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EDITORA
UNB
L
A Henrique Foréis Domingues (Almirante), a quem tanto se deve a posteridade de
Noel Rosa, e a Jacy Pacheco, primo e primeiro biógrafo, tão desprendido e
generoso
quando se trata de revisitar Noel.
A Eduardo Corrêa de Azevedo, o tio Eduardo, que com tanto zelo e orgulho
documentou e guardou memórias do chalé e das pessoas que nele viveram, e também
a Aldílio
Tostes Malta, Eduardo Nelson Corrêa de Azevedo e Nair Goya-no Mathias, parentes
próximos e distantes.
A Alceu de Miranda, almirante Antônio Fernandes Lopes, César Dacorso Netto,
Heitor Lino de Moraes, Hélio Lobo, Hélio Raynsford, Herme-negildo de Barros
Filho, Jocelyn
Pereira da Silva, Dr. Lauro de Abreu Coutinho, brigadeiro Lucílio Urrutigaray,
Marcello. Menezes, Manuel Jansen Muller, general Moacyr Mattos de Oliveira e
Pedro
Pereira da Rocha, que conviveram com o poeta além dos muros do São Bento.
Ao almirante Adalberto de Barros Nunes, Affonso Guimarães (Affonsinho), Angelina
do Carmo, Anselmo Seixas, almirante Antônio de Barros Nunes (Cacao), Arnaldo
Araújo,
Dr. Carlos Sant'Anna, Carmem Reis, Heloísa Brandão de Marsillac, Jocelyn Corrêa
da Encarnação, José Fernandes Xavier Neto, José Maria Arantes, José Souza Pinto
(Alegria),
Maria do Carmo Coelho da Costa, Nilda da Graça Mello Miranda, Ray-mundo Paesler,
general Sylvestre Travassos, Theodorica Fontes dos Santos Lima (Dorica) e Zaluar
Moura, membros da grande família que foi um dia a Vila de Noel.
A Angenor de Oliveira (Cartola), Antônio Cardoso Martins (Russo do Pandeiro),
Antônio (Gabriel) Nássara, Armando de Lima Reis (Chris-tovam de Alencar), Carlos
Alberto
Ferreira Braga (João de Barro), Glauco Vianna, Ismael Silva, Manuel do Espírito
Santo (Zé Pretinho), Manuel Ferreira, Renato Murce e Sílvio (Narciso do
Figueiredo)
Caldas, parceiros que ficaram para ajudar a contar a história.
A Aracy de Almeida e Marília (Monteiro de Barros) Baptista, as grandes
intérpretes, linhas paralelas se encontrando no infinito de Noel.
A Alberto de Castro Simões da Silva (Bororó), Alcir Pires Vermelho, Antônio
Almeida, Armênio Mesquita Veiga (Augusto Mesquita), Bu-cy Moreira, Cícero Nunes.
Cyro
de Souza, De-móstnenes González, Djalma (Neves) Ferreira, Elizeth (Moreira)
Cardoso, Erasmo Silva, Este-van Sciangula Mangione, Farnésio Dutra e Silva (Dick
Farney),
Floriano (da Costa) Belham, Homero Dornelías (Candoca da Anunciação) João
Freitas Ferreira (Jonjoca), Joel de Almeida, Linda Rodrigues, Luciano Perrone,
Mário (da
Silveira) Reis, Milton Amaral, (Antônio) Moreira da Silva, Murillo (de
Figueiredo) Caldas, Newton (Car-
los) Teixeira, Odette Amaral, Pandiá Pires, Paulo Tapajós (Gomes), Pedro
Caetano, Radamés Gnattali, Raul Marques, Roberto Martins, Rubens Soares, Yolanda
Rhodes
(Yola) e Zilda de Carvalho Espíndola (Aracy Cortes), personagens da música
popular, que viram, ouviram, viveram e passaram adiante.
A Alberto Abrantes Martins, Aloísio Dias, Carlos Moreira de Castro (Carlos
Cachaça), Creuza dos Santos, Eusébia Silva do Nascimento (Zica), Fernando
Pimenta, José
Bispo Clementino dos Santos (Jamelão) e Neuma Gonçalves da Silva, gente boa da
Mangueira, de depoimentos tão entusiasmados quanto esclarecedores.
Aos Drs. Carlos Henrique Fernandes, Herculano Mesquita de Siqueira e Nicandro
Bittencourt, raras testemunhas da meteórica passagem de Noel Rosa pela Faculdade
de
Medicina.
A Nelson (Vittorio Emanuel) Pilo, Paulo Lessa, Roberto Ceschiatti e Rômulo Paes,
boêmios das velhas noites de Belo Horizonte.
A Ademar Casé, Arthur Costa Filho, Emma DÁvila, Fernando Pereira, Henriqueta
Brieba, Jorge Murad e Sebastião Bernardes de Souza Prata (Grande Othelo), nomes
do radio
e do teatro, daqueles e destes tempos.
A Ary Vasconcelos, Humberto de Moraes Franceschi, Jairo Severiano e Miécio
Caffé, cujas coleções, somadas, tornaram possível o acesso dos autores a todas
as gravações
originais da obra de Noel Rosa.
À João Ferreira Gomes (JotaEtegê) ejosé Ramos Tinhorão, pesquisadores,
historiadores, separados no tempo mas unidos pela mesma paixão, cujos
conhecimentos sempre
fizeram questão de repartir.
A Clara Cinelli (nascida Corrêa Neto), Jose-fina Telles Nunes (nascida Félix, a
Fina), Juracy Corrêa de Moraes (Ceei) e Lindaura de Medeiros Rosa (nascida
Martins),
musas todas, que concordaram em viajar de volta ao passado para longos
reencontros com o seu poeta.
Aos funcionários do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional de Artes Cênicas, da
Secretaria
Geral da Divisão de Educação e Ensino da Diretoria do Colégio Pedro II, do
"arquivo morto" do mesmo estabelecimento, do Ginásio de São Bento, da seção de
arquivo
da Santa Casa da Misericórdia, da Embra-filme, do Arquivo Público Mineiro, da
Companhia Nestlé do Brasil, do Convento de Nossa Senhora da Ajuda, da Matriz de
Nossa
Senhora de Lourdes, da Igreja de São Francisco Xavier do Engenho Velho, do
Arquivo Sonoro da Rádio Jornal do Brasil, das gravadoras Odeon, RCA Victor,
Polygram e
Collector's.
A Adília Bittencourt (viúva de Jacob do
Bandolim), Alfredo Herculano, Antoninho de Paula, Antônio Carlos SantAnna
(Perna), Bruno Ferreira Gomes, Bruno Liberati, Cláudio Marcelo Arreguy Corrêa,
Daicy Portugal
Cordovil (viúva de Hervê), Francisco Duarte, Geraldo Pinto Pen-na, Herberto
Salles, Ilka Domingues (viúva de Almirante), general João Baptista Figueiredo,
Jonas
Vieira, Jorge Martins, Jorge NatalPinheiro da Costa, Jorge Thibaud, José Lino
Grunewald, José Mariani, José Silas Xavier, Lanfranco Vaselli (Lan), dom
Lourenço de
Almeida Prado, Luís Carlos Saroldi, Luís Fernando Barciela Vieira, Moacyr
Andrade, Ruy Castro, Simon Khouri, Tárik de Souza, Victor Henrique Woitschach
(Ique) e
Zózimo Barroso do Amaral, pequenas e grandes ajudas, empurrões vários,
incentivos, bênçãos.
A Almir Veiga, o fotógrafo, e a Édio Xavier Piais, o dos retoques mágicos.
A Sérgio Cabral, que apresentou os autores um ao outro, e que desde o início
acreditou neste livro.
E, últimos mas não menos importantes, os rapazes do conjunto Coisas Nossas:
Beto, Bolão, Dazinho, Henrique, Luíta e Zé Carlos.
A todos enfim - os que puderam esperar e os que já viraram saudade - a gratidão
dos autores.
x
SUMÁRIO
DUAS PALAVRAS .. 3
PARTE I 1834-1910
PARTE II 1910-1928
Tudo que este livro pretende ser está resumido em seu título: uma biografia de
Noel Rosa, poeta e compositor popular brasileiro. Portanto, não espere o leitor
encontrar
nestas páginas uma tese das tão em moda em nossa bibliografia recente. Não se
falará aqui do 'discurso noelino', nem se tentará uma dessas teses acadêmicas
que costumam
fazer da música popular algo menos simples do que realmente é.
Os autores, desde o primeiro instante dos mais de sete anos consumidos neste
trabalho, optaram por contar uma história, tão detalhada quanto possível, de
Noel Rosa,
sua época, sua cidade, sua gente, sua obra. Uma narrativa linear, cronológica,
jornalística, sem outras ambições literárias. Com as liberdades permitidas a
todo
biógrafo (transcrição de diálogos a partir do que lhes foi contado, uma ou outra
especulação, este ou aquele 'deve ter sido' em lugar do que 'não se sabe como
foi'),
mas de modo algum uma biografia romanceada. Amigos que tiveram acesso aos
originais - e cuja opinião os autores prezam - fizeram ponderações a respeito do
primeiro
capítulo. Não se teria dedicado tempo e espaço demais à pré-história de Noel
Rosa, seus pais, avós e bisavós? Não poderia o leitor estancar diante deste
longo preâmbulo
e, impaciente, virar as costas aos outros 45 capítulos? Os autores preferiram
correr o risco e deixar o primeiro tal qual está. Convenceu-os uma esperança: a
de
que o eventual leitor deste livro não seja de virar as costas ao que quer que
diga respeito a
Noel Rosa. Nem mesmo às suíças de vovô Eduardo.
João Máximo e Carlos Didier
NA CAUDA DE UM COMETA
Capítulo 1
Um apaixonado pela música, escreveu várias peças poéticas para serem recitadas
ao som de viola. Uma delas dedicada a uma prima
indiferente:
Tudo isso, eu juro, fizera
Por egoísmo, somente,
Pois vivera eternamente
A teu lado, oh! prima Vera.
Mas Eduardo Corrêa de Azevedo já não está aqui. Morreu há um ano e meio, antes
de completar seus 53, deixando nos moradores do chalé um enorme vazio,
muito sentido em dias como o de hoje.
É sábado, 10 de dezembro. Desde a madrugada respira-se desassossego nas ruas do
centro do Rio. A cidade parece estremecer. Ouvem-se ao longe tiros de canháo e
estrondos
de prédios que tombam atingidos por bombas e granadas. Famílias inteiras saem em
pânico de suas casas. Correm para bondes, automóveis, trens. Fogem do fogo e da
destruição, procurando um porto seguro em alguma parte. Se os moradores do chalé
fossem supersticiosos - ou de acreditar que certos fenômenos cósmicos significam
maus pressagios - talvez pensassem, como tantos, que o fim do mundo começou.
Explica-se-, desde os primeiros dias deste 1910, quando os jornais se puseram a
falar da passagem da Terra pela cauda do cometa de Halley, há quem afirme que o
mundo
realmente agoniza. Profetas, visionários, lunáticos, crentes. Cometas e outros
corpos celestes passam ligeiros, deixando em seu rastro um punhado de
superstições.
Está sendo assim agora com o Halley e há de ser assim daqui a alguns anos com o
Hermes. Por mais que os astrônomos garantam que tais fenômenos são inofensivos,
muitos
acreditam no contrário, que os cometas sejam prenuncio de grandes catástrofes.
Conta-se que até mesmo um homem culto como Ruy Barbosa responsabilizou o Halley
por
sua recente derrota para o marechal Hermes nas eleições presidenciais. E por que
não? Se por causa deste cometa houve quem se matasse na Europa, enlouquecesse
nos
Estados Unidos, se refugiasse em mosteiros por toda parte, para ali aguardar
entre preces a hora final, por que não haveria Ruy de ver na cauda do Halley uma
ave
agourenta a riscar o céu no exato momento em que pretendia mudar-se para o
Catete?
Marinheiros em revolta
Por duas vezes os marinheiros fizeram estremecer o Rio de Janeiro em 1910, num
sombrio capítulo de história que ficaria conhecido como Revolta da Chibata. Uma,
a
22 de novembro, sete dias após ser empossado na Presidência da República o
marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. A segunda, na noite de 9 para 10 de
dezembro, na
véspera de vir ao mundo o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
João Cândido, filho de tropeiro gaúcho que lutara na Guerra do Paraguai,
negrinho do pastoreio em menino, praça-de-pré aos 30 anos, servia a bordo do
encouraçado
Minas Gerais quando liderou os companheiros deste e de mais três navios (o
Bahia, o São Paulo e o Deodoro) no levante para que se abolissem os castigos
corporais
e outros maus-tratos aos marinheiros. O ponto de partida foram as 250 chibatadas
aplicadas no fuzileiro Marcelino Rodrigues de Menezes, no convés do navio,
diante
da tropa perfilada e de tambores rufando solenemente:"... as costas deste
marinheiro - diria depois o comandante da Marinha José Carlos de Carvalho,
mandado ao Minas
Gerais para parlamentar com os revoltosos - assemelham-se a uma tainha lanhada
para ser salgada." Um disparo de canháo, naquela noite de 22, deflagrava o
levante
e estremecia a cidade.
A Marinha de então ainda levava a extremos sua tradição elitista, escravagista
quase. Recrutava soldados à força entre as populações pobres, impunha-lhes um
tempo
de serviço de quinze anos, pagava-lhes baixos soldos,
obrigava-os a trabalhos pesados, alimentava-os de má comida. Tudo sob um regime
disciplinar controlado por certa Companhia Correcional que, apoiada em decreto-
lei
dos tempos de Deodoro, ainda adotava prisão em solitária, a ferro, pão e água, e
castigos físicos que incluíam bolos e chibatadas. Foi principalmente contra
estas
últimas que se insurgiram João Cândido e seus companheiros.
Oficiais e marinheiros foram mortos nas
Sn.
Seja como for, o mundo não está mesmo acabando. O que se passa no Rio de
Janeiro, desde as primeiras horas da madrugada, tombando prédios, produzindo
nuvens de fumaça,
roubando vidas, é mais uma rebelião de marinheiros contra oficiais que os tratam
a golpes de chibata.
primeiras ações a bordo dos quatro navios. Uma bomba com que os revoltosos
pretendiam atingir o Arsenal de Marinha foi cair, por erro de cálculo, numa casa
de cômodos
da Rua da Misericórdia. Duas crianças morreram. Outras bombas fizeram estragos e
vítimas no Centro. Por quatro dias João Cândido comandou a pequena frota e 2 mil
379 homens, passando a ser chamado, por seus simpatizantes, de o Almirante
Negro. Por quatro dias a cidade viveu de respiração suspensa: os revoltosos
ameaçavam
bombardeá-la caso suas exigências não fossem atendidas. Quatro dias de
indignação para o alto comando da Armada, de discussões parlamentares, de
reuniões ministeriais.
E o novo presidente sem saber o que fazer. Ao fim do quarto dia, o Congresso
votou pela anistia. Os marinheiros deveriam se entregar, nenhuma punição lhes
seria
imposta. Ficava claro que os castigos corporais seriam abolidos.
Mas logo se viu que a anistia não passava de uma fraude. A maioria dos
revoltosos seria expulsa da Marinha. Muitos, sob a acusação de conspiração,
foram presos,
abarrotando as celas da ilha das Cobras. Sentindo-se desmoralizado, o próprio
Governo se incumbia de alimentar rumores de que novo levante estava para
acontecer
a qualquer momento. Hermes queria o estado de sítio, precisava de um pretexto.
Até que as tensões transformaram os rumores em fatos: às 10 horas da noite de 9
de
dezembro um toque de avançar e gritos de "viva a liberdade!" foram ouvidos no
pátio da ilha das Cobras. O Batalhão Naval se amotinava, libertava os presos,
destruía
as comunicações, tomava a casa das armas, disparava os canhões.
Desta feita, porém, o Governo estava de sobreaviso. Navios, já agora sob o
comando de oficiais, bombardearam o local. O mesmo fariam os canhões do Exército
instalados
na Praça 15 de Novembro, nos morros da Conceição e do Castelo, no Mosteiro de
São Bento. Conta Edmar Morei, o historiador da revolta, que os disparos foram
menos
certeiros do que pretendiam os artilheiros da Armada. Fez-se necessário que um
oficial austríaco, de passagem pelo Rio, calibrasse os canhões para que se
atingissem
os alvos. Até
um padre, colocando a medalha de um santo sobre a alça de mira, evocou a
proteção divina às armas do marechal. Antes, balas perdidas, de um lado e do
outro, tinham
atingido o Liceu de Artes e Ofícios, o Museu Comercial, o Colégio Pedro II, o
Tesouro Nacional. Agora, balas legalistas abatiam dezenas, centenas de
marinheiros.
O próprio presidente foi inspecionar algumas de suas cidadelas. No Mosteiro de
São Bento, soube que uma bomba rebelde destruíra parcialmente as celas dos
monges.
Um deles, Dom Joaquim de Luna, teve arrancados três dedos da mão direita.
Mais estragos: na Rua Dom Manuel, no Catumbi, Frei Caneca, Carmo, São Salvador.
O Rio ficou em pânico. Famílias inteiras realmente apertaram-se em trens rumo a
cidades
serranas. Outras, em bondes, carroças, charretes, tomaram o caminho dos
subúrbios.
O levante foi por fim sufocado. João Cândido, que nada tivera com as ações da
ilha das Cobras, acabou preso. Incontáveis marinheiros, entre culpados e
inocentes,
revoltosos e anistiados, também. Muitos foram deportados para os seringais do
Acre, onde morreriam como escravos de senhores da borracha. Outros seriam
sumariamente
fuzilados a bordo do Satélite, cargueiro do Lloyd que os levou para o Norte,
quase secretamente. Escrevia-se então um dos mais trágicos episódios da história
militar
do Brasil. João Cândido e dezessete outros líderes da primeira revolta, todos já
anistiados, foram atirados no fundo de uma masmorra na ilha das Cobras.
Dezesseis
morreriam asfixiados pela cal que lhe atiraram sobre os corpos. Torturas e
fuzilamentos se seguiram. Ali João Cândido permaneceu por dezoito meses, até que
o mandaram
para o Hospital dos Alienados, supondo-se ter enlouquecido. Engano. Mas o
Almirante Negro ainda ouvia em seus pesadelos o som da chibata sobre as costas
dos companheiros,
seus próprios gemidos na masmorra, o troar de canhões que ele não disparara
naquele dezembro.
Foi no meio de tudo isso - numa cidade respirando ares de fim de mundo - que
começou a nascer o primeiro neto de Eduardo Corrêa de Azevedo.
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entre seus ancestrais. Ninguém como Maria Stuart, é fato, mas pelo menos um
fidalgo como Manuel da Rocha Brandão, bisavô de Rita, tronco do qual partiram
ramos numerosos
e, senão fidalgos como ele, ao menos pessoas destinadas a alcançar projeção
social, seja por conta própria, seja unindo-se a outras famílias, os Barros, os
Seixas,
os Segadas Viana, os
Coelhos Neto.
Mas nessa busca nem sempre científica de antepassados, alguns desvios e exageros
vão ocorrendo. Como os Freitas Pacheco dizerem-se descendentes de Caramuru, ou
de
Garcia d'Ávila, ou de Marília de Direeu. Mas não é bem assim. A quinta avó de
Rita, Maria da Silva Figueiredo, era prima de Garcia d'Ávila2, cuja filha,
Isabel,
casou-se com Diogo Dias, neto de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, e sua mulher
Catarina Álvares, a Paraguaçu. Quanto a Marília de Direeu,
Maria Dorothea Joaquina de Seixas, era filha de uma irmã de Joana Rosa Marcelina
de Seixas Brandão, bisavó de Rita. Como se vê, desvios e exageros. Nem Caramuru,
nem Garcia d'Ávila, nem a musa do poeta inconfidente Thomás Antônio Gonzaga.
Rita, filha de José e Emília Augusta de Freitas Pacheco, nasceu em Leopoldina
mesmo, a 5 de maio de 1859- Perdeu os pais cedo e foi criada pela irmã mais
velha,
Maria Augusta, professora em cuja casa funcionava pequena escola de
alfabetização de crianças. Foi nesta casa que um dia Eduardo bateu para pedir a
Maria Augusta
permissão de lhe cortejar a irmã. Mudara-se do Rio para Brejo, cidadezinha do
município de Leopoldina, só para ficar mais perto de Rita. Estava apaixonado.
Para
o casamento só faltava a aprovação da mãe, Maria Adelina, ainda morando no Rio,
Eduardo escreveu-lhe. Resposta: "Criar um filho com tanto esmero para o ver
casado
com uma mineira? Nunca!" Para ela - que guardava do marido a afetação
aristocrática - um médico deveria casar-se com uma dama. E sua idéia de mulher
mineira era
literalmente uma caricatura: uma rapariga esquálida, desdentada, pés descalços,
analfabeta, cachimbo de espiga pendurado no canto da boca.
Eduardo achou perda de tempo tentar desfazer tal idéia. Em 1885, casou-se com
Rita mesmo sem as bênçãos da mãe. Foram morar na casa dele em Brejo. Os dois,
mais
uma irmã de criação de Kim, Bellarmina, e o tio desia, Manuel. Dos quais muito
mais se falará adiante.
A primeira filha de Rita com Eduardo, Carmem, nasceu na casa de Brejo em 1886.
De um parto tão complicado - a bacia estreita da mulher dando muito trabalho ao
médico
e marido - que quando chegou a vez de terem a segunda filha ele achou mais
prudente levar Rita ao Rio para que a menina viesse ao mundo na casa da avó
Maria Adelina
e pelas mãos de outro médico.
Começou aí a reaproximação entre mãe e filho. É verdade que no começo Maria
Adelina não se impressionou nem um pouco com aquela "mineira diferente",
pianista, professora,
lendo poesia em francês, uma dama: "Na certa ele a educou depois de casados",
comentou com os outros filhos. Mas, enquanto a sogra se apegava a esses
pensamentos,
Rita ia observando seus hábitos e gostos, os pratos de sua predileção, como
preferia o chá, as flores que fazia questão de ver enfeitando a mesa. Tempos
depois,
quando coube a Maria Adelina ir para Minas (Fortunatinho morrera, deixando-a só
com a mãe idosa, Vozinha, e o filho menor, César, o que levou Eduardo a convidar
os três para morarem com ele), Rita poria em prática o que observara atentamente
nas últimas semanas de gravidez. Maria Adelina foi recebida com todas as honras
e agrados, nem as flores faltaram, perfumadas gentilezas de uma anfitriã fina e
educada.
- Quero pedir-te desculpas pelos meus maus juízos - disse.
- Não se fala mais nisso - sentenciou Rita.
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Mas já então havia nascido, a 4 de junho de 1889, na casa que Maria Adelina
ainda mantinha no bairro carioca do Rio Comprido, a segunda filha de Rita e
Eduardo:
Martha Corrêa de Azevedo. A família se completaria três anos depois com a vinda
de Eduardinho, em Ponte do Cágado, município de Santana do Deserto, comarca de
Juiz
de Fora, para onde todos se haviam mudado pouco antes.
A melhor fase da vida de Eduardo Corrêa de Azevedo - ou pelo menos aquela de que
os moradores do chalé têm mais saudade - é a da infância e adolescência dos
filhos,
já em Juiz de Fora, onde ele clinicava em sua própria farmácia. São de então os
seus primeiros lampejos poéticos, versos que ia escrevendo, mostrando aos
amigos,
guardando. Quis que as crianças desde cedo convivessem com a música, por isso
comprou para elas um Pleyer de segunda mão. Carmem, de ouvido absoluto, domina
cinco
instrumentos (piano, violino, violão, bandolim e cítara) e acabará se tornando
professora de conservatório. Martha sempre será melhor no bandolim que no piano.
Eduardinho,
o de pior ouvido, jamais passou das primeiras lições domésticas dadas pela mãe.
Mas toda a família é muito musical. E teatral também. Ainda na casa de Ponte de
Cágado,
Eduardo mandara construir um galpão no qual instalou oficina para exercitar duas
de suas muitas habilidades, a de ferreiro e a de seleiro. Com forja, bigorna,
fole
e outros apetrechos, ele próprio fizera os aros do seu tílburi, as ferraduras,
cravos e arreios de seus cavalos. Ao lado do galpão, improvisou um teatrinho
onde
os filhos e vizinhos representavam sketches e pequenas peças, muitas vezes
escritos por ele mesmo. Toda a família gostava de teatro.
Martha nasceu com a República, sendo o próprio Eduardo, desde os tempos de
estudante, um republicano. Tão fervoroso que por muitos anos carregou na lapela
um minúsculo
retrato do marechal Floriano Peixoto. Gostava de lembrar à família e aos amigos
um episódio ocorrido em 1894, durante a revolta da Armada sob o comando de
Custódio
de Mello, líderes estrangeiros, notadamente o ministro britânico Hugh Wyndham,
indagando a Floriano como suas tropas seriam recebidas se aqui desembarcassem
para
proteger seus compatriotas residentes no Brasil. Eduardo fazia uma pausa e dava
mais ênfase à já enfática resposta do Marechal de Ferro:
- A bala!
Nacionalista, mas sobretudo detestando ingleses, chegaria a renunciar às suíças
de que tanto gostava por um incidente à toa. Num dia de carnaval, esguichou uma
bisnaga
de água na perna de uma menina que se assustou e se pôs a
gritar. O pai, irritado, reagiu:
- Seu inglês!
Não poderia haver maior ofensa. E como Eduardo a atribuiu às suíças, raspou-as
no mesmo dia.
Um antimonarquista que escreveu longo poema, "Pobre República", para Martha
declamar no palco do teatrinho, enquanto ele, orgulhoso na platéia, parecia ver
na filha
a imagem de um Brasil muito diferente do de seu pai: um Brasil jovem, promissor,
livre, republicano.
Foi em Juiz de Fora que Eduardo Corrêa de Azevedo começou a estudar esperanto,
gabando-se mais tarde de ser "o primeiro esperantista do Brasil". Chegou a
trabalhar num dicionário que jamais publicou. Ao mesmo tempo, sentia-se atraído
pelo jornalismo.
Embora tenha assinado seus primeiros artigos em O Povo, semanário republicano e
abolicionista de Cataguases, foi também em Juiz de Fora que se fez conhecido.
Fundou
com o amigo e poeta Oscar da Gama o jornalzinho A Cigarra, de curta duração, e
tornou-se colaborador dos mais presentes nas páginas do Diário da Tarde local,
onde
criou e manteve por muito tempo aquela seção semanal em que traçava perfis de
amigos e habitantes ilustres da cidade.
A seção intitulava-se Galeria e seu autor assim a definia: "Uma espécie de
recreação intelectual com que descanso dos labores diários (...) não tendo outro
fim senão
tornar o jornal simpático aos leitores e retratados."
A pedido de alguns desses leitores, o próprio Eduardo deixou-se retratar na
seção, permitindo assim, democraticamente, que seus personagens também dissessem
o que
pensavam dele. Foi o que fez Belmiro Braga, jornalista, teatrólogo, poeta,
escritor de algum prestígio:
"Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem velho nem moço (...)
É médico e medica de graça; é escritor e escreve com graça; é, às vezes, brigão
e ao adversário desgraça.
Os óculos que traz sobre o nariz não servem para aumentar a vista e sim de
muralha ao brilho vivíssimo de seus olhos.
Ama os poetas de França, adora as filhas da Itália, gosta e usa barbas suíças.
Numa redação de jornal é tudo. Com a mesma facilidade com que escreve um artigo
de fundo, rabisca uma crônica, com ou sem fundo, ou põe pilhérias a dois de
fundo.
É o nosso Ferreira de Araújo6, com a vantagem de ser poeta.
E, terminando: aqui está um nó numa 'correia'; o A.Z. Vedo que o desate."
A.Z. Vedo era como Eduardo se assinava de vez em quando, pseudônimo que
alternava com outros, Mãozinha, Zut, d'Amorim,
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conforme a ocasião. Mas o perfil mais fiel que nos chega dele, de como era
naqueles dias de Juiz de Fora, talvez seja o que lhe fez um primo de Rita,
Christovam
Malta, também médico e escritor. Diz ele que Eduardo era homem de pés e mãos
pequenos, cabeça grande, cabelos e suíças brancos. Vestia-se invariavelmente de
brim,
"ainda que o termômetro baixe a zero", e parecia cada vez mais inclinado a
trocar o bisturi pela pena. Habitavam nele, além do médico, do jornalista e do
poeta,
pelo menos um músico, um jacobino, um funcionário público e um funileiro. A cada
dia idolatrava maisrFloriano e, ainda segundo Christovam Malta, embora não
quisesse
por modéstia publicar seus versos em livro, "quando o fizer conseguirá um
sucesso brilhante, pois tem talento como o diabo".
Na realidade, seu primeiro livro foi mesmo um apanhado daqueles perfis, editado
em 1899 sob o título Galeria: Caricaturas a Pena. No prefácio, Eduardo
esclarecia
que só o lançava "para ceder às instâncias dos editores amáveis e corajosos". E
que com ele não tinha nenhuma preocupação literária. "À crítica - concluía no
mesmo
prefácio - eu apenas pedirei que o trate como ele merecer, se é que merece
crítica."
No mesmo ano, ainda incentivado por amigos e editores "amáveis e corajosos",
reuniu em livro sua produção poética. Nesta coletânea, Rimas Sem Arte, há poemas
bem
construídos e inspirados, na maioria sonetos como aquele para o sexto
aniversário de Martha. Seus temas são a vida e a morte, a dor e a descrença, o
amor e a família,
à qual devotava profunda afeição. O segundo livro de versos, editado cinco anos
depois, é ainda mais interessante. Intitula-se Catecismo e pretende ser uma
versão
revista e muito pouco ortodoxa de temas ligados à doutrina católica, os Dez
Mandamentos, os Sete Sacramentos, os Pecados Capitais. A ironia, o humor e o
não-conformismo
de Eduardo Corrêa de Azevedo estão nítidos em todos os poemas. Como neste "Ato
de Confissão":
Eu nunca fui ateu, nem sou converso
Essas contradições, que há no meu verso,
São como gritos de incontida fúria
Deve existir um Deus - Pai e infinito
Bem diferente desse odioso mito
Simples invento da romana cúria
Ou neste, sobre amar a Deus sobre todas as coisas, dedicado à mãe, Maria
Adelina, pouco depois de sua morte:
Amarei mais que a tudo - santamente A ti querida morta!...
És o Deus que eu adoro, reverente O mais... pouco me importa
Ou neste, sobre não roubar:
Contra o duro rigor do mandamento vosso
Serei um revoltado eterno... (bem o vejo!)
Não tentarei, sequer, obedecer... não posso
Vê-la sem lhe furtar um delicioso beijo.
Ou ainda neste, sobre não pecar contra a castidade:
Ser virgem, sim... não ter na carne pura
A deliciosa mácula do beijo...
Não suportar as angústias do desejo
Isentar-se do crime da ventura...
E sobretudo neste "Ato de Fé", que vale lembrar por encerrar uma idéia de Deus a
ser convertida em estranho legado, o neto que está para nascer, retomando-a
daqui
a muitos anos, também em versos:
trágica que venha a ser sua existência, passará por ela com a maltrapilha
dignidade de um dom Quixote. Sonhando muito, lutando, tropeçando repetidas
vezes, reerguendo-se,
investindo contra moinhos de vento, caindo, levantando-se para novas batalhas
inglórias. Positivamente, não nasceu para vitórias, mas para sonhar com elas.
Até que
suas fantasias comecem a transformá-lo, será um homem bondoso, altruísta, dócil,
as maneiras gentis contrastando com o corpo avantajado, mais de um metro e
noventa,
as mãos enormes, o jeito pesadão. Um lutador. Sempre acreditando que o trabalho
é o alimento da vida. E a honestidade, o condimento. Fará dessa crença um de
seus
lemas.
Tinha apenas dez anos de idade quando deixou a mãe com os Corrêas de Azevedo, em
Ponte do Cágado, e foi para Juiz de Fora lutar pelo próprio sustento. Fez
pequenos
serviços, trabalhou como estafeta, tentou o que pôde. Pouco conseguiu. Um ano
depois, o Rio. Um menino, apenas um menino a enfrentar a cidade grande com seus
desafios
e armadilhas. Fez um pouco de muito, biscates vários, foi vendedor ambulante,
empregou-se numa casa comissária de café. Já rapaz, quase morreu de febre
amarela,
mas aproveitou o período de tratamento e convalescença para estudar.
Inteligente, memória assombrosa, aprendeu sozinho matemática, francês, inglês,
geografia e história.
Conseguiu o lugar de guarda-livros numa importadora (impressionava a todos pela
rapidez e precisão com que fazia de cabeça cálculos complicados). Até que o dono
da empresa decidiu promovê-lo. Ia familiarizá-lo com o processo de "batismo" do
vinho que trazia de Portugal, tantos por cento do legítimo, tantos de um
nacional
ordinário. Ofendeu-se. Jamais trabalharia numa firma que se valesse de tais
expedientes. Pediu as contas. Sua noção de honestidade sempre foi exemplar,
rígida, não
raro obsessiva. Desempregado, dividiu-se entre incontáveis ocupações. Uma delas
a de recolher trocados em esquinas do Centro, ele vestido de palhaço, tocando
violão
e cantando, enquanto um amigo, metido na pele de um urso, passava o pires.
Quando ou com quem aprendeu a tocar violão não se sabe, mas é provável que tenha
sido
como tudo mais: sozinho. Apenas uma vez visitou a família em Minas desde que se
lançou à sorte no Rio. Oito anos depois da partida, ele já com dezoito, as
pessoas
mal o reconhecendo. Também achou muita coisa mudada, as meninas crescidas,
Eduardinho - que nascera em sua ausência - com seis anos, as senhoras começando
a ficar
grisalhas, doutor Eduardo precocemente envelhecido. Depois, voltou ao Rio. Não
só para se afogar novamente no trabalho, mas também para se isolar. Desde moço e
para
sempre precisará disso, de trancar-se com seus pensamentos, construindo
castelos, vivendo em silêncio num mundo só seu. Para Manuel Garcia de Medeiros
Rosa, a solidão
é quase tão preciosa quanto o ar que respira, fundamental. Por isso, muitas
vezes o veremos correr, compulsivamente, atrás dela.
Em 1907, a saúde muito abalada, a clínica em decadência, ainda assim Eduardo
Corrêa de Azevedo teve forças para mais uma mudança. Alugou casa menor, porém
mais nova,
no número 19 da Rua Silva Pinto, a dois quarteirões do chalé. Foram todos para
lá, Neca inclusive. Nova moradia, novos ares, parecia boa idéia. Na casa antiga
ficaria
apenas a escolinha, que assim podia ser ampliada, abrigando maior número de
alunos. Mas foi idéia que durou pouco. Em menos de um ano estavam de volta ao
número
30 da Theodoro da Silva, Eduardo mais doente, às dores que já sentia e à
dependência da cocaína vindo se juntar um rebelde ferimento na perna. Arruinava-
se cada
vez mais o corpo do poeta.
Mesmo assim, procurava-se agir como se os dias felizes não se tivessem acabado
de todo. Mantinham-se os saraus domingueiros, trovas recitadas em torno do piano
Pleyel
trazido de Minas, versos do dono da casa, Neca a acompanhar-se ao violão em
canções aprendidas com um certo Catulo da Paixão Cearense, modinheiro que
conheceu em
suas andanças pelas noites da cidade. Nos dois anos seguintes, uniram-se todos
para que o trem da família não saísse dos trilhos. As despesas não eram muitas,
as
moças estudando em casa, Eduardinho sem pagar mensalidade como aluno do Ginásio
de São Bento, Alice Dantas Miguez não cobrando aluguel. Rita, muito ajudada
pelas
filhas, continuava trabalhando na escolinha, enquanto o marido ainda tentava
manter, embora precariamente, um consultório nos fundos da Farmácia Dantas, no
Boulevard.
Ia-se sobrevivendo. Mas Eduardo já pressentia a morte. "Será num mês de julho",
vaticinava. Lembrava-se de que o pai havia nascido no sétimo mês do ano e
morrido
no nono. Com ele, achava que aconteceria justamente o contrário, o nascimento em
setembro, a morte em julho. Sem ter concluído sua última obra, o livro de
poesias
intitulado últimos Amores, morreria em 1909- No dia 3 de julho.
Hábitos conservadores têm as famílias destes tempos. A dos Corrêas de Azevedo,
por exemplo, crê em valores como a viuvez eterna, a estabilidade dos
patriarcados,
a moral mais ou menos abstrata que faz de parentes e vizinhos a sua consciência,
os guardiães de seus passos pelos
18
caminhos da virtude. Em outras palavras, acreditam que reputação vale mais que
felicidade. Rita e Bella jamais voltarão a se casar. Sequer admitem que se
insinue
tal traição à memória dos maridos. Por confiarem no patriarcado, acham que o
chefe da casa tem de ser um homem. E fizeram de Neca, então com 29 anos, este
chefe.
Não só por ser o mais velho (Eduardinho tinha apenas 17), mas também por ser o
único em condições de ajudá-las nas despesas (Eduardinho queria estudar medicina
como
o pai, o avô e o bisavô, mas por enquanto ainda estava no ginásio). Havia,
contudo, um problema: exatamente a reputação. O que diriam parentes e vizinhos
de duas
moças solteiras vivendo sob o mesmo teto com um homem ainda jovem e também
solteiro? Rita e Bella, preocupadas, viram apenas duas saídas: ou Neca ia morar
noutra
casa, afastando-se mais uma vez da família, ou se casava com uma das moças. Ele
próprio optou por esta última. Já gostava de Martha, de seus olhos verdes, de
seu
jeito mais doce que o de Carmem. Para Rita e Bella, uma solução adequada. Para
Neca, mais um gesto galante. Para Martha, quase um ato de obediência, facilitado
pela
admiração e estima que tinha ao noivo. O amor, nisso tudo, pouco pesou.
Nenhum dos dois aceitou uma das exigências da Paróquia de Nossa Senhora de
Lourdes para casá-los: tinham ambos de se submeter à confissão. A família,
possivelmente
influenciada por Eduardo, o poeta do Catecismo, é religiosa à sua maneira.
Católica, mas aceitando com reservas (ou mesmo não aceitando) certas regras da
Igreja.
A confissão está entre as que não aceitam. Mas Eduardinho contornou o problema
com uma pequena trapaça. Foi com um amigo à Igreja de Santa Rita, no Centro, e
os
dois se confessaram, um com o nome de Manuel Garcia de Medeiros Rosa e o outro
com o de Márcio Corrêa de Azevedo. O vigário cobrou-lhes vinte mil réis pelas
certidões.
Numa delas, com borracha e caneta, Eduardinho mudou o nome de Márcio para Martha
e tudo se arranjou. Entregues os documentos à Paróquia de Nossa Senhora de
Lourdes,
funcionando num esmaecido prédio da Praça 7 de Março, marcou-se a data.
Casaram-se a 29 de janeiro de 1910, no próprio chalé. A cerimônia, tendo por
testemunhas Bellarmina, César (irmão de Eduardo) e Rodolpho Ambrone, foi
celebrada pelo
Monsenhor Francisco Ignacio de Souza. Menos de um ano depois, o primeiro filho.
O menino nasce nesta manhã de domingo, 11 de dezembro de 1910. A cidade já está
calma, a revolta dos marinheiros sufocada, o azul substituindo as nuvens de
fumaça
que
ontem obscureciam o céu. Ninguém na família ligou para a má sorte que tantos
temem viajar na cauda de um cometa. Quando muito, pensou-se numa estrela imensa,
cheia
de esplendor, que mesmo invisível dizem iluminar os nascimentos de dezembro.
Começo de vida, alegria no chalé modesto. Mas nem tudo corre como se esperava. É
um parto difícil, a bacia estreita de Martha não dando passagem ao menino de
quatro
quilos. O médico esteve ao lado dela desde ontem cedo, quando lá fora se falava
em fim do mundo. Por muito tempo, aliás, haverá quem associe as dificuldades do
parto
ao clima de guerra que inquieta a população. Um parto tão difícil que o médico
chamou outro para ajudá-lo, este se decidindo pelo emprego do fórceps. Um menino
extraído
a ferro, penosamente. Tudo muito complicado, sofrido, longas horas de espera
madrugada adentro.
Eduardo Corrêa de Azevedo teria gostado de estar aqui.
19
NOTAS
1. Atual Praça da República.
2. Sertanista português. Veio com Tomé de Souza, fundou na Bahia a Casa da
Torre, cujas ruínas ainda existem. Morreu em 1609 e hoje é nome de rua no bairro
carioca
de Ipanema.
3. Atual Tebas.
4. Atual Ericeira.
5. Belmiro Bellarmino de Barros Braga, conhecido como o "Rouxinol Mineiro",
autor de peças de teatro, crônicas, poesias, seria o fundador da cadeira número
8 da
Academia Mineira de Letras. Nascido em Juiz de Fora, a cidade mandaria erguer-
lhe um monumento após sua morte em 1937.
6. José Ferreira de Sousa Araújo, teatrólogo e jornalista carioca. Médico
também. Realizou importantes reformas na imprensa de seu tempo a partir da
fundação da
Gazeta de Notícias em 1874. Cronista muito lido, assinava-se às vezes como José
Telha ou Lulu Sênior.
7. David Morethson Campista foi nomeado secretário de Finanças de Minas em
1899. Seria ministro da Fazenda de Affonso Penna de 1906 a 1909.
8. O Dia, de Juiz de Fora, por exemplo, fornece detalhes do caso em seus
números de abril e maio de 1901. Neles os autores colheram boa parte do material
aqui reunido
sobre a questão entre Eduardo Corrêa de Azevedo e a Agave Americano. Ainda a
propósito de Zevada, Manuel Ismael Zevada, tinha mesmo muito a ver com "o
condenado
jogo dos bichos". Em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, segunda edição, volume 4
(páginas 864 a 870), Luís Edmundo cita-o como uma espécie de inspirador do Barão
de
Drummond na criação dos sorteios que se faziam no Jardim Zoológico de Vila
Isabel. Zevada já bancava jogo de apostas semelhante, com flores em vez de
bichos, que
funcionou na Rua do Ouvidor em 1892 ou 93. Teria sido sua a sugestão para que o
Barão fizesse o mesmo, só que com bichos em vez de flores (ver boxe A Vila do
Barão
no Capítulo 3). Mais tarde, Zevada tentaria implantar a novidade em Juiz de
Fora, ao que se oporia o fiscal Eduardo Corrêa de Azevedo.
9- Composto na verdade para substituir o Hino Nacional Brasileiro que Francisco
Manuel da Silva escrevera em 1831. Dias depois da proclamação, o primeiro
governo
republicano, julgando que o antigo fora feito em homenagem a Pedro I (o que não
era exato), instituiu concurso para a escolha de novo hino. Venceu o de Miguez.
O
prêmio de vinte contos de réis ele o doou ao Instituto Nacional de Música para a
compra de seu primeiro órgão. Foi Serzedelo Corrêa, recém-nomeado governador do
Paraná e futuro ministro da Fazenda, quem convenceu o marechal Deodoro da
Fonseca de que a composição de Francisco Manuel da Silva tinha grande apelo
patriótico.
Em sua opinião, ela deveria ser mantida como o Hino Nacional Brasileiro, uma vez
substituídos os versos originais de inspiração realmente monarquista (a maioria
de autoria desconhecida). Foi o que se fez. Os novos versos ficaram sendo os do
poeta e jornalista Osório Duque Estrada. A obra premiada de Miguez, com letra do
também poeta e jornalista Medeiros e Albuquerque ("Liberdade! Liberdade! Abre as
asas sobre nós..."), passou a ser o Hino da Proclamação da República.
10. O chalé tinha mesmo o número 30 naquela época, quando a Theodoro da Silva
começava na Visconde de Abaeté. Em 1917, com o alongamento da rua até a Duque de
Caxias
(no trecho desta que mais tarde seria incorporado à Gonzaga Bastos), o número
mudaria para 130. Em 1936, a Theodoro da Silva sendo novamente alongada,
começando
então na Pereira Nunes, o chalé ganharia uma terceira numeração: 392. A mesma do
edifício de apartamentos que hoje ocupa o seu lugar.
11. Em troca de impostos em atraso que o Governo lhe perdoou, o Ginásio de São
Bento passou alguns anos sem cobrar mensalidades aos seus alunos.
12. A Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes foi criada a 19 de agosto de 1900 e
nos dezoito anos seguintes funcionou no prédio que hoje corresponde ao primeiro
pavimento
do Mosteiro de Nossa Senhora da Ajuda, na Praça Barão de Drummond, então Praça 7
de Março. Diante de confusões que ainda fazem alguns dos que se têm dedicado a
escrever
sobre a história de Vila Isabel, cabem aqui certos esclarecimentos. O mosteiro
original - conhecido como Convento da Ajuda (no qual viviam as freiras da Ordem
da
Imaculada Conceição,
fundada em 1484, na Espanha, pela beata portuguesa Beatriz da Silva e Meneses) -
esteve de 30 de maio de 1750 a 19 de outubro de 1911 num prédio que se estendia
por toda a atual Cinelândia, da Rua do Passeio à Evaristo da Veiga. No mesmo dia
em que as freiras dali se retiraram para um casarão da Rua Conde de Bonfim, na
Tijuca,
o prédio começou a ser demolido. Parte do que era transformou-se num hotel de
300 quartos construído pela Light & Power. A outra foi aproveitada para o
alargamento
da rua, sendo agora a praça em frente ao Teatro Municipal. Em 1918, a Paróquia
de Nossa Senhora de Lourdes transferiu se para a nova igreja que até hoje está
no
número 200 do Boulevard 28 de Setembro. O esmaecido prédio da Praça 7 de Março
entrou em reformas. Mais dois andares foram construídos. Dois anos depois -
exatamente
a 26 de julho de 1920 - as freiras mudaram-se da Conde de Bonfim para lá, onde
estão até hoje. Portanto, ao contrário do que se tem dito, a paróquia e o
convento
jamais chegaram a dividir o mesmo prédio.
13. Diz Jacy Pacheco em NoelRosa e Sua Época (página 22): "Contam alguns
parentes que dona Martha assustou-se com o canhoneio que abalou o Rio, na
revolta dos marinheiros
chefiada pelo valente João Cândido. O susto
complicou-lhe a gestação e o parto."
20
PARTE II
1910-1928
Capítulo 2
Riso de Criança
O menino se chamará Noel. Noel de Medeiros Rosa. Por ter nascido às vésperas do
Natal e pelo amor do pai às coisas de França, o idioma, a cultura, a história do
país de Bonaparte. Que por sinal é o maior de todos os heróis para este mineiro
calado, introspectivo, que se faz repentinamente falante quando se trata de
lembrar
episódios como a queda da Bastilha e as campanhas napoleônicas. Com sua
formidável memória, gosta de citar no original frases atribuídas ao grande
general, principalmente
as do discurso de Toulon em 1793:
- Le boulet qui doit me tuer n 'estpas en-corefondu!
Noel como o Natal dos franceses. É assim que vai à pia batismal da Matriz de São
Francisco Xavier do Engenho Velho, domingo, 29 de janeiro de 1911, primeiro
aniversário
de casamento dos pais. Embora os moradores da Theodoro da Silva, como os de toda
Vila Isabel, pertençam à Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, mais ligados
portanto
à igreja que ainda ocupa aquele prédio da Praça 7 de Março, muitos preferem
realizar seus casamentos e batizados neste templo cheio de histórias erguido na
Rua São
Francisco Xavier, a duas esquinas do largo da Segunda-Feira, no mesmo terreno
onde outrora ficavam os cemitérios (o dos cidadãos comuns onde é hoje a alameda
de
entrada, o dos escravos nos fundos e o dos nobres na área destinada ao templo,
guardando-se assim, para além da vida, as diferenças de classes, cada morto em
seu
lugar).
Fundada por José de Anchieta em 1625, é mesmo uma igreja cheia de histórias. Uma
das favoritas de Pedro I, que a ela mandou o comendador Francisco Gomes da
Silva,
o Chalaça, com uma declaração reconhecendo como sua filha a menina Isabel Maria.
Para rubor do vigário Manuel Joaquim Rodrigues Dantas, a quem coubera batizá-la,
segundo registro original, como "filha de pais incógnitos". Não era segredo para
ninguém que Isabel Maria nascera do romance de Pedro I com Domitila de Castro
Canto
e Mello, então Viscondessa de Santos. O que o vigário não esperava é que o
Imperador tivesse coragem de reconhecê-la. Sim, uma das igrejas favoritas de
Pedro I,
que em honra ao santo estendeu um pouco mais o nome do filho e herdeiro: Pedro
de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula
Miguel
Gabriel Rafael Gonzaga, o futuro Pedro II. Mas a igreja favorita também de Luís
Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. Ao voltar coberto de medalhas da
Guerra
do Paraguai, prepararam-lhe uma série de homenagens. Por aquela
25
mesma época uma ventania fizera tombar lá do alto uma das torres da igreja.
Caxias soube, recusou as homenagens: "Quando a casa de Deus está em ruínas -
sentenciou
ele - o soldado não recebe festas. Ide reconstruir a igreja da minha Freguesia
do Engenho Velho.
Pois é ali - na mesma pia em que recebeu os primeiros sacramentos a "filha de
pais incógnitos" Isabel Maria - que Noel é batizado em cerimônia celebrada pelo
cônego
Antônio Boucher Pinto. O padrinho é José Rodrigues da Graça Mello, o médico que
acompanhou Martha durante toda a gravidez e chamou o colega Heleno Brandão para
ajudá-lo
a vencer as dificuldades do parto. Algumas pessoas da família acharão que foi um
erro seu não ter notado, senão meses mais tarde, que o menino nasceu com um
problema
no maxilar inferior, o fórceps usado pelo outro médico pegando-o de mau jeito,
fraturando-lhe o osso num ponto vital, deformando-o para sempre. Martha e Neca,
contudo,
têm grande carinho por Graça Mello, jamais o culparão de coisa alguma. Quem sabe
não foi mesmo o canhoneio?
A madrinha é Maria Arlinda Rodrigues de Almeida Madureira. Ou simplesmente
Arlinda. Uma menina de nove anos que desde os seis mora no chalé como se fosse
da família.
Os Madureiras e os Corrêas de Azevedo são amigos dos tempos de Cantagalo e Nova
Friburgo. Arlinda nasceu ali perto, em Bom Jardim. A mãe morreu de parto, o pai
passou
a vida viajando, a menina foi criada por uma tia. Num certo dia de 1907, veio de
visita, todos gostaram dela, pediram à tia que a deixasse ficar por uma ou duas
semanas. A menina adorou. Era a única criança da casa (Eduardinho já estava com
quinze anos), tratada com todas as atenções. Acabou ficando de vez, Eduardo e
Rita
fazendo dela uma filha caçula.
Arlinda e Martha serão sempre amigas muito chegadas, íntimas mesmo. Devem isso a
umas tantas afinidades, o gosto pela vida, o temperamento bem mais extrovertido
que o de Carmem, uma certa sensualidade que, nesses dias, as moças costumam
reprimir. Arlinda foi batizada no chalé, cabendo a Martha representar-lhe a
madrinha,
Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A partir de agora, mais que amigas, vão se
considerar parentas de fato, irmãs de verdade. Os
Corrêas de Azevedo, os Pachecos, os Madureiras sempre levaram muito a sério os
laços que o batismo cria.
A madrinha de Noel crescerá no chalé. Para se transformar numa moça meiga, de
olhos estivos, os lábios grossos, o nariz de turca conferindo-lhe beleza próxima
do
exótico. Terá a mesma educação das irmãs de criação, tocará
piano, se dedicará aos trabalhos manuais, o crochê, a pintura, a pirogravura.
Ficará indecisa entre o Instituto Nacional de Música e a Escola Normal. Depois
de aprovada
nos exames de admissão a ambos, optará pelo primeiro. Só sairá daqui casada. Um
casamento que também a aproximará de Martha, uma compreendendo na outra a falta
de
entusiasmo, desencanto mesmo, por uma união sem amor. Antes disso, quando tiver
seus vinte anos, Arlinda vai se apaixonar por um bom rapaz. Chegarão a ficar
noivos,
mas por pouco tempo: ao descobrir que o moço morava com uma tia, dona de pensão
familiar, que à noite mantinha a porta de seu quarto aberta a um dos inquilinos,
Rita exigirá que a filha de criação rompa o noivado. Imagine vê-la casada com um
homem que faz vista grossa à falta de compostura da tia! E assim será, fim de
noivado,
Arlinda enchendo-se de tristeza. Mais tarde, conhecerá um farmacêutico de São
Paulo, amigo da família, e aceitará seu pedido de casamento. Como Martha, apenas
por
amizade.
O defeito começa a ser notado assim que o menino troca a mamadeira pelas
primeiras refeições sólidas. O lado direito do rosto pouco ou nada se movendo,
pensa-se
de início numa paralisia temporária. É um bebê gordo, rosado, de aparência
saudável, que chega a partici-
26
par de um desses muitos concursos de robustez infantil tão em voga(2). Mas, à
medida que cresce, mais se nota a diferença: enquanto o lado esquerdo
desenvolve-se
normalmente, o direito parece atrofiado. Graça Mello e depois outros médicos são
consultados. O diagnóstico da fratura realmente vem tarde, o osso formado
assimetricamente,
nada mais podendo ser feito. Tenta-se uma operação aos seis anos. E uma prótese
aos doze. Ambas sem sucesso. Eduardinho, já acadêmico de medicina, terá
oportunidade
de testemunhar a primeira dessas tentativas frustradas. A família gastará parte
de suas economias - 600 mil réis - para que o menino seja assistido por famoso
traumatologista.
Dinheiro jogado fora.
- Este médico é um charlatão! - dirá Eduardinho ao vê-lo forçar o maxilar de
Noel com um abridor de boca até romper-lhe as fibras do masseter, causando-lhe
traumatismo,
dor e nenhuma melhora(3).
Menos penosa, porém tão inútil, será a prótese improvisada seis anos depois, um
precário aparelhinho que Noel não usará por muito tempo.
Crescerá com o defeito. Viverá com ele. Carregará para sempre o queixo torto que
lhe enfeia o rosto. Tem a cabeça bem feita, os olhos acesos, expressivos,
castanho-claros.
O nariz é afllado, nem como o da mãe, nem como o do
pai. E se parece maior, isso se deve à linha reta que parte do lábio inferior ao
pescoço, como se o mento lhe tivesse sido arrancado. Essa conformação de rosto -
que se vai acentuar com o tempo - lhe dá uma aparência estranhamente indefinida,
a metade superior harmoniosa, bonita até, e a inferior deformada, de uma
fealdade
que pode ir do grotesco ao patético conforme esteja quieto, falando ou, sempre
com sacrifício, mastigando.
Desde pequeno e até seus últimos dias, enquanto estiver no chalé, a mãe cuidará
pessoalmente de sua alimentação, dietas que o permitam usar o menos possível a
mandíbula,
não forçar quase a articulação. Ovos cozidos, massas, purês, mingaus, sopas. Ao
contrário do que se dirá um dia, embora feio, marcado pelo defeito, não é uma
criança
infeliz. A idéia de um Noel Rosa mergulhado numa infância sofrida, um pobre
menino estigmatizado a suportar em silêncio as estocadas dos outros meninos que
o chamam
de "Queixinho", está longe de corresponder à realidade. É mais exato pensar nele
alegre, despreocupado, solto. Será sempre assim. Mesmo durante os períodos de
dificuldades
financeiras que a família vai enfrentar. E mesmo, também depois da operação
dolorosa e mal-sucedida. Complexo por causa do queixo? Se o tem, não o
demonstra. No
máximo, mostra-se meio constrangido ao comer na frente de estranhos, consciente
talvez da má impressão que causa. Em tudo mais será um menino seguro. Ativo,
desembaraçado,
inteligente, sempre de bom humor. Na rua, comanda as brincadeiras. Um líder. E
em casa, é o número um, o favorito de quase todos.
O número dois - a quem esta condição sempre incomodará um pouco - nasce a 29 de
dezembro de 1914. No mesmo chalé e também pelas mãos de José Rodrigues da Graça
Mello.
Parto normal, nenhum problema. É um garoto forte, bonito, a que dão o nome de
Hélio. Hélio de Medeiros Rosa. Desta vez, sem homenagens à França, ao Natal, ao
que
seja.
Mais do que quatro anos de idade vão separar os dois irmãos. Na aparência, no
modo de ser, em quase tudo, diferem-se muito. Todos vivem a dizer que Hélio é um
menino
lindo. Os traços do roto lembram muito os da mãe. É forte, com ligeira tendência
a engordar. Enquanto isso, Noel cresce feio, frágil, mirrado. Hélio é caseiro,
tem
poucos amigos, prefere os livros aos brinquedos. Noel ama a rua, os companheiros
de algazarra. Gosta de subir descalço a Pedreira do Simões para lá de cima ele e
os amigos gritarem a plenos pulmões: "Olê-lê-oooooooooo...!" O eco espalhando
suas vozes pelo bairro, fazendo-as atravessar portas e janelas até chegarem
27
Nota explicativa:
Dois médicos
Por ocasião do nascimento de Noel, Martha de Medeiros Rosa foi assistida por
dois médicos que ainda se incluiriam entre os mais conhecidos e estimados
personagens
da história de Vila Isabel. Um deles, José Rodrigues da Graça Mello - que
acabaria sendo o padrinho do menino -, não era exatamente médico, mas
ultimanista de medicina,
quando foi chamado ao chalé naquele explosivo sábado de dezembro.
Nascido no Rio a 23 de abril de 1881, já estava casado e com filhos no dia em
que decidiu ser médico. Só se formou em 1911, mais de um mês depois de ter
nascido
Noel. Era homem gentil, inteligente, interessado em música e poesia como tantos
de seu tempo. Todas as quartas-feiras, sua casa no Boulevard transformava-se em
ponto
de reunião de seresteiros e chorões. Seus saraus ficaram famosos no bairro,
contando às vezes com a presença de artistas como Stefana Macedo e Vicente
Celestino.
Nos dias de São Jorge, a festa era maior. Pixinguinha, que aniversariava com o
dono da casa, costumava aparecer para um gole de pinga e um solo de flauta.
Choros,
polcas, maxixes, valsas, lundus, tudo se ouvia nos saraus dos Graças Mello.
Casado com Glorinha, tiveram quatro filhos, todos muito amigos de Noel. Pela
ordem, Edgar, Nelson, Nilda e Octávio. O primeiro também seria médico. O último,
ator
de teatro, cinema e televisão, pai do compositor e arranjador
Guto Graça Mello.
O ultimanista de medicina contava com um parto simples quando se dirigiu ao
chalé naquele sábado. Os problemas que o tomaram de surpresa - o bebê grande
demais para
a bacia estreita da mulher - levaram-no a apelar para a maior experiência de um
médico já formado, Heleno da Costa Brandão, com quem já vinha trabalhando no
pequeno
consultório em cima de uma farmácia do Boulevard.
Ao contrário de Graça Mello, Heleno, que tinha distante parentesco com o pessoal
do chalé (sua avó, Antônia Eulália d'Ávila Brandão, era irmã da mãe de Rita,
Emília
Augusta de Freitas Pacheco), desde cedo sonhou com a profissão. Nascido em Vila
Isabel a 18 de agosto de 1883, estudou no Colégio Rachel Bessa, em Campos, e
depois
no Anchieta, de Nova Friburgo, antes de ingressar na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. Em 1907, formava-se. Médico e
farmacêutico. No ano seguinte, defendia tese. Casou-se com Maria José de Barros,
a Cecé, de outra família tradicional do bairro. O pai dela, José Cândido de
Barros,
depois de lutar na Guerra do Paraguai, ganhou cartório do Imperador e
enriqueceu. Comprou uma bela chácara em Vila Isabel, frente no Boulevard, fundos
na Torres
Homem, que mais tarde dividiria entre os filhos (a rua que hoje reparte em dois
o quarteirão correspondente à chácara chama-se, em sua homenagem, Major Barros).
Outra filha de José Cândido - e portanto irmã de Cecé - era Maria Cândida de
Barros Nunes, a Iaiá, cujos filhos Adalberto, Cacau, Heleno ejosé Peru também
seriam
muito conhecidos no bairro e fora dele. Os três primeiros se destacariam em suas
respectivas carreiras militares e políticas.
Heleno e Cecé tiveram três filhas.-Helena, Heloísa e Hilde. O marido de Heloísa,
Jorge Sampaio de Marsillac, seria em Vila Isabel um médico tão ilustre e
estimado
quanto o sogro. Ele e o filho, Jayme, adquiririam grande reputação nos meios
científicos como cancerologistas.
Foi de Heleno da Costa Brandão a decisão de usar o fórceps para ajudar Noel a
nascer. O que ele sempre fez questão de dizer e repetir, livrando assim de
qualquer
responsabilidade o amigo, ainda acadêmico, Graça Mello. Como terá sido? De que
forma deu-se o acidente? Por que, para vir ao mundo, Noel Rosa teve de ser tão
duramente
marcado?
O Dr. Antônio Assis de Salles, professor de anatomia do Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com base em documentação
fotográfica
e nas informações dos autores (que por sua vez as colheram com parentes e amigos
da família de Noel, além de filhos dos dois médicos que acompanharam o parto),
permite-se
formular a hipótese mais provável do que causou o defeito (braquignatia) no
queixo do poeta de Vila Isabel.
" 1. Devendo o fórceps segurar o bebê pelos dois lados superiores da cabeça
(ossos parietais), uma de suas extremidades o fez num ponto mais abaixo, na
têmpora direita,
mais precisamente no côndilo mandibular,
fraturando-o.
2. O côndilo é uma saliência oblonga que se destaca no bordo superior de cada
ramo ascendente da mandíbula. É através dele que este osso se articula com o
temporal
- a articulação-têmporo-mandibular
28
Com menos idade do que Noel o fez, deixa a escolinha e é matriculado num colégio
público, os pais achando que o convívio com outras crianças e a disciplina
imposta
por uma professora estranha sejam o bastante para amoldá-lo. Vó Rita chega a
prometer-lhe prêmios para o caso de o boletim escolar registrar boas notas em
comportamento.
Um dia entra em casa com um 100 que mostra, correndo, à avó.
- Aqui está. Agora, meu prêmio.
Vó Rita cumpre a promessa. Convencida de que a tática funciona, insiste nela.
Acena-lhe com outros prêmios para que seja um bom menino o dia inteiro, em todos
os lugares, em casa como na escola. A proposta provoca-lhe nova explosão. Dá um
soco na mesa e vocifera:
- A senhora pensa que épouco o sacrifício que já faço na escola e ainda quer que
me comporte bem em casa?
Irritabilidade sempre inesperada. Já rapazola, será protagonista de insólita
cena à mesa de jantar, a família recebendo visitas, vó Bella orgulhosa de seus
quitutes,
ela que sempre cuidou, com gosto e capricho, da cozinha da casa. Será servida
uma sopa deliciosa, de caldo fino e deleitoso, elogiadíssima. O próprio Hélio
dará
sua aprovação:
- Vovó, quero mais.
Terminado o jantar, as visitas ainda à mesa, alguém indagará:
- De que era aquela sopa, dona Bellarmina?
- De couve-flor.
Hélio se lembrará então que couve-flor está entre as coisas que mais abomina. Só
de pensar dá-lhe engulhos.
- Droga! Por que não me avisaram? Furioso, correrá até o banheiro, enfiará o
dedo na goela e porá para fora o jantar.
São realmente muitas as diferenças de comportamento entre os dois. Mas faça-se
justiça a Hélio: enquanto ele exterioriza seu modo de ser, mostrando-se
transparente
e por inteiro, Noel é antes de tudo um simulador, um garoto que não se expõe,
astuto o bastante para que as pessoas se deixem levar por seu ar sonso de anjo
de igreja.
Custarão um pouco a perceber que o número um é muito menos "bem-comportado" que
o número dois. De natureza na verdade mais inconformista e rebelde, só que
camuflada.
Noel, simulador, medindo gestos e palavras na frente dos mais velhos, sempre se
sai bem. Hélio, extrovertido, dizendo o que pensa e sente, custe o que custar,
fica
sendo o difícil, o "impossível".
Martha e Neca não terão mais filhos. A esses dois darão o que de melhor possuem:
amor, generosidade, tolerância. Martha principalmente. Talvez sensíveis aos
handicaps
de cada um - o queixo torto de Noel, as convulsões de Hélio - não serão pais
rigorosos, repressores. Os dois crescerão tão livres quanto possam ser dois
meninos
desses tempos.
Desde que os Corrêas de Azevedo se mudaram para Vila Isabel, a família vive numa
espécie de gangorra financeira, um sobe-e-desce que se arrastará por muito tempo
ainda, as tempestades de dinheiro curto se seguindo a períodos menos ou mais
longos de bonança. Todas as mulheres trabalham, ajudando de alguma forma na
escolinha,
mas é Neca, como em todo patriarcado, o verdadeiro responsável pelo sustento da
casa.
Seu primeiro emprego fixo no Rio, depois de casado, foi o de guarda-livros da
Camisaria Especial, na Rua do Ouvidor. Em poucos meses, já era o gerente ou,
mais que
isso, o braço direito do proprietário que um dia, estando a firma metida em
apuros, chamou-o a um canto, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe, em tom
paternal:
- Se tu me ajudares a sair deste buraco, faço-te meu sócio.
Neca passou a trabalhar em dobro, dedicou-se à camisaria como se fosse sua.
Reergueu em pouco tempo um negócio que parecia irremediavelmente condenado.
O dono saiu afinal do buraco, mas dentro dele deixou enterrada a promessa de
sociedade. Neca, desapontado, propôs a outro empregado, um certo Rodrigo,
abrirem juntos
sua própria firma. Por que não uma casa de classe, de roupas masculinas,
camisas, lenços, gravatas e cortes importados da Inglaterra? Neca tinha algum
dinheiro,
Carmem ajudou com suas economias, enquanto Rodrigo, embora filho de português
rico, conhecido como "o rei do bacalhau", contava mais com o apoio do sogro
também
rico. Fizeram negócio nas seguintes bases: Neca entrava com o capital inicial, o
sogro de Rodrigo punha sua parte depois. Assim, embora fossem tempos de guerra,
metade da Europa entrincheirada, os dois instalaram, otimistas, sua importadora
na Rua Gonçalves Dias.
São quatro ou cinco anos de nova bonança no chalé. Na verdade, o período de
maior conforto gozado pela família desde que Neca se tornou seu chefe. A mesa
faz-se
farta, as mulheres vestem-se como nunca, Noel e Hélio ganham roupas e brinquedos
caros, Eduardinho já não precisa se preocupar com os gastos, a faculdade, a
alimentação,
o transporte, os livros. De tal forma o dinheiro parece sobrar que Neca nem liga
para os calotes que volta e meia lhe
31
Eduardinho não está morrendo. Mas precisa de cuidados. Neca se incumbe disso até
que o cunhado esteja em condições de viajar para o Rio, ser melhor tratado no
chalé.
A maleita? Pensa consigo mesmo: "Estranho... foi-se embora. Terá sido o choque
daquela notícia?"
Fica seis anos fora, só voltando a cada dezembro para os aniversários dos filhos
e as festas. Numa dessas vindas, Noel e Hélio vão esperá-lo na estação. Não o
reconhecem.
Ficam muito assustados quando um homem alto, barba por fazer, modestamente
vestido, aproxima-se deles na plataforma:
- Hélio, Noel... Sou eu, seu pai!
Volta depois dos seis anos. Paga as dívidas até o último tostão. Os bancos já
nem contavam com isso, um mineiro falido preocupado com a honra.
No chalé sempre cabe mais um. Ou mais quatro. Comojocelyn da Encarnação e os
irmãos Dulce, Sylvia e Mariozinho Brown, crianças com as quais Noel e Hélio vão
dividir
boa parte de sua infância, vivendo todos sob o mesmo teto como uma só família.
Jocelyn, um ano mais velho que Noel, não chega propriamente a morar no chalé.
Vem cedinho, toma o café da manhã, estuda, almoça, estuda um pouco mais, brinca,
janta
e só depois volta para sua verdadeira casa, na Rua Maxwell. Dorme e no dia
seguinte começa tudo de novo. O pai, Álvaro Pereira da Encarnação, enviuvou
quando Jocelyn
tinha apenas onze meses. Do segundo casamento, anos depois, nasceu uma menina.
Submetida, ainda pequena, a delicada operação pelos doutores Heleno Brandão e
Graça
Mello, morreu. Eduardinho, já acadêmico de medicina, assistiu à operação. Ficou
arrasado. Uma perda a mais para seu Álvaro, uma dor muito grande para o pobre
Jocelyn.
Comentou o fato em casa com a mãe e as irmãs, amigas da família Encarnação. Rita
teve uma idéia:
- Por que não cuidamos do menino? Poderemos educá-lo com as nossas crianças.
É desse modo que Jocelyn entra na vida do chalé, passa a freqüentar a escolinha
e, mais tarde, o mesmo colégio em que Noel completará o primário.
Dulce, Sylvia e Mariozinho são filhos de Mário Brown, viúvo amigo de Perpétua,
irmã de Rita. Na esperança de que se recupere de um pulmão doente, os médicos
recomendam-lhe
passar uma temporada em Belo Horizonte. Vai e teme-se que não volte.
Tuberculose, nesses dias, é moléstia quase fatal. Tão terrível que as pessoas
lhe evitam o nome,
preferindo dizer que Mário é "fraco" ou simplesmente "doente", mas nunca
tuberculoso. Perpétua dirige um internato feminino na Rua São Francisco Xavier.
Poderia abrigar nele Dulce e Sylvia, mas não Mariozinho. Apela para a irmã.
Seria
uma dor de coração separá-los, já sem mãe, o pai longe. Por que Rita não fica
com os três? Como internos na escolinha.
Assim, para não os separar, Rita de fato os aceita como "internos" do seu
externato. Passam a ser seis, portanto, as crianças do chalé. As que chegam
agora sendo
criadas como as de casa, os mesmos direitos, as mesmas obrigações. E uma
liberdade quase tão ampla quanto a que Martha e Neca dão a seus filhos. Dulce,
Sylvia e
Mariozinho, nem tanto. Pois Carmem - que desde o início liga-se muito a eles,
cuidando mais diretamente de sua educação, tornando-se mesmo, por iniciativa
própria,
uma espécie de segunda mãe - é mulher mais exigente, discipli-nadora e austera
que a irmã.
Noel é atento também às diferenças entre a mãe e a tia, uma tão liberal, de
zangas poucas e sempre brandas, e a outra tão presa a regras, proibindo mais que
permitindo.
Diferenças inclusive na maneira de administrar a casa e a escola, na qual vão
ser cada vez mais atuantes na medida em que Rita envelhecer. Martha é
perdulária, o
dinheiro como coisa feita para entrar e sair logo, os tempos de bonança devendo
ser aproveitados antes que voltem os de tempestade. Carmem, pelo contrário, é
como
a formiga da fábula, trabalhar e guardar nos dias bons para sofrer menos nos
ruins. Noel detesta este lado meio avaro da tia. Desde o primeiro escorregão
financeiro
do pai, aprendeu a ver no dinheiro algo que para o resto da vida chamará de "vil
metal", necessário mas maldito, cobiçado mas ilusório, instrumento de grandes
bens
e de males ainda maiores. O dinheiro, a falta dele e sobretudo o apego a ele,
alimentado desesperadamente por tanta gente, o incomodarão sempre. Não gosta
dessa
mania de poupar. Como dirá, com muito humor, nos versos que fará um dia,
"qualquer economia acaba sempre em porcaria..." Por isso atreve-se a
confidenciar a Arlinda
uma opinião sobre tia Carmem:
- É muito pão-dura. Come o caroço da banana e depois a casca.
Estudam todos na escolinha, debruçados sobre carteiras que se distribuem pelas
duas salas e um dos quartos do chalé. Em março de 1920, porém, Noel ejocelyn, os
dois
mais crescidos, já estão matriculados no terceiro ano da Escola Pública Cesário
Motta, um casarão antigo no lado ímpar do Boulevard, esquina de Silva Pinto5.
Tão
perto de casa que os dois fazem o percurso a pé em menos de dez minutos. Isso
33
quando Noel não cisma de viajar o quarteirão, não mais que um quarteirão, no
estribo do bonde. É mais demorado, perde-se tempo esperando o Vila Isabel-
Engenno Novo
ou o Aldeia Campista, mas vale a pena pelo prazer de correr riscos, de brincar
com o perigo nos saltos que o fazem subir ou descer, a toda velocidade, em
frente
à Cesário Motta.
- Este menino é louco!- grita alguém ao vê-lo saltar.
Loucura, aliás, que ainda levará Martha a duas constatações. Uma, a de que Noel,
tão bem-comportado em casa, é outro na rua, a ponto de ser confundido com os
alegres
e endiabrados moleques do bairro. A segunda, de que o compenetrado Jocelyn, ao
contrário do que ela pensava, é incapaz de tomar conta do filho no caminho da
escola.
Martha passa certa manhã pelo Boulevard quando vê Noel numa de suas arriscadas
acrobacias. Em casa, chama Jocelyn.
- Você é mais velho, maior que ele. Promete que não vai deixá-lo mais pegar
carona de bonde?
- Prometo, dona Martha.
No outro dia, Noel volta a atirar-se ao estribo do bonde parado no ponto.
Jocelyn vai
atrás. Quer impedi-lo de fazer as evoluções que dona Martha tanto teme. O bonde
sai, Noel corre pelo estribo, de balaústre em balaústre. Jocelyn tenta segurá-
lo,
gritando para que pare. Neste momento Martha passa na calçada. Apavora-se ao ver
que não apenas o bem-comportado Noel pode ser confundido com os moleques do
bairro.
- Francamente! - dirá a Jocelyn. - Não confio mais em você.
Álvaro Pereira da Encarnação é homem pobre, batalhador, não pode dar ao filho os
confortos que gostaria. Mas o pessoal do chalé ajuda como pode. A pelerine e o
velocípede
de Noel são dados a ele. Roupas, brinquedos, livros, alimentação, Rita faz
questão de que nada lhe falte. Os dias que passa no chalé são os melhores de sua
infância
(aos treze começará a trabalhar, voltará para a companhia do pai, não seguirá
Noel no ginásio). É aqui que vê plantadas suas alegrias de garoto, suas mais
gratas
lembranças. No modo como é tratado, no convívio com os "irmãos", no jeitinho com
que Noel consegue convencer as pessoas de que é mesmo um anjo, enquanto Hélio
goza
de fama oposta. Jocelyn deixa-se contagiar pelo irrequieto humor de Noel. Ainda
que esse humor eventualmente mude. Como no dia em que estão as seis crianças
almoçando
na mesa da cozinha e Jocelyn se põe a imitar o jeito torto, esquisito, do amigo
mastigar. Exagera na imitação, faz caretas, provoca risos em Hélio, Dulce,
Sylvia,
Mariozinho. A fisionomia de Noel, antes também risonha, vai mudando, fecha-se,
tinta-se de cólera. Mas ele não diz nada. Lentamente, enche a colher de feijão,
coloca-a
no prato com o cabo do lado de fora. Usando o garfo e fazendo da borda do prato
um ponto de apoio, dá uma pancada no cabo da colher. Espalha-se feijão por toda
a
mesa. A violência da cena assusta as outras crianças. E depois que elas, olhos
arregalados, chegam a sentir medo e param de rir, Noel solta uma estrepitosa
gargalhada.
Foi a última vez que o imitaram.
O gosto pelas piadas proibidas, pelas brincadeiras obscenas, pelos mistérios do
sexo é cultivado desde cedo. No colégio e em casa.
-Já reparou como essas três são bonitas? - indaga a Jocelyn numa aula da
professora Adélia Lisboa Manzano, referindo-se às três meninotas que se sentam
na carteira
de trás.
Na volta do recreio, entra na sala antes dos outros, senta-se, abre a braguilha,
põe o que tem de fora e fica esperando. O restante da turma começa a entrar, as
três meninotas passam por ele, ficam embaraçadas ao vê-lo displicentemente em
tal posição, pernas abertas, sexo à mostra. Uma delas, Indalina, vai à mesa da
professora
e conta o que se passa. Dona Adélia olha
34
NOTAS
1. As palavras de Caxias estão gravadas numa das placas hoje afixadas na
fachada da igreja.
2. Jacy Pacheco se equivoca ao afirmar em Noel Rosa e Sua Época (página 24) e O
Cantor da Vila (página 40) que aos dez meses o menino venceu um concurso de
robustez
infantil patrocinado pela Nestlé. Esta firma só em 1921 iniciou suas atividades
no Brasil. Portanto, quando Noel já estava com dez para onze anos. Eram muito
comuns
na época os concursos desse tipo promovidos pela Prefeitura do então Distrito
Federal. Embora Eduardo Corrêa de Azevedo, o filho, tenha garantido aos autores
que
o sobrinho realmente venceu um deles, não se encontrou registro disso nos
arquivos municipais ou na imprensa de 1911 e 1912.
3. Detalhes dessa operação foram narrados aos autores por Eduardo Corrêa de
Azevedo. O traumatologista famoso que assistiu o sobrinho - e cujo nome, por
questões
éticas, negou-se terminantemente a revelar - pretendia de início realizar uma
intervenção mais ambiciosa: corte do osso e enxerto. O que provavelmente também
não
teria dado certo, em razão dos limitados recursos da época. Optou, então, pelo
abridor de boca.
4. Hélio de Medeiros Rosa jamais se livraria de todo dos ataques epiléticos. Já
adulto - e anos depois da morte do irmão - se submeteria a uma operação
destinada
a aliviá-lo de uma compressão no cérebro. Por algum tempo os ataques tornaram-se
mais brandos e espaçados, mas a melhora seria apenas temporária.
5. Diz Almirante, nas duas edições de No Tempo de Noel Rosa, que após aprender
as primeiras letras com a mãe Noel ingressou no Colégio Maisonette, não fazendo
aquele
biógrafo qualquer referência à Cesário Motta. Os autores não conseguiram apurar
nada sobre uma eventual passagem de Noel pelo Maisonette, desconhecida também de
Eduardo Corrêa de Azevedo e outras pessoas da família, amigos e vizinhos daquela
época.
35
Capítulo 3
Baleiro, jornaleiro,
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e vigarista...
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa
São Coisas Nossas
Os dois são muito inteligentes. Mas em casa - diante da extroversão do mais moço
e do jeito meio guardado do mais velho (ou até que o menino Noel se transforme
no
compositor popular Noel Rosa) - é Hélio quem se destaca. A família chega mesmo a
ver nele, com os olhos do exagero, uma criança prodígio. Aos quatro anos, de
tanto
ouvir as aulas do Externato Santa Rita de Cássia e de observar o irmão estudando
na cartilha feita por Martha com suas próprias mãos (letras recortadas de jornal
e coladas num caderno escolar), já sabe ler e escrever. Só que de cabeça para
baixo, as letras invertidas, as palavras começando do fim.
