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Carlota Joaquina

A simples menção deste nome traz à imaginação um cortejo de caprichos dissolutos


e de intrigas políticas. Um dos maiores, senão o maior estorvo da vida de Dom João VI
foi certamente a rainha que os interesses dinásticos, então mais identificados com os
políticos, lhe tinham dado por esposa e que não só lhe enodoou o nome, como pela sua
irrequieta ambição aumentou quanto pôde as complicações da monarquia portuguesa,
fazendo de tempo a tempo andar numa roda-viva a diplomacia daquela época. A razão
está em que Dona Carlota Joaquina nunca se resignou a ser aquilo para que nascera uma
princesa consorte. Sentia em si sobeja virilidade para ser ela o Rei.

A natureza de fato enganou-se fazendo com tal alma desta filha dos Bourbons uma
mulher, ou antes, lhe foi o fado supinamente inclemente, reduzindo-a à inação e à
impotência quando a dotara para querer e dominar, ver e resolver por si, para ser uma
Isabel da Inglaterra ou uma Catarina da Rússia. Por uma triste ironia, no entanto, nem
sequer lhe foi dado mandar na sua casa, onde todos tinham mais voz do que ela, em cujo
espírito primavam num grau notável os predicados que se conveio denominar masculinos:
a energia, a atividade, a vontade.

Os traços varonis e grosseiros do seu rosto, o seu gênero de preocupações, o seu


próprio impudor, denotam que em Dona Carlota havia apenas de feminino o involucro.
A alma poderia chamar-se masculina, não tanto pelo desejo imoderado de poder e pelo
cinismo, quanto pela pertinácia em alcançar seus fins e pela dureza. Os filhos herdaram-
lhe a vida, o excesso de vigor animal, que ela nunca conseguiu, porém, inocular no
marido, pacífico e comodista. Tampouco logrou impor-lhe sua orientação política ou
alistá-lo até o fim no serviço das suas pretensões soberanas. Para que se exercesse
eficazmente a sua influência doméstica precisaria ser secundada pela beleza física que de
todo lhe faltava, ou por maneiras brandas e sinceramente carinhosas que eram avessas ao
seu temperamento buliçoso e desbragada educação.

É incontestável que a própria aparência não lhe dava entrada autorizada no belo
sexo. A estatura era muito baixa, disforme a figura, irregulares as feições, ainda afeiadas
pela exuberância capilar da face, em volta da boca de lábios finos. A fisionomia era
contudo expressiva, lendo-se-lhe nos olhos rasgados e negros a vivacidade e a decisão,
assim como no queixo pontudo a malícia e a perfídia. Não menos originais do que os
traços eram alguns dos seus hábitos: se saía, por exemplo, a cavalo, escanchava-se sobre
o animal. Sua linguagem soía ser mais do que livre: era por vezes obscena, e muitos dos
seus atos ressentiam-se de uma extrema vulgaridade. Conta Presas168 que um dia, tendo-
se Dom Miguel encharcado com a água de um alguidar, a rainha não teve mão em si e,
descalçando o sapato, aplicou ao Infante endiabrado a correção de que se teria lembrado
qualquer regateira de mercado. Que não valeu de muito a correção, provam-no as
contínuas travessuras, que ficaram proverbiais, do futuro rei legítimo, o qual nos verdes
anos, passados em São Cristóvão, se divertia em beliscar as irmãs e atirar com dois
canhõezinhos, presente do almirante inglês, sobre os visitantes do Palácio.

O traço convencionalmente feminino de Dona Carlota era o amor das jóias e


vestidos, o fraco pelo luxo. Nela não havia meiguices de mulher: apenas acessos de
volúpia em que prostituía o tálamo e a coroa. Também o marido, em quem entretanto não
escasseavam nobres sentimentos, não sofria quanto a isso do mal de uma sensibilidade
em extremo delicada. Segundo o familiar Presas, era ele "más zeloso de su autoridad que
de su augusta esposa”. E razão lhe assistia porque esta procurou, durante o reinado,
substituí-lo no mando, legal ou ilegalmente. Quando compreendeu que nada alcançaria
em Portugal, por ser princesa estrangeira e para mais espanhola, conquanto pessoalmente
simpatizada, voltou suas vistas, à mercê das circunstâncias, para a Espanha e depois para
a América Espanhola, volvendo-as por fim de novo para o Reino, que ela fez estrebuchar
em convulsões políticas, servindo-se como agente da reação do Infante Dom Miguel, seu
filho predileto e dócil instrumento.

