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A natureza de fato enganou-se fazendo com tal alma desta filha dos Bourbons uma
mulher, ou antes, lhe foi o fado supinamente inclemente, reduzindo-a à inação e à
impotência quando a dotara para querer e dominar, ver e resolver por si, para ser uma
Isabel da Inglaterra ou uma Catarina da Rússia. Por uma triste ironia, no entanto, nem
sequer lhe foi dado mandar na sua casa, onde todos tinham mais voz do que ela, em cujo
espírito primavam num grau notável os predicados que se conveio denominar masculinos:
a energia, a atividade, a vontade.
É incontestável que a própria aparência não lhe dava entrada autorizada no belo
sexo. A estatura era muito baixa, disforme a figura, irregulares as feições, ainda afeiadas
pela exuberância capilar da face, em volta da boca de lábios finos. A fisionomia era
contudo expressiva, lendo-se-lhe nos olhos rasgados e negros a vivacidade e a decisão,
assim como no queixo pontudo a malícia e a perfídia. Não menos originais do que os
traços eram alguns dos seus hábitos: se saía, por exemplo, a cavalo, escanchava-se sobre
o animal. Sua linguagem soía ser mais do que livre: era por vezes obscena, e muitos dos
seus atos ressentiam-se de uma extrema vulgaridade. Conta Presas168 que um dia, tendo-
se Dom Miguel encharcado com a água de um alguidar, a rainha não teve mão em si e,
descalçando o sapato, aplicou ao Infante endiabrado a correção de que se teria lembrado
qualquer regateira de mercado. Que não valeu de muito a correção, provam-no as
contínuas travessuras, que ficaram proverbiais, do futuro rei legítimo, o qual nos verdes
anos, passados em São Cristóvão, se divertia em beliscar as irmãs e atirar com dois
canhõezinhos, presente do almirante inglês, sobre os visitantes do Palácio.
Três anos antes da ida para o Brasil, em 1805, chegara a ambição de Dona Carlota
Joaquina a tomar corpo na mais vil conspiração contra o regente. Certos incômodos do
príncipe tinham-lhe trazido vertigens e mal-estar, segundo explica o autor de Histoire de
Jean VI, e juntando-se a impressões morais depressoras, bem compreensíveis em quem
se via colocado entre uma mãe alucinada e uma mulher impudica, aumentaram o seu
natural retraimento. Não quis mais caçar nem sequer montar a cavalo e votou-se a uma
existência perfeitamente sedentária. Trocou Queluz por Mafra, onde os frades o encheram
de atenções, mas ainda aí enfastiando-se do cantochão e das comeizanas, mudou-se para
o Alentejo, indo habitar o solar da família em Vila Viçosa, levantado em meio de
charnecas desoladas e povoado de tristes visões, que sorriam umas e outras ao seu espírito
atribulado.
Espalharam então perversamente que estava doido como Dona Maria I, que a
hipocondria de que sofria não era senão a primeira fase da terrível enfermidade, e parte
da nobreza, a mais apegada às idéias antigas e a mais impaciente de organizar uma
oligarquia em proveito próprio, pensou em destituir Dom João e confiar a regência à
princesa do Brasil, a qual soubera fazer-se estimada não só da aristocracia como da plebe.
O segredo da conspiração transpirou todavia. O príncipe, que havia melhorado com os
ares secos e quentes de Vila Viçosa, teve um assomo de vigor, filho do instinto da
conservação, e regressou subitamente para Lisboa onde, guiado por Vila Verde, que foi
o salvador da situação, desterrou alguns dos fidalgos traidores e demitiu um lote de
empregados, afirmando sua autoridade minada e cortando o vôo à consorte.
Neste caso era pura hipocrisia, mas não se pode duvidar que ela possuísse um
coração acessível ao afeto. Foi mesmo me extremosa, sendo sua filha favorita a Infanta
Dona Ana Maria, mais tarde duquesa de Loulé. Quis também com exaltação e vaidade ao
filho Dom Miguel, vendo-se nele moralmente reproduzida, por ele compreendida e por
intermédio dele vingada. O interessante é que, com suas faltas, ambos foram personagens
populares. O povo gosta sempre dos que lhe falam à imaginação pela alacridade física ou
pelo desassombro loquaz: tem por isso um fraco pelos atletas e pelos tribunos.
