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Lagarto - Sergipe N. 02 - V. 01 - Set.

2018
Dossiê Adalberto Fonseca
ISSN 2594-5378
Número 02—Volume 01
Dossiê Adalberto Fonseca
(Edição eletrônica— ISSN 2594-5378 )

Instalada no dia 19 de abril de 2013, a Academia Lagartense de Letras reúne


intelectuais e agentes culturais de diversas áreas, com importantes ações de-
senvolvidas na sociedade e inúmeros trabalhos publicados. Ao longo de sua
existência, vem se pautando pela defesa da língua nacional e do patrimônio
cultural local, representado que é por sua tradicional História, cujas primeiras
notícias remontam ao século XVI. Criada para ser instrumento de divulgação
da produção lítero-cultural e científica de seus membros, a Revista da Acade-
mia Lagartense de Letras também receberá trabalhos da comunidade, incluin-
do a escolar, com vistas a manter uma estreita relação de interlocução com os
sujeitos produtores e gestores de saber, arte e cultura.

Lagarto—Sergipe
2018
© 2018 Revista da Academia Lagartense de Letras

Editor Chefe
Paulo Andrade Prata.

Editores Gerentes:
Claudefranklin Monteiro Santos
Taysa Mércia Santos Souza Damaceno

Editores de Comunicação:
Alessandro Santos Monteiro
Maria Angélica Amorim Correia.

Conselho Editorial:
Aglaé d’Ávila Fontes
Antônio José Monteiro Rocha
Beatriz Góis Dantas
Deijaniro Jonas Filho
Euclides Oliveira Santos
José Carvalho de Souza, Mons
Maria do Carmo Oliveira da Fonseca
Mário Rino Sivieri, Dom
Noeme da Silva Dias
Paulo Sérgio Oliveira Nunes
Rodrigo Freire de Amorim
Rosalvo Andrade Nogueira

Conselho de Pesquisa, Revisão e Normas Técnicas


Anselmo Vital de Oliveira
Assuero Cardoso Barbosa
César de Oliveira Santos
Jane Guimarães Vasconcelos Santos
Josefa Suely Rodrigues Prata
José Uesele Oliveira Nascimento
Rusel Marcos Batista Barroso

Conselho Consultivo:
Prof. Dr. Milton Araújo Moura (UFBA).
Prof. Dr. Severino Vicente da Silva (UFPE).
Prof. Dr. José Milton Barbosa (UFS)

Jornalistas Responsáveis
Emerson da Silva Carvalho
Euller Tavares Ferreira

Apoio Técnico:
José Carlos Nascimento Júnior
Raildes Fontes
Academia Lagartense de Letras

Cadeira 1 (Sílvio Romero) Cadeira 14 (Adalberto Fonseca)


Rusel Marcos Batista Barroso Beatriz Góis Dantas

Cadeira 2 (Laudelino Freire) Cadeira 15 (José Cláudio Monteiro Santos )


Assuero Cardoso Barbosa Paulo Andrade Prata

Cadeira 3 (Aníbal Freire) Cadeira 16 (José Antônio da Costa )


Joaquim Prata Souza (Antecessor) Aglaé d’Ávila Fontes
Rodrigo Freire de Amorim
Cadeira 17 (Onofre Silva Santos )
Cadeira 4 (Ranulfo Hora Prata)
Euclides Oliveira Santos
Anselmo Vital de Oliveira

Cadeira 5 (Enock Santiago) Cadeira 18 (Armando Hora de Mesquita )


Deijaniro Jonas Filho Noeme da Silva Dias

Cadeira 6 (Abelardo Romero Dantas) Cadeira 19 (Teodureto Arcanjo do Nascimen-


to )
Claudefranklin Monteiro Santos
Antônio José Monteiro Rocha
Cadeira 7 (Luiz Antônio Barreto)
Cadeira 20 (Joaquim Prata Souza )
Emerson da Silva Carvalho
Paulo Sérgio Oliveira Nunes
Cadeira 8 (Joel Silveira)
Euler Tavares Ferreira Cadeira 21 (João Almeida Rocha )
Maria do Carmo Oliveira da Fonseca
Cadeira 9 (Vicente Francisco de Jesus, Com.)
Mário Rino Sivieri, Dom. Cadeira 22 (Themístocles Emílio de Carvalho )
Alessandro Santos Monteiro
Cadeira 10 (João B. de Carvalho Daltro, Mons.)
Cadeira 23 (Joviniano Ramos Romero )
José Carvalho de Souza, Mons.
José Uesele Oliveira Nascimento
Cadeira 11 (José Martins Fontes)
Cadeira 24 (Nilo Romero)
Taysa Mércia Santos Souza Damaceno
Josefa Suely Rodrigues Prata

Cadeira 12 (José Vicente de Carvalho)


Cadeira 25 (José Machado dos Santos)
Maria Angélica Amorim Correia
César de Oliveira Santos
Cadeira 13 (José Nogueira Fontes)
Rosalvo Andrade Nogueira
APRESENTAÇÃO

Adalberto Fonseca é natural de Campo do Brito. Ele nasceu no dia 23 de


abril de 1913. Ao constituir morada e família na cidade de Lagarto, enveredou-se
no afã de procurar esclarecer os fatos, histórias e estórias que deram identidade
ao lugar que escolheu para ser seu, também.
Ao longo dos anos, ganhou respeito e notoriedade entre os lagartenses e
procurou deixar um legado que inclui um livro, hino e símbolos identitários que se
consolidaram na cultura lagartense desde os anos 70.
Eu tive a satisfação de conhecê-lo pessoalmente. Em 1997, estivemos jun-
tos por ocasião do aniversário da cidade. Eu dividi com ele uma espaço de discus-
são sobre História de Lagarto. À época, eu, apenas ensaiava meus primeiros escri-
tos sobre o assunto, e ele já trazia na bagagem pelo menos quarenta anos de es-
trada.
Tive acesso aos originais do livro História de Lagarto. Ele me confiou uma
apreciação. O tempo não nos permitiu caminhar mais a frente, pois ele faleceu
oito anos depois, aos 17 de março de 2003.
Para a sua alegria e nossa, os lagartenses, ainda pôde experimentar da sa-
tisfação do dever cumprido em ter o seu História de Lagarto, finalmente, publica-
do, um ano ante de sua viagem eterna.
O pontapé foi dado e hoje pode-se dizer que existe uma certa historiogra-
fia lagartense consolidada, frente os inúmeros sujeitos, artigos, livros e até tese de
doutorado que se seguiram a sua obra.
A Academia Lagartense de Letras, no presente dossiê, rende a sua home-
nagem ao Centenário de Nascimento do historiador Adalberto Fonseca. Ele é Pa-
trono da Cadeira Número 14, distintamente ocupada pela antropóloga Beatriz
Góis Dantas, que assina artigo sobre o autor.
O número 2 da Revista da Academia Lagartense de Letras traz dois volu-
mes, em sua concepção. O volume 1 demonstra que o periódico já atrai a atenção
e a credibilidade de vários rincões do Estado de Sergipe e do país, com textos de
autores consagrados, a exemplo do artigo da Acadêmica Ana Medina sobre o mé-
dico Edilberto Campos, a jovens promessas como a poetisa Júlia Romero, neta do
escritor Abelardo Romero Dantas.

Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos


Editor Gerente
SUMÁRIO

DOSSIÊ – Adalberto Fonseca _____________________________________________ 13

ADALBERTO FONSECA E O FOLCLORE DE LAGARTO NOS ANOS 70................................. 15


Beatriz Góis Dantas

Artigos _______________________________________________________________ 27

EDILBERTO CAMPOS, UM LAGARTENSE ILUSTRE.............................................................29


Ana Maria Fonseca Medina

TRANSITANDO ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA – SÍLVIO ROMERO NO CRIVO DA CRI-


TICA..................................................................................................................................35
José Uesele Oliveira Nascimento

POR QUE LAGARTO JAMAIS CHEGOU A OUVIR O APITO DO TREM................................ 51


José Eduardo Bastos

OS LAGARTENSES QUE RUGEM: AS PRÁTICAS CULTURAIS ALTERNATIVAS EM LAGARTO


(2006-2015) ......................................................................................................... 83
Anselmo Ferreira Machado Carvalho

Poemas _____________________________________________________________ 107

OUTRO DISCURSO SOBRE O MÉTODO.......................................................................... 109


César de Oliveira

O ESPELHO DAS VAIDADES .......................................................................................... 113


Bruno Candeas
ENCONTROS.................................................................................................................. 114
Bruno Candeas

COM TANTAS PALAVRAS............................................................................................... 115


Lin Quintino

ACREDITE NO AMOR..................................................................................................... 116


Júlia Romero

ENTENDER A LIBERDADE.................................. ........................................................... 117


Júlia Romero
DOSSIÊ
Adalberto Fonseca
ADALBERTO FONSECA E O FOLCLORE DE LAGARTO NOS ANOS 70

Beatriz Góis Dantas1

Na sociedade brasileira, folclore é um termo que tem muitos


sentidos e uma longa trajetória em que se sucedem momentos de
valorização e desprestígio do conteúdo que abarca, geralmente definido
como expressões tradicionais da cultura popular. Circunscreve um
campo de estudo, no qual a figura do lagartense Sílvio Romero
notabilizou-se no final do século XIX, pelo pioneirismo, pela proposta
cientificista e pelo registro documental (ROMERO, 1888, 1954). Ao longo
do tempo, o folclore atraiu estudiosos de vários matizes e cultores que
não se contentavam em conhecer, mas procuravam interferir nos
fenômenos estudados, configurando o que Luís Rodolfo Vilhena (1997)
denominou de movimento folclórico brasileiro. Proteção e restauração
de folguedos populares, por exemplo, foi um projeto que se incorporou
à prática dos folcloristas, alimentou políticas públicas, deu visibilidade a
grupos diversos de brincantes, projetou localidades e líderes e ajudou
nas construções identitárias de muitas coletividades.
No vértice dessas considerações, situa-se Adalberto Fonseca
(1917-2004), sergipano nascido em Campo do Brito, que se inscreve na
vida de Lagarto como funcionário público federal, sendo conhecido nos
meios intelectuais, sobretudo pela sua contribuição ao estudo da
história do município. Coletou dados em arquivos e cartórios, consultou
livros e documentos diversos, observou a realidade local, registrou fatos
repassados por uma oralidade evanescente, enfim, forneceu aos
lagartenses um corpus empírico, um conjunto de informações que
alimentam as pesquisas históricas e suas identidades. Ao mesmo tempo,
construiu um painel da memória-história da cidade que o acolheu, e
onde viveu por mais de 60 anos, deixando ampla descendência e alguns
trabalhos publicados. Dentre estes, destaca-se a História de Lagarto,
uma história feita de múltiplos planos em que figura também um
capitulo sobre o folclore. Explicitando seu objetivo afirma:

1
Antropóloga, professora emérita da Universidade Federal de Sergipe, membro da
Academia Lagartense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

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Não quis fazer apenas um livro de história, mas
penetrar nas entranhas de um povo e colher o
melhor por ele produzido. Conhecer seus costumes,
narrar fatos que ao longo do tempo poderiam ser
esquecidos por estarem apenas na memória de
alguns poucos mais atentos. (Fonseca, 2002, p. 326).

A obra veio a lume tardiamente, contudo, muito antes da


publicação, Adalberto tornara-se um intelectual de referência, um guia
para os que buscavam conhecimento sobre Lagarto, num tempo em que
a bibliografia sobre o município era rala e os cursos superiores, que se
tornaram celeiros de produção de trabalhos acadêmicos sobre o local,
um sonho distante.
No amplo campo de atuação de Adalberto Fonseca, vou-me
restringir ao folclore. Tento articular o protagonismo do personagem
nessa área com um quadro mais geral que permite contextualizar as
ações de estudo e intervenção sobre as expressões festivas da cultura
popular lagartense na segunda metade do século XX, especificamente
na década de 70. Essas notas resultam de algumas experiências pessoais
(DANTAS, 2013) e reflexões sobre a trajetória do folclore no Brasil
(VILHENA, 1997; SILVA, 2015). No tocante ao plano local, tomam como
referência empírica básica um documento de pesquisa produzido em
1974 por estudantes da Universidade Federal de Sergipe, no qual a
figura de Adalberto Fonseca emerge, ao lado de outros informantes,
como pessoa interessada nas manifestações folclóricas da localidade,
enquanto expressões de um saber local tradicional. Registre-se que não
tenho a pretensão de apresentar o conjunto da atuação folclorística de
Adalberto. Embora incorpore consulta bibliográfica e alguns
documentos2, este trabalho carece de maior abrangência empírica e
temporal e espero que suscite pesquisas na área.

A década de 70 e o folclore em Sergipe


Na década de 1970, houve em Sergipe um florescimento do
folclore. Além dos estudos, deu-se apoio a grupos populares de danças,
folguedos e artesanato, enquanto se promovia sua divulgação através
de festivais, objetivando, de um lado, o seu aproveitamento nas
2
Agradeço a Rusel Marcos Barroso e Claudefranklin Monteiro, confrades da Academia
Lagartense de Letras, a fértil interlocução e envio de documentos.
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políticas de turismo cultural e, de outro, a preservação dessas tradições
como sinais de brasilidade ou, mais restritivamente, de identidades
locais. Esses elementos eram impulsionados pela política coercitiva e
modernizadora dos governos militares que incluía também a expansão
da universidade concebida como instituição de ensino e pesquisa, às
quais a reforma universitária agregou um novo componente - a
extensão.
A implantação da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que,
neste ano completa 50 anos, fez-se ao mesmo tempo em que também
se gestavam as primeiras experiências extensionistas. Talvez, por isso, a
extensão tenha tido tanto destaque nos tempos da Universidade
nascente, contando com amplos recursos federais, cuja política cultural
ressaltava aspectos do patrimônio arquitetônico, do folclore, do
artesanato associados ao turismo (MICELI, 1984). Nesse contexto,
grandes festivais foram criados por universidades e/ou órgãos
governamentais e tiveram muito êxito. Em Sergipe, registre-se o Festival
de Artes de São Cristóvão (1972) e o Encontro Cultural de Laranjeiras
(1976), eventos de longa duração. Em Lagarto, o Seminário do Gado e
do Couro, criado em 1976, não logrou continuidade, teve apenas três
edições.
Nos planos federal, estadual e municipal, vários programas
procuravam incentivar as apresentações folclóricas, atividades em geral
precedidas de levantamentos e documentação, que objetivavam
mapear o campo das expressões populares a serem conhecidas e
apoiadas.
Nesse contexto, depois de ter publicado um livro sobre a Taieira
em Sergipe (DANTAS, 1972), apresentei à UFS, da qual eu era uma
jovem professora, um projeto intitulado Levantamento e documentação
das manifestações da lúdica folclórica, que foi executado em alguns
municípios. Fazia parte dos programas de extensão universitária, na qual
alunos bolsistas, com supervisão de um professor, eram treinados em
atividades em vários campos de atuação, como saúde e cultura, dentre
outros. Os projetos eram desenvolvidos nos locais onde a Universidade
tinha campo de ação extensionista. Desse modo, o levantamento da
lúdica folclórica foi realizado em Lagarto, onde atuaram, sob minha
supervisão, duas bolsistas, Angélica Maria Vieira de Araújo e Eunice
Tavares Dantas, realizando a coleta de informações sobre expressões
folclóricas, objetivando mapear as manifestações locais.

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Resultados do levantamento: perfil de uma época

No município de Lagarto, foram registradas 22 expressões


populares de vários tipos, a seguir enumeradas:

Anões Chegança
Antônio Conselheiro Cilibrina
Barricão Dança de São Gonçalo
Batalha da vassoura Encomendação das almas
Caboclinhos Jogadores de espada
Cana Verde Lambe-sujo
Cangaceiros ou Lampião Lanceiros
Caretas Parafusos
Casamento da Carolinda Reisado
Cavalaria Taieira
Cavalhada de Santo Antônio Zabumba

Na lista acima, figuram algumas manifestações folclóricas que


integravam quadros e calendário festivos que, na passagem do século
XIX para o XX, se repetiam com certa regularidade em vilas e cidades
mais importantes de Sergipe, como indicam alguns memorialistas e
pesquisadores. Em cada lugar, essas manifestações tomaram rumos
diferentes, rompendo com os velhos calendários de apresentação ou,
simplesmente, desaparecendo, e, em alguns casos, reaparecendo sob o
influxo de vários fatores. Na cidade de Lagarto, em 1974, algumas
estavam presentes apenas na memória dos mais velhos, constituindo-se
em narrativas sobre o passado, outras eram vivenciadas por grupos em
atividade ou em processo de revitalização com o apoio de pessoas e/ou
entidades diversas.
Em Lagarto, a celebração do Sete de Setembro, momento cívico
ao qual se sucede, no dia imediato, a festa da padroeira da localidade,
tornara-se o grande evento agregador de apresentação desses grupos.

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Historicamente importante no calendário festivo do lagartense
“apaixonado pelas festas populares e patrióticas”, como registrara
Severiano Cardoso ao descrevê-la no final do século XIX (CARDOSO,
1899), a comemoração da Semana da Pátria ampliou-se com a presença
de folguedos que antes faziam parte do ciclo de Natal e da antiga festa
de São Benedito, hoje extinta. Alternando períodos de valorização e de
desprestígio do folclore, na década de 1970, uma nova onda de impulso
restaurador de danças e folguedos tradicionais encontrou clima
favorável, sob o influxo das políticas públicas dos governos militares,
que incentivavam o folclore, o artesanato e a reconstrução do
patrimônio arquitetônico das “cidades históricas” vendo-os como
elementos capazes de incrementar o turismo cultural.
Em Lagarto, onde o patrimônio de pedra e cal não mereceu
maiores cuidados, o esforço foi centrado no folclore. Isso fez com que,
em 1975, em trabalho realizado pelo Departamento de Cultura e
Patrimônio Histórico da Secretaria de Educação, o município aparecesse
como aquele que tinha o maior número de grupos folclóricos do estado.
Registraram-se doze ocorrências, enquanto em Japaratuba foram
cadastradas dez e em Laranjeiras apenas sete. Muitas das expressões da
lúdica lagartense, contudo, figuram nesse registro com dados
insuficientes sobre sua estrutura e organização, talvez porque
estivessem em fase de restauração recente (OLIVA, 1975).

Informantes, brincante e intelectuais.

Orientadas para coletar dados sobre a manifestação cultural,


enquanto forma de expressão e seu contexto de realização, as
estudantes que integravam o Levantamento e documentação das
manifestações da lúdica folclórica ouviram nove pessoas e registraram
informações sobre o grupo de brincantes, dados biográficos sobre o
chefe, descrição da manifestação cultural e seus elementos
componentes, data e motivo de apresentação e, por fim, histórico sobre
o grupo e origens do evento.
Entre os vários informantes, sobressaíam-se chefes das
expressões culturais como Paulo Ferreira da Chegança; José Bernardino
dos Santos (Zé Padeiro), criador do grupo de Cangaceiros nos anos 60;
Tertuliano Bispo das Chagas (Tertino), organizador da Cavalhada Santo
Antônio; Manoel Pereira de Santana (Zé Honório), chefe do Reisado do

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Barro Vermelho; Jovelino Santana (Jove Barbeiro), restaurador do
Parafuso; e Themístocles Emílio de Carvalho do grupo de Encomendação
das Almas.
Ao lado dos que deram depoimentos apenas sobre a
manifestação cultural que dirigiam, havia figuras polivalentes a falar
com desenvoltura sobre várias expressões populares locais, como era o
caso de Rubens de Oliveira Rocha (Rubém), José Antônio da Costa
(Maninho de Zilá) e Adalberto Fonseca. Os dois primeiros eram
organizadores de vários grupos, cujo saber era feito da participação
direta e do envolvimento corporal de brincante em vários folguedos.
Rubém circulava entre a Taieira, a Cilibrina, os Lanceiros e os
Caboclinhos e falava deles com o entusiasmo de quem experimentava
as sensações dos movimentos e sons próprios de cada evento. Fora meu
principal informante quando, em 1971, pesquisei a Taieira em Lagarto e
registrei no livro seu entusiasmo pelas tradições da terra e a
consternação pelo descaso com que eram tratadas as expressões
folclóricas locais e, particularmente, sua indignação contra os padres
que tinham proibido a Taieira de dançar na igreja durante a festa de São
Benedito (DANTAS, 1972).
Outro informante versátil e polivalente era Maninho de Zilá.
Assim era conhecido José Antônio da Costa (1924-1998), comerciante e
fotógrafo, grande festeiro e animador cultural da cidade. Biografando
Maninho, Rosana Souza Santos escreveu:

Enquanto criança era bastante curioso e inteligente,


prestava muita atenção no folclore antigo que aos
poucos se foi evaporando. Em sua fase adulta resolve
colocar em prática tudo que já havia visto.
Logo no início não existiam grupos folclóricos com
nomes como existe atualmente, existiam quadrilhas,
fogos, e só depois com o incentivo de Maninho é que
foram surgindo vários grupos. (SANTOS, 2004, p.36).

Embora Maninho de Zilá fosse, sobretudo, organizador de


grupos, terminava se enfiando entre os dançarinos, folgazão que era por
natureza e vocação. Lá estava ele à frente de manifestações como
Conselheiro, a relembrar a passagem do taumaturgo por Lagarto,
Anões, Cana verde, Cavalhada, Barricão, Lambe-sujo e outras.