Três anos antes da ida para o Brasil, em 1805, chegara a ambição de Dona Carlota
Joaquina a tomar corpo na mais vil conspiração contra o regente. Certos incômodos do
príncipe tinham-lhe trazido vertigens e mal-estar, segundo explica o autor de Histoire de
Jean VI, e juntando-se a impressões morais depressoras, bem compreensíveis em quem
se via colocado entre uma mãe alucinada e uma mulher impudica, aumentaram o seu
natural retraimento. Não quis mais caçar nem sequer montar a cavalo e votou-se a uma
existência perfeitamente sedentária. Trocou Queluz por Mafra, onde os frades o encheram
de atenções, mas ainda aí enfastiando-se do cantochão e das comeizanas, mudou-se para
o Alentejo, indo habitar o solar da família em Vila Viçosa, levantado em meio de
charnecas desoladas e povoado de tristes visões, que sorriam umas e outras ao seu espírito
atribulado.

Espalharam então perversamente que estava doido como Dona Maria I, que a
hipocondria de que sofria não era senão a primeira fase da terrível enfermidade, e parte
da nobreza, a mais apegada às idéias antigas e a mais impaciente de organizar uma
oligarquia em proveito próprio, pensou em destituir Dom João e confiar a regência à
princesa do Brasil, a qual soubera fazer-se estimada não só da aristocracia como da plebe.
O segredo da conspiração transpirou todavia. O príncipe, que havia melhorado com os
ares secos e quentes de Vila Viçosa, teve um assomo de vigor, filho do instinto da
conservação, e regressou subitamente para Lisboa onde, guiado por Vila Verde, que foi
o salvador da situação, desterrou alguns dos fidalgos traidores e demitiu um lote de
empregados, afirmando sua autoridade minada e cortando o vôo à consorte.

Tais acontecimentos não eram contudo de natureza a curá-lo da melancolia, que


antes se agravou com o ocorrido, tornando-o desconfiado até da família. Todo o ano de
1806 residiu Dom João no palácio de Mafra, que ocupa uma ala do imenso convento,
distraindo os pesares com assistir aos ofícios na capela, formosa nos seus mármores
esculpidos, e dar passeios na tapada, soberba na sua rústica simplicidade. Mesmo em
1807, raramente vinha de Queluz a Bemposta: foi mister a mudança para o Rio de Janeiro,
para lhe restituir o gênio satisfeito e fazer reaparecer sua fina bonomia.

Desde aqueles sucessos separara-se, porém, completamente de Dona Carlota


Joaquina, com quem vivia num estado de crônica desavença desde 1793, três anos
passados do casamento, durando a rutura até a morte em que pese as expressões de
exagerada ternura - queridinho do meu coração e outras de igual jaez - com que a
impudente persistia em mimosear o marido nas suas interesseiras epistolas. 169

Neste caso era pura hipocrisia, mas não se pode duvidar que ela possuísse um
coração acessível ao afeto. Foi mesmo me extremosa, sendo sua filha favorita a Infanta
Dona Ana Maria, mais tarde duquesa de Loulé. Quis também com exaltação e vaidade ao
filho Dom Miguel, vendo-se nele moralmente reproduzida, por ele compreendida e por
intermédio dele vingada. O interessante é que, com suas faltas, ambos foram personagens
populares. O povo gosta sempre dos que lhe falam à imaginação pela alacridade física ou
pelo desassombro loquaz: tem por isso um fraco pelos atletas e pelos tribunos.

Também, ao que nos revela a correspondência de Dona Carlota, não havia


protetora mais desvelada. Constantemente importunando os ministros, pedia, rogava,
suplicava, impunha favores para os seus afilhados, com estes constituindo uma roda sua
dedicada que, mestre consumada na arte das intrigas, sabia perfeitamente quanto poderia
vir a ser-lhe útil para quaisquer desígnios. Com esses amigos era generosa na medida da
sua antes magra dotação de princesa herdeira, a qual rendia nas suas mãos porque não lhe
faltava ao mesmo tempo o talento do cálculo e da economia. Ainda assim não lograva
evitar ter que empenhar sua palavra, que nestes assuntos pecuniários valia entretanto
menos do que noutros, sendo quase nulo o seu crédito, mesmo porque carecia de muito
dinheiro para sustentar sua categoria de soberana de fato e promover seus projetos
diplomáticos.

