarem além do tempo necessário, tor-
nam-se fatais sob mdltiplos aspectos: o ético deixa de ser compreendido como pala-
vra "derradeira", e em seu lugar surge a moralização vulgar e um banal controle pe-
dagógico sobre a vida toda; monotonia e uniformidade dominam todas as questões
da vida; as funções culturais são submetidas a um primitivismo trivial; impõe-se um
nivelamento intelectual e social. A perda decisiva, com isso, não é só da riqueza da
vida, mas justamente também do ético em sua essência. Aos tempos em que o ético é
e tem que ser assunto dominante devem seguir-se outros em que a moralidade seja
evidente por si mesma, tempos em que a gente se movimenta não apenas nos extre-
mos, mas no centro e na plenitude da vida cotidiana. Isso vale tão bem para a vida
individual como para a comunidade humana. Sob o aspecto sociológico, o esforço
obstinado de manter o assunto ético em evidência além do tempo cabível nasce do
desejo insatisfeito dos heróis da mentalidade, mas inaptos para a vida, no senti.do de
perpetuar sua influência. Contudo, eles perderam a oportunidade que a história lhes
ofereceu, em épocas de reestruturação social sob o impacto do tema ético, de se
qualificarem não apenas por mentalidade, mas também por atuação. Agora que a
moralidade mais uma vez se "entende por si s6" e não é mais o grande tema, vêem
definhar suas chances de vida, insistem no tema ético e, com isso, excluem-se defi-
nitivamente da dinâmica da vida. O que se diz aqui da sociedade humana tem sua
analogia perfeita na vida individual. A convulsiva persistência no tema ético, que
assume a forma da moralização da vida, é conseqüência do medo da riqueza da vida
diária e da consciência de inaptidão para ela; é a fuga para uma posição à margem da
vi.da, a partir da qual s6 se consegue olhar para a vida com arrogância e, ao mesmo
tempo, com inveja. Deveria estar claro, com isso, que, junto com a vida, se perdeu
também o ético em sua essência, exatamente porque se tornou tema de maneira er-
rada.

148
Que é, afinal, uma "ética", que, de acordo com sua definição concoptual,
faz do ético seu tema, e o que é o "teórico da ética"? Inicialmente é mais fdcil dizer
o que ética e estudioso da ética não podem ser: uma ética não pode ser um livro em
que esteja escrito como é que tudo deveria ser no mundo, mas lamentavelmente não
é, nem pode o estudioso da ética ser um ser humano que sempre saiba melhor do que
os outros o que e como algo deve ser feito; uma ética não pode ser uma obra do
consulta para uma conduta moral garantida e irrepreensível, nem pode o estudioso
• da ética ser o competente avaliador e juiz de toda ação humana. Uma ética não podo
1
ser uma retorta para a produção do ser humano ético ou _cristão, e seu estudioso não
1 pode ser a personificação e o modelo de uma vida essencialmente moral.
A ética e o estudioso da ética não se imiscuem constantemente na vida,
mas chamam a atenção para a perturbação e a interrupção que toda vida experi-
menta pelo dever, a partir de seu limite. A ética e seu estudioso não querem expor o
ser bom em s4 como fim em si mesmo, portanto, mas, justamente ao falarem rigo-
rosamente a partir do "ético", do acontecimento-limite do dever, querem auxiliar
a aprender a convivência. Aprender a conviver dentro dos limites do dever, não es-
tar fora da dinâmica da vida, como espectador, avaliador ou árbitro; conviver não
por motivo do dever, mas a partir da abundância dos motivos vitais, a partir do que
é natural e cresceu com naturalidade, do que se aceita e quer espontaneamente, não
em carrancuda hostilidade contra qualquer dinâmica da vida, contra toda fraqueza e
falta de ordem, não em desconfiada e controladora avaliação de tudo o que é ou de-
veria ser, não em receosa subordinação de toda coisa natural aos princípios do de-
ver, do livre ao necessmo, do concreto ao genérico, do que carece de finalidade a
um propósito - de forma que, por fim, em grotesca extrapolação dos limites do "éti-
co", o tlltimo capítulo duma ética cristã tem que levar o título "O lazer moralmente
permitido" (W. Hermann)I Conviver dentro dos limites, mas não pelos motivos do
dever, dentro da abundância das tarefas e processos concretos da vida com sua infi-
nidade de motivos.
Protelamos muitos problemas já levantados e atemo-nos, por enquanto, à
questão que até aqui nos orientou, qual seja, a definição de tempo e lugar do ético,
acrescentando ao que foi dito mais alguns conceitos.
Um discurso ético 'sem tempo e lugar carece de autorização concreta, coisa
que todo discurso ético autêntico necessita. É a declamação pretensiosa, juvenil e
usurpadora de princípios éticos que conflita com o caráter do discurso ético autênti-
co, mesmo que seja apresentada com a maior seriedade subjetiva e ainda que seja
mais fácil sentir do que definir este conflito. Muitas vezes não há como questionar a
exatidão da abstração, da generalização e das teorias; apesar disso, falta-lhes o peso
específico de definições éticas. As palavras estão certas, apenas não pesam.' No fun-
do não serão sentidas como algo que ajuda, mas como algo caótico. Por razões obs-
curas, mas que se impõem imperiosamente, não é admissível, não está em ordem,
não é apropriado que um jovem ensine princípios éticos a um grupo de homens ex-
perientes e idosos; o jovem sempre de novo terá a desagradável, surpreendente e in-
compreensível experiência de que sua palavra se perde no.vazio, enquanto a de um
ancião, ainda que não tenha outro conteúdo, tem peso e é acatada. Será sinal de
maturidade ou imaturidade, se a partir desta experiência se reconhece ou não que
aqui não se trata da velhice presunçosa e teimosa, da temerosa repressão da juven-
tude, mas da preservação ou t~gressão de uma lei básica da ética. O discurso éti-

149
co necessita duma autoridade que o jovem simplesmente não pode conferir a si
mcsmo nem pelo mais puro entusiasmo de convicções éticas. Para o discurso ético,
nlo importa apenas o conte1ido correto, mas também a autoridade concreta para
detenninada afirmação; importante não é apenas o que se diz, mas também quem o
diz.
Em que consiste esta autoridade, quem a recebe e quem a concede? Faz
parte da essência desta autoridade - e somente dentro dela o discurso ético é posm-
vel - que ela significa uma limitação concreta das afirmações éticas. Não se pode
falar de ética no Vltcuo, na abstração, mas apenas no comprometimento concreto. O
discurso ético não é, portanto, um sistema de enunciados corretos em si, de que
quaJquer um, a qualquer momento, em qualquer parte pudesse dispor, mas está de-
cisivamente condicionado a pessoas, épocas e lugares. Nessa determinação, o ético
não perde importância; antes, é justamente nisto que está sua autoridade, seu peso,
enquanto que na falta de determinação e na disponibilidade genérica do ético reside
sua fraqueza e impotência. '
Ninguém pode conferir a si mesmo autoridade para o discurso ético; ela é
dada, atnbuída ao ser humano, não por causa de méritos e qualidades subjetivas, em
primeira linha, mas por causa da posição objetiva que ocupa no mundo. Assim, a
autorização para o discurso ético cabe ao ancião, não ao jovem, ao pai, não ao filho,
ao patrão, não ao empregado, ao professor, não ao aluno, ao juiz, não ao réu, à au-
toridade, não ao sddito, ao pregador, não ao membro da comunidade. É a tendência.
de cimo. para baixo, tão abominável aos sentimentos modernos, mas essencialmente
inerente ao ético, que aqui se manifesta. Sem esta estrutura objetiva de hierarquia e
sem a coragem de assumir posição superior - coisa que o ser humano moderno per-
deu completamente -, o discurso ético se esvazia em generalidades e falta de objeto
e perde sua essência.
O ético não é, portanto, um princípio que nivelasse, suspendesse e rom-
pesse toda ordem humana; pelo contrmo: já contém Üma determinada ordem da so-
ciedade humana, compreendendo determinadas relações sociológicas de autoridade.
S6 dentro dessas ele se manifesta e recebe a competência concreta que lhe é essen-
cial. F.ssas colocações contrariam frontaJ,mente a concepção do ético como um prin-
cípio racional de validade universal que inclui a suspensão do concreto, de toda de-
terminação em termos de tempo e lugar, de todas as disposições de ordem e autori-
dade, bem como a proclamação da igualdade de todos os seres humanos com base na
racionalidade inata do gênero humano. É preciso estar consciente - e a história dos
dltimos 150 anos mostrou-o com suficiente clareza - de que o verdadeiro objetivo
dessa nova concepção do ético, qual seja, a superação duma forma de sociedade
fossilizada, caracterizada pelo confronto hostil de privilegiados e desprivilegiados, a
favor duma confraternização geral dos seres humanos, não s6 não foi atingido, mas
provocou exatamente o contrmo do que se propunha. O ético, na qualidade de
grandeza formal, universalmente válida e racional, levou forçosamente, por falta de
toda e qualquer concretização, à total atomização da sociedade humana e da vida in-
dividual, ao individualismo e subjetivismo sem limites. Onde se formula o ético abs-
traindo de qualquer localização no tempo e no espaço, ignorando a questão da com-
petência e negligenciando a concretização, a vida se decompõe numa quantidade in-
finita de átomos de tempo sem nexo entre si, da mesma forma como a sociedade
humana se decompõe em desconexos átomos de racionalidade. Em princípio não faz

150
diferença entender o ético como grandeza de validade universal em sentido pura-
mente formal ou como a decisão "existencial" do indivíduo a ser tomada em cada
"momento" de forma completamente nova. Subjacente está a destruição do ético
pela perda de sua determinação concreta. O caso é que o ético não é essencialmente
um princípio racional formal, mas uma reJação concreta de mando, tal como a razão
formal não é um princípio de aglutinação, mas de fragmentação social; o relaciona-
mento comunitmo s6 consiste nas concretas e infinitamente variadas :relações de
responsabilidade das pessoas entre si.
Por outro lado, as conquistas do ilnmiNsroo para a compreensão do ético
não devem ser jogadas fora, simplesmente. Numa interpretação polêmica, o racio-
nalismo tem razão contra um sistema em que a sociedade se dividia em privilegiados
e desprivilegiados. O c!tico, de fato, tem algo a ver com o universal e humanamente
racional e, na verdadQ, sua inerente tendência de cima para baixo nada tem a ver
com sanção de privilégios. O iluminismo tem plena e irrestrita razão ao afirmar que
a ética não se refere a uma ordem social abstrata, a representantes de determinadas
camadas sociais, a "alto" e "baixo" em si, mas a seres humo.nos; a partir daí ele tem
razão em defender com tanto pathos a dignidade igual dos seres humanos diante do
ético. Em erro ele incorre apenas onde, excedendo estas colocações polêmicas, torna
a .fazer do ser humano uma abstração, com a qual sai a campo contra toda ordem
humana, em nome da igualdade e dignidade humanas; erra quando faz da razão -
cuja essência consiste na livre percepção e aceitação da realidade, e isto significa
aqui de afirmaç&s éticas concretas - um princípio formal e abstrato que dissolve e
decompõe todos os conteddos. Apesar disso, é importante lembrar o corretivo pro-
poICionado pelo iluminismo diante de todas as tentativas de usar indevidamente o
édco para sancionar privilégios.
Contudo, o receio de abuso do ético não nos deve levar a sonegar sim-
plesmente a tendência de cima para baixo que é inerente ao ético. Não há como es-
quivar-se do fato de que o ético exige re]aç&s claras de hierarquia. Superior e in-
ferior não podem ser permutados, simplesmente, em função do ostjlante valor do
desempenho e maneira de ser subjetivos. A condição de superior não consiste no
valor subjetivo daquele que está em cima ;a sua legitimação provém de uma incum-
bência concreta e objetiva. O mestre artesão continua sendo mestre também para
seu oficial talentoso e o pai continua sendo pai também para o filho querido e com-
petente. A competência para o discurso .ético continua sendo do mestre e do pai, in-
dependentemente do aspecto subjetivo da questão. A competência não é da pessoa,
mas do otlcio.
Isso pressupõe uma certa durabilidade e estabilidade das relações de auto-
ridade para o discurso ético. O autêntico discurso ético não se esgota numa Wüca
proclamação; exige repetição, constância e tempo. Este é o fardo, mas também a
dignidade e credibilidade do discurso ético. Pronunciamentos isolados nada signifi-
cam. A competência para o discurso ético revela-se na fidelidade, na comprovaçlo,
duração e repetição. Na pergunta pela causa da competência para o discurso 6tico,
no entanto, já excedemos o ético propriamente dito.
Tudo isso s6 é possfvel pela aprovação interior e decidida manutenção das
posições, seja superior ou inferior. Ambas só podem existir juntas. S6 atrav~ da
aprovação e manutenção da posição superior acontece uma aprovação e manutenção
de posição inferior e vice-ve1'88:e Onde não se ousa mais assumir posição superior, e

151
onde nlo se ..acha mais necessmo" ser inferior, onde a posição de mando só pro-
11um 1ua fundamentação a partir de baixo - onde o pai deriva sua autoridade da
~a dos filhos ou o governante da sua popularidade -, e onde, conseqüente-
mente, toda inferioridade sempre é vista apenas como postulação ~ superioridade,
oomo carga explosiva contra toda autoridade, não surge mais um discurso ético le-
aftjmo, ali o caos ético irrompe. Com a exigência de aprovação interior e manuten-
glo du condições de superiOridade e inferioridade levantamos a pergunta decisiva
pelo fundamento da competência para o discurso ético, e com ela o ético excede o
IOU pr6prio 4mbito de maneira decisiva.

1 Enquanto é poss{vel entender o que foi dito até aqui - com plena razão,
dhfamos - como fenomenologia geral do ético, topamos agora com uma derradeira
1 queltlo decisiva que está além do ético-fenomenológico. Qual l o fundamento da
aomp1tlncia concreta para o discurso ltico? Duas respostas são imagináveis•. ini-
alllmcnte: ou a competência para o discurso ético é encontrada, como o faz o positt-
vlllno, sem qualquer tentativa adicional de explicação, na realidade dada. ou se

1 oonatr6i um sistema de ordem e valores dentro do qual se atribui competência ao


plll. mestre e governo. Está claro que a fundamentação positivista é chão pouco s6-
Udo, porque não dispõe de nenhum crit6rio além da realidade momentânea e sujeita
a constantes transformaçl'Ses. Além disso, a argumentação positivista não consegue
delimitar as diversas autoridades que se arrogam competência para o discurso ético,
corno, por exemplo, governo, pai, professor e Igreja; aqui, o fato do podu sent o
dnlco critério da compet2ncia. Assim sendo, o positivismo não consegue fundamen-
tar o 6tico. De mais proveito poderia parecer, h primeira vista, a tentativa de siste-
matização das autoridades e ordens, como sempre de novo foi empreendida por fi-
J&ofoa cristãos, no século passado especialmente pelo romantismo conservadot,
com brilhantismo por L Stahl, e no skulo XX pelo cat61ico M. Scheler. A vantagem
IObre o positivismo é evidente: aqui há crit6rios para a ordem das autoridades e suas
oompetAncias, ~m do positivamente existente. Estes critérios são de natureza reli-
P>aa. melhor <lidamos, de caráter cristão. No caso das autoridades concretas se
trata de instituições divinas, de manifeslaflJes diretas da vontade de Deus, que exige
~lo. Com isso se consegue uma certa independência do chio inst4vel da reali-
dade positivo-empfrica dada; por outro lado, no lugar do positivismo empfrico surge
um positivismo meta:tJsico-religioso, e já por esse motivo não se conseguirlo deli-
mitar as diferentes autoridades e competências sem arbitrariedades Ou a id&a do
Bltado, ou a da paternidade, ou a da Igreja se tomant principio dominante. O con-
flito que decorre da instituição divina direta das diversas autoridades costuma ser
reeolvido de modo um tanto arbitrfrio a favor da reivindicação de prJmazia de uma
dessas autoridades. Construções sistem4ticas ou dedução metaffsica levam à petrifi-
oaçlo da vida real. Portanto, a pergunta pelo fundamento da compot!ncia concreta
para o discurso ~ continua em aberto. Aberta fica tamb6n, com isso, a pergunta
por que o ético não deve ser entendido como princípio intemporal, mas sim como
pandeza determinada em termos de tempo e espaço. Aberta fica. enfim, a pergunta
~ que ponto e dentro de que limites o "~tico" pode tomar-se tema.

152
O Mandamento de Deus

Com isso somos conduzidos ao tinico objeto possível - situado além do ..,.
tico" - de uma "ética cristã'', a saber, ao "mandamento de Deus".
Talvez sem sabê-lo, topamos, no que foi dito sobre o "ético", com uma ro·
cha magmática, isto é, com um pedaço do próprio mandamento de Deus.
O mandamento de Deus é algo diferente do que aquilo que até aqui cha-
mamos de "o ético"; abrange a vida ~ não só é incondicional, mas também total.
Não s6 proíbe e manda, como também permite. Não compromete somente, mas
também hõerta, e faz isso comprometendo. Mesmo assim, o "ético" faz parte dele,
em sentido que ainda deve ser explicado. O mandamento la única autorização para
o discurso ltico. -
O mandamento de Deus é a requisição total e concreta do ser humano pelo
misericordioso e santo Deus em Jesus Cristo. Mesmo sem poder desenvolver já aqui
wna doutrina geral do mandamento de Deus, enunciamos os principais pontos refe-
renciais para o nosso assunto.
À diferença do ético, o mandamento de Deus não é o mais abrangente re-
sumo de todos os postulados éticos, não é o universalmente válido e intemporal em
contraste com o histórico-temporal, não é o princípio em vez do concreto, o indefi-
nido em lugar do definido. Se algo disso fosse, teria deixado de ser mandamento de
Deus, pois sempre estaria em nossas mãos fazer do indefinido o definido, do princí-
pio a aplicação, do intemporal o temporal; com isso, no momento crucial o fator de-
cisivo não seria o mandamento, mas nosso entendimento, nossa interpretação e
nossa aplicação; do mandamento de Deus far-se-ia, novamente, a escolha própria.
O mandamento de Deus é a palavra de Deus ao ser humano; tanto no con-
tetido como na forma, é palavra concreta ao ser humano concreto. O mandamento
de Deus não deixa ao ser humano espaço para aplicação ou interpretação, mas so-
mente para obediência ou desobediência. O mandamento de Deus não pode ser
achado e sabido fora de tempo e espaço; s6 pode ser ouvido na vinculação a tempo e
lugar. O mandamento de Deus é determinado, claro e concreto até os mfnimos de-
talhes, ou não é mandamento de Deus.
De modo tão determinado como Deus falou a Abraão, Jaeó e Moisés, de
modo tão determinado como Deus falou em Jesus Cristo aos discfpulos e através de
seus ap6stolos aos pagãos, desse mesmo modo ele fala a n6s, ou nãO fala de modo
algum. Será que isso significa que, através de alguma inspjração divina direta e es-
pecial, podemos saber o mandamento de Deus em cada momento de nossa vida, que
Deus, a cada momento e de forma inconfundível, coloca o "acento da eternidade"
(K. Heim) em determinada ação por ele desejada? Não, não significa isso, pois a
concreticidade do mandamento de Deus consiste em sua historicidade; n6s o encon-
tramos sob forma histórica. Significa isso que no fundo continuaria a incertem e
que estaríamos entregues às mais variadas pretensões das forças histdricas e que,
conseqüentemente, andamos às escuras em relação ao mandamento de Deus? Não,
não significa isso, porque Deus dá a conhecer o seu mandamento em forma hist6rica
determinada. A inevidvel pergunta onde, respec1ivamente sob que forma hist6rica,
Deus dá o seu mandamento, sera respondida inicialmente de forma tética, para
maior simplicidade e clareza, mesmo sob o risco de grosseiro mal-entendido: o man·
<lamento de Deus revelado em Jesus Cristo atinge-nos na Igreja, na familia, no tra•

153
'balho e atravls da autoridade.
Deve-se ter sempre em mente a pressuposição - mesmo que não de todo
compreonsfwl ainda- de que o mandamento de Deus sempre é e há de ser o man-
damento divino revelado em Jesus Cristo. Não há outro mandamento de Deus do
que aquele que foi :revelado, e por sua complacêncla revelado em Jesus Crism.
Isso significa: o mandamento de Deus não emana do mundo criado, mas
vem de cima para baixo. Não nasce das reais pressões dos poderes e leis terrenas so-
bre o ser humano - instinto de autopresca vação, fome, sexualidade, poder político -,
mas está além de todos eles, exigindo e julgando. O mandamento de Deus institui no
mundo um superior e inferior irrevogáveis, independentemente das relações de po-
der de fato existentes. Por esta instituição concede a compet&cia para o discurso
ético da qual falamos achna, ou então, de forma mais abrangente, a competência de
proclamar o mandamento divino.
Uma vez que o mandamento de Deus é aquele que foi reveJado em Jesus
Cristo, nenhuma das autoridades que receberam competência de anunciá-lo pode
tornar-se absoluta. Igreja, famOia, trabalho e governo s6 têm autori7.ação do alto
para o discurso na medida em que se limitam reclprocamente e, lado a lado e em
conjunto, cada um faz valer à sua maneira o mandamento de Deus. Nenhuma dessas
autoridades pode arrogar-se a exclusiva identificação com o mandamento de Deus.
A superioridade do mandamento divino evidencia-se precisamente no fato de que
coordena, coqjuga, une e confronta essas autoridades, e de que s6 nessa variedade
de reJaç&s e limitações concretas o mandameuto de Deus se impõe como manda-
mento revcJado em Jesus Cristo. .
O mandamento de Deus, tal qual revelado em Jesus Cristo, sempre é pala-
vra concreta dirigida a alguém, nunca um discurso abstrato sobre algo ou alguém.
Sempre é in1erpe]açlo e requisição, e isso de forma tão abrangente e determinante
que diante dele não há roam a liberdade da interpretação e aplicação, mas tão-so-
mente a liberdade da obediência ou desobediência.
O mandamento divino reve1ado em Jesus Cristo abrange a totalidade da
vida; não vigia apenas, como o ético, o limite intransponível da vida, mas é, ao mes-
mo tempo, o centro e a p)enitude da vida. Não é s6 dever, mas 1ambém permissão;
nlo prdbe apenas, mas liberta para a vida. liberta para a ação irrefletida. Não in-
te111wq>e apenas o curso da vida onde este se desvia. mas o acompanha e guia, sem
que isso 1cnha que ser tomado sempre conscicnf.e. O mandamento de Deus se torna
o guia difrio de nossa vida. Exemplificando: no relacionamento da criança com seus
pais, o mandamento divino não é somente advertência ameaçadora e julgadora con-
tra o filho que se rebela contra os progenitores, mas o encontra, acompanha e guia
nas incontáveis situações em que ama e respeita seus pais na vida diária. O manda-
mento de Deus não existe, apenas, na verslo solene do quarto mandamento, por
exemplo, mas também na versão das palavras, admoestações e exortações cotidianas
para algum comportamento e ação concreta dentro da comunidade familiar. Isso não
implica em fragmentação, mas, ao oontdrio, na abrangente unidade e na perfeita
coocreticidade do mandamento de Deus; sjgirifica que, através do mandamento, a
vida nlo se decompõe em inconbtveis ~mas recebe uma direção c1ara, uma
consdncia interior e uma proteção segura. O mandamento de Deus se toma o ele-
mento em que se vive, sem que a gent.e sempre se dê conta disso. O mandamento,
como elemento da vida. significa hõerdade de movimento e ação, liberdade do medo

154
de decJdir, de agir, significa certma. calma. confiança, pooderaçlo. paz. Nlo porque
nos limites da .minha vida houvesse um ameaçador "não de'Ve8", mas porque cu
mesmo aceito como sagradas institujç&s de Deus as malidades que encontro em
mmo e na plenitude da vida, a saber, pais. matrimGnio. vida. proprltdade, porque Yl·
vo e quero viver nelas - é por isso que honro os pais. santifico o matrimõoio, rea·
peito vida e propriedade aJheias. Só quando o mandamento não me ameaça apenai
como transgressor dos limites. mas quando, pelo seu conteddo objetivo, me conven·
oe, domina, est4 me livrando do medo e da incerteza da decisão. Se amo a mhlha
mulher, se acieito o matrlmõ.oio como blstituiçlo divina. estabelcoe-sc uma libcrdado
e oerteza interior de vida e ação no imbito do matrimõnio, que não vigia mais dee-
confiadameote cada passo e questiona cada ato. Enfio a divina proibição do adult6·
rio não é mais o centro em torno do qual gira todo o meu pensar e agir no matrimõ-
nio - como se sentido e 'objetivo do matrimlmi.o consistissem em evitar o ad~rlol
Antes, o matrimônio mantido e livremente assumido, a superação, portanto, da prol•
bição do adult.érlo, é a pressuposição do cumprimento da diYina missão do malrimb-
nio. Aqui, o mandamento de Deus se tomou pm ••• ºssfo de viver com liberdade o
oertem no matrimônio. ·
O mandamento de Deus é a petmisslo de viver como ser humano diante de
Deus.
O mandamento de Deus é permisslJo. Ele se diferencia de todas as leis hu-
manas pelo fato de que ordena a '/lberdade. Evidencia-se como mandamento ã
Deus pelo fato de que elimina ~ oont:radiçlo, de que toma possfvel o imposstvcJ.
de que aquilo que esd além de tudo que se possa ordenar, a Jibeldade. é seu objeto
propriamente dito. Tão longe vai o mandamento de Deus. e não deixa por menos.
Permissão e liberdade não significam que Deus enfim conceda ao ser humano um
espaço para agir conforme sua pr6prla esoolha. livre do mandamento de Deus; pelo
contdrio, essa permissão, essa h"berdade s6 nasce junto ao mandamento de Deua
e s6 se toma vi4vel atrav& do e no mandamento de Deus. Ela jamais est4 desvincu·
lada de Deus; pennanece permissão de Deus e como tal, e somente como tal, livra
do angustiante medo da competente decisão e ação e leva l certeza da atuação o
orientação pessoal pelo mandamento de Deus. A rejeição por Kant e Fichte do con•
ceito do "permitido" na ética é correta onde sob o termo "permitido" se entendo
aquilo que é neu1ro, independente e indiferente frente ao mandamento de Deus; er-
ra, no entanto, quando deseja eliminar o conceito da permissão de Deus, da permla-
slo que emana do mandamento divino, em favor dum puro conceito de dever, que
sempre deverá revelar-se muito restrito para abranger e sustentar a totalidade da
vida humana.
O mandamento de Deus permite ao ser humano viver como tal diante do
Dous. Como ser humano, não s6 como sujeito de decisões éticas e estudioso da ética.
O que isso abrange, podemos di7.er melhor com os versos de Mathias Claudius que
levam o título "O ser humano":

Concebido e alimentado
maravilbosameute pela mulher,
de vem, vê e escuta
sem do embuste nada notar;
cobiça e deseja,

155
• ldgrimas nlo pode evitar;
1ilrÇre7.ado e honrado,
~ve álegria e perigo; .
ore; duvida, sonha e ensina,
abredita em tudo e em nada;
édlfica e destrói;
)uclia-se sem parar;
dotme, vigia, cresce e <IC&b,a;·
tem cabelos escuros, CiéPQis gn.8albos;
e tudo isw ~va.
'se muito for, Oitenta anos.
'Então se junta aos ancestrais
~ nunca mais há de voltar.