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Diferente era, porém, a atuação de Adalberto. Homem dado às
letras, que já na década de 40 escrevera uma pequena monografia
sobre Campo do Brito, sua cidade natal (FONSECA, 1946), dava o
suporte intelectual, inventariando as manifestações antigas,
pesquisando as origens dos folguedos, perquirindo os fatos que lhes
marcaram o surgimento, muitas vezes recorrendo a documentos
escritos ou a fontes orais para dar-lhes uma interpretação. Em 1974 já
escrevera um esboço sucinto sobre as origens de Lagarto (FONSECA,
1974) e forneceu aos pesquisadores da UFS um resumo dos seus
escritos.
Desse modo, enquanto Maninho de Zilá se empenhava em pôr
os grupos folclóricos na rua e, ao mesmo tempo, em registrá-los para a
posteridade através de sua câmera fotográfica, Adalberto se esmerava
em busca de informações históricas sobre sua origem e existência. Na
década de 70, sobretudo na segunda metade, quando o Encontro
Cultural de Laranjeiras, criado em 1976, sob a batuta do lagartense Luiz
Antônio Barreto ganhou status de palco privilegiado para o folclore
sergipano (NASCIMENTO, 2005), surgiu a ideia de que os grupos de
Laranjeiras eram mais autênticos, enquanto grupos de Lagarto eram,
com frequência, classificados como parafolclóricos ou de projeção
(RIBEIRO, 2011). Cabia a Adalberto o papel de legitimá-los com o selo de
coisas antigas e tradicionais, missão declaradamente assumida por ele
numa passagem sobre a origem dos Parafusos (FONSECA, 2002, p. 221).
Seria, porém, miopia reduzir o papel de Adalberto em relação ao
folclore à pesquisa e produção de textos sobre antiguidade e origens
dos eventos compulsados em documentos antigos, cadernos de
anotações de personalidades da terra como o coronel Hipólito Emílio
dos Santos ou em depoimento do ex-escravo Purciano em quem se
referenciava para explicar a origem do Parafuso (FONSECA, 2002,
p.308). Essa dança ganhou grande visibilidade e se tornou um ícone da
cidade enquanto conquistava plateias em vários estados, também com
o concurso de Adalberto.
O clima de valorização dos grupos folclóricos se alongou pela
década de 80. Algumas das expressões populares de Lagarto, que já
vinham frequentando eventos em outros municípios sergipanos,
notadamente em Aracaju, e em Brasília (1974), ganharam as estradas do
Sudeste e foram apresentar-se em Olímpia, São Paulo. Nesse trajeto, a
figura de Adalberto Fonseca também estava presente, abrindo trilhas
para apresentação dos grupos e divulgação do folclore lagartense em
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busca de reconhecimento externo e afirmação identitária. Em 1982,
Parafusos e Cangaceiros participaram do grande desfile do 18º Festival
Folclórico de Olímpia (SP). As apresentações renderam muitos aplausos
para os brincantes e para Adalberto um diploma de Honra ao Mérito
concedido pela prefeitura da cidade paulista (FONSECA, 2002, p. 216).
Mas, voltando aos anos 70, e retomando os dados da pesquisa
dos estudantes da UFS, cabe registrar a preocupação de Adalberto em
formar e preservar uma memória do folclore lagartense através das
imagens.
Ao conceder entrevista aos estudantes, Adalberto mostrou um
álbum com fotos dos grupos locais, o que motivou Eunice, aluna
dedicada e competente desenhista, a fazer esboços de alguns dos
figurantes dos grupos folclóricos, como foi o caso do Parafuso, com sua
veste característica feita de muitos babados superpostos e chapéu de
abas que depois veio a ser substituído pelo adereço de forma cônica.

Parafuso.
(Desenho de Eunice Dantas, 1974)
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Parte dessas fotos, que bem mais tarde, em 2010, apreciei
expostas no Memorial de Lagarto, hoje extinto, remete a outro
momento de valorização da cultura folclórica da cidade. Em seu livro
sobre a história do município, Adalberto Fonseca reproduz fotografias
de vários grupos nos anos 60 e registra a ação da municipalidade na
gestão de Antônio Martins de Menezes, que “quis reviver as tradições
folclóricas de Lagarto fazendo desfilar pelas artérias todos os grupos
antes conhecidos” (FONSECA, 2002, p. 220). Essa é outra parte da
história, que está a merecer pesquisa, mas, ao que tudo indica,
desenvolveu-se com a participação dos mesmos personagens
entrevistados em 1974, cujos depoimentos permitem deslindar os fios
de uma trama complexa que envolve a participação de políticos,
intelectuais, animadores culturais, líderes de grupos e brincantes na
tentativa de acompanhar as trajetórias do folclore na terra de Silvio
Romero.

Conclusão
Homem de múltiplas facetas, Adalberto era um autodidata, com
antenas ligadas para as coisas que importavam ao mundo da cultura e
da sociedade do seu tempo e da cidade que adotou para viver. Além de
construir uma narrativa histórica sobre o passado de Lagarto, atuava no
presente empenhado em registrar, defender, restaurar ou recriar
tradições folclóricas que divulgava em outros meios. Participou da
criação de símbolos municipais – hino, bandeira, e escudo de armas,
instituídos em 1972 – elementos ativadores de sentimentos cívicos e de
identificação do lugar no contexto geopolítico de Sergipe.
Sua atuação no campo do folclore aqui apenas vislumbrada num
curto, porém intenso período de valorização das manifestações
folclóricas, no qual sua presença foi marcante, sugere a necessidade de
ampliar esse olhar investigativo para as décadas anteriores e posteriores
a 70, considerando que Adalberto Fonseca teve vida longa e, por
muitos anos, atuou na imprensa onde possivelmente se encontram
registros de sua produção e atuação em relação ao folclore.
Empenhada em contribuir com os pesquisadores locais e
considerando que o relatório dos alunos que atuaram em Lagarto em
1974 é uma fonte de informações sobre a época, em 2015, tomei a
iniciativa de doar à Academia Lagartense de Letras (ALL) uma cópia do
23 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
documento, que retrata um momento da vida local e da atuação de
personagens incentivadores das tradições lagartenses. Acrescente-se
que José Antônio da Costa (Maninho de Zilá) e Adalberto Fonseca são
patronos de cadeiras na ALL, e junto à homenagem, a certeza de que,
nos arquivos da entidade, o relatório estará ao alcance de todos que
tenham interesse em pesquisá-lo.

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REFERÊNCIAS

CARDOSO, Severiano. Lagarto – Sergipe: história e costumes.


Almanaque Sergipano. Aracaju: 1899.
DANTAS, Beatriz Góis. A Taieira de Sergipe. Petrópolis, RJ.:Editora
Vozes, 1972.
_____. Mensageiros do Lúdico. Aracaju: Criação, 2013.
FONSECA, Adalberto. Campo do Brito: cinquentenário. [S.I.: s.n.], 1946.
_____. Lagarto: 1679-1974 História - Nossa Senhora da Piedade de
Lagarto [S.I.: s.n.], 1974.
_____. História de Lagarto. Aracaju: Governo de Sergipe, [2002].
MICELI, Sérgio (Org). Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984.
NASCIMENTO, Bráulio do. Laranjeiras, 30 anos de Folclore. Aracaju:
Secretaria de Estado da Cultura, 2005.
OLIVA, Terezinha Alves de. (Coord.). Manifestações da Lúdica Folclórica
em Sergipe. Aracaju: SEC/PDPH, 1975.
RIBEIRO, Hugo Leonardo. A Taieira. Aracaju: Ed. UFS, 2011.
ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil (1879-1880).
Rio de Janeiro: Laemmert, 1888.
_____.O Folclore Brasileiro. Cantos populares do Brasil e Contos
populares do Brasil. 3 v. Edição anotada por Luís da Câmara Cascudo.
Rio de Janeiro: José Olímpio, 1954.
SANTOS, Rosana Souza. De José Antônio da Costa a Maninho de Zilá:
representações culturais e folclóricas no Lagarto dos anos 60 e 70.
Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História). Faculdade
José Augusto Vieira. Lagarto/SE, 2009.
SILVA, Ana Teles da. Na Trincheira do Folclore: intelectuais, cultura
popular e formação da brasilidade – 1961-1982.Tese de doutorado em
Antropologia. UFRJ, Rio de Janeiro, 2015.
VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico
brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte; Fundação Getúlio
Vargas, 1997.

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ARTIGOS
EDILBERTO CAMPOS, UM LAGARTENSE ILUSTRE

Ana Maria do Nascimento Fonseca Medina1

O templo de Esculápio,
reveste-se de múltiplos significados,
quando homenageia o deus da
Medicina. Trago a mensagem de
Mnemosyne e Clio, musas da
Memória e da História e a trago com
a responsabilidade de mensageira da
cultura do nosso povo.
Apresento-lhes a figura icônica
do Dr. Edilberto Campos, médico
sergipano saído deste “ninho de
águias”, que é Sergipe, como bem o
qualificou o intelectual Dr. Manoel
dos Passos de Oliveira Teles.
Edilberto Souza Campos, filho
de Anna Souza Campos e Guilherme Souza Campos, nascido em Lagarto
em 4 de setembro de 1883 e falecido em 2 de abril de 1971, no Rio de
Janeiro.
Em Lagarto fez as primeiras letras, continuando o ensino
elementar na Estância, com as famosas educadoras Pitanga de Queiroz
e Josephina Pacheco. Em 1891/92 concluiu essa primeira fase e, de 1893
a 1889, faz os preparatórios no Ateneu Sergipense onde esplendiam
mestres como Alfredo Montes, Teixeira de Farias e Severiano Cardoso. A
ideia inicial do jovem Edilberto era ingressar numa Faculdade de
Engenharia, mas interpelado pelo tio e padrinho Olímpio Campos, irmão
do seu pai, preparou-se para ingressar na Faculdade de Medicina da
Bahia, logrando êxito.

1
Escritora, membro da Academia Sergipana de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe.

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Embora haja começado o Curso de Medicina em Salvador,
preferiu concluí-lo no Rio de Janeiro, meio mais desenvolvido. No
quarto ano, frequentava os consultórios da Santa Casa de Misericórdia
do Rio de Janeiro, e diz, com uma certa humildade: “Ali adquiri noções
que me permitiram exercer, embora, timidamente, a clínica
especializada em uma pequena cidade mineira, cumulativamente, com
clínica geral médico-cirúrgica”. Em 1905, com a tese NOTAS SOBRE A
CORREÇÃO PERMANENTE NA MIOPIA, recebe o diploma de Medicina.
Embora, devidamente aculturado na Cidade Maravilhosa,
diplomado, tomou o conselho do primo Dr. José Vicente de Souza Neto
e foi clinicar em Cataguases/ MG. Entusiasta da carreira escolhida, fez
da Medicina um sacerdócio, tal qual o Dr. José Machado de Souza, glória
da Medicina sergipana.
Em 1905, antes da formatura, Edilberto passou a colaborar no
jornal O Estado de Sergipe, um dos mais expressivos da época, sob o
pseudônimo de Um Estudante Sergipano. Os temas eram sempre
relacionados à Medicina, como por exemplo – O USO DOS ÓCULOS; O
TRACOMA NO BRASIL, entre outros. Nessa época, suspende a sua
colaboração na imprensa, devido as ocupações funcionais, no interior de
Minas Gerais, (Ponte Nova e Cataguases). Em 1906, foi surpreendido
com a tragédia que vitimou duas das mais expressivas lideranças
políticas de Sergipe, Fausto de Aguiar Cardoso e Olímpio de Souza
Campos, seu tio. Largou todo o seu trabalho e veio atender o pai, então
presidente do estado, que o convidou para secretariá-lo.
Em 1907, volta a escrever na coluna desse jornal, dirigido pelo
médico Dr. Aristides Fontes, publicando temas, como PROFILAXIA DA
OFTALMIA DOS RECÉM-NASCIDOS, O TRATAMENTO DAS CATARATAS
INCIPIENTES SEM OPERAÇÃO, artigos dedicados ao Dr. Helvécio Ferreira
de Andrade. E em 1908, Edilberto publica, nas oficinas de O ESTADO DE
SERGIPE, um opúsculo de 159 páginas intitulado OS MEDICAMENTOS DA
OCULÍSTICA, que depois culminará em livro mais denso, intitulado
CONSULTAS OFTALMOLÓGICAS, lançado em 1927, no Rio de Janeiro.
Muitos dos textos dessa obra foram publicados na Revista Brasil
Médico.
A repercussão entre os pares foi de muita receptividade, o Dr.
Mário Sette aplaudiu-o, agradecendo ao Campos a grande contribuição
que o livro trouxera aos iniciantes na clínica médica. Nessa época traduz
para o mesmo jornal, acima citado, quarenta e oito contos infantis, do
alemão.
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Culto, desde cedo despertara o gosto pela leitura dos clássicos,
como Alexandre Dumas, Júlio Verne, Victor Hugo, Lamartine e
Alexandre Herculano, entre outros. Ele conta que, por volta de 1895, a
Biblioteca Pública de Sergipe ficava no andar térreo do palácio e ele se
tornara, a essa época, assíduo frequentador, buscando na leitura a
argamassa para construir a base da sua cultura.
Esse gosto pela escrita fê-lo fundar um pequeno jornal, com o
irmão Tancredo Souza Campos, coisa de adolescente. O jornalzinho teve
vida efêmera, mas ali já se prenunciava o seu pendor para a crônica, o
jornalismo. A crônica intitulada Docteur Vite, alcunha dada por uma das
freiras que trabalhava no Hospital Santa Isabel, epíteto justificado pela
ligeireza e inquietude do jovem médico, sempre correndo de um lado
para outro e disposto a servir pobres e ricos indistintamente, confirma o
que estou a declarar. Acordava-se muito cedo e ia trabalhar montado
num burrico que o Dr. Serafim Moreira, diretor do Santa Isabel,
emprestava-lhe, em recompensa pelo serviço prestado àquele hospital.
Edilberto tinha sonhos maiores que os apresentados em Sergipe
naquele limiar do século XX. A lide política não o fascinava e nem tinha
apoio do pai para envolver-se nas diatribes e disputas por cargos
eletivos, e bem que poderia ter ingressado por esse caminho, egresso
que era da oligarquia Souza Campos. A recomendação paterna foi
peremptória: “não te metas em política”, conforme citação na crônica
Pinheiro Machado e a política sergipana (página 449, do livro Crônicas
da Passagem do Século, Edilberto Campos. 2ª edição).
Em 1909, munido da fibra própria dos obstinados, herança da
avó, Dona Porfiria Campos, Sinhá do Engenho Periquito, rumou para a
Europa. Inicialmente aportou em Paris, ouvindo no Hotel Dieu aulas de
aperfeiçoamento em clínica cirúrgica com os cientistas Lapersonne,
Morax, Kalt, Trousseau. Esteve em Genebra, Lausanne, Zurich e Munich,
sempre visitando as clínicas de oftalmologia mais famosas do mundo.
Eram escalas para aportar na Áustria. Em Viena entrou em contato com
os renomados médicos Haltenhof, Dufour, Gonin, Haab, Eversbuch que
foram marcantes na sua formação. Passou 14 meses se especializando
em Viena, o centro mundial mais respeitado em oftalmologia daquele
limiar do século XX.
Uma das suas crônicas é dedicada ao Professor De Lapersonne,
ela, Edilberto narra a sua experiência de jovem médico em Paris.
Comenta o séquito dos alunos acompanhado Le Patron, uma cerimônia
que diz nunca ter visto em outro lugar. Numa das aulas, o jovem
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oftalmo sergipano fez uma curetagem da mastoide num cadáver que
apresentava uma supuração local, o mestre De Lapersonne bateu
palmas dizendo: “Attention! Voyez! le petit a fait eu vrai mastoi-
dectomie”. Às terças-feiras vinha um médico de Dijon, o Dr. Remy,
explicar o seu diploscópio para tratamento de estrabismo. O professor
Weiss apresentava aparelhos de ótica com desenhos.
Em outra crônica ocupa-se do Professor Hugo Weinterstein que
passou dois meses aprendendo com esse mestre Histologia ocular,
curso em que pagava 100 coroas. O professor Weinterstein só falava
alemão, Edilberto tratou de melhorar o seu conhecimento da língua
germânica e inscreveu-se num curso de oftalmoscopia para adiantados.
Ao cabo do curso eram amigos.
Um dos eventos marcantes foi um memorável Congresso
Internacional em Budapeste, onde ele teve a oportunidade de ouvir
oftalmologistas mais notáveis daquela época, como Angelucci, Axfendel,
Meller, Lagrange, Morax, Kuhnt, Sulzer, Satller, Weeks, Greef, Grosz.
Ainda ouviu cientistas como Bacelli, Laveran, Doyen, Hollanderr,
Landouzi, especialistas em Cirurgia Geral.
O grande momento da sua estada em Viena foi a visita à Clínica
Fuchs, em 5 de julho de 1909, o que está descrito no livro Consultas
Oftalmológicas. No começo teve uma certa dificuldade de entender a
pronúncia vienense, mas depois acostumou o ouvido, dedicando todo o
tempo na aprendizagem da língua e da Medicina. O seu jeito obstinado,
o esforço e atenção às aulas, resultou no convite do famoso Dr. Fuchs,
para ser seu assistente. Fluente em alemão, foi designado em 1926 para
saudar o Dr. Fuchs, quando este veio ao Rio de Janeiro, convidado pela
Sociedade de Medicina e Cirurgia.
Em 1914, Edilberto é eleito secretário da Sociedade de Medicina
e Cirurgia do Rio de Janeiro, foi médico oftalmo do Ambulatório
Rivadávia; professor de Patologia e Higiene na Escola de Enfermeiros
Alfredo Pinto (Engenho de Dentro); membro titular da Academia
Nacional de Medicina.
Em 27 de dezembro de 1927, casa-se com a estanciana Isabel
Nóbrega de Mendonça, uma união que perdurou por toda vida e que
deixou, como legado uma bela e sadia descendência. Eram seus filhos,
Guilherme, Evaldo e Agnaldo.
O gênero carta, hábito tão peculiar a sua geração, foi o suporte
primeiro usado como memorialista. Bom causeur, foi atando laços, elos
perdidos pela falta do convívio presencial, estreitando caminhos,
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revisitando lugares de memória e animando-se a dar continuidade ao
esforço lúdico de lembrar. Como disse Ecleia Bosi, “a memória é a
faculdade épica por excelência”.
O mapa da geografia sentimental edilbertiana é traçado com
precisão, acuidade e pertencimento, ora é o menino de Lagarto que
brinca às cercanias da Chácara dos Romeros; ora é o noivo apaixonado,
colocando a aliança em sua doce Izabel; em outras circunstâncias é o
médico que atende, o mestre que ensina, é o inventor; o cronista de
viagem, o chefe de família amoroso, que faz da sua Egeia, a Embaixada
de Sergipe, no Rio de Janeiro, acolhendo a parentela e os amigos. Às
veste a pele de historiador e vai revelando fatos políticos muito
importantes para elucidar acontecimentos de Sergipe das primeiras
décadas do século pregresso. A Estância, sua terra de eleição, surge
majestosa em suas crônicas. Pessoas comuns, sacerdotes ou grandes
vultos do Brasil e do mundo desfilam em seus relatos. Percebe-se que
era um leitor assíduo de Armindo Guaraná e de Epifânio Dória, bem
como de Arivaldo Fontes, confrontando dados a partir das leituras e
usando-os para complementar suas informações.
Outro aspecto notável na escrita edilbertiana é a capacidade de
tecer alusões culturais, sem perder o fio da meada e, embora use um
tom coloquial, o cronista mostra-se ao mesmo tempo um erudito e
cultor de uma ironia leve, de traço anatoliano. As suas crônicas devem,
sem dúvida, figurar ao lado de cronistas como os sergipanos Genolino
Amado, Joel Silveira, Epifânio Dória, Lauro Fontes, Mário Cabral, que
também usou a escrita epistolar para gravar suas memórias, como fez
em O Espelho do Tempo.

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TRANSITANDO ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA – SÍLVIO ROMERO
NO CRIVO DA CRITICA
1
José Uesele Oliveira Nascimento

O que se deve exigir do escritor, antes de tudo é certo


sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo
e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço (ASSIS, 1997: 21).

Silvio Romero incorporou a seus escritos a linha tênue que separa


literatura e história. Ao analisar sua vasta obra, percebe-se claramente o
trato apurado com a palavra, eivada de um tom preciosista em alguns
momnetos. Vislumbrando mais de perto esse aspecto, o leitor atento e
perspicaz notará as imprecisões teórico–analíticas ao longo do discurso
romeriano, no tocante ao domínio de abordagens mais complexas em
seu conjunto, talvez essas “injunções” possam ser melhor
compreendidas no bojo da própria afirmação do campo da ciência
histórica, que buscava se legitimar no século XIX.
Antes de tudo é fundamental inserir os debates romerianos na
“evolução” dos tempos para entendermos como a literatura pátria ao
longo do século XIX buscou se afirmar com tonalidades nacionais. Ainda
vivenciando a euforia da “independência”, os autores da Escola
Romântica tentam retratar o Brasil tomando de empréstimo os moldes
europeus, até mesmo a figura do índio foi idealizada pelos romancistas
que iam se instruir na Europa bebendo de suas seiva criativa, e
representam nos textos “um ideal de nação imaginada” descolado dos
problemas sociais e dos grandes temas nacionais.
Nesse contexto inserem-se os traços da literatura histórica
nacional. Sendo verdade que as primeiras experiências de reunir as
produções literárias brasileiras se deram por influências lusitanas
quando da publicação do Parnaso Brasileiro (1829) por Januário da
Cunha Barbosa, tendo sua segunda versão em 1840 por iniciativa de
Pereira da Silva. Essas produções vão impulsionar Varhagem na feitura
do seu Florilégio da Poesia Brasileira.

1
Professor, historiador e ator, membro da Academia Lagartense de Letras.

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As primeiras coletâneas literárias2 serviriam de base para Silvio
Romero em 1888 sistematizar as coleções avulsas, até então existentes,
coligindo histórias literárias, resultando na célebre obra História da
Literatura Brasileira, obra de valiosa riqueza documental, o que tornou
o sergipano no principal historiógrafo da literatura no Brasil
oitocentista. Tanto que a sua importância enquanto agente social no
cenário da produção historiográfica da época é assim definida por
Alfredo Bosi (critico contemporâneo): “É a partir de Silvio que se deve
datar a paixão inteligente pelo homem brasileiro,... (...)
“(BOSI,2006:250). Porém essa obra monumental não escapou da
“guilhotina” crítica ao longo do tempo, no tocante a sua estrutura
analítica:

Na história da literatura brasileira, mais do que em


qualquer outro livro de Silvio Romero, sente-se esta
lacuna. É evidente a falta de divisões. As questões se
metem umas pelas outras. Somente o critico de
profissão sabe o que existe de importante e
verdadeiro sob o ponto de vista filosófico no meio
desse tumulto de impressões pessoais, de simpatias e
antipatias, a que o autor não consegue impor silêncio
e a que muitas vezes dá um colorido sertanejo
original, um tom pitorescamente rude, cujo segredo
lhe pertence. (BOSI, 1978:358).

O empenho desses primeiros autores foi descomunal devido à


constante dificuldade de acesso as fontes primárias (como ainda hoje o
é), fora a precariedade de conservação desses manuscritos espalhados
nos diversos arquivos (para não dizer amontoado de papeis
desordenados e esfacelados pelo descuido do armazenamento). Antes o
esforço era justificado pelo amor à pátria e pelo rigor de legitimar entre

2
Antes mesmo do Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa, outros tratados
histórico literários retrataram os “valores nacionais”, esses precursores de nossa
história literária são: Wolf, Magalhães, Nunes Ribeiro, Spix, Martius, o conde de
Gobineau. Tendo destaque, entre eles, Ferdinand Denis com dois livros escritos depois
de sua viagem ao Brasil entre 1816 e 1820, foram eles Cenas da natureza sob os
trópicos (1824) e Resumo da história literária do Brasil (1826), tem em auto-relevo a
presença da natureza como espaço de reflexão contra os males da civilização.