No próprio modo de submeter-se a essas privações relativas, dava contudo mostras


de dignidade porque esta era espontânea, derivava do seu caráter orgulhoso e imperioso,
com faces de verdadeira rainha. Não cedia uma polegada dos seus direitos; não tolerava
um menoscabo da sua posição; não deixava uma só vez de insistir pelas distinções a que
tinha jus; não perdoava o mínimo desrespeito. Não raro deu a sua intransigência nesta
matéria origem a questões que enchem páginas dos livros de registro da velha secretaria
de estrangeiros e até tiveram repercussão nas colunas do Times, não duvidando o
embaixador Palmela responder sob pseudônimo aos comunicados desfavoráveis ali
inseridos.

Era, por exemplo, entre os nacionais usança, à qual não ousariam esquivar-se,
desmontarem das suas cavalgaduras ou apearem-se das suas carruagens para saudar, de
chapéu na mão e dorso curvado, quando não para se ajoelhar, na passagem de pessoa da
família real que andasse tomando ar de carro ou a cavalo. Os estrangeiros achavam em
demasia servil o ato completo de respeito como se costumava praticar, julgando
demonstração bastante o descobrirem-se marcadamente; mas os cadetes que rodeavam o
augusto passeante se açulados - como era o caso com Dona Carlota, muito ciosa das suas
atribuições e prerrogativas - pretendiam coagi-los a imitarem os nacionais. Nesse afã nem
as imunidades oficiais respeitavam, obrigando à força, ou pelo menos sob ameaças,
representantes diplomáticos e comandantes de vasos de guerra a aquiescerem com o
hábito tradicional.

Nem todos esses ministros e oficiais tiveram o expediente do ministro americano


Sumter, o qual, com o espírito prático da sua raça, forneceu neste assunto o melhor
modelo. Insultado um dia pelo motivo aludido, em vez de recorrer a reclamações tediosas
que consumiam tempo e só davam em resultado leves castigos para os delinqüentes, na
melhor hipótese, de ser concedida reparação, armou-se Sumter de um par de pistolas e,
noutra ocasião em que foi provocado, forçou os cadetes a recuarem sob pena de fazer
fogo sobre eles. Nova e peremptória ordem de agressão da rainha Dona Carlota,
invariavelmente animosa tanto quanto orgulhosa, não conseguiu insuflar coragem nos
guardas, e o fato teve por último efeito levar o rei, sempre conciliador, a ordenar que se
não exigissem mais, de estrangeiro algum, maiores provas de deferência para com a
família real portuguesa do que aquelas que estivessem efeitos a testemunhar ao seu
próprio soberano.170
Na correspondência de Maler encontra-se freqüentemente referência à insolência
da escolta de cavalaria e dos lacaios a cavalo que acompanhavam as pessoas reais. O
incidente Sumter acha-se relatado exatamente como o narra o cônsul Henderson - esse
incidente alias correu mundo - e com ele outros muitos da mesma espécie. Assim parece
que nem mesmo lord Strangford, apesar do seu caráter de ministro da corte aliada e da
consideração pessoal de que gozava, logrou escapar a graves sensaborias de semelhante
natureza. Chega o encarregado de negócios francês a contar, citando para confirmação a
informação do seu colega britânico e a notoriedade da ocorrência, que aquele altivo lord
em 1814 recebeu em plena estrada algumas chicotadas vibradas pelo estribeiro de uma
das princesas por não querer se conformar com a ridícula tradição. 171

No mesmo mês de outubro em que Maler oficiava, a 26, fora o secretário da


Holanda, Cromelin, publicamente ameaçado e maltratado pelos fâmulos do príncipe real,
e “depois de ouvir os insultos mais porcos, apesar de ter declarado o seu nome e sua
categoria, compelido a descer do cavalo". Lamentando tão obsoletas pretensões, o coronel
Maler não culpa expressamente, no seu respeito de velho cortesão, a rainha Dona Carlota
dessas cenas "tão pouco consentâneas à dignidade, aos sentimentos e à civilização mesmo
de uma corte européia"'; mas tem pressa de ajuntar, em abono do rei, "que o seu séquito
pessoal, composto de elementos idênticos, nunca praticara, de conhecimento dele,
quaisquer violências para com os estrangeiros" - os quais, segundo escreve o comerciante
Gendrin,172 saudavam sempre o mais afetuosamente e até estrepitosamente o popular
monarca.