A tempora6.dade, a riqueza e a caducidade da vida humana acharam aqui


uma formulação inigualável É desta vida que se trata quando falamos do ~®'"·
1montõ:& Deus e é desta vida que o "ético" não sabe nada. O "ético" s6 pode sem-
pre·qUO!er interromper essa vida, colocando-a, a cada momento, diante do conflito
Üi iiOWI· deveres; o "ético" s6 pode· sempre tomar esta vida questiomtvel perante si
•• l!fMfl16Pf;lde..d~~OJQ.~e~4~isoladas. Q.Jl~ ®.~.da..CQJln
Slijflo ~·µl"•~,~~V~i~J~tíçe;-~ ~4*'>"; a in~ p(>s,
íQit:l\'õi·m · ~ão, o en~nto ~ todo ato. cem-~ co~~ e in.co~
&iiã• ~- o. sul>~Iíatutais. Üleliel,'Çlo e· dever, ego.fsmo. e altro!smo-..,. dellpjQ e
iiWIJllldade., •pectoll .ativ.QS ~ ~QS,~de tal forma,q9e eada ato. é, ao mesmQ têor
PDf JJJ111pedecet, um-~ aoon~-~.~ ~~ ~VCl'M.~ tudo isw·~J.."Pl~.1
ãiiifj.,ao t16tico!\que- ~.qu?IqueJ' fQ~.n~:da·~·Q.~to-•
lialmf.{>ltJUite qQe'-fJ.-=hJllnllllQ.SC~:.~~i1úw.te. ~ ~us;- deiu ~o, fl~o ~
IM&i - Miltl.-cuno; ~dmi.te que o ~r h~ co~ beba, durma, trabalhe, festeje e.
briiq~ 6e$.. interre~..JQ·, CJD.'.:~~rlil!lll ~onfroptá"'.lo,_ constan~m~te. com 1l.
,.._.~- ·~nt.e. ~-~iner,,9,ormlr,·.~ ~,b~, se n~ .h4.@~..
iil màis »retne~ ,à,~ ~ nãQ C9Dy:eqe. o .ser:· hunµm9 ;em.ayaliadpr e juiz:.ele
il Plllnfó e de.~ Ç,k>. mas ~pennite-Jhe ·vive>; e agir e~ certeza e confiança na
iilln~llQ, pelo mand~nto dlvino,. A d~pel'8(ja 1 ~ autoflageladora pergunta pela
,P-urer.& dos motivos; a desconfiada auto-observação, a luz penetrante e fatigante do
~,estado. de consciência alertai'T tu.do isso nada t.em a .ver com o manda-
lllllit.ô de Deus, que concede a liberdade para viver e agir. Na permissão para .a vida
9Ji R.l)o ~· ~·~11$ ~tá incluso .~.fato de que as raf7.es ~vida.e ação
,twmina.es* ocultas.,• que.·~ e p~,a>,nsc.iente e inconstjente.estão inextri-,
OIWliüeU1°4' ent;reJaçad~ ~.s6 haVed.nessa vida pela ~tação da permissão divi-
·~ d6 cima, portanto.
Diante do mandamento de Deus, o ser humano nlo é () HércUJ.es na eterna
liciuzÜhada, alguém que está sempre a lutar pela decisão certa, que se desgasta no
aon~fõ dos deveres, que sempre de novo fracassa e iecomeÇa; além disso, o man-
Clliiíênto de Deus não surge unicamente naqueles grandes e agitados momentos de
QrllC áa vida, vivenciados de plena consciência. Pelo Contrário, diante do manda-
fuentiS de Deus, o ser humano pode estar realmente a camiDbo (não estar sempre
lpeDIB na encruzilhada), pode te.r tomado efetivamente a decisão reriâ ·(não tê-la

156
sempre por tomar), pode, sem qualqtiei conflito interior, f87.el' uma coisa e deixar de
faz.er outra (sob o ponto de vista ético-teórico talvez igualmente premente), pode jj{
ter feito o começo e deixar-se guiar, acompanhar e proteger pelos mandamentos
q\)8} anjo de guarda seu; o próprio mandamento divino s6 pode dar à vida uma dire-
ção unitma e orientação pessoal na forma de palavras, afirmações, gestos e auxOios
cotidianos, aparentemente pequenos e insignificantes.
O mandamento tem seu objetivo na vida natural e livremente assumida
dentro da Igreja, no matrimônio, na família, no trabalho e no Estado, não no prop6-
sito de evitar a transgressão, não no tormento do conflito ético e da decisão. En-
quanto o "ético" s6 define o limite, o formal e o negativo, o que faz com que tam-
bém s6 seja vmvel como tema no limiar, de modo formal e negativo, o mandamento
de Deus trata do conteódo positivo e da liberdade do ser humano de dizer sim a esse
contetido positivo. O mandamento de Deus s6 é possfvel como tema duma ética
cristã na medida em que se tiver presente, ao mesmo tempo, o conteódo positivo e a
hberdade do ser humano. Nem uma casuística, isto é, uma decisão preliminar para
casos concretos às custas da liberdade do ser humano, nem tampouco uma doutrina
formal da liberdade às custas do conteódo positivo fazem justiça ao mandamento
corno tema duma ética cristã. Enquanto no "ético", em óltima análise, se tratava de
definir e criar espaço para a convivência em toda a plenitude da vida, no manda-
mento se trata da própria "convivência" em seus contet1dos concretos e da liberdade
humana que nela e por eles se tomou possfvel Fica claro, com isso, que o manda-
mento de Deus abrange também o "ético". É importantíssimo que não se faça a in-
versão, dizendo que o ético abrangeria também o mandamento; nesse caso, o man-
damento seria algo secundllio, nada mais que um caso especia4 a "aplicação" con-
creta do ético, quando na verdade o mandamento, em seu conteódo concreto e na li-
berdade humana por ele viabilizada, é o original e por força própria define o limite e
cria o espaço dentro do qual pode ser ouvido e praticado. O limite surge a partir do
centro e da plenitude da vida com o mandamento de Deus, não vice-versa. Se, pot
fim, substitufmos o termo filosófico "ético" pelo termo bfblico "lei", teremos como
resultado que mandamento e lei sempre estão ligados, ao mesmo tempo que sempre
devem ser distinguidos, e que a lei está inclufda no mandamento, dele procede e a
partir dele deve ser entendida.
Dessarte, as reflexões seguintes se desdobram por si em duas partes: 1) O
mandamento concreto de Deusl; 2) a lei.

1 N. do E.: Numa anotação encontramos a seguinte compilação sob o título .. Abordagem erra-
da": 1. Como a vontade de Deus se torna concreta? Resposta: a vontade de Deus sempre é con-
creta ou então não é vontade de Deus. A vontade de Deus, portanto, não é um princípio do qual
se devesse deduzir e que devesse ser aplicado à "realidade". Vontade de Deus que pode serre-
conhecida sem conduzir imediatamente à ação é um princípio geral, mas não vontade diyina. 2.
Como a boa vontade do cristão se torna concreta? A boa vontade sempre já é a ação concreta ou
não é vontade cristã. O ser humano sempre já se encontra na ação concreta. 3. Qual é a vontade
de Deus para este ou aquele caso? O mal-entendido do concreto da parte do casuísmo. Assim
jamais se chega ao coDCJ"eto, pois o concreto foi antecipado por princípio. 4. O mal-entendido
do formalismo. 5. A tentativa da filosofia de superar o dilema na doutrina dos valores.

157
O MANDAMENTO CONCRETO E OS MANDATOS DIVINOS

O marvlarnento de Deus revelado em Jesus Cristo, na sua unidade abarca-


dora da vida humana, na sua indivisa. requisição do ser humano e do mundo pelo
amor reconciliador de Deus, se nos defronta concretamente em quatro formas di-
ferentes, unidas unicamente pelo próprio mandamento: na Igreja, no matrimônio
e famfiia, na cultura e no governo.
O mandamento de Deus não pode ser encontrado em qualquer e toda par-
te, não na especulação teórica nem na iluminação privada, não nas forças históricas
nem nos ideais dominantes, mas apenas ali onde ele mesmo se oferece. O manda-
mento de Deus s6 pode ser proclamado onde o pr6prio Deus delega competência, e
esta proclamação s6 terá legitimidade na exata medida em que Deus concede com-
petência. O mandamento de Deus pode ser achado onde existem mandatos divinos
fundamentados na reveJação de Cristo, não em forças hist6ricas, poderosos ideais
ou conhecimentos convincentes. De tais mandatos divinos se trata na Igreja, no ma-
trimônio e famflia, na cultura e no governo2,

O Conceito de Mandato

Sob o termo "mandato" entendemos a incumbência divina concreta fun-


damentada na revelação de Cristo e testemunhada pela Escritura, a autoriz.ação e le-
gitimação para o desempenho dum determinado mandamento divirio, bem como a

2 N. do E.: Numa carta do a1rcere, de 21.1.44, lemcis a respeito da questão a que pertenceria a
amizade• ººNilo 6 fácil enquadrar sociologicamente a amiz.ade. Provavelmente deve llCl' enten-
dida como subdivisão do conceito de cultura e formação, enquanto fraternidade se enquadra no
conceito de Igreja e camaradagem se inclui nos conceitos de trabalho e política. Matrimônio,
trabalho, Estado e Igreja têm seu mandato divino concreto, mas como ficam a cultura e a for-
mação? Não acredito que se possa subordinã-las simplesmente ao conceito do trabalho, por
mais convidativo que isso aeja sob muitos aspectos. Nilo pertencem ao âmbito da obediência,
mas ao espaço da libexdade, que abmnge todos os tr& âmbitos dos mandatos divinos. Quem
nada sabe deste campo da liberdade pode ser um bom pai, cidadão e trabalhador, e certamente
1amb6m um cristlo, mas se 6 um ser humano na mais ampla_ acepção (e neste sentido tamb6m
cristão em sentido pleno), eu tenho dúvidas. Nosso mundo •protestante (não-luterano!)-prus-
siano' está tão determinado pelos quatro mandatos, que o espaço da liberdade passou total-
mente para o segundo plano. Scd que 6 sd a partir do conceito da Igreja- quase parece assim,
hoje - que scd possível recuperar a comprcemllo para o espaço da liberdade (arte, formação,
amizade, atividades lddicas)? Então a •existência estética' (Kierkegaard), em vez de ser ex·
pulsa do lmbito da Igreja, deveria receber nela uma nova fundamentação? Eu acredito nisso, e
a conexão com a Idade Média seria recuperada novamente a partir daí! Quem em nossos diu
pode, por exemplo, cultivar ~adamente a m&ica ou a amizade, brincar e alegrar-se?
Certamente não o ser humano 'ético', mas somente o cristão. Precisamente porque a amizade
pertence ao espaço dessa liberdade (do cristão), é preciso defender-se com confiança contra to•
das as restriç&s das pessoas ºéticas' - certamente sem invocar a necessidade dum mandato dl·
vino, mas invocando a ncceasid•de da h'berdade. C!eio que no lmbito desta liberdade a amiz.a•
de 6 o mais raro e precioso bem -afinal, onde 6 que ela existe ainda em nosso mundo marcado
preponderantemente pelos tres primeiros mandatos? Ela nllo pode ser comparada aos bens doe
mandatos. Diante deles tem caracterfsticas muito particulares, mas pertence a eles como a flor
pertence ao trigal." (V. também o poema "O amigo".)

158
concessão de autoridade divina a uma instância ·terrena. Sob o tenno "mandato" de·
ve ser entendid8; ao niesmo tempo, a requisição, a ocupação e a estruturação de uma
determinada área terrena pelo mandamento divino. O detentor do mandato age co•
mo representante, como lugar-tenente do mandante. Aqui se poderia usar, se cor-
retamente entendido, também o tenno "ordem", s6 que contém o perigo de condu·
zir a atenção mais para o estado em que de fato se encontra a ordem do que para a
credencialização, legitimação e autorização divinas que são o 6nico fundamento da
ordem; disso se segue então facilmente o sancionamento divino de todas as ordena
existentes e com isso um conservadorismo romântico que nada mais tem a
ver com a doutrina cristã dos quatro mandatos divinos. Se pudéssemos purificar o
conceito da ordem de suas interpretações errôneas, ele seria apropriado para cx-
ptt$8ar de forma vigorosa e convincente o que pretendemos dizer aqui. Oferece-se
também aqui o termo "estado", em uso desde os tempos da Reforma, mas ao longo
do tempo ele foi tão desfigurado que não pode ser reintroduzido aqui em sua pureza
original. Este tenno lembra demais as prerrogativas e privilégios humanos, de modo
que não se pode mais notar sua humilde dignidade original. O termo "oficio", por
fim, está tão profanizado e tão estreitamente ligado ao pensamento institucional-
burocrático que a altivez do decreto divino não pode ser percebido nele. Assim, na
falta dum termo melhor, continuamos por enquanto com o do mandato, porém com
o objetivo de contribuir para uma renovação e recuperação dos antigos conceitos de
ordem, estado e offcio, através de um desenvolvimento claro da matéria.
Os mandatos divinos dependem tão-somente do Wúco mandamento divino
como foi revelado em Jesus Cristo. Foram introduzidos no mundo a partir de cima,
como estruturações - "ordens" - da realidade de Cristo, isto é, da realidade do amor
de Deus ao mundo e aos seres humanos revelado em Jesus Cristo. De forma alguma
alo produto da hist6ria, não são poderes terrenos, mas incumbências divinas. Só a
partir de cima, de Deus, pode ser dito e entendido o que vem a ser Igreja, matrimô-
nio e famfiia, cultura e governo. Os portadores dos mandatos não são mandatários
das bases, executores e expoentes da vontade humana organizada, mas, em sentido
rigoroso e indeclinável, mandatários, representantes e lugar-tenentes de Deus. Isso
vale independentemente das circunstâncias históricas de formação duma Igreja, du-
ma família, dum governo. Assim, no âmbito do mandato foi colocada, por autoriza-
ção divina, uma irrevogável relação de -superior e inferior.
O mandamento de Deus quer confrontar-se com o ser humano sempre
numa estrutura terrena de autoridade, numa ordem claramente definida por superior
e inferior. Mas este superior e inferior precisam logo duma definição mais precisa:
1. Não se identificam com uma relação terrena de poder. O poderoso de modo al-
aum pode invocar sem mais nem menos o mandato de Deus diante do mais fraco.
Antes, é da essência do mandato divino que ordene e corrija a seu modo as estrutu-
ras de poder na terra. 2. Além disso, é preciso enfatizar que o mandato divino não
cria apenas o superior, mas também o inferior. Superior e inferior se correspondem
e se delimitam reciprocamente de forma indissolável, como mais tarde havemos de
mostrar. 3. É verdade que o superior e inferior não é uma relação de conceitos ou
mas, mas de pessoas, porém de pessoas tais que, superiores ou inferiores, se cur-
vam apenas à incumbência de Deus. Também o senhor tem um Senhor, e s6 esse
rato fundamenta sua condição de senhor, dá-lhe autori7.ação e legitimidade frente ao
•rvo. Senhor e servo devem-se aquele respeito que emana da respectiva participa-

159
çlo no mandato de Deus. Ao abuso da superioridade, em prejuízo do inferior, opõe-
se, ao mesmo tempo, o abuso da inferioridade. Desconsiderando desti?es pessoais, o
abuso da superioridade, bem oomo o da inferioridade, se toma inevitável quando
não se reconhece mais a fundamentação de ambas no mandato divino. A superiori-
dade, então, é interpretada como casual favor do destino, é agarrada e explorada
sem escrtipulos, assim como a inferioridade, compreendida como injusto desfavore-
cJmento, tem que levar a revolta e sublevação. Tão logo o inferior se conscientizar
dos seus poderes inerentes, tão logo tenha sido atingido o ponto crftico ·e m que, co-
mo num ato repentino de percepçlo e libertação, o inferior sentir o influxo das obs-
curas forças da-destroição, da.negação, dávida e rebelião e~ nessas !Orças caóticas,
se sentir em superioridade sobre tudo que existe, sobre todo superior, a relação de
superior e inferior ter-se-á invertido. Não haverá mais um legítimo superior e infe-
rior; o que estiver em cima deriva sua autori7.ação e lêgidmação unicamente de bai-
xo, e o inferior vê naquilo que está em cima a partir de baixo tão-somente a reivin-
dicação personificada dà inferioridade à superioridade. Dessa maneira, o que nesse
caso é inferior se Constituiem constante e inevitável ameaça para o que é superior, e
este, por sua vez, diante da ameaça, s6 pode manter sua posição de superior agitan-
do cada vez mais o inferior, por um lado, e empregando terror contra as forças re-
beldes do inferior, por outro. O relacionamento de superior e inferior, nesta fase de
inversão e dissolução, se caracteriza pela mais profunda hostilidade, desconfiança,
embuste e inveja. Nessa atmosfera prospera de forma inédita o abuso estritamente
pessoal de superioridade e inferioridade. Ao estremecer diante do fmpeto da rebe-
lião, o fato de ter sido posstvel uma ordem fundamentada a partir de cima deve pa.:.
recer o que na realidade ela é: um milagre. A verdadeira ordem de superior e infe-
rior vive da fé na incumbência de "cima", no "Senhor" dos "senhores". S6 esta fé é
capaz de banir as forças demonfacas que emergem de baixo. Se esta fé se quebranta,
1Dda a estrutura infundida no mundo a partir de cima acaba ruindo como um nada.
Uns dizem: foi uma impostura para o povo; os outros: foi um milagre. Ambos de-
vem ~-se do poder~ fé.
Os mandatos divinos da Igreja, do matrimônio e famflia, da cultura e do
governo s6 podem fazer ouvir o mandamento de Deus, tal como foi revelado em
Jesus Cristo, em ação conjunta, redprooo apoio e confronto. Nenhum destes man-
datos existe por si s6, nem pode ter a pretensão de substituir os outros. Os mandatos
formam um conjunto, ou não são mandatos divinos. Em seu conjunto, porém, não
estão isolados, separados um do outro, mas orientados um para o outro. Prestam
apoio redprooo, ou não são mandatos de Deus. Nesse conjunto e recíproco apoio,
no entanto, um delimita o outro, e essa delimitação dentro do apoio recíproco será
sentida, necessariamente, como confronto. Onde esta confrontação não acontece
mais, não existe mais mandato de Deus.
A superioridade está, portanto, numa tríplice limitação, cada qual com seus
efeitos específicos: pelo mandante, Deus mesmo, pelos outros mandatos e pela infe-
rioridade. Essa limitação, porém, significa ao mesmo tempo sua proteção. A prote-
ção serve de estímulo para assumir os mandatos divinos, assim como a limitação é a
advertência contra sua transgressão.
Proteção e lio1itação são dois lados da mesma coisa. Deus protege, limitan-
do; Deus estimula, advertindo.
A seguir falaremos, sucessivamente, do mandamento de Deus em cada um

160
dos quatro mandatos; depois, trataremos do seu ooqjunto, n::dproco apoio e con-
fronto.

O Mandamento de Deus na Igreja

Encontramos o mandamento de Deus sob duas formas no âmbito da Igreja:


na prédica e na confissão, respectivamente disciplina ccl~tica, isto é, de forma
p4blica e sigilosa, dirigida à comunidade ouvinte da predica e ao ser humano indivi-
dualmente. Estas duas formas do mandamento de Deus se complementam necessa-
riamente. Onde se perdeu a confissão, respectivamente disciplina eclesiástica, o
mandamento de Deus na prédica será entendido como mera proclamação de princf·
pios éticos universais, que carecem, em si, de qualquer exig&cia concreta. Onde, no
entanto, a pregação pdblica passar completamente para o segundo plano em com-
paração com o confesskmmo, certamente não faltará concretização, mas surgirá
uma perigosa casuística legalista que destrói a liberdade da fé. A conseqüência ine-
vitável é uma constante e furtiva interferência nos outros mandatos divinos, famfiia,
cultura, governo e a destruição do seu livre conjunto em favor da absoludzação do
mandato da Igreja. Não há dóvida que, nessas duas possibilidades, tocamos nos
pontos fracos da Igreja evangélica e 'da católica. A Igreja evangélica perdeu a ética
concreta a partir do momento em que o pastor não se viu mais colocado constante-
mente diante das questões e responsabilidades do confessionmio. Com uma errônea
invocação da hl>erdade cristã, ele se esquivou da pregação concreta do mandamento
de Deus. S6 com a redescoberta do diVino ministério da confissão, a Igreja evangé-
lica voltant a ter uma ética concreta, que possuía nos tempos da Reforma. Durante
todo o seu estudo, o padre cat61ico é preparado para sua função de confessor atra-
v6s da discussão de int1meros "cams" em que tera que decidir. Não há como duvidar
que isso implica no perigo de dar um caráter legalista e pedagógico ao mandamento
de Deus. Ele s6 podera ser superado por uma redescoberta do ministério cristão da
pregação.
As duas formas do mandamento de Deus na Igreja têm em comum que são
proc'lamações da revelaç&J divina. O mandato dado à Igreja é o da proclamaçao.
Deus quer um lugar onde sua palavra seja sempre de novo dita, proclamada, comu-
nicada. interpretada e divulgada até o fim dos tempos. A palavra que em Jesus
Cristo veio do céu quer retomar na forma de fala humana. O mandato da Igreja é a
palavra divina. Nessa palavra o pr6prio Deus quer estar presente. Na Igreja, o pró-
prio Deus quer ter a palavra.· .
- O que a Igreja procJama é a palavra da revelação de Deus em Jesus Cristo.
Por se tratar duma palavra que não vem do coração de nenhum ser humano, nem de
sua inteligência e qualidades, mas que vem do céu ao ser humano, procedente da
vontade e misericórdia de Deus, como palavra ordenada e instituída por Jesus Cris-
to, por tudo isso, ela estabelece com sua vinda um claro confronto de superior e in·
ferior. Superior é o ministério da proclamação, inferior a comunidade ouvinte.
Diante da comunidade está, no lugar de Deus e Jesus Cristo, o portador do ministé-
rio da pregação com sua proclamação. O pregador não é o expoente da comunidade,
mas - pennbam-me usar uma ,vez esta formulação - o expoente de Deus diante da

161
anunldade. EJe tem autorização para a doutrina, admoest.ação, consolo, perdão e
tambdm retenção dos pecados. Ele é, ao mesmo tempo, o .pastor da commüdade.
1 mlnlstdrio foi instituído diretamente por Jesus Cmto; recebe sua legitimação
1lllA vontade de Jesus Cristo, não pela decisão da comuojdade. Ê um ministério es-
tlholooldo na comunidade, não pela comunidade. Ê shnuldneo com a comuojdade.
Ondo ele ~ exercido plenamente, todos os outros ministérios da comunidade, que
1n1UL1 16 podem servir ao ministério da palavra de Deus, revivem; pois onde s6 a
Pllavra do Deus impera, nascem a fé e a diaconia. A comunjdade despertada sob a
rmpçlo da palavra de Deus provará a autenticidade de sua fé, honrando o ministé-
r111 da pregação e sua g16ria sem par e servindo-lhe com todas as forças, e não, atra-
v• da Invocação de sua fé e do sacerdócio universal de todos os crentes, menospre-
an<lo o ministério, embaraçando-o ou até colocando-o sob sua dependência. A su-
Jlllrtorldade do ministério da pregação será preservada de abuso e perigo justamente
ror uma autêntica inferioridade da comunidade, isto é, por fé, oração e serviço, não
por Impedimento e rompimento da ordem divina e por uma errônea pretensão de
IUperloridade da comunidade.
O ministério da pregação, o testemunho de Jesus Cristo, está comprometi-
do com a Sagrada Escritura. Ê preciso arriscar aqui a afirmação de que a Escritura
pertence essencialmente ao ministério da pregação; a prédica, por sua vez, pertence

1
Aoomunidade. A Escritura quer ser interpretada e pregada. Por sua essência, ela não
d um livro edificante da comunidade. O texto de prédica interpretado pertence à
oomunidade, e a partir dele existe um "examinar as Escrituras para ver se as coisas
do usimº (At 17.11) como a prédica afirmou; há, portanto, em caso extremo, a ne-
ceuldade de contestação da prédica com base na Sagrada Escritura3. Também com
llto, po~m. se pressupõe que a Sagrada Escritura, segundo sua essência, pertence
llO magistério. A apropriação da Sagrada Escritura por parte do cristão individual-
mente ou de um grupo de cristãos, alegando direitos iguais para todos os cristãos,
invocando a maioridade na fé e a evidência da palavra da Escritura, de modo algum
d 1lnal de especial respeito e de especial conhecimento espiritual do caráter da reve-
laçlo divina. Muita insolência, desordem, rebelião e confusão espiritual tem suas
ntzca aqui. Corresponde à Santidade da Escritura que se reconheça ser uma graça
ter llldo chamado para sua interpretação e proclamação, mas que também é uma gra-
ça poder ser apenas ouvinte da interpretação e proclamação. Os livros de prédica e
do oraçlo como livros precípuos da comuiddade, por um lado, a Sagrada Escritura
como livro do pregador, por outro, isso poderia ser uma expressão adequada do
confronto de comunidade e mllüstério como Deus o deseja. Deve ficar claro, entre-
tanto, que essas id&as não nascem de uma pedagogja clerical, mas da própria revela-
~ do Deus4.
Com base na Sagrada Escritura, o ministério da pregação proclama Jesus
C:rlato como Senhor e Salvador do mundo. Não há proclamação da Igreja que ~ão

Noe caaos normais o exame da pr&lica não compete à comunidade, mas à visitação regimental
da Ipeja. Niio 6 salutar, quando a comunidade 6 obrigada a ouvir a pddica com espfrito cdtico
eeUmlnador.
4 l1 evidon~ que aqui não se trata de uma proibição da Bfblia, semeJbamc à intmdiçlo hindufsta
de eetudo do Vcda para a 4! casta; trata-se de saber o lugar que compete casencialmcnte à &-
arltura.