-Foi assim que aprendi-explica aos que se admiram de tal façanha, talvez sem
saberem que, de frente para o irmão, enquanto este estudava, foi mesmo às
avessas que
se alfabetizou. Aos seis, graças a um livro de inglês sem mestre que descobre na
estante, inicia-se sozinho num idioma que acabará dominando inteiramente. Por
este
e por outros motivos, estará sempre impressionando os mais velhos. Um dia, seis
para sete anos, brincando com Sylvia no Chão da sala, jornais velhos e lápis de
cor
espalhados, ele distraído, a menina faz um comentário qualquer que Carmem acha
inoportuno. Repreende-a:
- Não diga isso, Sylvia. É tolice.
Ali mesmo, mal a tia pronuncia essas palavras, Hélio escreve na margem de uma
folha de jornal uma quadrinha que logo estará passando de mão em mão. Todos
maravilhados
com tanta precocidade:
Orgulhosa, vó Rita prevê para o neto um grande futuro. Na certa será alguém,
talvez um poeta como Bilac, ou um cientista como Oswaldo Cruz. Passa a mão pela
cabeça
do menino e vaticina:
- Na entrada deste chalé, ainda colocarão uma placa com os dizeres: "Aqui nasceu
Hélio de Medeiros Rosa."
Desde menino se preocupa com assuntos de outras terras, outros tempos e até
outros mundos. Interessa-se por mitologia, gosta de ouvir e contar histórias
fantásticas,
acredita no sobrenatural. São interesses que nasceram com ele. Com apenas oito,
nove anos, chega a corrigir o pai que à mesa recorda antiga lenda grega,
enganando-se
ao atribuir a um personagem o
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que de fato se passou com outro. Espantado, Neca pergunta-lhe como sabe.
- Li naquele livro - aponta para a estante.
Trata-se de Mythologie Élémentaire des Grecs et des Romains, de H. de Ia Ville
de Mir-mont, editado pela Librairie Hachette em 1905.
- Mas está escrito em francês...
- Ora, é quase a mesma coisa - arremata
com ar superior.
A atração pelas histórias fantásticas, o sobrenatural, o além, se tornará maior
com o tempo. Quando adulto, se sentirá fascinado pelo espiritismo, será um
estudioso
dos mistérios da morte e da reencarnação.
Já Noel prefere o mundo à sua volta, visível, palpável. Enquanto o irmão anda
metido com abstrações, ele cuida de viver a rua, o bairro. E muito especialmente
as
pessoas, seres vivos que o atraem bem mais que qualquer alma penada. É um garoto
atento, observador. Interessado em gente. De todo tipo. Do figurão ao anônimo
homem
da rua. Gostará mais de uns que de outros, mas de todos ou quase todos falará em
seus versos, matéria-prima que são do poeta-cronista que já existe nele. Um
poeta-cronista
não só da rua e do bairro, mas de toda a cidade.
Hoje, porém, e por muito tempo ainda, a
cidade, todo o mundo parece caber em Vila Isabel. Como ele próprio dirá:
"Quando penso no Boulevard, nas ruas pacatas que guardam os meus melhores
segredos, nas esquinas prediletas para as reuniões da turma que aprendeu a fazer
samba
vendo sambar o arvoredo, o meu coração, incuravelmente sentimental, bate
descompassado como um tamborim tocado por estrangeiro. E eu vou alongando o
pensamento e
vou pensando que a cidade inteira é Vila Isabel..."1
De certo modo, é mesmo. De todos os bairros do Rio, desde os que se banham pelo
mar aòs que se perdem nas lonjuras dos subúrbios, poucos terão população tão
múltipla,
tão diversificada, como a Vila Isabel das quatro primeiras décadas do século. Em
quantos mais será possível encontrar, convivendo nas mesmas ruas, bebendo nos
mesmos
botequins, participando das mesmas atividades, tantos e tão diferentes espécimes
da chamada "fauna carioca"? Em que outro se verá elenco tão numeroso de homens e
mulheres a representar, na ribalta das esquinas, o drama, a tragédia, a farsa de
todos os dias? Embora Noel, ao crescer, vá se ajustar perfeitamente àquilo que
João
do Rio chamou de flãneur2, um carioca a percorrer todos os cantos da cidade,
espiando, farejando, perguntando, ouvindo, intuindo, conjeturando, descobrindo
gente
e aprendendo assim a psicologia das ruas,
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A Vila do Barão
- Vila Isabel é uma grande família - costumava dizer vó Rita.
- Vila Isabel sempre foi uma grande família - repetiriam os moradores do bairro
durante as quatro primeiras décadas do século, ou seja, enquanto se mantivesse
vivo
o espírito comunitário que dava ao lugar ares de cidadezinha do interior, as
pessoas se conhecendo, se freqüentando, se ajudando umas às outras. Enfim, uma
fraterna
e solidária instituição que o progresso e o crescimento da população lariam
desaparecer.
Entre os membros dessa grande família, os moradores do chalé tinham um parente
de verdade do qual muito se orgulhavam: ninguém menos que o Barão de Drummond, o
fundador
do bairro. Parentesco distante, é fato, mas o suficiente para tornar partes da
mesma linha de descendentes de João' Drummond (também conhecido como João
Escórbio,
escocês que se fixou na ilha da Madeira antes do descobrimento do Brasil), não
só o Barão, mas também Carlos Drummond de Andrade e Noel Rosa.
João Baptista Vianna Drummond era mineiro de Nova Era, mas registrado em Itabira
do Mato Dentro (a mesma do poeta de Confidencia do Itabiranó). Nascido a 1 ? de
maio de 1825, já tinha 35 anos quando se mudou para o Rio. Alegre, comunicativo,
liberal, sempre acreditou nas causas libertárias: antes mesmo de a Princesa
Isabel
sonhar com a Lei Áurea, já havia ele libertado todos os seus escravos. Com
grande tino para os negócios, entregou-se a vários deles: foi banqueiro,
comerciante de
secos e molhados, empresário teatral. Tudo isso antes de o fazerem barão. Na
verdade, Drummond nunca escondeu ser mais homem de negócios
do que nobre. Valeu-se da amizade com a família imperial - e com alguns figurões
da política - para realizar vantajosas transações, obter concessões, abrir
caminhos
para seus projetos. Assim, já em 1872, comprava da Princesa Leopoldina, duquesa
de Bragança, segunda filha de Pedro I, as terras do Andaraí Grande, antiga
Fazenda
do Macaco. Comprava-as por bom preço, abandonadas que estavam desde uma epidemia
de cólera havida ali anos antes. E comprava-as a prazo. Por muito tempo, houve
quem
visse na operação uma esperta (e nada nobre) jogada de Drummond. Sabendo de uma
cláusula do testamento de Leopoldina - segundo a qual, com a morte dela, ficavam
perdoadas todas as dívidas de
que fosse credora - e sabendo também que a saúde da duquesa ia de mal a pior, o
astuto homem de negócios teria apostado. E ganho. Leopoldina morreria sem que
Drummond
tivesse pago a segunda prestação. Pesquisas recentes, dos historiadores Delane
Borges e Marilane da Silva Borges, desmentem esta versão. Tudo teria se passado
dentro
da maior lisura.
De qualquer modo, foi mesmo naquelas terras que Drummond fundou Vila Isabel,
assim chamada em homenagem à princesa que quinze anos depois libertaria os
escravos
(aliás, no começo, os nomes das ruas, avenidas e praças do bairro eram todos de
homens e datas ligados ao movimento abolicionista). Ao contrário de outras áreas
da cidade, cujos traçados se foram fazendo mais ou menos ao acaso, o loteamento
e urbanização de Vila Isabel obedeceram a cuidadoso planejamento. Uma Companhia
Arquitetônica
- criada por Drummond e seus amigos Visconde de Silva, Temístocles Petrocochino
e Bezerra de Menezes, todos, naturalmente, também fadados a virar nome de rua -
incumbiu-se
desse planejamento. Basicamente, aproveitando o antigo Caminho do Macaco para
transformá-lo no Boulevard 28 de Setembro (data da assinatura da Lei do Ventre
Livre)
e, em outro trecho, na Rua Visconde de Santa Isabel (grande amigo da família
imperial, médico da Princesa Isabel), para a partir deles traçar as paralelas e
transversais
que formaram, em 1873, o esqueleto do bairro.
Mas Vila Isabel deve a Drummond, além de sua fundação, vários outros
empreendimentos que a enriqueceram como bairro e comunidade: a pioneira linha de
bondes unindo
a Praça 7 de Março ao Centro, a primeira igreja de Nossa Senhora de Lourdes,
atual Convento da Ajuda (o próprio Drummond mandou vir da França a planta da
gruta de
Lourdes para reproduzi-la, em tamanho menor, no altar), o Asilo dos Meninos
Desvalidos, atual Instituto Profissional João Alfredo, e o jardim zoológico. Mas
nenhuma
dessas iniciativas lhe daria mais notoriedade - e um lugar tão permanente na
história do Rio - quanto um certo jogo de apostas que inaugurou no seu zôo em
1892.
Sem dinheiro para adquirir novos animais ou para cuidar dos que já tinha,
aceitou a sugestão do mexicano Manuel Ismael Zevada de transpor para seus bichos
a loteria
que ele, Zevada, já realizava com suas flores na Rua do Ouvidor. Todos os
domingos, cada freqüentador do jardim zoológico ganhava um bilhete numerado
correspondente
a um dos 25 animais que entravam no sorteio sempre às três da tarde.
40
níqueis. Muito menos com música e poesia. A ilusão que tem para vender aos
moradores deste bairro emergente (a maioria sonhando com mais conforto e algum
luxo) é
a de que, afinal, tudo está ao alcance de todos.
- A senhora não gostaria de comprar uma cristaleira nova para a sua sala? De
madeira maciça, vidros e espelhos importados.
Os olhos da dona de casa se acendem.
-E o senhor? Não quer ficar com este belo corte de linho? Acaba de chegar da
Irlanda.
E o homem logo se imagina mais elegante que um lord. Mas onde arranjar dinheiro?
O prestamista sorri:
- Muito fácil: eu o empresto. O senhor compra o que quer, comigo mesmo. E ainda
lhe sobra algum dinheiro. Depois me paga em quantas prestações achar melhor.
- E os juros?
- Pouca coisa... Pouca coisa...
Seja para adquirir alguns luxos, seja para enfrentar despesas inesperadas ou
mesmo grandes fracassos financeiros, é comum o morador do bairro cair nas mãos
do prestamista.
Às vezes, asfixiado pelos juros, para não mais sair. Emprestar dinheiro - e a
domicílio - evidentemente
41
não é profissão nova. Mas só de uns tempos para cá os moradores de Vila Isabel
esbarram nela com mais freqüência. As principais lojas da cidade não trabalham
com
sistemas de crédito. Os pequenos e médios negociantes também costumam afixar em
sua porta avisos de "não se fia". Assim, a classe média de dinheiro mais
contado,
que pensa que pode e não pode (e que vê na aquisição de confortos, bens
materiais, luxos, o atestado de sua escalada social, seu sucesso na vida),
rende-se ao sorriso
dos prestamistas.
Mas quem são eles? De onde vêm esses emprestadores de dinheiro? Na grande
maioria, quase totalidade, são imigrantes europeus, muitos deles acabados de
chegar. Juntam
um capital, fazem rolinhos de dinheiro que guardam no fundo de uma pasta preta e
saem por aí vendendo ilusão. Poloneses, húngaros, belgas, romenos. E até
portugueses.
Vêm de todos os pontos da Europa. Há também os sírios, árabes, libaneses. Os
europeus, tenham a origem que tiverem, são conhecidos genericamente por
"judeus". Os
outros, venham de Beirute, Cairo ou Marrocos, são simplesmente "turcos".
Judeus, turcos, portugueses, não importa quem sejam. Noel aprende muito cedo a
ver no prestamista o fantasma que transforma em pesadelo os sonhos dos moradores
do
bairro. Assimila o pavor que todos têm de suas visitas mensais (muitos trancam
portas e janelas, fingem que não estão em casa, escondem-se para ver se o
prestamista
desiste e deixa para cobrar duas parcelas no mês que vem).
Um pavor vindo não só do convívio com os vizinhos, mas de experiências em sua
própria casa, o pai tantas vezes endividado, apelando para os emprestadores de
dinheiro.
Quando a importadora faliu, hoje, sempre.
Judeus, turcos, portugueses. Noel não parece distingui-los. Jamais se livrará
inteiramente dos preconceitos que desde menino guarda em relação a todo
imigrante.
Em versos, falará muitas vezes desse sentimento, lembrando-se mesmo dos
cobradores que lhe atormentavam o pai:
Miséria de quando em quando
Prestamistas recitando
Minhas contas no portão
E a criada calmamente
Diz que eu estou ausente
E não lhe deixei tostão
Vai lembrar também o patrão inescrupuloso que quis ensinar o pai a batizar
bebida importada de além-mar:
Lá no Banco do Brasil Seu Zé depositou três mil botando água no vinho do
barril...
Com mesma rima, mas outra idéia, fará versos como estes:
Seu Jorge turco
tem três anos de Brasil
E quando bebe mais de um barril
Encurta o pano de qualquer freguês
Ou como estes, mais diretos, sem meias palavras:
A vida lá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu...
Mas essas são cantigas de daqui a algum tempo. Nesses dias em que se inicia no
aprendizado da psicologia das ruas, do conhecimento de seus tipos, do estudo da
"fauna
carioca" a partir deste microcosmo que é Vila Isabel, Noel apenas colhe a
matéria-prima de sua poesia, de sua crônica. Dramas, tragédias, farsas. Em tudo
isso o
prestamista há de ser sempre o vilão de sua história. A menos romântica e a mais
constante musa de seus versos(6).
Mil novecentos e dezoito foi um ano ruim. A gripe espanhola matou mais de 20
milhões de pessoas em todo o mundo, 300 mil só no Brasil, 18 mil no Rio de
Janeiro.
Uma pandemia que levou desespero a toda parte. No chalé, contudo, a rotina só se
alterou porque as aulas foram suspensas nos meses críticos de outubro a dezembro
e porque Eduardinho, no último ano de medicina, foi requisitado para trabalhar
dia e noite num posto de emergência instalado em colégio do Meyer. À frente da
campanha nacional de combate à doença,
Carlos Chagas apelou para médicos e acadêmicos de todo o país como se fossem
soldados convocados para a guerra.
A gripe adiou por alguns meses a formatura de Eduardinho, prevista para dezembro
de 1918,mas só concretizada a 2 de março do ano seguinte. Foi então que ele
partiu
para aquela experiência profissional em Aquidauana, a tal em que contraiu tifo e
quase morreu. Depois de convalescer no chalé e de passar algum tempo no Rio, vai
outra vez para fora. Desta feita seu destino é Bica de Pedra(7), perto de Jaú,
interior de São Paulo. Começa a ganhar dinheiro, a fazer seu pé-de-meia, a
livrar-se
de qualquer preocupação financeira. Numa de suas esporádicas visitas ao Rio,
pede em casamento a namorada de infância, Odette Maria Ferreira Rego
(o pai dela, homem conservador e exigente, sempre disse que só consentiria
quando Eduardinho aparecesse com o anel de doutor no dedo). Casam-se a 13 de
dezembro
de 1921, na Igreja de Santa Ifigênia, São Paulo.
42
Pouco depois, é a vez de Carmem. Quando já não se esperava que unisse sua vida à
de alguém (35 anos, nenhum namorado nesse tempo todo, nenhum interesse aparente
por homem algum, vivendo só para a música, os livros, a escolinha, os filhos dos
outros), eis que chega o seu dia. Não inteiramente curado - pois tuberculose não
é mal que se vença assim - mas com a doença mais ou menos sob controle,
permitindo-lhe inclusive trabalhar normalmente e levar vida de poucas
limitações, Mário Brown
vem ao Rio buscar os filhos. Já se sente em condições de cuidar deles em Belo
Horizonte, onde comprou casa no bairro da Floresta. Carmem estremece ao receber
a notícia.
Já se afeiçoou de tal modo a Dulce, Sylvia e Mariozinho que mal pode se imaginar
longe deles. São como filhos. Ou mais que isso.
Vem de muito, porém, a admiração de Mário Brown por ela. Vá lá que Carmem não
seja bonita como a irmã, mas tem porte, é elegante, uma dama. Vá lá também que
sorria
pouco, não seja muito efusiva, bem menos simpática que Martha, mas tem coração
generoso. Vá lá enfim que por vezes se torne excessivamente enérgica,
autoritária,
meio repressiva, mas por trás de tudo isso há um grande caráter e uma
personalidade forte. É por todas essas qualidades - e pelo que ela significa
para as crianças
- que Mário Brown acaba se interessando por Carmem além da simples admiração. E
é correspondido. Casam-se e vão para Belo Horizonte. Os dois, os filhos, o piano
que Eduardo Corrêa de Azevedo havia comprado em Juiz de Fora. A partir de agora,
além das tarefas de esposa e mãe, Carmem vai assumir também as de professora de
violino do Conservatório Mineiro de Música.
É pela mesma época que os moradores do chalé - dentro do costume que autoriza
pais, avós, tios a projetar o futuro de suas crianças - traçam o caminho que
Noel deverá
seguir, dos bancos de escola pública até formar-se em medicina. Sim, porque não
passa pela cabeça de ninguém que ele deixe de cumprir a tradição da família
(Luís
Corrêa d'Azevedo, Fortunato, vovô Eduardo e agora Eduardinho) e abrace qualquer
outra carreira. Decide-se, então, que depois do terceiro e quarto anos na
Cesário
Motta Noel será matriculado no Ateneu Luso-Brasileiro, na Rua Pereira Nunes, ali
se preparando, durante todo o 1922, para os exames de admissão ao Ginásio de São
Bento, no fim do ano. Depois, finalmente, a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Tudo como tio Eduardo.
Os novos tempos de bonança que a família vive serão provavelmente os últimos.
Numa carta à mãe, Eduardinho diz que sua clínica em Bica de Pedra vai tão bem
que já
lhe sobra dinheiro para ajudá-la. Pede-lhe que discrimine, item por item, o
quanto é preciso para manter o chalé sem que tenha de continuar trabalhando na
escolinha.
Quer que ela se aposente, que deixe as aulas por conta de Martha. Rita escreve-
lhe de volta: alimentação, luz, gás, lavagem de roupa, despesas várias, o total
de
gastos da casa fica em torno de 450 mil réis por mês. Eduardinho resolve mandar-
lhe 500: "Os 50 a mais - explica - são para suas caridades costumeiras." Mas a
ajuda
não fica nisso. Lá de longe, na pequena cidade do interior de São Paulo,
recorda-se de ter ouvido muitas vezes a mãe queixar-se da precariedade do chalé:
- Qualquer dia desses, o teto desaba sobre nós.
Por isso, numa das próximas vindas ao Rio, trará mais uma boa novidade:
- Vamos construir uma casa nova.
Compra o terreno número 195 da mesma Theodoro da Silva, quase em frente à
Silva Pinto, e entrega ao "engenheiro" Neca o projeto de construção da casa. Ele
que faça como achar melhor, a planta, a escolha do material, tudo. Afinal, não
será
só de Rita, mas de toda a família, Bella, Neca, Martha, Noel, Hélio, Arlinda.
Uma vez pronto, o chalé só será usado para as atividades do Externato Santa Rita
de
Cássia.
Neca - que justamente por esta época acaba de voltar do interior - entrega-se à
tarefa com entusiasmo. Não tem emprego fixo. Vive de biscates e, eventualmente,
de
sonhos (garante ter um punhado de idéias na cabeça, invenções que ainda porá em
prática e que o tornarão rico e famoso). Está um pouco diferente de seis anos
atrás,
quando partiu em busca de dinheiro para pagar as dívidas. Ainda toca violão,
canta modinhas do amigo Catulo, ouve discos de Caruso, mas soma a esses hábitos
algumas
atitudes que beiram a esquisitice: o silêncio, o isolamento, o ar meditativo.
Volta e meia é acometido de tremores, acessos de febre, seqüelas da maleita que
o pegou
em Araçatuba. Nessas horas, corre pela casa, dá voltas em torno da mesa de
jantar, dança e canta à maneira dos índios que encontrou por lá. Mas o projeto
da casa
o entusiasma. É algo a que se entrega com os pés no Chão, sem sonhar. De certo
modo, um dos últimos empreendimentos a que se dedicará sem a postura de um
Quixote.
Uma ladeira íngreme à direita, outra proibida à esquerda e lá em cima o Ginásio
de São Bento, em cujas dependências, nesta quinta-feira, 1? de março, reúnem-se
todos
para a abertura oficial do ano letivo de 1923 • São quase 400 alunos dos 470
matriculados nos diversos cursos, o Ginasial, o Preliminar, o Noturno, o
43
Claustral. Entre eles, perneiras pretas, farda caqui, culote, dólmã abotoado até
a gola, quepe assentado na cabeça, o primeiranista Noel de Medeiros Rosa.
Que impressões lhe causará este primeiro dia entre as paredes sombrias de um
mosteiro beneditino tão diferente das ensolaradas ruas de Vila Isabel? Difícil
saber.
Talvez estranhe o caráter solene desta cerimônia que nem de longe lembra as
barulhentas salas de aula que freqüentou desde o bê-a-bá no chalé. Ou talvez não
estranhe
coisa alguma, pouco se importando com tudo isso;
É mesmo solene a abertura oficial do ano letivo. A começar pela missa do Divino
Espírito Santo celebrada na igreja abacial pelo prior do Mosteiro, dom Pio
Ziegenaus.
Os alunos ouvem compenetrados o longo sermão sobre a infância de Jesus ("... o
menino progredia em sabedoria e graça perante Deus e os homens...") e desde já
ficam
sabendo que religião, aqui, é ar que se respira a todo instante. Dom Pio, um dos
professores de apologética do quarto e quinto anos, é quem está incumbido de
prepará-los para enfrentar, "tanto no campo do pensamento como no da ação, os
inimigos do cristianismo". Ou seja, é o sacerdote a quem foi confiada a missão
de fornecer-lhes
razões e argumentos para usarem em discussões que, no futuro, venham a pôr em
dúvida suas crenças. É um homem formal, de gestos afetados e fala eloqüente. Bem
de
acordo com a pompa secular desta igreja coberta de ouro.
Com madeira da ilha das Cobras, aqui pertinho, pedra do morro da Viúva, que se
pode divisar mais além, entre Flamengo e Botafogo, e ouro de todo lugar, a
igreja,
construída em quase dez anos, de 1633 a 1642, é justo orgulho da ordem. O
harmonioso conjunto arquitetônico do qual faz parte tem um dos blocos cravado em
rocha
viva. São três edifícios: o do Mosteiro propriamente dito (no andar superior,
salões, celas, uma capela de relíquias e biblioteca; no intermediário, mais dois
salões,
salas menores, o refeitório e o claustro; e no térreo, as catacumbas), o do
colégio (salas de aula, laboratórios e gabinetes cercados de pátio, campo de
futebol,
ginásio e piscina, esta interditada) e a igreja. Que é realmente soberba, embora
não muito grande. O traçado da nave é em cruz latina, os arcos e pilares que
separam
as naves laterais são em jacarandá trabalhado, os lampadários de prata devem-se
à arte de Mestre Valentim. Há obras preciosas distribuídas aqui e ali, adornos
riquíssimos
no altar de Nossa Senhora de Montserrat, quadros de frei Ricardo Pillar até na
sacristia e um imponente órgão que se ouve durante as missas. Enquanto estiverem
por
aqui, os alunos ouvirão
muitas histórias sobre esta abadia. Desde as chegadas dos beneditinos ao Rio de
Janeiro, com sua pioneira e heróica ocupação do antigo morro de Nossa Senhora do
Ó, em 1589, até a fundação do colégio, em 1859, passando por alguns episódios
históricos dos quais os monges preferem falar por alto, pois envolvem guerras,
conflitos,
bombardeios, mortes(8).
Mas a cerimônia de abertura oficial do ano letivo não se limita à igreja. Após a
missa, os alunos são encaminhados ao ginásio para serem formalmente apresentados
ao reitor, dom Meinrado Mattman, e ao corpo docente, inspetores, auxiliares,
serventes. Há solenidade, também, nas palavras de dom Meinrado, que lê
pausadamente todos os artigos do regulamento interno, depois de breve discurso:
"Concito os alunos a honrarem com o trabalho perseverante o nome da família, a
farda
do Ginásio e as gloriosas tradições de nossa Pátria..."
Dom Meinrado é bem diferente de dom Pio. Nem formal, nem afetado nos gestos, nem
eloqüente na fala. Suíço, está no Brasil há muitos anos, falando um português
quase
irretocável.
44
NOTAS
1. Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.
2. A Alma Encantadora das Ruas (páginas 12 e seguintes).
3. Muitos são os que, em Vila Isabel e bairros próximos, se chamaram Heleno em
homenagem ao médico. Como o almirante Heleno de Barros Nunes, ex-presidente da
extinta
Aliança Renovadora Nacional (ARENA), no Rio de Janeiro, e também da antiga
Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atual Confederação Brasileira de
Futebol (CBF).
4. 2 de janeiro de 1951.
5. Atual garagem de ônibus da Companhia de Transportes Coletivos (CTC).
6. Como se poderá constatar ao longo das páginas deste livro, o prestamista e
temas correlatos (dívidas, empréstimos, dinheiro, ganância, espertezas e
malabarismos
financeiros) estão muito presentes na obra de Noel Rosa. Os autores anotaram 64
letras de música, incluindo paródias, que falam no assunto ainda que de forma
indireta.
7. Atual Itapoí.
8. "Por sua localização estratégica" - recorda Idacy Costa no livro Rio (página
151) - "o Mosteiro foi palco de vários acontecimentos históricos: em 1711,
construção,
pelos beneditinos, de um forte para defesa da cidade quando da invasão de Duguay
Trouin. A abadia foi bombardeada porque os franceses ocuparam a ilha das Cobras;
em 1824, alojou dois batalhões de artilharia; em 1855, serviu de quartel aos
fuzileiros..." É feita referência, também, aos episódios de 1910, já mencionados
no
Capítulo 1.
45
Capítulo 4
Quero deixar o mundo alegremente, Desde que eu tenha um violão por cruz
O Que é um Violão
Miúdo para seus doze anos, é um dos menores da turma. Por isso, senta-se
sempre numa das carteiras da frente. Ainda tem os cabelos compridos, fios
castanho-claros,
quase louros, amontoando-se entre a aba do quepe e as orelhas. Os colegas
reparam que usa uma haste de madeira entre as arcadas dentárias, do lado
direito. A tal
"prótese" que outro especialista recomendou, meio no palpite, para lhe corrigir
a articulação, e que acaba funcionando como mero calço. O pedaço de madeira o
incomoda.
E logo ele começa a mastigá-lo, passando-o de um lado a outro da boca, certo de
que não serve mesmo para nada. Mais tarde a madeira será substituída por
material
mais resistente, paladon ou algo parecido. Mas o resultado é o mesmo. No
primeiro jogo de futebol, coloca-o no bolso:
- Esse troço pesa tanto que nem posso correr.
Até que um dia abandona para sempre o inútil aparelho. E com ele o resto de
esperança de desentortar o queixo.
Não come na frente dos colegas. Se traz um sanduíche como merenda, vai
mastigá-lo longe, num canto de recreio. Mas geralmente não traz coisa alguma
além dos livros e do maço de cigarros. Aliás, a guimba no canto direito da boca,
permanentemente
grudada no lábio inferior, dando a impressão de que vai cair a qualquer momento,
acaba sendo mais um modo de disfarçar o defeito. É um de seus traços mais
característicos.
O São Bento mantém outros cursos além do ginasial que Noel começa a freqüentar
em 1923. Há o preliminar ou primário, o elementar que antecede o preliminar, o
popular
para alfabetização de crianças pobres, o noturno para os que trabalham e
estudam. O pequeno mundo que os beneditinos construíram nesta elevação cresce a
cada dia.
É uma grande instituição abrigando várias outras, educacionais, culturais,
religiosas, recreativas e, estranho que pareça, militares. A não ser que seja
obrigado,
de nenhuma delas Noel tomará conhecimento. Das instituições religiosas, então,
seu alheamento será absoluto. Por mais que os monges, especialmente dom
Meinrado,
se esforcem para arrebanhar sua jovem alma.
Mas que instituições religiosas são estas? Naturalmente, a maior e principal de
todas é o próprio Mosteiro, do qual os alunos se mantêm mais ou menos distantes,
restrito que está aos monges e postulantes. Estes começam a se formar na Escola
Claustral, criada neste 1923 sob a direção de dom Plácido Roth com o objetivo de
"gasalhar e educar meninos que, movidos pelo
47
flauta e cavaquinho, dança-se sem cerimônia o maxixe e - que a polícia não saiba
- entoam-se pontos de macumba.
Vila Isabel e os bairros de classe média ficam no meio do caminho entre a
simplicidade, o despojamento destes e o esnobismo daqueles. Os que tocam piano,
se também
revivem Chopin e List, sentem-se mais à vontade com os Chopins e os Liszts
nacionais, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, os irmãos Levys, Mário
Pennaforte, ou
um desses paulistas que começam a aparecer por agora, Marcello Tupynambá,
Eduardo Souto. Valsas, tangos brasileiros, uma polca diferente da européia,
choros estilizados,
chulas, lundus, de vez em quando um mg, um fox-trot, gêneros enfim bem diversos
fazem parte de seu repertório. Os que dançam, dançam de tudo. E os que cantam,
ficam
quase sempre na modinha romântica, de melodia fácil, linear, letras
invariavelmente derramadas, por vezes pernósticas, de velhos e novos seresteiros
como Eduardo
das Neves, Xisto Bahia, Satyro Bilhar, Guimarães Passos, o próprio Catulo.
Canções como esta:
Olhaste-me um só momento E desde este triste instante Tu me ficaste constante Na
vista e no pensamento...
Ou esta, citada por Pederneiras numa de suas tiras:
Que noite! O plenilúnio é como um sonho
Assim risonho
Boiando lá no azul fitando o mar
As estrelas no céu vagam sorrindo
Estás dormindo?
Eu venho, meu amor, te despertar!
Noel se inicia embalado por essas canções e tudo mais que se ouve em sua casa
nas noites de domingo. A música logo o envolve, vira paixão, das coisas mais
importantes
em sua vida. E não apenas o que se ouve nos saraus. Como ele mesmo confessará:
"Mesmo em guri, a minha grande fascinação era a música. Qualquer espécie de
música. Fosse qual fosse. E amava os instrumentos musicais, sentido-me sonhar
ante qualquer
melodia."(5)
Se foi Martha quem o ensinou a tocar bandolim, as primeiras posições no violão
são aprendidas com o pai. E à medida que for dominando a técnica deste
instrumento,
irá abandonando o outro. Mas será para sempre grato ao bandolim:
"Foi graças ao bandolim que eu experimentei, pela primeira vez, a sensação de
importância. Tocava e logo se reuniam, ao derredor de
mim, maravilhados com a minha habilidade, os guris de minhas relações. A menina
do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia
completamente
importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de
garoto que começava a espiar a vida."(6)
No mesmo depoimento, a descoberta do violão:
"Verifiquei que era um instrumento mais completo, de maior beleza comunicativa
que o bandolim. O meu sonho absorvente passou a ser dominar amplamente o violão.
Tanto
me esforcei que, no fim de certo tempo, já tocava melodias várias. Ouvir o
violão era como se ouvisse a mim mesmo, como se ouvisse a voz do próprio
coração, o lirismo
que nasceu comigo."
O violão - por enquanto do pai - será o seu instrumento. De tal modo se apegará
a ele que ainda lhe dedicará um soneto, "O Que É um Violão", versos verdes e
imperfeitos
de jovem poeta:
Nos próximos anos, raramente o veremos longe do pinho nas horas de folga.
Estudando ou ensinando, pois Noel vai ser o primeiro professor de Hélio. Um
paciente e
compenetrado professor. Quase sempre, antes de ir para o São Bento, senta-se sob
uma das árvores do chalé, fica garimpando acordes, inventando brincadeiras
sonoras.
Como as que servem de fundo às aulas da escolinha. Martha lá dentro perguntando
aos alunos:
- Dois mais dois?
A turma respondendo em coro:
- Quatro!
- Cinco menos três?
- Dois!
E Noel ritmando a ladainha aritmética ao violão, seus dedos multiplicando sons,
sua voz somando-se ao coro da criançada. Martha chega à janela, pede que o filho
pare, que trate de não
50
Em formato pequeno, quinze por vinte e dois, A Alvorada se apresenta como "órgão
oficial dos alunos do Mosteiro de São Bento". Capa fina, verde, o título ao
alto,
o dístico Veritati et Virtuti logo abaixo, encimando o desenho de um sol radioso
a iluminar a igreja, o pátio, todo o colégio. Circula internamente no primeiro
dia
de cada mês de aulas. Ao se matricular em janeiro ou fevereiro, cada aluno paga
cinco mil réis pela assinatura anual, dinheiro que, somado à verba do próprio
Mosteiro,
cobre as despesas de composição, clicheria e impressão.
Quando Noel começa a cursar o primeiro ano, A Alvorada entra em seu quinto de
existência. E é de fato em suas páginas que se podem encontrar as melhores
pistas para
se conhecer o ginásio de hoje, o que fazem e o que pensam (ou o que procuram
transmitir aos alunos) os professores dirigidos por dom Meinrado. Não é, como se
diz,
um órgão "dos alunos", mas uma publicação pautada, editada e quase que
inteiramente escrita pelos professores. Aos alunos não são destinadas mais do
que cinco, seis
páginas, de um total de 56, nas quais, sob o título de "Trabalhos Escolares",
poderão incluir suas colaborações, em geral croniquetas, histórias de caráter
religioso,
uma ou outra poesia, anedotas e curiosidades furtadas aos almanaques.
De março de 1923 a dezembro de 1928, os seis anos que Noel passará no São Bento,
circularão 27 números de A Alvorada. E em nenhum deles seu nome aparecerá a
propósito
do que for. Nem como colaborador nem como participante das freqüentes campanhas
que a revista realiza entre os alunos. Uma das primeiras dessas campanhas
pretende
atender aos apelos de Pio XI para que os brasileiros contribuam com donativos em
dinheiro "em favor das crianças pobres que na Rússia vão sofrendo à míngua de
pão
e roupa". Outra destina-se a levantar fundos para a construção de uma colossal
estátua do Cristo no alto do morro do Corcovado. Alguns mil réis serão
conseguidos
tanto para "as criancinhas vítimas do bolchevismo" como para o monumento a que
se pretende dar o nome de Cristo Redentor. De Noel, um níquel sequer. Sua
ausência
será mesmo absoluta. Ao contrário de praticamente todos os seus contemporâneos.
O espírito de A Alvorada não é simplesmente religioso, mas sombriamente
religioso. Os artigos escritos pelos professores estão impregnados de um
catolicismo exacerbado,
fanático às vezes. Os dos monges atacam outras religiões, a protestante, a
judaica, a espírita. Falam de milagres e castigos, céu e inferno. E pregam uma
moral que
se apoia no desprendimento, no sacrifício e na dor. Os meninos de 1923 - mais
ainda os de sentimento religioso um tanto inconsistente como Noel - devem
estranhar
o ar grave, carregado e até mesmo mórbido do colégio, tão bem refletido nas
páginas da revista. Um exemplo é uma de suas seções permanentes, intitulada
Sinite parvulos
ventre ad Me. Partindo das palavras do Evangelho ("Deixai vir a Mim os
Pequeninos", Marcos, 10-14), a seção fala de "pequenos privilegiados de Jesus-
Eucaristia",
isto é, crianças e adolescentes que tiveram "a ventura de morrer em tenra idade,
de se encontrarem com Cristo tão cedo, tão jovens".
A cada número da revista é contada a história de um desses privilegiados,
meninos e meninas que em meio a terríveis padecimentos "foram levados pelas mãos
do Senhor".
Logo no primeiro número que cai nas mãos de Noel lê-se o caso de Nêlia, católica
irlandesa que morreu aos quatro anos de idade depois de longa permanência no
Hospital
Bom Pastor, em Cork, sul da Irlanda. A matéria fala da "abençoada agonia" da
menina, de como manteve sua santidade nos momentos de maior sofrimento, de sua
morte
ao lado da mãe e da enfermeira que a acompanhou durante meses e de como, em seus
últimos momentos, ainda encontrou forças para erguer-se e dizer: "Mamãe, não
sente
que o Deus Santo se aproxima? Eu o sinto!"
São ingênuos e sem graça os textos humorísticos reunidos sob o título de
"Chistes". De modo que nem isso ameniza o tom deprimido
51
890 mil camponeses, por tudo mais de 1 milháo 300 mil mortos!") e arrematar com
este comentário:
"E encenaram tanto alvoroço quando a justiça americana julgou dever condenar à
morte os dois anarquistas Sacco e Vanzetti."
As outras religiões? Não perde A Alvorada oportunidade de
combatê-las.Especialmente a protestante, adversária secular. Combates que se
travam em muitas frentes, sobre temas daqui e lá de fora. Aqui tanto pode a
revista
se limitar a pendengas em torno da Bíblia ("... ninguém ignora que os
protestantes, por conveniência de sua doutrina, mutilaram e adulteraram muitos
textos das Sagradas
Escrituras, excluindo livros inteiros..."), como investir, mais no campo da ação
que das idéias, sobre as instituições de alguma forma ligadas à outra religião.
É o caso da Associação Cristã de Moços (ACM), que jamais conseguiu realizar uma
campanha para ampliar suas instalações sem ter de carregar o peso - por vezes
insuportável
- da oposição do Mosteiro e de sua revista. Nisso A Alvorada é eficientemente
apoiada por outras publicações católicas, uma delas A Cruz, cujos artigos são
transcritos
pelo "órgão oficial dos alunos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro". Um
desses artigos fala da indignação da comunidade católica por pretender a ACM
fazer
obras em sua sede com dinheiro de donativos. Afinal, este é um país católico, de
modo que dos católicos deve ser o direito exclusivo de pedir donativos. Em 1917,
o Mosteiro e outras instituições já estiveram à frente de um movimento para
evitar que uma das campanhas da ACM tivesse sucesso: através de propaganda pelos
jornais
e de folhetos distribuídos nas ruas por seus alunos, puderam "abalar
consciências e, se de todo não impediram o resultado da intrusa subscrição, sem
dúvida lograram
frustrar e diminuir" o seu êxito. Um ano depois, quando a mesma ACM tentava
junto ao Governo a cessão de uma área de 3 mil 880 metros quadrados no morro do
Castelo
para nela construir seu novo edifício, mais uma cruzada empreenderam o Mosteiro
e seus aliados, desta feita chegando aos gabinetes presidenciais - primeiro de
Delphim
Moreira e depois de Epitácio Pessoa - para conseguirem que a tentativa da ACM
mais uma vez fracassasse. Em 1927, vai-se repetir a história: nova campanha de
donativos
da ACM, nova cruzada católica contra ela.
Lá fora A Alvorada busca os casos mais rumorosos para com eles demonstrar que um
país indiferente às verdades do catolicismo não pode ir lá das pernas. Não vêem
os alunos o caso dos Estados Unidos? Por que existe lá a Ku Klux Klan? Por que
pode acontecer em seus colégios um professor como John Thomas Scopes, que
Depois da segunda 'operação' frustrada. (.Arquivo dejacy Pacheco.)
ousou desafiar as lições da Bíblia e ensinar em suas aulas a herética Teoria da
Evolução, de Dar-win? "Os Estados Unidos são o país dos assombros, das
novidades,
dos empreendimentos ajúlio Verne...", diz ironicamente a revista a propósito do
show em que se converteu o julgamento de Scopes, processado por ter informado
aos
seus alunos que o homem e o macaco descendiam de ancestrais comuns(9). Tudo
porque o país dos assombros cresce, cresce muito, mas distanciado demais das
luzes do
catolicismo.
Nenhuma religião ou filosofia não-católica escapa à sanha de A Alvorada. O
espiritismo é freqüentemente ridicularizado como "a grande farsa do século". A
Maçonaria,
apontada como "sanguinária perseguidora do catolicismo no México". Os
positivistas, como adeptos de uma ideologia do demônio. Ávida de Augusto Comte,
uma tragicomédia
(e assim realmente se parece, a se acreditar na biografia publicada no número de
junho-julho de 1926). E há mais: fundamentalistas, batistas, presbiterianos,
anglicanos,
israelitas, contra tudo mais que não seja catolicismo investe A Alvorada.
Curiosa revista esta, escrita com as tintas da intolerância, mas muito
esclarecedora sobre
53
o São Bento de hoje. Uma revista que acha bonito morrer cedo, um privilégio
sofrer, uma dádiva divina entregar a alma aos céus depois dos mais longos e
terríveis
martírios. E o que dizer dos prazeres terrenos, o jogo de bola, a rua, as festas
em casas de família onde se pode tomar escondido um ponche ou dois e depois
tirar
para dançar a menina que se deseja? Pois até quanto a isso - as festas, as
diversões, os prazeres não exatamente do espírito - A Alvorada recomenda que os
alunos
se ponham na defensiva. Noel não gosta muito de dançar, mas se gostasse haveria
de ler com amuo este trecho que a revista foi buscar em Nova Floresta, do Padre
Manuel
Bernardes:
"Que o que baila e dança tem parte de louco furioso, basta vê-lo de fora para
confessá-lo. Aqueles mesmos movimentos do corpo, tão vários, tão ligeiros, tão
violentos, tão afetados, estão indicando que o siso está movido algum tanto do
seu
assento."
Não, Noel jamais se incluirá entre os colaboradores de A Alvorada. Quando tiver
algo a dizer, o fará à sua maneira. E no seu próprio "jornal".
NOTAS
1. A Alvorada, ano V, número 1, março de 1923 (página 21). A maioria das
informações sobre as instituições do São Bento, constantes deste Capitulo,
também foi colhida
neste e em outros números da revista.
2. Incluídas no livro Scenas da Vida Carioca - Caricaturas de Raul, 1924.
3- Foi em 26 de outubro de 1914 que Nair de Teffé Hermes da Fonseca, a primeira-
dama do país, organizou no Palácio do Catete uma hora de arte em que, depois de
uma
rapsódia de Liszt executada ao piano, ela própria solou ao violão o
Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, causando um pequeno escândalo na sociedade da
época. Jota Efegê, em Maxixe - a Dança Excomungada (página 161), recorda o
inflamado
discurso de Ruy Barbosa no Congresso Nacional, criticando a mulher de seu grande
adversário político: "Mas o Corta Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo,
que
vem a ser ele, senhor presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira
de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba.
Mas
nas recepções presidenciais o Corta Jaca é executado com todas as honras de
música de Wagner. E não se quer que a consciência deste país se revolte, que as
nossas
faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!"
4. Mais se falará, no Capítulo 14, da batucada e de certas confusões que se
fazem em torno dela.
5. Jornal de Rádio, 1" de janeiro de 1935.
6. Ibidem.
7. Richard Loeb e Nathan Leopold tinham ambos dezenove anos quando mataram
Robert Franks, de treze, a 24 de maio de 1924. Quatro meses depois foram
condenados à
prisão perpétua. O caso é, de fato, um dos mais célebres das cortes americanas,
tendo inspirado inúmeros livros, ensaios, artigos de jornal, peças de teatro e
nada
menos de três filmes: Festim Diabólico (Rope, de Alfred Hitchcock, 1948),
Estranha Compulsão (Compulsion, de Richard Fleischer, 1959), em que Orson
Welles, no papel
do advogado, repete ipsis litteris o discurso de Clarence Darrow no julgamento,
e O Homem de Alcatraz {Bird Man oj Alcatraz, de John Frankenheimer, 1962),
focalizando
os anos em que Leopold, interpretado por Burt Lancaster, cumpria pena e já se
tornara tão famoso como ornitólogo quanto pelo seu crime.
8. O caso Sacco & Vanzetti foi ainda mais estrepitoso que o de Loeb & Leopold,
notadamente por ter desencadeado debates políticos em todo o mundo, as direitas
pedindo-lhes
a execução, as esquerdas usando-os como símbolos da "injustiça capitalista".
Anarquistas italianos, acusados de participarem, a 15 de abril de 1920, de um
assalto
durante o qual foram mortos dois operários de uma fábrica de sapatos, Sacco e
Vanzetti começaram a ser julgados no ano seguinte. Depois de longas batalhas nos
tribunais,
manifestações populares e apelos de clemência assinados por intelectuais,
artistas, líderes religiosos e até chefes de Estado de várias partes do mundo,
morreram
na cadeira elétrica a 10 de julho de 1927.
9. É no número de junho-julho de 1925 que A Alvorada se refere ao caso Scopes
associando-o gratuitamente à Ku Klux Klan e ao progresso alcançado pelos Estados
Unidos
sob a inspiração de "heresias em declínio". John Thomas Scopes foi a julgamento
na pequena cidade de Dayton, Tennessee, no verão americano de 1925, por ter
desrespeitado
a lei que proibia o ensino da teoria da evolução nos colégios do Estado. Na
defesa, mais uma vez em ação Clarence Darrow. O julgamento foi de fato
transformado num
show pelo advogado, que assim tentava atrair a atenção do país para os debates.
Seu adversário, o acusador de Scopes, foi o conservador William Jennings Bryan,
três
vezes derrotado como candidato do Partido Democrata à Casa Branca. O caso não
foi ganho nem perdido por ninguém, artifícios legais da Suprema Corte levando-o
ao
arquivamento para que não se tornasse ainda mais rumoroso (a opinião pública
estava literalmente dividida). A exemplo dos casos Loeb & Leopold e Sacco &
Vanzetti,
o julgamento de Scopes inspirou livros, peças de teatro e um excelente filme: O
Vento Será Tua Herança (Inherit The Wind, de Stanley Kramer, 1960).
54
Capítulo 5
A casa projetada e construída por Manuel Garcia de Medeiros Rosa não é muito
original. A fachada, por exemplo, um bloco de três faces ao lado da varandinha
de entrada,
é quase igual a várias outras que existem no bairro há muito mais tempo. A
disposição dos cômodos é pouco funcional, ao comprido, como a maioria das
residências
da rua, um dos quartos de dormir dando para a sala, os dois banheiros lá nos
fundos, colados à cozinha. O terreno é bem menor que o do chalé (oito de frente
por
26 de fundos). O quintal, pequeno, tem poucas árvores e termina num barranco.
Este faz parte do morro que separa trecho da Theodoro da Silva da Maxwell. A uns
cinqüenta
metros desse morro acaba a Conselheiro Paranaguá, rua paralela que começa na
Souza Franco, baqueie ponto, lá de cima, tem-se uma vista panorâmica de toda a
casa,
a área construída, o quintal, o barranco. Uma casa nova, limpa, taqueada,
ladrilho hidráulico, fachada de pó-de-pedra, flores pintadas sobre a varanda. Já
não há
razão para se temerem tetos desabando sobre a cabeça. E assim como o 130 é
conhecido por chalé, este 195 fica sendo o bangalô. Ou "a casa de vó Rita"(4).
Mudam-se todos em fins de 1924. Arlinda, por pouco tempo. Meses atrás Eduardinho
trouxe para passar dias no chalé Fábio de Lima Goyano, farmacêutico paulista,
filho
de Augusto Rodrigues de Moraes Goyano, seu grande amigo em Bica de Pedra. Fábio
apaixonou-se por Arlinda no primeiro instante. Estava ela de luto por um
parente,
sem pintura, a pele alva contrastando com o vestido preto. Uma elegância meio
mórbida, mas nem por isso desprovida de sensualidade. Fábio sentiu o coração
bater
mais forte. Pouco depois, estava lhe propondo casamento. E como era de gosto
geral - Rita, Eduardinho, Odette, Martha, todos muito impressionados com o
farmacêutico
- Arlinda concordou
em ficarem noivos. Casam-se a 22 de janeiro de 1925, dia do vigésimo quarto
aniversário dela. Vão morar em São Paulo, Arlinda sem ter esquecido de todo o
primeiro
noivo. Na véspera da cerimônia - celebrada diante de um singelo altar
improvisado no chalé, Dr. Graça Mello e sua mulher, Dona Glorinha, como
padrinhos - Martha
chama a noiva ao seu quarto, abre o porta-jóias onde guarda todos os presentes
de Neca, dados nos tempos de fartura, e diz:
- Escolhe o que quiser.
Comovida, Arlinda pegará apenas uma pulseira, simples, barata, para nunca mais
se separar dela.
Dos primeiros dias de dezembro de 1924 aos últimos de janeiro de 1925,
realizam-se as provas finais no Pedro II. Alunos de fora, os chamados candidatos
"estranhos", ou do próprio colégio misturam-se no amplo pátio, nos corredores,
nas
salas de pé-direito alto, todos ansiosos por seus diplomas de bacharel.
Noel, segundanista do São Bento, presta exame em duas matérias. Primeiro
aritmética, quinta-feira, 8 de janeiro, e depois geografia (incluindo corografia
e elementos
de cosmografia), na segunda-feira seguinte, dia 12. Não consegue a média mínima
de 3,5 e é reprovado nas duas. Talvez não esperasse isso. Na irresponsabilidade
de
seus treze para quatorze anos, acreditava ser possível brincar tanto e estudar
tão pouco, sem esbarrar no rigor desses velhos professores do Pedro II.
Tão despreparado estava - e é tanta a agitação em casa, a mudança para o
bangalô, o casamento de Arlinda, Hélio se preparando para também ele começar a
cursar o
ginasial no São Bento - que Noel nem aparece para as provas de segunda época no
mesmo Pedro II, a de aritmé tica
58
Luís Gentil Feijó será um dos assuntos mais focalizados nas páginas de O Mamão,
jornalzinho manuscrito, exemplar único, do qual o próprio Noel é idealizador,
fundador,
editor, redator, revisor, ilustradore distribuidor. Jornalzinho de curta
duração, todo impresso, ou melhor, manufaturado de um lado e do outro de uma
folha dupla
de caderno pautado. Começa a circular neste 1925, sempre sob as carteiras, nos
banheiros, nos cantos do pátio não alcançados pela vigilância do Gouvêa. E já
com
o logotipo que o tornará famoso entre os colegas: um bebê sugando, faminto, sua
mamadeira. Mas é bom lembrar o duplo sentido do título, Noel é desde já e para
sempre
cultivador dos duplos sentidos. Mamão é um dos muitos sinônimos de pederasta, o
vulgo gostando de usar a expressão: "O mamão é macho, mas é fruta."
Gentil Feijó será muitas vezes ridicularizado nas páginas de O Mamão. Talvez nem
saiba disso. Sabe, porém, que Noel não se inclui entre seus admiradores. Num fim
de tarde, ao ver o garoto numa das janelas do colégio, olhando para o pátio onde
pasta um veado dado aos monges por um fazendeiro de Caraça, Minas, bate-lhe no
ombro
e diz:
- Aí, hein? Apreciando o coleguinha...
Suas aulas de francês são excelentes. Isto é, quando está com disposição para o
trabalho. Pois Feijó é muito freqüentemente dado a acessos de preguiça. Nessas
ocasiões,
conta anedotas, mexe com Noel e outros alunos ou simplesmente se justifica:
-Hoje eu estou tão cansado que nem posso me ter em pé...
O Mamão passa para outras turmas as anedotas de Feijó e também as inventadas por
Noel ou ouvidas por este de colegas, amigos de Vila Isabel, companheiros de
bonde.
De certo modo, o jornalzinho é uma réplica a A Alvorada, em cujas páginas,
definitivamente, Noel não quer aparecer. Primeiro por uma questão de estilo, o
que o incompatibiliza
também com o Grêmio Literário. Quando começar a escrever seus versos, a pôr no
papel a sua prosa (e nada melhor para isso do que o O Mamão), jamais cometerá
arrebatamentos
como os de Carlos Henrique Robertson Liberalli, orador oficial do Grêmio:
"O vento sibilava nas cristas dos penedos e a névoa densa vinha contra nós,
semelhando um exército disforme de fantasmas."
Muito menos os de Oswaldo d'Avila Furtado, também colaborador assíduo das
páginas literárias de A Alvorada:
"Iluminados pelos derradeiros raios apolíneos que agonizavam no longínquo
poente, os píncaros de cordilheiras assemelhavam-se
a incomparáveis blocos de oiro..."(7)
Em vez de cantar ventos sibilantes e raios apolíneos, Noel prefere ter como musa
a figura de José Piragibe, por sinal um dos grandes, senão o maior incentivador
do Grêmio e da revista:
Quem não conhece um mestre rabugento Urso de membros atrofiados Professor e
conselheiro do São Bento Que julga ter modos educados
Chapéu preto, roupa preta, sempre a mesma Chapéu que na cabeça mal lhe assenta
Roupa suja e pegajosa como a lesma Bigode a cair-lhe pela venta.
Em dezembro de 1925, novamente as provas finais. De aritmética, geografia e
álgebra, esta incluída em cima da hora, pelo Departamento Nacional de Ensino,
entre os
exames de bacharelato do segundo ano. Surpreendida, quase toda a turma de Noel,
ele inclusive, vai à segunda época. De nada adiantam as aulas extras de Gonçalo
Garcia
Mattos, as centenas de páginas de livro consumidas às carreiras, as fórmulas e
os cálculos estudados da noite para o dia. Se até Lauro de Abreu Coutinho, o
primeiro
da turma, vai à segunda época, por que não Noel?
A álgebra será, porém, sua única tacada em falso. Assim mesmo, quando fevereiro
chegar, se livrará dela na segunda chance. E será promovido ao terceiro ano.
Dom Meinrado gosta de ver Noel nas missas de domingo. Mesmo sabendo que o
principal motivo de sua assiduidade é o futebol que os alunos jogam depois, no
campinho
lá de cima. Campo de formato irregular, devido à curvatura do morro, semelhante
a um retângulo ao qual decepou-se um dos cantos, apelidado pelos alunos de
"cartão
de visitas". As partidas começam bem-comportadas, dois times escolhidos no par
ou ímpar, bola ao alto, os sem-camisa contra os com-camisa, tudo com a aprovação
do
Gouvêa. Bem-comportado, contudo, só no começo, pois geralmente estes embates
dominicais, os sem-camisa contra os com-camisa, terminam com os dois times
usando o
mesmo uniforme: todos nus, brigando pela bola.
Noel, que não é, nunca será no futebol tão bom quanto no violão, empolga-se com
esses jogos de após missa. É ele o líder, o primeiro a dar ordem para que todos
tirem
a roupa. Talvez a nudez, aqui neste colégio religioso e para-militar, de dólmàs
abotoados até a gola, não deixe de ser uma forma de libertação. Por mais que
tenha
jeito de pecado, por exemplo, aos olhos
60
NOTAS
1. Quando Noel Rosa começou a cursar o ginásio em 1923, eram muito diferentes
as normas do ensino. Todas as provas finais - os chamados exames de bacharelato
ou
preparatórios -realizavam-se no Colégio Pedro II. Podia-se estudar em qualquer
outro colégio (ou mesmo em casa, sozinho ou com professores particulares), mas
os
exames tinham de ser feitos perante banca do estabelecimento oficial. O São
Bento e alguns outros preparavam seus alunos dentro de um curso seriado de cinco
anos.
A partir do final do segundo, iam eles se apresentando para os exames de
bacharelato (aritmética e geografia, no segundo; francês, álgebra e história do
Brasil,
no terceiro; inglês, latim, geometria e história universal, no quarto; física e
química e história natural, no quinto), depois do que, bacharéis em ciências e
letras,
estavam habilitados a ingressar em qualquer curso superior do país. No São
Bento, caso o aluno não fosse aprovado pela banca do Pedro II, repetia o ano,
ainda que
tivesse se saído bem nas provas seletivas que o colégio realizava para só mandar
aos exames de bacharelato os mais aplicados.
2. Atual Aeroporto Santos Dumont.
3. Refletiu-se também no Rio a chamada Revolução Paulista de 1924, uma das
muitas manifestações do "tenentismo" na década de 20.
4. A casa ainda existe, tendo hoje o número 483. Mesmo com as sucessivas
reformas que sofreu nestes anos todos, não está muito diferente do que era.
5. A reforma que levou o nome de Juvenil da Rocha Vaz, diretor do Departamento
Nacional de Ensino, foi implantada pelo Decreto-Lei 16.782-A, de 13 de janeiro
de
1925. Praticamente institucionalizava o curso seriado de cinco anos, tornando-o
obrigatório em todos os colégios, ao mesmo tempo que começava a pôr fim aos
candidatos
avulsos (ou "estranhos") que tentavam o bacharelato no Pedro II. Os alunos que
já tinham iniciado o ginasial em 1925 - casos de Noel e Hélio - podiam optar
pelo
antigo ou novo sistema. De acordo com este, a cada dezembro submetiam-se a
provas finais de determinadas matérias, só que no próprio colégio, perante banca
de três
professores, dois dos quais do Pedro II. Aprovados, bacharelavam-se naquelas
matérias. Reprovados, iam à segunda época. Novamente reprovados, repetiam o ano,
ou
então retornavam ao antigo sistema. Os primeiranístas de 1925 foram os últimos a
terem as duas opções. Depois, vigoraria apenas o seriado.
6. A maior média que Hélio Rosa obteria no primeiro ano ginasial de 1925 seria
a de 6,5 em instrução moral e cívica. Nas demais matérias, 6 em francês, 4 em
português,
outro 4 em geografia, 3,66 em desenho e o insuficiente 2 em aritmética. Ao longo
do curso, ficaria várias vezes para segunda época, apelaria como Noel para os
exames
no Pedro II e só concluiria o ginasial em fins de 1930. Como se verá, graças a
um decreto presidencial. Um curso, portanto, bem aquém do que têm afirmado
outros
biógrafos, provavelmente com base em informações do próprio Hélio: "Bom aluno,
na expressão exata da palavra, foi seu único irmão, Hélio...", diz Almirante em
No
Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página 56). Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua
Época (página 29), afirma: "Quando Hélio de Medeiros Rosa, mais moço quatro anos
que Noel, entrou para o Ginásio de São Bento, vinha destinado a assinalar um
curso brilhantíssimo. Dão atestado disso não só os cadernos escolares e os
registros
do estabelecimento de ensino, mas também as cartas de Noel, explicando,
orgulhoso, que o irmão sempre foi o primeiro da turma." Nem brilhantíssimo, nem
primeiro
da turma. Os registros do São Bento, exaustivamente consultados pelos autores,
revelam que Hélio foi aluno apenas mediano. E as cartas de Noel, como se
constata
mais adiante, referem-se a um bom estudante de veterinária, já como
universitário, e não a um Hélio "sempre primeiro" de sua turma no São Bento.
7. Tanto este trecho como o de Carlos Henrique Robertson Liberalli são de
crônicas publicadas em A Alvorada, março de 1924.
63
O ENCANTO DA MÚSICA
Capítulo 6
dos muitos amigos que ele faz em Vila Isabel em nome das afinidades musicais.
Amigos chegados, fiéis, que jamais se afastarão dele, o que quer que o futuro
lhes
reserve.
Betinho é marceneiro, ótimo sujeito, alma boêmia. Ainda será companheiro de Noel
em namoros de portão, cada qual com uma irmã. Só que um se amarrará e o outro
não.
Um marceneiro de mãos delicadas, amante das valsas. Um dos que poderão dizer que
ensinaram alguma coisa a Noel. Já FaustoJosino de Oliveira, o Cobrinha, é
padeiro.
Ou melhor, entregador de pão, tarefa que cumpre bem cedinho, antes que o sol
surja. Por isso não é muito de serenatas, de perder horas de sono. Aprende
violão com
Noel, no chalé, as aulas começando assim que entrega a última bisnaga. José
Sabiá, negro, alto, magro, tocador de cavaquinho, cantador de emboladas, não
ensina nem
aprende com Noel. Faz-lhe companhia, apenas. Como os irmãos Araújo, Arnaldo e
Antônio, filhos de um alfaiate português e eles próprios iniciando-se cedo no
ofício.
Conheceram Noel quando os três, vestidos de mulher, batom, ruge, sapatos altos,
dançavam no estribo de um bonde num domingo de carnaval. Tinham nove, dez anos.
Jamais
deixarão de ser amigos. Antônio não é de música, mas Arnaldo ainda vai tentar
acompanhar Noel nas aulas com Betinho. Até que um dia, constatando que Noel já
deixou
o professor para trás, enquanto ele, Arnaldo, continua no mesmo lugar, fará do
violão peça decorativa na parede de seu quarto.
São muitos os amigos, violonistas, seresteiros, gente que gosta de música.
Impossível enumerá-los todos. Glauco Vianna virá mais tarde. Da idade de Hélio,
da turma
deste no São Bento. Será, dos três atentos observadores de Quincas e João em O
Cavaquinho de Ouro, o que realizará mais plenamente seu sonho de violonista1.
Também não é possível precisar quando o executante começou a conviver com o
compositor. É certo que as primeiras letras serão feitas para melodias alheias,
paródias
com que divertirá os colegas no recreio do São Bento. Mas o próprio Noel fará
publicar daqui a alguns anos aquela que, até prova em contrário, ficará como sua
primeira
composição, música e letra: Cumprindo a Promessa2.
Eu já jurei ir à Penha, meu bem!
Juro, eu não posso faltar
Pois tenho medo que a santa Então venha Zangada me castigar
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade
Pois desta vez Eu jurei
, não é garganta,
Que quando chegasse o mês
Ajoelhava aos pés da santa
No ano passado
Eu bem quis ir visitar
Quem meus pecados
Sempre soube perdoar
Que crueldade!
Vou brigar com meu amor
Pois pela dificuldade
É que a promessa tem valor
Nas muitas e sempre bulhentas andanças do menino Noel por sua cidade, nada mais
importante que o bonde. Um dia, já não tão menino, vai homenagear, em forma de
samba,
este precário e cambalçante veículo que percorre ruidosamente as ruas do Rio:
E o bonde que parece uma carroça? Coisa nossa, muito nossa!
Por enquanto, porém, bastam-lhe as viagens, o prazer de apurar suas piruetas no
estribo, de usar o balaústre como ponto de apoio de seus rodopios. Tudo a
cinqüenta,
sessenta quilômetros por hora, espécie de salto sem rede. Os amigos, do São
Bento e de Vila Isabel, impressionam-se com essa habilidade do ágil menino de
circo Noel
Rosa.
Mas o bonde não é apenas o trapézio de suas acrobacias. É também o picadeiro de
suas graças imaginativas, debochadas, marotas, inoportunas, obscenas. Quando não
está no balaústre, o espaço final do primeiro carro, mais conhecido por
"cozinha", é o preferido. Ali, viajando quase sempre de pé, costuma apoquentar
os passageiros
com seus arremedos de ventríloquo, ou provocar os que estão no ponto, quando o
bonde pára:
- Veado!
Todos olham para a "cozinha". Noel emenda:
- Só chamei um!
Vez por outra promove concursos inusitados, desenhando um pênis gigante numa
folha de cartolina. A cada detalhe do desenho corresponde um número que repete
em pedaços
de papel, dobrando-os e colocando-os dentro do quepe. Em seguida, pede que cada
colega tire um e vai cantando, alto, o "prêmio" que cabe a este ou àquele:
- Dacorso, número cinco! Fica com os pentelhos.
Outro pedaço de papel:
- Moacyr, três! O cabresto... Ou ainda:
66
Nas salas de aula, imita condutores a exclamar o seu lusitano "faz favor",
manipula manivelas imaginárias, fabrica estranhíssimas maquininhas sobre a
carteira, canaletas
de cartolina que fazem às vezes de trilhos, bilhas que se transformam em bondes
que ele mesmo dirige. Mas dirigir bondes pode, ocasionalmente, converter-se em
algo
real. Basta fazer amizade com os motorneiros que circulam pela Praça Mauá,
Lourenço, Nazareth Bigodão, Nascimento. Bigodão é um português risonho,
simpático, que
não se importa que o chamem pelo apelido. De todos, porém, Nascimento é o mais
camarada. Mulato forte, um e oitenta de altura, Noel tanto pede que ele o deixa
manobrar
o bonde no ponto final.
- Olha a direita!
As brincadeiras que o bonde inspira nem sempre são tão inocentes. Principalmente
agora que a moda importada da América começa a encurtar as saias da mulher
carioca.
Antes, e Noel bem se recorda, usavam-se saias muito abaixo dos joelhos, quase na
altura das canelas. Saias que tudo escondiam. Hoje, e Noel bem observa, sobem-se
as bainhas, revelam-se as pernas, tudo está mais à mostra. O menino percebe que
o estribo do bonde é lugar estratégico de onde, num simples virar de olhos,
devassam-se
intimidades de passageiras descuidadas. E passa a viajar ali.
Mais tarde, o voyeur Noel dá lugar a um audacioso pingente que prefere a ação à
visão. É quando vê mulher bonita sentada na extremidade do banco, saia curta,
distraída.
Toma o bonde perto do colégio, põe-se de pé no estribo, ao lado da mulher, e
espera que o motorneiro dê a partida. Assim que o veículo ganha velocidade,
aproxima-se
sorrateiramente, mete a mão coxas acima da mulher e salta, o bonde já correndo.
A vítima, apavorada, grita:
- Socorro! Um louco!
No segundo semestre de 1926 O Mamão ainda circulará clandestinamente sob as
carteiras, divertindo uma turma que constata o caráter cada vez mais irreverente
da linha
editorial do jornalzinho. Com uma periodicidade que o próprio Noel estabelece em
função de ter ou não o que dizer por escrito (por esta época ele já prefere a
música,
as paródias, como veículo do seu humor), O Mamão faz o mesmo sucesso do ano
anterior. Só que não por muito tempo mais. Como também já não durarão muito as
brincadeiras
de que é vítima dom Joaquim de Luna em suas apaixonadas aulas de religião.
As duas coisas - o fechamento de O Mamão e o fim das provocações de Noel a dom
Joaquim - estão interligadas. É que em seu último número o jornalzinho traz,
entre
anedotas imorais, croniquetas apimentadas, versos chulos, textos enfim que Noel
criou ou colheu entre o que há de mais impublicável,
uma caricatura de dom Joaquim. E logo na primeira página. A identificação do
monge se faz muito menos pelos traços de Noel, imprecisos, não muito parecidos
com o
original, do que por outros detalhes. Por exemplo, frases que habitualmente dom
Joaquim emprega em aula quando repreende ou mesmo pune um dos alunos:
- Lembrem-se, eu não castigo ninguém. Vocês é que se castigam.
Ou quando tenta que os alunos parem de conversar em sala:
- Atenção, atenção, isto não esta no manual!
As frases aparecem saindo da boca de dom Joaquim na caricatura. Mas o que
realmente torna o personagem do desenho inconfundívelé sua mão direita: apenas
dois dedos.
Com eles, o anular e o polegar, dom Joaquim segura o seu lápis enquanto diz as
duas frases.
Por um descuido qualquer, este número de O Mamão vai parar nas mãos do Gouvêa
que o entrega a dom Meinrado. O reitor manda chamar Noel. Talvez finja não ter
lido
as críticas ao colégio contidas numa das matérias. Ou não entender as piadas tão
diferentes dos chistes de A Alvorada. Nem toca nesses assuntos. Limita-se a
falar
do desenho, do quanto de cruel há nele. É no mínimo falta de sensibilidade
brincar com o defeito físico dos outros. E logo o bondoso dom Joaquim...
Os alunos têm razão quando dizem que uma reprimenda de dom Meinrado, por mais
branda que seja, é muito pior que qualquer castigo aplicado pelo Gouvêa ou um
dos professores.
Dom Meinrado sempre atinge o alvo. Noel
67
vem ao Rio para que seu filho nasça aos cuidados do Dr. José Rodrigues da Graça
Mello. Ela e o marido Fábio hospedam-se no bangalô. Surpreendem-se com um Noel
tão
atirado, tão independente e sobretudo tão boêmio. Ficam maravilhados. Acompanham
os malogrados empenhos de Martha para que o menino estude mais e saia menos,
deliciam-se
ao conhecer cada truque de que se vale para trocar o dormir cedo por mais uma
noitada. Martha esconde-lhe as roupas, zanga, suplica. Inútil. Quando vai ver,
ele
já saiu. Com que roupa? Com a de Neca, bainha da calça dobrada, pano franzido na
cintura. Preocupa-se com sua saúde, com o fato de raramente ingerir sólidos. De
que adianta a superalimentação, o mingau, o chocolate com gema de ovo, se tudo
isso se perde numa noite em claro? Mesmo achando que Martha tem razão, Arlinda e
Fábio
não podem deixar de sentir certo deslumbramento. Duas, três da manhã, ouvem
bater na janela do seu quarto. Uma voz sussurrante diz lá de fora:
- Minha Dinga, sou eu, o Noel. Abre a porta pra mim...
Arlinda levanta-se, vai abrir a porta que Martha trancou. Arregala os olhos para
ver Noel tirar os sapatos, ajoelhar-se, caminhar até seu quarto assim mesmo, de
joelhos, para que a mãe não o veja. Com muito cuidado, apoia nas costas o violão
do pai que o acompanha sempre.
Fábio, bem-comportado farmacêutico de São Paulo, tem por Noel grande admiração.
Por sua inteligência, sua música, mas muito especialmente por seu jeito solto,
livre.
Um sentimento que mistura simpatia e algumas gotas de inveja. Aliás, o mesmo que
Noel vai inspirar pela vida afora a todos bem-comportados que o conhecerem de
perto.
Um dia, próximo ao nascimento do filho, Fábio vai à cidade, paga vinte mil réis
por um violão e o dá de presente ao "sobrinho" boêmio. O primeiro violão de
Noel.
Nestes anos de ginásio, raramente se separa do uniforme caqui. Até por uma
questão de economia. Desde que voltou de Araçatuba, há quase quatro anos, Manuel
Garcia
de Medeiros Rosa não mais se aprumou. Cavou um emprego aqui, outro ali, chegou a
exercer por algum tempo as funções de "fiscal do bucho"(10), sem no entanto
firmar
pé. A escolinha não rende o bastante para que a família luxe, entendendo-se por
luxo a camisa de algodão, a calça de casimira, o sapato fantasia dos meninos.
Assim,
o uniforme do São Bento, renovado a cada começo de ano, é forma de poupar (os
primeiros ternos de Noel serão feitos pelos Araújos, na camaradagem, com cortes
de
Palm Beach
70
mandados de presente por Eduardinho). Mesmo a família morando numa casa mais
nova e confortável que o chalé, e contando com a mesada que Rita recebe do
filho, a
tormenta ainda não passou de todo para os Medeiros Rosa. Motivo pelo qual Neca
afasta-se de casa mais uma vez, agora com destino a Bica de Pedra, onde espera
ter,
ao lado do cunhado, um pouco mais de sorte. Lá se ocupará da contabilidade de
casas de negócio e da construção de uma estrada.
Por muito tempo, desde aquele primeiro dia de aula em 1923, quando se viu
enfiado em dólmã, culote, quepe e perneiras, a farda caqui tem sido a única
roupa de Noel.
Ela e o uniforme branco para dias de festa. O mesmo acontece com Hélio. Seja
para ir à aula ou à missa, visitar um parente, ver um filme no Smart, seja para
as serenatas
que tanto amofínam Martha, Noel raramente se separa do uniforme. De tal modo
que, daqui a tempos, quando se falar no adolescente que ele é hoje, os moradores
do
bairro dirão:
- Me lembro. Magrinho, queixo torto, sempre com a farda caqui.
Não liga quando alguém o chama de "gafanhoto sem bunda", nome que os garotos de
outros colégios deram aos alunos do São Bento por causa das iniciais GSB que
trazem
no emblema. Dificilmente irritam, encabulam, constrangem, fazem perder a bossa
ao menino Noel. Se alguém lhe põe um apelido, perde tempo: logo arranjará outro
de
volta, transformando o agressor em agredido11. Ele é quem gosta de rebatizar os
colegas. Como no dia em que vem subindo a ladeira do São Bento ao lado de Hélio
Lobo.
Por ter faltado às aulas de ontem (e de anteontem também), esgueira-se pelo
paredão para não ser notado por dom Meinrado. Vai na ponta dos pés quando o
reitor pega-o
pela gola.
- Venha cá, seu Noel. Faltando às aulas, hein?
Dom Meinrado inicia em seguida um de seus habituais sermões, a fala mansa mas
firme, aquele jeito de envolver os alunos sem os destratar. O monge pede que
Hélio
Lobo se aproxime. Coloca os dois meninos frente a frente e diz:
- Mire-se no Hélio, Noel. Mire-se no Hélio e veja o que é um aluno exemplar,
bem-comportado, incapaz de um deslize.
Noel faz que sim com a cabeça e dom Meinrado manda que os dois se dirijam à sala
de aula. Noel e Hélio Lobo caminham lado a lado, calados, até a cantina do
Al tino. Pedem dois refrescos. A certa altura, Noel passa a olhar fixo nos olhos
do colega Hélio encabula-se. Noel continua olhando-o nos olhos. Cada vez mais
embaraçado,
o outro protesta:
- Que diabo, Noel! Por que está me
olhando assim?
- Estou me mirando em você, Salammbô... virgem de Cartago!
Os cinemas exibiram semana passada o filme Salammbô, os olhos lânguidos de
Jeanne de Balzac pondo coisas na cabeça dos homens(12). De agora em diante,
Hélio fica
sendo "Salammbô".
Do mesmo modo, Antônio Fernandez Lopez, os dois sobrenomes paroxítonos, passa a
ser "Fernandes Lopes", o acento na última sílaba. Para indignação dele, que
acabará
indo a cartório mudar o nome para Antônio Fernandes Lopes, os esses substituindo
os zês, garantia de que ninguém mais o chamará daquele jeito.
Já Alceu de Miranda é simplesmente "Pinguilim", para quem Noel compõe uma
buliçosa quadrinha:
Pinguilim que bate, bate Pinguilim que já bateu
Os pentelhos cá de baixo
Faz uma pausa, aponta para o sexo e arremata:
Vêm da bunda do Alceu
Manuel Jansen Muller será "Mané Figueiredo". Por quê? Nunca saberá. E
Hermenegildo de Barros Filho fica sendo mesmo o "Ministrinho". E por razões
óbvias: o pai é
ministro do Supremo Tribunal, homem importante, o nome saindo todo dia nos
jornais. Dos muitos alunos do São Bento, é um dos que mais dinheiro leva no
bolso. Será,
de bom grado, patrocinador dos programas mais dispendiosos de Noel. Embora seja
da turma de Hélio Rosa, é com Noel que se identifica mais:
- Vamos, Ministrinho?
- Aonde?
- Lá.
O "lá" significando uma daquelas casas do Mangue que Noel, para perplexidade de
Hermenegildo, conhece tão bem. Os dois vão de uniforme, livros. O filho do
ministro
treme de medo, mas concorda em pagar as despesas. Os sanduíches, as cervejas, as
mulheres, tudo isso por sua conta. Noel se encarrega da boa conversa e da
música.
Dom Meinrado, que parece saber de tudo, no dia seguinte interpela o turbulento
desencaminhador de suas ovelhas:
- Noel, Noel. ..Já que não pode deixar de pecar, por que não peca sozinho?
71
NOTAS
1. Glauco Vianna chegaria a gravar vários discos como solista na Victor, Odeon
e Parlophon, o primeiro deles em 1928. Quase sempre intérprete de suas próprias
composições,
cumpriria carreira fonográfica de mais de trinta anos.
2. Jornal de Modinhas, de um número de 1929- O próprio Noel assinalou na margem
de um recorte da letra publicada o ano de sua criação: "Feito em 1925".
3. Mosteiro de Monte Casino ou Mons Casinus. Situado entre Roma e Nápoles, é
considerado o berço da Ordem Beneditina. Nele se encontra o túmulo de São Bento
de
Nursia, fundador da ordem.
4. Carmine Carbone de fato jamais voltaria à Itália. Morreu no Rio, ainda como
professor do São Bento, a 16 de julho de 1939, meses antes de ter início a
guerra
que tanto temia pudesse destruir seu país.
5. Escrita em 1925 por Walter Donaldson e Gus Kahn, a canção foi um dos maiores
sucessos da música popular americana dos anos 20.
6. A dissertação em versos sobre o bromo seria para sempre lembrada não só
pelos colegas de turma de Noel, mas por todos os seus contemporâneos e muitos de
seus
sucessores no Ginásio de São Bento. Guardada durante anos nos arquivos do
Mosteiro, a prova, lamentavelmente, se perdeu.
7. Almirante refere-se a esta precocidade - e às gabarolices de Noel - na
segunda edição de No Tempo de Noel Rosa (página 187). Depoimentos de amigos de
bairro
e de contemporâneos de São Bento ajudam a compor o quadro de suas primeiras
aventuras amorosas, de suas visitas às pensões de mulheres e de como gostava de
se exibir
a respeito.
8. Canção de Franz Lehár, sucesso internacional na época.
9. Canção de Pedro de Sá Pereira e Luís Peixoto. Gravada por Vicente Celestino
em 1928, seria também registrada em disco no ano seguinte por Gastão Formenti e
Nina
Nabuzzi.
10. Funcionário municipal que fiscalizava o comércio de miúdos de boi nas
feiras livres.
11. Não há fundamento na tão difundida versão de que Noel teria carregado, em
sua passagem pelo São Bento, o apelido de "Queixinho". Nenhum de seus
contemporâneos
entrevistados pelos autores, num total de quinze, lembra se disso: "Ninguém
ligava para o defeito dele", assegura o Dr. Lauro de Abreu Coutinho, médico
radiologista,
primeiro aluno da turma, quatro anos colega de sala de Noel. "Apelido?" -
surpreende-se o almirante Antônio Fernandes Lopes, da mesma turma - "Nunca houve
isso."
César Dacorso Netto, engenheiro e professor de matemática, arremata: "Gostávamos
demais dele para isso. Além do mais, era o nosso líder." O general Moacyr Mattos
de Oliveira, o companheiro mais chegado: "Noel é que vivia mexendo com todo o
mundo."
12. Salammbô, filme de Pierre Marodou baseado no romance de Gustave Flaubert,
foi produzido em Viena em 1925 e exibido no Rio dois anos depois. Além de Jeanne
de
Balzac, estavam no elenco Rolla Norman e Raphael Liévin.
72
A MORTE DE PERTO
Capítulo 7
uma casa grande, as portas e janelas laterais dando para uma comprida e estreita
varanda. Parede colada ao armazém da esquina de Theodoro da Silva com
Silva Pinto, fica bem em frente ao bangalô. Mas só neste fim de tarde, ao voltar
do São Bento, Noel parece notar que tal casa existe. No portão, brincando com
duas
crianças, vê uma moça bonita. Morena, cabelos curtos, olhos castanhos, redondos,
brilhantes. Quantos anos terá? Noel vai saber depois que ainda não fez quinze.
