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CAPA: Andréia Custódio

REVISÃO: Karina Mota

EDITORAÇÃO:Teima Custódio

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L727

Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta


Celani / organização l.uiz Paulo da Moita Lopes. - 1. ed. - São Paulo:
Parábola Editorial, 2013.
23 cm (Lingua[geml; 55)

ISBN 978-85-7934-074-1

1. Linguística aplicada. 2. Linguística. 3. Linguagem e línguas.


4. Língua portuguesa - Estudos e ensino. Lopes, Luiz Paulo da Moita,
1951-. 11. Série.

13-07184 CDD: 401.41


CDU: 81 '42

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ISBN: 978-85-7934-074-1

Esta edição conta com o apoio da Cultura Inglesa-SP.

P edição, 3' reimpressão: novembro de 2018

© do texto: Luiz Paulo da Moita Lopes, 2013.


© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, dezembro de 2013.
Materiais didáticos no ensino
de línquas'
Roxane Rojo

Apresentação
s investigações na área de Linguística Aplicada sobre ensino de lín-
guas - português como língua materna e inglês como língua adi-
.L.LV""', nas últimas duas décadas, têm se voltado a vários objetos,
tais como os letramentos escolares e não escolares, os referenciais e propos-
tas curriculares, os processos de formação de professores, as práticas e dis-
cursos de sala de aula e os materiais didáticos impressos de diferentes tipos
presentes nessas práticas (apostilados, fascículos, cadernos do professor e do
aluno, sequências didáticas e livros didáticos).
Na pesquisa dos últimos dez anos, o Grupo de Pesquisa LDP-ProperfiF,
cujos objetivos mais gerais são descrever as características editoriais, peda-

Agradeço o suporte do CNPqpor meio de Bolsa Produtividade em Pesquisa (Pesquisador


ic) ao projeto em andamento, que tem por título Multiletramentos e abordagem da diversidade cultu-
ral no ensino de língua materna: o papel dos materiais didáticos.
LDP-Properfil - Livro Didático de Língua Portuguesa: Produção, Pc/jil e Circulaçelo.
Grupo de Pesquisa certificado pela UNICAMP para o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq,
por mim liderado, que se destaca em três atividades principais: (a) a avaliação de livros didáticos
de língua portuguesa e de alfabetização no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), de-
senvolvido pela Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC; (b) a assessoria e consultaria ao
Ministério para as políticas do livro e da leitura; e, sua atividade principal, (c) a pesquisa sobre a
produção, o perfil didático e discursivo e a circulação (escolha e uso) dos livros didáticos de língua
LlNGuiSTlCA APLICADA NA MODERNlDADE RECENTE

gógicas e discursivas da produção editorial destinada ao ensino de língua


materna na alfabetização (10 a 3° anos), na educação fundamental (40 a 9°
anos) e no ensino médio, a realização das escolhas de livros destinados a
esses segmentos pelas escolas públicas e, mais recentemente, apontar a dinâ-
mica dos usos desses materiais em sala de aula pelos professores, tem obtido
resultados que apontam para a relevância do tema do papel dos materiais
didáticos impressos nas práticas docentes.
Entre outros resultados, os vários estudos têm apontado o papel es-
truturador e cristalizador de currículos desempenhado pelo livro didático
(doravante, LD) e por outros materiais impressos de caráter apostilado e
certa homogeneização das práticas e propostas didáticas presentes nesses
materiais, que, embora busquem se adequar a referenciais e propostas cur-
riculares mais recentes, mantêm-se ligados a certa "tradição" na abordagem
de seus objetos de ensino.
Segundo Rojo e Batista (2003: 19-20), uma análise dos LD destinados
ao ensino de português língua materna (doravante, LDP) no ensino funda-
mental faz ver que

em todos os domínios de ensino de língua materna nos quais os livros


são avaliados, há o privilégio da norma culta, língua padrão, língua es-
crita, gêneros e contextos de circulação pertencentes à cultura da escri-
ta (jornalísticos, literários e de divulgação científica, sobretudo, por-
tanto, urbanos e, no caso brasileiro, sulistas). Na abordagem de leitura
dos textos, são priorizados o trabalho temático e estrutural ou formal
sobre estes, ficando as abordagens discursivas ou a réplica ativa em se-
gundo plano [...].

A prioridade para a norma e a forma também é vista nos trabalhos de


reflexão sobre a língua, pautados na gramática normativa e baseados
nas formas cultas da língua padrão, nunca explorando diferentes varie-

portuguesa nos níveis de ensino fundamental e médio. A pesquisa aborda a edição didática brasi-
leira, no período entre 1998 até ° presente, quando importantes modificações foram realizadas nas
políticas de Estado para o manual escolar.
MATERIAlS DIDÁTICOS NO ENSINO DE LrnGUAS

dades sociais ou geográficas da língua efetivamente em uso. Mesmo a


presença de propostas de interações orais, devidas às indicações oficiais
(PCN) de que o oral formal público deva ser tomado como objeto de
ensino, passa ao largo do contraste seja entre as formas orais - em sua
variedade e heterogeneidade - e as formas escritas em língua padrão,
seja entre as diferentes variedades do oral em si.

Assim, o currículo de língua portuguesa que se configura e cristaliza nes-


ses impressos, embora busque acompanhar as renovações indicadas nos refe-
renciais, mantém-se preso, de certa forma, às tradições do ensino beletrista.
Por outro lado, os LD de língua estrangeira (inglês' e espanhol) distri-
buídos pelo PNLD+ ao conjunto dos alunos das escolas públicas é fenômeno
bem mais recente: somente no PNLD/2011 o MEC começa a avaliar e dis-
tribuir universalmente às escolas públicas brasileiras LD de língua estran-
geira - inglês ou espanhol somente. Antes disso, os professores dispunham
de diferentes meios para ter apoio de materiais didáticos impressos.
O estudo de Xavier e Urias (2006), por exemplo, em que as autoras dis-
cutem a relação que os professores de inglês de escolas básicas e de idiomas'
estabelecem com o livro didático e o manual de ensino, assim como seus cri-
térios de seleção e avaliação desses materiais, mostra que, dos trinta profes-
sores pesquisados, dezoito adotavam livro didático/apostila determinado(a)
pela escola (pública ou privada de ensino básico e escolas de idiomas), ape-
nas quatro escolhiam livremente o livro didático que queriam adotar (esco-
la pública e privada de ensino básico), outros quatro fabricavam sua própria
apostila (escola pública de ensino básico) e ainda outros quatro não adota-

Neste texto, focaremos principalmente o LD de inglês como língua estrangeira.


Programa Nacional do Livro Didático, iniciativa do Ministério da Educação (ME C),
cujos objetivos básicos são a avaliação, aquisição e a distribuição, universal e gratuita, de livros
didáticos para os alunos das escolas públicas do ensino fundamental e médio brasileiro.
O estudo valeu-se de um surlley por meio de questionário fechado aplicado a trinta pro-
fessoras de inglês de Santa Catarina - dezoito no ensino fundamental e médio (doze na rede públi-
ca e seis na rede particular) e outros doze em escolas de idiomas. O questionário, com 22 questões,
investigava os profissionais que atuavam nesses contextos, as informações que utilizavam e descar-
tavam no LD, suas concepções sobre esse recurso (vantagens, desvantagens, seu papel e potencial)
e seus critérios de seleção e avaliação.
LlNGulSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

vam qualquer livro ou apostila (escola pública e privada de ensino básico).


Para esses professores, havia quatro recursos didático-pedagógicos indispen-
sáveis, pela ordem de importância: o aparelho de som, dicionários de inglês,
livro didático e quadro de giz. Para os professores das redes pública e privada
de educação básica, o LD era visto como um "subsídio/apoio" e um "comple-
mento" ao ensino do professor e à aprendizagem dos alunos. Já nas escolas de
idiomas, por outro lado, o LD ou apostilado era visto como guia norteador,
um instrumento indispensável para o processo de ensino e aprendizagem.
Em geral, o LD assumia as seguintes funções para as professoras pesquisadas:
(a) orientar as ações pedagógicas,
(b) auxiliar e facilitar o trabalho do professor:
(c) complementar as aulas e a aprendizagem dos alunos,
(d) estabelecer o conteúdo de ensino-aprendizagem e a sua sequência,
isto é, viabilizar e concretizar o programa e o currículo.
Na opinião desses professores, um LD de inglês bom ou ótimo deveria
primar pelo layout, pelo conteúdo e pelos objetivos de ensino-aprendizagem
e deveria ainda atender aos princípios comunicativos de língua e trazer su-
gestões metodológicas para o professor".
Por essa época, eram principalmente os professores que levavam os li-
vros às aulas da rede pública, já que a maioria dos alunos não tinha recursos
para comprá-Ias, e que, na escola pública e privada, os docentes se valiam de li-
vros publicados tanto por autores brasileiros como no estrangeiro, embora as
professoras de educação básica do estudo em pauta preferissem os de autoria
nacional, justamente por estarem mais "voltados para a realidade dos alunos".
O estudo de Xavier e Urias (2006) caracteriza bem a realidade do LD de
inglês como língua adicional no Brasil até 2011. O fato de o PNLD passar a
avaliar e a distribuir o LD de inglês (ou de espanhol) como língua estrangeira
ao conjunto da rede pública (EF e EM)) a partir do PNLD/2011, vem alterar