162
seja proclamação de Jesus Cristo. A Igreja não possui dois tipos de palavra. um se·
nérico, racional e de direito natural, e outro cristão, um para os que não ~m e
outro para os fiéis. S6 uma presunção farisaica pode levar a Igreja a privar uns da
proclamação de Cristo e outros não. Como sua palavra tem como direito e autoriza-
ção somente a incumbência que Jesus Cristo lhe deu, qualquer palavra que ignorar
esta autor.i7.açã'.o tent que ser sonoridade vazia. No diilogo com o governo, por
exemplo, cujo mandato certamente não é o de confessar Cristo e que deve ser inter-
pelado com relação a problemas bem concretos, cuja solução faz parte de seu man-
dato divino, a Igreja não pode simplesmente deixar de ser Igreja; s6 cumprindo seu
pr6prio mandato, ela pode interpelar o governo legitimamente visando o cumpri•
mento do mandato que lhe foi atnõuído. A Igreja não dispõe, também, de dois tipos
de mandamento, um para o mundo, o outro para a comunidade cristã; seu manda·
mento é aquele um s6 mandamento revelado em Jesus Cristo e que ela prega ao
mundo todo.
A Igreja proclama este mandamento ao testemunhar Jesus Cristo como
Senhor e Salvador de sua comunidade e do mundo todo, conclamando assim para
a sua comunhão.
Jesus Cristo, o Filho eterno junto ao Pai em eternidade - isso significa que
nada da criação pode ser imaginado e compreendido em sua essência sem Cristo, o
mediador da criação. Por ele e para ele tudo foi criado, e tudo tem sua existência s6
nele (Cl 1.15ss.). É vã a tentativa de querer entender os prop6sitos de Deus com a
criação fora de Cristo. Jesus Cristo, o Deus feito ser humano - isso significa que
Deus assumiu toda a condição humana corporalmente, que o ser de Deus, doravan-
te, não pode ser encontrado senão em forma humana, que em Jesus o ser humano
foi libertado no sentido de ser realmente humano perante Deus. O caracteristica-
mente "cristão" agora não é algo que estivesse além do humano, mas que quer ser e
estar em meio ao humano. O "cristão" não é um fim em si mesmo; antes, consiste
em que o ser humano pode e deve viver como ser humano diante de Deus. Na en-
carnação, Deus se manifesta como aquele que quer existir não para si, mas "para
n6s". Viver diante de Deus como ser humano face à encarnação divina só pode sig-
nificar, então, que não existimos para n6s mesmos, mas para Deus e os semelhantes.
Jesus Cristo, o Reconcüiador crucificado -isso significa, inicialmente, que
o mundo todo se tomou ímpio por rejeitar Jesus Cristo e que não há esforço pr6prio
que possa tirar essa maldição. A realidade do mundo recebeu seu sinal definidor
uma vez por todas pela cruz de Cristo. Mas, como a cruz de Cristo é a cruz da re-
conciliação do mundo com Deus, o mundo fmpio esd, ao mesmo tempo, sob o sinal
definidor da reconciliação como livre instituição divina. A cruz da reconciliação é
a hõertação para a vida diante de Deus em meio ao mundo ímpio, é a libertação para
viver em autêntica mundanalidade. A proclamação da reconciliação pela cruz é li-
bertação, porque supera as vãs tentativas de divinizar o mundo, porque venceu as
dissensões, tensões e conflitos entre "cristão" e "mundano" e convoca para a sim-
plicidade de ação e vida na fé na j~ acontecida reconciliação do mundo com Deus.
S6 pela proclamação de Jesus Cristo crucificado há uma vida legitimamente munda·
na, portanto, não em contradição com a proclamação, nem à sua margem, com al-
gum tipo de normas próprias do mundano; pelo contrmo: autêntica vida mundana é
possível e real justamente "em, com e sob" a proclamação de Cristo. Sem a prega-
ção da cruz de Cristo, ou mesmo contra ela, não há noção da impiedade do mundo e

163
•r, NOU abandono por Deus; antes, o mundano procunmf satisfazer sempre seu insa-
IAvo~ desejo de autodivinização. Onde, porém, o mundano erigir sua propria lei ao
ludo dn proclamação de Cristo, ficari totalmente à mercê de si mesmo e, finalmente,
t< r11 que colocar-se no lugar de Deus. Em ambos os casos, o mundano deixa de ser
111un®no e, dependente s6 de si mesmo, não quer e não pode contentar-se em ser
l l10l 11\B mundano, passando a procurar frenética e desesperadamente pela sua pr6-
prbl divinização. A conseqüência é que esta vida decidida e exclusivamente mundana
wma presa duma mundanalidade falsa, incompleta; falta a hõerdade e a coragem
1111m iaut!ntica e completa mundanalidade, isto é, para deixar que o mundo seja o que
111mcnte é diante de Deus, ou seja, um mundo que, em sua impiedade, esti recon-
Ulmlo com Deus. Sobre a definição do conteádo da "autêntica mundanalidade" te-
mmoll que falar mais tarde. Aqui importa, apenas, que autlntica mundanalidade
\Lflt! dnlca e justamente com base na pregação da cruz de Jesus Cristo.
Jesus Cristo, o Senhor ressuscitado e exaltado - isso significa que Jesus
1 1ilto v.enceu pecado e morte e que é o Senhor vivo, a quem foi dado todo poder no

c41u e na terra. Todos os poderes do mundo lhe estão submetidos e têm que sem-lo,
ado um à sua maneira. O senhorio de Jesus Cristo não é alienígena, e sim o senho-
rio do Criador, Reconciliador e Redentor, o senhorio daquele, portanto, pelo qual e
pnrn o qual tudo existe e no qual toda a criação tem sua origem, meta e essência.
J01ua Cristo não impõe uma lei estranha à criação, mas também não tolera que a
oriaçlo tenha quaisquer "leis próprias" independentes dos seus mandamentos. O
mandamento de Jesus Cristo, o Senhor vivo, liberta a criatura para o cumprimento
Ida lei que lhe é própria, isto é, que lhe é inerente a partir de sua origem, objetivo e
'állencia em Jesus Cristo. O mandamento de Jesus não justifica um domínio da
~ pja sobre o governo, do governo sobre a famflia, ou da cultura sobre governo
1 ,Iar:eja, ou qualquer possível relação de domínio que aqui possa ser imaginada. É
'Verdade que o mandamento de Jesus Cristo governa Igreja, famffia, cultura e gover-
no" emas de tal forma que liberta cada um desses mandatos para o cumprimento da
~'unçlo que lhe compete. A pretensão de senhorio de Jesus Cristo que a Igreja pro-
' hunn significa, ao mesmo tempo, a libertação da família, da cultura e da organiza-
~lo aovemamental para sua própria essência, fundamentada em Cristo5. Só com
hue ·na libertação que emana do senhorio proclamado de Cristo M aquele autêntico
ooajunto, apoio e confronto dos mandatos divinos que iremos expor detalhadamente
mall tarde.
Quando dizíamos, h4 pouco, que o senhorio do mandamento de Cristo so-
hrc toda criatura não deve ser identificado com o senhorio da Igreja, tocamos num
Importantíssimo problema do mandato eclesiistico que vamos ter que analisar aqui.
O mandato da Igreja é proclamar a revelação de Deus em Jesus Cristo.
Untretanto, o mistério deste nome é que ele não designa apenas uma pessoa isolada,
J11&111 'inclui também a totalidade da natureza humana. Jesus Cristo sempre s6 pode
iôr teltemunhado como aquele em quem Deus asswniu corporalmente a humani-
dldo. Em Jesus Cristo esti a nova humanidade, a comunidade de Deus. Em Jesus
( 'rllto, a palavra de Deus e a comunidade de Deus estão ligadas de forma indissolt1-

A 'nnlfiele de heteronomia e autonomia aqui é superada e transformada numa unidade superior


qut podemos chamar de cristonomia.

164
~ Palavra de Deus e comunidade de Deus tomam-se inseparáveis por Jesua Cria·
to. Portanto, onde Jesus Cristo for pregado de acordo com o mandato divino, ali
sempre haverá também comunidade. Inicialmente isto significa, apenas, que M
pessoas-que acolhem, cr&m e aceitam a palavra de Cristo, ao contnlrio de outroa

.. que não a acolhem mas a rejeitam, que-liá8ere8 -hümanos,-portáóto, que permitem


que aconteça o que da parte de Deus deveria aconteoer a todos os seres humanos;
• seres humanos, pois, que aí estão como representantes dos demais, do mundo todo•
Na verdade, são pessoas que, ao mesmo tempo, têm sua vida mundana em famflia,
cultura e governo, a saber, como pessoas hõertadas pela palavra de Cristo para a vi·
da no mundo; mas, como congregação em tomo da palavra divina, como pessoas
que foram eleitas nessa palavra e nela vivem, elas também formam uma organização
comunitúia, uma corporação à parte e em distinção das estruturas mundanas. ~
dessa "organização comunidria" que se trata, inicialmente, em sua necessária dife-
renciação do divino mandato da pregação. A palavra de Deus, como é pregada por
força do mandato divino, impera e governa sobre o mundo todo; a "organização
comunitma" que se forma em tomo dessa palavra não governa o mundo, mas esd
totalmente a serviço do cumprimento do mandato divino. A lei dessa "organi7.ação
comunitmia" jamais pode nem deve tomar-se lei da ordem mundana, sob pena de
estabelecer um senhorio alienígena, assim como, por outro lado, a lei de uma ordem
mundana jamais pode nem deve. converter-se em lei desta organização comuni1'ria.
A peculiaridade do divino mandato da lgreja consiste, pois, no fato de que a prega-
ção do senhorio de Cristo sobre o mundo todo deve ser distinguido da "lei" da
Igreja como organização comunitária, mas que, por outro lado, a Igreja, como orga-
nização comunitúia, não pode ser separada do ministério da pregação.
A Igreja, como organização comunitma própria, serve ao cumprimento do
divino mandato da pregação em dois sentidos: em primeiro lugar, nessa organização
comunitmia tudo está orientado no sentido da eficiente pregação de Cristo ao mun-
do todo, de tal forma que a própria comunidade só venha a ser instrumento, meio
para um fim; segundo: nesse empenho da comunidade pelo mundo já se atingiu o al-
vo e o início do cumprimento do divino mandato da pregação, de tal forma que a
comunidade, justamente ao querer ser apenas instrumento e meio para um fim, se
tomou alvo e centro de toda ação de Deus para com o mundo. O conceito de re-
presentação é o melhor para definir essa dupla relação. A comunidade cristã está no
lugar em que o mundo todo deveria estar; nesse sentido, ela serve representativa-
mente ao mundo e existe em função dele. Por outro lado, o mundo chega à sua pró-
pria plenitude onde está a comunidade. A comunidade é a "nova criação", a "nova
criatura", o alvo dos caminhos de Deus na terra. Nessa dupla representatividade
está a comunidade, inteiramente na comunhão e no discipulado do seu Senhor, que
foi o Cristo precisamente no fato de existir totalmente para o mundo e não para si
tneSmo.
Como corporação própria, a Igreja está sob uma dupla determinação divi-
na a que deve corresponder: a orientação para o mundo e, precisamente nisso, a
orientação para si mesma como lugar da presença de Jesus Cristo. É característica
da Igreja, como organi7.ação própria, que ela expresse o caráter ilimitado da mensa-
gem de Cristo na delimitação de sua própria fil"ea espiritual e material e que justa-
mente o caráter ilimitado da mensagem de Cristo chame as pessoas para dentro da
limitação da comunidade.

165
O perigo do catolicismo é que entende a Igreja, essencialmente. 00mo fim
11li ill}l!l8Dl8., em detrimento do mandato da pregação da Palavra. Por outro lado, o
'*'8o da Reforma é que, em detrimento do espaçoprdprio da Igreja, s6 dá'. atenção
1 ~ da pregação da Palavra. ip>rando praticamente a autofunçlo da Igreja
que ·oomlate justamente em seu ser para o mundo. Basta lembrar a põbrem e m.:.
IUJ'8DV& lltd.rgica de nossos cultos evangélicos de hoje, a fraqueza da ordem e do
tUrcdto eclesifstico, a quase completa ausência de disciplina eclesiástica autentica,
bnpecid.11de de amplos cfrculos evangélicos de compreender práticas de disciplina·
Cuerotdoe espirituais, ascese, meditação e contemplação, por exemplo), a falta de
, Jareza quanto ao "estado espiritual"* e suas tarefas espec(:ficas, mas também; por
l1rn, a 8811UStadora perplexidade ou arrogtncia de indmeros cristãos evangélicos
fNnte 1 ~que se recusam a prestar juramento, serviço militar, etc.. para sentir
hem ·~ onde estão as de~ncias da Igreja evangéHca. O int.eresse exclusivo
pele) CHVmo mandato da pregação e, com isso, o interesse peJa .incumbência da Igreja
1*'8·0 mundo, fi7.eram com que não se desse atenção à conexão interna dessa tarefa
ODl a pr6pria ~ eclesifstica. Por causa dessa deficiência, força, plenitude e riquc-
r.a da pr6pria pregação tiveram que padecer, porque 1he faltava o solo fli1il. Tradu-
.dndo JW& um quadro simb6Jico. a tarefa da pregação é introduzida na comunidade
QOmo • semente na terra. Sem preparação do 1erreno, a semente definha e sua ferti-
Udade fperente é inibida.ó.

' IN·• T.1 o.lldlcMl'Stand, no original, isto E, o clero.


:6 .N. ao IJ.I Clpftulo loacabedo.. Pzevilto mais daieavolvimento, como 1JC deduz do texto SFI•
"""v. pp.160..

'166
APÊNDICE
'

A DOUTRINA DO PRIMUS USUS LEGIS CONFORME


OS ESCRITOS CONFESSIONAIS LUTERANOS E SUA CRÍTICA

1. O Conceito e sua Funcionalidade

O termo "um§' legis encontramos nos títulos de FC* VI, de tertio usu le-
gis, em portugu&: "Do terceiro uso da lei"; além disso, em SD** VI, 1, texto latino;
no vemkulo consta no lugar de usus o termo "utilidade" da lei. Em Ep.*** VI se
diz que a lei foi dada aos seres humanos "por três razões" (cf. Os artigos de Esmal-
calde, seção "Da leij. Deduz-se disso que a questão do sujeito do usus, se é Deus
ou o pregador, não est4 expressamente decidida, mas deveria ser respondida no sen-
tido de que Deus o é. Nessa linha está também Ep. VI, 7: "De sorte que tanto para o
penitente como para o impenitente, para os homens regenerados como para os irre-
generados, a lei é e continua uma tmica lei, a saber, a imutável vontade de Deus. E a
diferença. no respeitante à obediência, está apenas no homem, visto que o irregene-
rado faz sob coação e contra a vontade o que exige a lei (como também os regene-
rados fazem segundo a carne). Mas o crente, enquanto é renascido, faz, sem coação,
de espírito voluntM.i.o, o que nenhumas ameaças da lei jamms lhe poderiam arran-
car." Conseqüentemente, o conceito do usus legis não deve induzir a pensar primor-
dialmente em diferentes modos de pregação - modos de uso da lei por parte do pre-
gador; antes, trata-se jnjcjaJmente de diferentes efeitos da mesma lei; com vistas ao
respectivo sujeito, tais efeitos devem ser entendidos tanto como a livre ação divina
no ser humano, como também no sentido de fé ou descrença por parte do ser huma-
no, de modo que figure como sujeito do uso Deus e não o pregador, e. bem entendi-
do, também o ouvinte da prédica, o ser humano. Como essa questão, no entanto, não
é expressamente eaclarecida pelos escritos confessionais, perigosas ddvidas se ins-
talam no decurso dos._textos. A questão do sujeito deveria ter sido esclarecida por

* N. do T.: FdrmuJadeconcdrdia.
** N. do T.: Dec1ançlo scSlida.
*** N. do T.: Epftome.
167
l 'UUllLl de sua decisiva importAncia para o todo da pregação da lei: pois, se o pregador
fo111C o sajeito dos três usus, para o mundo haveria uma pregação da lei basicamente
diferente daquela dirigida à comunidade. Mas, se Deus é o sujeito. s6 há wna prega-
çlo da lei, que tem efeitos diferentes com crentes e descrentes. O pregador como
1ajelto dos usus conheceria uma pregação isolada das obras; Deus como sujeito dos
U.Tus provoca diferentes efeitos nos seres humanos através da pregação da lei dnica.
Corno o conceito de usus deixa essa questão preliminar na obscuridade. é de se
quutionar a sua utilidade (v. seção 12).

2. A Questão da Justificação Teol6gica

A lei de Deus é uma "doutrina divina em que a justa e imudvel vontade de


Deus d revelada, de como o homem deveria ser em sua natureza, pensamentos, pa-
lavras e obras para ser agradável a Deus e aceidvel a Deus. e ameaça os transgres-
11<>rcs dela com a ira de Deus. e com castigos témporais e eternos" (SD V, 17) (du-
p/4x usus aqui?). O primus usus legis diz respeito ao estabelecimento de uma disci-
pUna externa et Jwnestas (SD VI. .· 1); o secundus usus se refere ao re-
conhecimento do pecado; o tertius usus serve aos convertidos como indicador de sua
linha de aÇão e como castigo para a carne que também neles ainda esd viva. A idéia
de que na diferença dos três usus se trate de uma seqüência cronológica da procla-
mação, ou então de dois grupos humanos essenciaJmentes diferentes (descrentes e
crentes - nesta seqüência) - idéia essa que pelo menos não esd excluída nos escritos
confessionais -, é materialmente insustendveL A externa disciplina ainda vale tam-
b6m para os crentes, da mesma forma que ameaça e castigo da lei. na medida em que
o crente ainda é carne ("'porque o velho homem, como asno indômito e recalcitrante,
também ainda é parte deles, e deve ser forçado à obediência de Cristo não só com o
onalno, admoestação, impulso e ameaça da lei. porém muitas vezes também com o
cacete dos castigos e pragas" - SD VI, 24); o crente também necessita ainda do re-
conhecimento do pecado através da lei; por outro lado, já o primus usus contém todo
o cont.eddo da lei. a saber, o Decálogo todo, como também já contém a ameaça e a
promessa que valem para o transgressor e o cumpridor da lei. A incerteza, se cabe
lmportancia própria ao usus paedagogicus, entre o primus e o secundus usus, como
eventual quarto usus, bem como a circunstância de que os artigos de Esmalcalde s6
conhecem dois usus, tornam claro que as diferenças dos usus não devem ser enten-
didas cronologicamente e nem no sentido de grupos humanos basicamente diferen-
tea, mas devem ser compreendidas materialmente. O primus usus determina o con-
toddo da lei em relação à execução de determinadas obras de caráter externo; o se-
cundus usus determina o relacionamento de lei e pessoa, ao evidenciar a esta sua
opoaição à lei e sua condenação; o tertius usus define a lei como bondosa ajuda de
Dous para a pr.ttica das obras ordenadas. O pTimus
usus d a lei éomo prédica das
obru, o secundus, a lei como prédica do reconhecimento dos pecados, o tertius, a lei
corno pr&lica de seu cumprimento. A pregação da lei contém sempre todos os
trt. olcmentos. Onde isso for cliferente, está.dissolvida a unidade da lei de DeUs e,
nlc!m da questão da adequação do conceito de usus, que levantamos sob o item 1,
1urae então a pergunta pela justificação teológica da doutrina do usus (v. seção 12).

168
,
3. O Intn:esse pelo Conceito

.. Nos escritos confessionais, o primus usus não recebe um tratamento siste·


maticamente coerente; não há interesse próprio por ele. A idéia aparece (com acento
positivo) na polêmica contra a doutrina monútica da perfeição, contra a pretensão
• eclesi'8tica de exercer poder mundano, contra os entusiastas e na doutrina do poder
mundano; e (com acento negativo) na doutrina da justificação e na respectiva crítica
da justificação pelas obras, na doutrina da liberdade da vontade; ocorre, como ex-
pressão neutra, ·na discussão sobre o tertius usus legis. O primus usus s6 interessa
aos escritos confessionais em sua relação com o Evangelho.

4. Definição

Por meio do primus usus legis mantém-se "disciplina e honradez externa


contra homens refratmos, desobedientes" (Ep. VI, 1). Perguntamos apenas por
conteddo, finalidade, meios de execução, proclamador e ouvinte do primus usus.

5.Conteddo

O conteado do primus usus é o DecQogo todo no que diz respeito às obras


nele exigidas e ligado ~ ameaça e ~ promessa nele contidas. "Aqui pensamos que a
1ei foi dada por Deus em primeiro lugar para refrear o pecado com ameaças e pelo
temor do castigo, e com promessa e oferecimento da graça e do beneflcio." (Os ar-
tigos de Esmalcalde, "Da lei", AS: C JL) Quanto ao conteddo, a lei toda esti conti-
da no primus usus (AC* IV, 8). Em parte alguma dos escritos confessionais ocorre a
idéia de que a segunda tM>ua do Decmogo pudesse ser pregada sem a prhne.ira; pelo
contrmo, esta divisão em toda parte recebe forte crítica. Aldm disso, a primeira ~­
bua j4 contém uma indicação no sentido de que tamb&n a segunda não pode ser
cumprida s6 pelas obras, uma superação, portanto, do primus usus (AC IV, 8, 35).
A lei, no entanto, não se acha apenas no Decaogo; permeia, também, o Novo Tes-
tamento todo. "Onde mais sdria, mais terrível indicação e pregação da ira de Deus
contra o pecado do que a paixão e morte de Cristo, seu Filho? Mas enquanto isso
tudo proclama a ira de Deus e aterroriza o homem, ainda não é o evangelho, nem a
pregação própria de Cristo senão que é a pregação de Moisés e da lei sobre os impe-
nitentes." (SD V, 12.)
Se bem que os escritos confessionais não o digam e talvez nem assim o
entendam (pode-se falar até de uma prédica "sem Cristo" - sine mentione Cristi
- SD V, 10, onde provavelmente s6 se pensa no primus usus), deve-se concluir, do
que foi dito, que a prédica da cruz de Cristo como pregação da lei faz parte também
do prinuu usu.r. Mas, como a cruz sempre é também prédica do Evangelho e como,

* N. do T.: Apologia da Confissão de Augaburgo.

169
nessa perspectiva, também o Decálogo já contém prédica do Evangelho, o primus
usus jamais pode ser pregado em abstrata separação do Evangelho. Assim mesmo,
sua essência propriamente dita é a exigência das obras da lei que servem à disciplina
e honradez externa. Ameaçando e atraindo com os beneffcios terrenos prometidos
por Deus a uma vida decente, as obras da lei são extorquidas do temor e do desejo
de felicidade dos seres humanos. Nisso se manifesta a orientação exclusiva do primus
usus para a consecução das obras, isto é, de determinadas situações. Sob esse prisma
o conteádo do primus usus pode ser definido como sendo "a lei natur~ inata nos
corações", "que coincide com a lei de Moisés ou os dez(!) mandamentos" (AC .IV,
7), Não se aventam a hipótese de uma /ex naturae discordante do Decálogo e o con-
flito que isso geraria; o 1inico parâmetro, em todo caso, é sempre o Decálogo. Por-
tanto, é a vontade de Deus e não a do ser humano que se manifesta no primas usus,
respectivamente na /ex naturae. "Deus exige e quer tal vida exteriormente
honrada, e, por causa do mandamento de Deus, devem ser 1eitas as boas obras que
são ordenadas nos dez (1) mandamentos." (AC IV, 22.) O 6rgão atrav& do qual
a /ex naturae se manifesta é a ratio; a ela se op& os poderes demon!acos ("concu-
piscência e diabo"), que são mais poderosos do que a ratio, de modo que, apesar de
Mfngente esforço" a ratio raramente se imp& (AC XVIII, 71s.). Com isso, esd
aclarado que nem todo instintõ humano pode di7.er-se lei natural. 0-tlltimo critério
continua o Decilogo.

6. Fmalidade

A finalidade do primus usus é o estabelecimento da iustitia civilis. respecti-


vamente rationis, carnis (AC IV, 22-24, XVIII, 70). Esta consiste numa vida de-
cente, de acordo com as duas t4buas do Decálogo (falar de Deus, manifestar exte-
riormente respeito a Deus e postura piedosa, honrar os pais, não roubar - AC
xvm, 70). Ela esd "razoavelmente" dentro das posm'bilidades da livre vontade e
da razão, ainda que poucas vezes venha a ser concretizada (AC XVIII, 72). Iecebe
louvor da parte dos seres humanos e de Deus, "pois nesta vida e exist.ência munda-
na, não M nada melhor do que honestidade e virtude (•••), conio Deus também re-
compensa tal virtude com dfdivas materiais." (AC IV, 24.) Isso significa que toda a
vida mundana esd sujeita ao Deatlogo no que diz respeito às obras. Deus exige
a iustitia. civilis de todos os seres humanos, também dos cristãos. Isso se diz contra
os entusiastas, "que enshlam ser perfeição cristã abandonar fisicamente casa e lar,
mulher e filhos" (CA* XVI, 4) e que dessa maneira querem fazer do Evangelho
wna nova lei para o mundo. Afirma-se, ao contrmo, que o Evangelho não é "uma
oolsa externa e tempoial, mas algo interior e eterno e justiça dos corações", que não
h4 ..novas leis para a vida civil" (AC XVI, 55-57). Esta colocação sobre o Evange-
lho tem como pressuposto obrigatdrio a pregação do Decálogo para o estabeleci-
monto da iustitia civilis. Fora deste contexto também ela seria uma manifestação
entusiasta. Os escritos confessionais são de opinião que, no tocante ao conteddo da
W. o DecQogo o ensina exaustivamente e que o Evangelho nada lhe acrescenta.
• N, do T.: Confisslo de Augsburgo.

170
7. Meios de Execução

Como meios para a execução do primus usus, para o estabelecimento da


iustitia civilis, portanto, "Deus dá lei. institui autoridade, dá pessoas instruídas e sá-
bias que servem para governar" (AC IV, 22). Com isso, o governo está colocado
sob a lei de Deus e a seu serviço. A lei do Decálogo que a Igreja prega é imposta
à força pelo governo. Para isso ele também recebe a espada. Os escritos confessio-
nais partem do pressuposto de que a ratio ditará às autoridades a mesma lei como
a revelada no Decálogo; não contam, portanto, com a possibilidade de uma contra-
dição fundamental entre a lex naturae e o Decálogo. Mesmo assim, isso não significa
uma dupla fundamentação da autoridade numa lei natural e numa lei revelada; antes,
s6 porque as duas foram declaradas idênticas (v. seção 5), a lei natural, a raz.ão, pode
ser apresentada como fundamentação da ação governamental. A lei natural jamais
pode reivindicar autoridade divina contra o Deatlogo. Apesar de, melhor, precisa-
mente porque a autoridade tem sua origem na lei de Deus, proclamada pela Igreja, e
·a-serve. efu tem digrddade pr6pria diante da Igreja, cuja tarefa é a pregação do
Evangelho. Sua dignidade não está numa eventual liberdade em relação à lei de
Deus, ao Decaogo, com base em lei propria, mas na obediência com que administra
a lei de Deus. Cumprindo a vontade de Deus, punindo os maus e recompensando os
bons, ela exalta seu mandato divino, tem direito à obediência e os governantes po-
dem ter uma consciência tranqOila (AC XVI, 65). Os escritos confessionais louvam
a doutrina evangélica, que teria devolvido à autoridade sua dignidade proprla frente
a estatútos humanos. A doutrina da iUstitia civiiis serve, assim, polemicamCnte para a
libertação e dignificação da vida mundana sob o DecQogo, em contraste com a
doutrina romana da perfeição da vida moústica. Onde, porém, uma lei natural se
ergue contra a lei de Deus no Decálogo, onde a espada do governo não quer mais
servir à lei de Deus (um caso que os escritos confessionais não aventam nesta for-
ma), a natureza e a razão pervertidas não podem invocar um direito divino próprio,
mas devem ser submetidas à lei de Deus através da pregação da Igreja. Para os es-
critos confessionais, o "natural" é determinado exclusivamente pelo Decálogo.

8. O Proclamador

O proclamador do primus usus ~. em primeiro plano, a Igreja, em segundo


o governo, o chefe de famflia, o patrão. A Igreja proclama o primus usus ao pregar a
lei toda de acordo com todos os três usus, indiretamente, portanto. O governo pro-
clama o primus usus diretamente, a Igreja o faz a serviço do Evangelho, o governo
. como fim em si mesmo. O Decálogo tem seu lugar na igreja e no prédio do governo.