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nós os valores da ciência. Esperou-se que com o advento da Imprensa
Régia no Brasil, no período Joanino, o ritmo começasse a ser outro, até
hoje esperamos esta preocupação sistemática com nossos arquivos
públicos.
Somente pelos idos de 1836, evidencia-se entre nossos autores
um desejo de afirmação da literatura nacional na confluência entre a
Identidade e o nacionalismo. Essa tendência de “construção do Brasil” é
apontada desde Gonçalves Dias, e seu nítido embate poético entre o cá
e o lá.
Autores como Alencar, Machado e Romero (no campo literário),
Capistrano de Abreu, Manoel Bonfim e Euclides da Cunha (numa análise
voltada para o cunho sócio-histórico) defenderam suas posições
ideológicas, e em boa medida contribuíram para a formação do caráter
nacional através dos de suas obras, repletas de impressões
legitimadoras, criaram vários retratos da nacionalidade cada um a sua
maneira.
O crítico literário Antônio Cândido em referência à importância da
obra de Romero assim se posicionou:

(...) a muitos respeitos fundadora e a muitos outros


divisora de água inspira a partir do fim do século
passado outras tantas históricas literárias que, aliás,
multiplicam-se na esteira de um desenvolvimento
maior das instituições culturais”. (apud FREITAS,
2005:39).

Romero inegavelmente inaugurou a crítica histórica literária


brasileira, apesar de produzir em vários campos, é perceptível no
conjunto da abordagem romeriana um veio culturalista. Por ser um
exímio pesquisador carregado de preferências e escolhas trilhou o
caminho das tradições populares, mas sem se desvencilhar das ideias
cientificistas. Criou um ideal de nação baseado em seus próprios
esforços de intelectual incansável sempre pronto a mais uma tarefa
para elevar seu país a norma civilizatória, integrando-o aos ditames da
lógica eurocentrista:

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(...) nessa fase, é a literatura o centro de gravidade de
seu interesse. Sua investigação nesse campo foi, para
as condições da época, única e permanente. Ela
acabou se constituindo uma das principais fontes
para o estudo de autores e de textos que
provavelmente estariam esquecidos hoje se Silvio
Romero não tivesse empreendido esse esforço de
pesquisa, catalogação e crítica. (MOTA, 2000:42)

Esse sergipano foi porta-voz dos nossos costumes por ter espaço
privilegiado nos debates culturais do seu tempo. Com seu pedantismo
literário ácido: criou heróis, maculou opositores, fez emergir do silêncio
dos textos adormecidos nos arquivos nacionais uma versão original do
Brasil, fez demolir as velhas ideias românticas travando debates
incisivos no cenário intelectual, ao defender seus postulados de
representação do nacional, enfim cristalizou uma imagem de Brasil pelo
prisma da etnicidade, como reflexo do pensamento cientificista de fins
do século XIX.
Fundou uma crítica sólida em relação aos aspectos literários da
nossa evolução histórica, deixou impressões pessoais vivazes sobre
nossas “escolas” e estereotipou alguns autores nacionais (tidos como
desafetos) e a nossa gente, privilegiando em suas fortes análise,
aspectos subjetivos dos personagens históricos em detrimento dos
valores artístico-intelectuais dos mesmos, criando a imagem de um
Brasil pitoresco, como fruto de sua genialidade.
A partir daqui traçaremos um itinerário analítico de algumas de
suas obras, verdadeiros documentos-monumentos da gênese do
pensamento nacional, que avivaram os debates no calor da
transitoriedade contextual, operadas pelas mãos do erudito provinciano
que inquietou a intelectualidade cortesã do seu tempo. Tendo sido a
obra-mor História da Literatura Brasileira uma “divisora de águas” na
evolução do pensamento romeriano.
Entre os vários textos esparsos da volumosa produção romeriana,
de teor histórico-literário, podemos mencionar: O naturalismo em
Literatura, publicado em 1882, nesse trabalho Romero diferencia na
dimensão de conceitos: naturalismo – realismo – romantismo,
apresenta um claro caráter de “demolição” desse último, ao passo que
constrói um “conceito de substituição” de Realismo – naturalismo
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pautado no princípio da “razão – realidade” dando consistência ao seu
discurso de retratar o real através de textos. Deu extrema relevância a
figura do escritor, que como agente social, fruto de um contexto que
emerge da própria sociedade que o gerou, legitima-se em um discurso,
tornando o texto literário com arranjos artísticos de importância
secundária. Dessa maneira a crítica romeriana3 valorizou antes a
formação do ser social à sua produção enquanto testemunho histórico.
Sobressairá na análise literária do autor somente os fatores externos ao
texto como o homem, a realidade e a natureza (numa nítida
interpretação sócio-histórica do entendimento de realidade).
O polemista lagartense trabalhou em várias vertentes culturais em
prol de melhorias e ganhos sociais para o país, prova disso são os
escritos no campo educacional, quando em 1883 coloca tal pensamento
no texto Notas sobre o ensino público, apresentado no Congresso de
Instrução Pública realizado na capital do Império. No referido texto
valoriza a Kultur Alemã inserida no contexto educacional brasileiro,
questionando assim o valor da educação para criar um sentido de
nacionalidade, defendendo a prioridade da disciplina filosofia no
currículo escolar, a ampliação do atendimento educacional para a massa
analfabeta, cobra dos poderes públicos constituídos um ensino gratuito
de qualidade, além de antever a necessidade da formação especifica de
professores para o exercício legal do ofício que lhes cabe. Propunha
nesses termos o afastamento do modelo norte-americano. Além de
cobrar ao longo do texto-denúncia a ocupação da cadeira de docente no
ensino publico, apenas para concursados, para evitar os vícios, ancorado
na “educação do medo”, baseado nos castigos disciplinares.
No ensaio de cunho mais socialista Doutrina contra doutrina
(1894), refletiu sobre a realidade econômica brasileira inaplicável ao
princípio de solidariedade participativa e colocava também que não
rejeitava no campo político, um triunfo futuro do quarto Estado no país.
Nessa obra tenta captar a realidade política-cultural quando afirma:

3
Segue o conceito de crítica para Silvio Romero: “(...) A parte da lógica aplicada, que
estudada as condições que originam e as leis que regem o desenvolvimento de todas as
criações do espírito humano, científicas, artísticas, religiosas, políticas, jurídicas e
morais, aprecia as obras dos escritores que de tais fatos se ocuparam”.
(ROMERO,1980:1815).
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O Brasil é um país fatalmente democrático. Filho da
cultura moderna, nascido na época das grandes
navegações e das grandes descobertas, o que
importa dizer, depois da constituição forte da plebe e
da burguesia, ele é, além do mais, o resultado do
cruzamento de raças diversas, onde evidentemente
predomina o sangue tropical. Ora, os dois maiores
fatores de igualdade entre os homens são a
democracia e o mestiçamento. E estas condições não
nos faltam em grau algum, têmo-las de sobra
(DOUTRINA contra doutrina, 1894).

O século XIX se tornou um verdadeiro campo de combate no


tocante a polêmica, muitas das vezes saindo da crítica literária para o
insulto pessoal. Os combatentes se entrincheiravam e os intelectuais
começavam a soltar farpas ao defenderem suas convicções pessoais
sobre determinados assuntos, o que chegava a sair do debate teórico
somente com palavras e baseado em argumentos indo à agressão
verbal, o que ocasionou inclusive em tragédias, pois essas disputas
estavam no calor do dia, expostas em bancas de jornal4 e, portanto às
vistas dos leitores curiosos e apaixonados que acompanhavam essas
birras intelectuais como se estivessem lendo “folhetins” de costumes.
Os choques de egos iam parar nos tribunais, tornando-se casos judiciais
sérios e conhecidos. Esses embates e polêmicas envolvendo os autores
nacionais podia ser uma espécie de reflexo do “evolucionismo
determinista”, vivido àquela época, que de certo modo hierarquizava,
sobrepujava, legitimava, umas ideias sobre outras.
Em meio aos embates truculentos entre os pensadores nacionais
insere-se a famosa polêmica entre Silvio Romero e Machado de Assis,
tendo sido a gênese dos ataques romerianos ao que viria a ser
considerado o maior escritor brasileiro, a publicação do ensaio A nova
geração (1879), na Revista Brasileira pelo jovem escritor Machado de
Assis, no qual critica o didatismo poético de caráter cientifico defendido

4
“A vinda do século trouxe novas tecnologias e maior sofisticação ao mercado literário
e cultural, marcado pela ascensão de um “novo jornalismo”. As modernas técnicas de
impressão e edição baratearam o jornal, cujo consumo se tornara obrigatório entre as
camadas urbanas. Para isso, contribuíram o acabamento mais apurado e o tratamento
literário das matérias. (...)” (VENTURA,1991: 139).
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por Romero em suas concepções de “moderna poesia”, além de
questionar a falta de estilo nas abordagens critico-literárias e de
priorizar excessivamente o núcleo intelectual do Recife, na figura do
sergipano Tobias Barreto. Por essa razão Romero lança artigos de
revide, não só à obra, mas à vida pessoal do seu oponente carioca. Não
levando em conta a renovação causada pelo autor, como escritor
revolucionário que ousara quebrar os paradigmas na escrita,
penetrando assim na essência da alma nacional com suas obras
monumentais e de alto valor documental para se pensar uma época de
transição na vida do país.
Romero acusava o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas de
ter um pensamento atrasado, em desacordo com a “evolução
intelectual” nacional; concebia também que a produção literária reflete
as condições do meio ao qual o homem-escritor está imerso, nesse
sentido não poderia se encontrar genialidade num aleijado por suas
origens étnico-culturais e condições sócio- materiais5. Portanto o valor
de suas obras, segundo o sergipano segue a premissa de que os
brasileiros possuem um espírito cômico, contrários ao pessimismo, são
faladores e inquietos sempre em busca de divertimentos, por sua vez
cria um retrato caricatural de nossa gente a partir de sua compreensão
do “caráter mestiço” machadiano; assim se posicionando sobre a
importância lítero-cultural de seus escritos:

Os melhores trechos de seus livros são aqueles em


que revela as qualidades de observador de costumes
e de psicologista, aqueles em que dá entrada a cenas
de nosso viver pátrio, de nossos usos e sestros sociais.
(ROMERO, 1980: 1516).

5
Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor brasileiro de origem humildade filho
de um pintor de paredes com uma lavadeira, não teve oportunidade de concluir os
estudos. Além de carregar os estigmas sociais da época, como ser pobre, gago, mulato,
epilético, era também reservado. Isso não o impedia de ter uma mente iluminada, fez
traduções do inglês para o português, do poema The Raven – O corvo -, (do escritor
Edgar Allan Poe) e do francês. Estudou alemão e foi um dos introdutores do jogo de
xadrez no Brasil, sendo fundador da ABL.

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Machado de Assis, em contrapartida, ficou inerte às acusações
permaneceu de “braços cruzados” por nada dever ao crítico lagartense.
Romero, porém lhe desferiu fulminante golpe em artigo lançado à
público no ano de 1897, sob o título Machado de Assis, estudo
comparativo de literatura brasileira, no qual pretendia revelar “o
homem através do livro e a sociedade através do homem” respeitando o
momento histórico. É flagrante, nesse tratado, o esforço do arauto
sergipano em legitimar a superioridade das posições do “núcleo
recifense” em relação à “Escola Fluminense” (termo cunhado pelo
autor). No texto compara o estimado Tobias Barreto de Menezes ao
depreciativo Machado de Assis, numa clara análise subjetiva desdenha a
poética machadiana enquadrando-a como de baixo valor estético-
literário, na realidade buscou de forma virulenta detonar o intérprete
carioca também na prosa, na qual Machado foi exímio esteta. Mas, não
conseguiu negar o “tom nacionalista” na vasta obra machadiana, que
sabia explorar em seus enredos os tipos nacionais legítimos,
reconhecidos por Romero. No bem da verdade sua crítica sempre esteve
vinculada à construção do “tipo ideal” no descaminho de paradigmas
ortodoxos:

(...) A relação entre crítica e história desponta,


portanto, como questão fundamental. Sílvio Romero
procurou aproximá-las, ao atribuir à crítica a missão
de contribuir para construção da nacionalidade, no
que dava continuidade à tradição romântica, apesar
de se opor à sua estética. (VENTURA, 1991: 11).

No auge da sua maturidade intelectual, o crítico e polemista


sergipano continuou produzindo incansavelmente, depois de ter escrito
sobre temas relevantes para a compreensão nacional como: folclore,
filosofia, direito, história, educação, política, etc. Teve fôlego intelectual
para tratar da crítica em si como matéria de análise, no artigo Da crítica
e sua exata definição (1909), no qual afirma que a crítica se aplica a
todas as criações humanas, já que todas elas devem ter um caráter
científico a serem considerado. À medida que se faz análises científicas,
artísticas, religiosas, políticas, jurídicas, industriais, morais, verifica-se o
42 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
uso da crítica. Romero ao mesmo tempo em que aprofunda o tema,
distancia o leitor da análise que faz de suas obras, somente resvalando
nas discussões propostas obscurecidas por sua reconhecida erudição ao
incutir no texto assuntos outros.
A preocupação de Sílvio foi documentar o país, contribuir para
história pátria, criar e redefinir conceitos que identificasse o Brasil como
nação possuidora de cultura própria, se inseriu nos debates do seu
tempo em defesa da abolição e lutou pela implantação da República,
redefinindo assim uma visão do país pela perspectiva do nacional,
invertendo a imagem idílica dos tempos românticos. Buscou afirmar o
Estado Nacional, antevendo conceitos federalistas (aplicáveis
futuramente no projeto de implantação republicana), numa perspectiva
contraditória de unidade nacional, sem divisões, unido pelas ideias
orientadas por um Estado de onde emanassem as leis, dando maior
autonomia às províncias.
Os esforços empreendidos por Romero em fincar os moldes
nacionais serviu para apresentar uma visão deste vasto país, pois o
próprio afirmava que somos um povo que se desconhece. Ele se
preocupou em documentar, a história de nossa gente para não cair no
esquecimento coletivo, assim se colocou: “A história brasileira está em
geral quase toda por escrever e sem ela nos perderemos sempre em
divagações, não teremos um espírito próprio, nem a consciência de nós
mesmos.” (ROMERO; 1980: 985).
O mestre sergipano foi um intelectual atuante, dialogou com o seu
tempo, sendo membro atuante nas instituições de construção da
história nacional, participou ativamente do IHGB6, da ABL (1897) e
lecionou no Colégio Pedro II, repensou o país através do seu
nacionalismo crítico com tons de cientificismo naturalista, inaugurou
uma “poesia mestiça” reflexo do seu ideal de nação. Calcando-se nos
princípios de unidade racial e cultural, fundou com suas pesquisas de
caráter documental uma verdadeira crítica integral das manifestações
espirituais da nação:

6
Instituto criado, em 1838, para fortalecer a noção de Estado Nacional, no intuito de
remontar a origem da nacionalidade brasileira; com ele funda-se uma cultura
historiográfica brasileira voltada para a compreensão da elite letrada, focando um só
olhar sobre nossas raízes históricas.
43 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
(...) estudando o meio, as raças, o folclore, as
tradições, tentando elucidar os assuntos nacionais à
luz da filosofia superior do evolucionismo
spenceriano, procurando uma explicação científica da
nossa história e vindo encontrar no mestiçamento
(físico ou moral) a feição original da nossa
característica com Sílvio Romero (1870 em diante),...
(...). (ROMERO, 1980: 1814).

Sílvio Romero era um intelectual inquieto refletiu sobre o modus


operandi da sociedade brasileira. Com pesquisas de caráter
memorialístico colheu várias estórias na boca do povo e por intermédio
de correspondentes, trouxe à tona documentos orais fundantes,
adormecidos no tempo, sendo um dos primeiros a produzir a
“verdadeira história” nacional. Podemos considerá-lo um arauto dos
costumes que traduziu as mentalidades, fatos e comportamentos de
uma época. Em sua obra “O moderno não elimina o tradicional,
havendo antes a coexistência e interpenetração entre ambas.”
(VENTURA,1991: 143). Abarcou as duas vertentes sem prejuízos,
contribuindo decisivamente para a tessitura da história cultural do país
em fins do século XIX.
Ainda sobre esse aspecto, ele não se limitou a descrever
documentos esparsos, realizou análises subjetivas bem detalhadas. E
como todo texto carregado de discurso ideológico criou uma
“representação” própria e holística da nação brasileira. Sendo-lhe
creditado um papel fundante na escrita da história da literatura
brasileira:

Como historiador, Sílvio não ficou no silêncio do


Gabinete de trabalho. Foi buscar nos municípios
interioranos, nos arrabaldes, as origens e costumes
do brasileiro. Abriu diálogos com o povo. Deu-se, em
uma década inteira, ao estudo dos cantares
populares. Não fez reticências na proclamação dos
direitos do negro. (SOUZA, 1976: 20).

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Não podemos separar os homens do seu tempo histórico, pois
esse reflete diretamente nas produções dos mesmos. Entre 1870 e 1910
predominou nas interpretações dos autores nacionais – a ideologia do
branqueamento -, condicionada, segundo seus defensores, pelos fatores
étnicos, biológicos, climáticos advindos da Europa e aplicados às
condições nacionais, alicerçada pela ideologia nacionalista dominante
“em que a nação é concebida como o resultado da progressiva
transformação das matrizes européias pela ação do meio ou da mistura
de raças.” (VENTURA, 1991:37), hoje reinterpretado como o mito da
democracia racial. A esse respeito, insiste-se em afirmar que Sílvio
Romero foi um homem imerso nas teorias cientificistas do seu tempo, e
por suas fortes convicções ideológicas e teimosia habitual, morreu7
crendo no pressuposto da mestiçagem como fator biológico-cultural.
Partindo de um espaço público de onde emergiam os debates
intelectuais, Romero politiza a cultura, se servindo de critérios literários
para criar representações, mesmo que estereotipadas, mesmo assim
conseguiu criar um discurso legítimo, inquieto8 e combativo. Conseguiu
atribuir valor científico às suas análises literárias, isso por que:

(...) As obras literárias são tomadas como


‘documentos’ que revelam a psicologia de um século
ou raça, ao representar a sociedade e a natureza que
as produziram. Os ‘monumentos’, as obras como
realizações artísticas ou estéticas, só teriam valor em
função de sua representatividade. (...) (VENTURA,
1991: 88).

As interpretações do Brasil ao longo do século XIX irá perseguir um


ideal de nação, mas é na literatura que a unidade cultural será
encontrada pelo viés da herança histórica através de uma “bricolagem

7
Já bastante debilitado e menos atuante por conta da doença, Romero morreu no Rio
de Janeiro, na casa de um dos filhos, em 18 de julho de 1914, aos 63 anos de idade.
8
Segue o conceito elaborado por Araripe Júnior: “o estilo é o resultante, em parte
imprevista, do conflito entre o temperamento de cada indivíduo e o mecanismo das
formas literárias já criadas por um povo, por um grupo ou por uma escola” (VENTURA,
1991: 37).
45 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
étnica” (cruzamento de culturas originarias de várias matrizes sociais)
que se processou num meio tropical (sujeito a degeneração racial),
propiciada pela continuidade ininterrupta da evolução / transformação
dos elementos sociais criadores de uma cultura legítima. Daí advém o
pensamento de cunho intelectual burguês de autoafirmação do país
depois de séculos de dependência, precisávamos nos revestir de forças
culturais próprias para que não fôssemos tangenciados pelo motor
civilizatório, e envolvido nesse jogo de contrários. Para alguns críticos a
visão de Romero era particularista, por entender que:

A história literária, como esboço ou síntese do


desenvolvimento histórico de um povo, surgiu no
século XIX, relacionada ao fortalecimento das línguas
e dos Estados Nacionais. (...). (VENTURA; 1991: 164).

O século XIX foi o momento da ciência, onde o conhecimento se


afirmou no sentido de compreender a sociedade, o ambiente e os
mecanismos de longevidade, em outras palavras, os “homens de
ciência” estavam buscando dar respostas, ou talvez, tornar o mundo
palpável seguindo na lógica dos conhecimentos produzidos e
consumidos no calor da hora. Contexto no qual o próprio imperador era
encarado como um monarca ilustrado, tornando-se um verdadeiro
“mecenas das artes e das ciências”, soando assim, para o resto do
mundo como teor propagandístico de civilidade e progresso,
impulsionando a imigração, no intuito de trazer sangue branco para
purificar a nação, de acordo com as concepções deterministas da época.
Encontrando oposição de alguns intelectuais que via no “cruzamento
das raças” a redenção cultural do país. Em suma, assim podemos definir
o quadro-sintético dessa época, no qual nossos próceres intelectuais
estão inseridos:

Civilização e progresso foram os lemas dos críticos da


‘geração de 1870’. Debateram, na crítica literária e
nas polêmicas raciais do final do século XIX, a
originalidade e a autonomia das letras e da Civilização
nos trópicos. Pregaram as reformas mentais julgadas
necessárias para lançar o país na trilha do progresso.
Incorporaram à crítica e à polêmica, traços orais,
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como o dialogismo dos desafios da poesia popular e a
oratória inflamada própria aos processos e tribunais.
Procuraram converter a palavra em ação,
transformar o mundo pela força redentora do
discurso. (VENTURA, 1991: 166-167).

Sílvio Romero empreendeu um esforço enorme para construir sua


“representação de nação” aliando uma série de contrastes: sua erudição
cientificista ao gosto pelas tradições populares, sendo um dos poucos a
trabalhar o folclore, a se preocupar com as dimensões regionais e com
as culturas dos lugares longínquos, percebeu hiatos no pensamento
elitista predominante, do qual paradoxalmente fazia parte, soube em
boa medida alinhavar as pontas atávicas entre a “tradição” e a
“modernidade”.
Romero foi pela contramão do momento histórico, porque mesmo
residindo na corte se contrapôs ao pensamento então vigente, ao
colocar o pensamento do provinciano Tobias Barreto em proeminência
aos pares que compunham a intelectualidade nacional. Defendeu em
meio aos embates os pressupostos germânicos em detrimento ao
francesismo (tido por ele como modismo) dos cariocas. Se observarmos
bem ele encontrava-se numa linha tênue, pois tinha que aplicar ideias
estranhas (advindas da Europa) a uma realidade social (a brasileira) que
não eram equiparáveis, por esta última apresentar condições
desfavoráveis em questões educacionais e culturais. Mais uma vez
forjou-se uma representação idílica da nação, na tentativa de esconder
nossos males de origem, promovendo assim um Estado que sabia
agradar a todos os apaniguados, porém abalado em sua estrutura
moral, continuaria alheio aos investimentos de salvaguarda da memória
cultural e científica.

47 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
REFERÊNCIAS

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50 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
POR QUE LAGARTO JAMAIS CHEGOU A OUVIR O APITO DO TREM?