Para as professoras participantes da pesquisa, segundo as autoras (p. 46) "um bom
LD é aquele que traz textos 'atuais', 'interessantes', 'informativos', 'educativos', 'atraentes' e 'vol-
tados para a realidade dos alunos'; conteúdo de ensino bem sequenciado, dosado, adequado à
faixa etária dos alunos e motivador; exercícios 'variados', 'criativos', 'inteligentes', que 'fixam e
reforçam o conteúdo estudado'. E, finalmente, a presença da gramática, que deve ser bem dosa-
da, 'prática' e 'objetiva'".
MATERIAlS DIDATICOS NO ENSINO DE LíNGUAS

esse panorama em vários aspectos, como por exemplo, limitando a compra e


distribuição aos livros de autoria nacional e exigindo, em seus editais, obedi-
ência aos referenciais nacionais (PCN e OCNEM). No entanto, no que tange
a esses "novos" livros distribuídos à rede pública, quase não há estudos ainda
sobre o tratamento dispensado ao currículo e às metodologias de ensino.
Outra característica que tem sido apontada para o LD brasileiro é a
tendência a propor-se como "alternativa" ao (nãolplanejamento e à prática
do professor. Segundo Batista (2003: 28), os estudos sobre o LD brasileiro a
partir de meados dos anos 1960 mostram que

o livro didático brasileiro se converteu numa das poucas formas de do-


cumentação e consulta empregadas por professores e alunos. Tornou-
-se, sobretudo, um dos principais fatores que influenciam o trabalho
pedagógico, determinando sua finalidade, definindo o currículo, cris-
talizando abordagens metodológicas e quadros conceituais, organizan-
do, enfim, o cotidiano da sala de aula.

Um dos riscos apresentados por essa vocação dos manuais - ou por


esse modelo de LD -, que, segundo Batista (2003) é perpetuada pelos pa-
râmetros da avaliação desenvolvida no PNLD, é o de o professor perder a
voz, ficar subordinado a esses impressos, deixar de planejar um ensino ade-
quado e favorável a seu alunado.
Essas talvez sejam algumas das razões pelas quais, a partir dos anos
2000, outros impressos didáticos - como os apostilados, fascículos, cader-
nos do professor e do aluno, sequências didáticas - tenham começado a
disputar espaços ou mesmo a suplantar a presença dos LD nas salas de aula
das redes públicas brasileiras.
Este capítulo se dedica justamente a pensar alguns desses impressos
(livros didáticos, sequências didáticas) e seus possíveis efeitos nas práticas
e no planejamento docente e, a partir dessa reflexão) discutir as mudanças
acarretadas pelas novas tecnologias e os tipos de materiais didáticos digitais
que essas mudanças possibilitam) tais como o livro digital interativo, recur-
sos educacionais abertos e os protótipos de ensino.
L1NGUiSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

~
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§-
H
ro
o livro didático e seu papel na prática docente
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~
co Segundo Choppin (1980: 5), uma das definições de livro escolar é:
'd

~
'"
co
P-

·5
~ Todos os livros concebidos com a intenção de servir ao ensino. Sendo
assim, dirigem-se a todos os alunos, de todos os anos/séries, de todos
os níveis, para todos os exames, certificados e diplomas. Também se
dirigem aos professores: indiretamente primeiro por meio do livro do
aluno e, em seguida, diretamente por meio do livro do professor.

o autor, em seu texto de 1992, distingue quatro tipos de livros escolares:


(a) os livros didáticos ou manuais, que passaremos a comentar:
(b) os livros paradidáticos ou paraescolares,
(c) os livros de referência, como antologias, compêndios de gramática,
livros de consulta e dicionários,
(d) as edições escolares de "clássicos", como a popular coleção "Para
gostar de ler", muito presentes em nossas salas de aula.
Como vemos, há maneiras diversas de servir ao ensino e de encarar e
dialogar com os interlocutores - alunos e professores: atuar como fonte de
referência a seu ensino e estudo: complementar e ampliar os conteúdos: for-
mar leitores apresentando coletâneas de bons textos. Mas o livro didático,
ou manual, tem outras vocações além dessas.
Ainda segundo Batista (2003: 46-47),

há um modelo de manual escolar que se constituiu, no Brasil, entre os


anos 1960 e 1970. De acordo com esse modelo, o livro didático tem
por principal função estrutural' o trabalho pedagógico em sala de aula e,
para isso, deve se organizar em torno:
• da apresentação não apenas dos conteúdos curriculares mas tam-
bém de um conjunto de atividades para o ensino-aprendizado desses
conteúdos;
• da distribuição desses conteúdos e atividades de ensino de acordo
com a progressão do tempo escolar, particularmente de acordo com
as séries e unidades de ensino.
MATERIAlS DIDATICOS NO ENSINO DE LlNGUAS

Desse modo, tendem a ser, não um apoio ao ensino e ao aprendizado,


mas um material que condiciona, orienta e organiza a ação docente, de-
terminando uma seleção de conteúdos, um modo de abordagem desses
conteúdos, uma forma de progressão, em suma, uma metodologia de
ensino, no sentido amplo da palavra.

De acordo Batista, esse modelo de livro didático adotado no Brasil des-


de meados do século passado aparece devido à apreciação de valor que se
fez (e ainda se faz) do professorado e do alunado dos anos 1970 em diante
no país. Durante os anos 1960 e 1970, houve no país, como sabemos, uma
"intensa ampliação do sistema de ensino" e, com isso, "processos de recru-
tamento docente mais amplos e menos seletivos". Batista cita documento
da Câmara Brasileira do Livro, de 1981, mencionado na obra de Oliveira et
alii (1984), em que um "novo tipo de professor" é caracterizado por assu-
mir uma "grande sobrecarga de trabalho" e por ser malformado e apresentar
"falta de condições [... ] para preparar e corrigir exercícios e desempenhar
outras atividades didáticas".
Nesse sentido é que o manual escolar ou LD se apresenta fortemente
como estruturador da ação didática do professor, propondo-se a substituir
seu planejamento e escolhas didáticas, a definir metodologias de ensino e
~~ enfoques teóricos e a deixar-lhe o papel de gestor apenas da disciplina e do
! tempo escolar, de "gerente" da aula (Bunzen, 1999j Geraldi, 1987).
Que outras alternativas, sem ser a completa submissão ao LD, restam
ao professor em sala de aula? Muitos advogam a não adoção de nenhum
material e a "autonomia" do professor no preparo de suas aulas. Mas como
fazê-Ia - em especial, o professor de língua portuguesa, que tem muitas
turmas -, já que, de fato, graças à sobrecarregada jornada de trabalho, ele
raramente tem condições de realizar um planejamento de suas aulas, deta-
lhado e diferenciado segundo as necessidades dos alunos, e já que nunca tem
condições de apresentar aos alunos materiais impressos que deem suporte à
aula, por razões logísticas - dificuldades em obter e distribuir cópias, falta
de aparatos tecnológicos em sala de aula, por exemplo?
É complexa a questão! Frison et alii (2009, s.p.) afirmam que "a realida-
de da maioria das escolas mostra que o livro didático tem sido praticamente
LlNGuiSTlCA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

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o único instrumento de apoio do professor e que se constitui em uma impor-
tante fonte de estudo e pesquisa para os estudantes", mas que, ainda assim,
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o professor" deve buscar no livro didático as contribuições que possibilitam
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a ele mediar a construção do conhecimento científico pelo aluno, para que
:3 este se aproprie da linguagem e desenvolva valores éticos, mediante os avan-
ços da ciência, contextualizada e socialmente relevante".
Ora, como fazê-lo se a proposta autoral do LD pode ir - e quase sem-
pre estará indo - por outro percurso, sem transpor ciência situada ou so-
cialmente relevante e sem um trabalho no campo da ética?
Para Lajolo (1996: 4), por exemplo, por um lado, "o livro didático é
um importante mecanismo na homogeneização dos conceitos, conteúdos e
metodologia educacionais", mas, por outro, "apresenta conteúdos fragmen-
tados" para torná-los acessíveis à compreensão do aluno, o que, certamen-
te, dificultará uma apreensão situada, ética e socialmente relevante desses
conceitos.
A conclusão a que chega Frison et alii (2009, s.p.), citando Nufiez et alii
(2009: 03), é que

o professor deve ter competência para superar as limitações pró-


prias dos livros que, por seu caráter genérico, por vezes não podem
contextualizar os saberes, assim como não podem ter exercícios espe-
cíficos para atender às problemáticas locais. É tarefa dos professores
complementar, adaptar, dar maior sentido aos bons livros recomen-
dados pelo MEC (ênfase adicionada).