Desde esta tarde, a moça é o objeto de suas atenções. Mudou-se para ali há
poucos dias, mas os rapazes que fazem ponto na esquina já colheram informações
mais ou
menos precisas para satisfazer a curiosidade de Noel.
- O nome dela é Clara - diz alguém. Clara Corrêa Netto. É a mais nova dos quinze
filhos de outra Clara, viúva de Serafim Corrêa Netto, vidraceiro que um ataque
cardíaco
matou há alguns anos, quando moravam todos na Rua Theofilo Ottoni, no Centro.
Até hoje a família permanece unida. A não ser a filha mais velha, Julieta, já
casada;
o segundo, também Serafim, que se casou, enviuvou e se casou de novo; e Maria
que morreu pequena; ajeitam-se todos aqui, na casa em frente ao bangalô, à volta
da
figura matriarcal de dona Clara: os filhos Alfredo, José, Manuel, Álvaro,
Alberto, Lúcio, Antônio, Julião, Ananias (nome de homem, mas na verdade a mais
velha das
moças depois de Julieta) , as gêmeas Guilhermina e Marcolina. E Clara, a
Clarinha. As crianças que Noel viu com ela são os sobrinhos Edgar e Irene, que
dona Clara,
fazendo valer sua autoridade, não deixou Serafim levar para a companhia da
segunda mulher (ela é do tempo em que toda madrasta era inevitavelmente uma
megera).
Mas é apenas em Clarinha que Noel está interessado. Não importa que entre e saia
muita gente da casa, que aos domingos se sentem todos na varanda, que o portão
seja
ponto de reunião de tantas pessoas, irmãos, irmãs, parentes em visita, vizinhos.
Noel só tem olhos para Clara.
Um dia percebe que é correspondido. Sempre com o uniforme do São Bento, senta-se
na varandinha do bangalô, toma o violão e canta coisas de amor. Talvez Clara não
o ouça do outro lado da rua, mas sabe, de alguma forma, que são para ela as
canções de Noel. São tantos os irmãos e irmãs, e é tão severa a vigilância sobre
Clara,
que se torna quase impossível uma aproximação. Bem que Noel tenta. Ouviu dizer
que a moça estuda num colégio do bairro. Mas qual? E a que horas? A troca de
olhares,
um ou
73
encontre amanhã à noite, três esquinas mais para lá. Isto é, Theodoro da Silva
com Visconde de Abaeté. Clara, se não chegou a ouvir a música que Noel tantas
vezes
lhe cantou do outro lado da rua, acompanhando-se ao violão, notou-lhe o
interesse, os olhares tão significativos. Também gosta dele. Pelo menos até onde
a distância
entre suas casas permite avaliá-lo. Toma coragem e escreve um bilhete em
resposta: estará amanhã à noite no local que ele sugeriu. Uma esquina que verá
nascer entre
os dois uma grande afeição.
Não será - como alguns pensarão - um simples namoro de adolescentes, ligeiro,
inconseqüente, sem deixar marcas. Por quase sete anos farão parte da vida um do
outro.
Querendo-se bem, afastando-se, trocando juras, cumprindo-as,
esquecendo-se delas, mas sempre próximos. De início, os irmãos não se
importarão. Até farão gosto, um rapaz de boa família, simpático, aluno do São
Bento, com intenção
de ser médico. Mas um gosto só no início, até perceberem que sob a pele do
menino magro, pálido, quieto, oculta-se incorrigível alma de boêmio.
Vão se encontrar na Praça 7, na esquina, no portão. Raramente irão a algum lugar
sozinhos, um cinema, um passeio mais longe. Betinho, o do violão, começa a
namorar
uma das gêmeas, a Marcolina (com quem acabará se casando) . Na maioria das vezes
os quatro saem juntos. Mas isso também só no início, enquanto não descobrem que
dois sempre sobram.
Seis, quase sete anos fazendo parte da vida um do outro. Clara será a primeira
namoradinha de fé de Noel. De certo modo, a única. Como em muitos aspectos ele
há
de ser único na vida dela. Seis, sete anos. Enganam-se os que pensam que naquela
esquina de Vila Isabel teve início um simples e passageiro amor de adolescentes.
quinto ano no São Bento, mas passar a fazer os exames, a partir de março de
1928, no Pedro II. Acha melhor seguir por este último.
Tais tropeços não deixam de surpreendê-lo. Em sua costumeira irresponsabilidade,
cada vez mais ligado à música e desligado dos estudos, acreditava poder brincar
o ano inteiro sem esbarrar no rigor das bancas examinadoras. As reprovações o
frustram. A que ponto, não é possível precisar. O pai se zanga, a mãe se
preocupa.
Principalmente ao
vê-lo tão acabrunhado depois das primeiras provas no Pedro II, em março, quando
é novamente reprovado em história natural.
Certa manhã, ouvem-se gritos, correria), confusão no fundo do quintal. Noel
acaba de rolar do alto do barranco, fere braços e pernas, parece muito
machucado. Deve
ter pisado em falso na terra úmida, escorregado, caído. Portanto, um acidente.
Mas Martha, mortificada, teme que não. Em sua cabeça - muito sugestionada pela
tragédia
que se abateu sobre a família neste mesmo quintal - ficará a certeza de que o
filho, inconformado com o fracasso nos exames, quis se matar. Por quê?(5)
Mais um "por quê?" Este como o outro parte de uma mesma e complicada questão: o
que terá acontecido realmente? A vingança de um professor levando o aluno à
reprovação
e, depois, à tentativa de suicídio? Pode ser. É nesta versão patética, beirando
o trágico, que acreditam todos no bangalô. Mas são tantos os indícios em
contrário
- o testemunho dos colegas, as tintas de inverossimilhança que colorem a
história, a reputação de Piragibe como homem sério e justo, o próprio Noel - que
não se
deve desprezar a hipótese de tal versão não passar de uma farsa. Ou seja, Noel
inventando tudo para se livrar dos sermões do pai, cada vez mais irritadiço e
intolerante,
e para ganhar a simpatia da mãe, cada vez mais desapontada com o filho, bom
boêmio, mau aluno. Afinal, foi ele quem contou em casa sobre a "vingança de
Piragibe"
(só em 1929 Hélio conhecerá mais de perto o professor). Desculpa, aliás, que
voltará a usar em futuras reprovações. Quanto à tentativa de suicídio, talvez
não tenha
chegado a
inventá-la, mas tira proveito dela. Em vez de zangas, é tratado com todo
cuidado, atenções especiais, repouso fora do Rio. Nenhum esforço fará para
convencer a mãe
de que foi apenas um acidente.
Hipótese nem patética nem trágica, mas que cabe como uma luva no Noel de agora,
oprimido pelo pai, estudante pouco aplicado. E, já veremos, um garoto de
dezessete
anos capaz de truques e simulações para enfrentar a vida, de mentir para se
salvar, de pôr no fogo um professor desde que se livre do fogo ele próprio.
NOTAS
1. A Noite, 15 de outubro de 1927 (página 2).
2. Correio da Manhã, 16 de outubro de 1927 (página 7).
3. A Noite, 17 de outubro de 1927 (página 2).
4. José Piragibe, e não Mário Piragibe como cita Jacy Pacheco em Noel Rosa e Sua
Época, é mostrado naquele livro como uma espécie de algoz de Noel durante os
anos
de São Bento. Era exatamente esta a idéia que a família fazia do professor. Com
base em informações de Hélio Rosa, Jacy fala de perseguições do professor ao
aluno,
causas mesmo de suas reprovações no próprio colégio e mais tarde no Pedro II: "O
único que brincou foi seu Noel Rosa" - teria dito Piragibe numa aula à turma de
Hélio - "mas se arrependeu. Não foi física que estudou comigo, não! Foi história
do Brasil. Ele sabia a matéria. Mas não como eu queria. E brincava! E isso eu
não
admito! Ele foi ao pau três vezes. Quando apelou para o Colégio Pedro II, pedi a
meus colegas de lá que o reprovassem. E ele foi ao pau!" Esta versão, nos dando
conta de um perverso e vingativo professor, realmente contraria as lembranças de
todos os colegas de turma de Noel entrevistados pelos autores: nenhum deles sabe
de qualquer hostilidade de Piragibe ao seu irrequieto aluno. Além disso, como
atestam os arquivos do São Bento, nos seis anos em que Noel estudou lá, Piragibe
lecionou
português, química, física e história natural, nunca história do Brasil. Diz
ainda Jacy Pacheco: "Anos mais tarde, o Sr. Aldílio Tostes Malta, primo de Noel,
desposou
a filha do desembargador Vicente Piragibe, irmão do professor Mário (sic)... O
primo Aldílio fez o possível para levar Noel à festa, porém não houve força
humana
capaz de amainar o ódio que lhe ia no espírito, contra o malvado professor que
era figura indispensável na cerimônia." Ouvido pelos autores, Dr. Aldílio Tostes
Malta,
poeta, parceiro de Joubert de Carvalho em algumas canções e mais tarde ministro
do Tribunal Superior do Trabalho, negou o fato.
Lembra-se das visitas de Noel e Hélio a Vicente Piragibe, nas proximidades do
seu casamento com Alzira, a 18 de junho de 1928, e de como os dois irmãos
tocaram e
cantaram para a família da noiva, sem maiores problemas. Aldílio Tostes Malta é
filho de Christovam Malta, aquele mesmo que traçou na imprensa de Juiz de Fora
um
fiel perfil de Eduardo Corrêa de Azevedo, o pai (ver capítulo 1).
5. Em entrevista a A Noite Ilustrada de 18 de maio de 1937, Martha de Medeiros
Rosa faria referência ao episódio: "Atal ponto chegou seu estado de desânimo
que,
na outra casa (o 195), tentou suicidar-se, atirando-se de uma ribanceira com a
qual confinava o nosso terreno. Esteve muito tempo entre a vida e a morte, sendo
necessário
levá-lo para fora do Rio para restabelecer-se." Já o Dr. Eduardo Corrêa de
Azevedo, numa de suas muitas conversas com os autores, afasta a possibilidade de
tentativa
de suicídio: "Se tivesse havido, eu o saberia." De qualquer forma, a entrevista,
concedida ainda sob a emoção da morte do filho, revela que até o fim da vida
Martha
carregou consigo a certeza de que não fora um simples acidente.
79
ADEUS AO MOSTEIRO
Capítulo 8
O mundo ensina ao homem com mais facilidade aquilo que ele não quer aprender.
Meus Pensamentos
Pensando bem, não se parece com um suicida, nem tem jeito de quem leva a sério
os professores, o Noel Rosa que em março de 1928 está de volta às aulas do São
Bento.
Nada mudou nele. O mesmo uniforme caqui (a cada lado da gola, um 2 de metal
substitui o escudo do colégio, único detalhe que distingue dos demais os alunos
alistados
no Tiro de Guerra 2). O mesmo humor, a mesma agitação nas aulas, a mesma
irreverência para com os mestres. Antigos como Piragibe, novos como dom Bento
Villiger,
dom Plácido Roth e o coronel Eduardo de Albuquerque Sá.
Dom Bento chegou dos Estados Unidos há pouco. Não se sabe se é americano,
canadense ou suíço, como dom Meinrado. Sabe-se apenas que seu português é muito
limitado.
Nas aulas práticas de química, recorre a todo momento aos alunos quando uma
palavra lhe escapa:
- Como é mesmo! Cor... Cor...
- Azul- completa um dos rapazes.
Numa de suas experiências, mistura nitrato de prata ao cloreto de sódio, aquece
o tubo de ensaio, faz surgir assim uma solução de cloreto de prata, lactosa,
quase
branca. Mostra-a à turma e diz:
- Aqui temos um líquido... Cor de... Cor de...
Desta vez quem o socorre é Noel:
- De leite de pica.
- Isto, cor de leite de pica.
As aulas práticas de dom Bento são mais interessantes que as teóricas de
Piragibe, nas quais Noel costuma cantar, baixinho, modinhas e emboladas:
Eu fui no mato Pra cortar o pau-pinheiro
Só pra ver se sou ligeiro No cacete pra brigar
Dom Plácido leciona apologética. É mais camarada e bem menos empolado que dom
Pio Ziegenaus, que vive a atirar sobre os alunos seu palavrório em latim:
Quaerite
primum regnum Dei etjustitiam ejus haec omnia adjicientur vo-bis... Dom Plácido
é mais simples, só fala em português e prefere não complicar as lições. É pouco
exigente
em suas sabatinas, fica satisfeito quando pode dar nota alta a toda a turma.
Numa dessas sabatinas, vendo-o distraído, Noel apressa-se em abrir o livro,
colocá-lo sobre os joelhos e copiar o tema da prova. A janela está aberta, um
vento frio
sopra de vez em quando. Tendo de fazer os olhos passarem rápido do livro para o
papel, deste para dom Plácido
81
e novamente para o papel, não nota que o vento vira uma das páginas do livro. E
continua copiando, só que agora de outro trecho mais adiante. Na aula seguinte,
muito
tranqüilo, dom Plácido manda que ele se levante:
- Vejamos sua prova, seu Noel.
E passa a ler. A certa altura, notam todos, Noel inclusive, o texto começa com
um assunto e repentinamente muda para outro. Embora bem escrito, palavra por
palavra
igual ao livro, não faz sentido.
- Então, seu Noel, como é que o senhor explica isso?
Noel é sincero:
- O vento, dom Plácido. O vento explica.
Colar quase todos colam. Seja nas sabatinas do indulgente dom Plácido, seja nas
provas do implacável Albuquerque Sá, contratado nos primeiros dias do ano para
lecionar
cosmografia, nova matéria do programa oficial (não mais aquelas breves noções de
astronomia descritiva aprendidas no segundo ano, mas um programa mais extenso,
aprofundado,
que inclui desde o conhecimento, uma a uma, das estrelas do Pólo Norte, por
exemplo, até o estudo detalhado de lunetas e aparelhos vários).
- Espero que vocês se adaptem aos seus métodos - adverte dom Meinrado na véspera
de apresentar o professor à turma. - É um coronel do Exército, homem de rígida
formação
militar. Exigentíssimo, extremamente zeloso quanto aos estudos e à disciplina.
E é verdade. Formação militar, porte marcial. Empertigado, cabelo cortado curto,
a fisionomia sempre fechada, parece estar em permanente posição de sentido. Não
é preciso zangar, ameaçar, falar alto para que os alunos assistam à aula em
silêncio. Sua simples presença, fria, impositiva, basta. Todos o respeitam,
alguns o
temem. É mesmo um homem exigentíssimo, para âuem a correção, o agir direito, é
mais que sagrado.
A primeira e difícil prova dada por ele ao quinto ano de 1928 versa sobre o
teodolito, instrumento astronômico e geodésico de medição. Três dias depois,
Albuquerque
Sá entra em sala mais sisudo que de costume. Senta-se, tira da pasta as provas
corrigidas, coloca-as sobre a mesa.
- Senhor Noel de Medeiros Rosa! - chama com voz firme.
Niguém responde.
- Não está presente o senhor Noel? Alguém diz que não. Faltou, talvez esteja
doente.
- É pena...
Faz uma pausa como se para medir as palavras e continua:
- Pois eu gostaria de expor aqui, diante
da turma, mas também na presença do senhor Noel de Medeiros Rosa, tudo o que
penso dele. Trata-se de um desonesto, um moleque, um desqualificado!
Há espanto nos olhos dos alunos, mas Albuquerque Sá não pára por aí. Vale-se de
outros termos para expressar sua indignação, jura que não permitirá que Noel
continue
freqüentando suas aulas, não o acha sequer merecedor de estar num colégio como o
São Bento. Chama à sua mesa Lauro de Abreu Coutinho e César Dacorso Netto.
Entrega
a um a prova de Noel e a outro a apostila em que está o ponto sobre o teodolito.
Pede que leiam em voz alta, cada um de uma vez. As duas são exatamente iguais,
vírgula
por vírgula. Até os desenhos parecem copiados um por cima do outro.
- Seu Noel colou. Sim, colou vergonhosamente! Hei de fazê-lo pagar por essa
indignidade. Na minha sala, não entra mais!
No dia seguinte, assim que começa a subir a ladeira, Noel encontra os colegas à
sua espera. Contam-lhe o que houve, a fúria de Albuquerque Sá, suas ameaças. Sem
dizer nada, dá meia-volta. Só reaparece três dias depois, justamente para a
próxima aula de cosmografia. Ao vê-lo sentado numa das carteiras da frente, o
coronel
não faz rodeios:
- Foi bom o senhor ter vindo, seu Noel, para que eu possa repetir na sua
presença tudo que já disse a seu respeito na aula passada.
E dispara a mesma fala enfezada, o desonesto, o moleque, o desqualificado e tudo
mais. Manda que Noel saia imediatamente de sala.
- Mas coronel...
- Assunto encerrado!
- Não é justo, coronel. Não se condena uma pessoa sem lhe dar o direito de
defesa. Logo o senhor, sempre do lado do certo.
Albuquerque Sá concorda em ouvir o que o aluno tem a dizer em sua defesa. A
explicação de Noel é simples: sabia a apostila de cor. Perdeu dias e dias
enfiando na
cabeça cada palavra, cada traço de desenho sobre o teodolito. O coronel não
acredita. Noel jura que é verdade.
- Muito bem. Pois sente-se aíe faça aprova de novo. E basta que me ponha uma
vírgula fora do lugar que eu o expulso de sala!
Em menos de quinze minutos a nova prova está feita. Como a anterior, igualzinha
à apostila. Depois de lê-la, o professor empalidece.
- Santo Deus!
Pede aos alunos que esperem um instante. Não demora muito, retorna acompanhado
do reitor e de outros monges, Piragibe e outros professores. Na frente de todos,
visivelmente
constrangido, diz:
82
-Muito bem... Muito bem... - murmureja o banqueiro. - Mas esta mão foi só para
esquentar o jogo. Ainda não valeu.
- Mas que história é essa? Eu ganhei!
- Não valeu, rapaz. São as regras. Certo de que não há como perder, Noel
não leva o protesto adiante. Concorda com o banqueiro e volta a casar seus cinco
mil réis.
- Ótimo, agora é à vera.
Repete-se a dança das mãos, o homem pára e pergunta:
- E agora, onde está?
-Debaixo da sua unha-responde Noel.
- O que é isso, rapaz? - encabula-se o banqueiro, olhando para os lados. - Está
querendo arranjar sarrabulho?
- Está debaixo da sua unha!
- O jogo acabou, rapaz.
- Não!Quero os meus cinco e mais cinco. Eu acertei.
- Deixa isso pra lá. O jogo acabou. Enquanto o banqueiro vai recolhendo
seu caixote, suas chapinhas e a esvaecente bolinha preta, Noel é tomado de uma
fúria que apavora Ministrinho.
- Ladrão! Seu filho da puta ladrão!
- Vamos embora, Noel- diz o amigo puxando-o pelo braço.
- Só quando este ladrão me pagar... - e sem esperar resposta, a raiva levando-o
a perder a cabeça, faz a palma da mão estalar no rosto do banqueiro, que por
pouco
não vai ao Chão.
- Vamos embora, Noel!
O outro, um mulato maciço, mal-encarado, mãos enormes, avança para seu agressor
aos socos e pontapés. Noel cai, o banqueiro salta sobre ele com fúria ainda
maior.
Depois, some na direção da Praça Mauá.
- Você está bem, Noel?- indaga Ministrinho tentando levantá-lo.
Uma multidão forma-se em volta dos dois. Noel ergue-se com dificuldade. Vaí
caminhando lentamente para o ponto de bonde, os curiosos observando seu jeito
meio combalido,
a farda do Tiro de Guerra 2 amarrotada e suja. Um jovem soldado vencido. Um
garoto que acaba de sobreviver à primeira grande surra de sua vida.
O fim do ano se aproxima. Noel, comparecendo perante junta formada pelo capitão
Euclydes Telles Pires e os primeiros-tenentes Carlos Coelho Cintra e Francisco
Xavier
da Graça, é aprovado e obtém sua carteira de reservista. Antes disso, porém, os
rumos do barco da família mudam mais uma vez ao sopro de ventos maus.
Numa sexta-feira, 12 de outubro de 1928, morre vó Rita. Serenamente, o coração
de quase setenta anos, cansado e enfraquecido desde a partida de Bella, parando
de
repente. Eduardinho volta para o enterro. Carmem também. Um e outro percebem o
quanto Neca se tornou estranho, assistem a algumas discussões entre ele e
Martha,
ficam com pena da irmã. Sabem das dificuldades financeiras que ela enfrenta, o
marido ainda sonhando com barcos e virando as costas para bons empregos. É de
Eduardinho
a decisão de que se mudem de novo para o chalé, incumbindo Neca de realizar ali
algumas obras. O bangalô será alugado, o dinheiro indo para as mãos de Martha.
Vai
precisar cada vez mais, o marido desempregado, as despesas aumentando, o filho
mais velho prestes a acabar os preparatórios e a entrar para a Faculdade de
Medicina
do Rio de Janeiro. Assim será feito. Para o chalé, onde já moraram doze, voltam
agora apenas quatro.
É dezembro. Enquanto nove de seus colegas de turma concluem o curso seriado como
bacharéis em ciências e letras, habilitados portanto a fazerem vestibular para
qualquer
escola superior do país, Noel constata ter sido absolutamente inútil optar,
meses atrás, pelo antigo sistema. A situação é crítica. Tão crítica que, exames
acumulados,
já não lhe será possível bacharelar-se neste 1928. Livra-se de história natural,
mas não de inglês e história do Brasil. Por algum tempo ainda, a cada março e
dezembro,
terá de
apresentar-se às bancas do Pedro II para
85
desvencilhar-se das matérias que ainda deve até completar o ginasial (ver boxe
Bacharel por decreto).
Em casa, a explosão de Neca. Com Noel e com Hélio, que nas provas do terceiro
para o quarto ano derrapou na álgebra. Como é possível? Enquanto ele leva a vida
a
sério, empenhado num invento que há de torná-lo famoso (e de
fazer a família navegar num mar de dinheiro), os filhos vadiam nos estudos. Que
falta de consciência ! Não pode tolerar tamanha irresponsabilidade. É preciso
castigá-los.
Severamente. Daí a decisão de não os deixar sair de casa até as próximas provas,
em março. Nada de passeios, namoradas, serenatas. Carnaval? É bom que nem pensem
nisso.)3)!
Noel volta a culpar Piragibe por seu fracasso. É verdade que o professor já não
faz parte das bancas que o examinam. Mas, explica Noel, tem muitos amigos no
Pedro
II e
pediu-lhes que continuassem a espremê-lo. É mesmo vingativo o "urso de membros
atrofiados". Martha acredita. Escreve para Carmem informando-a de tudo, as
reprovações
dos meninos, o castigo imposto por Neca, o ambiente em casa. Diz que já não
discute com o marido. É inútil. Hoje, quando ele fala, reclama, zanga, sonha,
ela prefere
se calar. Mas tem pena dos filhos, tão moços, tão oprimidos. Carmem, também
penalizada, escreve ao cunhado em termos veementes. Implora que não prenda os
sobrinhos,
que os deixe sair ao menos no carnaval. "Em nome dos meus três filhos",
acrescenta. Pela mesma época, recebe de Bica de Pedra uma carta em que
Eduardinho lhe pede
opinião sobre outra carta, escrita a ele por Neca. Manda-a anexada à sua,
suplicando-lhe reserva. Toda essa correspondência, trocada nos primeiros dias de
1929,
vai mostrar que os três irmãos, embora distantes, buscam solucionar juntos uma
crise familiar, por enquanto imprecisa, mas que o tempo acabará agravando de
forma
irreversível.
Nesta troca de cartas, nenhuma será tão abrangente, tão lúcida, tão
esclarecedora quanto a que Carmem mandará em resposta a Eduardinho, datada de 16
de fevereiro.
Primeiro, atendendo ao pedido do irmão para que opine sobre o que Neca lhe
escrevera, é sucinta: "Ele julga dizer muito, dizer tudo, e no entanto quase
nada diz."
Prefere alongar-se nos comentários à carta da irmã, que ela acredita carecer de
muita ajuda:
"Não é, compreenda-se, o auxílio pecuniário que ora precisamos dar-lhe e sim o
moral, o conforto, alguma paz de espírito. Não haverá um meio de afastá-lo ao
menos
temporariamente de junto dela, para que a vida tenha uma feição mais calma? Ele
está entregue à idéia dos barcos e nós vemos naquilo uma utopia. Não é, não pode
mesmo ser uma coisa vantajosa, principalmente para a posição dele, precisando de
manter a família, precisando prestar mais atenção à pobre Martha, que se está
exaurindo,
não no trabalho porque está habituada, não o temendo ou evitando, mas nesse
desassossego enorme em que está vivendo. É possível trabalhar assim? Ele não lhe
dá tréguas.
Eu vi, assisti a muita coisa. Ela está bem modificada e não alterca mais. A cada
injustiça, a cada irreflexão dele, chora e chora muito. Eu calculo o que sofre a
nossa pobre Martha sem o carinho da inigualável e bondosa e insubstituível
Bella. Sem o carinho de mamãe, que era o seu consolo ultimamente. Responda-me
com franqueza:
não se vê uma possibilidade dele fazer aí algum trabalho
numa fazenda dessas?"
Ou então, sugere ainda Carmem, Eduardinho poderia escrever a Neca dizendo que
vai ao Rio em março e perguntando se os reparos no chalé já estão concluídos.
Isso
talvez fizesse com que ele se ocupasse mais em tais reparos, em vez de
apoquentar tanto a pobre Martha. Carmem refere-se a outras cartas da irmã, todas
no mesmo
teor, queixando-se do marido, de seus incendimentos, das economias que consome
nos malditos barcos, ou então nos livros que adquire às dúzias. Faz compras a
crédito,
voltam a bater em sua porta os prestamistas. Martha sente-se envergonhada. E
preocupada com o relacionamento de Neca com os filhos:
"Ela se queixou" - prossegue Carmem a Eduardinho - "que os meninos estavam
castigados demais e injustamente, pois Hélio fez todos os exames e só tem de
repetir o
de álgebra para entrar no quarto ano. Noel perdeu história do Brasil e inglês,
mas ficou provado que não foi culpado nesse fracasso."
Lúcida, Carmem fala ao irmão do "estado de exaltação" do cunhado. E num tom
sombriamente profético:
"... eu tenho muito medo que o fim seja terrível... Você sabe e disse há pouco
tempo que ele caminhava a passos largos para um triste fim. E eu só penso
nisso!"
Ventos maus seguem soprando. Para onde levam o barco da família?
na vida. Claro, nem tudo entrou por um ouvido e saiu por outro. Algumas lições
foram aprendidas nas salas de aula. Só que agora parte para outro aprendizado.
Como
ele mesmo confessa ao companheiro Hermenegildo de Barros Filho:
- Quer saber de uma coisa, Ministrinho? A verdadeira escola está lá fora.
NOTAS
1. Nenhum dos quintanistas de 1928 se esqueceria do episódio que terminou com
Albuquerque Sá pedindo desculpas a Noel diante da turma e dos demais
professores.
Os depoimentos só divergem sobre o tema da prova, a maioria dizendo ter sido
mesmo o teodolito, outros o sextante.
2. Hermenegildo de Barros Filho, em entrevista aos autores, recorda a careta de
Noel toda vez que tomava moscatel ordinário, mas garante que o álcool estava
longe
de ser um hábito entre os jovens de dezessete anos que eles eram em 1928.
Bebiam, geralmente, no Mangue e nos jogos de futebol.
89
Capítulo 9
Com a melodia que espalhávamos - eu, Nássara, Alegria, Canuto, Clóvis e outros -
a minha impressão era de que se tornava mais intensa a palpitação longínqua das
estrelas.
entrevista ao Jornal de Rádio
Naquele começo de madrugada, Noel vem pela rua deserta a caminho de casa.
Ele e o violão. Toda a Vila Isabel dorme. Ou quase toda.
Ao vê-lo chegar à esquina de Souza Franco com Theodoro da Silva,
distingue adiante um pequeno grupo. E ouve soar uma voz emocionada:
Este amor tristonho Não devemos relembrar Tantos beijos trocamos Tudo esqueçamos
Tudo morreu...
É o bastante para que desista de dobrar à esquerda, na direção do chalé, e tome
o sentido oposto, aproximando-se do grupo. São quatro homens, todos mais velhos
que
ele. Três tocam violão e o outro continua cantando:
E deixaste em minh'alma Fragmentos de saudade Devolveste a liberdade Oh, sim, a
um coração que sofreu...
Noel espera que chegue ao fim e pergunta:
- Que música é essa?
- Tudo Acabado- responde o cantor. - Um tango-canção do índio,
o Cândido das Neves.
- Pode cantar de novo? Do começo. Quero ver se o acompanho.
Depois da introdução improvisada por Noel, o cantor recomeça:
Este amor tristonho Não devemos relembrar...
Finda a canção, já não são quatro os componentes do grupo. Noel ouve os elogios
dos três violonistas, agradece, se apresenta. Um deles, Vicente Gagliano, é seu
velho
conhecido, um dos muitos que ainda vão encher a boca para lembrar que foram
"professores de Noel" (ensinou-lhe de fato alguma coisa, inclusive uma valsa em
mi menor).
Casado, muitos filhos, mora em frente ao chalé numa casa de porta e janela da
qual só de vez em quando consegue sair para uma reunião como esta. Hoje ele vive
de
um ou outro servicinho que aparece, mas houve época em que ganhava o sustento
vendendo essências, talcos, águas-de-cheiro, sabonetes, daí o apelido de Vicente
Sabonete
que nunca o deixará. Dos três desse grupo, é o único que terá reconhecimento
fora das fronteiras das serestas do bairro.
Ex-tocador de ocarina, pleno domínio da técnica do violão, ainda será citado em
letra de fôrma pelos estudiosos do choro, sendo
apreciado acompanhante e solista de coisas à João Pernambuco e outros cultores
do gênero(1).
O segundo violonista é o Julinho Ferramenta, de dia funcionário da Casa da
Moeda, de noite boêmio devoto para quem uma canção é como uma reza: toca como se
estivesse
ajoelhado diante de um altar. O terceiro, Agenor Eloy Passos, é filho de general
e ele próprio homem de posição, técnico em contabilidade do Ministério da
Agricultura.
Quando sua mão esquerda trabalha no braço do violão, torna-se ainda mais
reluzente o grande anel de grau que carrega no dedo, cheio de pose. Muitos o
chamam de "doutor",
mas aqui, no sereno, ou lá no Boulevard, nos botequins em que se senta para
conversar fiado, cantar e tocar, é simplesmente o Nonô, doutor em violão e nada
mais.
Por último, o cantor:
- Meu nome éjosé Souza Pinto. Alegria, para os amigos.
Não é difícil saber a razão do apelido. José, ou Jota como alguns o chamam, ou
ainda Alegria como o tratam quase todos, é homem de sorriso constante. Adora
cantar,
vive desde menino com jornais de modinha debaixo do braço. É verdade que nem
sempre são alegres os números do seu repertório, como deixou bem claro o tango-
canção
do Índio que acaba de interpretar. Mas quem lhe pôs o apelido na certa não lhe
conhecia o canto triste. E ficou Alegria mesmo.
Ele e Noel gostam logo um do outro. Uma simpatia mútua que, nascendo nesta
noite, ainda se transformará em grande amizade.
- Moro aqui perto, no 130 - diz Noel apontando para o chalé. - Aparece lá em
casa para ouvir umas musicas que ando fazendo.
Alegria vai aparecer. Serã um dos freqüentadores mais assíduos do chalé, desses
que chegam na hora do café da manhã, vão ficando, almoçam, lancham, jantam e só
não
dormem porque, afinal, está justamente no não dormir a diferença entre visitar e
morar. Desde este fim de noite, sob um poste de luz da Theodoro da Silva, serão
não apenas amigos, mas inseparáveis nas serenatas pelas ruas de Vila Isabel.
Ele, Julinho Ferramenta e Nonô. E depois outros, o Clóvis Silva, o Octacílio
Ramalho,
os irmãos Paulo, Mário, João e Manuel Anacleto, o Francisco Martins, o Waldemar
Coroa. Gente de classe média como Noel, mas também muitos batuqueiros que descem
do morro dos Macacos, do Salgueiro, da Mangueira, para pegar no pesado cá
embaixo, e acabam ficando para uma cantoria noturna: Canuto, Puruca, Pixó, Duas
Covas,
Maciste, Ildebrando, Fortunato Melancia, Papo de Angu, Aristeu, Osso.
Vila Isabel é um bairro curiosamente
musical. Curiosamente na medida em que jurisdições vizinhas, aqui pertinho, como
a Tijuca, o Maracanã, o Engenho Novo, também parecem ter tudo para embeberem de
ritmos e melodias as suas noites e no entanto não possuem metade da alma sonora
de Vila Isabel. É evidente que também há música naqueles bairros. Música e
músicos.
Mas não com a quantidade daqui. E, se se for pensar bem, tampouco com a
qualidade. Os melhores compositores e cantores dos que se encontram pelas ruas
da Tijuca
descem do Salgueiro, dos que circulam pelo Engenho Novo vêm de subúrbios mais
distantes, dos que fazem ponto no Largo do Maracanã vivem num daqueles barracos
que,
do outro lado da linha do trem, colorem de pobreza a paisagem do morro da
Mangueira.
Já aqui em Vila Isabel os seresteiros são quase todos gente do lugar, membros da
"grande família" de que falava vó Rita e de que ainda falam velhos moradores. Os
rapazes que tocam e cantam pelas esquinas, os que improvisam versos e criam
música nos botequins, nasceram, cresceram ou pelo menos residem aqui há muito
tempo.
Como se verá, este bairro de meio de caminho, ilhado entre outros, destina-se a
ser aquilo que um cronista chamará de "celeiro"2. Não apenas de sambas e
sambistas,
mas de partidos, coisas do Norte, choros, canções, boa música popular.
Como explicar esta fertilidade musical de Vila Isabel? Como justificar que
surjam aqui, todos os dias, todas as noites, meninos que tocam violão tão bem,
artistas
que se interessam tanto pelo carnaval, poetas cultos que cedo ou tarde aderirão
ao coro das serenatas. Meninos como Noel, artistas como Antônio Nássara, poetas
cultos
como Orestes Barbosa. Mas estes dois ilustres personagens ainda não entram na
história.
Por enquanto, os contatos de Noel são mesmo com os seresteiros e um ou outro
batuqueiro. Gente que gosta de cantar por cantar, de tocar pelo prazer de
extrair novos
sons do violão. Como Clóvis Silva, o Clóvis Miguelão, que vive acompanhando Noel
nas idas a A Guitarra de Prata (o hábito adquirido nos tempos de São Bento, ele,
Hélio e Glauco Vianna indo ver e ouvir Quincas Laranjeiras, João Pernambuco e
outros, não foi abandonado). Noel e Clóvis ficam ali, às vezes por horas,
aprendendo
com os mestres do instrumento. Pena que a necessidade de sobrevivência obrigue o
Miguelão a passar mais da metade do dia trabalhando como policial (ainda vai ser
um dos guardas de segurança do futuro prefeito do Distrito Federal, Pedro
Ernesto Baptista). O violão será esquecido. A mesma coisa com o Octacílio,
mecânico da
Light. Quem o vê exibindo os músculos, gabando-se de ser
94
Hélio não anda, raramente andará pelos mesmos atalhos do irmão. Não só pelas
idades, um com dezoito, outro com quatorze, mas principalmente porque as
diferenças
de gostos, hábitos e temperamentos, já nítidas na infância, se acentuaram com o
tempo. Hélio não pára no Ponto de 100 Réis, não é de se misturar aos cantores
dos
botequins e das madrugadas. Violão bom para isso ele tem, caminhando que está
para ser ainda melhor que Noel como solista e acompanhante. O que o afasta das
noitadas
é o seu jeito mais fechado, seu retraimento natural, o interesse pelos livros,
curiosidade em saber sempre mais sobre tudo. Nesse passo, sobra-lhe pouco tempo
para
prazeres boêmios. Já vimos que nunca foi aluno brilhante, agora mesmo recorrendo
a provas no Pedro II para livrar-se da álgebra do terceiro ano, já sabendo
95
portanto que também não conseguirá formar-se com sua turma no São Bento(4). Mas
nem por isso deixa de ser um garoto excepcionalmente inteligente.
-Puxa, o Hélio sabe de tudo!-as pessoas costumam exclamar.
Surpreende a todos com seus conhecimentos de literatura francesa, astronomia,
zoologia, vida dos santos, generalidades e tudo que diga respeito às culturas
esotéricas.
Os amigos ficam horas a ouvi-lo discorrer sobre todos esses temas e a falar da
morte, da reencarnação.
- Puxa, o Hélio sabe de tudo... Mas como é esquisito!
A fama de gente esquisita vai acompanhar para sempre os moradores do chalé. Uma
família que desde o enforcamento de Bellarmina o pessoal do bairro acha um tanto
dada a estranhezas. A começar pelos meninos, Hélio a falar de almas do outro
mundo, Noel a passar longo tempo sob a goiabeira, violão no peito, cantando:
Pode chover
Pode até haver tempestade
Que eu lá vou ter
Com toda boa vontade...
- Coitado! Tão moço...
E o que dizer de seu Medeiros, homem que passou tantos anos afastado da família
para pagar uma dívida que só existia em sua cabeça e que hoje se endivida para
consumar
inventos que também só existem em sua cabeça? Não é menos esquisito aos olhos
dos vizinhos, embora um esquisito simpático, educado, inofensivo. Mas a família
sabe
o quanto continua a mudar. Já foi um bom pai, um marido generoso, responsável.
Martha lembra-se daqueles tempos com saudades. Depois, os acessos de febre
fazendo-o
correr pela casa imitando índios, novas idas para o interior, aquela última
volta após o suicídio da mãe, mais mudado que nunca, castigando os filhos,
apoquentando
a mulher, delirando projetos.
E vai mudar ainda mais. Desde que voltou de Bica de Pedra, há mais de um ano,
não trabalha. Sonha, apenas. Os que o vêem como um esquisito simpático,
inofensivo,
não podem mesmo deixar de compará-lo a um dom Quixote, sempre empenhado em
batalhas enganosas, sempre investindo contra inimigos imaginários. É mais ou
menos este
o caso dos barcos, a tal idéia que o persegue desde que voltou, outro, de Bica
de Pedra. Seu Medeiros acaba de tornar-se amigo e sócio de Aníbal Teixeira
Ribeiro,
português que mora com a mulher e cinco filhos quase em frente ao chalé.
Convenceu-o de que é possível fazer fortuna tirando patente das invenções e
descobertas
que tem em mente. Não
vê Aníbal aonde chegaram Nobel com a dinamite, Graham Bell com o telefone,
Edison com a lâmpada elétrica? E o que dizer do nosso Santos Dumont?
Os barcos na verdade não são barcos, mas uma espécie de bicicleta aquática que
os dois constróem com as próprias mãos, a partir de um desenho do "engenheiro"
Neca.
São três cilindros de madeira leve, unidos pelas extremidades de modo a formarem
uma base triangular. Dessa base partem hastes metálicas sobre as quais foi
ajustado
um selim de bicicleta. Na parte inferior, também presos aos cilindros de
madeira, dois pedais. E nada mais. Construído esse protótipo, vão Aníbal e seu
Medeiros
testá-lo no açude da Fábrica Confiança Industrial, na Rua Piza de Almeida, com a
autorização de seu diretor, Jerônimo José Ferreira Braga Netto. Pedem-lhe
emprestado
também um motor de barco para adaptarem à base triangular, mas não chegam a usá-
lo. A experiência não é de todo fracassada. Aperfeiçoada aqui e ali, até que a
idéia
não é má. Mas logo seus inventores e possíveis fabricantes ficam sabendo que
jamais poderão patenteá-la. Por um simples motivo: já o fizeram antes deles. Há
muito
tempo os americanos conhecem, fabricam e usam em suas praias e lagos os
engenhosos water cycles. Mais uma frustração para seu Medeiros.
As novas mudanças partem justamente deste novo tropeço. Quando a rapaziada do
Ponto de 100 Réis sabe deste e de outros esforços de Aníbal e Medeiros no campo
das
invenções, não perde oportunidade de fazer de tudo uma grande, impagável
galhofa. Uns passam pelo português e, em tom sério, perguntam:
- Seu Aníbal, e aquela máquina de vincar meias?
Outros:
- É verdade que o senhor inventou um palito de três pontas?
Outros mais:
- E como vai o despertador silencioso? Com seu Medeiros há mais respeito. Nada
de piadas ou provocações. Apenas uma pergunta fingidamente interessada:
- Qual é a próxima descoberta, seu Medeiros?
Mas ele sabe que o projeto da bicicleta aquática, ao desmoronar, fez um barulho
tão grande que o arrancou de seus sonhos. De volta à realidade, perde muito da
autoconfiança,
da coragem, da soberba. E também daquilo que o convertera num homem duro,
intratável, que levava desassossego à vida da mulher e dos filhos.
Fecha-se de novo. Recupera a humildade. E acabará aceitando o modesto emprego
que o compadre Graça Mello lhe conseguirá na
96
neste 1929), oferecendo suas mesas para quem quer que seja, o botequim realmente
serve e integra a comunidade. Para os fregueses assíduos, homens como o Carvalho
e o Martinez jamais dizem "não posso". Eles sempre podem. Qualquer coisa, desde
pregar mentiras salvadoras (à namorada, à mulher, ao credor ou à polícia) até
dar
e receber mensagens, funcionar como eficiente agência de recados.
É através do Carvalho, por exemplo, que Noel sabe de amigos ou simples
conhecidos que o querem ver à noite, em tal hora e lugar, para uma serenata de
esquina, uma
festa em casa de família, um encontro em que se faça necessário o som de seu
violão. Esse tipo de recado é cada vez mais comum, Noel sendo tão ou mais
requisitado
que Julinho Ferramenta, Nonô, violonistas mais velhos e experientes, com os
quais, diga-se, continua aprendendo bastante desde aquele encontro na Theodoro
da Silva.
Humor e repertório do violonista Noel Rosa variam de situação para situação. Se
são muitos a ouvi-lo, como ocorre em aniversários, batizados, casamentos,
limita-se
a tocar o que lhe pedem, Abismo de Rosas, uma canção, sambas, valsas, choro(6),
nada de seu. Mas se a reunião é mais íntima e informal, não mais do que cinco ou
seis amigos em volta de um poste e luz, um banco de praça, ou sob a janela de
uma moça bonita,
sente-se mais à vontade para criar. Nessas horas, tanto pode ser romântico como
divertido, fazer canções a Cândido das Neves como paródias a Noel mesmo. Quase
tudo
que produz por esta época - meros esboços de um jovem de dezoito anos que ainda
não se compenetrou inteiramente de sua condição de compositor popular - será
esquecido.
As canções, as paródias e as peças instrumentais, um ou outro amigo se lembrará
desta ou daquela. Ainda não perdeu a mania de brincar com o Hino Nacional, que
gosta
de solar a seu modo, mudando-lhe o andamento, fazendo sobre a melodia
improvisações as mais curiosas. Se não é o Hino Nacional, é La Marsellaise.
Entre amigos mais
chegados e ex-colegas de São Bento que aparecem para vê-lo, ou para visitar o
Manuel Jansen Muller na Rua Torres Homem, gosta de mostrar suas "últimas
criações":
- Ouçam esta. Chama-se Valsa dos Peidos.
E começa a solar uma bonita melodia, aqui e ali acrescida de um som
característico produzido sobre o bordão:
- É o peido grosso. Ou sobre a prima:
- É o peido fino.
Heitor Lino, outro ex-aluno do São Bento, nunca esquecerá esta inusitada valsa
que ouve Noel solar na esquina do Boulevard com Silva Pinto, na presença do
Farias,
pintor responsável pelos cartazes a mão que anunciam os filmes e espetáculos do
Cine Vila Isabel, inaugurado não faz muito tempo a alguns passos da Praça 7.
Primeiro,
Noel os convida:
- Vamos fazer umas farras por aí? Heitor Lino, rapaz de vida sem ousadias,
diz que não, já é tarde, hora de dormir, amanhã é dia de batente. Noel canta e
toca mais algumas músicas, bisa o solo da tal valsa e some na noite com o
Farias.
Quando não é o Farias, é Sylvio Pinto, o Seringa. Õu então o Waldemar Coroa, que
além de bom companheiro de farra, desses sempre dispostos a esticar um pouco
mais
uma noitada, é outro excelente seresteiro. Se não o melhor dos que freqüentam o
botequim do Carvalho, ao menos o mais compenetrado no seu jeito de levar a mão
ao
peito, fechar os olhos e, compungido, soltar a voz:
Eu tenho um sentimento profundo
Da primeira jovem que amei no mundo...5
E quando não é o Farias, o Seringa ou o Coroa, tanto podem ser os crioulos de
morro, Canuto, Puruca, Telefone, Andaraí, pois Noel não é de fazer diferença
entre
brancos e negros, pobres e menos pobres, como pode ser também um dos irmãos
Araújo:
- Vamos ao Mangue, Arnaldo?
Esses convites de Noel nem sempre encontram Arnaldo financeiramente prevenido.
Ele e o irmão Antônio trabalham com o pai alfaiate, estão aprendendo o ofício,
não
ganham muito. Mas Noel não se abala:
- E quem precisa de dinheiro para ir ao Mangue?
Arnaldo e Noel tomam o Lins de Vasconcellos, saltam na Rua Senador Euzébio,
atravessam o canal para a Visconde de Itaúna e dobram numa das transversais, a
Comandante
Maurity, a Carmo Netto, a Laura Araújo. Percorrem as casas, entram nos botequins
iluminados onde se ouve música tocada por pequenos conjuntos, violões, violino,
clarinete. Música triste que as mulheres de suas janelas preferem não escutar.
Noel talvez peça um violão emprestado, talvez se sente para uma cerveja, uma
conversa,
uma canção. Mas não é para isso que vieram aqui.
- Quer dizer que você esta mesmo duro? - pergunta a Arnaldo.
- Eu não te disse?
- Não faz mal.
Os dois circulam por Amoroso Lima, Corrêa Vasquez, Júlio do Carmo, Nery
Pinheiro, Benedicto Hipólito, cidadãos eminentes que
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emprestam seus nomes às ruas do pecado. Param defronte de uma casa. Da janela,
uma mulher os chama com as mesmas palavras e gestos de todas as outras.
- Espera aqui que eu vou lá dentro te arranjar uma pequena.
Arnaldo espera. Noel não demora mais que dez minutos. Diz ter nesta casa uma boa
amiga, pessoa desinteressada que eventualmente não lhe cobra nada. Nem a ele,
Noel,
nem a um amigo do peito como Arnaldo. É só entrar. A amiga já o está esperando.
Noel indica o quarto.
- Pode ir. É uma ótima pequena. é muito bonita.
Arnaldo vai, Noel fica aguardando no portão da casa, olhando o movimento. Homens
bem vestidos, marinheiros, bêbados, estudantes, cafetões, policiais à paisana,
mendigos,
garotos fazendo força para aparentar mais idade do que têm, batedores de
carteira, atravessadores, músicos, poetas, viciados, gente com sede de sexo. É
estranhamente
variada a população flutuante do Mangue. Mais que a da Lapa, onde os sem-
dinheiro não têm vez. Por qualquer vinte, trinta mil réis, pode-se comprar por
aqui alguns
minutos de mulher. Na Lapa, só com carteira bem mais provida. Ou então com a
mesma boa conversa que permite a Noel cavar companhia para um amigo. Menos de
quinze
minutos depois de ter entrado no quarto, Arnaldo volta.
- Tão rápido?
- Pombas, Noel! Por que não me avisou?
- Avisar o quê?
- Apequena, Noel... Apequena!
- O que que há de errado com ela?É uma grande mulher.
- Talvez seja...
- Então? Está reclamando de quê?
- Você não me avisou que... ela não tem os dois braços.
Noel olha para o amigo, não se sensibiliza muito com seu espanto, puxa-o para
irem embora. Já no ponto de bonde, como se não entendendo bem o amuo do outro,
indaga:
- Ora, Arnaldo, que diferença iam fazer dois braços?
De certa forma, não é apenas topograficamente que o Boulevard divide Vila Isabel
em duas. Em muitos aspectos, são consideravelmente diversos os dois lados
repartidos
pela avenida. O direito de quem vai para a Praça 7 é mais novo, de casas recém-
construídas, mais valorizadas e, por conseguinte, habitadas por famílias de mais
posses.
O esquerdo, mais antigo, está muito ligado à vida das fábricas, a Confiança
principalmente, mas também outras, grandes e pequenas indústrias montadas no
eixo da
Rua Maxwell até os limites do Andaraí. Lógico, também há operários de fábrica e
gente pobre morando do lado direito. E casas boas, pessoas abastadas, do
esquerdo,
inclusive na Teodoro da Silva, perto do chalé. Mas Vila Isabel, como todo bairro
que cresce, não pode deixar de exibir contrastes entre velhos moradores, mais
pobres,
e novos, endinheirados.
O Boulevard é linha mais ou menos neutra. E nele, mais neutra ainda, a
instituição do botequim. Não fosse isso, Noel e seus companheiros - Alegria e
todos os outros
- não conviveriam ao mesmo tempo, em torno das mesas do Carvalho, com Canuto,
Osso e doutores de anel no dedo, rapazes de famílias tradicionais como os
Boamortes,
os Barros Nunes, os Baldessarinis, os Farias Lima. Não "fosse isso, também,
aqueles humildes negros nascidos e criados no morro não estariam trazendo para
esta mesa
sua valiosa contribuição à música que começa a florescer em Vila Isabel. O
samba, principalmente. Como se disse, o botequim a todos integra.
Mas, nesses primeiros dias de 1929, os freqüentadores do Carvalho têm clara
preferência pelas canções, pelas modinhas, por um tipo de música que lhes
permite navegar
em ondas de sentimentalismo:
Só é feliz quem não se diz
Saber vibrar os beijos flébios do luar...
Cândido das Neves, Freyre Júnior, Uriel Lourival, estes são os autores
prediletos dos seresteiros de Vila Isabel. E, claro, Catulo da Paixão Cearense,
palavroso
como sempre:
Espúmeos ais que em branca areia
O quieto mar vem derramar
São fontes perenais de ingente amar...
Ou Hermes Fontes, que de vez em quando não fica atrás:
Vento, esfolhais! Oh, Sol, crestais
Da rosa d'alva as frias pétalas de gelo.
Como todo seresteiro que se preza, estes, de Vila Isabel, descendem em linha
direta dos poetas românticos do século passado. Suas letras são rebuscadas,
cheias de
afetação. As amadas são comparadas a flores, seus dentes a pérolas, seus olhos a
lagos e mares, seus cabelos a seda. Tudo são imagens, pompa poética. De
qualidade:
Como Deus é inspirado! Inventou para o pecado Estas noites de luar...
99
Ou não:
Prossegue embora em flóreas sendas, [sempre ovante De glórias cheia e no teu
sólio triunfante...
O botequim é mesmo tudo, a segunda casa, o escritório, o clube, o centro
comunitário, o balcão de anúncios. E o palco onde estes jovens fazem sua música.
Noel entre
eles, compenetrando-se na hora de acompanhar Alegria, Miguelão, Coroa, numa
canção do índio, divertin-do-se com sua escatológica valsa, fazendo os outros
rirem com
suas paródias. Muitas chegarão a ficar conhecidas além dos limites de Vila
Isabel. Como esta em que mais uma vez recorre à melodia de A Casinha da Colina:
Você sabe de onde eu venho? De uma latrina que eu tenho Lá no fundo do quintal.
Tem um buraco na porta, Do buraco vê-se a horta, E da horta o repolhal.
Seja como for, tudo é música no botequim do Carvalho. Sobretudo música
romântica, seresta. Por isso, todas as noites, depois das onze, quem passa pela
esquina de
Souza Franco com o Boulevard não pode deixar de ser tocado pelos sons que vêm lá
de dentro. Pára, fica ouvindo, gosta. Meia-noite, a mesa onde Noel e seus
companheiros
se sentam vai sendo cercada por curiosos, por gente que não se importa se a
versalhada é boa ou má poesia. O que vale é a voz de Alegria, o violão que o
acompanha.
Meia-noite e meia, o botequim está cheio. Um dos fregueses aproveita a pausa
para ordenar ao Carvalho:
- Duas cervejas para os rapazes. Outro, lá da porta:
- Mais duas.
Há os que preferem municiar de sólidos estes cantores da noite:
- Carvalho, serve para a turma umas fatias de presunto.
Assim a noite avança. A cada canção, ouvida sempre em silêncio, Noel e os outros
são "pagos" pela platéia que vê neles verdadeiros artistas. Cervejas, fatias de
frios e queijos, às vezes uma sopa. Se a seresta é boa de verdade, ceia completa
para todos, por conta de um rateio feito ali mesmo, na porta do botequim.
Estas serenatas - Noel ainda vai admitir - aumentam a sensação de importância
que já hhavia experimentado, anos atrás, no dia em que, ao trocar o bandolim
pelo violão,
começou a descobrir que sua música tinha o raro poder de encantar as pessoas.
NOTAS
1. Diz Alexandre Gonçalves Pinto em O Choro (página 129): "Vicente, conheci
muito menino quando nada tocava, ficando bem admirado quando num choro escutei o
com
seu mavioso violão não só acompanhando admiravelmente como também fazendo solos
de arrebatar."
2. É Araújo Lins quem escreve: "Vila Isabel do samba ainda não teve o seu
cronista. E mesmo a música ainda não disse a verdade sobre o celeiro." Em A
Nação de 19
de janeiro de 1936.
3. Diário de Notícias, Rio, 15 de fevereiro de 1931.
4. A exemplo de Noel, Hélio recorreu aos exames no Pedro II para se bacharelar.
Também como o irmão, só'conseguiria em fins de 1930, graças ao Decreto-Lei
19.404.
5. Era mesmo Waldemar Coroa - e não Canuto, como diz Almirante em No Tempo de
Noel Rosa, segunda edição (página 68) - quem cantava assim tão compungido. É o
próprio
Noel quem esclarece em entrevista ao Diário de Notícias de 15 de fevereiro de
1931: "O Waldemar Coroa tem um dom especial para cantar sambas. Às vezes, na
maior
orgia, ele se afasta para um canto, põe a mão no peito e canta: 'Eu tenho um
sentimento profundo da primeira jovem que amei no mundo'."
100
UM BANDO DE PÁSSAROS
Capítulo 10
Menos Pelos versos chulos, criados Para melodias alheias, mas pelo que sabe
fazer ao violão, acompanhante de cantores da madrugada, Noel Rosa torna-se
conhecido.
Seu nome já corre pelo bairro: "Só tem dezoito anos. E que violão!" Triplicam os
recados no Carvalho, repetem-se as solicitações para que atue em festas e
serenatas.
Até que um dia é procurado por um grupo de jovens como ele:
- Somos do Flor do Tempo.
O nome não lhe diz muito. Mesmo depois que os rapazes explicam tratar-se de um
conjunto musical por eles formado há três anos para exibições em residências,
espetáculos
amadoristas e festivais beneficentes. O conjunto começou exclusivamente com
alunos do Colégio Batista, da Rua José Higino, na Tijuca, mas depois foi
crescendo até
ter gente - moças e rapazes - de toda parte. Entre os fundadores estavam os
filhos de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt, firma que funciona na Rua
Chile(1), vendendo
e alugando máquinas registradoras importadas da Inglaterra. Por sinal, da
residência dos Dales na Rua do Trapicheiro(2), é o nome poético com que os
rapazes batizaram
o conjunto: Flor do Tempo.
- Mas crescemos demais - explicam.
Com efeito, o Flor do Tempo cresceu tanto, violonistas, ritmistas, cantores, que
quase atinge as dimensões de uma grande orquestra. E isso é mau. Mesmo sendo
extremamente
seletivo o espírito do conjunto (Dale é homem rico, reside em confortável e
luxuosa casa de dois andares, varanda, jardins, freqüentada pela alta classe
média tijucana),
não foi possível evitar que o grupo se hipertrofiasse, nele coexistindo, hoje,
bons e maus músicos, bons e maus cantores. Noel ouve as explicações.
-Estamos querendo organizar novo conjunto.
Os jovens que procuram Noel estão convencidos de que algo de muito importante
começa a acontecer na música popular: o disco. É verdade que desde 1902 fazem-se
gravações
no Brasil. E que nos últimos anos cresceram bastante a indústria e o comércio
fonográficos no Rio de Janeiro. Mas parece já ir longe o tempo de Bahiano, Mário
Pinheiro,
Cadete, Eduardo das Neves e outros pioneiros da Casa Edison. Agora, os melhores
artistas do palco e do picadeiro vão invadindo com suas vozes as privilegiadas
residências
que possuem um aparelho capaz de reproduzir os sons gravados nestas delicadas
chapas pretas: Vicente Celestino, Zaíra de Oliveira, Patrício Teixeira, Aracy
Cortes,
Gastão Formenti. E também Francisco Alves, cujo canto
101
inaugurou há dois anos o sistema de gravações elétricas entre nós. Seu cartaz,
graças precisamente ao disco, não pára de crescer.
Neste 1929, vai subir para cinco o número de gravadoras em atividade no
Brasil(3). E uma delas, a Parlophon, subsidiária da Odeon, acaba de oferecer a
estes rapazes
a oportunidade de fazerem um disco. Por isso eles estão aqui, conversando com
Noel. Repetem que algo de muito importante realmente começa a acontecer na
música popular.
As gravadoras, engatinhando ainda, de estrutura e organização precárias, com
dificuldades mesmo para formarem os seus casts, estão recorrendo a cantores,
instrumentistas
e grupos amadores como o Flor do Tempo para enriquecerem seus ainda modestos
catálogos de lançamentos. Rapazes de classe média - muito mais interessados na
novidade
do disco do que nas incertas vantagens financeiras que podem obter da música -
passam a ser vistos nos estúdios, cantando, tocando. São "artistas" baratos, se
é
que custam alguma coisa. Eles próprios fazem rigorosamente tudo, compõem, cuidam
dos arranjos, ensaiam, cantam e se acompanham, de modo que para as gravadoras, a
não ser no que diz respeito aos gastos materiais (estúdio, eletricidade, cera,
acetato), um disco sai praticamente de graça. Se acontecer de fazer sucesso,
tudo
é ganho. Se não, pouco se perde.
É por esta porta espertamente aberta pelas gravadoras aos jovens da classe média
que os rapazes do Flor do Tempo pretendem entrar. Só que já não se chamarão
Flor do Tempo. O conjunto original, na verdade, começa a se desintegrar. Vários
de seus componentes já tocam e cantam muito além da varanda dos Dales, em outras
casas de família, clubes, teatrinhos, em todo lugar. Foi numa dessas
apresentações em clube que Carlos Lopes Campeão, diretor da Odeon, ouviu-os,
fazendo-lhes logo
um convite para gravar. A partir desse momento, o Flor do Tempo passou a ter
seus dias contados. De tal modo que, depois de saldados alguns compromissos já
assumidos
(uma excursão a Vitória, em fins de junho, e um espetáculo em homenagem ao
Rotary Club do Brasil, no Cassino beira-Mar, a 12 de julho), o conjunto deixará
de existir.
E justamente por ter crescido demais. Como colocar tanta gente, cantores,
violonistas, ritmistas, no apertado estúdio da Odeon, na cúpula do Teatro
Phoenix, na Rua
Almirante Barroso? Se há necessidade de se reduzir o conjunto para apenas quatro
ou cinco componentes, como decidir quem vai ficar de fora? Em razão disso, de
ser
preciso reduzir seu contingente para atender ao sedutor convite da Odeon (e do
embaraço que seria cortar moças e rapazes que estavam entre seus fundadores), o
Flor
do Tempo sai de cena para que em seu lugar surja novo conjunto. Uma seleção
natural - apenas os mais talentosos sobrevivendo - vai transformar a multidão
que alegrava
as reuniões dos Dales em não mais do que quatro rapazes. Quem são eles? Noel
conhece-os quase todos. Senão de perto, pelo menos de vista, de encontros
ocasionais
pelas esquinas de Vila Isabel.
Henrique Foréis Domingues, o Almirante, tem 21 anos. Cantor, compositor,
letrista, ritmista, é também um líder nato. Já o era no Flor do Tempo, que
passou a integrar
numa época em que dele só faziam parte alunos do Colégio Batista. Almirante, que
nunca estudou lá, foi o primeiro a quebrar a regra, graças não só às suas
virtudes
como pandeirista mas também à personalidade firme, impositiva, que sempre lhe
dará certa ascendência sobre os outros4. Uma liderança que jamais perderá.
Especialmente
no novo conjunto que vai surgir, cujas atividades serão rigorosamente regidas
por suas vontades: caberá invariavelmente a ele escolher o repertório, indicar o
solista,
decidir que músicos de fora ajudarão no acompanhamento, dizer em que dia e hora
será feita esta ou aquela apresentação em público, neste ou naquele lugar.
Opinará
sobre os arranjos, aprovará ou não as músicas e letras que os companheiros
trarão para seu julgamento. Será também o divulgador do conjunto. Um
eficientíssimo divulgador.
Furão, vivo, cheio de idéias, sempre descobrindo um modo de promover-se e aos
colegas, vai se dever a ele a maior parte da notoriedade que o novo grupo venha
a conseguir.
Noel conheceu-o há alguns anos, quando Almirante tentou, sem êxito, comprar-lhe
um velho projetor manual de cinema. Depois disso, houve muitos encontros
ligeiros
pelas ruas do bairro, mas nenhuma aproximação maior. Afinal, enquanto Almirante
trabalhava no comércio e, nas horas vagas, entregava-se ao convívio com os
meninos
ricos do Flor do Tempo, raramente parando nos botequins e esquinas de Vila
Isabel, Noel estudava e fazia de sua rotina escolar uma permanente sucessão de
horas vagas;
e enquanto Almirante levava vida pacata, metódica, Noel desde cedo seguia sua
vocação boêmia. Natural, portanto, que não houvesse entre eles maior
aproximação.
"Uma lenda do Norte do Brasil nos conta que o canto dos tangarás é tão mavioso,
tão bonito, que os índios embrenham-se pelas matas atrás desse gorjeio encantado
e por lá ficam semanas inteiras distraídos pelos verdadeiros concertos que esses
pássaros dão no seio da natureza virgem. Os tangarás se reúnem em bandos de
cinco
e enquanto um deles canta e marca, por assim dizer, o compasso, os demais
respondem em coro e saltitam como se dançassem no ritmo da música. E a lenda nos
diz ainda
que enquanto os tangarás cantam os outros pássaros calam, fazendo-se o mais
respeitoso silêncio na mata.
Daí veio a idéia de um amador que, sob o pseudônimo de Almirante, vem obtendo
através dos discos um sucesso cada vez mais acentuado com o conjunto típico que
tem
o nome dos pássaros lendários. Trata-se de Almirante e seu Bando de Tangarás:
quem não os conhece?
O intuito do bando, composto exclusivamente de amadores, todos empregados em
várias profissões, estudantes ou doutorandos, é levar aos discos as músicas
interessantes
do folclore brasileiro."
Phono-Arte
30 de setembro de 1930
Também não quer ter nome de pássaro. Álvaro de Miranda Ribeiro já é Alvinho há
muito tempo. Para que mudar? Quanto a Noel, aceita fazer parte do conjunto, mas
rejeita
a idéia de chamar-se de outro modo senão de Noel Rosa mesmo. A vida inteira não
vai querer ser mais do que isso: Noel Rosa. Ainda que venha a tornar-se famoso -
e os locutores de rádio passem a apresentá-lo com os mais escandecidos cognomes,
o Poeta da Vila, o Sócrates, o Bernard Shaw, o Filósofo do Samba - fará sempre
questão
de deixar bem claro que é apenas o Noel Rosa(6).
Portanto, só Braguinha, ou melhor, João de Barro, será duas vezes pássaro, pelo
bando que ajuda a fundar e pelo apelido que escolhe.
O Noel Rosa que os outros tangarás conhecem neste 1929 é mesmo um tipo
esquisito. Ao menos aos olhos deles e de alguns outros rapazes que circulam por
Vila Isabel.
Não se parece com ninguém. Nem mesmo com o extrovertido e picaresco adolescente
que, não faz muito, divertia os colegas nas salas e corredores do São Bento.
Ainda
comete as suas graças, mas costuma alterná-las com outros humores. Se é possível
encontrá-lo à mesa de um dos cafés do Boulevard, desfilando piadas e
trocadilhos,
inventando histórias, expondo pensamentos de sentido filosófico não muito
ortodoxo ("Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para
ganhar o insuficiente")
ou não muito otimista ("A mulher que mais amou neste mundo morreu antes de saber
o que era amor"), é possível também vê-lo imergir em indecifráveis silêncios,
desligar-se,
ficar distante. Essas saídas de órbita, dando impressão de que não vê nem ouve
nada à sua volta, em geral ocorrem durante animados papos de esquina ou
botequim,
os outros conversando, ele longe.
- Noel! Noel! - alguém tenta trazê-lo de volta.
- Estou ouvindo... estou ouvindo... - mente.
São ausências que se fazem de repente, como um apagar de luzes. E que se
repetirão, com maior ou menor freqüência, por toda a vida.
Pouco andará com os tangarás. A não ser que os compromissos do conjunto o levem
a isso, preferirá companhias menos bem-comportadas. Raramente irá a uma dessas
festas
de que Almirante e os outros gostam tanto, em casas de famílias abastadas da
Tijuca. Seus programas são diferentes. Nada de pessoal contra qualquer dos
quatro companheiros.
Só não lhe agradam os ambientes grã-finos, as reuniões repletas de poses e
cerimônias. Sente-se mais à vontade nos botequins baratos, nas tendinhas de pé
de morro,
nas salas de espera de um viveiro de mulheres. Os tangarás jamais se acostumarão
com o insólito dessas preferências.
Também não gosta de andar em bando. Se é o pessoal das serenatas ou das mesas do
Carvalho, ainda vai. Mas nada de aglomerações maiores. E se acontece de sair com
um grupo menos afim, costuma desgarrar-se. Isto é, vai-se afastando aos poucos,
ficando mais para trás, sozinho, andando meio de viés, o ombro esquerdo bem mais
alto que o direito, a atenção não sintonizada com o que o grupo conversa lá na
frente.
Os amigos observam, comentam, tentam compreender o que chamam de "esquisitices
de Noel". Pequenas, como aparecer de vez em quando trajado segundo o figurino da
mais
autêntica malandragem carioca: terno branco, camisa preta, gravata clara,
sapatos de duas cores. Ou esquisitices maiores, como algumas de suas
idiossincrasias. As
pessoas de que gosta, as pessoas que detesta. Muitas vezes sem motivo aparente.
Almirante e os outros atribuem mesmo a um temperamento esquisito ele preferir os
malandros, os jogadores, os motoristas de táxi, os operários de fábrica, a gente
do morro, os boêmios, os bêbados, os vadios aos filhos das mais distintas
famílias
tijucanas. Não o compreendem.
105
NOTAS
1. Atual Rua da Ajuda.
2. Atual Rua Heitor Beltrão.
3. A Odeon e sua subsidiária Parlophon, ambas da Casa Edison do Rio de Janeiro,
e mais a Victor, a Columbia e a Brunswick eram as cinco gravadoras em atividade
no Brasil em 1929- A Odeon foi a pioneira. E o disco com que Francisco Alves
inaugurou em 1927 o sistema de gravação elétrica entre nós (número de catálogo
10.001)
tinha de um lado a marcha Albertina e do outro o samba Passarinho do Má, duas
composições de Antônio Lopes de Amorim Dinis, o Duque.
4. "... meu nome - conta Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição
(página 42) - foi levado a Eduardo Dale, cujas indagações revelavam sua intenção
de
não alterar as tradições do conjunto:
- Mas esse 'Almirante' é ou foi aluno do Colégio Batista...?
- Não, mas canta e toca pandeiro que é um colosso - declarou Braguinha.
Tal habilidade, proclamada com tanta veemência, venceu qualquer resistência de
Eduardo Dale e eu fui, imediatamente, admitido nas hostes do seleto
agrupamento."
A partir daquele momento, mais do que um simples calouro do grupo, Almirante
ficou sendo o seu líder.
5. Já não existe o Instituto LaFayette. O casarão da Conde de Bonfim onde
funcionava o setor feminino do colégio (e antes dele o Liceu Rio Branco) foi
demolido.
Em seu lugar está hoje o prédio da Mesbla.
6. Em entrevista publicada por Voz do Rádio de 15 de novembro de 1936, o
repórter perguntava:
"- O samba é sempre o mesmo, não é filósofo?
- Qual filósofo, qual nada. Sou o Noel Rosa."
Era mesmo assim que gostava que o tratassem, pelo nome. Apelido, nem os mais
elogiosos.
106
NASCE O COMPOSITOR
Capítulo 11
Fiz uma toada, Festa no Céu, que dediquei ao bairro onde nasci, ou seja, Vila
Isabel. Concluída a composição,
cantei-a para mim somente. Depois para os parentes e amigos. Todos gostaram.
Havia emoção - disseram. Havia originalidade. Fiquei alegre, sentindo um feliz
alvoroço
dentro de mim.
entrevista ao Jornal de Rádio
Que tipo de música pretendem se dedicar os tangaràs? Qual a matéria prima do seu
repertório? Que canto compositores planejam levar ao disco? Desde logo o líder
Almirante decide que o grupo só cantará e gravará músicas originais, de sua
própria autoria ou de um ou outro compositor que, como eles, esteja se lançando.
Quanto
ao gênero, está mais que claro que o Bando de Tangarás, como o Flor do Tempo que
lhe deu origem, nasce ao impulso da moda do momento: a música nordestina.
Muito responsáveis por essa moda são alguns grupos de violonistas, ritmistas e
cantadores que há quase vinte anos atuam no Rio, a maioria como amadores. O
primeiro
deles, Grupo de Caxangá, organizado pelo notável violonista João Teixeira
Guimarães, o João Pernambuco, e contando com a adesão de músicos não só
nordestinos, mas
cariocas como Pixinguinha, Caninha e Donga, ou paulistas como Bonfiglio de
Oliveira, ou de qualquer outra parte do Brasil, desde que bom folião, começou a
sair no
carnaval em 1914. Todos de roupas típicas do Nordeste, chapéus de vaqueiro,
lenços no pescoço, sandálias, o grupo tocava um pouco de tudo, cocos, emboladas,
modinhas
sertanejas, cateretês, mas também o maxixe e o choro carioca. Anos depois,
muitos outros grupos surgiram. Os famosos Oito Batutas, por exemplo, embora
cariocas,
nasceram sob a inspiração do Grupo de Caxangá e até com elementos a este
pertencentes, como Pixinguinha. E quando se apresentaram pela primeira vez em
público, a
7 de abril de 1919, na sala de espera do Cinema Palais, ainda que executando
muito maxixe e muito choro, seu repertório não deixava de incluir coisas do
Nordeste,
maracatus, toadas, canções sertanejas. Os Oito Batutas visitaram Recife em 1922
e lá fizeram tanto sucesso que logo apareceu novo grupo, os Turunas de
Pernambuco,
seguindo suas pegadas. Em 1927, surgia outro conjunto, os Turunas da Mauriccia,
que naquele mesmo ano veio se apresentar no Rio.
A música popular que mais se ouvia no Rio de Janeiro dos anos 20, como vimos,
eram as valsas e peças para piano, as modinhas, o maxixe, os fox-trotse outros
gêneros
importados dos Estados Unidos, executados quase sempre por orquestras de
formação jazzística, zsjazzbands. Os ritmos e cantigas que os grupos trouxeram
para o Rio,
sobretudo a partir do grande sucesso dos Turunas da Mauricéia, conquistaram a
cidade. Ganharam o disco, os palcos de teatro, viraram moda. E passaram a animar
as
festinhas familiares de bairro, na voz e nos instrumentos de muitos conjuntos
criados por gente carioca, um
107
dos quais o Flor do Tempo. Essa adesão à música nordestina parece dever-se,
fundamentalmente, a dois fatores. O primeiro deles, o caráter nacionalista,
regionalista,
do repertório. O segundo, o fato de não serem necessários muitos
músicos e grandes vozes para formar um grupo desses. Dois ou três violonistas,
um pandeiro, um reco-reco, um ganzá.
O resto são vozes em coro e improvizadores de versos. Portanto, é muito mais
fácil formar um "regional nordestino" do que uma jazz band, geralmente composta
de piano,
pistom, trombone, sax, clarinete, bateria, banjo. Daí o Flor do Tempo. Daí os
tangarâs.
Assim, Almirante, líder e fundador do quinteto do qual faz parte Noel Rosa,
estabelece que seu repertório será basicamente nordestino(1). Ou melhor,
constituído
de qualquer tipo de boa música popular brasileira, mas de preferência nos moldes
dos turunas lá de cima:
Quando nós saímos do Norte
Foi pra no mundo mostrá
Como canta aqui nesta terra
Um bando de tangará.
Esta e outras cantigas "nordestinas" criadas por Almirante e seus companheiros
de bando-a que ele próprio chama, impropriamente, de "canções sertanejas de
cunho
folclórico" - serão levadas pelos tangarâs ao disco e constituirão a base
inicial de seu repertório. Composições intituladas Vamo Fala do Norte,
Bole-Bole, Vaca Matada, Mulata Mal Inducada, Coisas da Roça, Pra Vancê, que eles
cantam com tal ingaxao pra pensar, mesmo, que o novo grupo é mais uma novidade
que
acaba de chegar de Pernambuco. Mesmo quando, em vez de cocos, emboladas e
cateretês, o que eles gravam é um samba. Eis o comentário da revista Phono-Arte:
"Almirante trai o seu sentimentalismo de nortista através de dois melancólicos e
agradabilíssimos sambas de sua autoria Tamburete (letra de Erasmo Vollmer) e
Confessa!,
gravados no disco) 13.0-1 í (Odeon). Como se sabe, o samba é um privilégio do
carioca. Os dois sambas de Almirante são, no entanto, à moda do Norte, isto é,
neles
encontramos mais 'alma' do que mesmo 'requebros' tão característicos dos sambas
daqui."2
Mesmo depois de os tangarâs adquirirem certa reputação, ainda se pensará por
algum tempo tratar-se de um conjunto nordestino. Eis o que dirá a mesma revista,
quase
oito meses após a estréia do bando:
"É do Norte do Brasil que nos têm vindo os famosos e inigualáveis grupos dos
Turunas da Mauricéia, do Bando de Tangarâs, do Grupo de Calazans e ainda esse
conjunto
dos Desariadores do Norte.
Acento nordestino presente nos próprios sambas, como acontece no primeiro
sucesso do Bando de Tangarâs. Gravado em junho de 1929 para o selo Parlophon,
Mulher Exigente,
de Almirante, pouco se parece com um samba carioca:
Tem carinho que eu faço
Tem dinheiro, meu bem
Tem minh'alma e meu braço
E, querendo amor, também tem.
A mesma coisa se pode dizer de Minha Viola. Isto é, sendo uma embolada,
claramente nos moldes dos cantadores nordestinos, tem a forma aparentemente
amarrada a tudo
aquilo que é feito no gênero: um estribilho no qual o compositor coloca toda a
sua singularidade melódica e uma sucessão de versos, em geral improvisados, que
cabem
perfeitamente em quase todas as emboladas que se conhecem. Por isso elas se
parecem tanto umas com as outras. Mas ainda aqui o Noel Rosa compositor
principiante
tem muito de original. Seu humor não é exatamente caipira. Como provam os versos
em que faz referência ao célebre doutor Voronoff e suas tão comentadas
experiências
no campo dos enxertos(4).
Minha viola
Tá chorando com razão
Por causa duma marvada
Que roubou meu coração.
Eu não respeito Cantadô
que é respeitado
Que no samba improvisado
Me quisé desafiá.
Inda outro dia
Fui cantá no galinheiro
O galo andou o mês inteiro
Sem vontade de cantá.
Nesta cidade
Todo mundo se acautela
Com a tal de febre amarela
Que não cansa de matá,
E a dona Chica
Que anda atrás de mau conselho
Pinta o corpo de vermelho
Pra o amarelo não pegá.
Eu já jurei
Não jogá com seu Saldanha
Que diz sempre que me ganha
No tal jogo do bilhá,
Sapeca o taco
Nas bola de tal maneira
Que eu espero a noite inteira
Pras bola carambolá.
Conheço um veio
Que tem a grande mania
De fazê economia
Pra modelo de seus filho,
Não usa prato
Nem moringa, nem caneca,
E quando senta é de cueca
Pra não gastá os fundilho.
Eu tive um sogro
Cansado dos regabofe
Que procurou o Voronoff,
Doutô muito creditado
E andam dizendo
Que o enxerto foi de gato
Pois ele pula de quatro
Miando pelos telhado.
Adonde eu moro
Tem o bloco dos filante
Que quase que a todo instante
Um cigarro vem filá
E os danado
Vem bancando inteligente
Diz que tão com dô de dente
Que o cigarro faz passá.
O próprio Noel gravará as duas composições, cantando com a voz ainda hesitante,
como se o microfone o assustasse, acompanhado por um regional e não pelos
tangarás.
Outro carioca que se anordestinizou, deixando-se contagiar pela febre das
emboladas, é Renato Murce. Neste e no próximo ano estará muitas vezes perto de
Noel Rosa.
Participarão juntos de espetáculos que o próprio Renato organizará, viajarão
juntos, até música farão juntos. Uma parceria breve, que logo será esquecida,
mas que
nem por isso deixa de contar nestes primeiros passos de Noel pelo caminho da
música popular.
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Renato Murce, como tanta gente desse tempo e desse meio, já fez um pouco de
muita coisa na vida antes de se tornar cantor. Jogou futebol, trabalhou no
comércio,
foi caixeiro-viajante, vendeu apólices de seguros. Desde 1924 trabalha em rádio
(a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi fundada a 20 de abril de
1923).
Está destinado a ser, no futuro, um importante nome na história do veículo, como
diretor de broadcasting, produtor, rádio-ator, autor, humorista, apresentador,
quase
tudo. Como cantor, seu primeiro namoro foi com a ópera, chegando a estudar canto
lírico com a italiana Climene Baroni. Mas os sons que vieram do Norte também o
envolveram.
