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483NOEL ROSA: UMA BIOGRAFIA

JOÃO MÁXIMO e CARLOS DIDIER

EDITORA
UNB

FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA


Reitor: Antônio Ibanez Ruiz
Vice-Reitor: Eduardo Flávio Oliveira Queiroz
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Conselho Editorial:
Antônio Agenor Briquet de Lemos (Presidente)
Cristovam Buarque
Elliot Watanabe Kitajima
Emanuel Araújo
Everardo de Almeida Maciel
José de Lima Acioli
Luiz Humberto Miranda Martins Pereira
Odilon Pereira da Silva
Roberto Boccacio Piscitelli
Ronaldes de Melo e Souza
Vanize de Oliveira Macedo
Copyright (ç) 1990 byjoão Máximo e Carlos Didier Direitos adquiridos para
esta edição pela Editora Universidade de Brasília Caixa Postal 15-3001 70910
Brasília,
DF
Este livro ou parte dele
não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização escrita do editor
Supervisão Editorial: Regina Coeli Andrade Marques
Preparação de Original:
Antônio Carlos Ayres Maranháo
Fátima Refane de Meneses
José Raimundo Reis da Silva
Maria Helena de Aragão Miranda
Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli
Revisão e índice:
Fátima Rejane de Meneses
Wilma Gonçalves Rosas Saltarelli
Projeto Gráfico, Capa, Diagramação e Arte-final: Resa, Nanche Las-Casas
Supervisão Gráfica: Antônio Baptista Filho, Elmano Rodrigues Pinheiro
ISBN 85-230-0254-5
Ficha catolográfíca elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de
Brasília
Máximo, João R788t Noel Rosa: uma biografia/João Máximo e
Carlos Didier. - Brasília: Editora Universidade de Brasília: Linha Gráfica
Editora, 1990. 533p.il.
78.071.1(81) R788m Didier, Carlos, colab.
784.4(81)
vi

Noel fardado (Coleção Heloísa Marsilac.)


Para Elca e Adriana

L
A Henrique Foréis Domingues (Almirante), a quem tanto se deve a posteridade de
Noel Rosa, e a Jacy Pacheco, primo e primeiro biógrafo, tão desprendido e
generoso
quando se trata de revisitar Noel.
A Eduardo Corrêa de Azevedo, o tio Eduardo, que com tanto zelo e orgulho
documentou e guardou memórias do chalé e das pessoas que nele viveram, e também
a Aldílio
Tostes Malta, Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo e Nair Goya-no Mathias, parentes
próximos e distantes.
A Alceu de Miranda, almirante Antônio Fernandes Lopes, César Dacorso Netto,
Heitor Lino de Moraes, Hélio Lobo, Hélio Raynsford, Herme-negildo de Barros
Filho, Jocelyn
Pereira da Silva, Dr. Lauro de Abreu Coutinho, brigadeiro Lucílio Urrutigaray,
Marcello. Menezes, Manuel Jansen Muller, general Moacyr Mattos de Oliveira e
Pedro
Pereira da Rocha, que conviveram com o poeta além dos muros do São Bento.
Ao almirante Adalberto de Barros Nunes, Affonso Guimarães (Affonsinho), Angelina
do Carmo, Anselmo Seixas, almirante Antônio de Barros Nunes (Cacao), Arnaldo
Araújo,
Dr. Carlos Sant'Anna, Carmem Reis, Heloísa Brandão de Marsillac, Jocelyn Corrêa
da Encarnação, José Fernandes Xavier Neto, José Maria Arantes, José Souza Pinto
(Alegria),
Maria do Carmo Coelho da Costa, Nilda da Graça Mello Miranda, Ray-mundo Paesler,
general Sylvestre Travassos, Theodorica Fontes dos Santos Lima (Dorica) e Zaluar
Moura, membros da grande família que foi um dia a Vila de Noel.
A Angenor de Oliveira (Cartola), Antônio Cardoso Martins (Russo do Pandeiro),
Antônio (Gabriel) Nássara, Armando de Lima Reis (Chris-tovam de Alencar), Carlos
Alberto
Ferreira Braga (João de Barro), Glauco Vianna, Ismael Silva, Manuel do Espírito
Santo (Zé Pretinho), Manuel Ferreira, Renato Murce e Sílvio (Narciso do
Figueiredo)
Caldas, parceiros que ficaram para ajudar a contar a história.
A Aracy de Almeida e Marília (Monteiro de Barros) Baptista, as grandes
intérpretes, linhas paralelas se encontrando no infinito de Noel.
A Alberto de Castro Simões da Silva (Bororó), Alcir Pires Vermelho, Antônio
Almeida, Armênio Mesquita Veiga (Augusto Mesquita), Bu-cy Moreira, Cícero Nunes.
Cyro
de Souza, De-móstnenes González, Djalma (Neves) Ferreira, Elizeth (Moreira)
Cardoso, Erasmo Silva, Este-van Sciangula Mangione, Farnésio Dutra e Silva (Dick
Farney),
Floriano (da Costa) Belham, Homero Dornelías (Candoca da Anunciação) João
Freitas Ferreira (Jonjoca), Joel de Almeida, Linda Rodrigues, Luciano Perrone,
Mário (da
Silveira) Reis, Milton Amaral, (Antônio) Moreira da Silva, Murillo (de
Figueiredo) Caldas, Newton (Car-

los) Teixeira, Odette Amaral, Pandiá Pires, Paulo Tapajós (Gomes), Pedro
Caetano, Radamés Gnattali, Raul Marques, Roberto Martins, Rubens Soares, Yolanda
Rhodes
(Yola) e Zilda de Carvalho Espíndola (Aracy Cortes), personagens da música
popular, que viram, ouviram, viveram e passaram adiante.
A Alberto Abrantes Martins, Aloísio Dias, Carlos Moreira de Castro (Carlos
Cachaça), Creuza dos Santos, Eusébia Silva do Nascimento (Zica), Fernando
Pimenta, José
Bispo Clementino dos Santos (Jamelão) e Neuma Gonçalves da Silva, gente boa da
Mangueira, de depoimentos tão entusiasmados quanto esclarecedores.
Aos Drs. Carlos Henrique Fernandes, Herculano Mesquita de Siqueira e Nicandro
Bittencourt, raras testemunhas da meteórica passagem de Noel Rosa pela Faculdade
de
Medicina.
A Nelson (Vittorio Emanuel) Pilo, Paulo Lessa, Roberto Ceschiatti e Rômulo Paes,
boêmios das velhas noites de Belo Horizonte.
A Ademar Casé, Arthur Costa Filho, Emma DÁvila, Fernando Pereira, Henriqueta
Brieba, Jorge Murad e Sebastião Bernardes de Souza Prata (Grande Othelo), nomes
do radio
e do teatro, daqueles e destes tempos.
A Ary Vasconcelos, Humberto de Moraes Franceschi, Jairo Severiano e Miécio
Caffé, cujas coleções, somadas, tornaram possível o acesso dos autores a todas
as gravações
originais da obra de Noel Rosa.
À João Ferreira Gomes (JotaEtegê) ejosé Ramos Tinhorão, pesquisadores,
historiadores, separados no tempo mas unidos pela mesma paixão, cujos
conhecimentos sempre
fizeram questão de repartir.
A Clara Cinelli (nascida Corrêa Neto), Jose-fina Telles Nunes (nascida Félix, a
Fina), Juracy Corrêa de Moraes (Ceei) e Lindaura de Medeiros Rosa (nascida
Martins),
musas todas, que concordaram em viajar de volta ao passado para longos
reencontros com o seu poeta.
Aos funcionários do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional de Artes Cênicas, da
Secretaria
Geral da Divisão de Educação e Ensino da Diretoria do Colégio Pedro II, do
"arquivo morto" do mesmo estabelecimento, do Ginásio de São Bento, da seção de
arquivo
da Santa Casa da Misericórdia, da Embra-filme, do Arquivo Público Mineiro, da
Companhia Nestlé do Brasil, do Convento de Nossa Senhora da Ajuda, da Matriz de
Nossa
Senhora de Lourdes, da Igreja de São Francisco Xavier do Engenho Velho, do
Arquivo Sonoro da Rádio Jornal do Brasil, das gravadoras Odeon, RCA Victor,
Polygram e
Collector's.
A Adília Bittencourt (viúva de Jacob do
Bandolim), Alfredo Herculano, Antoninho de Paula, Antônio Carlos SantAnna
(Perna), Bruno Ferreira Gomes, Bruno Liberati, Cláudio Marcelo Arreguy Corrêa,
Daicy Portugal
Cordovil (viúva de Hervê), Francisco Duarte, Geraldo Pinto Pen-na, Herberto
Salles, Ilka Domingues (viúva de Almirante), general João Baptista Figueiredo,
Jonas
Vieira, Jorge Martins, Jorge NatalPinheiro da Costa, Jorge Thibaud, José Lino
Grunewald, José Mariani, José Silas Xavier, Lanfranco Vaselli (Lan), dom
Lourenço de
Almeida Prado, Luís Carlos Saroldi, Luís Fernando Barciela Vieira, Moacyr
Andrade, Ruy Castro, Simon Khouri, Tárik de Souza, Victor Henrique Woitschach
(Ique) e
Zózimo Barroso do Amaral, pequenas e grandes ajudas, empurrões vários,
incentivos, bênçãos.
A Almir Veiga, o fotógrafo, e a Édio Xavier Piais, o dos retoques mágicos.
A Sérgio Cabral, que apresentou os autores um ao outro, e que desde o início
acreditou neste livro.
E, últimos mas não menos importantes, os rapazes do conjunto Coisas Nossas:
Beto, Bolão, Dazinho, Henrique, Luíta e Zé Carlos.
A todos enfim - os que puderam esperar e os que já viraram saudade - a gratidão
dos autores.
x

SUMÁRIO
DUAS PALAVRAS .. 3

PARTE I 1834-1910

Capítulo 1 Na cauda de um cometa .. 9

PARTE II 1910-1928

Capítulo 2 Crescendo com bossa .. 25


3 Pelas ruas do bairro .. 37
4 Entre a cruz e o violão .. 47
5 O que se aprende no colégio .. 55
6 O encanto da música .. 65
7 A morte de perto .. 73
8 Adeus ao mosteiro .. 81

PARTE III 1929-1934


Capítulo 9 Àluz das estrelas .. 93
10 Um bando de pássaros .. 101
11 Nasce o compositor .. 107
12 Um tangará abraça o samba .. 115
13 Do faz vergonha à malandragem .. 125
14 Nem rei, nem general .. 135
15 Modéstia a parte, meus senhores .. 143
16 Conquistando a cidade .. 155
17 O Miguel Couto do samba .. 165
18 Riso de criança .. 177
19 O rei da voz e o doutor em samba .. 187
20 Subindo o morro .. 195
21 Um certo Ismael .. 209
22 Rumo ao sul .. 217
23 Onde estão os madrigais? .. 227
24 Do chá das quintas ao café no Nice .. 241
25 Prazer em conhecê-lo... 249
26 Em boa companhia... 257
27 Noturnas e vespertinas.. 269
28 Casa, não casa... 277
29 Valentes e amigos (mas nem sempre)... 287
30 Rumo ao norte.. 297
31 Numa festa de São João.. 309
32 Um parceiro e duas intérpretes.. 319
33 Humor de primavera.. 329
34 Perturbação dos sentidos.. 337

PARTE IV Janeiro-Abril de 1935

Capítulo 35 Entreato mineiro... 347

PARTE V Abril de 1935-Maio de 1937

Capítulo 36 Ilustre visita, trágico regresso.. 363


37 Operetas e conversas de esquina.. 373
38 Começo e recomeço.. 391
39 Fita de cinema .. 401
40 Noel versus Noel .. 409
41 No picadeiro da vida .. 417
42 O dom de saber iludir .. 429
43 Um gosto de despedida .. 439
44 A arte do sofrimento .. 447
45 Ofim .. 459

PARTE VI Maio de 1937 -

Capítulo 46 Posteridade .. 475


OBRA .. 495
MUSICOGRAFIA/DISCOGRAFIA .. 497
TEATRO .. 517
CINEMA/TELEVISÃO .. 519
BIBLIOGRAFIA.. 521

Tudo que este livro pretende ser está resumido em seu título: uma biografia de
Noel Rosa, poeta e compositor popular brasileiro. Portanto, não espere o leitor
encontrar
nestas páginas uma tese das tão em moda em nossa bibliografia recente. Não se
falará aqui do 'discurso noelino', nem se tentará uma dessas teses acadêmicas
que costumam
fazer da música popular algo menos simples do que realmente é.
Os autores, desde o primeiro instante dos mais de sete anos consumidos neste
trabalho, optaram por contar uma história, tão detalhada quanto possível, de
Noel Rosa,
sua época, sua cidade, sua gente, sua obra. Uma narrativa linear, cronológica,
jornalística, sem outras ambições literárias. Com as liberdades permitidas a
todo
biógrafo (transcrição de diálogos a partir do que lhes foi contado, uma ou outra
especulação, este ou aquele 'deve ter sido' em lugar do que 'não se sabe como
foi'),
mas de modo algum uma biografia romanceada. Amigos que tiveram acesso aos
originais - e cuja opinião os autores prezam - fizeram ponderações a respeito do
primeiro
capítulo. Não se teria dedicado tempo e espaço demais à pré-história de Noel
Rosa, seus pais, avós e bisavós? Não poderia o leitor estancar diante deste
longo preâmbulo
e, impaciente, virar as costas aos outros 45 capítulos? Os autores preferiram
correr o risco e deixar o primeiro tal qual está. Convenceu-os uma esperança: a
de
que o eventual leitor deste livro não seja de virar as costas ao que quer que
diga respeito a
Noel Rosa. Nem mesmo às suíças de vovô Eduardo.
João Máximo e Carlos Didier

NA CAUDA DE UM COMETA

Capítulo 1

A estrela d'alva no céu desponta


E a Lua anda tonta com tamanho esplendor
Linda Pequena
eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui, neste chalé modesto,
pronto para saudar a qualquer momento a chegada do primeiro neto. Na certa
releria várias
vezes os versos acabados de fazer para a ocasião. Depois, se fosse mesmo um
menino, é provável que agisse exatamente como no dia em que nasceu Eduardinho,
seu único
filho: penduraria um lenço branco no portão e, aos curiosos, diria: "É macho!"
Ou talvez se limitasse a celebrar o acontecimento com um brinde em família,
seguido
de votos de que o neto se tornasse médico e poeta. Como ele próprio.
Mais do que nunca se lamenta que Eduardo Corrêa de Azevedo já não esteja aqui.
Era um homem raro, especial. Desses que, ao partirem, deixam lembranças tão
vivas
que às vezes parece que não se foram de verdade. Dedicado marido, pai exemplar.
Bom médico, bom poeta, capaz de sonetos como "Cuidado, Menina!",
por ele mesmo declamado no dia do sexto aniversário de uma das filhas,
justamente a que lhe daria agora o primeiro neto:

Pois quê?! Mais um ano? Isso não tem graça!


Pois então não bastavam tantos... (cinco)
Que tinhas? E cuidas, talvez, que é brinco
A rapidez com que a vida passa?
Se anos fazendo vais com tal afinco
A velhice, que já por perto esvoaça,
É capaz de fazer-te uma pirraça
Abrindo-te na face um feio vinco.
Fica-te quieta! Volta aos teus folguedos
E não repitas mais esses brinquedos;
Jà te fizeste velha o quanto basta.
Não troques os teus sonhos cor-de-rosa
Por esta neve densa e pavorosa
Que à voragem da morte nos arrasta.

Ou de pensamentos em versos como este, em que reescreve a lição da Igreja sobre


não cobiçar a mulher do próximo:
Só se entende este nono mandamento
Com o sexo masculino.
Pode as asas abrir, então, sedento,
O desejo feminino.

Médico, poeta e jornalista. Dono de um humor fino e irônico, tempero de certos


perfis que andou publicando na imprensa de anos atrás. Como o de
Affonso Penna Sobrinho:
"Baixo, magro, tipo miudinho de galã de sala. Chegou há pouco diplomado (...) e
foi ocupar a promotoria.
Além de outros méritos próprios, tem a grande felicidade de ser sobrinho do
senhor seu tio, gozando das vantagens inerentes de um nome Feito. Ele era capaz
de o
fazer por si (...) mas, por caiporismo, veio tarde e achou a cama já
pronta.
Como promotor, mesmo acusando
tem'pena', o que atesta generosidade de coração."

Um apaixonado pela música, escreveu várias peças poéticas para serem recitadas
ao som de viola. Uma delas dedicada a uma prima
indiferente:
Tudo isso, eu juro, fizera
Por egoísmo, somente,
Pois vivera eternamente
A teu lado, oh! prima Vera.

Mas Eduardo Corrêa de Azevedo já não está aqui. Morreu há um ano e meio, antes
de completar seus 53, deixando nos moradores do chalé um enorme vazio,
muito sentido em dias como o de hoje.
É sábado, 10 de dezembro. Desde a madrugada respira-se desassossego nas ruas do
centro do Rio. A cidade parece estremecer. Ouvem-se ao longe tiros de canháo e
estrondos
de prédios que tombam atingidos por bombas e granadas. Famílias inteiras saem em
pânico de suas casas. Correm para bondes, automóveis, trens. Fogem do fogo e da
destruição, procurando um porto seguro em alguma parte. Se os moradores do chalé
fossem supersticiosos - ou de acreditar que certos fenômenos cósmicos significam
maus pressagios - talvez pensassem, como tantos, que o fim do mundo começou.
Explica-se-, desde os primeiros dias deste 1910, quando os jornais se puseram a
falar da passagem da Terra pela cauda do cometa de Halley, há quem afirme que o
mundo
realmente agoniza. Profetas, visionários, lunáticos, crentes. Cometas e outros
corpos celestes passam ligeiros, deixando em seu rastro um punhado de
superstições.
Está sendo assim agora com o Halley e há de ser assim daqui a alguns anos com o
Hermes. Por mais que os astrônomos garantam que tais fenômenos são inofensivos,
muitos
acreditam no contrário, que os cometas sejam prenuncio de grandes catástrofes.
Conta-se que até mesmo um homem culto como Ruy Barbosa responsabilizou o Halley
por
sua recente derrota para o marechal Hermes nas eleições presidenciais. E por que
não? Se por causa deste cometa houve quem se matasse na Europa, enlouquecesse
nos
Estados Unidos, se refugiasse em mosteiros por toda parte, para ali aguardar
entre preces a hora final, por que não haveria Ruy de ver na cauda do Halley uma
ave
agourenta a riscar o céu no exato momento em que pretendia mudar-se para o
Catete?

Marinheiros em revolta

Por duas vezes os marinheiros fizeram estremecer o Rio de Janeiro em 1910, num
sombrio capítulo de história que ficaria conhecido como Revolta da Chibata. Uma,
a
22 de novembro, sete dias após ser empossado na Presidência da República o
marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. A segunda, na noite de 9 para 10 de
dezembro, na
véspera de vir ao mundo o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
João Cândido, filho de tropeiro gaúcho que lutara na Guerra do Paraguai,
negrinho do pastoreio em menino, praça-de-pré aos 30 anos, servia a bordo do
encouraçado
Minas Gerais quando liderou os companheiros deste e de mais três navios (o
Bahia, o São Paulo e o Deodoro) no levante para que se abolissem os castigos
corporais
e outros maus-tratos aos marinheiros. O ponto de partida foram as 250 chibatadas
aplicadas no fuzileiro Marcelino Rodrigues de Menezes, no convés do navio,
diante
da tropa perfilada e de tambores rufando solenemente:"... as costas deste
marinheiro - diria depois o comandante da Marinha José Carlos de Carvalho,
mandado ao Minas
Gerais para parlamentar com os revoltosos - assemelham-se a uma tainha lanhada
para ser salgada." Um disparo de canháo, naquela noite de 22, deflagrava o
levante
e estremecia a cidade.
A Marinha de então ainda levava a extremos sua tradição elitista, escravagista
quase. Recrutava soldados à força entre as populações pobres, impunha-lhes um
tempo
de serviço de quinze anos, pagava-lhes baixos soldos,
obrigava-os a trabalhos pesados, alimentava-os de má comida. Tudo sob um regime
disciplinar controlado por certa Companhia Correcional que, apoiada em decreto-
lei
dos tempos de Deodoro, ainda adotava prisão em solitária, a ferro, pão e água, e
castigos físicos que incluíam bolos e chibatadas. Foi principalmente contra
estas
últimas que se insurgiram João Cândido e seus companheiros.
Oficiais e marinheiros foram mortos nas
Sn.
Seja como for, o mundo não está mesmo acabando. O que se passa no Rio de
Janeiro, desde as primeiras horas da madrugada, tombando prédios, produzindo
nuvens de fumaça,
roubando vidas, é mais uma rebelião de marinheiros contra oficiais que os tratam
a golpes de chibata.

primeiras ações a bordo dos quatro navios. Uma bomba com que os revoltosos
pretendiam atingir o Arsenal de Marinha foi cair, por erro de cálculo, numa casa
de cômodos
da Rua da Misericórdia. Duas crianças morreram. Outras bombas fizeram estragos e
vítimas no Centro. Por quatro dias João Cândido comandou a pequena frota e 2 mil
379 homens, passando a ser chamado, por seus simpatizantes, de o Almirante
Negro. Por quatro dias a cidade viveu de respiração suspensa: os revoltosos
ameaçavam
bombardeá-la caso suas exigências não fossem atendidas. Quatro dias de
indignação para o alto comando da Armada, de discussões parlamentares, de
reuniões ministeriais.
E o novo presidente sem saber o que fazer. Ao fim do quarto dia, o Congresso
votou pela anistia. Os marinheiros deveriam se entregar, nenhuma punição lhes
seria
imposta. Ficava claro que os castigos corporais seriam abolidos.
Mas logo se viu que a anistia não passava de uma fraude. A maioria dos
revoltosos seria expulsa da Marinha. Muitos, sob a acusação de conspiração,
foram presos,
abarrotando as celas da ilha das Cobras. Sentindo-se desmoralizado, o próprio
Governo se incumbia de alimentar rumores de que novo levante estava para
acontecer
a qualquer momento. Hermes queria o estado de sítio, precisava de um pretexto.
Até que as tensões transformaram os rumores em fatos: às 10 horas da noite de 9
de
dezembro um toque de avançar e gritos de "viva a liberdade!" foram ouvidos no
pátio da ilha das Cobras. O Batalhão Naval se amotinava, libertava os presos,
destruía
as comunicações, tomava a casa das armas, disparava os canhões.
Desta feita, porém, o Governo estava de sobreaviso. Navios, já agora sob o
comando de oficiais, bombardearam o local. O mesmo fariam os canhões do Exército
instalados
na Praça 15 de Novembro, nos morros da Conceição e do Castelo, no Mosteiro de
São Bento. Conta Edmar Morei, o historiador da revolta, que os disparos foram
menos
certeiros do que pretendiam os artilheiros da Armada. Fez-se necessário que um
oficial austríaco, de passagem pelo Rio, calibrasse os canhões para que se
atingissem
os alvos. Até
um padre, colocando a medalha de um santo sobre a alça de mira, evocou a
proteção divina às armas do marechal. Antes, balas perdidas, de um lado e do
outro, tinham
atingido o Liceu de Artes e Ofícios, o Museu Comercial, o Colégio Pedro II, o
Tesouro Nacional. Agora, balas legalistas abatiam dezenas, centenas de
marinheiros.
O próprio presidente foi inspecionar algumas de suas cidadelas. No Mosteiro de
São Bento, soube que uma bomba rebelde destruíra parcialmente as celas dos
monges.
Um deles, Dom Joaquim de Luna, teve arrancados três dedos da mão direita.
Mais estragos: na Rua Dom Manuel, no Catumbi, Frei Caneca, Carmo, São Salvador.
O Rio ficou em pânico. Famílias inteiras realmente apertaram-se em trens rumo a
cidades
serranas. Outras, em bondes, carroças, charretes, tomaram o caminho dos
subúrbios.
O levante foi por fim sufocado. João Cândido, que nada tivera com as ações da
ilha das Cobras, acabou preso. Incontáveis marinheiros, entre culpados e
inocentes,
revoltosos e anistiados, também. Muitos foram deportados para os seringais do
Acre, onde morreriam como escravos de senhores da borracha. Outros seriam
sumariamente
fuzilados a bordo do Satélite, cargueiro do Lloyd que os levou para o Norte,
quase secretamente. Escrevia-se então um dos mais trágicos episódios da história
militar
do Brasil. João Cândido e dezessete outros líderes da primeira revolta, todos já
anistiados, foram atirados no fundo de uma masmorra na ilha das Cobras.
Dezesseis
morreriam asfixiados pela cal que lhe atiraram sobre os corpos. Torturas e
fuzilamentos se seguiram. Ali João Cândido permaneceu por dezoito meses, até que
o mandaram
para o Hospital dos Alienados, supondo-se ter enlouquecido. Engano. Mas o
Almirante Negro ainda ouvia em seus pesadelos o som da chibata sobre as costas
dos companheiros,
seus próprios gemidos na masmorra, o troar de canhões que ele não disparara
naquele dezembro.
Foi no meio de tudo isso - numa cidade respirando ares de fim de mundo - que
começou a nascer o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
10

Mas os moradores do chalé estão alheios;


à confusão lá fora. Não pensam em tiros de canháo, revoltas, mortes, fim de
mundo, e sim num começo de vida. Uma vida que está para
chegar a qualquer momento.
Martha de Medeiros Rosa e Manuel Garcia de Medeiros Rosa - o casal da casa - só
pensam no filho que vai nascer. E nas questões costumeiras, se será menino ou
menina,
se terá a beleza de uma ou a força de outro, se puxará aos dois ou a ninguém.
Terá algo em comum com os antepassados ilustres, nobres mesmo, do lado materno,
ou
herdará o recato, quase mistério, da família do pai? Quem sabe não será parecido
com vovô Eduardo?
Martha e Manuel talvez pensem em tudo isso.
E em como o destino uniu suas vidas para que delas uma nova vida surgisse.
Em nome do destino tudo se explica. Por exemplo: o fato de um médico inteligente
e sensato como Luís Corrêa d'Azevedo ter escolhido justamente o lado menos
inteligente
e nada sensato da luta que dividiu Portugal de 1828 a 1834. Como explicar, senão
pelo destino, que sendo ele um gentil-homem a se
11

pôr invariavelmente do lado certo, da lei e da ordem, ficasse logo do errado


naquela disputa pelo trono português? Aos olhos da História, vale lembrar, o
lado errado
é sempre o que perde. E o que Luís escolheu acabou perdendo. Sua vida, seus
equívocos políticos, suas aventuras e desventuras são até hoje lembrados pelos
moradores
do chalé, que o consideram uma espécie de ponto de partida da família.
A tal luta pelo trono português foi travada por Pedro I, o mesmo do nosso
"independência ou morte!", e seu irmão Miguel, que durante quase seis anos,
apoiado pela
mãe absolutista Carlota Joaquina, manteve na cabeça uma coroa que não era sua,
mas da filha de Pedro. Este, porém, venceu. Miguel acabou no exílio e seus
seguidores
também.
Luís Corrêa de Azevedo era miguelista convicto. Mesmo sendo Miguel um
antiliberal (ou talvez por isso). Com medo de ter idêntico fim de muitos de seus
correligionários
- a deportação para a África - mudou-se para o Brasil. Ele, a mulher e prima
Eleziária Pereira Drummond e os filhos, entre os quais Fortunato Corrêa
d'Azevedo, nascido
a 4 de junho de 1825, na ilha da Madeira, terra natal de Eleziária. Vieram todos
em 1834.
A família estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde Fortunato abraçou a carreira do
pai. Formou-se em 1850 e logo começou a clinicar em Cantagalo, Estado do Rio,
lugar
de poucos médicos e muitos doentes. Também se casou com uma prima, Maria Adelina
(filha de Manuel, irmão de Luís, também miguelista, também exilado). Lá mesmo,
em
Cantagalo, nasceram os três filhos de Fortunato: Eduardo, a 26 de setembro de
1856, Fortunatinho e César.
A família guarda algumas lembranças de Fortunato Corrêa d'Azevedo, uma delas a
caixa de instrumentos cirúrgicos com cabos de madeira que os bisnetos -
principalmente
este que está para nascer - ainda vão transformar em brinquedo. Era um homem
austero, mandão, de gostos aristocráticos. Sempre manteve um namoro com a
nobreza, a
ponto de já no fim da vida, de volta ao Rio, só ter clientes ricos e bem-
nascidos. Certa vez, percorrendo pacientemente os galhos de uma árvore
genealógica alta
e frondejante, descobriu-se, cheio de orgulho, hexaneto de ninguém menos que
Maria Stuart (os moradores do chalé perderam o documento que Fortunato costumava
exibir
aos incrédulos). Depois disso, passou a se considerar um sangue azul. Como tal,
monarquista. E escravagista também: castigava duramente seus negros e a nenhum
deles
alforriou. Lusitanista, nunca quis se naturalizar. Mau negociante, por três
vezes fez fortuna e por outras tantas perdeu tudo.
Numa delas, mudando-se de Cantagalo para Nova Friburgo, fundou ali o primeiro
estabelecimento hidroterápico do Brasil. Faliu em pouco tempo. Ao morrer, em
1877,
pouco deixou para a família.
Eduardo Corrêa d'Azevedo era um homem realmente especial, que do pai parece não
ter herdado mais do que uma chácara em Boca do Mato (perto de Nova Friburgo), um
escravo e a vocação para a medicina. A chácara foi logo vendida por um conto e
quinhentos e o escravo alugado para ajudá-lo a pagar os estudos (depois do que
Eduardo
o libertou). Quanto à medicina, foi meta difícil de atingir. Fortunato não quis
que os filhos seguissem sua carreira: "É um ingrato ofício", justificava.
Impositivo,
fez com que Eduardo se matriculasse primeiro na Escola Politécnica do Rio de
Janeiro, na esperança de vê-lo engenheiro. No segundo ano, o filho convenceu-o
de que
se daria melhor como farmacêutico. Chegou a se formar, a montar farmácia com seu
nome. Depois, estudou odontologia - algo bem mais próximo da medicina - e tão
logo
concluiu o curso o pai morreu. Estava finalmente livre para fazer o que queria.
Começou nova vida, rompeu não só com a vontade do pai mas também com muitos de
seus valores. Detestando a nobreza, os bajuladores de uma monarquia que achava
decadente,
os cidadãos empertigados que compravam títulos, começou por substituir no
sobrenome o fidalgo D' pelo menos pretensioso de. Passou a ser Eduardo Corrêa de
Azevedo.
Recebeu o diploma de médico a 27 de dezembro de 1882. Meses depois, foi chamado
por um amigo, gerente do Hotel Giorelli, no Campo da Aclamação, para atender a
uma
jovem mineira de Leopoldina que viera assistir com os irmãos à abertura da
temporada lírica. A moça sentira-se mal. tivera algo assim como um desmaio,
estava de
cama. Lá chegando, Eduardo examinou-a demoradamente. Cansaço de viagem,
diagnosticou. Afinal, era quase um dia de trem de Leopoldina ao Rio. Nada que
uma boa noite
de sono não curasse.
Entre médico e paciente, porém, nasceu ali mesmo um interesse maior, um
descobrindo no outro irresistíveis afinidades. A moça, Rita de Cássia, tocava
bem piano e
Eduardo adorava música. Ele já era um amante da poesia, no que ela não lhe
ficava atrás. Bons conversadores, espirituosos, românticos, combinavam em tudo.
Quando
a moça se foi com os irmãos levou e deixou saudades. Amenizadas, contudo, pelas
cartas que passaram a trocar. As dele, em versos.
Rita de Cássia de Freitas Pacheco é de uma família que também se preocupa em
descobrir homens e mulheres importantes
12

entre seus ancestrais. Ninguém como Maria Stuart, é fato, mas pelo menos um
fidalgo como Manuel da Rocha Brandão, bisavô de Rita, tronco do qual partiram
ramos numerosos
e, senão fidalgos como ele, ao menos pessoas destinadas a alcançar projeção
social, seja por conta própria, seja unindo-se a outras famílias, os Barros, os
Seixas,
os Segadas Viana, os
Coelhos Neto.
Mas nessa busca nem sempre científica de antepassados, alguns desvios e exageros
vão ocorrendo. Como os Freitas Pacheco dizerem-se descendentes de Caramuru, ou
de
Garcia d'Ávila, ou de Marília de Direeu. Mas não é bem assim. A quinta avó de
Rita, Maria da Silva Figueiredo, era prima de Garcia d'Ávila2, cuja filha,
Isabel,
casou-se com Diogo Dias, neto de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, e sua mulher
Catarina Álvares, a Paraguaçu. Quanto a Marília de Direeu,
Maria Dorothea Joaquina de Seixas, era filha de uma irmã de Joana Rosa Marcelina
de Seixas Brandão, bisavó de Rita. Como se vê, desvios e exageros. Nem Caramuru,
nem Garcia d'Ávila, nem a musa do poeta inconfidente Thomás Antônio Gonzaga.
Rita, filha de José e Emília Augusta de Freitas Pacheco, nasceu em Leopoldina
mesmo, a 5 de maio de 1859- Perdeu os pais cedo e foi criada pela irmã mais
velha,
Maria Augusta, professora em cuja casa funcionava pequena escola de
alfabetização de crianças. Foi nesta casa que um dia Eduardo bateu para pedir a
Maria Augusta
permissão de lhe cortejar a irmã. Mudara-se do Rio para Brejo, cidadezinha do
município de Leopoldina, só para ficar mais perto de Rita. Estava apaixonado.
Para
o casamento só faltava a aprovação da mãe, Maria Adelina, ainda morando no Rio,
Eduardo escreveu-lhe. Resposta: "Criar um filho com tanto esmero para o ver
casado
com uma mineira? Nunca!" Para ela - que guardava do marido a afetação
aristocrática - um médico deveria casar-se com uma dama. E sua idéia de mulher
mineira era
literalmente uma caricatura: uma rapariga esquálida, desdentada, pés descalços,
analfabeta, cachimbo de espiga pendurado no canto da boca.
Eduardo achou perda de tempo tentar desfazer tal idéia. Em 1885, casou-se com
Rita mesmo sem as bênçãos da mãe. Foram morar na casa dele em Brejo. Os dois,
mais
uma irmã de criação de Kim, Bellarmina, e o tio desia, Manuel. Dos quais muito
mais se falará adiante.
A primeira filha de Rita com Eduardo, Carmem, nasceu na casa de Brejo em 1886.
De um parto tão complicado - a bacia estreita da mulher dando muito trabalho ao
médico
e marido - que quando chegou a vez de terem a segunda filha ele achou mais
prudente levar Rita ao Rio para que a menina viesse ao mundo na casa da avó
Maria Adelina
e pelas mãos de outro médico.
Começou aí a reaproximação entre mãe e filho. É verdade que no começo Maria
Adelina não se impressionou nem um pouco com aquela "mineira diferente",
pianista, professora,
lendo poesia em francês, uma dama: "Na certa ele a educou depois de casados",
comentou com os outros filhos. Mas, enquanto a sogra se apegava a esses
pensamentos,
Rita ia observando seus hábitos e gostos, os pratos de sua predileção, como
preferia o chá, as flores que fazia questão de ver enfeitando a mesa. Tempos
depois,
quando coube a Maria Adelina ir para Minas (Fortunatinho morrera, deixando-a só
com a mãe idosa, Vozinha, e o filho menor, César, o que levou Eduardo a convidar
os três para morarem com ele), Rita poria em prática o que observara atentamente
nas últimas semanas de gravidez. Maria Adelina foi recebida com todas as honras
e agrados, nem as flores faltaram, perfumadas gentilezas de uma anfitriã fina e
educada.
- Quero pedir-te desculpas pelos meus maus juízos - disse.
- Não se fala mais nisso - sentenciou Rita.
13

Mas já então havia nascido, a 4 de junho de 1889, na casa que Maria Adelina
ainda mantinha no bairro carioca do Rio Comprido, a segunda filha de Rita e
Eduardo:
Martha Corrêa de Azevedo. A família se completaria três anos depois com a vinda
de Eduardinho, em Ponte do Cágado, município de Santana do Deserto, comarca de
Juiz
de Fora, para onde todos se haviam mudado pouco antes.
A melhor fase da vida de Eduardo Corrêa de Azevedo - ou pelo menos aquela de que
os moradores do chalé têm mais saudade - é a da infância e adolescência dos
filhos,
já em Juiz de Fora, onde ele clinicava em sua própria farmácia. São de então os
seus primeiros lampejos poéticos, versos que ia escrevendo, mostrando aos
amigos,
guardando. Quis que as crianças desde cedo convivessem com a música, por isso
comprou para elas um Pleyer de segunda mão. Carmem, de ouvido absoluto, domina
cinco
instrumentos (piano, violino, violão, bandolim e cítara) e acabará se tornando
professora de conservatório. Martha sempre será melhor no bandolim que no piano.
Eduardinho,
o de pior ouvido, jamais passou das primeiras lições domésticas dadas pela mãe.
Mas toda a família é muito musical. E teatral também. Ainda na casa de Ponte de
Cágado,
Eduardo mandara construir um galpão no qual instalou oficina para exercitar duas
de suas muitas habilidades, a de ferreiro e a de seleiro. Com forja, bigorna,
fole
e outros apetrechos, ele próprio fizera os aros do seu tílburi, as ferraduras,
cravos e arreios de seus cavalos. Ao lado do galpão, improvisou um teatrinho
onde
os filhos e vizinhos representavam sketches e pequenas peças, muitas vezes
escritos por ele mesmo. Toda a família gostava de teatro.
Martha nasceu com a República, sendo o próprio Eduardo, desde os tempos de
estudante, um republicano. Tão fervoroso que por muitos anos carregou na lapela
um minúsculo
retrato do marechal Floriano Peixoto. Gostava de lembrar à família e aos amigos
um episódio ocorrido em 1894, durante a revolta da Armada sob o comando de
Custódio
de Mello, líderes estrangeiros, notadamente o ministro britânico Hugh Wyndham,
indagando a Floriano como suas tropas seriam recebidas se aqui desembarcassem
para
proteger seus compatriotas residentes no Brasil. Eduardo fazia uma pausa e dava
mais ênfase à já enfática resposta do Marechal de Ferro:
- A bala!
Nacionalista, mas sobretudo detestando ingleses, chegaria a renunciar às suíças
de que tanto gostava por um incidente à toa. Num dia de carnaval, esguichou uma
bisnaga
de água na perna de uma menina que se assustou e se pôs a
gritar. O pai, irritado, reagiu:
- Seu inglês!
Não poderia haver maior ofensa. E como Eduardo a atribuiu às suíças, raspou-as
no mesmo dia.
Um antimonarquista que escreveu longo poema, "Pobre República", para Martha
declamar no palco do teatrinho, enquanto ele, orgulhoso na platéia, parecia ver
na filha
a imagem de um Brasil muito diferente do de seu pai: um Brasil jovem, promissor,
livre, republicano.
Foi em Juiz de Fora que Eduardo Corrêa de Azevedo começou a estudar esperanto,
gabando-se mais tarde de ser "o primeiro esperantista do Brasil". Chegou a
trabalhar num dicionário que jamais publicou. Ao mesmo tempo, sentia-se atraído
pelo jornalismo.
Embora tenha assinado seus primeiros artigos em O Povo, semanário republicano e
abolicionista de Cataguases, foi também em Juiz de Fora que se fez conhecido.
Fundou
com o amigo e poeta Oscar da Gama o jornalzinho A Cigarra, de curta duração, e
tornou-se colaborador dos mais presentes nas páginas do Diário da Tarde local,
onde
criou e manteve por muito tempo aquela seção semanal em que traçava perfis de
amigos e habitantes ilustres da cidade.
A seção intitulava-se Galeria e seu autor assim a definia: "Uma espécie de
recreação intelectual com que descanso dos labores diários (...) não tendo outro
fim senão
tornar o jornal simpático aos leitores e retratados."
A pedido de alguns desses leitores, o próprio Eduardo deixou-se retratar na
seção, permitindo assim, democraticamente, que seus personagens também dissessem
o que
pensavam dele. Foi o que fez Belmiro Braga, jornalista, teatrólogo, poeta,
escritor de algum prestígio:
"Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem velho nem moço (...)
É médico e medica de graça; é escritor e escreve com graça; é, às vezes, brigão
e ao adversário desgraça.
Os óculos que traz sobre o nariz não servem para aumentar a vista e sim de
muralha ao brilho vivíssimo de seus olhos.
Ama os poetas de França, adora as filhas da Itália, gosta e usa barbas suíças.
Numa redação de jornal é tudo. Com a mesma facilidade com que escreve um artigo
de fundo, rabisca uma crônica, com ou sem fundo, ou põe pilhérias a dois de
fundo.
É o nosso Ferreira de Araújo6, com a vantagem de ser poeta.
E, terminando: aqui está um nó numa 'correia'; o A.Z. Vedo que o desate."
A.Z. Vedo era como Eduardo se assinava de vez em quando, pseudônimo que
alternava com outros, Mãozinha, Zut, d'Amorim,
14

conforme a ocasião. Mas o perfil mais fiel que nos chega dele, de como era
naqueles dias de Juiz de Fora, talvez seja o que lhe fez um primo de Rita,
Christovam
Malta, também médico e escritor. Diz ele que Eduardo era homem de pés e mãos
pequenos, cabeça grande, cabelos e suíças brancos. Vestia-se invariavelmente de
brim,
"ainda que o termômetro baixe a zero", e parecia cada vez mais inclinado a
trocar o bisturi pela pena. Habitavam nele, além do médico, do jornalista e do
poeta,
pelo menos um músico, um jacobino, um funcionário público e um funileiro. A cada
dia idolatrava maisrFloriano e, ainda segundo Christovam Malta, embora não
quisesse
por modéstia publicar seus versos em livro, "quando o fizer conseguirá um
sucesso brilhante, pois tem talento como o diabo".
Na realidade, seu primeiro livro foi mesmo um apanhado daqueles perfis, editado
em 1899 sob o título Galeria: Caricaturas a Pena. No prefácio, Eduardo
esclarecia
que só o lançava "para ceder às instâncias dos editores amáveis e corajosos". E
que com ele não tinha nenhuma preocupação literária. "À crítica - concluía no
mesmo
prefácio - eu apenas pedirei que o trate como ele merecer, se é que merece
crítica."
No mesmo ano, ainda incentivado por amigos e editores "amáveis e corajosos",
reuniu em livro sua produção poética. Nesta coletânea, Rimas Sem Arte, há poemas
bem
construídos e inspirados, na maioria sonetos como aquele para o sexto
aniversário de Martha. Seus temas são a vida e a morte, a dor e a descrença, o
amor e a família,
à qual devotava profunda afeição. O segundo livro de versos, editado cinco anos
depois, é ainda mais interessante. Intitula-se Catecismo e pretende ser uma
versão
revista e muito pouco ortodoxa de temas ligados à doutrina católica, os Dez
Mandamentos, os Sete Sacramentos, os Pecados Capitais. A ironia, o humor e o
não-conformismo
de Eduardo Corrêa de Azevedo estão nítidos em todos os poemas. Como neste "Ato
de Confissão":
Eu nunca fui ateu, nem sou converso
Essas contradições, que há no meu verso,
São como gritos de incontida fúria
Deve existir um Deus - Pai e infinito
Bem diferente desse odioso mito
Simples invento da romana cúria
Ou neste, sobre amar a Deus sobre todas as coisas, dedicado à mãe, Maria
Adelina, pouco depois de sua morte:
Amarei mais que a tudo - santamente A ti querida morta!...
És o Deus que eu adoro, reverente O mais... pouco me importa
Ou neste, sobre não roubar:
Contra o duro rigor do mandamento vosso
Serei um revoltado eterno... (bem o vejo!)
Não tentarei, sequer, obedecer... não posso
Vê-la sem lhe furtar um delicioso beijo.
Ou ainda neste, sobre não pecar contra a castidade:
Ser virgem, sim... não ter na carne pura
A deliciosa mácula do beijo...
Não suportar as angústias do desejo
Isentar-se do crime da ventura...
E sobretudo neste "Ato de Fé", que vale lembrar por encerrar uma idéia de Deus a
ser convertida em estranho legado, o neto que está para nascer, retomando-a
daqui
a muitos anos, também em versos:

Eu não quero esse Deus das velhas escrituras


Que pune e vinga o mal, faz sofrer e extermina;
Um Deus que os corações ingênuos assassina
Metendo-lhes por dentro insanáveis ternuras
Quero um Deus mais humano, um que não quer torturas
Que não fale de inferno e, em pavor, não domina;
Brando, consolador, cheio de unção divina
Antes pai que juiz, na terra e nas alturas (...)

Um homem raro, especial, em torno de quem a família viveu unida e em paz. Os


filhos cresceram entre música e poesia, o teatrinho e os brinquedos, os estudos
e as
amenidades. Crianças alegres, que de início zombavam do sotaque ilhéu de Vozinha
e acabaram aprendendo com ela um antigo costume da Madeira: conversar por
ditados.
-Do prato à boca se perde a sopa - dizia uma.
- Quem o alheio veste na praça o despe - acrescentava a outra.
Carmem nunca foi bonita. Séria, ajuizada, econômica, autoritária, mas generosa e
com uma grande noção de família. Martha sempre será bonita, a boca bem feita, o
rosto delicado, os olhos verdes. Prefere sonhar a exercer autoridade sobre o
irmão menor ou quem quer que seja. Eduardinho, bom menino, será companhia do pai
em
suas soirées literárias, embora nem sempre compreenda do que tratam os versos.
Obediente, responsável, terá mais afinidades com
15

Carmem do que com Martha.


A educação que Rita deu aos três foi, de certa maneira, severa. De bons tratos,
mas muita disciplina. Hora certa para tudo, refeições, estudos, a música, o
bordado,
o brinquedo. Jamais permitirá que entrem na cozinha, espécie de santuário: "Isso
aqui não é lugar para crianças." Até completarem treze, quatorze anos, também
não
podiam falar à mesa. Andar descalço era falta de educação. Falar com estranhos,
conduta imperdoável. As moças jamais namoraram. O rapaz, só escondido.
Como ressaltou Christovam Malta, um funcionário público. Também habitava
Eduardo Corrêa de Azevedo. Quando em Juiz de Fora, paralelamente à medicina e ao
jornalismo, exerceu as funções de inspetor municipal de higiene e de fiscal
estadual
da Loteria Mineira Agave Americano. Assistia às extrações, atestava ou não sua
lisura, tudo com muita diligência e retidão. Parece que, em razão de sua atenta
vigilância,
os lucros da empresa começaram a cair. O dono, o mexicano Manuel Zevada, tentou
primeiro suborná-lo com um aumento de salário (os fiscais lotéricos eram pagos
pelos
fiscalizados e não por quem os incumbia de fiscalizar). Foi então que Eduardo
escreveu ao Secretário de Finanças de Minas Gerais, David Campista7, dando-lhe
conta
de tudo,
os novos planos de extração adotados por Zevada ("... contendo em seu bojo o
condenado jogo dos bichos"), o não pagamento de taxas devidas, fraudes, a
tentativa
de suborno. Ao fim do relatório, "por escrúpulos de consciência", pedia
exoneração do cargo. David Campista não só indeferiu o pedido como autorizou
Eduardo a aceitar
o aumento de salário oferecido pela Agave. E mais: quando Zevada, em busca de
melhor sorte, transferiu-se para o Rio de Janeiro, instalando na Capital e em
Petrópolis
dois novos postos de extração, o secretário de Finanças mandou que Eduardo
viesse atrás. Afinal, aquela companhia lotérica ainda era uma concessionária do
Governo
de Minas Gerais, estando sob sua jurisdição e controle. Mesmo preferindo
continuar em Juiz de Fora, o funcionário público que habitava o médico e poeta
Eduardo Corrêa
de Azevedo sentiu-se obrigado a obedecer.
Os jornais de Juiz de Fora deram cobertura a todas aquelas peripécias que
envolveram o fiscal, o dono da casa lotérica e o secretário de Finanças.
Noticiaram também
sua mudança para o Rio, começo, ao menos para ele, de tempos muito difíceis. Os
últimos rrieses em Minas já não tinham sido muito bons. Eduardo levara um tombo,
caíra sentado, passara a sentir fortes dores por toda a região sacra. Recorreu à
cocaína. Primeiro para aliviar o sofrimento, depois por dependência. O vício
dispendioso,
somado à clínica que já não ia tão bem, pesou sobre a família. Reduziram-se as
despesas, Rita economizou o quanto pôde, chegou a limitar as refeições da casa
ao
chuchu que plantava no quintal e ao arroz que alguns parentes caridosos lhes
mandavam. Tempos muito difíceis.
Eduardo desembarcou no Rio em fins de 1900. Instalou-se neste mesmo chalé
modesto, o número 30 da Rua Theodoro da Silva, em Vila Isabel. Uma casa semi-
abandonada,
sem móveis, canos furados, portas e janelas emperradas, goteiras. De propriedade
da família da mulher de um grande amigo, o maestro Leopoldo Miguez, Eduardo nem
precisava pagar aluguel. Republicano também, autor inclusive do Hino da Pro-
clamação da República, Miguez era homem desprendido, de gestos nobres, sempre
pronto
a ajudar quem precisasse (morreria em 1902, mas sua viúva, Alice Dantas Miguez,
como se a traduzir-lhe a vontade, ainda acabará passando a casa para o nome dos
Corrêas
de Azevedo sem receber um real em troca). Eduardo não tinha mesmo condições de
procurar moradia melhor. Zevada, para se vingar, susteve-lhe o pagamento,
deixando-o
por conta de modestas economias que trouxera de Juiz de Fora. Tempos realmente
difíceis.
Mas não duraram para sempre. Por influência de David Campista, a Agave Americano
pagaria a Eduardo todos os atrasados, com os quais ele pôde reformar a casa,
portas
e janelas, encanamento novo, consertos no teto, construção de um quarto
adicional de madeira, mais um banheiro, pintura. Outro amigo, Alfredo Barbosa,
emprestou-lhe
móveis até que pudesse comprar os seus próprios. A solidariedade era bem menos
rara naqueles dias. Assim, casa arrumada, antes que o segundo ano do século
chegasse
ao fim, Eduardo Corrêa de Azevedo trazia
a família para o Rio.
A Rua Theodoro da Silva é paralela à avenida principal de Vila Isabel, conhecida
por Boulevard 28 de Setembro. O chalé fica entre Visconde de Abaeté e Souza
Franco.
Construído em terreno de 11 metros de frente por 66 de fundos, tem salas de
jantar e visita, três quartos (incluindo o que Eduardo mandou fazer), cozinha,
dois banheiros.
O quintal é espaçoso, tanque, galinheiro, árvores que dão frutos o ano inteiro:
araçá, goiaba, pitomba, limão, abacate, romã, pitanga.
Rita, seguindo o exemplo da irmã, já tinha uma escolinha de alfabetização em
Juiz de Fora. Agora, no Rio, aproveitava a sala da frente e improvisava nela
algumas
carteiras. Fundou novo educandário que, em homenagem à sua padroeira, chamou de
Externato Santa Rita de Cássia.
Se da família materna do menino que vai nascer tudo se sabe, sobre o lado
paterno paira mesmo uma nuvem de mistério. Bellarmina de Medeiros, a Bella,
nasceu em 1863,
também em Leopoldina. Ficou órfã muito menina e foi praticamente criada por
Maria Augusta, a mesma que já cuidava de Rita. Ao mudar-se para a nova casa, só
levou
a roupa do corpo. Até mesmo os nomes dos pais foram deixados do lado de fora. E
para sempre. Supunha-se que, não se falando no passado da menina, mais depressa
se
esqueceria a tragédia que todos queriam esquecer: seu pai se suicidara. Tinha
ela apenas quatro anos e Rita oito quando se tornaram, por assim dizer, irmãs de
criação.
E grandes amigas. Uma amizade que vai durar enquanto viverem.
Aos dezesseis anos, Bellarmina casou-se com Manuel Garcia da Rosa, outro obscuro
personagem desta história. Quem era, o que fazia, de onde viera, tudo isso
também
se perderá na determinação, que até hoje perdura, de se falar o menos possível
no passado de Bella. Sabe-se apenas que morreu jovem, pouco depois de nascer-
lhes,
a 24 de maio de 1880, o único filho: Manuel Garcia de Medeiros Rosa. Viúva,
Bella voltou para a casa de Maria Augusta. Naturalmente, com o menino. Rita
jurou que
jamais se separariam outra vez. Daí, ao casar-se com Eduardo, ter levado para
Brejo, além de seus projetos de noiva, a irmã de criação e seu filho de cinco
anos.
Se Eduardo Corrêa de Azevedo era homem raro, especial, Manuel - Neca para os de
casa - veio predestinado a não ficar atrás, embora por outros motivos. Também é
desses
que se vêem uma vez e não se esquece em tempo algum. Por mais dura, malograda ou
mesmo
17

trágica que venha a ser sua existência, passará por ela com a maltrapilha
dignidade de um dom Quixote. Sonhando muito, lutando, tropeçando repetidas
vezes, reerguendo-se,
investindo contra moinhos de vento, caindo, levantando-se para novas batalhas
inglórias. Positivamente, não nasceu para vitórias, mas para sonhar com elas.
Até que
suas fantasias comecem a transformá-lo, será um homem bondoso, altruísta, dócil,
as maneiras gentis contrastando com o corpo avantajado, mais de um metro e
noventa,
as mãos enormes, o jeito pesadão. Um lutador. Sempre acreditando que o trabalho
é o alimento da vida. E a honestidade, o condimento. Fará dessa crença um de
seus
lemas.
Tinha apenas dez anos de idade quando deixou a mãe com os Corrêas de Azevedo, em
Ponte do Cágado, e foi para Juiz de Fora lutar pelo próprio sustento. Fez
pequenos
serviços, trabalhou como estafeta, tentou o que pôde. Pouco conseguiu. Um ano
depois, o Rio. Um menino, apenas um menino a enfrentar a cidade grande com seus
desafios
e armadilhas. Fez um pouco de muito, biscates vários, foi vendedor ambulante,
empregou-se numa casa comissária de café. Já rapaz, quase morreu de febre
amarela,
mas aproveitou o período de tratamento e convalescença para estudar.
Inteligente, memória assombrosa, aprendeu sozinho matemática, francês, inglês,
geografia e história.
Conseguiu o lugar de guarda-livros numa importadora (impressionava a todos pela
rapidez e precisão com que fazia de cabeça cálculos complicados). Até que o dono
da empresa decidiu promovê-lo. Ia familiarizá-lo com o processo de "batismo" do
vinho que trazia de Portugal, tantos por cento do legítimo, tantos de um
nacional
ordinário. Ofendeu-se. Jamais trabalharia numa firma que se valesse de tais
expedientes. Pediu as contas. Sua noção de honestidade sempre foi exemplar,
rígida, não
raro obsessiva. Desempregado, dividiu-se entre incontáveis ocupações. Uma delas
a de recolher trocados em esquinas do Centro, ele vestido de palhaço, tocando
violão
e cantando, enquanto um amigo, metido na pele de um urso, passava o pires.
Quando ou com quem aprendeu a tocar violão não se sabe, mas é provável que tenha
sido
como tudo mais: sozinho. Apenas uma vez visitou a família em Minas desde que se
lançou à sorte no Rio. Oito anos depois da partida, ele já com dezoito, as
pessoas
mal o reconhecendo. Também achou muita coisa mudada, as meninas crescidas,
Eduardinho - que nascera em sua ausência - com seis anos, as senhoras começando
a ficar
grisalhas, doutor Eduardo precocemente envelhecido. Depois, voltou ao Rio. Não
só para se afogar novamente no trabalho, mas também para se isolar. Desde moço e
para
sempre precisará disso, de trancar-se com seus pensamentos, construindo
castelos, vivendo em silêncio num mundo só seu. Para Manuel Garcia de Medeiros
Rosa, a solidão
é quase tão preciosa quanto o ar que respira, fundamental. Por isso, muitas
vezes o veremos correr, compulsivamente, atrás dela.
Em 1907, a saúde muito abalada, a clínica em decadência, ainda assim Eduardo
Corrêa de Azevedo teve forças para mais uma mudança. Alugou casa menor, porém
mais nova,
no número 19 da Rua Silva Pinto, a dois quarteirões do chalé. Foram todos para
lá, Neca inclusive. Nova moradia, novos ares, parecia boa idéia. Na casa antiga
ficaria
apenas a escolinha, que assim podia ser ampliada, abrigando maior número de
alunos. Mas foi idéia que durou pouco. Em menos de um ano estavam de volta ao
número
30 da Theodoro da Silva, Eduardo mais doente, às dores que já sentia e à
dependência da cocaína vindo se juntar um rebelde ferimento na perna. Arruinava-
se cada
vez mais o corpo do poeta.
Mesmo assim, procurava-se agir como se os dias felizes não se tivessem acabado
de todo. Mantinham-se os saraus domingueiros, trovas recitadas em torno do piano
Pleyel
trazido de Minas, versos do dono da casa, Neca a acompanhar-se ao violão em
canções aprendidas com um certo Catulo da Paixão Cearense, modinheiro que
conheceu em
suas andanças pelas noites da cidade. Nos dois anos seguintes, uniram-se todos
para que o trem da família não saísse dos trilhos. As despesas não eram muitas,
as
moças estudando em casa, Eduardinho sem pagar mensalidade como aluno do Ginásio
de São Bento, Alice Dantas Miguez não cobrando aluguel. Rita, muito ajudada
pelas
filhas, continuava trabalhando na escolinha, enquanto o marido ainda tentava
manter, embora precariamente, um consultório nos fundos da Farmácia Dantas, no
Boulevard.
Ia-se sobrevivendo. Mas Eduardo já pressentia a morte. "Será num mês de julho",
vaticinava. Lembrava-se de que o pai havia nascido no sétimo mês do ano e
morrido
no nono. Com ele, achava que aconteceria justamente o contrário, o nascimento em
setembro, a morte em julho. Sem ter concluído sua última obra, o livro de
poesias
intitulado últimos Amores, morreria em 1909- No dia 3 de julho.
Hábitos conservadores têm as famílias destes tempos. A dos Corrêas de Azevedo,
por exemplo, crê em valores como a viuvez eterna, a estabilidade dos
patriarcados,
a moral mais ou menos abstrata que faz de parentes e vizinhos a sua consciência,
os guardiães de seus passos pelos
18

caminhos da virtude. Em outras palavras, acreditam que reputação vale mais que
felicidade. Rita e Bella jamais voltarão a se casar. Sequer admitem que se
insinue
tal traição à memória dos maridos. Por confiarem no patriarcado, acham que o
chefe da casa tem de ser um homem. E fizeram de Neca, então com 29 anos, este
chefe.
Não só por ser o mais velho (Eduardinho tinha apenas 17), mas também por ser o
único em condições de ajudá-las nas despesas (Eduardinho queria estudar medicina
como
o pai, o avô e o bisavô, mas por enquanto ainda estava no ginásio). Havia,
contudo, um problema: exatamente a reputação. O que diriam parentes e vizinhos
de duas
moças solteiras vivendo sob o mesmo teto com um homem ainda jovem e também
solteiro? Rita e Bella, preocupadas, viram apenas duas saídas: ou Neca ia morar
noutra
casa, afastando-se mais uma vez da família, ou se casava com uma das moças. Ele
próprio optou por esta última. Já gostava de Martha, de seus olhos verdes, de
seu
jeito mais doce que o de Carmem. Para Rita e Bella, uma solução adequada. Para
Neca, mais um gesto galante. Para Martha, quase um ato de obediência, facilitado
pela
admiração e estima que tinha ao noivo. O amor, nisso tudo, pouco pesou.
Nenhum dos dois aceitou uma das exigências da Paróquia de Nossa Senhora de
Lourdes para casá-los: tinham ambos de se submeter à confissão. A família,
possivelmente
influenciada por Eduardo, o poeta do Catecismo, é religiosa à sua maneira.
Católica, mas aceitando com reservas (ou mesmo não aceitando) certas regras da
Igreja.
A confissão está entre as que não aceitam. Mas Eduardinho contornou o problema
com uma pequena trapaça. Foi com um amigo à Igreja de Santa Rita, no Centro, e
os
dois se confessaram, um com o nome de Manuel Garcia de Medeiros Rosa e o outro
com o de Márcio Corrêa de Azevedo. O vigário cobrou-lhes vinte mil réis pelas
certidões.
Numa delas, com borracha e caneta, Eduardinho mudou o nome de Márcio para Martha
e tudo se arranjou. Entregues os documentos à Paróquia de Nossa Senhora de
Lourdes,
funcionando num esmaecido prédio da Praça 7 de Março, marcou-se a data.
Casaram-se a 29 de janeiro de 1910, no próprio chalé. A cerimônia, tendo por
testemunhas Bellarmina, César (irmão de Eduardo) e Rodolpho Ambrone, foi
celebrada pelo
Monsenhor Francisco Ignacio de Souza. Menos de um ano depois, o primeiro filho.
O menino nasce nesta manhã de domingo, 11 de dezembro de 1910. A cidade já está
calma, a revolta dos marinheiros sufocada, o azul substituindo as nuvens de
fumaça
que
ontem obscureciam o céu. Ninguém na família ligou para a má sorte que tantos
temem viajar na cauda de um cometa. Quando muito, pensou-se numa estrela imensa,
cheia
de esplendor, que mesmo invisível dizem iluminar os nascimentos de dezembro.
Começo de vida, alegria no chalé modesto. Mas nem tudo corre como se esperava. É
um parto difícil, a bacia estreita de Martha não dando passagem ao menino de
quatro
quilos. O médico esteve ao lado dela desde ontem cedo, quando lá fora se falava
em fim do mundo. Por muito tempo, aliás, haverá quem associe as dificuldades do
parto
ao clima de guerra que inquieta a população. Um parto tão difícil que o médico
chamou outro para ajudá-lo, este se decidindo pelo emprego do fórceps. Um menino
extraído
a ferro, penosamente. Tudo muito complicado, sofrido, longas horas de espera
madrugada adentro.
Eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui.
19

NOTAS
1. Atual Praça da República.
2. Sertanista português. Veio com Tomé de Souza, fundou na Bahia a Casa da
Torre, cujas ruínas ainda existem. Morreu em 1609 e hoje é nome de rua no bairro
carioca
de Ipanema.
3. Atual Tebas.
4. Atual Ericeira.
5. Belmiro Bellarmino de Barros Braga, conhecido como o "Rouxinol Mineiro",
autor de peças de teatro, crônicas, poesias, seria o fundador da cadeira número
8 da
Academia Mineira de Letras. Nascido em Juiz de Fora, a cidade mandaria erguer-
lhe um monumento após sua morte em 1937.
6. José Ferreira de Sousa Araújo, teatrólogo e jornalista carioca. Médico
também. Realizou importantes reformas na imprensa de seu tempo a partir da
fundação da
Gazeta de Notícias em 1874. Cronista muito lido, assinava-se às vezes como José
Telha ou Lulu Sênior.
7. David Morethson Campista foi nomeado secretário de Finanças de Minas em
1899. Seria ministro da Fazenda de Affonso Penna de 1906 a 1909.
8. O Dia, de Juiz de Fora, por exemplo, fornece detalhes do caso em seus
números de abril e maio de 1901. Neles os autores colheram boa parte do material
aqui reunido
sobre a questão entre Eduardo Corrêa de Azevedo e a Agave Americano. Ainda a
propósito de Zevada, Manuel Ismael Zevada, tinha mesmo muito a ver com "o
condenado
jogo dos bichos". Em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, segunda edição, volume 4
(páginas 864 a 870), Luís Edmundo cita-o como uma espécie de inspirador do Barão
de
Drummond na criação dos sorteios que se faziam no Jardim Zoológico de Vila
Isabel. Zevada já bancava jogo de apostas semelhante, com flores em vez de
bichos, que
funcionou na Rua do Ouvidor em 1892 ou 93. Teria sido sua a sugestão para que o
Barão fizesse o mesmo, só que com bichos em vez de flores (ver boxe A Vila do
Barão
no Capítulo 3). Mais tarde, Zevada tentaria implantar a novidade em Juiz de
Fora, ao que se oporia o fiscal Eduardo Corrêa de Azevedo.
9- Composto na verdade para substituir o Hino Nacional Brasileiro que Francisco
Manuel da Silva escrevera em 1831. Dias depois da proclamação, o primeiro
governo
republicano, julgando que o antigo fora feito em homenagem a Pedro I (o que não
era exato), instituiu concurso para a escolha de novo hino. Venceu o de Miguez.
O
prêmio de vinte contos de réis ele o doou ao Instituto Nacional de Música para a
compra de seu primeiro órgão. Foi Serzedelo Corrêa, recém-nomeado governador do
Paraná e futuro ministro da Fazenda, quem convenceu o marechal Deodoro da
Fonseca de que a composição de Francisco Manuel da Silva tinha grande apelo
patriótico.
Em sua opinião, ela deveria ser mantida como o Hino Nacional Brasileiro, uma vez
substituídos os versos originais de inspiração realmente monarquista (a maioria
de autoria desconhecida). Foi o que se fez. Os novos versos ficaram sendo os do
poeta e jornalista Osório Duque Estrada. A obra premiada de Miguez, com letra do
também poeta e jornalista Medeiros e Albuquerque ("Liberdade! Liberdade! Abre as
asas sobre nós..."), passou a ser o Hino da Proclamação da República.
10. O chalé tinha mesmo o número 30 naquela época, quando a Theodoro da Silva
começava na Visconde de Abaeté. Em 1917, com o alongamento da rua até a Duque de
Caxias
(no trecho desta que mais tarde seria incorporado à Gonzaga Bastos), o número
mudaria para 130. Em 1936, a Theodoro da Silva sendo novamente alongada,
começando
então na Pereira Nunes, o chalé ganharia uma terceira numeração: 392. A mesma do
edifício de apartamentos que hoje ocupa o seu lugar.
11. Em troca de impostos em atraso que o Governo lhe perdoou, o Ginásio de São
Bento passou alguns anos sem cobrar mensalidades aos seus alunos.
12. A Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes foi criada a 19 de agosto de 1900 e
nos dezoito anos seguintes funcionou no prédio que hoje corresponde ao primeiro
pavimento
do Mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda, na Praça Barão de Drummond, então Praça 7
de Março. Diante de confusões que ainda fazem alguns dos que se têm dedicado a
escrever
sobre a história de Vila Isabel, cabem aqui certos esclarecimentos. O mosteiro
original - conhecido como Convento da Ajuda (no qual viviam as freiras da Ordem
da
Imaculada Conceição,
fundada em 1484, na Espanha, pela beata portuguesa Beatriz da Silva e Meneses) -
esteve de 30 de maio de 1750 a 19 de outubro de 1911 num prédio que se estendia
por toda a atual Cinelândia, da Rua do Passeio à Evaristo da Veiga. No mesmo dia
em que as freiras dali se retiraram para um casarão da Rua Conde de Bonfim, na
Tijuca,
o prédio começou a ser demolido. Parte do que era transformou-se num hotel de
300 quartos construído pela Light & Power. A outra foi aproveitada para o
alargamento
da rua, sendo agora a praça em frente ao Teatro Municipal. Em 1918, a Paróquia
de Nossa Senhora de Lourdes transferiu se para a nova igreja que até hoje está
no
número 200 do Boulevard 28 de Setembro. O esmaecido prédio da Praça 7 de Março
entrou em reformas. Mais dois andares foram construídos. Dois anos depois -
exatamente
a 26 de julho de 1920 - as freiras mudaram-se da Conde de Bonfim para lá, onde
estão até hoje. Portanto, ao contrário do que se tem dito, a paróquia e o
convento
jamais chegaram a dividir o mesmo prédio.
13. Diz Jacy Pacheco em NoelRosa e Sua Época (página 22): "Contam alguns
parentes que dona Martha assustou-se com o canhoneio que abalou o Rio, na
revolta dos marinheiros
chefiada pelo valente João Cândido. O susto
complicou-lhe a gestação e o parto."
20
PARTE II
1910-1928

CRESCENDO COM BOSSA

Capítulo 2

Eu nascendo pobre e feio,


Ia ser triste o meu fim
Mas, crescendo, a bossa veio
Deus teve pena de mim

Riso de Criança
O menino se chamará Noel. Noel de Medeiros Rosa. Por ter nascido às vésperas do
Natal e pelo amor do pai às coisas de França, o idioma, a cultura, a história do
país de Bonaparte. Que por sinal é o maior de todos os heróis para este mineiro
calado, introspectivo, que se faz repentinamente falante quando se trata de
lembrar
episódios como a queda da Bastilha e as campanhas napoleônicas. Com sua
formidável memória, gosta de citar no original frases atribuídas ao grande
general, principalmente
as do discurso de Toulon em 1793:
- Le boulet qui doit me tuer n 'estpas en-corefondu!
Noel como o Natal dos franceses. É assim que vai à pia batismal da Matriz de São
Francisco Xavier do Engenho Velho, domingo, 29 de janeiro de 1911, primeiro
aniversário
de casamento dos pais. Embora os moradores da Theodoro da Silva, como os de toda
Vila Isabel, pertençam à Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, mais ligados
portanto
à igreja que ainda ocupa aquele prédio da Praça 7 de Março, muitos preferem
realizar seus casamentos e batizados neste templo cheio de histórias erguido na
Rua São
Francisco Xavier, a duas esquinas do largo da Segunda-Feira, no mesmo terreno
onde outrora ficavam os cemitérios (o dos cidadãos comuns onde é hoje a alameda
de
entrada, o dos escravos nos fundos e o dos nobres na área destinada ao templo,
guardando-se assim, para além da vida, as diferenças de classes, cada morto em
seu
lugar).
Fundada por José de Anchieta em 1625, é mesmo uma igreja cheia de histórias. Uma
das favoritas de Pedro I, que a ela mandou o comendador Francisco Gomes da
Silva,
o Chalaça, com uma declaração reconhecendo como sua filha a menina Isabel Maria.
Para rubor do vigário Manuel Joaquim Rodrigues Dantas, a quem coubera batizá-la,
segundo registro original, como "filha de pais incógnitos". Não era segredo para
ninguém que Isabel Maria nascera do romance de Pedro I com Domitila de Castro
Canto
e Mello, então Viscondessa de Santos. O que o vigário não esperava é que o
Imperador tivesse coragem de reconhecê-la. Sim, uma das igrejas favoritas de
Pedro I,
que em honra ao santo estendeu um pouco mais o nome do filho e herdeiro: Pedro
de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula
Miguel
Gabriel Rafael Gonzaga, o futuro Pedro II. Mas a igreja favorita também de Luís
Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Ao voltar coberto de medalhas da
Guerra
do Paraguai, prepararam-lhe uma série de homenagens. Por aquela
25

mesma época uma ventania fizera tombar lá do alto uma das torres da igreja.
Caxias soube, recusou as homenagens: "Quando a casa de Deus está em ruínas -
sentenciou
ele - o soldado não recebe festas. Ide reconstruir a igreja da minha Freguesia
do Engenho Velho.
Pois é ali - na mesma pia em que recebeu os primeiros sacramentos a "filha de
pais incógnitos" Isabel Maria - que Noel é batizado em cerimônia celebrada pelo
cônego
Antônio Boucher Pinto. O padrinho é José Rodrigues da Graça Mello, o médico que
acompanhou Martha durante toda a gravidez e chamou o colega Heleno Brandão para
ajudá-lo
a vencer as dificuldades do parto. Algumas pessoas da família acharão que foi um
erro seu não ter notado, senão meses mais tarde, que o menino nasceu com um
problema
no maxilar inferior, o fórceps usado pelo outro médico pegando-o de mau jeito,
fraturando-lhe o osso num ponto vital, deformando-o para sempre. Martha e Neca,
contudo,
têm grande carinho por Graça Mello, jamais o culparão de coisa alguma. Quem sabe
não foi mesmo o canhoneio?
A madrinha é Maria Arlinda Rodrigues de Almeida Madureira. Ou simplesmente
Arlinda. Uma menina de nove anos que desde os seis mora no chalé como se fosse
da família.
Os Madureiras e os Corrêas de Azevedo são amigos dos tempos de Cantagalo e Nova
Friburgo. Arlinda nasceu ali perto, em Bom Jardim. A mãe morreu de parto, o pai
passou
a vida viajando, a menina foi criada por uma tia. Num certo dia de 1907, veio de
visita, todos gostaram dela, pediram à tia que a deixasse ficar por uma ou duas
semanas. A menina adorou. Era a única criança da casa (Eduardinho já estava com
quinze anos), tratada com todas as atenções. Acabou ficando de vez, Eduardo e
Rita
fazendo dela uma filha caçula.
Arlinda e Martha serão sempre amigas muito chegadas, íntimas mesmo. Devem isso a
umas tantas afinidades, o gosto pela vida, o temperamento bem mais extrovertido
que o de Carmem, uma certa sensualidade que, nesses dias, as moças costumam
reprimir. Arlinda foi batizada no chalé, cabendo a Martha representar-lhe a
madrinha,
Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A partir de agora, mais que amigas, vão se
considerar parentas de fato, irmãs de verdade. Os
Corrêas de Azevedo, os Pachecos, os Madureiras sempre levaram muito a sério os
laços que o batismo cria.
A madrinha de Noel crescerá no chalé. Para se transformar numa moça meiga, de
olhos estivos, os lábios grossos, o nariz de turca conferindo-lhe beleza próxima
do
exótico. Terá a mesma educação das irmãs de criação, tocará
piano, se dedicará aos trabalhos manuais, o crochê, a pintura, a pirogravura.
Ficará indecisa entre o Instituto Nacional de Música e a Escola Normal. Depois
de aprovada
nos exames de admissão a ambos, optará pelo primeiro. Só sairá daqui casada. Um
casamento que também a aproximará de Martha, uma compreendendo na outra a falta
de
entusiasmo, desencanto mesmo, por uma união sem amor. Antes disso, quando tiver
seus vinte anos, Arlinda vai se apaixonar por um bom rapaz. Chegarão a ficar
noivos,
mas por pouco tempo: ao descobrir que o moço morava com uma tia, dona de pensão
familiar, que à noite mantinha a porta de seu quarto aberta a um dos inquilinos,
Rita exigirá que a filha de criação rompa o noivado. Imagine vê-la casada com um
homem que faz vista grossa à falta de compostura da tia! E assim será, fim de
noivado,
Arlinda enchendo-se de tristeza. Mais tarde, conhecerá um farmacêutico de São
Paulo, amigo da família, e aceitará seu pedido de casamento. Como Martha, apenas
por
amizade.
O defeito começa a ser notado assim que o menino troca a mamadeira pelas
primeiras refeições sólidas. O lado direito do rosto pouco ou nada se movendo,
pensa-se
de início numa paralisia temporária. É um bebê gordo, rosado, de aparência
saudável, que chega a partici-
26
par de um desses muitos concursos de robustez infantil tão em voga(2). Mas, à
medida que cresce, mais se nota a diferença: enquanto o lado esquerdo
desenvolve-se
normalmente, o direito parece atrofiado. Graça Mello e depois outros médicos são
consultados. O diagnóstico da fratura realmente vem tarde, o osso formado
assimetricamente,
nada mais podendo ser feito. Tenta-se uma operação aos seis anos. E uma prótese
aos doze. Ambas sem sucesso. Eduardinho, já acadêmico de medicina, terá
oportunidade
de testemunhar a primeira dessas tentativas frustradas. A família gastará parte
de suas economias - 600 mil réis - para que o menino seja assistido por famoso
traumatologista.
Dinheiro jogado fora.
- Este médico é um charlatão! - dirá Eduardinho ao vê-lo forçar o maxilar de
Noel com um abridor de boca até romper-lhe as fibras do masseter, causando-lhe
traumatismo,
dor e nenhuma melhora(3).
Menos penosa, porém tão inútil, será a prótese improvisada seis anos depois, um
precário aparelhinho que Noel não usará por muito tempo.
Crescerá com o defeito. Viverá com ele. Carregará para sempre o queixo torto que
lhe enfeia o rosto. Tem a cabeça bem feita, os olhos acesos, expressivos,
castanho-claros.
O nariz é afllado, nem como o da mãe, nem como o do
pai. E se parece maior, isso se deve à linha reta que parte do lábio inferior ao
pescoço, como se o mento lhe tivesse sido arrancado. Essa conformação de rosto -
que se vai acentuar com o tempo - lhe dá uma aparência estranhamente indefinida,
a metade superior harmoniosa, bonita até, e a inferior deformada, de uma
fealdade
que pode ir do grotesco ao patético conforme esteja quieto, falando ou, sempre
com sacrifício, mastigando.
Desde pequeno e até seus últimos dias, enquanto estiver no chalé, a mãe cuidará
pessoalmente de sua alimentação, dietas que o permitam usar o menos possível a
mandíbula,
não forçar quase a articulação. Ovos cozidos, massas, purês, mingaus, sopas. Ao
contrário do que se dirá um dia, embora feio, marcado pelo defeito, não é uma
criança
infeliz. A idéia de um Noel Rosa mergulhado numa infância sofrida, um pobre
menino estigmatizado a suportar em silêncio as estocadas dos outros meninos que
o chamam
de "Queixinho", está longe de corresponder à realidade. É mais exato pensar nele
alegre, despreocupado, solto. Será sempre assim. Mesmo durante os períodos de
dificuldades
financeiras que a família vai enfrentar. E mesmo, também depois da operação
dolorosa e mal-sucedida. Complexo por causa do queixo? Se o tem, não o
demonstra. No
máximo, mostra-se meio constrangido ao comer na frente de estranhos, consciente
talvez da má impressão que causa. Em tudo mais será um menino seguro. Ativo,
desembaraçado,
inteligente, sempre de bom humor. Na rua, comanda as brincadeiras. Um líder. E
em casa, é o número um, o favorito de quase todos.
O número dois - a quem esta condição sempre incomodará um pouco - nasce a 29 de
dezembro de 1914. No mesmo chalé e também pelas mãos de José Rodrigues da Graça
Mello.
Parto normal, nenhum problema. É um garoto forte, bonito, a que dão o nome de
Hélio. Hélio de Medeiros Rosa. Desta vez, sem homenagens à França, ao Natal, ao
que
seja.
Mais do que quatro anos de idade vão separar os dois irmãos. Na aparência, no
modo de ser, em quase tudo, diferem-se muito. Todos vivem a dizer que Hélio é um
menino
lindo. Os traços do roto lembram muito os da mãe. É forte, com ligeira tendência
a engordar. Enquanto isso, Noel cresce feio, frágil, mirrado. Hélio é caseiro,
tem
poucos amigos, prefere os livros aos brinquedos. Noel ama a rua, os companheiros
de algazarra. Gosta de subir descalço a Pedreira do Simões para lá de cima ele e
os amigos gritarem a plenos pulmões: "Olê-lê-oooooooooo...!" O eco espalhando
suas vozes pelo bairro, fazendo-as atravessar portas e janelas até chegarem
27
Nota explicativa:
Dois médicos

Por ocasião do nascimento de Noel, Martha de Medeiros Rosa foi assistida por
dois médicos que ainda se incluiriam entre os mais conhecidos e estimados
personagens
da história de Vila Isabel. Um deles, José Rodrigues da Graça Mello - que
acabaria sendo o padrinho do menino -, não era exatamente médico, mas
ultimanista de medicina,
quando foi chamado ao chalé naquele explosivo sábado de dezembro.
Nascido no Rio a 23 de abril de 1881, já estava casado e com filhos no dia em
que decidiu ser médico. Só se formou em 1911, mais de um mês depois de ter
nascido
Noel. Era homem gentil, inteligente, interessado em música e poesia como tantos
de seu tempo. Todas as quartas-feiras, sua casa no Boulevard transformava-se em
ponto
de reunião de seresteiros e chorões. Seus saraus ficaram famosos no bairro,
contando às vezes com a presença de artistas como Stefana Macedo e Vicente
Celestino.
Nos dias de São Jorge, a festa era maior. Pixinguinha, que aniversariava com o
dono da casa, costumava aparecer para um gole de pinga e um solo de flauta.
Choros,
polcas, maxixes, valsas, lundus, tudo se ouvia nos saraus dos Graças Mello.
Casado com Glorinha, tiveram quatro filhos, todos muito amigos de Noel. Pela
ordem, Edgar, Nelson, Nilda e Octávio. O primeiro também seria médico. O último,
ator
de teatro, cinema e televisão, pai do compositor e arranjador
Guto Graça Mello.
O ultimanista de medicina contava com um parto simples quando se dirigiu ao
chalé naquele sábado. Os problemas que o tomaram de surpresa - o bebê grande
demais para
a bacia estreita da mulher - levaram-no a apelar para a maior experiência de um
médico já formado, Heleno da Costa Brandão, com quem já vinha trabalhando no
pequeno
consultório em cima de uma farmácia do Boulevard.
Ao contrário de Graça Mello, Heleno, que tinha distante parentesco com o pessoal
do chalé (sua avó, Antônia Eulália d'Ávila Brandão, era irmã da mãe de Rita,
Emília
Augusta de Freitas Pacheco), desde cedo sonhou com a profissão. Nascido em Vila
Isabel a 18 de agosto de 1883, estudou no Colégio Rachel Bessa, em Campos, e
depois
no Anchieta, de Nova Friburgo, antes de ingressar na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. Em 1907, formava-se. Médico e
farmacêutico. No ano seguinte, defendia tese. Casou-se com Maria José de Barros,
a Cecé, de outra família tradicional do bairro. O pai dela, José Cândido de
Barros,
depois de lutar na Guerra do Paraguai, ganhou cartório do Imperador e
enriqueceu. Comprou uma bela chácara em Vila Isabel, frente no Boulevard, fundos
na Torres
Homem, que mais tarde dividiria entre os filhos (a rua que hoje reparte em dois
o quarteirão correspondente à chácara chama-se, em sua homenagem, Major Barros).
Outra filha de José Cândido - e portanto irmã de Cecé - era Maria Cândida de
Barros Nunes, a Iaiá, cujos filhos Adalberto, Cacau, Heleno ejosé Peru também
seriam
muito conhecidos no bairro e fora dele. Os três primeiros se destacariam em suas
respectivas carreiras militares e políticas.
Heleno e Cecé tiveram três filhas.-Helena, Heloísa e Hilde. O marido de Heloísa,
Jorge Sampaio de Marsillac, seria em Vila Isabel um médico tão ilustre e
estimado
quanto o sogro. Ele e o filho, Jayme, adquiririam grande reputação nos meios
científicos como cancerologistas.
Foi de Heleno da Costa Brandão a decisão de usar o fórceps para ajudar Noel a
nascer. O que ele sempre fez questão de dizer e repetir, livrando assim de
qualquer
responsabilidade o amigo, ainda acadêmico, Graça Mello. Como terá sido? De que
forma deu-se o acidente? Por que, para vir ao mundo, Noel Rosa teve de ser tão
duramente
marcado?
O Dr. Antônio Assis de Salles, professor de anatomia do Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com base em documentação
fotográfica
e nas informações dos autores (que por sua vez as colheram com parentes e amigos
da família de Noel, além de filhos dos dois médicos que acompanharam o parto),
permite-se
formular a hipótese mais provável do que causou o defeito (braquignatia) no
queixo do poeta de Vila Isabel.
" 1. Devendo o fórceps segurar o bebê pelos dois lados superiores da cabeça
(ossos parietais), uma de suas extremidades o fez num ponto mais abaixo, na
têmpora direita,
mais precisamente no côndilo mandibular,
fraturando-o.
2. O côndilo é uma saliência oblonga que se destaca no bordo superior de cada
ramo ascendente da mandíbula. É através dele que este osso se articula com o
temporal
- a articulação-têmporo-mandibular
28

e responsável pelos movimentos da mandíbula.


3. O côndilo é também o principal centro osteogenético da mandíbula, ou seja, é
sobretudo a partir dele que se dá o crescimento do osso.
4. A fratura, destruindo nele microscópicas zonas osteogenéticas, acabou por
afetar o crescimento do osso no lado atingido.
5. Observe-se, pelas fotos de Noel, que o defeito acentuou-se na puberdade.
Motivo: é dos doze aos dezesseis anos que se torna maior o crescimento da face
(e menor
o do cérebro). Enfim, é durante estes quatro, cinco anos que ocorre a
conformação definitiva da face.
6. Este e outros dados devem servir para que não se leve muito em conta a
hipótese de uma das síndromes congênitas que também causam a braquignatia. Elas
são quase
sempre simétricas (o defeito de Noel limitava-se ao lado direito) e acompanhadas
de problemas outros não encontrados em seu quadro clínico: surdez, estrabismo,
exorbitismo,
etc."
O fato de a fratura só ter sido constatada meses depois pode ter influído, mas
apenas em parte. Com os exíguos recursos médicos da época, é pouco provável que
um
diagnóstico precoce tivesse ajudado muito. As tentativas de correção que se
fizeram mais tarde - o calço de acrílico, o abridor de boca - foram tão inúteis
quanto
improvisadas. Hoje, passadas mais de sete décadas, o problema poderia ser
solucionado com modernos métodos ortopédicos (por exemplo, aparelhos
estimuladores de crescimento)
ou cirúrgicos (inclusive a extração do côndilo seguida de prótese), mas Graça
Mello e Heleno Brandão nem sonhavam com eles.
Daí, até o fim da vida, em vez de culpas, os dois médicos fizeram muito bem em
carregar apenas o orgulho de terem trazido Noel Rosa ao mundo.
Graça Mello morreu no Rio a 8 de fevereiro de 1942. Deram-lhe o nome de uma rua
em Cavalcanti. Heleno Brandão viveu um pouco mais, morrendo a 1.° de junho de
1947.
Na Praça Tobias Barreto - a mesma em que seria inaugurado um monumento a Noel -
está até hoje um busto seu, sobre a inscrição: "Dr. Heleno da Costa Brandão fez
da
medicina um apostolado e a este bairro onde nasceu, viveu e morreu legou o
tesouro de uma vida exemplar."

Fim da nota explicativa

ao Andaraí). é um caroneiro a desafiar os perigos de um bonde em disparada,


risco que Hélio nem quer saber de correr. Andará pendurado em balaústres,
deslizando
pelos estribos, saltando como um trapezista para subir ou descer do veículo em
movimento. Hélio está com a roupa invariavelmente limpa. Noel traz na sua a
poeira
das calçadas.
Nos temperamentos, água e vinho. Noel tem bom gênio, não é de se queixar, trata
os mais velhos com polidez. Hélio será um garoto meio difícil, irritadiço,
reclamão,
ciumento:
- Aqui em casa é tudo pro Noel- protesta. - Eu vou buscar o leite, o pão, faço
isso, faço aquilo. Noel tem sorte, não mandam ele fazer nada. A madrinha dele é
a
Arlinda, que é bonita. A minha é aquela bruxa horrorosa!
Noel comporta-se bem em casa, deixando para descarregar as energias na rua. Suas
travessuras domésticas são quase sempre perdoáveis e freqüentemente enfeitadas
de
alguma graça. Como as habituais idas ao piano, tímidos esforços para descobrir
por conta própria a mágica de produzir música batucando em teclas brancas e
pretas.
Mas este é um brinquedo proibido. Vó Rita não quer as crianças perto do Pleyel.
É em volta dele que a família continua se reunindo, Arlinda no piano, Carmem no
violino,
Martha no bandolim, Neca no violão, cantando com uma voz que se esforça para
educar pondo no gramofone os discos de Enrico Caruso e outros monstros sagrados
da ópera.
Nesses saraus, em geral aos domingos, a participação dos meninos ainda é mínima.
Saboreiam os doces e biscoitos Caseiros que se distribuem entre um número e
outro,
ficam ouvindo, não cantam, não tocam. Noel, quando muito, olha para as mãos de
Arlinda enquanto ela as faz passear pelo teclado. No dia seguinte, escondido da
avó,
abre o piano e dá início ao seu sarau particular. É repreendido. A reincidência
obriga Arlinda a trancar o instrumento. Mas Noel sempre descobre o esconderijo,
pega
a chave, volta ao sarau. Depois de tocar até se cansar, deixa sobre o tampo um
bilhete para a madrinha. "Minha Dinga...", começa ele. Em versos, pede desculpas
e
diz que é tempo perdido esconder a chave: sempre será encontrada. Arlinda sorri,
convencida de que uma travessura que acaba em poesia não merece castigo.
Hélio não tem mesmo a sorte do irmão. Seu comportamento, suas desobediências
preocupam a família. Não chega a ser um menino rebelde, mas há nele, desde
pequeno,
uma tendência a irritabilidades repentinas que vão de simples respostas
atravessadas a desagradáveis estouros. A partir das convulsões que começará a
sofrer ainda
na infância, vai se descobrir que tais reações se devem à epilepsia, mal que o
acompanhará por toda a vida(4). Mas enquanto não se sabe disso - e até que passe
a
se medicar, controlando na base da química os ataques cada vez mais freqüentes -
será para a família um menino difícil, "impossível". Em casa, tenta-se de tudo.
30

Com menos idade do que Noel o fez, deixa a escolinha e é matriculado num colégio
público, os pais achando que o convívio com outras crianças e a disciplina
imposta
por uma professora estranha sejam o bastante para amoldá-lo. Vó Rita chega a
prometer-lhe prêmios para o caso de o boletim escolar registrar boas notas em
comportamento.
Um dia entra em casa com um 100 que mostra, correndo, à avó.
- Aqui está. Agora, meu prêmio.
Vó Rita cumpre a promessa. Convencida de que a tática funciona, insiste nela.
Acena-lhe com outros prêmios para que seja um bom menino o dia inteiro, em todos
os lugares, em casa como na escola. A proposta provoca-lhe nova explosão. Dá um
soco na mesa e vocifera:
- A senhora pensa que épouco o sacrifício que já faço na escola e ainda quer que
me comporte bem em casa?
Irritabilidade sempre inesperada. Já rapazola, será protagonista de insólita
cena à mesa de jantar, a família recebendo visitas, vó Bella orgulhosa de seus
quitutes,
ela que sempre cuidou, com gosto e capricho, da cozinha da casa. Será servida
uma sopa deliciosa, de caldo fino e deleitoso, elogiadíssima. O próprio Hélio
dará
sua aprovação:
- Vovó, quero mais.
Terminado o jantar, as visitas ainda à mesa, alguém indagará:
- De que era aquela sopa, dona Bellarmina?
- De couve-flor.
Hélio se lembrará então que couve-flor está entre as coisas que mais abomina. Só
de pensar dá-lhe engulhos.
- Droga! Por que não me avisaram? Furioso, correrá até o banheiro, enfiará o
dedo na goela e porá para fora o jantar.
São realmente muitas as diferenças de comportamento entre os dois. Mas faça-se
justiça a Hélio: enquanto ele exterioriza seu modo de ser, mostrando-se
transparente
e por inteiro, Noel é antes de tudo um simulador, um garoto que não se expõe,
astuto o bastante para que as pessoas se deixem levar por seu ar sonso de anjo
de igreja.
Custarão um pouco a perceber que o número um é muito menos "bem-comportado" que
o número dois. De natureza na verdade mais inconformista e rebelde, só que
camuflada.
Noel, simulador, medindo gestos e palavras na frente dos mais velhos, sempre se
sai bem. Hélio, extrovertido, dizendo o que pensa e sente, custe o que custar,
fica
sendo o difícil, o "impossível".
Martha e Neca não terão mais filhos. A esses dois darão o que de melhor possuem:
amor, generosidade, tolerância. Martha principalmente. Talvez sensíveis aos
handicaps
de cada um - o queixo torto de Noel, as convulsões de Hélio - não serão pais
rigorosos, repressores. Os dois crescerão tão livres quanto possam ser dois
meninos
desses tempos.
Desde que os Corrêas de Azevedo se mudaram para Vila Isabel, a família vive numa
espécie de gangorra financeira, um sobe-e-desce que se arrastará por muito tempo
ainda, as tempestades de dinheiro curto se seguindo a períodos menos ou mais
longos de bonança. Todas as mulheres trabalham, ajudando de alguma forma na
escolinha,
mas é Neca, como em todo patriarcado, o verdadeiro responsável pelo sustento da
casa.
Seu primeiro emprego fixo no Rio, depois de casado, foi o de guarda-livros da
Camisaria Especial, na Rua do Ouvidor. Em poucos meses, já era o gerente ou,
mais que
isso, o braço direito do proprietário que um dia, estando a firma metida em
apuros, chamou-o a um canto, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe, em tom
paternal:
- Se tu me ajudares a sair deste buraco, faço-te meu sócio.
Neca passou a trabalhar em dobro, dedicou-se à camisaria como se fosse sua.
Reergueu em pouco tempo um negócio que parecia irremediavelmente condenado.
O dono saiu afinal do buraco, mas dentro dele deixou enterrada a promessa de
sociedade. Neca, desapontado, propôs a outro empregado, um certo Rodrigo,
abrirem juntos
sua própria firma. Por que não uma casa de classe, de roupas masculinas,
camisas, lenços, gravatas e cortes importados da Inglaterra? Neca tinha algum
dinheiro,
Carmem ajudou com suas economias, enquanto Rodrigo, embora filho de português
rico, conhecido como "o rei do bacalhau", contava mais com o apoio do sogro
também
rico. Fizeram negócio nas seguintes bases: Neca entrava com o capital inicial, o
sogro de Rodrigo punha sua parte depois. Assim, embora fossem tempos de guerra,
metade da Europa entrincheirada, os dois instalaram, otimistas, sua importadora
na Rua Gonçalves Dias.
São quatro ou cinco anos de nova bonança no chalé. Na verdade, o período de
maior conforto gozado pela família desde que Neca se tornou seu chefe. A mesa
faz-se
farta, as mulheres vestem-se como nunca, Noel e Hélio ganham roupas e brinquedos
caros, Eduardinho já não precisa se preocupar com os gastos, a faculdade, a
alimentação,
o transporte, os livros. De tal forma o dinheiro parece sobrar que Neca nem liga
para os calotes que volta e meia lhe
31

aplica um cliente ilustre: Ruy Barbosa. O que importa é o privilégio de servir a


tão grande brasileiro. Dinheiro farto o bastante para que Martha ganhe do marido
jóias de esmeralda:
- São para combinar com os teus olhos - diz ele.
Mas desde 1914 a vida está mais difícil em toda parte, a guerra recrudescendo, o
bloqueio alemão às costas britânicas e francesas, navios mercantes brasileiros
sendo
torpedeados. Os efeitos, claro, são sentidos também no chalé. Suspensas até
segunda ordem as importações da Europa, a casa de roupas de classe da Rua
Gonçalves Dias
entra em crise. Títulos a resgatar em vários bancos, empréstimos pessoais a
saldar, os negócios parados, o estoque da loja quase a zero, Neca recorre ao
sogro de
Rodrigo. É hora de entrar com sua parte. O outro, porém, tira o corpo fora:
- Ora, ora, seu Medeiros. Isso são negócios de meninos.
Ao contrário dos homens com quem andou fazendo acordos, Neca jamais deixa de
honrar sua palavra. Mesmo quando não é preciso fazê-lo. No caso, bastaria
declarar-se
falido, fechar as portas da firma, ir cuidar da vida em outro ramo qualquer. Mas
não. Honesto além dos limites (ou como se forçado por estranha necessidade de
assumir
culpas, de pagar pelo que não deve, de sofrer pelo que não fez), vira-se para
Rodrigo e diz-lhe que arcará com tudo sozinho. Vai aos bancos e outros credores,
promete
a cada um deles pagar até o último tostão do que deve.
Depois da bonança, nova tempestade. Neca parte para o interior atrás de um
emprego de agrimensor (ofício que aprendeu sozinho, em pouco tempo de estudo).
Torna-se
chefe de uma equipe que cuida de loteamento de terras no noroeste paulista, para
além de Araçatuba. Mete-se mata adentro, derrubando árvores, abrindo esteiras,
delimitando
fazendas. Como se tivesse algo a esconder, vive ali quase em segredo,
identificando-se apenas como "doutor" Garcia (nome que jamais assinou no Rio,
onde todos o
conhecem por Neca ou seu Medeiros). Alguns de seus empregados têm mesmo o que
esconder: são ladrões, assassinos, foragidos da Justiça que sabem não ser mais
possível
voltar à cidade grande. Naquele desterro, Neca satisfaz a um só tempo duas
necessidades: a de ganhar dinheiro para pagar as dívidas e a de ficar só mais
uma vez.
Continua precisando desses isolamentos periódicos. E o interior paulista parece-
lhe, nesse sentido, um paraíso: terras abandonadas, matas virgens, a caça e a
pesca,
seus companheiros de trabalho não fazendo perguntas e nada falando de si mesmos.
As diversões são poucas. Uma delas, matar cobras a tiros de revólver
Passa por maus momentos. Ao tentar ajudar uma comunidade indígena da região,
quase toda ela sofrendo de maleita, contrai a doença. Lembra-se então de que
Eduardinho
já se formou. Está trabalhando em Aquidauana, Mato Grosso, como médico da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Com febre, tremores pelo corpo, toma um
trem para
lá. Confia mais em Eduardinho do que em qualquer outro. Chegando a Aquidauana, o
enfermeiro que trabalha com o cunhado recebe-o com aterradora informação :
- O doutor?Esta morrendo no hotel. Tifo.
Neca vai passar dias, semanas, à cabeceira do jovem médico. Tão preocupado com o
estado de saúde dele que se esquece do seu próprio. O enfermeiro exagerou: 32

Eduardinho não está morrendo. Mas precisa de cuidados. Neca se incumbe disso até
que o cunhado esteja em condições de viajar para o Rio, ser melhor tratado no
chalé.
A maleita? Pensa consigo mesmo: "Estranho... foi-se embora. Terá sido o choque
daquela notícia?"
Fica seis anos fora, só voltando a cada dezembro para os aniversários dos filhos
e as festas. Numa dessas vindas, Noel e Hélio vão esperá-lo na estação. Não o
reconhecem.
Ficam muito assustados quando um homem alto, barba por fazer, modestamente
vestido, aproxima-se deles na plataforma:
- Hélio, Noel... Sou eu, seu pai!
Volta depois dos seis anos. Paga as dívidas até o último tostão. Os bancos já
nem contavam com isso, um mineiro falido preocupado com a honra.
No chalé sempre cabe mais um. Ou mais quatro. Comojocelyn da Encarnação e os
irmãos Dulce, Sylvia e Mariozinho Brown, crianças com as quais Noel e Hélio vão
dividir
boa parte de sua infância, vivendo todos sob o mesmo teto como uma só família.
Jocelyn, um ano mais velho que Noel, não chega propriamente a morar no chalé.
Vem cedinho, toma o café da manhã, estuda, almoça, estuda um pouco mais, brinca,
janta
e só depois volta para sua verdadeira casa, na Rua Maxwell. Dorme e no dia
seguinte começa tudo de novo. O pai, Álvaro Pereira da Encarnação, enviuvou
quando Jocelyn
tinha apenas onze meses. Do segundo casamento, anos depois, nasceu uma menina.
Submetida, ainda pequena, a delicada operação pelos doutores Heleno Brandão e
Graça
Mello, morreu. Eduardinho, já acadêmico de medicina, assistiu à operação. Ficou
arrasado. Uma perda a mais para seu Álvaro, uma dor muito grande para o pobre
Jocelyn.
Comentou o fato em casa com a mãe e as irmãs, amigas da família Encarnação. Rita
teve uma idéia:
- Por que não cuidamos do menino? Poderemos educá-lo com as nossas crianças.
É desse modo que Jocelyn entra na vida do chalé, passa a freqüentar a escolinha
e, mais tarde, o mesmo colégio em que Noel completará o primário.
Dulce, Sylvia e Mariozinho são filhos de Mário Brown, viúvo amigo de Perpétua,
irmã de Rita. Na esperança de que se recupere de um pulmão doente, os médicos
recomendam-lhe
passar uma temporada em Belo Horizonte. Vai e teme-se que não volte.
Tuberculose, nesses dias, é moléstia quase fatal. Tão terrível que as pessoas
lhe evitam o nome,
preferindo dizer que Mário é "fraco" ou simplesmente "doente", mas nunca
tuberculoso. Perpétua dirige um internato feminino na Rua São Francisco Xavier.
Poderia abrigar nele Dulce e Sylvia, mas não Mariozinho. Apela para a irmã.
Seria
uma dor de coração separá-los, já sem mãe, o pai longe. Por que Rita não fica
com os três? Como internos na escolinha.
Assim, para não os separar, Rita de fato os aceita como "internos" do seu
externato. Passam a ser seis, portanto, as crianças do chalé. As que chegam
agora sendo
criadas como as de casa, os mesmos direitos, as mesmas obrigações. E uma
liberdade quase tão ampla quanto a que Martha e Neca dão a seus filhos. Dulce,
Sylvia e
Mariozinho, nem tanto. Pois Carmem - que desde o início liga-se muito a eles,
cuidando mais diretamente de sua educação, tornando-se mesmo, por iniciativa
própria,
uma espécie de segunda mãe - é mulher mais exigente, discipli-nadora e austera
que a irmã.
Noel é atento também às diferenças entre a mãe e a tia, uma tão liberal, de
zangas poucas e sempre brandas, e a outra tão presa a regras, proibindo mais que
permitindo.
Diferenças inclusive na maneira de administrar a casa e a escola, na qual vão
ser cada vez mais atuantes na medida em que Rita envelhecer. Martha é
perdulária, o
dinheiro como coisa feita para entrar e sair logo, os tempos de bonança devendo
ser aproveitados antes que voltem os de tempestade. Carmem, pelo contrário, é
como
a formiga da fábula, trabalhar e guardar nos dias bons para sofrer menos nos
ruins. Noel detesta este lado meio avaro da tia. Desde o primeiro escorregão
financeiro
do pai, aprendeu a ver no dinheiro algo que para o resto da vida chamará de "vil
metal", necessário mas maldito, cobiçado mas ilusório, instrumento de grandes
bens
e de males ainda maiores. O dinheiro, a falta dele e sobretudo o apego a ele,
alimentado desesperadamente por tanta gente, o incomodarão sempre. Não gosta
dessa
mania de poupar. Como dirá, com muito humor, nos versos que fará um dia,
"qualquer economia acaba sempre em porcaria..." Por isso atreve-se a
confidenciar a Arlinda
uma opinião sobre tia Carmem:
- É muito pão-dura. Come o caroço da banana e depois a casca.
Estudam todos na escolinha, debruçados sobre carteiras que se distribuem pelas
duas salas e um dos quartos do chalé. Em março de 1920, porém, Noel ejocelyn, os
dois
mais crescidos, já estão matriculados no terceiro ano da Escola Pública Cesário
Motta, um casarão antigo no lado ímpar do Boulevard, esquina de Silva Pinto5.
Tão
perto de casa que os dois fazem o percurso a pé em menos de dez minutos. Isso
33

quando Noel não cisma de viajar o quarteirão, não mais que um quarteirão, no
estribo do bonde. É mais demorado, perde-se tempo esperando o Vila Isabel-
Engenno Novo
ou o Aldeia Campista, mas vale a pena pelo prazer de correr riscos, de brincar
com o perigo nos saltos que o fazem subir ou descer, a toda velocidade, em
frente
à Cesário Motta.
- Este menino é louco!- grita alguém ao vê-lo saltar.
Loucura, aliás, que ainda levará Martha a duas constatações. Uma, a de que Noel,
tão bem-comportado em casa, é outro na rua, a ponto de ser confundido com os
alegres
e endiabrados moleques do bairro. A segunda, de que o compenetrado Jocelyn, ao
contrário do que ela pensava, é incapaz de tomar conta do filho no caminho da
escola.
Martha passa certa manhã pelo Boulevard quando vê Noel numa de suas arriscadas
acrobacias. Em casa, chama Jocelyn.
- Você é mais velho, maior que ele. Promete que não vai deixá-lo mais pegar
carona de bonde?
- Prometo, dona Martha.
No outro dia, Noel volta a atirar-se ao estribo do bonde parado no ponto.
Jocelyn vai
atrás. Quer impedi-lo de fazer as evoluções que dona Martha tanto teme. O bonde
sai, Noel corre pelo estribo, de balaústre em balaústre. Jocelyn tenta segurá-
lo,
gritando para que pare. Neste momento Martha passa na calçada. Apavora-se ao ver
que não apenas o bem-comportado Noel pode ser confundido com os moleques do
bairro.
- Francamente! - dirá a Jocelyn. - Não confio mais em você.
Álvaro Pereira da Encarnação é homem pobre, batalhador, não pode dar ao filho os
confortos que gostaria. Mas o pessoal do chalé ajuda como pode. A pelerine e o
velocípede
de Noel são dados a ele. Roupas, brinquedos, livros, alimentação, Rita faz
questão de que nada lhe falte. Os dias que passa no chalé são os melhores de sua
infância
(aos treze começará a trabalhar, voltará para a companhia do pai, não seguirá
Noel no ginásio). É aqui que vê plantadas suas alegrias de garoto, suas mais
gratas
lembranças. No modo como é tratado, no convívio com os "irmãos", no jeitinho com
que Noel consegue convencer as pessoas de que é mesmo um anjo, enquanto Hélio
goza
de fama oposta. Jocelyn deixa-se contagiar pelo irrequieto humor de Noel. Ainda
que esse humor eventualmente mude. Como no dia em que estão as seis crianças
almoçando
na mesa da cozinha e Jocelyn se põe a imitar o jeito torto, esquisito, do amigo
mastigar. Exagera na imitação, faz caretas, provoca risos em Hélio, Dulce,
Sylvia,
Mariozinho. A fisionomia de Noel, antes também risonha, vai mudando, fecha-se,
tinta-se de cólera. Mas ele não diz nada. Lentamente, enche a colher de feijão,
coloca-a
no prato com o cabo do lado de fora. Usando o garfo e fazendo da borda do prato
um ponto de apoio, dá uma pancada no cabo da colher. Espalha-se feijão por toda
a
mesa. A violência da cena assusta as outras crianças. E depois que elas, olhos
arregalados, chegam a sentir medo e param de rir, Noel solta uma estrepitosa
gargalhada.
Foi a última vez que o imitaram.
O gosto pelas piadas proibidas, pelas brincadeiras obscenas, pelos mistérios do
sexo é cultivado desde cedo. No colégio e em casa.
-Já reparou como essas três são bonitas? - indaga a Jocelyn numa aula da
professora Adélia Lisboa Manzano, referindo-se às três meninotas que se sentam
na carteira
de trás.
Na volta do recreio, entra na sala antes dos outros, senta-se, abre a braguilha,
põe o que tem de fora e fica esperando. O restante da turma começa a entrar, as
três meninotas passam por ele, ficam embaraçadas ao vê-lo displicentemente em
tal posição, pernas abertas, sexo à mostra. Uma delas, Indalina, vai à mesa da
professora
e conta o que se passa. Dona Adélia olha
34

para Noel, ali sentado, o ar inocente, fíngindo-se de distraído, e acha melhor


fingir também:
- Indalina, minha filha, faz de conta que não viu nada.
Em casa, vai um pouco mais longe. Decidido a ver Dulce nua, espera que ela entre
no banho e executa um plano cuidadosamente arquitetado. Uma divisão de madeira
separa
o banheiro da pequena copa ao lado da cozinha. A divisão não vai até o teto,
havendo ali um vão que parece caído do céu: através dele pode-se ver tudo que se
passa
dentro do banheiro. De início, Noel sobe na pia da copa. Para seu
desapontamento, não é o bastante. Olha para um lado e outro, certificando-se de
que não vem ninguém,
e tenta subir um pouco mais, apoiando os dois pés na torneira. Mas esta não
suporta tanto peso. De repente, Noel quase conseguindo alcançar o vão, a
torneira salta
da parede. Um esguicho d'água começa a inundar toda a copa, enquanto Noel,
estirado no Chão, recebe no rosto o jato frio. Naturalmente, quem chega pouco
depois estranha
todo o quadro, Noel caído, molhado, a água saindo de onde deveria haver uma
torneira, a copa alagada. E Dulce, alheia a tudo, cantando sob o chuveiro.
Suas brincadeiras, porém, nem sempre são tão inconfessáveis. Há, por exemplo, o
desenho, desde agora despontando nele o gosto pelos esboços a lápis, as
paisagens
a guache e até mesmo os quadros a óleo, ele e Jocelyn pintando a quatro mãos um
transatlântico que ganhará lugar de destaque na "exposição de arte" da Cesário
Motta.
E há também o cinema, mágica que sempre cerca de encantamento os garotos do
bairro, freqüentadores do Smart, cuja tela o velho Oliveira molha antes de cada
sessão.
Ou do Cine Boulevard, na esquina de Pereira Nunes. Ou ainda do Chie, perto da
Praça 7 de Março, onde é possível ouvir o piano de Sophonias Dor-nellas e, em
ocasiões
especiais, a voz de Helena Cavalier. Mas Noel e Jocelyn estão mais interessados
nos filmes. Dividem a admiração por um herói dessas silenciosas aventuras em
preto
e branco: Tom Mix. Para vê-lo em ação, montando seu cavalo negro Tony,
derrubando bandidos, ganhando os melhores olhares da mocinha, os dois muitas
vezes vão até
o Centro atrás de um poeirinha que exiba filmes do famoso cowboy.
Não é mesmo infeliz a infância de Noel Rosa. O dinheiro pode faltar de vez em
quando, mas sempre há Tom Mix, a rua, o jogo de botões, a pipa, o balão, a
pedreira,
o piano proibido, as garotas.

NOTAS
1. As palavras de Caxias estão gravadas numa das placas hoje afixadas na
fachada da igreja.
2. Jacy Pacheco se equivoca ao afirmar em Noel Rosa e Sua Época (página 24) e O
Cantor da Vila (página 40) que aos dez meses o menino venceu um concurso de
robustez
infantil patrocinado pela Nestlé. Esta firma só em 1921 iniciou suas atividades
no Brasil. Portanto, quando Noel já estava com dez para onze anos. Eram muito
comuns
na época os concursos desse tipo promovidos pela Prefeitura do então Distrito
Federal. Embora Eduardo Corrêa de Azevedo, o filho, tenha garantido aos autores
que
o sobrinho realmente venceu um deles, não se encontrou registro disso nos
arquivos municipais ou na imprensa de 1911 e 1912.
3. Detalhes dessa operação foram narrados aos autores por Eduardo Corrêa de
Azevedo. O traumatologista famoso que assistiu o sobrinho - e cujo nome, por
questões
éticas, negou-se terminantemente a revelar - pretendia de início realizar uma
intervenção mais ambiciosa: corte do osso e enxerto. O que provavelmente também
não
teria dado certo, em razão dos limitados recursos da época. Optou, então, pelo
abridor de boca.
4. Hélio de Medeiros Rosa jamais se livraria de todo dos ataques epiléticos. Já
adulto - e anos depois da morte do irmão - se submeteria a uma operação
destinada
a aliviá-lo de uma compressão no cérebro. Por algum tempo os ataques tornaram-se
mais brandos e espaçados, mas a melhora seria apenas temporária.
5. Diz Almirante, nas duas edições de No Tempo de Noel Rosa, que após aprender
as primeiras letras com a mãe Noel ingressou no Colégio Maisonette, não fazendo
aquele
biógrafo qualquer referência à Cesário Motta. Os autores não conseguiram apurar
nada sobre uma eventual passagem de Noel pelo Maisonette, desconhecida também de
Eduardo Corrêa de Azevedo e outras pessoas da família, amigos e vizinhos daquela
época.
35

PELAS RUAS DO BAIRRO

Capítulo 3

Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista...
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa
São Coisas Nossas

Os dois são muito inteligentes. Mas em casa - diante da extroversão do mais moço
e do jeito meio guardado do mais velho (ou até que o menino Noel se transforme
no
compositor popular Noel Rosa) - é Hélio quem se destaca. A família chega mesmo a
ver nele, com os olhos do exagero, uma criança prodígio. Aos quatro anos, de
tanto
ouvir as aulas do Externato Santa Rita de Cássia e de observar o irmão estudando
na cartilha feita por Martha com suas próprias mãos (letras recortadas de jornal
e coladas num caderno escolar), já sabe ler e escrever. Só que de cabeça para
baixo, as letras invertidas, as palavras começando do fim.
-Foi assim que aprendi-explica aos que se admiram de tal façanha, talvez sem
saberem que, de frente para o irmão, enquanto este estudava, foi mesmo às
avessas que
se alfabetizou. Aos seis, graças a um livro de inglês sem mestre que descobre na
estante, inicia-se sozinho num idioma que acabará dominando inteiramente. Por
este
e por outros motivos, estará sempre impressionando os mais velhos. Um dia, seis
para sete anos, brincando com Sylvia no Chão da sala, jornais velhos e lápis de
cor
espalhados, ele distraído, a menina faz um comentário qualquer que Carmem acha
inoportuno. Repreende-a:
- Não diga isso, Sylvia. É tolice.
Ali mesmo, mal a tia pronuncia essas palavras, Hélio escreve na margem de uma
folha de jornal uma quadrinha que logo estará passando de mão em mão. Todos
maravilhados
com tanta precocidade:

Muitas vezes acontece


Como a Sylvia agora disse
Muitas vezes acontece
Não dizer senão tolice

Orgulhosa, vó Rita prevê para o neto um grande futuro. Na certa será alguém,
talvez um poeta como Bilac, ou um cientista como Oswaldo Cruz. Passa a mão pela
cabeça
do menino e vaticina:
- Na entrada deste chalé, ainda colocarão uma placa com os dizeres: "Aqui nasceu
Hélio de Medeiros Rosa."
Desde menino se preocupa com assuntos de outras terras, outros tempos e até
outros mundos. Interessa-se por mitologia, gosta de ouvir e contar histórias
fantásticas,
acredita no sobrenatural. São interesses que nasceram com ele. Com apenas oito,
nove anos, chega a corrigir o pai que à mesa recorda antiga lenda grega,
enganando-se
ao atribuir a um personagem o
37

que de fato se passou com outro. Espantado, Neca pergunta-lhe como sabe.
- Li naquele livro - aponta para a estante.
Trata-se de Mythologie Élémentaire des Grecs et des Romains, de H. de Ia Ville
de Mir-mont, editado pela Librairie Hachette em 1905.
- Mas está escrito em francês...
- Ora, é quase a mesma coisa - arremata
com ar superior.
A atração pelas histórias fantásticas, o sobrenatural, o além, se tornará maior
com o tempo. Quando adulto, se sentirá fascinado pelo espiritismo, será um
estudioso
dos mistérios da morte e da reencarnação.
Já Noel prefere o mundo à sua volta, visível, palpável. Enquanto o irmão anda
metido com abstrações, ele cuida de viver a rua, o bairro. E muito especialmente
as
pessoas, seres vivos que o atraem bem mais que qualquer alma penada. É um garoto
atento, observador. Interessado em gente. De todo tipo. Do figurão ao anônimo
homem
da rua. Gostará mais de uns que de outros, mas de todos ou quase todos falará em
seus versos, matéria-prima que são do poeta-cronista que já existe nele. Um
poeta-cronista
não só da rua e do bairro, mas de toda a cidade.
Hoje, porém, e por muito tempo ainda, a
cidade, todo o mundo parece caber em Vila Isabel. Como ele próprio dirá:
"Quando penso no Boulevard, nas ruas pacatas que guardam os meus melhores
segredos, nas esquinas prediletas para as reuniões da turma que aprendeu a fazer
samba
vendo sambar o arvoredo, o meu coração, incuravelmente sentimental, bate
descompassado como um tamborim tocado por estrangeiro. E eu vou alongando o
pensamento e
vou pensando que a cidade inteira é Vila Isabel..."1
De certo modo, é mesmo. De todos os bairros do Rio, desde os que se banham pelo
mar aòs que se perdem nas lonjuras dos subúrbios, poucos terão população tão
múltipla,
tão diversificada, como a Vila Isabel das quatro primeiras décadas do século. Em
quantos mais será possível encontrar, convivendo nas mesmas ruas, bebendo nos
mesmos
botequins, participando das mesmas atividades, tantos e tão diferentes espécimes
da chamada "fauna carioca"? Em que outro se verá elenco tão numeroso de homens e
mulheres a representar, na ribalta das esquinas, o drama, a tragédia, a farsa de
todos os dias? Embora Noel, ao crescer, vá se ajustar perfeitamente àquilo que
João
do Rio chamou de flãneur2, um carioca a percorrer todos os cantos da cidade,
espiando, farejando, perguntando, ouvindo, intuindo, conjeturando, descobrindo
gente
e aprendendo assim a psicologia das ruas,
38

é aqui, em Vila Isabel, que ele começa a conhecer os personagens de sua


história.
E de fato múltipla e rica a galeria de tipos que coexistem no Boulevard, suas
transversais e paralelas. Talvez por estar ilhado entre bairros tão diferentes -
a
Tijuca de ricos e remediados, estes sonhando em ser como aqueles e fazendo desse
sonho a sua divisa; o Andaraí de contornos proletários, meia dúzia de fábricas
empregando
quase um quin to da população; o Engenho Novo de ares provincianos, cadeiras de
vime pelas calçadas nas tardes de domingo, gente debruçada na janela para ver o
trem
passar, pessoas que se cumprimentam sem se conhecerem; o Maracanã de famílias
conservadoras, que só daqui a algum tempo se permitirão, nas batalhas de confete
da
Rua Dona Zulmira e redondezas, umas tantas liberações; o Grajaú ainda meio
deserto, recém-loteado, de moradores poucos e indefinidos; os morros da
Mangueira e dos
Macacos, de multidões pobres que se debatem contra a miséria sem perder o
orgulho e a esperança - Vila Isabel acaba tendo um pouco de cada um. Seus
habitantes formam
mesmo um elenco variado. E que poderíamos dividir em três grupos: os
institucionais, os marginais e os demais.
Os primeiros são o médico, a professora e o padre, pessoas que gozam de maior
prestígio na comunidade (afinal, tão precisada de alento para o corpo, a mente e
o
espírito). Médicos como os dois que ajudaram Noel a nascer. Ou como Cid Prado,
fabricante deste remédio milagroso que é o Jatahy Prado, homem que vive subindo
morros
para aliviar de graça as dores lá de cima. Operosos, abnegados, altruístas,
nenhum deles na verdade se importa muito com honorários. O bairro os vê como
mistos de
heróis e santos, sacerdotes do corpo, bons samaritanos. Um vai virar estátua em
praça pública, o outro nome de rua, mas por ora a maior homenagem que os
clientes
lhes prestam é convidá-los para compadres, como Martha e Neca fizeram com Graça
Mello, ou dar a um dos filhos o seu nome, como tanta gente faz com Heleno
Brandão3.
Professoras como Rita e Martha, que também não cobram dos que não podem pagar.
Samaritanas à sua maneira, fazem do ensino o seu sacerdócio. Nesse sentido, o
chalé,
a escolinha é o seu templo.
Padres como tantos das igrejas do bairro, a de Nossa Senhora de Lourdes, já
instalada no número 200 do Boulevard, ou a de Santo Antônio, que os portugueses
fizeram
construir no alto de um morro onde só existe ela (e ao qual se chega depois de
se vencer uma escadaria de 150 degraus). O mais conhecido desses padres é mesmo
Jayme
Sabba Batistoni, um italiano que desde 1918, quando a Paróquia de Lourdes
transferiu-se para o novo local, até o dia de sua morte(4), será o seu vigário.
Padre e igreja que as pessoas respeitam muito, mas que, até onde se sabe, Noel
freqüentará
pouco, ele e a família católicos meio à distância, quase de longe.
Os marginais são todos os tipos que este bairro predominantemente de classe
média, pequeno-burguês, preocupado com a ascensão social, as convenções, as
regras, suporta
mas não aceita. No máximo, tolera-os como males necessários, inevitáveis. Todos
farão parte do mundo de Noel, o bicheiro, o malandro, o pessoal mais humilde que
vez por outra desce dos morros, o seresteiro (o que anda de violão a tiracolo
sendo chamado de "capadócio"), o desempregado crônico, o sinuqueiro, o carteador
(a
tavolagem nos sobrados do Boulevard já existia quando Noel nasceu), o mendigo, o
vigarista, o proxeneta, o valentão, o pau-d'água.
Quanto aos demais, são os que não se enquadram em nenhum dos dois primeiros
grupos, a grande maioria das pessoas comuns que fazem parte da colorida paisagem
de Vila
Isabel. Como a dona de casa, o chefe de família, os colegiais, os
universitários, os velhos que passam o dia debruçados na janela à espera de
nada. E também os operários
a caminho das fábricas, motorneiros e condutores que entram e saem da estação da
Light5, leiteiros, padeiros, garis, entregadores de compra, carteiros,
motoristas
de táxi. Moleques em algazarra e o guarda noturno que vela pelo sono do bairro
(em geral dormindo também). Os galàs de porta de confeitaria e as mocinhas do
footing
vespertino.
Mas existe também uma fauna itinerante, gente que só aparece de vez em quando,
não propriamente do bairro, mas acrescentando à paisagem tons ainda mais vivos:
baianas
de tabuleiro à cabeça, belchiores, funileiros, amoladores de faca, sorveteiros,
baleiros, vendedores ambulantes. Uns vendem mesmo alguma coisa. Outros, não mais
que ilusão. Há os que o fazem de maneira singelamente poética e até ao som de
música. São os realejos, para quem o futuro é feito só de sorte, nunca de azar.
Mas
há também os que negociam tal mercadoria com uma frieza que seu sorriso dilui,
um sorriso que daqui a um, dois meses, se transformará em sisudez. São os
prestamistas,
para quem o futuro tem a forma de um cifrão.
Todos no bairro adoram o realejo. Crendo ou não no que dizem os versos que o
periquito ou o macaquinho pinça da pequena gaveta, deixam-se embalar pelo som
que o
homem tira de seu instrumento no girar da manivela. Em troca de alguns níqueis,
mais do que sorte em forma de versos, consegue se mesmo um pouco de ilusão. Já o
prestamista não perde tempo com
39

A Vila do Barão
- Vila Isabel é uma grande família - costumava dizer vó Rita.
- Vila Isabel sempre foi uma grande família - repetiriam os moradores do bairro
durante as quatro primeiras décadas do século, ou seja, enquanto se mantivesse
vivo
o espírito comunitário que dava ao lugar ares de cidadezinha do interior, as
pessoas se conhecendo, se freqüentando, se ajudando umas às outras. Enfim, uma
fraterna
e solidária instituição que o progresso e o crescimento da população lariam
desaparecer.
Entre os membros dessa grande família, os moradores do chalé tinham um parente
de verdade do qual muito se orgulhavam: ninguém menos que o Barão de Drummond, o
fundador
do bairro. Parentesco distante, é fato, mas o suficiente para tornar partes da
mesma linha de descendentes de João' Drummond (também conhecido como João
Escórbio,
escocês que se fixou na ilha da Madeira antes do descobrimento do Brasil), não
só o Barão, mas também Carlos Drummond de Andrade e Noel Rosa.
João Baptista Vianna Drummond era mineiro de Nova Era, mas registrado em Itabira
do Mato Dentro (a mesma do poeta de Confidencia do Itabiranó). Nascido a 1 ? de
maio de 1825, já tinha 35 anos quando se mudou para o Rio. Alegre, comunicativo,
liberal, sempre acreditou nas causas libertárias: antes mesmo de a Princesa
Isabel
sonhar com a Lei Áurea, já havia ele libertado todos os seus escravos. Com
grande tino para os negócios, entregou-se a vários deles: foi banqueiro,
comerciante de
secos e molhados, empresário teatral. Tudo isso antes de o fazerem barão. Na
verdade, Drummond nunca escondeu ser mais homem de negócios
do que nobre. Valeu-se da amizade com a família imperial - e com alguns figurões
da política - para realizar vantajosas transações, obter concessões, abrir
caminhos
para seus projetos. Assim, já em 1872, comprava da Princesa Leopoldina, duquesa
de Bragança, segunda filha de Pedro I, as terras do Andaraí Grande, antiga
Fazenda
do Macaco. Comprava-as por bom preço, abandonadas que estavam desde uma epidemia
de cólera havida ali anos antes. E comprava-as a prazo. Por muito tempo, houve
quem
visse na operação uma esperta (e nada nobre) jogada de Drummond. Sabendo de uma
cláusula do testamento de Leopoldina - segundo a qual, com a morte dela, ficavam
perdoadas todas as dívidas de
que fosse credora - e sabendo também que a saúde da duquesa ia de mal a pior, o
astuto homem de negócios teria apostado. E ganho. Leopoldina morreria sem que
Drummond
tivesse pago a segunda prestação. Pesquisas recentes, dos historiadores Delane
Borges e Marilane da Silva Borges, desmentem esta versão. Tudo teria se passado
dentro
da maior lisura.
De qualquer modo, foi mesmo naquelas terras que Drummond fundou Vila Isabel,
assim chamada em homenagem à princesa que quinze anos depois libertaria os
escravos
(aliás, no começo, os nomes das ruas, avenidas e praças do bairro eram todos de
homens e datas ligados ao movimento abolicionista). Ao contrário de outras áreas
da cidade, cujos traçados se foram fazendo mais ou menos ao acaso, o loteamento
e urbanização de Vila Isabel obedeceram a cuidadoso planejamento. Uma Companhia
Arquitetônica
- criada por Drummond e seus amigos Visconde de Silva, Temístocles Petrocochino
e Bezerra de Menezes, todos, naturalmente, também fadados a virar nome de rua -
incumbiu-se
desse planejamento. Basicamente, aproveitando o antigo Caminho do Macaco para
transformá-lo no Boulevard 28 de Setembro (data da assinatura da Lei do Ventre
Livre)
e, em outro trecho, na Rua Visconde de Santa Isabel (grande amigo da família
imperial, médico da Princesa Isabel), para a partir deles traçar as paralelas e
transversais
que formaram, em 1873, o esqueleto do bairro.
Mas Vila Isabel deve a Drummond, além de sua fundação, vários outros
empreendimentos que a enriqueceram como bairro e comunidade: a pioneira linha de
bondes unindo
a Praça 7 de Março ao Centro, a primeira igreja de Nossa Senhora de Lourdes,
atual Convento da Ajuda (o próprio Drummond mandou vir da França a planta da
gruta de
Lourdes para reproduzi-la, em tamanho menor, no altar), o Asilo dos Meninos
Desvalidos, atual Instituto Profissional João Alfredo, e o jardim zoológico. Mas
nenhuma
dessas iniciativas lhe daria mais notoriedade - e um lugar tão permanente na
história do Rio - quanto um certo jogo de apostas que inaugurou no seu zôo em
1892.
Sem dinheiro para adquirir novos animais ou para cuidar dos que já tinha,
aceitou a sugestão do mexicano Manuel Ismael Zevada de transpor para seus bichos
a loteria
que ele, Zevada, já realizava com suas flores na Rua do Ouvidor. Todos os
domingos, cada freqüentador do jardim zoológico ganhava um bilhete numerado
correspondente
a um dos 25 animais que entravam no sorteio sempre às três da tarde.
40

A loteria, desde o início, foi um sucesso. As apostas tímidas do primeiro dia já


eram vultosas no segundo e acabaram virando mania. Dois anos antes da morte de
Drummond
- ocorrida a 7 de agosto de 1897 - o "jogo dos bichos", como era chamado, foi
proibido pelo prefeito do Distrito Federal, Francisco Furquim Werneck de
Almeida. Apesar
de nunca mais ter sido legalizado - ou talvez por isso - caminharia para se
transformar numa verdadeira instituição nacional.
Por todos esses motivos, o bairro tinha tudo para ficar conhecido como "A Vila
do Barão". Mas a voz do povo - mais sensível às rimas do poeta do que aos
negócios
de Drummond - preferiria de outro modo: "a Vila de Noel". Mas esta é uma outra
história.
Voltando a Drummond, lembremos que ele se tornou barão em 1888, dois meses
depois de assinada a Lei Áurea. Pedro II e sua filha Isabel reconheceram nele o
grande
abolicionista que de fato era, o amigo leal, o servil admirador da família
imperial. E lhe deram o título. Em tempo: Pedro II sempre foi muito ligado a
Vila Isabel.
Tinha ali um bom amigo, Joseph Maxwell, inglês festeiro que possuía aprazível
chácara bem no coração do bairro. O imperador costumava visitá-lo. Anos mais
tarde,
moradores menos ilustres, homens do povo sempre irreverentes ao falarem das
coisas da realeza, iriam lembrar entre gargalhadas essas visitas. É que Pedro II
se sentia
tão à vontade na chácara de Maxwell que, saindo com o amigo em passeios pelas
matas do lugar, não hesitava em mandar às favas o protocolo e arriar o culote
para,
de cócoras, entre duas moitas, desapertar-se quando preciso. Como gostava de
comentar o vulgo, "estrumes reais adubaram o solo da Vila".
No ano em que Noel Rosa nasceu, Vila Isabel era um bairro tranqüilo. Podia
haver, de vez em quando, assaltos a passageiros dos bondes que pareciam
carroças. Por
sinal, motivos de glosa dos moradores de outros lugares ("Na Vila só dá
ladrão...", provável origem dos versos que um dia o filho ilustre faria em sua
defesa - ver
Feitiço da Vila no Capítulo 34). Podia haver, também, uma ou outra escaramuça
quebrando o silêncio da noite. Ou mesmo algo mais grave, como o encontro, em
pleno
Boulevard, de simpatizantes de Hermes com os de Ruy, no dia das eleições,
resultando em um morto e duas dúzias de feridos.
Podia ter tudo isso, mas eram episódios raros, bissextos, que não chegavam a
desmentir o fato de que a Vila era mesmo uma zona tranqüila. E, como gostava de
dizer
vó Rita, uma grande família.

níqueis. Muito menos com música e poesia. A ilusão que tem para vender aos
moradores deste bairro emergente (a maioria sonhando com mais conforto e algum
luxo) é
a de que, afinal, tudo está ao alcance de todos.
- A senhora não gostaria de comprar uma cristaleira nova para a sua sala? De
madeira maciça, vidros e espelhos importados.
Os olhos da dona de casa se acendem.
-E o senhor? Não quer ficar com este belo corte de linho? Acaba de chegar da
Irlanda.
E o homem logo se imagina mais elegante que um lord. Mas onde arranjar dinheiro?
O prestamista sorri:
- Muito fácil: eu o empresto. O senhor compra o que quer, comigo mesmo. E ainda
lhe sobra algum dinheiro. Depois me paga em quantas prestações achar melhor.
- E os juros?
- Pouca coisa... Pouca coisa...
Seja para adquirir alguns luxos, seja para enfrentar despesas inesperadas ou
mesmo grandes fracassos financeiros, é comum o morador do bairro cair nas mãos
do prestamista.
Às vezes, asfixiado pelos juros, para não mais sair. Emprestar dinheiro - e a
domicílio - evidentemente
41

não é profissão nova. Mas só de uns tempos para cá os moradores de Vila Isabel
esbarram nela com mais freqüência. As principais lojas da cidade não trabalham
com
sistemas de crédito. Os pequenos e médios negociantes também costumam afixar em
sua porta avisos de "não se fia". Assim, a classe média de dinheiro mais
contado,
que pensa que pode e não pode (e que vê na aquisição de confortos, bens
materiais, luxos, o atestado de sua escalada social, seu sucesso na vida),
rende-se ao sorriso
dos prestamistas.
Mas quem são eles? De onde vêm esses emprestadores de dinheiro? Na grande
maioria, quase totalidade, são imigrantes europeus, muitos deles acabados de
chegar. Juntam
um capital, fazem rolinhos de dinheiro que guardam no fundo de uma pasta preta e
saem por aí vendendo ilusão. Poloneses, húngaros, belgas, romenos. E até
portugueses.
Vêm de todos os pontos da Europa. Há também os sírios, árabes, libaneses. Os
europeus, tenham a origem que tiverem, são conhecidos genericamente por
"judeus". Os
outros, venham de Beirute, Cairo ou Marrocos, são simplesmente "turcos".
Judeus, turcos, portugueses, não importa quem sejam. Noel aprende muito cedo a
ver no prestamista o fantasma que transforma em pesadelo os sonhos dos moradores
do
bairro. Assimila o pavor que todos têm de suas visitas mensais (muitos trancam
portas e janelas, fingem que não estão em casa, escondem-se para ver se o
prestamista
desiste e deixa para cobrar duas parcelas no mês que vem).
Um pavor vindo não só do convívio com os vizinhos, mas de experiências em sua
própria casa, o pai tantas vezes endividado, apelando para os emprestadores de
dinheiro.
Quando a importadora faliu, hoje, sempre.
Judeus, turcos, portugueses. Noel não parece distingui-los. Jamais se livrará
inteiramente dos preconceitos que desde menino guarda em relação a todo
imigrante.
Em versos, falará muitas vezes desse sentimento, lembrando-se mesmo dos
cobradores que lhe atormentavam o pai:
Miséria de quando em quando
Prestamistas recitando
Minhas contas no portão
E a criada calmamente
Diz que eu estou ausente
E não lhe deixei tostão
Vai lembrar também o patrão inescrupuloso que quis ensinar o pai a batizar
bebida importada de além-mar:
Lá no Banco do Brasil Seu Zé depositou três mil botando água no vinho do
barril...
Com mesma rima, mas outra idéia, fará versos como estes:
Seu Jorge turco
tem três anos de Brasil
E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês
Ou como estes, mais diretos, sem meias palavras:
A vida lá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu...
Mas essas são cantigas de daqui a algum tempo. Nesses dias em que se inicia no
aprendizado da psicologia das ruas, do conhecimento de seus tipos, do estudo da
"fauna
carioca" a partir deste microcosmo que é Vila Isabel, Noel apenas colhe a
matéria-prima de sua poesia, de sua crônica. Dramas, tragédias, farsas. Em tudo
isso o
prestamista há de ser sempre o vilão de sua história. A menos romântica e a mais
constante musa de seus versos(6).
Mil novecentos e dezoito foi um ano ruim. A gripe espanhola matou mais de 20
milhões de pessoas em todo o mundo, 300 mil só no Brasil, 18 mil no Rio de
Janeiro.
Uma pandemia que levou desespero a toda parte. No chalé, contudo, a rotina só se
alterou porque as aulas foram suspensas nos meses críticos de outubro a dezembro
e porque Eduardinho, no último ano de medicina, foi requisitado para trabalhar
dia e noite num posto de emergência instalado em colégio do Meyer. À frente da
campanha nacional de combate à doença,
Carlos Chagas apelou para médicos e acadêmicos de todo o país como se fossem
soldados convocados para a guerra.
A gripe adiou por alguns meses a formatura de Eduardinho, prevista para dezembro
de 1918,mas só concretizada a 2 de março do ano seguinte. Foi então que ele
partiu
para aquela experiência profissional em Aquidauana, a tal em que contraiu tifo e
quase morreu. Depois de convalescer no chalé e de passar algum tempo no Rio, vai
outra vez para fora. Desta feita seu destino é Bica de Pedra(7), perto de Jaú,
interior de São Paulo. Começa a ganhar dinheiro, a fazer seu pé-de-meia, a
livrar-se
de qualquer preocupação financeira. Numa de suas esporádicas visitas ao Rio,
pede em casamento a namorada de infância, Odette Maria Ferreira Rego
(o pai dela, homem conservador e exigente, sempre disse que só consentiria
quando Eduardinho aparecesse com o anel de doutor no dedo). Casam-se a 13 de
dezembro
de 1921, na Igreja de Santa Ifigênia, São Paulo.
42

Pouco depois, é a vez de Carmem. Quando já não se esperava que unisse sua vida à
de alguém (35 anos, nenhum namorado nesse tempo todo, nenhum interesse aparente
por homem algum, vivendo só para a música, os livros, a escolinha, os filhos dos
outros), eis que chega o seu dia. Não inteiramente curado - pois tuberculose não
é mal que se vença assim - mas com a doença mais ou menos sob controle,
permitindo-lhe inclusive trabalhar normalmente e levar vida de poucas
limitações, Mário Brown
vem ao Rio buscar os filhos. Já se sente em condições de cuidar deles em Belo
Horizonte, onde comprou casa no bairro da Floresta. Carmem estremece ao receber
a notícia.
Já se afeiçoou de tal modo a Dulce, Sylvia e Mariozinho que mal pode se imaginar
longe deles. São como filhos. Ou mais que isso.
Vem de muito, porém, a admiração de Mário Brown por ela. Vá lá que Carmem não
seja bonita como a irmã, mas tem porte, é elegante, uma dama. Vá lá também que
sorria
pouco, não seja muito efusiva, bem menos simpática que Martha, mas tem coração
generoso. Vá lá enfim que por vezes se torne excessivamente enérgica,
autoritária,
meio repressiva, mas por trás de tudo isso há um grande caráter e uma
personalidade forte. É por todas essas qualidades - e pelo que ela significa
para as crianças
- que Mário Brown acaba se interessando por Carmem além da simples admiração. E
é correspondido. Casam-se e vão para Belo Horizonte. Os dois, os filhos, o piano
que Eduardo Corrêa de Azevedo havia comprado em Juiz de Fora. A partir de agora,
além das tarefas de esposa e mãe, Carmem vai assumir também as de professora de
violino do Conservatório Mineiro de Música.
É pela mesma época que os moradores do chalé - dentro do costume que autoriza
pais, avós, tios a projetar o futuro de suas crianças - traçam o caminho que
Noel deverá
seguir, dos bancos de escola pública até formar-se em medicina. Sim, porque não
passa pela cabeça de ninguém que ele deixe de cumprir a tradição da família
(Luís
Corrêa d'Azevedo, Fortunato, vovô Eduardo e agora Eduardinho) e abrace qualquer
outra carreira. Decide-se, então, que depois do terceiro e quarto anos na
Cesário
Motta Noel será matriculado no Ateneu Luso-Brasileiro, na Rua Pereira Nunes, ali
se preparando, durante todo o 1922, para os exames de admissão ao Ginásio de São
Bento, no fim do ano. Depois, finalmente, a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Tudo como tio Eduardo.
Os novos tempos de bonança que a família vive serão provavelmente os últimos.
Numa carta à mãe, Eduardinho diz que sua clínica em Bica de Pedra vai tão bem
que já
lhe sobra dinheiro para ajudá-la. Pede-lhe que discrimine, item por item, o
quanto é preciso para manter o chalé sem que tenha de continuar trabalhando na
escolinha.
Quer que ela se aposente, que deixe as aulas por conta de Martha. Rita escreve-
lhe de volta: alimentação, luz, gás, lavagem de roupa, despesas várias, o total
de
gastos da casa fica em torno de 450 mil réis por mês. Eduardinho resolve mandar-
lhe 500: "Os 50 a mais - explica - são para suas caridades costumeiras." Mas a
ajuda
não fica nisso. Lá de longe, na pequena cidade do interior de São Paulo,
recorda-se de ter ouvido muitas vezes a mãe queixar-se da precariedade do chalé:
- Qualquer dia desses, o teto desaba sobre nós.
Por isso, numa das próximas vindas ao Rio, trará mais uma boa novidade:
- Vamos construir uma casa nova.
Compra o terreno número 195 da mesma Theodoro da Silva, quase em frente à
Silva Pinto, e entrega ao "engenheiro" Neca o projeto de construção da casa. Ele
que faça como achar melhor, a planta, a escolha do material, tudo. Afinal, não
será
só de Rita, mas de toda a família, Bella, Neca, Martha, Noel, Hélio, Arlinda.
Uma vez pronto, o chalé só será usado para as atividades do Externato Santa Rita
de
Cássia.
Neca - que justamente por esta época acaba de voltar do interior - entrega-se à
tarefa com entusiasmo. Não tem emprego fixo. Vive de biscates e, eventualmente,
de
sonhos (garante ter um punhado de idéias na cabeça, invenções que ainda porá em
prática e que o tornarão rico e famoso). Está um pouco diferente de seis anos
atrás,
quando partiu em busca de dinheiro para pagar as dívidas. Ainda toca violão,
canta modinhas do amigo Catulo, ouve discos de Caruso, mas soma a esses hábitos
algumas
atitudes que beiram a esquisitice: o silêncio, o isolamento, o ar meditativo.
Volta e meia é acometido de tremores, acessos de febre, seqüelas da maleita que
o pegou
em Araçatuba. Nessas horas, corre pela casa, dá voltas em torno da mesa de
jantar, dança e canta à maneira dos índios que encontrou por lá. Mas o projeto
da casa
o entusiasma. É algo a que se entrega com os pés no Chão, sem sonhar. De certo
modo, um dos últimos empreendimentos a que se dedicará sem a postura de um
Quixote.
Uma ladeira íngreme à direita, outra proibida à esquerda e lá em cima o Ginásio
de São Bento, em cujas dependências, nesta quinta-feira, 1? de março, reúnem-se
todos
para a abertura oficial do ano letivo de 1923 • São quase 400 alunos dos 470
matriculados nos diversos cursos, o Ginasial, o Preliminar, o Noturno, o
43

Claustral. Entre eles, perneiras pretas, farda caqui, culote, dólmã abotoado até
a gola, quepe assentado na cabeça, o primeiranista Noel de Medeiros Rosa.
Que impressões lhe causará este primeiro dia entre as paredes sombrias de um
mosteiro beneditino tão diferente das ensolaradas ruas de Vila Isabel? Difícil
saber.
Talvez estranhe o caráter solene desta cerimônia que nem de longe lembra as
barulhentas salas de aula que freqüentou desde o bê-a-bá no chalé. Ou talvez não
estranhe
coisa alguma, pouco se importando com tudo isso;
É mesmo solene a abertura oficial do ano letivo. A começar pela missa do Divino
Espírito Santo celebrada na igreja abacial pelo prior do Mosteiro, dom Pio
Ziegenaus.
Os alunos ouvem compenetrados o longo sermão sobre a infância de Jesus ("... o
menino progredia em sabedoria e graça perante Deus e os homens...") e desde já
ficam
sabendo que religião, aqui, é ar que se respira a todo instante. Dom Pio, um dos
professores de apologética do quarto e quinto anos, é quem está incumbido de
prepará-los para enfrentar, "tanto no campo do pensamento como no da ação, os
inimigos do cristianismo". Ou seja, é o sacerdote a quem foi confiada a missão
de fornecer-lhes
razões e argumentos para usarem em discussões que, no futuro, venham a pôr em
dúvida suas crenças. É um homem formal, de gestos afetados e fala eloqüente. Bem
de
acordo com a pompa secular desta igreja coberta de ouro.
Com madeira da ilha das Cobras, aqui pertinho, pedra do morro da Viúva, que se
pode divisar mais além, entre Flamengo e Botafogo, e ouro de todo lugar, a
igreja,
construída em quase dez anos, de 1633 a 1642, é justo orgulho da ordem. O
harmonioso conjunto arquitetônico do qual faz parte tem um dos blocos cravado em
rocha
viva. São três edifícios: o do Mosteiro propriamente dito (no andar superior,
salões, celas, uma capela de relíquias e biblioteca; no intermediário, mais dois
salões,
salas menores, o refeitório e o claustro; e no térreo, as catacumbas), o do
colégio (salas de aula, laboratórios e gabinetes cercados de pátio, campo de
futebol,
ginásio e piscina, esta interditada) e a igreja. Que é realmente soberba, embora
não muito grande. O traçado da nave é em cruz latina, os arcos e pilares que
separam
as naves laterais são em jacarandá trabalhado, os lampadários de prata devem-se
à arte de Mestre Valentim. Há obras preciosas distribuídas aqui e ali, adornos
riquíssimos
no altar de Nossa Senhora de Montserrat, quadros de frei Ricardo Pillar até na
sacristia e um imponente órgão que se ouve durante as missas. Enquanto estiverem
por
aqui, os alunos ouvirão
muitas histórias sobre esta abadia. Desde as chegadas dos beneditinos ao Rio de
Janeiro, com sua pioneira e heróica ocupação do antigo morro de Nossa Senhora do
Ó, em 1589, até a fundação do colégio, em 1859, passando por alguns episódios
históricos dos quais os monges preferem falar por alto, pois envolvem guerras,
conflitos,
bombardeios, mortes(8).
Mas a cerimônia de abertura oficial do ano letivo não se limita à igreja. Após a
missa, os alunos são encaminhados ao ginásio para serem formalmente apresentados
ao reitor, dom Meinrado Mattman, e ao corpo docente, inspetores, auxiliares,
serventes. Há solenidade, também, nas palavras de dom Meinrado, que lê
pausadamente todos os artigos do regulamento interno, depois de breve discurso:
"Concito os alunos a honrarem com o trabalho perseverante o nome da família, a
farda
do Ginásio e as gloriosas tradições de nossa Pátria..."
Dom Meinrado é bem diferente de dom Pio. Nem formal, nem afetado nos gestos, nem
eloqüente na fala. Suíço, está no Brasil há muitos anos, falando um português
quase
irretocável.
44

À medida que o forem conhecendo, os alunos descobrirão nele um homem gentil,


compreensivo, benevolente. Para o resto de suas vidas guardarão as melhores
recordações
de seu convívio com ele. Noel Rosa não será exceção. Mas, neste primeiro dia, os
alunos que chegam ainda não são capazes de diferençar dom Meinrado de dom Pio ou
de qualquer outro. Sobretudo porque também sua fala é fria. E o regulamento lido
impõe-lhes deveres em torno de uma missa obrigatória nas manhãs de domingo, do
rigor
dos horários que terão de cumprir, das exigências quanto ao silêncio e respeito
em aula, da disciplina de inspiração militar a que estarão sujeitos, de como é
difícil
o curso, os professores orientados no sentido de exigir-lhes o máximo.
Por isso, tocados primeiro pelo sermão de dom Pio e logo depois pela preleção do
reitor, pode ser que os meninos que chegam já desconfiem de que os dias alegres
e despreocupados da infância começam a ficar para trás. Quanto mais tiverem de
se agarrar aos livros, mais terão de renunciar aos brinquedos. Os tempos agora
são
outros, mais duros, menos de regalias do que de obrigações, mais de coisas
sérias do que de sorrisos. Pode ser. Mas não no caso de Noel. Tanto quanto
possível, não
será tão solene. E fará tudo para que continue a soprar para além dos muros do
São Bento a brisa menina das ruas de seu bairro.

NOTAS
1. Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.
2. A Alma Encantadora das Ruas (páginas 12 e seguintes).
3. Muitos são os que, em Vila Isabel e bairros próximos, se chamaram Heleno em
homenagem ao médico. Como o almirante Heleno de Barros Nunes, ex-presidente da
extinta
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), no Rio de Janeiro, e também da antiga
Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual Confederação Brasileira de
Futebol (CBF).
4. 2 de janeiro de 1951.
5. Atual garagem de ônibus da Companhia de Transportes Coletivos (CTC).
6. Como se poderá constatar ao longo das páginas deste livro, o prestamista e
temas correlatos (dívidas, empréstimos, dinheiro, ganância, espertezas e
malabarismos
financeiros) estão muito presentes na obra de Noel Rosa. Os autores anotaram 64
letras de música, incluindo paródias, que falam no assunto ainda que de forma
indireta.
7. Atual Itapoí.
8. "Por sua localização estratégica" - recorda Idacy Costa no livro Rio (página
151) - "o Mosteiro foi palco de vários acontecimentos históricos: em 1711,
construção,
pelos beneditinos, de um forte para defesa da cidade quando da invasão de Duguay
Trouin. A abadia foi bombardeada porque os franceses ocuparam a ilha das Cobras;
em 1824, alojou dois batalhões de artilharia; em 1855, serviu de quartel aos
fuzileiros..." É feita referência, também, aos episódios de 1910, já mencionados
no
Capítulo 1.
45

ENTRE A CRUZ E O VIOLÃO

Capítulo 4

Quero deixar o mundo alegremente, Desde que eu tenha um violão por cruz
O Que é um Violão

Miúdo para seus doze anos, é um dos menores da turma. Por isso, senta-se
sempre numa das carteiras da frente. Ainda tem os cabelos compridos, fios
castanho-claros,
quase louros, amontoando-se entre a aba do quepe e as orelhas. Os colegas
reparam que usa uma haste de madeira entre as arcadas dentárias, do lado
direito. A tal
"prótese" que outro especialista recomendou, meio no palpite, para lhe corrigir
a articulação, e que acaba funcionando como mero calço. O pedaço de madeira o
incomoda.
E logo ele começa a mastigá-lo, passando-o de um lado a outro da boca, certo de
que não serve mesmo para nada. Mais tarde a madeira será substituída por
material
mais resistente, paladon ou algo parecido. Mas o resultado é o mesmo. No
primeiro jogo de futebol, coloca-o no bolso:
- Esse troço pesa tanto que nem posso correr.
Até que um dia abandona para sempre o inútil aparelho. E com ele o resto de
esperança de desentortar o queixo.
Não come na frente dos colegas. Se traz um sanduíche como merenda, vai
mastigá-lo longe, num canto de recreio. Mas geralmente não traz coisa alguma
além dos livros e do maço de cigarros. Aliás, a guimba no canto direito da boca,
permanentemente
grudada no lábio inferior, dando a impressão de que vai cair a qualquer momento,
acaba sendo mais um modo de disfarçar o defeito. É um de seus traços mais
característicos.
O São Bento mantém outros cursos além do ginasial que Noel começa a freqüentar
em 1923. Há o preliminar ou primário, o elementar que antecede o preliminar, o
popular
para alfabetização de crianças pobres, o noturno para os que trabalham e
estudam. O pequeno mundo que os beneditinos construíram nesta elevação cresce a
cada dia.
É uma grande instituição abrigando várias outras, educacionais, culturais,
religiosas, recreativas e, estranho que pareça, militares. A não ser que seja
obrigado,
de nenhuma delas Noel tomará conhecimento. Das instituições religiosas, então,
seu alheamento será absoluto. Por mais que os monges, especialmente dom
Meinrado,
se esforcem para arrebanhar sua jovem alma.
Mas que instituições religiosas são estas? Naturalmente, a maior e principal de
todas é o próprio Mosteiro, do qual os alunos se mantêm mais ou menos distantes,
restrito que está aos monges e postulantes. Estes começam a se formar na Escola
Claustral, criada neste 1923 sob a direção de dom Plácido Roth com o objetivo de
"gasalhar e educar meninos que, movidos pelo
47

toque d'uma graça particular, se sentirem inclinados a consagrar a Deus, já


desde a infância, a vida toda, desejando ser discípulos e filhos de São Bento,
monges
beneditinos(1)". Terá dez alunos neste seu primeiro ano de existência. Ao
recebê-los, dirá dom Plácido:
- Vivat! Crescat! Floreat!
As outras, abertas aos estudantes, são a Congregação Mariana de São Bento,
dirigida por dom Leão Dias Pereira, que a reorganizou este ano após um período
meio estacionado;
a Conferência Vicentina de São Bento, destinada a socorrer, com visitas e
esmolas, famílias pobres; a Obra da Santa Infância, também fundada este ano,
também destinada
a "angariar pequenos donativos para a obra grandiosa das Missões Católicas"; o
Apostolado da Oração, que promove os retiros, as preces em grupo e as comunhões,
estas
obrigatórias a todos os alunos no primeiro domingo de cada mês; e por último os
Cavalheiros e Pajens do Santíssimo Sacramento, de função vaga como seu nome,
tendo
como diretor dom João Baptista Laué Lobão, homem tão bondoso quanto surdo.
As atividades culturais gravitam basicamente em torno de duas outras
instituições. A primeira é o Grêmio Literário de São Bento, que organiza sessões
periódicas
para leitura de poesia, análise de obra de determinado autor, comemorações de
efemérides e julgamento de textos, em prosa ou verso, dos próprios alunos. A
segunda
é A Alvorada, revista mensal de circulação interna. Tão importante que, daqui a
muitos anos, não será possível conhecer o Ginásio de São Bento da década de 20,
sua
história, seus costumes, seu espírito, seus mestres e seus alunos, sem lhe
consultar as páginas.
Também são duas as instituições militares. Uma delas, o tiro de Guerra(2),
funciona no próprio ginásio sob as ordens de dois primeiros-sargentos nomeados
pelo comandante
da 1? Região Militar. Qualquer aluno com mais de dezesseis anos, aprovado em
exame médico e mediante pequena taxa anual (50 mil réis em 1923), pode conseguir
aqui
uma carteira de reservista tão válida quanto as obtidas nos quartéis lá de fora.
Para isso, basta que se submeta, primeiro, a todo o programa de exercícios,
treinamento
e estudos orientado pelos sargentos e, depois, a um exame final perante banca
presidida por um capitão. Mas ainda é cedo para Noel Rosa pensar nisso.
Já a outra instituição militar, o Batalhão Escolar, nunca é cedo para se fazer
parte dela. Antes mesmo de passarem pelo admissão, os meninos já se integram a
esta
curiosa corporação, formando um jovem e despreocupado exército de colegiais.
Soldados, cabos, sargentos, tenentes e capitães imaginários obedecendo a uma
hierarquia
ditada pela idade e pela disciplina (mais por esta do que por aquela). O São
Bento, como muitos colégios de padres desta época, parece acreditar tanto na
educação
militar como na religiosa, quase tanto na espada quanto na cruz.
Mesmo sem Carmem e o Pleyel, continuam feitas de música as noites de domingo da
família. Agora com um novo instrumentista que se vem juntar a Neca, Martha,
Arlinda
e eventuais convidados: o próprio Noel, pequeno, franzino, dedilhando o bandolim
que aprendeu a tocar com a mãe.
Noites de música e poesia, como gostava vovô Eduardo. Mas que música e que
poesia? Que canções se cantam e que versos se dizem nessas tertúlias
domingueiras? Saraus
familiares ainda são muito comuns no Rio de Janeiro desses dias. Acontecem não
só nos chalés da classe média de Vila Isabel, mas também em residências que vão
desde
os Casébres que se equilibram num clivo de morro às mansões mais para perto do
mar, freqüentadas pelas elites, os ricos e
novos-ricos, ex-nobres e pretensos nobres, imigrantes que se endinheiraram por
aqui, famílias tradicionais, a nata das artes e da política, o que há enfim de
mais
representativo dos salões da sociedade carioca. Mudam as pessoas, as posses, os
trajes, os comes, os bebes, o décor, mas a essência do sarau é a mesma.
Muda também a poesia. Nas mansões ainda se reverenciam os românticos franceses,
Lamartine, Vigny, o Musset mais triste, de coração partido por George Sand. Tudo
de Victor Hugo, alguma coisa de Sully Prudhomme. E os simbo-listas também.
Impressiona conhecer Rimbaud, Verlaine, Mallarmé. Talvez alguém lembre o Antônio
Nobre
de Só, mas nunca o nosso Cruz e Souza. Os anglófilos ainda podem vir até Shelley
e Keats, nada mais para cá. As nossas elites raramente se sensibilizam com os
movimentos
de vanguarda. Se houve no ano passado, em São Paulo, uma Semana de Arte Moderna,
ninguém nestas mansões parece ter ligado a mínima. Prefere-se a estética já
aprovada
pelos salões lá de fora. Cultura, de verdade, é a européia. E têm sempre ar de
concessão as ocasionais incursões que os diseurs dessas reuniões elegantes fazem
às
obras de Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela. Ou mesmo às de
Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac.
Nos chalés da Zona Norte, pelo contrário, os poetas brasileiros estão em
primeiro lugar. Bilac principalmente. As pessoas não se importam tanto com os
estrangeirismos,
as regras do chie. Chegam mesmo a aplaudir poesia de fabricação Caseira, cada
participante do sarau
48

julgando-se um grande vate em potencial. E nos lugares mais humildes, os bairros


pobres, são também humildes os versos, em geral improvisados ao luar.
Espontâneos,
quebrados, simplórios, incultos, modestos e mal-vestidos como os poetas que os
criam.
Quanto à música, são ainda maiores as diferenças de lugar para lugar. É mais ou
menos por esta época que Raul Pederneiras desenha, com mãos de artista e olhos
de
repórter, três tiras a que dá o título de "Dize-me o que cantas... direi de que
bairro és."2 Nelas estão focalizados três tipos de reunião musical, a geografia
humana
do que se toca e canta no Rio de Janeiro de agora. Nas mansões de Botafogo,
Copacabana, Gávea, bairros de beira-mar, a influência estrangeira é marcante.
Cultiva-se
o bel canto, árias de ópera em italiano, canções e cançonetas em francês,
alemão, inglês. Gosta-se de Liszt, venera-se Chopin, conhece-se todo o
repertório pianístico
clássico. Os que dançam preferem a valsa, a polca, o schottis. Acham
deliciosamente ousadas as modas que vão chegando da América, ofox-trot, o
charleston, o cake-walk,
o one-step, o shimmy, mas demasiado ousadas, para
não dizer de mau gosto, coisas como o maxixe e o corta-jaca, mesmo que uma
primeira dama, mais ousada que as próprias danças, já as tenha levado para além
dos muros
do Palácio das Águias3. Tudo, portanto, afinado com uma estética importada, a
idéia de requinte sempre associada à de que o que é nosso é tosco, vulgar,
enquanto
o de outras terras é culto, elegante. Se uma ou outra modinha daqui consegue
penetrar nos salões, em geral é obra de Catulo da Paixão Cearense, nordestino
que se
propõe a "civilizar" a canção brasileira, vestindo-a de versos pedantes e
empolados. Embora já tenha cantado para quatro presidentes da República, é ainda
gelo exótico
que estes saraus o recebem, pois bom mesmo é cantar poesia de Heine com música
de Schumann.
Nos subúrbios, nos morros, nos bairros onde vive o homem mais pobre, notadamente
as populações negras e mestiças da Cidade Nova, Gamboa, Saúde e adjacências,
canta-se
e toca-se o samba, fazem-se rodas de batucada(4), prevalecem os instrumentos de
percussão, pontificam os grupos de choro na base de violões,
49

flauta e cavaquinho, dança-se sem cerimônia o maxixe e - que a polícia não saiba
- entoam-se pontos de macumba.
Vila Isabel e os bairros de classe média ficam no meio do caminho entre a
simplicidade, o despojamento destes e o esnobismo daqueles. Os que tocam piano,
se também
revivem Chopin e List, sentem-se mais à vontade com os Chopins e os Liszts
nacionais, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, os irmãos Levys, Mário
Pennaforte, ou
um desses paulistas que começam a aparecer por agora, Marcello Tupynambá,
Eduardo Souto. Valsas, tangos brasileiros, uma polca diferente da européia,
choros estilizados,
chulas, lundus, de vez em quando um mg, um fox-trot, gêneros enfim bem diversos
fazem parte de seu repertório. Os que dançam, dançam de tudo. E os que cantam,
ficam
quase sempre na modinha romântica, de melodia fácil, linear, letras
invariavelmente derramadas, por vezes pernósticas, de velhos e novos seresteiros
como Eduardo
das Neves, Xisto Bahia, Satyro Bilhar, Guimarães Passos, o próprio Catulo.
Canções como esta:
Olhaste-me um só momento E desde este triste instante Tu me ficaste constante Na
vista e no pensamento...
Ou esta, citada por Pederneiras numa de suas tiras:
Que noite! O plenilúnio é como um sonho
Assim risonho
Boiando lá no azul fitando o mar
As estrelas no céu vagam sorrindo
Estás dormindo?
Eu venho, meu amor, te despertar!
Noel se inicia embalado por essas canções e tudo mais que se ouve em sua casa
nas noites de domingo. A música logo o envolve, vira paixão, das coisas mais
importantes
em sua vida. E não apenas o que se ouve nos saraus. Como ele mesmo confessará:
"Mesmo em guri, a minha grande fascinação era a música. Qualquer espécie de
música. Fosse qual fosse. E amava os instrumentos musicais, sentido-me sonhar
ante qualquer
melodia."(5)
Se foi Martha quem o ensinou a tocar bandolim, as primeiras posições no violão
são aprendidas com o pai. E à medida que for dominando a técnica deste
instrumento,
irá abandonando o outro. Mas será para sempre grato ao bandolim:
"Foi graças ao bandolim que eu experimentei, pela primeira vez, a sensação de
importância. Tocava e logo se reuniam, ao derredor de
mim, maravilhados com a minha habilidade, os guris de minhas relações. A menina
do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia
completamente
importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de
garoto que começava a espiar a vida."(6)
No mesmo depoimento, a descoberta do violão:
"Verifiquei que era um instrumento mais completo, de maior beleza comunicativa
que o bandolim. O meu sonho absorvente passou a ser dominar amplamente o violão.
Tanto
me esforcei que, no fim de certo tempo, já tocava melodias várias. Ouvir o
violão era como se ouvisse a mim mesmo, como se ouvisse a voz do próprio
coração, o lirismo
que nasceu comigo."
O violão - por enquanto do pai - será o seu instrumento. De tal modo se apegará
a ele que ainda lhe dedicará um soneto, "O Que É um Violão", versos verdes e
imperfeitos
de jovem poeta:

O violão meu amigo e conselheiro


Que sempre partilhou de minha dor
Na serenata sempre foi bom companheiro
Numa modinha, o meu melhor inspirador

Nem bandolim nem violino bem tocado


Nem mesmo um cavaquinho em boa mão
Me fizeram ficar tão inspirado
Quanto fiquei com o som do meu violão

Ele quem me ditou o canto e a rima


Ele quem a vibrar se acostumou
Soluça no bordão, geme na prima...

É ele quem me anima e me seduz


Juro deixar o mundo alegremente
Desde que tenha o violão por cruz

Nos próximos anos, raramente o veremos longe do pinho nas horas de folga.
Estudando ou ensinando, pois Noel vai ser o primeiro professor de Hélio. Um
paciente e
compenetrado professor. Quase sempre, antes de ir para o São Bento, senta-se sob
uma das árvores do chalé, fica garimpando acordes, inventando brincadeiras
sonoras.
Como as que servem de fundo às aulas da escolinha. Martha lá dentro perguntando
aos alunos:
- Dois mais dois?
A turma respondendo em coro:
- Quatro!
- Cinco menos três?
- Dois!
E Noel ritmando a ladainha aritmética ao violão, seus dedos multiplicando sons,
sua voz somando-se ao coro da criançada. Martha chega à janela, pede que o filho
pare, que trate de não
50

atrapalhar a aula. Ele pára. Mas só até a professora reiniciar a cantilena:


- Sete menos quatro?
- Três!
O violão de Noel volta a se fazer ouvir. Para alegria dos alunos e novos,
inúteis protestos da mãe.
Se não há a menor dúvida quanto ao primeiro professor de Hélio, no que diz
respeito a Noel tudo se complica. No futuro, menos ou mais próximos da verdade,
vários
moradores do bairro reclamarão para si esse privilégio: "Noel foi meu aluno",
dirá este. "Tudo que sabia de violão aprendeu comigo", garantirá aquele outro. O
mais
provável, porém, é que depois das primeiras posições com o pai, dos rudimentos
que lhe chegaram através das lições Caséiras, seu interesse em aprimorar-se
sempre
mais, em realmente dominar o instrumento, o levará a outros mestres, mas a
nenhum deles por muito tempo. Aprender, mesmo, vai aprender sozinho. Será, como
a maioria
dos violonistas de agora, um autodidata. Desses que tudo descobrem. Vendo,
ouvindo, perguntando, experimentando, fazendo.

Em formato pequeno, quinze por vinte e dois, A Alvorada se apresenta como "órgão
oficial dos alunos do Mosteiro de São Bento". Capa fina, verde, o título ao
alto,
o dístico Veritati et Virtuti logo abaixo, encimando o desenho de um sol radioso
a iluminar a igreja, o pátio, todo o colégio. Circula internamente no primeiro
dia
de cada mês de aulas. Ao se matricular em janeiro ou fevereiro, cada aluno paga
cinco mil réis pela assinatura anual, dinheiro que, somado à verba do próprio
Mosteiro,
cobre as despesas de composição, clicheria e impressão.
Quando Noel começa a cursar o primeiro ano, A Alvorada entra em seu quinto de
existência. E é de fato em suas páginas que se podem encontrar as melhores
pistas para
se conhecer o ginásio de hoje, o que fazem e o que pensam (ou o que procuram
transmitir aos alunos) os professores dirigidos por dom Meinrado. Não é, como se
diz,
um órgão "dos alunos", mas uma publicação pautada, editada e quase que
inteiramente escrita pelos professores. Aos alunos não são destinadas mais do
que cinco, seis
páginas, de um total de 56, nas quais, sob o título de "Trabalhos Escolares",
poderão incluir suas colaborações, em geral croniquetas, histórias de caráter
religioso,
uma ou outra poesia, anedotas e curiosidades furtadas aos almanaques.
De março de 1923 a dezembro de 1928, os seis anos que Noel passará no São Bento,
circularão 27 números de A Alvorada. E em nenhum deles seu nome aparecerá a
propósito
do que for. Nem como colaborador nem como participante das freqüentes campanhas
que a revista realiza entre os alunos. Uma das primeiras dessas campanhas
pretende
atender aos apelos de Pio XI para que os brasileiros contribuam com donativos em
dinheiro "em favor das crianças pobres que na Rússia vão sofrendo à míngua de
pão
e roupa". Outra destina-se a levantar fundos para a construção de uma colossal
estátua do Cristo no alto do morro do Corcovado. Alguns mil réis serão
conseguidos
tanto para "as criancinhas vítimas do bolchevismo" como para o monumento a que
se pretende dar o nome de Cristo Redentor. De Noel, um níquel sequer. Sua
ausência
será mesmo absoluta. Ao contrário de praticamente todos os seus contemporâneos.
O espírito de A Alvorada não é simplesmente religioso, mas sombriamente
religioso. Os artigos escritos pelos professores estão impregnados de um
catolicismo exacerbado,
fanático às vezes. Os dos monges atacam outras religiões, a protestante, a
judaica, a espírita. Falam de milagres e castigos, céu e inferno. E pregam uma
moral que
se apoia no desprendimento, no sacrifício e na dor. Os meninos de 1923 - mais
ainda os de sentimento religioso um tanto inconsistente como Noel - devem
estranhar
o ar grave, carregado e até mesmo mórbido do colégio, tão bem refletido nas
páginas da revista. Um exemplo é uma de suas seções permanentes, intitulada
Sinite parvulos
ventre ad Me. Partindo das palavras do Evangelho ("Deixai vir a Mim os
Pequeninos", Marcos, 10-14), a seção fala de "pequenos privilegiados de Jesus-
Eucaristia",
isto é, crianças e adolescentes que tiveram "a ventura de morrer em tenra idade,
de se encontrarem com Cristo tão cedo, tão jovens".
A cada número da revista é contada a história de um desses privilegiados,
meninos e meninas que em meio a terríveis padecimentos "foram levados pelas mãos
do Senhor".
Logo no primeiro número que cai nas mãos de Noel lê-se o caso de Nêlia, católica
irlandesa que morreu aos quatro anos de idade depois de longa permanência no
Hospital
Bom Pastor, em Cork, sul da Irlanda. A matéria fala da "abençoada agonia" da
menina, de como manteve sua santidade nos momentos de maior sofrimento, de sua
morte
ao lado da mãe e da enfermeira que a acompanhou durante meses e de como, em seus
últimos momentos, ainda encontrou forças para erguer-se e dizer: "Mamãe, não
sente
que o Deus Santo se aproxima? Eu o sinto!"
São ingênuos e sem graça os textos humorísticos reunidos sob o título de
"Chistes". De modo que nem isso ameniza o tom deprimido
51

da revista. Deprimido e doutrinário. A pregação religiosa não é a única que se


faz em suas páginas. Há muitas outras. Como o artigo de um dos professores, José
Piragibe,
defendendo a República, conclamando os jovens às armas contra eventuais exageros
monarquistas. Ou as matérias não assinadas que volta e meia falam de
"indesejáveis
novidades". Por exemplo, os ventos do feminismo que começam a soprar da Europa.
Diz A Alvorada:
"Chama a atenção o Osservatore Romano para o fato do acordo dos sacerdotes
anglicanos em suprimir da Epístola de São Paulo, que é lida na cerimônia de
casamento
por eles feita, as frases que instituem a submissão da esposa ao marido. Tem
essa supressão o fim de cortejar o 'feminismo naturalista', como é
impropriamente chamado
o 'feminismo desbragado'. Note-se, também, como respeitam os protestantes a
Bíblia, que dizem ser a sua única regra de fé."
A cada ano Noel tomará novos contatos com a filosofia editorial de A Alvorada.
Uma revista que procura vincar a posição do Mosteiro - em realidade da própria
Igreja
- em relação a todos os assuntos que se passam lá fora, na cidade, no país, no
mundo. Como acontecerá com o caso do assassinato do menino Robert Franks, em
Chicago,
Estados Unidos, por dois rapazes da alta sociedade local, Nathan Leopold e
Richard Loeb. É dos julgamentos mais famosos da história das cortes americanas,
o grande
Clarence Darrow, advogado de defesa, conseguindo o que se dizia impossível:
livrar os dois rapazes da forca. Leopold e Loeb confessaram ter cometido o crime
numa
tentativa de provar o quanto suas inteligências eram superiores. Loucos?
Monstros? A revista assegura que não. Traduzindo o artigo publicado pelo órgão
católico
suíço Sch-weizerische Allgemeine Volks-Zeitung, endossa a opinião de que toda a
crueldade dos dois assassinos de Chicago vem de uma sucessão de fatos que pode
ser
resumida num ponto: seu afastamento de Deus. O artigo frisa que Leopold e Loeb
pertencem a famílias judaicas ortodoxas. Portanto, não são católicos. Pouco vale
que
sejam ambos cultos: "... a cultura maldirigida - costuma dizer José Piragibe - é
pior que a ignorância!" Leopold já é um famoso ornitólogo, embora muito jovem.
São
moços de muitas leituras. A Alvorada é quem esclarece:
"Seus heróis são os ímpios e absurdos filósofos Nietzsche, Schopenhauere Oscar
Wilde. Nathan entrega-se, ao par de sua ciência, à leitura da literatura
pornográfica
(Zola e outros cínicos) e criminal. É grande amigo de mulheres. Inclina-se,
porém, mais para as moças hipercultas e refinadas. Richard Loeb é igualmente
estudante
talentoso, em tudo cópia fiel de seu amigo."7
Assim, pelas conclusões da revista em relação ao caso Loeb & Leopold, Noel e
seus colegas ficam sabendo que o não-seguimento da religião católica, a cultura
maldirigida
(Initium sa-pientiae timor Domini, ou seja, a base de toda a sabedoria é o temor
a Deus), as leituras pornográficas (que Noel muito aprecia), as mulheres (que
ele
aprecia ainda mais) podem transformar dois jovens em criminosos.
Não há grande assunto que A Alvorada deixe passar em branco. E, sempre que
possível, partindo dele para mostrar o quanto está próxima da verdade a religião
católica
- ou o quanto dela estão afastadas todas as outras. Combate não só o feminismo,
mas muitos dos novos ismos que se proponham a transformar o mundo. O comunismo,
por
exemplo. Depois do apelo de Pio XI para que se socorram "as vítimas do
bolchevismo", a revista retorna ao assunto sempre que pode. Como neste artigo
que sairá no
número de agosto-setembro de 1925:
"Desde que o mundo é mundo e desde que a maldição divina feriu o primeiro
habitante sobre a Terra, há uma luta sem tréguas que se eterniza pelos séculos
adentro:
fracos e potentados, ricos e paupérrimos, nobres e plebeus, servos e senhores
sempre se agitaram numa dualidade constante, num antagonismo clássico, fatal.
Não é
de hoje que um ou outro inspirado tem quebrado lanças contra as linhas
fortíssimas que extremam os dois antiqüíssimos partidos. Modernamente, os
bolchevistas quiseram
resolver, com dois decretos e quatro bombas, toda a debatidíssima questão (..j
Por todo o imenso território do ex-império grassou então o domínio absoluto do
sovietismo;
em nome de uma liberação absurda e incoerente, mais de dois milhões de vítimas
tombaram para sempre."
Liberação incoerente e absurda, diz A Alvorada, para a qual só há um modo de se
combater a pobreza: a caridade. Mas outros violentos ataques ao comunismo
aparecerão
na revista, do primeiro número que cai nas mãos de Noel ao último que lera já às
vésperas de sair daqui. Assim, em 1928, quando no mundo inteiro ainda ressoarem
os protestos por Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, condenados à morte nos
Estados Unidos por um crime que jurarão não ter cometido(8), A Alvorada mais uma
vez
não se omitirá. Vai publicar, com base em dados da Igreja Ortodoxa Russa de Nova
Iorque, uma estatística das vítimas de duas décadas de Revolução Soviética
("Toda
a família imperial, 31 bispos, 1 mil 500 sacerdotes, 34 mil 585 magistrados e
médicos, 16 mil 367 estudantes e professores, 79 mil 900 funcionários públicos,
65
mil 890 nobres e aristocratas, 56 mil 340 oficiais, 196 mil operários, 268 mil
soldados e marujos,
52

890 mil camponeses, por tudo mais de 1 milháo 300 mil mortos!") e arrematar com
este comentário:
"E encenaram tanto alvoroço quando a justiça americana julgou dever condenar à
morte os dois anarquistas Sacco e Vanzetti."
As outras religiões? Não perde A Alvorada oportunidade de
combatê-las.Especialmente a protestante, adversária secular. Combates que se
travam em muitas frentes, sobre temas daqui e lá de fora. Aqui tanto pode a
revista
se limitar a pendengas em torno da Bíblia ("... ninguém ignora que os
protestantes, por conveniência de sua doutrina, mutilaram e adulteraram muitos
textos das Sagradas
Escrituras, excluindo livros inteiros..."), como investir, mais no campo da ação
que das idéias, sobre as instituições de alguma forma ligadas à outra religião.
É o caso da Associação Cristã de Moços (ACM), que jamais conseguiu realizar uma
campanha para ampliar suas instalações sem ter de carregar o peso - por vezes
insuportável
- da oposição do Mosteiro e de sua revista. Nisso A Alvorada é eficientemente
apoiada por outras publicações católicas, uma delas A Cruz, cujos artigos são
transcritos
pelo "órgão oficial dos alunos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro". Um
desses artigos fala da indignação da comunidade católica por pretender a ACM
fazer
obras em sua sede com dinheiro de donativos. Afinal, este é um país católico, de
modo que dos católicos deve ser o direito exclusivo de pedir donativos. Em 1917,
o Mosteiro e outras instituições já estiveram à frente de um movimento para
evitar que uma das campanhas da ACM tivesse sucesso: através de propaganda pelos
jornais
e de folhetos distribuídos nas ruas por seus alunos, puderam "abalar
consciências e, se de todo não impediram o resultado da intrusa subscrição, sem
dúvida lograram
frustrar e diminuir" o seu êxito. Um ano depois, quando a mesma ACM tentava
junto ao Governo a cessão de uma área de 3 mil 880 metros quadrados no morro do
Castelo
para nela construir seu novo edifício, mais uma cruzada empreenderam o Mosteiro
e seus aliados, desta feita chegando aos gabinetes presidenciais - primeiro de
Delphim
Moreira e depois de Epitácio Pessoa - para conseguirem que a tentativa da ACM
mais uma vez fracassasse. Em 1927, vai-se repetir a história: nova campanha de
donativos
da ACM, nova cruzada católica contra ela.
Lá fora A Alvorada busca os casos mais rumorosos para com eles demonstrar que um
país indiferente às verdades do catolicismo não pode ir lá das pernas. Não vêem
os alunos o caso dos Estados Unidos? Por que existe lá a Ku Klux Klan? Por que
pode acontecer em seus colégios um professor como John Thomas Scopes, que
Depois da segunda 'operação' frustrada. (.Arquivo dejacy Pacheco.)
ousou desafiar as lições da Bíblia e ensinar em suas aulas a herética Teoria da
Evolução, de Dar-win? "Os Estados Unidos são o país dos assombros, das
novidades,
dos empreendimentos ajúlio Verne...", diz ironicamente a revista a propósito do
show em que se converteu o julgamento de Scopes, processado por ter informado
aos
seus alunos que o homem e o macaco descendiam de ancestrais comuns(9). Tudo
porque o país dos assombros cresce, cresce muito, mas distanciado demais das
luzes do
catolicismo.
Nenhuma religião ou filosofia não-católica escapa à sanha de A Alvorada. O
espiritismo é freqüentemente ridicularizado como "a grande farsa do século". A
Maçonaria,
apontada como "sanguinária perseguidora do catolicismo no México". Os
positivistas, como adeptos de uma ideologia do demônio. Ávida de Augusto Comte,
uma tragicomédia
(e assim realmente se parece, a se acreditar na biografia publicada no número de
junho-julho de 1926). E há mais: fundamentalistas, batistas, presbiterianos,
anglicanos,
israelitas, contra tudo mais que não seja catolicismo investe A Alvorada.
Curiosa revista esta, escrita com as tintas da intolerância, mas muito
esclarecedora sobre
53

o São Bento de hoje. Uma revista que acha bonito morrer cedo, um privilégio
sofrer, uma dádiva divina entregar a alma aos céus depois dos mais longos e
terríveis
martírios. E o que dizer dos prazeres terrenos, o jogo de bola, a rua, as festas
em casas de família onde se pode tomar escondido um ponche ou dois e depois
tirar
para dançar a menina que se deseja? Pois até quanto a isso - as festas, as
diversões, os prazeres não exatamente do espírito - A Alvorada recomenda que os
alunos
se ponham na defensiva. Noel não gosta muito de dançar, mas se gostasse haveria
de ler com amuo este trecho que a revista foi buscar em Nova Floresta, do Padre
Manuel
Bernardes:
"Que o que baila e dança tem parte de louco furioso, basta vê-lo de fora para
confessá-lo. Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão
violentos, tão afetados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do
seu
assento."
Não, Noel jamais se incluirá entre os colaboradores de A Alvorada. Quando tiver
algo a dizer, o fará à sua maneira. E no seu próprio "jornal".

NOTAS
1. A Alvorada, ano V, número 1, março de 1923 (página 21). A maioria das
informações sobre as instituições do São Bento, constantes deste Capitulo,
também foi colhida
neste e em outros números da revista.
2. Incluídas no livro Scenas da Vida Carioca - Caricaturas de Raul, 1924.
3- Foi em 26 de outubro de 1914 que Nair de Teffé Hermes da Fonseca, a primeira-
dama do país, organizou no Palácio do Catete uma hora de arte em que, depois de
uma
rapsódia de Liszt executada ao piano, ela própria solou ao violão o
Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, causando um pequeno escândalo na sociedade da
época. Jota Efegê, em Maxixe - a Dança Excomungada (página 161), recorda o
inflamado
discurso de Ruy Barbosa no Congresso Nacional, criticando a mulher de seu grande
adversário político: "Mas o Corta Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo,
que
vem a ser ele, senhor presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira
de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba.
Mas
nas recepções presidenciais o Corta Jaca é executado com todas as honras de
música de Wagner. E não se quer que a consciência deste país se revolte, que as
nossas
faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!"
4. Mais se falará, no Capítulo 14, da batucada e de certas confusões que se
fazem em torno dela.
5. Jornal de Rádio, 1" de janeiro de 1935.
6. Ibidem.
7. Richard Loeb e Nathan Leopold tinham ambos dezenove anos quando mataram
Robert Franks, de treze, a 24 de maio de 1924. Quatro meses depois foram
condenados à
prisão perpétua. O caso é, de fato, um dos mais célebres das cortes americanas,
tendo inspirado inúmeros livros, ensaios, artigos de jornal, peças de teatro e
nada
menos de três filmes: Festim Diabólico (Rope, de Alfred Hitchcock, 1948),
Estranha Compulsão (Compulsion, de Richard Fleischer, 1959), em que Orson
Welles, no papel
do advogado, repete ipsis litteris o discurso de Clarence Darrow no julgamento,
e O Homem de Alcatraz {Bird Man oj Alcatraz, de John Frankenheimer, 1962),
focalizando
os anos em que Leopold, interpretado por Burt Lancaster, cumpria pena e já se
tornara tão famoso como ornitólogo quanto pelo seu crime.
8. O caso Sacco & Vanzetti foi ainda mais estrepitoso que o de Loeb & Leopold,
notadamente por ter desencadeado debates políticos em todo o mundo, as direitas
pedindo-lhes
a execução, as esquerdas usando-os como símbolos da "injustiça capitalista".
Anarquistas italianos, acusados de participarem, a 15 de abril de 1920, de um
assalto
durante o qual foram mortos dois operários de uma fábrica de sapatos, Sacco e
Vanzetti começaram a ser julgados no ano seguinte. Depois de longas batalhas nos
tribunais,
manifestações populares e apelos de clemência assinados por intelectuais,
artistas, líderes religiosos e até chefes de Estado de várias partes do mundo,
morreram
na cadeira elétrica a 10 de julho de 1927.
9. É no número de junho-julho de 1925 que A Alvorada se refere ao caso Scopes
associando-o gratuitamente à Ku Klux Klan e ao progresso alcançado pelos Estados
Unidos
sob a inspiração de "heresias em declínio". John Thomas Scopes foi a julgamento
na pequena cidade de Dayton, Tennessee, no verão americano de 1925, por ter
desrespeitado
a lei que proibia o ensino da teoria da evolução nos colégios do Estado. Na
defesa, mais uma vez em ação Clarence Darrow. O julgamento foi de fato
transformado num
show pelo advogado, que assim tentava atrair a atenção do país para os debates.
Seu adversário, o acusador de Scopes, foi o conservador William Jennings Bryan,
três
vezes derrotado como candidato do Partido Democrata à Casa Branca. O caso não
foi ganho nem perdido por ninguém, artifícios legais da Suprema Corte levando-o
ao
arquivamento para que não se tornasse ainda mais rumoroso (a opinião pública
estava literalmente dividida). A exemplo dos casos Loeb & Leopold e Sacco &
Vanzetti,
o julgamento de Scopes inspirou livros, peças de teatro e um excelente filme: O
Vento Será Tua Herança (Inherit The Wind, de Stanley Kramer, 1960).
54

O QUE SE APRENDE NO COLÉGIO

Capítulo 5

Satanás respondeu meu recado:


"Balão apagado
Não entra no céu...
No inferno tu serás respeitado
Tu tens tanto pecado
Que eu te tiro o chapéu!"
Balão Apagado
Os professores. Idosos, não tão ' idosos, monges, militares, civis. '
conservadores, não tão conservadores. Bons, ótimos, regulares, uins. De tudo os
alunos
terão pela frente nos anos que passarão no São Bento. Gostarão mais de uns que
de outros. Levarão saudades destes, ressentimentos daqueles, raramente a
indiferença
ou o esquecimento. São professores que pretendem mais do que lhes ensinar o que
determina o programa oficial. No fundo, cada um deles, religioso ou não, carrega
a esperança de representar importante papel na educação desses jovens, de
influir em sua formação, de atuar como engenheiros na construção de seus
valores, de seus
alicerces morais. Acreditam ser esta a sua missão:
- Mais do que mestres, somos formadores de caracteres.
Quem diz isso é um deles, homem de meia-idade, baixo, atarracado, pernas e
braços curtos, cara larga. O bigode farto mais parece uma escova de piaçá
brigando por
um espaço entre o nariz e a boca. Os óculos miúdos, de grossas lentes, quase
somem no rosto redondo. Chapéu e terno invariavelmente escuros, punhos e
colarinhos
postiços, polainas, veste-se como um amanuense do fim do século. Chama-se José
Piragibe e ninguém mais que ele leva a sério o papel de "forjador de
caracteres".
Participa de todas as atividades do ginásio, filia-se às instituições
religiosas, assessora o Grêmio Literário, escreve artigos para A Alvorada, faz
longos e incandescentes
discursos sempre que lhe dão chance de exercitar- uma retórica tão antiga quanto
as roupas que veste:
"Diga quem quiser que o Brasil está à beira de um abismo: o moço patriota repele
desde-nhoso a mentira revoltante e dedica-se com o maior ardor ao estudo da
nossa
religião, da nossa língua, da nossa geografia e da nossa história."
Republicano fervoroso, vê nas críticas que se fazem ao governo Arthur Bernardes
(o país sob estado de sítio, liberdades cerceadas, Aurelino Leal nomeado
interventor
no Rio de Janeiro, choques armados no Rio Grande do Sul) impatrióticas
maledicências de monarquistas interessados em ressuscitar o antigo regime:
"Não se ilude, felizmente, a mocidade" - escreve ele em A Alvorada- "e na igreja
do Mosteiro, nas aulas do ginásio, nas sessões literárias e cívicas do nosso
Grêmio,
nos exercícios militares, vai aprendendo o manejo das armas com que terá de
lutar para erguer bem alto o nome do Brasil."
55

José Piragibe será o professor de português de Noel no primeiro ano. Mais


adiante eles se reencontrarão nas salas de química, física e história natural.
Mas é aqui,
a partir de agora, que os dois começam a manter um relacionamento feito de
provocações sem trégua, por parte de Noel, e de reações mal-humoradas, quando
não de cólera,
por parte do professor. Tudo neste parece irritar aquele. Ou, pelo menos,
diverti-lo. Os cacoetes, por exemplo. O professor vive puxando para baixo o
colarinho engomado,
acompanhando o movimento das mãos com um estranho gorjeio, quase ronco, que Noel
costuma imitar. A turma ri. As imitações ocorrem em plena aula, Piragibe no
quadro-negro,
de costas para os alunos, e Noel de pé, puxando o colarinho, roncando. Apelida-o
de professor Xixi, depois de constatar que um defeito de dicção faz com que peça
silêncio à turma não com um "psiu", mas com um agudo "xiiiii".
Piragibe gosta de rimar suas lições, convencido de que assim é mais fácil
decorá-las:
- No futuro e no condicional, faz-se sanduíche gramatical. Faz-se sanduíche
gramatical, no futuro e no condicional.
Ou então-.
- Enfeia a redação qualquer repetição. Qualquer repetição enfeia a redação.
O mau humor de Piragibe em relação a Noel nunca irá além de uma repreensão, uma
zanga, ainda que eventualmente mais ríspida. O aluno continuará fustigando-o com
suas brincadeiras e deboches, mas o professor não lhe guardará rancor. Ou será
que sim?
O fato de não haver exames finais no primeiro ano - os alunos freqüentam as
aulas, estudam português, aritmética, geografia, francês, desenho e religião,
passam
em dezembro por provas internas no próprio São Bento, mas não pelos exames de
bacharelato no Colégio Pedro II(1) - faz com que Noel Rosa se permita o luxo de
estudar
muito pouco em 1923. E vai estudar ainda menos no segundo ano, só que então
correndo o risco de enfrentar despreparado as provas finais de aritmética e
geografia,
aí sim, prestadas às bancas do estabelecimento oficial.
São dois anos de muita brincadeira, de atitudes que não deixam de neutralizar no
espírito de Noel o ambiente de austeridade do São Bento. Os amigos se lembrarão
para sempre do seu jeito solto, alegre, um tanto irresponsável, que mal cabe nos
limites de sisudez do colégio.
Não se pode dizer que seja rígida a disciplina do São Bento, mas é rígida o
bastante para prender, vez por outra, as asas que Noel tem sempre prontas para
inquietos
vôos.
Há no menino de doze anos uma incontrolável ânsia de liberdade, um sentimento
que o acompanhará por toda a vida - vôo permanente. Mas muitas vezes a vontade
de
ser livre esbarra na vigilância de José Maria Gouvêa, inspetor de disciplina que
vive a percorrer salas de aula, corredores, pátios e banheiros atrás de alunos
que
de alguma forma estejam fora da linha.
Gouvêa, até 1923, tem como única função lecionar matemática no curso preliminar.
De 1924 em diante, acumulará esta função com a de responsável pela disciplina
dos
alunos. Quais serão os seus métodos? Que tipos de castigo vai impor aos
malcomportados? O mais comum é mandá-los ao gabinete de dom Meinrado para ouvir
um sermão
do reitor, homem de quem todos gostam e pelo qual, em nome desse gostar,
detestam ser repreendidos. Como costuma dizer Hélio Lobo, um dos alunos:
56

- Prefiro a zanga do Gouvêa àfala mansa de dom Meinrado.


Mas quase sempre o diretor de disciplina resolve tudo sozinho, deixando os
faltosos depois da hora de saída a copiar, repetidas vezes, frases em francês:
"Je crois
en Dieux Père..." Ou em latim: "Beati mundo corde quoniam ipsi Deum videbunt..."
Não é raro Noel se ver diante do Gouvêa com culpas a expiar, lápis e papel a
postos para copiar - quantas vezes? - uma sentença punitiva:
- Cem vezes!
- Mas...
- Então, duzentos.
- Seu Gouvêa...
- Trezentas está bom?
- Não, não está.
- E quatrocentas?
- Esta bom, seu Gouvêa, está bom.
Dona Martha e seu Medeiros são chamados com freqüência ao colégio, dom Meinrado
querendo falar-lhes sobre o filho, bom menino, muito inteligente, mas que
precisa
observar melhor os regulamentos internos, comportar-se em aula, brincar menos.
Que tal uma leitura atenta do livrinho de normas a serem seguidas pelos alunos?
As
aulas começando pontualmente às onze, as orações ao meio-dia, a Santa Missa aos
domingos, cedinho. E não esquecer o jejum nos dias de comunháo. Em sala, é
necessário
observar silêncio, ouvir o professor, prestar atenção à aula, nada de pândega.
Inúteis advertências. Mesmo durante as orações do meio-dia é impossível ficar
quieto. Dom Joaquim de Luna junta as mãos e fecha os olhos, compenetrado, para
dar
início à prece, e já se ouve em algum lugar um inesperado tilin-tar. Como se
fossem sininhos em miniatura fazendo música de fundo à oração. Dom Joaquim abre
os olhos
e pergunta aos alunos que barulho é este. Estão todos quietos. Noel tem os
braços cruzados sobre a carteira. O monge nem desconfia de que ele amarrou numa
das pontas
de um barbante um punhado de pregos e tampinhas de cerveja. A outra ponta está
em sua mão, oculta sob os braços cruzados. Noel retorce o barbante. E os pregos
e
as tampinhas, na outra extremidade da sala, tilintam.
Lá fora, quando não está tocando violão, cantando indecorosas paródias ou
inventando quadrinhas para mexer com os colegas, tanto pode estar roubando balas
e mariolas
do Altino, dono da cantina, como contando anedotas.
Às vezes vem surgindo, lá no alto da ladeira, dom João Baptista Laué Lobão. Usa
enrolada no pescoço uma cometa preta, sinuosa. Só com ela consegue ouvir alguma
coisa,
a extremidade mais fina enfiada no ouvido, a outra posta bem perto da boca do
interlocutor. Noel vira-se para Heitor Lino:
- Por que você não vai lá segurar a cobra de dom João?
Ainda gosta de desenhar, mas muito pouco do que produz, com traços firmes a
lápis de cor, pode ser visto pelos professores. Se um dia algum desses desenhos
parasse
nas mãos de dom Meinrado, todas as reservas de tolerância do bom monge seriam
insuficientes para impedi-lo de expulsar Noel do colégio. São também obscenas as
estranhas
maquininhas que constrói, com imaginação e habilidade, para divertir os colegas
em aula. Uma dessas máquinas é um conjunto de cartolinas presas umas às outras
por
alfinetes. De cada uma delas sai uma linha que Noel amarra aos dedos como se
fossem os fios de um fantoche. A maquininha é colada por uma das partes no vidro
da
janela. De tarde, quando bate o sol, a sombra do conjunto de cartolinas se
projeta na parede atrás do professor. Noel mexe coordenadamente os dedos,
imprimindo aos
pedaços de cartolina movimentos ritmados. O que a turma vê projetado na parede é
a perfeita silhueta de um ato sexual.
Fuma muito. É um hábito que adquiriu cedo. E como é proibido sequer portar
cigarros dentro do colégio, aí está mais uma boa razão para a gazeta. Se está
calor, o
melhor lugar é a praia das Virtudes2. De resto, qualquer lugar serve, a Quinta
da Boa Vista, o campinho de futebol ao lado do Moinho Fluminense, lá pelos lados
da
Saúde, ou mesmo a ilha das Cobras, não muito longe do colégio. Pouco importa que
ali, no segundo ano, vá levar um grande susto. Ele e Marcello Menezes. Os dois
fugindo
pela ladeira proibida, descendo até o Arsenal de Marinha e começando a
atravessar a ponte Alexandrino de Alencar, calmamente, a caminho da ilha das
Cobras.
- Parem ou eu atiro! - gritará alguém. Noel e Marcello chegarão a ouvir o ruído
do ferrolho do fuzil sendo armado pelo marinheiro à sua frente.
- Aonde pensam que vão?
- Até a ilha das Cobras.
-Não vão, não. Se derem mais um passo, morrem!
E os dois voltarão correndo para o São Bento, pouco lhes interessando se havia
ou não um começo de revolução em São Paulo, levando Arthur Bernardes a ordenar
que
as corporações militares ficassem de prontidão em todo o país(3). Os sentinelas
instruídos para atirar em qualquer pessoa estranha. Meninos como Noel e Marcello
inclusive.
57

A casa projetada e construída por Manuel Garcia de Medeiros Rosa não é muito
original. A fachada, por exemplo, um bloco de três faces ao lado da varandinha
de entrada,
é quase igual a várias outras que existem no bairro há muito mais tempo. A
disposição dos cômodos é pouco funcional, ao comprido, como a maioria das
residências
da rua, um dos quartos de dormir dando para a sala, os dois banheiros lá nos
fundos, colados à cozinha. O terreno é bem menor que o do chalé (oito de frente
por
26 de fundos). O quintal, pequeno, tem poucas árvores e termina num barranco.
Este faz parte do morro que separa trecho da Theodoro da Silva da Maxwell. A uns
cinqüenta
metros desse morro acaba a Conselheiro Paranaguá, rua paralela que começa na
Souza Franco, baqueie ponto, lá de cima, tem-se uma vista panorâmica de toda a
casa,
a área construída, o quintal, o barranco. Uma casa nova, limpa, taqueada,
ladrilho hidráulico, fachada de pó-de-pedra, flores pintadas sobre a varanda. Já
não há
razão para se temerem tetos desabando sobre a cabeça. E assim como o 130 é
conhecido por chalé, este 195 fica sendo o bangalô. Ou "a casa de vó Rita"(4).
Mudam-se todos em fins de 1924. Arlinda, por pouco tempo. Meses atrás Eduardinho
trouxe para passar dias no chalé Fábio de Lima Goyano, farmacêutico paulista,
filho
de Augusto Rodrigues de Moraes Goyano, seu grande amigo em Bica de Pedra. Fábio
apaixonou-se por Arlinda no primeiro instante. Estava ela de luto por um
parente,
sem pintura, a pele alva contrastando com o vestido preto. Uma elegância meio
mórbida, mas nem por isso desprovida de sensualidade. Fábio sentiu o coração
bater
mais forte. Pouco depois, estava lhe propondo casamento. E como era de gosto
geral - Rita, Eduardinho, Odette, Martha, todos muito impressionados com o
farmacêutico
- Arlinda concordou
em ficarem noivos. Casam-se a 22 de janeiro de 1925, dia do vigésimo quarto
aniversário dela. Vão morar em São Paulo, Arlinda sem ter esquecido de todo o
primeiro
noivo. Na véspera da cerimônia - celebrada diante de um singelo altar
improvisado no chalé, Dr. Graça Mello e sua mulher, Dona Glorinha, como
padrinhos - Martha
chama a noiva ao seu quarto, abre o porta-jóias onde guarda todos os presentes
de Neca, dados nos tempos de fartura, e diz:
- Escolhe o que quiser.
Comovida, Arlinda pegará apenas uma pulseira, simples, barata, para nunca mais
se separar dela.
Dos primeiros dias de dezembro de 1924 aos últimos de janeiro de 1925,
realizam-se as provas finais no Pedro II. Alunos de fora, os chamados candidatos
"estranhos", ou do próprio colégio misturam-se no amplo pátio, nos corredores,
nas
salas de pé-direito alto, todos ansiosos por seus diplomas de bacharel.
Noel, segundanista do São Bento, presta exame em duas matérias. Primeiro
aritmética, quinta-feira, 8 de janeiro, e depois geografia (incluindo corografia
e elementos
de cosmografia), na segunda-feira seguinte, dia 12. Não consegue a média mínima
de 3,5 e é reprovado nas duas. Talvez não esperasse isso. Na irresponsabilidade
de
seus treze para quatorze anos, acreditava ser possível brincar tanto e estudar
tão pouco, sem esbarrar no rigor desses velhos professores do Pedro II.
Tão despreparado estava - e é tanta a agitação em casa, a mudança para o
bangalô, o casamento de Arlinda, Hélio se preparando para também ele começar a
cursar o
ginasial no São Bento - que Noel nem aparece para as provas de segunda época no
mesmo Pedro II, a de aritmé tica
58

de 13 a 23 de março, a de geografia de 12 a 25. Vai perder o ano.


Se a reprovação afetou-o ou não, ninguém sabe. A impressão que causa aos novos
colegas de turma, desde o primeiro momento, não é a de um repetente arrependido,
a
de um menino a quem o fracasso serviu de lição. Parece o mesmo. Despreocupado
com os estudos ou o que seja. Alegre, vivo, inteligente, irreverente, moleque.
É assim que o vêem.
Esta nova turma está destinada a ser uma das melhores que já passaram pelo
São Bento. Dela sairá gente fadada a vencer: médico, engenheiro, almirante,
general, brigadeiro, advogado, professor, homem de empresa. E Noel Rosa. Que os
novos
colegas conhecem logo na primeira aula do surdo Mário Barreto, ele se levantando
lá atrás para perguntar:
- Professor, posso mijar no seu bolso?
- Sim, mas não demore.
Noutro dia, convencido de que Barreto está cada vez mais surdo, incapaz de
distinguir o que sai de sua boca apenas entreaberta, torna a se levantar, a mão
direita
para o alto:
- Professor, posso comer sua mãe?
- Pode ir, mas rápido.
Ao ver que a turma se une numa gargalhada, Barreto adverte:
- Não riam, meninos. Afinal, qualquer um pode ter a mesma necessidade.
Nova turma, novo sistema de exames finais. A 13 de janeiro - exatamente no dia
que se seguiu à sua reprovação em geografia - foi assinada a Reforma Rocha Vaz,
pela
qual, a partir de agora, as provas de bacharelato não têm necessariamente de ser
feitas no Pedro II, mas também nos próprios colégios em que estudam os
candidatos,
embora sempre perante bancas nomeadas pelo estabelecimento oficial5.
A partir de 1925, dois serão os companheiros de Noel nas viagens de ida e volta,
todos os dias, no bonde Lins de Vasconcellos. Um deles é o irmão Hélio. O outro,
Moacyr Mattos de Oliveira.
Hélio, quatro anos mais moço que o irmão e apenas um atrás nos estudos. A
família continua orgulhando-se dele, esperando que venha a ser mesmo um grande
homem, como
se a confirmar o vaticínio de vó Rita: "Aqui nasceu Hélio de Medeiros Rosa." Os
anos que passará no São Bento confirmarão que é de fato muito inteligente. É bem
mais estudioso que Noel, embora isso não chegue a ser vantagem. Curioso,
interessado em toda sorte de assuntos, atento. Mas sua passagem pelo mosteiro
estará longe
de ser brilhante. Pelo contrário, assinalará, ao lado de algumas aprovações com
altas notas, várias outras de raspão e umas tantas segundas épocas.
Jamais figurará nos quadros de honra, nunca se destacará em qualquer matéria. E
já neste primeiro ano, a exemplo do que acaba de acontecer com o irmão, levará
para
casa um melancólico boletim final que incluirá uma reprovação em aritmética. E
como a Reforma Rocha Vaz já estará em vigor - o São Bento apertando os alunos
desde
o primeiro ano para que só os mais preparados cheguem às bancas de exame - a
média 2 que Hélio conseguirá na matéria do comandante Octávio Werneck Machado
não será
suficiente para que passe de ano(6).
A diferença de quatro anos, considerável entre dois adolescentes, faz com que
Noel e Hélio sejam companheiros só de bonde. Neste 1925, como nos anos que
virão, raramente
serão vistos juntos no colégio. Noel jogará bola com os mais crescidos, se
reunirá com os amigos no pátio para contar anedotas, tocar violão, planejar
gazetas. Hélio,
mais quieto, andará em outra turma. Precoce, Noel começa a fazer, aos quatorze
anos, o que só os bem mais velhos ousam: freqüentar lugares que Hélio só conhece
de
ouvir falar, beber cerveja, fumar.
Já Moacyr Mattos de Oliveira é companheiro constante. Mora na Dona Zulmira, no
Maracanã, e fica esperando o bonde de Noel passar para irem juntos. Muitas
afinidades
os aproximam, o espírito brincalháo, o não levar muito a sério certas coisas do
São Bento, como a religião vivida entre exageros, certas verdades, certos
professores.
Noel gosta de Gonçalo Garcia Mattos. Um sentimento recíproco. Por isso, nas
aulas de aritmética e álgebra, se não chega a ter comportamento irrepreensível,
ao menos
não leva as brincadeiras além da conta. Outros professores, um deles Luís Gentil
Feijó, deixam transparecer seus preconceitos em relação a Gonçalo, um negro que
conseguiu estudar, formar-se, conquistar um lugar neste mundo de brancos. O
enorme anel que usa no indicador direito parece nos lembrar disso.
Feijó não se impressiona muito com o anel e a pose do colega. Quando entra em
sala para as aulas de francês, logo após dela ter saído Gonçalo, sorri
ironicamente
e trocadilha:
- Quer dizer que vocês acabaram de terá sua gon... çalada?
Noel não acha graça. Gonçalo pode ser posudo, mas por trás do seu orgulho está
um homem bom. É ótimo professor. No outro dia, Feijó repete o sorriso irônico e
o
trocadilho:
- Muito bem, outra vez vocês tiveram a sua gon...çalada.
Noel não se contém, levanta-se e replica: -É...e agora vamos ter a nossafei..
joada!
59

Luís Gentil Feijó será um dos assuntos mais focalizados nas páginas de O Mamão,
jornalzinho manuscrito, exemplar único, do qual o próprio Noel é idealizador,
fundador,
editor, redator, revisor, ilustradore distribuidor. Jornalzinho de curta
duração, todo impresso, ou melhor, manufaturado de um lado e do outro de uma
folha dupla
de caderno pautado. Começa a circular neste 1925, sempre sob as carteiras, nos
banheiros, nos cantos do pátio não alcançados pela vigilância do Gouvêa. E já
com
o logotipo que o tornará famoso entre os colegas: um bebê sugando, faminto, sua
mamadeira. Mas é bom lembrar o duplo sentido do título, Noel é desde já e para
sempre
cultivador dos duplos sentidos. Mamão é um dos muitos sinônimos de pederasta, o
vulgo gostando de usar a expressão: "O mamão é macho, mas é fruta."
Gentil Feijó será muitas vezes ridicularizado nas páginas de O Mamão. Talvez nem
saiba disso. Sabe, porém, que Noel não se inclui entre seus admiradores. Num fim
de tarde, ao ver o garoto numa das janelas do colégio, olhando para o pátio onde
pasta um veado dado aos monges por um fazendeiro de Caraça, Minas, bate-lhe no
ombro
e diz:
- Aí, hein? Apreciando o coleguinha...
Suas aulas de francês são excelentes. Isto é, quando está com disposição para o
trabalho. Pois Feijó é muito freqüentemente dado a acessos de preguiça. Nessas
ocasiões,
conta anedotas, mexe com Noel e outros alunos ou simplesmente se justifica:
-Hoje eu estou tão cansado que nem posso me ter em pé...
O Mamão passa para outras turmas as anedotas de Feijó e também as inventadas por
Noel ou ouvidas por este de colegas, amigos de Vila Isabel, companheiros de
bonde.
De certo modo, o jornalzinho é uma réplica a A Alvorada, em cujas páginas,
definitivamente, Noel não quer aparecer. Primeiro por uma questão de estilo, o
que o incompatibiliza
também com o Grêmio Literário. Quando começar a escrever seus versos, a pôr no
papel a sua prosa (e nada melhor para isso do que o O Mamão), jamais cometerá
arrebatamentos
como os de Carlos Henrique Robertson Liberalli, orador oficial do Grêmio:
"O vento sibilava nas cristas dos penedos e a névoa densa vinha contra nós,
semelhando um exército disforme de fantasmas."
Muito menos os de Oswaldo d'Avila Furtado, também colaborador assíduo das
páginas literárias de A Alvorada:
"Iluminados pelos derradeiros raios apolíneos que agonizavam no longínquo
poente, os píncaros de cordilheiras assemelhavam-se
a incomparáveis blocos de oiro..."(7)
Em vez de cantar ventos sibilantes e raios apolíneos, Noel prefere ter como musa
a figura de José Piragibe, por sinal um dos grandes, senão o maior incentivador
do Grêmio e da revista:
Quem não conhece um mestre rabugento Urso de membros atrofiados Professor e
conselheiro do São Bento Que julga ter modos educados
Chapéu preto, roupa preta, sempre a mesma Chapéu que na cabeça mal lhe assenta
Roupa suja e pegajosa como a lesma Bigode a cair-lhe pela venta.
Em dezembro de 1925, novamente as provas finais. De aritmética, geografia e
álgebra, esta incluída em cima da hora, pelo Departamento Nacional de Ensino,
entre os
exames de bacharelato do segundo ano. Surpreendida, quase toda a turma de Noel,
ele inclusive, vai à segunda época. De nada adiantam as aulas extras de Gonçalo
Garcia
Mattos, as centenas de páginas de livro consumidas às carreiras, as fórmulas e
os cálculos estudados da noite para o dia. Se até Lauro de Abreu Coutinho, o
primeiro
da turma, vai à segunda época, por que não Noel?
A álgebra será, porém, sua única tacada em falso. Assim mesmo, quando fevereiro
chegar, se livrará dela na segunda chance. E será promovido ao terceiro ano.
Dom Meinrado gosta de ver Noel nas missas de domingo. Mesmo sabendo que o
principal motivo de sua assiduidade é o futebol que os alunos jogam depois, no
campinho
lá de cima. Campo de formato irregular, devido à curvatura do morro, semelhante
a um retângulo ao qual decepou-se um dos cantos, apelidado pelos alunos de
"cartão
de visitas". As partidas começam bem-comportadas, dois times escolhidos no par
ou ímpar, bola ao alto, os sem-camisa contra os com-camisa, tudo com a aprovação
do
Gouvêa. Bem-comportado, contudo, só no começo, pois geralmente estes embates
dominicais, os sem-camisa contra os com-camisa, terminam com os dois times
usando o
mesmo uniforme: todos nus, brigando pela bola.
Noel, que não é, nunca será no futebol tão bom quanto no violão, empolga-se com
esses jogos de após missa. É ele o líder, o primeiro a dar ordem para que todos
tirem
a roupa. Talvez a nudez, aqui neste colégio religioso e para-militar, de dólmàs
abotoados até a gola, não deixe de ser uma forma de libertação. Por mais que
tenha
jeito de pecado, por exemplo, aos olhos
60

de dom Joaquim de Luna, o professor de religião.


Faltam três dedos - o médio, o anular, o mínimo - na mão direita deste monge.
Durante as aulas, em que defende sempre com ardor os princípios de sua fé, o
defeito
fica mais evidente, dom Joaquim gesticulando muito, erguendo a mão como se para
tornar ainda mais inflamada sua fala aos jovens:
- Há que lutar contra as tentações do demônio!
O mundo de dom Joaquim é feito de um só Deus e muitos demônios, um único céu e
uma infinidade de infernos. É pregador eloqüente, às vezes furioso, que crê
tanto
na virtude como no pecado, tanto na salvação como no castigo. O inferno, por
sinal, é seu tema preferido:
- Ali, naquelas chamas, queimam-se os impuros!
Faz-se no colégio certo mistério sobre a mão deformada de dom Joaquim.
Inventa-se uma série de histórias, todas fantasiosas. O São Bento é um colégio
onde as lendas comumente se criam e se difundem. Como no caso dos dois meninos
que
teriam morrido por desobedecerem a proibição de usar a ladeira da esquerda,
perigosa, desembocando no Arsenal de Marinha. Rolaram ambos pirambeira abaixo,
diz a
lenda. Ou a do outro que se afogou na piscina hoje interditada. Ou a do que se
teria curado de um mal incurável pela graça de ter visto, em carne e osso,
andando
pelo pátio, ninguém menos que Nossa Senhora de Montserrat. Os dedos de dom
Joaquim são parte desse folclore.
O fato é que monges, professores, antigos funcionários do colégio preferem não
falar do que realmente aconteceu: aquela bomba dos marinheiros revoltosos em
1910
vindo explodir dentro das dependências do São Bento, os estilhaços fazendo
estragos por toda parte, inclusive na mão de dom Joaquim de Luna, arrancando-lhe
os três
dedos. Mas os monges evitam tocar no assunto, de modo a não criar possíveis
apreensões em pais e alunos. Não querem que se repita por aí que o
São Bento fica em lugar tão perigoso que pode acontecer de alguém nele perder os
dedos. Ou a vida.
É por causa desse segredo que Noel nem chegará a desconfiar que a mesma bomba
que mutilou a mão de dom Joaquim ecoou no chalé, assustadora, nas horas que
antecederam
a sua chegada ao mundo. Sabe, apenas, que o professor de religião, com suas
aulas infestadas de pecados e demônios, de lendas e histórias aterradoras, nas
quais
ele não acredita, é uma tentação às brincadeiras. Por exemplo, numa das
divagações do monge sobre o inferno.
- Vejam bem, meninos. Se uma brasa de cigarro nos cai na mão, o que acontece?
Queima, provoca uma dor horrível, não é mesmo? Imaginem o que sentiriam nossas
almas
ardendo no fogo do inferno!
Noel pede a palavra:
-DomJoaquim, o senhor já viu esse fogo? Queima, mesmo?
Ser expulso de sala é quase uma rotina. Numa aula o professor se põe a falar da
Igreja Católica Apostólica Romana, de como o apóstolo Pedro a fundou, de sua
eternidade,
seus preceitos, sua grandeza.
- Dom Joaquim - levanta-se Noel -fale-nos da sinagoga.
-A sinagoga é a igreja dos judeus, senhor Noel. Não é assunto de nossa lição.
- Obrigado - diz Noel sentando-se em seguida.
E quando dom Joaquim retoma a exposição sobre a Igreja de Pedro, sempre com a
mesma empolgação, Noel interrompe-o mais uma vez:
-Me desculpe, dom Joaquim, mas o que é mesmo a sinagoga?
Repetidas expulsões de sala Noel consegue às custas da mesma pergunta, dom
Joaquim nem querendo ouvir falar da igreja dos judeus. A exemplo da maioria dos
monges
do São Bento, é radical na defesa da sua religião. Ou no ataque às outras. Odeia
os protestantes, atribui à reforma pelo menos metade dos males que afligem a
Humanidade,
considera Martinho Lutero uma espécie de anticristo. Se o assunto é arte,
afirma:
- A pintura luteranista é profana.
Se fala de literatura, recorre a Erasmo:
- Ubicumque regnat Lutheranismus, ibi Literarum est interitus.
Ou seja, onde quer que reine o luteranismo, lá está a decadência das letras.
Noel ergue o braço:
- Dom Joaquim, fale-nos de Goethe. Alguns castigos são em latim, as verdades
de dom Joaquim são ditas em latim, os monges vivem falando em latim. Noel
convive sem problemas com esta língua morta. Chega até a valer-se dela ao
arranjar um apelido
para o Felipe, funcionário encarregado da limpeza dos banheiros:
- Como vai o nosso Felipe Rex Latrinarum?
O latim está entre as matérias em que melhor se sai durante todo o curso. Apesar
de Luís Mendes de Aguiar, professor cujas mudanças de humor - ora tão igual aos
alunos, tomando chope com eles, ora parecendo querer arrancar-lhes os olhos -
deixam a turma permanentemente tensa. Dizem que foi seminarista, mas desistiu
61

do sacerdócio para se tornar um homem difícil, amargurado, imprevisível.


- Senhor Lauro, vinde à nossa mesa. Toda vez que chama um dos alunos lá na
frente já se sabe que algo vai acontecer.
- Pois bem, declinai-me pica, picae... E Lauro de Abreu Coutinho começa:
- Pica, pica, picam, picae, picae, pica. Se o aluno que declina ou outro
qualquer
se põe a rir, a fisionomia aparentemente serena de Mendes de Aguiar se
transfigura:
- Filhos do demônio! Mentes sujas! Devassos!
Diz isso quase com o dedo no rosto do aluno. Depois, se acalma:
- E nada de queixas ao papai, ouvistes? Se ele vier ao Mosteiro falar conosco,
discutiremos da pena ao pau.
Quando se exalta, não mede palavras:
- Espíritos imundos! Crias de Satanás! Pelo menos uma vez esses acessos não
ficaram sem resposta. Fala-se no colégio de um
aluno que quase atirou um tinteiro em cima de Mendes de Aguiar no dia em que
este o chamou de 'mente suja". O menino parecia um louco.-"Repete! Repete se é
homem!"
O professor não repetiu. Mas continuou agindo da mesma forma. Até hoje. Ao
entrar em aula, diz:
- Ave!
Ao que os alunos devem responder em coro:
- Aveto!
Numa das primeiras aulas à turma de Noel, foi logo avisando:
- Somos exigentes. Quem não souber não passa!Ah... uma coisa: não queremos nada,
absolutamente nada sobre as carteiras.
Um dos alunos, distraído, deixou ali um caderno. Mendes de Aguiar viu, correu
até a carteira, tomou o caderno nas mãos e o fez em pedaços.
- Conosco é assim!
Fala sempre no plural, somos, conosco, nós, sois. Um dia, manda que Noel decline
62

avena mágica, isto é, flauta mágica.


- Nossa escolha se justifica: vós tendes a boca já pronta para soprar uma
flauta.
Felizmente para os alunos, o professor falta muito, sendo substituído por
dom Pio Ziegenaus ou outro versado em latim. Até que se descobre que o difícil,
amargurado e imprevisível Mendes de Aguiar é homem doente. Um dos meninos
seguiu-o
por toda a Avenida Rio Branco, da Candelária à Galeria Cruzeiro, e em cada
botequim o professor parou para tomar um trago. Sabe-se agora que o homem está
sendo devorado
por dentro. Segundo uns, pela bebida. Segundo outros, os tragos são ingeridos na
esperança de aliviar a dor causada por mal maior que lhe corrói as vísceras.
Quando
voltarem das férias de 1926 para 1927, matriculados portanto no quarto ano, Noel
e seus companheiros de turma já não o encontrarão: Mendes de Aguiar estará
morto.
Nove - que para o incontentável professor vale o mesmo que 10 - é a última nota
conferida por Mendes de Aguiar no exame final de latim a Noel. No que é
acompanhado
pelos outros examinadores da banca nomeada pelo Pedro II. Aliás, os resultados
por ele alcançados em dezembro de 1926, médias excelentes, inclusive o 10 que
lhe
dá, feliz, Gonçalo Garcia de Mattos, serão os melhores de todo o seu curso.
Nenhuma segunda época, passagem do terceiro para o quarto ano sem
ao menos um susto. Hélio, que repetia o primeiro ano, também se sai bem,
aprovado em tudo. Chegam as férias. E pelo menos até março ficará entre os
moradores do
bangalô a impressão de que os meninos se reconciliaram para sempre com os
estudos.

NOTAS
1. Quando Noel Rosa começou a cursar o ginásio em 1923, eram muito diferentes
as normas do ensino. Todas as provas finais - os chamados exames de bacharelato
ou
preparatórios -realizavam-se no Colégio Pedro II. Podia-se estudar em qualquer
outro colégio (ou mesmo em casa, sozinho ou com professores particulares), mas
os
exames tinham de ser feitos perante banca do estabelecimento oficial. O São
Bento e alguns outros preparavam seus alunos dentro de um curso seriado de cinco
anos.
A partir do final do segundo, iam eles se apresentando para os exames de
bacharelato (aritmética e geografia, no segundo; francês, álgebra e história do
Brasil,
no terceiro; inglês, latim, geometria e história universal, no quarto; física e
química e história natural, no quinto), depois do que, bacharéis em ciências e
letras,
estavam habilitados a ingressar em qualquer curso superior do país. No São
Bento, caso o aluno não fosse aprovado pela banca do Pedro II, repetia o ano,
ainda que
tivesse se saído bem nas provas seletivas que o colégio realizava para só mandar
aos exames de bacharelato os mais aplicados.
2. Atual Aeroporto Santos Dumont.
3. Refletiu-se também no Rio a chamada Revolução Paulista de 1924, uma das
muitas manifestações do "tenentismo" na década de 20.
4. A casa ainda existe, tendo hoje o número 483. Mesmo com as sucessivas
reformas que sofreu nestes anos todos, não está muito diferente do que era.
5. A reforma que levou o nome de Juvenil da Rocha Vaz, diretor do Departamento
Nacional de Ensino, foi implantada pelo Decreto-Lei 16.782-A, de 13 de janeiro
de
1925. Praticamente institucionalizava o curso seriado de cinco anos, tornando-o
obrigatório em todos os colégios, ao mesmo tempo que começava a pôr fim aos
candidatos
avulsos (ou "estranhos") que tentavam o bacharelato no Pedro II. Os alunos que
já tinham iniciado o ginasial em 1925 - casos de Noel e Hélio - podiam optar
pelo
antigo ou novo sistema. De acordo com este, a cada dezembro submetiam-se a
provas finais de determinadas matérias, só que no próprio colégio, perante banca
de três
professores, dois dos quais do Pedro II. Aprovados, bacharelavam-se naquelas
matérias. Reprovados, iam à segunda época. Novamente reprovados, repetiam o ano,
ou
então retornavam ao antigo sistema. Os primeiranístas de 1925 foram os últimos a
terem as duas opções. Depois, vigoraria apenas o seriado.
6. A maior média que Hélio Rosa obteria no primeiro ano ginasial de 1925 seria
a de 6,5 em instrução moral e cívica. Nas demais matérias, 6 em francês, 4 em
português,
outro 4 em geografia, 3,66 em desenho e o insuficiente 2 em aritmética. Ao longo
do curso, ficaria várias vezes para segunda época, apelaria como Noel para os
exames
no Pedro II e só concluiria o ginasial em fins de 1930. Como se verá, graças a
um decreto presidencial. Um curso, portanto, bem aquém do que têm afirmado
outros
biógrafos, provavelmente com base em informações do próprio Hélio: "Bom aluno,
na expressão exata da palavra, foi seu único irmão, Hélio...", diz Almirante em
No
Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 56). Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua
Época (página 29), afirma: "Quando Hélio de Medeiros Rosa, mais moço quatro anos
que Noel, entrou para o Ginásio de São Bento, vinha destinado a assinalar um
curso brilhantíssimo. Dão atestado disso não só os cadernos escolares e os
registros
do estabelecimento de ensino, mas também as cartas de Noel, explicando,
orgulhoso, que o irmão sempre foi o primeiro da turma." Nem brilhantíssimo, nem
primeiro
da turma. Os registros do São Bento, exaustivamente consultados pelos autores,
revelam que Hélio foi aluno apenas mediano. E as cartas de Noel, como se
constata
mais adiante, referem-se a um bom estudante de veterinária, já como
universitário, e não a um Hélio "sempre primeiro" de sua turma no São Bento.
7. Tanto este trecho como o de Carlos Henrique Robertson Liberalli são de
crônicas publicadas em A Alvorada, março de 1924.
63

O ENCANTO DA MÚSICA

Capítulo 6

Canções de simples amas-secas, ninando crianças; coisas sem nexo, brotadas da


inspiração musical improvisada; ou cantos de pássaros, de pardais, de cigarras;
ou
mesmo a rude música urbana, como os rumores desconcertantes dos bondes,
carroças, pregões - tudo isso me encantava.
entrevista ao Jornal de Rádio
o bangalô pouco pára. Prefere passar as manhãs à sombra de uma das árvores do
chalé, ainda teimando em animar com seu ritmo as aulas de tabuada da mãe: "dois
vezes
um... dois, dois vezes dois... quatro". Quanto às noites, não foram mesmo feitas
para se ficar em casa. Já agora - quatorze para quinze anos - o violão, as
canções,
a música enfim é prazer de todos os momentos. "Qualquer espécie de música..." A
dos realejos e a dos vendedores que passam com as cantigas de seus negócios. A
que
sai do velho gramofone do pai e a que boêmios cantores rumorejam em noites de
lua. São noites que ele realmente começa a percorrer, pinho no peito. Noites,
porém,
de desassossego para Martha, que gostaria de vê-lo na cama mais cedo. Música,
afinal, que aprende em todo tipo de lição, com os seresteiros que eventualmente
conhece,
nos métodos de violão, em jornais de modinha, nos saraus Caseiros ou com alguns
exímios violonistas que, durante todo o ginásio, vai conhecendo pela cidade.
Mais crescido, já nos últimos tempos de São Bento, freqüentará com o irmão e o
amigo Glauco Vianna O Cavaquinho de Ouro, na Rua da Alfândega, onde se reúne a
melhor
gente do violão brasileiro desta década. Freqüentar talvez não seja bem exato,
pois os três ficarão sempre meio à distância de Quincas Laranjeiras, que ali dá
aulas
de violão por música, e de outros virtuoses como João Pernambuco, que todas as
tardes aparece para tocar com Quincas. Farão o mesmo em relação aos violonistas
de
uma loja rival, A Guitarra de Prata, onde pontificará o grande José Barbosa da
Silva, o J.B. Silva, ou simplesmente Sinhô, o Rei do Samba. E também em outras
casas,
a Carlos Wehrs, a Ao Pingüim, a Carlos Gomes, a Edison, a Vieira Machado, a
Phoenix, importantes pontos em que a música popular-em forma de discos,
partituras, aulas
de violão -será tocada, difundida e comercializada cada vez mais.
Ouvindo e vendo, eis como Noel aprende. É mesmo um autodidata. Não se pode negar
que foram muito úteis os primeiros ensinamentos do pai e da mãe. Muito útil,
também,
a experiência com o bandolim. Mas é por conta própria, pela persistente consulta
aos métodos, pelo ver e ouvir quem sabe mais, que se fará íntimo do violão. Aos
dezesseis anos, solando ou acompanhando, já poderá considerar-se bom violonista.
Esse autodidatismo, como foi dito, não impedirá que alguém ainda venha um dia a
se orgulhar de ter sido "professor de Noel". Como Humberto Francisco de Souza, o
Betinho, um
65

dos muitos amigos que ele faz em Vila Isabel em nome das afinidades musicais.
Amigos chegados, fiéis, que jamais se afastarão dele, o que quer que o futuro
lhes
reserve.
Betinho é marceneiro, ótimo sujeito, alma boêmia. Ainda será companheiro de Noel
em namoros de portão, cada qual com uma irmã. Só que um se amarrará e o outro
não.
Um marceneiro de mãos delicadas, amante das valsas. Um dos que poderão dizer que
ensinaram alguma coisa a Noel. Já FaustoJosino de Oliveira, o Cobrinha, é
padeiro.
Ou melhor, entregador de pão, tarefa que cumpre bem cedinho, antes que o sol
surja. Por isso não é muito de serenatas, de perder horas de sono. Aprende
violão com
Noel, no chalé, as aulas começando assim que entrega a última bisnaga. José
Sabiá, negro, alto, magro, tocador de cavaquinho, cantador de emboladas, não
ensina nem
aprende com Noel. Faz-lhe companhia, apenas. Como os irmãos Araújo, Arnaldo e
Antônio, filhos de um alfaiate português e eles próprios iniciando-se cedo no
ofício.
Conheceram Noel quando os três, vestidos de mulher, batom, ruge, sapatos altos,
dançavam no estribo de um bonde num domingo de carnaval. Tinham nove, dez anos.
Jamais
deixarão de ser amigos. Antônio não é de música, mas Arnaldo ainda vai tentar
acompanhar Noel nas aulas com Betinho. Até que um dia, constatando que Noel já
deixou
o professor para trás, enquanto ele, Arnaldo, continua no mesmo lugar, fará do
violão peça decorativa na parede de seu quarto.
São muitos os amigos, violonistas, seresteiros, gente que gosta de música.
Impossível enumerá-los todos. Glauco Vianna virá mais tarde. Da idade de Hélio,
da turma
deste no São Bento. Será, dos três atentos observadores de Quincas e João em O
Cavaquinho de Ouro, o que realizará mais plenamente seu sonho de violonista1.
Também não é possível precisar quando o executante começou a conviver com o
compositor. É certo que as primeiras letras serão feitas para melodias alheias,
paródias
com que divertirá os colegas no recreio do São Bento. Mas o próprio Noel fará
publicar daqui a alguns anos aquela que, até prova em contrário, ficará como sua
primeira
composição, música e letra: Cumprindo a Promessa2.
Eu já jurei ir à Penha, meu bem!
Juro, eu não posso faltar
Pois tenho medo que a santa Então venha Zangada me castigar
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade
Pois desta vez Eu jurei
, não é garganta,
Que quando chegasse o mês
Ajoelhava aos pés da santa
No ano passado
Eu bem quis ir visitar
Quem meus pecados
Sempre soube perdoar
Que crueldade!
Vou brigar com meu amor
Pois pela dificuldade
É que a promessa tem valor

Nas muitas e sempre bulhentas andanças do menino Noel por sua cidade, nada mais
importante que o bonde. Um dia, já não tão menino, vai homenagear, em forma de
samba,
este precário e cambalçante veículo que percorre ruidosamente as ruas do Rio:
E o bonde que parece uma carroça? Coisa nossa, muito nossa!
Por enquanto, porém, bastam-lhe as viagens, o prazer de apurar suas piruetas no
estribo, de usar o balaústre como ponto de apoio de seus rodopios. Tudo a
cinqüenta,
sessenta quilômetros por hora, espécie de salto sem rede. Os amigos, do São
Bento e de Vila Isabel, impressionam-se com essa habilidade do ágil menino de
circo Noel
Rosa.
Mas o bonde não é apenas o trapézio de suas acrobacias. É também o picadeiro de
suas graças imaginativas, debochadas, marotas, inoportunas, obscenas. Quando não
está no balaústre, o espaço final do primeiro carro, mais conhecido por
"cozinha", é o preferido. Ali, viajando quase sempre de pé, costuma apoquentar
os passageiros
com seus arremedos de ventríloquo, ou provocar os que estão no ponto, quando o
bonde pára:
- Veado!
Todos olham para a "cozinha". Noel emenda:
- Só chamei um!
Vez por outra promove concursos inusitados, desenhando um pênis gigante numa
folha de cartolina. A cada detalhe do desenho corresponde um número que repete
em pedaços
de papel, dobrando-os e colocando-os dentro do quepe. Em seguida, pede que cada
colega tire um e vai cantando, alto, o "prêmio" que cabe a este ou àquele:
- Dacorso, número cinco! Fica com os pentelhos.
Outro pedaço de papel:
- Moacyr, três! O cabresto... Ou ainda:
66

- Alceu deu mais sorte... quatro! Leva os bagos.


Isso aos gritos, para que todos os passageiros ouçam. Em outras ocasiões, bem
pode preceder o sorteio com bocageanos poemas
que ele mesmo cria para alardear as qualidades o prêmio em disputa:

O caralho é o pai de todos os mortais


Consolador de pombas e bocetas
Alma dos eus e coração das gretas...
Quanto mais os amigos olham, quanto mais se encabulam os passageiros, mais
ênfase presta à declamação:

Foi com quem sua mãe sempre se viu


Ele é meu pai, seu pai,
pai do soneto
Pai da puta que o pariu!

Nas salas de aula, imita condutores a exclamar o seu lusitano "faz favor",
manipula manivelas imaginárias, fabrica estranhíssimas maquininhas sobre a
carteira, canaletas
de cartolina que fazem às vezes de trilhos, bilhas que se transformam em bondes
que ele mesmo dirige. Mas dirigir bondes pode, ocasionalmente, converter-se em
algo
real. Basta fazer amizade com os motorneiros que circulam pela Praça Mauá,
Lourenço, Nazareth Bigodão, Nascimento. Bigodão é um português risonho,
simpático, que
não se importa que o chamem pelo apelido. De todos, porém, Nascimento é o mais
camarada. Mulato forte, um e oitenta de altura, Noel tanto pede que ele o deixa
manobrar
o bonde no ponto final.
- Olha a direita!
As brincadeiras que o bonde inspira nem sempre são tão inocentes. Principalmente
agora que a moda importada da América começa a encurtar as saias da mulher
carioca.
Antes, e Noel bem se recorda, usavam-se saias muito abaixo dos joelhos, quase na
altura das canelas. Saias que tudo escondiam. Hoje, e Noel bem observa, sobem-se
as bainhas, revelam-se as pernas, tudo está mais à mostra. O menino percebe que
o estribo do bonde é lugar estratégico de onde, num simples virar de olhos,
devassam-se
intimidades de passageiras descuidadas. E passa a viajar ali.
Mais tarde, o voyeur Noel dá lugar a um audacioso pingente que prefere a ação à
visão. É quando vê mulher bonita sentada na extremidade do banco, saia curta,
distraída.
Toma o bonde perto do colégio, põe-se de pé no estribo, ao lado da mulher, e
espera que o motorneiro dê a partida. Assim que o veículo ganha velocidade,
aproxima-se
sorrateiramente, mete a mão coxas acima da mulher e salta, o bonde já correndo.
A vítima, apavorada, grita:
- Socorro! Um louco!
No segundo semestre de 1926 O Mamão ainda circulará clandestinamente sob as
carteiras, divertindo uma turma que constata o caráter cada vez mais irreverente
da linha
editorial do jornalzinho. Com uma periodicidade que o próprio Noel estabelece em
função de ter ou não o que dizer por escrito (por esta época ele já prefere a
música,
as paródias, como veículo do seu humor), O Mamão faz o mesmo sucesso do ano
anterior. Só que não por muito tempo mais. Como também já não durarão muito as
brincadeiras
de que é vítima dom Joaquim de Luna em suas apaixonadas aulas de religião.
As duas coisas - o fechamento de O Mamão e o fim das provocações de Noel a dom
Joaquim - estão interligadas. É que em seu último número o jornalzinho traz,
entre
anedotas imorais, croniquetas apimentadas, versos chulos, textos enfim que Noel
criou ou colheu entre o que há de mais impublicável,
uma caricatura de dom Joaquim. E logo na primeira página. A identificação do
monge se faz muito menos pelos traços de Noel, imprecisos, não muito parecidos
com o
original, do que por outros detalhes. Por exemplo, frases que habitualmente dom
Joaquim emprega em aula quando repreende ou mesmo pune um dos alunos:
- Lembrem-se, eu não castigo ninguém. Vocês é que se castigam.
Ou quando tenta que os alunos parem de conversar em sala:
- Atenção, atenção, isto não esta no manual!
As frases aparecem saindo da boca de dom Joaquim na caricatura. Mas o que
realmente torna o personagem do desenho inconfundívelé sua mão direita: apenas
dois dedos.
Com eles, o anular e o polegar, dom Joaquim segura o seu lápis enquanto diz as
duas frases.
Por um descuido qualquer, este número de O Mamão vai parar nas mãos do Gouvêa
que o entrega a dom Meinrado. O reitor manda chamar Noel. Talvez finja não ter
lido
as críticas ao colégio contidas numa das matérias. Ou não entender as piadas tão
diferentes dos chistes de A Alvorada. Nem toca nesses assuntos. Limita-se a
falar
do desenho, do quanto de cruel há nele. É no mínimo falta de sensibilidade
brincar com o defeito físico dos outros. E logo o bondoso dom Joaquim...
Os alunos têm razão quando dizem que uma reprimenda de dom Meinrado, por mais
branda que seja, é muito pior que qualquer castigo aplicado pelo Gouvêa ou um
dos professores.
Dom Meinrado sempre atinge o alvo. Noel
67

promete deixar dom Joaquim em paz. E fechar de vez O Mamão.