Aqui se indica uma terceira alternativa para o professor no uso dos ma-
teriais: a primeira seria estar refém do livro escolhido, a segunda seria ter
uma "autonomia" impossível a partir da organização do tempo escolar, da
jornada de trabalho e das tecnologias disponíveis", finalmente, a terceira

o Livro Público do Estado do Para ná pode ser caracterizado como uma tentativa de
contemporizar o conflito entre as duas primeiras alternativas: propõe-se um livro público úni-
co ("submissão"), mas construído pelos próprios professores em formação no Programa de
Desenvolvimento Educacional (PDE) do Estado do Paraná ("autonomia"). O problema é que resul-
MATERIAIS DIDÁTICOS NO ENSlNO DE LÍNGUAS

via seria, além de gerenciar o tempo e a disciplina escolar, selecionar bons


livros, afinados com suas concepções tanto sobre o ensino-aprendizagem
como sobre os objetos de ensino, e deles extrair seu melhor, combinando-o
com outros recursos disponíveis.
Esta alternativa parece ser a mais equilibrada entre as outras duas, po-
lares - "autonomia" X "submissão" - e tem sido a mais recorrentemente
indicada aos docentes tanto pelo MEC como pelos pesquisadores e forma-
dores. No caso da rede pública paulista, é quase um "princípio" de trabalho
equivalente ao da autonomia. Vejamos uma manifestação a esse respeito,
comparando o LD a apostilados que quase sempre são seguidos compul-
soriamente, de uma docente cursista de um curso de especialização em
Língua Portuguesa (Ensino a Distância)", durante um fórum de discussão
sobre esse tema:

Cada sala recebe as atividades de forma diferente (aliás, cada aluno), e é


interessante esse paradoxo do sistema educacional, pois reconhecendo
que existem tantas diferenças (que nem dá para mensurar), falando tan-
to que o professor deve considerá-Ias em sua prática docente, é feito um
material padronizado para um estado inteiro e imposto o seu uso para
todos e ainda não querem que sua forma ou conteúdo seja alterado para
se adequar às múltiplas realidades que vêm ao encontro deste material.
[... ] Já com o livro didático é diferente. Ele está lá, você o usa como quer
e quando quer e pode fazer adaptações sobre como aplicar os conteú-
dos ali presentes. Não há uma imposição de que você deva utilizá-lo de
forma linear e nem que determinado conteúdo tenha de ser detido em
determinado tempo.

ta um livro único com unidades de ensino disparatadas, sem progressão e apresentando diferentes
visões de diferentes autores, para ser usado pelo conjunto de professores e alunos do Estado, esses,
não autônomos.
Especialização em Língua Portuguesa, organizado pelo Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP (lEL/UNICAMP) em convênio comaSecretaria deEstadodaEducação
de São Paulo (SEE-SP), no âmbito da Rede de Formação Docente do Estado (REDEFOR), que
atendeu aos docentes de ensino fundamental e médio.
LlNGuiSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

o problema dessa alternativa é que} quase sempre} ela resulta em uma


colagem de textos e atividades retirados de LD com propostas muitas vezes
disparatadas ou contraditórias} sem uma "espinha dorsal" que sustente tais
disparates ou contradições. Ou então} no caso dos LDP} no uso exclusiva-
mente de coletâneas de textos ou} no caso da matemática} por exemplo} no
uso exclusivo dos exercícios para fixação.
Isso ocorre porque} de acordo com Bunzen e Rojo (200S)} o LDP é
também ele um gênero discursivo que} como tal} apresenta unidade discur-
siva, autoria e estilo. Para Bunzen e Rojo (200S: 86-87\

os autores de livros didáticos e outros agentes envolvidos em sua produ-


ção produzem também enunciados num gênero do discurso) que pos-
sui temas (os objetos de ensino), uma expectativa interlocutiva especifica
(professores e alunos das escolas públicas e privadas) o editor} os avalia-
dores do PNLD) e um estilo didático próprio.

Assim} quando os autores e editores de LDP selecionam/negociam de-


terminados objetos de ensino e elaboram um livro didático} com capí-
tulos e/ou unidades didáticas} estão produzindo um enunciado em um
gênero do discurso} cuja função social é re(a)presentar} a cada geração
de professores e estudantes} o que é oficialmente reconhecido ou au-
torizado como forma de conhecimento sobre a lingua(gem) e sobre as
formas de ensino-aprendizagem. Não se pode esquecer que determi-
nados objetos de ensino (e não outros) são selecionados e organizados}
em determinada progressão} levando-se em consideração} principal-
mente} a avaliação apreciativa dos autores e editores em relação a seus
interlocutores e ao próprio ensino de língua materna} para determina-
do nível de ensino.

Este é o problema com a terceira proposta intermediária: cada auto-


ria de cada manual escolar tem sua própria apreciação de valor sobre o quê}
sobre como ensinar e para quem. Combinar essas diferentes vozes em uma
aula nem sempre resulta em "conhecimento prudente para uma vida decen-
te"} como diria Boaventura de Souza Santos.
MATERIAIS DIDÁTICOS NO ENSINO DE LlNGUAS

Sequências didáticas: um material mais flexível?

o "livro didático e os materiais educacionais que dela resultam são


pouco adequados para responder às exigências apresentadas pelo contexto
educacional contemporâneo" (Batista) 2003: 49):

Esse contexto é marcado pela afirmação da diversidade e flexibilida-


de das formas de organização escolar} originadas pela necessidade de
atender aos diferentes interesses e expectativas gerados por fatores de
ordem cultural} social e regional. Para isso}é necessário dispor de um
livro didático também diversificado e flexível} sensível à variação das
formas de organização escolar e dos projetos pedagógicos} assim como
à diversificação das expectativas e interesses sociais e regionais".

São requeridos - e não é de hoje - materiais e impressos didáticos que


permitam "novos modos de relação do manual com o trabalho docente" (p. 49).
Apesar da percepção e da afirmação dessas necessidades} só muito re-
centemente (em 20U)} o MEC sinalizou com algumas alterações em seus
editais, tratarei disso adiante. Do ponto de vista da política pública do li-
vro escolar} tudo continuou mais ou menos da mesma maneira nos últimos
quinze anos.
Isso abriu espaço para que} nesses quinze anos} outros materiais im-
pressos didáticos} vindos de outras fontes e em geral não avaliados exter-
namente} adentrassem as salas de aula de muitos estados e municípios bra-
sileiros. Em especial} os apostilados, tanto de empresas escolares privadas
- as "redes" - como os propostos pelas próprias redes públicas estaduais

Há dez anos, o autor já aconselhava ao PNLD e ao MEC certas mudanças: são necessá-
rios, pelas razões apresentadas, esforços para que o PNLD contribua para o desenvolvimento de
novas concepções de livro didático; dê acolhida a propostas de novos modos de relação do manual
com o trabalho docente; possibilite uma renovação dos padrões editoriais associados ao conceito
de livro didático que se cristalizou na tradição brasileira. Em outros termos: para que o MEC atue
de modo mais significativo na promoção de um ensino de melhor qualidade, é necessário ampliar
a concepção de livro didático, possibilitando que a oferta de materiais inscritos se diversifique e se
enriqueça (Batista, 2003: 49).
LINGmSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

e municipais e que receberam diferentes denominações (fascículo, caderno,


jornal etc.). E também, as sequências didáticas'".
Vou, nesta seção, examinar as sequências didáticas, visto que os aposti-
lados são extremamente heterogêneos em termos de concepção e finalidades
e quase sempre são pouco flexíveis para o uso do professor, tendo controle
de uso compulsório, seja pelas redes públicas, seja pelas redes privadas. Já as
sequências didáticas se apresentam como material mais flexível, que se esgota
em si mesmo em uma relativamente breve unidade de ensino, que deve ser
adaptada pelo professor a suas necessidades de ensino e às possibilidades de
aprendizagem dos alunos, como querem os peNo Além disso, esgotando-se
em si mesma, isto é, examinando apenas um ou poucos objetos de ensino, sem
propor uma progressão entre esses objetos - o que ficaria a cargo do profes-
sor, da escola ou, mais raramente, da rede de ensino - pode ser mais facil-
mente combinada com outros materiais e conteúdos, por ser modular.
E o que são as sequências didáticas (doravante, SD)? São um disposi-
tivo de organização didática de planos de ensino: são uma ferramenta da
engenharia didática!' (De Pietro, Schneuwly, 2002).
Propostas para o ensino de francês como língua materna feitas pelo
Grupo Grafe'", de pesquisadores pertencentes ao Departamento de Didática