Era, por exemplo, entre os nacionais usança, à qual não ousariam esquivar-se,
desmontarem das suas cavalgaduras ou apearem-se das suas carruagens para saudar, de
chapéu na mão e dorso curvado, quando não para se ajoelhar, na passagem de pessoa da
família real que andasse tomando ar de carro ou a cavalo. Os estrangeiros achavam em
demasia servil o ato completo de respeito como se costumava praticar, julgando
demonstração bastante o descobrirem-se marcadamente; mas os cadetes que rodeavam o
augusto passeante se açulados - como era o caso com Dona Carlota, muito ciosa das suas
atribuições e prerrogativas - pretendiam coagi-los a imitarem os nacionais. Nesse afã nem
as imunidades oficiais respeitavam, obrigando à força, ou pelo menos sob ameaças,
representantes diplomáticos e comandantes de vasos de guerra a aquiescerem com o
hábito tradicional.
Por vezes iam bem longe aquelas violências, justificando que o representante
francês, escrevendo para seu governo, denominasse o Brasil ce triste pays. A esposa do
ministro americano Sumter – née de Lage, informa Maler - porventura em covarde
desforço do ato de seu esposo, foi agredida a pedradas, que a feriram bastante, ao passar
no seu coche por uma rua muito freqüentada, sem que se realizasse prisão alguma. De
outra feita, o comodoro Bowles, chefe da estação naval inglesa no Rio da Prata e Mar do
Sul, foi posto abaixo as pranchadas do cavalo que montava por ter querido, em companhia
do encarregado de negócios do seu país, evitar o encontro do coche da rainha.
O pobre rei por modos diversos tinha que sofrer dos desatinos da consorte a qual,
nas palavras do residente Luccock, 174 levava demasiado longe - to a disgusting extent, a
um ponto revoltante - o seu ressentimento, tornando-o afinal pouco temido (little
regarded) mercê do próprio excesso, que não poderia desafogar-se por um crime em cada
dia e tinha de refugiar-se em crises de histeria.
O casamento de Dom Pedro com Dona Leopoldina quase não se realizou por tal
motivo, entre outros mais. Reproduzindo o boato corrente em Lisboa do adiamento, pela
corte de Viena, do enlace projetado, o cônsul-geral Lesseps atribui a demora e o
rompimento do compromisso, no dizer de uma pessoa em relações diretas com o Rio de
Janeiro e que lhe merecia confiança, às informações transmitidas para a Europa por um
emissário confidencial daquela corte. 176 "Um médico alemão, de viagem pelo Brasil e
particularmente encarregado pelo imperador da Áustria de transmitir-lhe pormenores
sobre o príncipe, tão desfavoráveis notícias apresentou da sua saúde, da sua moralidade e
dos seus hábitos que S. M. imediatamente procurou os meios de impedir, apesar de já
decidida, uma união tão pouco conveniente, cujo resultado seria o sacrifício de uma
interessante princesa. A exatidão destas informações sobre o herdeiro da coroa é
confirmada pelas de todas as pessoas que tiveram ensejo de freqüentar a corte do Rio de
Janeiro."
Um dos mais indiscretos nas suas expansões, mesmo em desabono de Dom João
VI, foi o duque de Luxemburgo durante sua estada e depois do seu regresso do Rio. Delas
se fez eco o embaixador austríaco em Paris, barão de Vincent, por cujo intermédio
subiram até a arquiduquesa, chegando mais tarde ao conhecimento da família real
portuguesa, que o embaixador francês a descrevia com as cores mais ingratas, insistindo
sobretudo em que era Dom Pedro inteiramente falto de todos os princípios de educação.
Maler, ao dar conta dessas intrigas de corte, observa que o rei com sua habitual
circunspecção que atingia a dissimulação, jamais lhe dera a perceber nada disso, não
obstante tratá-lo com muita confiança.
O trato com Dona Carlota Joaquina tanto podia ser em extremo agradável como
altamente desagradável, segundo lhe caía em simpatia ou desfavor a pessoa com quem
tratava. Assim o general barão de Thuyll, ministro russo chegado a 13 de setembro de
1819 no três mastros Agamenon e, segundo Maler, pessoa muito delicada mandada a
desfazer a má-impressão causada pelo proceder do embaixador Balk-Poleff, teve que se
mudar de uma casa que tomara perto de uma das residências de Dona Carlota e em que
gastara 40.000 francos para mobiliá-la e arranjar o jardim, por não mais suportar os
desacatos da criadagem e da soldadesca da rainha, apesar de se haver queixado sem
azedume, antes confidencialmente e com todo o espírito conciliador compatível com a
sua dignidade ofendida. Na forma do costume, a rainha, em vez de abrandar, acirrava seus
dependentes.