Foi em fins de 1926 que um navio de guerra italiano aportou em Santos, dele
desembarcando, para não mais voltar, o capitão-tenente da Marinha Carmine
Carbone. Justamente
nesta época, em que seu país militariza-se a olhos vistos, Carbone decide deixar
para trás a farda e tentar nova vida em terra brasileira. Dizem que saiu do
navio
como quem vai conhecer a cidade, suas praias, sua gente. Irrepreensivelmente
uniformizado, subiu ao convés, dirigiu-se ao portaló, olhou na direção da popa,
fez
continência à bandeira, desceu, sumiu. Ao que consta, rumo a São Paulo, de onde
tomou um trem noturno para o Rio.
Como ou por que veio bater às portas do São Bento não está bem explicado. Talvez
viesse a convite de seu velho amigo, dom Matheus Roccati. Ou talvez trouxesse
uma
carta de recomendação dos monges beneditinos de Monte Casino3, em cujo colégio
estudou antes de entrar para a Marinha. O fato é que veio pedir emprego a dom
Meinrado,
qualquer emprego, sem maiores exigências quanto à função ou salário. O reitor
logo viu estar diante de um homem culto, conhecedor de matemática, química,
física,
falando vários idiomas, incluindo latim e grego, e em vez de contratá-lo como
inspetor de disciplina, como chegou a pensar, fez dele professor.
Se a história se passou mesmo assim - a deserção, a viagem para o Rio, a chegada
ao Mosteiro, a conversa com dom Meinrado - também não se pode precisar. O
importante
é que Carmine Carbone será o único novo professor que os quartanistas de 1927
encontrarão ao voltarem de férias no dia 4 de março. Lecionará latim e química,
nesta
cuidando das aulas práticas, enquanto Piragibe se ocupa das teóricas.
Guarda sua farda para sempre. Sem jamais aceitar o rótulo de desertor. O que ele
fez - repetirá muitas vezes - foi uma escolha. Detesta Benito Mussolini, o
regime
fascista que se instalou na Itália há quase cinco anos e mais ainda todo esse
pensamento belicoso que pode vir a destruir seu país. Daí ter vindo para o
Brasil.
E a não ser que a Itália mude, nunca mais voltará(4).
Toda a turma gosta dele. Noel, então, diverte-se com seu sotaque, seus pequenos
trejeitos, suas histórias curiosas que não se demorará a descobrir serem
colhidas
nas páginas do Eu Sei Tudo. Noel, o ventríloquo, senta-se perto da janela nas
aulas de química para dali, sem mover os lábios, emitir um som metálico, meio
cantado.-
- Carbone... Ó Carbone!
O "ó" bem aberto, prolongado, como se
fosse uma sirene. Carbone vira-se, estão todos quietos. Um ou outro faz força
para não rir.
- Carbone... Ó Carbone!- repete Noel assim que ele se volta.
Em quase toda aula do ex-capitão-tenente italiano, pede para "ir lá fora". Vai e
geralmente não volta. Uma cena que se repete.
- Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo.
Carbone percebe que as escapulidas de Noel são crônicas. Com seu sotaque ainda
carregado, a voz grossa e cantante, muda de tática:
- Professor!
- Que quer o senhor?
- Ir lá fora.
- Vá, vá logo... para o gabinete do dom reitor.
Dom Meinrado o repreende, diz que ele está crescido demais para estas coisas,
não é justo chamar seu Medeiros e dona Martha para dizer-lhes que o filho não
quer
crescer. De volta à sala de aula, recomeça:
- Carbone... ó Carbone!
No recreio, acompanhando-se no violão, canta para os colegas a paródia que acaba
de fazer sobre a melodia de Yes, Sir, ThafsMy Babe:
Quando
Pelas aulas ando,
Vai me perguntando:
E imitando a voz de Carbone
"Que quer o senhor?"
Voltando à própria voz:
Meu Deus,
Se o homem me chama, Preparo logo a cama Com o dom reitor
Por último, imitando o som de um trombone:
É gozado, Ó Carbone, Seu Trombone Desafinado
Mas nem tudo é provocação e irreverência. Há, por exemplo, a prova mensal sobre
os halogênios. Carbone sorteia o ponto: bromo. Os alunos devem escrever tudo o
que
sabem a respeito, número, peso atômico, as propriedades do elemento sorteado.
Têm quarenta minutos para isso. Dois dias depois, maço de provas na mão, o
professor
entra em sala, faz a chamada,
68

pede silêncio e diz, segurando uma das provas:


- Faço questão de ler bem alto, para que todos ouçam, a extraordinária
dissertação que o senhor Noel de Medeiros Rosa nos fez.
E lê. Ali está tudo sobre o assunto, número, peso atômico, propriedades, tal
como ensinam os compêndios de química. Sem erros nem omissões, como queria
Carbone.
Só que em versos. Métrica e rimas perfeitas, prosaico bromo transformado em
poema, uma simples prova mensal destinada a ficar como um dos mais originais e
comentados
textos já produzidos nas salas do colégio. Naturalmente, agraciado com um 10(6).
Das muitas descobertas que Noel vai empreendendo - mundos que se abrem diante de
seus olhos atentos, emoções que mexem com seu espírito já inquieto - nenhuma o
fascina
tanto quanto as casas onde é possível comprar, por alguns mil réis, os carinhos
de uma mulher.
Sua iniciação sexual deu-se cedo. Aos doze, treze anos, idade em que geralmente
os meninos querem mas não ousam, já ousava até demais. Por iniciativa própria ou
na trilha dos rapazes mais velhos da Praça 7 de Março ou do Ponto de 100 Réis,
já andava enredado com as raparigas que, em troca de pouco, entregavam o corpo
ao
prazer apressado e desconfortável dos terrenos baldios, dos capinzais, do muro
do açude da Fábrica Confiança, onde quer que fosse possível.
Mas só agora, aos quinze anos, Noel descobre o amor menos apressado e menos
desconfortável oferecido pelas pensões de mulheres. Será com algum espanto e
muita inveja
que os amigos de sua idade o ouvirão narrar, com detalhes, suas visitas a esses
lugares, seja uma casa do Mangue, seja uma alfurja dos arredores da Estação de
Pedro
II. No São Bento ou no bairro, sente indisfarçável satisfação ao relatar tais
experiências, façanhas de conquistador de bordel. Os amigos jamais se esquecerão
dessa
aparente precocidade(7).
Inútil tentar saber através de quem Noel entrou pela primeira vez numa casa
dessas. Pode ter sido levado por um amigo de Vila Isabel, como pode ter sido
atraído
pelos sorrisos da bela, sinuosa e perfumada Santinha. Moça de seus vinte anos,
mora numa casa de frente de rua, duas janelas e portão de ferro, na Visconde de
Abaeté,
bem no meio do caminho entre Theodoro da Silva e o Boulevard. Ela, os pais e
cinco irmãos, tudo gente direita e trabalhadora. Quando a moça sai, de noitinha,
metida
num vestido curto e justo, o Ponto de 100 Réis inteiro lhe põe
os olhos. É dessas pequenas que, ao passarem, deixam um rastro de sugestões. Até
que se descobre que seus passeios noturnos não são propriamente passeios. E que
o apelido carinhoso que ganhou dos pais há muito tempo virou ironia: Santinha
peca todas as noites numa pensão de mulheres da Rua Visconde de Itamarati, no
Maracanã,
na qual o garoto Noel é um dos seus clientes, senão dos mais assíduos, pelo
menos dos mais jovens.
Mesmo sem chegar a ser um habitue, um desses fregueses que as mulheres
consideram "de casa" (mesmo porque o dinheiro é curto demais para isso), Noel já
é freqüentador
dessas pensões à época em que cursa os últimos anos do São Bento. De certa
maneira, jamais deixará de ser até o final da vida. Sente-se bem nesses
ambientes, aprende
a aceitar os seus códigos, não exige mais do que as mulheres lhe podem dar, nem
espera mais do que seus contados níqueis podem comprar. Será sempre assim. Ou
quase
sempre. Já adulto, trocará a gabarolice por certo retraimento, já não se jactará
dessas aventuras tantas vezes repetidas. Mas, por enquanto, ainda em fase de
descobertas,
é um falastrão.
No recreio do São Bento, a um grupo formado à sua volta, narra com versos seus e
a melodia de Gigoletté' uma de suas aventuras:
Fui uma vez
À chupadeira
Para que ela me chupasse o caralho
Que putaria!
Ela queria
Que eu lhe pagasse adiantado o trabalho.
Então eu disse:
"Por favor, meu coração,
Caralho na boca,
Dinheiro na mão."
E ela então, afinal,
Se conformando,
Lentamente o meu caralho foi chupando.
Paródias sobre o mesmo tema constituem a maior parte do seu repertório de agora.
E também do ano que vem - seu último no São Bento - em que aproveitará o sucesso
de A Casinha da Colina(9) para contar com a mesma melodia outra história
inspirada nas casas do Mangue:
Você sabe de onde eu venho?
É de um rendezvous que eu tenho
Lá na Pinto de Azevedo.
É uma casa esculhambada,
De mulher toda arrombada,
Horrorosa de dar medo...
É sem dúvida um Noel muito diferente o que Arlinda reencontra neste 1927, quando
69

vem ao Rio para que seu filho nasça aos cuidados do Dr. José Rodrigues da Graça
Mello. Ela e o marido Fábio hospedam-se no bangalô. Surpreendem-se com um Noel
tão
atirado, tão independente e sobretudo tão boêmio. Ficam maravilhados. Acompanham
os malogrados empenhos de Martha para que o menino estude mais e saia menos,
deliciam-se
ao conhecer cada truque de que se vale para trocar o dormir cedo por mais uma
noitada. Martha esconde-lhe as roupas, zanga, suplica. Inútil. Quando vai ver,
ele
já saiu. Com que roupa? Com a de Neca, bainha da calça dobrada, pano franzido na
cintura. Preocupa-se com sua saúde, com o fato de raramente ingerir sólidos. De
que adianta a superalimentação, o mingau, o chocolate com gema de ovo, se tudo
isso se perde numa noite em claro? Mesmo achando que Martha tem razão, Arlinda e
Fábio
não podem deixar de sentir certo deslumbramento. Duas, três da manhã, ouvem
bater na janela do seu quarto. Uma voz sussurrante diz lá de fora:
- Minha Dinga, sou eu, o Noel. Abre a porta pra mim...
Arlinda levanta-se, vai abrir a porta que Martha trancou. Arregala os olhos para
ver Noel tirar os sapatos, ajoelhar-se, caminhar até seu quarto assim mesmo, de
joelhos, para que a mãe não o veja. Com muito cuidado, apoia nas costas o violão
do pai que o acompanha sempre.
Fábio, bem-comportado farmacêutico de São Paulo, tem por Noel grande admiração.
Por sua inteligência, sua música, mas muito especialmente por seu jeito solto,
livre.
Um sentimento que mistura simpatia e algumas gotas de inveja. Aliás, o mesmo que
Noel vai inspirar pela vida afora a todos bem-comportados que o conhecerem de
perto.
Um dia, próximo ao nascimento do filho, Fábio vai à cidade, paga vinte mil réis
por um violão e o dá de presente ao "sobrinho" boêmio. O primeiro violão de
Noel.
Nestes anos de ginásio, raramente se separa do uniforme caqui. Até por uma
questão de economia. Desde que voltou de Araçatuba, há quase quatro anos, Manuel
Garcia
de Medeiros Rosa não mais se aprumou. Cavou um emprego aqui, outro ali, chegou a
exercer por algum tempo as funções de "fiscal do bucho"(10), sem no entanto
firmar
pé. A escolinha não rende o bastante para que a família luxe, entendendo-se por
luxo a camisa de algodão, a calça de casimira, o sapato fantasia dos meninos.
Assim,
o uniforme do São Bento, renovado a cada começo de ano, é forma de poupar (os
primeiros ternos de Noel serão feitos pelos Araújos, na camaradagem, com cortes
de
Palm Beach
70

mandados de presente por Eduardinho). Mesmo a família morando numa casa mais
nova e confortável que o chalé, e contando com a mesada que Rita recebe do
filho, a
tormenta ainda não passou de todo para os Medeiros Rosa. Motivo pelo qual Neca
afasta-se de casa mais uma vez, agora com destino a Bica de Pedra, onde espera
ter,
ao lado do cunhado, um pouco mais de sorte. Lá se ocupará da contabilidade de
casas de negócio e da construção de uma estrada.
Por muito tempo, desde aquele primeiro dia de aula em 1923, quando se viu
enfiado em dólmã, culote, quepe e perneiras, a farda caqui tem sido a única
roupa de Noel.
Ela e o uniforme branco para dias de festa. O mesmo acontece com Hélio. Seja
para ir à aula ou à missa, visitar um parente, ver um filme no Smart, seja para
as serenatas
que tanto amofínam Martha, Noel raramente se separa do uniforme. De tal modo
que, daqui a tempos, quando se falar no adolescente que ele é hoje, os moradores
do
bairro dirão:
- Me lembro. Magrinho, queixo torto, sempre com a farda caqui.
Não liga quando alguém o chama de "gafanhoto sem bunda", nome que os garotos de
outros colégios deram aos alunos do São Bento por causa das iniciais GSB que
trazem
no emblema. Dificilmente irritam, encabulam, constrangem, fazem perder a bossa
ao menino Noel. Se alguém lhe põe um apelido, perde tempo: logo arranjará outro
de
volta, transformando o agressor em agredido11. Ele é quem gosta de rebatizar os
colegas. Como no dia em que vem subindo a ladeira do São Bento ao lado de Hélio
Lobo.
Por ter faltado às aulas de ontem (e de anteontem também), esgueira-se pelo
paredão para não ser notado por dom Meinrado. Vai na ponta dos pés quando o
reitor pega-o
pela gola.
- Venha cá, seu Noel. Faltando às aulas, hein?
Dom Meinrado inicia em seguida um de seus habituais sermões, a fala mansa mas
firme, aquele jeito de envolver os alunos sem os destratar. O monge pede que
Hélio
Lobo se aproxime. Coloca os dois meninos frente a frente e diz:
- Mire-se no Hélio, Noel. Mire-se no Hélio e veja o que é um aluno exemplar,
bem-comportado, incapaz de um deslize.
Noel faz que sim com a cabeça e dom Meinrado manda que os dois se dirijam à sala
de aula. Noel e Hélio Lobo caminham lado a lado, calados, até a cantina do
Al tino. Pedem dois refrescos. A certa altura, Noel passa a olhar fixo nos olhos
do colega Hélio encabula-se. Noel continua olhando-o nos olhos. Cada vez mais
embaraçado,
o outro protesta:
- Que diabo, Noel! Por que está me
olhando assim?
- Estou me mirando em você, Salammbô... virgem de Cartago!
Os cinemas exibiram semana passada o filme Salammbô, os olhos lânguidos de
Jeanne de Balzac pondo coisas na cabeça dos homens(12). De agora em diante,
Hélio fica
sendo "Salammbô".
Do mesmo modo, Antônio Fernandez Lopez, os dois sobrenomes paroxítonos, passa a
ser "Fernandes Lopes", o acento na última sílaba. Para indignação dele, que
acabará
indo a cartório mudar o nome para Antônio Fernandes Lopes, os esses substituindo
os zês, garantia de que ninguém mais o chamará daquele jeito.
Já Alceu de Miranda é simplesmente "Pinguilim", para quem Noel compõe uma
buliçosa quadrinha:
Pinguilim que bate, bate Pinguilim que já bateu
Os pentelhos cá de baixo
Faz uma pausa, aponta para o sexo e arremata:
Vêm da bunda do Alceu
Manuel Jansen Muller será "Mané Figueiredo". Por quê? Nunca saberá. E
Hermenegildo de Barros Filho fica sendo mesmo o "Ministrinho". E por razões
óbvias: o pai é
ministro do Supremo Tribunal, homem importante, o nome saindo todo dia nos
jornais. Dos muitos alunos do São Bento, é um dos que mais dinheiro leva no
bolso. Será,
de bom grado, patrocinador dos programas mais dispendiosos de Noel. Embora seja
da turma de Hélio Rosa, é com Noel que se identifica mais:
- Vamos, Ministrinho?
- Aonde?
- Lá.
O "lá" significando uma daquelas casas do Mangue que Noel, para perplexidade de
Hermenegildo, conhece tão bem. Os dois vão de uniforme, livros. O filho do
ministro
treme de medo, mas concorda em pagar as despesas. Os sanduíches, as cervejas, as
mulheres, tudo isso por sua conta. Noel se encarrega da boa conversa e da
música.
Dom Meinrado, que parece saber de tudo, no dia seguinte interpela o turbulento
desencaminhador de suas ovelhas:
- Noel, Noel. ..Já que não pode deixar de pecar, por que não peca sozinho?
71

NOTAS
1. Glauco Vianna chegaria a gravar vários discos como solista na Victor, Odeon
e Parlophon, o primeiro deles em 1928. Quase sempre intérprete de suas próprias
composições,
cumpriria carreira fonográfica de mais de trinta anos.
2. Jornal de Modinhas, de um número de 1929- O próprio Noel assinalou na margem
de um recorte da letra publicada o ano de sua criação: "Feito em 1925".
3. Mosteiro de Monte Casino ou Mons Casinus. Situado entre Roma e Nápoles, é
considerado o berço da Ordem Beneditina. Nele se encontra o túmulo de São Bento
de
Nursia, fundador da ordem.
4. Carmine Carbone de fato jamais voltaria à Itália. Morreu no Rio, ainda como
professor do São Bento, a 16 de julho de 1939, meses antes de ter início a
guerra
que tanto temia pudesse destruir seu país.
5. Escrita em 1925 por Walter Donaldson e Gus Kahn, a canção foi um dos maiores
sucessos da música popular americana dos anos 20.
6. A dissertação em versos sobre o bromo seria para sempre lembrada não só
pelos colegas de turma de Noel, mas por todos os seus contemporâneos e muitos de
seus
sucessores no Ginásio de São Bento. Guardada durante anos nos arquivos do
Mosteiro, a prova, lamentavelmente, se perdeu.
7. Almirante refere-se a esta precocidade - e às gabarolices de Noel - na
segunda edição de No Tempo de Noel Rosa (página 187). Depoimentos de amigos de
bairro
e de contemporâneos de São Bento ajudam a compor o quadro de suas primeiras
aventuras amorosas, de suas visitas às pensões de mulheres e de como gostava de
se exibir
a respeito.
8. Canção de Franz Lehár, sucesso internacional na época.
9. Canção de Pedro de Sá Pereira e Luís Peixoto. Gravada por Vicente Celestino
em 1928, seria também registrada em disco no ano seguinte por Gastão Formenti e
Nina
Nabuzzi.
10. Funcionário municipal que fiscalizava o comércio de miúdos de boi nas
feiras livres.
11. Não há fundamento na tão difundida versão de que Noel teria carregado, em
sua passagem pelo São Bento, o apelido de "Queixinho". Nenhum de seus
contemporâneos
entrevistados pelos autores, num total de quinze, lembra se disso: "Ninguém
ligava para o defeito dele", assegura o Dr. Lauro de Abreu Coutinho, médico
radiologista,
primeiro aluno da turma, quatro anos colega de sala de Noel. "Apelido?" -
surpreende-se o almirante Antônio Fernandes Lopes, da mesma turma - "Nunca houve
isso."
César Dacorso Netto, engenheiro e professor de matemática, arremata: "Gostávamos
demais dele para isso. Além do mais, era o nosso líder." O general Moacyr Mattos
de Oliveira, o companheiro mais chegado: "Noel é que vivia mexendo com todo o
mundo."
12. Salammbô, filme de Pierre Marodou baseado no romance de Gustave Flaubert,
foi produzido em Viena em 1925 e exibido no Rio dois anos depois. Além de Jeanne
de
Balzac, estavam no elenco Rolla Norman e Raphael Liévin.
72

A MORTE DE PERTO

Capítulo 7

Fugi impressionado Sem ter perguntado Se ela estava viva ou morta


Cor de Cinza

uma casa grande, as portas e janelas laterais dando para uma comprida e estreita
varanda. Parede colada ao armazém da esquina de Theodoro da Silva com
Silva Pinto, fica bem em frente ao bangalô. Mas só neste fim de tarde, ao voltar
do São Bento, Noel parece notar que tal casa existe. No portão, brincando com
duas
crianças, vê uma moça bonita. Morena, cabelos curtos, olhos castanhos, redondos,
brilhantes. Quantos anos terá? Noel vai saber depois que ainda não fez quinze.
Desde esta tarde, a moça é o objeto de suas atenções. Mudou-se para ali há
poucos dias, mas os rapazes que fazem ponto na esquina já colheram informações
mais ou
menos precisas para satisfazer a curiosidade de Noel.
- O nome dela é Clara - diz alguém. Clara Corrêa Netto. É a mais nova dos quinze
filhos de outra Clara, viúva de Serafim Corrêa Netto, vidraceiro que um ataque
cardíaco
matou há alguns anos, quando moravam todos na Rua Theofilo Ottoni, no Centro.
Até hoje a família permanece unida. A não ser a filha mais velha, Julieta, já
casada;
o segundo, também Serafim, que se casou, enviuvou e se casou de novo; e Maria
que morreu pequena; ajeitam-se todos aqui, na casa em frente ao bangalô, à volta
da
figura matriarcal de dona Clara: os filhos Alfredo, José, Manuel, Álvaro,
Alberto, Lúcio, Antônio, Julião, Ananias (nome de homem, mas na verdade a mais
velha das
moças depois de Julieta) , as gêmeas Guilhermina e Marcolina. E Clara, a
Clarinha. As crianças que Noel viu com ela são os sobrinhos Edgar e Irene, que
dona Clara,
fazendo valer sua autoridade, não deixou Serafim levar para a companhia da
segunda mulher (ela é do tempo em que toda madrasta era inevitavelmente uma
megera).
Mas é apenas em Clarinha que Noel está interessado. Não importa que entre e saia
muita gente da casa, que aos domingos se sentem todos na varanda, que o portão
seja
ponto de reunião de tantas pessoas, irmãos, irmãs, parentes em visita, vizinhos.
Noel só tem olhos para Clara.
Um dia percebe que é correspondido. Sempre com o uniforme do São Bento, senta-se
na varandinha do bangalô, toma o violão e canta coisas de amor. Talvez Clara não
o ouça do outro lado da rua, mas sabe, de alguma forma, que são para ela as
canções de Noel. São tantos os irmãos e irmãs, e é tão severa a vigilância sobre
Clara,
que se torna quase impossível uma aproximação. Bem que Noel tenta. Ouviu dizer
que a moça estuda num colégio do bairro. Mas qual? E a que horas? A troca de
olhares,
um ou
73

outro sorriso, nada mais lhe resta.


- Os irmãos dela não deixam ninguém chegar perto - contam-lhe.
São todos homens feitos, trabalham fora), dividem entre si as despesas da casa.
À falta do pai, zelam com certo rigor pelas irmãs solteiras. E de maneira muito
especial
por Clarinha, a caçula.
Por algum tempo Noel nada pode fazer além de contemplar à distância a beleza de
Clara. Se ela ao menos pudesse ouvir-lhe o violão...
Embora se fale muito em morte no Mosteiro - nao a morte fim de todas as coisas,
mas o começo de nova existência, melhor que esta e portanto a ser encarada como
graça
divina - Noel é todo vida neste 1927. Um garoto bem mais alegre do que o
ensimesmado poeta que, aos treze anos, seguindo os passos do avô, escreveu um de
seus primeiros
e ainda imperfeitos versos a que deu o título de "Desilusão":
Quando começou A nossa amizade, Eu só te pedia Sinceridade.
Poderás te esquecer Do meu sofrer; Pra fugir ao tormento, Eu prefiro morrer.
Agora, tudo desfeito Pela tua ingratidão, Somente guardo no peito Mais uma
desilusão.
Se meu padecer Te trouxer venturas,
Serei venturoso Entre amarguras.
Mas não prefere morrer o Noel de agora. Não se deixa contagiar pelo ambiente
demasiado grave anuviado do colégio. Há muito de absurdo naquela seção com que A
Alvorada
tenta convencer seus leitores de que morrer cedo é um privilégio. Nenhum dos
alunos, na verdade, acredita nisso. Respeitam mas não compartilham Já devoção
dos monges
a dom Pio Hemptinne beneditino morto em 1907, aos 27 anos, e até lembrado por
aqueles que lhe conhecem a história marcada de muitos padecimentos e espantosa
conformação.
Foram suas estas palavras: "Quão doces são as alegrias do sofrimento. Quão feliz
é o isolamento da cruz!
Nem morte, nem sofrimento. Noel prefere a vida, repleta de música e esperança.
Mesmo tendo OMamão deixado de circular, não cessa as brincadeiras com os
deboches,
as fustigadelas a pose de Piragibe, a tata melíflua de certos monges, à surdez
do Barreto, à colérica religiosidade de dom Joaquim, ao sotaque de Carbone.
É mesmo um líder entre os companheiros. Convence muitos deles a se desviarem do
caminho do colégio, a jogarem futebol em Vila Isabel em vez de assistirem à aula
de Passos de Miranda. Mesmo sabendo que são atraentes suas lições de história
universal. Os mais atirados como ele continuam deixando-se arrastar para o
Mangue.
O dinheiro é curto? Não tem importância. Sempre é possível ficar por ali, num
daqueles cafés de esquina, Noel tocando violão, cantando, deixando
impressionados os
músicos do lugar, muitos dos quais pedem-lhe que conserte seus pobres versos.
- Uma letra por uma cerveja! - propõe ele.
Às vezes vai ao poeirinha da Praça 11 de Junho onde César Dacorso Netto,
pianeiro estilo honky-tonk, faz música de fundo para os filmes de Carlitos,
Chico Bóia,
Harold Lloyd, Ben Tur-pin, Buster Keaton, Buckjones, Pola Negri, Valentino. É
assim que ajuda o pai nas despesas com os estudos, seus e do irmão Paulo Dacorso
Filho.
É um dos melhores alunos da turma, rival de Lauro de Abreu Coutinho na luta pelo
primeiro lugar no quadro de honra. Como Noel, gosta de música. Os dois saem
juntos
da última sessão (hpOCifilháo. Arranjara um passeio por ali pertinho. O Mangue,
naturalmente.
Mas nem todos os prazeres são tão adultos Como diz dom Meinrado, de certa
maneira Noel não quer crescer. Brinca como se a infânciaa
fosse eterna. Surripia guloseimas do Altim, inventa piadas, canta paródias,
ridiculariza professores. Há muito de exibicionismo no que faz. Gosta de chamar
a atenção,
de escandalizar as pessoas. À saída do São Bento, descendo a ladeira depois da
aula, não é raro velo lançar estranhos desafios, propor esquisitas apostas.
- Caso dinheiro como vou do portão do colégio ao Largo de São Francisco com a
minha coisa de fora Ninguém acredita que seja capaz de tanto. Cinco e meia da
tarde
o centro da ciddade cheio de gente, hora de saída do trabalho. Da Dom Gerardo ao
Largo de São Francisco é uma considerável caminhada, Avenida Rio Branco,
Ouvidor,
ruas movimentadas, terá Noel coragem! Diz um dos
colegas! Não Vai dar certo - prevê outro
Dois ou três aceitam a aposta. Seguido a distância por todo um grupo de: alunos
do São Bento que riem, mais de nervoso do que de outra coisa realiza pelo centro
da cidade,
74

braguilha aberta, fingindo-se de distraído, homens e mulheres olhando-o


perplexos, o mais extravagante passeio de sua vida.
Contudo, por mais alegre, despreocupado e irreverente que seja, por mais amor
que tenha à vida, é justamente neste 1927 que vai travar seu primeiro contato
mais
íntimo com a morte. Até aqui, tudo se passou mais ou menos longe, o
desaparecimento de alguém sendo algo que pouco lhe diz respeito, um parente
afastado, um vizinho
a quem mal conhece, um nome nos anúncios fúnebres de jornal. De volta das
férias, no começo do ano já sabe da morte de Mendes de Aguiar, homem com quem
manteve relações
tão pessoais: "... vós tendes a boca já pronta para soprar uma flauta!" E pouco
depois acontece a perda do colega de turma João Carlos Corrêa.
Logo no primeiro dia de aula, 4 de março de 1927, dom Meinrado contou aos
quartanistas que João Carlos está com uma séria infecção intestinal, contraída
enquanto
passava férias com os pais numa fazenda do sul de Minas. Seu estado é grave. O
reitor recomenda que todos vão à casa de João Carlos. Mas a visita de pouco
adianta.
Noel e os colegas não conseguem vê-lo, o médico não os deixando entrar no
quarto. Sabem apenas que a febre não passa, que o amigo sofre. No dia 17, morre.
Tinha
apenas dezesseis anos, a idade de Noel. Como acreditar no que o aluno Arnaldo
José Fernandes da Costa escreve nas páginas de A Alvorada?
"Na véspera recebeu o João Carlos, com grande piedade, o conforto dos Santos
Sacramentos de nossa Santa Igreja e, pelas suas últimas palavras - 'Ó Maria
concebida
sem pecados rogai por nós que recorremos a vós!' - se vê quão resignado estava o
seu espírito e pronto a ver Deus Nosso Senhor."
Como é possível alguém resignar-se a perder a vida aos 16 anos? A ausência de
João Carlos Corrêa é um choque para os alunos do São Bento. No enterro, nas
missas,
nas salas de aula, sente-se isso. Mas ainda está por vir o primeiro contato mais
íntimo de Noel com a morte, neste ano em que ele é todo vida.
Sábado, 15 de outubro de 1927. É quase de manhã quando Noel chega. O bangalô
ainda dorme. Como de hábito, o jovem boêmio de farda caqui ziguezagueia
silenciosamente
por entre os móveis da sala, fazendo ginástica para que ninguém o ouça.
Atravessa toda a casa na ponta dos pés, passa pela cozinha, sai no quintal.
Talvez queira
usar o banheiro de fora. Ou apenas sentir no rosto um pouco mais da brisa da
madrugada. Dá alguns passos, chega a poucos metros do barranco. Súbito, pára.
Jamais
lhe sairá da lembrança o sinistro quadro que seus olhos vêem: o corpo grande e
pesado de vó Bella oscilando na ponta de uma corda.
Seus gritos despertam toda a casa. Vai ser preciso algum tempo até que se
compreenda o que aconteceu. Bella, tão sem ânimo nos últimos meses, tão
desinteressada
das pessoas e das coisas, levantou-se de madrugada, pegou uma cadeira, foi para
o quintal, amarrou uma corda de varal na trave do galinheiro, enfiou o pescoço
no
laço que ela mesma preparou na outra extremidade, subiu na cadeira. Tudo muito
rápido, mas em silêncio, sem alarde, como sempre gostou de viver.
Recato, discrição, o deixar-se ficar num canto sem incomodar os outros. A vida
toda foi assim Bellarmina. de Medeiros Rosa. Aos 64 anos, porém, vinha-se
dizendo
já sem forças, a idéia da morte perseguindo-a, as lamúrias substituindo o falar
pouco.
Chamou-se um médico, Floriano de Araújo Góes, na esperança de que algum remédio
lhe devolvesse o ânimo. As queixas de Bella foram então atribuídas a um cansaço
passageiro,
de forma alguma a uma efetiva vontade de morrer. A sempre discreta Bella. Mas um
suicídio é um suicídio. E por mais que a família se empenhe para que o estrondo
dessa tragédia não seja ouvido lá fora, todos vão saber que dona Bellarmina se
enforcou.
Na tarde deste mesmo sábado - enquanto o corpo estiver sendo velado na sala do
bangalô (o comissário do 16.° Distrito Policial, Ribeiro de Sá, e o médico
legista,
Dr. Antenor Costa, concordaram que não se faça a autópsia), A Noite já estará
circulando com a notícia. Diz o título: "A vida era-lhe insuportável e a pobre
velhinha,
atando um laço ao pescoço, suicidou-se."1 O repórter comete algumas imprecisões,
como dizer que o número da casa é 135, e não 195, ou chamar a morta de Moreira
Rosa,
em vez de Medeiros Rosa. Por ser um matutino, só na edição do dia seguinte,
domingo, o O Correio da Manhã focaliza o assunto: "No silêncio da madrugada uma
sexagenária
deu cabo da vida enforcando-se", diz o título2. A matéria informa corretamente o
número do bangalô e o nome de Bella, dá um detalhe importante ("Uma das crianças
da casa, tendo ido ao quintal, deparou ali, baloiçando, um corpo de mulher,
correndo a inocente aos gritos contar o que vira..."), mas erra ao dizer que "a
infeliz
anciã" era mãe do Dr. Eduardo Corrêa de Azevedo.
Mas não são essas imprecisões que deixam irritado o chefe de Polícia, Coriolano
de Góes, a ponto de vir ele, a partir do que publicam os jornais, proibir que se
continue a noticiar certos fatos policiais ocorridos na cidade. O começo de tudo
é a indignação dos
76

moradores do bangalô, todos horrorizados ao verem que unia indiscrição ao


pessoal do Distrito, permi tindo que os repórteres tivessem acesso ao livro de
ocorrências,
converteu o suicídio de Bela num assunto público. Lembrando que o Dr. Floriano é
irmão do chefe de Polícia, queixam-se a ele. É ainda A Noite, em sua edição de
dois
dias depois3, que vai falar da circular de Coriolano de Góes aos delegados
distritais proibindo-os de passarem à imprensa informações sobre suicídios,
crimes de
morte e casos misteriosos. A circular é escrita em linguagem erudita,
escaldante, segundo palavras de A Noite. Citando Lombroso, Carrara e Zola,
Coriolano considera
a divulgação pelos jornais de tais fatos influenciadora de espíritos fracos.
Cita alguns casos célebres, de suicídios e assassinatos, e de como, ao serem
destacados
pela imprensa, desencadearam ondas de tragédias semelhantes. Além do mais, por
alertarem os criminosos sobre as diligências policiais, os jornais tornam
praticamente
impossível sua captura. Portanto, conclui Coriolano, "proíba-se".
Pobre Bella, tão discreta, cuidando de morrer sem fazer barulho, e no entanto
causadora de uma ruidosa reação do chefe de Polícia, os jornais dando por vários
dias
ainda cobertura às proibições. Está tendo depois de morta uma notoriedade que
sempre evitou em vida. Mas já não importa. Todos sentirão sua falta. Noel
inclusive.
Mas o que ficará, na lembrança deste garoto de dezesseis anos, são os contornos
daquele quadro sinistro, a avó pendurada na ponta de uma corda, o corpo sem vida
balançando de um lado para o outro. Seu primeiro contato mais íntimo com a
morte.
Eduardinho providenciou tudo para que Neca viajasse na primeira hora. Bica de
Pedra, Jaú, São Paulo, Rio, um percurso aqui e ali interrompido por atrasos e
baldeações
de trens. Assim, quando Neca chega ao bangalô, reencontrando abalada e chorosa a
família que não vê desde o ano passado, a mãe já está enterrada há quase dois
dias.
Não há dúvida: é outro homem este que volta. A mulher e os filhos logo percebem
o quanto ele mudou nos últimos meses. Já não é o mesmo marido atencioso, o mesmo
pai compreensivo e tolerante. Uma criatura difícil, por vezes irascível, vai
ocupar o lugar daquele Neca tão pródigo em agrados que cobria Martha de
carinhos e esmeraldas: "São para combinar com os teus olhos..." Brigão,
autoritário, já não será o amigo que os meninos aprenderam a admirar. Com a
mulher, é freqüentemente
brusco, indialogável. Com os filhos, passa a cometer injustiças que nunca foram
do seu feitio, castigando-os por pouco ou mesmo nada. Uma mudança
que a família jamais chegará a entender.
Neca diz que voltou de VEZ. E é verdade. Mas até mesmo esta decisão, que
normalmente alegraria a todos, tem algo triste.
Martha insiste para que procure emprego, se fixe numa ocupação, trabalhe como
todo o mundo, em vez de ficar em casa nada fazendo. Discutem muito por isso, ele
surpreendendo
a mulher, os filhos e a sogra com uma altivez que não tinha antes: só fará o que
estiver à altura do seu talento, de sua inteligência. Afirma não ser homem para
tarefas medíocres. Chega a recusar oferta para que administre uma fábrica de
tijolos na ilha do Governador, 500 mil réis mensais, casa e comida. É incisivo:
- Para a minha capacidade, têm que me pagar muito mais.
Quinhentos mil réis! Quantos ganham tanto neste magro final de década? Poucos,
muito poucos. Em nome de que recusa tão boa proposta? Responde: em nome da
vocação
de inventor que sempre existiu nele, mas que só agora, aos 47 anos, aflorou.
Acredita que suas idéias sejam formidáveis. Está convencido de que elas vão
mesmo torná-lo
rico e famoso. Fala muito de novo tipo de embarcação que pretende desenvolver
assim que consiga um sócio para ajudá-lo a levantar capital. Grandes inventos
custam
dinheiro. E o novo tipo de embarcação é um grande invento, por enquanto mantido
em segredo. Martha mal o reconhece. Onde está aquele homem responsável, sério,
lutador,
que ela conheceu um dia? Discutem muito.
O Neca que volta é de fato outro homem. Mais que sonhador, delirante. Que quando
não está entregue às suas fantasias, irrita-se com a mulher, reprime os filhos,
torna-se mais diferente dele mesmo.
Clara pode não ter ouvido a música de Noel, mas decerto entendeu-lhe a letra. Ou
melhor, os versos que ele lhe mandou como fecho de um bilhete perturbador. É uma
garota tímida. Fez quinze anos três dias antes do suicídio de vó Bella. Nunca
teve namorado, os irmãos sempre exerceram sobre ela uma vigilância de cão-de-
guarda,
o fato de ser a caçula avivando neles os instintos protetores. Mas já é uma
moça, uma linda moça. Todos - ela principalmente - sabem disso. Um pássaro cheio
de encantos
que já não se pode prender. É isso que a perturba, a certeza de que seu tempo
chegou, de que os irmãos já não tentarão contê-la, de que versos como estes, do
rapaz
ali em frente, exigem resposta. Passou a época em que podia esconder-se sob a
sua meninice.
O bilhete é breve, objetivo, sem rodeios. O rapaz, que se assina "Noel", pede
que ela o
77

encontre amanhã à noite, três esquinas mais para lá. Isto é, Theodoro da Silva
com Visconde de Abaeté. Clara, se não chegou a ouvir a música que Noel tantas
vezes
lhe cantou do outro lado da rua, acompanhando-se ao violão, notou-lhe o
interesse, os olhares tão significativos. Também gosta dele. Pelo menos até onde
a distância
entre suas casas permite avaliá-lo. Toma coragem e escreve um bilhete em
resposta: estará amanhã à noite no local que ele sugeriu. Uma esquina que verá
nascer entre
os dois uma grande afeição.
Não será - como alguns pensarão - um simples namoro de adolescentes, ligeiro,
inconseqüente, sem deixar marcas. Por quase sete anos farão parte da vida um do
outro.
Querendo-se bem, afastando-se, trocando juras, cumprindo-as,
esquecendo-se delas, mas sempre próximos. De início, os irmãos não se
importarão. Até farão gosto, um rapaz de boa família, simpático, aluno do São
Bento, com intenção
de ser médico. Mas um gosto só no início, até perceberem que sob a pele do
menino magro, pálido, quieto, oculta-se incorrigível alma de boêmio.
Vão se encontrar na Praça 7, na esquina, no portão. Raramente irão a algum lugar
sozinhos, um cinema, um passeio mais longe. Betinho, o do violão, começa a
namorar
uma das gêmeas, a Marcolina (com quem acabará se casando) . Na maioria das vezes
os quatro saem juntos. Mas isso também só no início, enquanto não descobrem que
dois sempre sobram.
Seis, quase sete anos fazendo parte da vida um do outro. Clara será a primeira
namoradinha de fé de Noel. De certo modo, a única. Como em muitos aspectos ele

de ser único na vida dela. Seis, sete anos. Enganam-se os que pensam que naquela
esquina de Vila Isabel teve início um simples e passageiro amor de adolescentes.

Na primeira quinzena de novembro e segunda de dezembro de 1927, os alunos do


quarto ano prestam seus exames de bacharelato e promoção. Noel em química &
física e
história natural. É reprovado. Em fevereiro, não tem melhor sorte nas segundas
épocas. José Piragibe é o professor das duas matérias (na
primeira delas, alternando-se com Carbone). erá exigido de Noel mais do que dos
outros? Será possível que o tenha reprovado injustamente, apenas para se vingar
das
brincadeiras, algumas delas cruéis, de que vem sendo vítima nos últimos cinco
anos?
Piragibe dificilmente esquecerá algumas dessas brincadeiras, as imitações, os
deboches, os abusos. Como o dia em que vinha caminhando, muito distraído, pela
ladeira
em direção ao colégio. Noel, escondido na primeira curva atrás de uma árvore,
esperou que ele passasse perto e começou a metralhar-lhe as pernas com pedrinhas
miúdas
catadas no morro. Às gargalhadas, imitando uma voz fanhosa, gritou:
- Salta, seu puto! Salta!
Piragibe saltou. Pôs-se a sapatear nervosamente por entre as pedrinhas que lhe
castigavam as pernas. Tão assustado que talvez nem tenha podido identificar por
trás
daquela voz fanhosa o endiabrado Noel de Medeiros Rosa. Mas pode ser que sim.
Quem sabe, passado o susto e chegando à conclusão de que só um, dos quase 500
alunos
do Ginásio de São Bento, seria capaz de tanto, não terá dito para si mesmo:
"Este Noel ainda me paga."
Vingança do professor ou merecidas reprovações? Dos colegas, nenhum, nem mesmo
Moacyr Mattos de Oliveira (o amigo inseparável, que por sinal foi reprovado nas
mesmas
duas matérias), acredita na primeira hipótese. Não combina com Piragibe, homem
bondoso e íntegro demais para fazer perder o ano um aluno que não o merecesse.
Não
combina também com Noel. Todos sabem o quanto ele brincou o ano todo. Química &
física? História natural? Prefere o violão.
No entanto, na família, todos pensam diferente. Hoje e para sempre, atribuirão a
Piragibe toda a culpa pelos insucessos de Noel. Por quê?(4)
Reprovado nas segundas épocas, a Noel só restam dois caminhos: ou repetir o
quarto ano, ou lançar mão do direito de voltar ao antigo sistema, isto é,
freqüentar
as aulas do
78

quinto ano no São Bento, mas passar a fazer os exames, a partir de março de
1928, no Pedro II. Acha melhor seguir por este último.
Tais tropeços não deixam de surpreendê-lo. Em sua costumeira irresponsabilidade,
cada vez mais ligado à música e desligado dos estudos, acreditava poder brincar
o ano inteiro sem esbarrar no rigor das bancas examinadoras. As reprovações o
frustram. A que ponto, não é possível precisar. O pai se zanga, a mãe se
preocupa.
Principalmente ao
vê-lo tão acabrunhado depois das primeiras provas no Pedro II, em março, quando
é novamente reprovado em história natural.
Certa manhã, ouvem-se gritos, correria), confusão no fundo do quintal. Noel
acaba de rolar do alto do barranco, fere braços e pernas, parece muito
machucado. Deve
ter pisado em falso na terra úmida, escorregado, caído. Portanto, um acidente.
Mas Martha, mortificada, teme que não. Em sua cabeça - muito sugestionada pela
tragédia
que se abateu sobre a família neste mesmo quintal - ficará a certeza de que o
filho, inconformado com o fracasso nos exames, quis se matar. Por quê?(5)
Mais um "por quê?" Este como o outro parte de uma mesma e complicada questão: o
que terá acontecido realmente? A vingança de um professor levando o aluno à
reprovação
e, depois, à tentativa de suicídio? Pode ser. É nesta versão patética, beirando
o trágico, que acreditam todos no bangalô. Mas são tantos os indícios em
contrário
- o testemunho dos colegas, as tintas de inverossimilhança que colorem a
história, a reputação de Piragibe como homem sério e justo, o próprio Noel - que
não se
deve desprezar a hipótese de tal versão não passar de uma farsa. Ou seja, Noel
inventando tudo para se livrar dos sermões do pai, cada vez mais irritadiço e
intolerante,
e para ganhar a simpatia da mãe, cada vez mais desapontada com o filho, bom
boêmio, mau aluno. Afinal, foi ele quem contou em casa sobre a "vingança de
Piragibe"
(só em 1929 Hélio conhecerá mais de perto o professor). Desculpa, aliás, que
voltará a usar em futuras reprovações. Quanto à tentativa de suicídio, talvez
não tenha
chegado a
inventá-la, mas tira proveito dela. Em vez de zangas, é tratado com todo
cuidado, atenções especiais, repouso fora do Rio. Nenhum esforço fará para
convencer a mãe
de que foi apenas um acidente.
Hipótese nem patética nem trágica, mas que cabe como uma luva no Noel de agora,
oprimido pelo pai, estudante pouco aplicado. E, já veremos, um garoto de
dezessete
anos capaz de truques e simulações para enfrentar a vida, de mentir para se
salvar, de pôr no fogo um professor desde que se livre do fogo ele próprio.

NOTAS
1. A Noite, 15 de outubro de 1927 (página 2).
2. Correio da Manhã, 16 de outubro de 1927 (página 7).
3. A Noite, 17 de outubro de 1927 (página 2).
4. José Piragibe, e não Mário Piragibe como cita Jacy Pacheco em Noel Rosa e Sua
Época, é mostrado naquele livro como uma espécie de algoz de Noel durante os
anos
de São Bento. Era exatamente esta a idéia que a família fazia do professor. Com
base em informações de Hélio Rosa, Jacy fala de perseguições do professor ao
aluno,
causas mesmo de suas reprovações no próprio colégio e mais tarde no Pedro II: "O
único que brincou foi seu Noel Rosa" - teria dito Piragibe numa aula à turma de
Hélio - "mas se arrependeu. Não foi física que estudou comigo, não! Foi história
do Brasil. Ele sabia a matéria. Mas não como eu queria. E brincava! E isso eu
não
admito! Ele foi ao pau três vezes. Quando apelou para o Colégio Pedro II, pedi a
meus colegas de lá que o reprovassem. E ele foi ao pau!" Esta versão, nos dando
conta de um perverso e vingativo professor, realmente contraria as lembranças de
todos os colegas de turma de Noel entrevistados pelos autores: nenhum deles sabe
de qualquer hostilidade de Piragibe ao seu irrequieto aluno. Além disso, como
atestam os arquivos do São Bento, nos seis anos em que Noel estudou lá, Piragibe
lecionou
português, química, física e história natural, nunca história do Brasil. Diz
ainda Jacy Pacheco: "Anos mais tarde, o Sr. Aldílio Tostes Malta, primo de Noel,
desposou
a filha do desembargador Vicente Piragibe, irmão do professor Mário (sic)... O
primo Aldílio fez o possível para levar Noel à festa, porém não houve força
humana
capaz de amainar o ódio que lhe ia no espírito, contra o malvado professor que
era figura indispensável na cerimônia." Ouvido pelos autores, Dr. Aldílio Tostes
Malta,
poeta, parceiro de Joubert de Carvalho em algumas canções e mais tarde ministro
do Tribunal Superior do Trabalho, negou o fato.
Lembra-se das visitas de Noel e Hélio a Vicente Piragibe, nas proximidades do
seu casamento com Alzira, a 18 de junho de 1928, e de como os dois irmãos
tocaram e
cantaram para a família da noiva, sem maiores problemas. Aldílio Tostes Malta é
filho de Christovam Malta, aquele mesmo que traçou na imprensa de Juiz de Fora
um
fiel perfil de Eduardo Corrêa de Azevedo, o pai (ver capítulo 1).
5. Em entrevista a A Noite Ilustrada de 18 de maio de 1937, Martha de Medeiros
Rosa faria referência ao episódio: "Atal ponto chegou seu estado de desânimo
que,
na outra casa (o 195), tentou suicidar-se, atirando-se de uma ribanceira com a
qual confinava o nosso terreno. Esteve muito tempo entre a vida e a morte, sendo
necessário
levá-lo para fora do Rio para restabelecer-se." Já o Dr. Eduardo Corrêa de
Azevedo, numa de suas muitas conversas com os autores, afasta a possibilidade de
tentativa
de suicídio: "Se tivesse havido, eu o saberia." De qualquer forma, a entrevista,
concedida ainda sob a emoção da morte do filho, revela que até o fim da vida
Martha
carregou consigo a certeza de que não fora um simples acidente.
79

ADEUS AO MOSTEIRO

Capítulo 8

O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que ele não quer aprender.
Meus Pensamentos

Pensando bem, não se parece com um suicida, nem tem jeito de quem leva a sério
os professores, o Noel Rosa que em março de 1928 está de volta às aulas do São
Bento.
Nada mudou nele. O mesmo uniforme caqui (a cada lado da gola, um 2 de metal
substitui o escudo do colégio, único detalhe que distingue dos demais os alunos
alistados
no Tiro de Guerra 2). O mesmo humor, a mesma agitação nas aulas, a mesma
irreverência para com os mestres. Antigos como Piragibe, novos como dom Bento
Villiger,
dom Plácido Roth e o coronel Eduardo de Albuquerque Sá.
Dom Bento chegou dos Estados Unidos há pouco. Não se sabe se é americano,
canadense ou suíço, como dom Meinrado. Sabe-se apenas que seu português é muito
limitado.
Nas aulas práticas de química, recorre a todo momento aos alunos quando uma
palavra lhe escapa:
- Como é mesmo! Cor... Cor...
- Azul- completa um dos rapazes.
Numa de suas experiências, mistura nitrato de prata ao cloreto de sódio, aquece
o tubo de ensaio, faz surgir assim uma solução de cloreto de prata, lactosa,
quase
branca. Mostra-a à turma e diz:
- Aqui temos um líquido... Cor de... Cor de...
Desta vez quem o socorre é Noel:
- De leite de pica.
- Isto, cor de leite de pica.
As aulas práticas de dom Bento são mais interessantes que as teóricas de
Piragibe, nas quais Noel costuma cantar, baixinho, modinhas e emboladas:
Eu fui no mato Pra cortar o pau-pinheiro
Só pra ver se sou ligeiro No cacete pra brigar
Dom Plácido leciona apologética. É mais camarada e bem menos empolado que dom
Pio Ziegenaus, que vive a atirar sobre os alunos seu palavrório em latim:
Quaerite
primum regnum Dei etjustitiam ejus haec omnia adjicientur vo-bis... Dom Plácido
é mais simples, só fala em português e prefere não complicar as lições. É pouco
exigente
em suas sabatinas, fica satisfeito quando pode dar nota alta a toda a turma.
Numa dessas sabatinas, vendo-o distraído, Noel apressa-se em abrir o livro,
colocá-lo sobre os joelhos e copiar o tema da prova. A janela está aberta, um
vento frio
sopra de vez em quando. Tendo de fazer os olhos passarem rápido do livro para o
papel, deste para dom Plácido
81

e novamente para o papel, não nota que o vento vira uma das páginas do livro. E
continua copiando, só que agora de outro trecho mais adiante. Na aula seguinte,
muito
tranqüilo, dom Plácido manda que ele se levante:
- Vejamos sua prova, seu Noel.
E passa a ler. A certa altura, notam todos, Noel inclusive, o texto começa com
um assunto e repentinamente muda para outro. Embora bem escrito, palavra por
palavra
igual ao livro, não faz sentido.
- Então, seu Noel, como é que o senhor explica isso?
Noel é sincero:
- O vento, dom Plácido. O vento explica.
Colar quase todos colam. Seja nas sabatinas do indulgente dom Plácido, seja nas
provas do implacável Albuquerque Sá, contratado nos primeiros dias do ano para
lecionar
cosmografia, nova matéria do programa oficial (não mais aquelas breves noções de
astronomia descritiva aprendidas no segundo ano, mas um programa mais extenso,
aprofundado,
que inclui desde o conhecimento, uma a uma, das estrelas do Pólo Norte, por
exemplo, até o estudo detalhado de lunetas e aparelhos vários).
- Espero que vocês se adaptem aos seus métodos - adverte dom Meinrado na véspera
de apresentar o professor à turma. - É um coronel do Exército, homem de rígida
formação
militar. Exigentíssimo, extremamente zeloso quanto aos estudos e à disciplina.
E é verdade. Formação militar, porte marcial. Empertigado, cabelo cortado curto,
a fisionomia sempre fechada, parece estar em permanente posição de sentido. Não
é preciso zangar, ameaçar, falar alto para que os alunos assistam à aula em
silêncio. Sua simples presença, fria, impositiva, basta. Todos o respeitam,
alguns o
temem. É mesmo um homem exigentíssimo, para âuem a correção, o agir direito, é
mais que sagrado.
A primeira e difícil prova dada por ele ao quinto ano de 1928 versa sobre o
teodolito, instrumento astronômico e geodésico de medição. Três dias depois,
Albuquerque
Sá entra em sala mais sisudo que de costume. Senta-se, tira da pasta as provas
corrigidas, coloca-as sobre a mesa.
- Senhor Noel de Medeiros Rosa! - chama com voz firme.
Niguém responde.
- Não está presente o senhor Noel? Alguém diz que não. Faltou, talvez esteja
doente.
- É pena...
Faz uma pausa como se para medir as palavras e continua:
- Pois eu gostaria de expor aqui, diante
da turma, mas também na presença do senhor Noel de Medeiros Rosa, tudo o que
penso dele. Trata-se de um desonesto, um moleque, um desqualificado!
Há espanto nos olhos dos alunos, mas Albuquerque Sá não pára por aí. Vale-se de
outros termos para expressar sua indignação, jura que não permitirá que Noel
continue
freqüentando suas aulas, não o acha sequer merecedor de estar num colégio como o
São Bento. Chama à sua mesa Lauro de Abreu Coutinho e César Dacorso Netto.
Entrega
a um a prova de Noel e a outro a apostila em que está o ponto sobre o teodolito.
Pede que leiam em voz alta, cada um de uma vez. As duas são exatamente iguais,
vírgula
por vírgula. Até os desenhos parecem copiados um por cima do outro.
- Seu Noel colou. Sim, colou vergonhosamente! Hei de fazê-lo pagar por essa
indignidade. Na minha sala, não entra mais!
No dia seguinte, assim que começa a subir a ladeira, Noel encontra os colegas à
sua espera. Contam-lhe o que houve, a fúria de Albuquerque Sá, suas ameaças. Sem
dizer nada, dá meia-volta. Só reaparece três dias depois, justamente para a
próxima aula de cosmografia. Ao vê-lo sentado numa das carteiras da frente, o
coronel
não faz rodeios:
- Foi bom o senhor ter vindo, seu Noel, para que eu possa repetir na sua
presença tudo que já disse a seu respeito na aula passada.
E dispara a mesma fala enfezada, o desonesto, o moleque, o desqualificado e tudo
mais. Manda que Noel saia imediatamente de sala.
- Mas coronel...
- Assunto encerrado!
- Não é justo, coronel. Não se condena uma pessoa sem lhe dar o direito de
defesa. Logo o senhor, sempre do lado do certo.
Albuquerque Sá concorda em ouvir o que o aluno tem a dizer em sua defesa. A
explicação de Noel é simples: sabia a apostila de cor. Perdeu dias e dias
enfiando na
cabeça cada palavra, cada traço de desenho sobre o teodolito. O coronel não
acredita. Noel jura que é verdade.
- Muito bem. Pois sente-se aíe faça aprova de novo. E basta que me ponha uma
vírgula fora do lugar que eu o expulso de sala!
Em menos de quinze minutos a nova prova está feita. Como a anterior, igualzinha
à apostila. Depois de lê-la, o professor empalidece.
- Santo Deus!
Pede aos alunos que esperem um instante. Não demora muito, retorna acompanhado
do reitor e de outros monges, Piragibe e outros professores. Na frente de todos,
visivelmente
constrangido, diz:
82

- Quero, na presença dos alunos do quinto ano e de mestres do Ginásio de São


Bento, pedir desculpas ao senhor Noel de Medeiros Rosa. Cometi um erro terrível.
Insultei-o,
duvidei de sua lisura, acusei-o de ter colado, quando na verdade, aluno exemplar
que é, tudo que fez foi uma prova perfeita. Humildemente, peço-lhe que me
desculpe.
E Noel, com ar inocente:
- Está desculpado, coronel Albuquerque Sá e mais ninguém acredita
na prova perfeita. Porque, de resto, todo o São Bento sabe que Noel só decorou a
apostila depois daquela meia-volta na ladeira. É às gargalhadas que ele conta
isso
aos colegas. Gargalhadas, afinal, de um garoto que realmente não hesita em pôr
um professor no fogo quando é ele que está para se queimar(1).
Desmontar e remontar fuzis em tempo determinado, fazer cálculos de trajetória de
tiro, suar muito nas sessões de ginástica, corrida, ordem unida. Noel acha todas
essas obrigações impostas pelo Tiro de Guerra 2 uma grande perda de tempo. Os
exercícios militares, incluindo táticas de combate a cargo dos
primeiros-sargentos Luís Corrêa Marques e José de Abreu Coutinho (nenhum
parentesco com Lauro), começam pela manhã, antes das seis. Para um jovem boêmio
como ele,
um suplício. Acordar cedo, meter-se no uniforme, embarcar ainda meio grogue no
Lins de Vasconcellos, chegar bocejante no campo de treinamento onde os alunos
respondem
à chamada em filas de três, tudo isso é bastante penoso.
Noel, ao contrário de alguns colegas como Antônio Fernandes Lopes, Lucílio
Urrutigaray, Moacyr e o irmão Sylvio Mattos de Oliveira, não tem a menor vocação
para
a vida militar. Já deixou isso claro como integrante do Batalhão Escolar, aquele
exército de mentirinha que o colégio mantém até hoje na esperança de que seus
alunos
se habituem desde cedo à disciplina. Noel foi rebaixado algumas vezes de posto.
Numa delas, sargento, comandava o pelotão numa dessas paradas cívicas de que o
colégio
participa no centro da cidade. Vinha à frente dos outros, passo certo, a espada
desembainhada. Em dado momento, decidiu trocar a postura marcial pela de um
desengonçado
boneco a fazer palhaçadas em plena marcha, rebolando, girando sobre os
calcanhares, rodando a espada no ar como se fosse baliza. O pelotão inteiro
desacertou o passo
no meio de tantas risadas. E Noel, o sargento, virou cabo.
Foi ele quem ensinou a Alceu de Miranda que mais vale um sujeito esperto que um
soldado cumpridor dos deveres. Num começo de
ano, o Batalhão Escolar tendo de tirar do depósito os fuzis cobertos de graxa,
cada aluno devendo limpar o seu, o compenetrado Alceu já ia arregaçando as
mangas
quando Noel chegou perto e murmurou:
- Deixe que algum trouxa limpe isso pra você.
E assim que viu um fuzil livre de graxa, brilhando nas mãos de um dos colegas,
esperou que este se distraísse e trocou-o pelo seu, sujo. Alceu viu como se
fazia
e passou a fazer igual.
Como Moacyr pretende seguir carreira - deixando para servir ao Exército na ativa
- será mesmo Hermenegildo de Barros Filho seu companheiro mais chegado no Tiro
de
Guerra 2. Têm a mesma idade, dezessete anos, e embora pertençam a mundos
diferentes, Ministrinho sendo filho de homem importante (tão importante que
acabará dando
seu nome à rua onde mora), enquanto a única "importância" da família de Noel é
aquele discutível parentesco com o Caramuru (ou talvez com Garcia d'Ávila, ou
ainda
com Marília de Dirceu, ou quem sabe com Maria Stuart), eles se entendem muito
bem. Hermenegildo é tímido, mas isso não é problema se Noel está por perto. Noel
é
pronto, o dinheiro sempre contado, o que também não é problema se o programa é
feito na companhia do Ministrinho.
Jogar futebol, por exemplo. Os que são do Tiro de Guerra 2 incluem entre seus
exercícios uns divertidos chutes a gol no pátio. Ou até renhidos marches, os
soldados
do São Bento contra um time de fora, num campo longe da vigilância dos
sargentos. São desafios quase sempre estimulados a vinho.
- Hoje estou com pouco dinheiro, Noel.
- Não faz mal, Ministrinho. Há vinho para todo preço.
Desse jeito, se para animar o futebol não podem comprar bebida de boa qualidade,
o remédio é recorrer a um moscatel de quinta categoria, que afinal só mesmo Noel
e alguns poucos têm coragem de beber.
- Puxa, mas esta droga está uma delícia!(2)
Outros podem perder o fôlego e o humor ao cumprirem as exigências feitas pelos
dois sargentos nos exercícios. Não Noel. Um dia, por sinal uma ensolarada manhã
de
maio, os soldados saem para uma marcha de ida e volta à Vila Militar. São 24
quilômetros para lá, outros tantos para cá. Perneiras, dólmàs abotoados,
mochilas, fuzis
às costas, um calor de verão, o grupo começa a trocar passo de tão cansado. É o
sargento Luís Corrêa Marques quem sugere:
- Vamos cantar para não perdermos a cadência.
83

Ele mesmo começa:


Valente e altaneiro,
Soldado do Brasil!
Marcho eu, marchas tu, marcha ele,
Empunhando o fuzil...
Todos repetem em coro, percorrendo quase um quilômetro de terra batida ao
compasso da quadrinha. Notando que a cadência foi recuperada, o sargento dá
ordem para
que os rapazes parem de cantar. Todos obedecem, menos Noel, que insiste em
continuar cadenciando a marcha, só que agora com nova quadrinha:
Mas que família é esta?
Igual nunca se viu...
Fode o pai, fode a mãe, fode a filha,
Fode a puta que pariu!
Até os dois sargentos aderem ao coro das risadas. A marcha é interrompida para
um breve descanso, Noel sendo advertido:
- O Exército é coisa séria, seu Noel.
Na marcha de volta, o bom humor não se perde. Desta vez ele se entrega a um de
seus prazeres maiores: parodiar o Hino Nacional.
Elvira cor de manga Amarga e flácida...
O sargento já não acha graça. A repreensão adquire tom sério. O que de forma
alguma o fará desistir de brincar com o Hino Nacional, aliás um dos gracejos
favoritos
dos jovens desta época. Noel, sempre que pode, diverte-se ao violão solando a
melodia de Francisco Manuel da Silva em ritmo de valsa, tango, maxixe, ou
arranjando
para ela letras que fariam Osório Duque Estrada tremer no túmulo onde o
enterraram no ano passado. Paródias que, infelizmente, serão esquecidas.
Fora o serviço militar, pouca coisa muda. A namorada, as serenatas, os amigos,
os prostíbulos, a música, gente. É nesta época, porém, que se começa a notar seu
fascínio
por certo tipo de personagem que faz seu caminho por entre as arestas da cidade:
o malandro. Entendendo-se como tal o cidadão que vive de truques e espertezas, o
valente, o bordeleiro, o jogador, o rufião, homens enfim sem ocupação definida e
que fora ou dentro da lei, mas à margem da sociedade, sobrevivem - ou até vivem
muito bem - lutando apenas com as armas da ousadia e da imaginação.
- Ministrinho, tem cinco mil réis aí?
- Pra quê?
- Vou multiplicar seu capital.
Noel garante que bastam dois olhos atentos para se transformar cinco mil réis em
trinta, talvez mais. Todos os fins de tarde, aproveitando o movimento à saída do
trabalho, um jogador de chapinha instala um caixote na esquina de Dom Gerardo
com Rio Branco e começa uma cantiga:
- Quem quer tentar a sorte? Vamos lá, o jogo é simples e honesto. Acerte onde
está a bolinha e ganhe um dinheirinho fácil.
O jogo de chapinha é muito popular na cidade, em especial nas imediações do
Mangue, Estácio, Lapa, Central do Brasil, desde que a polícia não esteja por
perto. E
mesmo que esteja, sempre se dá um jeito de engarapá-la. Numa esquina fica o
farol, isto é, um molecote de olho em todos os carros que se aproximam. Se for a
polícia,
grita.- "Olha a cana.'" E em poucos segundos desaparecem todos, banqueiro e
apostadores. Na outra esquina, o segundo farol. é entre os dois que se faz o
jogo. São
três chapinhas de cerveja e uma bolinha preta, mais parecendo um caroço de
feijão. O banqueiro coloca a bolinha sob uma das chapinhas e, com mãos ligeiras
de prestidigitador,
muda-as de posição:
- Vamos lá! Uma aqui, outra ali, esta outra pra cá, esta dança, a outra gira,
uma rodopia, esta vai, a outra vem... Pronto, o cavalheiro não quer tentar
adivinhar
onde se meteu a bolinha preta?
Apostas são feitas, o banqueiro quase sempre ganhando. Não é um jogo simples
como pode parecer. Muito menos honesto. Homens de mãos ágeis e unhas grandes, os
banqueiros
costumam fazer a bolinha sumir como num passe de mágica. Onde está? Sob a unha,
é claro. E o apostador só tem chance quando convém ao malandro mostrar que o
jogo
é limpo.
Noel vem observando há vários dias o sujeito que faz ponto na esquina. Agacha-se
para que seus olhos fiquem ao nível do caixote, gruda-os nos movimentos do
banqueiro,
não perde nada. Vem apostando mentalmente, ganhando sempre. Daí ter apelado para
o capitaldo Ministrinho.
Os dois se aproximam:
-Esta ganha, esta perde. Está aqui ou ali? Quem adivinha?
Noel levanta o dedo, quer apostar na próxima mão. O dobro ou nada, dizem as
regras. Muito bem, o banqueiro inicia a dança das mãos, mistura as chapinhas com
rapidez.
Aponta o indicador para Noel.
- Vamos lá, rapaz. O dobro ou nada.
- Cinco mil réis.
- Feito. Onde está?
- Nesta aqui.
84

-Muito bem... Muito bem... - murmureja o banqueiro. - Mas esta mão foi só para
esquentar o jogo. Ainda não valeu.
- Mas que história é essa? Eu ganhei!
- Não valeu, rapaz. São as regras. Certo de que não há como perder, Noel
não leva o protesto adiante. Concorda com o banqueiro e volta a casar seus cinco
mil réis.
- Ótimo, agora é à vera.
Repete-se a dança das mãos, o homem pára e pergunta:
- E agora, onde está?
-Debaixo da sua unha-responde Noel.
- O que é isso, rapaz? - encabula-se o banqueiro, olhando para os lados. - Está
querendo arranjar sarrabulho?
- Está debaixo da sua unha!
- O jogo acabou, rapaz.
- Não!Quero os meus cinco e mais cinco. Eu acertei.
- Deixa isso pra lá. O jogo acabou. Enquanto o banqueiro vai recolhendo
seu caixote, suas chapinhas e a esvaecente bolinha preta, Noel é tomado de uma
fúria que apavora Ministrinho.
- Ladrão! Seu filho da puta ladrão!
- Vamos embora, Noel- diz o amigo puxando-o pelo braço.
- Só quando este ladrão me pagar... - e sem esperar resposta, a raiva levando-o
a perder a cabeça, faz a palma da mão estalar no rosto do banqueiro, que por
pouco
não vai ao Chão.
- Vamos embora, Noel!
O outro, um mulato maciço, mal-encarado, mãos enormes, avança para seu agressor
aos socos e pontapés. Noel cai, o banqueiro salta sobre ele com fúria ainda
maior.
Depois, some na direção da Praça Mauá.
- Você está bem, Noel?- indaga Ministrinho tentando levantá-lo.
Uma multidão forma-se em volta dos dois. Noel ergue-se com dificuldade. Vaí
caminhando lentamente para o ponto de bonde, os curiosos observando seu jeito
meio combalido,
a farda do Tiro de Guerra 2 amarrotada e suja. Um jovem soldado vencido. Um
garoto que acaba de sobreviver à primeira grande surra de sua vida.

O fim do ano se aproxima. Noel, comparecendo perante junta formada pelo capitão
Euclydes Telles Pires e os primeiros-tenentes Carlos Coelho Cintra e Francisco
Xavier
da Graça, é aprovado e obtém sua carteira de reservista. Antes disso, porém, os
rumos do barco da família mudam mais uma vez ao sopro de ventos maus.
Numa sexta-feira, 12 de outubro de 1928, morre vó Rita. Serenamente, o coração
de quase setenta anos, cansado e enfraquecido desde a partida de Bella, parando
de
repente. Eduardinho volta para o enterro. Carmem também. Um e outro percebem o
quanto Neca se tornou estranho, assistem a algumas discussões entre ele e
Martha,
ficam com pena da irmã. Sabem das dificuldades financeiras que ela enfrenta, o
marido ainda sonhando com barcos e virando as costas para bons empregos. É de
Eduardinho
a decisão de que se mudem de novo para o chalé, incumbindo Neca de realizar ali
algumas obras. O bangalô será alugado, o dinheiro indo para as mãos de Martha.
Vai
precisar cada vez mais, o marido desempregado, as despesas aumentando, o filho
mais velho prestes a acabar os preparatórios e a entrar para a Faculdade de
Medicina
do Rio de Janeiro. Assim será feito. Para o chalé, onde já moraram doze, voltam
agora apenas quatro.
É dezembro. Enquanto nove de seus colegas de turma concluem o curso seriado como
bacharéis em ciências e letras, habilitados portanto a fazerem vestibular para
qualquer
escola superior do país, Noel constata ter sido absolutamente inútil optar,
meses atrás, pelo antigo sistema. A situação é crítica. Tão crítica que, exames
acumulados,
já não lhe será possível bacharelar-se neste 1928. Livra-se de história natural,
mas não de inglês e história do Brasil. Por algum tempo ainda, a cada março e
dezembro,
terá de
apresentar-se às bancas do Pedro II para
85

desvencilhar-se das matérias que ainda deve até completar o ginasial (ver boxe
Bacharel por decreto).
Em casa, a explosão de Neca. Com Noel e com Hélio, que nas provas do terceiro
para o quarto ano derrapou na álgebra. Como é possível? Enquanto ele leva a vida
a
sério, empenhado num invento que há de torná-lo famoso (e de
fazer a família navegar num mar de dinheiro), os filhos vadiam nos estudos. Que
falta de consciência ! Não pode tolerar tamanha irresponsabilidade. É preciso
castigá-los.
Severamente. Daí a decisão de não os deixar sair de casa até as próximas provas,
em março. Nada de passeios, namoradas, serenatas. Carnaval? É bom que nem pensem
nisso.)3)!

Bacharel por decreto


Noel Rosa levou oito anos para completar os preparatórioss ou ginasial, ou
melhor, para conseguir o chamado "bacharelato em ciências e letras" sem o qual
não poderia,
conforme desejo da família, entrar para a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Eis um resumo desse longo curso trespassado de tropeços e escorregões:
1923 - Aluno número 175 do Ginásio de São Bento. Primeiro ano. Matérias:
aritmética, português, geografia, desenho, francês e religião. Não houve provas
finais.
Automaticamente promovido ao segundo ano.
1924 - Aluno número 199 do Ginásio de São Bento. Segundo ano. Matérias:
aritmética, álgebra, português, geografia (corografia & cosmografía), latim,
inglês, francês,
desenho e religião. Apresentou-se para exames de bacharelato de aritmética e
geografia no Colégio Pedro II, em janeiro de 1925. Reprovado em ambos. Não
compareceu
às segundas épocas.
1925 - Aluno número 389 do Ginásio de São Bento. Repetição do segundo ano.
Matérias e médias anuais, já em vigor a Reforma Rocha Vaz: português (7),
francês (8),
latim (6), religião (não eram conferidas notas), aritmética (5), geografia (8) e
álgebra (reprovado), as três últimas finais. Aprovado com nota 5 na segunda
época
de álgebra. Promovido ao terceiro ano.
1926- Aluno número 25 do Ginásio de São Bento. Terceiro ano. Matérias e médias
anuais: português (9,5), inglês (10), história universal (8), latim (9),
religião
(não eram conferidas notas), francês (7,5) e álgebra (5,5), as duas últimas
finais. Promovido ao quarto ano.
1927 - Aluno número 179 do Ginásio de São Bento. Quarto ano. Matérias e médias
anuais: inglês (4); física & química (reprovado), história natural (reprovado),
apologética
(não eram conferidas notas), geometria & trigonometria (4), história universal
(5,5) e latim (7), as três últimas finais. Reprovado também nas segundas épocas
de
física & química e história natural. Para não repetir o ano, lançou mão do
direito de voltar ao sistema antigo, isto é, os exames de bacharelato se fazendo
no Pedro
II e conforme o programa por este adotado. Com isso, entre outras coisas, Noel
teria de
fazer não apenas a prova de física & química, mas também as de química e física
em separado (cada uma delas desdobrada nos programas do quarto e quinto anos) e
história
natural (do mesmo modo desdobrada em programas do quarto e quinto anos).
1928 - Aluno número 468 do Ginásio de São Bento. Quinto ano, mas a partir de
então prestando seus exames no Pedro II, na qualidade de candidato "estranho",
como
se dizia então. Os primeiros desses exames realizaram-se logo em março de 1928:
foi aprovado em física & química (4) e novamente reprovado em história natural,
ambas
as matérias do quarto ano. Em dezembro, novos exames no colégio oficial: química
do quarto ano (9), física do quarto ano (9), história natural do quarto ano (6),
inglês (reprovado) e história do Brasil (reprovado). Submetendo-se agora ao
programa do Pedro II, enquanto nove de seus colegas de turma (Lauro de Abreu
Coutinho,
César Dacorso Netto, Antônio Fernandes Lopes, Lucílio Urrutigaray, Rozendo
Marinho de Oliveira, Aulo Fiúza Cerqueira, João de Carvalho, Manuel Fernandes
Meirelles
e Roberto Vianna Guilhon) bacharelavam-se no São Bento, ele chegava ao fim do
curso seriado "devendo" sete matérias: história do Brasil, inglês, química do
quinto
ano, física do quinto ano, história natural do quinto ano, cosmografía (incluída
no currículo em 1928) e filosofia (a partir de 1929).
1929 - Exames no Colégio Pedro II: em março, inglês (7) e história do Brasil
(reprovado); e em dezembro, história natural do quinto ano (3,55), física do
quinto
ano (5,22), química do quinto ano (4,22), cosmografía (reprovado) e história do
Brasil (reprovado).
1930 - Exames no Colégio Pedro II: em março, cosmografía (4,5), filosofia (7,5)
e história do Brasil (reprovado). A 14 de novembro, o Decreto-Lei 19.404,
assinado
pelo recém-empossado presidente da República, Getúlio Vargas, estando as aulas
de todos os colégios e faculdades do país suspensas desde o início da revolução
de
outubro, determinava que os estudantes, sem exceção, fossem aprovados ou
promovidos em seus respectivos exames e cursos. Desse modo, por decreto
presidencial, Noel
livrou-se da história do Brasil e fez-se bacharel.
86

Noel volta a culpar Piragibe por seu fracasso. É verdade que o professor já não
faz parte das bancas que o examinam. Mas, explica Noel, tem muitos amigos no
Pedro
II e
pediu-lhes que continuassem a espremê-lo. É mesmo vingativo o "urso de membros
atrofiados". Martha acredita. Escreve para Carmem informando-a de tudo, as
reprovações
dos meninos, o castigo imposto por Neca, o ambiente em casa. Diz que já não
discute com o marido. É inútil. Hoje, quando ele fala, reclama, zanga, sonha,
ela prefere
se calar. Mas tem pena dos filhos, tão moços, tão oprimidos. Carmem, também
penalizada, escreve ao cunhado em termos veementes. Implora que não prenda os
sobrinhos,
que os deixe sair ao menos no carnaval. "Em nome dos meus três filhos",
acrescenta. Pela mesma época, recebe de Bica de Pedra uma carta em que
Eduardinho lhe pede
opinião sobre outra carta, escrita a ele por Neca. Manda-a anexada à sua,
suplicando-lhe reserva. Toda essa correspondência, trocada nos primeiros dias de
1929,
vai mostrar que os três irmãos, embora distantes, buscam solucionar juntos uma
crise familiar, por enquanto imprecisa, mas que o tempo acabará agravando de
forma
irreversível.
Nesta troca de cartas, nenhuma será tão abrangente, tão lúcida, tão
esclarecedora quanto a que Carmem mandará em resposta a Eduardinho, datada de 16
de fevereiro.
Primeiro, atendendo ao pedido do irmão para que opine sobre o que Neca lhe
escrevera, é sucinta: "Ele julga dizer muito, dizer tudo, e no entanto quase
nada diz."
Prefere alongar-se nos comentários à carta da irmã, que ela acredita carecer de
muita ajuda:
"Não é, compreenda-se, o auxílio pecuniário que ora precisamos dar-lhe e sim o
moral, o conforto, alguma paz de espírito. Não haverá um meio de afastá-lo ao
menos
temporariamente de junto dela, para que a vida tenha uma feição mais calma? Ele
está entregue à idéia dos barcos e nós vemos naquilo uma utopia. Não é, não pode
mesmo ser uma coisa vantajosa, principalmente para a posição dele, precisando de
manter a família, precisando prestar mais atenção à pobre Martha, que se está
exaurindo,
não no trabalho porque está habituada, não o temendo ou evitando, mas nesse
desassossego enorme em que está vivendo. É possível trabalhar assim? Ele não lhe
dá tréguas.
Eu vi, assisti a muita coisa. Ela está bem modificada e não alterca mais. A cada
injustiça, a cada irreflexão dele, chora e chora muito. Eu calculo o que sofre a
nossa pobre Martha sem o carinho da inigualável e bondosa e insubstituível
Bella. Sem o carinho de mamãe, que era o seu consolo ultimamente. Responda-me
com franqueza:
não se vê uma possibilidade dele fazer aí algum trabalho
numa fazenda dessas?"
Ou então, sugere ainda Carmem, Eduardinho poderia escrever a Neca dizendo que
vai ao Rio em março e perguntando se os reparos no chalé já estão concluídos.
Isso
talvez fizesse com que ele se ocupasse mais em tais reparos, em vez de
apoquentar tanto a pobre Martha. Carmem refere-se a outras cartas da irmã, todas
no mesmo
teor, queixando-se do marido, de seus incendimentos, das economias que consome
nos malditos barcos, ou então nos livros que adquire às dúzias. Faz compras a
crédito,
voltam a bater em sua porta os prestamistas. Martha sente-se envergonhada. E
preocupada com o relacionamento de Neca com os filhos:
"Ela se queixou" - prossegue Carmem a Eduardinho - "que os meninos estavam
castigados demais e injustamente, pois Hélio fez todos os exames e só tem de
repetir o
de álgebra para entrar no quarto ano. Noel perdeu história do Brasil e inglês,
mas ficou provado que não foi culpado nesse fracasso."
Lúcida, Carmem fala ao irmão do "estado de exaltação" do cunhado. E num tom
sombriamente profético:
"... eu tenho muito medo que o fim seja terrível... Você sabe e disse há pouco
tempo que ele caminhava a passos largos para um triste fim. E eu só penso
nisso!"
Ventos maus seguem soprando. Para onde levam o barco da família?

É tempo de dar adeus ao Mosteiro. De certo modo, já se despediu daqui há muito,


os anos de ginásio agora convertidos em coisa do passado. O colégio marcou a
vida
de todos os seus companheiros. Alguns, por sinal, continuarão aqui como
professores. São os casos de Dacorso e Fernandes. E marcou também a vida do
próprio Noel.
Mas de uma forma muito peculiar, cujos contornos ainda são difíceis definir.
Para muitos, jamais pertenceu a este mundo. Desce as ladeiras que subiu pela
primeira
vez, ainda menino, já faz seis anos, dando a impressão de não ter guardado
várias lições que lhe tentaram ensinar. Não se tornou mais religioso, não passou
a temer
o fogo do inferno de que fala dom Joaquim, não acredita que a morte seja uma
dádiva. Não será propriamente contra nada do que os monges tanto combatem, os
espíritas,
os protestantes, as feministas, os positivistas, os maçons, os comunistas. Nem
adquiriu lá em cima aquela idéia de patriotismo de baionetas que alguns
professores
pregam. Muito menos crê que o sofrimento possa aproximar os homens de Deus.
Quantos mártires consumiram-se na fogueira desta crença! Aos dezoito anos,
confia
88

na vida. Claro, nem tudo entrou por um ouvido e saiu por outro. Algumas lições
foram aprendidas nas salas de aula. Só que agora parte para outro aprendizado.
Como
ele mesmo confessa ao companheiro Hermenegildo de Barros Filho:
- Quer saber de uma coisa, Ministrinho? A verdadeira escola está lá fora.

NOTAS
1. Nenhum dos quintanistas de 1928 se esqueceria do episódio que terminou com
Albuquerque Sá pedindo desculpas a Noel diante da turma e dos demais
professores.
Os depoimentos só divergem sobre o tema da prova, a maioria dizendo ter sido
mesmo o teodolito, outros o sextante.
2. Hermenegildo de Barros Filho, em entrevista aos autores, recorda a careta de
Noel toda vez que tomava moscatel ordinário, mas garante que o álcool estava
longe
de ser um hábito entre os jovens de dezessete anos que eles eram em 1928.
Bebiam, geralmente, no Mangue e nos jogos de futebol.
89

À LUZ DAS ESTRELAS

Capítulo 9

Com a melodia que espalhávamos - eu, Nássara, Alegria, Canuto, Clóvis e outros -
a minha impressão era de que se tornava mais intensa a palpitação longínqua das
estrelas.
entrevista ao Jornal de Rádio

Naquele começo de madrugada, Noel vem pela rua deserta a caminho de casa.
Ele e o violão. Toda a Vila Isabel dorme. Ou quase toda.
Ao vê-lo chegar à esquina de Souza Franco com Theodoro da Silva,
distingue adiante um pequeno grupo. E ouve soar uma voz emocionada:
Este amor tristonho Não devemos relembrar Tantos beijos trocamos Tudo esqueçamos
Tudo morreu...
É o bastante para que desista de dobrar à esquerda, na direção do chalé, e tome
o sentido oposto, aproximando-se do grupo. São quatro homens, todos mais velhos
que
ele. Três tocam violão e o outro continua cantando:
E deixaste em minh'alma Fragmentos de saudade Devolveste a liberdade Oh, sim, a
um coração que sofreu...
Noel espera que chegue ao fim e pergunta:
- Que música é essa?
- Tudo Acabado- responde o cantor. - Um tango-canção do índio,
o Cândido das Neves.
- Pode cantar de novo? Do começo. Quero ver se o acompanho.
Depois da introdução improvisada por Noel, o cantor recomeça:
Este amor tristonho Não devemos relembrar...
Finda a canção, já não são quatro os componentes do grupo. Noel ouve os elogios
dos três violonistas, agradece, se apresenta. Um deles, Vicente Gagliano, é seu
velho
conhecido, um dos muitos que ainda vão encher a boca para lembrar que foram
"professores de Noel" (ensinou-lhe de fato alguma coisa, inclusive uma valsa em
mi menor).
Casado, muitos filhos, mora em frente ao chalé numa casa de porta e janela da
qual só de vez em quando consegue sair para uma reunião como esta. Hoje ele vive
de
um ou outro servicinho que aparece, mas houve época em que ganhava o sustento
vendendo essências, talcos, águas-de-cheiro, sabonetes, daí o apelido de Vicente
Sabonete
que nunca o deixará. Dos três desse grupo, é o único que terá reconhecimento
fora das fronteiras das serestas do bairro.
Ex-tocador de ocarina, pleno domínio da técnica do violão, ainda será citado em
letra de fôrma pelos estudiosos do choro, sendo
apreciado acompanhante e solista de coisas à João Pernambuco e outros cultores
do gênero(1).
O segundo violonista é o Julinho Ferramenta, de dia funcionário da Casa da
Moeda, de noite boêmio devoto para quem uma canção é como uma reza: toca como se
estivesse
ajoelhado diante de um altar. O terceiro, Agenor Eloy Passos, é filho de general
e ele próprio homem de posição, técnico em contabilidade do Ministério da
Agricultura.
Quando sua mão esquerda trabalha no braço do violão, torna-se ainda mais
reluzente o grande anel de grau que carrega no dedo, cheio de pose. Muitos o
chamam de "doutor",
mas aqui, no sereno, ou lá no Boulevard, nos botequins em que se senta para
conversar fiado, cantar e tocar, é simplesmente o Nonô, doutor em violão e nada
mais.
Por último, o cantor:
- Meu nome éjosé Souza Pinto. Alegria, para os amigos.
Não é difícil saber a razão do apelido. José, ou Jota como alguns o chamam, ou
ainda Alegria como o tratam quase todos, é homem de sorriso constante. Adora
cantar,
vive desde menino com jornais de modinha debaixo do braço. É verdade que nem
sempre são alegres os números do seu repertório, como deixou bem claro o tango-
canção
do Índio que acaba de interpretar. Mas quem lhe pôs o apelido na certa não lhe
conhecia o canto triste. E ficou Alegria mesmo.
Ele e Noel gostam logo um do outro. Uma simpatia mútua que, nascendo nesta
noite, ainda se transformará em grande amizade.
- Moro aqui perto, no 130 - diz Noel apontando para o chalé. - Aparece lá em
casa para ouvir umas musicas que ando fazendo.
Alegria vai aparecer. Serã um dos freqüentadores mais assíduos do chalé, desses
que chegam na hora do café da manhã, vão ficando, almoçam, lancham, jantam e só
não
dormem porque, afinal, está justamente no não dormir a diferença entre visitar e
morar. Desde este fim de noite, sob um poste de luz da Theodoro da Silva, serão
não apenas amigos, mas inseparáveis nas serenatas pelas ruas de Vila Isabel.
Ele, Julinho Ferramenta e Nonô. E depois outros, o Clóvis Silva, o Octacílio
Ramalho,
os irmãos Paulo, Mário, João e Manuel Anacleto, o Francisco Martins, o Waldemar
Coroa. Gente de classe média como Noel, mas também muitos batuqueiros que descem
do morro dos Macacos, do Salgueiro, da Mangueira, para pegar no pesado cá
embaixo, e acabam ficando para uma cantoria noturna: Canuto, Puruca, Pixó, Duas
Covas,
Maciste, Ildebrando, Fortunato Melancia, Papo de Angu, Aristeu, Osso.
Vila Isabel é um bairro curiosamente
musical. Curiosamente na medida em que jurisdições vizinhas, aqui pertinho, como
a Tijuca, o Maracanã, o Engenho Novo, também parecem ter tudo para embeberem de
ritmos e melodias as suas noites e no entanto não possuem metade da alma sonora
de Vila Isabel. É evidente que também há música naqueles bairros. Música e
músicos.
Mas não com a quantidade daqui. E, se se for pensar bem, tampouco com a
qualidade. Os melhores compositores e cantores dos que se encontram pelas ruas
da Tijuca
descem do Salgueiro, dos que circulam pelo Engenho Novo vêm de subúrbios mais
distantes, dos que fazem ponto no Largo do Maracanã vivem num daqueles barracos
que,
do outro lado da linha do trem, colorem de pobreza a paisagem do morro da
Mangueira.
Já aqui em Vila Isabel os seresteiros são quase todos gente do lugar, membros da
"grande família" de que falava vó Rita e de que ainda falam velhos moradores. Os
rapazes que tocam e cantam pelas esquinas, os que improvisam versos e criam
música nos botequins, nasceram, cresceram ou pelo menos residem aqui há muito
tempo.
Como se verá, este bairro de meio de caminho, ilhado entre outros, destina-se a
ser aquilo que um cronista chamará de "celeiro"2. Não apenas de sambas e
sambistas,
mas de partidos, coisas do Norte, choros, canções, boa música popular.
Como explicar esta fertilidade musical de Vila Isabel? Como justificar que
surjam aqui, todos os dias, todas as noites, meninos que tocam violão tão bem,
artistas
que se interessam tanto pelo carnaval, poetas cultos que cedo ou tarde aderirão
ao coro das serenatas. Meninos como Noel, artistas como Antônio Nássara, poetas
cultos
como Orestes Barbosa. Mas estes dois ilustres personagens ainda não entram na
história.
Por enquanto, os contatos de Noel são mesmo com os seresteiros e um ou outro
batuqueiro. Gente que gosta de cantar por cantar, de tocar pelo prazer de
extrair novos
sons do violão. Como Clóvis Silva, o Clóvis Miguelão, que vive acompanhando Noel
nas idas a A Guitarra de Prata (o hábito adquirido nos tempos de São Bento, ele,
Hélio e Glauco Vianna indo ver e ouvir Quincas Laranjeiras, João Pernambuco e
outros, não foi abandonado). Noel e Clóvis ficam ali, às vezes por horas,
aprendendo
com os mestres do instrumento. Pena que a necessidade de sobrevivência obrigue o
Miguelão a passar mais da metade do dia trabalhando como policial (ainda vai ser
um dos guardas de segurança do futuro prefeito do Distrito Federal, Pedro
Ernesto Baptista). O violão será esquecido. A mesma coisa com o Octacílio,
mecânico da
Light. Quem o vê exibindo os músculos, gabando-se de ser
94

um atleta, ginasta, levantador de peso, lutador de greco-romana, não o imagina


tão sensível à música. Outro bom violonista que as serenatas perderão para a
força
policial.
É com essa turma - a voz de Alegria sempre pontificando - que Noel sai de violão
pela noite. Às vezes para atender ao apelo de um amigo como Arnaldo Araújo:
- Noel, acabo de brigar com minha namorada. Desta vez foi feio. Será que a gente
não pode remediar as coisas com uma serenata?
E vão todos para debaixo da janela da moça, Noel ao violão, Alegria cantando as
mágoas pelo amigo e este esperando que as canções de amor transformem a briga em
pazes feitas. Se tudo correr bem, Arnaldo, feliz da vida, pagará a ceia para
todos. Em outras ocasiões,, porém, trocam a luz das estrelas pelo prestígio que
desfrutam
no Café de Vila Isabel, ou melhor, no botequim do Carvalho, numa das esquinas do
Boulevard com Souza Franco.
Não se pode compreender bem o bairro sem se conhecer seus botequins e suas
esquinas, especialmente estas que formam o cruzamento conhecido como Ponto de
100 Réis.
O nome se deve a ser ali, de um lado e do outro da avenida dividida por estreita
calçada com canteiro, que os bondes "mudam de seção", passando-se a cobrar de
cada
passageiro, a partir daquele ponto, mais 100 réis. Os bondes procedentes do Lins
de Vasconcellos e do Engenho Novo param em frente à agência da Caixa Econômica.
Os que vêm da cidade o fazem em frente ao Café Rio Clube, de propriedade do
Martinez.
Pois este cruzamento, completado pela quarta esquina, a da Confeitaria do
Ventura, é o centro nervoso do bairro. E seu coração também. É onde todos se
encontram
para convcisar, saber das novidades, ouvir e contar casos. À sua volta ficam as
principais casas de comércio da avenida, os sobrados onde a tavolagem não
descansa,
a movimentada máquina de apostas do banqueiro de bicho Lourenço Gilaberte com
suas cinco, seis, às vezes sete extrações diárias: Para Todos, Rio, Niterói,
Salvação,
Desespero e, havendo quem se disponha a arriscar mais algum, a "doutor" Lourenço
e a Mão na Saca, o próprio banqueiro sorteando os números de uma sacola de
víspora.
No Ponto de 100 Réis reúne-se toda sorte de gente, jovens e velhos, operários de
fábrica e desocupados, doutores e oportunistas, chefes de família e estudantes,
policiais e sambistas. Os botequins e as esquinas são entidades integradoras, em
torno das quais se conhecem, se aproximam, conversam, trocam idéias e até ficam
amigas as criaturas mais diversas, de níveis sociais tão distintos que muito
provavelmente, não houvesse os botequins e as esquinas, seus caminhos jamais se
cruzariam.
Os botequins mais que as esquinas, uma vez que aqui, no Ponto de 100 Réis, cada
calçada costuma ser uma espécie de "território" próprio, um da turma do jogo,
outro
dos estudantes, o terceiro do pessoal do futebol, o quarto da boêmia.
Já nos botequins, a música nivela todos, iguala os mais vários espíritos. Não
tanto o do Martinez, sempre cheio na hora da conversa, mas pouco musical, seu
dono
não sendo muito amigo de cantorias. Diferente, portanto, do Carvalho. Um dia,
quando alguns dos moços que hoje o freqüentam se tornarem famosos como
compositores
e cantores de rádio, o Carvalho há de ser lembrado em reportagens de jornal.
Numa delas, profeticamente:
"Quando se escrever a história do nosso samba, o Café de Vila Isabel, onde Noel
Rosa faz ponto, merecerá capítulo especial. Ali foi que o inspirado compositor
fez
a maior parte de suas composições, depois de uma hora da madrugada. O dono desse
café, um português pacato e de coração como doce de calda, era 'amasiado' com os
fados, mas não olhava com desprezo para o samba que era como que uma mulatinha
para seus ouvidos...
E como é democrático por índole, não fez como os outros donos de cafés do
bairro, deixou que Noel Rosa, com a turma que o acompanha em Vila Isabel,
continuasse ali
a vibrar as cordas de seu pinho e a escrever suas letras. Com o tempo, o bom
luso mostrou achar-se enamorado de nossa música. Foi desprezando os fadinhos e
fazendo
'pés d'alferes' com os sambas. Hoje, é o primeiro a gritar:
-Eu sou do samba e quem disser que não sou... éporque não sabe que... eu sou.

Hélio não anda, raramente andará pelos mesmos atalhos do irmão. Não só pelas
idades, um com dezoito, outro com quatorze, mas principalmente porque as
diferenças
de gostos, hábitos e temperamentos, já nítidas na infância, se acentuaram com o
tempo. Hélio não pára no Ponto de 100 Réis, não é de se misturar aos cantores
dos
botequins e das madrugadas. Violão bom para isso ele tem, caminhando que está
para ser ainda melhor que Noel como solista e acompanhante. O que o afasta das
noitadas
é o seu jeito mais fechado, seu retraimento natural, o interesse pelos livros,
curiosidade em saber sempre mais sobre tudo. Nesse passo, sobra-lhe pouco tempo
para
prazeres boêmios. Já vimos que nunca foi aluno brilhante, agora mesmo recorrendo
a provas no Pedro II para livrar-se da álgebra do terceiro ano, já sabendo
95

portanto que também não conseguirá formar-se com sua turma no São Bento(4). Mas
nem por isso deixa de ser um garoto excepcionalmente inteligente.
-Puxa, o Hélio sabe de tudo!-as pessoas costumam exclamar.
Surpreende a todos com seus conhecimentos de literatura francesa, astronomia,
zoologia, vida dos santos, generalidades e tudo que diga respeito às culturas
esotéricas.
Os amigos ficam horas a ouvi-lo discorrer sobre todos esses temas e a falar da
morte, da reencarnação.
- Puxa, o Hélio sabe de tudo... Mas como é esquisito!
A fama de gente esquisita vai acompanhar para sempre os moradores do chalé. Uma
família que desde o enforcamento de Bellarmina o pessoal do bairro acha um tanto
dada a estranhezas. A começar pelos meninos, Hélio a falar de almas do outro
mundo, Noel a passar longo tempo sob a goiabeira, violão no peito, cantando:
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade...
- Coitado! Tão moço...
E o que dizer de seu Medeiros, homem que passou tantos anos afastado da família
para pagar uma dívida que só existia em sua cabeça e que hoje se endivida para
consumar
inventos que também só existem em sua cabeça? Não é menos esquisito aos olhos
dos vizinhos, embora um esquisito simpático, educado, inofensivo. Mas a família
sabe
o quanto continua a mudar. Já foi um bom pai, um marido generoso, responsável.
Martha lembra-se daqueles tempos com saudades. Depois, os acessos de febre
fazendo-o
correr pela casa imitando índios, novas idas para o interior, aquela última
volta após o suicídio da mãe, mais mudado que nunca, castigando os filhos,
apoquentando
a mulher, delirando projetos.
E vai mudar ainda mais. Desde que voltou de Bica de Pedra, há mais de um ano,
não trabalha. Sonha, apenas. Os que o vêem como um esquisito simpático,
inofensivo,
não podem mesmo deixar de compará-lo a um dom Quixote, sempre empenhado em
batalhas enganosas, sempre investindo contra inimigos imaginários. É mais ou
menos este
o caso dos barcos, a tal idéia que o persegue desde que voltou, outro, de Bica
de Pedra. Seu Medeiros acaba de tornar-se amigo e sócio de Aníbal Teixeira
Ribeiro,
português que mora com a mulher e cinco filhos quase em frente ao chalé.
Convenceu-o de que é possível fazer fortuna tirando patente das invenções e
descobertas
que tem em mente. Não
vê Aníbal aonde chegaram Nobel com a dinamite, Graham Bell com o telefone,
Edison com a lâmpada elétrica? E o que dizer do nosso Santos Dumont?
Os barcos na verdade não são barcos, mas uma espécie de bicicleta aquática que
os dois constróem com as próprias mãos, a partir de um desenho do "engenheiro"
Neca.
São três cilindros de madeira leve, unidos pelas extremidades de modo a formarem
uma base triangular. Dessa base partem hastes metálicas sobre as quais foi
ajustado
um selim de bicicleta. Na parte inferior, também presos aos cilindros de
madeira, dois pedais. E nada mais. Construído esse protótipo, vão Aníbal e seu
Medeiros
testá-lo no açude da Fábrica Confiança Industrial, na Rua Piza de Almeida, com a
autorização de seu diretor, Jerônimo José Ferreira Braga Netto. Pedem-lhe
emprestado
também um motor de barco para adaptarem à base triangular, mas não chegam a usá-
lo. A experiência não é de todo fracassada. Aperfeiçoada aqui e ali, até que a
idéia
não é má. Mas logo seus inventores e possíveis fabricantes ficam sabendo que
jamais poderão patenteá-la. Por um simples motivo: já o fizeram antes deles. Há
muito
tempo os americanos conhecem, fabricam e usam em suas praias e lagos os
engenhosos water cycles. Mais uma frustração para seu Medeiros.
As novas mudanças partem justamente deste novo tropeço. Quando a rapaziada do
Ponto de 100 Réis sabe deste e de outros esforços de Aníbal e Medeiros no campo
das
invenções, não perde oportunidade de fazer de tudo uma grande, impagável
galhofa. Uns passam pelo português e, em tom sério, perguntam:
- Seu Aníbal, e aquela máquina de vincar meias?
Outros:
- É verdade que o senhor inventou um palito de três pontas?
Outros mais:
- E como vai o despertador silencioso? Com seu Medeiros há mais respeito. Nada
de piadas ou provocações. Apenas uma pergunta fingidamente interessada:
- Qual é a próxima descoberta, seu Medeiros?
Mas ele sabe que o projeto da bicicleta aquática, ao desmoronar, fez um barulho
tão grande que o arrancou de seus sonhos. De volta à realidade, perde muito da
autoconfiança,
da coragem, da soberba. E também daquilo que o convertera num homem duro,
intratável, que levava desassossego à vida da mulher e dos filhos.
Fecha-se de novo. Recupera a humildade. E acabará aceitando o modesto emprego
que o compadre Graça Mello lhe conseguirá na
96

Prefeitura. O burocrata vai substituir o inventor.

O botequim é mesmo uma entidade integradora. E altamente democrática. Se se for


ver, é a instituição que mais serviços comunitários presta aos homens do bairro.
Mais que a igreja, o clube, a delegacia. Exagero? De modo algum. Vendendo
refeições fiado, emprestando dinheiro, fixando em suas paredes anúncios
manuscritos pedindo
ou oferecendo empregos, pondo seu telefone à disposição dos que não o têm
(telefone é privilégio de poucos
97

neste 1929), oferecendo suas mesas para quem quer que seja, o botequim realmente
serve e integra a comunidade. Para os fregueses assíduos, homens como o Carvalho
e o Martinez jamais dizem "não posso". Eles sempre podem. Qualquer coisa, desde
pregar mentiras salvadoras (à namorada, à mulher, ao credor ou à polícia) até
dar
e receber mensagens, funcionar como eficiente agência de recados.
É através do Carvalho, por exemplo, que Noel sabe de amigos ou simples
conhecidos que o querem ver à noite, em tal hora e lugar, para uma serenata de
esquina, uma
festa em casa de família, um encontro em que se faça necessário o som de seu
violão. Esse tipo de recado é cada vez mais comum, Noel sendo tão ou mais
requisitado
que Julinho Ferramenta, Nonô, violonistas mais velhos e experientes, com os
quais, diga-se, continua aprendendo bastante desde aquele encontro na Theodoro
da Silva.
Humor e repertório do violonista Noel Rosa variam de situação para situação. Se
são muitos a ouvi-lo, como ocorre em aniversários, batizados, casamentos,
limita-se
a tocar o que lhe pedem, Abismo de Rosas, uma canção, sambas, valsas, choro(6),
nada de seu. Mas se a reunião é mais íntima e informal, não mais do que cinco ou
seis amigos em volta de um poste e luz, um banco de praça, ou sob a janela de
uma moça bonita,
sente-se mais à vontade para criar. Nessas horas, tanto pode ser romântico como
divertido, fazer canções a Cândido das Neves como paródias a Noel mesmo. Quase
tudo
que produz por esta época - meros esboços de um jovem de dezoito anos que ainda
não se compenetrou inteiramente de sua condição de compositor popular - será
esquecido.
As canções, as paródias e as peças instrumentais, um ou outro amigo se lembrará
desta ou daquela. Ainda não perdeu a mania de brincar com o Hino Nacional, que
gosta
de solar a seu modo, mudando-lhe o andamento, fazendo sobre a melodia
improvisações as mais curiosas. Se não é o Hino Nacional, é La Marsellaise.
Entre amigos mais
chegados e ex-colegas de São Bento que aparecem para vê-lo, ou para visitar o
Manuel Jansen Muller na Rua Torres Homem, gosta de mostrar suas "últimas
criações":
- Ouçam esta. Chama-se Valsa dos Peidos.
E começa a solar uma bonita melodia, aqui e ali acrescida de um som
característico produzido sobre o bordão:
- É o peido grosso. Ou sobre a prima:
- É o peido fino.
Heitor Lino, outro ex-aluno do São Bento, nunca esquecerá esta inusitada valsa
que ouve Noel solar na esquina do Boulevard com Silva Pinto, na presença do
Farias,
pintor responsável pelos cartazes a mão que anunciam os filmes e espetáculos do
Cine Vila Isabel, inaugurado não faz muito tempo a alguns passos da Praça 7.
Primeiro,
Noel os convida:
- Vamos fazer umas farras por aí? Heitor Lino, rapaz de vida sem ousadias,
diz que não, já é tarde, hora de dormir, amanhã é dia de batente. Noel canta e
toca mais algumas músicas, bisa o solo da tal valsa e some na noite com o
Farias.
Quando não é o Farias, é Sylvio Pinto, o Seringa. Õu então o Waldemar Coroa, que
além de bom companheiro de farra, desses sempre dispostos a esticar um pouco
mais
uma noitada, é outro excelente seresteiro. Se não o melhor dos que freqüentam o
botequim do Carvalho, ao menos o mais compenetrado no seu jeito de levar a mão
ao
peito, fechar os olhos e, compungido, soltar a voz:
Eu tenho um sentimento profundo
Da primeira jovem que amei no mundo...5
E quando não é o Farias, o Seringa ou o Coroa, tanto podem ser os crioulos de
morro, Canuto, Puruca, Telefone, Andaraí, pois Noel não é de fazer diferença
entre
brancos e negros, pobres e menos pobres, como pode ser também um dos irmãos
Araújo:
- Vamos ao Mangue, Arnaldo?
Esses convites de Noel nem sempre encontram Arnaldo financeiramente prevenido.
Ele e o irmão Antônio trabalham com o pai alfaiate, estão aprendendo o ofício,
não
ganham muito. Mas Noel não se abala:
- E quem precisa de dinheiro para ir ao Mangue?
Arnaldo e Noel tomam o Lins de Vasconcellos, saltam na Rua Senador Euzébio,
atravessam o canal para a Visconde de Itaúna e dobram numa das transversais, a
Comandante
Maurity, a Carmo Netto, a Laura Araújo. Percorrem as casas, entram nos botequins
iluminados onde se ouve música tocada por pequenos conjuntos, violões, violino,
clarinete. Música triste que as mulheres de suas janelas preferem não escutar.
Noel talvez peça um violão emprestado, talvez se sente para uma cerveja, uma
conversa,
uma canção. Mas não é para isso que vieram aqui.
- Quer dizer que você esta mesmo duro? - pergunta a Arnaldo.
- Eu não te disse?
- Não faz mal.
Os dois circulam por Amoroso Lima, Corrêa Vasquez, Júlio do Carmo, Nery
Pinheiro, Benedicto Hipólito, cidadãos eminentes que
98

emprestam seus nomes às ruas do pecado. Param defronte de uma casa. Da janela,
uma mulher os chama com as mesmas palavras e gestos de todas as outras.
- Espera aqui que eu vou lá dentro te arranjar uma pequena.
Arnaldo espera. Noel não demora mais que dez minutos. Diz ter nesta casa uma boa
amiga, pessoa desinteressada que eventualmente não lhe cobra nada. Nem a ele,
Noel,
nem a um amigo do peito como Arnaldo. É só entrar. A amiga já o está esperando.
Noel indica o quarto.
- Pode ir. É uma ótima pequena. é muito bonita.
Arnaldo vai, Noel fica aguardando no portão da casa, olhando o movimento. Homens
bem vestidos, marinheiros, bêbados, estudantes, cafetões, policiais à paisana,
mendigos,
garotos fazendo força para aparentar mais idade do que têm, batedores de
carteira, atravessadores, músicos, poetas, viciados, gente com sede de sexo. É
estranhamente
variada a população flutuante do Mangue. Mais que a da Lapa, onde os sem-
dinheiro não têm vez. Por qualquer vinte, trinta mil réis, pode-se comprar por
aqui alguns
minutos de mulher. Na Lapa, só com carteira bem mais provida. Ou então com a
mesma boa conversa que permite a Noel cavar companhia para um amigo. Menos de
quinze
minutos depois de ter entrado no quarto, Arnaldo volta.
- Tão rápido?
- Pombas, Noel! Por que não me avisou?
- Avisar o quê?
- Apequena, Noel... Apequena!
- O que que há de errado com ela?É uma grande mulher.
- Talvez seja...
- Então? Está reclamando de quê?
- Você não me avisou que... ela não tem os dois braços.
Noel olha para o amigo, não se sensibiliza muito com seu espanto, puxa-o para
irem embora. Já no ponto de bonde, como se não entendendo bem o amuo do outro,
indaga:
- Ora, Arnaldo, que diferença iam fazer dois braços?
De certa forma, não é apenas topograficamente que o Boulevard divide Vila Isabel
em duas. Em muitos aspectos, são consideravelmente diversos os dois lados
repartidos
pela avenida. O direito de quem vai para a Praça 7 é mais novo, de casas recém-
construídas, mais valorizadas e, por conseguinte, habitadas por famílias de mais
posses.
O esquerdo, mais antigo, está muito ligado à vida das fábricas, a Confiança
principalmente, mas também outras, grandes e pequenas indústrias montadas no
eixo da
Rua Maxwell até os limites do Andaraí. Lógico, também há operários de fábrica e
gente pobre morando do lado direito. E casas boas, pessoas abastadas, do
esquerdo,
inclusive na Teodoro da Silva, perto do chalé. Mas Vila Isabel, como todo bairro
que cresce, não pode deixar de exibir contrastes entre velhos moradores, mais
pobres,
e novos, endinheirados.
O Boulevard é linha mais ou menos neutra. E nele, mais neutra ainda, a
instituição do botequim. Não fosse isso, Noel e seus companheiros - Alegria e
todos os outros
- não conviveriam ao mesmo tempo, em torno das mesas do Carvalho, com Canuto,
Osso e doutores de anel no dedo, rapazes de famílias tradicionais como os
Boamortes,
os Barros Nunes, os Baldessarinis, os Farias Lima. Não "fosse isso, também,
aqueles humildes negros nascidos e criados no morro não estariam trazendo para
esta mesa
sua valiosa contribuição à música que começa a florescer em Vila Isabel. O
samba, principalmente. Como se disse, o botequim a todos integra.
Mas, nesses primeiros dias de 1929, os freqüentadores do Carvalho têm clara
preferência pelas canções, pelas modinhas, por um tipo de música que lhes
permite navegar
em ondas de sentimentalismo:
Só é feliz quem não se diz
Saber vibrar os beijos flébios do luar...
Cândido das Neves, Freyre Júnior, Uriel Lourival, estes são os autores
prediletos dos seresteiros de Vila Isabel. E, claro, Catulo da Paixão Cearense,
palavroso
como sempre:
Espúmeos ais que em branca areia
O quieto mar vem derramar
São fontes perenais de ingente amar...
Ou Hermes Fontes, que de vez em quando não fica atrás:
Vento, esfolhais! Oh, Sol, crestais
Da rosa d'alva as frias pétalas de gelo.
Como todo seresteiro que se preza, estes, de Vila Isabel, descendem em linha
direta dos poetas românticos do século passado. Suas letras são rebuscadas,
cheias de
afetação. As amadas são comparadas a flores, seus dentes a pérolas, seus olhos a
lagos e mares, seus cabelos a seda. Tudo são imagens, pompa poética. De
qualidade:
Como Deus é inspirado! Inventou para o pecado Estas noites de luar...
99

Ou não:
Prossegue embora em flóreas sendas, [sempre ovante De glórias cheia e no teu
sólio triunfante...
O botequim é mesmo tudo, a segunda casa, o escritório, o clube, o centro
comunitário, o balcão de anúncios. E o palco onde estes jovens fazem sua música.
Noel entre
eles, compenetrando-se na hora de acompanhar Alegria, Miguelão, Coroa, numa
canção do índio, divertin-do-se com sua escatológica valsa, fazendo os outros
rirem com
suas paródias. Muitas chegarão a ficar conhecidas além dos limites de Vila
Isabel. Como esta em que mais uma vez recorre à melodia de A Casinha da Colina:
Você sabe de onde eu venho? De uma latrina que eu tenho Lá no fundo do quintal.
Tem um buraco na porta, Do buraco vê-se a horta, E da horta o repolhal.
Seja como for, tudo é música no botequim do Carvalho. Sobretudo música
romântica, seresta. Por isso, todas as noites, depois das onze, quem passa pela
esquina de
Souza Franco com o Boulevard não pode deixar de ser tocado pelos sons que vêm lá
de dentro. Pára, fica ouvindo, gosta. Meia-noite, a mesa onde Noel e seus
companheiros
se sentam vai sendo cercada por curiosos, por gente que não se importa se a
versalhada é boa ou má poesia. O que vale é a voz de Alegria, o violão que o
acompanha.
Meia-noite e meia, o botequim está cheio. Um dos fregueses aproveita a pausa
para ordenar ao Carvalho:
- Duas cervejas para os rapazes. Outro, lá da porta:
- Mais duas.
Há os que preferem municiar de sólidos estes cantores da noite:
- Carvalho, serve para a turma umas fatias de presunto.
Assim a noite avança. A cada canção, ouvida sempre em silêncio, Noel e os outros
são "pagos" pela platéia que vê neles verdadeiros artistas. Cervejas, fatias de
frios e queijos, às vezes uma sopa. Se a seresta é boa de verdade, ceia completa
para todos, por conta de um rateio feito ali mesmo, na porta do botequim.
Estas serenatas - Noel ainda vai admitir - aumentam a sensação de importância
que já hhavia experimentado, anos atrás, no dia em que, ao trocar o bandolim
pelo violão,
começou a descobrir que sua música tinha o raro poder de encantar as pessoas.

NOTAS
1. Diz Alexandre Gonçalves Pinto em O Choro (página 129): "Vicente, conheci
muito menino quando nada tocava, ficando bem admirado quando num choro escutei o
com
seu mavioso violão não só acompanhando admiravelmente como também fazendo solos
de arrebatar."
2. É Araújo Lins quem escreve: "Vila Isabel do samba ainda não teve o seu
cronista. E mesmo a música ainda não disse a verdade sobre o celeiro." Em A
Nação de 19
de janeiro de 1936.
3. Diário de Notícias, Rio, 15 de fevereiro de 1931.
4. A exemplo de Noel, Hélio recorreu aos exames no Pedro II para se bacharelar.
Também como o irmão, só'conseguiria em fins de 1930, graças ao Decreto-Lei
19.404.
5. Era mesmo Waldemar Coroa - e não Canuto, como diz Almirante em No Tempo de
Noel Rosa, segunda edição (página 68) - quem cantava assim tão compungido. É o
próprio
Noel quem esclarece em entrevista ao Diário de Notícias de 15 de fevereiro de
1931: "O Waldemar Coroa tem um dom especial para cantar sambas. Às vezes, na
maior
orgia, ele se afasta para um canto, põe a mão no peito e canta: 'Eu tenho um
sentimento profundo da primeira jovem que amei no mundo'."
100

UM BANDO DE PÁSSAROS

Capítulo 10

A vocação é necessária até para se dar o laço na gravata.


Meus Pensamentos

Menos Pelos versos chulos, criados Para melodias alheias, mas pelo que sabe
fazer ao violão, acompanhante de cantores da madrugada, Noel Rosa torna-se
conhecido.
Seu nome já corre pelo bairro: "Só tem dezoito anos. E que violão!" Triplicam os
recados no Carvalho, repetem-se as solicitações para que atue em festas e
serenatas.
Até que um dia é procurado por um grupo de jovens como ele:
- Somos do Flor do Tempo.
O nome não lhe diz muito. Mesmo depois que os rapazes explicam tratar-se de um
conjunto musical por eles formado há três anos para exibições em residências,
espetáculos
amadoristas e festivais beneficentes. O conjunto começou exclusivamente com
alunos do Colégio Batista, da Rua José Higino, na Tijuca, mas depois foi
crescendo até
ter gente - moças e rapazes - de toda parte. Entre os fundadores estavam os
filhos de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt, firma que funciona na Rua
Chile(1), vendendo
e alugando máquinas registradoras importadas da Inglaterra. Por sinal, da
residência dos Dales na Rua do Trapicheiro(2), é o nome poético com que os
rapazes batizaram
o conjunto: Flor do Tempo.
- Mas crescemos demais - explicam.
Com efeito, o Flor do Tempo cresceu tanto, violonistas, ritmistas, cantores, que
quase atinge as dimensões de uma grande orquestra. E isso é mau. Mesmo sendo
extremamente
seletivo o espírito do conjunto (Dale é homem rico, reside em confortável e
luxuosa casa de dois andares, varanda, jardins, freqüentada pela alta classe
média tijucana),
não foi possível evitar que o grupo se hipertrofiasse, nele coexistindo, hoje,
bons e maus músicos, bons e maus cantores. Noel ouve as explicações.
-Estamos querendo organizar novo conjunto.
Os jovens que procuram Noel estão convencidos de que algo de muito importante
começa a acontecer na música popular: o disco. É verdade que desde 1902 fazem-se
gravações
no Brasil. E que nos últimos anos cresceram bastante a indústria e o comércio
fonográficos no Rio de Janeiro. Mas parece já ir longe o tempo de Bahiano, Mário
Pinheiro,
Cadete, Eduardo das Neves e outros pioneiros da Casa Edison. Agora, os melhores
artistas do palco e do picadeiro vão invadindo com suas vozes as privilegiadas
residências
que possuem um aparelho capaz de reproduzir os sons gravados nestas delicadas
chapas pretas: Vicente Celestino, Zaíra de Oliveira, Patrício Teixeira, Aracy
Cortes,
Gastão Formenti. E também Francisco Alves, cujo canto
101

inaugurou há dois anos o sistema de gravações elétricas entre nós. Seu cartaz,
graças precisamente ao disco, não pára de crescer.
Neste 1929, vai subir para cinco o número de gravadoras em atividade no
Brasil(3). E uma delas, a Parlophon, subsidiária da Odeon, acaba de oferecer a
estes rapazes
a oportunidade de fazerem um disco. Por isso eles estão aqui, conversando com
Noel. Repetem que algo de muito importante realmente começa a acontecer na
música popular.
As gravadoras, engatinhando ainda, de estrutura e organização precárias, com
dificuldades mesmo para formarem os seus casts, estão recorrendo a cantores,
instrumentistas
e grupos amadores como o Flor do Tempo para enriquecerem seus ainda modestos
catálogos de lançamentos. Rapazes de classe média - muito mais interessados na
novidade
do disco do que nas incertas vantagens financeiras que podem obter da música -
passam a ser vistos nos estúdios, cantando, tocando. São "artistas" baratos, se
é
que custam alguma coisa. Eles próprios fazem rigorosamente tudo, compõem, cuidam
dos arranjos, ensaiam, cantam e se acompanham, de modo que para as gravadoras, a
não ser no que diz respeito aos gastos materiais (estúdio, eletricidade, cera,
acetato), um disco sai praticamente de graça. Se acontecer de fazer sucesso,
tudo
é ganho. Se não, pouco se perde.
É por esta porta espertamente aberta pelas gravadoras aos jovens da classe média
que os rapazes do Flor do Tempo pretendem entrar. Só que já não se chamarão
Flor do Tempo. O conjunto original, na verdade, começa a se desintegrar. Vários
de seus componentes já tocam e cantam muito além da varanda dos Dales, em outras
casas de família, clubes, teatrinhos, em todo lugar. Foi numa dessas
apresentações em clube que Carlos Lopes Campeão, diretor da Odeon, ouviu-os,
fazendo-lhes logo
um convite para gravar. A partir desse momento, o Flor do Tempo passou a ter
seus dias contados. De tal modo que, depois de saldados alguns compromissos já
assumidos
(uma excursão a Vitória, em fins de junho, e um espetáculo em homenagem ao
Rotary Club do Brasil, no Cassino beira-Mar, a 12 de julho), o conjunto deixará
de existir.
E justamente por ter crescido demais. Como colocar tanta gente, cantores,
violonistas, ritmistas, no apertado estúdio da Odeon, na cúpula do Teatro
Phoenix, na Rua
Almirante Barroso? Se há necessidade de se reduzir o conjunto para apenas quatro
ou cinco componentes, como decidir quem vai ficar de fora? Em razão disso, de
ser
preciso reduzir seu contingente para atender ao sedutor convite da Odeon (e do
embaraço que seria cortar moças e rapazes que estavam entre seus fundadores), o
Flor
do Tempo sai de cena para que em seu lugar surja novo conjunto. Uma seleção
natural - apenas os mais talentosos sobrevivendo - vai transformar a multidão
que alegrava
as reuniões dos Dales em não mais do que quatro rapazes. Quem são eles? Noel
conhece-os quase todos. Senão de perto, pelo menos de vista, de encontros
ocasionais
pelas esquinas de Vila Isabel.
Henrique Foréis Domingues, o Almirante, tem 21 anos. Cantor, compositor,
letrista, ritmista, é também um líder nato. Já o era no Flor do Tempo, que
passou a integrar
numa época em que dele só faziam parte alunos do Colégio Batista. Almirante, que
nunca estudou lá, foi o primeiro a quebrar a regra, graças não só às suas
virtudes
como pandeirista mas também à personalidade firme, impositiva, que sempre lhe
dará certa ascendência sobre os outros4. Uma liderança que jamais perderá.
Especialmente
no novo conjunto que vai surgir, cujas atividades serão rigorosamente regidas
por suas vontades: caberá invariavelmente a ele escolher o repertório, indicar o
solista,
decidir que músicos de fora ajudarão no acompanhamento, dizer em que dia e hora
será feita esta ou aquela apresentação em público, neste ou naquele lugar.
Opinará
sobre os arranjos, aprovará ou não as músicas e letras que os companheiros
trarão para seu julgamento. Será também o divulgador do conjunto. Um
eficientíssimo divulgador.
Furão, vivo, cheio de idéias, sempre descobrindo um modo de promover-se e aos
colegas, vai se dever a ele a maior parte da notoriedade que o novo grupo venha
a conseguir.
Noel conheceu-o há alguns anos, quando Almirante tentou, sem êxito, comprar-lhe
um velho projetor manual de cinema. Depois disso, houve muitos encontros
ligeiros
pelas ruas do bairro, mas nenhuma aproximação maior. Afinal, enquanto Almirante
trabalhava no comércio e, nas horas vagas, entregava-se ao convívio com os
meninos
ricos do Flor do Tempo, raramente parando nos botequins e esquinas de Vila
Isabel, Noel estudava e fazia de sua rotina escolar uma permanente sucessão de
horas vagas;
e enquanto Almirante levava vida pacata, metódica, Noel desde cedo seguia sua
vocação boêmia. Natural, portanto, que não houvesse entre eles maior
aproximação.

Encontro com Noel


"Foi em 1923 que conheci Noel Rosa. Eu fora aluno do Liceu Rio Branco, à Rua
Conde de Bonfim, 186, na Tijuca, onde depois se instalou e ainda existe o
Instituto
LaFayette para meninas(5). Ali, um dia, ganhei do meu colega Paulo Guerreiro um
pequeno rolo de filme natural, colorido, sobre o bicho da seda. Minha família
morava
no então Boulevard, hoje Avenida 28 de Setembro, número 287, Vila Fontan, casa
4. Na ansiedade de ver o minúsculo filme, tentei obter um projetor e disso falei
a
todos os meus conhecidos. Eis que meu irmão mais moço, Guido, lembrou-se de um
colega que desejava desfazer-se de um aparelho manual, baratíssimo. Fiquei aos
pulos
e apressei meu irmão para que trouxesse o tal companheiro à minha presença o
mais breve possível.
No dia seguinte, um domingo à tardinha fui procurado em minha casa por um garoto
mirrado, franzino, quase sem queixo, com fardamento do Colégio São Bento,
conduzindo,
embrulhado num jornal, um pequeno projetor de cinema. Era Noel Rosa.
Não se fechou o negócio. Por vinte mil réis Noel Rosa venderia o projetor; no
entanto, nem rachado poderia pagar essa fortuna. Basta se avaliar a situação da
casa:
o aluguel era de oitenta mil réis por mês e, nessa altura, eu já trabalhava na
Casa Cruz, na Travessa de São Francisco de Paula, defronte do Parque Royal,
recebendo
por mês noventa mil réis. A firma constituía-se de duas lojas, uma de vidros e
imagens de santos, e a outra, uma papelaria. Aos domingos de manhã, comparecia
para
a limpeza dos espelhos, vitrines e arrumações. Daí em diante, em Vila Isabel, de
noite, encontrava Noel Rosa, mas pouco nos ligávamos."
Almirante

Braguinha, ou melhor, Carlos Alberto Ferreira Braga, é filho de Jerônimojosé


Ferreira Braga Netto, aquele mesmo diretor da Fábrica Confiança que cedeu o
açude e
um motor de barco para que Neca e Aníbal realizassem suas experiências
aquáticas. Braguinha tem 22 anos, é o mais velho dos quatro. Toca violão
sofrivelmente, canta
mal, mas compõe mais do que bem. Em sua residência, dentro das próprias
102

dependências da Fábrica Confiança, o Flor do Tempo ensaiou muitas vezes (e na


certa vai ensaiar o novo conjunto). Como os outros dois companheiros do quarteto
que
procura Noel, estudou no Colégio Batista.
Henrique Britto, dezenove anos, é sem dúvida o melhor violonista de todos. Por
esta época, já gravou discos na Odeon solando composições suas e alheias. Nasceu
em
Natal, onde, menino de calças curtas, suas proezas ao violão impressionaram de
tal maneira o governador do Rio Grande do Norte, Antônio José de Mello e Souza,
que
este decidiu custear-lhe os estudos no Rio de Janeiro. (Consta que a admiração
do governador por Henrique Britto deveu-se não só ao fato de o menino, então com
doze
anos,
ter participado de um concerto no Teatro Carlos Gomes, em Natal, solando peças
difíceis numa corda só, mas também ao de já ser, bem antes disso, um precoce
autor
de valsas, choros, lundus, obras especialmente para violão.) Há quem veja nele
um gênio. Mas há também quem o considere meio aluado, desconforme, mais para
louco
do que para gênio. Agitado, falando as coisas pela metade, como uma metralhadora
que dispara e de repente enguiça. Intempestivo, estabanado, aéreo. Um bom
companheiro,
embora impossível de se conhecer bem. Ora muito calado, ora loquaz além da
conta. Mas de uma loquacidade telegráfica, quase monossilábica. É anterior à sua
adesão
ao Flor do Tempo o trágico episódio de que foi protagonista durante um dos
passeios que os alunos do Colégio Batista costumavam fazer aos domingos pelas
matas da
Tijuca, partindo da Rua do Trapicheiro. Numa cabana abandonada, Britto e seu
grupo encontraram uma velha pistola. Sempre afrontado, ele pegou a arma,
apontou-a contra
a própria cabeça e puxou o gatilho. Ouviu-se um estalo. Parecia descarregada. Em
seguida, o mesmo Britto voltou a pistola para um dos colegas e puxou novamente o
gatilho. Um tiro foi atingir o peito do outro, matando-o. Os anos se passaram e
Britto nunca mais falou no acidente. Como se não tivesse acontecido. Mas
continuou
o mesmo, aluado, intempestivo, entre o gênio e o louco.
O quarto e último dos que vêm procurar Noel é Álvaro de Miranda Ribeiro, o
Alvinho. Carioca como Almirante e Braguinha, dezenove anos, violonista,
compositor bissexto,
mas cantor afinadíssimo.
Sabedores das qualidades de Noel e precisados de um quarto violonista para
completar o conjunto com que pretendem gravar na Odeon, os quatro lhe propõem
juntar-se
a eles. Há uma razão especial para que seja um quinteto. O conjunto, em vez de
Flor do Tempo, vai se chamar Bando de Tangarás, como os pássaros fandangueiros
que,
sempre em grupos de cinco, quatro formando roda e o quinto saltitando no centro,
dançam alegremente.
O conjunto, também já está decidido, é amador. Ninguém receberá um níquel para
se apresentar em festas, reuniões, casas de família. Ou mesmo em teatros e
outros
lugares em que se cobram ingressos. Dinheiro para as passagens? Nem isso. Quando
muito terão uma participação nos lucros que as gravadoras obtiverem com seus
discos.
- Não podemos deixar que nos confundam com profissionais - sentencia Almirante,
consciente do quanto é malvisto quem vive de música!
É justamente pensando nisso - em não
serem confundidos com profissionais - que Braguinha sugere que cada um dos
tangarás adote um pseudônimo para usar em suas atividades musicais. Por que não
um nome
de pássaro? Ele próprio escolhe o do joão-de-barro, transformando-se assim no
compositor, cantor e violonista João de Barro. Com isso, acredita que ficará
perfeitamente
camuflado, ninguém associando seu nome ao do filho do diretor da Fábrica
Confiança Industrial. Mas os outros não lhe seguem o exemplo. Almirante já tem o
seu
próprio pseudônimo, ganho há dois anos quando, servindo o tiro de Guerra Naval,
desfilou posudo ao lado do Comandante Mathias da Costa, por ocasião da chegada
ao
Rio do hidroavião Jaú. Tão posudo que o povo, de farra, começou a chamá-lo de
"almirante". Desse modo, quem antes era o Henrique, ou o Foreis, ficou sendo
para sempre
o Almirante. Henrique Britto, o Britto como o chamam todos, já teve um apelido:
Violão. Foi na época do Colégio Batista, quando era quase impossível vê-lo longe
do instrumento.
104

A lenda dos tangarás

"Uma lenda do Norte do Brasil nos conta que o canto dos tangarás é tão mavioso,
tão bonito, que os índios embrenham-se pelas matas atrás desse gorjeio encantado
e por lá ficam semanas inteiras distraídos pelos verdadeiros concertos que esses
pássaros dão no seio da natureza virgem. Os tangarás se reúnem em bandos de
cinco
e enquanto um deles canta e marca, por assim dizer, o compasso, os demais
respondem em coro e saltitam como se dançassem no ritmo da música. E a lenda nos
diz ainda
que enquanto os tangarás cantam os outros pássaros calam, fazendo-se o mais
respeitoso silêncio na mata.
Daí veio a idéia de um amador que, sob o pseudônimo de Almirante, vem obtendo
através dos discos um sucesso cada vez mais acentuado com o conjunto típico que
tem
o nome dos pássaros lendários. Trata-se de Almirante e seu Bando de Tangarás:
quem não os conhece?
O intuito do bando, composto exclusivamente de amadores, todos empregados em
várias profissões, estudantes ou doutorandos, é levar aos discos as músicas
interessantes
do folclore brasileiro."
Phono-Arte
30 de setembro de 1930

Também não quer ter nome de pássaro. Álvaro de Miranda Ribeiro já é Alvinho há
muito tempo. Para que mudar? Quanto a Noel, aceita fazer parte do conjunto, mas
rejeita
a idéia de chamar-se de outro modo senão de Noel Rosa mesmo. A vida inteira não
vai querer ser mais do que isso: Noel Rosa. Ainda que venha a tornar-se famoso -
e os locutores de rádio passem a apresentá-lo com os mais escandecidos cognomes,
o Poeta da Vila, o Sócrates, o Bernard Shaw, o Filósofo do Samba - fará sempre
questão
de deixar bem claro que é apenas o Noel Rosa(6).
Portanto, só Braguinha, ou melhor, João de Barro, será duas vezes pássaro, pelo
bando que ajuda a fundar e pelo apelido que escolhe.
O Noel Rosa que os outros tangarás conhecem neste 1929 é mesmo um tipo
esquisito. Ao menos aos olhos deles e de alguns outros rapazes que circulam por
Vila Isabel.
Não se parece com ninguém. Nem mesmo com o extrovertido e picaresco adolescente
que, não faz muito, divertia os colegas nas salas e corredores do São Bento.
Ainda
comete as suas graças, mas costuma alterná-las com outros humores. Se é possível
encontrá-lo à mesa de um dos cafés do Boulevard, desfilando piadas e
trocadilhos,
inventando histórias, expondo pensamentos de sentido filosófico não muito
ortodoxo ("Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para
ganhar o insuficiente")
ou não muito otimista ("A mulher que mais amou neste mundo morreu antes de saber
o que era amor"), é possível também vê-lo imergir em indecifráveis silêncios,
desligar-se,
ficar distante. Essas saídas de órbita, dando impressão de que não vê nem ouve
nada à sua volta, em geral ocorrem durante animados papos de esquina ou
botequim,
os outros conversando, ele longe.
- Noel! Noel! - alguém tenta trazê-lo de volta.
- Estou ouvindo... estou ouvindo... - mente.
São ausências que se fazem de repente, como um apagar de luzes. E que se
repetirão, com maior ou menor freqüência, por toda a vida.
Pouco andará com os tangarás. A não ser que os compromissos do conjunto o levem
a isso, preferirá companhias menos bem-comportadas. Raramente irá a uma dessas
festas
de que Almirante e os outros gostam tanto, em casas de famílias abastadas da
Tijuca. Seus programas são diferentes. Nada de pessoal contra qualquer dos
quatro companheiros.
Só não lhe agradam os ambientes grã-finos, as reuniões repletas de poses e
cerimônias. Sente-se mais à vontade nos botequins baratos, nas tendinhas de pé
de morro,
nas salas de espera de um viveiro de mulheres. Os tangarás jamais se acostumarão
com o insólito dessas preferências.
Também não gosta de andar em bando. Se é o pessoal das serenatas ou das mesas do
Carvalho, ainda vai. Mas nada de aglomerações maiores. E se acontece de sair com
um grupo menos afim, costuma desgarrar-se. Isto é, vai-se afastando aos poucos,
ficando mais para trás, sozinho, andando meio de viés, o ombro esquerdo bem mais
alto que o direito, a atenção não sintonizada com o que o grupo conversa lá na
frente.
Os amigos observam, comentam, tentam compreender o que chamam de "esquisitices
de Noel". Pequenas, como aparecer de vez em quando trajado segundo o figurino da
mais
autêntica malandragem carioca: terno branco, camisa preta, gravata clara,
sapatos de duas cores. Ou esquisitices maiores, como algumas de suas
idiossincrasias. As
pessoas de que gosta, as pessoas que detesta. Muitas vezes sem motivo aparente.
Almirante e os outros atribuem mesmo a um temperamento esquisito ele preferir os
malandros, os jogadores, os motoristas de táxi, os operários de fábrica, a gente
do morro, os boêmios, os bêbados, os vadios aos filhos das mais distintas
famílias
tijucanas. Não o compreendem.
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E o que dizer de algumas de suas avessias, inexplicáveis birras, quase fobias,


que guarda em relação a certos tipos de pessoas? Que odeie o prestamista, muito
bem.
Decerto não está sozinho neste ódio. Mas por que será que lhe dá tanto prazer
hostilizar garis e mendigos, leiteiros e meganhas, vizinhos e sujeitos chatos?
Aos
chatos, pelo menos, não trata de todo mal, sabendo livrar-se deles com polidez.
No meio da conversa, o chato falando, falando, ele acena para um passante
imaginário
e grita:
- Espera um momento que eu já vou! Virando-se para o chato:
- Você me desculpe, mas tenho um assunto importantíssimo para tratar com aquele
amigo...
O chato se vira e não vê ninguém, mas essa simples volta de cabeça é o bastante
para permitir a Noel uma escapulida rápida.
Já com os outros não será tão sutil. Chamando os garis de "burro-sem-rabo" e
outras provocações, perturbando o sossego dos mendigos com fustigos e
molecagens, assustando
leiteiros ou dando sumiço em suas garrafas, pregando audaciosas peças em gente
da polícia, Noel fará desses habitantes da cidade, como veremos ao longo de sua
história,
as vítimas de estocadas que vão
da simples brincadeira de mau gosto às fronteiras da crueldade.
Mas as "esquisitices", ainda segundo a avaliação dos tangarás, não param por aí.
Entre tantas outras, há a paixão pelos burros. Especialmente os que puxam
carroça
("Qual o crime que o burro cometeu para ser condenado a trabalhos forçados?").
Vê neles uma certa dignidade ("Com que superioridade um burro pisaria em uma
nota
de cem mil réis!") e um destino em muita coisa melhor que o seu ("O burro só tem
uma satisfação: não segue a profissão forçado pela sua família"). Gosta tanto do
animal que há quem jure tê-lo surpreendido muitas vezes a conversar com os que
costumam passar, cansados e preguiçosos, pela Rua Theodoro da Silva.
O Bando de Tangarás se forma, cercado de projetos, em maio de 1929- Noel é o
mais jovem dos cinco, dezoito anos e praticamente nenhum passado como
compositor. Até
aqui só brincou, paródias, arranjos, valsas para fazer rir, piruetas com o Hino
Nacional. Este convite que lhe trazem Almirante, João de Barro, Henrique Britto
e
Alvinho abre novo capítulo na sua história. Nele vai nascer, enfim, o compositor
popular Noel Rosa.

NOTAS
1. Atual Rua da Ajuda.
2. Atual Rua Heitor Beltrão.
3. A Odeon e sua subsidiária Parlophon, ambas da Casa Edison do Rio de Janeiro,
e mais a Victor, a Columbia e a Brunswick eram as cinco gravadoras em atividade
no Brasil em 1929- A Odeon foi a pioneira. E o disco com que Francisco Alves
inaugurou em 1927 o sistema de gravação elétrica entre nós (número de catálogo
10.001)
tinha de um lado a marcha Albertina e do outro o samba Passarinho do Má, duas
composições de Antônio Lopes de Amorim Dinis, o Duque.
4. "... meu nome - conta Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição
(página 42) - foi levado a Eduardo Dale, cujas indagações revelavam sua intenção
de
não alterar as tradições do conjunto:
- Mas esse 'Almirante' é ou foi aluno do Colégio Batista...?
- Não, mas canta e toca pandeiro que é um colosso - declarou Braguinha.
Tal habilidade, proclamada com tanta veemência, venceu qualquer resistência de
Eduardo Dale e eu fui, imediatamente, admitido nas hostes do seleto
agrupamento."
A partir daquele momento, mais do que um simples calouro do grupo, Almirante
ficou sendo o seu líder.
5. Já não existe o Instituto LaFayette. O casarão da Conde de Bonfim onde
funcionava o setor feminino do colégio (e antes dele o Liceu Rio Branco) foi
demolido.
Em seu lugar está hoje o prédio da Mesbla.
6. Em entrevista publicada por Voz do Rádio de 15 de novembro de 1936, o
repórter perguntava:
"- O samba é sempre o mesmo, não é filósofo?
- Qual filósofo, qual nada. Sou o Noel Rosa."
Era mesmo assim que gostava que o tratassem, pelo nome. Apelido, nem os mais
elogiosos.
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NASCE O COMPOSITOR

Capítulo 11

Fiz uma toada, Festa no Céu, que dediquei ao bairro onde nasci, ou seja, Vila
Isabel. Concluída a composição,
cantei-a para mim somente. Depois para os parentes e amigos. Todos gostaram.
Havia emoção - disseram. Havia originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz
alvoroço
dentro de mim.
entrevista ao Jornal de Rádio
Que tipo de música pretendem se dedicar os tangaràs? Qual a matéria prima do seu
repertório? Que canto compositores planejam levar ao disco? Desde logo o líder
Almirante decide que o grupo só cantará e gravará músicas originais, de sua
própria autoria ou de um ou outro compositor que, como eles, esteja se lançando.
Quanto
ao gênero, está mais que claro que o Bando de Tangarás, como o Flor do Tempo que
lhe deu origem, nasce ao impulso da moda do momento: a música nordestina.
Muito responsáveis por essa moda são alguns grupos de violonistas, ritmistas e
cantadores que há quase vinte anos atuam no Rio, a maioria como amadores. O
primeiro
deles, Grupo de Caxangá, organizado pelo notável violonista João Teixeira
Guimarães, o João Pernambuco, e contando com a adesão de músicos não só
nordestinos, mas
cariocas como Pixinguinha, Caninha e Donga, ou paulistas como Bonfiglio de
Oliveira, ou de qualquer outra parte do Brasil, desde que bom folião, começou a
sair no
carnaval em 1914. Todos de roupas típicas do Nordeste, chapéus de vaqueiro,
lenços no pescoço, sandálias, o grupo tocava um pouco de tudo, cocos, emboladas,
modinhas
sertanejas, cateretês, mas também o maxixe e o choro carioca. Anos depois,
muitos outros grupos surgiram. Os famosos Oito Batutas, por exemplo, embora
cariocas,
nasceram sob a inspiração do Grupo de Caxangá e até com elementos a este
pertencentes, como Pixinguinha. E quando se apresentaram pela primeira vez em
público, a
7 de abril de 1919, na sala de espera do Cinema Palais, ainda que executando
muito maxixe e muito choro, seu repertório não deixava de incluir coisas do
Nordeste,
maracatus, toadas, canções sertanejas. Os Oito Batutas visitaram Recife em 1922
e lá fizeram tanto sucesso que logo apareceu novo grupo, os Turunas de
Pernambuco,
seguindo suas pegadas. Em 1927, surgia outro conjunto, os Turunas da Mauriccia,
que naquele mesmo ano veio se apresentar no Rio.
A música popular que mais se ouvia no Rio de Janeiro dos anos 20, como vimos,
eram as valsas e peças para piano, as modinhas, o maxixe, os fox-trotse outros
gêneros
importados dos Estados Unidos, executados quase sempre por orquestras de
formação jazzística, zsjazzbands. Os ritmos e cantigas que os grupos trouxeram
para o Rio,
sobretudo a partir do grande sucesso dos Turunas da Mauricéia, conquistaram a
cidade. Ganharam o disco, os palcos de teatro, viraram moda. E passaram a animar
as
festinhas familiares de bairro, na voz e nos instrumentos de muitos conjuntos
criados por gente carioca, um
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dos quais o Flor do Tempo. Essa adesão à música nordestina parece dever-se,
fundamentalmente, a dois fatores. O primeiro deles, o caráter nacionalista,
regionalista,
do repertório. O segundo, o fato de não serem necessários muitos
músicos e grandes vozes para formar um grupo desses. Dois ou três violonistas,
um pandeiro, um reco-reco, um ganzá.
O resto são vozes em coro e improvizadores de versos. Portanto, é muito mais
fácil formar um "regional nordestino" do que uma jazz band, geralmente composta
de piano,
pistom, trombone, sax, clarinete, bateria, banjo. Daí o Flor do Tempo. Daí os
tangarâs.
Assim, Almirante, líder e fundador do quinteto do qual faz parte Noel Rosa,
estabelece que seu repertório será basicamente nordestino(1). Ou melhor,
constituído
de qualquer tipo de boa música popular brasileira, mas de preferência nos moldes
dos turunas lá de cima:
Quando nós saímos do Norte
Foi pra no mundo mostrá
Como canta aqui nesta terra
Um bando de tangará.
Esta e outras cantigas "nordestinas" criadas por Almirante e seus companheiros
de bando-a que ele próprio chama, impropriamente, de "canções sertanejas de
cunho
folclórico" - serão levadas pelos tangarâs ao disco e constituirão a base
inicial de seu repertório. Composições intituladas Vamo Fala do Norte,
Bole-Bole, Vaca Matada, Mulata Mal Inducada, Coisas da Roça, Pra Vancê, que eles
cantam com tal ingaxao pra pensar, mesmo, que o novo grupo é mais uma novidade
que
acaba de chegar de Pernambuco. Mesmo quando, em vez de cocos, emboladas e
cateretês, o que eles gravam é um samba. Eis o comentário da revista Phono-Arte:
"Almirante trai o seu sentimentalismo de nortista através de dois melancólicos e
agradabilíssimos sambas de sua autoria Tamburete (letra de Erasmo Vollmer) e
Confessa!,
gravados no disco) 13.0-1 í (Odeon). Como se sabe, o samba é um privilégio do
carioca. Os dois sambas de Almirante são, no entanto, à moda do Norte, isto é,
neles
encontramos mais 'alma' do que mesmo 'requebros' tão característicos dos sambas
daqui."2
Mesmo depois de os tangarâs adquirirem certa reputação, ainda se pensará por
algum tempo tratar-se de um conjunto nordestino. Eis o que dirá a mesma revista,
quase
oito meses após a estréia do bando:
"É do Norte do Brasil que nos têm vindo os famosos e inigualáveis grupos dos
Turunas da Mauricéia, do Bando de Tangarâs, do Grupo de Calazans e ainda esse
conjunto
dos Desariadores do Norte.
Acento nordestino presente nos próprios sambas, como acontece no primeiro
sucesso do Bando de Tangarâs. Gravado em junho de 1929 para o selo Parlophon,
Mulher Exigente,
de Almirante, pouco se parece com um samba carioca:
Tem carinho que eu faço
Tem dinheiro, meu bem
Tem minh'alma e meu braço
E, querendo amor, também tem.

suas primeiras experiência" como comwwwoi integrante do Bundo de Tangarâs. A


toada Festa no Céu - que a partir de agora ele apresentará como sua obra de
estréia,
embora não o seja realmente - tem melodia e ritmo "nordestinos". A idéia é
inspirada em história infantil muito conhecida, mas a letra em si, com todo o
acento pseudomatuto,
é de grande originalidade.
O leão ia casá
Com sua noiva leoa
E são Pedro, pra agradá,
Preparou uma festa boa.
Mandou logo um telegrama
Convidando os bicho macho
Que levasse todas dama
Que existisse cá por baixo.
Pois tinha uma bela mesa
E um piano no salão.
Findo o baile, por surpresa,
No banquete do leão.
Os bicho todo avisado
Tavam esperando o dia,
Tudo tava preparado
Para entrá firme na orgia.
E no tar dia marcado
Os bicho tomaram banho;
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Foram pro céu alinhado


Tudo em ordem por tamanho:
O mosquito entrou na sala
Com um charuto na boca,
Percevejo de bengala
E a barata entrou de touca.
Zunindo qual uma seta
Veio o pingüim do Pólo;
E o peixe de bicicleta
Com o tamanduá no colo;
O siri chegou trasado
No bico do passarinho
Pois muito tinha custado
Pra botá seu colarinho.
E o gato foi de luva
para assistir o casório;
Jacaré de guarda-chuva
E a cobra de suspensório;
O porco de terno branco
Com um sapato sem sola
E o tigre de tamanco
De casaca e de cartola.
De lacinho à borboleta
Veio o veado galheiro
E o burro de luneta
Montado num carroceiro;
O macaco com a macaca
Com o rouge pelo focinho
Estava engraçada a vaca
De porta-seio e corpinho.
Vou breviá o discurso
Pra não dizê tantos nome:
Lá foi a muié do urso
De cabeleira à la homme.
Quando o leão foi entrando,
São Pedro muito se riu
E prós bicho foi gritando:
"Caiu, 1? de abril!"

A mesma coisa se pode dizer de Minha Viola. Isto é, sendo uma embolada,
claramente nos moldes dos cantadores nordestinos, tem a forma aparentemente
amarrada a tudo
aquilo que é feito no gênero: um estribilho no qual o compositor coloca toda a
sua singularidade melódica e uma sucessão de versos, em geral improvisados, que
cabem
perfeitamente em quase todas as emboladas que se conhecem. Por isso elas se
parecem tanto umas com as outras. Mas ainda aqui o Noel Rosa compositor
principiante
tem muito de original. Seu humor não é exatamente caipira. Como provam os versos
em que faz referência ao célebre doutor Voronoff e suas tão comentadas
experiências
no campo dos enxertos(4).

Minha viola
Tá chorando com razão
Por causa duma marvada
Que roubou meu coração.
Eu não respeito Cantadô
que é respeitado
Que no samba improvisado
Me quisé desafiá.
Inda outro dia
Fui cantá no galinheiro
O galo andou o mês inteiro
Sem vontade de cantá.
Nesta cidade
Todo mundo se acautela
Com a tal de febre amarela
Que não cansa de matá,
E a dona Chica
Que anda atrás de mau conselho
Pinta o corpo de vermelho
Pra o amarelo não pegá.
Eu já jurei
Não jogá com seu Saldanha
Que diz sempre que me ganha
No tal jogo do bilhá,
Sapeca o taco
Nas bola de tal maneira
Que eu espero a noite inteira
Pras bola carambolá.
Conheço um veio
Que tem a grande mania
De fazê economia
Pra modelo de seus filho,
Não usa prato
Nem moringa, nem caneca,
E quando senta é de cueca
Pra não gastá os fundilho.
Eu tive um sogro
Cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff,
Doutô muito creditado
E andam dizendo
Que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro
Miando pelos telhado.
Adonde eu moro
Tem o bloco dos filante
Que quase que a todo instante
Um cigarro vem filá
E os danado
Vem bancando inteligente
Diz que tão com dô de dente
Que o cigarro faz passá.

O próprio Noel gravará as duas composições, cantando com a voz ainda hesitante,
como se o microfone o assustasse, acompanhado por um regional e não pelos
tangarás.
Outro carioca que se anordestinizou, deixando-se contagiar pela febre das
emboladas, é Renato Murce. Neste e no próximo ano estará muitas vezes perto de
Noel Rosa.
Participarão juntos de espetáculos que o próprio Renato organizará, viajarão
juntos, até música farão juntos. Uma parceria breve, que logo será esquecida,
mas que
nem por isso deixa de contar nestes primeiros passos de Noel pelo caminho da
música popular.
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Renato Murce, como tanta gente desse tempo e desse meio, já fez um pouco de
muita coisa na vida antes de se tornar cantor. Jogou futebol, trabalhou no
comércio,
foi caixeiro-viajante, vendeu apólices de seguros. Desde 1924 trabalha em rádio
(a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi fundada a 20 de abril de
1923).
Está destinado a ser, no futuro, um importante nome na história do veículo, como
diretor de broadcasting, produtor, rádio-ator, autor, humorista, apresentador,
quase
tudo. Como cantor, seu primeiro namoro foi com a ópera, chegando a estudar canto
lírico com a italiana Climene Baroni. Mas os sons que vieram do Norte também o
envolveram.
E, incrível que pareça, acabou trocando as árias de Verdi pelas emboladas, a
Urna Fatale Del Mio Destino por coisas assim.-
Se tu fosse um pé de pau
Eu queria ser cipó
Vivia em ti enrascado
Em teu corpo dando nó
A troca deu certo. Como baixo ou barítono Renato Murce jamais chegaria a ser um
Mareei Journet, muito menos um Feodor Chaliapin, mas como "cantador nordestino"
será
conhecido em breve como o Príncipe dos Cantores Regionais5. Fundou um grupo, os
Gaturamos, confessadamente rival dos Tangarás, contando com a ajuda de Rogério
Guimarães,
Lourival Montenegro e RubemBergmann (violões), Pery Cunha (bandolim), Didi do
Pandeiro e o irmão, também cantor, Dario Murce. Na ausência de um violão,
principalmente
o de Rogério, é chamado João Baptista Nogueira, a quem tratam com carinho e
respeito por "mestre"(6). Interpretam música do repertório de Augusto Calheiros
e seus
Turunds da Maurícéia, de Minona Carneiro e seu conjunto A Voz do Sertão, do qual
faz parte o bandolinista
Luperce Miranda, recém-chegado do Recife.
Tão identificado está Renato Murce com os gêneros nordestinos que, como acontece
com Almirante, há quem suponha ser ele pernambucano ou algo assim. E por cantar
tanto, em tantos lugares, o célebre Pinião...
Por isso mesmo o sabiá cantou • Bateu asa e voou e foi comer melão
... muita gente pensa ser do seu repertório e não do de Augusto Calheiros este
grande sucesso do carnaval de 1928.
As primeiras apresentações de Noel Rosa em público serão como integrante do
Bando de Tangarás. A 27 de junho de
1929, sábado, num espetáculo denominado Noite Regional Brasileira, no Tijuca
Tênis Clube, ele canta Minha Viola pela primeira vez diante de uma platéia. Três
noites
depois, terça-feira 30, realiza-se antes da sessão de Compra um Bonde, revista
estrelada por Aracy Cortes no Teatro Recreio, um festival em homenagem à atriz,
intitulado
Noite Brasileira. Entre números a cargo das bandas de música da Marinha e da
Polícia Militar, peças de violão clássico executadas por Yvonne ejosé Rebello,
piadas
de Mesquitinha e solos dos outros tangarás, Noel-relacionado no programa como
Noel Medeiros Roxo - volta a interpretar sua primeira embolada:
Minha viola
Tá chorando com razão...
Almirante é um líder muito ativo. Encarrega-se de correr atrás não só das
oportunidades de gravar o repertório do grupo (os tangarás farão oito discos só
no segundo
semestre de 1929), mas também de uma brecha que os permita participar de um
festival aqui, um
espetáculo teatral ali, festas em casas de família, noites regionais em clubes,
tudo que possa torná-los conhecidos. Mas Noel, desde o começo, será um tangará
meio
desgarrado. Nem muito preso às atividades do grupo, nem confinado à sua
nordestinidade. Daí aceitar os convites que lhe são feitos por outros líderes e
produtores
além de Almirante, como é o caso de Renato Murce, com quem começará fazendo uma
embolada, não das mais inspiradas, que o próprio Renato denominará de Perna
Bamba:
Olha que este samba
Põe as perna bamba
Quem nele entra
Não qué mais para...
Conheço um véio Todo cheio de besteira
Num gosta de brincadeira
E é ranzinza que é danado
Mas ele um dia Entrô
num samba de arrelia
Que esqueceu-se da famia
Ficô logo avacaiado...
Um cabra torto
Com doença nas espinha
Num havia mais meizinha
Que pudesse indireitá
Ouviu o samba,
Levantô-se de repente
Já num tava mais doente
Já queria inté brigá...
Uma muié
Tinha brigado com o marido
Fez tamanho alarido
Lhe tirô todo o sossego
Mas ele um dia
Foi o samba decorando
Entrô em casa cantando
E vortô logo o chamego...

Outra, Salada Russa, brinca com as vogais criando rimas em assa, essa, issa,
ossa, ussa, mas poucos se lembrarão dela:

É assa, é essa, é issa, é ossa, é ussa, Este samba parece uma salada russa

Chico Arruaça
Que é amigo da cachaça
quando bota a mão na massa
Já se sabe, foi trapaça.
Quando ele passa
Já bebinho lá na praça
Toda gente acha graça
Vai haver uma desgraça
Mas, ora essa
Isso é coisa que se peça?
Vitalina fez promessa
Pra casar com Chico Lessa.
Mais que depressa
Chico disse: não vou nessa...
Seguem mais dois versos com rima em essa que completam a estrofe. Sempre
intercaladas pelo refrão, sucedem-se as partes em issa, os-sa e ussa, os últimos
versos
esclarecendo que a embolada acabou sendo uma salada russa(7).
Daí, também, Noel empreender experiências sonoras e literárias fora do âmbito
das emboladas, cocos e desafios. De uma dessas experiências nascerá Baianinha,
choro.
Ele mesmo o sola ao violão num programa que Almirante e o Bando de Tangarás
fazem pelo microfone da PRA 3, Rádio Club do Brasil, na noite de terça-feira, 6
de agosto
de 1929. No meio de vários outros excelentes números instrumentais apresentados
na mesma ocasião (a maioria por Henrique Britto, que tocará Paisagem Mourisca,
Ao
Cair das Folhas, Indecisão, Romance, Odette, Nazareth, peças suas e de autores
diversos), o choro de Noel quase não é notado(8).
Como não abandonou as serestas do bairro, também será no campo da música
romântica, bem ao gosto de Alegria, que ele fará outras de suas experiências.
Uma delas
não passará de uma letra linear, trivial, de valor evidentemente menor, para
Ingênua, valsa que o amigo Glauco Vianna - ainda cursando o São Bento - fez e
gravou
recentemente em solo de violão. Música e letra parecem bem definidas pelo
título.

Talvez que eu lhe diga um dia


Toda a melancolia de um coração
Todo este sofrimento
Que agora experimento
Nesse infeliz momento
De tão acerba dor
Que crueldade!
Eu ser um sonhador
Ela não entender meu amor
Qual a razão
Por que minha paixão
Não a pode comover?
Somente o criador
Sabe do amor
Que consagrei
A quem tanto amei
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À hora propícia
NOTAS Em que a malícia
Dela se apoderar
Com meu violão
Direi então
O meu pensar
E se ainda
Essa ingênua linda
Não me compreender
Eu, já descrente,
Direi que ela É inocente
Até morrer...

E muito especialmente, ainda no terreno das experiências fora da música


nordestina, uma canção que sobreviverá a seus autores, com bela melodia de
Henrique Britto,
que lhe dá o título de Queixumes. Os versos de Noel foram colocados em cima da
nostálgica linha melódica. Versos dos quais Britto gosta muito, mas que nem por
isso
encobrem o letrista ainda engatinhante, preocupado em rimar olhos com abrolhos e
tão influenciado pelos pernósticos versejadores do sereno que, talvez sem
sentir,
acaba repetindo a imagem apaixonada e masoquista que Catulo da Paixão Cearense
usou anos atrás em Talento e Formosura:
Tu podes bem sorrir das minhas
desventuras... Pertenço à dor e gosto até de assim penar!
A canção só será gravada no ano que vem por Gastão Formenti. Terá novo título:
Meu Sofrer. Mas a mesma letra de Noel:
Sem estes teus tão lindos olhos,
Eu não seria sofredor
Os meus ferinos abrolhos
Nasceram do nosso amor.
Eu hoje sou um trovador
E gosto até de assim penar,
Vou te dizer os meus queixumes:
Ciúmes tenho do seu olhar.
Quero sempre te ver bem junto a mim,
Por que te esquivas, assim,
coração De uma paixão?
O teu olhar traz alegria
Mas também traz o amargor,
Sem ele então não viveria
Vida não há sem dor.
Ainda oscilante - entre um gênero e outro, entre as imagens de Catulo e sua
própria originalidade, entre ficar preso aos tangarás ou caminhar sozinho - é
assim,
nos últimos meses de 1929, que nasce o compositor Noel Rosa. Como será quando
crescer?

Notas:
1. O espaço que Almirante dedica a estes grupos nordestinos em No Tempo de Noel
Rosa diz bem de seu entusiasmo por eles. Sendo o líder dos tangarás, era natural
que tal entusiasmo contagiasse os companheiros e acabasse ditando a própria
linha do bando.
2. Phono-Arte, 15 de novembro de 1929.
3. Ibidem, 15 de janeiro de 1930 (página 21). O Grupo de Calazans era liderado
por José Luiz Rodrigues Calazans, o Jararaca, o mesmo que já havia formado com o
saxofonista Severino Rangel, o Ratinho, e outros instrumentistas e cantores os
Turunas de Pernambuco. Anos mais tarde, Jararaca e Ratinho fariam famosa dupla
caipira
atuando por longo tempo em circo, rádio, teatro, disco, cinema e televisão.
4. Mais do que comentadas, as experiências de Voronoff foram motivo de muita
glosa no Brasil daqueles dias. Antes de Noel, Lamartine Babo e João Rossi já
haviam
explorado o assunto em Seu Voronoff, marcha gravada por Francisco Alves em 1928.
Serge Voronoff, médico russo, assumiu em 1921 a chefia do laboratório de
cirurgia
do CoUège de França em Paris. Ali realizou suas célebres experiências sobre
rejuvenescimento, a partir de enxertos de órgãos de animais. Não teve êxito.
5. Valem algumas palavras sobre o que então se entendia por "regional". Além do
tipo de música que os grupos "nordestinos" - o Bando de Tangarás entre eles -
interpretavam
(cocos, toadas, emboladas, martelos, jongos, cateretês, sambas de roda,
cantigas), regionais também eram os cantores que, como Renato Murce, se
dedicavam a tais
gêneros. Regionais, ainda, ficaram sendo os grupos compostos de violão, bandolim
ou cavaquinho, pandeiro e outros instrumentos rítmicos, em alguns casos saxofone
ou flauta, que os acompanhavam. Daí a denominação de regional para os conjuntos,
muitos deles de choro, liderados por Benedicto Lacerda, Canhoto, Rogério
Guimarães,
que logo em seguida passariam a acompanhar os cantores em gravações e
apresentações ao vivo, já então em valsas, sambas, música carioca e não apenas
nordestina.
Essa denominação, de certa forma, veio até nossos dias.
6. João Baptista Nogueira - pai do compositor e cantor João Nogueira - atuou ao
lado de Alberto Simões da Silva, o Bororó, Glauco Vianna e Noel Rosa, fazendo
acompanhamentos
ao violão em espetáculos musicais.
7. O próprio Renato Murce ensinou esta embolada aos autores. Já não se
lembrava, porém, de toda ela, que jamais chegaria ao disco.
8. Este choro não foi gravado nem editado. Mas, cinco anos depois, no intervalo
entre dois programas na Rádio Guanabara, o mesmo Noel pôs-se a solar ao acaso um
choro seu. Seria Baianinha? Estando ali presente, Jacob Pick Bittencourt, mais
tarde famoso como Jacob do Bandolim, teve o cuidado de passá-lo para pauta,
graças
ao que o choro sobreviveu. Só seria gravado em 1983, pelos violonistas Luís
Otávio Braga, Henrique Cazes e Caola.
113

TANGARÁ ABRAÇA O SAMBA

Capítulo 12

O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito, sem
mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba.
entrevista a O Debate
Toadas, desafios, cocos, emboladas, cateretês. São muito interessantes essas
coisas que os tangarás fazem inspirados nos ritmos e cantigas que vêm de
Pernambuco,
Ceará, Paraíba, Sergipe, Bahia. Mas Noel Rosa é do Rio de Janeiro. Carioca
impenitente, acaba concluindo que é mesmo o samba o idioma em que melhor poderá
expressar
suas idéias e sentimentos, seu cotidiano, sua realidade. Há muito de original
nas letras de seu primeiro disco como solista. Musicalmente, porém, tanto Festa
no
Céu como Minha Viola pouco têm de carioca.
Também é nitidamente sertanejo o tempero que ressalta no sabor de canções como
Sinhá Ritinha e Mardade de Cabocla, duas outras composições suas desta mesma
época.
Aprimeira é gravada por Paulo Netto de Freitas, afinado e sensível barítono cuja
carreira estará sempre muito ligada aos tangarás. A canção conta a história do
infeliz
Zé Sampaio:

No mês de maio,
no tempo das ladainha,
Foi que eu vi sinhá Ritinha
Sobrinha de nhô Vigário
Pra Zé Sampaio
ela olhou desconfiada
Tava tão encabulada
Que caiu o seu rosário
Ele apanhou o rosário da caboca
Mas a coragem era pouca
Pra falá com a mulhé
Depois pensou
e pra não perder a vaza
Guardou o rosário em casa
Pra dá quando Deus quisé
Já fez dois anos
que ele não vai à capela
Mas leva o rosário dela
Pra todo lugá que fô
Não foi engano
o que disse toda a gente
Que a saudade de repente
Tinha virado em amô
E o Zé Sampaio
foi-se embora lá do Norte
Pois teve a pió das sorte
Que se pode imaginá:
No mês de maio,
quando vortô à capela,
Pra entregá o rosário dela
Ela não quis aceitá

Mardade de Cabocla, feita especialmente para Alegria cantar, não chegará a ser
gravada. Mas é ótimo ponto de partida para que se compreenda a transformação
definitiva
do compositor Noel Rosa, ou seja, de sua passagem do nordestino para o carioca,
de sua troca do sertanejo que invadiu o Rio no começo da década pelo urbano que
melhor
retrata o seu universo. A letra também fala de um amor infeliz, mais ainda que o
de Zé Sampaio:
115

No arraiá do Bom Jesus


A gente vê uma cruz
Que chama logo atenção
Quem fincó foi siá Chiquita,
A caboca mais bonita
Que pisou no meu sertão
Essa moça era querida
Que por ela davam a vida
Os cabocos do rincão...
Dois home se apaixonaram
E um dia quando se oiaram
Tiveram a mesma intenção
Tendo duas viola apostada
E também a namorada
Lá na festa do arraiá
Zé Simão indignou-se
Nos repente intrapaiou-se
Perdeu pro Chico Ganzá
Perdendo a viola amada
E também a namorada
Não disse mais nada, não:
Foi manhãzinha encontrado
Com um punhá bem enterrado
Pro riba do coração.

Pois bem. Daqui a alguns anos - mais precisamente em 1932 - Noel partirá destes
versos inéditos para recontar a trágica história de dois homens apaixonados pela
mesma mulher. Mas trocará o tempero sertanejo pelo molho da cidade, o imaginário
arraial do Bom Jesus pelo nada imaginário morro da Mangueira, os dois caboclos
do
rincão por dois malandros do Rio, siá Chiquita por Rosinha, cabrocha de alta
linha. E, o mais importante, a canção sertaneja pelo samba. Disso resultará
Quando o
Samba Acabou, mais do que uma versão revista, aumentada e urbanizada de Mardade
de Cabocla, o primoroso atestado da adesão definitiva de Noel Rosa ao gênero que
o consagraria:

Na segunda batucada,
Disputando a namorada,
Foram os dois improvisar.
E como em toda façanha
Sempre um perde e outro ganha,
Um dos dois parou de versejar.
E, perdendo a doce amada,
Foi fumar na encruzilhada,
Ficando horas em meditação.
Quando o sol raiou foi encontrado
Na ribanceira estirado,
Com um punhal no coração.
Lá no morro,
uma luz somente havia:
Era o sol quando o samba acabou...
De noite não houve lua,
Ninguém cantou.

Mas a adesão de Noel Rosa ao samba ocorre muito antes de a trágica história de
Rosinha transformar-se num dos clássicos do repertório de Mário Reis. Um dia, em
fins
de 1929, tio Eduardo surpreende Noel acompanhando-se ao violão numa cantiga que
lhe soa de forma inteiramente original.
- Que música é esta, Noel?
- Um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga.
Noel explica que seus versos procuram retratar, ainda que metaforicamente, um
país ilhado em pobreza, a fome e a miséria alastrando-se como praga. A vida já
era
difícil por aqui. Imagine agora, que o desmoronamento da Bolsa de Nova Iorque
ameaça mergulhar não só o Brasil, mas o mundo inteiro, numa crise dos diabos(1).
É
de um país à beira da indigência, desnudado pela penúria, maltrapilho, de tanga,
que Noel fala em seu samba. A tio Eduardo, contudo, tranqüiliza:
- Mas eu não sou bobo de ficar dizendo essas coisas por aí.
E canta:

Lá no morro da Mangueira
Bem em frente à ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu "não sei quê"
Numa linda madrugada,
Ao voltar da batucada,
Pra dois malandros olhou a sorrir.
Ela foi-se embora e os dois ficaram,
Dias depois se encontraram
Pra conversar e discutir.
Lá no morro, uma luz somente havia:
Era a lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba se escondia

Agora vou mudar minha conduta


Eu vou pra luta,
Pois eu quero me aprumar.
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar,
Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Agora eu não ando mais fagueiro,
Pois o dinheiro
Não é fácil de ganhar.
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar,
116

Eu já corri de vento em popa


Mas agora com que roupa?
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu.
Já estou coberto de farrapo,
Eu vou acabar ficando nu,
Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
De um feliz casamento de música e verso vem a força de Com Que Roupa Mas não é
este o seu único trunfo. Há também a originalidade do tema, as rimas pouco
usuais
na canção popular, a construtura técnica na qual o sexto verso do coro é uma
espécie de chave. Sempre terminando em palavra que rima com "roupa", o verso
funciona
como um breque e "chama" musicalmente o estribilho. Uma tentação para os
improvisadores (mais tarde, nas rodas de samba, a maestria do versejador será
medida por
esse sexto verso). E há ainda o humor. Noel transpõe para a música popular a
singularidade tão carioca de tratar com graça e irreverência os assuntos mais
sérios,
de escarnecer da própria desgraça. Neste samba, a crise econômica, o Brasil de
tanga, converte-se numa sucessão de piadas. Enquanto se ri delas, pensa-se na
tristeza
que ocultam. Um pouco como na definição de
George Bernard Shaw para humor: "É qualquer coisa que faça a gente rir. Mas o
humor mais requintado arrasta uma lágrima com a risada." Um pouco também como
nos filmes
de Carlitos. Não será por isso que, daqui a algum tempo, alguém se atreverá a
chamar Noel Rosa de "Bernard Shaw do samba"? E que outros verão em sua poesia um
toque
chapliniano?
Uma composição irretocável, de melodia simples e direta, saborosa e exata, cada
estrofe terminando com o mesmo estribilho, no qual, aliás, também repousa grande
parte da comunicabilidade do samba, sobretudo pelo emprego da expressão popular
"com que roupa?", muito usada no sentido de "como?", "de que modo?", "com que
dinheiro?"
Mas o que dizer do ritmo? No momento em que Noel cria Com Que Roupa?'já existem
na cidade pelo menos dois tipos de samba. Um, aquele em que Sinhô é rei, surgido
ao que parece na casa de tia Ciata ou Assiata, negra baiana que se notabilizou
muito menos pelos doces que fazia e vendia do que por suas qualidades de
anfitriã
animada e festeira. Naquela casa, freqüentada por gente que se igualava no
prazer da música e da dança-a ponto de participarem das mesmas festas
intelectuais e macumbeiros,
funcionários públicos e boêmios, pequenos comerciantes bem-sucedidos e operários
modestos,
ex-escravos e músicos como Sinhô, Hilário Jovino Ferreira e José Luís de Moraes,
o Caninha -, naquela casa, enfim, teria nascido, em meados da década passada, o
samba carioca. Ou melhor, o primeiro dos dois tipos de samba que existem pela
cidade.
São exemplos dele não apenas o Pelo Telefone, o primeiro a fazer sucesso,
convencendo os compositores populares de que o gênero era comercialmente
viável2, mas também
Essa Nega Qué Me Dá, Já Te Digo, Dorinha, Meu Amor, Cristo Nasceu na Bahia,
Gavião Calçudo, Me Leva, Seu Rafael e muito especialmente tudo isso que Sinhô
vem produzindo
por aí com prodigiosa qualidade, Amar a Uma Só Mulher, Fala, Meu Louro, Gosto
Que Me Enrosco, Ora Vejam Só, Jura.
Sempre foi e ainda é grande a admiração de Noel por Sinhô, este mulato alto,
magro, desdentado, que mesmo em processo de visível decadência física, os
pulmões escravizados
à tuberculose, não perde o aprumo. Uma admiração tão grande que, tempos atrás,
ainda no São Bento, Noel convenceu Hélio a irem juntos conhecer de perto o
célebre
Rei do Samba, então
117

brilhando no carnaval, no teatro de revistas, nas festas familiares, nos


prostíbulos, nas gafieiras ou onde pudesse fazer ouvir os seus sambas:
Minha cabocla, a Favela vai abaixo Quanta saudade tu terás deste torrão!
Mas a visita de Noel e o irmão à casa de Sinhô resultou em constrangimento e
desencanto. O Rei do Samba, o grande J.B. Silva, criador de sucessos, apreciado,
amado,
imitado, morava com a mulher Nair numa casa muito pobre, miserável quase, na Rua
Pio Dutra, Ilha do Governador (e é lá que ainda mora, cada vez mais sem dinheiro
e sem saúde). Seu único instrumento era um violão barato, de mau som. Sobre uma
comprida tira de cartolina, desenhara a lápis teclas brancas e pretas cuja
finalidade
explicou aos dois rapazes:
- Isso é o meu piano. Preciso dele para compor..?
Depois disso Noel voltou a ver Sinhô aqui e ali, em casas editoras de música, em
festas, na Penha, em Vila Isabel. Reencontrou-o sempre mais pálido, mais gasto.
Mas merecedor da mesma admiração. Tanto pelas melodias que compõe como pelas
letras que escreve, cariocas, críticas, irônicas, matreiras. Ao gosto de Noel em
muitos
pontos, em especial na malícia, no duplo sentido de versos que mocinhas ingênuas
talvez cantem sem saberem o que significam:
É moda agora quando ferram o namoro Beberem água na tal caneca de couro
Ou:
Daí, então, dar-te eu irei
O beijo puro da catedral do amor...
Noel realmente admira Sinhô e o estilo de música que ele produz. Acontece que já
existe outro tipo de samba sendo feito e cantado no Rio de Janeiro de agora. Nos
morros, em alguns bairros, nos subúrbios. Menos conhecido, por enquanto, mas tão
inspirado e arrebatador que em breve tomará conta de toda a cidade. Este outro
tipo
de samba coexiste com aquele a que se dedicam Sinhô, Hilário, Caninha. E também
José Francisco de Freitas, o Freitinhas. E toda a turma de Pixinguinha. Aquele
samba
aparentado com o maxixe, nascido ou não na casa de Ciata - ou de outras "tias"
baianas como Gracinda e Maria Adamastor - mas muito executado em festas, salas
de
espera de cinema, coretos, teatros, picadeiros, gafieiras. O novo tipo de samba,
bem menos difundido, se coexiste com aquele, lhe é muito diferente em forma e
conteúdo.
E é precisamente esta diferença que seduz o jovem compositor de Com Que Roupa?
Como, onde e quando terá nascido este samba? Tudo indica que enquanto aquele
outro vem do começo da década passada e é produto da Cidade Nova, este mais novo
surgiu
há poucos anos no Estácio de Sá, bairro situado entre o Rio Comprido e o
Catumbi, o morro de São Carlos e a zona do Mangue. Dali se espalhou pelas
vizinhanças, galgou
as encostas da Saúde, Salgueiro, Mangueira, seguiu as linhas de trem até Ramos,
Engenho de Dentro, Penha, Madureira, foi abrindo seus braços para envolver toda
a
cidade.
Mas se não há dúvidas quanto ao onde e ao quando, o como já é bem mais
complicado. Nem mesmo aqueles que plantaram as sementes das quais brotou este
samba parecem
saber ao certo como tudo começou. Ismael Silva, por exemplo, vai morrer jurando
que o samba do Estácio de Sá nasceu, como tanta coisa mais, de uma necessidade.
Sendo
muitas vezes feito para os desfiles dos vários blocos das redondezas - ao passo
que o samba da Cidade Nova destinava-se mais a animar os bailaricos organizados
pelas
"tias" baianas -, estaria nesse detalhe a diferença. Isto é, segundo Ismael, à
necessidade que os blocos têm de cantar sua música marchando e não dançando,
deve
o samba do Estácio de Sá as suas características, a estrutura rítmica e os
contornos melódicos que o distinguem. Embora seja uma explicação respeitável -
ainda mais
por vir de alguém que caminha para se tornar um dos reis deste tipo de samba -,
não encerra a questão. Afinal, há muito de dançável também no samba do Estácio
de
Sá. E muito de amaxixado no que cantam os demais blocos do Rio.
O que conta, porém, é que o samba do Estácio de Sá é rítmica, melódica e
poeticamente distinto do samba da Cidade Nova. As dessemelhanças rítmicas talvez
se devam
a ter sido ele criado a partir dos refrões cantados nos improvisos de partido-
alto e rodas de batucada, herdando destes uma pulsação por si só já diferente da
dos
sambas de Sinhô, nos quais ainda se encontram vestígios não só do maxixe, mas
também do lundu. Tal pulsação - sua alma - resulta de ser o acompanhamento feito
basicamente
por instrumentos de percussão, na maioria fabricados pelos próprios ritmistas ou
por eles inventados. Se na Cidade Nova as festas são animadas por músicos
treinados,
bons tocadores de piano, flauta, clarineta, cordas e metais, no Estácio de Sá,
salvo por um ou outro violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é
tamborim,
surdo, cuíca e pandeiro. Ou acompanhamento ainda mais rudimentar, palmas
cadenciadas ou batidas em mesas, cadeiras, copos, garrafas. Uma seção rítmica
barata, bem
de acordo com as
118

magras algibeiras do sambista. O certo é que aos poucos os estribilhos de


partido-alto e batucada foram se transformando, se enriquecendo, trocando os
dois, três
versos de antes por maior arrojo formal. As segundas partes deixaram de ser
improvisadas e começaram a ser feitas especificamente para cada samba. Este
detalhe,
somado à mudança de pulsação, acaba alterando também a estrutura melódica, agora
recorrendo a desenhos mais extensos e elaborados.
Quanto à parte poética, o sambista do Estácio de Sá canta em suas letras, da
maneira mais simples, a vida dos morros e das casas de cômodos, das populações
pobres,
dos malandros e de outros indivíduos à margem da sociedade. Marginalização esta
que mantém sua música longe do disco por tantos anos, sua divulgação fazendo-se
naturalmente,
de modo espontâneo, de boca em boca. Mas é mesmo desta vida marginal que fala a
maioria dos sambas de lá. Seus temas são a valentia, a batucada, o jogo, a
orgia,
o malandro e suas mulheres, o sambista desocupado e suas promessas jamais
cumpridas de regeneração.
Se Hilário, Freitinhas, Caninha, Sinhô são os bambas da Cidade Nova, o Estácio
de Sá também tem os seus nomes de respeito, Alcebíades e Rubem Barcellos (este
morto
há dois anos, prematuramente, de tuberculose), Edgar Marcelino dos Passos, o
Mano Edgar, Francelino Ferreira Godinho, Oswaldo Caetano Vasques, o Baiaco. E
também
Tibélio dos Santos, Sylvio Fernandes, tão preto que o chamam de Brancura. E
ainda os dois melhores dentre eles todos: Nílton Bastos e Ismael Silva. São
negros e
mulatos que moram ou transitam por ali. Uns trabalham, outros jamais o farão,
mas todos cultuam o samba. Costumam se reunir de noitinha no Café do Compadre,
no número
26 da Rua Santos Rodrigues, de propriedade do português José Domingues. Ou então
no Apollo, mais para o Largo do Estácio. Ou ainda em qualquer parte onde se
possa,
entre duas esquenta-por-dentro, improvisar música e versos. Mas foi mesmo no
terreno de uma das casas de cômodos da rua Estácio de Sá, esquina de Maia de
Lacerda,
que estes sambistas se reuniram, há um ano, para organizar o bloco Deixa Falar.
Tão importante que vai reivindicar - não sem bons motivos-a honra de ter sido a
primeira
"escola de samba" da história.
A muitos desses sambistas Noel conhecerá de perto. De outros ouvirá apenas os
nomes e os sambas:
Ela era a rainha
Do bloco Deixa Falar
Mas perdi toda a esperança
Porque a vi conversar com Francelino
Que é o bamba do lugar4
Ou meros refrãos como este de Rubem Barcellos:
Eu ando sofrendo
Sem saber qual a razão
Vou implorar a Deus
Para conseguir a minha salvação

Até esta segunda metade de 1929, não muitos desses sambas chegaram ao disco. Mas
os que o fizeram, se Noel teve oportunidade de ouvi-los (como provavelmente
teve),
serão o bastante para reforçar ainda mais sua convicção de que este é o melhor
samba carioca. Por exemplo:
A malandragem eu vou deixar Eu não quero saber da orgia Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia
Ou este:
Sei que tu andas sofrendo
Estás arrependida do que já me fez
É teu destino, mulher,
Eu não te perdôo
Porque tu vais me enganar outra vez
Ou muito especialmente este:
Arranjaste um novo amor, meu bem Eu sou um infeliz, bem sei
Ou ainda este:
A maré que enche vaza Deixa a praia descoberta Vai-se um amor e vem outro Nunca
vi coisa tão certa
São sambas admiráveis, realmente diferentes dos produzidos pela escola de Sinhô.
Sambas melodiosos, de frases musicais mais longas, as notas mais agudas
impregnadas
de nostalgia e beleza: "Eu sou um infeliz, bem sei..." São deliciosas as frases
mais curtas do maxixe e do samba que lhe é aparentado, mas isso que vem assinado
por estes desconhecidos compositores do Estácio, Alcebíades, Nílton, Ismael, e
chega ao disco pelas vozes de Francisco Alves e Mário Reis, tem outra espécie de
magia.
Noel Rosa percebe que, em matéria de música popular, há um tesouro escondido em
algum lugar. Pedras preciosas, algumas ainda brutas, luzindo nas mãos destes
sambistas
que compuseram A Malandragem,
119

O Destino É Deus Quem Dá, Novo Amor, Me Faz Carinhos.


Quem primeiro descobriu o mapa desse tesouro foi Francisco Alves. Que
sensibilidade musical tem este cantor! Que faro para desencavar boa música onde
ninguém imagina
existir coisa alguma! Se os compositores do Estácio de Sá começam agora a chegar
ao disco, aos teatros, aos circos, tornando-se conhecidos do grande público,
devem
isso a Francisco Alves que, mapa na mão, foi atrás deles lá nos desvãos em que
se escondem. Noel sempre soube desta intuição de Francisco Alves, desta sua
capacidade
para desenterrar tesouros. Por isso, já nos tempos de São Bento, andava seguindo
o cantor até as lojas de disco, as casas editoras de música, tentando aproximar-
se
dele. Francisco Alves mal o notava. Afinal, quem era Noel Rosa?5
Hoje, dando seus primeiros passos como compositor popular, Noel tenta chegar ao
tesouro por conta própria. Seus primeiros contatos com o samba do Estácio de Sá
podem
ter acontecido de muitas formas. Talvez ao tempo de estudante, quando,
financiado por colegas como o Ministrinho, freqüentava o Mangue e seus cafés
onde se ouvia
música ao vivo. É bom lembrar que bem perto, colado ao Mangue, está o Estácio. e
mais adiante o Catumbi e o Rio Comprido. E que muitos habitantes do morro de São
Carlos e malandros das imediações já eram praticamente "moradores" daquela zona
boêmia. Pode ser, também, que tais contatos se tenham dado nos carnavais da
Praça
11 de Junho. E se intensificado mais tarde, já em Vila Isabel, através do que
para lá têm levado Canuto, Puruca, Maciste, Osso, gente do morro. Ou quem sabe
não
terá ocorrido nas constantes peregrinações do jovem compositor a bairros e
morros como Madureira, Oswaldo Cruz, Mangueira, Ramos, Salgueiro, lugares aonde
já chegou
o novo samba, levado ou não pelos sambistas do Estácio de Sá?6) De qualquer
modo, Noel deixa-se seduzir por ele muito antes de os outros tangarás
despertarem de
seu sono nordestino para a realidade da autêntica música carioca.
Com Que Roupa? nasce perfeitamente identificado com os arrojos formais dos
sambas do Estácio de Sá. Se não parecerá tanto, será porque os acompanhamentos
instrumentais
de suas duas primeiras gravações - uma de regional, outra de orquestra - ainda
estarão muito afinadas pelo diapasão do maxixe. Mas certo é que, chegado o
momento
de romper com o modismo das coisas nordestinas para levantar vôo em forma de
samba, é nas asas da turma do Estácio de Sá que Noel embarca. Não tentando fazer
igual
a Rubem, Baiaco, Brancura, Nílton, Ismael, sambistas que no máximo conhece de
vista,
mas inspirando-se neles para criar seu próprio estilo. Nesse sentido, Com Que
Roupa? é obra formalmente nova, revolucionária quase. Não que vá fazer escola,
estabelecer
modelos, abrir caminho para que outros por ele sigam. Revolucionária porque
representa um começo de rompimento dos jovens compositores de classe média -
Noel e só
depois dele o Bando de Tangarás - primeiro com o
pseudo-sertanejo e logo em seguida com o samba amaxixado que a partir de 4 de
agosto de 1930, quando morre Sinhô, vai morrer também.
Mas tio Eduardo, um dos primeiros a ouvir Com Que Roupa?pronto, não percebe nada
disso. Como não percebe que os três compassos iniciais do novo samba que o
sobrinho
canta, ou seja, o verso "Agora vou mudar minha conduta...", têm rigorosamente as
mesmas notas que Francisco Manuel da Silva compôs há quase cem anos para o Hino
Nacional Brasileiro. Plágio? Evidentemente que não. Nenhum compositor, nem mesmo
o mais desfaçado, ousaria tanto. Distração? Pouco provável. Noel, que adora
solar
o Hino Nacional ao violão e desde o São Bento vive fazendo paródias sobre sua
melodia, dificilmente não perceberia a semelhança. Coincidência? Quem
acreditaria?
Não é curioso que Noel Rosa retrate o "Brasil de tanga" num samba que começa
justamente com as mesmas primeiras notas do Hino Nacional, "Ouviram do Ipiranga
às margens
plácidas..."? Ou terá sido intencional? Quem sabe Noel pretendeu mesmo fazer
esta citação quase literal à melodia do Hino Nacional? A resposta há de morrer
com ele.
Mas, quando se observa que não apenas o primeiro verso, mas toda a letra de Com
Que Roupa? cabe perfeitamente na música de Francisco Manuel da Silva, sílaba por
sílaba, nota por nota, torna-se ainda mais provável a hipótese de que as coisas
- como o próprio descobrimento do Brasil - não aconteceram por acaso. E que
muito
possivelmente o samba nasceu como mais uma entre tantas paródias do Hino
Nacional, em cima da qual Noel teria retrabalhado, alterando a melodia e
mantendo apenas
a citação do primeiro verso.
O Bando de Tangarás tem apenas um disco para gravar na Odeon até o final de
novembro. É preciso andar depressa para que o lançamento se faça ainda em
dezembro, do
contrário não poderá ser incluído no último suplemento Parlophon para o carnaval
de 1930, o primeiro do conjunto. Os dois lados do disco são logo definidos. Um
deles
é Não Quero Amor Nem Carinho, de João de Barro e Canuto:
120

Amor... Carinho... Eu não quero Já jurei: nunca mais hei de amar, hei de
amar...
O outro lado será Com Que Roupa?, que Noel mostrou a todo o conjunto, recebendo,
mais do que aprovação, palavras de entusiasmo. O samba bem pode ser o
carro-chefe dos tangarás nas batalhas que se aproximam. Mas antes que se pense
na gravação é preciso passar as duas composições para a pauta e levá-las ao
editor.
João de Barro, que já cuidou da sua, recorrendo a um amigo maestro, oferece a
Noel:
- Se você quiser, este meu amigo escreve o seu samba também.
Oferecimento aceito, no mesmo dia Noel, João de Barro e Almirante vãojuntos à
casa de Homero Dornellas, na Rua Torres Homem. Homero é um músico competente e
generoso.
Filho de Sophonias Dornellas, compositor e regente de peças para teatro,
principalmente revistas e operetas, o próprio Homero compõe. E toca, entre
outros instrumentos,
o violoncelo. Tem ambições maiores do que as que se confinam no campo da canção
popular. Sonha em escrever poemas sinfônicos, peças de câmera, obras dramáticas.
É o inventor de um curioso instrumento, o arranholino, simples caixa de charutos
sobre a qual adaptou uma única corda de violoncelo que emite bizarro som quando
sobre ela se faz deslizar um arco de violino. Homero chegou a obter sucesso com
o arranholino em festas e recitais em que se apresentou, no Rio, na Bahia, no
Amazonas,
não se sabe se pela beleza ou se pelo inusitado do som. Hoje, entre suas várias
atividades musicais, a mais estável e bem remunerada (embora não muito) é a de
pianista
da Casa Vieira Machado, onde desde o ano passado substitui o jovem e talentoso
compositor gaúcho Radamés Gnattali na função de passar para a pauta as canções
populares
daqueles que não sabem escrever música. Homero no piano, cuidando da partitura,
e Joracy Camargo com lápis e papel na mão, caprichando na parte literária, são
pagos
por seu Ernesto para realizarem muitas vezes o milagre de transformar em algo
editável os rascunhos que compositores incultos lhes trazem.
Mas não é este, evidentemente, o caso de Noel Rosa: Com Que Roupa? não é um
simples rascunho e sim uma obra plenamente acabada. Ou, pelo menos, parece. Na
casa da
Rua Torres Homem, onde Homero faz uns trabalhinhos por fora, cobrando dez, vinte
mil réis por um serviço que sairia bem mais caro na editora (a comissão do
Vieira
Machado é sempre muito gorda), o maestro é apresentado aos dois amigos de João
de Barro, seu conhecido desde as
festas do Clube Progresso da Fábrica Confiança.
- Este rapaz aqui fez um samba interessantíssimo, Homero. E nós queremos
lançá-lo para o carnaval.
Homero senta-se ao piano e pede que Noel cante o samba. Fica observando o
rapazinho mirrado, oblíquo, cujos dedos compridos escorregam pelo braço do
violão enquanto
canta, tímido mas afinado:
Agora vou mudar minha conduta...
De início Homero concentra-se mais no jeito de o rapaz movimentar a boca -
mastigando um palito de fósforo como se a disfarçar o queixo torto - do que
propriamente
no samba. Depois, porém, coloca o pentagrama na sua frente e pede para Noel
repetir do começo. Homero faz uns acordes no piano, prepara-se para escrever as
primeiras
notas, mas pára:
- Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: "Agora vou mudar minha
conduta..." Repete isso.
Noel obedece.
- Essa música não pode ser publicada - interrompe Homero.
- Por que não?
- Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da censura
não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido fazer
brincadeiras
com o Hino Nacional.
Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:
- E agora?
- Ora, agente dá um jeito - tranqüiliza-o o maestro. - Com sete notas simples e
cinco alternadas, temos doze notas na escala cromática. Com isso a gente faz o
que
quer. Vamos inverter algumas notas desta primeira frase, "Agora vou mudar minha
conduta..."
Homero mostra no piano como a linha melódica sofre ligeira alteração, fugindo à
semelhança com o Hino. Muito simples. Noel canta o samba mais uma vez, agora em
sua
forma definitiva, as primeiras notas invertidas pelo maestro. Assim, menos
parecido com o Hino Nacional, ao que talvez seu compositor desejasse, Com Que
Roupa? vai
para a pauta, a caminho de se transformar num sucesso do carnaval de 1930. Só
que a música popular, como a própria História, tem seus caprichos. As vezes
ocultos
pela proposta tímida de um compositor modesto como Homero Dornellas:
- Antes que vocês se fossem, gostaria de lhes mostrar um samba que comecei a
escrever. Querem ouvir?
121

João de Barro, Almirante e Noel concordam em ficar mais um pouco para conheceren
o refrão que Homero diz ter escrito a partir de um toque de corneta ouvido pela
primeira vez quando ele servia a bordo do navio Poconé, como um dos soldados das
tropas mandadas ao Amazonas por ocasião do movimento armado de 1924(7). O navio
tinha excelente corneteiro, o cabo Clodomiro Marins, sujeito muito brincalhão
que costumava levar o instrumento à boca, soprar um sol-sol-dó-dó e, logo em
seguida,
gritar para os companheiros: "Na Pavuna, seus filhos da puta!" Homero nunca
entendeu por que o Marins dizia aquilo, mas as notas lhe ficaram na cabeça desde
aquela
época, sol-sol-dó-dó, um dos dós na oitava de cima, o outro na oitava de baixo.
Um dia - conta ele aos três tangarás - foi convidado para um batizado na casa de
parentes de sua noiva, justamente no subúrbio carioca da Pavuna. Ensinaram-lhe o
caminho, a ida de bonde até a Leopoldina, a viagem de maria-fumaça pela linha
auxiliar,
uma longa jornada até o local da festa. Lá chegando, constatou que a Pavuna
citada por Marins era um bairro deserto, atrasadíssimo. E, sem saber por que,
começou
a cantarolar as quatro notas,
sol-sol-dó-dó. Já na casa dos parentes da noiva, numa folha de jornal improvisou
um pentagrama e sobre ele anotou o esboço de melodia. Mudou-o para si bemol,
isto
é, si-si-mi-mi, um mi agudo, outro grave, por achar que com nova cor
o resultado seria melhor. Nasceu assim o refrão de Na Pavuna:
Na Pavuna... Na Pavuna...
Tem um samba que só dá gente reiúna.
Agora quer ouvir a opinião dos três. Principalmente a de Almirante, que afinal é
o líder dos tangarás. Não gostaria ele de fazer a letra da segunda parte?
Almirante
hesita. Não lhe agrada essa história de "reiúna", nem a construção do segundo
verso. Mas Homero volta ao piano, repete a melodia e acaba convencendo Almirante
de
que o refrão tem força.
- Quanto a reiúna, é gíria de soldado - explica Homero. - Foi idéia dojoracy
Camargo. Minha letra dizia "gente turuna", mas ele me provou que reiúna ficaria
melhor
que turuna(8).
Almirante está convencido. Mais do que isso, subitamente entusiasmado. O refrão
tem mesmo força, é fácil de pegar. Concorda em tornar-se parceiro de Homero.
Este,
por suas ambições de chegar às salas de concerto como "músico sério", explica
aos tangarás que, como compositor popular, prefere ocultar-se atrás de um
pseudônimo.
Um pseudônimo sonoro e curioso : Candoca da Anunciação. E é como tal que ele
trabalha com Almirante, aqui mesmo, na
122

presença de João de Barro e Noel, na segunda parte do samba. Em minutos chegam


ao resultado. Simples, mas carnavalesco. Ninguém pode imaginar que o refrão vai-
se
transformar numa espécie de marca registrada, não de Homero ou Candoca, seu
autor, mas de Almirante, cuja antevisão das coisas, tratando-se de música
popular, é
impressionante. E ele antevê o êxito do novo samba. Por isso, como líder do
grupo, aquele a quem cabem todas as decisões, diz:
- Olha, Noel... Acho que o Com que Roupa? vai ter que esperar até o outro
carnaval.
- Por quê?- indaga Noel surpreso.
- Porque este vai ser o carnaval do Na Pavuna.
E ficam todos ouvindo Almirante defender que deve ser seu e de Candoca da
Anunciação o outro lado do Não Quero Amor Nem Carinho. O líder dos tangarás é
persuasivo,
sempre consegue o que quer. Noel encerra o assunto com uma simples frase:
- Mete a vela, Almirante!

NOTAS
1. Foi em 29 de outubro de 1929 que o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque
pôs fim à prosperidade que os Estados Unidos conheceram no pós-guerra, lançando
aquele
país na maior depressão de sua história e o mundo inteiro numa grande crise
econômica. O Brasil - que desde os primeiros dias daquele mês se via às voltas
com problemas
cafeeiros (a supersafra levara os produtores a reter 10 milhões de sacas na
esperança de manter os preços) - sofria então um duro golpe. Na verdade, parecia
ruir.
Já afetado por crises anteriores, deixava a seu povo perspectivas sombrias, mais
pobreza, mais dificuldades. Foi nesse clima que Noel Rosa decidiu caricaturar
musicalmente
o "Brasil de tanga".
2. Parece ser mesmo este - segundo opinião defendida por Jota Efegê em conversa
com os autores - o verdadeiro mérito de Pelo Telefone, e não, como tanto se tem
repetido, o de ter sido o primeiro samba gravado. Afinal, alguns outros sambas
chegaram ao disco antes dele.
3- Depoimento de Hélio Rosa a Jacy Pacheco, incluído por este em Noel Rosa e Sua
Época (páginas_ 36 e 37).
4. Citado por Sérgio Cabral em As Escolas de Samba - o Quê, Quem, Como, Quando
e Por quê? (páginas 22,e 23). O samba teria sido cantado pela Deixa Falar no
carnaval
de 1929, e o Francelino em questão seria o Ferreira Godinho.
5. Renato Murce lembra-se de Noel Rosa, em 1927 ou 1928, aparecendo pelas casas
de música, com uniforme do São Bento, tentando aproximar-se de Francisco Alves e
outros nomes já famosos da música popular. Em entrevista aos autores, Murce
conta como vários outros novatos - entre eles Ary Barroso - eram desdenhados
pelo cantor.
6. Diz Ismael Silva a Sérgio Cabral, op cit (página 28): "Nós ajudávamos muito
a Portela. Ajudar no sentido de divulgar, promover. A Mangueira também, nós
ajudávamos
bastante. O pessoal do Estácio era sempre convidado para ir a todos esses
lugares. Nós tínhamos muito prestígio na época..." Marília T. Barbosa da Silva e
Lygia
Santos, em Paulo da Portela, Traço de União Entre Duas Culturas (página 70),
contam: "Todos os fundadores da Portela por nós inquiridos foram unânimes em
afirmar
que foi o pessoal do Estácio que levou o samba para Oswaldo Cruz." Os sambistas
do Estácio, na verdade, circulavam muito. Compreende-se que a troca de
informações
musicais se desse rapidamente. O samba do Estácio e vizinhanças, nascendo ou não
ali, espalhou-se. Cedo ou tarde Noel e os outros rapazes de classe média de Vila
Isabel teriam de tomar conhecimento dele. Só que Noel o fez primeiro.
7. Ainda uma vez a chamada Revolução Paulista de 1924, ligada ao "tenentismo".
8. Reiúna - e não "reúna" como tem sido comumente escrito - é um tipo de
espingarda curta do Exército, hoje em desuso. O termo também era empregado em
relação a
tudo que dizia respeito aos soldados, "farda reiúna", "bota reiúna", no sentido
de farda ou bota militar.
9. Segundo Homero Dornellas, em longos depoimentos aos autores, foi exatamente
esta a expressão usada por Noel. Lembra o maestro que "mete a vela", na época,
tinha
pelo menos dois significados. No Rio, queria dizer "vá em frente", "mete a
cara". Mais para o norte do Brasil, por onde Homero viajou muito, era uma forma
abreviada
de "mete a vela no rabo dele", no sentido de "pregue-lhe uma peça", "faça-lhe
uma ursada".
123

DO FAZ VERGONHA À MALANDRAGEM

Capítulo 13

Se o jogo permitir, Se a polícia consentir E se Deus quiser...


Malandro Medroso
Já que não tem samba ou marcha de sua autoria para cantar neste carnaval, só
resta a Noel brincar com as melodias dos outros, sambas como Na Pavuna e Amor de
Malandro,
marchas como a premiada Dá Nela e a contagiante Pra Você Gostar de Mim, ou
simplesmente Taí, que começa a transformar numa estrela a novata Carmem Miranda.
Se quiser
cantar o que é seu, Noel terá de se contentar, mesmo, com os improvisos do Faz
Vergonha.
Além de dividir social e economicamente a comunidade do bairro, o Boulevard
também estabelece a fronteira que separa os dois grandes e sempre rivais blocos
de Vila
Isabel. Um deles é o Cara de Vaca, formado pela turma da Souza Franco mais para
o lado da Torres Homem. É um bloco organizado, mantido em parte pelo dinheiro do
Lourenço e de outros cidadãos ligados ao jogo do bicho. Sai na manhã do domingo
de carnaval para um desfile que às vezes só acaba no meio da tarde. Moças e
rapazes
na frente, cercados por um cordão de isolamento, e um caminhão atrás, carregado
de comida e bebida. Os foliões dão início ao desfile, cantam um sucesso do ano,
param,
comem, bebem, seguem em frente cantando outro sucesso, param outra vez, novas
degustações, assim por diante. Já o bloco rival, o Faz Vergonha, surgiu na Rua
Maxwell,
nas proximidades da Fábrica Confiança. É bem mais democrático, sem cordão de
isolamento, aberto para quem quiser entrar ou sair. Por ele desfilam homens do
povo,
como Antenor Grande, Candinho, Piscalhada, Gude e Canuto, e rapazes que vêm do
outro lado do Boulevard, como os irmãos Boamorte. Noel é figura de destaque no
Faz
Vergonha, uma vez que cabe a ele - e assim será por mais alguns anos-a tarefa de
improvisar versos, dividida com Lauro Boamorte e Paulo Anacleto.
O desfile do Faz Vergonha difere do do Cara de Vaca principalmente por isso:
enquanto o outro sai cantando sucessos do ano, o bloco a que Noel pertence parte
de
um estribilho original, composto por um de seus integrantes, e em seguida os
improvisadores criam versos para a segunda parte. Um dos estribilhos mais
famosos do
bloco é feito por Canuto:
Vou à Penha rasgado
Pra pagar uma promessa
Deixei de ser malandro
Pois eu tenho trabalhado
Vou de chinelo charlotte
E terno de cimento armado,
Pois é o que a fiota tem dado...1
125
O terno em questão, é bom que se explique, é do tipo que os cidadãos mais pobres
usam, de brim barato, endurecidos pelo excesso de goma, geralmente cinza, cor de
cimento.
Na arte de improvisar, Noel Rosa é insuperável. Pena que se venham a perder, na
memória de todos, os versos por ele criados durante os desfiles do Faz Vergonha.
Antes, as opiniões ainda se dividiam, havendo muita gente que achava Lauro
Boamorte tão bom ou melhor que Noel. Moço inteligente, de muitas leituras,
simpático e
expansivo, Lauro é um dos que mais pontificam nas famosas reuniões lítero-
musicais que se realizam em sua casa, no Boulevard, entre Justiniano da Rocha e
Hipólito
da Costa. O pai, o velho Elpídio, é um dos mais conhecidos e estimados moradores
de Vila Isabel. Homem de valor, começou do nada, venceu preconceitos contra a
cor
de sua pele, tornou-se alto funcionário do Ministério da Fazenda e vai acabar
tendo rua com seu nome nas imediações da Praça da Bandeira2. Aos filhos - Lauro,
Hélio,
Aloysio e mais nove - deu-lhes boa educação, ensinou-lhes a apreciar música e
poesia, encaminhou-os na vida.
Mas, definitivamente, Lauro não é o melhor versejador do Faz Vergonha. Vai-se
descobrir mais tarde que enquanto Noel improvisa suas segundas partes para os
sambas
do bloco, criando-as na hora, em pleno curso do desfile, não importando qual
seja o mote, Lauro traz as suas idéias de casa. Em algumas ele trabalha dias,
semanas,
antes do carnaval. Em outras será possível detectar rimas, imagens, quando não
versos inteiros, que o "improvisador" Lauro pediu emprestados à literatura de
cordel
e outras fontes que nem todos no Faz Vergonha conhecem.
Paulo Anacleto impressiona mais pela quantidade. Seus improvisos podem não ter a
inventiva dos de Noel (ou o acabamento dos
âue o Lauro vai buscar onde pode), mas jorram e uma fonte realmente inesgotável:
ele é capaz de passar horas versejando sobre um mesmo tema, com um fôlego tão
impressionante
que ninguém, nem mesmo Noel, consegue acompanhá-lo. Paulo e seu irmão Manuel,
excelente tamborim, fazem parte da ala mais "familiar" do Faz Vergonha. Eles, os
Boamortes,
os Barros Nunes, os Farias Lima, Armando Reis, Arnaldo Amaral, Antônio Nássara,
Sizeno Sarmento, rapazes de classe média que, chegado o carnaval, vestidos de
sujo,
saiote, batom, rouge, fita na cabeça, sapato alto, confundem-se na folia com
modestos homens do povo como Canuto, negro do Salgueiro.
O desfile de blocos é um dos pontos altos das batalhas de confete do Boulevard.
Desfile competitivo como um dia será o das escolas de
samba. Um palanque de madeira é armado no cruzamento do Ponto de 100 Réis. Nele
fica a comissão julgadora integrada por cronistas carnavalescos, autoridades,
intelectuais,
artistas, personalidades do bairro. O pessoal costuma chamar o palanque de
"coreto". Diante dele passam o Faz Vergonha, o Cara de Vaca, o Decididos do
Engenho Novo,
blocos de outros bairros que ali vão com suas fantasias de sujo, suas baterias,
seus sambas (nem todos passam, como o Faz Vergonha, improvisando a partir de um
refrão
original) . Há quem diga que a expressão "balançar o coreto", tão ao gosto do
carioca, nasceu num desses desfiles, ou melhor, de ter um dos blocos perdedores
virado
de pernas para o ar o palanque e a comissão julgadora que cometeu a imprudência
de dar o prêmio ao bloco rival. E há quem diga, também, que o nome Faz Vergonha
vem
justamente de ser este grupo de foliões -ao qual pertence Noel - um contumaz
fazedor de vergonha: basta que não obtenha a preferência da sempre suspeita
comissão
julgadora para que seus componentes mais exaltados balancem o coreto, seja o do
Boulevard, sejam os que se armam para as batalhas das Ruas Dona Zulmira e Santa
Luzia
(estas, hoje e por mais alguns anos ainda, as mais concorridas da cidade). Mas
há pinceladas de exagero nestas questões etimológicas, embora no Faz Vergonha
realmente
existam alguns valentes da melhor linhagem.
Como o Martim José Dionísio, também conhecido por Martim Adeus Ó Colo.
Grandalháo, braços volumosos, mãos imensas, forte como um gorila, mas uma dama.
Sempre falando
baixo, calmo, incapaz de perder a calma mesmo quando eventualmente algum
desavisado o provoca.
- Que é isso, compadre, não tem amor à vida? - limita-se a dizer.
Martim não provoca ninguém. Em toda a sua vida só uma vez será ele o desafiante
em vez de desafiado. No dia em que o Circo Barthô se instalar no terreno baldio
da
esquina de Justiniano da Rocha com o Boulevard, cairá em suas mãos um folheto de
propaganda informando que uma das atrações da companhia é um urso campeão de
luta
livre. O gerente da empresa pagará 500 mil réis - um belo dinheiro - a quem
resistir a um roundde dez minutos com o tal urso. Martim, vindo de Minas Gerais
para
servir de guarda-costas de políticos seus conterrâneos, talvez não ganhe tanto
por mês. Quinhentos mil réis! É pensando nas coisas que faria com o prêmio que
ele
vai se candidatar a medir forças, no centro do picadeiro, com o urso campeão.
Toda Vila Isabel, Noel inclusive, irá vê-lo lançar-se à empreitada na matinée de
domingo.
Martim vai entrar no picadeiro, tranqüilo
126

como sempre. E assim que se abrir a jaula, o urso ainda meio distraído com a
gritaria do público, avançará para o animal, trocará murros com ele, lhe
aplicará uma
gravata, quase mandará a nocaute o peludo e corpulento adversário. Mais do que
resistir a um round, Martim derrotará o campeão. Sairá todo mordido e arranhado,
mas
vitorioso. Para exasperação do gerente da empresa, que chegará a pensar em não
pagar o prêmio: "Você pegou meu urso distraído!", dirá. Sem discutir, Martim vai
envolver
com seus braços massudos o mastro que sustenta a lona do circo, balançá-lo de um
lado para outro, fazê-lo estremecer. O gerente de olhos arregalados, o público
de
respiração suspensa e Martim, sempre agarrado ao mastro, gritando: "Ou me paga,
ou eu boto esta bosta abaixo!" De noite, calma recuperada, o corpo coberto de
curativos,
o vencedor do urso estará pagando, feliz da vida, cerveja para todos no
Martinez. Com os 500 mil réis, é claro. O mais comum, porém, é ser ele o
desafiado. Como
se passa no dia em que um jovem aluno da Academia Militar aparece no Ponto de
100 Réis com ares de valente:
- Tem gente boa de briga por aqui? pergunta a um dos rapazes da esquina.
- Não, amigo. Aqui é tudo de paz.
-Mas ouvi dizer que Vila Isabel é terra de decidido. Vim sopra ver se é verdade.
Gostaria de pôr à prova o melhor de vocês.
O rapaz da esquina logo nota que o jovem cadete é um provocador, desses que
adoram uma confusão. Na certa luta boxe, jiujitsu, capoeira ou algo que tenha
aprendido
lá na Academia Militar. Um cadete alto, atlético, bem apessoado. Bonito, mesmo.
Forte, mas não muito. Está confiando em quê? Na força ou na farda? Mas já que
ele
quer mesmo arranjar briga, o rapaz da esquina resolve fazer-lhe a vontade.
- Olha, amigo, gente boa de briga não tem por aqui, não. Mas posso lhe trazer,
agora mesmo, alguém pro senhor pôr à prova.
O cadete se anima. Uns dez, quinze minutos depois o rapaz volta acompanhado do
Martim José Dionísio. Mal são feitas as apresentações, o cadete, sem se
impressionar
com o tamanho do outro, põe-se a desafiá-lo,, a dizer que não acredita muito nos
seus músculos, que briga se ganha com inteligência e não com força, coisas
assim.
Martim ouve calado. E quando o cadete finalmente o chama para um ajuste, diz com
o tom de voz baixo, brando, quase sussurrante:
- Que vergonha, moço! Um futuro oficial do nosso Exército amofinando gente
pacata, querendo perturbar a ordem. Que vergonha! Tá pensando que o país é seu?
E se afasta com os passos lentos, pesados, deixando o provocador ainda mais
humilhado que o urso que ele quase mandou a nocaute. O jovem cadete vai
desaparecer do
Ponto de 100 Réis, mas continuará pensando que o país é seu.
Um dia, arma em punho, invadirá o Palácio Guanabara disposto a tirar de lá
ninguém menos que o Presidente da República. Seu nome, Severo Fournier, será
lembrado
por isso(3).
Mas os forasteiros não se iludam. São muitos os valentes de Vila Isabel.
Especialmente os do time de futebol do Sport Club Aldeia, como o
Leonardo Figa de Guiné, baixinho, gordo, sempre de navalha na cintura.
Temidíssimo, não tem medo de nada. Nem de polícia, nem de malandro. Só do
Martim. Mas os dois
são amigos e se tratam respeitosamente pelos respectivos apelidos. O Leonardo
deve o seu a andar com uma figa em cada bolso, sempre preocupado em afugentar os
caprichos
do azar. O do Martim tem origem menos conhecida. Num certo sábado de carnaval,
desfilando pelo Faz Vergonha, o bloco passando pela porta de sua casa, ele viu
na
janela a mulher, Colo, e gritou para ela: "Adeus, ó Colo!" E só voltou na
quarta-feira. O apelido acabou se convertendo em expressão muito usada pelos
cariocas destes
e dos próximos tempos(4). homem responsável por ela vai morrer esquecido e não
propriamente como um valente: ao dar um mergulho na Praia das Virtudes, baterá
com
a cabeça numa pedra e quebrará o pescoço. Uma tarja preta tingirá o estandarte
do bloco no carnaval seguinte.
Adeus Ó Colo, Figa de Guiné e as demais figuras de proa do Faz Vergonha -
Antenor Grande, Jurema Bola Sete, Candinho, João Pelanca, Gude, Piscalhada,
Salvador Cara
Larga, Culé, Carrão, Pedro Pé de Banha, Heitor Barrigudinho, Hugo, Archete,
Canuto, os irmãos Walter e Affonsinho, craques de futebol (o segundo ainda
chegará ao
scratch nacional) - reúnem-se quase todas as noites, de dezembro a fevereiro,
para traçarem planos com vistas ao carnaval. Discutem sambas, fantasias,
estandartes
e estratégias a serem seguidas pelo bloco nas próximas batalhas e no desfile de
domingo. O local dessas conferências que entram pela madrugada, irrigadas com
cerveja
ou cachaça, é a faixa de paralelepípedo que cobre o rio Joana, na Rua Maxwell,
em frente à Piza de Almeida, e que o pessoal do lugar chama de "Ponte".
Conferências
longas, animadas, que volta e meia contam com a presença do jovem folião Noel
Rosa.
De maio de 1929, quando estrearam na cera com um cateretê e uma embolada de
Almirante, Anedotas e Galo Garnizé?, até maio de 1933, quando entrarão no
estúdio da
Odeon para gravarem, juntos pela última vez, uma cena junina de João de Barro,
os tangarás
127

aparecem em 38 discos, 73 faixas, a maioria de autoria de Almirante, o cabeça do


grupo.
Os primeiros passos dessa breve mas intensa carreira fonográfica deixam a
impressão de que é apenas o violonista e não o cantor ou o compositor Noel Rosa
o que conta
para Almirante. O mesmo se pode dizer em relação ao cantor Alvinho. Quem tiver
oportunidade de acompanhar com atenção os suplementos Odeon e Parlophon dos
próximos
dois anos poderá confirmar o quanto serão menores os papéis representados por
Noel Rosa e Alvinho dentro do conjunto. Por exemplo, só no décimo oitavo disco
dos
tangaràs Noel terá uma composição sua gravada por eles: Eu Vou Pra Vila. Isso já
em agosto de 1930, um ano e dois meses depois de Anedotas e Galo Gamizé. E só no
vigésimo nono, em agosto de 1931, lhe darão chance de atuar como solista
cantando dois de seus sambas: Cordiais Saudações e Mulata Fuzarqueira. Alvinho,
nem isso.
Sua carreira como cantor terá de se fazer fora do conjunto, independente, por
iniciativa própria(6).
Por quê? Não gosta Almirante da voz de Alvinho? Ainda não está convencido das
qualidades do compositor Noel Rosa? Por que vai demorar tanto a lançá-lo? A
primeira
oportunidade negada a Noel foi realmente a de gravarem Com Que Roupa? já para o
carnaval de 1930. Agora, a folia fica para trás, os tangarás retomam suas
atividades
de meio de ano, continuam gravando composições de Almirante, João de Barro,
Henrique Britto e até de gente de fora como Erasmo Vollmer, Luciano Meirelles,
Jota Menra,
Henrique Vogeler, Lamartine Babo, Homero Dornellas, Canuto, Mário Faccini,
Luperce Miranda, Manuel Lino, Brant Horta. Todos estes terão músicas suas
gravadas pelo Bando de Tangarás antes que chegue a vez de Noel. Não há como
explicar tal
demora.
E quanto ao cantor Noel Rosa? Até que seu nome apareça no selo de um disco do
conjunto, este já terá gravado nada menos de 54 faces, cabendo a Almirante solar
3
3, João de Barro 13 e o violão de Henrique Britto uma. As restantes serão
distribuídas entre solistas ocasionais como Paulo Netto de Freitas, a dama da
alta sociedade
Lucilla, a delicada Elisinha Coelho e os humoristas Pinto Filho e Maria Vidal. O
cantor Noel Rosa? A não ser por uma discreta participação em Lataria,
brincadeira
sonora em que cada um deles cantará uma quadrinha, terá mesmo de esperar dois
anos e dois meses, desde Anedotas e Galo Gamizé, até que os tangarás lhe dêem
vez como
solista.
Já essa outra demora explica-se a partir de três dados indiscutíveis. O primeiro
está em ser mesmo Almirante, longe, o melhor cantor dos
cinco. Um cantor que vai aprimorar cada vez mais sua técnica, tornando-se sempre
melhor com o passar dos anos. A voz estridente mas clara, a agilidade vErbal que
o permite pronunciar perfeitamente cada sílaba, mesmo nas músicas mais ligeiras,
sua exata noção de ritmo, a musicalidade, tudo isso fará dele um dos mais
completos
intérpretes de música popular brasileira. Bom em quase todos os gêneros, ótimo
numa embolada, imbatível num samba-choro. É natural, portanto, que seja sua a
maioria
dos solos.
O segundo dado é o jeito desgarrado de Noel, aquele temperamento de não
pertencer exatamente a nada ou a ninguém, sendo tanto dos tangarás como de
outros conjuntos,
inclusive o de Renato Murce. E sendo sempre ele mesmo, sozinho, livre.
Almirante, com toda sua autoridade de líder, compreende isso, não se zanga
quando Noel não
aparece para um ensaio, um recital, uma gravação. Se tal acontece, os tangarás
seguem sem ele. Até porque há sempre quem o substitua, pois de quinteto mesmo o
conjunto
só tem o ponto de partida, contando sempre com numerosos "adendos": Luperce
Miranda, Daniel Simões, Sérgio Brito, Lamartine Babo, Formiga, Erasmo Vollmer,
Dornellas,
Canuto e tantos outros.
O terceiro dado são ainda as "esquisitices". Isto é, aquela história de a
maioria dos amigos de Noel nada ter a ver com os amigos dos demais tangarás. Não
se parecem,
nenhuma afinidade guardam com os bem-comportados moços de Vila Isabel. Como diz
Almirante, Noel tem uma incontrolável tendência às más companhias(7). É como
dizem
os vizinhos ao vê-lo entrar e sair do chalé com Canuto, Puruca, o padeiro
Cobrinha, o pessoal do Faz Vergonha e até uns tipos que ninguém conhece, vindos
de só Deus
sabe onde, negros, pobres, mal-vestidos, às vezes até um tanto mal-encarados,
como dizem enfim os vizinhos:
- Este filho de dona Martha só vive metido com gentinha.
Almirante já havia ousado algumas inovações na gravação de Na Pavuna, um samba à
antiga que de novo só tem mesmo o acompanhamento: além do bandolim de Luperce
Miranda
e do piano da garota Carolina Cardoso de Menezes8, Almirante levou para o
estúdio - e pela primeira vez - instrumentos de percussão típicos de blocos e
escolas de
samba, incumbindo os negros Canuto, Puruca e Andaraí de executá-los. Na Pavuna
foi mesmo uma das músicas mais ouvidas no último carnaval. Muito pelo refrão (em
cuja
força Almirante fez bem em apostar), mas muito também pela originalidade do
acompanhamento, o surdo e os
128
tamborins levando ao disco uma marcação e um repinicado não conhecidos dos
estúdios de gravação.
Mas a vontade de inovar sempre mais vai levar Almirante a outras experiências,
de modo que, infelizmente, a associação dos tangarás com a batida dos morros
será
um episódio isolado, não repetido. Assim, após uma breve volta às emboladas,
toadas, valsas e canções, inclusive uma regravação de Anedotas, o conjunto se
lança
a outra ousadia.
Almirante e João de Barro vão de bonde, de Vila Isabel à Rua Almirante Barroso,
sem idéia do que gravarão do outro lado de Mulata, samba do'próprio João de
Barro,
quando lhes passa pela cabeça uma brincadeira sonora. Que tal usarem no disco,
em vez do surdo e dos tamborins, nada menos do que toda sorte de latas velhas
que
encontrarem no primeiro monte de lixo do Centro? Latas do que for, banha,
querosene, creolina, manteiga, substituindo os verdadeiros instrumentos de
percussão. Em
cima de um estribilho que os dois compõem durante a viagem...
Já que não temos pandeiro Para fazer a nossa batucada Todo mundo vai batendo Na
lata velha e toda enferrujada
... cada um dos tangarás terá de cantar uma quadrinha alusiva à lata que lhe
caberá bater na marcação do ritmo. Almirante e João de Barro entusiasmam-se com
a própria
idéia e a levam ao maestro Eduardo Souto.
A Odeon e a Parlophon já não são as mesmas desde que assumiu a direção artística
da Casa Edison este estupendo compositor, pianista, orquestrador e regente.
Músico
extraordinário, ser humano fascinante. Dizem que descende de nobres, neto de um
certo Visconde do Souto. Nascido em Santos, lá começou a estudar piano.
Clássico,
evidentemente. Mas, a exemplo de muitos jovens de família como a sua - que
começam com Chopin e acabam mesmo desaguando nas valsas brasileiras, nos choros,
tanguinhos,
polcas, música mais ligeira que se ouve em festas e saraus - Souto já era, aos
vinte e poucos anos, dono de uma respeitável obra pianístíca nos moldes das de
Ernesto
Nazareth, Chiquinha Gonzaga e seu coestaduano Marcello Tupynambá. Só que mais
ampla, mais aberta, voltada para várias frentes. Reflexo de seu próprio
temperamento,
rico, múltiplo, ora extrovertido, alegre, ora soturno, nostálgico, sua música é
arte de muitas faces, havendo nela lugar para tudo, tangos de salão, marchas,
fox-trots,
choros, fados, valsas, schottisches, maxixes, chulas, charlestons, cateretês,
ragtimes, sambas.
Um paulista surpreendentemente carioca. Pois foi ele o responsável pela
organização do já histórico Tatu Subiu no Pau, bloco carnavalesco que fez furor
em 1923,
o próprio maestro compondo a marchinha que toda a cidade cantou nos três dias:
Tatu subiu no pau É mentira de vancê Lagarto ou lagartixa Isso sim que pode sê
É um choro à moda carioca o seu Parati Dançante, cujo subtítulo está muito mais
para Noel do que para Almirante: "Na Favela e demais zonas congêneres não se usa
o chá como estimulante para as danças." E no entanto, o múltiplo Eduardo Souto é
capaz também de compor melodias apaixonadas, etéreas como Nuvens, chorosas como
a valsa Tristeza. E o que dizer destas obras-primas que são Do Sorriso da Mulher
Nasceram as Flores e Despertar da Montanha, escritas no mesmo piano em que foi
composto
o saltitante Viradinho, cateretê que Mário de Andrade inclui entre suas peças
populares prediletas?
Fascinante sob todos os aspectos. Basta dizer que o mesmo folião que saiu de
sujo naquele bloco de 1923 é o homem elegante e bonito que há anos vem atraindo
moças
suspirantes à Casa Carlos Gomes, no 153 da Rua do Ouvidor, para ouvi-lo tocar no
piano românticas valsas, líricas canções. Bem vestido, uma precoce mecha branca
a matizar-lhe a cabeleira bem penteada, o maestro Souto faz bater mais forte
muitos corações. Mas, homem transitório, aqui, com os tangarás, não é nada
disso, e
sim um músico divertido, alegre, brincalhão, que se entusiasma com a idéia da
batucada de latas que Almirante e João de Barro trazem para a nova gravação do
grupo.
Neste 1930, Eduardo Souto já está perto dos cinqüenta anos(9), mas tem o
espírito tão jovem quanto o dos rapazes de Vila Isabel. E ele mesmo participa da
brincadeira
colocando sua voz no disco. Antes de o conjunto entrar com o estribilho, há um
pequeno diálogo iniciado por Almirante:
- Como é, pessoa, vamofazê uma batucada?
Ao que João de Barro responde:
- Vambora. Mas que pandeiro? Souto intervém:
- Pandeiro, nada! Lata veia taí à beça! Novamente João de Barro:
- Isso mesmo! Vamofazê a batucada de lata veia!
Seguem-se o estribilho em coro e depois as quadrinhas cantadas, pela ordem, por
Almirante, Noel, Alvinho e João de Barro, este
129

batucando num penico. Quadrinhas improvisadas no estúdio, com efetiva


participação de Noel(10):
Para poder formar no samba Para entrar na batucada Fabriquei o meu pandeiro De
lata de goiabada
Sai do meio do brinquedo Não se meta, dona Irene, Porque fiz o meu pandeiro De
lata de querosene
Ando bem desinfetado Só porque, minha menina, Fabriquei o meu pandeiro De lata
de creolina
Escuta bem, minha gente, Escuta bem pelo som E depois vocês me digam Se o
instrumento é bom
Não se pode dizer que o produto sonoro de Lataria tenha sido dos melhores. É, no
mínimo, bastante inferior ao obtido com Na Pavuna. Instrumentos e
instrumentistas
fazem pouco mais do que barulho na cúpula do Teatro Phoenix. Um barulho que os
incipientes recursos técnicos das gravações de agora só vão acentuar.
Instrumentos
metálicos, estridentes. Instrumentistas que ainda têm muito a aprender com
Canuto e sua gente.
Importante, contudo, é que esta abertura de Eduardo Souto para novidades
musicais, ainda que em tom de brincadeira como a que Almirante e seus tangarás
acabam de
gravar, será valiosíssima para a música popular. Como diretor artístico-homem
sem preconceitos de gêneros ou estilos, atento a tudo, ele próprio gostando de
ousar
- franqueará os estúdios a muita gente nova e talentosa, gravará outras
experiências sonoras, apoiará artistas como Almirante em suas iniciativas de
trazerem para
o disco a percussão dos morros, os sambistas instintivos até aqui marginalizados
da música como profissão. Vai-se dever muito a isso a riqueza dos catálogos
Odeon
e Parlophon nos próximos anos. Mas é necessário dizer que esta postura de
Eduardo Souto - de abrir sempre mais os horizontes da música popular através do
disco,
registrando todos os gêneros, formas e tendências, mesmo as aparentemente mais
inviáveis como Lataria ou as confessadamente mais primitivas como as ouvidas nos
terreiros
de macumba - é lúcida, consciente. O maestro acredita nela(11). Para sorte dos
tangarás.
Em 1930 Noel Rosa é ainda um principiante, um compositor inexperiente. Seu
melhor trabalho até agora, Com Que Roupa?, embora fadado a mexer com todo o
mundo que
faz música popular neste país, permanece inédito. E nasceu de sua velha
intimidade com a arte das paródias. Seguirá ele sempre por essa trilha? Adotará
nas próximas
composições o mesmo processo? Qual será o seu método de trabalho, a sua técnica?
Não se deve confiar muito no que ele mesmo dirá, sobretudo aos jornalistas que
cada vez mais o procurarão, à medida que se torne famoso. O Noel Rosa das
entrevistas
será quase sempre um artista do despistamento, um gozador a mascarar suas
respostas com grandes e pequenas mentiras, divertindo-se ao ler no dia seguinte
as fantasias
que vai criando a seu próprio respeito. Como nesta entrevista de daqui a alguns
anos:
"- Como você faz os sambas? Quando faz e onde?
-- Já ensinei afazer sambas, num domingo, no Programa Casé. A inspiração vem
inesperadamente. Dentro de um ônibus, ou numa mesa de café. Escrevo logo a
melodia no
primeiro papel que encontro, ou no maço de cigarros. Mostro, em seguida, à minha
mãe. Se ela gosta, guardo-o. Se não, rasgo-o.
- Tem rasgado muitos?
- Há uma história muito velha e muito conhecida sobre a coruja e seus filhos...
Mamãe é assim: tudo que faço acha ótimo. Por isso, até hoje não rasguei nenhum.
"
- Principiante, sem experiência. Mas já é nítida sua preocupação com a
originalidade, não repetir o que os outros já fizeram, não se deixar levar pelos
caminhos
fáceis do lugar-comum. A partir dessa preocupação, trata de desenvolver logo
seus próprios esquemas de fazer música e letra. Passando por cima de suas
primeiras
produções - as paródias, a valsa, o choro, a toada, as emboladas, a canção - é
possível observar na maioria, quase totalidade das obras que se seguem a Com Que
Roupa?,
que pelo menos o letrista descobre muito cedo que neste ofício de compositor
popular existe como que uma chave, um ponto de partida em todo o processo de
criação:
a idéia. Noel Rosa começa a ser agora - e será sempre - um compositor temático,
tudo ou quase tudo partindo de um motivo central, um tema. O que talvez explique
o fato de vir a ser, daqui a uns tempos, um campeão das segundas partes, um
inigualável complementador de obras apenas esboçadas, alguém lhe aparecendo com
a primeira
parte pronta, a idéia, e ele completando-a com habilidade, competência ou mesmo
brilho, sem se afastar dela.
130

Por saber que idéia não sendo tudo é mais do que meio caminho, jamais deixará
que uma lhe escape. Se não florescer hoje, agora, um samba começado não chegando
ao
fim, vai retomá-la amanhhã ou depois, como fará ao revestir a história de
Mardade de Cabocla com a roupagem de Quando o Samba Acabou. Idéias afins serão
encontradas
em outros pares de composições, editadas ou inéditas, que produzirá nos próximos
seis anos. Editadas como O Pulo da Hora e Por Causa da Hora, inéditas como Saber
Amar e Que Orgulho É Este?10 Mas, especificamente neste 1930, o melhor exemplo
de seu método de trabalho - de como não deixa uma boa idéia escapar, a ponto de
desenvolvê-la,
de retomá-la mais adiante, podendo mesmo transformar um samba em dois outros tão
bons ou melhores -está num esboço, música e letra, intitulado Vou Te Ripar:

Toma cuidado que eu te ripo


Porque tu não és meu tipo
E eu contigo não fiz fé
(Podes dar marcha a ré).
O banzé eu sempre evito,
Pois não me fica bonito
Exemplar uma mulher
Quem avisa teu amigo é,
Tudo acaba nesta vida
Até mesmo a paciência.
E quando qualquer mulher
Fica sendo oferecida
É pela conveniência.
Nada tu possuis para me dar,
Tu nasceste muito pobre
Nem podes gastar pintura.
Nada tens para mostrar,
Não herdaste sangue nobre
E abusaste da feiúra

A música é melhor que a letra, mas não chegará ao público. Noel vai preferir
aproveitar a idéia, ou melhor, as idéias contidas no esboço e fazer dois sambas
de um.
Num deles mantém o estribilho acima, com ligeiras modificações na melodia, e
acrescenta-lhe novas segundas partes, música totalmente diferente e letra que
nada tem
a ver com a original:

Vivo alegre no meu barracão


Não preciso de mobilia
Pois toda a minha família
Consta de um chicote, de um facão,
De uma ripa ainda donzela
Que vai ter sua função
A mulher que mais a gente preza
Por capricho nos despreza
Acontece sempre assim
De contrastes o mundo anda cheio
E a mulher que eu mais odeio
É quem gosta mais de mim
Tanto tu disseste que escutei
Que não achas a lei dura
Mas só acha quem procura
E agora para ter certeza
Vais provar toda a dureza
Desta madeira de lei
A esta segunda versão Noel dará o mesmo título do esboço, Vou Te Ripar,
gravando-a ele mesmo, ano que vem, para o carnaval de 1932(14). Mas, se vai pôr
de lado a
melodia da segunda parte original, não deixará de aproveitar a idéia poética em
outro samba que também gravará para o carnaval de 1932, Nunca... Jamais!, de
melodia,
primeira e segunda partes, inteiramente nova:
Meu bem, não me faças sofrer,
Tu queres ter liberdade demais.
Os homens tu conquistas um por um,
Sem amar nenhum...
Não, não pode ser, nunca... jamais...
Em tempo algum!
131

Qualquer dia morro de um acesso


Só por ver o teu processo
De iludir os coronéis.
Qualquer dia eu perco a paciência,
Digo inconveniência
E depois te meto os pés
(E vou pagar vinte mil réis!)
Deste a todo mundo a tua mão
E teu pobre coração
Mais parece uma estalagem
Para salvação o que desejo
É mandar fazer o despejo
Pra poder descer bagagem
( Mas é preciso ter coragem!)
Nada de ti posso aproveitar,
Nada tens para me dar,
Nem tens nota pra pintura.
Todo mundo sabe que és pobre,
Não herdaste sangue nobre
E abusaste da feiúra
( Pra quem é pobre a lei é dura! )

Este filho de Dona Martha só vive metido com gentinha. Noel ainda não tem vinte
anos e já pode considerar-se bastante familiarizado com as coisas da
malandragem,
sua gente, suas leis, seu apaixonante ainda que estranho mundo. Sente-se atraído
por ele. Mesmo que não viva exatamente de acordo com suas regras, aceita-as, faz
sua apologia em letra de samba. Os malandros o fascinam, sempre o fascinarão. A
sociedade pode marginalizá-los, persegui-los, amaldiçoar seu modo de vida. Mas
quem
mais - mesmo com todas as freqüentes passagens pela cadeia - conhece tão de
perto as cores da liberdade? O malandro é livre a seu modo.
Mas quem é, afinal, este personagem que tanto fascina Noel? Onde vive, o que
faz, a que se deve sua fama, o que tem de tão fascinante?
O malandro, se se for ver bem, sempre existiu. Em todas as épocas e em todos os
lugares. O Brasil mal tinha sido descoberto e já os italianos arregalavam os
olhos
diante das façanhas de certo tipo de espertalháo a que chamavam de malandrino.
Vivo, sagaz, cheio de imaginação, ganhava a vida às custas de golpes, nunca de
trabalho.
O nosso malandro descende do malandrino no nome e no modo de vida. Não tem
emprego fixo nem profissão definida. E acredita muito mais na astúcia do que no
batente.
Costuma fazer aquilo que as pessoas chamam de "viver de expediente", uma viração
aqui, uma esparrela ali, um grande golpe mais adiante. Suas atividades são tão
incertas
quanto ilícitas. Sabe, como ninguém, burlar a vigilância policial. Sente-se
orgulhoso e feliz toda vez que passa a perna num homem da lei, a quem chama,
entre outros
"mil apelidos, de samango. Aliás, no seu linguajar muito próprio, raramente dá
às coisas os nomes que elas têm. Trata cerveja de água benta, cachaça vagabunda
de
infiel, jornalista de pena, maconha de rafo, roubo de ramoneio, elegância de
estifa, gente do morro de cabrito, revólver de berro ou cospe-fogo, pederasta de
indivídua,
dendeca ou brilhante, navalha de aço, espada ou zinco, prostituta de minestra,
mariposa, maquininha ou mina. Definitivamente, detesta o trabalho. Pelo menos o
trabalho
institucionalizado. E tem lá os seus motivos: em geral ele pertence a uma das
primeiras gerações descendentes de ex-escravos menos afortunados - ou menos
considerados
pelos ex-senhores - que a sociedade marginalizou, empurrado-os sem emprego, sem
ofício, para longe de sua vista, os morros, os subúrbios, os fins de mundo. Se
no
início não lhes davam trabalho, condenando-os a uma sobrevivência difícil, hoje,
na figura do malandro, são eles que viram as costas ao trabalho. Preferem se
dedicar
a uma destas três "especialidades" principais: o jogo, a mulher e a estia.
Quando não às três ao mesmo tempo.
O malandro jogador não faz fé em sorte. Confia muito mais nas próprias
artimanhas. Finge-se de pexote na sinuca até que o adversário se anime e suba a
aposta, vicia
dados, esconde na unha a bolinha que deveria estar sob a chapinha (como aquele
que surrou Noel à saída do São Bento), carimba imperceptivelmente as cartas do
baralho
com a goma preta que escorre de um charuto marca Palhaço.
O que vive de mulher não gosta que o chamem de "cafifa" ou de qualquer outro
sinônimo. Segundo diz, não explora as minas:
- O que eu faço é dar cobertura a elas.
Cobertura no caso é uma espécie de proteção. Em troca de parte da féria que ela
consegue negociando o corpo, o malandro protege-a de clientes caloteiros, de
degenerados
que a maltratam, de bêbados inconvenientes, de policiais sem escrúpulos ou até
de outros malandros. Um "protetor" ativo, bonitão, de boas falas e atento aos
interesses
da protegida (inclusive, de vez em quando, aplicando-lhe apaixonadas cocas),
chega a ter sob sua guarda, quatro, cinco, seis mulheres.
Estia é um tipo de gratificação paga ao malandro por pessoas que moram ou
trabalham em sua área de influência. Por respeito ou medo, os cidadãos pacatos
acham melhor
molhar a mão deste malandro - considerado o mais perigoso - do que ser por ele
molestado. O profissional da estia é dos três o mais identificável à distância.
Sentado
na sua mesa "particular" junto à porta do botequim (nunca de costas para a rua),
132
ali recebe a clientela metido num terno branco de linho 120, camisa de seda
(dizem que para cegar o fio da navalha que eventualmente deslizar por ela),
gravata,
chapéu, sapato de duas cores ou então um confortável chinelo charlotte, o
popular "cara de gato".
Todos esses códigos próprios de vida - somados ao fato de que por trás da
cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos leais, braços fortes
dispostos a ajudar em hora de aperto - é que fascinam Noel. Terá muitos
malandros
entre seus amigos mais chegados, fará o que, puder por eles e por eles será
socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de sambas que comporá sobre
malandros
e malandragem, mesmo não sendo exatamente este o seu mundo, conhece-o bem,
compreende-o.
Um dos sambas que criou neste 1930 - e que ele gravará sem os tangarás do outro
lado de Com Que Roupa?- inspira-se neste mundo. E fala do papel que o próprio
Noel
representa nele, um malandro de fora, frágil, tímido, medroso, acreditando nas
leis da malandragem, mas só as seguindo até onde seu fôlego permite. Embora seja
um
excelente samba - e um notável auto-retrato - a crítica não lhe fará justiça.
Eis, por exemplo, o que dirá a revista Pbono-Arte:
"No complemento desse mesmo disco, ouve-se outro samba de Noel, Malandro
Medroso, peça que não se mostra companheira digna da que está do outro lado."15
Apesar disso, Malandro Medroso ficará mesmo como um dos bons trabalhos do começo
de carreira de Noel Rosa, exemplo de sua preocupação com a originalidade, ponto
de contato com um mundo que o fascina:

Se um dia ficares no mundo,


Sem ter nesta vida mais ninguém,
Hei de te dar meu carinho,
Onde um tem seu cantinho
Dois vivem também...
Tu podes guardar o que eu te digo
Contando com a gratidão
E com o braço habilidoso
De um malandro que é medroso,
Mas que tem bom coração.