9.00uvinte

São ouvintes do primus usus os "incrédulos, selvagens, nlo-crlstloe".


Portanto, é aos seres humanos, não às estruturas como tais, que se dirige a p1*1lc:la;

171
•tal dizem respeito muito tDais aôs pre8adorea. Para os escritos confaisioDais, não
ullte pmblcma teo16gico no que se refere a se e ao flW! deve ser "pregado aos~
dulol. A questão pdtica se os descrentes slo atingidos, supõo-se, tamblm, como
IOluclooada: uns são atingidos pela Igreja. outros pelo governo. Os escritos confes-
llonlla, aparentemente, entendem sob o tftulo de descrentes um determinado grupo
de pel&O&S, mas esta concepção jd 6 rompida pela afirmação dos mesmos escritos de
que também o cristão ainda esd na carne e necessita do prlmus usus tanto quanto
o ~ulo (cf. os catQogos de vícios do Novo Testamento). Por outro Jado, tam.-
Wm os descrentes estão sob o chamado do Evangelho e por causa deste se enqua-
dram sob a pregação do primu8 usus pela Igreja. Não M uma pregação somente para
OI lncddulos, mas apenas uma pregação que vale tamblm para eles. Uma clara di-
vido em dois grupos de seres humanos é teologicamente inadequada. Mesmo que os
llCl'itos confessionais não excluam esta id& expressamente, parecendo, às vez.es,
ad mgeri-Ja. ela é inoonciliável com suas afixmm;&s teo16gicaa.

10. O primus usus e o Evangelho

a) O primus usus contraria o Evange1ho porque exjge uma justiça das


obrai, levaDdo o ser humano, com isso. à temeridade (Os artigos de EstÍlalcalde,
uoa lei",_ AS: C II: SD V, 10). Diante do EV&nge]boLJ?0118nto, a ü'8litia civilis é pe-
Oldo e hipocrisia (AC Il, 34; IV, 35). "Tudo o que não prov6n de fé é pecado. Pri-
meiro a pessoa deve ser agrad4vel à Deus. a lhe deverem ser agradáveis também as
obras dessa pessoa." (SD IV, 8.) Através do Evangelho, o prlmus usus d "suspenso"
no duplo sentido da palavra. i rompido e cumprido. No <tiscipulado de Jcsus o Ili-
bado cS profanado, abandonam-se pai e mie e obedece-se mais a Deus que aos seres
humanos, mas exatamente nisso se cumpre verdadeiramente, na fé, a santidade da
paz, do respeito aos pais e da obediência civil.
b) O primus usus esti relacionado com o Evange1ho: 1. AtravéS dele surge
a ordem secular, que, de acordo com a vontade de Deus, protege o mundo de desor-
dem e arbitrariedade. 2. Dentro dessa ordem, o ser humano recebe de Deus todas as
boas dMivas da vida terrena e pode, na fé no EvangeJho, praticar boas obras. Nos
elCl'itos confessionais, a idéia de que as estruturas seculares existem por causa da ·
vida de fé ·n o Evangelho prepondela sobre a outra de que as estruturas servem
como pressuposto para a salvação pelo E~ 3. A auto~.- que pro-
tep essas estruturas zela pela manutenção da pregação cristã ("isto Deus, o Senhor,
exiae de todos, reis e prlncipes'' - AC XXI, 44) e ela mesma, como ordenação de ,.
Deus, ··~ mantida e protegida por Deus contra o diabo" (AC VID, 50). 4. No Am-
bito da iustitia civilis, a obediência ao primeiro mandamento significa: freqüentar
a lpja, ouvir a predica, ouvir o Evangelho e meditar sobre ele em certa medida; ·
nlo se deve "esperar até que Deus, sem meios, infunda seus dons" (SD Il, 53, 46,
24). A procura deste "meio", da prédica, 6 a mais fntima ligação e a mais nítida dis-
t:lnçlo entre primus usus e Evangelho. ~ verdade que esta obediência no Ambito do
prlmus usus legis continua culto externo e pecado,, mas assim mesmo se constitui
aqui em verdadeira "pti%M•Jioâ.àlo" para a fé _no Evange1ho, por mais que seja, ao
R1CllltlO tempo, sua mais extrema contradição. S. O EvangeJho ensina a agradecer
por toda ordem mundana, onde quer que seja encontrada. Ele nlo espera nada de

172
bom da desordem. Chama, porém, para o reconhecimento de Jesus Cristo, atrav&
de quem, para quem e por causa de quem tudo foi criado.
e) O primus usus não pode ser separado da pregação do Evangelho. Como
vale para descrentes e crentes (Ep. VI. 6; SD VI. 9), como não é uni método de pre-
gação, mas uma parte da "una e imutável vontade de Deus", não pode ser separado
dos outros dois usus. Não M pregação cristã das obras sem pregação do reconheci-
mento dos pecados e do cumprimento da lei. Mas a lei não pode ser pregada sem o
Evangelho. Os escritos confessionais entendem que, em diversas passagens da Es-
critura, lei e Evangelho são proclamados diferentemente ("em alguns lugares ela nos
coloca diante da lei, em outras nos oferece graça" - AC IV, S); ao mesmo tempo,
porém, reconhecem que lei e Evangelho estão ligados em toda parte, do Decálogo à
pregação da cruz, e ensinam que as duas pregaç&s desde sempre "estiveram lado
a lado" (SD V, 23). AssiJn. em 1iltima análise, não é o pregador, mas somente Deus
que distingue lei e Evangelho. Onde o primus usus é proc1amado isoJadamente, tor-
na-se mensagem moralis~ e deixai: de ser ~vra viva de Deus. Constitui clerica-
lismo e farisaísmo pregar s6 as obras a um grupo de pessoas e contentar-se com sua
execução, privando-as do todo da proclamação. O pregador de moral s6 pode pro--
duzir hipócritas. A exposição do DecQ.ogo no Catecismo Maior é o melhor guia
pratico para a pregaçoo do primus usus. ·
d) O primus usus tem sua origem e seu alvo no Evangelho. A pregação
cristã chama todos os seres humanos à f6 porque o Evangelho deve ser anunciado a
e
todo&, porque Jesus Cristo se tomou ser humano i:norreu pelos pcCados de todos
os seres humanos. porque conquistou a salvação para os seus inimigos. ConseqOen-
tement.e, ela não tem um interesse aul8nomo no estabelecimento de determinadas
estruturas no mundo. Chama à ordem secular porque convida para a fé. De'1C reinar
ordem entre os seres humanos e no mundo porque, em Jesus Cristo, Deus amou aos
seres humanos e ao mundo. Por pertencer a Deus em graça, o ser humano deve obe-
decer-lhe em obras. Por existir uma comunidade de Deus, deve e pode haver direito,
paz e ordem. A fé continua pressuposição, origem de todas as obras. S6 a partir daí
o EvangeJho também é o objetivo do primus usus. Deus quer a ordem externa não s6
porque o Evangelho existe, mas também para que possa estar presente. Entendido
assim, o primus usus tem cardter "pedagógico" em direção a Cristo (AC IV, 22).
Tanto a seqftência: Evangelho e lei, coino a outra: lei e Evangelho têm justificação
teol6gica e necessidade de ser. Nos escritos confessionais prepondera a segunda. Em
ambas. porém, o Evangelho é a palavra de Deus "propriamente dita".
e) Primus usus e com1midade: com o primus usus interpelam-se os des-
crentes com base em sua vocação para a comunidade.. Fora dessa vocação, a Igreja
não tem oompetêDc.ia par.l a proc1wação dà le.i. ~ assertiva não esd assim for-
mulada nos escritos confessionais, niM é a conseqflência necessária do que foi dito
acima.
f) Primus usus e o reino de Cristo: os escritos confessionais acolhem a
doutrina bfblica do senhorio de Jesus Cristo sobre todos os senhorios e poderes do
nmndo exclusivamente no artigo cristo16gico, e não naJgumã ligação com o primuS
usus. O conceito do reino de Cristo, no entender deles, refere-se s6 à _Igreja.

173
11. Algumas Conclusões e Perguntas

a) O alcance da proclamação do primus usu.s é o mesmo da pregação do


Evangelho; de acordo com a vontade de Deus, portanto, não M limitações. Ela en-
contra um limite interno concreto, no entanto, na descrença e desobediência dos
seres humanos, e um limite externo no poder dos governantes de se opor à pregação
e de privar os pregadores e ouvintes de toda responsabilidade secular. Enquanto o
cristão tiver responsabilidade secular, o primus usus integra sua confissão de Cristo.
Quanto mais se criar, através da pregação, a situação de Ap 13, quanto menos os
cristãos forem oo-responsáveis pela injustiça que acont.eoe no m0ndo, sendo antes
eles próprios as vítimas de injustiça, tanto 1lUÜs a responsabilidade que lhes é im-
posta pelo primus usus M de se comprovar num sofrimento obediente e numa séria
disciplina comunitária. Mas nem a comunidade das catacumbas é jamais dispensada
do carater universal de sua incumbência. Ao pregar a lei e o Evangelho, ela professa
essa tarefa e mantém viva a responsabilidade pelo mundo. A comunidade jamais po-
dera contentar-se em cultivar somente sua propria vida interna, sem renegar o seu-
Senhor. Mesmo ali onde ela pode fazer valer a iu.rtitia civilis s6 entre os seus mem-
bros, porque sua palavra não é aceita pelo mundo, ela faz isso a serviço do mundo e
de sua missão universal. Ela experimentará que o mal domina o mundo e que o reino
de Cristo não é deste mundo, mas exatamente isso a lembrará de sua tarefa em rela-
ção ao mundo; do contrário, tornar-se-ia um clube religioso. Não existe uma limita-
ção por princípio para a missão da comunidade; ela própria terá que decidir, de caso
em caso, como desincumbir-se dela diante dos sinais dos tempos. Sempre sent um
grande perigo para a plena execução de sua tarefa se a comunidade se entender de
modo demasiadamente direto na situação de Ap 13. A pregação apocal1pti.ca pode
significar a fuga do primus wus. A comunidade não haverá de querer compensar
a fraqueza da palavra de Deus com fanatismo religioso e tampouco confundirá sua
própria debilidade com a debilidade da Palavra.
b) Os escritos confessionais silenciam sobre a forma de pregação do pri·
mus usus; não esclarecem se é apenas pela prédica e instrução, isto é, s6 através da
interpelação da comunidade, ou se pode acontecer em direta interpelação ptiblica ou
particular de pessoas que integram o governo, se cada vez deve conter expressa re·
fer&cia ao Evangelho, se consiste na nomeação direta de pecados concretos ou na
proclamação genérica da lei, se deve acontecer sob a forma de protesto, advertência
ou pedido; ao pregador que se faz estas perguntas esta circunstancia confere liber-
dade de tomar uma decisão responsável e concreta, contanto que esteja cons-
ciente, na fé, da causa que promove e da situação em que se encontra (oomo prega-
dor, pai de família, governante). Na época da Reforma existem de fato exemplos
concretos para todas essas alternativas.
e) O primus usus esd tão longe da pregação moralista, que vê sua função
especffica no posicionamento em relação aos acontecimentos cotidianos e que, com
isso, confere uma importância própria às estruturas seculares e entende o Evangelho
apenas como meio para um fim, quanto esd longe da prédica "puramente religiosa"
por princípio, que separa o Evangelho da existência mundana do ser humano. Estas
duas formas de pregação têm car4ter tem4tico e constituem, por -iSSo, reduções ar-
bitdrias e negação da palavra do Deus vivo, que coloca o fiel numa posição de res-
ponsabilidade mundana concreta. No lugar da falsa contraposição de te!Mtica mo-

174
ralizante e religiosa. deve surgir a legítima distinção e ligação de lei e Evanselho.
Um sintoma relativamente .seguro da temática errada é o apologismo polemtco que
caracteriza tais prédicas; mesmo a maior ênfase religiosa ou "profética" nlo pode
esconder então que o mundo e o ser humano, e não a palavra de Deus, são o parl•
metro supremo da pregação. A temtica errad~ no entanto, priva o ouvinte tanto da
exigência como do consolo de Jesus Cristo.
d) O primus usus assinala o interesse da pregação cristã pelo conteddo da
lei. Exclui uma compreensão meramente formal da lei. Ela não trata do ser humano
respondvel no conflito dos seus deveres, mas da concretização de certas situaçõo1,
não do cristão nas estruturas seculares, mas da forma da ordem secular de acordo
com a vontade de Deus, nem tampouco da cristianização ou eclesialização das ea·
truturas mundanas, nias de sua autêntica mundanalidade e "naturalidade" na obe·
diência à palavra de Deus.
e) No Arnbito da iustitia civilis M uma possível e necessma colaboração
entre cristãos e não-cristãos para a clarificação de certas questões objetivas e para a
promÓção de tarefas concretas. Por causa de sua fundamentação substancialmente
distinta, os resultados dessa cooperação não têm o car~r da proclamação da pala•
vra de Deus, mas do aconselhamento ou exigência responsáveis baseados em conhe•
cimento humano. Esta diferenciação deve ser mantida. A cooperação pode ser de·
sejada e promovida tanto pelo poder secular como pelo espiritual. Se uma coopera·
ção entre cristãos de diversas confissões pode, além disso, levar a uma pregação
eclesial comum, depende exclusivamente do grau de unanimidade na interpretação
da palavra de Deus na fé em Jesus Cristo. Enquanto a concretização no Arnbito da
pregação se restringe essencialmente à recriminação de pecados concretos, a con•
cretização no Arnbito do aconselhamento responsável pode e deve chegar a exig&n·
cias positivas.
t) Em distinção dos outros, o primus usus fica sem uma expressa funda·
mentação bfblica nos escritos confessionais. Significaria isso que ele não é b1blico?
1. A Bfblia não conhece uma proclamação do primus usus desvinculada do Evango·
lho. 2. Ela não distingue, substancialmente, entre a pregação aos crentes e aos des·
crentes. 3. A Bfblia ensina que a pregação e a vida da comunidade acontecem em
responsabilidade pelo mundo. Não M nenhuma abs~ão dessa responsabilidade,
pois Deus amou ao mundo e quer que se auxilie a todos os seres humanos. 4. O po·
sicionamento da Bfblia em relação hs estruturas seculares dá-se sobretudo na instru·
ção concreta da comunidade (Rm 13, catálogos de normas para a vida dom~sdoa,
catálogos de vícios, Filemom). Mas existe também a pregação direta a autoridades
seculares (Paulo, diante de Félix, sobre ressurreição dos mortos, sobre a f~ cm
Cristo, sobre justiça, castidade e juízo vindouro, At 24.14ss.; diante de Festo, invo•
cação da legislação em vigor contra a arbitrariedade, 25.9; diante. de Agripa, 26.l;
João Batista diante de Herodes, Mt 14.4). Em todos os casos se trata da o~ncla
concreta àquele a quem foi dado todo poder no céu e na terra.

175
12. Cdtica da Doutrina dos Ums nos Escritos Confessionais Luteranos

a) O conceito de usus é ddbio em relação a seu sujei.to.


b) O relacionamento do prlmus usus com os descrentes ameaça romper a ·
unidade da lei e a tot.alidade da proclamação.
e) A diferenciação dos três usus carece de maior clare7.a. A causa disso é a
1ll1tlnçlo de grupos de seres humanos, associada l doutrina dos usus, e sua inter-
a>rotaçlo como diferentes m6todos de pmgaçlo, algo que nlo foi totalmente evitado.
d) O relacionamento da procJamaçlo do prlmus usus com a lei natural não
foi elClarecido. Na formulação que a1 temos, a doutrina do prlmus usus pode favo-
tior uma err&nea teologia das ordens.
e) Uma doutrina renovada dos usus deveria, sem farer qualquer distinção
1IU1 ouvintes, descrever a lei una em sua trfplice forma como pregação das obras,
11(>mo pregação do reconhecimento de pecados e como pregação do cumprimento da
lcd, ou (respectivamente e) deveria tratar, como questão sistematicamente l parte, da
validade e efeito de toda a lei de Deus (em sua forma tríplice): sua validade num du-
plo 1entklo, visando descrentes e crentes, sua eficdcia no qufdruplo sentido de justi·
llcaçlo pelas o~. edu~ para Cristo, desespel'a!1ça e misericordiosa orientação..
A oaallação da dognmtica veteroluterana entre duplex, triplex e quadrupla usus le-
1Lr explica-se pela mistura de todas essas pergúntas pela lei, das quais aquelas refe-
rentes l forma devem ser tratadas sob duplo aspecto, as referentes h validade sob
trfplice e as referentes ao efeito sob quMruplo aspecto. Qualquer tentativa de ab-
itorver uma desAS perguntas numa outra tem que levar ~ confusão. O conceito do
1 u.ru.r, no entanto, j~ inclui o perigo dessa confusão.

176
li

ETHOS "PESSOAL" E "DE OBJETO"

1. Ethos Pessoal ou de Objeto?

Em sua étical, Dilschneider formulou uma frase que hoje goza de ampla
aceitação especialmente nos ditos meios luteranos. "A ética evangélica tem a ver
com a personalidade do ser humano e tão-somente com ela. Todas as outras coisas
deste mundo permanecem intocadas por esse ethos evangélico. As coisas do mundo
não entram em sentido ético na zona de exigência dos imperativos éticos." (P. 87.)
Com isso quer-se fundamentar a concepção de que a ética cristã certamente tem a
ver com o cientista cristão, governante cristão, etc., mas não com a economia, o
Estado, etc. Esclarecimento: a distinção entre ethos "pessoal" e "real" não é idêntica
à distinção entre ética "individual" e "social"; pelo cont:r'1io, reconhece-se que o
cristão também tem obrigações mundanas de caráter social; a rejeição do "ethos
real" tampouco implica na rejeição de qualquer ética concreta a favor de uma ética
meramente formal; antes, no âmbito do ethos pessoal se fala bem concretamente.
Para refutar a tese de Dilschneider não basta, portanto, a referência aos manda-
mentos bíblicos que dizem respeito à vida comunidria nem à concreticidade da ética
bfblica. Trata-se especificamente da pergunta se, no 8mbito da ltica cristã, são vid-
veis assertivas sobre estruturas e condições mundanas, por exemplo, sobre Estado,
economia, ciincia, isto é, se a ética cristã tem um interesse nas estruturas e condi-
ções mundanas ou se essas coisas do mundo de fato são "eticamente neutras", isto é,
não caem na "zona de exigência dos imperativos éticos". Em outras palavras: a tini-
ca tarefa da Igreja é praticar o amor dentro das estruturas seculares existentes, isto
é, penetrá-las, na medida do possível, com uma nova mentalidade, suavizar extre-
mos, tomar conta das vftimas dessas estruturas e estabelecer uma nova ordem pró-
pria dentro da comunidade, ou a Igreja tem uma missão diante das próprias estru-
turas seculares existentes, no sentido de correção, de melhoramento, de trabalhar
com vistas a uma nova ordem secular? Vale dizer: a função da Igreja é s6 recolher
as vítimas ou deve ela atacar as causas que produzem vftimas?

l Otto DlLSCHNEIDER, Die evangelJsche Tat, Bertelsmann, 1940.

177
2. O Novo Testamento

A. A teologia liberal (especialmente Troeltsch, Naumann) entendia o


1lvanplho original como um poder "puramente religioso", transformador da men-
lalidado do indivíduo, mas, ao mesmo tempo, como um poder indiferente e avesso às
111éruturas o condições mundana&. Baseava esta posição, por um lado, na ênfase no
Mvllor infinito da alma humana", por outro, na suposta indiferença em relação à es-
' avttura ou ~ estruturas poJfti.cas, por exemplo. Desta deficiência do Evangelho
neoteltamentúio Nanmann concluiu que, em sua vida, s6 poderia ser crist.ão em
fennõl do 5% ou 10%, isto é, na medida em que nada tivesse a ver com as estruturas
1lolto mundo. Em resposta à teologia liberal. os te6logos religioso-socialistas invo-
l AYam o cadter social-revolucionmo das palavras de Jesus sobre pobres e ricos.
10bre justiça e paz e o reino de Deus em irrupção na terra. Viam no Evangelho de
J11ua o poder transformador do mundo kat exochen. "Deus e a alma" e "o reino de
1>oua na terra" eram as senhas opostas. Reconhecemos estas alternativas como ile-
lf'l:lmas, a colocação da quest.ão como errada. Ambos não atinaram com o centro do
Novo testamento: a pessoa de Jesus Cristo como salvaçlJo do mundo. A questão
ddca se decide na quest.ão cristol6gica, e s6 a partir da resposta do Novo Testa-
mento a esta dltima pode-se responder a pergunta pela relação do Evangelho com as
mtrutllras do mundo.
a) Tudo quanto foi criado existe por e em direção a Cristo e s6 nele sub-
•te (Cl 1.16), isto ~ nada há que esteja fora de relação com Cristo, nem pessoas,
nom coJsas; mais ainda, s6 em sua relação com Cristo a cdaçlo tem sua essência, não
ld o acr humano, mas também o Estado, a economia, ciência, natme7.a, etc.
b) Em Cristo "tudo" (Cl 1.17), o mundo (2 Co 5.19) est4 reconciliado com
JJeua, o tudo esti "sinteti7.ado sob uma cabeça" (anakefalaiõsis) (Ef 1.10). Nada est4
exolufdo. Em Cristo Deus amou "o mundo" (Jo 3.16). .
e) A comunidade de Jesus Cristo é o lugar onde se crê em Cristo como
ulva;lo do mundo todo e se obedece a ele. Com isso, a comunidade, desde o início
o do acordo com a sua essência, tem responsabilidade pelo mundo que Deus amou
om Cristo. Onde a comunidade não assumir essa responsabilidade, ela deixa de ser
OC1111unidade de Cristo.
d) Cristo como salvação do mundo significa senhorio de Cristo sobre as
pell088 e as coisas. O senhorio de Cristo no caso do indivíduo significa outra coisa
do quo no caso do Estado. economia, etc. Através do senhorio de Cristo tudo chega
a aúa verdadeira essência: ser humano, Estado, economia, etc. Mas tudo isso faz
parte do um conjunto e não deve ser arbitrariamente separado.
e) Como toda a criação existe por causa e em função de Cristo, ela esti sob
1eu mandamento e exigência. Por causa de Cristo e em função de Cristo h4 e deve
hiYõr ordem secular no Estado, na famOia, na economia. Por causa de Cristo a or-
dlm aecular est:i sob o mandamento de Deus. Convém lembrar, no entanto, que nlo
ti'ita do "Estado cristão", da "economia cristã", mas do Estado c:m:tCto e da eco-
nomia correta como ordem mundana por causa de Cristo. Existe, portanto, wna res-
ponllbilidade cristã pelas estruturas mundanas e, numa ética cristã, h4 o que direr a
reapeito.
B. Como se manifesta concretamente, no Novo Testamento, essa respon-

178
sabilidade da comunidade pelo mundo?
a) Decisivo é saber que s6 M um interesse em relação às cond.içõoa do
mundo em conexão com o todo da proclamação de Cristo. Uma pregação para o
mundo sem testemunho de Cristo, isto é, sem o tinico alicerce confiável desta prega·
ção, é inimaginável para o Novo Testamento. Assim, a responsabilidade decisiva da
comunidade para com o mundo sempre é a pregação de Cristo. A serviço desta pro·
gação de Cristo, no entanto, Paulo invoca o direito romano e dá testemunho de cas·
tidade e justiça perante as autoridades pagãs (At 16; 24.14ss.; 25.10; 26.1).
b) Por que o Novo Testamento não combate a escravatura? Deste fato
isolado foram tiradas conclusões do maior alcance, ignorando tudo que de funda·
mental está dito no Novo Testamento. A justificação usual com a expectativa do
retomo de Jesus em-.breve não é conclusiva: ou se levava a sério o senhorio de
Cristo sobre todas as áreas da vida, e então a expectativa do fim próximo s6 podia
levar a impô-lo mais rapidamente (cf. Lc 12.45) para preparar o caminho para a
vinda de Cristo, ou então não se devia levá-lo a sério de modo algum; nesse caso
também não quando a vinda do Senhor se retardou. Como, porém, de acordo com o
Novo Testamento, não há d11vidas quanto à seriedade da reivindicação de Cristo so-
bre toda a criação, restam as seguintes explicações simples: Paulo não considerava a
forma da escravatura vigente à época uma estrutura que estivesse em contradição
com o mandamento de Deus. Para tanto poderíamos aduzir fontes que documentam
a relativa amenidade do regime escravocrata desses tempos. Mas Paulo pôde obser-
var sob~tudo que ·ó êscravo não era impedido de viver como cristão por causa da
sua condição servil em si. Ora, uma estrutura do mundo que deixava espaço para a
comunidade de Jesus Cristo e para a vida de acordo com o mandamento de Deus
não era condenável em si; deveria ser melhorada a partir de dentro. Com relação à
situação política e econômica, o raciocfnio pode ter sido semelhante, devendo-se
lembrar que justamente naquela época o Império lbmano experimentava uma fase
de relativa estabilidade e segurànça jurídica. Além disso, deve-se levar em conta que
o regime escravocrata bem mais cruel na parte ocidental do Império s6 veio ao co-
nhecimento do apóstolo bem mais tarde e que ele s6 poderia manifestar-se sobre
essas questões em conexão com sua pregação de Cristo. Aparentemente ele também
não o fez em Roma, como podemos deduzir da posição da Igreja nos tempos p6s- .
paulinos. Mais importante do que todas essas possíveis explicações é o seguinte:
para a comunidade há, de fato, diversas maneiras de exercer sua responsabilidade
perante o mundo; uma é a situação missionária, outra aquela em que a Igreja conta
com o reconhecimento do Estado, e ainda outra em tempos de perseguição. A co-
munidade missionária, como minoria, primeiro tem que abrir caminho através de
plena concentração na proclamação de Cristo como chamamento para a comunida-
de, para então poder, de algum modo, colaborar responsavelmente no mundo. Para a
Igreja já reconhecida pelo Estado e para os cristãos em cargo e responsabilidade se-
cular, o testemunho do mandamento de Deus sobre Estado, economia, etc. integra
sua confissão de Cristo. Quanto mais os cristãos, na situação de Ap 13, não forem
os responsáveis pelas injustiças do mundo, mas suas vítimas, tanto mais sua respon·
sabilidade pelo mundo se manifestará em obediente sofrimento e séria disciplina
comunitária. Mas também a comunidade das" catacumbas não está dispensada do
caráter universal de sua missão. A pr6pria comunidade terá que decidir, de caso em
caso, como desempenhá-la face às circunsdnclas. Também o Novo Testamento co-

179
nbeoo formas de Estado e economia que em si conflitam com o mandamento de
t>oua: Apocalipse 13. Pouco depois, a prestação de serviço póblico e militar no Im-
r'rto Romano tomou-se duvidosa.