É força porém crer que Dona Carlota era capaz de exibir qualidades de sedução,
decerto mais intelectual que física, visto ser tão desgraciosa. Viva, espirituosa,
enredadora, faceira, quando queria, até ultrapassar a decência, mas sabendo também
afetar pudores e dignidade de mulher, o fato é que conseguiu que vários homens de
merecimento jungissem um momento dado os próprios interesses aos seus, e que outros
se prestassem a servi-la com zelo e dedicação. Dos três maiores ministros de Dom João
VI, Linhares nunca lhe mereceu as boas graças e tinha a propriedade de enfastiá-la:
chamava-o também el torbelino por estar sempre em movimento, atendendo a uma
multidão de negócios, e só em última extremidade lhe pedia qualquer obsequio.
Sobre Barca no entanto escrevia ela a Thomaz Antônio depois de falecido aquele:
"E sempre lhe quero dizer que Eu não sou capaz de pedir cousas que não se me devão, e
que se a minha consciencia fora de manga larga, que no tempo de Araújo (apesar de ser
como era), que Eu estaria a estas horas com a minha casa n'outra figura, e com uma
Mesada de 200 ou 300$000 cruzados como as rainhas D. Marianna d'Áustria e D. Mariana
Victoria tinham fora a sua casa, porém eu não quis sem ter todas as clarezas: mas ele
teimou muitas vezes comigo que dissesse o quanto era, e que bastava a Minha palavra,
que não precisava mais nada."177
Podia ser que Barca prometesse mais do que tencionava cumprir: estaria isso na
sua natureza, a darmos crédito ao duque de Luxemburgo, o qual escrevia para Paris ter
encontrado o ministro muito coulant na questão da restituição da Guiana, aparentemente
porém, pois adquirira a certeza de que em conselho ele opinava num sentido inteiramente
oposto. É contudo preciso não perder de vista que o embaixador da França andou todo o
tempo irritado com o pouco êxito da sua missão. Maler por seu lado, que faz os mesmos
conceitos sobre a doblez diplomática de Barca, nem tinha especial simpatia pelo homem,
suspeito aos seus olhos de reacionário de idéias nimiamente liberais, nem podia se
reconciliar com a guerra de Montevidéu, de que lançava toda a responsabilidade sobre
esse estadista, o qual teria voltado ao poder, após seus anos de ostracismo, "devorado de
ambição, querendo à fina força fazer falar de si na Europa".
Não era isto exatamente o que Dona Carlota pretendia. A grande ambição da sua
vida foi governar, porém governar ela só, sem peias e sem participações. Para realizar
este desejo foi que trabalhou, cabalou, intrigou, se cansou de pedir e de ameaçar, não
recuando diante de meio algum, e só alcançando impopularizar-se quando iniciara seus
esforços num ambiente favorável. Era Dona Carlota Joaquina a filha primogênita do
soberano destronado, vítima lastimosa de baixezas e prepotências, àquele tempo
vegetando tristemente em Marselha: como tal ela acordava uma comiseração reflexa que
logo originava simpatia. Nem ela se descuidou de jogar arteiramente com essa sua
condição, pretendendo já reinar em Madri depois da renúncia de Baiona e da usurpação
francesa; já ser regente durante o sequestro dos irmãos; já subir, pelo menos, a imperatriz
da América Espanhola, cuja lealdade dinástica se manifestara ruidosamente contra o Rei
José, mas trazia como conseqüência final a independência das colônias.
Não lhe sendo possível governar como rainha ou regente na Península, como
imperatriz ou Rainha além-mar, contentava-se com a regência da América Espanhola,
com a do Rio da Prata que fosse, contanto que numa dada extensão de território pudesse
exercer autoridade própria, distinta, autônoma, sem contas a dar àquele estafermo odioso,
cuja vista lhe era insuportável até na mesa, preferindo tomar as refeições na câmara,
sozinha ou com a pequenina infanta Dona Ana de Jesus Maria. Mesmo depois de
preparado o palácio da Boa Vista para residência habitual de Dom João, continuaram
Dona Carlota e as infantas menores, de quem ela nunca se separava, a viver no Paço da
cidade, indo diariamente todas à missa das nove a São Cristovão e voltando as infantas
ao galope das bestas para jantar às quatro com o pai, enquanto a rainha se dirigia de carro
para uma de suas casas de recreio, das Laranjeiras ou do Rio Comprido, parando
ocasionalmente a palestrar com a sua intima amiga a viscondessa de Vila Nova.