Se os zelosos irmãos de Clara fizeram gosto um dia, já não o fazem agora. Uma
coisa era o Noel bom menino, aluno do Ginásio de São Bento querendo estudar
medicina.
Outra é o Noel de agora, bacharel por decreto, mais interessado no violão que
nos livros, boêmio, volta e meia na companhia de tipos estranhos. Clarinha
começa a
ouvir em casa comentários de desaprovação ao namorado, que não estuda, não
trabalha, não faz outra coisa senão sentar-se num dos botequins do Ponto de 100
Réis ao
lado de outros desocupados. Dizem até que está pretendendo virar cantor de
rádio. Uma coisa era o futuro médico. Outra, o capadócio.
Além do mais, nem parece se importar com Clara. Falta aos encontros, desaparece,
volta com desculpas disparatadas. Os irmãos gostariam de vê-la acabar com o
namoro.
Mas Clara nem liga. Prefere guardar de Noel os bons momentos, as palavras
gentis, os melhores gestos. Como os bilhetes em verso. Ou como o retrato dela
que ele mandou
ampliar e recortar em forma de coração. Para Clara, é só isso que conta.
Uma noite, é surpreendida pela notícia de que vai morar um pouco mais longe do
chalé. Antes que o ano termine, os Corrêas Netto terão se mudado. Da Theodoro da
Silva,
em Vila Isabel, para a Barão de Bom Retiro, no Engenho Novo. Quem sabe Clara não
esquece Noel? - pensam os irmãos.
Eu devo,
não quero negar,
Mas te pagarei quando puder,
Se o jogo permitir,
Se a polícia consentir
E se Deus quiser...
Não pensa que eu fui ingrato,
Nem que fiz triste papel,
Hoje vi que o medo é um fato
E eu não quero um pugilato
Com teu velho coronel.
A consciência agora que me doeu
Eu evito a concorrência
Quem gosta de mim sou eu!
Neste momento, eu saudoso me retiro,
Pois teu velho é ciumento
E pode me dar um tiro.
133

NOTAS
1. Com letra ligeiramente modificada e segundas partes definitivas, escritas
por João de Barro, Vou à Penha Rasgado seria gravado em 1931 pelo próprio João
de Barro
com o Bando de Tangarás. Mas sua origem está mesmo nos desfiles do Faz Vergonha.
2. Com a construção dos viadutos próximos à Praça da Bandeira, a Rua Elpldio
Boamorte está hoje reduzida a um pequeno trecho e a apenas um prédio, onde
funciona
o Centro Municipal de Saúde Marcolino Candau. Seu nome é uma homenagem não só ao
anfitrião e animador cultural da Vila Isabel dos anos 30, mas também ao Diretor-
Geral
do Tesouro Nacional, mais tarde Diretor da Fazenda do Distrito Federal, que o
doutor Elpídio foi.
3. Severo Fournier comandaria o putsch integralista que a 11 de maio de 1938
tentaria assassinar Getúlio Vargas dentro do Palácio Guanabara. Era então
tenente e
declarava-se "apenas um descontente", sem vínculos com o partido de Plínio
Salgado ou qualquer outro. Fracassada a tentativa, Fournier se exilaria na
Embaixada da
Itália no Rio de Janeiro. Depois de prolongadas conversações diplomáticas, foi
entregue âs autoridades brasileiras, julgado e condenado a dez anos de prisão.
Ele,
Júlio do Nascimento e Belmiro de Lima Valverde, também participantes do
atentado. Fournier seria libertado em 1945 e morreria no ano seguinte de
tuberculose adquirida
na prisão.
O episódio com Martim Adeus Ó Colo foi contado aos autores pelo General
Sylvestre Travassos, na época morador do bairro.
4. A expressão "Adeus ó colo" não foi encontrada em nenhum dos dicionários
consultados pelos autores. Mas era muito usada no Rio de Janeiro dos anos 30 - e
mesmo
depois - como uma forma algo debochada de se dizer "fim", "acabou", "até nunca
mais".
5. Estes foram de fato os dois primeiros registros fonogrãficos do Bando de
Tangarás, lançados no suplemento Odeon de agosto de 1929- No entanto, Mulher
Exigente,
de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e Henrique Britto, dois
sambas gravados um mês depois, foram lançados primeiro, no suplemento Parlophon
de junho.
6. Alvinho gravaria onze discos com seu próprio nome, 21 faces, em 1930 e 1931,
o primeiro dos quais como solista da Orquestra Pan-Americana. Nenhum deles,
porém,
teria qualquer ligação com o Bando de Tangarás. Entre as músicas de seu
repertório incluem-se sambas, marchas, canções, valsas, fox-trots.
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante
não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável
tendência
ãs más companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
120).
8. Carolina Cardoso de Menezes tinha apenas treze anos quando participou da
gravação de Na Pavuna em 30 de novembro de 1929.
9. Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria
no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.
10. O nome de Noel Rosa não está no selo do disco ou na partitura impressa de
Lataria. Mas João de Barro, que assina o samba com Almirante, em mais de uma
ocasião
admitiu a participação de Noel na feitura dos versos que iam sendo improvisados
dentro do estúdio da Odeon. Numa delas, em entrevista a Sérgio Cabral, publicada
no segundo caderno de O Globo em 24 de janeiro de 1977.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro,
substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a
revista
Phono-Arte dedicava ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros
pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse
acontecendo
na música brasileira, do samba da moda ao ainda pouco conhecido canto dos
terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de
experiências sonoras
domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco
contendo
de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um
Conjunto Africano, sairiam Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na
música
dos escravos (e até mesmo uma "cena de escravidão" que o
próprio Souto comporia com Newton Braga para Francisco
Alves cantar), desafios, cenas humorísticas, rancheiras, pregões,
rumbas, danças orientais, uma "reza de malandro" (também de
Souto), tudo isso seria gravado nos selos Odeon e Parlophon
enquanto o maestro estivesse à frente da direção artística da
Casa Edison.
12. Carioca, 14 de dezembro de 1935 (página 42).
13 0 Pulo dá Hora e Por Causa da Hora serão focalizados no
Capítulo 17. Saber Amar e Que Orgulho É Este?, no Capítulo 15
14. Almirante se equivoca, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
178), ao dar a primeirFigura 1a versão de Vou te Ripar como a que foi cantada
nas ruas
no carnaval de 1932. Deve ter-se baseado no esboço que Noel deixou em seu
caderno de letras ou na partitura manuscrita, hoje parte do acervo do Arquivo
Almirante
do Museu da Imagem e do Som, Rio. A versão gravada, popular no carnaval citado,
é mesmo a segunda.
15. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25).
Mulher Exigente, de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e
Henrique Britto, dois sambas gravados um mês depois, foram lançados primeiro, no
suplemento
Parlophon de junho.
6. Alvinho gravaria onze discos com seu próprio nome, 21 faces, em 1930 e 1931,
o primeiro dos quais como solista da Orquestra Pan-Americana. Nenhum deles,
porém,
teria qualquer ligação com o Bando de Tangarás. Entre as músicas de seu
repertório incluem-se sambas, marchas, canções, valsas,
fox-trots.
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante
não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável
tendência
às más companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
120).
8. Carolina Cardoso de Menezes tinha apenas treze anos quando participou da
gravação de Na Pavuna em 3 0 de novembro de 1929-
9- Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria
no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.
10. O nome de Noel Rosa não está no selo do disco ou na partitura impressa de
Lutaria. Mas João de Barro, que assina o samba com Almirante, em mais de uma
ocasião
admitiu a participação de Noel na feitura dos versos que iam sendo improvisados
dentro do estúdio da Odeon. Numa delas, em entrevista a Sérgio Cabral, publicada
no segundo caderno de O Globo em 24 de janeiro de 1977.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro,
substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a
revista
Phono-Arte dedicava ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros
pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse
acontecendo
na música brasileira, do samba da moda ao ainda pouco conhecido canto dos
terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de
experiências sonoras
domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco
contendo
de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um
Conjunto Africano, sairiam Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na
música
134

NEM REI, NEM GENERAL

Capítulo 14

Eu não pensava em ser general, nem Presidente da República. Que valia o próprio
fastígio dos reis, dos soberanos absolutos, diante do encanto comunicativo dos
criadores
de ritmo?
entrevista ao Jornal de Rádio
Os irmãos de Clara podem não fazer gosto, mas Martha faz. E muito. Nenhuma
perspectiva a deixa mais feliz do que a de ver o filho casado com a bonita e
meiga Clarinha,
filha caçula de dona Clara Souza Netto. Por isso, enquanto os irmãos dela se
alegram com a mudança da família para o Engenho Novo, para um pouco mais longe
dos olhos
do seresteiro Noel Rosa, Martha trata de fazer com que Clarinha permaneça perto:
- Gostaria muito que você me ajudasse na escolinha. Ensinando as primeiras
letras às crianças menores. Posso lhe pagar, digamos...
A Clara pouco importa quanto dona Martha pode ou não lhe pagar como sua
professora auxiliar. O simples fato de, mudando-se para o Engenho Novo,
continuar indo ao
chalé todos os dias vale mais do que qualquer dinheiro. Aceita. A partir de
março de 1931, quando as crianças voltarem a sacudir as pequenas salas de aula
do Externato
Santa Rita de Cássia, lá estará ela, ajudando dona Martha. Do ponto de vista
prático, uma solução também interessante: vó Rita morta, Carmem e Arlinda longe,
Martha
decerto precisa de quem divida com ela as tarefas da escolinha. Clara, portanto,
é o agradável que se vem juntar ao útil.
- Você ainda vai ser minha nora - diz manifestando mais um desejo do que uma
certeza.
Clara ainda não tem dezoito anos, Noel tem apenas dezenove. E nem sequer entrou
para a Faculdade de Medicina, como é vontade de todos. De modo que dona Martha
sabe
que muito tempo ainda terá de correr até que os dois possam se casar. Mas faz
gosto assim mesmo. E diz a Clara que ela mesma cuidará do enxoval. É uma
promessa.
Os Corrêas Netto vão morar na casa número 487 da Rua Barão de Bom Retiro. É
maior e mais barata. Quase na esquina da Rua Moju, pode-se dizer que fica num
território
meio neutro, um pouco Engenho Novo, um pouco Grajaú, um pouco Vila Isabel. A
Vila Isabel de Noel Rosa.
Não hão de ser os dez minutros que se perdem do Ponto de 100 Réis até a casa de
Clara que irão separá-lo dela. Muito menos a cara feia dos irmãos. É que os dez
minutos
costumam ser cinco, já que geralmente o bonde é trocado pelo automóvel. Para
quem tem tantos amigos motoristas de praça, todos dispostos a dar uma carona,
seja para
onde for, não há distância que não se reduza à metade. E Noel tem e terá sempre
muitos amigos na praça.
Neste 1930, porém, três merecem especial atenção. São três boêmios, todos
devotos
135

das noites e das serenatas. Mais velhos que Noel, mas também jovens, solteiros,
boêmios. Um deles é o amigo Alegria, que ainda não tem seu próprio carro, mas
costuma
conseguir um emprestado para fazer biscates na praça. O segundo, Valuche. O
terceiro, Malhado. Dos três, Francisco Valuche é o mais aprumado, o que tem
melhor situação,
funcionário do Ministério da Fazenda pela manhã, motorista particular de um
homem importante o resto do dia. Este homem importante, o doutor Salles
Filho(1), empresta-lhe
seu reluzente Dodge negro na parte da noite, não se interessando em saber com
quem sai ou aonde vai Valuche. Quanto a Malhado, Serafim Vieira da Cunha, faz
ponto
na Praça da Bandeira mas vive em Vila Isabel atrás do pessoal da seresta.
-Ainda hei de cantar no rádio - costuma repetir.
O apelido de Malhado se deve às manchas que tem pelo corpo: vitiligo. É mesmo um
seresteiro. Não na voz, que ao contrário do que pensa não tem a potência e
afinação
da de Vicente Celestino. Malhado sequer canta tão bem quanto Alegria. Mas é um
seresteiro na medida em que se delicia em varar madrugadas cantando acompanhado
pelo
violão de Noel.
Canto
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta, está dormindo
Canto e por fim
Nem a lua tem pena de mim
Pois ao ver que quem te chama sou eu
Entre a neblina se escondeu.

Vibra com as canções de Eduardo e Cândido das Neves, tem um caderno onde todas
elas estão anotadas. Abre o mais alto possível a voz maldotada. Os amigos não o
levam
a sério como cantor. Noel costuma acompanhá-lo de forma caricata, extraindo do
violão efeitos esquisitos, citações grotescas de músicas muito conhecidas, de La
Cumparsita
a Meu Boi Morreu, que acabam fazendo Malhado desafinar ainda mais, confundido
por tantos e tão complicados acordes. Os outros participantes das serenatas
riem, Noel
ajoelhado na calçada, a perna esquerda dobrada para apoiar o violão, e Malhado
cantando:
Jurei amar-te e só não mais querer-te Quando morto baixar à sepultura
Às vezes Malhado leva mais longe seu entusiasmo:
- Cantar no rádio? É pouco. Acho que vou tentar a ópera. Vicente Celestino
também não canta ópera?
Os três motoristas acompanham Noel por toda parte. Um ajuda o outro, tocando
violão, compondo, cantando ou guiando o automóvel. Mudam apenas as canções. E as
janelas
sob as quais se postam, hoje de uma mulher que Valuche corteja, amanhã de uma em
quem Alegria está de olho. É evidente que muitas serenatas são feitas para
Clarinha.
Com ou sem cara feia dos irmãos.
A casa dos Corrêas Netto fica ao lado de uma vila. Como a calçada da rua é
estreita, obrigando os seresteiros a se colocarem muito próximos à janela na
hora de cantarem
- e como essa proximidade, segundo Noel, pode ser tomada como provocação pelos
irmãos de Clara - acham que o melhor é entrarem na vila. A janela do quarto de
Clara
está justamente na parte lateral da casa, separada da vila por um muro de dois
metros no máximo. Noel, Alegria e Valuche dirigem-se até aquele ponto e, do lado
de
cá, podendo ser ouvidos perfeitamente pelo pessoal do 487, mas protegidos de sua
visão pelo muro, cantam. De início a idéia parece boa. Clara abre sua janela, os
irmãos dela também se chegam para ouvir. Estão todos gostando. Cantam-se duas,
três canções, a serenata tem tudo para ser um sucesso. Acontece que um dos
moradores
da vila não gosta de música. E dorme cedo. Por isso, antes que se comece a
cantar a quarta canção, sua voz é ouvida como um trovão:
- Vão cantar no inferno, seus vagabundos!
Noel, Alegria e Valuche se assustam. O homem grita de novo:
- Aqui tem gente que trabalha e precisa dormir!
A serenata é um fracasso. Clara conta a Noel, no dia seguinte, que o tal homem é
coronel do Exército, mal-humorado e autoritário. Não gosta de música. Só a que
tocam
as bandas militares, ou a que sopra o corneteiro do quartel. As filhas, moças
educadas dentro de rígidos padrões de disciplina e respeito, mal podem ouvir
rádio.
Noel encontra-se com Malhado no Ponto de 100 Réis. Ao se dar conta de que o
amigo não esteve na serenata de véspera, vem-lhe uma idéia. - Descobrimos ontem,
na vila
ao lado da casa de Clara, umas garotas lindas, Malhado. As mais lindas de todo o
Engenho Novo. Acho que vale a pena você fazer uma serenata pra elas. Com a sua
voz,
o seu sentimento, duvido que pelo menos uma não fique impressionada. Pense
nisso, Malhado.
Malhado pensa. Principalmente quando Noel lhe diz que comporá uma romântica
valsa para que cante em primeiríssima audição sob a janela das moças. Uma valsa
cheia
de paixão, Malhado devendo pôr nas palavras todo o seu sentimento. E não é só:
Noel já tem todo o
136

esquema armado para que só ele brilhe nesta noite de seresta. Enquanto Malhado
vai cantar dentro da vila, bem na porta da casa das moças, Noel ficará do lado
de
fora, sem ser visto, acompanhando-o ao violão. Se Malhado tinha alguma dúvida,
esta se desfaz no momento em que, já a caminho da Barão de Bom Retiro, Noel lhe
mostra
a valsa que acaba de compor para ele. É bonita, bonita demais. Nenhuma das
músicas que Noel fez até agora parece casar-se tão bem com sua voz. E cheia de
palavras
difíceis, daquelas que Catulo gosta de usar em suas canções. Tem razão: não é
possível que as moças não se impressionem.
Chegando à entrada da vila, Noel aponta para Malhado a casa do coronel.
- É ali. Quando estiver pronto, faz sinal pra mim que eu entro com a introdução.
Malhado obedece, chega à porta da casa do coronel, aproxima-se o mais que pode,
faz sinal para Noel. Este executa ao violão a melodiosa introdução. No momento
exato,
bem alto, e dando a cada palavra uma interpretação comovida, Malhado canta:
Eu saí da tua alcova
Com o prepúcio dolorido
Deixando o teu clitóris gotejante
Com volúpia emurchecido.
Porém, o gonococus da paixão
Aumentou minha tensão...

Malhado não chega ao fim da valsa. Para seu espanto, em vez de aparecer na
janela uma das lindas moças de que Noel falara, surge um alucinado cidadão de
pijama,
revólver em punho, aos gritos:
- Canalha! Imoral!
O coronel dispara um primeiro tiro para o alto. Quando aciona o gatilho pela
segunda vez, Malhado já passou correndo por Noel na porta da vila. Se houve ou
não um
terceiro tiro, os dois jamais saberão, pois em poucos segundos já estão quase no
Jardim Zoológico, depois de dobrarem em disparada a Curva da Morte(2).
- Não posso compreender- repete o inconsolável Malhado, ele e Noel já a salvo
bebendo uma cerveja na Praça 7.
- É mesmo muito estranho - representa Noel.
Malhado diz ter certeza de que cantou bem, no tom, dando o melhor de si para
valorizar a bonita valsa de Noel. Mesmo sem saber exatamente o sentido de um ou
outro
verso, interpretou-os com sentimento e dignidade. Por que terá o homem se
enfurecido tanto a ponto de recebê-lo a bala? Noel teria alguma idéia?
- Falta de sensibilidade, Malhado. Há
gente que não tem a mínima sensibilidade para a música.
Nem sempre há um carro à disposição para as freqüentes viagens de Noel à Rua
Barão de Bom Retiro. Pode acontecer de Alegria, Valuche e Malhado terem outros
programas,
prazeres ou compromissos que os afastem de Vila Isabel e do Engenho Novo,
deixando Noel a pé. Como acontece certa noite em que é convidado para uma
festinha de aniversário
no Engenho Novo. Costuma aborrecer-se logo nesses bailaricos familiares, casais
dançando e conversando à volta de mesas de doces e salgadinhos, refrescos,
ponches
e chope em jarra. Em geral, antes de meia-noite já está ele se despedindo.
- Fica mais um pouco - dizem anfitriões e convidados.
- Por que tão cedo?
Noel explica que tem um compromisso importante, o amigo Cobrinha o espera na
Praça 7. Uma reunião inadiável, algo assim. Infelizmente, tem mesmo de ir.
- Pra onde você vai?- pergunta alguém.
- Eu vou pra Vila.
Já a caminho de casa, num banco vazio do Vila Isabel-Engenho Novo, suas próprias
palavras ficam a martelar-lhe a mente: "Eu vou pra Vila... eu vou pra Vila... "
Começa a cantarolar uma melodia, música e versos saindo-lhe ao mesmo tempo, no
bonde, tarde da noite. No dia seguinte, com a ajuda do violão, fará um novo
samba:
Não tenho medo de bamba
Na roda do samba
Eu sou bacharel
(Sou bacharel)
Andando pela batucada
Onde eu vi gente levada
Foi lá em Vila Isabel
Na Pavuna tem turuna
Na Gamboa gente boa
Eu vou pra Vila
Aonde o samba é da coroa.
Já saí de Piedade
Já mudei de Cascadura
Eu vou pra Vila
Pois quem é bom não se mistura.
Quando eu me formei no samba
Recebi uma medalha
Eu vou pra Vila
Pro samba do chapéu de palha.
A polícia em toda a zona
Proibiu a batucada
Eu vou pra Vila
Onde a polícia é camarada.
Com Eu Vou Pra Vila, Noel Rosa não só rende seu primeiro tributo ao bairro onde
137
nasceu, como também faz um dos primeiros registros de que se tem notícia de um
dos mais marcantes aspectos dessa fase pioneira da história de nossa música
popular:
a perseguição policial aos batuqueiros, aos compositores e cantores de samba.
É bom que se lembre: já existem na cidade pelo menos dois tipos de samba. Um é
aquele que se faz, toca e dança nas casas de Ciata e outras "tias" baianas. O
outro,
o do Estácio e cercanias, dos morros e subúrbios distantes. Com o primeiro,
freqüentado por doutores, intelectuais, políticos, gente importante, a polícia
não se
mete. Com o segundo, lazer das populações pobres daquelas localidades um tanto à
margem da sociedade, o desemprego e o subemprego compelindo os homens a
atividades
malvistas ou mesmo proibidas (o jogo, o servicinho sujo, a exploração de
mulheres, mil e um expedientes, mas nunca o trabalho fixo), cumpre-se a lei:
lugar de malandro
é na cadeia.
Os dois tipos de samba-aquele amaxixa-do da Cidade Nova e o outro da turma do
Estácio - não dividem a cidade apenas musicalmente. Se se for ver bem, há uma
separação
social entre eles. Perseguições a ex-escravos, filhos e netos de escravos que
fazem música, dançam, cultuam seus orixás, existem no Rio desde os últimos anos
do
século passado. Embora não chegasse a haver uma lei contra tais manifestações, a
polícia sempre deu batidas em terreiros onde se evocavam os santos e se trocavam
umbigadas. A própria Igreja, em certa época preocupada com a disseminação dos
cultos afros, andou abençoando tais batidas. Hoje, contudo, já se fazem nítidas
diferenças:
a polícia tolera e até participa dos fungangás nas casas das "tias" baianas,
agora pomposamente rotulados de "cultura afro-brasileira", mas continua
perseguindo
o pessoal do morro, cujo rótulo não muda: são todos malandros.
Os músicos daquele tipo de samba são respeitados como profissionais, tocam em
teatro, cinema, casas de família rica. Como Pixinguinha e seus amigos, tão
respeitados
que um homem da posição social de Arnaldo Guinle financiou-lhes uma viagem a
Paris, há oito anos, em 1922.
Nous sommes batutas Venus du Brésil Nous faisons tout le monde Danser le samba!
Os sambistas de morro nem como músicos são vistos. Desordeiros, isso sim. Muito
porque suas festas semiclandestinas não se limitam ao samba propriamente dito,
mas
também à batucada, não raro terminando em briga, conflito, morte(3). Às vezes
acontece de a polícia dar uma batida e encontrar o pessoal entregue aos
cerimoniais
da macumba. Nesse caso, respeita. Se é cultura afro-brasileira lá em baixo, por
que não seria cá em cima? Mas, tão logo a justiça se vá, o samba começa.
São heróicos esses sambistas do Estácio. Para fazerem vingar o seu canto, a sua
música, para que sua arte espontânea, intuitiva, pura e inofensiva fosse aceita,
para que eles pudessem dar à sua cidade um outro tipo de samba, tiveram de
sofrer muito. Surras, humilhações, desassossego. Seus terreiros invadidos por
policiais
armados, seus blocos desfeitos a golpes de cassetete, eles próprios presos como
vagabundos. É dessa perseguição que fala Noel em dois versos do Eu Vou Pra Vila,
os sambistas do Estácio, freqüentadores da zona (a maioria tem mulher ali),
impedidos de fazer sua batucada.
O samba é gravado por Almirante e o Bando de Tangarás. Uma excelente gravação, o
grupo entoando em coro a duas vozes, preguiçosamente, de maneira bem carioca, a
expressão título: "Eu vou pra Vila..." A terça é feita uma oitava abaixo por
Almirante. A letra original é rigorosamente respeitada no disco, mas na
partitura impressa
há uma intervenção moralista dos editores, que acham melhor substituir "a
polícia em toda zona" por "a polícia em todo canto". Mais distinto, porém menos
preciso.
Noel toma cafezinho num dos botequins do Ponto de 100 Réis quando Alegria chega,
olhos brilhando, fala nervosa.
- Você não sabe o que eu descobri na Rua Moju, depois que te deixei ontem à
noite na casa de Clara
Noel ouve:
- Uma mulher lindíssima. Nunca vi uma tão bonita.
Alegria continua inquieto, excitado, diferente do habitual.
- Ficamos conversando. Marcamos um encontro para hoje à noite. Que mulher
bonita, Noel! Não sei o que seria capaz de fazer por uma mulher assim. Você vai
ver a Clara
logo mais? Então vamos juntos.
Uma fulminante paixão à primeira vista. Dela Alegria jamais se curará. O tempo
há de mostrar que suas palavras - "Não sei o que seria capaz de fazer por uma
mulher
assim..." - podem ser tomadas ao pé da letra. Tão bonita que por ela largará
tudo, a boêmia, as serestas, os planos de tentar carreira no rádio. Uma mulher
de tal
beleza que a gente tem de ficar perto dia e noite. De início Noel talvez ache
que o amigo exagera. Mas, ao sair certa noite da casa de Clara,
138

Alegria está à sua espera na esquina da Rua Moju.


- É ali, Noel. No número 5!
E o sempre excitado Alegria explica que a paixão aumenta a cada instante. E
mais: é correspondido. A mulher chama-se Martha Clara Dieppe Moreau. Uma deusa!
Já estão
fazendo projeto de irem morar juntos. Noel vê as coisas acontecerem muito
rapidamente no coração e na cabeça do amigo, mas o que fazer? Até que Alegria
desperta
também nele o interesse pelo número 5 da Rua Moju, transversal à Barão de Bom
Retiro, a poucos passos da casa de Clara:
-Moram outras moças lá. Todas bonitas.
Alegria pisca-lhe o olho. São moças diferentes destas meninas cheias de dedos e
não-me-toques de Vila Isabel. Alegres, gostam de cantar, de rir, de contar
anedotas. E de namorar também. Que tal fazerem uma serenata para elas amanhã?
Martha vai
adorar. Martha e as outras. Noel se anima.
A serenata é feita. E repetida na noite seguinte, na outra e em outras mais. Os
seresteiros de Vila Isabel cantam para moças de cujos rostos só vêem ligeiros
contornos,
as janelas da casa apenas entreabertas, as luzes apagadas. Alegria é todo
paixão:
-Já decidi: se ela quiser, eu me caso amanhã.
Noel vai se aproximando aos poucos, chegando mais perto, até finalmente conhecer
os moradores da casa. São quinze - oito mulheres, dois homens, cinco meninos -
que
se acomodam como podem nos dois quartos, sala, saleta e porão habitavel. Alegria
tinha razão quanto à beleza de Martha. Mas ela não é a única. Não se pode dizer
que sejam todas bonitas. Nisso Alegria exagerou. Mas também moram ali pelo menos
duas ou três pequenas que nada devem a Martha. Noel conclui isso logo no dia em
que o amigo, já íntimo da casa, o apresenta a toda a família. O que vai demorar
um pouco a concluir - ou mesmo a compreender bem - é a relação de parentesco
entre
as quinze pessoas, certos detalhes de suas vidas, como e por que vieram viver
juntas nesta casa.
O centro de toda a história é o comissário de polícia José Orges Brandão, que
por sinal não mora, nunca morou aqui. Como muitos cidadãos respeitáveis desse
Rio de
Janeiro tão romântico quanto maroto, o comissário -Jucá para os mais chegados -
tinha até bem pouco duas famílias, dois pousos. O oficial, que ainda divide
139

com a mulher legítima, Iolinda, e este da Rua Moju, onde costumava passar as
horas de folga ao lado de Martha Clara. Os meninos Nelson, Walter e Juquinha,
filhos
dessa relação, deixam claro que o comissário não é de brincar. Nem em serviço,
nem nas horas de folga.
A vida dupla, contudo, não podia durar para sempre. Um dia Iolinda soube e não
fez por menos: passou uma descompostura no marido, ameaçou fazer tudo para que
não
fosse incluído numa futura partilha dos bens de família (o pai é um homem velho
e muito perto de rico). Armou enfim um barulho em grande estilo. Na base do "ou
eu,
ou ela", Iolinda exigiu que o marido nunca mais pusesse os olhos na outra. Uma
decisão difícil para o comissário. Não só porque seu coração ainda batia forte
por
Martha Clara, mas também pela existência de um dado que complicou muito a
história: Iracema, filha única de seu casamento com Iolinda, tivera uma briga
feia com
a mãe, saíra de casa e fora morar justamente com Martha Clara, a outra mulher do
pai. Mais tarde conhecera Reinaldo, casaram-se, tiveram filhos.
Quando Iolinda descobriu tudo, oito pessoas moravam na casa 5 da Rua Moju:
Martha, os três filhos dela com o comissário, Iracema, Reinaldo e os dois filhos
dos dois,
Ary e Haroldo.
Desde aquele dia - da descoberta, da descompostura, das ameaças, do ultimato na
base do "ou eu, ou ela" -José Orges Brandão não teve mais trégua. Passou a ser
mais
vigiado do que os ladrões que ele próprio vigiava, do Centro ao Caxambi. Não
dava um só passo sem que a mulher não soubesse, parentes, amigos, espiões
ocasionais
indo contar onde esteve e o que andou fazendo. Chegava em casa e logo vinha a
mulher:
- O que é que o senhor fazia às três da tarde na Quinta da Boa Vista?
Ou então:
- O senhor não estava de serviço na cidade? Então por que foi visto na hora do
almoço em São Cristóvão?
Mal podia respirar o comissário. E como não estava em seus planos desaparecer de
vez da Rua Moju, tratou de arranjar um pretexto, um bom motivo para ir lá sem
que
a mulher suspeitasse. Assim, quando Iolinda chegasse com aquele ar fechado e lhe
perguntasse: "O que fazia o senhor na Rua Moju?" Responderia:
- Visitava minha irmã.
Explica-se: Luísa Lima Campos, irmã do comissário, morava até então com as
filhas Teresinha, Rosinha e Esmeralda e o filho Zeca numa paupérrima casa de
madeira,
pode-se dizer um barracão na Rua Souza Barros, do outro lado da estação do
Engenho Novo, perto da fábrica de
papelão. Há muito tempo José Orges Brandão vinha prometendo tirá-los dali, a
irmã, as três sobrinhas, o sobrinho, todos vivendo no desconforto de um Casébre
de terra
batida. Mas uma coisa e outra foram adiando o generoso gesto do comissário, até
que, levado pelas circunstâncias, ele se livrou de um problema resolvendo outro:
fez dona Luísa e os outros moradores do barracão mudarem-se para a casa 5 da Rua
Moju.
O comissário? Bem, nem tudo saiu como ele queria. Pois se a presença da irmã
naquela casa o livraria de possíveis problemas com a mulher, por outro lado o
fazia
perder para sempre os carinhos de Martha. Afinal, como manter o romance sob os
olhos conservadores e críticos da irmã mais velha? Como continuar aparecendo por

para ver Martha, perdendo assim o respeito da família? O comissário acabou
saindo de cena.
Foi aí que entrou Alegria. E, por intermédio dele, Noel. Martha Clara é de fato
bonita, educada, graciosa. Tem uma bela voz de soprano, que usa nos saraus de
sábado.
Filha do engenheiro Arthur Dieppe Moreau - o mesmo que projetou inúmeras obras
públicas importantes, entre elas o prédio do Corpo de Bombeiros no Meyer -
orgulha-se
de sua ascendência européia, os antepassados alemães e belgas sempre mencionados
nas conversas. Mas nada disso impressiona muito Noel, cujos olhos se viram para
outro lado.
Dona Luísa, na verdade, tinha quatro filhas. Mas a mais velha, Noêmia, morreu há
dez anos. Era casada com o sírio Theodoro Fêlix, que durante algum tempo cuidou
das duas filhas Josefina, a Fina, e Noêmia, a Bazinha. Theodoro casou-se de
novo, a segunda mulher achou melhor ter os próprios filhos e dona Luísa acabou
levando
as duas netas para morar com ela. Agora estão todos na casa da Rua Moju. Ainda
pobres, mas com conforto.
É por Fina que Noel se interessa. Tem quinze anos neste 1934 e É realmente muito
bonita. Morena, cabelos castanho-claros, olhos vivos, sorriso de criança. Dona
Luísa
e o filho Zeca - a quem as moças chamam de center-half pela severa marcação que
exerce sobre elas - têm de se desdobrar para manter sob sua guarda e sobretudo
ao
alcance de seus olhos moças tão ativas, tão cheias de vida. Principalmente
Teresinha. E Fina. São duas jovens que acham, com toda a razão, que a vida foi
feita para
ser vivida. Respeitam o conservadorismo de dona Luísa, mas crêem, convictas, que
o maior bem que se pode ter é a liberdade. As outras talvez tenham a mesma
maneira
de pensar, só que não são tão ousadas, de modo que entre o pensamento e a ação
sempre se mantém uma distância feita de
140

prudências. Seja como for, dona Luísa e Zeca vigiam, abrem os olhos, tentam o
mais que podem seguir os passos das garotas. As janelas fechadas e as luzes
apagadas,
durante as serenatas de Alegria e Noel, faziam parte deste zelo.
- Não se exponham, não sejam oferecidas - vive recomendando dona Luísa.
Hoje faz-se tudo às claras. Ou quase tudo. Alegria está firme com Martha, quer
mesmo se casar, diz que vai comprar um carro, trabalhar na praça, ganhar um
dinheirinho
para manter a família. E Noel namora Fina. Quando esta lhe pergunta quem é a
moça que ele costuma ver na Rua Barão de Bom Retiro, a resposta é evasiva,
apenas meia-verdade:
- É Clara. Trabalha na escola de minha mãe.
da noite. Nem viva alma. Só a emoção das estrelas no alto. De repente, lá, numa
esquina qualquer, desembocava um vulto. Assoviava. Era Eu Vou Pra Vila. Eu me
sentia
feliz. Tinha entrado no coração da cidade; compreendia a sensibilidade carioca;
sabia comunicar-me com o povo
"6
Pura verdade.
A 30 de setembro, uma terça-feira, Noel Rosa entra no estúdio da Odeon para
finalmente gravar Com Que Roupa?, cuja partitura será dedicada ao Diário da
Noite, "o
arauto das aspirações cariocas". Do outro lado do disco, Malandro Medroso. Os
outros tangarás não estão com ele. Por quê? Haverá nessa decisão de se fazer
acompanhar
por um bando regional (na verdade apenas o bandolim de Luperce Miranda e dois
violões) algum ressentimento de Noel por ter sido
Com Que Roupa Ppreterido por Almirante um ano atrás? Talvez. A gravação é feita
em clima bem-humorado, Eduardo Souto improvisando um conselho ao fim do último
refrão:
- Vai de roupa velha e tutu, seu trouxa!5
A 24 de outubro instala-se o novo governo. A 14 de novembro é assinado o decreto
19.404, pelo qual os estudantes de todo o país ficam automaticamente aprovados
em
seus respectivos cursos e séries, sem precisarem prestar os exames de fim de ano
(as aulas já estavam suspensas desde outubro, quando começaram as escaramuças
revolucionárias,
e as autoridades acharam melhor que os alunos só voltassem às escolas em março
de 1931, quando a situação já estivesse normalizada). O decreto também atinge
Noel.
Graças a ele, depois de tantas tentativas frustradas, livra-se finalmente da
História do Brasil. E completa o ginasial.
Duas namoradas bonitas, caminho livre para tentar o vestibular à Faculdade de
Medicina, Eu Vou Pra Vila chegando às lojas de disco e começando a fazer
sucesso, Com
Que Roupa? já na cera, Noel tem tudo para sentir que os ventos sopram a seu
favor. Daqui a alguns anos, numa entrevista, se lembrará com saudade desses
tempos:
141

Notas:
1. Francisco Antônio Rodrigues de Salles Filho, médico, general, conselheiro
municipal, deputado federal, redator-chefe do Diário Carioca, diretor da
Imprensa Nacional.
Mais tarde, Ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
2. Assim chamada em razão dos repetidos acidentes de automóvel e bonde ali
ocorridos. Ainda hoje muito perigosa, a curva fica na Barão de Bom Retiro, entre
Moju
(atual Sebastião de Paulo) e uma rua então sem nome (atual Acaú).
3- Realmente a polícia em todo canto proibia a batucada. Não a batucada como a
conhecemos hoje (a percussão com que se acompanha o samba), mas a batucada como
jogo
da malandragem: uma roda, no centro da qual dois homens se enfrentavam ao som de
batidas de mão e coro de refrãos próprios ("Derruba, é ê/ ô derruba, bota no
Chão/
derruba, mano, derruba/ sem dó no teu coração..."). Um dos homens era escalado
para tentar derrubar o outro com um único golpe de perna, a banda. O adversário
tinha
que permanecer de pé, estático, "plantado". Quem plantava desta vez, da próxima
escolhia um da roda para ser por ele derrubado. Velhos ódios e inimizades eram
transferidos
para o centro da roda. Os bambas nesse jogo (o termo bamba vindo do quimbundo e
querendo dizer valente, autoridade) eram Waldemar da Babilônia, Pico da Favela,
Madureira
do Engenho Velho, Artur Mulatinho do Catete, Gargalhada do Salgueiro, Maçu da
Mangueira e Brancura do Estácio. Brigas sangrentas e até mortes eram freqüentes.
A
roda de batucada, portanto, diferia em muito da roda de samba, inocente arte na
qual o único objetivo era cantar e dançar.
4. Joseflna Félix, depois Telles, nasceu no Rio de Janeiro a 28 de setembro de
1914.
5. Os precários recursos de gravação da época, Eduardo Souto falando longe do
microfone, não permitiram que se entendesse bem o que ele dizia. Muitos pensaram
ter
sido: "Vai de roupa velha no eu, seu trouxa!" Pouco provável. Por mais
brincalháo que fosse, o maestro não se atreveria a tanto. Principalmente, como
diretor musical
da Casa Edison.
6. Jornal de Rádio, 1.° de janeiro de 1935.
142

MODÉSTIA À PARTE, MEUS SENHORES

Capítulo 15

Meu bem, o valor dá-se a quem tem


A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém
Bom Elemento
Nem só de tangarás vive a Vila. Não é demais repetir que, neste 1930, o bairro
onde nasceu Noel Rosa é peculiarmente musical. Multiplicam-se em suas esquinas,
nas
mesas de seus botequins, sob a luz de seus lampiões, jovens de talento que, com
maior ou menor intensidade, brilharão na música popular, ajudando a criar e a
sustentar
a reputação de Vila Isabel como terra do samba.
Alguns desses jovens nasceram, cresceram e vivem aqui. Outros estão de passagem,
visitantes que ouviram falar da musicalidade do lugar e a partir disso se
transformaram
em hóspedes freqüentes da "grande família". Os cinco tangarás, neste e nos
próximos dois anos, já seriam o bastante para confirmar que Vila Isabel é mesmo
um "celeiro".
Mas há mais, muito mais. Tantos e tão expressivos moços interessados em música
que, por algum tempo, toda vez que um novo nome surgir, no disco ou no rádio,
haverá
quem pergunte: "É de Vila Isabel?"
Os tangarás e seus principais adendos são apenas parte dessa efervescência
musical. Parte importante, mas apenas parte. Aos poucos irá se saber, hoje, no
ano que
vem, no máximo até o carnaval de 1932, que muita gente boa - moradores ou
visitantes, membros da grande família ou filhos adotivos - vive por aqui: os
tangarás,
Francisco Alves, Lamartine Babo, Nássara, Christovam de Alencar, Seringa,
Orestes Barbosa e os outros Barbosas de famílias distintas, os negros e os
brancos, Quidinho,
Arnaldo Amaral, Kalua, os irmãos Newton e Valzinho Teixeira, Antônio Almeida e
Cyro de Souza, Homero Dornellas, Henrique Gonçales, J. Cascata, os seresteiros,
chorões
e sambistas de morro que poucos conhecem.
O mais famoso é mesmo Francisco Alves, espécie de ídolo de todos os outros,
respeitado, cultuado quase. Alguns de seus admiradores, como Paulo Netto de
Freitas e
Castro Barbosa, costumam fazer serenatas sob sua janela, no 185 da Rua
Justiniano da Rocha, como se ele fosse a musa de suas canções. É claro que
Zélia, a mulher
de Francisco Alves, aparece para agradecer com sorrisos a homenagem, talvez sem
saber que é para o marido que eles cantam.
Por mais inusitadas que pareçam essas serestas, elas têm sua razão de ser. Todos
querem agradar Francisco Alves, querem ser ouvidos por ele, homem influente que
tem força o bastante para dar a um cantor iniciante um contrato de experiência
na Odeon. Vez por outra, a Paulo Netto de Freitas e Castro Barbosa juntam-se
seresteiros
ocasionais, Almirante, João Petra de Barros e seu irmão Mário, Arnaldo Amaral,
143

Alvinho, os rapazes da família Boamorte, Alegria e sua turma, João de Barro,


Leonel Faria. E Noel Rosa também.
Neste 1930, Francisco Alves ainda é um ídolo distante, inatingível aos olhos
desses jovens seresteiros ansiosos por impressioná-lo. O simples fato de vir o
famoso
cantor a tomar conhecimento da existência de algum deles já seria motivo de
contentamento e orgulho(1). Um personagem que não se esgota aqui, numa breve
apresentação.
Nem se confina aos limites de Vila Isabel. É sem dúvida a mais marcante figura
da música popular brasileira. De hoje e dos próximos vinte anos. Pela influência
que
exerce, pela onipresença, pelo carisma. Deixará traços profundos de sua passagem
pela vida de quem quer que cruze seu caminho. E quase todo o mundo há de cruzar
o caminho de Francisco Alves. Muito especialmente Noel Rosa.
Dos adendos do Bando de Tangarás - amigos de Almirante, ex-integrantes do Flor
do Tempo, rapazes do bairro que gostam de música, uns com jeito, outros sem
jeito
algum, todo tipo de curiosos e interessados, bem dentro do espírito amadorista
do grupo, e mais dois ou três profissionais que ajudam a arrumar a casa - poucos
farão
carreira. Ou melhor, apenas dois irão longe, terão seus nomes na história da
música popular: Luperce Miranda e Lamartine Babo.
Luperce é pernambucano do Recife e não chega a ser filho adotivo da grande
família. Raramente aparece por Vila Isabel. E quando o faz é para discutir
detalhes de
uma gravação ou de um espetáculo dos tangarás. Ouve e diz o essencial, dá boa
noite, vai embora. Sua participação no grupo liderado por Almirante deve-se não
apenas
a ser ele um exímio bandolinista, o conjunto não podendo se limitar aos violões
de Britto, João de Barro e Noel, mas também à sua nordestinidade, característica
tão cara a Almirante. Não nos esqueçamos de que ele era um dos integrantes do
Turunas da Mauricéia. E de que é de sua autoria a embolada Pinião, sucesso do
carnaval
carioca de 1928.
Lamartine Babo. Conta o pesssoal do Ponto de 100 Réis que, no primeiro dia em
que apareceu por ali, ninguém o viu: estava escondido atrás de uma linha de
pipa. Ninguém
resiste a uma piada sobre sua magreza. Nem ele próprio. Como no dia em que,
convidado a apitar um jogo de futebol, desses de casados contra solteiros,
disse: "Aceito,
contanto que não vente." É de fato muito magro, todos se impressionando com a
fragilidade de seu físico. Mesmo que existam por aí criaturas mais encaniçadas
que
ele. Os olhos redondos, encovados, as maçãs do rosto protuberantes, ossudas, as
bochechas chupadas, resultado de alguns dentes perdidos muito cedo, tudo isso
ajuda
a acentuar o aspecto cadavérico de Lamartine, fazendo-o parecer ainda mais
magro.
Magro como Noel, feio como Noel, predestinado como Noel. Mora na Rua Conde de
Bonfim, na Tijuca, mas é visto mais comumente em Vila Isabel. Ou onde haja algo
de
novo em matéria de música. Atraído pelo entusiasmo e pelas experiências sonoras
dos tangarás, transforma-se num de seus adendos. Terá várias de suas composições
gravadas por eles, atuará em recitais ao lado de Almirante e seus companheiros.
Por algum tempo, pertencerá à grande família.
Também estudou no Ginásio de São Bento, só que em época anterior à de Noel(2),
de quem é mais velho cinco anos. É um apaixonado pela música. De qualquer tipo.
Dos
hinos litúrgicos (chegou a compor uma Ave-Maria nos tempos do Mosteiro) ao samba
rasgado. Quando rapazola, era freqüentador das torrinhas do Lyrico e do
Municipal,
louco por óperas e operetas. Mas é também um enamorado - e profundo conhecedor -
de todos esses ritmos que andaram virando a América de pernas para o ar na
flamejante
década que passou. Adora carnaval. E vive atento a sambas e marchas que já se
fixaram como os gêneros definitivos da maior festa brasileira. Como se vê, a
antena
de Lamartine está posta em muitas direções. A obra que construirá - numerosa,
variada, duradoura - será reflexo dessa universalidade. Terá um pouco de tudo,
árias
operísticas, valsas, fados, tangos, ritmos americanos, canções, marchas, sambas.
É um dos seres mais musicais deste planeta (opinião que Pixinguinha endossará
daqui a alguns anos). Para ele, se é música, é bom.
Mais uma vez como Noel, Lamartine Babo é compositor muito preocupado com a
originalidade. Tanto nas músicas como nas letras. Está sempre disposto a ousar
alguns
temas até aqui inexplorados. Como acontece com A.B. Surdo. Sob esse título
trocadilhesco (Lamartine sempre dado a brincadeiras verbais, Noel descendendo do
poeta
e cronista A.2. Vedo) está uma curiosa composição dos dois. Embora a tenham
classificado de marcha, eles próprios admitem num dos versos que "não é marcha
nem aqui
nem lá na China". Escrita em 1930 - primeira das cinco parcerias dos dois(3) - o
ritmo tem muito da tal música dançante americana dos anos 20 em que Lamartine é
versado. Mas não está nisso o seu aspecto mais interessante e sim no detalhe de
formarem os versos, borrifados de non sense, a primeira letra surreal de que se
tem
notícia da música popular brasileira. Noel e Lamartine, dois
cariocas totais, donos de um humor e uma ironia típicos da cidade em que
nasceram, parecem não levar nada a sério nesta falsa marcha de pouco sentido e
muita graça.
O futurismo a que eles se referem tem muito menos a ver com Felippo Tommaso
Marinetti e seu movimento do que com a mania brasileira de chamar-se de
"futurista" a
tudo aquilo que não se entende em arte. Lamartine e Noel não levam mesmo nada a
sério em seus versos. Nem a arte, nem Marinetti, nem a morte:
Nasci na Praia do Vizinho, 86
Vai fazer um mês
(Vai fazer um mês)
E minha tia me emprestou cinco mil-réis
Pra comprar pastéis
(Pra comprar pastéis)
É futurismo, menina, É futurismo, menina,
Pois não é marcha Nem aqui nem lá na China
Depois mudei-me para a Praia do Caju
Para descansar
(Para descansar)
No cemitério toda gente pra viver
Tem que falecer
(Tem que falecer)
Seu Dromedário é um poeta de juízo
É uma coisa louca
(É uma coisa louca)
Pois só faz versos quando a lua vem saindo
Lá do céu da boca
(Lá do céu da boca)

Se A.B. Surdo é uma amostra de como Noel Rosa e Lamartine Babo são atentos à
originalidade, nega está no caso oposto. Também de 1930, incluído pelos tangaràs
no
seu repertório para o carnaval seguinte, é um samba sem muita inventiva
melódica, de versos banais, as formas amatutadas muito presas aos primeiros dias
do grupo
(por exemplo, "meta" rimando com "navá"). Apesar dos esforços dos
percussionistas no sentido de fazê-lo ritmicamente interessante (chegam a
retomar a idéia de Na
Pavuna, usando batidas de surdo após cada enunciado do título no refrão, só que
seis em vez das três do samba de Almirante e Homero Dornellas), o melhor mesmo
fica
por conta das passagens de violão entre o estribilho e cada quadrinha gravada
pela voz miúda de João de Barro. Noel e Henrique Britto produzem com seus
instrumentos,
aí sim, interessantes acordes que acabam dando certa cor a um pálido samba:
Nega...Nega...
Já te dei de tudo Agora chega.
Chega pro cordão
Que eu sopro nos metá
Pois eu sou da banda
Do Batalhão Navá.
Tu é nega prosa
Tu é palpiteira
Não vai à macumba
Não dança em gafieira.
Podes vir chegando Meu bem
para o cordão
Mas traz a bandeja
Pra recolher tostão.

Noel e Lamartine seguirão amigos. Mesmo quando o tijucano já não aparecer tanto
pelo Ponto de 100 Réis, continuarão se vendo, compondo juntos. Têm muito em
comum
além da música. Em especial o senso de humor. Contadores de histórias,
pregadores de peças,
145

galhofeiros, meninos. Lamartine é muito mentiroso. E nunca se sabe ao certo


quando Noel fala sério ou não. Um e outro levam a vida na brincadeira.
Exatamente como
a marcha que comporão daqui a um ano para o carnaval de 1932, uma das mais
deliciosas que o espírito carioca já criou. Assim como uma volta à infância, aos
bancos
de escola. Não aos do São Bento, mas antes, quando ambos aprendiam o A E I O U.
A.e.i.o.u. Dabliú, Dabliú, Na cartilha da Juju, Juju!
A Juju já sabe ler
A Juju sabe escrever
Há dez anos na cartilha
A Juju jâ sabe ler,
A Juju sabe escrever
Escreve sal com cê cedilha!
Sabe conta de somar,
Sabe até multiplicar
Mas na divisão se enrasca.
Outro dia fez um feio,
Pois partindo um quejjo ao meio
Quis me dar somente a casca!
Sabe História Natural,
Sabe História Universal
Mas não sabe Geografia...
Pois com um cabo se atracando
Na bacia navegando...
Foi pra Ásia e teve azia!

Amigos, companheiros. Saem juntos, fazem farra, voltam de manhã. Às vezes um vai
levar o outro em casa, Tijuca ou Vila Isabel. É num desses regressos matinais
que
cometem uma pilhéria que entrará para a crônica boêmia da cidade. Vão pela rua,
cada qual com uma garrafa de cerveja na mão, quando passam por uma casa em cujo
portão
estão duas garrafas cheias de leite. É muito cedo, o sol nem saiu. Os dois se
entreolham e um deles sugere:
- Que tal um café da manhã?
O outro concorda. Trocam as garrafas que têm nas mãos pelas que estão no chão,
não sem deixar ao dono da casa o seguinte bilhete: "Vá se alimentando com a
nossa
cerveja, enquanto nos envenenamos com o seu leite."
Tomar o leite dos vizinhos, derrubar garrafas pelo simples prazer de ver o
líquido branco inundar a calçada, assustar leiteiros que fazem entrega antes do
dia clarear
estão entre as artes prediletas de Noel. Djalma Ferreira, compositor e organista
que mora no Grajaú, jamais esquecerá uma passagem que testemunhou, ao voltar com
Noel de uma festa em chuvoso fim de madrugada. Noel vestia capa e chapéu, os
dois caminhando pela Theodoro da Silva, quando avistaram o leiteiro lá longe.
Trazia
uma caixa de garrafas em cada mão.
- Espere aqui, Djalma. Vou arrepiar os cabelos dele.
Noel se escondeu num vão de portão, ficou esperando que o leiteiro passasse.
Levantou a gola da capa, baixou a aba do chapéu, pôs as mãos nos bolsos, esticou
os
indicadores para simular canos de revólver. Quando o leiteiro passou rente à
parede, Noel deu um salto:
- A bolsa ou a vida!
O leiteiro atirou para o alto as duas caixas, as garrafas se espatifaram no
chão, o próprio Noel se assustou, enquanto o homem disparava na direção do
Boulevard
sem dar tempo de lhe explicarem que era uma brincadeira. Djalma morreu de pena
do pobre leiteiro.
Brincadeiras que não ficaram na infância ou na adolescência. Elas acompanharão
Noel enquanto ele tiver fôlego para levá-las a cabo. Mas se Djalma foi
testemunha
do susto ao leiteiro, Armando Reis talvez seja o primeiro a perceber que há
alguma coisa de muito estranho na persistência com que Noel atormenta a vida dos
homens
da limpeza pública. Nos tempos de garoto, até que era comum a molecada correr
atrás dos garis chamando-os de "gafanhoto" ou "burro-sem-rabo". Era só um deles
despontar
na esquina, puxando sua carrocinha, que lá vinha a turma apoquentá-lo. Mas para
Noel os tempos de garoto não passaram. Ele pode estar no meio da conversa mais
interessante,
tocando violão ou cantando, olhando as estrelas ou respirando o ar puro da
noite. Mas se surge um gari, pá e vassoura na mão, com ou sem carrocinha, larga
tudo,
a conversa, o violão, as canções, o luar, e se põe a gritar-.
- Gafanhoto! Burro-sem-rabo!
Reis põe-lhe a mão sobre o ombro e observa, em tom brando:
- Noel, Noel... Estes garis vão acabar te tirando o juízo.
É sempre brando o Armando Reis. Paulista de nascimento, mas carioca dos mais
legítimos, criado em Vila isabel, formado na escola das conversas de botequim,
das confrarias
de esquina, dos desfiles do Faz Vergonha. Filho de Higino Reis, o velho Reis da
revista Dom Quixote, chegou a pensar em seguir pelas mãos do pai os caminhos do
jornalismo.
Trabalhou em O Mundo Esportivo, dos irmãos Rodrigues, e depois andou fazendo
bicos em vários outros órgãos de imprensa. Até que foi, como tantos jovens de
agora,
atraído pelo rádio. E também pela música. Será locutor, improvisador de anúncios
(enquanto não se inventem os textos publicitários), animador, produtor. Ainda
terá
horário radiofônico
146

só seu, o Nosso Programa, lançado pelos microfones da Rádio Educadora, no qual


se apresentarão alguns dos maiores cartazes da música popular, entre eles Noel.
Já então só o pessoal do bairro o conhecerá como Reis porque para todos os
outros será sempre o Christovam de Alencar, pseudônimo que tirou nem mesmo ele
sabe de
onde.
Sua iniciação como compositor deve-se a uma necessidade do Faz Vergonha. No
primeiro ano que o bloco sai sem Noel, alguém pede ao Reis que colabore com um
refrão
para o desfile. Lauro Boamorte e Paulo Anacleto são bons no improviso. E só. O
bloco precisa de refrãos. Reis pensa lá consigo: "E por que eu?" Em todo caso,
apela
para um vizinho e amigo, Sylvio Pinto, que o ajuda a compor este tema:
Se você quiser saber
Eu lhe digo com prazer
Por que é que a Vila
É o melhor lugar desse mundo...
É com ele que o Faz Vergonha sai no domingo. E também na segunda-feira de
carnaval. Para surpresa do Reis, porém, quando o bloco vai chegando à Praça 7,
surge em
sentido oposto, vindo da Visconde de Santa Isabel, outro bloco que canta
animadamente:
Se você quiser saber
Eu lhe digo com prazer
Por que é que o Meyer
É o melhor lugar deste mundo...
Fica emocionado. Então o estribilho cantado pela primeira vez nas ruas ontem já
está na boca dos foliões do Meyer hoje?É um milagre de comunicação, a música
tendo
um poder literalmente "contagiante", de aproximar do povo, em tão pouco tempo,
os seus criadores. Resolve ser compositor. Uma decisão acertada.
O gaúcho Sylvio Pinto, o Seringa, é mais do que mero parceiro do Reis. Também de
Vila Isabel, presença obrigatória nos papos do Ponto de 100 Réis, companheiro de
Noel, Alegria, Clóvis, Waldemar e os irmãos Anacleto naquelas inesquecíveis
serestas pelo bairro, será como quase todos esquecido em pouco tempo. Mas é
muito bom
compositor.
Contam que começou a sumir das rodas boêmias do bairro no dia que lhe disseram
que a polícia andava prendendo seresteiro. Passou a fazer ponto no Mangue, na
Lapa,
em lugares onde a noite não é feita para dormir. Pode ser. Mas Alegria acha que
o motivo deve ser outro. Apolícia da Vila nunca perseguiu seresteiro. Pelo
contrário,
sempre teve pela classe um grande respeito.
- Não vê o Paes da Rosa?
E Alegria lembra mais uma vez a passagem vivida por ele e Noel numa de suas
serenatas. Os dois cantavam sob a janela de uma casa de vila na-Rua Maxwell
quando viram
parar, lá na entrada, o carro da polícia. Eram quase duas da manhã. Alegria
engoliu seco, o violão de Noel emudeceu, os dois pensando tratar-se do delegado
Palhares,
um apaixonado pelo Fluminense que sai por aí engaiolando gente toda vez que o
seu time perde (e o Fluminense havia perdido feio o jogo de domingo). Mas não
era o
Palhares e sim o Paes da Rosa, comissário do 18° Distrito. Os dois seresteiros
continuaram calados, imóveis, esperando pelo pior.
- Escute aqui - disse o comissário para Alegria.
- Pois não, seu doutor.
- Vocês conhecem Última Lágrima? Noel e Alegria se entreolharam. Não conheciam,
não.
- Aquela valsa do Cândido das Neves.
- Ah! - exclamou Alegria aliviado. - O doutor deve estar falando de Intima
Lágrima.
- Sim, esta mesma.
- Conhecemos, sim, seu comissário. -Então vamos lá. Cantem. Mas depressa.
Tenho ronda pra fazer.
E Alegria, Noel ao violão, cantou:
Ai, a fonte dos meus olhos
Entre mil escolhos
Desta dor nenhuma lágrima derrama...
Não, a polícia da Vila nunca foi de perseguir seresteiro. De qualquer modo,
Seringa passou a fazer ponto em outras plagas, a cantar em programas de rádio, a
ter
composições suas levadas ao disco. Transferiu sua boêmia para bairros mais
notívagos. É justamente no Mangue, depois de uma desilusão amorosa, que ele
entrega a
Noel a primeira parte de um samba que o amigo completa de forma curiosa,
mencionando pela primeira e última vez numa letra a sua "fama de filósofo
amador". O samba,
Com Mulher Não Quero Mais Nada, esperará meio século para ser gravado.
Com mulher não quero mais nada
Minha sina está traçada
Neste mundo que me causa horror
O que me faz ficar doente
É mulher na minha frente
A fazer enredos de amor
Eu tenho fama de filósofo amador
Quem diz que ama nunca sabe o que é o amor
Amar jurando
nunca foi jurar amando
E é por isso que eu juro
Que o amor não dá futuro

A outra colaboração dos dois também permanecerá inédita pelo menos até muito
depois de ambos se terem ido para sempre(4). Fala de outra desilusão amorosa,
mentira,
traição, temas tão usados por Noel. No título, algo em que eles não acreditam:
Amar Com Sinceridade:
Amar com sinceridade
Não há quem consiga uma só vez
Pode haver muita amizade
Mas há sempre falsidade
Como outrora Judas fez!
De ingratidão
Já estou farto e inteirado
E meu pobre coração
Vive sempre amargurado
Não tenho sorte com amor
Vivo sem felicidade
Torturado pela dor de uma saudade
Sinceridade
Toda a gente desconhece
A cruel realidade
É amar por interesse
Mas todo o bem dura pouco
Todo mal tem sempre fim
As mulheres quero bem longe de mim

No começo o pessoal do Ponto de 100 Réis ligava menos para


Antônio Gabriel Nássara do que para as irmãs dele. Moças bonitas, encantadoras,
espalhando classe por onde passassem. Mas sempre olhadas à distância, com todo
respeito,
segundo código tácito que a turma obedece quando se trata de irmã ou mãe de
amigo. E Nássara é mais que um amigo. Amável, bem-humorado, solidário,
invariavelmente
pronto a ajudar a quem precisa. É outro dos bons conversadores daqui, sempre
animando com seu humor as conferências noturnas no Martinez ou no Carvalho. Mora
numa
casa avarandada da Theodoro da Silva, bem no trecho onde fica o bangalô que Noel
habitou no tempo do São Bento. Vem de longe a amizade entre os dois. Uma amizade
que só cessará com a morte.
Houve quem dissesse que a família de Nássara tinha dinheiro, fortuna herdada de
um riquíssimo parente turco. Não é verdade. Os Nássaras não são ricos nem
turcos.
Descendem de libaneses, estão no Brasil já há duas gerações. O pessoal do Ponto,
quando não sabe, inventa.
Antônio Nássara nasceu em São Cristóvão, precisamente um mês antes de Noel, mas
mora em Vila Isabel desde rapazola. Se no começo foi pela beleza das irmãs que
se
fez notado, logo as pessoas, do bairro, de toda a cidade - e por que não dizer
do país inteiro? - haverão de admirá-lo pelo enorme talento que tem. E para
muitas
artes, inclusive a música. Gosta de compor e cantar, meio por diletantismo,
custando a descobrir que esse negócio de samba em que Noel está envolvido pega
como doença.
Outra de suas paixões é o desenho, conscientizada desde cedo. Em 1927 já fazia
caricaturas para jornais e revistas. Um ano depois entrava para a Escola
Nacional
de Belas-Artes, convencido de que sairia dali com o diploma de arquiteto.
Engano. Abandonará o curso no último ano depois de concluir que ele só lhe
trouxe dois
proveitos : maior intimidade com os traços, conseguida em muitas noites e dias
debruçado sobre a prancheta, e a Turma da ENBA, conjunto musical formado com os
colegas
de escola Jota Ruy, Barata Ribeiro, Jacy Rosas e Manuelino Xavier, reforçados
por um cantor que nunca pensou em estudar arquitetura, mas que Nássara ouviu
pela primeira
vez numa roda de samba e ficou impressionadíssimo com sua bossa: Luís Barbosa.
Um dia Nássara levará a música popular mais a sério, fará sambas e marchas
memoráveis. Será igualmente apreciado como compositor e caricaturista. Com Noel
fará duas
marchas, uma de sucesso. Mas por enquanto, nesta virada de década, é cedo para
se falar do compositor Nássara, o "turco", que mora na Theodoro da Silva e tem
irmãs
que espalham classe por onde passam.
Nássara e Noel são amigos, companheiros de conversa, de cantoria no botequim do
Carvalho, de peregrinação pela noite. Não se pode negar que seus temperamentos
são
muito diferentes, Nássara sendo bem mais comportado, Noel dando-lhe sempre a
impressão de que tem um parafuso fora do lugar, agindo de maneira imprevisível,
às vezes
falando muito, às vezes mergulhado em longos silêncios. Sim, um parafuso fora do
lugar. Mas que um dia o "turco" compreenderá como sendo coisa de superdotado, de
alguém além e acima, que não pode ser visto nem julgado pelos padrões comuns. E
quem há de abrir os olhos de Nássara para isso é Orestes Barbosa:
- Sabe de uma coisa, Nássara? O sem-queixo é um gênio.
Orestes Barbosa é o mais velho de todos os poetas que circulam pelos botequins
do Boulevard. Dezoito anos antes de nascer Noel, veio ele ao mundo, aqui
pertinho,
na Rua Pereira Nunes, lugar que muitos ainda teimam em chamar de Aldeia
Campista, mas que cedo ou tarde acabará encampado, de direito e de fato, por
Vila Isabel(5).
É Orestes, portanto, quase
148

um quarentão quando os tangarás começam a fazer sucesso no rádio e no disco. Mas


garante ter espírito jovem:
- Deixo-me contagiar pelo fôlego desses meninos.
É o mais velho e de certo modo o mais brilhante. Culto, único aqui que já cruzou
o Atlântico para ver com os próprios olhos as cores da civilização européia,
capaz
de falar de todos os assuntos, arte e política, ciências ocultas e episódios
mundanos. Conhece Virgílio, Homero, Ovídio, Plutarco, lê os poetas franceses no
original
e arranha o inglês. Mas é brasileiro até a raiz de seus poucos cabelos.
Antilusitanista, não gosta muito do Carvalho. Não adianta dizerem
que o homem é um português diferente, educado, alegre, doido por samba e até
torcedor do Botafogo.
- Sendo português, é sinal de que pode atrasar nossa vida.
Orestes é também o único aqui que já escreveu um livro. Ou melhor, dois:
Penumbra Sagrada e Âgua-Marinba. Com eles chegou mesmo a sonhar em vestir o
imponente fardão
verde-amarelo da Academia Brasileira de Letras, ser um imortal como Machado de
Assis, institucionalizar-se como poeta. Hoje, isso talvez possa ser lembrado sem
maiores
problemas, Orestes até sorri, não se importando quando o chamam de "imortal grau
zero". Mas, há alguns anos, ficava furioso. Tudo porque, com a morte de Paulo
Barreto,
o João do Rio, em 1921, Orestes decidiu candidatar-se à cadeira 26 da Academia.
Na primeira eleição, a 5 de janeiro de 1922, concorrendo com vários outros,
houve
quatro escrutínios e em nenhum deles Orestes obteve sequer um voto. Na segunda
eleição, seis meses depois, não se candidatou. Sabia que era inútil. E Constando
Alves
acabou ficando com a vaga.
Se a Academia não quis Orestes, quiseram-no o jornalismo, a boêmia e, agora, a
música popular. Dessas áreas, ao tempo em que Noel ensaia seus primeiros passos
pelo
caminho da composição, ele já brilha nas duas primeiras. Não por sua cultura, ou
por sua experiência européia, ou por seus conhecimentos de arte, política,
ciências
ocultas, episódios mundanos. Nem mesmo pela leitura dos clássicos gregos e
latinos ou dos poetas franceses. Muito menos por seu exacerbado antilusitanismo.
Mas por
ser um verdadeiro gênio na arte de conversar, ágil com a palavra, oportuno com a
frase, incisivo, cortante. Um mestre do sarcasmo, do humor irônico, da
maledicência.
Nisso, é não apenas admirado, mas também temido:
-- Olha lá o Orestes na mesa do Nice. A quem estará envenenando?
E os amigos - e sobretudo os inimigos camuflados de amigos-se aproximam para se
certificar de que não são eles as vítimas da língua de Orestes. Se acontecer de
chegarem
no meio de uma história em que o poeta os pulveriza, ele nem ficará embaraçado.
Não só não mudará de assunto como muito provavelmente voltará ao começo, para
que
o envenenado beba, palavra por palavra, toda a causticidade de suas histórias.
- Sabe que eu estava falando justamente de você?
E repete tudo, saboreando o constrangimento do outro. Porque Orestes é
impiedoso. E corajoso também. Por causa de seu destemor, de sua mania de dizer o
que bem entende,
já foi preso duas vezes, suas verdades incomodando os censores tanto de Arthur
Bernardes como de Epitácio Pessoa(6). Foi também graças à sua coragem que se
iniciou
no jornalismo, garoto ainda, abordando o importante
Ruy Barbosa dentro de um cinema:
- -Quem é o senhor? - indagou Ruy.
- Orestes Barbosa. E preciso de um emprego.
Ruy teria ficado tão impressionado com a ousadia do garoto que, virando-se para
um de seus assessores, à saída do cinema, disse:
- A vaga que temos na revisão, preencha-a com aquele menino de roupa de tussor.
E assim Orestes começou a trabalhar na revisão de O Século, o jornal de Ruy. São
histórias que se contam e recontam nos botequins de Vila Isabel, à mesa do Nice,
nos lugares boêmios por onde o poeta surge. Algumas verdadeiras, outras não. É
fato que Orestes descende de herói da Guerra do Paraguai. Mas é falso que tenha
nascido
num barraco lá do morro, lenda que ele, marotamente, deixa sem desmentido:
- Cresci entre moleques de rua e gente do morro. E o João da Bahiana, o mesmo
que toca com o Pixinguinha já me livrou de muita surra.
O que João da Bahiana não nega nem confirma, simplesmente não lembra.
A música demorou um pouco a fazer parte da vida de Orestes Barbosa. Só agora,
aos 37 anos, contagiado pelo fôlego desses garotos, começa a descobrir a
musicalidade
de sua poesia, as coisas que se cantam ao som do violão tendo a mesma força das
que se escrevem e declamam. É assim que se torna parceiro de Oswaldo Santiago
numa
canção que Alvinho gravará na Victor ainda neste 1930:

Um bangalô com trepadeira na janela,


Desses que têm janela só pra dois,
Eu construi, apaixonado, para ela
Que era o meu sonho de carmim e pó-de-arroz...
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Orestes, como todo poeta de fé, alimenta-se de poesia. Mas, a partir do contato
com esses garotos, os profissionais do rádio que freqüentam os cafés do Centro e
muito especialmente Noel Rosa (que ele próprio admitirá ter sido o seu
"conversor", aquele que o persuadiu de vez), vai aderir à música popular. Noel
sempre disse
e continua a dizer que, nesses novos tempos, os poetas da canção popular ocupam
o lugar que antes pertencia aos cultos bardos da literatura acadêmica (ver boxe
O
bonde do samba no
Capítulo 24). Orestes vai concluir que Noel está certo. Renunciará ao fardão,
convencido mesmo de que "a música ainda é consolo máximo das almas sem pouso". E
que
seus versos ficam ainda melhores num samba ou numa canção!
É outro personagem que não se esgota aqui. Não tem muitos amigos. Prefere-os
raros, mas escolhidos. Como diz Nássara, para Orestes a cidade se assemelha a um
grande
edifício de apartamentos onde ele, também morador, destaca alguns poucos
vizinhos que merecerão o seu cumprimento respeitoso ou o seu sorriso afetivo(7).
O próprio
Nássara é um desses vizinhos. Noel Rosa, outro.
Leiteiros, lixeiros, mendigos. Pelo menos numa dessas suas fixações Noel tem no
amigo poeta um aliado. Conta-se que uma noite Orestes encontrou no Passeio
Público
uma mulher magra e esfarrapada, a perna direita coberta por uma atadura suja,
ensangüentada. A mulher, que os outros mendigos chamam de Perua, estendeu-lhe a
mão,
o olhar súplice, sofrido, de quem já nada mais espera da vida.
- Uma esmolinha pelo amor de Deus! Orestes ficou tão impressionado que lhe
pôs na mão tudo que tinha no bolso. Não lhe sobrou sequer para o ônibus.
- Pobre mulher... - murmurou.
Um dia alguém lhe disse, entre gargalhadas, que Perua não passava de uma
impostora, uma esmoler profissional que vivia da piedade dos incautos. Morava
numa boa casa
de vila, comia do bom e do melhor, não tinha problema algum. De noitinha, saía
de casa, passava por um açougue, comprava algumas gramas de carne sangrenta e
grudava-as
na perna com a ajuda de panos velhos. Simulava assim uma feia e dolorosa ferida
que lhe valiam gordas esmolas dos tolos. Tolos como Orestes Barbosa. O poeta
ficou
furioso. E jurou vingança.
Daquele dia em diante - e quase sempre com a cumplicidade de Noel - passou a
atormentar a mulher. Esteja onde estiver, conversando com quem seja, sempre que
a Perua
passe, arrastando a perna, esmolando, Orestes corre atrás dela aos gritos:
-Perua, filha dos diabos I Some da minha vista!
Uma inusitada cena que se repete nas noites do Passeio Público, a mendiga
correndo desesperada, Orestes e Noel atrás, atirando-lhe coisas, xingando-a,
gritando feito
loucos:
- Corre, Perua! Some, desgraçada!
Uma implacável perseguição que vai durar tempos. Até que a mulher, com a mesma
perna ensangüentada, resolva mudar para longe o seu rendoso negócio.
Sem parentesco com Orestes, há dois ramos de irmãos Barbosa circulando por Vila
Isabel, os negros e os brancos. Os negros são Ewaldo Ruy e Haroldo. Moram no
Boulevard,
numa casa de vila em cujo quintal costumam realizar complicadas experiências,
misturas de produtos químicos, engenhocas estranhas, invenções que não levam a
nada.
Muito inteligentes, atilados, bons alunos do Colégio Pedro II, serão ambos
excelentes letristas, sobretudo Haroldo. Ewaldo Ruy, a quem o pessoal do bairro
chama
de Espanador da Lua, comprido, magro, inclui-se entre os improvisadores do Faz
Vergonha. O pai, policial, teve fim trágico. Para vergonha de Haroldo e estranho
orgulho
de Ewaldo, pois enquanto um evitará sempre tocar no assunto, como se querendo
vê-lo esquecido, o outro viverá dizendo:
-Macho, mesmo, era meu pai: teve coragem de se matar.
Coragem que não faltará ao próprio Ewaldo(8).
Os outros Barbosas, os brancos, moram quase todos numa casa da Rua Visconde de
Santa Isabel. E mesmo os que têm outra residência, os já emancipados, podem ser
vistos
com freqüência por aqui, no Ponto de 100 Réis, na Praça 7 de Março, na casa dos
Boamortes. São eles Arthur Álvaro, Paulo, Luís, Henrique e Gustavo. O primeiro
ficará
famoso como humorista e homem de rádio, com passagens também pelo teatro e
cinema, assinando-se como Barbosa Júnior. Paulo será autor de melodiosas valsas
{Cortina
de Veludo, Madame Pompadour, Perfume de Mulher Bonita). Luís é um cantor único,
destinado a ficar como um dos maiores intérpretes da história do samba carioca.
É
o mesmo que Nássara convidou para o seu Grupo da ENBA. Um intuitivo, dono de
invejável senso rítmico, sempre a batucar no seu chapéu de palha. Com tanto
sabor e
inventiva que acabará consagrando-o como mais um instrumento de percussão do
samba. Mas não é só no chapéu que ele produz ritmos: em tampo de mesa, capo de
automóvel,
copos e garrafas, caixa de violão, tudo serve. Inclusive os próprios dentes, dos
quais extrai
150

efeitos incríveis, tamborilando um lápis sobre eles. É um criador. Canta como


ninguém, brincando com as palavras, acrescentando notas às frases melódicas,
improvisando
breques como quem tira coelho de cartola. É bossa da cabeça aos pés. Um dia
dirão, com grande oportunidade, que Luís Barbosa tem um sorriso na vóz. Um
sorriso menino,
malicioso, cheio de picardia, que veio para enriquecer o samba.
A Lalá e a Lelé
São duas garotas que desacatam...
Henrique, mais conhecido por Gaiola, preferirá o rádio à música. Como Luís, é
muito amigo de Noel, seu companheiro de festas e farras. Quanto a Gustavo, não
quer
nada com o meio artístico, exceção única entre os Barbosas brancos de Vila
Isabel.
Euclydes Josephino Silva e Silveira, o Quidinho da Aldeia Campista, alto, magro,
gestos e gírias de crioulo do morro, mas tão ou mais branco que Noel. Seus
sambas
também têm muito dos negros do Salgueiro ou da Mangueira, uma flexura toda
especial, surpreendente, contagiante. Almirante comete injustiça ao
incluí-lo entre os que andaram fazendo músicas calcadas no NaPavuna. O Na
Aldeia, de Quidinho, só no título se assemelha ao samba de Almirante e Candoca
da Anunciação.
Em tudo mais é melhor, no sabor do ritmo, na malandrice da letra, na qualidade
da melodia:

Na Aldeia, na Aldeia,
Tem gente feia,
Mas decide bem no pé.
O samba da Aldeia
De macumba não receia,
Porque também conhece o candomblé.

Vizinho de Noel, amando tanto o seu bairro quanto Noel a Vila, Quidinho fará
vários sambas louvando a Aldeia Campista. Um desses sambas, Bom Elemento, é
interessante
não só porque Noel e Quidinho juntam forças para enaltecer seus respectivos
redutos, mas também por ser uma espécie de atestado da adesão de ambos à
batucada. Como
elementos estranhos a ela, é verdade, mas capazes de não fazerem feio num
confronto com batuqueiros autênticos:

Entrei no samba,
Os malandros perguntaram
Se eu era bamba
No bater do tamborim
E o batuque
Eles logo improvisaram,
Eu dei a cadência assim:

Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
(O que é que tem?)
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém

Com violência
Enfrentei a batucada,
A harmonia
Do meu simples instrumento
Fez toda a turma
Ficar muito admirada
Porque sou bom elemento

Lamentavelmente, poucos se lembrarão de Quidinho daqui a algum tempo.


Melhor sorte terá Arnaldo Amaral. Falante, contador de vantagens, cheio de pose.
Levará muito tempo sem saber exatamente o que quer ser, cantor ou ator. E quando
chegar a se decidir já não será uma coisa nem outra, mas locutor de rádio. É de
se deixar influenciar pelo que os outros dizem, desde que isso lhe alimente a
vaidade.
Uns garantem que tem bela voz (na verdade, é um dos muitos pastiches que
Francisco Alves vai carregar vida afora). Outros elogiam-lhe a estampa,
comparam-no a um
galã de cinema, acham que poderia fazer carreira no teatro. Arnaldo bem que vai
tentar todos esses caminhos, gravará discos, cantará no rádio, trabalhará como
ator
em peças e filmes. Mas jamais
151

passará de promessa não cumprida. É uma das figuras mais animadas do Ponto de
100 Réis. Bom jogador de sinuca, excelente contador de anedotas. Para quem não
se deixa
assustar por sua pose, um bom companheiro de conversa, de serenatas, de festas
onde haja cerveja e mulher. De Noel guardará a alegria de um longo convívio no
bairro
e a pena de só ter gravado uma música sua: Vejo Amanhecer. Assim mesmo, com sua
voz empostada sendo quase tragada pelo coro e seu nome não figurando no selo do
disco.
Mas a posteridade de Arnaldo será menos diluída que a de Seringa, Quidinho e
outros de dotes musicais bem maiores que os seus. Como é o caso de Kalua.
Impossível
não gostar desse moreno de sorriso branco e cativante que rivaliza com Homero
Dornellas em matéria de generosidade: são os dois que costumam passar para a
pauta,
quase sempre em troca de um simples "muito obrigado", as criações dos
compositores orelhudos do bairro, isto é, daqueles que não sabem ler ou escrever
música. Como
Noel Rosa, cuja quase totalidade do que vem fazendo nestes seus primeiros anos
de carreira virou partitura por obra de Kalua (Dornellas limitou-se àquele
histórico
episódio de Com Que Roupa?).
Pianista com curso de orquestração e regência, Kalua compõe para o teatro.
Canções de amor, duetos, peças humorísticas e pequenos bales ouvidos em revistas
e operetas.
Mas nada do que produz ficará por muito tempo na memória do público. Será mais
lembrado por seus solos de piano, ou por sua figura miúda, ágil, a equilibrar-se
no
pódio sobre uma perna mais curta que a outra, enquanto rege com a batuta
comprida a pequena orquestra do Recreio ou do Carlos Gomes.
Chama-se José Antônio Lopes Filho e morou por alguns anos no 103 da Tneodoro da
Silva, não muito longe do chalé. Hoje vive com a mãe e os irmãos, todos
pianistas,
numa casa de porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos. As reuniões musicais
que se realizam ali são versões menores e mais modestas dos saraus que têm lugar
nas
casas abastadas do bairro, entre elas a dos Boamortes. Curioso: Kalua é sempre
convidado para estes saraus. Assim como para aniversários, batizados e
casamentos
grãfinos. Apenas ele e não os irmãos ou a namorada, mulatos pobres que essas
famílias geralmente discriminam. A exceção que fazem não é a ele, mas a seu
piano. Nunca
recusa tais convites. Mesmo que a namorada, com razão, proteste: "Por que não me
chamam também? Não me acham boa o bastante para eles?"9 Kalua não se amofina.
Veste
o melhor terno, gravata, vai aonde o chamam. Entra pela casa, puxando da perna,
guardando o sorriso, mas cheio de si: sabe que todos aqui adoram ouvi-lo, os
dedos
ligeiros, elegantes, improvisando em cima de choros e fox-trots. Nessas reuniões
sempre há quem peça:
- Toque o Ka-lu-a!
A esta velha canção americana10 deve seu apelido. De tanto tocá-la - e sempre
bem - ojosé Antônio virou Kalua. Outra figura muito querida e musical de um
bairro
todo ele musical. Amigo de Noel Rosa. Que sempre vai preferir ouvi-lo na casa de
porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos do que nestas festas emproadas onde a
namorada e os irmãos de Kalua não entram.
Assim é a Vila Isabel musical destes dias. Um bairro que daqui a algum tempo seu
poeta maior vai imortalizar em versos assim:

Quem nasce lá na Vila


Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo
Ou assim:
São Paulo dá café,
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.
Compositores, poetas, cantores, instrumentistas. Muitos estão aqui. Nem todos
para sempre como Homero Dornellas, que envelhecerá orgulhoso de sua fidelidade
ao bairro.
Mas, de uma forma ou de outra, nenhum deles abdicará ao privilégio de ter
pertencido à "grande família". Outros já se foram ou ainda estão por vir. Como o
Álvaro
Nunes, nascido na Souza Franco, a poucos passos do Ponto de 100 Réis, hoje
morando na Abolição, onde atende pelo apelido de J. Cascata, ganho porque
costumava molhar
seus pés de menino no chafariz da Praça 7. Ainda vai compor coisas magníficas
{Lábios Que Beijei, Meu Romance, Juramento Falso, Desilusão, História de Amor,
Minha
Palhoça). Ou como os irmãos Teixeira, por enquanto morando em São Cristóvão,
Valzinho aprendendo a tocar um violão avançadíssimo, Newton criando canções
imortais
(Deusa da Minha Rua, Malmequer, Não, Deusa do Cassino). Ou como Cyro de Souza e
Antônio Almeida, que jamais se perdoarão por não terem tentado uma parceria com
Noel.
Ou como Henrique Gonçales e Vicente Sabonete. Ou como os seresteiros sem fama,
os chorões emboscados, os negros sem nome que se escondem nos morros. Muitos,
enfim,
a mostrar que nem só de tangarás vive a Vila, mas de tantos outros pássaros que
espalham música pelos céus do Brasil.
152

NOTAS
1. Conta Christovam de Alencar aos autores: "O homem tinha um cartaz danado.
íamos todos cantar para ele, na esperança de que nos notasse. Se isso
acontecesse,
era a glória." Almirante, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (pagina 60),
fala da emoção que lhe causou Francisco Alves em 1929, quando o Bando de
Tangarás
ouvia a prova de gravação de Mulher Exigente. O cantor aproximou-se do grupo,
sorridente, e se pôs
a cantar também. Diz Almirante: "Nada no mundo me poderia ser mais grato do que
verificar que aquela celebridade conhecia minha melodia, pois sabia de cor meus
modestos
versos."
2. Almirante se engana ao afirmar que Noel Rosa e Lamartine Babo foram
companheiros no São Bento {No Tempo de Noel Rosa, segunda edição, página 55).
Lamartine saiu
do colégio em 1920, quando concluiu o ginásio. E Noel só entrou em 1923. Os
arquivos do Mosteiro são claros quanto a isso. Da mesma forma, Augusto Frederico
Schmidt
não foi contemporâneo de Noel no São Bento. Estudou em vários colégios, o Liceu
Francês, o Grambery de Juiz de Fora, o Progresso, o próprio São Bento, pelo qual
sua passagem foi tão breve que não chegou a ser registrada nos arquivos do
Mosteiro. De qualquer forma, deu-se bem antes de Noel, pois já em 1922 Schmidt
cumpria
seus últimos exames de bacharelato no Pedro II. Neste caso, porém, Almirante
pode ter sido induzido a erro pelo próprio poeta que em sua crônica Só no
Carnaval Eram
Noturnas, incluída no livro O Galo Branco (página 197), diria: "Pelo rádio ouço
agora, de mistura com horríveis sambas de hoje, uma composição de Noel Rosa.
Procuro
as feições do compositor, que esteve comigo no colégio."
3. As musicografias até aqui levantadas, a de Noel Rosa por Almirante e a de
Lamartine Babo por Suetônio Soares Valença, nos falam de quatro colaborações
entre
os dois. Mas foram pelo menos cinco. A quinta será focalizada no Capítulo 27.
4. Sylvlo Pinto morreu em Porto Alegre em 1980.
5. O que um dia foi a Aldeia Campista, já não existe como bairro, sendo hoje
parte de Vila Isabel. Seus moradores hâ muito deixaram de se referir a ela pelo
nome
primitivo, nome este sequer mencionado no Decreto 3.158, de 23 de julho de 1981,
que reconhece e delimita os bairros do Rio. Segundo o mesmo decreto, as ruas da
antiga Aldeia Campista, assim como as de toda a Vila Isabel, todo o Grajaú, todo
o Andaraí, parte da Tijuca e parte do Maracanã, pertencem à Região
Administrativa
de Vila Isabel, a IX do município do Rio de Janeiro.
6. Orestes Barbosa foi preso pela primeira vez èm 1921, por haver acusado o
Grêmio Euclydes da Cunha de usurpar os direitos autorais de seu patrono. A
acusação
atingia indiretamente alguns figurões da política. A segunda prisão, por
críticas na imprensa ao governo Arthur Bernardes, deu-se em 1924.
7. "A capacidade de admirar de Orestes Barbosa", depoimento de Antônio Nássara
incluído no livro Chão de Estrelas (página 174).
8. Ewaldo Ruy envenenou-se na noite de 4 de setembro de 1954, cumprindo ameaça
que acabara de fazer por telefone à cantora Elizeth Cardoso.
9. Disse aos autores Heloísa Brandão de Marsillac, filha do Dr. Heleno Brandão:
"Nossa casa era das únicas que abriam suas portas não só para o Kalua, mas
também
para sua namorada, irmãos e amigos, muito discriminados naquela época."
10. Ka-lu-a, música de Jerome Kern, letra de Anne Caldwell, sucesso lançado na
comédia musical Good Moming, Dearie, encenada na Broadway em 1921.
153

CONQUISTANDO A CIDADE

Capítulo 16

NOS SUBÚRBIOS
- Os amigos do alheio carregaram tudo !
- É preciso ir ao districto dar queixa.
- Com que roupa ?
Charge de A Careta. (Arquivo dos autores.)
Um sucesso como nunca se viu. Parece até que o Rio despertou agora há pouco ao
som de um só samba, ouvindo a voz de um só cantor, recitando os versos de um só
poema.
Música e letra de Com Que Roupa? ressoam por toda parte, conquistam todos os
bairros.
Neste primeiros dias de dezembro de 1930, outros sambas e marchas prometem se
destacar no próximo carnaval. Alguns são de fato muito bons. Ou mais que isso.
Se Você
Jurar, Deixa Essa Mulher Chorar, Cor de Prata, Batucada, Batente, Apanhando
Papel, O Barbado Foi-se, Seu Getúlio Vem, Minha Cabrocha vieram para ficar por
longo
tempo na memória do povo. Mas nenhum fará o sucesso de
Com Que Roupa?, cujo apelo e originalidade envolvem as pessoas desde o primeiro
instante. Se não for a melhor composição desta safra, é decerto a que maior
impacto
causa, a mais cantada, tocada, comentada, elogiada. Não só por sua melodia
contagiante, mas sobretudo pelo sabor de seus versos, é a que mais intimamente
sensibilizará
a alma do carioca, tornando-se parte de sua vida, de suas conversas, de seus
hábitos, de sua linguagem: "Jantar no Assyrius? Com que roupa, meu caro?"
As emissoras de rádio tocam o disco sem parar. Alto-falantes instalados em
alguns pontos da cidade, Rua Dona Zulmira, Praça Saenz Pena, Avenida Atlântica,
projetam
a voz de Noel a cantar, queixoso:
Eu hoje estou pulando como sapo Pra ver se escapo Desta praga de urubu...
O próprio Noel se incumbe de mobilizar os amigos para fazer o samba mais
conhecido. No carro de Valuche, ele, Alegria, Martha Clara, Fina, Bazinha levam
pacotes
e mais pacotes de impressos com a letra de Com Que Roupa?. Desfilam pelas ruas
principais de vários bairros, atirando pelas janelas os folhetos, ao mesmo tempo
em
que cantam, particularmente Bazinha, cuja voz aguda, estridente, vai fácil de
uma esquina a outra:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?
Foi um barulho. Todo o mundo cantou. É assim que eu faço as minhas coisas. Com
situações, episódios, emoções, aspectos colhidos na vida real.
entrevista ao Jornal de Rádio
Sucesso realmente sem precedentes. Nenhuma canção popular arrebatou tanto a
cidade. E em tão pouco tempo. Cruz Cordeiro, numa de suas resenhas sobre os
últimos lançamentos
em disco, diz:
"Noel Rosa, que pertence ao já popular
155

Bando de Tangarás, revelou-se este ano como autor do samba Com Que Roupa?,
cantado por ele com acompanhamento do Bando Regional na primeira face do disco
n P 13.2 45. Este samba, desde logo, registrou desusado sucesso, apresentando-se
como um dos prováveis êxitos do carnaval que aí vem. Ao nosso ver, a grande
aceitação
do samba de Noel, que todo o Rio já sabe de cor, reside na originalidade da
letra e no sabor esquisito do ritmo, dentro do qual a letra está magnificamente
enquadrada.
Reparem os amadores como caem bem dentro da música e do ritmo aquelas rimas
acentuadas e nítidas de 'conduta', 'luta' e 'bruta', ou então de 'sopa', 'roupa'
e 'estopa'.
Existe também na peça a originalidade de seu autor ter encontrado coisa de pleno
agrado popular, a começar pelo próprio título da composição sem necessidade de
recorrer
a assuntos já explorados de 'orgia', 'malandro', 'carinho'; 'nota'; etc, etc.
Enfim, secundando a opinião pública, enviamos daqui os nossos parabéns a Noel
Rosa
pela originalidade e engenhosidade de seu samba, que ele próprio canta com graça
e especial sabor, acompanhado pelo adestrado Bando Regional."1
Uma resenha que fala três vezes em "originalidade". Há pelo menos um motivo
muito especial para, sendo Com Que Roupa?'posterior a vários sambas do Estácio
já gravados,
parecer-se novo também em relação a eles: o acompanhamento. As composições de
Ismael Silva, Nílton Bastos, Alcebíades Barcellos, Brancura, Baiaco, que
chegaram ao
disco, tiveram como intérpretes Francisco Alves e Mário Reis, sempre
acompanhados de orquestra. Os autores dos arranjos não variam muito. Ou são
maestros que tentam
adaptar à música popular brasileira a sonoridade das orquestras de dança
americanas, Paul Whiteman, Isham Jones, Dan Russo & Ted Fiorito, Ben Pollack,
Kay Kyser,
Leo Reis-man, Fletcher Henderson, Guy Lombardo, ou é Pixinguinha, freqüentador
das casas das "tias" baianas, mais identificado com a instrumentação dos
conjuntos
de choro, das bandas que saem com os ranchos ou tocam em circos, dos grupos que
se apresentam nas salas de espera dos cinemas e muito especialmente nos cabarés
e
gafieiras onde casais dão voltas ao ritmo de maxixes e sambas amaxixados. Assim,
os sambas do Estácio que se ouvem nos discos desses primeiros tempos soam como
produtos
híbridos, a voz de Francisco Alves ou Mário Reis transmitindo melodias realmente
do Estácio, mas o acompanhamento rítmico afinado mais pelo diapasâo da Cidade
Nova,
enquanto as passagens de orquestra ora utilizam adornos estrangeiros, ora
recorrem às baixarias do maxixe. Deve-se em grande parte a essa hibridez, típica
de um
período de transição, o fato de Com Que Roupa?, a gravação original sustentada
apenas por bandolim e violões, parecer mais novo do que de fato é.
Sucesso sem precedentes, com o qual o próprio Noel deve estar surpreso. Afinal,
se esperasse êxito tão grande, o disco chegando a vender mais de 15 mil cópias,
não
teria aceito a proposta do cantor e locutor Ignácio Guimarães: 180 mil réis
pelos direitos do samba. Proposta aceita na hora, assim como a da venda de
Malandro Medroso
a um amigo de Ignácio, também cantor, Paulo Rodrigues. Resultado: pelas duas
faces de um disco que teve venda formidável, Noel Rosa não recebeu um tostão
além do
que lhe foi pago pelos dois cantores.
Tanto Ignácio como Paulo começaram suas carreiras no coro do Teatro Municipal,
um como baixo e outro como barítono. Ignácio, contudo, descobriu desde logo que
ópera
não dá camisa a ninguém. E tratou de arranjar um bico aqui e ali. Tentará,
inclusive, carreira como cantor popular, assinando-se nos discos como I.G.
Loyola. Para
os amigos, todavia, será sempre o Ximbuca, companheiro simpático e bonaChão.
Ximbuca empolga-se tanto com o fato de ter-se tornado dono de Com Que Roupa?que
decide gravá-lo também, com apenas duas estrofes ao invés de três como no
primeiro
registro. Isso já as vésperas do carnaval, quando o samba na voz de Noel já
houver conquistado a cidade. A gravação é bom exemplo do quanto os
acompanhamentos orquestrais
podem mudar o espírito de um samba feito nos moldes do Estácio. I. G. Loyola,
tendo por trás a Orquestra Guanabara, nos dá uma versão muito diferente da de
Noel.
E pode-se mesmo afirmar que, tivesse sido a única, talvez Com Que Roupa? não
chamasse tanto a atenção para sua originalidade.
Na gravação de Ximbuca há, porém, novidades. Versos adicionais que Noel fez para
ele, sempre pensando num "Brasil de tanga", explorado pelo estrangeiro, dando o
que tem de melhor e abandonado no fim. Além disso, Noel faz a segunda voz e o
contracanto, este alterando ligeiramente a estrutura do estribilho. Os versos
cantados
por Noel no disco seguem-se precedidos de travessão:
Seu português agora foi-se embora
- Oi, foi-se embora Já deu o fora
E levou seu capital
- Seu capital
Esqueceu quem tanto amava outrora
- Amava outrora
Foi no Adamastor pra Portugal
- Pra se casar com uma cachopa! E agora com que roupa?
- Oi, com que roupa?
156

Com que roupa


- Com que roupa? Eu vou
- Que eu vou
Pro samba que você me convidou?
- Me convidou2 Com que roupa
- Com que roupa? Eu vou
(com que roupa que eu vou?)
Pro samba que você me convidou?

O Adamastor citado é o famoso navio português cujo nome homenageia o titã


cantado por Luís de Camões em Os Lusíadas.
A segunda estrofe já foi gravada:
Agora estou pulando como sapo...
Nela Noel prefere "meu paletó" em lugar de "meu terno já virou estopa".
Outras estrofes, não tão felizes, serão interpretadas por Noel em programas de
rádio e apresentações ao vivo em que o público, entusiasmado, exige-lhe que bise
Com
Que Roupa?. Não serão gravadas, porém.

Você não é nenhum artigo raro


Mas eu declaro
Que você é um bom peixão
E hoje que você se vende caro
Creio que você não tem razão
O peixe caro é a garoupa
Com que escama e com que roupa?

Eu nunca sinto falta de trabalho


Desde pirralho
Que eu embrulho o paspalhão
Minha boa sorte é o baralho
Mas minha desgraça é o garrafão
Dinheiro fácil não se poupa
Mas agora com que roupa?

Um sucesso presente em quase tudo, na propaganda de casas comerciais, na música,


no esporte, na moda. Há até uma fantasia feminina Com Que Roupa?, sugerida pelos
jornais: "Calças de linho azul, com vários remendos, terminadas em boca de sino
e que sobem mais na frente, para se terminarem com suspensórios. Blusa de
cambraia
em xadrez branco e vermelho e grande chapéu de palha amarelo."
Sambistas da Mangueira e outros redutos - Cartola, Aloísio e Sílvio Dias, José
da Flauta, Zé Criança, Crispim e Palhaço - organizam um conjunto na base de
flauta,
violino, cavaquinho, violão e pandeiro e o batizam de Com Que Roupa?, homenagem
que o pessoal lá de cima não costuma prestar à gente cá de baixo. Convidados a
atuar
nas festas do morro, batizados, aniversários, casamentos, São João, o grupo
permanecerá na ativa por oito anos. O Vila Isabel Foot-ball Club não fica atrás
e dá
o nome de Com Que Roupa? ao seu combinado convocado para enfrentar o do Vieira
Souto Foot-ball Club.
Paródias do samba se multiplicam, criadas por foliões anônimos ou por poetas
conhecidos como Ary Kerner Veiga de Castro, que não deixa passar em branco a
determinação
do novo chefe de polícia do Distrito Federal, João Baptista Luzardo. de tornar
vitoriosa antiga campanha moralizadora para impedir que "trajes demasiado
sumários
transformem em prática indecorosa os nossos banhos de mar a fantasia". Com a
música de Noel, canta Ary Kerner:
Não posso mais mostrar o meu umbigo
É o o castigo
Que o Luzardo me quis dar...
Eu, que já fazia economia,
Mais esse dinheiro vou gastar!
Pois sem camisa, sem ter touca,
Eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro banho que você me convidou?
157

Os jornais de modinhas destes primeiros meses do ano publicam constantemente não


apenas a letra original do samba, como as paródias enviadas pelo público. Com
tal
freqüência que um leitor de Voz da Mocidade, Antônio Maia, no número de maio de
1931, queixa-se através de carta: "Chega já de Com Que Roupa?. Cousa nova, sim?"
Sucesso sem precedentes que ultrapassa os limites da música popular. Raul
Pederneiras, J. Carlos, Theo aproveitam a popularidade do samba para publicar em
jornais
e revistas charges contendo críticas à política, à administração pública, aos
costumes. A um desses artistas, Álvaro Cotrim, o Alvarus, cabe uma primazia : é
dele
a primeira caricatura de Noel publicada na imprensa3. De perfil, as mãos nos
bolsos, o compositor aparece com a roupa remendada, não propriamente coberto de
farrapo,
mas num
desenho inspirado na música e que pelo menos nos próximos cinqüenta anos será
freqüentemente republicado.
Observadores políticos atentos não cairão em nenhuma das armadilhas que Noel
prepara nas muitas entrevistas que dá, em cada uma delas contando uma história
diferente,
camuflando sempre a verdadeira gênese de Com Que Roupa?, confessada a tio
Eduardo. Maurício de Lacerda, por exemplo, é perspicaz o bastante para perceber
que os
versos de Noel não devem ser tomados literalmente e escreve longo artigo que,
além de ter o mesmo título do samba, aproveita-lhe a metáfora para falar dos
rumos
ainda indefinidos da Revolução de 30:
"Vamos, povo carioca, a quem e com quem ficará o teu aplauso e vê bem nesta hora
com a lente de tua ironia carnavalesca que não é possível acompanhar ao mesmo
tempo
as três Histórias de um samba

"Um samba que acabo de fazer. É sobre o i Brasil. O Brasil de tanga."

Ao tio Eduardo Corrêa de Azevedo, 1929


"... quando fiz o Com Que Roupa? não tive em mira fazer alusão ao povo, que,
apesar de tudo, sei que ainda tem roupa e faço votos que continue a tê-la em
profusão,
e que não lhe falte roupa, e muita, para brincar no carnaval. Com Que Roupa? é
uma pergunta que se aplica a diversos casos. Por exemplo: se um camarada está
sem
dinheiro e alguém o convida para um baile ou uma festa qualquer, ele retruca,
com um gesto significativo: 'Com que roupa?' (isto é, com que dinheiro?). Se
precisa
resolver qualquer assunto intrincado, sem descobrir os meios para tal, recorre
ainda à mesma interrogação: 'Com que roupa?' Al está."
Ao Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931
"Com Que Roupa? tem uma história interessantíssima que vale a pena contar aqui,
a título de curiosidade. Foi um caso que se passou comigo mesmo. Com sangue de
boêmio,
eu passei a chegar em casa, em determinada época, a altas horas da noite. Vinha
de festas ou de serenatas, ou de simples conversas. Mas o fato é que essa vida,
passada
toda em claro, devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu (...) Mas
quem mais se assustava era mamãe. Pressentiu, antes que ninguém, o meu estado.
E, dia-a-dia,
renovava as suas advertências, os seus apelos, para que não me demorasse na rua
tanto tempo, para que dormisse mais, que eu acabava doente. Eu prometia que sim.
Mas a minha vontade era nula. E chegava, fatalmente, às mesmas horas, com as
mesmas olheiras e com aquele emagrecimento progressivo, que estava alarmando
todo o
mundo. Desesperada de conseguir a minha obediência pelos recursos da persuasão,
minha mãe lembrou-se de um antigo recurso, mas cujo efeito é sempre eficaz.
Assim
é que escondeu todas as minhas roupas. Sem exceção. Fiquei desesperado. O pior é
que, na véspera, mandara que alguns amigos me viessem buscar para irmos a uma
festa.
Os amigos não faltaram. À noite, batiam lá em casa; 'Como é, Noel, vamos para o
baile?' E eu, dentro do meu quarto: 'Mas com que roupa?' Mal eu tinha acabado de
soltar a frase, e ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema. Dal o
estribilho:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?"
Ao Jornal de Rádio, 1 de janeiro de 1935
"Não gosto do Com Que Roupa? Foi feito para o povo, e os sambas de que eu mais
gosto são feitos para mim."
À Carioca, 14 de dezembro de 1935
"Não gosto desta música. Foi feita em 1930, sobre o momento político brasileiro,
onde os partidos se apresentavam e se desfaziam porque não tinham roupa para
aparecer.
E saiu o estribilho que todo o Rio cantou:
Com que roupa que vou
Ao samba que você me convidou?"
À Carioca, 18 de julho de 1936
158

tendências tão opostas que serpentinam no espaço e lançam aos teus olhos os
confetes multi-cores da sua convicção.
Tu pensaste no entrudo antigo para afogar com o teu coração esta pantomima tão
larga quanto insossa da regeneração republicana do Brasil pelos políticos que
fizeram
a sua degeneração oligárquica.
Mas, ergue neste momento, sem o teu verso e sem tua prosa, a tua voz vingadora
na estrofe do teu último carnaval, perguntando a esta democracia de três forças
incoerentes
como vias no teu samba: de camisa preta, de camisa vermelha, ou de camisa verde-
amarelo, isto é, 'com que roupa', fascista, comunista ou socialista? Desta tua
pergunta,
ó carioca, não esperes a resposta, samba à vontade, canta a teu modo a tua
desventura e, seja com que roupa for, põe pela tua ironia, pela tua sátira e
pelo teu
espírito de fronda, sem qualquer roupa, nu na praça o rei de uma democracia que
procurando ser livre caiu no bico da cegonha da Revolução de outubro."4
Múcio Leão já vê as coisas de ângulo mais próximo do de Noel:
"Mas há mais do que isso no carnaval deste ano: há uma canção proletária! A hora
atual é de crise profunda, e o brasileiro sofre todas as amarguras de uma
miséria
a que não estava habituado. E esse estado de alma está refletido numa das nossas
músicas populares. Eu não conheço nada mais característico da alma do brasileiro
miserável dos dias de hoje do que a canção que por aí corre e na qual vemos um
indivíduo queixar-se de não ter uma roupa com que vá a um samba para que foi
convidado.
Não ter um terno, ver o seu paletó transformado em estopa, ter a certeza de que
esta mesma estopa vai ser farrapo daí a algum tempo e, diante dessa extrema
calamidade,
não ter dinheiro para comprar um fato novo - mesmo que seja ordinaríssimo -aí
estão as dores do brasileiro de agora, do brasileiro humilde, filho da multidão,
que
cifra toda a sua ventura em ter três dias no ano em que possa sambar e se
divertir à vontade.
Eu creio que nada existe na literatura brasileira culta que, como documento,
valha essas pequenas canções vagabundas que iluminam o nosso carnaval."5
Também alcança as intenções de Noel, num texto muito rebuscado, Vivaldo Coaracy:
"A cidade inteira é um caos que endoideceu. E servindo de tapete uniforme à
apoteose do barulho, acompanhamento uniforme da sintonia de todos os ruídos,
surda, mas
sempre presente, a toada uniforme do samba:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?...
É a resposta instintiva da alma popular ao convite da República Nova. É a
consciência latente da miséria, em meio ao delírio das esperanças. É o
sentimento pertinaz
da realidade a resistir à vertigem de três dias de embriaguez.
Já estou coberto de farrapo Eu vou acabar ficando nu... Meu terno já virou
estopa... "6
Este é de fato o carnaval de Com Que Roupa?, o carnaval de Noel Rosa. Repórteres
o procuram para que conte a história do samba, diretores de clubes o convidam
para
recitais, com ou sem os outros tangarás. Não há um dia em que não se ouça no
rádio ou se leia no jornal um elogio ao jovem compositor ou ao seu samba. Um
musicólogo
da estatura de Renato Almeida não esconde seu entusiasmo:
"Mário de Andrade, para o Pinião, descobriu quatro versões rítmicas diferentes,
além de variantes melódicas em geral leves. Este ano, de quantos modos se cantou
Com Que Roupa? "
Mais adiante, o alcance idêntico ao dos observadores políticos:
"Música de dança, samba, música enrascada, mole, sensual, nela só o ritmo marca
o elemento masculino e viril, porque tudo mais é languidez. Não raro, há
lamúria,
a exemplo de Com Que Roupa?, no qual, excepcionalmente, a letra é deliciosa,
desse desgraçado que vai mudar sua conduta e vai pra luta..."7
No bairro, todos cumprimentam Noel. Até aqueles vizinhos que lhe viravam o nariz
por vê-lo "sempre metido com gentinha". Os amigos sorriem para ele, dão-lhe
tapinhas
nas costas. Um ou outro estranho aproxima-se, finge-se de íntimo, quer ser visto
conversando com o autor de Com Que Roupa? Nos dias de folia, 15, 16, 17 de
fevereiro,
é impossível sair às ruas sem ouvir a composição. Noel tem mais sete gravadas
para este carnaval, por ele ou por outros artistas: Eu Vou Pra Vila, Malandro
Medroso,
A.B. Surdo, Nega, Por Esta Vez Passa, Dona Aracy e Dona Emília. Para um
estreante em carnaval, um respeitável lote, mas ofuscado por Com Que Roupa?.
Em Por Esta Vez Passa a cachaça é o tema. I.G. Loyola, o Ximbuca, é seu
intérprete.
Por esta vez passa
Por esta vez passa
Mas não volte à minha casa
Assim cheirando à cachaça.

Já é coisa bem sabida


Que a dona Manuela
Ou acaba com a bebida
(como é?)
Ou a bebida com ela.

159

Acabou-se o parati
Em casa de dona Antônia
Por isso dona Didi
(que foi?)
Só bebe água da Colônia.

Viva o artigo nacional


O Brasil vai ter valor
Por isso seu Amaral
(só...)
Só bebe álcool-motor.

Dona Aracy é muito cantada por blocos de rua, marcha composta de um refrão muito
simples e uma série de quadrinhas que se vão improvisando durante o desfile. As
quadras de Noel, gravadas por Almirante, são também simples e uma delas contém
uma brincadeira com Malhado:

Dona Aracy! Dona Aracy!


Quero saber:
Como anda isso por ai?
Como vai o seu Malhado?
Seu marido em certidão
Inda está desconfiado
(Inda está desconfiado)
Que é lesado pelo irmão.

Como vai a sua filha


Que namora no porão?
Se a senhora não estrilha
(Se a senhora não estrilha)
Quero uma apresentação.

Como vão as suas jóias?


Tão bonitas, eu não nego
Não passavam de pinóias
(Não passavam de pinóias)
Davam dez tostões no prego.

Que foi feito do Renato


Que malvado, que troféu
Que pisava em meu sapato
(Que pisava em meu sapato)
E cuspia em meu chapéu.

Dona Emília é uma das marchas cantadas pelo Faz Vergonha em seu desfile de
domingo de carnaval. Tem música de Glauco Vianna e versos de Noel, todos eles
alusivos
aos valentes foliões da Rua Maxwell, capazes, se a concorrência assim o exigir,
de ganhar até um prêmio de violência:

Sai da frente
Dona Emilia!
Que o nosso bloco
Só tem gente de família...

(Sai logo! Sai, sai!)

O nosso bloco vai a todas as batalhas


Só pra ganhar muitas medalhas
E se houver muita concorrência
Eu trago o prêmio da violência.

O nosso bloco tem cordão de isolamento


Só pra barrar mau elemento
E a dona Emília anda despeitada
Porque não entra na batucada.
A dona Emília foi pedir por compaixão
Pra penetrar no meu cordão
Mas eu não quero esta tagarela
Porque ela samba lá na Favela.

Mais do que nunca Noel é uma das atrações do Faz Vergonha. E, embora se cante
sua marcha com Glauco e outras composições do pessoal do bloco, à sua passagem o
comentário
não muda: "Ele é que fez o Com Que Roupa?". Mas Noel nem dá importância, tão
envolvido está com a alegria do bloco, a sua própria alegria. Este ano ele sai
entre
os improvisadores com uma fantasia arranjada à última hora: sapatos, bolsa,
chapéu e vestido de dona Martha. Um vestido estampado, colorido, há muito fora
de uso,
dentro do qual o corpo mirrado de Noel quase some. Está contente com o sucesso,
com a vida, com tudo. Canta, dança, inventa passos entre uma cerveja e outra. O
bloco
sai da Maxwell, toma a Piza de Almeida, Dona Elisa, Souza Franco, cruza a
Theodoro da Silva e deságua, triunfal, no Ponto de 100 Réis. Para mostrar ao
Cara de Vaca
que o Faz Vergonha ainda é o melhor, tem batuqueiros, passistas, moças bonitas,
improvisadores, Noel Rosa. Um Noel Rosa que não pára de dançar. O bloco vai até
a
Praça 7, faz o contorno e volta ao Boulevard para o percurso na direção do Largo
do Maracanã. Noel segue inventando passos, requebra, faz uma pirueta, planta uma
bananeira. Na altura da Felipe Camarão, um guarda atravessa a corda, puxa-o pelo
braço e lhe diz baixinho, em tom de paternal reprimenda:
- Assim não dá, Noel.
- O que é que houve, seu guarda?
- Esta fantasia. Não dá para dançar com ela.
-Mas é um vestido, seu guarda. Como de todo mundo.
- Sim, seu Noel. Mas me faz um favor: se é para dançar, trate pelo menos de
botar um calção por baixo.
Os anos 30 caminham para se converterem num período bom para o teatro de
revistas carioca. Desde fins da década passada a Praça Tiradentes e arredores
vivem dias
de fulgor, comédias musicais estreando a todo momento, revelando estrelas,
humoristas,
160

autores, músicos, novos nomes da música popular. Ninguém nega que o cinema é
moda que ganha corpo a cada dia, principalmente nos últimos dois anos, em que os
atores
e atrizes da tela, por uma dessas mágicas do progresso, começaram a falar. Mas
ainda vai demorar para o cinema substituir o teatro na preferência do carioca.
Estão
aí, como exemplos eloqüentes, o Recreio, o República, o Carlos Gomes, o Phoenix,
o Trianon, todos acolhendo público numeroso e empolgado a cada nova revista que
encenam.
Noel Rosa deve também a Com Que Roupa? o seu ingresso, mesmo que por pouco
tempo, no mundo do teatro musical. O samba é incluído intre os números
carnavalescos da
"super-revista de fantasia e comicidade" que os irmãos Quintiliano escreveram
para Aracy Cortes e Mesquitinha. O espetáculo intitula-se Deixa Essa Mulher
Chorar
e tem, além deste samba de Brancura, outros sucessos do carnaval, Batente,
Cavanhaque, Se Você Jurar, Sorris, Maria, Deixa Disso, Nem É Bom Falar. Um
quadro inteiro
é dedicado a Com Que Roupa?, reunindo no palco a malícia de Aracy Cortes, o
humor de Mesquitinha, as belas pernas de um grupo de coristas não muito
preocupadas com
a roupa ou com a falta dela. A peça estreou no Teatro Recreio, a 9 de janeiro de
1931, e tem entre suas novidades mais uma das muitas ousadias de Aracy: em vez
da
tradicional orquestra, o acompanhamento é feito por um grupo de sambistas que
ela própria foi buscar no Salgueiro, não se importando com a advertência de
alguns
amigos sobre os perigos de subir o morro. Um grupo de salgueirenses de poucos
sorrisos, meio desconfiados por pisarem um palco pela primeira vez, ajuda a
tornar
mais irresistíveis as interpretações da grande estrela que é Aracy Cortes. São
apenas sete: surdo, chocalho, pandeiro, cuíca, tamborim, violão e cavaquinho.
Mas
que riqueza sonora eles extraem de seus instrumentos!
Deixa Essa Mulher Chorar é um triunfo. Não só por Aracy, mas também pelo
repertório, sambas do Estácio, do Salgueiro, do jovem Noel Rosa, deliciando uma
platéia
que constata ser possível produzir uma revista com ingredientes cem por cento
brasileiros, das piadas à música. Sendo este um gênero importado - com muito da
revue
parisiense, do musichall londrino, das extravagâncias dos palcos da Broadway -
pare ce ter nascido e se desenvolvido aqui, no Brasil de
Aracy Cortes, quando as atrações são o nosso samba, os nossos sambistas, o
cenário carioca, o humor de nossas esquinas, uma realidade nossa. É por isso
que, enquanto
a revista trilhar por este caminho e o cinema vier de fora, o teatro continuará
insubstituível.
Nas pegadas do sucesso da peça do Recreio - e em particular do quadro sobre o
samba de Noel - Luís Peixoto, outro poeta, grande letrista de música popular,
homem
de teatro e revistógrafo (por sinal um dos que se mostram inclinados a trocar
sua formação um tanto Folies Bergère por um estilo brasileiro de crônica e
crítica
às nossas coisas), decide escrever uma revista especialmente para a Companhia
Mulata Brasileira levar ao palco do República. Título: Com Que Roupa? Para
estrear
ainda antes do carnaval, a 23 de janeiro de 1931. Pretendendo ser uma "burleta
de costumes cariocas", se apoiará num texto leve, bem-humorado, e nestas canções
que
o povo canta, uma delas, evidentemente, o samba que fez o Brasil descobrir Noel
Rosa. Se a porta do teatro de revistas começou a abrir-se para Noel Rosa em
Deixa
Essa Mulher Chorar, escancara-se de vez com a proposta de Eratósthenes Frazão
logo após o carnaval.
Embora profissional do jornalismo, Frazão faz hoje incursões ao teatro e à
música popular. Nesta, atingirá a notoriedade no carnaval, daqui a oito anos,
com Florisbela,
em parceria com Nássara. Filho do maestro da Capela Imperial, Sebastião Alves
Frazão, traz a música no sangue. Nasceu em 1891 e seu nome é uma homenagem ao
astrônomo
e matemático grego Eratósthenes8. Altura mediana, elegante, bem moreno, cor de
índio, solteiro convicto. Quem o aproxima de Noel é o próprio Nássara que
recomenda
ao compositor procurá-lo nos bastidores do Teatro
161

Recreio. Durante a conversa, Frazão impressiona-se com o número de canções que


Noel já possui em seu repertório. A proposta é de aproveitar várias na revista
que
ele, Maciel Pereira e Leo Grim estão escrevendo para ser montada em abril no
Recreio. Aracy Cortes e Mesquitinha mais uma vez encabeçarão o elenco. Mas
outros grandes
artistas, como ítala Ferreira, já foram contratados pela empresa A. Neves &
Companhia, que comprou a idéia de Frazão e vai produzir o espetáculo.
- Título? Café Com Música.
Frazão explica tratar-se de uma revista cujos quadros e cortinas girarão em
torno de um mesmo tema: o preço do cafezinho. Lembra ele que o interventor
federal, Adolfo
Bergamini, acaba de fixar em 100 réis o preço da xícara pequena, mas muitas
casas não obedecem ao tabelamento. Cobram o dobro, enquanto os fiscais, imagina-
se em
troca de que, fecham os olhos. Ainda outro dia, houve barulho no centro da
cidade, uma pequena multidão querendo quebrar tudo, fechar à força as portas de
um botequim
cujo dono, português, cobrava acima da tabela. Parece que as coisas agora estão
contornadas. Ao menos por enquanto. O interventor concordou que as casas do Rio
pudessem
cobrar dois preços, 100 réis pelo cafezinho puro e simples, 200 se aos fregueses
for oferecida, além do café, música ao vivo, orquestras e conjuntos animando o
ambiente.
A revista vai focalizar estes e outros episódios ligados ao café, há tanto tempo
centro de intermináveis discussões políticas e econômicas neste país conturbado
e indefinido em que vivemos. Noel aceita a proposta de Frazão, acha interessante
a idéia, promete contribuir. Frazão esclarece que nem todas as composições
precisam
ser inéditas ou novas. Até que será bom incluir algumas já conhecidas.
- Claro, Com Que Roupa? não pode faltar.
Das muitas entrevistas que Noel Rosa dá a respeito do seu samba, uma, daqui a
quase quatro anos, se tornará uma espécie de versão oficial. Fantasiosa, típica
de
um Noel que sempre se divertirá inventando histórias para vê-las impressas em
letra de fôrma, esta versão, talvez por seu tom pitoresco, caricato, será
repetida
como a verdade das verdades. Sobreviverá ao próprio Noel, resistirá a todos os
desmentidos. Nela, Noel diz que inspirou-se nos excessivos cuidados de dona
Martha
com sua saúde, a mãe escondendo-lhe as roupas para que não saísse de noite, não
se consumisse nas madrugadas de boêmia. Não adiantava os amigos o convidarem
para
o samba. Com que roupa iria? Uma história
tipicamente Noel, que nada tem a ver com a do "Brasil de tanga".
Um fingidor. Nas entrevistas para que será solicitado pela vida afora-da
primeira que se tem notícia à última que dará já agonizante - Noel Rosa
continuará sendo
um fingidor, raramente se revelando, abrindo a guarda, desnudando-se. Realmente
se diverte com isso, aproveitando-se da credulidade do entrevistador para ajudar
a criar lendas em torno de si, não deixando que o vejam como de fato é. As
vezes, em lugar de credulidade, conta com a cumplicidade do entrevistador. Como
nesta
matéria que começa assim:
"Noel Rosa sentou-se, ou antes trepou numa cadeira e ficou com as pernas
balançando no ar.
- Noel!
- Quê?
- As mulheres?...
- Ah!"
Uma entrevista sobre a visão do amor segundo Noel Rosa, ele sendo definido pelo
entrevistador como "Clark Gable que foi diminuindo, diminuindo, e um vento forte
trouxe para o Brasil", enquanto Noel se pinta como conquistador, durão,
insensível, mau com as mulheres.
"- Mau?- rodou nas pontas dos dedos a palheta e tornou a sorrir. Vocês outros
têm sobre a maldade um conceito errado, pensam que maldade é o que o dicionário
diz.
- E não é?
- Não. Eu sei de mulheres que gostam de apanhar (e também de homens...). Isso,
no conceito de maldade que vocês têm, seria motivo para uma interrogação. Então
como
pode ser? Desde que um homem dando numa mulher não a deixe triste, a sua
violência passará a essa categoria gostosa de carteia. A cariciapode ser
transmitida por
intermédio de uma paulada ou de um beijo. Pura questão de combinação prévia. "9
Malandro medroso. E fingidor. Não é bem assim Noel Rosa. Não, pelo menos, com as
duas mulheres que repartem seus carinhos neste começo de 1931: Clara e Fina. Tem
sido difícil sair, sem despertar suspeitas, dos braços de uma para os da outra.
Afinal, elas continuam sendo quase vizinhas. Mas ele sabe dividir seus horários,
vendo Clara à saída da escolinha em Vila Isabel, Fina em noturnos e escondidos
passeios de carro e ainda conquistando outras garotas em suas andanças pela
madrugada.
É muito carinhoso com Clara. Especialmente agora que ela chora um duro e
repentino golpe: a morte da mãe. Dona Clara não chegou a ficar um ano na casa da
Barão de
Bom Retiro, o coração deixando de bater numa triste manhã de chuva. Noel é
sensível à dor da namorada,
162

trata-a com afeto, cerca-a de atenções. Martha também. Gosta muito de Clarinha,
ainda acredita que ela será a filha que não teve, a bonita e meiga professorinha
com que a vida presenteou Noel.
Com Fina, ficam as saídas noturnas no carro de Valuche ou de Malhado. Sempre a
quatro, pois não é problema para nenhum deles arranjar uma pequena que queira
fazer
companhia a Fina numa viagem de prazeres até o Alto da Boa Vista, Leblon,
Jacarepaguá e outros recantos desertos. Tudo escondido de dona Luísa,
evidentemente. E
dos outros moradores da casa da Rua Moju. Imagine se soubessem por onde anda a
travessa Fina...
Alegria já não faz parte desses passeios. Nem das serenatas. Como tinha dito a
Noel, seria capaz de qualquer coisa por Martha Clara. Até se casar. E foi
exatamente
o que fez, de repente, nos primeiros dias do ano. Comprou um carro de praça,
montou casa no Boulevard e para lá levou, apaixonadíssimo, Martha Clara, Nelson,
Walter,
Juquinha, os três filhos do comissário que criará como seus. Para Alegria, os
tempos de boêmia terminaram. Daqui a alguns meses - 22 de outubro de 1931 -
nascerá
o único filho de seu casamento. Chamará o amigo Noel Rosa para irem juntos
registrar o menino. E lhe fará uma surpresa.
- Sabe que nome vamos dar a ele?
- Não.
- Noel(10)!
-
NOTAS
1. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25).
2. O contracanto "me convidou", que iria se popularizar e se incorporar
definitivamente ao samba, está presente apenas nesta segunda gravação. Na
primeira, Noel
não o canta.
3. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931.
4. Diário de Notícias, 19 de fevereiro de 1931.
5. Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1931.
6. O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1931.
7. Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 1931.
8. Para dar entrada em seu processo de aposentadoria, Frazão obteve uma falsa
certidão na qual consta ser carioca de 1901. Na realidade, nasceu em 1891, fora
do
Rio de Janeiro, apesar de desconhecer-se o local exato, segundo informação de
seu amigo e advogado Bruno Ferreira Gomes. Na ocasião, ao procurar Bruno, Frazão
declarou:
"Em vida não cheguei nem aos pés do meu xará grego, mas parece que na morte vou
igualá-lo: ele terminou seus dias na miséria. Se você não conseguir me
aposentar,
vou acabar na maior merda!"
9. Diário de Notícias, 22 de fevereiro de 1931.
10. Noel Souza Pinto seria motorista profissional como o pai. Morreria
assassinado a tiros, no bairro carioca do Meyer, a 29 de outubro de 1980, por
três homens
com os quais tinha velha rixa.
163

O MIGUEL COUTO DO SAMBA

Capítulo 17

Ninguém foge ao seu destino. Eu sou um exemplo: quiseram que eu fosse médico e
eu acabei sambista...
entrevista ao Diário Carioca
A poltrona de madeira do Cine Vila Isabel é desconfortável, mas mesmo assim Noel
Rosa dorme profundamente. Nem suspeita que lhe falam ao ouvido, primeiro
baixinho,
depois em tom mais alto, por fim aos berros:
- Noel! Ô Noel!
Duas mãos o seguram pela gola do paletó. Seu corpo, cinqüenta e poucos quilos de
magreza, é quase que guindado da cadeira. Já na sala de espera, começa a abrir
os
olhos, a reconhecer quem o chama.
- Noel! Acorda, Noel!
É Eratósthenes Frazão. Procurou-o por toda parte, perguntou por ele em todos os
esconderijos do Rio. Até que foi bater no chalé, onde dona Martha disse-lhe que
tinha
vindo ao cinema. Quem poderia imaginá-lo aqui, nesta matinée? E ainda por cima
dormindo?
- Você se esqueceu de mim?E os ensaios? - resmunga Frazão.
- Que ensaios? - pergunta ainda sonolento.
Noel Rosa não tem descansado nesses meses de março e abril. Só que a música
pouco tem a ver com isso. Passado o carnaval, são os livros que ocupam o tempo
do compositor
que acaba de conquistar a cidade. Livros de química, física, história natural.
Uma retomada de contato com as matérias que tanto trabalho lhe deram no São
Bento
e mesmo depois. Em suma, Noel Rosa tenta ser agora, no vestibular para a
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tão bem-sucedido quanto foi no último
carnaval.
Daí ter-se esquecido de Eratósthenes Frazão e tudo mais.
Quando ele começa a fazer as provas do vestibular, os ensaios de Café Com Música
já estão em andamento. Frazão divide mesmo com Maciel Pereira e Leo Grim a
autoria
dos sketches,
âuadros e cortinas. A parte musical está a cargo de Júlio Cristóbal, Sá Pereira,
Ary Barroso e, espera-se, Noel Rosa. No elenco, além de Aracy Cortes,
Mesquitinha
e ítala Ferreira, os astros principais, estão Luíza Fonseca, Affonso Stuart,
Jota Fegueiredo, Augusto Anníbal, Olga Bastos, João de Deus, Isabel Ferreira,
Edith
Falcão, Oscar Cardona, Henriqueta Brieba, a bailarina Leonor Pinto. A
coreografia é do professor Nemannoff. O teatro, como estava previsto, será mesmo
o Recreio,
onde já se ultimam os ensaios.
Noel é aprovado no vestibular. Tangenciando a média mínima exigida, consegue uma
parcimoniosa 3,6. Mas que importância tem isso se o resultado leva alegria aos
moradores
do chalé? É um acadêmico de medicina, um futuro doutor, um jovem caminhando para
abraçar a profissão do bisavô, do avô, do tio, uma tradição
165

de família em torno da mais nobre de todas as carreiras. A música, acredita-se,


passa agora a segundo plano. Como uma brincadeira de horas vagas, domingos e
feriados.
Mas Noel pensa diferente, talvez acreditando que possa conciliar as duas
atividades, repartindo-se meio a meio entre elas (ou quem sabe reservando à
música fatia
um pouco maior). Vencido o vestibular, trata de cumprir a promessa a Frazão e
vai ao teatro ajudar o maestro Cristóbal a ensaiar os atores que interpretarão
suas
músicas.
Coincidência curiosa, como se a confirmar sua intenção de harmonizar o
estetoscópio com o violão: a 24 de abril, exatamente no mesmo dia em que se
matricula sob
o número 572 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Café Com Música,
contendo oito composições suas, estréia no Recreio. Nos cartazes pintados a mão,
expostos
de um lado e do outro da fachada do teatro, seu nome encabeça a relação de
compositores. Ary Barroso, homem tão talentoso quanto ciumento, não gosta:
- O nome dele na frente do meu, Frazão?
- Sim.
- Mas é apenas um novato.
- Um novato que fez a maioria das músicas da peça.
Se nos anúncios publicados nos jornais haverá uma inversão, o nome de Noel
passando para último, nos cartazes, por ordem de Frazão, ele continuará em
primeiro. Afinal,
são oito composições suas, mais do que de qualquer outro, inclusive Ary. Dessas
oito, porém, apenas três são realmente novas, seus lançamentos se dando em Café
Com
Música. Porque as outras - Com Que Roupa?, Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso,
Por Esta Vez Passa e Dona Aracy (que a própria Aracy Cortes vai cantar com novos
versos
de Frazão) - já foram gravadas e andaram na boca do povo no último carnaval. Das
inéditas, uma logo cairá no esquecimento: Vaidosa1 Já as outras duas não são
menos
que obras-primas: Gago Apaixonado e Quem Dá Mais?. E embora não causem de
imediato a impressão que seria justo esperar, músicas e letras cobertas de
encanto, humor
e originalidade, o tempo há de mostrar que os dois sambas nada devem
a Com Que Roupa?.
Diz Noel que Gago Apaixonado foi feito na Praça 7, numa noite em que a cidade
era agitada por um daqueles corre-corres que se seguiram à posse de
Getúlio Vargas como chefe do Governo Provisório: tiroteios entre soldados no
Mangue e na Lapa, arruaças provocadas por fuzileiros em Madureira, conflito
entre militares
e policiais em Niterói, invasão de botequins, saques de bebidas, depredações.
Indiferente a tudo isso, Noel teria feito o samba para o amigo Manuel Barreiros,
o
Barreirinha, cuja tartamudez
agravara-se muito em razão de um amor não-correspondido. Verdade? Ou mais uma de
suas histórias? De um modo ou de outro, é mesmo um samba genial. Caberá a
Mesquitinha
lançá-lo no palco do Recreio, mas quem será, para sempre, seu intérprete ideal é
o próprio Noel. E ele parece saber disso. Numa entrevista do ano que vem, lhe
perguntarão:
"- De suas criações, qual a que mais lhe agrada? E por quê?"
Resposta:
"-É o samba Gago Apaixonado, porque, além de ser original, os meus vizinhos e os
seus papagaios não conseguem cantá-lo:'z
Daqui em diante, onde quer que se apresente, o samba será número obrigatório,
como que umapièce de resistancede suas exibições, o púDlico sempre contagiado
por este
seu modo de combinar tudo - melodia, ritmo, letra, pausas, acordes - num
aflitivo gaguejar. Um número irresistível que, para júbilo de futuros ouvintes,
Noel perpetuará
em disco, ele na voz e no violão, Napoleão Tavares no pistom com surdina, Luís
Americano na clarineta, Luís Barbosa no seu insólito "instrumento de percussão",
um
lápis com o qual tamborila nos próprios dentes, abrindo e fechando a boca de
modo a obter com isso efeitos rítmicos ora mais graves, ora mais agudos.
Mu. mu. mulher
Em mim fi. fizeste um estrago
Eu de nervoso
estô. tou fi. ficando gago
Não po. posso
Com a cru. crueldade
Da saudade
Que. que mal. maldade
Vi. vivo sem afago
Tem. tem pe. pena
Deste mo. mo. moribundo
Que. que já virou
Va. va. ga. gabundo
Só. só. só. só
Por ter so. so. fri. frido
tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu.
Tu tens um co. coração fingido!
Teu. teu co. coração
Me entregaste
De. de. pois. pois.
De mim tu to. toma. maste
Tu. tua falsi. si. sidade
É profu. funda
Tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu. tu.
Tu vais fi. fi. ficar corcunda!

Quem Dá Mais? será conhecido também


166

pelo título do quadro em que é lançado na peça: Leilão do Brasil. E é mesmo um


leilão, uma notável crônica do país - mais uma - segundo Noel Rosa. Traçada com
graça,
ironia, espírito crítico, sobre ela seria válido escrever-se todo um ensaio.
Está dividida em três blocos, em cada um dos quais é leiloada uma riqueza
brasileira:
a mulata, o violão e o samba. A mulata de que fala Noel é o seu tipo preferido
de mulher. Na cor da pele, no amor ao samba, na formosura, na malícia. Quem a
compra
são os portugueses do Vasco da Gama. No ano passado eles gastaram uma fortuna
para elegerem seu centerfòr wardRussinho, o jogador mais popular do Brasil num
concurso
patrocinado pela Companhia de Fumos Veado. Graças aos maços de cigarro comprados
com o dinheiro dos graudões do comércio de secos emolhados, o primeiro prêmio,
uma
reluzente baratinha Chrysler, foi parar nas mãos de Russinho3.
A respeito do violão, duas observações não podem deixar de ser feitas: a da
pobreza de um país de cuja independência o patriarca tem bolsos tão vazios que é
forçado
a pôr no prego o violão do Imperador; e o fato de o lote ser arrematado por um
judeu. Este verso é um dos dois que valerão a Noel, muitos anos depois de sua
morte,
-a acusação de anti-semita. Mas quem se lembrar do que representou a figura do
prestamista em sua infância (e de como judeu era a denominação genérica, ainda
que
imprópria, daquele tipo de comerciante) sabe o que ele está querendo dizer.
O samba em questão é mesmo o do Salgueiro. Ou de todos os morros da cidade. Noel
fixa com exatidão as regras deste samba, sem introdução, sem segunda parte, como
os negros lá de cima fazem, um simples estribilho para que a partir dele se
improvisem infinitamente versos que bem podem exprimir dois terços do Rio de
Janeiro.

Quem dá mais...

Por uma mulata


que é diplomada
Em matéria de samba e de batucada
Com as qualidades
de moça formosa
Fiteira, vaidosa
e muito mentirosa...?
Cinco mil réis,
200 mil réis,
um conto de réis!
Ninguém dá mais de um conto de réis?

O Vasco paga o lote na batata


E em vez de barata
Oferece ao Russinho uma mulata.
Quem dá mais...
Por um violão que toca em falsete,
Que só nâo tem braço, fundo e cavalete,
Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio,
Foi posto no prego por José Bonifácio?

Vinte mil réis,


21 e 500,
50 mil réis!
Ninguém dá mais de 50 mil réis?

Quem arremata o lote é um judeu,


Quem garante sou eu,
Pra vendê-lo pelo dobro no museu.
Quem dá mais...
Por um samba feito nas regras da arte,
Sem introdução e sem segunda parte,
Só tem estribilho,
nasceu no Salgueiro,
E exprime dois terços do Rio de Janeiro.
Quem dá mais?
Quem é que dá mais de um conto de réis?
Quem dá mais? Quem dá mais?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!

Quanto é que vai ganhar o leiloeiro,


Que é também brasileiro,
E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?
Quem dá mais...?

A exemplo de Gago Apaixonado, o próprio Noel gravará este samba. Mas só no ano
que vem. E com tal brilho que será impossível imaginá-lo tão bem cantado por
alguém
mais.
A revista de Eratósthenes Frazão e seus amigos é bem recebida. A crítica elogia
as atuações de Aracy Cortes, Mesquitinha, ítala Ferreira, todo o elenco. Acha
engraçados
os sket-ches, adequada a direção de João de Deus, bons os bales. Mas não vê com
muito entusiasmo a contribuição de Noel Rosa. Como acontece com este crítico
anônimo:
"A parte musical, se não tem originalidade, também não é inferior à de outras
revistas. Poder-se-á talvez fazer restrições ao excesso de roupas com que
vestiram
a revista e à distribuição feita à Sra. Aracy Cortes, que não lhe dá qualquer
oportunidade. Demais, um dos autores, o Sr. Noel Rosa, sendo, como é, um
sambista consagrado,
poderia ter encaixado entre aqueles 28 quadros um samba ao menos que lhe não
desmerecesse a nomeada que obteve com o famoso Com Que Roupa?."4
Pobre crítico a quem faltou paladar apurado o bastante para apreciar os
saborosos pratos que são Gago Apaixonado e Quem Dá Mais?.
Noel Rosa é mesmo um tangará desgarrado. Ou mais que isso. Desde fins do ano
passado, quando das gravações de Dona Aracy e Dona Emília, não se apresenta com
o conjunto.
Chegou até a confessar, nas entrelinhas de uma entrevista publicada no domingo
de carnaval, seu desejo de afastar-se de Almirante
167

e sua turma, tornando-se parte de um novo grupo musical a ser formado em Vila
Isabel:
"Este ano vamos representar o bairro de Vila Isabel com um 'conjunto junto' (não
repare a expressão) que se denominará Bacharéis da Vila, onde serão cantadas,
por
deferência de meus amigos, as minhas composições. Fui indicado para ser o
'diretor de cordas', e o Canuto será o diretor de tamborins e cuícas. Entre
outros companheiros
meus que fulguram no referido grupo, o Manuel Anacleto surge como um dos astros
de primeira grandeza no tamborim. E o Waldemar Corrêa (sic) voltará a cantar,
com
a voz trêmula de emoção: 'Eu tenho um sentimento profundo...'"5
Os Bacharéis da Vila ficaram na intenção (aliás, o nome do conjunto tinha
procedência, pois foi o primeiro carnaval de Noel como bacharel em ciências e
letras, enquanto
Anacleto já era acadêmico de direito desde 1930). Mas por que um novo conjunto?
E o que significa essa história de "conjunto junto"? Não estará junto, por
acaso,
o Bando de Tangarás ? É sempre difícil tirar conclusões confiáveis das
entrevistas de Noel. De qualquer modo, se considerarmos que os tangarás têm
gravado tão pouco
dele (Com Que Roupa? talvez ainda lhe esteja atravessado na goela) e que os
Bacharéis da Vila só cantariam músicas suas, é possível encontrar algum sentido
no projeto.
O fato é que Noel Rosa vai demorar algum tempo para reintegrar-se aos tangarás.
Passam-se abril, maio, junho, julho, e o máximo que o une a Almirante e seus
comandados
são encontros ocasionais nas esquinas do bairro ou em emissoras de rádio.
Durante esses quatro meses, o conjunto grava doze faixas para o selo Parlophon.
Com dez
delas Noel nada tem a ver. E as duas restantes, embora sejam composições suas,
foram soladas por gente de fora: Paulo Netto de Freitas, que grava Sinhá
Ritinha,
e a dama da alta sociedade, Lucilla, cujo disco de estréia tem de um lado Que
Mal Eu Fiz a Você, de André Filho, e do outro Agora, samba de Noel Rosa:

Agora,
quem chora é quem me fez sofrer
Eu bem sabia que tu ias padecer
Hoje te vejo penando
e procurando Quem queira contigo viver
Tenho certeza
De que pensas em voltar
Mas, que tristeza!
Jâ cansei de perdoar.
Tu foste embora,
Amenizaste minha vida,
Só por isso vou agora
Bendizer tua saída
Sempre vivi
Aturando desaforo.
Já decidi:
Não quero saber de choro,
Pois sou bem forte
E não lastimo estar a sós.
Cada qual com sua sorte:
Deus ajuda a todos nós.

A reaproximação só se dá a 1.° de agosto, no Cassino Beira-Mar, onde a Odeon


organiza um festival para promover os artistas do elenco Parlophon, os tangarás
entre
eles. Generoso Ponce, da empresa Ponce & Irmão, proprietária de alguns
cineteatros da cidade, está na platéia. Gosta do conjunto, convida-o para
exibir-se num de
seus cinemas, o Eldorado. Serão sete espetáculos, de 3 a 9 de agosto,
antecedendo a projeção do filme nacional Iracema6. O próprio Generoso Ponce
sugere o título
da curta temporada: Semana Brasileira.
Almirante logo se interessa. Mas enfrenta dois problemas: o pouco tempo para a
organização do espetáculo, apenas dois dias para reunir os artistas, escolher
repertório,
ensaiar; e a recusa de João de Barro e Alvinho de se apresentarem em público
numa função paga, muito diferente dos amadorísticos recitais em clubes e mesmo
da noitada
promocional da Odeon. Afinal, os tangarás são ou não são amadores? João de Barro
e Alvinho não querem causar dissabores às suas famílias cantando - imaginem! -
num
cinema. Almirante vai recompor o conjunto convocando os violões de Jacy Pereira,
o Gorgulho, Helvécio de Barros e Hélio Rosa. Estes, mais Noel, Henrique Britto,
Paulo Netto de Freitas e a cantora Elisinha Coelho, formam o elenco da Semana
Brasileira, no Eldorado, bem ao lado do Café Nice. Nesses espetáculos, em cujos
programas
sua caricatura e a de Paulo aparecem em destaque, mais uma vez Com Que Roupa? e
Gago Apaixonado são os trunfos de Noel.
Dois meses depois de ter assistido à sua primeira aula na Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, Noel já tinha plena consciência de que não ficará ali por
muito
tempo. Não confessa isso a muita gente. Apenas a um ou outro amigo, como Lauro
de Abreu Coutinho, já terceiranista do mesmo curso. Os dois se encontram na
esquina
da Avenida Passos com General Câmara7.
-Está gostando do curso?- pergunta-lhe o amigo.
Não sei, não, Lauro. Acho que esse negócio de fazer samba e medicina ao mesmo
tempo não vai dar certo.
168

- Está pensando em escolher entre uma coisa e outra?


- Sim.
- Fica com a medicina?
- Não, com o samba.
Lauro de Abreu Coutinho, o primeiro aluno da turma de Noel no São Bento, um dos
mais compenetrados de todo o colégio, hoje levando
ainda mais a sério a medicina(8), espanta-se com o que lhe diz o amigo. Como é
possível alguém trocar a medicina pelo samba?
- Veja uma coisa, Lauro: como médico eu jamais serei um Miguel Couto. Mas quem
sabe não poderei ser o Miguel Couto do samba?
Sua passagem pela faculdade faz-se - mais do que se pensará um dia - silenciosa
e efêmera. Quase não é notado, limitando sua presença a algumas aulas de
fisiologia
e histologia na Praia Vermelha e a outras tantas de anatomia na Santa Casa da
Misericórdia, na Rua Santa Luzia. Sequer comparece às primeiras provas parciais
e não
voltará para o segundo semestre, dizendo a todo o mundo que trancou matrícula
para recomeçar o curso "a qualquer hora dessas". Só no ano que vem, já
definitivamente
assentado na profissão de compositor e cantor de rádio, falará claramente de sua
decisão de trocar a medicina pelo samba. Por isso, muitos pensarão que ele só o
fará no segundo ou mesmo no terceiro ano, quando na verdade já o fez antes da
metade do primeiro(9).
Efêmera, sem dúvida, mas não de todo silenciosa. Pois a medicina serviu ao menos
para inspirá-lo na criação de um de seus mais apreciados sambas, composto ainda
no primeiro semestre de 1931: Coração. Classificado pelo próprio Noel como
"samba anatômico", é um curioso jogo de imagens, a anatomia e a fisiologia do
coração
confrontadas com o seu significado simbólico. A melodia é muito bonita. Eis a
letra original:

Coração,
grande órgão propulsor,
Transformador do sangue
venoso em arterial

Coração,
não és sentimental,
Mas entretanto dizem
que és o cofre da paixão.
Coração,
não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
eis a verdade.
Tu és
pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade.

Coração
de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio,
Mas não ataca o coração.

Conheci
um sujeito convencido
Com mania de grandeza
e instinto de nobreza,
Que por saber
que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
sem pensar no seu futuro.
Não achando
quem lhe arrancasse as veias,
Onde corre o sangue impuro,
169

Viajou a procurar de norte a sul


Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.

Noel não fez muitos amigos na faculdade. Randoval Montenegro é um, a música mais
que a medicina aproximando-os. Randoval é pianista, também compõe, terá músicas
suas gravadas por Carmem Miranda e outros cantores . Carlos Henrique Fernandes é
outro. Herculano Mesquita de Siqueira, outro mais. Nicandro Ildefonso
Bittencourt,
mais um, a quem Noel confidencia a propósito de seu "samba anatômico":
- É a primeira vantagem que tiro da desgraça de ser obrigado a estudar medicina!
Uma vantagem que, segundo consta, nasceu após uma aula na Santa Casa, Noel e
alguns colegas parando para conversar no Café Nice. Ali, partindo de uma
descrição nada
poética do "cofre da paixão", feita por um dos assistentes do catedrático Fróes
da Fonseca, escreveu o samba. Uma lição mal-aprendida, diga-se, pois não cabe ao
coração transformar o sangue venoso em arterial. Noel gravou a letra com essa
impropriedade e tentou corrigi-la nas edições impressas, desta forma:
Coração, grande órgão propulsor, Distribuidor do sangue venoso em arterial...
Emenda pior que o soneto. Tempos depois, nova correção será feita por Noel, mas
não nestes versos. Num caderno escolar onde começa a guardar suas letras, faz de
próprio punho uma alteração no fecho do samba que jamais será gravada ou
editada:
Alguém capaz de trocar o seu sangue
Por azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.
Cantar o seu bairro, a sua cidade, o seu país. Retratar os personagens que
trafegam por aí, focalizar os episódios que testemunha, captar o espírito de
tudo isso,
eis o destino de Noel Rosa, poeta e cronista. Neste 1931, mais cronista que
poeta, pois quase todas as músicas que lança têm sabor de crônica. Do Brasil, de
seus
absurdos, sua gente, suas contradições. Como em Quem Dá Mais?. Ou como neste
sugestivo Samba da Boa Vontade, de parceria com João de Barro. Sua perenidade é
de tal
ordem que daqui a mais de meio século ainda caberá como uma luva no país em que
Noel nasceu. Um samba que vale como uma aula de economia, Noel deixando claro o
que
pensa do capitalismo que acaba de se confirmar como o sistema escolhido pelos
neo-republicanos para administrarem o Brasil: os ricos podem gastar seu dinheiro
à
vontade, pois ele sempre acaba voltando às suas mãos. Um estranho país que
espera alcançar o grau de desenvolvimento dos europeus atirando o seu café ao
mar. E que
- como pede Getúlio Vargas, conservando seu sorriso - exige de seu povo não
apenas sacrifícios, mas acima de tudo boa vontade:

- Campanha da boa vontade!


- Viver alegre hoje é preciso,
- Conserva sempre o teu sorriso,
- Mesmo que a vida esteja feia
- E que vivas na pinimba,
- Passando a pirão de areia
-
Gastei o teu dinheiro,
Mas não tive compaixão
Porque tenho a certeza
Que ele volta à tua mão.
Se ele acaso não voltar,
Eu te pago com sorriso
E o recibo hás de passar
(Nesta questão solução sei dar)
Neste Brasil tão grande
Não se deve ser mesquinho
Quem ganha na avareza
Sempre perde no carinho
Não admito ninharia
Pois qualquer economia
Sempre acaba em porcaria
(Minha barriga não está vazia)

Comparo o meu Brasil


A uma criança perdulária
Que anda sem vintém
Mas tem a mãe que é milionária
E que jurou, batendo o pé,
Que iremos à Europa
Num aterro de café(12)
(Nisto eu sempre tive fé)

O cronista está presente também em Cordiais Saudações, um delicioso "samba


epistolar" nos falando de dívidas e devedores, cobradores (mais uma vez
representados
pelo judeu) e maus pagadores, temas de Noel:

(Cordiais saudações!)

Estimo que este máltraçado samba,


No estilo rude da intimidade,
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
(Junto dos teus, confio em Deus)

Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje sinto saudades Daqueles 10 mil réis que eu te emprestei.
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho,
170

Um chute na empregada,
Porque já se acabou o meu carinho.

A vida cá em casa está horrível,


Ando empenhado nas mãos de um judeu.
O meu coração vive amargurado
Pois minha sogra ainda não morreu
(Tomou veneno e quem pagou fui eu)
Sem mais, para acabar,
Um grande abraço queira aceitar
De alguém que está com fome,
Atrás de algum convite pra jantar.
Espero que notes bem
Estou agora sem um vintém.
Podendo, manda-me algum...
Rio, 7 de setembro de 31!
(Responde que eu pago o selo...)

A interrupção da linha melódica de um samba para que nele se insira um


comentário poético-musical, recurso popularmente conhecido como breque (do
inglês break, freio,
ruptura, pausa), já não é novidade. Cordiais Saudações contém quatro, os que
estão entre parênteses na letra acima. Noel Rosa aprecia como poucos essa tirada
musical
tão carioca, sinuosa, cheia de malandrice. E a utiliza com alguma freqüência.
Quem Dá Mais?, Com Que Roupa?e Samba da Boa Vontade são exemplos. O breque é
elemento
precioso a que o cronista volta e meia recorrerá pelo menos nestes primeiros
quatro anos de carreira.
Um cronista a zombar como pode da confusão em que se vê metido o Brasil após uma
revolução de causas e efeitos imprecisos, cores vagas, filosofias hesitantes,
ideologias
camufladas. O que mudou afinal? Para que se fez a revolução? Como o novo chefe
da repartição que chega para fazer mudanças - e, não sabendo o que mudar, muda
apenas
a posição das mesas - o novo presidente baixa decreto limitando a imigração,
institui um imposto de emergência, mexe na hora brasileira, reforma a
ortografia, nada
mais profundo. A questão da hora - adiantamento em 60 minutos de todos os
relógios do país - intriga Noel. Para que a mudança? Para que o dia comece mais
cedo ou
para que não acabe tão tarde? Confusão. Alguém pergunta a alguém:
- Que horas são, por favor?
- Pela nova ou pela antiga?
Marcam-se encontros por ponteiros diferentes, um chega cedo, o outro se atrasa.
Negócios deixam de ser feitos, namoros são rompidos, o Brasil inteiro parece
perguntar
que horas são. Ou que governo é este. Noel fixa a confusão geral em dois sambas,
o primeiro deles intitulado O Pulo da Hora ou, mais sugestivamente, Que Horas
São?

Que horas são?


Eu venho agora
Saber a hora
Que o ponteiro está marcando
No relógio da senhora.
Minha mulher
Sempre quer me dar pancada
Quando eu olho o mostrador
Do relógio da empregada.
E eu já danado
Com intriga e com trancinha
Arranquei hoje o cabelo
Do relógio da vizinha.
Fiquem sabendo
Os senhores e as senhoras
Que o pai da minha pequena
Me manda embora às 10 horas,
Mas a pequena,
Que é sabida e muito sonsa,
Com este pulo da hora
Já deu o pulo da onça.
Há muito tempo
Briguei com o batedor,
Troquei de mal com as horas,
Quebrei o despertador.
O meu relógio
Anda agora viciado
De tanto andar no meu bolso,
Ele anda sempre atrasado.

Noel parece gostar muito deste samba que ele mesmo grava no selo Parlophon.
Tanto que continuará produzindo acréscimos que não chegarão ao disco, mas que
serão registrados
no seu caderno de letras. Neles, em vez de duplas leituras como as sugeridas
acima ("mostrador", "cabelo", "atrasado(5)*), Noel prefere falar da paz perdida
pelo
brasileiro por causa da hora e voltar a um velho personagem de sua história: o
credor.

O meu relógio É de ouro brasileiro


Trabalha bem sem a corda,
Sem ter vidro nem ponteiro.
Em minha casa
Surgiu hoje uma briga,
Meu credor usa a moderna
E eu adoto a hora antiga.
O carioca
Perdeu a calma e a paz:
A hora pulou pra frente
E a nota pulou pra trás.
Mas eu agora
Já gostei desse brinquedo,
Para me vingar da hora
Janto três horas mais cedo.

O segundo samba sobre o tema, Por Causa da Hora, é ainda melhor. Tanto na
melodia
171

como na letra, Noel traduzindo o caos reinante em dois versos do mais absoluto
non sense, o brasileiro sem saber o que diz e o que faz:

Olho, ninguém me responde,


Chamo, não vejo ninguém...
Mas vale a pena conhecer o samba por inteiro:

Meu bem, veja quanto sou sincero:


No poste sempre eu espero,
Procuro bonde por bonde
E você nunca que vem.
Olho, ninguém me responde,
Chamo, não vejo ninguém...

Talvez seja por causa dos relógios,


Que estão adiantados uma hora,
Que eu triste vou-me embora
Sempre a pensar por que
Não encontro mais você.
Terei que dar um beiço adiantado,
Com o adiantamento de uma hora.
Como vou pagar agora
Tudo o que comprei a prazo,
Se ando com um mês de atraso?
Eu que sempre dormi durante o dia
Ganhei mais uma hora pra descanso
Agradeço ao avanço
De uma hora no ponteiro.
Viva o dia brasileiro!

A reforma ortográfica - na verdade um acordo assinado a 30 de maio deste 1931


entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de
Lisboa - não partiu do Governo. Mas foi por este convertida em decreto depois
que os nossos imortais, atendendo aos interesses das editoras portuguesas (que
pretendiam
uniformizar o idioma de modo a que seus livros vendessem mais por aqui),
firmaram o tal acordo. O cronista vai compor um "samba fonético" intitulado
Picilone15,
em que mistura vários assuntos, a cassação do y, uma homenagem à pequenina Yypne
(irmã de seu amigo Sebastião da Silva Ferreira), expressões populares como "os
olhos
fora da caixa", molecagens sonoras traduzidas nos grunhidos que ele ejoão de
Barro emitirão entre uma estrofe e outra da gravação.

Yvone! Yvone!
Eu ando roxo pra te dizer um picilone!
Já reparei outro dia Que o teu nome,
ó Yvone, Na nova ortografia Já perdeu o picilone.
É pra ganhar simpatia
Que todo mundo se abaixa
Pra te fazer cortesia
Com os olhos fora da caixa.
Tem uma vida folgada,
Não faz mais nada a Yvone,
Até já tem empregada
Para atender telefone.
Cansei de andar só de tanga,
Já perdi a paciência,
Fui te encontrar na Kananga(14)
Mas não me deste audiência.

Cronista de um país que, pouco mudando, continua passando fome. Drama que o
humor carioca, autocrítico e autodebochado, sempre pronto a gracejar da própria
desdita,
pode transformar em tragicomédia. É o que Noel faz com este
Não Me Deixam Comer, gravado pelo humorista de rádio e teatro Pinto Filho, que,
de pois de uma introdução falada em tom que chega a tornar-se pateticamente
lamuriento,
canta as tristezas de não poder dormir, gastar e comer nestes tempos de crise e
pobreza:

Todos brincam,
fazem farra,
gastam o Dinheiro.
E eu quero gastar mas não posso.
Ninguém vive sem comer.
Eu, no entanto,
Quero comer mas não posso.

Até os Cachorros têm o direito de dormir.


Eu quero Dormir mas não posso!
Gostar de dança e da orgia,
Ser fuzarqueira é o teu orgulho,
Tocas vitrola noite e dia
E agora durma-se com este barulho!
Quero dormir, não posso...
Quero dormir, não posso...
Eu tenho um troço Que me aborrece:
Já não janto nem almoço.

Andas atrás da minha nota,


Queres tomar o meu salário,
E mesmo até no agiota
" Tu já passaste o conto do vigário!
Quero gastar, não posso...
Quero gastar, não posso...
Eu tenho um troço
Que me aborrece: Já não janto nem almoço.

A cozinheira já não dorme,


Pois a patroa só mastiga.
A tua fome é tão enorme
Que tens a boca maior do que a barriga!

Quero comer, não posso...


Quero comer, não posso...
Eu tenho um troço
Que me aborrece: Já não janto nem almoço.
172

Críticas políticas, frontais, abertas, com todos os pingos nos is, Noel Rosa não
é ousado o bastante para fazê-las. Nem ele, nem nenhum compositor destes tempos,
a maioria por sinal interessada em render homenagens ao novo presidente. Mas
sempre é possível recorrer ao duplo sentido, como faz Noel, com a cumplicidade
do Visconde
de Bicohyba e Henrique Vogeler, na marcha a que dão o nome de Tenentes... do
Diabo.
Visconde de Bicohyba - pseudônimo que Horácio Dantas adota desde que Humberto de
Campos o levou para trabalhar com ele na revista semanal A Maçã -1 com nossa
combinação
de jornalista, humorista político, boêmio e compositor popular de horas vagas.
Será parceiro de José Luís de Moraes, o Caninha, na buliçosa
É Batucada:

Samba de morro não é samba,


É batucada! É batucada! É batucada!

Sócio, freqüentador ou mesmo membro de diretoria de várias agremiações


carnavalescas, inclusive a dos Tenentes do Diabo. Um folião desses de sair já na
manhã de
sábado fantasiado de mulher ou de um figurão da política, quando não deitado num
caixão, as mãos cruzadas sobre o peito, servindo de defunto num daqueles
enterros
simbólicos que os blocos de sujo realizam pela Galeria Cruzeiro. Como Noel, um
gozador. Alegre, engraçado, amante da vida. Por isso ninguém, nem a família, nem
o
amigo mais íntimo, compreenderá sua decisão de deixá-la tão cedo: com pouco mais
de quarenta anos, vai se matar com formicida.
Henrique Vogeler é personagem mais interessante que Bicohyba, embora não tão
trágico. E muito mais importante do ponto de vista musical. Um dos dois produtos
bem-sucedidos que se conhece de casamento de louro alemão com mulata brasileira
(o outro é Arthur Frieden-reich, dito El Tigre, até aqui o maior ídolo a pisar
um
gramado de futebol do Brasil), Vogeler preza os dois lados de sua ascendência:
nunca se envergonhou de sua mulatice (ao contrário de Friedenreich).
É um afável e espirituoso carioca do Catumbi, já com 42 anos neste 1931, mas tão
jovem quanto Noel. Como este, estudou no São Bento, só que uns vinte anos antes.
Invejavelmente afortunado com o sexo oposto e incrivelmente desprendido com o
dinheiro. Sobre tais qualidades contam-se muitas histórias. Das paixões que
desperta
nas coristas de peças para as quais escreve música. E de pelo menos um gesto
magnânimo: no dia em que ganhou dez contos de réis num concurso internacional de
composição,
passou oito graciosamente às mãos da empresária Maria Amorim, que ameaçava
suicidar-se caso não pudesse pagar as dívidas acumuladas após a produção de meia
dúzia
de fracassos teatrais. Fala-se muito, também, de uma gafe que teria cometido
quando diretor musical da Brunswick: mandou embora uma portuguesinha que cantava
tangos,
uma certa Carmem Miranda, deixando-a escapar para o castdz Victor. Pecado do
qual se redimiria plenamente ao descobrir para o disco um caboclinho de São
Cristóvão
chamado Sílvio Narciso do Figueiredo Caldas.
Henrique Vogeler, por mais que se tenha enganado no caso de Carmem, é grande
músico. Completo, inspiradíssimo. Começou compondo e tocando peças para piano
nos moldes
das de Ernesto Nazareth (a quem substituiu muitas vezes na sala de espera do
Cinema Odeon) e vai acabar como uma espécie de braço direito de
173

Villa-Lobos nos quadros da Superintendência Musical e Artística, órgão a ser


criado sob as bênçãos de Getúlio Vargas. Entre uma coisa e outra, em razão de
longa
e apaixonada ligação com o teatro, Vogeler escreve de tudo. Um ecletismo que o
transporta das canções mais simples, despretensiosas, para quadros humorísticos,
a
obras mais elaboradas como Linda Flor (também conhecida como Ai, IoiÔ),
belíssima, destinada à imortalidade entre outros motivos porque os estudiosos da
música popular
verão nela a primeira a merecer o rótulo de
"samba-canção", abertura de caminhos melódicos e harmônicos que muitos
compositores, Noel Rosa inclusive, haverão de percorrer(15).
Tem indisfarçável influência teatral a primeira composição que Noel e
Henrique Vogeler fazem juntos. Uma esquisita peça para ser cantada em dueto,
singular tanto na construção rítmica e melódica como nos versos displicentes mas
sonoros.
Chama-se Rumba da Meia-Noite e é gravada por Dina Marques e Leonel das Neves
entre arrancos de orquestra e repicar de sinos.

Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
E o que queres tu que eu faça
Se o samba é minha cachaça
E a tristeza passa?
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
No samba vivemos nós dois
E viva Deus e chova arroz!
O resto vem depois
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Ó morena feiticeira,
Coração de tamborim
Quando canta a noite inteira
Sem talvez lembrar de mim
Ela:
Se tu és bom brasileiro
E dançares bem assim
Seja alegre e prazenteiro
Venha pra perto de mim
Ele:
O samba sempre crescendo
Não é coisa que se faça
A lua se escondendo
Mostrando que tudo passa
Ela:
Se a lua se esconder
O sol começa a nascer
Pra não deixar morrer
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Os dois:
Oi, uma, duas, três e quatro,
Cinco, seis, sete, oito, nove, Dez e onze e
meia-noite Já passou... tudo acabou.
Quanto a Tenentes... do Diabo, também deve muito ao estilo teatral de Vogeler,
somado ao humor crítico de Bicohyba e Noel. Trata-se de uma brincadeira, meio
discursada,
meio cantada. Um jogo de palavras, os significados fazendo-se dúbios em vários
instantes (ver boxe). Os Tenentes do Diabo, a sociedade carnavalesca carioca,
confundem-se
com os tenentes da política; os Democratas, sociedade rival daquela, com os
democratas que começam a discordar dos rumos que toma a Revolução de 30; a
mudança dos
estatutos da mesma sociedade com a reforma da Constituição, anseio que vai
resultar em nova revolução no ano que vem; botar o carnaval na rua com pôr as
tropas nas
ruas outra vez. Também se confundem o preto e o vermelho, fascismo e comunismo,
nas cores dos Tenentes do Diabo e na própria indefinição ideológica reinante.
Num
aos trechos da parte discursada da gravação, Ildefonso Norat baixa
sugestivamente o tom de voz para dizer:"... sejam os mesmos intimados a remeter
à nossa secretaria
uma estampilha e dois retratinhqs, a fim de ver o que podemos fazer por eles..."
É a primeira - e não será a última - alusão encontrada em música de Noel Rosa a
um dos jargões demagógicos mais comuns do atual governo. Getúlio Vargas,
espertamente, determinou que as repartições públicas jamais dissessem "não" aos
que recorressem
aos seus balcões e guichês. O "não", sabe o novo presidente, é o maior inimigo
da popularidade, palavra proibida num governo que prega o sorriso, a esperança,
a
boa vontade. Por isso, não podendo dizer "sim" e não devendo dizer "não", o
funcionário da repartição sai-se invariavelmente com esta:
- Por gentileza, cavalheiro, traga-me uma estampilha e um retratinho três por
quatro que eu vou ver o que posso fazer pelo senhor. É claro que nada.
Os tangaràs juntam-se ainda uma vez em 1931 • A convite de Carlos Ribeiro de
Mello Leitão, tio de Alvinho e delegado de polícia em São José dos Campos, São
Paulo,
concordam em participar no dia 7 de setembro de um espetáculo em benefício da
Santa Casa de Misericórdia daquela cidade.
174

Tenentes... do Diabo
"- Peço a palavra, senhor presidente!
- Tem a palavra o líder dos Tenentes.
- Senhor presidente: eu que sou Tenente até a raiz dos cabelos, eu que trabalhei
para botar o carnaval na rua...
(Aclamação)
- ... não posso deixar de combater a reforma dos estatutos. Primeiro, por
considerá-la inoportuna, contrária mesma aos reais e superiores interesses de
nossa sociedade...
(Aclamação)
- ... e segundo, por partir tal proposta de um grupo de derrotistas que de há
muito, senhor presidente, já devia ter sido eliminado do nosso quadro social...
(Aclamação)
- ... pois o que eles querem, senhor presidente, vossa excelência sabe
perfeitamente, é voltar ao regime da politicagem, é entrar de novo nas
"comidas", é transformar
isso aqui em Kananga do Japão, onde nem haja... pão!
(Gargalhadas)
- Ademais, senhor presidente e caros consórcios, esta reforma traz o rótulo
Democrático!
(Exclamação)
- Portanto, é o bastante para ela cair, ainda que seja necessário botarmos
novamente o carnaval na rua!
(Aclamação)
- Por isto, senhor presidente, como líder que sou da maioria dos Tenentes,
declaro votar contra a reforma dos nossos estatutos e ainda proponho não só a
eliminação
dos signatários da proposta em discussão, como também sejam os mesmos intimados
a remeter à nossa secretaria uma estampilha e dois retratinhos, afim de ver o
que
podemos fazer por eles... nesta marchinha que não é deste, senhor presidente,
mas sim do outro mundo...
(Aclamação)

- Então enfeza, macacada!


Sou folião,
Não sou sargento, não sou cabo,
Nem tenente de galão,
Sou Tenente do Diabo!

Um coronel muito vermelho


Por uma preta teve amor
Resultou desse dueto
Um guri vermelho e preto
Que é Tenente até na cor..."

Marcha-discurso. Palavras do Visconde de Bicohyba, música de Henrique Vogeler,


letra de Noel Rosa.

Três semanas antes, Noel faz duas gravações do seu Cordiais Saudações, uma
acompanhado pela Orquestra Copacabana, que ele rejeita chegando a escrever sobre
o selo
branco do disco de prova: "Não gostei, horrível!"16 A outra, com o Bando de
Tangarás (na verdade apenas o piano de Eduardo Souto e o violão de
Henrique Britto por sinal num soberbo diálogo instrumental), é a que vai ser
editada. Aproveitando a viagem, Almirante leva na bagagem o disco de prova dessa
segunda
versão.
Homem cheio de truques e idéias, sempre engendrando um modo de se promover e ao
grupo que lidera, Almirante imagina um quadro para ser apresentado durante o
espetáculo
beneficente. Lembrando-se de que no final da gravação, para rimar com "podendo,
manda-me algum...", Noel conclui com a data "7 de setembro de 31", arma toda uma
cena. Consegue uma vitrola emprestada com o delegado, leva-a para o palco e, lá
pelas tantas, anuncia à platéia que os tangarás vão gravar um disco. Sim, aqui
mesmo,
no palco. E agora. Faz uma longa exposição técnica, falando de microfones,
válvulas, agulhas, ceras e outros aparatos, e em seguida pede silêncio. Os
tangarás, Noel
solando, interpretam Cordiais Saudações. Terminado o número, Almirante põe o
disco de prova na vitrola, pede novamente silêncio e reproduz "o que se acabou
de gravar".
O teatro vem abaixo, impressionado com esta mágica de se fazer um disco de
maneira tão simples. A esperteza de Almirante vale mais um ponto à reputação do
conjunto.
Uma breve estada em São José dos Campos, breve e tranqüila, só agitada pelos
gritos que Almirante e os outros ouvem na hora de dormir. Todos, quase ao mesmo
tempo,
correm a abrir as portas de seus quartos. O que será? Constatam, pasmos, que
Noel Rosa simplesmente assusta os outros hóspedes da pensão, correndo sem roupa
pelo
corredor. O que terá havido? Estará bêbado? Terá saído às pressas de alguma
alcova proibida? Uma cena inesquecível que ninguém jamais chegará a entender, os
bem-comportados
tangarás com os olhos arregalados de espanto, Noel correndo de um lado para
outro. Nu.
175

NOTAS
1. Ver nota sobre Vaidosa na relação das obras de Noel Rosa no final do volume.
2. O Cruzeiro, 27 de agosto de 1932.
3- O Grande Concurso Nacional Monroe, patrocinado pela Companhia de Fumos Veado
com o apoio do Diário da Noite, mexeu com a cidade em meados de 1930. Diante de
multidões
de curiosos, caminhões repletos de sacos contendo votos (maços de cigarros
Monroe, Palace, Rio Chie, Royal Club, Icarahy, Yankee e Cascatinha) chegavam
todos os
dias à sede da fábrica, à redação do jornal e ao Teatro Lyrico, onde ficavam as
urnas. Numa edição extraordinária de 4 de junho daquele ano, o Diário de
Notícias
divulgava o resultado final: primeiro Russinho, do Vasco da Gama, com 2 milhões
900 mil 649 votos; segundo Fortes, do Fluminense, 2 milhões 481 mil 483;
terceiro
Filo, do Corinthians Paulista, 722 mil 563; quarto Friedenreich, do São Paulo,
319 mil 563. Russinho, Moacyr de Siqueira Queiroz, recebeu sua barata Chrysler
numa
festa no Teatro Lyrico que teve como
mestre de cerimônias o ator e cantor Raul Roulien.
4. De um recorte colado por Noel em seu álbum, sem indicação de data e nome do
jornal, mas certamente de abril de 1931.
5. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931. O jornal erra ao chamar o
Waldemar Coroa de Waldemar Corrêa.
6. Produção de 1931 da Metrópole Films, São Paulo. Baseado no romance de José
de Alencar, direção de Jorge Konchin, com Dona Fleury, Irene Rudner, Álvaro
Lacerda,
Diogo Miranda e Carmo Nacarato nos papéis principais.
7. A Rua General Câmara é uma das que desapareceram para dar lugar à atual
Avenida PresidenteJVargas.
8. Lauro de Abreu Coutinho realmente se formaria em medicina, tornando-se
conceituado radiologista com clínica no Rio. Foi em seu consultório, na Rua
Alcindo Guanabara,
durante um dos dois longos depoimentos feitos aos autores, que ele recordou o
encontro com Noel na esquina da Avenida Passos com General Câmara.
9- Os arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atual Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, são elucidativos. Neles - e
em
depoimentos vários - os autores se basearam para desfazerem a equivocada
afirmativa de que Noel Rosa parou no segundo ou no terceiro ano, quando na
verdade o fez
na metade do primeiro.
10. Só Carmem Miranda gravou quatro composições de Randoval Montenegro, a
melhor delas Para Um Samba de Cadência.
11. Frase citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
103), e confirmada aos autores pelo Dr. Nicandro Ildefonso Bittencourt.
12. Foi em junho de 1931 que, pressionado pelos produtores, Getúlio Vargas
determinou que se queimassem ou atirassem ao mar cerca de três milhões de sacas
de café
estocadas por falta de comprador. Ir à Europa num aterro de café é imagem que
pode ser tomada em pelo menos dois sentidos: o literal, isto é, o de um país
perdulário
destruindo o seu principal produto; e o figurado, o café servindo para aterrar o
oceano que separa o subdesenvolvido Brasil da adiantada Europa. Sonho antigo,
diga-se.
13. Na gíria da época, picilone, forma popular de ípsilon, queria dizer elogio,
lisonja, galanteio.
14. Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Kananga do Japão. Funcionou
primeiro na Barão de São Félix e depois na Senador Euzébio. É a mesma do
trocadilho "haja...
pão" da parte discursada de Tenentes... do Diabo (ver boxe neste mesmo
Capítulo).
15. José Ramos Tinhorâo, em cuja Música Popular - Teatro & Cinema foi colhida a
maioria dos dados aqui expostos sobre Henrique Vogeler, é um dos que defendem
tal
primazia para o compositor. Diz ele em sua Pequena História da Música Popular -
da Modinha à Canção de Protesto (páginas 151-152): "A paixão de Henrique Vogeler
se explicava, naturalmente, pela consciência de ter criado alguma coisa de novo
para a época, em termos de canção. E a prova estaria em que, apesar do Linda
Flor
ter passado despercebido no teatro, Vogeler ia fazer com que o cantor Vicente
Celestino o gravasse imediatamente em disco Odeon, de selo azul, quando aparece
pela
primeira vez numa etiqueta a expressão
samba-canção brasileiro."

RISO DE CRIANÇA

Capítulo 18

Nos meus olhos você lê


Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você
Três Apitos

Martha sabe o filho que tem. Inteligente, sensível, carregando sobre os ombros o
peso de grande experiência de vida, desde os tempos em que lhe cabia empunhar
sozinha
a bandeira da família, tem consciência de que a medicina não empolga Noel tanto
quanto o samba. O que não a impede de lutar contra isso. Em casa, esquecendo-se
talvez
de que o filho já tem vinte anos e idéias próprias, procura policiá-lo. Exige
que se sente diante de livros e apontamentos das matérias da Faculdade, tenta
evitar
que se afaste do chalé por muito tempo, continua a trancar o armário para que
não possa vestir o melhor terno, a melhor camisa, e sair em busca de mais uma
noitada.
Em vão. Noel, como sempre, tem uma coleção de esquemas, artimanhas e desculpas
para vencer a vigilância da mãe. Uma delas, a vizinha e amiga Dorica.
Theodorica dos Santos Lima mora duas casas à direita de quem sai do chalé.
Uma construção antiga, em centro de terreno, herdada por ela, as irmãs e a prima
Sílvia da avó Rosa Pinheiro Guimarães. E mesmo amiga de Noel, o seu salvo-
conduto
para a madrugada. Ele guarda em sua casa um terno, uma camisa e uma gravata para
essas ocasiões em que Martha tranca o armário. Pula o muro para a vila ao lado,
emerge na Theodoro da Silva, caminha na ponta dos pés até a casa de Dorica, muda
de roupa e sai para uma boêmia bem mais agradável do que o estudo de ossos,
músculos,
nervos, órgãos e tecidos.
Dorica é um tipo diferente, os cabelos muito curtos, quase raspados, os gestos
viris contrastando com o corpo miúdo e magro. Veste-se sem vaidade, fuma muito.
É
e será uma das moradoras mais conhecidas do bairro. De poucos sorrisos,
participante, com nítida ascendência sobre as pessoas à sua volta, sobretudo
Sílvia. Viverão
juntas para sempre. Noel gosta de Dorica. Costuma aparecer em sua casa para
pedir pão dormido.
-Já sei, Noel, é para o burro.
Dar pão dormido ao burro da carrocinha de leite - e até dizer-lhe palavras
amáveis ao ouvido - é uma das manias de Noel:
- Burrinho, burrinho... Até hoje não sei quem é mais burro, você ou eu.
Adora burros e a eles dedicará uma série de pensamentos que reúne desde 1929 num
caderno escolar.
Martha sabe o filho que tem. E não se ilude. No íntimo está convencida de que,
cedo ou tarde, ele mandará a medicina às favas.

Os pensamentos. São dez páginas escritas a lápis, contendo máximas, analogias,


jogos de palavras, considerações filosóficas, um auto-retrato do Noel de 17 de
janeiro
de 1930, data que anotou na folha de rosto do caderno sob o título Meus
Pensamentos.
São quarenta itens ao todo, os quinze primeiros sobre os burros e os seguintes
sobre uma psicologia das massas, novamente o burro, o ladrão e o policial, a
honestidade
e a vocação, o gari e o alfaiate, a mulher e o homem, o casamento e o divórcio,
o empresário e o proxeneta, a fidelidade e a sabedoria, o serviço militar e a
opinião
dos vizinhos, a incompatibilidade de gênios e a felicidade. Simplistas às vezes,
ingênuos outras, os pensamentos de Noel têm muito dele mesmo, ajudam a explicá-
lo,
mostram que desde os dezenove anos, pelo menos, gosta de filosofar. E contêm
muitas de suas posições diante da vida e dos homens.
Mas por que lembrar agora pensamentos de quase dois anos atrás? Para que fique
claro o quanto Noel cresceu neste tempo, o filósofo amador e o poeta claudicante
transformados
no cronista destes dias. Um cronista capaz de entrar no Cine Eldorado, assistir
a Coisas Nossas, o primeiro filme sonoro nacional(1), e de lá sair indagando-se
o
que será realmente nosso, brasileiro, o próprio cinema falado sendo mais uma
novidade importada dos Estados Unidos. É pensando nisso que compõe um de seus
melhores
sambas, gravado por ele com acompanhamento em que se destacam o piano de Odmar
do Amaral Gurgel, o Gaó, e mais uma vez o pistom de Napoleão Tavares. O samba
tem
título quase igual ao do filme: São Coisas Nossas.

Meus Pensamentos
• Os burros aceitariam, com mais satisfação, o verdadeiro comunismo, do que os
homens!
• Dizem que o burro fica admirado diante de um palácio. Será que se admira de
ver a desigualdade que existe entre os homens? Ou a fragilidade das construções?
• Quem sabe se o burro não será quem mais se interessa pela descoberta do
modo-contínuo?
• Qual o crime que o burro cometeu para ser condenado a trabalhos forçados?
• Um burro se sentiria melhor entre grades do que entre os varais.
• Os burros nascem para cumprir destinos iguais.
• Nós só esperamos de um burro... um coice. O burro nada espera de nós.
• Se um burro pensasse... oferecia capim ao carroceiro.
• Se alguns carroceiros soubessem a força que têm... despediriam o burro e
puxavam de boa vontade a carroça.
• Se o burro faz força para puxar a carroça para a frente... é porque a carroça
faz força para puxar o burro para trás. Se o burro faz força é porque existe o
chicote.
O dia que o carroceiro não espancar mais o burro... as carroças vão andar de
marcha a ré.
• Com que superioridade um burro pisaria em uma nota de cem mil réis?
• Ninguém sabe se o burro tem vocação para puxar carroça.
• O burro só tem uma satisfação: não segue a profissão forçado pela sua família.
• Um burro olha para um cavalo de corrida com menos inveja do que um estivador
olharia para o Paavo Nurmi.
• O burro daria de boa vontade o seu nome a um chefe de família.
• Se um burro soubesse dar abraços, não gastava sua energia dando coices nos
inimigos.
• O burro goza grande popularidade. Quem não o conhece pessoalmente, conhece de
nome. E há pessoas que têm intimidade com ele.
Psicologia das massas:
•Jack Dempsey - "massa bruta"; Peixe - massa de tomate; índio Aymoré - massa
alimentícia; tacape - massa de briga; Assembléia - massa popular; "3a. Corista"
- massa
de vidraceiro; Ruy Barbosa - massa cinzenta; Padeiro - amassador das massas;
Rockeíeller - o homem das "massas"; Tapa-alvo - "massa de mira"; Sogra - massa
falida.
• Um gatuno seria um ótimo policial se... fosse bem pago.
• Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para ganhar o
insuficiente.
• O lavrador mais honesto é muito menos gentil e agradável do que o maior
gatuno.
• A vocação é necessária até para se dar um laço na gravata.
• Qualquer autor pode, sem receio, desafiar um crítico profissional do folclore
brasileiro - para fazer versos estudados ou improvisados.
• Os garis falam mal dos deputados: Nunca vi um deputado falar de um gari!
• A idéia mais original é sempre expressa por gestos e palavras comuns.

• A mulher original é aquela que não procura se diferençar das outras.


• A mulher que mais entendi até hoje foi uma "cocotte" que se queixava da sorte
por ser "muito mal compreendida" pelas outras mulheres!
• O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que este não quer aprender.
• O "savoir par coeur" é, em português, um grande defeito que o papagaio tem. O
francês "saberá de cor" qual é a cor do papagaio?
• Rodolfo Valentino seria mais artista do que seu alfaiate?
• Um literato nunca se exprime bem quando escreve, porque nunca ele escreve como
fala.
• Para o bom entendedor meia palavra... não basta, porque ele sempre exige o
"porquê" do seu interlocutor.
• Qualquer poeta aprende a varrer mais depressa as ruas do que um varredor a
fazer versos.
• O empresário explora o trabalho dos cantores e das cantoras. O proxeneta
explora o trabalho das mulheres perdidas, com seu prejuízo moral. Qual destes
empresários
é mais criminoso?
Comparações
1 - A mulher é o aperitivo que ajuda o homem a comer o prato indigesto da vida.
2 - A mulher que mais amou neste mundo morreu antes de saber o que era o amor.
3 - A mulher infiel é semelhante ao
menino que fuma escondido do pai. Se este um dia pilha aquele em flagrante
delito, ou castiga e proíbe tal procedimento ou então consente que continue,
contanto
que não lhe atire fumaças ao rosto, porque considera isto uma grande falta de
respeito e, além disso, os vizinhos poderão reparar.
4 - Os vizinhos representam a consciência daqueles que procedem desonestamente:
quando alguém pretende praticar qualquer má ação, só pensa numa palavra:
Vizinhos.
5 - Mulher rica presa em casa é o mesmo que seresteiro na rua em noite chuvosa.
6 - Reservista voluntário é todo o cidadão que tem medo de ir para o Exército:
só pensa em tirar a caderneta para nunca mais vestir farda e nem sequer pisar no
quartel.
Com a mulher que requer o seu divórcio, dá-se o contrário: não é porque ela não
queira mais saber de um marido. Ela quando faz isto é porque pretende ter vários
e deseja, por isto, ser independente.
7 - O que nós chamamos incompatibilidade de gênios entre um casal não se
assemelha nada com o que devia ser; os gênios neste caso não são diferentes; são
completamente
iguais: se ele é teimoso, ela também o é; ambos são malcriados, ambos são
infiéis, etc. O casal não vive bem justamente por causa da perfeita igualdade de
gênios.
Para haver felicidade é preciso haver gênios diferentes.

178

Queria ser pandeiro


Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça,
Coisa nossa, coisa nossa.
O samba, a prontidão e outras
bossas,
São nossas coisas,
são coisas nossas!
Malandro que não bebe,
Que não come,
que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lá da roça,
Coisa-nossa, coisa nossa.
Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestam ista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa,
muito nossa!
Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça.
Coisa nossa, muito nossa!

O termo "bossa", no sentido de queda, aptidão, jeito para fazer as coisas,


adquire tal força neste samba - e será com tanta freqüência empregado por Noel -
que muitos
pensarão ter sido criado por ele mesmo. Mas não. Aprendeu-o numa aula da
Faculdade, o estudo da frenologia (teoria que tenta estabelecer uma relação
entre a inteligência
e a conformação do crânio) sugerindo que as bossas frontais e occipitais é que
determinam a vocação e a capacidade de cada um.

A breve trajetória de Noel Rosa pelo mundo do teatro de revistas - limitada a


apenas quatro peças, todas encenadas em 1931
- trouxe-lhe dois grandes proveitos: tornou-o mais conhecido e aproximou-o de
Ary Barroso, outro moço de extraordinária musicalidade que há de trocar o anel
de
doutor pelo samba. Sete anos mais velho que Noel, Ary ao menos chegará a
completar o curso de direito, embora para pendurar o diploma, deixar que se
cubra de poeira,
usá-lo apenas para agradar a família, suas
velhas tias avós de Ubá. Minas, onde nasceu há
27 anos.
Quando se diz que Ary tem extraordinária musicalidade não se fala por falar.
Pianista, músico com estudo, uma veia inquestionavelmente criativa, é o único
dos compositores
brasileiros desta época destinado a criar um tipo de samba que, não sendo Cidade
Nova nem Estado, tem força o bastante para abrir novos caminhos à música popular
brasileira. São exemplos disso Vou à Penha, de 1929, e Faceira, deste ano. Pode-
se dizer que, se o primeiro grande sucesso de Ary, Vamos Deixar de Intimidade,
também
de 1929, pautava-se pela escola de Sinhô e dos outros sambistas amaxixados, tudo
o que tem feito recentemente ressabe à originalidade, à coisa nova, sua. A obra
que criará nos próximos anos - No Rancho Fundo, Foi Ela, Na Batucada da Vida,
Maria, Tu, É Mentira, Oi - falará de sua singularidade.
O que, certamente, não escapa à acuidade de Noel. Durante Café Com Música os
dois apenas se encontraram nos bastidores do Recreio, cada qual passando às mãos
de
Frazão o que era seu, nenhuma colaboração se concretizando. Já em Mar de Rosas -
revista de Gastão Penalva e Velho Sobrinho, também no Recreio
- a aproximação se faz de forma mais efetiva. Noel havia escrito um samba para
um dos quadros, intitulado Mulata Fuzarqueira, de melodia interessante e versos
que
tentavam reproduzir o linguajar dos morros cariocas.
Mulata fuzarqueira,
Artigo raro,
Que samba e dá rasteira,
Que passa as noite inteira em claro
Não quer mais saber
De preparar as gordura
Nem cuidar mais das costura.
O bom exemplo já te dei
Mudei a minha conduta
Mas agora me aprumei.
Mulata fuzarqueira da Gamboa
Em 1937 "... o que eu falo é bem pensado". (Arquivo de Almirante.)
Só anda com tipo à-toa Embarca em qualquer canoa! Mulata fuzarqueira da Gamboa
Embarca em qualquer canoa!
Mulata vou contar As minhas mágoa
Meu amô não tem erre
Mas é amô debaixo d'água!
Não gosto de te ver Sempre a fazer
certos papel
A se passar prós coronel...
Nasceste com uma boa sina
Se hoje andas bem no luxo
É passando a beiçolina!
Mulata tu tem que te preparar
Pra receber o azar
Que algum dia há de chegar
Aceita o meu braço
E vem entrar nas comida
Pra começar outra vida
Comigo tu podes viver bem,
Pois aonde um passa fome
Dois pode passar também.
180

Mas o que realmente assinala a presença de Noel Rosa nesta revista, estreada a
24 de julho de 1931 com Margarida Max no principal papel, é a letra que escreve
para
a música composta por Ary com vistas a um quadro dedicado aos bravos navegadores
que levam a vida desafiando as incertezas do mar. É uma letra claramente
otimista,
mas com duplos sentidos bem à maneira de Noel, as expressões "mão no remo" e
"mete a vela" empregadas, habilmente, com significados ambíguos. Sílvio Caldas -
que
nesta mesma revista canta Cordiais Saudações, sentado a uma mesa, fingindo
escrever uma carta ao amigo devedor - é quem lança soberbamente o samba de Ary e
Noel,
Iça Vela, mais tarde reintitulado

Mão no Remo.
Nesta vida, nesta vida,
Cada qual tem um barco em que navega
E o azar é natural
Nem há nada mais fatal
E a justiça é cega
Mas se os ventos sopram contra,
Ou se vem a tempestade
Nunca mais o barco encontra
O porto da felicidade.
Mão no remo! Mão no remo!
Com toda coragem
Pra levar vantagem
No mar desta vida
Pois se queres ser feliz no amor,
Tens que remar com ardor.
Mete a vela! Mete a vela!
Quando for a hora
De ir mar afora
Em busca da sorte
Aproveitando a maré
a favor Terás pra sempre valor.

Este samba - primoroso - não renderá a Noel mais do que 50 mil réis, importância
em troca da qual ele cede seus direitos autorais ao violinista Rogério
Guimarães.
Mas não faz mal. Vale pela parceria.
É evidente que a musicalidade de Ary impressiona Noel. Seus sambas, melódica e
ritmicamente originais,- instigam o jovem poeta de Vila Isabel. Do contrário, ao
ouvir
num dos quadros de Vai Com Fé, revista estreada no mesmo Recreio a 12 de agosto
de 1932 (portanto, daqui a um ano) um samba com música e letra de Ary e nada
menos
de três títulos {Santa Padroeira, Zélia Fortunata e Não Tem Bandeira), não se
sentiria tentado a criar para ele nova letra.
Manteve o refrão e, com a permissão de Ary, escreveu novas segundas partes,
rebatizando o samba como De Qualquer Maneira:

Quem tudo olha quase nada enxerga


Quem não quebra se enverga
A favor do vento
Eu não sou perfeito
Sei que tenho de pecar
Mas arranjo sempre jeito
De me desculpar
Eu lá na Penha agora vou estifa(2)
Mas não vou como um cafifa
Quem foi lá desacatar
Mas a força falha
Ele teve um triste fim
Agredido a navalha
Na porta de um botequim.
Pra ver a minha santa padroeira
Eu vou à Penha de qualquer maneira
Faz hoje um mês que fui naquele morro
E a Juju pediu socorro
Lá da ribanceira
Toda machucada
Saturada de pancada
Que apanhou de seu mulato
Por contar boato !
Meu coração bateu à toda pressa
E eu fiz uma promessa
181

Pra mulata não morrer...


Pela padroeira
Ela foi bem contemplada
Levantou do chão curada
Saiu sambando fagueira
Eu vou à Penha de qualquer maneira
Pois não é por brincadeira
Que se faz promessa
E o tal mulato
Para não entrar na lenha
Fez comigo um contrato
Pra sumir da Penha
Quem faz acordo não tem inimigo
A mulata vai comigo
Carregando o violão
E com devoção
Junto à santa milagrosa
Vai cantar meu samba prosa
Numa primeira audição.

Infelizmente Noel e Ary farão apenas três sambas juntos3. Todos excelentes. É
que seus habitats são muito diversos, Ary mais próximo do pessoal do teatro, de
uma
classe média mais refinada, jamais se misturando à gente do morro, pouco
freqüentando o Café Nice (prefere fazer ponto no Rio Branco, ali na Rua São
José, onde se
reúne a turma de futebol do Flamengo, uma das suas grandes paixões). Vive enfim
em outro sistema planetário, tocando piano em festas grãfinas, cultivando uma
boêmia
mais moderada, em nada parecida com o quase submundo em que anda Noel.

Clarinha e os irmãos estão morando novamente em Vila Isabel. Numa casa de vila
da Rua Gonzaga Bastos, a poucos passos do Boulevard. Não só por ser mais
econômica,
mas também por ajudá-los a afugentar a triste lembrança da morte de dona Clara.
Para Clarinha, principalmente, mudança oportuna. Menos de três quarteirões de
caminhada
e ela já está no chalé. Trabalhando, ajudando dona Martha, mais perto de Noel.
Engano. Assim como a ida para o Engenho Novo não os afastou, a volta para Vila
Isabel não os aproxima. Já são quatro anos de namoro, um indefinido
relacionamento
em nada parecido com os namoros convencionais. Quatro anos e ela continua sem
saber ao certo o que são, como estão, para onde vão. Às vezes acha que ele a
ama. É
delicado, carinhoso, tem uns olhos cheios de ternura. É capaz de gestos
românticos, como aquele retrato em forma de coração, e faz para ela apaixonadas
serestas.
Às vezes, porém, convence-se do contrário, Noel desaparecendo, ficando semanas
sem procurá-la, não lhe dando sequer uma desculpa. Tímida, é incapaz de
perguntas
diretas, talvez com receio de receber respostas também diretas. Sabe lá qual é a
verdade
que Noel guarda sobre este namoro? É uma moça afogada em dúvidas.
Tem conhecimento da existência de Fina, de que Noel quase sempre a deixa no
portão de casa e toma o rumo da Rua Moju. De início, sofria mais, ia para o
quarto chorar,
sentia que o havia perdido. Mas logo aparecia alguém - uma irmã, uma amiga ou
mesmo dona Martha - e a tranqüilizava:
- Não liga, não, Clarinha. Assunto com moça azougada não dura um verão. Homem
que vê muita vantagem acaba enjoando.
Outro engano. Noel jamais enjoará de Fina, o "assunto" entre os dois durando
quantos verões ela queira. Pois enquanto Clarinha vive mergulhada em incertezas
- que
cedo ou tarde se transformarão numa única e doída certeza, ou seja, de que pode
ser que ele a ame, mas nunca se casará com ela - Fina nem pensa nessas questões.
Gosta da vida, quer aproveitá-la o quanto saiba, ser livre o quanto possa. E
esta sede de liberdade é o que mais prende Noel.
Um namoro é muito diferente do outro. Com Fina, não há cerimônias, nem irmãos de
cara feia, nem compromissos implícitos do tipo "namorou é pra casar". Noel é
freqüentador
da casa da Rua Moju, ele que nunca pôde pôr os pés além da porta da casa dos
Corrêas Netto. Já conquistou a todos com o seu sorriso, sua conversa,
suas histórias, suas canções. Dona Luísa o venera, vive atrás dele com
cafezinhos, broas de mi lho e outros agrados. Também gosta de ouvi-lo cantar:
- Noel, meu filho, senta aqui. Como é mesmo aquela música?
Dona Iracema é quem guarda, com todo carinho, seu violão. Uma guardiã valiosa
nestes dias em que a mãe vive a trancar-lhe o armário, a esconder-lhe o caderno
de
músicas, os esboços, o violão.
-Dona Iracema, cuide bem da minha ferramenta de trabalho.
Noel sente-se bem neste ambiente familiar, a casa sempre cheia, ele podendo
entrar e sair à hora que bem entende. Mas seu namoro com Fina não se limita a
isso. Nem
às serenatas, ou às conversas na varanda, ou às festinhas que de vez em quando
os vizinhos dão. Noel e Fina geralmente namoram muito longe dali, na Barra da
Tijuca,
em Jacarepaguá, no Leblon. Vão no carro de Valuche ou Malhado, cada qual com sua
pequena. Passeios longe, demorados, naturalmente às escondidas de dona Luísa, do
center-half Zeca, de toda a família, Fina sempre dizendo que foi à casa de uma
amiga, que vai voltar tarde, ou mesmo não voltar. É dessas vantagens que Clara
ouve
falar. Imagine uma moça de dezesseis, dezessete anos dormindo fora de
182

casa! Como pode Clarinha competir?


- Não liga, não. Isso não dura muito. Fina também gosta de Noel. E muito. É
ciumenta. Se acontece algum daqueles sumiços a que Clara está acostumada,
protesta, zanga-se para valer, promete esconder para sempre ou mesmo fazer em
pedaços o
violão que dona Iracema guarda com cuidado. Mas Noel sabe levá-la no carinho, na
fala mole, naquilo que ela costuma chamar de "conversa de teso", de um sujeito
capaz
de comprar o mundo sem um níquel no bolso. Brigam muito, discutem, fazem cenas,
mas se gostam. E se parecem em muitos pontos. Por exemplo: se ele é de sumir,
também
ela costuma dar suas escapulidas. O gosto pela liberdade não combina com essa
história de dizer ao namorado tudo o que faz.
- Onde é que você esteve ontem à tarde? - pergunta ele.
- Vai morrer sem saber, Noel.
São muitos pratos à mesa na casa 5 da Rua Moju. Mesmo Martha, Clara e os filhos
tendo se mudado com Alegria, ainda são onze bocas a comer e apenas Reinaldo,
marido
de Iracema, a trabalhar. É neste final de 1931 que a própria dona Luísa decide
ter chegado a hora de todos ajudarem. Zeca, as moças mais crescidas, inclusive
Fina
e Bazinha, têm de trabalhar.
As duas irmãs empregam-se em fábricas do Andaraí. Fina vai trabalhar na Hachiya
Indústria e Comércio S.A., pequena firma japonesa que produz botões de osso e
madrepérola.
Bazinha, na Companhia América Fabril, uma das mais importantes indústrias de
tecido do Rio.
De início, uma recomendação a toda a família.
- Pelo amor de Deus, não digam ao Noel onde trabalho. Não quero que ele me
procure lá.
Fina tem seus motivos. Um pouco o orgu lho, ela se sentindo constrangida, não
querendo que o namorado saiba que seu emprego é tão modesto (como se ele fosse
de reparar
nisso), mas um pouco também para evitar que o próprio Noel se converta num
center-half, marcan-do-a em cima, nas horas de entrada, almoço e saída. Continua
prezando
sua liberdade. Mas não poderá ocultar-se por muito tempo. Entre outras coisas
porque Noel acaba de comprar um carro. Sim, um Chandler preto, ano vinte e
poucos.
A que vai chamar de Viramundo. Grande, com cadeirinhas ao lado, meio descascado
numa das portas, capota de lona ameaçando esfrangalhar-se. Um carro velho,
enfim,
mas o que ele pôde comprar com o dinheiro ainda minguado que tem ganho com a
música.
De carro, Noel pode estar mais perto de
Fina. Nos passeios noturnos, já não depende de Valuche e Malhado, e também nas
investigações que pretende fazer para saber onde ela trabalha.
- Deixa de ser curioso, Noel.
Fina também não lhe conta que, por causa dele, tem brigado muito com o pai,
Theodoro Félix. Brigas feias. O homem aparecendo de surpresa, zangado:
- Me disseram que você anda de coisa com um cantor de rádio.
- Não é de sua conta.
- É, sim! Não se esqueça de que sou seu pai.
Fina atira-lhe em cima seus ressentimentos, Theodoro não ligando para ela e
Bazinha, voltado apenas para a nova família, os novos filhos. Com que direito
aparece
assim, de repente, querendo dirigir sua vida? O homem se altera:
- Pois ouça uma coisa: se eu souber que você anda metida com este cantor, passo
com meu carro por cima dele!
Apenas uma ameaça. Theodoro Félix não continuará incomodando a filha por algum
tempo. E ela, de tão ressentida, vai até mudar de nome: passará a assinar-se
Josefina
Telles.
Alheio a tudo isso - e com um dos cachês da Rádio Mayrink Veiga - Noel passa por
um retratista seu amigo, na Rua da Carioca, e paga lhe adiantado um serviço para
o qual pede o maior capricho: um retrato de sua namorada. Depois diz a Fina para
ir ao retratista, amanhã mesmo, está tudo acertado. Mas o retratista a colhe num
instante que não lhe faz justiça, o rosto bonito porém triste, os olhos grandes
mas nostálgicos. Nem parece uma moça alegre. Até dona Luísa nota que é uma Fina
diferente:
- Ora, minha filha... Cadê aquele riso de criança?
É exatamente este, Riso de Criança, o título do primeiro samba que Noel dedica a
ela. Não se trata de relato literal do romance entre os dois, mesmo com as
referências
ao riso, ao retratinho e ao violão empenhado. Mas a quadra final - que não será
gravada - vale por uma autobiografia:
Seu riso de criança
Que me enganou
Está num retratinho
Que eu guardo e não dou
Guardei sua aliança
Pra ter a lembrança
Do meu violão
Que você empenhou.
Em cada morro que passo
Um novo amor eu conheço
Cada paixão que eu esqueço
É mais um samba que eu faço.
183

Canto agora de passagem


Você ouve mas não vê
É a última homenagem
Que eu vou fazer a você.
Eu nascendo pobre e feio
Ia ser triste o meu fim,
Mas crescendo a bossa veio,
Deus teve pena de mim.

Com a ajuda de Viramundo é fácil para Noel seguir Fina, descobrir onde ela
trabalha. Certo dia, à hora do almoço, passando pela Barão de Mesquita, ele a vê
com uma
marmita na mão, à porta da América Fabril. Não sabendo que ela leva a refeição
para Bazinha, supõe que trabalhe ali. E passa a esperá-la, todos os dias, à
saída
da fábrica. Claro, pura perda de tempo. Saem homens, saem moças, sai Bazinha,
mas não Fina. Alguns meses terão se passado até que Noel
saiba onde é.
- Um dia te conto - diz ela matreiramente.
Fina faz longa caminhada de sua casa até a Hachiya. Desce a Moju, toma a Barão
de Bom Retiro, atravessa a Visconde de Santa Isabel, passa pelo Largo do Verdun
e
entra na Barão de Mesquita. Um estirão. Faz isso de manhã cedinho, ao lado da
irmã, e às cinco da tarde, quando volta sozinha. São moças pobres que almoçam de
marmita
(é Fina quem leva todos os dias o almoço para Bazinha) e jantam em casa, arroz,
feijão, macarronada, num prato fundo que dona Luísa prepara. Usam roupas
modestas,
sapatos baixos, sem meias. E pouca pintura. Mas não têm de se envergonhar do que
fazem, do trabalho humilde, de serem operárias de fábrica. É pensando nesta Fina
que se esconde - e pensando com muito enternecimento - que Noel escreve um samba
eterno:

Três Apitos.

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê.

Você que atende ao apito


De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você.
Sou do sereno,
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você

Tanto Noel insiste que Fina acaba lhe dizendo onde trabalha. Como previa, para
que ele por lá apareça com muita freqüência, roubando-lhe um pouco da liberdade.
Num
fim de tarde, à saída da fábrica, o contramestre Jerônimo Feliciano da
Encarnação - que há muito vem cercando Fina de propostas e galanteios - aponta
para Noel e
diz:
- Olha lá o seupoetinha. Está te esperando, de novo.
Fina fala a Noel sobre o assédio do contramestre e novos versos são
acrescentados a Três Apitos:

Nos meus olhos você lê


Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você.

Não há dúvida, dona Martha sabe o filho que tem. O fim do ano vai chegando, os
estudos abandonados, a matrícula trancada, nenhum indício de que Noel pretende
retomar
o curso em 1932. Seu Medeiros, cada vez mais mudado, pouco diz. Ao contrário de
tia Carmem, que vem de Belo Horizonte inconformada.
- Cantor de rádio? Isso não é profissão. Suas palavras são as mais veementes, de
pura indignação por saber que o sobrinho está propenso a virar as costas à
medicina. E para quê? Para fazer sambas. Não há nada mais fora de propósito.
Ouve-se tio
Eduardo. Surpresa: ele não desaprova o sobrinho. Ouve-se também o Dr. José Graça
Mello, padrinho de Noel, o médico que o viu nascer. Quem sabe ele não o convence
a tomar juízo? Outra surpresa-.
- Noel está certo. Antes ser um bom sambista que um mau médico.
A reação familiar não conduz a nada. Noel logo sai para a noite, deixando atrás
de si uma família desapontada. O que fazer? O importante, como padrinho diz, é
seguir
seu destino. A noite, as estrelas, a liberdade. E por falar em liberdade, passa
pela casa de Fina. Encontra-a à mesa com a irmã, as tias, a avó. Comem todos em
prato
fundo.
184

Luísa.
- Está servido, Noel? - pergunta dona NOTAS
- Obrigado, já jantei.
Pra quem detesta comer, o prato fundo é um suplício. Diz isso a Fina, que solta
uma gargalhada. Depois, para homenagear toda a família e seu portentoso apetite,
compõe uma marchinha que João de Barro o ajudará a terminar:

Prato Fundo.

Se como tanto
Aprendi com a minha avó
Na minha casa
Só se come em prato fun-de-o-dó
A minha mana
Para inteirar o almoço
Come casca de banana
Depois engole o caroço
E o meu titio
Faz vergonha a todo instante
Foi ao circo com fastio
E engoliu o elefante
A minha tia
Já engoliu uma fruteira
Estou vendo ainda o dia
Que ela almoça a cozinheira
E depois disso
Leva sempre a dar palpite
Toma chumbo derretido
Para abrir o apetite
Meu bisavô
Que era um índio botocudo
Devorou a tribo inteira
Com pajé, cacique e tudo
E a minha avó
Que comia à portuguesa
Reduziu dois bois a pó
E ainda quis a sobremesa

Todos gostam da música de Noel na casa 5 da Rua Moju. Inclusive Fina, que quando
está de bem com ele trata com carinho o violão.
- Quer aprender a tocar?
Assim, enquanto todo o mundo no chalé se amofina só em pensar no médico que a
família perdeu, Noel senta-se no meio-fio com a namorada, passa o braço por trás
dela
e ensina-lhe as primeiras posições.
Seu riso de criança Que me enganou...

Notas:
1. Coisas Nossas estreou no Eldorado a 30 de novembro de 1931- Produção do
americano Wallace Downey, utilizava o sistema Vitafone, isto é, o som gravado
num disco
comum de vitrola e sincronizado ao movimento dos lábios de atores e cantores. No
elenco, Procópio Ferreira, Baptista Júnior (pai de Linda e Dircinha Baptista),
Jayme
Redondo, Jararaca & Ratinho, Paraguaçu* Gaó, Zezinho, Arnaldo Pescuma, Napoleão
Tavares e sua Orquestra, Corita Cunha, Zezé Lara, Helena Pinto de Carvalho,
Stefana
Macedo.
2. Na gíria da época, estifa, palavra não-dicionarizada, significava elegante,
alinhado, bem-vestido. Sua origem está provavelmente no adjetivo inglês stiff,
no
sentido de duro, rijo, firme, esticado, ou mesmo de formal, afetado, como os
malandros costumavam ser.
3. A terceira colaboração Ary Barroso-Noel Rosa, Estrela da Manhã, será
estudada no Capítulo 27.
4. Há muita confusão em torno deste samba, em especial sobre quem seria sua
inspiradora. Mas é certo que foi mesmo Fina. Diria Noel em entrevista ao Diário
Carioca
de 4 de janeiro de 1936: "Três Apitos resume o romance mais sincero de minha
vida gloriosamente romântica..." Que outra operária de fábrica se encaixaria
nessa declaração?
A confusão parece ter crescido quando se sabe que nem a América Fabril nem a
Hachiya tinham apito, enquanto a Confiança, perto da casa de Noel, esta sim
emitia nada
menos de sete silvos diários. Esses detalhes, porém, não mudam nada. Não
significam que a musa de Noel trabalhasse na Confiança. Apenas, como está claro
na letra,
ao ouvir o apito da fábrica, ferindo seus ouvidos, ele se lembrava da amada.
Quanto aos "três apitos" do título, eram os primeiros que a Confiança fazia soar
de
manhã, um às 5 horas e 45 minutos, para despertar os operários que moravam nas
redondezas; outro às 7, longo, de uns 20 segundos de duração, marcando a hora de
entrada;
e o terceiro às 7 horas e 45 minutos, curto, a que chamavam de "pu". Queria
dizer que quem chegasse depois dele perdia o dia.
185

O REI DA VOZ E O DOUTOR EM SAMBA

Capítulo 19

E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto
É Preciso Discutir

alto, magro, elegante no smoking sob medida, bem penteado, bem barbeado,
simpático, sorridente, Francisco Alves tem a aparência de um gentleman. Quem o
vê no palco,
dominando a platéia não só com sua voz e seu estilo, mas sobretudo com uma
personalidade que há de incluí-lo entre os mais carismáticos ídolos de toda a
história
da música popular brasileira, quem o vê no palco, enfim, seja cantando um samba
do Estácio:
Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz
...seja uma nostálgica canção sua e de Horácio Campos:
Saudades infinitas me devoram Lembranças do teu vulto que nem sei...
... é sempre tomado da mesma emoção. É um artista raro, desses que estabelecem
entre sua arte e o público uma ligação íntima, indesatável. Um dia seu amigo e
companheiro
de dupla, Mário Reis, definirá essa ligação como "pura mágica"1, à qual nem
mesmo os músicos que o acompanham conseguem ficar indiferentes:
-Às vezes, quando Chico abre aquele vozeirão, me dá vontade de chorar- confessa
Tute, cujo violão tem emoldurado com freqüência a voz de Francisco Alves.
Grandes cantores surgiram antes dele. Vicente Celestino, para citar apenas um. E
muitos outros surgirão depois. Cantores de voz mais bonita, de técnica mais
apurada.
Alguns serão mais reconhecidos como intérpretes, outros terão repertório mais
selecionado. Cantores cujo cartaz subirá a alturas inimagináveis: terão suas
roupas
rasgadas pelos fãs, serão carregados por multidões em praça pública. Mas nenhum
conseguirá
manter-se por tanto tempo no auge. Francisco Alves cumprirá, até o final de seus
dias, uma carreira longa, sem curvas, sem oscilações, permanentemente no topo2.
É, sem dúvida, a grande estrela da música popular destes dias. Há quem lhe
exagere a importância ao afirmar que, Midas a converter em ouro tudo que toca,
ele possui
o poder de transformar em sucesso tudo que canta. Não é bem assim. Mas pode-se
dizer que muitas das canções que o povo tem consagrado ultimamente só se
tornaram
populares por causa dele, de sua voz e carisma. Francisco Alves é um cantor que
vale por dois. Literalmente. Grava discos com o próprio nome na Odeon e com o de
Chico Viola na Parlophon. Desta vez não há exagero
187

quando se diz que, em termos de conquista da preferência do público, Chico Viola


é mesmo o único que pode competir com Francisco Alves.
Uma estrela. No palco, um gentleman. E fora dele? Igualmente fascinante,
igualmente carismático, igualmente personagem raro, o Francisco Alves da vida
real é no
entanto muito diferente do artista que leva às lágrimas o comovido Tute. E, como
se verá, pouco tem de gentleman.
Noel Rosa conheceu Francisco Alves há três anos. Portanto, em 1928, quando
cursava ainda o último ano do São Bento. Muito tempo depois, num dos seus livros
de memórias3,
o cantor recordará o encontro:
"O rapaz aproximou-se de mim, à porta de uma loja de discos da Rua do Ouvidor.
Ficou me olhando demoradamente. Depois, tomou ânimo:
- O senhor é o Francisco Alves?
- Sou. Por quê?
- Queria conhecê-lo. Chamo-me Noel Rosa e sou aluno do São Bento.
Sorri para o adolescente. Fazer sambas, ele mesmo diria depois em versos
memoráveis, não é privilégio de ninguém, no Brasil. Entre dez cariocas, cinco
fazem samba.
- Muito bem - respondi-lhe. - Quando quiser apareça.
Ele se despediu e foi andando. Durante alguns momentos fiquei com aquela
fisionomia na lembrança. Lembrei-me dos olhos inteligentes, do queixo defeituoso
(Noel tinha
o maxilar afundado), do corpo magro e daquela fala mole."
É bem possível que tenha acontecido exatamente assim. Naquela época Noel e
Hélio, na maioria das vezes acompanhados de Glauco Vianna, viviam percorrendo as
lojas
de música do Centro, comprando métodos de violão, ouvindo os útimos lançamentos
em disco, tentando fazer contato com gente do meio.
Depois daquele primeiro encontro, Francisco Alves reviu Noel muitas vezes,
principalmente quando o jovem compositor, já integrando o Bando de Tangarás,
passou a
freqüentar o ambiente musical. Em inúmeras ocasiões os dois se cruzaram na
cúpula do Teatro Phoenix, no pequeno estúdio da Odeon. Ou nos bastidores dos
teatros em
que Francisco Alves costuma aparecer, mesmo quando não toma parte do espetáculo
(é impressionante a onipresença do cantor, nos teatros, nas rádios, nos
botequins,
nos fins de mundo aonde os outros artistas não se atrevem ir, sempre seguindo a
sua intuição, sempre à procura de novidades, quem sabe um samba inédito que sua
voz
talvez transforme em
sucesso). Mas esses encontros de Noel com Francisco Alves têm sido sempre
breves, um "como vai" apressado ou pouco mais que isso. Distância que não
diminuirá mesmo
depois de Francisco Alves ter gravado Palpite, brincadeira que Eduardo Souto fez
para o próximo carnaval, com letra de Noel:
Palpite! Palpite!
Nasceu no crânio
De quem teve meningite.
Foste linchado lá num samba em Catumbi
Porque tocaste no pandeiro o Guarani.
Num dia destes perguntaste ao condutor
Se os bondes passam pela Rua do Ouvidor.
Ser palpiteiro neste mundo é a tua sina;
Vendeste o carro pra comprar a gasolina.

Bom exemplo de que nem tudo que Midas toca vira ouro. A marchinha - na verdade
meio marcha, meio fox-trot - não será muito cantada no carnaval de 1932 e depois
disso
cairá no esquecimento. Mas a possibilidade de ter outras composições suas
incluídas no repertório de Francisco Alves não pode deixar de atrair Noel. Nesse
ponto
ele não é diferente de ninguém. Pouco importa que muita gente diga que o cantor
é homem para se manter longe, difícil, nada parecido com o elegante e simpático
artista
que se vê no palco, grosseiro até a violência, ambicioso até a avareza, capaz de
tudo quando quer alguma coisa (até de passar para trás o melhor amigo),
inescrupuloso,
insensível, menos gentleman que cafajeste, mais demônio que anjo.
- Há muita inveja em tudo isso - diz Almirante, um dos que mais defendem
Francisco Alves dos maledicentes.
- Verdade-garante Gastão Cottini. - Tudo isso e muito mais.
Cottini - barítono que vende partituras musicais nos subúrbios para custear os
estudos que lhe darão um lugar no coro do Teatro Municipal - odeia Francisco
Alves.
Inveja? Não neste caso. Jamais esquecerá o episódio acontecido à porta do Nice.
Estava conversando com dois amigos, o contra-regra Fernando Pereira e o futuro
médico
homeopata Alberto Ribeiro (que ainda não se sabia destinado a tornar-se um dos
grandes poetas da música popular), quando Francisco Alves passou distraído. De
repente,
tropeçou não se sabe em que, saiu catando cavaco, quase foi ao
188

chão. Ficou irritadíssimo, mas conseguiu se equilibrar. Vendo os três parados


ali perto, emitiu meio sem jeito um vago e frio "boa tarde". * - Boa tarde-
respondeu
Alberto Ribeiro.
-Boa tarde, Chico-acrescentou Cottini.
Francisco Alves, então, enfureceu-se, como se querendo atirar em cima de alguém
a culpa pelo tropeção:
- Eu cumprimentei o doutor Alberto Ribeiro e não você, seu facão.?4
Cottini, homem forte, de braços curtos mas pesados, deu alguns passos, chegou a
meio metro de Francisco Alves e, com rapidez e firmeza, deu-lhe uma bofetada. O
cantor,
desta vez, não pôde evitar a queda.
- Calma, Cottini! - interveio Fernando Pereira.
Francisco Alves levantou-se e ameaçou:
- Vou em casa buscar um revólver para acabar com você!
E entrou no primeiro táxi. Eram quatro e meia da tarde. À uma da manhã, o Nice
já fechando, Cottini ainda estava lá, esperando, firme na esquina da Rio Branco
com
Bittencourt da Silva. Tirou o relógio do bolso, conferiu a hora e chamou o
garçom:
- Por favor, diga ao doutor Francisco Alves que esperei até agora. Qualquer
coisa, ele sabe onde eu moro.
Verdade. Como diz o Cottini, tudo isso e muito mais. E não só por causa dessa
briga que o próprio Francisco Alves achou melhor esquecer. O decidido barítono e
outros
juram ter muitos motivos para afirmarem que de fato o cantor é mais demônio que
anjo, menos gentleman que cafajeste. Mas que motivos, exatamente? Não estarão
exagerando?
Não terá razão Almirante quando diz que a inveja é a grande semente de toda essa
falação?
Francisco Alves é e será sempre um personagem controvertido. Sobre ele, toda
verdade não passa de meia-verdade, toda certeza se cerca de interrogações. Quem
o conhece,
de fato? Quem será capaz de dizer onde acaba o anjo e onde começa o demônio? O
que parece certo é que esta estrela maior da música popular, este gentleman dos
palcos
cariocas, este cantor que vale por dois, vem vivendo uma vida que vai fornecer
rico material aos seus biógrafos. Nesta vida, o acontecido se confunde a toda
hora
com o imaginado, a realidade com a ficção. E quem será, afinal, este herói (ou
vilão)? Na verdade existem no mínimo três histórias de Francisco Alves: a
primeira,
a que ele mesmo conta; a segunda, a que contam os outros, geralmente os que não
gostam dele; e a terceira, a que ninguém conta, o próprio Francisco
Alves envolvendo em mistério certos episódios de seu passado (ou mesmo do
presente), os outros tentando desvendar tais segredos com as armas da
imaginação. São três
histórias muito diferentes.
A primeira é, por assim dizer, a sua biografia oficial, a que ele passa para os
livros, a que os departamentos de publicidade das gravadoras divulgarão. Neste
final
de 1931 está ele com 33 anos (doze mais que Noel) e orgulha-se de ter vivido uma
vida de lutas e sacrifícios. Costuma falar da infância pobre passada na Rua da
Prainha5,
no bairro da Saúde, onde nasceu, e do pai português, dono de botequim, homem
trabalhador e honrado de quem teria herdado estas e outras virtudes. Conta como
não
se deixou contagiar pelos maus elementos do lugar, reduto do temível Camisa
Preta: enquanto os outros meninos de sua idade arranjavam dinheiro pedindo
esmola ou
furtando, ele cantava. Emociona-se ao fazer a descrição de seus primeiros passos
como cantor, menino de calças curtas interpretando canções pelas esquinas, as
pessoas
passando, como vendo-se, atirando-lhe moedas. Depois, os empregos humildes,
engraxate, operário da Fábrica de Chapéus Mangueira, biscateiro, o dinheirinho
contado
para assistir às apresentações em circo de seu grande ídolo, Vicente Celestino.
Passou fome, ficou doente, dormiu ao relento. Até que lhe deram oportunidade
para
cantar em público, profissionalmente, primeiro no Pavilháo do Meyer, depois no
circo Spinelli, em teatros, em clubes. Vieram as gravações, a popularidade, o
estrelato.
Foram muitos anos de luta, de perseverança. Hoje, Francisco Alves estufa o peito
para afirmar que não deve a ninguém ou a nada, além de sua voz, tudo que
conquistou.
E está certo. Por isso, não aceita que lhe venham pedir esmolas, mendigar: "Que
trabalhem como eu trabalhei!" Por isso, também, diz ajudar a todos os que
precisam,
desde que tenham talento e vontade, os que se aproximam dele não com a mão
estendida, mas pedindo uma chance de trabalho. No que talvez não esteja
absolutamente
certo.
É aqui que entra a segunda história que fala de um Francisco Alves meio herói,
meio vilão, grande alma, pobre espírito. Homem de muitos amigos e não menos
inimigos.
íntimo de gente da alta, banqueiros, industriais, grãfinos de toda espécie, é
capaz de sair de um palacete da Glória, onde acabou de cantar de graça, para se
juntar
a um bando de pés-rapados num botequim do subúrbio, onde na certa brigará por
vinténs na hora de pagar a conta. A fama de sovina não é de agora:"... desde a
infância"
- confessará na mesma autobiografia em que recordará o primeiro encontro com
Noel - "tive a fama
189

que nunca mais me largou o resto da vida: a fama de avarento. Sinceramente nunca
o fui..." Do que o pessoal do meio artístico discorda: segundo eles, Francisco
Alves
é mais pão-duro que o próprio Pão-Duro(6).
Não o acham nada elegante e educado aqueles que têm oportunidade de com ele
sentar-se à mesa. Toma ruidosamente sua sopa, mete a mão no prato do sujeito ao
lado,
cospe no chão. Mais por cacoete do que por necessidade, jamais perderá a mania
de pontuar suas frases com duas cusparadas. Às vezes de verdade, mas quase
sempre
em seco. "Puxa, até na hora de cuspir ele é econômico!", dizem no Nice.
É um inimigo da bebida. Acha que essa história de ingerir copos e copos de
cerveja, cálices e cálices de conhaque, para amaciar a voz, como dizem alguns
cantores,
ou para puxar a inspiração, como querem certos compositores, é pura balela. É um
procedimento antiprofissional. Detesta bêbados, é impaciente com eles. Pó? Bem,
isso é outra coisa. Se volta e meia navega por essas águas, não é para amaciar a
voz ou puxar a inspiração, mas para estar rigorosamente dentro do figurino da
alta.
Não era raro entre os
grãfinos, os intelectuais, os boêmios mais refinados da década de 20 cheirar
cocaína, mergulhar a cara no éter, ou até experimentar as sensações do ópio.
Francisco
Alves já era boêmio naquela época, só que lhe faltava dinheiro para diversões
tão caras. Se a moda da boêmia mudou (e o pessoal de agora prefere a cachaça, a
cerveja,
a embriaguez barata que se compra em qualquer botequim), ele fica com a de
antigamente, mais refinada. Mas não haverá nisso uma contradição, o migalheiro
Francisco
Alves optando justamente pelo mais caro? Os maledicentes dizem que não: todo o
pó que ele consome, sem ser um viciado, lhe é conseguido de graça por um parente
de
sua mulher. Não será por isso que ele está tanto tempo casado com ela? Tudo é
motivo para maledicências. Inveja, repete Almirante.
Mas a maior acusação que se faz a Francisco Alves é a de que vive a explorar
sambistas do morro, comprando-lhes parceria. Claro, Francisco Alves não é o
único a
fazer isso. Muitos outros merecem o nome que o pessoal do Nice lhes dá:
"comprositores". Quer dizer, compram em vez de compor. Mas Francisco Alves,
neste particular,
é o mais ativo, o mais vivo. Ismael Silva, Nílton Bastos, Alcebíades Barcellos,
de quanta gente ele tem comprado parceria, colocando seu nome nos selos dos
discos,
nas partituras, em toda parte? E às vezes só o seu nome, condenando o verdadeiro
autor ao anonimato. Faz isso com tanta freqüência que se pergunta por aí se
serão
mesmo suas canções tão bonitas como Lua Nova e A Voz do Violão.
Por último, a terceira história. Francisco Alves, sempre tão falante, é quase um
túmulo quando se trata de sua vida amorosa. Vive com Célia Zenatti há mais de
dez
anos, mas antes disso foi casado, de papel passado e tudo, segundo consta, com
uma mulher que ele tirou de uma espelunca da Lapa (e que ainda lhe dará muita
dor
de cabeça).
Mas Francisco Alves não gosta de falar disso. E fica furioso quando o fustigam
com outras provocações, a sua atração por menininhos, a história de ter currado
um
mendigo que dormia debaixo da ponte, só para ganhar uma aposta (de que não é
capaz o velho Chico para abiscoitar um dinheirinho extra?), e muito
especialmente a
sua esterilidade, que ele cometeu o erro de confidenciar a alguém e hoje é
assunto maldosamente sussurrado por seus inimigos, que em torno dele inventam
mil e uma
histórias, piadas, lendas(7).
Histórias, meias-verdades, certezas imersas em interrogações. Tão contadas e
repetidas que quase fazem esquecer a única coisa que realmente importa, a única
que
ninguém discute:
190

Francisco Alves, o cantor, é um artista raro. Grande voz, bom intérprete. O


primeiro verdadeiro profissional que a música popular brasileira já teve (desde
seu primeiro
agudo, sob a lona do Pavilháo do Meyer, acredita convictamente que cantar é um
trabalho como outro qualquer, uma profissão que exige seriedade e disciplina,
uma
mercadoria que tem de ter qualidade, ser bem fabricada, bem embalada, para que o
comprador saia sempre satisfeito). É um artista com tal sensibilidade - faro
para
descobrir talentos, intuição para antever as possibilidades de uma canção - que
não será exagero afirmar'que, anjo ou demônio, todo ele é feito de música.
Não foi a música que aproximou Francisco Alves de Noel Rosa, mas a paixão de
ambos pelos automóveis. O cantor já foi motorista de praça, dirigiu carro de
madrugada
para complementar seu esquálido orçamento de artista de circo. Isso,
naturalmente, no tempo das vacas magras. Hoje, já não precisa. Dá-se ao luxo de
ter um chauffeur
particular, um português serviçal chamado Germano Augusto Coelho, sobre quem
vale a pena dizer algumas palavras, já que sua história se liga também à de
Noel. Ninguém
sabe onde ou quando Francisco Alves foi descobrir este português. Sabe-se,
porém, que nenhum de seus patrícios, daqui ou de
além-mar, terá com ele alguma semelhança além do sotaque. Porque Germano, em
tudo e por tudo, é um autêntico malandro carioca. No jeito de andar, no modo de
usar
o chapéu de banda, nos gestos, no linguajar.
- Solta um suor de alambique - pede ele ao garçom referindo-se à cachaça.
Aliás, Germano Augusto nunca chama cachaça de cachaça. Conhece uma infinidade de
sinônimos - terebintina, legume, malunga, maria-branca, tiguaciba, água-de-
briga,
cambraia, patrícia, girgolina, elixir, piribita, supupara, vocação, sete-
virtudes - e usa-os conforme o momento. Para ele, o sujeito esperto é um
pente-fino. O sujeito à-toa, um vagolino. Para se conversar com Germano Augusto
é preciso quase um dicionário de gírias: conhece todas as que já existem e se dá
ao trabalho de inventar mais algumas.
- Germano é o primeiro malandro português da história - diz-se no Nice.
Na face esquerda, como um troféu de guerra, exibe uma cicatriz de navalha
sofrida há muito tempo, assim que veio de Portugal, sinal de um ajuste de contas
mal-sucedido
em alguma esquina do subúrbio. Mas não é só na cicatriz e na gíria que ele se
parece com um malandro carioca. Também na picardia pode se gabar de não dever
rigorosamente
nada a qualquer bamba do
Estácio, da Lapa, da Gamboa. Pensando bem, em muita coisa ele chega a ser mais
esperto. O exemplo do patrão convenceu-o de que música popular é bom negócio, de
modo
que, quando lhe abrirem uma brecha, também se transformará em "comprositor". E
por que não? É homem de jogadas, de armações.
Mas não em cima de Francisco Alves, é claro. Tem muito respeito pelo patrão,
serve-o com eficiência e lealdade. Dirige-lhe o carro, ajuda-o nos muitos
negócios que
o cantor mantém paralelamente à música, um dos quais o comércio de automóveis
usados. Francisco Alves os compra em São Paulo e depois os vende pelo dobro no
Rio.
Germano Augusto, Leo Beriquen e outros motoristas são pagos por ele para
realizarem as viagens, ida de trem, volta ao volante de uma mercadoria que
invariavelmente
significa bons lucros. Noel Rosa começa a perder a confiança no Vira-mundo, seus
enguiços cada vez mais freqüentes. Ainda outra noite, um amigo teve de abrir o
guarda-chuva
pelo buraco da capota para evitar que o temporal acabasse com a serenata que
faziam dentro dele. Quem sabe não pode trocar o Vira-mundo? A vontade de ter
novamente
carro - não exatamente novo, mas pelo menos não tão velho quanto o Chandler -
faz com que procure o cantor.
Francisco Alves também mora em Vila Isabel. Vive com Célia Zenatti no 185 da Rua
justiniano da Rocha, uma casa de altos e baixos em cuja garagem muitas vezes
Germano
pernoita. Mas as primeiras conversas entre ele e Noel sobre a possibilidade de
fecharem negócio em torno de um automóvel não dão em nada. O mais barato que
Francisco
Alves tem para vender, um Chevrolet cor de azeitona, custa cinco ou seis vezes
mais do que Noel pode pagar. O que não os impede de falarem em outros assuntos.
Samba,
por exemplo. Francisco Alves sabe do talento de Noel, não é segredo para ninguém
que este rapaz magrinho, de olhos inteligentes e fala mole, que o vem procurar a
propósito de automóveis, anda por aí "consertando" letra de música de muita
gente. Na certa poderá lapidar algumas das pedras brutas que o cantor vive
descobrindo
nos morros e bairros distantes.
- Se precisar...
É evidente que Francisco Alves vai precisar.
Gentleman, de verdade, é Mário Reis. Fino, inteligente, culto. Nascido numa
tradicional família tijucana, teve infância muito diferente da de Francisco
Alves: bons
colégios, boas roupas, boa mesa. Para satisfazer a vontade do pai, formou-se em
direito. Na mesma turma de AryBarroso. Mas, como o
191

autor de Vou à Penha, não exerce a profissão. Nem precisa. Será muito mais
"doutor em samba" - apelido que lhe dará Custódio Mesquita. O dinheiro da
família é o
bastante para que viva muito bem, tenha automóvel, roupas caras, carteira
permanentemente bem provida. Em matéria de elegância, é exigentíssimo. Consigo
mesmo e
com os outros, a ponto de olhar para Francisco Alves, mesmo nos dias em que este
está orgulhosamente posto dentro de sua roupa a rigor, e dizer:
-Não sei por que você insiste em fazer seus smokings naqueles alfaiates da Rua
Maxwell.
Sim, porque os smokings de Mário Reis são feitos pelo Lacurte. Elegância em
tudo, no vestir, nos gestos, nas palavras. Como terá Mário Reis se metido nesse
negócio
de música popular? Talvez nem mesmo ele saiba. Sempre gostou de cantar, mas
achava que não tinha voz (ter voz, na época em que começou, era poder ser ouvido
a duas
ou três esquinas de distância, assim como Vicente Celestino e o próprio
Francisco Alves). Quis aprender violão, foi até a Guitarra de Prata, uma das
lojas rivais
do Cavaquinho de Ouro, e lá conheceu Sinhô. Tornou-se seu aluno, o famoso
compositor indo duas vezes por semana à sua casa, na Rua Affonso Penna, para
ensinar-lhe
o pouco que sabia (estava longe de ser um virtuose, tanto no violão como no
piano). Um dia Mário Reis cantou um novo samba de Sinhô:
Amor, amor, não é para quem quer De que vale a nota, meu bem, Sem o puro carinho
da mulher, Quando ela quer...?
Sinhô ficou impressionado com aquela maneira nova de cantar, nenhum agudo,
nenhum dó de peito, só as pausas, certas, exatas, dando ao samba um sabor mais
carioca,
mais Chão. E dizer que aquela maneira nova vinha da parte de um
grã-fino. Francisco Alves já havia gravado muita coisa de Sinhô, Cassino Maxixe,
Ora Vejam Só, A Favela Vai Abaixo, Não Quero Saber Mais Dela, mas nunca como
Mário
Reis. Francisco Alves cantava, Mário Reis, "dizia", fazia a música falar.
Bastava ouvi-lo em fura. Ou então na magistral pontuação dos versos de Cansei:
Cansei, cansei, cansei de te querer, Mas fui de plaga em plaga, O além do
além...
Ou neste breque:
Que eu não vim ao mundo Somente com o fito de eterno sofrer
Graças à insistência de Sinhô, a voz e o estilo de Mário Reis foram para o
disco. Não como brincadeira de mais um almofadinha atraído pela novidade de
registrar
sua voz na cera, mas como intérprete que viera para mudar a música popular do
Brasil. Terá Sinhô antevisto isso? O fato é que desde 1928 Mário Reis vem
gravando
com sucesso. De início hesitante, a família fazendo pressão, o pai dizendo que
um futuro advogado não deveria se misturar com gente do samba. Mas superará essa
resistência.
Nunca como um profissional nos moldes de Francisco Alves. Na verdade, até o fim
da sua carreira Mário andará sempre naquele território mais ou menos neutro
entre
o amadorismo remunerado e o profissionalismo não declarado. Mas, de qualquer
forma, tornou-se um intérprete atuante e, sobretudo, influente.
São muitas, de fato, as diferenças entre ele e Francisco Alves. Se se pensar
bem, a não ser pelo fato de gostarem de cantar (e de torcerem pelo América),
nada têm
em comum. Diferenças que se tornaram ainda mais evidentes desde o começo do ano,
quando, por sugestão de Mário, gravaram juntos Deixa Esta Mulher Chorar & Qua-
Qua-Quá.
A dupla fez tanto sucesso, marcou de tal forma a sua presença nas rádios, nos
teatros, em toda parte, que a Odeon decidiu torná-la permanente. Naturalmente,
os dois
cantores resistiram à idéia, cada qual disposto a manter sua carreira
independente. Mas, daqui até 1933, quando Mário se transferir para a Victor,
farão ainda mais
onze discos-.
Francisco Alves é, não se discute, o mais popular. Será um dos mais imitados
cantores de toda a história da canção brasileira, fazendo com que no seu rastro
caminhem,
para citar apenas alguns contemporâneos de Noel, nomes como os de Castro
Barbosa, João Petra de Barros, Arnaldo Amaral, Carlos Galhardo. No entanto, a
influência
exercida por Mário será muito mais inovadora. O próprio Francisco Alves não
ficou imune a ela, bastando que se ouçam suas gravações anteriores, muitas tão
operísticas
quanto as de Vicente Celestino, para depois compará-las com as que se seguiram
ao surgimento de Mário Reis. Depois deste, o jeito de cantar samba mudou. É
verdade
que Mário Reis começou a gravar já na fase do sistema elétrico, os microfones
mais sensíveis dando vez a cantores de vozes menos extensas, enquanto Francisco
Alves,
vindo dos tempos do sistema mecânico, tivera de se formar mais pela escola do
peito aberto (por isso, quando eles gravam juntos, Mário fica mais próximo do
microfone,
Francisco Alves lá atrás, recurso que torna possível as duas vozes serem
registradas num mesmo nível). Mas, potência à parte, a influência de Mário, que
até
192

Francisco Alves assimilou, faz-se sentir no fraseado, na emissão das palavras,


claras e ao mesmo tempo coloquiais como quem conversa. Uma influência tão
significativa
que graças a ela o impossível tornou-se possível, isto é, cantores de voz miúda
como o próprio Noel Rosa conseguirem o seu lugar ao sol.
Atento a tudo isso - ao sucesso da dupla e mais ainda ao fato de suas
interpretações serem simplesmente irresistíveis (quem não se dobra à força de um
Se Você Jurar,
êxito maior de Mário Reis e Francisco Alves?) - Noel, como qualquer outro
compositor de agora, não poderia deixar de pensar na possibilidade de ter uma de
suas músicas
cantadas por eles. Por isso, caprichou em novo samba, deu-lhe a forma de
diálogo, citou astuciosamente o nome de Francisco Alves na letra (tornando-o
assim uma espécie
de propriedade particular do cantor), intitulou-o É Preciso Discutir e levou-o
até a casa da Rua Justiniano da Rocha.
- É para você gravar com o Mário.
Noel mostrou-o, indicando quem cantaria quais versos:
Chico: Na introdução deste samba,
Quero avisar por um modo qualquer
Que esta briga é por causa de uma mulher.
Mário: E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto.
Mário: É preciso discutir...
Chico: Mas não quero discussão...
Mário: Da discussão sai a razão...
Chico: Mas às vezes sai pancada...
Mário: A questão é complicada...
Chico: Quero ver a decisão...
Mário: A mulher tem que ser minha...
Chico: A mulher não traz letreiro...
Mário: Foi comigo que ela vinha...
193

Chico: Mas fui eu quem viu primeiro...