3. Escritos Confessionais

Nos escritos confessionais o interesse da Igreja de Cristo pelas estruturas


mundanas está consubstanciado na doutrina do primus usus legis. Deve-se :lembrar,
nt> entanto, que o prlmus usus s6 é mvel na múdade de toda a lei e de toda a prega-
vlo• S6 por causa de Cristo existe um primus usus e iustitia civilis. Onde o primus
Ulu.t ameaça desvincular-se dessa unidade, transfonna-se nwna abstrata lei natural
1111a fUndamento. O melhor exemplo é o Catecismo Maior de Lutero, no qual se
pnMrvou a unidade. No primus usus, a Igreja testemunha que não entrega o mundo
• 1ua própria sorte, mas o concJama a colocar-se sob o senhorio de Cristo; isto é:
nlo ae trata do cristão na ordem secular, mas das próprias ordens seculares de acor-
do oom a vontade de Deus, não de cristianização ou ecJesialização, isto é, da sus-
pendo da "relativa" autonomia das ordens mundanas, mas de sua autêntica munda-
nalidade e "naturalidade" na obediência Apalavra de Deus. Precisamente em sua le-
aftlma mundanalidade as ordens mundanas estão sob o senhorio de Cristo. Esta, e
Mda mais, é a sua "autonomia", "autonomia" não diante da lei de Cristo, mas diante
de heteronomias terrenas.

4. Observações Críticas à Tese de Dilschneider

a) O isolamento da pessoa do mundo das coisas é pr6prio do idealismo, não


do cristianismo. Cristo não liberta a pessoa do mundo das coisas, mas do mundo do
Pfcodo; isto são coisas distintas. Não M coisas "em si", que não tenham relação com
a peuoa. Não existe um Smbito de coisas que por princfpio estivessem fora do am-
bAto da pessoa e com isso fora do alcance do marvia1muto divino. Isso nlo vale so-
rnonte para a realidade da bis~ mas até mesmo para a ~ da natureza (se bem
quo esta distinção é questioâveJ. biblicamente): ela está sob o mandamento que nos
tot revelado pela Palavra e que lhe impõe a fertilidade, o crescimento, o louvor a
Deua (SI 148) e a disposição de servir ao ser humano. Portanto, de acordo com a
IHblla, não M um mundo das coisas inatingido pelos mandamentos de Deus e sepa-
rado do mundo das pessoas.
b) A tese de que o mandamento divino não afeta o mundo das coisas ba-
llla-ae numa compreensão errada da doutrina das coisas adiMoras. A, existência do
ldW'oras de maneira nenhuma significa a neutralidade ética do mundo das coisas.
111111 sua dctermi0 ação divina de servir à liberdade dos seres humanos. Nada é adi4·
toro por prlncfpi.o; o car.tter adifioro de alguma coisa é uma afirmação de fé tlo-
IOIDOllte, não sendo, portanto, uma qualidade da "coisa em si", independente da
peuoa. mas a expressão de um determinado relacionamento da pessoa com a coisa.
Uma doutrina de adiáforas por princípio é antinomista.
e) A exclusão do mundo das coisas - até onde vai ele. afinal? Não se es-

180
tcode a~ o nlcio da comunidade? - dos mandamentos de Deus implica na proclama·
çlo de sua autonomia. Isso significa o abandono do senhorio de Cristo sobre uma
lrea da vida e, com isso, antinomismo.
d) No lugar do esquema não-teo16gico dos termos "'pessoa" e "coisa", te·
mos que colocar a diferenciação bft>lica de comunidade e ordem mundana.

S. Observações de Car4ter Sistemático


sobre as Afirmações Possíveis da Parte da :atica Cristã
sobre as Ordens Mundanas

a) Todas as assertivas possíveis sobre as ordens seculares fundamentam-se


em Jesus Cristo, como origem, essência e objetivo de toda criação e. por isso, a ele
devem referir-se. O senhorio de Cristo constitui a posstõilidade e o sentido de todas
~colocações.
b) Na proclamação do senhorio de Cristo sobre as estruturas seculares,
estas não são submetidas a um dom/nio alienígena - "ele veio para o que era seu"
(Jo 1.11), "tudo nele subsiste" (Cl 1.17), portanto não a uma lei clerical, humaniti-
ria, racional, moral-natural ou judia; pelo contrmo, sob o senhorio de Cristo elas
chegam à sua própria essência, assumem a lei que lhes é inata e conferida com sua
criação. Tampouco são submetidas à arbitrariedade de uma suposta "autonomia"
que no fundo é mera anomia, pecado. Antes, recebem seu lugar essencial, próprio e
competente dentro do mundo que, em Cristo, Deus criou, amou e reconciliou. Desta
maneira, sob o senhorio de Cristo, reoebem sua própria lei e sua propria liberdade.
e) O Dedlogo é a lei de vida, revelada por Deus, para toda vida que esti
sob o senhorio de Cristo. :a a hõertaçlo de domínio alienfgena e de arbitrariedade
autônoma. A qúem crê, o Decálogo se revela como a lei do Criador e Reconciliador.
O DecQogo delimita o espaço dentro do qual uma livre obediência da vida mundana
se toma possfvel. Ele liberta para uma vida livre sob o senhorio de Cristo.
d) Senhorio de Cristo e DecQ.ogo nlio significam, para as estruturas secu-
lares, servilismo a um ideal humano, a uma "lei natural", nem à Igreja - <&emos
isso contra a doutrina medieval-tomística -, mas a libeT1a.çlJo para a verdadeira se-
cularidade, para que o Estado possa ser realmente Estado, etc. Senhorio de Cristo e
Dec'1ogo, portanto, não significam para as estruturas mundanas, em primeira linha,
a conversão do governante, do economista, nem tampouco a suspensão do rigor e da
implacabilidade do F.stado em favor de uma cristianização mal-entendida do Estado
que pretende ser, ele mesmo, um tanto Igreja. Justamente na preservação de rigo-
ro&a justiça, do otlclo da espada, da despjedade das instituições estatais. isto 6, da
autentica secularidade, leva-se bem a sério o senhorio de Cristo, isto é, o senhorio
da graça. A encarnação de Deus, isto é, a encarnação do amor estaria mal-entendida
se não qtiis&semos entender tambcSm as estruturas seculares de rigorosa justiça, do
castigo e da ira de Deus como concretização deste amor encarnado, se não enxer-
gafssemos que o mandamento do sermão da montanha esti sendo respeitado tambcSm
na autêntica ação estatal. O sentido e o alvo do senhorio de Cristo não é a diviniza·
ção ou a eclesialfaação da ordem secular, mas sua libertação para a secularidade au-
têntica.

181
e) A libertação da ordem mundana para sua subordiiiação ao senhorio de
e'rllto nlo se concretiza através da conversão dos governantes cristãos, etc., mas
IJo confronto concreto das estruturas seculares com a Igreja de Jesus Cristo, sua
proalamaçlo e sua vida. Ao admitirem a existência da Igreja de Jesus Cristo, ao da-
nim etpaço a ela, ao respeitarem sua proclamação do senhorio de Cristo, as estru-
turu mundanas encontram sua mundaoolidade legítima e sua lei pr6pria, ambas fun-
damontadas em Cristo. A postura em relação à Igreja de Jesus Cristo sempre senl o
pulmetro para a legítima mundanalidade, livre da lei alienfgena, ideológica, livre
l•m"'m de arbitrariedade autônoma. Uma postura errada em relação à Igreja t.enl ·
1omprc como conseqflência um desvirtuamento da legítima secularidade, das estru-
tum1 aeoulares, do Estado, etc., e vice-versa.
t) No que diz respeito ao relacionamento das estruturas mundanas entre si
com a Igreja, devemos colocar, a meu ver, no lugar da doutrina luterana dos tr&
MtAdOB: oeconomicus, politicus, hierarchicus - cuja peculiaridade principal e signifi-
lldo duradouro é a justaposição em vez da hierarquização, preservando~ assim, a
ordem secular do domínio alienígena da Igreja e vice-versa-, uma doutrina, haurida
da B!blla, sobre os quatro mandatos divinos: matrimônio e famflia, trabalho, gover-
no, Igreja. Estas ordenações são divinas pelo fato de terem uma tarefa divina con-
oreta. fundamentada e testemunhada na revelação, e de terem uma promessa divina.
Um melo à mudança de todas as ordenações históricas, estes mandatos divinos sub-
llatlrão até o fim dos tempos. Sua justificação não é simplesmente sua existência
hlat6rlca - nisso se distinguem de ordenações como povo, raça, classe, massa, socie-
dade, nação, p~ império, etc. -, mas são posi1ivos mandatos divinos para apre-
mvaç!o do mundo por causa de Cristo e em função dete. Pode até não ser acaso
que precisamente esses mandatos parecem ter seu protótipo no mundo celestial:
malrlmbnlo = Cristo e a comunidade; familia = Deus Pai e Filho, fraternidade dos
llCl'CB humanos com Cristo; trabalho = o serviço criador de Deus e de Cristo para o
mundo, e dos seres humanos para Deus; governo = senhorio de Cristo em eternida-
de; Estado = polis de Deus.
g) Uma palavra da Igreja às estruturas seculares há de colocar esses man-
datos divinos, em sua respec1iva forma concreta, sob o senhorio de Cristo e o De-
"'1oso e, assim, não submetê-los a uma lei alienígena, mas liberd-los para um servi-
90 leCl1lar concreto e autên1ico. E~ palavra falanl de tal forma dos mandatos divi-
noa da ordem secular que acima del.es se preserve o senhorio de Cristo a ao lado
ddlos o divino mandato da Igreja cristã. Não podenl dispensar as estruturas secula-
ma do sua decisão responsável e de seu serviço, mas pode encaminhá-las até ali onde
realmente possam decidir e agir de maneira responsáveL
h) A observação de que as estruturas seculareS podem cumprir seu serviço
tamb6rn sem o encontro com a palavra da Igreja de Jesus Cristo (os turcos em Lu-'
fllro), em primeiro lugar s6 é correta em sentido restrito - verdadeira secularidade
IÕ oxlate através da libertação por Cristo, fora disso imperam leis estranhas, ideolo-
llu, ldolos; em segundo, o muito limitado acerto desta observação para a Igreja sd
podo ser uma confirmação - gratamente aceita - da verdade que lhe foi reveJada,
nuUt nlo pode levá-la à opinião de que isso bastaria; antes, devenl levar à proclama-
glo do senhorio de Cristo como verdade plena em todas as verdades parc:iajs. O re-
oonhoohnento de que cá e lá ordem secular é possível sem prédica ouvida - porém
j1mats sem a existlncia de Jesus Cristo - não levanl a Igreja a desconsiderar Cristo,

182
mas l plena pregação da graça do senhorio de Cristo. O Deus desconhecido agora ~
pregado como conheCido, porque se revelou.

183
- -
-- --
- -

Ili

ESTADO E IGREJA

1. Sobre os Conceitos

O conceito de Estado é estranho ao Novo Testamento. Ele tem sua origem


na Antiguidade pagã. Em seu lugar aparece no Novo Testamento o conceito de au-
loridade. Estado significa comumdade ordenada, autoridade é o poder que cria e
mant6m a ordem. No conceito de Estado incluem-se governo e governados, o con-
oolto de autoridade s6 se refere aos governantes. A idéia de polis, que é constitutiva
para o conceito de Estado, não tem nenhuma relação obrigatória com a idéia de
IJ&Ousia. A polis, para o Novo Testamento, é um conceito escatológico, a cidade fu-
tura de Deus, a nova Jerusalém, a comunidade celestial dominada por Deus. A au-
lorldade não está relacionada, essencialmente, com a polis terrena; ela pode ser bem
mais abrangente (assim como ela também se faz presente nas restritas formas de re-
Jadonamento social como pai-fiJho, patrão-empregado). O conceito de autoridade
nlo contém, portanto, um tipo determinado de sociedade nem uma forma determi-
nada de Estado. Autoridade é poder ordenado por Deus para exercer domínio na
torra com autoridade divina. Autoridade é representação de Deus na terra. S6 pode
1Cr entendida a partir de cima. A autoridade não nasce da própria sociedade; antes,
orpniza esta dltima a partir de cima. Se em termos exegéticos for ciorreto conside-
rar a autoridade um poder angélico, isso apenas define sua posição entre Deus e o
mundo. Teologicamente s6 o conceito de autoridade é aproveitável, o de Estado
nlo. Assim mesmo, naturalmente não podemos evitar o termo "Estado" nas refle-
xões concretas.
No conceito de Igreja, especialmente onde se procura esclarecer sua rela-
~lo com a autoridade, respectivamente com o Estado, temos que distinguir entre o
rnlnlst6rio espiritual e a comunidade, ou seja, os cristãos. O ministério espiritual é o
poder instituído por Deus para exercer domínio espiritual com autoridade divina.
Nlo surge da comunidade, mas de Deus. Enquanto governo secular e espiritual de-
vem aor rigorosamente distinguidos, os cristãos são ao mesmo tempo cidadãos, e os
aldldlos, por sua vez, crentes ou não, estão ao mesmo tempo sob a reivindiCação de
JOIU8 Cristo. Desta maneira, a relação do ministério espiritual com a autoridade é
outra do que a dos cristãos. Essa dif~nça deve ser lembrada para evitar constantes
mal•ontcndidos.

184
2. A'.Flmdamentação da Autoridade

A. Pela Namreza do Ser Humo.no

A ~ntiguidade, especialmente Aristóteles, fundamenta o Estado pela natu•


reza do ser humano. O Estado é a consumação máxima da natureza racional do ser
humano; servir-lhe é a suprema fmalidade da vida humana. Toda ética é ética polfti-
ca. Virtudes são virtudes polfticas. Esta fundament.ação do Estado foi assumida, em
seu princfpio, peJa teologia católica. O Estado procede da natureza humana. A capa-
cidade social do ser humano, bem como a relação de domínio, decorrem da criação.
No Ambito do natural-criaclonal, o Estado cumpre a destinação da natureza humana,
ele é "o desdobramento miximo do caráter social natural" (Schilling, Moraltheolo-
gie Il, p. 609). Esta doutrina aristotélica e tomista reaparece, com algumas modifi-
cações, na teologia anglicana. Mas ela penetrou também no luteranismo moderno. A
conexão entre teologia natural e teologia da encarnação entre os anglicanos (entre-
ment.es, a nova geração de anglocatólicos já reconheceu claramente sua dubiedade e
a está corrigindo mediante uma theologia crucis) abre a possibilidade de uma pecu-
liar fundamentação natural-cristã do Estado. O luteranismo moderno, via Hegel e o
romantismo, incorporou o conceito natural de Estado. O Estado aqui não é a con·
sumação da natureza humana genérica e racional, mas a vontade criadora de Deus
no povo. Estado é essencialmente naçi<l1. O povo cumpre na nação um destino dese-
jado por Deus. Aqui não importam os detalhes de conteddo. O conceito de Estado
da Ãntiguidade continua vivo nas figuras oo Estado racional, do Estado nacional, do
Estado cultural, do Estado social e finalmieDta também, e de maneira muitíssimo de-
cisiva, na do Estado cristão. O Estado é o consumador de determinados conteddos
dados e, numa "liltima conseqüência desta doutrina, toma-se o sujeito propriamente
dito desses conteddos, do povo, da cultura, da economia, da religião. Ele é "o deus
verdadeiro" (Hegel). Comum a todas essas doutrinas é o conceito de Estado como
entidade comunit.ltria; em conseqüência, o conceito de autoridade é de diffcil defini-
ção e s6 pode ser obtido por meios indiretos. No fundo, então, também a autoridade
precisa ser derivada da natureza humana, tornando-se diflcil, conseqüentemente,
entendê-Ia como o poder coercitivo que se volta contra o ser humano. Pois é no po-
der coercitivo que a autoridade estatal se diferencia de toda superioridade e subor-
dinação espontânea que existem em cada comunidade. Onde quer que o Estado seja
derivado da naturez.a humana criada, o conceito de autoridade é dissolvido e re-
constituído a partir da base, mesmo ali onde nem se deseja isso. Onde o Estado se
transforma no consumador de todas as•fmas da vida e cultura humanas, ele perde
sua digiiidade peculiar, sua au'coridade ~a como governo.

Partindo de idéias de Agostidno, a Refor. ma superou o conceito de Estado


da Antiguidade. Ela não fundamenta o Estado como entidade comunitdrla na naturo-

185
· hurnuia criada (ainda que apareçam certas colocações nesse sentido nos escritos
dai refonnadores), mas fundamenta o Estado como autoridade na queda em peca-
. . Pol o pecado que tornou necessú:ia a instituição de autoridade por parte de
Doua. Cabe à autoridade proteger os seres humanos, através da espada que Deus lhe
oonforlu, do caos que o pecado provoca. Cabe a ela penalizar o criminoso e proteger
1 vldL Com isso a autoridade é fundamentada como poder coercitivo e como guar-
dll duma justiça externa. As duas funções recebem igual atenção por parte da R~ •
forma. Mas, na evolução do raciocfnio, aconteceu uma bifurcação. Uns definiram o •
conceito da justiça pelo do poder coercitivo e foram levados à concepção do Estado
baMldo no poder. Os outros entendiam o poder a partir da justiça e desembocaram
n• aoncepçlo do Estado de direito. Aqueles s6 viam exousia onde houvesse po-
der, oetes apenas ali onde existisse direito. Ambos reduziram, com isso, o conceito
mformat6rio de exousia. Não obstante, permaneceu como base comum para as duas
oomntes o fato de que não entendiam o Estado como consumação de circunstâncias
criatura.is, mas como ordem de Deus hnplantada de cima. O Estado não é concebido
1 partir de baixo, do povo, da cultura, etc., mas a partir de cima, isto é, no legítimo
IOntido de autoridade. Nisso se preservou o ponto de partida original da Bíblia e da
Refonna. O Estado, portanto, não é essencialmente nação, Estado cultural, etc. To-
du essas são apenas formas possíveis da comunidade estatal, por Deus assim permi-
tldu, que podem ser substituídas por outras tantas até agora talvez desconhecidas
para nds. Em distinção das diversas formas de comunidade admitidas por Deus, a
autoridade foi estabelecida e ordenada pof Deus mesmo. Povo, cultura, organiz.ação
IOCial, etc., tudo isso é mundo. Autoridade é ordem no mundo, ordem essa dotada
de autoridade divina. A própria autoridade não é mundo, é de Deus. A partir disso,
blrn"'m o conceito de Estado cristão não pode ser man1ido, pois o caráter de autori-
dade do Estado existe independentemente do caráter cristão das pessoas em funções
de autoridade. Autoridade também M entre os pagãos.

C. A partir de Cristo

Mormente do que foi dito por tlltimo, mas também do anterior, depreende-
llC que tanto a fundamentação do Estado a partir do pecado como aquela a partir da
natureza humana levam a um conceito de Estado em si, ou seja, independente de sua
~lo com Jesus Cristo. O Estado, seja como ordem da criação, seja como ordem
da preservação, existe por si mesmo, mais ou menos independente da revelação de
Doua em Jesus Cristo. Apesar de todas as, vantagens da segunda fundamentação so-
me a primeira, também aqui não podemos fugir desta constatação. Surge então a
pergunta a partir de onde posso dizer algo teologicamente sustentável sobre o pa-
,rat.o ou a queda do ser humano - distinguindo-se de uma filosofia cristã geral - se
nlo a partir de Jesus Cristo. Através de Jesus Cristo e em sua função todas as coisas
fonm criadas (Jo 1.3; 1 Co 8.6; Hb 1.2), e isto inclui expressamente "os tronos, so-
beranJas, principados, autorldade8" (Cl 1.16). Tudo isso s6 tem consistência em Je-
1ua Cristo (Cl 1.17). Ele, no entanto, é o mesmo que é também "a cabeça da Igreja"
(Cl l.18). Portanto, sob nenhuma circunstancia é possível falar teologicamente de
autoridade - desde que se vise a autoridade instituída por Deus e não algum con-

186
ceifo filos6fioo - independentemente de Jesus Cristo na sua qnalidade de cabeça da
Igreja, vale dizer, iodepcmdentemente da Igreja de Jesus Cristo. Em conseqMncJa, a
legitima fundamentação da autoridade é o pi6prlo Jesus Cristo. Em sete pontos po·
demos resumir a teJação de Jesus Cristo com a autoridade:
L Como mediador da criação, "por meio do qual" também a autoridade foi
criada, Jesus Cristo é a dnica e indispensável relaçlo da autoridade com o Criador; a
autoridade não 6 imediata em relação a Deus; Cristo 6 o seu mediador. -
II. Como toda criação, assim também a autoridade s6 tem "consistência em
Jesus Cristo", sua essência e seu ser, portanto. Não fosse Jesus Cristo, não haveria
mais criação; teria sido destrutda na ira de Deus.
III. Como a criação toda, a autoridade também está orientada "para Jesus
:a
Cristo". Sua finalidade é o prdprio Jesus Cristo. a ele que deve servir.
· IV. Como Jesus Cristo detém. todo pÓder no cdu e na terra (Mt 28.18), ele
. tamb6n 6 o Senhor da autoridade.
V. Jesus Cristo restabeleceu a relação da autoridade. com Deus ~través da
teeonciliação na cruz (Cl 1.20- ta panta).
VL Além dessas relações com Jesus Cristo que a autoridade tem em co-
mum com toda a criaçio, existe ainda uma relação de caráter especial:
a) Jesus Cristo foi crucificado com a permissão da autoridade.
b) A autoridade que reconh~u e testemunhou publicamente a inocência
de Jesus (Jo 18.38; cf. também no processo de Paulo as posturas de Lfsias, F6Jix,
Festo e Agtipa) revelou com isso sua verdadeira essência.
e) A autoridade que não arriscou assumir, com o poder que lhe compete,
sua conclusão e juízo, abandonou seu ofTcio sob presslo do povo. Isso não significa
uma condenação do otlcio como taJ, mas apenas de seu deficiente desempenho.
d) Jesus sujeitou-se à autoridade, lembrando-a, entre1anto, que seu poder
não é produto da arbitrariedade humana, mas é "dádiva do alto" (Jo 19.10).
e) Jesus testemunhou com isso que a autoridade, no bom ou no mau de·
sempeobo de seu offclo, s6 pode servi-lo, precisamente porque é poder "do alto".
Inocentando-o de culpa e, mesmo assim. entregando-o para a crucificação, a autori-
dade teve que testemunhar que est4 a serviço de Jesus Cristo. Assim, foi justamente
pela cruz que Jesuà i'ecuperoú o senhorio sobre a autoridade (CI 2.15), e, no fim de
todas as coisas, "todo senhorio, autoridade e poder" ser« suspenso e ao mesmo mm-
po conservado por ele.
VIL Enquanto o mundo existir, Jesus selá simultaneámente o Senhor de
toda autoridade e cabeça de sua comunidade, sem que jamais comunidade e autori-
dade se tornem uma s6 coisa. No fim, entretanto, haved uma cidade santa (polis)
sem templo, pois Deus e o cordeiro serão o templo (Ap 21); os cidadãos desta cidade
são crentes da comunidade universal de Jesus, e a autoridade é exercida por Deus e
pelo cordeiro. Na polis celestial, Estado e Igreja serão uma s6 coisa.
Somente a fundamentação da autoridade em Jesus Cristo supera as fun-
damentaç6es a partir do direito natural, às quais, em dltima an'1ise, levam tanto a
fundamentação pela natureza como aquela pelo pecado do ser humano. A funda-
mentação pela natureza do ser humano -ve na existência dos povoê, etc. a base do
Estado de acordo com o direito natural. A partir dela 6 poss(vel justificar imperia·
tismo e revoluçlo, isto '- revolução para fora e para dentro. A fundamentação pelo
pecado precisa descobrir normas de direito natural pam limitar o conceito do podor

187
110I' 1quolo do direito e, por iiso, tent Úma orientação mais conSe.rvàdora. Mas, como
1onoelto o conteddo do direito natmal são ambfgoos (dependendo se os obtemos a
partir de certos dados ou de certas normas), não são suficientes para fundamentar o
llatldo. A partir do direito natmal 6 possfvel :fundamcm.tar tanto a tiraoia como o
U.t.do de direito, tanto a nâção comõ o imperialistÚo, tánto a democracia como a
dltldura. Base firme s6 conseguimos pela fundamentação bfblica da autorida.4e em
J•ua Cristo. Se e em que medida a partir daqui pode ser desenvolvido um novo di-
reito natural, é uma questão teol6gica aberta até o momento.

3. O Car.tter Divino da Autoridade

A.Em seu Ser

A autorid.ade não é uma idéia ou uma tarefa que nos foi dada, mas uma
rulidade, algo que "existe" (hai de ousai; Rm 13.lc). Em seu ser eJa é oticio divino.
AI possoas em funções governamentais são "liturgos" de Deus, seus servidores e
nproaentantes (Rm 13.4). O ser da autoridade independe da maneira como veio a
.er. Mesmo que o caminho dos seres humanos para a função governamental passe
lel'llpre de novo pela culpa, ainda que quase toda coroa esteja manchada de culpa
(Shakespeare, dramas reais), o ser da autoridade está além de sua gênese terrena;
poJs a autoridade é ordem de Deus não na sua fonna de surgir, mas em seu ser. As-
abn como tudo que existe, tamb&n a autoridade em certo sentido está além de bem e
mal, isto é, não tem apenas uma função, mas também uma existência hist6rica. Ela
nlo perde automaticamente sua dignidade divina por causa de a1gum fracasso ético.
"My country, riglú or wrong, my country'' expressa esse fato. ~ o relacionamento
hlstõrico das coisas existentes que se repete e se toma evidente na relação pai-fi1ho,
Irmão-irmão, patrão-empregado. Em termos éticos, o filho não pode se isolar de seu
pai, pelo contrfrio, com base na realidade, há um necess4rio compartilhamento e co-
reaponsabilidade na culpa do pai ou do irmão. Não há g16ria nenhuma em pisar
nu rufnas de sua cidade natal consciente de não ter nenhuma culpa pessoal nisso.
lllo 6 a autogloriticação do moralista contra a hist6ria. A mais clara expressão dessa
dignidade da autoridade, que aliás também repousa na sua existência histcSrica; é seu
podor, é a espada que ela detém. Também ali onde a autoridade se torna culpada e
edcamente vulnerável seu poder é de Deus. Ela tem sua consistência unicamente em
Jesus Cristo e está reconciliada com Deus pela cruz de Cristo (v. acima).