10 Isso se verificou, no caso da disciplina de língua portuguesa, com muita frequência, no


que é de meu conhecimento, pelo menos nas redes públicas de Santa Catari na, Paraná e, sobre-
tudo, São Paulo, estado em que muitas prefeituras interioranas compram das "redes" de ensino
escolar privadas apostilados de obediência compulsória, em que a Secretaria Estadual elaborou
apostilados (cadernos, jorna!), baseados em princípios da SD, também de uso compulsório, para
concretizar sua proposta currjcular, e em que os materiais didáticos da Secretaria Municipal são os
Cadernos de apoio ao professor, que, do 10 ao 9° anos do ensino fundamental, apresentam ao docente
e a seus alunos materiais impressos que são uma coletânea de sequências didáticas para gêneros
variados que figuram na grade curricular.
1I "A noção de engenharia didática emergiu na didática das matemáticas no início dos anos
1980. Tratava-se de denominar uma forma de trabalho didático: aquela que se compara ao traba-
lho do engenheiro que, para realizar um dado projeto, apeia-se sobre os conhecimentos científicos
de seu domínio, aceita submeter-se a um controle de tipo científico, mas, ao mesmo tempo, vê-se
obrigado a trabalhar sobre objetos muito mais complexos que os depurados objetos da ciência e,
portanto, a lidar de maneira prática, com todos os meios de que dispõe, com problemas que a ciência
não quer ou não pode encarar" (Artigue, 1990: 282, tradução minha).
12 Grupo Grafe - Didactique des langues et formation des enseignants: Analyse du fran-
çais enseigné, coordenado por Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz-Mestre, FAPSE!UNIGE.
MATERIAIS DlDATICOS NO ENSINO DE LÍNGUAS

de Francês Língua Materna (DFLM) da Faculdade de Psicologia e Ciências


da Educação (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE\ elas são o
resultado de um processo de transposição didática que) procedendo à mode-
lização didática de dado objeto de ensino) transforma-o em saber ensinável,
que possibilita o planejamento de uma unidade de ensino modular.
A transposição didática (Chevallard, 1985) é o movimento pelo qual
passamos do saber teórico (aquele que os cientistas e teóricos elaboram) para
o saber a ensinar (planejamento e materiais didáticos) e) através deste) ao sa-
ber ensinado (aquele que realmente acontece em sala de aula). Os diagramas
abaixo representam o processo.

Saber
Teoria teórico

Saber Saber
prático prático

Planeja-
mento Aula Professor Aluno

Figura 1: Diagramas da transposição didática.

A modelização didática é o processo pelo qual) na transposição didática)


passamos do saber teórico ao saber a ensinar. Ela é a ferramenta da transposi-
ção didática que permite que planejemos unidades de ensino que sigam um
modelo didático de objeto de ensino - no nosso caso) gêneros de discurso -
e que são otimizadas, nesta abordagem) em SDs.
De acordo com De Pietro e Schneuwly (2002: 47»)um modelo didático
é o resultado de um trabalho de síntese) mais ou menos explícito) que par-
te de quatro fontes principais) que não são) de forma nenhuma) desligadas
umas das outras:
+ as descrições linguísticas de textos em gêneros discursivos capazes
de evidenciar as características desses gêneros) tanto em termos de
LTNGulsrrCA APLICADA NA MODERNlDADE RECENTE

/
31
p. forma de composição como de estilo (teorias textuais) teorias linguís-
o
""

rs ticas no sentido amplo - semânticas} sintáticas} lexicais, fonológicas


·õ
~
ro
"O
etc.). E essa referência é altamente seletiva} em função de critérios
~
co
c;
N
nem sempre evidentes} mas que estão provavelmente ligados a repre-
·5
-' sentações implícitas do que pode ser ensinado (o que é ensináveú,
+ os gêneros semelhantes já ensinados e que podem funcionar como
ferramentas de aprendizagem para o novo objeto de ensino (o gêne-
ro em questão) - referência em parte pré-teórica e relacionada ao
senso comum e à experiência vivida:
+ as capacidades de linguagem dos alunos para o trabalho com o gê-
nero em leitura e produção de textos - referência ligada tanto ao
conhecimento da aprendizagem dos alunos quanto às pesquisas em
psicologia da linguagem e psicolinguística,
+ os conhecimentos implícitos das práticas didáticas regulares (tipos
de objetos comumente ensinados: possibilidades e práticas regu-
lares de ensino de certas dimensões do gênero etc.) - novamente
uma referência em parte pré-teórica e relacionada ao senso comum e
à experiência vivida.
Portanto} a modelização didática envolve tanto uma descrição e um co-
nhecimento sobre o objeto de ensino} a partir da teoria e dos saberes práticos':',
como a avaliação jormativa ou diagnóstica dos saberes dos alunos sobre o
objeto de ensino - o gênero em questão - e de suas capacidades de lin-
guagem para ler e produzir textos nesses gêneros} assim como das práticas
de ensino relacionadas a este objeto já efetivadas.
Assim} para um autor de material didático ou um professor realizar a
modelização didática de um gênero discursivo, será necessário perguntar:

1.' É sempre preciso lembrar que, muitas vezes, não há saberes teóricos disponíveis, no cam-
po dos estudos linguísticos (linguística textual, análises de discurso, teorias de enunciação, retóri-
ca, dentre outros) para descrever as características de um conjunto de textos em um gênero. Nem
sempre a ciência os valorizou o suficiente para descrevê-Ias. É o que acontece com grande parte dos
gêneros orais e com os gêneros chamados por García Canclini (2008[1989]) de "impuros", como
as HQ., os videoclipes etc. Nesses casos, temos de recorrer aos saberes práticos de seus produtores
e receptores críticos, que, aliás, são sempre úteis, mesmo quando há conhecimento de natureza
científica disponível.
MATERTATS DIDATlCOS NO ENSINO DE LlNGUAS

• O que se sabe sobre o objeto de ensino, isto é, sobre o gênero em


questão?
• O que se sabe sobre o que o aluno específico a quem se dirige o ensino
já sabe sobre o gênero em questão? Quais suas capacidades de leitura
e produção de textos nesse gênero?
• Que outras atividades de ensino anteriores prepararam esse aluno para
as novas aprendizagens?
Os diagramas abaixo representam o processo:

Objeto
de Saber
ensino teórico

Objeto Saber
de prático
ensino
Avaliação
formativa Alunos Professor Alunos

Figura 2: Diagramas da modelização didática.

Feita a modelização didática do objeto de ensino - no nosso caso, o


gênero - o modelo didático obtido é, em seguida, operacionalizado em
uma SD que preveja:
• situações de leitura, análise e produção de textos, cuja configuração
depende, entre outras coisas, do modelo didático de referência, mas
também de teorias mais gerais de leitura e produção de textos, que
digam respeito aos elementos necessários para se criar boas situa-
ções de produção,
• os objetivos de aprendizagem visados nos diferentes môdulos de ensino,
sendo que um módulo se define como um espaço-problema relativa-
mente homogêneo, trabalhado por meio de tarefas diversas,
• as tarefas ou atividades propostas aos alunos para atingirem esses ob-
jetivos (De Pietro e Schneuwly, 2002: 48).
LINGulSTICA APLICADA NA MODERNTCADE RECENTE

Uma SD é, pois, um conjunto de atividades escolares planejadas e or-


ganizadas, de maneira sistemática", em torno de um objeto de ensino (gê-
neros discursivos, no caso do ensino de português como língua materna)".
O procedimento inclui, necessariamente, possibilidades de avaliação
forrnativa, isto é, de regulação dos processos de ensino e de aprendizagem.
Além disso, insere-se em um projeto maior que motive os alunos a produzi-
rem textos ou a tomarem a palavra em situações que se aproximem das que
têm lugar fora da escola. Finalmente, as SD maxirnizam, pela diversificação
das atividades e dos exercícios, as chances de cada aluno se apropriar dos
instrumentos e noções propostos, respondendo, assim, às exigências de di-
ferenciação do ensino.
A partir desses princípios, uma SD se organiza conforme o diagrama a
seguir, retirado de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004[2001]: 98).

I
Apresentu'ião PRODUÇÃO
da situação INICIAL

Figura 3. Esquema da sequência didática.

Ela se inicia, pois, pela apresentação da situação) que visa expor aos alu-
nos os objetivos da sequência de ensino, norteados por um projeto de produ-
ção de circulação efetiva e situada, mas que só será realizado "verdadeira-
mente" na produção final. A apresentação da situação é, portanto, o momen-
to em que a turma constrói uma representação da situação discursiva e da
atividade de linguagem a ser executada.