Mário: Ela é minha porque vi...
Chico: Mas quem segurou fui eu...
Mário: A conversa já meti...
Chico: A mulher não escolheu...
(E podes crer que é...)
Mário: Já perdi a paciência...
Chico: Eu por ela me arrisco...
Mário: Sou capaz de violência...
Chico: Mas não vai quebrar o disco...
Mário: Quanto tempo foi perdido...
Chico: Perdi tempo pra ganhar...
Mário: Ganhar fama de atrevido...
Chico: Quem se atreve quer brigar...
(E podes crer que é...)

Assim, a partir dos primeiros dias de 1932, Noel Rosa e Francisco Alves estarão
mais próximos. Pela música e pelos carros, uma coisa ligada à outra. Ao perceber
em Noel uma mina de ouro, um possível "compositor exclusivo" como muitos que já
tem, o cantor põe em jogo sua habitual sagacidade:
- Você ainda está interessado naquele Chevrolet?
Interessado Noel está, mas pelo preço é melhor que nem reabram o assunto.
- Vamos fazer uma coisa: você fica com o carro e me paga em samba.
Noel ouve os detalhes da proposta, a cada samba cujos direitos autorais ceder a
Francisco Alves, este vai tirando uma fatia do total. Cinqüenta hoje, 30 amanhã,
100 depois, Noel verá como o Chevrolet se pagará rápido, sairá quase de graça.
Que pelo menos estude a proposta. Francisco Alves diz que está para ir a Buenos
Aires
numa excursão com Mário Reis, Carmem Miranda, Luperce Miranda, Tute, só gente
boa. Na volta conversam.
Não resta a menor dúvida: Noel vai aceitar a proposta. O Viramundo lhe dá dores
de cabeça demais. Tantas que um dia, ao bater com ele num poste da Rua Visconde
de
Santa Isabel, o deixará lá para sempre. Que alguém trate de rebocar o velho
Chandler. Sim, vai aceitar a proposta. Tem até um nome para o novo carro: Pavão.

NOTAS
1. Depoimento de Mário Reis aos autores em 10 de abril de 1981
2. Francisco Alves morreria num acidente de automóvel na Rodovia Presidente
Dutra, na altura de Taubaté, a 27 de setembro de 1952. Ainda era um grande
cartaz da
música popular. Sua carreira, iniciada em 1918 como cantor de circo, cobriria um
período de 34 anos. E, caso raro em tão longa atividade, jamais conheceria o
ostracismo,
a decadência ou mesmo breves momentos em segundo plano. Seu enterro, no Rio,
seria acompanhado por mais de meio milhão de pessoas. Mais concorrido do que o
de Carmem
Miranda em 1955 e só comparável ao cortejo que levaria o corpo de Getúlio Vargas
do Catete ao Santos Dumont em 1954.
3. Francisco Alves talvez seja caso único de autor de três autobiografias. A
primeira, Minha Vida, teria sido ditada por ele ao jornalista Mário Cordeiro.
Quando
do seu lançamento, A Voz do Rádio de 15 de setembro de 1936 (página 14) fez o
seguinte comentário: "Francisco Alves se converteu em verdadeiro herói de filme
em
série. Era criança incompreendida e mal julgada. Era o estudante irrequieto e
inimigo dos livros. Era o amante infeliz e não-correspondido. Era o operário
brioso
e trabalhador, mas sempre mal visto pelos superiores." A segunda autobiografia
do cantor foi editada pela Rádio Nacional, em fins dos anos 40, em forma de
folhetim.
A terceira, segundo narrativa ao jornalista David Nasser, apareceu inicialmente
em O Cruzeiro, publicada em capítulos de 17 de novembro de 1951 a 24 de maio de
1952,
sob o título de Minha Vida Verdadeira. Reescrita e reintitulada Chico Viola,
sairia em livro em 1966.
4. Na gíria da época, mau cantor.
5. Atual Rua do Acre.
6. Pão-Duro, famoso personagem da cidade, ia de padaria em padaria esmolando
pão dormido para comer. Descobriu-se um dia que era homem de razoável situação
financeira.
Vem do seu apelido o substantivo "pão-duro" como sinônimo de avarento.
7. Não eram só os inimigos de Francisco Alves que alimentavam lendas sobre sua
esterilidade. Em entrevista aos radialistas Luiz Carlos Saroldi e Ney Hamilton,
no
intervalo de um programa na Rádio Jornal do Brasil, transcrita por Ciléa
Gropillo na página 5 do Caderno B do Jornal do Brasilde 21 de agosto de 1981, o
compositor
e cantor argentino Atahualpa Yupanqui dá sua espantosa versão: "Eu costumava
passear com Chico pelas ruas. Num desses passeios, ele resolveu subir a uma
árvore e
colher uma flor para oferecer a uma mocinha. Estávamos esperando que ele
descesse com a flor, quando ocorreu um acidente. Chico caiu e
machucou-se num dos galhos que perfurou os seus testículos. Desde aí,
tornou-se estéril. Não pôde ter filhos. Uma pena." Francisco Alves, no entanto,
só se referiria abertamente a este problema em 1952, ano de sua morte, quando
foi
levado aos tribunais por sua primeira mulher, esposa legítima, Perpétua Guerra
Tutoya, que reclamava pensão para dois supostos filhos seus com o cantor. O caso
mereceu
destaque na imprensa por vários meses. Francisco Alves negava a paternidade,
alegando não só ter vivido com Perpétua apenas alguns meses em 1920 (e os filhos
tinham
nascido anos depois), como também ser estéril. Sua mulher acabaria ganhando a
causa. Parte dos bens de Francisco Alves, incluindo direitos autorais de
compositor,
acabaria, após sua morte, passando aos filhos.

194

SUBINDO O MORRO

Capítulo 20

O samba, na realidade,
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.
Feitio de Oração

Canuto foi o primeiro. Um negro Bem comprido, magro, a fala mansa enfeitada de
gírias. Ninguém podia precisar como ou quando apareceu em Vila Isabel. No começo
pensava-se
ter vindo do morro dos Macacos, mas hoje já se sabe que mora mesmo no Salgueiro,
lugar a que nenhum dos tangarás se atreve a subir para o que quer que seja.
Nenhum
não é exato. Noel sobe ao Salgueiro. E também ao morro dos Macacos. E a outros
mais, Favela, Saúde, Mangueira. Sempre movido por bom motivo: samba.
Embora os tangarás tenham descoberto Canuto praticamente ao mesmo tempo, embora
partisse de Almirante a idéia de levá-lo com seu tamborim para um estúdio de
gravação
e embora fosse João de Barro o primeiro a tornar-se seu parceiro, de todos é
Noel o mais ligado a ele. E um dos que mais apreciam seu jeito de bater, não com
a baqueta,
mas com o dedo indicador, longo, esticado. Noel acha Canuto ainda melhor que o
Manuel Anacleto, camarada que faz do tamborim o que quer, um dos primeiros que
se
conhecem no bairro a realizar malabarismos com o instrumento (Anacleto gosta,
por exemplo, de rodopiar o tamborim na ponta do dedo como fazem alguns
pandeiristas).
Já Canuto prefere deixar para lá as figurações, limitando-se a fechar os olhos,
enlevado, enquanto batuca. Quando do sucesso do Na Pavuna, as casas de música
tocando
o disco a todo instante, costumava postar-se à porta de uma delas. Aos curiosos
que paravam para ouvir, apontava primeiro para o alto-falante de onde saía o som
do seu tamborim e depois para si mesmo, como se dizendo: "Este aí sou eu!"
Foi mesmo o primeiro. O primeiro a aproximar o morro e sua música de um Noel
desde cedo inquieto na busca daquele samba "diferente" que o encantara. Já havia
intuído
ao tempo de Com Que Roupa?. Agora tem certeza: são estes negros, humildes,
incultos, mas musicais até a alma, que criam sob o teto de zinco de seus
barracos o melhor
samba carioca. O mais rico harmonicamente, o de estruturas melódicas mais
afinadas com o seu temperamento. Noel não é negro,
não vive no morro, não pode dizer que seja pobre. Mas entende essa gente como se
fizesse parte dela.
Por quê? Como explicar a afinidade que desde logo se fez entre ele e os
compositores do morro ? Nunca é demais lembrar que compositores de morro não são
apenas os
que efetivamente moram lá no alto, em Casébres remotos, só atingíveis depois de
se percorrerem caminhos angulosos riscados em barranco íngreme. Também são
"compositores
de morro" os social e
195

economicamente identificados com aqueles. E como eles parte de uma população


pobre, negra ou mestiça, que se instalou nos pés de morro, ou margeando as
linhas de
trem, ou nos confins de um subúrbio carioca.
Ao longo de dois, três anos-chave em sua carreira, isto é, desde que conheceu o
lustrador de móveis Canuto em meados de 1929, até se firmar como um cartaz do
rádio
e do disco já no começo de 1932, Noel vai subir muitas vezes o morro, beber em
sua fonte, experimentar parcerias com seus compositores, aprender com eles.
Sábia
e humildemente. Isso enquanto os outros tangarás, guiados por Almirante, ainda
pensam nos cocos e nas emboladas. É uma busca consciente a de Noel. Nestes dois,
três
anos, nenhum compositor da cidade, branco, remediado, instruído, com passagem
inclusive pela universidade, será tão freqüentemente parceiro de "compositores
do morro".
Ou o fará de mente e coração tão abertos. Claro, não se pode esquecer Francisco
Alves, que muito antes de Noel - e de forma bem mais pragmática - andou indo aos
morros atrás de samba. Garimpeiro infatigável, rastreador atento, Chico é um
cantor a que a música brasileira vai dever, entre tanto mais, a descoberta e
popularização
dos compositores do Estácio e seus seguidores. Mas há uma diferença: o cantor
famoso chega a estes sambistas, colhe a pedra bruta de suas criações, lapida-a
com
sua voz, embala-a em forma de disco, converte-a em sucesso. Faz negócio com
eles. Pode ser seu "sócio", mas não parceiro. Sua subida ao morro, sua busca,
tem outro
significado. Já a de Noel é sobretudo integradora, mais soma que troca, comunhão
plena no ato de criar. Não fará tanto sucesso, mas será muito mais
enriquecedora.
Esse tipo de parceria - de brancos cá de baixo com negros lá de cima - é por
várias razões raro: classes sociais, filosofias de vida, preconceitos, tudo
separa os
dois mundos. É até difícil seus habitantes se cruzarem, vivendo em pontos tão
opostos, freqüentando restaurantes e botequins distintos, jamais indo às mesmas
festas.
Tomemos o exemplo de alguns dos melhores compositores brancos de hoje: Eduardo
Souto, Ary Barroso, Joubert de Carvalho, Heckel Tavares, Augusto Vasseur, Gastão
Lamounier,
Freyre Júnior e mesmo Lamartine Babo e os outros tangarás. Como imaginar algum
deles numa tendinha de morro a batucar caixa de fósforos no meio desses negros?
Como
pensar neles a escalar encostas enlameadas trajando os seus imaculados ternos de
linho branco?
Mesmo a parceria de João de Barro com Canuto, pioneira na união dos dois mundos,
foi um episódio isolado. Depois de Não Quero
Amor Nem Carinho e das segundas partes de João de Barro para Vou à Penha
Rasgado, a dupla se desfez. A de Canuto com Noel Rosa talvez venha a durar
muito, se muito
eles viverem.
Canuto, Deocleciano da Silva Paranhos, já tem os pulmões fracos em fins de 1931.
Mas é mesmo de amor que mais padece. Bebe muito, vive pelos botequins a falar da
mulher que o trocou por outro. Uma noite, encorajado pelo álcool e pelo ciúme,
confiando ainda numa força que já não tem (foi lutador de boxe há alguns anos,
mas
hoje só lhe sobram, além da respeitável altura, cinqüenta e poucos quilos de
fragilidade), desafia para briga o malandro que lhe roubou a mulher. É
encontrado pela
manhã gemendo num canto de calçada, o corpo coberto de sangue. O rival, mais
ágil, esfaqueou-o no peito e na barriga. Canuto passa dois meses no ospital. Sai
de
lá mais magro ainda, mas cheio de inspiração. E disposto a receber de volta o
ex-amor, como diz em Esquecer e Perdoar, samba seu com Noel:
Pelo mal que me fizeste
Sem eu merecer,
Eu te quero perdoar
E te esquecer.
Não deixei de te amar
(Vai por mim)
Nem posso viver assim.
Quero agora o teu carinho,
Quero a tua proteção,
Quero arranjar padrinho,
Não quero morrer pagão.
Vem a forte tempestade,
Mas depois vem a bonança.
Sofri tua crueldade.
Mas minh'alma hoje descansa
(Só me resta a lembrança...)
Se deixei de te amar
Foi só pela ingratidão
Que fizeste sem pensar,
Sem lembrar de uma paixão.
Mas agora estou mudado,
Meu coração não se cansa.
Por saber que sou amado
A minh'alma hoje descansa
(Vivo só de esperança...)

Um belo samba que a voz sentida de Canuto valoriza ainda mais na gravação.
Precioso exemplo de como já em 1931 Noel está perfeitamente sintonizado com os
sons lá
de cima, o morro e a cidade - através dele e Canuto - se dando as mãos, a música
e o coração a aproximá-los. Os dois fazem juntos outro samba, Cadê Trabalho?, no
qual a filosofia da malandragem, da aversão ao batente, é revisitada pelo humor
196

de Noel. O samba, porém, jamais será gravado.

Você grita que eu não trabalho,


Diz que eu sou um vagabundo.
Não faça assim, meu bem!
Pois eu vivo ativo neste mundo
À espera do trabalho
E o trabalho não vem.
Quando eu me sinto bem forte
Vou procurar um baralho,
Mas fico fraco e sem sorte
Se vejo ao longe o trabalho.
Se conversa adiantasse,
Eu seria conselheiro.
Se fraseado vingasse,
Não andava sem dinheiro.
Acordei com pesadelo,
Quase que o chão escangalho
Com dores no cotovelo
Por sonhar com o trabalho!
Trabalho é meu inimigo,
Já quis me fazer de tolo:
Marcando encontro comigo,
O trabalho deu o bolo.

Num terceiro samba, Já Não Posso Mais, Noel e Canuto terão dois colaboradores:
Puruca, outro negro do Salgueiro que faz ponto nas esquinas de Vila Isabel, e
Almirante,
que será seu intérprete em disco:

Adeus, mulher fingida,


Eu já vou-me embora.
Tu estás arrependida,
Já não posso mais!
Deus que me perdoe Pelo que fiz
Deixando abandonada Aquela pobre infeliz.
O teu mau procedimento
Fez meu coração sofrer
E teu arrependimento
Não me pôde comover.
Tu encheste meus ouvidos
Com frases de ocasião,
Nem sempre os arrependidos
Nos merecem o perdão.
Se tu fosses processada,
Diante de um auditório,
Tu ficavas bem calada,
Pois tens culpa no cartório.
Há bastantes testemunhas
Do que fui e do que sou.
Quando me botaste as unhas,
Meu dinheiro se pirou.

Canuto não vai viver muito. Morrerá a 27 de novembro de 1932, antes de chegar
aos trinta e com um punhado de sambas por fazer.
- Se tivesse durado um pouco mais - admitirá Noel aos amigos no Ponto de 100
Réis - ia ser o melhor de todos nós.
Talvez. Mas Canuto viveu o bastante para apresentar Noel a gente do samba como
ele, compositores do morro nos quais os outros tangarás não parecem tão
interessados.
Sambistas como Antenor Santíssimo de Araújo, o Gargalhada do Salgueiro. Futuro
diretor de harmonia da Escola de Samba Azul e Branco, Gargalhada é
respeitadíssimo
não só no seu morro, mas em todo lugar. Um líder, homem de coragem. Em 1934,
quando um italiano sabido compra boa parte do Salgueiro, mandando lá a polícia
com ordem
de despejo para dezenas de famílias, Gargalhada vai se plantar bem no começo da
subida. Ficará na história sua ameaça aos policiais:
- Se quiserem subir, subam. Mas pra cada barraco que vocês botarem abaixo, é um
de vocês que a gente derruba também!
Os policiais farão meia-volta, o italiano vai desistir do morro.
Quando Canuto apresenta Noel a Gargalhada, este ainda está meio queimado com o
pessoal de Vila Isabel, especialmente a turma que desfila pelo Faz Vergonha. Num
desses
carnavais, o bloco saiu cantando:
Oswaldo Cruz, Morro da Mangueira, Favela, Estácio de Sá, Vamos acordar o
Salgueiro Que o mundo inteiro Quer ouvir o seu cantar.
Gargalhada fez um samba em resposta:
Tenho prazer e glória em citar,
Mas o Salgueiro não está adormecido...
Quem é a Vila para nos acordar?
Briguinhas de samba, nada para se levar a sério. E das quais Noel não participa,
ele que respeita tanto o Salgueiro que lhe dedicará, além dos geniais versos de
Quem Dá Mais?, pelo menos mais duas citações em letra de samba. O que conta é
que Gargalhada, até sua morte em 1941, também de tuberculose, será uma das
legendas
maiores do seu morro. Praticamente desconhecido dos rapazes de Vila Isabel desta
época. Mas não de Noel, que será parceiro dele em Eu Agora Fiquei Mal. Canuto,
amigo
e padrinho da dupla, é quem o gravará.
Tenho vontade de ir à Penha,
Mas me falta o principal:
A mulher que me ajudava tanto.
Ela deu o fora!
Eu agora fiquei mal
(Eu agora fiquei mal)
197

Esta mulher foi-se embora


Me deixou bem arruinado
Eu que estava tão sadio
Agora estou acabado,
Mas agora eu peço muito
Para não escorregar.
Leve o meu pedido À santa
que está no altar.
Tou vendo as coisas feias,
Talvez nem possa alcançar
O final da escadaria
Que sobe pro seu altar.
Nossa Senhora da Penha
Vai fazer o que puder,
Se ela me livra De toda mulher...

Ao que parece, as propostas de parceria partem quase sempre de Noel. Pelo menos
no começo de seu relacionamento com os sambistas de morro, aqueles que ainda não
desceram como Canuto. Ou como Puruca, ritmista completo que toca tamborim,
cuíca, reco-reco, ganzá e um surdo que ele mesmo construiu adaptando couro à
boca de uma
barrica conseguida num armazém da Praça 7. Noel vai atrás deles, procura
conhecê-los, ouvir o que fazem. Viaja a bordo do samba, do Boulevard ao
Salgueiro, do Salgueiro
à Mangueira.
O primeiro contato com Angenor de Oliveira, o Cartola, se dá entre dois tragos
no Café e Bilhares Maracanã, mais conhecido como Café da Uma Hora (nestes tempos
em
que a maior parte da cidade dorme cedo não são muitos os otequins abertos até
tão tarde). Situado no 476 da Rua São Francisco Xavier, em frente ao rio Joana e
a
um quarteirão do Largo do Maracanã, é local de muito movimento o dia todo.
Quando o português José Martins o inaugurou em 1927, nem podia imaginar que
seria um ponto
tão importante na geografia da música popular carioca. O centro de um território
que engloba Vila Isabel, Mangueira e as Ruas Dona Zulmira e Santa Luíza, aquelas
das famosas batalhas de confete. Pois as mesas deste botequim - doze de café,
cinco de sinuca - são freqüentadas por compositores, cantores, instrumentistas,
sambistas
de morro, toda uma freguesia musical. É ali que Francisco Alves fecha muitos de
seus negócios (e guarda nas mãos de seu Zé o velho violão). Um botequim onde se
encontram
os irmãos Mário e João Petra de Barros, Paulo e Luís Barbosa, os rapazes do
Ponto de 100 Réis (Noel entre eles), Benedicto Lacerda, os foliões do Faz
Vergonha, Lamartine
Babo, um ou outro egresso do Estácio, os salgueirenses Canuto e Puruca, Kalua,
Castro Barbosa e tantos outros. E muito especialmente os bambas que vêm da
Mangueira,
o Massu, Carlos Cachaça, Zé Com Fome, Ruço da Amélia,
Cartola. (Arquivo da Funarte.)
Mestre Waldemiro, Aloísio Dias, Maciste, Saturnino Gonçalves, os novos, os mais
antigos. E Cartola.
A ligação entre Cartola e Noel não se vai restringir a encontros fortuitos e
papos de vez em quando no café de José Martins1. Um dia Noel entra na Rua 8 de
Dezembro,
desce a ladeira, atravessa a linha do trem e vai procurar Cartola no seu barraco
perdido no meio de uma subida estreita. Mostra seus sambas a ele, ouve o que o
compositor
da Mangueira tem guardado. Desde este dia, ficam amigos.
Em 1935, quando o jornal A Nação promover o concurso "Qual será o maior
compositor das nossas escolas de samba?" e Noel for convidado a dar seu voto,
mais que isso
ele fará quase um discurso:
"Cartola merece uma campanha em torno de seu nome. Dos compositores espontâneos,
ninguém merece mais do que ele. Tem dado ao público não pequeno número de
verdadeiras
obras-primas. Quem não conhece Divina Dama e Fita Meus Olhos?Não me poderia
passar
198

desapercebido (sic) o nome de Cartola num concurso entre os melhores sambistas.


A sua escola de samba, a quem empresta toda a sua colaboração, esta no dever de
ampará-lo. Tantas vezes tem concorrido para o renome alcançado por sua escola
que não se explica esta o desamparar justamente quando chegou a sua vez de
aparecer.
Dou por isso a Cartola o meu voto sincero."2
O amparo que Noel vai reclamar é o que a Mangueira negará a seu compositor.
Afinal, quando já estiverem computados mais de 6 mil votos, dados através de um
cupão
que o jornal publicará diariamente, Cartola nem aparecerá na relação dos 23 mais
votados. Enquanto Madureira prestigiará o seu Paulo da Portela (líder e virtual
vencedor do concurso), Ramos o seu Armando Marcai, Salgueiro os seus Gargalhada,
Puruca e Pedro Barcellos, Gamboa o seu Raul Marques, a própria Mangueira o seu
Maciste,
Cartola, o melhor dos "compositores espontâneos", nem será lembrado. Noel,
depois do protesto, vai pôr seu voto na urna de A Nação.
Mas o fato justificará um discurso? Não estará Noel Rosa exagerando? Será que
esse tal de Angenor de Oliveira é tão bom quanto ele diz?
Ou é apenas um bom amigo sambista que Noel vai querer promover?
Os dois se tornam mesmo grandes amigos. Destes cuja estima mútua o tempo só faz
intensificar. São dois moços simples (Cartola dois anos mais velho que Noel).
Sem
nove-horas, sem qualquer artifício no jeito de ser. A simplicidade do sambista
da Mangueira chega a ser comovente. Delicado nas palavras, nos gestos, em tudo
que
faz, inclusive os sambas. Modesto, incapaz de altear a voz. Sempre trabalhou -
pedreiro, biscateiro, vários ofícios - e no entanto jamais perdeu a calma para
protestar
contra os policiais que o chamavam de vagabundo e o maltratavam pelo crime de
fazer samba. É um dos heróicos pioneiros que resistiram com bravura à
intolerância
das autoridades para com os sambistas. Simplicidade e modéstia que jamais
perderá, mesmo que venha a ser alguém, quem sabe um compositor admirado, amado,
famoso?
Nasceu no Catete, mas mora desde menino na Mangueira. E de lá não pretende sair
tão cedo. No dia em que sua família mudou-se do morro, bateu pé: "Vocês vão, eu
fico!"
E ficou
199

mesmo. Morando neste barraco de sala e cozinha em que Noel, cada vez mais, vai
procurá-lo. Cartola ainda não havia chegado aos dezoito anos quando caiu de cama
muito
doente, precisando de repouso, muita comida e bons tratos. "Doença de rapaz",
disseram. Deolinda, vizinha do barraco ao lado, soube e foi visitá-lo: "Pode
deixar,
menino, que eu cuido de você." No princípio, em nome da solidariedade, lei
sagrada a que os moradores do morro obedecem religiosamente. Depois, foi tomando
gosto,
aquele jeitinho de Cartola enroscando-se nela, enfeitiçando-a. Até que uma noite
o marido de Deolinda chegou em casa, cansado do trabalho, e a encontrou com a
trouxa
feita e a filha Ruth, de dois anos, no colo. Foi franca:
- Estou me mudando pro barraco do lado.
- O quê?
- Vou morar com o Cartola.
O homem trincou os dentes. Pensou primeiro em esganar Deolinda mas os vizinhos
foram chegando, atraídos pelos xingamentos dele, embora sempre olhando âo longe,
como
aquele ditado que tambem é lei sagrada: "Briga de marido e mulher é deles lá..."
O homem mudou de idéia e achou melhor resolver a questão com Cartola. Saiu por
uma
porta e entrou por outra, encontrando o vizinho deitado, muito magro, ainda
fraco. Mesmo assim, explodiu:
-Roubando minha mulher, seu aprontador. Vim te arrebentar!
- Mas tu não vê que eu tou morrendo? O marido de Deolinda recuou. Pensou
bem, convenceu-se de que não era direito bater num garoto esquelético,
moribundo. Deixou a surra para quando Cartola ficasse bom. Só que, quando isso
aconteceu,
a raiva já havia passado. E Deolinda já estava definitivamente instalada no
barraco de quarto e cozinha, com a menina que Cartola criará como sua, filhos
que ela
terá um dia chamando-o, orgulhosos, de avô.
Deolinda é mulher como poucas. Noel terá oportunidade de constatar isso muitas
vezes. Pois a partir daquele primeiro encontro com Cartola no café do Maracanã -
e
mais ainda do dia em que o procurou lá em cima - o barraco passa a ser uma
espécie de sua segunda casa. Em alguns momentos, primeira. Nos anos que se
seguirão, de
agora até as vésperas de sua morte, Noel fará daquele humilde Casébre, perdido
entre tantos na Mangueira, o seu refúgio. Quando as coisas não estiverem bem na
cidade,
os dissabores, as ingratidões, os cansaços, os tédios castigando-o por dentro, é
para ali que correrá. Um refúgio tranqüilo, entre samba, cerveja e as bênçãos de
Deolinda.
Noel bebe duas vezes mais que Cartola.
Será sempre assim. De vez em quando, já meio alto, esperará o amigo voltar do
trabalho, sentado no corrimão de ferro da ponte sobre a linha do trem. Cartola
chega
e os dois se cumprimentam, sobem juntos. O cansaço e a bebida não raro derrubam
Noel.
-Deolinda!- grita Cartola para a mulher.
Nessas horas é ela quem cuida de Noel como se fosse uma criança de colo. Faz uma
fogueira de lenha no quintal, esquenta água numa lata de banha,
tira a roupa dele,
ergue-o no colo com seus braços fortes e o coloca dentro de uma bacia onde vai
jogando, pacientemente, cuias e mais cuias de água quente. Esfrega-o com bucha,
enxuga-o,
veste-lhe as roupas de Cartola, o pijaminha velho mas limpo de dar gosto.
Depois, prepara-lhe um caldo forte, osso de tutano fervido com tomate e cebola,
às vezes
engrossado com talharim. Que ela lhe dá na boca, devagarinho, enquanto Cartola
observa com olhos de aprovação.
- Este caldo levanta até caixa d'água. Deolinda cinco, seis anos mais velha que
os dois, é o anjo da guarda da dupla3. Alimenta e cura suas bebedeiras, trata-os
como a duas crianças, perdoa-lhes as traquinagens. Porque Cartola e Noel
costumam
sair juntos para longas noitadas. Como no fim de tarde em que o Zé Maria aparece
no Café da Uma Hora e lá encontra os dois conversando com Carlos Cachaça,
parceiro
e amigo de fé de Cartola. Zé Maria veio numa baratinha nova, bonita, reluzente,
de um de seus fregueses (é mecânico de gente graúda, inclusive Francisco Alves).
Geralmente é assim: entra no carro que o cliente lhe deixou para reparo e sai
por aí fazendo farol. Começa a anoitecer e ele convida os três para uma
farrinha. Mandam
Seu Zé descer dois engradados de cerveja e colocam na mala do carro.
- Agora vamos até o Buraco Quente arranjar umas companhias - propõe o Maria.
No Buraco Quente, um dos pontos de maior movimento na Mangueira, só acham duas
pequenas interessadas em fazer-lhes companhia: Nena e Genoveva. Apertam-se os
seis
na baratinha, tomam o caminho da Vista Chinesa e só voltam depois das cinco da
manhã, as garrafas vazias, as meninas cansadas. Cartola nem vai trabalhar. Noel
dorme
no seu barraco.
Eventualmente os passeios se fazem no Pavão, o tal Chevrolet de dois cilindros,
cor de azeitona, que ele comprou de Francisco Alves (o cantor tem um caderno de
capa
dura, tipo conta de armazém, onde vai anotar "primeira parte do samba tal,
tantos mil réis", "segunda desta ou daquela música, outros tantos mil réis",
"correção
e uma letra de fulano, mais tanto...", até que se complete o total). No dia em
que fecham
200

negócio, Noel vai à Mangueira e convida Cartola e outros amigos para uma volta
pelo Centro. Noel no volante, entram pela Rua Luís de Camões e chegam ao Largo
de
São Francisco. Noel tem uma idéia:
- A Rua do Ouvidor! Vou entrar nela.
- Tá maluco? Ali não passa carro.
- O meu passa.
E assim faz, às quatro da tarde, a rua estreita cheia de gente espantada com a
ousadia do Pavão. Na esquina de Uruguaiana, um guarda:
- Pára! Pára! Noel pisa no freio.
- Ficou doido, rapaz?
- Por que, seu guarda?
- Esta rua... Éproibido passar carro.
- Mas que rua é esta?
- Ouvidor. Não sabe ler? - pergunta apontando para a placa.
-Puxa, seu guarda, me desculpe! Como é que pude me enganar?
- Está bem, pode ir. Mas não me repita, ouviu?
O Pavão se vai, Noel às gargalhadas, os outros sérios.
É Cartola quem o leva para os ensaios da escola de samba. Apresenta-o ao pessoal
do morro, faz com que se sinta em casa, o Buraco Quente sendo como o Boulevard.
É ali que, transpirando cerveja, uma noite Noel cumpre sua breve e patética
carreira de mestre-sala. Leque na mão, improvisa passos que a bebedeira
transforma em
risíveis piruetas. E a elegante Georgina fazendo força para acompanhá-lo como
porta-bandeira. É Cartola, ainda, quem o aproxima de Heitor Villa-Lobos, o
grande compositor
que acaba de voltar de Paris. O maestro - na ânsia de desencavar entre
compositores populares os mais espontâneos, ou mesmo os mais primitivos, uma
riqueza musical
inexplorada - acabou parando em Mangueira. Ou melhor, na casa de dona Ephigênia,
no mesmo Buraco Quente. Cabeleira farta, charuto fumegante, foi logo
perguntando:
- A senhora sabe onde posso encontrar um moço chamado Cartola?
Desde 1932 à frente da Superintendência da Educação Musical e Artística (SEMA),
Villa-Lobos levará o canto orfeônico às escolas públicas do Rio, ensinando a
meninos
e meninas os hinos, canções patrióticas, cantigas de roda para serem cantados a
duas, três vozes. É sua crença que, a médio prazo, a partir dessas experiências
corais,
a boa música terá se massificado no Brasil, nosso povo conhecendo-a e
apreciando-a melhor. O maestro é um sonhador.
Quer que o erudito e o popular se entrelacem.
Vem daí sua ligação com Cartola, o próprio Villa-Lobos indo à Mangueira para
reger uma centena de crianças do morro no Canto do Pajé e pedindo sua ajuda como
"diretor
de harmonia". Conversam, ficam camaradas. E embora a cidade vá levar muito tempo
até saber exatamente quem é esse tal de Cartola que Francisco Alves descobriu,
Villa-Lobos percebe-o logo. Vai admirar para sempre esse metodista intuitivo,
esse poeta de poucas letras, mas abençoado. Admiração que o maestro tentará
repartir
com outros músicos eruditos, nossos ou do estrangeiro(4).
Cartola ganha de Villa-Lobos um diapasão de boca. Aprende com ele a usá-lo,
convencido mesmo de que pode tornar mais afinado e harmonioso o coro das
pastoras da
Mangueira. Noel chega no morro e encontra o amigo compenetrado à frente das
meninas, todas elas arrumadinhas, em fileira, e o sambista soprando o seu
diapasão.
-Foi o maestro Villa-Lobos que me deu- explica orgulhoso.
É mesmo Cartola quem aproxima Noel do compositor. E a pedido deste o sambista de
Vila Isabel passa a ajudar o da Mangueira a ensaiar o coral do morro. Crianças
deste
tempo jamais se esquecerão dele, magro, os dois indicadores levantados, regendo
a garotada, ensinando-lhes o Hino Nacionais, três vozes. Enérgico, exigente,
zangando
com este ou aquele, mas só de mentirinha. Nada de gritos ou de nomes feios(5).
- Traz aquela tua gaitinha, Cartola!
E Noel aproveita para afinar o violão pelo diapasão de Villa-Lobos.
Os moradores do morro da Mangueira que testemunham hoje a amizade entre Cartola
e Noel se lembrarão sempre dos dois sentados à porta do barraco, cada qual com
seu
violão, criando refrãos, improvisando versos, fazendo sambas horas a fio. Por
vezes, começam às sete, oito da noite, e vão até quase o sol despontar. Não é só
a
amizade, o carinho que recebe aqui, a solidariedade dessa gente, que atrai Noel
à Mangueira. Há também a música. Este é um morro que amanhece e adormece
cantando,
a voz morna de um sambista se espraiando pelos ares, entrando em todos os
barracos, contagiando as pessoas, tornando suas almas mais leves. Geralmente os
cá de baixo,
contidos pelo medo, não ultrapassam os limites da Visconde de Niterói. Contam-se
tantas histórias - muitas verdadeiras, outras não - de malandros, valentes,
homens
fora-da-lei, assaltos, brigas de sangue, que poucos se atrevem a subir. Mas não
é bem assim. Noel sabe que não. Uma gente banhada em
201

música como esta não pode ser ruim. E de fato não é.


É de samba e esperança que vive a Mangueira (os da cidade são incapazes de
compreender que o pessoal do morro possa ser feliz com tão pouco). Samba e
esperança o
ano todo. Canta-se de tudo por lá, o amor, a saudade, q fingimento, a pobreza, a
ingratidão, a morte. É curioso como, por esta época, os compositores escolhem
temas
de tempos em tempos e produzem uma infinidade de sambas em torno deles. Uma hora
é o beijo:
Beijos, ainda peço mais beijos dos lábios
[teus, Beijos, para satisfazer os meus, Beijos, mesmo sendo de falsidade, Se
você me negar, morrerei de saudade.
Outra, a morte:
Eu tive um só amor
Em toda a minha mocidade.
Daqueles tempos felizes
Até hoje eu tenho saudades.
Mas veio a lei imutável
E levou minha querida
É um mistério a menos para quem zomba,
Uma saudade a mais na minha vida.
Belíssimos sambas estes de Cartola. Mas, quando o tema em voga é rir, pode-se
dizer que cada compositor do morro cria pelo menos um apreciável exemplar. Como
este
de José Gonçalves, o Zé Com Fome:
Rir, pode rir que chegou o meu fim, Pode rir de mim, pode rir de mim...
Lauro dos Santos, o Gradim, fértil como sempre, fará um punhado. Tristes,
alegres, cheios de orgulho, inglórios. Um deles:
Ri da desgraça que me abraça agora
Ri, pode sorrir,
Meu coração por você tanto chora.
Outro, obra-prima que Francisco Alves e Mário Reis cantam magnificamente, embora
com pequenas alterações que mudam o sentido da letra:
Rio, quá, quâ, quá!
Deste alguém que tanto chora,
Deste alguém que tanto chora por mim.
Não posso ter amizade,
Pois eu tenho em quem pensar,
Deixa esta mulher chorar,
De saudade...(6)
Cartola não fica atrás. Compõe uma primeira parte, de letra rudimentar mas
melodia
pungente, para a qual Noel fará as segundas. O resultado é este Rir, também
gravado por Chico e Mário:

Ri,
não se ri de quem padece,
Sofre,
meu coração sabe dizer
Ri,
quando vê alguém chorar
Deus é justo e verdadeiro
Por quem eu tenho chorado
Tenho fé em me vingar.
Às vezes é um sorriso
Que acompanha uma esperança,
Outras vezes é um riso
Que provoca uma vingança.
Meu juízo se revolta
Quando vejo alguém zombar,
O mundo dá muita volta,
Quem zombou pode chorar.
Uma terceira segunda parte, inferior às outras, ficará inédita:
Você ri sem ser preciso,
Diz que é por extravagância,
Mas eu creio que o seu riso
É sinal de ignorância.

Francisco Alves - sempre ele - foi o primeiro a levar Cartola para os meios
musicais da cidade. Familiarizado com a Mangueira, desde que trabalhava na
fábrica de
chapéus, bateu no seu barraco, comprou-lhe sambas, gravou o antológico Divina
Dama. E ainda levou Mário Reis para conhecê-lo, sugerindo -que o "doutor em
samba"
também investisse no talento de Cartola (dias depois, tendo como intermediário o
Clovis Miguelão, pois ele mesmo não tem coragem de ir ao morro, Mário compraria
o Que Infeliz Sorte!, que no entanto daria para Francisco Alves gravar). Uma
mina. Chico nunca duvidou disso. Via a Mangueira desfilar com uma beleza de
samba, música
e letra nada devendo às melhores produções do Estácio, e podia apostar: ou era
de Gradim, ou era de Cartola. Como o refrão com que a escola de samba desfila em
1932:
Não faz, amor,
deixa-me dormir,
Oh, minha flor,
tenha dó de mim!
Sonhei, acordei assustado,
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)
Francisco Alves fica entusiasmado, pensa em gravá-lo e vai atrás de Cartola para
que ele faça a segunda parte. Neste começo de década a Mangueira costuma
desfilar
com três sambas, ou melhor, três refrãos, já que os versos das segundas partes
ficam por conta dos improvisadores: Alfaiate, Balança, Turituré, Antonico, Zé
202

Criança, Gradim, Cartola. Assim como Noel, Lauro Boamorte e Paulo Anacleto
no Faz Vergonha. O primeiro refrão da Mangueira é para entrar no desfile. Como
este:
Lá no Morro da Mangueira Tem
um poço de água fria,
Quem bebe daquela água
Canta samba noite e dia.
O segundo é para passar em frente ao palanque. O terceiro, para as despedidas. O
Não Faz, Amor é um deles. Mas Francisco Alves encontra Cartola de cama, febre
alta,
uma gripe de moer corpo, e quase desiste da gravação. Até que se lembra de Noel.
Pede-lhe que complete o samba:
Só tens ambição e vaidade,
Não pensas na felicidade
E eu não descanso um momento
Por pensar que o teu amor é só fingimento.
Mas eu vou entrar com meu jogo
E vou pôr à prova de fogo
A tua sincera amizade
Para ver se tu falaste verdade.
Amor sem jurar é bem raro,
O verbo cumprir custa caro.
Amor é bem fácil de achar
O que eu acho mais difícil é saber amar.
O mundo tem suas surpresas,
Mas nós temos nossas defesas.
Por isso eu estou prevenido
Pra saber se sou ou não traído.

Talvez o melhor exemplo da perfeita comunhão de estilos entre os dois, a


primeira parte de Cartola apoiada na força da melodia, a segunda de Noel na
construção dos
versos ("Amor é bem fácil de achar, o que acho mais difícil é saber amar...")-
Mas Cartola só se inteira da parceria depois que Não Faz, Amor já está gravado,
tocando
no rádio, ganhando popularidade. Fica sem entender.
-Me diz uma coisa, Chico: quem fez as segundas?
- O Noel.
- E por que tu não pôs o nome dele no disco?
- Ele não quis.
Cartola procura Noel no chalé.
- Não gostei do Chico não ter posto teu nome no disco. Sujeira. Afinal, somos
parceiros.
- Não somos parceiros, Cartola. Somos amigos.
- Mas você fez as segundas.
- Deixa pra lá. Hoje eu faço por você, amanhã você faz por mim.
São mesmo amigos. E admiradores um do outro. Para além da vida. Pois enquanto
Noel morrerá amando os sambas de Cartola, este, daqui a muitos anos - quando o
parceiro
já tiver partido e à porta do seu barraco não houver mais que a lembrança
daquele tipo miúdo, magro, queixo torto, saltando do violão para o copo de
cerveja e deste
para o violão, mas criando com facilidade versos de profunda sabedoria - há de
reverenciá-lo num samba cheio de saudade:
Eu quisera esquecer o passado,
Eu quisera, mas sou obrigado
A lembrar o grande Noel.
Ainda resta a cadeira vazia
Da escola de filosofia
No bairro de Vila Isabel.

Gradim - o tal que se alterna com Cartola na feitura dos melhores refrões da
escola - vive na Mangueira, mas o pessoal do morro diz que ele é muito mais um
cigano
do que propriamente de lá. Anda errando por aí, de toca em toca, de esquina em
esquina. Vive de vender samba, como este que passa às mãos de Amaro Silva por
alguns
mil réis:
Se está contrariada, esquece, Eu não quero mais o seu amor...
Ou este que lhe comprou Príncipe Pretinho:
Hoje sou um condenado, Mas não lamento o meu fado, Seja o que Deus quiser!
Sambas vendidos por quaisquer trocados a muitos fregueses, o mais habitual deles
o Thi-belo, que por sua vez costuma revendê-los em bases mais vantajosas. Gradim
nem se importa se seu nome sai ou não no disco, na parte de piano ou nos jornais
de modinha. Magro, cerca de um metro e oitenta, trigueiro, o queixo
protuberante,
bom de conversa, bom de futebol. Joga na ponta-esquerda do Ponte dos Marinheiros
Futebol Clube, onde já formou ala com Leônidas da Silva, este mesmo crioulinho
endiabrado
que com menos de vinte anos já é craque da Seleção Brasileira. Gradim - cujo
verdadeiro nome, como já vimos, é Lauro dos Santos - inclui-se entre os muitos
futebolistas
desta terra "rebatizados" com o nome de um jogador uruguaio que andou exibindo
seus dribles por aqui(8). Está longe, porém, de ser um atleta: é mais um que vai
morrer
moço com os pulmões estragados. E sem que a cidade reconheça o talento que tem,
muitos o considerando um dos dois ou três maiores compositores que já pisaram em
Mangueira. O outro ou um dos outros sendo, evidentemente, Cartola.
203

Mas Noel conhece Gradim o bastante para fazerem juntos pelo menos dois sambas.
Um deles está dentro do tema rir, intitula-se Sorrindo Sempre e também começou
como
um dos refrãos do desfile de 1932:
Sorrindo, sorrindo sempre,
Porque eternamente
Hei de sorrir pra não chorar
Pra não lembrar quem sofreu
Por mim padeceu pra não me ver penar,
Pra não me ver penar...
Pra não me ver penar,
Chegou a ser humilhada.
Eu não soube aproveitar
Aquela alma abandonada.
E quantas vezes ela sorrindo
Me pedia por favor
Que eu não abandonasse o seu amor!
(Sorrindo...)

É um samba muito bom, ao contrário do que pode sugerir a letra lida sem a
melodia. Outro dos muitos problemas de autoria da música popular desta época: no
disco,
apenas o nome de Lauro dos Santos; na partitura impressa, além dos nomes de
Lauro e Noel, entram também os de Francisco Alves e Ismael Silva. Quem terá
feito o quê?
Já Quero Falar Com Você é mesmo só de Gradim e Noel, embora mais uma vez o nome
deste não esteja no selo do disco. A letra é bem estruturada - certamente de
Noel
- em cima de uma imaginária conversa telefônica durante a qual o amor e as
quatro operações se misturam:
Quero falar com você,
Mas em segredo...
Que ninguém venha a saber
Do nosso amor!
Será que para sempre
Havemos de guardar
Para a felicidade algum dia nos chegar?
O amor se declara em segredo
Quem tem seu amor já aprendeu
Não posso deixar de ter medo
Que alguém subtraia o seu amor do meu.
Amor não tem dia nem tem hora
Pra vir não tem antes nem depois,
Só tem dia para ir-se embora,
Dividindo a tristeza por dois.
("Que número faz favor?")
O amor é castigo e é brinquedo
Depende da hora em que vem
Faz mal se não é em segredo
Quando os outros não sabem É mal que nos faz bem.
Somando a ilusão com alegria,
Assim é o começo do amor.
Depois pra maior nostalgia,
Multiplica a saudade por dor
("Em comunicação!")
Depois da repetição do coro, a gravação de João Petra de Barros termina com a
telefonista dizendo simplesmente: "Não responde!" Noel e Gradim poderiam ter
feito
mais juntos, mas o cigano da Mangueira e o tangará desgarrado de Vila Isabel não
se encontraram tanto quanto deviam.
Sempre querendo conhecer o que produzem estes sambistas de morro, trocar
informações com eles, somar experiências, Noel segue peregrinando. Salgueiro,
Mangueira,
outros morros. Faz expedições aos subúrbios, ouvidos atentos. Conhece Ernani
Silva, o Sete, lá pelas bandas de Ramos. Outro cigano, sempre rodopiando,
morando hoje
na Senador Eusébio, amanhã para além de Irajá. Tem dois vícios: samba e baralho.
Não recusa um joguinho de ronda e graças a isso vai perder a vida muito moço,
27,
28 anos, adversários desconfiados jogando-o lá do alto da Favela no asfalto da
Bento Ribeiro. Um negro simpático, risonho, com muito prestígio no meio do samba
(por
esta época é tão considerado quanto alguns dos melhores nomes do Estácio).
Também não chegará a ter na cidade o reconhecimento que merece no morro. Um
sambista capaz
de um coro assim:
O meu primeiro amor
Me abandonou sem ter razão
Amar sem ser amado...
Então jurei:
"Jamais eu te darei perdão!"
Para o qual Noel vai escrever duas excelentes segundas partes, a simplicidade
contida na idéia do Sete ganhando, sem que o tema seja abandonado, um cinzelado
acabamento.
O samba chama-se Primeiro Amor:
Quanto mais o tempo voa,
Mais a tua culpa cresce.
o perdão é pra pessoa
Que não pede mas merece.
Pela tua ingratidão
É que eu tanto padeço,
Foste embora sem razão
Não perdôo, nem esqueço.
O mundo é bom professor
Que cobra caro a lição
E no meu primeiro amor
Tive a última ilusão.
204

E até mesmo a saudade


No meu peito dominei,
Embora contra a vontade,
Vou cumprir o que eu jurei.

Noel Rosa será de fato o único compositor da cidade a fazer de sua associação
com esses sambistas uma rotina nos dias de agora. Conhece num café da Lapa o
marceneiro
Manuel Ferreira, amigo de Baiaco, Brancura, Zé Pretinho, malandros que gostam de
samba. E com ele consuma vários trabalhos, dos quais apenas um vai ser gravado:
Só Pra Contrariar. Para não fugir à regra, a proposta de parceria parte de Noel.
Depois de ouvir o coro feito por Manuel Ferreira, perguntou-lhe:
- Você me deixa botar uma segunda nisso?
Tão surpreso e contente o sambista ficou que nem quis dizer a Noel que já tinha
feito a segunda parte. O produto final é este:
O prazer que tu sentes é quando
Estás me contrariando
Sem razão.
Enquanto estou a sorrir,
Tu choras sem sentir
Só por contradição.
Não posso mais sofrer assim
Tudo tem que ter seu fim
Não existe eternidade
É melhor viver sozinho
Sem dinheiro, sem carinho,
Com sossego e liberdade.
Andando em tua companhia
Já peguei esta mania
Das vinganças imprudentes
E quando o jejum me come
Pra contrariar a fome
Fico mastigando os dentes.

Mas nem todos são desconhecidos como Manuel Ferreira e Ernani Silva, Gradim ou
mesmo Cartola. A "compositores de morro" já consagrados, sejam de onde forem,
Noel
se associará em diferentes épocas. É o caso de Alcebíades Barcellos, o grande
Bidê do Estácio, emérito ritmista e compositor de primeira, autor de inúmeras
obras-primas
do samba carioca, em especial as que vem criando em dupla com Armando Marcai,
outro negro de imenso talento. Com Noel, porém, Bidê fará apenas Fui Louco, em
cima
do tema da regeneração em que nenhum dos dois
acredita muito.

Fui louco, resolvi tomar juizo,


A idade vem chegando e é preciso.
Se eu choro, meu sentimento é profundo,
Por ter perdido a mocidade na orgia.
Maior desgosto do mundo!
Neste mundo ingrato e cruel,
Eu já desempenhei meu papel
E da orgia então
Vou pedir minha demissão.
Felizmente mudei de pensar
E quero me regenerar.
Já estou ficando maduro
E já penso no meu futuro.

A admiração é recíproca, um enriquecimento bilateral, os "sambistas de morro"


ensinando lições a Noel e este dando em troca o que tem de mais valioso: sua
poesia.
Assim como Noel sabe, está absolutamente certo de que estes negros têm mesmo nas
mãos - ou no coração - uma mina de ouro, seu próprio brilho é reconhecido por
eles.
Por exemplo, Heitor dos Prazeres o considera "o mago da originalidade", adora
sua bossa e seus breques(9). João da Bahiana, outro gigante, só que mais ligado
à Cidade
Nova, não ficou insensível à explosão do garoto em 1931 e jamais deixará de
gostar do que faz:
"Eu gosto muito dos versos de Noel Rosa. O seu Com Que Roupa?e o meu Cabide de
Molambo fizeram-nos os sambistas da miséria..."10
Nem todos manterão para o resto da vida suas opiniões entusiasmadas sobre o
poeta de Vila Isabel. Ernesto dos Santos, o Donga, outro da turma da Cidade
Nova, é uma
das exceções. Depois de um elogio como este:
"Há aqui na cidade um moço que pode desbancar muita gente: o Noel Rosa. Todas as
suas produções são sempre recebidas com agrado."(11)
Depois também de fazer com o mesmo Noel o samba Não Há Castigo:

Desta vez não há castigo


Se vais à Penha comigo
Tu tens que me dar vantagem
Vais pagar minha passagem
Carregar minha bagagem...
Só quero ver se tens coragem
De fazer uma bobagem
(Oi... quero ver se tens coragem)
De subir a escadaria
Eu bem sei que tu não gostas,
Mas juro que nesse dia
Vais me carregar nas costas.
Pra pagares teus pecados,
Pra ganhares o meu perdão,
Vais subir de olhos vendados...
Não é mais que obrigação!

Depois ainda de serem parceiros em outro samba, Este Meio Não Serve:
É feio! É feio!
205

Menina de família
Andar metida em certo meio
(É muito feio!)
As sobrinhas do almirante
Já saíram do Sion
Vão tomar vinho chianti
Lá pras bandas do Leblon.
Os filhinhos da Candinha
Que andam sempre de má-fé,
Fazem queixa à mãe da zinha
E ela diz: "Sei lá se é..."
Quando a menina travessa
Dá palpites numa roda
Papai tem dor de cabeça,
Mas mamãe nem se incomoda.

Depois de tudo isso, enfim, Donga mudará. Ainda vai acusar Noel de plagiar-lhe
um samba. E envelhecerá resmungando conceitos nada lisonjeiros sobre o antigo
parceiro:
- Noel não entendia de samba coisa nenhuma. Nada. Nem tocar, nem coisa
nenhuma!(12)
Mas todos sabem que não é assim. Cartola principalmente. Seu coração e o de Noel
batem no mesmo compasso. Como as almas do morro e da cidade para os que crêem
que
o samba, a música, pode operar o milagre de unir as pessoas. Os habitantes da
Mangueira jamais se esquecerão da parceria e amizade entre Cartola e Noel. Para
sempre
hão de recordar, comovidos, a figura dos dois, muito magros, sentados à porta do
barraco deste negro de fala e gestos delicados, produzindo horas a fio dezenas e
dezenas de sambas. Quase todos se perderão. Mas a alegria que Noel e Cartola
sentem ao criá-los, a emoção que os envolve ao fazerem da vida fonte de música e
poesia,
isso ficará. Há coisas que o morro não esquece.
206

NOTAS
1. O pessoal da velha guarda da Mangueira refere-se hoje ao Café da Uma Hora
como o Bar do Alberto. Ao se aposentar em 1942, José Martins passaria a
administração
da casa ao filho Alberto Abrantes Martins e ao sobrinho e genro Lourenço de
Abrantes. Alberto desde garoto trabalhava ali. Simpático, comunicativo, muito
amigo da
turma da música, o botequim acabaria entrando para a história com o seu nome.
2. A Nação, 21 de abril de 1935.
3. Deolinda da Conceição deixaria Cartola viúvo em 1946. Foi logo após a sua
morte que, inconformado, ele fez o samba Sim, de parceria com üswaldo Martins:
Consegui um grande amor Mas eu não fui feliz E com raiva para os céus Os braços
levantei Blasfemei!
Os que conheceram Deolinda a descrevem como "uma santa". Neuma Gonçalves da
Silva, por exemplo, conta: "Uma mãe para o Noel. Depois de dar banho nele, num
daqueles
porres, punha-lhe polvilho. Pra não assar. Sabe como é, ele bebia de se urinar
todo." O marido que ela trocou por Cartola chamava-se Astolpho e, no fim da
vida,
doente, não tendo para onde ir, foi recolhido pelo próprio Cartola, já então
casado com Euzébia Silva do Nascimento, a Zica, que por sinal tinha sido muito
amiga
de Deolinda.
4. Entre os músicos que Villa-Lobos levaria para conhecer Cartola e os
sambistas da Mangueira estariam Leopold Stokowski (1940) e Aaron Copland (1941).
Cartola,
aliás, se juntaria a Pixinguinha, João da Bahiana, Donga, Jararaca, Ratinho,
Luís Americano e os mangueirenses Zé Com Fome e Zé Espinguela na histórica
gravação
de música popular brasileira realizada sob a supervisão de Stokowski a bordo do
navio Uruguay. Editados nos Estados Unidos pela Columbia em dois álbuns de
quatro
discos cada, sob o título Native Brazilian Music (Columbia C-83 e C-84), os
fonogramas só seriam lançados comercialmente no Brasil em 1987.
5. Depoimento de Neuma Gonçalves da Silva aos autores.
6. Francisco Alves e Mário Reis cantam:
Ri, quá, quá, quá!
Pois este alguém que tanto chora,
Este alguém que tanto chora por mim...
7. A autoria de Rir é um desafio aos pesquisadores. No selo do disco e na
partitura impressa, editada por Irmãos Vitale, é atribuída a um certo José
Oliveira. Mas
o único em Mangueira - e não há dúvidas de que o samba é de lá - que tinha este
nome era o Zé criança, que morreu em 1939 sem jamais ter reivindicado o samba
para
si. Carlos Cachaça acha que o autor é o Zé Com Fome. Fernando Pimenta, grande
memória do morro, garante que é o Gradim. Mas Harmonia, jornal de modinhas que
Noel
e Hélio Rosa editaram por curto período em 1932, é claro. Publicou a letra sob
os seguintes créditos: coro de Agenor (sic) de Oliveira, versos de Francisco
Alves
e Noel Rosa. Para quem acredita em "prova de estilo" - participação de Chico à
parte - como é possível duvidar de que Rir seja mesmo de Cartola e Noel?
8. Isabelino Gradim, grande meia-esquerda negro do Penarol de Montevidéu e da
Seleção Uruguaia. Exímio driblador. Fez nome por aqui durante o Campeonato
SulAmericano
de 1919 disputado no Estádio do Fluminense. Recorda Mário Filho em O Negro no
Futebol Brasileiro (segunda edição, página 170): "Foi uma praga de Gradins pelo
Brasil
afora. Todo preto que jogava um pouco de futebol virava um Gradim,"
9. Diário Carioca, Io de janeiro de 1933.
10. Ibidem, 7 de janeiro de 1933. Cabide de Molambo, de João da Bahiana, diz:
Meu Deus, eu ando com o sapato furado, Tenho a mania de andar engravatado
A minha cama é um pedaço de esteira
E é uma lata velha que me serve de cadeira.
11. De um jornal de 1933, guardado por Noel em seu álbum de recortes.
12. Entrevista a Juvenal Portella, Nuno Veloso, Luiz Gleizer e Lygia Santos,
esta filha de Donga. Realizada provavelmente em fevereiro de 1973 com vistas a
um especial
para a Rádio Jornal do Brasil. O programa não chegou a ir ao ar, mas o
depoimento gravado por Donga foi preservado pelo Arquivo Sonoro do Centro de
Documentação
do JB.
207

UM CERTO ISMAEL

Capítulo 21

dos sublimes e melodiosos sambas do morro.


Noel Rosa e Francisco Alves estão sentados à mesa de um daqueles botequins do
Centro que costumam freqüentar. Tomam cafezinho. Talvez falem de música. Talvez
conversem
sobre o Pavão, que Noel continua pagando. Um tanto agitado, chega Ismael Silva.
- Que é que há, Ismael? Ele conta que vinha pela rua, tranqüilamente, quando lhe
baixou sobre a cabeça, como se caído do céu, um estribilho inteiro, música e
letra.
Receoso de esquecer o que bem pode ser o começo de um bom samba, diz:
- Vou cantar pra vocês. Sabem como é, três cabeças lembram melhor que uma.
E canta:

Estou vivendo com você


Num martírio sem igual.
Vou largar você de mão,
Com razão,
Para me livrar do mal

Noel não perde tempo:


- Posso fazer a segunda parte?
A proposta não só pega de surpresa como invade o peito de Ismael Silva(1). Ele
canta um simples estribilho, sem maior importância, e eis que Noel, ninguém
menos
que Noel Rosa, a quem todos vivem implorando parceria, vem lhe pedir, com toda a
humildade, para fazer a segunda parte. Ismael mal pode acreditar.
Sente-se de tal forma tocado que nem sabe o que dizer.
- Repete esse estribilho aí, Ismael-pede Francisco Alves.
Ismael canta de novo. Depois, vira-se para Noel:
- A segunda é sua.
Noel não fará uma, mas duas segundas partes:

Supliquei humildemente
Pra você endireitar
Mas agora, infelizmente,
Nosso amor tem que acabar.
Vou-me embora afinal
Você vai saber por quê
É pra me livrar do mal
Que eu fujo de você.
Você teve a minha ajuda
Sem pensar em trabalhar
Quem se zanga é que se muda
E eu já tenho onde morar.
Nunca mais você encontra
Quem lhe faça o bem que eu fiz
Levei muito golpe contra
Passe bem, seja feliz.

entrevista a O Cruzeiro
Dias depois, mostra-as a Ismael Silva e
209

Francisco Alves. E este também não perde tempo : decide gravar o novo samba,
Para Me Livrar do Mal, do qual, desde logo, intitula-se "co-autor". Trato é
trato, lembra
ele a Ismael. O que Noel ouve sem a menor surpresa.
Tem sido assim há muito tempo. Todo o mundo sabe que nesse acordo de boca entre
Ismael e Francisco Alves um entra com o samba e o outro com a voz. Nenhum dos
dois
faz segredo disso. E não adianta dizerem que Ismael está sendo
explorado: no fundo, ele se sente até grato.
Recorda-se da época ruim que viveu em 1927, seus exames de sangue acusando uma
penca de cruzes, a sífilis obrigando-o a se recolher a um leito do Hospital da
Gamboa.
Estava lá, triste da vida, com medo mesmo de morrer, de nunca mais voltar ao
Estácio e aos seus sambas, quando Alcebíades Barcellos, o Bidê, veio lhe fazer
uma visita.
- Te trago uma proposta, Ismael.
- Que proposta?
- Sabe o Francisco Alves?
- Claro, o cantor.
- Pois é. Ele andou ouvindo uns sambas teus por aí. Gostou. Mandou que eu viesse
aqui com estes 100 mil réis.
- Pra que tanto dinheiro?
- O Francisco Alves quer te comprar o Me Faz Carinhos.
Há cinco anos, 100 mil réis era muito mais do que Ismael Silva poderia ganhar em
quase um mês de biscates e empregos fixos. a vida era bem mais dura que a de
hoje,
obrigando-o a pegar o que lhe aparecesse, a ser de menino de recados num
escritório de advocacia a servente da Central do Brasil e vendedor de remédios.
Samba não
passava de coisa de hora vaga, prazer cultivado nas mesas de botequim, nas
tendinhas, nos terreiros. Cem mil réis! Então o Bidê lhe aparecia com aquele
dinheirão
todo, no hospital, para comprar-lhe um simples samba?
Desde rapazinho, no Catumbi, quando participava de uma roda onde brilhavam o
Nono, o Avelino, os irmãos Armando e Norberto Marcai, este mais conhecido por
Manga,
fazer samba para Ismael é quase um brinquedo. Mais tarde, ao mudar-se para o
Estácio, passou a freqüentar o Apollo, o Café do Compadre, os lugares onde se
reuniam
os bambas do bairro. E não demorou muito a tornar-se tão ou mais respeitado que
qualquer um deles. Bidê, Mano Edgar, Baiaco, Brancura, todos podiam ser muito
bons,
mas era quase sempre com sambas de Mano Rubem e Ismael Silva que saíam os blocos
da redondeza, um dos quais o famoso Deixa Falar. Uma tuberculose galopante matou
Rubem aos 23 anos em 1927, o mesmo ano da compra do Me Faz Carinhos. De
modo que desde então, Ismael reinou mais ou menos absoluto. Nestes blocos
desfilava, só para aprender o que se cantava, o mesmo e sempre atento
Francisco Alves.
No hospital, Bidê explicou a Ismael que o cantor ficava cada vez mais admirado
quando, ao perguntar de quem era determinado samba, lhe respondiam, quase que
invariavelmente:
"E do Ismael..." Pelos cem mil réis o negócio foi fechado ali, Francisco Alves
tornando-se dono do Me Faz Carinhos, como logo depois, novamente por cem mil
réis,
compraria outro samba de Ismael, o Não E Isso QueEu Procuro, e já em 1929 o Amor
de Malandro, destinado a ser um dos sucessos do carnaval de 1930(2):
Vem, vem,
que eu dou tudo a você
Menos vaidade,
tenho vontade
Mas é que não pode ser.
O tempo passou. Francisco Alves continuou fazendo sucesso em disco e Ismael não
parou de compor seus sambas. Até que, em fins de 1930, Francisco Alves procurou-
o
de novo. Desta vez, sem intermediários. Estacionou o carro em frente ao Café do
Compadre, chegou à porta e dali gritou, bem alto, o nome de Ismael, que tomava
cerveja
numa das mesas do fundo. Ismael levantou-se, foi ao encontro do cantor e este,
já sob a luz do poste da esquina, pediu-lhe:
- Me canta aí uns sambas teus.
- Pra quê?
- Pode ser que algum me interesse. Ismael Silva, acompanhado pelo violão
do próprio Francisco Alves, começou a cantar. Um, dois, vários sambas. Um
desfile de coisas novas, todas boas, que Francisco Alves ia captando:
Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz...
- Entre ali no meu carro. Vamos dar umas voltas pela cidade.
Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro.
Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas, das
vantagens
de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom que Ismael
fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos discos. Em troca,
Ismael entregaria
a Francisco Alves tudo que fosse compondo. Os sambas gravados e editados,
naturalmente, levariam a assinatura dos dois. Ismael pensou um pouco, o carro
dando voltas.
E disse.-
- Acontece que já tenho trato com um amigo.
Explicou, então, que o amigo era Nílton
210

Bastos, excelente compositor dali mesmo, do Estácio. Muitos dos sambas que
Francisco Alves acabara de ouvir tinham sido feitos pelos dois, Ismael e Nílton.
Eram
tão amigos, tão afinados, que acabaram fazendo um acordo:
- Faça ele, faça eu, o que for feito é dos dois.
Para Francisco Alves não havia o menor problema:
- Então a gente inclui ele na parceria.
O resto é parte da história, o trio Ismael Silva-Nílton Bastos-Francisco Alves
assinando uma sucessão de jóias do samba carioca. Sambas que, nos dois anos
seguintes,
conquistariam não só a cidade, mas todo o país: Nem ÉBom Falar, Não Há, Olê-Lê-
Ô, Arrependido, O Que Será De Mim?, Ironia, Eu Bem Sei. Quem não se lembra da
ovação
que os dois sambistas do Estácio receberam quando Francisco Alves chamou-os ao
palco do Teatro Lyrico, depois de cantar, no concurso de sambas e marchas para o
carnaval
de 1931, o irresistível Se Você jurar?
Se você jurar
que me tem amor,
Eu posso me regenerar...

Mesmo após a morte de Nílton, o sucesso prossegue(3), Francisco Alves levando


Ismael para toda parte, fazendo dele o seu secretário particular ("É o meu braço
direito...").
Tudo dentro do esquema, Ismael compondo, Francisco Alves gravando. Nos teatros,
nos circos, onde quer que vá, o cantor faz questão de chamar o parceiro à cena
para
apresentá-lo ao público.
- Este é o Ismael Silva, um preto de alma branca.
Noel Rosa não se surpreende nem um pouco ao ver Francisco Alves conseguir um
lugarzinho entre ele e Ismael Silva como autor de Para Me Livrar Do Mal. O que
talvez
o surpreenda é o convite que o cantor lhe faz:
- Que tal você se juntar a nós? No lugar do Nílton.
Ismael Silva lembra, cheio de saudade, o parceiro e amigo Nílton Bastos, que a
morte levou há poucos meses, na noite de 8 de setembro de 1931. Justamente
quando
começava a melhorar de vida, o dinheiro do samba reforçando bastante seu parco
salário de mecânico do Arsenal de Guerra, dois pulmões frágeis o levaram de vez.
E
de repente: dois ou três meses antes de morrer, Nílton, tão bom de bola quanto
de samba, chegou a jogar uma partida de futebol num dos campos da Cidade Nova.
Parecia
em forma, correndo, chutando, driblando. E no entanto, não duraria muito.
Era um mulato claro, de traços finos, muito delicado, destoando quase naquela
turma do Estácio em que pontificava a valentia de um Brancura, de um Baiaco,
sujeitos
que nunca se afastavam de suas navalhas. O próprio Ismael era de uma turma um
tanto pesada, sempre metido naquele jogo de chapinhas no Largo do Estácio, em
frente
à Escola Normal. Ele, o Osvaldo Papoula, o Bernardo Mãozinha, de novo o
Brancura. Nílton Bastos, não. Educado, incapaz de dizer nome feio, de gritar com
alguém,
de se meter em valentias, diferente de todos.
- O Nílton era um amor de gente-costuma repetir Ismael.
Quando tiveram início as transações de Francisco Alves com os dois grandes
sambistas do Estácio, Mário Reis aproveitou para se aproximar. Sempre foi assim,
a admiração
de Mário feita de receios que o deixam um tanto à distância.
- Chico, estes caras não são perigosos?
Se Francisco Alves ia ao morro da Mangueira procurar Cartola, ou se circulava
pelo Estácio atrás de Nílton e Ismael, Mário se punha na retaguarda. Deixava
Francisco
Alves ir na frente e, se tudo estivesse bem, se chegava, desconfiado. Deus o
livrasse de subir a Mangueira! Salgueiro, Saúde, Gamboa, Favela? Não era com
ele.
Mas, no dia em que conheceu Nílton Bastos, começou a mudar de opinião sobre os
sambistas. Duas coisas o aproximaram muito de Nílton: a paixão de ambos pelo
futebol
e, é claro, a música. Não tinha limites a admiração do cantor pelo compositor.
De início pensou até que o forte da dupla era Nílton e não Ismael (em grande
parte
por estar convencido de que, naquela história de "faça ele, faça eu, o que for
feito é dos dois", Ismael Silva nada fizera em Se Você jurar, primeira, segunda,
música,
letra, tudo de Nílton) . Mas um dia ouviu do próprio Nílton Bastos:
- Quer saber quem é o melhor de nós todos? O Ismael.
Francisco Alves, Mário Reis, Ismael Silva, o pessoal do Café do Compadre, todo o
mundo foi visitar Nílton na casa em que ele agonizava, na Rua Dona Zulmira, no
Maracanã.
E todos sabiam o que sua perda representava para o samba carioca. Francisco
Alves, numa daquelas sombrias visitas, quando se sentia cheiro de morte por toda
parte,
tentou desanuviar o ambiente. Para reanimar o moribundo, cantou altissonante:
Quando eu morrer Não quero choro nem nada Eu quero ouvir um samba Ao romper da
madrugada(4)
Agora, Chico quer que Noel ocupe o
211

lugar de Nílton. E por que não? O acordo em torno do Chevrolet cor de azeitona
obriga o comprador a desembolsar sambas para o vendedor. Quanto mais Noel
trabalhar
para Chico, mais rápido pagará o Pavão. Concorda. Mas há um detalhe: os sambas
que Noel fizer serão só seus, sem intromissões indevidas. Como este Tudo Que
Você
Diz, feito tão rigorosamente dentro do figurino do Estácio que Ismael Silva bem
poderia assiná-lo:
Tudo que você diz Com a maior lealdade
É mentira É usar de falsidade
(Fale a verdade)
Toda gente fingida
Paga o mal que fez nesta vida
Por encher de ilusão
Um pobre coração.
Quando alguém não esquece
A pessoa por quem padece
É porque tem saudade
Da própria falsidade.
Pode crer que a mentira
O sossego sempre nos tira
Fale sempre a verdade
Mesmo sem ter vontade.
Tenho jeito pra tudo
Pra mentir, porém, fico mudo
Pois fugir da verdade
Nem por necessidade.

Justo ou não o acordo - exagerando ou não Ismael ao dizer que só a voz de


Francisco Alves pode levar seus sambas ao sucesso - é a partir de Para Me Livrar
Do Mal,
e sob as bênçãos do cantor, que vão se aproximar dois grandes talentos da música
popular brasileira. Talentos? É pouco para definir Ismael Silva e Noel Rosa, o
Ismael
do Estácio e o Noel da Vila. Da mesma forma, é limitador ver essa aproximação
sob um prisma estritamente geográfico, como se cada um pertencesse ao seu
respectivo
bairro e não a todo o Rio que há muito lhes canta as músicas. O namoro de Noel
com o Estácio (ou com o tipo de samba que deve ter nascido com Mano Rubem e sua
gente),
já se viu, é antigo. Também é antiga a admiração, quase adoração de Ismael por
Noel. Na verdade, Para Me Livrar do Mal não é a primeira de suas parcerias. No
ano
passado, pouco depois da morte de Nílton Bastos, Francisco Alves entregou a Noel
o estribilho de uma marcha que Ismael havia feito:

Olha, escuta, meu bem


É com você que eu estou falando, neném:
Esse negócio de amor não convém,
Gosto de você, mas não é muito... Muito!

Atendendo ao pedido do cantor, que pretendia gravá-lo já para o carnaval de


1932, Noel cuidou das segundas partes, na primeira delas fazendo a mesma
brincadeira
com a demagogia burocrática de nossas repartições públicas, aquela história de
"traz o retrato e a estampilha que eu vou ver o que posso fazer por você".

Fica firme,
não estrilha
Traz o retrato e a estampilha
Que eu vou ver O que posso fazer por você.
Seu amor é insensato
Me amotinou, mesmo, de fato
Não leve a mal
Eu prefiro a Lei Marcial.

Como já sabemos, não é a primeira composição de Noel a registrar a determinação


do chefe do Governo Provisório. Nem a segunda. Depois da referência a ela feita
em
Tenentes do Diabo, Noel a utilizou com muita ironia e malandragem no samba
Espera Mais Um Ano, que ele vai deixar inédito em disco5.

Espera mais um ano que eu vou ver


Vou ver o que posso fazer
Não posso resolver neste momento
Pois não achei o teu requerimento.
No samba tu quiseste me perder
Tentaste na orgia me arrastar
Mas hoje que eu não quero me prender
Procura um coronel pro meu lugar.
Tu foste sempre a minha diferença
Chegaste a me obrigar a te bater
Já chega de pancada e desavença
Espera mais um ano que eu vou ver.
Sapatos e vestidos eu te dei
E tu não me pagaste o que eu te fiz
De tanto te aturar eu já cansei
Agora vou voltar a ser feliz.
A tua pretensão vai acabar
Meu câmbio vai subir, tu vais descer
As coisas para mim vão melhorar
Espera mais um ano que eu vou ver.

Produzido sem que Ismael e Noel se conhecessem além dos encontros rápidos em
corredores das emissoras de rádio, nas mesas de café, nas esquinas do Centro,
Gosto,
Mas Não É Muito terá importância menor na obra que, a partir de Para Me Livrar
do Mal, eles vão construir juntos. Caso diferente, por exemplo, é o de Adeus. Há
quem
diga que o estribilho de Ismael é uma homenagem ao amigo morto Nílton Bastos.
212

Adeus, adeus, adeus...


Palavra que faz chorar
Adeus, adeus, adeus...
Não há quem possa suportar.

Os versos tanto servem para falar de um amigo que se foi como de um amor que se
perdeu. Noel, contudo, é explícito. Prefere a segunda vertente ao criar as
segundas
partes, embora o breque dado pelos cantores ao final das mesmas, antes de
retornar ao refrão, "Foi o último adeus...", traga de volta a morte como tema.
Adeus é bem triste
Que não se resiste
Ninguém, jamais,
Com adeus pode viver em paz
(Foi o último adeus...)
Pra que foste embora?
Por ti tudo chora!
Sem teu amor
Esta vida não tem mais valor
(Foi o último adeus...)

Ismael e Noel criarão muito juntos. Nenhum outro comporá tanto com o poeta de
Vila Isabel quanto o sambista do Estácio(6). Atraídos pela admiração recíproca,
integrados
pelos respectivos talentos e, curioso, tendo a aproximá-los o Pavão, farão
sambas bonitos como este Quem Não Quer Sou Eu.
Quando eu queria o teu amor
Não davas atenção ao meu
Pra mim tu não tens mais valor
Agora quem não quer sou eu.
Observo que hoje em dia
Quem não quis diz que me quer
Cabe muita hipocrisia
Num capricho de mulher
Vou viver desiludido
Sem amor, sem ideal
Pra não ser submetido
A desejo tão banal.

Ao ouvir tua proposta


Com tão falsas frases juntas
Achei uma só resposta
Que responde mil perguntas
Hás de ter em tua vida
Um destino igual ao meu
Podes ir desiludida
Hoje quem não quer sou eu.

E outros tão ou mais inspirados. Oovaojá Sei Que Tens Novo Amor:
Já sei que tens um novo amor
Não vá depois se arrepender
Não voltes, mulher, nunca mais
Sofre calada, não dá a perceber.
Sem dar a perceber também sofri
Desde o infeliz momento em que te vi
E hoje o que me fere o coração
É saber Que foste embora sem razão.
Por causa de outro amor tu vais sair
Eu não quero que tu venhas me pedir
Desculpas pelo teu procedimento
Nem que chores Aumentando o meu tormento.

O mesmo caso de Nunca Dei A Perceber:


Não é só quem vive em pranto
Que sabe o que é sofrer
Eu sofro e no entanto
Nunca dei a perceber
E são tristes os meus ais
Pois quando a gente sente E não chora
Sofre muito mais.
Pra fingir que vivo bem
Não conto a ninguém
Este meu mal sem fim
Mas a calma não me vem
E eu mesmo não sei
O que será de mim.
Eu faço por não chorar
Para não demonstrar
Minha grande aflição
Só pra me desabafar
Não quero enganar
Meu pobre coração.

Ou de Não Digas:

Oh! Não digas


Que ainda eu não te esqueci
Quem não sabe há de pensar
Que eu ando atrás de ti.
E a nossa amizade teve fim
Tu bem sabes que fui eu Mesmo quem quis
Eu não sei por que é que mentes tanto assim
Pois mentira não se diz.
Eu ainda fico triste a lembrar
Apesar de ter deixado já de ti
Lamentando aquele dia de azar
Em que eu te conheci.

Ou ainda de Deus Sabe o Que Faz, todos sambas que aparecerão em disco assinados
por Ismael Silva e Francisco Alves. O nome de Noel, só na partitura.

Tu sendo infeliz como se vê


Bancas tanto chiquê
Que a mim até já faz horror
Quanto mais se tivesses valor
214

Não tens e nem terás.


Deus sabe o que faz.
O chiquê é feio pra quem pode ter
Quanto mais pra quem não tem nada de seu
Ai de quem não sabe se reconhecer
Nunca vi um gênio igual ao teu.
Mas o mundo nos ensina a viver
Tudo isso com o tempo há de ter fim
Porque mesmo tu tens de reconhecer
Que nunca se deve ser assim.

Parceiros. Graças ao Pavão e a Francisco Alves. Não tivesse a voz do cantor


outros méritos, bastaria este, de ter proposto, ainda que em nome da esperteza,
a Noel
Rosa:
- Que tal se juntar a nós?

NOTAS
1. Muitas vezes, pela vida afora, Ismael Silva recordaria este episódio,
repetindo-o em inúmeras entrevistas, uma delas aos autores. Mas a memória já lhe
fraquejava
nos últimos anos. Em seu segundo depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio
de Janeiro, a 16 de junho de 1969, contraria todos os relatos anteriores dizendo
que
o samba em questão era Quem Não Quer Sou Eu em vez de Para Me Livrar do Mal.
2. Nos selos dos discos originais, Ismael Silva divide com Francisco Alves a
autoria tanto de Me Faz Carinhos como de Não E Isso Que Eu Procuro. Já em Amor
de Malandro
o nome de Ismael simplesmente desaparece. O próprio Francisco Alves gravou os
dois primeiros. Amor de Malandro é caso raro de samba daquela época a merecer
mais
de uma gravação: a de Chico, uma de solo de assovio por João Gabriel de Faria e
a terceira de Nicola Pasceli.
3. Francisco Alves, sozinho ou em dupla com Mário Reis, gravou em 1931 e 1932
um total de quinze sambas como parceiro de Nílton Bastos e Ismael Silva.
4. Mário Reis relata essa passagem em entrevista incluída no ABC de Sérgio
Cabral (página 112) como se Francisco Alves tivesse cantado:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela...
Deve ter se enganado. Estes versos, de Noel Rosa, são posteriores à morte de
Nilton Bastos. Os citados no texto são os prováveis, já muito conhecidos na
época. De
um autor anônimo do Estácio de Sá, havendo quem os atribua a Rubem Barcellos, o
Mano Rubem.
5. Ver nota referente a este samba no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no
final do volume.
6. As musicografias até aqui levantadas, inclusive a partir de informações do
próprio Ismael Silva, fornecidas em entrevistas diversas de 1954 até sua morte
em
1978, nos dão conta de apenas nove composições suas de parceria com Noel: Para
Me Livrar do Mal, Adeus, Gosto, Mas Não É Muito, Uma Jura Que Fiz, Assim, Sim,
Quem
Não Quer Sou Eu, Ando Cismado, A Razão Dá-se a Quem Tem e Boa Viagem. Baseados
em dados que poderão ser encontrados no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no
final
do volume, os autores relacionam mais nove: Escola de Malandro, Já Sei Que Tens
Um Novo Amor, Nunca Dei a Perceber, Não Digas, Deus Sabe o Que Faz, Dona do
Lugar,
Isso Não se Faz, É Peso e Sorrindo Sempre, esta em parceria também com Gradim e
Francisco Alves, já estudada no capítulo anterior.
215

RUMO AO SUL

Capítulo 22

Quero a minha independência E com jeito e paciência Me preparo pro futuro


Vitória
Os tangarás já não formam um bando. A música ainda faz parte de suas vidas, mas
raramente são vistos ou ouvidos cantando em conjunto formado em meados de 1929
começa
a desintegrar-se nos primeiros meses de 1932. Há mais de um ano que os cinco não
se apresentam juntos em teatros, cinemas, programas de rádio. Festas familiares?
Faz tempo. As gravações tornam-se mais espaçadas. Cada um deles parece ter agora
um destino próprio. Almirante, consciente de suas excepcionais qualidades de
intérprete,
intensifica as atividades neste campo, numa carreira individual que será por
tudo vitoriosa. Além disso, tem paixão pelo rádio. E uma vocação tão ampla -
para cantar,
fazer locução, redigir anúncios, produzir sketches, atuar como
contra-regra, dominar todos os campos do veículo - que um dia ainda ganhará, com
justiça, o epíteto de "a maior patente do rádio". João de Barro, sempre
hesitando
em entregar-se por inteiro à vida artística, divide-se entre a música e
profissões "mais respeitáveis". A família passa por maus momentos. Problemas na
contabilidade
da Fábrica Confiança Industrial culminaram com o afastamento de Jerônimo José
Ferreira Braga Netto. Tão arrasado Jerônimo ficou que sofreu um derrame
cerebral. Trocam
todos a confortável vivenda que ocupavam no próprio terreno da fábrica por uma
modesta casa no distante Jacarepaguá. Braguinha se emprega como corretor de
imóveis
e logo depois na seção de discos de
Mestre & Blatgé. Pouco tempo lhe sobrará para a música. Quanto a Alvinho, decide
estudar odontologia, embora não pare de cantar. Restam portanto o irrequieto
Henrique
Britto e o imprevisível Noel Rosa.
Britto, neste março de 1932, começa a fazer as malas para viver nos Estados
Unidos uma nova aventura. Aceitou o convite de Romeu Silva para integrar a
Brazilian
Olympic Band, orquestra organizada para se apresentar em Los Angeles durante os
Jogos Olímpicos que lá se cumprirão de 30 de julho a 14 de agosto. De fato uma
aventura.
O Governo Brasileiro não poderá ajudar nossa delegação. Não há dinheiro para
nada, nem para as passagens, nem para hospedagem e alimentação em Los Angeles.
Fica
resolvido que irão todos no Itaquicê, navio da Companhia Nacional de Navegação
Costeira, desde que se comprometam, atletas e dirigentes, a vender 50 mil sacas
de
café nos vários portos em que ancorarem. Serão 27 dias de viagem e muito pouco
se venderá. Resultado: a maior parte da delegação, triste e humilhada, vai
voltar
no mesmo Itaquicê. A orquestra de
217

Romeu Silva inclusive. Mas não Britto. Minutos antes do navio zarpar de regresso
ao Rio, ele procurará Romeu, aflito como sempre:
- Esqueci. Esqueci o violão. Ali. No cais!
Descerá do navio e sumirá por um ano. Ninguém jamais saberá ao certo como e de
que viverá nos Estados Unidos durante esse tempo. Sem licença de trabalho,
papéis
de imigração ou ao menos alguma noção do idioma. Mas em momento algum abandonará
o violão. A partir do projeto de um amigo brasileiro que encontrou por lá, um
certo
F. Dutra, vai adaptar amplificadores ao instrumento e levar o invento à Dobro
Corporation de San Francisco, Califórnia. A firma passará a fabricá-lo, ponto de
partida
do que um dia será conhecido como violão elétrico ou guitarra amplificada.
Quando voltar ao Brasil, já em 1933, trará consigo, orgulhoso, um desses
instrumentos,
depois de ter dado recitais no Bel-mont Theater, em Los Angeles, e em casas
noturnas de Chicago. Dinheiro, porém nenhum(1).
Já Noel Rosa recebe de Francisco Alves o convite para fazerem uma excursão ao
Sul. Eles, Mário Reis e outros nomes da música popular que o cantor ainda está
sondando.
A temporada, com espetáculos em Porto Alegre e outras cidades gaúchas,
Florianópolis e talvez Curitiba, pode render bons cobres a Noel. E ajudá-lo a
abater algumas
parcelas do que deve a Chico desde que este lhe deu as chaves do Pavão.
Assim, parece mais do que evidente que o Bando de Tangarás está com seus dias
contados, cada pássaro voando por uma paragem, um no rádio, outro repartindo-se
entre
dois ou três empregos, o terceiro às voltas com os boticões, o quarto de viagem
marcada para Los Angeles e o quinto migrando literalmente para o sentido oposto,
o Sul do Brasil. No dia 12 de abril, contudo, eles se reúnem uma vez mais, no
estúdio da Victor, para gravar novo disco2. Numa das faces, uma embolada de
Noel, que
assim retorna, ainda que por pouco, aos primeiros tempos do conjunto. Chama-se
Não Brinca Não, que Almirante canta com muita graça.

Pega na saca,Tira a jaca,Leva a faca,


Que a macacaSai da estaca
E te ataca À traição.
E não brinca não...
Que ela hoje tá com o cão!
Seu Fortunato, Olha o rato No sapato.
E o seu gato, Que é de fato,
Foi pro matoCom meu cão.
E não brinca não...
Que vais ficar de pé no Chão!
Com sua farda, Toda parda, Bem galharda,
Na vanguarda, De espingarda,
Vem um guarda No pifão.
E não brinca não...
Que ele tá cheio da razão!
Dona Adalgisa Só me avisa, Só me frisa
Que a camisa Não é lisa
Nem precisa De botão.
E não brinca não...
Que não tá paga a prestação!
Eu bem dizia Que eu sabia Que a Maria
Fazia Na sacristia
Cortesia Ao sacristão.
E não brinca não...
Que até o padre é gavião!

Dois dias depois, sem João de Barro e enxertado de Paulo Netto, Gorgulho e
Helvécio de Barros, um bando que dos tangarás originais só tem o nome segue de
automóvel
para um ou dois espetáculos em Nova Friburgo. Uma viagem tão cansativa quanto
financeiramente desastrosa. Será a última participação de Noel na história do
conjunto.
De início Francisco Alves pretendia que a estréia se desse a 8 de abril em Porto
Alegre. Mas a escolha dos cantores e músicos que o acompanharão foi menos
simples
do que esperava. Mário Reis está confirmado desde o começo. Já Noel Rosa só
passou a fazer parte do grupo depois que Lamartine Babo, doente, recomendado
pelo médico
a fazer uma estação de águas em São Lourenço, não pôde viajar. É sempre difícil
precisar o que Francisco Alves tem na cabeça, homem de muitas e variadas idéias.
Mas é bem possível que Lamartine Babo tenha sido o primeiro nome em que pensou
para substituir Nílton Bastos. Quem sabe? Afinal, logo após a morte do grande
sambista
do Estácio, o cantor tratou logo de aproximar Lamartine de Ismael Silva, os três
assinando um samba que Mário Reis gravou no fim do ano:
218

A aurora vem raiando Anunciando o nosso amor Ô...


Foi ainda de Francisco Alves a idéia de formarem, ele, Mário Reis e Lamartine
Babo, um trio que se exibiu meses atrás com o nome de Ases do Samba. Chico e
Mário
cantando, Lamartine contando piadas e inventando paródias e canções
humorísticas, o trio foi muito aplaudido no Teatro Lyrico, no Clube Ginástico
Português, nos
cinemas Eldorado e Mascote, tudo isso antes do último carnaval. Mês passado, com
o mesmo êxito, os três atuaram no Teatro Santana, em São Paulo. Natural,
portanto,
que na excursão ao Sul a formação do trio fosse mantida. Mas, saindo Lamartine,
entrou Noel Rosa.
A questão dos músicos foi mais ou menos a mesma. Francisco Alves geralmente
canta acompanhado pelo Tute, o do violão. Ou então pelo Luperce Miranda, o do
bandolim.
Mas também estes não podem se ausentar do Rio, de modo que Francisco Alves acaba
limitando os acompanhamentos de violão ao de Noel e ao seu próprio, convida para
o bandolim Pery Cunha e para o piano Romualdo Peixoto, o Nono, este uma
indicação de Mário Reis:
-Para tocar samba, Chico, está para nascer outro igual.
Tal afirmativa - partindo de um amigo, discípulo e intérprete de Sinhô, de um
cantor que já foi acompanhado tantas vezes por um Eduardo Souto, um Mário
Travassos
de Araújo - vale por um atestado. Para Francisco Alves, é definitiva. Não gosta
muito de ser acompanhado por piano, preferindo orquestras ou regionais. Mas vá
lá.
A excursão ao Sul acabará mostrando-lhe, pelos dedos de Nono, que há pianos que
valem uma orquestra.
Francisco Alves adverte os companheiros: - Somos profissionais. Temos que
respeitar o público para que o público nos respeite. Música, para mim, é coisa
séria. Tão
séria que exige traje a rigor. Definido o grupo que vai viajar, por sinal com o
mesmo rótulo de Ases do Samba, logo na primeira reunião dos cinco Francisco
Alves
dita algumas regras. Para começar, o uso do smoking é obrigatório. No máximo um
summer, mas de forma alguma um terno comum. Os horários terão de ser
rigorosamente
cumpridos. Chico detesta retardatários, a pontualidade sendo parte daquele
respeito que o público merece. E há a questão dos hotéis. Segundo ficou acertado
com o
gerente do Cine-Teatro Imperial, em Porto Alegre, a hospedagem naquela cidade
correrá por conta dos artistas. Estejam todos avisados de que há hotéis caros e
baratos,
cada qual responsável pelo seu, pagando-o com o dinheiro que o próprio Francisco
Alves dividirá com o grupo, assim que receber o que lhes couber da bilheteria.
Tudo
acertado, tudo claro.
Com o atraso provocado pela escolha dos cantores e músicos, só a 21 de abril os
novos Ases do Samba seguem viagem para o Sul. Vão a bordo do Itaquera, outro dos
muitos navios que a Companhia Nacional de Navegação Costeira mantém ao longo do
nosso litoral, parando quase que de porto em porto do Orange ao Chuí. E por
pouco
Noel não perde a hora do embarque. Vencido por um daqueles seus sonos profundos,
foi um custo acordá-lo em tempo de se vestir, entrar num táxi, ir para a Praça
Mauá.
Francisco Alves é mais uma vez a grande estrela da companhia. O que fica
evidente já no embarque, uma pequena multidão de amigos e admiradores
comparecendo para
as despedidas. Qualquer cantor ou cantora do Brasil pode ir aonde quiser, norte
ou sul, interior do país ou mesmo o exterior, e no máximo parentes e amigos mais
chegados vão ao bota-fora. Além disso, tais viagens começam a fazer parte da
rotina profissional de todo artista. Mas, no caso de Francisco Alves, é
diferente. Um
simples embarque assume proporções de grande acontecimento. Noel Rosa, o último
a aparecer, chega apressado para as fotografias que se fazem no convés do
Itaquera.
A viagem até Porto Alegre dura mais de uma semana. O navio vai parando onde quer
que possa subir ou descer passageiro, Ubatuba, São Sebastião, Santos, Pedro de
Toledo,
Cana-néia. Entra na baía de Paranaguá, pernoita em Antonina, volta, segue até
Guaratuba, Itajaí, Florianópolis, Porto Alegre. Uma viagem feita principalmente
de
tédios. Não há diversões a bordo, nem bares, nem mulheres, apenas a monotonia
das máquinas a empurrar ritmadamente o navio. Aos passageiros só resta cantar.
Improvisam-se
no convés saraus que acabam servindo de ensaios para a estréia.
É durante esta viagem de mais de uma semana que Noel faz ou pelo menos conclui
dois de seu melhores trabalhos. Um deles é Quando o Samba Acabou, aquela versão
revista,
aumentada e urbanizada de Mardade de Cabocla'. O outro é Mulato Bamba:
Este mulato forte É do Salgueiro. Passear no tintureiro Era o seu esporte. Já
nasceu com sorte E desde pirralho
219

Vive à custa do baralho, Nunca viu trabalho.


E quando tira samba
É novidade,
Quer no morro ou na cidade
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar
Vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher.
O mulato
É de fato
E sabe fazer frente
A qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.
Sei que ele anda agora
Aborrecido
Porque vive perseguido
Sempre e a toda hora.
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá.
Eu sei que o morro inteiro
Vai sentir
Quando o mulato partir
Dando adeus para o Salgueiro.
As morenas vão chorar
E pedir pra ele voltar.
Ele então diz com desdém:
"Quem tudo quer... nada tem."

Mário Reis apaixona-se por este samba. Apossa-se dele, diz que vai lançá-lo em
Porto Alegre antes que Francisco Alves o ouça e o pegue para si. Mário acha, com
razão,
que música e letra de Mulato Bamba são feitas sob medida para a sua voz suave,
seu estilo pausado e meduloso, tão de acordo com a gente e as coisas deste Rio
malandro
de que falam os versos. Mas em quem terá se inspirado Noel para criar personagem
tão singular como este mulato forte do Salgueiro? Todos os bons malandros, do
morro
ou não, parecem nele contidos, a intimidade com o tintureiro(4), a habilidade
inata com o baralho, a astúcia que o permite viver sem trabalhar, a facilidade
com
que faz um novo samba. Mas a singularidade desse malandro é outra. De tal feitio
que as morenas do lugar se queixam: o mulato em questão simplesmente não quer se
apaixonar... por mulher. O bamba. Forte, corajoso, disposto a enfrentar qualquer
valente, mas não querendo saber de fita. Isto é, de amor. Nem com mulher bonita.
Estranho mulato este que em muitas coisas lembra o Satã, um dos mais afamados
valentes da noite carioca, capaz de virar do avesso um
botequim da Lapa, de encarar um, dois tintureiros de uma só vez, sem medo de
nada, nem mesmo da morte, quanto mais desses policiais que vivem dando batidas
pela
Mem de Sá atrás de pederastas que um impiedoso moralismo recomenda sejam
varridos das ruas como lixo. É muito comum o silêncio da noite ser quebrado
pelo alvoroço dessas criaturas correndo em bando, aos gritos, numa desesperada
fuga a policiais violentos. Os perseguidores atrás, brandindo cassetetes, os
perseguidos
na frente, entrando como ratazanas assustadas na primeira porta que encontrem
aberta na Mem de Sá, na Riachuelo, na Gomes Freyre ou na Lavradio. Satã, porém,
não
foge.
Terá sido ele o inspirador de Mulato Bamba? Grande, forte, um touro de homem,
temido, a própria polícia torcendo para não encontrá-lo pela frente numa dessas
batidas,
e no entanto acariciando o sonho de se tornar um dia uma esvoaçante estrela dos
nossos palcos. Pode ser visto, vestido de baiana, odalisca ou rainha de Sabá, a
rebolar
freneticamente num desses espetáculos que os cabarés da Lapa de vez em quando
apresentam, homens travestidos de mulher. Quem vê Satã assim, batom, brincos,
pulseiras,
mexendo com as cadeiras, cantando com voz de contralto, nem imagina do que é
capaz. Ele e Noel são amigos(5). Noel, na verdade, tem muitos camaradas entre
esses
homossexuais que a polícia persegue. Conhece alguns deles. Confessos como Satã e
Jota Piedade, bom compositor que em troca de companhia passa adiante os sambas
que
faz. Ou velados como Assis Valente e Ismael Silva, que não abrem a guarda com
medo de perder o respeito do pessoal do meio. Mas Noel não liga, aceita-os como
são.
Seu samba - a primeira obra da música popular brasileira a focalizar de modo
mais ou menos claro esse tipo de personagem - não deixa de ser um gesto de
simpatia.
Para com Satã ou outro mulato bamba qualquer. Nele não falta o duplo sentido de
que Noel tanto gosta: por quem vive perseguido o valente do Salgueiro, pela
polícia
ou pelas mulheres? Satã não quer saber de fita nem com uma, nem com outras. E há
o fecho, dois versos sutis sugerindo certo trejeito que Mário Reis, habilmente,
para não ser tão óbvio, evita ao cantá-los:
Ele então diz com desdém: "Quem tudo quer... nada tem."
Há mais de duas semanas a imprensa de Porto Alegre vem anunciando a chegada dos
Ases do Samba. O Cine-Teatro Imperial faz publicar nos jornais anúncios onde se
lê:
220

"Eles custam... mas vêm." Cria-se uma expectativa. A estréia, segundo o mesmo
anúncio (que aliás chama Mário Reis de "doutor", promete a presença de Lamartine
Babo
e refere-se a Noel como "Noél Rosas", com acento agudo no primeiro nome e um
esse a mais no segundo), está marcada para sexta-feira, 29 de abril. Será o
começo de
uma temporada inesquecível, plena de música, emoção e sobressalto .
Chegam a Porto Alegre poucas horas antes do espetáculo. E já que cada qual tem
de pagar hospedagem do próprio bolso, separam-se assim que pisam em terra. Mário
Reis
e Francisco Alves, de carteiras mais providas, vão para o conforto do Grande
Hotel. Pery Cunha, Nono e Noel, para quartinhos apertados de uma pensão barata
da Rua
Clara7, perto da Riachuelo. Pode não ser o Grande Hotel, mas tem lá os seus a
favores. De pontos em pontos, numa e noutra calçada, venezianas entreabertas
apenas
insinuam vultos de mulher que lá de dentro chamam os transeuntes para um
"instante". Ou seja, um amor ligeiro e econômico. São as chamadas casas alegres
de uma rua
onde se encontram também dois ou três botequins vagabundos, freqüentados por uma
população pobre, noturna e meio vadia.
É nesta viagem, certamente, que Noel descobre Nono. Ou melhor, um descobre o
outro. Já se conheciam, mas foi a bordo do Itaquera que ensaiaram a amizade que
se vai
fortalecer agora. Constatam afinidades, fazem planos para as madrugadas, depois
dos espetáculos. Já em Porto Alegre, viram companheiros inseparáveis. O que
desde
o primeiro minuto deixa visivelmente apreensivo o zeloso Francisco Alves.
Nono é um mulato bonito, olhos claros, sorriso sestroso. Nasceu em Niterói há 31
anos, toca piano de ouvido desde os nove, é profissional há quase dez e pertence
a uma família toda ela muito musical8. Conheceu de perto o grande Sinhô e está
atento a todos os estilos pianísticos em voga, do mais virtuoso Eduardo Souto ao
mais
limitado Ary Barroso. Mas não toca como nenhum deles. Nem como Mário Travassos
de Araújo, Jerônimo Cabral, Aldo Taranto ou Gaó.
221

Admira o Kalua, o Cebola, a jovem Carolina Cardoso de Menezes. São todos muito
bons, mas a maneira de Nono tocar, tão intuitiva e pessoal, é única. No apoio
rítmico,
nos breques, nos acordes arrancados das teclas como quem está prestes a
tropeçar, mas sempre "pegando" o cantor mais adiante, improvisando, criando.
Como acompanhante
Nono é insuperável. Mas o compositor não fica atrás. Pelo menos duas das mais
belas construções melódicas da música popular brasileira desta década serão
suas: Cigana
e O Jardim de Flores Raras. Coisas lindas de mulato romântico.
Francisco Alves tem razão para estar preocupado. Já desconfiava, agora não tem
mais dúvida: esta excursão vai lhe dar dores de cabeça. E Noel Rosa será o
responsável
por quase todas. São nove horas da noite, daqui a pouco os Ases do Samba vão
estrear em Porto Alegre. Sendo um espetáculo de palco e tela, como quase todos
da excursão,
o Imperial projeta as últimas cenas do filme. Chico olha de trás da cortina para
a platéia. Lotada. Está quase na hora e só agora Noel chega. Ele e Nono.
- Que negócio é este que você está vestindo - espanta-se Francisco Alves ao
vê-lo num amarrotado e encardido terno branco.
- É o meu summer.
- Mas isso não é summer. É um terno. E ainda por cima imundo!
- É summer, sim, Chico. Eu o aluguei.
- Onde? - intervém Mário Reis.
- De um garçom meu amigo.
Francisco Alves solta um palavrão. Ele, Mário, Pery e Nono de smoking, conforme
o combinado, e Noel com roupa de garçom! Mário procura aplacar-lhe a zanga.
Pensando
bem, diz ele, até que o grupo ficará interessante, quatro de preto e um de
branco. A platéia pode até pensar que é bossa. Chico que trate de se
tranqüilizar.
A estréia é um triunfo. O público vibra com os duetos de Francisco Alves e Mário
Reis, os solos de Pery Cunha e Nono, as interpretações de Noel para números
antigos
como Gago Apaixonado ou novos como Quando o Samba Acabou. Um triunfo. Mas
poucos, nesta multidão que lota o Imperial, terão gostado tanto da noitada
quanto os dois
recrutas do 7? Batalhão de Caçadores sentados na primeira fila. Um gaúcho moreno
e um catarinense claro cujos uniformes de soldado raso se destacam ao lado das
roupas
elegantes que predominam na platéia. Mas nem ligam. Vieram cedinho, desde a
Praça do Portão, onde fica o quartel. Só para ver, da primeira fila, os artistas
do Rio.
Felizes da vida, talvez lhes passe pela cabeça esperar os Ases do
Samba à saída do cinema. O mais claro se apresentaria.-
- Meu nome é Reinol Corrêa de Oliveira. No quartel, o 415.
E o moreno:
- Sou o 417. Mas cá fora me chamam de Lúpi.
Diriam que também gostam de música, pensam em se profissionalizar, o claro como
cantor, o moreno como compositor. Mas não dizem nada, ficam só na intenção.
Afinal,
quem são eles para puxar assunto com os Ases do Samba?
Sendo a noite de estréia, os cinco saem juntos do teatro para um programa em
grupo que não mais se repetirá enquanto estiverem no Sul. Andam pela cidade, vão
conhecer
o Beco do Oitavo (o comércio do amor não muito longe do Palácio do Governo),
passam pelo Jacques, dão uma espiada no Chez Nous, no Império. Chegam à Praça
Garibaldi.
Na esquina de João Alfredo - onde de dia funcionam uma frutaria e a engraxateria
do Sotero Rodrigues9 -param. São atraídos pela música que vem do interior de um
botequim. Entram. Lá dentro, boêmios porto-alegrenses se embriagam de vinho e
música. Sady Nolasco, Heitor de Barros, Nelson de Lucena, Piranema, Johnson,
Caco Velho
e os dois recrutas do 7.° Batalhão de Caçadores saboreiam a noite. Os Ases do
Samba surpreendem-se com a qualidade do que ouvem, a afinada voz do 415, as
composições
do 417. Aplaudem. Para os boêmios da terra, a glória.
- Quando forem ao Rio, me procurem - diz Francisco Alves usando um velho chavão.
Noel presta atenção nos sambas do moreno. Vira-se para os companheiros e
vaticina:
- Esse garoto é bom... Esse garoto vai longe!
Os dois recrutas vão guardar os detalhes desta noite até o último de seus dias.
Tomarão um pifão tão colossal que, perdendo a instrução na manhã seguinte, vão
passar
no xadrez do quartel a noite de sábado para domingo. Saem todos do botequim,
o415 e o 417 ciceroneando os cariocas até os cabarés da Voluntários, o Oriente,
o Royal,
onde as atrações são o cabaré-tier Palácios e o transformista Haimond. Depois,
se despedem.
Já sozinhos, meio de pernas trocadas, o moreno diz para o claro:
- Acho que o Chico ainda vai cantar minhas músicas...
E vai mesmo. O claro ficará conhecido um dia por um pseudônimo artístico:
Nuno Roland. O moreno, pelo próprio nome: Lupicínio Rodrigues.
222

Os Ases do Samba ficam uma semana no Imperial. Nos dias 6, 7 e 8 de maio atuam
no Carlos Gomes e em seguida estendem a excursão a outras cidades do Estado,
Caxias
do Sul, São Leopoldo, Cachoeira do Sul, Rio Grande, Pelotas. Em cada um desses
lugares Noel e Nono inventam novas maneiras de exasperar Francisco Alves. Em
Caxias
do Sul, somem invariavelmente durante o dia, nunca vão aos ensaios combinados.
Em São Leopoldo, uma hora antes de seguirem para o local do espetáculo, onde se
meteram
os dois? Francisco Alves, Mário Reis e Pery Cunha se dividem na busca. As
chances de encontrá-los, dessa maneira, aumentam. Mas onde terão se escondido?
Chico percorre
as pensões de mulheres, Pery os botequins, mas é Mário que vai descobri-los num
miserável cabaré. Nono está sentado a um velho piano, arrancando de teclas
carcomidas
as notas de uma valsa difícil de identificar. Noel, ao lado, brinca com o
violão. E entre os dois, já vazia, uma garrafa de anisete. Mário chama os
outros, pede-lhes
que o ajudem a levá-los daqui.
- Que aconteceu? - chega Francisco Alves já apavorado, pois falta menos de meia
hora para entrarem em cena.
- Acho que beberam demais, Chico.
-Agora é que vamos ter um desastre. Como é que eles vão entrar no palco depois
de terem tomado uma garrafa desta droga?
Mário Reis sente engulhos só de olhar para a garrafa vazia de anisete. Não há
coisa que ele mais deteste do que essa adocicada bebida de laboratório.
Vomitaria se
tomasse meio cálice, mas Noel e Nono consumiram um litro e estão aí, fortes,
tocando piano e violão.
- Não se preocupe, Chico - diz Nono com a voz suave de malandro cheio de
fraseados. - Estamos firmes.
O teatro fica perto do cabaré, pode-se ir a pé até lá. Ainda bem. Trôpegos, Noel
e Nono seguem Mário Reis e Francisco Alves pelas ruas de São Leopoldo. O líder
do
grupo sente vontade de gritar.
- Esses dois ainda acabam comigo, seu Mário!
Mas Nono está certo, ele e Noel continuam firmes. Não há anisete que os tire do
compasso. O espetáculo começa. E assim que Noel canta o eterno Gago Apaixonado,
tendo
ao fundo o piano de Nono, o público os ovaciona. Mário comenta com Chico:
- Para falar a verdade, o Noel está cada vez melhor.
Em Pelotas, Francisco Alves já conformado com o tal terno branco e se
preocupando menos com seus atrasos, surgem novas surpresas. Desta feita, o filme
termina, as
luzes se acendem,
a platéia põe-se a assobiar. E o palco continua vazio. Passam-se quase vinte
minutos da hora marcada para o início da apresentação dos Ases do Samba e Noel
não chega.
Até Nono está a postos, sóbrio e bem vestido, ao lado de Pery e Mário. Noel
Rosa? Nada. Francisco Alves não sabe o que fazer. Entram só os quatro ou cancela
o espetáculo?
Mário mais uma vez pede-lhe calma, diz que a situação não é tão séria assim,
pode-se pedir desculpas ao público: "Senhoras e senhores, lamentamos informar
que por
motivo de força..." É então que Noel chega. Os olhos do líder do grupo se
escancaram. O Noel que lhe aparece por trás da cortina do teatro, o pessoal lá
fora assobiando,
não está de smoking nem de roupa de garçom, mas vestido com um extravagante
terno de flanela cinza, listrado, as listras mais finas quase pretas, as mais
grossas
com jeito de desbotadas. Nos pés, sapatos brancos. Na cabeça, uma boina marrom,
ao que parece emprestada por Pery Cunha, que só a usa para abrigar-se do frio.
-Boina, seu Mário, é demais!- esbraveja
223

Francisco Alves. - O melhor é a gente cancelar a função.


Mário tranqüiliza o parceiro de dupla. Não se pode deixar o público frustrado,
tanta gente ansiosa para ver os Ases do Samba. Quem sabe uma nova disposição de
cadeiras
no palco não resolve o problema? Noel pode ficar meio escondido atrás do piano
de Nono, os outros três bem na frente, escondendo-o e ao seu terno listrado.
Chico
concorda. Que Deus os ajude! O espetáculo começa como Mário sugeriu, Noel lá
atrás. Mas quando lhe cabe a vez de solar e ele vem até a frente do palco, o
teatro
é sacudido por palmas e gargalhadas, todo o mundo pensando que o terno, os
sapatos, a boina fazem parte do número, um toque diferente para dar mais
colorido e alegria
ao show. Acompanhando-se ao violão, ele se põe a cantar uma paródia sua para
Suçuarana.

Faz três semana


Que eu tô comendo banana
Só porque não tenho a grana
Nem ao menos pra almoçar
O que eu estou vendo
É que se não me defendo
Vou acabar me comendo
Pra poder me alimentar...
As palmas e as gargalhadas se repetem a cada quadrinha em que Noel,
cariocamente, faz troça da própria desgraça, escarnece à sua maneira da fome,
outro de seus temas
mais usuais:
Isso é despacho,
Nunca estive tão por baixo
E se eu não me agacho
Vou morrer de inanição.
Eu me escangalho
De pular de galho em galho
Seu Ministro do Trabalho
Não me dá colocação...
Meu esqueleto
Está pior que um graveto
Eu já estou virando espeto
Meus olhos já estão no fundo.
Num bruto treino
Pra tomar café pequeno
Quero ver se me enveneno
Pra comer lá no outro mundo...
O teatro explode numa ovação quando ele, boina quase tapando os olhos, conclui
com estas quadras:
Inda outro dia
Fui até a Galeria
Só para ver se mordia
O primeiro a aparecer...
Chegou a hora,
Eu quis dizer: "É agora!"
Mas, Virgem Nossa Senhora!
Cadê dente pra morder?

Os Ases do Samba deixam Pelotas contentes com seu êxito. Mas Francisco Alves não
esquece a boina. Lamuriento, confessa:
- Sabe, seu Mário.. .Já estou começando a achar que ele faz essas coisas de
propósito. Só para esbandalhar com os meus nervos.
Em Rio Grande não é diferente, Mário e Chico no melhor hotel, os outros três na
Pensão Mangache. Noel e Nono continuam se evaporando horas antes do espetáculo.
O
desespero do líder do grupo se repete:
- Santo Deus! Desta vez eles não vêm mesmo!
Mas sempre acabam vindo.
Voltam a Porto Alegre para uma nova série de apresentações nos últimos dias de
maio. A essa altura já é quase impossível encontrar Noel fora do palco. Ele e
Nono
continuam entregues às suas expedições boêmias à Rua da Praia, aos cabarés mais
ordinários, aos botequins mais escondidos. Isso enquanto Mário e Chico vão
engravatados
ao Clube Jocotó divertir-se com a alta classe média
porto-alegrense, ou ao Caçadores, na Rua Nova, em velhos tempos o preferido de
Getúlio Vargas e ainda hoje recebendo figurões em suas mesas de jogo. Mas os
desaparecimentos
de Noel são ainda mais demorados que os de Nono. Na verdade, ele é o mais
"ocupado" de todo o grupo. Bem em frente à pensão da Rua Clara - na qual volta a
hospedar-se
- mora uma bonita morena que ele conheceu uma noite dessas, talvez de janela,
talvez de prosa de esquina. Noel, como de hábito, se apaixona. Uma paixão breve,
mas
intensa, que o agasalha nestes frios dias de outono. Já não adianta Francisco
Alves correr atrás dele, reunir os outros Ases do Samba para uma busca pela
cidade.
Não vai encontrá-lo. Nono e Pery sabem, mas não dizem, que em vez dos ensaios à
tarde o amigo prefere os carinhos do novo amor. Como se chama?
Em toda a excursão, Francisco Alves nunca esteve tão enfezado:
-Já sei o que vou fazer.
- O que foi, Chico? - pergunta Mário. -Já descobri um modo de botar o Noel na
linha. E o Nono também.
Francisco Alves, na primeira oportunidade, lembra aos dois irrequietos Ases do
Samba que a viagem vai prosseguir em Florianópolis e só acabar em Curitiba. Quer
dizer
que ainda há muito pela frente. E como eles insistem em
224

chegar atrasados, em faltar aos ensaios, em não agir como verdadeiros


profissionais, Chico sente-se obrigado a tomar uma atitude extrema: segurar-lhes
o dinheiro.
É isso mesmo! Depois de cada espetáculo, Noel e Nono só receberão o bastante
para pagarem a hospedagem e as refeições. O restante que lhes couber Francisco
Alves
guardará.
O cantor não fica nisso. Passa por todos os lugares em que presumivelmente os
dois costumam beber e pede aos gerentes, garçons e freqüentadores assíduos que
não
lhes fiem ou paguem bebida. Noel e Nono, como era inevitável, ficam mordidos.
Chico não tem esse direito, o dinheiro é deles, ganho com o seu trabalho. A vida
também
é deles, podem beber onde quiserem e com quem quiserem. Onde já se viu? Mas,
bons malandros que às vezes são, agüentam firmes, engolem a indignação, dizem
aceitar
as imposições do chefe. Para que existe o dia de amanhã? Hoje é Francisco Alves
quem dá as cartas. Não é demais lembrar que quem voa em grande altura leva
sempre
grande queda. Mesmo que seja um Francisco Alves.
Uma paixão breve, mas intensa. O suficiente, pelo menos, para encher de tristeza
o coração de Noel Rosa no dia do embarque para Florianópolis. Como o próprio
Noel
contará daqui a alguns anos numa entrevista(11), na véspera de tomar o navio
conversa com a morena, ele da sua pensão, ela na janela da casa em frente. Chove
muito.
Noel gostaria que estivessem juntos em vez de separados pelo aguaceiro que
desaba sobre a rua estreita. Alguém a chama lá dentro. A morena entra apressada,
com tempo
apenas para dizer:
- Até amanhã...
Não haverá amanhã. Noel viaja sem voltar a vê-la. No navio que o leva de Porto
Alegre a Florianópolis, completa o samba que começou a escrever no seu quarto de
pensão:
Até amanhã, se Deus quiser,
Se não chover eu volto pra te ver,
Oh, mulher!
De ti gosto mais que outra qualquer,
Não vou por gosto,
O destino é quem quer.
Adeus é pra quem. deixa a vida
É sempre na certa em que eu jogo
Três palavras vou gritar por despedida:
"Até amanhã! Até já! Até logo!"
O mundo é um samba em que eu danço,
Sem nunca sair do meu trilho,
Vou cantando o teu nome sem descanso,
Pois do meu samba tu és o estribilho.
E mais uma quadrinha que esperará seis décadas para ser conhecida pelo
público12:
Eu sei me livrar do perigo,
No golpe de azar eu não jogo.
É por isso que risonho eu te digo:
"Até amanhã! Até já! Até logo!"

Os Ases do Samba não fazem nas próximas escalas o mesmo sucesso de Porto Alegre
e outras cidades gaúchas. Vão alegar que as platéias de Santa Catarina e Paraná
não
são sensíveis ao espírito excessivamente carioca de seu repertório. Talvez. Há
apenas uma exibição no Cine Glória de Florianópolis, a 5 de junho, e outra no
Palácio
Teatro de Curitiba, na noite de segunda-feira, 13. Uma semana depois, o Rio.
225

NOTAS
1. Ao contrário do que se chegou a afirmar, Henrique Britto não inventou o
violão elétrico. No máximo, foi quem o introduziu no Brasil. Ele próprio, em
entrevista
a O Globo de 14 de junho de 1933, contaria ter sido o amigo F. Dutra o
idealizador do sistema que a Dobro Corporation acabaria patenteando. Depois de
fazer uma demonstração
da novidade, na redação do jornal, informaria que ele e Dutra seriam os
representantes da Dobro na América Latina.
2. Este disco - Não Brinca Não de um lado, Cabelo Branco, embolada de Almirante
e Waldo de Abreu, do outro - será o penúltimo gravado pelos tangaràs, o último
com
participação de Noel Rosa. No dia 20 de maio de 1933 o grupo encerrará sua
carreira registrando, na Odeon, Festas de São João, cena regional gravada nas
duas faces
do disco. O próprio autor, João de Barro, será o solista.
3- Já estudado no Capítulo 12.
4. Carro de polícia para transporte de presos. O camburão da época.
5. Satã, que só anos mais tarde passaria a usar o Madame antes do nome, já
famoso como travesti e desfilante de concursos de fantasias, refere-se à amizade
com
Noel em seu livro Memórias de Madame Satã (página 17).
6. Todas as informações contidas neste capítulo sobre a excursão ao Sul baseiam
se em depoimentos de Mário Reis aos autores, em entrevistas realizadas a 1 e 17
de abril de 1981, e de Demósthenes Gonzalez, presidente do Clube dos
Compositores de Porto Alegre, em carta de 14 de maio de 1983.
7. Atual João Manuel.
8. Romualdo Peixoto, o Nono, que morreria em sua Niterói natal a 13 de novembro
de 1954, era tio do cantor Cyro Monteiro. E também do pianista Moacyr Peixoto,
do
pistonista Arakem Peixoto e dos cantores Andiara e Cauby Peixoto.
9. Sotero seria, anos depois, o primeiro zelador do estádio do Sport Clube
Internacional de Porto Alegre.
10. Toada sertaneja de Heckel Tavares e Luís Peixoto.
11. Carioca, 18 de julho de 1936 (página 41).
12. Gravada em 1983 como uma das vinhetas do disco Noel Rosa Inédito e
Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).
226

ONDE ESTÃO OS MADRIGAIS?

Capítulo 23
19 DE JAN

Dois meses é uma longa ausência, uma considerável pausa nas atividades de
qualquer profissional do rádio e da música popular. Por isso, como se tendo
pressa de recuperar
o tempo em que estiveram fora, os cinco Ases do Samba, juntos ou separados,
tratam de se mobilizar. Nono e Pery Cunha voltam às gravações. Mário Reis - cada
vez
mais apaixonado por Mulato Bamba - registra-o na Odeon, destinando o outro lado
do disco a um novo samba de Noel e
Ismael Silva.
Não tenho amor,
nem posso amar
Pra não quebrar uma jura que fiz
E pra não ter
em quem pensar
Eu vivo só e sou muito feliz.
Aquela que eu mais amava
Só pensava em me trair
Quando eu menos esperava
Partiu sem se despedir.
Essa mesma criatura
Quis voltar mas eu não quis
E hoje cumprindo a jura
Vivo só e sou feliz.
Um amor pra ser traído
Só depende da vontade
Mas existe amor fingido
Que nos traz felicidade.
A mulher vive mudando
De idéia e de ação
E o homem vai penando
Sem mudar de opinião.

Este samba, Uma Jura Que Fiz, retoma sob as bênçãos de Francisco Alves a
sociedade que a viagem obrigou-os a interromper. É um samba perfeito, primeira e
segunda
partes impecavelmente encaixadas. É um dos mais representativos da parceria
Ismael Noel. Na música e na letra. É importante notar como se completam, sem
qualquer
conflito, as diferentes visões que Ismael e Noel têm do amor. O que para um é
recusa, não querer amar, não gostar ("Esse negócio de amor não convém", dizia
Ismael
na primeira composição que Noel lhe completou), no outro é desilusão,
sofrimento, traição. Ambos - Ismael na primeira, Noel na segunda - acreditam em
viver só e
ser feliz, mas chegam a tal conclusão por caminhos diversos, Ismael por não
querer problemas, Noel por já ter superado os seus. Essas distintas visões do
amor, um
se recusando a amar, o outro sofrendo por não se ter recusado, vai se repetir em
outros sambas dos dois. Mas com tal habilidade de Noel na condução da segunda
parte
(a fórmula praticamente não varia, primeira de Ismael, segunda de Noel), que só
com algum esforço se percebe que os poetas são dois e não um.
227

Mais três sambas Noel e Ismael fazem pela mesma época, isto é, logo depois da
viagem ao Sul. Um deles é Ando Cismado.

Mulher, eu ando cismado


Que me enganei com você
Se algum dia não ficar mais a seu lado
Não precisa perguntar por quê.
A mentira é fatal
Creio que não é por mal
Que a mulher nos faz descrer
Mas se é realidade
Sua grande falsidade
Eu hei de ver você sofrer.
Eu cismado espero agora
Ver você a qualquer hora
Dando a outro o coração
Quando chegar esse dia
Deixo sua companhia
Sem explicar por que razão.

Outro é A Razão Dá-se A Quem Tem, deliciosa composição em forma de diálogo, na


qual Noel glosa o estribilho de Ismael entremeando as segundas partes de versos
usados
na primeira. Obra de mestre, o sentido sempre inalterado. Mário Reis e Francisco
Alves são mais uma vez os intérpretes:
Se meu amor me deixar
Eu não posso me queixar
Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém
A razão dá-se a quem tem.
Sei que não posso suportar
(Se meu amor me deixar)
Se de saudade eu chorar
(Eu não posso me queixar)
Abandonado sem vintém
(Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém)
Quem muito riu chora também
(A razão dá-se a quem tem).
Eu vou chorar só em lembrar
(Se meu amor me deixar)
Dei sempre golpe de azar
(Eu não posso me queixar)
Pra parecer que vivo bem
(Vou sofrendo sem dizer nada a ninguém)
A esconder que amo alguém
(A razão dá-se a quem tem).

O terceiro, É Peso, não sairá em seus nomes, mas no de Antônio dos Santos,
jornaleiro do Estácio que os acoberta talvez para evitar a participação de
Chico(1). A
letra da primeira parte, lida simplesmente, pouco vale. Mas, vestida com melodia
de Ismael, se transforma. A segunda é legítimo Noel. Na estrofe final, são
primorosos
os duplos sentidos, os jogos de palavras, "peso" podendo ser azar ou carga, e
"pena", castigo ou coisa leve.

É peso, estou pesado


O meu viver é uma sentença Que eu fui condenado
a cumprir Esta pena
o remorso condena
Eu serei sentenciado.
Se eu soubesse que a saudade
Não se esquece nem querendo
Não deixava essa amizade
Para não ficar sofrendo.
Hoje eu quero e não me queres
E o remorso que me invade
É saber que tu preferes
Morrer longe de saudade.
E quando a lua descamba
Com o pandeiro a batucar
Saio da roda do samba
Pra ninguém me ver chorar.
Ao azar hoje me entrego
Quem tem peso tem azar
Mas o peso que eu carrego É a pena de te amar.

Ismael e Noel produzindo muito, o primeiro para não deixar sem material novo o
sócio Francisco Alves, o segundo para amortizar a dívida do Pavão. Tudo como
antes.
Especialmente para Francisco Alves. Profissional é profissional, de modo que já
esqueceu os problemas que Noel lhe causou durante a viagem. Acertadas as contas,
pago o que era devido a Noel e a Nono, o cantor acha que o que passou, passou. É
hora de seguir em frente. Por isso, procura o parceiro e diz que quer gravar Até
Amanhã. A reação de Noel é quase infantil, birrenta como a de um garoto zangado.
- Desculpe, mas eu prefiro dar pro João Petra.
Francisco Alves não se queima. Deixa o garoto Noel se zangar. Como não se
queima, tampouco, ao saber que Nono e Noel fizeram um samba mexendo com ele,
desforrando-se do que aconteceu em Porto Alegre, provocando-o musicalmente.
Tanto assim que, informado de que Sílvio Caldas vai gravar o tal samba, Vitória,
na tarde
de 13 de julho, aparece no estúdio da Victor e se oferece para participar da
gravação. E de graça! Sílvio fica honrado e surpreso. O que terá dado no Chico?
Contratado
da Odeon e não cobrando nada para reforçar um disco da Victor? O samba é
gravado, Francisco Alves fazendo uma nítida, afinada e harmoniosa segunda voz
para Sílvio:
Antes da vitória
Não se deve cantar glória
228

Você criou fama


Deitou-se na cama
E eu que não estou dormindo
Vou subindo, vou subindo...
Enquanto você vai decaindo.
Quero a minha independência
E com jeito e paciência
Me preparo pro futuro
A tudo estou resolvido
E você tome sentido
Que entre nós o páreo é duro.
Agüentei muita indireta
Mas andei na linha reta
Não maldigo a minha sorte
Vou agindo com cadência
Sei que a minha independência
Há de ser a sua morte.
(Vitória!)
Sua voz se alguém percebe
Bem humilde lhe recebe
Sua entrada ninguém veda
Você goza de ventura
Mas quem voa em grande altura
Leva sempre grande queda.
Sempre fiz papel bonito
Não tenho medo de grito
O que falo é bem pensado
Não receio escaramuça
Que aceite a carapuça
Quem se sente melindrado.
(Vitória!)

Noel Rosa não é, nunca será um romântico. Nem na poesia, nem na vida. Não será
jamais um poeta transbordante de sentimentos, lírico até a raiz dos cabelos,
derramado
como os que ele mesmo gostava de cantar com o amigo Alegria à época de Queixumes
("Por que te esquivas assim, coração...?"), nem será um amante dado a enlevos de
um Romeu ("Ah! Querida Julieta! Por que ainda és tão bela?"). Uma coisa está
refletida na outra. Não há lugar nos relacionamentos amorosos de Noel para
flores e
bombons, bilhetinhos apaixonados e gestos galantes, carinhos e nobrezas. Da
mesma forma, sua poesia, suas letras de música raramente terão o acento lírico
dos menestréis
das noites de Vila Isabel.
Das 250 para 300 músicas que comporá, não chegarão a meia dúzia as que falam do
amor de maneira direta, a mulher como objeto de seus sentimentos, de suas juras,
de suas promessas, da alegria de gostar dela. Quantas vezes o "eu te amo" fará
parte de suas letras? Nenhuma. Quando muito dirá como em Até Amanhã:
De ti gosto mais que outra qualquer
Menos de meia dúzia. Poderá fazer-se
eventualmente gentil e generoso ao cantar sua cidade, seu bairro, as pastorinhas
que desfilam pelas ruas nas proximidades do Natal. À mulher amada, porém,
destinará
apenas as queixas. Suas canções de amor são anti-românticas, principalmente,
porque a visão de vida de Noel, em relação ao amor, nada tem de romântica. Não
acredita
que possa ser amado. Talvez nem acredite que alguém possa amar alguém, o amor
sendo sustentado pela mentira, a artimanha, a falsidade, a simulação. É neste
1932
que ele compõe este hino à mentira, música lindíssima para versos tão sofridos:
Mentir, mentir, somente pra esconder A mágoa que ninguém deve saber
Mentir, mentir, em vez de demonstrar A nossa dor num gesto ou num olhar
Saber mentir é prova de nobreza
Pra não ferir alguém com a franqueza Mentira não é crime É bem sublime o que
se diz Mentindo pra fazer alguém feliz.
É com mentira que a gente Se sente mais contente Por não pensar na verdade O
próprio mundo nos mente E ensina a mentir
Chorando ou rindo sem ter vontade. E se não fosse a mentira Ninguém mais viveria
Por não poder ser feliz E os homens contra as mulheres Na terra, então, viveriam
em guerra Pois no campo do amor A mulher que não mente não tem valor.
Um remate definidor: no campo do amor, a mulher que não mente não tem valor.
Para ele, contudo, todas as mulheres mentem. E é quase sempre a partir da
mentira, da
arte de enganar, do dom de saber iludir, que ele vai criar o universo de suas
canções de amor. Tudo, evidentemente, intercalado de humor, ironia, astúcia.
Noel Rosa não é nem será um romântico. Mas nunca isso ficou tão manifesto, tão
claramente explícito, tão confessado por ele mesmo, como neste segundo semestre
de
1932. Quem será sua musa então?
Clara e Fina. Não são apenas as duas que dividem os carinhos de Noel nestes
dias. Entre uma e outra caberá lugar para uma terceira, nova musa: Julinha.
Clara continua
sendo a namoradinha dos tempos de colégio, a única com quem talvez se casasse.
Isto é, se acreditasse em casamento, em ser feliz preso a uma mulher, uma
família,
uma vida rotineira e sossegada. Fina foi, sem dúvida, a primeira paixão. De
certo
229

modo, Noel jamais deixará de gostar dela, de seu jeito de criança alegre,
atirada, travessa, parecida com ele em sua sede de vida, mas uma vida sem freios
nem grades,
de coração e braços abertos para o mundo. Julinha é diferente de Clara e de
Fina,
pode-se dizer, em quase tudo.
Chama-se Júlia Bernardes, diz pertencer a importante família mineira, a mesma
que deu ao Brasil um Presidente da República, e exige ser tratada à altura de
seu nome.
Mas Noel a conheceu num dos muitos cabarés da Lapa onde tem trabalhado, o Roxy,
o Flórida, o Rex, o Tabu. Tem entre 30 e 35 anos, a maquiagem carregada tornando
mais difícil precisar-lhe a idade. É alta, vistosa. Muda de cabarés e namorados
com a mesma freqüência com que muda de cabelo, loura hoje, ruiva amanhã, cor
indefinida
depois. Quando sóbria, ostenta maneiras que não chegariam a envergonhar os
Bernardes de Viçosa. Mas raramente está sóbria. E quando bebe, tudo é possível.
Julinha
é muito diferente de Clara e Fina.
Sempre propenso a grandes paixões, Noel se vê empurrado para os braços de
Julinha desde o primeiro momento. Testemunha deste começo de romance é Ignácio
Jorge, o
Pará, motorista de táxi que costumava levar Noel para todo canto antes da compra
do Pavão. Como Noel quase não fala de Julinha (procura vê-la longe dos olhos dos
amigos, sempre temendo suas cenas, algumas delas violentas), às informações de
Pará se deverá o pouco que se vai saber deste agitado caso de amor. Mais velha e
experiente
que Noel, levando uma vida a que Clara e Fina jamais se atreveriam, Julinha não
será propriamente a inspiradora do
anti-romantismo de Noel neste 1932. Mas, para quem vivia fazendo versos sobre a
mentira, a falsidade das mulheres, o amor como um jogo de regras baixas,
desprovido
de qualquer lirismo, ela parece a musa ideal. Prática que confirma a teoria,
modelo perfeito para os sambas que Noel vai fazer por agora.
Julinha mora na Penha, numa modesta casa de morro pouca coisa melhor do que um
daqueles barracões da Mangueira que Noel conhece tão bem. É esta casa que abriga
o
amor dos dois nos primeiros tempos. Um amor complicado, entremeado de brigas e
bebedeiras, ciúmes e escândalos. É impossível saber ao certo quantas e quais
músicas
Noel comporá inspirado em Julinha(2). Pelo menos neste caso, se é
autobiográfico, se transforma em samba episódios reais, nunca o faz de forma
clara, direta, com
todas as letras. Mas decerto nao é para Julinha -ao contrário do que se dirá -
esta beleza de queixa de amor que é Pra Esquecer:
Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecendo a solidão
E a miséria daquele barracão.
Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu
Com o primeiro que apareceu
Não querendo ser pobre como eu.
E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachaça
Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça
Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que eu filei
De um ex-amigo que outrora sustentei.

É verdade que a Penha, muito longe do trabalho de Julinha e também dos lugares
por onde Noel mais anda, logo será trocada pela Lapa, o humilde barracão dando
lugar
a um quarto na Rua do Riachuelo que o próprio Noel ajuda Julinha a alugar. Mas a
letra do samba não reflete exatamente a história do romance entre os dois. Além
do mais, dirá Noel numa entrevista a propósito da origem de Pra Esquecer:
"A vítima não era eu. Era um amigo que gostava muito de uma mulher e que por ela
abandonou tudo. Uma noite eu o vi dançando num cabaré, com ela. Talvez fosse a
última
noite. Ele havia reunido o que lhe restava da fortuna e tinha ido vê-la. A cena
me impressionou fortemente e dias depois o samba nasceu. E nasceu triste como a
história
que eu via desenrolar-se perante meus olhos."
O que importa é ser este samba um doloroso e impressionante retrato da vida
boêmia -o amor acabando com o último tostão. Cruel, autoflagelador, mas lindo.
Julinha também é interesseira. Gosta de dinheiro, faz parte da sua filosofia. E
exigência do métier esta ambição de querer mais, sempre mais. Em razão disso,
multiplicam-se
os namorados. Noel não pode sustentá-la com o que ganha. Provavelmente, nem
pensa nisso. Mas experimenta - com alguma amargura e muita ironia - a ganância,
a cobiça
com que Julinha anima sua convivência com ele. Ela talvez não seja, mas bem
poderia ser a musa de um fox-trot que'Noel compõe precisamente por esta época,
contendo
uma de suas mais perfeitas letras, versos em que deixa resumido todo o seu anti-
romantismo,
230

toda a sua certeza de que os tempos das paixões como a de Romeu ejulieta ficaram
para trás, que toda a poesia do amor, hoje, é outra, coronéis em lugar de
romeus,
brilhantes em vez de canções, o canto dos menestréis da noite mal alcançando os
ouvidos distantes de uma amada gananciosa e infiel. O fox-trot chama-se Julieta.
Uma Julieta como Julinha.

Julieta
Não és mais um anjo de bondade
Como outrora sonhava O teu Romeu.
Julieta
Tens a volúpia da infidelidade
E quem te paga as dívidas sou eu...
Julieta
Tu não ouves meu grito de esperança
Que afinal de tão fraco não alcança
As alturas do teu arranha-céu.
Tu decretaste a morte aos madrigais
E constróis um castelo de ideais
No formato elegante de um chapéu.
Julieta
Nem falar em Romeu tu hoje queres
Borboleta sem asas, tu preferes
Que te façam carícias de papel.
Nos teus anseios loucos, delirantes
Em lugar de canções queres brilhantes
Em lugar de Romeu, um coronel.

Noel Rosa e Ismael Silva estreitam sua colaboração, produzem cada vez mais
juntos, formam dupla para gravar. Gente Boa e Batutas do Estácio são algumas
designações
com que os dois, quase sempre reforçados por Francisco Alves, atuam em discos e
em recitais. Gravam coisas menores do próprio Noel, como Quem Não Dança, samba
em
forma de partido-alto cujos improvisos não vão além de dois versos, o segundo
tendo de rimar com "criança".
Quem não dança, quem não dança Pega na criança
Quem não dança, quem não dança Pega na criança.
Você é um contrapeso Que não entra na balança.
Veja se carrega pedras Enquanto você descansa.
Quando peço mais amor Quero menos confiança.
Não pretendo andar no luxo Toilette é lá na França.
Eu sou muito liberal Mas não uso aliança.
Por qualquer mil e quinhentos Você faz uma lambança.
O juiz apita sempre
Mas nem sempre a linha avança.
Ou brincadeiras como Seu Jacinto, marcha para o carnaval de 1933-
O que eu sinto e não consinto É seu cinto se afrouxar Seu Jacinto aperta o cinto
Bota as calças no lugar.
O seu Jacinto tinha que comprar feijão
Mas não tinha um só tostão
E o caixeiro estava duro
Ele não gosta de pagar feijão à vista
Porque sendo futurista
Paga sempre pro futuro.
O seu Jacinto que é cheio de chiquê
Eu não sei dizer por que
Dorme de cartola e fraque
Anda dizendo que o seu sonho dourado
É morrer esmigalhado
Por um carro Cadillac.
O seu Jacinto já arranca a sobrancelha
E só bebe mel de abelha
Para ser um doce amor
A tia dele que até hoje é melindrosa
Pra ser leve e vaporosa
Toma banho de vapor.
Quando tem baile lá na casa da Thereza
Ela faz pano de mesa
Com o lençol que cobre a cama
Bota nos copos água usada na banheira
Depois diz à turma inteira
Que é cerveja lá da Brahma.

Seu Jacinto, no caso, é o brasileiro destes tempos, que deve manter a pose
apesar da fome ("O que eu sinto e não consinto é seu cinto se afrouxar").
Apertar o cinto
é a palavra de ordem, economizar, não se gastar o pouco que se tem. Uma marcha
que - por outros motivos que não o retrato que traça do Brasil de agora - vai
provocar
um protesto pela imprensa assinado por Jota Tojeiro, pianista e compositor que
em carta aberta refere-se à campanha liderada por Renato Murce pela moralização
e
restauração do bom-gosto nas letras da música popular brasileira. Tojeiro diz:
"... lamento ter Renato Murce apresentado em público o nome do Sr. Noel Rosa e
outros como poetas-moralistas nas músicas de sabor popular; talvez o senhor
Renato
Murce
231

não conheça a marcha Seu Jacinto de autoria do poeta-moralista, cuja letra é


bem... interessante.
O final da letra desta marcha é bem desagradável para quem tem família e tem a
infelicidade de ter um rádio em casa ligado para qualquer das nossas
estações."(4)
Quem não vive de aparências é a baiana a quem Noel e Ismael chamam de Dona do
Lugar, uma crônica da roda de samba e a primeira homenagem de Noel à Bahia.
Chegou a dona do lugar
Chegou...
Pelo modo de pisar
Se vê que é iaia de loiô.
Lá vem ela, lá vem ela Com o loiô do seu lado Arrastando a chinela Dizendo samba
raiado.
Quando ela pega a sambar Com o seu sapateado Todos ficam a gritar Dando viva ao
Cais Dourado.
E essa bela Iaia
Não acredita em muamba
Ela tem um patuá
Que é todo o nosso samba.
Vou pedir, vou implorar Ao meu Senhor do Bonfim Pra fazer essa iaíá Se apaixonar
por mim.
De linha melódica impecável, em ambas as partes, Isso Não Se Fazé um dos belos
sambas da dupla Ismael-Noel:
Assim, poderei te perdoar Se é que mudaste de pensar Se tens prazer em me ver
chorar Por favor me deixa em paz Isso não se faz.
Devias pagar
Por fazer chorar
A quem te tratava tão bem
Mas eu aprendi
O que fiz por ti
Não hei de fazer por mais ninguém.
Eu só quero ver
O teu proceder
Se a tua promessa é fatal
Eu tenho razão
Não digas que não
Porque tu já me fizeste mal.

Os dois sambas serão gravados por Castro Barbosa & Jonioca, o primeiro, ejoão
Petra de Barros, o segundo, mas em nenhum deles o nome de Noel constará do selo
do
disco. Ao contrário
de Assim, Sim, marcha, uma das poucas de toda obra de Ismael Silva. Gravada por
Carmem Miranda enquanto Noel e os Ases do Samba estavam no Sul, possui refrão
suave
e elegante, como quase tudo que Ismael faz, e aquela imprecisão de que ele tanto
gosta. Interessante, também, a estrutura dos versos de Noel: um alexandrino e
duas
redondilhas maiores.
Assim, sim
Mas assim também não Já não gostas mais de mim Mas eu não te dei razão.
Infelizmente este mundo é sempre assim
Quem ri muito no começo
Chora quando chega o fim.
Em mar de rosas começou nossa amizade
E depois tu me entregaste
A tristeza e a saudade.
E muita gente que a tristeza desconhece
Chora às vezes de alegria
Quando ri de quem padece.
Nas tuas juras eu sorrindo acreditei
Hoje eu choro já descrente
Vendo quanto me enganei.

Carmem Miranda já é um cartaz da música popular. Não tem grande voz, sustenta
com dificuldades as notas mais longas, por vezes peca na afinação. Mas é uma
estrela.
Seus discos vendem muito, mas é nas apresentações em palco que ela realmente
brilha. Ali conquista seu público, arrebata corações, embriaga fãs, domina
platéias.
A vendagem dos discos torna-se conseqüência do que exibe em carne e osso. Carne
e osso é bem o caso. Porque a graça de Carmem Miranda - a imprensa não se cansa
de
se referir a esta graça, evitando termos "mais ousados", ainda que menos
precisos -faz-se de uma irresistível sensualidade. Aracy Cortes pode mostrar
pernas e metade
do busto no palco, os homens da platéia também chegarão ao delírio. Outras
grandes mulheres do teatro de revistas, pelo sumário da roupa ou pelas anedotas
picantes,
produzirão efeito idêntico. Há sensualidade igualmente nessas estrelas. Mas o
que acontece com Carmem Miranda é diferente: ela consegue tudo isso e muito mais
coberta
da cabeça aos pés, apenas com a tal "graça", os requebros, os gestos de mão, o
olhar malicioso. O público enxerga por trás de suas roupas, vê-se tocado pelo
seu
magnetismo. Quem disse que não se trata de uma grande cantora? Para os homens
que estão no teatro é a maior cantora do mundo. Para os músicos que a
acompanham, talvez
mais.- conta-se que os componentes da orquestra de Pixinguinha costumam
desafinar toda vez
232

que Carmem, gravando na Victor, requebra diante do microfone.


Mas há quem não goste muito de Carmem Miranda. Não a mulher, mas a intérprete.
Orestes Barbosa é um. Noel Rosa, outro. As restrições que Orestes faz ao modo de
Carmem
cantar não deixam de se prender àquele fundo antilusitanista que o poeta coloca
em tudo. Porque ele nunca perde oportunidade de lembrar às pessoas que Carmem
nasceu
em Portugal, sendo apenas "mais um exemplo da força trituradora do Rio que
refina, como numa usina, os elementos aportados ao nosso torrão"5. Em Noel, não
há indícios
de nacionalismo em sua falta de entusiasmo por Carmem Miranda, a intérprete. Não
é segredo para ninguém sua má vontade para com brasileiros que cantem numa
língua
que não a sua - e quem pode esquecer que Carmem começou sua carreira
interpretando tangos, sendo até hoje acusada de "argentinite"?(6) Mas realmente
não é este o
motivo. A propósito, ainda outro dia, encontrando-se no corredor de uma emissora
de rádio com o cantor de música americana Hamilton Burns, Noel perguntou:
- Teu inglês é mesmo bom?
- É perfeito.
- Então não deixa o diretor da estação descobrir.
- Ora essa! Por quê?
- No dia em que um desses diretores de broadcasting perceber que tem um cantor
de fox que entende o que canta em inglês, joga ele na rua.
As restrições de Noel à criadora de Taí-e que vão ficar sintetizadas num
comentário tão ou mais irônico do que o feito a Hamilton Burns: "Isto é samba ou
aquela
outra coisa que Carmem Miranda canta?"7 - também têm pouco a ver com o fato de
os dois freqüentarem mundos diferentes, Noel os morros, os botequins baratos, as
rodas
de malandro, ao passo que Carmem corteja a sociedade e é por ela cortejada, tem
amigos entre gente da alta, recebe convites para festinhas grã-finas, os Guinles
a admiram, canta nos perfumados salões do Fluminense. Mundos, sem dúvida, muito
diferentes. Mas se fosse este o motivo das reservas de Noel, na certa o refinado
Mário Reis não seria um de seus intérpretes preferidos e mais constantes.
A questão envolve apenas aspectos musicais. E só. Sabemos que, ao escolher o
caminho da música popular, Noel entregou se de corpo e alma ao samba. Não o
velho samba,
qualquer samba, ou o samba que eventualmente Carmem Miranda também canta, mas
aquele que se traja rigorosamente dentro do figurino do Estácio. Assim como o
que faz
Ismael Silva, ou Cartola. Carmem Miranda jamais se sentirá inteiramente
233

à vontade nesse campo. Tem clara predileção pelas marchas(8). E aos sambas que
canta imprime sempre a sua marca, brejeira, interessante, pessoal, notável
principalmente
pelo fraseado, pela habilidade com que pronuncia nítida e rapidamente versos
longos nos quais uma cantora menos ágil tropeçaria. Mas uma marca que nem de
longe se
afina com a alma dos sambas do Estado. Carmem será melhor intérprete de sambas
ligeiros, quase choros cantados, à maneira de Gadé, Vicente Paiva, Heitor
Catumby,
do que de composições de Alcebíades Barcellos. Cantará melhor Ary Barroso e
Joubert de Carvalho do que Armando Marcai. Ismael Silva? Tirando Assim, Sim, por
sinal
uma marcha, nada mais gravará dele. Cartola? Noel Rosa estava no Sul com os Ases
do Samba quando Carmem gravou Tenho Um Novo Amor, dele com Noel Torna-se
impossível
reconhecer por trás da interpretação da cantora, sem calor, aos arranques,
vestígios do mesmo compositor que há dois anos, pela voz de Francisco Alves,
começou a
sair do anonimato:
Que infeliz sorte!
Que infeliz sorte!
Que vale que o meu coração
Pra resistir esta paixão é forte.
Tão pouco identificada está Carmem com o universo de Cartola e Noel que (talvez
por estar este ausente do Rio) decidiu fazer modificações na letra de Tenho Um
Novo
Amorpara torná-lo mais digno de uma amiga dos Guinles, de uma freqüentadora do
Fluminense. Assim era o coro original, possivelmente só de Cartola:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver sujo nem rasgado
Gosta que eu ande assim bem trajado.
Eis como ficou o coro após a alteração, seguindo-se as duas segundas partes de
Noel:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver triste nem zangada
Gosta que eu ande assim engraçada.
Eu não quero dar a perceber
Que gosto demais do meu amor
Se ele compreender
Vai se convencer
De que tem para mim um enorme valor.
Se acaso algum dia
se apagar Do seu pensamento
o meu amor Para não chorar
E não mais penar
Mando embora a saudade pra livrar-me da dor.

As relações profissionais mais estreitas e duradouras que Noel Rosa e Carmem


Miranda manterão vão se limitar a duas semanas, apenas duas semanas, no palco do
Cine-Teatro
Broad-way, na Cinelândia, de 8 a 21 de agosto de 1932. Com o objetivo de atrair
mais público para os filmes que exibe, a empresa Ponce & Irmão vem realizando
desde
o ano passado espetáculos variados em seus palcos. Pelo preço de um ingresso,
mais um pouquinho, assiste-se a um desfile de artistas da música popular, do
rádio
e do teatro, e logo em seguida ao filme. A idéia dessas funções de palco-e-tela
é de um dos donos da empresa, Generoso Ponce. Recordemos que o próprio Noel
participou
de um desses programas, em agosto de 1931, no Cine Eldorado, com o Bando de
Tangarás e seus adendos. Agora, recebe convite para outro.
O novo espetáculo denomina-se Broad-way Cocktail, na verdade o segundo de uma
série que se manterá até o ano que vem. O primeiro dos Broadway Cocktail
realizou-se
na semana de 25 a 31 de julho com a apresentação de Sílvio Caldas, Lamartine
Babo, Laura Suarez, Elisinha Coelho e Carolina Cardoso de Menezes. Foi um êxito.
Mas
este segundo vai muito mais além. Também, pudera: juntos, no mesmo palco,
durante quase duas horas de música popular, ninguém menos do que Francisco
Alves, Carmem
Miranda, Almirante e Noel Rosa, acompanhados pelos violões e bandolins de Josué
de Barros, Jacy Pereira, o Gorgulho, Carlos Lentine e João Martins. Com um
elenco
destes, quem se importa com o filme que vem depois, Raul Roulien e Lia Tora em
Eram Treze?
São dois espetáculos diários, um às 5 da tarde e outro às 9 da noite. As sessões
de cinema começam às 7 e 11 horas. Pelos programas que o cinema distribui (e
pelos
anúncios e notas que os jornais publicam), é possível concluir alguns pontos a
respeito da participação de Noel Rosa neste segundo Broadway Cocktail. Em
primeiro
lugar, é ele apresentado como o clown do elenco, "Noel Rosa e seus sambas
humorísticos", enquanto Francisco Alves é o Rei do Samba, Carmem Miranda, a
cantora que
tem it na voz e no gesto, e Almirante, o Príncipe da Embolada. A publicidade,
portanto, parece fazer-se muito mais em cima do humor de Noel, dos sorrisos que
será
capaz de arrancar da platéia com sambas não exatamente humorísticos, mas
originais e intrigantes como Quem Dá Mais?, Coração e São Coisas Nossas, os três
que ele
próprio interpreta,
do que pelo fato de ser autor ou co-autor
235

de nada menos do que oito das treze músicas do programa. Uma delas - espécie de
ilha neste mar de ironias e anti-romantismo que são suas obras de agora - é um
dos
sambas mais bonitos que jamais fará. Pela linha melódica inspiradíssima e também
pela letra, onde estão presentes jogos de palavras e contraposições tipicamente
suas: "A mulher mente brincando e às vezes brinca mentindo..." ou "o amor é um
pecado, mas quem não ama é pecador..." Trata-se, provavelmente, do primeiro
samba-canção
de Noel, gênero que soma o lirismo das canções cultivadas em serenatas à
cadência brejeira dos sambas, no qual seu parceiro Henrique Vogeler fez-se
pioneiro há quatro
anos. Nuvem Que Passou, composto antes de Mentir e Pra Esquecer, também sambas-
canções, é lançado por Francisco Alves neste segundo Broadway Cocktail:
A nossa imensa felicidade
Foi uma nuvem que já passou
O teu amor que traz saudade
Foi estrela que brilhou
E pra sempre se apagou.
A mulher mente brincando
E às vezes brinca mentindo
Quando ri está chorando
E quando chora está sorrindo.
Quero lembrar o passado
Por um prazer, uma dor
O amor é um pecado
Mas quem não ama é pecador.
Meu ideal foi desfeito
Não quero mais amizade
Para não trazer no peito
O atroz veneno da saudade.
No céu do amor a saudade
Brilhando sempre ficou
E a nossa felicidade
Foi uma nuvem que passou.
Cabe também a Francisco Alves lançar aqui julieta, embora não seja ele, mas
Castro Barbosa, quem o levará ao disco. Enfim, sem que muitos se dêem conta, não
é pelo
humor, mas por sua efetiva presença como compositor que Noel Rosa se destaca no
segundo Broadway Cocktail. Alguns jornais, como A Noite, verão nele não mais que
um humorista, ainda que o batizando de "Bernard Shaw do Samba":
"O Almirante conquistou numerosas palmas com as suas emboladas tão do agrado do
público nosso. Por último, Noel Rosa disse muita coisa de espírito, fazendo rir
durante
quase todo o tempo em que esteve em cena."(9)
Outros, como o Diário Carioca, serão mais efusivos:
"A Almirante e Noel Rosa cabem, sem dúvida alguma, as honras do cocktail.
O primeiro, com suas emboladas características, entusiasma o público, que custa
a deixá-lo sair de cena. Quanto a Noel Rosa, nós já prevíamos o sucesso que
obteria.
Canta três sambas de sua autoria, cada qual melhor."(10)
Portanto, as estrelas são Francisco Alves e Carmem Miranda, mas o brilho maior
fica mesmo com Noel Rosa. Sucesso tão grande que o segundo Broadway Cocktail,
organizado
para ficar em cartaz apenas uma semana, estende-se por mais uma, servindo agora
de aperitivo para novo filme, Barbara Stanwick e Ricardo Cortez em A Vida É Uma
Dança
(Ten Cents A Dance).
Será sempre assim, nunca vendo as coisas por um prisma colorido. Lirismo não é
com ele. Daqui a três anos, A Voz do Rádio vai empreender uma de suas enquetes
em
torno de trivialidades do tipo "o amor é eterno?" Partindo de um poema de
Adelmar Tavares, que diz:
Uma barquinha branca...
Uma cabana...
E em volta da cabana - coqueirais...
O mar em frente...
A vida soberana De ser pobre e pescador
Viver feliz com o teu amor
E nada mais...
Ou no cimo de um monte uma choupana,
- E em volta da choupana laranjais...
- Soprar a flauta quérula, de cana,
Ter um rebanho e ser pastor...
Viver feliz com teu amor E - nada mais...11
... o semanário V2i perguntar à gente do meio artístico se um amor e uma
choupana são o bastante(12). Diz Carmem Miranda:
"Meu nego, amor com cabana é do século das saias rodadas."
Aurora Miranda:
"Você tem cada uma! Onde já viu você que nesse tempo dos arranha-céus possa a
gente pensar em cabanas."
Antônio Nássara:
"Tem os seus conformes e os seus breques. Quem é que vai para a cabana?"
Noel prefere responder com Alô Beleza, música e letra de sua autoria, que jamais
serão gravadas:

Alô beleza
Andas por aqui?
Cada vez mais cada vez...
Cada vez com mais feitiço
Por falar nisso...
Tens alguns dinheiro aí?
236

Hoje é moda, meu benzinho


(Eu te digo com franqueza)
Dar amor, fazer carinho
E pagar sempre a despesa.
"Teu amor e uma choupana
São palavras sem valor
Teu amor e muita grana
Isto sim que é amor.
Entre nós, minha querida,
Já existe intimidade
Dê algum por despedida
Pra matar minha saudade.

Puro anti-romantismo.
Está mesmo dividido por três. Com Clara ele é um namorado mais ou menos
esporádico, conversando com ela no portão do chalé numa tardinha de
segunda-feira para desaparecer na terça. Inventa desculpas, diz andar ocupado,
some por semanas, meses, mas volta sempre, com novas desculpas. Que ela aceita.
Dona
Martha não a desanima.-
- É assim mesmo. Um dia ele toma jeito.
Não desiste do sonho de ver o filho casado com Clara, ainda dando aulas aos
alunos de alfabetização no Externato Santa Rita de Cássia. É tão acalentado o
sonho de
Martha que ela chega mesmo a aproveitar as horinhas de folga para preparar o
enxoval de Clarinha. Uma fronha hoje, um pano de mesa amanhã, peças simples,
baratas,
mas sempre úteis. Para que deixar tudo para a última hora?
Às vezes, Clara pensa em desistir, em tratar da própria vida. Enquanto isso,
Noel continua sumindo. E fugindo de Fina também. Esta não é tão calma, tão
aceitativa.
Noel pode fazer-lhe das suas, mas jamais ficará sem resposta. Um domingo,
combinam ir a uma festa na casa de uma família amiga. Noel tem um violão
guardado na Rua
Moju. Fina sabe disso e está certa de que o namorado, na hora de seguirem para a
festa, levará o violão. Imaginem o que as pessoas irão dizer ao vê-la chegar.-
- Olhem, é a namorada do Noel. E ele trouxe o violão!
Mas, neste domingo, o atraso de Noel é maior do que das outras vezes. Fina
espera, vai ao portão, impacienta-se, volta, queixa-se com a avó, roga pragas,
xinga.
O atraso é tanto que jura por todos os santos que nunca mais olhará para ele.
Como ousa deixá-la esperando, numa noite de domingo, todo o mundo lá na festa
querendo
saber onde estão ela, Noel Rosa e o violão? Fina começa a trocar de roupa,
abandona a idéia de sair. Sente vontade de chorar. Ouve então
oportão da rua se abrir e por ele entrar, trocando pernas, o namorado.
- Boa noite, dona Luísa.
Pelo andar, pela voz, por tudo, deve ter bebido um barril de chope. Está pálido,
passando mal. Vomita na varandinha, apóia-se na grade. Fina está cada vez mais
furiosa.
- Você não presta, Noel!
- Não fale assim com ele, Fina-in tervém dona Luísa.
Noel começa a dar uma desculpa, mas a voz de Fina, estridente, abafa-lhe as
palavras.
- Nunca mais fale comigo!Nunca mais!
Fina vai lá dentro apanhar o violão. Enquanto isso, sempre se apoiando na grade
da varanda, fazendo força para não cair, Noel fala.-
-Sabe de uma coisa, dona Luísa?Eu amo sua neta! Eu amo...
Fina volta com o violão. Coloca-o no chão da sala, arrebenta-lhe-as cordas,
salta com os dois pés sobre ele, rachando-o.
- Fina! - protesta a avó.
- Deixa ela, dona Luísa. Deixa ela. Dona Luísa está sempre do lado de Noel.
Não só pelo cafezinho, as broas de milho, as delicadezas várias, mas pela
compreensão que tenta passar à neta. No dia seguinte, chama-a para pedir-lhe que
tenha
paciência com o namorado. Se bebeu demais, deve ter seus motivos. Quem sabe
algum desgosto?
- Porque Noel, minha filha, no fundo é um moço triste. Trate-o bem. As pessoas
tristes precisam de mais atenção.
Fina vai continuar tratando Noel bem.
Com Julinha tudo é diferente. Nem bons tratos, nem atenções. Muito menos uma
aliada como dona Luísa para tornar menos azedas as brigas de amor. Um amor que
se revela
mais complicado e penoso cada vez que ela abusa de bebida. Os dois, Julinha e
Noel, gostam de beber. Também ele, quando ultrapassa determinado limite, pode
fazer-se
difícil, inconveniente, provocador e até agressivo. As bebedeiras nos cabarés em
nada se parecem com aquela, dada a arroubos, que dona Luísa testemunhou.- "Eu
amo
sua neta!" São bebedeiras que às vezes incomodam os outros. E quando os
incomodados reagem, o magrícemo Noel se pondo a postos para uma briga que na
certa perderá,
é sempre bom estar por perto um dos muitos valentes da Lapa que se incluem entre
os seus amigos. Não havendo por perto este defensor oportuno Noel
invariavelmente
apanha. E feio. Mas, ainda assim, sua embriaguez é menos tumultuosa que a de
Julinha.
- Vou me matar!- costuma ameaçar no auge dos seus pileques.
Tudo que faz - desde as ameaças de suicídio
238

às desagradáveis cenas em que tanto pode xingar gratuitamente um dos fregueses


como quebrar copos e garrafas - é para chamar a atenção. Um dia tenta afogar-se
mergulhando
nos dois palmos de profundidade do riacho do Passeio Publico. No outro, tenta
atirar-se do carro de Pará em movimento. Sempre motivada pela bebida. Nas
discussões
com Noel, enquanto ele procura falar baixo, para que ninguém mais o ouça, ela
grita, desgrenha-se, faz tudo para envergonhá-lo. Também Julinha, numa das
incontáveis
brigas entre eles, quebrou-lhe o violão. Por que será que as mulheres vivem se
vingando no violão de Noel? Bem pode ter sido para Júlia Bernardes que ele
compôs
este ÉDifícil Saber Fingir, que não chegará a ser gravado.

É difícil
Saber fingir, meu bem
Mas você tirou patente
Privilégio que ninguém tem.
É capaz
De beber um litro de perfume
Só pra fingir
Que está louca de ciúme.
Não hei de me admirar
Se algum dia
Você se atirar no meio da baía
Pondo a família
Em grande agitação
Só por fingimento,
Pura tapeação!

Dividido por três, a Clara dos olhos meigos, a Fina do riso de criança, ajulinha
das brigas de amor, o anti-romântico Noel vai vivendo intensamente.
NOTAS
1. É ainda em Harmonia, número de dezembro de 1932, que a autoria do samba está
atribuída a Ismael e "Noel. Mas o próprio compositor do Estácio, muitos anos
depois,
contaria ao jornalista José Lino Grünewald - segundo depoimento deste aos
autores - que ele e Noel usaram o nome do jornaleiro Antônio dos Santos.
2. De acordo com Almirante, teriam sido cinco os sambas de Noel Rosa inspirados
em Julinha: Feitio de Oração, Vai Para Casa Depressa, Cor de Cinza, Pra Esquecer
e Meu Barracão. Nenhum deles, porém, parece conter elementos autobiográficos que
permitam concluir que a musa era de fato ela. O primeiro é muito mais um hino de
louvor ao samba e à Penha do que à mulher amada. O segundo, como se verá no
capítulo seguinte, é uma digressão filosófica, do ponto de vista do malandro, em
torno
de uma disputa amorosa. Em entrevista à revista Carioca - da qual se transcreve
trecho, logo adiante, neste mesmo capítulo - Noel esclarece a origem de Pra
Esquecer,
em nada ligada a Julinha. Meu Barracão, que também será estudado mais à frente,
é menos um canto de amor do que uma referência saudosa à Penha e ao barraco,
embora
este bem possa ser a modesta casa onde Noel viveu com Julinha. Quanto a Cor de
Cinza, assunto bem mais complexo, será focalizado no Capítulo 41.
3. Carioca, 18 de julho de 1936.
4. Diário Carioca, 5 de janeiro de 1933.
5. Samba, segunda edição (página 59).
6. Carmem Miranda de fato gostava de cantar tangos no começo de sua vida
profissional. Já no histórico recital no Instituto Nacional de Música, seu
primeiro contato
com Josué de Barros, o violonista que praticamente a descobriu, ela cantava
Garufa e Mama, Yo Quiero Un Novio (depoimento de Josué de Barros incluído por
Queirós
Júnior em seu livro Carmem Miranda - Vida, Glória, Amor e Morte, páginas 20 e
21). Em entrevista a O Paiz, de 22 de junho de 1930 (página 8), diz ela: "Amo o
tango.
Ele me faz vibrar todas as cordas..." A "argentinite" não se deveria apenas a
isso, mas principalmente às suas constantes viagens artísticas a Buenos Aires, a
primeira
com Francisco Alves e Mário Reis em outubro de 1931. De 1933 a 1938, não haveria
um só ano em que ela não se apresentasse em teatros ou emissoras de rádio da
Argentina.
Na página 19 de O Cruzeiro de 4 de abril de 1936, lê-se: "Os artistas do
broadcasting carioca estão atacados de 'argentinite'. Esta nova moléstia foi
inoculada por
Carmem Miranda, assim uma espécie de coqueluche." Se Noel Rosa realmente dava
importância a essa vocação internacionalista de Carmem, é possível imaginar como
teria
reagido se vivesse o bastante para testemunhar a carreira da cantora nos Estados
Unidos.
7. Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua Época (página 95), já nos falava desse
comentário feito por Noel a Aracy de Almeida. Em depoimento aos autores, Aracy o
confirma.
8. Segundo levantamento de Abel Cardoso Júnior em Carmem Miranda, a Cantora do
Brasil (páginas 235 e 236), das 281 músicas gravadas pela cantora antes de ir
para
os Estados Unidos, 107 eram marchas, 36 menos que o total de sambas.
9. A Noite, 9 de agosto de 1932 (página 5).
10. Diário Carioca, 10 de agosto de 19.32.
11. Poema sem título que abre o livro Myriam - Luz dos Meus Olhos, de Adelmar
Tavares, 1912.
12. A Voz do Rádio, 11 de setembro de 1935.
239

DO CHÁ DAS QUINTAS AO CAFÉ NO NICE

Capítulo 24

Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular com verdadeira paixão. E


apresentou sambas e canções do outro mundo.
entrevista ao Diário Carioca

Como ser romântico num mundo desses, de amores nada parecidos com o de Romeu e
Julieta, de relacionamentos complicados que se constróem sobre mentiras e
hipocrisias?
Noel tem alguns motivos para encarar com os olhos da incredulidade o mundo à sua
volta. Um deles, sua própria casa. Quando se tinha a impressão de que as coisas
voltavam a correr bem por lá, Hélio já se preparando para ingressar na Escola de
Veterinária, Martha cuidando do externato com a ajuda de Clara, Neca finalmente
sossegado, eis que o chalé mais uma vez estremece.
O próprio Noel guardará numa pasta de papelão os documentos que ajudarão a
contar a história desses novos tempos desinsofridos que o pai vai enfrentar(1).
São ofícios,
portarias, memorandos, relativos às suas atividades como funcionário da
Inspetoria de Abastecimento da Prefeitura do Distrito Federal, aquele mesmo
emprego que o
compadre Graça Mello lhe conseguiu depois que os planos da bicicleta aquática
foram a pique.
Durante dois anos - de 1930 a 1932 - estes documentos só tratam de promoções e
elogios ao servidor público Medeiros. Por exemplo, no dia 8 de outubro de 1932,
o
diretor interino
Annibal Martins Ferreira agradece-lhe "pela colaboração que lhe prestou durante
sua interinidade como diretor-geral, no desempenho das funções de ajudante,
cargo
que ocupou com manifesta competência". Pois bem. Dois dias depois, 10 de
outubro, o capitão Luiz Celso Uchôa Cavalcanti, recém-nomeado diretor-geral
titular da mesma
Inspetoria, dispensa Medeiros como ajudante. O que se segue é uma clara
divergência entre os dois. Sobre várias questões administrativas, principalmente
a que trata
do reajuste dos preços de produtos alimentícios. O capitão é a favor dos
aumentos. Medeiros, contra. Relatórios de um não deixam nada satisfeito o outro.
O ex-ajudante
demonstra não haver necessidade de se onerar ainda mais a população, já sendo
tão altos os lucros de produtores e comerciantes. Uchôa, por algum motivo, pensa
diferente.
E resolve afastar Medeiros, colocá-lo longe de tudo que diga respeito ao
tabelamento de preços, deixá-lo na geladeira. Feito isso, caminho livre, os
preços são aumentados.
Por mais de um ano o funcionário antes merecedor de elogios e promoções fica
fora de cena. Até que a 12 de janeiro de 1934, convencido de que a razão estava
com
ele, o Interventor no Distrito Federal, Pedro Ernesto Baptista, o reabilita.
Medeiros volta às suas antigas funções. Está tudo documentado na pasta de
papelão, a
nomeação para a Inspetoria a 17 de outubro de 1930, os elogios, as promoções, a
241

destituição, as repreensões, o afastamento e, por fim, o ato de justiça.


Para Neca e todo o mundo no chalé, foram meses de angústia aqueles passados em
oposição ao diretor-geral. Angústia e revolta. Um funcionário exemplar sendo
perseguido
por agir certo, por não querer que o bolso do povo se fizesse mais vazio. Noel
guardará mais do que cuidadosamente os documentos. Como se para lembrar, sempre
que
preciso, o quanto o pai sofreu sem merecer. Sim, porque os meses de afastamento
do trabalho o aniquilaram mais uma vez. Ou para lembrar o quão pouco parece
valer
a honestidade neste mundo de espertezas, interesses escusos, logros, golpes,
mentiras. É pensando nisso que compõe Onde Está a Honestidade?, crítica social e
anti-romantismo
em tempo de samba:

Você tem palacete reluzente,


Tem jóias e criados à vontade.
Sem ter nenhuma herança nem parente,
Só anda de automóvel na cidade...
E o povo jâ pergunta com maldade:
"Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?"
O seu dinheiro nasce de repente,
E embora não se saiba se é verdade,
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade...
Vassoura dos salões da sociedade
Que varre o que encontrar em sua frente,
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...

Manuel Garcia de Medeiros Rosa jamais se reerguerá. Sua obsessiva honestidade -


que o fez lutar tanto, quebrar pedras, afastar-se de casa, sacrificar-se, quase
morrer
para pagar uma dívida imaginária - não terá sido, afinal, inútil? Noel acha que
sim. O pai continua sendo castigado pela vida. Perde a força, o entusiasmo, os
sonhos.
Abate-se, cai. Desta feita para sempre. Torna-se cada vez mais apático, vazio,
voltado para si mesmo. Se isso, nos últimos dois anos, abrandou-o, melhorando
seu
convívio com a mulher e os filhos, por outro lado fez dele uma ruína. Um homem
entregue, deprimido, silencioso e triste.
Noel não é um xenófobo, não chega a ser um nacionalista intransigente, mas
cultiva certa avessia a estrangeiros e estrangeirismos. Aos primeiros já vimos
por quê:
são os vilões de sua infância. Já os estrangeirismos simplesmente não combinam
com seu jeito de ser. São chiques de grã-finos e intelectuais enfatuados, pura
moda,
mania de exibição. O homem do povo não os conhece. Ou, se os conhece, não os
absorve. Não inteiramente. O Brasil para Noel Rosa - como para a maioria dos
chamados
"cariocas da gema" desta época - não está tão distante, para lá do Atlântico ou
entre nós e o Pólo Norte, mas aqui perto, na cidade do interior, no morro, no
bairro,
na esquina. Ou mesmo no botequim, na gafieira, na pensão de mulheres, no
carnaval, na roda de jogo, nos lugares enfim onde todos os brasileiros se
igualam. Seu nacionalismo
tem esse sentido. De gostar das "coisas nossas". De preferir o samba aofox-trot.
Nisso não está só. Ainda outro dia Assis Valente foi a uma festa em Vila Isabel.
Uma reunião literomusical como as que os Boamortes costumam organizar,
compositores,
escritores, homens da política, artistas. Assis notou que alguns convidados, os
mais posudos, enxertavam seus diálogos de palavras, frases inteiras, em inglês
ou
francês. Em plena Vila Isabel, a Vila verde e amarela de Orestes Barbosa e Noel
Rosa, Almirante e seus tangarás. Assis ficou impressionado com aquilo:
- Good evening... Bon soir...
E criticou o palavreado numa marcha carnavalesca:

Não se fala mais boa-noite, nem bom-dia,


Só se fala "good morning", "good night"...

Embora bem-feita - e ganhando popularidade na voz de Carmem Miranda - esta


marcha, intitulada Good-bye, não terá a força crítica e o apelo do samba que
Noel vai
escrever inspirado na mesma mania de exibição2. O cinema falado chegou ao Rio de
Janeiro em 1929- Como toda novidade importada de país mais adiantado, contou com
imediata adesão brasileira. Em 1931, já tínhamos o nosso primeiro talkingfilm.
Como se recorda, motivador de Noel na criação de um samba brasileiríssimo, não
por
acaso intitulado São Coisas Nossas. Nesses quase três anos, porém, a influência
do cinema saiu dos limites da novidade e da arte para se instalar em
praticamente
todos os setores da vida brasileira. Principalmente na moda. As mulheres passam
a se vestir, pentear e pintar conforme gostem de se parecer com Janet Gaynor ou
Jean
Harlow, Kay Francis ou Ruth Chatterton, Irene Dunne ou Greta Garbo. Os homens
afinam seus bigodes até ficarem como o de Ronald Colman, treinam o sorriso
cínico de
Douglas Fairbanks, espicham as costeletas à maneira de Fredric March.
Simultaneamente aos filmes, uma boa parte deles musicais, a Odeon e a Victor
lançam em seus
suplementos discos originais ou com letras em português das canções de Cavadoras
de Ouro, Rua 42
242

e Belezas em Desfile. Todos se apaixonam pelas extravagâncias de Busby Berkeley.


Claro, o cinema falado não foi o culpado de toda transformação. Por exemplo, se
agora já se dança mais o fox-trot que o samba, pelo menos em certos bailes, na
década
passada muitos ritmos estrangeiros também estiveram em voga. E o cinema ainda
era silencioso. Mas o que realmente a novidade veio mudar foi o linguajar do
brasileiro.
Antes, tudo que de inglês o povo falava eram os termos do futebol (foul,
penalty, free kick, team, corner, off-side), resquícios das origens algo
britânicas e muito
elitistas do esporte entre nós. Agora, o inglês está-em todas as falas. Dos
jovens e dos velhos, dos jornalistas e dos homens de teatro, dos escritores e
dos sambistas.
Até o malandro aderiu aos "hellos" e "by-bies" que se incorporaram aos
cumprimentos do carioca. Noel é atento a isso. E o registra num de seus sambas
mais perfeitos
e duradouros. O espanto pela influência do cinema falado passará, mas a beleza
do samba não:

O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação
Dessa gente que sente
Que um barracão
Prende mais que um xadrez.
Lá no morro, se eu fizer uma falseta,
A Risoleta Desiste logo
do francês e do inglês.
A giria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou.
Mais tarde o malandro deixou de sambar
Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot!
Essa gente hoje em dia
Que tem a mania
Da exibição
Não se lembra que o samba
Não tem tradução
No idioma francês.
Tudo aquilo que o malandro pronuncia,
Com voz macia, É brasileiro,
já passou de português.
Amor, lá no morro, é amor pra chuchu,
As rimas do samba não são "I love you".
E esse negócio de "alô", "alô, boy",
"Alô, Johnny"
Só pode ser conversa de telefone.

Como quase tudo de novo que Noel lança por esta época, Sem Tradução, depois
editado e gravado como Não Tem Tradução, é muito comentado. Jurandyr Santos,
autor das
marchas Alô, John e Bon Soir, enfia a carapuça. Acha que foi pensando nele,
apenas nele, que Noel fez seu samba. Publica na imprensa uma polida carta aberta
em que
diz: "O seu carinho, Noel, pelas coisas corretas, dessa vez falhou." E defende o
emprego por ele mesmo, Jurandyr, de palavras estrangeiras: "Eu coligi, apenas,
um
punhado de expressões usuais, deturpadas, que todos nós compreendemos o que vêm
a ser..." Mais adiante, em tom lamentoso: "Você, porém, foi impiedoso. Não pôde,
sequer, sopitar a revolta do seu espírito erudito, amigo das expressões castiças
puras... E compôs o Sem Tradução para esmagar o seu pobre amigo..." Jurandyr
arremata
com votos de prosperidade e confessada admiração. Mas perde tempo. O samba não
foi feito para ele.
Xenófobo mesmo é Orestes Barbosa, que odeia tudo que vem de fora. À distância
ainda lhe é possível deglutir ou mesmo apreciar coisas estrangeiras, os poetas
franceses,
o nacionalismo mexicano, a forma com que os Estados Unidos "se recusaram a ficar
de cócoras diante do túmulo de Byron". Aqui no Brasil, porém, estrangeiro é
estrangeiro,
seja francês, mexicano ou americano. Não se conforma com o desamor brasileiro às
suas tradições, com o pouco carinho que temos por nossa cultura e nossa memória:
- O brasileiro pensa que este país nasceu na última segunda-feira e vai acabar
na próxima sexta - esbraveja numa das mesas do Nice.
Todos o ouvem com atenção neste café que lhe serve de tribuna. Um café que na
verdade se chama Casa Nice e que vai entrar para a história como dos mais
importantes
pontos de reunião do pessoal do rádio e da música popular. Mais que o Carlos
Gomes, o Belas-Artes, o Papagaio e o Chave de Ouro juntos. O Nice ocupa, desde
sua inauguração
a 18 de junho de 1926, o número 174 da Avenida Rio Branco, bem na esquina de
Bittencourt da Silva. Portanto, no mesmo prédio do Cinema Eldorado. E no mesmo
quarteirão
do Liceu de Artes e Ofícios, da Leiteria Nevada, do Cordão do Bola Preta e da
redação de O Globo. Do lado de fora do café, dispõem-se mesas e cadeiras de vime
entre
as quais pode-se tropeçar em cocos verdes espalhados pela calçada. No lado de
dentro, dois ambientes. Um deles, o mais elegante, separa-se do outro por
divisória
de madeira treliçada. Cadeiras forradas, mesas com toalhas muito limpas, onde
são servidos almoços e jantar es, lanches, queijos importados, bebidas finas. No
segundo
ambiente, de mesas de mármore e cadeiras austríacas, fica a turma do rádio e da
música popular. E também uma multiforme comunidade de boêmios, contraventores,
jogadores.
243

- Você tem certeza de que sabe mesmo o que é um poeta? Se pensa que somos nós,
versejadores pretensamente cultos, se engana. Os verdadeiros poetas são os
homens
do povo cujas rimas todos sabem de cor.
O outro não se atreve a contestar.
- Ouça isto... E canta:
A maçã melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde o tal fruto saboroso
E oferece ao homem que o aceita pressuroso.
- O que me diz?
E antes que o outro responda, Orestes dispara:
- Uma porcaria! E é de Bastos Tigre, homem culto. Agora veja o que fez para a
mesma melodia o homem do povo Sinhô...
E torna a cantar:
Dizem que a mulher é parte fraca
Nisto é que eu não posso acreditar
Entre beijos e abraços e carinhos
O homem não tendo é bem capaz de roubar.

Já Noel não se preocupa muito com isso. No máximo, vale-se de suas letras para
descarregar possíveis desagrados.
Quando não gosta de alguém - e de fato não gosta de muita gente - Orestes
Barbosa sequer lhe aceita os elogios:
- Como vai o grande poeta?
- Poeta? Quem disse?
O outro se desarma, já sabendo que vem por aí um terremoto.
- Não sou poeta. Nem eu, nem o Bastos Tigre. Poeta é Sinhô. E também Ismael
Silva, Cartola, Noel Rosa.
A história das letras diferentes que Bastos Tigre e Sinhô escreveram para a
mesma melodia do último, a de Bastos Tigre não fazendo o menor sucesso, a de
Sinhô transformando
Gosto Que Me Enrosco num clássico, é uma das favoritas de Orestes. Para
afugentar chatos que o bajulam chamando-o de "grande poeta" e para deixar bem
clara a sua
atual - e definitiva - posição diante da poesia. Em lugar dos versos declamados,
ou postos no papel, ou reunidos em livros que poucos lêem, estão agora as letras
para a canção popular. Em vez da glória literária, dos formais chás das quintas-
feiras na casa dos imortais, do sonho acadêmico que alimentou um dia, ficaram a
boêmia,
os papos sem fim à mesa do Nice, a música. Confessadamente, foi muito por
influência de Noel Rosa que o poeta Orestes Barbosa converteu-se, para sempre,
no letrista
Orestes Barbosa. Coube ao autor de Não Tem Tradução convencê-lo de que a melhor
maneira de tornar seus versos conhecidos, de levá-los mais fundo à alma das
pessoas,
é mesmo
Enfeitá-los com música.
Orestes será um grande letrista. Dos maiores que o Brasil vai conhecer. Muito
diferente, em estilo, de Noel Rosa. Diferente até dele mesmo, isto é, do
impiedoso
e maledicente conversador do Nice. O Orestes das canções é antes de tudo um
romântico. Como ele próprio ainda
245

vai se definir, um "eterno sentimental", o coração sempre aberto a grandes


paixões. Será o cantor dos amores frustrados, impossíveis, secretos, mas também
das flores
e dos passarinhos, das luas e das estrelas, dos perfumes e das pedras da rua.
Jamais resistirá a uma imagem, o palco iluminado, o olhar entardecente, a flora
do
coração, o pássaro roxo, a vespa da intriga, o chão de estrelas. Letras de rara
força visual escritas por um poeta maior da canção popular(4).
A admiração que Orestes e Noel têm um pelo outro é tanta que era inevitável
tornarem-se parceiros. A primeira das quatro composições que criam juntos mal
será notada. É um samba, Araruta, que só daqui a sessenta anos vai virar
disco(5).

Tu pedes
Mandando
"Faça o favor" a tua boca nunca diz.
Tu cedes
Negando
Com esses olhos que pra mim são dois fuzis.
Sou mole,
Manhoso,
Teus impropérios retribuo com brandura,
Pois água mole
Na pedra dura tanto bate até que fura!
Tu beijas
Mentindo
A tua boca beija e mente sem sentir.
Desejas
Sorrindo
Que o teu perdão humildemente eu vá pedir.
Não peço,
Espero
Ainda ver-te entre lágrimas bem mal.
Meu bem,
escuta:
A araruta tem seu dia de mingau!

Também passará em branco outro samba dos dois, Habeas-Corpus, de letra muito
curiosa, as queixas de amor entremeadas de termos jurídicos, Orestes e Noel
convertidos
em sambistas togados.

No tribunal da minha consciência,


O teu crime não tem apelação.
Debalde tu alegas inocência,
E não terás minha absolvição.
Os autos do processo da agonia,
Que me causaste em troca ao bem que eu fiz,
Chegaram lá daquela pretoria
Na qual o coração foi o juiz.
Tu tens as agravantes da surpresa
E também as da premeditação
Mas na minh'alma tu não ficas presa
Porque o teu caso é caso de expulsão.
Tu vais ser deportada do meu peito
Porque teu crime encheu-me de pavor.
Talvez o habeas-corpus da saudade
Consinta o teu regresso ao meu amor.

O bonde do samba
"O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa
autêntica expressão artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A
poesia espontânea
do nosso povo levou a melhor na luta contra o feitiço do academismo a que os
intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos ingloriamente escravizados.
Poetas
autênticos, anquilosados no manejo do soneto, depauperados pela torturante
lapidação de decassílabos e alexandrinos sonoros, sentiram em tempo a verdade. E
o samba
tomou conta de alguns deles. Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular
com verdadeira paixão. E apresentou sambas e canções do outro mundo. O gosto do
público
foi se aprimorando. Outros poetas vieram dizer, em linguagem limpa e bonita,
coisas maravilhosas. Mais recentemente, Jorge Faraj, outro que abandonou os
alexandrinos,
tirou a prova dos nove com Telefone do Amor. Esse bonito
samba-canção, comovente romance de amor musicado por Benedicto Lacerda, acabou
com as últimas dúvidas. É preciso, porém, acentuar que esses poetas tiveram,
também,
que se modificar, abandonando uma porção de preconceitos literários. Influíram
sobre o público, mas foram, também, por ele influenciados. Da ação recíproca
dessas
duas tendências, resultou a elevação do samba, como expressão de arte, e
resultou na humanização de poetas condenados a estacionar pelo sortilégio do
academismo.
Não duvido que Bilac, se fosse vivo, tomasse o bonde do samba..."
entrevista ao Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.

Noel e Orestes anotarão em seus papéis letras não exatamente iguais para este
mesmo samba. Diferenças pequenas, de uma ou outra palavra, ou significativas,
como
acontece nos dois primeiros versos da última quadra. Os de Noel são mesmo estes:
Tu vais ser deportada do meu peito Porque teu crime encheu-me de pavor.
Os de Orestes, estes:
No exílio vais pagar a crueldade Com que desabafaste o teu furor.
Um dia os dois amigos e parceiros se encontram no Nice, Orestes sentado,
contando seus casos, Noel chegando à porta como se a procurar alguém, sem saber
se entra
ou se
246

segue em frente. Orestes o chama, puxa uma cadeira, manda que se sente.
- Noel, tenho aqui uma idéia que me parece muito boa para um samba. Andei
misturando mulher com Augusto Comte: "O amor por princípio, a ordem por base, o
progresso
por fim." Positivismo e amor. Não gostaria de musicar?-e estica para Noel a
folha com os versos escritos.
São quatro quadrinhas. Metrificadas como tudo que Orestes faz para ser musicado
(só se afasta da métrica quando se trata de pôr letra em música já pronta):

A verdade, meu amor, mora num poço.


É Pilatos, lá na Bíblia, quem nos diz
E também faleceu por ter pescoço
O autor da guilhotina de Paris.
Vai, orgulhosa, querida
Mas aceita esta lição
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração.
O amor vem por princípio,
a ordem por base,
O progresso é que deve vir por fim.
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E fostes ser feliz longe de mim.
Vai, coração que não vibra,
Com teu juro exorbitante,
Transformar mais outra libra
Em dívida flutuante.

Noel lê, diz que gosta, promete trabalhar em cima. Mas, por algum motivo, vai
esquecer a folha de papel entre seus guardados. Para ele, este é um período de
intensa
produção, um samba atrás do outro para poder pagar mais depressa a dívida pelo
Pavão (Francisco Alves é cobrador implacável). Sem falar nos programas de rádio,
nos
discos, em diversas atividades ligadas à música. De janeiro a dezembro de 1933,
não descansará quase. O total de sua obra neste período ficará bem perto da casa
dos 40. Uma produtividade que todos admiram:
- Você já reparou como o Noel está compondo? É um atrás do outro, tudo com
qualidade - comenta-se no Nice.
É no mesmo café que Orestes se queixa a Nássara. Noel escreve um samba atrás do
outro, é parceiro de todo o mundo, faz uma segunda parte para este, modifica uns
versos para aquele, compõe toda a letra e toda a música para um punhado de
gente. Mas... e o seu Positivismo? O que terá Noel feito com seus versos?
Perdeu-os? Jogou-os
fora? Apossou-se deles?
- Nada disso, Orestes. Apenas falta de tempo - Nássara tenta diminuir a zanga
do amigo.
Mas Orestes vai repetir suas desconfianças em outras ocasiões e para outros
amigos comuns. Noel, inevitavelmente, acaba sabendo. Como de costume, nada diz,
não vai
tirar satisfações, não reclama de Orestes a injustiça de achá-lo capaz de
apossar-se de versos alheios. Trata então de colocar música nas quatro
quadrinhas. Ele
mesmo a leva para Pixinguinha orquestrar. Decide gravar o samba na Columbia, do
outro lado de Devo Esquecer. Mas prepara para o parceiro um recado musical. Pede
a Pixinguinha que escreva uma longa passagem de orquestra para depois das quatro
quadrinhas, como se fosse para concluir. Mas, no final do disco, sua voz
reaparece
de surpresa cantando uma quinta quadrinha, escrita por ele mesmo e dirigida a
Orestes:
A intriga nasce num café pequeno
Que se toma para ver quem vai pagar.
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar!

O que poderá dizer Orestes senão que o sem-queixo é mesmo um gênio e que ele,
Orestes, é que acabou se envenenando no próprio veneno?
Enquanto existir o chalé, Orestes Barbosa será um de seus visitantes mais
assíduos. Desde o episódio de Positivismo - que afinal nem ele nem Noel levaram
muito a
sério - estreitará sempre mais sua amizade com o parceiro. E não medirá palavras
para dizer-lhe e aos outros de sua admiração. Fará isso em suas colunas de
jornal,
em livro que escreve sobre o samba carioca, nos versos que entregará a dona
Martha e que ela, comovida, guardará num pequenino caderno de capa marrom:
Felicidade...
É o céu na terra amena,
É o sorriso da pequena,
Muito mais lindo que o céu.
É a poesia nos arpejos de lamento
Que se sente no talento
Das canções que faz Noel.
Felicidade...
É sonhar de olhos abertos
É o oásis dos desertos
Das almas que o sol queimou.
É uma garota elegante e vaporosa
Para quem o Noel Rosa
Quer fazer um bangalô.
247

NOTAS
1. Estes documentos pertencem hoje aos arquivos dos autores.
2. Difícil precisar qual dos dois, Good-bye ou Não Tem Tradução, foi feito
primeiro, mas é quase certo que tenha sido a marcha de Assis Valente. Em
entrevista a
Ary Vasconcelos (O Cruzeiro, 3 de setembro de 1955), Assis recorda que Carmem
Miranda cantou Good-bye no segundo Broadway Cocktail, entre 8 e 21 de agosto de
1932.
A própria Carmem a gravaria a 29 de novembro, na Victor, sendo o disco lançado
em janeiro de 1933. Não se tem registro de que antes disso já existisse Não Tem
Tradução,
que só seria gravado a 23 de agosto de 1933 por Francisco Alves, na Odeon.
3. Samba, segunda edição (páginas 69 e 70). Também foram colhidos neste livro
outros pensamentos ligados à xenofobia de Orestes Barbosa.
4. Sobre a força visual das letras de Orestes, Paulo Mendes Campos nos dá em
Manchete de lP de novembro de 1974 (página 50) esta apreciação definitiva:
"Visualizar
a emoção é marca certa do poeta forte. As melhores canções de Orestes parecem
roteiros cinematográficos, e o conjunto de todas elas é o scriptde uma época do
Rio."
Para Paulo Mendes Campos, "... sem dúvida nenhuma, Orestes Barbosa e Noel Rosa
são os mais altos poetas da nossa música popular." Manuel Bandeira é outro que
fala
de Orestes com admiração. Diz ele em Chão de Estrelas (página 144): "Grande
poeta da canção, esse Orestes! Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na
França,
para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele
de Orestes que diz: 'Tu pisavas os astros distraída...' Só mesmo num Chão de
estrelas
era possível achar este verso. De certo Orestes rojava no sublime, e a mulher
que o inspirou pisou lhe, acinte ou inadvertidamente, o coração, que se abriu na
queixa
imortal. Sei de muito poeta (Onestaldo de Pennafort é um e eu sou outro) que se
rala de inveja porque não é o autor daquele verso. E com razão: nunca se
endeusou
tanto uma mulher como naquelas cinco palavras."
5. O que terá levado pesquisadores da estatura de Lúcio Rangel e Almirante a
concluir que Araruta e Positivismo são o mesmo samba ou, pelo menos, duas letras
diferentes
para a mesma música? Em Samba, segunda edição (página 50), Orestes Barbosa já
citava os dois como obras distintas. O jornal de modinhas Harmonia, de dezembro
de
1932, publicava a letra de Araruta, ficando claro não só que ela não cabe na
música de Positivismo mas também que se trata da primeira criação da dupla Noel-
Orestes,
já que as outras são de 1933 e 1934. A partir dessas pistas, os autores partiram
no encalço da melodia da Araruta, que acabou lhes sendo ensinada por Armênio
Mesquita
Veiga, amigo e aluno de violão de Noel, ele próprio compositor (Molambo, Aperto
de Mão, Amar Foi Minha Ruína).
Orestes Barbosa. (Arquivo dos autores.)
248

PRAZER EM CONHECÊ-LO

Capítulo 25

Diante de dois copos de cerveja, Arnaldo e Antônio Araújo antevêem uma noite de
bocejos. Não há nada de bom programado, nem namoro, nem serenata, nem papo de
esquina.
Uma semana inteira de trabalho na alfaiataria, das oito
às oito cortando e costurando pano, e chega sexta-feira aqui estão os dois, um
olhando para a cara do outro. Ou para os copos de cerveja. O Café Ponto Chie,
nos
começos de noite, é sempre desanimado. Dois ou três condutores, um ou outro
motorneiro, fiscais, gente da Light que entre dois cafés pequenos conversa até a
hora
de embarcar num dos bondes que partem da estação ao lado. Boêmios? Amigos da
noite e do samba? Os irmãos Araújo sabem que não podem encontrá-los a esta hora
no Ponto
Chie.
Mas Noel Rosa chega. Vê-se logo que acaba de acordar, de sair do banho, de tomar
seu "café da manhã". E já são quase nove horas da noite. Noel se aproxima. Tira
do bolso um punhado de papéis. São cartões, impressos, recortes, folhas soltas
que ele vai lendo e saparando.
- Sabem o que tenho aqui? Uma porção de convites para festas. No Centro, no
Grajaú, na Tijuca.
Noel diz que uma das vantagens de se trabalhar no rádio, de se gravar discos, de
se ter o nome conhecido, são justamente estes convites que chegam não sabe de
onde.
Gente que nunca o viu, que nem ao menos é amiga de um amigo, chama-o para um
baile familiar, uma festinha de aniversário, um casamento. Na certa esperando
que ele
leve o violão.
Arnaldo e Antônio se animam. Ajudam Noel a escolher um dos convites. Acabam
optando por uma festa na Rua Conde de Bonfim, na Tijuca. Um bonde até a Praça
Saenz Pena,
outro na direção da Muda, em menos de meia hora estarão lá.
A casa é grande, dois pavimentos, jardim na frente, varanda do lado, um salão no
qual os convidados são recebidos pela anfitriã, senhora gorda, simpática, que
Noel
e os Araújos vêem pela primeira vez. Mas isso não quer dizer nada. Mal os três
chegam, a mulher exclama:
- Noel! Olhem o Noel Rosa! Que bom que você veio, Noel!
A anfitriã tenta assegurar o sucesso da festa mostrando-se íntima do convidado
famoso. Noel pra cá, Noel pra lá, vai apresentando a todo o mundo o autor de Até
Amanhã.
Arnaldo e Antônio vão atrás. Há muita gente na festa, Noel cercado por todos os
lados. A mulher puxa-o pela mão. Súbito - mundo pequeno - está diante de Clara,
ninguém
menos que Clara. Há quanto tempo não se viam? Semanas, meses? Talvez só
249

agora Noel se dê conta do quanto foi longa sua ausência. E Clara continua tão
bonita, os mesmos olhos castanhos, redondos, cheios de meiguice. A dona da casa
a chama:
- Clara, Clarinha, deixa eu te apresentar o Noel Rosa.
Antes mesmo que a mulher termine a frase, Noel e os Araújos percebem que Clara
não está só. Um rapaz alto, magro, olhos azuis, cabelos castanho-claros, até
instantes
ao lado dela, recuou. É o novo namorado. Na certa, sabendo o que Noel representa
para Clara, prefere ficar de longe, observando estrategicamente a reação dos
dois:
- Noel,. esta é Clarinha...
E sem esperar que Noel diga alguma coisa, Clara estende-lhe a mão:
- Prazer em conhecê-lo.
Noel empalidece. Estranhamente, a inesperada formalidade de Clara o perturba.
Depois de tantos anos, de tanto amor, de tantos projetos, um simples "prazer em
conhecê-lo..."
Ele procura manter-se frio. Limita-se a responder:
- O prazer é todo meu.
As apresentações finalmente terminam. A anfitriã provavelmente espera que Noel
brinde os outros convidados com alguns de seus sambas. Mas Arnaldo e Antônio
notam
que o amigo já não é o mesmo. Encolhido no canto do salão, murcho, calado,
guardou o sorriso que parecia ter trazido para esta festa de sexta-feira.
Arnaldo pergunta:
- Que que há, Noel?
- Nada. Vamos embora.
Noel sai, os Araújos novamente o seguem. Os três nada falam durante a viagem de
volta até Vila Isabel. Nada é preciso dizer para que fique entendido o quanto a
indiferença
de Clarinha magoou Noel. Os três estão agora outra vez sentados a uma das mesas
do Ponto Chie. Noel pede uma cerveja, lápis e papel ao garçom. Minutos depois,
está
escrevendo.
- O que é isso? - indaga Antônio.
- Um samba.
Noel cantarola em cima dos versos que acabou de escrever:

Quantas vezes nós sorrimos sem vontade


Com o ódio a transbordar no coração...

Arnaldo e Antônio Araújo acompanham atentos o gesto quase instintivo de Noel


transformar em música e poesia o que lhe vai por dentro. E o samba, aqui mesmo,
à mesa
de um botequim de Vila Isabel, vai nascendo(1):

Quantas vezes nós sorrimos sem vontade


Com o ódio a transbordar no coração
Por um simples dever da sociedade
No momento de uma apresentação
Se eu soubesse que em tal festa te encontrava
Não iria desmanchar o teu prazer
Porque, se lá não fosse, eu não lembrava
Um passado que tanto nos fez sofrer
Lá no canto vi o meu rival antigo,
Ex-amigo, Que aguardava
o escândalo fatal
Fiquei branco, amarelo, furta-cor,
De terror,
Sem achar uma idéia genial.
Ainda lembro que ficamos de repenteFrente a frente,
Naquele instante, mais frios do que gelo
Mas, sorrindo, apertaste minha mão
Dizendo então:
"Tenho muito prazer em conhecê-lo"
Mas eu notei que alguém impaciente,
Descontente,
Ia mais tarde te repreender
Tão ciumento que até nem quis saber
Que mais prazer
Eu teria em não te conhecer.
Noel encontra-se com Custódio Mesquita, a quem conhece de bares e microfones.
Custódio é um jovem e talentoso pianista. Já andou por várias emissoras de
rádio, a
Club do Brasil, a Philips, a Mayrink Veiga, acompanhando cantores, solando e até
fazendo arranjos para orquestra. Por enquanto, ainda é um compositor
desconhecido,
à espera de um empurrão. Também ele é um boêmio vocacional, amante das noites e
das estrelas. Noel canta-lhe os primeiros versos do novo samba:

Quantas vezes nós sorrimos sem vontade...


E pede-lhe que harmonize a segunda parte, dê-lhe alguns retoques, passe a música
para o papel. Em pouco tempo fica pronto Prazer em Conhecê-lo. Infelizmente,
será
a única coisa que produzirão juntos, pois Noel e Custódio, se têm a boêmia e o
samba por afinidade, seguirão caminhos muito diferentes. Nos encontros mais ou
menos
bissextos que terão no futuro, haverá entre eles, sempre, um traço amigo,
fraterno, carinhoso mesmo. Por exemplo: será Custódio um dos primeiros a
assinalar nas
letras de Noel um certo cunho filosófico que nada tem a ver com tudo o mais. Um
dia o pianista vê Noel parado numa esquina da Rio Branco:
- Como vai o Sócrates? Ainda não morreu?
Noel convalesce de uma forte gripe, andou de molho por alguns dias. Sem se
mexer, cigarro no canto da boca, responde:
250

- Não. Ainda não bebi a cicuta que você me deu.


César Ladeira vai se inspirar nessa história de Sócrates para dar, como faz com
todos os artistas que lhe caberá apresentar em programas de rádio, um cognome
que
acabará pegando: o Filósofo do Samba2.
Noel e Custódio amam compulsivamente os habitantes da madrugada, os malandros,
os mendigos, as vendedoras ambulantes, as mulheres, toda a sorte de personagens
que,
aos olhos de jovens de classe média como eles, constituem a marginália da
cidade. Ambos têm para com esses irmãos do sereno gestos de comovente
solidariedade. Assim
como Noel é capaz de dar seu último tostão a um sujeito que jamais viu (e que
talvez jamais volte a ver), Custódio não faz por menos. Certa noite tira do
bolso o
relógio de ouro, com corrente e tudo, e entrega-o ao retirante nordestino que o
aborda na porta do Assyrius, pedindo-lhe ajuda para a mulher e os três filhos
pequenos.
Mário Lago, ao seu lado, adverte-o:
- Custódio, você já pensou se a polícia pega essepobre-diabo com o relógio?É
cana na certa. Quem vai acreditar que foi um presente?
- É mesmo!
Custódio corre até o telefone mais próximo e liga para todas as delegacias do
Centro:
- Seu comissário, se aparecer por aí um nordestino maltrapilho com mulher e três
filhos do lado, preso por tentar vender um relógio de ouro, saiba que não é
ladrão,
não. Fui eu, Custódio Mesquita, quem lhe deu. Qualquer dúvida podem me procurar.
No mais, são muitas diferenças entre os dois autores de Prazer em Conhecê-lo.
Custódio é extrovertido, alegre, loquaz; Noel vive mais para si mesmo. Custódio
tem
a estampa de um galã hollywoodiano, chegará mesmo a
251

trabalhar no cinema e no teatro, será chamado de "o Tyrone Power brasileiro";


Noel é feio. Custódio, se gosta dos habitantes da madrugada, também convive
muito à
vontade com gente importante, das artes, da política, da alta sociedade; Noel
prefere as almas anônimas. Custódio sabe ser, quando preciso, áspero e até
arrogante.
Como no dia em que o porteiro do Teatro Recreio o barra à entrada de uma revista
para a qual escreveu a música:
- Mas eu sou o Custódio Mesquita.
- Desculpe-me, senhor, mas tenho que ver seus documentos.
-Documentos?-brada Custódio irritado - Malandros precisam de documentos. Os
cavalheiros usam cartão de visita.
E entra, passos firmes, depois de depositar o cartão na mão do porteiro. Já Noel
não ousaria tanto-, se o porteiro não o reconhecesse, faria meia-volta até a
bilheteria
para comprar o ingresso.
Ao se entregarem ambos à vida de dissipação que o Rio parece inspirar a
temperamentos boêmios como os seus, raramente o farão de cara limpa. E também
nisso serão
diferentes, Custódio tornando cada vez mais refinada e dispendiosa a busca das
essências que vão embriagar suas noites (do vinho francês ao uísque e deste,
mais
para o fim da vida, à cocaína), Noel permanentemente fiel à cerveja Cascatinha
que quaisquer nove tostões compram no botequim da esquina.
Também em suas aventuras amorosas as diferenças serão marcantes. Pois se Noel
vive se apaixonando por todas as mulheres, louras ou morenas, gordas ou magras,
a impressão
que se tem é de que todas as mulheres vivem se apaixonando por Custódio. Diz
Lourdes Câmara em sua coluna semanal de Syntonid.
"Custódio Mesquita, o pianista mais bonito da PRA(9) O homem de olhar inocente e
dos cabelos ondulados... ladrãozinho! Arsène Lupin com alma de Schubert, ou
vice-versa..."
Um ladrão a roubar corações:
"... perto dele - prossegue Lourdes - não é conveniente deixar nenhuma noiva
esquecida. Pode ser que não se encontre mais na volta."
Corre no Nice a história de dois outros compositores que um dia, sabendo que
Custódio ia excursionar com duas irmãs cantoras, apostaram:
- Cinqüenta mil réis como ele fica com a mais velha.
- Cem como vai preferir a mais nova.
Na volta da excursão, os dois compositores constataram, pasmos, que haviam ambos
perdido a aposta; Custódio conquistara as duas.
Mas, ao tempo de Prazer em Conhecê-lo,
ele ainda não é o Tyrone Power brasileiro, nem pode se dar ao luxo de distribuir
relógios de ouro, de impor-se com um simples cartão de visita, de entregar-se à
embriaguez dispendiosa, de conquistar duas irmãs cantoras ao mesmo tempo. É um
compositor desconhecido. Famoso, por enquanto, é Noel Rosa.
Famoso mas pobre. E é justamente sobre pobreza que ele e Cartola conversam em
noite de muita lua e pouco dinheiro. Bolsos vazios, os dois se encontram no
Largo do
Maracanã depois de uma batalha na Dona Zulmira. Sentam-se num banco perto do
chafariz e se põem a falar da penúria comum. Nem um níquel para tomar uma
cervejinha
no Café da Uma Hora. E a sede, para falar a verdade, é muita. Cartola vê
Francisco Alves apontar na esquina. Logo o Francisco Alves, o homem do dinheiro,
freguês
de samba dos dois.
- Vai lá e mete um vale nele, Cartola.
- Vai você, Noel.
O jogo de empurra se explica: tanto um como outro sabem que tirar dinheiro de
Francisco Alves não é fácil. Há noventa e nove por cento de chance de terem um
malcriado
"não" como resposta. Mas, pensando no um por cento que sobra, Noel sugere:
- Então vamos os dois.
Cartola topa, os dois acenam para Francisco Alves, o cantor se aproxima. Noel
vai direto ao assunto:
- Vê se arranja algum pra gente, Chico. De adiantamento.
- Quem pensam que eu sou? O pai de vocês?
Francisco Alves cospe duas vezes para o lado, solta meia dúzia de palavrões, faz
um breve discurso sobre como o dinheiro anda escasso nestes tempos difíceis.
Não,
não pode fazer nada por eles. Mesmo assim, convida-os a irem até o seu Zé. Só
para conversarem. Os três atravessam a rua, entram no botequim, sentam-se à
mesma mesa.
- Cerveja?- pergunta o Martins.
Não, respondem Noel e Cartola com desolado abano de cabeça. Os dois resolveram
cantar alguns velhos sambas de um e de outro, coisas que Francisco Alves está
cansado
de conhecer. O cantor fica ouvindo o desfile de belas composições, Divina Dama,
Nuvem Que Passou, Não Faz, Amor, Perdão, Meu Bem, Mulato Bamba. São bons demais
estes
dois, parece lembrar-se de repente. Tão moços e já fizeram tudo isso.
- Vocês me falaram de adiantamento?- pergunta Francisco Alves.
- Sim - diz Noel. - Por conta de samba
252

que a gente vai fazer.


- Muito bem, eu dou 50 mil réis para cada um. Agora mesmo. E vocês podem matar
sua sede. Mas os sambas têm que ser feitos já.
- Agora? Neste momento? - pergunta Cartola meio espantado.
- Agora. E um samba cada um.
Com essa os dois não contavam. De qualquer maneira, a sede, a vontade de forrar
os bolsos vazios, tudo isso faz com que Noel e Cartola concordem em compor aqui
mesmo
os dois sambas. Cartola logo completa a primeira parte do seu, construindo em
seguida a melodia da segunda para a qual pede que Noel escreva, de um fôlego,
duas
estrofes de oito versos. A primeira parte de Cartola é assim:
Diz qual foi o mal que eu te fiz?
Eu não te farei essa ingratidão
Foi um falso contra a nossa amizade
Não creias, não pode ser verdade
As duas segundas com letra de Noel:
Não creias nestas mentiras
Que roubam nossa alegria
Os invejosos se vingam
Armados de hipocrisia
A mentira, infelizmente,
O mais forte amor destrói
Mas, se eu não tenho remorso,
O meu coração não dói.
Disseste que te enganei
Não sou tão fingido assim
Talvez queiras um pretexto
Pra viver longe de mim
Disseram que eu traía
A nossa grande amizade
É tão criminosa a culpa
Que não pode ser verdade.
O samba ganha o título de Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?. Francisco Alves gosta e
promete gravá-lo. Paga os 50 mil réis a Cartola e avisa que amanhã ou depois
terão
de assinar o contrato de cessão de direitos na Odeon. Noel, porém, abre mão de
sua parte. O combinado era cada um fazer um samba, de modo que este vale como
sendo
o de Cartola.
- Isso é lá com vocês - diz Francisco Alves.
Com cada compositor o cantor mantém um tipo de relação comercial. Suas
transações com Cartola são diferentes dás que faz, por exemplo, com
Ismael Silva. O compositor da Mangueira cede-lhe os direitos de execução, mas
não lhe dá parceria. Um detalhe muito importante que ficou acertado logo no
primeiro
negócio que fecharam, há dois, quase três anos. Já Noel pouco se importa em dar
ou não parceria. Nem faz questão de ver seu nome no selo do disco.
- Muito bem, Noel. Vamos agora ao seu samba.
Em quem ou em que se inspirará ele para criar, em troca de um modesto
adiantamento de 50 mil réis, um novo samba? Nas dores de amor? Em Clara? Em
Julinha? Aparentemente
é para a mulher amada que Noel canta os versos de Estamos Esperando, o samba que
vai compondo, música e letra, à mesa do botequim:

Estamos esperando,
Vem logo escutar,
O samba que fizemos pra te dar.
A rua adormeceu
E nós vamos cantar
Aquilo que é só teu
E que nos faz penar
Da tua voz tirei a melodia
E a harmonia eu fiz com teu olhar.
Já estava perdendo a paciência
Quando roubei a cadência
Do teu modo de guiar
(Chega à janela...)
E este samba que fiz de parceria,
Depois de feito não é dele nem é meu.
Escuta o violão que está gemendo,
Suas cordas vão dizendo
Que este samba é só teu
(Até amanhã...)

Para a mulher amada? Aparentemente, apenas. Na verdade, obra-prima de sutileza e


duplo sentido, o samba é dirigido ao próprio Francisco Alves. E relata, com
melodia
simples, mas bonita (e em versos feitos às pressas, mas exatos), o episódio que
os três, Noel, Cartola e Francisco Alves, acabam de viver aqui. Por trás de
palavras
fingidamente inocentes ("O samba que fizemos pra te dar..." ou "aquilo que é só
teu e que nos faz penar..."), logo na primeira parte Noel camufla suas queixas.
A
primeira das duas segundas partes não é tão evidente, mas ainda assim tem
Francisco Alves como alvo: a melodia tirada da voz que Noel tanto admira, a
harmonia feita
do olhar sagaz do cantor e até a cadência roubada do seu modo de guiar(4). Já a
outra segunda parte é direta e cortante como Noel sabe ser quando quer: o samba
feito
de parceria que acaba não sendo seu nem de Cartola, o violão a gemer a mágoa de
saber que Qual Foi o Mal Que Eu Te Fiz?será, mesmo, todo de Francisco Alves5.
Por
último, os dois breques. Um deles, "Chega à janela...", é citação um tanto
velada ao seresteiro que Francisco Alves jamais deixou de ser desde os tempos de
Malandrinha
("A lira do cantor em serenata reclama na janela a sua amante..."), e o
253

Não tenho herdeiros, Não possuo um só vintém. Eu vivi devendo a todos, Mas não
paguei nada a ninguém
Meus inimigos, Que hoje falam mal de mim, Vão dizer que nunca viram Uma pessoa
tão boa assim
Pelo presente declaro que cedo todos os
meus direitos sobre a letra de minha autoria denominada
"UMA COISA FICOU",( letra esta musicada por Hervé Cordovil,)
ao Sr. Enéas Martins Berros, que poderá fazer com a mesma
o uso que mais lhe convier, Em tempo:- o titulo foi alterado para "Uma COISA
DEIXEI"
Cessão de direitos de Uma Coisa Deixei.
outro, "Até amanhã...", remissão clara ao samba que Noel não deixou Francisco
Alves gravar, à tumultuada viagem ao Sul, àquelas horas esquecidas nos braços da
moça
em frente, um samba afinal que lembra um episódio que quase leva à loucura o
velho Chico.
Mas Francisco Alves não é astuto o bastante para perceber nada disso. Nem para
atinar com outra diabrura que Noel lhe prepara em forma de música e letra, já
nos
últimos dias de dezembro de 1932. Tanto Francisco Alves como Mário Reis
acreditam que de todas as composições que Noel lhes entregou para o próximo
carnaval, entre
elas algumas que não assinou (Fui Louco, Primeiro Amor, ÉPeso, Rir), nenhuma tem
mais possibilidade de sucesso do que Fita Amarela. Um samba feito nos moldes de
muitos outros "testamentos" comumente encontráveis na música popular, de autores
conhecidos, menos conhecidos, anônimos. A originalidade de Noel repousa,
praticamente,
nas quadrinhas da segunda parte:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.
Se existe alma,
Se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão
Não quero flores,
Nem coroa de espinho,
Só quero choro de flauta,
Violão e cavaquinho
Além destas, da gravação original, mais três:
Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer
Quadrinhas muitas vezes improvisadas em bares e programas de rádio, uma ou outra
fadada a permanecer esquecida.
Quero que o sol
Não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma
Não morrer de insolação

A outra diabrura que Noel prepara para Francisco Alves em forma de música e
letra está justamente no outro lado de Fita Amarela, isto é, na marcha que Chico
e Mário
Reis encomendam a ele para completarem o disco na Odeon. Noel continua
pendurado. Quanto mais dinheiro dá a Francisco Alves, mais pesadas lhe parecem
as prestações
do Pavão. Noites como aquela no botequim do Maracanã são raras. Chico não é de
dar adiantamentos. Nem mesmo de 50 mil réis. Pois se nem cafezinho ele paga! O
pessoal
do Nice está cada vez mais escaldado em matéria de Francisco Alves. Ainda outro
dia, no meio de uma roda em que todos tomavam café, o cantor, lá pelas tantas,
explodiu:
- Como é, ninguém vai se levantar? Alguém perguntou por quê.
- Está na hora do meu programa na Rádio Club.
- E o que que tem isso?
- Se ninguém se levanta antes de mim, vou ter de pagar o café.
Noel mesmo tem testemunhado inúmeros desses gestos de sovinice de
Francisco Alves. Mais do que testemunha, pode ser a própria vítima. Como
aconteceu durante a série de espetáculos que ele, Chico e Vicente Celestino
realizaram,
de 12 a 18 de setembro, no Cine-Teatro Modelo, no Riachuelo. Numa das noites,
Noel encontrou-se no caminho com os Araújos e convidou-os para irem juntos.
Poderiam
assistir ao show e logo em seguida ao filme, a comédia A Guarda Secreta
(SecretSix), com Wallace Beery. Arnaldo e Antônio gostaram da idéia. Os três
tomaram um bonde
até o Maracanã e outro pela 24 de Maio. Na entrada do cinema, Noel informou ao
porteiro que aqueles eram dois amigos, seus convidados.
- Pois não, podem entrar.
254

Naquele exato instante passava por ali Francisco Alves.


- Nada disso! - protestou. - Onde eu canto ninguém entra de graça.
Noel, diante do espanto dos Araújos, insistiu :
- Mas eles são meus convidados.
- Não importa!
Ele e Chico já estavam no meio de uma discussão incendida quando Vicente
Celestino resolveu intervir. Polidamente, mas com firmeza, virou-se para
Francisco Alves
e ponderou:
- Ora, Chico, o que são duas entradas de cinema?-e voltando-se para o outro
lado; - Teremos muito prazer em cantar para os seus amigos, Noel.
Só assim Antônio e Arnaldo entraram sem pagar.
'Tão apegado ao dinheiro e ao mesmo tempo tão exigente com os que trabalham para
ele. Como se diz no Nice, em matéria de pão-durismo o Chico é caso de polícia.
Noel
taz a marcha Mas Como... Outra Vez?pensando na avareza do cantor. Leva sua
estrepolia às últimas conseqüências. A música do estribilho é nitidamente
calcada no Liberstraum
n? 3, de Franz Liszt. Chico não se diz cultor dos clássicos? Então. Só que desta
vez, em lugar dos "clássicos da opereta" como Victor Herbert, Franz Lehár,
Jerome
Kern, Rudolf Friml, cantará um clássico de verdade: Liszt. O complemento da
melodia, ao contrário da frase inicial, tem bastante originalidade. E a letra
fala por
si mesma, Francisco Alves de novo se castigando sem saber:
Mas como...? Outra vez?
Toma cuidado...
Se a moda pega,
Estou bem certo:
Acabas como Judas no deserto.
Quando tu compras jornal é fiado,
Dando a desculpa que não tens trocado.
Os pobres ficam com dor de cabeça
Por ouvir: "Deus te favoreça!"
Lembrei agora em hora propícia
Que o teu caso pertence à polícia.
Cabe esta espécie de caso anormal
À Polícia Especial!
Não satisfeito, Noel produz duas outras quadras que no entanto não serão
gravadas. Terá Chico percebido o seu sentido?
O meu dinheiro é macho e não cresce
Só o teu cresce, mas não aparece
Teu grande medo lá no botequim
É pagar um café pra mim!
Sempre a fazer teus castelos de areia
Sujas teus pés no sapato sem meia
Não tens chapéu nem gravata hoje em dia
Por medida de economia!

Se Fita Amarela será um grande sucesso, não deixará também de causar


contratempos a Noel. Pequenos, é verdade, mas ainda assim o bastante para
incomodá-lo. Desejos
para serem cumpridos depois da morte, testamentos poéticos, coisas na base de
"quando eu morrer" sempre foram muito comuns no Brasil. Já dizia no século
passado
o poeta Laurindo Rabelo:
Quando eu morrer, não chorem minha morte Entreguem meu corpo à sepultura
Pobre, sem pompa, sejam-lhe a mortalha Os andrajos que deu-me a desventura.
E depois dele José de Alencar:
Quando eu morrer, não chorem minha morte
Esqueçam meu cadáver sobre o leito,
Mas levem-na, bem triste, as tranças soltas,
E deixem-na chorar sobre o meu peito.
Os sambistas, principalmente os dos morros, sempre foram muito ligados ao tema,
simulando diante da morte mais coragem do que realmente têm, fingindo-se
superiores
a ela, salpicando-a de humor como se isso, afinal, pudesse mantê-la longe. São
inúmeros os exemplos de estribilhos criados a partir destes testamentos
poéticos,
em torno dos quais os sambistas improvisam interminável versalhada. Estribilhos
assim:
Quando eu morrer
Me enterrem lá no terreiro
Deixando o braço de fora
Pra tocar o meu pandeiro
Ou assim:
Quando eu morrer
Não digam nada
Basta muito beber
Por minha vida danada
Tema muito explorado, seja por poetas conhecidos, seja por sambistas anônimos, é
um mote, pode-se dizer, de domínio público. No entanto vale a Noel uma incômoda
acusação de plágio. O acusador, Donga, lançou recentemente um samba seu e do
maestro Aldo Taranto que diz:
Quando você morrer
Não pense que eu vou chorar
Vou procurar quem me dê
O que você não me dá
255

Desde que Fita Amarela começou a ser ouvido nas emissoras de rádio, na gravação
de Francisco Alves e Mário Reis, Donga faz campanha contra Noel. Onde quer que
chegue,
nos Dares, nas esquinas, nas rodas de música, nunca deixa de tocar no assunto:
- Vocês conhecem o samba que o Noel Rosa copiou do meu?
E canta Fita Amarela. A campanha só vai acabar no dia em que Almirante, tomando
as dores de seu companheiro de Bando de Tangarás, contar que ele mesmo ensinou a
Noel a quadrinha que lhe deu a idéia para seu samba. Os dois se encontraram no
Boulevard e Almirante cantou:
Quando eu morrer
Não quero choro nem nada
Eu quero ouvir um samba
Ao romper da madrugada
- De quem é? - perguntou Noel.
-Não sei. Aprendi com dois improvisadores, numa tendinha de São João de Meriti.
Noel aproveitou o tema, não só poético, mas também melódico, para fazer seu
estribilho. Para complicar a história, enquanto Donga garante que tudo começou
com o
seu samba e de Aldo Taranto - e Almirante insiste na história dos improvisadores
- a turma do Estácio, quando sabe dos tais versos aprendidos pelo líder dos
tangarás,
protesta:
- Improvisadores de São João do Meriti? Qual o quê?! O Mano Rubem, daqui do
Estácio, já cantava eles em 1920...

Está bem, vou acabar tudo com ele. Diante de novas promessas de Noel, de que
desta vez não desaparecerá mais, Clara diz que vai romper com o novo namorado.
Noel
sabe que realmente será assim. Basta reaparecer, sempre com o jeito de quem está
arrependido e disposto a "entrar no sério", para que Clara troque tudo pela
esperança
que ele traz entre sorrisos. O namorado com quem foi à festa na Tijuca chama-se
Mário, boa família, direito, bem-intencionado, concluindo já seu curso de
veterinária
e quase em condições de pedi-la em casamento. Aliás, é mesmo o que planeja. Os
zelosos irmãos dela fazem gosto. Muito mais do que vê-la perdendo tempo com um
cantor
de rádio, boêmio incurável. A festa na Tijuca, reacendendo em Noel a vontade de
voltar para Clara, vai frustrar para sempre os planos do bom moço Mário.
- ... Vou acabar tudo com ele.
Clara cumprirá a promessa. Noel logo esquecerá a sua.

NOTAS
1. Em entrevista a O Globo, 31 de dezembro de 1932, conta Noel: "Quando saí da
festa, fui para um bar do Leblon. Pedi uísque porque não havia bebida nacional
desse
gênero. Acendi um cigarro e botei o chapéu de palha na mesa. Bebi uns tragos e
comecei a cantar baixinho. Sem dúvida, foi fácil fazer esse samba..." Mas
Arnaldo
Araújo, em entrevista aos autores, assegura que tudo se passou mesmo no Café
Ponto Chie, entre copos de cerveja e não de uísque.
2. Esta versão sobre a origem do cognome é do próprio Noel em A Voz do Rádio,
15 de novembro de 1936 (página 16).
3. Syntonia, 22 de novembro de 1934.
4. Na gravação original de Francisco Alves e Mário Reis, este canta "do seu
modo de pisar..." em vez de "guiar". Mas na partitura original lá está a clara
alusão
ao bom motorista que Chico gabava-se de ser.
5. O samba será assinado apenas por Cartola, mas os direitos autorais
pertencerão integralmente a Francisco Alves.
256

EM BOA COMPANHIA
Capítulo 26
O Noel Rosa
E começou a nossa parceria, Eu fui por ele e ele foi por mim
Amor de Parceria
Cigarro no canto da boca, Noel Rosa conversa com Ismael Silva numa das esquinas
da Galeria Cruzeiro, acompanhando à distância o que se passa em frente, no
interior
do Nice. Nenhum dos dois se inclui entre os freqüentadores assíduos do café.
Raramente se sentam a uma das mesas, nunca participam dessas intermináveis
conversações
que se arrastam pela tarde inteira e entram noite adentro. Mesmo que quem esteja
com a palavra seja Orestes Barbosa. Noel e Ismael só vão ao Nice a trabalho,
para
arrancar um vale de Francisco Alves, marcar com este ou outro cantor o horário
de uma gravação, combinar com um diretor de broadcast um ou dois programas em
sua
estação de rádio.
Noel, principalmente, é meio oblíquo em relação ao Nice. Passa por ali de
raspão, rápido, diz e ouve o essencial e se vai. Isso quando não fica mesmo de
longe, do
outro lado da Avenida Rio Branco, balançando a cabeça de um lado para o outro
como se a procurar alguém. Esta esquina da Galeria Cruzeiro é o mais próximo que
Noel
e Ismael constumam ficar do Nice. Conversando sobre samba, jogo, boêmia e
malandragem. Alguém chega por trás e bate no ombro de Noel.
- Noel, Noel Rosa! Que bom você estar aqui! Andava mesmo à sua procura.
O sujeito tira do bolso algumas folhas amassadas de papel. Diz que acabou de
fazer um samba, coisa muito boa, música e letra caprichadas, de uma qualidade
que nenhum
Francisco Alves, nenhuma Carmem Miranda terá coragem de recusar. Um samba quase
pronto, precisando apenas de alguns retoques, uma vírgula aqui, um acentozinho
ali,
no máximo a correção de um ou dois versos.
- Será que você me dava uma ajuda, Noel?
Noel pede-lhe que cante o samba. Ele e Ismael ficam ouvindo, calados, atentos.
Noel puxa o cotoco de lápis e nas mesmas folhas amarrotadas vai fazendo emendas.
Sugere,
também, modificações na linha melódica, a primeira parte ficando assim, a
segunda assim, a letra mudando aqui, ganhando mais dois versos ali,
cortando-se três mais adiante. Pronto, Noel canta para o "autor" do samba o que
resultou de seus retoques. O homem e Ismael Silva ficam assombrados. É um novo
samba,
infinitamente superior à pedra bruta original. Uma beleza.
- Obrigado, Noel. Era isso mesmo que estava faltando.
E o sujeito se vai, folhas amarrotadas no bolso, melodia na cabeça. Ismael,
ainda impressionado, diz a Noel que o samba realmente ficou
257

muito bom, a letra é inspiradíssima, o Chico haveria de gostar.


- Você nem tirou cópia.
- Deixa pra lá.
- E o camarada, quem é?
- Não sei. Nunca o vi antes.
Noel Rosa tem sido, nestes três, quatro primeiros anos de carreira, um constante
experimentador de parceiros. Jamais recusará proposta para um trabalho a dois,
seja
de um grande amigo, seja de um desconhecido que o aborde na Galeria Cruzeiro ou
num botequim qualquer. Muitas vezes - e por razões várias - a proposta parte
dele
mesmo. Como acontece com os chamados "compositores de morro", dos quais sempre
se aproxima com a humildade de um consciente e aplicado discípulo (e a lição
desses
mestres tem enriquecido, melódica e harmonicamente, a sua obra). Ou como
acontece quando ele se entusiasma muito por uma melodia e pede ao seu autor
permissão para
fazer a letra. Do que De Qualquer Maneira, de Ary Barroso, ainda é o melhor
exemplo. Mas, na maioria das vezes, são os outros que o procuram. Nomes
consagrados ou
meros principiantes.
O número de seus parceiros em vida alcançará o total de 56! Nenhum outro
compositor popular terá tantos colaboradores em tão pouco tempo. E de estilos,
talentos,
personalidades e importâncias tão diversas. Esse constante emparceiramento - um
pouco por desprendimento, ele muitas vezes não se importando em assinar ou não o
que faz, mas um pouco também pela vontade de abrir caminhos, de trocar
informações e experiências com outros compositores, outros letristas - acabará
criando, daqui
a vinte, trinta anos, algumas discussões em torno dos méritos da obra de Noel
Rosa: a razão de seu sucesso estará na qualidade dos parceiros ou estes, pelo
contrário,
é que devem a Noel o melhor do que fazem? Discussões que, ocupando o tempo
precioso dos estudiosos da música popular, chegarão a pôr em dúvida sua
competência como
criador de melodias, tentando defini-lo como um excepcional letrista a vestir
com seus versos as melodias de outros. E que irão mais além, cometendo a
injustiça
de acusá-lo de "escondedor de parceiros", quando na verdade é ele que
freqüentemente se oculta. Mas essas são discussões que daqui a vinte, trinta
anos, quando Noel
já não estará aqui para se inteirar delas(2).
Por ora ele se limita a multiplicar parceiros, não se negando a somar talentos
com nenhum deles. Muitos já são consagrados, estão destinados à imortalidade.
Como
Ary Barroso, Lamartine Babo, Eduardo Souto. Outros começarão a se projetar a
partir de sua parceria
com Noel (não necessariamente por causa dela, mas a partir dela). Como Custódio
Mesquita, um quase desconhecido até aquele empurrãozinho de Prazer em
Conhecê-lo. Outros mais estão condenados a maior ou menor esquecimento, só
fazendo parte da história na medida em que tiveram a oportunidade de fazer
música com
Noel Rosa.
René Bittencourt, por exemplo, morrerá jurando nunca ter feito música com Noel.
Jura, aliás, que outros parceiros ingratos também cometerão, mesmo quando todo o
mundo souber que não é verdade. Carioca de Paquetá, doze dias mais novo que
Noel, inteligente, vivo, cavador, René já animou espetáculos em circo,
empresariou artista
de teatro, foi redator de jornal. Até encontrar-se com Noel - com quem, aliás,
tem entrado em muita farra, entre elas as alegres peregrinações à Rua Moju -
nada
fez em matéria de música popular. Isto é, compôs duas ou três coisinhas das
quais ninguém tomou conhecimento. Uma delas é apenas um coro de seis versos
curtos:
Felicidade! Felicidade!
Minha amizade
Foi-se embora com você.
Se ela vier
E te trouxer,
Que bom, felicidade, que vai ser!
Para o qual Noel faz três segundas partes. Duas ele próprio gravará na Columbia,
a voz não nos seus melhores dias (chega a engolir uma palavra), mas com
interpretação
triste como o samba pede:
Trago no peito
o sinal duma saudade
Cicatriz de uma amizade
Que tão cedo vi morrer
Eu fico triste
Quando vejo alguém contente
Tenho inveja desta gente
Que não sabe o que é sofrer
O meu destino
Foi traçado no baralho
Não fui feito pra trabalho
Eu nasci pra batucar
Eis o motivo
Que do meu viver agora
A alegria foi-se embora
Pra tristeza vir morar
A terceira segunda parte - talvez melhor que as gravadas - só chegará ao disco
daqui a vinte anos, Noel já morto, Francisco Alves tornando-se amigo de René e
decidindo
reviver Felicidade(5):
258

Felicidade
Não está sempre ao nosso alcance
É o tema de um romance
Onde os corações são dois
Quando começa
A alegria nos domina
Com a tristeza ela termina
E a saudade vem depois

Uma tarde Mário Reis aparece de surpresa no chalé e encontra Noel vencido por um
daqueles sonos dos quais é quase impossível despertá-lo. Mas o cantor tem bons
motivos
para querê-lo de pé.
- Acorda, Noel! Precisamos conversar.
Depois de muitas sacudidelas e gritos ao ouvido, Noel, meio entorpecido, se
senta na beira da cama. Mário conta que Walfrido Silva lhe deu para gravar um
refrão
fortíssimo, música, letra, ritmo, tudo de primeira. Canta:

Vai haver barulho no château


Porque minha morena falsa me enganou
Se eu ficar detido,
Por favor, vá me soltar,
Tenho o coração ferido,
Quero me desabafar.
Agora precisa da segunda parte. E rápido, pois pretende gravar o samba no outro
lado do disco em que Francisco Alves lançará Divina Dama, de Cartola. Noel
boceja,
espreguiça, depois pega o lápis na mesinha de cabeceira. Mário
estende-lhe uma folha de papel.
Walfrido Silva. Será que exageram aqueles que dizem que este sambista simpático
e sorridente já nasceu batucando? Seis anos mais velho que Noel, quando este
entrou
para o São Bento ele já tinha três ou quatro anos de estudos com Carlos Eckard.
De quê? De bateria, evidentemente. É hoje um dos maiores - se não o maior -
bateristas
brasileiros. Com aquelas duas baquetas na mão, Walfrido é capaz de tudo.
Pixinguinha não dispensa seu concurso nas gravações dos Diabos do Céu. Também
compõe. E
bem. Com seu amigo Gadé há de produzir uma série de sambas e sambas-choros
extraordinários. No entanto, até o refrão de Vai Haver Barulho no Chato, pode-se
dizer
que ainda não aconteceu.
Noel rabisca alguma coisa na folha de papel, resmunga quase a melodia para que
Mário a guarde. Completa assim, sonolento, o novo samba:
Quase sempre eu evito
Bate-boca em nosso lar
Pois não quero ir pro distrito
Por questão particular...
Desta vez é impossível
Tenho que desacatar,
Parece uma coisa incrível
Não ter quem queira me soltar.

Depois disso, Noel vira-se para o lado e volta a dormir.