E, incrível que pareça, acabou trocando as árias de Verdi pelas emboladas, a
Urna Fatale Del Mio Destino por coisas assim.-
Se tu fosse um pé de pau
Eu queria ser cipó
Vivia em ti enrascado
Em teu corpo dando nó
A troca deu certo. Como baixo ou barítono Renato Murce jamais chegaria a ser um
Mareei Journet, muito menos um Feodor Chaliapin, mas como "cantador nordestino"
será
conhecido em breve como o Príncipe dos Cantores Regionais5. Fundou um grupo, os
Gaturamos, confessadamente rival dos Tangarás, contando com a ajuda de Rogério
Guimarães,
Lourival Montenegro e RubemBergmann (violões), Pery Cunha (bandolim), Didi do
Pandeiro e o irmão, também cantor, Dario Murce. Na ausência de um violão,
principalmente
o de Rogério, é chamado João Baptista Nogueira, a quem tratam com carinho e
respeito por "mestre"(6). Interpretam música do repertório de Augusto Calheiros
e seus
Turunds da Maurícéia, de Minona Carneiro e seu conjunto A Voz do Sertão, do qual
faz parte o bandolinista
Luperce Miranda, recém-chegado do Recife.
Tão identificado está Renato Murce com os gêneros nordestinos que, como acontece
com Almirante, há quem suponha ser ele pernambucano ou algo assim. E por cantar
tanto, em tantos lugares, o célebre Pinião...
Por isso mesmo o sabiá cantou • Bateu asa e voou e foi comer melão
... muita gente pensa ser do seu repertório e não do de Augusto Calheiros este
grande sucesso do carnaval de 1928.
As primeiras apresentações de Noel Rosa em público serão como integrante do
Bando de Tangarás. A 27 de junho de
1929, sábado, num espetáculo denominado Noite Regional Brasileira, no Tijuca
Tênis Clube, ele canta Minha Viola pela primeira vez diante de uma platéia. Três
noites
depois, terça-feira 30, realiza-se antes da sessão de Compra um Bonde, revista
estrelada por Aracy Cortes no Teatro Recreio, um festival em homenagem à atriz,
intitulado
Noite Brasileira. Entre números a cargo das bandas de música da Marinha e da
Polícia Militar, peças de violão clássico executadas por Yvonne ejosé Rebello,
piadas
de Mesquitinha e solos dos outros tangarás, Noel-relacionado no programa como
Noel Medeiros Roxo - volta a interpretar sua primeira embolada:
Minha viola
Tá chorando com razão...
Almirante é um líder muito ativo. Encarrega-se de correr atrás não só das
oportunidades de gravar o repertório do grupo (os tangarás farão oito discos só
no segundo
semestre de 1929), mas também de uma brecha que os permita participar de um
festival aqui, um
espetáculo teatral ali, festas em casas de família, noites regionais em clubes,
tudo que possa torná-los conhecidos. Mas Noel, desde o começo, será um tangará
meio
desgarrado. Nem muito preso às atividades do grupo, nem confinado à sua
nordestinidade. Daí aceitar os convites que lhe são feitos por outros líderes e
produtores
além de Almirante, como é o caso de Renato Murce, com quem começará fazendo uma
embolada, não das mais inspiradas, que o próprio Renato denominará de Perna
Bamba:
Olha que este samba
Põe as perna bamba
Quem nele entra
Não qué mais para...
Conheço um véio Todo cheio de besteira
Num gosta de brincadeira
E é ranzinza que é danado
Mas ele um dia Entrô
num samba de arrelia
Que esqueceu-se da famia
Ficô logo avacaiado...
Um cabra torto
Com doença nas espinha
Num havia mais meizinha
Que pudesse indireitá
Ouviu o samba,
Levantô-se de repente
Já num tava mais doente
Já queria inté brigá...
Uma muié
Tinha brigado com o marido
Fez tamanho alarido
Lhe tirô todo o sossego
Mas ele um dia
Foi o samba decorando
Entrô em casa cantando
E vortô logo o chamego...
Outra, Salada Russa, brinca com as vogais criando rimas em assa, essa, issa,
ossa, ussa, mas poucos se lembrarão dela:
É assa, é essa, é issa, é ossa, é ussa, Este samba parece uma salada russa
Chico Arruaça
Que é amigo da cachaça
quando bota a mão na massa
Já se sabe, foi trapaça.
Quando ele passa
Já bebinho lá na praça
Toda gente acha graça
Vai haver uma desgraça
Mas, ora essa
Isso é coisa que se peça?
Vitalina fez promessa
Pra casar com Chico Lessa.
Mais que depressa
Chico disse: não vou nessa...
Seguem mais dois versos com rima em essa que completam a estrofe. Sempre
intercaladas pelo refrão, sucedem-se as partes em issa, os-sa e ussa, os últimos
versos
esclarecendo que a embolada acabou sendo uma salada russa(7).
Daí, também, Noel empreender experiências sonoras e literárias fora do âmbito
das emboladas, cocos e desafios. De uma dessas experiências nascerá Baianinha,
choro.
Ele mesmo o sola ao violão num programa que Almirante e o Bando de Tangarás
fazem pelo microfone da PRA 3, Rádio Club do Brasil, na noite de terça-feira, 6
de agosto
de 1929. No meio de vários outros excelentes números instrumentais apresentados
na mesma ocasião (a maioria por Henrique Britto, que tocará Paisagem Mourisca,
Ao
Cair das Folhas, Indecisão, Romance, Odette, Nazareth, peças suas e de autores
diversos), o choro de Noel quase não é notado(8).
Como não abandonou as serestas do bairro, também será no campo da música
romântica, bem ao gosto de Alegria, que ele fará outras de suas experiências.
Uma delas
não passará de uma letra linear, trivial, de valor evidentemente menor, para
Ingênua, valsa que o amigo Glauco Vianna - ainda cursando o São Bento - fez e
gravou
recentemente em solo de violão. Música e letra parecem bem definidas pelo
título.
À hora propícia
NOTAS Em que a malícia
Dela se apoderar
Com meu violão
Direi então
O meu pensar
E se ainda
Essa ingênua linda
Não me compreender
Eu, já descrente,
Direi que ela É inocente
Até morrer...
Notas:
1. O espaço que Almirante dedica a estes grupos nordestinos em No Tempo de Noel
Rosa diz bem de seu entusiasmo por eles. Sendo o líder dos tangarás, era natural
que tal entusiasmo contagiasse os companheiros e acabasse ditando a própria
linha do bando.
2. Phono-Arte, 15 de novembro de 1929.
3. Ibidem, 15 de janeiro de 1930 (página 21). O Grupo de Calazans era liderado
por José Luiz Rodrigues Calazans, o Jararaca, o mesmo que já havia formado com o
saxofonista Severino Rangel, o Ratinho, e outros instrumentistas e cantores os
Turunas de Pernambuco. Anos mais tarde, Jararaca e Ratinho fariam famosa dupla
caipira
atuando por longo tempo em circo, rádio, teatro, disco, cinema e televisão.
4. Mais do que comentadas, as experiências de Voronoff foram motivo de muita
glosa no Brasil daqueles dias. Antes de Noel, Lamartine Babo e João Rossi já
haviam
explorado o assunto em Seu Voronoff, marcha gravada por Francisco Alves em 1928.
Serge Voronoff, médico russo, assumiu em 1921 a chefia do laboratório de
cirurgia
do CoUège de França em Paris. Ali realizou suas célebres experiências sobre
rejuvenescimento, a partir de enxertos de órgãos de animais. Não teve êxito.
5. Valem algumas palavras sobre o que então se entendia por "regional". Além do
tipo de música que os grupos "nordestinos" - o Bando de Tangarás entre eles -
interpretavam
(cocos, toadas, emboladas, martelos, jongos, cateretês, sambas de roda,
cantigas), regionais também eram os cantores que, como Renato Murce, se
dedicavam a tais
gêneros. Regionais, ainda, ficaram sendo os grupos compostos de violão, bandolim
ou cavaquinho, pandeiro e outros instrumentos rítmicos, em alguns casos saxofone
ou flauta, que os acompanhavam. Daí a denominação de regional para os conjuntos,
muitos deles de choro, liderados por Benedicto Lacerda, Canhoto, Rogério
Guimarães,
que logo em seguida passariam a acompanhar os cantores em gravações e
apresentações ao vivo, já então em valsas, sambas, música carioca e não apenas
nordestina.
Essa denominação, de certa forma, veio até nossos dias.
6. João Baptista Nogueira - pai do compositor e cantor João Nogueira - atuou ao
lado de Alberto Simões da Silva, o Bororó, Glauco Vianna e Noel Rosa, fazendo
acompanhamentos
ao violão em espetáculos musicais.
7. O próprio Renato Murce ensinou esta embolada aos autores. Já não se
lembrava, porém, de toda ela, que jamais chegaria ao disco.
8. Este choro não foi gravado nem editado. Mas, cinco anos depois, no intervalo
entre dois programas na Rádio Guanabara, o mesmo Noel pôs-se a solar ao acaso um
choro seu. Seria Baianinha? Estando ali presente, Jacob Pick Bittencourt, mais
tarde famoso como Jacob do Bandolim, teve o cuidado de passá-lo para pauta,
graças
ao que o choro sobreviveu. Só seria gravado em 1983, pelos violonistas Luís
Otávio Braga, Henrique Cazes e Caola.
113
Capítulo 12
O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem preconceito, sem
mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba.
entrevista a O Debate
Toadas, desafios, cocos, emboladas, cateretês. São muito interessantes essas
coisas que os tangarás fazem inspirados nos ritmos e cantigas que vêm de
Pernambuco,
Ceará, Paraíba, Sergipe, Bahia. Mas Noel Rosa é do Rio de Janeiro. Carioca
impenitente, acaba concluindo que é mesmo o samba o idioma em que melhor poderá
expressar
suas idéias e sentimentos, seu cotidiano, sua realidade. Há muito de original
nas letras de seu primeiro disco como solista. Musicalmente, porém, tanto Festa
no
Céu como Minha Viola pouco têm de carioca.
Também é nitidamente sertanejo o tempero que ressalta no sabor de canções como
Sinhá Ritinha e Mardade de Cabocla, duas outras composições suas desta mesma
época.
Aprimeira é gravada por Paulo Netto de Freitas, afinado e sensível barítono cuja
carreira estará sempre muito ligada aos tangarás. A canção conta a história do
infeliz
Zé Sampaio:
No mês de maio,
no tempo das ladainha,
Foi que eu vi sinhá Ritinha
Sobrinha de nhô Vigário
Pra Zé Sampaio
ela olhou desconfiada
Tava tão encabulada
Que caiu o seu rosário
Ele apanhou o rosário da caboca
Mas a coragem era pouca
Pra falá com a mulhé
Depois pensou
e pra não perder a vaza
Guardou o rosário em casa
Pra dá quando Deus quisé
Já fez dois anos
que ele não vai à capela
Mas leva o rosário dela
Pra todo lugá que fô
Não foi engano
o que disse toda a gente
Que a saudade de repente
Tinha virado em amô
E o Zé Sampaio
foi-se embora lá do Norte
Pois teve a pió das sorte
Que se pode imaginá:
No mês de maio,
quando vortô à capela,
Pra entregá o rosário dela
Ela não quis aceitá
Mardade de Cabocla, feita especialmente para Alegria cantar, não chegará a ser
gravada. Mas é ótimo ponto de partida para que se compreenda a transformação
definitiva
do compositor Noel Rosa, ou seja, de sua passagem do nordestino para o carioca,
de sua troca do sertanejo que invadiu o Rio no começo da década pelo urbano que
melhor
retrata o seu universo. A letra também fala de um amor infeliz, mais ainda que o
de Zé Sampaio:
115
Pois bem. Daqui a alguns anos - mais precisamente em 1932 - Noel partirá destes
versos inéditos para recontar a trágica história de dois homens apaixonados pela
mesma mulher. Mas trocará o tempero sertanejo pelo molho da cidade, o imaginário
arraial do Bom Jesus pelo nada imaginário morro da Mangueira, os dois caboclos
do
rincão por dois malandros do Rio, siá Chiquita por Rosinha, cabrocha de alta
linha. E, o mais importante, a canção sertaneja pelo samba. Disso resultará
Quando o
Samba Acabou, mais do que uma versão revista, aumentada e urbanizada de Mardade
de Cabocla, o primoroso atestado da adesão definitiva de Noel Rosa ao gênero que
o consagraria:
Na segunda batucada,
Disputando a namorada,
Foram os dois improvisar.
E como em toda façanha
Sempre um perde e outro ganha,
Um dos dois parou de versejar.
E, perdendo a doce amada,
Foi fumar na encruzilhada,
Ficando horas em meditação.
Quando o sol raiou foi encontrado
Na ribanceira estirado,
Com um punhal no coração.
Lá no morro,
uma luz somente havia:
Era o sol quando o samba acabou...
De noite não houve lua,
Ninguém cantou.
Mas a adesão de Noel Rosa ao samba ocorre muito antes de a trágica história de
Rosinha transformar-se num dos clássicos do repertório de Mário Reis. Um dia, em
fins
de 1929, tio Eduardo surpreende Noel acompanhando-se ao violão numa cantiga que
lhe soa de forma inteiramente original.
- Que música é esta, Noel?
- Um samba que acabo de fazer. É sobre o Brasil. O Brasil de tanga.
Noel explica que seus versos procuram retratar, ainda que metaforicamente, um
país ilhado em pobreza, a fome e a miséria alastrando-se como praga. A vida já
era
difícil por aqui. Imagine agora, que o desmoronamento da Bolsa de Nova Iorque
ameaça mergulhar não só o Brasil, mas o mundo inteiro, numa crise dos diabos(1).
É
de um país à beira da indigência, desnudado pela penúria, maltrapilho, de tanga,
que Noel fala em seu samba. A tio Eduardo, contudo, tranqüiliza:
- Mas eu não sou bobo de ficar dizendo essas coisas por aí.
E canta:
Lá no morro da Mangueira
Bem em frente à ribanceira
Uma cruz a gente vê
Quem fincou foi a Rosinha
Que é cabrocha de alta linha
E nos olhos tem seu "não sei quê"
Numa linda madrugada,
Ao voltar da batucada,
Pra dois malandros olhou a sorrir.
Ela foi-se embora e os dois ficaram,
Dias depois se encontraram
Pra conversar e discutir.
Lá no morro, uma luz somente havia:
Era a lua que tudo assistia
Mas quando acabava o samba se escondia
Até esta segunda metade de 1929, não muitos desses sambas chegaram ao disco. Mas
os que o fizeram, se Noel teve oportunidade de ouvi-los (como provavelmente
teve),
serão o bastante para reforçar ainda mais sua convicção de que este é o melhor
samba carioca. Por exemplo:
A malandragem eu vou deixar Eu não quero saber da orgia Mulher do meu bem-querer
Esta vida não tem mais valia
Ou este:
Sei que tu andas sofrendo
Estás arrependida do que já me fez
É teu destino, mulher,
Eu não te perdôo
Porque tu vais me enganar outra vez
Ou muito especialmente este:
Arranjaste um novo amor, meu bem Eu sou um infeliz, bem sei
Ou ainda este:
A maré que enche vaza Deixa a praia descoberta Vai-se um amor e vem outro Nunca
vi coisa tão certa
São sambas admiráveis, realmente diferentes dos produzidos pela escola de Sinhô.
Sambas melodiosos, de frases musicais mais longas, as notas mais agudas
impregnadas
de nostalgia e beleza: "Eu sou um infeliz, bem sei..." São deliciosas as frases
mais curtas do maxixe e do samba que lhe é aparentado, mas isso que vem assinado
por estes desconhecidos compositores do Estácio, Alcebíades, Nílton, Ismael, e
chega ao disco pelas vozes de Francisco Alves e Mário Reis, tem outra espécie de
magia.
Noel Rosa percebe que, em matéria de música popular, há um tesouro escondido em
algum lugar. Pedras preciosas, algumas ainda brutas, luzindo nas mãos destes
sambistas
que compuseram A Malandragem,
119
Amor... Carinho... Eu não quero Já jurei: nunca mais hei de amar, hei de
amar...
O outro lado será Com Que Roupa?, que Noel mostrou a todo o conjunto, recebendo,
mais do que aprovação, palavras de entusiasmo. O samba bem pode ser o
carro-chefe dos tangarás nas batalhas que se aproximam. Mas antes que se pense
na gravação é preciso passar as duas composições para a pauta e levá-las ao
editor.
João de Barro, que já cuidou da sua, recorrendo a um amigo maestro, oferece a
Noel:
- Se você quiser, este meu amigo escreve o seu samba também.
Oferecimento aceito, no mesmo dia Noel, João de Barro e Almirante vãojuntos à
casa de Homero Dornellas, na Rua Torres Homem. Homero é um músico competente e
generoso.
Filho de Sophonias Dornellas, compositor e regente de peças para teatro,
principalmente revistas e operetas, o próprio Homero compõe. E toca, entre
outros instrumentos,
o violoncelo. Tem ambições maiores do que as que se confinam no campo da canção
popular. Sonha em escrever poemas sinfônicos, peças de câmera, obras dramáticas.
É o inventor de um curioso instrumento, o arranholino, simples caixa de charutos
sobre a qual adaptou uma única corda de violoncelo que emite bizarro som quando
sobre ela se faz deslizar um arco de violino. Homero chegou a obter sucesso com
o arranholino em festas e recitais em que se apresentou, no Rio, na Bahia, no
Amazonas,
não se sabe se pela beleza ou se pelo inusitado do som. Hoje, entre suas várias
atividades musicais, a mais estável e bem remunerada (embora não muito) é a de
pianista
da Casa Vieira Machado, onde desde o ano passado substitui o jovem e talentoso
compositor gaúcho Radamés Gnattali na função de passar para a pauta as canções
populares
daqueles que não sabem escrever música. Homero no piano, cuidando da partitura,
e Joracy Camargo com lápis e papel na mão, caprichando na parte literária, são
pagos
por seu Ernesto para realizarem muitas vezes o milagre de transformar em algo
editável os rascunhos que compositores incultos lhes trazem.
Mas não é este, evidentemente, o caso de Noel Rosa: Com Que Roupa? não é um
simples rascunho e sim uma obra plenamente acabada. Ou, pelo menos, parece. Na
casa da
Rua Torres Homem, onde Homero faz uns trabalhinhos por fora, cobrando dez, vinte
mil réis por um serviço que sairia bem mais caro na editora (a comissão do
Vieira
Machado é sempre muito gorda), o maestro é apresentado aos dois amigos de João
de Barro, seu conhecido desde as
festas do Clube Progresso da Fábrica Confiança.
- Este rapaz aqui fez um samba interessantíssimo, Homero. E nós queremos
lançá-lo para o carnaval.
Homero senta-se ao piano e pede que Noel cante o samba. Fica observando o
rapazinho mirrado, oblíquo, cujos dedos compridos escorregam pelo braço do
violão enquanto
canta, tímido mas afinado:
Agora vou mudar minha conduta...
De início Homero concentra-se mais no jeito de o rapaz movimentar a boca -
mastigando um palito de fósforo como se a disfarçar o queixo torto - do que
propriamente
no samba. Depois, porém, coloca o pentagrama na sua frente e pede para Noel
repetir do começo. Homero faz uns acordes no piano, prepara-se para escrever as
primeiras
notas, mas pára:
- Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: "Agora vou mudar minha
conduta..." Repete isso.
Noel obedece.
- Essa música não pode ser publicada - interrompe Homero.
- Por que não?
- Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da censura
não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido fazer
brincadeiras
com o Hino Nacional.
Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:
- E agora?
- Ora, agente dá um jeito - tranqüiliza-o o maestro. - Com sete notas simples e
cinco alternadas, temos doze notas na escala cromática. Com isso a gente faz o
que
quer. Vamos inverter algumas notas desta primeira frase, "Agora vou mudar minha
conduta..."
Homero mostra no piano como a linha melódica sofre ligeira alteração, fugindo à
semelhança com o Hino. Muito simples. Noel canta o samba mais uma vez, agora em
sua
forma definitiva, as primeiras notas invertidas pelo maestro. Assim, menos
parecido com o Hino Nacional, ao que talvez seu compositor desejasse, Com Que
Roupa? vai
para a pauta, a caminho de se transformar num sucesso do carnaval de 1930. Só
que a música popular, como a própria História, tem seus caprichos. As vezes
ocultos
pela proposta tímida de um compositor modesto como Homero Dornellas:
- Antes que vocês se fossem, gostaria de lhes mostrar um samba que comecei a
escrever. Querem ouvir?
121
João de Barro, Almirante e Noel concordam em ficar mais um pouco para conheceren
o refrão que Homero diz ter escrito a partir de um toque de corneta ouvido pela
primeira vez quando ele servia a bordo do navio Poconé, como um dos soldados das
tropas mandadas ao Amazonas por ocasião do movimento armado de 1924(7). O navio
tinha excelente corneteiro, o cabo Clodomiro Marins, sujeito muito brincalhão
que costumava levar o instrumento à boca, soprar um sol-sol-dó-dó e, logo em
seguida,
gritar para os companheiros: "Na Pavuna, seus filhos da puta!" Homero nunca
entendeu por que o Marins dizia aquilo, mas as notas lhe ficaram na cabeça desde
aquela
época, sol-sol-dó-dó, um dos dós na oitava de cima, o outro na oitava de baixo.
Um dia - conta ele aos três tangarás - foi convidado para um batizado na casa de
parentes de sua noiva, justamente no subúrbio carioca da Pavuna. Ensinaram-lhe o
caminho, a ida de bonde até a Leopoldina, a viagem de maria-fumaça pela linha
auxiliar,
uma longa jornada até o local da festa. Lá chegando, constatou que a Pavuna
citada por Marins era um bairro deserto, atrasadíssimo. E, sem saber por que,
começou
a cantarolar as quatro notas,
sol-sol-dó-dó. Já na casa dos parentes da noiva, numa folha de jornal improvisou
um pentagrama e sobre ele anotou o esboço de melodia. Mudou-o para si bemol,
isto
é, si-si-mi-mi, um mi agudo, outro grave, por achar que com nova cor
o resultado seria melhor. Nasceu assim o refrão de Na Pavuna:
Na Pavuna... Na Pavuna...
Tem um samba que só dá gente reiúna.
Agora quer ouvir a opinião dos três. Principalmente a de Almirante, que afinal é
o líder dos tangarás. Não gostaria ele de fazer a letra da segunda parte?
Almirante
hesita. Não lhe agrada essa história de "reiúna", nem a construção do segundo
verso. Mas Homero volta ao piano, repete a melodia e acaba convencendo Almirante
de
que o refrão tem força.
- Quanto a reiúna, é gíria de soldado - explica Homero. - Foi idéia dojoracy
Camargo. Minha letra dizia "gente turuna", mas ele me provou que reiúna ficaria
melhor
que turuna(8).
Almirante está convencido. Mais do que isso, subitamente entusiasmado. O refrão
tem mesmo força, é fácil de pegar. Concorda em tornar-se parceiro de Homero.
Este,
por suas ambições de chegar às salas de concerto como "músico sério", explica
aos tangarás que, como compositor popular, prefere ocultar-se atrás de um
pseudônimo.
Um pseudônimo sonoro e curioso : Candoca da Anunciação. E é como tal que ele
trabalha com Almirante, aqui mesmo, na
122
NOTAS
1. Foi em 29 de outubro de 1929 que o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque
pôs fim à prosperidade que os Estados Unidos conheceram no pós-guerra, lançando
aquele
país na maior depressão de sua história e o mundo inteiro numa grande crise
econômica. O Brasil - que desde os primeiros dias daquele mês se via às voltas
com problemas
cafeeiros (a supersafra levara os produtores a reter 10 milhões de sacas na
esperança de manter os preços) - sofria então um duro golpe. Na verdade, parecia
ruir.
Já afetado por crises anteriores, deixava a seu povo perspectivas sombrias, mais
pobreza, mais dificuldades. Foi nesse clima que Noel Rosa decidiu caricaturar
musicalmente
o "Brasil de tanga".
2. Parece ser mesmo este - segundo opinião defendida por Jota Efegê em conversa
com os autores - o verdadeiro mérito de Pelo Telefone, e não, como tanto se tem
repetido, o de ter sido o primeiro samba gravado. Afinal, alguns outros sambas
chegaram ao disco antes dele.
3- Depoimento de Hélio Rosa a Jacy Pacheco, incluído por este em Noel Rosa e Sua
Época (páginas_ 36 e 37).
4. Citado por Sérgio Cabral em As Escolas de Samba - o Quê, Quem, Como, Quando
e Por quê? (páginas 22,e 23). O samba teria sido cantado pela Deixa Falar no
carnaval
de 1929, e o Francelino em questão seria o Ferreira Godinho.
5. Renato Murce lembra-se de Noel Rosa, em 1927 ou 1928, aparecendo pelas casas
de música, com uniforme do São Bento, tentando aproximar-se de Francisco Alves e
outros nomes já famosos da música popular. Em entrevista aos autores, Murce
conta como vários outros novatos - entre eles Ary Barroso - eram desdenhados
pelo cantor.
6. Diz Ismael Silva a Sérgio Cabral, op cit (página 28): "Nós ajudávamos muito
a Portela. Ajudar no sentido de divulgar, promover. A Mangueira também, nós
ajudávamos
bastante. O pessoal do Estácio era sempre convidado para ir a todos esses
lugares. Nós tínhamos muito prestígio na época..." Marília T. Barbosa da Silva e
Lygia
Santos, em Paulo da Portela, Traço de União Entre Duas Culturas (página 70),
contam: "Todos os fundadores da Portela por nós inquiridos foram unânimes em
afirmar
que foi o pessoal do Estácio que levou o samba para Oswaldo Cruz." Os sambistas
do Estácio, na verdade, circulavam muito. Compreende-se que a troca de
informações
musicais se desse rapidamente. O samba do Estácio e vizinhanças, nascendo ou não
ali, espalhou-se. Cedo ou tarde Noel e os outros rapazes de classe média de Vila
Isabel teriam de tomar conhecimento dele. Só que Noel o fez primeiro.
7. Ainda uma vez a chamada Revolução Paulista de 1924, ligada ao "tenentismo".
8. Reiúna - e não "reúna" como tem sido comumente escrito - é um tipo de
espingarda curta do Exército, hoje em desuso. O termo também era empregado em
relação a
tudo que dizia respeito aos soldados, "farda reiúna", "bota reiúna", no sentido
de farda ou bota militar.
9. Segundo Homero Dornellas, em longos depoimentos aos autores, foi exatamente
esta a expressão usada por Noel. Lembra o maestro que "mete a vela", na época,
tinha
pelo menos dois significados. No Rio, queria dizer "vá em frente", "mete a
cara". Mais para o norte do Brasil, por onde Homero viajou muito, era uma forma
abreviada
de "mete a vela no rabo dele", no sentido de "pregue-lhe uma peça", "faça-lhe
uma ursada".
123
Capítulo 13
como sempre. E assim que se abrir a jaula, o urso ainda meio distraído com a
gritaria do público, avançará para o animal, trocará murros com ele, lhe
aplicará uma
gravata, quase mandará a nocaute o peludo e corpulento adversário. Mais do que
resistir a um round, Martim derrotará o campeão. Sairá todo mordido e arranhado,
mas
vitorioso. Para exasperação do gerente da empresa, que chegará a pensar em não
pagar o prêmio: "Você pegou meu urso distraído!", dirá. Sem discutir, Martim vai
envolver
com seus braços massudos o mastro que sustenta a lona do circo, balançá-lo de um
lado para outro, fazê-lo estremecer. O gerente de olhos arregalados, o público
de
respiração suspensa e Martim, sempre agarrado ao mastro, gritando: "Ou me paga,
ou eu boto esta bosta abaixo!" De noite, calma recuperada, o corpo coberto de
curativos,
o vencedor do urso estará pagando, feliz da vida, cerveja para todos no
Martinez. Com os 500 mil réis, é claro. O mais comum, porém, é ser ele o
desafiado. Como
se passa no dia em que um jovem aluno da Academia Militar aparece no Ponto de
100 Réis com ares de valente:
- Tem gente boa de briga por aqui? pergunta a um dos rapazes da esquina.
- Não, amigo. Aqui é tudo de paz.
-Mas ouvi dizer que Vila Isabel é terra de decidido. Vim sopra ver se é verdade.
Gostaria de pôr à prova o melhor de vocês.
O rapaz da esquina logo nota que o jovem cadete é um provocador, desses que
adoram uma confusão. Na certa luta boxe, jiujitsu, capoeira ou algo que tenha
aprendido
lá na Academia Militar. Um cadete alto, atlético, bem apessoado. Bonito, mesmo.
Forte, mas não muito. Está confiando em quê? Na força ou na farda? Mas já que
ele
quer mesmo arranjar briga, o rapaz da esquina resolve fazer-lhe a vontade.
- Olha, amigo, gente boa de briga não tem por aqui, não. Mas posso lhe trazer,
agora mesmo, alguém pro senhor pôr à prova.
O cadete se anima. Uns dez, quinze minutos depois o rapaz volta acompanhado do
Martim José Dionísio. Mal são feitas as apresentações, o cadete, sem se
impressionar
com o tamanho do outro, põe-se a desafiá-lo,, a dizer que não acredita muito nos
seus músculos, que briga se ganha com inteligência e não com força, coisas
assim.
Martim ouve calado. E quando o cadete finalmente o chama para um ajuste, diz com
o tom de voz baixo, brando, quase sussurrante:
- Que vergonha, moço! Um futuro oficial do nosso Exército amofinando gente
pacata, querendo perturbar a ordem. Que vergonha! Tá pensando que o país é seu?
E se afasta com os passos lentos, pesados, deixando o provocador ainda mais
humilhado que o urso que ele quase mandou a nocaute. O jovem cadete vai
desaparecer do
Ponto de 100 Réis, mas continuará pensando que o país é seu.
Um dia, arma em punho, invadirá o Palácio Guanabara disposto a tirar de lá
ninguém menos que o Presidente da República. Seu nome, Severo Fournier, será
lembrado
por isso(3).
Mas os forasteiros não se iludam. São muitos os valentes de Vila Isabel.
Especialmente os do time de futebol do Sport Club Aldeia, como o
Leonardo Figa de Guiné, baixinho, gordo, sempre de navalha na cintura.
Temidíssimo, não tem medo de nada. Nem de polícia, nem de malandro. Só do
Martim. Mas os dois
são amigos e se tratam respeitosamente pelos respectivos apelidos. O Leonardo
deve o seu a andar com uma figa em cada bolso, sempre preocupado em afugentar os
caprichos
do azar. O do Martim tem origem menos conhecida. Num certo sábado de carnaval,
desfilando pelo Faz Vergonha, o bloco passando pela porta de sua casa, ele viu
na
janela a mulher, Colo, e gritou para ela: "Adeus, ó Colo!" E só voltou na
quarta-feira. O apelido acabou se convertendo em expressão muito usada pelos
cariocas destes
e dos próximos tempos(4). homem responsável por ela vai morrer esquecido e não
propriamente como um valente: ao dar um mergulho na Praia das Virtudes, baterá
com
a cabeça numa pedra e quebrará o pescoço. Uma tarja preta tingirá o estandarte
do bloco no carnaval seguinte.
Adeus Ó Colo, Figa de Guiné e as demais figuras de proa do Faz Vergonha -
Antenor Grande, Jurema Bola Sete, Candinho, João Pelanca, Gude, Piscalhada,
Salvador Cara
Larga, Culé, Carrão, Pedro Pé de Banha, Heitor Barrigudinho, Hugo, Archete,
Canuto, os irmãos Walter e Affonsinho, craques de futebol (o segundo ainda
chegará ao
scratch nacional) - reúnem-se quase todas as noites, de dezembro a fevereiro,
para traçarem planos com vistas ao carnaval. Discutem sambas, fantasias,
estandartes
e estratégias a serem seguidas pelo bloco nas próximas batalhas e no desfile de
domingo. O local dessas conferências que entram pela madrugada, irrigadas com
cerveja
ou cachaça, é a faixa de paralelepípedo que cobre o rio Joana, na Rua Maxwell,
em frente à Piza de Almeida, e que o pessoal do lugar chama de "Ponte".
Conferências
longas, animadas, que volta e meia contam com a presença do jovem folião Noel
Rosa.
De maio de 1929, quando estrearam na cera com um cateretê e uma embolada de
Almirante, Anedotas e Galo Garnizé?, até maio de 1933, quando entrarão no
estúdio da
Odeon para gravarem, juntos pela última vez, uma cena junina de João de Barro,
os tangarás
127
Por saber que idéia não sendo tudo é mais do que meio caminho, jamais deixará
que uma lhe escape. Se não florescer hoje, agora, um samba começado não chegando
ao
fim, vai retomá-la amanhhã ou depois, como fará ao revestir a história de
Mardade de Cabocla com a roupagem de Quando o Samba Acabou. Idéias afins serão
encontradas
em outros pares de composições, editadas ou inéditas, que produzirá nos próximos
seis anos. Editadas como O Pulo da Hora e Por Causa da Hora, inéditas como Saber
Amar e Que Orgulho É Este?10 Mas, especificamente neste 1930, o melhor exemplo
de seu método de trabalho - de como não deixa uma boa idéia escapar, a ponto de
desenvolvê-la,
de retomá-la mais adiante, podendo mesmo transformar um samba em dois outros tão
bons ou melhores -está num esboço, música e letra, intitulado Vou Te Ripar:
A música é melhor que a letra, mas não chegará ao público. Noel vai preferir
aproveitar a idéia, ou melhor, as idéias contidas no esboço e fazer dois sambas
de um.
Num deles mantém o estribilho acima, com ligeiras modificações na melodia, e
acrescenta-lhe novas segundas partes, música totalmente diferente e letra que
nada tem
a ver com a original:
Este filho de Dona Martha só vive metido com gentinha. Noel ainda não tem vinte
anos e já pode considerar-se bastante familiarizado com as coisas da
malandragem,
sua gente, suas leis, seu apaixonante ainda que estranho mundo. Sente-se atraído
por ele. Mesmo que não viva exatamente de acordo com suas regras, aceita-as, faz
sua apologia em letra de samba. Os malandros o fascinam, sempre o fascinarão. A
sociedade pode marginalizá-los, persegui-los, amaldiçoar seu modo de vida. Mas
quem
mais - mesmo com todas as freqüentes passagens pela cadeia - conhece tão de
perto as cores da liberdade? O malandro é livre a seu modo.
Mas quem é, afinal, este personagem que tanto fascina Noel? Onde vive, o que
faz, a que se deve sua fama, o que tem de tão fascinante?
O malandro, se se for ver bem, sempre existiu. Em todas as épocas e em todos os
lugares. O Brasil mal tinha sido descoberto e já os italianos arregalavam os
olhos
diante das façanhas de certo tipo de espertalháo a que chamavam de malandrino.
Vivo, sagaz, cheio de imaginação, ganhava a vida às custas de golpes, nunca de
trabalho.
O nosso malandro descende do malandrino no nome e no modo de vida. Não tem
emprego fixo nem profissão definida. E acredita muito mais na astúcia do que no
batente.
Costuma fazer aquilo que as pessoas chamam de "viver de expediente", uma viração
aqui, uma esparrela ali, um grande golpe mais adiante. Suas atividades são tão
incertas
quanto ilícitas. Sabe, como ninguém, burlar a vigilância policial. Sente-se
orgulhoso e feliz toda vez que passa a perna num homem da lei, a quem chama,
entre outros
"mil apelidos, de samango. Aliás, no seu linguajar muito próprio, raramente dá
às coisas os nomes que elas têm. Trata cerveja de água benta, cachaça vagabunda
de
infiel, jornalista de pena, maconha de rafo, roubo de ramoneio, elegância de
estifa, gente do morro de cabrito, revólver de berro ou cospe-fogo, pederasta de
indivídua,
dendeca ou brilhante, navalha de aço, espada ou zinco, prostituta de minestra,
mariposa, maquininha ou mina. Definitivamente, detesta o trabalho. Pelo menos o
trabalho
institucionalizado. E tem lá os seus motivos: em geral ele pertence a uma das
primeiras gerações descendentes de ex-escravos menos afortunados - ou menos
considerados
pelos ex-senhores - que a sociedade marginalizou, empurrado-os sem emprego, sem
ofício, para longe de sua vista, os morros, os subúrbios, os fins de mundo. Se
no
início não lhes davam trabalho, condenando-os a uma sobrevivência difícil, hoje,
na figura do malandro, são eles que viram as costas ao trabalho. Preferem se
dedicar
a uma destas três "especialidades" principais: o jogo, a mulher e a estia.
Quando não às três ao mesmo tempo.
O malandro jogador não faz fé em sorte. Confia muito mais nas próprias
artimanhas. Finge-se de pexote na sinuca até que o adversário se anime e suba a
aposta, vicia
dados, esconde na unha a bolinha que deveria estar sob a chapinha (como aquele
que surrou Noel à saída do São Bento), carimba imperceptivelmente as cartas do
baralho
com a goma preta que escorre de um charuto marca Palhaço.
O que vive de mulher não gosta que o chamem de "cafifa" ou de qualquer outro
sinônimo. Segundo diz, não explora as minas:
- O que eu faço é dar cobertura a elas.
Cobertura no caso é uma espécie de proteção. Em troca de parte da féria que ela
consegue negociando o corpo, o malandro protege-a de clientes caloteiros, de
degenerados
que a maltratam, de bêbados inconvenientes, de policiais sem escrúpulos ou até
de outros malandros. Um "protetor" ativo, bonitão, de boas falas e atento aos
interesses
da protegida (inclusive, de vez em quando, aplicando-lhe apaixonadas cocas),
chega a ter sob sua guarda, quatro, cinco, seis mulheres.
Estia é um tipo de gratificação paga ao malandro por pessoas que moram ou
trabalham em sua área de influência. Por respeito ou medo, os cidadãos pacatos
acham melhor
molhar a mão deste malandro - considerado o mais perigoso - do que ser por ele
molestado. O profissional da estia é dos três o mais identificável à distância.
Sentado
na sua mesa "particular" junto à porta do botequim (nunca de costas para a rua),
132
ali recebe a clientela metido num terno branco de linho 120, camisa de seda
(dizem que para cegar o fio da navalha que eventualmente deslizar por ela),
gravata,
chapéu, sapato de duas cores ou então um confortável chinelo charlotte, o
popular "cara de gato".
Todos esses códigos próprios de vida - somados ao fato de que por trás da
cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos leais, braços fortes
dispostos a ajudar em hora de aperto - é que fascinam Noel. Terá muitos
malandros
entre seus amigos mais chegados, fará o que, puder por eles e por eles será
socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de sambas que comporá sobre
malandros
e malandragem, mesmo não sendo exatamente este o seu mundo, conhece-o bem,
compreende-o.
Um dos sambas que criou neste 1930 - e que ele gravará sem os tangarás do outro
lado de Com Que Roupa?- inspira-se neste mundo. E fala do papel que o próprio
Noel
representa nele, um malandro de fora, frágil, tímido, medroso, acreditando nas
leis da malandragem, mas só as seguindo até onde seu fôlego permite. Embora seja
um
excelente samba - e um notável auto-retrato - a crítica não lhe fará justiça.
Eis, por exemplo, o que dirá a revista Pbono-Arte:
"No complemento desse mesmo disco, ouve-se outro samba de Noel, Malandro
Medroso, peça que não se mostra companheira digna da que está do outro lado."15
Apesar disso, Malandro Medroso ficará mesmo como um dos bons trabalhos do começo
de carreira de Noel Rosa, exemplo de sua preocupação com a originalidade, ponto
de contato com um mundo que o fascina:
Se os zelosos irmãos de Clara fizeram gosto um dia, já não o fazem agora. Uma
coisa era o Noel bom menino, aluno do Ginásio de São Bento querendo estudar
medicina.
Outra é o Noel de agora, bacharel por decreto, mais interessado no violão que
nos livros, boêmio, volta e meia na companhia de tipos estranhos. Clarinha
começa a
ouvir em casa comentários de desaprovação ao namorado, que não estuda, não
trabalha, não faz outra coisa senão sentar-se num dos botequins do Ponto de 100
Réis ao
lado de outros desocupados. Dizem até que está pretendendo virar cantor de
rádio. Uma coisa era o futuro médico. Outra, o capadócio.
Além do mais, nem parece se importar com Clara. Falta aos encontros, desaparece,
volta com desculpas disparatadas. Os irmãos gostariam de vê-la acabar com o
namoro.
Mas Clara nem liga. Prefere guardar de Noel os bons momentos, as palavras
gentis, os melhores gestos. Como os bilhetes em verso. Ou como o retrato dela
que ele mandou
ampliar e recortar em forma de coração. Para Clara, é só isso que conta.
Uma noite, é surpreendida pela notícia de que vai morar um pouco mais longe do
chalé. Antes que o ano termine, os Corrêas Netto terão se mudado. Da Theodoro da
Silva,
em Vila Isabel, para a Barão de Bom Retiro, no Engenho Novo. Quem sabe Clara não
esquece Noel? - pensam os irmãos.
Eu devo,
não quero negar,
Mas te pagarei quando puder,
Se o jogo permitir,
Se a polícia consentir
E se Deus quiser...
Não pensa que eu fui ingrato,
Nem que fiz triste papel,
Hoje vi que o medo é um fato
E eu não quero um pugilato
Com teu velho coronel.
A consciência agora que me doeu
Eu evito a concorrência
Quem gosta de mim sou eu!
Neste momento, eu saudoso me retiro,
Pois teu velho é ciumento
E pode me dar um tiro.
133
NOTAS
1. Com letra ligeiramente modificada e segundas partes definitivas, escritas
por João de Barro, Vou à Penha Rasgado seria gravado em 1931 pelo próprio João
de Barro
com o Bando de Tangarás. Mas sua origem está mesmo nos desfiles do Faz Vergonha.
2. Com a construção dos viadutos próximos à Praça da Bandeira, a Rua Elpldio
Boamorte está hoje reduzida a um pequeno trecho e a apenas um prédio, onde
funciona
o Centro Municipal de Saúde Marcolino Candau. Seu nome é uma homenagem não só ao
anfitrião e animador cultural da Vila Isabel dos anos 30, mas também ao Diretor-
Geral
do Tesouro Nacional, mais tarde Diretor da Fazenda do Distrito Federal, que o
doutor Elpídio foi.
3. Severo Fournier comandaria o putsch integralista que a 11 de maio de 1938
tentaria assassinar Getúlio Vargas dentro do Palácio Guanabara. Era então
tenente e
declarava-se "apenas um descontente", sem vínculos com o partido de Plínio
Salgado ou qualquer outro. Fracassada a tentativa, Fournier se exilaria na
Embaixada da
Itália no Rio de Janeiro. Depois de prolongadas conversações diplomáticas, foi
entregue âs autoridades brasileiras, julgado e condenado a dez anos de prisão.
Ele,
Júlio do Nascimento e Belmiro de Lima Valverde, também participantes do
atentado. Fournier seria libertado em 1945 e morreria no ano seguinte de
tuberculose adquirida
na prisão.
O episódio com Martim Adeus Ó Colo foi contado aos autores pelo General
Sylvestre Travassos, na época morador do bairro.
4. A expressão "Adeus ó colo" não foi encontrada em nenhum dos dicionários
consultados pelos autores. Mas era muito usada no Rio de Janeiro dos anos 30 - e
mesmo
depois - como uma forma algo debochada de se dizer "fim", "acabou", "até nunca
mais".
5. Estes foram de fato os dois primeiros registros fonogrãficos do Bando de
Tangarás, lançados no suplemento Odeon de agosto de 1929- No entanto, Mulher
Exigente,
de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e Henrique Britto, dois
sambas gravados um mês depois, foram lançados primeiro, no suplemento Parlophon
de junho.
6. Alvinho gravaria onze discos com seu próprio nome, 21 faces, em 1930 e 1931,
o primeiro dos quais como solista da Orquestra Pan-Americana. Nenhum deles,
porém,
teria qualquer ligação com o Bando de Tangarás. Entre as músicas de seu
repertório incluem-se sambas, marchas, canções, valsas, fox-trots.
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante
não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável
tendência
ãs más companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
120).
8. Carolina Cardoso de Menezes tinha apenas treze anos quando participou da
gravação de Na Pavuna em 30 de novembro de 1929.
9. Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria
no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.
10. O nome de Noel Rosa não está no selo do disco ou na partitura impressa de
Lataria. Mas João de Barro, que assina o samba com Almirante, em mais de uma
ocasião
admitiu a participação de Noel na feitura dos versos que iam sendo improvisados
dentro do estúdio da Odeon. Numa delas, em entrevista a Sérgio Cabral, publicada
no segundo caderno de O Globo em 24 de janeiro de 1977.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro,
substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a
revista
Phono-Arte dedicava ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros
pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse
acontecendo
na música brasileira, do samba da moda ao ainda pouco conhecido canto dos
terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de
experiências sonoras
domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco
contendo
de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um
Conjunto Africano, sairiam Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na
música
dos escravos (e até mesmo uma "cena de escravidão" que o
próprio Souto comporia com Newton Braga para Francisco
Alves cantar), desafios, cenas humorísticas, rancheiras, pregões,
rumbas, danças orientais, uma "reza de malandro" (também de
Souto), tudo isso seria gravado nos selos Odeon e Parlophon
enquanto o maestro estivesse à frente da direção artística da
Casa Edison.
12. Carioca, 14 de dezembro de 1935 (página 42).
13 0 Pulo dá Hora e Por Causa da Hora serão focalizados no
Capítulo 17. Saber Amar e Que Orgulho É Este?, no Capítulo 15
14. Almirante se equivoca, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
178), ao dar a primeirFigura 1a versão de Vou te Ripar como a que foi cantada
nas ruas
no carnaval de 1932. Deve ter-se baseado no esboço que Noel deixou em seu
caderno de letras ou na partitura manuscrita, hoje parte do acervo do Arquivo
Almirante
do Museu da Imagem e do Som, Rio. A versão gravada, popular no carnaval citado,
é mesmo a segunda.
15. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25).
Mulher Exigente, de Almirante, e Conseqüência do Amor, do mesmo Almirante e
Henrique Britto, dois sambas gravados um mês depois, foram lançados primeiro, no
suplemento
Parlophon de junho.
6. Alvinho gravaria onze discos com seu próprio nome, 21 faces, em 1930 e 1931,
o primeiro dos quais como solista da Orquestra Pan-Americana. Nenhum deles,
porém,
teria qualquer ligação com o Bando de Tangarás. Entre as músicas de seu
repertório incluem-se sambas, marchas, canções, valsas,
fox-trots.
7. As chamadas más companhias de Noel acabaram fazendo com que ele e Almirante
não se tornassem mais chegados. O próprio Almirante se refere à "incontrolável
tendência
às más companhias" do amigo em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
120).
8. Carolina Cardoso de Menezes tinha apenas treze anos quando participou da
gravação de Na Pavuna em 3 0 de novembro de 1929-
9- Eduardo Souto nasceu em Santos, São Paulo, a 14 de abril de 1882, e morreria
no Rio de Janeiro, a 18 de agosto de 1942.
10. O nome de Noel Rosa não está no selo do disco ou na partitura impressa de
Lutaria. Mas João de Barro, que assina o samba com Almirante, em mais de uma
ocasião
admitiu a participação de Noel na feitura dos versos que iam sendo improvisados
dentro do estúdio da Odeon. Numa delas, em entrevista a Sérgio Cabral, publicada
no segundo caderno de O Globo em 24 de janeiro de 1977.
11. Eduardo Souto assumiu a direção artística da Casa Edison do Rio de Janeiro,
substituindo Arthur Roeder, em julho de 1930. Em sua edição do mês seguinte a
revista
Phono-Arte dedicava ao maestro matéria de três páginas focalizando, entre outros
pontos, sua intenção de levar ao disco, sem preconceitos, tudo que estivesse
acontecendo
na música brasileira, do samba da moda ao ainda pouco conhecido canto dos
terreiros de umbanda, passando por coisas vindas de fora e todo tipo de
experiências sonoras
domésticas. Não ficaria na intenção. Já em setembro daquele mesmo ano a Odeon
lançava, nas vozes de Eloy Antero Dias e Getúlio Marinho, o Amor, um disco
contendo
de um lado Ponto de Inhanssan e do outro Ponto de Ogum. No mês seguinte, por um
Conjunto Africano, sairiam Canto de Exu e Canto de Ogum. Jongos inspirados na
música
134
Capítulo 14
Eu não pensava em ser general, nem Presidente da República. Que valia o próprio
fastígio dos reis, dos soberanos absolutos, diante do encanto comunicativo dos
criadores
de ritmo?
entrevista ao Jornal de Rádio
Os irmãos de Clara podem não fazer gosto, mas Martha faz. E muito. Nenhuma
perspectiva a deixa mais feliz do que a de ver o filho casado com a bonita e
meiga Clarinha,
filha caçula de dona Clara Souza Netto. Por isso, enquanto os irmãos dela se
alegram com a mudança da família para o Engenho Novo, para um pouco mais longe
dos olhos
do seresteiro Noel Rosa, Martha trata de fazer com que Clarinha permaneça perto:
- Gostaria muito que você me ajudasse na escolinha. Ensinando as primeiras
letras às crianças menores. Posso lhe pagar, digamos...
A Clara pouco importa quanto dona Martha pode ou não lhe pagar como sua
professora auxiliar. O simples fato de, mudando-se para o Engenho Novo,
continuar indo ao
chalé todos os dias vale mais do que qualquer dinheiro. Aceita. A partir de
março de 1931, quando as crianças voltarem a sacudir as pequenas salas de aula
do Externato
Santa Rita de Cássia, lá estará ela, ajudando dona Martha. Do ponto de vista
prático, uma solução também interessante: vó Rita morta, Carmem e Arlinda longe,
Martha
decerto precisa de quem divida com ela as tarefas da escolinha. Clara, portanto,
é o agradável que se vem juntar ao útil.
- Você ainda vai ser minha nora - diz manifestando mais um desejo do que uma
certeza.
Clara ainda não tem dezoito anos, Noel tem apenas dezenove. E nem sequer entrou
para a Faculdade de Medicina, como é vontade de todos. De modo que dona Martha
sabe
que muito tempo ainda terá de correr até que os dois possam se casar. Mas faz
gosto assim mesmo. E diz a Clara que ela mesma cuidará do enxoval. É uma
promessa.
Os Corrêas Netto vão morar na casa número 487 da Rua Barão de Bom Retiro. É
maior e mais barata. Quase na esquina da Rua Moju, pode-se dizer que fica num
território
meio neutro, um pouco Engenho Novo, um pouco Grajaú, um pouco Vila Isabel. A
Vila Isabel de Noel Rosa.
Não hão de ser os dez minutros que se perdem do Ponto de 100 Réis até a casa de
Clara que irão separá-lo dela. Muito menos a cara feia dos irmãos. É que os dez
minutos
costumam ser cinco, já que geralmente o bonde é trocado pelo automóvel. Para
quem tem tantos amigos motoristas de praça, todos dispostos a dar uma carona,
seja para
onde for, não há distância que não se reduza à metade. E Noel tem e terá sempre
muitos amigos na praça.
Neste 1930, porém, três merecem especial atenção. São três boêmios, todos
devotos
135
das noites e das serenatas. Mais velhos que Noel, mas também jovens, solteiros,
boêmios. Um deles é o amigo Alegria, que ainda não tem seu próprio carro, mas
costuma
conseguir um emprestado para fazer biscates na praça. O segundo, Valuche. O
terceiro, Malhado. Dos três, Francisco Valuche é o mais aprumado, o que tem
melhor situação,
funcionário do Ministério da Fazenda pela manhã, motorista particular de um
homem importante o resto do dia. Este homem importante, o doutor Salles
Filho(1), empresta-lhe
seu reluzente Dodge negro na parte da noite, não se interessando em saber com
quem sai ou aonde vai Valuche. Quanto a Malhado, Serafim Vieira da Cunha, faz
ponto
na Praça da Bandeira mas vive em Vila Isabel atrás do pessoal da seresta.
-Ainda hei de cantar no rádio - costuma repetir.
O apelido de Malhado se deve às manchas que tem pelo corpo: vitiligo. É mesmo um
seresteiro. Não na voz, que ao contrário do que pensa não tem a potência e
afinação
da de Vicente Celestino. Malhado sequer canta tão bem quanto Alegria. Mas é um
seresteiro na medida em que se delicia em varar madrugadas cantando acompanhado
pelo
violão de Noel.
Canto
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta, está dormindo
Canto e por fim
Nem a lua tem pena de mim
Pois ao ver que quem te chama sou eu
Entre a neblina se escondeu.
Vibra com as canções de Eduardo e Cândido das Neves, tem um caderno onde todas
elas estão anotadas. Abre o mais alto possível a voz maldotada. Os amigos não o
levam
a sério como cantor. Noel costuma acompanhá-lo de forma caricata, extraindo do
violão efeitos esquisitos, citações grotescas de músicas muito conhecidas, de La
Cumparsita
a Meu Boi Morreu, que acabam fazendo Malhado desafinar ainda mais, confundido
por tantos e tão complicados acordes. Os outros participantes das serenatas
riem, Noel
ajoelhado na calçada, a perna esquerda dobrada para apoiar o violão, e Malhado
cantando:
Jurei amar-te e só não mais querer-te Quando morto baixar à sepultura
Às vezes Malhado leva mais longe seu entusiasmo:
- Cantar no rádio? É pouco. Acho que vou tentar a ópera. Vicente Celestino
também não canta ópera?
Os três motoristas acompanham Noel por toda parte. Um ajuda o outro, tocando
violão, compondo, cantando ou guiando o automóvel. Mudam apenas as canções. E as
janelas
sob as quais se postam, hoje de uma mulher que Valuche corteja, amanhã de uma em
quem Alegria está de olho. É evidente que muitas serenatas são feitas para
Clarinha.
Com ou sem cara feia dos irmãos.
A casa dos Corrêas Netto fica ao lado de uma vila. Como a calçada da rua é
estreita, obrigando os seresteiros a se colocarem muito próximos à janela na
hora de cantarem
- e como essa proximidade, segundo Noel, pode ser tomada como provocação pelos
irmãos de Clara - acham que o melhor é entrarem na vila. A janela do quarto de
Clara
está justamente na parte lateral da casa, separada da vila por um muro de dois
metros no máximo. Noel, Alegria e Valuche dirigem-se até aquele ponto e, do lado
de
cá, podendo ser ouvidos perfeitamente pelo pessoal do 487, mas protegidos de sua
visão pelo muro, cantam. De início a idéia parece boa. Clara abre sua janela, os
irmãos dela também se chegam para ouvir. Estão todos gostando. Cantam-se duas,
três canções, a serenata tem tudo para ser um sucesso. Acontece que um dos
moradores
da vila não gosta de música. E dorme cedo. Por isso, antes que se comece a
cantar a quarta canção, sua voz é ouvida como um trovão:
- Vão cantar no inferno, seus vagabundos!
Noel, Alegria e Valuche se assustam. O homem grita de novo:
- Aqui tem gente que trabalha e precisa dormir!
A serenata é um fracasso. Clara conta a Noel, no dia seguinte, que o tal homem é
coronel do Exército, mal-humorado e autoritário. Não gosta de música. Só a que
tocam
as bandas militares, ou a que sopra o corneteiro do quartel. As filhas, moças
educadas dentro de rígidos padrões de disciplina e respeito, mal podem ouvir
rádio.
Noel encontra-se com Malhado no Ponto de 100 Réis. Ao se dar conta de que o
amigo não esteve na serenata de véspera, vem-lhe uma idéia. - Descobrimos ontem,
na vila
ao lado da casa de Clara, umas garotas lindas, Malhado. As mais lindas de todo o
Engenho Novo. Acho que vale a pena você fazer uma serenata pra elas. Com a sua
voz,
o seu sentimento, duvido que pelo menos uma não fique impressionada. Pense
nisso, Malhado.
Malhado pensa. Principalmente quando Noel lhe diz que comporá uma romântica
valsa para que cante em primeiríssima audição sob a janela das moças. Uma valsa
cheia
de paixão, Malhado devendo pôr nas palavras todo o seu sentimento. E não é só:
Noel já tem todo o
136
esquema armado para que só ele brilhe nesta noite de seresta. Enquanto Malhado
vai cantar dentro da vila, bem na porta da casa das moças, Noel ficará do lado
de
fora, sem ser visto, acompanhando-o ao violão. Se Malhado tinha alguma dúvida,
esta se desfaz no momento em que, já a caminho da Barão de Bom Retiro, Noel lhe
mostra
a valsa que acaba de compor para ele. É bonita, bonita demais. Nenhuma das
músicas que Noel fez até agora parece casar-se tão bem com sua voz. E cheia de
palavras
difíceis, daquelas que Catulo gosta de usar em suas canções. Tem razão: não é
possível que as moças não se impressionem.
Chegando à entrada da vila, Noel aponta para Malhado a casa do coronel.
- É ali. Quando estiver pronto, faz sinal pra mim que eu entro com a introdução.
Malhado obedece, chega à porta da casa do coronel, aproxima-se o mais que pode,
faz sinal para Noel. Este executa ao violão a melodiosa introdução. No momento
exato,
bem alto, e dando a cada palavra uma interpretação comovida, Malhado canta:
Eu saí da tua alcova
Com o prepúcio dolorido
Deixando o teu clitóris gotejante
Com volúpia emurchecido.
Porém, o gonococus da paixão
Aumentou minha tensão...
Malhado não chega ao fim da valsa. Para seu espanto, em vez de aparecer na
janela uma das lindas moças de que Noel falara, surge um alucinado cidadão de
pijama,
revólver em punho, aos gritos:
- Canalha! Imoral!
O coronel dispara um primeiro tiro para o alto. Quando aciona o gatilho pela
segunda vez, Malhado já passou correndo por Noel na porta da vila. Se houve ou
não um
terceiro tiro, os dois jamais saberão, pois em poucos segundos já estão quase no
Jardim Zoológico, depois de dobrarem em disparada a Curva da Morte(2).
- Não posso compreender- repete o inconsolável Malhado, ele e Noel já a salvo
bebendo uma cerveja na Praça 7.
- É mesmo muito estranho - representa Noel.
Malhado diz ter certeza de que cantou bem, no tom, dando o melhor de si para
valorizar a bonita valsa de Noel. Mesmo sem saber exatamente o sentido de um ou
outro
verso, interpretou-os com sentimento e dignidade. Por que terá o homem se
enfurecido tanto a ponto de recebê-lo a bala? Noel teria alguma idéia?
- Falta de sensibilidade, Malhado. Há
gente que não tem a mínima sensibilidade para a música.
Nem sempre há um carro à disposição para as freqüentes viagens de Noel à Rua
Barão de Bom Retiro. Pode acontecer de Alegria, Valuche e Malhado terem outros
programas,
prazeres ou compromissos que os afastem de Vila Isabel e do Engenho Novo,
deixando Noel a pé. Como acontece certa noite em que é convidado para uma
festinha de aniversário
no Engenho Novo. Costuma aborrecer-se logo nesses bailaricos familiares, casais
dançando e conversando à volta de mesas de doces e salgadinhos, refrescos,
ponches
e chope em jarra. Em geral, antes de meia-noite já está ele se despedindo.
- Fica mais um pouco - dizem anfitriões e convidados.
- Por que tão cedo?
Noel explica que tem um compromisso importante, o amigo Cobrinha o espera na
Praça 7. Uma reunião inadiável, algo assim. Infelizmente, tem mesmo de ir.
- Pra onde você vai?- pergunta alguém.
- Eu vou pra Vila.
Já a caminho de casa, num banco vazio do Vila Isabel-Engenho Novo, suas próprias
palavras ficam a martelar-lhe a mente: "Eu vou pra Vila... eu vou pra Vila... "
Começa a cantarolar uma melodia, música e versos saindo-lhe ao mesmo tempo, no
bonde, tarde da noite. No dia seguinte, com a ajuda do violão, fará um novo
samba:
Não tenho medo de bamba
Na roda do samba
Eu sou bacharel
(Sou bacharel)
Andando pela batucada
Onde eu vi gente levada
Foi lá em Vila Isabel
Na Pavuna tem turuna
Na Gamboa gente boa
Eu vou pra Vila
Aonde o samba é da coroa.
Já saí de Piedade
Já mudei de Cascadura
Eu vou pra Vila
Pois quem é bom não se mistura.
Quando eu me formei no samba
Recebi uma medalha
Eu vou pra Vila
Pro samba do chapéu de palha.
A polícia em toda a zona
Proibiu a batucada
Eu vou pra Vila
Onde a polícia é camarada.
Com Eu Vou Pra Vila, Noel Rosa não só rende seu primeiro tributo ao bairro onde
137
nasceu, como também faz um dos primeiros registros de que se tem notícia de um
dos mais marcantes aspectos dessa fase pioneira da história de nossa música
popular:
a perseguição policial aos batuqueiros, aos compositores e cantores de samba.
É bom que se lembre: já existem na cidade pelo menos dois tipos de samba. Um é
aquele que se faz, toca e dança nas casas de Ciata e outras "tias" baianas. O
outro,
o do Estácio e cercanias, dos morros e subúrbios distantes. Com o primeiro,
freqüentado por doutores, intelectuais, políticos, gente importante, a polícia
não se
mete. Com o segundo, lazer das populações pobres daquelas localidades um tanto à
margem da sociedade, o desemprego e o subemprego compelindo os homens a
atividades
malvistas ou mesmo proibidas (o jogo, o servicinho sujo, a exploração de
mulheres, mil e um expedientes, mas nunca o trabalho fixo), cumpre-se a lei:
lugar de malandro
é na cadeia.
Os dois tipos de samba-aquele amaxixa-do da Cidade Nova e o outro da turma do
Estácio - não dividem a cidade apenas musicalmente. Se se for ver bem, há uma
separação
social entre eles. Perseguições a ex-escravos, filhos e netos de escravos que
fazem música, dançam, cultuam seus orixás, existem no Rio desde os últimos anos
do
século passado. Embora não chegasse a haver uma lei contra tais manifestações, a
polícia sempre deu batidas em terreiros onde se evocavam os santos e se trocavam
umbigadas. A própria Igreja, em certa época preocupada com a disseminação dos
cultos afros, andou abençoando tais batidas. Hoje, contudo, já se fazem nítidas
diferenças:
a polícia tolera e até participa dos fungangás nas casas das "tias" baianas,
agora pomposamente rotulados de "cultura afro-brasileira", mas continua
perseguindo
o pessoal do morro, cujo rótulo não muda: são todos malandros.
Os músicos daquele tipo de samba são respeitados como profissionais, tocam em
teatro, cinema, casas de família rica. Como Pixinguinha e seus amigos, tão
respeitados
que um homem da posição social de Arnaldo Guinle financiou-lhes uma viagem a
Paris, há oito anos, em 1922.
Nous sommes batutas Venus du Brésil Nous faisons tout le monde Danser le samba!
Os sambistas de morro nem como músicos são vistos. Desordeiros, isso sim. Muito
porque suas festas semiclandestinas não se limitam ao samba propriamente dito,
mas
também à batucada, não raro terminando em briga, conflito, morte(3). Às vezes
acontece de a polícia dar uma batida e encontrar o pessoal entregue aos
cerimoniais
da macumba. Nesse caso, respeita. Se é cultura afro-brasileira lá em baixo, por
que não seria cá em cima? Mas, tão logo a justiça se vá, o samba começa.
São heróicos esses sambistas do Estácio. Para fazerem vingar o seu canto, a sua
música, para que sua arte espontânea, intuitiva, pura e inofensiva fosse aceita,
para que eles pudessem dar à sua cidade um outro tipo de samba, tiveram de
sofrer muito. Surras, humilhações, desassossego. Seus terreiros invadidos por
policiais
armados, seus blocos desfeitos a golpes de cassetete, eles próprios presos como
vagabundos. É dessa perseguição que fala Noel em dois versos do Eu Vou Pra Vila,
os sambistas do Estácio, freqüentadores da zona (a maioria tem mulher ali),
impedidos de fazer sua batucada.
O samba é gravado por Almirante e o Bando de Tangarás. Uma excelente gravação, o
grupo entoando em coro a duas vozes, preguiçosamente, de maneira bem carioca, a
expressão título: "Eu vou pra Vila..." A terça é feita uma oitava abaixo por
Almirante. A letra original é rigorosamente respeitada no disco, mas na
partitura impressa
há uma intervenção moralista dos editores, que acham melhor substituir "a
polícia em toda zona" por "a polícia em todo canto". Mais distinto, porém menos
preciso.
Noel toma cafezinho num dos botequins do Ponto de 100 Réis quando Alegria chega,
olhos brilhando, fala nervosa.
- Você não sabe o que eu descobri na Rua Moju, depois que te deixei ontem à
noite na casa de Clara
Noel ouve:
- Uma mulher lindíssima. Nunca vi uma tão bonita.
Alegria continua inquieto, excitado, diferente do habitual.
- Ficamos conversando. Marcamos um encontro para hoje à noite. Que mulher
bonita, Noel! Não sei o que seria capaz de fazer por uma mulher assim. Você vai
ver a Clara
logo mais? Então vamos juntos.
Uma fulminante paixão à primeira vista. Dela Alegria jamais se curará. O tempo
há de mostrar que suas palavras - "Não sei o que seria capaz de fazer por uma
mulher
assim..." - podem ser tomadas ao pé da letra. Tão bonita que por ela largará
tudo, a boêmia, as serestas, os planos de tentar carreira no rádio. Uma mulher
de tal
beleza que a gente tem de ficar perto dia e noite. De início Noel talvez ache
que o amigo exagera. Mas, ao sair certa noite da casa de Clara,
138
com a mulher legítima, Iolinda, e este da Rua Moju, onde costumava passar as
horas de folga ao lado de Martha Clara. Os meninos Nelson, Walter e Juquinha,
filhos
dessa relação, deixam claro que o comissário não é de brincar. Nem em serviço,
nem nas horas de folga.
A vida dupla, contudo, não podia durar para sempre. Um dia Iolinda soube e não
fez por menos: passou uma descompostura no marido, ameaçou fazer tudo para que
não
fosse incluído numa futura partilha dos bens de família (o pai é um homem velho
e muito perto de rico). Armou enfim um barulho em grande estilo. Na base do "ou
eu,
ou ela", Iolinda exigiu que o marido nunca mais pusesse os olhos na outra. Uma
decisão difícil para o comissário. Não só porque seu coração ainda batia forte
por
Martha Clara, mas também pela existência de um dado que complicou muito a
história: Iracema, filha única de seu casamento com Iolinda, tivera uma briga
feia com
a mãe, saíra de casa e fora morar justamente com Martha Clara, a outra mulher do
pai. Mais tarde conhecera Reinaldo, casaram-se, tiveram filhos.
Quando Iolinda descobriu tudo, oito pessoas moravam na casa 5 da Rua Moju:
Martha, os três filhos dela com o comissário, Iracema, Reinaldo e os dois filhos
dos dois,
Ary e Haroldo.
Desde aquele dia - da descoberta, da descompostura, das ameaças, do ultimato na
base do "ou eu, ou ela" -José Orges Brandão não teve mais trégua. Passou a ser
mais
vigiado do que os ladrões que ele próprio vigiava, do Centro ao Caxambi. Não
dava um só passo sem que a mulher não soubesse, parentes, amigos, espiões
ocasionais
indo contar onde esteve e o que andou fazendo. Chegava em casa e logo vinha a
mulher:
- O que é que o senhor fazia às três da tarde na Quinta da Boa Vista?
Ou então:
- O senhor não estava de serviço na cidade? Então por que foi visto na hora do
almoço em São Cristóvão?
Mal podia respirar o comissário. E como não estava em seus planos desaparecer de
vez da Rua Moju, tratou de arranjar um pretexto, um bom motivo para ir lá sem
que
a mulher suspeitasse. Assim, quando Iolinda chegasse com aquele ar fechado e lhe
perguntasse: "O que fazia o senhor na Rua Moju?" Responderia:
- Visitava minha irmã.
Explica-se: Luísa Lima Campos, irmã do comissário, morava até então com as
filhas Teresinha, Rosinha e Esmeralda e o filho Zeca numa paupérrima casa de
madeira,
pode-se dizer um barracão na Rua Souza Barros, do outro lado da estação do
Engenho Novo, perto da fábrica de
papelão. Há muito tempo José Orges Brandão vinha prometendo tirá-los dali, a
irmã, as três sobrinhas, o sobrinho, todos vivendo no desconforto de um Casébre
de terra
batida. Mas uma coisa e outra foram adiando o generoso gesto do comissário, até
que, levado pelas circunstâncias, ele se livrou de um problema resolvendo outro:
fez dona Luísa e os outros moradores do barracão mudarem-se para a casa 5 da Rua
Moju.
O comissário? Bem, nem tudo saiu como ele queria. Pois se a presença da irmã
naquela casa o livraria de possíveis problemas com a mulher, por outro lado o
fazia
perder para sempre os carinhos de Martha. Afinal, como manter o romance sob os
olhos conservadores e críticos da irmã mais velha? Como continuar aparecendo por
lá
para ver Martha, perdendo assim o respeito da família? O comissário acabou
saindo de cena.
Foi aí que entrou Alegria. E, por intermédio dele, Noel. Martha Clara é de fato
bonita, educada, graciosa. Tem uma bela voz de soprano, que usa nos saraus de
sábado.
Filha do engenheiro Arthur Dieppe Moreau - o mesmo que projetou inúmeras obras
públicas importantes, entre elas o prédio do Corpo de Bombeiros no Meyer -
orgulha-se
de sua ascendência européia, os antepassados alemães e belgas sempre mencionados
nas conversas. Mas nada disso impressiona muito Noel, cujos olhos se viram para
outro lado.
Dona Luísa, na verdade, tinha quatro filhas. Mas a mais velha, Noêmia, morreu há
dez anos. Era casada com o sírio Theodoro Fêlix, que durante algum tempo cuidou
das duas filhas Josefina, a Fina, e Noêmia, a Bazinha. Theodoro casou-se de
novo, a segunda mulher achou melhor ter os próprios filhos e dona Luísa acabou
levando
as duas netas para morar com ela. Agora estão todos na casa da Rua Moju. Ainda
pobres, mas com conforto.
É por Fina que Noel se interessa. Tem quinze anos neste 1934 e É realmente muito
bonita. Morena, cabelos castanho-claros, olhos vivos, sorriso de criança. Dona
Luísa
e o filho Zeca - a quem as moças chamam de center-half pela severa marcação que
exerce sobre elas - têm de se desdobrar para manter sob sua guarda e sobretudo
ao
alcance de seus olhos moças tão ativas, tão cheias de vida. Principalmente
Teresinha. E Fina. São duas jovens que acham, com toda a razão, que a vida foi
feita para
ser vivida. Respeitam o conservadorismo de dona Luísa, mas crêem, convictas, que
o maior bem que se pode ter é a liberdade. As outras talvez tenham a mesma
maneira
de pensar, só que não são tão ousadas, de modo que entre o pensamento e a ação
sempre se mantém uma distância feita de
140
prudências. Seja como for, dona Luísa e Zeca vigiam, abrem os olhos, tentam o
mais que podem seguir os passos das garotas. As janelas fechadas e as luzes
apagadas,
durante as serenatas de Alegria e Noel, faziam parte deste zelo.
- Não se exponham, não sejam oferecidas - vive recomendando dona Luísa.
Hoje faz-se tudo às claras. Ou quase tudo. Alegria está firme com Martha, quer
mesmo se casar, diz que vai comprar um carro, trabalhar na praça, ganhar um
dinheirinho
para manter a família. E Noel namora Fina. Quando esta lhe pergunta quem é a
moça que ele costuma ver na Rua Barão de Bom Retiro, a resposta é evasiva,
apenas meia-verdade:
- É Clara. Trabalha na escola de minha mãe.
da noite. Nem viva alma. Só a emoção das estrelas no alto. De repente, lá, numa
esquina qualquer, desembocava um vulto. Assoviava. Era Eu Vou Pra Vila. Eu me
sentia
feliz. Tinha entrado no coração da cidade; compreendia a sensibilidade carioca;
sabia comunicar-me com o povo
"6
Pura verdade.
A 30 de setembro, uma terça-feira, Noel Rosa entra no estúdio da Odeon para
finalmente gravar Com Que Roupa?, cuja partitura será dedicada ao Diário da
Noite, "o
arauto das aspirações cariocas". Do outro lado do disco, Malandro Medroso. Os
outros tangarás não estão com ele. Por quê? Haverá nessa decisão de se fazer
acompanhar
por um bando regional (na verdade apenas o bandolim de Luperce Miranda e dois
violões) algum ressentimento de Noel por ter sido
Com Que Roupa Ppreterido por Almirante um ano atrás? Talvez. A gravação é feita
em clima bem-humorado, Eduardo Souto improvisando um conselho ao fim do último
refrão:
- Vai de roupa velha e tutu, seu trouxa!5
A 24 de outubro instala-se o novo governo. A 14 de novembro é assinado o decreto
19.404, pelo qual os estudantes de todo o país ficam automaticamente aprovados
em
seus respectivos cursos e séries, sem precisarem prestar os exames de fim de ano
(as aulas já estavam suspensas desde outubro, quando começaram as escaramuças
revolucionárias,
e as autoridades acharam melhor que os alunos só voltassem às escolas em março
de 1931, quando a situação já estivesse normalizada). O decreto também atinge
Noel.
Graças a ele, depois de tantas tentativas frustradas, livra-se finalmente da
História do Brasil. E completa o ginasial.
Duas namoradas bonitas, caminho livre para tentar o vestibular à Faculdade de
Medicina, Eu Vou Pra Vila chegando às lojas de disco e começando a fazer
sucesso, Com
Que Roupa? já na cera, Noel tem tudo para sentir que os ventos sopram a seu
favor. Daqui a alguns anos, numa entrevista, se lembrará com saudade desses
tempos:
141
Notas:
1. Francisco Antônio Rodrigues de Salles Filho, médico, general, conselheiro
municipal, deputado federal, redator-chefe do Diário Carioca, diretor da
Imprensa Nacional.
Mais tarde, Ministro do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
2. Assim chamada em razão dos repetidos acidentes de automóvel e bonde ali
ocorridos. Ainda hoje muito perigosa, a curva fica na Barão de Bom Retiro, entre
Moju
(atual Sebastião de Paulo) e uma rua então sem nome (atual Acaú).
3- Realmente a polícia em todo canto proibia a batucada. Não a batucada como a
conhecemos hoje (a percussão com que se acompanha o samba), mas a batucada como
jogo
da malandragem: uma roda, no centro da qual dois homens se enfrentavam ao som de
batidas de mão e coro de refrãos próprios ("Derruba, é ê/ ô derruba, bota no
Chão/
derruba, mano, derruba/ sem dó no teu coração..."). Um dos homens era escalado
para tentar derrubar o outro com um único golpe de perna, a banda. O adversário
tinha
que permanecer de pé, estático, "plantado". Quem plantava desta vez, da próxima
escolhia um da roda para ser por ele derrubado. Velhos ódios e inimizades eram
transferidos
para o centro da roda. Os bambas nesse jogo (o termo bamba vindo do quimbundo e
querendo dizer valente, autoridade) eram Waldemar da Babilônia, Pico da Favela,
Madureira
do Engenho Velho, Artur Mulatinho do Catete, Gargalhada do Salgueiro, Maçu da
Mangueira e Brancura do Estácio. Brigas sangrentas e até mortes eram freqüentes.
A
roda de batucada, portanto, diferia em muito da roda de samba, inocente arte na
qual o único objetivo era cantar e dançar.
4. Joseflna Félix, depois Telles, nasceu no Rio de Janeiro a 28 de setembro de
1914.
5. Os precários recursos de gravação da época, Eduardo Souto falando longe do
microfone, não permitiram que se entendesse bem o que ele dizia. Muitos pensaram
ter
sido: "Vai de roupa velha no eu, seu trouxa!" Pouco provável. Por mais
brincalháo que fosse, o maestro não se atreveria a tanto. Principalmente, como
diretor musical
da Casa Edison.
6. Jornal de Rádio, 1.° de janeiro de 1935.
142
Capítulo 15
Se A.B. Surdo é uma amostra de como Noel Rosa e Lamartine Babo são atentos à
originalidade, nega está no caso oposto. Também de 1930, incluído pelos tangaràs
no
seu repertório para o carnaval seguinte, é um samba sem muita inventiva
melódica, de versos banais, as formas amatutadas muito presas aos primeiros dias
do grupo
(por exemplo, "meta" rimando com "navá"). Apesar dos esforços dos
percussionistas no sentido de fazê-lo ritmicamente interessante (chegam a
retomar a idéia de Na
Pavuna, usando batidas de surdo após cada enunciado do título no refrão, só que
seis em vez das três do samba de Almirante e Homero Dornellas), o melhor mesmo
fica
por conta das passagens de violão entre o estribilho e cada quadrinha gravada
pela voz miúda de João de Barro. Noel e Henrique Britto produzem com seus
instrumentos,
aí sim, interessantes acordes que acabam dando certa cor a um pálido samba:
Nega...Nega...
Já te dei de tudo Agora chega.
Chega pro cordão
Que eu sopro nos metá
Pois eu sou da banda
Do Batalhão Navá.
Tu é nega prosa
Tu é palpiteira
Não vai à macumba
Não dança em gafieira.
Podes vir chegando Meu bem
para o cordão
Mas traz a bandeja
Pra recolher tostão.
Noel e Lamartine seguirão amigos. Mesmo quando o tijucano já não aparecer tanto
pelo Ponto de 100 Réis, continuarão se vendo, compondo juntos. Têm muito em
comum
além da música. Em especial o senso de humor. Contadores de histórias,
pregadores de peças,
145
Amigos, companheiros. Saem juntos, fazem farra, voltam de manhã. Às vezes um vai
levar o outro em casa, Tijuca ou Vila Isabel. É num desses regressos matinais
que
cometem uma pilhéria que entrará para a crônica boêmia da cidade. Vão pela rua,
cada qual com uma garrafa de cerveja na mão, quando passam por uma casa em cujo
portão
estão duas garrafas cheias de leite. É muito cedo, o sol nem saiu. Os dois se
entreolham e um deles sugere:
- Que tal um café da manhã?
O outro concorda. Trocam as garrafas que têm nas mãos pelas que estão no chão,
não sem deixar ao dono da casa o seguinte bilhete: "Vá se alimentando com a
nossa
cerveja, enquanto nos envenenamos com o seu leite."
Tomar o leite dos vizinhos, derrubar garrafas pelo simples prazer de ver o
líquido branco inundar a calçada, assustar leiteiros que fazem entrega antes do
dia clarear
estão entre as artes prediletas de Noel. Djalma Ferreira, compositor e organista
que mora no Grajaú, jamais esquecerá uma passagem que testemunhou, ao voltar com
Noel de uma festa em chuvoso fim de madrugada. Noel vestia capa e chapéu, os
dois caminhando pela Theodoro da Silva, quando avistaram o leiteiro lá longe.
Trazia
uma caixa de garrafas em cada mão.
- Espere aqui, Djalma. Vou arrepiar os cabelos dele.
Noel se escondeu num vão de portão, ficou esperando que o leiteiro passasse.
Levantou a gola da capa, baixou a aba do chapéu, pôs as mãos nos bolsos, esticou
os
indicadores para simular canos de revólver. Quando o leiteiro passou rente à
parede, Noel deu um salto:
- A bolsa ou a vida!