1
José Eduardo Bastos

De como um acontecimento medonho pode ter


impedido que a linha férrea fosse instalada em terras
de Lagarto e Simão Dias, impossibilitando assim que
o desenvolvimento desses dois município fosse
fomentado ainda no início da década de 1950

CONTEXTUALIZAÇÃO

A FERROVIA NO MUNDO

A ferrovia foi uma das invenções mais extraordinárias da


humanidade. A aplicação da força expansiva do vapor à máquina móvel
que circula sobre caminhos artificiais, constituído por duas trilhas de
ferro, é o ponto de partida para o novo período da história em que o
homem põe a serviço tais elementos, como forças cooperadoras em
suas atividades.
A ferrovia foi uma criação que proporcionou o avanço
econômico e social de vários países norte-americanos. Alvo de muitas
discussões, ela surge na Inglaterra no início do século XIX, como uma
inovação da Revolução Industrial, aguçando a imaginação e a criação do
homem. Sua construção encontrou discursos de progressos
incorporados pelas classes dominantes de vários países, e, antes mesmo
de ser comprovada a sua eficácia na Inglaterra, outros países já faziam
projetos visando sua implantação.
Muitas regiões desprovidas de meios de transportes fluviais
foram beneficiadas com a instalação das ferrovias, integrando-se a
outras localidades, garantindo assim comunicabilidade maior entre
pessoas e comerciantes. Consequentemente, os lucros nos negócios
aumentaram.
1
Escritor, Licenciado em História da Faculdade José Augusto Vieira.

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E em seu livro, A Era das Revoluções, Eric J. Hobsbawm diz que “a
estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de
fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com
suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de
construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e
até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de
provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela
tecnologia”.
As potências mundiais perceberam que a chegada da estrada de
ferro era uma possibilidade de crescimento e expansionismo do seu
capital, e que a mesma iria permitir a transposição e o escoamento dos
produtos em maior quantidade e segurança.
A estrada de ferro ficaria sendo o maravilhoso fator da circulação
de riquezas e de convívio nacionais, e logo se tornaria a vara mágica da
transformação da mata solitária e dos vales esquecidos em vastos
campos agrícolas e em portentosas cidades. (CARVALHO, 1931, p.26).

A FERROVIA NO BRASIL
O primeiro incentivo à construção de ferrovias no Brasil se deu
em 1828, quando o governo imperial promulgou a primeira carta de lei
incentivando as estradas em geral. A primeira tentativa de fato de
implantação de uma estrada de ferro no Brasil deu-se com a criação de
uma empresa anglo-brasileira no Rio de Janeiro em 1832, que ligaria a
cidade de Porto Feliz ao porto de Santos. Essa ferrovia tinha por
finalidade transportar cargas do interior para o porto e diminuir os
custos de exportação. O governo imperial, no entanto, não apoiou o
projeto e ele não foi levado à diante.
A inauguração do primeiro trecho Companhia Estrada de Ferro
D. Pedro II ocorreu em 29 de março de 1858, com a ligação de 47,21km
da Estação da Corte a Queimados, no Rio de Janeiro. Mais tarde com a
proclamação da república, a ferrovia foi renomeada para Estrada de
Ferro Central do Brasil, que se tornou um dos principais eixos de
desenvolvimento do país ao fazer a conexão de Rio e São Paulo em
1877, quando a Estrada de Ferro Dom Pedro II se conectou a Estrada de
Ferro São Paulo.
Os primeiros engenheiros ferroviários a trabalhar no Brasil
vieram da Europa, trazendo consigo o pacote tecnológico, bem como
locomotivas, vagões, máquinas, ferramentas e técnicas. Eles foram

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enviados pelos investidores estrangeiros para implantar a ferrovia em
nosso País, e tinham, como tarefa principal, efetuar a locação do
traçado da linha.

A CHEGADA DA FERROVIA EM SERGIPE


Sergipe foi o último estado a ser contemplado com a
implantação da estrada de ferro. Sua chegada contribuiu para a
velocidade de locomoção e de comunicação, modificando o cotidiano da
população, seus hábitos e costumes. Assim, com o avanço tecnológico e
econômico, decorrente dessa nova era, a ferrovia surge como fruto
dessas transformações, visando sanar as dificuldades em se transportar
mercadorias e passageiros, interligando algumas cidades do nosso
estado.
Também em Sergipe, as dificuldades de comunicação marítima
eram um entrave para o escoamento da produção, e um empecilho para
que as mercadorias chegassem à capital em boas condições, ficando o
interior a enfrentar os mais sérios problemas de comunicabilidade - caso
os rios não o alcançasse ou a ação do homem não o integrasse ao mar.
Assim, quando a produção para a exportação definiu a vida econômica
da Província, o planejamento e a construção de estradas, pontes e
canais ganharam realce de algo inadiável.
A precariedade dos meios de transportes era vista assim pelo
presidente da província de Sergipe em 1860: "Quanto as vias de
comunicação, temos só aquelas que nos deu a natureza. E a arte ainda
não veio com seus poderes aperfeiçoar a natureza. Estradas terrestres
ainda não existem, os rios são navegáveis até os pontos em que a
natureza os apresenta como tais”.
As péssimas condições das estradas que ligava o interior ao
litoral – que possuíam em quase todas suas extensões 18 palmos de
largura - também contribuíam para que as mercadorias não chegassem
no horário de embarcar. Este fato trazia ainda enormes prejuízos ao
comércio geral, além de fazer com que os navios retardassem em até
um mês ou mais sua saída, causando danos aos produtos e,
consequentemente, provocando aumento dos fretes.
Um morador de Aracaju, à época em que Sergipe ainda não
contava com nenhum trecho de estrada de ferro, assim se expressou:
“... faz lástima ver o que sofrem os nossos munícipes lavradores para
trazerem aos trapiches e ao mercado desta cidade os seus produtos no

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tempo invernoso. Eles pagam pesadas contribuições à Fazenda Pública.
Pelo açúcar pagam 5 por cento a Provincial e 7 por cento a Geral.
Entretanto, seus carros e seus animais não estão imunes às grandes
dificuldades que ordinariamente encontram nas estradas, quando
deviam se julgar salvos delas, por se encontrarem tão próximos da
cidade”.
Inicialmente chamado de ramal de Timbó, a linha que ligaria a
estação de São Francisco, em Alagoinhas, a Sergipe foi aberta em 1887
até a localidade de Timbó, atual Esplanada. Dali para a frente foi sendo
prolongada aos poucos a partir de 1908, atingindo Aracaju em 1913,
Cedro de São João em 1915 e Propriá somente em 1956, às margens do
rio São Francisco.
O estabelecimento de estrada de ferro em Sergipe, além de ser
de grande interesse nacional, proporcionou desenvolvimento material,
econômico, social e moral, facilitando a comunicação e a ligação do
Estado a outras cidades, estados e pessoas, favorecendo desta forma a
comercialização e exportação do açúcar, café e algodão - entre outros
produtos manufaturados cultivados na Província.

A TENTATIVA DE IMPLANTAÇÃO DA LINHA FÉRREA EM LAGARTO


A Companhia Hidroelétrica do São Francisco - Chesf - iniciou a
construção de suas usinas em Paulo Afonso no ano de 1949. Com isso,
todo o complexo acabou gerando demandas por materiais de pequeno
e médio porte, indispensáveis ao erguimento das primeiras edificações.
Grande quantidade de materiais de pequeno porte foi transportada em
caminhões, mas a demora na entrega e o custo elevado por esse serviço
fizeram com que se pensasse na viabilização de um meio que garantisse
maior rapidez no deslocamento das turbinas de origem alemã –
consideradas peças fundamentais para a montagem – até a hidrelétrica
em questão.
Tais fatores convergiram, contribuindo para que se colocasse em
prática o projeto da construção da estrada de ferro que passaria pelos
municípios sergipanos de Lagarto e Simão Dias. Sendo assim, dia 10 de
outubro de 1950 o presidente da República sancionou, e dia 12 do
mesmo mês e ano o Diário Oficial da União publicou o decreto do
projeto e orçamento para a construção do trecho da ferrovia que
passaria pelo município de Lagarto:

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DECRETO N.° 28.738 - DE 10 DE OUTUBRO DE 1950
Aprova projetos e orçamentos para construção de
dois trechos da ligação ferroviária Salgado - Lagarto -
Simão Dias - Paripiranga - Jeremoabo - Paulo Afonso.
O Presidente da República, usando da atribuição que
lhe confere o artigo 87, n.° I, da Constituição, decreta:
Artigo único. Ficam aprovados os projetos e
orçamentos na importância total de Cr$
86.867.059,00 (oitenta e seis milhões, oitocentos e
sessenta e sete mil e cinqüenta e nove cruzeiros), os
quais com êste baixam, devidamente rubricados,
relativos à construção dos seguintes trechos da
ligação ferroviária Salgado - Lagarto - Simão Dias -
Paripiranga - Jeremoabo - Paulo Afonso:
a) 1.° trecho com a extensão de 77,995 km - Cr$
70.391.417,60
b) 2.° trecho com a extensão de 20,260 km - Cr$ 16.
475.581,40
Total: Cr$ 86.867.059,00
correndo as despesas respectivas, no presente
exercido, até o limite de Cr$ 12.000.000,00 (doze
milhões de cruzeiros) à conta da dotação constante
do Anexo 25, Verba 4, Consignação III,
Subconsignação 06-31-01m), do Orçamento Geral da
República e, nos exercidos vindouros, pelos recursos
que forem destinados à mencionada ligação
ferroviária.
Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1950; 129.° da
Independência e 62.° da República.
EURICO G. DUTRA.
João Valdetaro de Amorim e Mello.

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Para a construção do terceiro trecho da ferrovia, dois meses depois o
mesmo Presidente sanciona um novo Decreto:

DECRETO N.° 29.014, - DE 21 DE DEZEMBRO DE 1950

Aprova projeto e orçamento para construção do


terceiro trecho da ligação ferroviária Salgado-
Lagarto-Simão Dias-Paripiranga-Jeremoabo-Paulo
Afonso.'
O Presidente da República, usando da atribuição que
lhe confere o artigo 87, número I,. da Constituição,
decreta:
Artigo único. Ficam aprovados o projeto e orçamento
na importância de Cr$ 14.924 226,20 (quatorze
milhões novecentos e vinte e quatro mil duzentos e
vinte e seis cruzeiros e vinte centavos), os quais com
este baixam, devidamente rubricados, relativos à
construção do terceiro trecho, na extensão de 24.240
quilômetros, da ligação ferroviária Salgado-Lagarto -
Simão Dias - Paripiranga-Jeremoabo- Paulo Afonso
correndo as despesas respectivas, no presente
exercido, até o limite de Cr$ 12.000.000.00 (doze
milhões de cruzeiros). à conta da dotação constante
do Anexo 25. Verba 4 Consignação M.
Subconsignação 06-03-01m), do Orçamento Geral da
República e, nos exercidos vindouros, pelos recursos
que forem destinados à mencionada ligação
ferroviária.
Rio de Janeiro. 21 de dezembro de 1950; 129.° da
Independência e 62° da República.
EURICO G. DUTRA.

Num segundo momento uma grande área de terra foi desapropriada


para abrir passassem aos trilhos que trariam consigo trabalho e outras fontes
de riqueza para a região, O Decreto que viabilizaria a desapropriação de terras,
em toda a extensão por onde a ferrovia iria passar, foi sancionado dessa vez
pelo presidente Getúlio Vargas, e continha a seguinte redação:

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DECRETO N° 30.031 - DE 1 DE OUTUBRO DE 1951

Declara de utilidade pública, para fins de


desapropriação. áreas necessárias à construção
ferroviária.
O Presidente da República, usando da Lia atribuição
que lhe confere o artigo 87, n.° I, da Constituição, e
nos termos do Decreto-lei n.° 3.365, de 21 de junho de
1941, modificado pelos Decretos-leis n.° 4.152, de 5
de março de 1942 e de 9 de setembro de 1946,
decreta:
Art. 1.° São declaradas de utilidade pública, para
efeito de desapropriação, as áreas necessárias à
ligação ferroviária Salgado-Lagarto-Simão Dias-
Paripiranga-Joremoabo-Paulo Afonso, e
compreendidas entre as estacas 5.305 e 6.305, da
Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, cujos projeto e
orçamento foram aprovados pelo Decreto n.° 20.030,
de 1 de outubro de 1951.
Art. 2.° Este Decreto entrará em vigor na data da sua
publicação.
Art. 3.° Revogam-se as disposições em contrário.

Rio do Janeiro, 1 de outubro de 1951- 130° da


Independência e 63° da República.

GETÚLIO VARGAS.

Alvaro de Souza Lima

Grande quantidade de homens foi mobilizada para construir pontes,


recorta e aplanar as áreas por onde passaria a linha de ferro. Além das
inúmeras casas construídas em lagarto para abrigar os trabalhadores que
vieram de outras localidades, foram erguidos ainda um almoxarifado, uma casa
para engenharia e empreiteira, uma estação para parada do trem, e ainda uma
outra casa, destinada a abrigar o serviço de comunicação por telégrafo.
As moradias para os trabalhadores das companhias responsáveis pela
instalação das linhas de trens em nosso país, nas décadas de 40/50, surgiam
concomitantemente à implantação da malha ferroviária, com a finalidade de
dar suporte ao funcionamento e à manutenção das linhas. A quantidade de

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residências nas vilas ferroviárias era definida em função da complexidade dos
serviços realizados. Em locais mais simples eram construídas pelo menos três
habitações – as chamadas casas de turmas -, enquanto nos entroncamentos e
nos trechos mais movimentados eram implantados conjuntos residenciais
maiores.
No início da década de 1959 as obras para a implantação dos trechos
ferroviários em terras de Lagarto e Simão Dias estavam a todo vapor. As
empresas contratadas pela Leste Brasileira seguiam à risca seus cronogramas
de trabalho, quando uma grande explosão acabou por trazer transtornos a
todos os envolvidos naquela empreitada. Na medida que nos foram legados
poucos registros dos fatos, o resgate dessa história só é possível a partir do
momento que damos voz a homens e mulheres que viviam à época e que
retiveram o episódio aqui retratado em sua memória.

O TESTEMUNHO DE QUEM VIVIA À ÉPOCA


Na época em que a Aviação Férrea Federal Leste Brasileira se instalou
em Lagarto para executar os serviços do trecho da ferrovia que atravessaria
nosso município, nossa avó, dona Josefa (92 anos), residia em companhia do
marido e da primeira filha do casal, no final da Rua de Laranjeiras.
Nesse mesmo período, o muribequense José Alves chegava a Lagarto
para trabalhar como supervisor do trecho da linha de ferro que cortaria nosso
município. Zé Alves, como era conhecido, era um rapaz moreno, alto e
simpático. No dia a dia, Zé Alves costumava ir com amigos ao povoado
Coqueiro, onde nossa avó residia com sua família. Ali o engenheiro da Leste
conheceu a irmã de minha avó, Marizete. Ele se engraçou pela moça, os dois
logo começaram a namorar, antes de três meses noivaram... e com mais três
meses se casaram. Logo após contrair núpcias, o casal foi residir próximo onde
fora montado o canteiro de obra da estrada de ferro.
Minha avó, dona Josefa, estava no sítio do pai quando ouviu a
explosão no paiol da Leste.

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Nesse período nossa avó passou a costurar para os operários da
Leste, sendo remunerada por seu trabalho com a única moeda que
podia circular entre os trabalhadores da ferrovia – o Boró. (Em seus
depoimentos, tanto nossa avó quanto nossa mãe, dona Iracy (70 anos),
dizem que o Boró era a moeda adotada pela Leste para evitar que os
mineiros fizessem uso de seus salários para ingerir bebidas alcoólicas – a
bebida era um item proibido para aqueles que trabalhavam na Leste. O
pagamento do trabalho através do Boró também era uma forma de
garantir monopólio, haja vista que a Companhia mantinha um armazém
em que se comercializava de tudo: panelas, tecidos, roupas, calçados,
materiais de limpeza, perfumes, carne seca, alimentos, cigarros... Mas
muitos daqueles que trabalhavam na Leste sempre davam um jeito de
trocar o Boró pela moeda circulante no país (e que eles chamavam de
“dinheiro de deus”), pois essa era a única maneira de poderem pagar as
prostitutas que deitavam com eles nos finais de semana, comprarem no
comércio, e se embriagarem nos bares da cidade. E quem trocava a
moeda circulante no país pelo Boró de um mineiro só podia se desfazer
do dinheiro comprando no armazém mantido pela Leste).
As obras do trecho da ferrovia que passaria pelo município de
Lagarto avançavam rapidamente, concentrando um número cada vez
maior de operários na sua construção, quando um acidente ocorrido em
um dos paios – e local em que se armazenavam dinamites – parece ter
concorrido para que em breve o projeto fosse paralisado e abandonado
de uma vez por todas.
O relato de nossa avó dá conta que a explosão no paiol de
dinamite da Leste aconteceu na tarde de uma Sexta-feira da Paixão.
Muitas casas da cidade se encontravam vazias; as pessoas aproveitavam
o feriado para visitar seus familiares em outras localidades, e muitos
devotos estavam a caminho da procissão. Logo nas primeiras horas da
manhã desse dia, meu avô reuniu sua família, e todos foram passar o dia
santo no sitio do seu sogro – que residia no povoado Coqueiro, distante
cerca de 5 km da cidade. Lá já se encontrava Marizete - irmã de nossa
avó –, acompanhada do seu marido, Zé Alves. O resto da manhã correu
tranquilo, mas entre as 14h e 15h um estrondo assombrou a todos e
espalhou o medo no seio da reunião familiar.
Ao relembrar o fato, dona Josefa diz que, quando se deu a
explosão em um dos paióis da Leste instalada em lagarto, uma grande
língua de fogo subiu no céu, seguida de uma nuvem negra de fumaça. A
terra tremeu aos pés dos lagartenses residentes não apenas na cidade,
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mas também na maioria dos povoados (a explosão foi sentida também
em Simão Dias – cidade que dista 27 km da nossa). Tudo voou pelos
ares; inúmeras peças foram encontradas dias depois em localidades
distantes. Onde as dinamites explodiram, uma cratera de muitos
diâmetros se abriu, “engolindo” tudo que se encontrava ao redor. Antes
que o fogo que se seguiu à explosão se espalhasse, os moradores se
apressaram em salvar o que era possível, transportando tudo para as
casas que ofereciam condições de abrigo – muitas das casas não
garantiam acesso sequer a seus donos, pois o impacto da explosão fora
tão forte que trincou paredes e encadeou portas e janelas, impedido a
abertura normal das mesmas.
No sítio do pai de vovó o almoço da Sexta-feira Santa já tinha
acabado fazia mais de uma hora. Os presentes haviam se dispersado
pelos diversos cômodos da casa – alguns para fazer a sesta, e outros
para se reunir aos donos da casa e colocar o papo em dia. Passava das
14h quando todos ouviram e sentiram a explosão. Instantes após
confirmar suas suspeitas de que o barulho medonho viera da direção do
Campo da Vila – local que concentrava o canteiro de obras Leste -, Zé
Alves subiu numa mangueira, e, do alto dessa árvore, o supervisor da
Leste Brasileira pôde formular suas primeiras impressões do ocorrido.
Horas depois, quando finalmente se fez presente no cenário da
destruição, Zé Alves passou a assistir chocado o vai-e-vem de crianças,
jovens e adultos apressados em salvar qualquer coisa de valor que
tivesse escapado do soterramento e do fogo. Não obstante a dor e a
tristeza estampadas no semblante de cada morador do local, Zé Alves
não teve notícias de morte. Contaram-lhe apenas o drama de uma
senhora, de nome dona Sinhazinha, que possivelmente ficaria paralítica,
já que, no momento da explosão, a mesma fora atingida violentamente
na perna por um fio desencapado que se partiu da rede elétrica que
conduzia a energia dos geradores da Leste.
A tragédia que se abateu àquela tarde de sexta-feira santa sobre
o Campo da Vila causou consternação, espalhou a tristeza entre todos,
mas foi incapaz de inibir a ação dos aproveitadores de plantão. Mal a
poeira assentou em torno do local do paiol que explodiu, o saque
coletivo teve início, com indivíduos procedentes de outras áreas da
cidade chegando em caminhões, e só saído dali com as carrocerias
superlotadas de tudo que encontravam nos escombros.
A caça ao culpado pela explosão do paiol da Leste teve início
horas depois da tragédia. Cogitou-se desde o primeiro momento que a
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detonação das dinamites poderia ter sido provocada pela
movimentação de ratos no interior do paiol (a cada dia os roedores
proliferavam em maior número dentro do depósito onde ficavam as
dinamites, e o transitar deles naquele lugar poderia ter provocado a
queda de um objeto capaz de produzir a fagulha que atingiu o pavio do
primeiro explosivo). Mas dona Josefa recorda que, na época, circulou a
notícias de que dois suspeitos chagaram a ser presos, foram
interrogados e liberados logo em seguida - na tomada dos depoimentos,
a polícia não conseguiu colher provas capazes de produzir a condenação
daqueles acusados.

O professor Emerson Carvalho ainda era menino quando houve a explosão

O professor Emerson da Silva Carvalho é uma das figuras mais


conhecidas em Lagarto. Além de ser um cronista social e esportivo,
Emerson é um colecionador de jornais, revistais e documentos que
abordam temas relevantes sobre nosso município. Num passado não
muito distante, ele chegou a lecionar inglês para mim e para meus
irmãos, quando cursávamos o ginásio na Escola Normal Nossa Senhora
da Piedade. Em conversa com esse autor, o professor Emerson disse que
ainda era um menino quando aconteceu a explosão nas instalações da
Leste de Lagarto. Ele lembra que se encontrava na casa do seu pai e que
sentiu seu corpo cambalear ante o tremor inesperado da terra. Para o
teacher, o fato se deu em 1952, e ele recorda do pavor que tomou conta
da população. Apesar da curiosidade em testemunhar o desastre,
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Emerson disse que não teve como se deslocar até o local no mesmo dia
da explosão, uma vez que, naquele tempo, o Campo da Vila figurava
como um lugar distante do centro da cidade. Ele recordou ainda que o
telhado de uma casa desabou nas imediações da Leste, ceifando a vida
da proprietária antes que qualquer socorro lhe fosse prestado. Meu
interlocutor confessou não saber até hoje porquê as obras da linha
férrea que passaria por Lagarto e Simão Dias foram paralisadas e
concluiu sua fala dizendo que, quando a Leste encerrou seus trabalhos
no Campo da Vila, sobraram os poços escavados pelas dinamites. Com o
tempo, tais poços ganharam água da chuva, se transformando em
piscinas naturais e espaços de lazer para a garotada de toda região.