Por vezes iam bem longe aquelas violências, justificando que o representante
francês, escrevendo para seu governo, denominasse o Brasil ce triste pays. A esposa do
ministro americano Sumter – née de Lage, informa Maler - porventura em covarde
desforço do ato de seu esposo, foi agredida a pedradas, que a feriram bastante, ao passar
no seu coche por uma rua muito freqüentada, sem que se realizasse prisão alguma. De
outra feita, o comodoro Bowles, chefe da estação naval inglesa no Rio da Prata e Mar do
Sul, foi posto abaixo as pranchadas do cavalo que montava por ter querido, em companhia
do encarregado de negócios do seu país, evitar o encontro do coche da rainha.

Tendo sido apresentada queixa formal ao ministro Thomaz Antônio e havendo-se


o comodoro retirado para bordo da nau capitânia – fragata La Créole - aguardando
satisfação, mandou Dom João VI que os dois cadetes, autores do ultraje, juntamente com
um soldado da escolta, fossem a bordo oferecer suas desculpas perante o estado-maior
reunido, seguindo-se a esta reparação formal um jantar de reconciliação dado pelo oficial
inglês.173

O pobre rei por modos diversos tinha que sofrer dos desatinos da consorte a qual,
nas palavras do residente Luccock, 174 levava demasiado longe - to a disgusting extent, a
um ponto revoltante - o seu ressentimento, tornando-o afinal pouco temido (little
regarded) mercê do próprio excesso, que não poderia desafogar-se por um crime em cada
dia e tinha de refugiar-se em crises de histeria.

À histeria de Dona Carlota deve-se porventura atribuir a epilepsia do príncipe real,


a qual se encontram várias referências na correspondência oficial do coronel Maler. A
primeira vez em que se faz aí menção da enfermidade do herdeiro da coroa é por ocasião
da conhecida revista na Praia Grande das tropas que partiam para a expedição platina. 175
O beija-mão, efetuado em seguida na tenda de campanha erguida para o desfilar,
prolongou-se até depois das quatro da tarde, mas foi muito desagradavelmente
interrompido por um acidente epilético que fez cair sem sentidos S.A.R. o príncipe
herdeiro, sendo infelizmente já a sexta vez que ele experimenta esses cruéis ataques que
o privam de todo conhecimento Transportaram-no para a casa mais próxima, que era a
residência do marechal-general lord Beresford, a fim de melhor poderem acudir-lhe. S.M.
e a real família foram logo visitar S.A. e as seis horas foi possível levá-lo de carro para
seus próprios aposentos.

O casamento de Dom Pedro com Dona Leopoldina quase não se realizou por tal
motivo, entre outros mais. Reproduzindo o boato corrente em Lisboa do adiamento, pela
corte de Viena, do enlace projetado, o cônsul-geral Lesseps atribui a demora e o
rompimento do compromisso, no dizer de uma pessoa em relações diretas com o Rio de
Janeiro e que lhe merecia confiança, às informações transmitidas para a Europa por um
emissário confidencial daquela corte. 176 "Um médico alemão, de viagem pelo Brasil e
particularmente encarregado pelo imperador da Áustria de transmitir-lhe pormenores
sobre o príncipe, tão desfavoráveis notícias apresentou da sua saúde, da sua moralidade e
dos seus hábitos que S. M. imediatamente procurou os meios de impedir, apesar de já
decidida, uma união tão pouco conveniente, cujo resultado seria o sacrifício de uma
interessante princesa. A exatidão destas informações sobre o herdeiro da coroa é
confirmada pelas de todas as pessoas que tiveram ensejo de freqüentar a corte do Rio de
Janeiro."

Um dos mais indiscretos nas suas expansões, mesmo em desabono de Dom João
VI, foi o duque de Luxemburgo durante sua estada e depois do seu regresso do Rio. Delas
se fez eco o embaixador austríaco em Paris, barão de Vincent, por cujo intermédio
subiram até a arquiduquesa, chegando mais tarde ao conhecimento da família real
portuguesa, que o embaixador francês a descrevia com as cores mais ingratas, insistindo
sobretudo em que era Dom Pedro inteiramente falto de todos os princípios de educação.
Maler, ao dar conta dessas intrigas de corte, observa que o rei com sua habitual
circunspecção que atingia a dissimulação, jamais lhe dera a perceber nada disso, não
obstante tratá-lo com muita confiança.