Em outra ocasião acontece o contrário, Mário sendo acordado tarde da noite por
um Noel entusiasmado com novo samba. Dele e de André Filho. O cantor recebe-o
com
a elegância costumeira.
- Problemas, Noel?
-Não, não háproblema algum. Apenas o samba.
- Eu gostaria que você o gravasse. Quer ouvir?
- Nem preciso ouvir, Noel. Se é seu, eu gravo.
Antônio André de Sá Filho chegou a estudar música erudita com o maestro Pascoale
Gambardella. Toca piano, violino, violão, bandolim, banjo, percussão, e desde
1929
se dedica à canção popular. Ainda fará muita música boa, enriquecendo com ela os
repertórios de Mário Reis, Carmem Miranda e vários outros. Mas será na voz de
Aurora
Miranda que alcançará a celebridade, sua Cidade Maravilhosa elevando-se às
alturas de verdadeiro hino do Rio de Janeiro.
Mas é anterior a esta marcha imperecível o samba que Noel leva para Mário Reis
nesta noite. Um samba intitulado Filosofia, repleto de pensamentos tão seus.
Observe-se
que Noel começa queixoso, infeliz, autopiedoso quase, para logo mudar, adquirir
força, passar da defesa ao ataque, aprumar-se. A simulação, o desprezo pela
sociedade
que é sua inimiga, o orgulho de ser pobre mas livre, a indiferença ao dinheiro
são a sua "filosofia". Na letra e na vida. O samba não fará sucesso, mas será
para
sempre um dos favoritos de Mário Reis:

O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome.
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim,
Vou fingindo que sou rico,
Pra ninguém zombar de mim.
Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga.
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
Muito embora vagabundo.
259

Quanto a você
Da aristocracia,
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria,
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hiprocrisia.

Francisco de Queiroz Mattoso. Três anos mais novo que Noel, poeta, pianista.
Mais pianista que poeta, virtuoso executante que é de valsas de Nazareth, Souto
e Tupynambá.
No entanto - fato curioso - suas atuações na música popular se concentrarão
sempre mais nas letras do que nas melodias. Um dia será o autor, com Lamartine
Babo,
de um dos clássicos da música romântica brasileira: Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão
Linda. Por enquanto, isto é, na época em que Noel o conhece, é apenas um dos
muitos
anônimos que rondam os corredores das emissoras de rádio.
Noel e Mattoso - apresentados um ao outro pelo Dr. Cid Prado, de Vila Isabel -
farão juntos dois sambas. Num deles, Esquina Da Vida, partirão de versos de Noel
para
criarem algo muito bonito que Mário Reis - mais uma vez Mário - gravará
acompanhado pelo piano de Nono:

É na esquina da vida
Que assisto à descida
De quem subiu
Faço o confronto
Entre o malandro pronto
E o otário
Que nasceu pra milionário
E na esquina da vida Observo o valor
Que o homem dá à mulher e ao amor
E é por isso que ela
Em qualquer situação
Zomba da gente,
sempre cheia de razão
É na esquina da vida
Que espero ver você
Estendendo a mão
E implorando
Já desiludida
O meu perdão
Para eu dizer que não

O outro samba, que permanecerá inédito por muito tempo, teria sido inspirado em
Julinha. Será conhecido indistintamente por dois títulos, Vai Para Casa Depressa
e Cara ou Coroa.

Vai para casa depressa


Vai prevenir teu senhor
Que eu vou cumprir a promessa
Que fiz de possuir teu amor.
Não sou malandro covarde
Volta depressa pro teu barracão
Antes que seja bem tarde
Para salvar a tua reputação.

Quando a mulher desequilibra,


Para dois malandros de fibra
Só há uma solução:
Para que brigar à toa?
Basta tirar cara ou coroa,
Com um níquel de tostão.
Se não bastar tirar a sorte,
Se o amor falar mais forte
Sou o dono da questão
E ao teu antigo dono
Tens que dar o abandono
Dando a mim o coração.

Francisco de Queiroz Mattoso. Como Noel, morrerá muito jovem, aos 28 anos, sem
realizar tudo que seu talento promete, sem deixar mais do que algumas poucas
canções
de amor nascidas de seu temperamento romântico, uma das quais Francisco Alves
transformará em seu prefixo:

Na carícia de um beijo
Que ficou no desejo,
Boa-noite, meu grande amor
260

Tão anônimos hoje quanto Francisco Mattoso, mas talhados para continuarem assim,
pelo menos no que toca à música, são Gilberto Martins, Alfredo Lopes Quintas e
Adalto
Costa, todos parceiros de Noel em peças de maior ou menor qualidade.
Gilberto Martins Amado descende dos Amados, de Pernambuco, família ilustre com a
qual ele brigou tão seriamente que foi ao registro civil fazer com que lhe
tirassem
o último nome. Como Gilberto Martins torna-se conhecido no rádio. Indivíduo
nervoso, dado a cacoetes. Um deles, desagradabilíssimo, consiste em tirar uma
secreção
do quisto que carrega no lóbulo da orelha e levar a mão ao nariz para cheirá-la.
Mas é muito inteligente. De vez em quando compõe. Contudo, nada do que faz será
lembrado daqui a alguns anos. Tirando, é claro,
Devo Esquecer, comovido samba que escreve com Noel e que este gravará em dupla
com Leo Villar, tendo ao fundo inspirada orquestração de Pixinguinha.

Sim, devo esquecer


Este amor que me faz reviver
Se é maldade, perdoa, mulher
Mas o destino assim quer
Vou procurar na orgia
Toda a minha alegria
Que me foste roubar
Eu vou para longe de ti
Para nunca mais ver
Teu olhar, teu sorrir
Em liberdade hoje vivo a pensar
Não posso mais te amar
Porém, se um dia sentir
Que nem longe de ti
Poderei esquecer
Eu voltarei, eu te juro, podes crer
Para contigo viver

Alfredinho também pertence a família tradicional, os Lopes Quintas (um deles,


Domingos, rico proprietário de terras do século passado, é nome de rua no Jardim
Botânico).
Mas seu negócio mesmo é samba. Já morou na Theodoro da Silva, mas por tão pouco
que nem se pode considerar membro, ainda que longínquo, da "grande família" que
é
Vila Isabel. Primo, de verdade, é de Rubens Soares, um campeão de boxe que ainda
vai se tornar bom compositor, parceiro certo por linhas tortas e um quase
desafeto
de Noel. Mas isso daqui a algum tempo.
Alfredinho aproxima-se musicalmente de Noel Rosa aí por 1932, 1933- A primeira
tentativa de se fazerem parceiros é praticamente um esboço,
Que Orgulho é este, e não será gravada.

Que orgulho é este?


Você já nem se lembra mais
Já esqueceu o meu nome
Eu sou aquele que matou a sua fome
Nunca vi coisa tão certa
O orgulho também tem seu fim
Quando a sua fome aperta
Você vem procurar por mim

A idéia vai ser retrabalhada, inclusive com o aproveitamento de alguns versos. O


resultado também ficará inédito em disco, mas pelo menos será obra acabada,
transferida
para a pauta sob o título de Saber Amar. Noel é fiel a alguns de seus temas,
persistentes motes que jamais o abandonarão. Não só as mentiras de mulher, mas
também
aqueles que falam de dinheiro com sotaque. Como os seus prestamistas.

Amar
Saber amar sem enganar
Quem quero amar não me quer
Para que tanta amizade
Se o amor de falsidade
Vem da parte da mulher
A mulher tem a mania
De lesar a humanidade
Tem o dom da hipocrisia
E ama sem ter vontade
Demonstrei com brevidade
Que duvide quem quiser
O amor de falsidade
Vem da parte da mulher
Nunca vi coisa tão certa
O orgulho tem seu fim
Quando a tua fome aperta
Tu vens procurar por mim
Mesmo em posição de ataque
Eu te ouço prazenteiro
Mas tens muito mau sotaque
Quando falas em dinheiro

Mas o que de melhor Alfredinho e Noel criam juntos tem a colaboração de Romualdo
Peixoto, o Nono, aquele mesmo bom companheiro de viagem nas andanças pelo Sul.
Trata-se
do melódico samba Sei Que Vou Perder, que sairá em disco sem o nome de Noel e
aparecerá na partitura com o de Francisco Alves. Qual terá sido a participação
de Chico?
Talvez apenas a da estupenda interpretação que ficará gravada na Odeon, o piano
de Nono sendo toda a "orquestra" que o acompanha.

Sei que vou perder


Um bem que era só meu,
Que não soube sofrer
261

Porque se arrependeu.
Depois que me viu Perdido
de amor Sem pena me traiu
Eu que fiquei com a dor
O capricho da mulher
Faz o homem padecer
É veneno quando quer
Que maltrata e faz morrer
O amor mais verdadeiro
A mulher despreza à toa...
Só não despreza o primeiro,
Mas quando pode magoa

Como aquele desconhecido que deu um tapinha nas costas de Noel na esquina da
Galeria Cruzeiro, desaparecendo em seguida por entre a multidão ante os olhos de
assombro
de Ismael Silva, Adalto Costa é outro que não deixará vestígios de sua passagem
pela música popular. Ou melhor, vestígios tão deléveis que seu nome -assim
mesmo,
escrito com l em vez de u e perderá timidamente entre tantos mais. Quem é Adalto
Costa?, se perguntará daqui a alguns anos. No entanto, com Noel ele assina uma
marcha,
Fiquei Sozinha, cuja melodia dolente, de notas mais longas do que as das
marchinhas carnavalescas, parece descender daquelas que os ranchos cantam com
tanto sentimento
em seus desfiles. Gravada pela bonita morena Ruth Franklyn, será tão pouco
lembrada quanto o obscuro parceiro de Noel.

Fiquei sozinha,
Abandonada, implorando o teu perdão.
Fiquei sozinha,
Desesperada com a tua ingratidão.
Sem teu perdão,
amor, Eu vivo a padecer
Sem ter o que comer
Sem um vintém para beber
Oh, vem depressa, vem!
Isso não é papel,
Se não voltares, Eu arranjo um coronel.
Sem a tua companhia
Eu não posso resistir,
Vendo o prazer fugir
Sem um lugar para dormir.
Pra me vingar de ti
Farei o que puder,
Não é assim
Que se despreza uma mulher.
Jerônimo Cabral e Noel têm pelo menos dois gostos em comum: a música e a bebida.
Só que, enquanto Noel pende bem mais para a primeira, Jerônimo tem indisfarçável
preferência pela última. Não se pode dizer que viva bêbado, mas quase. É raro
vê-lo longe de um copo. Vez por outra surge numa esquina do Centro, em plena luz
do
dia, trôpego, o corpo alto e robusto dançando, a fala enrolada de quem mais uma
vez passou da conta. É pianista e compositor de talento, escreve música para o
teatro,
rege a orquestra em revistas e operetas montadas na Praça Tiradentes. Isto é,
quando pode. Porque a única hora em que está em condições de render tudo que
sabe é
na parte da manhã, quando se senta ao piano, compõe e toca suas canções. Depois
do meio-dia, tudo depende do quanto saciar sua sede.
Simpático, grande coração, amigo dos amigos. Boêmio impenitente, é capaz de
trocar tudo por uma noitada embebida em música e vermute. No dia em que se
casou, saiu
da festa com alguns amigos para uma comemoraçãozinha adicional no botequim da
esquina. E só voltou no dia seguinte. Um trago aqui, outro ali, Jerônimo
esquecendo-se
de que acabara de se transformar num homem casado, a noiva em casa esperando,
buquê na mão, aflita.
Uma das noitadas inesquecíveis de Jerônimo Cabral é vivida na companhia de Noel,
Custódio Mesquita, Milton Amaral, Jurandyr Santos e Alfredo Motta da Silva.
Voltam
todos meio altos de uma festa em Cascadura e esperam cada qual o seu bonde no
Largo de São Francisco. Noel, desta vez, consegue estar mais chumbado do que o
Cabral.
Mal se mantendo em pé, deixa os amigos no ponto do bonde, vai até a igreja,
encosta o violão, tira o chapéu e deita-se no degrau da escadaria. Quando o Vila
Isabel-Engenho
Novo aponta na Avenida Passos, Milton e Cabral vão chamá-lo. São quase seis da
manhã, a igreja já está aberta, os fiéis começam a chegar para a primeira missa.
Os
dois sacodem Noel, agora imerso em mais um sono profundo. Uma vez acordado, Noel
pega o violão e logo em seguida o chapéu, dentro do qual, para surpresa dos
três,
há um punhado de notas e moedas. Os fiéis, supondo tratar-se de um mendigo,
foram ali depositando seus caridosos óbulos. Um bom dinheiro. Tão bom que Noel
convida
Milton e Cabral para darem um pulo até a Lapa, onde vão acabar a noite - ou
melhor, começar o dia - comendo carne-seca com farinha num botequim dos Arcos,
em parte
financiados pelos piedosos devotos de São Francisco de Paula.
Cabral e Noel, companheiros de copo, serão também parceiros na música. Farão
juntos um fox-trot sobre o qual se contarão algumas histórias. Cabral, de tanta
encomenda
que recebe para escrever música para números de dança e sapateado nos moldes das
ZiegfekTs "Follies" tornou-se muito familiarizado com os ritmos
262

norte-americanos. Gosta muito de compor fox-trots, de modo que é com um deles


que vai vestir os versos de Noel para a única obra que criarão juntos: Estátua
da Paciência.
Das histórias que correm sobre as origens de tais versos, a mais plausível está
ligada ao pessoal da Rua Moju. Terezinha, uma das filhas de dona Luísa, fugiu de
casa para viver com um polonês que bancava jogo de roleta em Ramos. A família
inteira se pôs atrás da moça. Havia informações vagas de que o tal polonês
morava neste
ou naquele subúrbio. Dona Luísa, desesperada, apelou para todos e para tudo, os
amigos, as orações, o irmão policial. Que lhe trouxessem a filha de volta pelo
amor
de Deus. Foi Alegria quem, penalizado com tanta aflição, achou não haver outro
jeito senão trair a confiança de Noel e dizer a dona Luísa que o amigo sabia do
paradeiro
de Terezinha. Dona Luísa suplicou-lhe:
- Por caridade, Noel, me diz onde ela está!
Numa de suas muitas andanças pela cidade, ele descobrira o paradeiro da tia de
Fina, a casa do polonês cercada de muros altos como os de uma fortaleza. Mas,
como
não tinha nada com isso, ficou quieto. Com as súplicas de dona Luísa,
viu-se forçado a ir ele mesmo buscar a moça. Da interminável espera a que foi
obrigado, na estação de Ramos, para abordar Terezinha quando ela por ali
passasse,
teriam nascido os versos de Estátua da Paciêncid:
Seu telegrama diz:
"Regressarei brevemente"
Mas o seu trem fatalmente
Chegar não quis
Não entendi por que O trem
não traz pra cidade
A minha felicidade
Que é você
A quem acabar com a raça dos trens
Além dos meus parabéns
Eu darei como prêmio de consolação
O relógio e o prédio da estação.
Eu sou na estação
A estátua da paciência
E acabei sendo agência
De informação
Sei os itinerários
Já decorei os horários
O nome dos maquinistas
E dos foguistas!
Seu telegrama diz:
"Regressarei brevemente"
Mas o seu trem fatalmente
Chegar não quis
Não entendi, querida,
Por que seu trem não regressa
Amenizando depressa
A minha vida.

Mas é apenas uma história, que não parece casar bem com o apaixonado cantor dos
versos que espera, não tão paciente, a sua amada.

Jota Machado é outro homem de teatro. Mais um daqueles que o público não vê no
palco. Compõe para revistas, faz música de fundo para peças dramáticas desde que
Leonardo
Fróes o descobriu há alguns anos. É um dos que Almirante acusa de ter copiado
despudorada-mente o seu Na Pavuna. O Na Gamboa, de Jota Machado, tem mesmo muita
coisa
de papel-carbono: "
Na Gamboa, na Gamboa
Tem macumba que só entra gente boa(5)

Mas, bom compositor, ótimo pianista, Jota Machado não merece entrar para a
história apenas por esta crise de falta de imaginação. Tem boas músicas de
criação própria,
as valsas Páginas do Coração e Fonte da Saudade, ofox-trot Annita, a canção
Saudade Que Mata.
Certa tarde, Noel entra na Casa Viúva Guerreiro, editora de música que funciona
na Rua 7 de Setembro, e lá encontra Jota Machado. Vai direto ao assunto:
- Tenho aqui um samba pra te vender. Cinco mil réis.
- Que samba é este, Noel?
-Por enquanto só fiz os versos. Chama-se Que se Dane!
E ali mesmo - como se os inventando na hora - Noel escreve-os para Jota Machado,
que vai musicá-los.

Vivo contente
embora esteja na miséria
Que se dane! Que se dane!
Com esta crise
levo a vida na pilhéria
Que se dane! Que se dane!
Não amola! Não amola!
Não deixo o samba
Porque o samba me consola
Fui despejado
em minha casa no Caju
Que se dane! Que se dane!
O prestamista
levou tudo e fiquei nu
Que se dane! Que se dane!
Fui processado
por andar na vadiagem
Que se dane! Que se dane!
Mas me soltaram
pelo meio da viagem
Que se dane! Que se dane!
263

Ainda de teatro é Arthur Costa, carioca cheio de aptidão para muitas coisas. Foi
torneiro mecânico, tocador de bandolim, motorista de táxi. Embora morando na
Tijuca,
fazia ponto na Praça da Bandeira onde, entre uma corrida e outra, cantava sambas
no estilo de Luís Barbosa. De tanto agradar, acabou no rádio e no disco. Claro,
antes de descobrir o teatro.
Conheceu Noel Rosa no Café Nice. Começaram a fazer juntos um samba esquisito,
Estricnina, do qual só restarão os tragicômicos versos iniciais:
Estricnina não é ruim de se tomar
Eu vou me envenenar! Eu vou me envenenar!
Arthur Costa, com malabarismos vocais que lembram mesmo Luís Barbosa, o jeito de
embaralhar as sílabas fazendo a voz soar como um instrumento de percussão
("teu-teu-balaco-baco-chico-pã..."), grava em dupla com Noel Bom Elemento. E
também Espera Mais Um Ano, que acabará não saindo, talvez por causa de um mau
agudo
de Noel(6). E ainda Você Foi o Meu
Azar, os dois alternando-se, com muita bossa, de verso para verso. É outra
gravação que ficará arquivada, mas Arthur, parceiro de Noel na autoria, vai
refazê-la
com Neneo das Neves, usando o mesmo arranjo:
Você foi o meu azar (Você foi o meu azar) Estragou a minha vida (Por ser falsa e
convencida) Para me fazer chorar (Quis me deixar) Hoje volta arrependida (Por
ser
mal-sucedida)
Depois da sua saída
(Fiquei logo bem de vida)
Foi-se embora o meu azar
(Se eu quiser posso provar)
E até mesmo o bicheiro
(Paga sempre o meu dinheiro)
Quando acerto no milhar
Com você passava fome
(E sofri coisas sem nome)
Andei teso, sem tostão
264

(Vou explicar a razão)


Eu vivia tão pesado
(Que até fui atropelado)
Por um carrinho de mão.
Se você quiser voltar
(Para a vida melhorar)
Temos que fazer assim:
(Para o nosso azar ter fim)
Para ver se você me ama
(Fico a descansar na cama)
E vais trabalhar por mim.

O mesmo Arthur Costa é quem grava outro samba seu com Noel Rosa, sem dúvida
melhor que os outros. Senão pela música, de molejo carioca como seus autores, ao
menos
pela letra, o tema da fome, da penúria, dos bolsos vazios, mais uma vez
focalizado pelo acridoce humor de Noel. O título já antecipa o que se vai ouvir:

Sem Tostão.

De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje sai do plantão
Sem tostão! Sem tostão!
Já perguntei na Prefeitura
Quanto tenho que pagar:
Quero ter uma licença
Pra viver sem almoçar.
Veio um funcionário
E gritou bem indisposto
Que pra ser assim tão magro
Tenho que pagar imposto!
E quando eu passo pela praça
Quase como o chafariz.
Quando a minha fome aperta,
Dou dentadas no nariz.
Ensinei meu cachorrinho
A passar sem ver comida:
Quando estava acostumado,
Ele disse adeus à vida!

Mas a maior de todas as aptidões de Arthur Costa é realmente o teatro de


revistas, que cedo ou tarde ocupará em sua vida o lugar que por enquanto
pertence ao samba.
Parceiros que começam a se projetar a partir da simbiose com Noel, parceiros que
logo serão esquecidos, amigos, desconhecidos, há de tudo no meio dos 56. Até um
irmão. Sim, porque Hélio, apesar dos ciúmes dos tempos de garoto (ciúmes dos
quais sempre restará um pouco), tornou-se ao crescer um dos maiores admiradores
de Noel,
um dos primeiros a admitir que, afinal, o irmão é mesmo um privilegiado.
Hélio também adora música. Sempre
adorou. Difícil ser diferente tendo nascido e crescido entre os saraus do chalé.
Mas seu interesse, a certa altura, passou a ter algo de obsessivo, agarrando-se
ao violão horas a fio, aprendendo posições novas, criando suas próprias,
exercitando-se aflitivamente até ferir os dedos, tudo para se fazer melhor que o
irmão.
Isso, naturalmente, nos tempos enciumados de garoto. Hoje, Hélio tem outros
interesses, estuda veterinária. Continua com os olhos nos livros, não só da
especialidade,
mas de assuntos que vão da mitologia clássica à literatura francesa, da
matemática à filosofia, da cosmologia ao ocultismo. Fala correntemente o inglês,
defende-se
no francês e no espanhol, já pensa em tentar o alemão. Continua despertando nas
pessoas a mesma exclamação :
- Puxa, o Hélio sabe de tudo... Mas como é esquisito!
É mesmo diferente de Noel. Bem-apessoado, um tanto arrogante, exigente com tudo
e com todos. Não é de boêmia, não gosta de boêmios. Prefere a companhia dos
rapazes
bem-comportados do bairro, universitários como ele, futuros médicos, advogados,
militares. Nesta roda, brilha tanto quanto Orestes Barbosa no Nice. É muito
inteligente
- e nisso não difere de Noel. Algumas pessoas nem sempre compreendem seus
rompantes. Outras assustam-se com suas convulsões, a epilepsia não de todo
controlada.
Hélio não se envergonha dela, como tantos portadores da doença. Talvez se lembre
que Machado de Assis e Dostoievski também foram epiléticos.
Esquisito. Muito da fama que os moradores do chalé gozam - Bella, Rita, Martha,
Neca, o próprio Noel - se deve às estapafurdices de Hélio. Não foi de graça que
Orestes
Barbosa confidenciou a Manuel Jansen Muller:
-Na casa de Noel todos sempre estiveram a um passo da loucura. Mas quem deu este
passo, mesmo, foi o Hélio.
Diferente do irmão. Como nos tempos de garoto, raramente andam juntos. Mas há
entre eles uma admiração mútua, nem sempre declarada. Uma amizade fraterna
embora não
muito íntima. Em vários campos Hélio gosta de competir com Noel, no amor, na
música, no brilho pessoal. Persegue-lhe as namoradas, talvez chegue mesmo a
conquistar
algumas delas, ganhos sem importância. Realmente se tornou melhor violonista que
o irmão, fazendo hoje no instrumento tudo que Noel faz e muito mais. Até o fim
da
vida terá impulsos infantis de mostrar isso às pessoas. Também compõe, mas,
talvez no desejo de até nisso ser melhor, vai trilhar caminhos, segundo supõe,
mais ambiciosos:
o da música americana. Não irá longe. Seus fox-trots
265

sabem a coisa já ouvida. E Noel é bastante franco em relação a isso:


- Não gosto, Hélio. É muito americanizado.
O que não impede de se tornarem parceiros. E justamente num fox-trot, a única
composição dos dois que sobrevierá(7). A melodia é de Hélio. Quem conhecer a
gravação
original da orquestra americana de Paul Whiteman para Nobody's Sweethearf logo
ficará sabendo em que Hélio se inspirou. Mas a letra de Noel, como se fosse uma
saudação
familiar, é repleta de trocadilhos e aliterações que os moradores do chalé
sempre cultivaram, desde a época de vovô Eduardo. A composição intitula-se Você
Só...
Mente e será gravada por Francisco Alves e Aurora Miranda:

Não espero mais você,


Pois você não aparece
Creio que você se esquece
Das promessas que me faz...
E depois vem dar desculpas
Inocentes e banais.
É porque você bem sabe
Que em você desculpo Muita coisa mais...
O que sei somente
É que você é um ente
Que mente inconscientemente,
Mas finalmente, não sei por que
Eu gosto imensamente de você.
E invariavelmente,
Sem ter o menor motivo,
Em um tom de voz altivo,
Você quando fala, mente
Mesmo involuntariamente.
Faço cara de contente,
Pois sua maior mentira
É dizer à gente
Que você não mente.

Noel e Hélio Rosa, irmãos tão diferentes, separados na vida em quase tudo,
dificilmente chegariam a manter um casamento musical harmonioso, uma parceria
longa e
perfeita.
Parcerias longas e perfeitas são raras. Nesses muitos encontros que Noel tem
vivido por aí, marcados ou ocasionais, com compositores de talento ou estranhos
que
lhe batem no ombro, quantas durarão? Poucas. E quantas atingirão a perfeição?
Pouquíssimas. A rigor, em termos de durabilidade e afinação, Ismael Silva ocupa
lugar
único na obra de Noel Rosa. E vice-versa. Os dois formaram desde o começo uma
parceria perfeita. E destinada a durar. Mas será mesmo um caso único?
Em fins de 1932, no estúdio da Odeon,
Eduardo Souto passa pelo pianista que dentro de poucos instantes vai acompanhar
Francisco Alves numa gravação. É um sujeito magro, de bigodinho fino, cabelo
ondulado
dividido ao meio, óculos de aro de metal. Os dedos ágeis deslizam pelo teclado
na execução de uma melodia que chama a atenção do maestro. Uma melodia de
incomum
beleza.
- De quem é?
- Minha.
- Tem nome?
- Não.
- Tem letra?
- Também não.
O maestro pára para pensar. Uma composição que desde a primeira frase musical
deixa claro que quem a fez não é um melodista de soluções fáceis. A passagem da
primeira
para a segunda parte confirma essa constatação. Ao contrário da maioria, quase
totalidade dos compositores populares, que fazem da segunda parte um mero
complemento
da primeira, na qual colocam todos os seus trunfos melódicos e harmônicos, este
aqui desdobra um fragmento em outro, cria um coro que toca Eduardo Souto e um
verso
tão ou mais apreciável.
- Espere um instante - diz o maestro. Em pouco ele está de volta trazendo pelo
braço Noel Rosa, que cuidava na sala ao lado de suas próprias gravações. O
maestro apresenta-o ao pianista, sem formalidades nem rodeios.
- Este é o Vadico, Noel. Pianista de São Paulo. Acho que vocês deviam pensar em
trabalhar juntos. Ouça esta música que ele fez.
A pedido do maestro, o pianista executa mais uma vez sua composição. Noel ouve
em silêncio, atento, a cabeça meio de lado, o queixo defeituoso apoiado nas
costas
da mão direita. E quando o pianista volta mais uma vez à primeira parte, Noel
pega papel e lápis e começa a trabalhar num monstro, isto é, uma letra
provisória destinada
apenas a assinalar o número de sílabas de cada frase musical, a pontuação e a
acentuação que deve ter cada uma. Ao fim, diz:
- Vou tentar a letra.
O maestro Eduardo Souto vê Noel se afastar com o monstro no bolso. Sensível como
sempre, talvez saiba, lá no íntimo, que acaba de dar à música popular
brasileira,
nesta simples apresentação, um presente tão valioso quanto suas próprias
composições.
Não se engana o maestro. Vadico, Oswaldo Gogliano, tem 22 anos e a música no
sangue. Tanto a mãe mineira como o pai paulista, descendente de italianos,
fizeram questão
de dar aos filhos uma educação musical. A todos eles. De modo que Vadico estudou
piano, harmonia, composição. Corajoso, para não dizer ousado,
266

decidiu muito cedo ganhar a vida tocando e compondo música. De preferência,


popular. Largou o emprego de datilógrafo numa firma de São Paulo e tratou de
seguir sua
vocação. Nos últimos quatro anos, não tem descansado. Empregos de pianista em
cafés e hotéis, músico de orquestras e pequenos conjuntos, tentativas de ter
seus sambas
e marchas gravados por algum cartaz do rádio. Tornou-se um ganhador de
concursos, na esperança de que isso lhe abrisse portas. Engano. A marcha Isso
Mesmo É Que
Eu Quero, por exemplo, valeu-lhe uma medalha de ouro em São Paulo, mas não o
tornou conhecido. Achou melhor mudar-se para o Rio, onde afinal estão as
gravadoras,
os músicos mais importantes, os cantores que vendem discos. Embora lentamente,
sua sorte começou a mudar. Tinha apenas vinte anos quando chegou por aqui.
Foi Eduardo Souto quem lhe deu emprego de pianista e orquestrador na Odeon.
Menos por serem conterrâneos do que por ter o diretor musical da gravadora,
perspicaz
como sempre, percebido logo que a Odeon é que tinha a ganhar: Vadico era
talentoso e custava pouco. Não
mais do que alguns mil réis à pouco generosa folha de Fred Figner.
No Rio, o jovem pianista foi avançando devagar. Teve seu samba Arranjei Outra,
letra de Dan Malio Carneiro, gravado por Francisco Alves. Mal foi notado. Outro
samba,
Silêncio, música e letra suas, chegou ao disco nas vozes de Luís Barbosa e
Vitorio Lattari, ganhou um concurso do Correio da Manhã (competindo com Mulher
de Malandro,
de Heitor dos Prazeres, e Na Piedade, de Ary Barroso, entre outros) e foi
incluído na revista musical Bibelot, de De Chocolat. Veio avançando devagar.
Agora, o encontro com Noel. Que dois dias depois procura-o na Odeon para
dizer-lhe que o samba já tem título e letra. Vadico, ansioso para ver o
resultado, vai para o piano. Gosta do título: Feitio de Oração. E mais ainda da
letra:

Feitio de Oração. (Samba de Vadico e Noel Rosa.)

Quem acha vive se perdendo


Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
Meu pobre peito invade
267
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Por isso agora
Lá na Penha vou mandar
Minha morena pra cantar
Com satisfação
E com harmonia
Esta triste melodia
Que é meu samba
Em feitio de oração.
O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.

Uma outra estrofe não será aproveitada na gravação original de Francisco Alves e
Castro Barbosa. Na verdade, será arquivada por muitos anos(9). Mas o samba fica
mesmo melhor sem ela.
Chorando não é que se sente
Pois mesmo até um triste olhar nos mente
E o meu silêncio então suplanta
Um gemido na garganta
Quando contemplo a santa!

O tempo dirá que Eduardo Souto está certo, Vadico e Noel começam com uma
obra-prima e vão criar outras obras-primas pela vida afora. Nada do que farão
juntos - onze composições daqui até 1936 - é menos do que bom. E quase tudo é
mais
do que excelente.
Um encontro abençoado aquele, no estúdio da Odeon. Ismael Silva não é caso único
de durabilidade e afinação na obra de Noel Rosa. Vadico, dono de outro estilo (e
Noel parece adaptar-se a todos os estilos), entra nela como se para provar que
parcerias longas e perfeitas são raras, mas existem.

NOTAS
1. Número baseado em levantamento feito pelos autores e publicado em detalhes
no final do volume. Embora seja o mais completo realizado até aqui, nada impede
que
outras composições, outros parceiros, venham a ser redescobertos após a
publicação deste livro. O fato de Noel não assinar grande parte do que fazia
torna quase
impossível um inventário completo de sua obra. A essas 56 citadas no texto,
contudo, devem se somar desde já pelo menos três parcerias póstumas, perfazendo
o total
de 59-
2. Essas discussões serão estudadas mais aprofundadamente no Capítulo 46.
3. Francisco Alves gravaria o samba em 1952, meses antes de morrer. O nome de
Noel não sairia no selo do disco. Por essa época, o cantor estava muito ligado a
René
Bittencourt, com quem faria Canção da Criança e Brasil de Amanhã, gravadas por
ele próprio com o coro das meninas da Casa de Lázaro (esse mesmo coro
interpretaria
Canção da Criança à beira do túmulo do cantor durante seu sepultamento). Três
anos depois, René ameaçaria processar a gravadora Continental por omitir seu
nome no
selo do disco em que relançava Felicidade na versão original de Noel. Graças a
essa ameaça, ele conseguiria com que a Continental gravasse muitas de suas
composições
então encalhadas.
4. Era mesmo um polonês, banqueiro de roleta em Ramos, e não um bicheiro como
conta Almirante. Alegria e Fina, em depoimentos aos autores, narram sobre a fuga
de
Terezinha a mesma história, um pouco diferente da que Almirante nos dá em No
Tempo de Noél Rosa, segunda edição (página 195), na qual Noel entra apenas como
mero
ajudante da família na busca da moça. Ele era de fato o único que sabia onde
Terezinha estava.
5. Sem citar o nome de Jota Machado, Almirante registra, em Ato Tempo de Noel
Rosa, segunda edição (página 72) que "... o mais lamentável papel-carbono foi o
ridículo
Na Gamboa, cópia da melodia, do ritmo e do estribilho de Na Pavuna e que utiliza
na sua gravação os mesmos recursos lançados por nós, inclusive o característico
'bum-bum-bum'." Almirante cita ainda um comentário de Tom Rio, em O Malfyo de 15
de fevereiro de 1930: "... até o efeito de um batuque de tamborim que se
encontra
no disco de Na Pavuna foi transportado, também, para o disco de Na Gamboa. Não.
Decididamente a polícia precisa intervir nesse negócio de música e letra."
6. Ver Capítulo 21 e nota sobre Espera Mais Um Ano no apêndice sobre a obra de
Noel Rosa no final do volume.
7. Uma segunda parceria dos dois, Qual a Razão?, se perderá.
8. Escrito por Ernie Erdman, Elmer Schoebel, Billy Mayers e Gus Kahn, este
9. fox-trot se tornaria muito popular através da clássica gravação de Paul
Whiteman e sua Orquestra, realizada em Nova Iorque a 9 de outubro de 1929
(Columbia americana
2089 D). Pode-se notar pelo arranjo de Tom Satterfield como são semelhantes as
primeiras partes de Nobody 's Sweethearte Você Só... Mente. Em 1935, quando de
sua
estada em Belo Horizonte para tratamento dos pulmões, Noel revelaria ao amigo
Roberto Ceschiatti sua admiração pela orquestra de Whiteman. Sua e do irmão. E
lamentaria
não ter ainda a música popular brasileira uma "orquestra típica" como a
americana e a argentina. Não entendia como tal, portanto, a de Pixinguinha.
Muito menos outras,
as de Bountmann, Kosarin, Napoleâo Tavares, Romeu Silva, cujos arranjos eram
criados sob forte influência de maestros americanos como Whiteman.
9. A estrofe só seria gravada em 1983, como uma das vinhetas do LP Noel Rosa
Inédito e Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).
268

NOTURNAS E VESPERTINAS

Capítulo 27

... uma lua diferente


Que é do sol independente,
Com luz própria e com calor
O Sol Nasceu Pra Todos
Mário Reis assiste ao ensaio dos Diabos do Céu no estúdio da Victor e fica
maravilhado com a orquestração de Pixinguinha para Ride, palhaço, marcha que
Lamartine
Babo acaba de compor para ele gravar, com nítida inspiração em
Leoncavallo. Pixinguinha é um gênio, conclui Mário pela milésima vez. Mas é
preciso pensar no outro lado do disco. Se conseguir algo tão bom, terá mais dois
valiosos
trunfos para o carnaval de 1934. Ainda está com os sons da orquestra de
Pixinguinha na cabeça quando estaciona seu carro em frente ao Nice. Numa mesa de
canto, falando
e gesticulando muito, está Lamartine Babo. Fora do café, encostado num poste,
alheio à multidão que passa pela esquina, Noel Rosa.
Mário tem uma idéia. Faz sinal para Lamartine e outro para Noel. Os dois se
aproximam.
- Tenho um assunto para falar com vocês. Vamos jantar lá em casa.
Pede que os dois esperem e procura o telefone mais próximo. Liga para casa e
recomenda que se ponha champanhe no gelo. Champanhe? Pensa melhor:
- Cascatinha, cerveja Cascatinha. Uma dúzia.
No automóvel, a caminho da Rua Affonso Penna, Mário vai explicando tudo.
Lamartine e Noel ouvem calados.
- Quero que vocês façam um samba para o outro lado de Ride, Palhaço. Hoje mesmo.
Senão, Pixinguinha não terá tempo de escrever a orquestração. Temos de gravá-lo
nos primeiros dias de novembro.
Lamartine e Noel concordam. Na casa da Rua Affonso Penna, onde Mário criou e
cultiva a fama de impecável anfitrião, tomam-se aperitivos, janta-se, sorvem-se
goles
e mais goles de Cascatinha bem gelada e só no cafezinho começa-se a falar do
samba.
- Como é que você quer, Mário? Em tom maior ou menor?
- Menor, Lamartine. É mais nostálgico. Quero um samba no mesmo clima de
Ride, Palhaço.
- Muito bem, tom menor. Lamartine batuca com os dedos na mesa
de vidro e começa a cantarolar. As notas vão saindo em sua voz fanhosa. Aqui e
ali, tirando acordes do violão de Mário, Noel interfere. Nenhum dos dois conhece
música,
fusas e colcheias sendo elementos cujos sentidos jamais compreenderão bem. Para
quê? Mário, de início, também dá seus palpites na construção da melodia, mas
logo
fica imóvel, em silêncio,
269

bebendo deliciado os sons que Lamartine vai criando com a ajuda de Noel. Música
e letra da primeira parte ficam prontas em minutos:

O dia vem chegando,


Vou rezar minha oração,
A igreja é a floresta
E o sino é o violão.
Por que você me nega
A esmola de um olhar?
O Sol nasceu pra todos,
Também quero aproveitar.

Lamartine cantarola mais uma vez a bonita primeira parte. Antes que chegue ao
fim, Mário propõe:
-Muito bem. Agora, cada um de vocês faz uma segunda parte. Vamos ver qual dos
dois é o melhor.
Lamartine e Noel se entreolham. Mário percebe que a proposta, em tom de desafio,
surte efeito. Uma competição entre aqueles que são, provavelmente, os dois
maiores
poetas do carnaval brasileiro terá de resultar, no mínimo, em duas excelentes
segundas partes. Mário é inteligente, conhece os brios de Lamartine e as
astúcias de
Noel. Brios e astúcias que, postas em confronto, em forma de disputa, podem ser
as sementes de um grande samba. Por isso insiste:
- Vamos lá, quero ver quem é o melhor.
- Você primeiro, Lamartine - diz Noel. Mário sai da sala. Quinze, vinte minutos
depois, com outra garrafa de cerveja na mão, volta. Lamartine acabou de fazer a
sua segunda:

Deus, quando inventou o mundo,


Fez o Sol e fez a Lua,
Fez o homem e a mulher,
Fez o amor em um segundo,
Sou o Sol, você é a Lua,
Seja lá o que Deus quiser!

- Você é um craque, Lamartine!- exulta Mário.


Noel desta vez se deu mal, pensa. Os versos de Lamartine Babo são ótimos. Essa
história de homem, sol, mulher, lua, é um achado de que só ele, em seus melhores
momentos,
é capaz. Mário sabe que Noel não se deve afastar do tema, a idéia original de
Lamartine tendo de ser seguida até o fim. Noel tira do bolso o cotoco de lápis e
pede
que o parceiro repita sua segunda parte.
- Como é, Noel?Agora é que eu vou ver se você é bom mesmo.
Minutos depois, ele canta:

E você é a triste Lua


Que ilumina a minha rua,
Onde mora a minha dor.
Mas uma lua diferente,
Que é do Sol independente
Com luz própria e com calor.

Mário Reis quer dizer alguma coisa, mas não pode. Enleva-se pelos versos de
Noel, a mesma idéia de Lamartine aprofundada, um sentimento semi-oculto em cada
frase.
Numa sextilha ainda mais perfeita que a do parceiro, o primeiro verso rimando
com o segundo, o quarto com o quinto, o terceiro com o sexto. Para não confessar
aqui
que gostou mais da segunda parte de Noel que da de Lamartine, resume todo o
entusiasmo no mesmo elogio:
- Você é um craque, Noel!
Mas lá no fundo, consigo mesmo, dirá que nem toda a admiração que tem por
Lamartine o impedirá de admitir que Noel Rosa é imbatível: "Quem mais seria
capaz de misturar
amor e cosmografia em letra de música?" Mário brinda com goles de Cascatinha o
novo samba, aqui mesmo intitulado O Sol Nasceu Pra Todos. O nome de Noel jamais
aparecerá
no selo do disco ou nas partituras impressas. Mas não faz mal. Madrugada já,
caminha sozinho até o ponto do bonde que o levará de volta a Vila Isabel, talvez
cantando,
baixinho e triunfante:
... uma Lua diferente,
Que é do Sol independente,
Com luz própria e com calor...
Mário Reis e Lamartine Babo, juntos ou não, terão mais do que dois valiosos
trunfos para o carnaval de 1934. Noel, nem tanto. Mário arrebatará os foliões
com um
samba de Alcebíades Barcellos e Armando Marcai destinado a transformar-se num
dos clássicos da música popular brasileira: Agora É Cinza. Em dupla com Carmem
Miranda,
levará ao sucesso um samba de André Filho: Alô, Alô. De quebra, fará o povo
cantar, nos bailes e nas ruas, Uma Andorinha Não Faz Verão, de João de Barro e
Lamartine.
Este, entre outras, brilhará também com História do Brasil, irreverente e bem-
humorada releitura do descobrimento:
Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral! No dia 21 de
abril, Dois meses depois do carnaval...
Já Noel, desde sua vitoriosa estréia em 1931, quando Com Que Roupa? o fez famoso
quase da noite para o dia, nunca produziu tão pouco para o carnaval como agora:
não mais do que uma marcha e dois sambas. Tão pouco que a Odeon e a Victor
tentarão prolongar a atualidade de algumas de suas composições, sucessos de meio
de ano,
mantendo-as em
270

suplemento até fevereiro. São os casos de Feitio de Oração e Quem Não Quer Sou
Eu. É o caso também de Eu Queria Um Retratinho de Você, outra vez dele e
Lamartine.
Há originalidade na letra, uma declaração de amor feita com imagens e expressões
pedidas emprestadas ao jornalismo, mas usadas com bastante graça, especialmente
na interpretação de Mário Reis. A melodia, porém, lembra muito Wonder Who 's
Kissing Her Now, canção americana de 25 anos atrás1.

Eu quero um retratinho de você,


Pois vou mandar fazer o seu clichê
E publicá-lo no meu jornal...
Você é uma figura original!
Retrato em um tamanho especial
Que vai deixar o mundo inteiro mal.
Vai ser um sucesso
porque Figura só vê quem não lê...
Eu quero um retratinho de você.
Sou o principal redator
Do "Correio do Amor",
Escrevo artigos de sensação,
Só recebemos visita
De moça bonita
No meu coração é a redação.
O seu olhar tão profundo
É artigo de fundo
É grande furo em qualquer diário,
Seu nome é cabeçalho
Extraordinário
São de dez milhões as edições.

Novembro é mesmo o mês em que os artistas ocupam os estúdios das fábricas de


disco para se lançarem à animada e freqüentemente renhida competição
carnavalesca. O
maior prêmio dessa emulação feita de ritmos e melodias, marchas e sambas,
sátiras e cantos de amor, é o reconhecimento popular, o prazer de ver e ouvir
todo o mundo,
seja nos blocos de sujo, seja nos bailes grã-finos, cantando o que compositores,
letristas e intérpretes trabalham desde as festas da Penha nos domingos de
outubro.
Na Odeon, Francisco Alves e Madelou Assis gravam juntos um samba de Ary Barroso
e Noel Rosa. Chico é o cartaz de sempre. Madelou, uma das muitas moças de
sociedade
que, seguindo os passos de Mário Reis, começam a conviver com a música popular.
Não é uma grande cantora. Chama mais a atenção pelo charme do que pela voz. Está
muito longe de ser bonita, mas mesmo assim arranca suspiros e faz bater mais
ligeiro o coração de muita gente, em especial Orestes Barbosa, que a define com
sua
costumeira e arrebatada verve: "... uma primavera de carne nos estúdios, fazendo
os pianistas errarem com a sua presença, deixando o
microfone intoxicado pelo perfume de sua boca de morango orlada de tinta e
pérolas, como um reclame odontológico de Simões de Oliveira..."2 Mas não são os
microfones
intoxicados ou os tropeços dos pianistas que assinalam a história desta gravação
realizada no dia 9 de novembro de 1933- Há nela, sem que se saiba agora, um quê
de última vez. Nunca mais Ary e Noel comporão juntos. E a partir deste momento,
Chico e Noel - paga a dívida pelo Pavão, o relacionamento entre os dois
desgastado
e até mesmo estremecido - vão desfazer a sociedade. Mas o samba, Estrela da
Manhã, é um cintilante fim de parcerias.
271

A estrela da manhã,
Quando brilha na amplidão,
Faz lembrar uma saudade
Que guardei no coração.
Quando à noite olho as estrelas
A brilhar no firmamento,
Fico distraído ao vê-las,
Esquecendo o meu tormento.
E dos amores que tive,
A gozar a mocidade,
Só um no meu peito vive
Sob a forma de saudade.

As duas outras composições de Noel Rosa especialmente para o próximo carnaval


são entregues a Almirante, que as grava no mesmo dia, 3 de novembro, na Victor.
Uma
é a marcha Você, Por Exemplo, a presença de Noel muito nítida no espírito dos
versos e nas rimas pouco usuais, pincenez com vê, Gandhi com grande, templo com
exemplo.
Há muita gente
que, apesar do pincenez,
Passa por nós,
dá esbarrão e não nos vê,
Anda depressa,
mas vai sempre com atraso.
Você, por exemplo... Você, por exemplo,
Está neste caso!
Há muitas santas no mundo
Que vivem fora do templo,
Santas de olhar bem profundo...
Você, por exemplo! Você, por exemplo!
Quanto barbado que não paga engraxate,
Muda de casa e deixa mudo o alfaiate,
Quanto barbado que jejua mais que o Gandhi.
Você, por exemplo... Você, por exemplo, Não tem barba grande!
Quanta menina por ouvir no telefone
Uma voz grossa feito solo de trombone,
Pega automóvel, vai parar não sei aonde.
Você, por exemplo... Você, por exemplo... Não anda de bonde!
Há muita gente que só sabe dar palpite,
Pois tem cabeça, mas já teve meningite,
E muita gente vive bem sem um pulmão.
Você, por exemplo... Você, por exemplo, Não tem coração!

A segunda é um dos sambas mais perfeitos e perenes de toda a obra de Noel Rosa.
Um samba que, entre outras coisas, abre importante e tumultuado capítulo em sua
vida
de compositor popular: O Orvalho Vem Caindo. Daqui a dois meses, ou seja, lá por
janeiro, toda a cidade terá se rendido aos encantos da melodia simples e
contagiante
desse samba. E saberá de cor os versos escritos com fino humor. Um humor tão
claramente seu que todos, no meio musical, estranharão o fato de ter o samba a
assinatura
de Kid Pepe ao lado da de Noel Rosa.
Há razões de sobra para tal estranheza. Kid Pepe é um boxeur aposentado. Decidiu
trocar as luvas pelo samba, mesmo que mal saiba assinar o nome, que tenha uma
voz
incapaz de entoar três notas sem desafinar, que possua ouvidos péssimos. Chama-
se, na verdade, José ou Giuseppe Gelsomino, nasceu na Itália e é amigo de
Germano
Augusto, o motorista de Francisco Alves. Para quem vive a dizer que português e
italiano são trouxas, os dois valem como irrefutável prova em contrário.
Astutos,
vivos, cheios de manha, nada devem aos mais espertos malandros cariocas. Somadas
as espertezas de um e de outro, tudo é possível.
Mas serão eles realmente capazes de fazer sambas, marchas ou qualquer coisa que
se pareça com música? Poucos acreditam. Germano é, confessadamente, comprador de
samba. Aprendeu com Francisco Alves, na época em que morava com ele na casa da
Ruajustiniano da Rocha. Kid Pepe não fica atrás. Há quem diga que, quando não
consegue
comprar o que lhe interessa, arranca a parceria à força. Foi um lutador
medíocre, mas fora do ring, se a sobrevivência está em jogo, sabe usar os punhos
com a habilidade
de um nocauteador profissional. Mesmo assim, até este final de 1933 os socos não
o ajudaram muito na luta para obter sucesso na música popular. Não fez nada que
preste, nada que fosse notado, até se tornar parceiro de
Noel Rosa em O Orvalho Vem Caindo:

O orvalho vem caindo,


Vai molhar o meu chapéu
E também vão sumindo
As estrelas lá no céu...
Tenho passado tão mal:
A minha cama é uma folha de jornal!
Meu cortinado é o vasto céu de anil
E o meu despertador é o guarda-civil
(Que o salário ainda não viu!)
A minha terra
dá banana e aipim,
Meu trabalho é achar
quem descasque por mim
(Vivo triste mesmo assim!)
A minha sopa
não tem osso nem tem sal,
Se um dia passo bem,
dois e três passo mal
(Isto é muito natural!)

Além desses versos gravados por Almirante, Noel escreveu pelo menos mais uma
estrofe:
272

O meu chapéu
vai de mal para pior
E o meu terno pertenceu
a um defunto maior
(Dez tostões no belchior!)
De certo modo, o samba é uma retomada de Com Que Roupa? sem o caráter
formalmente revolucionário daquele, mas outra vez falando de um Brasil de tanga,
de brasileiros
cuja sopa não tem osso nem tem sal, de um solo fértil onde nascem banana, aipim,
tudo, e mesmo assim do homem do povo passando bem um dia, mal dois e três. Há
até
referência aos servidores públicos que ganham pouco e não recebem pontualmente,
representados pelo guarda-civil transformado em despertador de pobre.
Sim, há razões de sobra para que muitos estranhem o fato de Kid Pepe ter alguma
coisa a ver com este samba. E se não tem, o que levaria Noel a conceder-lhe
parceria?
Pergunta que muito provavelmente intriga o repórter de O Globo que passa pela
Rua Gonçalves Dias e ouve, saídos de uma vitrola de casa de música, a melodia e
os
versos de O Orvalho Vem Caindo. A cidade toda canta o samba, pensa ao se
aproximar da Casa Henrique Tavares & Companhia, onde um dos empregados, seu
conhecido, conversa
com um homem forte, tipo atlético, cigarro e palito no canto da boca. O
empregado apresenta o homem ao repórter.
- É o autor de O Orvalho Vem Caindo.
A feliz coincidência permite ao jornalista entrevistar Kid Pepe aqui mesmo. Ouve
dele a confissão de que nada entende de música, fica sabendo de detalhes de sua
vida difícil, a pobreza da infância, o trabalho como vendedor de jornais e
bilhetes de loteria, a surra que levou numa luta que lhe custou duas costelas, a
decisão
de tornar-se compositor. Naturalmente, O Orvalho Vem Caindo é o seu maior
sucesso até agora.
- Tenho grande prazer em dizer que o fiz de parceria com Noel Rosa, a quem muito
admiro. Se quiser sair um pouquinho, garanto que o encontramos.
- Aonde? - pergunta o repórter.
- Por aí em qualquer bar.
O repórter e Kid Pepe saem juntos. No Café Trianon, do outro lado da Rio Branco,
em frente ao Nice, de fato encontram Noel. Kid Pepe pede uma cerveja enquanto o
repórter fica observando Noel ("... um verdadeiro gênio da música popular",
escreverá em sua reportagem). Já sentado à mesa, arrisca a pergunta que o
intriga:
- Como foi que vocês compuseram O Orvalho Vem Caindo?
Os dois compositores se entreolham.
- Sentindo a vida carioca - responde Kid Pepe em seguida.
Noel é ainda mais vago:
- Talvez chorando, debaixo das estrelas que se apagavam. É tão triste a
despedida da noite...
Noel põe-se a elogiar o novo parceiro, diz que suas músicas são todas boas, que
Kid Pepe compõe com alma.
- Mais uma cerveja! - grita para o garçom.
Continua derivando. Lembra que o samba não vem apenas dos morros.
- Mas também das ruas planas e largas da cidade, por onde passam de madrugada os
carrospipas de vassouras cilíndricas.
O repórter, contudo, insiste:
- Mas como foi que vocês criaram este samba?
O entrevistador nota "novo entreolhar misterioso e sorrisos ainda mais
enigmáticos" nos dois entrevistados. Kid Pepe fala:
- É melhor silenciar sobre isso. E Noel:
- Sim. Não devemos dizer. É segredo nosso.
Kid novamente:
- Se faz questão desse pormenor, diga que foi em qualquer lugar.
Noel arremata:
- No Café Belas-Artes, por exemplo...
O repórter desiste. A matéria que escreverá contando em detalhes seu encontro
com Kid Pepe e Noel Rosa(3), o diálogo em torno de O Orvalho Vem Caindo, a
história
de um sucesso cuja origem parece envolta em mistério, tudo isso só servirá para
aumentar as suspeitas de que, na criação deste esplêndido samba, Noel entrou com
música e letra. Kid Pepe, com os músculos.
Volta e meia Noel desaparece das conversas de esquina do Ponto de 100 Réis. Fica
difícil encontrá-lo neste Rio de Janeiro que, ao contrário do que podem pensar
alguns
de seus amigos de Vila isabel, não se limita aos quarteirões entre o Largo do
Maracanã e a Praça 7. Seus horizontes estão muito mais além. Gosta de bandarrear
por
aí, mudando de ponto e destino a cada noite. Por isso, tanto pode estar num
festival em Bangu como numa roda de choro na Cancela, pernoitando no barraco de
Cartola
como confabulando com Ismael Silva no Estácio. Pode ter arranjado nova namorada
no mais longínquo dos subúrbios. Ou quem sabe, depois de vaguear pelas esquinas
do
Centro, ou de tomar dois ou três tragos num escondidinho da Lapa, não estará
comprando amor barato numa pensão da Joaquim Silva ou da Conde de Lajes? O
subúrbio
e a Lapa. Eis aí territórios muito especiais nas incansáveis peregrinações de
273

Noel Rosa por sua cidade. Num, sente-se à vontade, em casa. Noutra, deixa que se
solte seu espírito boêmio. Ama o subúrbio, a vida simples e a gente humilde que
o habita. No fundo, é tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. Nestes dias em
que se fazem cada vez mais freqüentes as migrações dos moradores lá de longe
para
o Centro (ou deste para os bairros litorâneos), movidos quase sempre pela
necessidade de mostrarem o quanto melhoraram de vida, ou quanto ascenderam
socialmente,
Noel prefere a direção oposta. São sedutoras mas enganosas as luzes da cidade.
já o subúrbio é ambiente de completa liberdade. Como o próprio Noel nos garante
no
lindo samba intitulado Voltaste, crônica carioca da melhor feitura, o malandro
de volta ao subúrbio depois de constatar que não há nada de novo lá no centro da
cidade.
E nessa volta, esbarra no orgulho da mulher suburbana, aqui enaltecida por um
poeta que não é muito die enaltecer mulheres. Um samba antológico:

Voltaste novamente pro subúrbio,


Vai haver muito distúrbio,
Vai fechar o botequim.
Voltaste e o despeito te acompanha
E te guia na campanha
Que tu fazes contra mim.
O guarda, que apitava ressonando,
Anda alerta envergando
O seu capote de lã.
Voltaste para fabricar defunto,
Para fornecer assunto
Aos diários da manhã.
Voltaste novamente sem dinheiro,
Tapeando o açougueiro
Que não tem golpe de vista.
Voltaste com um cão muito valente
Que só tiras da corrente
Quando chega o prestamista.
Voltaste pra mostrar ao nosso povo
Que não há nada de novo
Lá no centro da cidade.
Voltaste demonstrando claramente
Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade.
Voltaste, mas falhou o teu projeto,
Não te dou o meu afeto,
Quando eu quero eu sou ruim.
Voltaste confessando sem vaidade
Que a tua liberdade
É viver bem preso a mim.

Tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. É sempre de modo edificante - quando
não emocionado - que canta o subúrbio. Como nesta preciosidade que é
Meu Barracão, um simples Casébre da Penha adquirindo vida nos versos que lhe
dedica Noel ("... eu desconfio que ele foi me procurar..."). Penha, por sinal,
que será
o bairro mais cantado por Noel em toda a sua obra, desde os tempos de São
Bento(4). Mas Meu Barracão, tanto quanto uma homenagem à Penha, é uma nostálgica
canção
suburbana:

Faz hoje quase um ano


Que eu não vou visitar
Meu barracão lá da Penha
Que me faz sofrer E até mesmo chorar
Por lembrar a alegria
Com que eu sentia
O forte laço De amor que nos unia.
Não há quem tenha Mais saudades
lá da Penha Do que eu
- juro que não!
- Não há quem possa
- Me fazer perder a bossa,
- Só a saudade do barracão.
Mas veio lá da Penha
Hoje uma pessoa
Que me trouxe uma notícia
Do meu barracão
Que não foi nada boa:
Já cansado de esperar,
Saiu do lugar.
Eu desconfio
Que ele foi me procurar...

A Lapa. Não há boêmio que resista aos apelos deste bairro carioca que alguns
intelectuais gostam de chamar de Montmartre brasileira(5) . Noel Rosa não é
exceção.
Adora suas ruas estreitas, os sobrados suspeitos, os cabarés mal-iluminados, os
botequins sujos, locais onde bebem, cantam, amam, sofrem, mas acima de tudo
vivem
- tirando da noite o que de melhor a noite tem para dar - turbulentas populações
de mulheres, rufiões, artistas, malandros, poetas, pederastas, mendigos,
jogadores,
policiais, viciados, grã-finos, políticos e o que mais se possa imaginar. Só a
Lapa daria todo um livro. Na verdade, muito ainda se escreverá sobre ela.
Romances,
contos, poemas, músicas, memórias. A Lapa é um grande cenário, uma grande
história. E Noel, um de seus personagens.
Ainda é um freqüentador de bordéis. Sente-se bem mais à vontade numa dessas
pensões da Lapa do que em certas festinhas familiares onde só consegue se
desinibir a
custo de muitos goles de Cascatinha, sorvidos após uma saudação peculiar, copo
erguido sobre a cabeça:
- Loura como as louras espigas de milho, falsa como as mulheres... Eu bato com
ela no bucho, ela bate comigo no Chão!
Não é muito exigente com as mulheres que fazem amor por profissão. Pouco importa
274

que sejam feias, já passadas, gordas ou esquálidas. Não esconde a preferência


pelas morenas, mas isso não quer dizer que rejeite as ruivas ou as louras
alquimiadas
como Julinha. Não é propriamente um malandro, desses que exploram mulheres e
acreditam que só pancada as amacia. Seus sambas pregando esse tipo de
malandragem não
devem ser tomados ao pé da letra. São mais pose do que convicção, menos vontade
de agir do que de cantar como malandro. Sempre foi assim. Já em 1930, quando
tinha
apenas dezenove anos, compunha sambas como este Vingança de Malandro, falando de
uma esperteza que na verdade nunca teve:
É vivendo que se aprende
O malandro tudo entende
Eu espero a minha vez
Já faz hoje mais de um mês
Que ela me abandonou
Pra morar com um português.
Iludindo com carinho
Explorou aquele anjinho
Pôs a casa no leilão
E depois meteu o braço
Bem na cara do palhaço
Veio me pedir perdão
Ela hoje tem a nota
Pra comprar minha derrota
Seu amor vou aceitar
Pois assim eu vou tomar
Pouco a pouco o seu dinheiro
E depois vou me pirar!

Os anos passaram e a pose não mudou: de vez em quando Noel ainda se traja de
malandro em seus sambas. Como neste que ele e Ismael Silva vão completar a
partir de
um estribilho de Orlando Luís Machado, um branco do Catumby cuja passagem pela
história da música popular vai se dever praticamente a esta parceria com os
poetas
da Vila e do Estácio(6). O samba, que estes dois gravam em dupla na Odeon,
intitula-se Escola de Malandro e fala de uma doutrina que Noel Rosa jamais porá
em prática:
A escola do malandro
É fingir que sabe amar
Sem elas perceberem
Para não estrilar...
Fingindo é que se leva vantagem
Isso, sim, é que é malandragem
(Quá, quá, quá, quá...)
Oi, enquanto existir o samba
Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu,
Jesus Cristo manda dar!
Tomo vinho, tomo leite,
Tomo a grana da mulher,
Tomo bonde, automóvel,
Só não tomo Itararé(7)
Oi, a nega me deu dinheiro
Pra comprar sapato branco,
A venda estava mais perto,
Comprei um par de tamanco.
Pois aconteceu comigo
Perfeitamente o contrário:
Ganhei foi muita pancada
E um diploma de otário.

A maioria dos rapazes de classe média de Vila Isabel tem pouca intimidade com
este mundo de desocupados que vivem à custa de mulher. Almirante, João de Barro,
Alvinho,
é impensável vê-los consumindo noites em bares e bordéis baratos. Ou pregando,
ainda que só em teoria, o tipo de malandragem que Noel e Ismael cantam. Mesmo os
outros,
Nássara, Christovam de Alencar, mais boêmios que os
ex-integrantes do Bando de Tangarás (e certamente mais identificados com o
espírito vagabundo do Ponto de 100 Réis), raramente andam por onde Noel
275

anda. E nunca tão à vontade.


À vontade, mesmo, eles se sentem com as moças do bairro. As noturnas e as
vespertinas. Distinção que aprendem a fazer muito cedo, a partir dos padrões
conservadores
e indisfarçadamente elitistas da comunidade pequeno-burguesa a que pertencem.
Vespertinas são as moças de famílias iguais às suas, Caseiras e
bem-comportadas, vivendo numa espécie de redoma enquanto o casamento não chega.
Nas raras vezes em que saem, o fazem em grupo, de braços dados com as amigas, de
tardinha, para breves e vigiados passeios pelo Boulevard. Namoram às escondidas.
No portão, por bilhetes, recados ou olhares. Misteriosas, indecifráveis,
desejadas,
mas respeitadas (para não dizer intocáveis) , são as irmãs ou futuras esposas
dos rapazes de classe média de Vila Isabel.
Já as noturnas não se podem dar ao luxo de passear pelo Boulevard à luz do sol.
Trabalham o dia todo. Como operárias de fábrica, domésticas, balconistas,
lavadeiras.
Largaram cedo os bancos de escola. Pobres, vestem-se modestamente. Não são
misteriosas nem indecifráveis, muito menos respeitadas como as outras. Pelo
contrário,
sua humildade - refletida não só nas roupas baratas, mas também nos gestos, no
modo de falar - é tomada como sinal verde. De fato, raramente dizem "não". Ou
por
medo (alguns de seu conquistadores são filhos de gente importante, quando não de
seus próprios patrões). Ou porque, ingenuamente, acreditam que eles possam
gostar
delas. Não gostam. Gostam das vespertinas. As noturnas não passam de quebra-
galhos, raparigas tratadas pejorativamente como "empregadinhas" e que eles só
assediam
nas ruas escuras, nos terrenos baldios, nos lugares ermos, longe dos olhos de
suas famílias.
Aqui, Noel é exceção. Não só prefere as noturnas como não se importa em tornar
ostensiva essa preferência. A rigor, Clara tem sido a única vespertina de sua
vida,
um namoro cujas constantes fugas dele expressam nítida resistência a um tipo de
relacionamento que sempre acaba diante do altar (e o casamento é algo que jamais
fará parte de seus planos). Com as noturnas não corre esse risco, além de
gostar, sinceramente, delas. São moças simples, boas, amigas, pouco importa se
pobres.
O fato de desfilar pelas ruas, a pé ou de carro, ao lado das namoradas humildes
que seus companheiros preferem esconder - as "empregadinhas" da noite - e de
fazer
isso feliz da vida, escandaliza as pessoas. E mantém sempre atual o velho
comentário dos vizinhos:
- Este filho de dona Martha só vive metido com gentinha.

NOTAS
1. Escrita em 1909 por Joe Howard, Will Hough e Frank R. Adams.
2. Samba, segunda edição (página 57).
3. "Melodias do coração no tumulto de Momo - Conversando com três homens que
cantam o que sentem na alma", reportagem não assinada, in O Globo de 2 de
fevereiro
de 1934 (páginas 1 e 3). Trata-se de matéria realmente repleta de pistas e
insinuações, como atestam os diálogos transcritos. O terceiro homem com quem o
repórter
conversou era Antônio Nássara, a propósito de Tipo Sete, marcha que ele e
Alberto Ribeiro fizeram para o mesmo carnaval de 1934.
4. Noel Rosa compôs, sozinho ou com parceiros, quatro sambas falando em Vila
Isabel: Eu Vou Pra Vila, Bom Elemento, Feitiço da Vila e Palpite Infeliz. E oito
em
que menciona a Penha: Cumprindo a Promessa, Feitio de Oração, Fiquei Rachando
Lenha, Meu Barracão, Não há Castigo, De Qualquer Maneira, Eu Agora Fiquei Mal e
Chuva
de Vento.
5. Não era raro entre os intelectuais que freqüentavam a noite a associação da
Lapa com Montmartre. Como se de fato considerassem o bairro carioca uma réplica
da
Paris boêmia que tinham conhecido ou sonhavam conhecer. Estudantes das muitas
repúblicas ali existentes intitulavam se "montmartroises". Henrique Pongetti, em
sua
crônica Lapa 1930, publicada em 1962 em O Globo, fala de "atmosfera
montmartroise" ao se referir especificamente ao cabaré Royal Pigalle. Diz Gastâo
Cruls em Aparência
do Rio de Janeiro (volume II, página 727): "A zona da Lapa prepara-se para ser o
nosso Montmartre, um Montmartre rasteiro, na verdade, mas que nas perspectivas
abertas
pelo álcool talvez fizesse do Convento de Santa Teresa o Sacrê-Coeur sobre a
butte." E Brito Broca, na crônica A Lapa: Ontem e Hoje, publicada postumamente
em 1965
na Antologia da Lapa organizada por Gasparino Damata, observa "um certo ar
montmartroise" no quarteirão do Grande Hotel da Lapa, depois Cine Colonial, hoje
Sala
Cecília Meireles.
6. Orlando Luís Machado aparece sozinho como autor no selo do disco em que Noel
e Ismael gravaram Escola de Malandro. O samba foi seu único sucesso, assim mesmo
de dimensões modestas. E por muito tempo funcionou como seu cartão de visitas:
"Sou o autor de Escola de Malandro..." Como tal - e acompanhado do parceiro
Jorge
Dutra, amigo dos tempos de infância na Rua Itapiru - visitou redações de jornal
às vésperas do carnaval de 1933, numa infrutífera tentativa de divulgar suas
composições
Estou Sem Batente e Veneno Contra Veneno, que sequer seriam gravadas. O Diário
Carioca de 20 de janeiro de 1933 registra, com detalhes, uma dessas visitas.
7. Itararé, a batalha que não houve. Noel refere-se ao episódio da Revolução de
30 em que as tropas governistas (6 mil e 200 homens comandados pelo coronel Paes
de Andrade) ficaram quase três semanas em Itararé, sul de São Paulo, defendendo-
a de forças revolucionárias (7 mil e 800 homens chefiados por Miguel Costa).
Depois
de algumas trocas de tiros e escaramuças menores, anunciou-se para o meio-dia de
25 de outubro uma segunda batalha - "a maior do século", segundo previsão dos
jornais
que apoiavam os revoltosos, certos de que eles massacrariam os adversários.
Expectativa em todo o país, combatentes entrincheirados, canhões Krupp a postos,
nada
acontece. Antes que soe o primeiro tiro o deputado Glicério Alves atravessa as
linhas empunhando uma bandeira branca e vai parlamentar com Paes de Andrade,
pedindo-lhe
que se renda:
Washington Luís foi deposto ontem. Os governistas se rendem, não há batalha.
Como diz Noel, "... só não tomo Itararé,"
276

CASA, NÃO CASA

Capítulo 28

A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa,
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa.
Capricho de Rapaz Solteiro

desde que comprou o Pavão, pago a peso de samba, Noel Rosa tem podido levar suas
namoradas a passeios bem mais distantes e prolongados. Capota arriada, morena de
fábrica sentada ao seu lado no banco da frente (nenhuma vespertina lhe aceitaria
carona), ele passa pelo Ponto de 100 Réis fazendo soar a bizarra buzina do seu
carro
e acenando para os amigos que conversam na esquina. Pé no acelerador, toma o
caminho de Jacarepaguá, Leblon, Campinho, Deus sabe onde.
- Não é justo!- protesta um dos amigos. - De carro, não é justo.
Uma reunião é feita no Martinez para que os rapazes do bairro estudem uma forma
de enfrentar a "concorrência desleal" de Noel, que agora, com o Pavão, leva
nítida
vantagem sobre todos eles na caça às "empregadinhas" das redondezas. Qual delas
vai querer sair a pé, passar pelo desconforto dos muros e dos capinzais, quando
Noel
tem a lhes oferecer a maciez dos bancos do Chevrolet? É evidente que, nessa
corrida, os motorizados sempre chegam na frente. Por isso a turma se reúne. O
que fazer?
De quem é a sugestão não se sabe ao certo, mas é Christovam de Alencar, o
Armando Reis, quem fica incumbido de transmiti-la a Nássara.
- O Noel ouve muito o Nássara - justifica alguém.
Nássara é convocado às pressas a uma das mesas do Martinez. E Christovam vai
dizendo o que a turma quer: que ele convença Noel de que a concorrência é mesmo
desleal,
de que o carro é trunfo forte demais.
-Eo que querem vocês que ele faça? Venda o carro?
- Não - intervém Christovam. -Quepelo menos, cada vez que saia com uma pequena,
chame um de nós. Quer dizer, seremos sempre dois casais. É mais justo.
Nássara concorda em servir de intermediário:
- Que diabo, Noel! Não custa nada. Você sai com a sua menina no banco da frente
e deixa o de trás para que um de nós leve alguém. É justo. A gente faz um
revezamento,
hoje eu, amanhã o Reis, depois o Seringa, o Arnaldo Amaral, até que todos tenham
sua vez.
Noel não se opõe. Pensando bem, até que a reivindicação de Nássara traz
vantagens. É verdade: onde cabem dois cabem quatro. E além disso...
Bem, Noel aceita dividir o conforto do Pavão com qualquer dos amigos e sua
respectiva pequena. Depois do protesto da turma - condignamente representada por
Nássara-ele
continua passando pelo Ponto de 100 Réis,
277

fazendo soar a buzina do carro, acenando para os amigos que conversam na


esquina, morena de fábrica sentada ao seu lado no banco da frente. Só que agora,
no de trás,
vai sempre outro casal.
Lindaura é morena, mas não de fábrica. Trabalha na Lavanderia Cooperativa, na
Rua Maxwell, e já foi aluna da escolinha de dona Martha. Ali, ele tocando violão
à
sombra da goiabeira, ela brincando de roda no quintal transformado em recreio,
os dois se conheceram faz algum tempo. Lindaura era então uma menina recém-saída
do
bê-a-bá da Escola Rio Grande do Sul, na Praça 7. Hoje, dezessete anos, crescida,
corpo de mulher feita, nada tem a ver com a garotinha daqueles tempos. É, sim,
uma
das muitas moças que Noel assedia ao volante do Pavão neste outubro de 1933. Ou
uma das tantas garotas humildes que os rapazes do bairro perseguem pelas ruas
escuras,
segundo as regras do seu jogo.
Lindaura, naturalmente, sabe que Noel é cantor de rádio, grava discos, faz
música para o carnaval. Mas impressiona-se menos com isso do que com o velho
Chevrolet
cuja buzina Noel aciona, repetidas vezes, sempre que a vê. Ela não tarda a
aceitar o convite para umas voltas.
Os dois passam a sair juntos quase todas as noites. De início, sozinhos. Depois,
diante do protesto da comitiva chefiada por Nássara, sempre outro casal lhes faz
companhia, ocupando o banco de trás. Os passeios são a princípio curtos e
inocentes, até a Praça Saenz Pena, o Grajaú, no máximo até o Rio Comprido ou
Boca do Mato.
Mais tarde Noel envereda por lugares mais distantes e desertos, Leblon, Joá,
Alto da Boa Vista. Nem sempre os amigos se divertem. Quando os passeios se
alongam,
por exemplo, até onde haja ladeiras puxadas demais para o fôlego do Pavão,
surgem problemas. Se o carro enguiça - e já que dentro dele quem dá as ordens é
Noel -
cabe ao outro descer e empurrar. O que acontece muitas vezes, pois o Pavão não é
mesmo de subir ladeira. Christovam de Alencar, Sylvio Pinto, um dos irmãos
Anacleto,
Waldemar, Henrique Gonçales, nenhum deles escapa.
Gonçales - cujo nome se escreve mesmo com cedilha e não com zê como o dos
antepassados espanhóis - também é sambista. Com ele Noel compôs Faz de Conta Que
Eu Morri,
samba que os dois jamais ouvirão gravado e que Gonçales, sobrevivendo a Noel em
alguns anos, terá sempre dificuldade de provar que também é seu:
Faz de conta que eu não vivo,
Faz de conta que eu morri,
Que eu me encarrego de sumir.
Faz de conta que a saudade,
Essa dor que nos invade,
Já deixou de existir.
Amar deve ser para nós Um divertimento
E não o eterno ciúme que traz sofrimento.
Desiste de me procurar,
Não quero escutar
Declarações de amor,
Pois de tanto chorar
Minha fisionomia já mudou de cor.
Não quero lembrar esse mal que nos perseguiu,
Nem quero lembrar uma jura que não se cumpriu.
Não deves mais telefonar
Mandando me chamar
Porque não dou consulta
A quem escreve carta
Sem botar o selo pra eu pagar a multa.

Um dia Gonçales ainda será conhecido no meio, terá um samba seu gravado com
sucesso por Antônio Moreira da Silva, apesar do erro de português logo na
primeira rima
("Amigo urso, saudações polares... Ao leres esta hás de te lembrares...")- Mas,
por hora, é apenas o Laranja, figura conhecida no Ponto de 100 Réis, aprendiz de
compositor e companheiro de Noel nas aventuras amorosas a bordo do Pavão.
Uma dessas aventuras os leva certa noite ao Alto da Boa Vista. Cansado como
sempre, o Pavão enguiça. O local está deserto, a escuridão é assustadora. Nem um
lampião,
nem uma mísera lâmpada acesa numa janela qualquer. Na verdade, nem parece haver
janela. Este é um lugar ermo, desolado, um cemitério. Noel tenta fazer o carro
pegar.
- Pelo jeito, Laranja, vamos ter de passar a noite aqui.
- Que história é essa?- reage Lindaura.
- O Pavão morreu.
As moças se apavoram. A namorada de Gonçales começa a chorar, Lindaura prende a
respiração. Se houvesse luz o bastante para se saber como estão os rostos das
duas,
só se veria palidez, suor, medo. A namorada de Gonçales continua chorando, cada
vez mais alto. Lindaura, aparentemente mais corajosa, nada diz. Noel insiste,
Gonçales
torce e - alívio geral - o carro pega.
Na descida, a namorada do amigo, mais calma, choro já superado, talvez ocorra a
Noel elogiar a bravura de Lindaura. Se isso lhe passa pela cabeça, é por pouco
tempo.
Só até ele ver o banco molhado do carro, as pernas de Lindaura escorrendo. Não é
tão corajosa como parecia.
278

- Desculpe-me... - diz embaraçada. - Mas quase morri de medo.


Esse susto, mais o fato de o Pavão não ser mesmo um local confortável e
romântico o bastante para se namorar, leva Noel a só usar o automóvel como
transporte. Ele
e Lindaura passam a se encontrar em outros lugares. Como as cabines (na verdade,
barracões de madeira) que dona Chiquinha aluga na Ponta do Caju, de dia para
banhistas
trocarem de roupa, de noite para casais. Ou como um dos muitos hotéis baratos
que há no centro da cidade. E já agora, evidentemente, os dois e mais ninguém.
QQ-r -r-ma voz do Rio para todo o Brasil." É com esta divisa que Christovam de
Alencar abre e fecha o seu programa semanal pela PRB-7, Rádio Sociedade
Educadora
do Brasil. Um programa cada vez mais ouvido, não só por suas próprias qualidades
mas também por haver, em relação ao espetáculo radiofônico rival o de Ademar
Casé
produz, já agora na Transmissora, uma certa má vontade que ainda vai se
transformar em campanha. O Casé paga mal, queixam-se alguns artistas. É muito
exigente, dizem
outros. Não faz nada senão reclamar, garantem outros mais. Noel é um que vive
ameaçando deixar o Casé. Diz isso a Orestes Barbosa e este passa a ser uma
espécie
de mentor da campanha, escrevendo um artigo em que acusa Casé de nunca ter
sabido preservar seus artistas, ao contrário de Christovam de Alencar(1). Mas
essas briguinhas
são muito comuns, hoje fustigam o Casé, amanhã o cobrem de elogios. Christovam
pode ser o rei agora e daqui a alguns meses a coroa estar na cabeça de Waldo de
Abreu,
Luís Vassalo ou Gastão Lamounier. Nos últimos meses de 1933, contudo, grande
número de artistas tenta amotinar o Casé dando apoio aos programas concorrentes.
O sabor
do rádio está muito no molho dessas contendas.
Sexta-feira, 10 de novembro. O Teatro João Caetano está lotado. Há gente até dos
lados, sentada entre as cadeiras e a parede. Ou mesmo de pé, lá atrás, onde haja
espaço. O festival de samba que Christovam de Alencar organizou congrega alguns
dos grandes astros do momento. Todos apoiando o Amigo Velho (ou fustigando o
Casé?).
Um festival de alto nível, Sílvio Caldas, seu irmão Murilo, João Petra de
Barros, Custódio Mesquita, Nono, Luís Americano, Russo do Pandeiro. Embora sendo
de samba,
há nele lugar para as emboladas de Manezinho Araújo e para as anedotas de Jorge
Murad. Num dos melhores momentos da noite, Noel Rosa canta um de seus recentes
lançamentos:
Arranjei um Fraseado.
Arranjei um fraseado Que já trago decorado Para quando lhe encontrar: "Como é
que você se chama? Quando é que você me ama? Onde é que vamos morar?"
Como eu vou indagar
Quando é que eu posso lhe encontrar
Para conseguir combinar
Onde é o lugar
Em que você quer morar?
Como vou saber ao certo
Quando é que você vem ficar perto
E quem já designou
Onde é o lugar
Do nosso lindo château?
Como é que você se chama?
Quando é que você me ama?
Onde é que vou lhe falar?
Como é que você não diz
Quando é que me faz feliz,
Onde é que vamos morar?

No domingo, 12 de novembro, Lindaura sai de casa por volta das seis da tarde. A
mãe, Olindina Pereira da Motta, é realmente operária da Fábrica Confiança.
Sergipana,
veio com o marido, José Martins Neves, e os filhos, Lindaura e Zeca, tentar a
sorte no Rio, que diziam ser cidade de grandes oportunidades. Em 1925, ficou
viúva.
Mesmo casando-se de novo, teve de empregar-se, pôr os filhos para trabalhar,
todos ajudando a prover o sustento da casa de vila número 2 da Rua Maxwell,. 74,
onde
moram. A vida transformou Olindina numa mulher dura, enérgica, desconfiada. Tem
rígidos princípios morais e tenta passá-los aos filhos. Nem de longe suspeita
das
saídas de Lindaura com Noel.
Neste domingo, novo passeio programado, Lindaura chama a amiga Maria da Glória
Avelina, empregada doméstica de uma casa em frente, e pede-lhe cobertura.
Pretende
voltar tarde, depois da meia-noite.
- Vou sair de carro com Noel. Mas não diga nada à mamãe.
À dona Olindina, Lindaura explica que vai a uma festa com Maria da Glória
Avelina. Tudo acertado, as duas moças se dirigem até a esquina de Maxwell com
Pereira Nunes.
Ali, ao volante do Pavão, Noel já está à espera. Lindaura diz "boa-noite" à
amiga e entra no carro. Maria da Glória Avelina volta, procura entrar em casa
sem ser
vista por dona Olindina. Para todos os efeitos, ela e Lindaura divertem-se numa
festinha domingueira em casa de família.
A segunda-feira parece ser um dia como
279

outro qualquer. Noel talvez tenha de ir até a cidade, fazer um vale no Casé. Ou
acertar detalhes para o próximo domingo, agora que ele, Castro Barbosa, Jorge
Fernandes,
Nono, Sílvio Caldas, Zaíra de Oliveira e Cláudio Bueno Rocha acabam de renovar
seus contratos com o programa. Uma segunda-feira como outra qualquer, mas só na
aparência.
No fim da tarde, Noel dorme profundamente no quarto dos fundos, quando é
despertado pelos safanões de Hélio.
- Noel! Noel! A polícia está aí te procurando.
Pouco depois, Noel ainda atordoado, a família se reúne na sala ao lado da
cozinha. Dois policiais, investigadores da 16? Delegacia, medem as palavras para
dizerem,
na frente de dona Martha, que há uma queixa contra o filho sobre a mesa do
comissário. Coisa séria, já anotada no livro de partes. Martha e Hélio estão
perplexos.
- Mas de que se trata?
Os policiais explicam que uma certa dona Olindina, residente aqui perto,
procurou o comissário para acusar formalmente Noel.
- De quê?- indaga o próprio Noel finalmente despertando.
- De rapto.
"Rapto" é palavra que por esta época costuma sobressaltar as pessoas, o caso
Lindbergh há mais de um ano ocupando com destaque as páginas dos jornais de todo
o mundo,
o Brasil inclusive. Passado o susto inicial de Martha, os policiais explicam que
Noel é acusado de ter raptado não um bebê, mas uma moça de dezessete anos. Tem
de
ir à delegacia, o comissário quer interrogá-lo. Martha está aflita:
- Mas o que você andou fazendo?
-Nada, absolutamente nada - responde com firmeza.
Forma-se uma pequena confusão na sala ao lado da cozinha. Os policiais até que
se mostram pacientes, dirigindo-se a Noel em tom brando. Mas os protestos do
acusado,
as perguntas da mãe, o espanto do irmão, tudo isso converte a cena num bate-boca
nervoso que acaba atraindo a atenção de Clara na sala da frente. Ela interrompe
a aula do jardim da infância, levanta-se, toma a direção da cozinha. Não chega
muito perto, apenas o bastante para ouvir o que dizem. Apavora-se ao saber que
Noel
está sendo levado para a Delegacia. Segundo os policiais, por ter raptado uma
menor. Será verdade? Noel sai entre os dois homens da lei. Clara finge que não o
vê.
Lá dentro, Martha e Hélio nem sabem o que dizer.
Na 16? Delegacia Policial - no Boule-vard, quase esquina de Silva Pinto - todos
conhecem Noel Rosa. De conversa de esquina, de
vista ou de nome. E gostam dele. Por isso não o tratam como um criminoso, um
preso comum, mas como um menino surpreendido em mais uma travessura.
- Ora, ora, seu Noel...
O próprio comissário explica-lhe que uma senhora, Olindina Pereira da Motta,
esteve de manhã na delegacia para acusá-lo formalmente de haver raptado a filha,
Lindaura.
A moça não dormiu em casa de ontem para hoje. Dona Olindina, muito preocupada,
apelou para os vizinhos, até que uma moça, Maria da Glória Avelina, contou tudo,
a
festa que não havia, Lindaura entrando no carro dele, o passeio. Enfim, a
consumação do crime.
- Mas que crime? reage Noel.
De rapto, repete o comissário. Noel jura que não houve nada disso. De fato saiu
com Lindaura, os dois passaram a noite num hotel da Rua Senador Euzébio, ele
abusando
um pouco da bebida, pegando no sono, esquecendo-se da hora. Quando acordou, já
era de manhã. Mas não houve rapto. Lindaura saiu com ele porque quis, ninguém a
forçou.
-Mas a moça é menor de idade, seu Noel.
Verdade. Lindaura tem dezessete anos. Crime de sedução de menor? Noel jura que
não. Que história é essa de rapto e sedução de menor, crime? Não é o primeiro
homem
na vida dela. Pode até provar. Mas o comissário diz que a mãe da moça não quer
conversa: ou Noel repara o erro, ou vai para a cadeia.
- Reparar o erro?
- Sim, casando.
- Pois eu vou para a cadeia.
O comissário quer resolver tudo da melhor maneira. Já pediu à dona Olindina para
trazer a filha à delegacia, é indispensável ouvir seu depoimento. Noel que se
tranqüilize,
ninguém vai prejudicá-lo. Se não fez nada, nada tem a temer. Mas deve voltar à
delegacia amanhã.
Em casa, Marta e Hélio querem saber o que aconteceu. Nada, reafirma Noel.
Absolutamente nada. Pede que a mãe e o irmão não acreditem nessa absurda
história de rapto.
Mais um ou dois dias resolverá tudo. Com o comissário, com Lindaura, com a mãe
dela. Deve ter havido um mal-entendido, um nó fácil de desatar.
Mas não será tão simples assim. Lindaura realmente vai à delegacia e, no seu
depoimento, tenta inocentar Noel. De fato passaram a noite num hotel, mas não
houve
rapto. Envergonhada, confirma não ter sido ele o primeiro homem em sua vida. É
um depoimento nervoso, titubeante, contraditório. Começa dizendo ter passado a
noite
na casa de tia Filó, na Ponta do Caju, para acabar contando história igual à de
Noel. Quando o comissário, instado por dona Olindina,
280

pergunta-lhe quem a desonrou (por mais humilhante e cruel que seja, a pergunta é
considerada fundamental na abertura de processos de sedução, rapto e similares),
ela responde:
- Foi o José... José Martins Neves.
Está tão nervosa que nem se dá conta de que este era o nome do pai, morto há
tanto tempo. De qualquer modo, o comissário acha que as evidências bastam para
incriminar
Noel: ele próprio não admitiu ter levado uma menor para passar a noite em sua
companhia num hotel da Cidade Nova? Então, o processo será instaurado. Mas, como
a
Senador Euzébio, local em que se teria consumado a sedução, pertence à
jurisdição da 14? Delegacia Policial, é para lá que o caso vai ser enviado. O
comissário ainda
quer contemporizar, tentando fazer dona Olindina crer que são muitas as
possibilidades de arquivamento da queixa. Por que não esquece tudo isso? Seria
melhor para
todos, principalmente para a filha.
- Não, senhor! Exijo reparação.
O caso não será enviado para outra jurisdição, como pretendia o comissário.
Irascível e determinada, Olindina vai ao chalé para uma conversa franca com os
Medeiros
Rosa. Quer que Noel se Case com a filha.
- Se for mesmo o responsável - diz Martha - eu lhe prometo que o fará. A senhora
pode deixar que eu vou ter uma conversa com ele.
De uma hora para outra - e por bastante tempo - o chalé é transformado em palco
de constantes discussões, Martha e Noel, Martha e Olindina. No início, fala-se à
meia-voz, na cozinha ou nos fundos da casa. Mas pouco a pouco a mãe de Lindaura
se convence de que Noel não quer mesmo saber de casamento, de que Martha não
consegue
dobrar o filho. É a partir daí que Olindina muda o tom de voz, fazendo cenas no
chalé, xingando, esbravejando, acusando os Medeiros Rosa de "desencaminhadores
de
menores", gente sem palavra. Martha teme que tais cenas prejudiquem a escolinha,
crianças inocentes ouvindo o que não devem. Por isso, quando Olindina chega, vai
tratando de dizer:
- A senhora se incomodaria de conversarmos aqui ao lado?
E vão para a casa de Dorica. Ali a mãe de Lindaura pode dizer o que bem
entender, na altura de voz que quiser, pois os alunos não a ouvirão. Mas as
cenas tornam-se
insuportáveis. Até que numa delas, ao ver a mãe.tão angustiada, premida pelos
impropérios de dona Olindina, Hélio intervém:
- Mas o que a senhora quer, afinal?
- Que seu irmão se Case com a minha filha.
- Muito bem. Se é para a senhora deixar
minha mãe em paz, eu me caso no lugar dele! Hélio, dezoito para dezenove anos,
um menino, se oferecendo para casar-se no lugar do irmão. Que coisa mais
absurda!
Dorica pede que ele fique calmo, Martha bebe água com açúcar, Olindina insiste.
Onde estará Noel? Desde que essas discussões começaram a quebrar a paz do chalé,
ele simplesmente desapareceu. Entra e sai na ponta dos pés, evita falar com a
mãe, nem quer ver dona Olindina. Mas Martha está apreensiva, temendo que o
processo
se instaure, que tudo se complique. Daí achar que o casamento seria mesmo o
melhor caminho. É com todas essas coisas na cabeça que ela própria vai um dia
conversar
com o comissário.
Jornal de oito páginas, fundado há poucos meses, o Avante! intitula-se um
"diário nacional socialista". Diz-se inteira mente voltado para os interesses do
operariado,
grande parte de suas matérias está dentro dessa linha e até um ou outro anúncio
reza de fato por tal cartilha. Como o do Dr. Lacerda Filho, especialista em
"ginecologia
proletária". Mas de proletário, mesmo, o jornal tem pouco. Fundado e dirigido
por Augusto Pamplona e Moura Carneiro, não é por acaso que seu nascimento se deu
logo
que Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha, no último 30 de janeiro. O Avante
.'simpatiza com as idéias do Führer, combate os comunistas, defende o anti-
semitismo,
reproduz discursos de líderes e pensadores nazistas.
As duas seções mais lidas do jornal não tratam, contudo, de política. Uma delas,
assinada por Orestes. Barbosa, noticia o que se passa nos bastidores do rádio e
da música popular, repleta de intrigas e insinuações bem no estilo do autor:
"Por que será que o holandês da Philips proíbe sambas e emboladas nos programas
de sua
rádio?" A outra seção, ocupando toda a página oito, destina-se a reportagens
sensacionalistas levantadas pela "caravana do Avanter, uma equipe formada por
apenas
dois repórteres, Carlos Leite e Nacim Adese, este também desenhista. Para que se
tenha idéia do espírito desta página oito, basta que se citem algumas de suas
manchetes
nos dois últimos meses de 1933: "Obrigada a casar com um morfético para se
salvar da mancha da desonra", "Embriagou a infeliz doméstica para subjugá-la
mais facilmente",
"Teria o pintor morrido de peritonite ou gangrena?", "Um conhecido professor do
Instituto Nacional de Música envolvido no caso de sedução de uma aluna", "O
velho
alfaiate, abusando da confiança do amigo, infelicitou uma menor de doze anos",
assim por diante.
O quiproquó romântico envolvendo Noel Rosa num caso de rapto talvez ficasse
281

confinado ao conhecimento de meia dúzia de pessoas, não fosse a ativa e


indiscreta caravana do Avante!. Assim é que, fazendo sua habitual ronda pelas
delegacias
da cidade, um dos repórteres folheou ao acaso o livro de partes da 16?. E nele,
na página 95, deparou com o nome de Noel Rosa.
- O compositor?
- Ele mesmo - informou o escrivão. Um prato feito para a oitava página do
jornal que, na edição de quinta-feira, 29 de novembro - sob a manchete "A
indiscrição da página 95 - é pelo livro de partes da delegacia que se conhece
uma diabrura
amorosa do sambista Noel Rosa" - conta toda a história. É verdade que fazendo
algumas confusões, uma delas a de supor que Lindaura é a inspiradora de Três
Apitos.
Outra, a de atribuir a Almirante a autoria de Com Que Roupa?. Mas, no restante,
está tudo lá. Em detalhes. Uma história ilustrada por caricatura de Adese: Noel
ao
volante do Pavão, com o violão na mão esquerda e sua musa lá no alto, pairando
como uma lua a iluminar a fábrica de tecidos e sua chaminé de barro.
O assunto torna-se público. Passa a ser comentado em toda parte, no Nice, na
Lapa, nas esquinas de Vila Isabel, nos estúdios das rádios. Orestes Barbosa vai
se ocupar
dele em sua coluna do dia 30. Não para defender Noel ou algo parecido, mas para
defender-se a si mesmo da "acusação" que a bombástica reportagem sobre o amigo e
parceiro lhe faz de ser muito mais velho do que Noel e outros jovens da Vila:
"Os confrades da caravana do Avante!, tratando de um caso em que aparece
envolvido Noel Rosa, diz que o autor dos Três Apitos é meu patrício, porque
nasceu, como
eu, na Aldeia Campista.
De fato.
E aludindo ao fulgurante Nássara e a Almirante, diz a oitava página que eu tenho
mais vinte anos que os três...
Não é bem isso. Mas, que delícia é o Outono! Imaginem se eu fosse a Primavera,
como aqueles colegas... Estaria, como os autores de Formosa e Na Pavuna, metido
em
cumplicidade daquelas noites da Vila, de que fala a caravana, e onde se lê que
Nássara e Almirante têm um retrato histórico em um botequim.
Onde é?
Desta eu escapei."(2)
Dias depois, Noel sobe ao primeiro andar do prédio número 144 da Rua
Uruguaiana, onde funciona a redação do Avante!.
- Eu queria falar com o Nacim Adese.
Quem o atende não pode deixar de reconhecê-lo. E de tirar suas conclusões:
indignado com a reportagem da página oito, Noel Rosa na
certa veio pedir satisfações ao Adese. Talvez queira briga, talvez lhe diga
alguns desaforos. Outros, na redação, pensam o mesmo. Até que o próprio Adese,
meio sem
jeito, já pensando numa desculpa, aparece:
- Você é o Adese?
- Sim.
-Eu sou o Noel Rosa. Será que se incomodaria de me emprestar o original daquela
caricatura para a capa da partitura do Três Apitos?

Com o sol de janeiro chegam os primeiros ares do carnaval que se aproxima. É


apenas nisso que Noel Rosa e todos os outros compositores populares se
concentram. Não
que pretenda finalmente editar Três Apitos, idéia que, se lhe passou pela
cabeça, foi logo posta de lado(3). Mas a ida ao Avante!deixou mais que evidente
que a preocupação
de Noel com a música é maior do que com as complicações amorosas. Continua meio
sumido de casa, pousando aqui e ali, evitando as conversas com a mãe, fugindo da
cólera de dona Olindina,
malandro medroso que é.
No dia 20, comparece à grande homenagem que as escolas de samba prestam ao
prefeito Pedro Ernesto, no Campo de Santana. Assiste ao desfile, vê a Mangueira
conquistar
o primeiro lugar com um samba de seu amigo Carlos Cachaça(4), está contente.
Contente e tranqüilo. Tem motivos para isso. A vida lhe parece boa, nada de
trabalho
pesado, só samba, boêmia, liberdade para fazer o que mais lhe agrada. Casamento?
Prefere ser preso. Pelo menos seria uma prisão temporária. Contente e tranqüilo.
Mais do que nunca acredita nos versos que fez para Capricho de Rapaz Solteiro,
samba do ano passado em que fala de sua filosofia de vida:
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!
Quem vive sambando
Leva a vida para o lado que quer.
De fome não se morre
Neste Rio de Janeiro.
Ser malandro é um capricho
De rapaz solteiro.
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa.
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa
Com a bossa que eu tiver,
Orgulhoso eu vou gritando:
"Nunca mais esta mulher, Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando!"
Antes de descer ao fundo Perguntei ao escafandro
282

Se o mar é mais profundo


Que as idéias do malandro.
Vou, enquanto eu puder,
Meu capricho sustentando.
Nunca mais esta mulher, Nunca mais esta mulher Me vê trabalhando!
A vida é de quem sabe se esquivar,
dos espertos, dos peixes que não caem em rede.
Casamento? Só se estiver louco. Tudo que pensa da necessidade de permanecer
livre, do não cair em armadilhas (o casamento parecendo-lhe a mais aprisionante
de todas
as armadilhas), ele resumiu nestes versos escritos para o mesmo samba, mas não
aproveitados:
Muito mais que a canoa,
O malandro em terra joga.
A canoa afunda à toa,
Ele vira e não se afoga.
Mas esse estado de espírito - assim como seus caprichos de rapaz solteiro - só
dura até ele saber da ida da mãe à delegacia. Pois foi graças a ela que o caso
não
viajou para outra jurisdição, o comissário concordando em deixar que tudo se
resolva sem os transtornos de um processo judicial. Como terá Martha conseguido
isso?
Muito simples: prometendo ao comissário que fará o filho se casar com Lindaura.
Noel não a perdoa. Com que direito promete coisas que implicam mudar sua vida,
seu
destino? Muitas discussões se travam no chalé em torno da questão, o casamento,
a "reparação do erro". Pela primeira vez se faz entre Martha e Noel um abismo de
desentendimento, ela insistindo, ele resistindo. Discussões, brigas. Como nunca
houve antes, como nunca haverá depois. E que se exacerbam a cada nova visita de
dona
Olindina ao chalé, a cada nova cena na casa de Dorica. O contentamento e a
tranqüilidade começam a desvanecer-se. Janeiro se vai, fevereiro também. Está
cada vez
mais difícil para o rapaz solteiro Noel Rosa enfrentar as pressões que ameaçam
seus caprichos. Fala disso com alguns amigos. Às vezes, em tom grave quando não
patético:
- Prefiro morrer a engolir este casamento.
Enquanto ele reluta, dona Olindina resolve tentar o outro lado. Já que o
comissário confiou em dona Martha e esta nada consegue com o filho, Noel quase
não parando
em casa, fugindo, evitando encará-la, a solução parece-lhe ser coagir a filha. E
o faz em forma de ultimato: ou convence Noel Rosa a se casar com ela, ou rua.
Lindaura
o põe a par da ameaça, a mãe querendo expulsá-la de casa. Sente medo.
Certa noite, Olindina Pereira da Motta
prova que não é só de ameaças. Abre a porta da rua, manda que a filha saia e
jura que só a receberá de volta, no honrado lar da Rua Maxwell, 74, casa 2,
quando estiver
casada. De papel passado e tudo.

é com os olhos esgazeados de espanto, 1-4 mas sempre em silêncio, que Clara
acompanha toda essa terrível história. Ainda bem que a escolinha está fechada,
as férias
de verão transformando numa sala vazia e quieta o local onde até bem pouco as
crianças faziam algazarra. As aulas suspensas, só de vez em quando Clara aparece
no
chalé. Mora tão perto que não teria como se desculpar com dona Martha, caso
sumisse de vez como é seu desejo. Senão de vez, ao menos até que a tempestade
passe.
O sempre imprevisível Noel. Tão irresponsável, tão insensível, tão desprovido de
nobreza nestes sete anos em que povoou de incertezas os sonhos de Clara, eis que
agora ele decide dedicar-lhe um gesto, último gesto, de grandeza. Desde aquela
tarde em que os dois policiais o foram buscar em casa, ele a tem evitado. Não
mais
se falaram. Sequer seus olhos se cruzaram ao acaso num dos muitos e apressados
entra e sai dele. Não haveria de ser ela que iria abordá-lo. Pedir explicações?
Nunca.
Não se acha com esse direito. Noel é que a procura.
- Preciso falar com você. Às sete da noite. Na esquina de Visconde de Abaeté.
A mesma esquina do primeiro encontro há sete anos. Na hora marcada, lá estará
Clara. Noel também. É bem possível que tenha sido pensando nela, em momentos
como este,
que ele um dia escreveu um samba fadado a permanecer, como uma relíquia, entre
seus guardados : Não Morre Tão Cedo. Com uma terna primeira parte e uma segunda
em
forma de soneto:
Você não morre tão cedo, Você não morre tão cedo...
Juro que, neste momento,
Pensava nesta sua pessoa,
Tão. boa, tão boa,
Que até dormindo perdoa.
Você sentiu agora com certeza
A dor que sinto no meu coração
E veio pra matar minha tristeza
E veio pra me dar o seu perdão.
Chegando exatamente no momento
Em que a gente pensa o que não diz,
Você adivinhou meu pensamento
Você já perdoou tudo o que fiz.
Você mostrou que tem bom coração
Sabe que eu estou sem a razão,
Mas vem me dar o seu perdão...
284

Você não trata a gente com desdém


Não guarda ódio de ninguém
E paga sempre o mal com o bem.

É com uma Clara assim, adivinhando pensamentos e sempre pronta a perdoar, que
Noel se encontra na esquina de Visconde de Abaeté com Theodoro da Silva. Se
havia preparado
um discurso, uma longa e minuciosa defesa, uma história com princípio, meio e
fim que inteirasse Clara de tudo (ou quase tudo), as palavras ficarão guardadas
com
ele para sempre. O diálogo não dura mais que breves instantes em que o essencial
é dito por olhares.
- Clarinha, o que eu queria te dizer é que... Nunca mais poderemos nos ver.
Bem... não como namorados.
- Eu sei - diz ela baixando os olhos. -Éque aconteceu um problema comigo... Noel
não chega a completar a frase. Os
olhos falam por ele, pelos dois. Clara limita-se a murmurar mais uma vez:
- Eu sei.
Os dois se separam sem mais palavras.
Clara sofre. Trancada no quarto, faz tudo para que os irmãos não a vejam assim,
chorando, machucada, os seis, sete anos de sonhos reduzidos a coisa alguma.
Repassa
esse tempo, desde os primeiros fins de tarde em que esperava no portão o jovem
ginasiano chegar do São Bento no uniforme caqui. Foi um longo tempo de idas e
vindas,
sumiços e reaparições súbitas, promessas e esquecimentos. Sempre ele, o querido
mas imponderável Noel. Enfeitou de perdões o romance repleto de hiatos que eles
viveram.
Perdoou-lhe as mentiras, os repetidos e inexplicados desaparecimentos. Perdoou-
lhe até o fato de haver entre eles uma Fina (ou quantas Finas?). "Vai ver é
coisa
passageira", tentava iludir-se. Agora, depois de tantos perdões, o fim. Clara
chora a certeza de já não poder encarar Noel, olhá-lo nos olhos, falar-lhe como
antigamente.
Mas a pior de todas as certezas não é esta e sim a de saber lá no íntimo que até
o último de seus dias, sejam quais forem os caminhos que tomarem, jamais amará
alguém
como o amou nesses
anos todos(5).

NOTAS
1. Avante!, 2 de dezembro de 1933 (página 5).
2. Ibidem, 30 de novembro de 1933 (página 5). O retrato a que se refere Orestes
Barbosa é mencionado pela caravana do Avante! na mesma reportagem em que está
contada
a "diabrura" de Noel Rosa: "Daquele modesto auditorium (o botequim do Carvalho),
saíram os três (Nássara, Almirante e Noel) para os melhores estúdios desta
capital
e quem disso mais se orgulha é o botequineiro que tem em sua casa, em lugar de
honra, o retrato dos três mosqueteiros."
3. Noel manteria até o fim da vida a determinação de deixar Três Apitos
inédito. O samba só seria gravado em 1951 e editado dois anos depois.
4. Jota Efegê era um dos membros do júri que deu à Mangueira o primeiro lugar
naquele desfile. Lembra-se de ter visto Noel no palanque ao lado do seu. O samba
de
Carlos Cachaça intitulava-se Homenagem.
5. Clara se casaria em 1938 com Príncipe Cinelli, a quem já namorava à época da
morte de Noel. Em depoimento aos autores, a 6 de novembro de 1981, não
esconderia
ter sido Noel o amor de sua vida. Na mesma ocasião, uma de suas filhas, Lucy,
acrescentaria: "Sempre soubemos disso. Eu e Dilma, minha irmã. Mamãe gostou
muito de
papai, mas sua grande paixão foi mesmo Noel Rosa."
285

VALENTES E AMIGOS (MAS NEM SEMPRE)

Capítulo 29

No século do progresso O revólver teve ingresso Pra acabar com a valentia.


Século do Progresso
A intolerância de dona Olindina, firmemente decidida a nunca mais ver a filha
enquanto ela não se casar, deixa Noel com um problema inesperado e difícil. O
pessoal
da delegacia parece ter-se dado por satisfeito, não o incomoda mais. Martha,
diminuído o assédio de dona Olindina, o pressiona menos. Quem sabe daqui a algum
tempo
todo o mundo não esqueceu tudo isso? A questão é para onde levar Lindaura,
repentinamente sem teto. Será justo deixá-la ao relento, expulsa de casa pela
mãe intransigente?
De forma alguma. Mas para onde levá-la? Um hotel? Muito caro. A residência de um
amigo? Quem? Enquanto a solução não é encontrada, Noel resolve esperar Lindaura
todos os dias à saída da lavanderia. Passa a conduzi-la em sua companhia para
toda parte, programas de rádio, festas, botequins. Em qualquer desses lugares
Lindaura
se apresenta como "a noiva do Noel". Já ele não é tão efusivo. Pelo contrário,
quase sempre esquece que ela está perto, presente, par constante. Às vezes os
dois
vão juntos tomar uma sopa no Café Carlos Gomes, na Praça Tira-dentes. Ou então
uma média com pão e manteiga no Magalhães, onde também se reúne o pessoal do
teatro.
É ali que uma noite Noel abandona Lindaura sentada diante de uma xícara vazia,
depois de dizer com o ar preocupado:
- Lindinha, me lembrei de uma coisa importante. Meu Deus! Como é que fui
esquecer? Espere um pouquinho que vou até ali, no Recreio. Resolvo tudo em um
minuto e volto
logo.
Uma, duas, três horas se passam e Noel não retorna. Meia-noite, o Magalhães se
foi, os garçons começam a virar as mesas, Lindaura ainda sentada diante da
xícara
vazia.
- Está na hora de fechar, moça - diz um dos garçons.
- Mas eu estou esperando o meu noivo...
- Seu noivo?
- É, o Noel Rosa.
- O Noel? - pergunta o garçom com ar desalentado. - A essa altura, moça, ele
deve estar lá pela Lapa. Não volta mais, não.
Esses esquecimentos são freqüentes, Lindaura tendo de procurar Noel pelos
recantos da madrugada, ou então de recorrer a uma amiga que a abrigue ao menos
por uma
noite. No dia seguinte, tudo recomeça. Sem lugar fixo, um quarto de pensão hoje,
um canto de favor amanhã, Noel faz o que pode para que Lindaura tenha onde
dormir.
Ou então a leva com ele em suas andanças noturnas, o botequim, o banco de praça,
a roda de amigos, a esquina. Para ele, habituado a trocar o dia pela noite, não
há problema. Mas para ela, que tem de chegar cedo
287

ao trabalho, uma noite em claro é um suplício. Lindaura se queixa:


-Assim não agüento, Noel. Fico morta de sono.
Ele muda de tática. Pede que ponha o seu melhor vestido, o chapéu, meias novas,
prometendo-lhe que vão passear no Serrador1, comer um bom bife, quem sabe ir ao
teatro
e, por fim, dormir num agradável hotel. Só que a promessa não se cumpre.
Lindaura veste a melhor roupa, mas Noel no meio do caminho altera os planos:
- Vamos tomar um trem.
- Mas para onde?
- Pro subúrbio. Isso, vamos passear de trem pelo subúrbio.
Onze da noite, os dois entram num trem da Leopoldina para viagens de ida e volta
que só terminarão no outro dia, sol a pino. Lindaura dormindo sentada, o chapéu,
as meias novas, o melhor vestido amarrotados, enquanto Noel puxa do bolso papel
e lápis. Alheio aos balanços do trem, escreve.
Acha esta idéia tão boa que passa a repeti-la todas as noites.
- Vamos lá, Linda, para o nosso passeio de trem.
Lindaura resmunga, ensaia uma reclamação, mas logo desiste. Os dois se dirigem à
Leopoldina para as mesmas viagens de ida e volta, Lindaura dormindo, Noel
escrevendo.
João de Barro encontra-se com ela perto da Fábrica Confiança. Fica impressionado
com seu abatimento, as olheiras, o ar de quem anda passando por maus momentos.
Lindaura
conta-lhe o que está acontecendo, as viagens de trem consumindo-a pouco a pouco.
- Não posso acreditar nisso, Linda. Uma noite inteira no trem, das onze às seis
da manhã? Que coisa esquisita!
- Se você duvida, Braguinha, porque não vem conosco logo mais?
João de Barro concorda. Não é possível que alguém suporte passar horas sentado
no banco duro de um trem da Leopoldina, escrevendo à luz fraca, sem pegar no
sono,
enquanto a namorada dorme ao seu lado. João de Barro espera Noel e Linda em hora
e lugar marcados por ela. Cumprimenta o amigo, indaga aonde vai:
- Vou dar um passeio pelo subúrbio.
- De carro? - pergunta como se nada soubesse.
- Não, de trem. Quer vir conosco? João de Barro diz que sim. Quer ver com
os próprios olhos se Lindaura falou a verdade. Às onze os três entram no trem,
sentam no banco duro, a primeira viagem de ida e volta começa. Às seis da manhã,
o
sol já alto, os três continuam no trem. Lindaura pegou no sono primeiro.
João de Barro ainda agüentou um pouco mais, o bastante para ver Noel puxar
lápis, papel e escrever.
- É aqui que você passa as suas noites, Noel?
De volta para casa, os três vêm pela Theodoro da Silva. Noel entra no chalé para
entregar-se a seu sono vespertino. Braguinha, cansado, vira-se para a exausta
Lindaura
e não sabe o que dizer.
- Você tinha razão. Que coisa esquisita! Tantos são os protestos da namorada que
Noel concorda em trocar de expediente. Mais trabalhoso, é verdade, porém mais
confortável, que passa a adotar regularmente. De madrugada, na ponta dos pés, os
dois
penetram no chalé e tomam a direção do quarto dos fundos. De manhã, bem cedinho,
Lindaura levanta-se, muda de roupa, vai trabalhar. Tudo na ponta dos pés, para
que
ninguém no chalé saiba da existência de nova moradora. Mas isso não dura muito.
Certa ocasião, Martha acorda mais cedo que de costume, vai ao quintal e encontra
Lindaura lavando o rosto no tanque.
- Mas que negócio é esse? Lindaura, embaraçada, desperta Noel.
Ele que explique tudo. Martha, mais irritada do que surpresa, não faz por menos:
- Que falta de respeito!
Noel, sonolento, rumina algumas palavras:
- A mãe de Linda não a quer mais em casa.
Para Martha isso não explica nada. Vá lá que Noel se desvencilhe de dona
Olindina, que se livre habilmente da polícia, que consiga embrulhar a própria
mãe. Mas trazer
Lindaura para morar no chalé, dormir com ele no quartinho dos fundos, nunca!
- Aqui em casa, Noel, só casando! Filho e mãe discutem. Noel nem quer
pensar na condição imposta. Por que ela insiste nessa história de casamento?
- Não adianta, Noel. Esta moça, aqui, só casando!
Lindaura sai para o trabalho, deixando Noel no meio da discussão e com um
problema para resolver.
Quando mais tarde ele esbarra com Germano Augusto e Kid Pepe na cidade, fala de
suas aperturas, Linda sem ter para onde ir. Acha que deve ajudar a namorada. Mas
como?
-Acho que posso te tirar dessa, Noel-diz Germano.
O português revela ter uma amiga que mora na Rua Laura Araújo, no Mangue. Boa
alma, mulher prestativa, sempre disposta a socorrer quem precisa. Uma amiga
muito especial
288

que não por acaso está doida por ele, Germano, e portanto incapaz de lhe negar
um favor. Em sua casa trabalham umas sete ou oito moças. Pegam às seis da tarde,
largam
pouco antes das duas da manhã, de modo que os quartos ficam vazios todo o dia e
a maior parte da madrugada. Por que não pedir à amiga que abrigue Noel e
Lindaura
até que consigam coisa melhor?
Noel aceita o oferecimento da casa em que o português diz dar as cartas. Vai
esperar Lindaura no trabalho, conta-lhe que já tem lugar para ficarem, um quarto
de
pensão que só podem ocupar depois de duas da manhã. Não é o ideal. Uma solução
apenas provisória, mas que a ela parece muito melhor do que uma briga com dona
Martha.
Ou do que uma noite maldormida sobre um banco de maria-fumaça. E é desse modo
que os dois vão habitar por algum tempo um quarto da Rua
Laura Araújo, em pleno Mangue. O profano mundo em que Noel viveu suas alegres
aventuras de menino, agora convertido num prosaico ninho de amor.
Outro que vai ajudar muito Noel nessas peripécias em busca de lugar para
Lindaura é Zé Pretinho. Duas vezes mais valente do que Germano Augusto e
Kid Pepe juntos, com coragem para encarar um Brancura ou alguém do mesmo tope, é
do tipo de malandro que fascina Noel. Não só pelo destemor, mas especialmente
por
certos códigos de ética muito próprios, de uma nobreza que é preciso conhecer de
perto para compreender. Kid e Germano, por exemplo, são capazes de tudo, grandes
e pequenas torpezas. Malandros menores, barganhadores de tostão, trapaceiros
baratos que tiram dinheiro de quem não tem e gostam de se impor pela força, pela
ameaça.
Principalmente Kid Pepe, que não faz segredo disso. Zé Pretinho, não. Orgulha-se
de ser um malandro maior. No jogo ou lá em que seja, só esvazia bolsos de quem
os
tem cheios, respeita mulheres, velhos, crianças, gente de família, não compra
briga com os fracos. Prefere enfrentar policiais armados, malandros temidos como
ele,
valentes de verdade, a cometer uma covardia. Pelo menos é o que diz. E do que Zé
Pretinho diz ninguém duvida(2).
Chama-se Manuel do Espírito Santo e nasceu em Capela, pequena cidade do interior
sergipano. O apelido vem de um cantador que ele admira muito, um cego da Paraíba
cujos versos correm mundo em livrinhos de cordel. Zé Pretinho andou por mares de
todo o Brasil, quando estava na Escola de Aprendizes de Marinheiro. Um dia, uma
hérnia estrangulada obrigou-o a baixar ao hospital no Rio. Operado, passou algum
tempo internado, convalescendo. Descobriu então que gostava mais da terra do que
do mar. E desertou. Atravessou quase dois anos se escondendo, até que uma briga
de botequim, em 1929, acabou com a clandestinidade: veio a polícia, prendeu-o,
constatou
que era desertor e mandou-o de volta à Marinha, desta vez para cumprir pena. Um
ano depois, com a anistia dada por Getúlio Vargas aos militares presos,
desertores
inclusive, ganhou liberdade. E passou a viver de samba e carteado.
Em 1934, Zé Pretinho pode ser um exímio manuseador de baralhos, mas como
sambista ainda é principiante. Fez uma ou outra coisa que andou mostrando sem
sucesso para
gente do meio musical. Sua amizade com Noel começou de encontros casuais em
botequins da Praça Tiradentes. E não por causa de samba. Noel ouviu falar das
façanhas
de Zé Pretinho, de sua amizade com o temível Porela, do Salgueiro, ou com gente
ainda mais assustadora, como o desassombrado Saturnino que tantos juram de morte
(é cheio de ironias o mundo dos valentes, pois Saturnino, a quem as pessoas
temem só de olhar, acabará morrendo pelas mãos de
289

um pacato que por causa de mulher lhe dará dois tiros pelas costas num botequim
da Rua Comandante Maurity). Noel gosta de ouvir essas histórias, mesmo as mais
sangrentas.
Como o susto que Zé Pretinho passou com Brancura, este pedindo emprestada a
chave do quarto em que ele morava, numa casa de cômodos da Rua Moncorvo Filho.
Zé Pretinho
avisou:
- Vê lá quem tu vai levarpro meu quarto, ô Sylvio.
- Fica sossegado, Zé. É moça distinta.
Tarde da noite, ao voltar pra casa, Zé Pretinho viu uma multidão à porta do
prédio. Alguém foi logo avisando:
- Foi no teu quarto, Pretinho.
A moça distinta que Brancura levara para lá estava enrolada no lençol de Zé
Pretinho, ensangüentada, navalhadas pelo corpo. Brancura é mau, doido, sempre
sentindo
prazer em fazer sangrar mulheres. Zé Pretinho cortou um dobrado para esclarecer
ao chefe de polícia, Martim Vidal, que não acontecera nada de mal:
- A moça fez um aborto, seu Martim. É amiga minha.
Zé Pretinho e Noel ficam amigos,
vêem-se com freqüência. Quando Noel lhe diz que está com vontade de tirar
Lindaura da casa do Mangue, é Zé Pretinho quem lhe consegue um quarto barato num
velho
sobrado da Rua do Acre. Chega a ajudá-los na mudança, levando para lá o pouco
que o casal tem.
Brancura não é o único que vive usando a navalha pelo prazer sádico de ver o
sangue jorrar. Na galeria dos homens maus da malandragem carioca,
Osvaldo Vasquez, o Baiaco, também ocupa lugar destacado. Não é um valente. Não é
respeitado como verdadeiro malandro, assim como Saturnino. Sua fama deve-se não
à coragem, mas à covardia. Não a grandes façanhas, mas a grandes maldades. Se
Brancura gosta de cortar gente, Baiaco vai mais além: faz sofrer pessoas e
animais.
Muitos já o viram segurar cães e gatos pelo rabo e abrir-lhes o ventre, de uma
ponta a outra, a golpes de navalha. Ou então cobrir de jornais encharcados de
álcool
mendigos que dormem na calçada para em seguida atirar
em cima um fósforo aceso. Diverte-se vendo os pobres coitados correndo com o
corpo em chamas.
Durante algum tempo, por uma estranha atração ou por necessidade de proteção (ou
talvez por ambas), Noel torna-se companheiro de andanças de Baiaco. Sabe que é
ladrão
de samba, que arranca parcerias à custa de ameaças, que se junta a Benedicto
Lacerda e a outros para transformar a inspiração alheia em composição "sua".
Baiaco
costuma ir com Benedicto aos botequins do Mangue. Entra, Benedicto fica do lado
de fora. Baiaco vai puxando conversa, começa a falar de samba, vai sabendo se o
eventual
interlocutor também compõe. Caso afirmativo, pede que lhe cante o que tem de
melhor. O outro canta. Baiaco, então, faz sinal para Benedicto, que entra no
botequim
e se senta na mesa ao lado.
- Repete este samba mais uma vez - diz Baiaco.
E enquanto o samba é repetido, Benedicto o vai passando para a pauta. Finda a
operação, Baiaco finge-se encolerizado.
- Quer dizer, seu sem-vergonha, que este samba é seu? Pois fique sabendo que eu
e o Benedicto Lacerda fizemos ele há muito tempo.
Benedicto, que saíra novamente, simula estar passando ali por acaso. Baiaco o
chama.
- Benedicto, canta pra este salafrário o samba que a gente fez outro dia.
Benedicto tira a pauta do bolso e, para surpresa dos presentes, vai cantar
exatamente o samba que acabaram de ouvir em primeira audição.
- Primeira audição coisa nenhuma, seu
290

ladrão de música!
E quem é que vai desmentir Baiaco? Não Noel. Que sequer se atreve a insinuar o
que todo o mundo sabe: Arrasta a Sandália, sucesso no carnaval de 1933 na voz de
Antônio
Moreira da Silva, não é de Baiaco nem de seu parceiro Aurélio Gomes, mas de um
terceiro - como se chama? - a quem os dois passaram para trás.
A amizade com Baiaco, ainda que curta, vai custar a Noel muitas reprimendas de
amigos e até mesmo antipatias que jamais serão superadas. Conta-se que algumas
vezes
Noel presenciou as crueldades de Baiaco, a retalhação de cães, os maltrates aos
mendigos. E nada fez para impedi-lo. Pelo contrário, achou graça. Riu. Ou por
vontade,
ou para agradar o malandro que o protegia.
Não é mesmo muito fácil compreender Noel, o que pensa, o que faz, o que diz, o
que silencia. O contraditório de certos gestos e o imprevisível de certas
reações.
Como a que, neste começo de 1934, vai aparentemente transformá-lo num inimigo
feroz da malandragem. Quem pode compreendê-lo? Alguns de seus melhores amigos
são malandros,
jogadores, valentes, contraventores, desocupados, homens maus, gente que a
polícia caça pela cidade. Indivíduos armados de navalha ou de cuja cintura
costuma emergir,
desafiadora, a coronha de um revólver. É amigo de Saturnino, aceita favores de
Germano Augusto e Kid Pepe, faz camaradagem com Zé Pretinho, ri das malvadezas
de
Baiaco. Gosta de ouvir histórias trespassadas de valentias, brigas, desforras,
tiros, navalhadas, mortes. O próprio Noel fez e ainda fará sambas falando de
malandragem
e malandro. E no entanto - quem pode compreendê-lo? - vai implicar com a
filosofia contida em Lenço no Pescoço, samba lançado magistralmente por Sílvio
Caldas em
fins do ano passado.
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserè
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção.
Um excelente samba de autoria algo complicada, o selo do disco creditando-o a um
tal de Mário Santoro, enquanto o pessoal da Favela diz que um malandreco, ruço,
cheio de tatuagens, comprou-o não se sabe de quem. Mas parece que o autor,
mesmo, é outro malandreco: Wilson Baptista. Como Zé Pretinho gosta de dizer, é
como do
Sol para a Lua a diferença entre o malandro e o malandreco. Este não tem a
dimensão e a importância daquele, é aprendiz, treina mas não joga.
- O mais que consegue é bater palma pra malandro.
Wilson Baptista é um malandreco. Mas só por enquanto. De todos esses que estão
por aí - para citar apenas os que fazem da malandragem profissão de fé - é o
mais
talentoso em matéria de samba. Nem Zé Pretinho, nem Baiaco ou Brancura, nem
Germano ou Kid Pepe, nenhum desses, enfim, tem o seu dom de brincar com o ritmo
e a melodia
como fez com Lenço no Pescoço. Todos aqueles, de uma forma ou de outra,
comerciam samba. E geralmente compram. Wilson os vende. E às dezenas. Tem apenas
vinte anos,
veio de Campos aos dezesseis e desde então arrasta seus tamancos pelo submundo
carioca. Mas costuma dizer, peito estufado: "Ainda vou ser algum troço na vida."
Teve
muitas ocupações, de acendedor de lampião a ajudante de contra-regra no Teatro
Recreio, função que pelo menos o aproximou do meio artístico. Porque Wilson quer
ser
é artista, fazer e cantar samba, trabalhar no rádio e no teatro. Enquanto
batalha por isso, é um pouco de tudo, jogador, esparro, descuidista,
atravessador, garoto
de recado em rendevous. Sua instabilidade profissional, somada a uma
indissimulável vocação para a marginalidade, levou-o a ser, entre outras coisas,
uma espécie
de office boy dos afamados irmãos Meira, expulsos de São Paulo depois de
repetidas trapalhadas, hoje radicados no Rio, onde seus negócios se ampliam da
exploração
do lenocínio ao tráfico de drogas. Importantes nomes da música popular serão
seus clientes, entre eles o próprio Wilson, sempre com uma soruma no bolso.
Ter orgulho de ser vadio, no seu caso, não é apenas maneira de dizer
transformada em letra de samba: é orgulho mesmo. Várias entradas na polícia -
das quais fala
como um piloto das suas horas de vôo - é evitado pelo pessoal do Nice. Nem todos
o tratam de igual para igual, há até os que temem se comprometer em sua
companhia.
Mas ele não se importa. Pisando macio, cheio de gingas e gestos, o cigarro no
canto da boca, o olhar de esguelha, e gíria sussurrada em forma de música:
- Tem um forra-tripa aí, amizade?
291

Vive pedindo, não só um forra-tripa, isto é, que alguém lhe pague uma refeição,
mas também dinheiro para isso ou aquilo, sempre pouco, dez, vinte mil réis.
Depois,
diz baixinho:
- Te juro que um dia Deus ajusta conta por mim, amizade.
Se o outro é de samba, Wilson não pede, oferece:
- Quer me comprar um samba, ilustríssimo? Pode escolher: primeira ou segunda
parte. Se precisar, as duas.
Até Lenço no Pescoço ser gravado por Sílvio Caldas, Wilson Baptista não fez
muito sucesso. Mas teve seus sambas incluídos nos repertórios de Patrício
Teixeira, Almirante,
João Petra de Barros, Murilo Caldas e Francisco Alves. Noel Rosa conhece-o
dessas noites vagabundas da Lapa, passadas entre copos de cerveja e mulheres
cansadas.
E é para ele , Wilson, ou melhor, para rebater verso por verso o que está dito
em Lenço no Pescoço, que Noel escreve Rapaz Folgado.

Deixa de arrastar o teu tamanco


Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.
Com chapéu do lado deste rata
Da policia quero que escapes
Fazendo samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

Quem pode compreendê-lo? Como explicar que o moço permanentemente seduzido pelos
encantos da malandragem tenha se tornado, de uma hora para a outra, um
antimalandro,
um crítico do tipo de vida que levam seus amigos Saturnino, Baiaco, Zé Pretinho,
Germano? Interpretações futuras - e simplistas - nos darão conta de um Noel Rosa
repentinamente preocupado em mudar a imagem do sambista, tornar bem-comportados
os temas da música popular, desempenhar papel moralizador. Nada mais apressado.
Uma
leitura atenta da letra de Rapaz Folgado deixa claro que a estocada de Noel tem
um alvo pessoal e não geral, é de um malandro específico que ele fala e não da
malandragem.
Isto é, do malandro Wilson Baptista, que os verdadeiros bambas preferem chamar
de malandreco. Mas um malandreco que tempos atrás levou a melhor sobre Noel na
disputa
por uma morena
da Lapa. Noel com todos os seus sambas e sua fama perdendo uma batalha amorosa
para o mulato cheio de manha que é Wilson. Não se esqueceu disso. E agora, na
primeira
oportunidade, no primeiro sucesso do outro, tenta ir à forra(3). Uma forra que
Wilson Baptista não poderá deixar sem resposta. Porque os versos foram muito
claramente
dirigidos ao seu samba, à sua pessoa. E porque uma briguinha musical com Noel
Rosa é uma forma de ganhar evidência:

Você que é mocinho da Vila


Fala muito em violão
Barracão e outras coisas mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone
E deixe quem é malandro em paz.
Injusto é seu comentário
Fala de malandro quem é otário
Mas falando não se faz
Eu de lenço no pescoço Desacato
e também tenho o meu cartaz.

Mas ninguém toma conhecimento desse samba, Mocinho da Vila(4).


Em matéria de malandro, não é Wilson Baptista, com seus sambas cheios de bossa,
quem perturba Noel neste início de 1934, mas Kid Pepe. Depois do espetacular
sucesso
de O Orvalho Vem Caindo, o ex-pugilista pôs-se a pensar em como seria vantajoso
ter Noel Rosa como parceiro exclusivo. Em pouco tempo os sambas dos dois
estariam
correndo o país na voz dos melhores intérpretes, Kid lançado como compositor,
respeitado, admirado. Seu nome nos selos dos discos, nas partituras impressas,
nos
jornais de modinha, sempre na melhor das companhias. César Ladeira, com aquela
classe, aquela dicção perfeita, anunciaria pelo rádio "o novo sucesso de Noel
Rosa
e... Kid Pepe!"
-Desculpe, Kid. Mas não sou parceiro exclusivo de ninguém.
Talvez Noel não devesse ser tão categórico. Podia ter contemporizado, inventado
uma saída mais hábil, dizer ao outro que ia pensar no assunto, quem sabe amanhã
ou
depois, algo assim. Terá se esquecido de como Kid Pepe é quando quer alguma
coisa? Vive ameaçando de morte os contra-regras de rádio que não tocam suas
músicas,
exigindo à força que compositores lhe dêem parceria, que cantores gravem o que
assina. Uma das vítimas será Almirante, que de tanto se negar a gravar músicas
suas
acabará sendo esfaqueado por ele na Galeria Cruzeiro(5).
292

Mas antes de ser Almirante a vítima, as ameaças mais constantes e assustadoras


de Kid Pepe são mesmo a Noel Rosa, cuja negativa de tornar-se parceiro exclusivo
ele
simplesmente não aceita. Passa a perseguir Noel, a procurá-lo em toda a parte.
Encontrando-o, volta sempre ao assunto. E em tom invariavelmente aterrador:
- Você não vive dando parceria a todo o mundo? Por que não a mim?
Noel foge, esconde-se de Kid Pepe. Se chega ao estúdio de uma emissora de rádio,
antes olha para se certificar de que o outro não está. Permanentemente
assustado,
fala de seus temores a Zé Pretinho.
- O Kid ameaça muito e não faz nada, Noel.
Estão os dois e Roberto Martins nas proximidades da Central do Brasil. Roberto
também é compositor. E dos bons. Conhece bem este meio de malandragem, só que do
outro
lado: é policial. Ele e Zé Pretinho prometem falar com Kid Pepe, mandar que
deixe Noel em paz(6).
No dia seguinte, Kid diz a Roberto e Pretinho:
- Sosseguem, só estou dando uns sustos nele.
Uma noite, Noel está com Lindaura no estúdio da Rádio Club do Brasil. Zé
Pretinho chega e o vê apavorado, indo a todo momento até a janela, olhando para
baixo como
se a procurar alguém.
- Qual o problema, Noel?
- Me disseram que o Kid esta lá embaixo esperando por mim.
- E o que é que ele quer?
- O mesmo de sempre, me arrancar parceria à força.
- Deixa essa questão comigo.
Zé Pretinho desce e de fato encontra Kid Pepe conversando com amigos à porta da
emissora. Chama-o de lado, abre o paletó para que veja a coronha do revólver.
- Outra vez, Kid? Eu não te disse pra deixar o Noel em paz?
Kid mastiga duas ou três palavras.
- Essa história já esta me aborrecendo, Kid.
- Tu não tá entendendo, Pretinho.
- Olha, vamos fazer um negócio: se tu quer bater no Noel, bate. Mas vai ser uma
vez só. Depois disso tu nunca mais vai bater em ninguém.
Kid Pepe promete - dessa vez para cumprir - que Noel ficará em paz. Zé Pretinho
sobe, chama Noel e Lindaura.
- Noel, comadre! Vocês podem ir embora tranqüilos.
Noel quer saber como ele conseguiu demover Kid Pepe. E o amigo abre o paletó de
novo, mostrando-lhe a coronha do revólver.
- Vira isso pra lá, Pretinho - diz Noel.
- Por que que tu não compra um cospe-fogo desses, Noel?Enquanto agente não tem
um, não é respeitado.
Noel pergunta-lhe se já usou o revólver, se já matou alguém.
- Andei dando meus tirinhos por aí... - responde sorrindo.
Noel sabe ser grato aos amigos, a quem o ajuda nos instantes de aperto,
Germano Augusto, Zé Pretinho. Habituado a saldar suas dívidas com samba,
concorda em dar forma definitiva a um esboço que Germano lhe trouxe, talvez
conseguido através
de uma das artimanhas que aprendeu com Baiaco. Germano costuma dividir com quem
sabe escrever música os fragmentos, por vezes sambas inteiros, ouvidos nos
botequins
do Mangue de anônimos
293

compositores que anônimos continuarão. Bem pode ser este o caso de Se a Sorte Me
Ajudar, que Noel praticamente refaz para ele.

Se a sorte me ajudar
Eu vou te abandonar
Vou mudar de profissão
Porque a palavra malandragem
Só nos trouxe desvantagem
E você não vai dizer que não.
Quem faz seus versos
E no morro faz visagem
Leva sempre desvantagem
Dorme sempre no distrito
Entretanto quem é rico
E faz samba na Avenida
Quando abusa da bebida
Todo mundo acha bonito.
Antigamente, o folgado era cotado
E era bem considerado
Ia ao baile de casaca
Hoje em dia por despeito
Ele é sempre perseguido
E é mal compreendido
Pela própria parte fraca.
Aqui, em vez de combater a malandragem (e por que o faria ?), Noel registra uma
nova realidade. A decadência do mito do malandro, injustiçado, incompreendido,
malvisto
pela própria "parte fraca", isto é, a população pobre que tantas vezes ele
protegeu e que agora o rejeita.
A Zé Pretinho Noel é ainda mais grato, Um amigo que o defendeu em muitas
oportunidades, não só de Kid Pepe, mas de muito malandro forte que ele, atiçado
pelo álcool,
andou provocando. Além do mais, foi quem conseguiu um quarto barato para
Lindaura ficar. Noel na certa se lembra disso quando o amigo lhe aparece com um
pedaço de
samba que diz chamar-se Tenho Raiva de Quem Sabe:

Não sei nem quero saber


Tenho raiva de quem sabe
O seu modo de viver
Eu pago pra ninguém me incomodar
E não me perguntar por você.
Noel completa-o sem esmerar-se muito:
Depois de tanta briga
Hoje em dia eu suspeito
Que talvez você me diga
Que lhe odeio por despeito
Tanto me sacrificava
Sem ter o menor direito
Juro que não esperava
Levar fama sem proveito.
Rasguei o seu retrato
Suas cartas eu queimei
Desta vez briguei de fato
De você já enjoei
Para evitar perigo
Eu imploro a você
Quando encontrar comigo
Simular que não me vê.

De quebra - e para ser grato a dois de uma só vez - Noel vai presentear Germano
Augusto e Zé Pretinho com um terceiro samba, Não Foi Por Amor. Um primor. Sem
repetições
melódicas, a primeira e a segunda quase que fundidas como se fossem uma só. Uma
espécie de cavatina em forma de samba.

Não foi por amor, meu bem,


Que por mim você chorou
Você foi interesseira
Quis amar de brincadeira
Só enquanto me explorou...
Só enquanto me explorou!
Pra depois ficar dizendo
Que a sorte não lhe ajudou,
Pra depois ficar dizendo,
Soluçando e gemendo,
Que a sorte não lhe ajudou.
Eu me sinto bem feliz
Relembrando o que passou
Eu fui bobo porque quis
Hoje a canja se acabou
Quero só que você prove
Se você me ajudou
O seu choro não comove
Quem você prejudicou.

Em nenhuma das três composições Noel aparecerá como autor. Diz a Zé Pretinho e
Germano que é presente, nada mais. Por isso, não quer participação alguma, nem
pagamento
de direitos autorais, nem crédito em disco ou partitura. E ainda fará mais:
sempre que puder, cantará os sambas no rádio para divulgá-los.
É pela voz de Noel, num programa de rádio em princípios de março, que Kid Pepe
toma conhecimento de Tenho Raiva de Quem Sabe. Ao ouvir o locutor anunciá-lo
como
de Zé Pretinho, Kid o procura. Diz que Mário Reis está atrás de alguma coisa
para gravar no outro lado de Não Sei Que Mal Eu Fiz, de Heitor dos Prazeres, e
que o
encarregou de procurar por ele. Será que Pretinho deixa mostrar o samba ao
Mário? E se o Mário gostar, poderia gravar no mesmo disco do samba do Heitor?
- É claro - responde Zé Pretinho todo animado.
Kid Pepe apresenta a música a Mário Reis, este gosta e grava-a na Victor a 25 de
abril. Noel não está no Rio por esta época, mas viajando
294

com Benedicto Lacerda e sua turma numa série de espetáculos em cinemas e teatros
do norte fluminense e Espírito Santo (ver capítulo 30). Vai demorar mais do que
se esperava, quase dois meses. De volta, quando o disco lhe cai nas mãos,
constata perplexo que a autoria do samba é atribuída a Zé Pretinho e Kid Pepe.
Fica sem
entender. Como terá o Kid entrado nessa história? Logo o Kid Pepe! Não sabe que
este, sem pedir permissão a Zé Pretinho, mas cobrando em termos de autoria o
favor
de ter servido de intermediário junto a Mário Reis, colocou por conta própria
seu nome no disco e na partitura. Noel fica indignado. Não com
Kid Pepe, mas com Zé Pretinho. Pela suposta traição.
O próximo encontro dos dois vai acontecer na Rádio Cruzeiro do Sul, na Rua
Mariz de Barros. Zé Pretinho já está lá. Ele e Manuel Ferreira no meio de outros
compositores, cantores, locutores, pessoal técnico. Sem saber da zanga de Noel,
Zé Pretinho o cumprimenta:
- Que bom que você esta aqui, Noel! Queria que conhecesse um samba que ojayme
Vogeler vai cantar daqui a pouco, Amar é Muito Bom. Meu e do compadre Manuel
Ferreira.
- Não vou corrigir mais nada pra você, Pretinho.
Noel segue em frente e Zé Pretinho fica sem entender coisa alguma. Corrigir o
quê? O samba está pronto, entregue a Jayme Vogeler para cantar no programa desta
noite.
Que história é essa de corrigir?
- Poxa, Pretinho, o Noel não foi nada delicado com a gente - comenta Manuel
Ferreira.
Zé Pretinho sai de onde está e vai ao encontro de Noel.
- Olha, Noel...
- Não quero conversa contigo, Pretinho! - diz virando-lhe as costas mais uma
vez, agora entrando no estúdio para cantar o seu número.
Zé Pretinho está espantado. Espera que Noel cante, põe-se de pé à porta do
estúdio. Estranho, Noel nao é de falar assim com ninguém, muito menos com ele. E
logo
na frente dos outros, todo o mundo testemunhando. Zé Pretinho interpela Noel
assim que o número acaba.
- Eu já te disse que não quero conversa! Zé Pretinho fica furioso, levanta o
braço,
desfere um tapa que vai atirar Noel longe, quase no colo de Odette Amaral. Uns
vão segurar Zé Pretinho, temendo que ele não pare por aqui. Outros acodem Noel.

depois o agressor saberá o motivo da zanga do agredido, a intromissão indevida
de Kid Pepe num samba que ele lhe dera de presente. Logo Kid Pepe! Mas será
tarde.
Noel nunca mais vai querer falar com ele. A não ser através de um samba, soberba
crônica da vida carioca, do mundo dos malandros,
do sinal dos tempos, o conselho de Zé Pretinho lembrado ao próprio Zé Pretinho,
o revólver como forma de impor respeito. O velho malandro - o da rasteira, o da
habilidade
com o aço, o da ginga de corpo e da camisa de seda - começa a sair de cena. Um
revólver pode muito mais. A morte do imortal Saturnino, pelas mãos de um fraco,
será
prova disso. É do que fala Século do Progresso, o recado de Noel a Zé
Pretinho(7):

A noite estava estrelada


Quando a roda se formou
A lua veio atrasada
E o samba começou
Um tiro a pouca distância
No espaço, forte, ecoou
Mas ninguém deu importância
E o samba continuou.
Entretanto, ali bem perto
Morria de um tiro certo
Um valente muito sério
Professor dos desacatos
Que ensinava aos pacatos
O rumo do cemitério
Chegou alguém apressado
Naquele samba animado
Que cantando assim dizia:
"No século do progresso
O revólver teve ingresso
Pra acabar com a valentia."
295

NOTAS
1. Costumava-se chamar de Serrador ao "bairro" que hoje conhecemos como
Cinelândia.
2. Todas as passagens deste capítulo relacionadas a Zé Pretinho foram por ele
mesmo contadas aos autores em dois longos depoimentos em sua casa nos dias 29 de
janeiro
e 3 de fevereiro de 1981.
3. A interpretação simplista é a mais difundida, tendo como defensores, entre
outros, Jacy Pacheco e Almirante. Diz este em No Tempo de Noel Rosa, segunda
edição
(página 146), que Noel teria sido "movido por louvável interesse pela
regeneração dos temas poéticos da música popular". Algo que não combina muito
com o boêmio
que vivia intensamente, naquele 1934, o seu lado "marginal" entre malandros e
outros tipos de personagens que, antes de regenerar, preferia freqüentar. Rapaz
Folgado
é único na obra de Noel. Nunca havia estocado alguém antes e nunca o faria
depois. Não era de provocar. A versão da batalha amorosa - que o próprio Wilson
contou
a alguns amigos (entre eles Bruno Ferreira Gomes, que a incluiu em seu livro
Wilson Baptista e Sua Época, página 54) - faz mais sentido. E, como veremos, é
apenas
a primeira das disputas que os dois travarão por uma mesma mulher.
4. O samba sequer seria lançado no rádio, Wilson Baptista limitando-se a cantá-
lo aqui e ali, apenas para o pessoal do meio artístico. Só em 1956, interpretado
por Roberto Paiva, teria sua primeira gravação, na Odeon.
5. Almirante conta este episódio na primeira edição de No Tempo de Noel Rosa
(página 118), mas omite-o na segunda: Kid Pepe, bêbado, golpeou o no estômago
com um
canivete, cuja ponta, por sorte, foi obstada por um grande botão de osso de seu
paletó.
6. Roberto Martins, em depoimento aos autores, recorda-se perfeitamente deste
fato, contado também por Zé Pretinho: "Kid Pepe tinha respeito a gente, só
ameaçava
os mais fracos..."
7. Almirante nos dá três diferentes versões do episódio que teria levado Noel a
fazer Século do Progresso. Na primeira, na Revista da Semana de 20 de dezembro
de
1952 (página 72), não cita o nome do compositor que agrediu Noel na Rádio
Cruzeiro do Sul e que "dele se afastara, covardemente, daí em diante, ao sabê-lo
munido
de uma arma, na justa precaução contra possíveis traições do desafeto que nem no
próprio físico avantajado confiava". Almirante supunha então tratar-se de Kid
Pepe,
Na segunda, na primeira edição de No Tempo de Noel Rosa (páginas 116-118),
atribui a indignação de Noel ao fato de ter o nome de Zé Pretinho surgido como
parceiro
do samba cuja letra Kid Pepe lhe arrancara "praticamente à força". Ao interpelar
Zé Pretinho, este o agredira. Para se defender,
Noel teria recorrido não a uma arma, mas à presença no estúdio da Rádio Cruzeiro
do Sul de um investigador "amigo dos diretores da emissora". Na terceira versão,
na segunda edição do mesmo livro (página 142), desaparecem a arma e o
investigador. E Noel teria se zangado porque, depois de ter feito o samba com
Kid Pepe e Zé
Pretinho, estes o lançaram sem lhe citar o nome. Três histórias diferentes,
nenhuma delas correta. Por que iria Noel Rosa se irritar tanto com a omissão de
seu nome
num samba menor como Tenho Raiva de Quem Sabe, ele que nunca se importou em ser
escondido por parceiros bem mais importantes e em obras bem melhores e de maior
sucesso?
Os autores ficam com esta quarta versão, que lhes foi contada por Manuel
Ferreira e o próprio Zé Pretinho. A mesma, por sinal, que o último relatou a
Almirante,
mas só depois que este já havia divulgado as outras três.

RUMO AO NORTE

Capítulo 30

Eu bem sei que tu condenas


O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar
Mais Um Samba Popular
Se pensasse melhor, Benedicto Lacerda teria mudado há muito tempo o nome com que
o falecido Sinhô batizou o seu conjunto: Gente do Morro. Neste 1934 ainda são
muitos
os preconceitos contra as populações lá de cima, o pessoal
Eobre que se empilha em centenas, milhares de arracos de paredes de caixote. Não
é por acaso que os preconceituosos membros das famílias de classe média ou alta,
quando querem ressaltar a má educação de alguém, costumam dizer com desprezo:
"Parece gente do morro."
Mas Benedicto Lacerda não pensou nisso. Seu conjunto, embora com a formação de
grupo de choro - ele na flauta, Canhoto no cavaquinho, Carlos Lentine e Gorgulho
nos
violões, Russo no pandeiro - vem se dedicando cada vez mais ao samba, influência
que Benedicto traz dos seus tempos de Estácio, onde foi criado entre os meninos
de morro que mais tarde mudariam os rumos da música popular carioca. A inclusão
de Russo-por sinal, também criado no Estácio-e outros ritmistas em seu grupo de
choro
atende a essa caminhada em direção ao samba. O nome Gente do Morro tem a ver com
ela.
Nos primeiros dias de março de 1934, surge a possibilidade de uma excursão de
artistas cariocas a algumas cidades do norte fluminense e Espírito Santo.
João Cantuária, bom camarada, simpático, que sonha em tornar-se grande
empresário (sonho que jamais realizará), procura Benedicto para propor a
organização de pequena
companhia de músicos, humoristas, cantores, para apresentações em várias
cidades. A começar por Campos, na medida em que as coisas forem correndo bem, a
companhia
irá se dirigindo para o norte, Espírito Santo, Minas, talvez Bahia, Pernambuco,
Ceará, um roteiro bastante ambicioso. O flautista se anima. E se incumbe da
parte
musical, enquanto Cantuária se encarrega da administrativa.
Benedicto encontra, porém, dificuldades. Por motivos diversos, Lentine e
Gorgulho não querem sair do Rio por tanto tempo (afinal, não há data prevista
para o término
da excursão, tudo dependendo das bilheterias que conseguirem). Assim, seu
regional começa desfalcado. Se estava em seus planos levar algum cantor de
sucesso, um
Francisco Alves, um Mário Reis, um Sílvio Caldas, uma Carmem Miranda, a idéia
não passa disso. A viagem tem muito de aventura e nenhum cartaz do rádio há de
trocar
o certo pelo duvidoso, o emprego fixo por uma atividade itinerante e temporária.
Esses problemas obrigam Benedicto e Cantuária a algumas improvisações. Privado
de
seus dois excelentes violonistas, o flautista contrata o amigo Macrino Medeiros
297

e pede que o cômico Coringa, além das pia das e emboladas, ajude com seu violão
no acompanhamento. Na parte humorística, aproveitando que Coringa e seu
companheiro
de dupla, Grijó Sobrinho, vão levar as mulheres, as duas serão utilizadas em
sketches. Por fim, os cantores. Foi de Cantuária a sugestão de convidarem Itamar
de
Souza, morena bonita, voz afinada, mas quase desconhecida, que por estar atrás
de uma chance não fará exigências maiores. A indicação do cantor é de Benedicto:
-
Que tal o Noel Rosa?
Noel e Benedicto Lacerda conhecem-se há tempos. Antes de tornarem-se
profissionais, fizeram serenatas juntos em Vila Isabel. A amizade cresceu quando
Noel começou
a freqüentar o Estácio e mais ainda quando, ambos decididos a viver de música,
passaram a se encontrar em programas de rádio, gravações, espetáculos em cinema
e
teatro. No dia 17 de janeiro, os dois participaram de um recital beneficente do
Sindicato Brasileiro de Artistas de Rádio, no mesmo programa da revista Eva
Querida,
no Recreio. Eles, Almirante, Sílvio Caldas, Manezinho Araújo, Ary Barroso,
Custódio Mesquita, Jorge Murad, Nono, Renato Murce, João Petra de Barros, Sylvio
Vieira,
Sylvia de Toledo e o conjunto do Sindicato dirigido por Pereira Filho. Nestas
ocasiões, Noel canta não só sucessos como trabalhos que pretende tornar
conhecidos.
É o caso de Para Atender a Pedido:

Para atender a pedido


Tudo o que eu tenho sofrido
Eu preciso esquecer
Pois é preciso esquecer
Pra poder te perdoar
Antes de te visitar.
Deves te acostumar
A fazer o que eu mandar
E a me respeitar
Fica estabelecido
Que não mentes nunca mais
Para atender a pedido.
Antes de esquecer
O teu triste proceder
Que me fez padecer
Eu já tinha me convencido
Que havia de voltar
Para atender a pedido.
E também Por Você Sou Capaz,
onde se encontra - além do prazer da vadiagem, da aversão ao trabalho e até da
rendição do malandro capaz de apanhar por amor - uma referência a vovô Eduardo,
tão
avesso aos jogos de azar desde a época do mexicano Zevada.
Por você fico cego, surdo e mudo
Por você eu passo fome até morrer
Por você sou capaz de tudo
Até o trabalho sou capaz de experimentarPra conhecer
Eu não sou mau rapaz Não procuro brigar
Por você sou capaz De gostar de apanhar!
Eu padeço demais Sem me desabafar
Por você sou capaz De aprender a chorar!
Meu avô que odiava Esses jogos de azar
Por você arriscava Um tostão no milhar!

Neste espetáculo, Benedicto Lacerda e seus companheiros (Lentine, Gorgulho,


Canhoto e Russo) apresentaram-se como Conjunto Guanabara. Agora, como o grupo é
efetivamente
outro (saíram Gorgulho e Lentine, entraram Macrino, Coringa e os cantores, além
de Doidinho para reforçar o ritmo com seu ganzá) e como Benedicto pretende que o
samba, o samba tipicamente do Estácio, São Carlos, Favela, Saúde, Gamboa, seja o
forte do repertório, troca o Guanabara pelo antigo Gente do Morro. Já se verá,
um
erro estratégico.
Benedicto Lacerda é um músico formidável. Como flautista, um virtuose diplomado
na escola dos chorões, mas que aprendeu muito também como músico de banda e mais
ainda em seu convívio com o pessoal do samba. Esta será sua grande marca.
Enquanto Pixinguinha, por exemplo, segue a tradição de um Patápio Silva,
soprando sua flauta
em choros, valsas, polcas e maxixes, Benedicto criará sua própria tradição, a de
primeiro (e talvez único) flautista do samba, descobridor de introduções e
contrapontos
que vão enriquecer o gênero, sobretudo através das muitas gravações que fará
acompanhando os maiores cantores desta e de futuras épocas. Como líder, é homem
de personalidade,
inteligente, atento, de muita perspicácia e poucos escrúpulos. Como Francisco
Alves, também é de percorrer a cidade atrás de sambistas anônimos, disposto a
comprar
ou a apropriar-se
sem cerimônia de suas composições inéditas. É absolutamente verídico aquele seu
golpe com Baiaco nas mesas de café do Mangue.
Noel Rosa também é grande cartaz e normalmente teria os motivos de Francisco
Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas, Carmem Miranda, para não querer sair do Rio em
troca
do certo pelo duvidoso. No entanto, aceita o convite de Benedicto.
298

Por quê? Não há a menor garantia de que ganhará dinheiro lá fora. Nem de que a
jornada o fará mais conhecido em outros pontos do país. Na verdade, sequer sabe
ao
certo aonde vão, Cantuária seguindo na frente para fazer contatos na próxima
cidade incluída no roteiro. E mesmo este roteiro é uma abstração. Está decidido
que
principiarão por Campos, mas por onde acabarão? E por quais lugares passarão?
Noel, contudo, não parece dar importância a essas questões. Quem sabe não vê na
viagem
boa oportunidade para afastar-se do Rio por longo tempo, de estar tanto quanto
possível livre dos problemas com Lindaura? A ausência do Rio poderá trazer-lhe
apoquentações,
pois é justamente durante a viagem que se dará aquela transação entre Zé
Pretinho, Kid Pepe e Mário Reis em torno de Tenho Raiva de Quem Sabe. Mas como
adivinharia?
No dia 15 de março, quinta-feira, embarcam todos no trem noturno para Campos.
Pouco antes Noel limitou-se a dizer para Lindaura: - Vou ali na esquina comprar
cigarro. E partiu rumo ao norte. Ele e uma troupe de dez que se vão juntar ao
empresário
Cantuária (por enquanto ele prefere ser chamado de "secretário", pois suas
tarefas são arranjar hotel, acertar detalhes com os cinemas e teatros locais,
cuidar da
bilheteria, proceder à partilha dos eventuais ganhos, coisas mais burocráticas
do que empresariais). Os dez são aqueles que Cantuária e Benedicto haviam
combinado:
os quatro do Gente do Morro (Benedicto, Canhoto, Russo e Macrino), mais Coringa
e senhora, Grijó Sobrinho e senhora, Itamar de Souza e Noel.
Em Campos, Cantuária informa-lhes de saída que não foi possível programar
espetáculos nas principais casas da cidade: estavam todas sem data. O remédio
foi procurar
o Antônio de Mattos, gerente do Coliseu dos Recreios, e acertar com ele uma
série de funções de sábado, 17, a sexta-feira, 24, incluindo três ou quatro
matinês.
299

O Coliseu dos Recreios é um cine-teatro popular, quase um poeira, não exatamente


o que merecem grandes cartazes do rádio carioca. Em todo caso...
A estada em Campos permite a Noel rever e conhecer parentes que se orgulham de
pertencerem a família do compositor de O Orvalho Vem Caindo. São os Pachecos,
todos
morando no 157 da Rua 13 de Maio. Gastão Meirelles de Freitas Pacheco, agente
ferroviário, é o dono da casa. Ele, a mulher, Julieta, e os sete filhos -
Haydée, Célia,
Jacy, Lygia, Nelie, Lourdes e Luís Carlos - recebem o primo do Rio com agrados.
Principalmente Célia e Jacy, ela pianista, ele poeta, e portanto mais
identificados
com o compositor popular Noel Rosa.
A estréia no Coliseu dos Recreios está longe de ser o que se costuma chamar de
começo com o pé direito: pouca gente para uma noite de sábado, justamente quando
se
esperava que o velho teatro ficasse lotado. E o interesse parece estar muito
mais na exibição do filme Abraça-me Bem (HoldMe Tigbt), com James Dunn e Sal-ly
Eilers,
do que no Gente do Morro. Só nos dias que se seguem os campistas ficam sabendo
que os artistas cariocas que os visitam não são um grupo folclórico formado nos
morros
do Rio, ritmistas de escola de samba e suas cabrochas, batuqueiros e negras
velhas cultores de pontos e outros sons de terreiro. Escolas de samba e macumba
são coisas
que o campista de classe média ainda não gosta de ouvir falar. Por não as
conhecer, fica longe delas. Quem há de querer pagar três ou quatro mil réis para
ver gente
de morro batendo atabaques, tocando primitivamente suas violas e cavacos?
O equívoco não tardará a ser desfeito. Em parte pela propaganda que farão do
espetáculo os poucos que lá estiveram, uma propaganda de boca, do tipo: "São
ótimos
estes artistas do Rio!" E em parte também porque a imprensa vai falar não só com
mais entusiasmo mas com mais clareza sobre a espécie de espetáculo em cartaz no
Coliseu. Por exemplo, no dia da estréia, o único jornal da cidade a noticiá-la,
A Folha do Comercio, o fez nestes termos:
"Compositor laureado e intérprete inigualável do que é seu, do que é nosso, está
Noel Rosa em nossa cidade, animando, ao lado do consagrado flautista, também
compositor,
Benedicto Lacerda, a troupe de variedades que se encontra no Coliseu dos
Recreios.
Criador de uma escola, conseguiu aliar à poesia dolente de sua idade (sic) a
marcação crioula do batuque.
O samba de Noel Rosa é nascido de um consórcio feliz do Morro com a Avenida.
Tem a sutilidade (sic) maviosa da
menina elegante e a cadência malandra da catita bacaria."
Mais adiante:
"O autor de Três Apitos compõe um samba para cada mulher que conhece.
Acontece, porém, que mais de dez mulheres se dão a conhecer ao saberem do samba.
Noel Rosa é um paradoxo.
Tem 23 anos de idade e mais de 300 (sic) composições o contemplam.
Chegou a cursar medicina.
Parou no meio porque o Salgueiro fica distante da Praia Vermelha."1
Um registro elogioso, sem dúvida, mas falando demais em morro, em marcação
crioula do batuque, em catita bacana, num jovem de 23 anos sem juízo o bastante
para trocar
o anel de doutor pela música do Salgueiro. Para o leitor campista, não ficou
muito claro o que estava em cartaz no Coliseu dos Recreios.
Três dias depois, O Monitor Campista esclarece:
"De fato, Gente do Morro merece um destaque especial no seu gênero. É um
verdadeiro conjunto regional, interpretando com fidelidade toda a série de
músicas nacionais,
desde o samba cadenciado e maneiroso que nasce nos morros até a valsa
sentimental e querida dos pierrôs e colombinas. E tudo isso eles fazem com arte,
ritmo e uma
naturalidade espantosa, que arrancam palmas estrepitosas, bis seguidos.
Noel Rosas [sic] é o homem que, parece, nasceu para o gênero. Canta, com muita
alma, todas as canções que o conjunto executa com mestria."2
Essa história de valsas sentimentais, pierrôs e colombinas agrada bem mais às
famílias campistas. E o Coliseu dos Recreios, a partir de terça-feira, passa a
receber
um público digno dos artistas cariocas. Daí para o sucesso é um pulo. Sucesso de
todo o grupo, mas especialmente de Noel Rosa. O excelente centrista de
cavaquinho,
Canhoto, jamais esquecerá como Noel domina a platéia com sua arte. Uma platéia
que, invariavelmente, faz pouca fé nele, ao ver e ouvir
Grijó Sobrinho apresentar, um a um, os integrantes do grupo. São muitas as
palmas para Benedicto Lacerda. Deliram as pessoas quando Russo, em vez de uma
mesura,
responde aos aplausos fazendo rodar seu pandeiro na ponta do indicador.
Gargalhadas e mais palmas para Coringa. Palmas também para Macrino, Doidinho e
os humoristas.
Até o próprio Canhoto - menos conhecido que outros canhotos como Américo
Jacomino e Rogério Guimarães, e não sabendo ainda se se entrega exclusivamente à
música
ou se mantém o emprego de mata-mosquitos que o sustenta - pois até este modesto
300

Canhoto é saudado entusiasticamente. Mas, chegada a hora de Noel, Grijó


anunciando: "E aqui Noel Rosa, o Bernard Shaw do Samba", a reação é outra. Uns
riem, outros
esboçam tímidas palmas, outros mais murmuram comentários que traduzem
desapontamento: "Puxa, não sabia que era tão feio!" Tudo isso até que caiba ao
desajeitado
Noel, o corpo franzino, o ombro meio de lado, debruçar-se ao violão para, no
segundo ou terceiro número da noite, cantar um de seus sambas:

Fiz um poema pra te dar


Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar,
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular.
Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar.
Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação.
Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim.

E o Coliseu dos Recreios estremece com tantas palmas e assovios.


Mais Um Samba Popular foi feito pouco antes da viagem, mas só será lançado
oficialmente no ano que vem por um crioulinho que virá de Minas para o Rio
convencido
de que pode fazer carreira no teatro. Um artista de circo chamado Sebastião
Bernardes de Souza Prata, de 19 anos, mais conhecido pelos colegas
pelo pseudônimo de Grande Othelo. O samba de Noel será cantado por ele em sua
segunda experiência nos palcos cariocas, a revista de Jardel Jércolis e Geysa
Boscoli,
Estupenda!, encenada
301
no Teatro João Caetano. Uma peça que por sinal marcará muito a vida do mineiro
Sebastião, pelo samba de Noel e por ter ele sofrido ali o primeiro pito
profissional
de sua vida. Tendo de aparecer num dos sketches ao lado de um comediante já
bastante popular, o espanhol Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción
Tereza
y Díaz - ou simplesmente Oscarito - vai se esquecer de que este é o "cabeça-de-
quadro" e tentar roubar o show. Como poderá se atrever a dividir uma cena com
Oscarito
este tal de Grande Othelo? Jardel o repreenderá.
Mas isso só vai acontecer no ano que vem. Por ora, Mais Um Samba Popular é pouco
conhecido, quase inédito. Tem melodia de Vadico, que um dia mostrou-a a Noel, a
primeira parte toda pronta, letra do próprio pianista:

Eu fiz um samba pra te dar


Feio ou bonito, faça força pra gostar
Se não gostares
Eu só posso te dizer:
"Meu benzinho, me perdoe,
Que melhor não sei fazer."

Noel, com aquele jeito todo seu de não dizer claramente quando não gosta de
alguma coisa (nem precisava), perguntou a Vadico se podia fazer uma letra
inteiramente
nova. O parceiro concordou, nascendo assim o novo samba que só terá sua primeira
gravação daqui a muito tempo(3).

Gastão Meirelles de Freitas Pacheco trabalha muito e ganha pouco. Mal tem tempo
para sorrir. Noel esbarra com seu ar fechado e o desmorona numa frase:
- Primo, enquanto a gente estiver aqui você vai ter que deixar sua caturrice de
lado. Nós vamos invadir sua casa. Por nossa conta.
E Gente do Morro de fato invade o lar dos Pachecos. Com música e alegria, no
tempo em que estiverem em Campos, promovendo ali alguns saraus.
Todas as madrugadas são madrugadas para Noel. No Rio de Janeiro ou em Campos.
Aqui, de noite, pouco importa a que horas tenha começado o espetáculo, quanto
tenha
durado, se está ou não cansado, seu rumo nunca é o do Hotel Gaspar, na Praça São
Salvador, onde estão hospedados. Não antes das cinco, seis da manhã. Até Russo,
boêmio incorrigível, desses que vivem batendo recordes de noites em claro na
Lapa e outras plagas, tem dificuldades em acompanhar o ritmo do amigo.

Sarau campista
"Nossa casa se enche de moças e rapazes, de intelectuais, músicos, boêmios,
gente do povo. Caras conhecidas. Caras estranhas. Os penetras. Eram todos de
casa, naquela
noite. lá para as 20 horas chegam dois barris de chope. Na sala de visitas Célia
toca piano e a dança tem início. Noel chega com Benedicto Lacerda e os demais
elementos
do Gente do Morro. Entra em ação a flauta mágica, o pandeiro do Russo. O baile
se anima. Pouco depois, a sala vai se esvaziando, enquanto a copa está
intransitável.
Por que motivo o pessoal se desloca da sala para o interior da casa? Ah! O Noel
está junto ao barril de chope, pegado num tremendo desafio com o poeta
Claudinier
Martins. Entáo podemos apreciar versos saborosíssimos, que são improvisados
pelos dois artistas. Forma-se a roda. Em seguida, as moças puxam Noel para a
sala de
visitas e Obrigam-no a empunhar o violão. Pedem que ele faça uma quadrinha para
cada uma delas. Noel forma um perfumado círculo feminino. Entra na roda. Canta.
Aponta
para os brincos de uma e improvisa versos de bela feitura. Sobre os cabelos
louros de outra, os olhos negros daquela outra, faz uma segura demonstração de
seu talento
poético, monopolizando atenções e aplausos. Sua agilidade mental é espantosa. As
moças pedem bis, querem copiar os versos que ele improvisa, guardar de lembrança
os galanteios.
De madrugada, quando a festa terminou, a rapaziada acompanhou Noel na serenata
que se seguiu, até o sol iluminar a planície..."
Jacy Pacheco
Noel Rosa e Sua Época

Russo - na verdade Antônio Cardoso Martins - é alegre, cheio de espírito. Virou


pandeirista por acaso. Vendia medalhinhas
milagrosas nos domingos de festa da Penha, uma forma de complementar seu
esquálido salário como mecânico e depois como vendedor de inseticida Flit,
quando teve a
atenção atraída por um grupo de choro que se apresentava numa das barraquinhas.
Viu um pandeiro largado sobre a cadeira, pegou-o, brincou com ele. Um dos
músicos
do grupo gostou, achou que Russo tinha bossa e convidou-o a entrar para a turma.
Desde então, não largou mais o instrumento. Tão ligado está a ele que, daqui a
algum
tempo (e para sempre), ficará conhecido não como Antônio, ou mesmo Russo, mas
como Russo do Pandeiro. Russo passa a recusar os convites de Noel para as
madrugadas
campistas. Não tem fôlego para tanto. Conforme ficara acertado por Cantuária com
Antônio Mattos, o Gente do Morro
302

deveria fazer várias matinês no Coliseu. Noel, sempre dormindo, recuperando-se


da noite em claro, jamais participou de uma matinê. Grijó Sobrinho dirigia-se ao
público
para explicar tal ausência, uma vez que o nome de Noel estava no programa.
- Senhoras e senhores, lamento informar-lhes que, por motivos de saúde, nossa
principal atração, o grande Noel Rosa, o Bernard Shaw do samba, não estará
conosco
esta tarde. À noite, porém, nós o teremos aqui cantando como ninguém os seus
sambas.
Toda matinê a mesma coisa. Muitos dos que vão ao Coliseu à tarde o fazem porque
trabalham a noite. E acabam saindo frustrados com a repetida ausência de
Noel Rosa. Um desses trabalhadores noturnos, na terceira ou quarta vez em que
Grijó recomeça suas explicações, "Senhoras e senhores, lamento informar-
lhes...", interrompe
lá das torrinhas:
-Já sei, não precisa dizer. O homem esta doente!
A estada de Noel Rosa e o Gente do Morro em Campos é, por muitos motivos,
agradável. Os boêmios da terra tentam acompanhar Noel, ouvem-no cantar na zona
boêmia,
ficam impressionados com seu jeito de levar na conversa, entre um samba e outro,
mulheres escoladas, aparentemente imunes a qualquer tipo de lábia. Os amigos de
Jacy se aproximam dele. Como o Claudinier Martins, poeta também. Meio doente,
sifilítico, estranho.
- Vou me matar!- costuma exclamar durante uma conversa.
Jamais cumprirá a ameaça. Mas uma noite, Noel e todos os outros acompanhando-o
num passeio à margem do Paraíba, Claudinier levará um susto. Primeiro, repete:
- Hoje eu vou mesmo me matar!
Os companheiros todos o agarram, gritando:
- Ou você se joga no rio, ou o jogamos nós!
Claudinier, apavorado, consegue desvencilhar-se. E sumir em disparada na noite
campista.
Jacy Pacheco escreve um artigo sobre os artistas cariocas. Tem conhecidos na
imprensa, os jornais abrem-lhe espaço:
"Ninguém contesta. Noel Rosa e Benedicto Lacerda não precisam mais de reclame.
Estão imortalizados em inúmeros discos com suas belas composições. No último
carnaval,
tivemos, de Noel, O Orvalho Vem Caindo, Você por Exemplo e outras cousas boas
que iriam encher muitas linhas se fosse mencioná-las aqui."(4)
Arêas Júnior, sob o pseudônimo de Aristarco II, publica em sua seção Picolé
Singelo
uma quadrinha que revela estar superado o insucesso dos primeiros dias, o
Coliseu dos Recreios, propriedade de Antônio Mattos, lotado a cada apresentação:
Sobre o fato não discorro Digo sem espalhafatos: - A turma do Gente do Morro Foi
trazida pelo Mattos(5).
Na quinta-feira, dia 22 de março, o espetáculo dos artistas do Rio é enriquecido
com a participação do pessoal da terra. Jacy Pacheco sobe ao palco para recitar
um soneto caipira de sua autoria. "Ele não é caipira", esclarecerá uma vez mais
a Folha do Comércio, "mas a Gente do Morro também não é do morro"(6). Outros
músicos
e poetas campistas aproveitam a oportunidade para mostrar o que sabem: Cássio
Chaves, José Honório de Almeida, Oswaldo Aguiar, Claudinier.
Com pessoal da terra ou não, o líder da tournée é mesmo Benedicto Lacerda. Que
sabe manter a disciplina a qualquer preço. Na fala mansa ou no braço, como fez
com
o Russo no dia em que este andou saindo da linha. Benedicto aplicando-lhe
tabefes em frente ao hotel e o pobre do Russo chorando como menino.
Sábado, dia 24, o espetáculo tem lugar no Clube Tenentes de Plutão. Para uma
platéia seleta, porém menor. De domingo a terça-feira, 27, mais três funções,
desta
feita no Cine-Teatro Trianon. No dia seguinte, seguem viagem para Muqui. Deixam
Campos e os campistas com saudades. Noel principalmente. Jacy Pacheco dirá seu
adeus
numa quadra publicada exatamente no dia em que o primo se vai:
Este sambista tem fama
Na capital gloriosa
Cada mulher que ele ama
Um samba faz... - Noel Rosa!7
Muqui, já no Espírito Santo, é uma pequena cidade da Zona Serrana do Sul, a
pouco mais de 200 metros de altitude, com população de mil e poucas pessoas,
hospitaleiras
e muito religiosas. No roteiro traçado por Cantuária e Benedicto Lacerda, outro
equívoco. Como dirá Noel Rosa, daqui a alguns meses, em carta à prima Célia, "um
lugar horrível". Não tanto pelo lugar em si ou por seus habitantes, mas pelo que
o Gente do Morro vai passar aqui.
Chegam a Muqui na quarta-feira. Na noite seguinte, 29 de março, Quinta-feira
Santa, dá-se a estréia no único cinema da cidade. Durante todo o dia, porém, o
padre
local percorreu as ruas, bateu de porta em porta, advertindo as ovelhas
303
de seu rebanho sobre os pecados de se ir ver e ouvir sambistas de morro, boêmios
da cidade grande, cultores de uma música profana, justamente nos dias sagrados
da
Semana Santa. Resultado: o cinema fica vazio. Até no sábado de Aleluia - quando
todos os moradores do município de São João de Muqui costumam vir à cidade para
uma
prosa, um passeio na praça, um cinema - ninguém quis saber do Gente do Morro.
Pecado é pecado, inclusive sob as bênçãos da Aleluia.
Será ainda na carta a Célia que Noel vai contar a mania que Russo pegou, ao
passar por esta cidade tão insensível à arte do Gente do Morro: "O Russo
pandeirista,
quando quer xingar alguém, chama de 'tipo muquiense'. O Russo está com a razão."
Vitória. Bonita cidade, crescendo muito, estação de rádio, cinemas, bondes,
lugares bonitos, praças, praias. O Palácio Anchieta, onde está o túmulo do
célebre jesuíta.
A chácara do Barão Monjardim e tudo mais. Uma população de quase 30 mil
habitantes. Gente próspera, classe média em ascensão, atenta à moda e à cultura
que vêm do
Rio. Para adotá-las, é claro.
A história se repete na capital capixaba, o nome Gente do Morro afugentando o
público, muitos supondo tratar-se de um grupo improvisado e malvestido de
sambistas
da Favela(8). O gerente do melhor cine-teatro da cidade, o Glória, nem quis
receber João Cantuária. Imagine se sua casa de espetáculos, tão respeitável, ia
descer
ao nível da gente do morro! A solução é recorrer ao Politeama, outro poeira, tão
ou mais velho e arruinado que o Coliseu dos Recreios. Só que desta vez Benedicto
Lacerda e sua turma não contarão com propagandas de boca, muito menos com o
apoio da imprensa. E as coisas se complicarão.
A estréia em Vitória é na noite de 4 de abril, quarta-feira. Será o bastante
para Benedicto concluir que toda essa excursão é um erro. Se perto do Rio, em
Campos,
Muqui, Vitória, tudo é difícil', o público abandonando-os, o que dizer do norte
do país, Bahia, Pernambuco, Ceará, onde talvez ninguém jamais ouviu falar dele e
de Noel Rosa?
Todos os membros da caravana se preocupam com esse fracasso. Benedicto, o
pessoal do Gente do Morro, Grijó Sobrinho, Coringa, Itamar, as outras mulheres.
Todos,
menos Noel. Para ele, estar em Vitória é antes de tudo uma oportunidade de
descobrir novos ambientes, novas pessoas. Ainda que os ambientes e as pessoas
sejam muito
parecidos com os que ele conhece no Rio. Continua no seu ritmo de vida,
desaparecendo nas madrugadas depois do espetáculo, passando as noites em cabarés
e prostíbulos,
só chegando à Pensão São Luís, onde estão hospedados, pelas cinco, seis da
manhã. Nos primeiros dias, Russo e Canhoto tentam acompanhá-lo. Como de hábito,
perdem
o fôlego e acabam desistindo.
Noel gosta de Vitória. Curiosamente, sente-se bem aqui. Como se a distância do
Rio o deixasse livre de Lindaura e de todos os problemas. Faz amizades,
especialmente
no Félix, cabaré de quinta categoria freqüentado por boêmios, marinheiros e
malandros. Costuma sair diretamente do Politeama para o tal cabaré, onde muitas
vezes
sobe ao palco - não mais que um estrado de madeira para os músicos de uma
orquestrinha da categoria do lugar - e ali canta. Ou se acompanhando ao violão
ou empunhando
um megafone que, à falta de um microfone de verdade, leva sua voz fraca a todos
os cantos da sala. Depois da quinta ou sexta cerveja, improvisa versos a pedido
dos
presentes. Como esta quadrinha dedicada a uma das mulheres, de nome Yolanda, o
mesmo da popular marca de cigarros.

É você a que comanda


E o meu coração conduz
Salve a dona Yolanda
Rainha da Souza Cruz(9).

Quando não está no Félix, pode ser encontrado na Pensão do Badu, lugar que não
deve sequer ser mencionado por gente de família, quanto mais freqüentado. É ali
que
conhece Alagoano. É ali também que vai conhecer Isaura, uma das melhores coisas
que lhe acontecem nesta viagem. Alagoano é um moreno alto, magro, cara de mau,
amigo
de gente influente do lugar. Mais que isso, é um desses muitos capangas que os
coronéis do interior têm a seu serviço. Só anda armado e um de seus prazeres é
provocar
gente da polícia, espécie de prova de fogo em que ele, costas largas, acaba
sempre levando a melhor. Alagoano fica amigo de Noel. E vai esperá-lo todas as
noites
à saída do Politeama. Benedicto, Russo, Canhoto, ninguém mais do grupo participa
desses programas que se prolongam até de manhã. Russo só vai uma vez, dança na
Pensão
do Badu, canta, bebe e com o sol surgindo acompanha Noel em seu passeio diário
até o Mercado Municipal, onde ostras frescas com limão são o café da manhã do
amigo.
- Tomo isso todos os dias. É o que me dá forças - explica Noel.
Canhoto também só vai uma vez. Para nunca mais. Passam pelo cabaré, bebem, saem
para tomar ar na Praça Independência,
304

a principal da cidade(10). Estão os três sentados no banco de pedra quando Noel


diz:
- Alagoano, onde é o banheiro mais perto?
- Pra quê?
- Dor de barriga.
Alagoano vê se aproximar o guarda que faz a ronda por ali, todas as noites. Há
muito tempo vinha aguardando oportunidade para provocá-lo, medir forças com ele,
ver
qual dos dois tem mais vocação para dono da cidade. O guarda se aproxima, passa
pelo banco onde estão os três, cumprimenta-os. Alagoano não perde a
oportunidade:
- Noel, tu não tava com vontade de ir ao banheiro?
- Estou.
- Pois então faz aqui mesmo no meio da praça.
- Aqui?
- Isto, no meio da praça.
O guarda olha, um pouco assustado. Noel fica sem saber o que fazer.
- Anda, Noel. Eu tou mandando. Faz aqui mesmo.
Noel obedece. Começa a soltar o cinto. O guarda olhando, imóvel, sem dizer nada,
e ele desabotando a calça.
- Anda logo, Noel. Não faz cerimônia. A praça é sua. Quem manda nesta cidade sou
eu, o Alagoano.
E assim, sorriso amarelo, diante de um Alagoano mal-encarado e de um Canhoto
perplexo, o guarda vê Noel desapertar-se em plena Praça Independência.

Ao fim da primeira semana em Vitória, ainda há esperanças de que a excursão


tome pé. Mais que isso, os planos de seguir em frente, rumo ao norte, são
mantidos. O que está bastante claro no programa que o Clube dos Democráticos faz
distribuir
pelas ruas de Vila Velha anunciando a única apresentação do Gente do Morro
naquela cidade:"... antes de partir para a Bahia, onde deverá estrear no Teatro
Jandaia."
Vila Velha, ex-Espírito Santo, é outra pequena cidade. Ao sul de Vitória, pouco
mais de cinco mil habitantes, uma vida pacata em frente à praia mansa, um dia
será
tragada pelo crescimento da capital. Por enquanto, porém, tem vida própria,
cinema, clube, a praça, o belo outeiro onde está o Convento de Nossa Senhora da
Penha.
Mas o Gente do Morro não tem tempo para ver nada disso. Vem, toca nos
Democráticos, volta para Vitória. Nos dias que se seguem, Benedicto, antes de
todos os outros,
chega à conclusão de que quanto mais cedo voltarem ao Rio, melhor. O Politeama
vive vazio, ninguém parece interessado em samba, a idéia de aumentar o
preço dos ingressos na esperança de arrecadar mais também não surtiu efeito.
Pelo contrário, afastou mais o público. Noel mantém-se mais ou menos alheio a
essas
questões empresariais. Dorme de dia, sai de noite. Bebe muito, come pouco,' as
ostras com limão pela manhã, dois ovos fritos à tarde. Só quer saber de
noitadas,
Alagoano a tiracolo. Félix, a Pensão do Badu, violão, samba, cerveja, mulheres,
Isaura.
Diversamente de Benedicto, está gostando da viagem. Não concorda em voltar. Ele
e Doidinho - que também arranjou mulher na Pensão do Badu - têm planos para ir
até
Colatina, ou tentar a sorte em outras cidades. Cachoeira do Itapemirim, por
exemplo. Não, eles não vão voltar ao Rio tão cedo.
- Pois nós viajamos amanhã - diz Benedicto para os demais.
Gente do Morro e seus adendos estão sem dinheiro. Não têm sequer para pagar a
Pensão São Luís. Cantuária descobre que a Leopoldina dispõe de sistema muito
interessante
de venda de passagens: um desconto de cinqüenta por cento para quem comprar dez.
Ele, Benedicto, Russo e Canhoto levantam algum emprestado com o gerente do
Politeama,
compram as dez passagens e vão para a porta da estação vender seis. Desse jeito,
pagarão o que devem, viajarão de graça e ainda ficam com o dinheiro de uma
passagem.
- E a pensão? Como é que vamos pagar? - pergunta Canhoto.
- Não vamos - diz Benedicto, categórico.
Decidem dar um "cano de ferro" no proprietário. De madrugada, quando todos
estiverem dormindo, pegarão as malas e sairão de fino. Farão hora em algum lugar
até embarcarem.
Só que, na confusão, além de suas malas, pegam por engano a de Doidinho que
dormia com sua mulher na Pensão do Badu. De manhã cedo, o tocador de ganzá fica
uma fera.
Nem Gente do Morro, nem sua mala. Vai à polícia e faz queixa. O delegado se
mobiliza. Que seus colegas em todo o estado interceptem quatro passageiros
assim, assim,
um deles com uma flauta, outro com um pandeiro, o terceiro com um cavaquinho, o
quarto com uma mala preta. Além de deixarem Vitória sem pagar o dono da pensão,
levam
uma valise roubada. O trem, que deve fazer uma viagem de 22 horas até o Rio, vai
parando em Argolas, Vianna, Marechal Floriano, Araguaia, Sagrada Família. Quando
chega a Matilde, uma estação antes de Cachoeira, os quatro são presos.
Na delegacia de Vitória, tudo é esclarecido. Doidinho pede desculpas aos amigos,
o delegado passa-lhes um brando carão e diz que está tudo bem, desde que paguem
o que devem à
305

Pensão São Luís. Mas cadê dinheiro? A notícia espalha-se pela cidade: os
simpáticos músicos do Gente do Morro precisam de ajuda. Onde está a tão
decantada hospitalidade
capixaba? Um grupo de pessoas interessadas em música popular inicia um movimento
destinado a reabilitar Benedicto Lacerda e seus companheiros. À frente deste
movimento,
descendente do barão, de família ilustre, está Alcebíades Monjardim(11), que se
dispõe a organizar uma festa no Hotel Imperial, a preços salgados, naturalmente
mais
voltados para a sociedade local. Todo o dinheiro arrecadado será para os
músicos. A imprensa também ajuda. E na noite de 18 de abril, apesar do temporal,
faz-se
o espetáculo, Benedicto executando suas valsas e choros, Noel cantando seus
sambas, Coringa mostrando suas emboladas, Grijó as suas anedotas. Sucesso.
No dia seguinte, a caravana se divide em duas. Benedicto Lacerda (que esquecerá
o nome Gente do Morro para sempre, passando a dar o seu próprio ao regional que
lidera),
Canhoto, João Cantuária, Macrino e Itamar voltam para o Rio. Noel, Russo, Grijó,
Coringa e respectivas mulheres tentam ganhar mais algum trocado em cidades
próximas.
Fazem um espetáculo em Cachoeiro de Itapemirim, outro em Colatina. Ganham apenas
para as despesas e voltam a Vitória. Em pouco tempo, o único vestígio que
restará
da passagem por aqui de um certo conjunto Gente do Morro serão Noel Rosa e
Doidinho, cada qual com sua mulher na Pensão do Badu. Casa, comida e amor de
graça.
Tudo como no seu samba Eu Não Preciso Mais do Seu Amor:

Eu não preciso mais do seu amor,


Mas posso precisar do seu favor
A minha fuga tem o seu porquê:
Disseram que eu dependo de você.
Em troca do amor que eu jurei
Ganhei quatro paredes pra morar
O que você me deu eu aceitei
Mas não pedi nem fiz você me dar.
Não nego que você me dava almoço
Jantar e mata-bicho como quê
Agora estou com a corda no pescoço
Disseram que eu dependo de você.
Eu sei que você tem dinheiro à beça
Mas isso quase nada me interessa
Desejo que seu dinheiro cresça
Cresça e no meu bolso apareça.
Eu vou deixar sua companhia
Sem cerimônia e sem fazer chiquê
Talvez na minha nova moradia
Não digam que eu dependo de você.

Noel e Doidinho acham melhor continuar por aqui, cada qual com seu par.
Isaura. Pouco se saberá dela daqui a
alguns anos. De Alagoano ainda se falará muito, sobretudo quando, poucos meses
depois daquela prosaica cena na Praça Independência, ele morrer anavalhado numa
feia
briga de botequim. Mas de Isaura, nada. Paixão que Noel alimentou por pouco
tempo, pois Martha, ao saber no Rio que o filho não quer mais voltar - e que
deixou desamparada
a pobre Lindaura - não pensa duas vezes: toma um trem para Vitória, entra
decidida na Pensão do Badu, fecha os olhos para o que não quer ver e manda Noel
fazer as
malas.
A falta de juízo, deve ter pensado, tem limites. E por mais liberdade que
arranque da vida, Noel sabe que a mãe está certa.
306

NOTAS
1. Folha do Comércio, Campos, 17 de março de 1934.
2. Monitor Campista, 20 de março de 1934.
3. O samba, escrito em fins de 1933, começo de 1934, só seria gravado em 1954
por Ana Cristina com o conjunto de Luís Bittencourt, no antigo selo Sinter. De
volta
de uma longa permanência nos Estados Unidos, só então Vadico o desarquivou.
4. Folha do Comércio, 25 de março de 1934.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Diz Canhoto em depoimento aos autores, a 13 de março de 1981: "As pessoas
nos perguntavam nas ruas se a gente tocava tamanco, como os sambistas de morro."
9. Cantada pelo saxofonista José Miranda Pinto, o Coruja, ajacy Pacheco, e
transcrita por este em seu livro O Cantor da Vila (página 113).
10. Atual Praça Costa Pereira.
11. Pai de Maysa Figueira Monjardim, mais tarde a cantora e compositora
Maysa Matarazzo.
307

NUMA FESTA DE SÃO JOÃO

Capítulo 31

Foi num cabaré na Lapa


Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
entornando champanhe No seu soirée...
Dama do Cabaré

Lanternas coloridas suspensas por fios quase invisíveis: azuis, vermelhas,


amarelas, verdes, dispostas alternadamente sobre as mesas e a pista de dança do
Cabaré
Apollo, constelam a noite de festa de Noel Rosa. São também coloridas as
bandeirolas recortadas em papel de seda e coladas em barbantes que se cruzam em
todas as
direções. Não foi propriamente a imaginação que guiou o gosto dos decoradores,
mas o importante é que se conseguiu o indispensável toque junino exigido pela
ocasião:
uma festa de São João em homenagem a Noel Rosa.
É sábado, 23 de junho. São muito vivos os gerentes desses cabarés da Lapa,
sempre homenageando um cartaz da música popular, Ary Barroso, Aracy Cortes,
Sílvio Caldas,
Benedicto Lacerda, Vicente Celestino, Luís Barbosa, João Petra de Barros. Tão
honrado fica o artista que nem lhe passa pela cabeça cobrar cachê (a não ser, é
claro,
que o invite d'honneeur seja um Francisco Alves). E não é só: além de cantar ou
tocar de graça, o homenageado nunca deixa de levar consigo alguns convidados,
outros
cantores e músicos que acabam se apresentando, no máximo, em troca de algumas
doses de uísque ou de uma garrafa de vinho importado. Sim, são muito vivos os
gerentes
desses cabarés da Lapa que por bem pouco, ou mesmo nada, conseguem organizar
grandes noites de música em suas casas. Como esta em homenagem a Noel Rosa.
É natural o contentamento do Cunha, um dos gerentes do Apollo. O cabaré está
lotado, gente por todos os cantos, mesas abarrotadas, pista de dança
intransitável.
Tudo para ver e ouvir Noel. Lá em baixo, obstruindo com seu corpo rotundo a
estreita porta pela qual se sobe ao primeiro andar em que está instalado o
Apollo, Boi
tem mais trabalho do que de costume. Não é fácil conter o pessoal que chega.
Delicado mas firme, diz:
- Não cabe mais ninguém.
É um dos mais conhecidos leões-de-chácara da Lapa. Sobretudo por sua incrível
capacidade de, sendo alto, forte, mais parecendo um campeão de catch, jamais
usar outros
métodos além dos bons modos para manter a ordem à entrada do cabaré. Bêbados,
menores de idade, malandros eventualmente indesejados, ninguém passa pelo Boi se
não
houver aprovação lá de cima.
- Não insista. Que tal tentar o Roxy ou o Royal Pigalle? Ouvi dizer que as
meninas de lá deixam as nossas no chinelo.
Sempre delicado o Boi. Esta noite às voltas com uma multidão que o Apollo,
superlotado, não pode mais abrigar.
309

- Desculpe, mas por aqui, agora, só entram os artistas.


Tem de estar satisfeito o Cunha, casa cheia, festa de Noel Rosa. Por isso
passeia feliz por entre as mesas, cumprimentando os fregueses conhecidos,
tentando ser
simpático aos que aqui vêm pela primeira vez. Repara nos dois jovens casais que
ocupam uma das mesas do canto. E muito especialmente numa das moças, bonita,
tipo
mignon, toda sorrisos. Nota-lhe a alegria, quase encantamento. Terá no máximo
dezessete, dezoito anos. Como é possível alguém tão jovem se encantar com um
ambiente
desses? O que terá visto no Apollo? Cunha se aproxima, cumprimenta os quatro
ocupantes da mesa.
- Como é o seu nome?- pergunta à moça tipo mignon.
-Juracy... Mas todos me chamam de Ceei.
- Está gostando da festa?
- Estou maravilhada.
- Com o quê?
- Tudo, a música, as moças tão bem-vestidas...
- Gostaria de trabalhar aqui?
- Trabalhar como? Nem sei dançar tango.
- Nós te ensinamos.
Cunha explica-lhe que o Apollo paga quinze mil réis por noite a cada uma de suas
dançarinas, mais as comissões. Um bom salário, e o trabalho não é muito.
Entra-se às onze da noite, faz-se companhia aos clientes, dança-se com eles,
conversa-se. Sabe o que os homens vêm comprar aqui? Atenções. Apenas isso. Há
muita
gente sozinha neste mundo, explica o Cunha. Gente triste, sem companhia, que não
tem por consolo ao menos um instante de compreensão e simpatia, uma palavra
amiga,
um sorriso. É para isso que essas moças estão aqui, para cercarem de atenções os
que precisam, os solitários. No fundo, um trabalho de alto sentido humano.
- De onze da noite até que horas?
- Até três, quatro. Depende do movimento.
Cunha ressalta que é uma ocupação honesta que nem de longe pode ser confundida
com a daquelas pensões da Conde de Lajes, da Taylor, da Joaquim Silva.
Naturalmente,
a administração do Apollo nada tem a ver com o que as moças fazem depois do
expediente. Se quiserem sair com um cliente, prolongar a noite em algum lugar,
isso é
lá com elas. Aqui - repete o Cunha - só se vendem atenções, simpatia, sorrisos.
- Que idade tem você?
- Dezesseis anos - responde a moça.
- Problema... - resmunga o Cunha.
- Menor de idade.
Mas todos os problemas se resolvem nestes cabarés da Lapa. Se a moça aceitar a
proposta para trabalhar aqui, além de roupa (todas as dançarinas trabalham de
soirée,
como verdadeiras damas, pois a classe, lembra o Cunha, é tudo), a casa lhe dará
garantia de que, se houver batida policial, ninguém a molestará.
- Basta você se esconder no banheiro. Muitas das nossas moças vivem se
escondendo no banheiro. São menores de idade também.
Ceei diz que até o final da festa dará uma resposta. Quinze mil réis por noite,
mais as comissões sobre o que os fregueses consumirem em sua companhia... Além
do
mais, deve ser maravilhoso trabalhar aqui, conhecer gente, conversar, dançar.
Nunca teve um soirée em toda a sua vida. Para falar a verdade, sequer pode dizer
que
teve algo de realmente seu desde que veio ao mundo há dezesseis anos.
É quase meia-noite. O cabaré fervilha. Só falta chegar Noel Rosa para que tenha
início a festa de São João do Apollo.
Ceei sabe desde o primeiro instante qual a única resposta que pode dar ao Cunha.
Por inexplicável razão, deixou-se enfeitiçar pelo cabaré. O lugar parece-lhe tão
cheio de vida, tão feito de promessas. Mesmo sabendo que nem toda noite é noite
de festa, realmente fica encantada pelo que vê aqui, moças vendendo atenções e
no
entanto cercadas de atenções. Os homens as convidam para dançar, lhes oferecem
champanhe, lhes dizem palavras gentis. Moças bonitas, bem-vestidas. Como frisa o
Cunha,
selecionadíssimas. Ceei vai admitir um dia que é quase embriagante a atmosfera
de ilusão que se respira nesta sala. E ilusão talvez seja do que mais precisa.
Ilusão
e um emprego de quinze mil réis por noite.
Quem sabe esta festa de São João não mudará sua vida? Há menos de um ano saiu da
casa do pai em Friburgo, carregando na bagagem não mais que algumas roupas e as
lembranças de uma penosa crise familiar. Chama-se Juracy Corrêa de Moraes e
nasceu em Campos a 16 de maio de 1918. Tinha treze anos quando a mãe, Isabel
Morales
de Moraes, morreu de repente. O pai, Antônio Corrêa de Moraes, inspetor da
Leopoldina Railway, foi transferido logo em seguida para Friburgo. Instalaram-se
os três
- o pai, Ceei e o irmão Antônio, o Didito, um ano mais novo que ela - numa
pequena casa da Rua General Osório. Não muito tempo depois, seu Antônio casou-se
de novo.
Ceei sente arrepios só em pensar na madrasta, mulher amarga, repressiva,
grosseira, que invadiu suas vidas para transformar numa casa sem paz o que
antes, a mãe
ainda viva, era um lar feliz. Uma madrasta 310

como as doscontos de fada, má, tirânica, que os tratava duramente, sobretudo a


Didito. Ceei jamais compreendeu por que aquela mulher era tão impaciente com o
irmão.
Fustigava-o a todo instante. E sempre que o pai voltava de viagem, lá ia ela
queixar-se de Didito, exagerando-lhe o mau comportamento, inventando-lhe coisas
que
não fizera. O pai acreditava, zangava-se, espancava o menino. Mas Ceei reagia:
- A senhora é ruim, muito ruim!
Seu Antônio sempre se pondo do lado da mulher, repreendendo Ceei, mandando-a
para o quarto. Como tudo era diferente nos tempos da mãe! A madrasta sequer a
deixava
sair de casa para um passeio na Praça 15, uma retreta da Campesina ou da Euterpe
em frente à Matriz. Festas? Namorados? Ela que se atrevesse. Acabou cansando
daquela
vida, da madrasta, dos maus tratos a Didito, da incompreensão do pai. Um dia,
animada por uma amiga que sonhava com a cidade grande, comprou passagem para o
Rio,
fez as malas, embarcou no rápido que saía cedinho de Friburgo. Ela e a amiga.
Tudo isso sem dizer nada a ninguém, sem ao menos deixar uma carta, um bilhete,
um recado.
O Rio de Janeiro que conheceu nem de longe lhe parecia a maravilhosa cidade de
que a amiga e outras pessoas tanto falavam. De início pensou em ficar com as
tias
ricas que moram em Botafogo, parentes da mãe. Mas lembrou-se de que os Morales
são espanhóis conservadores, muito religiosos, abaixo de Deus a família em
primeiro
lugar. Na certa a mandariam de volta a Friburgo no primeiro trem. Por isso
preferiu procurar tia Jacinta, irmã do pai, pobre mas compreensiva. Viúva, mãe
de dois
filhos pequenos, mora numa casa de cômodos da Rua Barão de São Félix, perto da
Estação de Dom Pedro II. É ali que Ceei está desde que chegou ao Rio há menos de
um
ano.
Continua achando que esta não é mesmo a maravilhosa cidade de que tanto lhe
falavam. Hostil, agitada, difícil. São poucas as oportunidades para uma moça de
menor
idade, sem carteira de trabalho. Neste tempo em que está aqui, tem feito o que
pode, pequenos serviços em casas de família, empregos regulares, um pouco disso
ou
daquilo. De nada lhe tem valido o diploma de ginásio orgulhosamente obtido no
Liceu de Campos ou os seis anos de piano estudados com sacrifício, por gosto da
mãe.
Seus empregos na cidade grande não exigem diplomas ou estudos. Já trabalhou na
Drogaria V. Silva, hoje é caixa de um restaurante da Rua do Rosário. Vida dura,
horas
e horas de trabalhos diários por um salário que mal chega a 50 mil réis por mês.
Para que diploma? O dinheiro que ganha no restaurante é pouco, nem sobra para um
teatro, um
cinema. Noites como a de hoje não fazem parte de sua rotina de vida.
Na verdade, é a primeira vez que entra num cabaré. Sua amiga Alzira vinha com o
namorado e o irmão, lembrou-se dela, passou pela casa da Barão de São Félix e
convidou-a.
É claro que aceitou. Meteu-se na melhor roupa, um costume verde-claro de saia
justa e colete, chapeuzinho preto ajustado na cabeça, as mechas de cabelo
castanho-claro
cuidadosamente ajeitadas em torno do rosto bonito. E aqui está ela, pensando
seriamente (ou mais que isso) em trabalhar neste lugar. Quinze mil réis por
noite...
mais as comissões! Sim, esta festa de São João bem pode mudar a sua vida. Neste
momento chega, finalmente, Noel Rosa.
O cabaré se agita, um burburinho já esperado, todos ansiosos para ver e ouvir o
homenageado. Jararaca e Ratinho, Augusto Calheiros, o regional de Pereira Filho,
outros artistas vão tomar parte no espetáculo, mas a atração principal é mesmo
Noel. Ele explica a Albert ejosé, o polonês e o português proprietários do
Apollo
(que coisa estranha esta sociedade luso-polonesa!) a razão de ter chegado tão
tarde. Estava em outra festa junina, na ilha do Governador, tocando e cantando.
O pessoal
foi pedindo para ficar mais um pouco, "Cante mais uma, Noel...", os apelos se
repetindo, acabou se esquecendo da hora. Quando se deu conta, era quase meia-
noite.
Teve de sair às pressas. E às escondidas. De outra forma, não o deixariam vir.
Noel talvez não conte que não foi só do pessoal da ilha do Governador que teve
de
fugir. Lindaura estava com ele na festa. E como não pretendia trazê-la ao
Apollo, na primeira oportunidade, vendo-a distraída, saiu pelos fundos, tomou a
barca,
depois um táxi e veio para a Lapa. A essa hora ela deve estar desesperada,
procurando-o por toda parte.
Seja numa festinha meio improvisada na ilha do Governador, seja numa grande
ocasião como esta no Apollo, o repertório de Noel Rosa sempre alterna velhos
sucessos
com números menos conhecidos ou mesmo inéditos. Isto é, um Gago Apaixonado, um
Até Amanhã, um Quando o Samba Acabou, com produções mais modestas como Vejo
Amanhecer:

Vejo amanhecer,
Vejo anoitecer
E não me sais do pensamento, ó mulher!
Vou para o trabalho,
Passo em tua porta,
Me metes o malho
Mas que bem me importa!
De esperar a minha amada
A minh'alma não se cansa
Pois até quem não tem nada
311

Tem ainda a esperança.


Esperança nos ilude,
Ajudando a suportar
Do destino o golpe rude
Que eu não canso de esperar.
Amanhece e anoitece,
Sem parar o meu tormento
Por saber que quem me esquece
Não me sai do pensamento
Já não durmo, já não sonho,
De pensar fugiu-me a paz
Num passado tão risonho
Que não volta nunca mais.

Ou não tão modestas como Contraste, de melodia ágil e letra carregada de jogos
de palavras e contraposições típicos de Noel:

É cruel,
é cruel este contraste
Que me faz ficar tão triste:
Vais sair por onde entraste,
Descendo por onde subiste!
Foi com muito sacrifício
Que eu te dei um barracão:
O dia do benefício
É véspera da ingratidão.
Tu tens tanta falsidade,
Já vendeste tanta gente,
Que eu creio ser verdade
Que Judas foi teu parente!
Abusaste do meu nome,
Deste sempre cola errada,
Mas tu vais morrer de fome
Com tua conversa fiada.
Vou fazer tua desgraça,
Hei de ser teu ininigo:
Acabando com a cachaça,
Também eu acabo contigo!
Quando eu mandar no jogo,
Hás de ter entrada franca,
Jogo fora o pau-de-fogo
E tu não abafas a banca.
Começaste me humilhando,
Me fizeste de capacho,
Mas agora estou mandando
E tu já ficaste por baixo!

Ceei sabe quem é Noel, de sua fama, do quanto essas pessoas que lotam o Apollo o
admiram. Mas nunca ouvira outro samba dele que não fosse Com Que Roupa? e O
Orvalho
Vem Caindo. A mãe queria que se tornasse pianista clássica; de modo que entre
ela e a música popular sempre houve certa distância. Noel termina seus números e
começa
a circular por entre as mesas. Ceei não o conhece. Muito menos ele a ela. Até
que seus olhares se encontram.
Ele não pode deixar de notar que a moça de verde-claro sentada mais adiante é
muito diferente das outras mulheres daqui. Não só pela idade. Ou pelo fato de
trajar
um costume em vez de soirée. São suas maneiras - a delicadeza, o recato, a
curiosa mistura de timidez e embevecimento impossível de encontrar em qualquer
outra das
meninas do Cunha - que parecem atraí-lo. Há muito tempo freqüenta cabarés. São
todos iguais. Como pouca diferença existe entre uma mulher e outra, a mesma
aparência,
os mesmos gestos, o mesmo modo de falar, os mesmos truques. O cabaré é um teatro
em permanente função. Dramas e comédias são encenados aqui todas as noites. É
como
se estivessem num palco, representando, que homens e mulheres se relacionam
neste lugar. Mas a moça de verde-claro não parece fazer parte do cenário.
- Trabalha aqui?
- Posso dizer que sim.
Os dois conversam, falam sobre trivialidades, comentam a decoração do Apollo, a
animação da festa, a qualidade da bebida. Ao contrário do que irão sugerir os
versos
que daqui a algum tempo Noel escreverá inspirado neste primeiro encontro, Ceei
não fuma. Não ainda. Nem entorna champanhe no seu soirée (na verdade, sequer
veste
um). Mas realmente os dois dançam um samba e trocam um tango por uma palestra.
Samba que Noel explica gostar de fazer e cantar, mas não de dançar. Este nunca
foi
o seu forte, preferindo os passos óbvios à ousadia de improvisar uma volta, um
enfeite, uma queda de corpo. Como ele mesmo diz, dança samba à moda paulista, na
base
do "vai no liso". Quanto ao tango, Ceei já havia avisado ao Cunha que não sabia
dançar. Se ela não sabe, o que dirá ele?
Dançam, palestram, fazem-se perguntas. Noel está deslumbrado com Ceei, ela está
deslumbrada com o cabaré. Já passa das quatro da manhã de domingo quando a festa
termina. Ele se oferece para levá-la em casa.
- Obrigada, mas estou com amigos.
- Quer dizer que você trabalha no Apollo?
- Sim.
- Então eu te vejo por aqui amanhã ou depois.
A vida de Ceei vai mesmo mudar - e muito - a partir desta noite de 23 de junho
de 1934. Para começar, a tímida caixa de um restaurante da Rua do Rosário dará
lugar
a uma fulgurante danseuse do Cabaré Apollo. O costume verde-claro será guardado
para sempre, o chapeuzinho preto também. As roupas baratas que trouxe de
Frigurgo
e as poucas que comprou no Rio com suas minguadas economias serão substituídas
por elegantes soirées que em pouco tempo ocuparão duas divisões inteiras de seu
guarda-roupa.
O Cunha é muito exigente
312

com a aparência das garotas:


- Nada de me repetirem vestido na mesma semana.
Tudo ou quase tudo vai mudar em sua vida. As roupas, as amizades, os hábitos, as
maneiras. Em breve a casa da Barão de São Félix será trocada por um apartamento
que dividirá com uma colega de trabalho num primeiro andar da Avenida Gomes
Freyre.
- É mais perto do emprego - explica à tia Jacinta sem maiores detalhes sobre o
que faz, onde e a que horas.
Também terão fim seus dias e noites de solidão, a saudade que começa a sentir de
casa sendo amenizada pela pequena multidão que faz do Apollo um dos lugares mais
freqüentados da Lapa. Como é possível sentir-se só no meio de tanta gente,
especialmente dos fregueses que desde o primeiro dia a cercam de amabilidades?
Gosta de
ouvir esses fregueses dizerem que é a mulher mais bonita do Apollo, mesmo
sabendo que tais elogios não passam de confete barato. Mas um ou outro manifesta
sua admiração
por ela de forma mais sincera e objetiva, sugerindo-lhe usar a beleza e a
juventude o mais que possa.
- Por que não trabalha em teatro? Tenho amigos que lhe podem conseguir um lugar
de corista numa dessas revistas da Praça Tiradentes.
Ou então:
- Não gostaria de posar profissionalmente?
Sugestões que mais cedo ou mais tarde acabará aceitando. Vai servir por algum
tempo de modelo dos alunos da Escola Nacional de Belas-Artes, ganhando entre 100
e
200 mil réis por mês para deixar que seu corpo miúdo e bem-feito seja
transformado em esboços, quadros, esculturas. Quanto à carreira teatral, ainda
custará um pouco
a tentar. Por ora nem lhe passa pela cabeça que um dia será mesmo uma corista,
trabalhando inclusive na Companhia de Alda Garrido(1).
Sua vida realmente muda. Nas roupas, nas amizades, nos hábitos, nas maneiras.
Para Noel Rosa, porém, Ceei continua a mesma daquela primeira noite do Apollo. É
com
sintomática freqüência que ele aparece no cabaré para vê-la. Puxa conversa,
tira-a para dançar, convida-a para saírem juntos depois do expediente. Ceei
gosta de
Noel, acha-o simpático, divertido, muito inteligente, mas não pretende envolver-
se. É muito moça, está encantada com a vida noturna, não quer abrir mão de ser
cortejada
por todos os fregueses, não quer prender-se a um só. Mesmo que este seja um Noel
Rosa, em cima de quem as colegas de trabalho vivem a pôr os olhos, sabendo-o
famoso,
importante, festejado.
- Vamos continuar assim, amigos-a resposta se repete a cada novo convite de
Noel.
As colegas de trabalho vivem mesmo a pôr os olhos nele. Sobretudo Julinha, a
mesma 'Julinha que Noel conheceu na Penha, amou, deixou de amar e por fim
esqueceu,
depois de longo e tumultuado relacionamento. Julinha já percorreu praticamente
todos os recantos da Lapa, é hoje uma mulher castigada pelas noites e pela
bebida,
a caminho dos quarenta anos. Engordou, pouco tem da antiga beleza. Pinta-se com
exagero, na ilusão de que os homens não lhe notem as olheiras e as prematuras
rugas.
Julinha é a mesma mulher briguenta de sempre.
- O que é que você tanto conversa com o Noel?
- Somos amigos.
- Isso já passou de amizade
- Não, não passou. E se passou não é da sua conta!
-É sim. Você não sabia que eu fui mulher dele?
- Foi, não é mais.
Julinha ameaça Ceei, diz que não quer vê-la conversando com Noel, toma-se de
ciúmes, muitas vezes instigada pela bebida. Ceei não tem medo de nada, é altiva
e teimosa.
Coragem e teimosia que um dia atribuirá à juventude e ao signo. Quanto mais a
outra ameaça ("Se você continuar dando atenção ao Noel, vai ver"...), mais se
mostra
sensível à idéia de deixar que as coisas realmente passem do plano da amizade.
Pura teimosia. Só para mostrar a Julinha que não há nada ou ninguém que lhe diga
o
que deve ou não fazer.
- Se você quiser, Noel, pode me esperar logo mais.
Vai sair? - Não demoro. Vou até a Rádio Guanabara e volto em meia hora.
- Não posso ir com você?
- Melhor me esperar aqui. Mais tarde a gente sai junto.
Por mais que a cena se repita, Noel não cumprindo a promessa de voltar logo,
Lindaura não aprende, condenada a esperas intermináveis. Enquanto Noel sai para
não
voltar, passando toda a noite fora, às vezes sumindo por dois ou três dias, ela
fica trancada com seus pensamentos no pequeno e sombrio quarto alugado num
primeiro
andar da Rua do Acre. De dia ainda tem com quem conversar, as colegas de
trabalho na lavanderia, uma ou outra pessoa conhecida que encontra em
Vila Isabel. De noite, porém, só lhe resta rezar para que Noel volte o mais
depressa possível.
Desde que estão morando juntos, os dois
313

aninharam-se em muitos lugares, hotéis, casas de conhecidos, a pensão de


mulheres da amiga do Germano, um quarto de aluguel aqui e ali. Mas as lembranças
que guardará
mais fortemente pela vida afora serão mesmo a deste quarto de sobrado na Rua do
Acre, o melhor que Zé Pretinho pôde conseguir pelo pouco que Noel se dispõe a
pagar.
Um quarto realmente pequeno e sombrio. Os proprietários do prédio, não
satisfeitos em locar todos os cômodos que se alinham de um lado e do outro de um
corredor
comprido e escuro, dividiram com tênues paredes de papelão os cômodos maiores,
transformando cada um deles em dois. O dinheiro que entra é sempre mais
importante
do que o conforto do inquilino. É numa dessas metades de quarto que Noel e
Lindaura se instalaram.
Depois daquela festa de São João - e mais ainda depois que Ceei parou de
resistir-lhe ao assédio - Noel está cada vez menos no sobrado da Rua do Acre. É
um tempo
de solidão e angústias para Lindaura, que costuma passar a maior parte das
noites em claro, sem saber se quem vai entrar pela porta é Noel ou um dos muitos
estranhos
que passam ruidosamente pelo corredor. Todo e qualquer ruído a assusta, sejam os
passos dos outros inquilinos, sejam gritos que ouve (ou supõe ouvir), vindos da
rua deserta. Numa dessas noites de insônia, salta da cama assustada. Um dos
marinheiros que moram na metade de quarto ao lado espichou o pescoço para olhá-
la por
cima da parede de papelão. Ela ali deitada e o marinheiro simplesmente olhando,
olhos bem abertos, a fisionomia estranha, indefinível. Lindaura corre até a
porta
que dá para a sacada, abre-a, sai. Não fosse tão alto, talvez saltasse, e saísse
correndo, de camisola mesmo, até o primeiro táxi que a levasse de volta a Vila
Isabel.
Mas não tem coragem. Limita-se a sentar-se no Chão da sacada. Encosta o rosto
nas grades de ferro e abre bem os olhos para a rua. Quem sabe Noel já não está
vindo?
Para dentro do quarto é que não volta. A parede de papelão é tão frágil que o
marinheiro a derrubaria com um sopro. Mas por onde andará Noel? Uma, duas,
talvez três
horas se passam, Lindaura sentada cheia de pavor no Chão da sacada, os olhos
sempre postos na rua. É então que vê, como se vindo da direção da Rádio Mayrink
Veiga,
elegante, os passos lentos, firmes, um amigo de Noel que ela só conhece de
vista, mas que já lhe é muito familiar: Mário Reis. Deve estar indo encontrar-se
com alguém
lá pelos lados da Rua da Carioca. Ou talvez tenha estacionado o carro a algumas
quadras da Rua Mayrink Veiga. Seja lá o que for, é muita sorte que passe por
aqui
agora. Lindaura grita cá de cima:
- Mário! Mário Reis!
Mário pára. Olha para o alto procurando
descobrir de onde vem a voz.
- Aqui, Mário!Sou eu, Lindaura, a noiva do Noel Rosa!
Mário afasta-se um pouco, de modo a ver, da outra calçada, a moça sentada no
Chão da sacada.
- Aqui, Mário!
Ele finalmente a vê:
- Pois não.
- Por favor, Mário. Sou a noiva do Noel Rosa. Ele me deixou aqui sozinha e estou
morrendo de medo. Será que VOCÊ podia irà casa da minha sogra pedir a ela para
vir
me buscar?
-Pois não, pois não... - diz Mário sem entender nada.
A noiva do Noel sozinha numa sacada da Rua do Acre, gritando para ele,
pedindo-lhe socorro, e Noel perdido em algum lugar da noite carioca. Homem
estranho este Noel Rosa. No dia seguinte, atendendo ao pedido de Lindaura, vai
falar com
dona Martha. Esta, por sua vez, na primeira oportunidade chama a atenção do
filho, está tudo errado, não é direito o que ele está fazendo. O pessoal da
delegacia
cobrando-lhe a promessa de que o convenceria a casar-se. Por que não toma juízo?
Noel raramente vai ao chalé. É tão difícil encontrá-lo lá quanto no sobrado da
Rua do Acre. A casa dos pais é uma espécie de ponto de referência, o local onde
recebe
e deixa recados, endereço para correspondência. Trabalha muito nesse terceiro
semestre de 1934. Canta em programas de rádio, apresenta-se em cinemas e
teatros, compõe.
Por exemplo, Pra Lá da Cidade, mais uma letra com muito jeito de Julinha.

Lá, bem pra lá da cidade


Onde não cabe a vaidade
Foi que matei minha ilusão
E enterrei meu coração,
Que ficou muito pra lá;..
Bem pra lá da cidade
Só cabe aquela saudade
Que eu guardei com devoção
Longe daquela saudade
Me sinto feliz então.
Lá, bem pra lá da cidade,
Contrariando a vontade,
Eu te entreguei meu violão
E te deixei num barracão.
Bem pra lá da cidade,
Onde só há liberdade
Para quem não sente paixão,
Livre daquela amizade
Me sinto feliz então.

Além do trabalho, o amor. Está apaixonado por Ceei, vive atrás dela, vai
esperá-la todas as noites à saída do Apollo. Se uma gripe ou
315

indisposição passageira impede-a de ir trabalhar, preocupa-se. É assim que um


dia vai procurá-la na casa da tia na Barão de São Félix.
- Ouvi dizer que ela está doente.
- Quem disse?
- O pessoal lá do Apollo.
- Do Apollo?
- Sim, o cabaré.
A inabilidade de Noel acaba fazendo com que tiajacinta fique sabendo o que Ceei
com tanto cuidado vinha tentando esconder. Então a sobrinha trabalha num cabaré?
E onde ou com quem estará morando?
É o que Noel também gostaria de saber. Só depois desse pequeno incidente - dessa
involuntária indiscrição junto à tiajacinta - vai ele descobrir que Ceei mora
com
uma colega no apartamento da Avenida Gomes Freyre. Teve ela suas razões para não
lhe dizer a verdade. Ainda é o desejo de liberdade que guia seus passos. Para
que
ficar presa aos carinhos - e também aos ciúmes - de um só homem, se bem melhor e
menos limitador é dividir-se entre muitos? Não se conforma em ver algumas de
suas
amigas padecerem nas mãos de homens insofridos e possessivos que começam
prometendo-lhes tudo, inclusive compreensão para com a vida que levam, e no
entanto mudam
assim que se apaixonam. Ceei é pouco mais do que uma adolescente, mais jovem do
que qualquer outra aqui, mas viva, inteligente, aprende depressa. É impossível
viver
na Lapa sem aceitar-lhe as leis. Leis que ela não só aceita como aprova,
principalmente em sua profissão, as dançarinas de cabaré obrigadas a vender
sorrisos a todos
os fregueses, sem se prenderem a nenhum. Batem asas de mesa em mesa, realizando
muitas e sempre breves escalas. Ora aqui, ora ali, não é por acaso que muitos as
chamam, ainda que pejorativamente, de mariposas. São as leis daqui.
Noel sempre conheceu e respeitou essas leis. Mas quando o coração se envolve, de
que adiantam? Passa-se a achar absurdos todos os códigos que regem os amores
nascidos
e vividos à luz desses cabarés? No começo de seu relacionamento com Ceei parece
aceitar tacitamente que ela seja como é, livre, não só sua, mas da noite. E a
noite
sempre teve muitos habitantes. Depois mudará. Mas a aceitação dos primeiros
tempos - uma aceitação de quem compreende perfeitamente como vivem as mulheres
da Lapa
- ele chega a registrar num samba que só daqui a dois anos lançará, um samba
ironicamente intitulado Dama do Cabaré, no qual fala não apenas do seu primeiro
encontro
com Ceei, mas do quanto sabe serem sagradas para ela as leis da boêmia..

Foi num cabaré na Lapa


Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu soirée.
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra.
Em frente à porta
um bom carro nos esperava,
Mas você se despediu
e foi pra casa a pé.
No outro dia
lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré.
Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que eu recebi
(não me lembro de quem)
Você nela me dizia
que quem é da boêmia
Usa e abusa da diplomacia
Mas não gosta de ninguém.

Uma madrugada, passando de carro pela esquina de Boulevard com Jorge Rudge,
Paulo Netto de Freitas e seu amigo Renato de Freitas divisam Noel ali parado,
sozinho,
indiferente à chuva e ao frio. O que estará fazendo nesta esquina, imóvel,
distante dos pontos de bonde e ônibus? Paulo pede que Renato freie o carro e dê
uma ré
até a esquina.
- Que é que você está fazendo, Noel? - - pergunta intrigado.
- Esperando que passe por aqui um botequim.
É assim, meio diferente e sempre imprevisível, o Noel Rosa que Ceei conhece e
começa a amar neste 1934. Dado a tiradas engraçadas, mas volta e meia
mergulhando naquelas
fugas a que os amigos de Vila Isabel estão acostumados. Continua tendo pavor de
pessoas desagradáveis, de gente que fala muito e o aborda quando não está
disposto
a conversar. Numa tarde, caminhando com Ceei pela Praça Tiradentes, ouve
gritarem seu nome-.
- Noel! Ô Noel!
Com o canto do olho, identifica do outro lado da rua o Tatuzinho, multifalante
artista de circo e teatro de revistas(2). Finge que não o vê.
- Noel! Noel! - os gritos se fazem ainda mais altos.
Noel olha de um lado para o outro como se a tentar descobrir de onde vem a voz.
Ceei faz menção de mostrar-lhe, mas ele a segura pelo braço.
- Pelo amor de Deus, Ceei. Tatuzinho é boa alma, mas muito chato.
E segue em frente, sempre virando a cabeça para onde o dono da voz não está.
316

Mas, das muitas coisas que vai aprendendo dele, nesses primeiros tempos, uma das
que mais chamam a atenção de Ceei é a sua paixão pelas madrugadas. Às vezes
ficam
acordados até de manhã, caminhando em silêncio pela calçada da Avenida Beira-
Mar. Um dia ele desperta como num susto de uma de suas impenetráveis divagações.
- Ali! Olha ali!
- O quê?-pergunta ela realmente assustada.
- O Sol!
De fato, os primeiros clarões da manhã começam a iluminar a baía, os dois lado a
lado junto à amurada.
- E o que é que tem, Noel?
- Não gosto. Detesto o Sol. Só deveria existir a noite.

NOTAS
1. Durante o tempo de vida de Noel, as atividades profissionais de Ceei se
limitarão ao cabaré, a um breve período como modelo dos alunos da Escola
Nacional de
Belas-Artes e a trabalhos esporádicos como girl em espetáculos de circo e
companhias itinerantes. O teatro, mesmo, virá mais tarde, sua estréia se dando
dois meses
depois da morte de Noel, como uma das dançarinas de Rumo ao Catete, revista
estrelada no Recreio por Aracy Cortes.
2. Tatuzinho, Ary Valdez, se casaria anos depois com a cantora Rlizeth Cardoso.

317

UM PARCEIRO EDUAS INTÉRPRETES

Capítulo 32
A MÃE DA CANTORA DE RÁDIO
É com devoção (...)
Vai cantar meu samba prosa
Numa primeira audição.
De Qualquer Maneira

À muito tempo Nássara não aparecia no Ponto de 100 Réis. Anda ocupado demais,
produzindo caricaturas para jornal, redigindo anúncios para programas de rádio,
fazendo
cursos de desenho na Escola Nacional de Belas-Artes. Neste fim de tarde, indo
pelo Boulevard na direção da casa do amigo Luís de Moura, ouve gritarem seu nome
de
uma das mesas do Café Ponto Chie. Sentado sozinho diante de uma garrafa de
cerveja, cotoco de lápis quase sumindo por entre os dedos, Noel Rosa rabiscava
alguma
coisa quando o viu passar (Nássara não pode deixar de pensar que este cotoco é
no mínimo uma superstiçãozinha, Noel não o trocando por nada, nem mesmo um lápis
novinho,
de desenho, importado, como os que ele usa).
- Está sumido, Nássara - diz Noel apontando-lhe a cadeira.
Nássara se senta. Conta como anda ocupado, o tempo não dando para tudo que tem
de fazer, ele quase não parando em Vila Isabel. Noel mostra-lhe o estribilho de
uma
música em que está trabalhando:

Quando por amor suspiro


A saudade vem então
Encontrar o seu retiro
(encontrar o seu retiro)
Dentro do meu coração

Nássara gosta. Acha interessante o jogo de palavras, retiro com saudade,


referência poética a Retiro da Saudade, nome de um dos novos loteamentos
traçados à beira
da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em permanente contato com estudantes de arquitetura
na Escola de Belas-Artes1, interessa-se pelo assunto. Por que Noel terá feito um
samba a respeito? O amigo explica-lhe que não é samba, mas marcha. E que ainda
não fez, está fazendo. Será que Nássara não gostaria de ajudá-lo nos versos?
Antônio Gabriel Nássara ainda não é exatamente um compositor. Influenciado pelos
amigos do bairro, já produziu alguma coisa, uma letra aqui, um pedaço de melodia
ali, meia dúzia de sambas e marchas escritos entre uma caricatura e outra. É
verdade que uma dessas composições ocasionais fez sucesso no último carnaval:
Formosa,
de parceria com Jota Ruy, gravada pela dupla Francisco Alves e Mário Reis. Mas
nem isso o animou muito a dedicar-se à música tanto quanto aos desenhos. Sente
que
a proposta que Noel lhe faz para se tornarem parceiros nada mais é do que um
generoso oferecimento de amigo, um gesto simpático no sentido de que ele
aproveite sua
criatividade também para compor.
319

A marcha é construída a quatro mãos, trechos de melodia de um e de outro. A


mesma coisa em relação à letra. Nássara, homem de muito humor, vê na idéia
grandes possibilidades
carnavalescas. Não resiste a fazer, num de seus versos, um "trocadilho
urbanístico".
Arranjei um trocadilho Pra cantar como estribilho: "Teu retiro dá... saudade"
Uma marcha feita sob medida para ser cantada por uma dupla mista. Pelo menos é o
que sugere o caminho que Noel e Nássara tomam juntos ao fazerem a letra em forma
de diálogo.
Uma dupla mista. Quanto ao cantor, nenhum problema. Mas e a cantora? É curioso
como neste 1934, já com cinco anos de atividades profisionais como compositor,
Noel
Rosa ainda não possa falar de uma intérprete feminina de sua predileção. Quando
se trata de vozes de homem, as preferências são muitas, Francisco Alves, Mário
Reis,
Sílvio Caldas, Luís Barbosa, João Petra, Almirante e alguns mais. Todos bons,
todos capazes de criar para suas composições o clima perfeito. Mas o que dizer
das
mulheres?
Continua fazendo restrições a Carmem Miranda. E também a Aurora, que jamais
conseguirá libertar-se da influência da irmã, a ponto de ser confundida com ela
por ouvidos
menos atentos. Elisinha Coelho? Uma artista de indiscutível talento, delicada,
sensível, mas que nunca chegará a gravar nada de Noel Rosa. Aracy Cortes, Otília
Amorim,
Gesy Barbosa? Se andaram cantando músicas suas no teatro ou no rádio, não se
deram ao cuidado de levá-las ao disco. Madelou Assis, Ruth Franklin, Lucilla,
Helena
Barreto? Se o fizeram, foi de forma passageira, um disco apenas, para depois
seguirem outros caminhos. Não, Noel Rosa ainda não tem uma cantora de sua
predileção.
É justamente neste 1934, em lugares e circunstâncias diversas, que entram em sua
vida aquelas que disputarão para sempre a honra de ser a melhor intérprete de
sua
obra: Marília Baptista é Aracy de Almeida. Diferentes em tudo, no temperamento,
nos hábitos, na formação musical, no timbre de voz, no modo de cantar, no tipo
físico,
nos mundos em que nasceram e vivem. Continuarão assim pelo tempo afora. Jamais
convergirão, mas cumprirão carreiras, pode-se dizer, paralelas, a música e a
poesia
de Noel Rosa não deixando que se afastem de todo.
Marília Baptista tem um Monteiro de Barros entre o primeiro e o último nome,
herança materna que manterá de lado na vida artística, mas da qual se orgulhará
sempre:
o Barão Luís Monteiro de Barros, seu avô, era poeta. Como a própria Marília, que
gosta de escrever versos e musicá-los.
Cantora, compositora, violonista. Desde pequena vive agarrada ao instrumento,
para o qual chegará a escrever um canto de amor:
Fala tudo que meu peito sente
Pois, meu amigo verdadeiro,
Nem brincando você mente.
Tinha apenas seis anos de idade quando o barbeiro que ia à sua casa cortar os
cabelos dos irmãos e do pai - o médico do Exército Renato Hutto Baptista -
esqueceu
por lá o violão. Não o largou mais, a mãe pianista, Edith,
ensinando-lhe as primeiras posições. Ela e os irmãos Renatinho e Henrique, muito
unidos, gostavam de inventar músicas e fazer versos. Com oito anos, Marília já
compunha.
Impressionado com essa precocidade, um amigo do pai, Pascoal Américo,
apresentou-a ao jornalista que se assinava Terra de Sena(3) e este decidiu
levá-la a um festival de música no Cassino Beira-Mar em 1930. Ali conheceu o
violonista Josué de Barros, o descobridor de Carmem Miranda, que empolgado
passou a
dar-lhe aulas particulares de graça. Aplicada e ambiciosa, seu primeiro
pensamento foi para a música clássica. Queria ser concertista, chegou a tomar
aulas com o
virtuose José Rabello. Mais tarde, ingressaria no Instituto Nacional de Música
para tirar diploma de teoria, harmonia e solfejo. Mas nunca será uma artista
erudita.
Não resistirá aos apelos da música popular, especialmente do samba, rendição que
atribuirá a algo que traz no sangue: sua ama-de-leite era a negra Filomena, neta
de escravos, e é bem possível que lhe tenha passado o ritmo, a melodia, a música
enfim de sua gente. Também a ela Marília dedicou uma de suas primeiras
composições:

No dia em que eu nasci


Preta velha me pegou
No seu colo com carinho
Nunca mais me deixou

Foi há dois anos, em 1932, que Marília e Noel se conheceram. Desde então, não
mais se viram. Jamais esquecerá a primeira impressão que ele lhe causou,
acompanhando-se
ao violão num de seus sucessos de então: Gago Apaixonado. Em São José dos
Campos, no Sul, em Campos, Muqui, Vitória ou qualquer outro lugar em que se
apresente Noel
Rosa, este samba é e será por muito tempo ainda um número obrigatório.
320

Não só por ser uma de suas melhores produções, das mais identificadas com seu
estilo, mas também porque ninguém a interpreta com tanto sabor, sua figura magra
entrando
no palco, apoiando o pé na cadeira, começando a emitir com a boca defeituosa os
sons prolongados e aflitos do pobre gago:
Mu... mu... mulher
Tu me... me... fi.fi.zeste um estrago
Os apresentadores sempre procuram tirar partido do encanto que Gago Apaixonado,
na interpretação de Noel, desperta nas mais diversas platéias. Entre outras
coisas,
costumam criar um clima de expectativa que tem muito dos velhos truques do
vaudeville. Foi justamente assim no dia em que Noel e Marília Baptista se
conheceram.
Lamartine Babo era o apresentador de uma hora de arte no Grêmio Esportivo 11 de
Junho, no Riachuelo. Coube a ele anunciar as atrações, Gastão Formenti, Pereira
Filho,
Noel Rosa. Na vez deste, apelou para o velho truque:
- Senhoras e senhores! Tenho agora a honra de vos apresentar um excelente
cantor, jovem de muita bossa...
Fez uma pausa, olhou para os lados e baixou o tom de voz:
- ... mas eu pediria a simpatia e a compreensão da seleta platéia para um
detalhe: nosso cantor... nosso cantor cheio de bossa... é um pouco gago. Estou
certo de
que todos saberão relevar qualquer dificuldade.
E aumentando novamente o tom de voz:
- E agora, com os senhores, Noel Rosa!
É evidente que nem todos da platéia engoliram a história de Lamartine. A maioria
conhecia Noel, já tinha ouvido inúmeras vezes Gago Apaixonado. Mesmo assim,
criou-se
o clima dentro do qual Noel brilhou mais uma vez, entre aplausos, gritos,
assobios, gargalhadas, pedidos de bis.
Terminado o número, Noel saiu para uma cerveja. O Grêmio Esportivo 11 de Junho
jactava-se de sua condição de "entidade cultural e recreativa". Costumava
organizar
espetáculos de música e poesia, receber artistas e escritores que se exibiam num
amplo salão ao fundo do qual improvisava-se, sobre um estrado de madeira, o
palco.
Mas nem todos os artistas que se apresentavam ali eram famosos como Lamartine,
Formenti e Noel. Havia, também, cantores e músicos amadores sonhando ainda em
serem
descobertos. Alguns já adultos, outros pouco mais do que crianças, como Marília
Baptista, com apenas quatorze anos naquele 1932.
Era uma mocinha miúda, magra, de cabelos
321

castanhos muito claros, os olhos ligeiramente rasgados, gestos discretos.


Aguardava sua vez de subir ao palco quando notou que seu violão - justamente o
violão de
estimação, de um modelo premiado em Sevilha, presente do pai - estava nas mãos
de Noel, que acabara de tomar sua cerveja e agora parecia experimentar o
instrumento.
Marília lembrou-se de ter deixado o violão sobre uma mesa perto do palco.
Distraíra-se. Chegou apressada e apreensiva perto do moço magro que ela não
conhecia e
que agora, sem gagueira, cantava um samba desconhecido:

Deus vê tudo e tudo sabe,


Mas não sabe calcular A hipocrisia
que cabe Dentro deste teu olhar.
Nem com meu ciúme nego,
Tens razão, estou convencida,
Pois tu também vives cego
Às mentiras desta vida.
Sofreste por mim cantando,
Zombaste de mim chorando,
Apenas pra me enganar.
Mas vou perguntar aos sábios
Se a mentira nos teus lábios
É verdade em teu olhar.
Eu te fito humildemente,
Mas meus lábios te censuram,
Porque teu olhar desmente
O que os teus lábios juram.
Eu por ti sou enganada
Por gostar de me enganar,
Por querer ser contemplada
Pelo teu fingido olhar.