Seu Antônio ouviu o estrondo e viu uma grande nuvem de fumaça

Seu Antônio Oliveira (85 anos) nasceu e se criou no Povoado


Cajazeiras, e sempre foi um carpinteiro de mão cheia. Hoje (2013) seu
Antônio da Cajazeira (como é conhecido) goza de uma merecida
aposentadoria, mas, até pouco tempo, quando ainda na ativa, era ele
um dos profissionais mais requisitados no município. As marcas distintas
do seu trabalho de carpintaria podem ser conferidas não apenas nas
dezenas de casas sólidas espalhadas por Lagarto, mas também nos
prédios de arquiteturas arrojadas, que abrigam empresas públicas e
privadas. Ao longo dos anos, seu Antônio passou a contar com a
companhia dos filhos homens no exercício da profissão; pelo menos

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dois deles herdaram a profissão do pai, e hoje são artífices, hábeis
modeladores da madeira.
Em 1952, seu Antônio ainda residia no povoado em que nasceu,
mas passava a maior parte do tempo na sede do município, já que seu
dia era dedicado ao trabalho nas obras do telhado do prédio onde
funcionaria o Cine Glória. Na tarde em que houve a explosão em um dos
paióis da Leste de Lagarto, seu Antônio se encontrava em Cajazeira
(distante 18 km da sede do município), aproveitando o feriado da Sexta-
feira Santa para visitar parentes e amigos. Segundos depois da explosão
das dinamites no paiol da Leste de Lagarto, seu Antônio ouviu o
estrondo e viu uma grande nuvem de fumaça subir na direção da cidade
(e pelo que ele ficaria sabendo depois, até mesmo em Paripiranga –
município baiano que fica a 36 km de lagarto – se ouviu a explosão e se
sentiu seus efeitos). De onde se encontrava, seu Antônio pressentiu que
algo muito grave tinha acontecido; chegando à cidade ele se deparou
com o alvoroço. Logo após aquele acontecimento que abalou a todos,
comentários surgiram, dando conta que, por se tratar de um dia em que
se observava um feriado santo, àquele dia somente o vigia era quem se
encontrava nas imediações do barracão da Leste. Logo após o ocorrido
ele foi preso, conduzido à Aracaju e só depois de muito sofrimento é
que ganhou a liberdade.
Ao falar sobre o fato 61 anos depois, seu Antônio da Cajazeira diz
que a explosão arregaçou carros e ferros, fazendo um grande buraco no
chão. Boa parte da ferragem amontoado no terreno acabou sendo
lançada pela explosão, e foi encontrada depois, enrolada nos pés de
coqueiros. Muita gente, como Antônio Miguel, perdeu seu veículo. O
impacto da explosão foi tão forte que casas estouraram, os vidros da
igreja estilhaçaram e os alumínios expostos nas prateleiras das lojas
foram parar no chão.
Ao buscar na memória lembranças do tempo em que os trilhos
ameaçavam se estender por terras lagartense, seu Antônio diz que em
nossa cidade já tinha um cinema – o São João; um novo cinema estava
sendo construído – aquele que viria a ser o Cine Gloria, e que
funcionaria por muitos anos no local onde hoje (2013) está instalado o
Bradesco; o número de veículos na cidade era pouco – e o modelo da
moda era o sincachambó –; só quem possuía automóvel eram pessoas
como Almeidinha, Zé Carlos, Pedrito de Batalha...; as ruas estreitas da
nossa cidade viviam tomadas por cavalos, carroças e carros-de-bois. Seu
Antônio prossegue seu relato dizendo que, com o início da construção
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da ferrovia, passaram a transitar pelas ruas de paralelepípedos de
Lagarto máquinas pesadas, como a D8 (D8 são tratores de esteira de
grande porte, que trafegavam por nossas ruas fazendo muito barulho e
alvoroçando as pessoas, porque na época não havia estrada de rodagem
que permitisse essas máquinas atingirem o canteiro da Leste trafegando
através do entorno da cidade).

A terra abalou sob os pés de Piaba

José Gaciano dos Santos, mais conhecido como Piaba, é um


senhor nascido em 1946, que trabalha ainda hoje como carroceiro, e
que reside na Avenida Francisco Garcez, em Lagarto. Quando do
acidente da Leste, Piaba residia no centro da cidade, próximo de onde
morava Pedrinho Correia – chefe de uma tradicional família lagartense.
Quando aconteceu a explosão, Piaba se encontrava em companhia do
pai, embaixo de um pé de mangueira. Ele diz que, a essa hora, a
procissão já estava na rua. De repente, A terra abalou sob seus pés, e
uma grande nuvem de poeira chegou a cobrir a árvore que dava sombra
a ele e ao seu genitor. Piaba esclarece que, como ainda era muito
pequeno, não pôde visitar o local da explosão – até porque, logo após a
explosão, o local fora isolado, para impedir a aproximação dos curiosos.
Ele lembra ainda que era uma sexta-feira da paixão e que, com a
explosão, voou pedaços de ferros, de pneus e de instalações elétricas
para todos os lados. Piaba lembra que, após a tragédia, a obra

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continuou por mais três anos, com os garimpeiros executando seus
serviços no trecho compreendido entre as cidades de Lagarto e Simão
Dias, sendo paralisada apenas em 1958.
Piaba afirma que o fogo gerado pela explosão atingiu grande
número de casa, uma vez que quase todas eram cobertas por palhas de
coqueiro. À época, Lagarto era uma cidade muito pequena, e contava
apenas com dois automóveis: um de propriedade de um senhor de
nome Heraque; e um outro, pertencente ao pai de Tonho de Zé do
Arroz. Piaba conclui sua fala dizendo que as únicas pessoas de posses na
época eram homens como Antônio Martins, Acrísio Garcez e Dioníso
Machado.
Quando as autoridades decidiram que as obras da rede
ferroviária que passaria por Lagarto e Simão Dias deveriam ser
paralisadas em definitivo, as turbinas necessárias ao funcionamento da
Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso passaram a ser transportadas em
carretas – veículos importados pelo Brasil da Alemanha para garantir
que o transporte dessa carga pesada se realizasse a contento, sem
prejuízos para a continuidade da obra.
Em Lagarto o abandono das obras da ferrovia foi seguido da
decisão do governo em promover a devolução das terras para os antigos
donos. As construções existentes - e que já estavam prontas, mas sem
qualquer perspectiva de uso – acabaram sendo ocupadas pelos ex-
operários da Leste (que ficaram ser ter para onde ir, e que decidiram
fixar residência no local onde antes labutavam diariamente).
A população operária que permaneceu em Lagarto, mesmo com
o fim dos Trabalhos da Leste nesse município, deu início à formação do
bairro que ficaria conhecido por Estação. Aos poucos, novas casas foram
sendo construídas no local, com as pessoas tirando proveito de não
terem que pagar pelo terreno, uma vez que erguiam suas residências
em terrenos abandonados.
O Bairro Estação também era conhecido como Corte (devido a
aberturas feitas nas rochas, e que eram resultado de explosões
planejadas de dinamites). Sua população sempre foi formada por
famílias com baixo poder aquisitivo, e que ergueram suas moradias
recorrendo a tijolos de barro, fabricados pela própria comunidade.
No Bairro Estação, problemas como falta de água, de energia
elétrica, e de saneamento sempre atormentaram a população. Somente
em anos mais recentes é que a comunidade que ali reside veio a ser
contemplada com a ampliação e pavimentação da rua principal,
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instalação de um chafariz, construção de uma lavanderia e doação de
terrenos para famílias que necessitavam de um teto para morar.
Em 1998 a Câmara de Vereadores do Município de Lagarto
aprovou, e o chefe do executivo sancionou a lei delimitadora dos bairros
da cidade. Por essa Lei a Estação perdeu o status de bairro, e sua rua
antiga rua principal - atualmente conhecida como Beco da Estação - se
transformou numa linha que delimita dos bairros da cidade: Novo
Horizonte e Ademar de Carvalho.

MARCOS DA TENTATIVA DE IMPLANTAÇÃO DA FERROVIA EM


LAGARTO E SIMÃO DIAS
Mais de seis décadas transcorreram desde o acontecimento que
provavelmente se constituiu no principal motivo para o abandono da
construção do trecho da estrada de ferro que passaria por terras de
Lagarto. Ao longo desse período, nossa cidade e nosso município
passaram por profundas e importantes transformações, decorrentes
principalmente do crescimento econômico, do aumento populacional,
da construção de residências, prédios, estradas, rodovias, ruas, avenidas
e conjuntos habitacionais. Tudo isso resultou em mudanças profundas
nos locais que abriga as estruturas que dariam suporte aos trabalhos de
implantação dos trilhos ferroviários em nosso município.
Em 2013, ano em que teve início essa pesquisa, deparamo-nos
com uma séria de obras que chegaram a ser realizadas pelos
garimpeiros a serviço da Leste não apenas em Lagarto, mas também em
municípios circunvizinhos - como Simão Dias e Salgado. Seguindo
indicações de amigos e orientações de pessoas que íamos interrogando,
chegamos a locais que ainda concentram parte importante da estrutura
construída para dar suporte à instalação dos trilhos em terras dos
municípios de Lagarto e Simão Dias. A maioria das construções é
formada por pontes sobre rios e riachos e por túneis e ...Claro que toda
essa estrutura, localizada em sua totalidade em sítios e fazendas, se
deteriora dia a dia - devido à ação do tempo - e tem servido mesmo é de
abrigo para aves, cobras, lagartos e outros animais existentes na região.
Não obstante os anos passados desde o abandono dessas construções,
deparamo-nos com pontes e túneis que impressionam pela engenharia
empregada, ou ainda devido à resistência às intempéries.

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Em Lagarto, a pouco mais de cem metros das onze casas que
abrigaram os trabalhadores que iniciaram a implantação dos trilhos em
nosso município, há uma ponte – que se encontra encoberta pela
vegetação da região, mas que resistiu ao tempo.

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No povoado Coqueiro de Baixo, distante cerca de 6 km do centro
de nossa cidade, nosso amigo Marcos Rocha registrou para nós (em
fotografias) a estrutura de uma ponte ferroviária inacabada, e ainda
uma vereda, aberta por entre uma mata nativa de grande extensão,
com a largura exigida à instalação de dormentes que dariam suporte aos
trilhos que seriam instalados por essas bandas do território lagartense.

Hoje, essa trilha de terra batida aberta no meio da mata é


utilizada principalmente nos finais de semana, quando os criadores de
cavalos da região se reúnem, e aproveitam o caminho plano e linheiro
para promover corridas entre seus animais.

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Duas outras estruturas abandonadas pela Leste em nossas terras
estão localizadas às margens da Rodovia Lourival Batista/SE-270, entre
os municípios de Lagarto e Simão Dias, na altura do início da estrada que
dá acesso ao povoado Olhos D’água. A poucos metros do acostamento
da SE-270, duas estruturas semelhantes a muretas – uma paralela à
outra e construídas com blocos de pedras e cimento – despontam no
meio do matagal, no mesmo nível da pista asfáltica. Esse amontoado de
pedras se integra com tanta propriedade à paisagem do lugar, que é
fácil imaginar que ele jamais chama a atenção daqueles que pela
rodovia trafegam. Certamente, a colocação das muretas nesse local
obedeceu à necessidade de se compensar o declívio do terreno que se
estende até a ponte ferroviária construída logo à frente.

Quando deixamos para trás essas duas muretas e seguimos


alguns metros a pé em direção a Simão Dias, logo visualizamos uma
grande ponte – que hoje está tomada pelo mato, se localiza à direita e
fica a alguns metros da rodovia. Essa ponte passa sobre um riacho e
obedece às mesmas características arquitetônicas de outras construídas
pela Leste em nossa região. Décadas de abandono fizeram com que o
mato, as aves e os animais fossem os únicos a se beneficiar dessa
estrutura. Como essa ponte fica paralela à pista asfáltica e sobressai na
paisagem, vez ou outra o paredão voltado para a SE-270 recebe uma
demão de cal, garantindo assim mais destaque às propagandas que
costumam ocupar esse espaço.

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Sempre que chegamos ou saímos da cidade de Simão Dias,
trafegando pela Rodovia Lourival Batista/SE-270, deparamo-nos com
uma fazenda cercada de eucaliptos, que fica a poucos quilômetros de
distância da terra dos capa-bodes, e que é de propriedade da viúva do
fundador da empresa G’Barbosa. Além da casa grande que se destaca na
paisagem, o conjunto restante é formado por uma capela, por
residências menores, por garagens e galpões. À frente dessa fazenda, do
outro lado da SE-270, um outro terreno de vegetação rasteira, onde
cavalos, bois e cabras pastam tranquilamente. Nesse local encontramos
a estrutura de uma ponte, também construída pelos trabalhadores da
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empresa contratada pela Leste no início da década de 1950, e que
sobressai no terreno. Logo à frente, uma trilha aberta no pasto conduz a
um túnel escavado na rocha, que se estende por alguns metros por
entre o sopé da montanha em direção à Simão Dias. Essas obras
deixadas pela Leste em território simão-diense foram paralisadas
concomitante à interrupção da construção do trecho ferroviário no
município de Lagarto. Quando os trabalhadores contratados pela Leste
foram dispensados de seus postos de trabalho por aqui, quilômetros e
quilômetros de trilhos e dormentes foram deixados para trás,
abandonados no meio de sítios e fazendas, nas terras que se estendem
até Lagarto. Na medida que o tempo passou, e os agricultores da região
perceberam que o projeto de construção da ferrovia não mais seria
retomado, trilhos e dormentes passaram a ser arrancados para servirem
de utensílio nas casas de farinhas espalhadas por povoados lagartense.

Um marco importante dos trabalhos realizados para garantir a


passagem de trem em terras simão-dienses nos foi apresentado do topo
da Serra do Cabral, por nosso amigo José Santana Curvelo. Lá do alto
nos foi explicado que uma trilha de mata verde – que passa no pé da
serra, que se destaca na paisagem seca da vegetação rasteira, que
atravessa toda a extensão do território dos capa-bodes, e que só se
perde de nossas vistas quando se aproxima da divisa entre Sergipe e
Bahia – foi aberta por uma das empresas a serviço da Leste para
permitir que o trem por ali passasse, transportando a tecnologia que

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Paulo Afonso demandava para posteriormente ofertar a energia elétrica
que o nordeste necessitava para fomentar seu desenvolvimento.
Contemplada do alto, essa linha de mata verde parece serpentear nas
curvas do sopé da montanha, aproveitando-se dos nutrientes que a
chuva carrega serra abaixo para se destacar da vegetação nativa
durante o ano inteiro.

No intuído de verificarmos in loco as condições de obras


deixadas pela Leste na região compreendida entre Lagarto e Salgado,
fomos conduzidos pelos amigos Irineu Roberto de Oliveira e Floriano
Fonseca até Urubutinga – um povoado que dista cerca de 6 km do
centro de Lagarto, e que tem um córrego em uma de suas estradas
vicinais – que recebeu o nome de riacho Seco. Ao atravessarmos por
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sobre as águas claras e mansas desse riacho, nos defrontamos com o
que deveria ter sido um dos lados de uma ponte. A obra inacabada que
lá se encontra impressiona – tem a forma de um trapézio e deve possuir
entre quinze a vinte metros de comprimento, por dois metros e vinte de
altura. Enquanto árvores frondosas impedem que os transeuntes
divisem essa obra ao passarem pela estrada, aqueles que seguem nosso
exemplo, e se dispõem a transpor o riacho, se equilibrando nas toras de
paus que o atravessam de um lado a outro, acabam se deparando com
ela dominando uma clareira - que se estende em direção ao sol
nascente. Como essa obra ficou inconclusa, e sequer chegou a receber
cobertura, seu vão interno se tornou terra fértil para o mato. Hoje, seu
estado de conservação reflete apenas há mais de seis décadas de
abandono a que a mesma ficou submetida.

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Para ampliarmos ainda mais nosso campo de pesquisa, eu e os
amigos Irineu Roberto de Oliveira e Floriano Fonseca nos dirigimos para
uma região mais ao leste do nosso município, precisamente a uma
localidade de nome Timbales, que fica entre os povoados Açu Velho,
Juerana, Taboca e Açuzinho. Ao lado de uma estrada que passa por esse
lugar, a Companhia Leste deixou quase concluída mais uma ponte.
Trata-se de uma obra de grande porte, medindo aproximadamente
vinte metros de comprimento por doze de largura, encimada por
espessa camada de cimento e pedras. Toda essa estrutura fica no
mesmo nível da estrada que a ladeia pelo poente; do lado oposto, duas
pilastras se elevam acima – uma sobreposta à outra - formando uma
pequena arquibancada, além de proteção segura contra cheias
ocasionais do riacho lodacento que passa sob a ponte. A exata noção da
solidez dessa obra nos é dada quando descemos por uma de suas
laterais e alcançamos o arco que se estende de um lado a outro,
formando um conjunto de pedra e concreto, em acabamento
caprichoso. Ao lado do riacho é possível contemplarmos toda a
extensão do túnel, e até lamentarmos o fato de tanto dinheiro público
ter sido gasto numa obra que sequer chegou a ser inaugurada.

Ainda hoje (junho de 2014), podemos encontrar pelo menos


duas das edificações deixadas pela Leste Brasileira no bairro estação, e
ainda uma vila de onze casas, localizadas no início do povoado Limoeiro.
A maior e mais importante dessas edificações é um prédio de grande
fachada, que conta com seis salas espaçosas, duas dependências
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menores – onde provavelmente funcionariam a bilheteria e o
almoxarifado da estação ferroviária de Lagarto -, e dois banheiros. Todo
o prédio é ladeado por um muro alto e por um pátio espaçoso,
sombreado na frente por árvores altas e frondosas. Malograda o projeto
de implantar a linha férrea em nossas terras, o prédio, que deveria
funcionar como ponto de parada de trens em nossa cidade, e local de
embarque e desembarque de mercadorias, acabou abandonado e se
transformou em abrigo para mendigos e usuários de drogas. Em meados
da década de 1990, o prédio já funcionava como uma creche, dirigida
pela Ação Social. Em 1998, esse prédio sofreu pequena reforma, e
passou a funcionar como unidade escolar, recebendo o nome de Creche
Artur de Oliveira Reis. Uma determinação do promotor de Justiça do
Patrimônio Público de Lagarto, Antônio César Leite de Carvalho,
impeditiva a que nomes de pessoas vivas nomeassem prédios públicos
no município de Lagarto, fez a Câmara Municipal de Lagarto aprovar a
Lei nº 340, de 1° de junho de 2010, de autoria do executivo municipal,
trocando a denominação da Creche Artur de Oliveira Reis para
Adalberto Fonseca. A creche foi mais uma vez pintada – recebeu as
cores adotadas pela administração de então – e abriu suas seis salas
para atender os filhos da comunidade dos bairros em seu entorno.

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Num terreno baldio, situado atrás e a poucos metros do prédio
que deveria abrigar a estação ferroviária de Lagarto, encontramos uma
casa da altura de um prédio de um andar, construída sobre alicerce que
se eleva do solo por mais de três metros. O acesso a ela se dá por um
terreno encharcado e escorregadio, que fica ao lado de casas simples e
de tetos baixos. O mato sobe pelas paredes e se entranha nos cômodos
da casa abandonada ao léu, intimidando qualquer aproximação dos que
desejam realizar uma investigação mais cuidadosa. Fotos tiradas logo
após sua construção, já mostram essa casa sem telhado, dominando um
descampado de vegetação rasteira e seca. Sua arquitetura diferenciada
nos faz crer que esse prédio poderia funcionar como um ponto
privilegiado de observação ou mesmo como um posto de telégrafo.

76 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
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As onze casas estão localizadas acerca de quinhentos metros da rodovia
que liga Lagarto a Campo do Brito. O acesso a essas casas – que
lembram uma vila operária – se dá por uma estrada estreita - também
de nome Onze Casas – e que conduz ao povoado Limoeiro. No início da
década de cinquenta, trabalhadores da Leste habitavam essas casas –
em fotos da época, pode-se observar que os tijolos dessas residências
não possuíam reboco e que elas obedeciam a desenho arquitetônico
semelhante. Imagens recentes denunciam que algumas chegaram a
ganhar reboco e até mesmo pinturas em tons fortes, mas que
continuaram cercadas de mato e sem saneamento. Hoje, tais
residências figuram como o retrato fiel do descaso e abandono,
denunciando na aparência que jamais chegaram a merecer a atenção do
poder público. Nas vezes em que lá estivemos verificamos que elas
abrigam uma população carente, que vive basicamente de
aposentadorias, dos programas sociais do governo e de donativos - que
lhe chegam pelas mãos de grupos religiosos, que a elegem como alvo da
caridade cristã nas datas mais significativas. As crianças que ali residem
brincam no meio do mato – que se estende irregular pelo terreiro em
frente às casas até a beira da estrada -, correndo o risco de serem
mordidas por uma cobra ou serem contaminadas nas águas dos esgotos
que correm a céu aberto. Nos contatos que mantivemos com os
moradores das onze casas, foi possível deduzir que as residências
costumam ser adquiridas através de compras diretas ou de trocas, em
transações que nem sempre obedecem a trâmites legais – e isso talvez
explique porquê sempre somos recebidos ali com desconfiança. Que a
situação dos moradores das onze casas esteja regular ou não, pouco
importa. Fundamental é compreendermos que as benfeitorias feitas
pelos moradores dessas casas – por mais básicas que sejam – se
constituem em iniciativas únicas e importantíssimas, haja vista que são
elas que garantem esse marco histórico ainda estar de pé.

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CONCLUSÃO

Não é possível afirmarmos que apenas a explosão das dinamites no


paiol da empresa instalada em Lagarto tenha sido o acontecimento que
determinou o abandono do projeto de implantação da linha férrea em nosso
município. Pessoas que entrevistamos foram enfáticas, ao afirmarem que os
garimpeiros da Leste prosseguiram trabalhando para as bandas de Simão Dias
por pelo menos mais três anos. A explosão em Lagarto coincidiu com uma
conjuntura internacional singular. Nesse momento, a indústria automobilística
ganhava força nos Estados Unidos da América, e já se lançava ao projeto de
ganhar novos mercados, principalmente na América do Sul. Aliado a isso, havia
ainda o interesse da indústria de pneus estadunidense em escoar sua
produção para países como o Brasil. Era preciso, portanto, se inverter
prioridades, para que fosse possível se investir na construção de estradas, em
detrimento de ferrovias. Hoje, não há como ignorar que esse cenário
econômico norte-americano do início da década de 1950 foi decisivo, e
provavelmente se transformou no fiel da balança, no momento em que o
governo teve que decidir pelo abandono dos trabalhos ferroviários em Lagarto.
Os registros históricos que nos foi legado mostram que os municípios e
cidades por onde as ferrovias passaram, nas décadas de 1940 e 1950, logo
experimentaram grande desenvolvimento. Em Sergipe, estradas esburacadas e
perigosas se constituíam em únicas alternativas para escoamentos de produtos
e deslocamentos de pessoas até a capital. Arriscava-se a vida em viagens que
duravam três vezes mais que nos tempos atuais (enquanto hoje perfazemos os
76 km que separa Lagarto a Aracaju em pouco mais de uma hora, em 1950
essa mesma distância era percorrida em cerca de três horas). Grande parte das
mercadorias embarcadas no interior com destino à capital acabava ficando
pelo caminho. A má conservação das estradas fazia com que boa parte da
carga escorresse pelas fendas das carrocerias estragadas dos caminhões – o
que implicava diminuição nos lucros dos produtores. O trem representava o
meio seguro para o transporte, e era também a garantia de menos perdas nas
transações comerciais realizadas entre municípios.