li Esse conjunto de atividades não necessariamente precisa se configurar como um mate-


rial didático impresso. Ele pode consistir simplesmente em um conjunto de atividades desenvolvi-
das pelo professor, com o apoio de impressos diversos (textos, instruções) configurados em supor-
tes diversos (folhas, fichários, pastas, portfólios, xérox de textos avulsos etc.). No Brasil, entretanto,
referimo-nos mais frequentemente a SDs como materiais didáticos impressos.
15 O trabalho de Ferreira (2001) mostra que os LD de inglês como língua adicional tam-
bém começam a abrir espaço para a perspectiva baseada em gêneros de texto/discurso.
MATERIAIS DlDATICOS NO ENSINO DE LlNGUAS
11
Ao mesmo tempo, a apresentação da situação os prepara para aprodução
inicial)", que pode ser considerada como uma primeira tentativa de realiza-
ção do gênero que será, em seguida, trabalhado nos módulos.
Em segundo lugar, a apresentação da situação visa preparar os conteú-
dos (temáticos) dos textos a ser produzidos. Na apresentação da situação, é
preciso que os alunos percebam a importância desses conteúdos e saibam
com quais vão trabalhar e como buscá-los. Nesse momento também, aspec-
tos de conhecimento comum does) gênero(s)/esfera(s) serão discutidos.
A fase inicial da SD permite fornecer aos alunos todas as informações
necessárias para que conheçam o projeto discursivo visado e a aprendiza-
gem de linguagem a que está relacionado. A ela se segue a produção inicial.
No momento da produção inicial, os alunos elaboram um primeiro tex-
to do gênero em questão (ou leem reflexivamente um conjunto de textos
do gênero), revelando a si mesmos e ao professor as representações que têm
dessa atividade. Logo, a primeira produção é a realização prática de uma
avaliação formativa e, ao mesmo tempo, enseja as primeiras aprendizagens.
Para o professor, essas primeiras produções constituem momentos pri-
vilegiados de observação, que permitem refinar a SD, modulá-Ia e adaptá-Ia
de maneira mais precisa às capacidades reais dos alunos de uma dada turma.
Permite-lhe (relcompor e/ou selecionar os módulos de ensino.
Nos módulos, trata-se de trabalhar os problemas que apareceram na
primeira produção/leitura e de dar aos alunos os instrumentos necessários
para superá-los. O objeto de ensino (no caso, a leitura e produção de textos
no gênero) é, de certa maneira, decomposto, para abordar, um a um e sepa-
radamente, seus diversos elementos. Portanto, a composição dos módulos
deve responder às questões:
• Que aspectos does) gênero(s) e de sua leitura/produção abordar?
• Como construir um módulo para trabalhar um aspecto particular?
Por meio de quais exercícios e atividades?
Ao final dos módulos selecionados e compostos, que são em número
variado, mas de cujo número depende a extensão em número de aulas da

16 Que pode ser também uma atividade de leitura reflexiva de textos do gênero, por exem-
plo. O objetivo é sempre a avaliação diagnóstica ali formativa.
LINGulSTTCA APLICADA NA MODERNlDADE RECENTE

SD) virá o(a) projeto/produção final. A produção/projeto final dá aos alunos a


possibilidade de colocarem em prática as noções e instrumentos elaborados
separadamente nos módulos e permite também ao professor realizar uma
avaliação somativa.
Tendo agora claro o que é uma SD e seu processo de composição e ela-
boração no planejamento) cabe voltar à nossa questão inicial: serão as SD
mais flexíveis ao uso do professor?
As SD se apresentam como material mais flexível) pois se esgotam em si
mesmas em uma relativamente breve unidade de ensino) que deve ser adapta-
da pelo professor a suas necessidades de ensino e às possibilidades de apren-
dizagem de seus alunos. Isto é) ao não propor previamente) como o LD) uma
progressão) mas tratando de apenas um ou alguns poucos objetos de ensino)
deixa em princípio a cargo do professor) da escola ou) em alguns casos) da rede
de ensino a escolha dos elementos do currículo e de sua progressão.
Mas) para responder mais completamente a essa questão) é preciso le-
var em conta alguns aspectos a respeito desse dispositivo didático:
• Tendo sido elaborado para outra realidade (a genebrina), com outro
funcionamento escolar) outro alunado e outro professorado) será ele
adequado à realidade brasileira das redes) das escolas) do professora-
do) do alunado?
• Mesmo tratando de um ou de alguns poucos objetos de ensino) é
efetivamente flexível às escolhas e aos usos dos professores?
• Quando se apresenta no formato de impresso didático) há ganho ou
perda de flexibilidade?
Em relação ao primeiro aspecto) Batista (2003) já nos lembrava) faz
dez anos) que as exigências sociais de então nos impuseram uma revisão
de paradigmas, configurada na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) e nas Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental
do Conselho Nacional de Educação (CNE») de 1996) assim como nos
Parâmetros/Orientações Curriculares Nacionais (PCN) 1997-2000/2006»)
propostos pelo MEC.
Essa adequação às "novas" realidades nacionais de dez anos atrás) ainda
segundo o autor (p. 42-43») promove
MATERlAlS DIDÁ TICOS NO ENSINO DE LíNGUAS

no contexto da educação brasileira, por um lado, a valorização da expe-


riência extraescolar pela escola; por outro, cria instrumentos para que
a escola possa ter maior valor para o cotidiano do aluno, favorecendo,
assim, a atribuição de importância à dimensão social dos conteúdos do
processo educacional escolar. [... ]

Do ponto de vista do ensino fundamental, algumas alterações definidas


por essa LDB merecem destaque: o objetivo de promover a formação
básica do cidadão (art. 32); o desenvolvimento da capacidade de apren-
der, visando à aquisição de conhecimentos e habilidades e à formação
de valores e atitudes (art. 32, inciso lU); a flexibilidade que permite sua
organização em ciclos (art, 32; § 1) e a possibilidade de progressão con-
tinuada nas séries/ciclos (art. 32, § 20). Tais avanços, devidamente re-
gulamentados, combatem a rigidez do atendimento, permitindo maior
fidelidade aos reais limites e possibilidades dos alunos, e favorecem
a criatividade na busca de soluções, principalmente no enfrentamento
dos inaceitáveis índices de retenção que vêm gerando uma cultura do
fracasso (ênfase adicionada).

Em uma realidade como a brasileira! que abrange uma enorme diversi-


dade regional, cultural e social- tanto do alunado como do professorado-,
como criar modelizações e SD que atendam a essa diversidade? Como va-
lorizar "o cotidiano e a experiência extraescolar dos alunos", que dependem
de letramentos configurados seja em zonas rurais, seja em megalópoles, seja
em pequenos municípios de regiões muito diferenciadas (como nos eixos
Sul-Sudeste: Norte-Nordeste, Centro-Oeste), seja em grandes centros ur-
banes: seja em escolas que atendem às classes D-E, seja naquelas, mais cen-
trais, que atendem a segmentos C-B? Como os docentes poderão flexibilizar
SD pensadas em geral nas grandes metrópoles do eixo Sul-Sudeste para as
classes A-B?
"Um autor de material didático ou um professor" serão os agentes da
modelização e da operacionalização do modelo didático em SD. Se o autor da
SD for o professor, que compartilha com seus alunos essa inserção social, cul-
tural e regional- ou que, pelo menos pode concebê-Ia e compreendê-Ia =:»
LTNGUlSTICA APLlCADA NA MODERNlDADE RECENTE

a flexibilidade e adequação "aos reais limites e possibilidades dos alunos"


será maior. No entanto, se a autoria das SD distribuídas aos municípios e às
capitais for exógena, como a dos autores, de raiz acadêmica ou não, certa-
mente, de uma ou de outra maneira, a flexibilidade de uso e as possibilidades
de escolha serão menores.
Essa questão se intensifica quando consideramos o segundo aspecto:
como ter "maior fidelidade aos reais limites e possibilidades dos alunos"? Ou
seja, mesmo em dada comunidade local, como ajustar aos conhecimentos e
capacidades dos alunos uma SD pré-fabricada por outra autoria, em outra
realidade? Por mais que o autor exógeno se esforce em imaginar, em uma
SD, as necessidades dos alunos, dificilmente encontraremos módulos que
atendam exatamente a eles.
Se ela for impressa, será mais fácil de usar, mas mais difícil de adaptar
flexivelmente: abandonar páginas de impressos em uma cultura da escrita
que os tem como algo sagrado sempre dá um ar de profanar o livro (e o gasto
das verbas públicas).
A saída seria o professor ser, portanto, o autor de suas próprias SD para
seus próprios alunos. Mas então, novamente, esbarramos nas já menciona-
das limitações de forrnação'", de sobrecarga da jornada de trabalho, de falta
de tempo para planejamento e de dificuldades logísticas de reprodução e
distribuição de materiais impressos pelo professor.
Viemos falando de uma situação prevalecente de dez a quinze anos
atrás. A situação fica, no entanto, ainda mais agravada (ou melhoradai) com
as mudanças recentes dos últimos cinco anos, a partir de 2007, nas novas
tecnologias da comunicação e da informação (TICs) que as transformaram
em algo portátil (dispositivos portáteis, como celulares e tablets) e intuitivo
(telas de toque). As próximas seções voltam-se para essa discussão.

17 E aqui não estou somente me referindo a uma imputada insuficiência ou carência na


formação inicial e continuada do professor para a decência, mas, principalmente, ao fato de que a
produção de impressos didáticos é em geral muito mais complexa do que se leva em conta, exigindo
competências que vão desde as capacidades de busca e seleção de bons carpas ou bases de dados, até
diagramação e editoração, que são muito específicas de um campo que não é o do professor e, sim,
o do editor.
MATERIAIS DmATIcos NO ENSINO DE LíNGUAS

As mudanças trazidas pelas TICs

Permiti-me usar essa longuíssima epígrafe, com uma notícia de feverei-


ro de 2011 da Folha de S.Paulo Cnline, para, de saída, vermos a distância que
nos separa, em 2013, das discussões que desenvolvi nas seções precedentes
sobre o livro escolar:

Livros interativos começam a ser usados na educação de crianças

TALITA BEDINELLI
FOLHA DE S.PAULO

Pedro Henrique Soares, 8, e Lui Furlan, 7, leem na tela do computador um


livrinho que explica o significado da palavra "porta". Ficam encantados, não
apenas pela história, mas pelos recursos que a acompanham: músicas, nar-
ração, vídeo e um "quis" sobre o que leram. [...]