O leiteiro atirou para o alto as duas caixas, as garrafas se espatifaram no
chão, o próprio Noel se assustou, enquanto o homem disparava na direção do
Boulevard
sem dar tempo de lhe explicarem que era uma brincadeira. Djalma morreu de pena
do pobre leiteiro.
Brincadeiras que não ficaram na infância ou na adolescência. Elas acompanharão
Noel enquanto ele tiver fôlego para levá-las a cabo. Mas se Djalma foi
testemunha
do susto ao leiteiro, Armando Reis talvez seja o primeiro a perceber que há
alguma coisa de muito estranho na persistência com que Noel atormenta a vida dos
homens
da limpeza pública. Nos tempos de garoto, até que era comum a molecada correr
atrás dos garis chamando-os de "gafanhoto" ou "burro-sem-rabo". Era só um deles
despontar
na esquina, puxando sua carrocinha, que lá vinha a turma apoquentá-lo. Mas para
Noel os tempos de garoto não passaram. Ele pode estar no meio da conversa mais
interessante,
tocando violão ou cantando, olhando as estrelas ou respirando o ar puro da
noite. Mas se surge um gari, pá e vassoura na mão, com ou sem carrocinha, larga
tudo,
a conversa, o violão, as canções, o luar, e se põe a gritar-.
- Gafanhoto! Burro-sem-rabo!
Reis põe-lhe a mão sobre o ombro e observa, em tom brando:
- Noel, Noel... Estes garis vão acabar te tirando o juízo.
É sempre brando o Armando Reis. Paulista de nascimento, mas carioca dos mais
legítimos, criado em Vila isabel, formado na escola das conversas de botequim,
das confrarias
de esquina, dos desfiles do Faz Vergonha. Filho de Higino Reis, o velho Reis da
revista Dom Quixote, chegou a pensar em seguir pelas mãos do pai os caminhos do
jornalismo.
Trabalhou em O Mundo Esportivo, dos irmãos Rodrigues, e depois andou fazendo
bicos em vários outros órgãos de imprensa. Até que foi, como tantos jovens de
agora,
atraído pelo rádio. E também pela música. Será locutor, improvisador de anúncios
(enquanto não se inventem os textos publicitários), animador, produtor. Ainda
terá
horário radiofônico
146
A outra colaboração dos dois também permanecerá inédita pelo menos até muito
depois de ambos se terem ido para sempre(4). Fala de outra desilusão amorosa,
mentira,
traição, temas tão usados por Noel. No título, algo em que eles não acreditam:
Amar Com Sinceridade:
Amar com sinceridade
Não há quem consiga uma só vez
Pode haver muita amizade
Mas há sempre falsidade
Como outrora Judas fez!
De ingratidão
Já estou farto e inteirado
E meu pobre coração
Vive sempre amargurado
Não tenho sorte com amor
Vivo sem felicidade
Torturado pela dor de uma saudade
Sinceridade
Toda a gente desconhece
A cruel realidade
É amar por interesse
Mas todo o bem dura pouco
Todo mal tem sempre fim
As mulheres quero bem longe de mim
Orestes, como todo poeta de fé, alimenta-se de poesia. Mas, a partir do contato
com esses garotos, os profissionais do rádio que freqüentam os cafés do Centro e
muito especialmente Noel Rosa (que ele próprio admitirá ter sido o seu
"conversor", aquele que o persuadiu de vez), vai aderir à música popular. Noel
sempre disse
e continua a dizer que, nesses novos tempos, os poetas da canção popular ocupam
o lugar que antes pertencia aos cultos bardos da literatura acadêmica (ver boxe
O
bonde do samba no
Capítulo 24). Orestes vai concluir que Noel está certo. Renunciará ao fardão,
convencido mesmo de que "a música ainda é consolo máximo das almas sem pouso". E
que
seus versos ficam ainda melhores num samba ou numa canção!
É outro personagem que não se esgota aqui. Não tem muitos amigos. Prefere-os
raros, mas escolhidos. Como diz Nássara, para Orestes a cidade se assemelha a um
grande
edifício de apartamentos onde ele, também morador, destaca alguns poucos
vizinhos que merecerão o seu cumprimento respeitoso ou o seu sorriso afetivo(7).
O próprio
Nássara é um desses vizinhos. Noel Rosa, outro.
Leiteiros, lixeiros, mendigos. Pelo menos numa dessas suas fixações Noel tem no
amigo poeta um aliado. Conta-se que uma noite Orestes encontrou no Passeio
Público
uma mulher magra e esfarrapada, a perna direita coberta por uma atadura suja,
ensangüentada. A mulher, que os outros mendigos chamam de Perua, estendeu-lhe a
mão,
o olhar súplice, sofrido, de quem já nada mais espera da vida.
- Uma esmolinha pelo amor de Deus! Orestes ficou tão impressionado que lhe
pôs na mão tudo que tinha no bolso. Não lhe sobrou sequer para o ônibus.
- Pobre mulher... - murmurou.
Um dia alguém lhe disse, entre gargalhadas, que Perua não passava de uma
impostora, uma esmoler profissional que vivia da piedade dos incautos. Morava
numa boa casa
de vila, comia do bom e do melhor, não tinha problema algum. De noitinha, saía
de casa, passava por um açougue, comprava algumas gramas de carne sangrenta e
grudava-as
na perna com a ajuda de panos velhos. Simulava assim uma feia e dolorosa ferida
que lhe valiam gordas esmolas dos tolos. Tolos como Orestes Barbosa. O poeta
ficou
furioso. E jurou vingança.
Daquele dia em diante - e quase sempre com a cumplicidade de Noel - passou a
atormentar a mulher. Esteja onde estiver, conversando com quem seja, sempre que
a Perua
passe, arrastando a perna, esmolando, Orestes corre atrás dela aos gritos:
-Perua, filha dos diabos I Some da minha vista!
Uma inusitada cena que se repete nas noites do Passeio Público, a mendiga
correndo desesperada, Orestes e Noel atrás, atirando-lhe coisas, xingando-a,
gritando feito
loucos:
- Corre, Perua! Some, desgraçada!
Uma implacável perseguição que vai durar tempos. Até que a mulher, com a mesma
perna ensangüentada, resolva mudar para longe o seu rendoso negócio.
Sem parentesco com Orestes, há dois ramos de irmãos Barbosa circulando por Vila
Isabel, os negros e os brancos. Os negros são Ewaldo Ruy e Haroldo. Moram no
Boulevard,
numa casa de vila em cujo quintal costumam realizar complicadas experiências,
misturas de produtos químicos, engenhocas estranhas, invenções que não levam a
nada.
Muito inteligentes, atilados, bons alunos do Colégio Pedro II, serão ambos
excelentes letristas, sobretudo Haroldo. Ewaldo Ruy, a quem o pessoal do bairro
chama
de Espanador da Lua, comprido, magro, inclui-se entre os improvisadores do Faz
Vergonha. O pai, policial, teve fim trágico. Para vergonha de Haroldo e estranho
orgulho
de Ewaldo, pois enquanto um evitará sempre tocar no assunto, como se querendo
vê-lo esquecido, o outro viverá dizendo:
-Macho, mesmo, era meu pai: teve coragem de se matar.
Coragem que não faltará ao próprio Ewaldo(8).
Os outros Barbosas, os brancos, moram quase todos numa casa da Rua Visconde de
Santa Isabel. E mesmo os que têm outra residência, os já emancipados, podem ser
vistos
com freqüência por aqui, no Ponto de 100 Réis, na Praça 7 de Março, na casa dos
Boamortes. São eles Arthur Álvaro, Paulo, Luís, Henrique e Gustavo. O primeiro
ficará
famoso como humorista e homem de rádio, com passagens também pelo teatro e
cinema, assinando-se como Barbosa Júnior. Paulo será autor de melodiosas valsas
{Cortina
de Veludo, Madame Pompadour, Perfume de Mulher Bonita). Luís é um cantor único,
destinado a ficar como um dos maiores intérpretes da história do samba carioca.
É
o mesmo que Nássara convidou para o seu Grupo da ENBA. Um intuitivo, dono de
invejável senso rítmico, sempre a batucar no seu chapéu de palha. Com tanto
sabor e
inventiva que acabará consagrando-o como mais um instrumento de percussão do
samba. Mas não é só no chapéu que ele produz ritmos: em tampo de mesa, capo de
automóvel,
copos e garrafas, caixa de violão, tudo serve. Inclusive os próprios dentes, dos
quais extrai
150
Na Aldeia, na Aldeia,
Tem gente feia,
Mas decide bem no pé.
O samba da Aldeia
De macumba não receia,
Porque também conhece o candomblé.
Vizinho de Noel, amando tanto o seu bairro quanto Noel a Vila, Quidinho fará
vários sambas louvando a Aldeia Campista. Um desses sambas, Bom Elemento, é
interessante
não só porque Noel e Quidinho juntam forças para enaltecer seus respectivos
redutos, mas também por ser uma espécie de atestado da adesão de ambos à
batucada. Como
elementos estranhos a ela, é verdade, mas capazes de não fazerem feio num
confronto com batuqueiros autênticos:
Entrei no samba,
Os malandros perguntaram
Se eu era bamba
No bater do tamborim
E o batuque
Eles logo improvisaram,
Eu dei a cadência assim:
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
(O que é que tem?)
Meu bem,
o valor dá-se a quem tem
A Vila e a Aldeia
não perdem pra ninguém
Com violência
Enfrentei a batucada,
A harmonia
Do meu simples instrumento
Fez toda a turma
Ficar muito admirada
Porque sou bom elemento
passará de promessa não cumprida. É uma das figuras mais animadas do Ponto de
100 Réis. Bom jogador de sinuca, excelente contador de anedotas. Para quem não
se deixa
assustar por sua pose, um bom companheiro de conversa, de serenatas, de festas
onde haja cerveja e mulher. De Noel guardará a alegria de um longo convívio no
bairro
e a pena de só ter gravado uma música sua: Vejo Amanhecer. Assim mesmo, com sua
voz empostada sendo quase tragada pelo coro e seu nome não figurando no selo do
disco.
Mas a posteridade de Arnaldo será menos diluída que a de Seringa, Quidinho e
outros de dotes musicais bem maiores que os seus. Como é o caso de Kalua.
Impossível
não gostar desse moreno de sorriso branco e cativante que rivaliza com Homero
Dornellas em matéria de generosidade: são os dois que costumam passar para a
pauta,
quase sempre em troca de um simples "muito obrigado", as criações dos
compositores orelhudos do bairro, isto é, daqueles que não sabem ler ou escrever
música. Como
Noel Rosa, cuja quase totalidade do que vem fazendo nestes seus primeiros anos
de carreira virou partitura por obra de Kalua (Dornellas limitou-se àquele
histórico
episódio de Com Que Roupa?).
Pianista com curso de orquestração e regência, Kalua compõe para o teatro.
Canções de amor, duetos, peças humorísticas e pequenos bales ouvidos em revistas
e operetas.
Mas nada do que produz ficará por muito tempo na memória do público. Será mais
lembrado por seus solos de piano, ou por sua figura miúda, ágil, a equilibrar-se
no
pódio sobre uma perna mais curta que a outra, enquanto rege com a batuta
comprida a pequena orquestra do Recreio ou do Carlos Gomes.
Chama-se José Antônio Lopes Filho e morou por alguns anos no 103 da Tneodoro da
Silva, não muito longe do chalé. Hoje vive com a mãe e os irmãos, todos
pianistas,
numa casa de porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos. As reuniões musicais
que se realizam ali são versões menores e mais modestas dos saraus que têm lugar
nas
casas abastadas do bairro, entre elas a dos Boamortes. Curioso: Kalua é sempre
convidado para estes saraus. Assim como para aniversários, batizados e
casamentos
grãfinos. Apenas ele e não os irmãos ou a namorada, mulatos pobres que essas
famílias geralmente discriminam. A exceção que fazem não é a ele, mas a seu
piano. Nunca
recusa tais convites. Mesmo que a namorada, com razão, proteste: "Por que não me
chamam também? Não me acham boa o bastante para eles?"9 Kalua não se amofina.
Veste
o melhor terno, gravata, vai aonde o chamam. Entra pela casa, puxando da perna,
guardando o sorriso, mas cheio de si: sabe que todos aqui adoram ouvi-lo, os
dedos
ligeiros, elegantes, improvisando em cima de choros e fox-trots. Nessas reuniões
sempre há quem peça:
- Toque o Ka-lu-a!
A esta velha canção americana10 deve seu apelido. De tanto tocá-la - e sempre
bem - ojosé Antônio virou Kalua. Outra figura muito querida e musical de um
bairro
todo ele musical. Amigo de Noel Rosa. Que sempre vai preferir ouvi-lo na casa de
porta e duas janelas da Rua Gonzaga Bastos do que nestas festas emproadas onde a
namorada e os irmãos de Kalua não entram.
Assim é a Vila Isabel musical destes dias. Um bairro que daqui a algum tempo seu
poeta maior vai imortalizar em versos assim:
NOTAS
1. Conta Christovam de Alencar aos autores: "O homem tinha um cartaz danado.
íamos todos cantar para ele, na esperança de que nos notasse. Se isso
acontecesse,
era a glória." Almirante, em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (pagina 60),
fala da emoção que lhe causou Francisco Alves em 1929, quando o Bando de
Tangarás
ouvia a prova de gravação de Mulher Exigente. O cantor aproximou-se do grupo,
sorridente, e se pôs
a cantar também. Diz Almirante: "Nada no mundo me poderia ser mais grato do que
verificar que aquela celebridade conhecia minha melodia, pois sabia de cor meus
modestos
versos."
2. Almirante se engana ao afirmar que Noel Rosa e Lamartine Babo foram
companheiros no São Bento {No Tempo de Noel Rosa, segunda edição, página 55).
Lamartine saiu
do colégio em 1920, quando concluiu o ginásio. E Noel só entrou em 1923. Os
arquivos do Mosteiro são claros quanto a isso. Da mesma forma, Augusto Frederico
Schmidt
não foi contemporâneo de Noel no São Bento. Estudou em vários colégios, o Liceu
Francês, o Grambery de Juiz de Fora, o Progresso, o próprio São Bento, pelo qual
sua passagem foi tão breve que não chegou a ser registrada nos arquivos do
Mosteiro. De qualquer forma, deu-se bem antes de Noel, pois já em 1922 Schmidt
cumpria
seus últimos exames de bacharelato no Pedro II. Neste caso, porém, Almirante
pode ter sido induzido a erro pelo próprio poeta que em sua crônica Só no
Carnaval Eram
Noturnas, incluída no livro O Galo Branco (página 197), diria: "Pelo rádio ouço
agora, de mistura com horríveis sambas de hoje, uma composição de Noel Rosa.
Procuro
as feições do compositor, que esteve comigo no colégio."
3. As musicografias até aqui levantadas, a de Noel Rosa por Almirante e a de
Lamartine Babo por Suetônio Soares Valença, nos falam de quatro colaborações
entre
os dois. Mas foram pelo menos cinco. A quinta será focalizada no Capítulo 27.
4. Sylvlo Pinto morreu em Porto Alegre em 1980.
5. O que um dia foi a Aldeia Campista, já não existe como bairro, sendo hoje
parte de Vila Isabel. Seus moradores hâ muito deixaram de se referir a ela pelo
nome
primitivo, nome este sequer mencionado no Decreto 3.158, de 23 de julho de 1981,
que reconhece e delimita os bairros do Rio. Segundo o mesmo decreto, as ruas da
antiga Aldeia Campista, assim como as de toda a Vila Isabel, todo o Grajaú, todo
o Andaraí, parte da Tijuca e parte do Maracanã, pertencem à Região
Administrativa
de Vila Isabel, a IX do município do Rio de Janeiro.
6. Orestes Barbosa foi preso pela primeira vez èm 1921, por haver acusado o
Grêmio Euclydes da Cunha de usurpar os direitos autorais de seu patrono. A
acusação
atingia indiretamente alguns figurões da política. A segunda prisão, por
críticas na imprensa ao governo Arthur Bernardes, deu-se em 1924.
7. "A capacidade de admirar de Orestes Barbosa", depoimento de Antônio Nássara
incluído no livro Chão de Estrelas (página 174).
8. Ewaldo Ruy envenenou-se na noite de 4 de setembro de 1954, cumprindo ameaça
que acabara de fazer por telefone à cantora Elizeth Cardoso.
9. Disse aos autores Heloísa Brandão de Marsillac, filha do Dr. Heleno Brandão:
"Nossa casa era das únicas que abriam suas portas não só para o Kalua, mas
também
para sua namorada, irmãos e amigos, muito discriminados naquela época."
10. Ka-lu-a, música de Jerome Kern, letra de Anne Caldwell, sucesso lançado na
comédia musical Good Moming, Dearie, encenada na Broadway em 1921.
153
CONQUISTANDO A CIDADE
Capítulo 16
NOS SUBÚRBIOS
- Os amigos do alheio carregaram tudo !
- É preciso ir ao districto dar queixa.
- Com que roupa ?
Charge de A Careta. (Arquivo dos autores.)
Um sucesso como nunca se viu. Parece até que o Rio despertou agora há pouco ao
som de um só samba, ouvindo a voz de um só cantor, recitando os versos de um só
poema.
Música e letra de Com Que Roupa? ressoam por toda parte, conquistam todos os
bairros.
Neste primeiros dias de dezembro de 1930, outros sambas e marchas prometem se
destacar no próximo carnaval. Alguns são de fato muito bons. Ou mais que isso.
Se Você
Jurar, Deixa Essa Mulher Chorar, Cor de Prata, Batucada, Batente, Apanhando
Papel, O Barbado Foi-se, Seu Getúlio Vem, Minha Cabrocha vieram para ficar por
longo
tempo na memória do povo. Mas nenhum fará o sucesso de
Com Que Roupa?, cujo apelo e originalidade envolvem as pessoas desde o primeiro
instante. Se não for a melhor composição desta safra, é decerto a que maior
impacto
causa, a mais cantada, tocada, comentada, elogiada. Não só por sua melodia
contagiante, mas sobretudo pelo sabor de seus versos, é a que mais intimamente
sensibilizará
a alma do carioca, tornando-se parte de sua vida, de suas conversas, de seus
hábitos, de sua linguagem: "Jantar no Assyrius? Com que roupa, meu caro?"
As emissoras de rádio tocam o disco sem parar. Alto-falantes instalados em
alguns pontos da cidade, Rua Dona Zulmira, Praça Saenz Pena, Avenida Atlântica,
projetam
a voz de Noel a cantar, queixoso:
Eu hoje estou pulando como sapo Pra ver se escapo Desta praga de urubu...
O próprio Noel se incumbe de mobilizar os amigos para fazer o samba mais
conhecido. No carro de Valuche, ele, Alegria, Martha Clara, Fina, Bazinha levam
pacotes
e mais pacotes de impressos com a letra de Com Que Roupa?. Desfilam pelas ruas
principais de vários bairros, atirando pelas janelas os folhetos, ao mesmo tempo
em
que cantam, particularmente Bazinha, cuja voz aguda, estridente, vai fácil de
uma esquina a outra:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?
Foi um barulho. Todo o mundo cantou. É assim que eu faço as minhas coisas. Com
situações, episódios, emoções, aspectos colhidos na vida real.
entrevista ao Jornal de Rádio
Sucesso realmente sem precedentes. Nenhuma canção popular arrebatou tanto a
cidade. E em tão pouco tempo. Cruz Cordeiro, numa de suas resenhas sobre os
últimos lançamentos
em disco, diz:
"Noel Rosa, que pertence ao já popular
155
Bando de Tangarás, revelou-se este ano como autor do samba Com Que Roupa?,
cantado por ele com acompanhamento do Bando Regional na primeira face do disco
n P 13.2 45. Este samba, desde logo, registrou desusado sucesso, apresentando-se
como um dos prováveis êxitos do carnaval que aí vem. Ao nosso ver, a grande
aceitação
do samba de Noel, que todo o Rio já sabe de cor, reside na originalidade da
letra e no sabor esquisito do ritmo, dentro do qual a letra está magnificamente
enquadrada.
Reparem os amadores como caem bem dentro da música e do ritmo aquelas rimas
acentuadas e nítidas de 'conduta', 'luta' e 'bruta', ou então de 'sopa', 'roupa'
e 'estopa'.
Existe também na peça a originalidade de seu autor ter encontrado coisa de pleno
agrado popular, a começar pelo próprio título da composição sem necessidade de
recorrer
a assuntos já explorados de 'orgia', 'malandro', 'carinho'; 'nota'; etc, etc.
Enfim, secundando a opinião pública, enviamos daqui os nossos parabéns a Noel
Rosa
pela originalidade e engenhosidade de seu samba, que ele próprio canta com graça
e especial sabor, acompanhado pelo adestrado Bando Regional."1
Uma resenha que fala três vezes em "originalidade". Há pelo menos um motivo
muito especial para, sendo Com Que Roupa?'posterior a vários sambas do Estácio
já gravados,
parecer-se novo também em relação a eles: o acompanhamento. As composições de
Ismael Silva, Nílton Bastos, Alcebíades Barcellos, Brancura, Baiaco, que
chegaram ao
disco, tiveram como intérpretes Francisco Alves e Mário Reis, sempre
acompanhados de orquestra. Os autores dos arranjos não variam muito. Ou são
maestros que tentam
adaptar à música popular brasileira a sonoridade das orquestras de dança
americanas, Paul Whiteman, Isham Jones, Dan Russo & Ted Fiorito, Ben Pollack,
Kay Kyser,
Leo Reis-man, Fletcher Henderson, Guy Lombardo, ou é Pixinguinha, freqüentador
das casas das "tias" baianas, mais identificado com a instrumentação dos
conjuntos
de choro, das bandas que saem com os ranchos ou tocam em circos, dos grupos que
se apresentam nas salas de espera dos cinemas e muito especialmente nos cabarés
e
gafieiras onde casais dão voltas ao ritmo de maxixes e sambas amaxixados. Assim,
os sambas do Estácio que se ouvem nos discos desses primeiros tempos soam como
produtos
híbridos, a voz de Francisco Alves ou Mário Reis transmitindo melodias realmente
do Estácio, mas o acompanhamento rítmico afinado mais pelo diapasâo da Cidade
Nova,
enquanto as passagens de orquestra ora utilizam adornos estrangeiros, ora
recorrem às baixarias do maxixe. Deve-se em grande parte a essa hibridez, típica
de um
período de transição, o fato de Com Que Roupa?, a gravação original sustentada
apenas por bandolim e violões, parecer mais novo do que de fato é.
Sucesso sem precedentes, com o qual o próprio Noel deve estar surpreso. Afinal,
se esperasse êxito tão grande, o disco chegando a vender mais de 15 mil cópias,
não
teria aceito a proposta do cantor e locutor Ignácio Guimarães: 180 mil réis
pelos direitos do samba. Proposta aceita na hora, assim como a da venda de
Malandro Medroso
a um amigo de Ignácio, também cantor, Paulo Rodrigues. Resultado: pelas duas
faces de um disco que teve venda formidável, Noel Rosa não recebeu um tostão
além do
que lhe foi pago pelos dois cantores.
Tanto Ignácio como Paulo começaram suas carreiras no coro do Teatro Municipal,
um como baixo e outro como barítono. Ignácio, contudo, descobriu desde logo que
ópera
não dá camisa a ninguém. E tratou de arranjar um bico aqui e ali. Tentará,
inclusive, carreira como cantor popular, assinando-se nos discos como I.G.
Loyola. Para
os amigos, todavia, será sempre o Ximbuca, companheiro simpático e bonaChão.
Ximbuca empolga-se tanto com o fato de ter-se tornado dono de Com Que Roupa?que
decide gravá-lo também, com apenas duas estrofes ao invés de três como no
primeiro
registro. Isso já as vésperas do carnaval, quando o samba na voz de Noel já
houver conquistado a cidade. A gravação é bom exemplo do quanto os
acompanhamentos orquestrais
podem mudar o espírito de um samba feito nos moldes do Estácio. I. G. Loyola,
tendo por trás a Orquestra Guanabara, nos dá uma versão muito diferente da de
Noel.
E pode-se mesmo afirmar que, tivesse sido a única, talvez Com Que Roupa? não
chamasse tanto a atenção para sua originalidade.
Na gravação de Ximbuca há, porém, novidades. Versos adicionais que Noel fez para
ele, sempre pensando num "Brasil de tanga", explorado pelo estrangeiro, dando o
que tem de melhor e abandonado no fim. Além disso, Noel faz a segunda voz e o
contracanto, este alterando ligeiramente a estrutura do estribilho. Os versos
cantados
por Noel no disco seguem-se precedidos de travessão:
Seu português agora foi-se embora
- Oi, foi-se embora Já deu o fora
E levou seu capital
- Seu capital
Esqueceu quem tanto amava outrora
- Amava outrora
Foi no Adamastor pra Portugal
- Pra se casar com uma cachopa! E agora com que roupa?
- Oi, com que roupa?
156
tendências tão opostas que serpentinam no espaço e lançam aos teus olhos os
confetes multi-cores da sua convicção.
Tu pensaste no entrudo antigo para afogar com o teu coração esta pantomima tão
larga quanto insossa da regeneração republicana do Brasil pelos políticos que
fizeram
a sua degeneração oligárquica.
Mas, ergue neste momento, sem o teu verso e sem tua prosa, a tua voz vingadora
na estrofe do teu último carnaval, perguntando a esta democracia de três forças
incoerentes
como vias no teu samba: de camisa preta, de camisa vermelha, ou de camisa verde-
amarelo, isto é, 'com que roupa', fascista, comunista ou socialista? Desta tua
pergunta,
ó carioca, não esperes a resposta, samba à vontade, canta a teu modo a tua
desventura e, seja com que roupa for, põe pela tua ironia, pela tua sátira e
pelo teu
espírito de fronda, sem qualquer roupa, nu na praça o rei de uma democracia que
procurando ser livre caiu no bico da cegonha da Revolução de outubro."4
Múcio Leão já vê as coisas de ângulo mais próximo do de Noel:
"Mas há mais do que isso no carnaval deste ano: há uma canção proletária! A hora
atual é de crise profunda, e o brasileiro sofre todas as amarguras de uma
miséria
a que não estava habituado. E esse estado de alma está refletido numa das nossas
músicas populares. Eu não conheço nada mais característico da alma do brasileiro
miserável dos dias de hoje do que a canção que por aí corre e na qual vemos um
indivíduo queixar-se de não ter uma roupa com que vá a um samba para que foi
convidado.
Não ter um terno, ver o seu paletó transformado em estopa, ter a certeza de que
esta mesma estopa vai ser farrapo daí a algum tempo e, diante dessa extrema
calamidade,
não ter dinheiro para comprar um fato novo - mesmo que seja ordinaríssimo -aí
estão as dores do brasileiro de agora, do brasileiro humilde, filho da multidão,
que
cifra toda a sua ventura em ter três dias no ano em que possa sambar e se
divertir à vontade.
Eu creio que nada existe na literatura brasileira culta que, como documento,
valha essas pequenas canções vagabundas que iluminam o nosso carnaval."5
Também alcança as intenções de Noel, num texto muito rebuscado, Vivaldo Coaracy:
"A cidade inteira é um caos que endoideceu. E servindo de tapete uniforme à
apoteose do barulho, acompanhamento uniforme da sintonia de todos os ruídos,
surda, mas
sempre presente, a toada uniforme do samba:
Com que roupa eu vou
Ao samba que você me convidou?...
É a resposta instintiva da alma popular ao convite da República Nova. É a
consciência latente da miséria, em meio ao delírio das esperanças. É o
sentimento pertinaz
da realidade a resistir à vertigem de três dias de embriaguez.
Já estou coberto de farrapo Eu vou acabar ficando nu... Meu terno já virou
estopa... "6
Este é de fato o carnaval de Com Que Roupa?, o carnaval de Noel Rosa. Repórteres
o procuram para que conte a história do samba, diretores de clubes o convidam
para
recitais, com ou sem os outros tangarás. Não há um dia em que não se ouça no
rádio ou se leia no jornal um elogio ao jovem compositor ou ao seu samba. Um
musicólogo
da estatura de Renato Almeida não esconde seu entusiasmo:
"Mário de Andrade, para o Pinião, descobriu quatro versões rítmicas diferentes,
além de variantes melódicas em geral leves. Este ano, de quantos modos se cantou
Com Que Roupa? "
Mais adiante, o alcance idêntico ao dos observadores políticos:
"Música de dança, samba, música enrascada, mole, sensual, nela só o ritmo marca
o elemento masculino e viril, porque tudo mais é languidez. Não raro, há
lamúria,
a exemplo de Com Que Roupa?, no qual, excepcionalmente, a letra é deliciosa,
desse desgraçado que vai mudar sua conduta e vai pra luta..."7
No bairro, todos cumprimentam Noel. Até aqueles vizinhos que lhe viravam o nariz
por vê-lo "sempre metido com gentinha". Os amigos sorriem para ele, dão-lhe
tapinhas
nas costas. Um ou outro estranho aproxima-se, finge-se de íntimo, quer ser visto
conversando com o autor de Com Que Roupa? Nos dias de folia, 15, 16, 17 de
fevereiro,
é impossível sair às ruas sem ouvir a composição. Noel tem mais sete gravadas
para este carnaval, por ele ou por outros artistas: Eu Vou Pra Vila, Malandro
Medroso,
A.B. Surdo, Nega, Por Esta Vez Passa, Dona Aracy e Dona Emília. Para um
estreante em carnaval, um respeitável lote, mas ofuscado por Com Que Roupa?.
Em Por Esta Vez Passa a cachaça é o tema. I.G. Loyola, o Ximbuca, é seu
intérprete.
Por esta vez passa
Por esta vez passa
Mas não volte à minha casa
Assim cheirando à cachaça.
159
Acabou-se o parati
Em casa de dona Antônia
Por isso dona Didi
(que foi?)
Só bebe água da Colônia.
Dona Aracy é muito cantada por blocos de rua, marcha composta de um refrão muito
simples e uma série de quadrinhas que se vão improvisando durante o desfile. As
quadras de Noel, gravadas por Almirante, são também simples e uma delas contém
uma brincadeira com Malhado:
Dona Emília é uma das marchas cantadas pelo Faz Vergonha em seu desfile de
domingo de carnaval. Tem música de Glauco Vianna e versos de Noel, todos eles
alusivos
aos valentes foliões da Rua Maxwell, capazes, se a concorrência assim o exigir,
de ganhar até um prêmio de violência:
Sai da frente
Dona Emilia!
Que o nosso bloco
Só tem gente de família...
Mais do que nunca Noel é uma das atrações do Faz Vergonha. E, embora se cante
sua marcha com Glauco e outras composições do pessoal do bloco, à sua passagem o
comentário
não muda: "Ele é que fez o Com Que Roupa?". Mas Noel nem dá importância, tão
envolvido está com a alegria do bloco, a sua própria alegria. Este ano ele sai
entre
os improvisadores com uma fantasia arranjada à última hora: sapatos, bolsa,
chapéu e vestido de dona Martha. Um vestido estampado, colorido, há muito fora
de uso,
dentro do qual o corpo mirrado de Noel quase some. Está contente com o sucesso,
com a vida, com tudo. Canta, dança, inventa passos entre uma cerveja e outra. O
bloco
sai da Maxwell, toma a Piza de Almeida, Dona Elisa, Souza Franco, cruza a
Theodoro da Silva e deságua, triunfal, no Ponto de 100 Réis. Para mostrar ao
Cara de Vaca
que o Faz Vergonha ainda é o melhor, tem batuqueiros, passistas, moças bonitas,
improvisadores, Noel Rosa. Um Noel Rosa que não pára de dançar. O bloco vai até
a
Praça 7, faz o contorno e volta ao Boulevard para o percurso na direção do Largo
do Maracanã. Noel segue inventando passos, requebra, faz uma pirueta, planta uma
bananeira. Na altura da Felipe Camarão, um guarda atravessa a corda, puxa-o pelo
braço e lhe diz baixinho, em tom de paternal reprimenda:
- Assim não dá, Noel.
- O que é que houve, seu guarda?
- Esta fantasia. Não dá para dançar com ela.
-Mas é um vestido, seu guarda. Como de todo mundo.
- Sim, seu Noel. Mas me faz um favor: se é para dançar, trate pelo menos de
botar um calção por baixo.
Os anos 30 caminham para se converterem num período bom para o teatro de
revistas carioca. Desde fins da década passada a Praça Tiradentes e arredores
vivem dias
de fulgor, comédias musicais estreando a todo momento, revelando estrelas,
humoristas,
160
autores, músicos, novos nomes da música popular. Ninguém nega que o cinema é
moda que ganha corpo a cada dia, principalmente nos últimos dois anos, em que os
atores
e atrizes da tela, por uma dessas mágicas do progresso, começaram a falar. Mas
ainda vai demorar para o cinema substituir o teatro na preferência do carioca.
Estão
aí, como exemplos eloqüentes, o Recreio, o República, o Carlos Gomes, o Phoenix,
o Trianon, todos acolhendo público numeroso e empolgado a cada nova revista que
encenam.
Noel Rosa deve também a Com Que Roupa? o seu ingresso, mesmo que por pouco
tempo, no mundo do teatro musical. O samba é incluído intre os números
carnavalescos da
"super-revista de fantasia e comicidade" que os irmãos Quintiliano escreveram
para Aracy Cortes e Mesquitinha. O espetáculo intitula-se Deixa Essa Mulher
Chorar
e tem, além deste samba de Brancura, outros sucessos do carnaval, Batente,
Cavanhaque, Se Você Jurar, Sorris, Maria, Deixa Disso, Nem É Bom Falar. Um
quadro inteiro
é dedicado a Com Que Roupa?, reunindo no palco a malícia de Aracy Cortes, o
humor de Mesquitinha, as belas pernas de um grupo de coristas não muito
preocupadas com
a roupa ou com a falta dela. A peça estreou no Teatro Recreio, a 9 de janeiro de
1931, e tem entre suas novidades mais uma das muitas ousadias de Aracy: em vez
da
tradicional orquestra, o acompanhamento é feito por um grupo de sambistas que
ela própria foi buscar no Salgueiro, não se importando com a advertência de
alguns
amigos sobre os perigos de subir o morro. Um grupo de salgueirenses de poucos
sorrisos, meio desconfiados por pisarem um palco pela primeira vez, ajuda a
tornar
mais irresistíveis as interpretações da grande estrela que é Aracy Cortes. São
apenas sete: surdo, chocalho, pandeiro, cuíca, tamborim, violão e cavaquinho.
Mas
que riqueza sonora eles extraem de seus instrumentos!
Deixa Essa Mulher Chorar é um triunfo. Não só por Aracy, mas também pelo
repertório, sambas do Estácio, do Salgueiro, do jovem Noel Rosa, deliciando uma
platéia
que constata ser possível produzir uma revista com ingredientes cem por cento
brasileiros, das piadas à música. Sendo este um gênero importado - com muito da
revue
parisiense, do musichall londrino, das extravagâncias dos palcos da Broadway -
pare ce ter nascido e se desenvolvido aqui, no Brasil de
Aracy Cortes, quando as atrações são o nosso samba, os nossos sambistas, o
cenário carioca, o humor de nossas esquinas, uma realidade nossa. É por isso
que, enquanto
a revista trilhar por este caminho e o cinema vier de fora, o teatro continuará
insubstituível.
Nas pegadas do sucesso da peça do Recreio - e em particular do quadro sobre o
samba de Noel - Luís Peixoto, outro poeta, grande letrista de música popular,
homem
de teatro e revistógrafo (por sinal um dos que se mostram inclinados a trocar
sua formação um tanto Folies Bergère por um estilo brasileiro de crônica e
crítica
às nossas coisas), decide escrever uma revista especialmente para a Companhia
Mulata Brasileira levar ao palco do República. Título: Com Que Roupa? Para
estrear
ainda antes do carnaval, a 23 de janeiro de 1931. Pretendendo ser uma "burleta
de costumes cariocas", se apoiará num texto leve, bem-humorado, e nestas canções
que
o povo canta, uma delas, evidentemente, o samba que fez o Brasil descobrir Noel
Rosa. Se a porta do teatro de revistas começou a abrir-se para Noel Rosa em
Deixa
Essa Mulher Chorar, escancara-se de vez com a proposta de Eratósthenes Frazão
logo após o carnaval.
Embora profissional do jornalismo, Frazão faz hoje incursões ao teatro e à
música popular. Nesta, atingirá a notoriedade no carnaval, daqui a oito anos,
com Florisbela,
em parceria com Nássara. Filho do maestro da Capela Imperial, Sebastião Alves
Frazão, traz a música no sangue. Nasceu em 1891 e seu nome é uma homenagem ao
astrônomo
e matemático grego Eratósthenes8. Altura mediana, elegante, bem moreno, cor de
índio, solteiro convicto. Quem o aproxima de Noel é o próprio Nássara que
recomenda
ao compositor procurá-lo nos bastidores do Teatro
161
trata-a com afeto, cerca-a de atenções. Martha também. Gosta muito de Clarinha,
ainda acredita que ela será a filha que não teve, a bonita e meiga professorinha
com que a vida presenteou Noel.
Com Fina, ficam as saídas noturnas no carro de Valuche ou de Malhado. Sempre a
quatro, pois não é problema para nenhum deles arranjar uma pequena que queira
fazer
companhia a Fina numa viagem de prazeres até o Alto da Boa Vista, Leblon,
Jacarepaguá e outros recantos desertos. Tudo escondido de dona Luísa,
evidentemente. E
dos outros moradores da casa da Rua Moju. Imagine se soubessem por onde anda a
travessa Fina...
Alegria já não faz parte desses passeios. Nem das serenatas. Como tinha dito a
Noel, seria capaz de qualquer coisa por Martha Clara. Até se casar. E foi
exatamente
o que fez, de repente, nos primeiros dias do ano. Comprou um carro de praça,
montou casa no Boulevard e para lá levou, apaixonadíssimo, Martha Clara, Nelson,
Walter,
Juquinha, os três filhos do comissário que criará como seus. Para Alegria, os
tempos de boêmia terminaram. Daqui a alguns meses - 22 de outubro de 1931 -
nascerá
o único filho de seu casamento. Chamará o amigo Noel Rosa para irem juntos
registrar o menino. E lhe fará uma surpresa.
- Sabe que nome vamos dar a ele?
- Não.
- Noel(10)!
-
NOTAS
1. Phono-Arte, 30 de dezembro de 1930 (página 25).
2. O contracanto "me convidou", que iria se popularizar e se incorporar
definitivamente ao samba, está presente apenas nesta segunda gravação. Na
primeira, Noel
não o canta.
3. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931.
4. Diário de Notícias, 19 de fevereiro de 1931.
5. Jornal do Brasil, 17 de fevereiro de 1931.
6. O Estado de S. Paulo, 22 de fevereiro de 1931.
7. Diário de Notícias, 11 de fevereiro de 1931.
8. Para dar entrada em seu processo de aposentadoria, Frazão obteve uma falsa
certidão na qual consta ser carioca de 1901. Na realidade, nasceu em 1891, fora
do
Rio de Janeiro, apesar de desconhecer-se o local exato, segundo informação de
seu amigo e advogado Bruno Ferreira Gomes. Na ocasião, ao procurar Bruno, Frazão
declarou:
"Em vida não cheguei nem aos pés do meu xará grego, mas parece que na morte vou
igualá-lo: ele terminou seus dias na miséria. Se você não conseguir me
aposentar,
vou acabar na maior merda!"
9. Diário de Notícias, 22 de fevereiro de 1931.
10. Noel Souza Pinto seria motorista profissional como o pai. Morreria
assassinado a tiros, no bairro carioca do Meyer, a 29 de outubro de 1980, por
três homens
com os quais tinha velha rixa.
163
Capítulo 17
Ninguém foge ao seu destino. Eu sou um exemplo: quiseram que eu fosse médico e
eu acabei sambista...
entrevista ao Diário Carioca
A poltrona de madeira do Cine Vila Isabel é desconfortável, mas mesmo assim Noel
Rosa dorme profundamente. Nem suspeita que lhe falam ao ouvido, primeiro
baixinho,
depois em tom mais alto, por fim aos berros:
- Noel! Ô Noel!
Duas mãos o seguram pela gola do paletó. Seu corpo, cinqüenta e poucos quilos de
magreza, é quase que guindado da cadeira. Já na sala de espera, começa a abrir
os
olhos, a reconhecer quem o chama.
- Noel! Acorda, Noel!
É Eratósthenes Frazão. Procurou-o por toda parte, perguntou por ele em todos os
esconderijos do Rio. Até que foi bater no chalé, onde dona Martha disse-lhe que
tinha
vindo ao cinema. Quem poderia imaginá-lo aqui, nesta matinée? E ainda por cima
dormindo?
- Você se esqueceu de mim?E os ensaios? - resmunga Frazão.
- Que ensaios? - pergunta ainda sonolento.
Noel Rosa não tem descansado nesses meses de março e abril. Só que a música
pouco tem a ver com isso. Passado o carnaval, são os livros que ocupam o tempo
do compositor
que acaba de conquistar a cidade. Livros de química, física, história natural.
Uma retomada de contato com as matérias que tanto trabalho lhe deram no São
Bento
e mesmo depois. Em suma, Noel Rosa tenta ser agora, no vestibular para a
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tão bem-sucedido quanto foi no último
carnaval.
Daí ter-se esquecido de Eratósthenes Frazão e tudo mais.
Quando ele começa a fazer as provas do vestibular, os ensaios de Café Com Música
já estão em andamento. Frazão divide mesmo com Maciel Pereira e Leo Grim a
autoria
dos sketches,
âuadros e cortinas. A parte musical está a cargo de Júlio Cristóbal, Sá Pereira,
Ary Barroso e, espera-se, Noel Rosa. No elenco, além de Aracy Cortes,
Mesquitinha
e ítala Ferreira, os astros principais, estão Luíza Fonseca, Affonso Stuart,
Jota Fegueiredo, Augusto Anníbal, Olga Bastos, João de Deus, Isabel Ferreira,
Edith
Falcão, Oscar Cardona, Henriqueta Brieba, a bailarina Leonor Pinto. A
coreografia é do professor Nemannoff. O teatro, como estava previsto, será mesmo
o Recreio,
onde já se ultimam os ensaios.
Noel é aprovado no vestibular. Tangenciando a média mínima exigida, consegue uma
parcimoniosa 3,6. Mas que importância tem isso se o resultado leva alegria aos
moradores
do chalé? É um acadêmico de medicina, um futuro doutor, um jovem caminhando para
abraçar a profissão do bisavô, do avô, do tio, uma tradição
165
Quem dá mais...
A exemplo de Gago Apaixonado, o próprio Noel gravará este samba. Mas só no ano
que vem. E com tal brilho que será impossível imaginá-lo tão bem cantado por
alguém
mais.
A revista de Eratósthenes Frazão e seus amigos é bem recebida. A crítica elogia
as atuações de Aracy Cortes, Mesquitinha, ítala Ferreira, todo o elenco. Acha
engraçados
os sket-ches, adequada a direção de João de Deus, bons os bales. Mas não vê com
muito entusiasmo a contribuição de Noel Rosa. Como acontece com este crítico
anônimo:
"A parte musical, se não tem originalidade, também não é inferior à de outras
revistas. Poder-se-á talvez fazer restrições ao excesso de roupas com que
vestiram
a revista e à distribuição feita à Sra. Aracy Cortes, que não lhe dá qualquer
oportunidade. Demais, um dos autores, o Sr. Noel Rosa, sendo, como é, um
sambista consagrado,
poderia ter encaixado entre aqueles 28 quadros um samba ao menos que lhe não
desmerecesse a nomeada que obteve com o famoso Com Que Roupa?."4
Pobre crítico a quem faltou paladar apurado o bastante para apreciar os
saborosos pratos que são Gago Apaixonado e Quem Dá Mais?.
Noel Rosa é mesmo um tangará desgarrado. Ou mais que isso. Desde fins do ano
passado, quando das gravações de Dona Aracy e Dona Emília, não se apresenta com
o conjunto.
Chegou até a confessar, nas entrelinhas de uma entrevista publicada no domingo
de carnaval, seu desejo de afastar-se de Almirante
167
e sua turma, tornando-se parte de um novo grupo musical a ser formado em Vila
Isabel:
"Este ano vamos representar o bairro de Vila Isabel com um 'conjunto junto' (não
repare a expressão) que se denominará Bacharéis da Vila, onde serão cantadas,
por
deferência de meus amigos, as minhas composições. Fui indicado para ser o
'diretor de cordas', e o Canuto será o diretor de tamborins e cuícas. Entre
outros companheiros
meus que fulguram no referido grupo, o Manuel Anacleto surge como um dos astros
de primeira grandeza no tamborim. E o Waldemar Corrêa (sic) voltará a cantar,
com
a voz trêmula de emoção: 'Eu tenho um sentimento profundo...'"5
Os Bacharéis da Vila ficaram na intenção (aliás, o nome do conjunto tinha
procedência, pois foi o primeiro carnaval de Noel como bacharel em ciências e
letras, enquanto
Anacleto já era acadêmico de direito desde 1930). Mas por que um novo conjunto?
E o que significa essa história de "conjunto junto"? Não estará junto, por
acaso,
o Bando de Tangarás ? É sempre difícil tirar conclusões confiáveis das
entrevistas de Noel. De qualquer modo, se considerarmos que os tangarás têm
gravado tão pouco
dele (Com Que Roupa? talvez ainda lhe esteja atravessado na goela) e que os
Bacharéis da Vila só cantariam músicas suas, é possível encontrar algum sentido
no projeto.
O fato é que Noel Rosa vai demorar algum tempo para reintegrar-se aos tangarás.
Passam-se abril, maio, junho, julho, e o máximo que o une a Almirante e seus
comandados
são encontros ocasionais nas esquinas do bairro ou em emissoras de rádio.
Durante esses quatro meses, o conjunto grava doze faixas para o selo Parlophon.
Com dez
delas Noel nada tem a ver. E as duas restantes, embora sejam composições suas,
foram soladas por gente de fora: Paulo Netto de Freitas, que grava Sinhá
Ritinha,
e a dama da alta sociedade, Lucilla, cujo disco de estréia tem de um lado Que
Mal Eu Fiz a Você, de André Filho, e do outro Agora, samba de Noel Rosa:
Agora,
quem chora é quem me fez sofrer
Eu bem sabia que tu ias padecer
Hoje te vejo penando
e procurando Quem queira contigo viver
Tenho certeza
De que pensas em voltar
Mas, que tristeza!
Jâ cansei de perdoar.
Tu foste embora,
Amenizaste minha vida,
Só por isso vou agora
Bendizer tua saída
Sempre vivi
Aturando desaforo.
Já decidi:
Não quero saber de choro,
Pois sou bem forte
E não lastimo estar a sós.
Cada qual com sua sorte:
Deus ajuda a todos nós.
Coração,
grande órgão propulsor,
Transformador do sangue
venoso em arterial
Coração,
não és sentimental,
Mas entretanto dizem
que és o cofre da paixão.
Coração,
não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
eis a verdade.
Tu és
pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade.
Coração
de sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio,
Mas não ataca o coração.
Conheci
um sujeito convencido
Com mania de grandeza
e instinto de nobreza,
Que por saber
que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
sem pensar no seu futuro.
Não achando
quem lhe arrancasse as veias,
Onde corre o sangue impuro,
169
Noel não fez muitos amigos na faculdade. Randoval Montenegro é um, a música mais
que a medicina aproximando-os. Randoval é pianista, também compõe, terá músicas
suas gravadas por Carmem Miranda e outros cantores . Carlos Henrique Fernandes é
outro. Herculano Mesquita de Siqueira, outro mais. Nicandro Ildefonso
Bittencourt,
mais um, a quem Noel confidencia a propósito de seu "samba anatômico":
- É a primeira vantagem que tiro da desgraça de ser obrigado a estudar medicina!
Uma vantagem que, segundo consta, nasceu após uma aula na Santa Casa, Noel e
alguns colegas parando para conversar no Café Nice. Ali, partindo de uma
descrição nada
poética do "cofre da paixão", feita por um dos assistentes do catedrático Fróes
da Fonseca, escreveu o samba. Uma lição mal-aprendida, diga-se, pois não cabe ao
coração transformar o sangue venoso em arterial. Noel gravou a letra com essa
impropriedade e tentou corrigi-la nas edições impressas, desta forma:
Coração, grande órgão propulsor, Distribuidor do sangue venoso em arterial...
Emenda pior que o soneto. Tempos depois, nova correção será feita por Noel, mas
não nestes versos. Num caderno escolar onde começa a guardar suas letras, faz de
próprio punho uma alteração no fecho do samba que jamais será gravada ou
editada:
Alguém capaz de trocar o seu sangue
Por azul de metileno
Pra ficar com sangue azul.
Cantar o seu bairro, a sua cidade, o seu país. Retratar os personagens que
trafegam por aí, focalizar os episódios que testemunha, captar o espírito de
tudo isso,
eis o destino de Noel Rosa, poeta e cronista. Neste 1931, mais cronista que
poeta, pois quase todas as músicas que lança têm sabor de crônica. Do Brasil, de
seus
absurdos, sua gente, suas contradições. Como em Quem Dá Mais?. Ou como neste
sugestivo Samba da Boa Vontade, de parceria com João de Barro. Sua perenidade é
de tal
ordem que daqui a mais de meio século ainda caberá como uma luva no país em que
Noel nasceu. Um samba que vale como uma aula de economia, Noel deixando claro o
que
pensa do capitalismo que acaba de se confirmar como o sistema escolhido pelos
neo-republicanos para administrarem o Brasil: os ricos podem gastar seu dinheiro
à
vontade, pois ele sempre acaba voltando às suas mãos. Um estranho país que
espera alcançar o grau de desenvolvimento dos europeus atirando o seu café ao
mar. E que
- como pede Getúlio Vargas, conservando seu sorriso - exige de seu povo não
apenas sacrifícios, mas acima de tudo boa vontade:
(Cordiais saudações!)
Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje sinto saudades Daqueles 10 mil réis que eu te emprestei.
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho,
170
Um chute na empregada,
Porque já se acabou o meu carinho.
Noel parece gostar muito deste samba que ele mesmo grava no selo Parlophon.
Tanto que continuará produzindo acréscimos que não chegarão ao disco, mas que
serão registrados
no seu caderno de letras. Neles, em vez de duplas leituras como as sugeridas
acima ("mostrador", "cabelo", "atrasado(5)*), Noel prefere falar da paz perdida
pelo
brasileiro por causa da hora e voltar a um velho personagem de sua história: o
credor.
O segundo samba sobre o tema, Por Causa da Hora, é ainda melhor. Tanto na
melodia
171
como na letra, Noel traduzindo o caos reinante em dois versos do mais absoluto
non sense, o brasileiro sem saber o que diz e o que faz:
Yvone! Yvone!
Eu ando roxo pra te dizer um picilone!
Já reparei outro dia Que o teu nome,
ó Yvone, Na nova ortografia Já perdeu o picilone.
É pra ganhar simpatia
Que todo mundo se abaixa
Pra te fazer cortesia
Com os olhos fora da caixa.
Tem uma vida folgada,
Não faz mais nada a Yvone,
Até já tem empregada
Para atender telefone.
Cansei de andar só de tanga,
Já perdi a paciência,
Fui te encontrar na Kananga(14)
Mas não me deste audiência.
Cronista de um país que, pouco mudando, continua passando fome. Drama que o
humor carioca, autocrítico e autodebochado, sempre pronto a gracejar da própria
desdita,
pode transformar em tragicomédia. É o que Noel faz com este
Não Me Deixam Comer, gravado pelo humorista de rádio e teatro Pinto Filho, que,
de pois de uma introdução falada em tom que chega a tornar-se pateticamente
lamuriento,
canta as tristezas de não poder dormir, gastar e comer nestes tempos de crise e
pobreza:
Todos brincam,
fazem farra,
gastam o Dinheiro.
E eu quero gastar mas não posso.
Ninguém vive sem comer.
Eu, no entanto,
Quero comer mas não posso.
Críticas políticas, frontais, abertas, com todos os pingos nos is, Noel Rosa não
é ousado o bastante para fazê-las. Nem ele, nem nenhum compositor destes tempos,
a maioria por sinal interessada em render homenagens ao novo presidente. Mas
sempre é possível recorrer ao duplo sentido, como faz Noel, com a cumplicidade
do Visconde
de Bicohyba e Henrique Vogeler, na marcha a que dão o nome de Tenentes... do
Diabo.
Visconde de Bicohyba - pseudônimo que Horácio Dantas adota desde que Humberto de
Campos o levou para trabalhar com ele na revista semanal A Maçã -1 com nossa
combinação
de jornalista, humorista político, boêmio e compositor popular de horas vagas.
Será parceiro de José Luís de Moraes, o Caninha, na buliçosa
É Batucada:
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
E o que queres tu que eu faça
Se o samba é minha cachaça
E a tristeza passa?
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Bateu meia-noite agora
E não queres ir embora
Jamais paro de sambar
Sem ver o sol despontar
Ela:
No samba vivemos nós dois
E viva Deus e chova arroz!
O resto vem depois
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Ele:
Ó morena feiticeira,
Coração de tamborim
Quando canta a noite inteira
Sem talvez lembrar de mim
Ela:
Se tu és bom brasileiro
E dançares bem assim
Seja alegre e prazenteiro
Venha pra perto de mim
Ele:
O samba sempre crescendo
Não é coisa que se faça
A lua se escondendo
Mostrando que tudo passa
Ela:
Se a lua se esconder
O sol começa a nascer
Pra não deixar morrer
Ele:
A lua no céu descamba
E tu ainda estás no samba
Os dois:
Oi, uma, duas, três e quatro,
Cinco, seis, sete, oito, nove, Dez e onze e
meia-noite Já passou... tudo acabou.
Quanto a Tenentes... do Diabo, também deve muito ao estilo teatral de Vogeler,
somado ao humor crítico de Bicohyba e Noel. Trata-se de uma brincadeira, meio
discursada,
meio cantada. Um jogo de palavras, os significados fazendo-se dúbios em vários
instantes (ver boxe). Os Tenentes do Diabo, a sociedade carnavalesca carioca,
confundem-se
com os tenentes da política; os Democratas, sociedade rival daquela, com os
democratas que começam a discordar dos rumos que toma a Revolução de 30; a
mudança dos
estatutos da mesma sociedade com a reforma da Constituição, anseio que vai
resultar em nova revolução no ano que vem; botar o carnaval na rua com pôr as
tropas nas
ruas outra vez. Também se confundem o preto e o vermelho, fascismo e comunismo,
nas cores dos Tenentes do Diabo e na própria indefinição ideológica reinante.
Num
aos trechos da parte discursada da gravação, Ildefonso Norat baixa
sugestivamente o tom de voz para dizer:"... sejam os mesmos intimados a remeter
à nossa secretaria
uma estampilha e dois retratinhqs, a fim de ver o que podemos fazer por eles..."
É a primeira - e não será a última - alusão encontrada em música de Noel Rosa a
um dos jargões demagógicos mais comuns do atual governo. Getúlio Vargas,
espertamente, determinou que as repartições públicas jamais dissessem "não" aos
que recorressem
aos seus balcões e guichês. O "não", sabe o novo presidente, é o maior inimigo
da popularidade, palavra proibida num governo que prega o sorriso, a esperança,
a
boa vontade. Por isso, não podendo dizer "sim" e não devendo dizer "não", o
funcionário da repartição sai-se invariavelmente com esta:
- Por gentileza, cavalheiro, traga-me uma estampilha e um retratinho três por
quatro que eu vou ver o que posso fazer pelo senhor. É claro que nada.
Os tangaràs juntam-se ainda uma vez em 1931 • A convite de Carlos Ribeiro de
Mello Leitão, tio de Alvinho e delegado de polícia em São José dos Campos, São
Paulo,
concordam em participar no dia 7 de setembro de um espetáculo em benefício da
Santa Casa de Misericórdia daquela cidade.
174
Tenentes... do Diabo
"- Peço a palavra, senhor presidente!
- Tem a palavra o líder dos Tenentes.
- Senhor presidente: eu que sou Tenente até a raiz dos cabelos, eu que trabalhei
para botar o carnaval na rua...
(Aclamação)
- ... não posso deixar de combater a reforma dos estatutos. Primeiro, por
considerá-la inoportuna, contrária mesma aos reais e superiores interesses de
nossa sociedade...
(Aclamação)
- ... e segundo, por partir tal proposta de um grupo de derrotistas que de há
muito, senhor presidente, já devia ter sido eliminado do nosso quadro social...
(Aclamação)
- ... pois o que eles querem, senhor presidente, vossa excelência sabe
perfeitamente, é voltar ao regime da politicagem, é entrar de novo nas
"comidas", é transformar
isso aqui em Kananga do Japão, onde nem haja... pão!
(Gargalhadas)
- Ademais, senhor presidente e caros consórcios, esta reforma traz o rótulo
Democrático!
(Exclamação)
- Portanto, é o bastante para ela cair, ainda que seja necessário botarmos
novamente o carnaval na rua!
(Aclamação)
- Por isto, senhor presidente, como líder que sou da maioria dos Tenentes,
declaro votar contra a reforma dos nossos estatutos e ainda proponho não só a
eliminação
dos signatários da proposta em discussão, como também sejam os mesmos intimados
a remeter à nossa secretaria uma estampilha e dois retratinhos, afim de ver o
que
podemos fazer por eles... nesta marchinha que não é deste, senhor presidente,
mas sim do outro mundo...
(Aclamação)
Três semanas antes, Noel faz duas gravações do seu Cordiais Saudações, uma
acompanhado pela Orquestra Copacabana, que ele rejeita chegando a escrever sobre
o selo
branco do disco de prova: "Não gostei, horrível!"16 A outra, com o Bando de
Tangarás (na verdade apenas o piano de Eduardo Souto e o violão de
Henrique Britto por sinal num soberbo diálogo instrumental), é a que vai ser
editada. Aproveitando a viagem, Almirante leva na bagagem o disco de prova dessa
segunda
versão.
Homem cheio de truques e idéias, sempre engendrando um modo de se promover e ao
grupo que lidera, Almirante imagina um quadro para ser apresentado durante o
espetáculo
beneficente. Lembrando-se de que no final da gravação, para rimar com "podendo,
manda-me algum...", Noel conclui com a data "7 de setembro de 31", arma toda uma
cena. Consegue uma vitrola emprestada com o delegado, leva-a para o palco e, lá
pelas tantas, anuncia à platéia que os tangarás vão gravar um disco. Sim, aqui
mesmo,
no palco. E agora. Faz uma longa exposição técnica, falando de microfones,
válvulas, agulhas, ceras e outros aparatos, e em seguida pede silêncio. Os
tangarás, Noel
solando, interpretam Cordiais Saudações. Terminado o número, Almirante põe o
disco de prova na vitrola, pede novamente silêncio e reproduz "o que se acabou
de gravar".
O teatro vem abaixo, impressionado com esta mágica de se fazer um disco de
maneira tão simples. A esperteza de Almirante vale mais um ponto à reputação do
conjunto.
Uma breve estada em São José dos Campos, breve e tranqüila, só agitada pelos
gritos que Almirante e os outros ouvem na hora de dormir. Todos, quase ao mesmo
tempo,
correm a abrir as portas de seus quartos. O que será? Constatam, pasmos, que
Noel Rosa simplesmente assusta os outros hóspedes da pensão, correndo sem roupa
pelo
corredor. O que terá havido? Estará bêbado? Terá saído às pressas de alguma
alcova proibida? Uma cena inesquecível que ninguém jamais chegará a entender, os
bem-comportados
tangarás com os olhos arregalados de espanto, Noel correndo de um lado para
outro. Nu.
175
NOTAS
1. Ver nota sobre Vaidosa na relação das obras de Noel Rosa no final do volume.
2. O Cruzeiro, 27 de agosto de 1932.
3- O Grande Concurso Nacional Monroe, patrocinado pela Companhia de Fumos Veado
com o apoio do Diário da Noite, mexeu com a cidade em meados de 1930. Diante de
multidões
de curiosos, caminhões repletos de sacos contendo votos (maços de cigarros
Monroe, Palace, Rio Chie, Royal Club, Icarahy, Yankee e Cascatinha) chegavam
todos os
dias à sede da fábrica, à redação do jornal e ao Teatro Lyrico, onde ficavam as
urnas. Numa edição extraordinária de 4 de junho daquele ano, o Diário de
Notícias
divulgava o resultado final: primeiro Russinho, do Vasco da Gama, com 2 milhões
900 mil 649 votos; segundo Fortes, do Fluminense, 2 milhões 481 mil 483;
terceiro
Filo, do Corinthians Paulista, 722 mil 563; quarto Friedenreich, do São Paulo,
319 mil 563. Russinho, Moacyr de Siqueira Queiroz, recebeu sua barata Chrysler
numa
festa no Teatro Lyrico que teve como
mestre de cerimônias o ator e cantor Raul Roulien.
4. De um recorte colado por Noel em seu álbum, sem indicação de data e nome do
jornal, mas certamente de abril de 1931.
5. Diário de Notícias, 15 de fevereiro de 1931. O jornal erra ao chamar o
Waldemar Coroa de Waldemar Corrêa.
6. Produção de 1931 da Metrópole Films, São Paulo. Baseado no romance de José
de Alencar, direção de Jorge Konchin, com Dona Fleury, Irene Rudner, Álvaro
Lacerda,
Diogo Miranda e Carmo Nacarato nos papéis principais.
7. A Rua General Câmara é uma das que desapareceram para dar lugar à atual
Avenida PresidenteJVargas.
8. Lauro de Abreu Coutinho realmente se formaria em medicina, tornando-se
conceituado radiologista com clínica no Rio. Foi em seu consultório, na Rua
Alcindo Guanabara,
durante um dos dois longos depoimentos feitos aos autores, que ele recordou o
encontro com Noel na esquina da Avenida Passos com General Câmara.
9- Os arquivos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atual Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, são elucidativos. Neles - e
em
depoimentos vários - os autores se basearam para desfazerem a equivocada
afirmativa de que Noel Rosa parou no segundo ou no terceiro ano, quando na
verdade o fez
na metade do primeiro.
10. Só Carmem Miranda gravou quatro composições de Randoval Montenegro, a
melhor delas Para Um Samba de Cadência.
11. Frase citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, segunda edição (página
103), e confirmada aos autores pelo Dr. Nicandro Ildefonso Bittencourt.
12. Foi em junho de 1931 que, pressionado pelos produtores, Getúlio Vargas
determinou que se queimassem ou atirassem ao mar cerca de três milhões de sacas
de café
estocadas por falta de comprador. Ir à Europa num aterro de café é imagem que
pode ser tomada em pelo menos dois sentidos: o literal, isto é, o de um país
perdulário
destruindo o seu principal produto; e o figurado, o café servindo para aterrar o
oceano que separa o subdesenvolvido Brasil da adiantada Europa. Sonho antigo,
diga-se.
13. Na gíria da época, picilone, forma popular de ípsilon, queria dizer elogio,
lisonja, galanteio.
14. Sociedade Familiar Dançante e Carnavalesca Kananga do Japão. Funcionou
primeiro na Barão de São Félix e depois na Senador Euzébio. É a mesma do
trocadilho "haja...
pão" da parte discursada de Tenentes... do Diabo (ver boxe neste mesmo
Capítulo).
15. José Ramos Tinhorâo, em cuja Música Popular - Teatro & Cinema foi colhida a
maioria dos dados aqui expostos sobre Henrique Vogeler, é um dos que defendem
tal
primazia para o compositor. Diz ele em sua Pequena História da Música Popular -
da Modinha à Canção de Protesto (páginas 151-152): "A paixão de Henrique Vogeler
se explicava, naturalmente, pela consciência de ter criado alguma coisa de novo
para a época, em termos de canção. E a prova estaria em que, apesar do Linda
Flor
ter passado despercebido no teatro, Vogeler ia fazer com que o cantor Vicente
Celestino o gravasse imediatamente em disco Odeon, de selo azul, quando aparece
pela
primeira vez numa etiqueta a expressão
samba-canção brasileiro."
RISO DE CRIANÇA
Capítulo 18
Martha sabe o filho que tem. Inteligente, sensível, carregando sobre os ombros o
peso de grande experiência de vida, desde os tempos em que lhe cabia empunhar
sozinha
a bandeira da família, tem consciência de que a medicina não empolga Noel tanto
quanto o samba. O que não a impede de lutar contra isso. Em casa, esquecendo-se
talvez
de que o filho já tem vinte anos e idéias próprias, procura policiá-lo. Exige
que se sente diante de livros e apontamentos das matérias da Faculdade, tenta
evitar
que se afaste do chalé por muito tempo, continua a trancar o armário para que
não possa vestir o melhor terno, a melhor camisa, e sair em busca de mais uma
noitada.
Em vão. Noel, como sempre, tem uma coleção de esquemas, artimanhas e desculpas
para vencer a vigilância da mãe. Uma delas, a vizinha e amiga Dorica.
Theodorica dos Santos Lima mora duas casas à direita de quem sai do chalé.
Uma construção antiga, em centro de terreno, herdada por ela, as irmãs e a prima
Sílvia da avó Rosa Pinheiro Guimarães. E mesmo amiga de Noel, o seu salvo-
conduto
para a madrugada. Ele guarda em sua casa um terno, uma camisa e uma gravata para
essas ocasiões em que Martha tranca o armário. Pula o muro para a vila ao lado,
emerge na Theodoro da Silva, caminha na ponta dos pés até a casa de Dorica, muda
de roupa e sai para uma boêmia bem mais agradável do que o estudo de ossos,
músculos,
nervos, órgãos e tecidos.
Dorica é um tipo diferente, os cabelos muito curtos, quase raspados, os gestos
viris contrastando com o corpo miúdo e magro. Veste-se sem vaidade, fuma muito.
É
e será uma das moradoras mais conhecidas do bairro. De poucos sorrisos,
participante, com nítida ascendência sobre as pessoas à sua volta, sobretudo
Sílvia. Viverão
juntas para sempre. Noel gosta de Dorica. Costuma aparecer em sua casa para
pedir pão dormido.
-Já sei, Noel, é para o burro.
Dar pão dormido ao burro da carrocinha de leite - e até dizer-lhe palavras
amáveis ao ouvido - é uma das manias de Noel:
- Burrinho, burrinho... Até hoje não sei quem é mais burro, você ou eu.
Adora burros e a eles dedicará uma série de pensamentos que reúne desde 1929 num
caderno escolar.
Martha sabe o filho que tem. E não se ilude. No íntimo está convencida de que,
cedo ou tarde, ele mandará a medicina às favas.
Meus Pensamentos
• Os burros aceitariam, com mais satisfação, o verdadeiro comunismo, do que os
homens!
• Dizem que o burro fica admirado diante de um palácio. Será que se admira de
ver a desigualdade que existe entre os homens? Ou a fragilidade das construções?
• Quem sabe se o burro não será quem mais se interessa pela descoberta do
modo-contínuo?
• Qual o crime que o burro cometeu para ser condenado a trabalhos forçados?
• Um burro se sentiria melhor entre grades do que entre os varais.
• Os burros nascem para cumprir destinos iguais.
• Nós só esperamos de um burro... um coice. O burro nada espera de nós.
• Se um burro pensasse... oferecia capim ao carroceiro.
• Se alguns carroceiros soubessem a força que têm... despediriam o burro e
puxavam de boa vontade a carroça.
• Se o burro faz força para puxar a carroça para a frente... é porque a carroça
faz força para puxar o burro para trás. Se o burro faz força é porque existe o
chicote.
O dia que o carroceiro não espancar mais o burro... as carroças vão andar de
marcha a ré.
• Com que superioridade um burro pisaria em uma nota de cem mil réis?
• Ninguém sabe se o burro tem vocação para puxar carroça.
• O burro só tem uma satisfação: não segue a profissão forçado pela sua família.
• Um burro olha para um cavalo de corrida com menos inveja do que um estivador
olharia para o Paavo Nurmi.
• O burro daria de boa vontade o seu nome a um chefe de família.
• Se um burro soubesse dar abraços, não gastava sua energia dando coices nos
inimigos.
• O burro goza grande popularidade. Quem não o conhece pessoalmente, conhece de
nome. E há pessoas que têm intimidade com ele.
Psicologia das massas:
•Jack Dempsey - "massa bruta"; Peixe - massa de tomate; índio Aymoré - massa
alimentícia; tacape - massa de briga; Assembléia - massa popular; "3a. Corista"
- massa
de vidraceiro; Ruy Barbosa - massa cinzenta; Padeiro - amassador das massas;
Rockeíeller - o homem das "massas"; Tapa-alvo - "massa de mira"; Sogra - massa
falida.
• Um gatuno seria um ótimo policial se... fosse bem pago.
• Mais vale ir almoçar em casa de um parente do que trabalhar para ganhar o
insuficiente.
• O lavrador mais honesto é muito menos gentil e agradável do que o maior
gatuno.
• A vocação é necessária até para se dar um laço na gravata.
• Qualquer autor pode, sem receio, desafiar um crítico profissional do folclore
brasileiro - para fazer versos estudados ou improvisados.
• Os garis falam mal dos deputados: Nunca vi um deputado falar de um gari!
• A idéia mais original é sempre expressa por gestos e palavras comuns.
178
Mas o que realmente assinala a presença de Noel Rosa nesta revista, estreada a
24 de julho de 1931 com Margarida Max no principal papel, é a letra que escreve
para
a música composta por Ary com vistas a um quadro dedicado aos bravos navegadores
que levam a vida desafiando as incertezas do mar. É uma letra claramente
otimista,
mas com duplos sentidos bem à maneira de Noel, as expressões "mão no remo" e
"mete a vela" empregadas, habilmente, com significados ambíguos. Sílvio Caldas -
que
nesta mesma revista canta Cordiais Saudações, sentado a uma mesa, fingindo
escrever uma carta ao amigo devedor - é quem lança soberbamente o samba de Ary e
Noel,
Iça Vela, mais tarde reintitulado
Mão no Remo.
Nesta vida, nesta vida,
Cada qual tem um barco em que navega
E o azar é natural
Nem há nada mais fatal
E a justiça é cega
Mas se os ventos sopram contra,
Ou se vem a tempestade
Nunca mais o barco encontra
O porto da felicidade.
Mão no remo! Mão no remo!
Com toda coragem
Pra levar vantagem
No mar desta vida
Pois se queres ser feliz no amor,
Tens que remar com ardor.
Mete a vela! Mete a vela!
Quando for a hora
De ir mar afora
Em busca da sorte
Aproveitando a maré
a favor Terás pra sempre valor.
Este samba - primoroso - não renderá a Noel mais do que 50 mil réis, importância
em troca da qual ele cede seus direitos autorais ao violinista Rogério
Guimarães.
Mas não faz mal. Vale pela parceria.
É evidente que a musicalidade de Ary impressiona Noel. Seus sambas, melódica e
ritmicamente originais,- instigam o jovem poeta de Vila Isabel. Do contrário, ao
ouvir
num dos quadros de Vai Com Fé, revista estreada no mesmo Recreio a 12 de agosto
de 1932 (portanto, daqui a um ano) um samba com música e letra de Ary e nada
menos
de três títulos {Santa Padroeira, Zélia Fortunata e Não Tem Bandeira), não se
sentiria tentado a criar para ele nova letra.
Manteve o refrão e, com a permissão de Ary, escreveu novas segundas partes,
rebatizando o samba como De Qualquer Maneira:
Infelizmente Noel e Ary farão apenas três sambas juntos3. Todos excelentes. É
que seus habitats são muito diversos, Ary mais próximo do pessoal do teatro, de
uma
classe média mais refinada, jamais se misturando à gente do morro, pouco
freqüentando o Café Nice (prefere fazer ponto no Rio Branco, ali na Rua São
José, onde se
reúne a turma de futebol do Flamengo, uma das suas grandes paixões). Vive enfim
em outro sistema planetário, tocando piano em festas grãfinas, cultivando uma
boêmia
mais moderada, em nada parecida com o quase submundo em que anda Noel.
Clarinha e os irmãos estão morando novamente em Vila Isabel. Numa casa de vila
da Rua Gonzaga Bastos, a poucos passos do Boulevard. Não só por ser mais
econômica,
mas também por ajudá-los a afugentar a triste lembrança da morte de dona Clara.
Para Clarinha, principalmente, mudança oportuna. Menos de três quarteirões de
caminhada
e ela já está no chalé. Trabalhando, ajudando dona Martha, mais perto de Noel.
Engano. Assim como a ida para o Engenho Novo não os afastou, a volta para Vila
Isabel não os aproxima. Já são quatro anos de namoro, um indefinido
relacionamento
em nada parecido com os namoros convencionais. Quatro anos e ela continua sem
saber ao certo o que são, como estão, para onde vão. Às vezes acha que ele a
ama. É
delicado, carinhoso, tem uns olhos cheios de ternura. É capaz de gestos
românticos, como aquele retrato em forma de coração, e faz para ela apaixonadas
serestas.
Às vezes, porém, convence-se do contrário, Noel desaparecendo, ficando semanas
sem procurá-la, não lhe dando sequer uma desculpa. Tímida, é incapaz de
perguntas
diretas, talvez com receio de receber respostas também diretas. Sabe lá qual é a
verdade
que Noel guarda sobre este namoro? É uma moça afogada em dúvidas.
Tem conhecimento da existência de Fina, de que Noel quase sempre a deixa no
portão de casa e toma o rumo da Rua Moju. De início, sofria mais, ia para o
quarto chorar,
sentia que o havia perdido. Mas logo aparecia alguém - uma irmã, uma amiga ou
mesmo dona Martha - e a tranqüilizava:
- Não liga, não, Clarinha. Assunto com moça azougada não dura um verão. Homem
que vê muita vantagem acaba enjoando.
Outro engano. Noel jamais enjoará de Fina, o "assunto" entre os dois durando
quantos verões ela queira. Pois enquanto Clarinha vive mergulhada em incertezas
- que
cedo ou tarde se transformarão numa única e doída certeza, ou seja, de que pode
ser que ele a ame, mas nunca se casará com ela - Fina nem pensa nessas questões.
Gosta da vida, quer aproveitá-la o quanto saiba, ser livre o quanto possa. E
esta sede de liberdade é o que mais prende Noel.
Um namoro é muito diferente do outro. Com Fina, não há cerimônias, nem irmãos de
cara feia, nem compromissos implícitos do tipo "namorou é pra casar". Noel é
freqüentador
da casa da Rua Moju, ele que nunca pôde pôr os pés além da porta da casa dos
Corrêas Netto. Já conquistou a todos com o seu sorriso, sua conversa,
suas histórias, suas canções. Dona Luísa o venera, vive atrás dele com
cafezinhos, broas de mi lho e outros agrados. Também gosta de ouvi-lo cantar:
- Noel, meu filho, senta aqui. Como é mesmo aquela música?
Dona Iracema é quem guarda, com todo carinho, seu violão. Uma guardiã valiosa
nestes dias em que a mãe vive a trancar-lhe o armário, a esconder-lhe o caderno
de
músicas, os esboços, o violão.
-Dona Iracema, cuide bem da minha ferramenta de trabalho.
Noel sente-se bem neste ambiente familiar, a casa sempre cheia, ele podendo
entrar e sair à hora que bem entende. Mas seu namoro com Fina não se limita a
isso. Nem
às serenatas, ou às conversas na varanda, ou às festinhas que de vez em quando
os vizinhos dão. Noel e Fina geralmente namoram muito longe dali, na Barra da
Tijuca,
em Jacarepaguá, no Leblon. Vão no carro de Valuche ou Malhado, cada qual com sua
pequena. Passeios longe, demorados, naturalmente às escondidas de dona Luísa, do
center-half Zeca, de toda a família, Fina sempre dizendo que foi à casa de uma
amiga, que vai voltar tarde, ou mesmo não voltar. É dessas vantagens que Clara
ouve
falar. Imagine uma moça de dezesseis, dezessete anos dormindo fora de
182
Com a ajuda de Viramundo é fácil para Noel seguir Fina, descobrir onde ela
trabalha. Certo dia, à hora do almoço, passando pela Barão de Mesquita, ele a vê
com uma
marmita na mão, à porta da América Fabril. Não sabendo que ela leva a refeição
para Bazinha, supõe que trabalhe ali. E passa a esperá-la, todos os dias, à
saída
da fábrica. Claro, pura perda de tempo. Saem homens, saem moças, sai Bazinha,
mas não Fina. Alguns meses terão se passado até que Noel
saiba onde é.
- Um dia te conto - diz ela matreiramente.
Fina faz longa caminhada de sua casa até a Hachiya. Desce a Moju, toma a Barão
de Bom Retiro, atravessa a Visconde de Santa Isabel, passa pelo Largo do Verdun
e
entra na Barão de Mesquita. Um estirão. Faz isso de manhã cedinho, ao lado da
irmã, e às cinco da tarde, quando volta sozinha. São moças pobres que almoçam de
marmita
(é Fina quem leva todos os dias o almoço para Bazinha) e jantam em casa, arroz,
feijão, macarronada, num prato fundo que dona Luísa prepara. Usam roupas
modestas,
sapatos baixos, sem meias. E pouca pintura. Mas não têm de se envergonhar do que
fazem, do trabalho humilde, de serem operárias de fábrica. É pensando nesta Fina
que se esconde - e pensando com muito enternecimento - que Noel escreve um samba
eterno:
Três Apitos.
Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê.
Tanto Noel insiste que Fina acaba lhe dizendo onde trabalha. Como previa, para
que ele por lá apareça com muita freqüência, roubando-lhe um pouco da liberdade.
Num
fim de tarde, à saída da fábrica, o contramestre Jerônimo Feliciano da
Encarnação - que há muito vem cercando Fina de propostas e galanteios - aponta
para Noel e
diz:
- Olha lá o seupoetinha. Está te esperando, de novo.
Fina fala a Noel sobre o assédio do contramestre e novos versos são
acrescentados a Três Apitos:
Não há dúvida, dona Martha sabe o filho que tem. O fim do ano vai chegando, os
estudos abandonados, a matrícula trancada, nenhum indício de que Noel pretende
retomar
o curso em 1932. Seu Medeiros, cada vez mais mudado, pouco diz. Ao contrário de
tia Carmem, que vem de Belo Horizonte inconformada.
- Cantor de rádio? Isso não é profissão. Suas palavras são as mais veementes, de
pura indignação por saber que o sobrinho está propenso a virar as costas à
medicina. E para quê? Para fazer sambas. Não há nada mais fora de propósito.
Ouve-se tio
Eduardo. Surpresa: ele não desaprova o sobrinho. Ouve-se também o Dr. José Graça
Mello, padrinho de Noel, o médico que o viu nascer. Quem sabe ele não o convence
a tomar juízo? Outra surpresa-.