Se tomarmos como referências cidades brasileiras e de outros países, é


possível especularmos sobre o que poderia ter acontecido com o município de
lagarto e nossa cidade, caso o trem tivesse passado por aqui. Certamente, a
terra de Silvio Romero e Laudelino Freire teria uma configuração geográfica
diferente da que tem hoje. A cidade teria se expandido principalmente para a
região que compreende os bairros Novo Horizonte e Ademar de Carvalho. Um
comércio forte teria se formado nas cercanias da estação ferroviária. É possível

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que um intercâmbio econômico promissor tivesse se estabelecido entre
Lagarto e Aracaju, assim como entre Lagarto e outros municípios sergipanos e
baianos - contribuindo para que um volume maior de recursos passasse a
circular por aqui, aquecendo assim nossa economia. A população de nossa
cidade teria aumentado além do seu ritmo normal, à medida que a ferrovia
acenasse com novas oportunidades de negócios e empregos. É provável que o
município de Lagarto estivesse experimentando um outro patamar de
desenvolvimento – superior ao de hoje. Claro que isso representaria também o
incômodo de estarmos convivendo com todas aquelas mazelas sociais típicas
de crescimentos urbanos rápidos e desordenados. Mas, não tem como deixar
de reconhecer que teria sido uma experiência excitante para o lagartense ver o
progresso chegar a cada dia na terra dos papa-jacas, no ritmo lento mas seguro
do apito do trem.

Lagarto(SE), 13 de março de 2018

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Bibliografia:

HOBSBAWN, Eric J. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e


Terra, 1977.
OLIVEIRA Melo, Givanete. Bairro Estação: Real e Imaginário. 1º Edição. São
Cristóvão: UFS. 1999. 13p.
SANTOS Rosário, Gilvânia. Memória Sobre a F Sobre a Ferrovia de Salgado. 1º
Edição. Lagarto: Fjav. 2009. 54p.
CARVALHO. Austriciliano Honório de. O Ferroviário. Jornal do Comércio. Rio de
Janeiro. 1031.
DANTAS, Iberê. História de Sergipe: República (1889 a 2000). Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2004.
BRASIL. Decreto N.° 28.738 - DE 10 DE OUTUBRO DE 1950.
BRASIL. Decreto N.° 29.014, - DE 21 DE DEZEMBRO DE 1950.
BRASIL. Decreto N° 30.031 - DE 1 DE OUTUBRO DE 1951.

Agradecimentos:
José Santana Curvelo; Irineu Roberto de Oliveira; Paulo Oliveira de Santana;
Ademir Francisco de Oliveira; Floriano Fonseca; Tsunami; Marcos Rocha;
Marcos Prata; Reinaldo Prata; Edvânio de Jesus Nascimento.

Fotos:
José Eduardo Bastos; Floriano Fonseca; José Santana Curvelo; Irineu Roberto
de Oliveira; Marcos Rocha.
Meus agradecimentos especiais às pessoas que aceitaram enriquecer meu
trabalho com seus depoimentos:
Josefa Batista de Santana (Dona Zefinha); Antônio Oliveira; Emerson da Silva
Carvalho; José Graciano dos Santos (Piaba).

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OS LAGARTENSES QUE RUGEM: AS PRÁTICAS CULTURAIS
ALTERNATIVAS EM LAGARTO (2006-2015)

1
Anselmo Ferreira Machado Carvalho

Resumo:
Este artigo investiga o surgimento e formação de uma cena cultural alternativa
no município de Lagarto, Sergipe. Analisa a atuação e produção dos sujeitos
culturais, procurando interpretar o conceito de cultura alternativa sob a
perspectiva destes artistas e se eles se identificam como alternativos e/ou
contraculturais. Contextualizar a cena alternativa lagartense e problematizar a
natureza das práticas alternativas é o objetivo central, sob a luz da Nova
História Cultural, cuja dimensão perpassa pela interconexão com o domínio da
história local, assim como, do trato metodológico da história dos conceitos e
da história oral.

Palavras-chave: Cultura alternativa, Lagarto, História

The Laguertes who roar: the alternative cultural practices in Lagarto


(2006-2015)

Abstract:
This article investigates the emergence and formation of an alternative cultural
scene in the municipality of Lagarto, Sergipe. It analyzes the performance and
production of cultural subjects, seeking to interpret the concept of alternative
culture from the perspective of these artists and whether they identify as
alternative and / or countercultural. To contextualize the alternative scene of
Lérida and to problematize the nature of alternative practices is the central
objective, under the light of the New Cultural History, whose dimension
permeates the interconnection with the domain of local history, as well as the
methodological treatment of the history of concepts and history oral.

Keywords: Alternative Culture, Lizard, History

1
Professor do Instituto Federal de Educação (Campus Lagarto), Doutorando em
História da Universidade Federal da Bahia e membro do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia (IGHB).

83 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
1. Introdução

Lagarteiros, Poeta Ivilmar dos Santos Gonçalves


(1983-2012)

(...) Vaidosa. Não perde uma moda. Faz graça! Essa


gente bonita Fugindo da chuva. Para não desfazer o
penteado. É dia de comício. Tem festa no bairro.
Lagarto dança .Com a música alta. E os desaforos
políticos. Mas tropeça, desajeitada. No calçamento E
na própria língua Bifurcada.

O presente artigo investiga os sujeitos culturais de Lagarto, suas


produções, seus lugares de atuação, sua sociabilidade, percebendo-os
como integrantes de um universo cultural múltiplo que é a cidade de
Lagarto. Localizada a 78 km da capital Aracaju, na região Centro-Sul de
Sergipe e com pouco mais de 100 mil habitantes. Celeiro de grandes
nomes a nível nacional como o “notável” membro da Academia
Brasileira de Letras, Sílvio Romero, um dos maiores ícones da cultura
lagartense. Mesmo não produzindo diretamente sobre Lagarto elenca
pistas sobre as práticas culturais do lugar, principalmente as populares:
“No Lagarto, cidade da província de Sergipe, foi que melhor as
estudamos. Os brinquedos mais comuns são: O Bumba meu boi, os
marujos, o Cego, etc”2
A diversidade já se apresentava na fala de Silvio Romero, que
representava a cultura literária escrita, marcada na contemporaneidade
pela existência da Academia Lagartense de Letras (ALL), cuja existência é
recente na cidade (2013), mas que ganhou notória expressão em suas
ações, sobretudo na publicação de obras.3 Todavia, uma cultura
“alternativa” passa a germinar em solo lagartense, principalmente,
marcada pela presença da juventude local. O caráter
“alternativo/contracultural” aparece como um conceito a ser

2
ROMERO, Silvio. Folclore Brasileiro- Cantos populares do Brasil. TOMO I e II. Rio de
janeiro: José Olympio Editora, 1954.
3
BARROSO, Rusel ET AL (Org.) Ecos de Lagarto e de sua gente:a partir das histórias do
saudoso Joaquim Prata e dos demais membros do sodalício lagartense. ALL,
Paripiranga: Faculdades AGES, 2015.
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investigado a partir do contexto de produção destes novos sujeitos
culturais, suas práticas e suas relações com o poder público, outros
segmentos sociais e a sociedade como um todo.
De uma perspectiva ampla, “a cultura alternativa também pode
ser considerada como um meio encontrado por poetas, artistas,
músicos, jornalistas (entre outros), para veicular suas produções na
sociedade usando meios não convencionais pra um padrão pré-definido
de cultura”.4 Desta forma, é fundamental investigar com mais acuidade
este universo cultural lagartense valendo-se das mais diversas fontes,
desde a oralidade à imprensa local, às produções artísticas, livros,
poemas, fanzines, panfletos, discos, eventos como o Sarau da Caixa
D’água, a iconografia, dentre outros.
O mundo ocidental, a partir da segunda metade do século XX,
passava por um processo de mudanças socioculturais significativas.
Contestava-se um modelo de sociedade burguesa pautados em
comportamentos pré-estabelecidos. Surgiam então os movimentos
chamados de contracultura:

As idéias da contracultura surgem nos Estados


Unidos, mas não se restringem ao universo norte-
americano. O movimento configura-se como uma
força marcadamente conflitante com o status quo e
inconformado com a institucionalização da vida.
Considerada como uma “invasão bárbara” avança
contra os valores que sustentam a sociedade
mundializada pós-Segunda Guerra, notadamente
aquela que vive a política da segurança,
consequência da Guerra Fria. Ao extrapolar as
fronteiras do sítio onde brota transcultura-se,
contaminando setores da juventude.5

Estes movimentos materializavam-se nos diversos setores da


sociedade, principalmente nas atividades artísticas, no teatro, na
música, no cinema e na imprensa. De um modo geral, podemos dizer

4
MOREIRA, Sônia Virgínia. As alternativas da Cultura (anos 60/70). In: STOTZ, Eduardo
Navarro et alli. Vinte anos de resistência: alternativas da cultura no Regime Militar.
Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986, p. 29.
5
LEÃO, Raimundo Matos de. Transas na cena em transe: teatro e contracultura na
Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009, p. 33.
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que os jovens foram os protagonistas do movimento
alternativo/contracultural. No Brasil e em Sergipe não foi diferente. Os
sujeitos alternativos surgiram como uma possibilidade de contestação e
como resposta ao status quo vigente. Para Lagarto, além da percepção
deste movimento, sobretudo na contemporaneidade, é importante
identificar quem é o público consumidor desta cultura e como recebe e
se identifica. Para tanto, utilizaremos a noção de apropriação da Nova
História Cultural.
Para o historiador Roger Chartier, expoente dessa nova História
cultural a noção de apropriação é reformulada e afasta-se do significado
que Foucault lhe deu como uma noção de discurso construído em
determinado momento e que se estabelece conformando sujeitos e
mecanismos de dominação e; também do sentido que lhe deu a
hermenêutica quando a coloca como o momento em que um texto ou
narrativa é aplicada a um sujeito, e este, por meio da interpretação,
transforma a compreensão que tem de si e do mundo, transformando
também sua experiência fenomenológica tida como universal.6
Ao estudar as formas de leitura e a circulação dos textos no
Antigo Regime, Chartier explicita o seu conceito de apropriação visando
a uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas
determinações e que se referem às práticas especificas que os
constroem7. Interessava entender como os textos chegavam aos
leitores, os modos distintos como estes se apropriavam dos mesmos e
os sentidos que lhes davam, bem como as formas materiais dos
impressos e as maneiras através das quais deveriam ser lidos. 8.
No contexto lagartense, a noção de apropriação deve ser
entendida a partir das representações que os artistas fazem de si e que
os múltiplos segmentos sociais fazem dos artistas locais “alternativos” e
dos seus conteúdos. Quem são estes artistas, como se auto-identificam
(num mundo marcado por identidades fragmentadas)9 e como são
vistos? Esta é nossa problemática principal, mas que não exclui de modo

6
CHARTIER, Roger. “Cultura popular”: revisando um conceito historiográfico. Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1995, v. 8, n. 16, p, 179-192.
7
CHARTIER, O mundo como representação. À Beira da Falésia – a História entre
Certezas e Inquietude. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p.68.
8
CHARTIER, Roger. Idem.
9
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A,
1999.
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algum as tradições do lugar, marcadamente fundado em tradições
memorias do passado10.
Do ponto de vista da historiografia, nossa temporalidade se
remete ao estudo da História do tempo presente, que se apresenta não
somente como desafio, mas, sobretudo, como abordagem crítica do
problema, ao pensar metodologicamente os sujeitos em suas
experiências históricas como em qualquer outra época, ou seja, estudar
o presente é também dar satisfação às demandas sociais e o “impacto
de geração” como afirma Chaveau e Tetart 11. No caso específico de
Lagarto, o boom dos estudos historiográficos sobre o presente no Brasil
e a demanda por tentar entender uma nova configuração dos espaços e
sujeitos culturais na cidade.
O conhecimento histórico passou por intensas modificações ao
longo do século XX. Três elementos foram fundamentais na visão de
Barros ( 2010), a saber: a crise de um único paradigma, a especialização
cada vez maior do conhecimento e a interdisciplinaridade. Estes fatores
juntos levam o historiador a pensar na interconexão dos domínios com
as abordagens históricas e dentro das dimensões maiores que compõem
uma realidade mais ampla e complexa.12 Desta forma, nos arriscamos a
pensar nosso objeto dentro da dimensão da Nova História Cultural ao
investigar as formas como uma sociedade é levada a se pensar e refletir-
se, sobretudo a partir de suas práticas culturais e representações; dos
domínios da História Local e Regional; e das abordagens da História Oral
e História dos Conceitos13. Logo, estudar as práticas culturais
lagartenses significa inseri-las no âmbito local. Para NEVES,

A história regional e local consiste numa proposta de


estudo de atividades de determinado grupo social
historicamente constituído, conectado numa base
territorial com vínculos de afinidades, como

10
Carvalho, Anselmo F. M. Memória, história e identidade: as construções da
lagartinidade ontem e hoje. Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História. ANPUH,
UFSC, 2015.
11
CHAUVEAU, Agnes.& TETART, Philipe. Questões para a história do presente. Bauru-
São Paulo: EDUSC, 1999.
12
BARROS, José D Assunção. O lugar da história local na expansão dos campos
históricos. IN: História Regional e local: discussões e práticas.Org. OLIVEIRA SANTOS, A.
M & REIS, I. F – Salvador: Quarteto, 2010, p. 217-241.
13
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146.
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manifestações culturais, organização comunitária,
práticas econômicas, identificando-se suas interações
internas e articulações exteriores e mantendo-se a
perspectiva de totalidade histórica.”14

Consoante Barros15 “toda história é local” e ela se reafirma


dando conta do que as dimensões sistêmicas não dão e,
concomitantemente, visibilizando viveres e práticas de determinados
locais contribuindo, assim, para reforçar as identidades locais e dar luz a
novos aspectos, como é o caso das práticas culturais lagartenses.

2. Os artistas lagartenses por eles mesmos


Nas últimas décadas, pôde-se observar um esforço por
parte da juventude lagartense para a criação de uma cena cultural
alternativa. Surgiram movimentos como: “Junta Tudo”16, “Gente, bares
e poesia”17, “Sarau da Caixa D’água”18 e som “Som na Praça”19. Maria
Angélica Amorim Correia, artista local que divide-se entre a gestão do
município, ocupando o cargo de diretora cultural e diretora e atriz
teatral, nos dá pistas dessa movimentação cultural na cidade,

Na atividade artística mais direcionada ao teatro, eu


comecei com nove anos de idade, com
representações, com atuações dentro da escola, e
aos treze anos comecei a escrever e a ajudar
organizar concursos de poesias no município de

14
NEVES, Erivaldo F. História regional e local: fragmentação e recomposição da
história na crise da modernidade. Salvador: Arcádia, 2002, p.45.
15
BARROS, Idem.
16
Movimento predecessor do Sarau da Caixa D’água que reunia artistas populares em
Lagarto.
17
Movimento realizado no espaço de diversão e ludicidade homônimo do movimento.
18
Movimento surgido em 2013, realizado pelo artista Affonso Augusto e outros
lagartenses, nos últimos sábados de cada mês na praça da Caixa D’água, região central
de Lagarto . Reúne artistas de diversos gêneros musicais, modalidades artísticas e
público variado de gênero, classe e cor.
19
Movimento surgido em 2015 realizado pelo artista Affonso Augusto, aos domingos
na praça Philomeno Hora. Reúne artistas de diversos gêneros musicais e público
variado de gênero, classe e cor.
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Lagarto, aos quatorze anos, eu já atuava no grupo de
teatro local e comecei a atuar no grupo de teatro e a
trabalhar mais efetivamente na organização de um
concurso de poesia que a gente chamava de concurso
marginal de poesia aqui em Lagarto. Como também
ajudei na realização dos festivais de músicas popular
aqui em Lagarto, a gente organizava a Semana de
Arte Moderna de Lagarto, a gente organizava o
festival Lagartense de música popular, além do
concurso municipal de poesia e a gente trabalhava
também na Associação Cultural de Lagarto, que é
uma associação que ela tem mais de quarenta anos
de existência.20

O músico Afonso Augusto, já veterano na atuação dessa


cena cultural alternativa e idealizador de eventos importantes que dão
visibilidade aos sujeitos culturais de Lagarto como o Sarau da Caixa
D'água e o Som na Praça, conta um pouco da gestação da cena
alternativo/contracultural lagartense atual e também nos relata que já
houveram, no início da década de 1990, eventos que procuravam unir a
juventude que já produzia de forma alternativa.

Acontece em Lagarto desde 2006, um evento


chamado “Ajunta Tudo” onde eu organizei,
juntamente com Paulinho da Lacertae, um evento
que reunia músicos, poetas, atores, artistas plásticos,
desenhistas enfim... Pessoas que se reuniam numa
praça, na praça principal da cidade, a Praça da Matriz,
e ficavam lá conversando sobre arte, ficavam às vezes
tocando, às vezes recitando, às vezes encenando até.
(…), esse nome “Ajunta Tudo” é um nome que já foi
usado no passado em 92/93 por outra galera que
também agitou a cidade naquela década, no início
daquela década, e esse nome foi copiado em 2006
por uma nova galera, com uma nova roupagem, em
outro contexto. (...) Depois de 2006, seguiu-se o

20
DEPOENTE 01. Maria Angélica Amorim Correia. Entrevista concedida ao pesquisador
Anselmo Machado.Lagarto, 11/11/2015.
89 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Ajunta Tudo acontecendo em espaços como
bibliotecas, como secretarias, o auditório da
secretaria de educação, como bares e em 2012
fizemos o primeiro “Gente, bares e poesia” que tinha
a mesma proposta que o Ajunta Tudo. (…) o Sarau da
Caixa D’água é a síntese do Ajunta Tudo e o
“Gente,Bares e Poesia” e inspirado no Sarau Debaixo
que aconteceu em Aracaju. (...)21

Dar visibilidade histórica aos expoentes alternativos de Lagarto é


preencher uma lacuna significativa de sua história, marcada como
dissemos, por grandes nomes e vultos nacionais. Inserir estes sujeitos
no cenário de produção, sobretudo, alternativo, é um desafio a ser
enfrentado em níveis conceituais (difícil definir o que é ser alternativo
nos dias de hoje), mas que marca fortemente a identidade de uma
juventude como, por exemplo, a banda lagartense de rock Estúdio Box &
Azulejo que produz e veicula seus produtos culturais fora das balizas do
mercado, ou mesmo do ator Pedro Cazoy do grupo Sete Panos e Cobras
e Lagartos, protagonistas da cena teatral local. Portanto, esta proposta
de pesquisa além do seu caráter investigativo e científico, visa dar uma
contribuição aqueles que estão à margem dos processos dominantes e
massificantes, revelando-os para o conjunto da vida cultural de Lagarto
e de Sergipe.
As fontes orais são nosso instrumento metodológico. No
conteúdo das entrevistas podemos perceber como estes artistas se
identificam e qual conceito de alternativo/contracultural operam.
Kosseleck ao problematizar a história dos conceitos afirma
primeiramente que os conceitos precisam ser passíveis de serem
historicizados.22 Nesse sentido, o conceito de alternativo/contracultural
se insere nesta perspectiva. Esse mesmo autor, também alerta para
pensar os conceitos dentro dos contextos de sua atuação. Na analise em
questão o cenário de investigação é a cidade de Lagarto. No entanto,
precisamos voltar a um problema de ordem teórica: a cultura

21
DEPOENTE 09. Afonso Augusto. Entrevista concedida à pesquisadora Sofia Roque.
Lagarto, 23/02/2016.
22
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146.
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alternativa/contracultura se aplica à realidade contemporânea cada vez
mais marcada pelas investidas do mercado e da indústria cultural?

Pode-se entender contracultura, a palavra, de duas


maneiras: a) como um fenômeno histórico concreto e
particular, cuja origem pode ser localizada nos anos
60; e b) como uma postura, ou até uma posição, em
face da cultura convencional, de crítica radical. No
primeiro sentido, a contracultura não é, só foi; no
segundo, foi, é e certamente será23

Alguns autores, no entanto, acreditam que praticamente não


tem sentido falar em contracultura e/ou cultura alternativa hoje em dia.