Leitores vorazes dos livros de papel, segundo eles mesmos contam, os dois
começam agora a se aventurar pelo mundo da leitura digital.

O colégio onde estudam, o Notre Dame, na zona oeste de São Paulo, adotou
na semana passada uma biblioteca virtual de literatura infantil, criada pela
editora Callis.

Ela será usada ao menos uma vez por semana com as crianças dos ensinos
infantil e início do fundamental.

A biblioteca é a primeira do tipo no Brasil, segundo a Callis. Mas outras edi-


toras, de olho no crescimento do uso de tablets tipo iPad, também investem
em livros digitais para o público infantil, que vão além da simples digitali-
zação do livro impresso.

O objetivo das editoras é criar livros mais interativos: além de poder virar a
página e colori-Ias com o mouse, os leitores podem ouvir músicas e a narra-
ção das historinhas. Em versões para iPads, as crianças podem tocar na tela
do dispositivo e mover os personagens, por exemplo. [...]

LIVRO COMPLEMENTAR

Educadores ouvidos pela Folha dizem, entretanto, que o uso desses disposi-
tivos requer cuidado: como funcionam como uma proposta diferente da do
livro de papel, não devem substituí-Io. Os dois devem conviver.
LINGulSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

A escola deve manter e estimular a ida das crianças à biblioteca tradicional. Eos
pais não podem trocar a leitura de historinhas em livro de papel pelas do iPad.

"É a emergência de outro tipo de mídia, que dá a possibilidade de usar outro


suporte, como som, música.

Mas o importante é saber lidar com a diversidade", afirma Maria José


Nóbrega, assessora pedagógica de literatura da Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo e de colégios particulares.

Segundo ela, o livro digital, com recursos que simulam barulhos ou ações do
personagem, acabam não permitindo que a criança imagine o que está lendo e
exerça a criatividade, por isso é importante manter a leitura do livro de papel.

Ilan Brenman, doutor em educação pela USP e escritor de livros infantis,


acredita que o livro digital interativo se aproxima mais da linguagem da
televisão, do cinema e dos jogos eletrônicos.
"Quando você dá um iPad para a criança, ela brinca com aquilo. Leitura não
é exatamente o que ela está querendo", afirma.

(Disponível em: http://wwwIJolha.uol.com.br/saber/874ss8-livr05-interativ05-


-comecam-a-ser-usados-na-educacao-de-criancas.shtml, acesso: 26 set. 2013.)

Temos representados na notícia a alegria} o entusiasmo e o encanta-


mento das crianças-leitoras, a imediata adesão a esse encantamento} embora
gradativa ("uma vez por semana"), por parte das escolas privadas de grandes
metrópoles como São Paulo que atendem à elite (classes A e B) j o também
imediato investimento} "de olho no crescimento" do segmento} dos produto-
res para esse nicho de consumo (os editores). Por outro lado} temos também
a resistência dos "educadores" às novas tecnologias - que "requerem cui-
dado"} que não devem suplantar o livro impresso: as crianças devem manter
o hábito de ir (notem: nunca foram) às bibliotecas tradicionais, os pais não
devem ler para as crianças em iabiets, os livros digitais interativos causam
danos à criatividade e à imaginação e - pecado máximo! - aproximam-
-se da linguagem dos games} da TV e do cinema (diversões) brincadeiras)" e
afastam a criança do que é sério - a leitura de impressos.

18 Notem que, em 2012, um livro digital interativo, que nasceu como um app para tablets
e celulares, transformado em curta metragem de animação, ganhou o Oscar: Os [antásticos livros
MATERIAlS DIDÁTICOS NO ENSINO DE L1NGUAS

Que fazer, hoje em dia, dessa polifonia? A quem dar razão? Aos alunos,
às escolas de elite e aos editores que, por razões diversas, mas principalmen-
te pelos lucros visados, valorizam os avanços das TICsj ou aos "teóricos"
e assessores de escolas públicas, aos "educadores", que buscam a preserva-
ção das tecnologias dos séculos XVII a XIX, aliás, bem mais caras e menos
flexíveis?
Como dizia Chartier, já em 1997 (p. 88-91), tratando do que chama de
quatro revoluções da escrita - a invenção da própria escrita (manuscrita), a
invenção do livro (do códice), a imprensa e as novas tecnologias-,

o novo suporte do texto permite usos, manuseios e intervenções do lei-


tor infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma
das formas antigas do livro. [... ] O leitor não é mais constrangido a in-
tervir na margem, no sentido literal ou no sentido figurado. Ele pode
intervir no coração, no centro. Que resta então da definição do sagrado,
que supunha uma autoridade impondo uma atitude de reverência, de
obediência ou de meditação, quando o suporte material confunde a dis-
tinção entre o autor e o leitor, entre a autoridade e a apropriação?

A notícia em epígrafe nos introduz a meu último tema: será que os avan-
ços das TICs representam simplesmente e tão somente (o que, notem, não
seria poucol), para os alunos e professores, as possibilidades interativas e hi-
permidiáticas de poder colorir um bichinho na tela, ouvir música, um áudio,
uma narração (em várias línguas), responder a um quiz, ver um vídeo, mover
objetos visuais e até mesmo jogar um game? Ou será que elas descortinam
um mirabolante novo universo de possibilidades de ensino-aprendizagem?
Escolas de elite e editores (os donos do capital) já sabem que não se trata
de "simples digitalização do livro impresso". É mais que isso. "Educadores"
proíbem veladamente. Alunos de colégios de classe A e B não se preocupam:

I'oadores do Sr. Morris Lessniore. De fato, enquanto livro digital interativo, uma obra-prima que,
antes do Oscar, ganhou treze outros prêmios como filme de animação. Após a premi ação do Oscar,
foi finalmente lançado como livro impresso, perdendo assim suas propriedades de interatividade e
animação.
LINGulSTICA APLTCADA NA MODERNlDADE RECENTE

(
iil se não for lá (na escola), será cá (em casa), apesar dos conselhos apocalípti-
§<
""
rs cos dos "educadores". Mesmo os alunos de classe C e D podem ter acesso:
·õ
~cc
-c no trabalho, em casa, na casa de amigos, em centros comunitários ou lan
3co
O-,
N
houses e, em um futuro breve, na escola. Claro que os alunos dessas classes
·9
>--'
e da escola pública ficam mais desvalidos e mais "barrados no baile", isto é:
na escola e na vida.
Se essas mudanças de tecnologia significam mais do que acesso à hi-
permídia - significam, como quer Chartier, acentuadas mudanças nos mo-
dos de ler e de produzir textos - então o que mais elas trazem consigo, em
especial para o ensino de línguas?
Bem, para o ensino de português nas escolas, de saída, podemos vislum-
brar novas e interessantes possibilidades - em relação aos LD impressos
- de trabalhar com textos e gêneros que eram abordados com dificuldades,
como os gêneros orais e os multimodais e hipermidiáticos. No PNLD, dife-
rentemente dos LD e materiais impressos para línguas adicionais (inglês e es-
panhol), os LD impressos de português nunca foram, até o momento, acompa-
nhados por satélites (fitas, CDS ou DVDS), que eram vetados no Programa para
esta disciplina, e que permitiriam um pequeno acervo desses textos com todas
as suas propriedades. Evidentemente, a transcrição de um texto oral não é um
texto oral e os impressos não permitem imagens em movimento ou áudio.
No caso dos materiais para línguas adicionais, os satélites acompa-
nhando o livro podem ser considerados até tradicionais. Como dizem os
professores da pesquisa de Xavier e Urias (2006), o aparelho de som e os
dicionários são mais importantes que o livro didático e até que o quadro de
giz, nas aulas de inglês.
Nos dois casos, no entanto, a presença das 'I'ICs e de dispositivos digi-
tais conectados em sala de aula tem efeitos de alcance mais amplo, como, por
exemplo, poder acessar outras amostras e acervos que não somente aqueles
valorizados e selecionados por autores e editores de impressos, tais como, no
primeiro caso (LP), amostras e acervos de diferentes culturas e variedades
do português do Brasil (que quase nunca são abordados nos LDP) e, no caso
de inglês, o mesmo: textos de diferentes culturas e de diferentes variedades
dos ingleses americano, britânico e dos ingleses do mundo.