- Noel está certo. Antes ser um bom sambista que um mau médico.
A reação familiar não conduz a nada. Noel logo sai para a noite, deixando atrás
de si uma família desapontada. O que fazer? O importante, como padrinho diz, é
seguir
seu destino. A noite, as estrelas, a liberdade. E por falar em liberdade, passa
pela casa de Fina. Encontra-a à mesa com a irmã, as tias, a avó. Comem todos em
prato
fundo.
184
Luísa.
- Está servido, Noel? - pergunta dona NOTAS
- Obrigado, já jantei.
Pra quem detesta comer, o prato fundo é um suplício. Diz isso a Fina, que solta
uma gargalhada. Depois, para homenagear toda a família e seu portentoso apetite,
compõe uma marchinha que João de Barro o ajudará a terminar:
Prato Fundo.
Se como tanto
Aprendi com a minha avó
Na minha casa
Só se come em prato fun-de-o-dó
A minha mana
Para inteirar o almoço
Come casca de banana
Depois engole o caroço
E o meu titio
Faz vergonha a todo instante
Foi ao circo com fastio
E engoliu o elefante
A minha tia
Já engoliu uma fruteira
Estou vendo ainda o dia
Que ela almoça a cozinheira
E depois disso
Leva sempre a dar palpite
Toma chumbo derretido
Para abrir o apetite
Meu bisavô
Que era um índio botocudo
Devorou a tribo inteira
Com pajé, cacique e tudo
E a minha avó
Que comia à portuguesa
Reduziu dois bois a pó
E ainda quis a sobremesa
Todos gostam da música de Noel na casa 5 da Rua Moju. Inclusive Fina, que quando
está de bem com ele trata com carinho o violão.
- Quer aprender a tocar?
Assim, enquanto todo o mundo no chalé se amofina só em pensar no médico que a
família perdeu, Noel senta-se no meio-fio com a namorada, passa o braço por trás
dela
e ensina-lhe as primeiras posições.
Seu riso de criança Que me enganou...
Notas:
1. Coisas Nossas estreou no Eldorado a 30 de novembro de 1931- Produção do
americano Wallace Downey, utilizava o sistema Vitafone, isto é, o som gravado
num disco
comum de vitrola e sincronizado ao movimento dos lábios de atores e cantores. No
elenco, Procópio Ferreira, Baptista Júnior (pai de Linda e Dircinha Baptista),
Jayme
Redondo, Jararaca & Ratinho, Paraguaçu* Gaó, Zezinho, Arnaldo Pescuma, Napoleão
Tavares e sua Orquestra, Corita Cunha, Zezé Lara, Helena Pinto de Carvalho,
Stefana
Macedo.
2. Na gíria da época, estifa, palavra não-dicionarizada, significava elegante,
alinhado, bem-vestido. Sua origem está provavelmente no adjetivo inglês stiff,
no
sentido de duro, rijo, firme, esticado, ou mesmo de formal, afetado, como os
malandros costumavam ser.
3. A terceira colaboração Ary Barroso-Noel Rosa, Estrela da Manhã, será
estudada no Capítulo 27.
4. Há muita confusão em torno deste samba, em especial sobre quem seria sua
inspiradora. Mas é certo que foi mesmo Fina. Diria Noel em entrevista ao Diário
Carioca
de 4 de janeiro de 1936: "Três Apitos resume o romance mais sincero de minha
vida gloriosamente romântica..." Que outra operária de fábrica se encaixaria
nessa declaração?
A confusão parece ter crescido quando se sabe que nem a América Fabril nem a
Hachiya tinham apito, enquanto a Confiança, perto da casa de Noel, esta sim
emitia nada
menos de sete silvos diários. Esses detalhes, porém, não mudam nada. Não
significam que a musa de Noel trabalhasse na Confiança. Apenas, como está claro
na letra,
ao ouvir o apito da fábrica, ferindo seus ouvidos, ele se lembrava da amada.
Quanto aos "três apitos" do título, eram os primeiros que a Confiança fazia soar
de
manhã, um às 5 horas e 45 minutos, para despertar os operários que moravam nas
redondezas; outro às 7, longo, de uns 20 segundos de duração, marcando a hora de
entrada;
e o terceiro às 7 horas e 45 minutos, curto, a que chamavam de "pu". Queria
dizer que quem chegasse depois dele perdia o dia.
185
Capítulo 19
E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto
É Preciso Discutir
alto, magro, elegante no smoking sob medida, bem penteado, bem barbeado,
simpático, sorridente, Francisco Alves tem a aparência de um gentleman. Quem o
vê no palco,
dominando a platéia não só com sua voz e seu estilo, mas sobretudo com uma
personalidade que há de incluí-lo entre os mais carismáticos ídolos de toda a
história
da música popular brasileira, quem o vê no palco, enfim, seja cantando um samba
do Estácio:
Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz
...seja uma nostálgica canção sua e de Horácio Campos:
Saudades infinitas me devoram Lembranças do teu vulto que nem sei...
... é sempre tomado da mesma emoção. É um artista raro, desses que estabelecem
entre sua arte e o público uma ligação íntima, indesatável. Um dia seu amigo e
companheiro
de dupla, Mário Reis, definirá essa ligação como "pura mágica"1, à qual nem
mesmo os músicos que o acompanham conseguem ficar indiferentes:
-Às vezes, quando Chico abre aquele vozeirão, me dá vontade de chorar- confessa
Tute, cujo violão tem emoldurado com freqüência a voz de Francisco Alves.
Grandes cantores surgiram antes dele. Vicente Celestino, para citar apenas um. E
muitos outros surgirão depois. Cantores de voz mais bonita, de técnica mais
apurada.
Alguns serão mais reconhecidos como intérpretes, outros terão repertório mais
selecionado. Cantores cujo cartaz subirá a alturas inimagináveis: terão suas
roupas
rasgadas pelos fãs, serão carregados por multidões em praça pública. Mas nenhum
conseguirá
manter-se por tanto tempo no auge. Francisco Alves cumprirá, até o final de seus
dias, uma carreira longa, sem curvas, sem oscilações, permanentemente no topo2.
É, sem dúvida, a grande estrela da música popular destes dias. Há quem lhe
exagere a importância ao afirmar que, Midas a converter em ouro tudo que toca,
ele possui
o poder de transformar em sucesso tudo que canta. Não é bem assim. Mas pode-se
dizer que muitas das canções que o povo tem consagrado ultimamente só se
tornaram
populares por causa dele, de sua voz e carisma. Francisco Alves é um cantor que
vale por dois. Literalmente. Grava discos com o próprio nome na Odeon e com o de
Chico Viola na Parlophon. Desta vez não há exagero
187
Bom exemplo de que nem tudo que Midas toca vira ouro. A marchinha - na verdade
meio marcha, meio fox-trot - não será muito cantada no carnaval de 1932 e depois
disso
cairá no esquecimento. Mas a possibilidade de ter outras composições suas
incluídas no repertório de Francisco Alves não pode deixar de atrair Noel. Nesse
ponto
ele não é diferente de ninguém. Pouco importa que muita gente diga que o cantor
é homem para se manter longe, difícil, nada parecido com o elegante e simpático
artista
que se vê no palco, grosseiro até a violência, ambicioso até a avareza, capaz de
tudo quando quer alguma coisa (até de passar para trás o melhor amigo),
inescrupuloso,
insensível, menos gentleman que cafajeste, mais demônio que anjo.
- Há muita inveja em tudo isso - diz Almirante, um dos que mais defendem
Francisco Alves dos maledicentes.
- Verdade-garante Gastão Cottini. - Tudo isso e muito mais.
Cottini - barítono que vende partituras musicais nos subúrbios para custear os
estudos que lhe darão um lugar no coro do Teatro Municipal - odeia Francisco
Alves.
Inveja? Não neste caso. Jamais esquecerá o episódio acontecido à porta do Nice.
Estava conversando com dois amigos, o contra-regra Fernando Pereira e o futuro
médico
homeopata Alberto Ribeiro (que ainda não se sabia destinado a tornar-se um dos
grandes poetas da música popular), quando Francisco Alves passou distraído. De
repente,
tropeçou não se sabe em que, saiu catando cavaco, quase foi ao
188
que nunca mais me largou o resto da vida: a fama de avarento. Sinceramente nunca
o fui..." Do que o pessoal do meio artístico discorda: segundo eles, Francisco
Alves
é mais pão-duro que o próprio Pão-Duro(6).
Não o acham nada elegante e educado aqueles que têm oportunidade de com ele
sentar-se à mesa. Toma ruidosamente sua sopa, mete a mão no prato do sujeito ao
lado,
cospe no chão. Mais por cacoete do que por necessidade, jamais perderá a mania
de pontuar suas frases com duas cusparadas. Às vezes de verdade, mas quase
sempre
em seco. "Puxa, até na hora de cuspir ele é econômico!", dizem no Nice.
É um inimigo da bebida. Acha que essa história de ingerir copos e copos de
cerveja, cálices e cálices de conhaque, para amaciar a voz, como dizem alguns
cantores,
ou para puxar a inspiração, como querem certos compositores, é pura balela. É um
procedimento antiprofissional. Detesta bêbados, é impaciente com eles. Pó? Bem,
isso é outra coisa. Se volta e meia navega por essas águas, não é para amaciar a
voz ou puxar a inspiração, mas para estar rigorosamente dentro do figurino da
alta.
Não era raro entre os
grãfinos, os intelectuais, os boêmios mais refinados da década de 20 cheirar
cocaína, mergulhar a cara no éter, ou até experimentar as sensações do ópio.
Francisco
Alves já era boêmio naquela época, só que lhe faltava dinheiro para diversões
tão caras. Se a moda da boêmia mudou (e o pessoal de agora prefere a cachaça, a
cerveja,
a embriaguez barata que se compra em qualquer botequim), ele fica com a de
antigamente, mais refinada. Mas não haverá nisso uma contradição, o migalheiro
Francisco
Alves optando justamente pelo mais caro? Os maledicentes dizem que não: todo o
pó que ele consome, sem ser um viciado, lhe é conseguido de graça por um parente
de
sua mulher. Não será por isso que ele está tanto tempo casado com ela? Tudo é
motivo para maledicências. Inveja, repete Almirante.
Mas a maior acusação que se faz a Francisco Alves é a de que vive a explorar
sambistas do morro, comprando-lhes parceria. Claro, Francisco Alves não é o
único a
fazer isso. Muitos outros merecem o nome que o pessoal do Nice lhes dá:
"comprositores". Quer dizer, compram em vez de compor. Mas Francisco Alves,
neste particular,
é o mais ativo, o mais vivo. Ismael Silva, Nílton Bastos, Alcebíades Barcellos,
de quanta gente ele tem comprado parceria, colocando seu nome nos selos dos
discos,
nas partituras, em toda parte? E às vezes só o seu nome, condenando o verdadeiro
autor ao anonimato. Faz isso com tanta freqüência que se pergunta por aí se
serão
mesmo suas canções tão bonitas como Lua Nova e A Voz do Violão.
Por último, a terceira história. Francisco Alves, sempre tão falante, é quase um
túmulo quando se trata de sua vida amorosa. Vive com Célia Zenatti há mais de
dez
anos, mas antes disso foi casado, de papel passado e tudo, segundo consta, com
uma mulher que ele tirou de uma espelunca da Lapa (e que ainda lhe dará muita
dor
de cabeça).
Mas Francisco Alves não gosta de falar disso. E fica furioso quando o fustigam
com outras provocações, a sua atração por menininhos, a história de ter currado
um
mendigo que dormia debaixo da ponte, só para ganhar uma aposta (de que não é
capaz o velho Chico para abiscoitar um dinheirinho extra?), e muito
especialmente a
sua esterilidade, que ele cometeu o erro de confidenciar a alguém e hoje é
assunto maldosamente sussurrado por seus inimigos, que em torno dele inventam
mil e uma
histórias, piadas, lendas(7).
Histórias, meias-verdades, certezas imersas em interrogações. Tão contadas e
repetidas que quase fazem esquecer a única coisa que realmente importa, a única
que
ninguém discute:
190
autor de Vou à Penha, não exerce a profissão. Nem precisa. Será muito mais
"doutor em samba" - apelido que lhe dará Custódio Mesquita. O dinheiro da
família é o
bastante para que viva muito bem, tenha automóvel, roupas caras, carteira
permanentemente bem provida. Em matéria de elegância, é exigentíssimo. Consigo
mesmo e
com os outros, a ponto de olhar para Francisco Alves, mesmo nos dias em que este
está orgulhosamente posto dentro de sua roupa a rigor, e dizer:
-Não sei por que você insiste em fazer seus smokings naqueles alfaiates da Rua
Maxwell.
Sim, porque os smokings de Mário Reis são feitos pelo Lacurte. Elegância em
tudo, no vestir, nos gestos, nas palavras. Como terá Mário Reis se metido nesse
negócio
de música popular? Talvez nem mesmo ele saiba. Sempre gostou de cantar, mas
achava que não tinha voz (ter voz, na época em que começou, era poder ser ouvido
a duas
ou três esquinas de distância, assim como Vicente Celestino e o próprio
Francisco Alves). Quis aprender violão, foi até a Guitarra de Prata, uma das
lojas rivais
do Cavaquinho de Ouro, e lá conheceu Sinhô. Tornou-se seu aluno, o famoso
compositor indo duas vezes por semana à sua casa, na Rua Affonso Penna, para
ensinar-lhe
o pouco que sabia (estava longe de ser um virtuose, tanto no violão como no
piano). Um dia Mário Reis cantou um novo samba de Sinhô:
Amor, amor, não é para quem quer De que vale a nota, meu bem, Sem o puro carinho
da mulher, Quando ela quer...?
Sinhô ficou impressionado com aquela maneira nova de cantar, nenhum agudo,
nenhum dó de peito, só as pausas, certas, exatas, dando ao samba um sabor mais
carioca,
mais Chão. E dizer que aquela maneira nova vinha da parte de um
grã-fino. Francisco Alves já havia gravado muita coisa de Sinhô, Cassino Maxixe,
Ora Vejam Só, A Favela Vai Abaixo, Não Quero Saber Mais Dela, mas nunca como
Mário
Reis. Francisco Alves cantava, Mário Reis, "dizia", fazia a música falar.
Bastava ouvi-lo em fura. Ou então na magistral pontuação dos versos de Cansei:
Cansei, cansei, cansei de te querer, Mas fui de plaga em plaga, O além do
além...
Ou neste breque:
Que eu não vim ao mundo Somente com o fito de eterno sofrer
Graças à insistência de Sinhô, a voz e o estilo de Mário Reis foram para o
disco. Não como brincadeira de mais um almofadinha atraído pela novidade de
registrar
sua voz na cera, mas como intérprete que viera para mudar a música popular do
Brasil. Terá Sinhô antevisto isso? O fato é que desde 1928 Mário Reis vem
gravando
com sucesso. De início hesitante, a família fazendo pressão, o pai dizendo que
um futuro advogado não deveria se misturar com gente do samba. Mas superará essa
resistência.
Nunca como um profissional nos moldes de Francisco Alves. Na verdade, até o fim
da sua carreira Mário andará sempre naquele território mais ou menos neutro
entre
o amadorismo remunerado e o profissionalismo não declarado. Mas, de qualquer
forma, tornou-se um intérprete atuante e, sobretudo, influente.
São muitas, de fato, as diferenças entre ele e Francisco Alves. Se se pensar
bem, a não ser pelo fato de gostarem de cantar (e de torcerem pelo América),
nada têm
em comum. Diferenças que se tornaram ainda mais evidentes desde o começo do ano,
quando, por sugestão de Mário, gravaram juntos Deixa Esta Mulher Chorar & Qua-
Qua-Quá.
A dupla fez tanto sucesso, marcou de tal forma a sua presença nas rádios, nos
teatros, em toda parte, que a Odeon decidiu torná-la permanente. Naturalmente,
os dois
cantores resistiram à idéia, cada qual disposto a manter sua carreira
independente. Mas, daqui até 1933, quando Mário se transferir para a Victor,
farão ainda mais
onze discos-.
Francisco Alves é, não se discute, o mais popular. Será um dos mais imitados
cantores de toda a história da canção brasileira, fazendo com que no seu rastro
caminhem,
para citar apenas alguns contemporâneos de Noel, nomes como os de Castro
Barbosa, João Petra de Barros, Arnaldo Amaral, Carlos Galhardo. No entanto, a
influência
exercida por Mário será muito mais inovadora. O próprio Francisco Alves não
ficou imune a ela, bastando que se ouçam suas gravações anteriores, muitas tão
operísticas
quanto as de Vicente Celestino, para depois compará-las com as que se seguiram
ao surgimento de Mário Reis. Depois deste, o jeito de cantar samba mudou. É
verdade
que Mário Reis começou a gravar já na fase do sistema elétrico, os microfones
mais sensíveis dando vez a cantores de vozes menos extensas, enquanto Francisco
Alves,
vindo dos tempos do sistema mecânico, tivera de se formar mais pela escola do
peito aberto (por isso, quando eles gravam juntos, Mário fica mais próximo do
microfone,
Francisco Alves lá atrás, recurso que torna possível as duas vozes serem
registradas num mesmo nível). Mas, potência à parte, a influência de Mário, que
até
192
Assim, a partir dos primeiros dias de 1932, Noel Rosa e Francisco Alves estarão
mais próximos. Pela música e pelos carros, uma coisa ligada à outra. Ao perceber
em Noel uma mina de ouro, um possível "compositor exclusivo" como muitos que já
tem, o cantor põe em jogo sua habitual sagacidade:
- Você ainda está interessado naquele Chevrolet?
Interessado Noel está, mas pelo preço é melhor que nem reabram o assunto.
- Vamos fazer uma coisa: você fica com o carro e me paga em samba.
Noel ouve os detalhes da proposta, a cada samba cujos direitos autorais ceder a
Francisco Alves, este vai tirando uma fatia do total. Cinqüenta hoje, 30 amanhã,
100 depois, Noel verá como o Chevrolet se pagará rápido, sairá quase de graça.
Que pelo menos estude a proposta. Francisco Alves diz que está para ir a Buenos
Aires
numa excursão com Mário Reis, Carmem Miranda, Luperce Miranda, Tute, só gente
boa. Na volta conversam.
Não resta a menor dúvida: Noel vai aceitar a proposta. O Viramundo lhe dá dores
de cabeça demais. Tantas que um dia, ao bater com ele num poste da Rua Visconde
de
Santa Isabel, o deixará lá para sempre. Que alguém trate de rebocar o velho
Chandler. Sim, vai aceitar a proposta. Tem até um nome para o novo carro: Pavão.
NOTAS
1. Depoimento de Mário Reis aos autores em 10 de abril de 1981
2. Francisco Alves morreria num acidente de automóvel na Rodovia Presidente
Dutra, na altura de Taubaté, a 27 de setembro de 1952. Ainda era um grande
cartaz da
música popular. Sua carreira, iniciada em 1918 como cantor de circo, cobriria um
período de 34 anos. E, caso raro em tão longa atividade, jamais conheceria o
ostracismo,
a decadência ou mesmo breves momentos em segundo plano. Seu enterro, no Rio,
seria acompanhado por mais de meio milhão de pessoas. Mais concorrido do que o
de Carmem
Miranda em 1955 e só comparável ao cortejo que levaria o corpo de Getúlio Vargas
do Catete ao Santos Dumont em 1954.
3. Francisco Alves talvez seja caso único de autor de três autobiografias. A
primeira, Minha Vida, teria sido ditada por ele ao jornalista Mário Cordeiro.
Quando
do seu lançamento, A Voz do Rádio de 15 de setembro de 1936 (página 14) fez o
seguinte comentário: "Francisco Alves se converteu em verdadeiro herói de filme
em
série. Era criança incompreendida e mal julgada. Era o estudante irrequieto e
inimigo dos livros. Era o amante infeliz e não-correspondido. Era o operário
brioso
e trabalhador, mas sempre mal visto pelos superiores." A segunda autobiografia
do cantor foi editada pela Rádio Nacional, em fins dos anos 40, em forma de
folhetim.
A terceira, segundo narrativa ao jornalista David Nasser, apareceu inicialmente
em O Cruzeiro, publicada em capítulos de 17 de novembro de 1951 a 24 de maio de
1952,
sob o título de Minha Vida Verdadeira. Reescrita e reintitulada Chico Viola,
sairia em livro em 1966.
4. Na gíria da época, mau cantor.
5. Atual Rua do Acre.
6. Pão-Duro, famoso personagem da cidade, ia de padaria em padaria esmolando
pão dormido para comer. Descobriu-se um dia que era homem de razoável situação
financeira.
Vem do seu apelido o substantivo "pão-duro" como sinônimo de avarento.
7. Não eram só os inimigos de Francisco Alves que alimentavam lendas sobre sua
esterilidade. Em entrevista aos radialistas Luiz Carlos Saroldi e Ney Hamilton,
no
intervalo de um programa na Rádio Jornal do Brasil, transcrita por Ciléa
Gropillo na página 5 do Caderno B do Jornal do Brasilde 21 de agosto de 1981, o
compositor
e cantor argentino Atahualpa Yupanqui dá sua espantosa versão: "Eu costumava
passear com Chico pelas ruas. Num desses passeios, ele resolveu subir a uma
árvore e
colher uma flor para oferecer a uma mocinha. Estávamos esperando que ele
descesse com a flor, quando ocorreu um acidente. Chico caiu e
machucou-se num dos galhos que perfurou os seus testículos. Desde aí,
tornou-se estéril. Não pôde ter filhos. Uma pena." Francisco Alves, no entanto,
só se referiria abertamente a este problema em 1952, ano de sua morte, quando
foi
levado aos tribunais por sua primeira mulher, esposa legítima, Perpétua Guerra
Tutoya, que reclamava pensão para dois supostos filhos seus com o cantor. O caso
mereceu
destaque na imprensa por vários meses. Francisco Alves negava a paternidade,
alegando não só ter vivido com Perpétua apenas alguns meses em 1920 (e os filhos
tinham
nascido anos depois), como também ser estéril. Sua mulher acabaria ganhando a
causa. Parte dos bens de Francisco Alves, incluindo direitos autorais de
compositor,
acabaria, após sua morte, passando aos filhos.
194
SUBINDO O MORRO
Capítulo 20
O samba, na realidade,
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração.
Feitio de Oração
Canuto foi o primeiro. Um negro Bem comprido, magro, a fala mansa enfeitada de
gírias. Ninguém podia precisar como ou quando apareceu em Vila Isabel. No começo
pensava-se
ter vindo do morro dos Macacos, mas hoje já se sabe que mora mesmo no Salgueiro,
lugar a que nenhum dos tangarás se atreve a subir para o que quer que seja.
Nenhum
não é exato. Noel sobe ao Salgueiro. E também ao morro dos Macacos. E a outros
mais, Favela, Saúde, Mangueira. Sempre movido por bom motivo: samba.
Embora os tangarás tenham descoberto Canuto praticamente ao mesmo tempo, embora
partisse de Almirante a idéia de levá-lo com seu tamborim para um estúdio de
gravação
e embora fosse João de Barro o primeiro a tornar-se seu parceiro, de todos é
Noel o mais ligado a ele. E um dos que mais apreciam seu jeito de bater, não com
a baqueta,
mas com o dedo indicador, longo, esticado. Noel acha Canuto ainda melhor que o
Manuel Anacleto, camarada que faz do tamborim o que quer, um dos primeiros que
se
conhecem no bairro a realizar malabarismos com o instrumento (Anacleto gosta,
por exemplo, de rodopiar o tamborim na ponta do dedo como fazem alguns
pandeiristas).
Já Canuto prefere deixar para lá as figurações, limitando-se a fechar os olhos,
enlevado, enquanto batuca. Quando do sucesso do Na Pavuna, as casas de música
tocando
o disco a todo instante, costumava postar-se à porta de uma delas. Aos curiosos
que paravam para ouvir, apontava primeiro para o alto-falante de onde saía o som
do seu tamborim e depois para si mesmo, como se dizendo: "Este aí sou eu!"
Foi mesmo o primeiro. O primeiro a aproximar o morro e sua música de um Noel
desde cedo inquieto na busca daquele samba "diferente" que o encantara. Já havia
intuído
ao tempo de Com Que Roupa?. Agora tem certeza: são estes negros, humildes,
incultos, mas musicais até a alma, que criam sob o teto de zinco de seus
barracos o melhor
samba carioca. O mais rico harmonicamente, o de estruturas melódicas mais
afinadas com o seu temperamento. Noel não é negro,
não vive no morro, não pode dizer que seja pobre. Mas entende essa gente como se
fizesse parte dela.
Por quê? Como explicar a afinidade que desde logo se fez entre ele e os
compositores do morro ? Nunca é demais lembrar que compositores de morro não são
apenas os
que efetivamente moram lá no alto, em Casébres remotos, só atingíveis depois de
se percorrerem caminhos angulosos riscados em barranco íngreme. Também são
"compositores
de morro" os social e
195
Um belo samba que a voz sentida de Canuto valoriza ainda mais na gravação.
Precioso exemplo de como já em 1931 Noel está perfeitamente sintonizado com os
sons lá
de cima, o morro e a cidade - através dele e Canuto - se dando as mãos, a música
e o coração a aproximá-los. Os dois fazem juntos outro samba, Cadê Trabalho?, no
qual a filosofia da malandragem, da aversão ao batente, é revisitada pelo humor
196
Num terceiro samba, Já Não Posso Mais, Noel e Canuto terão dois colaboradores:
Puruca, outro negro do Salgueiro que faz ponto nas esquinas de Vila Isabel, e
Almirante,
que será seu intérprete em disco:
Canuto não vai viver muito. Morrerá a 27 de novembro de 1932, antes de chegar
aos trinta e com um punhado de sambas por fazer.
- Se tivesse durado um pouco mais - admitirá Noel aos amigos no Ponto de 100
Réis - ia ser o melhor de todos nós.
Talvez. Mas Canuto viveu o bastante para apresentar Noel a gente do samba como
ele, compositores do morro nos quais os outros tangarás não parecem tão
interessados.
Sambistas como Antenor Santíssimo de Araújo, o Gargalhada do Salgueiro. Futuro
diretor de harmonia da Escola de Samba Azul e Branco, Gargalhada é
respeitadíssimo
não só no seu morro, mas em todo lugar. Um líder, homem de coragem. Em 1934,
quando um italiano sabido compra boa parte do Salgueiro, mandando lá a polícia
com ordem
de despejo para dezenas de famílias, Gargalhada vai se plantar bem no começo da
subida. Ficará na história sua ameaça aos policiais:
- Se quiserem subir, subam. Mas pra cada barraco que vocês botarem abaixo, é um
de vocês que a gente derruba também!
Os policiais farão meia-volta, o italiano vai desistir do morro.
Quando Canuto apresenta Noel a Gargalhada, este ainda está meio queimado com o
pessoal de Vila Isabel, especialmente a turma que desfila pelo Faz Vergonha. Num
desses
carnavais, o bloco saiu cantando:
Oswaldo Cruz, Morro da Mangueira, Favela, Estácio de Sá, Vamos acordar o
Salgueiro Que o mundo inteiro Quer ouvir o seu cantar.
Gargalhada fez um samba em resposta:
Tenho prazer e glória em citar,
Mas o Salgueiro não está adormecido...
Quem é a Vila para nos acordar?
Briguinhas de samba, nada para se levar a sério. E das quais Noel não participa,
ele que respeita tanto o Salgueiro que lhe dedicará, além dos geniais versos de
Quem Dá Mais?, pelo menos mais duas citações em letra de samba. O que conta é
que Gargalhada, até sua morte em 1941, também de tuberculose, será uma das
legendas
maiores do seu morro. Praticamente desconhecido dos rapazes de Vila Isabel desta
época. Mas não de Noel, que será parceiro dele em Eu Agora Fiquei Mal. Canuto,
amigo
e padrinho da dupla, é quem o gravará.
Tenho vontade de ir à Penha,
Mas me falta o principal:
A mulher que me ajudava tanto.
Ela deu o fora!
Eu agora fiquei mal
(Eu agora fiquei mal)
197
Ao que parece, as propostas de parceria partem quase sempre de Noel. Pelo menos
no começo de seu relacionamento com os sambistas de morro, aqueles que ainda não
desceram como Canuto. Ou como Puruca, ritmista completo que toca tamborim,
cuíca, reco-reco, ganzá e um surdo que ele mesmo construiu adaptando couro à
boca de uma
barrica conseguida num armazém da Praça 7. Noel vai atrás deles, procura
conhecê-los, ouvir o que fazem. Viaja a bordo do samba, do Boulevard ao
Salgueiro, do Salgueiro
à Mangueira.
O primeiro contato com Angenor de Oliveira, o Cartola, se dá entre dois tragos
no Café e Bilhares Maracanã, mais conhecido como Café da Uma Hora (nestes tempos
em
que a maior parte da cidade dorme cedo não são muitos os otequins abertos até
tão tarde). Situado no 476 da Rua São Francisco Xavier, em frente ao rio Joana e
a
um quarteirão do Largo do Maracanã, é local de muito movimento o dia todo.
Quando o português José Martins o inaugurou em 1927, nem podia imaginar que
seria um ponto
tão importante na geografia da música popular carioca. O centro de um território
que engloba Vila Isabel, Mangueira e as Ruas Dona Zulmira e Santa Luíza, aquelas
das famosas batalhas de confete. Pois as mesas deste botequim - doze de café,
cinco de sinuca - são freqüentadas por compositores, cantores, instrumentistas,
sambistas
de morro, toda uma freguesia musical. É ali que Francisco Alves fecha muitos de
seus negócios (e guarda nas mãos de seu Zé o velho violão). Um botequim onde se
encontram
os irmãos Mário e João Petra de Barros, Paulo e Luís Barbosa, os rapazes do
Ponto de 100 Réis (Noel entre eles), Benedicto Lacerda, os foliões do Faz
Vergonha, Lamartine
Babo, um ou outro egresso do Estácio, os salgueirenses Canuto e Puruca, Kalua,
Castro Barbosa e tantos outros. E muito especialmente os bambas que vêm da
Mangueira,
o Massu, Carlos Cachaça, Zé Com Fome, Ruço da Amélia,
Cartola. (Arquivo da Funarte.)
Mestre Waldemiro, Aloísio Dias, Maciste, Saturnino Gonçalves, os novos, os mais
antigos. E Cartola.
A ligação entre Cartola e Noel não se vai restringir a encontros fortuitos e
papos de vez em quando no café de José Martins1. Um dia Noel entra na Rua 8 de
Dezembro,
desce a ladeira, atravessa a linha do trem e vai procurar Cartola no seu barraco
perdido no meio de uma subida estreita. Mostra seus sambas a ele, ouve o que o
compositor
da Mangueira tem guardado. Desde este dia, ficam amigos.
Em 1935, quando o jornal A Nação promover o concurso "Qual será o maior
compositor das nossas escolas de samba?" e Noel for convidado a dar seu voto,
mais que isso
ele fará quase um discurso:
"Cartola merece uma campanha em torno de seu nome. Dos compositores espontâneos,
ninguém merece mais do que ele. Tem dado ao público não pequeno número de
verdadeiras
obras-primas. Quem não conhece Divina Dama e Fita Meus Olhos?Não me poderia
passar
198
mesmo. Morando neste barraco de sala e cozinha em que Noel, cada vez mais, vai
procurá-lo. Cartola ainda não havia chegado aos dezoito anos quando caiu de cama
muito
doente, precisando de repouso, muita comida e bons tratos. "Doença de rapaz",
disseram. Deolinda, vizinha do barraco ao lado, soube e foi visitá-lo: "Pode
deixar,
menino, que eu cuido de você." No princípio, em nome da solidariedade, lei
sagrada a que os moradores do morro obedecem religiosamente. Depois, foi tomando
gosto,
aquele jeitinho de Cartola enroscando-se nela, enfeitiçando-a. Até que uma noite
o marido de Deolinda chegou em casa, cansado do trabalho, e a encontrou com a
trouxa
feita e a filha Ruth, de dois anos, no colo. Foi franca:
- Estou me mudando pro barraco do lado.
- O quê?
- Vou morar com o Cartola.
O homem trincou os dentes. Pensou primeiro em esganar Deolinda mas os vizinhos
foram chegando, atraídos pelos xingamentos dele, embora sempre olhando âo longe,
como
aquele ditado que tambem é lei sagrada: "Briga de marido e mulher é deles lá..."
O homem mudou de idéia e achou melhor resolver a questão com Cartola. Saiu por
uma
porta e entrou por outra, encontrando o vizinho deitado, muito magro, ainda
fraco. Mesmo assim, explodiu:
-Roubando minha mulher, seu aprontador. Vim te arrebentar!
- Mas tu não vê que eu tou morrendo? O marido de Deolinda recuou. Pensou
bem, convenceu-se de que não era direito bater num garoto esquelético,
moribundo. Deixou a surra para quando Cartola ficasse bom. Só que, quando isso
aconteceu,
a raiva já havia passado. E Deolinda já estava definitivamente instalada no
barraco de quarto e cozinha, com a menina que Cartola criará como sua, filhos
que ela
terá um dia chamando-o, orgulhosos, de avô.
Deolinda é mulher como poucas. Noel terá oportunidade de constatar isso muitas
vezes. Pois a partir daquele primeiro encontro com Cartola no café do Maracanã -
e
mais ainda do dia em que o procurou lá em cima - o barraco passa a ser uma
espécie de sua segunda casa. Em alguns momentos, primeira. Nos anos que se
seguirão, de
agora até as vésperas de sua morte, Noel fará daquele humilde Casébre, perdido
entre tantos na Mangueira, o seu refúgio. Quando as coisas não estiverem bem na
cidade,
os dissabores, as ingratidões, os cansaços, os tédios castigando-o por dentro, é
para ali que correrá. Um refúgio tranqüilo, entre samba, cerveja e as bênçãos de
Deolinda.
Noel bebe duas vezes mais que Cartola.
Será sempre assim. De vez em quando, já meio alto, esperará o amigo voltar do
trabalho, sentado no corrimão de ferro da ponte sobre a linha do trem. Cartola
chega
e os dois se cumprimentam, sobem juntos. O cansaço e a bebida não raro derrubam
Noel.
-Deolinda!- grita Cartola para a mulher.
Nessas horas é ela quem cuida de Noel como se fosse uma criança de colo. Faz uma
fogueira de lenha no quintal, esquenta água numa lata de banha,
tira a roupa dele,
ergue-o no colo com seus braços fortes e o coloca dentro de uma bacia onde vai
jogando, pacientemente, cuias e mais cuias de água quente. Esfrega-o com bucha,
enxuga-o,
veste-lhe as roupas de Cartola, o pijaminha velho mas limpo de dar gosto.
Depois, prepara-lhe um caldo forte, osso de tutano fervido com tomate e cebola,
às vezes
engrossado com talharim. Que ela lhe dá na boca, devagarinho, enquanto Cartola
observa com olhos de aprovação.
- Este caldo levanta até caixa d'água. Deolinda cinco, seis anos mais velha que
os dois, é o anjo da guarda da dupla3. Alimenta e cura suas bebedeiras, trata-os
como a duas crianças, perdoa-lhes as traquinagens. Porque Cartola e Noel
costumam
sair juntos para longas noitadas. Como no fim de tarde em que o Zé Maria aparece
no Café da Uma Hora e lá encontra os dois conversando com Carlos Cachaça,
parceiro
e amigo de fé de Cartola. Zé Maria veio numa baratinha nova, bonita, reluzente,
de um de seus fregueses (é mecânico de gente graúda, inclusive Francisco Alves).
Geralmente é assim: entra no carro que o cliente lhe deixou para reparo e sai
por aí fazendo farol. Começa a anoitecer e ele convida os três para uma
farrinha. Mandam
Seu Zé descer dois engradados de cerveja e colocam na mala do carro.
- Agora vamos até o Buraco Quente arranjar umas companhias - propõe o Maria.
No Buraco Quente, um dos pontos de maior movimento na Mangueira, só acham duas
pequenas interessadas em fazer-lhes companhia: Nena e Genoveva. Apertam-se os
seis
na baratinha, tomam o caminho da Vista Chinesa e só voltam depois das cinco da
manhã, as garrafas vazias, as meninas cansadas. Cartola nem vai trabalhar. Noel
dorme
no seu barraco.
Eventualmente os passeios se fazem no Pavão, o tal Chevrolet de dois cilindros,
cor de azeitona, que ele comprou de Francisco Alves (o cantor tem um caderno de
capa
dura, tipo conta de armazém, onde vai anotar "primeira parte do samba tal,
tantos mil réis", "segunda desta ou daquela música, outros tantos mil réis",
"correção
e uma letra de fulano, mais tanto...", até que se complete o total). No dia em
que fecham
200
negócio, Noel vai à Mangueira e convida Cartola e outros amigos para uma volta
pelo Centro. Noel no volante, entram pela Rua Luís de Camões e chegam ao Largo
de
São Francisco. Noel tem uma idéia:
- A Rua do Ouvidor! Vou entrar nela.
- Tá maluco? Ali não passa carro.
- O meu passa.
E assim faz, às quatro da tarde, a rua estreita cheia de gente espantada com a
ousadia do Pavão. Na esquina de Uruguaiana, um guarda:
- Pára! Pára! Noel pisa no freio.
- Ficou doido, rapaz?
- Por que, seu guarda?
- Esta rua... Éproibido passar carro.
- Mas que rua é esta?
- Ouvidor. Não sabe ler? - pergunta apontando para a placa.
-Puxa, seu guarda, me desculpe! Como é que pude me enganar?
- Está bem, pode ir. Mas não me repita, ouviu?
O Pavão se vai, Noel às gargalhadas, os outros sérios.
É Cartola quem o leva para os ensaios da escola de samba. Apresenta-o ao pessoal
do morro, faz com que se sinta em casa, o Buraco Quente sendo como o Boulevard.
É ali que, transpirando cerveja, uma noite Noel cumpre sua breve e patética
carreira de mestre-sala. Leque na mão, improvisa passos que a bebedeira
transforma em
risíveis piruetas. E a elegante Georgina fazendo força para acompanhá-lo como
porta-bandeira. É Cartola, ainda, quem o aproxima de Heitor Villa-Lobos, o
grande compositor
que acaba de voltar de Paris. O maestro - na ânsia de desencavar entre
compositores populares os mais espontâneos, ou mesmo os mais primitivos, uma
riqueza musical
inexplorada - acabou parando em Mangueira. Ou melhor, na casa de dona Ephigênia,
no mesmo Buraco Quente. Cabeleira farta, charuto fumegante, foi logo
perguntando:
- A senhora sabe onde posso encontrar um moço chamado Cartola?
Desde 1932 à frente da Superintendência da Educação Musical e Artística (SEMA),
Villa-Lobos levará o canto orfeônico às escolas públicas do Rio, ensinando a
meninos
e meninas os hinos, canções patrióticas, cantigas de roda para serem cantados a
duas, três vozes. É sua crença que, a médio prazo, a partir dessas experiências
corais,
a boa música terá se massificado no Brasil, nosso povo conhecendo-a e
apreciando-a melhor. O maestro é um sonhador.
Quer que o erudito e o popular se entrelacem.
Vem daí sua ligação com Cartola, o próprio Villa-Lobos indo à Mangueira para
reger uma centena de crianças do morro no Canto do Pajé e pedindo sua ajuda como
"diretor
de harmonia". Conversam, ficam camaradas. E embora a cidade vá levar muito tempo
até saber exatamente quem é esse tal de Cartola que Francisco Alves descobriu,
Villa-Lobos percebe-o logo. Vai admirar para sempre esse metodista intuitivo,
esse poeta de poucas letras, mas abençoado. Admiração que o maestro tentará
repartir
com outros músicos eruditos, nossos ou do estrangeiro(4).
Cartola ganha de Villa-Lobos um diapasão de boca. Aprende com ele a usá-lo,
convencido mesmo de que pode tornar mais afinado e harmonioso o coro das
pastoras da
Mangueira. Noel chega no morro e encontra o amigo compenetrado à frente das
meninas, todas elas arrumadinhas, em fileira, e o sambista soprando o seu
diapasão.
-Foi o maestro Villa-Lobos que me deu- explica orgulhoso.
É mesmo Cartola quem aproxima Noel do compositor. E a pedido deste o sambista de
Vila Isabel passa a ajudar o da Mangueira a ensaiar o coral do morro. Crianças
deste
tempo jamais se esquecerão dele, magro, os dois indicadores levantados, regendo
a garotada, ensinando-lhes o Hino Nacionais, três vozes. Enérgico, exigente,
zangando
com este ou aquele, mas só de mentirinha. Nada de gritos ou de nomes feios(5).
- Traz aquela tua gaitinha, Cartola!
E Noel aproveita para afinar o violão pelo diapasão de Villa-Lobos.
Os moradores do morro da Mangueira que testemunham hoje a amizade entre Cartola
e Noel se lembrarão sempre dos dois sentados à porta do barraco, cada qual com
seu
violão, criando refrãos, improvisando versos, fazendo sambas horas a fio. Por
vezes, começam às sete, oito da noite, e vão até quase o sol despontar. Não é só
a
amizade, o carinho que recebe aqui, a solidariedade dessa gente, que atrai Noel
à Mangueira. Há também a música. Este é um morro que amanhece e adormece
cantando,
a voz morna de um sambista se espraiando pelos ares, entrando em todos os
barracos, contagiando as pessoas, tornando suas almas mais leves. Geralmente os
cá de baixo,
contidos pelo medo, não ultrapassam os limites da Visconde de Niterói. Contam-se
tantas histórias - muitas verdadeiras, outras não - de malandros, valentes,
homens
fora-da-lei, assaltos, brigas de sangue, que poucos se atrevem a subir. Mas não
é bem assim. Noel sabe que não. Uma gente banhada em
201
Ri,
não se ri de quem padece,
Sofre,
meu coração sabe dizer
Ri,
quando vê alguém chorar
Deus é justo e verdadeiro
Por quem eu tenho chorado
Tenho fé em me vingar.
Às vezes é um sorriso
Que acompanha uma esperança,
Outras vezes é um riso
Que provoca uma vingança.
Meu juízo se revolta
Quando vejo alguém zombar,
O mundo dá muita volta,
Quem zombou pode chorar.
Uma terceira segunda parte, inferior às outras, ficará inédita:
Você ri sem ser preciso,
Diz que é por extravagância,
Mas eu creio que o seu riso
É sinal de ignorância.
Francisco Alves - sempre ele - foi o primeiro a levar Cartola para os meios
musicais da cidade. Familiarizado com a Mangueira, desde que trabalhava na
fábrica de
chapéus, bateu no seu barraco, comprou-lhe sambas, gravou o antológico Divina
Dama. E ainda levou Mário Reis para conhecê-lo, sugerindo -que o "doutor em
samba"
também investisse no talento de Cartola (dias depois, tendo como intermediário o
Clovis Miguelão, pois ele mesmo não tem coragem de ir ao morro, Mário compraria
o Que Infeliz Sorte!, que no entanto daria para Francisco Alves gravar). Uma
mina. Chico nunca duvidou disso. Via a Mangueira desfilar com uma beleza de
samba, música
e letra nada devendo às melhores produções do Estácio, e podia apostar: ou era
de Gradim, ou era de Cartola. Como o refrão com que a escola de samba desfila em
1932:
Não faz, amor,
deixa-me dormir,
Oh, minha flor,
tenha dó de mim!
Sonhei, acordei assustado,
Receoso que tivesses me enganado
(Eu não durmo sossegado)
Francisco Alves fica entusiasmado, pensa em gravá-lo e vai atrás de Cartola para
que ele faça a segunda parte. Neste começo de década a Mangueira costuma
desfilar
com três sambas, ou melhor, três refrãos, já que os versos das segundas partes
ficam por conta dos improvisadores: Alfaiate, Balança, Turituré, Antonico, Zé
202
Criança, Gradim, Cartola. Assim como Noel, Lauro Boamorte e Paulo Anacleto
no Faz Vergonha. O primeiro refrão da Mangueira é para entrar no desfile. Como
este:
Lá no Morro da Mangueira Tem
um poço de água fria,
Quem bebe daquela água
Canta samba noite e dia.
O segundo é para passar em frente ao palanque. O terceiro, para as despedidas. O
Não Faz, Amor é um deles. Mas Francisco Alves encontra Cartola de cama, febre
alta,
uma gripe de moer corpo, e quase desiste da gravação. Até que se lembra de Noel.
Pede-lhe que complete o samba:
Só tens ambição e vaidade,
Não pensas na felicidade
E eu não descanso um momento
Por pensar que o teu amor é só fingimento.
Mas eu vou entrar com meu jogo
E vou pôr à prova de fogo
A tua sincera amizade
Para ver se tu falaste verdade.
Amor sem jurar é bem raro,
O verbo cumprir custa caro.
Amor é bem fácil de achar
O que eu acho mais difícil é saber amar.
O mundo tem suas surpresas,
Mas nós temos nossas defesas.
Por isso eu estou prevenido
Pra saber se sou ou não traído.
Gradim - o tal que se alterna com Cartola na feitura dos melhores refrões da
escola - vive na Mangueira, mas o pessoal do morro diz que ele é muito mais um
cigano
do que propriamente de lá. Anda errando por aí, de toca em toca, de esquina em
esquina. Vive de vender samba, como este que passa às mãos de Amaro Silva por
alguns
mil réis:
Se está contrariada, esquece, Eu não quero mais o seu amor...
Ou este que lhe comprou Príncipe Pretinho:
Hoje sou um condenado, Mas não lamento o meu fado, Seja o que Deus quiser!
Sambas vendidos por quaisquer trocados a muitos fregueses, o mais habitual deles
o Thi-belo, que por sua vez costuma revendê-los em bases mais vantajosas. Gradim
nem se importa se seu nome sai ou não no disco, na parte de piano ou nos jornais
de modinha. Magro, cerca de um metro e oitenta, trigueiro, o queixo
protuberante,
bom de conversa, bom de futebol. Joga na ponta-esquerda do Ponte dos Marinheiros
Futebol Clube, onde já formou ala com Leônidas da Silva, este mesmo crioulinho
endiabrado
que com menos de vinte anos já é craque da Seleção Brasileira. Gradim - cujo
verdadeiro nome, como já vimos, é Lauro dos Santos - inclui-se entre os muitos
futebolistas
desta terra "rebatizados" com o nome de um jogador uruguaio que andou exibindo
seus dribles por aqui(8). Está longe, porém, de ser um atleta: é mais um que vai
morrer
moço com os pulmões estragados. E sem que a cidade reconheça o talento que tem,
muitos o considerando um dos dois ou três maiores compositores que já pisaram em
Mangueira. O outro ou um dos outros sendo, evidentemente, Cartola.
203
Mas Noel conhece Gradim o bastante para fazerem juntos pelo menos dois sambas.
Um deles está dentro do tema rir, intitula-se Sorrindo Sempre e também começou
como
um dos refrãos do desfile de 1932:
Sorrindo, sorrindo sempre,
Porque eternamente
Hei de sorrir pra não chorar
Pra não lembrar quem sofreu
Por mim padeceu pra não me ver penar,
Pra não me ver penar...
Pra não me ver penar,
Chegou a ser humilhada.
Eu não soube aproveitar
Aquela alma abandonada.
E quantas vezes ela sorrindo
Me pedia por favor
Que eu não abandonasse o seu amor!
(Sorrindo...)
É um samba muito bom, ao contrário do que pode sugerir a letra lida sem a
melodia. Outro dos muitos problemas de autoria da música popular desta época: no
disco,
apenas o nome de Lauro dos Santos; na partitura impressa, além dos nomes de
Lauro e Noel, entram também os de Francisco Alves e Ismael Silva. Quem terá
feito o quê?
Já Quero Falar Com Você é mesmo só de Gradim e Noel, embora mais uma vez o nome
deste não esteja no selo do disco. A letra é bem estruturada - certamente de
Noel
- em cima de uma imaginária conversa telefônica durante a qual o amor e as
quatro operações se misturam:
Quero falar com você,
Mas em segredo...
Que ninguém venha a saber
Do nosso amor!
Será que para sempre
Havemos de guardar
Para a felicidade algum dia nos chegar?
O amor se declara em segredo
Quem tem seu amor já aprendeu
Não posso deixar de ter medo
Que alguém subtraia o seu amor do meu.
Amor não tem dia nem tem hora
Pra vir não tem antes nem depois,
Só tem dia para ir-se embora,
Dividindo a tristeza por dois.
("Que número faz favor?")
O amor é castigo e é brinquedo
Depende da hora em que vem
Faz mal se não é em segredo
Quando os outros não sabem É mal que nos faz bem.
Somando a ilusão com alegria,
Assim é o começo do amor.
Depois pra maior nostalgia,
Multiplica a saudade por dor
("Em comunicação!")
Depois da repetição do coro, a gravação de João Petra de Barros termina com a
telefonista dizendo simplesmente: "Não responde!" Noel e Gradim poderiam ter
feito
mais juntos, mas o cigano da Mangueira e o tangará desgarrado de Vila Isabel não
se encontraram tanto quanto deviam.
Sempre querendo conhecer o que produzem estes sambistas de morro, trocar
informações com eles, somar experiências, Noel segue peregrinando. Salgueiro,
Mangueira,
outros morros. Faz expedições aos subúrbios, ouvidos atentos. Conhece Ernani
Silva, o Sete, lá pelas bandas de Ramos. Outro cigano, sempre rodopiando,
morando hoje
na Senador Eusébio, amanhã para além de Irajá. Tem dois vícios: samba e baralho.
Não recusa um joguinho de ronda e graças a isso vai perder a vida muito moço,
27,
28 anos, adversários desconfiados jogando-o lá do alto da Favela no asfalto da
Bento Ribeiro. Um negro simpático, risonho, com muito prestígio no meio do samba
(por
esta época é tão considerado quanto alguns dos melhores nomes do Estácio).
Também não chegará a ter na cidade o reconhecimento que merece no morro. Um
sambista capaz
de um coro assim:
O meu primeiro amor
Me abandonou sem ter razão
Amar sem ser amado...
Então jurei:
"Jamais eu te darei perdão!"
Para o qual Noel vai escrever duas excelentes segundas partes, a simplicidade
contida na idéia do Sete ganhando, sem que o tema seja abandonado, um cinzelado
acabamento.
O samba chama-se Primeiro Amor:
Quanto mais o tempo voa,
Mais a tua culpa cresce.
o perdão é pra pessoa
Que não pede mas merece.
Pela tua ingratidão
É que eu tanto padeço,
Foste embora sem razão
Não perdôo, nem esqueço.
O mundo é bom professor
Que cobra caro a lição
E no meu primeiro amor
Tive a última ilusão.
204
Noel Rosa será de fato o único compositor da cidade a fazer de sua associação
com esses sambistas uma rotina nos dias de agora. Conhece num café da Lapa o
marceneiro
Manuel Ferreira, amigo de Baiaco, Brancura, Zé Pretinho, malandros que gostam de
samba. E com ele consuma vários trabalhos, dos quais apenas um vai ser gravado:
Só Pra Contrariar. Para não fugir à regra, a proposta de parceria parte de Noel.
Depois de ouvir o coro feito por Manuel Ferreira, perguntou-lhe:
- Você me deixa botar uma segunda nisso?
Tão surpreso e contente o sambista ficou que nem quis dizer a Noel que já tinha
feito a segunda parte. O produto final é este:
O prazer que tu sentes é quando
Estás me contrariando
Sem razão.
Enquanto estou a sorrir,
Tu choras sem sentir
Só por contradição.
Não posso mais sofrer assim
Tudo tem que ter seu fim
Não existe eternidade
É melhor viver sozinho
Sem dinheiro, sem carinho,
Com sossego e liberdade.
Andando em tua companhia
Já peguei esta mania
Das vinganças imprudentes
E quando o jejum me come
Pra contrariar a fome
Fico mastigando os dentes.
Mas nem todos são desconhecidos como Manuel Ferreira e Ernani Silva, Gradim ou
mesmo Cartola. A "compositores de morro" já consagrados, sejam de onde forem,
Noel
se associará em diferentes épocas. É o caso de Alcebíades Barcellos, o grande
Bidê do Estácio, emérito ritmista e compositor de primeira, autor de inúmeras
obras-primas
do samba carioca, em especial as que vem criando em dupla com Armando Marcai,
outro negro de imenso talento. Com Noel, porém, Bidê fará apenas Fui Louco, em
cima
do tema da regeneração em que nenhum dos dois
acredita muito.
Depois ainda de serem parceiros em outro samba, Este Meio Não Serve:
É feio! É feio!
205
Menina de família
Andar metida em certo meio
(É muito feio!)
As sobrinhas do almirante
Já saíram do Sion
Vão tomar vinho chianti
Lá pras bandas do Leblon.
Os filhinhos da Candinha
Que andam sempre de má-fé,
Fazem queixa à mãe da zinha
E ela diz: "Sei lá se é..."
Quando a menina travessa
Dá palpites numa roda
Papai tem dor de cabeça,
Mas mamãe nem se incomoda.
Depois de tudo isso, enfim, Donga mudará. Ainda vai acusar Noel de plagiar-lhe
um samba. E envelhecerá resmungando conceitos nada lisonjeiros sobre o antigo
parceiro:
- Noel não entendia de samba coisa nenhuma. Nada. Nem tocar, nem coisa
nenhuma!(12)
Mas todos sabem que não é assim. Cartola principalmente. Seu coração e o de Noel
batem no mesmo compasso. Como as almas do morro e da cidade para os que crêem
que
o samba, a música, pode operar o milagre de unir as pessoas. Os habitantes da
Mangueira jamais se esquecerão da parceria e amizade entre Cartola e Noel. Para
sempre
hão de recordar, comovidos, a figura dos dois, muito magros, sentados à porta do
barraco deste negro de fala e gestos delicados, produzindo horas a fio dezenas e
dezenas de sambas. Quase todos se perderão. Mas a alegria que Noel e Cartola
sentem ao criá-los, a emoção que os envolve ao fazerem da vida fonte de música e
poesia,
isso ficará. Há coisas que o morro não esquece.
206
NOTAS
1. O pessoal da velha guarda da Mangueira refere-se hoje ao Café da Uma Hora
como o Bar do Alberto. Ao se aposentar em 1942, José Martins passaria a
administração
da casa ao filho Alberto Abrantes Martins e ao sobrinho e genro Lourenço de
Abrantes. Alberto desde garoto trabalhava ali. Simpático, comunicativo, muito
amigo da
turma da música, o botequim acabaria entrando para a história com o seu nome.
2. A Nação, 21 de abril de 1935.
3. Deolinda da Conceição deixaria Cartola viúvo em 1946. Foi logo após a sua
morte que, inconformado, ele fez o samba Sim, de parceria com üswaldo Martins:
Consegui um grande amor Mas eu não fui feliz E com raiva para os céus Os braços
levantei Blasfemei!
Os que conheceram Deolinda a descrevem como "uma santa". Neuma Gonçalves da
Silva, por exemplo, conta: "Uma mãe para o Noel. Depois de dar banho nele, num
daqueles
porres, punha-lhe polvilho. Pra não assar. Sabe como é, ele bebia de se urinar
todo." O marido que ela trocou por Cartola chamava-se Astolpho e, no fim da
vida,
doente, não tendo para onde ir, foi recolhido pelo próprio Cartola, já então
casado com Euzébia Silva do Nascimento, a Zica, que por sinal tinha sido muito
amiga
de Deolinda.
4. Entre os músicos que Villa-Lobos levaria para conhecer Cartola e os
sambistas da Mangueira estariam Leopold Stokowski (1940) e Aaron Copland (1941).
Cartola,
aliás, se juntaria a Pixinguinha, João da Bahiana, Donga, Jararaca, Ratinho,
Luís Americano e os mangueirenses Zé Com Fome e Zé Espinguela na histórica
gravação
de música popular brasileira realizada sob a supervisão de Stokowski a bordo do
navio Uruguay. Editados nos Estados Unidos pela Columbia em dois álbuns de
quatro
discos cada, sob o título Native Brazilian Music (Columbia C-83 e C-84), os
fonogramas só seriam lançados comercialmente no Brasil em 1987.
5. Depoimento de Neuma Gonçalves da Silva aos autores.
6. Francisco Alves e Mário Reis cantam:
Ri, quá, quá, quá!
Pois este alguém que tanto chora,
Este alguém que tanto chora por mim...
7. A autoria de Rir é um desafio aos pesquisadores. No selo do disco e na
partitura impressa, editada por Irmãos Vitale, é atribuída a um certo José
Oliveira. Mas
o único em Mangueira - e não há dúvidas de que o samba é de lá - que tinha este
nome era o Zé criança, que morreu em 1939 sem jamais ter reivindicado o samba
para
si. Carlos Cachaça acha que o autor é o Zé Com Fome. Fernando Pimenta, grande
memória do morro, garante que é o Gradim. Mas Harmonia, jornal de modinhas que
Noel
e Hélio Rosa editaram por curto período em 1932, é claro. Publicou a letra sob
os seguintes créditos: coro de Agenor (sic) de Oliveira, versos de Francisco
Alves
e Noel Rosa. Para quem acredita em "prova de estilo" - participação de Chico à
parte - como é possível duvidar de que Rir seja mesmo de Cartola e Noel?
8. Isabelino Gradim, grande meia-esquerda negro do Penarol de Montevidéu e da
Seleção Uruguaia. Exímio driblador. Fez nome por aqui durante o Campeonato
SulAmericano
de 1919 disputado no Estádio do Fluminense. Recorda Mário Filho em O Negro no
Futebol Brasileiro (segunda edição, página 170): "Foi uma praga de Gradins pelo
Brasil
afora. Todo preto que jogava um pouco de futebol virava um Gradim,"
9. Diário Carioca, Io de janeiro de 1933.
10. Ibidem, 7 de janeiro de 1933. Cabide de Molambo, de João da Bahiana, diz:
Meu Deus, eu ando com o sapato furado, Tenho a mania de andar engravatado
A minha cama é um pedaço de esteira
E é uma lata velha que me serve de cadeira.
11. De um jornal de 1933, guardado por Noel em seu álbum de recortes.
12. Entrevista a Juvenal Portella, Nuno Veloso, Luiz Gleizer e Lygia Santos,
esta filha de Donga. Realizada provavelmente em fevereiro de 1973 com vistas a
um especial
para a Rádio Jornal do Brasil. O programa não chegou a ir ao ar, mas o
depoimento gravado por Donga foi preservado pelo Arquivo Sonoro do Centro de
Documentação
do JB.
207
UM CERTO ISMAEL
Capítulo 21
Supliquei humildemente
Pra você endireitar
Mas agora, infelizmente,
Nosso amor tem que acabar.
Vou-me embora afinal
Você vai saber por quê
É pra me livrar do mal
Que eu fujo de você.
Você teve a minha ajuda
Sem pensar em trabalhar
Quem se zanga é que se muda
E eu já tenho onde morar.
Nunca mais você encontra
Quem lhe faça o bem que eu fiz
Levei muito golpe contra
Passe bem, seja feliz.
entrevista a O Cruzeiro
Dias depois, mostra-as a Ismael Silva e
209
Francisco Alves. E este também não perde tempo : decide gravar o novo samba,
Para Me Livrar do Mal, do qual, desde logo, intitula-se "co-autor". Trato é
trato, lembra
ele a Ismael. O que Noel ouve sem a menor surpresa.
Tem sido assim há muito tempo. Todo o mundo sabe que nesse acordo de boca entre
Ismael e Francisco Alves um entra com o samba e o outro com a voz. Nenhum dos
dois
faz segredo disso. E não adianta dizerem que Ismael está sendo
explorado: no fundo, ele se sente até grato.
Recorda-se da época ruim que viveu em 1927, seus exames de sangue acusando uma
penca de cruzes, a sífilis obrigando-o a se recolher a um leito do Hospital da
Gamboa.
Estava lá, triste da vida, com medo mesmo de morrer, de nunca mais voltar ao
Estácio e aos seus sambas, quando Alcebíades Barcellos, o Bidê, veio lhe fazer
uma visita.
- Te trago uma proposta, Ismael.
- Que proposta?
- Sabe o Francisco Alves?
- Claro, o cantor.
- Pois é. Ele andou ouvindo uns sambas teus por aí. Gostou. Mandou que eu viesse
aqui com estes 100 mil réis.
- Pra que tanto dinheiro?
- O Francisco Alves quer te comprar o Me Faz Carinhos.
Há cinco anos, 100 mil réis era muito mais do que Ismael Silva poderia ganhar em
quase um mês de biscates e empregos fixos. a vida era bem mais dura que a de
hoje,
obrigando-o a pegar o que lhe aparecesse, a ser de menino de recados num
escritório de advocacia a servente da Central do Brasil e vendedor de remédios.
Samba não
passava de coisa de hora vaga, prazer cultivado nas mesas de botequim, nas
tendinhas, nos terreiros. Cem mil réis! Então o Bidê lhe aparecia com aquele
dinheirão
todo, no hospital, para comprar-lhe um simples samba?
Desde rapazinho, no Catumbi, quando participava de uma roda onde brilhavam o
Nono, o Avelino, os irmãos Armando e Norberto Marcai, este mais conhecido por
Manga,
fazer samba para Ismael é quase um brinquedo. Mais tarde, ao mudar-se para o
Estácio, passou a freqüentar o Apollo, o Café do Compadre, os lugares onde se
reuniam
os bambas do bairro. E não demorou muito a tornar-se tão ou mais respeitado que
qualquer um deles. Bidê, Mano Edgar, Baiaco, Brancura, todos podiam ser muito
bons,
mas era quase sempre com sambas de Mano Rubem e Ismael Silva que saíam os blocos
da redondeza, um dos quais o famoso Deixa Falar. Uma tuberculose galopante matou
Rubem aos 23 anos em 1927, o mesmo ano da compra do Me Faz Carinhos. De
modo que desde então, Ismael reinou mais ou menos absoluto. Nestes blocos
desfilava, só para aprender o que se cantava, o mesmo e sempre atento
Francisco Alves.
No hospital, Bidê explicou a Ismael que o cantor ficava cada vez mais admirado
quando, ao perguntar de quem era determinado samba, lhe respondiam, quase que
invariavelmente:
"E do Ismael..." Pelos cem mil réis o negócio foi fechado ali, Francisco Alves
tornando-se dono do Me Faz Carinhos, como logo depois, novamente por cem mil
réis,
compraria outro samba de Ismael, o Não E Isso QueEu Procuro, e já em 1929 o Amor
de Malandro, destinado a ser um dos sucessos do carnaval de 1930(2):
Vem, vem,
que eu dou tudo a você
Menos vaidade,
tenho vontade
Mas é que não pode ser.
O tempo passou. Francisco Alves continuou fazendo sucesso em disco e Ismael não
parou de compor seus sambas. Até que, em fins de 1930, Francisco Alves procurou-
o
de novo. Desta vez, sem intermediários. Estacionou o carro em frente ao Café do
Compadre, chegou à porta e dali gritou, bem alto, o nome de Ismael, que tomava
cerveja
numa das mesas do fundo. Ismael levantou-se, foi ao encontro do cantor e este,
já sob a luz do poste da esquina, pediu-lhe:
- Me canta aí uns sambas teus.
- Pra quê?
- Pode ser que algum me interesse. Ismael Silva, acompanhado pelo violão
do próprio Francisco Alves, começou a cantar. Um, dois, vários sambas. Um
desfile de coisas novas, todas boas, que Francisco Alves ia captando:
Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz...
- Entre ali no meu carro. Vamos dar umas voltas pela cidade.
Francisco Alves, Ismael ao seu lado, deu voltas e mais voltas pelo Centro.
Conversando, falando do quanto os dois poderiam ganhar com aqueles sambas, das
vantagens
de se tornarem parceiros. Comprometia-se a gravar tudo de bom que Ismael
fizesse, dividindo com ele cada tostão ganho na vendagem dos discos. Em troca,
Ismael entregaria
a Francisco Alves tudo que fosse compondo. Os sambas gravados e editados,
naturalmente, levariam a assinatura dos dois. Ismael pensou um pouco, o carro
dando voltas.
E disse.-
- Acontece que já tenho trato com um amigo.
Explicou, então, que o amigo era Nílton
210
Bastos, excelente compositor dali mesmo, do Estácio. Muitos dos sambas que
Francisco Alves acabara de ouvir tinham sido feitos pelos dois, Ismael e Nílton.
Eram
tão amigos, tão afinados, que acabaram fazendo um acordo:
- Faça ele, faça eu, o que for feito é dos dois.
Para Francisco Alves não havia o menor problema:
- Então a gente inclui ele na parceria.
O resto é parte da história, o trio Ismael Silva-Nílton Bastos-Francisco Alves
assinando uma sucessão de jóias do samba carioca. Sambas que, nos dois anos
seguintes,
conquistariam não só a cidade, mas todo o país: Nem ÉBom Falar, Não Há, Olê-Lê-
Ô, Arrependido, O Que Será De Mim?, Ironia, Eu Bem Sei. Quem não se lembra da
ovação
que os dois sambistas do Estácio receberam quando Francisco Alves chamou-os ao
palco do Teatro Lyrico, depois de cantar, no concurso de sambas e marchas para o
carnaval
de 1931, o irresistível Se Você jurar?
Se você jurar
que me tem amor,
Eu posso me regenerar...
lugar de Nílton. E por que não? O acordo em torno do Chevrolet cor de azeitona
obriga o comprador a desembolsar sambas para o vendedor. Quanto mais Noel
trabalhar
para Chico, mais rápido pagará o Pavão. Concorda. Mas há um detalhe: os sambas
que Noel fizer serão só seus, sem intromissões indevidas. Como este Tudo Que
Você
Diz, feito tão rigorosamente dentro do figurino do Estácio que Ismael Silva bem
poderia assiná-lo:
Tudo que você diz Com a maior lealdade
É mentira É usar de falsidade
(Fale a verdade)
Toda gente fingida
Paga o mal que fez nesta vida
Por encher de ilusão
Um pobre coração.
Quando alguém não esquece
A pessoa por quem padece
É porque tem saudade
Da própria falsidade.
Pode crer que a mentira
O sossego sempre nos tira
Fale sempre a verdade
Mesmo sem ter vontade.
Tenho jeito pra tudo
Pra mentir, porém, fico mudo
Pois fugir da verdade
Nem por necessidade.
Fica firme,
não estrilha
Traz o retrato e a estampilha
Que eu vou ver O que posso fazer por você.
Seu amor é insensato
Me amotinou, mesmo, de fato
Não leve a mal
Eu prefiro a Lei Marcial.
Produzido sem que Ismael e Noel se conhecessem além dos encontros rápidos em
corredores das emissoras de rádio, nas mesas de café, nas esquinas do Centro,
Gosto,
Mas Não É Muito terá importância menor na obra que, a partir de Para Me Livrar
do Mal, eles vão construir juntos. Caso diferente, por exemplo, é o de Adeus. Há
quem
diga que o estribilho de Ismael é uma homenagem ao amigo morto Nílton Bastos.
212
Os versos tanto servem para falar de um amigo que se foi como de um amor que se
perdeu. Noel, contudo, é explícito. Prefere a segunda vertente ao criar as
segundas
partes, embora o breque dado pelos cantores ao final das mesmas, antes de
retornar ao refrão, "Foi o último adeus...", traga de volta a morte como tema.
Adeus é bem triste
Que não se resiste
Ninguém, jamais,
Com adeus pode viver em paz
(Foi o último adeus...)
Pra que foste embora?
Por ti tudo chora!
Sem teu amor
Esta vida não tem mais valor
(Foi o último adeus...)
Ismael e Noel criarão muito juntos. Nenhum outro comporá tanto com o poeta de
Vila Isabel quanto o sambista do Estácio(6). Atraídos pela admiração recíproca,
integrados
pelos respectivos talentos e, curioso, tendo a aproximá-los o Pavão, farão
sambas bonitos como este Quem Não Quer Sou Eu.
Quando eu queria o teu amor
Não davas atenção ao meu
Pra mim tu não tens mais valor
Agora quem não quer sou eu.
Observo que hoje em dia
Quem não quis diz que me quer
Cabe muita hipocrisia
Num capricho de mulher
Vou viver desiludido
Sem amor, sem ideal
Pra não ser submetido
A desejo tão banal.
E outros tão ou mais inspirados. Oovaojá Sei Que Tens Novo Amor:
Já sei que tens um novo amor
Não vá depois se arrepender
Não voltes, mulher, nunca mais
Sofre calada, não dá a perceber.
Sem dar a perceber também sofri
Desde o infeliz momento em que te vi
E hoje o que me fere o coração
É saber Que foste embora sem razão.
Por causa de outro amor tu vais sair
Eu não quero que tu venhas me pedir
Desculpas pelo teu procedimento
Nem que chores Aumentando o meu tormento.
Ou de Não Digas:
Ou ainda de Deus Sabe o Que Faz, todos sambas que aparecerão em disco assinados
por Ismael Silva e Francisco Alves. O nome de Noel, só na partitura.
NOTAS
1. Muitas vezes, pela vida afora, Ismael Silva recordaria este episódio,
repetindo-o em inúmeras entrevistas, uma delas aos autores. Mas a memória já lhe
fraquejava
nos últimos anos. Em seu segundo depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio
de Janeiro, a 16 de junho de 1969, contraria todos os relatos anteriores dizendo
que
o samba em questão era Quem Não Quer Sou Eu em vez de Para Me Livrar do Mal.
2. Nos selos dos discos originais, Ismael Silva divide com Francisco Alves a
autoria tanto de Me Faz Carinhos como de Não E Isso Que Eu Procuro. Já em Amor
de Malandro
o nome de Ismael simplesmente desaparece. O próprio Francisco Alves gravou os
dois primeiros. Amor de Malandro é caso raro de samba daquela época a merecer
mais
de uma gravação: a de Chico, uma de solo de assovio por João Gabriel de Faria e
a terceira de Nicola Pasceli.
3. Francisco Alves, sozinho ou em dupla com Mário Reis, gravou em 1931 e 1932
um total de quinze sambas como parceiro de Nílton Bastos e Ismael Silva.
4. Mário Reis relata essa passagem em entrevista incluída no ABC de Sérgio
Cabral (página 112) como se Francisco Alves tivesse cantado:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela...
Deve ter se enganado. Estes versos, de Noel Rosa, são posteriores à morte de
Nilton Bastos. Os citados no texto são os prováveis, já muito conhecidos na
época. De
um autor anônimo do Estácio de Sá, havendo quem os atribua a Rubem Barcellos, o
Mano Rubem.
5. Ver nota referente a este samba no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no
final do volume.
6. As musicografias até aqui levantadas, inclusive a partir de informações do
próprio Ismael Silva, fornecidas em entrevistas diversas de 1954 até sua morte
em
1978, nos dão conta de apenas nove composições suas de parceria com Noel: Para
Me Livrar do Mal, Adeus, Gosto, Mas Não É Muito, Uma Jura Que Fiz, Assim, Sim,
Quem
Não Quer Sou Eu, Ando Cismado, A Razão Dá-se a Quem Tem e Boa Viagem. Baseados
em dados que poderão ser encontrados no apêndice sobre a obra de Noel Rosa no
final
do volume, os autores relacionam mais nove: Escola de Malandro, Já Sei Que Tens
Um Novo Amor, Nunca Dei a Perceber, Não Digas, Deus Sabe o Que Faz, Dona do
Lugar,
Isso Não se Faz, É Peso e Sorrindo Sempre, esta em parceria também com Gradim e
Francisco Alves, já estudada no capítulo anterior.
215
RUMO AO SUL
Capítulo 22
Romeu Silva inclusive. Mas não Britto. Minutos antes do navio zarpar de regresso
ao Rio, ele procurará Romeu, aflito como sempre:
- Esqueci. Esqueci o violão. Ali. No cais!
Descerá do navio e sumirá por um ano. Ninguém jamais saberá ao certo como e de
que viverá nos Estados Unidos durante esse tempo. Sem licença de trabalho,
papéis
de imigração ou ao menos alguma noção do idioma. Mas em momento algum abandonará
o violão. A partir do projeto de um amigo brasileiro que encontrou por lá, um
certo
F. Dutra, vai adaptar amplificadores ao instrumento e levar o invento à Dobro
Corporation de San Francisco, Califórnia. A firma passará a fabricá-lo, ponto de
partida
do que um dia será conhecido como violão elétrico ou guitarra amplificada.
Quando voltar ao Brasil, já em 1933, trará consigo, orgulhoso, um desses
instrumentos,
depois de ter dado recitais no Bel-mont Theater, em Los Angeles, e em casas
noturnas de Chicago. Dinheiro, porém nenhum(1).
Já Noel Rosa recebe de Francisco Alves o convite para fazerem uma excursão ao
Sul. Eles, Mário Reis e outros nomes da música popular que o cantor ainda está
sondando.
A temporada, com espetáculos em Porto Alegre e outras cidades gaúchas,
Florianópolis e talvez Curitiba, pode render bons cobres a Noel. E ajudá-lo a
abater algumas
parcelas do que deve a Chico desde que este lhe deu as chaves do Pavão.
Assim, parece mais do que evidente que o Bando de Tangarás está com seus dias
contados, cada pássaro voando por uma paragem, um no rádio, outro repartindo-se
entre
dois ou três empregos, o terceiro às voltas com os boticões, o quarto de viagem
marcada para Los Angeles e o quinto migrando literalmente para o sentido oposto,
o Sul do Brasil. No dia 12 de abril, contudo, eles se reúnem uma vez mais, no
estúdio da Victor, para gravar novo disco2. Numa das faces, uma embolada de
Noel, que
assim retorna, ainda que por pouco, aos primeiros tempos do conjunto. Chama-se
Não Brinca Não, que Almirante canta com muita graça.
Dois dias depois, sem João de Barro e enxertado de Paulo Netto, Gorgulho e
Helvécio de Barros, um bando que dos tangarás originais só tem o nome segue de
automóvel
para um ou dois espetáculos em Nova Friburgo. Uma viagem tão cansativa quanto
financeiramente desastrosa. Será a última participação de Noel na história do
conjunto.
De início Francisco Alves pretendia que a estréia se desse a 8 de abril em Porto
Alegre. Mas a escolha dos cantores e músicos que o acompanharão foi menos
simples
do que esperava. Mário Reis está confirmado desde o começo. Já Noel Rosa só
passou a fazer parte do grupo depois que Lamartine Babo, doente, recomendado
pelo médico
a fazer uma estação de águas em São Lourenço, não pôde viajar. É sempre difícil
precisar o que Francisco Alves tem na cabeça, homem de muitas e variadas idéias.
Mas é bem possível que Lamartine Babo tenha sido o primeiro nome em que pensou
para substituir Nílton Bastos. Quem sabe? Afinal, logo após a morte do grande
sambista
do Estácio, o cantor tratou logo de aproximar Lamartine de Ismael Silva, os três
assinando um samba que Mário Reis gravou no fim do ano:
218
Mário Reis apaixona-se por este samba. Apossa-se dele, diz que vai lançá-lo em
Porto Alegre antes que Francisco Alves o ouça e o pegue para si. Mário acha, com
razão,
que música e letra de Mulato Bamba são feitas sob medida para a sua voz suave,
seu estilo pausado e meduloso, tão de acordo com a gente e as coisas deste Rio
malandro
de que falam os versos. Mas em quem terá se inspirado Noel para criar personagem
tão singular como este mulato forte do Salgueiro? Todos os bons malandros, do
morro
ou não, parecem nele contidos, a intimidade com o tintureiro(4), a habilidade
inata com o baralho, a astúcia que o permite viver sem trabalhar, a facilidade
com
que faz um novo samba. Mas a singularidade desse malandro é outra. De tal feitio
que as morenas do lugar se queixam: o mulato em questão simplesmente não quer se
apaixonar... por mulher. O bamba. Forte, corajoso, disposto a enfrentar qualquer
valente, mas não querendo saber de fita. Isto é, de amor. Nem com mulher bonita.
Estranho mulato este que em muitas coisas lembra o Satã, um dos mais afamados
valentes da noite carioca, capaz de virar do avesso um
botequim da Lapa, de encarar um, dois tintureiros de uma só vez, sem medo de
nada, nem mesmo da morte, quanto mais desses policiais que vivem dando batidas
pela
Mem de Sá atrás de pederastas que um impiedoso moralismo recomenda sejam
varridos das ruas como lixo. É muito comum o silêncio da noite ser quebrado
pelo alvoroço dessas criaturas correndo em bando, aos gritos, numa desesperada
fuga a policiais violentos. Os perseguidores atrás, brandindo cassetetes, os
perseguidos
na frente, entrando como ratazanas assustadas na primeira porta que encontrem
aberta na Mem de Sá, na Riachuelo, na Gomes Freyre ou na Lavradio. Satã, porém,
não
foge.
Terá sido ele o inspirador de Mulato Bamba? Grande, forte, um touro de homem,
temido, a própria polícia torcendo para não encontrá-lo pela frente numa dessas
batidas,
e no entanto acariciando o sonho de se tornar um dia uma esvoaçante estrela dos
nossos palcos. Pode ser visto, vestido de baiana, odalisca ou rainha de Sabá, a
rebolar
freneticamente num desses espetáculos que os cabarés da Lapa de vez em quando
apresentam, homens travestidos de mulher. Quem vê Satã assim, batom, brincos,
pulseiras,
mexendo com as cadeiras, cantando com voz de contralto, nem imagina do que é
capaz. Ele e Noel são amigos(5). Noel, na verdade, tem muitos camaradas entre
esses
homossexuais que a polícia persegue. Conhece alguns deles. Confessos como Satã e
Jota Piedade, bom compositor que em troca de companhia passa adiante os sambas
que
faz. Ou velados como Assis Valente e Ismael Silva, que não abrem a guarda com
medo de perder o respeito do pessoal do meio. Mas Noel não liga, aceita-os como
são.
Seu samba - a primeira obra da música popular brasileira a focalizar de modo
mais ou menos claro esse tipo de personagem - não deixa de ser um gesto de
simpatia.
Para com Satã ou outro mulato bamba qualquer. Nele não falta o duplo sentido de
que Noel tanto gosta: por quem vive perseguido o valente do Salgueiro, pela
polícia
ou pelas mulheres? Satã não quer saber de fita nem com uma, nem com outras. E há
o fecho, dois versos sutis sugerindo certo trejeito que Mário Reis, habilmente,
para não ser tão óbvio, evita ao cantá-los:
Ele então diz com desdém: "Quem tudo quer... nada tem."
Há mais de duas semanas a imprensa de Porto Alegre vem anunciando a chegada dos
Ases do Samba. O Cine-Teatro Imperial faz publicar nos jornais anúncios onde se
lê:
220
"Eles custam... mas vêm." Cria-se uma expectativa. A estréia, segundo o mesmo
anúncio (que aliás chama Mário Reis de "doutor", promete a presença de Lamartine
Babo
e refere-se a Noel como "Noél Rosas", com acento agudo no primeiro nome e um
esse a mais no segundo), está marcada para sexta-feira, 29 de abril. Será o
começo de
uma temporada inesquecível, plena de música, emoção e sobressalto .