O trato com Dona Carlota Joaquina tanto podia ser em extremo agradável como
altamente desagradável, segundo lhe caía em simpatia ou desfavor a pessoa com quem
tratava. Assim o general barão de Thuyll, ministro russo chegado a 13 de setembro de
1819 no três mastros Agamenon e, segundo Maler, pessoa muito delicada mandada a
desfazer a má-impressão causada pelo proceder do embaixador Balk-Poleff, teve que se
mudar de uma casa que tomara perto de uma das residências de Dona Carlota e em que
gastara 40.000 francos para mobiliá-la e arranjar o jardim, por não mais suportar os
desacatos da criadagem e da soldadesca da rainha, apesar de se haver queixado sem
azedume, antes confidencialmente e com todo o espírito conciliador compatível com a
sua dignidade ofendida. Na forma do costume, a rainha, em vez de abrandar, acirrava seus
dependentes.

É força porém crer que Dona Carlota era capaz de exibir qualidades de sedução,
decerto mais intelectual que física, visto ser tão desgraciosa. Viva, espirituosa,
enredadora, faceira, quando queria, até ultrapassar a decência, mas sabendo também
afetar pudores e dignidade de mulher, o fato é que conseguiu que vários homens de
merecimento jungissem um momento dado os próprios interesses aos seus, e que outros
se prestassem a servi-la com zelo e dedicação. Dos três maiores ministros de Dom João
VI, Linhares nunca lhe mereceu as boas graças e tinha a propriedade de enfastiá-la:
chamava-o também el torbelino por estar sempre em movimento, atendendo a uma
multidão de negócios, e só em última extremidade lhe pedia qualquer obsequio.

Sobre Barca no entanto escrevia ela a Thomaz Antônio depois de falecido aquele:
"E sempre lhe quero dizer que Eu não sou capaz de pedir cousas que não se me devão, e
que se a minha consciencia fora de manga larga, que no tempo de Araújo (apesar de ser
como era), que Eu estaria a estas horas com a minha casa n'outra figura, e com uma
Mesada de 200 ou 300$000 cruzados como as rainhas D. Marianna d'Áustria e D. Mariana
Victoria tinham fora a sua casa, porém eu não quis sem ter todas as clarezas: mas ele
teimou muitas vezes comigo que dissesse o quanto era, e que bastava a Minha palavra,
que não precisava mais nada."177

Podia ser que Barca prometesse mais do que tencionava cumprir: estaria isso na
sua natureza, a darmos crédito ao duque de Luxemburgo, o qual escrevia para Paris ter
encontrado o ministro muito coulant na questão da restituição da Guiana, aparentemente
porém, pois adquirira a certeza de que em conselho ele opinava num sentido inteiramente
oposto. É contudo preciso não perder de vista que o embaixador da França andou todo o
tempo irritado com o pouco êxito da sua missão. Maler por seu lado, que faz os mesmos
conceitos sobre a doblez diplomática de Barca, nem tinha especial simpatia pelo homem,
suspeito aos seus olhos de reacionário de idéias nimiamente liberais, nem podia se
reconciliar com a guerra de Montevidéu, de que lançava toda a responsabilidade sobre
esse estadista, o qual teria voltado ao poder, após seus anos de ostracismo, "devorado de
ambição, querendo à fina força fazer falar de si na Europa".

Na opinião de Maler, só aquele político familiarizado ou talvez corrompido pelas


idéias revolucionárias haveria sido capaz de ir até o ponto de tirar partido da santa união
de duas augustas princesas178 para melhor embalar e adormecer o rei da Espanha. O
encarregado de negócios da França achava de resto que, nesse negócio da ocupação da
Banda Oriental, tinha o conde Barca burlado toda a gente. "Se possível fosse reverenciar
o talento de enganar, não seria lícito nessa época recusar um tributo de admiração à arte
com que o conde da Barca conseguiu durante dois meses consecutivas separar o rei do
seu digno amigo Aguiar, o soberano do seu ministro de confiança, e ao mesmo tempo
ludibriar (donner le change) ambos."179

Acrescenta o representante francês que o "virtuoso e integro" marquês de Aguiar


levantara os maiores obstáculos aos desígnios imperialistas do seu colega Araújo, com
quem vivera até aí na melhor inteligência particular e oficial, morrendo inconsolável de
os não ter podido frustrar. "Fui testemunha de que os seus últimos momentos foram
perturbados pelos tristes olhares que ele lançava sobre essa guerra já iniciada e de que ele
não lograva perceber nem o fito nem os motivos verdadeiros." A reflexão pode fazer
honra ao caráter, mas não à sagacidade de Aguiar.