Se pretendia zangar-se, a beleza do samba, o sentimento que o moço magro parecia


imprimir a cada verso, a cada palavra, a fez mudar de idéia. Permaneceu ali, ao
lado de Noel, ouvindo-o cantar acompanhando-se no violão que o pai lhe dera.
Perguntou-lhe o nome do samba.-Verdade Duvidosa. Ficou maravilhada.
Mas isso se passou há dois anos, no Grêmio Esportivo 11 de Junho. Depois,
Marília foi descoberta. Estudou música, conheceu gente do meio. Almirante,
lembrando-se
de tê-la ouvido no Cassino Beira-Mar e numa reunião na casa de Elisinha Coelho,
convidou-a a participar com ele, Sílvio Caldas, Jorge Fernandes, Olindina Leite
Castro
e os violonistas Rogério Guimarães e Rubens, do oitavo Broadway Cocktail. Andou
fazendo suas musíquinhas, conseguiu vez para gravar duas delas - Me Larga!'e
Pedi,
Implorei- na Victor. Hoje, tem dezesseis anos e já é uma profissional
experiente. Foi por isso que Ademar Casé
convidou-a, a ela e ao irmão Henrique,
também para se apresentarem em seu programa de rádio. Este 1934 será o ano de
sorte para ela. Especialmente porque nele, no Programa Casé, vai se aproximar de
Noel
Rosa.
Aracy de Almeida, quatro anos mais velha que Marília Baptista, nasceu, cresceu e
para o resto da vida permanecerá ligada ao Encantado, subúrbio carioca em nada
parecido
com os bairros progressistas, de classe média, em que têm vivido os filhos do
Dr. Renato Baptista. A linha do trem divide o Encantado em dois, um lado
melhorzinho,
e assim mesmo de ruas sem calçamento, casas muito pobres, vidas modestas, e
outro ainda pior, no qual, pés no Chão, foi criada Aracy, mulata miúda, cabelo
encarapinhado,
jeito de molequinho de esquina, mas muito autêntica, de uma autenticidade que
nada, nem o tempo, nem a fama, lhe vai roubar.
É filha de um chefe de trens na Central do Brasil. Pobre, muito pobre. Não
freqüentou bons colégios, não teve oportunidade de estudar música, não pode
orgulhar-se
de descender de um barão poeta como Luís Monteiro de Barros. Enquanto Marília
exercitou o seu canto orientada por professores de conservatório, Aracy fez seu
aprendizado
no coro da igreja Batista da qual seu irmão Alcides é pastor. Aos domingos, seis
da tarde, toda a família se reunia ali para buscar nos sermões e nos hinos
religiosos
um pouco de conforto para sua pobreza. Mas Aracy nunca ligou muito para a igreja
e a falta de dinheiro. O que queria mesmo era ser cantora de rádio. Sempre soube
que tinha jeito.
E como tem! São mesmo muitas as diferenças entre ela e Marília. Esta tem voz de
timbre suave, pouco extensa, mas que aprenderá a usar com adequação. A voz de
Aracy
é anasalada, mas consistente, com certo acento triste que lhe dá cor muito
própria. Não aprenderá nada: nasceu sabendo. Marília tem ouvido privilegiado (e
graças
a ele ainda será melhor compositora do que cantora). O ouvido de Aracy é duro.
Sua memória musical, fraca. Tem dificuldade para aprender músicas de
harmonizações
complicadas. Marília domina a técnica, Aracy é artista intuitiva. Mas grande.
Qual das duas será a melhor intérprete de Noel? Na voz de qual suas composições
soarão
mais ao gosto dele?
Numa entrevista a Orestes Barbosa, ano passado(4), antes portanto de conhecer
Aracy mais de perto, Noel não hesitou em apontá-la como a melhor cantora de
"samba
de batida". O que ele quis dizer exatamente com samba de batida não fica
esclarecido, mas é possível que se referisse ao samba de ritmo bem marcado,
ligeiro, com
bossa, em contraposição ao samba-canção, mais lento, ou aos outros, mais duros,
322

no estilo de Carmem Miranda (que por sinal, na mesma entrevista, é citada por
Noel como "a rainha da marcha", com um reforço exclamativo não desprovido de
ironia:
"longe!"). Em outra entrevista, será mais claro:
"- Que tal essa Aracy?
- Um valor. É nova, mas das melhores"(5) Em outra, mais claro ainda:
- Qual a melhor intérprete de sua música?
- Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que intepreta com exatidão o
que produza."(6)
Seja como for, serão estas as únicas referências que fará abertamente a uma das
duas cantoras. Na intimidade, nem isso. Marília ou Aracy?
Uma coisa é certa: do ponto de vista pessoal, como companhia para o que der e
vier, suas afinidades serão sempre maiores com Aracy. Poderá perder a paciência
quando
chegar a hora de ensinar-lhe suas músicas, ela custando a familiarizar-se com a
melodia, claudicando em certas passagens, tropeçando na letra. Mas tão logo
aprenda
a lição e o trabalho dê lugar ao lazer, Noel se transforma, a impaciência cede
vez
323

a um sorriso, os dois saem para uma boêmia que a bem-comportada Marília - o pai
vigilante acompanhando-a a toda parte, festas, programas de rádio, recitais -
nem
imagina existir.
Noel e Aracy conhecem-se no estúdio da PRB-7, Sociedade Rádio Educadora do
Brasil, na Rua Senador Dantas, 82. A moça pobre, artista intuitiva, teve de
esperar muito
até lhe darem a chance de cantar naquele microfone. Passara a adolescência entre
o coro da igreja e os blocos de rua do Encantado ao Engenho de Dentro. Queria
mesmo
cantar no rádio, tentou várias vezes - sem sucesso - um teste na Rádio
Suburbana. Dizia para si mesma, com aquele seu jeito crítico que nunca perderá:
- Se a Carmem Barbosa pode, por que não eu?
Manuel, um violonista do bairro, gostava da voz dela. Era amigo de
Custódio Mesquita, na época pianista de orquestra, já com conhecimento em várias
estações de rádio. Foi graças a ele que ganhou um contrato na Educadora. A
família,
naturalmente, resistiu. A irmã do pastor Alcides cantando no rádio? Mas Renato
Murce, sempre querendo dar oportunidade aos novos, foi até o Encantado e
convenceu
os Almeidas:
- Eu me responsabilizo por ela.
Na primeira vez que Noel a vê, ela canta um dos últimos sucessos de
Carmem Miranda. Não espera para serem apresentados.
- Você tem jeito. Canta bem. Mas que tal aprender uns sambas novos e deixar pra
lá o repertório de Carmem Miranda?
Na mesma noite, vão à Taberna da Glória, cantam e bebem juntos. Noel apresenta-a
aos malandros seus amigos, ensina-lhe sambas seus, entre os quais Riso de
Criança,
o primeiro que gravará dele. Depois leva-a até a Central para que tome o trem de
volta ao Encantado.
Ficam amigos. Muitas vezes voltarão a beber juntos, na Lapa, no Estácio, nos
botequins da Barão de São Félix. A pedido dele, Aracy vai cantar para suas
meninas no
Mangue ou nas casas ainda mais baratas das imediações da Central. Ela não se
importa. Conhece a vida, não tem os chiquês de Marília, faz o que quer, desde
beber
e fumar até jogar sinuca e cantar para as mulheres do Noel num prostíbulo de
terceira categoria. Ficam realmente amigos, para todas as horas. Inclusive para
que
ela freqüente o chalé, tome com ele uma sopa requentada de feijão no quartinho
dos fundos, aprenda novos sambas. Dona Martha, de início, estranha a
espontaneidade,
o jeito de ser de Aracy.
- Nunca vi uma mulher dizer tanto nome feio.
Muito diferente de Marília.
A sirene soa longa e estridente como se para despertar algum ouvinte
eventualmente sonolento. Em seguida, os acordes vibrantes de Gallito, pasodoble
de Santiago
Lope, completam o sinal de alerta: está no ar o Programa Casé. Todos os
domingos, de meio-dia às seis da tarde, os radiomaníacos do Rio de Janeiro se
grudam aos
seus receptores para acompanharem uma a uma as atrações desse longo e variado
caleidoscópio radiofônico. Um líder absoluto de audiência, desde o primeiro
domingo
em que foi ao ar, a 14 de fevereiro de 1932, até sua última transmissão, dezoito
anos depois, passando por este 1934 em que Noel e Marília se reencontram.
Ademar Casé é um pernambucano empreendedor. É cheio de idéias. De vendedor de
aparelhos de rádio a prazo (um pioneiro neste tipo de negócio), transformou-se
no dono
de um programa que será sempre muito imitado (nas sua pegadas seguirão Renato
Murce, Christovam de Alencar, Eratósthenes Frazão, Waldo Abreu, Paulo Netto de
Freitas,
Gastão Lamounier e tantos outros). Casé teve a coragem - e também nisso é
pioneiro - de comprar um horário da Rádio Philips, cujos estúdios funcionam na
Rua Sacadura
Cabral, 43, perto do Cais do Porto. No começo, um horário de oito à meia-noite
cabendo ao próprio Casé acumular as funções de produtor, agenciador,
selecionador
de artistas, corretor de anúncios e tudo mais que não o obrigasse a ir ao
microfone (sempre teve medo deste milagroso engenho que leva a voz das pessoas a
distâncias
incalculáveis). Mas o programa, depois de dificuldades iniciais superadas pela
ajuda de patrocinadores importantes (entre eles F.M. Moreira, o Laboratório
Queirós
e, mais tarde, o Dragão), cresceu. Casé contratou Sílvio Salema para contactar
os artistas, chamou Noel Rosa para ser, ao mesmo tempo, cantor e contra-regra,
mudou
o horário para toda a tarde de domingo.
Não há grande cartaz da música popular que não tenha passado ou ainda não vá
passar pelo Programa Casé. Atraído por algo que é praticamente outra invenção do
pernambucano
empreendedor: o cachê. Antes dele, os artista se apresentavam em emissoras de
rádio quase de favor. Casé, porém, achou melhor profissionalizar seu espetáculo,
pagando
a todos - na hora - cachês que variam de acordo com o cartaz de cada um.
Francisco Alves, por exemplo, é o mais bem pago: 35 mil réis. Carmem Miranda vem
em seguida:
30. Os outros variam de 10 a 20.
Um programa em grande estilo, que nos primeiros tempos tentou ser até ambicioso
demais, dividindo-se em duas partes, a primeira dedicada à música popular, a
segunda
à erudita,
324

os pianistas Mário de Azevedo, Arnaldo Estrella, a cantora lírica Violeta Coelho


Netto de Freitas, o violinista Romeu Ghipsmann vestindo a rigor as tardes
cariocas
de domingo. Mas Casé logo constatou que, finda a primeira parte, nenhum ouvinte
telefonava mais para a emissora, ninguém mais parecia interessar-se pelo
programa.
E tratou de diminuir o tempo dos eruditos para um ou no máximo dois quartos de
hora.
Um programa em grande estilo através do qual se pode ouvir a orquestra de
Pixinguinha, o regional de Benedicto Lacerda, o piano de Nono, os melhores
cantores, os
melhores locutores. E humoristas como Jorge Murad, Pinto Filho, Napoleão Aguiar,
Quintanilha, Manuel Durães. A função de contra-regra é justamente dosar os
vários
ingredientes do programa (Casé faz questão de que se obtenha a mesma dinâmica
dos shows radiofônicos americanos que ele ouve pelas ondas curtas). E a Noel
cabe,
nos primeiros tempos, essa difícil dosagem, intercalando canções ligeiras com
lentas, sambas com valsas, músicas com anedotas. Como se tem saído? Eis o que
diz do
seu desempenho o crítico de rádio que se assina R.S.:
"Noel Rosa acumula as funções de cantor e contra-regra no Programa Casé. Ouvimos
domingo a irradiação desse popular programa e notamos que na divisão das
apresentações
dos números Noel tem atuação bastante feliz.
Os números se sucedem sem repetição: um samba, uma canção, um número com
orquestra, uma anedota, tudo a seu tempo."(7)
Para o público, porém, não é o contra-regra Noel Rosa que mais conta, mas o
cantor, o compositor e ainda mais o improvisador que se destaca num quarto de
hora que
Casé criou para emboladas e desafios à moda do Norte. Muita gente fará bonito
nesses improvisos, Manezinho Araújo, Patrício Teixeira, Almirante, a própria
Marília
Baptista que acaba de ser contratada. Mas Noel é imbatível - pela rapidez e
originalidade - nessas disputas em forma de música e verso.
Um dia ele chega com um estribilho que lhe parece excelente para o quarto de
hora dos improvisos:
De babado, sim Meu amor ideal Sem babado, não
A segunda parte, justamente sobre a qual se vai improvisar, tem quatro versos, o
segundo rimando com o quarto, e termina com um breque no qual deve ser posta
toda
a graça, todo o elemento surpresa. Noel conta ter ouvido o estribilho não se
lembra onde. Outro dia, perguntando ao João da Bahiana se sabia de quem era,
obteve
pronta resposta:
- É do João Mina.
O da Bahiana explicou a Noel que o Mina era um tirador de samba(8) do morro de
São Carlos. Costumava fazer ponto no boteco do Valente, na Frei Caneca. Prometeu
procurá-lo
lá e trazê-lo para Noel conhecê-lo. Dito e feito. João da Bahiana apresentou-os,
Noel pediu a João Mina permissão para mexer um pouco no estribilho e depois
acrescentar-lhe
as segundas partes. O outro concordou, inclusive em deixar Noel gravá-lo(9).
Mina, como tantos outros parceiros de Noel, logo será esquecido. E até
contestado. Embora goze de algum prestígio no meio do samba, a ponto de haver
quem o considere
o introdutor da cuíca na percussão das escolas João da Bahiana e Donga, por
exemplo, acreditam nisso), haverá também quem diga que esse estribilho não é
dele, mas
de um tal de Papai da Cancela. Talvez. Mas Noel não se envolve com essas
querelas de sambistas. Do Mina ou do Cancela, o estribilho vai ganhar através de
sua voz,
de suas segundas partes, de seus improvisos, enorme popularidade.
Quando Marília o reencontra nos estúdios da Philips, o estribilho, com o nome de
De Babado, já é número obrigatório de seu repertório. E há muito. Desde aqueles
tempos difíceis da Revolução Constitucionalista de São Paulo, quando as rádios
de todo o país viviam sob atenta e implacável censura. O censor da Philips, um
certo
Brandão, podia ser homem atento e implacável, mas não primava muito pela
inteligência. Ficava observando os cantores do Casé para ver se eles faziam,
durante seus
números, gestos que pudessem ser captados pelos revoltosos em São Paulo. Um dos
improvisos de Noel é dedicado a esse portentoso censor:
Eu não falo pra São Paulo
Sem tomar o meu xerez,
O censor ai do lado
Me levando pro xadrez
(E eu não quero ir pro xadrez)
Nos próximos dois anos, um número obrigatório nas apresentações de Noel. Em
pouco tempo, dele e de Marília, os dois se incumbindo dos improvisos que às
vezes durarão
dez, quinze minutos sem repetição de versos. É no Programa Casé que os dois se
aproximam. E que Marília começa a se tornar conhecida. Ao lado de Noel ou no seu
próprio
quarto de hora, para o qual haverá em breve um prefixo que ela mesma comporá:
325
Fala o Programa Casé!
Veja se adivinha quem é...
Faço a pergunta por troça
Pois todo mundo já conhece
A garota da voz grossa.

Nássara ouve Noel cantar, programa após programa, Retiro da Saudade, a marcha
que parecia sob medida para uma dupla mista. Ouve com atenção. lá está o coro
que o
amigo lhe mostrou no Ponto Chie:
Quando por amor suspiro A saudade vem então...
E lá estão, também, duas ou três segundas partes que o próprio Noel escreveu,
música e letra. Mas aonde foram parar os versos que ele mesmo, Nássara, fez a
pedido
de Noel? Cadê aquele "trocadilho urbanístico" que era, afinal, a sua melhor
participação na parceria? Noel simplesmente se esqueceu dele e completou a
marcha sozinho.
No primeiro encontro dos dois, Nássara, mais na brincadeira, para provocá-lo,
diz-.
- Então, Noel, me passando pra trás, não é?
- Passando pra trás?
- Sim, no Retiro da Saudade? O que fez você dos meus versos?
Noel fica sem jeito. Só então se lembra de que ele mesmo propôs parceria ao
amigo para depois - por um escorregão de memória - esquecê-lo. Tão sem jeito que
nem
sequer encontra meio de se desculpar.
Uma semana depois, Nássara é procurado por Noel.
- É para você ir assinar contrato na Victor.
- Que contrato?
- Da gravação de Retiro da Saudade. A nossa marcha.
Nássara é apanhado de surpresa. Já se esquecera do assunto. E mais surpreso
ainda fica ao saber que a dupla mista que vai gravar a marcha é nada menos do
que Carmem
Miranda e Francisco Alves. E que seus versos, com o tal "trocadilho
urbanístico", estarão no disco. Noel, para redimir-se do esquecimento, passou
por cima de seu
rompimento com Francisco Alves e do seu distanciamento em relação a Carmem
Miranda para dar a Nássara a mais cara - e difícil de unir - dupla da música
popular brasileira.
Mista ou não. Como terá conseguido isso, de que argumentos se valeu para
convencer Chico e Carmem (não propriamente inimigos, mas de forma alguma amigos
do peito),
Nássara nunca descobrirá(10). Mas Retiro da Saudade é gravada pelos dois, faz
sucesso e sai no disco assim:

Quando li o teu recado,


por ti assinado
Encontrei no teu cartão
minha desilusão
"Retirei" saudosamente,
pra mostrar a essa gente
Que não tenho coração
Quando por amor suspiro
A saudade vem então
Encontrar o seu retiro
Dentro do meu coração
E dentro do teu coração
(não me diga que não)
Só existe falsidade
(é a pura verdade)
Eu já fiz um trocadilho,
pra cantar como estribilho
Teu retiro dá... saudade.
326

NOTAS
1. Na época e até 1951, o curso de arquitetura do Rio de Janeiro era feito na
Escola Nacional de Belas-Artes, no prédio que ainda existe na Avenida Rio
Branco,
esquina de Rua Araújo Porto Alegre. A partir de 1952, mudou-se para o antigo
hospício da Praia Vermelha.
2. "Noel não precisava de parceiros", disse Nássara aos autores ao contar esta
história de Retiro da saudade. Segundo ele, o amigo só lhe teria proposto
parceria
para ajudá-lo a firmar-se no meio musical. Uma ajuda de fato valiosa, Nássara
tornando-se logo em seguida o autor ou co-autor de excelentes sambas e marchas
como
Florisbela, História Antiga, Maria Rosa, Me Queimei, Na Casa do Seu Tomás,
Periquitinho Verde, Tipo Sete, ou bem depois, Balzaqueana, Mundo de Zinco, Chico
Viola.
3. Pseudônimo de Lauro Sarno Nunes, pai do humorista Max Nunes.
4. A Hora, 19 de julho de 1933.
5. Folha de Minas, 16 de fevereiro de 1935.
6. A Pátria, 4 de janeiro de 1936.
7. A Hora, 19 de outubro de 1933.
8. Nome pelo qual eram conhecidos os "partideiros" da época.
9. Conta Jota Efegê em "O parceiro esquecido de Noel", Jornal do Brasil, 22 de
maio de 1970: "... pois João Mina, desinteressando-se de formalidades
contratuais,
queria tão somente 'alguma grana' que a música rendesse. Isso, confirma João da
Bahiana, foi cumprido, já que, várias vezes, viu Noel dar dinheiro a João Mina.
Informe
verídico, como atesta a ficha da gravadora Odeon, onde apenas está registrado
Noel Rosa como recebendo direitos autorais do disco..."
10. Realmente uma façanha de Noel, pois este será o único disco que Francisco
Alves e Carmem Miranda gravarão juntos.
327

HUMOR DE PRIMAVERA

Capítulo 33

É aparentemente feliz que Noel chega à primavera de 1934. Uma primavera


especialmente animada para a cidade que tenta este ano incluir o mês de setembro
em seu calendário de festas. Já era tempo. O Rio de agora é terra festeira e
musical.
O carnaval de fevereiro, os santos de junho, os domingos da Penha em outubro,
por que não juntar a estes eventos tradicionais - celebrados pelos compositores
populares
com suas canções - a florida primavera? João de Barro dá sua contribuição:
O Rio amanheceu cantando
Toda a cidade amanheceu em flor
E os namorados vêm pra rua em bando
Porque a primavera é a estação do amor.
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora
Feitiço da Vila
Leia Casatle, uma pequena de Vila Isabel, é eleita Rainha da Primavera e passa a
ser cortejada por toda a cidade. Fotografias suas são publicadas nas primeiras
páginas
de jornais e revistas, clubes a convidam para enfeitar suas reuniões,
compositores inspiram-se nela. A Vila tem motivos para estar orgulhosa.
Mas se todos rendem homenagens a Leia - e até "forasteiros" como Benedicto
Lacerda e Jayme Florence lhe dedicam músicas1 -por que não haveria Noel de
reverenciar
a primaveril rainha de seu bairro com um samba caprichado? Só que o samba será
mais que caprichado. Com melodia de Vadico, uma das mais belas que seus dedos já
arrancaram
do piano, Noel criará, na verdade, uma obra-prima que, além de dedicada a Leia,
será um hino de amor à sua terra: Feitiço da Vila.
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhosDo arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo.
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba.
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.
A Vila tem
Um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem.
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente Que prende a gente.
329

O sol na Vila é triste


Samba não assiste
Porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus,
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora.
Eu sei tudo que faço,
Sei por onde passo,
Paixão não me aniquila.
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte, Meus senhores,
eu sou da Vila!

Da mesma forma que tem mais de um modo de cantar o amor, a malandragem, a cidade
e seus tipos, Noel também tem mais de um modo de festejar esta tão festejada
primavera.
Lírico, orgulhoso de seu bairro em Feitiço da Vila, ele pode
tornar-se ferinamente bem-humorado em Marcha da Prima... Vera, em que verseja e
trocadilha muito à vontade para fustigar uma antipática e imaginária Vera. O
trocadilho,
como se recorda, já foi usado por vovô Eduardo, mas o restante da letra é muito
original. Caberá a Almirante lançar a nova composição numa das seqüências do
Programa
Casé.
Chama-se Vera

A minha prima.
Não é Severa,
Pois é Vera só.
Não é a prima do violão,
É a sobrinha da minha avó!
E receando que a Vera vire fera
Fiz esta marcha para a prima Vera.
A Vera prima,
Por ser primeira,
Achando rima
Para o verbo amar,
Não vai ao rádio,
mas irradia
Antipatia
por seu olhar!
A prima Vera,
Dizendo a idade
Não é sincera:
Diminui demais.
Se nos contasse as primaveras,
Era mais velha do que seus pais!

Carnaval, São João, primavera. Em breve chegará o Natal e logo depois as


Folias de Reis. Canta-se muito no Rio de Janeiro de agora. É sempre neste clima
de ir transformando em música e poesia tudo que a cidade lhes oferece que Noel e
João de Barro vão fazer juntos uma marcha a que darão o nome de Linda Pequena.
Tanto no andamento como nos versos, na melodia como no espírito, a marcha
inspira-se
nas pastoras que nas vésperas do Natal começam a desfilar pelas ruas de alguns
bairros - Vila Isabel entre eles - revivendo antiga tradição cristã(2).
É curioso o destino de Linda Pequena. Feita por João de Barro e Noel Rosa à mesa
do Papagaio, será gravada no próximo dia 8 de dezembro por João Petra de Barros,
ficará guardada por quase um ano nas prateleiras da Odeon, só será lançada em
novembro de 1935, por sinal praticamente sem ser notada, e só muito depois,
regravada
por Sílvio Caldas, chegará ao grande público para então se converter num dos
clássicos da música popular brasileira. Um destino curioso que Noel não chegará
a acompanhar
de todo.

A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as moreninhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.
Linda pequena
Pequena que tens a cor morena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar
Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.

Seja como for, carnaval, São João, primavera, Penha, Reis, neste Rio de Janeiro
festeiro e musical de 1934, é aparentemente feliz seu cantor Noel Rosa.
Manuel Garcia de Medeiros Rosa já não dorme direito. Acorda com freqüência, anda
pela casa, vai até o portão, volta, deita-se outra vez, desassossegado. A
insônia
mina-lhe a saúde, mas ele finge resistir. Chega a dizer que essas horas em claro
no meio da madrugada trazem-lhe grandes idéias, inspiração para novos inventos.
O primeiro, uma pílula para uniformizar o canto dos galos. Está convencido de
que uma das coisas que o fazem acordar muito antes de o sol nascer são
justamente as
diferenças de timbres e tons que seus ouvidos captam no coro dos galos da
vizinhança. Daí a necessidade de uniformizá-los, de criar uma espécie de
diapasão pelo
qual os galos de Vila Isabel devem entoar sua cantoria. E enquanto não chega à
fórmula da pílula milagrosa, trata do outro invento, uma idéia já antiga que ele
desarquiva
precisamente para as noites em claro: os tamancos luminosos. Não acha justo
acender a luz quando se levanta de noite. Se fizer isso, acaba acordando os
outros.
330

De Linda Pequena a Pastorinhas


"Num certo dia de 1934 eu ia passando pela Rua Gonçalves Dias quando resolvi
entrar no Café Papagaio. Lá encontrei, de terno branco, sentado a uma das mesas,
Noel
Rosa. Costumávamos nos ver ali de vez em quando, pois o nosso editor ficava bem
ao lado. Sentei-me com Noel e, no meio da conversa, perguntei-lhe:
- Noel, você já prestou atenção no ritmo das músicas daquele rancho que sai em
Vila Isabel no Dia de Reis?
-Já. É interessante.
- Que tal se a gente fizesse para o carnaval uma música naquele ritmo?
- Boa idéia.
Ali mesmo, papel e lápis na mão, fizemos entre um cafezinho e outro a música e a
letra de uma marcha que chamamos de Linda Pequena. Gravada pelo João Petra de
Barros,
não fez sucesso.
Em 1937, Noel morreu. No início do ano seguinte, houve um concurso de músicas de
carnaval patrocinado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, na Feira
de Amostras. Eu e o Alberto Ribeiro inscrevemos uma marcha nossa, Touradas em
Madrid, que acabou ficando com o primeiro lugar. Mas muita gente protestou,
alegando
que nossa música era, na verdade, um pasodoble. Como se marcha e pasodoble não
fossem a mesma coisa. De qualquer modo, o DIP acolheu os protestos e anulou o
resultado,
marcando para duas semanas depois um novo concurso. Foi então que pensei em
Linda Pequena, tão pouco lembrada que era praticamente inédita. Mudei um pouco a
letra,
que ficou assim:
A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.
Linda pastora
Morena da cor de Madalena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar
Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.

Mudei também o título, que passou a ser Pastorinhas. Inscrevi-a no novo concurso
e tirei outra vez o primeiro lugar. Gravada pelo Sílvio Caldas, foi um sucesso.
Pena que Noel já não estivesse aqui para ver."(3)
João de Barro

Os tamancos - que anos atrás seu Medeiros e o português Aníbal andaram estudando
com o pensamento voltado para os maridos que chegavam em casa de madrugada - têm
agora função bem mais nobre. Servem não só para os insones como ele andarem
dentro de casa a horas tardias, mas também para as pessoas que, tendo banheiro
fora,
no quintal, como é comum nestas casas de centro de terreno, são obrigadas a
caminhar bom pedaço no escuro ao se levantarem de noite movidas por uma
necessidade qualquer.
A idéia é adaptar ao bico de cada tamanco uma pequena lanterna cujo facho de luz
vai iluminando o trajeto dos noctâmbulos.
Tanto os tamancos luminosos como a pílula para uniformizar o canto dos galos
roubam muito do tempo do inventor Manuel Garcia de Medeiros Rosa. São projetos
que jamais
se consumarão, mas que constituem hoje a sua única motivação de vida. A família
se preocupa. Neca é cada vez menos o homem de antigamente. As mudanças não são
notadas
apenas por Martha. Hélio, os outros parentes, os amigos que freqüentam o chalé,
todos já perceberam que ele não está bem. Tirando os instantes em que fala de
pílulas
e tamancos imaginários, quase não se ouve sua voz. Passa horas e horas perdido
num silêncio indevassável, os olhos distantes. Sequer responde às perguntas com
que
Martha tenta trazê-lo de volta ao mundo nesses momentos de alheamento. Quando
sai de casa - o que faz cada vez menos - é com destino incerto. Anda de bonde em
viagens
que incluem complicadas baldeações. Tanto pode puxar conversa com o desconhecido
passageiro ao lado, como encontrar um velho amigo e nem ao menos o cumprimentar.
Numa dessas viagens, acontece de sentar-se no mesmo banco Almirante, que o saúda
tirando o chapéu.
- Como vai, seu Medeiros?
Desta vez reconhece o amigo do filho, cumprimenta-o, pergunta-lhe pelo rádio, a
música, as novidades. A conversa vai indo muito bem até que a voz de seu
Medeiros
começa a diminuir, a tornar-se pouco a pouco mais fraca, imperceptível quase,
obrigando Almirante a chegar mais perto num esforço para ouvi-lo. Os lábios de
seu
Medeiros se movem mas já não emitem nenhum som. Almirante não sabe o que fazer,
limita-se a mover a cabeça num sinal de que está compreendendo, mas com a leve
desconfiança
de que o pai de Noel na verdade fala apenas para si mesmo(4).
Nas raras visitas que faz ao chalé, Noel vai sendo informado do estado de saúde
do pai e das preocupações da mãe. As coisas estão cada vez piores, até mesmo
pelos
inventos começa a
331

perder o interesse. Agora, já nem finge resistir, abatido, entregue, a maior


parte do tempo naquele silêncio, os mesmos olhos distantes.
Certa manhã, a escolinha em pleno funcionamento, ouvem-se gritos no fundo do
chalé. Corre Clara, correm as crianças. Na cozinha, dona Martha agarra-se
desesperadamente
ao marido, procurando conter-lhe as mãos grandes com que ele tenta levar ao
pescoço o fio de luz que pende do teto. Dona Martha grita por socorro. Logo
chegam os
vizinhos e dominam um seu Medeiros irreconhecível, desvairado, teimando em
enforcar-se com o fio que quase lhe corta as palmas das mãos.
- Eu o encontrei trepado na cadeira - conta dona Martha, entre lágrimas, à
apavorada Clarinha. - E já estava com o fio em volta do pescoço.
Psicose maníaco-depressiva. Os médicos que vão ao chalé a pedido de Martha,
entre eles os Graças Mello, não empregam exatamente tais palavras para explicar
o que
seu Medeiros tem, mas recomendam tratamento sério, assistência psiquiátrica
permanente, internamente A Casa de Saúde da Gávea é bom lugar, limpo, tranqüilo
e não
muito caro: 800 mil réis por mês. E os médicos são competentes e atenciosos.
Aqui, no chalé, Neca com idéia fixa de suicídio, quem poderá vigiá-lo as 24
horas do
dia? Sim, a solução é o internamento.
Oitocentos mil-réis por mês é mais do que dona Martha talvez possa pagar. Mas,
se todos fizerem um sacrifício, se Eduardinho ajudar um pouco, Noel outro tanto,
pode-se
dar um jeito. A família se reúne no chalé para discutir o assunto,
Noel inclusive. O que tiver de ser feito será. Dias depois, contra a vontade,
repetindo que já não quer continuar vivendo, Neca é internado na Casa de Saúde
da Gávea.
Logo quando se sentia tão perto de realizar seus inventos, o tomam por louco. Se
se lembrasse agora do seu herói - não o Napoleão das grandes vitórias, mas o
derrotado
pelo inverno russo -, haveria de concluir como o general que a distância que
separa o sublime do ridículo muitas vezes é a de um simples passo.
Novas mudanças na vida de todos. Martha volta a carregar sobre os ombros pesada
carga, o marido ausente, a casa para manter, um filho estudando, outro vagando.
Por
que paragens andará Noel? Pesada carga que esta mulher carrega com estranha
força e coragem. Queixas? É coisa que ninguém ouvirá de seus lábios, mesmo que
sofra
e sofra muito.
Também muda a vida de Noel. Trabalha mais, aumenta o número de apresentações em
cinemas e programas de rádio. Pela primeira vez contém-se um pouco nos gastos.
Entre
outras
coisas, desiste para sempre do Pavão. Ainda outro dia saiu na seção Cama de
Gato, de Syntonia5, esta brincadeira inspirada no automóvel de Noel:
"Eu tive uma radiola nacionalista que só pegava estações do Brasil. Noel tem,
além de um rádio espírita (válvulas na sala de jantar e corneta na cozinha), um
automóvel
cruz-vermelha.
É um chevrolet.
Para que Noel não faça desastres, ele desde que o comprou não sai da garagem.
Tomara que o carro que Ary Barroso adquirir tenha o mesmo modo de pensar..."
Verdade. Desde o começo do ano que o Pavão não faz outra coisa senão sofrer
reparos. Uma saidinha até ali e logo volta para o conserto. Tanto trabalho,
tanta letra
de música dada a Francisco Alves, para que o Pavão não passe agora de um
imprestável monte de lata e ferro. Noel não pode perder mais dinheiro com ele.
Assim, em
troca de alguns mil réis, deixa-o de vez na garagem.
Muda também a vida de Hélio, que passa a fazer verdadeiras acrobacias para
prosseguir sem muitos gastos no curso de Veterinária: copia à mão os livros que
os colegas
lhe emprestam, descobre no fim do mundo animais mortos que leva para casa,
descarna, ferve os ossos em latas de banha, para depois estudar neles anatomia
de cães,
gatos, aves, pássaros.
E muda, mais que a de todos, a vida de seu Medeiros, cujo mundo agora se
restringe a alguns poucos metros entre as quatro paredes brancas de um quarto de
hospício.
O importante é não perder o humor. E Noel de fato o conserva o mais que pode.
Tem Ceei a alegrar-lhe as noites e já não tem Francisco Alves a apoquentar-lhe
os dias.
Acabaram-se as cobranças: o Pavão, além de morto e enterrado, está pago.
Lindaura ainda é uma pedra no sapato, mas o que fazer? O tempo, remédio para
tantas coisas,
talvez resolva também esse problema.
Com o humor que lhe resta nestes tempos difíceis - duas mulheres, o pai
internado, dinheiro curto, o carro perdido - suas músicas contêm mais graças do
que queixas.
Carregada de gírias, A Melhor do Planeta reativa a parceria com Almirante:

Tu pensas que tu é que és A melhor mulher do planeta


Mas eu é que não vou fazer Tudo o que te der na veneta.
Tu foste marcar dois por quatro Batendo teus pés lá no Chão do teatro
332

Não entendendo a opereta Fizeste a careta Pior do planeta.


Tu foste dançar par constante
Num baile de um clube da liga barbante(6)
Tu abafaste a orquestra
Dizendo: "Sou mestra...
Pior pro Palestra!"
Que tu é que és a melhor
Até o papagaio já sabe de cor
Com este teu gênio intragável
És menos amável Do que formidável.
Crônica de um arrasta-pé na gafieira, No Baile da Flor-de-Lis possui saborosa
letra:

No baile da Flor-de-Lis
Quem dançou pediu bis
Mas acabou-se o que era doce
Quem comeu, regalou-se
Quem não comeu, suicidou-se.
Quando a música parou
O mestre-sala gritou:
"Cavalheiros ao buffet!"
E o tal doce de coco
Que era bom mas era pouco
Não chegou para você.
Acabando o que era doce
Uma voz manisfestou-se
E a sala fez tremer:
"Esperamos por dinheiro
E que cada brasileiro
Cumpra com seu dever!"
Encontrei muito funil
A chorar junto ao barril
Quando o chope se esgotou
Houve a tal pancadaria
Com a qual se anuncia
Que o baile terminou.

É ainda a bordo do humor que Noel viaja por um samba em que protesta contra
alguém abusado o bastante para filar-lhe o almoço, fumar-lhe o cigarro, usar-lhe
as roupas,
falar mal do samba. Um samba com dois títulos: Você é um Colosso e Pisou no Meu
Calo:
333

Você é um colosso, Andou no meu carro,


Filou meu almoço, Fumou meu cigarro,
Vestiu meu pijama, Senti um abalo,
Usou minha cama, Pisou no meu calo!
E não adianta Você me pedir perdão
Depois de você pisar Meu calo de estimação.
Você é um colosso E não faz chiquê.
Enrolou no pescoço O meu cachenez,
Foi no galinheiro, Matou o meu galo,
Falou em dinheiro, Pisou no meu calo!
Você é um colosso, Comeu sandwich
Falando bem grosso Que samba é maxixe.
Eu disse! "Caramba! Não sou seu vassalo"
Falou mal do samba, Pisou no meu calo

Em parceria com Hervê Cordovil, mais uma vez o tema é a Festa da Penha. Tendo
trabalhado todos os domingos de outubro, infelizmente não pôde comparecer aos
folguedos,
a morena reclama a ausência e ele se explica: Fiquei Rachando Lenha.

O meu amor chorou


Porque não fui à Penha
Fiquei rachando lenha
No ano que passou.
O meu amor chorou
Mas não lhe dei razão
Vem primeiro a obrigação
E depois a devoção.
Não há obrigação
Que faça te esquecer
Ela só me faz perder
Os momentos de prazer.
Eu trabalhei demais
Por ter necessidade
De ter ouro em quantidade
Pra comprar comodidade.
No ano que passou
Não pude ir à Penha
Meu amor se me desdenha
Quer comprar a minha lenha..

Noel diz a Ismael Silva que há alguma coisa errada na sua parceria com o Chico.
Ismael ouve com atenção. Tem mais ou menos idéia do que o parceiro e amigo vai
ponderar,
mas prefere certificar-se.
- Você continua dando parceria a ele em todas as músicas?
- Sim, todas.
Talvez Ismael conte mentalmente quantas foram ao todo desde aquele encontro com
Francisco Alves sob o lampião defronte ao Café do Compadre. De 1930 até agora,
quatro
anos de muito samba bom de parceria com Nilton Bastos, Noel Rosa e outros,
quando não sozinho. E em quase todos eles, mais de trinta, o nome de Francisco
Alves ao
lado do seu. Ou no selo do disco ou na partitura impressa. E o próprio Chico se
encarregando de dizer quem vai ou não gravar, se ele mesmo, Mário Reis, João
Petra,
Castro Barbosa, Jonjoca ou quem seja. Como se a obra de Ismael, toda ela, fosse
propriedade sua. A pergunta de Noel, irônica, maldosa, vai dar o que pensar ao
bom
Ismael:
-Me diz uma coisa: e o Chico, só grava o que você faz?
Por muito tempo Ismael Silva se lembrará da conversa em que Noel começa a
convencê-lo de que já é hora de também ele desalgemar-se de Francisco Alves7.
Não apenas por essa conversa - mas principalmente por ela - o grande sambista do
Estácio passa a pensar com seriedade em ir em frente sozinho, seguindo o exemplo
de Noel, que afinal continua por aí, fazendo sucesso, gravando, sendo solicitado
pelos cantores, sem precisar de Chico para nada. Se Noel pode, por que não ele?
De fato foram reduzidos praticamente a zero os vínculos de Noel Rosa com
Francisco Alves. Ainda restam pequenos acertos de dinheiro entre eles, o cantor
sempre relutando
em meter a mão no bolso. Ismael mesmo lembra de umas contas que ele e Chico
andaram fazendo outro dia na mesa de um botequim. O cantor ia dividindo, mil
réis por
mil réis, o que lhes cabia de direito autoral de determinada gravação. Dez mil
réis para Ismael, dez para Chico; cinco mil para um, cinco para outro. Até que
chegaram
à casa dos tostões. Sobrou uma moeda de duzentos réis e era a vez de Ismael.
Chico, no lugar de deixá-la para o parceiro, não abriu mão do seu direito.-
pediu que
o português do botequim trocasse por duas pratinhas de cem réis, uma para cada
um.
Noel também continua não deixando passar nenhuma oportunidade de bulir com Chico
em suas letras. Por exemplo, aproveitando o sucesso no Rio do filme alemão A Voz
do
334
Meu Coração(6), Francisco Alves gravou uma versão de Orestes Barbosa para o
fox-trotde Mischa Spoliansky, Tell Me Tonight. Partindo dos primeiros versos
("Nesta noite tão linda venho cantando..."), Noel transforma Diga-me Esta Noite
em Paga-me
Esta Noite para falar de um ouvinte risonho, irmão do tal Pão-Duro, que é o
próprio Francisco Alves:
Neste tempo medonho
Canto, tristonho
Ao microfone este prelúdio
O ouvinte risonho
Nem por um sonho
Sabe o que me traz ao estúdio.
A ti que és o irmão
Do tal Pão-Duro
Meu recibo vai assombrar
De revólver na mão
Eu vim aqui... cobrar.
Ainda há muito de humor em Noel neste mês de outubro. O que talvez não haja é
saúde. Esperando Ceei todas as madrugadas no Apollo, ficando com ela até de
manhã,
trocando mais do que nunca a noite pelo dia, alimentando-se pouco, não tendo ao
lado de Lindaura os mesmos cuidados que recebia em casa nos bons tempos em que
Martha
lhe servia refeições que não exigiam esforço na mastigação, Noel emagrece.
Aparecem-lhe olheiras que se acentuam e que só dona Martha, quando ele vai ao
chalé, parece
notar.
Além disso, bebe muito. Não é um alcoólatra, não se inclui entre aqueles
freqüentadores da Lapa que mal sabem como é o bairro, porque só vão lá bêbados
de cair.
Mas gosta de uma cerveja além da conta. E chega a tomar uma ou outra bebida
quente quando o tempo pede. Ismael Silva acompanha-o. Diz ter tomado coragem
para informar
ao Chico que, daqui por diante, é cada qual por si. Será que o homem vai achar
ruim? Pouco importa. Sente-se mais seguro ao lado de Noel. E é uma vez mais de
parceria
com Noel que compõe novo samba, por muitos motivos, especial. Primeiro porque,
depois de cinco anos, Francisco Alves não entrará como co-autor. Segundo, porque
a
própria letra contém sutis alfinetadas, Chico servindo mais uma vez de alvo.
Terceiro, porque, sem que eles saibam, será este samba, sugestivamente
intitulado Boa
Viagem, a última obra que farão juntos.

O amor é como a chama:


Tem princípio, meio e fim.
Se você já não me ama,
Para que fingir assim...?
Não mandei você embora
Porque sou benevolente
Para que você agora
Quer sair ocultamente?
Seu desejo não me assombra
Ofereço o meu auxílio.
Passe bem, vá pela sombra
Acabou-se o nosso idílio.
Seu amor e o seu nome
Eu também vou esquecer:
Desta vez juntou-se a fome
Com a vontade de comer!
Se não mandei você embora
Enfim foi porque Me faltou a coragem.
Mas se você vai dar o fora
Então, passe bem: Boa viagem!
335

NOTAS
1. Do ponto de vista de Vila Isabel, Benedicto Lacerda, na época morando no
Estácio, e Jayme Florence, o Meira, em São Francisco Xavier, eram mesmo
"forasteiros".
Os dois fizeram música para Leia Casatle, Benedicto a valsa Leia, Meira o choro
Primavera, gravados em solo de flauta pelo primeiro em disco Odeon (11.167).
Meses
depois, Leia ganharia letra de Jorge Faraj, sendo regravada por Jayme Vogeler
também na Odeon (11.223).
2. A tradição das pastorinhas - cultivada em Vila Isabel e outros bairros do
Rio daqueles tempos - praticamente desapareceu. Moças e rapazes formavam um
cortejo
que procurava reproduzir a jornada dos pastores a Belém, quando do nascimento de
Jesus. Dias antes do Natal, o grupo saía às ruas entoando música cadenciada e
quase
sempre dolente:
Caminhemos, caminhemos, À lapinha de Belém, Visitar o Deus-menino Que salvar o
mundo vem.
Os integrantes do cortejo, cada qual representando uma figura (os Reis Magos, a
Estrela, a Borboleta, o Caçador, a Samaritana, o anjo Gabriel) iam às casas onde
se armavam presépio e ali "tiravam a lapinha", cerimônia de canto, dança e
representação com que se adorava o menino Jesus. Jota Efegê, em Figuras e Coisas
da Música
Popular Brasileira (volume I, página 16), nos dá detalhada descrição dessa
cerimônia que se repetia das vésperas do Natal até Dia de Reis. Os raros grupos
de pastorinhas
ainda existentes estão hoje em cidades do interior e em alguns poucos subúrbios
do Rio.
3. João de Barro já dera este depoimento aos autores - e o repetido em várias
oportunidades, inclusive gravando-o para Noel Rosa, álbum de dois discos lançado
em
1982 pela Federação Nacional das Associações Atléticas Banco do Brasil - quando
chegou às livrarias, já em 1987, Yes, Nós Temos Braguinha, biografia do mesmo
João
de Barro escrita pelo pesquisador Jairo Severiano. Nela, nas páginas 49-52, o
autor nos dá, fartamente documentada, outra versão. Pastorinhas já estava
inscrita
no concurso antes da eliminação de Touradas em Madrid. Na verdade, obteve o
segundo lugar entre as marchas. Anulado o resultado - porque realmente se
considerou
a vencedora um pasodoble - fez-se novo julgamento, desta feita cabendo a
Pastorinhas o primeiro lugar. Jairo Severiano conta ainda a briga que houve
durante o concurso
entre João de Barro e Nássara. Inconformado com a não classificação da marcha
Periquitinho Verde, sua e de Sá Roris, Nássara esbravejou para João de Barro:
"Foi
a alma de Noel que ganhou o concurso!"
4. Depoimento de Almirante aos autores.
5. Syntonia, 27 de setembro de 1934.
6. Chamava-se "clube de liga barbante" a toda agremiação, em geral de futebol,
que sobrevivia modestamente nos subúrbios ou em cidades do interior, não
pertencendo
portanto à liga oficial que congregava os grandes clubes cariocas. O barbante é
usado no sentido de pobre, vagabundo. A origem do termo está nas cervejas de
fabricação
Caseira, vendidas em certa época no Rio, que em vez de chapinha tinham como
tampa uma rolha amarrada com barbante. O Palestra citado logo em seguida é o
Palestra.
Itália, de São Paulo, que a guerra transformaria no atual Palmeiras.
7. A influência de Noel Rosa no seu rompimento com Francisco Alves foi contada
por Ismael Silva a um dos autores, à mesa de um bar da Rua Riachuelo com
Lavradio,
em 1962, na presença dos jornalistas Mauro Affonso e Ito Coelho.
8. A Voz do Meu Coração, filme alemão de 1932, chegou ao Brasil via
Estados Unidos, dai ter sido exibido aqui com seu título americano, Be Mine
Tonight, e não com o original, Das Lied Einer Nacht. Dirigido por Anatole
Litvak, tinha
no elenco Jan Kiepura, Magda Schneider, Edmund Gwen, Fritz Schudz, Sonnie Hale e
Ida Wuest. A canção que Orestes Barbosa converteu em Diga-me Esta Noite - e Noel
em Paga-me Esta Noite - também veio da versào americana, pois em alemão
intitula-se Heute Nacht Oder Nie (Esta noite ou nunca).
336

PERTURBAÇÃO DOS SENTIDOS

Capítulo 34

Comecei a emagrecer. E a emagrecer assustadoramente. "Que é isso, Noel, paixão


incubada?", perguntavam-me. Eu sorria.
entrevista ao Jornal de Rádio
Não só em relação a Francisco AlvIves, mas a tudo, liberdade é algo que Noel - o
pai enclausurado num quarto de hospício - parece prezar mais do que nunca. Deixa
isso claro em todas as palavras e atitudes. E não é por outro motivo senão a
vontade de ficar livre que ele resiste às pressões de Martha para que ponha a
direito
sua situação com Lindaura. A mãe que continue tenteando o pessoal da delegacia.
Surpreende-se ao saber que Jacy Pacheco, o primo de Campos, pensa diferente: tem
a sua idade, 23 anos, e acaba de se casar. Por isso Noel lhe escreve uma carta,
datada de 24 de outubro, em que fala de seu espanto:
"Meu querido primo Jacy. Um abraço! Quero com ele dar os meus pêsames pelo seu
casamento. O que foi isso, Jacy? Alucinação?
- Perturbação dos sentidos - éo que você poderia responder."
À prima Célia, irmã de Jacy, escreve no mesmo dia outra carta cujo post-scriptum
reforça seu amor à liberdade:
"Já dei os pêsames ao Jacy: Coitado! Ele é mesmo um poeta: acha poesia até no
casamento!"
Volta a escrever aos primos campistas uma semana depois, quando passa no chalé a
noite de 31 de outubro para 1.° de novembro. Na manhã deste último, quinta-
feira,
dia de Todos os Santos, vai até a Casa de Saúde da Gávea visitar o pai. Volta
arrasado, sem a mínima esperança de que em breve - ao contrário do que a mãe
quer crer
- Neca retorne, forte e alegre como antes. É o que conta a Célia:
"Ele continua com as mesmas idéias: não quer comer e prefere morrer a continuar
vivendo longe de nós. O médico, porém, garante que ele precisa ficar três meses
em
tratamento, para se curar completamente. Eu não acredito (para que mentir?) que
ele fique bom. Além disso, a Casa de Saúde precisa dos 800 mil réis mensais que
o
cliente paga, não interessando portanto ao médico que o doente saia de lá. Isto
é a realidade. Entretanto não posso falar assim com minha mãe. A única alegria
que
ela tem está na inteligência e na aplicação do nosso Hélio."
Tem consciência, portanto, de que não há esperanças para o pai. E de que ele,
Noel, não é exatamente um filho do qual a mãe se orgulhe. Elogia o irmão, fala
com
humor de sua vocação para veterinário: "Desde pequeno já matava galinhas com
cabo de vassoura e, depois de abri-las com o facão, separava os diferentes
órgãos e
etc..." Menciona ainda o fato de Hélio estar "completamente americanizado" e
quase noivo. Com Ceei, nunca fala do pai. Prefere
337

perguntar sobre a vida dela do que expor a sua própria. Como explicar-lhe a
existência de Lindaura? Ou dizer que o pai não pensa em outra coisa senão na
morte?
O grande sucesso musical deste mês de novembro é mesmo Feitiço da Vila. Noel
vê-se constantemente solicitado a cantar o samba em todo espetáculo em que se
apresente. Continua trabalhando muito. Pensando bem, nunca teve vida tão
intensa, cada
minuto do dia tomado, a música, os programas de rádio, o disco, Ceei, Lindaura,
o chalé. Compõe menos, sua produção musical caindo à metade em relação ao ano
passado.
A correria em que se transformou sua vida, somada ao fato de não mais necessitar
compor para quitar o Pavão, pode explicar a queda de produtividade.
Uma noite, canta no Cine Grajaú, na Rua José Vicente, que liga a Barão de
Mesquita à Theodoro da Silva. Excepcionalmente, Lindaura veio com ele, está na
platéia,
sentada, orgulhosa do "noivo" que é uma das atrações da noite. Com que música
abrirá o espetáculo? Talvez Feitiço da Vila, talvez Suspiro, samba-canção seu e
de
Orestes Barbosa:

Suspiro,
anseio secreto
Revelação de um afeto
Gemer que ninguém traduz.
Suspiro,
triste recado
De um coração ansiado
Na desventura da cruz.
Suspiro,
voz da desgraça
Voz da alegria que passa
Dando lugar ao sofrer.
Suspiro,
o peito se cala
Na dor que tanto apunhala
E não se pode dizer.
Suspiro,
que crueldade!
Tem que nascer da saudade
Enquanto o amor quiser.
Eu já dei mais de mil giros
E a fonte dos meus suspiros
É sempre a mesma mulher.

Noel canta um número, dois, acompanha ao violão outros cantores, entre os quais
338

Herivelto Martins, autor de um samba que aprecia


Muito!

No morro do Castelo onde nasci


Tive o meu amor primeiro
Um mulato forte, bem falado, considerado
Era a minha salvação.
Samba que Herivelto entregou para Aracy de Almeida gravar e que no entanto, um
domingo desses, ao ouvir o Programa Casé, teve a agradável surpresa de ouvi-lo
interpretado
pelo próprio Noel. Este lhe explicaria depois que tudo não passou de remendo de
última hora, Aracy não aparecendo, o locutor da Rádio Philips anunciando: "E
agora,
Aracy de Almeida no samba Morro do Castelo, de Herivelto Martins..." Cadê Aracy?
Um corre-corre pelo estúdio sanado pela providencial intervenção de Noel:
- Deixa que eu canto.
O espetáculo vai chegando ao fim no palco do Cine Grajaú. Em que estará pensando
Noel? Nas músicas que interpreta ou na parte que lhe caberá da bilheteria desta
noite? Talvez
pense em Ceei, num modo de deixar Lindaura em casa e de arranjar uma desculpa
que lhe permita alongar a madrugada no Apollo. Pensará no pai? Ou na mãe que
continua
conduzindo o barco da família? O espetáculo vai chegando ao fim. Súbito, sente o
mundo rodar à sua volta. O corpo mirrado flutua como se levado pelo vento, a
vista
se turva, os sentidos lhe fogem. E cai.
Como terá vindo parar no chalé? O Cine Grajaú fica perto daqui, é só sair pela
direita, chegar até a esquina de José Vicente com Theodoro da Silva, dobrar
novamente
à direita, seguir em frente até o oitavo quarteirão, limitado por Souza Franco e
Visconde de Abaeté. Um percurso de poucos minutos que Noel talvez nem se lembre
de como foi feito. Tudo aconteceu muito depressa, o desmaio no palco, as pessoas
correndo para acudi-lo, o alvoroço, a apreensão, alguém sugerindo que o melhor
seria
trazê-lo para os cuidados da família.
- Você não deve estar se alimentando direito - acredita Martha.
É impressionante a magreza de Noel. Toda a família finalmente se dá conta do que
339

Martha vinha notando há tempos: o filho não se cuidava, perde peso,


depaupera-se. Não há quem resista a vida tão desregrada.
- Chamem o Edgar.
Edgar Graça Mello, filho do padrinho de Noel, é médico como o pai. Tisiologista,
não precisa fazer exame meticuloso para constatar que Noel está mesmo
debilitado.
Edgar cola o ouvido nas costas magras onde costelas salientes traçam mórbido
contorno.
- Melhor tirarmos uma radiografia.
O Hospital São Francisco Xavier fica, ironicamente, bem na zona boêmia que Noel
freqüenta desde menino e onde muito de sua saúde deve ter sido desperdiçada nos
últimos
dois, três anos. O pessoal do Mangue costuma brincar, apontando para o prédio do
hospital: "É ali que a gente se cura das mazelas que arranja aqui." Doenças
venéreas,
problemas de pele, fígados danificados, pulmões pedindo socorro. São geralmente
pobres, indigentes mesmo, os homens e mulheres que se sentam nos compridos
bancos
de madeira que ocupam um lado e outro do corredor de espera. As enfermarias
vivem abarrotadas. Uma delas, dizem, funciona exclusivamente para aplicar 1914,
injeções
de bismuto ou o que mais se conheça para combater a sífilis que se pega não só
no Mangue, mas em toda a parte. Outra, para atendimento das afecções pulmonares,
da
gripe malcurada à temível galopante. É nesta enfermaria que Noel aguarda o
resultado dos exames radiológicos.
Amores de boêmio têm o seu preço. Se brotam numa destas casas do Mangue, da
Central ou mesmo da Lapa, não é raro que floresçam em pencas de microorganismos
que costumam
deixar marcas terríveis, o cancro, o mal-de-coito, o herpes, a gonorréia, a
peste branca.
A tuberculose ainda é uma doença assustadoramente difícil nestes últimos meses
de 1934. E continuará sendo por muito tempo mais. Difícil, quase sempre
indomável.
Como na época em que Mário Brown foi para Belo Horizonte em busca de salvação,
as pessoas ainda lhe evitam o nome. Chamam-na de "doença", "queixa do peito",
"fininha",
"seca", "tísica", "magrinha", "delicada", toda sorte de eufemismos para não lhe
mencionarem o nome certo. Como se nele houvesse mesmo perigo de contágio.
Contagiosa
é, mas nem tanto. Contagiosa e no mais das vezes fatal. Morre-se dela todos os
dias, todas as horas. Agora mesmo Cândido das Neves, o índio, cujas canções
Noel,
Alegria e os demais seresteiros daqueles tempos tanto apreciavam, agoniza,
pulmões e laringe arruinados2. Uma doença difícil. Cura-se com muita luta um
pulmão afetado,
mas tem-se que apelar para os céus quando se trata dos dois. De que outros
remédios, além do milagre, dispõe hoje a medicina para guerrear contra milhões
de vorazes bacilos que se multiplicam aniquilando tecidos, arruinando vidas? Por
enquanto,
nenhum medicamento específico, a cura sendo procurada através de repouso,
higiene, dieta. Tenta-se o clima das montanhas, frio e seco. Em alguns casos, o
pneumotórax.
Em outros, a cirurgia. Mas sempre é preciso contar com a sorte, muita sorte. E
jamais desacreditar em milagres.
Edgar Graça Mello é franco:
- Uma lesão no pulmão direito. E já há qualquer coisa também no esquerdo.
Mas tenta tranqüilizar Noel. Não há razão para pânico, desespero ou algo assim.
A doença está no começo, pode ser contida. Noel é jovem, a idade sempre ajuda. O
problema maior é o seu estado geral, a magreza. Quantos quilos? Quarenta e
cinco? Definitivamente isso não é peso que se possa levar a sério. Ou melhor, é
peso para
se levar a sério até demais, especialmente em alguém que tem os dois pulmões
afetados.
- Vamos tratar disso, Noel.
Edgar visita o chalé. O desmaio, o susto daquela primeira noite já passou. Uns
dias em casa devolveram a Noel algumas forças. Ele já está saindo, vai até a
esquina,
conversa com amigos. Mas Edgar alerta dona Martha para as mudanças que se impõem
à rotina de Noel. Além dos remédios que receitou, dos exames periódicos, da
superalimentação
e da supressão de gelados, é necessário que as madrugadas sejam abandonadas. A
tuberculose é difícil de curar com todos esses cuidados. Sem eles, o difícil se
torna
impossível. Recomendável seria outro clima, outra cidade. Assim como Teresópolis
ou Friburgo. Ou Belo Horizonte.
Martha lembra-se da irmã. Carmem está morando em Belo Horizonte, tem uma boa
casa no bairro da Floresta. Ela e Mário Brown hão de receber de braços abertos o
sobrinho
Noel. Lá não há boêmia, nem botequins, nem estações de rádio. Nada dessa
agitação em que o filho vive metido no Rio. Fala com ele. De início Noel reluta.
Não consegue
se imaginar em Belo Horizonte. Vá lá que a cidade, com suas montanhas e seu
verde, tenha fama de curar milagrosamente pulmões como os seus. Mas é quieta
demais.
Um carioca habituado ao burburinho da Lapa, onde a vida só começa depois de
meia-noite, na certa morreria de tédio na acolhedora mas inerte capital mineira.
A relutância,
contudo, acabará sendo vencida no dia em que Noel se convence de que a melhora
foi apenas passageira. Edgar encontra-o em casa ardendo de febre.
- Dona Martha está certa, Noel. Belo Horizonte te fará bem.
Concorda. Ficará lá alguns meses, seguirá
340

as regras que tia Carmem estabelecer, nada de madrugadas, de bebidas, de


mulheres. E há de se alimentar bem, legumes, verduras, leite, frutas. Ficará até
que a primeira
etapa da doença seja vencida. Ganhará alguns quilos, fará a vontade da mãe e de
Edgar. Cinco, seis meses no máximo.
Mas... e Lindaura? No meio dessa confusão toda, desmaio, correria, idas ao
hospital, chapas de raio-x, conselhos de Edgar, ninguém se lembrou de Lindaura.
Noel sente-se
na obrigação de levá-la com ele. O que seria dela sozinha?
- Só vou se ela for, mãe.
Martha, mulher corajosa e firme, mas acima de tudo ferrenhamente apegada a seus
princípios, mais uma vez deixa claro ao filho que, sem certidão de casamento,
ele
não trará a moça para o chalé. Muito menos a levará para a casa dos tios em Belo
Horizonte. Nesse ponto, não é diferente da irmã: há códigos de moral que
precisam
ser respeitados. Noel está febril, de cama. É muito mais difícil resistir agora.
A mãe volta ao assunto que há um ano vem sendo o ponto de discórdia entre eles.
Não passa muito tempo sem que o pessoal da delegacia apareça para perguntar-lhe:
"Como vai o Noel?" Uma forma polida e sutil de lembrar-lhe que as promessas
feitas
por ela sobre o casamento do filho ainda não foram cumpridas. Quarenta e cinco
quilos! Noel está fraco, vulnerável. O que será da Linda sem ele?
- Só vou se ela for, mãe.
- Então vamos resolver logo tudo isso.
- Como?
- Só há um jeito: o casamento.
Fraco, vulnerável. Como dizer não? Os proclamas correm mais rápido do que de
hábito, as autoridades policiais colaborando para que não se perca mais tempo,
cuidando
para que se passe por cima de alguns trâmites burocráticos. Dona Martha está
satisfeita, até que enfim o problema se resolve. Está satisfeita Lindaura, o
casamento
vai devolver-lhe a respeitabilidade, tornar possível a reconciliação com dona
Olindina, quem sabe até fazer com que Noel sossegue. Estão satisfeitos todos, a
ida
para Belo Horizonte sendo mais do que uma esperança de que ele se cure logo.
Mas o que pensa de tudo isso o próprio Noel?
Sábado, 1.° de dezembro de 1934. É acanhada, escura e fria a sala do escrivão
Santiago, a 2a Pretória Cível em que acabam de se casar Noel de Medeiros Rosa,
carioca,
23 anos, e Lindaura Martins, sergipana, dezoito
completados no último 9 de junho. Os dois assinam o documento que os une até que
a morte os separe, o livro 104, folhas 177. Como testemunhas, Oswaldo Gouveia do
Carmo e Sylvio Cioclaro. O primeiro é chofer de praça, casado com uma sobrinha
de Clara, amigo de Noel que por esta época aluga temporariamente um dos quartos
do
chalé. Tudo, portanto, como manda a lei e recomendam os princípios das duas
famílias. Dona Olindina, ainda magoada, não veio desejar sorte à filha que passa
a assinar-se
Lindaura de Medeiros Rosa.
Terminada a cerimônia, os dois posam para a única fotografia em que aparecerão
juntos. Ela num vestido azul-marinho, meias de seda, buquê de rosas na mão
direita,
aliança de ouro na esquerda e um ligeiro sorriso nos lábios. Ele de terno de
algodão cinza riscado, gravata borboleta, nenhum sorriso. O terno de algodão se
explica:
ainda tinha um pouco de febre quando saiu de casa para vir ao cartório. Puseram-
no no carro como se não tivesse forças para chegar sozinho até aqui. Ou como se
relutasse,
pela última vez. Não haverá festas. Nem doces, nem convidados, nada.
Noel e Lindaura passam a ocupar o quarto dos fundos. Ali, diz dona Martha,
ficarão mais à vontade, terão mais liberdade. O casamento aconteceu sem que
ninguém esperasse
ou fosse avisado. Não se mandaram convites. Por enquanto, nenhuma notícia nos
jornais. Mas a novidade vai se espalhar de boca em boca no meio artístico.
Muitos se
surpreenderão:
- Vejam só, pensei que ele já estava livre desse problema!
Outros serão proféticos:
- Noel e o casamento jamais se darão bem.
Jacy Pacheco, também recém-casado,-vem ao Rio a trabalho. É bancário em Campos,
ganha pouco, não se pode dar ao luxo de trazer a mulher, Judith, tendo de pagar
do
próprio bolso passagem, hospedagem, refeições. Vai até o chalé, onde encontra o
primo melhor de saúde. Na verdade, nem desconfiava de que estivesse doente. Jacy
talvez pense que Noel, casado de pouco, está compenetrado de sua nova vida,
Caseiro, fazendo companhia à mulher. Mas se engana.
- Vamos dar uma volta.
- Onde?
- Pelo Centro.
- E Lindaura?
- Ela fica.
E fica mesmo. Noel e Jacy vão jantar juntos na Taberna da Glória. Nada mudou na
vida do primo, pensa Jacy. Noel conta-lhe as circunstâncias em que ocorreu seu
casamento,
mas não
342

lhe fala da doença. Fora a magreza, parece bem. Nada mudou realmente.
Mais rápida do que a notícia do casamento, corre pela cidade a informação de que
Noel não anda bem, desmaiou durante um espetáculo, está sob severa vigilância
médica.
Amigos o visitam no chalé. Sabem dos planos de viagem, da recomendação de Edgar
para que passe algum tempo em Belo Horizonte. Dona Martha fala com os mais
chegados
das dificuldades cada vez maiores que enfrenta. O marido internado, 800 mil réis
por mês arrancados da pedra com as próprias unhas. E agora Noel, casado, sem
poder
trabalhar, tendo de passar tempos fora do Rio. Os amigos compreendem. Recorrem
ao Casé. Afinal, Noel é uma das estrelas de seu programa. Casé promete ajudar.
Além
disso, há a simpática turma de Syntonia, o semanário especializado em rádio e
música popular. Na redação do jornal
decide-se fazer um apelo ao meio artístico: que todos ajudem como puderem o
amigo Noel Rosa. O apelo será atendido. Em poucos dias, dona Martha recebe no
chalé o
dinheiro arrecadado por Syntonia.
Noel é tratado como grande nome da música popular que de repente necessita do
amparo e da atenção de todos. Suas músicas são tocadas no rádio, jornais
publicam matérias
a seu respeito. Uma dessas matérias será a principal do primeiro número de um
novo jornal e uma espécie de balanço de sua carreira(3).
O ano chega ao fim. Noel e Lindaura têm viagem marcada para os primeiros dias de
janeiro. O Natal é passado em casa, em torno da árvore e do presépio que
todos os anos dona Martha arma segundo tradição que vem de longe, dos Corrêas de
Azevedo. Noel - que ironia com seu próprio nome! - jamais gostou do Natal:
- Para que esperar um ano para se dar presente a quem se gosta?
Não dá presentes a ninguém. Este é um Natal triste, especialmente porque o pai
está longe, sozinho. De Ceei despede-se laconicamente. Diz que a polícia
obrigou-o
a casar-se. Anda adoentado. Vai sair do Rio por algum tempo, atrás de bom clima.
Ou de um milagre.

NOTAS
1. Herivelto Martins, em entrevista aos autores, 29 de março de 1982, já não se
lembrava de ter participado daquele espetáculo no Cine Grajaú. Lindaura, porém,
garante que ele estava lá.
2. Cândido das Neves, o índio, morreria a 14 de novembro de 1934.
Portanto.poucos dias depois de constatada a doença de Noel.
3. Jornal de Rádio, Rio de janeiro de 1935.
Apelo pelo poeta. (Reprodução de Syntonia.)
SYNTONIA"
Atenção, amigos de Noel Rosa!

Noel, o sambista phiilosopho, o queridíssimo autor popular cujas composições


falam à alma pela sua expressão de sinceridade e belleza, vae ser
homenageado pelos seus innumeros amigos e admiradores. I
Esta prova de carinho que será prestada a Noel Rosa, terá um cunho altamente
significativo e prático.
A lista de adhesões está à disposição dos interessados
no escriptorio do Programma Casé,, á rua Uruguayana, 39, 2* andar, tel. 2-
7038, onde serão phornecidos esclarecimentos mais amplos.
Neste momento em que Noel Rosa atravessa, uma phase delicada de convalescença,
esta prova collectiva de admiração e sympathí" será certamente para eile um
conforto
moral opportuno e bem merecido.
343

PARTE IV

JANEIRO - ABRIL DE 1935

ENTREATO MINEIRO

Capítulo 35

Nessas balanças mineiras


De variados estilos
Trepei de várias maneiras
E... pesei cinqüenta quilos!
carta ao amigo Edgar

São dezesseis horas do Rio a Belo Horizonte com paradas em várias cidades,
Barra do Piraí, Juiz de Fora, Barbacena, Palmira!A viagem mais barata é pelo
rápido,
trem que sai da Central do Brasil às cinco da manhã e só chega ao destino pouco
depois das nove da noite. Mais barata porque, ao contrário do noturno, que
oferece
aos passageiros leitos relativamente confortáveis, tudo que estes vagões de
madeira e bitola larga têm são bancos duros e apertados e um carro-restaurante
onde as
pessoas brigam por uma mesa e pela vez de comerem pratos nada apetitosos: arroz
empaçocado, feijão ralo, bife raquítico. Mas é o que Noel e Lindaura puderam
comprar
com o dinheiro levantado por Syntonia. Tia Carmem, o marido Mário Brown e os
filhos aguardam o casal. Carmem não mudou nem um pouco, ainda é a mesma mulher
austera,
autoritária, muito diferente da irmã. Bondosa também, mas firmemente decidida a
impor ao sobrinho uma severa disciplina de tratamento:
- Boa comida, sempre em horas certas. E nada de noitadas!
A tia não pode evitar uma ou outra reprimenda:
- Eu sempre soube que essa história de rádio não ia acabar bem.
Noel nem tenta explicar que o rádio nada tem a ver com a doença. Fizesse ele as
vontades de tia Carmem, ficando com a medicina em vez do samba, ainda assim
teria
se entregado à vida boêmia.
-Aqui você não terá muita coisa para fazer de noite - diz Mário Brown tentando
deixar claro que, querendo ou não, Noel será forçado a dormir cedo numa cidade
tão
pouco boêmia como Belo Horizonte.
Ingênuo Mário Brown. Nem Belo Horizonte é uma cidade pouco boêmia, nem é
intenção de Noel renunciar às madrugadas. Na verdade, para um notívago incurável
como ele,
não existe cidade pouco boêmia.
- Vou dar uma volta - diz depois do primeiro jantar, saindo com destino
ignorado.
Carmem e Mário Brown moram com Dulce, Sylvia e Mariozinho numa casa de sala e
três quartos da Rua São Manuel, 124. O local é um dos mais tranqüilos e
agradáveis
do bairro da Floresta. A casa, um andar só, tem quintal, varanda do lado, as
janelas dos quartos dando para um terreno baldio. Lugar acolhedor, mas quieto
demais.
- Você precisa de repouso, Noel- lembra a tia.
É ela quem cuida pessoalmente da alimentação do sobrinho, leite fresco,
verduras,
347

legumes, tudo à hora certa. Nos primeiros dias, os passeios noturnos de Noel
duram pouco, uma caminhada depois do jantar, um giro pelo Centro, saídas rápidas
que
o trazem de volta sempre antes das dez. Às vezes Lindaura o acompanha, mas em
geral ele prefere ir só. A mulher pouco interfere em sua vida, deixa que tia
Carmem
cuide da alimentação e Mário Brown se incumba de controlar os horários.
-De nada adianta voltar para casa cedo, Noel. Já notei que você fica até tarde
com a luz do quarto acesa. Por quê?
Lindaura explica que o marido, sempre que volta da rua, nove, dez da noite,
põe-se a escrever. Num caderno de capa dura, com seu inseparável cotoco de
lápis, deixa esboçados pensamentos, versos, letras de música, coisas que nunca
chegará
a mostrar a ninguém. Mário Brown sugere que passe a escrever de dia.
Por que não na parte da manhã, quando um sol gostoso cobre de luz e calor toda a
varanda? Mas Noel prefere a noite, o começo da madrugada. Já que não pode sair,
escreve.
Tia Carmem recorre a alguns artifícios para evitar que o sobrinho doente perca
horas de sono debruçado sobre seus versos. Um deles, o de tirar a lâmpada do
quarto.
Mas Noel também tem seus truques: surripia a lâmpada do quarto de um dos primos
e a coloca no seu. Carmem insiste. Com a cumplicidade de Lindaura, faz sumir a
outra
lâmpada. Noel vai ao armazém da esquina e compra uma caixa de velas. E continua
acordado, madrugada adentro, agora movendo seu cotoco de lápis à luz de uma
chama
trepidante.
Ao contrário do que Mário Brown pensa, há muito o que fazer nas ruas de
Belo Horizonte, mesmo altas horas da noite. É só procurar. O boêmio daqui, Noel
constata, é antes de tudo um tipo solitário. Vaga pelas madrugadas de ruas
vazias,
perdido no imenso e silencioso deserto que é a cidade depois das onze. Raramente
encontra quem o acompanhe em suas caminhadas, mas quando isso acontece sempre
descobre
um programa.
Belo Horizonte é mesmo um lugar deserto nessas horas tardias. A última sessão de
cinema acaba às dez, nas esquinas resta apenas um ou outro cidadão comum à
espera
da condução que o levará para casa. Mas o boêmio não é um cidadão comum. Sua
casa é a rua, o botequim, os poucos cantos que nunca dormem. Solitário, vive
permanentemente
à procura de uma alma gêmea, um parceiro de noitada,
como Noel Rosa.
Noel de fato será parceiro de muitos boêmios da terra, descobrindo com eles o
que fazer depois das onze. Vai peregrinar ao seu lado, beber em sua companhia,
cantar-lhes
novidades como Amor de Parceria, composição que revela seu interesse, nestes
dias, por um gênero relativamente novo: o samba-choro. Isto é, um samba que
utiliza
certo fraseado do choro. Ou um choro que, cantado, pede emprestado ao
samba a sua pulsação rítmica. Sem que deixe de estar presente o humor de Noel:

Saiba primeiro
Que fulano é meu amigo
E com ele eu não brigo
Com ciúmes de você.
Você provoca
briga entre rivais
Para depois ver nos jornais
Seu nome, seu clichê.
Há muito tempo
Meu amigo já sabia
Que você me oferecia
Chocolate no jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ele e ele foi por mim.
Você pensou que fomos enganados,
Marcando encontro em dias alternados
E nós fizemos a sua vontade.
Dentro daquele enredo
Eu e ele não tivemos
prejuízo na sociedade.
Quando meu sócio
Namorava em seu portão
Eu ficava na esquina
Distraindo seu irmão
E quantas vezes eu perdi a fala
Quando estava sem tostão
E ele pedia bala!
Nós aturamos
Sua tia implicante
Mas filamos seu jantar,
Não pagamos restaurante.
Você não sai do nosso pensamento.
Você foi negócio, foi divertimento.
A versão feminina da letra tem várias modificações. E é a que será gravada por
Aracy de Almeida:
Saiba primeiro
Que fulana é minha amiga
E comigo ela não briga
Com ciúme de você.
Você provoca briga entre rivais
Para depois ver nos jornais
Seu nome e seu clichê.
Há muito tempo
Minha amiga me avisava
Que ela sempre conversava
Com você no seu jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ela e ela foi por mim.
348

Você pensou que fomos enganadas


Marcando encontro em horas alternadas
E nós fizemos a sua vontade
Dentro daquela escrita
Eu e ela não tivemos
prejuízo na sociedade.
Quando você
Se atrasava uma hora
Eu fingia não saber
A razão dessa demora.
E muita vez você perdeu a fala
Quando estava sem tostão
E eu pedia bala!
Nós aturamos
Os seus modos irritantes
Mas filamos bons jantares
Nos melhores restaurantes.
Você não sai do nosso pensamento,
Você foi negócio e foi divertimento.
Outra composição desta mesma época, Disse-Me-Disse, também é um samba-choro. Os
boêmios mineiros serão os primeiros a ouvi-lo:
Você me disse que a vizinha disse
Que eu sempre disse
Que você é louca.
Essa vizinha
Que só faz trancinha
De falar sozinha
Vive sempre rouca
Eu tenho pena dessa infeliz
Que sem motivo diz
Que eu serei capaz
De sustentar aquilo que você não disse
Deixa de tolice
Não sou leva-e-traz.
Encontrei até quem garantisse
Que a vizinha disse
Que eu falei demais
E esse alguém que fala mal de todo mundo
Creio que no fundo Não é mau rapaz
Que bom seria se eu, face a face,
Hoje declarasse
À vizinha rouca
Que ela deve se chamar Língua-de-Trapo
Quanto bate-papo! Quanto bate-boca!
349

São várias as rodas boêmias da Belo Horizonte destes tempos. A dos jovens
estudantes e a dos velhos paus-d'água, a dos intelectuais que se reúnem no Cate
Estrela,
como Elpídio Canabfava, Pedro Nava, Affonso Dutra, Stênio Caldeira, Carlos
Drummont de Andrade, e a do pessoal da música com o qual Noel vai travando
contato. Um
dia ele descobre a existência de uma PRC-7, Rádio Mineira, em pleno coração da
cidade. Fica sabendo que a emissora funciona precariamente, quase em caráter
experimental,
no porão do edifício do Conselho Deliberativo, esquina das Ruas da Bahia e
Augusto de Lima, com um modesto transmissor no bairro de Carlos Prates. Noel
toma um ônibus
na Floresta e vai conhecer a Rádio Mineira.
O jeito tímido, a fala mansa, entra, se apresenta aos locutores, operadores e
poucos artistas do cast. Fará novos amigos de alguns deles, Lourival Serra, os
irmãos
Paulo e Chico Lessa, José Vaz, Milton Dias, Zetio Santa Rosa, Nelson Orsini,
jovens de vinte, vinte e poucos anos, loucos por rádio.
- Estou aqui de férias - explica. - Andava meio cansado, precisando de um pouco
de sossego.
Vê que seu nome é conhecido, todos sabendo cantar suas músicas, Nelson Orsini
tirando do violão exatamente os mesmos acordes que Noel utiliza, por exemplo, ao
se
acompanhar em Até Amanhã. Os novos amigos o convidam para comer, por apenas dois
mil réis, o famoso prato feito do Colosso, restaurante que fica a uns cinqüenta
metros da Rádio Mineira. Lá, todos juntos, improvisam em plena tarde uma roda de
samba.
Noel se integra. Entusiasma-se com os novos amigos. Entre eles há até uma
réplica da dupla Francisco Alves e Mário Reis, Zeno tentando imitar Chico, José
Vaz nas
águas de Mário. Fica conhecendo também Roberto Ceschiatti, muito jovem e já
sabendo tudo de eletrônica. É ele quem cuida da parte técnica da emissora.
Embora goste
de samba - e vá acompanhar Noel e os outros nas cantorias pelos botequins da
cidade - seu negócio, mesmo, são válvulas e antenas, chaves e botões, toda
aquela complicada
maquinaria que põe e mantém no ar a Rádio Mineira.
O primeiro encontro dos dois ocorre em Circunstâncias curiosas. Noel entra no
porão onde funciona a emissora e vê Ceschiatti não mexendo nos botões da mesa de
controle,
mas com o telefone no ouvido.
-Alô, - diz engrossando a voz para que não o identifiquem do outro lado. -
Aquifala o embaixador Bill!
E desliga, deixando Noel intrigado. Passam-se alguns segundos e Roberto
Ceschiatti disca de novo, repetindo, com a mesma Vôz grave:
- Aqui fala o embaixador Bill!
Noel, curioso, pergunta-lhe que diabo está fazendo com essa história de
embaixador Bill. Ceschiatti reconhece Noel. Meio sem jeito, conta que está
apaixonado pela
secretária de um homem importante em Minas, um desembargador.
- Quem é o homem?
-Antônio RibeiroJúnior- responde Ceschiatti depois de olhar para os lados para
se certificar de que ninguém o ouve.
- E a moça?
Ceschiatti explica que já se dá por satisfeito ao ouvir apenas a voz dela.
Quanto ao embaixador Bill, é personagem de um filme que acaba de passar em Belo
Horizonte.
O problema maior é quando o próprio Antônio Ribeiro Araújo atende ao telefone,
pois fica simplesmente furioso quando o ouve dizer:
- Aqui é o embaixador Bill!
Essa informação é o bastante para aguçar o lado moleque e menino de Noel. Pensa
no quanto seria divertido enfurecer um homem importante, um desembargador, e
pede
O número do telefone a Ceschiatti.
- Pode deixar que eu não incomodo a moça.
Procura saber, também, de todos os outros números de Antônio Ribeiro de Araújo,
o do escritório, o de casa, o do tribunal, onde quer que possa ser encontrado.
Desse
dia em diante, sempre que lhe sobra tempo - e não há nada melhor para fazer -
disca para o homem e diz, engrossando a voz como Ceschiatti:
- Alô, desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Dezenas de vezes repetirá a brincadeira, mesmo depois de Ceschiatti perder o
interesse pela secretária. Enfurecer um desembargador é mesmo divertido, mas
Antônio
Ribeiro Araújo não pensa assim. Certa tarde, no tribunal, após ouvir mais uma
vez a voz cavernosa do embaixador Bill a perturbar-lhe o trabalho, dirá a um de
seus
colegas:
- No dia em que descobrir quem é este canalha, juro que o mato!
Paulo, Chico, Lourival, Zeno, Ceschiatti são companheiros de Noel em sua
temporada mineira. Mas nenhum está tão próximo dele - ou tem tantas afinidades
com ele -
como Nelson Orsini. Juntos cantam pelo microfone da Rádio Mineira, freqüentam as
biroscas dos bairros mais afastados, vão à zona boêmia animar com seus violões
as
tristes noites das mulheres da vida. Nelson é bom violonista. Dedica-se tanto
aos fox-trots como a Albéniz,
350

Granados, Tãrrega. Noel ouve-o com atenção, o jeito de quem não quer perder uma
nota, mas é franco em suas opiniões:
- Não sei o que é mais chato, Nelson, se estes teus fox-trots ou se os clássicos
espanhóis.
Em outras ocasiões, elogia:
- Este teu violão tem uma bela sonoridade. É muito melhor que o meu.
Nelson, com humildade, replica:
- Em compensação, você toca melhor do que eu.
- Não, não é verdade.
A zona boêmia se estende ao longo de três ruas paralelas, a Avenida do Comércio,
a Oiapoque e a Guaicurus. A turma de rádio percebe que Noel é bandeira valiosa,
sujeito cujo violão e cujas músicas encantam de tal maneira as mulheres que
eles, como amigos de tão talentoso e ilustre visitante, acabam tirando suas
vantagens.
- Sou amigo de Noel - diz Paulo Lessa. E a mulher, no mínimo, se mostra mais
acessível.
Nelson Orsini leva Noel para toda parte. Por exemplo, uma festa familiar na casa
de Manuel Maurício da Rocha, professor da Faculdade de Engenharia. Doces,
salgados,
ponche, cerveja. Os amigos mineiros já sabem da predileção de Noel pela
Cascatinha e se lembrarão disso para sempre. Zeno adverte Manuel Maurício da
Rocha que, para
animar o sambista Noel, a Cascatinha é fundamental. O dono da casa providencia a
cerveja para que a garganta do cantor não fique seca. Em retribuição, Noel canta
para os convidados, com acompanhamento seu e de Nelson Orsini. Seu grande
sucesso atual continua sendo Feitiço da Vila, que todo o mundo conhece. Mas
também está
na boca do povo mineiro Seja Breve, criação magistral de Luís Barbosa e João
Petra, que a gravaram acompanhados pelo piano de Custódio Mesquita.
Seja breve...
(Seja breve!)
Não percebi por que você se atreve
A prolongar sua conversa mole
(Que não adianta!)
Seja breve...
(Conversa de teso!)
Não amole!
Senão acabo perdendo o controle
E vou cobrar o tempo que você me deve.
Eu me ajoelho e fico de mãos postas
Só para ver você virar as costas
E quando vejo que você vai longe
Eu comemoro a sua ausência com champanhe (
Deus lhe acompanhe!)
A sua vida nem você escreve
E além disso você tem mão leve.
Eu só desejo é ver você nas grades
Para dizer baixinho sem fazer alarde:
"Que Deus lhe guarde!"
Vou conservar a porta bem fechada,
Com o cartaz: "É proibida a entrada."
É você passa a ser pessoa estranha.
Meu bolso fica livio dos uluquca
seus: (Graças a Deus!)
A festa está em plena animação quando Miguel Maurício da Rocha, já mais íntimo
de Noel, arrisca:
- Você já fez alguma música para Belo Horizonte?
- Não.
- Por quê?
- Ainda vou fazer.
- Por que não improvisa alguma coisa agora?
Noel pega o violão, ensaia alguns acordes e, para delícia dos presentes,
improvisando aqui mesmo sobre a música de I'm Looking Over A Four Leaf Clover2,
canta:
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
O que há de melhor pra mim
Não é o bordão deste meu violão
Nem é a prima que eu firo assim
Não é a cachaça
Nem a fumaça
Que no meu cigarro vi
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
Bom mesmo é estar aqui...
Uma homenagem à terra, em tom bem-comportado, apesar da menção à cachaça e ao
cigarro. Mais tarde, na zona boêmia, acompanhado de Nelson Orsini, Noel
aproveitará
a mesma melodia para criar uma letra que decerto não ousaria cantar na festinha
de Miguel Maurício da Rocha:
Belo Horizonte
Atrás do monte
Rosinha deu pro Leitão
Arrependida, se pôs a chorar
Jurando que nunca mais ia dar
Porém, no outro dia,
Leitão comia
Na cama outro jantar
E a Rosinha,
Tão pobrezinha,
De inveja quis se matar.,.
351
Naturalmente, são muitas as reprimendas que Noel sofre em casa, tia Carmem
inconformada por vê-lo abandonar a vida mais regrada dos primeiros dias. Mário
Brown procura
falar-lhe como amigo:
- Você tem de se cuidar, Noel.
O tio ouve, impressionado, sua resposta:
- Quem muito se cuida, pouco vive. Refere-se, é claro, à qualidade e não à
quantidade de vida. Mário Brown não o compreende, chama sua atenção para o
clima, a boa comida, o ritmo tranqüilo de Belo Horizonte. Esta cidade tem
operado verdadeiros
milagres em pessoas doentes do pulmão. Não gosta de
Belo Horizonte?
- Sim, mas prefiro viver um ano no Rio do que dez aqui.
No começo Lindaura não participa desta justificada vigilância ao doente. Como se
seu papel de esposa fosse o de compreender e aprovar todos os gestos do marido.
Mas um dia atende o telefone. É voz feminina procurando por Noel.
- Não está - informa.
- Quem está falando? É a irmãzinha dele?
O episódio é o bastante para despertá-la. Quantas mentiras não pregará ele pelas
ruas? Lindaura, transformada em irmã por força de uma arte de Noel, passa a
vigiá-lo.
Telefona para a Rádio Mineira, vai aos botequins onde supõe que ele esteja,
tenta abrir os olhos. Mas raramente o vê.
Seu paradeiro não é mesmo fácil de saber. Tanto pode estar na leiteria do João
da Abissínia, um amigo negro que vende a melhor coalhada e a mais fresca broa de
milho
da cidade, como em botequins tão escondidos que o pessoal da terra os chama de
tocas.
Às vezes, surpreende os de casa com noites de comportamento exemplar. Deixa
crescer a barba, aprende a fazer crochê e tenta tirar músicas no piano da tia.
O carnaval está próximo. Belo Horizonte, 950 metros acima do mar, 250 mil
habitantes, é toda animação. Mas nem as noites de sábado e domingo, dedicadas às
batalhas
de confete que o pessoal da terra prefere chamar de "cariocadas", fazem Noel
sentir menos falta do Rio. Em praticamente todos os bairros os blocos se
preparam para
sair com suas fantasias de sujo, seus estandartes de papelão, seus ritmistas
improvisando instrumentos, batucando em latas de banha, em caixas de sapato ou,
quando
muito, em tamborins baratos. Não muito longe de onde Noel está hospedado, um
desses blocos, os Foliões da Floresta, promete sair este ano mais animado do que
nunca.
É organizado pelo
"turco" Nagib e congrega, na maioria, moradores da Rua Itajubá. Noel é convidado
para tomar parte do bloco, mas atende aos apelos de tia Carmem:
- Não, este ano vou só espiar.
No dia 27 de janeiro, visita a tia no Conservatório de Música, onde ela leciona
violino, e lá mesmo, em papel timbrado, escreve aquela que será a sua carta mais
original e conhecida. O destinatário é Edgar Graça Mello. O assunto, a doença e
o tratamento. A forma, poesia. Mas, a exemplo de muito do que Noel disse em seus
sambas, uma poesia feita de ironias e simulações, o paciente chamando o médico
de paciente e dizendo-lhe que está seguindo à risca as instruções, que se deita
às
nove horas, que abandonou o cigarro, que já apresenta melhoras. E não faltam os
duplos sentidos, como no verso "trepei de várias maneiras..."

"Meu dedicado médico e paciente amigo Edgar.


Um abraço.
Se tomo a liberdade de roubar mais uma vez seu precioso tempo, é porque tenho
certeza de que você se interessa por mim muito mais do que eu mereço.
Assim sendo, vou passar a resumir as notícias que se referem à marcha do meu
tratamento.
E, para amenizar as agruras que tal leitura oferece, resolvi fazer uso das
quadras que se seguem:
Já apresento melhoras,
Pois levanto muito cedo
E... deitar às nove horas
Para mim, é um brinquedo!
A injeção me tortura
E muito medo me mete;
Mas... minha temperatura Não passa de trinta e sete!
Nessas balanças mineiras
De variados estilos
Trepei de várias maneiras
E... pesei cinqüenta quilos!
Deu resultado comum
O meu exame de urina.
Meu sangue: - noventa e um
Por cento de hemoglobina.
Creio que fiz muito mal
Em desprezar o cigarro:
Pois não há material
Pra meu exame de escarro!
Até agora, só isto.
Para o bem dos meus pulmões,
Eu nem brincando desisto
De seguir as instruções.
352

Que meu amigo Edgar


Arranque deste papel
O abraço que vai mandar
O seu amigo Noel."

A não ser pelo círculo reduzido de amigos da Rádio Mineira e por um ou outro
boêmio como Rômulo Paes, jovem da terra que ousa seus sambinhas e sonha em
vê-los um dia gravados por Francisco Alves ou Carmem Miranda, pouca gente em
Belo Horizonte sabe que Noel está aqui. Neste fim de janeiro, em que os jornais
da cidade
começam a dar destaque ao carnaval que se aproxima, não é o compositor de Com
Que Roupa? quem merece as atenções dos foliões, mas outro visitante, o cronista
carnavalesco
Fra Diavolo, que os Diários Associados, atendendo aos apelos da Prefeitura,
mandaram buscar no Rio para animar, com seus artigos e idéias, a grande festa de
Momo.
Fra Diavolo chega a Belo Horizonte a 12 de janeiro. Ao contrário de Noel, que
desembarcou despercebido, aguardado apenas pelos tios, o cronista tem uma
apoteótica
recepção na gare da Central. O pessoal da Folha de Minas, jornal que já no outro
dia estará publicando suas crônicas, cuidou para que uma pequena multidão fosse
esperá-lo na estação, saudando-o com vivas e faixas como se ele fosse o próprio
Rei Momo desembarcando, com todas as pompas, em Belo Horizonte.
As crônicas de Fra Diavolo podem ser frívolas e um pouco elitistas, destinadas a
falar de bailes da alta classe média, de "cariocadas", às quais o povo não tem
acesso,
de músicas que jamais serão cantadas nas ruas, escritas por compositores
diletantes, entre os quais gente da sociedade. Podem ser realmente frívolas,
como toda crônica
mundana que se preza. Mas não resta dúvida quanto ao fato de ser ele homem de
idéias. O que os redatores da Folha de Minas logo verão.
O jornal, dirigido por Affonso Arinos de Mello Franco, é muito bem-feito para a
época. Segue uma linha liberal, tenta ser tão popular quanto possível,
promovendo
concursos do tipo "Quais os melhores jogadores de futebol do Brasil, os brancos
ou os pretos ?" Uns votam em Dominguos da Guia, Leônidas da Silva, Fausto dos
Santos,
este o craque favorito de Noel(3). Outros em Romeu Pelliciari, Tim e o
conterrâneo Nariz.
É Fra Diavolo quem sugere um concurso mais ou menos nos mesmos moldes, só que
voltado para o carnaval: "Loura ou morena?" Ele recorda que Lamartine Babo fez
da morena
rainha do carnaval de 1933:

Linda morena, morena, Morena que me faz penar


E a lua cheia que tanto brilha não brilha tanto quanto o teu olhar
E que João de Barro coroou a lourinha em 1934:
Lourinha, lourinha, Dos olhos claros de cristal,
Desta vez em vez da moreninha Serás a rainha do meu carnaval
Logo, por que não promover um concurso entre todos aqueles que direta ou
indiretamente se ligam ao carnaval - foliões organizadores de bailes e batalhas,
integrantes
de blocos, gente de rádio, cantores, compositores - destinado a saber quem vai
imperar em 1935, a loura ou a morena? O concurso é lançado a 15 de janeiro, três
dias
depois da chegada de Fra Diavolo. Noel toma conhecimento dele através do jornal,
acompanha com interesse a enquête que Folha de Minas faz, ouvindo jogadores de
futebol,
nomes da política, joalheiros, donas de lojas de artigos para o carnaval,
modistas, fotógrafos, maquiadores, poetas.
"O grande problema" - diz o jornal ao lançar o concurso - "está posto nos seus
termos: loura ou morena, qual a campeã do nosso carnaval ? Os poetas e
musicistas
carnavalescos procuram resolver o caso, mas ainda não foi possível o
reajustamento..."
353

Propõe o concurso que não só cada clube e sociedade carnavalesca eleja, entre
suas sócias, uma loura ou morena para concorrer com as outras ao título de
Rainha do
Carnaval Mineiro de 1935, segundo votação popular, mas também que os
compositores da terra mandem seus sambas ou marchas que sirvam de réplica a
Linda Lourinha,
do ano passado.
Noel se interessa por essa parte do concurso e, na tarde de sexta-feira, 15 de
fevereiro, levado por Chico Lessa e Lourival Serra, entra na redação da Folha de
Minas
para dizer a Fra Dia-volo que também participará da disputa musical em torno de
louras e morenas. Aproveita para dar uma entrevista que o jornal publica em alto
de página no dia seguinte sob o título "Seja Breve". Entrevista? Não exatamente.
- Você acha que é preciso? - pergunta Noel ao repórter. - Para mim esse negócio
de entrevista é muito solene. Vamos conversar.
Uma breve conversa, como sugere o título da matéria. A uma pergunta sobre o que
veio fazer em Belo Horizonte, é laconicamente sincero:
- Engordar.
Faz comentários vários, elogia Aracy de Almeida ("É nova, mas das melhores"),
fala de samba. Quando lhe indagam há quanto tempo está na cidade, diz:
- Um mês. A Já um mês?
- É como se não estivesse. Não saio, não ando, nem nada. Como e durmo. Barba,
assim... Como Deus dá, olha só...
- Papai Noel...
- Pra você ver.
Refere-se duas vezes, durante a conversa da qual participam Francisco Lessa,
Lourival Serra, Gennaro Maltez, Miranda e Castro e Fra Dia-volo, a um samba
ainda inédito,
Pela Décima Vez, que no momento ele considera o seu melhor(4). A melodia é de
fato bonita e a letra fala de um de seus traços mais característicos: a
contradição.

Jurei não mais amar


Pela décima vez.
Jurei não perdoar
O que ela me fez.
O costume é a força
Que fala mais forte
Do que a natureza,
E nos faz dar prova de fraqueza.
Joguei meu cigarro no Chão e pisei.
Sem mais nenhum Aquele mesmo apanhei
e fumei.
Através da fumaça
Neguei minha raça,
Chorando, a repetir
Ela é o veneno Que eu escolhi
Para morrer sem sentir.
Senti que o meu coração quis parar.
Quando voltei
E escutei a vizinhança falar
Que ela só de pirraça
Seguiu com um praça,
Ficando lá no xadrez.
Pela décima vez
Ela está inocente,
Nem sabe o que fez.

E por falar em contradição, Noel começa dizendo ao pessoal da Folha de Minas que
não gosta de competições musicais:
- Conheço esses concursos. Os júris são formados por cronistas esportivos e,
daí, aquilo acabar sempre em boxe... Demais, eu não sou o tipo carnavalesco.
Mais adiante, faz um pequeno discurso para antecipar que concorrerá com um
samba:
- Para mim, prefiro o samba, que é malandragem. Marcha, não. Isso é mais sério.
Impõe respeito.
Pois bem, o Noel que não gosta de concursos e prefere o samba, no dia seguinte
se inscreverá neste, da Folha de Minas, e com uma marcha.
Embora em todos os embates - enquêtes entre os leitores, eleição da Rainha do
Carnaval pelo voto popular, escolha da musica por um júri onde houve de tudo,
até músicos
- a morena tenha sido vencedora do concurso da Folha de Minas, a marcha de Noel
-onomatopaicamente intitulada
Uatchf - não consegue mais do que um quinto lugar.

Essa morena
Cheia de beleza e graça
É o símbolo da raça
Cor de leite com café
E essa loura
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
(Uatch!)
De tão fria que ela é
Essa morena
Tem que ter um bom destino
Fez do samba o seu hino
Pra cantar cheia de fé
Pela morena
Que há de ser a padroeira
Da folia brasileira
Tenho que bater o pé
354

Loura ou morena?

A marcha com que Noel Rosa obteve o quinto lugar no concurso da Folha de Minas
acabaria esquecida. Ou quase. Uns poucos mineiros que a ouviram naquele verão de
1935
guardaram apenas alguns fragmentos da melodia que um deles, Rômulo Paes,
lembraria para os autores quase meio século depois. Quanto à letra - publicada
pelo jornal
em sua edição de 17 de fevereiro - Noel não a abandonou de todo. Retocou-lhe a
primeira parte e escreveu uma outra segunda inteiramente nova, dando ao
resultado
título também novo: Morena e Loura.
Essa morena
Que meu coração devassa
Simboliza a nossa raça
Cor de leite com café...
Essa lourinha
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
De tão fria que ela é!
Esta morena
Que eu amo imensamente
Ficará indiferente
Se souber que eu ando assim.
Na minha sorte
Há um golpe que eu receio:
A lourinha que eu odeio
É quem gosta mais de mim!

Partindo da mesma idéia, Noel ainda escreveria, desta feita com a colaboração de
Hervê Cordovil, um samba a que dariam o título de Leite Com Café:
A morena lá do morro
Cheia de beleza e graça
Simboliza a nossa grande raça
É cor de leite com café.
E a loura da cidade
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela sempre me constipo
De tão gelada que ela é.
A lourinha sobe o morro e desce
Implorando sempre o meu amor
E, pensando em mim, se esquece
Que a mulher que se oferece
Perde todo o seu valor.
Foi no samba que encontrei socorro
Para a minha sorte tão mesquinha
Eu prefiro ser cachorro
Da morena lá do morro
Do que dono da lourinha.

Em 1969, quase trinta e cinco anos depois do concurso da Folha de Minas, a letra
de Uatch! seria remusicada pelo compositor Hamilton Sbarra. Com novo título,
Atchim!,
e um subtítulo, Cor de Leite Com Café, foi gravada por Aldacir Louro para o
carnaval de 1970, sendo pouco notada. Curiosamente, a nova melodia lembra muito
os fragmentos
guardados pelos mineiros de 1935, um dos quais, entrevistado por Cidinha Campos
num programa de televisão, garantiu que Sbarra nada mais fizera do que
aproveitar
tudo, música e letra, da versão original. A falta de memória - das pessoas, dos
registros sonoros, das partituras impressas - fez com que nessa história toda se
tenham dissipado, por entre as nuvens do tempo, tanto as duas marchas de Noel
como seu samba com Hervê, sobrevivendo apenas sua discutida e anacrônica
parceria carnavalesca
com Hamilton Sbarra. Além, é claro, da certeza de que era mesmo pelas morenas
que seu coração batia mais forte.
O vencedor do concurso é um samba intitulado simplesmente Morena, letra de um
certo Minho, música de uma jovem estreante, por ironia loura e ainda por cima
chamada
Branca, Branca Tolentino.
Os quatro dias de carnaval - de 2 a 5 de março - agitam a pacata Belo Horizonte.
Pouco se ouve de Noel nos bailes e nas ruas. Canta-se Feitiço da Vila. E também
sambas como Implorar (novamente Kid Pepe e Germano Augusto tendo sua condição de
co-autores contestada, desta vez pelos que juram ter o crioulo Seda feito tudo
sozinho)
e Foi Ela. Ou marchas como Grau Dez, Eva Querida e Cidade Maravilhosa'.
Passado o carnaval, a cidade volta a mergulhar na tranqüilidade, na morna rotina
que Noel estranha desde o primeiro dia. Uma rotina que só é quebrada pelo fato
de
que todos já sabem que ele está ali. A entrevista publicada pela Folha de Minas
tratou de espalhar por toda parte que o grande Noel Rosa encontra-se na terra.
Na
quarta-feira de cinzas é a vez de O Debate procurar o visitante para uma
entrevista, publicada no sábado, 9 de março, e contendo importantes declarações
(ver boxe
A Alma do Samba).
O repórter conta que foi encontrar Noel Rosa tomando chope no Palladio, vestindo
355
terno cinza, camisa branca áejersey, gola aberta. E observa que, logo ao
primeiro contato, Noel revela-se um sujeito tímido, retraído, modesto. A
entrevista começa
com comentários sobre o carnaval, que Noel, mentindo, diz ter achado bom:
-... não pode deixar de ser bom o carnaval numa cidade tão linda.
O repórter pergunta-lhe, ingenuamente, como se faz um samba. E a resposta de
Noel bem pode ser resumida numa palavra: bossa.
Não saiu mesmo nos Foliões da Floresta. Não foi a bailes, não participou de
"cariocadas". Limitou-se a reunir-se com a turma do rádio para tomar
intermináveis copos
de Cascatinha, entre um samba e outro, enquanto os blocos desfilavam pela
Affonso Penna. Tia Carmem guarda a esperança de que, passado o carnaval, o
sobrinho volte
a obedecer à rotina tranqüila dos primeiros dias.
Desta vez a ingênua é ela. Na verdade, parecem feitas de ingenuidade todas as
pessoas que vivem ou freqüentam a casa da Rua São Manuel, incluindo o primo
Gilberto,
médico dedicado mas nem de longe familiarizado com as manhas e rebeldias de
Noel. Passado o carnaval. Gilberto e Mário Brown voltam a falar sério com o
doente. Tão
sério que Noel promete, de agora em diante, recolher-se às dez da noite,
renunciar às madrugadas, deixar a música para os encontros vespertinos com a
turma da rádio.
É quase forçado a prometer tanto, pois Mário Brown diz que esta é a condição
para que continue em sua casa.
Dois, três dias, uma semana, Noel cumpre religiosamente o prometido. Nelson
Orsini estranha que ele não apareça pelo centro, chega a dar um pulo com Roberto
Ceschiatti
até o bairro da Floresta. Noel está na varanda. É ali, longe de todas as
tentações da boêmia, que eles terão de cantar seus sambas. O máximo de arte que
Noel se
permite é ir ao telefone e repetir, diante de um Roberto Ceschiatti assustado, a
brincadeira:
- Desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Às vezes, tão bem-comportado está que a tia o deixa ir até o centro na parte da
tarde. Numa dessas saídas, reencontra Hervê Cordovil, de breve visita à família.
O pai, Cordovil Pinto Coelho, é político. Os irmãos, futuros doutores:
- Você está fazendo falta no Casé - diz Hervê.
Os olhos de Noel brilham. Zeno Santa Rosa, Nelson Orsini e Roberto Ceschiatti
são testemunhas desse brilho estranho que, no fundo, significa enorme vontade de
estar
longe dali, em Vila Isabel, na Lapa, no Rio distante que as novidades trazidas
por Hervê tornam um pouco
mais perto. Estão todos à mesa do bar do Grande Hotel.
Hervê Cordovil caminha para fazer-se um dos mais prolíficos compositores
populares brasileiros. Sambas, marchas, coisas do Nordeste, canções e até os
ritmos americanos
da moda farão parte de sua obra(7). Um homem extremamente generoso, e desde
jovem muito espiritualizado. Cada vez mais para o fim da vida se dedicará ao
kardecismo
e a movimentos de caridade. Isso o absorverá inteiramente. Os centros espíritas
poderão ganhar valioso colaborador, mas a música popular perderá enorme talento.
Noel gosta muito de Hervê. Quando este se levanta, deixando-o e aos outros
sentados na mesa do bar, Zeno, Nelson e Ceschiatti vêem o pensamento de Noel
fugir mais
uma vez, aquele mesmo jeito assustadoramente vago de estar ali e ao mesmo tempo
longe. Noel deixa a cabeça cair meio de lado, mantém-se calado por algum tempo,
triste,
contagiando os amigos. Em seguida, desperta:
- Vocês sabem que o Hervê é um músico extraordinário ?
Puxa o último cigarro do maço de Liberty Ovais, abre o papelão em dois e escreve
nele a letra de Triste Cuíca, samba dos dois que Hervê diz estar pronto para
Aracy
de Almeida gravar na Victor.
- Fizemos este samba no ano passado - conta Noel. Escrevia letra primeiro. Um
soneto.
Chama a atenção para a bela e difícil melodia do parceiro e canta:

Parecia um boi mugindo


Aquela triste cuíca
Tocada pelo Laurindo,
O gostoso da Zizica.
Ele não deu à Zizica
A menor satisfação.
E foi guardar a cuíca
Na casa da Conceição.

Diferente o samba fica,


Sem ter a triste cuíca
Que gemia feito um boi...
A Zizica está sorrindo. "
Esconderam o Laurindo.
Mas não se sabe onde foi.

Uma história trágica de um cuiqueiro carioca disputado por Zizica e Conceição. O


verbo esconder é empregado no sentido de matar, coisa rara em música popular.
Como
são raras as letras em forma de soneto.
Noel e Hervê encontram-se mais vezes
356

A alma do samba

"- Ninguém sabe como o samba nasceu. Ele foi um dia descoberto na rua e
aperfeiçoado. Hoje, tem escola. Criadores de estilo. J.B. Silva, o célebre
Sinhô, foi um
deles. Sinhô foi ao morro, captou vários estribilhos de samba e os estilizou com
grande sucesso. Jura, por exemplo, e também Gosto Que Me Enrosco. A princípio o
samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava
bem fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, 'vagou pelas
ruas
com um toco de cigarro apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas
algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luva branca nos salões de
Copacabana. Mas
o companheiro do samba será sempre o violão, que já obteve também a sua vitória
definitiva. O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem
preconceito,
sem mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba. Mas
o morro do Castelo foi abaixo e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e
'escrachou' as cabrochas. Mas o malandro não desapareceu. Transformou-se,
simplesmente, com a sua cabrocha, pra tapear a polícia. Eleja está de gravata e
chapéu
de palha e ela usa meias de seda. Quando se fala em ser doutor em samba, não se
diz uma frase vã. Não faltam médicos e advogados para elevar o samba. Aí estão
os
doutores Joubert de Carvalho, Ary Barroso, Olegário Mariano e muitos outros.
Futuramente, teremos coisa mais sólida, mais estilizada. Por enquanto, o samba
está
evoluindo e o faz rapidamente. O fox-trot e o tango já se transformaram e hoje
representam duas raças distintas. Têm orquestras típicas. O samba ainda não a
possui.
Quando houver aqui uma orquestra típica de samba, o brasileiro poderá dizer que
o seu país tem a sua música original.
- Mas, Noel, já existem alguns instrumentos próprios para o samba, não?
- Alguns, mas não todos. E apareceram agora, não se achando ainda popularizados.
A cuíca que ronca. O tamborim repicando em torno do 'centro' que faz a barrica.
O omelê que floreia dentro de mil variedades de ritmo. O afochê. São todos
instrumentos destinados a embelezar o ritmo. Não há samba sem ritmo (uns dizem
'cadência',
outros 'batida'). O certo, porém, é que o samba foi inspirado no pisar da morena
carioca."
entrevista a O Debate, Belo Horizonte, 9 de março de 1935.
em Belo Horizonte. Para conversar, intensificar a amizade, compor juntos. Nem
sempre no tom de Triste Cuíca. Às vezes acontece de o humor substituir a
tragédia.
Como em O Que é Que Você Fazia?

Deitado no trilho de um trem


Estando amarrado e amordaçado,
Sabendo que o maquinista
não é seu parente,
Nem olha pra frente,
O que é que você fazia?
Eu nesse caso nem me mexia.
Sentado, olhando um cachorro
Que da tua mão tirou o seu pão,
Sabendo que o seu bilhete,
que está premiado,
Também foi roubado,
O que é que você fazia?
Eu nesse caso nem me mexia.
Se um dia a sua sogra bebesse
Um gole pequeno de um grande veneno,
Se por um capricho da sorte
(ou de algum doutorzinho)
Ela ficasse mais forte
O que é que fazia o senhor?
Eu nesse caso matava o doutor
O que é que você fazia?
Eu nesse caso... desaparecia.

Dois, três dias, uma semana, não mais. Não demora muito as noites voltam a
atrair Noel, a acenar para ele com sua lua e suas estrelas. Na praça da
Liberdade, passa
a encontrar-se com Nelson Orsini, sempre por volta das onze. Seus programas
variam de incursões às casas da Rua Guaicurus a serenatas românticas por onde
quer que
haja quem os ouça. Sabendo que os tios não o perdoarão por essas madrugadas, tem
de contar com a ajuda de Lindaura, que parece ter esquecido a história da
"irmãzinha".
Os dois arquitetam um insólito expediente de fuga para ele.
- Boa-noite, tia Carmem. Boa-noite, tio Mário - despede-se ele, ar inocente, ao
se recolher com a mulher às dez da noite.
Depois, sem trocar de roupa, apaga a luz e recomenda a Lindaura o mais absoluto
silêncio. É preciso convencer os tios de que já estão dormindo. Encosta o ouvido
na porta e se certifica de que Mário e Carmem Brown ainda estão na sala. Então,
vira-se para a mulher:
- Preciso dar uma saída.
E tira do bolso uma cenoura crua. A janela do quarto dá para o terreno baldio.
Embora seja casa de um andar só, mais de dois metros separam a janela do Chão do
terreno.
Mas Noel já descobriu que ali pasta, em sossego, o burro de um vizinho. Amigo e
conhecedor de burros, ele acena com a cenoura para o animal. Este se aproxima da
janela, Noel estica-lhe a cenoura, o burro chega mais perto, Noel pula em cima
dele e finalmente sai pela noite. Lindaura, a segunda, terceira vez em que isso
acontece,
sabe que o marido
357

não diz a verdade ao prometer que não demora. Só voltará com o sol.
Com Nelson Orsini, longas prosas, muitas canções. É justamente na Praça da
Liberdade que Noel conclui, na frente de Nelson, a melodia para uma letra em que
deixa
toda a sua filosofia de vida, o homem do povo, as criaturas sem eira nem beira
(e muitas vezes sem nome), mas valendo mais que os figurões, os graúdos
importantes.
E a felicidade estando muito mais nas coisas simples do que na luta que, por
exemplo, tia Carmem garante ser necessário travar para se vencer na vida. Noel
como
João Ninguém, personagem-título do seu novo samba, não acredita nesta luta. Nem
mesmo em ideais abstratos. Não acredita em nada além de um canto para dormir, de
um prato de comida, um cigarro. Nem sequer no trabalho é possível acreditar.
Lembra-se do pai, matando-se de trabalhar a vida inteira, para parar entre as
paredes
de um quarto de hospício. Acredita, sim, em não fazer inimigos. E em ter muitos
amores. Por isso canta:

João Ninguém
Que não é velho nem moço,
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar.
Num vão de escada
Fez a sua moradia,
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar.
João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João
nunca se expôs ao perigo,
Nunca teve um inimigo,
Nunca teve opinião.
João Ninguém
Não tem ideal na vida.
Além de casa e comida
Tem seus amores também.
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém.

Noel e Nelson ficam conversando até tarde. Todo fim de noite tiram a sorte para
ver quem vai levar o outro em casa. Muitas vezes é o Nelson, estudante de
odontologia,
que tem de atravessar o viaduto de Santa Teresa para acompanhar o amigo à
Floresta. Numa dessas madrugadas, um guarda os surpreende no meio de uma canção.
- Vão pra casa os dois! Isso não é lugar de desocupado.
Nelson e Noel protestam. O guarda pede-lhes os documentos. Ao ver que está
diante de Noel Rosa, muda o tom de voz. Tira do bolso do dólmã uma flauta e diz:
- Então, dá aí um si bemol.
E vão os três cantando e tocando até a São Manuel
Às vezes há programas menos estimulantes, Noel pouco à vontade, indo mais por
força da insistência dos amigos:
- Vamos à festa na casa do tabelião Bolívar?
Família tradicional, gente meio grã-fina, Noel tenta escapar ao convite de Chico
Lessa. Mas acaba indo com toda a turma. Lá, como não pode deixar de ser, os
amigos
pedem que cante alguma coisa.
- Outro dia - retruca ele, esquivo.
Os amigos insistem, Noel chama Nelson, Roberto, Zeno, todos a um canto. Numa
inesperada crise de modéstia, diz, cochichando:
- Vocês me trouxeram aqui para passar vergonha? Acha que eu vou cantar minhas
musiquinhas para esses grã-finos?
Os amigos insistem. Vendo que nada mais pode fazer, canta. E é aplaudido de pé.
De tudo que compõe aqui, nada terá seu valor tão pouco reconhecido como Cansei
de Pedir. Neste samba o poeta fala de alguém - seria Clara? - que o fez sofrer
por
amá-lo tanto sem que ele pudesse retribuir. A originalidade está justamente na
forma e na causa deste sofrimento. Ao contrário de todos os outros letristas da
música
popular, sua queixa não está em ter sido traído, abandonado ou não-
correspondido. Mas no oposto. Sofre com o próprio desamor, peso afinal de uma
consciência que
gostaria de ter leve. Um samba cheio de bossa, com uma letra singular.

Já cansei de pedir
Pra você me deixar,
Dizendo que não posso mais
Continuar Amando sem querer amar.
Meu Deus, estou pecando,
Amando sem querer
Me sacrificando
Sem você merecer.
Amar sem ter amor é um suplício.
Você não compreende a minha dor.
Nem pode avaliar
o sacrifício Que eu fiz
Para ver você feliz.
Com a ingratidão eu não contava.
Você não compreende a minha dor.
Você se compreendesse
me deixava Sem chorar
Para não me ver penar.
358

Em outras ocasiões, o convite vem carregado de prazer. Como na noite em que


Paulo Lessa diz que gostaria de fazer uma serenata para Yolanda Santos, sua mais
recente
paixão. Noel se entusiasma. Requisita a voz de Zeno, o violão de Nelson, o apoio
de toda a turma, e se dirigem a pé para a casa da moça. Yolanda mora bem em
frente
à igreja da Boa Viagem. O grupo resolve ficar do outro lado da calçada, num
gramado inclinado que desce do pátio central da igreja. Noel abraça o violão e
procura
buscar inspiração no nome da namorada de Paulo:
- Yolanda! Yolanda!
A turma constata, então, que um eco vem de dentro da igreja, repetindo o nome
que Noel cantarola:
- Yolanda! Yolanda!
Ali mesmo ele faz um samba que dá para Zeno cantar como Francisco Alves o faria.
Um samba que levará a jovem amada de Paulo Lessa a sentir-se a mais orgulhosa de
todas as musas mineiras:
Yolanda! Eu chamo, você não vem,
E o eco só responde: "Yolanda... Yolanda..."
Se eu canto pro meu bem,
Ele canta também.
Não se pode improvisar,
Ele vem incomodar.
Yolanda! Ele responde:
"Yolanda... Yolanda..."
Se me viro pro norte,
Lá no sul ele está.
Se me viro de frente,
Lá nas costas vai ficar.
Já estou até doente,
Não consigo decifrar.
Yolanda! Ele responde:
"Yolanda... Yolanda..."

Mas, para tristeza desses boêmios mineiros, a estada de Noel em Belo Horizonte
não vai durar muito mais. Os tios não se conformam com suas noitadas, não querem
ser
responsáveis por uma recaída. É verdade que ele ganhou preciosos quilos aqui.
Mas como estarão os pulmões? Carmem escreve à irmã dizendo que não pode mais
cuidar
dele. O próprio Noel não pode cuidar de si mesmo. Além disso, há as saudades. O
Rio, Vila Isabel, Ceei, os amigos, o pai internado. É hora de voltar.
Nos primeiros dias de abril, começa a fazer as malas. Despede-se dos amigos, faz
com eles a última farra, tomam juntos as últimas cervejas. Dá adeus a Belo
Horizonte,
não sem antes pegar de novo no telefone.
- Alô, desembargador? Aqui fala o embaixador Bill.

NOTAS
1. Atual Santos Dumont.
2. Canção americana escrita em 1927 por Mort Dixon e Harry Woods. Na versão
brasileira de Nilo Sérgio, Trevo de Quatro Folhas.
3. Diz uma nota de Carioca de 11 de abril de 1936: "Noel Rosa gosta de passear
na chuva, sem qualquer agasalho e chapéu. É torcedor de futebol, assistindo aos
jogos
noturnos e preferindo, como jogador, Fausto." O comentário é clara brincadeira
sobre o temperamento boêmio de Noel, sempre "na chuva", homem da noite,
admirador
do rebelde e também boêmio Fausto dos Santos, "a maravilha negra", na epoca as
voltas com uma complicada questão de transferência que o levaria do Vasco da
Gama
ao Flamengo, via Nacional de Montevidéu. Fausto morreria tuberculoso em 1939.
4. Pouco antes, ao Jornal de Rádio de 1? de janeiro de 1935, Noel tinha sido
claro ao apontar Pela Décima Vez como seu samba favorito: "É a melodia que fala
mais
à minha alma, que me sugestiona mais poderosamente a imaginação, que acorda em
mim o desejo do sonho. Fiz Pela Décima Vez com verdadeiro carinho artístico,
procurando
fixar, malgrado a aparente leveza do tema, um verdadeiro drama do coração."
5. Uma piada que Noel Rosa repetirá pelo menos mais uma vez. Em entrevista a A
Pátria de 4 de janeiro de 193É>, a uma pergunta do repórter sobre o que pensa
dos
concursos de música de carnaval, responderá: "Até hoje as músicas não foram
julgadas por técnicos e sim por cronistas esportivos, que comparecem ao júri por
esporte,
razão pela qual o concurso termina em lutas de boxe e capoeiragem." E quando o
repórter lhe indagar se seria este o motivo de não participar de tais concursos,
dirá:
"Sim, eu sou muito franzino e me admiro como é que meu amigo Lamartine Babo tem
saído ileso."
6. Com base em informação por escrito de Hélio Rosa, Jacy Pacheco sugere em
Noel Rosa e Sua Época (página 97) e em O Cantor da Vila (página 31) que Noel
teve alguma
coisa a ver com a autoria de Cidade Maravilhosa (naverdade, a informação de
Hélio era de que o irmão vendera a marcha a André Filho por 800 mil réis). Mas,
a não
ser por este "documento", hoje pertencente aos arquivos dos autores, não há
nenhum outro indício de que isso realmente tenha acontecido.
7. Hervê Cordovil Pinto Coelho, nascido em Viçosa, Minas Gerais, em 1914,
morreu em São Paulo em 1979- Entre tantas outras produções - os sambas Força do
Malandro,
Prelúdio, Jangada, Mágoa, Uma Loura, as marchas Carolina e
Inconstitucionalissimamente, os baiões Cabeça Inchada, Pé de Manacá e toda uma
série gravada por Carmélia
Alves - comporia também valsas, choros, toadas, boleros, fox-trots e até um
twist, Rua Augusta, sucesso nos anos 60 na voz de seu filho Ronaldo, mais
conhecido como
Ronnie Cord.
359

PARTE V

ABRIL DE 1935 MAIO DE 1937

ILUSTRE VISITA, TRÁGICO REGRESSO

Capítulo 36
E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Só Pode Ser Você

Noel Rosa não hesita em recorrer a Cícero para dizer o quanto é bom estar de
volta. O Rio é seu mundo. E Vila Isabel, sua pátria. Faz questão
de
deixar isso bem claro numa entrevista a a Voz do Rádio, a primeira desde que
chegou de Belo Horizonte:
"Mineiras gentis, de tez amorenada, com esplêndidas vozes, e verdadeiros tipos
de beleza física também, interpretaram, com grande desvanecimento para mim, as
composições
em que mais externei o meu sentimentalismo, envolto na dolência excitante do
samba-canção."
Mais adiante:
"Enterneci-me vivamente quando pressenti que o meu samba Feitiço da Vila batera
fundo no espírito daquela gente boa. Difundiram-no, popularizaram-no, e numa
mostra
de curiosidade bem feminina as moças perqueriram as razões que lhe inspiraram o
título. Traduzi-o por Feitiço de Minha Pátria, pois, como já disse Cícero, 'a
pátria
é onde se está bem', e nunca me senti melhor do que no recanto calmo e bonançoso
de Vila Isabel."(1)
É sincero. Nunca se sentiu - nem se sentirá jamais - tão bem quanto na Vila
Isabel destes dias de abril, quando começam a cair as folhas dos oitis do
Boulevard e
a se cobrir de um sol meio esmaecido as montanhas que se divisam das janelas do
chalé, lá longe, na Tijuca. O verão passou. E embora possa parecer ainda mais
triste
o sol da Vila durante os meses de outono, esta é a época em que o bairro se
torna mais agradável e acolhedor. Ou mais calmo e bonançoso.
Noel Rosa está bem. Mais gordo e corado, as pessoas notam o quanto lucrou
em Belo Horizonte. É na mesma A Voz do Rádio que se lê:
"A novidade do dia é o retorno de Noel Rosa ao broadcasting. Fervilham os
comentários. No studio, Isis Silva relembra o tempo da célebre dupla Aracy-Noel.
- A última novidade - intervém Solange Mar a - vocês ainda não sabem. O Noel
veio de Minas tão forte que agora já não fará mais dupla.
- Como assim?
- Agora vai haver mesmo um trio. Odette Amaral, a um canto, resmungou:
- Vou me candidatará tríade. Ele é tão interessante..."2
A viagem de volta foi feita no mesmo trem de madeira, duro, desconfortável e
preguiçoso. Desta vez, porém, valeu a pena, o destino era outro. Mal desfez as
malas,
Martha veio contar-lhe as novas, falar de seus sambas que as estações de rádio
nunca deixam de tocar, os amigos que vieram perguntar por ele, os vizinhos que
se
interessavam por sua saúde, as visitas
363

Muitas, quase diárias. Martha enumera-as todas.


- Também esteve aqui uma moça. Bonita, bem-vestida, elegante. Perguntou por
você, mas não quis deixar o nome. Parecia preocupada.
A mãe faz uma descrição perfeita de Ceei. Dias atrás apareceu alguém no Apollo
com a informação de que Noel estava muito mal, quase à morte, em Belo Horizonte.
Ceei
levou um susto. Na mesma hora, dirigiu-se ao chalé, quis saber como estava Noel.
Muito bem, respondeu dona Martha. Doze quilos mais gordo, corado, ótimo. Mais
alguns
dias estaria de volta. Ao Rio, ao lar, ao rádio.
Uma descrição perfeita. O rosto bonito, os modos recatados, o jeito de falar.
Então ela foi procurá-lo, saber como estava, interessada? Preocupada, disse a
mãe.
Três longos meses e Ceei ainda não o esqueceu. Quando se viram pela última vez?
O desmaio estúpido no Cine Grajaú, a doença, o casamento, a viagem, as coisas
aconteceram
tão depressa que provocaram uma separação súbita, não planejada. Realista - ou
melhor, pessimista -, Noel possivelmente não contava que Ceei o esperasse, que
pensasse
nele, que se preocupasse. Surpreende-se com o que a mãe relata. Mas, em vez de
ficar ainda mais feliz, faz da surpresa motivo para novo samba, a descrença e a
ironia
saltando de verso para verso:

Compreendi seu gesto


Você entrou naquele meu chalé modesto
Porque pretendia
Somente saber
Qual era o dia
Em que eu deixaria de viver.
Mas eu estava fora
Você mandou lembranças e foi logo embora
Sem dizer qual era
O primeiro nome de tal visita
Mais cruel
Mais bonita que sincera.
E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Porque
Não existe nessa vida
Pessoa mais fingida
Do que você.

A melodia, de grande beleza, é iniciada por Noel e completada por Vadico. Os


dois se encontram no estúdio da PRC-8, Rádio Guanabara, na Rua 1 de Março, onde
Noel
acerta com Luís Vassalo sua adesão ao cast do Programa Suburbano. E é justamente
na sua apresentação de estréia que ele lança o novo samba de título também
irônico:
Ilustre Visita. Ceei, que há vários dias vem ouvindo a emissora fazer grande
alarde em torno da estréia de Noel ("Não percam a rentrée de Noel Rosa", "Noel
Rosa
está de volta", "Amanhã é dia de Noel Rosa"...), liga o rádio na hora marcada.
Desta vez é ela quem se surpreende ao ouvir sua ida ao chalé contada num tom
claramente
amargo. Que história é esta de "... porque pretendia somente saber qual era o
dia em que eu deixaria de viver"? Então é isso que ele pensa dela? Surpreende-se
-
ou, mais que isso, espanta-se - com os últimos versos de um samba tão bonito
quanto cruel:
E pelas informações que recebi
Ceei
A ilustre visita era você
Porque...
Nas apresentações posteriores deste samba, reintitulado Só Pode Ser Você, Noel
não será tão explícito. Nem tampouco na gravação original, de Aracy de Almeida,
aparecerá
o nome de Ceei. Foi apenas um impulso que o levou a cantá-lo assim ao microfone
da Rádio Guanabara. Quando se reencontrarem, será menos amargo. E substituirá a
ironia
por um sorriso afetuoso e sincero.
- Ouviu o samba que fiz pra você?
Naquela primeira entrevista a A Voz do Rádio deixava transparecer não só a
felicidade por estar de volta, mas também um entusiasmo que não experimentava há
tempos.
Falou de seus projetos, dos sambas que fez no ano passado e que apenas agora
pode gravar, de outros escritos em Belo Horizonte, de outros mais
recém-concluídos. Entre os primeiros estão Triste Cuíca e Século do Progresso.
Da safra mineira, pretende dar Amor de Parceria e Disse-Me-Disse para Joel &
Gaúcho
graverem ejoão-Ninguém para Francisco Alves. Mas mudará de idéia. Amor de
Parceria irá para o repertório de Aracy de Almeida, DisseMe-Disse terá de
esperar 45 anos
até chegar ao disco eJoão-Ninguém será lançado pelo próprio Noel com
substanciais alterações em dois versos. Como se recor da, a letra original
dizia:
João-Ninguém Não trabalha e é dos tais Que joga sem ter vintém E fuma Liberty
Ovais...
Por conta própria ou soprado por alguém, Noel convenceu-se de que seu samba não
deixava de ser graciosa propaganda do Liberty Ovais. E procurou os diretores da
Fábrica
de Cigarros Souza Cruz. Que tal passarem para o seu bolso uma modesta fatia da
verba destinada aos reclames de seus produtos? Afinal, uma mão
364

lava a outra, ele fazendo do seu João-Ninguém um poético divulgador do Liberty


Ovais, os fabricantes recompensando-o por isso. Mas os homens da Souza Cruz não
viram
as coisas pelo mesmo prisma. E não lhe deram um níquel. Resultado: Noel fez seu
personagem abandonar os cigarros. E gravou o samba assim:

João Ninguém
Não trabalha um só minuto
Mas joga sem ter vintém
E vive a fumar charuto...
Quanto aos sambas recém-concluídos, um deles é Só Pode Ser Você. O outro,
Silêncio de Um Minuto, beira a perfeição, um amor acabado parecendo-lhe tão
irremediável quanto a morte:

Não te vejo nem te escuto,


O meu samba está de luto.
Eu peço o silêncio de um minuto,
Homenagem à história.
De um amor cheio de glória
Que me pesa na memória.
Nosso amor cheio de glória,
De prazer e de ilusão,
Foi vencido e a vitória
Cabe à tua ingratidão.
Tu cavaste a minha dor
Com a pá do fingimento
E cobriste o nosso amor
Com a cal do esquecimento.
Teu silêncio absoluto
Me obrigou a confessar
Que o meu samba está de luto,
Meu violão vai soluçar.
Luto preto é vaidade,
Neste funeral de amor,
O meu luto é a saudade
E saudade não tem cor.
Um grande samba. Os quatro últimos versos, Noel puro, têm a força de um
epitáfio. Mas um samba de gênese nebulosa. Por que falar em amor acabado se na
verdade tudo
agora é começo ou recomeço, ele e Lindaura começando um casamento, ele e Ceei
recomeçando um romance que a doença só fez interromper por uns meses? E por que
essas
imagens sobre a morte numa época em que tudo parece estar voltado para a vida?
O começo de casamento com Lindaura é difícil. O recomeço de romance com Ceei,
mais ainda. Dificuldades que o próprio Noel cria, ausentando-se demais do chalé,
tornando-se
demasiado presente na vida de Ceei. Não será feito apenas de sorrisos afetuosos
o reencontro dos dois. Sério, possivelmente constrangido, Noel lembra a história
do casamento às carreiras, ele
já sem forças para resistir a tantas pressões, principalmente da polícia. Nada o
apavora mais do que a idéia de parar um dia na cadeia, atirado no fundo de uma
cela
escura e fria. Seria o mesmo que morrer. Esse pavor explica o casamento. O pavor
e a doença que lhe minaram todas as defesas. Ceei, contudo, não lhe pede
explicações.
Aceita-o assim mesmo, solteiro ou casado, sem exigências. Noel diz que não ama
Lindaura. Viverá com ela só para constar. É de Ceei que ele gosta.
- Por que não moramos juntos? - propõe.
Aluga um pequeno quarto mobiliado no primeiro andar de um velho prédio na
primeira esquina, à esquerda, de Inválidos com Mem de Sá. Quer que Ceei se mude
imediatamente.
Para que esperar? Ela concorda. Começo e recomeço difíceis. O pequeno quarto
mobiliado vai afastar Noel demais do chalé. E torná-lo mais presente do que
devia na
vida da meiga e fugidia Ceei.

Sexta-feira, 3 de maio. Tão logo os raios de sol chegam através da janela


gradeada, Neca se levanta. Ainda não são seis horas, toda a Casa de Saúde da
Gávea parece
dormir. Neca toma nas mãos grandes o lençol branco que cobre a cama. Dobra-o até
formar uma tira comprida. Em seguida, em movimentos lentos mas vigorosos, torce
uma das extremidades para a frente e a outra para trás. Constrói assim uma corda
que começa a prender num dos pés da cama. O que se passará em sua mente neste
instante?
Em quem pensará?
Pouco antes das oito, um dos enfermeiros o encontra. O corpo enorme, pesado,
está estendido sob o leito. Imóvel, sinistramente imóvel. Em volta do pescoço, o
lençol
transformado em corda. Um quadro tão terrível quanto difícil de explicar. Preso
e ajustado ao pescoço pelas próprias mãos de Neca, o lençol funcionou como um
garrote
que lhe tirou a vida. De acordo com os médicos, em poucos segundos.
As primeiras reações de Noel são de aparente serenidade. Pouca gente, além dos
vizinhos, sabe do que aconteceu. Suicídio é palavra que as pessoas continuam
evitando,
os da família por pudor, o gesto encarado como uma espécie de desonra, e os
estranhos por certo temor, como se houvesse na palavra um quê de maldição. Por
isso,
não haverá anúncios fúnebres nos jornais, não se participará a ninguém. Poucos
irão ao chalé consolar dona Martha e Hélio. Poucos acompanharão o enterro.
Christovam de Alencar é um desses poucos. Na noite de sexta-feira mesmo, vai ao
Instituto Médico Legal, na Praça 15(3). Encontra Noel
366

sozinho e pensativo, mas calmo. O legista, Gual-ter Adolpho Lutz, já cuidou da


autópsia. Um longo e minucioso trabalho para que no atestado de óbito se resuma
tudo
em três palavras: asfixia por suspensão.
- Ele se enforcou no pé da cama - diz Noel a Christovam.
O amigo se impressiona com os detalhes, o lençol convertido em corda, seu
Medeiros deitando-se no Chão para enforcar-se. Estranho modo de morrer este. As
pessoas,
lembra Christovam, geralmente se valem do peso do corpo ao buscarem a morte por
enforcamento. Seu Medeiros valeu-se apenas da força das próprias mãos. Mas terá
sido
mesmo assim?
- Se eu fosse você, Noel, mandava abrir um inquérito. No mínimo houve descaso.
Onde estavam os médicos, os enfermeiros?
- De que adianta isso agora?- murmura quase, mergulhando em seguida naquele
profundo silêncio que o afasta de tudo.
No dia seguinte, sábado, o enterro no Cemitério de São Francisco Xavier, no
Caju. Noel continua aparentando tranqüilidade. Christovam de Alencar, não. Ainda
intrigado,
vira-se para um dos amigos e pergunta:
- Você não acha que foi uma morte muito estranha?
Os poucos parentes e vizinhos rezam por Neca à beira do túmulo e depois deixam o
local, cada qual com seu destino. Noel, por inexplicável impulso, vai até a casa
dos Graças Mello. Sempre se sentiu bem ali, o padrinho, dona Glorinha, Edgar,
Octávio, Nilda. É recebido com carinho, aquela mistura de ternura e piedade com
que
se cercam os enlutados. Estão todos na varanda, Noel sentado num dos degraus da
escada. Súbito, ele, que aparentava tanta tranqüilidade, começa a chorar.
- Eu sabia que ele jamais sairia daquela casa de saúde!
Chora muito, como nunca mais as pessoas o verão fazê-lo. Até mesmo o eterno
fingidor, indiferente a todas as dores, tem seus momentos de desabafo. Fala com
meiguice
da mãe, agora mais sozinha que nunca. Lembra-se do bisavô que não conheceu.
Suicidou-se. E da avó Bella, sempre tão quieta. Suicidou-se. E agora o pai.
Pergunta,
aflito, ao Dr. Graça Mello:
- O senhor acredita que essa história de suicídio seja hereditária?
- De forma alguma, Noel- tenta acalmá-lo o médico e padrinho, diante dos olhos
interrogativos da mulher e dos filhos.
Noel já não chora. Retorna ao silêncio, põe-se a olhar para um ponto distante e
impreciso.
- Meu bisavô, vó Bella e agora meu pai...
Pois eu não vou deixar que isso me aconteça!- diz com firmeza como se para se
convencer. - Eu quero viver. Não deixarei que aconteça comigo o que aconteceu
com meu
pai!
Seu Medeiros se foi de novo, desta vez para sempre. Vinte e um dias antes de
completar 55 anos. Deixará em todos as melhores recordações, na mulher, nos
filhos,
nos cunhados, nos vizinhos, nos amigos dos filhos. Como em Christovam de
Alencar.
- Que suicídio estranho... Pensando melhor, e que Deus me perdoe, este
enforcamento no pé da cama foi a última invenção de seu Medeiros. E a única que
deu certo.
Morrer não é difícil. Difícil é viver com a lembrança de certas mortes. Noel
parece perceber isso com a perda do pai. Uma perda que, além de penas, traz-lhe
impressões
muito fortes de que empunhar lanças para enfrentar os moinhos de vento da vida
não passa de luta sem sentido. Que quixotesco personagem foi Neca quando moço!
Galante,
nobre, romântico, crédulo, generoso, incorruptível, vulnerável. Mas, como o
cavalheiro da triste figura, não venceu os seus dragões. E perdeu para a loucura
a única
verdadeira batalha de sua existência.
367

Um parceiro no presídio

- Ismael deu dois tiros na bunda do Edu Motorneiro!

Onde quer que a noticia chegasse causava espanto nos que conheciam de perto o
sereno Ismael Silva, misto de malandro e sambista, mais sambista que malandro.
Como
era possível ter ele sacado o revólver, à porta do Café Paulicéia, esquina de
Gomes Freyre com Visconde do Rio Branco, e disparado meia dúzia de vezes contra
o desavisado
Edu? Segundo algumas versões, nenhum dos tiros pegou. Segundo outras, pelo menos
um carimbou feio o pobre motorneiro, deixando-o por longo tempo sem poder se
sentar.
As versões também diferiam quanto à causa. Para uns, tudo se devia ao fato de
ter o Edu abusado de Orestina, irmã de Ismael. Para outros, foi briga de ciúmes,
os
dois homens enrabichados pela mesma mulher. Possibilidade esta que os mais
íntimos de Ismael nem consideraram. Por causa de mulher? Impossível. Como
observou, muito
à sua maneira, outro negro bom de música, Getúlio Marinho, o Amor:
- Logo o Ismael, que nem sabe onde a burra mija...
Seja lá como tenha sido, Ismael Silva foi preso em flagrante e processado por
tentativa de homicídio. Naturalmente, não era seu primeiro problema com a Lei.
As delegacias
de então - em especial a quinta e a nona - já haviam registrado várias passagens
dele por suas dependências, antes do tiroteio no Café Paulicéia. Malandro,
inveterado
jogador de chapinha, tentando viver de samba numa época em que sambista era
quase sinônimo de vagabundo, tinha sido preso inúmeras vezes. Numa delas em
Paquetá,
onde morava o policial, também compositor, Roberto Martins, para quem o
comissário local, Policarpo, telefonou:
- Dá um pulo até aqui, Roberto. Prendi por trapaça no jogo um crioulinho muito
magro que se diz compositor. Ele jura que te conhece.
- Como se chama?
- Ismael Silva.
- Ismael? Não pode ser, Poli. Mas, se for, é o autor de...
E Roberto Martins se pôs a cantar ao telefone alguns sambas de Ismael, Se Você
Jurar, Para Me Livrar do Mal, Não Há, Nem É Bom Falar, Novo Amor, Adeus. Quando
acabou,
o comissário estava perplexo:
- Mas tudo isso é dele? É melhor mesmo você vir, Roberto.
Roberto Martins foi. Da porta gradeada
do xadrez, viu Ismael lá dentro, sentado no Chão, ar abatido. O comissário
concordou em soltá-lo. Já na rua, muito sem jeito, Ismael tentou se explicar:
- Foi uma besteira minha, Roberto. Eu estava arrestado, sem um tostão. Fui dar
uma bolinha, tive azar, a polícia me pegou.
- Mas você não tem necessidade disso, Ismael. É grande compositor! Em todo caso,
vamos fazer uma coisa: você toma a primeira barca efica tudo entre nós.
- Se eu soubesse que você morava na ilha, Roberto, isso não tinha acontecido. Eu
te pedia o dinheiro para a passagem de volta.
Tentativa de homicídio. Com todo o empenho do advogado Prudente de Moraes Neto,
Ismael Silva não pôde livrar-se de uma pena de cinco anos de detenção, dos
quais,
por bom comportamento, só cumpriria dois. Mas dois anos que valeram por quinze.
Ao entrar no presídio - o frio e feio prédio da Frei Caneca - Ismael começava a
viver
um desterro bem mais longo do que sua pena. Um desterro em parte forçado, em
parte voluntário. Forçado porque os dois parceiros que o haviam ajudado a subir
tão
alto como compositor popular, Noel Rosa e Francisco Alves, saíam de sua vida
para sempre, deixando-o repentinamente só. Quando Ismael atirou no Edu, Noel
estava
em Belo Horizonte cuidando dos pulmões. Durante o processo, a conselho de
Prudente de Moraes Neto, que preferia vê-lo fora de circulação até o dia do
julgamento,
refugiou-se em Teresópolis. Condenado, ao sair da prisão, Noel já estaria morto.
Quanto ao outro parceiro, Chico, nunca mais quis saber do "preto de alma branca"
que, nas águas de Noel, se atrevera a abandoná-lo.
Desterro voluntário porque - no fundo um homem de brio, sensível e orgulhoso -
Ismael se deixaria dobrar ao peso da vergonha de ser um ex-convicto. Passou a
evitar
os amigos, o meio artístico, os lugares de sempre. Tinha medo que lhe fizessem
perguntas sobre o que tanto queria esquecer. Enfim, desapareceu. Houve até quem
o
julgasse morto. Sozinho, triste, sem dinheiro, perambulou por aí. Mas houve
também quem tentasse ajudá-lo. O próprio Prudente, por exemplo. E Pixinguinha,
que em
carta datada de 10 de maio de 1939 pediria ao musicólogo Mozart Araújo um
emprego para o amigo em dificuldade: "... espero que o que puder fazer pelo
Ismael seja
como se fosse por mim."
Teriam sido essas palavras de Pixinguinha a semente de um antológico samba
autobiográfico com o qual, já em 1950, Ismael se reencontraria com o sucesso e
com a vida:
368

Ô Antonico,
vou-lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim...

Pode-se imaginar o que terá sentido Noel ao saber de Ismael Silva encarcerado -
ele que tinha pavor de cárceres e carcereiros. No seu caderno de letras, deixou
esboçada
uma, Saí do Presídio, que bem pode ter sido sugerida pelos sofrimentos do
parceiro:
Saí agora mesmo do presídio
E já cumpri a pena de homicídio
Do qual não fui autor
(Meu Deus do céu, que horror!
Lá dentro faz calor)
Nas grades da prisão eu já sabia
Que o nosso grande amor você traía
Eu aturei suas afrontas
Mas vou acertar nossas contas.
Você foi má
Nunca mais conseguirá
Calcular a imensa dor
Mas vai ter sempre na lembrança
Que o prazer de uma vingança
É maior do que qualquer amor
Não esqueci a ingratidão
E resolvi acabar com o meu grande mal
Se o meu plano não falhar
A "assistência" vai levar Seu esqueleto ao hospital

Em tempo: ao contrário do que observou o Amor, Ismael sabia, sim. Entre os


segredos do seu passado, muitos, ficou guardada uma filha, Marlene,
parecidíssima com
ele. Mal chegou a conhecê-la. Sequer quis registrá-la como sua, embora soubesse
ser ela o resultado de um mês - apenas um mês - de paixão por Diva, passista do
Estácio,
naquele mesmo 1935. Só 36 anos mais tarde pai e filha se aproximariam. Mas já
então muito tempo teria corrido. Chico, Edu, Diva, Noel, os sambas, o Estácio,
tudo
se perdia no passado. E o presente de Ismael - cansado, doente e sempre só -
fazia-se de tardias homenagens e velhas memórias.

Só daqui a algum tempo será possível ava liar o quanto a morte do pai afetou
Noel. Em Martha a tragédia deixa marcas visíveis, no rosto sofrido, nos olhos
cansados,
nos cabelos que a partir de agora vão embranquecer rapidamente. Parte do seu
mundo acaba de desmoronar. Tem 45 anos e ares de muito mais. Sente-se abatida,
sem forças.
E cada vez mais só.
Em Hélio as marcas da tragédia têm a forma de resignação. Surpreende a todos com
sua firmeza. Ou com a sua cada vez mais forte espiritualidade: "Meu pai não
morreu.
Está mais vivo que nunca!"
Noel não fala do suicídio com ninguém, nem mesmo com Ceei. Trabalha normalmente,
vai aos programas de rádio, às editoras, aos lugares de sempre. Como se nada
tivesse
acontecido.
369

É muito solicitado para festas e espetáculos em clubes. No sábado anterior à


morte do pai, 27 de abril, já iniciava a verdadeira maratona de recitais que
ocuparão
grande parte de seu tempo até o final de 1935. Naquela noite, a convite de
Leonel Azevedo, cantou velhos e novos sambas para os sócios do Light Athlético
Club, na
Rua Figueira de Mello, em São Cristóvão. O sucesso foi tanto que, desde então,
os convites não param de chegar, de clubes, grêmios, associações.
Participa também de espetáculos em teatros da Praça Tiradentes, entre eles o
João Caetano. É ali, durante um ensaio, que encontra Emma D'Ávila, jovem atriz
recentemente
chegada do Sul, preparando-se para atuar na revista Rio Folhes, produzida pela
companhia de Jardel Jércolis. Emma está triste, murcha, sentada a um canto dos
bastidores.
Mal se conhecem. Noel se aproxima, pergunta-lhe o que aconteceu.
-É que vamos estrear na sexta-feira, 2 de agosto - explica ela. - Faltam poucos
dias. E eu até agora não tenho uma música para o meu quadro.
Emma diz que a revista é um alegre canto de amor ao Rio, aos bairros da cidade.
Em cada quadro se presta homenagem a um deles, Lapa, Tijuca, Copacabana, Santa
Teresa,
Leblon, Estácio.
- O meu quadro éjustamente sobre o Estácio.
- E daí?
- Não tenho uma música original para cantar, falando no Estácio. Todos os outros
artistas vão cantar coisas novas. Eu, não.
- Emma, por isso não precisa ficar mais triste, não - diz Noel carinhosamente. -
Amanhã trago uma pra você.
No dia seguinte, ele aparece de novo no João Caetano. Os ensaios do Rio Follies
estão em andamento. Emma continua triste, pensando no samba que terá de
escolher,
entre os muitos que falam do Estácio. Não crê que o compositor vá cumprir sua
promessa. Noel se aproxima mais uma vez.
- Aqui está.
- O quê?
- Um samba pra você. Sobre o Estácio. Não é dos melhores, pois foi feito às
pressas, de encomenda pro seu quadro.
Noel, acompanhando-se ao violão, ensina-lhe o samba escrito especialmente para
ela. Não é dos melhores? Feito às pressas? De encomenda? É imprevisível este
Noel
Rosa. Todo cheio de desculpas e no entanto traz para Emma D'Ávila cantar não
menos que um samba irretocável, de melodia perfeitamente ajustada a uma letra
que é
ele do primeiro ao último verso. A
simplicidade e a autenticidade do Estácio, sua escola de samba valendo muito
mais do que um palácio de Copacabana. O samba, O X do Problema, não podia ter
sido escrito
por outro. Música e letra. Para identificar Noel nelas, bastariam os dois versos
finais:

Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê.
Nasci no Estácio
O samba é a corda, eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você.
Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há.
Já fui convidada
Para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é
O X do problema.
Você tem vontade
Que eu abandone o Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana.
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia de Copacabana.
370

Imprevisível e cheio de talento. Confuso, também. Não é que, dias depois de Emma
lançar o samba, coberta de aplausos, no Rio Follies, ele encontra Aracy de
Almeida
jogando sinuca num café da Rio Branco? Pois assim que ela lhe pergunta se tem
algo de novo, um samba, uma marcha, que possa gravar ou cantar no rádio, Noel
simplesmente
diz:
- Tenho, tenho sim.
E escreve num maço de Odalisca a letra de O X do Problema. É claro que sem saber
que para o resto da vida Aracy e Emma disputarão a nonra de ter sido para elas
que
ele fez um de seus maiores sambas.(5)
Não é menos intensa sua atividade no rádio. Sem ter contrato de exclusividade
com ninguém, vive saltando de um lado para outro. Continua no Programa
Suburbano, de
Luís Vassalo, mas também se apresenta no Casé, agora na PRA-2, Rádio Sociedade
do Rio de Janeiro, instalada no terceiro andar da Rua da Carioca, 45. Com
Patrício
Teixeira, pode ser ouvido ainda em sensacionais "desafios em série" na Mayrink
Veiga, nos mesmos três quartos de hora em que atuam Luís Barbosa, Aurora
Miranda,
Ismênia dos Santos e a cantora lírica Maria Amorim.
Esforça-se muito para apresentar sempre números novos em seus programas. Se não
inteiramente inéditos, ao menos versos recém-inventados, para sambas de sucesso
como
Feitiço da Vila. É assim que acrescenta, à letra gravada no ano passado por João
Petra de Barros, mais duas estrofes exaltando o seu bairro, por ele cantadas no
rádio:
Quem nasce pra sambar
Chora pra mamar
Em ritmo de samba.
Eu já saí de casa olhando a lua
E até hoje estou na rua.
A zona mais tranqüila
É a nossa Vila,
O berço dos folgados.
Não há um cadeado no portão
Pois lá na Vila não há ladrão!

Uma breve volta à infância, não só pela referência ao choro pra mamar em ritmo
de samba, mas sobretudo àqueles tempos em que Vila Isabel gozava a má fama de
atrair
ladrões, seus moradores sempre sobressaltados com assaltos que ocorriam até nos
bondes. Mas esse tempo, garante Noel nos novos versos de Feitiço da Vila, já
passou,
todo o bairro podendo se orgulhar de dormir sem cadeado no portão.
Era a oportunidade que Wilson Baptista esperava para entrar novamente em ação.
Depois que Noel nem ligou para o seu Mocinho da Vila, dando praticamente por
encerrada
uma polêmica musical que não lhe convinha, Wilson saiu de cena. Ainda é um
malandreco, ainda anda de chapéu de lado e tamanco arrastando, num permanente
dividir-se
entre subempregos e a desesperada busca de uma chance de se firmar no meio
artístico. Acaba de formar com o pianista Lauro Paiva, o baterista Roberto
Moreno e o
cantor e compositor Erasmo Silva um pequeno conjunto que se tem apresentado em
cidades do interior fluminense. Mas quem sabe disso? Quem toma conhecimento de
suas
músicas? Wilson continua fiel ao seu sonho: "Ainda vou ser algum troço na
vida..." Mas há sonhos difíceis de realizar. Por isso é preciso aproveitar as
oportunidades.
Todas elas. Sabe que nenhum compositor popular brasileiro está tão em evidência
quanto Noel nesses dias em que o Brasil inteiro canta Feitiço da Vila. E não
perde
tempo. Certo de que, reabrindo a polêmica, provocando Noel, obrigando-o a tomar
conhecimento do que diz e faz, chamará a atenção do meio musical e mesmo do
grande
público para o seu nome, compõe um samba, Conversa Fiada, que responde
literalmente a Feitiço da Vila.

É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço,
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.
Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer
E conhecer o berço dos folgados
A lua nessa noite demorou tanto
Me assassinaram um samba
Veio daí o meu pranto.

Ao contrário de Mocinho da Vila, Conversa Fiada não ficará de todo ignorado. O


grande público não chegará a perceber-lhe o sentido e as inegáveis qualidades (o
ajustamento
de ritmo e melodia, por exemplo, já contém elementos que permitem antever o
grande sambista que Wilson Baptista ainda será). Mas alguns intérpretes como Leo
Villar,
Mário Moraes e Luís Barbosa verão nesta provocação a Noel um bom número para
enriquecer seus repertórios, e de fato o incluirão em algumas de suas
apresentações
em rádio, sem no entanto gravá-lo.
Noel não pode deixar de dar importância a esta nova carga de Wilson. Primeiro,
por se tratar de um samba indiscutivelmente bem-feito.
371

Depois, por ver o seu Feitiço da Vila tão literalmente respondido e seu bairro
tão debochada-mente atacado. Desde logo sabe que, se se der ao trabalho de um
contra-ataque,
este tem de ser definitivo, mortal.
-Noel, tem gente aí falando mal da Vila- contam-lhe moradores do bairro como se
a exigir providências.
-Já sei, já sei... - responde já pensando no contra-ataque, que vem mesmo em
termos definitivos, mortais, na forma de um samba intitulado Palpite Infeliz,
dos mais
bem elaborados de toda a obra de Noel Rosa. Dos mais populares e perenes também.
Alvejado por ele, Wilson ainda vai se debater, tentar reagir, apelar para
estocadas
pessoais e insultuosas. Mas com o tempo compreenderá que o duelo chegou ao fim.
Sua admiração por Noel, já grande, crescerá ainda mais. Palpite Infeliz, mortal,
definitivo, é um golpe de mestre:

Quem é você que não sabe o que diz?


Meu Deus do céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também.
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo,
Ao som do samba dança até o arvoredo.
Eu já chamei você pra ver,
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente.
Pra que ligar a quem não sabe Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

Obra-prima da música carioca, o samba ficará gravado para sempre na memória do


povo. E muito especialmente na do jovem, talentoso e ainda desconhecido Wilson
Baptista
(já em seu primeiro verso Noel nos chama a atenção para este detalhe: "Quem é
você...?"). Porém, mais do que um contra-ataque, um fim de duelo, um desfecho de
polêmica,
Palpite Infeliz é obra sutilmente integradora, promove a confraternização do
mundo do samba, defende Vila Isabel com elegância, sem situá-la acima do Estácio
de
Sá, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz, Matriz. Sutileza de Noel Rosa que, ao
comentar uma partícula, atinge todo um universo.

NOTAS
1. A Voz do Radio, 11 de abril de 1935. Noel cita Cícero corretamente: Pátria
est, ubicumque est bene, diz o orador latino em suas Tusculanae Disputationes,
citando
por sua vez frase atribuída pelo poeta Marcus Pacuvius a Teucro, primeiro rei de
Tróia.
2. A Voz do Rádio, 11 de abril de 1935.
3. No mesmo prédio em que anos mais tarde, ao lado do Museu da Imagem e do Som,
funcionaria o Arquivo Almirante.
372.

OPERETAS E CONVERSAS DE ESQUINA

Capítulo 37

Não entendendo a opereta Fizeste a careta Pior do planeta


A Melhor do Planeta
este conturbado 1935 - crítico para a economia, sangrento para a política,
trágico para Noel Rosa - o rádio é mais do que nunca a mágica que encanta os
milhares
de brasileiros cujos receptores estão sintonizados com qualquer das quatorze
emissoras que funcionam no Rio de Janeiro. Em quatro delas Noel atua: Rádio
Guanabara,
a PRC-8, no mesmo Programa Suburbano em que se deu a primeira audição de Só Pode
Ser Você; Rádio Mayrink Veiga, a PRA-9, dos tais "desafios em série" com
Patrício
Teixeira (o primo Jacy Pacheco, numa de suas visitas ao Rio, ficará boquiaberto
ao vê-los, Noel e Patrício, criando geniais improvisos já no táxi, a caminho da
emissora,
para só terminarem muito tempo depois de findo o programa); Rádio Sociedade do
Rio de Janeiro, a PRA-2, no Casé; e Rádio Club do Brasil, a PRA-3, que vai
representar
novo, fértil e curioso capítulo em sua vida profissional.
Mágica. A própria ubiqüidade de Noel, judeu errante do éter, tem qualquer coisa
de inacreditável. Como é possível estar em tantos lugares quase ao mesmo tempo?
Espetáculos
em cinemas, teatros e clubes, festas em homenagem à imprensa, atos variados aqui
e ali. Hoje é uma tarde em benefício da Casa dos Artistas. Amanhã, uma "noite
cheia
de estrelas" promovida por A Voz do Rádio no Instituto Nacional de Música, onde
é obrigado a trisar um de seus números. Tudo isso é, é claro, o rádio.
Pura mágica. Por um lado, capaz de encantar o ouvinte, de afastá-lo um pouco da
dura realidade destes tempos difíceis. Por outro, de fazer de seus artistas -
Noel
Rosa entre eles - nomes de grande popularidade. Todos falam de rádio, comentam o
rádio, discutem o rádio. Na imprensa principalmente. A A Voz do Rádio e Syntonia
juntam-se novas publicações especializadas, ainda que de duração efêmera.
Jornais e revistas ampliam suas seções dedicadas ao rádio e à música popular.
Multiplicam-se
os colunistas, uns se ocupando dos sempre lidos mexericos, outros da crítica e
da informação séria. Há enorme curiosidade em torno dos artistas do microfone.
Quem
é, o que faz, o que pensa, tudo a seu respeito interessa ao ouvinte. Um
interesse que a imprensa faz força para satisfazer. Por exemplo, é ainda A Voz
do Rádio que
publica reportagem de capa sob o título "O que eles fazem quando saem dos
estúdios"1, nela revelando aos leitores a paixão de Hervê Cordovil, Arnaldo
Amaral e Jayme
Britto pela sinuca. E o gosto de Custódio Mesquita e Noel Rosa pelas caminhadas
noturnas no centro da cidade, os dois convivendo com os mais diversos habitantes
da
373

madrugada (Custódio e Noel são fotografados ao lado de William Faissal provando


guloseimas do tabuleiro de uma baiana, na Praça da Candelária, e também com
Príncipe
Baby, "o apreciado speaker diplomata da .tadio Cajuti", conver sando com garis
na hora da limpeza). César Ladeira, na mesma reportagem, é ouvido em seu Citroen
amarelo
"rumo ao lado bom da vida..."
"- Vocês querem saber o que faço quando deixo a estação?" - pergunta e logo
responde o famoso locutor: - "O mesmo que aquele expresso paulista quando chega
na serra
da Mantiqueira: fico fora da estação..."
Quando se diz que Noel é uma espécie de judeu errante do éter, apenas se repete
o que todo o mundo comenta. Por exemplo, a revista Carioca:
"Os judeus, como é sabido, não se fixam em parte alguma. Erram pelo mundo afora,
à procura da terra prometida por Israel, seu Deus, sem entretanto encontrá-la
nunca.
Há artistas de rádio assim. Correm todas as estações, não achando, porém, aquela
em que se devem insta lar definitivamente. Ao contrário, outros há que começam
numa
emissora e ali ficam para sempre, querendo, com isto, dar uma prova de gratidão
a quem lhes abriu a estrada do triunfo. Entre os judeus errantes, temos
Francisco
Alves, Aracy de Almeida, Sílvio Caldas, Noel Rosa, Jayme Britto e Walter Brasil.
No grupo dos constantes, en contram-se Patrício Teixeira, Mário Reis, Carmem e
Aurora
Miranda, João Petra de Barros, Oswaldo Gonçalves e Moreira da Silva. Todavia,
isto não importa, porque uns e outros ganharam fama e são hoje figuras
indispensáveis
ao nosso broadcasting. "2
Judeu errante, artista eclético. Pois nas quatro emissoras em que se apresenta,
quase todos os dias, vai-se dividir entre muitas atividades: cantar sambas seus
em
primeira audição, participar de desafios, escrever textos publicitários, criar
paródias, contar anedotas, cuidar de discoteca, atuar como contra-regra, cantar.
Nem
tudo fará bem, a julgar por alguns críticos que ainda lhe torcerão o nariz ao
ouvi-lo interpretar composições alheias(3).
De todas essas atividades radiofônicas, a mais fértil e curiosa será mesmo a que
exercerá na Rádio Club do Brasil nos sete meses que vão de agosto de 1935 a
fevereiro
de 1936. Instalada no terceiro andar da Rua Bittencourt da Silva, 21, esquina
com o Largo da Carioca (no mesmo prédio onde, a poucos metros do Nice, funcionam
o
Bola Preta e o jornal O Globo) , a emissora vem transmitindo programação
nitidamente voltada para o novo, o original. Portanto, sob medida para Noel
Rosa.
É de Almirante, há mais de um ano no castas. Club do Brasil, a iniciativa de
contratar o amigo e parceiro. Ao saber que Noel voltou de Belo Horizonte gordo,
saudável,
precisado de dinheiro, mas acima de tudo disposto a levar o trabalho mais a
sério, o ex-líder do Bando de Tangarás decide ajudá-lo. E ajudar-se também.
Almirante tem mesmo rara vocação para o rádio. Inteligente, inventivo, dinâmico,
sempre alguns passos à frente dos demais, há de ir muito longe. Dentro de sua
convicção
de que esta é realmente uma espécie de mágica onde cabem mil truques, acabará
fazendo história. Henrique Foreis Domingues, o Almirante, a quem César Ladeira
rebatizou
de "a maior patente do rádio", será, enquanto o rádio permitir, um de seus
artistas mais completos e certamente o mais brilhante de todos os seus
produtores.
De início, Noel é contratado para catalogar os poucos discos da emissora e
tratar da parte burocrática ligada ao pagamento dos cachês aos artistas. Para
seu talento,
claro que é pouco. E logo Almirante o requisita para dois de seus novos
projetos. Um, sketches para acrescentar um pouco de humor à programação da
emissora. Isto
é, entre um número musical e outro, coisas que façam o ouvinte rir. Noel fica
incumbido de recolher em velhas revistas e almanaques piadas que ele mesmo monta
em
forma de diálogos intitulados "Conversa de Esquina". Nada mais que bate-papos
meio puxados ao non sense entre um certo Bonifácio e um tal de Albuquerque. Eis
algumas
piadas que Noel recolhe e vai anotando para usar como matéria-prima de seus
sketches. Uma:
'- O seu patrão está?
- Não, senhor. Saiu.
- Pode me dizer quando ele volta?
- Espere um pouquinho que vou perguntar a ele!"
Outra:
"- A quem devemos o maior esforço para a elevação da mulher?
- Ao inventor do salto alto!" Outra mais:
'- Por que estás triste, querida?
- O nosso gato comeu o bolo que eu fiz para a sobremesa!
- Não chores, meu amor! Se o gato morrer eu te arranjo outro!"
Mais uma:
"- O senhor me pede 100 mil réis por este quadro? É muito caro!
- Parece... Mas olha que só a tela me custou 50 mil réis.
- Sim, mas quando o senhor a comprou ela estava limpa!"
E algumas outras que vai encontrando e
374

anotando. Como se vê, piadas menos engraçadas do que as que ele próprio poderia
contar se recorresse mais à irreverência carioca das ruas e dos botequins do que
à ingenuidade dos almanaques. De qualquer modo, é delas que sairão as falas de
Bonifácio e Albuquerque nas "Conversas de Esquina".
O segundo projeto de Almirante é muito mais ambicioso e interessante: um
programa semanal de meia hora sob o título "Como se as óperas célebres do mundo
houvessem
nascido aqui, no Rio..." Na verdade, seriam pequenas óperas bufas cariocas, com
muito humor e deboche, os textos inspirados nos enredos e personagens das óperas
clássicas, mas os números musicais não passando de paródias de canções populares
brasileiras.
As paródias - todos sabem - são uma velha mania de Noel. Basta que nos lembremos
das que ele andou fazendo em cima do Hino Nacional. E também as que foram
escritas
sobre as melodias de Gigolette, Casinha da Colina, Suçuarana, Diga-me Esta
Noite, Cheek To Cheek. Paródias como esta, do tango El Penado 14", transformado
em Pesado
13 e gravado por
Paulo Netto de Freitas em 1931, contando a tragicômica história de um
prestamista:
Num quarto solitário
Na Rua do Rosário
Com um 13 bem na porta
Um turco lá morou
Disse o seu patrício
Que ele morreu no hospício
E cheio de aflição
Porque engoliu um tostão.
O seu nome era Rachid,
Abdula ou Farid,
Nascido na Turquia
Criado na Bahia
Ele era prestamista e vigarista
Nunca perdeu de vista
O bolso de ninguém
Por causa de um vintém.
Seu quarto todo escrito
Com contas de somar
E de multiplicar
Não tinha dividir
E por economia
Pra não gastar seu sangue
Com as pulgas já famintas
Ficava sem dormir.
Em uma carta escrita
Deixava como herança
Ao filho inda criança
As contas por cobrar
Ele era precavido
Pro caixão ser pequeno
Morreu bem decidido
De cócoras, encolhido.
E o pesado 13
Em uma sexta-feira
Também num dia 13
Faz hoje quase um ano
Que teve o intestino
Por choque fraturado
Pois foi atropelado
Por um aeroplano.
Num dia em que um amigo
Ao lhe pedir abrigo
Ao ver aberta a porta
Quase morreu de horror
Pois viu por sobre a cama
O terno de Farid
E viu dependurado
Abdula num cabide.
Ou como esta, da belíssima valsa-canção Dona da Minha Vontade(5), em que o tom
lírico, apaixonado, da letra original, é substituído por versos inspirados na
penúria
do carioca (o prestamista mais uma vez revisitado), que Noel prefere chamar de
Dono do Meu Nariz:
375

Conversas de Esquina
- Olá, Bonifácio! É verdade que estás casado?
- Por enquanto, não! Mas ando procurando uma esposa ideal para um doutor como
eu.
- Qual é a esposa ideal para um doutor?
- Ora, essa! Uma pequena imbecil!
- Por que imbecil?
- Para que não se meta em meus negócios e faça todas as minhas vontades!
- Ora, Bonifácio! Escolhe qualquer uma e fica descansado! A mulher que casar
contigo há de ser forçosamente uma imbecil!
- Por falar em imbecil, eu me lembrei agora do teu alfaiate!
- Por que eu lhe passei o calote?
- Não! Porque ele te fez estas calças muito curtas!
- Não concordo contigo, Bonifácio! As minhas calças estão muito bem-feitas! As
minhas pernas é que estão muito compridas!
- Por falar em compridas, eu me lembrei agora das línguas das minhas vizinhas!
-Já sei que vais mudar de casa!
- Adivinhaste, Albuquerque!Mas... não é só por causa das más línguas que vou me
mudar. É porque minha casa, cujo aluguel é de 800 mil-réis, é tão pequena... tão
pequena que eu nem tenho lugar para ler os jornais aos domingos!
- Mas... por falar em domingo, tu vais assistir às corridas nojockey Club?
- Não! Deus me livre!Eu ando muito pesado.
- E eu também, Bonifácio! O meu azar é tão grande... que qualquer dia me enfio
nessas caixas de papéis da Avenida.
- Não faça isso, Albuquerque! Isso é um "papel sujo"! (Risadas)
- Olá, Albuquerque! Você anda sumido! Por onde tem andado?
- Estive na Europa e agora sou colecionador de moedas! A propósito: quais são as
moedas mais raras daqui do Brasil?
- São todas.
- Todas?!
- Sim, senhor. Aqui no Brasil as moedas são raras! Há três meses que não vejo
uma!
- Esta é boa, Bonifácio. E você? Tem clinicado muito?
- Não. Deixei a clínica e agora faço versos.
- Mudou de profissão?
- Não! Faço versos para matar o tempo!
- Não tem mais cliente para matar?
- Que matar!... Eu ando pedindo a Deus que não me matem! Ultimamente vivo
isolado de tudo e de todos.
- Esse seu isolamento é receita médica?
- Não. É outra receita. Estou fugindo daqueles que me mordem.
- Daqueles que pensam que você é banco?
- É. Mas não "banco"! Por falar em bobo... Você está noivo?
- Estou.
- E sua noiva tem juízo?
- Se tem! Nunca ninguém teve cara de pedir um beijo à minha noiva!
- Ela é que não tem cara para que
AlGuém lhe peça um beijo.. (Vaia)
- Olá, Bonifácio! Então tu não me viste ontem na Praia do Flamengo?
- Não!Havia lá tanta gente... que eu não vi ninguém!
- Pensei que estivesses com a "abóbada" da vista estragada!
- Não! Mas meu médico falou que eu perdi o "paladar" do ouvido!
- Por falar em ouvido, quase dei um tiro no ouvido, ontem.
- Por que, Albuquerque?
- Porque a Genoveva desmanchou o nosso noivado!
- Então, tu compreendes o suicídio por amor?
- Compreendo e admito!
- Eu não admito! Se eu me matasse por uma mulher... ficaria arrependido o resto
de minha vida!
- Mas, por falar em arrependido, tu deves estar arrependido de fumar.
- Não compreendo. Arrependido de fumar? Por quê?
- Porque Furaste tuas calças novas com o cigarro!
- Estás enganado! Estes dois buracos que tenho nas calças fazem o papel de
ventiladores!
- Mas... podes apanhar um resfriado!
- Qual o quê, Bonifácio! O vento entra por um buraco e sai pelo outro!

- Boa-noite, Albuquerque! De onde vens e... para onde vais?


- Acabo de sair do Restaurante Chinês e... vou à farmácia!
- Tenho a impressão de que jantaste bem!
- Estás enganado, Bonifácio! Não jantei bem!
- Mas... em compensaçãopagaste mal! E... se eu te disser que ainda estás
jantando?
- Eu te direi que estás maluco!
- Maluco por quê?
- Porque eu não sou ruminante! Tu é que estás ruminando a filosofia que não
digeriste bem!
- Dize-me cá: onde comem três... não comem quatro?
- Sim!
- E onde comem dois... não comem três?
- Perfeitamente! Mas o que tem isso?
- Aposto contigo mil e duzentos réis, que é o preço do teu jantar, como tu ainda
estás jantando na sala.
- Mas que idéia, Bonifácio! Isso é um absurdo!
- Absurdo, não senhor! Se onde comem três, comem quatro... e onde comem dois,
comem três... onde come um, quantos comem?
- Comem dois!
- Isso mesmo, Albuquerque, estás me ajudando! Se onde come um, comem dois...
onde nenhum come... come um forçosamente!
- Chega, Bonifácio! Parei contigo! Toma os mil e duzentos réis!

Miséria... de vez em quando Prestamistas recitando Minhas contas no portão E a


criada, calmamente, Diz que eu estou ausente E não lhe deixei tostão... Mas
alguém
que está gozando Porque vive me manjando Percebeu que eu não saí... E aspiro no
terreiro L'Origan de galinheiro Meu UOrigan de "galli"...6
E no meu ninho de penas Vejo aves tão serenas A quem dei milho na mão O vendeiro
por afronta Suspendeu a minha conta E eu vou ficar sem feijão... Dono deste meu
nariz, Não paguei porque não quis.. Não sou de todo infeliz
Por consolo vou gritando: Neste meu nariz eu mando... E... galinha não tem
nariz!
Ou ainda esta, de outro tango7, aqui con vertido em Negócio de Turco, contendo
novas referências ao prestamista e aos imigrantes espertos que Noel não consegue
deixar
em paz:
Seu Jorge turco
tem três anos de Brasil
E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês.
Comprou por cento e um mil e cento e vinte réis
Uma barata pra passear com a mulata
Que ele roubou de um português.
E a mulata que era torcida do Vasco da Gama
Pra comprar colchão,
vendeu a cama E jejuava trinta vezes todo o mês
E hoje anda chique e é tratada com
376

todo carinho
Já desfalcou o caixa do armarinho
Pra reerguer o Sírio Libanês.
O seu "Maneli"
chamou o Jorge de João Banana
E já marcou um dia na semana
Pra resolver aquele caso a cachações
O Jorge disse
que a banana às vezes tem sementes
E pra vender entrada aos assistentes
Só aceita a luta em doze prestações.

Paródias como Que a Terra Se Abra, feita a partir da marchinha Idenf, do último
carnaval:

Eu quero que vocês todas se suicidem


E a sua sogra... idem!
Quero que a terra se abra
Quero assistir uma dança macabra
Quero que todos se comam E o mundo se acabe
E o resto você sabe...
Quero um dilúvio colosso Chuva de fogo à hora do almoço Chuva de pedra ao jantar
Que o teto desabe E o resto você sabe...
O segundo projeto de Almirante não passará disto: um projeto. Por não
entusiasmar a mais que duas pessoas - o próprio Almirante e Noel - será posto de
lado. Mas
não sem antes o parodista incorrigível trabalhar nele com indisfarçável gosto.
Nas enormes papeletas de programação da Rádio Club do Brasil, escreve à mão um
programa
inteiro e deixa outro esboçado. Duas "revistas radiofônicas", segundo sua
377

própria classificação, mas na verdade duas "óperas bufas cariocas" como


Almirante imaginara.
A primeira é O Barbeiro de Niterói. Como se a célebre IlBarbiere di Siviglia não
houvesse nascido lá nem aqui no Rio, mas do outro lado da baía. Enfim, uma
paródia
da ópera cuja popularidade, desde sua primeira encenação em 1816, não pára de
crescer. Em vez da música de Rossini, Noel utiliza coisas mais nossas e mais
atuais:
as valsas Teus Ciúmes e Boneca, ambas do repertório de Sílvio Caldas, e o seu
próprio samba Cordiais Saudações, que aliás o mesmo Sílvio lançou no teatro,
anos atrás,
num dos quadros da revista Mar de Rosas(9). Já do texto original de Sterbini,
são aproveitados o enredo, certas passagens mais marcantes (a serenata, o leva-
e-traz
de bilhetes, os disfarces, a aula de canto, a fuga à meia-noite), o mote
"precaução inútil" que o libretista foi buscar em antiga comédia de Beau-
marchais10 e os
personagens. Só que o doitore Bartolo se transforma em dom Bartolo, um português
dono de armazém; Rosina, sua pupila, numa bela mulata; o Conde de Almaviva,
fidalgo
espanhol, em Alma Viva, bicheiro daqui mesmo; e Fígaro, o barbeiro de Sevilha,
em Fígaro, o barbeiro de Niterói.
Mas há muito de Noel nos quatro breves atos desta ópera bufa carioca. O
português que explora a mulata e ao mesmo tempo a cobiça, a força do dinheiro, o
bicheiro
herói em vez de vilão, verdades e mentiras, tudo isso são temas seus. E, embora
as músicas tenham sido colhidas no repertório de Sílvio Caldas, é ainda em
Francisco
Alves que Noel pensa quando faz suas paródias. Seja cantando os primeiros versos
de uma canção de Chico ("Ordena, fala, insinua..."), seja citando-o com todas as
letras pela boca de dom Bartolo. Por fim, quando Alma Viva, o bicheiro, diz que
"a música é boa e a letra é melhor ainda",
referindo-se à paródia de Boneca, Noel nada mais faz do que chamar a atenção
para sua própria habilidade em converter os versos originais de Aldo Cabral (uma
sucessão
de empoladas imagens para exaltar a beleza da mulher amada) num breve poema
satírico que descreve a figura detestável de um imortal Pão-Duro.
A outra "revista radiofônica" - que ficará no esboço - chama-se Ladrão de
Galinha. Em que terá se inspirado Noel ao escrevê-la? Certamente não numa ópera
conhecida
como IlBarbiere di Siviglia. Nem existe no repertório lírico corrente algo que
se assemelhe, no título ou no enredo, a esta estranha farsa onde até um galo
adquire
vida, canta e, no fim das contas, vai preso. Entre as operetas, a mesma coisa. A
impressão que fica é de que a história, com todos os seus absurdos, seria a
primeira
tentativa de Noel
no sentido de escrever uma peça original. Pode ser. É verdade que ele dá aos
personagens nomes bem "operísticos" (Diogo, Josefina, Geno-veva), mas tudo o
mais é
uma extravagância musical carioca que nenhum libretista de ópera
ousaria pôr no papel.
Mais uma vez Noel recorre à música popular brasileira de agora ao produzir suas
"árias". A partir de um samba do carnaval passado (Foi Ela), de duas marchas do
próximo
(Ganhou, Mas Não Leva e Marchinha do Grande Galo) e do seu próprio Palpite
Infeliz, compõe as paródias de Ladrão de Galinha, cuja sinopse e letra se seguem
tal qual
Noel as escreveu nas papeletas da Rádio Club:
"Ladrão de Galinha
1? ato
A cena se passa no Meyer, entre dois namorados: Diogo, ladrão de galinha, e
Josefina, cozinheira de Madame Genoveva. Josefina, depois de muita insistência
de Diogo,
promete a este deixar o portão aberto. Diogo penetra à meia-noite no galinheiro
de Madame Genoveva e consegue agarrar um galo, por meio de bomba de gás
lacrimejante.
Na volta, porém, ele tropeça na lata de lixo... O galo canta uma Canção do Galo
Capão16 e Madame Genoveva apita:
Có... có... có... có... có... có... ró Có... có... có... có... có... có... ró Eu
hoje estou com gogó Não aperte o meu gogó.
Você é ladrão de galinha
Quem me informou
Foi a minha vizinha
Sou galo e... se você me roubar
O papagaio hoje vai
Me desmoralizar.
Diogo levanta com o galo e corre vertiginosamente... mas, ao virar a esquina, é
atropelado por uma carrocinha de leite. Madame Genoveva, que vem correndo de
camisola,
efetua a prisão de Diogo. Chega o comissário que leva ambos para o distrito.
Madame Genoveva diz que o ladrão de galinha é namorado de sua cozinheira. O
comissário
intima Madame Genoveva a voltar no dia seguinte com a cozinheira Josefina. O
comissário canta para Diogo a marcha Roubou, Mas Não Leva17:
Você roubou...
Roubou mas não leva
O galo é da Genoveva!
Você entrou... agarrou o galo e se pirou
Pirou mas tropeçou
Esse capão vagabundo que nem raça tem E dela e de mais ninguém.
Fim do 1o ato.
378

O Barbeiro de Niterói
1o ato
Overture
Rosina: Dom Bartolo! Já estou cansada de aturar o senhor e a sua casa de secos e
molhados!
Dom Bartolo: Calma, Rosina! Estás nervosa hoje, meu benzinho?
Rosina: Sim, senhor! Estou nervosa e o senhor sabe por quê.
Dom Bartolo: Por quê?
Rosina-. Então o senhor não sabe que minha neurastenia é causada pelo excesso de
trabalho e pela falta de distração? Eu trabalho mais que uma escrava e me
divirto
menos que uma freira. O senhor nunca me deu mil e cem réis para um cinema!
Dom Bartolo: (canta Condeno o Teu Nervoso)li
Condeno o teu nervoso
Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter
No meu torrão natal
Me chamam de herói
Já tenho capital
E brevemente compro Niterói...
Condeno o teu nervoso
Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter
Condeno o cinema
Que é mau conselheiro
E não é o meu sistema
Esbanjar dinheiro.
(Batem à porta)
Polícia: Abra em nome da Lei!
Dom Bartolo: Ah! É a polícia! Pode entrar! Eu sou negociante nonesto.
Polícia: Nós estamos procurando o bicheiro Alma Viva e... parece que ele entrou
aqui!
Dom Bartolo: Viste o Alma Viva, Rosina?
Rosina: Se o senhor não viu, muito menos eu! A última vez que o vi foi
anteontem, quando entreguei a lista que o senhor mandou.
Polícia: Até logo! Se o senhor encontrar esse bicheiro telefone para o distrito.
Dom Bartolo: Está bem!
(Barulho de porta que se fecha)
Rosina: Boa-noite, Dom Bartolo! Já são horas de dormir!
Dom Bartolo: Boa noite, Rosina, e... não se esqueça de levantar mais cedo para
conferir a caixa antes do armazém abrir.
(Na rua)
Alma Viva: Õ, Fígaro! Como vais? mmm Fígaro: Alma Viva!? A polícia
anda à tua
procura. Tem cuidado! Todos os meus fregueses da barbearia já sabem que estás em
Niterói!
Alma Viva: Agora, eu mudei de nome e me chamo Lindoro, o empresário. Vou pôr um
bigode postiço e raspar o cabelo. Ficarei horrível e irreconhecível!
Fígaro: Soube que estas apaixonado pela Rosina. É verdade?
Alma Viva: É. E quero que me auxilies.
Fígaro: Por que não cantas agora debaixo de sua janela? Aqui está o meu violão!
Rosina é louca por uma serenata.
Alma Viva: É esta a janela?
Fígaro: É! Pode começar!
Alma Viva: (dá uns acordes no violão e canta)
Ordena, fala, insinua, Dize o que queres de mim, Jardineiro...
Dom Bartolo: Ó, seu jardineiro! Vá cantar no jardim zoológico! Eu trabalhei o
dia inteiro e... você não me deixa dormir.
Alma Viva: A serenata não é para o senhor!
Dom Bartolo: Que não é para mim, eu bem sei! Você pensa que Rosina se deixa
iludir com cantigas?
Alma Viva: O senhor está fazendo mais barulho do que eu e... daqui a pouco o
guarda municipal nos vem meter o pau!
Dom Bartolo: Eu faço barulho porque estou na minha casa e... ninguém me prende.
Você é que vai preso!
(Apitos, gritaria)
Fim do 1? ato.
2? ato
Rosina: Fígaro! Eu preciso que você me faça um favor!
Fígaro: Com muito prazer, dona Rosina! O que manda?
Rosina: Queria que você entregasse este bilhete ao Alma Viva. Mas... não deixe
dom Bartolo perceber!
Fígaro .Já adivinhei o que a senhora escreveu no bilhete! Naturalmente, não
gostou da serenata e pede para que ele não a procure mais! Não é isso?
Rosina: Nada disso! Eu vou ler para você ouvir... (canta Envio Estas Mal
Traçadas Linhas)
Envio estas mal traçadas linhas
Que escrevi a lápis
Por não ter caneta
Andas perseguido
Para que escapes
Corta teu cabelo e põe barba preta.
379

Em vão te procurei
Noticias tuas não encontrei
Mas, ontem, te escutei
E este bilhete ao Fígaro entreguei.
Sem mais, para acabar
Recebe o beijo
que vou mandar
Eu amo...
com o amor não brinco.
Niterói, 30 de outubro de 35.
Fígaro: Muito bem, dona Rosina! Aí vem dom Bartolo! Até logo!
Rosina: Até logo, Fígaro, e... obrigada!
Dom Bartolo: O que é isso, Rosina?
Rosina: Nada!
Dom Bartolo: Não mintas! Entregaste um bilhete ao barbeiro! Para quem? Responde,
Rosina!
Rosina: (gaguejando) O... o... bilhete que eu mandei foi... foi para o
sapateiro.
Dom Bartolo: Sapateiro!
Rosina: Sim, senhor! O sapateiro está demorando a mandar os meus sapatos!
Dom Bartolo: Não mintas, Rosina. Já me disseram que tu gostas de um tal Lindoro,
empresário!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Quá! Que gente mentirosa...
Dom Bartolo.- Rosina! Tu és muito mais moça do que eu. Mas...
Rosina: Mas... o quê?
Dom Bartolo: Eu sou o único homem que te pode fazer feliz. Tenho prédios...
dinheiro no banco...
Rosina: Seu dinheiro não me interessa.
Dom Bartolo: Se o meu dinheiro não te interessa... a mim, então, muito menos.
Bem que aquele Chico Viola tinha razão quando cantava:
Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher?
Rosina: (também cantando)
Quando ela quer!
Os dois: (ainda cantando)
chamo Lindoro e vim dar uma aula de canto a dona Rosina.
Dom Bartolo: Mas o professor de canto de Rosina é dom Basílio.
Alma Viva: Foi dom Basílio que me mandou substitui-lo hoje, porque ele está com
coqueluche.
Dom Bartolo: Sim! Agora estou compreendendo. Tenha a bondade de sentar! Ó
Rosina! Rosina!
Rosina: Pronto, dom Bartolo! O que deseja?
Dom Bartolo: Dom Basílio não pôde vir hoje e mandou um substituto para te
ensinar a lição.
Rosina: Creio que conheço este meu novo professor. Acho que já o vi no Cinema
Poeira!
Alma Viva: Ou então n'alguma gafieira... da Praça da Bandeira.
Rosina: Acho que não! Foi no jardim zoológico...
Alma Viva: É quase isso! Não é bem jardim zoológico, mas é negócio de bicho!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Agora sei de onde o conheço!
Alma Viva: Qual foi a sua última lição?
Rosina: Eu estava aprendendo a ária Precaução Inútil.
Alma Viva: Precaução Inútil? O título é muito bonito! Tenha a bondade de cantar
essa ária.
Rosina: Eu hoje estou um pouquinho rouca. Por isso, espero que o senhor não
repare... (canta Precaução Inútil)(15)

Eu vi num armazém de Niterói


Um velho que se julga herói
E teima em ser conquistador.
Lá no Banco do Brasil
Depositou mais de três mil
Botando água no vinho do barril.
Seus lábios só se abriam pra falar
Das velhas contas a cobrar,
Dos que morreram sem pagar...
Eram lábios agressores,
Dois grandes cobradores
Dos seus devedores.
Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher...
Quando ela quer?14
Fim do 2? ato.
3? ato
(Pancadas na porta)
Dom Bartolo: O que deseja?
Alma Viva: Eu sou o empresário, me
Seu cabelo tinha a cor
De burro quando foge Do amansador
Seus olhos eram circunflexos,
Perplexos e desconexos,
Mãos de usurário,
Braços de sicário
Corpo de macaco, chimpanzé maduro,
Enfim, eu vi nesse velhote
Um imortal Pão-Duro!
380

(Palmas)
Alma Viva e Dom Bartolo: Muito bem! Muito bem!
Alma Viva: A música é boa e a letra é melhor ainda!
Dom Bartolo: Os senhores fiquem à vontade! Tenho que ir atender os meus
fregueses no armazém! Com licença!
Alma Viva: Pois não, dom Bartolo. Não se preocupe conosco!
(Barulho de porta que se fecha)
Alma Viva: Até que fim, minha querida Rosina!
Rosina: É verdade, finalmente estamos sós!
Alma Viva: Fígaro já te avisou que nós vamos fugir hoje à meia-noite?
Rosina: Já! E eu estou preparada para fugir contigo! Tu já sabes que dom Bartolo
incumbiu dom Basílio de trazer aqui um padre?
Alma Viva: Um padre? Para quê?
Rosina: Então não sabes que o bobo desse velho quer se casar comigo hoje?
Alma Viva: Isso é mais outra precaução inútil... (canta novos versos para
Precaução Inútil)
Seu cabelo tinha a cor
De burro quando foge
Do amansador
Seus olhos eram circunflexos,
Perplexos e desconexos,
Um bigodão
Na cara indiscreta
Feito bicicleta
com o guidon de fora
Enfim, esse velho nunca mais
Se casa com a senhora!
Fim do 3? ato.
4o ato
(Tempestade)
Dom Bartolo: Rosina, tu não deves dar muita importância a esse tal Lindoro, que
se intitula empresário e professor de canto!
Rosina: Por que, dom Bartolo? Ele não é um rapaz distinto?
Dom Bartolo: Que distinto, qual nada! Ele é um malandro que pensa que tu és
muito rica e, por isso, quer casar com o teu dinheiro!
Rosina: O senhor está enganado!
Dom Bartolo: Tu é que estás enganada, Rosina!
(Batem à porta)
Dom Bartolo: Tenha a bondade de entrar.
Dom Basílio: Boa-noite! Aqui estou eu com o senhor reverendo.
Dom Bartolo: Sejam bem-vindos! Como estão molhados! Pensei que não viessem por
causa da chuva! Querem tomar um gole de vinho?
Dom Basílio: Em nome do senhor reverendo... aceitamos a oportuníssima oferta!
Dom Bartolo: Não é bem uma oferta! Vou debitar esses dois cálices na sua conta!
(Gargalhadas)
Rosina: Dom Bartolo, eu ouvi um barulho no armazém e... creio que são ladrões!
Dom Bartolo: Senhores, com licença! Eu vou até o armazém e volto já!
(Batem à porta)
Rosina: Quem é?
Alma Viva: É Fígaro e seu companheiro!
Rosina: Façam o favor de entrar!
Alma Viva: Onde está dom Bartolo, o velho que não tem miolo?
Rosina: Está no armazém, procurando gatunos imaginários!
Fígaro: Por que vocês dois não aproveitam a ocasião?
Alma Viva: Não é propriamente aproveitar a ocasião: é aproveitar o padre, para
me casar com Rosina dentro da casa de dom Bartolo! Tu queres casar comigo agora,
Rosina?
Rosina: Não quero! Faço questão de me casar contigo agora mesmo!
(Dom Basílio forçado por Alma Viva a escolher entre uma bala de pistola e um
anel de brilhantes, opta pelo segundo presente e, ao lado de Figaro, torna-se
padrinho
do casamento. Para a imensa infelicidade de dom Bartolo, este ao regressar do
armazém encontra consumada a união entre o rival e sua pupila. O enredo chega ao
fim
quando Fígaro, observando o desânimo de dom Bartolo, filosofa...)
Fígaro: Quando a juventude e o amor estão de acordo para enganar um velho, tudo
que este fizer para impedir deve-se chamar "precaução inútil"!
Fim de "O Barbeiro de Niterói"
381

Apenas um esboço. Sobras de um projeto que acabou antes de começar. Para


frustração o parodista Noel Rosa.
É provável que poucos percebam, por trás desses rascunhos radiofônicos, indícios
de uma grande e inexplorada vocação para o teatro musical. Nas situações
cômicas,
no perfil dos personagens, na construção dos diálogos, na maneira como as
canções são interpoladas à ação, mais do que indícios há a certeza de que Noel
poderia
ser um excelente autor de músicas, letras e textos para o palco. Naturalmente,
se quisesse seguir por esse caminho. E se houvesse no Brasilmais tradição no
gênero.
Se os ingleses criaram e ainda mantêm vivo o seu music hall, os franceses a sua
revue, os espanhóis a sua zarzuela, os americanos a sua musical comedy e quase
todos
os europeus a sua operetta, nós, além de não possuirmos uma forma própria de
teatro musical, as que importamos acontecem de modo descontínuo, muito hoje,
nada amanhã.
E preferimos copiar a criar, montar espetáculos nos moldes do Moulin Rouge ou do
Lido de Paris a deixar que Luís Peixoto leve adiante seu projeto de escrever
revistas
formalmente brasileiras, ou traduzir A Viúva Alegre a dar a La-martine Babo
oportunidade de ver em cena uma das tantas operetas que tem na cabeça. Luís
Peixoto,
Lamartine, Noel. Que interessante teatro musical poderíamos ter se ao menos
essas três vocações se consumassem!(20)
No caso de Noel, se alguém percebe mais do que meros indícios por trás dos
rascunhos radiofônicos, esse alguém é um húngaro de 38 anos, calvo, bigode bem
cuidado,
pele morena, simpático na maioria das vezes, mas austero, exigente até a
rispidez, sempre que o assunto é música. Chama-se Arnold Glückmann e está no
Brasil há quinze
anos, daí o português correto que fala, carregando apenas um pouquinho nos erres
brandos ou trocando, por distração, o gênero de algumas palavras.
Pianista, compositor, regente, Glückmann é desde julho do ano passado o diretor
artístico da Rádio Club do Brasil. Nada se faz ali - nem mesmo os programas de
Almirante
- sem sua aprovação. Um músico competente, respei tado, que teve de trabalhar
duro até chegar onde está. Tinha 23 anos quando desembarcou na Praça Mauá com
diplomas
obtidos em conservatórios europeus, mas de pouco valia num país de mornos
interesses pela música erudita e acirrados preconceitos contra artistas vindos
de fora
para competir com os da terra. Bom pianista, começou ganhando a vida tocando
onde quer que lhe pagassem, fosse como acompanhante de cantores líricos
medíocres em
recitais de caridade, fosse em casas de música. Numa dessas casas, na Avenida
Rio Branco, perto do Jornal do Brasil, seu trabalho era demonstrar aos fregueses
as
qualidades de um piano fabricado no Paraná e vendido ali com exclusividade. Mas
tinha valor demais para tão pouco. Ajudado pelo maestro Francisco Braga - o
mesmo
do Hino à Bandeira - foi conquistando lugar nas salas de concerto da cidade. A
12 de agosto de 1925, já o encontrávamos no palco do Teatro Municipal
acompanhando
o violinista Lambert Ribeiro num programa de peças de Bach, Tchaikovsky,
Paganini, Paderewsky, Kreisler e do próprio Lambert. E há seis anos, mais
precisamente na
tarde de 24 de outubro de 1929, movia a batuta à frente de grande orquestra, no
mesmo Municipal, na execução do Concerto em Si Bemol Maior, de Tchaikovsky. Ao
piano,
estreando na Capital da República, um gaúcho de 23 anos que acabara de chegar
aqui cheio de ambições. Seu nome: Radamés Gnattali.
Foi ainda Francisco Braga quem indicou Glückmann para organizar a primeira
orquestra da Rádio Club, logo após a fundação da emissora em 1924. Simpático na
maioria
das vezes, foi aí que o maestro revelou seu outro lado, a austeridade, a
rispidez, a intolerância no trato com os músicos sob seu comando. E tem sido
assim até hoje,
difícil, apegado a minúcias, capaz de grandes zangas quando ouve uma nota fora
do lugar. Zangas que já fazem parte do anedotário da PRA-3. Por exemplo, a seção
que
A Voz do Rádio publica sob o título Mentiras Radiofônicas, com venenosas
brincadeiras envolvendo o pessoal do meio, não vai poupar o maestro. A seção é
feita de
frases deste tipo: "Carmem Miranda não é portuguesa", "Gastão Formenti tem uma
boca pequena e bem-feita quando ri", "
Ary Barroso é gozado", "A ex-artista de rádio, Aracy Cortes, tem apenas 31 anos
de idade", "Noel Rosa e Lamartine Babo são as mais bonitas figuras masculinas do
rádio". Do exigente músico, dirá:
"O maestro Glückmann é a pessoa mais cordata deste mundo."21
Não é só a música erudita que interessa ao diretor artístico da Rádio Club do
Brasil. É grande sua admiração pelos nossos compositores populares, gosta das
canções
que eles criam, tem mesmo contribuído para que elas ganhem roupagem orquestral
(consta que muitos dos arranjos assinados por Simon Bountmann para a Orquestra
Odeon,
ouvidos nas gravações de nossos melhores cantores, na verdade são seus). É
também um apaixonado por operetas, não tivesse nascido numa época em que Áustria
e Hungria,
partes de um mesmo império, deram ao mundo os gênios de Lehár, Romberg,
Millôcker, Fali, Kálmãn, Stolz, os Strauss, o
383

Straus com um esse só e tantos outros compositores que se dedicaram à opereta. É


idéia de Glückmann um programa semanal de meia hora em que algumas das mais
famosas
"operetas vienenses" (não necessariamente de Viena, mas identificadas com o
espírito das do segundo Strauss) são radiofonizadas a partir de traduções e
condensações
supervisionadas pelo próprio maestro. Ele cuidando da parte musical, o tenor
Oscar Gonçalves se encarregando das letras, é assim que a Rádio Club tem levado
ao ar
O País do Sorriso, O Vendedor de Pássaros, Eva, Mazurca Azul, Rose Marie (em
cuja canção-título Nássara foi buscar a melodia de sua Maria Rosa, marchinha de
sucesso
no carnaval de 1934), A Gueixa, Amor Cigano, Sangue Vienense, A Princesa das
Czardas e algumas mais. Tudo dentro do capricho habitual do exigente Glückmann.
Um dia, Oscar Gonçalves cai de cama. O que fazer? Interromper a transmissão do
programa até que ele fique bom? Ou arranjar um substituto? Neste caso, quem?
Alguém
se lembra de Noel Rosa, das "revistas radiofônicas" que andou fazendo para
Almirante, de uma ou outra mãozinha que emprestou ao Oscar neste mesmo programa
de operetas.
Graças a essa oportuna lembrança, Noel passa a ser, enquanto Oscar Gonçalves não
volta, o libretista de Glückmann, trocando momentaneamente o samba carioca pelas
valsas lá de longe, as paródias zombeteiras por letras afogadas em romantismo.
Infelizmente, essas letras escritas para melodias de Lehár (seu velho "parceiro"
em
Gigolette) e outros mestres da opereta vão-se perder entre tantos papéis velhos
dos arquivos da emissora. Mas têm força e qualidade o bastante para deixar
impressionado
o difícil de agradar Arnold Glückmann. Que interessante teatro musical
poderíamos ter se ao menos a vocação de Noel Rosa se consumasse! O maestro
percebe isso. E
na primeira oportunidade o convida a escreverem juntos uma opereta original para
ser representada pelo castaa Rádio Club em uma hora de programa.
Não será uma paródia. Nem uma "opereta vienense", em cujo cardápio a valsa é
sempre prato obrigatório. Não será sequer uma opereta, embora Glückmann e Noel a
tenham
classificado assim. A peça que os dois escreverão a quatro mãos - e que terá o
título de A Noiva do Condutor- está muito mais para uma comédia musical do que
para
qualquer outro gênero. Mas não importa. O que vale é o fato de ser este o melhor
e mais importante de todos os trabalhos empreendidos por Noel Rosa em seus sete
meses de Rádio Club do Brasil. Um trabalho a que ele e o maestro se entregam com
empolgação. E que só será concluído no começo de 1936.
A história e todo o texto são de Noel Rosa. Todas as letras também. Duas das
músicas, a mesma coisa. Meros aproveitamentos de melodias que ele tinha feito já

algum tempo: Cansei de Pedira Tipo Zero. Esta última, ainda inédita, é um samba
de ritmo movediço e letra provocante:

Você é um tipo que não tem tipo


Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece
(Tipo zero... não tem tipo!)
Quando você penetra num salão E se mistura com a multidão Esse seu tipo é logo
observado E admirado todo mundo fica E o seu tipo não se classifica E você passa
a
ser um tipo desclassificado.
De modo a adaptar os dois sambas, Noel escreve uma letra inteiramente nova para
Cansei de Pedir (rebatizando-o de Cansei de Implorar), mantém o coro de Tipo
Zero,
retoca-lhe a
384

segunda parte e acrescenta-lhe nova estrofe. No mais, trabalha em estreita


colaboração com Arnold Glückmann. Uma colaboração mais do que bem-sucedida. Toda
a música
restante é do maestro, que escreve uma partitura variada e popular (marchas,
samba-canção, valsa), de harmonias trabalhadas e linhas melódicas onde
praticamente
não há notas repetidas. As letras de Noel são, do ponto de vista técnico,
perfeitas, uma sílaba para cada nota, rimas nos lugares exatos, ritmo e
acentuação irretocáveis.
Como se o fato de trabalhar com um músico sério e difícil de contentar o
obrigasse a esmerar-se mais.
A Noiva do Condutor é obra pronta. Glückmann chega a escrever, com a melodia de
uma das canções, um prólogo e um finaletto, além de esboços orquestrais que
incluem
até um naipe de cordas. O casamento de sua música com a poesia de Noel, a
tradição centro-européia de um somando-se à carioquice do outro, resultou numa
obra curiosa,
original, bem-feita.
Nela, evidentemente, a presença de Noel é muito forte, embora meio oculta pela
aparente ingenuidade da história, de acordo com o rádio bem comportado desses
dias.
Pois mesmo com esse enredo tipicamente familiar - e de tintas mais leves do que
Noel costuma usar em suas paródias não-radiofônicas - o poeta diz o que pensa da
vida e das pessoas. Salpica de ironia e crítica social a história e seus
personagens, fala da hipocrisia, do apego ao dinheiro, do amor por interesse, da
preocupação
com as aparências, de um herói rebelde como ele mesmo, capaz de trocar o anel de
doutor que a família lhe destinou por um ofício bem mais modesto.
A "opereta", por um desses motivos que ninguém explica, não irá ao ar. Por
maiores que sejam os empenhos que Arnold Glückmann fará até o fim da vida - e
por mais
que Almirante guarde para sempre os originais e a vontade de vê-la montada e
gravada - a obra mais interessante de toda a carreira radiofônica de Noel Rosa
terá
de esperar meio século para ser conhecida(22).

A Noiva do Condutor
1? ato Prelúdio
Helena: Meu querido! Já faz um mês que nos amamos e tu ainda não me disseste o
teu nome, nem a tua profissão!
Joaquim: Não te disse porque isso para mim não tem importância! Mas se queres
saber... eu me chamo Joaquim.
Helena-. Joaquim?! Joaquim de quê?
Joaquim: Joaquim Barbosa, brasileiro, solteiro, com 22 anos, vacinado,
reservista e advogado, com escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29?
andar... Estás
satisfeita agora, queridinha?
Helena-. Então tu és advogado e tens escritório na Avenida, hein? Eu bem que
desconfiava, mas o que eu mais desconfio é da sinceridade do teu amor...
Joaquim: Tu não tens razão para duvidar de mim... Fica sabendo que eu dou a vida
pelo teu amor! (canta o samba-canção Tudo Pelo Teu Amor)

Helena, linda flor de Cascadura,


Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.
Helena, minha deusa encantadora, Tu és a minha musa inspiradora Por ti serei
mendigo e até ladrão
Eu dou a vida por teu coração.
Por que desconfiar de mim, Helena?
Por que me maltratar assim, morena?
Juro pela falsidade das mulheres
Que faço tudo aquilo que quiseres.
Helena, anjo de candura,
Helena, flor de Cascadura,
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.
Morena, flor de sonho e de ventura
Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.
Morena, minha deusa encantadora,
Tem pena desta alma sofredora
Tu és a minha única ilusão
Eu dou a vida por teu coração.
Por que desconfiar de mim, Helena?
Por que me maltratar assim, morena?
Juro que tu és a rainha das mulheres
E por teu beijo farei tudo que quiseres.
Morena, anjo de candura,
385

Tem pena desta desventura


Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor!

(Barulho de trem)
Dr. Henrique: (zangado) Minha filha! O que você faz aqui no portão com este
desmiolado? Você bem sabe que eu não quero você fora de casa depois das dez
horas da
noite!
Helena: Calma, papai! Não há motivo para você ficar tão zangado! Eu fui ao
cinema e este rapaz veio me acompanhar até aqui...
Dr. Henrique: Qual cinema, qual nada, minha filha! Já estou cansado de ouvir
mentiras. Este rapaz é seu namorado! Toda vizinhança já sabe disso...
Joaquim: Doutor Henrique, permita que eu me apresente...
Dr. Henrique: Eu dispenso a sua apresentação. Vá-se embora! Suma-se daqui!
Joaquim: Mas... doutor Henrique! Eu me chamo Joaquim e sou advogado...
Dr. Henrique: Já cansei de pedir para você sumir daqui... (canta o samba Cansei
de Implorar)

Já cansei de implorar
Pra você desguiar
Dizendo que a minha filha
Ainda é muito moça para namorar
Meu Deus, que teimosia!
Desista de insistir
Na delegacia
Você vai residir.
Casar sem exibir credenciais
E sem dizer o nome dos seus pais
Não pode ser conversa para mim, Que sou doutor,
Vá-se embora, por favor
Quem casa sem ter casa não se cria
Amor sem nota não tem mais valia
Você me diz que é advogado De valor
Mas eu também sou doutor.

Helena: Papai! É inútil você desfeitear o Joaquim! Eu gosto dele e não me


casarei com outro!
Dr. Henrique: Ah! Ele se chama Joaquim? Mas... Joaquim de quê? Onde trabalha?
Joaquim: Joaquim Barbosa, advogado com escritório à Avenida Rio Branco, número
1.960, 29° andar!
Dr. Henrique: Mas eu ignoro as suas intenções com minha filha!
Joaquim: As minhas intenções são as melhores possíveis... (canta a valsa Boas
intenções)

Saiba primeiro que o senhor


não tem direito De duvidar do meu amor
Eu sou um rapaz bem-educado
Tenho dinheiro e sou advogado
Meu coração pulsando diz
Que sua filha vai comigo ser feliz
Eu sou um rapaz cuja família
Além do dote, vai me dar mobilia.
Agora, espero que o senhor
Faça o favor
de não negar a bela mão
E o coração
De sua linda morena,
Helena!
Já declarei minhas tenções
Foi o senhor que assim quis
Mas não terá desilusões:
Helena há de ser bem feliz.

Dr. Henrique: Como é para o bem de todos nós e... felicidade completa de minha
filha Helena... eu consinto que ela seja sua noiva! Mas olhe lá... (canta a
marcha
Para Bem de Todos Nós)

Foi para bem de todos nós


que consenti
Que o senhor namore Helena E entre sempre aqui
Eu não gostava do namoro no portão
Porque em frente não existe lampião
Se os vizinhos virem vocês dois a sós
Vão escrever para os jornais Falando mal de nós...

Joaquim e Helena: (juntando-se ao Dr. Henrique, cantam a segunda parte de


Para Bem de Todos Nós)

Agora que se dane a vizinhança


Porque não temos medo de lambança
Quem quiser falar mal de nós...
Bum! Vá falar mal dos seus avós... Bum!
O inventor da intriga é o diabo
Macaco, nunca olhe pra seu rabo
E dizemos a uma só voz...
Bum! Que ninguém bota rabo em nós!
Fim do 1o ato
2o ato
(Técnica: ambiente de bonde)
Condutor (Joaquim): Olha à direita! A direita!
Dr. Henrique: Não olhe, não, minha filha! Deixe lá essa carroça!
386

Helena: Para que você quer ir ao escritório do Joaquim? Vai consultá-lo?


Dr. Henrique: Não vou procurá-lo como cliente! Apenas quero ver seu escritório!
Helena: Ora essa, papai! Você desconfia do Joaquim?
Joaquim: Faz favor...? A sua passagem...? Faz favor...?
Helena: Oh! Que horror...! Olhe, papai! O Joaquim...!
Dr. Henrique: O que, minha filha?
Helena: O Joaquim é condutor! Que falso! Que miserável! Bem que papai tinha
razão! (canta a marcha O Joaquim É Condutor)

Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim é condutor
Quase que a cara me cai
Estou mudando de cor.
Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim não é doutor
No bonde agora ele vai
Sempre a dizer "faz favor!"
Ele se dizia advogado
Mas não passa de um descarado
Vamos chamar o investigador
Para agarrar esse falso doutor.
Ele se dizia advogado
Dr. Henrique: (também cantando)
Ele se dizia advogado
Helena: Mas não passa de um descarado.
Dr. Henrique: Mas não passa de um descarado.
Helena: Vamos chamar um investigador.
Dr. Henrique: Vamos chamar um investigador.
Os dois: Para agarrar esse falso doutor!
Joaquim: Quero te dizer ao menos três palavras...
Helena: Não quero mais nem te ver... Quanto mais te ouvir!
Joaquim: Helena, por favor! Deixa que te fale... nem que seja pela última vez
(canta o fox-blue Perdoa Este Pecador)

Helena, meu bem


Não tenho ninguém
Que goste de mim... de mim
Eu sou condutor
Mas não há doutor
Que te ame assim... assim
Helena, peço por favor:
Perdoa este pecador
Que tanto padeceu por ti
E volta bem humilde aqui
Se és boa, por favor, perdoa
Helena,
peço por favor
Perdoa este condutor
Que é um pobre pecador
E sofre pelo teu amor
Helena,
por favor, tem pena!
Dr. Henrique: Vá para dentro, Helena!
Joaquim: Boa-noite, doutor Henrique. Como tem passado?
Dr. Henrique: Se tenho passado bem ou mal, não é da sua conta!
Joaquim: O senhor não me conhece mais?
Dr. Henrique: Não conheço, não quero conhecer e tenho raiva de quem conhece!
Joaquim: Então o senhor tem raiva de si próprio, porque o senhor está cansado de
me conhecer...
Dr. Henrique: Cansado de aturar o seu cinismo! Nunca o vi mais gordo!
Joaquim: Então o senhor já se lembra que eu era magro. De fato, eu nunca estive
tão gordo.
Dr. Henrique: (exaltado) Se você é gordo ou magro não me interessa!
Joaquim: O senhor me faz lembrar uma fita que vi hoje.
Dr. Henrique: Que fita?
Joaquim: A fita do Gordo e do Magro.
Dr. Henrique: Que Gordo e Magro?
Joaquim: Da fita.
Dr. Henrique: Você está me querendo fazer de palhaço?
Joaquim: Por falar em palhaço, o senhor gosta de charuto?
Dr. Henrique: Que charuto?
Joaquim: Palhaço.
Dr. Henrique: Que palhaço?
Joaquim: Charuto Palhaço(23).
Dr. Henrique: Qual charuto, qual nada! Eu dou é um cachimbo de turco a você para
você nunca mais me amolar!
Joaquim: Não sabia que se comprava cachimbo a prestação!
Dr. Henrique: Mas... que prestação?
Joaquim: De cachimbo!
Dr. Henrique: Que cachimbo?
Joaquim: Cachimbo turco!
Dr. Henrique: Por falar em turco, o senhor é mais cacete do que o turco da
prestação!
Joaquim: Que prestação?
Dr. Henrique: De bofetão.
Joaquim: Que bofetão?
Dr. Henrique: Bofetão na cara dos tipos incorrigíveis como você!
Joaquim: Pelo que vejo o senhor gosta
387

de uma palestra.
Dr. Henrique: Isso de palestra é jogo para São Paulo...! Você é um tipo que está
em toda parte sem ser nada em parte alguma! Você é capaz de trair um amigo por
causa
de 200 réis e de matar uma família inteira por causa de uma média com pão e
manteiga. Você é um tipo que não existe nem nas tipografias. Você é um tipo que
não tem
tipo. É um tipo desclassificado. O seu nome devia ser "Tipo Zero" (canta o samba
Tipo Zero)

Você é um tipo
que não tem tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo
que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece.
Quando você penetra num salão
E se mistura com a multidão
Você se torna um tipo destacado
Desconfiado todo mundo fica
Que o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.
Eu até hoje nunca vi nenhum
Tipo vulgar tão fora do comum
Que fosse tipo tão observado
Você ficou agora convencido
Que o seu tipo já está batido
Mas o seu tipo é o tipo
do tipo esgotado.

Jota Barbosa: Ó Joaquim, meu rico filho! Ando à tua procura há três dias. Soube
que eras condutor! Estás maluco?
Dr. Henrique: Quem é o senhor?
Jota Barbosa: Eu sou banqueiro e me chamo Jota Barbosa! E sou pai do Joaquim!
Helena: Jota Barbosa...? Ah! Conheço de nome! O senhor é dono de vários cinemas
na Europa, não é?
Jota Barbosa: Perfeitamente, senhorita. E agora estou para comprar uma mina de
bronze na China!
Dr. Henrique: É melhor o senhor comprar o bonde do seu filho.
Helena: Então o Joaquim quis ser condutor de bonde para contrariar o senhor?
Jota Barbosa: Justamente, senhorita. Nós discutimos e ele resolveu sair de casa
dizendo que não precisava nem de mim e nem do meu dinheiro.
Dr. Henrique: Por que brigaram?
Jota Barbosa: Porque o Joaquim queria se casar com uma tal de Helena!-
Helena: Tudo por minha causa, Joaquim...? Desta vez quem te pede perdão sou eu.
Joaquim: Tu não tens culpa, queridinha.
Dr. Henrique: Os senhores não desejam entrar para tomarmos chá?
Jota Barbosa: É muito incômodo! Já é muito tarde!
Helena: Aceite, senhor Barbosa! O prazer é todo nosso!
Jota Barbosa: Nunca pensei que a senhorita fosse tão gentil e... tão bonita!
Dr. Henrique: E eu nunca pensei que minha filha tivesse um sogro tão amável e...
tão rico!
Helena: Tenham a bondade de entrar. Não façam cerimônia. Façam de conta que
estão em casa! (os quatro cantam a marcha Tudo Nos Une)

Todos sabem que a felicidade


Não depende da nossa vontade
Pra se realizar nosso ideal
Basta amizade e algum capital
Discutir e brigar sempre não convém
Hoje tudo nos une tão bem
Não há mais quem consiga nos separar
Nós havemos de cantar:
Quem se reúne,
quem se reúne Pra tomar um chá
ou conversar
Tudo nos une!
Tudo nos une!
Não há quem nos possa separar!
Finaletto
Joaquim, Helena e Dr. Henrique: (cantam com a mesma melodia de Tudo Pelo Teu
Amor)
Joaquim:
Helena,
linda flor de Cascadura
Escravo sou da tua formosura
Por ti serei poeta e trovador
Eu dou a vida pelo teu amor.
Helena:
Meu belo condutor de Cascadura
Bancaste muitas vezes cara-dura
Por ti fujo da casa do meu pai
E vou casar contigo no Uruguai
Bem que desconfiei de ti, sabido,
Mas a meu pai nunca dei ouvido.
Dr. Henrique:
Juro pelos níqueis que você matou
388

Que não há pai mais mole do que eu sou.


Joaquim:
Helena, anjo de candura
Helena, flor de Cascadura
Helena:
Eu fui a noiva de um condutor
Prefiro um bobo rico a um doutor
Os três:
Barbosa é um grande milionário
Já sabe que nasceu pra ser otário
Faz tudo por seu filho Joaquim
No mundo não existe sogro assim!
Nós vamos ter mobília primorosa
Oferta grandiosa do Barbosa
As jóias ele vai nos dar depois
Por isso, viva Deus e chova arroz!
Fim de "A Noiva do Condutor"

Notas:
1. A Voz do Rádio, 25 de julho de 1935.
2. Carioca, 1? de fevereiro de 1936.
3. Ver Capítulo 40.
4. Tango de Agustín Magaldi, Pedro Noda e Carlos Pesce, lançado pelos dois
primeiros em 1930.
5. Valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada pelo primeiro em
1933, do outro lado de Você Só... Mente.
6. Trocadilho com L'Origan de Coty, colônia muito usada na época.
7. A informação de que se trata de um tango é de Almirante em No Tempo de
Noel Rosa, segunda edição (pagina 128).
8. Letra e música de Hervê Cordovil, gravada por Almirante em 1934.
9. Já estudada no Capítulo 18.
10. Le Barbíer de Séville ou La Précaution Inutile, comédia em quatro atos de
Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. Datada de 1775, nela se baseou Cesare
Sterbini
para escrever o libretto da ópera.
11. Paródia de Teus Ciúmes, valsa de Lacy Martins e Aldo Cabral, gravada por
Sílvio Caldas em 1935.
12. Primeiros versos de Por Teu Amor, valsa de Francisco Alves e Orestes
Barbosa, gravada pelo primeiro em 1934.
13. Paródia de Cordiais Saudações, do próprio Noel, já estudada no Capítulo 17.
14. Primeiros versos de Que Vale a Nota Sem o Carinho da Mulher?, samba de
Sinhô, que nada menos de três cantores registraram em disco em 1928: Mário Reis,
Vicente
Celestino e Francisco Alves. Embora a gravação de Mário tenha sido lançada um
mês antes das dos outros dois (e obtido mais popularidade), dom Bartolo prefere
citar
a de Chico Viola.
15. Paródia de Boneca, valsa de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral, gravada por
Sílvio Caldas em 1935. O próprio Noel escreveu uma variante para esta paródia,
dando-lhe
o título de Seu Zé. Começa assim:
Eu vi num armazém de Cascadura
Seu Zé vendendo a mil e cem
Trezentos réis de rapadura
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou três mil
Botando água no vinho do barril...
Os versos seguintes são os mesmos de Precaução Inútil, até os dois finais, que
ficam assim:
Enfim, eu vi neste seu Zé Um imortal Pão-Duro!
16. Paródia de Marchinha do Grande Galo, de Lamartine Babo e Paulo Barbosa,
gravada por Almirante em 1935.
17. Paródia de Ganhou, Mas Não Leva, marcha de Benedicto Lacerda e Milton
Amaral, gravada por Almirante em 1935.
18. Paródia de Foi Ela, samba de Ary Barroso, gravado por Francisco Alves em
1934.
19- Paródia de Palpite Infeliz, samba do próprio Noel, já estudado no Capítulo
anterior.
20. Dos três, na verdade, apenas Luís Peixoto chegou a escrever com certa
assiduidade para o teatro, embora quase sempre de encomenda. Em entrevista a um
dos autores,
em novembro de 1972, ele falou longamente - e com entusiasmo - da necessidade de
se criar um tipo de revista brasileiro, na forma e no conteúdo. Aos 83 anos,
lamentava
já não ter forças para dar sua contribuição. Morreria um ano depois.
21. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
22. Arnold Glückmann morreu em São Paulo, aos 54 anos, a 13 de maio de 1951.
Por muito tempo, tanto no rádio carioca como no paulista, tentou tirar a
"opereta"
do ineditismo. Numa dessas tentativas, chegou a pensar em Isaura Garcia para o
papel de Helena. Almirante, herdeiro dos manuscritos, foi outro
que sempre achou que valia a pena radiofonizá-la ou mesmo montá-la. No entanto,
A Noiva do Condutor só viria a público em abril de 1986, gravada em disco
(Estúdio
Eldorado 106.86.0447) com Marília Pera, Grande Othelo e Caola nos
principais papéis.
23. Marca de charutos preferida dos malandros da época.
389

COMEÇO E RECOMEÇO

Capítulo 38

Iniciaremos no próximo nomeio:


"A VIDA DE NOEL ROSA"
Contada por
ALMIRANTE
a maior
patente do
AVENTURAS NO MUNDO DA MÚSICA E DA BOÊMIA: A HISTÓRIA TODA, TINTIN-POR-TINTIN,
com um MUNDO LOUCO DE INDISCRIÇÕES. DE ADORÁVEIS BILHETES DO CANTOR DA "VILA" •
EPISÓDIOS
ENGRAÇADISSIMOS UNS, PITORESCOS OUTROS, ROMÂNTICOS E SENTIMENTAIS • DOCUMENTOS E
FOTOGRAFIAS • CARTAS E LETRAS DAS MÚSICAS DE NOEL, CHEIAS DE SENSIBILIDADE E DE
HUMOR
A mulher é o aperitivo que anima o homem a comer o prato indigesto da vida.
Meus Pensamentos
O difícil começo com Lindaura. Principalmente para ela. Por alguma razão
deixou-se levar pela absurda idéia de que o casamento mudaria Noel,
transformando-o num homem atencioso e Caseiro, e que aquelas noites de solidão
na escura metade
de quarto da Rua do Acre não mais se repetiriam. Por alguma razão, também,
acredita que ele a ama. E que, com um pouco de jeito, será possível prendê-lo
para sempre.
Não tardará a descobrir que se engana. E que o Noel marido é ainda mais esquivo
que o Noel amante. É mesmo absurda a idéia de que seria possível mudá-lo.
De início Lindaura reclama de suas noites fora, de seus sumiços que duram dias.
Tem dona Martha como aliada, mas isso não basta. Noel ouve-lhe os protestos, dá
de
ombros, faz que não entende. Ou então finge-se de carinhoso:
- Vem cá, Lindinha... Não fica zangada, não.
Toda vez que ele dorme fora a cena se repete, as lamúrias de Lindaura, as
desculpas de Noel. Se ela pergunta onde esteve, tem como resposta todo um
complicado relato,
repleto de fantasias e peripécias que a mulher acaba aceitando pelo simples fato
de não saber como contestar. Já fez as pazes com a mãe, o padrasto, o irmão
Zeca.
Mas prefere não se queixar a eles. Como se fosse possível impedir que soubessem
o quanto o marido Noel se parece com o amante Noel.
Uma noite, 14 de agosto, quarta-feira, Lindaura e Zeca vão com Noel a Bangu para
um espetáculo no palco do Cinema Vitória. As atrações são muitas, Luís Barbosa,
Odette Amaral, Manezinho Araújo, Barbosa Júnior, Jorge Murad, Ismênia dos
Santos, o piano de Hervê Cordovil, Noel. Um bom espetáculo que termina tarde,
quase onze
e meia. O último artista a se apresentar agradece os aplausos do público,
fecham-se as cortinas, as pessoas começam a sair. Lindaura e Zeca continuam
sentados em
suas cadeiras, aguardando que Noel venha buscá-los para tomarem o trem. Meia
hora depois, os dois ainda estão ali e nada de Noel. Chega o homem da limpeza.
- Desculpem, mas a sessão já acabou. É hora de varrer.
- Pode varrer. A gente fica aqui, esperando - diz Lindaura.
- Esperando quem, dona?
- Meu marido, Noel Rosa.
- O Noel?Já se foi há muito tempo, dona. Ele e os outros artistas.
Lindaura e Zeca estão sem dinheiro para o trem. Saem do cinema aflitos, sem
391

saberem o que fazer. Caminham pela rua deserta e escura, passam por casas de
portas e janelas fechadas, luzes apagadas, todos dormindo. Ouvem, porém, um
barulho
mais adiante. À medida que se aproximam, podem identificar o som de música,
gente cantando e tocando. Vêem finalmente um bar de esquina.
Aproximam-se mais, entram. Alguns dos artistas que atuaram no Cinema Vitória
aqui estão. Encontraram-se com Sílvio Caldas, que apareceu não se sabe de onde,
e agora
improvisam uma seresta.
- Sílvio... - chama Lindaura ainda aflita. - Você viu o Noel?
-Já foi há muito tempo.
Lindaura conta-lhe que Noel simplesmente os esqueceu em Bangu, sumiu na noite,
evaporou-se. Ela e o irmão estão sem dinheiro para a passagem, precisam de ajuda
para
voltarem a Vila Isabel. Sílvio não se surpreende. Sabe que Noel é mesmo desses
extravios repentinos.
- Deixa que eu levo vocês pra casa - Sílvio a tranqüiliza.
Tem motivos de sobra para sentir ciúmes. E nem sempre é tão calma e aceitativa
como em Bangu, ou como nas horas em que ele tenta comprá-la com falsos carinhos-
.
"Vem cá, Lindinha..." Também sabe se zangar, fazer alarde, brigar pelo que é
seu. Certa manhã de sábado, encontra Noel na feira da Praça 7, todo cheio de
dengos
para os lados de uma bela morena. Enfurece-se, segura a bolsa pela alça e tenta
golpeá-lo. Noel corre. Uma cena meio dramática, meio cômica, é presenciada pelos
feirantes, Noel correndo, Lindaura atrás gritando, rodopiando a bolsa:
- Eu te pego, Noel. Eu te pego!
Um domingo, muito cedo, ela sai para a missa na Matriz de Nossa Senhora de
Lourdes. Estacionado na Visconde de Abaeté, reconhece o carro de Valuche. Chega
perto.
É sacudida pela cólera ao ver lá dentro, além do próprio motorista, Ceei e Noel.
Os três dormem depois de mais uma noitada. O marido tem a cabeça repousada no
colo
da outra. Lindaura começa a gritar, a bater no vidro do carro, a fazer um
escândalo de despertar quarteirão. Até Noel, de sono invencível, acorda. E a
primeira coisa
que faz é dizer para Valuche:
- Arranca depressa!
O amigo obedece. O carro sai em disparada, quase mandando ao Chão a enfurecida
Lindaura.
Ela passa a aparecer de surpresa nos lugares onde sabe que o marido está. Vai em
outro domingo ao Programa Casé. Um dos funcionários da Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro a vê chegar e se lembra de que Noel está de amores com uma das pequenas
do coro. Sai correndo,
passa a frente dela e alcança o corredor onde Noel e a outra namoram.
- É tua mulher, Noel! Está subindo as escadas!
Noel se assusta. Aproveita que Marília Baptista passa pelo local, puxa-a pelo
braço, toma a pequena pela mão.
- Por favor, Marília, some com ela! Linda está vindo aí.
Marília e a moça entram no banheiro. Quando Linda chega, sente algo no ar. Noel
e o funcionário da emissora se entreolham. Na certa, pensa ela, andou fazendo
das
suas. Os olhos dele saltam do rosto desconfiado da mulher para a porta fechada
do banheiro. Lindaura tenta abri-la: trancada. Quem está lá dentro?
- Como é que eu vou saber? - diz ele, ar inocente.
Lindaura força a porta.
- Quem está aí? - grita.
- Sou eu, Marília Baptista.
- Ah, mil desculpas, Marília... Pensei que era outra pessoa - diz Lindaura sem
jeito.
Mas a sorte de Noel não dura para sempre. Uma noite, Lindaura chega novamente de
surpresa ao estúdio da Rádio Mayrink Veiga. E encontra Noel com uma moça sentada
no colo. A emissora no ar, artistas se movimentando de um lado para o outro,
gente entrando e saindo, a maior agitação, e Noel ali, alheio a tudo, com a moça
sentada
no colo. Lindaura grita:
- Sem-vergonha!
O violão de Lentine está encostado num canto, bem à mão. Lindaura não perde
tempo: segura o instrumento pelo braço e tenta golpear Noel. É segura pelo
próprio Lentine.
A moça, assustada, foge. Mais tarde, a caminho de casa, Noel faz cara de vítima:
- Você não entendeu coisa alguma, Linda. A moça é órfã, perdeu o pai há pouco.
Eu só estava tentando consolá-la.
Uma vizinha vem contar que viu Noel conversando com uma ex-namorada, perto do
Jardim Zoológico. Então Lindaura não conhece a Fina? Pois é, namoro de muito
tempo,
grande paixão de Noel, dizem que a inspiradora de vários de seus sambas: "Você é
mesmo artigo que não se imita, quando a fábrica apita faz reclame de você..."
Será
que ainda existe alguma coisa entre eles? É bom que Lindaura abra os olhos.
Vizinhas alcoviteiras e intrigantes sempre existiram. Noel conhece-as bem e
chegou a fazer delas motivo de samba. Como em Disse-me-Disse. E também como em
Mulher
indigesta.-
Mas que mulher indigesta!
(Indigesta!)
Merece um tijolo na testa.
392

Esta mulher não namora


Também não deixa mais ninguém namorar
É um bom center-half pra marcar
Pois não deixa a linha chutar.
E quando se manifesta
O que merece é entrar no açoite
Ela é mais indigesta
do que prato De salada de pepino à meia-noite.
Esta mulher é ladina
Toma dinheiro,
é até chantagista
Arrancou-me três dentes de platina
E foi logo vender no dentista.
Vizinhas que nem sempre dizem a verdade, como esta que ele retrata em Mentiras
de Mulher-.
São mentiras de mulher,
Pode crer quem quiser...
Que eu tenho horror ao batente,
Que não sou decente,
Pode crer quem quiser.
Que eu sou fingido e malvado
E até sou casado
São mentiras de mulher.
Quando no reino da intriga
Surge uma briga
Por um motivo qualquer,
Se alguém vai pro cemitério
É porque levou a sério
As palavras da mulher.
Esta mulher jamais se cansa
De fazer trança,
Na mentira é um colosso.
Sua visita tão cacete,
Escrevi no gabinete:
"Está fechado para almoço."
Esta mulher, de armar trancinha,
Ficou magrinha,
Amarela e transparente.
Quando vai ao ponto marcado
De um encontro combinado
Dizem que ela está ausente.

Esta vizinha que alerta Lindaura pode adorar uma intriga, mas não se pode dizer
que tenha mentido: Noel e Fina realmente conversavam perto do Jardim Zoológico.
E
têm conversado muito por aí, quase que como nos velhos tempos. Pode parecer
incrível, mas a ex-namorada ainda não sabe que ele se casou. Que esteve meio
doente,
passando uma temporada em Belo Horizonte, isso o próprio Noel lhe contou. Mas
só. Para ela, está tudo como antes. A única diferença é que Noel anda ocupado
demais,
programas de rádio, espetáculos em teatros e cinemas, gravações.
- Onde é que mora essa tal de Fina?
A vizinha dá o endereço: Rua Moju, 5. Na noite seguinte, Noel tem um espetáculo
para fazer no Cine Meyer, com outros artistas de rádio. Desta vez Lindaura deixa
que ele vá só. Pouco depois do jantar, sai de casa, toma o bonde no Ponto de
100 Réis, dirige-se para a Barão de Bom Retiro. Em quinze minutos está batendo
no número 5 da Rua Moju. Dona Luísa chega à janela.
- Boa-noite.
- Boa-noite.
- Por favor, não mora aí uma moça... - e Lindaura começa a descrever Fina
segundo as informações da vizinha.
- Sim, é a Fina, minha neta - diz dona Luísa.
-Pois é, eu a vi entrar aqui outro dia. Sou uma vizinha nova, estou atrás de uma
moça de minha idade para me acompanhar ao cinema. Um festival de artistas de
rádio
no Cine Meyer. Será que ela gostaria de ir comigo?
Dona Luísa grita lá para dentro.
- Fina! Ó Fina, minha filha. Está aqui uma moça te procurando!
Fina estava no banho, vem enrolada na toalha. A avó explica-lhe que a nova
vizinha gostaria de ter companhia para o cinema.
- Muito prazer - balbucia.
- Prazer.
São muito comuns, nestes tempos e neste lugar, amizades que se fazem assim, sem
cerimônia, uma moça convidando para um cinema, um passeio, uma festa de família,
a nova vizinha que acaba de conhecer de vista. Um espírito de vizinhança
aproxima rapidamente as pessoas nos bairros como Vila Isabel e Engenho Novo, a
pouca intimidade
ou mesmo o desconhecimento sendo quebrado pela mais absoluta falta de
protocolos. Por isso, ninguém estranha, nem dona Luísa, nem Fina, que Lindaura
apareça assim,
querendo fazer amizade, apresentando-se por conta própria.
- Artistas de rádio?
- É. Alguns dos melhores. Luís Barbosa, Noel Rosa, muitos...
- Está bem. Vou me arrumar. Amizades que se fazem sem cerimônia e
com muita rapidez. Menos de uma hora depois, Lindaura e Fina estão entrando de
braços dados no Cine Meyer, como velhas e íntimas amigas. Há muitos motoristas
de
táxi na platéia, vários deles conhecidos de Noel, de modo que, ao verem entrar e
sentar-se juntas as duas mulheres, a primeira reação é de surpresa. Depois,
porém,
vem o pânico. Um deles levanta-se, vai até a porta por onde devem ingressar os
artistas e fica ali parado, esperando Noel. É preciso avisá-lo. Lá
393

dentro, tranqüilas, Lindaura e Fina. Noel chega.


- Pelo amor de Deus, Noel, não entre neste cinema.
- O que aconteceu?
- Você nem imagina quem está com tua mulher lá dentro,
- Minha mulher?
- Sim, sentadas lado a lado.
- Linda e quem?
- Dona Linda e Fina.
É evidente que Noel não entra. Pede que se avise aos outros artistas que motivos
de força maior o impediram de participar do espetáculo. E trata de ficar no
botequim
da esquina até que a função termine. Enquanto isso, Lindaura e Fina assistem ao
desfile de cantores, instrumentistas, contadores de piadas, todos os artistas do
programa. Todos menos Noel. As duas, cada qual por um motivo, ficam frustradas.
Por que será que Noel não apareceu? Talvez tivesse outro compromisso. Talvez os
organizadores
do espetáculo usassem seu nome para atrair gente. Talvez.
Dez e pouco, saem as duas no meio de um público que gostou muito do que ouviu,
apesar da ausência de Noel. O mesmo motorista que o alertou aproxima-se de Linda
e
Fina.
- Estou indo para Vila Isabel, dona Linda. Quer carona?
Noel vê de longe as duas entrarem no carro. Sai do botequim e vai com cuidado
até a porta do cinema. Outro motorista amigo está por ali, Noel pede-lhe para
seguir
o táxi que acabou de partir, tomando o caminho da Dias da Cruz, 24 de Maio e,
depois, estação do Engenho Novo até a Barão de Bom Retiro. O segundo carro vai a
uns
100 metros de distância do primeiro, Noel do lado de fora, em pé no estribo,
agarrado no suporte da capota de lona. O carro da frente entra na Rua Moju, Noel
pede
que o amigo motorista freie. Observa Linda se despedindo de Fina e voltando para
o carro, que prossegue na direção de Visconde de Santa Isabel. Noel agradece ao
amigo, salta e corre para a casa de Fina. Assim que ela atravessa o portão, ele
a segura pelo braço.
- Noel! Você aqui?
- Aonde é que você foi?
- Ao cinema com uma amiga. Aliás, você também devia ter ido. Não estava entre os
artistas que iam se apresentar esta noite no Cine Meyer? Por que não foi?
- Não pude. Quer dizer que a moça é sua amiga?
- Sim, nos conhecemos hoje. É muito boazinha. Chama-se Lindaura.
- Só isso?
Fina não entende bem a pergunta.
Não faz mal. Ao se certificar de que ela não sabe de nada, Noel desconversa. Mas
terá sido mesmo uma simples coincidência? Um desses terríveis acasos? Ou haverá
algo mais por trás dessa nova e inquietante amizade entre as duas mulheres? Noel
e Fina conversam por algum tempo no portão, até que ele se vai. Em casa,
encontra
Lindaura preparando-se para dormir. É melhor não lhe perguntar nada. Aliás, os
dois preferem não tocar no assunto.
Dias depois, sabendo que Noel foi convidado para cantar numa tarde dançante na
sede do Andaraí Atlético Clube, na Praça 7, Lindaura volta à casa de Fina.
Sempre
a propósito de querer companhia, convida-a para irem juntas dançar um pouco. No
domingo, às cinco da tarde. Se Fina quiser, pode dormir na casa de Lindaura, ali
pertinho.
O Andaraí é um clube decadente mas familiar. A comunidade do bairro anda
empenhada em tornar sua sobrevivência menos penosa. Tem um time de futebol que
disputa,
Deus sabe como, o Campeonato Carioca. Sofrer goleadas faz parte de sua rotina,
até que uma dessas goleadas acabe funcionando como um tiro de misericórdia e
liquide
de vez o pobre Andaraí. Essas tardes dançantes visam arrecadar um dinheirinho
para ajudar o clube a se manter. Apesar do nome, o Andaraí pertence muito mais a
Vila
Isabel do que ao bairro vizinho. Todo o mundo aqui é um pouco torcedor desse
saco de pancadas dos campos do Rio. Noel inclusive. Ele que nunca foi mesmo de
se interessar
por futebol(1). A história praticamente se repete. Quando Noel chega, um de seus
amigos, postado à porta, adverte-o: há perigo lá em cima. Melhor desaparecer o
mais
rápido possível. Noel está cada vez mais intrigado. Que coisa estranha essa
amizade entre Lindaura e Fina! Como terão se conhecido? Por que estão andando
sempre
juntas? Enquanto não encontra as respostas, concorda com o amigo: é melhor
desaparecer. Lá E elas onze da noite vê as duas saírem juntas do baile e se
dirigirem
a pé para a Theodoro da Silva. Segue-as de longe. Lindaura convenceu Fina a
dormir no chalé, as duas procuram um telefone para avisar a dona Luísa. Noel
fica apavorado
quando elas entram em sua própria casa. O que estará acontecendo?
Ao atravessar o portão do chalé, Fina também acha estranho. Não é ali a
escolinha de dona Martha? Não é esta a casa de Noel? Acha muita coincidência,
mas supõe que
Lindaura simplesmente tenha alugado um cômodo da casa. O quarto de casal para
onde a leva.
- Engraçado, conheço a família que mora aqui - comenta.
394

- Eu também - completa a outra secamente.


Lindaura não vê limites para sua diabolice. Mal pode esperar a hora de ver
frente a frente o marido e a namorada. Que melhor peça poderia pregar a ele
senão vê-lo
entrar no quarto, talvez altas horas da noite, e encontrar as duas deitadas lado
a lado em sua cama? Lindaura está pronta para armar um barulho colossal, desses
de fazer tremer Vila Isabel.
- Você pode dormir nesta cama. Dá para nós duas. Tome, mude a roupa - diz
estendendo a Fina o pijama listrado de Noel.
Percebem um ruído na porta da frente. Lindaura vai ver o que é. Passam-se alguns
segundos, Fina ouve lá de dentro um falatório, vozes de homem e mulher se
confundindo,
um zunzum que lhe parece discussão. Pouco depois, silêncio. Ela está cansada e
pega no sono. No dia seguinte, na mesa do café, Lindaura apresenta a nova amiga
aos
outros moradores do chalé. Dona Martha reconhece-a pelo retrato que Noel outrora
guardava com tanto carinho. Assusta-se, chama Fina num canto e conta-lhe tudo.
- O quê? Casado?
- Sim, com Linda.
Fala-lhe da discussão que houve ontem, Noel chegando pouco depois de meia-noite,
Linda interpelando-o na sala de jantar, dizendo-lhe que ia chamar Fina para pôr
tudo em pratos limpos, ele ameaçando ir embora para sempre. Linda ficou fora de
si,
trancou a porta da rua, escondeu a chave. Mas Noel pulou o muro e sumiu noite
afora. Uma cena terrível.
- Como é que eles puderam fazer isso comigo?
- Pois é, minha filha. O melhor agora é você irpra casa, esquecer tudo, nunca
mais dar atenção ao Noel.
Um choro nervoso impede Fina de dizer mais alguma coisa. Um choro menos de
tristeza que de revolta. Foi enganada, passada para trás, tratada como uma
idiota. Jamais
perdoará Lindaura, muito menos Noel. É o que jura à avó assim que chega em casa
presa do mesmo choro nervoso, da mesma indignação. O riso de criança já não lhe
enfeita
o rosto bonito. "Seu riso de criança que me enganou..." Tudo mentira. Ele sim a
enganou, mentiu para ela, a fez de boba. Ele e Lindaura.
- Ainda por cima, vovó, me fizeram dormir com o pijama dele!
À noite, sem que ninguém esperasse, Noel aparece com ar inocente para explicar
aos moradores da casa 5 da Rua Moju o que houve, justificar-se principalmente
com
dona Luísa, sua eterna aliada. Admite ter-lhe faltado coragem
395

para dizer a verdade à Fina.