Porém, pode-se admitir que sempre teremos


transtornos e mudanças quando as bases de um
determinado espaço social e cultural for abalado pela
introdução de inovadoras propostas de valores, de
comportamentos, baseados em idéias que
desestruturam as verdades tradicionalmente aceitas
pela sociedade (...) .... Aquela experiência hoje
clássica, de contracultura plantou uma nova idéia de
família, de casamento, das relações sexuais. Por
outro lado, trouxe uma nova atitude ecológica, o
autoconhecimento do próprio corpo e um novo
conceito de misticisno. Idéias que eram muito
avançadas para o seu tempo. Essas posturas se
refletem nos novos movimentos que caracterizam o
final do século e esta primeira década do novo
milênio.24

Partimos de uma perspectiva que assimila duas questões aqui


apresentadas, a continuidade das práticas alternativas culturais e sua
revalorização de conteúdos enquanto demandas contemporâneas. No
Sarau da Caixa D’água, por exemplo, é um espaço aberto onde

23
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983, p14.
24
MARKMAN, Rejane Sá. Música e simbolização – Manguebeat: contracultura em
versão cabocla. São Paulo: Annablume, 2007, p. 200.
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manifestações de cunho identitarista, para além da arte, se colocam
como temas de afirmação das mulheres, contra a homofobia, pela
criação livre, e pela defesa do meio ambiente, dentre outros aspectos:

Porque todo músico tem um tempo de apresentação


e não dá pra chegar lá e censurar. Até porque o Sarau
não é lugar de censura, até mesmo quem acaba
censurando é o próprio público. Como bandas de rap
que já se apresentaram lá e várias pessoas chegaram
pra gente com “Ah! Eu não gostei de rap no sarau”
“Ah, não sei o quê!” e a gente não vai fazer nada
porque é cultura, porque é rap é cultura também.
Agora claro que o Sarau ele tem uma proposta:
mostrar. É tanto que a gente tava com uma
campanha que a gente pedia pro público levar
cartazes sobre cidadania, violência contra mulher e
até mesmo do machismo e feminismo, enfim… e se
isso algum dia acontecer a gente vai deixar eles
tocarem só que depois claro que a gente vai falar. A
gente não vai agredir ou depreciar.25

Outro aspecto presente no contexto lagartense, são as formas e


meios não convencionais de divulgação da arte através de fanzines, por
exemplo, onde se tem um caráter não mercadológico e onde se
externaliza através da liberdade autoral questões contemporâneas
como a presença da informática e da internet na vida das pessoas. Alef
Souza assim demonstra em seu fanzine: “Loading...Desculpe! Ocorreu
um erro! Aguarde um momento.Enquanto isso leia mais poesia”;
“Poema para o facebook: A África agradece seus améns”; Virtual: “ Já
lutei contra Aliens corri sobre o inferno, matei vários deuses, participei
de filmes pornô, discuti sobre o espaço, salvei o mundo, curti a vida
loucamente, vi de tudo na vida, conversei com o diabo e deixei meu
amém”26
Esta produção é marcadamente contracultural, devido ao seu
caráter informal e ilustrada abaixo:

25
DEPOENTE 02. Thalia Leal. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo Machado.
Lagarto, 09/10/2015.
26
SOUZA, Alef. Not foundo 404 loading. Fanzine, Lagarto.
92 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Mas afinal, como se vêem esses artistas? Quais identidades
alternativas/contraculturais aparecem em seus discursos? Para esta
artista lagartense, cultura alternativa seria:

Eu creio que cultura alternativa para mim, vai ser


tudo aquilo sai do comum, a partir de um edital,
tendo um vínculo com alguma instituição. Sendo algo
que surge de uma necessidade de um determinado
grupo, de uma determinada comunidade, o fato dela
ser alternativa, é justamente o fato dela está a
margens dessas considerações, no sentido de órgãos
de instituições, instituições públicas, como exemplo,
eu posso muito bem falar das duas, pois como eu
trabalho na cultura alternativa através do grupo de
teatro, como eu represento uma instituição pública
porque eu estou dentro de um cargo público na
prefeitura do município. Então, para que a gente
trabalhe com o Sarau, por exemplo, existe toda uma
burocracia que às vezes impede a realização de
alguma coisa. Quando você trabalha de uma forma
alternativa você não está preso a uma determinada
regra, como as leis que direcionam a realização dos
eventos, quando é alternada, o fato de ser alternativa
não quer dizer que você desrespeite a lei, ou você
faça algum tipo de jogo que a lei seja burlada em
função daquele evento, e não é isso. Assim, você sai
daquela dependência de um onde vai vir o material,
os equipamentos, as pessoas que vão trabalhar são

93 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
essas, e não aquelas, de onde vem o dinheiro, tem
que vir daquela secretaria, essas coisas assim... 27

Como podemos perceber, o conceito


alternativo/contracultural passa pela autonomia do fazer cultural. A
independência de produzir e veicular sua arte sem a necessidade de
recorrer ao poder público ou mesmo privado,

Acho que pelo “faça você mesmo” o “faça você


mesmo” é a maior representação de algo
contracultural atual, então se valendo do contexto
histórico mais contemporâneo de fato. É isso. É você
conseguir seus próprios shows, equipamentos. É você
fazer acontecer independente do apoio público ou
privado.28

Ao fazer a crítica aos espaços convencionais de divulgação os


artistas lagartenses difundem suas obras a partir da internet, redes
sociais e das apresentações ao vivo. Dessa forma,

O principal meio de divulgação é a internet quando a


comercialização é apenas por meio de shows é como
se fazia acho que 70 anos atrás. A gente não vende
disco, a gente não depende da venda de disco, da
venda de nossa música, a nossa música é só tocada

27
DEPOENTE 01. Maria Angélica Amorim Correia. Entrevista concedida ao pesquisador
Anselmo Machado. Lagarto, 11/11/2015.
28
DEPOENTE 03. Ítalo Duarte. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo Machado.
Lagarto, 11/11/2015. Outro artista chamado Alysoul, cantor de Simão Dias e que se
apresenta constantemente em Lagarto assim define “Penso que independente está
voltado a participar de todo processo de produção criativa, técnica e custos. O
alternativo estaria relacionado com uma proposta diferenciada no conceito e estética
do trabalho, prefiro dizer que faço música sem me preocupar tanto com rótulos, deixo
fluir pra depois entender o que surgiu.” Entrevista realizada pelo site
http://bagaceiratalhada.com.br/entrevista-alysoul-fala-sobre-sua-atuacao-no-cenario-
da-musica-independente-e-autoral/. Acesso em 24/04/2016.
94 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
ao vivo, mas a divulgação é pela internet.
Basicamente pela internet. 29

Perguntados sobre os espaços de atuação, boa parte dos


entrevistados credita às ruas um espaço natural da contracultura
lagartense, “uma poesia sem paredes, sem algemas, uma arte livre, sem
instituto, que não é de engravatado, sem muros, onde a oralidade é
fundamental, feita pra rua”30 como afirma Jaflety Pedro, poeta
lagartense. Da mesma forma Pedro Cazoy, artista de teatro argumenta :

A praça é nossa, "é nóis" na rua e ninguém desata!


É... a gente não tem espaço e a gente ocupa as
praças, ocupa a porta dos bares... a gente tá atuando
nesses locais de acesso para o público mesmo,
qualquer pessoa que esteja interessada em assistir,
vai assistir, vai ouvir a música, vai ouvir a poesia, vai
assistir o teatro. Se você estiver interessado, você vai
lá e você vai assistir, só precisa do seu interesse, só
do seu interesse.31

Muito embora a rua seja espaço natural, os artistas se queixam


bastante sobre a ausência do poder público na consolidação de políticas
culturais, principalmente no custeio e disponibilidade de espaços físicos
para as práticas culturais:

29
DEPOENTE 03. Ítalo Duarte. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo Machado.
Lagarto, 11/11/2015. O poeta Alef Souza também vai neste sentido e explana que, “eu
já expus em fanzines que são livretinhos feitos a mão que eu mesmo produzi e eu
lancei no Sarau. Com poesias voltadas para a modernidade, tecnologia. O amor laçado
e Prisão a cada vácuo que é mais lançado ao amor, o amor moderno. Então eu lancei
esses dois foi mais em Facebook mesmo, redes sociais. Eu tenho um blog também:
Aleffsouza.blogspot.com”. DEPOENTE 04. Alef Souza. Entrevista concedida ao
pesquisador Anselmo Machado. Lagarto, 11/11/2015.
30
DEPOENTE 06. Jafletly Pedro. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo
Machado. Lagarto, 08/12/2015.
31
DEPOENTE 07. Pedro Cazoy. Entrevista concedida à pesquisadora Sofia Roque.
Lagarto, 12/12/2015.
95 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Eu acho que como é cultura, cultura abrange tudo,
então cultura não é apenas o que eu gosto, é algo
muito maior que aquilo que tenha que dá nomes e
aqui há uma carência enorme, há falta de recursos e
se não fizermos isso, não rola, não acontece e
quando acontece não é aqui, é em Aracaju ou em
outras cidades. Então isso dado pelo porte que ele
tem, Lagarto é uma pedra a ser lapidada e o porte
que essa cidade tem é tudo muito pouco, e quanto
mais eventos, quanto mais a gente abraçar essa
causa acho que… mais vai aparecer artistas, vai
aparecer poetas, músicos, enfim. Porque o fato de
não haver esses eventos, não haver esse apoio, essa
porta aberta faz com que muitos fiquem reclusos,
tipo: “eu não tenho onde mostrar eu não tenho a
quem mostrar, então vou ver outra coisa que me dê
dinheiro e que me satisfaça de alguma forma.” Isso é
muito chato.32

Daí a emergência deste movimento como uma resposta a essa


ausência. Desse ângulo, também é possível observar que esse
movimento cultural, que traz eventos como o “Sarau da Caixa D’água”
ou mesmo o “Gente, Bares e Poesia”, vem para suprir essa necessidade
por espaço e visibilidade dos artistas que produzem de forma

32
DEPOENTE 02. Thalia Leal. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo Machado.
Lagarto, 09/10/2015.A mesma afirma ainda que “Só as praças, por não temos um
auditório, porque o auditório que tem aqui é próprio da secretaria de educação, mas
há uma grande burocracia pra conseguir, se você não tem conhecimento você não
consegue.O sarau é uma organização ímpar, é tanto que no início tínhamos apenas 4
pessoas organizando. Mas o público que frequenta hoje não é o mesmo que foi ao
primeiro Sarau, não esperamos que o sarau fosse durar tanto e não esperaríamos que
o público fosse tão grande”. Maria Angélica afirma alguns avanços “a propositora da
criação do Conselho Municipal de Cultura. Que na verdade ele já foi criado, falta a
seleção, e aí a partir da seleção do conselho, a partir do próximo ano, o sistema
nacional de cultura que já está criado. Já está formado, passará a existir realmente de
forma efetiva e aí o artista ele vai poder buscar o município com o seu projeto. O
município vai poder lançar editais de concorrência, e o fundo municipal de cultura vai
poder estar participando, porque o percentual da renda municipal. Então a gente acha
que até o meio do ano que vem, esse sistema, ele já vai estar funcionado e ele vai
facilitar um pouco mais a vida do artista, no que diz respeito a fomento, a dinheiro
mesmo”.
96 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
independente em Lagarto. Em entrevista, Afonso Augusto afirma que
idealizou o projeto do Som na Praça (Evento realizado na cidade, que
traz músicos locais para tocar todos os domingos), para atender a
grande demanda de músicos que desejavam expor seu trabalho no
Sarau da Caixa D’água:

O som na praça surgiu com uma necessidade de


atender a demanda de artistas musicais que queriam
se apresentar no sarau, aí para a gente não estender a
programação musical do sarau, eu criei o Som na
Praça. Para que fosse mais uma proposta para atender
essa demanda porque eram muitos, filas e mais filas
de gente querendo tocar no sarau e o sarau é só uma
vez por mês, não dá para atender a todo mundo com
certa emergência e o Som na Praça veio para atender
essa demanda de músicos.33

Logo, o município possui uma grande quantidade de artistas


(tanto na música, quanto no teatro, dança...) que vêem nesses espaços
considerados “alternativos”, uma chance de expor suas produções e
algo necessário para fomentar a cultura lagartense. A imprensa local
tem divulgado, mesmo que timidamente, um pouco da atuação dos
artistas alternativos lagartenses.

Nenhuma imprensa seja ela escrita, falada, virtual ela


tem a intenção, ela abre espaço pra noticiar nossa
arte. A única que noticia é a que eu trabalho, porque
eu trabalho, porque se eu não trabalhasse não
noticiava. Porque eu sou do meio e acabo
aproveitando o veículo justamente pra divulgar,
mesmo assim não é o forte do veículo. O Portal
Lagartense é um site de notícia. Já fui chamado pra
uma rádio comunitária, pra um programa que eu não
sei se ainda tá tendo, não vi mais repercussão que
também era na rádio comunitária, mas muito pouco!
Digamos que 5% de todo o fluxo de informação que

33
DEPOENTE 09. Afonso Augusto. Entrevista concedida à pesquisadora Sofia Roque.
Lagarto, 23/02/2016.
97 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
existe da imprensa, as outras áreas sem ser a
comunitária é aí que não entra mesmo, aí que não
tem espaço mesmo.34

Entretanto, uma rápida pesquisa no portal largatense.com.br e


outras mídias lagartenses encontramos quase duas dezenas de matérias
sobre a cultura lagartense, os artistas, os eventos etc. Fato que nos
enceja em quase uma década de história, justamente a baliza temporal
deste trabalho. As produções teatrais foram vizibilizadas, o poeta Ivilmar
Gonçalves (falecido), os demais poetas como Jaflety Pedro, os membros
da Cia de Teatro Cobras e Lagartos e 7 panos, as mostras de artes
plásticas, as participações de lagartenses em festivais de poesias e
cinema, dentro e fora do estado de Sergipe. Sobre a matéria “Cobras e
Lagartos comemora dez anos”:

Desde seu surgimento em 2003, a companhia vem


revelando atores e artistas lagartenses. O Cobras &
Lagartos nasceu de uma ideia do poeta Assuero
Cardoso, que aproveitou sua experiência no teatro
depois de ver potenciais artistas na cidade. "Eu vi que
muitos jovens estavam ociosos, então resolvi recrutá-
los e formar o grupo", contou o fundador, que
lembrou a primeira reunião dos futuros atores em
sua casa há exatos dez anos. Mas havia uma segunda
intenção na criação do grupo. Segundo Assuero, a
cidade necessitava despontar para o cenário artístico
sergipano. "Também para dar crédito à nossa terra.
Estávamos opacos, apagados. Para Lagarto foi um
passo muito grande", afirmou ele, aproveitando para
listar grupos influenciados pelo Cobras, como o
Louvor Sertanejo e o Tecendo a Manhã. 35

34
DEPOENTE 03. Ítalo Duarte. Entrevista concedida ao pesquisador Anselmo Machado.
Lagarto, 11/11/2015.
35
Trecho de notícia sobre a Cia de teatro Cobras&Lagartos disponível no Portal
Lagartense: http://www.lagartense.com.br/14572/cobras-e-lagartos-comemora-dez-
anos .Acesso em: 04/05/2016.
98 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
O membro da Academia de Letras Lagartense, Rusel Barroso
atestou,

Simone de Beauvoir afirma que "é na arte que o


homem se ultrapassa definitivamente". Os meninos
da Companhia de Teatro Cobras & Lagartos são
exemplos que transcendem qualquer passagem. Eles
encantam multidões, promovem felicidade e
mostram o sorriso do Lagarto, terra admirável e
acolhedora. 36

Os comentários a estas matérias nos remetem a uma


participação dos próprios pares artistas que reforçam nesta imprensa, a
valorização da cultura local e uma “remissão recíproca” dos alternativos
lagartenses: “É emocionante saber que um jovem lagartense arregaça as
mangas, escolhe o caminho da arte numa cidade difícil feito a nossa e
conquista espaço e é reconhecido lá fora. Pedro, você é orgulho da
gente!” afirmou o poeta Assuero Cardoso em observância à matéria. 37
Outro trecho das respostas à matéria que nos informam as formas de
recepção e apropriação dos conteúdos culturais, trata de forma irônica
e reafirma valores alternativos. Assim explana o comentarista,
“Parabéns, estamos sempre na torcida por você e seus projetos. Peço
que nunca perca este seu jeito ácido, questionador e carinhoso (tudo
misturado!!!). Precisamos reagir ao rótulo de país da bunda e do
futebol...”38 Esta mesma imprensa que se intitula também alternativa e
cujas atribuições e identidades reforçam também o seu caráter

36
http://www.lagartense.com.br/14572/cobras-e-lagartos-comemora-dez-anos.
Depoimento de Rusel em 08/-2/2013. Em outra matéria se destaca o poeta Ivilmar
Gonçalves “Orgulha-se de ser conterrâneo de gente como Silvio Romero e Assuero
Cardoso. Começou a escrever poemas ainda no Ensino Médio (1999 a 2001), no
Colégio Abelardo Romero Dantas - o popular Polivalente, onde tomou gosto pelos
concursos literários do gênero. Daquela época, conquistou o prêmio de Melhor Poesia,
com o texto "Deus Doente", no VII Concurso Estudantil de Poesia Falada de Lagarto e
Região, sendo agraciado também como Melhor Intérprete.”
http://www.lagartense.com.br/9098/ivilmar-o-poeta-de-alma-lagartense.escrita em
11/06/2012
37
http://www.lagartense.com.br/32625/pedro-cazoy-conquista-premio-de-melhor-
ator-na-paraiba.Acessoem 04/05/2016.
38
Comentário sobre a mesma matéria citada acima.
99 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
contracultural. Afirma a jornalista do site
http://bagaceiratalhada.com.br, Daiane Carvalho:

Eu trabalho no Bagaceira, mas nenhum de nós


assim... A gente não recebe nada a gente meio que
trabalho voluntariamente porque acho na verdade é
uma relação de amor com a profissão e não só amor,
mas principalmente, é... Exercer nosso papel quanto
a comunicadores de apoiar uma cena que precisa,
sabe? Porque, por exemplo, é... Sarau Debaixo, sarau
da Caixa D água, Movimentos alternativos que
acontecem em Aracaju, entre abraços... esses
espaços culturais que acontecem, né? de forma
alternativa, na linha alternativa. Eles não têm grande
visibilidade da grande mídia que é Tv Sergipe e etc.
Enfim, eles não têm visibilidades e a gente chega pra
suprir essa necessidade desse pessoal, assim. então,
a gente não tem essa lógica de tipo.. vender e tal. No
caso da circulação que é o nosso trabalho a gente se
utiliza de redes sociais, as redes sociais ajudam muito
na evolução e até o alcance de... novos públicos. E o
que o apoio que a gente tem é justamente uma troca,
né? A gente dá uma visibilidade aos movimentos
alternativos e o cenário independente contribui
também pra que agente possa crescer, acho que é
isso.39

Além da divulgação dessas produções e eventos na mídia da


cidade, o portal lagartense, esse movimento tem sido timidamente
noticiado em jornais estaduais.40 No Guia do Comércio de lagarto41,

39
DEPOENTE 05. Dayanne Carvalho. Entrevista concedida ao pesquisador Anderson
Eduardo. Lagarto, 09/10/2015. Na entrevista sobre seu publico alvo ela nos revela “O
nosso publico alvo é justamente esse que não tem... é... não tem voz... não tem
visibilidade de uma mídia... é... grande, a grande mídia que não reproduz essas coisas.
Nosso público alvo é esse, mas a gente sempre busca novos públicos porque são vários
públicos. A gente tenta abraçar a todos eles”.
40
http://www.jornaldacidade.net/noticia-leitura/130/86450/9-sarau-da-caixa-dagua-
acontece-neste--sabado-em-lagarto.html#.VyvB2NIrLIV
41
GUIA DO COMERCIO DE LAGARTO. Lagarto: 2 ed Editora Info graphics, 2010-2011. A
vaquejada aparece no Box “Shows e eventos/ Atrativos turísticos” onde é ressaltada a
100 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
todavia o que vemos é um silenciamento desta produção alternativa. O
guia está muito mais interessado em divulgar além do comércio é claro,
os aspectos identitários lagartenses, e os eventos que porventura,
gerassem divisas econômicas para o município.
Outro contraponto que os artistas colocam é o desprezo com
que, digamos, uma cultura mais institucionalizada, invizibiliza esta
produção.
Ademais, esse cenário que envolve não somente os espaços de
produção escrita, seguindo a tradição do lugar, como é o caso da ALL,
mas também os alternativos só reafirmam a importância de Lagarto no
cenário cultural de Sergipe e quiçá brasileiro.

Considerações finais
Através do método da história oral utilizado nas entrevistas
feitas com os sujeitos artísticos de Lagarto e análise de suas produções
(músicas, fanzines, poesia, peças teatrais...), pode-se ter um quadro
geral sob a perspectiva destes sujeitos perante o surgimento de uma
cena alternativa/contracultural lagartense. O próprio conceito do que
seria uma cultura alternativa, por muitos destes artistas é identificada
como aquilo que vai de encontro com um conceito pré-estabelecido de
cultura ou até mesmo caracterizada por um meio de produção e
divulgação da arte feito de forma independente do poder financeiro ou
público. Através de entrevistas também foi identificado um histórico
dessa movimentação alternativa/contracultural que data do início dos
anos 1990. Outros fatores importantes notados foram: o intenso uso da
internet como forma de divulgação da arte, uma vez que o espaço
desses artistas na mídia oficial é pouco.
Diante das fontes coletadas, o objetivo desta pesquisa foi
problematizar a perspectiva dos artistas alternativos/contraculturais
procurando levantar o questionamento sobre o que é cultura alternativa
e como esta se manifesta e é produzida. Trazer visibilidade e voz aos
sujeitos culturais alternativos lagartenses para que estes possam expor
por si (através de sua arte e dos registros feitos para esta pesquisa) a
perspectiva dos que procuram produzir fora das balizas do mercado e
no espaço geográfico do interior sergipano.

sua existência há 50 anos atraindo muitos visitantes que se concentram no Parque


Zezé Rocha, de propriedade do ex- prefeito da cidade e idealizador do evento.
101 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Fontes

GUIA DO COMERCIO DE LAGARTO. Lagarto: 2 ed Editora Info graphics, 2010-


2011.
SOUZA, Alef. Not foundo 404 loading.... Lagarto, s/d. ( Fanzine)
_________. Amor-daçado( Prisão lacrada a vácuo). Lagarto, s/d. ( Fanzine).
DEPOENTE 01. Maria Angélica Amorim Correia, professora, atriz da
companhia Cobras e lagartos e natural de Lagarto.
DEPOENTE 02. Thalia Leal, idealizadora do Sarau da Caixa D’água.
DEPOENTE 03. Italo Duarte
DEPOENTE 04. Alef Souza, poeta lagartense.
DEPOENTE 05. Dayanne Carvalho, jornalista lagartense
DEPOENTE 06. Pedro Cazoy, ator teatral lagartense.
DEPOENTE 07. Jaflety Pedro, poeta lagartense.
DEPOENTE 08. Kiko Monteiro, artista lagartense.
DEPOENTE 09. Afonso Augusto.Cantor lagartense e um dos
idealizadores do Sarau da Caixa D’água.
DEPOENTE 10. Edclécia Santos, atriz da companhia cobras e lagartos e
natural de Lagarto.

Fontes jornalísticas
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bonifacio>. Acesso em:06/06/2015.
<http://www.lagartense.com.br/14572/cobras-e-lagartos-comemora-
dez-anos>. <http://www.lagartense.com.br/1580/estudos-sobre-a-
vinganca>. Acesso em:06/06/2015
<http://www.lagartense.com.br/34503/sarau-da-caixa-d-gua-lagarto>.
Acesso em:06/06/2015
<http://www.lagartense.com.br/22070/estudio-box-e-azulejo-fala-do-
novo-album-da-banda-lagartense>. Acesso em: 06/06/2015.