Os casamentos espanhóis - força é reconhecer - também não pecavam da outra


parte pela extrema candidez. Os seus negociadores foram agentes do governo da
Restauração - o general Vigodet e o padre Cirilo - e a idéia oculta de Madri foi sem dúvida
a de captar a cooperação portuguesa para a pacificação pela força da América Espanhola.
Dom João aproveitou-se habilmente da oportunidade para colocar duas filhas do bando,
que era numeroso, engodando a benevolência espanhola com essa nova ligação de família
e mandando entretanto, na realização dum projeto maduro, que tanto tinha sido de
Linhares como podia agora ser de Barca, tomar posse definitiva da Banda Oriental, onde
o caudilho Artigas estava campeando e exercendo grande prestigio sobre a multidão,
solicitada pelos ideais divergentes da emancipação política e da lealdade colonial.

De Palmela é sabido que se não contentou com servir inteligentemente as ordens


do governo do Rio na missão que dos anos de 1809 a 1812 o reteve em Espanha,
acreditado perante a Junta Central de Sevilha e depois perante as Cortes Constitucionais
de Cadiz. Era essa missão, pode dizer-se toda no interesse de Dona Carlota Joaquina, pois
que o jovem diplomata levava como instruções obter a abrogação da lei sálica, o
conseqüente reconhecimento dos direitos eventuais da princesa do Brasil ao trono da
Espanha e, finalmente, a aceitação da mesma princesa como regente durante a crise da
ocupação francesa e o cativeiro em Valençay do rei Fernando VII e do infante Dom
Carlos. Palmela foi mais longe do que isso, sendo dos primeiros que devanearam para a
sua soberana um futuro imperial, verdade é que compartilhada tão alta posição pelo
marido que ela tinha em horror.

Não era isto exatamente o que Dona Carlota pretendia. A grande ambição da sua
vida foi governar, porém governar ela só, sem peias e sem participações. Para realizar
este desejo foi que trabalhou, cabalou, intrigou, se cansou de pedir e de ameaçar, não
recuando diante de meio algum, e só alcançando impopularizar-se quando iniciara seus
esforços num ambiente favorável. Era Dona Carlota Joaquina a filha primogênita do
soberano destronado, vítima lastimosa de baixezas e prepotências, àquele tempo
vegetando tristemente em Marselha: como tal ela acordava uma comiseração reflexa que
logo originava simpatia. Nem ela se descuidou de jogar arteiramente com essa sua
condição, pretendendo já reinar em Madri depois da renúncia de Baiona e da usurpação
francesa; já ser regente durante o sequestro dos irmãos; já subir, pelo menos, a imperatriz
da América Espanhola, cuja lealdade dinástica se manifestara ruidosamente contra o Rei
José, mas trazia como conseqüência final a independência das colônias.

Não lhe sendo possível governar como rainha ou regente na Península, como
imperatriz ou Rainha além-mar, contentava-se com a regência da América Espanhola,
com a do Rio da Prata que fosse, contanto que numa dada extensão de território pudesse
exercer autoridade própria, distinta, autônoma, sem contas a dar àquele estafermo odioso,
cuja vista lhe era insuportável até na mesa, preferindo tomar as refeições na câmara,
sozinha ou com a pequenina infanta Dona Ana de Jesus Maria. Mesmo depois de
preparado o palácio da Boa Vista para residência habitual de Dom João, continuaram
Dona Carlota e as infantas menores, de quem ela nunca se separava, a viver no Paço da
cidade, indo diariamente todas à missa das nove a São Cristovão e voltando as infantas
ao galope das bestas para jantar às quatro com o pai, enquanto a rainha se dirigia de carro
para uma de suas casas de recreio, das Laranjeiras ou do Rio Comprido, parando
ocasionalmente a palestrar com a sua intima amiga a viscondessa de Vila Nova.