Chegam a Porto Alegre poucas horas antes do espetáculo. E já que cada qual tem
de pagar hospedagem do próprio bolso, separam-se assim que pisam em terra. Mário
Reis
e Francisco Alves, de carteiras mais providas, vão para o conforto do Grande
Hotel. Pery Cunha, Nono e Noel, para quartinhos apertados de uma pensão barata
da Rua
Clara7, perto da Riachuelo. Pode não ser o Grande Hotel, mas tem lá os seus a
favores. De pontos em pontos, numa e noutra calçada, venezianas entreabertas
apenas
insinuam vultos de mulher que lá de dentro chamam os transeuntes para um
"instante". Ou seja, um amor ligeiro e econômico. São as chamadas casas alegres
de uma rua
onde se encontram também dois ou três botequins vagabundos, freqüentados por uma
população pobre, noturna e meio vadia.
É nesta viagem, certamente, que Noel descobre Nono. Ou melhor, um descobre o
outro. Já se conheciam, mas foi a bordo do Itaquera que ensaiaram a amizade que
se vai
fortalecer agora. Constatam afinidades, fazem planos para as madrugadas, depois
dos espetáculos. Já em Porto Alegre, viram companheiros inseparáveis. O que
desde
o primeiro minuto deixa visivelmente apreensivo o zeloso Francisco Alves.
Nono é um mulato bonito, olhos claros, sorriso sestroso. Nasceu em Niterói há 31
anos, toca piano de ouvido desde os nove, é profissional há quase dez e pertence
a uma família toda ela muito musical8. Conheceu de perto o grande Sinhô e está
atento a todos os estilos pianísticos em voga, do mais virtuoso Eduardo Souto ao
mais
limitado Ary Barroso. Mas não toca como nenhum deles. Nem como Mário Travassos
de Araújo, Jerônimo Cabral, Aldo Taranto ou Gaó.
221
Admira o Kalua, o Cebola, a jovem Carolina Cardoso de Menezes. São todos muito
bons, mas a maneira de Nono tocar, tão intuitiva e pessoal, é única. No apoio
rítmico,
nos breques, nos acordes arrancados das teclas como quem está prestes a
tropeçar, mas sempre "pegando" o cantor mais adiante, improvisando, criando.
Como acompanhante
Nono é insuperável. Mas o compositor não fica atrás. Pelo menos duas das mais
belas construções melódicas da música popular brasileira desta década serão
suas: Cigana
e O Jardim de Flores Raras. Coisas lindas de mulato romântico.
Francisco Alves tem razão para estar preocupado. Já desconfiava, agora não tem
mais dúvida: esta excursão vai lhe dar dores de cabeça. E Noel Rosa será o
responsável
por quase todas. São nove horas da noite, daqui a pouco os Ases do Samba vão
estrear em Porto Alegre. Sendo um espetáculo de palco e tela, como quase todos
da excursão,
o Imperial projeta as últimas cenas do filme. Chico olha de trás da cortina para
a platéia. Lotada. Está quase na hora e só agora Noel chega. Ele e Nono.
- Que negócio é este que você está vestindo - espanta-se Francisco Alves ao
vê-lo num amarrotado e encardido terno branco.
- É o meu summer.
- Mas isso não é summer. É um terno. E ainda por cima imundo!
- É summer, sim, Chico. Eu o aluguei.
- Onde? - intervém Mário Reis.
- De um garçom meu amigo.
Francisco Alves solta um palavrão. Ele, Mário, Pery e Nono de smoking, conforme
o combinado, e Noel com roupa de garçom! Mário procura aplacar-lhe a zanga.
Pensando
bem, diz ele, até que o grupo ficará interessante, quatro de preto e um de
branco. A platéia pode até pensar que é bossa. Chico que trate de se
tranqüilizar.
A estréia é um triunfo. O público vibra com os duetos de Francisco Alves e Mário
Reis, os solos de Pery Cunha e Nono, as interpretações de Noel para números
antigos
como Gago Apaixonado ou novos como Quando o Samba Acabou. Um triunfo. Mas
poucos, nesta multidão que lota o Imperial, terão gostado tanto da noitada
quanto os dois
recrutas do 7? Batalhão de Caçadores sentados na primeira fila. Um gaúcho moreno
e um catarinense claro cujos uniformes de soldado raso se destacam ao lado das
roupas
elegantes que predominam na platéia. Mas nem ligam. Vieram cedinho, desde a
Praça do Portão, onde fica o quartel. Só para ver, da primeira fila, os artistas
do Rio.
Felizes da vida, talvez lhes passe pela cabeça esperar os Ases do
Samba à saída do cinema. O mais claro se apresentaria.-
- Meu nome é Reinol Corrêa de Oliveira. No quartel, o 415.
E o moreno:
- Sou o 417. Mas cá fora me chamam de Lúpi.
Diriam que também gostam de música, pensam em se profissionalizar, o claro como
cantor, o moreno como compositor. Mas não dizem nada, ficam só na intenção.
Afinal,
quem são eles para puxar assunto com os Ases do Samba?
Sendo a noite de estréia, os cinco saem juntos do teatro para um programa em
grupo que não mais se repetirá enquanto estiverem no Sul. Andam pela cidade, vão
conhecer
o Beco do Oitavo (o comércio do amor não muito longe do Palácio do Governo),
passam pelo Jacques, dão uma espiada no Chez Nous, no Império. Chegam à Praça
Garibaldi.
Na esquina de João Alfredo - onde de dia funcionam uma frutaria e a engraxateria
do Sotero Rodrigues9 -param. São atraídos pela música que vem do interior de um
botequim. Entram. Lá dentro, boêmios porto-alegrenses se embriagam de vinho e
música. Sady Nolasco, Heitor de Barros, Nelson de Lucena, Piranema, Johnson,
Caco Velho
e os dois recrutas do 7.° Batalhão de Caçadores saboreiam a noite. Os Ases do
Samba surpreendem-se com a qualidade do que ouvem, a afinada voz do 415, as
composições
do 417. Aplaudem. Para os boêmios da terra, a glória.
- Quando forem ao Rio, me procurem - diz Francisco Alves usando um velho chavão.
Noel presta atenção nos sambas do moreno. Vira-se para os companheiros e
vaticina:
- Esse garoto é bom... Esse garoto vai longe!
Os dois recrutas vão guardar os detalhes desta noite até o último de seus dias.
Tomarão um pifão tão colossal que, perdendo a instrução na manhã seguinte, vão
passar
no xadrez do quartel a noite de sábado para domingo. Saem todos do botequim,
o415 e o 417 ciceroneando os cariocas até os cabarés da Voluntários, o Oriente,
o Royal,
onde as atrações são o cabaré-tier Palácios e o transformista Haimond. Depois,
se despedem.
Já sozinhos, meio de pernas trocadas, o moreno diz para o claro:
- Acho que o Chico ainda vai cantar minhas músicas...
E vai mesmo. O claro ficará conhecido um dia por um pseudônimo artístico:
Nuno Roland. O moreno, pelo próprio nome: Lupicínio Rodrigues.
222
Os Ases do Samba ficam uma semana no Imperial. Nos dias 6, 7 e 8 de maio atuam
no Carlos Gomes e em seguida estendem a excursão a outras cidades do Estado,
Caxias
do Sul, São Leopoldo, Cachoeira do Sul, Rio Grande, Pelotas. Em cada um desses
lugares Noel e Nono inventam novas maneiras de exasperar Francisco Alves. Em
Caxias
do Sul, somem invariavelmente durante o dia, nunca vão aos ensaios combinados.
Em São Leopoldo, uma hora antes de seguirem para o local do espetáculo, onde se
meteram
os dois? Francisco Alves, Mário Reis e Pery Cunha se dividem na busca. As
chances de encontrá-los, dessa maneira, aumentam. Mas onde terão se escondido?
Chico percorre
as pensões de mulheres, Pery os botequins, mas é Mário que vai descobri-los num
miserável cabaré. Nono está sentado a um velho piano, arrancando de teclas
carcomidas
as notas de uma valsa difícil de identificar. Noel, ao lado, brinca com o
violão. E entre os dois, já vazia, uma garrafa de anisete. Mário chama os
outros, pede-lhes
que o ajudem a levá-los daqui.
- Que aconteceu? - chega Francisco Alves já apavorado, pois falta menos de meia
hora para entrarem em cena.
- Acho que beberam demais, Chico.
-Agora é que vamos ter um desastre. Como é que eles vão entrar no palco depois
de terem tomado uma garrafa desta droga?
Mário Reis sente engulhos só de olhar para a garrafa vazia de anisete. Não há
coisa que ele mais deteste do que essa adocicada bebida de laboratório.
Vomitaria se
tomasse meio cálice, mas Noel e Nono consumiram um litro e estão aí, fortes,
tocando piano e violão.
- Não se preocupe, Chico - diz Nono com a voz suave de malandro cheio de
fraseados. - Estamos firmes.
O teatro fica perto do cabaré, pode-se ir a pé até lá. Ainda bem. Trôpegos, Noel
e Nono seguem Mário Reis e Francisco Alves pelas ruas de São Leopoldo. O líder
do
grupo sente vontade de gritar.
- Esses dois ainda acabam comigo, seu Mário!
Mas Nono está certo, ele e Noel continuam firmes. Não há anisete que os tire do
compasso. O espetáculo começa. E assim que Noel canta o eterno Gago Apaixonado,
tendo
ao fundo o piano de Nono, o público os ovaciona. Mário comenta com Chico:
- Para falar a verdade, o Noel está cada vez melhor.
Em Pelotas, Francisco Alves já conformado com o tal terno branco e se
preocupando menos com seus atrasos, surgem novas surpresas. Desta feita, o filme
termina, as
luzes se acendem,
a platéia põe-se a assobiar. E o palco continua vazio. Passam-se quase vinte
minutos da hora marcada para o início da apresentação dos Ases do Samba e Noel
não chega.
Até Nono está a postos, sóbrio e bem vestido, ao lado de Pery e Mário. Noel
Rosa? Nada. Francisco Alves não sabe o que fazer. Entram só os quatro ou cancela
o espetáculo?
Mário mais uma vez pede-lhe calma, diz que a situação não é tão séria assim,
pode-se pedir desculpas ao público: "Senhoras e senhores, lamentamos informar
que por
motivo de força..." É então que Noel chega. Os olhos do líder do grupo se
escancaram. O Noel que lhe aparece por trás da cortina do teatro, o pessoal lá
fora assobiando,
não está de smoking nem de roupa de garçom, mas vestido com um extravagante
terno de flanela cinza, listrado, as listras mais finas quase pretas, as mais
grossas
com jeito de desbotadas. Nos pés, sapatos brancos. Na cabeça, uma boina marrom,
ao que parece emprestada por Pery Cunha, que só a usa para abrigar-se do frio.
-Boina, seu Mário, é demais!- esbraveja
223
Os Ases do Samba deixam Pelotas contentes com seu êxito. Mas Francisco Alves não
esquece a boina. Lamuriento, confessa:
- Sabe, seu Mário.. .Já estou começando a achar que ele faz essas coisas de
propósito. Só para esbandalhar com os meus nervos.
Em Rio Grande não é diferente, Mário e Chico no melhor hotel, os outros três na
Pensão Mangache. Noel e Nono continuam se evaporando horas antes do espetáculo.
O
desespero do líder do grupo se repete:
- Santo Deus! Desta vez eles não vêm mesmo!
Mas sempre acabam vindo.
Voltam a Porto Alegre para uma nova série de apresentações nos últimos dias de
maio. A essa altura já é quase impossível encontrar Noel fora do palco. Ele e
Nono
continuam entregues às suas expedições boêmias à Rua da Praia, aos cabarés mais
ordinários, aos botequins mais escondidos. Isso enquanto Mário e Chico vão
engravatados
ao Clube Jocotó divertir-se com a alta classe média
porto-alegrense, ou ao Caçadores, na Rua Nova, em velhos tempos o preferido de
Getúlio Vargas e ainda hoje recebendo figurões em suas mesas de jogo. Mas os
desaparecimentos
de Noel são ainda mais demorados que os de Nono. Na verdade, ele é o mais
"ocupado" de todo o grupo. Bem em frente à pensão da Rua Clara - na qual volta a
hospedar-se
- mora uma bonita morena que ele conheceu uma noite dessas, talvez de janela,
talvez de prosa de esquina. Noel, como de hábito, se apaixona. Uma paixão breve,
mas
intensa, que o agasalha nestes frios dias de outono. Já não adianta Francisco
Alves correr atrás dele, reunir os outros Ases do Samba para uma busca pela
cidade.
Não vai encontrá-lo. Nono e Pery sabem, mas não dizem, que em vez dos ensaios à
tarde o amigo prefere os carinhos do novo amor. Como se chama?
Em toda a excursão, Francisco Alves nunca esteve tão enfezado:
-Já sei o que vou fazer.
- O que foi, Chico? - pergunta Mário. -Já descobri um modo de botar o Noel na
linha. E o Nono também.
Francisco Alves, na primeira oportunidade, lembra aos dois irrequietos Ases do
Samba que a viagem vai prosseguir em Florianópolis e só acabar em Curitiba. Quer
dizer
que ainda há muito pela frente. E como eles insistem em
224
Os Ases do Samba não fazem nas próximas escalas o mesmo sucesso de Porto Alegre
e outras cidades gaúchas. Vão alegar que as platéias de Santa Catarina e Paraná
não
são sensíveis ao espírito excessivamente carioca de seu repertório. Talvez. Há
apenas uma exibição no Cine Glória de Florianópolis, a 5 de junho, e outra no
Palácio
Teatro de Curitiba, na noite de segunda-feira, 13. Uma semana depois, o Rio.
225
NOTAS
1. Ao contrário do que se chegou a afirmar, Henrique Britto não inventou o
violão elétrico. No máximo, foi quem o introduziu no Brasil. Ele próprio, em
entrevista
a O Globo de 14 de junho de 1933, contaria ter sido o amigo F. Dutra o
idealizador do sistema que a Dobro Corporation acabaria patenteando. Depois de
fazer uma demonstração
da novidade, na redação do jornal, informaria que ele e Dutra seriam os
representantes da Dobro na América Latina.
2. Este disco - Não Brinca Não de um lado, Cabelo Branco, embolada de Almirante
e Waldo de Abreu, do outro - será o penúltimo gravado pelos tangaràs, o último
com
participação de Noel Rosa. No dia 20 de maio de 1933 o grupo encerrará sua
carreira registrando, na Odeon, Festas de São João, cena regional gravada nas
duas faces
do disco. O próprio autor, João de Barro, será o solista.
3- Já estudado no Capítulo 12.
4. Carro de polícia para transporte de presos. O camburão da época.
5. Satã, que só anos mais tarde passaria a usar o Madame antes do nome, já
famoso como travesti e desfilante de concursos de fantasias, refere-se à amizade
com
Noel em seu livro Memórias de Madame Satã (página 17).
6. Todas as informações contidas neste capítulo sobre a excursão ao Sul baseiam
se em depoimentos de Mário Reis aos autores, em entrevistas realizadas a 1 e 17
de abril de 1981, e de Demósthenes Gonzalez, presidente do Clube dos
Compositores de Porto Alegre, em carta de 14 de maio de 1983.
7. Atual João Manuel.
8. Romualdo Peixoto, o Nono, que morreria em sua Niterói natal a 13 de novembro
de 1954, era tio do cantor Cyro Monteiro. E também do pianista Moacyr Peixoto,
do
pistonista Arakem Peixoto e dos cantores Andiara e Cauby Peixoto.
9. Sotero seria, anos depois, o primeiro zelador do estádio do Sport Clube
Internacional de Porto Alegre.
10. Toada sertaneja de Heckel Tavares e Luís Peixoto.
11. Carioca, 18 de julho de 1936 (página 41).
12. Gravada em 1983 como uma das vinhetas do disco Noel Rosa Inédito e
Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).
226
Capítulo 23
19 DE JAN
Dois meses é uma longa ausência, uma considerável pausa nas atividades de
qualquer profissional do rádio e da música popular. Por isso, como se tendo
pressa de recuperar
o tempo em que estiveram fora, os cinco Ases do Samba, juntos ou separados,
tratam de se mobilizar. Nono e Pery Cunha voltam às gravações. Mário Reis - cada
vez
mais apaixonado por Mulato Bamba - registra-o na Odeon, destinando o outro lado
do disco a um novo samba de Noel e
Ismael Silva.
Não tenho amor,
nem posso amar
Pra não quebrar uma jura que fiz
E pra não ter
em quem pensar
Eu vivo só e sou muito feliz.
Aquela que eu mais amava
Só pensava em me trair
Quando eu menos esperava
Partiu sem se despedir.
Essa mesma criatura
Quis voltar mas eu não quis
E hoje cumprindo a jura
Vivo só e sou feliz.
Um amor pra ser traído
Só depende da vontade
Mas existe amor fingido
Que nos traz felicidade.
A mulher vive mudando
De idéia e de ação
E o homem vai penando
Sem mudar de opinião.
Este samba, Uma Jura Que Fiz, retoma sob as bênçãos de Francisco Alves a
sociedade que a viagem obrigou-os a interromper. É um samba perfeito, primeira e
segunda
partes impecavelmente encaixadas. É um dos mais representativos da parceria
Ismael Noel. Na música e na letra. É importante notar como se completam, sem
qualquer
conflito, as diferentes visões que Ismael e Noel têm do amor. O que para um é
recusa, não querer amar, não gostar ("Esse negócio de amor não convém", dizia
Ismael
na primeira composição que Noel lhe completou), no outro é desilusão,
sofrimento, traição. Ambos - Ismael na primeira, Noel na segunda - acreditam em
viver só e
ser feliz, mas chegam a tal conclusão por caminhos diversos, Ismael por não
querer problemas, Noel por já ter superado os seus. Essas distintas visões do
amor, um
se recusando a amar, o outro sofrendo por não se ter recusado, vai se repetir em
outros sambas dos dois. Mas com tal habilidade de Noel na condução da segunda
parte
(a fórmula praticamente não varia, primeira de Ismael, segunda de Noel), que só
com algum esforço se percebe que os poetas são dois e não um.
227
Mais três sambas Noel e Ismael fazem pela mesma época, isto é, logo depois da
viagem ao Sul. Um deles é Ando Cismado.
O terceiro, É Peso, não sairá em seus nomes, mas no de Antônio dos Santos,
jornaleiro do Estácio que os acoberta talvez para evitar a participação de
Chico(1). A
letra da primeira parte, lida simplesmente, pouco vale. Mas, vestida com melodia
de Ismael, se transforma. A segunda é legítimo Noel. Na estrofe final, são
primorosos
os duplos sentidos, os jogos de palavras, "peso" podendo ser azar ou carga, e
"pena", castigo ou coisa leve.
Ismael e Noel produzindo muito, o primeiro para não deixar sem material novo o
sócio Francisco Alves, o segundo para amortizar a dívida do Pavão. Tudo como
antes.
Especialmente para Francisco Alves. Profissional é profissional, de modo que já
esqueceu os problemas que Noel lhe causou durante a viagem. Acertadas as contas,
pago o que era devido a Noel e a Nono, o cantor acha que o que passou, passou. É
hora de seguir em frente. Por isso, procura o parceiro e diz que quer gravar Até
Amanhã. A reação de Noel é quase infantil, birrenta como a de um garoto zangado.
- Desculpe, mas eu prefiro dar pro João Petra.
Francisco Alves não se queima. Deixa o garoto Noel se zangar. Como não se
queima, tampouco, ao saber que Nono e Noel fizeram um samba mexendo com ele,
desforrando-se do que aconteceu em Porto Alegre, provocando-o musicalmente.
Tanto assim que, informado de que Sílvio Caldas vai gravar o tal samba, Vitória,
na tarde
de 13 de julho, aparece no estúdio da Victor e se oferece para participar da
gravação. E de graça! Sílvio fica honrado e surpreso. O que terá dado no Chico?
Contratado
da Odeon e não cobrando nada para reforçar um disco da Victor? O samba é
gravado, Francisco Alves fazendo uma nítida, afinada e harmoniosa segunda voz
para Sílvio:
Antes da vitória
Não se deve cantar glória
228
Noel Rosa não é, nunca será um romântico. Nem na poesia, nem na vida. Não será
jamais um poeta transbordante de sentimentos, lírico até a raiz dos cabelos,
derramado
como os que ele mesmo gostava de cantar com o amigo Alegria à época de Queixumes
("Por que te esquivas assim, coração...?"), nem será um amante dado a enlevos de
um Romeu ("Ah! Querida Julieta! Por que ainda és tão bela?"). Uma coisa está
refletida na outra. Não há lugar nos relacionamentos amorosos de Noel para
flores e
bombons, bilhetinhos apaixonados e gestos galantes, carinhos e nobrezas. Da
mesma forma, sua poesia, suas letras de música raramente terão o acento lírico
dos menestréis
das noites de Vila Isabel.
Das 250 para 300 músicas que comporá, não chegarão a meia dúzia as que falam do
amor de maneira direta, a mulher como objeto de seus sentimentos, de suas juras,
de suas promessas, da alegria de gostar dela. Quantas vezes o "eu te amo" fará
parte de suas letras? Nenhuma. Quando muito dirá como em Até Amanhã:
De ti gosto mais que outra qualquer
Menos de meia dúzia. Poderá fazer-se
eventualmente gentil e generoso ao cantar sua cidade, seu bairro, as pastorinhas
que desfilam pelas ruas nas proximidades do Natal. À mulher amada, porém,
destinará
apenas as queixas. Suas canções de amor são anti-românticas, principalmente,
porque a visão de vida de Noel, em relação ao amor, nada tem de romântica. Não
acredita
que possa ser amado. Talvez nem acredite que alguém possa amar alguém, o amor
sendo sustentado pela mentira, a artimanha, a falsidade, a simulação. É neste
1932
que ele compõe este hino à mentira, música lindíssima para versos tão sofridos:
Mentir, mentir, somente pra esconder A mágoa que ninguém deve saber
Mentir, mentir, em vez de demonstrar A nossa dor num gesto ou num olhar
Saber mentir é prova de nobreza
Pra não ferir alguém com a franqueza Mentira não é crime É bem sublime o que
se diz Mentindo pra fazer alguém feliz.
É com mentira que a gente Se sente mais contente Por não pensar na verdade O
próprio mundo nos mente E ensina a mentir
Chorando ou rindo sem ter vontade. E se não fosse a mentira Ninguém mais viveria
Por não poder ser feliz E os homens contra as mulheres Na terra, então, viveriam
em guerra Pois no campo do amor A mulher que não mente não tem valor.
Um remate definidor: no campo do amor, a mulher que não mente não tem valor.
Para ele, contudo, todas as mulheres mentem. E é quase sempre a partir da
mentira, da
arte de enganar, do dom de saber iludir, que ele vai criar o universo de suas
canções de amor. Tudo, evidentemente, intercalado de humor, ironia, astúcia.
Noel Rosa não é nem será um romântico. Mas nunca isso ficou tão manifesto, tão
claramente explícito, tão confessado por ele mesmo, como neste segundo semestre
de
1932. Quem será sua musa então?
Clara e Fina. Não são apenas as duas que dividem os carinhos de Noel nestes
dias. Entre uma e outra caberá lugar para uma terceira, nova musa: Julinha.
Clara continua
sendo a namoradinha dos tempos de colégio, a única com quem talvez se casasse.
Isto é, se acreditasse em casamento, em ser feliz preso a uma mulher, uma
família,
uma vida rotineira e sossegada. Fina foi, sem dúvida, a primeira paixão. De
certo
229
modo, Noel jamais deixará de gostar dela, de seu jeito de criança alegre,
atirada, travessa, parecida com ele em sua sede de vida, mas uma vida sem freios
nem grades,
de coração e braços abertos para o mundo. Julinha é diferente de Clara e de
Fina,
pode-se dizer, em quase tudo.
Chama-se Júlia Bernardes, diz pertencer a importante família mineira, a mesma
que deu ao Brasil um Presidente da República, e exige ser tratada à altura de
seu nome.
Mas Noel a conheceu num dos muitos cabarés da Lapa onde tem trabalhado, o Roxy,
o Flórida, o Rex, o Tabu. Tem entre 30 e 35 anos, a maquiagem carregada tornando
mais difícil precisar-lhe a idade. É alta, vistosa. Muda de cabarés e namorados
com a mesma freqüência com que muda de cabelo, loura hoje, ruiva amanhã, cor
indefinida
depois. Quando sóbria, ostenta maneiras que não chegariam a envergonhar os
Bernardes de Viçosa. Mas raramente está sóbria. E quando bebe, tudo é possível.
Julinha
é muito diferente de Clara e Fina.
Sempre propenso a grandes paixões, Noel se vê empurrado para os braços de
Julinha desde o primeiro momento. Testemunha deste começo de romance é Ignácio
Jorge, o
Pará, motorista de táxi que costumava levar Noel para todo canto antes da compra
do Pavão. Como Noel quase não fala de Julinha (procura vê-la longe dos olhos dos
amigos, sempre temendo suas cenas, algumas delas violentas), às informações de
Pará se deverá o pouco que se vai saber deste agitado caso de amor. Mais velha e
experiente
que Noel, levando uma vida a que Clara e Fina jamais se atreveriam, Julinha não
será propriamente a inspiradora do
anti-romantismo de Noel neste 1932. Mas, para quem vivia fazendo versos sobre a
mentira, a falsidade das mulheres, o amor como um jogo de regras baixas,
desprovido
de qualquer lirismo, ela parece a musa ideal. Prática que confirma a teoria,
modelo perfeito para os sambas que Noel vai fazer por agora.
Julinha mora na Penha, numa modesta casa de morro pouca coisa melhor do que um
daqueles barracões da Mangueira que Noel conhece tão bem. É esta casa que abriga
o
amor dos dois nos primeiros tempos. Um amor complicado, entremeado de brigas e
bebedeiras, ciúmes e escândalos. É impossível saber ao certo quantas e quais
músicas
Noel comporá inspirado em Julinha(2). Pelo menos neste caso, se é
autobiográfico, se transforma em samba episódios reais, nunca o faz de forma
clara, direta, com
todas as letras. Mas decerto nao é para Julinha -ao contrário do que se dirá -
esta beleza de queixa de amor que é Pra Esquecer:
Naquele tempo
Em que você era pobre
Eu vivia como um nobre
A gastar meu vil metal
E por minha vontade
Você foi para a cidade
Esquecendo a solidão
E a miséria daquele barracão.
Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
Você me esqueceu
E partiu
Com o primeiro que apareceu
Não querendo ser pobre como eu.
E hoje em dia
Quando por mim você passa
Bebo mais uma cachaça
Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça
Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que eu filei
De um ex-amigo que outrora sustentei.
É verdade que a Penha, muito longe do trabalho de Julinha e também dos lugares
por onde Noel mais anda, logo será trocada pela Lapa, o humilde barracão dando
lugar
a um quarto na Rua do Riachuelo que o próprio Noel ajuda Julinha a alugar. Mas a
letra do samba não reflete exatamente a história do romance entre os dois. Além
do mais, dirá Noel numa entrevista a propósito da origem de Pra Esquecer:
"A vítima não era eu. Era um amigo que gostava muito de uma mulher e que por ela
abandonou tudo. Uma noite eu o vi dançando num cabaré, com ela. Talvez fosse a
última
noite. Ele havia reunido o que lhe restava da fortuna e tinha ido vê-la. A cena
me impressionou fortemente e dias depois o samba nasceu. E nasceu triste como a
história
que eu via desenrolar-se perante meus olhos."
O que importa é ser este samba um doloroso e impressionante retrato da vida
boêmia -o amor acabando com o último tostão. Cruel, autoflagelador, mas lindo.
Julinha também é interesseira. Gosta de dinheiro, faz parte da sua filosofia. E
exigência do métier esta ambição de querer mais, sempre mais. Em razão disso,
multiplicam-se
os namorados. Noel não pode sustentá-la com o que ganha. Provavelmente, nem
pensa nisso. Mas experimenta - com alguma amargura e muita ironia - a ganância,
a cobiça
com que Julinha anima sua convivência com ele. Ela talvez não seja, mas bem
poderia ser a musa de um fox-trot que'Noel compõe precisamente por esta época,
contendo
uma de suas mais perfeitas letras, versos em que deixa resumido todo o seu anti-
romantismo,
230
toda a sua certeza de que os tempos das paixões como a de Romeu ejulieta ficaram
para trás, que toda a poesia do amor, hoje, é outra, coronéis em lugar de
romeus,
brilhantes em vez de canções, o canto dos menestréis da noite mal alcançando os
ouvidos distantes de uma amada gananciosa e infiel. O fox-trot chama-se Julieta.
Uma Julieta como Julinha.
Julieta
Não és mais um anjo de bondade
Como outrora sonhava O teu Romeu.
Julieta
Tens a volúpia da infidelidade
E quem te paga as dívidas sou eu...
Julieta
Tu não ouves meu grito de esperança
Que afinal de tão fraco não alcança
As alturas do teu arranha-céu.
Tu decretaste a morte aos madrigais
E constróis um castelo de ideais
No formato elegante de um chapéu.
Julieta
Nem falar em Romeu tu hoje queres
Borboleta sem asas, tu preferes
Que te façam carícias de papel.
Nos teus anseios loucos, delirantes
Em lugar de canções queres brilhantes
Em lugar de Romeu, um coronel.
Noel Rosa e Ismael Silva estreitam sua colaboração, produzem cada vez mais
juntos, formam dupla para gravar. Gente Boa e Batutas do Estácio são algumas
designações
com que os dois, quase sempre reforçados por Francisco Alves, atuam em discos e
em recitais. Gravam coisas menores do próprio Noel, como Quem Não Dança, samba
em
forma de partido-alto cujos improvisos não vão além de dois versos, o segundo
tendo de rimar com "criança".
Quem não dança, quem não dança Pega na criança
Quem não dança, quem não dança Pega na criança.
Você é um contrapeso Que não entra na balança.
Veja se carrega pedras Enquanto você descansa.
Quando peço mais amor Quero menos confiança.
Não pretendo andar no luxo Toilette é lá na França.
Eu sou muito liberal Mas não uso aliança.
Por qualquer mil e quinhentos Você faz uma lambança.
O juiz apita sempre
Mas nem sempre a linha avança.
Ou brincadeiras como Seu Jacinto, marcha para o carnaval de 1933-
O que eu sinto e não consinto É seu cinto se afrouxar Seu Jacinto aperta o cinto
Bota as calças no lugar.
O seu Jacinto tinha que comprar feijão
Mas não tinha um só tostão
E o caixeiro estava duro
Ele não gosta de pagar feijão à vista
Porque sendo futurista
Paga sempre pro futuro.
O seu Jacinto que é cheio de chiquê
Eu não sei dizer por que
Dorme de cartola e fraque
Anda dizendo que o seu sonho dourado
É morrer esmigalhado
Por um carro Cadillac.
O seu Jacinto já arranca a sobrancelha
E só bebe mel de abelha
Para ser um doce amor
A tia dele que até hoje é melindrosa
Pra ser leve e vaporosa
Toma banho de vapor.
Quando tem baile lá na casa da Thereza
Ela faz pano de mesa
Com o lençol que cobre a cama
Bota nos copos água usada na banheira
Depois diz à turma inteira
Que é cerveja lá da Brahma.
Seu Jacinto, no caso, é o brasileiro destes tempos, que deve manter a pose
apesar da fome ("O que eu sinto e não consinto é seu cinto se afrouxar").
Apertar o cinto
é a palavra de ordem, economizar, não se gastar o pouco que se tem. Uma marcha
que - por outros motivos que não o retrato que traça do Brasil de agora - vai
provocar
um protesto pela imprensa assinado por Jota Tojeiro, pianista e compositor que
em carta aberta refere-se à campanha liderada por Renato Murce pela moralização
e
restauração do bom-gosto nas letras da música popular brasileira. Tojeiro diz:
"... lamento ter Renato Murce apresentado em público o nome do Sr. Noel Rosa e
outros como poetas-moralistas nas músicas de sabor popular; talvez o senhor
Renato
Murce
231
Os dois sambas serão gravados por Castro Barbosa & Jonioca, o primeiro, ejoão
Petra de Barros, o segundo, mas em nenhum deles o nome de Noel constará do selo
do
disco. Ao contrário
de Assim, Sim, marcha, uma das poucas de toda obra de Ismael Silva. Gravada por
Carmem Miranda enquanto Noel e os Ases do Samba estavam no Sul, possui refrão
suave
e elegante, como quase tudo que Ismael faz, e aquela imprecisão de que ele tanto
gosta. Interessante, também, a estrutura dos versos de Noel: um alexandrino e
duas
redondilhas maiores.
Assim, sim
Mas assim também não Já não gostas mais de mim Mas eu não te dei razão.
Infelizmente este mundo é sempre assim
Quem ri muito no começo
Chora quando chega o fim.
Em mar de rosas começou nossa amizade
E depois tu me entregaste
A tristeza e a saudade.
E muita gente que a tristeza desconhece
Chora às vezes de alegria
Quando ri de quem padece.
Nas tuas juras eu sorrindo acreditei
Hoje eu choro já descrente
Vendo quanto me enganei.
Carmem Miranda já é um cartaz da música popular. Não tem grande voz, sustenta
com dificuldades as notas mais longas, por vezes peca na afinação. Mas é uma
estrela.
Seus discos vendem muito, mas é nas apresentações em palco que ela realmente
brilha. Ali conquista seu público, arrebata corações, embriaga fãs, domina
platéias.
A vendagem dos discos torna-se conseqüência do que exibe em carne e osso. Carne
e osso é bem o caso. Porque a graça de Carmem Miranda - a imprensa não se cansa
de
se referir a esta graça, evitando termos "mais ousados", ainda que menos
precisos -faz-se de uma irresistível sensualidade. Aracy Cortes pode mostrar
pernas e metade
do busto no palco, os homens da platéia também chegarão ao delírio. Outras
grandes mulheres do teatro de revistas, pelo sumário da roupa ou pelas anedotas
picantes,
produzirão efeito idêntico. Há sensualidade igualmente nessas estrelas. Mas o
que acontece com Carmem Miranda é diferente: ela consegue tudo isso e muito mais
coberta
da cabeça aos pés, apenas com a tal "graça", os requebros, os gestos de mão, o
olhar malicioso. O público enxerga por trás de suas roupas, vê-se tocado pelo
seu
magnetismo. Quem disse que não se trata de uma grande cantora? Para os homens
que estão no teatro é a maior cantora do mundo. Para os músicos que a
acompanham, talvez
mais.- conta-se que os componentes da orquestra de Pixinguinha costumam
desafinar toda vez
232
à vontade nesse campo. Tem clara predileção pelas marchas(8). E aos sambas que
canta imprime sempre a sua marca, brejeira, interessante, pessoal, notável
principalmente
pelo fraseado, pela habilidade com que pronuncia nítida e rapidamente versos
longos nos quais uma cantora menos ágil tropeçaria. Mas uma marca que nem de
longe se
afina com a alma dos sambas do Estado. Carmem será melhor intérprete de sambas
ligeiros, quase choros cantados, à maneira de Gadé, Vicente Paiva, Heitor
Catumby,
do que de composições de Alcebíades Barcellos. Cantará melhor Ary Barroso e
Joubert de Carvalho do que Armando Marcai. Ismael Silva? Tirando Assim, Sim, por
sinal
uma marcha, nada mais gravará dele. Cartola? Noel Rosa estava no Sul com os Ases
do Samba quando Carmem gravou Tenho Um Novo Amor, dele com Noel Torna-se
impossível
reconhecer por trás da interpretação da cantora, sem calor, aos arranques,
vestígios do mesmo compositor que há dois anos, pela voz de Francisco Alves,
começou a
sair do anonimato:
Que infeliz sorte!
Que infeliz sorte!
Que vale que o meu coração
Pra resistir esta paixão é forte.
Tão pouco identificada está Carmem com o universo de Cartola e Noel que (talvez
por estar este ausente do Rio) decidiu fazer modificações na letra de Tenho Um
Novo
Amorpara torná-lo mais digno de uma amiga dos Guinles, de uma freqüentadora do
Fluminense. Assim era o coro original, possivelmente só de Cartola:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver sujo nem rasgado
Gosta que eu ande assim bem trajado.
Eis como ficou o coro após a alteração, seguindo-se as duas segundas partes de
Noel:
Tenho um novo amor
Tenho um novo amor
Que vive pensando em mim
Não quer me ver triste nem zangada
Gosta que eu ande assim engraçada.
Eu não quero dar a perceber
Que gosto demais do meu amor
Se ele compreender
Vai se convencer
De que tem para mim um enorme valor.
Se acaso algum dia
se apagar Do seu pensamento
o meu amor Para não chorar
E não mais penar
Mando embora a saudade pra livrar-me da dor.
de nada menos do que oito das treze músicas do programa. Uma delas - espécie de
ilha neste mar de ironias e anti-romantismo que são suas obras de agora - é um
dos
sambas mais bonitos que jamais fará. Pela linha melódica inspiradíssima e também
pela letra, onde estão presentes jogos de palavras e contraposições tipicamente
suas: "A mulher mente brincando e às vezes brinca mentindo..." ou "o amor é um
pecado, mas quem não ama é pecador..." Trata-se, provavelmente, do primeiro
samba-canção
de Noel, gênero que soma o lirismo das canções cultivadas em serenatas à
cadência brejeira dos sambas, no qual seu parceiro Henrique Vogeler fez-se
pioneiro há quatro
anos. Nuvem Que Passou, composto antes de Mentir e Pra Esquecer, também sambas-
canções, é lançado por Francisco Alves neste segundo Broadway Cocktail:
A nossa imensa felicidade
Foi uma nuvem que já passou
O teu amor que traz saudade
Foi estrela que brilhou
E pra sempre se apagou.
A mulher mente brincando
E às vezes brinca mentindo
Quando ri está chorando
E quando chora está sorrindo.
Quero lembrar o passado
Por um prazer, uma dor
O amor é um pecado
Mas quem não ama é pecador.
Meu ideal foi desfeito
Não quero mais amizade
Para não trazer no peito
O atroz veneno da saudade.
No céu do amor a saudade
Brilhando sempre ficou
E a nossa felicidade
Foi uma nuvem que passou.
Cabe também a Francisco Alves lançar aqui julieta, embora não seja ele, mas
Castro Barbosa, quem o levará ao disco. Enfim, sem que muitos se dêem conta, não
é pelo
humor, mas por sua efetiva presença como compositor que Noel Rosa se destaca no
segundo Broadway Cocktail. Alguns jornais, como A Noite, verão nele não mais que
um humorista, ainda que o batizando de "Bernard Shaw do Samba":
"O Almirante conquistou numerosas palmas com as suas emboladas tão do agrado do
público nosso. Por último, Noel Rosa disse muita coisa de espírito, fazendo rir
durante
quase todo o tempo em que esteve em cena."(9)
Outros, como o Diário Carioca, serão mais efusivos:
"A Almirante e Noel Rosa cabem, sem dúvida alguma, as honras do cocktail.
O primeiro, com suas emboladas características, entusiasma o público, que custa
a deixá-lo sair de cena. Quanto a Noel Rosa, nós já prevíamos o sucesso que
obteria.
Canta três sambas de sua autoria, cada qual melhor."(10)
Portanto, as estrelas são Francisco Alves e Carmem Miranda, mas o brilho maior
fica mesmo com Noel Rosa. Sucesso tão grande que o segundo Broadway Cocktail,
organizado
para ficar em cartaz apenas uma semana, estende-se por mais uma, servindo agora
de aperitivo para novo filme, Barbara Stanwick e Ricardo Cortez em A Vida É Uma
Dança
(Ten Cents A Dance).
Será sempre assim, nunca vendo as coisas por um prisma colorido. Lirismo não é
com ele. Daqui a três anos, A Voz do Rádio vai empreender uma de suas enquetes
em
torno de trivialidades do tipo "o amor é eterno?" Partindo de um poema de
Adelmar Tavares, que diz:
Uma barquinha branca...
Uma cabana...
E em volta da cabana - coqueirais...
O mar em frente...
A vida soberana De ser pobre e pescador
Viver feliz com o teu amor
E nada mais...
Ou no cimo de um monte uma choupana,
- E em volta da choupana laranjais...
- Soprar a flauta quérula, de cana,
Ter um rebanho e ser pastor...
Viver feliz com teu amor E - nada mais...11
... o semanário V2i perguntar à gente do meio artístico se um amor e uma
choupana são o bastante(12). Diz Carmem Miranda:
"Meu nego, amor com cabana é do século das saias rodadas."
Aurora Miranda:
"Você tem cada uma! Onde já viu você que nesse tempo dos arranha-céus possa a
gente pensar em cabanas."
Antônio Nássara:
"Tem os seus conformes e os seus breques. Quem é que vai para a cabana?"
Noel prefere responder com Alô Beleza, música e letra de sua autoria, que jamais
serão gravadas:
Alô beleza
Andas por aqui?
Cada vez mais cada vez...
Cada vez com mais feitiço
Por falar nisso...
Tens alguns dinheiro aí?
236
Puro anti-romantismo.
Está mesmo dividido por três. Com Clara ele é um namorado mais ou menos
esporádico, conversando com ela no portão do chalé numa tardinha de
segunda-feira para desaparecer na terça. Inventa desculpas, diz andar ocupado,
some por semanas, meses, mas volta sempre, com novas desculpas. Que ela aceita.
Dona
Martha não a desanima.-
- É assim mesmo. Um dia ele toma jeito.
Não desiste do sonho de ver o filho casado com Clara, ainda dando aulas aos
alunos de alfabetização no Externato Santa Rita de Cássia. É tão acalentado o
sonho de
Martha que ela chega mesmo a aproveitar as horinhas de folga para preparar o
enxoval de Clarinha. Uma fronha hoje, um pano de mesa amanhã, peças simples,
baratas,
mas sempre úteis. Para que deixar tudo para a última hora?
Às vezes, Clara pensa em desistir, em tratar da própria vida. Enquanto isso,
Noel continua sumindo. E fugindo de Fina também. Esta não é tão calma, tão
aceitativa.
Noel pode fazer-lhe das suas, mas jamais ficará sem resposta. Um domingo,
combinam ir a uma festa na casa de uma família amiga. Noel tem um violão
guardado na Rua
Moju. Fina sabe disso e está certa de que o namorado, na hora de seguirem para a
festa, levará o violão. Imaginem o que as pessoas irão dizer ao vê-la chegar.-
- Olhem, é a namorada do Noel. E ele trouxe o violão!
Mas, neste domingo, o atraso de Noel é maior do que das outras vezes. Fina
espera, vai ao portão, impacienta-se, volta, queixa-se com a avó, roga pragas,
xinga.
O atraso é tanto que jura por todos os santos que nunca mais olhará para ele.
Como ousa deixá-la esperando, numa noite de domingo, todo o mundo lá na festa
querendo
saber onde estão ela, Noel Rosa e o violão? Fina começa a trocar de roupa,
abandona a idéia de sair. Sente vontade de chorar. Ouve então
oportão da rua se abrir e por ele entrar, trocando pernas, o namorado.
- Boa noite, dona Luísa.
Pelo andar, pela voz, por tudo, deve ter bebido um barril de chope. Está pálido,
passando mal. Vomita na varandinha, apóia-se na grade. Fina está cada vez mais
furiosa.
- Você não presta, Noel!
- Não fale assim com ele, Fina-in tervém dona Luísa.
Noel começa a dar uma desculpa, mas a voz de Fina, estridente, abafa-lhe as
palavras.
- Nunca mais fale comigo!Nunca mais!
Fina vai lá dentro apanhar o violão. Enquanto isso, sempre se apoiando na grade
da varanda, fazendo força para não cair, Noel fala.-
-Sabe de uma coisa, dona Luísa?Eu amo sua neta! Eu amo...
Fina volta com o violão. Coloca-o no chão da sala, arrebenta-lhe-as cordas,
salta com os dois pés sobre ele, rachando-o.
- Fina! - protesta a avó.
- Deixa ela, dona Luísa. Deixa ela. Dona Luísa está sempre do lado de Noel.
Não só pelo cafezinho, as broas de milho, as delicadezas várias, mas pela
compreensão que tenta passar à neta. No dia seguinte, chama-a para pedir-lhe que
tenha
paciência com o namorado. Se bebeu demais, deve ter seus motivos. Quem sabe
algum desgosto?
- Porque Noel, minha filha, no fundo é um moço triste. Trate-o bem. As pessoas
tristes precisam de mais atenção.
Fina vai continuar tratando Noel bem.
Com Julinha tudo é diferente. Nem bons tratos, nem atenções. Muito menos uma
aliada como dona Luísa para tornar menos azedas as brigas de amor. Um amor que
se revela
mais complicado e penoso cada vez que ela abusa de bebida. Os dois, Julinha e
Noel, gostam de beber. Também ele, quando ultrapassa determinado limite, pode
fazer-se
difícil, inconveniente, provocador e até agressivo. As bebedeiras nos cabarés em
nada se parecem com aquela, dada a arroubos, que dona Luísa testemunhou.- "Eu
amo
sua neta!" São bebedeiras que às vezes incomodam os outros. E quando os
incomodados reagem, o magrícemo Noel se pondo a postos para uma briga que na
certa perderá,
é sempre bom estar por perto um dos muitos valentes da Lapa que se incluem entre
os seus amigos. Não havendo por perto este defensor oportuno Noel
invariavelmente
apanha. E feio. Mas, ainda assim, sua embriaguez é menos tumultuosa que a de
Julinha.
- Vou me matar!- costuma ameaçar no auge dos seus pileques.
Tudo que faz - desde as ameaças de suicídio
238
É difícil
Saber fingir, meu bem
Mas você tirou patente
Privilégio que ninguém tem.
É capaz
De beber um litro de perfume
Só pra fingir
Que está louca de ciúme.
Não hei de me admirar
Se algum dia
Você se atirar no meio da baía
Pondo a família
Em grande agitação
Só por fingimento,
Pura tapeação!
Dividido por três, a Clara dos olhos meigos, a Fina do riso de criança, ajulinha
das brigas de amor, o anti-romântico Noel vai vivendo intensamente.
NOTAS
1. É ainda em Harmonia, número de dezembro de 1932, que a autoria do samba está
atribuída a Ismael e "Noel. Mas o próprio compositor do Estácio, muitos anos
depois,
contaria ao jornalista José Lino Grünewald - segundo depoimento deste aos
autores - que ele e Noel usaram o nome do jornaleiro Antônio dos Santos.
2. De acordo com Almirante, teriam sido cinco os sambas de Noel Rosa inspirados
em Julinha: Feitio de Oração, Vai Para Casa Depressa, Cor de Cinza, Pra Esquecer
e Meu Barracão. Nenhum deles, porém, parece conter elementos autobiográficos que
permitam concluir que a musa era de fato ela. O primeiro é muito mais um hino de
louvor ao samba e à Penha do que à mulher amada. O segundo, como se verá no
capítulo seguinte, é uma digressão filosófica, do ponto de vista do malandro, em
torno
de uma disputa amorosa. Em entrevista à revista Carioca - da qual se transcreve
trecho, logo adiante, neste mesmo capítulo - Noel esclarece a origem de Pra
Esquecer,
em nada ligada a Julinha. Meu Barracão, que também será estudado mais à frente,
é menos um canto de amor do que uma referência saudosa à Penha e ao barraco,
embora
este bem possa ser a modesta casa onde Noel viveu com Julinha. Quanto a Cor de
Cinza, assunto bem mais complexo, será focalizado no Capítulo 41.
3. Carioca, 18 de julho de 1936.
4. Diário Carioca, 5 de janeiro de 1933.
5. Samba, segunda edição (página 59).
6. Carmem Miranda de fato gostava de cantar tangos no começo de sua vida
profissional. Já no histórico recital no Instituto Nacional de Música, seu
primeiro contato
com Josué de Barros, o violonista que praticamente a descobriu, ela cantava
Garufa e Mama, Yo Quiero Un Novio (depoimento de Josué de Barros incluído por
Queirós
Júnior em seu livro Carmem Miranda - Vida, Glória, Amor e Morte, páginas 20 e
21). Em entrevista a O Paiz, de 22 de junho de 1930 (página 8), diz ela: "Amo o
tango.
Ele me faz vibrar todas as cordas..." A "argentinite" não se deveria apenas a
isso, mas principalmente às suas constantes viagens artísticas a Buenos Aires, a
primeira
com Francisco Alves e Mário Reis em outubro de 1931. De 1933 a 1938, não haveria
um só ano em que ela não se apresentasse em teatros ou emissoras de rádio da
Argentina.
Na página 19 de O Cruzeiro de 4 de abril de 1936, lê-se: "Os artistas do
broadcasting carioca estão atacados de 'argentinite'. Esta nova moléstia foi
inoculada por
Carmem Miranda, assim uma espécie de coqueluche." Se Noel Rosa realmente dava
importância a essa vocação internacionalista de Carmem, é possível imaginar como
teria
reagido se vivesse o bastante para testemunhar a carreira da cantora nos Estados
Unidos.
7. Jacy Pacheco, em Noel Rosa e Sua Época (página 95), já nos falava desse
comentário feito por Noel a Aracy de Almeida. Em depoimento aos autores, Aracy o
confirma.
8. Segundo levantamento de Abel Cardoso Júnior em Carmem Miranda, a Cantora do
Brasil (páginas 235 e 236), das 281 músicas gravadas pela cantora antes de ir
para
os Estados Unidos, 107 eram marchas, 36 menos que o total de sambas.
9. A Noite, 9 de agosto de 1932 (página 5).
10. Diário Carioca, 10 de agosto de 19.32.
11. Poema sem título que abre o livro Myriam - Luz dos Meus Olhos, de Adelmar
Tavares, 1912.
12. A Voz do Rádio, 11 de setembro de 1935.
239
Capítulo 24
Como ser romântico num mundo desses, de amores nada parecidos com o de Romeu e
Julieta, de relacionamentos complicados que se constróem sobre mentiras e
hipocrisias?
Noel tem alguns motivos para encarar com os olhos da incredulidade o mundo à sua
volta. Um deles, sua própria casa. Quando se tinha a impressão de que as coisas
voltavam a correr bem por lá, Hélio já se preparando para ingressar na Escola de
Veterinária, Martha cuidando do externato com a ajuda de Clara, Neca finalmente
sossegado, eis que o chalé mais uma vez estremece.
O próprio Noel guardará numa pasta de papelão os documentos que ajudarão a
contar a história desses novos tempos desinsofridos que o pai vai enfrentar(1).
São ofícios,
portarias, memorandos, relativos às suas atividades como funcionário da
Inspetoria de Abastecimento da Prefeitura do Distrito Federal, aquele mesmo
emprego que o
compadre Graça Mello lhe conseguiu depois que os planos da bicicleta aquática
foram a pique.
Durante dois anos - de 1930 a 1932 - estes documentos só tratam de promoções e
elogios ao servidor público Medeiros. Por exemplo, no dia 8 de outubro de 1932,
o
diretor interino
Annibal Martins Ferreira agradece-lhe "pela colaboração que lhe prestou durante
sua interinidade como diretor-geral, no desempenho das funções de ajudante,
cargo
que ocupou com manifesta competência". Pois bem. Dois dias depois, 10 de
outubro, o capitão Luiz Celso Uchôa Cavalcanti, recém-nomeado diretor-geral
titular da mesma
Inspetoria, dispensa Medeiros como ajudante. O que se segue é uma clara
divergência entre os dois. Sobre várias questões administrativas, principalmente
a que trata
do reajuste dos preços de produtos alimentícios. O capitão é a favor dos
aumentos. Medeiros, contra. Relatórios de um não deixam nada satisfeito o outro.
O ex-ajudante
demonstra não haver necessidade de se onerar ainda mais a população, já sendo
tão altos os lucros de produtores e comerciantes. Uchôa, por algum motivo, pensa
diferente.
E resolve afastar Medeiros, colocá-lo longe de tudo que diga respeito ao
tabelamento de preços, deixá-lo na geladeira. Feito isso, caminho livre, os
preços são aumentados.
Por mais de um ano o funcionário antes merecedor de elogios e promoções fica
fora de cena. Até que a 12 de janeiro de 1934, convencido de que a razão estava
com
ele, o Interventor no Distrito Federal, Pedro Ernesto Baptista, o reabilita.
Medeiros volta às suas antigas funções. Está tudo documentado na pasta de
papelão, a
nomeação para a Inspetoria a 17 de outubro de 1930, os elogios, as promoções, a
241
O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação
Dessa gente que sente
Que um barracão
Prende mais que um xadrez.
Lá no morro, se eu fizer uma falseta,
A Risoleta Desiste logo
do francês e do inglês.
A giria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou.
Mais tarde o malandro deixou de sambar
Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot!
Essa gente hoje em dia
Que tem a mania
Da exibição
Não se lembra que o samba
Não tem tradução
No idioma francês.
Tudo aquilo que o malandro pronuncia,
Com voz macia, É brasileiro,
já passou de português.
Amor, lá no morro, é amor pra chuchu,
As rimas do samba não são "I love you".
E esse negócio de "alô", "alô, boy",
"Alô, Johnny"
Só pode ser conversa de telefone.
Como quase tudo de novo que Noel lança por esta época, Sem Tradução, depois
editado e gravado como Não Tem Tradução, é muito comentado. Jurandyr Santos,
autor das
marchas Alô, John e Bon Soir, enfia a carapuça. Acha que foi pensando nele,
apenas nele, que Noel fez seu samba. Publica na imprensa uma polida carta aberta
em que
diz: "O seu carinho, Noel, pelas coisas corretas, dessa vez falhou." E defende o
emprego por ele mesmo, Jurandyr, de palavras estrangeiras: "Eu coligi, apenas,
um
punhado de expressões usuais, deturpadas, que todos nós compreendemos o que vêm
a ser..." Mais adiante, em tom lamentoso: "Você, porém, foi impiedoso. Não pôde,
sequer, sopitar a revolta do seu espírito erudito, amigo das expressões castiças
puras... E compôs o Sem Tradução para esmagar o seu pobre amigo..." Jurandyr
arremata
com votos de prosperidade e confessada admiração. Mas perde tempo. O samba não
foi feito para ele.
Xenófobo mesmo é Orestes Barbosa, que odeia tudo que vem de fora. À distância
ainda lhe é possível deglutir ou mesmo apreciar coisas estrangeiras, os poetas
franceses,
o nacionalismo mexicano, a forma com que os Estados Unidos "se recusaram a ficar
de cócoras diante do túmulo de Byron". Aqui no Brasil, porém, estrangeiro é
estrangeiro,
seja francês, mexicano ou americano. Não se conforma com o desamor brasileiro às
suas tradições, com o pouco carinho que temos por nossa cultura e nossa memória:
- O brasileiro pensa que este país nasceu na última segunda-feira e vai acabar
na próxima sexta - esbraveja numa das mesas do Nice.
Todos o ouvem com atenção neste café que lhe serve de tribuna. Um café que na
verdade se chama Casa Nice e que vai entrar para a história como dos mais
importantes
pontos de reunião do pessoal do rádio e da música popular. Mais que o Carlos
Gomes, o Belas-Artes, o Papagaio e o Chave de Ouro juntos. O Nice ocupa, desde
sua inauguração
a 18 de junho de 1926, o número 174 da Avenida Rio Branco, bem na esquina de
Bittencourt da Silva. Portanto, no mesmo prédio do Cinema Eldorado. E no mesmo
quarteirão
do Liceu de Artes e Ofícios, da Leiteria Nevada, do Cordão do Bola Preta e da
redação de O Globo. Do lado de fora do café, dispõem-se mesas e cadeiras de vime
entre
as quais pode-se tropeçar em cocos verdes espalhados pela calçada. No lado de
dentro, dois ambientes. Um deles, o mais elegante, separa-se do outro por
divisória
de madeira treliçada. Cadeiras forradas, mesas com toalhas muito limpas, onde
são servidos almoços e jantar es, lanches, queijos importados, bebidas finas. No
segundo
ambiente, de mesas de mármore e cadeiras austríacas, fica a turma do rádio e da
música popular. E também uma multiforme comunidade de boêmios, contraventores,
jogadores.
243
- Você tem certeza de que sabe mesmo o que é um poeta? Se pensa que somos nós,
versejadores pretensamente cultos, se engana. Os verdadeiros poetas são os
homens
do povo cujas rimas todos sabem de cor.
O outro não se atreve a contestar.
- Ouça isto... E canta:
A maçã melhor é a proibida
Que entre Adão e Eva é repartida
Ela morde o tal fruto saboroso
E oferece ao homem que o aceita pressuroso.
- O que me diz?
E antes que o outro responda, Orestes dispara:
- Uma porcaria! E é de Bastos Tigre, homem culto. Agora veja o que fez para a
mesma melodia o homem do povo Sinhô...
E torna a cantar:
Dizem que a mulher é parte fraca
Nisto é que eu não posso acreditar
Entre beijos e abraços e carinhos
O homem não tendo é bem capaz de roubar.
Já Noel não se preocupa muito com isso. No máximo, vale-se de suas letras para
descarregar possíveis desagrados.
Quando não gosta de alguém - e de fato não gosta de muita gente - Orestes
Barbosa sequer lhe aceita os elogios:
- Como vai o grande poeta?
- Poeta? Quem disse?
O outro se desarma, já sabendo que vem por aí um terremoto.
- Não sou poeta. Nem eu, nem o Bastos Tigre. Poeta é Sinhô. E também Ismael
Silva, Cartola, Noel Rosa.
A história das letras diferentes que Bastos Tigre e Sinhô escreveram para a
mesma melodia do último, a de Bastos Tigre não fazendo o menor sucesso, a de
Sinhô transformando
Gosto Que Me Enrosco num clássico, é uma das favoritas de Orestes. Para
afugentar chatos que o bajulam chamando-o de "grande poeta" e para deixar bem
clara a sua
atual - e definitiva - posição diante da poesia. Em lugar dos versos declamados,
ou postos no papel, ou reunidos em livros que poucos lêem, estão agora as letras
para a canção popular. Em vez da glória literária, dos formais chás das quintas-
feiras na casa dos imortais, do sonho acadêmico que alimentou um dia, ficaram a
boêmia,
os papos sem fim à mesa do Nice, a música. Confessadamente, foi muito por
influência de Noel Rosa que o poeta Orestes Barbosa converteu-se, para sempre,
no letrista
Orestes Barbosa. Coube ao autor de Não Tem Tradução convencê-lo de que a melhor
maneira de tornar seus versos conhecidos, de levá-los mais fundo à alma das
pessoas,
é mesmo
Enfeitá-los com música.
Orestes será um grande letrista. Dos maiores que o Brasil vai conhecer. Muito
diferente, em estilo, de Noel Rosa. Diferente até dele mesmo, isto é, do
impiedoso
e maledicente conversador do Nice. O Orestes das canções é antes de tudo um
romântico. Como ele próprio ainda
245
Tu pedes
Mandando
"Faça o favor" a tua boca nunca diz.
Tu cedes
Negando
Com esses olhos que pra mim são dois fuzis.
Sou mole,
Manhoso,
Teus impropérios retribuo com brandura,
Pois água mole
Na pedra dura tanto bate até que fura!
Tu beijas
Mentindo
A tua boca beija e mente sem sentir.
Desejas
Sorrindo
Que o teu perdão humildemente eu vá pedir.
Não peço,
Espero
Ainda ver-te entre lágrimas bem mal.
Meu bem,
escuta:
A araruta tem seu dia de mingau!
Também passará em branco outro samba dos dois, Habeas-Corpus, de letra muito
curiosa, as queixas de amor entremeadas de termos jurídicos, Orestes e Noel
convertidos
em sambistas togados.
O bonde do samba
"O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa
autêntica expressão artística, produto exclusivo da nossa sensibilidade. A
poesia espontânea
do nosso povo levou a melhor na luta contra o feitiço do academismo a que os
intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos ingloriamente escravizados.
Poetas
autênticos, anquilosados no manejo do soneto, depauperados pela torturante
lapidação de decassílabos e alexandrinos sonoros, sentiram em tempo a verdade. E
o samba
tomou conta de alguns deles. Orestes Barbosa entregou-se à nossa poesia popular
com verdadeira paixão. E apresentou sambas e canções do outro mundo. O gosto do
público
foi se aprimorando. Outros poetas vieram dizer, em linguagem limpa e bonita,
coisas maravilhosas. Mais recentemente, Jorge Faraj, outro que abandonou os
alexandrinos,
tirou a prova dos nove com Telefone do Amor. Esse bonito
samba-canção, comovente romance de amor musicado por Benedicto Lacerda, acabou
com as últimas dúvidas. É preciso, porém, acentuar que esses poetas tiveram,
também,
que se modificar, abandonando uma porção de preconceitos literários. Influíram
sobre o público, mas foram, também, por ele influenciados. Da ação recíproca
dessas
duas tendências, resultou a elevação do samba, como expressão de arte, e
resultou na humanização de poetas condenados a estacionar pelo sortilégio do
academismo.
Não duvido que Bilac, se fosse vivo, tomasse o bonde do samba..."
entrevista ao Diário Carioca, 4 de janeiro de 1936.
Noel e Orestes anotarão em seus papéis letras não exatamente iguais para este
mesmo samba. Diferenças pequenas, de uma ou outra palavra, ou significativas,
como
acontece nos dois primeiros versos da última quadra. Os de Noel são mesmo estes:
Tu vais ser deportada do meu peito Porque teu crime encheu-me de pavor.
Os de Orestes, estes:
No exílio vais pagar a crueldade Com que desabafaste o teu furor.
Um dia os dois amigos e parceiros se encontram no Nice, Orestes sentado,
contando seus casos, Noel chegando à porta como se a procurar alguém, sem saber
se entra
ou se
246
segue em frente. Orestes o chama, puxa uma cadeira, manda que se sente.
- Noel, tenho aqui uma idéia que me parece muito boa para um samba. Andei
misturando mulher com Augusto Comte: "O amor por princípio, a ordem por base, o
progresso
por fim." Positivismo e amor. Não gostaria de musicar?-e estica para Noel a
folha com os versos escritos.
São quatro quadrinhas. Metrificadas como tudo que Orestes faz para ser musicado
(só se afasta da métrica quando se trata de pôr letra em música já pronta):
Noel lê, diz que gosta, promete trabalhar em cima. Mas, por algum motivo, vai
esquecer a folha de papel entre seus guardados. Para ele, este é um período de
intensa
produção, um samba atrás do outro para poder pagar mais depressa a dívida pelo
Pavão (Francisco Alves é cobrador implacável). Sem falar nos programas de rádio,
nos
discos, em diversas atividades ligadas à música. De janeiro a dezembro de 1933,
não descansará quase. O total de sua obra neste período ficará bem perto da casa
dos 40. Uma produtividade que todos admiram:
- Você já reparou como o Noel está compondo? É um atrás do outro, tudo com
qualidade - comenta-se no Nice.
É no mesmo café que Orestes se queixa a Nássara. Noel escreve um samba atrás do
outro, é parceiro de todo o mundo, faz uma segunda parte para este, modifica uns
versos para aquele, compõe toda a letra e toda a música para um punhado de
gente. Mas... e o seu Positivismo? O que terá Noel feito com seus versos?
Perdeu-os? Jogou-os
fora? Apossou-se deles?
- Nada disso, Orestes. Apenas falta de tempo - Nássara tenta diminuir a zanga
do amigo.
Mas Orestes vai repetir suas desconfianças em outras ocasiões e para outros
amigos comuns. Noel, inevitavelmente, acaba sabendo. Como de costume, nada diz,
não vai
tirar satisfações, não reclama de Orestes a injustiça de achá-lo capaz de
apossar-se de versos alheios. Trata então de colocar música nas quatro
quadrinhas. Ele
mesmo a leva para Pixinguinha orquestrar. Decide gravar o samba na Columbia, do
outro lado de Devo Esquecer. Mas prepara para o parceiro um recado musical. Pede
a Pixinguinha que escreva uma longa passagem de orquestra para depois das quatro
quadrinhas, como se fosse para concluir. Mas, no final do disco, sua voz
reaparece
de surpresa cantando uma quinta quadrinha, escrita por ele mesmo e dirigida a
Orestes:
A intriga nasce num café pequeno
Que se toma para ver quem vai pagar.
Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar!
O que poderá dizer Orestes senão que o sem-queixo é mesmo um gênio e que ele,
Orestes, é que acabou se envenenando no próprio veneno?
Enquanto existir o chalé, Orestes Barbosa será um de seus visitantes mais
assíduos. Desde o episódio de Positivismo - que afinal nem ele nem Noel levaram
muito a
sério - estreitará sempre mais sua amizade com o parceiro. E não medirá palavras
para dizer-lhe e aos outros de sua admiração. Fará isso em suas colunas de
jornal,
em livro que escreve sobre o samba carioca, nos versos que entregará a dona
Martha e que ela, comovida, guardará num pequenino caderno de capa marrom:
Felicidade...
É o céu na terra amena,
É o sorriso da pequena,
Muito mais lindo que o céu.
É a poesia nos arpejos de lamento
Que se sente no talento
Das canções que faz Noel.
Felicidade...
É sonhar de olhos abertos
É o oásis dos desertos
Das almas que o sol queimou.
É uma garota elegante e vaporosa
Para quem o Noel Rosa
Quer fazer um bangalô.
247
NOTAS
1. Estes documentos pertencem hoje aos arquivos dos autores.
2. Difícil precisar qual dos dois, Good-bye ou Não Tem Tradução, foi feito
primeiro, mas é quase certo que tenha sido a marcha de Assis Valente. Em
entrevista a
Ary Vasconcelos (O Cruzeiro, 3 de setembro de 1955), Assis recorda que Carmem
Miranda cantou Good-bye no segundo Broadway Cocktail, entre 8 e 21 de agosto de
1932.
A própria Carmem a gravaria a 29 de novembro, na Victor, sendo o disco lançado
em janeiro de 1933. Não se tem registro de que antes disso já existisse Não Tem
Tradução,
que só seria gravado a 23 de agosto de 1933 por Francisco Alves, na Odeon.
3. Samba, segunda edição (páginas 69 e 70). Também foram colhidos neste livro
outros pensamentos ligados à xenofobia de Orestes Barbosa.
4. Sobre a força visual das letras de Orestes, Paulo Mendes Campos nos dá em
Manchete de lP de novembro de 1974 (página 50) esta apreciação definitiva:
"Visualizar
a emoção é marca certa do poeta forte. As melhores canções de Orestes parecem
roteiros cinematográficos, e o conjunto de todas elas é o scriptde uma época do
Rio."
Para Paulo Mendes Campos, "... sem dúvida nenhuma, Orestes Barbosa e Noel Rosa
são os mais altos poetas da nossa música popular." Manuel Bandeira é outro que
fala
de Orestes com admiração. Diz ele em Chão de Estrelas (página 144): "Grande
poeta da canção, esse Orestes! Se se fizesse aqui um concurso, como fizeram na
França,
para apurar qual o verso mais bonito da nossa língua, talvez eu votasse naquele
de Orestes que diz: 'Tu pisavas os astros distraída...' Só mesmo num Chão de
estrelas
era possível achar este verso. De certo Orestes rojava no sublime, e a mulher
que o inspirou pisou lhe, acinte ou inadvertidamente, o coração, que se abriu na
queixa
imortal. Sei de muito poeta (Onestaldo de Pennafort é um e eu sou outro) que se
rala de inveja porque não é o autor daquele verso. E com razão: nunca se
endeusou
tanto uma mulher como naquelas cinco palavras."
5. O que terá levado pesquisadores da estatura de Lúcio Rangel e Almirante a
concluir que Araruta e Positivismo são o mesmo samba ou, pelo menos, duas letras
diferentes
para a mesma música? Em Samba, segunda edição (página 50), Orestes Barbosa já
citava os dois como obras distintas. O jornal de modinhas Harmonia, de dezembro
de
1932, publicava a letra de Araruta, ficando claro não só que ela não cabe na
música de Positivismo mas também que se trata da primeira criação da dupla Noel-
Orestes,
já que as outras são de 1933 e 1934. A partir dessas pistas, os autores partiram
no encalço da melodia da Araruta, que acabou lhes sendo ensinada por Armênio
Mesquita
Veiga, amigo e aluno de violão de Noel, ele próprio compositor (Molambo, Aperto
de Mão, Amar Foi Minha Ruína).
Orestes Barbosa. (Arquivo dos autores.)
248
PRAZER EM CONHECÊ-LO
Capítulo 25
Diante de dois copos de cerveja, Arnaldo e Antônio Araújo antevêem uma noite de
bocejos. Não há nada de bom programado, nem namoro, nem serenata, nem papo de
esquina.
Uma semana inteira de trabalho na alfaiataria, das oito
às oito cortando e costurando pano, e chega sexta-feira aqui estão os dois, um
olhando para a cara do outro. Ou para os copos de cerveja. O Café Ponto Chie,
nos
começos de noite, é sempre desanimado. Dois ou três condutores, um ou outro
motorneiro, fiscais, gente da Light que entre dois cafés pequenos conversa até a
hora
de embarcar num dos bondes que partem da estação ao lado. Boêmios? Amigos da
noite e do samba? Os irmãos Araújo sabem que não podem encontrá-los a esta hora
no Ponto
Chie.
Mas Noel Rosa chega. Vê-se logo que acaba de acordar, de sair do banho, de tomar
seu "café da manhã". E já são quase nove horas da noite. Noel se aproxima. Tira
do bolso um punhado de papéis. São cartões, impressos, recortes, folhas soltas
que ele vai lendo e saparando.
- Sabem o que tenho aqui? Uma porção de convites para festas. No Centro, no
Grajaú, na Tijuca.
Noel diz que uma das vantagens de se trabalhar no rádio, de se gravar discos, de
se ter o nome conhecido, são justamente estes convites que chegam não sabe de
onde.
Gente que nunca o viu, que nem ao menos é amiga de um amigo, chama-o para um
baile familiar, uma festinha de aniversário, um casamento. Na certa esperando
que ele
leve o violão.
Arnaldo e Antônio se animam. Ajudam Noel a escolher um dos convites. Acabam
optando por uma festa na Rua Conde de Bonfim, na Tijuca. Um bonde até a Praça
Saenz Pena,
outro na direção da Muda, em menos de meia hora estarão lá.
A casa é grande, dois pavimentos, jardim na frente, varanda do lado, um salão no
qual os convidados são recebidos pela anfitriã, senhora gorda, simpática, que
Noel
e os Araújos vêem pela primeira vez. Mas isso não quer dizer nada. Mal os três
chegam, a mulher exclama:
- Noel! Olhem o Noel Rosa! Que bom que você veio, Noel!
A anfitriã tenta assegurar o sucesso da festa mostrando-se íntima do convidado
famoso. Noel pra cá, Noel pra lá, vai apresentando a todo o mundo o autor de Até
Amanhã.
Arnaldo e Antônio vão atrás. Há muita gente na festa, Noel cercado por todos os
lados. A mulher puxa-o pela mão. Súbito - mundo pequeno - está diante de Clara,
ninguém
menos que Clara. Há quanto tempo não se viam? Semanas, meses? Talvez só
249
agora Noel se dê conta do quanto foi longa sua ausência. E Clara continua tão
bonita, os mesmos olhos castanhos, redondos, cheios de meiguice. A dona da casa
a chama:
- Clara, Clarinha, deixa eu te apresentar o Noel Rosa.
Antes mesmo que a mulher termine a frase, Noel e os Araújos percebem que Clara
não está só. Um rapaz alto, magro, olhos azuis, cabelos castanho-claros, até
instantes
ao lado dela, recuou. É o novo namorado. Na certa, sabendo o que Noel representa
para Clara, prefere ficar de longe, observando estrategicamente a reação dos
dois:
- Noel,. esta é Clarinha...
E sem esperar que Noel diga alguma coisa, Clara estende-lhe a mão:
- Prazer em conhecê-lo.
Noel empalidece. Estranhamente, a inesperada formalidade de Clara o perturba.
Depois de tantos anos, de tanto amor, de tantos projetos, um simples "prazer em
conhecê-lo..."
Ele procura manter-se frio. Limita-se a responder:
- O prazer é todo meu.
As apresentações finalmente terminam. A anfitriã provavelmente espera que Noel
brinde os outros convidados com alguns de seus sambas. Mas Arnaldo e Antônio
notam
que o amigo já não é o mesmo. Encolhido no canto do salão, murcho, calado,
guardou o sorriso que parecia ter trazido para esta festa de sexta-feira.
Arnaldo pergunta:
- Que que há, Noel?
- Nada. Vamos embora.
Noel sai, os Araújos novamente o seguem. Os três nada falam durante a viagem de
volta até Vila Isabel. Nada é preciso dizer para que fique entendido o quanto a
indiferença
de Clarinha magoou Noel. Os três estão agora outra vez sentados a uma das mesas
do Ponto Chie. Noel pede uma cerveja, lápis e papel ao garçom. Minutos depois,
está
escrevendo.
- O que é isso? - indaga Antônio.
- Um samba.
Noel cantarola em cima dos versos que acabou de escrever:
Estamos esperando,
Vem logo escutar,
O samba que fizemos pra te dar.
A rua adormeceu
E nós vamos cantar
Aquilo que é só teu
E que nos faz penar
Da tua voz tirei a melodia
E a harmonia eu fiz com teu olhar.
Já estava perdendo a paciência
Quando roubei a cadência
Do teu modo de guiar
(Chega à janela...)
E este samba que fiz de parceria,
Depois de feito não é dele nem é meu.
Escuta o violão que está gemendo,
Suas cordas vão dizendo
Que este samba é só teu
(Até amanhã...)
Não tenho herdeiros, Não possuo um só vintém. Eu vivi devendo a todos, Mas não
paguei nada a ninguém
Meus inimigos, Que hoje falam mal de mim, Vão dizer que nunca viram Uma pessoa
tão boa assim
Pelo presente declaro que cedo todos os
meus direitos sobre a letra de minha autoria denominada
"UMA COISA FICOU",( letra esta musicada por Hervé Cordovil,)
ao Sr. Enéas Martins Berros, que poderá fazer com a mesma
o uso que mais lhe convier, Em tempo:- o titulo foi alterado para "Uma COISA
DEIXEI"
Cessão de direitos de Uma Coisa Deixei.
outro, "Até amanhã...", remissão clara ao samba que Noel não deixou Francisco
Alves gravar, à tumultuada viagem ao Sul, àquelas horas esquecidas nos braços da
moça
em frente, um samba afinal que lembra um episódio que quase leva à loucura o
velho Chico.
Mas Francisco Alves não é astuto o bastante para perceber nada disso. Nem para
atinar com outra diabrura que Noel lhe prepara em forma de música e letra, já
nos
últimos dias de dezembro de 1932. Tanto Francisco Alves como Mário Reis
acreditam que de todas as composições que Noel lhes entregou para o próximo
carnaval, entre
elas algumas que não assinou (Fui Louco, Primeiro Amor, ÉPeso, Rir), nenhuma tem
mais possibilidade de sucesso do que Fita Amarela. Um samba feito nos moldes de
muitos outros "testamentos" comumente encontráveis na música popular, de autores
conhecidos, menos conhecidos, anônimos. A originalidade de Noel repousa,
praticamente,
nas quadrinhas da segunda parte:
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.
Se existe alma,
Se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão
Não quero flores,
Nem coroa de espinho,
Só quero choro de flauta,
Violão e cavaquinho
Além destas, da gravação original, mais três:
Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer
Quadrinhas muitas vezes improvisadas em bares e programas de rádio, uma ou outra
fadada a permanecer esquecida.
Quero que o sol
Não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma
Não morrer de insolação
A outra diabrura que Noel prepara para Francisco Alves em forma de música e
letra está justamente no outro lado de Fita Amarela, isto é, na marcha que Chico
e Mário
Reis encomendam a ele para completarem o disco na Odeon. Noel continua
pendurado. Quanto mais dinheiro dá a Francisco Alves, mais pesadas lhe parecem
as prestações
do Pavão. Noites como aquela no botequim do Maracanã são raras. Chico não é de
dar adiantamentos. Nem mesmo de 50 mil réis. Pois se nem cafezinho ele paga! O
pessoal
do Nice está cada vez mais escaldado em matéria de Francisco Alves. Ainda outro
dia, no meio de uma roda em que todos tomavam café, o cantor, lá pelas tantas,
explodiu:
- Como é, ninguém vai se levantar? Alguém perguntou por quê.
- Está na hora do meu programa na Rádio Club.
- E o que que tem isso?
- Se ninguém se levanta antes de mim, vou ter de pagar o café.
Noel mesmo tem testemunhado inúmeros desses gestos de sovinice de
Francisco Alves. Mais do que testemunha, pode ser a própria vítima. Como
aconteceu durante a série de espetáculos que ele, Chico e Vicente Celestino
realizaram,
de 12 a 18 de setembro, no Cine-Teatro Modelo, no Riachuelo. Numa das noites,
Noel encontrou-se no caminho com os Araújos e convidou-os para irem juntos.
Poderiam
assistir ao show e logo em seguida ao filme, a comédia A Guarda Secreta
(SecretSix), com Wallace Beery. Arnaldo e Antônio gostaram da idéia. Os três
tomaram um bonde
até o Maracanã e outro pela 24 de Maio. Na entrada do cinema, Noel informou ao
porteiro que aqueles eram dois amigos, seus convidados.
- Pois não, podem entrar.
254
Desde que Fita Amarela começou a ser ouvido nas emissoras de rádio, na gravação
de Francisco Alves e Mário Reis, Donga faz campanha contra Noel. Onde quer que
chegue,
nos Dares, nas esquinas, nas rodas de música, nunca deixa de tocar no assunto:
- Vocês conhecem o samba que o Noel Rosa copiou do meu?
E canta Fita Amarela. A campanha só vai acabar no dia em que Almirante, tomando
as dores de seu companheiro de Bando de Tangarás, contar que ele mesmo ensinou a
Noel a quadrinha que lhe deu a idéia para seu samba. Os dois se encontraram no
Boulevard e Almirante cantou:
Quando eu morrer
Não quero choro nem nada
Eu quero ouvir um samba
Ao romper da madrugada
- De quem é? - perguntou Noel.
-Não sei. Aprendi com dois improvisadores, numa tendinha de São João de Meriti.
Noel aproveitou o tema, não só poético, mas também melódico, para fazer seu
estribilho. Para complicar a história, enquanto Donga garante que tudo começou
com o
seu samba e de Aldo Taranto - e Almirante insiste na história dos improvisadores
- a turma do Estácio, quando sabe dos tais versos aprendidos pelo líder dos
tangarás,
protesta:
- Improvisadores de São João do Meriti? Qual o quê?! O Mano Rubem, daqui do
Estácio, já cantava eles em 1920...