B. Em sua Incumbencia

O ser da autoridade está vinc11lad.o a uma incumbência divina. Só no cum-


primento desta seu ser se realiza. Uma total apostasia de sua incumbência tornaria
questionável o seu ser. Esta apostasia completa, no entanto, pela providência de
Deus, sõ é possível como acontecimento do fim dos tempos e conduzirá então, em
meio a graves martírios, a uma total separação da comunidade da autoridade es-

188
tabelccida, que encarna o anticristo. A incumbência da autoridade consiste em servir
ao senhorio de Cristo na terra através do exerdcio do poder mundano da espada e
do poder judicial. A autoridade serve a Cristo na medida em que estabelece e pre-
serva uma justiça externa por meio da espada, que s6 a eJa foi conferida para re-
presentar Deus. Não lhe cabe, apenas, a tarefa negativa de elogiar os bons respecti-
vamente piedosos (1 Pe 2.14). Com isso lhe cabe, por um lado, um poder judicial,
por outro, um direito de educação para o bem, isto é, para a justiça externa. Como
ela exerce esse direito de educação é uma questão que s6 pode ser tratada no con-
texto do. reJacionamento da autoridade com os demais mandatos divinos. A questão
largmiiente discutida, em que consistiria o bem, a justiça externa que a autoridade
deve cultivar, soluclooa-se facilmente qÕando se tem presente a fundamentação da
autoridade em Jesus Cristo. Este bem, em todo caso, não pode estar em contradição
a Jesus Cristo. O bem oonsiste em que, em toda ação da autoridade, haja espaço
para o objethQ dltimo, a saber, o serviço a Jesus Cristo. Não se visa uma ação cris-
tã, mas uma ação que não exclua Jesus Cristo. A autoridade chega a tal tinha de
procedimento quando tomar o conteddo da segunda Ulbua de mandamentos como
critério nas respectivas sitwÍçõeS e decisões biSidricas. Mas donde a autoridade tem
conhecimento de3SCS conte4dos? Em primeiro lugar, peJa pregação da Igreja. Para
os governantes pagãos vale o fato de que existe uma coincidência providencial entre
os cont.etidos da segunda Ulbua e a lei inerente à própria vida histórica. O desres-
peito à segunda Ulbua destr6i a própria vida, que a autoridade deveria preservar.
Assim, a incumbência de proteger a vida. corretamente compreendida. conduz por si
mesma à observãncia da segunda Ulbua. Será que, com isso, o Estado se fundamenta
de novo no direito natural? Não, pois aqui se trata apenas de autoridade que não
entende a si mesma, mas que, providencialnymte, pode chegar aos mesmos conheci-
mentos decisivos para sua incumbência que se revelam em Jesus Ciisto para uma
autÕridade que se entende corretamente. Por conseguinte, aqui se poderia dizer que
a lei natural está fundamentada em Jesus Cristo.
A tarefa da autoridade, sabendo ou não de sua verdadeira fundamentação,
consiste em estabek::cer, pelo poder da espada, uma justiça externa em que a vida
seja preservada e, assim, mantida aberta para Cristo.
Será que o respeito à primeira Ulbua também faz parte da incumbência da
autoridade, qual seja. a decisão pelo Deus e Pai de Jesus Cristo? Trataremos desse
assunto no capítulo sobre autoridade e Igreja, limitando-nos aqui ao seguinte: o co-
nhecimento de Jesus Cristo integra a destinaçlio de todos os seres humanos, por-
tanto tamb6m das pessoas que exercem cargos governamentais. Faz parte da incum-
bência da autoridade como tal, porém, o reconhecimento e a proteção dos piedosos
(1 Pe 2.14), independentemente da decisão de fé das pessoas que exercem autorida-
de. Pois s6 na proteção dos fiéis à autoridàde cumpre sua verdadeira incumbência de
servir a Cristo.
Para a autoridade, a incumbência de servir a Cristo é, ao mesmo tempo,
seu destino inevitáveL Ela serve a Cristo com ou sem conhecimento disso e inde-
pendentemente de ser fiel ou não. à incumbência recebida. Tem que servir-lhe, quer
queira, quer não. Se não quiser, servirá ao testemunho do nome de Cristo através do
sofrimento da oomunjdade. Tio íntima e indisso14vel é a ligação da autoridade com
Cristo. Ela não pode fugir, de nenhuma maneira, de sua incumbência de servir a
Cristo. Serve-lhe pela sua simples existê~

189
C. Em seu Direito

O direito que a autoridade tem, baseado em seu poder e sua incumbên~ é


tlndto de Deus e compromete a consciência. A autoridade exige obediência "por
CllUll da consciência" (Rm 13.5), o que pode ser interpretado também como "por
.l llWlll do Senhor" (1 Pe 2.13). Tal obediência se conjuga com respeito (Rm 13.7; 1
I"' 2.17). No exercício de sua tarefa governamental. a exigência de obediência é in-
áondlclonal, qualitativamente total e abrange a consciência e a vida ffsica. Fé, cons-
Cilnoia e existência ffsica estão comprometidas em obediência à incumbência divina
Cfí autoridade. Ddvida s6 pode surgir ali onde conteWlo e abrangência da tarefa go-
'Ylnwnental se tomam questionáveis. O cristão não é obrigado nem tem condiçaes
de avaliar em cada caso o direito da exigência da autoridade. O dever de obediência
aompromete-o até que a autoridade queira obrigá-lo diretamente a transgredir o
mlndamonto divino, até que a autoridade, portanto, renegue manifestamente sua in-
wmbencia divina e perca asshn o seu direito. Em caso de ddvida, cabe obediên~
llOll o cristão não tem sobre os seus ombros a responsabilidade governamental. Mas
lo a autoridade exceder nalgum ponto da sua competên~ tentando assenhorear-se,
por exemplo, da fé da comunidade, neste ponto deve ser-Jhe negado o acatamento
pot questão de consciên~ por amor ao Senhor; no entanto, não é permitido dedu-
r.lt disso, de forma generalizadora, que essa autoridade tenha perdido o direito à
Obedl&ncia também em outras ou quiçá em todas as outras exigências que faz. A
diiobediência sempre s6 pode ser decisão concreta em caso especfiico. Generaliza-
~ 16 levam a satanizar a autoridade de forma apocaHptica. Também uma autori-
dade anticristã continua autoridade sob certo aspecto. Não seria admissfvel, por-
tll'lto, negar o pagamento de impostos a um governo que persegue a Igreja. Por ou-
tro lado, o fato da obediência à autoridade nas suas funçlSes estatais, pagamento de
Impostos, juramento, serviço militar, sempre é prova de que ela não é compreendida
de modo apocalíptico. A acepção apocalfptica de um determinado governo deveria
'ter oomo conseqüência a total desobediên~ pois então cada ato de obediência es-
tlrla, evidentemente, caracterizado por uma negação de Cristo (Ap 13.7). Como em
tãdaa as decisões governamentais o envolvimento histórico na culpa do passado é
norme, geralmente não é possível fazer um juízo correto sobre a legitimidade de
wnà decisão determinada. Aqui é preciso assumir o risco da responsabilidade. Mas a
"'9Pi0nsabilidade por tal risco de parte da autoridade s6 a pr6pria autoridade pode
UIWillr no caso concreto (JSto é, com exceção da co-responsabilidade geral dos in-
illvfduos pela ação política). Mesmo ali onde a culpa da autoridade for evidente, não
• deve ignorar a culpa que gerou essa culpa. A negação de obediência numa deter-
ínbiada decisão histórica e poHtica tomada pela autoridade s6 pode ser, como esta
mc1ma decisão, um risco em responsabilidade própria. Uma decisão histórica não se
uaota em conceitos éticos. Sobra algo: o risco da ação. Isso vale tanto para gov
oomo para governados. ·

..

190
4. A Autoridade e as Ordens Divinas no Mundo

A autoridade t.em a incumbência divina de preservar o mundo,juntamente


com as ordens que Deus lhe deu, para Cristo. S6 ela t.em o poder da espada para li•
so. Todos lhe devem obediência. Mas, com sua incumbência e com sua reivindica-
ção, ela sempre já pressupõe o mundo criado. A autoridade mantém em ordem as
coisas criadas, porém não pode produzir vida; não t.em poder criador. No mundo
que domina. encontra duas ordens através das quais Deus, o Criador, exerce seu po-
der de criação e das quais ela depende essencialmente: o matrim8nio e o traballlo. A
'Bfblia nos conta que ambas já existiam no parafso e t.est.emunha, com isso, que fa·
z.em parte da criaç!o de Deus que existe por e para Jesus Cristo. Ambas continuam
também depois da queda, isto é, na dnica forma como n6s as conhecemos, ordens
divinas de disciplina e graça, porque Deus quer manifestar-se como Criador tam-
bém ao mundo cafdo e porque faz com que o mundo subsista em Cristo e o tom.a
propriedade de Cristo. Matrimônio e trabalho estão, desde o começo, sob um man-
dato divino determinado, que deve ser executado na fé e na obediência a Deus. Ma-
trimônio e trabalho têm, portanto, sua origem pr6pria em Deus, origem esta que não
cabe à autoridade fundamentar, mas reconhecer. Pelo matrimônio é reproduzi.da a
vida ffsica, são gerados seres humanos para a glória e o serviço de Jesus Cristo. Isso
implica, no entanto, que o matrimônio não seja apenas um lugar de procriação, mas
também de educação dos filhos para a obediência a Jesus Cristo. Para a criança, os
pais slo, como progenitores e educadores, os representantes de Deus. Através do
trabalho, cria-se um mundo de valores para a glória e serviço de Jesus Cristo. Como
no matrimõnio, também aqui não é a criação divina a partir do nada, mas, com base
na primeira criação, algo de novo é criado: no matrimônio nova vida, no trabalho
novos valores. O trabalho abrange tudo, da agricultura ao comércio, ciência e· arte
(cf. Gn 4.17ss.). Assim, por causa de Jesus Cristo, o matrimônio e, com ele, a famí-
lia, o trabalho e, com ele, a vida econômica, educação, ciência e arte, recebem um
direito prõprio. Isso quer dizer que, para essas 4reas, a autoridade t.em significado
apenas regulador, mas não constitutivo. O matrimônio não é constituído através da
autoridade, mas diant.e dela. Economia, ciência e arte não slo cultivadas pela pr6pria
autoridade, mas estão sob sua supervisão e, dentro de certos limites que não vamos
detalhar aqui, sob sua orientação. Jamais, porém, autoridade poderá tornar-se su-
jeito dessas úeas de trabalho. Onde ela exorbitar de sua competência, com o tempo
perderá sua legítima autoridade.
Das ordens de matrimônio e trabalho distingue-se aquela do povo. De
acordo com a Escritura, sua origem não está nem no parafso, nem nalgum mandato
divino especfiico. Por wn lado, o povo é, de acordo com Gn 10, conseqüência na-
tural da multiplicação das famflias na terra. Por outro lado (Gn 11), é uma ordem
divina que faz os seres humanos viverem na divisão e em recl'proca incompreensão,
lembrando-os, com isso, que sua unidade não está na perfeição de seus próprios po-
deres~ mas soment.e em Deus, isto ~ no Criador e Redentor. A Escritura não fala,
contudo, de nenhuma incumbência especffica que Deus tivesse dado ao povo. En-
qqanto matrimônio e trabalho são ministérios divinos, o povo é uma realidade hist6-
riea que lembra de forma especiàl a realidade divina do uno povo de Deus, a Igreja.
"'1 Escritura não dá qualquer indicação sobre o relacionamento de povo e governo.
Ela não exige o Estado nacional; conhece a possibilidade de vários povos estarem

191
amtjugados sob um mesmo governo.· Sabe que o -povo cresce de baixo para cima.
mas que a B?toridade foi instituída de cima para baixo.

5. ~vemo e Igreja

A autoridade foi instituída por causa de Cristoj ela serve a Cristo e, com
lua, serve também à sua Igreja. O senhorio de Cristo sobre toda autoridade não
tipifica, no entanto, o senhorio da Igreja sobre o governo. O mesmo Senhor a
quem o governo serve é também a cabeça da comunidade, o Senhor da Igreja. O
1erviço que a autoridade presta a Cristo consiste no desempenho de sua talefa de,
com o poder da espada, garantir uma justiça externa. Nisso há um seniço indi:retó
para a comunidade, que s6 assim pode ..viva' Wla ca1ma e padfica" (1 Tm 2.2).
Pelos seus préstimos a Cristo, a autorldade está essenc.iahnente ligada à Igreja. Onde
ela cumprir bem a sua misalo, a comunidade pode viver em paz, pais governo e co-
munidade servem ao mesmo Senhor.

A. A Reivindicação do Governo à Igreja

A reivindicação de obediência e respeito por parte do governo estende-se


também à Igreja. Em relação ao ministério espiritual. o governo s6 pode exigir que
não interfira no ministério secular, mas que cumpra sua pr6pria incumbência, que,
~. inclui a admoestação para a obediência às autoridades. Sobre a incumbência
propriamente dita e a forma de seu exercfcio no pastorado e na chefia da Igreja, o
aoverno não tem poder. Na mec;lida em que o ministério espiritual é exercido publi-
camente, o governo tem um direito de supervisão, para que tudo aconteça em boa
ordem, ou seja, de acordo com a justÇl externa. S6 nesse sentido lhe cabe um di- ·
roito no que concerne a nomeações ~e pessoal e organização do minist6rio. O mi-
nlstmo esphitual como tal não est4 sujeito às autoridades gowmamentais. Entre-
tanto, ao governo assiste o direito de reivindicar plena obêdiência por parte dos
membros da oomnnjdade. Não é assim que, com isso, ele se colocasse como segunda
autoridade ao 1ado daqueJa de Cristo; a sua autoridade é apenas uma forma da auto-
ridade de Cristo. Na obediência à autoridade. o cristão obedece a Cristo. Como ci-
dadão, o cristão não deixa de ser cristão; apeôas serve a Cristo de outra maneira.
Com Jsso, o legítimo direito da autoridade já est4 suficientemente definido quanto
ao seu cont.eddo. Jamais pode conduzir o cristão contra Cristo; antes, deve ajlxb(-lo
a aervir a Cristo no mundo. Dessa forma, o governante se toma servo de Deus para
o crist.ão.

1
192
B. A Reivindicação da Igreja ao GÕverno

A Igreja tem a missão de conclamar todo mundo a se colocar sob o senho·


rio de Cristo. E1a testemunha para o governo o Senhor que ambos têm em comum.
Chama os governantes para a fé em Jesus Cristo para sua salvação. Ela sabe que a
tarefa da autoridade é cumprida corretamente quando feita na obediência a Jesus
Cristo. Seu alvo não é que o governo faça polftica cristã, leis cristãs, etc., mas que
seja governo correto em consonftncia com sua incumbência especial. ~ a Igreja que
leva a autoridade a compreender-se a si mesma. Por causa do Senhor comum, ela
requer que o governo 1he dê ouvidos. a proteção da pregação cristã ptiblica contra
violência e blas:f8mia, a. proteção da ordem eclesiistica contra interferência arbi~­
ria e a proteção da vida cristã na obediência a Jesus Cristo. A Igreja jamais poded
renunciar a essa reivindicação. Ter.l que tomi-la pdblica, também, enquanto o go-
verno declarar que :reconhece a Igreja. Onde. porém, de forma expJtcita ou de fato,
o governo se posicionar contra a Igreja, pode chegar o momento em que esta, sem
renunciar à sua reivindicação, não desperdice mais palavras a respeito dela. Ela sabe
que o governo, no bom ou mau desempenho de sua tarefa, sempre é compelido a
servir a seu Senhor e, com isso, também à Igreja. A autoridade que nega sua prote-
ção à Igreja coloca-a tanto mais claramente sob a proteção de seu Senhor. A autori-
dade que blasfema seu Senhor s6 testemunha com isso de forma mais evidente ainda
o poder deste Senhor, que é glorificado nos martírios da comunidade.

C. A Responsabilidade EclesWtica do Governo

À reivindicação da Igreja corresponde a responsabilidade do governo.


Aqui se trata de responder a pergunta pela posição da autoridade em relação ao
primeiro mandamento. o governo deve tomar uma decisão de carater religioso, ou é
sua função permanecer neutro em matéria de religião? O governo é responsável pela
pdtica do verdadeiro culto cristão e tem ele o direito de ooibir outros cultos? Cer-
tamente também as pessoas que exercem autoridade devem chegar à fé em Jesus
Cristo. Mas o cargo da autoridade permanece independente da decisão religiosa. Faz
parte de sua função, no entanto, proteger e até elogiar os piedosos, isto é, apoiar a
pdtica da religião. Um governo que não leva isso em conta mina a raiz de uma au-
tentica obediência e, com isso, sua pr6pria autoridade (França 1905). O oficio da
autoridade como tal permanece neutro em matéria de religião e s6 pergunta pela sua
própria tarefa. Por isso, jamais podera promover a criação de uma nova religião sem
dissolver-se a si mesmo. Protege todo culto que não solape o oflcio da autoridade.
Cuida que a pluralidade de cultos não provoque uma confrontação que coloque em
risco a ordem do país. Conseguirá isso não pela proibição de um ou outro, e sim pela
clara observb.cia de sua própria tarefa governamental. Há de se mostrar então que
o verdadeiro culto cristão não coloca em risco essa tarefa, antes lhe <li sempre de
novo sua fundamentação. Se os governantes forem cristãos, devem saber que a pre·
gação cristã não se dá pela espada, mas pela palavra. A máxima Cuius regio, eius re•
ligio s6 foi possível sob circunstancias polfticas muito especiais, ou seja, sob o acor-
do dos príncipes de acolher os exilados. Como princfpio, ele é inconciliável com a

193
.tu~lo Sovemamontal. Se houver uma situação especial de emergencia ec1esbtstica,
f'IU'4 parte da ruponsabilidade dos cristãos em postos do governo colocar seu poder
l dllpotdção da Igreja a pedido desta. para definir a situação. Isso não significa, no
antanto, que o governo como tal venha a assumir funções de chefia eclesi4stica.
l'l'ltll•le exclusivamente do restabelecimento da boa ordem, em que o minist&io es-
piritual possa ser bem exercido e em que governo e Igreja possam desempenhar suas
•pocdvu tarefas. O governo resguardam seu comprometimento com o primeiro
mandamento, sendo autoridade no verdadeiro sentido e •umindo sua responsabili-
dade aovernamental também perante a Igreja. Mas não lhe cabe a tarefa de confes-
lllt e pregar a fé em Jesus Cristo. ·

D. A Responsabilidade PoHtica da Igreja

Se entendemos sob o termo "responsabilidade polftica" somente a res-


ponaabJlidade dos governantes, é evidente que 86 o governo responde por ela. Con-
tudo, se com esse termo visarmos, de modo bem geral, a vida na polis, teremos que
talar em v4rios sentidos duma responsabilidade polftica da Igreja, como resposta
l relvf.ndicação do governo h Igreja. Distioguhnos aqui, mais uma vez, a responsabi-
Udado do ministério espiritual e a responsabilidade dos cristãos. Faz parte da função
do viglUncia da Igreja chamar o pecado de pecado e prevenir os seres humanos
oontra ele. "Pois a justiça enaltece um povo (tanto no sentido temporal como eter-
no), mas o pecado é a perdição· dos seres humanos (perdição temporal e eterna)."
(Pv 14.34.) Se a Igreja não fizesse isso, tornar-se-ia co-respons4vel pelo sangue do
(mpio (Ez 3.1 ?ss.). Essa advertência referente ao pecado é feita de póblico h comu;.
Didade, e quem não quiser ouvi-la estar.t julgando a si mesmo. A intenção do prega-
dor não 6 melhorar o mundo, mas chamar para a fé em Jesus Cristo, testemunhar
a reconciliação por ele e seu senhorio. A tem~tica da pregação não é a maldade do
mundo, mas a graça de Jesu8 Cristo. Faz parte da responsabilidade do ministério es-
plrltual levar a sério a pregação do senhorio régio de Jesus Cristo e também, com
todo o respeito, alertar diretamente o governo sobre omissões e erros que colocam
em .daco o mandato governamental. Se a palavra da Igreja for rejeitada por princí-
pio, s6 lhe resta a responsabilidade poJftica de estabelecer e preservar ao menos en-
tre seus membros a ordem da justiça externa que jd não existe mais na polis, pres-
tando aaalm, l sua maneira, um serviço ao governo.
Existe uma responsabilidade po:lítica dos cristãos corrw indiv(duos? O cris-
a&> como indivíduo não pode ser responsabilizado pela ação governamental e tam-
pouco deve querer assumir essa responsabilidade, mas, em virtude de sua fé e seu
wnor ao pr6ximo, ele é responsável pela sua profissão e pelo âmbito de sua vida
peuoal, seja ele grande ou restrito. Onde esta responsabilidade for assumida na fé,
ela t.er4 força para o todo da polis. De acordo com a Escritura, não há um direito
l revoluçlo, mas há uma responsabilidade de cada um no sentido de não macu1ar seu
mlnJl~rio e sua tarefa na polis. Desta forma, o indivíduo serve à autoridade, no
melhor sentido, coro sua responsabilidade. N'mguém, nem a autoridade constituída,
1:iode lhe tirar ou proibir esta responsabilidade, que é uma parte de sua vida na santi-
llc~lo; pois, ela provém da obediência àquele que é Senhor da Igreja e do governo.

194
E. Conclusões

As diversas relações entre autoridade e Igreja não admitem uma regula-


mentação por princfpio; nem a separação de Estado e Igreja, nem a hipótese de
Igreja estatal representam em si soluções do problema. Não h4 nada mais perigoso
que tirar conclusões te6ricas abrangentes a partir de ex~ncias isoladas. A tese da
retirada da Igreja do mundo, das relações ainda exiStentes com o Estado, sob a im-
pressão de tempos apocaHpticos, não passa, nesse sentido genérico, de uma meJan-
cdlica interpretação do tempo, em termos de filosofia da bisf.6ria, interpretação
essa que, se levada realmente a sério, deveria levar às conseqfiências radicais de
Apocalipse 13. Por outra, um projeto de Igreja estatal ou nacional também pode ter
suas raízes na interpretação filosófica da história. Nenhuma reforma constitucional
como tal pode expressar de forma adequada proximidade e distancia no relaciona-
mento de governo e Igreja. Autoridade e Igreja estio comprometidas com o mesmo
Senhor e ligadas entre si pelo mesmo Senhor. Governo e Igreja estão separados
quanto. às suas incumbências. Ambos têm a mesma 4rea de atuação, os seres huma-
nos. Nenhum desses relacionamentos deve ser :isolado e formar, assim, a base. para
uma determinada forma constitucional (por exemplo, na seqüência Igreja o~
Igreja independente, Igreja nacional); em cada forma dada, trata-se de propiciar
concretamente espaço ao relacionamento estabelecido de fato por Deus e entregar o
desenvolvimento Aquele que é Senhor do governo e da Igreja.

6. Regime e Igreja

Na doutrina do Estado, tanto da Reforma como da Igieja Cat6lica, a


questão do regime sempre é tratada como algo secund«r.io. Enquanto o governo
cumprir a sua tarefa, a forma sob a qual ele o faz é realmente irrelevante para a
Igreja. É válido perguntar, no entanto, que regime oferece as melhores condições
para o cumprimento da incumbência da autoridade e, por isso, deve ser favorecido
pela Igreja. Nenhum regime é, por si s6, garantia absoluta para o correto exerc(ci.o
do mandato governamental. Um regime s6 se justifica pela obediência concreta à in·
cumbência divina. Mesmo assim, podemos alinhar algumas normas gerais para iden-
tificar aqoelea regimes que oferecem condições relativamente favomveis para um
correto desempenho governamental e, com isso, para um bom relacionamento de
Estado e Igreja; na pddca. essas diferenças relativas podem ser de grande alcanoe.
L Será o regime relativamente melhor aquele em que fica mais claro que a
autoridade vem de cima, de Deus, em que sua origem divina se evidenciar melhor.
Uma bem entendida autoridade peJa graça divina, em seu esplendor e em sua res-
ponsabilidade, pertence à essência da forma relativamente melhor do Estado (os reis
da BQgica distinguem-se dos demais reinados ocidentais, dizendo-se reis de grace
du peuple). "
II. S~ o regime ielativamente melhor aquc1c que não veja seu poder to-
locado em risco, mas sustentado e assegurado
a) por rigorosa preservaç°lo duma justiça externa;
b) pelo direito da famflia e do trabalho, fundamentados em Deus;

195
e) pela pregaçãÔ dO EV&ngelbo de Jesus Cristo.
m. O regime relativamente melhor será aquele que não venha a expressar
11ua llaaçlo com os sdditos atrav6s duma limitação da autoridade que lhe foi conferi-
da pm Deus, mas que se relacione com os sáditos atravm de ação justa e discurso
honeato em rect'proca confiança. Há de se mostrar aqui que aquilo que ~ o melhor
para o governo será também o melhor para o relacionamento de governo e Igreja.