l
MATERIAIS DIDÁTICOS NO ENSINO DE LíNGUAS

No entanto) a questão vai muito além disso. Lankshear


(2006) nos ajudam a refletir) ao diferenciarem os letramentos
e Knobel
tradicionais
I
'"
-9.
o
dos "novos" letramentos, dizendo que esses últimos se caracterizam não
apenas por novos aparatos tecnológicos (que) para os autores) incluem os
programas) as ferramentas ou aplicativos - de texto) cálculo) áudio, vídeo,
imagem) animação) comunicação em redes -) assim como os dispositivos
- computadores) consoles de games) tocadores de mp3 e mp-l, celulares)
tablets etc.), mas principalmente por um novo "eihos",
Para os autores) o que é definidor dos "novos" letramentos é princi-
palmente esse novo "ethos" e não as tecnologias em si. Inclusive) é possível
(e frequente nas escolas) usarem-se as novas tecnologias para letramentos
tradicionais) como escrever cartas ou ensaios e dissertações) assim como
também é possível um "novo" letramento sem as novas tecnologias da quar-
ta revolução de Chartier, como era o caso dos DJS antes dos notebooks, que
remixavam e alteravam sons a partir de "bolachas" rodando em vitrolas (ve-
lhas tecnologias para um novo "ethos"}.
Como os autores caracterizam este novo "eihos" vem sintetizado na ta-
bela que apresentam (p. 38) tradução minha):

Mentalidade 1 Mentalidade 2
o mundo funciona basicamente a O mundo funciona cada vez mais a
partir do físico/material e de uma partir de princípios e lógicas não ma-
lógica e princípios industriais. teriais (por exemplo) o ciberespaço) e
pós-industriais.
o mundo é "centrado" e hierárquico. O mundo é "descentrado" e "plano".
O valor é função da raridade. O valor é função da dispersão.
A produção baseia-se no modelo Visão "pós-industrial" da produção.
"industrial".
Produtos são artefatos e mercadorias Produtos habilitam serviços.
materiais.
A produção baseia-se na infraestru- Foco na influência e na participação
tura e em unidades ou centros (por contínua.
exemplo) uma firma ou companhia).
1:1 L1NGU1STlCA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

Ferramentas são principalmente fer- Ferramentas são cada vez mais ferra-
ramentas de produção. mentas de mediação e tecnologias de
relação.

A pessoa individual é a unidade de Foco crescente em "coletivos" como


produção, competência, inteligência. unidade de produção, competência,
inteligência.

Especialidade e autoridade estão Especialidade e autoridade são dis-


"localizadas" nos indivíduos e tribuídas e coletivas: especialistas
instituições. híbridos.

o espaço é fechado e para propósitos o espaço é aberto, contínuo e fluido.


específicos.

Prevalecem relações sociais da "era do Relações sociais do "espaço da mídia


livro", uma "ordem textual" estável. digital" emergente cada vez mais visí-
veis; textos em mudança.

Tabela 1.1. Algumas dimensões da variação de mentalidades.

Vemos, pois, que esse novo "ethos" traz consigo mudanças fundamen-
tais, tanto no campo do trabalho e da produção como da vida pessoal e da
vida pública. A educação não pode continuar a ignorar essas mudanças na
formação de nossos alunos.
Portanto, trata-se de muito mais do que simplesmente dar textos a ler
em um novo suporte ou colocar em tablets PDFS de livros impressos: trata-
-se de novas relações com o mundo, o trabalho, a produção e o consumo, as
pessoas e coletivos, a cidade e a vida pública e - por que não? - também e
principalmente com o conhecimento livremente distribuído.
Para retomar a nosso tema do papel dos materiais didáticos na prática
docente do professor, vamos comentar três tipos de materiais digitais que
funcionam segundo esse novo "eihos". E o primeiro deles é justamente o li-
vro didático digital interativo (LDDI).

Os livros didáticos digitais interativos (LDDI)

Falei acima de um livro digital interativo - Os fantásticos livros voa-


dores do Sr. Morris Lessmore -, um conto infantil sobre leitores para novos
MATER1AlS DlDÁnCOS NO ENS1NO DE LÍNGUAS

leitores. Na ocasião) perguntei: será que os avanços das TICs representam


simplesmente e tão somente possibilidades interativas e hiperrnidiáticas
tomadas como" diversão"? Ou será que elas descortinam um mirabolante
novo universo de possibilidades de ensino-aprendizagem?
As características multimodais, hipermidiáticas, intuitivas e interati-
vas dos LDDI descortinam um novo universo de possibilidades de ensino-
-aprendizagem em que os objetos de ensino e estudo) anteriormente abstra-
tos) longínquos e que tinham de ser captados e compreendidos por meio de
uma linguagem verbal escrita altamente complexa) agora podem se presen-
tificar no livro) por meio de imagens estáticas e em movimento e de áudio
e vídeo (objetos e animações 3D interativos, galerias de imagens) imagens
interativas, vídeos e áudios, gráficos) tabelas e infográficos animados) as-
sim como quizzes, PDFS e apresentações Power Point animadas), facilitando
muito a compreensão e análise de conceitos mais abstratos) como o de DNA
ou de átomo) por exemplo.
Tudo começou com um
jovem) Mike Matas) que) em
20l0) publicou) por sua edi-
tora de LDI (Push Pop Press))
seu primeiro título) que foi o
polêmico livro de AI Gore so-
bre o aquecimento global Our
Choíce (Nossa escolh a), feito
Figura 1: Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=LV-RvzXGH2Y>, acesso: 26 set. 2013 para rodar em dispositivos
de tela de toque. Ele ajudou a
reinventar o livro eletrônico com essa façanha'", O livro já apresentava todos
os recursos de interatividade para telas de toque que mencionei acima.
Em janeiro de 20l2) a Apple lança um programa distribuído gratui-
tamente aos seus usuários} bastante baseado no que Matas desenvolveu no

1" Vale a pena ver a palestra de Mike Matas no TED, apresentando seu novo livro digital Our
Choice, em abril de 2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=LV-RvzXGH2Y>.
acesso: 26 set. 2013.
11 L1NGulSTlCA APLICADA NA MODERNlDADE RECENTE

Our Choice, chamado IBooks Author - um programa editor de livros digi-


tais interativos para serem lidos em IPads, disponível a qualquer autor (no-
tem: author e não publisher, ou editor) - mas principalmente para autores
de didáticos - que queiram editar seu LDDI e distribuí-lo - gratuita ou
remuneradamente - na web. Há também outros editores de LDI gratuitos,
para outros dispositivos digitais de telas de toque (Androids), disponíveis
como apps na web.
Da distribuição desses
programas resultaram livros di-
dáticos com recursos impressio-
nantes, em geral destinados ao
ensino superior, tais como Life
on Earth (Vida na terra), de E. O.
Wilson, sobre assuntos da bio-
logia, e Solar System (O Sistema
Solar), de Marcus Chown, so-
Figura 2: Disponível em Life on Earth, de E. O. Wilson. bre astronomia. Por exemplo,
na imagem ao lado, retirada do
livro Life on Earth, vemos uma animação sobre os "níveis de organização do
DNA", que apresenta as representações em forma sólida, por átomos ou por
traços, da cadeia de DNA, do nucleossomo, das estruturas de ordem mais alta,
dos cromos somos e da célula completa, de maneira interativa e animada.
Mas, no caso dos LDDI, embora apresentem meios nunca antes imagi-
nados de favorecer a compreensão de conceitos pelos alunos e sua interação
com o texto, com os conteúdos e, por vezes, com o autor (quando este opta
por incluir vídeos de miniaulas), ainda não sabemos que papel livros como
esses desempenharão em sala de aula, nas práticas dos professores. Sabemos
que se apresentam claramente como mais um interagente em sala de aula e
tudo dependerá de como o professor e os alunos estabeleçam agora a intera-
ção com o livro digital.
No entanto, são claramente ferramentas muito mais sofisticadas do
que a mera digitalização de texto impresso e podemos prever que alterem a
dinâmica da interação em aula.
MATERIAlS DIDATICOS NO ENSINO DE LíNGUAS

São novidades importantes quando os governos federal e estaduais


anunciam compra e distribuição de tablets a professores e alunos, e o PNLD
abre, por primeira vez) a possibilidade de que as coleções de LD sejam com-
plementadas por um DVD-satélite que pode contar com esses mesmos ele-
mentos (objetos digitais, animações) vídeos etc.) relacionados ao conteúdo
do LD impresso. São novidades importantes e possivelmente tenhamos,
cedo ou tarde, de lidar com elas.
Não temos ainda condição de saber o quanto esses LDDI podem ou
não ser flexíveis ao uso do professor, mas alguns de nossos estudantes já
estão começando esse tipo de investigação, tanto no que diz respeito à lousa
digital, quanto aos tablets e LDDI. Mas já sabemos que o professor - ou
qualquer outro usuário de tecnologias - já pode editar seu próprio material
didático, se quiser e tiver tempo para isso, no formato de LDDI para tablets
e celulares.