Não se lhe dava porém, a Dona Carlota Joaquina, desertar aqueles retiros de
saudosas recordações e essa natureza de poderosa sugestão, transplantando seus gozos
físicos e morais para um outro cenário. Nas Juntas de Sevilha e de Cadiz, nas cortes
espanholas, nos Cabildos e Ayuntamientos americanos, fizeram-se ouvir seus protestos,
rogos e cavilações. De tudo se serviu. Nada lhe era pessoalmente mais antipático do que
o projeto de casamento de sua filha mais velha Dona Maria Tereza com o infante
d'Espanha Dom Pedro Carlos, o sobrinho dileto de Dom João VI, educado desde os mais
tenros anos na corte portuguesa e a quem o príncipe regente, logo que chegou ao Brasil,
nomeou almirante da esquadra portuguesa. Dona Carlota detestava-o, e quando lhe
contaram que à mesa o marido atiçava o namoro desse príncipe, que Presas descreve
ignorante, grosseiro, desconfiado, de linguagem ordinária e não raro indecente,
mandando-o trocar frutas com a infanta, punha-se furiosa e desabafava em impropérios,
chamando Dom João de alcoviteiro. O casal nem por isso foi menos feliz nos dois anos
que durou o seu enlace. Dom Pedro Carlos era o que os ingleses dizem muito uxorious e
é fama que de tanto veio a morrer. 180 Dona Carlota só se reconciliou entretanto com o
casamento, que tão auspicioso se afigurava a Dom João ao atentar na mútua afeição dos
noivos, quando, absorta nos seus sonhos de poderio, refletiu na aproximação de dinastias,
e unidade de interesses que daí parecia advir para o continente americano espanhol
português, o qual, graças a essa nova união das duas famílias reinantes da Península,
poderia mais facilmente encaminhar-se para ficar de todo colocado debaixo do influxo de
um só trono, gerado pelas duas coroas, uma delas repousando sobre a sua cabeça senhoril.
Era o que por seu lado Palmela de algum modo estava sonhando. Um momento
houve em que o representante da corte do Rio na anarquizada Espanha, desiludido do
futuro da Península - a qual, se lograsse desvencilhar-se do jugo francês, permaneceria
inevitavelmente, pelo que se podia prever, debaixo da tutela inglesa - pensou na completa
americanização das dinastias de Bragança e de Bourbon181, nesse momento fundidas pelo
consórcio de Dom João com Dona Carlota, que assim criariam para seus descendentes
um colossal império ultramarino formado pelas possessões das duas coroas, abrangendo
toda a América Meridional e Central e quase metade da Setentrional.
Palmela convenceu-se em Cadiz que a princesa do Brasil jamais lograria ser feita
sem grande pugna regente da Espanha: acreditava, porém, que nada seriamente tentaria
impedi-la de ser aclamada nessa mesma qualidade - sucessora, conforme era, do
"destronado e talvez morto Fernando VII" - na América onde se encontrava. Deste modo
evitar-se-ia o desmembramento que a usurpação estrangeira em Madri e a desordem da
Espanha liberal andavam prognosticando para as colônias americanas, e dava-se seu
verdadeiro destino à monarquia portuguesa trasplantada num momento de subversão
histórica, e que por um feliz acaso reunia sob o dossel do seu trono os legítimos
representantes das duas dinastias peninsulares. Mantinha-se assim além do mar a tradição
histórica, mediante a consolidação numa só de ambas as pátrias. Fechava-se, após mais
de três séculos, o ciclo das navegações, tocando suas conseqüências extremas: realizava
se uma União Ibérica transatlântica; concretizava-se no Novo Mundo o velho ideal que
parecia sepultado com Dom João II e Felipe II.
Do lado do príncipe regente de Portugal era pouco crível que houvesse neste ponto
indomável oposição a temer. Sempre oportunista e mais perspicaz do que o julgavam seus
próprios conselheiros, mostrou-se ele de pronto inclinado a trocar aqueles direitos
hipotéticos da consorte, que a princípio parecera sustentar, por alguma coisa de mais
sólido e substancial e de mais imediato proveito - um acréscimo de território para as
bandas do sul por exemplo, envolvendo a reincorporação de Montevidéu, idéia sempre
cara ao seu coração de príncipe que sangrava pelo sangue que a Portugal custara a
malfadada Colônia do Sacramento.
REFERÊNCIAS