102 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
<http://www.lagartense.com.br/32625/pedro-cazoy-conquista-premio-
de-melhor-ator-na-paraiba>. Acesso em:06/06/2015.
<http://www.lagartense.com.br/9098/ivilmar-o-poeta-de-alma-
lagartense>. Acesso em:06/06/2015.
<http://www.lagartense.com.br/32850/retrospectiva-2014-lagarto-
com-feitos-culturais-marcantes>.
<http://www.lagartense.com.br/9453/o-ultimo-adeus-a-ivilmar>.
Acesso em:06/06/2015
<http://www.lagartense.com.br/26478/noite-lagartense-no-concurso-
de-poesia-de-penedo>. Acesso em:06/06/2015
<http://www.lagartense.com.br/9012/zaninho-urashima-o-intrepido-
artista>. Acesso em:06/06/2015
http://bagaceiratalhada.com.br/entrevista-alysoul-fala-sobre-sua-
atuacao-no-cenario-da-musica-independente-e-autoral/ acesso em
14/04/2016
http://bagaceiratalhada.com.br/estudio-box-azulejo-fala-sobre-seu-
novo-disco-e-os-eventos-clandestino-e-rock-sertao/
http://aleffsouza.blogspot.com.br/
http://www.estudioboxeazulejo.com.br/
http://www.jornaldacidade.net/noticia-leitura/130/86450/9-sarau-da-
caixa-dagua-acontece-neste--sabado-em-lagarto.html#.VxA4atQrLIV-
acesso em 14/04/2016

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_______. “Cultura popular”: revisando um conceito historiográfico.
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CARVALHO, Anselmo F. M. Memória, história e identidade: as
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CHAUVEAU, Agnes. e TETART, Philipe. Questões para a história do
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KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e
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contracultura na Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009.
MARKMAN, Rejane Sá. Música e simbolização – Manguebeat:
contracultura em versão cabocla. São Paulo: Annablume, 2007
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STOTZ, Eduardo Navarro et alli. Vinte anos de resistência: alternativas
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recomposição da história na crise da modernidade. Salvador: Arcádia,
2002
PEREIRA, Carlos Alberto M. O que é contracultura. São Paulo:
Brasiliense, 1983
ROMERO, Silvio. Folclore Brasileiro- Cantos populares do Brasil. TOMO I
e II. Rio de janeiro: José Olympio Editora, 1954

104 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Anexos Cartazes do Sarau da Caixa D’água (Edições de 2014 e 2015)

105 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
106 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
POEMAS
OUTRO DISCURSO SOBRE O MÉTODO

1
César de Oliveira

A expressão reta não sonha.


Manoel de Barros

Um estudo
transversal
da poesia
deve começar
pelo quadrante
superior esquerdo
do teu tronco.
O gráfico,
de amostras
que não se aplainam,
autodesenha-se
hiperbólico,
ainda que os objetivos
(vãos)
tenham nuances
uniformemente
acabadas.
Pode a investigação
ser superficial
– de superfície –
e rastejar
o esquadro
pelo que antecede
a tua própria
epiderme.
Não pode,
contudo,

1
Professor e poeta, membro da Academia Lagartense de Letras.

109 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
perder de vista
a nudez
do corpo
e da cor,
tom sobre tom
de uma existência
veloz.

É natural que
se estranhe
a princípio
o entranhamento
de realidade
tão pouco física,
mas é preciso
antever
que todo fato
se esfacela
ao resvalar
em nossos olhos.
O céu sem plumas
perto da chuva,
o cão anuviado
com sede da língua,
o tempo aos uivos
em busca da
natureza perdida:
toda sorte de coisas
se desata do caos
ao ser condensada
pela imagem verbal.

Por fim e infinitamente,


por transversal que é,
tal estudo atravessa
a dor do mundo,
do sul da Ásia
ao deserto do
Atacama,
110 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
e percorre
o lençol que vai
do quadrante inicial
que principia o poema
(teu peito aberto
rendido a conhaques)
ao delta líquido
do regaço –
universalmente,
o epicentro
do desejo.

111 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
O ESPELHO DAS VAIDADES

1
Bruno Candeas

o espelho
das vaidades
reflete
o desejo

o corpo
e suas
intenções

a imagem
plastificada
do mais íntimo
cárcere

ser
parecer
não perecer

1
Poeta e compositor pernambucano.

113 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
ENCONTROS

Bruno Candeas

palavras

que se

completam

são palavras

que se

encontram

onde se

encontrariam

os amantes

em qualquer

lugar

em poucos

instantes

...

114 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
COM TANTAS PALAVRAS

1
Lin Quintino

Quando me abri para o mundo,


ainda ingênua e tola,
já trazia minhas palavras
tímidas e poucas.

O tempo me carregou a ingenuidade


e deu-me vivencia e rimas.
Assim fui compondo versos
ainda temporários e secos.

Mas fui caminhando nas palavras,


fazendo do inesperado meus versos
e desestabilizando o meu mundo
tão riscado e certo.

E, quando me vi com tantas palavras,


finalmente, criei meus poemas, pois
achei pras coisas todos os nomes...

Menos pra essa dor que o peito me consome...

1
Poetisa mineira.

115 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
ACREDITE NO AMOR

1
Júlia Romero

O amor é um sentimento grandioso,


A nossa poesia transmite o ser íntimo,
Quiçá, os maiores elementos incríveis,
O que seria do amor
Sem o sentimento
Sem o sentir.

Toca em mim,
Sinta aquele olhar sincero,
Acredita no amor,
No pressentir,
No sentir e amar.

Vamos amar,
Olhar para o céu, vê o amor na estrela
Que transcende no seu SER

No AMAR

E no SENTIR.

1
Poetisa lagartense.

116 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
ENTENDER A LIBERDADE

Júlia Romero

Que tamanha rebeldia


Vivenciá-la e sentir
Abrir asas por novos horizontes,
Eternidades,
Tantos questionamentos,
Reflexões diárias,
Eternas idas, e eternas voltas,
Não quero as minhas respostas,
Todos os meus avessos,
Eu quero a liberdade...
Que eu Precisava Sentir,
Pela alma lavada.

117 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
CONTO
O CATADOR DE PAPELÃO

1
Marcos Antônio Lima

Mauricio Roden era um sujeito de pele alva-maçã, 1,83 metros,


95 quilos, cabelos e barba castanhos e compridos. Olhos cor de
jabuticaba verde, e lábios carnudos de sorriso largo. Um tipo
descontraído. A sua pele curtida pelo sol fazia contraste com seus
músculos bem trabalhado e definido, “talvez por ossos do ofício”. Um
homem deveras um tanto despojado, ao mesmo que audaz feito
“falcão”. Roden também tinha o habito de ser um excepcional
espectador do cotidiano, que a tudo observava com esmero. A sua
chegada, juntamente com seu fiel escudeiro Lyon, “um cão da raça
Pastor Alemão” a bela ilha de Paulo Afonso, no interior da Bahia, se deu
numa tarde nebulosa de meados de agosto de 1983, ao som de Rádio
Pirata “Revoluções Por Minutos” que estrugia no cenário do rock
nacional.
Nunca se soube ao certo a sua procedência. Uns diziam que era
de Santa Catarina, outros afirmavam que ele veio do Paraná, e havia
ainda aqueles que dizia ser ele de São Paulo. No entanto, o seu sotaque
“arrastado” denunciava que era das terras dos pampas. A sua
procedência não tem importância. Não mais de que o fato dele morar
numa minúscula e improvisada barraca, construída a base de papelão,
que ficava num terreno baldio nas proximidades do Posto Oasis, e ter
como único companheiro, o seu amado cachorro. Talvez, por não ter
conseguido emprego foi obrigado pelas circunstâncias a exercer a
função de catador de recicláveis, e catava desde o papelão, a latinhas de
refrigerante e garrafas pet. Foi através de seu humilde trabalho, e pela
docilidade de “Lyon” seu fiel cão, que ele fora conquistando a simpatia
dos frentistas e guardas noturnos daquele Posto de combustível.
Aquele homem, apesar da aparência, um tanto desgastada,
ainda era jovem. Deveria ter de seus vinte e seis, para vinte e oito anos.

1
Escritor, Cronista, Poeta e Acadêmico Membro da Comissão de Admissão da ALAS –
Academia Literária do Amplo Sertão Sergipano e membro da Academia de Letras de
Paulo Afonso-BA.

121 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Usava um velho e surrado chapéu de palha, e uma camisa xadrez de
mangas compridas para se proteger dos raios solares, enquanto catava
seu “tesouro”, na companhia de seu melhor amigo, pelas mormacentas
ruas da Capital da Energia, que pareciam cozinhar a vapor. À tardinha
retornavam para o posto de gasolina, seu habitat naquela selva de
pedra. As vinte e duas horas, quando as cortinas de luz se fechavam, e a
noite ficava iluminada pelo esmaecido brilho das estrelas, ele buscava o
refugio de sua humilde, mas aconchegante barraca de papelão, onde a
sua cama, também de “papelão”, o aguardava juntamente com o seu
grosso cobertor de lona, que ajudava a amenizar o frio, e ali deitar e
dormir o sono dos justos, enquanto Lyon vigiava.
Às quatro horas da manhã, antes mesmo do sol apontar com
seus raios fúlgidos no firmamento multicor, o ronco dos motores dos
caminhões acordava o catador e seu cão. Era o despertador habitual de
todas as madrugadas. As inconfundíveis vozes dos caminhoneiros que
pernoitavam naquele posto, se faziam ouvir aos borbotões. O cheiro do
café fresquinho que exalava da lanchonete era um verdadeiro convite
ao desjejum, isso para aqueles pouco privilegiados que possuíam algum
tostão no bolso, o que não era o caso daquele singelo catador, mas
sempre havia uma alma boa, em meio a tantas “almas sebosas” que lhe
pagavam um pretinho, ao mesmo que jogava restos de comida para o
Lyon.
Eis que certa vez, enquanto deliciava-se com o néctar de um
cremoso café, e aguardava pelo surgimento do astro rei, um cochicho
dentre alguns caminhoneiros pareceu chamar a atenção de Mauricio.
Macionílio, um dos frentistas que nutria antipatia pelo jovem catador,
observou que Roden estava atento a conversa, e pensou com os seus
botões: “esse cabra deve é tá querendo roubar os caminhoneiros, só
pode”.
O jovem catador, ao olhar de soslaio, flagrou o olhar de
Macionílio a lhe fazer um raio-x, e disfarçando de imediato, afastou-se
dos caminhoneiros e seguiu em direção oposta. O dia havia se passado
rápido como um flash de um relâmpago, essa fora a impressão que
Mauricio tivera. A noite negra e fria havia chegado acompanhada de
uma brisa suave. Nisso as luzes do posto se apaga, e o frentista Jeremias
senta-se na sua desconfortável cadeira de ferrugem, e espuma
recoberta por uma napa velha e rasgada para entregar-se ao cochilo
rotineiro, enquanto Roden finge se retirar para entregar-se nos braços
de Morfeu.
122 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Os ponteiros do relógio cruzavam a linha de chegada das três
horas da manhã quando o catador, sutilmente se aproxima de um dos
caminhões, levanta levemente a lona de cor verde cana, que devido ao
pó das estradas, assumira um tom de abóbora podre. A leveza de suas
mãos mais pareciam procedimentos de um ato cirúrgico, feito com
grande maestria, o que não é peculiar a um simples “catador de
recicláveis”. Enquanto Lion enfiava o focinho para dentro da abertura
na carga, e balançava o rabo, mexia com as orelhas e grunhia baixinho,
calando-se ao toque das calejadas mãos do catador. Ao constatar que as
suas suspeitas tinham fundamento, lacrou a lona de volta de forma a
não parecer que havia sido removida. Já havia transcorridos alguns
meses desde a chegada daquele enigmático, e ao mesmo tempo
atencioso e prestativo homem aquela energética cidade. E todo dia era
a mesma coisa. Saia logo pela manhã, cedinho, para retornar somente
ao final da tarde. Ficava de bate-papo com os frentistas, menos com
Marcionílio, que demonstrava não ir com a sua cara.
A conversa rolava até o apagar das luzes que acontecia sempre
às dez horas da noite. No entanto, havia nos refolhos do universo, certa
conspiração para que a rotina, daquela madrugada de fevereiro, que
estava mais úmida do que fria, fosse quebrada, e foi. A noite anterior
havia transcorrido em sua peculiar calmaria, na qual se podia ver a lua
em seu quarto minguante, pálida e fina como um anzol feito de osso.
Quando ao alvorecer, os roncos dos motores pareciam querer acordar o
sol, fora substituído pelo som das sirenes. A luz giratória de cor azul
neon dos carros-patrulhas da Policia Federal iluminavam o crepúsculo.
Não se sabia de onde surgiram tantos automóveis, e de dentro deles,
surgir tantos polícias, mais parecia formiga em volta do açúcar. E pode-
se dizer que era, verdadeiramente, um exuberante exercito armados até
os dentes:
– Capitão! Oh, capitão! – Gritava um daqueles homens fardados.
– Aqui, tenente. – respondeu uma voz que vinha de debaixo de
uma “moradia” improvisada. – Pode prender todo mundo! Estão todos
envolvidos com tráfico de drogas. Podem revistar a carga. Tragam aqui
os cães farejadores e comprovem. – Disse a certa voz.
O Primeiro Tenente, um tipo robusto, de pele morena e olhos
quão negros quanto uma noite de trevas, imediatamente acatou as
ordens. Utilizando dois cães farejadores: Vespúcio e Malombas
constataram que em meio à carga, havia vários pacotes de cocaína
revestida em grosso plástico, e tabletes de maconha prensada em meio
123 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
às caixas de madeira, que deveriam conter maçãs, pêssegos, e
morangos, segundo as suas respectivas etiquetas.
Em meio a todo aquele furdúncio, Jeremias, um dos frentistas
que trabalhavam no posto, e naquele momento estava de serviço, ficou
boquiaberto com o que estava testemunhando. Um catador de lixo, no
comando de uma expedição da Polícia Federal, como pode? Esfregou os
olhos para espantar o sonho, e ter a certeza de que não estava
sonhando, e constatou que realmente era tudo muito real.
Em meio a todo aquele alvoroço, e após cinco caminhoneiros
serem atuados em flagrante, e consequentemente presos, enquadrado
no trafico de entorpecente, o jovem Mauricio adentrou numa das
viaturas, e quando saiu dela, estava completamente diferente do
catador de papelão.
Roden envergava o uniforme da Policia Federal, com suas
diversificadas condecorações.
– Enfim, a missão fora concluída com êxito. – Afirmou Mauricio
para o Primeiro Tenente Oliver– Foram longos meses disfarçados,
comendo o pão que o diabo amassou e cuspiu fora. Mas no fim, valeu à
pena. Agora são menos drogas para ofuscar o futuro de nossas crianças,
e menos drogas para desencaminhar e matar nossos adolescentes. –
Concluiu o Capitão da Policia Federal do Brasil: Mauricio Roden de
Alcântara.

124 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
CRÔNICAS
ZÉ CORNO

1
José Carlos Nascimento Júnior

Todas as vezes que ele passava as pessoas gritavam “Zé Corno!” E


ele saudava de volta com um sorriso que apenas se dá aos grandes
amigos. A mão se erguia rapidamente e logo seguia o ritmo da
caminhada. As gozações o pegaram de surpresa no início, mas com o
passar do tempo ele se acostumara com a alcunha. Porém, ele não
entendia porque “Zé”, se ainda fosse “Tonho Corno” teria mais sentido
já que ele se chamava Antônio, Antônio Santo das Virgens.
Quem não conhecia Zé Corno? Das crianças aos mais idosos, todos
o conheciam. Todos gostavam dele. Contudo, ninguém o amava mais
que a sua esposa Pureza. Pureza era a mulher mais bonita que havia
morado naquela cidadezinha. Cabelos longos, pretos, olhos verdes, alta,
aliás, mais alta que o marido dez centímetros. Pureza era cobiçada e
cortejada por todos os homens que viviam inventando visitas a Zé Corno
para ver mais de perto aquela mulher que mal saía de casa.
As mulheres, claro, despeitadas, a odiavam. E foi uma delas que
durante a missa disse para a amiga nos primeiros dias que aquele casal
chegou à cidade: “ao vir para cá, eu vi o diabo, ora se vi. Um homem
pulou pela janela da casa daquele comerciante e fugiu pelo mato que
tem no fundo da casa. Quando chego aqui, olha quem está ali mais na
frente.” E apontou para Antônio que escutava a homilia. “Pobre
homem.” Disse a outra. “Mais um corno na cidade.” E assim a história se
espalhou feito brasa.
Embora fosse difícil o flagrante, em raras ocasiões viam um
homem pulando para fora da casa de Antônio antes de este chegar
horas depois. Zé Corno tornou-se uma celebridade. As mulheres
gostavam de conversar com ele, davam-lhe conselhos sobre a
“mulherzinha” que tinha em casa. E ele sorria agradecendo-lhes pelo
zelo, mas dizia no ouvido delas olhando desconfiado para o lado “no dia
que eu encontrar o safado, ele morre. O danado consegue escapar
sempre de mim, mas um dia eu o pego, ora se pego.” E as mulheres
sorriam satisfeitas dizendo “ela não sabe o homem que tem casa”.
1
Designer e escritor lagartense.

127 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
Muitos homens tentaram entrar na casa de Antônio quando ele
estava fora, mas sua mulher parecia abrir a janela apenas para um. E
esse um era o mistério da cidade. Quem seria aquele homem misterioso
que entrava quando ninguém estava vendo? Não demorou muito e os
homens começaram a reivindicar o feito, inventavam aventuras
amorosas com Pureza e muito mais. Zé Corno, porém, não ligava... ou
parecia não ligar. Era um enigma: quanto mais era chamado de Corno,
mais sua padaria crescia. As mulheres faziam fila para comprar pão,
embora ele não fosse o padeiro e ficasse no balcão, e nem mais
mandavam as crianças que agradeciam por isso.
Naquele dia um raio cortou o céu. Zé Corno olhou para sua esposa
que dormia na cama.
– Pureza. Pureza, minha filha, acorda. Está na hora de eu ir
trabalhar.
Languidamente ela se espreguiçou e disse com um sorriso safado:
– Muitas freguesas hoje?
Antônio pegou no bolso da calça um pedaço de papel com uma
lista de nomes:
– Maria, 23 pães. Josefa, 12 pães. Irmãs Cecília e Ana, 1 pão.
– Hoje não vou ganhar muitos presentes. – Suspirou. – Acho que é
por causa dessa chuva que desde cedo ameaça cair. Mas tudo bem. Saia
que eu fecharei a janela. Só não engravide ninguém, no dia que fizer
isso, arranco suas coisas fora.
E Zé Corno saiu pela janela como sempre fazia. Correu para o
mato e foi para a primeira cliente: Maria. Os 23 pães anotados no papel
significavam o horário em que deveria estar nos pontos de encontro
pré-estabelecidos na padaria. Os maridos estariam dormindo e ele
poderia fazer o que sabia fazer de melhor. Em troca, as mulheres
davam-lhe presentes que ele, por sua vez, dava para sua esposa, e
mantinha sua clientela cativa.
Assim continuou a vida de Zé Corno por muito e muito tempo.

128 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
O MIRANTE, DESPEDIDA...

1
José Expedito Souza

O Mirante era uma propriedade rural próxima à cidade de


Riachão do Dantas. Pertenceu a meu avô Proxílio Pereira de Souza e à
minha avó Maria Batista de Souza (conhecida por Maria de Proxílio,
Maria ou Mana). Quando meu avô faleceu, meu pai ainda era menino.
No Mirante, nasceram e viveram Joana (Caçula), Pureza, Rosa (Loló),
Juca, Zinho e Zuza.
Aos oito anos de idade, no ano de mil novecentos e cinquenta,
com meu pai, tios e primos, acompanhei a medição do perímetro do
sítio por homens que abriram uma vereda cortando macambiras e
arbustos que ficavam ao lado da cerca. Eles usaram enormes facões e
estenderam uma comprida e grossa corrente de ferro sobre o terreno. A
partir do ponto em que ficava o final da corrente, iniciava-se nova
medição, e o auxiliar registava os dados na caderneta. Os homens
passaram quase o dia todo nesse trabalho, que tinha a finalidade de
conhecer o tamanho da área do Mirante, com vistas à sua venda ao
governo do Estado de Sergipe.
No local mais alto do sítio, ficava a casa cercada de umbuzeiros,
mangueiras, goiabeiras e pitangueiras, sufocadas por mato, cansanção e
urtigas.
De glebas próprias para lavoura e matas virgens, o sítio foi
morada e local de sustento para a minha avó Mana, que ficou viúva
ainda jovem e, sozinha, criou os filhos com muita dedicação e
perseverança. A medição do terreno foi concluída. Os homens
recolheram as ferramentas e foram embora. Meu pai dirigiu-se a casa,
subiu os dois degraus de pedras soltas e forçou a porta principal, entrou
e passou um tempão lá dentro. A antiga residência estava, há algum
tempo, desocupada.

1
Escritor e membro do Movimento Cultural Antônio Garcia Filho (MAC), da Academia
Sergipana de Letras.

129 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
E a ação do tempo fazia-se ouvir pelo zumbindo do vento que
passava apertado pelos buracos abertos, que nem ferida, nas paredes
de adobe, no piso, com as lajotas de cerâmica soltas e enormes
cupinzeiros abraçados fortemente as grossas peças de madeira do
telhado. A sua demora causou-me apreensão, pois o ambiente escuro e
úmido poderia esconder alguma cobra ou outro animal perigoso.
Finalmente, ele apareceu, fechou a porta solenemente e se despediu do
passado. Visivelmente emocionado, seu Zuza do Mirante, retirou do
bolso um lenço, enxugou os olhos úmidos e vermelhos que
denunciavam o choro incontido. Pegou a minha mão e descemos a
ladeira sem olhar para trás.

130 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8
PERSONAGEM LAGARTENSE
ANÉSIO FRAGA SOUZA1

Anésio Fraga Souza, o


"Poeta Aprendiz", filho de
Abinésio Andrade de Souza (em
memória) e Maria de Fraga
Souza, nasceu em 15/06/1960 na
cidade de Lagarto, Sergipe.

Há 36 anos mora em
Aracaju, capital de Sergipe. Nesta
cidade, constituiu família e vive
feliz com sua esposa e duas lindas
filhas. Cursou o ensino médio - técnico nas Escolas: Laudelino Freire e
Silvio Romero, em Lagarto - SE, concluindo seus estudos em 1981.

A partir daí, tornou-se técnico em Administração de Empresas e


Técnico em Contabilidade. Desde 1981, exerce a função de técnico em
Seguro Social no INSS (Instituto Nacional de Seguro Social).

Passou a gostar de escrever poesias aos vinte anos de idade. A


partir daí, participou de vários concursos poéticos, promovidos pelo
INSS, vencendo oito deles. Hoje, possui cerca de 300 obras de sua
autoria, ainda não publicadas em um livro-solo.

Publica seus textos em revistas e em redes sociais. É coautor em


diversas Antologias Poéticas lançadas no Brasil e no Exterior.

Para Anésio Fraga, "poesia é vida e superação, entre as linhas do


coração. ”

1
Por ele mesmo.
133 | R E V . A L L . N . 2 / V . 1 - 2 0 1 8

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