-A senhora sabe, dona Luísa, que a Fina é a única com quem me casaria.
Não, dona Luísa não sabe.
- Mas então por que se casou com a outra? Por que não foi franco?
- Eu não quis magoar a Fina.
-Já magoou, casando-se com outra. Noel explica como pode.
- Foi um casamento complicado, dona Luísa.
Insiste na história da embriaguez, a bebida fazendo com que perdesse a noção das
horas e acabasse passando a noite fora com Lindaura. Não fosse isso, até agora
seria
ainda um homem solteiro. Faz questão absoluta de dizer que não foi o primeiro.
Foi, sim, o mais azarado.
- Bem, Noel... - fala dona Luísa com seu jeito simplório. - Se fosse com minha
neta, tinha que casar. Primeiro ou não. Meu irmão comissário te obrigava. Quem
mandou
comer a sobremesa antes do jantar?
Fina está trancada no quarto. Prefere não ver Noel, não ouvir suas desculpas,
aquela velha e irresistível "conversa de teso". Jamais o perdoará. Ou melhor,
talvez
o coração, com o tempo, perdoe. É muito difícil guardar rancor de Noel. Mas o
amor acabou para sempre. Há de fazer tudo para que ele saiba disso, namorar
muito,
divertir-se, passar na sua frente de braço com outro, se possível um amigo do
peito, dos mais chegados a ele. Sim, esta será a sua vingança.
Uma semana depois Fina começa a namorar Luís Barbosa.

O difícil recomeço com Ceei. Principalmente para Noel. Continua agindo e


reagindo como se as regras do jogo fossem umas para ele e outras para ela.
Estará sempre
envolvido com muitas mulheres, além da sua, legítima, invariavelmente em casa a
olhar para o relógio, impaciente com sua demora. Mulheres do bairro, da Lapa, do
meio artístico, maduras, jovens, profissionais, ingênuas, espertas. Ora é Dulce,
que vive procurando-o nas estações de rádio (Marília Baptista chegará a conhecê-
la,
supondo tratar-se de Ceei). Ora é a graciosa morena por quem Noel se enrabicha
na Rua Felipe Camarão. Mulheres, muitas mulheres. Segundo suas regras, nada mais
natural.
No entanto, mortifica-se cada vez que lhe passa pela cabeça a possibilidade de
Ceei estar interessada em outro. Como no dia em que a vê cheia de sorrisos e
atenções
para o lado de Wilson Baptista.
- Mas logo ele?
-Não vejo nada de errado. Wilson é meu amigo, nada mais. Meu conterrâneo.
- Mas seria melhor se você ficasse longe dele.
Sugestão que Ceei não segue. Ainda tem, muito forte, aquele desejo de ser tão
livre quanto possível, nada de se envolver com homem que queira lhe dar ordens,
controlar
sua vida. Não abre exceção nem para Noel, de quem realmente gosta. Mas está
muito nova para pensar em se prender. Prefere sair hoje com um, amanhã com
outro, aproveitar
a mocidade.
Noel tem ciúmes. Inclusive de Hélio, que volta e meia lhe persegue as namoradas.
Mas nem precisa ser muito perspicaz para perceber que Ceei não é como as outras,
tem um significado muito especial para Noel. No dia em que Hélio vai procurá-la,
atrás de conversa, o irmão sabe e o adverte:
- Com esta não, Hélio.
O ar de desagrado com que diz isso é mais do que convincente.
As dançarinas de cabaré não são necessariamente prostitutas. Há uma diferença
muito grande entre elas e as mulheres que ganham a vida vendendo amor, seja num
rendezvous
freqüentado por senhores da alta, seja numa dessas pensões da Lapa, seja ainda
num pardieiro do Mangue ou da Central. As que trabalham em cabaré são pagas para
serem
atenciosas com os fregueses, cercá-los de sorrisos, dançarem com eles, fazerem-
nos consumir bebidas sobre as quais têm comissão. A nada mais estão obrigadas.
Se
depois do expediente, lá pelas quatro, cinco da manhã, quiserem sair com algum
freguês, é lá com elas. Façam-no por prazer ou em troca de dinheiro, o cabaré
não
tem nada a ver com isso. Ceei sabe que é assim desde aquela noite de São João no
festivo Apollo.
De sua parte, gosta de sair com alguns fregueses. Os mais distintos,
principalmente. Também ela tem suas regras. Só que as de Noel são diferentes,
muitas mulheres
para ele, fidelidade absoluta para ela. Noel se mortifica quando percebe que as
coisas não são como quer. E que a mulher com quem acaba de alugar um quarto não
é
exclusivamente sua.
- Por que você saiu com aquele sujeito, ontem à noite?
- Ele queria me levar para cear. Só isso.
- Mas você não poderia ter dito "não"?
- Seria indelicado, Noel. Era um senhor tão distinto...
- Pois olha, Ceei, acho que já é tempo de aprender a dizer "não".
Noel é mesmo ciumento. Nem sempre suas conversas com Ceei a respeito de outros
homens, Wilson Baptista ou senhores distintos, são mantidas em tom sereno. Fica
zangado
quando bebe. E ela também. Suas discussões
396

podem se transformar em cenas violentas, ele dizendo coisas desagradáveis, ela


preferindo agir a falar. Ou seja, agredindo-o a tapas. Jamais erguerá a mão para
ela,
sinal de que aquele jovem de vinte anos defensor da pancada como ingrediente do
amor ("A carícia pode ser transmitida por intermédio de uma paulada ou de um
beijo:
pura questão de combinação prévia") era mesmo um fingidor. É o que deixa claro
em mais um samba inspirado em Ceei, O Maior
Castigo Que Eu Te Dou:

O maior castigo que eu te dou


É não te bater
Pois sei que gostas de apanhar.
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer
Do que te ver me provocar.
Não dar importância
À tua implicância
Muito pouco me custou.
Eu vou contar em versos
Os teus instintos perversos,
É esse mais um castigo que eu te dou.
A porta sem tranca
Te dá carta branca
Para ir onde eu não vou
Eu juro que desejo
Fugir do teu falso beijo,
É esse mais um castigo que eu te dou.

É o que deixa claro também em outro samba, menos conhecido, de musa vaga,
contendo uma rara exaltação à figura feminina, gravado por João Petra e
intitulado Nem
Com Uma Flor:

Na mulher não se dá nem com uma flor


Seja feia ou bonita,
sincera ou fingida,
Rica ou pobre
ou como for...
Sem mulher, que seria dessa vida
Que foi sempre resumida
Em orgulho, instrução e amor?
Para tudo eu hei de ter certeza
Sem culpar jamais a natureza
Embora, haja o que houver,
Eu me sinto sem razão batendo na mulher
A mulher é linda harmonia
Que enche sempre a nossa melodia
397

De alegria ou de tristeza.
Quem bate na mulher ofende a natureza.

Noel tem um modo muito particular de agir, difícil de entender para uma Ceei de
raciocínios diretos e lógicas elementares. Quando se zanga, quando se mostra
ciumento,
ofensivo ou até mesmo insuportável, é quando sabe que Ceei nada fez de errado,
como se a cena fosse uma espécie de advertência, ela que não se atreva a passá-
lo
para trás. Mas quando sente que algo realmente aconteceu, um senhor distinto
impressionando Ceei, ela passando a noite fora, saindo, divertindo-se, não arma
cenas,
nem reclama. Sequer faz perguntas. O silêncio fala por ele.
Ceei também é ciumenta. Mas não sofre tanto. Se fosse se atormentar com os seus
desvios, os desaparecimentos ocasionais geralmente ligados à existência de outra
mulher, não faria mais nada.
Os dois têm um grande amigo, aliado para todas as horas: o motorista de praça
Álvaro Rodrigues Gouvêa, português de nariz adunco a quem chamam de Papagaio.
Noel
conhece-o já há um ou dois anos, de suas andanças pela Lapa. Seria dele o "bom
carro" de que o poeta fala em Dama do Cabaré? Provavelmente. Não há qualquer
exagero
em dizer-se que Papagaio tem verdadeira veneração por Noel. Como amigo e
compositor. Sabe todas as suas letras de cor, sempre que pode vai aos programas
de rádio
e aos espetáculos teatrais de que ele toma parte,
sente-se honrado em servi-lo como chauffeur. Não lhe cobra nada, fica até meio
ofendido se Noel faz menção de pôr a mão no bolso. Costuma sentar-se com ele a
uma
das mesas do Indígena ou do Café Club, calado, ouvindo, bebendo-lhe deliciado as
palavras: "Como é inteligente este Noel!" Troca o trabalho, os fregueses, as
corridas
mais vantajosas pelo prazer de ouvir o amigo cantar e tocar.
Muita gente diz ter presenciado Noel compor à mesa deste ou daquele café um de
seus sambas imortais: Conversa de Botequim. Papagaio inclusive. Noel, com essa
história
de dizer "vou cantar um samba que acabo de fazer", vive dando às pessoas a falsa
impressão de que o "acabo de fazer" significa, literalmente, que o samba foi
feito
há instantes. Mas é de fato possível que o amigo motorista o tenha visto ao
menos trabalhar a letra de Conversa de Botequim, uma prodigiosa crônica dos
cafés cariocas
e seus folgados freqüentadores. Um irretocável retrato da cidade e de alguns de
seus tipos, o garçom que passa o pano na mesa como se a dizer ao freguês que
este
já lhe roubou tempo demais, o sujeito que gasta seu último níquel apostando no
jogo
do bicho, o interesse um tanto vago pelo futebol (como o de Noel). Quem se
lembrar bem dos tempos do Carvalho, em Vila Isabel, e do papel comunitário que o
botequim
então - como ainda hoje - prestava, poderá concluir que tudo aquilo, o espírito
de se tirar do botequim tudo que ele tem para dar (o cigarro filado, o cartão, a
revista, o cinzeiro, o tinteiro, o dinheiro emprestado, o telefone, o recado, a
despesa pendurada) ficou guardado no coração do poeta.
Mas não é apenas por isso que Conversa de Botequim pode se incluir entre as mais
notáveis peças de toda a história da música popular brasileira. Em nenhuma outra
é tão harmonioso o casamento da melodia com a letra, pontuação perfeita,
acentuação irrepreensível (nem todos têm muito cuidado para com esse detalhe
técnico de
uma letra, a acentuação da palavra tendo de coincidir com a acentuação musical,
isto é, a sílaba mais forte correspondendo à nota sobre a qual recai o acento
melódico,
do que Conversa de Botequim é exemplo definitivo). Um samba que acaba se
convertendo num desafio aos estudiosos. Sendo feito de parceria com Vadico, a
questão se
põe em dois pontos: ou Vadico fez toda a melodia e Noel criou para ela os mais
exatos versos de toda a canção brasileira, ou o próprio Noel teve alguma
participação
na construção da música - escorregadia como a de um choro. O que é mais
provável(2).

Seu garçom,
faça o favor De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo E um copo d'água bem gelada.
Fecha a porta da direita Com muito cuidado
Que não estou disposto A ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa,
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro, Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro.
Telefone ao menos uma vez
Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empreste algum dinheiro
398

Que eu deixei o meu com o bicheiro,


Vá dizer ao seu gerente
Que pendure essa despesa No cabide ali em frente.

Papagaio bem pode ter acompanhado a lenta elaboração deste primor de samba.
Lenta, sim, porque são francamente inconcebíveis as versões que correm por aí
nos dando
conta de um Noel que chega ao botequim, sente baixar-lhe uma súbita inspiração,
pede lápis e papel ao garçom e, em questão de minutos, escreve de ponta a ponta
os
versos para a música de Vadico.
Noel, Ceei, Papagaio. Os três fazem inúmeros programas juntos. Vão a uma festa
no grã-fino Fluminense, onde o motorista, animado com as moças da sociedade que

se apresentam, cantando e recitando, quer lançar sua filha como cantora, e a
moça simplesmente perde a voz, nervosa, fica muda em pleno palco, envergonhando
o pobre
Papagaio (para o resto da vida, Noel gozará o amigo por sua pretensão: "Como é,
Papagaio, quando vamos lançar a tua filha como cantora de rádio?")- Ou vão
jantar
em qualquer restaurante que não feche antes das cinco da manhã. É num desses
restaurantes que Ceei ouve Noel pedir ao garçom:
- Traga-nos uns camarões.
- E como o senhor quer os camarões?
- Fritos em azeite. Muito azeite.
- No azeite?
- Sim. Na superfície.
Outra noite, Noel com um pouco mais de dinheiro no bolso, vão a um restaurante
novo, metido a elegante, no Leblon. Ceei capricha na roupa, Noel e Papagaio de
terno
e gravata. No caminho, ela diz:
- Hoje eu gostaria de fazer o pedido.
-Mas é um restaurante grã-fino, Ceei. Deve ter pratos de nomes complicados,
aquela bobagem toda que você conhece.
- Não se preocupe. Deixe o pedido comigo - insiste ela, orgulhosa de si mesma.
Lá chegando, o garçom se aproxima cheio de reverências, os três à mesa, Noel e
Papagaio calados esperando pela solicitação de Ceei.
- Queremos camarões.
- E como a senhora deseja os camarões? -À superfície. Sim, camarões à
superfície. Um difícil recomeço com Ceei. Ciúmes,
romances paralelos, brigas, cenas, as regras do jogo de Noel sendo diferentes
das dela, mentiras, um iludindo o outro. Mas nem por isso um recomeço sem bons
momentos,
festas, a filha de Papagaio perdendo a voz, os camarões à superfície, as
reuniões nos botequins, a música. E, afinal, as noites de amor.

NOTAS
1. Por que clube torcia Noel Rosa? Provavelmente por nenhum. Jacy Pacheco nos
informa em Noel Rosa e Sua Época (página 50) que o primo "era mengo". Lindaura
de
Medeiros Rosa já diz ter "a impressão" de que o marido torcia pelo América.
Assim como Lamartine Babo, Sílvio Caldas, Francisco Alves e Mário Reis. Este,
porém,
autoridade tanto em Noel como em futebol, garantiu aos autores: "Ele não ligava
pra isso. No máximo, torcia pelo Andaraí ou um daqueles clubezinhos decadentes
de
Vila Isabel." Velhos amigos de bairro, entre eles Arnaldo Araújo e Affonso
Guimarães, o Affonsinho da Copa do Mundo de 1938, concordam com Mário. Noel
vivia o futebol
meio à distância. Interessava-se, apenas, pelo destino dos modestos clubes do
lugar, o Vila, o Confiança, o Andaraí, condenados a desaparecer. O Andaraí
disputava
o Campeonato Carioca de Futebol desde 1916 (ausentando-se apenas nos anos de
1925 e 1926). E quase sempre andara rondando os últimos lugares. Foi menos mal
nas disputas
de 1933 a 1936, quando a cisão causada pela implantação do profissionalismo
enfraqueceu a entidade a que pertencia (Associação Metropolitana de Esportes
Atléticos,
depois Federação Metropolitana de Futebol). Com a pacificação em 1937, levaria o
tiro de misericórdia. Voltando a enfrentar os chamados "grandes" do futebol da
cidade,
perderia 41 pontos em 44 possíveis no Campeonato Carioca daquele ano e ainda por
cima sofreria para o Vasco da Gama, no segundo turno, uma impiedosa e humilhante
goleada de doze a zero. Nunca mais participou da divisão principal. Conta-se que
o negro Arubinha, famoso macumbeiro de Vila Isabel, fiel torcedor do Andaraí,
tomou-se
de tal ódio que enterrou um sapo no campo de São Januário como parte de um
"trabalho" para que o Vasco da Gama completasse dez anos sem ser campeão. Em
1945, ao
iniciar-se o oitavo ano da "escrita" e o nono sem seu time conquistar um título,
os dirigentes vascaínos mandaram revolver todo o gramado na esperança de
neutralizarem
os maus fluidos do tal sapo. Deu certo: meses depois o Vasco da Gama se sagraria
campeão invicto. De qualquer forma, naquele 1935 em que Fina e Linda foram
juntas
ao baile na sede da Praça 7, o Andaraí ainda fazia força para sobreviver. E
Noel, como tantos moradores do bairro, ajudava como podia.
2. Almirante, em mais de uma oportunidade, inclusive em conversa com os
autores, falou de sua convicção de que Noel Rosa sempre participava da feitura
da melodia
de suas obras em parceria. Mesmo as que escreveu com Vadico. Salvo por poucas
exceções (aquelas em que a música comprovadamente já existia, o que aconteceu,
por
exemplo, com Queixumes, de Henrique Britto, os três sambas de parceria com Ary
Barroso e Feitio de Oração), os autores compartilham da convicção de Almirante.
Sobretudo
no caso de Conversa de Botequim.
399

FITA DE CINEMA

Capítulo 39

Grande culpado ou não pela transformação dos hábitos brasileiros, o cinema


falado veio para ficar. Quase cinco anos depois de sua chegada por aqui, jornais
e revistas
já não fazem aquelas enquetes destinadas a saber se a novidade vai vingar ou
não, se os fãs dos velhos filmes mudos a aceitarão ou não, se é coisa passageira
ou
definitiva. Tais dúvidas já não existem. Não há uma só casa de projeção do Rio
que não exiba filmes sonoros em seus programas. A própria indústria brasileira,
embora
modestamente, começa a investir na produção desses filmes. Foram apenas cinco em
1935 e já serão onze em 1936. Quem duvida de que a novidade veio mesmo para
ficar?
Hoje, as enquetes de jornais e revistas ocupam-se de outros temas, outras
novidades. Fala-se, por exemplo, de um invento no qual cientistas ingleses
estão trabalhando
desde 1926. Um rádio que, além de transmitir o som, . coloca dentro de nossas
casas as imagens do programa que estiver apresentando naquele exato momento. Não
se
trata de filme, mas de uma transmissão viva, instantânea. A esta mágica - que
afinal ainda não foi feita - os cientistas até nome já deram: televisão. A Voz
do Rádio
faz uma enquete sobre o assunto e ouve Noel: "- O que faria você com a
televisão? - Com a televisão eu não faria nada. Porque quando ela chegar eu não
existo. "(1)
As opiniões de Noel Rosa sobre o cinema já não são tão enfáticas. É verdade que
houve aquela eloqüente reação à novidade nos versos do antológico Não Tem
Tradução.
Mas depois disso ele tem convivido muito à vontade com a chamada "sétima arte",
inclusive compondo para ela. Não nos esqueçamos de que o Noel garoto era
freqüentador
das sessões vespertinas do Smart, do Chie, do Boulevard, cineminhas de Vila
Isabel. E que ele próprio tinha o seu projetor, aquele que Almirante não
conseguiu comprar.
Sempre gostou de filmes defar-west, Tom Mix e congêneres. Uma das músicas que
deixará inédita, Fita de Cinema, é quase uma reprodução burlesca de uma dessas
aventuras
que os cowboys americanos vivem na tela:

Ela era a fotogênica


Filha de um dono de venda
Ele era um vaqueiro
Sem cavalo e sem fazenda
Numa noite se encontraram
Dentro de uma padaria
E a conversa terminaram
Às onze horas do dia

401

Mas chegou nesse momento


O pai dessa tal mocinha
A gritar que não convinha
Casar sua filha com mau elemento
E um novo pretendente
Aparece de repente
Do cavalo dando um salto
Pegou na mocinha e gritou: "Mãos ao alto!"
O mocinho neurastênico
Avançou no tal bandido
Levando um tiro bem no peito
E outro dentro do ouvido.
E a mocinha preparou bem ligeiro
No colar uma laçada
E rolou o despenhadeiro!

A mulher e o dinheiro são, afinal, as únicas coisas sérias desse mundo.


entrevista a O Globo

Agora, tendo a moda vingado, Noel, o compositor profissional no lugar do garoto


das matinées (e também no do nacionalista ferrenho que reagiu contra a mania do
francês
e do inglês criada pelo cinema sonoro), não pode resistir ao apelo com que a
nova arte lhe acena.
Louco por cinema, mesmo, é Lamartine Babo. E não podia ser diferente. Grande
parte dos filmes que Hollywood nos manda é de musicais. Operetas filmadas,
comédias
da Broadway transpostas para a tela, ou mesmo roteiros originais que não passam
de historinhas românticas intercaladas de números de dança, canto e humor, tudo
isso
vai fundo na alma meio teatral de Lamartine. Ele ainda sonha em montar uma
opereta sua, um musical com melodias, letras, textos só seus. Morrerá sem
realizá-lo plenamente(2).
Com Noel, Lamartine não tem feito tantas músicas como era de supor a partir da
preocupação com a originalidade que, há seis, sete anos, parecia aproximá-los.
Mesmo
assim, ainda é possível se unirem para compor com vistas ao carnaval de 1936 uma
marcha que é bem a soma de seus talentos e temperamentos: Menina dos Meus Olhos.

Menina dos olhos castanhos,


Que reside lá na serra,
Bem juntinho de Deus...
Tu és a menina dos meus olhos,
Estou cego de saudade
Pelos olhos teus.
A serra não precisa de luar,
É iluminada pela luz do teu olhar.
Até o próprio sol resolveu não brilhar
Pra não perder (pra quem?)
pro teu olhar!
Teus olhos abusaram do clarão
Parecem fogos dominando a multidão
Um rasgo de luz teu olhar produziu
Foi o luar (de quem?)
do meu Brasil!

Quem devia gravar a marcha era a dupla Joel & Gaúcho. Acontece que na noite
anterior Joel de Almeida saiu com Russo do Pandeiro para uns goles pelos
botequins da
Central. Goles de boêmios sedentos, destes que quanto mais se sorvem, mais
aumentam a sede. Quando Joel chegou em casa na Praça Saenz Pena, já de manhã,
avisou à
mãe:
- Tenho uma gravação à uma da tarde. Vou tirar um cochilo, mas a senhora não
esquece de me chamar antes do meio-dia.
Mas a mãe de Joel, vendo-o dormir tão profundamente, depois de uma noite em
claro, ficou com pena de acordá-lo. E ele perdeu a hora. No estúdio da Victor,
pouco
antes da uma, mister Evans, sempre impaciente, procurava pelo parceiro de
Gaúcho. Os minutos foram passando, os músicos de Pixinguinha entraram no
estúdio, Gaúcho
e o pessoal do coro também. E Joel? Nada. Mister Evans, uma hora em ponto,
sentenciou:
- Vamos gravar sem ele.
-Mas ensaiamos para uma dupla, mister Evans - protestou Gaúcho.
- Não interessa. Vamos gravar já! Se quiser, arranja alguém para cantar com
você. Por que não aquele moço afinadinho do coro? - e apontou para um mulato
magro, de
olhos rasgados, tímido, encolhido a um canto.
- Está bem - concordou Gaúcho.
O moço afinadinho chamava-se Orlando Silva. Graças à farra do Joel, ele acabou
fazendo dupla com Gaúcho em Menina dos Meus Olhos, depois de ensaiar às pressas,
ali
mesmo, no estúdio, acompanhado pelo piano de José Maria de Abreu.
Além de cinema, Lamartine Babo gosta de cassino. Por esta época, vai a um deles
- Beira-Mar, Atlântico, Urca - todas as noites. Mas não joga. Pelo simples fato
de
não ter dinheiro. Essa é uma época de dificuldades para ele. Às vezes mal tem
para comer. Nessa história de sentar-se à mesa de um café, comer e não botar a
mão
no bolso, ou de ir ao cassino, acompanhar todas as rodadas da roleta, ou todas
as mãos do carteado, sem comprar uma ficha, Lamartine goza no Nice a fama de
"vagolino"3.
No dia em que o filme Picolino (Top Hat) estréia no Rio, com Fred Astaire e
Ginger Rogers formando um par inesquecível, as canções de Irving Berlin
conquistando
todas as platéias, Noel vai-se inspirar numa delas, Cheek To Cheek, para criar
uma paródia em homenagem ao amigo Lamartine:
402

Esse Vagolino
Que atrapalha o movimento do cassino,
Com seu jogo complicado e pequenino,
Na roleta ele é um pente-fino.
Mexe nas paradas,
Tosse alto,
pula e dá cotoveladas.
Quando ganha ninguém vê a sua imagem.
Quando perde morde a gente na passagem.
Grita pra qualquer freguês:
"Dá vermelho vinte e três!"
Pede pra jogar no dez Fichinha de mil réis.
Perguntou ao pagador
Por que é que o diretor
Não põe em circulação
Fichinhas de tostão.
Ele vai às vezes ao Paraguai
Morder o pai
E o velho cai... Ai!
Vagolino, filho ingrato,
Diz que o cobre é pra comprar chapéu E sapato.
Mas acaba sem sapato e sem chapéu,
Na esperança de comprar um arranha-céu.

Uma paródia que é tão bem recebida que chega a ser publicada num jornal de
modinhas(4), só que com o título de Virgulino do Cassino, o Vagolino da letra
cedendo
lugar a um intrometido Virgulino. Engano ou o próprio Noel fez a mudança?
O primeiro filme a utilizar composições de Noel Rosa é Alô, Alô, Carnaval, que
vai estrear no Alhambra a 20 de janeiro de 1936. É uma revista carnavalesca nos
moldes
de Alô, Alô, Brasil, realizada no ano passado pelo mesmo Wallace Downey,
produtor americano que não podendo fazer musicais em seu país veio fazê-los no
nosso. O
pioneiro Coisas Nossas, aliás, já era obra sua, levada a efeito muito
precariamente em 1931.
O novo filme tem direção de Ademar Gonzaga. Para ele Noel não chega a fazer
propriamente música. Limita-se a escrever letra para uma marcha de Hervê, Não
Resta a
Menor Dúvida, e a sugerir que sejam aproveitados, com os mesmos intérpretes que
os levaram ao disco, seus dois maiores trunfos para o próximo carnaval: Pierrot
Apaixonado
e Palpite Infeliz. João de Barro e Alberto Ribeiro, roteiristas aos quais coube
também a seleção dos números musicais, concordam.
A marcha de Noel e Hervê é cantada pelos rapazes do Bando da Lua com aquela sua
dureza habitual (a mesma dureza com que eles, daqui a alguns anos, como
acompanhantes
de Carmem Miranda, levarão o nosso samba para os Estados Unidos, tirando-lhe o
melhor condimento e tornando-o assimilável ao paladar americano). Melhor
interpretada,
é possível que Não Resta a Menor Dúvida tivesse mais sorte, no filme e no
carnaval:
Você é uma pequena que não resta a menor dúvida
Oh dúvida!
E eu por sua causa já não pago a minha divida
Oh dívida!
Estou só esperando
que você me leve o último Tostão
Pra me dar seu coração.
Para possuir seu coração
Darei até meu último tostão.
Pelo seu amor
Serei aviador,
Irei até lamber sabão.
403

Se acaso você não quiser


Fazer por mim aquilo que puder
Eu irei então
Trocar meu coração
Por outro coração qualquer.
Quem quiser falar do seu olhar
Acaba sem saber o que falar.
Todo o mundo crê
Que os olhos de você
Ainda vão me fuzilar.
Pierrot Apaixonado, outra marcha, será a única colaboração entre Noel Rosa e
Heitor dos Prazeres. Por quê? Não é curioso que dois sambistas com tudo para
produzirem
muito juntos só se tenham unido numa única música e assim mesmo uma marcha? A
estranheza procede. Afinal, Heitor é aquele tipo de indivíduo que fascina Noel.
Uma
biografia de fazer inveja aos mais respeitados malandros da cidade, a infância
pobre nos morros do Centro, a prisão por vadiagem aos treze anos, a pena de dois
meses
cumprida na Ilha Grande, a adolescência passada na Praça 11, saltando das casas
das "tias" baianas para os quartinhos apertados das mulheres do Mangue. Conheceu
bem o samba deste meio, garante que dois de seus melhores trabalhos em música
foram roubados por Sinhô (Gosto Que Me Enrosco e Ora Vejam Só) e depois dessa
primeira
fase passou-se para as bandas do Estácio. Chega a ser conhecido por muita gente
como Lino do Estácio. Muito feio, careca, vesgo, mas sempre bem vestido, colete,
gravata borboleta. É um tipo envolvente, mulheres e filhos por toda parte. Pelo
menos, é a lenda que se formou em torno dele.
Tem jeito para o samba e para a pintura. O que talvez explique o fato de não ser
mais vezes parceiro de Noel: quando este começou a se dedicar profissionalmente
à música popular, Heitor fazia suas primeiras experiências com as tintas, quem
sabe já pensando em trocar o samba pela pintura5. Um dia, quando morava no
Buraco
Quente, recebeu a visita do amigo Cartola que o surpreendeu já nos últimos
retoques de uma tela.
- Quadrinho feio este seu, Lino - disse Cartola com franqueza.
Heitor continuou misturando suas tintas, passando o pincel na tela, calado.
Cartola afastou-se um pouco, pôs a mão no queixo e perguntou :
- Isso é mesmo pra valer?
- Sim, Cartola. Quero ser pintor.
- Escuta um conselho de amigo, Lino. Deixa esse negócio de pintura pra lá e
fica com o samba onde tu é bom.
Heitor não seguiu o conselho e continua
cada vez mais voltado para suas telas - e cada vez mais afastado do samba. É
amigo de Noel, já o livrou de algumas aperturas, o garoto de Vila Isabel indo
bater
em sua casa para pedir uma navalha emprestada. Explicou que era para enfrentar
um valente que, vendo-o acompanhado de uma mulher no botequim da esquina, passou
a
provocá-lo. Heitor botou em cima de Noel os olhos estrábicos e deve ter pensado:
"Que diabos pode fazer um menino desse com uma navalha?" Mudou de roupa, foi até
o botequim e resolveu tudo em cinco minutos. Sem navalha, só com conversa. O
outro se foi, Noel ficou. Com a mulher e uma dívida de gratidão para com
Heitor(6).
A marcha que compuseram juntos é excelente. Tem um contagiante refrão e uma
letra em que Noel, a exemplo do que já fez com outros personagens Julieta, por
exemplo),
reescreve a história de Pierrot, Colombina e Arlequim, num tom carnavalescamente
debochado.

Um pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma colombina
Acabou chorando,
Acabou chorando.
A colombina entrou no botequim,
Bebeu... bebeu... saiu assim... assim...
Dizendo: "Pierrô cacete
Vai tomar sorvete Com o Arlequim!"
Um grande amor tem sempre um triste fim,
Com o Pierrô aconteceu assim:
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute Com amendoim!

Joel & Gaúcho foram os intérpretes da marcha, em disco e no filme.


Com a cena em que Aracy de Almeida deveria apresentar Palpite Infelizacontece um
imprevisto. Ao chegar ao pequeno estúdio de Ademar Gonzaga, em São Cristóvão, a
cantora fica sabendo que Alberto Ribeiro e João de Barro aceitaram outra
sugestão de Noel: a cena tentaria reproduzir um modesto quintal carioca, Aracy
humildemente
vestida, lavando e estendendo roupa enquanto cantasse o samba. Muito
influenciada por Francisco Alves, que se acha no estúdio assistindo à filmagem,
Aracy protesta:
todo o mundo bem vestido no filme, por que deveria aparecer enfiada nos trapos
de uma lavadeira? E vai-se embora, aparentemente zangada, enquanto Noel finca
pé:
a cena será como estava combinado.
Tenta-se ainda entregar a parte a uma das
404

Irmãs Pagas, Rosina, muito bonita mas desconfortável numa letra que parece sob
medida para Aracy:
Eu já chamei você pra ver Você não viu porque não quis...
A conclusão é que Palpite Infeliz fica fora do filme. Para desagrado do
produtor, atento ao sucesso que o samba vem fazendo desde o ano passado, e para
irritação
de Noel, que vai declarar ao Correio da Noite que não mais dará músicas para
Aracy de Almeida gravar. E pensar que ele tinha deixado de entregar Palpite
Infeliz
a Almirante(7). Mas, felizmente, a zanga de Noel não vai durar. E Aracy
continuará cantando seus sambas.
Ceei talvez seja a primeira a perceber. Não que Noel tenha sido algum dia um
homem elegante, aprumado, zeloso da aparência pessoal. Mas nunca foi tão
descuidado
como agora. De certo modo, quem o conhece de perto, tão intimamente quanto ele o
permite, nota que o descuido não é apenas com a aparência. A não ser pelo
trabalho,
compondo muito, jamais recusando propostas para cantar nesta ou naquela emissora
de rádio, há em tudo o mais um começo de esmorecimento, de entrega, que vai
ganhar
corpo ao longo de todo o 1936 até transformá-lo num homem desinteressado de tudo
ou quase tudo. Este processo de desintegração - lento, imperceptível à maioria
das
pessoas, muitas vezes porque o próprio Noel, inteligente, vivo, espirituoso,
saberá dissimular - só no final estará claramente posto em sua poesia. Em suas
conversas,
nunca.
O que Ceei nota primeiro é o relaxamento com a roupa, golas e punhos das
camisas poídos,
o terno amarrotado, sapatos por engraxar. É verdade que o fato de ter duas casas
acaba fazendo com que não tenha nenhuma, passando dias sem ir ao chalé, dias sem
vir ao quarto de sobrado que montou com Ceei. Quem cuida de suas roupas? E de
sua alimentação? O que importa nisso tudo é que Noel não cuida de si mesmo.
Quando a perspectiva do tempo permitir aos que o conhecem agora compreendê-lo
melhor neste ano-chave de sua vida, ainda pairarão dúvidas sobre a que atribuir
esse
processo de dissolvência, se à morte do pai, incutindo-lhe no espírito a
desconfiança, depois certeza, de que a vida é algo estúpido e vão, ou se à
doença, que muito
em breve vai minar-lhe o fôlego, a tuberculose apenas contida mas não curada
naqueles meses em Belo Horizonte. Como o amigo Edgar o alertara:
- O seu melhor médico é você mesmo. Se não se cuidar...
Jocelyn, o da Encarnação, é outro que o alerta. Mais que isso, repreende-o com a
severidade daquele irmão mais velho dos tempos de criança:
- Você precisa levar a vida mais a sério, Noel.
Um conselho inútil.
- Olha, Jocelyn, pode ser que eu não consiga, mas vou tentar.
- O quê?
- Nunca levar a vida a sério.
- Mas por quê?
- Primeiro, porque ela não é séria. Depois, porque é curta demais.
Jocelyn fica meio preocupado com as palavras de Noel. Ralha com ele, despeja-lhe
em cima longa ladainha, indigesto sermão. Mas Noel inventa uma desculpa, vai em
frente, deixa-o falando sozinho. Nos dias que se seguem Jocelyn pensa muito no
amigo. Será que se zangou? Não terá exagerado o carão? De noite, ao chegar em
casa,
alguém lhe diz:
- O Noel esteve aqui. Deixou um bilhete. No papel dobrado em quatro não está
propriamente um bilhete, mas versos escritos com aquela caligrafia
inconfundível:
Jocelyn, Jocelyn,
Jocelyn da Encarnação,
Severo amigo,
Mais que amigo, irmão.
De qualquer modo, para Noel a vida não é mesmo séria. Ou é tão séria quanto uma
fita de cinema, divertida mas quimérica. Ou como o dinheiro e a mulher, dois dos
principais motes de sua poesia, valores pelos quais tanto se briga e que mais
cedo ou mais tarde acabam parando em mãos alheias.
Difícil precisar a causa maior desse pessimismo, se tantas batalhas travadas e
perdidas pelo pai, para acabar daquela forma, atado aos pés de um leito de
hospício,
ou se aos pulmões escangalhados. Mas por que não a soma de tudo isso ajudando a
emergir o temperamento, senão autodestrutivo, ao menos de desapego à vida de um
Noel
que ninguém conhecerá jamais?
Nem mesmo Ceei. Ele, sim, é que a conhece como ninguém.
- Sabe como é que eu sei que você está mentindo?
- Não.
- Pelos olhos.
O princípio de esmorecimento não chega para arrefecer-lhe os ciúmes. Ceei tem
mudado de emprego com freqüência, Apollo, Roxy,
405

Assyrius, já pensando em aceitar proposta para ganhar um pouco mais no Royal


Pigalle. E quando Noel não está por perto, muda também de companhia. Continuam
brigando
muito, vivendo cenas, trocando insultos. Ele pode até segurá-la pelos braços,
dizer-lhe malquerências. Mas já não é tão convincente quanto antes, os
xingamentos
bem menos ofensivos. Ceei, nos momentos de paz, procura cuidar dele. Repreende-o
:
- Você é um artista de rádio, Noel. Tem de se vestir bem, se preocupar com a
aparência. Olha essas unhas.
Leva-o à manicure. Noel senta-se diante da moça e estende-lhe as mãos magras. As
unhas estão realmente maltratadas, grandes, sujas. A moça pede-lhe que mergulhe
os dedos numa pequena vasilha de água morna. Ceei está do lado, observando. Puxa
assunto com Noel, nota que ele acompanha com atenção os movimentos da moça,
agora
cortando-lhe as cutículas, bem rentes, em alguns momentos chegando a
feri-lo. Noel, num impulso, levanta-se:
- Moça, Ceei... Desculpem-me, só agora me lembrei de que tenho um compromisso
inadiável... É ali pertinho. Esperem que não demoro.
Nunca mais fará as unhas. Nem tampouco cuidará dos dentes, a ida ao dentista
sendo um suplício maior para ele do que para qualquer outro, obturações e
curativos
tornando-se mais
dolorosos pela dificuldade em abrir a boca. O defeito agravou-se com o tempo.
É muito amigo de Joaquim Bruno de Moraes, um dentista que mora e tem consultório
quase em frente ao chalé. Sempre que se vêem, passam bom tempo conversando.
Sobre
política, espiritismo e samba. Seu Bruno (prefere que o chamem assim do que por
"doutor", já que é apenas prático licenciado) tem uns vinte anos mais que Noel.
Costuma
contar-lhe passagens de sua atuação política, tempos atrás, em Botucatu,
Sorocaba, Votorantim e outros pontos do interior paulista. Liderou greves de
operários,
andou fugindo da polícia. Foi para não ser preso que veio parar no Rio, na
tranqüila Vila Isabel. Fala com emoção, também, de velhos companheiros de causa,
anarquistas
italianos que chegaram ao Brasil no começo do século e que, consta, as forças de
repressão do Marechal Hermes fizeram sumir como fumaça. O dentista era muito
jovem
naquela época, mas já simpatizava com causas em defesa de uma sociedade mais
justa, ricos menos ricos, pobres menos pobres, ou mesmo sem pobres nem ricos.
Hoje,
seu Bruno é um comunista animado pela esperança de que o Brasil ainda possa
fazer uma revolução como a da Rússia em 1917. Acredita nisso. Mesmo que, no ano
passado,
uma tentativa nesse sentido tenha sido esmagada rapidamente. O que não o
desanimou: continua distribuindo folhetos conclamando os trabalhadores de todo o
406

mundo a se unirem. Folhetos que o prróprio Noel passa adiante.


O espiritismo é um dos assuntos que mais interessam a seu Bruno. Neste país de
tantas bizarrias, ele é um dos muitos comunistas que, materialistas até a raiz
dos
cabelos, acreditam na reencarnação, Karl Marx e Allan Kardec coexistindo
pacificamente. Quanto ao samba, o dentista é apenas um ouvinte, apreciador da
arte do amigo
e vizinho Noel Rosa.
Joaquim Bruno de Moraes sempre recomendou a este cliente especial que cuidasse
dos dentes. Os posteriores estão muito estragados, alguns possivelmente não têm
mais
jeito. O fato de não doerem não quer dizer nada. Além de tudo, não adianta Noel
beber cerveja ou conhaque como recurso para disfarçar o mau hálito. É pior, as
pessoas
o sentem sem que precise chegar muito perto. O que Noel já havia notado (daí o
hábito de usar a mão em concha sobre a boca quando fala com os outros). Ouve os
conselhos
do dentista e, em troca, mente:
- Qualquer dia desses venho aqui começar um tratamento.
Também nas questões de dinheiro Noel Rosa é homem difícil de se compreender.
Detesta emprestar, não se importa em dar. Se um amigo ou mesmo um estranho o
aborda
num botequim, à porta de uma estação de rádio, na rua, mordendo-o sem cerimônia
- "Tem algum aí, Noel? Quando puder eu te pago..." - ele tira do bolso o que lhe
sobra, põe na mão do outro e esquece o assunto. Nunca cobrará a ninguém, como
também não gosta de ser cobrado. Na verdade, tem pavor a dívidas, bastando-lhe
as que
conheceu na infância, os prestamistas asfixiando toda a família, ou aquelas
outras do negócio com Francisco Alves a propósito do Pavão.
Mas este mesmo Noel, desprendido, indiferente ao "vil metal", pode surpreender
as pessoas. Por exemplo, entregando ao Papagaio um maço de notas para que ele
mande
reformar seu carro de praça:
- É o seu ganha-pão. Cuide bem dele.
E negando a Ceei 100 mil réis para que ela compre um soirée. Em vez disso fará
novo samba de parceria com Vadico, dando-lhe por título exatamente a quantia que
negou
à amante.

Você me pediu cem mil-réis


Pra comprar um soirée E um tamborim
O organdi anda barato pra cachorro
E um gato lá no morro
Não é tão caro assim.
Não custa nada
Preencher formalidade
Tamborim pra batucada,
Soirée pra sociedade.
Sou bem sensato,
Seu pedido atendi:
Já tenho a pele do gato,
Falta o metro de organdi.
Sei que você
Num dia faz um tamborim,
Mas ninguém faz um soirée
Com meio metro de cetim.
De soirée
Você num baile se destaca,
Mas não quero mais você
Porque não sei vestir casaca.

Pode também pagar despesas altas numa mesa composta de prontos, desempregados,
vadios, boêmios, como costuma acontecer nas noites da Lapa, e não dar um tostão
a
Lindaura, tão precisada. Inventa desculpas, faz promessas, desconversa, mas
raramente ajuda a mulher. Se ela lhe tira dinheiro da carteira, aproveitando-lhe
o sono
pesado, não se perturba: passa a escondê-lo na meia. Um dia, ao visitar
Mangione, editor de suas músicas, recebe uma bolada de atrasados, o segundo
semestre de 1935
tendo sido muito proveitoso. Manda fazer, de uma só vez, quatro ternos. Ceei não
vive reclamando? Pois então. Martha vê os Araújos chegarem com as roupas
prontas,
vai falar com o filho. Encontra-o bem-humorado, aparentemente acessível:
- Quatro ternos, Noel! Quatro ternos e nada para Lindaura... ?
- Ora, mamãe, a Linda nunca usou terno.
Muitas vezes a mulher vai esperá-lo à saída de um programa de rádio para
pedir-lhe dinheiro. Martha, sozinha, não suporta as despesas, viúva, Hélio
estudando, a escolinha rendendo pouco. Noel sempre dá um jeito de mudar de
assunto. A
própria Martha recorre aos amigos, aos diretores de broadeast. Não podiam falar
com o Noel? O máximo que Casé faz, depois de insistentes apelos, é pagar-lhe
diretamente
do cachê de Noel. Isto é, tirar um pouco por conta.
- Mas será que ele não vai se zangar?
Ele nem liga, Casé e outros programadores, sensíveis às dificuldades da família,
desviando por conta própria, mas para o devido lugar, parte dos ganhos de Noel.
Lindaura reclama muito. Um dia, diz:
- Vou trabalhar. Não posso viver com o que você me dá.
Noel nunca quis que a mulher trabalhasse. Por que, jamais se saberá. Pouco
ligando para ela, passando a maior parte do tempo fora,
407

sequer lhe dando o suficiente para o sustento, a propósito de que proibi-a de


arranjar emprego? Também isso ele transforma em samba, a única música inspirada
em
Lindaura, cujo título, Você Vai Se Quiser, é de uma liberalidade apenas
aparente:

Você vai se quiser...


Você vai se quiser...
Pois a mulher
Não se deve obrigar a trabalhar,
Mas não vá dizer depois
Que você não tem vestido,
Que o jantar não dá pra dois.
Todo cargo masculino
Desde o grande ao pequenino
Hoje em dia é pra mulher.
E por causa dos palhaços
Ela esquece que tem braços
Nem cozinhar ela quer.
Os direitos são iguais,
Mas até nos tribunais
A mulher faz o que quer.
Cada qual que cave o seu
Pois o homem já nasceu
Dando a costela à mulher.

Este é mesmo um ano-chave em sua vida. Trabalho, muito trabalho. E algumas


perdas. Principalmente duas, a do pai e uma outra que se dá no dia do seu
vigésimo quinto
aniversário: 11 de dezembro de 1935. O amigo e parceiro
Henrique Britto, gênio do violão, mãos mágicas, o melhor instrumentista dos
tangarás (e um dos mais brilhantes que o Brasil já teve), o Henrique Britto de
espírito
inquieto, sempre com pressa, morre de septicemia aos 27 anos. Amigo e
parceiro. Em Queixumes e nesta beleza de miniatura que é Queimei Teu Retrato, um
samba com sabor de Fina, a do retratinho e do riso de criança. De certa maneira,
outra perda:

Indiferente hoje em dia,


Eu sou feliz por ter certeza
Que transformei tua tristeza
Na minha própria alegria.
Findando nossa esperança,
Realizei minha vingança:
Em frente ao teu portão
Queimei teu retrato, queimando meu coração.

Um ano-chave. O trabalho, as perdas, os primeiros sintomas de um íntimo processo


de entrega, de desinteresse pela vida. Brigas com Ceei, problemas em casa.
Descuido
com a aparência, descuido com a saúde. A mãe se queixa, a mulher também. E ainda
por cima, num fim de tarde, Lindaura se chega e diz:
- Noel, estou esperando um filho.

NOTAS
1. A Voz do Rádio, 19 de dezembro de 1935. Foi mesmo em 1926 que o inglês J.L.
Baird realizou as primeiras experiências bem-sucedidas com imagens em movimento,
consideradas precursoras da moderna televisão. Na primeira metade dos anos 30,
cientistas também ingleses intensificaram suas pesquisas em busca do "assombroso
aparelho".
O assunto era comentado por aqui, daí a enquête.
2. Consta que Lamartine Babo escreveu - ou pelo menos começou a escrever -
algumas operetas nos moldes das de Lehár, que no entanto jamais seriam
encenadas. Uma
delas, Viva o Amor, completada em 1940 ou 1941, era Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão
Linda, valsa de parceria com Francisco de Queirós Mattoso.
3. O termo tanto podia significar "vagabundo", "folgado", como também algo
parecido com o atual "bicão", como era mais o caso de Lamartine.
4. Jornal de Modinhas, 24 de outubro de 1936.
5. "Foi em 1937 que começou a fazer uns quadrinhos para enfeitar a parede" -
diz Rubem Braga em seu perfil de Heitor dos Prazeres, um dos capítulos de Três
Primitivos,
segunda edição (página 103). Mas muitos dos que conheceram o sambista-pintor,
entre os quais Cartola, informam que bem antes ele já fazia os seus quadrinhos.
6. Esta passagem foi contada por Heitor dos Prazeres a Jacy Pacheco, que a
incluiu em O Cantor da Vila (páginas 136-138).
7. De um recorte do Correio da Noite, sem data, colado por Noel em seu álbum.
408

NOEL VERSUS NOEL

Capítulo 40

Quem não bebe te condena Quem bebe zomba de ti


É Bom Parar
Noel Rosa é de fato o grande nome do carnaval de 1936. Em qualidade como em
quantidade, sua presença será de tal ordem que pouco sobrará para os outros
compositores.
Os foliões cantarão com muito entusiasmo a curiosa Marchinha do Grande Galo, de
Lamartine Babo, ou a singela A-M-E-I, de Nássara e Frazão:
Aprendi o ABC do meu amor Na cartilha azul do teu olhar...
Mas serão mesmo de Noel os melhores sambas e marchas que se ouvirão nas ruas e
nos bailes. Alguns vêm de anos anteriores, feitos não propriamente para
carnaval.
Mas alcançaram tanta popularidade que acabaram atravessando o ano e chegando até
esses dias quentes de fevereiro. É o caso, principalmente, de Palpite Infeliz.
Mas
nove outras composições de Noel constam dos suplementos carnavalescos das
gravadoras: Amor de Parceria, Pierrot Apaixonado, O Que É Que Você Fazia?,
Menina Dos Meus
Olhos, Não Resta a Menor Dúvida, Este Meio Não Serve, Linda Pequena (com um
atraso de um ano em relação à gravação original de João Petra de Barros na
Odeon), Que
Baixo i'e É Bom Parar. Sobre as duas últimas, algumas palavras.
Noel e Nássara fazem a marchinha Que Baixo/para aproveitar, com o humor que os
caracteriza, uma expressão da moda1:
Você cozinha, racha lenha e eu não racho
Que baixo! Que baixo!
Namora pulga sem saber qual é o macho
Que baixo! Que baixo!
Você me diz que faz a gente de capacho,
Mas eu não acho, mas eu não acho.
Planta dinheiro pra nascer dinheiro em cacho
Que grande baixo! Que grande baixo!
Você me diz que toca bem o contra-baixo,
Mas eu não acho, mas eu não acho.
Você afina, parte a corda e eu me agacho
Que grande baixo! Que grande baixo!

Aracy de Almeida ficou de gravá-la na Victor, do outro lado de Palpite Infeliz.


Contudo, ao ouvi-la de Noel, implica com dois versos:
- Não posso gravar um negócio desses, Noel. Onde já se viu namorar pulga sem
saber qual é o macho!
- Pois a letra é esta, Aracy.
409

A cantora embirra. Não cantará a marcha. Ou Noel põe a pulga de lado, ou ela
procura outra música para completar o disco.
-Nesse caso - ameaça ele - você também não grava Palpite Infeliz.
E Aracy, que já não se perdoa por ter deixado escapar a oportunidade de cantar o
samba em Alô, Alô, Carnaval, nem quer correr o risco de perder a segunda chance.
Volta atrás, com pulga e tudo(2).
Menos simples - condenada mesmo a ficar como uma das mais controvertidas
questões de autoria da música popular brasileira - é a história de ÉBom Parar, o
maior sucesso
deste carnaval de 1936, fadado inclusive a ganhar o primeiro prêmio para sambas
do concurso oficial da Prefeitura do Distrito Federal. Tudo começou há poucas
semanas,
quando Francisco Alves, Nono, o lutador de boxe Rubens Soares e alguns amigos
deste conversavam a uma das mesas do Café Trianon. A certa altura, os amigos de
Rubens
começaram a cantar um estribilho:
Por que bebes tanto assim, rapaz? Chega, já é demais!
Se é por causa de mulher, é bom parar Porque nenhuma delas sabe amar.
Francisco Alves, com toda a razão, exultou. Com sua invejável experiência - e
mais ainda com aquele infalível faro para o sucesso - viu logo que aqueles
rapazes
tinham nas mãos um bilhete premiado.
- Qual de vocês fez este samba? Rubens, um tanto timidamente, respondeu:
- Eu. Mas por enquanto é só um estribilho.
- Você também compõe?- surpreendeu-se o cantor.
- De vez em quando faço umas bobagens que ponho logo de lado.
Francisco Alves, que sempre gostou de boxe, conhecia Rubens do ring do Estádio
Brasil, na Feira de Amostras, onde costumava vê-lo lutar. Por sinal, muito bem,
vencedor
de vários títulos cariocas e brasileiros dos pesos médios. Fizeram camaradagem.
Passaram a se encontrar no Trianon, onde as meninas dos dancings próximos
costumam
aparecer para uma conversa fiada antes do trabalho. Ali, com vários amigos
comuns, falam um pouco de tudo, boxe, corridas de cavalos, mulheres, sambas. Mas
Rubens,
muito modesto, nunca se atreveu a dizer a Chico que tinha pretensões a
compositor. Que não o confundissem com Kid Pepe, boxeur que usa os punhos para
arrancar parceria
de gente mais fraca que ele. Rubens também é boxeur, mas jamais
faria uma coisa dessas. Nem precisa. Tem jeito para o samba, o que não é o caso
de Kid Pepe. Francisco Alves estava de fato empolgado.
-Me repete esse estribilho, Rubens. Ecom essa mesma bossa que os rapazes botaram
nele. Quero aprender do jeito que você fez.
Rubens repetiu-o. Uma, duas, várias vezes, até Francisco Alves decorar a letra e
assimilar a tal bossa que o estribilho tem. O cantor decidiu gravá-lo para o
carnaval.
Embora sabendo que o tempo é pouco, a primeira semana de janeiro já vencida, o
carnaval marcado para 23, 24 e 25 de fevereiro. No dia seguinte, entra meio
afobado
no Nice. Vê Jorge Faraj e Noel juntos, aproxima-se da mesa, senta-se sem pedir
licença.
-Noel, Noel, era você mesmo que eu estava procurando. Tenho aqui uma primeira
parte que vai desbancar todo o mundo nesse carnaval. Mas preciso da segunda com
urgência.
Me ajuda?
O caradurismo de Francisco Alves já não surpreende ninguém, especialmente Noel
Rosa. Estão há mais de um ano de relações pode-se dizer estremecidas. Depois de
Retiro
da Saudade - um apelo de Noel a Chico em nome do amigo comum Antônio Nássara -
nunca mais o cantor gravou nada do antigo "parceiro". Mais de um ano, Francisco
Alves
de um lado, Noel do outro, os dois se encontrando aqui e ali, trocando
cumprimentos frios, a sociedade aparentemente desfeita para sempre. E então
Francisco Alves
entra pela porta do Nice, faz como se nada tivesse acontecido, age exatamente
como nos velhos tempos. Noel, porém, recebe-o com indiferença:
- Não estou interessado.
- Que é isso, menino? É um estribilho de arromba.
- Desculpe, Chico, mas já disse que não me interessa.
- Mas eu te pago, Noel. Te pago bem. Noel parece irredutível:
- Que é que há, menino? Recusando dinheiro? Desde quando?
Jorge Faraj, calado, acompanha o diálogo até certo ponto constrangedor, o grande
Francisco Alves quase súplice, Noel seco, distante. Até que o compositor resolve
encerrar o assunto tocando no ponto fraco do cantor: o dinheiro. E faz-lhe uma
proposta mais alta do que o que o Chico está acostumado a pagar:
- Está bem. Eu te vendo a segunda parte: duzentos mil réis!
Francisco Alves leva um susto. Mas não diz nada, olha Noel bem nos olhos, baixa
o tom de voz e concorda:
- Está certo, menino. Vou-lhe cantar a
primeira parte.
Em vez de uma, Noel entrega duas segundas partes a Chico:
Se tu hoje estás sofrendo
É porque Deus assim quer
E quanto mais vais bebendo
Mais lembras desta mulher.
Não crês, conforme suponho,
Nestes versos de canção:
"Mais cresce a mulher no sonho,
Na taça e no coração."
Sei que tens em tua vida
Um enorme sofrimento
Mas não penses que a bebida
Seja um medicamento.
De ti não terei mais pena
É bom parar por aí
Quem não bebe te condena
Quem bebe zomba de ti.

Segundas magistrais, com a marca registrada de Noel, amor, humor, ironia,


irreverência. É antológica a citação aos versos de Orestes Barbosa para a música
que o
próprio Francisco Alves assina em A Mulher Que Ficou na Taça. Gravado a menos de
um mês do carnaval, o samba, mesmo com um estribilho fortíssimo e duas
excelentes
segundas partes, tinha tudo para não acontecer. O tempo era muito pouco para
divulgá-lo. Mas Francisco Alves não desanimou. Chamou Rubens Soares e Evaldo
Ruy, contratou
o motorista Catumby e foram os quatro de capota arriada para uma batalha na Rua
Dona Zulmira.
Desde que descobriu o carnaval, Noel não perde uma dessas gloriosas festas de
rua que os moradores do lugar, Ocirema e Guedes à frente, organizam com o maior
esmero.
Vem gente de todo o Rio para participar do desfile de carros abertos, sob chuvas
de confete e serpentina. Os blocos passam, cada qual com suas baianas e
ritmistas.
Compositores - os melhores da cidade - aparecem para cantar seus sambas e
marchas, ou para ouvir o que os outros fizeram. São mesmo festas gloriosas,
animadas a
chope, os barris dispostos em pontos estratégicos. A casa de Zaluar Moura, por
exemplo. Quantas pessoas participam? Impossível calcular. São milhares, muitos
milhares
que cobrem as calçadas de um lado e do outro, enquanto os automóveis passam.
Noel costuma desfilar num desses carros abertos. Seja a baratinha branca do
Djalma Ferreira,
seja uma fubica como aquela em que certa vez ele e o pessoal da Mangueira
despontaram na esquina, cantando sambas de arrepiar. Noel, Carlos Cachaça, Zé
Criança,
Cartola, quem mais? E também uma pastora de voz negra e densa, porte orgulhoso
de grande dama, música na alma, que atende pelo poético nome de Clementina de
Jesus.
Naquela noite, porém, quando o carro dirigido por Catumby apontou no começo da
Rua Dona Zulmira, Chico com aquele vozeirão, ajudado pelo coro dos outros três,
a
indagar "Por que bebes tanto assim, rapaz?", o povo foi tomado de assalto. Todo
o mundo cantou o novo samba, de fato irresistível. Terminada a batalha, uma
multidão
foi seguindo o carro até o Centro, cantando, batendo palmas, enquanto Francisco
Alves, sentado no encosto do banco de trás, sorria, triunfante: era mais uma
vitória
sua no carnaval.
Hoje, o próprio Noel conta por aí que as segundas partes são suas. Vendeu-as ao
Chico, é verdade. Nem fez questão de que seu nome aparecesse, mas agora - em
pleno
carnaval - uma ponta de arrependimento talvez o incomode: numa festa onde
parecia reinar, sente-se meio destronado. Só Noel Rosa poderia destronar Noel
Rosa. E ÉBom
Parar destronou em popularidade Palpite Infeliz e todas as outras que levavam a
sua assinatura.
Quanto a Rubens Soares, nega e negará sempre ser parceiro de Noel. Jura que
jamais falou com o compositor de Palpite Infeliz, não gosta dele, não tem a
menor idéia
de como nasceu essa história.
411

Triunfando anonimamente ou não, o importante é que Noel Rosa é de fato o grande


nome do carnaval de 1936, seu último carnaval em condições de sair, olhar os
blocos,
beber, divertir-se, aceitar convites para festas, ser homenageado por clubes e
sociedades. Nunca se faz acompanhar de Lindaura, o filho a caminho em nada
mudando
as coisas entre eles. Prefere Ceei. Por exemplo, num botequim da Lapa, de onde
os dois distinguem ao longe o coro vibrante de um bloco que canta:
Um pierrot apaixonado Que vivia só cantando...
Noel se anima. Então a marcha já pegou? Um bloco da Lapa cantando seus versos...
E com que empolgação! Vai até a porta do botequim, vê o bloco se aproximar,
puxado
por um crioulo empertigado, bem vestido, que canta mais alto que todos os outros
foliões. Está explicado. O crioulo é o próprio Heitor dos Prazeres "trabalhando"
a música dos dois.
É ainda com Ceei que na sexta-feira, 21 de fevereiro, vai aos Democráticos para
um grito de carnaval do qual é o convidado de honra. Durante meia hora, canta
seus
sambas e marchas para este ano, ouve palavras elogiosas dos conselheiros da
sociedade, acompanha do palco os foliões dançando. Ceei, de início sentada não
muito
longe dali, sente repentina vontade de sair, de saber como estão as coisas lá
fora, os blocos, a alegria já dominando a cidade nesta ante-véspera de carnaval.
E
sai mesmo, sem avisar Noel.
Às cinco da manhã, ao chegar em casa, encontra-o cercado de garrafas de cerveja.
Uma cena que ela viveu muitas vezes, voltando cem dia claro e o achando ali,
imóvel,
mudo, as garrafas se amontoando.
- Passou um bloco pela porta dos Democráticos e me deu vontade de ir atrás - diz
ela sem que Noel lhe pergunte nada. - O bloco rodou a noite inteira. Estava tão
animado que não consegui sair.
Nestas horas, como de hábito, nada de brigas. Só o silêncio.
Passado o carnaval, intensificam-se suas atividades no Programa Casé. Um dos
mais fortes patrocinadores desta atração dominical, agora na PRA-2, Rádio
Sociedade
do Rio de Janeiro, é O Dragão, bazar situado na Rua Larga, 193, de propriedade
de Oscar Menezes Pamplona, amigo e admirador de Noel. Foi deste empresário - que
gosta
tanto da música quanto dos negócios - a idéia de se instituir um concurso para
apontar a melhor composição que falasse das qualidades do seu bazar. Musiquinhas
publicitárias
já não são novidade em programas radiofônicos. Existem pelo menos há dois anos,
ao que parece desde que Nássara, neste mesmo Casé, cantou um fado com letra de
Luís
Peixoto fazendo propaganda do Pão Bragança.
Noel Rosa e Vadico inscrevem uma marcha no concurso de Oscar Menezes Pamplona. E
ficam com o invejável prêmio: um conto de réis.
Você é mais conhecido
Do que níquel de tostão
Mas não pode ficar
Mais popular do que O Dragão
(Meu amor ideal, sem babado não)
Casé anda sempre muito preocupado com os concorrentes. Sabe que, nesse negócio
de rádio, a criatividade é tudo. O ouvinte adora novidades, vive permanentemente
à
espera de uma primeira audição. É por isso que agora, mais que nunca, recomenda
ao seu cast um cuidado maior para que se evitem repetições. Aos humoristas, pede
novas piadas. Aos cantores, que tratem de incluir em seus repertórios canções
inéditas. Chega a prometer 100 mil réis de abono a cada intérprete que
apresentar um
número inédito em seu programa. Noel não perde tempo.
- Tenho um samba novo para hoje, Casé.
- Qual?
- Você Me Pediu.
Casé, péssimo ouvido, pior memória, não nota que o "novo samba" nada mais é do
que Cem Mil-Réis com outro título. Semana após semana, Noel consegue passar o
dono
do programa para trás, sempre na base de outros títulos para o mesmo samba:
Soirée e Tamborim, NãoÉ Tão Caro Assim, Barato Pra Cachorro. E vai ganhando
abonos por
conta do desligamento do Casé. Até que este descobre tudo.
- Francamente, Noel, você não tem jeito!
De outra vez, garante a Casé que tem mesmo uma primeira audição para lançar no
programa do próximo domingo.
- Qual o título?-pergunta o outro já desconfiado.
- Ilusão - responde Noel.
Chegado o dia, Casé vai para o estúdio acompanhar de perto a tal primeira
audição. Com ele ali, Noel não terá coragem de pregar-lhe mais uma peça. São
todos chamados
para ouvir, os outros cantores, músicos, pessoal técnico, locutores,
funcionários de rádio.
- É uma primeiríssima audição - diz Noel criando expectativa cada vez maior.
É então que ele canta:
412

Seu garçom faça o favor De me trazer depressa...


A ilusão, no caso, era a do Casé. De que Noel, desta vez, cumpriria a promessa
de lhe trazer uma novidade.
Sua falta de pontualidade faz parte do folclore do programa. Ou melhor, as
desculpas que ele dá ao Casé, beirando o inacreditável, vão sendo ouvidas e
passadas adiante
pelos outros artistas:
- Desculpe, Casé, mas furou o pneu do bonde.
Ou então:
-Me esqueci de onde era a Rádio Sociedade e fui parar em Cascadura. Ou ainda:
- Sinto muito, Casé, mas hoje não pude chegar mais tarde.
Ademar Casé ainda esboça começos de zanga que ele próprio, o primeiro a rir das
desculpas de Noel, desmoraliza. Mas a questão do horário é importante. Sendo
Noel
o contra-regra, o ideal é chegar à rádio às onze e meia, isto é, meia hora antes
da abertura do programa. Assim, teria tempo de sobra para saber com que artistas
contaria, a que horas e em que ordem se apresentariam. Mas as noites de sábado
são longas, invadem sem cerimônia as manhãs de domingo, é quase impossível Noel
acordar
antes que a sirene e os primeiros acordes de Gallito anunciem que o Casé já está
no ar. No vão da escada, atrás do piano de Hervê Cordovil, no banheiro das
mulheres,
em muitos lugares Noel se esconde quando não está disposto a inventar desculpas.
Ou quando Casé não está com humor para
ouvi-las. Mas basta que o contra-regra troque a papeleta de programação pelo
violão e o cantor Noel Rosa ocupe o microfone para que Casé esqueça seus
atrasos. Por
exemplo, quando ele interpreta Cabrocha do Rocha, primeira parte de Sílvio
Caldas, segunda sua, os dois registrando como cronistas atentos essa mania que
certos
malandros têm de falar carregando nos x e nos ch:
- Poxxxxxxa! Chhhhhhhhato...
Eu tenho uma cabrocha Que mora no Rocha E não relaxa.
Sei que ela joga no bicho, Que dança maxixe, Que dá muita bolacha.
Tenho um filho macho Com cara de tacho E além disso é coxo. Ele me fez de
capacho, Qualquer dia eu racho Este carneiro mocho.
Mas nem sempre torna as coisas difíceis para o Casé. Às vezes chega a
prestar-lhe favores, embora sempre a seu modo.
- Um favor de amigo, Noel.
- Pois não.
- O doutor Oscar vai dar uma grande festa para os seus empregados depois de
amanhã, no Dragão. Além de patrocinador, égrande amigo do programa. Precisamos
ter um
artista nos representando nessa festa. Gostaria que fosse você.
- Conte comigo, Casé.
Noel vai. O local está enfeitado, mesa de doces, salgadinhos, o barril de chope
mais adiante. É perto do barril que ele se instala. Lá para o final da festa,
Casé
aparece para ver como estão as coisas. Percebe no ar um certo constrangimento,
os empregados da loja olhando para ele. Pergunta por Noel. Será que não veio?
- Veio sim - informa um dos empregados. - Está lá em cima.
Ainda sob os olhares de todos, Casé vai até o andar superior. Justamente o local
da festa, da mesa de doces, do barril de chope. E encontra Noel, deitado a um
canto,
bêbado, uma poça de vômito tendo afugentado dali todos os convidados da festa de
O Dragão.
De vez em quando Casé tenta aconselhá-lo. Chama-o à saída do programa, pergunta
se não quer uma carona de carro até Vila Isabel. Durante a viagem, fala como
amigo,
quase como pai. Por que não toma jeito? A vida desregrada já lhe trouxe
problemas, obrigando-o a um período de tratamento em Belo Horizonte. Já não é
hora de levar
a vida a sério, de agir como todo o mundo? A poucos metros da Rua Carlos
Vasconcellos, na Tijuca, Noel o interrompe.
- Pare o carro aqui, Casé.
- Onde?
- Aqui. Em frente à delegacia.
Casé obedece, mesmo sem entender. Vê Noel saltar do carro, caminhar em volta
como se a procurar alguma coisa no Chão.
-Agorapõe o carro em movimento, Casé.
- Que história é essa, Noel?
-Ligue o motor. Quando eu mandar, acelera.
É então que Noel faz seu braço girar em círculo, à maneira dos atletas
lançadores de disco, e joga um pedregulho na janela envidraçada da delegacia.
Voam estilhaços
por todo lado. Ele dá uma gargalhada.
- Pena tábua, Casé! Pé na tábua! Não é a primeira vez que Noel perturba
uma delegacia de polícia. Tempos atrás, quando voltava com João de Barro de uma
festa de São João em Jacarepaguá, decidiu soltar buscapés. A fim de tornar mais
emocionante
o brinquedo,
413

Noel cortou as flechas que guiam os foguetes. Sem direção, um deles entrou,
assobiando, dentro de uma delegacia próxima. Mais adiante, Noel decidiu-se
vingar de
um homem que não apreciava suas cantorias de madrugada, reclamava que lhe
tiravam o sossego.
- Conheço um careca que não gosta de serenatas. Vamos fazer uma serenata de
bombas para ele.
Noite alta, juntaram os fogos que lhes sobravam e os colocaram estrategicamente
dentro do porão do homem. Fizeram o rastilho de pólvora. Noel acendeu. A casa
quase
veio abaixo.
Em outra carona com Casé, o sermão é estritamente profissional. Por que ele não
se fixa num só programa em vez de cantar aqui e ali como judeu errante? Os
ouvintes
nunca sabem onde encontrá-lo. E é preciso respeitar os compromissos, não faltar,
não chegar atrasado. Hoje em dia, até o Sílvio Caldas, outro nômade do
microfone,
já sentou pé, cantor exclusivo do próprio Casé, obedecendo direitinho aos tratos
e horários. Noel interrompe-o mais uma vez.
- Dá pra aumentar um pouquinho esse teu rádio?
Casé é uma das poucas pessoas do Rio que tem rádio no carro. Não por luxo, mas
por necessidade. Precisa estar informado sobre tudo que acontece na sua e
em outras emissoras, os novos programas, os artistas que começam a se revelar,
os anunciantes em potencial. Não pode perder tempo. Mesmo nas viagens de carro
tem
de estar ouvindo rádio.
- Bonita a voz deste cantor - diz Noel.
- É novo. Um tal de Mário Vieira.
- Quem disse?
- O locutor das Horas do Outro Mundo acaba de anunciar.
O cantor tem mesmo linda voz. E é com muito sentimento que interpreta os versos
de Orestes Barbosa para a melodia de Francisco Alves:
Meu companheiro dileto, Violão és meu afeto És minha consolação...
Noel, o ar de quem sabe e não quer dizer, observa:
- Engraçado, Casé. Nem o Sílvio Caldas tem a voz tão parecida com a do Sílvio
Caldas como este cantor.
Casé aumenta ainda mais o volume do rádio.
- Espere aí, Noel!Mas este cara... este cara é o Sílvio Caldas!
Mário Vieira é um dos muitos nomes atrás dos quais se esconde o caboclinho para
não ser exclusivo de nenhum programa. Ele, como Noel, conserva o espírito
nômade, definitivamente avesso a tratos e contratos.
Marília Baptista gosta de tricotar. E nos intervalos entre um número e outro,
seja no Casé, seja no programa Samba e Outras Coisas que apresenta com o irmão
Henrique
pelas ondas da PRB-7, Rádio Educadora, vai fazendo casacos e
sapatos de lã que uma vez prontos são dados a Noel.
- São para o bebê.
Neste 1936 intensifica-se a amizade entre os dois, Marília freqüenta o chalé,
é amiga de Lindaura, dona Martha a adora. Intensificam-se também suas relações
no campo profissional. Não chegarão a compor juntos, embora a produção musical
de
Marília já seja bastante expressiva por esta época. Produção que ela não perde
tempo em mostrar toda vez que lhe cabe como intérprete, "a menina da voz
grossa",
ir ao microfone. Há quem a critique por estes impulsos autopromocionais, achando
que tanto a
414

Educadora como a Transmissora a contrataram como cantora e não como compositora.


Mentiras Radiofônicas, aquela seção com que A Voz do Rádio costuma alfinetar os
artistas (a mesma que disse ser muito cordato o maestro Glückmann e muito
bonitos Noel Rosa e Lamartine Babo), faz de Marília uma de suas vítimas:
"Marília Baptista não interpreta sambas de sua autoria."(5)
Na mesma seção, uma semana depois, outra provocação:
"Marília, Henrique Baptista e Noel Rosa têm agradado muito na interpretação do
desafio em homenagem a uma casa comercial."(6)
Só que neste caso a mentira é pura verdade. Porque, ao contrário do que insinua
o jornal, os desafios que em torno de De Babado fazem Noel e Marília serão mesmo
dos mais inesquecíveis momentos radiofônicos destes tempos. Os versos que um e
outro improvisam - e nem sempre falando de O Dragão - são repletos de humor,
originalidade,
espírito carioca. Infelizmente, tão logo eles saem do estúdio, sob aplausos de
quem os ouve, já terão se esquecido do que improvisaram.
- Noel, como são mesmo aqueles últimos versos que você cantou no programa de
hoje? - pergunta Newton Teixeira à mesa do Chave de Ouro.
- Não tenho a menor idéia. Sobreviver, só esta meia-dúzia de estrofes
e breques que daqui a algum tempo os dois perpetuarão em disco.

De babado, sim Meu amor ideal Sem babado, não.


Seu vestido de babado,
Que é de fato alta-costura,
Me fez sábado passado
Ir a pé a Cascadura
(E voltei de cara-dura)
Com um vestido de babado
Que eu comprei lá em Paris
Eu sambei num batizado
Não dei palpite infeliz:
(Você não viu porque não quis!)
Quando eu ando a seu lado
Você sobe de valor,
Seu vestido sem babado
É você sem meu amor,
(É assistência sem doutor)
Quando andei pela Bahia
Pesquei muito tubarão,
Mas pesquei um bicho um dia
Que comeu a embarcação:
(Não era peixe, era dragão!)
Brasileiro diz meu bem
E francês diz "mon amour",
Você diz: vale quem tem
Muito dinheiro pra pagar meu point-à-jour (Eu ando sem 'argent toujours!)
Vou buscar um copo d'água
Para dar à minha avó,
Não vou de bonde porque tenho mágoa,
Não vou a pé porque você tem dó:
(Vamos comprar o Mossoró!)(7)

O Programa Casé tem muito de um céu constelado. Não há grande estrela do rádio
que não passe ou não tenha passado por ele. De sambistas de bossa como
Luís Barbosa e Antônio Moreira da Silva a cantoras líricas como
Violeta Coelho Netto de Freitas. Por sinal, estas cantoras nunca se sentiram
muito à vontade no meio do pessoal da música popular. Um dia, o contra-regra
Noel se
aproxima de uma delas com a papeleta da programação:
- Qual o número que você vai cantar?
A mulher quase perde a respiração. Levanta-se, lança-lhe um olhar cortante e
explode:
- Você?! Quem deu ao senhor permissão para me tratar por você? Mais respeito,
ouviu? Mais respeito!
Repreendido por Casé, Noel se encolhe, humilhado. Muitos anos depois, Marília se
lembraria do episódio: "De Noel todos se lembram, se lembrarão sempre. Mas quem
sabe hoje quem era aquela senhora?"
De sambistas a sopranos. De desconhecidos cantores - desses que estão no
anonimato e no anonimato continuarão - a polpudos cachês como Carmem Miranda e
Francisco
Alves. De quem Noel, é claro, não esquece. Inspirado nele, passado tanto tempo,
escreve novos versos para a melodia de Vitória:
E no fim da irradiação Vem a voz do violão Que é mais antiga que o Casé.
Dona da minha vontade Saiba vossa majestade Que cantarei o que quiser.
Mas Noel não se limita ao De Babado. Nem ao microfone do Casé. Como cantor -
apenas como cantor - é um dos astros do programa Carnaval Apaixonado que a Rádio
Club
do Brasil apresenta às sextas-feiras. Com textos de Bastos Tigre, durante meia
hora o programa relembra velhas canções e compositores do carnaval. O Diário da
Noite
aplaude a iniciativa que traz de volta aos ouvintes a música do maxixe e dos
sambas "desinfluenciados do foxe do Jazz". Mas
415

diz o jornal num artigo assinado por um certo X: "Há uma nota destoante, a
interpretação de Noel Rosa, sobretudo nojura. O senhor Noel Rosa já poderia ter
encontrado
um bom amigo que lhe advertisse não possuir nenhuma qualidade vocal para o
microfone. Compositor popular de sucesso, com certa feição própria nas suas
músicas, arranhando
bem o violão, o senhor Rosa poderia renunciar ao canto. Ganharia muito porque no
microfone é (...) detestável.
Mas, ao que parece, o senhor Rosa, o gostoso senhor Rosa do Com Que Roupa? e
outros sucessos, está convencido de que vale por um grande intérprete e, ao ler
isto,
naturalmente, espontaneamente, exclamará:
Meu Deus do céu, que palpite infeliz Quem é você que não sabe o que diz?"(8)
Mentiras radiofônicas, primas donnas sensíveis, críticas esparsas. Mesmo em fase
de lento e imperceptível esmorecimento, de sensabor e desencanto, Noel Rosa
ainda
brilha neste alvorecer de 1936.

NOTAS
1. A expressão "que baixo!", empregada interjetivamente no sentido de "que
rata!", "que mancada!", estava em moda na época.
2. A história da gravação de Que Baixo! foi contada pelo próprio Noel Rosa em
entrevista ao Diário Carioca de 4 de janeiro de 1936.
3. Este episódio à mesa do Nice era conhecido de grande parte do meio musical,
daquela época e mesmo de depois. Presenciado por Jorge Faraj, foi por este
contado
a Bruno Ferreira Gomes, que o incluiu em seu livro Wilson Baptista e Sua Época
(paginas 90-92).
4. Rubens Soares não mentia ao dizer que não era parceiro de Noel. Em
entrevista aos autores, voltou a repetir a afirmativa. O provável é que
Francisco Alves tenha
gravado as duas segundas partes sem nada dizer a Rubens, dando a impressão de
que eram dele, Chico. "Eu realmente não gostava de Noel", diz Rubens. O motivo
eram
as suas más companhias, Baiaco e outros homens maus, aquela história de
incendiar mendigos e anavalhar cães, contada a ele por Geraldo Pereira.
5. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
6. Idem, 14 de maio de 1936.
7. Mossoró, cavalo ganhador do primeiro Grande Prêmio Brasil em 1933-
8. Diário da Noite, 3 de fevereiro de 1936.
416

NO PICADEIRO DA VIDA

Capítulo 41

Também fui do trapézio


Até salto mortal no arame eu já dei
Deixa de Ser Convencida

como pássaros cantores, os artistas de rádio levam música a toda parte.


Menestréis sem preconceitos sentem grande prazer em mostrar sua arte onde quer
que haja gente
para apreciá-la, no aquário de uma emissora, no estúdio de uma fábrica de
discos, num banco de praça, debaixo da janela da mulher amada, num palco de
teatro ou no
picadeiro de um circo. A satisfação é a mesma, recebam invejáveis cachês, cantem
em troca de coisa alguma. Têm um profundo respeito por seu público. Um respeito
traduzido em carinho que raros artistas de daqui a quarenta, cinqüenta anos
serão capazes de compreender, muito menos de cultivar. E uma das maiores provas
disso
é justamente o picadeiro de um circo.
Artistas mais elitizados - os cantores líricos, por exemplo - têm em relação ao
circo um menosprezo confessado. Consideram imperdoável rebaixamento cantar sob a
lona geralmente rota de um desses pavilhões mambembes que se montam pela cidade.
Para eles, interpretar uma ária de Verdi ou de Puccini diante de gente que paga
dois ou três mil réis por uma entrada, mais interessada no trapezista do que no
cantor, nas piruetas do palhaço do que na música, gente que se amontoa,
gritando,
assobiando, nos degraus de uma torrinha, é o mesmo que atirar pérolas aos
porcos. Talvez por isso não tenham muito em conta Vicente Celestino, não o
considerem um
dos seus, Vicente jamais abrindo mão de cantar para os humildes freqüentadores
de circo, ainda que lá no íntimo continue sonhando com as luzes do Municipal.
É muito comum os responsáveis por programas de rádio, Christovam de Alencar,
Renato Murce, Waldo de Abreu, Gastão Lamounier, Eratósthenes Frazão e tantos
outros,
organizarem espetáculos em circo, levando seus artistas aos pontos mais
distantes da cidade. O cachê é pequeno, mas sempre fala mais alto a vontade de
cantar para
o povo.
Christovam de Alencar é um dos mais ativos produtores desses
espetáculos circenses. Sempre se empenha muito para levar em sua caravana o que
há de melhor no rádio, cantores, regionais, instrumentistas, grandes cartazes
que
se apresentam na segunda parte da sessão, isto é, depois das mágicas e
acrobacias da primeira. Um desses espetáculos organizados por Christovam de
Alencar é num
circo recém-montado em Niterói. Como de hábito, o organizador procura um a um os
artistas, combina o cachê, marca o encontro no Cais Pharoux, na Praça 15, às
seis
da tarde. A idéia é seguirem todos na mesma barca.
417

Noel Rosa faz parte da troupe. Ele, Sílvio Caldas, Cyro Monteiro, Luís Barbosa,
Odette Amaral, Newton Teixeira, Célia Mendes, Heitor Catumby. Só que, na hora
marcada,
Sílvio Caldas não aparece. Christovam de Alencar, conhecendo o amigo e parceiro,
sabendo que só por milagre ele cumpre seus compromissos, decide não esperar. E
ordena
que todos entrem na primeira barca, deixando Sílvio para lá. Dar bolo em
programadores de festivais é mais do que um hábito para este formidável cantor.
Quase sempre
ele aceita o convite, combina o cachê, marca hora e lugar, deixa que seu nome
saia nos folhetos e cartazes de propaganda e, sem maiores explicações, não
aparece.
Esquece tudo em troca de uma serenata numa praça de subúrbio, de uma conversa
fiada com um amigo, de uma boa sopa de entulho num botequim que acaba de
descobrir
ou de uma nova companhia feminina. Não faz muito tempo, Sílvio acertou com Jorge
Murad aparecer num espetáculo dirigido pelo humorista no Cine Ramos, na Rua
Uranos.
Seria o principal nome do elenco. Seria, mas não foi. Já no final da noite,
Murad não viu outro jeito senão informar à platéia que, infelizmente, não
haveria Sílvio
Caldas. O cinema lotado, imaginou-se sendo linchado por toda aquela gente.
Começou a suar frio. Até que divisou na quarta fila, encolhidinho numa das
cadeiras de
pau, um tipo familiar, seu velho amigo desde os tempos dos espetáculos
beneficentes do Teatro Club Andaraí, do Colégio Nossa Senhora da Misericórdia,
na Rua Barão
de Mesquita, quando Murad iniciava carreira em atos variados de sapateado e
humorismo. Respirou aliviado:
- Distinto público!'- disse recuperando a coragem. - Lamentamos informar que
Sílvio Caldas não está entre nós esta noite.
E antes que a vaia começasse, completou:
-Mas eu tenho uma grande surpresa que vai fazer o distinto público esquecer o
grande seresteiro. Ali, na quarta fila, Noel Rosa!
Aplausos, de início tímidos, aos poucos mais e mais efusivos, mostraram a Murad
que ao menos por momentos Sílvio Caldas seria de fato esquecido. Noel subiu ao
palco,
cantou dois, três números, salvou a noite.
São sempre muito divertidos esses festivais, principalmente os que se realizam
em circos. Os artistas que deles tomam parte hão de guardar para sempre as
melhores
lembranças de recitais meio improvisados, vividos em pequenos palcos construídos
ao lado quando não no próprio picadeiro. Mais do que recitais, são aventuras
repletas
de peripécias e cenas curiosas, já que o público, sobretudo o das torrinhas,
costuma participar vivamente, fazendo coro com o artista ou mesmo se dirigindo a
ele
aos gritos:
- Vai cantar bem assim no inferno, ô Sílvio Caldas!
É rico o anedotário desses espetáculos. Quem não se lembra da noite em que
Mário Moraes atreveu-se a substituir Sílvio, que mais uma vez deixara na mão o
organizador da caravana? Mário, com aquela ginga mole, o jeito de cantar
dolente,
arrastado, sempre querendo tornar ainda mais lentas as canções já lentas, entrou
em cena e anunciou ao público o seu número: Inquietação, samba de Ary Barroso.
Naturalmente,
do repertório do grande ausente Sílvio Caldas.
Quem se deixou escravizar E no abismo despencar Por um amor qualquer...
Tão devagar Mário ia cantando o samba, tão prolongadas tornava as notas, que a
interpretação soava interminável aos ouvidos do público. Uns bocejavam, outros
resmungavam
baixinho, Mário cantando, o samba parecendo não acabar nunca. Até que chegou ao
final:
Nas asas brancas da ilusão
Nossa imaginação
Pelo espaço vai... vai... vai...
Um sujeito completou lá das torrinhas:
- Vai... pra puta que o pariu, seu Mário! Os artistas sempre se divertem com
essas passagens. Mesmo quando são eles próprios as vítimas. E neste espetáculo
organizado
por Christovam de Alencar em Niterói, o circo superlotado, não hão de faltar
acréscimos ao anedotário. Mais uma vez o ponto de partida é a ausência de Sílvio
Caldas.
Christovam de Alencar tenta convencer Heitor Catumby a ser o substituto.
- Mas, Reis... eu sou cantor de samba-choro.
- Você tem boa voz, Heitor. Pode cantar serestas também.
- Não sei, não...
Tanto Christovam de Alencar insiste que Heitor concorda em entrar em cena com a
aba do chapéu caída sobre os olhos, o rosto meio oculto, quse impossível de
identificar.
Quem sabe o público não o engole como se sendo o próprio Sílvio? Vai até o
microfone, o regional se aproxima. Christovam o apresenta, sem citar nome:
- E agora, o grande seresteiro vai cantar para vocês!
Meio hesitante, Heitor começa:
Dorme, fecha este olhar entardecente, Não me escutes nostálgico a cantar...
418
Antes que chegue ao fim da canção - sua voz de sambista de bossa nada tendo a
ver com a de um grande seresteiro - ouvem-se as primeiras vaias, assobios
esparsos,
um ou outro grito de "Fora! Fora!", até que começam a voar objetos, ovos,
tomates sobre o picadeiro. Heitor pára, tira o chapéu, mostra o rosto e diz, bem
alto:
- Calma, pessoal!Eu não sou o Sílvio Caldas, não!
Ao que um cidadão, lá do último degrau da arquibancada, responde atirando-lhe
mais coisas:
- Por isso mesmo, seu filho da puta!
Por pouco o público indignado não destrói todo o circo. Parte das torrinhas
chega mesmo a ser quebrada, um sujeito ameaça rasgar a lona, outro pensa em
incendiá-la.
Só meia hora depois, com a intervenção da polícia, a calma se restabelece.
Heitor Catumby sai de cena, entram outros artistas, estes sim, agradando em
cheio, ganhando aplausos, deixando Christovam de Alencar feliz . Um dos últimos
números
da noite é o de Noel Rosa.
- E agora, senhoras e senhores, o Amigo Velho tem o orgulho de lhes
apresentar... meu
parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Christovam de Alencar e Noel Rosa não são apenas antigos companheiros de
Vila Isabel, mas parceiros em Pela Primeira Vez, samba que fizeram uma noite
dessas no Café da Uma Hora. A música lembra muito as frases finais de Sorrindo
Sempre,
de Noel, Gradim e Ismael Silva. E a letra Ceei jura ter sido feita para ela logo
após os dois se separarem na Estação de Pedro II, no dia em que viajou para
curta
temporada em Belo Horizonte como girl de uma companhia de teatro de revistas
organizada às pressas para levantar um dinheirinho.
Pela primeira vez na vida
Sou obrigado a confessar que amo alguém.
Chorei quando ela deu a despedida,
Ela me vendo a chorar chorou também.
Meu Deus, faça de mim o que quiser,
Mas não me faça perder
O amor desta mulher.
Na estação, na hora de partir o trem, Ela me vendo a chorar chorou também.
Depois fiquei olhando uma janela, Até sumir numa curva o lenço dela.
Se meu amor não regressar, irei também À estação na hora de partir o trem. E
nunca mais assisto uma partida Pra não lembrar mais daquela despedida.
Mal Christovam e Noel haviam concluído o samba, Orlando Silva entrou no
botequim.
Ia a caminho do Engenho de Dentro quando resolveu saltar no Maracanã para um
papo e um café. Ainda atrás de uma música que o projetasse, pediu-lhes para
gravá-lo.
Pedido aceito, no dia 5 de maio de 1936 ele entrou no estúdio da Victor com um
grupo de músicos onde se destacavam Luís Americano e Benedicto Lacerda. Noel
também
estava presente. Orlando, voz preciosa, mas ainda um cantor inexperiente,
cometeu um engano. Cantou:
Depois fiquei olhando uma janela Até sumir na esquina o lenço dela.
Durante a passagem de orquestra, Noel, dentro do estúdio, chamou-lhe a atenção,
baixinho:
- Orlando, quem vira a esquina é bonde. Na repetição, Orlando se corrigiu, dando
ênfase à palavra curva:
Até sumir numa curva o lenço dela(2).
Hoje, Christovam apresenta orgulhoso:
- ... meu parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Noel entra em cena, miúdo, magro, a aparência insignificante de sempre. Põe o pé
na cadeira, pega o violão e começa a cantar. Lá das torrinhas, novo grito:
- Cuidado para não cair do queixo! Gargalhadas. Noel pára. Espera que o silêncio
se restabeleça e só então continua.
É animada a viagem de volta ao Rio, a bordo de uma bordejante barca da
Cantareira. Uns cantam, outros conversam, todos riem. Newton Teixeira nota que
Noel se afastou,
foi lá para a popa, sozinho, olhar o mar que a embarcação deixa para trás num
rastro de espuma. Pensa em se aproximar, mas desiste. Noel está triste, não é o
mesmo
da viagem de ida. Se foi o grito da arquibancada que o perturbou ("Cuidado para
não cair do queixo!"), Newton não tem coragem de perguntar. O fato é que, depois
desta noite, nunca mais um circo - cujo público dá tanta alegria a tanto artista
- terá de novo o privilégio de contar com o canto de Noel.
As vezes se importa, às vezes não. Suas reações às referências e eventuais
brincadeiras que se fazem ao queixo defeituoso também são imprevisíveis. Pode
ser que
não ligue ou até participe delas, usando a boca torta para bancar o ventríloquo
como nos tempos de ginásio e assim mexer com os amigos, os músicos, os garçons:
- Ô inseto! Ô otário!- e quando o outro se aproxima, intrigado, pergunta: - Você
é o
419

Aniceto ou o Otávio?
Gosta de autocaricaturar-se. E sempre de perfil, exagerando o traço ao chegar no
queixo, fazendo graça com a própria deformidade. Há quem garanta que o samba
Mentir(5)
foi feito depois de ser apresentado a uma admiradora, numa festinha em casa de
família. Conhecendo-o apenas de nome, a moça teria ficado desapontada. Esperava
um
compositor bonito como suas músicas. Deixou escapar um "oh!", ao que Noel, sem
perder o controle, indagou:
- Sente alguma coisa?
- Sim - respondeu a moça, um tanto embaraçada. - Umapontada aqui, mas já passou.
Pode fazer, também, como na dedicatória à cantora Yolanda Rhodes, uma linda
mulher que conheceu na Rádio Guanabara e que ficou impressionada com um novo
samba dele.
Foi há três anos, Noel cantando os versos tristes e algo nebulosos da belíssima
composição a que deu o nome de Cor de Cinza. Yola pediu-lhe a letra, Noel
escreveu-a
numa folha de papel e, no final, anotou: "Para que você não se esqueça da feiúra
do amigo Noel." A linda Yolanda Rhodes não o esquecerá.
Em toda a obra de Noel não há composição de versos tão obscuros, tão
indecifráveis. Aparentemente ele conta uma história de amor. Baseado em
informações de Pará,
Almirante vai concluir que a inspiradora foi Julinha. Pouco provável. Há certa
finura na mulher de luvas de pelica cinza que não combina bem com a extravagante
Júlia
Bernardes. É uma história fora de dúvida enigmática, enevoada, cuja origem há de
morrer com Noel.
Com seu aparecimento Todo o céu ficou cinzento E São Pedro zangado. Depois, um
carro de praça Partiu e fez fumaça Com destino ignorado.
Não durou muito a chuva
E eu achei uma luva
Depois que ela desceu.
A luva é um documento
Com que provo o esquecimento
Daquela que me esqueceu
Ao ver um carro cinzento
Com a cruz do sofrimento
420

Cor de Cinza
"Gosto em geral dos versos que convivem com a cidade. Nisso Noel foi o craque
absoluto, e não apareceu no Brasil mais expressivo poeta popular do que ele. O X
do
Problema, Último Desejo, Três Apitos, Dama do Cabaré, Feitio de Oração, São
Coisas Nossas, Só Pode Ser Você incluem-se todas no gênero de poesia brasileira
popular
que me fala. Noel tinha vocação para a coisa, e ele próprio sabia que a 'vocação
é necessária até para dar-se laço na gravata'. Há uma letra de Noel maravilhosa
servindo a uma música também muito bonita, raramente tocada.
Chama-se Cor de Cinza: 'A poeira cinzenta da dúvida me atormenta... A luva é um
documento de pelica e bem cinzento...' A história narrada pelos versos não é
nada
clara, mesmo depois de termos lido a interpretação que o esclarecido Almirante
faz para os mesmos. Mas não importa; trata-se do mais belo e hermético poema
impressionista
do nosso cancioneiro popular."
Paulo Mendes Campos Manchete, 20 de abril de 1974.

Bem vermelha na porta,


Fugi impressionado
Sem ter perguntado
Se ela estava viva ou morta.
A poeira cinzenta
Da dúvida me atormenta,
Nem sei se ela morreu.
A luva é um documento
De pelica e bem cinzento
Que lembra quem me esqueceu.

Mas pode ser também que sofra. E sofra muito. Como acontece no dia em que Wilson
Baptista, ainda lutando para se tornar mais conhecido, reabre uma polêmica que
se
supunha encerrada com Palpite Infeliz. Compõe novo samba, desta vez focalizando
a feiúra de Noel. Dá-lhe o título de Frankenstein da Vila, publica-o no Jornal
de
Modinhas, canta para os amigos no Nice. O samba, muito bem-feito, apesar da
pronúncia incorreta para Frankenstein, rimando com alguém, acaba chegando ao
rádio.
As testemunhas se dividem. Uns afirmam que Noel não deu maior importância,
chegando mesmo a achar engraçada a provocação de Wilson. Outros asseguram que
foi muito
diferente. Nássara conta que viu o amigo furioso, correndo de banca em banca
para comprar todos os exemplares do Jornal de Modinhas em que estivesse a letra.
Cícero
Nunes, companheiro de muitas cervejadas (numa das quais Noel pagou a conta
deixando o violão com o dono do botequim), jura que o viu chorar - um momento
raro - quando
lhe falou da crueldade de Wilson.
Mas, eterno simulador, é outra a impressão que dá ao rival em seu primeiro
encontro após Frankenstein da Vila. Wilson está no Café Leitão, nos Arcos, com
Erasmo
Silva, seu parceiro na Dupla Verde e Amarelo, quando Noel passa.
- Noel! - grita com o sorriso matreiro. Os dois se cumprimentam. Noel brinca,
diz ter ouvido o samba em que ele o coloca na primeira fila dos feios, gostou
muito, coisa e tal. Wilson fica satisfeito. E aproveita para emendar:
- Pois saiba que eu já fiz mais um.
- Mais um o quê?
- Mais um samba. Para a nossa briga. E canta Terra de Cego:
421

Perde a mania de bamba


Todos sabem qual é O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão Não deves apelar
Para um barulho a mão.
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar.

Noel acha a melodia interessante. Mas pede para colocar-lhe outra letra. Elogia
Wilson, diz que ele é mesmo terrível, tirou-lhe aquela morena há dois anos e
também
andou de namorico com Ceei. De fato terrível. Aqui mesmo no botequim, faz a nova
letra. Sempre se dirá que o alvo de Noel nestes versos para a melodia de Terra
de
Cego é o próprio Wilson: "Deixa de ser convencido...", diz logo de saída. Mas
não. Uma análise menos apressada mostrará que é para uma mulher que ele canta. A
começar
pela rima, "convencida" com "vida". Uma mulher que tem um "velho modo de vida".
Uma perfeita artista por quem é obrigado a viver um "amor de parceria". A mulher
é Ceei. O parceiro, Wilson.
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu bem sei,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal No arame eu já dei.
(Muita medalha eu ganhei!)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida.
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé Em amor de parceria.
É o fim da polêmica. Uma briga musical da qual muito pouca gente - o pessoal do
meio e um ou outro de fora - tomou conhecimento. Até que ponto Noel guardará
alguma
zanga lá no íntimo, mágoa, rancor, ressentimento ou algo assim, motivada pelo
Frankenstein da Vila, é impossível saber. No que diz respeito a Wilson, não há
de ser
por essa rixa sonora que se tornará alguém na vida. Seu tempo há de chegar. Por
força do próprio talento e não às custas do nome de Noel, por quem, afinal,
guardará
até morrer um grande respeito e confessada admiração(5).
Frankenstein da Vila
"Foi o seguinte: o povo não sabia que o negócio do Palpite Infeliz era comigo.
Na verdade, o povo pouco ligava àquelas questões. Se alguém tivesse de pensar
alguma
coisa, havia de ser que o samba era uma resposta ao Mangueira, de Zequinha Reis
e Assis Valente ('Não há, nem pode haver, como Mangueira não há...')- Mas o
pessoal
do rádio todo sabia que era comigo. E eu comecei a ouvir indiretas de todo lado.
Vinha um e me dizia uma coisa, vinha outro e me dizia outra coisa. Diziam que o
Noel estava preparando uma porção de sambas que mexiam comigo, sambas que ele
cantava pelos cafés. Então, pra não ficar atrás, eu também fiz um samba pra
mexer com
Noel. O samba não foi publicado nem gravado(4), mas foi tão cantado também pelos
botequins que um dia, pra minha surpresa, eu o ouvi no rádio por um conjunto
chamado
Os Quatro Diabos. Meu samba era uma pilhéria com o Noel e se chamava
Frankenstein da Vila. Noel era homem e não há mal nenhum em se chamar um homem
de feio. Por
isso eu fiz o samba, que ficou assim:

Boa impressão nunca se tem


Quando se encontra um certo alguém
Que até parece o Frankenstein.
Mas, como diz o rifão,
Por uma cara feia Perde-se um bom coração.
Entre os feios estás na primeira fila,
Eu te batizo 'Fantasma da Vila'.
Essa indireta é contigo
E depois não vás dizer
Que eu não sei o que digo
(Sou teu amigo)."
Wilson Baptista
Rádio Tupi, 22 de junho de 1951

Com toda essa agitação, é um ano em que Noel compõe pouco. Desde que se tornou
profissional, nunca foi tão preguiçoso. Preguiçoso ou desmotivado. Aquela
entrega,
presente em tudo o mais, começa a se fazer sentir também no trabalho. Pouco a
pouco. Durante todo o 1936, não chegará a vinte o total de suas composições,
apenas
onze delas gravadas.
422

Assim mesmo, se fará tanto é porque Carmem Santos o convida a escrever músicas
originais para seu filme Cidade Mulher. Convite aceito, ele trabalha, sozinho ou
a
quatro mãos com José Maria de Abreu ou Vadico, nas canções que sustentarão a
qualidade musical do filme (o programa inclui também composições de
Assis Valente, Waldemar Henrique, Heriberto Muraro e Raul Roulien, um brasileiro
que começou interpretando tango e acabou cantando fox em filme americano).
Em termos de roteiro, Cidade Mulher é um pouco mais ambicioso que Alô, Alô,
Carnaval. Não é uma revista carnavalesca em que os quadros musicais se sucedem
meio sem
pé nem cabeça, mas uma comédia com ligeiro fio de história ligando os diferentes
números, boa parte deles focalizando o Rio, seus bairros e tipos. A direção é de
Humberto Mauro e o elenco, atores e cantores, bem inferior ao de Alô, Alô,
Carnaval.
Mas o filme, estreando no Alhambra a 27 de julho de 1936, é muito bem recebido
pelo público. E os poucos que tiverem oportunidade de vê-lo daqui a muito
tempo(5)
talvez possam sentir nas entrelinhas de cada cena o clima alegre em que foi
produzido, contagiando todos que dele participaram, Noel Rosa inclusive. As
filmagens
foram feitas no Cassino Beira-Mar, aonde Noel ia todas as noites para acompanhar
de perto os ensaios e tomadas de cena, não só de suas músicas mas de toda a
produção.
Fazia-o com interesse e entusiasmo. Um entusiasmo que não deixou de transmitir a
Ceei.
Muitas noites ela o acompanhou nas idas aos sets de filmagem. Antes ou depois de
pegar no trabalho. Também ficou encantada com todos aqueles artistas, uma
movimentação
incessante, técnicos, iluminadores, câmeras, Humberto Mauro a dar ordens, que se
fizesse isso ou aquilo desse ou daquele modo, as cenas muitas vezes se repetindo
até que saíssem boas. Então é assim que se faz um filme? Uma noite, sentada num
canto enquanto Noel participava dos trabalhos, Ceei sentiu alguém dar-lhe um
tapinha
no ombro. Era um sujeito maltrapilho, barba crescida, olheiras, as mãos muito
sujas, aspecto assustador. Apavorada, pôs-se a gritar. Interrompeu-se o
trabalho, artistas,
todo o mundo correndo para ver o que havia. Noel, ao reconhecer a voz de Ceei,
ficou pálido. O que aconteceu?
- Um homem! - tentou explicar ela. - Barbado, feio...
Alguém soltou uma gargalhada ao descobrir que quem assustara Ceei era um extra,
vestido de mendigo para uma das cenas. Riram todos, o clima alegre voltou, Ceei
encabulada,
Noel achando graça. É mesmo possível que todo esse ambiente venha a ser sentido
nas entrelinhas de Cidade Mulher. Alegria, entusiasmo, talvez o último trabalho
em
que Noel conseguirá pôr interesse acima do trivial.
De suas canções para o filme, todas inéditas, uma ele vai tirar de seus
guardados, relatando o começo de seu romance com Ceei: Dama do Cabaré1. Orlando
Silva vai
gravá-la em disco três dias depois da estréia do filme, no qual ele divide a
cena com Carmem Santos, ela declamando os versos de Noel:
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra...
É ainda Orlando Silva quem interpreta a canção-título, de Noel sem parceiro, o
único canto de amor do poeta de Vila Isabel à sua cidade:
Cidade de amor e ventura
Que tem mais doçura
Que uma ilusão.
Cidade mais bela que o sorriso,
Maior que o paraíso,
Melhor que a tentação.
Cidade que ninguém resiste
Na beleza triste
De um samba-canção.
Cidade de flores sem abrolhos
Que encantando nossos olhos
Prende o nosso coração.
Cidade notável,
Inimitável,
Maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher!
Cidade de sonho e grandeza
Que guarda riqueza
Na terra e no mar.
Cidade do céu sempre azulado,
Teu sol é namorado
Das noites de luar.
Cidade padrão de beleza,
Foi a natureza
Quem te protegeu.
Cidade de amores sem pecado,
Foi juntinho ao Corcovado
Que Jesus Cristo nasceu.
José Maria de Abreu é um melodista fértil. Em matéria de canção romântica, de
rico fraseado e suave harmonia, só perde para Custódio Mesquita. Paulista de
Jacareí,
está no Rio há apenas três anos. Veio com todo o seu talento, conhecimento de
música e experiência adquirida no íntimo contato com o piano, o violino, o
violão e
o pistom, desde os tempos da banda escolar em sua cidade natal. É jovem - dois
meses mais novo que Noel - e ambicioso. Este 1936 será o seu
424

ano, não só pela oportunidade que tem de trabalhar com Noel Rosa num filme, mas
também porque é o do lançamento de seu primeiro grande êxito, a valsa Boa-Noite,
Amor, letra de Francisco Mattoso:
Boa-noite, amor, Meu grande amor, Contigo sonharei...
Também é Orlando Silva - desta vez acompanhado das irmãs Rosina e Elvira Paga -
quem canta no filme uma marcha da dupla José Maria de Abreu-Noel Rosa: Morena
Sereia.
Só que não a gravará em disco, permanecendo a marcha, de sabor muito carioca,
inédita nos próximos 26 anos.
Morena sereia,
Que à beira-mar não passeia,
Que senta na praia e deixa a praia cheia
De lindos castelos de areia.
Cuidado criança,
Que qualquer dia um tufão
Derruba os teus castelos de esperança
E enche de areia o teu coração.
Tenho um bangalô cinzento
Que nos defende do tufão.
Entre quatro paredes de cimento,
Não há quem possa desmanchar nossa ilusão.
Se na praia tu souberes Que o teu nome
eu escrevi Entre mais de dez nomes de mulheres,
Terás certeza que te amei mas te esqueci.
A segunda das composições da dupla é Na Bahia, escrita nos moldes dos sambas-de-
roda de Salvador. Junto com Dona do Lugar, às únicas que Noel dedicou àquele
Estado.
Também vai permanecer inédita - mais tempo ainda que Morena Sereia. É lançada no
filme por Bibi Ferreira, filha de Procópio, começando praticamente aqui, aos 15
anos, sua carreira artística.
Aonde é que o nosso grande Brasil principia?
Na Bahia! Na Bahia!
Aonde foi que Jesus pregou sua filosofia?
Na Bahia! Na Bahia!
Todo santo dia,
Nasce um samba na Bahia.
Samba tem feitiço,
Todo mundo sabe disso.
A minha Bahia Forneceu
a fantasia Mais original
Que se vê no carnaval.
Em São Salvador,
Terra de luz e de amor,
Só o samba cabe,
Disso todo mundo sabe.

De Noel sozinho é uma valsa, Numa Noite à Beira-Mar, interpretada pelos irmãos
Amaro, Maria e José. Uma canção romântica, rara na obra do poeta. E outra que
acabará
injustamente esquecida:
Ele - Juro pela lua cheia,
Que ilumina a branca areia, Que jamais posso olvidar As palavras que disseste,
Quando teu amor me deste Numa noite à beira-mar...
Os dois - Numa noite à beira-mar.
Ele - Quando a lua foi-se embora Fiquei sozinho a meditar.
Ela - Não quero recordar agora
Aquela noite à beira-mar.
Ele - O nosso amor foi infeliz,
Ela - Nosso destino assim o quis.
Os dois - Infelizes nós seremos,
Nunca mais esqueceremos
Que sofremos por lembrar
As palavras que dissemos
Quando nós dois nos conhecemos
Numa noite à beira-mar.
Sendo um filme basicammente centrado no Rio, seus encantos, sua gente, o
cronista que sempre existiu em Noel não podia ficar de fora. Para completar a
série de músicas
encomendadas por Carmem Santos, ele compôs dois sambas em que procurou retratar
tipos da cidade, como já fizera tantas vezes antes com
João-Ninguém, Malandro Medroso, Mulato Bamba, Rapaz Folgado, Mulata Fuzarqueira,
Voltaste. Um deles é o Tarzan. Numa época em que o cinema americano projeta nas
telas de todo o mundo heróis de físico atlético, ombros largos, bíceps
avantajados, músculos imensos por todo corpo, rapazes de bairros grã-finos do
Rio, antes tentando
seguir as pegadas de galãs do tipo Rodolfo Valentino ou no máximo John
Barrymore, agora trocam a figura do "almofadinha" pela do "tarzan". Em grande
parte porque
faz muito sucesso a série de filmes iniciada em 1932 com Tarzan, o Filho das
Selvas (Tarzan, The Ape Man), em que o campeão olímpico de natação, Johnny
Weissmuller,
vive o papel do famoso personagem criado por Edgar Rice Burroughs. Mas muitos
dos rapazes candidatos a galã-atleta são destituídos de predicados físicos, e
nem com
ginástica de Charles Atlas conseguiriam passar de tímidos, minguados tarzans das
praias cariocas. Daí recorrerem aos alfaiates. Ou seja, torna-se moda
425
no Rio o paletó com ombreiras, os providenciais recheios de algodão que
aproximam os esquálidos rapazes de Johnny Weissmuller. Noel registra o fato num
notável samba,
parceria com Vadico, que já no título é puro deboche: Tarzan, o Filho do
Alfaiate. A primeira parte parece ser toda de Noel e a segunda contém modulações
em que
se percebe a mão do pianista Vadico. O comediante José Vieira é quem o lança no
filme:
Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte
Nem conheço futebol.
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo um ano Inteiro
Sem ver um raio de sol.
A minha força bruta reside
Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer,
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer.
Eu poso prós fotógrafos
E distribuo autógrafos
A todas as pequenas lá da praia de manhã.
Um argentino disse Me vendo em Copacabana:
No hay fuerza sobre-humana Que detenga este Tarzan!
De lutas não entendo abacate
Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar.
Sou incapaz de machucar uma formiga,
Não há homem que consiga
Nos meus músculos pegar.
Cheguei até a ser contratado
Pra subir em um tablado
Pra vencer um campeão,
Mas a empresa, pra evitar assassinato,
Rasgou logo o meu contrato
Quando me viu sem roupão.
O outro tipo é também curioso: Maria Fumaça. A letra não tem a qualidade da
anterior, Noel recorrendo demais ao seu dicionário de rimas. Mas a melodia, dele
próprio,
é muito engenhosa.

Maria Fumaça
Fumava cachimbo,
Bebia cachaça.
Maria Fumaça
Fazia arruaça,
Quebrava vidraça
E só de pirraça
Matava as galinhas
De suas vizinhas.
Maria Fumaça
só achava graça
Na própria desgraça.
Dez vezes por dia
A delegacia
Mandava um soldado
Prender a Maria.
Mas quando se via
Na frente do praça,
Maria sumia
Tal qual a fumaça,
Maria Fumaça
Não diz mais chalaça,
Não faz mais trapaça,
Somente ameaça
Que acaba com a raça
Bebendo potassa.
Perdeu o rompante,
Foi presa em flagrante
Roubando um baralho,
Não faz mais conflito,
Está no distrito
Lavando o assoalho.

Seja como for, o samba acabou ficando fora do filme, para tristeza de Noel que
parecia apostar no seu sucesso.
Compõe pouco neste 1936. E começa a sentir que a saúde lhe falta. Gripes
freqüentes, sempre acompanhadas de febre, o levam a recorrer ao amigo Edgar mais
vezes do
que desejava, os sermões sempre o aborrecendo:
- Cuidado, Noel. Você está perto de uma recaída.
Preguiça, desmotivação, entrega, saúde fraquejando. Se tinha algum motivo para
pensar no futuro, no dia de amanhã, nas coisas que ainda pode ter ou fazer,
talvez
esse motivo tenha chegado ao fim de forma tão triste quanto prosaica: Lindaura,
de gestos e impulsos infantis, sobe na goiabeira, estica a mão para um galho
distante,
desequilibra-se e cai. Perde os sentidos. A mesma goiabeira sob a qual Noel
costumava tocar ("Coitado, tão moço...")- E que um dia, para fazer surpresa ao
filho,
Martha resolveu iluminar, mandando instalar nela um jogo de lâmpadas. De noite,
diante da surpresa, Noel exclamou:
- Prostituíram minha goiabeira! Ela só pode ser iluminada pela lua...
Foi de um de seus galhos que Lindaura caiu. Martha manda que chamem o médico,
Heleno Brandão, o velho Graça Mello, Renato Bap-tista, o primeiro que estiver
disponível.
O médico chega. Lindaura está bem, mas perdeu o filho.
Nunca se saberá o que Noel sente em relação a isso.
426

NOTAS
1. Este episódio, um dos mais difundidos do anedotário do circo carioca daquele
tempo, tem sido contado de várias maneiras, cada versão sempre mais enriquecida
que a outra. Os autores optaram por esta (muito diferente, por exemplo, da
contada por Nestor de Hollanda em Memórias do Café Nice, páginas 185 e 186).
Basearam-se
nos depoimentos de Christovam de Alencar e Newton Teixeira, que afinal estavam
lá.
2. A cena ocorrida dentro dos estúdios da Victor é contada por Rui Ribeiro em
Orlando Silva, Cantor Número Um das Multidões (página 38).
3. Já focalizado no Capítulo 23.
4. Não ainda, à época deste depoimento. A primeira gravação de Frankenstein da
Vila seria a de Roberto Paiva, em 1956, na Odeon.
5. Como se verá no Capítulo 46, Wilson Baptista falará com carinho e saudade de
Noel em nada menos de três de seus sambas, o primeiro de 1942. É verdade que em
um deles, Chico Viola, de parceria com Nássara, há este primor de sutileza
(intencional ou não?): "(Chico Viola) partiu, partiu, foi pro céu, foi fazer
companhia
a Noel." Os gozadores do Nice andaram perguntando a Nássara e a Wilson se era
para roubar o sossego de Noel que eles mandaram Francisco Alves fazer-lhe
companhia
lá em cima. Em seu livro de memórias intitulado justamente Café Nice, cujos
originais ainda inéditos pertencem ao arquivo de Hermínio Bello de Carvalho,
Wilson também
deixa registrada sua admiração pelo ex-rival: " Noel Rosa - O imortal poeta
nasceu aqui mesmo, em Vila Isabel, trocou a medicina pelo samba, trocou o
bisturi pelo
violão quando já era quase doutor. Quem ganhou com isto foi a música popular
brasileira, pois Noel Rosa marcou todos os tipos e acontecimentos, nos versos de
seus
inesquecíveis sambas. Noel imitou a cigarra: cantou, cantou, até morrer."
6. Até onde os autores conseguiram saber, perderam-se todas as cópias de
Cidade Mulher.
7. Já focalizado no Capítulo 31-
427

O DOM DE SABER ILUDIR


Capítulo 42
Meu Deus, faça de mim o que quiser Mas não me faça perder O amor desta mulher.
Pela Primeira Vez
sala não é das maiores, mas tem aquela tal "atmosfera montmar-troise" de que
falam os cronistas da Lapa. Pelo menos Max Darly se esforça para que assim seja,
adotando
gestos e mesuras de um cabaretierde Place Pigalle, arriscando até um pouco de
francês ao recepcionar os habitues mais respeitáveis: "SHlvousplait, mon-
sieur..."
Como se a dizer consigo mesmo: "Já que os boêmios da Lapa não podem ir a Paris,
por que não trazer um pouco de Paris aos boêmios da Lapa?" O mesmo pensamento,
aliás,
de Helena, que cuida das moças de modo tão parisiense quanto sua brasilidade
permite.
A luz tímida entre o vermelho e o azul, as paredes em tons escuros, as cadeiras
forradas de veludo, tudo procura "afrancesar" o ambiente. Inclusive o som que
vem
da orquestra, o acordeom imprimindo a valsinhas e fox-trots um acento
tipicamente francês ainda que seus autores sejam músicos que jamais atravessaram
as fronteiras
da Lapa. É assim o lugar, pobre réplica de Montmartre. Pois tão logo entram, se
sentam, pedem a primeira bebida e lançam um olhar à volta, por onde as mulheres
circulam,
tão logo os fregueses deixem que a primeira impressão dê lugar a um exame mais
atento, serão forçados a concluir que o Royal Pigalle, por mais que Max, Helena,
Gus
Brown e outros pensem que não, no fundo não passa de um cabaré da Lapa. Ceei,
mais que os donos da casa, sabe que não há muita diferença entre um cabaré e
outro,
o Apollo dos primeiros tempos, o Royal Pigalle de agora. As luzes coloridas, a
decoração fingidamente belle époque, os aneirismos de Max, a estudada finesse de
Helena,
nada disso a impressiona como antes. Talvez comece a se sentir cansada, os
dezoito anos feitos há pouco pesando-lhe como se fossem trinta. Já é
indisfarçável o tédio
com que sente o champanhe borbulhar-lhe no rosto e ouve, noite após noite, os
repetitivos galanteios que os fregueses sussurram-lhe ao ouvido. Como tudo é
diferente
de dois anos atrás! A menina que então se deixara seduzir pelos encantos da
noite (e que divisara entre as luzes fracas de um cabaré os contornos vagos do
que lhe
parecia uma nova vida, repleta de emoções) é hoje uma mulher que se anima de
outros desejos. O maior deles, rever o irmão, reconciliar-se com o pai, voltar
para
casa. O sonho em que começou a mergulhar, naquela festa de São João, durou
pouco. O brilho dos cabarés é fugaz e enganoso como o de uma estrela cadente.
Seja como for, é aqui, numa das noites de maior movimento do Royal Pigalle - as
pessoas transitando por entre as mesas, dois ou três
429

pares rodopiando na pista de dança, Max saudando clientes em francês, Helena


perto do bar - que Ceei tem a atenção atraída por um moço alto, magro, elegante,
simpático,
a quem conhece de vista e de nome. Tem uns vinte e poucos anos e, dizem, enorme
talento para escrever peças de teatro, algumas já encenadas com sucesso na Praça
Tiradentes. Os dois se olham. Ele não fica indiferente à figura mignon,
graciosa, da morena de poucas palavras e muitos sorrisos que o fita à distância.
Aproxima-se:
- Eu me chamo Mário Lago.
Ao contrário dos demais fregueses que a tratam com extrema insensibilidade e até
com autoritarismo (os homens que freqüentam a Lapa têm a arrogância dos
compradores,
plenamente convencidos de que uma garrafa de champanhe francês lhes dá direito a
tudo, inclusive a tratar mal as mulheres que lhes vendem atenções), Mário Lago
chega-se
a Ceei com as maneiras de um cavalheiro. E é justamente esse cavalheirismo, esse
respeito tão raro por aqui, o que mais a impressiona.
- Saio lá pelas quatro da manhã.
-Não, não quero ver você na hora da saída. Quando é sua folga?
- Terça-feira.
- Pois vou buscá-la em casa para irmos ao teatro.
- Ao teatro?
- Sim.
- E você vai entrar comigo, vai se sentar ao meu lado?
- Claro.
Surpresa e encantamento se misturam no rosto bonito de Ceei. Tudo que ela sabe
de teatro são aqueles festivais caipiras de Jararaca & Ratinho, espetáculos
musicais
com gente de rádio, coisas assim. Nenhum freguês lhe fez antes qualquer convite
além do óbvio. Mesmo Noel Rosa jamais a chamou para um cinema, um programa mais
divertido
do que os jantares de madrugada, as festas ligadas a seus compromissos
profissionais. Mário é diferente, atencioso, de trato cortês e carinhoso como só
as namoradas
de fé inspiram. Inteligente, também. Sabe poesias de cor, fala de coisas que
nunca lhe passaram pela cabeça, assuntos sérios, complicados, adornados de
palavras
difíceis. E como conhece gente famosa!
- Ceei, quero te apresentar o Procópio Ferreira.
- O ator?
Procópio sorri. Está todas as noites no Teatro Regina, com Paulo Gracindo,
Delorges Caminha, Elza Gomes, Restier Júnior, Abel Pera, o grande elenco de
Tabu, comédia
de Svoboda. Não gostaria de ir? Ceei não vai querer perder a
oportunidade de ver todos aqueles artistas no palco e, depois, convidada a
prolongar a noite de folga num jantar, conhecê-los pessoalmente. Mário promete
apresentá-la
a eles. E também a outros grandes nomes do teatro, autores, atores, diretores,
gente interessante, culta, múltipla. Ficar confinada à Lapa, trabalhar de noite
no
cabaré e mal sair de dia, não é vida para ninguém. Mário diz isso a Ceei em tom
afetuoso e não de reprimenda. Gente moça - e ela acaba de fazer dezoito anos -
tem
de se divertir, conhecer pessoas, aprender com elas. Ceei fica fascinada.
Seus programas, a partir do momento em que conhece Mário na quase penumbra do
Royal Pigalle, passam a ser outros, teatro, cinema, ceias em restaurantes de
primeira,
a mesa sempre cheia de homens e mulheres do meio artístico, Procópio, Cordélia,
Rodolfo Mayer, Modesto de Souza, Óswaldo Lousada. E também Walter Pinto, filho
do
produtor Manuel Pinto, ele próprio produtor em potencial, jurando que um dia
ainda vai montar na Praça Tiradentes revistas ainda mais luxuosas que as do pai.
É realmente
múltipla essa gente de teatro. Engraçada como Grande Othelo, cujas caretas, os
beiços tomando a forma de uma flor, matam Ceei de rir, ou altiva como Custódio
Mesquita,
cuja personalidade, pelo contrário, a assusta.
Grande Othelo, aquele mesmo crioulinho que veio de Minas sonhando com o teatro
(e que tentou roubar o show de Oscarito na mesma revista em que lançou Mais Um
Samba
Popular), já não é um ator tão desconhecido, desses que vivem correndo coxia
cavando pontas. Mas ainda tem os bolsos vazios. Permanentemente. Ceei gosta
muito dele,
costuma chamá-lo para dormir em sêu quarto sempre que o sabe sem destino e sem
teto - o que não é raro. Quando encontra Noel, Grande Othelo faz questão de
esclarecer:
- Pernoite respeitoso. Na mesma cama, mas pés com cabeças.
Verdade. Ceei e ele são fraternos amigos. Um dia, sempre abusado depois do
quarto trago, o crioulinho de um metro e cinqüenta e poucos chama para briga um
cidadão
muito mais forte com quem se desentendeu no Primor. O outro avança para ele
disposto a trucidá-lo! Mas, no meio do caminho, é atingido na cabeça por uma
garrafada
e cai. Só depois Grande Othelo vai saber que quem golpeou o adversário foi Ceei,
salvando-o do pior. Naturalmente, também encorajada por um quarto gole.
Com Custódio Mesquita, não há dessas proximidades.
- Ele é meu parceiro - diz Mário. Parceiro em Menina, Eu Sei de Uma Coisa,
marchinha despretensiosa que os dois
430

fizeram para o carnaval passado, gravada sem sucesso por Mário Reis. Parceiro,
também, em peças de teatro que os dois ainda vão escrever a quatro mãos,
Custódio
referindo-se a elas como "minhas peças" e deixando para Mário e todos os outros
eventuais colaboradores os papéis secundários dos espetáculos onde o astro terá
de
ser sempre ele, Custódio.
- Não sabia que você também fazia música - diz Ceei surpreendendo-se mais uma
vez com os talentos de Mário.
Fazer, propriamente, não faz. Não ainda. Um dia Mário Lago ainda porá sua veia
poética a serviço da música popular, criando algumas letras excelentes para
sambas,
valsas, foxs, canções, com melodias inspiradas de Custódio, Benedicto Lacerda,
Roberto Martins, Ataulpho Alves e suas próprias(1). Mas, por ora, seu negócio é
mesmo
o teatro, aquela marchinha não passando de uma tentativa, quase brincadeira, a
que foi induzido por Custódio.
Ceei passa a viver, nos últimos meses de 1936, seus melhores tempos desde que
chegou ao Rio. E não apenas por encontrar em Mário Lago o amante gentil e
atencioso
que a leva a teatros e ceias, passeios e reuniões agradáveis, jamais limitando
seus encontros às mesas do cabaré ou às quatro paredes de um quarto de sobrado.
Isso
também conta. E muito. Mas o que de fato a sensibiliza é a forma pela qual ele
sempre lhe abre espaços em sua vida, fazendo-a participar de tudo, atribuindo-
lhe
uma importância que já supunha não ter, dividindo com ela amigos, hábitos,
idéias, coisas ligadas ao trabalho. O que faz Noel Rosa quando não está aqui?
Por onde
andará durante seus costumeiros sumiços? Ceei não sabe. Mário é homem
aparentemente sem mistérios. Nem mesmo de suas posições políticas
faz segredo.
- Você não tem medo?
- De quê?
- Ouvi dizer que muita gente foi morta ou presa no ano passado.
Mário não tem medo. Ele mesmo foi preso durante as perseguições ao pessoal da
esquerda. E já havia sido preso antes, em 1932, quando andou metido em greve de
operários,
sendo obrigado a fugir para o Uruguai. É um dos poucos, nesse meio de teatro e
música, que parecem se importar com política. Os amigos às vezes se preocupam ao
ouvi-lo
chamar Getúlio Vargas de caudilho. E mais ainda ao vê-lo erguer-se inflamado, à
mesa de um restaurante, e discursar, para quem quiser ouvir, sobre aexploração
do
homem pelo homem, a luta do proletariado, as injustiças sociais. Tirando ele e
Alberto Ribeiro, praticamente ninguém por aqui se interessa por política. Podem
contar
à meia-voz uma anedota
sobre Getúlio. Podem fazer músicas de carnaval gozando veladamente os homens da
política. Podem até, os mais sérios, comentar a Guerra Civil que acaba de
eclodir
na Espanha. Mas a revolta dos comunistas, aqui mesmo, no ano passado, é assunto
proibido. Só Mário Lago parece lembrar-se dela:
- Os inocentes estão presos. Os criminosos, no poder!
Ceei fica impressionadíssima com tal arrebatamento. E se sente ainda mais
importante ao saber-se incluída entre as pessoas nas quais Mário confia o
bastante para
dizer-lhes o que pensa. Na verdade, ele a inclui em quase tudo, nos debates
políticos, sérios, ruidosos, e nas pequenas molecagens que seu humor
eventualmente concebe
para gozar um amigo, um companheiro de teatro. Ceei será sua cúmplice numa
dessas brincadeiras. E a vítima, Oswaldo Sampaio, cenógrafo da companhia de
Procópio.
A idéia tem um pouco de Mário, um pouco de
Modesto de Souza. Sendo Oswaldo um homem solitário, fechadão, sempre trancado no
seu quarto de hotel na Avenida Gomes Freyre, Modesto e Mário inventam uma
admiradora
para preencher, senão a vida, ao menos a imaginação do amigo. Uma admiradora que
teria se apaixonado pelos cenários de Oswaldo e graças a isso passado a
escrever-lhe
cartas de amor. Cartas de uma mulher sensível para um grande artista. Mário
capricha nos textos e pede a Ceei que, com sua caligrafia bonita, passe-os a
limpo. Tem
início então uma correspondência que mudará por algum tempo a vida de Oswaldo
Sampaio, ele escrevendo cartas ainda mais apaixonadas à admiradora. O endereço?
Também
isso terá a cumplicidade de Ceei, que concorda em emprestar o seu próprio. Mário
e Modesto, a cada nova carta de Oswaldo, dobram-se de rir. Até que exageram na
brincadeira
fazendo com que a admiradora desconhecida proponha ao cenógrafo um encontro em
frente ao relógio da Glória, a uma da manhã. Um encontro ao qual, evidentemente,

Oswaldo irá, tendo quase um acesso de loucura quando, de um carro estacionado
mais adiante, Mário, Modesto e Restier Júnior aplicam-lhe impiedosa vaia.
- Foram vocês, seus filhos da puta! Seus malditos filhos da puta!
Sim, de todas as formas Ceei participa da vida de Mário. Não há entre eles - ao
contrário do que é comum nos casos de amor nascidos na Lapa - qualquer
relacionamento
que envolva dinheiro. Fazendo questão de representar, impecavelmente, seu papel
de amantde coeur, Mário não presta nem recebe favores materiais. No máximo,
ajudará
Ceei a restabelecer-se de assustadora gripe.
431

- Gripe?- especula apreensivo o médico que Mário chama para examiná-la. -


- Esta moça tem mais que gripe. Vamos tirar uma radiografia.
Estava certo o médico: mais que gripe, uma afecção pulmonar, uma "sombra" como
se diz. Um mal que se pode tornar mais sério se não for tratado logo. É hora de
Ceei
se cuidar, de ficar algum tempo sem aparecer no Royal Pigalle, repousando,
comendo bem, trocando os remédios Caseiros recomendados pelas colegas de
trabalho, o peitoral
de mel, guaco e agrião, por algo mais forte e eficaz. Pérolas Tonka, por
exemplo, que Mário vai comprar depressa na farmácia da esquina.
Noel não está por perto quando Ceei adoece. Como não estava por perto naquela
noite em que Mário entrou na vida dela:
- Não, não quero ver você na hora da saída...
Em parte pelas repetidas brigas que acabaram amornando sua convivência com Ceei,
em parte por seus próprios problemas de saúde, ele anda sumido da Lapa. E foi
justamente
no vazio dessa ausência que Mário se instalou. Edgar Graça Mello, paciente,
incansável, obstinado médico e amigo, recomendou-lhe ficar em casa por alguns
dias, depois
que dona Martha o chamou ao chalé, assustada com a tosse, a falta de ar, a febre
que mais uma vez derrubam o filho.
- Por favor, Noel, tome juízo e trate de se cuidar.
Conselho inútil, sabe o médico. Mas nem por isso deixa de repeti-lo, sempre
acompanhando-o de receitas e instruções que Noel porá de lado na primeira
oportunidade.
Passada a febre - a temperatura sendo a determinante de seu comportamento - lá
estará ele novamente na rua, dando uma espiada no Ponto de 100 Réis, procurando
velhos
amigos e até se sentando despreocupado a uma das mesas do Rio Club.
- Martinez, que tal uma cerveja? Anselmo Seixas, um dos empregados do
bicheiro Lourenço, o vê de longe. A garrafa de Cascatinha, bem gelada, ali posta
pelo Martinez, chama sua atenção. Não lhe tinham dito que Noel estava doente,
com
febre, de cama? Então como é que agora se enchafurda numa cerveja?
Aproxima-se.
- Me faz companhia, Anselmo?
- Obrigado, Noel. Mas você não estava de cama?
- Estava, mas agora estou mais forte que um leão.
Anselmo pergunta-lhe se a cerveja gelada não fará mal aos pulmões, se não poderá
provocar uma recaída, trazer a tosse de volta.
- Pelo contrário.
Diante da estranheza de Anselmo, Noel expõe sua teoria:
- Quanto mais gelada a cerveja, melhor. O gelo, não sei se você sabe, paralisa
os micróbios. Congelados, os bichinhos sossegam. E não me fazem tossir. Como vê,
cerveja
é um santo remédio.
E, virando-se para o Martinez, ordena:
-Doutor, mais um xarope pra tosse. Bem gelado!
Por esses dias, o máximo que pode fazer para não contrariar Edgar é dormir cedo,
não ir à cidade, evitar certos lugares, principalmente a Lapa. Fica pelo bairro,
visita velhos amigos, quando muito dá uma esticada até o barraco de Cartola, em
Mangueira. Mas nada de saídas muito prolongadas. Mesmo porque às vezes o fôlego
lhe
falta. Quanto a largar os botequins do bairro, a cerveja, isso não pode prometer
a Edgar, que agora, quando o encontra entre garrafas vazias nos cafés do Ponto
de
100 Réis, já não se chega como antes. Guarda sua zanga de médico e amigo, os
conselhos, tudo que tem a dizer. Prefere passar ao largo, cumprimentar Noel com
um aceno,
seguir em frente.
A teoria do congelamento dos micróbios não é a única que expõe entre uma
Cascatinha e outra a companheiros que acham graça em tudo o que diz, não
percebendo o quanto
de irônico e sinistro há em tais histórias. Alguns têm consciência de seu
estado. Como Floriano Belham:
- Não acha que está se matando, Noel?
- Ora, Floriano... Senta e toma uma cerveja por minha conta.
Ou como Nássara, que ouve outra de suas teorias ao encontrá-lo, já de manhã, a
intercalar goles de cerveja com outros de conhaque.
- Por que não come alguma coisa, Noel? Beber assim, cerveja e conhaque, de
estômago vazio, não faz bem. Você tem de se alimentar.
- E o que pensa que estou fazendo?
É então que se põe a discorrer sobre o alto valor nutritivo da cerveja, o poder
sedativo do lúpulo, a riqueza da cevada que é até usada para engordar gado, os
glicídios
e as enzimas contidos no malte. Pensando bem, uma cerveja vale por um almoço.
- Está certo - conforma-se Nássara. - Mas e o conhaque?
- Bem, o conhaque éporque não gosto de comer sem beber.
Noel não pode ou talvez não queira ver o que lhe vai por dentro, os dois pulmões
castiga-os por um mal que se alastra mais rápido do que seus companheiros de
botequim
imaginam. A temperatura é de fato o que determina seu comportamento diante cia
doença. Se está
433

com febre, deixa-se frear um pouco, recolhe-se, concorda em tomar os remédios.


Se a febre se vai, é hora de voltar a viver sua vida. Quer dizer, reconciliar-se
com
as madrugadas, rever a Lapa, Ceei.
- Como estão as coisas?
- Na mesma.
Uma vez mais ela prefere não dizer a verdade. Para quê? Recomeçar as discussões,
tornar ainda mais penoso o diálogo entre eles? Talvez Noel ainda não saiba de
Mário
Lago. Melhor, portanto, que outros lhe contem. E mesmo que já saiba resta a
possibilidade de pensar que o outro é apenas mais um de seus tantos namorados
ocasionais,
daqueles a que ela, "por gentileza", não sabe dizer não. Namorados que sempre
fizeram Noel crispar-se de ciúme, mas só por pouco, até que a voz suave de Ceei
lhe
viesse segredar:
- Gostar, mesmo, só gosto de você... Ceei espera que ele custe a perceber que
Mário não é um namorado ocasional. Tenta adiar, tanto quanto possível, o
impensável momento em que Noel descobrirá que não é só dele que ela gosta.
Frágil esperança,
ingênua tentativa. Então não se lembra que Noel a conhece pelo olhar, pelo modo
de dizer as coisas, pelo tom de voz?
- Você ainda não aprendeu a mentir... - disse ele tantas vezes.
Algo mais, porém, a perturba nesse dividir-se entre Noel e Mário. Mais que a
antevisão de um possível desenlace, ela, Noel, todos sofrendo, o que a incomoda,
de
verdade, é a dúvida. Antes, Noel sem aparecer na Lapa, Mário sempre presente,
sentia-se mais segura de seus sentimentos, feliz como nunca, tudo muito simples.
Agora,
Noel de volta, ela alternando entre os dois seus começos de tarde ou fins de
noite, a situação muda, tudo muito complicado. Sente-se repartida, fracionada,
feita
em pedaços. Por quê? Qual a razão de tanta dúvida, de não poder se decidir logo
entre os dois, sempre pensando em um quando está nos braços do outro? Uma dúvida
tão grande, tão angustiante, que mesmo daqui a muitos anos, os amores de hoje já
convertidos em longíquas lembranças, ainda se sentirá presa dessas
interrogações!.
Seus pensamentos voam. Flutuam incertos entre o amor que acaba de chegar e o
amor que ainda não se foi. Decolam de um, pousam em outro, invertem tudo mais
adiante.
Vão de um Noel fugidio, volta e meia batendo asas, amando-a hoje, desertando-a
amanhã, para um Mário cada vez mais aqui. Oscilam entre um Noel inatingível, não

por ser casado (o que já seria o bastante para eliminá-lo como provável salvo-
conduto à sonhada reconciliação com o pai), mas também por não querer se prender
a
ninguém, e um Mário solteiro, livre, dizendo-lhe palavras tão gentis que
alimentam nela a esperança de que a tire daqui para fazê-la sua mulher. A idéia
do casamento
não a abandona. Em sua lógica simplista, no dia em que se tornar uma "senhora
casada", o casamento como atestado de respeitabilidade, o pai a receberá de
volta.
E por que não como "senhora Mário Lago"? Jamais falará a ele sobre esse projeto,
quase sonho, mas lá no íntimo espera que se realize(3). Noel nunca se importou
muito
com sua situação familiar. Mário, ao contrário, vive a perguntar-lhe pelo pai,
pela madrasta, pelos parentes menos ou mais chegados. Não fosse ele, não teria
se
reaproximado do irmão, Mário indo descobrir Di-dito para que ficassem mais perto
um do outro e assim começassem a vencer juntos as difíceis etapas da viagem que
poderá levá-la de volta a Friburgo. O irmão aceita-lhe a vida. E promete, sempre
que estiver com o pai, minar-lhe a resistência para que o velho reabra à filha o
coração endurecido pelo desgosto. Mas Noel tem algo que Ceei não sabe definir,
uma certa candura, um ar desprotegido que se converte em estranha força que a
envolve.
Nada que possa explicar, é verdade, mas alguma coisa que a prende tanto quanto a
Mário. Este é bem-apessoado, veste-se com capricho, tem mesmo o porte de um
artista
de cinema. Noel é o oposto, feio, descuidado com as roupas. No entanto, de tal
forma ela o vê que não raro surpreende-se a dizer para si mesma: "É um homem
bonito..."
Nestes momentos, não pensa no queixo, na boca deformada que se enfeia ainda mais
nas poucas vezes em que Noel mastiga (ultimamente, então, ele parece viver em
constante
jejum). Pensa apenas nos olhos, na metade do rosto poupada pelo fórceps do Dr.
Heleno Brandão. Mário também foi extraído a ferro, mas Deus tem lâ os seus
caprichos
na hora de traçar o destino das pessoas, Mário tão bonito, Noel tão
dolorosamente marcado desde o dia em que veio ao mundo. Terá pena dele? Não,
Ceei o ama. Da mesma
forma que está amando Mário. Ou um pouco diferente. Os pensamentos voam. Mas de
onde para onde? Os dois são bons, a tratam bem, mas se Mário a distingue com
atenções
só concedidas a uma verdadeira dama, Noel talvez a compreenda melhor. Por
exemplo, naquelas terríveis noites em que, por saudade de casa ou lá o que seja,
Ceei mergulha
com desespero no champanhe. E não só no champanhe, mas no conhaque, no pernô, no
que lhe puserem nas mãos. Não é comum embriagar-se, mas quando acontece, o
álcool
transfigurando-a, nada ou ninguém consegue aquietá-la: xinga, quebra copos,
atira garrafas na cabeça de valentões como aquele que quis trucidar Grande
Othelo. Normalmente
tão doce, tão
434

incapaz de altear a voz, passa a provocar pessoas, a ameaçar agressões que só


não se consumam porque, pequenina, um "pingo d'água" como costuma dizer Mário,
bastam
dois braços fortes para conter-lhe o ímpeto. Nessas horas, Ceei deixa de ser
Ceei. E é difícil gostar dela. Mário mesmo é um dos que não lhe toleram os
escândalos
("Esta mulher, quando bebe, é uma chave de cadeia...", resmunga). Noel nada diz.
No fundo, também ele, quando bebe, pode virar chave de cadeia. Mário é elegante,
educado, exigente na hora de escolher os amigos, tudo gente culta, de teatro,
aprumada como ele. Procópio Ferreira, que a trata com a maior deferência ("A
senhora
aceita mais um pouco de vinho?"), ou Custódio Mesquita, que se senta à mesma
mesa em que janta com Mário. Amigos selecionados que Ceei acredita conferirem a
ela
certa distinção. Pois as colegas do cabaré, como a belíssima The-reza, não vivem
pedindo-lhe que use sua "influência" junto a Mário Lago para que lhe consiga um
encontro com Custódio? ("Ele é um encanto, Ceei, faça isso por mim...") Já os
amigos de Noel são sempre os boêmios da Lapa, malandros, bêbados, mendigos,
compositores
desconhecidos que saem de suas tocas na esperança de que os ajude a "encaixar"
um samba no repertório de algum cantor famoso, samba que talvez o próprio Noel
terá
de completar (se não acontecer de fazê-lo todo, música, letra, primeira e
segunda partes, renunciando desprendidamente à autoria). Quantas vezes Ceei se
viu obrigada
a partilhar sua mesa com toda sorte de marias-fu-maça e joões-ninguém que
compõem o círculo de amizades de Noel? Ela ainda dá graças a Deus quando, a essa
roda de
pobres coitados, vêm-se juntar um Vadico, um Sílvio Caldas, gente educada que
costuma lançar algumas luzes nessas á-guas turvas em que Noel divide seu tempo
com
os habitantes de uma Lapa marginal. Mas também isso - os pensamentos sempre
voando, confundindo Ceei, impedindo-a de se decidir entre os dois amantes - não
é necessariamente
um trunfo de Mário contra Noel. Mesmo em sua lógica simplista, em sua maneira
quase sempre superficial de olhar a vida, uma contradição não lhe escapa: é
Mário quem
fala na igualdade entre os homens, no quanto é injusta esta sociedade que deixa
desamparados tantos pobres, tantos inocentes, conclamando todos a lutarem para
que
a injustiça tenha fim; no entanto, seus amigos são todos da alta, bem-vestidos,
dinheiro no bolso, freqüentadores de lugares chiques, que não parecem nada
interessados
em acabar com a pobreza. Ceei nunca viu Mário sentar-se com um daqueles mendigos
que tantas vezes aliviaram o estômago com pratos de sopa pagos por Noel ("Vem
cá,
come com a gente...", costuma dizer fazendo o miserável sentar-se ao seu lado,
em vez de mandá-lo embora, a consciência tranqüilizada por dois ou três tostões
depositados
no fundo de um velho chapéu). Mário teoriza sobre o quanto é preciso fazer pelos
desvalidos. É sincero, acredita nisso. Contudo, é Noel quem exerce na prática,
todas
as noites, em todos os lugares, os verdadeiros gestos de igualdade.
Mas para que todas essas comparações? De que adianta colocar os dois amantes nos
pratos de uma balança que não lhe dirá nada além do que já sabe? Ceei ama os
dois.
E ainda que a cada dia se afaste mais de um para se chegar a outro, os
pensamentos continuarão voando. E ela será, para sempre, uma mulher
permanentemente em busca
de respostas.
Mas tão transparente aos olhos de Noel que tais dúvidas não tardam a ser
intuídas por ele. Não é necessário que lhe conte nada, que se perca em
explicações ou tenha
de passar pelo constrangimento de dizer que tem outro amor. Como, quando e por
quem Noel vai saber de Mário é impossível precisar. As mesas dos cabarés da Lapa
não
guardam segredos, todos sabem de tudo que se passa à sua volta. É inevitável
que, animado por goles de vermute sorvidos numa madrugada qualquer, alguém lhe
diga
- talvez em tom de intriga, fato comum nessas rodas de botequim - da nova
aventura de Ceei. Afinal, já aconteceu outras vezes, incômodos falastrões vindo
lhe perguntar,
cobertos de malícia: "Sabe com quem ela saiu na noite passada?" A história teria
de se repetir. Mas a verdade, mesmo, a importância que esse novo caso tem na
vida
dela, Noel há de saber olhando-a nos olhos.
Ele e Mário Lago só se conhecem de vista. Embora tenham quase a mesma idade
(Noel é mais velho um ano menos quinze dias), parecem-se bastante separados no
tempo.
Pelo menos em termos de boêmia, Noeljá se pode considerar um veterano, um velho
freqüentador do Mangue, do Estácio, dos botequins do Centro, desses cabarés que
se
dispõem ao longo da Mem de Sá e da Visconde de Maranguape. E só agora Mário
começa a aparecer pela Lapa. Encontraram-se algumas vezes no Nice, outras em
reuniões
com amigos comuns, outras mais aqui e ali. Trocaram meia dúzia de palavras, nada
mais. Hoje, que os dois sabem existir uma mulher entre eles, tornam-se ainda
mais
estranhos, olhando-se à distância, cismados. Jamais serão amigos. Nem poderiam.
A impedi-los, Ceei e o tempo.
Ceei que não sabe o que quer, tempo cada vez menos generoso para com um Noel
doente e cansado.
- Mas ainda gosto muito de você, Noel.
O silêncio como resposta é o suficiente
435

para que Ceei saiba que ele não acredita. Sempre foi assim, as queixas, as
zangas fingidas, nas horas em que Noel não vê em seus erros mais do que
travessuras de
criança, perfeitamente perdoáveis, e o silêncio, um silêncio frio, cortante, se
algo que ela faça o machuque de verdade.
É durante esse período difícil para todos - ele, Ceei, Mário - que Noel rabisca
os primeiros versos de um novo samba. Nada mais do que rabiscos sobre os quais
ajusta
um começo de melodia, sementes que guardará até que tenha forças para fazê-las
brotar:

Pra que mentir


Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Versos interrogativos para uma interrogativa Ceei:
Pra que mentir
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?

Vadico está todas as noites no Lido com seu piano, o sax-tenor de Quincas, o
sax-alto de Lupercílio Lyra, o pistom de Gumercindo Mello, o contrabaixo de
Lilico e
a bateria de Busquet. Um conjunto de formação jazzística que toca choros e
sambas porque os dançarinos assim o exigem, mas que se sente bem mais à vontade
numfox
dolente, melodioso, sobre cujas frases Vadico improvisa harmonias, enquanto
Quincas e Lupercílio perdem-se em complicados solos. Terminado o trabalho, o
pianista
costuma passar pela Lapa para um trago com algum amigo que esteja vagando por
ali. Amigos como Noel Rosa. Eles tanto podem se encontrar no Indígena como no
Leitão,
no 1900 como no Siri, mas é geralmente no Café Club que se reúnem para falar de
samba. Porque Vadico,
se é jazzístico no Lido, nem se atreve a pensar em música americana quando está
com o parceiro. Nesses momentos, o assunto é mesmo samba. E samba triste, pois
nada
além de tristeza sabe cantar Noel neste crepúsculo de 1936.
É com Vadico que ele escreve mais um inspirado em Ceei, a mentira, a traição
colorindo tudo, os carinhos, as frases sem sentido ditas por ela ao seu ouvido.
Quantos beijos quando eu saía!
Meu Deus, quanta hipocrisia!
Meu amor fiel você traía
Só eu é que não sabia.
Não andava com dinheiro todo dia
Para sempre dar o que você queria,
Mas quando eu satisfazia os seus desejos...
Quantas juras! Quantos beijos!
Não esqueço aquelas frases sem sentido
Que você dizia sempre ao meu ouvido.
Você, porém, mentia em todos os ensejos...
Quantas juras! Quantos beijos!

O samba, Quantos Beijos!, reflete o estado de espírito de Noel nos últimos


meses do ano(4). O inspirado Vadico é seu parceiro ideal nestes dias. Ideal e
derradeiro, já que Noel não se ligará a nenhum outro a partir de agora. Vadico
conhece
Ceei, tem acompanhado de perto o romance dela com Noel, sabe bem do que vai no
coração do amigo. Talvez por isso esteja tão afinado com a tristeza de seus
versos.
Mais uma vez Noel se afasta da Lapa, escapulindo sorrateiramente de uma arena na
qual não quer estar. Jamais acreditou nas lutas de amor, em batalhas que de uma
forma ou de outra são sempre perdidas. Daqui por diante, enquanto forças tiver,
será visto em muitos lugares, Vila Isabel, Maracanã, Mangue, Estácio, mas não na
Lapa. Nem no Nice, do qual Mário Lago virou freqüentador, desses de dois
expedientes, de tarde e de noite sentado à mesma mesa.
Pode ser visto, também, nos corredores das emissoras de rádio. Já não pertence a
nenhum cast em especial, suas atividades reduzidas a esporádicas apresentações
na
Educadora, na Mayrink Veiga ou na Club do Brasil. Nunca foi exclusivo de nenhuma
delas, quanto mais agora. Por isso os ouvintes bem podem ser surpreendidos ao
sintonizarem
a Cruzeiro do Sul ou a Transmissora e lá captarem a voz miúda, frágil, de Noel
Rosa em um de seus sambas. Canta numa ou noutra em troca de irrisórios cachês.
Ou
de convites feitos em nome da "velha amizade".
Nessas andanças pelos corredores das rádios, constata que há muita gente nova
surgindo na música popular. E gente boa. Já não são apenas Francisco Alves,
Sílvio
Caldas, Mário Reis, Gastão Formenti, Vicente Celestino, João Petra de Barros os
únicos cartazes do microfone. Nem as irmãs Miranda, Elisinha Coelho, Aracy e
Marília.
Começa-se a fazer uma renovação por toda parte. Orlando Silva, que até bem pouco
não passava de um trocador de ônibus transformado em cantor pelas mãos do Chico,
está prestes a alçar vôo rumo às estrelas. Outros começam a conquistar lugar nas
rádios e nas gravadoras. São bons ventos que sopram.
É na Club do Brasil que certa noite Noel atenta para uma morena que canta de
olhos fechados um sucesso do ano passado:
Coração, governador da embarcação do amor Coração, meu companheiro na alegria e
na dor...
436

É pequena, magra, o rosto mal se podendo ver por trás do imenso microfone RCA
colocado a meio palmo de distância. Jovem, dezessete anos no máximo, alguém diz
que
foi trazida por Jacob Bittencourt, o do bandolim. Noel fica ouvindo a moça em
silêncio, atrás do vidro do aquário. O número termina, ela sai do estúdio.
- Você tem uma bonita voz.
A cantora pára, meio assustada, paralisada quase pelas palavras com que o
compositor famoso a surpreende no corredor. É a sua primeira noite aqui. E
ninguém menos
que Noel Rosa lhe vem elogiar a voz fina, suave, mas ainda insegura de cantora
principiante.
- Mas me diz uma coisa: por que diabos você canta música do repertório de Carmem
Miranda?
- Ainda não tenho meu próprio repertório.
- Vem cá.
A história se repete como há três anos, Aracy de Almeida cantando música do
repertório de Carmem, ele chegando, elogiando-lhe a voz, chamando-a para
ensinar-lhe
novos sambas. Quem sabe não dê a mesma sorte? Leva a moça pela mão até um canto
do corredor, vê um violão encostado, tira-o da capa, afina-o, tudo muito rápido.
437

- Vou te ensinar um samba. É novo. Se você quiser, pode lançá-lo no próximo


programa.
E ele próprio canta, não um novo samba, mas uma pequena jóia:

Pobre de quem já sofreu neste mundo


A dor de um amor profundo
Eu vivo bem sem amar a ninguém
Ser infeliz é sofrer por alguém
Zombo de quem sofre assim
Quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!
Felicidade é o vil metal quem dá
Honestidade ninguém sabe onde está
Acaba mal quem é ruim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!
Sabendo disso eu não quero rir primeiro
Pois o feitiço vira contra o feiticeiro
Eu vivo bem pensando assim
Pois quem me fez chorar hoje chora por mim
Quem ri melhor é quem ri no fim!

Noel escreve a letra de Quem Ri Melhor numa folha de papel e a entrega à moça.
Repete que ela pode lançá-lo no próximo programa, Se quiser, é claro.
- Mas eu quero!
A moça mal pode acreditar no que está acontecendo. Um samba inédito para ela
cantar em primeira audição! E não um samba qualquer, mas um samba lindíssimo.
Bons ventos
sopram também para ela. Noel talvez não lhe note o contentamento. Deseja-lhe
sorte e pergunta:
- Como é que você se chama? A moça, tímida, responde:
- Elizeth... Elizeth Cardoso.

NOTAS
1. A obra de Mário Lago no campo da música popular seria mais do que
expressiva, incluindo composições com Custódio Mesquita (Nada Além, Enquanto
Houver Saudade),
Benedicto Lacerda (Número Um), Roberto Martins (Dá-me Tuas Mãos), Roberto
Roberti (Aurora), Ataulpho Alves (Ai, Que Saudades da Amélia, Atire a Primeira
Pedra) e
sozinho (Será?, Fracasso, Devolve),
2. Por longas horas Ceei conversou com os autores sobre aqueles dias em que se
dividia entre Noel Rosa e Mário Lago. Quarenta e cinco anos depois ainda passava
de frases como "Eu já estava apaixonada pelo Mário..." para outras como "Eu
amava muito Noel..." Tudo naqueles últimos meses de 1936.
3- Mário Lago, em entrevista aos autores, a 5 de janeiro de 1983, confirmou que
Ceei jamais lhe deixou perceber seu secreto projeto de casamento. Tinha, porém,
consciência
de que ela era uma mulher literalmente dividida. Como deixa muito claro, também,
em seu livro Na Rolança do Tempo, quarta edição (página 104): "... o Royal
Pigalle,
onde trabalhava Ceci-pingo-d'água, que às vezes me acarinhava as noites com o
pensamento em Noel Rosa..."
4. Ao estabelecer para Clemente Neto (pseudônimo de Herberto Salles) a
cronologia de sua obra em parceria com Noel - Revista da Música Pupular, número
7, maio-junho
de 1955 (página 2) - Vadico comete enganos. Segundo diz, as músicas teriam sido
escritas nesta ordem: Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim,
Cem
Mil Réis, Provei, Marcha do Dragão, Quantos Beijos!, Tarzan, o Filho do
Alfaiate, Mais um Samba Popular, Só Pode Ser Você e Pra Que Mentir? Pesquisa
realizada pelos
autores, com base em elementos apresentados ao longo deste texto ou então na
musicografria do final do volume, permite concluir que a ordem correta é a
seguinte:
Feitio de Oração (1932), Mais Um Samba Popular e Feitiço da Vila (1934), Só Pode
Ser Você e Conversa de Botequim (1935), Tarzan, o Filho do Alfaiate, Cem Mil
Réis,
Marcha do dragão, Quantos Beijos! e Provei (1936) e Pra Que Mentir? 1937).
438

certa altura, gestos, palavras e canções parecem adquirir um gosto de despedida.


Como esta triste e desconhecida Quem Parte Não Parte Sorrindo:

Quem parte não parte sorrindo,


Sorrindo talvez eu queira te esquecer
E tenha o grande prazer de te dizer
Que não vou sentir nenhuma dor Sem teu amor.
Quem parte não parte chorando
Na frente de quem não quer bem
E eu choro somente
quando Quem fica saudades tem.
Quem parte só parte sorrindo
Na frente de quem não convém
Saber que quem ri vai fingindo
Não ter amor a ninguém.

Começa a desligar-se de coisas que antes lhe eram importantes, o caderno de


letras e esboços de samba que vai parar nas mãos de Arnaldo Araújo, o tinteiro
que dá
a Almirante, a bengala com que presenteia Alegria, a carteira de músico que
entrega a Sylvestre Travassos, seu colega nos bancos da escolinha, hoje oficial
do Exército.
AJocelyn da Encarnação, uma buzina em miniatura:
- É para você botar naquela bicicleta. Ainda existe?
Sim, a bicicleta, a pelerine, os versos em que diz ter aceito sem zanga a
reprimenda do amigo quase irmão. As fotografias também são distribuídas entre os
parentes,
os vizinhos mais chegados como Dorica, Vicente Sabonete, seu Bruno, os
Guimarães, os Graças Mello, os Brandões. Fotografias antigas, ele ainda bebê, ou
mais recentes,
como a "pose oficial", acendendo o cigarro no Studio Mamede.
A febre indo e vindo, nos dias em que é obrigado a ficar em casa, sempre por
imposição de Edgar, procura pôr em ordem seus poucos pertences, arrumar o
pequeno bureau
entulhado de papéis velhos. Decide, finalmente, entregar-se à tarefa que vinha
adiando há tanto tempo: organizar os recortes de jornais e revistas, os
programas
de cinema e teatro, os suplementos de gravadoras, todos os impressos, enfim, que
falem bem ou mal de Noel Rosa. Esses recortes vêm sendo colecionados desde 30 de
julho de 1929, quando os jornais anunciaram, ao lado dos nomes de Aracy Cortes e
de todo o Bando de Tangarás, a estréia no Teatro Recreio de um certo Noel
Medeiros
Roxo.
Compra um caderno de capa dura, verde, de duzentas paginas tamanho almaço, sem
pauta, e nele vai colando tudo que guardou. Na folha de rosto, uma advertência
de
próprio punho sob o título Este Álbum.
(Álbum de recortes)
Arquivos dos autores.
Este álbum não é meu:
É de Martha de Medeiros Rosa (minha mãe).
Foi em 1929 que ela começou a juntar todos os artigos de jornais e
revistas,catálogos de gravações e programas de festas que trouxessem meu nome.
No dia 9 de setembro de 1936, em Vila Isabel, os recortes colecionados foram
colados nesse álbum.
N.B.
-- Os artigos que falam mal da pessoa do SR. Noel Rosa, estão contornados de
vermelho para serem encontrados mais facilmente.
Rio de Janeiro,
Bairro de Vila Isabel,
Rua Theodoro da Silva 130.
(Esse número foi transformado em 392)
Noel Rosa
(Noel de Medeiros Rosa)
Nela, pelo menos três detalhes chamam a atenção: primeiro, o fato de atribuir à
mãe o cuidado de ter colecionado tudo isso durante estes oito anos (como se
querendo
deixar aos futuros consulentes do álbum a impressão de que não tem muito
interesse por si mesmo); segundo, a ironia de sempre, um nota bene explicando
que os artigos
que falam mal dele serão assinalados em vermelho para que sejam encontrados mais
facilmente (e de fato fará isso, destacando, por exemplo, a carta de um leitor
anônimo
paulista que lhe manda recortes de A Acção acusando-o de ter plagiado o Hino
Nacional ao compor O X do Problema); e terceiro, a data de 9 de setembro de
1936, vésperas
de uma primavera que já não lhe sorri como as de antigamente. Este caderno -
terá Noel consciência disso? - será uma valiosa fonte de informação sobre sua
carreira
e mesmo sobre sua personalidade, os programas, as críticas, as entrevistas, as
notícias de jornal. Por que terá chegado à conclusão de que é hora de colá-
los?(1)
Sabe por alguém que Ceei mudou novamente de emprego. Do afrancesado
Royal Pigalle para o cosmopolita Caverna. Cosmopolita? Os donos de dancing
vivem lançando mão de expressões como esta, eufemísticas, sempre que se referem
às suas
casas. Por que não dizer logo que o cosmopolitismo do Caverna, ali no subsolo do
Cassino Beira-Mar, não passa de desordem e promiscuidade? Ceei talvez esteja
descendo.
Não só do primeiro andar do Royal Pigalle para o porão do Caverna, mas também na
vida. Noel, porém, não chega a testemunhar a queda. Já não a vê, já não vai à
Lapa.
Não aparecer em lugares de sua predileção também faz parte desse desgarramento,
dessa despedida inconsciente que empreende nos últimos meses de 1936. Em geral
sai
sozinho, evita pessoas, principalmente as que vivem perguntando como vai a
saúde, se está melhor, pronto pra outra.
Nestes dias, tanto pode ser visto numa mesa de fundo de um botequim do subúrbio,
como sentado na soleira da porta do barraco de Cartola em Mangueira. Quer dizer,
quase não pode ser visto. Eventualmente um amigo esbarra nele, mas é impossível
saber de onde vem ou para onde vai. Uma noite, dirigindo-se de bonde para a
Praça
7, onde mora bem ao lado do Convento da Ajuda, Floriano Belham o vê numa das
esquinas do Boulevard. Sozinho, grudado ao violão. Floriano resolve saltar. Há
muito
tempo não vê o amigo, quer saber como está, o que tem feito.
- Perdeu o caminho de casa, Noel?
-Não, apenas cantando minhas mágoas.
Começa a desenhar acordes no violão,
enquanto conversa com Floriano. É quase uma da madrugada, faz calor, há estrelas
no céu.
- Não podemos desperdiçar uma noite como esta, Floriano. Tenho uma idéia: vamos
até a Taberna da Glória, tomamos umas cervejas, arranjamos umas pequenas.
Que me diz?
Floriano tenta explicar que tem de acordar cedo amanhã, dia de batente, o
trabalho acumulado na repartição. Mas Noel insiste:
- Está cheio de mulher por lá.
Floriano se anima. Os dois vão até a Taberna da Glória, visitam outros bares,
bebem muita cerveja, misturam com conhaque, ficam olhando as mulheres. Olhando
apenas.
Lá pelas quatro da manhã, meio grogues, voltam a Vila Isabel. Como sempre, as
propostas partem de Noel, desta vez para que terminem a noitada com uma média no
Ponto
Chie, botequim que nunca fecha. Noel chama o garçom:
- Por favor, uma média com sanduíche.
- Sanduíche de quê?
- De pão com pão.
O garçom olha arrevezado. Quase cinco da manhã não são horas de achar graça em
440

piada sem graça. Mas Floriano nota que Noel está para brincadeiras. Já contou
uma ou duas anedotas, volta a mexer com o garçom, nem parece ligar muito para a
dificuldade
com que mastiga o pão amaciado na frigideira. Floriano sente-se à vontade para
brincar também. Lembra-se de um amigo de repartição que anda metido com essa
história
de ocultismo, tirando cartas, lendo mãos, antevendo futuros. O próprio Floriano
anda interessado no assunto, tendo comprado alguns livros sobre telepatia,
espiritismo,
magias, vidências, quiromancia.
- Quer dizer que você sabe ler a mão?- pergunta Noel curioso.
- Claro que sei - mente Floriano.
- Então leia a minha - Noel estica-lhe a direita.
Floriano faz pose de quem realmente entende, leva a mão à testa num gesto
meditativo, fica sério, fecha os olhos. Segura a mão de Noel e começa a
lucubrar: "Esta
é a linha da vida, longa, e esta outra é a do destino, cheia de surpresas." Noel
ouve com atenção. Parece acreditar mesmo que os olhos do amigo sejam capazes de
descobrir-lhe na palma da mão todos os segredos do passado e todos os mistérios
do futuro.
-E o futuro é uma continuação do passado...- diz Floriano tornando a voz mais
grave, imprimindo ênfase às palavras.
Notando que Noel está levando a brincadeira a sério, Floriano não resiste à
tentação de pregar-lhe um susto:
- A loucura... Sim, a loucura! Noel estremece:
- Que história é essa, Floriano?
- Estou vendo uma coisa aqui na sua mão. Diga-me uma coisa, Noel. Você já teve
algum caso de loucura na família?
Floriano não sabe de seu Medeiros, ouvira falar por alto de sua morte numa casa
de saúde, mas não dos detalhes. Diante da pergunta, Noel empalidece. A mão
treme,
os braços tremem, todo o corpo treme. Começa a suar frio, perde a voz, dá a
Floriano a impressão de que vai desmaiar. O amigo se assusta, pega um
guarda-napo, põe-se a abaná-lo.
- O que aconteceu com ele?- pergunta o garçom.
- Não sei.
- Não terá bebido demais?
- Não, nada disso. Está passando mal.
- Não é melhor chamar uma ambulância?
Floriano tenta, sem êxito, reanimar Noel, que continua tremendo, suando frio.
Ele e o garçom fazem força para levantá-lo da cadeira.
- Vou ver se consigo levá-lo para casa.
Do Ponto Chie ao chalé são dois quarteirões pelo Boulevard, mais um pela Souza
Franco, uma caminhada normalmente tranqüila, mas Floriano teme que, nesse
estado,
meio fora de si, Noel nem chegue à metade.
- Pode deixar, Floriano... Eu vou sozinho - diz como se recuperando a fala,
embora ainda pálido, trêmulo, transpirante.
- Vou com você.
Os dois andam lado a lado, Floriano amparando-o. O que terá dado em Noel? Por
que terá ficado tão impressionado? No chalé, Floriano sente-se na obrigação de
chamar
dona Martha e Hélio. Já passa das seis, estão todos de pé. Lindaura também se
aproxima.
- Não sei o que aconteceu com ele - diz Floriano. -De repente, começou a sair de
si, a esmaecer. Parece que entrou em transe.
Vão todos acordar o seu Bruno ali em frente. O consultório ainda não abriu, mas
não tem importância. O dentista, mais amigo que dentista, está sempre pronto a
receber
Noel. Manda que o tragam, que o façam sentar-se. Noel continua tremendo, suando.
O dentista abaixa o encosto da cadeira até transformá-la
441

numa cama improvisada. Pede que Noel feche os olhos, que todos façam silêncio,
diz coisas aparentemente sem sentido e agita as mãos em gestos mais sem sentido
ainda.
- Com estes passes ele ficará bom - explica.
De fato, ele se recupera, a cor lhe volta ao rosto, os braços e as mãos ficam
firmes, o suor frio se vai. Os "passes" de seu Bruno fizeram efeito. Noel se
sente
como se despertado de um longo sono, sem lembrar o que se passou depois que
Floriano lhe perguntou se havia caso-de loucura na família. Do consultório Noel
vai direto
para a cama, dormir de verdade. Só no dia seguinte, ao narrar o episódio para
amigos do Ponto de 100 Réis, Floriano fica sabendo o quanto foi inoportuna sua
quiromancia:
- Mas como é que eu podia saber que o pai dele morreu louco!
Despedidas, desgarramentos, Noel deixa isso mais ou menos claro em cada gesto ou
palavra. As pessoas podem não notar, mas a fraqueza geral (ou o que quer que se
vá por dentro de seu indevassável mundo interior) faz com que não lute muito
pela vida, que abdique de tantas coisas. E por falar em abdicar, é este o tom da
resposta
que dá ao repórter de Carioca que o procura para incluí-lo entre as
personalidades do rádio convidadas a participar da enquête "Se você acordasse
Presidente da República,
o que faria?"
"- Creio que abdicaria imediatamente - respondeu ele.
- Em favor de quem?
- Em favor de João-Ninguém, que não tem ideal na vida... "(3)
Retirando-se do campo de luta, cansado, mas ainda assim pensando em seus sambas,
no carnaval que se aproxima.
Noel e Cartola continuam grandes amigos, afinidades e afeição que só aumentaram
com o tempo. O compositor de Vila Isabel ainda se sente muito à vontade no
humilde
barraco do sambista da Mangueira. Tem trânsito livre no morro, conhece seus
caminhos de terra batida, sabe contornar seus buracos e suas pedras, equilibra-
se por
ali com a mesma destreza daqueles que estão habituados a subir, subir muito, até
seus Casébres de madeira e zinco pendurados na encosta acidentada. É num desses
Casébres que mora Cartola, uma das poucas pessoas que Noel visita neste novembro
de 1936. Ainda tem disposição o bastante para deixar com o amigo um começo de
samba,
Nos Três Dias de Folia, para que ele o complete. O tempo não pôs fim à parceria.
Nos três dias de folia
O que eu fiz fingindo alegria
Pra esquecer meu grande amor!
Ai, ai, meu Deus
Pra esconder meu desgosto
Fantasiei-me a meu gosto
E fantasiei a dor.
Este fragmento de samba não é a única idéia que leva a Cartola. Explica-lhe que
terá de gravar até o fim do mês um disco para o suplemento carnavalesco da
Victor
e outro para o da Odeon. São quatro sambas que pretende cantar em dupla com
Marília Baptista. Três serão composições recentes: Provei, Quantos Beijos! e
Quem Ri
Melhor. O quarto foi feito no começo do ano, aquele único inspirado em Lindaura:
Você Vai Se Quiser. Um dos discos, o da Odeon, terá acompanhamento do regional
de
Benedicto Lacerda. O segundo - e esta é a outra idéia que leva a Cartola -
poderia aproveitar o molho do pessoal da Mangueira, a bossa dos ritmistas de
verdade,
a perícia dos melhores tocadores de surdo, cuíca e tamborim que há por aí. Noel
recorda que no início de sua carreira em disco o Bando de Tangarás fez
precisamente
isso, Canuto, Puruca, a turma do morro invadindo os estúdios de gravação. Por
que não fazer o mesmo agora? Cartola aprova a sugestão e se incumbe de
arregimentar
entre os bambas do lugar alguns ritmistas para acompanhar Noel e Marília.
No dia 12 de novembro, quinta-feira, é um pouco apreensiva que Marília espera
pelo companheiro de dupla em sua casa na Rua General Rocca, perto da Praça
Saenz Pena. A essa altura Benedicto Lacerda Já deve estar a postos no estúdio da
Odeon. E Noel, como sempre, atrasadíssimo. E o pior é que ela nem aprendeu as
músicas
direito. Um dos lados do disco, Você Vai Se Quiser, não chega a ser problema
maior. É samba que ela já cantou muitas vezes no Programa Casé. Mas e o outro?
Noel
já cantarolou o refrão para Marília, diz que ele e Vadico ficaram de terminá-lo,
mas que até agora nada. Isso a poucos minutos do início da gravação.
Noel chega, Marília está nervosa. Ele a tranqüiliza. Enquanto ela vai lá dentro
apanhar a bolsa e ajeitar o cabelo, ele se senta no sofá da sala, tira papel e
lápis
do bolso, pega o violão. Quando Marília volta, diz estar fazendo umas alterações
na melodia, retocando a segunda parte da letra, acabando enfim o outro samba.
- Mas já está na hora da gravação!
No táxi que os leva para o estúdio da Odeon, na Almirante Barroso, um tanto sem
jeito para tocar o violão no banco de trás, o carro em disparada na tentativa de
descontar o atraso, Noel vai ensinando a Marília o samba intitulado
442

Provei. Ela o canta em tom bem mais baixo que o dele, os dois buscam um ponto em
comum. As modificações que Noel faz na melodia são muito em função disso, um
esplêndido
trabalho de recriação.

Provei do amor todo o amargor que ele tem.


Então jurei nunca mais amar ninguém.
Porém, eu agora encontrei alguém
Que me compreende e que me quer bem!
Quem fala mal do amor
Não sabe a vida gozar,
Quem maldiz a própria dor
Tem amor, mas não sabe amar.
Nunca se deve jurar
Não mais amar a ninguém
Ninguém pode evitar
De se apaixonar por alguém,
Você Vai Se Quiser de um lado, Provei do outro, Benedicto Lacerda só na hora
tomando conhecimento deste último samba de Noel e Vadico, o disco é gravado. O
regional
ao fundo, o flautista brincando com as notas, criando bonitas introduções,
apoiando Noel e Marília em seus solos e duos, o resultado é bom. Na verdade,
muito bom.
Seis dias depois, 18 de novembro, quarta-feira, a outra gravação. Mais uma vez,
quando Noel e Marília chegam ao estúdio da Victor, já lá estão os músicos e
cantores
que vão acompanhá-los, Pixinguinha à frente de sua orquestra, Cyro Monteiro,
Odette Amaral e Almirante para "engrossar" o coro, mas muito especialmente
Cartola e
sua turma, Preguiça, Nego, Ataliba, Crioulo, homens para os quais o ritmo do
samba é como a batida do coração, e mais as pastoras Neuma, Olicéia, Ruth,
Ornélia,
Crisola, de vozes limpas e afinadas como merecem os sambas de Noel. Vozes e
instrumentos mangueirenses que se reúnem no estúdio para gravarem Quantos
Beijos! e Quem
Ri Melhor.
Pixinguinha sugere uma última passagem aos solistas, coro e orquestra. Ergue as
mãos, conta até quatro, pistom e trombone fazem a introdução, o coro entra.
Pixinguinha
interrompe logo em seguida:
- Tem coisa errada aí. Uma das pastoras tá fora do tom.
Entreolham-se as moças do coro. Odette Amaral é categórica:
- Só pode ser uma dessas meninas do morro.
Cartola dá um passo à frente, diz que por suas pastoras põe as duas mãos no
fogo. Há um ligeiro jogo de empurra. Cartola propõe:
- Então canta uma por uma que a gente vê quem tá fora.
Constata-se então que era a própria Odette. Feitos os devidos reparos, começa-se
tudo outra vez. O disco fica pronto. Talvez o andamento ligeiro tenha
prejudicado
um pouco Quantos Beijos!, ocultando algumas qualidades da melodia de Vadico. Mas
Noel quis assim. Já no caso de Quem Ri Melhor, nem mesmo a aceleração do ritmo é
capaz de roubar a beleza deste samba que, poucos sabem aqui, uma cantora
desconhecida, Elizeth de tal, lançou tempos atrás no microfone da Rádio Club do
Brasil.
Saem todos satisfeitos do estúdio, Marília, Cartola, pastoras, ritmistas da
Mangueira, Pixinguinha e até Odette Amaral, de quem Noel se despede com um
gracejo:
- Até logo, dona Fora...
Todos riem, o próprio Noel parece contente. Não desconfia de que esta foi a sua
última passagem por um estúdio, que acaba de gravar o seu disco de despedida.
É 11 de dezembro. Seria um aniversário como outro qualquer, sem festejos,
abraços ou presentes, não fosse a vontade grande de rever Ceei. Pressentimento?
Será esta
febre teimosa, renitente, sinal de que não haverá outro 11 de dezembro em sua
vida? Já não guardará no coração a certeza de que seu estado, mais que grave, é
crítico?
Mas decerto não pensa nisso agora. É sexta-feira, noite de grande movimento na
cidade. A Lapa certamente fervilha. Ceei só deve sair do Caverna alta madrugada.
Mesmo
assim, Noel acha que vale a pena arriscar.
À porta do dancing, pede ao porteiro que a chame. Quer dizer-lhe duas
palavrinhas. Ceei vem.
- Você vai sair muito tarde?
- Hoje é dia do seu aniversário - lembra ela antes de responder.
Mas não, não sairá tarde. Isto é, se ele quiser que deixe o trabalho mais cedo.
Talvez para jantarem juntos. Que tal lá pela meia-noite?
- Ótimo. Espero na Taberna da Glória.
Quando Ceei chega, meia-noite em ponto, encontra Noel sozinho, sentado a uma das
mesas de calçada. As garrafas de cerveja à sua frente mostram que ele está ali

muito tempo.
- Não esqueci seu aniversário - diz ela tentando ser carinhosa. - Só não sabia
que você ia aparecer.
Os dois conversam com certa cerimônia, Ceei esforçando-se para ser o mais
agradável possível. Não quer discutir, não quer estragar uma noite de
sexta-feira, logo a do aniversário de Noel. Sabe que ele não fará cenas de
ciúme, que não tocará no nome de Mário Lago, que evitará bate-bocas. Mas também
não quer
que se tranque, que fique naquele silêncio que tanto a
443

perturba. Puxa conversa, mas as respostas são, no máximo, irônicas.


- Você está suando.
- É o calor.
Ela põe a mão na testa molhada.
- Mas isso é febre, Noel! E você bebendo cerveja gelada...
- Não seja por isso. Garçom! Por favor, uma cerveja sem gelo.
Nunca a ausência de palavras entre eles disse tantas coisas. Os dois quase que
adivinham o pensamento um do outro. Noel pergunta-lhe o que tem feito, ela
responde
com clichês. Ele não lhe faz perguntas embaraçosas, Ceei não
responde o que não lhe é perguntado. Bebem-se mais cervejas quentes, a noite de
quase verão pedindo gelado. A conversa é volta e meia interrompida por longos
silêncios.
Noel tenta dizer coisas engraçadas, às vezes retoma o ar irônico. Até que,
depois de um dos silêncios mais prolongados, faz-se tristemente solene:
- Hoje eu tenho certeza.
- De quê?
- De que tudo acabou.
Ceei não retruca. Mesmo se disser que não é bem assim, Noel não acreditará. Sabe
que ele sabe de Mário, mas desconfia de que jamais teve idéia do quanto ela
realmente
o amou. Ou

Histórias de outro samba


"Foi lá por 1936, 1937. Estávamos num cabaré da Lapa, eu e o Djalma Ferreira,
quando Noel entrou, veio até nossa mesa, sentou-se, pediu uma cerveja. Começamos
a
conversar. Lá pelas tantas, uma das dançarinas aproximou-se dele pelas costas,
tapou-lhe os olhos com as duas mãos e disse: 'Adivinha quem é.' Noel citou dois
ou
três nomes, mas nenhum era o da dançarina. Ela então se pôs de pé diante dele:
'Sou eu', disse. Mas Noel simplesmente não a reconheceu. Desculpou-se muito, mas
não
se lembrava de tê-la visto antes. A moça, desapontada, tentou reavivar-lhe a
memória: 'Não se lembra daquela festa de São João? No ano passado... Nós saímos
às escondidas,
fugindo dos outros convidados...' Noel começou a se lembrar. Havia saído da
festa com a moça, foram para um terreno baldio, um hotel, sei lá. Ele tinha sido
o primeiro.
Agora, a moça estava ali, na nossa frente, uma dançarina de cabaré. Noel ficou
visivelmente perturbado: 'Sim, claro, eu me lembro...' A moça se afastou e ele
começou
a escrever alguma coisa na toalha da mesa. Pediu mais uma cerveja, mais outra.
Quando saímos, notamos que ele estava transfigurado, o pensamento longe. Pois
bem,
dias depois eu voltei ao cabaré. O garçom que nos servira perguntou: 'Cadê o
Noel? Eu queria dar a ele esta toalha. Tem uns versos escritos. Será que ele não
vai
precisar?' Tomei a toalha nas mãos. Ali estava, inteirinha, a letra de Ultimo
Desejo."
Cyro de Souza

"Sempre demos grandes festas de São João em nossa casa. Era assim que a gente
comemorava os aniversários de Heloísa, minha irmã. Noel não perdia uma. Naquele
ano, estava um pouco triste, jururu. Ofereci-lhe um prato de canjica. Ele
aceitou,
mas pediu-me que levasse para o quarto dos fundos, onde ninguém pudesse vê-lo.
Noel era muito feio comendo, raramente fazia uma refeição na frente de
estranhos.
Mas nós éramos como gente de casa, da família. Terminada a canjica, pegou o
violão e começou a tirar alguma coisa. Me pediu que lhe trouxesse lápis e papel
para
anotar a letra de um samba que acabava de lhe vir à cabeça. Era o Ultimo Desejo"
Theodorica dos Santos Lima, Dorica
"Em fins de 1936, encontrei o Noel no Programa Casé. Já estava muito magro,
doente. Ficamos conversando sobre música. Ele me disse:
- Engraçado, Floriano, a gente se conhece há tanto tempo, já fez tanta serenata,
nos encontramos em tantos lugares, e no entanto você nunca gravou nada meu. Sabe
de uma coisa? Acho que tenho aqui um samba que casa muito bem com teu jeito de
cantar.
Sempre cantei no estilo do Sílvio Caldas, um repertório mais romântico, de
valsas-canções, serestas, sambas dolentes. Noel me mostrou então o tal samba que
casava
com meu jeito de cantar. Era simplesmente o Ultimo Desejo. Sabe o que eu disse a
ele?
- Muito bonito, Noel, mas não é bem o meu gênero.
Até hoje não me perdôo."
Floriano da Costa Belham
445

do quanto talvez ainda o ame. Novo silêncio.


- Quero te fazer um pedido, Ceei.
Ela move a cabeça afirmativamente. Como negar-lhe alguma coisa?
- Gostaria que passássemos a noite juntos.
Vão para um hotel das imediações. De madrugada, quase amanhecendo, ela desperta.
Abre os olhos aos poucos, vê que ele não está a seu lado. Vira a cabeça,
assusta-se
ao encontrá-lo na mesma posição em que o deixara ao adormecer, sentado numa
cadeira aos pés da cama, imóvel, os olhos fixos nos seus. Os primeiros raios de
sol entram
pela janela do quarto de hotel. E Noel ali, imóvel, como uma pedra, olhando para
ela.
Há muito de adeus nesse olhar. Um adeus, porém, que parece significar mais do
que uma simples separação amorosa. Exatamente como outro samba que Noel compõe
inspirado
em Ceei, talvez sua obra-prima. Um samba que fala não só de um amor que se
extingue, mas também de uma vida que perde o seu sopro. Como terá sido feito?
Pelas várias
histórias que se contarão, é de se suspeitar que há muito tempo Noel vem
trabalhando em sua melodia comovida, que passa do lírico ao patético para
enfeixar versos
alusivos n t.inta rois.-i. memória, ternura, magoa, consciência, vontade de
chorar, ironia, desesperança, adeus. Um samba-canção que, a começar pelo título,
Último
Desejo, tem a força de um testamento:

Nosso amor que eu não esqueço,


E que teve o seu começo,
Numa festa de São João,
Morre hoje sem foguete,
Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.
Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo,
Mas meu último desejo
Você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim,
Que eu arruinei sua vida,
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim.

NOTAS
1. O precioso Este Álbum de Noel Rosa, que durante muito tempo foi dado como
desaparecido ("No próprio dia triste de sua morte - diz Almirante em No Tempo de
Noel
Rosa, primeira edição, página 209 - inúmeros repórteres presentes, na busca de
dados, arrancavam as páginas do caderno que lhes pareciam indispensáveis. Assim
foi
sumindo Este Álbum, restando somente a capa..."), esteve guardado com amigos da
família que o passaram às mãos de Jacy Pacheco, infelizmente depois de já ter
ele
escrito seus dois livros sobre o primo. Hoje pertence aos arquivos dos autores.
2. Esta passagem, já focalizada por Jacy Pacheco em O Cantor da Vila (páginas
134-135), foi recontada aos autores, com novos detalhes, pelo próprio Floriano
Belham.
3. Carioca, 29 de agosto de 1936 (página 48).
446

Os últimos dias de 1936 são passados em casa. Janeiro chega e, com ele, os dias
mais quentes do verão. Alguém sugere que Noel e Lindaura saiam do Rio por
algumas
semanas. Não precisam ir muito longe, como a Belo Horizonte de tia Carmem. Basta
que seja um lugar tranqüilo, fresco, de ar puro. Por que não Friburgo? Bom
clima,
a montanha, o verde. E é perto, apenas algumas horas de trem e já se está numa
terra abençoada, milagrosa.
Mas os pulmões não são o único problema de saúde que Noel enfrenta neste começo
de janeiro. Um molar inferior esquerdo causa-lhe grandes padecimentos. É uma dor
que se reflete por todo o rosto, impiedosa. Nunca teve muito cuidado com os
dentes. Um pouco por relaxamento, mas principalmente porque o defeito jamais lhe
permitiu
abrir a boca o suficiente para que o dentista trabalhasse sem lhe causar dor na
articulação. O tal molar já não passa de um caco. Infeccionado, deu origem a um
abcesso
que faz inchar o lado esquerdo do rosto. O processo avança, uma fístula vai
deixar-lhe mais uma marca. Noel, sofrendo muito, atravessa a rua e recorre outra
vez
ao seu Bruno. A intervenção é difícil, demorada, dolorosa. Antes de extrair o
molar, o dentista lanceta o abcesso a sangue-frio. Tenta encarar tudo com
resignação.
E até com uma dose de humor. Pega lápis e nanquim, desenha-se de perfil, o lábio
inferior pendurado como se fosse uma gota prestes a cair-lhe do resto da cabeça.
Seu nome faz as vezes da bandagem que seu Bruno recomendou, compressa quente
para ajudar a vencer o abcesso. A caricatura é colada na segunda capa de Este
Álbum.
O dentista será pago com a maior riqueza que Noel tem para dar: gratidão em
forma de samba. A ele, "distinto amigo e ilustre dentista Bruno de Moraes", será
dedicada
a partitura impressa de Quantos Beijos!
Alguns dias em casa, repousando, levam a febre embora. Mas não devolvem a Noel
as forças que aparenta vir perdendo desde o último encontro com Ceei. Está meio
prostrado,
sem ânimo, muito diferente do clima que se respira lá fora, nas ruas, neste
começo de ano. O carnaval está perto. Integrantes dos pequenos blocos de sujo
batem de
casa em casa, pires na mão, arrecadando os mil réis que talvez lhes permitam
fazer melhor figura do que no ano passado. De quando em vez, mesmo lá dos fundos
do
chalé, ouvem-se os sons que vêm de pontos distantes, um surdo que pulsa lá pela
Maxwell, tamborins que repenicam na Souza Franco, ecos de batalha no Boulevard.
A
animação é grande. O Cara de Vaca e o Faz Vergonha, como de hábito separados
pela principal avenida do bairro (e, mais que isso, por uma rivalidade que a
cada ano
aumenta), tratam de se articular. No Ponto de 100 Réis, o pessoal do lado de cá
passa a cumprimentar ressabiado o pessoal do lado de lá: em fevereiro, com a
proximidade
do carnaval, Cara de Vaca e Faz Vergonha vão esquecer que são partes de uma
mesma família e se transformar, quase, em duas comunidades distintas. Vizinhas
mas de
forma alguma aliadas. Enquanto isso, alheio a essa emulação, o Meninas Loucas da
Vila faz força para tornar-se um bloco, tanto quanto possível, da estatura dos
outros
dois. Já conta com verba extra do bicheiro Lourenço, um dos seus fundadores, e
também com a promessa de Affonsinho de trazer para o desfile um punhado de
craques
do São Cristóvão, o Carreiro, o Roberto, o Dodô, sem falar no Quintanilha, que
já é daqui mesmo, de Vila Isabel. O clima lá fora, nestes dias, é mesmo de
carnaval.
E pela primeira vez na vida - desde que se fez crescido o bastante para batucar
um tamborim - Noel não participa de tudo isso, dos blocos, das batalhas, das
músicas
que o povo canta.
Em casa, ouve o rádio. Interessa-se por programas que transmitem, desde manhã,
os sambas e marchas que disputam a preferência popular neste começo de 1937.
Musicalmente,
não é um bom carnaval. Basta que se observe que a marcha de maior sucesso é
Mamãe Eu Quero, o maestro Vicente Paiva lançando mão de antiga canção de ninar
para musicar,
sem muita inventiva, os versos maliciosos, mas pobres, de Jararaca. Lig-Lig-Lig-
Lé e Como "Vais" Você? (Ary Barroso aproveitando-se de expressão coloquial da
moda
para se permitir intencional ofensa à gramática) também não são lá grande coisa,
embora muito cantadas. Nem mesmo sambas como Falso Amor e Acorda, Escola de
Samba
conseguem elevar o nível do que se ouve no rádio.
Será exagero afirmar que as melhores músicas deste carnaval são mesmo as de Noel
Rosa? É inegável que nenhuma delas tem espírito muito carnavalesco. Tarzan,
Cidade
Mulher, Dama do Cabaré, Na Bahia e Pela Primeira Vez são todas músicas de meio
de ano, ouvidas já no filme Cidade Mulher. Só foram incluídas nos catálogos de
carnaval
porque levam a assinatura de Noel Rosa. O X do Problema, que o público também já
conhece de teatro e de rádio (afinal, foi lançado há quase dois anos), é gravado
por Aracy de Almeida com vistas ao carnaval, mas, positivamente, de carnaval
pouco tem. O mesmo pode-se dizer dos quatro sambas que o próprio Noel levou ao
disco
em dupla com
MaríliaBaptista. Nota-se que foi feito esforço no sentido de tornar esses sambas
"carnavalescos", seus andamentos mais acelerados, gente de escola de samba
atuando
no ritmo. Mas nem assim foi possível ocultar-lhes a nostalgia. Não tanto no caso
de Você Vai Se Quiser, mas no dos outros três, Quantos Beijos!, 'Provei e Quem
Ri
Melhor. Por mais que o ritmo tenha sido adaptado a esta festa de alegria, o que
fica mesmo é o desconsolo de certos versos e a melancolia de cada frase musical.
Dois deles eram feitos de parceria com Vadico, mas todos são obras bem de acordo
com o Noel desses dias. Tristes, mas certamente o que de melhor se ouve neste
carnaval.
Não é por acaso que Quem Ri Melhor ganhará o primeiro prêmio da Prefeitura.
No domingo de carnaval, 7 de fevereiro, Noel sente-se bem o bastante para fugir,
ainda que por poucas horas, da clausura do chalé.
- Quero ver o movimento na cidade-diz ele convidando Lindaura.
Hélio chama um dos motoristas de táxi, amigo do Ponto de 100 Réis, e o contrata
para, capota arriada, levar Noel, Linda, toda a família até a Avenida Central.
Blocos
passam, blocos cantam:
Pobre de quem já sofreu neste mundo
Noel, no banco de trás do táxi, ouve:
Quem ri melhor é quem ri no fim!
Mas não ri. Assiste, em silêncio, ao seu último carnaval.
Fica sem sair do chalé por algum tempo. Febre alta, tosse, falta de ar. Edgar
Graça Mello já não perde tempo em se dirigir ao doente. É inútil. Prefere fazer
as
recomendações a dona Martha:
- Repouso absoluto. E estes remédios nas horas certas.
O repouso e os remédios - alguns contendo bálsamos para aliviar a tosse - o
deixam fora de combate. Dorme a maior parte do tempo, não sente vontade de fazer
nada.
Se melhora, sai. Vai a uma estação de rádio, eventualmente canta um número ou
dois, só para matar a saudade. Cansado, volta para casa, mergulha de novo na
cama.
Ainda pensa em Ceei. E como! Pensamentos que podem se tornar mais fortes, a
ponto de perturbá-lo, de levá-lo a impulsos inesperados. Como sair de casa, ir
ao Ponto
de 100 Réis e entrar no primeiro táxi.
- Vamos ao Café Nice - diz ao motorista. Encontra Vadico bebericando com
Floriano Machado, capitão do Exército, amigo comum. Vadico era exatamente quem
procurava.
448

Noel está visivelmente abatido, os olhos mais tristes do que nunca. Floriano
nota isso assim que o parceiro se aproxima da mesa(1).
- Vadico, precisamos conversar.
- O que houve, Noel?
- Tem um piano por aí?
- Só o meu, lá em casa.
O apartamento de Vadico fica na Rua das Marrecas, bem perto da Lapa.
Umagarçonnièrea que os amigos recorrem sempre que fazem uma conquista pelas
redondezas. É ali
também que ele e Noel, em torno do piano, escreveram a maior parte de seus
sambas juntos. Mas desta vez Noel prefere outro lugar, outro piano. Mais próximo
do Nice,
como se tivesse pressa. Vadico nota-lhe a ansiedade, o ar angustiado. Floriano
sugere que usem o piano de um clube da esquina, a poucos passos do Nice. Os três
se
dirigem para lá.
No caminho, Noel explica que tem um começo de samba que quer que Vadico o ajude
a concluir. é algo que eles têm que fazer logo, o samba está preso dentro dele,
como
um nó na garganta.
- Está bem, Noel- diz Vadico.
Noel começa a desabafar, a falar de Ceei, de suas queixas de amor. Nesses dias -
talvez pela doença - são também confusos os seus sentimentos. De ironia, como
naquela
noite na Taberna da Glória, ou lamurientos, como agora. Pode ser até cruel, como
nestes versos de Só Você:
em seu caderno de folhas soltas. Anotará o gênero e a autoria (samba de Vadico e
Noel Rosa), o titulo (Pra Que mentir?) e a data (8 de março de 1937). É apenas
um
esboço. Conseguirá vê-lo concluído?2

Pra Que Mentir?


Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê?! Pra que mentir,
Se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir,
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir,
se eu seiQue gostas de outro
Que te diz que não te quer?
Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu já sei Que tu não gostas de mim?!
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido?!
Ih Quanto mais se vive, mais se sabe
Mas o dito não lhe cabe
Que você não leve a mal
Mesmo que o mundo se acabe
Você deixa de saber
Porque nunca lê o jornal
Ouço triste o meu violão chorando
E às vezes despejando
Seus trinados da garganta
Ouço até o vento assobiando
E só você... Só você
É que não chora nem canta
Eu por sua causa estou sofrendo
Já estou emagrecendo
Sei que vou adoecer
Tanta gente boa vai morrendo
Só você não percebeu
Que precisa falecer

Enquanto Noel fala com Vadico, Floriano afasta-se discretamente. Sente-se


embaraçado diante das confidencias que sabe feitas a Vadico e não a ele. Fica à
distância,
vendo e ouvindo os amigos trabalharem no que parece ser um primor de samba. Noel
vai passar a letra a limpo

Bom clima, a montanha, o verde. O cheirinho de eucalipto perfumando o ar, as


flores, a paz. Friburgo parece mesmo uma terra abençoada e milagrosa. Nem o trem
que
passa fumegando em plena rua principal, atravessando a cidade de ponta a ponta,
consegue quebrar o sossego em que vivem mergulhadas as casas e as pessoas.
Muitos
doentes do pulmão têm vindo aqui em busca de cura - ou de esperança. A Marinha
chegou a construir num alto de morro um sanatório para marujos tuberculosos ou
convalescentes
de outros males. Há também pensões particulares destinadas a moços fracos que
vêm do Rio e de cidades mais distantes. Essas pensões vivem cheias.
Em março, pouco antes da Semana Santa, seguindo conselhos de amigos e do próprio
Edgar Graça Mello, Noel e Lindaura instalam-se num pequeno hotel da rua que, ao
lado da estação de trem, sobe para o cemitério. O proprietário concorda em
cobrar-lhes uma diária especial (24 mil réis) desde que paguem dez dias
449

adiantados. Este e outros detalhes estão numa carta enviada a dona Olindina. Uma
carta peculiar, cheia de simulações bem ao gosto de Noel. A começar pelo fato de
ele próprio tê-la escrito e assinado como se fosse Linda. Algumas informações
têm a ingenuidade da mulher, no fundo quase uma menina: falam do levantar cedo,
da
fome na hora das refeições, dos passeios de automóvel e bicicleta, do preço do
mamão, das frutas e das verduras. Outras informações, contudo, resvalam no
caminho
das mentiras: "Noel tem passado bem: não tem tosse nem falta de ar." Quando na
verdade, em momento algum de sua última e breve estada em Friburgo, chegará a
passar
realmente bem. Toma duas injeções por dia, orion e gluconato de cálcio,
aplicadas pelo Nelson Ruy da Farmácia Vieira, que vai ao hotel pela manhã e à
tarde. Noel
quase não sai, prefere ficar sentado na espreguiçadeira do hall, conversando com
os outros hóspedes, lendo jornais e revistas do Rio. É ali que os amigos, da
terra
ou de passagem, vão encontrá-lo.
- Como éque está, Noel?- pergunta Marino Pinto.
- Cada vez melhor- responde com nova mentira.
A Maríno, Pandiá Pires, Lucas de White, Geraldo Penna, amigos ou meros curiosos
que querem conhecê-lo ("Vocês sabiam que o Noel Rosa está aqui em Friburgo ?"),
não
se nega a cantar um ou outro samba. O violão, naturalmente, veio com ele
do Rio. Os amigos o ouvem com a voz muito fraca, sem sair da espreguiçadeira,
num samba triste, banhado em dor, que só completará no Rio e a que dará o título
de
Eu Sei Sofrer(3):

Quem é que já sofreu mais do que eu?


Quem é que já me viu chorar?
Sofrer foi o prazer que Deus me deu,
Eu sei sofrer sem reclamar.
Quem sofreu mais que eu não nasceu,
Com certeza Deus já me esqueceu.
Mesmo assim não cansei de viver,
E na dor eu encontro prazer.
Saber sofrer é uma arte
E pondo a modéstia de parte,
Eu posso dizer que sei sofrer.
Quanta gente que nunca sofreu,
Sem sentir, muitos prantos verteu.
Já fui amado e enganado,
Senti quando fui desprezado,
Ninguém padeceu mais do que eu.

Velhos boêmios que o conhecem de sua estada anterior em Friburgo também o


procuram. É evidente que este Noel de agora, falando tão autopiedosamente de seu
sofrimento,
450

referindo-se tão masoquistamente ao terrível prazer que Deus lhe deu, não é o
mesmo da outra vez. ' Já não faz serenatas. O sereno, o frio das noites de
Friburgo,
onde mesmo no mês de março se dorme de cobertor, não é bom. Certa manhã,
sentindo-se melhor, abusa: toma um copo de leite gelado. Esqueceu-se das
recomendações de
Edgar a respeito do gelo. A febre volta, a tosse também. Agrava-se o problema da
falta de ar. Pior, não sabe se pelo leite gelado ou lá o que seja, começa a
sentir
dores pelo corpo. Lindaura chama um médico, este diz que é nevralgia. Receita
analgésicos, manda que Noel se agasalhe bem, evite o sereno. Penosa imposição a
este
cantor das madrugadas, poeta noturno, amigo de todos os serenos. Embora se diga
no seu samba um conhecedor da arte de saber sofrer, a resignação tem limites.
Ele
próprio se impacienta, a nevralgia se somando aos pulmões estragados. É o que
deixa transparecer numa carta escrita a Almirante:
"Tenho pena daqueles que estou incomodando com a minha merecida moléstia.
Confesso que não sei agradecer a tanta bondade. Era mais negócio vocês me
deixarem morrer,
como eu mereço. Não quero mais amolar.
P.S. Há muito tempo não escrevo. Isto basta para perdoar os meus garranchos.
Qualquer dia não saberei mais falar..."
Estranha carta esta(4). Contraditória, também. Não é de um poeta que sabe
sofrer. Nem de alguém que escreveu há poucos dias outra carta ("Há muito tempo
não escrevo...")
tão otimista para a sogra. Por que tanta amargura? Por que encarar a morte tão
aceitativamente, como merecida fatalidade?
Passam três semanas em Friburgo. A idéia era ficarem um, dois ou mais meses. Ou
mesmo aproveitarem o inverno de frio seco e bom da cidade. Mas a nevralgia -
somada
à vontade grande de voltar - acaba mudando os planos. Alguns amigos tentam
demovê-lo:
- Fique mais algumas semanas. O clima daqui tem feito milagres.
Não acredita. O frio seco, o céu muito azul, as estrelas que brilham nas noites
de Friburgo não fizeram a ele o bem que se esperava. Nem ao corpo, nem ao
espírito.
Parece que mais uma vez lhe ocorrem as palavras de Cícero: "A pátria é onde se
está bem." Por isso decide mesmo voltar para Vila Isabel. Lindaura, como sempre,
não
se opõe. De que adiantaria?
No chalé, o reencontro com a mãe e irmão. A volta repentina cria certo
transtorno. Supondo que Noel e a mulher fossem ficar meses em Friburgo, Martha
convidou Arlinda
para passar férias no Rio. Assegurou que haveria lugar de sobra, apenas ela e
Hélio em casa. Detalhe importante: o filho doente fora, Arlinda não precisava
temer
o risco de contágio. Podia até trazer Nair, sua filha de seis anos. Convite
aceito, um dia depois da volta de Noel, Arlinda e a menina aparecem no chalé. O
que fazer?
A velha casa que a madrinha de Noel reencontra é uma melancólica sombra do que
foi outrora. Na verdade, é quase uma ruína. Estes anos de sofrimento e
decadência,
sobretudo os dois que se seguiram ao suicídio de Neca, bastaram para dobrar
Martha, transformando-a de mulher forte, granítica, como Arlinda conheceu anos
atrás,
numa criatura já sem ânimo. Alentos? Poucos. Bons momentos? Raríssimos. Desde
algum tempo Álvaro de Castro, um cinqüentão que mora na casa 3 da vila 399, em
frente
ao chalé, faz parte de sua vida. Primeiro foram os olhares, depois os
cumprimentos gentis, as atenções. Álvaro, boa alma, prestativo, dado a
delicadezas, foi aparecendo
no chalé. Para uma ajuda, a troca de uma lâmpada queimada, o conserto de um
encanamento, o reparo de um reboco castigado pelos anos. Aparecia, ia ficando.
Para uma
sopa quente, uma prosa mais demorada. Passou a sair tarde do chalé - quando
saía. Arlinda fica sabendo que os vizinhos ainda olham para tais pernoites com
olhos
de reprovação. ("Quando alguém pretende praticar qualquer má ação - já dizia
Noel em suas divagações de juventude - só pensa numa palavra: vizinho.") Mas
Martha
não pratica nenhuma ação má, ao contrário do que muitos - inclusive alguns
parentes - preferem pensar de sua ligação com Álvaro. É livre para amar quem
quiser. Já
os filhos não pensam nem dizem nada. Compreendem. E fazem como se nada houvesse.
Arlinda continua a grande amiga de Martha. Amiga e confidente. Impressiona-se
muito menos com a presença de Álvaro do que com o desmoronamento da casa, a
derrocada
da família. Chegando de tardinha com Nair, as duas têm de passar a noite ali.
Apesar do afilhado doente, espalhando bacilos pelo ar. Aos olhos dela e da
menina,
a casa é mesmo uma ruína(5). Procura ajudar Martha na rotina doméstica. Por
exemplo, pondo a mesa para Hélio e o amigo que ele trouxe para jantar.
- Até que enfim! - exclama o sobrinho deixando claro que o hábito de caprichar
na mesa, toalha, pratos, talheres, foi há muito abandonado.
Arlinda e Nair jamais esquecerão esta noite. A menina não gosta de Noel, ou
melhor, da caricatura que ele lhe faz acentuando o nariz de turca herdado do
avô. Simpatiza-se
mais com Hélio, que no entanto, passados todos esses anos, ainda tem ciúmes do
irmão.
- Viu a mesa que Arlinda pôs só para
451

mim? - diz provocando Noel.


Arlinda, observadora, intervém:
-Não faz mal. Vou fazer o mesmo para o meu afilhado.
Amigos aparecem. Noel, além de desenhar, toca violão. Sente-se bem melhor do que
nas frias noites da serra.
No dia seguinte, bem cedo, Nair é levada para a casa de Eduardinho, na Avenida
Engenheiro Richard, Grajaú (voltou ano passado de Bica de Pedra, o dinheiro já
não
lhe é tão farto e, além de não poder ajudar mais a irmã, vê-se obrigado a ficar
com o aluguel do bangalô, que antes amenizava as despesas do chalé).
O irmão de volta, Hélio apressa-se em contar-lhe as novidades:
-Parece que o caso de Ceei com o Mário é mesmo sério.
-É?
- Ouvir dizer que eles ceiam juntos todas as noites, que ela já não sai com mais
ninguém.
- Não importa.
Mas Noel sabe que importa. O eterno fingidor, o homem sem queixas, tudo faz para
não deixar transparecer que de fato importa - e muito-a repentina constância da
inconstante Ceei. As novidades que Hélio tem para contar não param aqui.
Um episódio desagradável, passado durante sua ausência, é narrado com detalhes
ao irmão. Hélio e o primo Jacy Pacheco teriam ido certa noite ao Caverna. Já
haviam
bebido além da conta quando Ceei aproximou-se da mesa onde estavam. Sentou-se,
os três começaram a conversar e o nome de Noel surgiu no assunto. De uma hora
para
outra, Jacy transfigurou-se, passou a falar da doença do primo, foi ficando
irritado, pôs-se a culpar Ceei pelos pulmões escangalhados de Noel. E quando ela
esboçou
as primeiras palavras de defesa, Jacy ergueu furiosamente o copo e atirou-lhe
cerveja no rosto(6).
O que passará pela cabeça de Noel enquanto o irmão vai pintando, talvez com
cores emasiado carregadas, quadros de uma Ceei amada por um, insultada por
outro, mas
sempre tão diferente da que conheceu numa festa de São João? O episódio do copo
de cerveja o impressiona tanto que não vê outra saída senão quebrar intenção de
nunca
mais procurá-la. No dia seguinte, febril, vai até a Avenida Mem de Sá. À porta
do velho sobrado, não tem coragem de subir. A essa hora, cinco da tarde, Ceei
deve
estar em casa. Mas com quem? Sozinha? Ou repartirá com outro amor o quarto em
que viveram juntos tantos momentos de paixão? Não, Noel não tem coragem de
subir. Passa
um conhecido e ele pede:
- Você me faz o favor de chamar a Ceei lá em cima?
O conhecido sobe, demora-se alguns instantes e volta. O recado está dado. Noel
espera. Dez, quinze minutos, Ceei desce. Veio tão rápido quanto lhe foi
possível.
Ou quanto as explicações a Mário permitiram: "Que diabo! É só ele chamar e você
vai..." Sim, é só Noel chamar que Ceei vai. Os tempos podem ser outros, muita
coisa
pode ter mudado, mas ainda guarda pelo ex-amor uma grande ternura.
- Você está bem de saúde?
- Sim, ótimo.
- Mas parece com febre. Por que saiu de casa? E esta cicatriz no rosto?
- Tinha de falar com você.
Ceei diz que o levará de volta a Vila Isabel, que vai chamar um táxi, cuidar
para que ele não saia até que a febre passe. Por um momento pensa em Mário. Terá
que
esperar. Faz parar o primeiro táxi, entra, Noel a segue. Ceei nem sequer avisou
ao Mário. No caminho, Noel pouco fala de si. Explica a cicatriz no rosto, jura
que
está melhor, apenas um pouco gripado. Fala do prazer de revê-la, sempre tão
bonita, sempre tão gentil. Desta vez, diz tudo isso sem ironias.
- Mas eu te procurei, mesmo, pra pedir desculpas.
Desculpas pelo primo Jacy, jovem, intempestivo, mas no fundo um bom homem. Foi
por amizade a ele, Noel, que Jacy fez o que fez. Imperdoável, é verdade, mas
mesmo
assim Noel espera que Ceei o perdoe. Por que não? Ela não é de guardar rancor.
Promete esquecer, se é que já não esqueceu.
O resto do encontro é feito de poucas palavras, como se já não houvesse muito
mais a dizer. Poucas palavras, muita tristeza. De parte a parte. Por último, as
despedidas.
Desta vez, sem que eles saibam, para nunca mais.
Um gosto de despedida. O chalé transformado em retiro, Noel ausenta-se cada vez
mais do mundo lá fora. Armênio Mesquita Veiga aparece para dizer-lhe que acaba
de
ouvir Aracy de Almeida cantando Último Desejo. Sim, no rádio. Noel não sabia.
- Mas ela nem aprendeu o samba direito - espanta-se.
Armênio havia notado. Basta dizer que em vez de "Mas meu último desejo..." ela
canta aPois meu último desejo..." E em lugar de "que o meu lar é o botequim" ela
diz
"que o meu lar é um botequim...". Pode parecer a mesma coisa, mas não é.
Juro que nunca mais dou música minha para ela gravar.
Uma zanga que dura pouco. Noel gosta de Aracy. Como cantora e como gente.
Tirando esses escorregões, que fabulosa intérprete ela
452

é! Inclusive cantando Último Desejo. Armênio recorda quando serviu de mediador


numa discussão entre Noel e Aracy, faz tempo. Noel ensinava a ela a letra de O
Maior
Castigo Que Eu Te Dou, samba de dois anos atrás, primeiros tempos de um romance
ainda cheio de vida, o anti-romântico Noel dirigindo-se à jovem dançarina Ceei:
Não há ninguém mais calmo do que eu sou
Nem há maior prazer do que te ver me provocar
Pois Aracy teimava em querer cantar "não há ninguém mais calma do que eu sou..."
Afinal, argumentava, era uma mulher.
- Este "calmo" aí, depois do "ninguém", não varia, Aracy.
- Não interessa! Não vou cantar como se fosse homem.
- Mas é "calmo", Aracy - insistia Noel já irritado.
- Calma!
- Calmo!
Foi então que Armênio chegou. Ao ver a discussão esquentar, achou melhor
fazer-se de apaziguador. Explicou a Aracy que Noel estava certo, o "ninguém" não
significando alguém específico, nem homem, nem mulher. Neste caso, sendo um
pronome
indefinido, o certo era mesmo "calmo". Aracy não ficou muito convencida. Isso
foi tempos atrás, Noel ainda com forças para discutir o gênero de uma simples
palavra.
Hoje, suas zangas realmente duram pouco. Hélio aparece. Vem de dentro do chalé
atraído pelo barulho de um avião que faz piruetas, rasante, tracejando desenhos
de
fumaça no céu muito azul de abril. É um monomotor, desses em que pilotos civis
ou militares realizam seus treinamentos. Voa tão baixo que dá a impressão de que
vai
derrubar a chaminé da fábrica de tecidos.
- Será o Mello Maluco? - pergunta Armênio pensando no piloto famoso por suas
acrobacias aéreas(7).
Hélio olha para o céu, acompanha os movimentos do avião. Ao ver que o irmão
também está atento aos ziguezagues do aparelho, vindo até o portão do chalé num
esforço
que já lhe parece demasiado, diz:
- Não é o Mello Maluco, não, Armênio.
453

Vai ver é alguém que sabe que aqui no chalé mora o grande Noel Rosa. Estas
piruetas são uma homenagem ao maior compositor popular do Brasil.
Noel sorri como se para agradecer a carinhosa brincadeira - elogio raro. Verdade
é que Hélio sabe que a profecia de vó Rita falhou. Não estará ali a placa com o
seu nome. A glória do chalé vai dever-se ao irmão.
Nestes últimos dias de abril há vestígios, ainda que poucos, de melhora. Noel
continua muito magro, pálido, a aparência ainda mais afetada pelo desânimo que o
impede
de fazer a barba, pentear-se, vestir melhor roupa. Está quase sempre metido no
pijama de flanela, a gola cossaca circundando o pescoço afilado, protegendo-o de
um
frio que só ele sente. A febre causa-lhe arrepios, derruba-o. Mas, quando a
temperatura desce ao normal, há vestígios de melhora.
Os que vêm ao chalé, amigos, vizinhos, gente da música, o encontram ora caído,
sem disposição, ora ativo, desenhando ou tocando violão. Desenhar, porém, é o
que
mais faz nestes dias. Dedica-se menos aos sambas do que aos rabiscos. Nássara
encontra-se com dona Martha no Boulevard, pergunta-lhe por Noel. Ouviu dizer que
anda
adoentado. Não deixa transparecer a falta de coragem para visitar o amigo.
-Ah, seu Nássara... Ele está muito fraquinho. Não tem forças nem para tocar o
violão. Vive desenhando, fazendo caricaturas.
Dona Martha conta que ia precisamente comprar mais lápis, guache, papel canson.
São interessantes os desenhos que ele faz. Por que não aparece para ver? Nássara
promete ir.
O desenhista Noel Rosa é persistente. Apesar de tudo, continua confiante no seu
traço. Foi na presença do mesmo Nássara que um dia, à porta de um café, mostrou
seus
desenhos a Emiliano Di Cavalcanti. Um encontro constrangedor,
Noel orgulhoso de seus rabiscos, o artista indiferente, mudando de assunto:
- Me canta aquele samba, Noel...
- Samba não dá dinheiro a ninguém - retrucou - Eu quero é emprego. Estive agora
mesmo em O Globo...
E Di Cavalcanti, interrompendo-o:
- Canta aquele samba outra vez?. Hoje Noel pensa mais em seus desenhos
que em música. Um deles, a que se vai referir em sua última carta, é feito com o
pensamento na capa da partitura de Eu Sei Sofrer. Mostra-se mais uma vez de
perfil,
segurando o violão pelo braço com a mão esquerda, uma garrafa de Cascatinha pelo
gargalo com a direita. O outro desenho tem especial significação. Noel e o
violão
estão mergulhados numa pilha de partituras de músicas suas. Tem a cara
assustada, as mãos
Desenhos de pouco valor

"Vila Isabel é hoje o bairro de Noel Rosa, homem estranho que morreu moço e que
foi um gênio carioca. Noel um dia cantou-me um samba, creio que no Café Nice,
batendo
numa caixa de fósforos, como acompanhamento. Era admirável, sua voz rouca de
rapaz doente, cheia de um sentimento profundo, acentuando nas palavras a força
melancólica
de um segredo à bem-amada. Exultei, mas o rapaz, dias depois, procurava-me
noutra mesa do café para mostrar uns desenhos seus, de pouco valor. Disse-lhe
que não
desenhasse e fizesse sambas, muitos sambas! Desde então passou a me tratar mal e
por minha culpa não mais tive o seu convívio. Só sabia dele através de Antônio
Nássara,
outro homem maravilhosamente carioca e de São Cristóvão. Nascido na Rua Abílio,
esquina da Rua Vileta. Nássara é tão carioca como é carioca o Largo da Lapa.
Poderia
ser considerado monumento desta cidade: com Orestes Barbosa e Sílvio Caldas faz
um trio que encontra no meu coração um aconchegado recanto de carinhos."
Di Cavalcanti
Diário de Notícias, 11 de março de 1962

imobilizadas, sem poder tocar a vistosa morena de cabelo curto que se aproxima.
Não é Ceei, nem Lindaura, nem Fina. Quem será? A significação especial do
desenho,
porém, está em outros detalhes: os títulos das músicas. É neles que Noel se
revela autor de algumas obras que nunca fez questão de reivindicar e cujos
registros
oficiais (selos de discos, partituras, fichários de editoras e arrecadadoras)
sempre omitiram seu nome: Fui Louco, Não Faz, Amor, Tenho Um Novo Amor. Até onde
se
sabe, será seu último desenho.
Se já não faz novas músicas, ainda tem muitas guardadas, inéditas, prontas para
serem lançadas no rádio ou gravadas em disco. Aracy de Almeida sabe disso. Ela
também
aparece no chalé, acompanhada de Benedicto Lacerda, querendo saber se ele não
teria umas coisinhas para mostrar. Claro que tem. A zanga? Noel nem se lembra
mais
da troca do mas pelo pois e do o pelo um. Recebe-a bem, pega o violão, mostra
lhe o que tem: quatro grandes sambas. Dois deles Aracy decide gravar logo. Um é
O Maior
Castigo Que Eu Te Dou, que ela promete cantar com
454

a letra certa (a promessa não será cumprida). O outro é Eu Sei Sofrer, iniciado
em Friburgo, terminado aqui. A cantora gosta não apenas do samba, mas também do
desenho
que Noel fez para a partitura.
- Me dá esse desenho, Noel?
- Quando estiver pronto.
Os dois outros sambas Aracy deixa para gravá-los depois. É pena. Um deles,
Século do Progresso, de três anos atrás, conta a história daquela briga já
superada com
Zé Pretinho. Tudo são reminiscências nestas "coisinhas" que Noel vai mostrando a
Aracy. Inclusive - e principalmente - no mais bonito de tudo que ele tem
guardado:
Último Desejo. Sim, é pena que a cantora deixe para gravá-lo só daqui a dois
meses. O tempo já não é muito. Ela e Benedicto Lacerda talvez não percebam que
Noel
tem pressa, mais pressa do que muitos imaginam.
Nova visita de Vadico ao chalé, Noel cantarola para ele, nota por nota, o mesmo
Último Desejo. O parceiro vai passando a melodia para a pauta, prometendo
escrever
a parte de piano e entregá-la a Mangione.
- Quero mais um favor seu, Vadico. Gostaria que você desse uma cópia da letra a
Ceei.
Vadico promete que o fará. O mais rápido possível. Sai dali, vai para casa,
senta-se ao piano, passa as notas para o pentagrama. A melodia da segunda parte
que Noel
lhe cantou é um pouco diferente da aprendida por Aracy de Almeida, mas
exatamente igual à que o mesmo Noel ensinou a Marília Baptista. Uma diferença
que um dia dividirá
as duas grandes intérpretes em torno da verdade que cada qual, com razão, diz
conhecer(9). Vadico passa a pauta a limpo, tira uma cópia da letra e leva-a para
Ceei.
Exatamente como Noel pediu. O pianista encontra-a no Caverna, de noitinha, põe
os versos sobre a mesa.
- O que é?
- Um, samba de Noel. Acabei de escrevê-lo(10).
- Para mim?
- Sim, ele me pediu que eu te desse. Vadico não consegue evitar o comentário:
- Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceei.
NOTAS
1. Todo esse episódio faz parte do depoimento de Floriano Machado a Almirante,
contado por este na Rádio Tupi a 14 de agosto de 1951, mas não utilizado por ele
em nenhum de seus escritos sobre Noel.
2. Está mais ou menos difundida a versão de que Noel Rosa não chegou a conhecer
a melodia de Pra Que Mentir?, o que não é exato. Em entrevista ao jornalista e
escritor
Herberto Salles (O Cruzeiro, 4 de setembro de 1954), Vadico esclarece que apenas
a segunda parte foi escrita depois da morte de Noel. Ao fazê-lo, o pianista
naturalmente
alterou um pouco a letra original, suprimindo uma das repetições da expressão-
título e substituindo "... embora seja traído por teu desprezo sincero" por "...
apesar
de ser traído por teu ódio sincero." Não bastasse este depoimento, conclusivo,
há também outra evidência: a estrutura da letra, de versos livres, típicos de
quem
os escreveu para determinada melodia. Quando fazia letras para serem musicadas
depois - do que Balão Apagado ejoão Teimoso são exemplos - Noel sempre evitava
os
versos livres, preferindo formas mais tradicionais, metrificadas, como o
terceto, a trova, etc. O samba só seria gravado um ano e quatro meses após a
morte de Noel,
na Victor, por Sílvio Caldas e os Diabos do Céu.
3. Geraldo Penna, em depoimento aos autores, fala daquela visita a Noel no
pequeno hotel ao lado da estação. Ele, Pandiã Pires e Marino Pinto ouvindo
praticamente
em primeira audição o começo de Eu Sei Sofrer, samba que bem traduz o estado de
espírito de Noel naquele mês de março.
4. Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, primeira edição (página 201)
e segunda edição (página 211).
5. "Eu achei o chalé horroroso, sujo, abagunçado, mas mamãe me explicou que
antes não era assim, não...", diz Nair Goyano Mathias em depoimento aos autores.
Segundo
ela, a impressão que Martha lhe dava era a de uma mulher cansada, devendo-se a
isso a decadência da casa.
6. Jacy Pacheco, em depoimento aos autores, nega ter havido tal incidente. Seus
contatos com Ceei, afirma, foram poucos, breves e superficiais. Ceei, ao relatar
o episódio aos autores, garante não haver a menor possibilidade de estar
confundindo Jacy Pacheco com outra pessoa: "Primo de Noel, tinha o nome parecido
com o meu
e era de Campos como eu."
7. Major do Exército naquela ocasião, Francisco de Assis Corrêa de Mello, o
Mello Maluco, como era conhecido por suas arriscadas acrobacias aéreas, pilotou
em 1931
o primeiro vôo transcontinental militar brasileiro. Em 1941, passaria aos
quadros da Aeronáutica, que então ganhava ministério próprio. Chegaria a
marechal-do-ar
e a ministro da Aeronáutica no governo Juscelino Kubitschek e mais tarde no de
Ranieri Mazili, no curto período em que este presidiu o Brasil logo após o golpe
militar
de 1964. Era muito popular no Rio de Janeiro dos anos 30.
8. Pedro Bloch em "O Rio de Noel", Manchete, 10 de abril de 1965 (página 115).
9- A versão que se tornou clássica de Último Desejo é a que Aracy realmente
gravou dois meses depois da morte de Noel. A que Marília aprendeu do próprio
compositor
- a mesma que está na partitura escrita por Vadico - tem melodia diferente no
terceiro, quarto, quinto e sexto versos da segunda parte. Quanto à letra, na
partitura
está a forma errada "um botequim" em lugar de "o botequim", como Noel escreveu.
10. Em entrevista a Ary Vasconcelos (Fairplay, 1967), Ceei diz que Vadico lhe
entregou o samba no exato momento em que lhe comunicava a morte de Noel. Aos
autores
ela dá esta outra versão. Nos dois depoimentos, porém, afirma que Último Desejo
tinha música de Vadico. Uma confusão a que deve ter sido induzida pela frase
"Acabei
de escrevê-lo..." Vadico jamais reivindicou a autoria deste samba. Na certa
queria dizer que acabara de passá-lo para a pauta, como fez com tantas outras
composições
de Noel.
457

O FIM
Capítulo 45
Foi estrela que brilhou E pra sempre se apagou
Nuvem Que Passou
notícia soa, em tom grave, na voz de um dos locutores da Rádio Cruzeiro do Sul:
Noel Rosa morreu! Como, quando ou através de quem chegou à emissora, ninguém
sabe.
Na pressa de divulgá-la em primeira mão, não se teve o cuidado de confirmá-la. E
no entanto, Noel Rosa está vivo.
Vivo mas muito doente. A reportagem da revista Carioca desloca-se até o chalé
para saber como está ele. Repórter e fotógrafo vão encontrá-lo na desordem do
pequeno
quarto, entre papéis velhos, começos de samba, esboços de desenho. Está muito
agasalhado, o pijama de flanela abotoado até o pescoço. Nega a gravidade da
doença,
fala com naturalidade da notícia de sua morte, finge-se confiante:
- Como vai essa força?- indaga o repórter.
- Não sei. Eu não posso adivinhar o que ela esta pensando em me fazer. Mas acho
que dessa vez endireito.
Admite ter estado muito doente, mas melhorou. Sente-se pronto para voltar às
suas atividades de compositor. O tom é sempre de confiança:
- Logo que possa, estarei de novo ganhando a vida como cantor também.
Perguntas e respostas desviam-se em seguida para a música. Noel recorda seus
tempos de Tangará, diz já ter mais de duzentas composições gravadas (cálculo
exagerado),
conta que fez Eu Sei Sofrer metade em Friburgo, metade no Rio, e que Aracy de
Almeida vai gravá-lo no mesmo disco de O Maior Castigo Que Eu Te Dou. Chega até
a cantá-lo
para o repórter. Com a alma nos lábios, dirá este. É a última entrevista de Noel
Rosa.
A fotografia no pijama de flanela ilustrará a matéria de Carioca. Mas não será a
última. Dois dias depois também vai ao chalé o pessoal de A Noite, talvez por
sugestão
de Orestes Barbosa. Noel posa para o fotógrafo em outro pijama, muito magro,
abraçado ao violão. Curiosamente, ao lado de antiga foto em moldura oval, ele
bem mais
jovem, gordo, pensativo, o queixo apoiado nas costas da mão.
Todos se preocupam, os jornais, os parentes, os amigos, o médico, os vizinhos.
Alonso Guimarães, pai de Walter e Affonsinho, dois jogadores de futebol, um do
América
e o outro do São Cristóvão e da Seleção Brasileira, aparece depois do jantar
para visitar o doente e fazer uma sugestão à família:
- Por que não o levam para fora do Rio? -Já fizemos isso. Esteve em Friburgo,
mas não se deu bem.
459

- Friburgo é muito frio, donaMartha. Por que não tentam Piraí?


Alonso Guimarães mora na Visconde de Abaeté, quase na esquina de Theodoro da
Silva. Costuma passar férias em Piraí, ele, os filhos e a mulher, Alice.
Hospedam-se
todos numa pensão modesta, mas limpa e confortável, de propriedade de uma
senhora que por sinal também se chama Alice. A cidade é pequena, muito
sossegada. Decerto
fará bem a Noel.
Consultado, Edgar Graça Mello nada tem a opor. O clima de Piraí não é o que se
recomenda a um doente dos pulmões, mas a essa altura, a moléstia já atingindo o
estágio
final, pouco importa. Diante da aprovação do médico, Noel e Lindaura viajam de
carro para a cidade fluminense, sábado de manhã, 24 de abril. Alice Guimarães e
a
filha Jurema foram um dia antes. Cuidaram para que dona Alice, a da pensão,
reservasse o melhor quarto para Noel, tomaram as providências necessárias a uma
boa estada
do doente na tranqüila Piraí.
Tranqüila mas não milagrosa. A cidade é mesmo pequena, meia dúzia de ruas, uma
pracinha central, botequim, armazém, padaria, açougue. Mas nem cinema, nem
clube.
Para repousar, excelente. Noel e Lindaura, com Alice Guimarães ejurema no quarto
ao lado, passam aqui uma semana. Ele realmente descansa, quase todo o tempo
trancado,
portas e janelas fechadas para evitar que o vento de outono o incomode. Há no
quarto uma velha escrivaninha. É sobre ela que, logo no domingo, dia 25, Noel
escreve
para a mãe sua última carta. Uma carta com novas simulações, o passar bem, a
intenção de ficar o maior tempo possível em Piraí, as lembranças comerciais ao
esperto
Mangione, as lembranças sinceras aos amigos. Para tranqüilizar Martha quanto à
quietude da cidade, ressalta que nela não há sabiás (seresteiros), pardocas
(mulheres)
e feitiçarias (farras e outras tentações). Não se esquece de seu Bruno. Nem dos
barulhentos cães dos vizinhos, Sultão, Negrinha, Neru. Acentua que a caricatura
para
a capa de Eu Sei Sofrer ainda será aperfeiçoada. Martha não deve entregá-la a
Aracy. Ao fim, em vez da assinatura, rabisca-se de perfil.
Sobre a mesma escrivaninha, fica até altas horas trabalhando em novas
composições. Simples esboços de letra para serem musicados depois? Ou obras já
acabadas, versos
e melodias devidamente casados? Nunca se saberá. Contudo, a julgar pelas duas
únicas letras que sobreviverão a estas noites de Piraí (e que ficarão como suas
últimas),
a segunda hipótese é a mais provável. Suas estruturas sugerem que foram escritas
já com as melodias em mente. Além disso, outra evidência de que são obras já
prontas
é o
fato de o próprio Noel ter-lhes definido os gêneros : um samba e uma embolada.
Com sua inconfundível caligrafia, passa-as a limpo num caderno escolar de folhas
pautadas
e marcadas com um de seus carimbos: "Remetente Noel Rosa". O samba intitula-se
Mas Quem Te Deu Tudo Isso? Lembra um pouco o tema de Onde Está a Honestidade? e
tem
mesmo muito de Noel. A começar pela referência ao prestamista, o eterno vilão, o
fantasma de sua infância perseguindo-o até o fim:
Antigamente tu moravas num cortiço Pra pagar o prestamista fazias um rebuliço
Hoje tu tens palacete e avião Mas quem te deu tudo isso?
Mas diga aqui entre nós: Quem foi que te deu tudo isso?
Tu só comias farinha com chouriço
Não tinhas um dente postiço
(Ela:) Tu não tens nada com isso!
Já tens uma dentadura toda de ouro maciço
Mas quem te deu tudo isso?
A embolada, Chuva de vento, é datada
460

pelo próprio Noel: 29 de abril de 1937. Uma quinta-feira em que parece


sentir-se melhor. O bastante ao menos para um reencontro com o humor ingênuo
daqueles dias de Minha Viola e Festa no Céu:
Quem nunca viu
Chuva de vento a fantasia
Vá em Caxambu, de dia,
Domingo de carnaval!
Chuva de vento
Só essa de Caxambu!
Domingo chove chuchu
E venta água mineral!
Um espanhol
Que está me ouvindo desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que abala Caxambu
Esse espanhol
Que na mentira não me apanha
Garantiu que lá na Espanha
Chove bala pra chuchu!
Chuva de vento
É quando o vento dá na chuva
Sol com chuva - céu cinzento,
Casamento de viúva
Zeca Secura
Da fazenda do Anzol
Quando chove não vê sol
Vai comprar feijão no centro
Bebe dez litros
De cachaça em meia hora
Pra agüentá chuva por fora
Tem que se molhar por dentro.
Vento danado
É aquele lá de Minas
Sopra em cima das meninas
Diverte a população
Até os velhos
Vão correndo pras janelas
Para ver se algumas delas
Já usa combinação
Fez sol com chuva
Uma viúva lá da Penha
Disse que não há quem tenha
Tanto pretendente junto
Mas um por um
Dos pretendentes é otário
Pois o vencedor do páreo
Ganha resto de defunto
Quem nunca viu
Chuva de vento a fantasia
Vá em Caxambu de dia
Domingo de carnaval
Chuva de vento
Só essa de Caxambu
Domingo chove chuchu
E venta água mineral!
Um Zé Pau-d'Água
Tem um amigo parasita
Não trabalha e sempre grita:
"Viva Deus e chova arroz!"
Gritando assim
Do seu povo ele se vinga
Viva Deus e chova pinga
Que arroz nasce depois.
Chuva de vento
Muita gente desconfia
Dessa chuva a fantasia
Que eu vi em Caxambu
Se o espanhol Contar a dele não me ganha
Vai dizer que na Espanha
Chove bala pra chuchu!

Na verdade, dois reencontros. Este, da embolada, com os dias já distantes em que


os Tangarás morriam de amores pela música nor destina, e aquele outro, do samba,
com o prestamista. Como se tudo agora fosse vontade de voltar a infância em Vila
Isabel, aos primeiros passos como compositor, a tudo mais. Mas Noel sabe que já
é tarde. Nenhuma volta é possível. E entre tantas marcas deixadas nestas folhas
461

de caderno escolar - os versos, as datas, o carimbo, as letras caprichosamente


desenhadas - ele inclui mais uma, algo macabra, numa das páginas em que passou a
limpo
Chuva de Vento: uma cruz negra, pequena, feita a lápis.
No sábado, 1? de maio, sente-se realmente melhor. Sai do quarto, conversa com os
outros hóspedes. Alguém sugere, a ele e a Lindaura, um passeio na manhã de sol.
Por que não uma visita ao sistema hidrelétrico de Ribeirão das Lajes? Fica aqui
pertinho, na Serra das Araras, num dos distritos de Piraí. Há muito para ver no
caminho,
o campo, as árvores, o gado pastando. Sem falar na represa, na usina, naquela
obra que, embora feita pelos canadenses da Light, enche de orgulho os habitantes
do
município. Noel e Lindaura aceitam a sugestão. Visitam o imenso reservatório,
ficam sabendo que há ali mais de setecentos milhões de metros cúbicos de águas
vindas
pelos leitos do Paraíba do Sul, do Piraí e do Ribeirão das Lajes. Decidem
conhecer de perto a usina, construída lá embaixo, no vale. Têm de tomar o
bondinho que
desce, em trilhos de bitola estreita, da estaçãozinha da represa. No caminho, um
vento úmido começa a soprar, invade o bondinho, castiga os passageiros. Noel,
com
arrepios, pede a Lindaura para voltarem.
Na pensão, o frio parece ainda mais cortante. Está com febre, vai direto para a
cama. De noitinha, outra melhora aparente. Volta à escrivaninha, rabisca alguma
coisa,
pára, deita-se de novo. Lindaura está a seu lado, deitada também. Alonso
Guimarães tinha razão, Piraí é um lugar sossegado. Tão logo a noite cai, um
manto de escuridão
e silêncio envolve ruas e casas. Por volta das nove horas, Lindaura quase
pegando no sono, Noel debruça-se sobre ela na tentativa de alcançar o abajur na
mesinha
de cabeceira do outro lado. Tudo se passa muito depressa, Lindaura sentindo
sobre o rosto um líquido denso e quente, Noel tateando no escuro sem achar o
interruptor.
Há desespero neste gesto. Ainda sem entender o que está havendo, a própria
Lindaura acende a luz. É tomada de pânico ao ver o marido sentado, o sangue a
escorrer-lhe
pela boca, as mãos levadas à garganta como se algo o asfixiasse. Numa
inexplicável presença de espírito, empurra o corpo dele para trás, enfia-lhe o
indicador goela
adentro, tira de lá um enorme coágulo que impedia Noel de respirar. E grita:
- Socorro! Meu marido está morrendo!
Todos acordam na pensão. Os que vão até o quarto ficam impressionados com o que
vêem, a cama coberta de sangue, o rosto de Lindaura também. E Noel deitado,
imóvel,
respiração fraca. Alguém corre atrás de um médico. Quantos existirão neste fim
de mundo? Lindaura permanece ao lado do marido. Alice Guimarães e Jurema tentam
ajudar
como podem. O médico chega, examina o doente.
- Uma hemoptise. Coisa séria. Chama Lindaura a um canto e adverte:
Noel não pode continuar aqui. Não há recursos na cidade, ninguém garante que
outra crise desta não seja fatal. O melhor é levá-lo de volta ao Rio. Amanhã
mesmo.
Que se chame um táxi de modo a que viaje no maior conforto possível. Sim, coisa
muito séria, acentua o médico.
O táxi pára na porta da pensão. Lindaura tem as duas mãos presas ao braço magro
do marido. Alice Guimarães e Jurema, todos os hóspedes vão levar até a calçada o
casal que se despede. Há no ar um pressentimento que ninguém ousa mencionar, o
silêncio no lugar de tudo, até mesmo no das lágrimas que Lindaura abafa na
garganta.
Mas o silêncio dura pouco. Logo a atenção de todos é atraída pelo movimento no
interior da pensão. Dona Alice e os empregados começam a arrastar para fora o
colchão
ensangüentado. Nem sequer esperam que Noel e Lindaura entrem no carro.
- Depressa! Depressa com o querosene! O colchão é estendido na calçada. Dona
Alice se incumbe ela mesma de despejar em cima uma lata inteira. Tira do bolso
uma caixa de fósforos. Os olhos miúdos de Noel a seguem. Dona Alice acende um
fósforo,
atira-o sobre o colchão, uma fogueira lança ao céu labaredas que fazem brilhar o
rosto de quem está perto.
- Santo Deus!- exclama uma das hóspedes. - Nem esperou ele ir embora. Que falta!
As palavras da hóspede parecem despertar Lindaura, que se deixa tomar de
repentina fúria:
- A senhora não tem coração, é perversa, uma bruxa!
Noel segura o braço de Lindaura:
- Deixa, Linda. Deixa... Seus olhos estão vermelhos:
- Não tem importância.
Nem agora o sofredor resignado admite, enfim, que algo importa. Senão a vida que
levou, pelo menos a vida que começa a perder. Os empregados lavam o Chão com
creolina.
Lindaura arranca a vassoura da mão de um deles.
- Desapareçam daqui!
Dona Alice entra na casa e volta. Traz os travesseiros já sem as fronhas sujas
de sangue.
- Os travesseiros, não!- grita Lindaura. E os tira das mãos da mulher. Lembra-se
das recomendações do médico, Noel precisa viajar com todo o conforto. Com os
dois travesseiros, procura tornar mais macio o banco de trás do táxi,
acolchoando carinhosamente
o corpo magro do marido. Noel, ofegante, entra
462

ajudado pelo motorista. Antes que o carro parta, ele deixa escapar um sorriso
triste para os que ficam. Talvez sua forma de dizer que jamais voltará a vê-los.
A viagem para o Rio, apesar de tudo, é boa. O motorista sabe exatamente quem é o
passageiro do banco de trás.
- Fique tranqüilo, seu Noel. O senhor vai ficar bom. Ainda tem muito samba pra
fazer.
Noel finge concordar. Conversam sobre sambas e automóveis. O motorista procura
não correr, evita os buracos, toma cuidado para que os solavancos não incomodem
Noel
Rosa.