O temperamento ardente, apaixonado e certamente poético, pois que estimava a


natureza e saboreava o amor, de Dona Carlota Joaquina, soube assim tirar a maior
vantagem da sua residência numa terra de que absolutamente não gostava porquanto lhe
pareceu sempre, socialmente, um teatro mesquinho para a realeza tradicional que ela
representava, pela Casa de que descendia e pela Casa a que se aliara. As suas habitações
de recreio, as sua petites maisons foram por isso levantadas em dois pontos mais graciosos
e românticos de uma cidade rica em pontos de vista, opulenta de formosas situações, todas
elas diferentes, dominadoras umas, constituídas por morros verdejantes donde se
despenham cascatas, ocultas outras em vales sombrios atravessados pelos riachos joviais.

Não se lhe dava porém, a Dona Carlota Joaquina, desertar aqueles retiros de
saudosas recordações e essa natureza de poderosa sugestão, transplantando seus gozos
físicos e morais para um outro cenário. Nas Juntas de Sevilha e de Cadiz, nas cortes
espanholas, nos Cabildos e Ayuntamientos americanos, fizeram-se ouvir seus protestos,
rogos e cavilações. De tudo se serviu. Nada lhe era pessoalmente mais antipático do que
o projeto de casamento de sua filha mais velha Dona Maria Tereza com o infante
d'Espanha Dom Pedro Carlos, o sobrinho dileto de Dom João VI, educado desde os mais
tenros anos na corte portuguesa e a quem o príncipe regente, logo que chegou ao Brasil,
nomeou almirante da esquadra portuguesa. Dona Carlota detestava-o, e quando lhe
contaram que à mesa o marido atiçava o namoro desse príncipe, que Presas descreve
ignorante, grosseiro, desconfiado, de linguagem ordinária e não raro indecente,
mandando-o trocar frutas com a infanta, punha-se furiosa e desabafava em impropérios,
chamando Dom João de alcoviteiro. O casal nem por isso foi menos feliz nos dois anos
que durou o seu enlace. Dom Pedro Carlos era o que os ingleses dizem muito uxorious e
é fama que de tanto veio a morrer. 180 Dona Carlota só se reconciliou entretanto com o
casamento, que tão auspicioso se afigurava a Dom João ao atentar na mútua afeição dos
noivos, quando, absorta nos seus sonhos de poderio, refletiu na aproximação de dinastias,
e unidade de interesses que daí parecia advir para o continente americano espanhol
português, o qual, graças a essa nova união das duas famílias reinantes da Península,
poderia mais facilmente encaminhar-se para ficar de todo colocado debaixo do influxo de
um só trono, gerado pelas duas coroas, uma delas repousando sobre a sua cabeça senhoril.

Era o que por seu lado Palmela de algum modo estava sonhando. Um momento
houve em que o representante da corte do Rio na anarquizada Espanha, desiludido do
futuro da Península - a qual, se lograsse desvencilhar-se do jugo francês, permaneceria
inevitavelmente, pelo que se podia prever, debaixo da tutela inglesa - pensou na completa
americanização das dinastias de Bragança e de Bourbon181, nesse momento fundidas pelo
consórcio de Dom João com Dona Carlota, que assim criariam para seus descendentes
um colossal império ultramarino formado pelas possessões das duas coroas, abrangendo
toda a América Meridional e Central e quase metade da Setentrional.

O espírito romântico de Chateubriand acariciaria anos depois o mesmo sonho,


fragmentado porém, porquanto visava a colocar alguns príncipes da Casa de Boubon à
frente das diferentes colônias já emancipadas. O plano de Palmela, contemporâneo da
emancipação, correspondia antes à centralização da autoridade, invocada por Dona
Carlota em suas cartas como indispensável para a operação de um bom governo e que na
Espanha, até se organizar a Junta Central na qual mergulharam as províncias, ficara
olvidada entre o ardor do movimento nacionalista que ali tende sempre a se tornar
federalista, de acordo com a tradição histórica e a realidade das divisões etnográficas e
sociais.