196
IV

SOBRE A POSSIBILIDADE DA PALAVRA DA IGREJA AO MUNDO

1. Que é que há aids deste desejo que está brotando em toda a cristandade
e que anseia por uma palavra esclarecedora da Igreja ao mundo? Basicamente os se-
guintes raciocfnios: os·problemas socWs, econõmicos, po]{ticos, etc. do mundo fu-
giram do nosso controle; todas as propostas de soluções ideológicas e p1iticas fra-
cassam. Com isso, o mundo do progresso tecnológico chegou ao seu limite. O carro
caiu no barro, as rodas paúnam em alta rotação, mas não conseguem tir'·lo dali. Os
problemas são, tanto em sua amplitude como em seu carater, tão abrangentement.e
humanos, que se tornou necesdrio um auxflio reahnent.e substancial. A Igreja fra-
cassou, até aqui, diante dos problemas sociais, econômicos, po1íticos, sexuais, pecla-
g6gioos. Por cu1pa própria, criou um escândalo que impede os seres humanos de
crer .em- sua mensagem. "Ai de quem fizer tropeçar um desses pequeninos." (Mt
18.6.) Não basta uma proclamação dogmaticamente correta da mensagem cristã,
nem tampouco princípios éticos genéricos; é preciso orientação concreta na situação
concreta. As forças espirituais em que a Igreja repousa ainda não foram esgotadas.
Os cristãos do mundo inteiro nunca estiveram tão próximos um do outro como
agora. É preciso que juntos ataquem a tarefa de diz.er a palavra da Igreja ao mundo.
Em súma: ci:sperà-se que a Igreja ofereça sofuções para os problemas não resolvidos
do mundo, cumprindo, assim, a sua missão e restabelecendo sua autoridade. Nota-
mos, de imediato, que aqui se mesclam intimamente motivos corretos e errados.
2. Perguntamos: ser4 que é procedente que seja tarefa da Igreja oferecer
ao mundo soluções para os seus problemas? Afinal, existem soluçtJes cristãs para
problemas seculares? A questão é, evidentemente, o que se pretende: se se pensa
que o cristianismo tem resposta para todos os problemas sociais e po]{tioos do mun-
do, isso certamente é um equfvoco. Se se pensa que da parte do cristianismo há algo
de especffioo a diz.er- em relação às coisas do mundo, então está correto. A idéia de
que a Igreja ctisp6e, ·em princfpio, dwila solução cristã para todos os problemas
mundanos e que apenas não se deu o devido trabalho para isso, está especialment.e
difun~da no pensamento anglo-saxão. Quanto a isso, temos a diz.er:
a) Jesus praticamente não se ocupa com a solução de problemas mundanos;
onde é interpelado nesse sentido, esquiva-se curiosamente (Mt 22.lSss.; Lc 12.13).
Aliás, ele quase nunca responde diretamente, ,m as como que de nível bem diferente
ils perguntas das pessoas. Sua palavra não é resposta a perguntas e problemas hu-
manos, mas a resposta divina à pergunta de Deus ao ser humano. Sua palavra cst&t
determinada essencialmente a partir de cima, não de baixo, não é solução, mas r1·
denção. Sua palavra não procede da dicotomia da problemática humana do bem e do

197
mal, mas da perfeita unidade do Filho com a vontade do Pai. Situa-se além de toda
problemitica hwnana. Antes de mais nada, é preciso entender mo. Como Jesus, em
· vez de solução de problemas, traz a redençlo dos seres humanos, de fato traz tam-
b&n a solução de todos os problemas humanos - "todas as coisas serão acrescenta-
das" (Mt 6.33) -, apenas de uma perspa....na bem diferente.
b) Quem nos garante, afinal, que todos os problemas do mundo devem e
podem ser solucionados'! Para Deus, talvez, a falta de soluçlo desses problemas seja
mais ~te do que seu equacionamento, como lembrança da queda do ser hu-
mano e da redenção de Deus. Talvez os problemas do ser humano sejam tão intrin-
cados, tão mal colocados, que realmente não é possível solucioni-b. (O problema
de pobres e ricos jamais poderá ser so1ucionado de outra forma do que permanecen-
do sem solução.)
e) A luta organizada da Igreja contra quaisquer males do mundo- campa-
nha, cruzada-, uma conUnuação das idéias medievais de czozada, é uma luta que, no
hlteranismo, foi quase que completamente superada. mas que, nos palses anglo-sa-
xões, é uma das caracterfsücas da vida das Igrejas. Exemplos: escravatura, Lei Seca,
Llga das Nações - pomn justamente estes exemplos mostram, ao mesmo tempo, a
crise dessas ..cruzadas". A abolição da escravatura aconteceu simultaneamente com
a formação do proletariado industrial ing1& (poder-se-ia dizer que o mundo impõe
seu direito). A Lei Seca, forçada principalmente pelos metodistas, levou a experiên-
cias piores do que nos tempos anterimes, de modo que os próprios metodistas plei-
tearam sua revogação (uma experiência importantíssima para as Igrejas americanas).
A Liga das Naç&s, que tinha como objetivo o controle daS manifestações de nacio-
nalismo, levou l extrema exacerbação dos mesmos. Tais experiências dão o que
pensar a respeito da questão da competência da Igreja para a solução de problemas
do mundo. -r>eus no punho• (Jd 12.6).
d) É preciso superar o :radoctnio que parte dos problemas humanos e que
de lá pergunta por soluções; ele não é bíblico, O caminho de Jesus Cristo, e com isso
o· caminho de todo raciocfnio cristão, não vai do mundo a Deus, mas de Deus ao
mundo. Isso significa que a essência do Evangelho não consiste em solucionar pro-
blemas mundanos e que tampouco pode consistir nisso a tarefa essencial da Igreja.
Não· se deve inferir disso, evidentemen1c, que a Igieja não tenha nenhuma tarefa
nesse sentido. Mas St1 saberemos qual I sua. tarefa kg(tlma quando tivermos encon-
trado o ponto de partida C<JTTeto.
3. A mensagem da Igreja para o mundo outra não pode ser que a palavra
de Deus ao mundo, quer dimr, Jesus Cristo e a salvação neste nome. Em Jesus
Cristo Deus definiu seu relacionamento com o mundo; nlo conhecemos outra f~
de relaçlo de Deus com o mundo que nlo seja por Jesus Crlsto. Por isso, também
para a Igreja não h4 outta maneira de se relacionar com o mundo que não seja por
Jesus Cristo. Isto quer dizer: o relacionamento correto da Igreja com o mundo nasce.
t/Jo-somente do Evangelho de Jesus Cristo e não dum direito naturaJ, racional ou ·
dum direito humano universal. ·
a) A mensagem da Igreja ao mundo 6 a palavra da encarnação de Deus, do
amor de Deus ao mundo que se manifestou no envio de seu Filho, do juízo de Deus
sobre a incredulidade. A palavra da Igreja 6 o chamado à convenlo, l fé no amor de_
Deus em Cristo, ao preparo para a segunda vinda de Cristo, para o vindouro reino
de Deus. Portanto, é a palavra da redenção para todos os seres humanos•

. 198
b) A palavra do amor de Deus ao mundo coloca a comunidade numa' rela•
ção de responsabilidade para com o mundo. Cabe à comunidade testemunhar ao
mundo, em palavras e açi5es, a fé em Cristo, evitar tudo o que possa provocar ea-
cândalo e criar espaço para o Evangelho no mundo. Onde esta responsabilidade d
negada, nega-se a Cristo, pois é esta responsabilidade que corresponde ao amor de
Deus ao mundo.
e) A comunidade reconhece e testemunha o amor de Deus ao mundo em
Jesus Cristo como lei e Evangelho. Os dois jamais podem ser separados, mas tam-
bém jamais podem ser identificados. Não M pregação da Jei sem Evangelho, nem do
Evangelho sem lei. Não é, de maneira alguma, assim que a Jei valesse para o mundo
e o Evangelho para a comunidade; lei e Evangelho vaJem, de igual modo, para o
mundo como para a comunidade. O que quer que seja a palavra da Igreja ao mundo,
s6 podera ser, ao mesmo tempo, lei e Evangelho.
L Contestamos, com -i sso, que a Igreja possa falar ao mundo a partir de
conhecimentos comuns de direito racional ou natural, isto é, deixando o Evangelho
temporariamente de lado. Isso a Igreja da Refornia. discrepando da católica, n4o
pode.
II. Resulta disso também a contestação de uma dupla moral eclesiútica, ou
seja, uma para o mundo, outra para a comunidade, uma para os pagãos, outra para
os cristãos, uma para o cristão no !mbito secular e outra para o homo religiosus.
A lei toda e o Evangelho inteiro valem de igual modo para todos os seres humanos.
A alegação de que a Igreja exigiria no mundo a manutenção da ordem jurfdica, da
propriedade, do matrimõnio, mas dos cristãos a rendncia a tudo isso; no mundo a
fOJÇa e a retaliação deveriam imperar, entre os cristãos, no entanto, deveriam ser -
praticados o perdão e a injustiça - esta alegação largamente difundida e que vJsa
uma dupla moral cristã parte de uma interpretação errônea da palavra de Deus. Se o
DecQogo estipula, em nome de Deus, o direito a vida, matrimõnio, propriedade e
honra do ser humano, isso não quer dU.er que essas' ordenações jurídicas tenham em
si um valor divino absoluto, mas apenas que nelas e acima delas Deus quer ser o dni·
co a ser honrado e adorado. Por isso, jaouds se pode separar a segunda tSlua da
primeh'a. Essas ordenações não são, portanto, uma segunda instancia divina ao lado
do Deus de Jesus Cristo, mas o lugar em que o Deus de Jesus Cristo faz-se obede·
cer, Na palavra de Deus não se trata das ordenaç/Jes em si, mas da obedienda de fl
nelas. Por outro lado, o convite de Jesus de, em seu discipulado, renunciar ao direito
próprio, a vida, matrimõnio, honra e propriedade por causa da comunhão com Jesus
não é a promulgação duma nova ·escaJa de valores absolutos - por exemplo, autono·
gação em vez de auto-afirmação; pois também no Decflogo nunca se trata de auto•
afirmação, roas-somente do direito e da honra de Deus-, mas, para Jesus, assim co-
mo para o Ddogo, trata-se da obediência concreta a Deus. Nesse sentido, justa-
mente ·na rendncia ao direito prdprio, à propriedade e ao mat:rimõnio por causa do
Deus, a verdadeira origem dessas dildi.vas, o pr6prio Deus, pode ser melhor honrado
do que na insistência no direito pr6prio que então facilmente poderia ofuscar o di·
rei.to de Deus. A exigência de Jesus ao jovem rico de renunciar a um dos seus-dlrol·
tos torna claro que sua "observAncia dos dez mandamentos desde a juventudo" nfto
foi obediência a Deus, mas desconsideração ao Deus vivo em meio à observancla du
ditas ordenações divinas (Mt 19.16ss.). DecQ.ogo e sermão do monte não são, por•
tanto, dois ideais_ éticos. distintos, nias o chamamento uno à obediência concreta uo

199
Deus e Pai de Jesus- Cristo. Oncio. na fé em Deus,.se-ap(ia e JeSguarda o diréit.o l
propriedade. 0utra coisa não acontece do que ali onde9 na fé em Deus; se renuncia à
1

propriedade. Nem wluta pelo direito, nem -a rendncia a -c1e signiflcam aJgo em si. a
ponto de serem objeto prdprio da pregação da Igreja. por exemplo; na fé, ~m,
,,, tanto uma como outra são sujeição sob o direito exclusivo de Deua. Não hd. pois,.
uma dupJa escala de valores, para o mundo e para os cristãos; s6 existe aquela uma
palavra de Deus. v'6da para todos as seres humanos, a exigir fé e obediência. Erra-
do também seria acentuar mais a luta pelo direito na proclamação ao mundo e desta-
, car mais a rem1ncia ao direito na pregaÇão à comunidade. Ambas valem para mundo
e comunidade. A afirmação de que com o sermão do monte não se poderia governar
nasce duma m4 interpretação do mesmo. Também um governo pode honrar a Deus
atrav& da luta e da rendncia, e é isso que interessa à pregação da Igreja. Jamais é
tarefa da Igreja pregar ao Estado o instinto natural de autopreservação, mas tão-
somente a obediência ao direito de Deus. Isso são coisas diferentes. A mensagem da
Igreja ao mundo sempre sd pode ser Jesus Cristo, na lei e no Evangelho. A segunda
t4bua I insepar6vel da primeira.
m. Quando a Igreja chama indivíduos e povos à fé e à obediência para
- com a reve]ação de Deus em Jesus Cristo, ela especifica, ao mesmo tempo, um espa-
ço onde esta fé e obediência ao menos não IS impossibilitada. Este espaço es"' de-
marcado pelos dez mandamentos. Onde não M sinal de transgressão dos dez man-
damentos, no mínimo nlo·M escândalo que impeça a fé. A Igreja não pode procla-
mar uma ordem terrena concreta que decorra necessariamente da fé em Jesus Cris-
to, mas ela pode e deve contestar qualquer estrutura concreta que signifique um es-
cAndalo para a fé em Jesus Cristo, demarcando assim, ao menos de forma negativa.
os limites para uma ordem dentro da qual se pode crer e obedecer a Jesus Cristo. Da
forma mais gen&.ica,,esses limites estão colocados no Decilogo; inconcreto terão
que ser definidos sempre de novo. Em tudo que a Igreja t.em a dizer a respeito das
estruturas do mundo, sua ação s6 pode .ser preparat6ria para a vinda de Jesus Cris-
to, sendo que a verdadeira vinda do pr6prlo Jesus Cristo depende exclusivamente de
_sua pr6prla hõerdade e graça. Pelo fato de Jesus Cristo ter vindo e vir de novo, em
toda parte do mundo deve ser preparado o caminho para ele, e s6 por isso a Igreja
tem por que se importar com as estruturas secu1ares. A palavra da Igreja sobre as
estruturas terrenas procede unicamente da sua pr&lica de Cristo; não h«, portanto,
uma doutrina ecleslltstica pr6pria e vitlida em si mesma sobre eternas estruturas e
direitos da natureza e do ser humano que pudessem exigir reconhecimento indepen-
, dentemente da fé em Cristo. Direitos humanos e naturais sõ existem a partir de
Cristo, isto é, a partir da fé.
IV. A questão que aqui se levanta, se o mundo e os ·seres humanos s6
existem .mesmo em função. da fé em Jesus Cristo. deve ter resposta no senti.do de
que Jesus Cristo esteve aí para o mundo e para os seres humanos; vale dizer, s6 on-
de tudo for orientado para Jesus Cristo o mundo se torna realmente mundo e.o -ser
humano verdadeiramente ser humano, conforme Mateus 6,33. Única e precisamente·
ao reconhecer que tudo que foi criado existe em função de Cristo e ne1e tem con-
sistência (O 1.16ss.) estamos tomando realmente a sdrio o mundo e o ser humano.
V. Sob -essas premissas, M também um determinado interesse da Igreja
·não apenas no punctum mathematicum da fé, -mas também -nas grandez.as empfricas,
como a formação duma certa mentalidade em quest6es seculares e ·em de~

200
situações no mundo. H«, por exemplo, certas mentalidades e situações econ6micaa o
sociais que dificultam a fé em Cristo. e isso significâ tamb6m que destroem o espo•
cffi.co do ser hmnano no mundo. É de se perguntar. por exemplo, se o capitalismo, o
socialismo ou o coletivismo são estruturas econômicas que atrapalham a fé. Para
a Igreja, aqui há uma postura dup'la: por um lado, numa delimitação negativa, ter«
que declarar nefastas as mentalidades e sistemas econômicos que manifestamente
dificultam a fé em Jesus Cristo. Por outro lado, só poder.t dar sua colaboração poa1..
tiva para uma ieestmturação baseada na autoridade do conselho respons4vel do 08•
peclalistas cristãos, não com a autoridade da palavra de Deus. Ambas as tarefas cfo..
vem ser rigorosamente distinguidas. A primeira é a do mimstéri.o, a segunda a da
diaconia, a prime.ira é divina. a segunda terrena, a primeira é a da palavra de Deus, a
segunda a da vida cristã. Aqui vale, no entanto: doctrina est coe/um, vita est terra
(Lutero). .
VL A partir daí equaciona-se a tão discutida questão da din&nica prdprla
das estruturas mundanas. A ênfase na <tinAmica propria do Estado, por exemplo. faz
sentido diante da heteronomia duma teocracia ~ Diante de Deus, no en-
tanto, não há leis pr6prlas. a lei do Deus revelado em Jesus Cristo é a lei de todas as
estruturas terrenas. Os limites de qualquer dinAmica pr6pria revelam-se na pregação
da palavra de Deus por parte da Igreja; a forma concreta da lei de Deus na econo·
mia, no Estado. etc. deve ser discernida e achada por aqueles que atuam responsa•
velmente na economia e na administração pdb1ica. Poder-se-ia falar aqui, se nlo ~
mal entendido, de uma relativa dinâmica pnSpria.
V~ Razão - lei da criação- do existente.

(N. do E.: inacabado.)

201
V

QUE SIGNIFICA DIZER A VERDADE?

Desde a época de nossa vida em que passamos a dominar a linguagem, so-


mos ensinados que nossas palavras devem corresponder à verdade. Que significa
isso? Que quer dizer: "falar a verdade"? Que exigências isso implica?
É evidente que, inicialmente, são os pais que procuram estruturar nosso
relacionamento com eles através do postulado da veracidade; em conseqüência, essa
exigência também fica restrita, inicialmente - no sentido que os pais lhe atribuem-,
e se refere ao limitado círculo familiar. Há que se observar, ainda, que o relaciona-
mento contido nessa exigência não pode ser invertido, simplesmente. A veridicidade
da criança para com os pais é substancialmente diferente daquela dos pais para com
a criança. Enquanto a vida da criança é um livro aberto para os pais e a sua palavra
deve revelar tudo que houver de oculto e secreto, não se pode dizer o mesmo na in-
versão do relacionamento. O direito dos pais em relação à criança é outro, no que
diz respeito à veracidade, do que o da criança em relação aos pais.
Disso já decorre que "falar a verdade" significa algo diferente, dependen-
do do lugar onde se está. É preciso ponderar as respectivas situações. É preciso per- ·
guntar se e de que maneira alguém tem o direito de exigir de outrem que fale a ver-
dade. Tal como a comunicação entre pais e filhos, de acordo com sua natureza, é
uma outra do que entre marido e mulher, entre amigos, entre professor e aluno, en-
tre autoridade e súdito, entre amigo e inimigo, assim também a verdade contida
nessas palavras é uma outra.
A objeção que aqui logo se faz, no sentido de que não devemos a palavra
veraz a esse ou aquele, mas somente a Deus, é procedente, desde que não se esqueça
que Deus não é um princípio universal, mas o Deus vivo que me colocou numa vida
dinânúca e nela exige meu serviço. Quem fala em Deus não pode riscar simples-
mente o mundo real em que vive. Senão não estaria falando do Deus que em Jesus
Cristo entrou nesse mundo, mas dalgum ídolo metafisico. A questão é, precisamen-
te, como faço valer, na minha vida concreta com suas variadas situações, o com-
promisso da verdade que tenho com Deus. O dever da veracidade devido a Deus
tem que tomar forma concreta no mundo. Nossa palavra não deve corresponder à
verdade em princípio, mas concretamente. Veridicidade que não é concreta não tem
caráter de verdade perante Deus.
Portanto, "falar a verdade" não é apenas uma questão de mentalidade, mas
de conhecimento correto e de avaliação séria das reais circunstâncias. Quanto mais
variadas forem as circunstâncias de vida duma pessoa, tanto maior será a responsa-
bilidade, como também a dificuldade, de ••falar a verdade". A criança que vivencia

202
.1
' ')
.1 "· 1

apenas um relacionamento, o dos pais, ainda nada tem a ponderar e avaliar. 'Mu J• o
próximo ambiente em que é colocada, a escola, traz a primeira dificuldade, Por luo
é de máxima importância pedagógica que os pais esclareçam os filhos, de alguma
forma que aqui não podemos discutir, sobre a diferença desses ambientes e suas rei·
ponsabilidades.
Dizer a verdade é coisa que se deve aprender. Isso parece horrível para
quem acha que só a mentalidade importa e que, quando essa for irrepreensível, todo
o resto será facflimo. Contudo, como é fato irreversível que a questão ética não po•
de ser separada da realidade, o conhecimento cada vez melhor desta necessaria-
mente é parte integrante da ação ética. Na questão que estamos tratando, a aç4o
consiste em falar. A realidade deve ser expressa em palavras. É nisso que consiste
dizer á verdade, Com isso surge, inevitavelmente, a pergunta pelo "como" das pala-
vras. Em cada caso, trata-se da "palavra correta". Achá-la é questão de longo, s6rlo
e progressivo esforço, baseado em experiência e reconhecimento da realidade. Para
dizer como algo realmente é, ou seja, para ficar na verdade, é preciso levar em con-
sideração como a realidade é em Deus, por Deus e para Deus.
Restringir o problema da veracidade da palavra a casos isolados de conflito
é uma postura superficial. Afinal, cada palavra que falo está sob a determinação de
ser verdadeira. Independentemente da veracidade de seu conteúdo, o relaciona-
mento com a outra pessoa que nela se expressa pode ser verdadeiro ou não. Posso
lisonjear, posso ser arrogante, posso fmgir sem expressar materialmente uma falsi·
dade; mesmo assim minha palavra não é verdadeira, porque estou corrompendo e
destruindo a realidade do relacionamento de marido e mulher ou de chefe e subordi-
nado. A palavra isolada sempre é parte de um todo da realidade que quer manifes-
tar-se através da fala. Dependendo de para quem eu falo, quem me perguntou, de
que vou falar, minha palavra tem que ser diferénte, se quiser corresponder à vereia·
de. A palavra que corresponde à verdade não é uma grandeza constante em si, mas
tão viva como a própria vida. Onde ela se desvincula da vida e do relacionamento
com o próximo tal qual é, onde "se diz a verdade" sem considerar a quem se fala,
e}!l s6 tem aparência, mas não a essência da verdade.
É o cínico que, na pretensão de "falar a verdade" em qualquer lugar, a
qualquer hora e a qualquer pessoa de igual maneira, só exibe uma imagem idolátrica
e morta da verdade. Ao aparentar fanatismo pela verdade, que não pode ter consi·
deração com fraquezas humanas, ele destrói a verdade viva entre as pessoas. Fere o
pudor, profana o mistério, desmerece a confiança, trai a comunidade em que vive
e sorri arrogantemente do descalabro que provocou, da fraqueza humana que "nlo
agüenta a verdade". Diz ele que a verdade é destruidora e exige suas vítimas; scntc-
se como um Deus acima das criaturas fracas, e não sabe que está servindo a Satands.
Há uma sabedoria diabólica. Sua característica é que, sob a llJ>ldncia da
verdade, nega tudo que é real. Vive do ódio a tudo que é real, ao mundo que foi
criado e amado por Deus. Ela se dá a aparência de executar o juízo de Deus sobre a
apostasia da realidade. Contudo, a verdade de Deus julga a criação por amor, en·
quanto que a verdade de Satanás o faz por inveja e ódio. A verdade de Deus se fez
carne em meio ao mundo, está viva em meio ao real; a verdade de Satanás 6 a morte
de tudo que é real. .
A idéia da verdade viva é perigosa e provoca a suspeita de que a verdade
possa e deva ser adaptada à respectiva situação, o que faria com que o conceito de

203
verdade se diluísse completamente e mentira e verdade se aproximassem a ponto de
não Poderem ser mais distinguidas. Também aquilo que dissemos sobre o necessário
conhecimento da realidade poderia ser mal interpretado no sentido de que o grau de
verdade que estou disposto a dú.er ao pr6xhno dependeria duma postura calculista
ou pedagógica. É importante atentar para este perigo. A poSSiõilidade de enfren-
tá-lo, no entanto, não pode consistir em outra coisa do que no cuidadoso discerni-
mento dos respectivos conteúdos e limites que a própria realidade prescreve à afir-
mação para tomá-la verfdica. Jamais, porém, se deve trocar o conceito da verdade
viva pelo conceito cínico e formal da verdade por causa dos perigos que o primeiro
conténi..
Tentemos visualizar isso. Cada palavra vive e é originária de um determi-
nado-ambiente. A palavra em família é outra que no escritório ou em p6blico. A pa-
lavra que nasceu do calor das relações pessoais toma-se fria nos ares gélidos da pu-
blicidade. A palavra de ordem, que provém do serviço pdblico, destruiria os 1aços de
recíproca confiança em famflia. Cada palavra deve ter e continuar no seu lugar. Um
dos efeitos da preponderância da palavra p6blica nos jornais e no rádio é que não se
percebem mais com clareza caráter e limite das diferentes linguagens e que quase se
destrói a peculiaridade da palavra pessoal. No lugar de palavras autênticas aparece o
palavrório. As palavras não têm mais peso. Fala-se demais. Quando os limites das
diversas palavras se apagam, quando perdem suas raízes e seu habita.t, a palavra
perde também em verdade; a mentira instala-se quase que inevitavelmente. Quando
as diversas ordens da vida não se respeitam mais reciprocamente, as palavras se tor-
nam faJsas. Um exemplo: um professor pergunta uma criança, diante da classe, se é
verdade que seu pai freqüentemente volta embriagado para casa. De fato é assim,
mas a criança nega-o. A pergunta do professor colocou-a numa situação que ela
ainda não tem condições de enfrentar. Sente, apenas, que aqui aconteceu uma inge-
rência indevida na ordem da famOia que ela deve rechaçar. O que se passa na família
não é da conta da classe. A famflia tem seu mistério próprio que deve preservar. O
professor desrespeitou a realidade dessa ordem. A criança deveria achar, em sua
resposta, um caminho que respeitasse, de igual maneira, a ordem da famflia e da es-
cola. Ela ainda não tem capacidade para isso; faltam-lhe a experiência, o conheci-
mento e a habilidade da expressão correta. Ao responder negativamente a pergunta
do professor, a resposta é enganosa, mas, ao mesmo tempo, expressa a verdade de
que a família é uma estrutura sui generis em cuja intimidade não cabe ao professor
penetrar. Podemos qualificar a resposta da criança como mentira; mesmo assim, essa
mentira contém mais verdade, isto é, ela corresponde mais à realidade do que se a
criança tivesse revelado a fraqueza do pai à classe. Proporcionalmente ao seu co-
nhechnento, a criança agiu certo. A culpa da mentira recai unicamente sobre o pro-
fessor. Uma pessoa experiente, no lugar da criança, poderia, ao repreender o inter-
locutor, ter evitado também a falta formal da verdade da resposta e achado a "pala-
vra certa" para a situação. Mentiras de crianças e pessoas inexperientes mui~ ve-
zes decorrem do fato de estarem diante de situações que não dominam. Por isso, é
de se questionar se faz sentido estender e generalizar o conceito de mentira, que é e
deve ser entendido como algo condenável em princípio, a tal ponto que coincida
com o conceito de afirmação formalmente contrária à verdade. Aqui já se evidencia
como é diffcil dú.er o que, afinal, é mentira.
A ctefinlção costumeira, -de acordo com a qual a mentira seria a contnidi-

204
çlo consciente entre o pensàmento e a manifestação, é totalmente insuficiente. Aqui
. se encaixariam, por exemplo, as mais inofensivas brincadeiras de 1Q de abril. O con-
ceito da "mentira de brincadeira", oriundo da teologia moral católica, suprime o aa-
pecto decisivo da seriedade e malvadeza da mentira (assim como elimina, por outro
lado, o aspecto decisivo de inocente brincadeira e liberdade da piada) e é, por isso,
extremamente infeliz. A piada nada tem a ver com a mentira e jamais deve ser com-
parada a ela. Se dissermos, então, que mentira é o logro consciente do outro em
prejuízo deste, aqui se incluiria, por exemplo, a necessmia tática de enganar o ad·
:a
verslúio na guerra ou em situações análogas. verdade que Kant afirmou ser or·
gulhoso demais para, algum dia, faltar com a verdade; mas, ao mesmo tempo, pro·
vou o absurdo dessa assertiva, ao l!firmar que se sentiria comprometido a dar uma
informação verídica a um criminoso que viesse perseguir em sua casa o amigo que
estava acoitando. Se chamarmos tal procedimegto de mentira, ela recebe uma con-
sagração e justificação moral que contradiz de toda maneira ao seu conceito. Disso
se deduz, inicialmente, que não é possível definir a mentira a partir da contradição
entre pensar e falar. Esta contradição nem sequer é, necessariamente, parte inte-
grante da mentira. Há uma fala perfeitamente correta e inquestionável nesse senti·
do, e que, assim mesmo, é mentira. Por exemplo, quando um mentiroso inveterado
diz uma vez "a verdade" para enganar, ou quando sob as aparências da correção jaz
conscientemente a ambigüidade, ou então quando a verdade decisiva é omitida cons-
cientemente. O que se oculta propositadamente também pode ser mentira, se bem
que não tenha que sê-lo obrigatoriamente.
Essas reflexões levam à conclusão de que a essência da mentira tem raízes
bem mais profundas do que a contradição, entre pensar e falar. Poder-se-ia dizer
que é a pessoa que está atrás da palavra que a transforma em mentira ou verdade.
Mas isso também não basta; pois a mentira é algo objetivo e terá q~ ser definida de
acordo com isso. Jesus chama Satanás de "pai da mentira" (Jo 8.44). Mentira, antes
de tudo, é a negação de Deus, tal como se revelou ao mundo. "Quem é um menti·
roso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?" (1 Jo 2.22.) Mentira é a contesta-
ção da palavra de Deus como ele a falou, em Jesus Cristo e na qual repousa a cria-
ção. Conseqüentemente, mentira é a recusa, negação e destruição consciente e pro·
posital da realidade como foi criada por Deus e nele subsiste, na medida em que isso
acontece por palavras e por silêncio. Nossa palavra tem a função de, em harmonia
com a palavra de Deus, expressar a realidade como ela é em Deus; nosso silêncio
deve ser o sinal para o limite que foi colocado para a palavra pela realidade como ela
é em Deus.
Na tentativa de expressar a realidade,. mµ1ca encontramos esta como um
todo homogêneo, mas nQ.ID estado de fragmentação e conflito consigo mesma que
necessita ser reconciliado e sanado. Estamos inseridos em várias estruturas da reali-
dade ao, mesmo tempo, e nossa palavra, que pretende conciliá-la e saná-la, sempre
·de novo é arrastada para a dissenção e o conflito, e s6 pode cumprir sua miss4o de
expressar a realidade como ela é em Deus, incorporando tanto o conflito como a CO•
nexão da realidade. A palavra humana, para ser verdadeira, não pode omitir nem a
queda no pecado nem a palavra criadora e reconciliadora de Deus, na qual toda dia·
senção está superada. O cínico quer impor a verdade da sua palavra, dando expre1·
são à parte que ele ac{e(lita conhecer, desconsiderando a realidade global; com illo,
destrói completamente a realidade ~ sua palavra se toma falsa, ainda que, superft·

205
cialmente, tenha aparências de correta. "Tudo o que est4 af estt longe e muito pro-
fundo; quem o achará?"" (Ec 7.2A.)
· Como minha palavra se toma verdadeira?
1. Reconhecendo quem me leva e o que me autoriza a falar.
2. Reconhecendo o lugar onde estou.
3. Colocando neste contexto a matéria sobre a qual me manifesto.
Essas definições incluem a suposição1tkita de que toda manifestação obe-
dece a certas condições. Não acompanha, em fluxo constante, o decurso natural da
vida, mas tem seu lugar, sua hora, sua tarefa e, com isso, seus limites.
1. Que ou quem me autoriza ou faz com que eu fale? Quem fala sem auto-
rização e motivo é tagarela. Como em toda palavra sempre se trata de dupla relação,
para com o semelhante e para com o assunto, essa relação deve ficar evidente em
cada palavra; uma palavra que carece de relação é vazia; não contém verdade. Aqui
temos uma diferença substancial entre pensar e falar. O raci.octnio não tem, neces-
sariamente, uma relação com o semelhante, mas somente com uma matéria. A pre-
tensão de poder dizer o que se pensa é, em si mesma, completamente d~bida.
Para que eu fale M necessidade de que o outro me dê a justificativa e o motivo para
fazê-lo. Um exemplo: em meus pensamentos, posso considerar alguém bobo, feio,
incapaz, sem ~ter, ou então int.eligente e de boa índole. Bem outra coisa, no en-
tanto, é se tenho o direito e o que me dá o motivo para diz.er isso e a quem eu o digo.
Não há ddvida que do offcio que me é confiado nasce o direito de falar. Os pais po-
dem repreender ou elogiar a criança, mas esta, por sua vez, não tem direito a ne-
nhuma dessas atitudes em relação aos pais. Situação semelhante temos entre pro-
fessor e alunos, se bem que os direitos do professor em relação aos discentes são
mais restritos do que aqueles do pai. Em relação ao aluno, o professor há de se ater,
tanto na crítica como no elogio, a determinados desli7.es e méritos, enquanto ju&.os
abrangentes em questões de caráter não cabem ao professor, mas aos pais. A com-
petência de falar sempre está dentro dos limites do oficio concreto que me incumbe.
Quando esses limites são transpostos, a palavra se toma molestadora, arrogante e,
criticando ou elogiando, ofensiva. Há pessoas que se consideram chamadas para
"diz.era verdade", como o chamam, a qualquer um que encontrem em seu caminho.