Os recursos educacionais abertos (REA)

Um dos principais problemas que enfrentamos quando queremos


editar ou, principalmente, publicar nossos próprios materiais didáticos é a
questão dos" direitos autorais" dos muitos textos de todos os gêneros que
temos, nós, professores de línguas, de inserir em nossos materiais para poder
trabalhar com eles. Muitas editoras seguem rigidamente as leis de direitos
autorais e de direitos conexos, o que torna ou a obra muito cara ou inviável.
Assim, os recursos educacionais abertos'" contam com uma lógica pú-
blica e colaborativa para minorar esse problema:

211 O Projeto Brasileiro sobre Recursos Educaciona is Abertos: Desafios e Perspectivas


Projeto REA-Br) teve início em 2008 com a visita de uma delegação internacional ao ;v[inistério
.ia Educação e com a realização de uma série de eventos de sensibilização em São Paulo e Brasilia. O
.uojcto REA-Br foi fundado por Carolina Rossini em 200S e é um dos primeiros projetos no Brasil
.;ue tenta aproximar da realidade e das perspectivas brasileir.is a discu s sào internacional acerca dos
:'2cursos educacionais abertos (REA) e da educação aberta. Mas isso não seria possível sem o apoio
jé uma entusiasmada comunidade: a Comunidade REA-Brasil. Essa comunidade é formada por
:,lucadores, cientistas, engenheiros, profissionais de TICs, jornalistas, advogados e todos aqueles
~ue acreditam em educação aberta e recursos educacionais abertos (disponível em: <http://rea.
~_et.br/ site/ rca -brasil/historia/>, acesso: 26.set.20 13).
LlNGufSTICA APLICADA NA MODERNIDADE RECENTE

Recursos educacionais abertos são materiais de ensino, aprendizado


e pesquisa em qualquer suporte ou mídia, que estão sob domínio pú-
blico, ou estão licenciados de maneira aberta", permitindo que sejam
utilizados ou adaptados por terceiros. O uso de formatos técnicos aber-
tos facilita o acesso e o reuso potencial dos recursos publicados digital-
mente. Recursos educacionais abertos podem incluir cursos completos,
partes de cursos, rnódulos, livros didáticos, artigos de pesquisa, vídeos,
testes, software e qualquer outra ferramenta, material ou técnica que
possa apoiar o acesso ao conhecimento (Unesco/Commonwealth of
Learníng, Comunidade REA-BRASIL, 2011, disponível em: <http://
rea.net.br/site/o-que-e-rea/>, acesso: 26 set. 2013).

o aspecto mais interessante dos REA é o estímulo a professores e autores


a participarem da comunidade e a licenciarem e fazerem reuso colaborativo
dos materiais licenciados para comporem suas unidades de ensino. Assim,
cria-se uma rede social colaborativa com finalidades educacionais e didáticas
que facilita o acesso a acervos ou bancos de materiais valiosos para o ensino.
Claro que iniciativas como essas facilitam a flexibilidade e adequação
dos materiais didáticos digitais à realidade de cada um. O problema, nova-
mente aqui, é que o docente terá de dispor de tempo e competência para
construir seus próprios materiais.

Protótipos de ensino: coautoria com o professor

A partir da novas TICs, uma solução intermediária entre as SD e o pro-


fessor produzir seus próprios materiais é o que tenho proposto em minhas
pesquisas mais recentes sobre os multiletramentos: os protótipos de ensino:

21 COllllllom Creative Liccnses - O Crcative COlllmolls é uma organização norte-americana


sem fins lucrativos, com representantes em quase 60 países, que disponibiliza instrumentos legais
padronizados e fáceis de utilizar por qualquer pessoa, para gestão de direito autoral pelos detentores
daqueles direitos. Tais instrumentos são chamados de licenças de direito autoral e são opções flexíveis
que garantem proteção e liberdade para artistas e autores, deixando de lado a ideia de "todos os direi-
tos reservados" da gestão tradicional dos direitos autorais e declarando que somente "alguns direitos"
serão "reservados" (disponível em: <http://rea.net,br/site/faq/>, acesso: 26 set. 2013).
MATERIAIS DfDATICOS NO ENS1NO DE LlNGUAS

Protótipo é um produto que ainda não foi comercializado, mas está em


fase de testes ou de planejamento. Pode se referir a um automóvel (como
um carro conceitual), avião, nave espacial, navio ou qualquer outra embar-
cação, veículo de transporte ou produto da engenharia, como, por exem-
plo, um porto ou uma usina hidrelétrica, uma turbina, uma bomba hidráu-
lica etc. Geralmente estes produtos são testados antes em modelos físicos,
em laboratórios especializados de aerodinâmica ou de hidrodinâmica.

Na informática, protótipo é um sistema/modelo (pode ser um site web


ou um software) sem as funcionalidades inteligentes (acesso a banco,
sistema legado), apenas com as funcionalidades gráficas, e algumas
funcionalidades básicas para o funcionamento do próprio protótipo.
Utilizado geralmente para aprovação de quem vai solicitar o sistema
(disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Prot% C3 %B3tipo>,
acesso: 26 set. 2013).

A Wiki começa nos esclarecendo que, no mundo físico - na engenha-


ria, por exemplo -, um protótipo é um produto ainda incompleto, em fase de
planejamento ou testes e customização. No mundo virtual ou digital, um pro-
tótipo é um modelo digital, sem suas funcionalidades inteligentes, como ban-
cos de dados ou sistemas legados, apenas com suas funcionalidades básicas.
Vamos reter esta última definição e relacioná-Ia à discussão que fiz das
SD como um dispositivo da engenharia didática. Um protótipo de ensino
seria um "esqueleto" de SD a
ser "encarnado" ou preenchido
pelo professor, por exemplo,
um modelo didático digital de
um gênero ou conjunto de gê-
neros, sem seus acervos ou bancos
de textos, ou apenas com acer-
vos e bancos que funcionassem
como exemplos e pudessem ser
Figura 3: <http://.metaperformance.cc/home/?m=
201206>, acesso: 26 set. 2013, adaptado. substituídos no produto final.
LlNGulS11CA APLlCADA NA MODERNIDADE RECENTE

Paralelamente, haveria acervos ou bancos alternativos disponíveis para


que o professor "encarnasse" seu projeto de ensino para uma turma especí-
fica, com sua cultura local, seu repertório, suas necessidades e potencialida-
des. Esses acervos e bancos se aproximariam dos acervos REA, ou seriam,
mais simplesmente - se a sala de aula estiver conectada à web -, uma lista
de links para materiais (textos, imagens, vídeos, animações, objetos etc.) que
pudessem ser utilizados pelo professor ou inspirá-lo na montagem final de
sua SD, a partir do protótipo.
E o que constituiria o "esqueleto" do protótipo da SD ou protótipo de
ensino? Justamente o modelo didático does) gênero(s) em questão, ou parte
dele: aquela parte que diz respeito às características e funcionamento does)
gênero(s), segundo as teorias e os saberes práticos correntes, ao conjunto de
princípios de ensino-aprendizagem adotados e aos possíveis objetivos de ensino
a serem selecionados para compor os módulos de ensino.
Ao professor caberia a parte de avaliação diagnóstica:
(a) da cultura local e dos conhecimentos e capacidades de seus alu-
nos, para poder selecionar tanto os objetivos mais adequados a eles
como os textos multimodais e hipermidiáticos mais interessantes
do acervo ou do banco;
(b) das atividades de ensino já desenvolvidas em sua escola que pos-
sam estar relacionadas às novas aprendizagens.
O passo seguinte do professor seria a montagem de sua SD propria-
mente dita, adequada ao contexto escolar e aos alunos visados, a partir dos
objetivos e textos selecionados do acervo e observando os princípios de en-
sino-aprendizagem e a descrição de gêneros presentes no esqueleto. Seria
um trabalho de colaboração entre o docente e a academia. Coautoria.
Cabe ainda, por último, observar que os protótipos seriam otimizados
• se fossem armazenados nas nuvens, isto é, estivessem disponíveis
em ferramentas gratuitas com alta capacidade de arrnazenamento e
acessibilidade democrática;
• se contassem com ferramentas colaborativas, também públicas e
gratuitas, que permitissem interação colaborativa tanto entre o pro-
ponente e o professor, como entre o professor e seus alunos;
MATERIAIS DIDATICOS NO ENSINO DE LíNGUAS
11
• se os bancos ou acervos fossem compostos majoritariamente por
textos hipermidiáticos e rnultissemióticos, características típicas
dos textos contemporâneos,
• se os acervos combinassem e contrastassem textos de diferentes
coleções e culturas (popular, de massa, erudita), e não somente do
cânone valorizado pela escola, para que, comparando-se diversas co-
leções, a um só tempo, pudessem aproximar-se da cultura local dos
alunos e professores e garantir o papel cosmopolita da escola.

Considerações finais

Neste capítulo, busquei descrever o papel de alguns materiais didáticos


impressos e digitais nas práticas de ensino de línguas. Analisei os LD, as
SD e, em seguida, os LDDI, REA e protótipos de ensino. Tentei salientar os
ganhos que as TICs trazem para os "novos" letramentos, para o aprendizado
do aluno e para a autonomia e flexibilidade do professor. Espero ter contri-
buído para uma avaliação mais crítica e menos preconceituosa dos avanços
que o digital pode, se cuidarmos, apresentar.

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