Palmela convenceu-se em Cadiz que a princesa do Brasil jamais lograria ser feita
sem grande pugna regente da Espanha: acreditava, porém, que nada seriamente tentaria
impedi-la de ser aclamada nessa mesma qualidade - sucessora, conforme era, do
"destronado e talvez morto Fernando VII" - na América onde se encontrava. Deste modo
evitar-se-ia o desmembramento que a usurpação estrangeira em Madri e a desordem da
Espanha liberal andavam prognosticando para as colônias americanas, e dava-se seu
verdadeiro destino à monarquia portuguesa trasplantada num momento de subversão
histórica, e que por um feliz acaso reunia sob o dossel do seu trono os legítimos
representantes das duas dinastias peninsulares. Mantinha-se assim além do mar a tradição
histórica, mediante a consolidação numa só de ambas as pátrias. Fechava-se, após mais
de três séculos, o ciclo das navegações, tocando suas conseqüências extremas: realizava
se uma União Ibérica transatlântica; concretizava-se no Novo Mundo o velho ideal que
parecia sepultado com Dom João II e Felipe II.

Nesta sua concepção, que se pode qualificar de grandiosa, impeliam Palmela


considerações positivas e práticas que condiziam com o seu ânimo pouco inclinado a
idealismos políticos. Segundo finamente observava a citada escritora que dele traçou uma
admirativa biografia, percebia o diplomata português perfeitamente que a Inglaterra não
convinham de forma alguma esses impérios cerrados, governados arbitrariamente para
seu proveito exclusivo por metrópoles longínquas; que a época estava chegada em que
não mais se os permitiria. Senhora dos mares, que como tal se havia tornado, queria a
Grã-Bretanha mercados variados e abertos. Nem outro seria o motivo da sugestão de
Canning a Monroe, quatorze anos depois da missão Palmela na Espanha.

Justamente a Inglaterra transformava o seu instrumento agrário num formidável


aparelho industrial, por meio do qual entrava no caminho da sua surpreendente expansão.
A colocação da nova e multiplicada produção passou pois a ser uma consideração
imediata e de importância máxima, e o problema americano um dos mais graves por isso
do século que então estava na aurora,182 assim como vai volver a sê-lo do século que
principia agora, já que o século decorrido não lhe deu com suas combinações apressadas
e de fracos alicerces uma solução satisfatória, apenas um desfecho que as circunstâncias
se encarregaram de mostrar provisório.

Por virtude da ação deliberada de um e da consciente declaração do outro, Canning


e Monroe tentaram ajeitar o futuro e reservar o continente meridional, cuja constituição
política fizeram definitiva, para a expansão econômica das gentes anglo-saxônicas,
empresa tanto mais fácil quanto mais desligado estivesse o feixe latino-americano. À
Inglaterra não convinha portanto um único império hispano-português, mesmo
comercialmente franco que fosse. Palmela obteve exarar o reconhecimento dos direitos
eventuais de Dona Carlota ao trono d'Espanha, concessão em suma platônica, num tratado
assinado com a Regência nos começos de 1810, e que estipulava também a troca perpétua
de Olivença por territórios no Rio da Prata e a cooperação de um exército português de
12.000 homens na campanha da independência peninsular. O governo britânico todavia,
que de fato estava protegendo as duas nações peninsulares e as convertera em base
essencial de suas operações militares contra Napoleão, é que nunca sancionou o referido
tratado, o qual ficou por esta razão sem efeito. E do mesmo modo que, deixando de
referendar aquele reconhecimento de direitos eventuais à coroa de uma infanta d'Espanha,
denunciava não lhe ser agradável a forma tradicional da união ibérica, tampouco se
revelaria no mínimo o gabinete de Saint James disposto a admitir de bom grado a união
sob a forma ultramarina.

Do lado do príncipe regente de Portugal era pouco crível que houvesse neste ponto
indomável oposição a temer. Sempre oportunista e mais perspicaz do que o julgavam seus
próprios conselheiros, mostrou-se ele de pronto inclinado a trocar aqueles direitos
hipotéticos da consorte, que a princípio parecera sustentar, por alguma coisa de mais
sólido e substancial e de mais imediato proveito - um acréscimo de território para as
bandas do sul por exemplo, envolvendo a reincorporação de Montevidéu, idéia sempre
cara ao seu coração de príncipe que sangrava pelo sangue que a Portugal custara a
malfadada Colônia do Sacramento.

REFERÊNCIAS

LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil (1808-1821). Edição fac-similar. Brasília:


FUNAG, 2019.

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