é domingo, 2 de maio. O chalé está vazio. Martha, Hélio, Arlinda, ninguém


esperava que voltassem hoje. Quando Martha chega, assusta-se com a luz acesa no
quarto
do casal. O susto não tarda a ser substituído pela aflição, assim que Lindaura
lhe fala da terrível noite de véspera, a hemoptise, o sufocamento.
Dr. Edgar Graça Mello é chamado. Tenta tranqüilizar as mulheres:
- Vai melhorar com o repouso. Guarda a franqueza para uma conversa à
parte com Hélio:
- Está muito mal. Acho que é o fim. Estende-lhe uma caixa de Canphydral
injetável:
- Isso alivia. Ajuda a respirar.
A segunda-feira é de sol. A noite de repouso, como Edgar previa, fez bem ao
doente. Noel sente-se forte o bastante para levantar-se, caminhar pela casa,
acomodar-se
na cadeira de balanço que Hélio coloca no lado de fora, perto da porta lateral
do chalé. É ainda o irmão quem traz para ali o velho rádio Philips de alto-
falante
tipo corneta, lembrando o gramofone onde o pai se deliciava com os discos de
Caruso. Daquela boca sai um som alto, estridente, de programas radiofônicos que
Noel
acompanha interessado. É assim que Arnaldo Araújo vai encontrá-lo, de passagem
pelo chalé a caminho do trabalho. Ouviu dizer que o amigo está muito mal, mas
acha
que talvez tenham exagerado. É sincero:
- Você está com bom aspecto, Noel.
Conta que já marcou a data do casamento, acabou de alugar casa aqui perto, pois
nem de longe pensa em sair de Vila Isabel. Os dois conversam, Noel falando com
dificuldade,
mas falando. Arnaldo anima-o. Promete voltar no domingo, acompanhado da noiva.
- Se você vier aqui no domingo, Arnaldo. .. acho que não vai mais me encontrar.
Aos olhos de Marília e Henrique Baptista também não parece tão mal. Os dois o
visitam, ficam alguns momentos conversando sobre música. Henrique fala de suas
últimas
composições com a irmã. Noel pergunta se já pensaram em gravar a sua favorita, o
samba-canção Nunca Mais:
Nunca mais eu hei de amar como te amei Nunca mais hei de querer como te quis...
Depois, exibe um olhar desconsolado e trocadilha:
-Ah, Henrique, teu amigo agora... nunca mais!
Outro que não consegue perceber o verdadeiro estado de Noel é Fernando Pereira,
seu companheiro nas tardes do Casé. Após visitá-lo neste mesmo dia, despede-se
de
dona Martha no portão.
- Até que eu o achei bem.
- Não temos ilusões - diz ela, voz mansa e conformada. - Sabemos que é grave.
De qualquer forma, mesmo de sol, é sombria para Noel esta segunda-feira. Em
algum momento, entre a viagem de carro de Piraí para o Rio e esta tarde passada
na cadeira
de balanço, apático, entregue, ouvindo o rádio, pensando em morte, surgiu nele a
consciência de que sua hora está mesmo próxima. Olha para Lindaura, movido por
tardia
compaixão:
- Eu nunca quis fazer você sofrer...
Ela não guarda, jamais guardará rancor dele. Quer apenas que fique bom. Noel
sorri. Ficar bom? Sua hora está mesmo próxima. Pra que mentir? Por ironia,
Carioca acaba
de chegar às bancas com a reportagem feita dias atrás, intitulada "Noel Rosa não
morreu". Boato desmentido, verdade adiada: Noel Rosa está morrendo.
A manhã de terça-feira, 4 de maio, não é tão ensolarada. O doente passou a noite
saindo de sonos leves, breves, para freqüentes crises de dispnéia. Lindaura,
paciente,
velou por ele. Bem cedo, pede para voltar à cadeira de balanço, mas Martha não
concorda. Quando muito, depois que os alunos se forem, poderá ficar na sala da
frente,
olhando a rua, as pessoas que passam. Noel ainda encontra forças para alargar,
com as próprias mãos, um buraco na velha parede. Transforma-o no seu periscópio.
Cola
o rosto no estuque frio, posiciona o olho no buraco e espia a rua - derradeiro
olhar. Lá fora, garotos fazem algazarra. Um gari retardatário passa com sua
carroça.
Noel não resiste. Arquejante, quase sem voz, revive os antigos tempos e grita:
- Burro-sem-rabo! Burro-sem... Derradeira travessura. Martha e Lindaura
acham melhor levá-lo para a cama. Edgar tinha razão, é preciso repouso, qualquer
excesso causando-lhe desconforto no peito. A mãe manda que não se mexa. Já não
desobedece,
está sem forças, mal pode falar.
463

é quase noite. As pessoas que entram e saem do chalé o fazem na ponta dos pés,
comunicam-se por sussurros. Em frente, no 385, acertam-se os últimos detalhes da
festa
que Vicente Gagliano - o Vicente Sabonete das serenatas de antigamente - faz
questão de dar pelo aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a mesa de doces,
fura-se
o bolo com as quarenta velinhas, manda-se entrar o chope. Heitor Bateria - um
negro alto e magro, tocador de pandeiro, surdo e tamborim, cuja jazz band
costuma alegrar
as festas do bairro em troca apenas de comida e bebida - chega com seus músicos.
Os convidados também. Pouco depois de oito da noite, a casa de Vicente Sabonete
está cheia e animada.
O silêncio e a penumbra do chalé contrastam com a barulhenta e iluminada
residência em frente. Alguns amigos vêm ver Noel, entram devagar, olham da porta
do quarto
para o corpo consumido, cansado, a palidez disfarçada pela pouca luz. Depois se
afastam em silêncio, trocam palavras com dona Martha e Hélio, saem como
entraram,
mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato Baptista, bons amigos, estão entre as
visitas cautelosas. A dança na casa de Vicente Sabonete fica mais animada, a
música
se espalha, todos homenageando Emília. Dorica, que não perde uma festa nas
vizinhanças, desta vez faz diferente: vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor de
ferver
a seringa. O filho está prostrado, talvez uma injeção o reanime. A música
atravessa a rua, chega até o chalé.
- Seu Vicente, ouvi dizer que o Noel está muito mal aí defronte-alguém avisa,
voz baixa, ao dono da casa.
Vicente Sabonete manda um de seus filhos saber se é verdade. Talvez a música
esteja incomodando o doente. Dona Martha diz que não, a música nunca incomodou
Noel,
seu Vicente que se tranqüilize, que prossiga com a festa. Heitor Bateria comanda
compenetrado a sua jazz band. É ele quem sugere, como próximo número, um samba
de
Noel Rosa:
De babado, sim Meu amor ideal Sem babado, não
Noel, provavelmente, já não ouve. Tem a cabeça pousada no colo de Lindaura, os
olhos semicerrados. Dorica ferveu a seringa, Hélio vai até a sala buscar a caixa
de
Canphydral. No por tão, Martha despede-se de Orestes e do Dr. Renato. Do outro
lado, a música continua:
Passeando a meu lado Você sobe de valor Seu vestido sem babado
É você sem meu amor
(É assistência sem doutor...)
Hélio prepara a injeção, Dorica vem da cozinha com uma xícara de café bem
quente. Noel, a cabeça no colo de Lindaura, parece dormir um sono calmo,
profundo. Um fio
de respiração é todo o vestígio de vida que há nele. Por pouco tempo, porém. A
mãe já se despediu das visitas e está agora de pé à porta do quarto. Chega a
tempo
de ver aquele fio de respiração se extinguir. Pouco antes das onze da noite, no
mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte e seis anos, quatro meses
e
vinte e três dias, morre Noel Rosa.
Cometas e outros corpos celestes passam ligeiros deixando em seu rastro um mundo
de superstições. Foi assim com o Halley naquele 1910 e volta a ser assim com o
Hermes
neste 1937. Vinte e seis anos e alguns meses separam os rumores apocalíticos
inspirados na passagem de um e de outro. Tempo de uma vida, ainda que curta como
a de
Noel Rosa. Quando ele nasceu, falava-se no fim do mundo. A mesma coisa agora, os
jornais abrindo espaço para que cientistas, profetas e loucos digam o que
pensam.
Assis Valente - com quem Noel conviveu em muitas noites da Lapa - chegará a
converter tais rumores num samba que será sucesso no próximo carnaval. O
primeiro carnaval
sem Noel Rosa:

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar


Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar
E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso lá no morro nessa noite não se fez batucada...

Será que alguém associa a morte de Noel Rosa, esta pequena tragédia carioca, aos
maus presságios que cercam a vinda do Hermes? É mais certo que não. Mas é em
clima
de grande confusão que são vividas, no chalé, as horas entre a morte do
compositor e seu sepultamento. A casa é literalmente invadida por amigos,
vizinhos, curiosos,
gente de rádio, estranhos. A imprensa se mobiliza. Um jovem repórter, David
Nasser, avisado por Marino Pinto, acorda fotógrafo e motorista do plantão
noturno de
O Globo e vão todos correndo para a Theodoro da Silva no Ford 37 que Roberto
Marinho acaba de comprar para dar velocidade e aparência à reportagem do jornal.
Ao
voltar, David terá dificuldade para convencer o secretário de redação, José
Maria Pereira, de que o assunto merece a primeira
465

página. Sua matéria de dez laudas será reduzida a dez linhas(2). Já outros
repórteres não precisam convencer ninguém de que a morte de Noel Rosa é um
acontecimento
na vida da cidade. Nestor Moreira, por exemplo. Sem pedir autorização a nenhum
chefe, corre para o chalé. É furão, ousado, daquele atrevimento que tanto pode
levar
um cavador de notícias a conseguir grandes manchetes como a ter penosos
dissabores (daqui a alguns anos, ele próprio, furão, ousado, atrevido demais,
acabará morrendo
nas mãos de um investigador violento, o Coice de Mula, a quem desacatará numa de
suas reportagens policiais). Nestor talvez seja o que mais acintosamente
"invade"
o chalé. Tira de gavetas e armários tudo que pode encontrar para uma boa
reportagem sobre o compositor morto: manuscritos, letras de música, partituras,
fotos, desenhos.
A família, atordoada, só se vai dar conta na semana que vem, quando ler as duas
páginas dedicadas a Noel Rosa por A Noite Ilustrada. Ainda bem que alguém se
lembrou
de guardar Este Álbum, tirando-o das mãos ávidas do Nestor.
Aracy de Almeida e Benedicto Lacerda, sem saberem de nada, chegam com a prova do
disco que gravaram há duas semanas na Victor: Eu Sei sofrer e O Maior Castigo
Que
Eu Te Dou. Ficam perplexos. Ouvem, como todos, relatos imprecisos sobre os
últimos momentos de Noel:

As outras mortes do poeta


"O cantor querido do povo carioca expirou ao som do samba De Babado de sua
autoria. Foi a sua última vontade. Pressentindo a sua hora final, Noel Rosa, que
ouvia
os acordes de uma orquestra próximo à sua residência, pediu que tocassem uma de
suas composições. Transmitida a solicitação, a família vizinha atendeu. E o
cantor
do morro e da cidade, que guardava o leito desde algum tempo, atacado de
pertinaz enfermidade, ficou atento à música. Em dado momento, a esposa e a
progenitora do
compositor notaram que uma lágrima corria pela face do enfermo. Era o fim de
Noel Rosa que cerrava as pálpebras para sempre. Um colapso cadíaco punha termo
àquela
existência."
O Globo
5 de maio de 1937
"Noel Rosa expirou, vitima de atroz dispnéia, pouco depois das 23 horas de
ontem. Seu estado, embora despertasse cuidados por parte da família, não era de
gravidade
assustadora. Por isso, a surpresa dolorosa que tomou os seus depois do
desenlace.
Assistiram-no sua genitora e seu irmão Hélio Rosa, também artista de rádio.
Expirou serenamente, não obstante a moléstia pulmonar. Pouco antes, mandou que
um irmãozinho
fosse à residência de uma família amiga, bem próxima à sua casa, à rua Theodoro
da Silva 385, onde havia festa, para que tocassem uma música sua. O garoto ao
chegar
lá ouviu os primeiros compassos do grande êxito de Noel Rosa: De Babado.
Pouco depois, o compositor falecia, ao som longínquo da música. Quando a triste
nova chegou à festa, todos correram à casa onde expirara o príncipe dos
compositores populares."
Diário da Noite
6 de maio de 1937
"Noel Rosa, o conhecido compositor e cantor de rádio, faleceu ontem à noite
vitimado por uma síncope cardíaca.
O artista, que residia à rua Theodoro da Silva 382, achava-se na ocasião em uma
festa na casa de uma família amiga sita à mesma rua n? 385. Havia grande alegria
na casa e o cantor e compositor tinha começado a cantar um samba de sua autoria
quando foi acometido do mal súbito, extinguindo-lhe a voz nos lábios e a vida
também."
Jornal do Brasil
5 de maio de 1937
"O compositor Noel Rosa, que se encontrava doente há tempos, quando cantava um
samba inédito na casa de uma família amiga foi acometido de uma síncope cardíaca
falecendo
repentinamente."
A Manhã
6 de maio de 1937
"O autor do O X do Problema estava doente há meses. E descansando em Friburgo,
chegara há três dias. No sanatório em que estava, sentiu saudades do morro e
seus
fãs. Veio porém para durar poucos dias. E anteontem morreu de um colapso
cardíaco. Conversava com a sua progenitora e com a sua esposa quando a morte
chegou."
A Nação
6 de maio de 1937
466

"Estava nos braços da mulher", "Não, nada disso, parece que cantava um samba",
"Morreu batucando na mesinha de cabeceira", "Ouvi dizer que estava na festa da
casa
em frente". Até o atestado de óbito, assinado pelo amigo Edgar, tropeça numa
imprecisão. Hora da morte: dezesseis e trinta. O declarante, o sempre próximo
Álvaro
de Castro, dirá isso para que não se tenha problemas com a Santa Casa da
Misericórdia, muito exigente nestes dias quanto a só se fazer o sepultamento 24
horas após
o falecimento. Uma grande confusão. O noticiário dos jornais e tudo que se
escrever depois sobre o assunto refletirão essa mistura de lenda e realidade,
destino
afinal de todo grande personagem, seja ele um vulto
da História, seja um poeta do povo. A todos, Martha repete a sua versão, singela
e sucinta:
- Morreu como um passarinho.
As carteiras da sala de aula são afastadas. Sobre quatro delas improvisa-se uma
mesa. Em cima, coloca-se o caixão de pinho barato, o único que a família pôde
comprar
(um dinheiro recolhido durante o velório por gente do rádio, com o intuito de
ajudar nos funerais, desapareceu das gavetas da cômoda de Martha, impossível
saber,
neste entra-e-sai, nos bolsos de quem). O corpo será velado durante toda a
madrugada e parte da tarde de quarta-feira, 5 de maio. Martha tem esperanças de
que Carmem,
o marido e os filhos cheguem a tempo de
467

Belo Horizonte. Não quer que o enterro seja antes das cinco.
Os que passam pelo caixão nunca esquecerão este último olhar. Noel, o corpo
mirrado, exaurido pela doença, quarenta quilos no máximo, tem a aparência de um
menino.
Apesar dos olhos encovados, dos ossos salientes, dos fios de barba ruiva no
queixo torto. É um rosto sem vida, mas sereno. Vestiram-no com um terno branco,
a gravata
borboleta de que tanto gostava, os sapatos fantasia. Pela manhã, esta roupa
desaparecerá sob as flores com que Martha, Lindaura, Arlinda, Nilda, Heloísa,
Dorica,
Emília enfeitarão o caixão. Um quadro que se repete nos velórios do bairro:
enquanto bocas masculinas falam do morto, sempre bem, mãos femininas o cobrem de
rosas,
cravos, palmas e saudades.
É um estranho velório. Exatamente como a integradora democracia dos botequins de
Vila Isabel, que Noel freqüentou desde garoto, reúnem-se aqui pessoas das mais
importantes
famílias do bairro, os artistas mais conhecidos do rádio, as figuras mais
representativas da vida mundana da cidade. E ao lado delas, chorando mais que
todos, compositores
de pés descalços, bêbados em raro instante de sobriedade, mendigos como o Bela
Idéia, sambistas humildes como o Osso, que não tardará a fazer aquele que talvez
seja
o primeiro samba em memória de Noel Rosa:

Havia grande festa em meu barraco


Quando a noticia do fato
Veio o morro entristecer
Era o filósofo Noel
Que Vila Isabel acabava de perder...
Constrangimento geral
De luto o morro ficou
Samba ninguém mais cantou.
Tu não te lembras do filósofo,
Sambista por excelência?
Quero esquecer e não posso
Dos seus sambas de cadência
Mas viverá eternamente na história
Aquele que em samba foi bacharel
Deus te conceda o reino da glória
Ó, inesquecível Noel!
Uma primazia que pode ser discutida por Cartola, o amigo Cartola, que também
faz, ainda sob o impacto da notícia, um samba para Noel:
A Vila emudeceu Dolorosamente
chora O que perdeu
Ninguém é imortal
Morrer é natural Ó, Deus, perdoa
Se é que estou pecando
Que mal lhe fez a Vila
Que lhe estás torturando?
Era o rei da filosofia
Fez da musa o que queria
Zombou da inspiração
Os seus versos ritmados
Por ele mesmo cantados
Tinham bela entoação.
Na Vila onde ele morava
Todos os seres cantavam
As glórias do seu poeta
Hoje a Vila é triste e muda
Ao bater Ave-Maria
Quando a aurora desperta.
Pouco importa, porém. Seja qual for o primeiro - Inesquecível Noel o A Vila
Emudeceu-tão duas homenagens sentidas, que talvez nenhum outro compositor da
cidade mereceria
desses humildes, quase anônimos, mas admiráveis sambistas do morro.
Uma confusão. As quatro e meia, o chalé está intransitável. Ary Barroso fica
incumbido pela classe de dizer algumas palavras sobre o amigo e parceiro.
Promete que
o fará, de improviso, à beira da sepultura. Mas tem pressa. Acha que o velório
está se prolongando demais, gente e mais gente chegando atraída pelo noticiário
dos
jornais e das rádios. Faz menção de fechar o caixão, no que é contido por
Martha.
- Por favor, seu Ary. Estamos esperando nossa irmã de Minas.
Armênio Mesquita Veiga se põe do lado de Martha. Corta com uma palavra firme os
argumentos de Ary para que se feche o caixão já.
- Ela é a mãe do Noel. Tem esse direito. Mas Carmem não chega e pouco antes
das cinco o caixão é fechado. Fica decidido que o cortejo fúnebre será a pé até
a matriz de Nossa Senhora de Lourdes. Dali seguirá de carro até o cemitério de
São
Francisco Xavier, no Caju. Pelas mãos de amigos, o corpo de Noel é levado por
Theodoro da Silva, Souza Franco, Ponto de 100 Réis, Boulevard. Um caminho tantas
vezes
percorrido por ele, desde os tempos de menino. As casas comerciais baixam suas
portas, o botequim do Carvalho encerra o expediente, pessoas choram à passagem
do
caixão.
Mais uma confusão: pretendia-se que o corpo fosse levado até o altar em que a
menina Bernadette está ajoelhada diante da visão da Virgem de Lourdes, para ali
ser
encomendado por um dos sacerdotes. Mas monsenhor Jayme Sabba Batistoni manda que
se fechem as pesadas portas de madeira para que o cortejo não entre na igreja.
Por
quê? Há gente demais, explica o
468

vigário. Arma-se uma discussão, a multidão pedindo que se abram as portas,


Batistoni irredutível. No máximo, concorda em benzer o caixão, dali mesmo, da
escada.
Uma chuva miúda molha os caminhos de terra do cemitério. Há muita gente aqui,
parentes, amigos, cartazes da música popular. Francisco Alves não veio, detesta
enterros,
é supersticioso, acha que morte atrai morte. Mas vieram Mário Reis, Lamartine
Babo, Almirante, César Ladeira, Marília Baptista, o pai e os irmãos,
Pixinguinha, Celso
Guimarães, Patrício Teixeira, Horestes Barbosa, Benedicto Lacerda, Vadico,
Orlando Silva, Nássara, Christovam de Alencar, Nuno Roland (o soldado 415
daquela noite
em Porto Alegre, hoje realizando seu sonho de cantar no rádio, já no castda
recém-fundada Nacional), João de Barro e Alvinho, Jayme Britto, Aracy de
Almeida, Joel
& Gaúcho, representantes da Mangueira e do Salgueiro, os irmãos Barbosa, os
irmãos Petra de Barros, um grande elenco de amigos.
A cova é rasa e fica ao lado de uma árvore copada numa das alamedas do fundo.
Ary Barroso faz o discurso prometido, de improviso, eloqüente, por vezes
inflamado.
Tão inflamado que, num movimento mais brusco de braços, perde o equilíbrio,
escorrega na terra molhada e por pouco não cai dentro da sepultura. Discurso que
só não
será esquecido porque o zelo e as habilidades taquigrãficas de Armênio Mesquita
Veiga o passarão para o papel. Logo o Armênio, que quase briga com Ary na
confusão
do chalé.
Há mesmo muita gente aqui. Uns se aproximam da sepultura, atirando lá dentro sua
pá de cal. Outros, ao contrário, ficam de longe. Como a dama de tailleur escuro,
a aba do chapéu a cobrir-lhe os olhos, que aproveita a semi-escuridão do
cemitério para não ser notada. É Ceei. Por que terá vindo? Pensa na madrugada
que passou
em claro, bebendo, chorando sem parar, depois que alguém se aproximou dela no
Caverna e disse:
- ONoel, Ceei... -Já sei!
- ... morreu agora há pouco.
Pensa também nas duas palavras meio sem sentido que deixou escapar baixinho,
como se ditas para si mesma:
- Pronto... acabou.
Sem sentido porque, afinal, tudo parecia ter acabado há algum tempo, naquele
adeus feito de escusas e silêncios. Por que só agora ela admite o fim
definitivo, como
se apenas o irremediável da morte pudesse sepultar o velho amor? Haveria em seu
coração uma oculta esperança de que ainda pudessem se reencontrar numa dessas
esquinas
que o destino costuma pôr
no caminho das pessoas? Não sabe dizer. Sabe apenas que acabou. Sente isso
enquanto vê, olhos úmidos, as pessoas se comprimirem sob a chuva em torno do
caixão de
Noel.
Clara também não veio. Ficou em casa, trancada no quarto para que ninguém lhe
visse as lágrimas. Fina está longe. Casou-se, saiu do Rio, só vai saber da morte
do
ex-amor daqui há meses. Julinha e as outras, onde andarão?
Coberta de terra a cova rasa, começa-se a sair do cemitério. A alameda principal
é margeada por árvores frondosas. Daria gosto apreciá-las se suas sombras não
abrigassem
tantas perdas. As pessoas, em grupo, ainda falam do amigo que acaba de se ir.
Cada qual tem uma definição mais ou menos fácil para este personagem de suas
vidas:
um boêmio, um sambista, um poeta. É destino dos poetas morrer na flor da idade,
lembram uns. O maior compositor brasileiro de todos os tempos, dizem outros. O
Bernard
Shaw do samba, acrescenta alguém. Um humorista ou um filósofo? Um gênio.
Especula-se: a morte do pai e as desilusões amorosas teriam lhe abreviado a
vida? Ou terá
sido o queixo defeituoso, impedindo-o de alimentar-se direito, a causa de tudo?
Era um sujeito alegre. Não, era um triste.
Lado a lado, pela mesma alameda, vão Eduardinho e o Dr. José Rodrigues da Graça
Mello. Pensativos, num silêncio que o primeiro quebra:
- Sabe, Graça Mello, acho que ele próprio causou a sua morte.
Novo silêncio. O médico que o ajudou a nascer, naquele domingo ensolarado de
1910, pensa no menino que acaba de enterrar nesta quarta-feira chuvosa:
- Não, Eduardo. Noel apenas viveu a vida que quis viver.

"O desenlace ocorreu inesperadamente, quando no seu leito e na presença de sua


esposa, genitora e diversas outras pessoas, cantava o samba De Babado Sim."
Monitor Juvenil
maio de 1937
"Por volta das 21h30m, enquanto dona Martha e Lindaura, no portão, se despediam
de amigos da família, seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira, notou que o doente
abria os olhos, esgazeadamente. Parecia querer dizer algo. E como Hélio lhe
indagasse o que sentia, Noel respondeu em voz quase imperceptível:
- Estou me sentindo mal. Quero virar para o outro lado...
O irmão o ajudou. Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu para a
mesinha de cabeceira, em cujo tampo, como que obedecendo a um tique nervoso,
ficou batendo
pancadas surdas, ritmadas, esmorecendo, ralentando. Por fim, a mão de Noel
quedou imóvel.
Estava morto o maior compositor de samba do Brasil."
Almirante
No Tempo de Noel Rosa
"Conta-se muita história por aí, tudo mentira. Noel Rosa, pode escrever no seu
livro, morreu nos meus braços. Sim, nos meus braços."
Bucy Moreira depoimento aos autores
4!
O adeus de Ary
rt Sn'
"Noel, meu amigo!
Desejo dizer a você o meu adeus. Éramos colegas e rivais. Colegas porque
estávamos no mesmo caminho e rivais porque éramos os garimpeiros do mesmo
garimpo, em busca
do mesmo brilhante, do mesmo diamante azul da glória. E hoje, Noel Rosa, eu me
despeço de você dizendo: morrer assim até é glória. Porventura você era pobre
como
eu, como seu colega, e talvez muita gente que anda aí por cima não possa receber
nesse momento doloroso essa consagração e essa saudade espontânea de todos que
aqui
viemos trazer o nosso adeus doloroso a você, glorificando a sua inspiração
maravilhosa, o trajeto glorioso de sua inteligência espontânea pelo caminho
vário e duvidoso
da vida.
Eu que conheci você tocando violão no Bando de Tangarás e que depois me
encontrei com você novamente já vitorioso, já na boca do povo, já na boca do
Brasil que eu
entendo, eu, Noel Rosa, nunca poderia supor que viesse a ter esta dolorosa
oportunidade. Seu retrato saiu ontem num jornal dizendo que "Noel Rosa não
morreu". Foi
uma profecia. Você estava com os olhos abertos, mas hoje continua para todos nós
com os olhos abertos e mais vivos ainda, porque a morte destrói o corpo, mas tem
a grande ventura de constituir a imortalidade. E você a merece porque era
grande; pequenino era assombro; sendo modesto era inexcedível. Pode ir, Noel, é
o nosso
destino. Mas vai com essa grande satisfação de ter deixado na terra somente
amigos, somente admiradores, somente colegas. Adeus!"
Ary Barroso
palavras a beira do túmulo
470

Noel Rosa: Uma Biografia


NOTAS
1. Carioca, 1? de maio de 1937.
2. "Noel Rosa nasceu depois da morte", artigo de David Nasser, Manchete, 13 de
fevereiro de 1971 (página 111).
3. A Noite Ilustrada, 11 de maio de 1937 (páginas 15 e 16).
471

POSTERIDADE

Capítulo 46

Meus inimigos Que hoje falam mal de mim


Vão dizer que nunca viram Uma pessoa tão boa assim
Fita Amarela

Primeiro as lágrimas, depois o esquecimento. A Noel Rosa parecia destinada a


mesma posteridade de quase todos os artistas populares brasileiros - muito
pranteados
assim que se vão, mas tendo sua vida e sua obra, pouco a pouco, tragadas pela
areia movediça do tempo. Parecia, apenas. Porque a história, na verdade, tornou-
se
outra.
Primeiro as lágrimas. Muitas e sempre tocantes foram as homenagens que se
seguiram à noite de 4 de maio de 1937. Como a missa de sétimo dia celebrada às
onze da
manhã de terça-feira, 11, na matriz de São Francisco de Paula. A mesma igreja em
cujas escadas Noel um dia adormecera, sendo então confundido com um mendigo,
piedosos
fiéis madrugadores depositando esmolas em seu chapéu de palhinha (ver Capítulo
26). Mais de trezentas pessoas assinaram o livro de presença, nem metade das que
estiveram
lá. Martha e Lindaura ajoelhadas lado a lado, Hélio, Eduardinho, Odette, os
Graças Mello, os Brandões, os Boamortes, amigos, parceiros, astros e estrelas do
rádio,
muita gente. E também Arlirio. depois recordaria: "Uma missa linda. A mais
bonita cerimônia religiosa a que já assisti." Linda, principalmente, pela
música.
Assim que soube onde seria, Arnold Glückmann procurou o vigário da paróquia de
São Francisco de Paula para pedir-lhe favor muito especial: autorização para que
músicos
da Rádio Club do Brasil executassem durante a missa uma peça litúrgica que o
próprio Glückmann estava escrevendo.
- Que tipo de peça litúrgica?
O maestro explicou que seria uma breve suíte para orquestra de câmera,
construída a partir de fragmentos de sambas de Noel. O vigário franziu a testa,
preocupado.
Sambas de Noel Rosa na igreja de São Francisco? Por que não Bach, Handel,
Schubert? Glückmann tratou de tranqüilizá-lo : a música haveria de ser adequada
ao lugar
e à ocasião, séria, solene, grave, respeitosa, um preito de saudade ao amigo e
parceiro Noel.
- Muito bem, muito bem. Mas pelo amor de Deus, maestro: o samba, o ritmo de
samba, o senhor disfarce o mais que possa.
Assim, com citações a Nuvem Que Passou, Palpite Infeliz, Com Que Roupa?, Quem Ri
Melhor e Estamos Esperando, além da indefectível Marcha Fúnebre, de Chopin,
Glückmann
escreveu a suíte que se ouviu durante a missa. Formalmente, nada de que o
maestro pudesse se orgulhar, mas de qualquer modo uma peça capaz de levar muita
gente às
lágrimas. O próprio Glückmann a regeu. Num dos violoncelos,
475

comovido, Homero Dornellas, o Candoca da Anunciação a quem Noel devia a


providencial diferença entre o "Agora vou mudar minha conduta" e o "Ouviram do
Ipiranga às
margens plácidas", lá se iam oito anos.
Muitas e sempre tocantes as homenagens. A missa, os programas de rádio, as
reportagens em jornais e revistas, os poemas, as canções dedicadas a Noel. Dos
programas
de rádio, dois merecem ser lembrados. O primeiro foi ao ar na noite de sábado, 8
de maio, pelo microfone da PRE-8, Rádio Nacional. Oduvaldo Cozzi - que ainda não
era o "professor" dos modernos locutores esportivos brasileiros, mas apenas um
speaker bastante influenciado por César Ladeira - foi o apresentador, lendo com
voz
bonita e dicção perfeita uma crônica que Carioca reproduziria dias depois1:
"Pássaros da madrugada, por que vocês andaram cantando na manhã de hoje? Vocês
ainda não sabem que morreu o melhor dos seus irmãos? Por que vocês cantaram de
manhã
cedo, na festa musical de tantos gorjeios, se dentro da noite o próprio canto
chorou na voz do cantor que para sempre emudeceu?
Pássaros da madrugada... Ele também era assim como vocês... Ele também cantava
quando a vida ia chorando pelos caminhos da vida.
Amigos e parceiros, apresentados por Cozzi, falaram de sua saudade: João de
Barro, André Filho, Assis Valente, Alberto Ribeiro. O auditório lotado, a parte
musical
ficou por conta de orlando Silva (Quando o Samba Acabou e Filosofia), Mário
Petra de Barros (AtéAmanhãe Fita Amarela), Cynara Rios (Palpite Infeliz) e Nuno
Roland
(Com Que Roupa? e Feitio de Oração), todos acompanhados pelo clarinete de Luís
Americano e os violões de Pereira Filho e Valzinho Teixeira.
O outro programa - uma hora dedicada a Noel pelo Casé, domingo à tarde, na
Transmissora - teve Marília Baptista à frente de um grupo de cantores que
recordaram Com
Que Roupa?, Fita Amarela, Até Amanhã e
Tarzan, o Filho do Alfaiate
476

. Mas o ponto alto foi quando, voz embargada, Sebastião Fonseca, outro poeta de
Vila Isabel e redator do Lux Jornal, leu seu recém-concluído poema Violões em
funeral,
informando aos ouvintes que Donga prometera musicá-lo. Promessa que afinal não
se cumpriria, os versos só ganhando melodia, de Sílvio Caldas, quatorze anos
depois2:

Vila Isabel veste luto


Pelas esquinas escuto
Violões em funeral...
Choram bordões, choram primas,
Soluçam todas as rimas
Numa saudade imortal!
Entre as nuvens escondida
Como de crepe vestida
A lua fica a chorar...
E o pranto que a lua chora
Goteja, goteja agora
Dos oitis do Boulevard!
Toda a cidade soluça
Comovida se debruça
Sobre o caixão de Noel...
Matriz, Estácio, Salgueiro,
Todo o Rio de Janeiro
Consola Vila Isabel!
Adeus cantor da seresta
Que tinhas sempre a alma em festa
Ainda quando sofrias...
E que, chorando, cantavas
Cantando, filosofavas
Filosofando, sorrias!
Adeus, poeta do povo
Que ressuscitas de novo
Quando na morte descambas...
Sinhô de pele mais clara
No qual Sinhô encarnara
A alma sonora dos sambas!
Adeus, cigarra vadia
Que mesmo em tua agonia
Cantavas para morrer...
Tu viverás na saudade
Da tua grande cidade
Que não te pode esquecer!

No mesmo programa anunciou-se que Casé daria total apoio à campanha que A Noite
acabara de lançar para que se erguesse um busto de Noel em seu bairro. A idéia
era
de Orestes Barbosa e Nássara, que a tinham levado ao português Vasco Lima,
diretor do jornal.
- Um busto?
- Isso mesmo.
- Mas diga-me lá, seu Orestes, este Noel Rosa foi mesmo tão importante que
esteja a merecer busto em praça pública?
- Importante, não. O mais importante!- sentenciou Orestes.
- Muito que bem. Ponham-me isto no papel.
Nássara e Orestes Barbosa escreveram então uma carta que, publicada no jornal,
deu início à campanha. Em menos de uma semana, eram muitas as adesões, amigos,
casas
comerciais, gente do rádio, ex-companheiros de São Bento, admiradores anônimos,
todos mandando dinheiro a A Noite. O escultor Alfredo Herculano, amigo de
Nássara,
aceitou o convite para cuidar do projeto. Não quis nada em troca. Só vira Noel
uma vez e nunca mais esqueceu seu jeito meio aéreo no dia em que fora procurar
Nássara
no jornal em que este e Herculano trabalhavam:
- Não está? -Não.
- A que horas volta?
- Não tenho a menor idéia.
- Então me faz um favor: diga a ele que o compositor do Com Que Roupa? esteve
aqui.
Mas nem todos acharam feliz a idéia do monumento. Álvaro Armando, por exemplo,
protestou em versos em sua coluna Pingos & Respingos3:
A idéia é boa, não nego
Mas - só não vê quem for cego -
Teu busto nada nos diz
Busto ganha toda a gente;
Para Noel, francamente,
Isto é "palpite infeliz"!
E, quatro estrofes adiante:
Que os teus amigos de samba,
Gente boa, gente bamba,
Façam-te um samba, Noel,
Que se espalhe na cidade
Cantando a imensa saudade
Da tua Vila Isabel!
Sugestão que, independente do monumento, muitos compositores e letristas
aceitariam. Como veremos, dezenas de músicas ainda seriam feitas inspiradas em
Noel, lembrando
Noel ou pelo menos citando Noel.
Outro que tentou minar o projeto foi Raymundo Magalháes Júnior, escritor e
jornalista, redator de A Noite, de confessado ódio por Orestes desde o dia em
que este
o apelidou de Caspa Ambulante. Passados cinco meses do lançamento da campanha e
vendo que não se falava mais nela, Raymundo pôs-se a inserir em suas matérias
insinuações
maldosas em torno do dinheiro arrecadado, que supunha estar com o poeta de Chão
de Estrelas. Um tiro pela culatra. Orestes
477

escreveu em resposta: "Não pergunte a mim pelo dinheiro, porque nada sei.
Pergunte aí mesmo, em A Noite, a Vasco Lima." Resultado: o português passou uma
descompostura
em Raymundo pelo atrevimento de pôr em dúvida a honestidade do seu próprio
jornal.
Fato é que bom tempo transcorreria até
que o monumento se fizesse realidade. Só em 18 de agosto de 1938, numa cerimônia
simples prestigiada por alguns cartazes do rádio e da música popular, foi
inaugurado
no centro da Praça Tobias Barreto, no lado mais novo de Vila Isabel. Não era,
como se pretendia de início, um busto. Depois de vários esboços um tanto
ambiciosos,
Herculano acabou optando por algo mais simples: uma pequena coluna de pedra na
qual o escultor talhou o perfil do poeta, um violão e a inscrição "A Noel Rosa -
1910-1937".
Foi ainda sob o impacto da morte - na verdade, dois dias depois-que o
interventor do Distrito Federal, cônego Olympio de Mello, prometeu dar a duas
ruazinhas do
Morro do Livramento os nomes de Sinhô e Noel Rosa. Outra promessa não cumprida,
mais uma homenagem que não se faria sem longa espera: a Rua Sinhô só foi
inaugurada
em 1948, na Consolação, e a Noel Rosa, dois anos depois, quando seu nome foi
dado à antiga Sarií, descampada, sem saída, paralela à Gonzaga Bastos. Portanto,
numa
Aldeia Campista muito mais de Quidinho e Orestes Barbosa que de Noel.
Homenagens. Foram mesmo muitas e sempre tocantes. Modos de a cidade chorar o seu
cantor.
Depois das lágrimas, o esquecimento. Como de fato costuma acontecer aos artistas
populares de um país de frágil memória e permanente sede de novidades, o nome e
a obra de Noel Rosa, nos doze, treze anos que se seguiram à sua morte, foram
sendo pouco a pouco esquecidos. Quem se lembrava deles, por exemplo, nos
primeiros meses
de 1950, quando as vozes de Dick Farney e Lúcio Alves acariciavam jovens ouvidos
fazendo de Ponto Final, de José Maria de Abreu e Jair Amorim, e Amargura, de
Radamés
Gnattali e Alberto Ribeiro, modelos definitivos daquilo que então se chamou de
"moderna música romântica brasileira"? Poucos. O pessoal do meio, velhos autores
e
intérpretes, os saudosistas, mas não o grande público. Deste estavam esquecidos
o poeta e suas canções.
Mesmo naquele maio de 1937 - com todas as homenagens - raros se deram conta do
que a perda de Noel Rosa realmente representava para a
música popular brasileira.
- Sabíamos que era grande, muito grande - lembra Nássara. -
Mas consciência exata de
sua genialidade, na época, só o Orestes tinha.
"Uma perda trágica", dissera Orestes ainda no enterro. Por privar nosso
cancioneiro de seu maior poeta, sua figura mais original, inquieta e influente,
quem sabe
a única capaz de resolver certos impasses estéticos que estavam a caminho. Uma
perda trágica, mas que já no dia seguinte os jornais estariam minimizando para
que
se abrisse espaço à tragédia de proporções maiores, embora mais distante: o
incêndio do Hindenburg, sem dúvida a principal manchete da semana .
Poucos se davam conta, também, de que o próprio mundo em que Noel Rosa vivera
começava a desmoronar sem ele. Como o dirigível em chamas, rápida,
inexoravelmente.
A família, o chalé, o Rio boêmio, a música popular, por motivos vários, nunca
mais seriam os mesmos.
No dia mesmo da missa, Martha reuniu os poucos pertences do filho e desfez-se
deles como se assim pudesse afugentar as lembranças dos últimos anos de
sofrimento.
As roupas para os pobres, o violão para Hélio, o álbum de retratos da família
para o sobrinho Eduardo Nelson, um ou outro objeto para este ou aquele amigo. Os
manuscritos
(cartas, letras de samba, rascunhos das Conversas de Esquina e das operetas
radiofônicas) foram postos num saco de pano e dados a Marília Baptista, junto
com um
dicionário de rimas em cujas margens Noel anotara um punhado de versos. Sábia
decisão a de Martha: Marília passaria os manuscritos às mãos do zeloso Almirante
e
guardaria o dicionário. Anos depois, musicaria alguns versos transformando-os em
dois sambas no mais puro estilo de Noel, tão bem assimilado pela amiga e
discípula.
Um deles é Balão Apagado, o diabo tirando o chapéu para os pecados do boêmio:

Sobe, balão... Sobe, balão...


Por este céu azul sem fim,
Vai dizer ao meu São João
Que não se esqueça de mim
Já mandei um balão com foguete
Levar um bilhete
Ao meu Santo Antônio
E o balão, para fugir do inverno
Entregou no inferno
O bilhete ao demônio!
Satanás respondeu meu recado:
"Balão apagado
Não entra no céu...
No inferno tu serás respeitado,
Tu tens tanto pecado
Que eu tiro o chapéu!
Num balão que a chuva apagou
478

Alguém me mandou
Este triste recado:
"Eu espero ver a tua descida,
No céu da minha vida,
És balão apagado!"

O outro samba tjoão Teimoso, mais um tipo para a galeria de Noel:

Tenho mais o que fazer,


Não discuto com teimoso,
Não posso perder meu tempo.
O meu tempo precioso
É para viver
Tenho mais o que fazer!
João Teimoso é seu nome
Dorme em pé naquela rede
Dá bebida a quem tem fome
Dá comida a quem tem sede
Foge das meninas boas
Diz que prefere as coroas
Quando começa não pára
Este cara cismou com a minha cara
Ficava clara a intenção de Martha de desfazer-se de tudo. Exausta, parava de
lutar. Carmem e Eduardinho, querendo ajudá-la, abriram mão de suas partes no
chalé.
Quem sabe não se poderia construir uma vila residencial em seu lugar, Martha
morando numa das casas e vivendo do aluguel das outras? Afinal, eram onze metros
de
frente por 66 de fundos, um belo terreno. Martha prometeu pensar no assunto.
Mas, Lindaura voltando para a companhia da mãe, Hélio viajando, os irmãos longe,
via-se,
além de exausta, só. Chegou a passar algum tempo com as primas que viviam num
casarão da Duque de Caxias com a Conselheiro Autran, irmãs de Heleno Brandão,
solteironas
apegadas ao seu voto de pobreza. Depois, o chalé fechado como se nele sepultasse
todo o passado (a escolinha acabou,
Martha passando a dar aulas particulares),
479

mudou-se para um quarto no Andaraí, de lá para outro na Rua dos Artistas, na


Aldeia Campista, e por fim para a Corrêa Vasques, no Estácio. Já estava ali, no
lendário
bairro dos sambistas que o filho tanto admirava, quando, examinada pelo Dr.
Jorge Sampaio de Marsillac (marido de Heloísa, uma das filhas do mesmo Heleno
Brandão),
soube-se que o caroço que tinha no seio esquerdo era um
tumor maligno. Apenas dois anos se haviam passado desde a morte de Noel. Se é
que em algum momento Martha pensara seriamente no projeto da vila, a doença a
fazia
desistir de vez. A 10 de fevereiro de 1940, vendia a Othon José Antunes o chalé
modesto que todo o bairro há muito conhecia como "a casa de Noel". Os irmãos não
gostaram. Principalmente Eduardinho, cada vez menos identificado com ela. Nunca
a perdoara pelos comentários feitos a amigos comuns quando, de volta de Bica de
Pedra,
ele decidira ficar com o aluguel do bangalô, que de direito lhe pertencia. Mais
de uma vez Martha desabafara:
- Eduardinho nos deixou praticamente na miséria.
Para ele, injustiça de irmã ingrata. Nunca a perdoara, tampouco por sua ligação
com Álvaro de Castro, "traição à memória" do cunhado e amigo Neca. Por fim, lá
se
ia a casa onde haviam vivido o pai, a mãe, os irmãos, Bella, Neca, Arlinda, as
crianças de Mário Brown, Hélio, Noel. Mas tudo isso agora - como o pouco que
ficara
entre as paredes do chalé - pertencia ao passado. Certa tarde, quando se
preparava para ir ao cinema com uma aluna, Martha sofreu um derrame cerebral. Ao
recobrar
os sentidos, já no Hospital Evangélico da Rua Bom Pastor, na Tijuca, balbuciou:
- Chamem a Arlinda...
A amiga quase irmã, confidente de tantos segredos, a quem dera o primeiro filho
para batizar, veio de São Paulo o mais depressa que pôde. Mas o bastante apenas
para
entrar no quarto, segurar a mão de Martha e vê-la morrer às duas da tarde de 26
de julho de 1940. Para o médico que assinou o atestado de óbito, de
arteriosclerose,
hipertensão arterial, ictus cerebral e colapso cardíaco. Para os de casa, de
câncer. Para os que a conheciam bem de perto, consumida pela vida. Tinha 51
anos.
A família dispersava-se para sempre. Carmem em Minas, Arlinda em São Paulo,
Eduardinho no Rio, morreram cada qual num canto. Hélio, formado em veterinária,
entrou
para o Exército e andou servindo no interior. Mais tarde, retomando tradição que
vinha dos Corrêas d'Azevedo portugueses, mas que o irmão interrompera para ser
"o
Miguel Couto do samba", estudou medicina. Psiquiatria foi a especialidade que
480

escolheu. E ele próprio, como costumava dizer, seu primeiro paciente, a luta
contra a epilepsia não lhe dando descanso. Casou-se em 1938, fez-se pai de duas
filhas,
descasou-se, voltou a casar-se(5).. Jamais deixaria de surpreender e
impressionar as pessoas por suas excentricidades. Durante o velório da mãe, ao
ver grande esperança
pousar no ombro de Marília Baptista, assustando-a, soltou ruidosa gargalhada.
Não parou de rir o resto da noite, feliz da vida. Marília, achando a atitude no
mínimo
estranha, interpelou-o.
- Tenho motivos para estar contente, Marília. Mamãe me disse que, chegando lá
em cima, encontrando-se com Noel e estando tudo bem, me mandaria um aviso. A
esperança
foi o aviso de mamãe.
Até o fim de seus dias não perderia oportunidade de se comparar ao irmão. Mesmo
no consultório, podia pôr Freud momentaneamente de lado para puxar o violão
debaixo
do divã e mostrar ao cliente um velho samba de Noel.
- Veja, era assim que ele se acompanhava.
Em seguida, exibindo suas próprias harmonias para o mesmo samba:
- Me diga agora: qual dos dois é melhor?
Hélio de Medeiros Rosa morreu (ou, como preferiria, "desencarnou") a 15 de abril
de 1974, em Niterói, de um ataque cardíaco.
Lindaura sobreviveu a todos. Casou-se de novo, teve com o segundo marido o filho
que não pudera ter com o primeiro, trocou Vila Isabel por Copacabana. Mas nunca
renunciou à condição de "viúva de Noel", papel que representaria, orgulhosa e
compenetrada, pela vida afora.
As outras musas do poeta também seguiram por caminhos diversos. Julinha,
imitando a Maria Fumaça do samba, sumiu. Fina, como vimos, já estava casada e
longe quando
Noel morreu. Clara também se casou. Suave, discretamente, como era de seu
feitio, tratou de sair de cena: fez tudo para que os curiosos pensassem que seu
namoro
com Noel tinha sido "coisa de criança", há muito esquecida. Nas malhas desta
mentira feita de prudências, constrangimentos e saudades, até o atento Almirante
deixou-se
enredar. Ceei, a inesquecível dama do cabaré, não ficou muito tempo mais com
Mário Lago. Os amores da boêmia, afinal, não foram feitos para durar. Mas não se
esqueceriam
um do outro. Embora ele o negasse, ela seguiria convencida de ter sido a
inspiradora dos versos que, com música de Benedicto Lacerda, correram o Brasil
na voz de
Orlando Silva:
Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado,
Com outro que te encontrou
Este "outro" seria José Antônio de Araújo, que tirou Ceei da noite, casou-se com
ela, ajudou-a a reencontrar o caminho de casa, onde um pai arrependido recebeu-a
de braços abertos. Mas não é este o final feliz de sua história. Um ano e cinco
meses depois do casamento - exatamente no dia em que Noel estaria fazendo 35
anos
-José Antônio morreria intoxicado por uma injeção deteriorada de Necroton na
veia. Ceei voltou a ganhar a vida como antes, cabarés, dancings, casas noturnas
baratas,
no Rio e no interior. Mas conseguiu juntar o dinheiro que lhe permitiu comprar
seu próprio chalé modesto na Vila Kennedy, subúrbio carioca, onde envelheceria
como
professora particular de crianças pobres.
Ceei, como as demais mulheres da vida de Noel, se lembraria dele sempre com
ternura. Musas e exceções num tempo de esquecimento.
Tempo de esquecimento porque tempo de mudanças. Depois da morte de Noel Rosa -
embora não necessariamente por causa dela - o mundo em que ele vivera realmente
desmoronava.
Ou melhor, mudava. A música popular, o Rio boêmio, o Brasil, nada seria como
antes.
A 10 de novembro daquele mesmo 1937, a decretação do Estado Novo aplicava duro
golpe nas esperanças brasileiras de democracia. Uma ditadura populista nos
moldes
do fascismo era importada da Europa por Getúlio Vargas para substituir o regime
de trajes imprecisos
- com que roupa? - que aqui se implantara sete anos antes. Como toda ditadura,
dada a arroubos ufanistas. De repente, segundo a propaganda oficial, além de
gigante
pela própria natureza, o Brasil tornava-se o país do futuro.
Dentro desse espírito (ainda que ingenuamente, sem perceber que servia aos
propósitos da nova ordem que dizia combater), Ary Barroso criaria com a sua
Aquarela do
Brasil uma grandiloqüente novidade: o samba-exaltação:
Brasil, meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos...
Pela mesma trilha logo estariam seguindo outros compositores e letristas
preocupados em exaltar as belezas e riquezas de uma terra abençoada por Deus, um
país muito
diferente do Brasil de tanga de Noel Rosa.
Mas o samba-exaltação, que substituía a sátira e a crítica tão caras ao
poeta de Vila Isabel, foi apenas a primeira - e não a mais importante
- das três determinantes das mudanças que se processariam na música popular
brasileira
481

depois de 1937. As duas outras, a importação da música americana e a exportação


da nossa, conquanto parecessem se opor, eram na verdade partes de um mesmo todo:
o intercâmbio cultural embutido na chamada Política da Boa Vizinhança, criada
pelos Estados Unidos em 1933 e tornada mais intensa e eficaz ao longo da década
de
40.
Em 1939, eclodia a II Guerra Mundial. Antes de entrarem nela - e de levarem o
Brasil a fazer o mesmo, forçando Vargas a romper o flerte que vinha mantendo com
o
Eixo - os Estados Unidos adotaram nova política em relação à América Latina.
Esta imensa extensão de terra, rica e generosa, de solo farto e costa atlântica
estratégica
(o Nordeste brasileiro, por exemplo, sendo o ponto mais próximo de uma África
cobiçada e disputada, localização importante para bases aéreas num momento em
que o
combustível de avião valia mais que ouro), esta imensa extensão de terra, enfim,
precisava ser conquistada. Só que os Estados Unidos de Franklin Dela-no
Roosevelt,
em vez de bombas, canhões e exércitos, empregavam agora arma mais sutil e
eficaz. Conscientes de que povos culturalmente mais vulneráveis eram mais fáceis
de conquistar,
política e economicamente, os Estados Unidos entravam por esta porta. Em nome de
um intercâmbio na realidade unilateral, exportavam para o Brasil sua música,
seus
livros, seu teatro, seu cinema, sua ideologia, e o pouco que importavam era
devidamente adaptado ao seu gosto.
Por exemplo, Carmem Miranda. Com ela - que no Brasil era a Pequena Notável, a
rainha das marchinhas, a cantora que tinha it, mas que os americanos não
tardariam
a transformar na Brazilian Bombshell, uma figura quase caricata com suas baianas
estilizadas, seus tamancões, seus turbantes abarrotados de bananas e abacaxis,
seus
gestos espalhafatosos que nada tinham a ver com o samba - iniciou-se nova fase
na música popular brasileira, a segunda determinante das mudanças que se fariam
de
modo irreversível: a fase do sonho de conquista da América. Carmem realmente
conseguiu realizar o seu. Levada pelo empresário
Lee Schubert, começou fazendo ponta em show da Broadway e acabou como uma das
mulheres mais bem pagas de Hollywood. Até ali, nenhum brasileiro, dentro ou fora
da
música, fizera tanta fama e dinheiro no exterior.
A partir de então, muitos se deixaram embriagar pelo mesmo sonho, anos mais
tarde objeto de minucioso, documentado e polêmico estudo assinado por José Ramos
Tinhorão'.
Com maior ou menor êxito, mas sempre tendo de amoldar sua arte aos gostos de lá,
também tentaram fazer a América inúmeros seguidores de Carmem: o Bando da Lua
que
a acompanhava e os Anjos do Inferno, Laurindo de Almeida e Garoto, o agitado
Russo do Pandeiro, ao lado de quem Noel vivera a deliciosa aventura do Gente do
Morro,
e o equivocado Cândido de Arruda Botelho, a quem o Departamento de Imprensa e
Propaganda, o temível DIP da ditadura Vargas, mandou à América para divulgar não

nossas canções, mas certa fantasia de mamoeiro, desenhada por Santa Rosa a
partir de detalhes de trajes típicos de todo o Brasil, das bombachas do gaúcho
ao chapéu
de couro do cangaceiro. Um sonho que a muitos atraiu, inclusive ao ufanista Ary
Barroso, contratado para escrever música de filmes e até de uma peça da
Broadway,
Pedro Song, jamais encenada. E também ao talentoso Vadico, que viajou com a
orquestra de Romeu Silva, incorporou-se ao grupo de Carmem e mais tarde serviu
como pianista
e arranjador à companhia da bailarina negra Katherine Du-nham. Sonhos, enfim,
muito diferentes do que poderia alimentar, olhos e corações voltados para a
realidade
à sua volta, o poeta Noel Rosa.
A terceira determinante é sem dúvida a mais importante: a cultura que os
americanos exportaram às toneladas desde fins dos anos 30 e que recrudesceria,
já no pós-guerra,
através do mesmo "intercâmbio" patrocinado pela Comissão Coordenadora dos
Assuntos Interamericanos, do Departamento de Estado já agora do governo Harry
Truman, política
esta a cargo do magnata americano Nelson David Rockeféller. Se o samba-exaltação
e a necessidade de adaptar nossas coisas ao sabor americano já haviam, por
motivos
vários, provocado mudanças, esta terceira determinante não seria menos que uma
revolução: mudaria literalmente tudo, os hábitos, os valores, a moda, o
comportamento,
a cultura, o Brasil.
Na música popular, os sons vindos da América ecoavam mais alto que quaisquer
outros. Através dos filmes, dos discos, dos programas de rádio retransmitidos
aqui,
entre os quais o célebre Your HitParade, ganhavam a cada dia novos adeptos.
Enquanto nos Estados Unidos muitos intelectuais reagiam, nos anos 40, ao excesso
de importação
do que consideravam "bizarrias latino-americanas" (o venezuelano Carlos Ramírez,
o mexicano Tito Guízar, os Lecuona Cuban Boys, os rumbeiros do espanhol Xavier
Cugat
e até mesmo a brasileira Carmem Miranda), a ponto de um deles ter escrito uma
protest song que os próprios brasileiros aprenderiam a cantar pelo Your Hit
Parade...
Take back your samba,
Ai, your rumba,
Ai, your conga... Ai, ai, ai!8
482

enquanto lá alguns reagiam, aqui a música popular americana era sinônimo de


bom-gosto, em oposição ao samba e a outros gêneros brasileiros mais
tradicionais.
O cinema e o disco nos punham em contato permanente com as orquestras de
Glenn Miller, Jimmy e Tommy Dorsey, Benny Goodman, HarryJames, Artie Shaw, Woody
Herman. E como nunca se dançara tanto quanto nos Estados Unidos daqueles dias,
dançar
também virou mania brasileira. Nas festas em casas de família, nos clubes, nos
bailes de formatura, nas noites de debutantes. Em pouco, tínhamos também nossas
próprias
big bands, a Tabajara de Severino Araújo, a de Oswaldo Borba, a do maestro
Carioca, a de Napoleão Tavares e seus Soldados Musicais. Todas, naturalmente, de
acordo
com o figurino americano9. Numa época em que os principais intérpretes de música
popular brasileira baixavam a guarda
(Mário Reis aposentando-se cedo, Luís Barbosa morrendo pouco depois de Noel,
João Petra suicidando-se, Orlando Silva consumindo-se nas drogas, Sílvio Caldas
preferindo
pescar e garimpar a cantar profissionalmente, Castro Barbosa trocando a música
pelo humorismo, Francisco Alves empostando a voz e deixando-se seduzir pelas
versões,
Marília Baptista casando-se e afastando-se, Almirante
dedicando-se mais ao rádio que ao disco, isso para citar apenas os intérpretes
de Noel Rosa), os crooners americanos entravam mais facilmente no mercado
brasileiro.
Foi ainda através do cinema e do disco que BingCrosby e Frank Sinatra chegaram
para ficar, fazendo fàs e, como as big bands, seguidores. Destes, os principais
foram
os já citados Dick Farney e Lúcio Alves, que depois de também tentarem realizar
o seu sonho americano acabaram ficando por aqui e estabelecendo, com Ponto
Final,
Amargura e outros sambas-canções na mesma linha, os modelos da "moderna música
romântica brasileira": intimista, lenta, de suaves contornos melódicos e
sofisticadas
harmonias, mas de letras simples e em geral queixosas, ditas com as inflexões de
Bing e Frank, estes sim os verdadeiros modelos. Canções, afinal, nada parecidas
com as do nacionalista e anti-romântico Noel Rosa.
Dick Farney era bem o símbolo do jovem brasileiro de então, embora já estivesse
às vésperas dos trinta. Chamava-se na verdade Farnésio Dutra e Silva, filho de
um
velho chorão de Santa Teresa e ele próprio um pianista que já apreciara o choro
e o samba tradicional: "Eu era aluno do São Bento e costumava, todas as tardes,
à
saída do colégio, passar pelo Nice só para ver e uvir Noel, Pixinguinha,
Orestes, Lamartine, Alberto Ribeiro, Chico Alves, os grandes da época."10 Os
novos tempos,
porém, levaram-no a mudar. De
nome, de música, de estilo, a voz parecida com a de Bing Crosby, o fraseado
idêntico ao de Frank Sinatra. Da mesma forma, Lúcio Alves, excelente cantor
saído da
escola das serestas, rompia com o passado e abraçava a nova estética.
Mudava também o Rio boêmio. A Lapa, ao contrário do que diria o samba, nunca
mais voltaria a ser a Lapa. Um chefe de polícia moralista e zangado, o coronel
Alcides
Gonçalves Etchegoyen, não se limitava a perseguir bicheiros e estudantes que
combatiam o nazifascismo, operários insatisfeitos e opositores do regime.
Enquanto estivesse
no cargo, de julho de 1942 a agosto de 1943, empreenderia histórica cruzada
contra a prostituição e tudo aquilo que considerava contrário aos bons costumes.
Fechava
as pensões de ruas como a Taylor, ajoaquim Silva, a Conde de Lajes, investia
contra mulheres e homossexuais que transitavam em torno da "fatia de queijo",
resolvia
tirar da Lapa a fama de bairro do pecado. Batidas freqüentes roubavam a paz dos
cabarés. Prendiam-se homens, fichavam-se mulheres. A velha freguesia da Lapa dos
poetas, pintores, músicos e políticos, gente boêmia que coexistira com os
lendários Camisa Preta, Miguelzinho, Edgar, Saturnino, Joãozinho, foi mudando de
ares.
Botequins e restaurantes famosos - o Siri, o Bahia, o Leitão, o Capela, o
Indígena, o Danúbio, o 49, o Viena-Budapeste, o Lords, o Gruta do Frade, o Café
Club de
que Noel tanto gostava - foram perdendo clientela e, um após outro, fechando
suas portas.
A boêmia mudava de pouso, tomava o caminho do mar. Saía da Lapa e da Cinelândia,
dos arredores da Central e dos subúrbios longínquos, para se instalar em
Copacabana,
novo bairro que crescia para além do túnel. Mudava de pouso e de clima, a
penumbra das boates substituindo as luzes dos cabarés. Uma boêmia mais íntima e
refinada,
regada a uísque escocês e embalada por chorosa música romântica. A partir de
fins dos anos 40 - coincidindo com um pós-guerra que ampliaria a cidade para a
Zona
Sul - a boêmia instalava-se definitivamente nas boates. E se é verdade que cada
boêmia tem a música que lhe é apropriada - os morros com seus sambas sentidos,
os
subúrbios com suas rodas de choro, a Lapa com seu cosmopolitismo barato, a Vila
com seus botequins - a Copacabana de 1950 cantava as canções de Dick Farney e
Lúcio
Alves".
É verdade que Vila Isabel não mudara tanto. Ainda guardava vestígios da "grande
família" de que falava vó Rita, o mesmo espírito de vizinhança, a mesma
solidariedade.
Um bairro residencial de classe média, fábricas de
483

um lado, casas novas do outro, o Boulevard no meio, correndo como um rio por
entre margens contrastantes. Mas já não era o grande "celeiro", deixara de ser o
bairro
musical dos tempos dos Tangarás.
É verdade, também, que ali, mesmo nos anos de esquecimento, todos se lembravam
de Noel. Mas um Noel mais personagem, mais mito que compositor. Os velhos
moradores,
em especial os boêmios, quando se reuniam nos botequins para conversas e
cervejas, falavam de Noel sempre com carinho, mas pareciam mais interessados em
contar-lhe
as histórias do que em cantar-lhe os sambas. Os sambas saíam de moda; as
histórias, não. E os mais jovens, os que vinham chegando, aprendiam a admirar o
poeta sem
lhe conhecer a poesia.
Noel Rosa tornou-se realmente uma espécie de mito no bairro. Quase tudo que se
ligava ao seu nome tinha sabor de anedota. Ou de lenda. Como naquela manhã de
1946
em que os moradores da Tobias Barreto se depararam com a praça vazia, apenas um
buraco onde até a véspera estava o monumento a Noel. Uns telefonaram para os
jornais,
outros chamaram a polícia. Quem o teria roubado? Quando os repórteres de A Noite
chegaram, representantes que eram do órgão que encampara a idéia de Nássara e
Orestes,
havia uma multidão no centro da praça. Um dos moradores apontava para os lados
da Mangueira:
- Na certa foi o pessoal do morro.
E explicava que os negros lá de cima viviam dizendo que Noel era mais da
Mangueira do que daquele lado meio grã-fino da Vila. Talvez, naquelas horas, o
monumento
já estivesse em frente a uma birosca do Buraco Quente. Outros acreditavam que
algum vizinho, apaixonado pelas músicas de Noel, tivesse carregado o bloco de
pedra
para o próprio quintal. Afinal, o bairro estava
cheio de doidos. Mas não. Antes do fim da tarde o mistério se desfez: a
Prefeitura do Distrito Federal, sem avisar a ninguém, decidira levar o monumento
para a Praça
7, que agora se chamava Barão de Drummond. Vila Isabel não mudara tanto, mas
mudara.
Aos poucos, arrefecera-se a rivalidade en tre o Cara de Vaca e o Faz Vergonha,
este, nos dias de carnaval, desfilando com um estandarte oval onde se via o
retrato
de Noel pintado por humilde artista do bairro. As batalhas de confete já não
eram as mesmas. Nem as do Boulevard, nem as do Maracanã, todas em extinção. Só
os blocos
resistiam, embora menos animados, sem rixas e principalmente sem os
improvisadores de antigamente. Foi em homenagem a Noel Rosa que surgiu, na
década de 40, novo
bloco que nada tinha a ver com as emulações entre o Faz
Vergonha e o Cara de Vaca. Era o Unidos de Theodoro, que em seu primeiro desfile
cantou:
O orgulho que eu tenho na vida
Fica na vila querida
Onde morava Noel
Salve Unidos de Theodoro,
Orgulho de onde eu moro!
Salve Vila Isabel!
O mesmo bloco, a cada ano, lembrava seu patrono. Afinal, poeta que nasceu, viveu
e morreu na rua que lhe emprestava o nome:
Vila, terra querida,
Foi lá onde eu nasci
De lá vem o samba
Terra de gente bamba
Berço do grande Noel...
A vila toda emudeceu
No dia em que Noel Rosa morreu.
Emudecer, propriamente, não. Mas quase. Do velho "celeiro" pouco restava agora,
a Vila se fazendo menos e menos musical. Assim como a boêmia se deslocara da
Lapa
e dos subúrbios para Copacabana, a música popular se fora para o outro lado do
túnel.
Neste tempo de mudanças - e de peculiar "intercâmbio" cultural - parecia mesmo
não haver lugar para Noel Rosa. De 1937 a 1949, os anos críticos de
esquecimento,
apenas dezenove gravações foram feitas de composições suas. E cinco delas -
Último Desejo, Século do Progresso e Rapaz Folgado, todas com Aracy de Almeida,
e Pastorinhas,
com Sílvio Caldas e logo depois com a Orquestra Odeon - aconteceram praticamente
em meio ao impacto de sua morte. Além das três primeiras citadas, das dezenove

mais quatro tiravam do ineditismo obras que Noel deixara engavetadas: Pra Que
Mentir?, novamente com Sílvio, De Qualquer Maneira, com Deo, Silêncio de um
Minuto,
com Marília Baptista, e Pela Décima Vez, de novo com Aracy. O restante foram
regravações, menos ou mais representativas, de Feitiço da Vila (Namorados da Lua
e Orquestra
Tabajara), Palpite Infeliz (Carolina Cardoso de Menezes), Queixumes (Luís
Gonzaga e Carlos Galhardo), Pastorinhas (Aurora Miranda) , Pierrot Apaixonado
(Fernando
Alvarez), João Ninguém (Aracy de Almeida), Último Desejo e Século do Progresso
(ambas com Isaurinha Garcia).
Enfim, tratando-se de discos, dezenove gravações em doze anos, Noel Rosa era
quase um desconhecido, com pelo menos três dezenas de composições inéditas à
espera
de quem as lançasse. Em 1950, só com muita sorte encontrava-se um disco seu nas
lojas. Desconhecido e raro. Em uma palavra: esquecido.
484

As lágrimas, o esquecimento, a redescoberta. Em 1950 - e mais uma vez se


menciona este ano-chave - Aracy de Almeida cumpria vitoriosa temporada na boate
Vogue. A
moça do Encantado, que antes cantava para as mulheres de Noel nos prostíbulos
baratos da Central e que dizia como se fossem seus os versos de
O X do Problema ("Palmeira do Mangue não vive na areia de Copacabana..."), tinha
agora novas e elegantes platéias. Artistas e grã-finos, intelectuais e
políticos,
uma seleta clientela, que podia pagar sem reclamar o que o Barão
von Stucker cobrava por uma dose de uísque, ia vê-la e ouvi-la todas as noites à
luz pouca do Vogue.
Aracy estava melhor que nunca. A voz continuava anasalada, o ouvido ainda podia
pregar-lhe algumas peças, mas a intérprete amadurecera. Cantava com bossa os
sambas
mais ligeiros e com sentida emoção os que falavam de amor, saudade, desilusão,
sofrimento:
Quem é que já sofreu mais do que eu? Quem é que já me viu chorar?
Os anos a haviam convertido numa das maiores intérpretes de música popular
brasileira. Em seu repertório, Noel, muito Noel. Um Noel Rosa que os grã-finos
só agora
conheciam. E aprendiam a admirar. No dia seguinte, iam às lojas em busca de
discos seus na voz de Aracy. A exceção de um - Pela Décima Vez de um lado, João-
Ninguém
do outro - estavam todos fora de catálogo. A procura aumentava. Alguns se
espantavam ao saber que certas preciosidades ouvidas ontem no Vogue - como Três
Apitos
e Cor de Cinza - nunca tinham sido gravadas. E que muitas outras havia guardadas
nos papéis de Noel. Como consegui-las?
Foi para atender a essa demanda - que parecia surpreender até o seu diretor
João de Barro, o mais velho dos Tangarás - que a gravadora Continental, a antiga
Colúmbia onde Noel gravara seu imortal Gago Apaixonado, decidia produzir um
álbum
de três discos com Aracy in terpretando Noel. O primeiro no gênero que se fazia
no Brasil, considerado na época um empreendimento audacioso (um disco de 78
rotações
por minuto custava vinte cruzeiros, o álbum seria vendido a oitenta). Com capa
de Di Cavalcanti (o que aconselhara Noel a desistir dos desenhos), textos de
Lúcio
Rangel e Fernan do Lobo, arranjos de Radamés Gnattali - o mesmo que criava os
backgrounds para os sambas-canções de Dick Farney e Lúcio Alves. Radamés era
músico
de raro talento, criativo, avançado, com ambições às salas de concerto e alguma
intimidade com ojazz. Foi a ele que mister Evans, o homem forte da Victor, no
começo
da onda das big bands, havia praticamente ordenado:
- Ouça estas orquestras, maestro. É assim que eu quero.
Radamés, que até então conseguira o milagre de produzir um som elaborado e ao
mesmo tempo brasileiro para o acompanhamento orquestral de cantores (do que as
gravações
de Orlando Silva, na década de 30, são ótimos exemplos), modernizaria Noel Rosa,
adaptando-o à sonoridade da época. O álbum - reunindo Conversa de Botequim,
Palpite
Infeliz, Feitiço da Vila, Último Desejo, O X do Problema e Não Tem Tradução -
foi lançado perto do Natal, coincidindo com o que seria o quadragésimo
aniversário
do poeta de Vila Isabel. Um sucesso. Tão espetacular que, menos de dois meses
depois, a Continental não só partia para a reprensagem de todo o álbum como já
pensava
no segundo. Que sairia em maio com mais seis reencontros: PraQue Mentir?,
Silêncio de um Minuto,Feitio de Oração, Três Apitos, Com Que Roupa?'e O Orvalho
Vem Caindo.
Outro sucesso. Noel Rosa,
de repente, brigava por um lugar nas paradas com Dick e Lúcio, Frank e Bing, as
big bands, os boleros de Gregório Bar rios, o baião que acabava de virar moda.
Pouco depois, já entrando na era do LP, duas novas gravadoras, a Rádio e a
Musidisc, seguiam as pegadas da Continental. A primeira tirava do recesso
Marília Baptista
para que também ela revivesse Noel. A segunda tentava uma réplica de Aracy &
Radamés, unindo a voz morena de Horacina Corrêa aos sofisticados arranjos de Leo
Peracchi.
Dois projetos igualmente bem-sucedidos. Ao mesmo tempo, a partir do êxito do
primeiro álbum da Continental e às vésperas do lançamento do segundo, animado
pelo que
começava a se transformar numa vitoriosa arqueologia em torno de Noel, Almirante
iniciava, na noite de 6 de abril de 1951, pelos microfones da PRG-3, Rádio Tupi
do Rio de Janeiro, uma série de programas semanais, No Tempo de Noel Rosa, em
que fazia desfilar depoimentos, histórias, personagens, músicas, muitas delas
até então
inéditas, que vinham revelar inúmeros traços da personalidade e do talento do
amigo e parceiro. Mais um sucesso. Almirante, que ao longo dos anos se firmara
como
o mais competente produtor do rádio brasileiro, brilhava como nunca. Autor do
script, ele próprio funcionando como apresentador, mestre de cerimônias, guia e
intérprete
de várias canções, dava com seus programas verdadeiras aulas de rádio, pelo
ritmo, pela dinâmica, pelo equilíbrio entre texto e música. Apresentada nas
noites de
sexta-feira, a série ficaria no ar por cinco meses. E forneceria a Almirante
material para a biografia em
485

capítulos que a Revista da Semana publicaria de outubro de 1952 a janeiro de


1953. Com seus programas, seus escritos, as palestras que nos anos seguintes
realizaria
pelo Brasil, o velho líder dos Tangarás tornava-se dos maiores responsáveis pela
posteridade de Noel Rosa.
Fato isolado em 1950, esta redescoberta acabaria, já pela metade da década,
incluindo-se em contexto mais amplo: o movimento de retomada e revalorização da
música
popular brasileira tradicional, mantido em várias frentes, na imprensa, no
rádio, nos teatros e boates, no disco. Na imprensa, por estudiosos como Lúcio
Rangel,
primeiro em seus artigos em Manchete, depois com o heróico lançamento da Revista
da Música Popular. No rádio, por produtores como Paulo Tapajós, Renato Murce,
Paulo
Roberto, o forte time da Rádio Nacional e, é claro, Almirante. Nos teatros e
boates, pelos festivais da Velha Guarda, que traziam de volta Pixinguinha e sua
turma,
ou por espetáculos como O Samba Nasce no Coração, de título inspirado em Noel,
mas na verdade reabilitando Ismael Silva, que em 1950 já ressuscitara com
Antonico
e que agora se mostrava mais vivo que nunca. E no disco, por nova política das
gravadoras: ou reeditavam velhas matrizes de Noel Rosa, Francisco Alves, Mário
Reis,
Carmem Miranda, ou levavam de volta aos estúdios, para regravações em alta
fidelidade, o mesmo Ismael Silva, Ataulpho Alves, Moreira da Silva, Manezinho
Araújo,
Jorge Fernandes, Aurora Miranda, J.B. de Carvalho, Orlando Silva, Lamartine
Babo, Sílvio Caldas, a Velha Guarda. E também Marília Baptista, sempre fiel a
Noel, tirando
do ineditismo sambas lindos como este Remorso:

Remorso todos nós temos na vida


Para marcar a quadra dolorida
Que não se pode olvidar
Remorso muitas vezes é saudade
Da infelicidade
Que não se soube aproveitar
Remorso é acompanhar o enterro
De um grande erro
Que não se pôde consertar
Remorso é sonhar acordado
É sentir no presente o passado
É ver nas trevas um vulto
Que ameaça descobrir o segredo mais oculto
Remorso é aquilo que tu sentes
Perto de alguém na hora em que tu mentes
Com sutilezas sem fim
Remorso é veneno em poesia
E eu hoje em dia
Vivo com ódio até de mim
Eu sofro com pena do teu remorso
E muito me esforço
Para não ter tanta pena assim.

Mas o movimento morreria com a década, afogado em mais um mar de novidades


musicais, umas boas, outras não, umas importantes, outras descartáveis, mas
todas se opondo
ao tradicionalismo, às chamadas raízes ("Quem tem raiz é mandioca", responderia
à crítica mais nacionalista o compositor e cantor Gilberto Gil, apóstolo de
algumas
das novidades que a próxima década traria). Espantoso, porém, é que desta vez
Noel Rosa sobreviveria. Os velhos nomes da música popular brasileira, empurrados
novamente
para o passado, voltavam a ser "velhos". Ele, morto havia mais de vinte anos,
permanecia jovem.
O que vem depois já é parte do presente. Nas duas últimas décadas, a permanente
juventude de Noel Rosa continuou afinada com a alma e as coisas de sua gente.
Pode
ser que seja justamente este o seu segredo: ter escrito em forma de samba a
tragicomédia carioca dos anos 30, para e sobre uma desgraçada população
marginal, o boêmio
triste e a mulher da vida, o malandro e o lumpen, o homem do povo e o credor que
o persegue, e mesmo assim ser compreendido e sentido para além de seu tempo e
lugar
- os temas de sua poesia, de sua intuitiva filosofia de esquina, sendo no fundo
comuns a todos nós, habitantes de um país não só de tanga, mas absurdo. A
propósito
de Feitiço da Vila, disse Paulo Mendes Campos:"... era através do regional que o
samba passava a buscar o universal." O que talvez se aplique ao conjunto da obra
de Noel. Mais do que jovem, intemporal. Mais do que da Vila, de todos os
lugares.
Fato é que, nestas duas últimas décadas, a popularidade de Noel Rosa - mais o
prestígio que a popularidade - não parou de crescer. Não há aniversário de
nascimento
ou morte em que seu nome não seja lembrado pela grande imprensa, às vezes em
reportagens de página inteira. Já inspirou meia dúzia de livros, além deste que
o leitor
tem em mãos. Virou programas de rádio e televisão, filmes e peças de teatro,
recitais e shows em casas da moda, universidades e praças públicas. É mais
gravado agora
do que nos anos que se seguiram à sua morte. Dezenas de compositores e letristas
já lhe dedicaram canções (na verdade, não há personagem, na música ou não, tão
cantado).
Tem sido, também, objeto de estudos, interpretações, análises, teses, debates e
- por que não? - polêmicas.
Quem primeiro pensou em escrever um livro sobre Noel Rosa foi José Lins do Rego.
Em entrevista ao semanário Diretrizes, a propósito
486

de seu roteiro para o filme O Dia É Nosso, que acabaria não saindo do papel,
revelava:
*- Mas eu ainda não escrevi o argumento que sempre imaginei escrever: aquele que
contasse a vida deNoelRosa. A vida de Noel Rosa dá um filme formidável, cheio de
pitoresco e poesia. Ainda faço isso. Aliás, o que tinha vontade era de escrever
apropria biografia de Noel. Infelizmente não sou a pessoa indicada para isso.
- Quem é o indicado?
-Marques Rebelo ou Prudente de Moraes Neto. Ambos são cariocas, conhecem
perfeitamente o espírito da cidade e já conviveram com elementos ligados a Noel
Rosa. Se
não me engano, Prudente de Moraes Neto foi mesmo um dos amigos de Noel. Marques
ou Prudente podem escrever um belo livro sobre a vida do nosso maior sambista."
E, finalizando, diz José Lins:
"- Para mim, Noel Rosa foi verdadeiramente genial!"12
Nem José Lins, nem Marques Rebelo, nem Prudente de Moraes Neto. Quem realizou a
empreitada, quatorze anos depois, foi Jacy Pacheco, o primo Jacy. O mesmo que
Noel e o Gente do Morro haviam conhecido em Campos em 1932 (o mesmo também que,
segundo
Ceei, a culpara pelos pulmões doentes do amante). Em 1955 vinha à luz Noel Rosa
e Sua Época, escrito com carinho, de poeta para poeta:
"Cheio de ternura, de saudade dele, vou contar o que sei. As palavras serão
simples e claras. Uma história para se guardar no coração.
Era uma vez uma cigarra boêmia, cantora das madrugadas..."
Um livro sincero e enternecido, mas polêmico. Por algumas imprecisões (Hélio
Rosa fora praticamente a única fonte do autor) e por revelar um Noel
politicamente mais
engajado do que se sabia:
"Aproveitando aquele instante em que não havia ninguém próximo de nós, Noel se
referiu aos meus versos, lembrando que eu era filho de um ferroviário escravo do
capitalismo
inglês (Leopoldina Railway), que eu ganhava no banco o mesmo salário que meu pai
ganhava
487

na estrada de ferro. Por isso eu deveria escrever poemas de fundo social,


falando da operária da fábrica, que sem meias vai pro trabalho..."
As imprecisões Jacy tentou corrigir algumas num segundo livro, O Cantor da Vila,
lançado três anos depois, mas não foi o bastante. Das críticas que sofreu, as
mais
contundentes partiram de Almirante, que não só se dizia revoltado por terem
"pintado Noel como um comunista", como também acusava Jacy Pacheco de ter-lhe
plagiado
os programas de rádio e as reportagens da Revista da Semana. E foi justamente
com base neste material que Almirante lançou o seu livro, No Tempo de Noel Rosa,
em
1962. Corrigindo imprecisões de Jacy e cometendo as suas próprias (a música
popular é armadilha na qual costumam cair os pesquisadores mais cuidadosos) .
Outros
livros viriam depois - um cordel de Jacy, um estudo crítico de João Antônio, uma
tese de Jorge Caldeira - fazendo de Noel o nome mais focalizado na bibliografia
brasileira de música popular.
Cinema, teatro, rádio e televisão. O longa-metragem com que sonhou José Lins do
Rego ainda não foi feito. Consta que já esteve nos planos do excelente Nelson
Pereira
dos Santos. E que é projeto há anos acalentado por Rogério Sganzerla. Assim, por
enquanto, a filmografia sobre Noel se limita a dois curtas menos ambiciosos, um
de Gilberto Santeiro, outro do mesmo Sganzerla. Já a produção teatral, vida e
obra de Noel como pontos de partida, tem sido bem mais expressiva, embora o
poeta continue
à espera de que alguém lhe faça um musical como os ingleses já dedicaram ao seu
Noel Coward, os franceses ao seu Maurice Chevalier, os americanos ao seu Cole
Porter.
Se os programas de rádio são as melhores revisitas feitas ate aqui ao homem e
compositor Noel Rosa (além da de Almirante, houve pelo menos uma série de
qualidade,
produzida e apresentada por Paulo Tapajós, em 1987, na Rádio MEC), o mesmo não
épossível dizer-se da televisão, sempre teimando em glamourizar Noel, em
modernizá-lo,
em adaptá-lo aos padrões hoLlywoodianos do nosso vídeo. A não ser por uma ou
outra colagem tentada por emissoras mais modestas como as da Rede Educativa (um
Noel
mais em preto e branco, porém menos deformado), os especiais televisivos a ele
dedicados não têm passado de caras e desastrosas extravagâncias. Noel Rosa
parecia
adivinhar em 1935: quando a televisão chegasse, já nao estaria aqui para vê-la.
Os recitais, os espetáculos em casas diversas, universidades e praças públicas
têm sido muitos e quase sempre bons. Marília e Aracy, enquanto puderam,
apareceram
em vários deles. Mas quase todo o mundo, de Sílvio Caldas a
CaEtano Velloso, tem incluído Noel em seu repertório. Espetáculos muitos e quase
sempre bons, desde os da linha defendida a partir de 1975 pelo conjunto carioca
Coisas Nossas, o didático intercalado à farsa e à surpresa (a surpresa tanto nos
sketches como nas canções, em geral pouco conhecidas ou inéditas), mas a música
procurando não fugir à sonoridade dos anos 30, até a linha do grupo paulista
Rumo, mais moderna, eletrificada, mas nem por isso distanciada da irreverência e
do
humor de Noel.
Antes tão esquecido, o nome do poeta está hoje em toda parte. Na rua da
Aldeia Campista e numa travessa perto da Praça 7, nos letreiros de casas
comerciais do bairro e na escola pública construída num dos cantos do antigo
jardim zoológico
do Barão. Nome dado ao edifício que ocupa o lugar do chalé e ao túnel que une
Vila Isabel ao Jacaré. Nome nos vários monumentos em sua memória, o bloco de
pedra
talhado pelas mãos de Alfredo Herculano, a placa na fábrica de tecidos
convertida em supermercado ("Ao Poeta da Vila, Noel Rosa, que, entre tantas
canções inesquecíveis,
celebrizou esta casa com a sua obra musical
Três Apitos, a nossa mais sincera homenagem - Centro Comercial Boule-vard"), o
painel na parede do Petisco, o busto comemorativo do cinqüentenário de morte,
inaugurado
na estreita calçada que divide o Bou-levard 28 de Setembro em dois, bem em
frente à Rua Rocha Fragoso. Chama-se Noel Rosa o clube dos baloeiros que
enfeitam o céu
da Vila nas frias noites de junho. Nome que tanto pode estar em lugares nada
poéticos, como os anúncios do Classifone, a lista telefônica de assinantes do
Rio ou
o novo Café Nice, arremedo do antigo, como estar também em letras de música.
Além de Cartola, Osso, Sílvio Caldas, Sebastião Fonseca e os sambistas dos
blocos carnavalescos
do bairro, muita gente boa seguiria a sugestão de Álvaro Armando e faria samba
para Noel. Ou pelo menos citando seu nome. Como o "inimigo" Wilson Baptista. De
parceria
com Waldemar Gomes em Quero um Samba:
Diga para o dono do baile
Que nós queremos sambar
A noite inteira sem tocar um samba
Nem parece que estamos no Rio,
A terra de Sinhô e o berço de Noel...
Ou juntando forças com Ataulpho Alves em Terra Boa:
Terra de Santos Dumont Carlos Gomes, Ruy Barbosa,
Grande Duque de Caxias, Castro Alves, Noel Rosa...
488

No lugar do chalé está hoje o Edifício Noel Rosa. (Arquivo dos autores.)
A lista dos que homenagearam Noel em canções é longa - e sempre se corre o risco
de não estar completa. Além dos já citados, fazem parte dela Ademir Jacaré,
Adilson
Bispo, Alcebíades Nogueira, Alcebíades Barcellos (Bidê), Alcides Gonçalves,
Arlindo Marques Jr., Armando Cavalcanti, Armando Fernandes, Armando Marcai, Arnô
Provenzano,
Augusto Flávio Bru-netti, Baden Powell, Caetano Velloso, Carolina Cardoso de
Menezes, Chico Buarque de Hollanda, Cipó, David Nasser, Dida, Diógenes, Dora
Lopes,
Dunga, Evaldo Ruy, Fábio de Luca, Fernando Lobo, Fernando Pimenta, Flavinho
Machado, Flávio Soares, Gemeu, Grande Othelo, Heraldo Farias, Herivelto Martins,
Hervê
Cordovil, Jayme Bochner, joão Nogueira, Jorge Canuto, Jorge de Castro, José
Ribeiro, Jota Albertino,
Klécius Caldas, Lamartine Babo, Lino do Vai-Vai, Martinho da Vila, Maysa, Moacyr
Mangueira, Monarco, Moreira da Silva, Nássara, Nelson Cavaquinho, Ney Silva,
Oswaldinho
da Cuíca, Otolino Lopes, Paulinho Corrêa,
Paulo Soledade, Portinho, Roberto Roberti, Rodolpho, Rubens Silva, Tião Pelado,
Tolito, Trambique, Vadico, Vinicius de Moraes, Waldemar Ressurreição, Walli
Salomão,
Wilson Falcão e Zé Roberto.
Cantado por milhares de vozes nos dias de carnaval. Vozes da escola do seu
bairro no desfile de 1975:
Noel, és amor, és poesia, Tua Vila, carnaval Cantando nostalgia...
Ou no de 1982:
De azul e branco, Por este mundo sem fim, Lembrando Noel Rosa Eu vou cantando
assim
Ou vozes da vizinha - e tão cara a Noel - Estação Primeira:
E nas noites suburbanas A luz colorindo o céu... E na Vila eu ouvi Melodias de
Noel
Nome sempre lembrado, também, nos concursos de trovas promovidos pelo Grêmio
Artístico e Literário Vila Isabel. Nesta:
Ao coração tu nos fala,
Bairro de Vila Isabel,
Não pelas glórias e galas,
Mas pela voz de Noel
Ou nesta:
Vila Isabel, doce e terna,
O teu samba tem mais brilho:
Ganhaste a glória materna
Por ser Noel o teu filho
Cantado em prosa por Álvaro Moreyra: "Poeta do povo. Não existirá glória mais
pura. O povo ouvia Noel, e o que Noel lhe dava, em palavras e sons, parecia
subir de
todos os corações e se debruçar em todas as bocas. As caras riam se Noel falava
e entoava alegre, choravam se Noel ficava e entoava triste. Depois, no silêncio,
a melancolia, que é o ar do povo, levava Noel para a pequena casa de Vila
Isabel, a mesma melancolia que acompanhava os destinos das mulheres e dos homens
recordando
- Assim... assim... Ele adivinhava as coisas... Nosso Noel..." Ou em versos por
Drummond:
Vem Sinhô, vem Caninha, vem Pixinga e vem João da Baiana e tantos mais, depois
vem Noel Rosa, o samba-jovem,
489

com tristezas urbanas e malícias, tão de mim, de você, de todos nós, a biritar
no botequim da vida quando o amor nos surpreende e nos
derruba.
Ou ainda elevado à condição de símbolo pela fala macia de um de seus sucessores,
Martinho da Vila, que em janeiro de 1987, um ano antes de a Unidos de Vila
Isabel
viver na passarela do samba o seu mais glorioso momento, disse, cheio de
orgulho:
- A Vila sonha com um supercampeonato, mas nunca fez força para ganhar "de
qualquer maneira". O importante pra gente é "fazer bonito". Herança de Noel
Rosa.
A Vila fez bonito. E o sonho se realizou.
O Noel Rosa polêmico são dois, o primeiro deste e o segundo do outro mundo. Em
1954, após viver por quinze anos o seu sonho americano, Vadico voltava ao
Brasil.
Voltava para ficar, mas voltava indignado. E com razão. Desde o ano anterior
seus advogados vinham processando a Continental pela omissão de seu nome como
parceiro
de Noel em Feitiço da Vila e Conversa de Botequim, no histórico primeiro álbum
gravado por Aracy de Almeida. O caso seria resolvido fora dos tribunais, com a
Continental
assegurando a Vadico seus direitos sobre a venda dos discos e comprometendo-se a
corrigir os erros em futuras reedições. Mas teria dois desdobramentos: um,
chamava
a atenção do público para o talentoso Vadico, cujo nome também submergira nos
anos críticos de esquecimento; outro, dava início a uma discussão que punha em
dúvida
a importância de Noel Rosa como compositor. Seria ele tão bom quanto se dizia?
Ou não passava de um grande letrista a depender, sempre, das melodias de seus
parceiros?
Um dos maiores responsáveis pela lenha nesta fogueira seria o produtor e
apresentador de rádio e televisão Flávio Cavalcanti, cujos programas, de gosto
indisfarçadamente
sensacionalista, perseguiam índices de audiência transformando heróis em vilões
e vilões em heróis(13). Contra as acusações de Flávio - de que Noel fora um
esperto
sambista a surrupiar idéias e a ocultar parceiros - ergueram-se, entre outras,
as vozes de Lúcio Rangel e Almirante. A discussão, que ocupou parte do tempo de
rádio
e televisão em meados de 1956, deu em nada. Em pouco Flávio Cavalcanti tentava
outro alvo: mostrar que mau letrista era o grande compositor Ary Barroso.
O Noel Rosa do outro mundo aconteceu pela mesma época. Em São Paulo,
Hervê Cordovil - seu parceiro em Triste Cuíca - via o amigo Batista Lima, da
Editora Allan Kardec, cometer uma inconfidência e publicar no jornal espírita O
Porvir-A
letra de Noel que ele, Hervê, psicografara numa sessão em casa do próprio
Batista. A intenção de Hervê era não dar publicidade ao assunto :
"Estou lhe dando um pouco do que eu fui para que você possa interpretar o que eu
sou", teria dito Noel antes de ditar-lhe os versos de Vila Isabel do Espaço:
Minha Vila agora é outra
Muito longe da Isabel
Meu papel agora é doutra
Qualidade de papel
Que representei na terra
Andando de déu em déu
Alma voltada pro samba
Nada voltado pro céu
Se eu fizesse agora um samba
Ia ter mais harmonia
Não teria gente bamba
Não teria valentia,
Pois valente nesta Vila
490

É aquele que perdoa


Que padece e não estrila
Não é rei nem quer coroa
Se eu fizesse agora um hino,
Ah, se um hino eu compusesse,
Começaria com sino,
Terminaria com prece,
Prece serena, tranqüila,
E teria este pedaço:
"Faça, Senhor, lá da Vila
A Vila Isabel do espaço!"
Outra polêmica. Uns levaram Hervê Cordovil a sério, outros o acusaram de
aproveitador. Homem bom, extremamente generoso, que até o fim da vida estaria à
frente de
formidável obra de caridade nos centros espíritas de São Paulo, Hervê sofreu
muito com isso. Os que o levaram a sério chegaram a submeter os versos a prova
de estilo
(Noel sempre dissera "estrilha" em vez de "estrila", nunca rimaria "outra" com
"doutra", mas quem garantia que o além não o tivesse mudado?). Alguns faziam
blague.
Como Ary Barroso: "Só quero ver quem vai ficar com os direitos autorais,
Lindaura, Hervê ou Noel..." Vila Isabel do Espaço acabaria tema de concurso
promovido pelo
Correio da Manhã e TV Rio com o objetivo de escolher uma melodia para a letra.
Do júri, entre outros, participaram Pixinguinha e Lúcio Rangel. Uma jovem
desconhecida,
Maria Therezinha Costa Leite de Oliveira, foi a vencedora. E o samba,
reintitulado A Outra Vila, seria gravado por Aracy Cortes. Hervê, que também se
inscrevera
no concurso, gravaria a sua versão pela voz de outra desconhecida: a cantora
Anesy Rost.
Mas a obra póstuma de Noel Rosa não ficaria por aí. Pelos anos afora seria
multiplicada nas sessões da médium paulista Martha Gallego Thomaz, "amiga do
compositor
da Vila desde 1950". De tal modo que daria repertório para um LP, gravado em
1979 pelo grupo Alta Tensão. Coisas assim:
Na terra há gente que sabe
onde alguém encontra alguém
Que abandonou a vida partindo pra mais além
Entretanto é preciso
ter cuidado com o que diz
Pra que não aconteça
dar um palpite infeliz
Precisamos ter certeza
daquilo que se ensina
Para o mundo ser feliz,
vivamos nossa doutrina
Nasce ontem, morre hoje
pra renascer amanhã
É isso que nos ensina
esta doutrina cristã
E como tudo na terra
é ação e reação
Aproveitemos, amigos, a atual encarnação!
Polêmico. Mas uma coisa, aos estudiosos de Noel, parece certa: o poeta da outra
Vila é bem menos inspirado do que o da Isabel.
Estudiosos muitos, antigos ou recentes, obstinados ou ocasionais, atentos ou
apressados, interjetivos ou contidos, fàs irrestritos ou críticos eventuais.
Nenhum
compositor popular brasileiro foi tão estudado. Estudos que Rubem Braga já
reclamava em 1955 ao ressaltar em Noel Rosa excepcionais qualidades de cronista.
Paulo
Mendes Campos, com sua autoridade de poeta, foi um que percorreu atentamente a
obra de Noel para concluir que "os melhores versos de nossa lírica popular são
encontrados
facilmente nas palavras espontâneas do rapaz de
Vila Isabel". Ary Barroso, ciumento como sempre, escreveu que o parceiro, "como
melodista, às vezes tinha sorte". Mas admitiu venerar "a memória daquele que
criou
uma escola de poesia para o samba". Sylvio Tullio Cardoso, em sua coluna de
discos em O Globo, foi o primeiro a apontar no Billy Blanco de Banca do
Distinto, Camelô
e Piston de Gafieira um novo Noel. Outros fariam o mesmo com Chico Buarque de
Hollanda quinze anos depois. Na verdade, tornou-se quase inevitável dissociar os
letristas
do cotidiano do Noel das melhores crônicas, ainda que tais letristas estejam,
como Billy, tão pouco identificados com o povo, ou tenham, como Chico, forma e
conteúdo
próprios. Jorge Mautner romancista de Kaos e músico de uma indefinida vanguarda
pop - preferiu esquecer o Noel compositor e letrista para denunciar nele o anti-
semita
de Cordiais Saudações e Quem Dá mais?. Se os entusiasmos de um admirador como
Nássara o ligam a um Baudelaire, um Rimbaud, um François Villon, ou se outros
recorrem
ao cinema para pensá-lo em termos de Chaplin, Bunuel, Fellini, o escritor João
Antônio desconsidera todas essas analogias para dizer, simplesmente, que "Noel é
noelino".
Também têm sido tentadas aproximações com movimentos literários e musicais de
diferentes épocas. O Modernismo, a Bossa Nova, o rock'n roll. No ensaio As
origens
do samba, Noel Rosa e o Modernismo, Affonso Romano de Sant'Anna ressalta a
instintiva afinidade do poeta de Vila Isabel com a plataforma estética de 1922,
"o antiliterário,
as expressões corriqueiras, o humor, as soluções imprevistas e outros efeitos"
presentes no criador de Conversa de Botequim tanto quanto nos modernistas. Um
Noel
que freqüentemente descarta a métrica, adota linguagem prosaica, utiliza rimas
surpreendentes como forma de reforçar o irônico e o musical. Um Noel, como os
modernistas,
realizando trabalho de crítica pela sátira e pela paródia. É, mais que primeiro,
único em seu tempo. Já o Noel precursor da Bossa Nova não é tão evidente. Mesmo
que alguns dos jovens adeptos do movimento se comparassem a ele, mais em
atitudes do que em intenções
491

formais, e mesmo que um historiador como José Ramos Tinhorão também percebesse o
paralelo, um compositor de classe média bebendo nas fontes do povo. Ou, como os
rapazes da Bossa Nova fariam mais tarde em relação ao samba-canção, rompendo com
o "mau gosto" das letras parnasianas dos antigos modinheiros para adotar
linguagem
simples, coloquial. Mas nada evidente, pelo menos aos olhos dos autores, é a
aproximação de Noel Rosa com o rock, sugerida por estudiosos
recém-chegados como Jorge Caldeira e Mauro Dias. Mesmo quando seus sambas são
adornados pelo som de guitarras amplificadas. Ou quando Evandro Mesquita,
ex-Blitz, faz uma releitura do Gago Apaixonado.
Mas à frente - ou por trás - de todos esses estudos, interpretações, análises,
teses, debates e polêmicas está um Noel Rosa carismático. De um carisma que os
autores
não ousam explicar. Impressionados, limitaram-se a testemunhar o que aconteceu
na noite de 4 de maio de 1987 - o cinqüentenário de morte - quando Vila Isabel
em
peso saiu às ruas para homenageá-lo. Moradores de outros bairros também vieram
para ver e participar. Bares e calçadas do Boulevard, no trecho que vai da
Pereira
Nunes ao Ponto de 100 Réis, cobriram-se de gente. Nas mesas, nas esquinas, no
caminhão estacionado em frente ao Boteco teco, cantaram-se seus versos:
A estrela d'alva no céu desponta
E a Lua anda tonta com tamanho esplendor...
Quantos artistas populares, de ontem ou de hoje, deste país de frágil memória e
permanente sede de novidades, serão lembrados com tal carinho cinqüenta anos
depois
de se terem ido?
Sinal de que a estrela de Noel Rosa - que despontou um dia no céu da música
popular brasileira - continua brilhando. Seu esplendor ainda é capaz de deixar
tontas
as luas de nossa sensibilidade. É possível que não seja tão nítida aos olhos dos
que se deixam iluminar pelas luzes ligeiras da última moda. Mas brilha. Talvez
para
sempre.
Vila Isabel, agosto de 1980-abril de 1988.

NOTAS
1. Carioca, 15 de maio de 1937.
2. Sílvio Caldas só musicou as duas primeiras e as duas últimas estrofes,
gravando-as ele mesmo, como samba-cançâo, em 1951.
3. Correio da Manhã, 16 de maio de 1936. Álvaro Armando era o pseudônimo da
cronista e poetisa Helena Ferraz de Abreu, filha de Bastos Tigre.
4. O dirigível alemão Hindenburg incendiou-se na noite de 6 de maio de 1937,
quando se preparava para pousar no campo de aviação naval de Lakehurst, Nova
Jersey,
Estados Unidos. Trinta e seis de seus 97 passageiros morreram. Os jornais
brasileiros, como os de todo o mundo, deram grande destaque à tragédia, muitos
em matérias
de página inteira. A morte e o enterro de Noel Rosa, salvo as exceções de
algumas poucas revistas mensais, já estavam reduzidos a breves notas de coluna.
5. A primeira mulher separou-se dele para viver com Annibal Augusto Sardinha, o
Garoto. A segunda seria a prima Lourdes, irmã de Jacy Pacheco.
6. Foi em 1982 que Clara concordou - muito por sugestão da filha Lucy - em
falar com os autores sobre seus sete anos de namoro com Noel Rosa. Fazia-o pela
primeira
vez, quase quatro décadas depois de ficar viúva. Na ocasião, admitiu que ao ser
procurada por Almirante, quando este levantava dados para uma série de programas
de rádio sobre Noel, contou-lhe versão diferente, tentando assim diminuir a
importância de seu papel na história: "Afinal, a mulher dele era a outra..."
Isto é,
a Lindaura que os separara para sempre.
7. O Samba Agora Vai... - a Farsa da Música Popular no Exterior, publicado em
1969, não se limita à fase Carmem Miranda. Na verdade, cobre um período que vai
de
Caldas Barbosa a Antônio Carlos Jobim - duzentos anos de esforços da música
brasileira em se fazer conhecida lá fora.
8. Este detalhe, que escapou a Tinhorão em seu estudo, é importante por mostrar
as diferenças de postura nos dois países. South America Take it Away, a começar
pelo título, era uma verdadeira canção de protesto. Harold Rome escreveu-a em
1944 e Betty Garrett lançou-a dois anos depois no musical da Broadway Call Me
Mister,
mas se popularizaria no Brasil através da gravação best-seller de Bing Crosby
com as Andrews Sisters.
9. O maestro Napoleâo Tavares não fazia segredo de que os arranjos tocados por
seus "soldados musicais", nos bailes da época, eram por ele mesmo copiados,
instrumento
por instrumento, nota por nota, de discos das mais famosas big bands americanas.
10. Depoimentos de Dick Farney aos autores em 25 de junho de 1981.
11. Ambos, por sinal, gravariam os mais conhecidos hinos da música popular ao
bairro: Dick, Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, e Lúcio, Sábado em
Copacabana,
de Dorival Caymmi e Carlos Guinle.
12. Diretrizes, 24 de abril de 1941.
13. Flávio Cavalcanti não mudaria de estilo. Anos mais tarde, no mesmo programa
em que apresentava, todos os domingos, o detetive Nelson Duarte como policial
exemplar
(o Nelson Duarte que acabaria respondendo a vários processos por suborno,
fraude, desvio de dinheiro e ligações com ladrões de carro e traficantes),
Flávio voltou
a atacar Noel. Em entrevista ao Pasquim de 6 de outubro de 1970, justificava-se:
"... me contaram que Noel Rosa era vigarista, botou a mulher na zona, e eu
gravei
e botei na televisão para salvar a imagem de Vadico..."
14. Martha Gallego Thomaz calculava em mais de duzentas as composições de Noel
psicografadas por ela, algumas já devidamente editadas por Mangione. Os direitos
seriam divididos, meio a meio, entre Lindaura e a Federação Espírita de São
Paulo.
15. In Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (páginas 183 187).
492

As crianças da Vila passeiam sobre as notas musicais, (Foto de Manchete)


493

Este é o mais completo levantamento já publicado da obra de Noel Rosa. Mais


completo, mas não necessariamente completo. É provável que o leitor tenha
ouvido, mais
de uma vez, pesquisadores da música popular brasileira se queixarem das
dificuldades para realizar trabalhos como este. Pois os autores fazem coro com
eles. As editoras
de música no Brasil são, na maioria, descuidadas (a Mangione, para citar apenas
uma, chegou ao extremo de perder exemplares únicos de partituras de músicas de
Noel).
Das gravadoras,poucas mantêm arquivos atualizados e consultaveis. A Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro - guiada talvez por tolo preconceito - jamais se
preocupou
em guardar publicações consideradas "menores", tais como jornais de modinhas,
suplementos de gravadoras, catálogos de editoras e boletins de sociedades
arrecadadoras.
Parte da pesquisa dos autores foi feita com o acervo do Museu da Imagem e do Som
amontoado em salas sujas de um velho prédio de Niterói. Discotecas? Só as
particulares,
de renitentes e apaixonados colecionadores. Enfim, pode ser que se repitam, mas
de modo algum exageram os que dizem que somos um povo muito pouco zeloso de sua
memória
cultural.
Daí ser difícil - e por vezes impossível - fazer o inventário da obra de um nome
da chamada Era de Ouro da música popular brasileira, aquela que os historiadores
situam de 1930 a 1937. No caso de Noel Rosa, então, as dificuldades redobram.
Tendo sido compositor pouco apegado ao que era seu, de um desprendimento
que o levava a passar adiante letras, ou melodias, ou sambas inteiros, em troca
de alguns mil-réis ou de um simples "muito obrigado", não há como saber o quanto
dele corre por aí, já gravado em nome de outros, ou ainda inédito, no baú de
algum velho sambista.
Viajar em busca da obra de Noel Rosa é, mais que difícil, caminhar por entre uma
sucessão de armadilhas. O que fazer, por exemplo, quando um homem com a
credibilidade
de Dom Lourenço de Almeida Prado, reitor do Colégio de São Bento, revela ter
Noel lhe confidenciado ser seu o Galo Gamizé, de Almirante? Ou quando o parceiro
Manuel
Ferreira jura que Foi Audácia, de Kid Pepe, Germano Augusto e um certo Fado, foi
dado a eles por Noel? Ou quando Hélio Rosa deixa escrita e assinada a declaração
de que o irmão vendeu Cidade Maravilhosa a André Filho por 800 mil-réis? Ou
quando inumeráveis boêmios da antiga se chegam prometendo trazer, no próximo
encontro,
um ou dois "novos" sambas de Noel que ouviram cantados pelo próprio? Ou ainda
quando a excelente memória de Armênio Mesquita Veiga nos põe em contato com este
belo
fragmento de samba,

segundo ele de Noel, com uma melodia que antecipa em quase vinte anos o
Cais do Porto, de Capiba:
Francamente, é pra gente enlouquecer Por mais que eu queira, eu não posso
acreditar Que tu não tenhas tempo de escrever Para ao menos duas linhas mandar
Como é que se pode querer bem E viver tanto tempo sem saber Se está vivo ou
morto
esse alguém A quem tanto nós juramos querer bem?
Se há partes deste livro que os autores sabem sujeitas a reparos e acréscimos,
uma é esta. Os critérios para se dar aqui como de Noel Rosa obras que em
levantamentos
anteriores não são atribuídas a ele vão explicados após título, gênero, ano de
feitura, co-autores (quando houver) e editoras (quando se souber) de cada uma.
Segue-se
uma discografia na qual procurou-se arrolar:
1. Todas as gravações de obras de Noel Rosa que aparecem em discos de 78
rotações por minuto (representados pelo número 78 na antepenúltima coluna à
direita);
2. Todas em compactos (representados pelas iniciais Cp);
3- Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 10 polegadas/25 centímetros
de diâmetro (representados pelas iniciais minúsculas Ip);
4. Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 12 polegadas/30 centímetros
de diâmetro (representados pelas iniciais maiúsculas LP). Neste caso, só se
citam
selo e número de catálogo do primeiro lançamento. Um asterisco (*) indicará
quando houve uma ou mais reedições da mesma gravação em LP.
Observação importante: ao contrário do que já foi dito em outros levantamentos,
Noel Rosa não gravou nada que não fosse, pelo menos em parte, seu - exceção
apenas
de sua participação no coro dos Tangarás. Portanto, esta discografia cobre
também toda a sua carreira como cantor.
Completam o trabalho registros da presença de Noel no teatro, cinema e
televisão. O teatro em que poderia ter brilhado tão mais, o cinema que chegou a
fustigar,
a televisão que sabia não viver o bastante para conhecer.
496

MUSICOGRAFiA DISCOGRAFIA
1 - A.B. SURDO
Marcha. 1930. Com Lamartine Babo Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não no selo da primeira gravação
Olga Jacobino e Vozes do Outro Mundo Parlophon 13.273 - 78 1930 1931 Conjunto
Coisas Nossas Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983 Orquestra dirigida por Romeu
Fossati
Mocambo 40.191 - LP
2 - ADEUS
Samba. 1931. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Jonjoca e Castro Barbosa com
Grupo da Velha Guarda
Victor 33.548 - 78 1932 1932
Abril Cultural MPB 12 • - Ip 1932 1970
Ismael Silva com orquestra e coro Sinter SLP 1055 - Ip 1955 1955 Sinter SLP 10'-
LP 1955 1956
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor LPNG 4014 " - LP 1958 1958
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2153 - LP 1962 1962
Ismael Silva com Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG
4.121 - LP 1966 1966
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 • - LP 1973 1973
Grupo 10.001 e Vocal Documenta RCACamdem 107.0211 - LP 1975 1975
Toquinho e Vinícius com conjunto e coro Philips 6349.134 * - LP 1975 1975
3 - A.E.I.O.U.
Marcha colegial. 1931. Com Lamartine Babo. Ed. Mangione
Lamartine Babo com Grupo de
Canhoto e coro
RCA Victor 33.503 - 78 1932 1 932
RCA Camdem CALB 5122 * - LP 1932
1967
Arrelia e Lamartine Babo com Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana 5863 -
78 1957 1958 Copacabana 11.017 - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com orquestra ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 4.036.074 * - LP 1975 1975
Grande Orquestra Chantecler Chantecler 2.26.407045 - LP 1976 1976
Marlene com orquestra
Philips 6349.330 - LP 1977 1977
A Patotinha
RCA Victor 107.0296 - LP 1978 1978
As Melindrosas
Copacabana COMLP 25.040 - LP 1978
1978
Sargentelli, coro e ritmo, ao vivo Continental 1.01.404.222 - LP 1980 1980
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326- 1982
4 - AGORA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Lucilla e Bando de Tangarás Parlophon 13.312 - 78 1931 1931
5 - ALÔ BELEZA
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo. Melodia perdida
6 - AMAR COM SINCERIDADE
Samba. Com Sylvio Pinto
Ensinado por Sylvio Pinto ao Conjunto
Coisas Nossas em 1976
7 - AMOR DE PARCERIA
Samba-choro. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Regional RCA Victor RCA Victor 33.973 - 78 1935 1935
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1011/1012 *- LP 1963 1963
8 - ANDO CISMADO
Samba. 1933. Com Ismael Silva
Francisco Alves com Gente Boa Odeon 10.936 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.640 - LP
1933 1970
Ismael Silva, Hermínio B. de Carvalho e Antônio C. Brandão (violão) Tycoon
992.06112 - LP 1962 1985
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
9 - AO MEU AMIGO EDGAR
Samba. 1935-1978
Carta musicada por João Nogueira
João Nogueira com acompanhamento
instrumental
Odeon 062.421088 • - LP 1978 1978
Odeon 016.420873 - Cp 1978 1978
10 - ARARUTA
Samba. C. 1932. Com Orestes Barbosa
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
11 - ARRANJEI UM FRASEADO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa com Turma da Vila Odeon 10.989 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.041 * - LP
1933 1958
12-ASSIM, SIM!
Marcha. 1932. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Carmem Miranda com Harry Kosarin e
seus Almirantes
RCA Victor 33.581 - 78 1932 1932
13- ATCHIM!
Marcha. 1935-1969. Letra musicada postumamente por Hamilton Sbarra. Ver boxe
Loura ou Morena < no Capítulo 35
Aldacir Louro com orquestra e coro Caravelle CD-CAR 3.009 - Cp 1969 1969
14-ATÉ AMANHÃ
Samba. 1932. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Gente Boa Odeon 10.950 - 78 1933 1933 Radíobrás/Odeon
RA 001/2/3/4 * - LP 1933 1967
Gilberto Alves com conjunto e coro RCA Victor 80.0993 - 78 1952 1952
Orquestra Rádio
Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Leal Brito, seu piano e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Dilermando Pinheiro com conjunto Musidisc M 50.008 - 78 1957 Musidisc M 044 - Ip
1957 1957 RCA Camdem 107.9056 * - LP 1957 1973
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716-LP 1957 1957
497

Canhoto e seu regional


RCA Victor 80.1936 - 78 1958 1958
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Sambistas da Guanabara
Odeon SMOFB 3.215 * - LP 1961 1961
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.211 - LP 1961 1961
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2.153 - LP 1962 1962
Silvio Caldas com regional Columbia 37.185 * - LP 1962 1962
Waldir Calmon e seu conjunto Copacabana SOLP 40.039 *-LP 1962
Marília Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana CLP 11.214 - LP 1964 1964
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 - LP 1965 1965
Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro
com regional
Philips P 632.788 L * - LP 1965 1966
Aracy de Almeida com conjunto de Roberto Menescal e coro Elenco ME-34 - LP 1966
1966
Elizeth Cardoso com
Caçulinha e seu conjunto
Copacabana CLP 11.466 •- LP 1966 1966
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.129 " - LP 1967 1967
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR 33.010 • - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e
Jacob do Bandolim com Zimbo Trio
MIS MIS-005 - LP 1968 1968
Marlene, Nuno Roland, Blecaute, índio e conj. ao vivo Teat. Casa Grande MIS MIS-
009 - LP 1968 1969
A Turma do Embolo
RCA Victor BBL 1.472 - LP 1969 1969
Geraldo Vespar e Turma Pra Frente Parlophon PLH 13.018 - LP 1969 1969
Jair Rodrigues e orquestra
Philips R 765.096 L - LP 1969 1969
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Conjunto Explosão do Samba CID 2.124-LP 1973 1973
Moreira da Silva
CID 4.004 *-LP 1973 1973
Os Três Moraes
Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Os Velhinhos Transviados
RCA Camdem 107.0224 - LP 1975 1975
Grupo dos Foliões
Esquema 1.239.107 - LP 1978 1978
Pedro Vargas e Silvio Caldas
com regional, ao vivo
RCA Victor 103.0236 - LP 1978 1978
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e orquestra Musidisc M 15.020- 78 Musidisc MV
005 • - Ip
José Menezes e seu conjunto SinterSLP 1.722-LP
Luiz Bandeira (Sargentelli e o Sambão) Copacabana CLP 11.602 - LP
Lyra de Xopotó SinterSLP 1.707- LP
Saraiva (sax-soprano) com acompanhamento Tropicana 01028 - LP
15- BAIANINHA
Choro, 1929 Melodia perdida
16- BALÃO APAGADO
Samba. 1936-1961. Letra musicada postumamente por Marllia Baptista Ed. Mangione
Elizeth Cardoso com orquestra e coro Copacabana 6.254 - 78 1961 1961 Copacabana
SOLP 40.039 "- LP 1961 1962
17- BELO HORIZONTE
Fox-trot. 1935. Paródias de l'm Looking Over a Four Leaf Clover de Mort Dixon e
Harry Woods
Ensinadas aos autores por Rômulo Paes e Paulo Lessa
18- BOA VIAGEM
Samba. 1934. Com Ismael Silva Ed. Mangione
Aurora Miranda com Orquestra Odeon Odeon 11.187 - 78 1935 1935
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 * - LP 1973 1973
19- BOASTENÇÕES
Valsa. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
20 - BOM ELEMENTO
Samba. 1930. Com Euclydes Silveira
(Quidinho)
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria a ele atribuída por
Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Noel Rosa e Arthur Costa e seu grupo Columbia 22.023 - 78 1931 1931
21 - BRINCADEIRA DE RODA
Citada por Noel Rosa em seu caderno de
músicas
Letra e melodia perdidas
22 - CABROCHA DO ROCHA
Samba. Com Sílvio Caldas Depoimento de Silvio Caldas no álbum duplo Histórias da
Música Popular, lançado pela CBS em 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com orquestra, ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 403.6074 • - LP 1975 1975
23 - CADÊ TRABALHO
Samba. C. 1932. Com Canuto
Letra publicada em Harmonia. Melodia
perdida
24 - CANÇÃO DO GALO CAPÃO
Marcha. 1935. Paródia da Marchinha do Grande Galo de Lamartine Babo Da opereta
Ladrão de Galinha
25 - CANSEI DE IMPLORAR
Samba. 1935. Paródia de Cansei de Pedir,
do próprio Noel Rosa
Da opereta A Noiva do Condutor
Grande Othelo e Conjunto Coisas Nossas Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
26 - CANSEI DE PEDIR
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Grupo de Canhoto
RCA Victor 33.949 - 78 1935 1935
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1935 1971
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.559 *- LP 1969
Ary e seu pistom, com conjunto e coro Chantecler CLP 2.012 • - LP
27 - CANTA COLOMBINA
(?). 1935. Com Jorge Faraj
Citada por Noel em entrevista ao Diário
Carioca
Melodia e letra perdidas
28 - CAPRICHO DE RAPAZ SOLTEIRO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 11.003 - 78 1933 1933 Fenab 104.105 -
LP 1933 1982
Cara ou Coroa
Ver Vai Para Casa Depressa
29 - CEM MIL-RÉIS
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.337 - 78
1936 1936 Imperial IMP 30.205 " - LP 1936 1971
Risadinha com orquestra Continental 17.806 - 78 1960 1960
Caçulinha e seu conjunto
Odeon MOFB 3.553 - LP 1968 1968
Paulo Marquês com orquestra e coro de
As Gatas
V-Som 2809.073 - LP 1976 1976
498

Noel Rosa: Uma Biografia


Fafá Lemos e seu trio RCA Victor BPL 7 - LP
30 - CHORO
Choro. 193...
Anotado em pauta por Jacob do Bandolim
Ver nota 8 do Capítulo 11
Luís Otávio Braga, Henrique Cazes e Caola Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
31 - CHUVA DE VENTO
Embolada. 1937 Melodia perdida
32 - CIDADE MULHER
Marcha. 1936. Ed. Mangione Do filme Cidade Mulher
Orlando Silva com conjunto
regional RCA Victor
Victor 34.085 - 78 1936 1936
RCACamdem CALB 5.130-LP 1936 1967
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Cinema Falado
Ver Não Tem Tradução
33 - COISAS DO SERTÃO
Samba. 1929
Citada por Almirante em
No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
Coisas Nossas
Ver São Coisas Nossas
34 - COM MULHER NÃO QUERO MAIS NADA
Samba. 193... Com Sylvio Pinto Ensinada por Sylvio Pinto ao Conjunto Coisas
Nossas em 1976
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
35 - COM QUE ROUPA?
Samba. 1929. Ed. Mangione
Noel Rosa com Bando Regional Parlophon 13.245 - 78 1930 1930 MIS MP 001 " - LP
1930 1965
Noel Rosa e I. G. Loyola com
Orquestra Guanabara
Parlophon 13.269 - 78 1931 1931
Aracy de Almeida, Radamés e Orq. de Cordas, Trios Melodia e Madrigal Continental
16.393 - 78 1951 1951 Continental 1.19.405.012 - LP 1951 1975
Orquestra Rádio e coro Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Trio Surdina
Musidisc M 014 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) e
ritmo
Odeon MODB 3.017 - Ip 1955 1955
Nelson Gonçalves
RCA Victor BBL-3.010 - Ip 1955 1955
RCA Camdem CALB 5.130 "- LP 1955 1967
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Canhoto e seu regional
Odeor) MOFB 3.063 - LP 1959 1959
Turma da Bossa
Musidisc HiFi 2.023 • - LP 1959 1959
Sambistas da Guanabara
Odeon MOFB 3.215 - LP 1961 1961
Marília Baptista com orquestra e coro Nilser NS 1.001/1.002 •- LP 1963 1963
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1966 1966
Tânia Maria (piano e vocal) com
trio, ao vivo
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Elza Soares, Miltinho e orquestra Odeon MOFB 3.510 * - LP 1967 1967
Helena de Lima com
quinteto da Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Martinho da Vila com Regional de Canhoto Abril Cultural - RCA MPB 01 - Ip 1970
1970
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP" 10.104 - LP 1973 1973
Manuel da Conceição, solo de violão RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Maria Creusa com orquestra
RCA Victor 110.0004 * - LP 1974 1974
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Paulo Marquês com Altamiro Carrilho e
seu conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Evandro (bandolim), orquestra e coro com regência de Guerra Peixe Chantecler CMG
2.126 - LP
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp 1987 1987
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755- LP
Rosinha de Valença Elenco ME-16*-LP
36 - CONDENO O TEU NERVOSO
Valsa. 1935. Paródia de Teus Ciúmes, de
Laci Martins e Aldo Cabral
Da opereta O Barbeiro de Niterói
37 - CONTRASTE
Samba. 1933. Ed. Mangione
Almirante com Conjunto Victor Victor 33.662 - 78 1933 1933 RCA Camdem CALB 5.186
* - LP 1933 1968
38 - CONVERSA DE BOTEQUIM
Samba. 1935. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa com conjunto regional Odeon 11.257 - 78 1935 1935 MIS MP 001 • - LP
1935 1965
Aracy de Almeida com Quarteto
Continental
Continental 16.317 - 78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 8 - LP 1950 1967
Trio Surdina
Musidisc LPO 14 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Vadico e seu regional
Continental 17.117-78 1955 1955
Continental LPP 15 - Ip 1955 1955
Dilermando Pinheiro com conjunto
Musidisc M 043 - Ip 1956 1956
RCA Camdem 107.9056 - LP 1956 1973
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon - 78 1957 1957
Fafá Lemos e seu conjunto
Odeon MOFB 3.045 * - LP 1958 1958
Dolores Duran com orquestra Copacabana CLP 11.039 * - LP 1959 1959
Vadico e sua orquestra
Festa LDV 6.009 - LP 1959 1959
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.001/1.012 *- LP 1963 1963
Moreira da Silva com orquestra Odeon MOFB 3.450 * - LP 1965 1966
Elza Soares com orquestra
Odeon MOFB 3.500 - LP 1967 1967
Helena de Lima com quinteto da Boate
Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Martinho da Vila com Regional de Canhoto Abril Cultural MPB 01 - Ip 1970 1970
Doris Monteiro com orquestra Odeon SMOFB 3.698 - LP 1971 1971
Jorge Veiga
Copacabana COELP 40.187 - LP 1975 1975
Os Caretas
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Paulo Marquês com Altamiro Carrilho e
seu conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Doris Monteiro com orquestra Odeon 052.422.027 - LP 1978 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Dolores Duran
Copacabana COLP 12.411 /12 - LP 1979 1979
Grupo Chapéu de Palha
Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1979
Heraldo (cavaquinho) com
acompanhamento
Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Nelson Ayres (piano) e Roberto Sion (sax-alto) Eldorado 77.83.0421 - LP 1983
1984
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Jorge Veiga
Copacabana CLP 11.052 - LP
499

João Máximo e Carlos Didier


Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Oswaldo Borba e sua orquestra Odeon MOFB 3.009 - LP
Paulinho Nogueira RGEXRLP 5.154- LP
Risadinha com orquestra Continental LPP 39 -
Robledo e seu conjunto Musidisc LP 40.005 -
Sandoval Dias e seu conjunto Philips P 630.447.1 - LP
39 - COR DE CINZA
Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK
20.018 * - LP 1955 1967
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Grupo Rumo Independente-LP 1981 1981
Zezé Gonzaga e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
40 - CORAÇÃO
Samba anatômico. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa com Orquestra Copacabana Odeon 10.931 - 78 1932 1933 MIS MP 001 "-LP
1932 1965
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor
583.0000 - Cp 1955 1956 RCA Camdem CASB 5.310 * - LP 1955 1971
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 " - LP 1963 1963
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
41 - CORDIAIS SAUDAÇÕES
Samba epistolar. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e Bando de Tangarás Parlophon 13.327 - 78 1931 1931 Imperial IMP
30.205 - LP 1931 1971
Noel Rosa e Orquestra Copacabana (1) MIS MP001 - LP 1931 1965
Marflia Baptista com orouestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com regional ao vivo no
Canecão
RCA Victor 103.0236 - LP 1978 1978
Silvio Caldas Mocambo 3.123 -Cp
42 - CUMPRINDO A PROMESSA
(?). 1925. Ed. Carlos Wehrs e Cia. Letra publicada no Jornal de Modinhas,
novembro de 1929 Melodia perdida
43 - DAMA DO CABARÉ
Samba. 1936. Ed. Mangione Do filme Cidade Mulher
Orlando Silva e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.085 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5,340 - LP 1936 1971
Marilia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Orlando Silva com Regional de Canhoto Abril Cultural MPB 01 - Ip 1970 1970
Carmen Costa com acompanhamento
instrumental
Continental 1.01.404.215 * - LP 1979 1980
Roberto Silva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
44 - DE BABADO
Samba. 1936. Com João Mina Ed. Mangione
Noel Rosa e Marilia Baptista com Regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.337 - 78
1936 1936 Imperial IMP 30.205 - LP 1936 1971
Marllia Baptista com orquestra
Nilsen NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Aracy de Almeida e partídeiros com
Conjunto Samba Autêntico
Polydor LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Sambistas do Asfalto
Itamaraty DLP 1.011 * - LP 1969
Os Velhinhos Transviados
RCA Camdem 107.0224 - LP 1975 1975
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
João Nogueira e Alcione com orquestra Polydor 2.451.170 • - LP 1981 1981
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
45 - DE QUALQUER MANEIRA
Samba. 1933. Com Ary Barroso
Deo com Conjunto Odeon Odeon 11.762 - 78 1939 1939
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.526 - LP 1968 1968
Abílio Martins com orquestra e coro Sinter 108.003 - Cp 1972 1972
46 - DEIXA DE SER CONVENCIDA
Samba. 1935. Com Wilson Baptista Depoimento de Wilson Baptista a Almirante
durante a série de programas de rádio No Tempo de Noel Rosa
47 - DEUS SABE O QUE FAZ
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do
disco só está o nome de Ismael. Na partitura, os dos três
Jonjoca e Castro Barbosa com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.019 - 78 1933 1933
48 - DEVO ESQUECER
Samba. 1930. Com Gilberto Martins
O nome de Noel Rosa não está no selo do
disco. A co-autoria é atribuída por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Noel Rosa e Léo Villar com Pixinguinha e
sua orquestra
Columbia 22.240 - 78 1933 1933 Continental LP 19 - Ip 1933 1955 Disco Lar LPDS
32.051 - LP 1933 1969
49 - DISSE-ME-DISSE
Samba-choro. 1935
Partitura manuscrita pertencente ao
Arquivo Almirante
Conjunto Coisas Nossas
Independente LPCN 001 - LP 1980 1980
50 - DONA ARACY
Marcha. 1930. Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.271 - 78 1931 1931
51 - DONA DO LUGAR
Samba. O 1933. Com Ismael Silva e
Francisco Alves. Ed. Mangione
O nome de Noel Rosa não está no selo do
disco
Na partitura, não consta o de Ismael
Castro Barbosa e Jonjoca Odeon 10.966 - 78 1932 1933
52 - DONA EMÍLIA
Marcha. 1930. Com Glauco Vianna Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.290 - 78 1931 1931
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
53 - DONO DO MEU NARIZ
Valsa. 1933. Paródia de Dona da Minha Vontade.de Francisco Alves e Orestes
Barbosa
54 - É BOM PARAR
Samba. 1936. Com Rubens Soares O nome de Noel Rosa não aparece nos discos, nem
na partitura. Vários depoimentos, inclusive de Almirante e Jorge Faraj, atribuem
a
ele co-autoria. Ver detalhes no Capitulo 40
Francisco Alves com Diabos do Céu
Victor 34.038 - 78 1936 1936
RCA Camdem 803.224 - LP 1936 1985
Carolina Cardoso de Menezes (piano) Victor 34.398 - 78 1938 1939
Bando da Lua
MCA 4.07.404.087 - LP 1941 1975
Fernando Alvarez com regional Victor 34.885-78 1941 1942
Nuno Roland com Simon Bountmann e sua Orquestra do Cassino Copacabana Victor
34.837 -78 1941
Fats Elpídio e Britinho (duo de pianos) com acompanhamento rítmico RCA Victor
80.1084 - 78 1952 1953
Francisco Alves com conjunto e coro RCA Victor 80.1046 - 78 1952 1952 RCA Victor
583.5033 - Cp 1952 RCA Camdem CALB 5.063 * - LP 1952 1963
Gilberto Milfont com orquestra e coro
500

Noel Rosa: Uma Biografia


Continental LPP 5 - Ip 1954 1954 Continental 1.19.405.032 - LP 1954 1977
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.008 - Ip 1955 1955
Britinho, seu piano e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Luizinho ao piano com coro Columbia LPCB 35.019 - Ip 1956 1956
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.019 • - LP 1957 1957
Orquestra Rádio
Rádio 0056 GV- LP 1958 1958
Zé Maria, seu órgão, seu conjunto Internacional CID 27.017 - LP 1959 1959
Nelson Martins dos Santos
RCA Victor BBL 1.080 - LP 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 * - LP 1962 1962
Avéna de Castro (citara) e conjunto Copacabana CLP 11.214 - LP 1964 1964
Lana Bittencourt
Philips P 632.774 L - LP 1965
Os Catedráticos
Equipe EQ 810 - LP 1965 1966
Gilberto Alves com orquestra Copacabana CLP 11.476 * - LP 1966 1966
Elza Soares, Miltinho e orquestra Odeon MOFB 3.510 * - LP 1967 1967
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR-33.010 • - LP 1968 1968
Marlene e Nuno Roland, Índio e seu conj. ao vivo Teatro Casa Grande MIS MIS 010-
LP 1968 1969
Moreira da Silva
CID 4.004 "-LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Mato e Morro
Copacabana SOLP 40.487 - LP 1974 1974
Silvio Caldas com orquestra, ao vivo
Teatro Fênix
Som Livre 403.6074 * - LP 1975 1975
Poly e seu conjunto
Continental 030.404.078 * - LP 1977 1977
Sílvio Caldas
Music Master KML 9.007 - 1979
Bloco Pierrôs e Colombinas
Som Livre 403.6245 - LP 1981 1981
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124-LP
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.730- LP
Os Satélites com orquestra Odeon MOFB 3.016- LP
Vadinho (guitarra) com Scarambone e seu
conjunto
Carrousel SELP 3.002 - LP
Walter Gonçalves, piano, bateria e coro LPN - Ip
55 - É DIFÍCIL SABER FINGIR
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo Melodia perdida
E Não Brinca Não Ver Não Brinca Não
56 - É PESO
Samba. 1932. Com Ismael Silva O nome de Noel não está no selo do disco. A co-
autoria é atribuída por Harmonia
Francisco Alves com Gente Boa Odeon 10.936 - 78 1933 1933
57 - É PRECISO DISCUTIR
Samba. 1931. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.905 - 78 1932
1932
58 - ENVIO ESSAS MAL TRAÇADAS
Samba. 1935. Paródia de Cordiais Saudações, do próprio Noel Rosa Da opereta O
Barbeiro de Niterói
59 - ESCOLA DE MALANDRO
Samba. 1932. Com Orlando Luiz Machado e Ismael Silva
O nome de Noel Rosa não está no selo do disco. A co-autoria é atribuída por
Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Hamonia
Noel Rosa e Ismael Silva com Batutas do
Estácio
Odeon 10.949 - 78 1932 1932
60 - ESPERA MAIS UM ANO
Samba. 1932
Noel Rosa e Arthur Costa com
orquestra (2)
Matriz 131.285-78 1932
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
61 - ESQUECER E PERDOAR
Samba. 1931. Com Canuto
Canuto com Orquestra Guanabara Parlophon 13.349 - 78 1931 1931
62 - ESQUINA DA VIDA
Samba. 1933. Com Francisco Queirós Mattoso. Ed. Mangione
Mário Reis com acompanhamento de
piano (3)
Columbia 22.242 - 78 1933 1933
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
63 - ESTAMOS ESPERANDO
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Gente Boa
Odeon 10.956 - 78 1933 1933 Odeon MODB 3.075 - Ip 1933 Odeon MOFB 3.363 " - LP
1933 1963
64 - ESTÁTUA DA PACIÊNCIA Fox-trot. 1931. Com Jerônimo Cabral Partitura
manuscrita pertencente ao Arquivo Almirante
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
65 - ESTE MEIO NÃO SERVE
Samba. 1936. Com Ernesto dos Santos (Donga)
Mário Reis com Orquestra Odeon de
Simon Bountmann
Odeon 11.326 - 78 1936 1936
66 - ESTRELA DA MANHÃ
Samba. 1933. Com Ary Barroso
Francisco Alves e Madelou Assis com
orquestra
Odeon 11.079 - 78 1933 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1933 1970
67 - EU AGORA FIQUEI MAL
Samba. 1931. Com Antenor Gargalhada
Canuto com Orquestra Copacabana Parlophon 13.349 - 78 1931 1931
68 - EU NÃO PRECISO MAIS DO SEU
AMOR
Samba.
Ensinado aos autores por Armênio
Mesquita Veiga
69 - EU QUERIA UM RETRATINHO DE
VOCÊ
Samba. 1933. Com Lamartine Babo
Mário Reis com Diabos do Céu RCA Victor 33.668 - 78 1933 1933
70 - EU SEI SOFRER
Samba. 1937. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade
RCA Victor 34.176-78 1937 1937
RCA Camdem CALB 5.026 * - LP 1937 1961
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716-LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 " - LP 1963 1963
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 • - LP 1968 1968
71 - EU VOU PRA VILA
Samba. 1930. Ed. Mangione
Almirante com o Bando de Tangarás Parlophon 13.256 - 78 1931 1931 Fenab 104/105
- LP 1931 1982
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Aracy de Almeida e a Turma da Vila Polydor LPNG 4.014 * - LP 1958 1958
Astor e orquestra
Odeon MOFB 3.026 • - LP 1958 1958
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
72 - FAZ DE CONTA QUE EU MORRI
Samba. 193... Com Henrique Gonzalez Ensinada aos autores por Moreira da Silva
Letra reproduzida por Jacy Pacheco em O Cantor da Vila
501

73 - FAZ TRÊS_SEMANA
Canção. 193... Paródia de Suçuarana, de
Hekel Tavares e Lu/s Peixoto Ensinada aos autores por Armênio Mesquita Veiga
74 - FEITIÇO DA VILA
Samba. 1934. Com Vadico. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Orquestra Odeon Odeon 11.175- 78 1934 1934 Odeon MOFB
3.041 * - LP 1934 1958
Os Namorados da Lua Continental 15.613 - 78 1946 1946 Continental 1.19.405.028-
LP 1946 1976
Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara Continental 16.129-78 1949 1949
Aracy de Almeida com Francisco Sergi e sua orquestra
Continental 16.318 - 78 1950 1950 Continental 6 - Ip 1950 1954 Continental LPK
20.018 * - LP 1950 1967 Continental DEZLP1.001/2/3 - Ip 1950 1973
Silvio Caldas com Orquestra da Radio
Nacional, ao vivo
Collector's 992.330 - LP 1951 1986
Benê Nunes (piano)
Continental 16.772 - 78 1953 1953
José Luciano, seu piano e ritmo Mocambo 15.065 - 78 1954 Mocambo LP 10.004 - Ip
1954 1954
Garotos da Lua Sinter347-78 1954
Philips 6328.387 - LP 1982
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.016 - Ip 1955 1955
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem
CALB 5.095 * - LP 1955
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Fafá Lemos e seu conjunto RCA Victor 83.0043 - Cp 1956 RCA Victor 80.1624 - 78
1956 RCA Victor BPL 3.023 - Ip 1956 1956
Francisco Egldio com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Gentil Guedes e sua orquestra Continental LPP 18 - Ip 1956 1956
Sílvio Caldas com orquestra Columbia LPCB 35.027 - Ip 1956 1956 Columbia 37.068
- LP 1956 1958
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Luiz Bonfá
Odeon MOFB 3.014 - LP 1958 1958
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BBL 1.040 - LP 1959 1959
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Coro Odeon
Odeon MOFB 3.140 * - LP 1960 1960
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Lord Astor e seu conjunto
Imperial IMP 30.025 - LP 1961

João Máximo e Carlos Didier


Luiz Arruda Paes e sua orquestra RCA BBL 1.173 * - LP 1962 1962
Silvio Caldas com regional Columbia 37.185 • - LP 1962 1962
Ângela Maria
Copacabana SOLP 40.039 *-LP 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Os Velhinhos Transviados RCA BBL 1.247 - LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214-LP 1964 1964
Benê Nunes e seu piano
Fantasia FLP 2.020 - LP 1965 1965
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Victor Assis Brasil (sax-alto), com piano,
oa,xo e bateria
Forma FE 1.017 - LP 1966 1966
Bola Sete (violão), com baixo e
percussão (4)
Fantasy (USA) 8.364 - LP 1967 1967
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Nelson Gonçalves com orquestra
RCA Camdem CALB 5.130 *-LP 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim com Conjunto Época de Ouro MIS MIS-005 - LP
1968 1968
Geraldo Vespar (violão)
Parlophon PBA 13.010- Ip 1968 1968
Conjunto Nosso Samba
Beverly BPL 80.738 - LP 1969 1969
Helena de Lima com quinteto da
Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 848 - LP 1969 1970
Os Três Moraes com orquestra Continental. SLP 10.104 - LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues e Samba Som Sete com Nelsinho (trombone) Equipe XPTO 1 - LP
1973 1973
Manuel da Conceição (violão)
RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Odette Amaral com Altamiro Carrilho e seu
conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Sílvio Caldas e Elizeth Cardoso com orquestra, ao vivo Teatro Fênix Sigla
403.6074 * - LP 1975 1975
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Codó (violão) com Elizeth Cardoso e
502
acompanhamento
CID 8.024 - LP 1978 1978
The Pop's
Equipe EQ 817 - LP 1978 1978
Abdias e sua sanfona, com Oswaldo
Oliveira
Uirapuru 350.047 - LP 1979 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Edu da Gaita com orquestra
Eldorado 17.79.0337 • - LP 1979 1979
Nilze de Carvalho (bandolim), Conjunto Época de Ouro e Netinho (sax) CID 8.036-
LP 1980 1980
Georg Brass (piano) e ritmo CID 8.048- LP 1982 1982
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Continental 1.07.405.291 - LP 1983 1983
Waldir Calmon e seu conjunto CID 4.167- LP 1985 1985
Aimé Vereck e seu conjunto de boate Odeon MODB 3.026 - Ip
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.311 - LP
Britinho, seu piano e ritmo Sinter SLP 1.061 - Ip
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 11.013 • - LP
Elza Soares e Miltínho com orquestra Odeon 3.540 - LP
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc M-15.020- 78
Musidisc MV 005 - Ip
Irany Promodeon 02 -
João de Lima e seu conjunto Copacabana CLP 11.042 - LP
Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Leal Brito
Musidisc M-015 - Ip
Leal Brito
Musidisc M-038 - Ip
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755 - LP
Os Coroas da Fuzarca Tropicana 3.002 - LP
Santana e seu regional moderno Polydor LPN 2.003 -
Saraiva (sax-soprano) com acompanhamento Tropicana 01028 - LP
Silvar e o seu regional Beverly BLP 80.092 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia 37.118 - LP
Feitiço Sem Farofa Ver Feitiço da Vila

Noel Rosa: Uma Biografia


75 - FEITIO DE ORAÇÃO
Samba. 1933. Com Vadico
Francisco Alves e Castro Barbosa com Orquestra Copacabana Odeon 11.042 - 78 1934
1934 Odeon MOFB 3.617 * - LP 1934 1969 Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1934 1977
Aracy de Almeida com Radamés e sua
orquestra de cordas
Continental 16.392 - 78 1951 1951
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor 800.760 - 78 1951 1951
RCA Victor BPL 3.032 - Ip 1951
RCA Camdem CALB 5.031 - LP 1951 1961
Silvio Caldas com Carioca e sua orquestra,
ao vivo
Collector's 992.330 - LP 1952 1986
Mardia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1-V- Ip 1953 1953 Rádio LP 0011-V -
Ip 1953
Trio Surdina
Musidisc M-50.005 - 78 1955
Musidisc DL 1.007 - Ip 1955 1955
Britifino, seu piano e ritmo Sinter 481 - 78 1956 1956 SinterSLP 1.061 - Ip 1956
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 3.067 - Ip 1956 1956 Copacabana CEP
4.515 - Cp 1956 Copacabana CLP 11.066 • - LP 1956 1958
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MOFB 3.002 - LP 1957 1957
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
Silvio Caldas com orquestra Columbia LPBC 41.003 • - 1957 1957
Zezinho com Os Copacabanas e
Vadico (piano)
Odeon MOFB 3.007 " - LP 1957 1957
Agostinho dos Santos com Simonetti e
orquestra
RGE XRLP 5.057 * - LP 1959 1959
.Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Coral de Ouro Preto
Odeon MOFB 3.273 • - LP 1961 1961
Rosana Toledo com Orquestra RGE RGE XRLP 5.160- LP 1962 1962
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Helena de Lima com conjunto RGE XRLP 5.285 * - LP 1965 1965
Maria Bethânia com orquestra
RCA Camdem CALB 5.329 "- LP 1965 1965
Primo Trio
Musidisc HiFi 2.120 - LP 1965 1965
Aracy de Almeida com conjunto de
Roberto Menescal
Elenco ME-34 - LP 1966 1966
Mauricio Oliveira (violão)
Musiplay LPM 1.112 * - LP 1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos CODIL CDL 13.007 - LP 1967 1967
Agnaldo Rayol com orquestra Copacabana CLP 11.523 - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim com Conjunto Época de Ouro MIS MIS-004 - LP
1968 1968
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 * - LP 1968 1968
Quarteto 004
Ritmos (Codil) CDL 13.011 - LP 1968 1968
Helena de Lima com Quinteto da
Boate Drink
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Zimbo Trio e Orquestra de Metais RGE USLP 5.331 - LP 1969 1969
Silvar e seu regional
Bemol BMLP 80.035 - LP 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 848 • - LP 1970 1970
Ângela Maria com orquestra
Copacabana SOLP 40.432 - LP 1971 1971
Wilson Simonal com orquestra Philips 6349.049 • - LP 1972 1972
Nelson Gonçalves
RCA Camdem 107.0084 • - LP 1973
Cláudia Barroso com orquestra Continental SLP 10.137 - LP 1974 1974
Os Caretas com orquestra
Polydor 2.488.234/5/6 - LP 1975 1975
Francisco Petrônio e
Conjunto Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Márcio Montarroyos com orquestra Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Manuel da Conceição (violão) com ritmo Musiquim LPM-MC-002 - LP 1979 1979
Celso Machado (violão) com
acompanhamento
Marcus Pereira MPL 9.414 - LP 1980 1980
Plauto Cruz (flauta) com regional Clack Bandeirantes BR 33.085 * -LP 1980 1980
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 "-LP 1981 1981
Guilherme Rodrigues Quarteto Independente LPVR 010 - LP 1982 1982
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Breno Sauer Quinteto Columbia 37.063 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Hugo Luiz, seu violão e ritmo Paladium PAL 50.006 - LP
Josemir e conjunto Enir E-9.004 - LP
Leal Brito
Musidisc M-015 - Ip
503
Orquestra Continental de Jaú, regida por Waldomiro de Oliveira Internacional CID
27.022 - LP
Pedrinho Mattar (piano) com orquestra Copacabana CLP 11.651 - LP
Simonetti e sua orquestra RGE RLP 001 - Ip
76 - FELICIDADE
Samba. 1932. Com René Bittencourt O nome de Noel está em partitura, mas não no
selo da primeira gravação
Noel Rosa com Grupo Columbia Columbia 22.083 - 78 1932 1932 Continental LPP 19 -
Ip 1932 1955 Disco Lar LPDS 32.051 * - LP 1932 1969
Francisco Alves com regional Odeon 13.259 - 78 1952 1952 Odeon MOCB 3.011 - LP
1952 1958
Trio Irakitan e orquestra
Odeon MOFB 3.526 - LP 1968 1968
Francisco Petrônio e Conjunto
Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Os Demônios da Garoa Chantecler CMG-2.525 - LP
77 - FESTA NO CÉU
Toada. 1929
Noel Rosa e conjunto
Parlophon 13.185 - 78 1930 1930
Fenab 104/105 - LP 1930 1982
78 - FILOSOFIA
Samba. 1933. Com André Filho Ed. Mangione
Mário Reis com Pixinguinha e sua
orquestra
Columbia 22.225 - 78 1933 1933
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Mário Reis com orquestra
Odeon SMOFB 3.690 • - LP 1971 1971
Chico Buarque com orquestra Philips 6349.122 • - LP 1974 1974
Adoniran Barbosa com regional Eldorado 86.84.0437 - LP 1980 1984
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
79 - FINALETO
Samba-cançâo. 1935. Com Arnold
Glückmann
Da opereta A Noiva do Condutor
Marilia Pera, Grande Othelo, Caola, Oscar Bolão, Coisas Nossas e orq. Eldorado
106.86.0447 - LP 1985 1986
80 - FIQUEI RACHANDO LENHA
Samba. 1934. Com Hervê Cordovil Partitura manuscrita pertencente ao Arquivo
Almirante

João Máximo e Carlos Didier


81 - FIQUEI SOZINHA
Marcha-rancho. 1931. Com Adauto Costa Ed. Mangíone
Ruth Franklin com Orquestra Guanabara Parlophon 13.413-78 1932 1932
82 - FITA AMARELA
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.961 - 78 1933 1933
Odeon MODB 3.075 - Ip 1933 Odeon MOFB 3.363 • - LP 1933 1963
Trio Surdina
Musidisc M 15.002 - 78 1953
Musidisc LP 014 - Ip 1953 1953
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK
20.018 * - LP 1955 1967
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.016 - Ip 1955
Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana CLP 11.010 • - LP 1957 1957
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Silvio Caldas com orquestra e coro Columbia LPCB 41.003 • - LP 1957 1957
Betinho e seu conjunto
Copacabana CLP 11.077 - LP 1958 1958
Fafá Lemos e seu conjunto
Odeon MOFB 3.045 - LP 1958 1958
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.075 - LP 1959 1959
Sivuca e seu conjunto
Barclay EBPL 920.105 * - LP 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Sambistas da Guanabara
Odeon SMFB 3.215 - LP 1961 1961
Lord Astor e seu conjunto Imperial 30.025 - LP
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 - LP 1962 1962
Simonetti e sua orquestra
RGE XRLP 5.167 - LP 1962 1962
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Paulinho Nogueira (violão)
RGE XRLP 5.088 • - LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Miltinho com conjunto, ao vivo RGE XRLP 5.281 * - LP 1966 1966
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
José da Conceição (violão)
Itamaraty ITAM 7.042 * - LP 1968
Sambista(r) do Asfalto
Prestise OLP 1.011 - LP 1968
Luiz Bandeira, ritmo e coro Copacabana CLP 11.602 - LP 1970 1970
Elizeth Cardoso e Sílvio Caldas com
orquestra
Copacabana 11.644-LP 1971 1971
Xixa e seu conjunto
PremierPRLP 1.197- LP 1971 1971
Nelson Gonçalves com regional RCACamdem CASB 5.310 * - LP 1971
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues, Samba Som Sete e
Nelsinho (trombone)
Equipe XPTO 1 - LP 1973 1973
Conjunto OTR'74
Guarani LPG 510- LP 1974 1974
Os Caretas
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Francisco Petrônio e
Conjunto Época de Ouro
Continental 1.07.405.077 - LP 1976 1976
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Carlinhos Polidoro com orquestra CID 4.103-LP 1980 1980
Ivanildo (sax) com conjunto CID 4.107-LP 1981 1981
Caola (vocal e violão) e Zenio (tuba) Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Continental MOFB 3.045 - LP 1983 1983
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Fats Elpldio com acompanhamento rítmico RCA Victor BPL 4 - LP
Guimarães e seu conjunto Odeon MOFB 3.250 - LP
Lauro Paiva (órgão) e seu ritmo Copacabana 11.163 - LP
Mcacir Silva e sua orquestra Copacabana 6.509 - 78 Copacabana CLP 11.409 - LP
Orquestra Continental de Jaú, regida por Waldomiro de Oliveira Internacional CID
27.022 - LP
83 - FITA DE CINEMA
(?). 1935
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
Melodia perdida
84 - FOI ELE
Samba. 1935. Paródia de Foi Ela, de Ary
Barroso
Da opereta Ladrão de Galinha
85 - FUI LOUCO
Samba. 1933. Com Alcebíades Barcellos O nome de Noel não está no selo da
primeira gravação. Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por José
Maria Arantes
em depoimento aos autores
504
Mário Reis e Grupo da Velha Guarda Victor 33.645 - 19 1933 1933
Lyra de Xopotó
Sinter SLP 1.725 - LP 1957 1958
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 L - LP 1965 1965
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana COLP 11.466 • - LP 1966
1966
Sambistas do Asfalto
Prestige DLP 1.011-LP ' 1968
Mário Reis com orquestra
Odeon MOFB 3.690- LP 1971 1971
José Menezes e seu conjunto Sinter SLP 1.722-LP
86 - FUI UMA VEZ_
Canção. 192... Paródia de Gigolette, de Franz Lehár
Ensinada aos autores pelo general Moacyr Mattos de Oliveira
Fuzarqueira
Ver Mulata Fuzarqueira
87 - GAGO APAIXONADO
Samba. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa acompanhado de seu grupo Columbia 22.023 - 78 1931 1931 Continental
LPP 19 - Ip 1931 1955 Continental LPK 20.002 • - LP 1931 1967
Moreira da Silva com Orquestra de Oswaldo Borba
Odeon 14.457 - 78 1959 1959 Odeon BWB 1.093 - Cp 1959 1959 Odeon MOFB 3.096 * -
LP 1959 1959
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
MPB 4
Elenco 61 * - LP 1970 1970
João Nogueira com conjunto instrumental Odeon SMOFB 3.843 • - LP 1974 1974
Grupo Chapéu de Palha com orquestra Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1979
Moreira da Silva com conjunto
instrumental
Polydor 2451.138 * - LP 1979 1979
Evandro Mesquita e seu conjunto Philips 830.621-1 - LP 1986 1986
88 - A GENOVEVA NÃO SABE O QUE DIZ
Samba. 1935. Paródia de Palpite Infeliz,
de Noel Rosa
Da opereta Ladrão de Galinha
89 - GOSTO, MAS NÃO É MUITO
Marcha. 1931. Com Ismael Silva e Francisco Alves
O nome de Noel não está no selo do disco. Co-autoria a ele atribuída por
Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Francisco Alves e Bambas do Estácio
Parlophon 13.375 - 78 1931 1932
Odeon MOFB 3.507 - LP 1931 1967

Noe/ Rosa: Uma Biografia


90 - HABEAS-CORPUS
Samba. C. 1933. Com Orestes Barbosa Ensinada por Armênio Mesquita Veiga aos
autores. Co-autoria atribuída a si mesmo por Orestes Barbosa em Samba
Iça a Vela
Ver Mão no Remo
Ilustre Visita
Ver Só Pode Ser Você
91 - INGÊNUA
Valsa. 1930. Com Glauco Vianna Partitura manuscrita pertencente ao arquivo de
Glauco Vianna
Glauco Vianna (solo de violão) com acompanhamento de piano Parlophon 12.886 - 78
1928 1928
92 - ISSO NÃO SE FAZ
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do
disco só está o nome de Ismael. Na partitura, os dos três
João Petra de Barras com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.031 - 78 1933 1933
93 - JÁ NÃO POSSO MAIS
Samba. 1932. Com Puruca, Canuto e Almirante. Ed. Mangione
Almirante com Bando de Tangarás Parlophon 13.364 - 78 1931 1932
94 - JÁ SEI QUE TENS NOVO AMOR
Samba. C. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do
disco, autoria atribuída a Carlos Martins. Na partitura, apenas a Noel, Ismael e
Francisco
Jonjoca e Castro Barbosa com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.019 - 78 1933 1933
95 - JOÃO-NINGUÉM
Samba. 1935. Ed. Mangione
Noel Rosa com conjunto regional Odeon 11.257 - 78 1935 1935 MIS MP001 "-LP 1935
1965
Aracy de Almeida com Fats Elpídio e seus Muchachos
Odeon 12.953 - 78 1949 1949
Odeon 13.206 - 78 1949 1952
Imperial IMP 30.165 - LP 1949 1969
Francisco Egidio com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Lygia com orquestra
RGE XRLP 5.232 - LP 1964 1964
Cynara e Cybele
CBS 37.548-LP 1968 1968
Paulinho Nogueira com regional de
Evandro
Continental 1.01.404.083 * - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Roberto Luna com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc 50.005 - 78
Musídisc M-020 - Ip
96 - JOÃO TEIMOSO
Samba. 193... - 1962. Com Marllia Baptista. Ed. Mangione
Marllia Baptista com orquestra Musidisc 2.060 • - LP 1962 1962
97 - O JOAQUIM É CONDUTOR
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Marilia Pera e Grande Othelo com Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado
106.86.0447 - LP 1985 1986
98 - JULIETA
Fox-trot. 1931. Com Eratósthenes Frazão Ed. Mangione
Castro Barbosa com orquestra Odeon 11.063 - 78 1933 1933
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
99 - JUJU
Marcha. C. 1935
Citada por Noel em entrevista à revista
Carioca, 14 de dezembro de 1935
100- LATARIA
Marcha. 1930. Com João de Barro e
Almirante
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria a ele atribuída por João
de Barro em entrevista a Sérgio Cabral,
O Globo, 24 de janeiro de 1977
Bando de Tangarás
Parlophon 13.248 - 78 1931 1931
Leilão do Brasil Ver Quem Dá Mais?
101 - LEITE COM CAFÉ
Samba. 1935. Com Hervé Cordovil. Ver boxe Loura ou Morena? no Capítulo 35
Melodia perdida
Linda Pequena Ver Pastorinhas
102 - LIRA ABANDONADA
(?). 193... Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
103 - MADAME HONESTA
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
104 - O MAIOR CASTIGO QUE EU TE
DOU
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Boêmios da Cidade
RCA Victor 34.176 - 78 1937 1937
RCA Camdem CALB 5.026 *-LP 1937 1961
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 * - LP 1981 1981
105 - MAIS UM SAMBA POPULAR
Samba. 1934. Com Vadico. Ed. Mangione e Vitale
Ana Cristina e conjunto de Luís Bittencourt Sinter354-78 1954 1954
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
106 - MALANDRO MEDROSO
Samba. 1930. Ed. Mangione
NoeJ Rosa com o Bando Regional Parlophon 13.245 - 78 1930 1930 Imperial IMP
30.205 - LP 1930 1971
107 - MÃO NO REMO
Samba. 1931. Com Ary Barroso Ed. Mangione
Sílvio Caldas com orquestra Victor 33.479 - 78 1931 1931
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
108 - MARCHA DA PRIMAVERA
Marcha. 1934
Ensinada por Armênio Mesquita Veiga aos
autores
109 - MARCHA DO DRAGÃO
Marcha publicitáric 1936. Com Vadico Citada por Vadico em entrevista a Clemente
Neto em Revista da Música Popular Melodia perdida
110 - MARDADE DE CABOCLA
Canção sertaneja. 1931 Ensinada por José de Souza Pinto (Alegria) aos autores
111 - MARIA-FUMAÇA
Samba. 1936. Ed. Mangione
Almirante e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.086 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1936 1971
112 - MAS COMO... OUTRA VEZ?
Marcha. 1932. Com Francisco Alves Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.961 - 78 1933 1933
Odeon MODB 3.075 - Ip 1933
113 - MAS QUEM TE DEU TUDO ISSO?
(?). 1937
Letra reproduzida por Almirante em No
Tempo de Noel Rosa. Melodia perdida
114 - A MELHOR DO PLANETA
Samba. 1934. Com Almirante Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK
20.018 * - LP 1955 1967
505

João Máximo e Carlos Didier


115 - MENINA DOS MEUS OLHOS
Marcha. 1936. Com Lamartine Babo Ed. Vitale e Mangione O nome de Noel está na
partitura, mas não no selo do disco
Orlando Silva e Gaúcho com os
Diabos do Céu
Victor 34.034 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.130 • - LP 1936 1967
Menina dos Olhos
Ver Menina dos Meus Olhos
116-MENTIR
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Gente Boa Odeon 10.943 - 78 1933 1933
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Mentira Necessária Ver Mentir
117 - MENTIRAS DE MULHER
Samba. 1931
Noel Rosa e Arthur Costa com
Grupo Columbia
Columbia 22.083 - 78 1932 1932
Continental LPP 19 - Ip 1932 1955
Disco Lar LPDS 32.051 • - LP 1932 1969
118-MEU BARRACÃO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com acompanhamento de
piano (3)
Columbia 22.242 - 78 1933 1933
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK
20.018 * - LP 1955 1967
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD 1.142 - Cp 1965 1966
RCA Victor 110.0021 - LP 1965 1980
119-MEU BEM
Samba. 1931
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa (Jornal de Modinhas, junho
de 1931)
Melodia e letra perdidas
120-MEU SOFRER
Canção. 1930. Com Henrique Britto Ed. Mangione
No selo da primeira gravação recebeu o nome de Meu Sofrer. Posteriormente seria
mais conhecida como Queixumes
Gastão Formenti com acompanhamento de
violões
Brunswick 10.120 - 78 1930 1930
Luiz Gonzaga com acompanhamento Victor 800.333 - 78 1945 1945
Carlos Galhardo com orquestra Victor 800.388 - 78 1946 1946 RCA Camdem CALB
5.130 • - LP 1946 1967
Jaime Ferreira
Odeon 14.776 - 78 1961 1961
Luiz Bonfá (violão) com acompanhamento Odeon SMOFB 3.360 • - LP 1964 1964
121 - MINHA VIOLA
Embolada. 1929
Noel Rosa e conjunto
Parlophon 13.185 - 78 1930 1930
MIS MP 001 -LP 1930 1965
Momento Quatro
Fontana 6470.562 • - LP 1976
Rolando Boldrin e Lurdinha Pereira com
conjunto
Continental 1.01.404.237 - LP 1980 1980
Martinho da Vila
RCA Victor 710.0632 - LP 1984 1984
Morena e Loura Ver Atchim!
122-MORENA SEREIA
Marcha. 1936. Com José Maria de Abreu
Ed. Mangione
Do Filme Cidade Mulher.
Marllia Baptista com orquestra Musidisc HiFi 2.060 * - LP 1962 1962
123 - MUITO RISO, POUCO SISO
Citada por Noel em seu caderno de
músicas
Melodia e letra perdidas
124 - MULATA FUZARQUEIRA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e Bando de Tangarás Parlophon 13.327 - 78 1931 1931 MIS MP 001 --LP
1931 1965
125 - MULATO BAMBA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Mulato Forte Ver Mulato Bamba
126 - MULHER INDIGESTA
Samba. 1932
Noel Rosa com acompanhamento de
Os Sete Diabos
Columbia 22.089 - 78 1932 1932
Continental LP 19 - Ip 1932 1955
Disco Lar LPDS 32.051 • - LP 1932 1969
127-NA BAHIA
Samba. 1936. Com José Maria de Abreu
Ed. Mangione
Do filme Cidade Mulher
Conjunto Coisas Nossas e coro Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Na Esquina da Vida Ver Esquina da Vida
128- NÃO BRINCA NÃO
Embolada. 1932
Almirante com o Bando de Tangarás RCA Victor 33.557 - 78 1932 1932
129-NÃO DIGAS
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco
só está o nome de Ismael. Na partitura, os dos três
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.066 - 78 1933 1933
130- NÃO FAZ, AMOR
Samba. 1932. Com Cartola O nome de Noel não está no selo da primeira gravação.
Co-autoria atribuída por Cartola em depoimento aos autores
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.927 - 78 1932 1933
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
131 - NÃO FOI POR AMOR
Samba. 1934. Com Zé Pretinho e Germano
Augusto
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria atribuída por Zé Pretinho
em depoimento aos autores
Orlando Silva e os Diabos do Céu
Victor 34.047 - 78 1935 1936
RCA Camdem 803.223 - LP 1935 1985
132- NÃO HÁ CASTIGO
Samba. 1932. Com Ernesto dos Santos (Donga). Ed. Mangione
Helena e João Barreto com Gente do Peito Parlophon 13.437 - 78 1932 1932
133 - NÃO ME DEIXAM COMER
Marcha faminta. 1932. Ed. Mangione
Pinto Filho com Gente da Mangueira Parlophon 13.405 - 78 1932 1932
134 - NÃO MORRE TÃO CEDO
Samba. 193...
Ensinada por Aracy de Almeida e Armênio
Mesquita Veiga aos autores
135 - NÃO QUERO MAIS
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nono). Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
136 - NÃO RESTA A MENOR DÚVIDA
Marcha. 1935. Com Hervé Cordovil Ed. Mangione
Bando da Lua
Victor 34.008 - 78 1936 1936
Marlene com orquestra e coro Philips 6349.330 - LP 1977 1977
Não Tem Bandeira
Ver De Qualquer Maneira
137 - NÃO TEM TRADUÇÃO
Samba. 1933
Um contrato de gravação, da Odeon, cita erradamente Ismael Silva e Francisco
Alves como co-autores
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.057 - 78 1934 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1934 1970
Aracy de Almeida com Vero e sua
orquestra
Continental 16.319-78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 • - LP 1950 1967
506

Noel Rosa: Uma Biografia


Leal Brito, seu piano e seu conjunto Odeon 10.927 - 78 1932
1932 The Pop's
Sinter 1.716 - LP 1957 1957 Odeon MOFB 3.640 •
- LP 1932 1970 Equipe EQ 813 - LP 1966 1966
Marilia Baptista com orquestra Cristina Buarque
de Hollanda e conjunto Banda do Canecão
NilserNS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963 instrumental
Polydor LPNG 4.129 *-LP 1967 1967
Tânia Maria (piano e vocal) com trio RCA Victor 1 030088 ~
LP 1974 1974 Elza Soares com orquestra
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966 , _, _..__ ___. , ",""_",_,
Odeon MOFB 3.500 - LP 1967 1967
147 - ONDE ESTA A HONESTIDADE?
Helena de Lima com Quinteto
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Silvio Caldas com regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
João Nogueira com orquestra
Odeon SMOFB 3.887 * - LP 1975 1975
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
138-NEGA
Samba. 1931. Com Lamartine Babo Ed. Mangione
João de Barro com o Bando de Tangarás Parlophon 13.272 - 78 1931 1931
139 - NEGÓCIO DE TURCO
Tango. 193... Paródia de composição não
identificada
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
140 - NEM COM UMA FLOR
Samba. 1933. Com Francisco Alves Ed. Mangione
João Petra de Barras com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.976 - 78 1933 1933
141 - NO BAILE DA FLOR-DE-LIS
Samba. 193... Ed. Mangione
Aracy de Almeida Sinter 45-1007-Cp
142 - NOS TRÊS DIAS DE FOLIA
Samba. 1937
Ensinada por Creusa, filha de Cartola, aos
autores
143 - NUMA NOITE À BEIRA-MAR
Valsa. 1936. Ed. Mangione
Letra reproduzida no Jornal de Modinhas,
maio de 1936. Melodia perdida
144 - NUNCA DEI A PERCEBER
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione No selo do disco
só está o nome de Ismael. Na partitura, os dos três
Francisco Alves e Orquestra Copacabana Odeon 11.066 - 78 1933 1933
145 - NUNCA... JAMAIS
Samba. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa com Choro
Victor 33.488 - 78 1931 1931
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1931 1971
Tavinho Moura e Silvia Beraldo com
regional
Odeon 062.421221 - LP 1981 1981
146 - NUVEM QUE PASSOU
Samba. 1932. Ed. Mangione
Francisco Alves com Orquestra Copacabana
Samba. 1933
Noel Rosa com Turma da Vila Odeon 10.989 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.041 • - LP
1933 1958
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Beth Carvalho e conjunto Tapecar X-33 * - LP 1975 1975
Aracy de Almeida com conjunto Sinter 45.1007-Cp Philips P 630.410 L'-LP
148 - O ORVALHO VEM CAINDO
Samba. 1933. Com Kid Pepe Ed. Mangione
Almirante com Diabos do Céu Victor 33.734 - 78 1933 1933 RCA Camdem CALB 5.186 •
- LP 1933 1968
Aracy de Almeida, Radamés e Orq. de Cordas, Trios Melodia e Madrigal Continental
16.393-78 1951 1951
Jorge Goulart com orquestra e coro Continental LPP 5 - Ip 1954 1954 Continental
1.19.405.032 - LP 1954 1977
Raul de Barros e seu conjunto Odeon MODB - Ip 1956 1956
Betinho e seu conjunto
Copacabana CLP 11.077 - LP 1958 1958
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.010 * - LP 1958 1958
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2.153 - LP 1962 1962
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental PPL 12.036 - LP 1962 1962
Sacha e seu conjunto
RCA Victor BBL-1.085 - LP 1962 1962
Simonetti e sua orquestra
RGE XRLP 5.167 - LP 1962 1962
Quarteto Excelsior Copacabana CLP 3.012 - Ip
Quarteto Excelsior
Copacabana SOLP 40.039 • - LP 1962
Marilia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214 - LP 1964 1964
Sambistas da Guanabara
Odeon MOFB 3.388 - LP 1964 1964
Sambistas da Madrugada
Copacabana CLP 11.380 - LP 1964 1964
Joni Maza e seu conjunto
Copacabana CLP 11.464 - LP 1966 1966
Carlos César e Demônios da Garoa Chantecler CMG 2.282 - LP 1968 1968
Coro Popular de Samuel Rosemberg e orq.
reg. por Pereira dos Santos
Caravelle CAR 33.010 • - LP 1968 1968
Marlene, Nuno Roland, Blecaute c/indio e conj. ao vivo Teat. Casa Grande MIS MIS
009 - LP 1968 1969
Xixa e seu conjunto
Premier PRLP 1.197 - LP 1971 1971
Banda do Rio e coro
Guarani LG 407/408 - LP 1972 1972
Os Imperiais do Ritmo
Continental SLP 10.087 - LP 1972 1972
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Djalma Pires com acompanhamento
instrumental
RGE 303.0016 - LP 1973 1973
Os Três Moraes com orquestra Continental SLP 10.104 - LP 1973 1973
Mato e Morro
Copacabana SOLP 40.487 - LP 1974 1974
Conjunto Explosão do Samba CID 2.124-LP 1978 1978
Djalma Dias com orquestra
Marcus Pereira MPA 9.375 - LP 1978 1978
Grupo Roupa Nova
Fontana 6470.609 • - LP 1978 1978
Grupo Chapéu de Palha com orquestra Copacabana COELP 41.208 - LP 1979 1971
Maestro Portinho e banda Clack/WEA BR 83.006 - LP 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124 - LP
Caçulinha, seu órgão e seu conjunto Continental PPL 12.192 • - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Joe Pernambuco e ritmo Audiola A 200.018- LP
Mário Gennari Filho Imperial IMP 30.011 - LP
Scarambone e seu conjunto de dança RCA Victor BBL 1.002 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia37.118-LP
149 - PAGA-ME ESTA NOITE Fox-trot. C. 1934. Paródia de Tell me Tonight, de
Mischa Spoliansky Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
150-PALPITE
Marcha. 1932. Com Eduardo Souto
507

João Máximo e Carlos Didier


Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 10.870 - 78 1932 1932
Odeon MOFB 3.640 - LP 1932 1970
151 - PALPITE INFELIZ
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Conjunto Regional RCA Victor
RCA Victor 34.007 - 78 1936 1936 Abril Cultural MPB 01 - Ip 1936 1970 Abril
Cultural HMPB 08 - Ip 1936 1977
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com violão, baixo e pandeiro Victor 34.794 -
78 1941 1941
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.008 - Ip 1946 1955
RCA Victor 80.0515 - 78 1946 1947
Aracy de Almeida com Quarteto
Continental
Continental 16.317 - 78 1950 1950
Continental LPP 6 - Ip 1950 1954
Continental LPK 20.018 • - LP 1950 1967
José Luciano, seu piano e ritmo Mocambo LP 10.004 - Ip 1954 1954
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BBL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem
CALB 5.130 * - LP 1955 1967
Os Namorados
Sinter267-78 1955
RCA Camdem CALB 5.095 - LP 1955 1'966
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.050 - Ip 1956 1956
Francisco Egidío com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Agostinho dos Santos com Simonetti e
orquestra
RGE XRLP 5.057 - LP 1959 1959
Roberto Silva e conjunto
Copacabana SOLP 40.039 * - LP 1959 1962
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Escola de Samba Império Serrano Copacabana CLP 11.209 - LP 1961 1961
Jacob do Bandolim
RCA Camdem - LP 1963 1979
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Avena de Castro (citara) e conjunto Copacabana 11.214 - LP 1964 1964
Alberto Paz, sua batucada e coro Philips P 632.783 L - LP 1965 1965
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
The Pop's
Equipe EQ 813 * - LP 1966 1966
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 • - LP 1968 1968
Gasolina
Copacabana 0726 - Cp 1968 1968
Marlene com índio e seu conjunto, ao vivo
Teatro Casa Grande
MIS MIS 009-LP 1968 1969
Conjunto Nosso Samba
Beverly BPL 80.738 - LP 1969 1969
Helena de Lima e quinteto da Boate Drink RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Silvar e seu conjunto
Bemol BMLP 80.035 - LP 1969 1969
Maestro Carioca, sua orquestra e coro Equipe EQC 849 - LP 1970 1970
Mane do Cavaco (cavaquinho) com
conjunto
RCA Victor 103.0068 * - LP 1973 1973
Os Três Moraes
Continental SLP 10.104- LP 1973 1973
Pedrinho Rodrigues, Samba Som Sete e
Nelsinho (trombone)
Equipe XPTO 1 - LP 1973 1973
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Miltinho, ao vivo
Premier 3.073.186 * - LP 1973
Conjunto DRT'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
Manuel da Conceição (violão)
RCA Camdem 107.0186 - LP 1974 1974
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Grupo 10.001 e Vocal Documenta
RCA Camdem 107.0211 - LP 1975 1975
Aracy de Almeida
Fontana 6470.562 - LP 1976
Orquestra
GTA COLP 12.087 - LP 1977 1977
Dom Pedrotti e sua orquestra
IBC Discos LE 100.010 - LP 1979 1979
Turma do Arco da Velha
GTA GTALP 061 - LP 1979 1979
Baden Powell (violão), com baixo, bateria e
percussão
Imagem 4.015 - LP 1982 1986
Imperiais do Ritmo com orquestra Continental 1.07.405.060
Lauro Paiva e seu conjunto de danças Copacabana CLP 11.254 - LP
Sylvio Mazzuca e sua orquestra Columbia37.118-LP
152 - PARA ATENDER A PEDIDO
Samba. 193... Ed. Mangione
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
153 - PARA BEM DE TODOS NÓS
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Grande Othelo, Marilia Pera, Caola, Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado
106.86.0447 - LP 1985 1986
154 - PARA ME LIVRAR DO MAL
Samba. 1932. Com Ismael Silva Ed. Mangione
Chico Viola com Gente Boa Odeon 10.922 - 78 1932 1932 Odeon MOFB 3.507 * - LP
1932 1967
Ismael Silva com orquestra e coro Sinter 1.055-Ip 1955 1955 Sinter SLP 1.774 * -
LP 1955
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor LPNG 4.014 * - LP 1958 1958
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro com
regional
Philips P 632.788 L * - LP 1965 1965
Ismael Silva com Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG
4.121 - LP 1966 1966
Originais do Samba
Abril Cultural- Ip 1970 1970
Doris Monteiro, Miltinho e orquestra Odeon SMOFB 3.680 - LP 1971 1971
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 * - LP 1973 1973
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Elza Soares e Miltinho com orquestra Odeon MOFB 3.540 - LP
155 - PASTORINHAS
Marcha-rancho. 1934. Com João de Barro Ed. Mangione
Ver boxe De Linda Pequena a Pastorinhas, no Capitulo 33
João Petra de Barros com orquestra Odeon 11.281 -78 1935 1935 Fenab 104/105 - LP
1935 1982
Sílvio Caldas com Orquestra de Napoleão
e seus Soldados Musicais
Odeon 11.567 - 78 1937 1938
Odeon 12.976 - 78 1937 1950
Abril Cultural MPB 09 - Ip 1937 1970
Abril Cultural HMPB 24 - Ip 1937 1977
Odeon MOCB 3.025 - - LP 1937 1958
Orquestra Odeon dirigida por Simon
Bountmann e coro
Odeon 11.634- 78 1938
Francisco Scarambone (piano) Odeon 11.756 - 78 1938 1939
Aurora Miranda e Bando da Lua (4) Odeon 283.627 - 78 1941 1942 Chantecler (MCA)
4.07.404.099 - LP 1941 1975
Alcides Gerardi com orquestra Odeon MODB 3.021 - Ip 1955 1955
Orquestra de Severino Filho e coro Polydor 117-78 1955 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com
ritmo e coro
Odeon 14.089 - 78 1956 1956
Cauby Peixoto com orquestra
RCA Victor BPL 3.033 - Ip 1956 1957
RCA Camdem CALB 5.192 * - LP 1956 1969
Solon Salles e seu conjunto Odeon MODB 3.030 - Ip 1956 1956
Banda de Música do Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara Odeon 14.282 - 78
1957 1957 Odeon MOFB 3.000 * - LP 1957 1957
508

Noel Rosa: Uma Biografia

Gaúcho e seu conjunto


Rádio 0049 GV - LP 1957 1957
Lyra de Xopotó
Sinter575-78 1957 1957
Sinter SLP 1.707 * - LP 1957 1957
Fafá Lemos e Luiz Bonfá
Odeon MOFB 3.047 - LP 1958 1958
Carlos José com orquestra
Odeon MOFB 3.114 * - LP 1959 1959
Cópia e seu conjunto
Festa LDV 6.007 - LP 1959 1959
Luiz Arruda Paes e sua orquestra Odeon BWB 1,095 - Cp 1959 1959
Orquestra RGE dirigida por Simonetti RGE XRLP 5.059 • - LP 1959 1959
Orquestra Tabajara de Severino Araújo Continental LPP 3.076 * - LP 1959 1969
Banda Real de Momo
Plaza 45.004 - Cp 1960 1960
Plaza PZ 302 - LP 1960 1960
Edu da Gaita com RadamèS Gnattali e seu
sexteto
Odeon BWB 1.154 - Cp 1960 1960
Odeon MOFB 3.200 - LP 1960 1961
Ivan Casanova e seus conjuntos Imperial IMP 30.024 - LP 1960
Aracy Barbosa
Odeon MOFB 3.261 - LP 1961 1961
Aloysio Figueiredo e seu conjunto Copacabana SOLP 40.039 • - LP 1962 1962
Luiz Bonfá (violão) com contrabaixo,
bateria e percussão
Odeon SMFB 3.295 - LP 1962 1962
Pequenos Cantores da Guanabara Philips P 630.499 - LP 1962 1962
Corpo Musical da Guarda Civil do Estado
de São Paulo
Chantecler CMG 2.269 - LP 1963 1963
Dom Pacheco y sus Muchachos Copacabana 40.165 - LP 1963 1963
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Coral de Ouro Preto
Polydor LPNG 4.094 - LP 1964 1964
Cipó e Academia de Samba Imperial Imperial IMP 30.077 - LP 1965 1965
Maestro Cipó, grupo rítmico e coro London 064.42.810 - LP 1965 1965
Nanai e seu conjunto, ao vivo Musidisc HiFi 2.130 - LP 1965 1966
Onéssimo Gomes com Orquestra e Coro
Musidisc
Musidisc HiFi 2.127 - LP 1965 1965
Osvaldo Fakel
RCA Victor BBL 1.377 - LP 1966 1966
The Pop's
Equipe EQ 811 • - LP 1966 1966
Anjos do Sol
Guarani G-503 - LP 1967 1967
Helena de Lima e a Banda da Policia Militar do Estado da Guanabara RGE XRLP
5.318 - LP 1967 1967
José da Conceição (violão)
Farroupilha LPFA 424 - LP 1987 1967
Orquestra e Coro no Baile de Carnaval do Teatro Municipal Sideral/Rosemblit LP
40.375 -LP1967 1967
A Nossa Turma
Parlophone PBA 13.015 - LP 1968 1969
Bandinha Psicodélica
Continental PPL 12.363 - LP 1968 1968
Nuno Roland com índio e seu conjunto, ao vivo no Teatro Casa Grande MIS MIS 009-
LP 1968 1968
Banda da Saudade
RCA Victor BBL 1.518 - LP 1969 1969
Os Populares
RCA Victor BBL 1.481 - LP 1969 1969
Elizeth Cardoso e Banda do Sodré, ao vivo Copacabana CLP 11.626 • - LP 1970 1970
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
João de Barro com orquestra e coro RCA Victor 103.0054 * - LP 1972 1972
Banda do Canecão
Polydor 2.939.101/2/3 * - LP 1973 1973
Dalva de Oliveira com orquestra Odeon XSMOFB 3.758 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Conjunto DTR'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
Os Três Moraes com orquestra Continental 1.01.404.115 - LP 1975 1975
Sílvio Caldas com orquestra, ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 403.6074 * - LP 1975 1975
Banda da Saudade
Philips 6349.316 - LP 1977 1977
Banda de Ipanema
RCA Victor 103.0197 - LP 1977 1977
Cláudio Moreno com orquestra
Marcus Pereira MPA 9.374 - LP 1977 1977
As Melindrosas
Copacabana COMLP 25.040 - LP 1978 1978
Grupo dos Foliões
Esquema 1.239.107 • - LP 1978 1978
Orquestra e coro dirigidos por José
Menezes
Soma 409.6027 - LP 1978 1978
Superbigband
Continental 1.07.405.130 - LP 1978 1978
A Patotinha com orquestra
RCA Victor 107.0300 • - LP 1979 1979
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Grande Banda do Chopp CID 4 050 •- LP 1979 1979
Manuel da Conceição (violão) com ritmo Musiquim LPM-MC-002 - LP 1979 1979
Banda do Povo
CBS 104.493 - LP 1980 1980
Carlinhos Polidoro com orquestra
CID 4.103-LP 1980 1980
Coral dos Empregados da Petrobrás com
percussão
Petrobrás P-001 - LP 1980 1980
Ivanildo (sax) e conjunto
CID 4.079-LP 1980 1980
Banda Carnavalesca Cidade Maravilhosa Philips 6328.304 - LP 1981 1981
Bloco Pierrôs e Colombinas
Som Livre 403.6245 - LP 1981 1981
Emilinha Borba e Jorge Goulart com
conjunto e coro
Continental 1.07.405.228 - LP 1981 1982
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326 - LP 1982
Samba Livre
Soma 409.6063 - LP 1983
Orquestra e coro
SECC 1.000 - LP 1985 1985
Conjunto Maracangalha Philips 4-5022 - LP
Discomomo Band Continental 1.04.405.264 - LP
Enrico Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.018 - Ip
Evandro
CID 14.017-LP
Fernando Gallo, seu piano, orquestra e
coral
Banco do Brasil s/n
Nelson Gonçalves com conjunto RCA Camdem 107.0084 - LP
Orquestra de Estúdio Som SOLP 40.128-LP
Orquestra e coro Esquema 1.239.077 - LP
Peruzzi e sua orquestra Paladium 2.008 - LP
Sem identificação Oba/CID 16/17/18/19-LP
156 - PELA DÉCIMA VEZ
Samba. 1935. Ed. Mangione
Aracy de Almeida, Geraldo Medeiros, seu conjunto e Bolinha (piano) Odeon 12.804
- 78 1947 1947 Odeon 13.206 - 78 1947 1952 Fenab 104/105 - LP 1947 1982
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Dalva de Oliveira com orquestra
Odeon XSMOFB 3.844 • - LP 1967 1974
Creusa Cunha com orquestra CBS 104.466 - LP 1979 1979
Cristina Buarque com conjunto Ariola 201.628-LP 1981 1981
Lucinha Araújo com orquestra
RCA Victor 103.0552 - LP 1982 1982
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
157 - PELA PRIMEIRA VEZ
Samba. 1936. Com Christovam de Alencar Ed. Mangione
509

João Máximo e Carlos Didier


Orlando Silva e conjunto regional RCA
Victor
Victor 34.061 -78 1936
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1936 1967
Orquestra Rádio
Rádio LP 1 -Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 * - LP 1966 1966
158 - PERDÃO, MEU BEM
Samba. 193... Com Ernani Silva Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel
Rosa
Melodia e letra perdidas
159 - PERDOA ESTE PECADOR Fox-trot. 1935. Com Arnold Glückmann Da operela A
Noiva do Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
160 - PERNA BAMBA
Samba. 1930. Com Renato Murce Citada pòr Renato Murce em depoimento aos autores
Melodia perdida
161 - PESADO 13
Tango. 1931. Paródia de El Penado 14, de Agustin Magaldi, Pedro Noda e Carlos
Pesce
Paulo Netto de Freitas e conjunto típico Parlophon 13.369 - 78 1932 1932
162- PICILONE
Samba tonético. 1931. Ed. Mangione
Noel Rosa e Joáo de Barro com Bando de
Tangarás
Parlophon 13.344 - 78 1931 1931
163 - PIERROT APAIXONADO
Marcha. 1935. Com Heitor dos Prazeres Ed. Mangione
Joel e Gaúcho com Diabos do Céu RCA Victor 34.012 - 78 1936 1936 RCA Camdem CALB
5.109 - LP 1936 1967
Fernando Alvarez com La Falce e sua
orquestra
Victor 34.836 - 78 1941 1941
Jorge Goulart, orquestra e coro Continental LPP 5 - Ip 1954 1954
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BPL 3.009 - Ip 1955 1955
Carolina Cardoso de Menezes (piano) com
ritmo e coro
Odeon 14.089 - 78 1956 1956
Joel e Gaúcho com orquestra e coro Victor BBL 1.217 • - LP 1962 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Cipó e Academia de Samba Imperial Imperial IMP 30.007 • - LP 1965 1965
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD-1. 142 - Cp 1965 1966
Bossa 4
Equipe EQ 815- LP 1967 1967
Banda do Canecão
Polydor LPNG 4.132 * - LP 1968 1968
Elizeth Cardoso e a Banda do Sodré, ao
vivo
Copacabana CLP 11.626* - LP 1970 1970
Banda do Rio e coro
Guarani LG 507/508 - LP 1972 1972
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Joel de Almeida com orquestra Odeon SMOFB 3.821 - LP 1973 1973
Conjunto DTR'74
Guarani LPG 510 - LP 1974 1974
As Melindrosas
Copacabana M COMLP 25.040 - LP 19781978
Martinho da Vila com orquestra RCA Victor 110.0020 - LP 1979 1979
Samba Livre
Soma 409.6034 - LP 1979 1979
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326 - LP 1982
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Black-Out, coro e ritmo Odeon MOFB 3.124 - LP
Evandro CID 14.017
Grupo dos Foliões Esquema 1239.117 - LP
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.730- LP
Neyde Fraga
Odeon MODB 3.030 - Ip
Pisou no Meu Calo Ver Você é um Colosso
164 - POR CAUSA DA HORA
Samba. 1931
Noel Rosa com Choro
Victor 33.488 - 78 1931 1931
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1931 1971
165 - POR ESTA VEZ PASSA
Samba. 1931
I. G. de Loyola com Conjunto Vozes do
Outro Mundo
Parlophon 13.288 - 78 1931 1931
166 - POR VOCÊ SOU CAPAZ
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo Melodia perdida
167- POSITIVISMO
Samba. 1933. Com Orestes Barbosa Ed. Mangione
Noel Rosa com Pixinguinha e sua
orquestra
Columbia 22.240 - 78 1933 1933
Continental LPP 19 - Ip 1933 1955
Abril Cultural MPB 23 - Ip 1933 1971 Abril Cultural HMPB 39 - Ip 1933 1978 Disco
Lar LPDS 32.051 * - LP 1933 1969
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170 - LP 1981 1981
168- PRA ESQUECER
Samba. 1933. Ed. Mangione
Francisco Alves com Turma da Vila Odeon 11.017 - 78 1934 1934 Odeon MOFB 3.640 *
- LP 1934 1970
Francisco Alves com orquestra Odeon 13.290 - 78 1952 1952 Odeon MOFB 3.432 - LP
1952 1965
Marllia Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 -Ip 1953 1953
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Solon Salles
Odeon MOFB 3.286 • - LP 1962
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Clara Nunes
Odeon MOFB 3.557 * - LP 1968 1968
Tavinho Moura com regional Odeon 062.421221 - LP 1981 1981
Noite Ilustrada com orquestra Tapecar LPX 39 * - LP
169 - PRA LÁ DA CIDADE
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo Melodia perdida
170- PRA QUE MENTIR?
Samba. 1937. Com Vadico. Ed. Mangione
Sílvio Caldas com Fon-Fon e sua orquestra
Victor 34.413 - 78 1939 1939
RCA Camdem CALB 5.032 • - LP 1939 1961
Aracy de Almeida com Radamés e sua Orquestra de Cordas Continental 16.391 --78
1951 1951 Continental LPP 6 - Ip 1951 1954 Continental LPK 20.018 * - LP 1951
1967
Rosana Toledo com orquestra RGE XRLP 5.160 - LP 1962 1962
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA LCD-1.142 - Cp 1965 1966
RCA Victor BBL 1.433 * - LP 1968 1968
Terra Trio
Elenco ME 55 - LP 1969 1969
MPB 4 com Paulo Moura
Philips 6349.092 * - LP 1974 1974
Paulinho da Viola (violão e vocal) Odeon SMOFB 3.890 - LP 1975 1976
Paulinho da Viola com César Faria (violão) Odeon SXMOFB 3.924 * - LP 1976 1976
Roberto Sion (sax-alto) com orquestra Eldorado 17.79.0337 " - LP 1979 1979
510

Noel Rosa: Uma Biografia


Fats Elpidio (piano) com acompanhamento
rítmico
RCA Victor BPL 4 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
Musidisc M-15.020-78
Mozar (piston) e Walter (sax-tenor) com
orquestra
Odeon MOFB 3.037 - LP
171 - PRATO FUNDO
Marcha. 1933. Com João de Barro
Almirante com Grupo da Guarda Velha
RCA Victor 33.623 - 78 1933 1933
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1933 1971
172 - PRAZER EM CONHECÊ-LO
Samba. 1932. Com Custódio Mesquita
Mário Reis com Gente Boa Odeon 10.943 - 78 1932 1932 Fenab 104/105 - LP 1932
1982
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas e Nilton
Rodrigues (trompete)
Funarte 599.404.075 - LP 1986 1987
173 - PRECAUÇÃO INÚTIL
Valsa. 1935. Paródia de Boneca, de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral Da opereta O
Barbeiro de Niterói
174 - PREGANDO NO DESERTO
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nono). Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
175-PRIMEIRO AMOR
Samba. 1932. Com Ernani Silva
Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não
no selo da primeira gravação
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.957 - 78 1933 1933
Odeon MOFB 3.363 - LP 1933 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.559 * - LP 1966 1966
176 - PROEZAS DE SEU FULANO
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa
Melodia e letra perdidas
177- PROVEI
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com Conjunto Regional de Benedicto Lacerda Odeon
11.422 - 78 1936 1936 Odeon MOFB 3.041 - LP 1936 1958
Marília Baptista com orquestra e coro Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Sambistas da Guanabara
Odeon SMOFB 3.388 - LP 1964 1964
Sambistas do Asfalto
Prestige DLP 1.011 * - LP 1968
Nora Ney e Jorge Goulart com orquestra Som Livre 403.6134 - LP 1977 1977
Grupo Rumo Independente-LP 1981 1981
178-0 PULO DA HORA
Samba. 1931
Noel Rosa com conjunto Parlophon 13.350 - 78 1931 1931
179 - QUAL A RAZÃO?
(?). 193... Com Hélio Rosa. Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
180 - QUAL FOI O MAL QUE EU TE FIZ?
Samba. 1932. Com Cartola. Ed. Mangione O nome de Noel não está no selo do disco,
nem na partitura. Co-autoria atribuída pòr Cartola em entrevista a Lena Frias,
Jornal
do Brasil, 8 de outubro de 1976
Francisco Alves e Orquestra Odeon Odeon 10.995 - 78 1933 1933
181 - QUANDO O SAMBA ACABOU
Samba. 1933. Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 11.003 - 78 1933 1933
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter 076- 78 1951 1951
Marília Baptista com Orquestra Rádio Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BBL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor
583.0000 - Cp 1955 1956 RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1955 1967
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
Leal Brito e seu piano
Sinter SLP 1.716 • - LP 1957 1957
Silvio Caldas e Conjunto Regional de
Canhoto
Columbia LPCB 70.001 - LP 1958 1958
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Noite Ilustrada com orquestra Philips P 632.164 L - LP 1963 1963
Mário Reis e orquestra
Elenco ME-22 * - LP 1965 1965
Mário Reis e orquestra
Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1965 1977
Ataulfo Alves com regional
Polydor LPNG 44.013 - LP 1967 1967
MPB 4
Fontana 6.641.559 " - LP 1976
Vânia Carvalho com orquestra CBS 138.082 - LP 1978 1978
Lúcia com acompanhamento Somil LPS 405 - LP 1980 1981
182 - QUANDO PELAS AULAS ANDO
Canção. 1927. Paródia de Yes, Sir, Thafs
My Baby, de Walter Donaldson e Gus
Kahn
Ensinada por Lauro de Abreu Coutinho
aos autores
183 - QUANTOS BEIJOS
Samba. 1936. Com Vadico. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marília Baptista com Reis do
Ritmo
Victor 34.140 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.187 - LP 1936 1968
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Grupo Rumo
Independente-LP 1981 1981
184 - QUE A TERRA SE ABRA
Marcha. 1935. Paródia de Idem, de Hervê
Cordovil
Citada por Almirante em No Tempo de
Noel Rosa
185 - QUE BAIXO
Marcha. 1936. Com Nássara Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Conjunto Regional
RCA Victor
Victor 34.007 - 78 1936 1936
Que Bom, Felicidade, Que Vai Ser Ver Felicidade
186 - O QUE É QUE VOCÊ FAZIA?
Marcha. 1935. Com Hervê Cordovil Ed. Mangione
Carmem Miranda com Grupo Odeon Odeon 11.324 - 78 1936 1936
Grupo Rumo
Independente 1-15.101.135-Cp 1983 1984
Que Horas São? Ver O Pulo da Hora
187 - QUE ORGULHO É ESTE?
Samba. 193... Com Alfredo Lopes Quintas. Partitura manuscrita pertencente ao
Arquivo Almirante
188-QUE SE DANE
Samba. 1931. Com Jota Machado
Leonel Faria com Orquestra Columbia Columbia 22.101 - 78 1932 1932
189 - QUEIMEI TEU RETRATO
Samba-canção. 193... Com Henrique Britto
Linda Rodrigues com Radamés Gnatalli e sua orquestra
Continental 17.279 - 78 1956 1956
Queixumes Ver Meu Sofrer
190 - QUEM DÁ MAIS?
Samba-humorlstico. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa com Orquestra Copacabana Odeon 10.931 - 78 1932 1933 MIS MP 001 -LP
1932 1965
Eliana Pittman com orquestra
RCA Victor 103.0084 • - LP 1974 1974
Vanja Orico com regional Seta 080.027 - LP 1981 1981
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Quem Muito Corre
Ver De Qualquer Maneira
511

191 - QUEM NÃO DANÇA


Samba. 1932. Ed. Mangione
Noel Rosa e Ismael Silva com Gente Boa Odeon 10.953 - 78 1933 1933 Imperial MPB
30.205 - LP 1933 1971
192 - QUEM NÃO QUER SOU EU
Samba. 1933. Com Ismael Silva
Francisco Alves com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.057 - 78 1934 1934
Odeon MOFB 3.640 - LP 1934 1970
Conjunto Coisas Nossas com orquestra e
coro
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
193 - QUEM PARTE NÃO PARTE SORRINDO
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo Melodia perdida
194 - QUEM RI MELHOR
Samba. 1936. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marllia Baptista com Reis do
Ritmo
Victor 34.140 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.187 - LP 1936 1968
Abril Cultural MPB 01 - Ip 1936 1970
Marllia Baptista com Orquestra Rádio e trio
vocal
Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Lygia com orquestra
RGE XRLP 5.232 - LP 1964 1964
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
Ritmo e Vozes
Odeon SC 10.008 - LP 1973 1973
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
195 - QUERO FALAR COM VOCÊ
Samba. 1932. Com Lauro dos Santos (Gradim)
João Petra de Barras com Gente Boa Odeon 10.950 - 78 1932 1933
196- RAPAZ FOLGADO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional
RCA Victor
Victor 34.368 - 78 1938 1938
RCA Camdem 5.026 • - LP 1938 1961
Francisco Egldio e orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Silvio Caldas com Regional de Canhoto CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
João Máximo e Carlos Didier
197 - A RAZÃO DÁ-SE A QUEM TEM
Samba. 1933. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.939 - 78 1933
1933 Odeon MOFB 3.640 • - LP 1933 1970
Ismael Silva, Conjunto Samba Autêntico e
Carlos Poyares (flauta)
Polydor LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Elza Soares e Roberto Ribeiro com
orquestra
Odeon SBRXLD 12.324 - LP 1972 1972
198- REMORSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Marllia Baptista com orquestra Musidisc DL 1.015 - Ip 1954 1954 Musidisc 2.060
HiFi - LP 1954 1962
199 - RETIRO DA SAUDADE
Marcha-rancho. 1934. Com Nássara
Carmem Miranda e Francisco Alves com
Diabos do Céu
RCA Victor 33.827 - 78 1934 1934
Conjunto Coisas Nossas com orquestra e
Adriana Rodrigues (vocal)
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
200 - RIR
Samba. 1932. Com Cartola e Francisco Alves. Ed. Vitale
No Selo do disco e em partitura, autoria atribuída a José de Oliveira. Em
Harmonia, apenas Noel, Cartola e Francisco
Francisco Alves e Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.939 - 78 1933
1933
201 - RISO DE CRIANÇA
Samba. 1930. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Pixinguinha e
Orquestra Columbia
Columbia 8.107 - 78 1934 1934
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
202 - ROUBOU, MAS NÃO LEVA
Marcha. 1935. Paródia de Ganhou Mas Não Leva, de Benedicto Lacerda e Nilton
Amaral. Da opereta Ladrão de Galinha
203 - RUMBA DA MEIA-NOITE
Rumba. 1931. Com Henrique Vogeler
Dina Marques e Nenéo das Neves com
Conjunto Columbia
Columbia 22.073 - 78 1931 1931
204 - SABER AMAR
Samba. 1935. Com Alfredo Lopes Quintas. Partitura manuscrita pertencente ao
Arquivo Almirante
205 - SALADA RUSSA
Embolada. 1930. Com Renato Murce Citada por Renato Murce em depoimento aos
autores Melodia e letra perdidas (parcialmente)
206 - SAÍ DA TUA ALCOVA
Canção. 193...
Ensinada por Nássara aos autores
Melodia e letra perdidas (parcialmente)
207 - SAI DO PRESÍDIO
Relacionada por Almirante em No Tempo
512
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em seu arquivo Melodia perdida
208 - SAMBA DA BOA VONTADE
Samba. 1931. Com João de Barro Ed. Mangione
Noel Rosa e João de Barro com Bando de
Tangarás
Parlophon 13.344 - 78 1931 1931
Conjunto Coisas Nossas com
orquestra e coro
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
Santa Padroeira
Ver De Qualquer Maneira
209 - SÃO COISAS NOSSAS
Samba. 1932. Ed. Mangione
Noel Rosa acompanhado pelo seu Grupo Columbia 22.089 - 78 1932 1932 Continental
LPP 19 - Ip 1932 1955 Continental LPK 20.002 " - LP 1932 1967
Aracy de Almeida e orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955 Continental LPK
20.018 * - LP 1955 1967
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Conjunto Coisas Nossas
Independente LPCN 001 - LP 1980 1980
210 - SE A SORTE ME AJUDAR
Samba. C. 1934. Com Germano Augusto
Coelho
O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria atribuída por Zé Pretinho
em depoimento aos autores
Aurora Miranda e João Petra de Barras
com Orquestra Odeon
Odeon 11.130 - 78 1934 1934
211 - SÉCULO DO PROGRESSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade
Victor 34.296 - 78 1937 1938
RCA Camdem 5.026 * - LP 1937 1961
Isaura Garcia com regional
RCA Victor 800.409 ->8 1945 1946
RCA Camdem CALB 5.208 - LP 1945
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Isaura Garcia e orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968
Elizeth Cardoso com conjunto Copacabana COLP12.335/6- LP 1978 1978
Trio Irakitan
Odeon MOFB 3.211 - LP
212 - SEI QUE VOU PERDER
Samba. 1933. Com Romualdo Peixoto (Nono ) e Alfredo Lopes Quintas O nome de Noel
não está no selo do disco. Co-autoria atribuída por Almirante em No Tempo de
Noel
Rosa
Francisco Alves com Turma da Vila Odeon 11.017 - 78 1933 1933
213- SEJA BREVE
Samba. 1933. Ed. Mangione

Noel Rosa: Uma Biografia


João Petra de Barros, Luís Barbosa e Custódio Mesquita (piano) (5) Victor 33.701
- 78 1933 1933
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
214-SEM TOSTÃO
Samba. C. 1932. Com Arthur Costa
Arthur Costa com Orquestra Columbia Columbia 22.101 - 78 1932 1932
Sem Tradução
Ver Não Tem Tradução
215- SEU JACINTO
Marcha. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa e Ismael Silva com Gente Boa Odeon 10.953 - 78 1933 1933 Imperial IMP
30.205 - LP 1933 1971
Seu Riso de Criança Ver Riso de Criança
216-SEU ZÉ
Valsa. 1935. Paródia de Boneca, de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral. Variação de
Precaução Inútil
217 - SILÊNCIO DE UM MINUTO
Samba. 1935. Ed. Mangione
Marília Baptista
Victor 34.604 - 78 1940 1940
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1940 1967
Aracy de Almeida com Radamés e sua Orquestra de Cordas Continental 16.391 - 78
1951 1951 Continental LPP 6 - Ip 1951 1954 Continental LPK 20.018 * - LP 1951
1967
Nelson Gonçalves
RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor 583.0000 - Cp 1955 1956 RCA
Camdem CALB 5.095 * - LP 1955
Zaíra Rodrigues com orquestra Odeon 14.047 - 78 1956 1956
Britinho (piano) e conjunto
Sinter SLP 1.712 * - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 " - LP 1963 1963
Maria Bethânia e Carlos Castilho (violão)
RCALCD 1.142-Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 • - LP 1965 1968
Arthur Moreira Lima (piano) e orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Fafá Lemos e seu trio RCA Victor BPL 7 - LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc M 15.020- 78
Musidisc MV 005 - Ip
218- SINHÁRITINHA
Canção sertaneja. 1931. Com Moacyr Pinto Ferreira. Ed. Mangione
Paulo Netto de Freitas e Bando de
Tangarás
Parlophon 13.290 - 78 1931 1931
219 - SÓ PODE SER VOCÊ
Samba. 1935. Com Vadico. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional
RCA Victor
.Victor 34.152 - 78 1937 1937
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem
107.0084 - LP 1955
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Márcia com orquestra
Odeon SMOFB 3.789 * - LP 1973 1973
Adauto Santos com orquestra e coro MaVcus Pereira MPL 1.014 *-LP 1973
Dominguinhos (acordeom) com
acompanhamento
Eldorado 17.79.0337 - LP 1979 1979
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
Só por Contradição Ver Só pra Contrariar
220 - SÓ PRA CONTRARIAR
Samba. 1932. Com Manuel Ferreira Ed. Mangione
Almirante com Bando de Tangarás Parlophon 13.364 - 78 1931 1932
221 - SÓ VOCÊ
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo Melodia perdida
222 - O SOL NASCEU PRA TODOS
Samba. 1933. Com Lamartine Babo. O nome de Noel não está em selo de disco, nem
em partitura. Co-autoria atribuída por Mário Reis em depoimento aos autores Ver
detalhes
no Capítulo 27
Mário Reis com Diabos do Céu Victor 33.738 - 78 1933 1934 RCA Camdem CALB 5.107
* - LP 1933 1967
Francisco Carlos
RCA Victor BPL 3.034 - Ip 1957 1957
RCA Victor 107.0460 - LP 1957 1985
Solon Salles com Luiz Arruda Paes e sua
orquestra
Odeon 14.224 - 78 1957 1957
Odeon MOCB 3.024 - LP 1957 1958
Lamartine Babo com orquestra e coro dirigidos p/Carlos M. de Souza Sinter SLP
1.784 - LP 1959 1959 Trio Irakitan Odeon MDFB 3.211 - LP 1961 1961
Sílvio Caldas com orquestra
Copacabana CLP 11.661 "-LP1971 1971
Benedito Costa (cavaquinho) Phonodisc 0.34.405.002 - LP 1983 1983
223 - SORRINDO SEMPRE
Samba. O 1933. Com Lauro dos Santos (Gradim), Ismael Silva e Francisco Alves Ed.
Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não no sele do disco onde apenas Gradim
figura como autor
513
João Petra de Barros com Orquestra
Copacabana
Odeon 11.031-78 1933 1933
224 - SUSPIRO
Samba. 193... Com Orestes Barbosa. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e conjunto Sinter 45.1007-Cp Philips 630.410-LP
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968 1968.
225 - TARZAN (O FILHO DO ALFAIATE)
Samba-choro. 1936. Com Vadico
Ed. Mangione
Do filme Cidade Mulher
Almirante e Conjunto Victor
Victor 34.086 - 78 1936 1936
RCA Camdem CALB 5.340 * - LP 1936 1971
Zezinho com Vadico e seu regional Continental 17.188-78 1955 1955
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 *- LP 1963 1963
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Roberto Paiva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
226 - TENENTES DO DIABO
Marcha discursada. 1932. Com Visconde de Bicohyba e Henrique Vogeler
Ildefonso Norat com Fanfarra dos Tenentes Columbia 22.098 - 78 1932 1932
227 - TENHO RAIVA DE OUEM SABE
Samba. 1934. Com Zé Pretinho e Kid Pepe O nome de Noel não está no selo do
disco. Co-autoria atribuída por Zé Pretinho em depoimento aos autores
Mário Reis com Diabos do Céu
RCA Victor 33.802 - 78 1934 1934
RCA Camdem CALB 5.189 - LP 1934 1968
228 - TENHO UM NOVO AMOR
Samba. 1932. Com Cartola. Ed. Mangione O nome de Noel não está no selo do disco
ou em partitura. Co-autoria atribuída por Cartola em entrevista a Lena Frias,
Jornal
do Brasil, 8 de outubro de 1976
Carmem Miranda com Grupo da Guarda
Velha
Victor 33.575 - 78 1932 1932
229 - TEU CORPO É UM VIOLÃO
Samba. 1936. Com Noel Villaça (pseud. César Ladeira)
Citada na revista Carioca, abril de 1936. Melodia e letra perdidas
230 - TIPO ZERO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Da opereta A Noiva do Condutor
Marília Baptista com orquestra Musidisc M 50.046 - 78 1954 1954 Musidisc DL
1.015 - Ip 1954 1954 Musidisc 2.060 HiFi - LP 1954 1962
Ana de Holanda com orquestra Eldorado 30.800.350 - LP 1980 1980
Grande Othelo e Conjunto Coisas Nossas Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986

231 - TRÊS APITOS


Samba. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Radamés e sua
Orquestra de Cordas
Continental 16.392 - 78 1951 1951
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter076-78 1951 1951
Trio Surdina
Musidisc LP 014 - Ip 1953 1953
Musidisc M 15.002 - 78 1953 1955
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Carlos Castilho
(violão)
RCA Victor LCD 1.142 - Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 * - LP 1965 1968
Abril Cultural MPB 01 - Ip 1965 1970
Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1965 1977
Aracy de Almeida com Conjunto de Roberto Menescal Elenco CE 25 - Cp 1966 1966
Elenco ME 34 - LP 1966 1966
Aracy de Almeida com orquestra Elenco CE 25 - Cp 1966 1966 Elenco ME 35 - LP
1966 1966
Aracy de Almeida, Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor
LPNG 4.121 - LP 1966 1966
Tânia Maria (vocal e piano) com trio, ao
vivo
Continental PPL 12.266 - LP 1966 1966
Silvio Caldas
CBS 137.573 - LP 1968 1968
Helena de Lima com quinteto da
Boate Drlnk
RCA Victor BBL 1.482 - LP 1969 1969
Nelson Gonçalves com orquestra
RCA Camdem CASB 5.310 * - LP 1971
MPB 4 com Paulo Moura
Philips 6349.092 * - LP 1974 1974
Arthur Moreira Lima (piano) com orquestra Copacabana COLP 12.384 - LP 1979 1979
Elizeth Cardoso com conjunto, ao vivo Som Livre 403.6227 - LP 1980 1981
Joyce com violão
Pointer 203.0020 - LP 1985 1985
Roberto Paiva e Conjunto de Boate Sinter SLP 1.004- Ip
Silvio Caldas Mocambo 3.123 - Cp
232 - TRISTE CUÍCA
Samba. 1934. Com Hervê Cordovil Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional de
Benedicto Lacerda
RCA Victor 33.927 - 78 1935 1935
RCA Camdem CALB 5.340 - LP 1935 1971
Aracy de Almeida com orquestra Elenco ME 35 * - LP 1966 1966
João Máximo e Carlos Didier
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 - LP 1968 1968
Titulares do Ritmo Copacabana CLP 11.121 - LP
233 - TUDO NOS UNE
Marcha. 1935. Com Arnold Glückmann Da opereta A Noiva do Condutor
Marllia Pera, Grande Othelo, Caola, Oscar Bolão, Coisas Nossas e orq. Eldorado
106.86.0447 - LP 1985 1986
234 - TUDO PELO TEU AMOR
Samba-canção. 1935. Com Arnold
Glückmann
Da opereta A Noiva do Condutor
Conjunto Coisas Nossas e orquestra
Eldorado 106.86.0447 - LP 1985 1986
235 - TUDO QUE VOCÊ DIZ
Samba. 1933
Francisco Alves e Mário Reis com Gente Boa
Odeon 10.956 - 78 1933 1933 Odeon MODB 3.075 - Ip 1933
Uatch! Ver Atchim!
236 - ÚLTIMO DESEJO
Samba. 1937. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Boêmios da Cidade Victor 34.296 - 78 1937 1938 RCA Camdem
5.026 * - LP 1937 1961 Abril Cultural MPB 01 - Ip 1937 1970 Abril Cultural HMPB
08
- Ip 1937 1977
Isaura Garcia com regional
RCA Victor 800.409 - 78 1945 1946
RCA Camdem CALB 5.130 - LP 1945 1967
Aracy de Almeida com Francisco Sergi e sua orquestra
Continental 16.318 - 78 1950 1950 Continental LPP 6 - Ip 1950 1954 Continental
LPK 20.018 * - LP 1950 1967
Nelson Gonçalves e orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Victor
583.0000 - Cp 1955 1956 RCA Camdem CALB 5.095 • - LP 1955
Elizeth Cardoso com orquestra Copacabana CLP 3.067 - Ip 1956 1956 Copacabana CLP
11.066 * - LP 1956 1958
Leal Brito (piano) e seu conjunto Sinter SLP 1.716 - LP 1957 1957
Roberto Luna
Odeon MOFB 3.286 - LP 1962
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor 800.678 - 78
RCA Victor BPL 3.032 - Ip
RCA Camdem CALB 5.031 - LP 1961
Marllia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 ) 963
Maria Bethânia e Carlos Castilho (violão)
RCA LCD 1.142 - Cp 1965 1965
RCA Victor BBL 1.433 • - LP 1965 1968
Orquestra de Sopro da Rádio MEC Ritmos (Codil) CDL 13.007 - LP 1967 1967
Isaura Garcia com orquestra Continental PPL 12.365 * - LP 1968 1968
Maria Bethânia com Terra Trio, ao vivo Odeon MOFB 3.545 • - LP 1968 1968
Francisco Petrônio com Dilermando Reis Continental SLP 10.126 • - LP 1973 1973
Silvio Caldas com regional CBS 104.244 - LP 1973 1973
Wanderley Cardoso e orquestra Copacabana COLP 11.745 - LP 1973 1973
José Frazão e regional
Beverly COELP 40.917 - LP 1974 1974
Odete Amaral com Altamiro Carrilho e seu
conjunto
Tapecar MPB 1.002 - LP 1975 1975
Ângela Maria com orquestra Copacabana SOLP 40.423 * - LP 1975
Isaurinha Garcia com trio, ao vivo Odeon SMOFB 3.921 - LP 1976 1976
Quarteto em Cy e conjunto Philips 6349.180 * - LP 1976 1976
Maria Creusa com orquestra
RCA Victor 103.0251 • - LP 1978 1978
Carlos José
CBS 104.404 •-LP 1978
Inezita Barroso com Regional de Evandro Copacabana COLP 41.209 - LP 1979 1979
Nelson Gonçalves com regional RCA Victor 103.0341 - LP 1980 1980
Nilze Carvalho com regional CID 8.046-LP 1982 1982
Zezé Gonzaga e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
Aguinaldo Rayol com orquestra WM/Fermata 41.000 - LP 1983 1983
Jair Rodrigues com regional Philips 81.262.913 - LP 1983 1983
Marcos Resende (teclados) e Nivaldo
Ornelas (sax e flauta)
Barclay 821.377-1 - LP 1984 1984
Piano e conjunto (sem identificação) CID 8.068-LP 1984 1984
Nana Caymmi com Rafael Rabello e Hélio
Delmiro (violões)
EMI/Odeon 31C 064.422.949 - LP 1985 1985
Som Game (Karaokê: apenas
acompanhamento)
CID 4.166-LP 1985 1985
Moreira da Silva e orquestra
Top Tape TT 501.005 - LP 1986 1986
MPB 4
Continental 1.01.404.322 - LP 1987 1987
Nora Ney
3M 3M4-0046 - LP 1987 1987
Afonso Maia com acompanhamento CID 4.129- LP
Carlos Alberto CID 8.072 - LP
Don Euclydes (piano) com orquestra CID 4.133-LP
Horacina Corrêa com Leo Peracchi e
orquestra
Musidisc MV 005 - Ip
José da Conceição (violão) Itamaraty ITAM 7.042 * - LP
514
Noel Rosa: Uma Biografia
Lauro Paiva e seu conjunto de dança Copacabana CLP 11.254 - LP
Onéssimo Gomes Relevo RV 208 - LP
Paulo Tito (violão) e percussão Tapecar TC 092 - LP
Silvar e seu regional Beverly BLP 80.092 - LP
Waldir Calmon e seu conjunto Rádio 0043
Uma Coisa Deixei Ver Uma Coisa Ficou
237 - UMA COISA FICOU
(?). 1933. Com Hervê Cordovil.
Citada em recibo de venda, a Enéas
Martins Barros, dos direitos sobre letra
musicada por Hervê Cordovil, em 31 de
julho de 1933
Pertencente ao arquivo de Tárik de Souza
238 - UMA JURA QUE EU FIZ
Samba. 1932. Com Ismael Silva e Francisco Alves
Mário Reis com Orquestra Copacabana Odeon 10.928 - 78 1932 1932 Abril Cultural
MPB 12 - Ip 1932 1970 Abril Cultural HMPB 16 - Ip 1932 1977
Sílvio Caldas e Conjunto Regional de
Canhoto
Columbia LPCB 70.001 - LP 1958 1958
Roberto Silva e Conjunto Época de Ouro Fenab 104/105 - LP 1982 1982
239 - VAGOLINO DE CASSINO Fox-trot. 193... Paródia de Cheek to Cheek, de Irving
Berlin Ensinada por Fernando Pereira aos autores
240 - VAI HAVER BARULHO
Samba. 1933. Com Francisco Alves
Ed. Mangione
Melodia e letra perdidas
241 - VAI HAVER BARULHO NO CHATO
Samba. 1933. Com Walfrido Silva Ed. Mangione
Mário Reis com Orquestra Odeon Odeon 10.977 - 78 1933 1933
Joel de Almeida com conjunto Odeon 13.859 - 78 1955 1955
Trio Surdina
Musidisc M 50.005 - 78 1955
Musidisc DL 1.007 - Ip 1955 1955
Britinho (piano) e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Dilermando Pinheiro com conjunto
Musidisc M 044 - Ip 1957 1957
RCA Camdem 107.9056 - LP 1957 1973
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 •-LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 • - LP 1966 1966
Gasolina
Copacabana U726 - Cp 1968 1968
Os Caretas com orquestra
Polydor 2488.234/5/6 - LP 1975 1975
Carioca e sua orquestra Rádio 0076-GV - LP
Carolina Cardoso de Menezes (piano) e
percussão
Odeon MOCB 3.002 - LP
Elza Soares e Miltinho com orquestra Odeon MOFB 3.540 - LP
José Menezes e seu conjunto Sinter SLP 1.722-LP
242 - VAI PARA CASA DEPRESSA
Samba. 1933. Com Francisco Mattoso Ed. Mangione
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
243 - VAIDOSA
(?). 1931. Ed. Mangione Melodia e letra perdidas
244 - VEJO AMANHECER
Samba. 1933
Mário Reis acompanhado por Pixinguinha
e sua orquestra
Columbia 22.225 - 78 1933 1933
Noel Rosa e Ismael Silva Continental LPP 19 - Ip 1933 1955 Disco Lar LPDS 32.051
* - LP 1933 1969
Cristina e Piii Buarque com conjunto Ariola 201.608 - LP 1980 1980
245 - VERDADE DUVIDOSA
Samba. 193... Ed. Mangione
Marilia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 ? - LP 1963 1963
246 - VINGANÇA DE MALANDRO
(?). 1930. Ed. Mangione
Relacionada por Almirante em No Tempo
de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo
Melodia perdida
Virgulino do Cassino Ver Vagolino de Cassino
247 - VITÓRIA
Samba. 1932. Com Romualdo Peixoto (Nono). Ed. Mangione
Sflvio Caldas e Francisco Alves com
Diabos do Céu
Victor 33.657 - 78 1933 1933
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor 272 - 78 1958 1958 Polydor LPNG 4.014 -
LP 1958 1958
Sflvio Caldas e Boêmios da Cidade CBS 37.142 - LP 1960 1960
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 • - LP 1963 1963
Elizeth Cardoso com Caçulinha e seu
conjunto
Copacabana CLP 11.466 *- LP 1966 1966
Roberto Paiva com orquestra
Studio Hara 403.9005 - LP 1974 1974
Fats Elpldio
RCA Victor BPL 3.029 - Ip
248 - VOCÊ É UM COLOSSO
Samba. 1934. Ed. Mangione
Rosinha de Valença (vocal e violão) com
conjunto
Forma 103 VDU • - LP
Aracy de Almeida Sinter 45.1007-Cp
249 - VOCÊ FOI O MEU AZAR
Samba. 1931. Com Arthur Costa
Arthur Costa e Nenéo das Neves com Simão e Columbia Orquestra Columbia 22.076 -
78 1931 1932
Noel Rosa (2)
Matriz 131.284 - 78 1932
250 - VOCÊ, POR EXEMPLO
Marcha. 1933
Almirante com Diabos do Céu Victor 33.734 - 78 1934 1934
Marflia Baptista com orquestra NilserNS 1.011/1.012 •- LP 1963 1963
Marlene com orquestra
Philips 6349.330 - LP 1977 1977
251 - VOCÊ SABE DE ONDE EU VENHO?
Canção. 1928. Paródia de A Casa da
Colina, r}(; P<jrlro Sí> W:r<:ira (: I ul'. Hoixcjto
Ensinada aos autores por Hermenegildo de Barros Filho
252 - VOCÊ SÓ... MENTE Fox-trot. 1933. Com Hélio Rosa
Aurora Miranda e Francisco Alves com Orquestra Odeon Odeon 11.043 - 78 1933 1933
Odeon MOFB 3.640 - LP 1933 1970
Aurora Miranda com orquestra Sinter SLP 1.062 - Ip 1956 1956
Cristina, Miúcha e Piii Buarque com
conjunto
Continental 1.01.404.189- LP 1978 1978
Grupo Rumo
Independente - LP 1981 1981
253 - VOCÊ VAI SE QUISER
Samba. 1936. Ed. Mangione
Noel Rosa e Marilia Baptista com regional de Benedicto Lacerda Odeon 11.422 - 78
1936 1936 Odeon MOFB 3.041 • - LP 1936 1958 Abril Cultural HMPB 08 - Ip 1936
1977
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
João Nogueira com orquestra Polydor 245.1170-LP 1981 1981
Miriam Batucada
Chantecler 2.08.404.057 - LP
Vadico
Continental LPP 37 - Ip
254 - VOLTASTE (PRO SUBÚRBIO)
Samba. 1934. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com orquestra Continental LPP 10 - Ip 1955 1955
Marflia Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 * - LP 1963 1963
515

João Máximo e Carlos Didier


255 - VOU FAZER UM SAMBA
Samba. 193... Com Russo do Pandeiro
Ed. Mangione
Melodia e letra perdidas
256 - VOU TE RIPAR I
Samba. 1930. Ed. Mangione
Noel Rosa
Parlophon 13.350 - 78 1931 1931
257 - VOU TE RIPAR II
Samba. 1930
Citada por Almirante na série de programas de rádio No Tempo de Noel Rosa. Ver
Capitulo 13
258 - O X DO PROBLEMA
Samba. 1936. Ed. Mangione
Aracy de Almeida e Conjunto Regional RCA Victor
Victor 34.099 - 78 1936 1936 Continental 16.319 - 78 1950 1950 Continental LPP 6
- Ip 1950 1954 Continental 1.19.405.012 • - LP 1950 1975
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Leal Brito (piano) e seu conjunto Sinter SLP 1.712 * - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011/1.012 * - LP 1963 1963
Maria Bethânia com Regional de José
Menezes
RCA Camdem CALB 5.329 • - LP 1965 1965
Aracy de Almeida com Conjunto de
Roberto Menescal
Elenco ME 34 - LP 1966 1966
Lyra de Xopotó Sinter SLP 1.755- LP
259 - YOLANDA
Samba. 1935.
Citada por Nelson Orsini em entrevista à
Última Hora, Belo Horizonte, 4 de maio de
1967
Yvone
Ver Picilone
Zélia Fortunata
Ver De Qualquer Maneira
(1) Gravação rejeitada por Noel Rosa. Disco de prova preservado por Almirante e
lançado em LP em 1965.
(2) Disco de prova guardado por Eduardo Corrêa de Azevedo.
(3) O pianista, cujo nome não consta do selo, é Nono.
(4) Gravado nos Estados Unidos.
(5) Noel assina com um anagrama: Leon.
516

TEATRO
(PEÇAS COM MÚSICAS DE NOEL ROSA)
DEIXA ESTA MULHER CHORAR (1931).
Revista dos Irmãos Quintiliano para o Teatro Nacional de Revistas. Elenco: Aracy
Cortes, Mesquitinha, Leli Morei, Èdith Falcão, Arthur Costa, Escola de Samba do
Salgueiro. Teatro Recreio, Rio de Janeiro, (estréia a 9 de janeiro de 1931).
Músicas de vários autores. A de Noel: Com Que Roupa?
COM QUE ROUPA? (1931).
Revista de Luis Peixoto para a Companhia Mulata Brasileira. Elenco: Rosa Negra,
índia do Brasil, João Felipe e mais quinze atores, cantores, dançarinos. Teatro
República,
Rio de Janeiro (estréia a 23 de janeiro de 1931). Músicas de vários autores. A
de Noel: Com Que Roupa?
CAFÉ COM MÚSICA (1931).
Revista de Maciel Pereira, Leo Grim e Eratósthenes Frazão para a Companhia
Nacional de Revistas. Coreografia do professor Nemannoff. Direção musical de J.
Cristobal.
Elenco: Aracy Cortes, ítala Ferreira, Mesquitinha, Luíza Fonseca, Affonso
Stuart, Henriqueta Brieba, Oscar Cardona. Teatro Recreio, Rio de Janeiro
(estréia a 24
de abril de 1931). Músicas de vários autores. As de Noel: Gago Apaixonado, Com
Que Roupa?, Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso, Por Esta Vez Passa, Dona Aracy,
Quem
Dá Mais? e Vaidosa.
MAR DE ROSAS (1931).
Revista de Velho Sobrinho e Gastão Penalva. Elenco: Margarida Max, Olga Bastos,
Mesquitinha, Affonso Stuart, Augusto Annibal, Theda Diamant, Silvio Caldas.
Teatro
Recreio, Rio de Janeiro (estréia a 24 de julho de 1931). Músicas de vários
autores. As de Noel: Mão no Remo (com Ary Barroso), Mulata Fuzarqueira e
Cordiais Saudações.
COM A LETRA A (1932).
Revista dos Irmãos Quintiliano para a Companhia Neves e Paschoal Segreto.
Elenco: Aracy Cortes, Olga Navarro, Grijó Sobrinho, Arthur Oliveira, Manoelino
Teixeira,
Pedro Dias, Oswaldo de Almeida, Balbina Milano. Teatro João Caetano, Rio de
Janeiro, (estréia a 15 de janeiro de 1932). Músicas de vários autores. A de
Noel: Gosto
Mas Não É Muito (com Ismael Silva).
RIO FOLLIES (1936).
Revista de Jardel Jércolis, Geysa Bóscoli e J. Otaviano. Elenco: Oscarito, Nair
Faria, Grande Othelo, Manuel Vieira, Margot Louro, Juan Daniel, Mesquitinha,
Emma
D'Ávila, Maria Costa. Teatro João Caetano, Rio de Janeiro (estréia a 2 de agosto
de 1935). Músicas de vários autores. A de Noel: O X do Problema, Emma D'Ávila,
encerrando
com Oscarito o quadro de abertura.
NOEL SÓ NOEL (1976).
Espetáculo com textos, arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas.
Teatro de Artes Israelita Brasileiro, São Paulo (de 1 a 4 de abril de 1976).
Músicas:
cerca de 25 composições de Noel Rosa.
SAMBA, PRONTIDÃO E OUTRAS BOSSAS (1976).
Série de cinco espetáculos distintos narrando a vida de Noel Rosa. Textos,
arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas. Teatro Cacilda Becker, Rio
de Janeiro
(de 6 de agosto a 4 de setembro de 1976). Músicas: 77 composições de Noel Rosa.
HOJE NÃO É DIA DE ROCK (1976).
Condensação da série anterior. Textos, arranjos e interpretações do conjunto
Coisas Nossas. Iluminação de Ziembinsky. Teatro Ipanema, Rio de Janeiro (de 21
de setembro
a 3 de outubro de 1976). Músicas: cerca de 30 composições de Noel Rosa.
O BARBEIRO DE NITERÓI (1977).
Comédia musical baseada na opereta radiofônica. Texto e montagem de Antônio
Pedro e Flávio Santiago. Cenografia de Gianni Ratto. Direção musical de Roberto
Nascimento.
Elenco: André Villon, Jece Valadão, Jacyra Silva, Mário Ernesto, Flávio São
Thiago, Lafayette Galvão. Teatro Mesbla, Rio de Janeiro (estréia a 2 de março de
1977).
Músicas de Noel Rosa: Cordiais Saudações, O Orvalho Vem Caindo (com Kid Pepe),
Filosofia (com André Filho), Rapaz Folgado, Dama do Cabaré, Silêncio de um
Minuto,
João-Ninguém, Pierrot Apaixonado (com Heitor dos Prazeres) e Onde Está a
Honestidade?
O POETA DA VILA E SEUS AMORES (1977).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto
de Plinio Marcos. Direção de Osmar Rodrigues. Cenários e figurinos de Flávio
Império. Iluminação de Domingos. Coreografia de Carlinhos Machado e Marilene
Silva.
Cenotécnica de Arquimedes. Elenco: Ewerton de Castro e mais 35 atores. Teatro
Popular do SESI, São Paulo (estréia a 4 de maio de 1977).
NOEL ASSIM... (1983).
Espetáculo de música e mímica em torno de climas e personagens do universo de
Noel Rosa. Pesquisa de Ana Maria. Coreografia de Luisa Monteiro. Direção musical
do
violonista Paulo Vasconcelos. Elenco: Luisa Monteiro e Ana Maria. Gente da
Noite, casa noturna de Botafogo, Rio de Janeiro (maio de 1983). Músicas, temas
vários
de Noel Rosa.
ROSA (1988).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto de Domingos de Oliveira a partir de
pesquisa de Joaquim de Assis. Direção de Domingos de Oliveira. Cenários de
Danilo Gomes
e Domingos de Oliveira. Iluminação de Luis Paulo Neném. Figurinos de Rita
Murtinho. Direção musical de Tim Rescala. Elenco: Pedro Cardoso (Noel), Lucinha
Lins, Nelson
Dantas, Cláudio Tovar, Zezé Polessa, Luisa Tome. Teatro Villa-Lobos, Rio de
Janeiro (estréia a 4 de maio de 1988). Músicas: composições de Noel Rosa
intercaladas
com citações a temas de outros autores, entre os quais Villa-Lobos e Henrique
Vogeler.
517

CINEMA/TELEVISÃO
FILMES COM MUSICAS DE NOEL ROSA
FILMES SOBRE NOEL ROSA
TELEVISÃO
ALÔ, ALÔ, CARNAVAL (1936).
Produção de Wallace Downey. Direção de Ademar Gonzaga. Argumento e roteiro de
João de Barro e Alberto Ribeiro. Fotografia de Afrodislaco de Castro, Antônio
Medeiros,
Edgar Brasil e Victor Chiacchi. Som de Moacyr Fenelon. Cenografia de Emílio
Casalegno, Ruy Costa e Jota Carlos. Figurinos de Gustavo Dória. Elenco: Barbosa
Júnior,
Jayme Costa, Cordélia Ferreira, Oscarito, Jorge Murad, Pinto Filho. Números
musicais de Francisco Alves, Mário Reis, Carmem e Aurora Miranda, Almirante,
Lamartine
Babo, Luís Barbosa, Joel & Gaúcho, Linda e Dircinha Baptista, Irmãs Pagas,
Alzirinha Camargo, regional de Benedicto Lacerda, orquestras de Simon Bountmann
e Hervê
Cordovil, Bando da Lua, Quatro Diabos. Músicas de vários autores. As de Noel:
Não Resta a Menor Dúvida (com Hervê Cordovil) e Pierrot Apaixonado (com Heitor
dos
Prazeres).
CIDADE MULHER (1936).
Produção de Carmem Santos. Direção de Humberto Mauro. Argumento de Henrique
Pongetti. Fotografia de Manuel Ribeiro. Elenco: Jayme Costa, Mário e Zilka
Salaberry,
Sara Nobre, Aída Isquierdo, Lourdinha Bittencourt, Aída Conceição, Aída
Pongetti, Loia Silva, Mary Kler. Números musicais de Orlando Silva, Joel de
Almeida, Assis
Valente e seu Bando Carioca, Bibi Ferreira, José Vieira, Irmãs Pagas. Irmãos
Abissínias, Irmãos Amaro Músicas de vários autores. As de Noel: Morena Sereia e
Na Bahia
(ambas com José Maria de Abreu), Tarzan, o Filho do Alfaiate (com Vadico),
Cidade Mulher, Dama do Cabaré e Numa Noite à Beira-Mar. Filmes mais recentes têm
utilizado
músicas de Noel. Entre eles, Edu Coração de Ouro (1968), de Domingos de
Oliveira: São Coisas Nossas, na gravação original de Noel; Cabaré Mineiro
(1981), de Carlos
Alberto Prattes Corrêa: Nunca Jamais e Pra Esquecer; e Memórias do Cárceres
(1984), de Nelson Pereira dos Santos: O Orvalho Vem Caindo.
CORDIAIS SAUDAÇÕES (1968).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Gilberto Santeiro. Preto &
branco. 11 minutos.
NOEL POR NOEL (1981).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Rogério Sganzerla. Fotografia
de Renato Laclete. Narração de Grande Othelo. Colorido. 21 minutos e 21
segundos.
Muitos quadros e colagens têm. sido dedicados a Noel Rosa pela televisão.
Incluindo uma homenagem da TV Educativa por ocasião dos setenta anos de
nascimento, o "apadrinhamento"
a Chico Buarque de Hollanda no Bar Academia da Rede Manchete e a dramatização de
Pra Esquecer, Cansei de Pedir, De Babado e Eu Sei Sofrer que Domingos de
Oliveira
dirigiu para a Rede Globo, com interpretações de Deborah Duarte e Carlos Vereza,
levada ao ar no Fantástico de 4 de janeiro de 1981. Mas, em termos de
superprodução,
com textos e números musicais próprios, em vez de mera colcha de retalhos, a
presença de Noel na televisão se limita a uma:
NOEL ESPECIAL (1975).
Produção de Ruy Mattos e Pituca para a Rede Globo de Televisão. Direção de
Augusto César Vanucci. Textos de Mieli & Bôscoli. Sonoplastia de Milton Porto.
Edição
de Ricardo Leitão. Cenários de Frederico Padilha. Colaboração de Almirante,
Silvio Caldas, Haroldo Barbosa e Paulo Tapajós. Direção musical^Jle Nalygia
Santos. Números
musicais: Maria Alcina, Carlos Galhardo, Pedrinho Rodrigues, Ernani Filho, Rildo
Hora, Arthun Costa Filho, Sônia Lemos, Paulo Marques, Rita de Cássia, Marilia
Baptista,
Djavan, Djalma Dias, João Nogueira, César Costa Filho, Aracy de Almeida, Emílio
Santiago, Peri Ribeiro, Nelson Gonçalves, Elza Soares, Jair Rodrigues, Miltinho,
Elizeth Cardoso, Maysa, Antônio Marcos, Vanusa e Silvio Caldas. Transmitido na
noite de 17 de dezembro de 1975. Músicas de Noel: 35, incluindo a inédita
Mardade
de Cabocla.
519

ALENCAR, Edigar. O Carnaval Carioca Através da Música. Rio de Janeiro, Freitas


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521

João Máximo e Carlos Didier


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abril a 31 de agosto de 1951. Lançados comercialmente pela Collec-tor's Editora
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