N. do E.: inacabado. Numa carta de dez.embro de 1943 lê-se a respeito desse problema:
••Refleti ainda sobre o falar do próprio medo (ataques aéreos), a respeito do qual te eacrevi ulti-
mamente. Quer me parecer que aqui se dá ares de 'uatural', sob aparência de honestidade, a algo
que no fundo é sintoma do pecado. De fato, é bem análogo ao falar abertamente sobre questões
sexuais. •veracidade' não quer dizer que tudo que existe tenha que ser exposto. Dcusmesmo·fez
roupas para o ser humano (Gn 3.21), isto é, in statu corruptionis muitas coisas devem ficar ocultas
no ser humano, e o mal, já que não se pode extirpá-lo, deve ao menos ficar encoberto; expô-lo é
um ato de cinismo. Ainda que o cfnico se tenha por especialmente honesto e apareça como fanãti-
co da verdade, ele ignora a verdade decisiva de que, desde a queda, deve haver também ocultaçio
e mistério. Pata mim, a grandeza de Stifter está em que ele renuncia a penetrar no interior das
pessoas, que respeita a ocultação e que scS analisa o ser humano cautelosamente de fora, mas não
de dentro. Qualquer curiosidade lhe é totalmente estranha. Impressionou-me, certa vez, quando a
senhora..• me contou, com verdadeiro horror, dum filme em que o crescimento duma planta foi
apresentado em redução de tempo; ela e seu marido não puderam suportar isso por ser uma intro-
missão indevida no-mistério da vida. Stifter está nessa linha. Mas será que daqui não há uma ponte
para a tal 'hipocrisia' inglesa, à qual se contrapõe a 'honestidade' alemã? Parece-me que nds, ale-
mães, não compreendemos bem o significado da •ocultação', isto é, no fundo, não enten-

206
demos bem o statiu corruptionis do mundo. Na Antropologia. Kant diz muito bem: quem lanon
ou contesta a impordncia da aparência no mundo 6 um traidor da humanidade. Niewche dl11
'Todo espfrito profundo necessita duma má:ara.' 'Dir.er a verdade' a meu ver significa: dizer
como algo n=almeute 6, isto 6 1 n:speitando o mist6rio, a confiança, a ocultação. 'Trúçlo', por
exemplo, não 6 verdade. tampouco frivolidade. cinismo, etc. O que e.stf oculto sd deve ser rovt•
lado na confiaslo, isto 6, diante de Deus.'" (Cf. também a nota da p. 18.)

207
INDICES

PASSAGENS BÍBLICAS

Glnesis Eclesiastes
10.16 44
1.28 102 2.24 90 12.11 21
1.31 109 2.25 90 12.30 37,75
2.15 117 3 14.7º 14.4 175
2.18 102 3.12 90 18.6 197
2.23 102 7.24 206 18.15ss. 24
2.24 17 9.7ss. 90 19.16ss. 199
3 15ss. 9.10 144 19.17 134
3.7 17 11.9 90 21.31 39
3.17-19 117 22 21
3.21 206 /safas 22.15ss. 197
3.22 15 40.4 79 23.3 23
3.22-24 16 23.5 23
4J1Ss. 117, 191 Ezequiel 25.31ss. 25
10 191 28.18 187
11 191 3.17ss. 194
38 102 16.63 18 Marcos
36.32 18
9.39 37
hodo 9.40 37
Miqu&s
21.10 102 10.17ss. 83
21.24 69 2.13 79
23.7 95 6.8 140 Lucas

Mateus 1.52 79
J,j
2.7 114
12.6 198 3.lss. 80 3~- 78
13.15 125 4.1-11 21 3.5 79
40.2-4 125 5.10 38 6.4(D) 145
5.29 103 10.25 21
Salmos 6.3ss. 24 10.38ss. 31
6.33 198,200 12.13 197
9.17 79 7.1 22 12.14 22
107.16 79 7.17 109 12.45 179
148 180 7.21 31 16.10 144
7.22 32 18 24
Provlrbios 7.23 32 19.17 144
14.34 194 7.24ss. 29 21.16 86

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1.10 116
81, 181 8.6 186 2.15 187
LU
141 9.3 124 3.3 51
L14
13.2s. 32 3.4 122
3.16 76,178
13.6 32
3.17 22,24
2 Tessakmicenses
3.18 24
2Corfntios
3.19 24 2.7 64
8.44 205 3.18 so
11.25 122 5.2ss. 18 1 Tim/Jteo
14.6 ·122 5.17 77
1.4 54
15.5 29 5.19 178
73 2.2 192
18.38 187 6.2
2S 3.5 144
19.10 187 8.2
9.11, 13 2S 6.16 141
Atos dos Ap6stolos 12.19 124
13.5 28 2 TilM'teo
16 179 124
4.16
17.11 162 Gdlatas
24.14ss. 175,179
2.20 72 Filemom 175
25.9 17.S
25.10 179 4.19 50
6 24 1 Pedro
26.1 175,179
6.4 28 2.13 190
Romanos 2.14 189
Efúios 2.17 190
2.18 26
1.10 178 2.20 38
3.28 141
1.23 119
3.7 102
8.19-21 127 3.14 38
8.29 so 5.9ss. 26,27
3.15 124
10.11 81 5.31s. 118
4.15 144
11.22 ss
12.2 26,27,SO Filipenses
/João
12.8 2S
1.7 124
13 17.S 2.17 76
1.9 26
13.lc 188 2.20 24
1.10 26
13.4 188 2.22 20.5
190 1.16 124 3.9 71
13.5
1.21 51, 122, 124 3.16 33
13.7 190
3.10 50 4.9 33
4.10 33
1 Corlntios Colossenses 4.16 33
2.2 24 1.lSss. 163 4.19 3-4
2.15 24 1.16 no. 116, 178, 186
Hebreus
4.3-4 28 1.1~ 200
~.s 24 1.17 178, 181, 186 1.2 186

209
(1' 91 1.8 43 Apooalip8e
l3.8 fi4 1.22 30 13 •:'114, 179, 180, 1~
1.25 30;.31 13.7 19Ó
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1.7 25 22.11

PASSAGENS DOS ESCRITOS CONFESSIONAIS

C\·A. XVIII,70 170 VI, 1 -169


MI,4 11b 'XVIII, 71s.
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170
170
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f'\bstinência 101 1
r i.· -ao prõxin;\Q 137, 144
hçlo 29ss., 32, 42, Wb• 105,. 125ss., - e reçonciliaçlo 34
138~ º~ ~ - e verdade 32
Anglocat6licos 185 ,':)
< - idoolõgica 1 ,r "
~;:~· doutrlna ?V80
Anticristo 36s., 68, 189
Antiguidade SSso, 104, 185
Alemanha5S Antinomismo 113, 1808.
Amti:a 628., 198 Arrepe~nto 17
A'í:nizade 158 Arte 18, ~ 191

210
Ascese 123, 166 Coisas
Atimia96 -mundo das 117, 131s., 180
Atomjzação ISO - últimas (v. Últimas coiaaa)
Auto-afirmação altruísta 124 Coletivismo 201
Auto-exame 28s. Coletivo, o 86
AutofinaUdade 90ss. Comportamento 127
Autojustificação 13Ss. Compromisso 74ss.
Auto-sacriflcio 97s. Comunidade 161, 179, 184
Autonomia 36, 58, 129, 163s., 1808., - e mmistério 161, 184
201 - religiosa S1
Autoridade 116-8, 145, 154, 159, 164, Concubinato 99
171, 182, 184ss. Confissão 18, 161, 207
-e Igreja 192ss. Conflito 29ss., 129, 157
-relações de lSOs., 159s. - ético 147, 157
Avaliar lOS -ser"liumano do 208s., llls.
- trfgico 129
Conformação 27, 49ss.
Bem 81, 82s., 107ss., 119, 12088., 188 Cõnjuge, escolha do 98s.
- Cristo e o 38ss. Consciência 19, 42, 134ss., 143
Bíblia, proibição da 162 Contracepção lOOss.
Bom, ser 80s. Convento 121, 142
Brincadeira (v. tambim Jogo) 205 Convivência 149, 157
Burguesa(s) Cooperação entre cristãos e não-cria·
-coisas40 tãos 175
- existência 121 Coroa 69, 188
Burguesia 58, 60 - Corpo de Cristo 51, 57, 114, 116
Corporalidade 89ss.
Corpus christianum 51
Calvinismo 62 Creatura-natura 84
Canalha41 Criatura, condição de 130s.
Capitalismo 201 Criatural, o 83s.
Castigo 91, 105 Criminosos 91
Casuística 53, 157 Cristandade ocidental 82
Cadlogos Cristão, o 163
~de normas para a vida doméstica CristianiV'ção 175, 180, 181
175 Cristonomia 164
-de vícios 172, 175 Cruz, 38, 47111., 50, 77, 119, 1631.
Catolicismo 112, 161, 166 C111Z8da 198
Causa boa 38ss. Cuius regio, eius religio 193
Cicatrização 68s. Culpa 129, 134
Ciência 36, 58, 68, 131, 191 . -assunção da 134, 136, 145, 188
Cínico/cinismo- 46, 145, 203, 205, - confissão da 65ss.
206s. - continuidade da 69
Cisão (v. Dicotomia) Cultura 36, 106, 158
Classe (v. Estamento) -cristã38
Clericalismo 116, 173 Cura, processo de 69
Coerção,poderde 185

211
Decálogo 67s., 138, 140, 145, 168, · Encarnação 45ss., 50, 77, 84, 163
169s., 181, 189, 199s. - teologia da 77. 185
Democracia 62, 188 Entusiasmo 111, 128, 129
Dependência, relações de 139s. Escolástica 111
Descobrimento 18 Escravidão 104, l 78s., 198
Desnatural, o 83s., 85, 87 Escravo 78, 80, 105, 142
Destino 129 Escri~ utilização da 162
Desunião (v. Dicotomia) Esferas, reflexão em 11 lss.
Determinismo 138 Esmo1as24
Dever(es) 42, 87, 140s., 147s., 155 Especiali7.ação 132
- e direitos 87 Espiritualismo 62
- ética do 140 Estado (v. tamblm Estamento) 62s.,
Diabo 113, 115, 170 132s., 173ss., 181ss., 184ss.
Diaconia 201 -e Igreja 171ss., 18lss., 184ss.,
Dicotomia 15ss., 22ss. 195
Diplomacia 132 Estamento (estado) 119, 159, 166
Direito(s) 55, 87ss., 199s. Esterilização 102s.
· ·-deveres e 87 Éti.ca(o)
- hwilano(s) 36, 59s., 198, 200 - autônoma 123
- natural 87s., 187s., 189, 198, 200 - definição da 108
-positivo 88,100 - do dever 140
- racional 198s. - discurso 53ss., 149ss., 202, 206
- da vida em formação 100 -dupla 139
Direitos humanos 36, 59s., 198, 200 -de génios 141
- declaração dos 60, 62 - individual 177
Disciplina externa 168 - de Jesus 123
Dissenção (v. Dicotomia) - da mentalidade 109, 203
DissenJers 62 - de motivos 109
Ditadura 188 - política 185
Doença hereditária 94 -social 109, 177
Dois reinos, doutrina dos 57, 113 - do sucesso 109
Dupla(o) - téorico da 41ss., 146ss., 149
- escala de valores 199 - da vitalidade 123
-ética 139 Eudemonismo social 88
-lei 167, 172, 199 Eutanásia 9lss.
- mandamento 163 Evangelho e lei 171ss., 199
-moral 199 Examinar 26ss.
- proclamação 162s., 172, 200 Exerdcios 166
Existencial, filosofia 15, 151
Exousia 184, 186
Ecce lwmo44 Exploração 104
Eclesialização 175, 180
Economia 68, 201
-cristã 178 Facticidade 127s.
Educação 91, 105, 118, 191 Falar e pensar 205
Eleição 16 FamOia 153ss., 164, 182, 202, 204
Embuste 133 Fanatismo 42

212 .

.............................................................
Fariseu~ lq>iedadc 61, 163s.
Fazer 29ss. Indeterminismo 138
- e confissão 3 ls. Indiferença ética 41
- e julgar 29s. Inglaterra SS, 132
- e ouvir 30s. Inspiração 153
Fenômeno ético 147s. Instituição ss. 86
Filme 63. 106 Inteligência 43s.
Fim, meio para um 47. 90s. Islã 59
Formalismo 53 Itália 55
França SS.1~3 lusti.tia civilis l 70ss., 180

~nios, ética de 141 Japão 54


Governo (v. Autoridade) Jogo (v. tambhn Brincadeira) 91, 105,
Gozar 105, 137 110. 156, 158, 205
Grão-inquisidor 75 Judaísmo55
Guerra 57. 91s.. 133. 145 Judiação 105
- dos Trinta Anos 58 Judicial. poder 18~
Jufzo de Deus 56
Julgar 22ss.
Helenismo 55 Justificação 38, 40, 71ss., 84
Hinduísmo 162
História 54, 63, 108, 128s., 139
HolandaS5 Katechon 64
Homicídio 9ls. KircMnkamp/ 144
Humanidade 36
Humanistas 55
Humano, ser 78 Leil3S,137s.,145, 157
- desdenhador do 45s. -cristã 193
-dupla 167, 172, 199s.
-e Evangelho 171ss., 199s.
Igreja Sls.. 64s., 1168., 1188., 153s., -pregação da. 167s.
161ss.. 164, 182s., 184ss., 192ss. -Seca 198
-disciplina da 161, 166 La naturae 170
- freqüência à 81, 172 Liberdade 36, 42, 138ss., 154a., 158
- hostilidade à 6ls. -e lei 145
- incJqx:ndeDte 195 - e obediência 139s.
- nacional 195 - e vinculação 125
- como organização comunitária Ll."bertinismo 113
165 Ligadas Nações 198
- reconhecimento pelo Estado 179 Utdr~ pobreza 166
Igualdade 150s.
-com Deus 16
Dnminisroo 151 Mandamento 153&&.
Imagem de Deus 16 -duplo 163
Imperador 57. -e lei 157
Imperialismo 69, 188 Mandatos 11(,ss., 145, 153.., 1.58u.,

213
1s.2, 191s.
MudO, relações de 1508.
Mdqdin&S9
Mar~ figuras 39s., 73 Obediência e livre responsabilidad
Mad60 138ss.
Mat.riJDÔniO 98ss., 1168., 118,· 145, Objetividade 131ss.
1sAs., 182, 191 Obra. pessoa e 109, 132, 143
Meda 18, 206 Ocidente 53, S4ss., 64, 68, 82
Ment;llidade 200s., 2<Yl - cisma do 57s.
- ~tica da 109, 203 Ocultamento (encobrimento) · 17s.,
Mendia136,145,203ss. 206s.
Me~ase26s. Oficio (v.
tamblm Ministério) 151, 159
MétoJo 72s., 82, 147s. Oportmúsmo 127s.
Minisfério (v. tamWm Oficio) 184, Oração 17' 162
19~, 194, 201 Ordem 80, 116, 150, 159, 177ss.,
-~comunidade 161s., 184 191ss., 199ss.
- da pregação 161ss. Organização 85s.
MissãO, situação de 179 Otimismo86
Mistéfio 18, 206
· Mon8'1uismo 111, 142, 171
Moratlia91 Palavra, ministério da 57
Moral 146ss. Papado57 ·
- <fupla 199s. PU'ênese 138
-pregação 173, 174s. Passado
Morte48s. -cristão56
Mundl'"atidade 129s., 163s., 1748., -nacional 56
18'- 200s. Passividade 34s.
MundO Pastor 16ls.
-d&Scoisas 117, 131, 1808. Pecado
-1)18\l 115 - orlginal 136
- eJll si 115, 117 - queda no 15ss., 185s.
-dOS valores 80, 117, 126 Pensar e falar 205
Perdão 68ss.
PerfeccioniSmo 113
NacloPalismo 60, 198 Permitido. o 154as.
Natalidade Perseguição 31, 62; 179
-cODtrole da 100 Pessoa e obra 109, 131s., 143
-regulação da 100ss. Polis 184, 187, 194
Natur1-creatura 84 PoJrtica cristã 193
Natur-1. o 83ss., 171, 175, 180 Positivismo 152
- direito 187s., 189, 198s., 200 Possível, o 130
Nece&tidade 133 Predestinação 16
- ~ Estado 133 Pendltimo 148
-dltima 133 Povo 56, 58, 60, 62, 69, 182, 191s.
Negro 105, 144 Prédica(v. Pregação)
Neutr-1idade religiosa 193s. Pregação (v. tamb4m Proclamação) 81,
NülisIJlO 61, 86 161118., 167ss., 174, 189

214
- ministério da 161&&. · Ressurreição 48s., 51, 77, 164
- das obras (lei) 167ss. Revolução 137, 160, 187, 194
Prq:mação de caminho 78.ss.. 200 - Francesa 58ss.
Privil6gios 151 Rigorismo 102
Proclamação (v. tamblm Pregação) Risco 133, 190
- apocalfptica 174 Roma.55,56
- concretitude da 175 Romantismo 185
-dupla 162&. 171s., 199s.
Procriação 98s.
Profissão 141ss. Sibado, transgressão do 22, 136
Propriedade 105, 199s. Sabedoria diabólica 203
Protestantismo cultural 111, 112, 142 Santos 41 .
Prússia (J() Satide 85
Pseudoluteranismo 111, 128, 142 Secularismo 129
Psicologia 2Ss. Secularização, processo de 58
Pudor 17ss. Século XIX 40, 111
- sentimento de 104 Separação (v. Dicotomia)
Punição física 91 Sermão do monte 138, 145, 181, 1991.
Sexualidade 90s.
Sicut Deus 15, 135
Quixotismo 43, 108 Simplicidade 2Ss., 43s.
Situação-limite 133
Socialismo 61, 201
Radicalismo 74is.. 78, 80 Socialistas religiosos 178
Ratio (v. tamblm Ra?.ão) 170, 171 Sociedade
-ultima 133 - cultuai 114
Razão (v. tamblm Ratio) 36, 58ss., - ordem da 139s.
84s., 89, 150&., 201 - religiosa 51, 114
Realidade 107ss., 203 Sucesso 47ss., 109, 130
- conformidade com a, 110, 127ss. Suicídio 95ss.
Rebelião l(J() Superioridade-inferioridade 60,
Redenção-solução 197s. 1SOss., 159s., 161s., 185, 187,
Reflexão 26 191s., 197
Reforma 39, 559 57, 59, 64, 71ss., 112,
161, 166, 174, 185s.
-socia180 T~segunda(Decálogo) 1468., 189
Reino(s)57 Tecnologia (técnica) 59, lOOs., 1321.
- de Cristo 173 Teodicéia 89
- do diabo_ 113, 115 Teologia
- doutrina dos dois 57, 113 - da cruz 76ss., 185
- da graça 111 -da encarnação 76ss., 185
- da natureza 111 - da ressurreição 76ss.
Renascença 129 Terror 160
Representação 12Sss., 164ss. Tiago, Epístola de 29ss.
Respeito 85, 91 Tirano 46, 126s.
Responsabilidade 124ss., 138ss., 178s., Tolerincia 36
190, 193s. Trabalho 116, 117s., 145, 1531., 1R2,

215
191 - utilitário 93s.
Tragédias antigas 129 Veracidade 136, 202ss., 206
Tratado, quebra de 133, 137 Vergonha (v. Pudor)
Turcos 182 Vestimenta 17, 91, 206
Vida 120ss., 148
- biologização da 94
'Últimas coisas/dltimo 72s., 78, 82s., - mecanização da 86s.
147s. - rac.ionalização da 94
Unidade 15, 20, 123ss., 205 - sacriflcio da 95
- do eu 134ss. Violentação 104
- do Ocidente 56ss. Virtude 42s.
Usus Vitalidade 123
- paeda.gogicus 168 - ética da 123
- primus 168ss., 180 Vitalismo 61, 8tís.
- quarto 168, 176 Voluntarismo 89
-secundus 168, 176 Vontade
-tertius 168s., 176 -boa130
- fundamental 85

Valor(es)
- escala de 199 Westfália, acordo de paz da 58
-mundo dos 80, 117, 126s.

PESSOAS

-encarnação 45ss., 50, 77, 84, 163


Agamêmnon 129 -reaurreiçlo 48s., 51, 77, 164
Agostinho 97, 185
Agripa 175, 187
Aitofel 96 Dilschneider 177, 180
Antígone 129 Dom Quixote 43
Aristóteles 96, 185 Dostoiewski 75

Baldwin 133 &quilo 129, 139 .


Bismarck 126, 133 Eurípides 129
Bultmann 122

Félix 175, 187


Cahn 117 Festo 175, 187
Claudius, M. 155 Fichte 155 .
Clitemnestra 129 Frederico, o Grande 60
Creonte 129
Cristo
- cruz 38, 47ss., SO, 77, 119, 163s. Gladstone 133

216
Goethe 126, 136 Medéia 129

Hartmann, K. F. 50 Namnam1 Fr. 178


Hegel 185 . Niebohr, R. 109
Heün. K.153 Nietzscbel7,23,55,127,144,207
Hermann. W. 149
Herodes 175
Hitler 135 Paulo SS, 72s., 175, 179, 187
Holbeio. IL 128 Pedro73
Huxlcy 17 Pfiades 136s.

IbnSaud59 Ruland 103


lbsen 75
Ifig&ia 136s.
Scbcler, M. 152
Schiller 127
Jasão 129 Schilling 185
João Batista 175 Scblatter, A. 39
Judas 96 Sêneca95
Shakespeare 41, 188
Sõfocles 129
Kant 17, 52, 87, 101, 136, 14o, 1SS, Solowjeff 36
205,ZD1 Spranger20
Karamasow, Ivan 75 Stabl. 1. 152
Kicrkegaud 158 Stifter206
KOnkeI. Fr. 85
1bilo, V. 81
U7.aro 73, 93 Tiago30
Lessing59 Tom de Aquino 104
Lichtenberg 59 · Troeltlcb. 178
Usias 187
Luís XIV 00
Lutero ~s., 61s., 72s., 98, U2, 129, Vischcr, F. 1b. 146
140-3, 1~. 182, 201
Weber, M. 124, 141
Maquiavel 133 Wmckelmann 55

1
217
· Do mesmo autor:

DISCIPULADO, 196 pp. (1984, 2. ed.)


RESISTÊNCIA E SUBMISSÃO, 208 pp. (1980, 2. ed.)
TENTAÇÃO, 72 pp. (1983, 2. ed.)
VIDA EM COMUNHÃO, 85 pp. (1986, 2. ed.)

Publicações af'ms na Editora Sinodal:

DA LIBERDADE CRISTÃ, Martim Lutero, 30 pp. (1983, 4. ed.)


EM BUSCA DE SENTIDO, Um Psicólogo no Campo de Concentração, Viktor E.
Frankl, 174 pp. (1987)
ÉTICA DA DECISÃO, George W. Forell, 200 pp. (1983, 3. ed.)
ÉTICA DO NOVO TESTAMENTO, Heinz D. Wendland, 159 pp. (1981, 2. ed.)
FÉ ATIVA NO AMOR, George W. Forell, 189 pp. (1985, 2. ed.)
A FÉ EM BUSCA DE EFICÁCIA, José Míguez Bonino, 131 pp. (1987)
GRAÇA DE DEUS E SAÚDE HUMANA, J. Harold Ellens, 104 pp. (1986, 2. ed.)
MARX E O MUNDO EMANCIPADO DE BONHOEFFER, Per Frosti.n/Helmut
Gollwitzer, 73 pp. (1985, polígrafo)
MORTE, Eberhard Jüngel, 94/pp. (1980, 2. ed.)
MULHER E HOMEM, Erhard S. Gerstenberger/Wolfgang Schrage, 165 pp.
(1981)
OS DOIS REINOS, Ulrich Duchrow, 71 pp. (1987)
POR QUE SOFRER? Erhard S. Gerstenberger/Wolfgang Schrage, 223 pp. (1987,
2. ed.)
PRÁTICA DO EVANGELHO ENTRE POLITICA E RELIGIÃO, Manfred
Josuttis, 292 pp. (1982, 2. ed.)
A PRESENÇA IGNORADA DE DEUS, Viktor E. Frankl, 122 pp. (1985)
O "SOCIALISMO" DA PRIMEIRA CRISTANDADE, Gottfried Brakemeier, 59
pp. (1985)
UMA ÉTICA PARA NOSSOS DIAS. Origem e evolução do pensamento ético de
Dietrich Bonhoeffer, Pr6coro Velasques F-!, 95 pp. (1977, Editeo)

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