Está bem, vou acabar tudo com ele. Diante de novas promessas de Noel, de que
desta vez não desaparecerá mais, Clara diz que vai romper com o novo namorado.
Noel
sabe que realmente será assim. Basta reaparecer, sempre com o jeito de quem está
arrependido e disposto a "entrar no sério", para que Clara troque tudo pela
esperança
que ele traz entre sorrisos. O namorado com quem foi à festa na Tijuca chama-se
Mário, boa família, direito, bem-intencionado, concluindo já seu curso de
veterinária
e quase em condições de pedi-la em casamento. Aliás, é mesmo o que planeja. Os
zelosos irmãos dela fazem gosto. Muito mais do que vê-la perdendo tempo com um
cantor
de rádio, boêmio incurável. A festa na Tijuca, reacendendo em Noel a vontade de
voltar para Clara, vai frustrar para sempre os planos do bom moço Mário.
- ... Vou acabar tudo com ele.
Clara cumprirá a promessa. Noel logo esquecerá a sua.
NOTAS
1. Em entrevista a O Globo, 31 de dezembro de 1932, conta Noel: "Quando saí da
festa, fui para um bar do Leblon. Pedi uísque porque não havia bebida nacional
desse
gênero. Acendi um cigarro e botei o chapéu de palha na mesa. Bebi uns tragos e
comecei a cantar baixinho. Sem dúvida, foi fácil fazer esse samba..." Mas
Arnaldo
Araújo, em entrevista aos autores, assegura que tudo se passou mesmo no Café
Ponto Chie, entre copos de cerveja e não de uísque.
2. Esta versão sobre a origem do cognome é do próprio Noel em A Voz do Rádio,
15 de novembro de 1936 (página 16).
3. Syntonia, 22 de novembro de 1934.
4. Na gravação original de Francisco Alves e Mário Reis, este canta "do seu
modo de pisar..." em vez de "guiar". Mas na partitura original lá está a clara
alusão
ao bom motorista que Chico gabava-se de ser.
5. O samba será assinado apenas por Cartola, mas os direitos autorais
pertencerão integralmente a Francisco Alves.
256
EM BOA COMPANHIA
Capítulo 26
O Noel Rosa
E começou a nossa parceria, Eu fui por ele e ele foi por mim
Amor de Parceria
Cigarro no canto da boca, Noel Rosa conversa com Ismael Silva numa das esquinas
da Galeria Cruzeiro, acompanhando à distância o que se passa em frente, no
interior
do Nice. Nenhum dos dois se inclui entre os freqüentadores assíduos do café.
Raramente se sentam a uma das mesas, nunca participam dessas intermináveis
conversações
que se arrastam pela tarde inteira e entram noite adentro. Mesmo que quem esteja
com a palavra seja Orestes Barbosa. Noel e Ismael só vão ao Nice a trabalho,
para
arrancar um vale de Francisco Alves, marcar com este ou outro cantor o horário
de uma gravação, combinar com um diretor de broadcast um ou dois programas em
sua
estação de rádio.
Noel, principalmente, é meio oblíquo em relação ao Nice. Passa por ali de
raspão, rápido, diz e ouve o essencial e se vai. Isso quando não fica mesmo de
longe, do
outro lado da Avenida Rio Branco, balançando a cabeça de um lado para o outro
como se a procurar alguém. Esta esquina da Galeria Cruzeiro é o mais próximo que
Noel
e Ismael constumam ficar do Nice. Conversando sobre samba, jogo, boêmia e
malandragem. Alguém chega por trás e bate no ombro de Noel.
- Noel, Noel Rosa! Que bom você estar aqui! Andava mesmo à sua procura.
O sujeito tira do bolso algumas folhas amassadas de papel. Diz que acabou de
fazer um samba, coisa muito boa, música e letra caprichadas, de uma qualidade
que nenhum
Francisco Alves, nenhuma Carmem Miranda terá coragem de recusar. Um samba quase
pronto, precisando apenas de alguns retoques, uma vírgula aqui, um acentozinho
ali,
no máximo a correção de um ou dois versos.
- Será que você me dava uma ajuda, Noel?
Noel pede-lhe que cante o samba. Ele e Ismael ficam ouvindo, calados, atentos.
Noel puxa o cotoco de lápis e nas mesmas folhas amarrotadas vai fazendo emendas.
Sugere,
também, modificações na linha melódica, a primeira parte ficando assim, a
segunda assim, a letra mudando aqui, ganhando mais dois versos ali,
cortando-se três mais adiante. Pronto, Noel canta para o "autor" do samba o que
resultou de seus retoques. O homem e Ismael Silva ficam assombrados. É um novo
samba,
infinitamente superior à pedra bruta original. Uma beleza.
- Obrigado, Noel. Era isso mesmo que estava faltando.
E o sujeito se vai, folhas amarrotadas no bolso, melodia na cabeça. Ismael,
ainda impressionado, diz a Noel que o samba realmente ficou
257
Felicidade
Não está sempre ao nosso alcance
É o tema de um romance
Onde os corações são dois
Quando começa
A alegria nos domina
Com a tristeza ela termina
E a saudade vem depois
Uma tarde Mário Reis aparece de surpresa no chalé e encontra Noel vencido por um
daqueles sonos dos quais é quase impossível despertá-lo. Mas o cantor tem bons
motivos
para querê-lo de pé.
- Acorda, Noel! Precisamos conversar.
Depois de muitas sacudidelas e gritos ao ouvido, Noel, meio entorpecido, se
senta na beira da cama. Mário conta que Walfrido Silva lhe deu para gravar um
refrão
fortíssimo, música, letra, ritmo, tudo de primeira. Canta:
O mundo me condena
E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome.
Deixando de saber
Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome.
Mas a filosofia
Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim,
Vou fingindo que sou rico,
Pra ninguém zombar de mim.
Não me incomodo
Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga.
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba,
Muito embora vagabundo.
259
Quanto a você
Da aristocracia,
Que tem dinheiro
Mas não compra alegria,
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hiprocrisia.
Francisco de Queiroz Mattoso. Três anos mais novo que Noel, poeta, pianista.
Mais pianista que poeta, virtuoso executante que é de valsas de Nazareth, Souto
e Tupynambá.
No entanto - fato curioso - suas atuações na música popular se concentrarão
sempre mais nas letras do que nas melodias. Um dia será o autor, com Lamartine
Babo,
de um dos clássicos da música romântica brasileira: Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão
Linda. Por enquanto, isto é, na época em que Noel o conhece, é apenas um dos
muitos
anônimos que rondam os corredores das emissoras de rádio.
Noel e Mattoso - apresentados um ao outro pelo Dr. Cid Prado, de Vila Isabel -
farão juntos dois sambas. Num deles, Esquina Da Vida, partirão de versos de Noel
para
criarem algo muito bonito que Mário Reis - mais uma vez Mário - gravará
acompanhado pelo piano de Nono:
É na esquina da vida
Que assisto à descida
De quem subiu
Faço o confronto
Entre o malandro pronto
E o otário
Que nasceu pra milionário
E na esquina da vida Observo o valor
Que o homem dá à mulher e ao amor
E é por isso que ela
Em qualquer situação
Zomba da gente,
sempre cheia de razão
É na esquina da vida
Que espero ver você
Estendendo a mão
E implorando
Já desiludida
O meu perdão
Para eu dizer que não
O outro samba, que permanecerá inédito por muito tempo, teria sido inspirado em
Julinha. Será conhecido indistintamente por dois títulos, Vai Para Casa Depressa
e Cara ou Coroa.
Francisco de Queiroz Mattoso. Como Noel, morrerá muito jovem, aos 28 anos, sem
realizar tudo que seu talento promete, sem deixar mais do que algumas poucas
canções
de amor nascidas de seu temperamento romântico, uma das quais Francisco Alves
transformará em seu prefixo:
Na carícia de um beijo
Que ficou no desejo,
Boa-noite, meu grande amor
260
Tão anônimos hoje quanto Francisco Mattoso, mas talhados para continuarem assim,
pelo menos no que toca à música, são Gilberto Martins, Alfredo Lopes Quintas e
Adalto
Costa, todos parceiros de Noel em peças de maior ou menor qualidade.
Gilberto Martins Amado descende dos Amados, de Pernambuco, família ilustre com a
qual ele brigou tão seriamente que foi ao registro civil fazer com que lhe
tirassem
o último nome. Como Gilberto Martins torna-se conhecido no rádio. Indivíduo
nervoso, dado a cacoetes. Um deles, desagradabilíssimo, consiste em tirar uma
secreção
do quisto que carrega no lóbulo da orelha e levar a mão ao nariz para cheirá-la.
Mas é muito inteligente. De vez em quando compõe. Contudo, nada do que faz será
lembrado daqui a alguns anos. Tirando, é claro,
Devo Esquecer, comovido samba que escreve com Noel e que este gravará em dupla
com Leo Villar, tendo ao fundo inspirada orquestração de Pixinguinha.
Amar
Saber amar sem enganar
Quem quero amar não me quer
Para que tanta amizade
Se o amor de falsidade
Vem da parte da mulher
A mulher tem a mania
De lesar a humanidade
Tem o dom da hipocrisia
E ama sem ter vontade
Demonstrei com brevidade
Que duvide quem quiser
O amor de falsidade
Vem da parte da mulher
Nunca vi coisa tão certa
O orgulho tem seu fim
Quando a tua fome aperta
Tu vens procurar por mim
Mesmo em posição de ataque
Eu te ouço prazenteiro
Mas tens muito mau sotaque
Quando falas em dinheiro
Mas o que de melhor Alfredinho e Noel criam juntos tem a colaboração de Romualdo
Peixoto, o Nono, aquele mesmo bom companheiro de viagem nas andanças pelo Sul.
Trata-se
do melódico samba Sei Que Vou Perder, que sairá em disco sem o nome de Noel e
aparecerá na partitura com o de Francisco Alves. Qual terá sido a participação
de Chico?
Talvez apenas a da estupenda interpretação que ficará gravada na Odeon, o piano
de Nono sendo toda a "orquestra" que o acompanha.
Porque se arrependeu.
Depois que me viu Perdido
de amor Sem pena me traiu
Eu que fiquei com a dor
O capricho da mulher
Faz o homem padecer
É veneno quando quer
Que maltrata e faz morrer
O amor mais verdadeiro
A mulher despreza à toa...
Só não despreza o primeiro,
Mas quando pode magoa
Como aquele desconhecido que deu um tapinha nas costas de Noel na esquina da
Galeria Cruzeiro, desaparecendo em seguida por entre a multidão ante os olhos de
assombro
de Ismael Silva, Adalto Costa é outro que não deixará vestígios de sua passagem
pela música popular. Ou melhor, vestígios tão deléveis que seu nome -assim
mesmo,
escrito com l em vez de u e perderá timidamente entre tantos mais. Quem é Adalto
Costa?, se perguntará daqui a alguns anos. No entanto, com Noel ele assina uma
marcha,
Fiquei Sozinha, cuja melodia dolente, de notas mais longas do que as das
marchinhas carnavalescas, parece descender daquelas que os ranchos cantam com
tanto sentimento
em seus desfiles. Gravada pela bonita morena Ruth Franklyn, será tão pouco
lembrada quanto o obscuro parceiro de Noel.
Fiquei sozinha,
Abandonada, implorando o teu perdão.
Fiquei sozinha,
Desesperada com a tua ingratidão.
Sem teu perdão,
amor, Eu vivo a padecer
Sem ter o que comer
Sem um vintém para beber
Oh, vem depressa, vem!
Isso não é papel,
Se não voltares, Eu arranjo um coronel.
Sem a tua companhia
Eu não posso resistir,
Vendo o prazer fugir
Sem um lugar para dormir.
Pra me vingar de ti
Farei o que puder,
Não é assim
Que se despreza uma mulher.
Jerônimo Cabral e Noel têm pelo menos dois gostos em comum: a música e a bebida.
Só que, enquanto Noel pende bem mais para a primeira, Jerônimo tem indisfarçável
preferência pela última. Não se pode dizer que viva bêbado, mas quase. É raro
vê-lo longe de um copo. Vez por outra surge numa esquina do Centro, em plena luz
do
dia, trôpego, o corpo alto e robusto dançando, a fala enrolada de quem mais uma
vez passou da conta. É pianista e compositor de talento, escreve música para o
teatro,
rege a orquestra em revistas e operetas montadas na Praça Tiradentes. Isto é,
quando pode. Porque a única hora em que está em condições de render tudo que
sabe é
na parte da manhã, quando se senta ao piano, compõe e toca suas canções. Depois
do meio-dia, tudo depende do quanto saciar sua sede.
Simpático, grande coração, amigo dos amigos. Boêmio impenitente, é capaz de
trocar tudo por uma noitada embebida em música e vermute. No dia em que se
casou, saiu
da festa com alguns amigos para uma comemoraçãozinha adicional no botequim da
esquina. E só voltou no dia seguinte. Um trago aqui, outro ali, Jerônimo
esquecendo-se
de que acabara de se transformar num homem casado, a noiva em casa esperando,
buquê na mão, aflita.
Uma das noitadas inesquecíveis de Jerônimo Cabral é vivida na companhia de Noel,
Custódio Mesquita, Milton Amaral, Jurandyr Santos e Alfredo Motta da Silva.
Voltam
todos meio altos de uma festa em Cascadura e esperam cada qual o seu bonde no
Largo de São Francisco. Noel, desta vez, consegue estar mais chumbado do que o
Cabral.
Mal se mantendo em pé, deixa os amigos no ponto do bonde, vai até a igreja,
encosta o violão, tira o chapéu e deita-se no degrau da escadaria. Quando o Vila
Isabel-Engenho
Novo aponta na Avenida Passos, Milton e Cabral vão chamá-lo. São quase seis da
manhã, a igreja já está aberta, os fiéis começam a chegar para a primeira missa.
Os
dois sacodem Noel, agora imerso em mais um sono profundo. Uma vez acordado, Noel
pega o violão e logo em seguida o chapéu, dentro do qual, para surpresa dos
três,
há um punhado de notas e moedas. Os fiéis, supondo tratar-se de um mendigo,
foram ali depositando seus caridosos óbulos. Um bom dinheiro. Tão bom que Noel
convida
Milton e Cabral para darem um pulo até a Lapa, onde vão acabar a noite - ou
melhor, começar o dia - comendo carne-seca com farinha num botequim dos Arcos,
em parte
financiados pelos piedosos devotos de São Francisco de Paula.
Cabral e Noel, companheiros de copo, serão também parceiros na música. Farão
juntos um fox-trot sobre o qual se contarão algumas histórias. Cabral, de tanta
encomenda
que recebe para escrever música para números de dança e sapateado nos moldes das
ZiegfekTs "Follies" tornou-se muito familiarizado com os ritmos
262
Mas é apenas uma história, que não parece casar bem com o apaixonado cantor dos
versos que espera, não tão paciente, a sua amada.
Jota Machado é outro homem de teatro. Mais um daqueles que o público não vê no
palco. Compõe para revistas, faz música de fundo para peças dramáticas desde que
Leonardo
Fróes o descobriu há alguns anos. É um dos que Almirante acusa de ter copiado
despudorada-mente o seu Na Pavuna. O Na Gamboa, de Jota Machado, tem mesmo muita
coisa
de papel-carbono: "
Na Gamboa, na Gamboa
Tem macumba que só entra gente boa(5)
Mas, bom compositor, ótimo pianista, Jota Machado não merece entrar para a
história apenas por esta crise de falta de imaginação. Tem boas músicas de
criação própria,
as valsas Páginas do Coração e Fonte da Saudade, ofox-trot Annita, a canção
Saudade Que Mata.
Certa tarde, Noel entra na Casa Viúva Guerreiro, editora de música que funciona
na Rua 7 de Setembro, e lá encontra Jota Machado. Vai direto ao assunto:
- Tenho aqui um samba pra te vender. Cinco mil réis.
- Que samba é este, Noel?
-Por enquanto só fiz os versos. Chama-se Que se Dane!
E ali mesmo - como se os inventando na hora - Noel escreve-os para Jota Machado,
que vai musicá-los.
Vivo contente
embora esteja na miséria
Que se dane! Que se dane!
Com esta crise
levo a vida na pilhéria
Que se dane! Que se dane!
Não amola! Não amola!
Não deixo o samba
Porque o samba me consola
Fui despejado
em minha casa no Caju
Que se dane! Que se dane!
O prestamista
levou tudo e fiquei nu
Que se dane! Que se dane!
Fui processado
por andar na vadiagem
Que se dane! Que se dane!
Mas me soltaram
pelo meio da viagem
Que se dane! Que se dane!
263
Ainda de teatro é Arthur Costa, carioca cheio de aptidão para muitas coisas. Foi
torneiro mecânico, tocador de bandolim, motorista de táxi. Embora morando na
Tijuca,
fazia ponto na Praça da Bandeira onde, entre uma corrida e outra, cantava sambas
no estilo de Luís Barbosa. De tanto agradar, acabou no rádio e no disco. Claro,
antes de descobrir o teatro.
Conheceu Noel Rosa no Café Nice. Começaram a fazer juntos um samba esquisito,
Estricnina, do qual só restarão os tragicômicos versos iniciais:
Estricnina não é ruim de se tomar
Eu vou me envenenar! Eu vou me envenenar!
Arthur Costa, com malabarismos vocais que lembram mesmo Luís Barbosa, o jeito de
embaralhar as sílabas fazendo a voz soar como um instrumento de percussão
("teu-teu-balaco-baco-chico-pã..."), grava em dupla com Noel Bom Elemento. E
também Espera Mais Um Ano, que acabará não saindo, talvez por causa de um mau
agudo
de Noel(6). E ainda Você Foi o Meu
Azar, os dois alternando-se, com muita bossa, de verso para verso. É outra
gravação que ficará arquivada, mas Arthur, parceiro de Noel na autoria, vai
refazê-la
com Neneo das Neves, usando o mesmo arranjo:
Você foi o meu azar (Você foi o meu azar) Estragou a minha vida (Por ser falsa e
convencida) Para me fazer chorar (Quis me deixar) Hoje volta arrependida (Por
ser
mal-sucedida)
Depois da sua saída
(Fiquei logo bem de vida)
Foi-se embora o meu azar
(Se eu quiser posso provar)
E até mesmo o bicheiro
(Paga sempre o meu dinheiro)
Quando acerto no milhar
Com você passava fome
(E sofri coisas sem nome)
Andei teso, sem tostão
264
O mesmo Arthur Costa é quem grava outro samba seu com Noel Rosa, sem dúvida
melhor que os outros. Senão pela música, de molejo carioca como seus autores, ao
menos
pela letra, o tema da fome, da penúria, dos bolsos vazios, mais uma vez
focalizado pelo acridoce humor de Noel. O título já antecipa o que se vai ouvir:
Sem Tostão.
De que maneira
Eu vou me arranjar
Pro senhorio não me despejar?
Pois eu hoje sai do plantão
Sem tostão! Sem tostão!
Já perguntei na Prefeitura
Quanto tenho que pagar:
Quero ter uma licença
Pra viver sem almoçar.
Veio um funcionário
E gritou bem indisposto
Que pra ser assim tão magro
Tenho que pagar imposto!
E quando eu passo pela praça
Quase como o chafariz.
Quando a minha fome aperta,
Dou dentadas no nariz.
Ensinei meu cachorrinho
A passar sem ver comida:
Quando estava acostumado,
Ele disse adeus à vida!
Noel e Hélio Rosa, irmãos tão diferentes, separados na vida em quase tudo,
dificilmente chegariam a manter um casamento musical harmonioso, uma parceria
longa e
perfeita.
Parcerias longas e perfeitas são raras. Nesses muitos encontros que Noel tem
vivido por aí, marcados ou ocasionais, com compositores de talento ou estranhos
que
lhe batem no ombro, quantas durarão? Poucas. E quantas atingirão a perfeição?
Pouquíssimas. A rigor, em termos de durabilidade e afinação, Ismael Silva ocupa
lugar
único na obra de Noel Rosa. E vice-versa. Os dois formaram desde o começo uma
parceria perfeita. E destinada a durar. Mas será mesmo um caso único?
Em fins de 1932, no estúdio da Odeon,
Eduardo Souto passa pelo pianista que dentro de poucos instantes vai acompanhar
Francisco Alves numa gravação. É um sujeito magro, de bigodinho fino, cabelo
ondulado
dividido ao meio, óculos de aro de metal. Os dedos ágeis deslizam pelo teclado
na execução de uma melodia que chama a atenção do maestro. Uma melodia de
incomum
beleza.
- De quem é?
- Minha.
- Tem nome?
- Não.
- Tem letra?
- Também não.
O maestro pára para pensar. Uma composição que desde a primeira frase musical
deixa claro que quem a fez não é um melodista de soluções fáceis. A passagem da
primeira
para a segunda parte confirma essa constatação. Ao contrário da maioria, quase
totalidade dos compositores populares, que fazem da segunda parte um mero
complemento
da primeira, na qual colocam todos os seus trunfos melódicos e harmônicos, este
aqui desdobra um fragmento em outro, cria um coro que toca Eduardo Souto e um
verso
tão ou mais apreciável.
- Espere um instante - diz o maestro. Em pouco ele está de volta trazendo pelo
braço Noel Rosa, que cuidava na sala ao lado de suas próprias gravações. O
maestro apresenta-o ao pianista, sem formalidades nem rodeios.
- Este é o Vadico, Noel. Pianista de São Paulo. Acho que vocês deviam pensar em
trabalhar juntos. Ouça esta música que ele fez.
A pedido do maestro, o pianista executa mais uma vez sua composição. Noel ouve
em silêncio, atento, a cabeça meio de lado, o queixo defeituoso apoiado nas
costas
da mão direita. E quando o pianista volta mais uma vez à primeira parte, Noel
pega papel e lápis e começa a trabalhar num monstro, isto é, uma letra
provisória destinada
apenas a assinalar o número de sílabas de cada frase musical, a pontuação e a
acentuação que deve ter cada uma. Ao fim, diz:
- Vou tentar a letra.
O maestro Eduardo Souto vê Noel se afastar com o monstro no bolso. Sensível como
sempre, talvez saiba, lá no íntimo, que acaba de dar à música popular
brasileira,
nesta simples apresentação, um presente tão valioso quanto suas próprias
composições.
Não se engana o maestro. Vadico, Oswaldo Gogliano, tem 22 anos e a música no
sangue. Tanto a mãe mineira como o pai paulista, descendente de italianos,
fizeram questão
de dar aos filhos uma educação musical. A todos eles. De modo que Vadico estudou
piano, harmonia, composição. Corajoso, para não dizer ousado,
266
Uma outra estrofe não será aproveitada na gravação original de Francisco Alves e
Castro Barbosa. Na verdade, será arquivada por muitos anos(9). Mas o samba fica
mesmo melhor sem ela.
Chorando não é que se sente
Pois mesmo até um triste olhar nos mente
E o meu silêncio então suplanta
Um gemido na garganta
Quando contemplo a santa!
O tempo dirá que Eduardo Souto está certo, Vadico e Noel começam com uma
obra-prima e vão criar outras obras-primas pela vida afora. Nada do que farão
juntos - onze composições daqui até 1936 - é menos do que bom. E quase tudo é
mais
do que excelente.
Um encontro abençoado aquele, no estúdio da Odeon. Ismael Silva não é caso único
de durabilidade e afinação na obra de Noel Rosa. Vadico, dono de outro estilo (e
Noel parece adaptar-se a todos os estilos), entra nela como se para provar que
parcerias longas e perfeitas são raras, mas existem.
NOTAS
1. Número baseado em levantamento feito pelos autores e publicado em detalhes
no final do volume. Embora seja o mais completo realizado até aqui, nada impede
que
outras composições, outros parceiros, venham a ser redescobertos após a
publicação deste livro. O fato de Noel não assinar grande parte do que fazia
torna quase
impossível um inventário completo de sua obra. A essas 56 citadas no texto,
contudo, devem se somar desde já pelo menos três parcerias póstumas, perfazendo
o total
de 59-
2. Essas discussões serão estudadas mais aprofundadamente no Capítulo 46.
3. Francisco Alves gravaria o samba em 1952, meses antes de morrer. O nome de
Noel não sairia no selo do disco. Por essa época, o cantor estava muito ligado a
René
Bittencourt, com quem faria Canção da Criança e Brasil de Amanhã, gravadas por
ele próprio com o coro das meninas da Casa de Lázaro (esse mesmo coro
interpretaria
Canção da Criança à beira do túmulo do cantor durante seu sepultamento). Três
anos depois, René ameaçaria processar a gravadora Continental por omitir seu
nome no
selo do disco em que relançava Felicidade na versão original de Noel. Graças a
essa ameaça, ele conseguiria com que a Continental gravasse muitas de suas
composições
então encalhadas.
4. Era mesmo um polonês, banqueiro de roleta em Ramos, e não um bicheiro como
conta Almirante. Alegria e Fina, em depoimentos aos autores, narram sobre a fuga
de
Terezinha a mesma história, um pouco diferente da que Almirante nos dá em No
Tempo de Noél Rosa, segunda edição (página 195), na qual Noel entra apenas como
mero
ajudante da família na busca da moça. Ele era de fato o único que sabia onde
Terezinha estava.
5. Sem citar o nome de Jota Machado, Almirante registra, em Ato Tempo de Noel
Rosa, segunda edição (página 72) que "... o mais lamentável papel-carbono foi o
ridículo
Na Gamboa, cópia da melodia, do ritmo e do estribilho de Na Pavuna e que utiliza
na sua gravação os mesmos recursos lançados por nós, inclusive o característico
'bum-bum-bum'." Almirante cita ainda um comentário de Tom Rio, em O Malfyo de 15
de fevereiro de 1930: "... até o efeito de um batuque de tamborim que se
encontra
no disco de Na Pavuna foi transportado, também, para o disco de Na Gamboa. Não.
Decididamente a polícia precisa intervir nesse negócio de música e letra."
6. Ver Capítulo 21 e nota sobre Espera Mais Um Ano no apêndice sobre a obra de
Noel Rosa no final do volume.
7. Uma segunda parceria dos dois, Qual a Razão?, se perderá.
8. Escrito por Ernie Erdman, Elmer Schoebel, Billy Mayers e Gus Kahn, este
9. fox-trot se tornaria muito popular através da clássica gravação de Paul
Whiteman e sua Orquestra, realizada em Nova Iorque a 9 de outubro de 1929
(Columbia americana
2089 D). Pode-se notar pelo arranjo de Tom Satterfield como são semelhantes as
primeiras partes de Nobody 's Sweethearte Você Só... Mente. Em 1935, quando de
sua
estada em Belo Horizonte para tratamento dos pulmões, Noel revelaria ao amigo
Roberto Ceschiatti sua admiração pela orquestra de Whiteman. Sua e do irmão. E
lamentaria
não ter ainda a música popular brasileira uma "orquestra típica" como a
americana e a argentina. Não entendia como tal, portanto, a de Pixinguinha.
Muito menos outras,
as de Bountmann, Kosarin, Napoleâo Tavares, Romeu Silva, cujos arranjos eram
criados sob forte influência de maestros americanos como Whiteman.
9. A estrofe só seria gravada em 1983, como uma das vinhetas do LP Noel Rosa
Inédito e Desconhecido (Estúdio Eldorado 79.83.0408).
268
NOTURNAS E VESPERTINAS
Capítulo 27
bebendo deliciado os sons que Lamartine vai criando com a ajuda de Noel. Música
e letra da primeira parte ficam prontas em minutos:
Lamartine cantarola mais uma vez a bonita primeira parte. Antes que chegue ao
fim, Mário propõe:
-Muito bem. Agora, cada um de vocês faz uma segunda parte. Vamos ver qual dos
dois é o melhor.
Lamartine e Noel se entreolham. Mário percebe que a proposta, em tom de desafio,
surte efeito. Uma competição entre aqueles que são, provavelmente, os dois
maiores
poetas do carnaval brasileiro terá de resultar, no mínimo, em duas excelentes
segundas partes. Mário é inteligente, conhece os brios de Lamartine e as
astúcias de
Noel. Brios e astúcias que, postas em confronto, em forma de disputa, podem ser
as sementes de um grande samba. Por isso insiste:
- Vamos lá, quero ver quem é o melhor.
- Você primeiro, Lamartine - diz Noel. Mário sai da sala. Quinze, vinte minutos
depois, com outra garrafa de cerveja na mão, volta. Lamartine acabou de fazer a
sua segunda:
Mário Reis quer dizer alguma coisa, mas não pode. Enleva-se pelos versos de
Noel, a mesma idéia de Lamartine aprofundada, um sentimento semi-oculto em cada
frase.
Numa sextilha ainda mais perfeita que a do parceiro, o primeiro verso rimando
com o segundo, o quarto com o quinto, o terceiro com o sexto. Para não confessar
aqui
que gostou mais da segunda parte de Noel que da de Lamartine, resume todo o
entusiasmo no mesmo elogio:
- Você é um craque, Noel!
Mas lá no fundo, consigo mesmo, dirá que nem toda a admiração que tem por
Lamartine o impedirá de admitir que Noel Rosa é imbatível: "Quem mais seria
capaz de misturar
amor e cosmografia em letra de música?" Mário brinda com goles de Cascatinha o
novo samba, aqui mesmo intitulado O Sol Nasceu Pra Todos. O nome de Noel jamais
aparecerá
no selo do disco ou nas partituras impressas. Mas não faz mal. Madrugada já,
caminha sozinho até o ponto do bonde que o levará de volta a Vila Isabel, talvez
cantando,
baixinho e triunfante:
... uma Lua diferente,
Que é do Sol independente,
Com luz própria e com calor...
Mário Reis e Lamartine Babo, juntos ou não, terão mais do que dois valiosos
trunfos para o carnaval de 1934. Noel, nem tanto. Mário arrebatará os foliões
com um
samba de Alcebíades Barcellos e Armando Marcai destinado a transformar-se num
dos clássicos da música popular brasileira: Agora É Cinza. Em dupla com Carmem
Miranda,
levará ao sucesso um samba de André Filho: Alô, Alô. De quebra, fará o povo
cantar, nos bailes e nas ruas, Uma Andorinha Não Faz Verão, de João de Barro e
Lamartine.
Este, entre outras, brilhará também com História do Brasil, irreverente e bem-
humorada releitura do descobrimento:
Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral! No dia 21 de
abril, Dois meses depois do carnaval...
Já Noel, desde sua vitoriosa estréia em 1931, quando Com Que Roupa? o fez famoso
quase da noite para o dia, nunca produziu tão pouco para o carnaval como agora:
não mais do que uma marcha e dois sambas. Tão pouco que a Odeon e a Victor
tentarão prolongar a atualidade de algumas de suas composições, sucessos de meio
de ano,
mantendo-as em
270
suplemento até fevereiro. São os casos de Feitio de Oração e Quem Não Quer Sou
Eu. É o caso também de Eu Queria Um Retratinho de Você, outra vez dele e
Lamartine.
Há originalidade na letra, uma declaração de amor feita com imagens e expressões
pedidas emprestadas ao jornalismo, mas usadas com bastante graça, especialmente
na interpretação de Mário Reis. A melodia, porém, lembra muito Wonder Who 's
Kissing Her Now, canção americana de 25 anos atrás1.
A estrela da manhã,
Quando brilha na amplidão,
Faz lembrar uma saudade
Que guardei no coração.
Quando à noite olho as estrelas
A brilhar no firmamento,
Fico distraído ao vê-las,
Esquecendo o meu tormento.
E dos amores que tive,
A gozar a mocidade,
Só um no meu peito vive
Sob a forma de saudade.
A segunda é um dos sambas mais perfeitos e perenes de toda a obra de Noel Rosa.
Um samba que, entre outras coisas, abre importante e tumultuado capítulo em sua
vida
de compositor popular: O Orvalho Vem Caindo. Daqui a dois meses, ou seja, lá por
janeiro, toda a cidade terá se rendido aos encantos da melodia simples e
contagiante
desse samba. E saberá de cor os versos escritos com fino humor. Um humor tão
claramente seu que todos, no meio musical, estranharão o fato de ter o samba a
assinatura
de Kid Pepe ao lado da de Noel Rosa.
Há razões de sobra para tal estranheza. Kid Pepe é um boxeur aposentado. Decidiu
trocar as luvas pelo samba, mesmo que mal saiba assinar o nome, que tenha uma
voz
incapaz de entoar três notas sem desafinar, que possua ouvidos péssimos. Chama-
se, na verdade, José ou Giuseppe Gelsomino, nasceu na Itália e é amigo de
Germano
Augusto, o motorista de Francisco Alves. Para quem vive a dizer que português e
italiano são trouxas, os dois valem como irrefutável prova em contrário.
Astutos,
vivos, cheios de manha, nada devem aos mais espertos malandros cariocas. Somadas
as espertezas de um e de outro, tudo é possível.
Mas serão eles realmente capazes de fazer sambas, marchas ou qualquer coisa que
se pareça com música? Poucos acreditam. Germano é, confessadamente, comprador de
samba. Aprendeu com Francisco Alves, na época em que morava com ele na casa da
Ruajustiniano da Rocha. Kid Pepe não fica atrás. Há quem diga que, quando não
consegue
comprar o que lhe interessa, arranca a parceria à força. Foi um lutador
medíocre, mas fora do ring, se a sobrevivência está em jogo, sabe usar os punhos
com a habilidade
de um nocauteador profissional. Mesmo assim, até este final de 1933 os socos não
o ajudaram muito na luta para obter sucesso na música popular. Não fez nada que
preste, nada que fosse notado, até se tornar parceiro de
Noel Rosa em O Orvalho Vem Caindo:
Além desses versos gravados por Almirante, Noel escreveu pelo menos mais uma
estrofe:
272
O meu chapéu
vai de mal para pior
E o meu terno pertenceu
a um defunto maior
(Dez tostões no belchior!)
De certo modo, o samba é uma retomada de Com Que Roupa? sem o caráter
formalmente revolucionário daquele, mas outra vez falando de um Brasil de tanga,
de brasileiros
cuja sopa não tem osso nem tem sal, de um solo fértil onde nascem banana, aipim,
tudo, e mesmo assim do homem do povo passando bem um dia, mal dois e três. Há
até
referência aos servidores públicos que ganham pouco e não recebem pontualmente,
representados pelo guarda-civil transformado em despertador de pobre.
Sim, há razões de sobra para que muitos estranhem o fato de Kid Pepe ter alguma
coisa a ver com este samba. E se não tem, o que levaria Noel a conceder-lhe
parceria?
Pergunta que muito provavelmente intriga o repórter de O Globo que passa pela
Rua Gonçalves Dias e ouve, saídos de uma vitrola de casa de música, a melodia e
os
versos de O Orvalho Vem Caindo. A cidade toda canta o samba, pensa ao se
aproximar da Casa Henrique Tavares & Companhia, onde um dos empregados, seu
conhecido, conversa
com um homem forte, tipo atlético, cigarro e palito no canto da boca. O
empregado apresenta o homem ao repórter.
- É o autor de O Orvalho Vem Caindo.
A feliz coincidência permite ao jornalista entrevistar Kid Pepe aqui mesmo. Ouve
dele a confissão de que nada entende de música, fica sabendo de detalhes de sua
vida difícil, a pobreza da infância, o trabalho como vendedor de jornais e
bilhetes de loteria, a surra que levou numa luta que lhe custou duas costelas, a
decisão
de tornar-se compositor. Naturalmente, O Orvalho Vem Caindo é o seu maior
sucesso até agora.
- Tenho grande prazer em dizer que o fiz de parceria com Noel Rosa, a quem muito
admiro. Se quiser sair um pouquinho, garanto que o encontramos.
- Aonde? - pergunta o repórter.
- Por aí em qualquer bar.
O repórter e Kid Pepe saem juntos. No Café Trianon, do outro lado da Rio Branco,
em frente ao Nice, de fato encontram Noel. Kid Pepe pede uma cerveja enquanto o
repórter fica observando Noel ("... um verdadeiro gênio da música popular",
escreverá em sua reportagem). Já sentado à mesa, arrisca a pergunta que o
intriga:
- Como foi que vocês compuseram O Orvalho Vem Caindo?
Os dois compositores se entreolham.
- Sentindo a vida carioca - responde Kid Pepe em seguida.
Noel é ainda mais vago:
- Talvez chorando, debaixo das estrelas que se apagavam. É tão triste a
despedida da noite...
Noel põe-se a elogiar o novo parceiro, diz que suas músicas são todas boas, que
Kid Pepe compõe com alma.
- Mais uma cerveja! - grita para o garçom.
Continua derivando. Lembra que o samba não vem apenas dos morros.
- Mas também das ruas planas e largas da cidade, por onde passam de madrugada os
carrospipas de vassouras cilíndricas.
O repórter, contudo, insiste:
- Mas como foi que vocês criaram este samba?
O entrevistador nota "novo entreolhar misterioso e sorrisos ainda mais
enigmáticos" nos dois entrevistados. Kid Pepe fala:
- É melhor silenciar sobre isso. E Noel:
- Sim. Não devemos dizer. É segredo nosso.
Kid novamente:
- Se faz questão desse pormenor, diga que foi em qualquer lugar.
Noel arremata:
- No Café Belas-Artes, por exemplo...
O repórter desiste. A matéria que escreverá contando em detalhes seu encontro
com Kid Pepe e Noel Rosa(3), o diálogo em torno de O Orvalho Vem Caindo, a
história
de um sucesso cuja origem parece envolta em mistério, tudo isso só servirá para
aumentar as suspeitas de que, na criação deste esplêndido samba, Noel entrou com
música e letra. Kid Pepe, com os músculos.
Volta e meia Noel desaparece das conversas de esquina do Ponto de 100 Réis. Fica
difícil encontrá-lo neste Rio de Janeiro que, ao contrário do que podem pensar
alguns
de seus amigos de Vila isabel, não se limita aos quarteirões entre o Largo do
Maracanã e a Praça 7. Seus horizontes estão muito mais além. Gosta de bandarrear
por
aí, mudando de ponto e destino a cada noite. Por isso, tanto pode estar num
festival em Bangu como numa roda de choro na Cancela, pernoitando no barraco de
Cartola
como confabulando com Ismael Silva no Estácio. Pode ter arranjado nova namorada
no mais longínquo dos subúrbios. Ou quem sabe, depois de vaguear pelas esquinas
do
Centro, ou de tomar dois ou três tragos num escondidinho da Lapa, não estará
comprando amor barato numa pensão da Joaquim Silva ou da Conde de Lajes? O
subúrbio
e a Lapa. Eis aí territórios muito especiais nas incansáveis peregrinações de
273
Noel Rosa por sua cidade. Num, sente-se à vontade, em casa. Noutra, deixa que se
solte seu espírito boêmio. Ama o subúrbio, a vida simples e a gente humilde que
o habita. No fundo, é tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. Nestes dias em
que se fazem cada vez mais freqüentes as migrações dos moradores lá de longe
para
o Centro (ou deste para os bairros litorâneos), movidos quase sempre pela
necessidade de mostrarem o quanto melhoraram de vida, ou quanto ascenderam
socialmente,
Noel prefere a direção oposta. São sedutoras mas enganosas as luzes da cidade.
já o subúrbio é ambiente de completa liberdade. Como o próprio Noel nos garante
no
lindo samba intitulado Voltaste, crônica carioca da melhor feitura, o malandro
de volta ao subúrbio depois de constatar que não há nada de novo lá no centro da
cidade.
E nessa volta, esbarra no orgulho da mulher suburbana, aqui enaltecida por um
poeta que não é muito die enaltecer mulheres. Um samba antológico:
Tão ou mais suburbano que de Vila Isabel. É sempre de modo edificante - quando
não emocionado - que canta o subúrbio. Como nesta preciosidade que é
Meu Barracão, um simples Casébre da Penha adquirindo vida nos versos que lhe
dedica Noel ("... eu desconfio que ele foi me procurar..."). Penha, por sinal,
que será
o bairro mais cantado por Noel em toda a sua obra, desde os tempos de São
Bento(4). Mas Meu Barracão, tanto quanto uma homenagem à Penha, é uma nostálgica
canção
suburbana:
A Lapa. Não há boêmio que resista aos apelos deste bairro carioca que alguns
intelectuais gostam de chamar de Montmartre brasileira(5) . Noel Rosa não é
exceção.
Adora suas ruas estreitas, os sobrados suspeitos, os cabarés mal-iluminados, os
botequins sujos, locais onde bebem, cantam, amam, sofrem, mas acima de tudo
vivem
- tirando da noite o que de melhor a noite tem para dar - turbulentas populações
de mulheres, rufiões, artistas, malandros, poetas, pederastas, mendigos,
jogadores,
policiais, viciados, grã-finos, políticos e o que mais se possa imaginar. Só a
Lapa daria todo um livro. Na verdade, muito ainda se escreverá sobre ela.
Romances,
contos, poemas, músicas, memórias. A Lapa é um grande cenário, uma grande
história. E Noel, um de seus personagens.
Ainda é um freqüentador de bordéis. Sente-se bem mais à vontade numa dessas
pensões da Lapa do que em certas festinhas familiares onde só consegue se
desinibir a
custo de muitos goles de Cascatinha, sorvidos após uma saudação peculiar, copo
erguido sobre a cabeça:
- Loura como as louras espigas de milho, falsa como as mulheres... Eu bato com
ela no bucho, ela bate comigo no Chão!
Não é muito exigente com as mulheres que fazem amor por profissão. Pouco importa
274
Os anos passaram e a pose não mudou: de vez em quando Noel ainda se traja de
malandro em seus sambas. Como neste que ele e Ismael Silva vão completar a
partir de
um estribilho de Orlando Luís Machado, um branco do Catumby cuja passagem pela
história da música popular vai se dever praticamente a esta parceria com os
poetas
da Vila e do Estácio(6). O samba, que estes dois gravam em dupla na Odeon,
intitula-se Escola de Malandro e fala de uma doutrina que Noel Rosa jamais porá
em prática:
A escola do malandro
É fingir que sabe amar
Sem elas perceberem
Para não estrilar...
Fingindo é que se leva vantagem
Isso, sim, é que é malandragem
(Quá, quá, quá, quá...)
Oi, enquanto existir o samba
Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu,
Jesus Cristo manda dar!
Tomo vinho, tomo leite,
Tomo a grana da mulher,
Tomo bonde, automóvel,
Só não tomo Itararé(7)
Oi, a nega me deu dinheiro
Pra comprar sapato branco,
A venda estava mais perto,
Comprei um par de tamanco.
Pois aconteceu comigo
Perfeitamente o contrário:
Ganhei foi muita pancada
E um diploma de otário.
A maioria dos rapazes de classe média de Vila Isabel tem pouca intimidade com
este mundo de desocupados que vivem à custa de mulher. Almirante, João de Barro,
Alvinho,
é impensável vê-los consumindo noites em bares e bordéis baratos. Ou pregando,
ainda que só em teoria, o tipo de malandragem que Noel e Ismael cantam. Mesmo os
outros,
Nássara, Christovam de Alencar, mais boêmios que os
ex-integrantes do Bando de Tangarás (e certamente mais identificados com o
espírito vagabundo do Ponto de 100 Réis), raramente andam por onde Noel
275
NOTAS
1. Escrita em 1909 por Joe Howard, Will Hough e Frank R. Adams.
2. Samba, segunda edição (página 57).
3. "Melodias do coração no tumulto de Momo - Conversando com três homens que
cantam o que sentem na alma", reportagem não assinada, in O Globo de 2 de
fevereiro
de 1934 (páginas 1 e 3). Trata-se de matéria realmente repleta de pistas e
insinuações, como atestam os diálogos transcritos. O terceiro homem com quem o
repórter
conversou era Antônio Nássara, a propósito de Tipo Sete, marcha que ele e
Alberto Ribeiro fizeram para o mesmo carnaval de 1934.
4. Noel Rosa compôs, sozinho ou com parceiros, quatro sambas falando em Vila
Isabel: Eu Vou Pra Vila, Bom Elemento, Feitiço da Vila e Palpite Infeliz. E oito
em
que menciona a Penha: Cumprindo a Promessa, Feitio de Oração, Fiquei Rachando
Lenha, Meu Barracão, Não há Castigo, De Qualquer Maneira, Eu Agora Fiquei Mal e
Chuva
de Vento.
5. Não era raro entre os intelectuais que freqüentavam a noite a associação da
Lapa com Montmartre. Como se de fato considerassem o bairro carioca uma réplica
da
Paris boêmia que tinham conhecido ou sonhavam conhecer. Estudantes das muitas
repúblicas ali existentes intitulavam se "montmartroises". Henrique Pongetti, em
sua
crônica Lapa 1930, publicada em 1962 em O Globo, fala de "atmosfera
montmartroise" ao se referir especificamente ao cabaré Royal Pigalle. Diz Gastâo
Cruls em Aparência
do Rio de Janeiro (volume II, página 727): "A zona da Lapa prepara-se para ser o
nosso Montmartre, um Montmartre rasteiro, na verdade, mas que nas perspectivas
abertas
pelo álcool talvez fizesse do Convento de Santa Teresa o Sacrê-Coeur sobre a
butte." E Brito Broca, na crônica A Lapa: Ontem e Hoje, publicada postumamente
em 1965
na Antologia da Lapa organizada por Gasparino Damata, observa "um certo ar
montmartroise" no quarteirão do Grande Hotel da Lapa, depois Cine Colonial, hoje
Sala
Cecília Meireles.
6. Orlando Luís Machado aparece sozinho como autor no selo do disco em que Noel
e Ismael gravaram Escola de Malandro. O samba foi seu único sucesso, assim mesmo
de dimensões modestas. E por muito tempo funcionou como seu cartão de visitas:
"Sou o autor de Escola de Malandro..." Como tal - e acompanhado do parceiro
Jorge
Dutra, amigo dos tempos de infância na Rua Itapiru - visitou redações de jornal
às vésperas do carnaval de 1933, numa infrutífera tentativa de divulgar suas
composições
Estou Sem Batente e Veneno Contra Veneno, que sequer seriam gravadas. O Diário
Carioca de 20 de janeiro de 1933 registra, com detalhes, uma dessas visitas.
7. Itararé, a batalha que não houve. Noel refere-se ao episódio da Revolução de
30 em que as tropas governistas (6 mil e 200 homens comandados pelo coronel Paes
de Andrade) ficaram quase três semanas em Itararé, sul de São Paulo, defendendo-
a de forças revolucionárias (7 mil e 800 homens chefiados por Miguel Costa).
Depois
de algumas trocas de tiros e escaramuças menores, anunciou-se para o meio-dia de
25 de outubro uma segunda batalha - "a maior do século", segundo previsão dos
jornais
que apoiavam os revoltosos, certos de que eles massacrariam os adversários.
Expectativa em todo o país, combatentes entrincheirados, canhões Krupp a postos,
nada
acontece. Antes que soe o primeiro tiro o deputado Glicério Alves atravessa as
linhas empunhando uma bandeira branca e vai parlamentar com Paes de Andrade,
pedindo-lhe
que se renda:
Washington Luís foi deposto ontem. Os governistas se rendem, não há batalha.
Como diz Noel, "... só não tomo Itararé,"
276
Capítulo 28
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa,
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa.
Capricho de Rapaz Solteiro
desde que comprou o Pavão, pago a peso de samba, Noel Rosa tem podido levar suas
namoradas a passeios bem mais distantes e prolongados. Capota arriada, morena de
fábrica sentada ao seu lado no banco da frente (nenhuma vespertina lhe aceitaria
carona), ele passa pelo Ponto de 100 Réis fazendo soar a bizarra buzina do seu
carro
e acenando para os amigos que conversam na esquina. Pé no acelerador, toma o
caminho de Jacarepaguá, Leblon, Campinho, Deus sabe onde.
- Não é justo!- protesta um dos amigos. - De carro, não é justo.
Uma reunião é feita no Martinez para que os rapazes do bairro estudem uma forma
de enfrentar a "concorrência desleal" de Noel, que agora, com o Pavão, leva
nítida
vantagem sobre todos eles na caça às "empregadinhas" das redondezas. Qual delas
vai querer sair a pé, passar pelo desconforto dos muros e dos capinzais, quando
Noel
tem a lhes oferecer a maciez dos bancos do Chevrolet? É evidente que, nessa
corrida, os motorizados sempre chegam na frente. Por isso a turma se reúne. O
que fazer?
De quem é a sugestão não se sabe ao certo, mas é Christovam de Alencar, o
Armando Reis, quem fica incumbido de transmiti-la a Nássara.
- O Noel ouve muito o Nássara - justifica alguém.
Nássara é convocado às pressas a uma das mesas do Martinez. E Christovam vai
dizendo o que a turma quer: que ele convença Noel de que a concorrência é mesmo
desleal,
de que o carro é trunfo forte demais.
-Eo que querem vocês que ele faça? Venda o carro?
- Não - intervém Christovam. -Quepelo menos, cada vez que saia com uma pequena,
chame um de nós. Quer dizer, seremos sempre dois casais. É mais justo.
Nássara concorda em servir de intermediário:
- Que diabo, Noel! Não custa nada. Você sai com a sua menina no banco da frente
e deixa o de trás para que um de nós leve alguém. É justo. A gente faz um
revezamento,
hoje eu, amanhã o Reis, depois o Seringa, o Arnaldo Amaral, até que todos tenham
sua vez.
Noel não se opõe. Pensando bem, até que a reivindicação de Nássara traz
vantagens. É verdade: onde cabem dois cabem quatro. E além disso...
Bem, Noel aceita dividir o conforto do Pavão com qualquer dos amigos e sua
respectiva pequena. Depois do protesto da turma - condignamente representada por
Nássara-ele
continua passando pelo Ponto de 100 Réis,
277
Um dia Gonçales ainda será conhecido no meio, terá um samba seu gravado com
sucesso por Antônio Moreira da Silva, apesar do erro de português logo na
primeira rima
("Amigo urso, saudações polares... Ao leres esta hás de te lembrares...")- Mas,
por hora, é apenas o Laranja, figura conhecida no Ponto de 100 Réis, aprendiz de
compositor e companheiro de Noel nas aventuras amorosas a bordo do Pavão.
Uma dessas aventuras os leva certa noite ao Alto da Boa Vista. Cansado como
sempre, o Pavão enguiça. O local está deserto, a escuridão é assustadora. Nem um
lampião,
nem uma mísera lâmpada acesa numa janela qualquer. Na verdade, nem parece haver
janela. Este é um lugar ermo, desolado, um cemitério. Noel tenta fazer o carro
pegar.
- Pelo jeito, Laranja, vamos ter de passar a noite aqui.
- Que história é essa?- reage Lindaura.
- O Pavão morreu.
As moças se apavoram. A namorada de Gonçales começa a chorar, Lindaura prende a
respiração. Se houvesse luz o bastante para se saber como estão os rostos das
duas,
só se veria palidez, suor, medo. A namorada de Gonçales continua chorando, cada
vez mais alto. Lindaura, aparentemente mais corajosa, nada diz. Noel insiste,
Gonçales
torce e - alívio geral - o carro pega.
Na descida, a namorada do amigo, mais calma, choro já superado, talvez ocorra a
Noel elogiar a bravura de Lindaura. Se isso lhe passa pela cabeça, é por pouco
tempo.
Só até ele ver o banco molhado do carro, as pernas de Lindaura escorrendo. Não é
tão corajosa como parecia.
278
No domingo, 12 de novembro, Lindaura sai de casa por volta das seis da tarde. A
mãe, Olindina Pereira da Motta, é realmente operária da Fábrica Confiança.
Sergipana,
veio com o marido, José Martins Neves, e os filhos, Lindaura e Zeca, tentar a
sorte no Rio, que diziam ser cidade de grandes oportunidades. Em 1925, ficou
viúva.
Mesmo casando-se de novo, teve de empregar-se, pôr os filhos para trabalhar,
todos ajudando a prover o sustento da casa de vila número 2 da Rua Maxwell,. 74,
onde
moram. A vida transformou Olindina numa mulher dura, enérgica, desconfiada. Tem
rígidos princípios morais e tenta passá-los aos filhos. Nem de longe suspeita
das
saídas de Lindaura com Noel.
Neste domingo, novo passeio programado, Lindaura chama a amiga Maria da Glória
Avelina, empregada doméstica de uma casa em frente, e pede-lhe cobertura.
Pretende
voltar tarde, depois da meia-noite.
- Vou sair de carro com Noel. Mas não diga nada à mamãe.
À dona Olindina, Lindaura explica que vai a uma festa com Maria da Glória
Avelina. Tudo acertado, as duas moças se dirigem até a esquina de Maxwell com
Pereira Nunes.
Ali, ao volante do Pavão, Noel já está à espera. Lindaura diz "boa-noite" à
amiga e entra no carro. Maria da Glória Avelina volta, procura entrar em casa
sem ser
vista por dona Olindina. Para todos os efeitos, ela e Lindaura divertem-se numa
festinha domingueira em casa de família.
A segunda-feira parece ser um dia como
279
outro qualquer. Noel talvez tenha de ir até a cidade, fazer um vale no Casé. Ou
acertar detalhes para o próximo domingo, agora que ele, Castro Barbosa, Jorge
Fernandes,
Nono, Sílvio Caldas, Zaíra de Oliveira e Cláudio Bueno Rocha acabam de renovar
seus contratos com o programa. Uma segunda-feira como outra qualquer, mas só na
aparência.
No fim da tarde, Noel dorme profundamente no quarto dos fundos, quando é
despertado pelos safanões de Hélio.
- Noel! Noel! A polícia está aí te procurando.
Pouco depois, Noel ainda atordoado, a família se reúne na sala ao lado da
cozinha. Dois policiais, investigadores da 16? Delegacia, medem as palavras para
dizerem,
na frente de dona Martha, que há uma queixa contra o filho sobre a mesa do
comissário. Coisa séria, já anotada no livro de partes. Martha e Hélio estão
perplexos.
- Mas de que se trata?
Os policiais explicam que uma certa dona Olindina, residente aqui perto,
procurou o comissário para acusar formalmente Noel.
- De quê?- indaga o próprio Noel finalmente despertando.
- De rapto.
"Rapto" é palavra que por esta época costuma sobressaltar as pessoas, o caso
Lindbergh há mais de um ano ocupando com destaque as páginas dos jornais de todo
o mundo,
o Brasil inclusive. Passado o susto inicial de Martha, os policiais explicam que
Noel é acusado de ter raptado não um bebê, mas uma moça de dezessete anos. Tem
de
ir à delegacia, o comissário quer interrogá-lo. Martha está aflita:
- Mas o que você andou fazendo?
-Nada, absolutamente nada - responde com firmeza.
Forma-se uma pequena confusão na sala ao lado da cozinha. Os policiais até que
se mostram pacientes, dirigindo-se a Noel em tom brando. Mas os protestos do
acusado,
as perguntas da mãe, o espanto do irmão, tudo isso converte a cena num bate-boca
nervoso que acaba atraindo a atenção de Clara na sala da frente. Ela interrompe
a aula do jardim da infância, levanta-se, toma a direção da cozinha. Não chega
muito perto, apenas o bastante para ouvir o que dizem. Apavora-se ao saber que
Noel
está sendo levado para a Delegacia. Segundo os policiais, por ter raptado uma
menor. Será verdade? Noel sai entre os dois homens da lei. Clara finge que não o
vê.
Lá dentro, Martha e Hélio nem sabem o que dizer.
Na 16? Delegacia Policial - no Boule-vard, quase esquina de Silva Pinto - todos
conhecem Noel Rosa. De conversa de esquina, de
vista ou de nome. E gostam dele. Por isso não o tratam como um criminoso, um
preso comum, mas como um menino surpreendido em mais uma travessura.
- Ora, ora, seu Noel...
O próprio comissário explica-lhe que uma senhora, Olindina Pereira da Motta,
esteve de manhã na delegacia para acusá-lo formalmente de haver raptado a filha,
Lindaura.
A moça não dormiu em casa de ontem para hoje. Dona Olindina, muito preocupada,
apelou para os vizinhos, até que uma moça, Maria da Glória Avelina, contou tudo,
a
festa que não havia, Lindaura entrando no carro dele, o passeio. Enfim, a
consumação do crime.
- Mas que crime? reage Noel.
De rapto, repete o comissário. Noel jura que não houve nada disso. De fato saiu
com Lindaura, os dois passaram a noite num hotel da Rua Senador Euzébio, ele
abusando
um pouco da bebida, pegando no sono, esquecendo-se da hora. Quando acordou, já
era de manhã. Mas não houve rapto. Lindaura saiu com ele porque quis, ninguém a
forçou.
-Mas a moça é menor de idade, seu Noel.
Verdade. Lindaura tem dezessete anos. Crime de sedução de menor? Noel jura que
não. Que história é essa de rapto e sedução de menor, crime? Não é o primeiro
homem
na vida dela. Pode até provar. Mas o comissário diz que a mãe da moça não quer
conversa: ou Noel repara o erro, ou vai para a cadeia.
- Reparar o erro?
- Sim, casando.
- Pois eu vou para a cadeia.
O comissário quer resolver tudo da melhor maneira. Já pediu à dona Olindina para
trazer a filha à delegacia, é indispensável ouvir seu depoimento. Noel que se
tranqüilize,
ninguém vai prejudicá-lo. Se não fez nada, nada tem a temer. Mas deve voltar à
delegacia amanhã.
Em casa, Marta e Hélio querem saber o que aconteceu. Nada, reafirma Noel.
Absolutamente nada. Pede que a mãe e o irmão não acreditem nessa absurda
história de rapto.
Mais um ou dois dias resolverá tudo. Com o comissário, com Lindaura, com a mãe
dela. Deve ter havido um mal-entendido, um nó fácil de desatar.
Mas não será tão simples assim. Lindaura realmente vai à delegacia e, no seu
depoimento, tenta inocentar Noel. De fato passaram a noite num hotel, mas não
houve
rapto. Envergonhada, confirma não ter sido ele o primeiro homem em sua vida. É
um depoimento nervoso, titubeante, contraditório. Começa dizendo ter passado a
noite
na casa de tia Filó, na Ponta do Caju, para acabar contando história igual à de
Noel. Quando o comissário, instado por dona Olindina,
280
pergunta-lhe quem a desonrou (por mais humilhante e cruel que seja, a pergunta é
considerada fundamental na abertura de processos de sedução, rapto e similares),
ela responde:
- Foi o José... José Martins Neves.
Está tão nervosa que nem se dá conta de que este era o nome do pai, morto há
tanto tempo. De qualquer modo, o comissário acha que as evidências bastam para
incriminar
Noel: ele próprio não admitiu ter levado uma menor para passar a noite em sua
companhia num hotel da Cidade Nova? Então, o processo será instaurado. Mas, como
a
Senador Euzébio, local em que se teria consumado a sedução, pertence à
jurisdição da 14? Delegacia Policial, é para lá que o caso vai ser enviado. O
comissário ainda
quer contemporizar, tentando fazer dona Olindina crer que são muitas as
possibilidades de arquivamento da queixa. Por que não esquece tudo isso? Seria
melhor para
todos, principalmente para a filha.
- Não, senhor! Exijo reparação.
O caso não será enviado para outra jurisdição, como pretendia o comissário.
Irascível e determinada, Olindina vai ao chalé para uma conversa franca com os
Medeiros
Rosa. Quer que Noel se Case com a filha.
- Se for mesmo o responsável - diz Martha - eu lhe prometo que o fará. A senhora
pode deixar que eu vou ter uma conversa com ele.
De uma hora para outra - e por bastante tempo - o chalé é transformado em palco
de constantes discussões, Martha e Noel, Martha e Olindina. No início, fala-se à
meia-voz, na cozinha ou nos fundos da casa. Mas pouco a pouco a mãe de Lindaura
se convence de que Noel não quer mesmo saber de casamento, de que Martha não
consegue
dobrar o filho. É a partir daí que Olindina muda o tom de voz, fazendo cenas no
chalé, xingando, esbravejando, acusando os Medeiros Rosa de "desencaminhadores
de
menores", gente sem palavra. Martha teme que tais cenas prejudiquem a escolinha,
crianças inocentes ouvindo o que não devem. Por isso, quando Olindina chega, vai
tratando de dizer:
- A senhora se incomodaria de conversarmos aqui ao lado?
E vão para a casa de Dorica. Ali a mãe de Lindaura pode dizer o que bem
entender, na altura de voz que quiser, pois os alunos não a ouvirão. Mas as
cenas tornam-se
insuportáveis. Até que numa delas, ao ver a mãe.tão angustiada, premida pelos
impropérios de dona Olindina, Hélio intervém:
- Mas o que a senhora quer, afinal?
- Que seu irmão se Case com a minha filha.
- Muito bem. Se é para a senhora deixar
minha mãe em paz, eu me caso no lugar dele! Hélio, dezoito para dezenove anos,
um menino, se oferecendo para casar-se no lugar do irmão. Que coisa mais
absurda!
Dorica pede que ele fique calmo, Martha bebe água com açúcar, Olindina insiste.
Onde estará Noel? Desde que essas discussões começaram a quebrar a paz do chalé,
ele simplesmente desapareceu. Entra e sai na ponta dos pés, evita falar com a
mãe, nem quer ver dona Olindina. Mas Martha está apreensiva, temendo que o
processo
se instaure, que tudo se complique. Daí achar que o casamento seria mesmo o
melhor caminho. É com todas essas coisas na cabeça que ela própria vai um dia
conversar
com o comissário.
Jornal de oito páginas, fundado há poucos meses, o Avante! intitula-se um
"diário nacional socialista". Diz-se inteira mente voltado para os interesses do
operariado,
grande parte de suas matérias está dentro dessa linha e até um ou outro anúncio
reza de fato por tal cartilha. Como o do Dr. Lacerda Filho, especialista em
"ginecologia
proletária". Mas de proletário, mesmo, o jornal tem pouco. Fundado e dirigido
por Augusto Pamplona e Moura Carneiro, não é por acaso que seu nascimento se deu
logo
que Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha, no último 30 de janeiro. O Avante
.'simpatiza com as idéias do Führer, combate os comunistas, defende o anti-
semitismo,
reproduz discursos de líderes e pensadores nazistas.
As duas seções mais lidas do jornal não tratam, contudo, de política. Uma delas,
assinada por Orestes. Barbosa, noticia o que se passa nos bastidores do rádio e
da música popular, repleta de intrigas e insinuações bem no estilo do autor:
"Por que será que o holandês da Philips proíbe sambas e emboladas nos programas
de sua
rádio?" A outra seção, ocupando toda a página oito, destina-se a reportagens
sensacionalistas levantadas pela "caravana do Avanter, uma equipe formada por
apenas
dois repórteres, Carlos Leite e Nacim Adese, este também desenhista. Para que se
tenha idéia do espírito desta página oito, basta que se citem algumas de suas
manchetes
nos dois últimos meses de 1933: "Obrigada a casar com um morfético para se
salvar da mancha da desonra", "Embriagou a infeliz doméstica para subjugá-la
mais facilmente",
"Teria o pintor morrido de peritonite ou gangrena?", "Um conhecido professor do
Instituto Nacional de Música envolvido no caso de sedução de uma aluna", "O
velho
alfaiate, abusando da confiança do amigo, infelicitou uma menor de doze anos",
assim por diante.
O quiproquó romântico envolvendo Noel Rosa num caso de rapto talvez ficasse
281
é com os olhos esgazeados de espanto, 1-4 mas sempre em silêncio, que Clara
acompanha toda essa terrível história. Ainda bem que a escolinha está fechada,
as férias
de verão transformando numa sala vazia e quieta o local onde até bem pouco as
crianças faziam algazarra. As aulas suspensas, só de vez em quando Clara aparece
no
chalé. Mora tão perto que não teria como se desculpar com dona Martha, caso
sumisse de vez como é seu desejo. Senão de vez, ao menos até que a tempestade
passe.
O sempre imprevisível Noel. Tão irresponsável, tão insensível, tão desprovido de
nobreza nestes sete anos em que povoou de incertezas os sonhos de Clara, eis que
agora ele decide dedicar-lhe um gesto, último gesto, de grandeza. Desde aquela
tarde em que os dois policiais o foram buscar em casa, ele a tem evitado. Não
mais
se falaram. Sequer seus olhos se cruzaram ao acaso num dos muitos e apressados
entra e sai dele. Não haveria de ser ela que iria abordá-lo. Pedir explicações?
Nunca.
Não se acha com esse direito. Noel é que a procura.
- Preciso falar com você. Às sete da noite. Na esquina de Visconde de Abaeté.
A mesma esquina do primeiro encontro há sete anos. Na hora marcada, lá estará
Clara. Noel também. É bem possível que tenha sido pensando nela, em momentos
como este,
que ele um dia escreveu um samba fadado a permanecer, como uma relíquia, entre
seus guardados : Não Morre Tão Cedo. Com uma terna primeira parte e uma segunda
em
forma de soneto:
Você não morre tão cedo, Você não morre tão cedo...
Juro que, neste momento,
Pensava nesta sua pessoa,
Tão. boa, tão boa,
Que até dormindo perdoa.
Você sentiu agora com certeza
A dor que sinto no meu coração
E veio pra matar minha tristeza
E veio pra me dar o seu perdão.
Chegando exatamente no momento
Em que a gente pensa o que não diz,
Você adivinhou meu pensamento
Você já perdoou tudo o que fiz.
Você mostrou que tem bom coração
Sabe que eu estou sem a razão,
Mas vem me dar o seu perdão...
284
É com uma Clara assim, adivinhando pensamentos e sempre pronta a perdoar, que
Noel se encontra na esquina de Visconde de Abaeté com Theodoro da Silva. Se
havia preparado
um discurso, uma longa e minuciosa defesa, uma história com princípio, meio e
fim que inteirasse Clara de tudo (ou quase tudo), as palavras ficarão guardadas
com
ele para sempre. O diálogo não dura mais que breves instantes em que o essencial
é dito por olhares.
- Clarinha, o que eu queria te dizer é que... Nunca mais poderemos nos ver.
Bem... não como namorados.
- Eu sei - diz ela baixando os olhos. -Éque aconteceu um problema comigo... Noel
não chega a completar a frase. Os
olhos falam por ele, pelos dois. Clara limita-se a murmurar mais uma vez:
- Eu sei.
Os dois se separam sem mais palavras.
Clara sofre. Trancada no quarto, faz tudo para que os irmãos não a vejam assim,
chorando, machucada, os seis, sete anos de sonhos reduzidos a coisa alguma.
Repassa
esse tempo, desde os primeiros fins de tarde em que esperava no portão o jovem
ginasiano chegar do São Bento no uniforme caqui. Foi um longo tempo de idas e
vindas,
sumiços e reaparições súbitas, promessas e esquecimentos. Sempre ele, o querido
mas imponderável Noel. Enfeitou de perdões o romance repleto de hiatos que eles
viveram.
Perdoou-lhe as mentiras, os repetidos e inexplicados desaparecimentos. Perdoou-
lhe até o fato de haver entre eles uma Fina (ou quantas Finas?). "Vai ver é
coisa
passageira", tentava iludir-se. Agora, depois de tantos perdões, o fim. Clara
chora a certeza de já não poder encarar Noel, olhá-lo nos olhos, falar-lhe como
antigamente.
Mas a pior de todas as certezas não é esta e sim a de saber lá no íntimo que até
o último de seus dias, sejam quais forem os caminhos que tomarem, jamais amará
alguém
como o amou nesses
anos todos(5).
NOTAS
1. Avante!, 2 de dezembro de 1933 (página 5).
2. Ibidem, 30 de novembro de 1933 (página 5). O retrato a que se refere Orestes
Barbosa é mencionado pela caravana do Avante! na mesma reportagem em que está
contada
a "diabrura" de Noel Rosa: "Daquele modesto auditorium (o botequim do Carvalho),
saíram os três (Nássara, Almirante e Noel) para os melhores estúdios desta
capital
e quem disso mais se orgulha é o botequineiro que tem em sua casa, em lugar de
honra, o retrato dos três mosqueteiros."
3. Noel manteria até o fim da vida a determinação de deixar Três Apitos
inédito. O samba só seria gravado em 1951 e editado dois anos depois.
4. Jota Efegê era um dos membros do júri que deu à Mangueira o primeiro lugar
naquele desfile. Lembra-se de ter visto Noel no palanque ao lado do seu. O samba
de
Carlos Cachaça intitulava-se Homenagem.
5. Clara se casaria em 1938 com Príncipe Cinelli, a quem já namorava à época da
morte de Noel. Em depoimento aos autores, a 6 de novembro de 1981, não
esconderia
ter sido Noel o amor de sua vida. Na mesma ocasião, uma de suas filhas, Lucy,
acrescentaria: "Sempre soubemos disso. Eu e Dilma, minha irmã. Mamãe gostou
muito de
papai, mas sua grande paixão foi mesmo Noel Rosa."
285
Capítulo 29
que não por acaso está doida por ele, Germano, e portanto incapaz de lhe negar
um favor. Em sua casa trabalham umas sete ou oito moças. Pegam às seis da tarde,
largam
pouco antes das duas da manhã, de modo que os quartos ficam vazios todo o dia e
a maior parte da madrugada. Por que não pedir à amiga que abrigue Noel e
Lindaura
até que consigam coisa melhor?
Noel aceita o oferecimento da casa em que o português diz dar as cartas. Vai
esperar Lindaura no trabalho, conta-lhe que já tem lugar para ficarem, um quarto
de
pensão que só podem ocupar depois de duas da manhã. Não é o ideal. Uma solução
apenas provisória, mas que a ela parece muito melhor do que uma briga com dona
Martha.
Ou do que uma noite maldormida sobre um banco de maria-fumaça. E é desse modo
que os dois vão habitar por algum tempo um quarto da Rua
Laura Araújo, em pleno Mangue. O profano mundo em que Noel viveu suas alegres
aventuras de menino, agora convertido num prosaico ninho de amor.
Outro que vai ajudar muito Noel nessas peripécias em busca de lugar para
Lindaura é Zé Pretinho. Duas vezes mais valente do que Germano Augusto e
Kid Pepe juntos, com coragem para encarar um Brancura ou alguém do mesmo tope, é
do tipo de malandro que fascina Noel. Não só pelo destemor, mas especialmente
por
certos códigos de ética muito próprios, de uma nobreza que é preciso conhecer de
perto para compreender. Kid e Germano, por exemplo, são capazes de tudo, grandes
e pequenas torpezas. Malandros menores, barganhadores de tostão, trapaceiros
baratos que tiram dinheiro de quem não tem e gostam de se impor pela força, pela
ameaça.
Principalmente Kid Pepe, que não faz segredo disso. Zé Pretinho, não. Orgulha-se
de ser um malandro maior. No jogo ou lá em que seja, só esvazia bolsos de quem
os
tem cheios, respeita mulheres, velhos, crianças, gente de família, não compra
briga com os fracos. Prefere enfrentar policiais armados, malandros temidos como
ele,
valentes de verdade, a cometer uma covardia. Pelo menos é o que diz. E do que Zé
Pretinho diz ninguém duvida(2).
Chama-se Manuel do Espírito Santo e nasceu em Capela, pequena cidade do interior
sergipano. O apelido vem de um cantador que ele admira muito, um cego da Paraíba
cujos versos correm mundo em livrinhos de cordel. Zé Pretinho andou por mares de
todo o Brasil, quando estava na Escola de Aprendizes de Marinheiro. Um dia, uma
hérnia estrangulada obrigou-o a baixar ao hospital no Rio. Operado, passou algum
tempo internado, convalescendo. Descobriu então que gostava mais da terra do que
do mar. E desertou. Atravessou quase dois anos se escondendo, até que uma briga
de botequim, em 1929, acabou com a clandestinidade: veio a polícia, prendeu-o,
constatou
que era desertor e mandou-o de volta à Marinha, desta vez para cumprir pena. Um
ano depois, com a anistia dada por Getúlio Vargas aos militares presos,
desertores
inclusive, ganhou liberdade. E passou a viver de samba e carteado.
Em 1934, Zé Pretinho pode ser um exímio manuseador de baralhos, mas como
sambista ainda é principiante. Fez uma ou outra coisa que andou mostrando sem
sucesso para
gente do meio musical. Sua amizade com Noel começou de encontros casuais em
botequins da Praça Tiradentes. E não por causa de samba. Noel ouviu falar das
façanhas
de Zé Pretinho, de sua amizade com o temível Porela, do Salgueiro, ou com gente
ainda mais assustadora, como o desassombrado Saturnino que tantos juram de morte
(é cheio de ironias o mundo dos valentes, pois Saturnino, a quem as pessoas
temem só de olhar, acabará morrendo pelas mãos de
289
um pacato que por causa de mulher lhe dará dois tiros pelas costas num botequim
da Rua Comandante Maurity). Noel gosta de ouvir essas histórias, mesmo as mais
sangrentas.
Como o susto que Zé Pretinho passou com Brancura, este pedindo emprestada a
chave do quarto em que ele morava, numa casa de cômodos da Rua Moncorvo Filho.
Zé Pretinho
avisou:
- Vê lá quem tu vai levarpro meu quarto, ô Sylvio.
- Fica sossegado, Zé. É moça distinta.
Tarde da noite, ao voltar pra casa, Zé Pretinho viu uma multidão à porta do
prédio. Alguém foi logo avisando:
- Foi no teu quarto, Pretinho.
A moça distinta que Brancura levara para lá estava enrolada no lençol de Zé
Pretinho, ensangüentada, navalhadas pelo corpo. Brancura é mau, doido, sempre
sentindo
prazer em fazer sangrar mulheres. Zé Pretinho cortou um dobrado para esclarecer
ao chefe de polícia, Martim Vidal, que não acontecera nada de mal:
- A moça fez um aborto, seu Martim. É amiga minha.
Zé Pretinho e Noel ficam amigos,
vêem-se com freqüência. Quando Noel lhe diz que está com vontade de tirar
Lindaura da casa do Mangue, é Zé Pretinho quem lhe consegue um quarto barato num
velho
sobrado da Rua do Acre. Chega a ajudá-los na mudança, levando para lá o pouco
que o casal tem.
Brancura não é o único que vive usando a navalha pelo prazer sádico de ver o
sangue jorrar. Na galeria dos homens maus da malandragem carioca,
Osvaldo Vasquez, o Baiaco, também ocupa lugar destacado. Não é um valente. Não é
respeitado como verdadeiro malandro, assim como Saturnino. Sua fama deve-se não
à coragem, mas à covardia. Não a grandes façanhas, mas a grandes maldades. Se
Brancura gosta de cortar gente, Baiaco vai mais além: faz sofrer pessoas e
animais.
Muitos já o viram segurar cães e gatos pelo rabo e abrir-lhes o ventre, de uma
ponta a outra, a golpes de navalha. Ou então cobrir de jornais encharcados de
álcool
mendigos que dormem na calçada para em seguida atirar
em cima um fósforo aceso. Diverte-se vendo os pobres coitados correndo com o
corpo em chamas.
Durante algum tempo, por uma estranha atração ou por necessidade de proteção (ou
talvez por ambas), Noel torna-se companheiro de andanças de Baiaco. Sabe que é
ladrão
de samba, que arranca parcerias à custa de ameaças, que se junta a Benedicto
Lacerda e a outros para transformar a inspiração alheia em composição "sua".
Baiaco
costuma ir com Benedicto aos botequins do Mangue. Entra, Benedicto fica do lado
de fora. Baiaco vai puxando conversa, começa a falar de samba, vai sabendo se o
eventual
interlocutor também compõe. Caso afirmativo, pede que lhe cante o que tem de
melhor. O outro canta. Baiaco, então, faz sinal para Benedicto, que entra no
botequim
e se senta na mesa ao lado.
- Repete este samba mais uma vez - diz Baiaco.
E enquanto o samba é repetido, Benedicto o vai passando para a pauta. Finda a
operação, Baiaco finge-se encolerizado.
- Quer dizer, seu sem-vergonha, que este samba é seu? Pois fique sabendo que eu
e o Benedicto Lacerda fizemos ele há muito tempo.
Benedicto, que saíra novamente, simula estar passando ali por acaso. Baiaco o
chama.
- Benedicto, canta pra este salafrário o samba que a gente fez outro dia.
Benedicto tira a pauta do bolso e, para surpresa dos presentes, vai cantar
exatamente o samba que acabaram de ouvir em primeira audição.
- Primeira audição coisa nenhuma, seu
290
ladrão de música!
E quem é que vai desmentir Baiaco? Não Noel. Que sequer se atreve a insinuar o
que todo o mundo sabe: Arrasta a Sandália, sucesso no carnaval de 1933 na voz de
Antônio
Moreira da Silva, não é de Baiaco nem de seu parceiro Aurélio Gomes, mas de um
terceiro - como se chama? - a quem os dois passaram para trás.
A amizade com Baiaco, ainda que curta, vai custar a Noel muitas reprimendas de
amigos e até mesmo antipatias que jamais serão superadas. Conta-se que algumas
vezes
Noel presenciou as crueldades de Baiaco, a retalhação de cães, os maltrates aos
mendigos. E nada fez para impedi-lo. Pelo contrário, achou graça. Riu. Ou por
vontade,
ou para agradar o malandro que o protegia.
Não é mesmo muito fácil compreender Noel, o que pensa, o que faz, o que diz, o
que silencia. O contraditório de certos gestos e o imprevisível de certas
reações.
Como a que, neste começo de 1934, vai aparentemente transformá-lo num inimigo
feroz da malandragem. Quem pode compreendê-lo? Alguns de seus melhores amigos
são malandros,
jogadores, valentes, contraventores, desocupados, homens maus, gente que a
polícia caça pela cidade. Indivíduos armados de navalha ou de cuja cintura
costuma emergir,
desafiadora, a coronha de um revólver. É amigo de Saturnino, aceita favores de
Germano Augusto e Kid Pepe, faz camaradagem com Zé Pretinho, ri das malvadezas
de
Baiaco. Gosta de ouvir histórias trespassadas de valentias, brigas, desforras,
tiros, navalhadas, mortes. O próprio Noel fez e ainda fará sambas falando de
malandragem
e malandro. E no entanto - quem pode compreendê-lo? - vai implicar com a
filosofia contida em Lenço no Pescoço, samba lançado magistralmente por Sílvio
Caldas em
fins do ano passado.
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserè
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção.
Um excelente samba de autoria algo complicada, o selo do disco creditando-o a um
tal de Mário Santoro, enquanto o pessoal da Favela diz que um malandreco, ruço,
cheio de tatuagens, comprou-o não se sabe de quem. Mas parece que o autor,
mesmo, é outro malandreco: Wilson Baptista. Como Zé Pretinho gosta de dizer, é
como do
Sol para a Lua a diferença entre o malandro e o malandreco. Este não tem a
dimensão e a importância daquele, é aprendiz, treina mas não joga.
- O mais que consegue é bater palma pra malandro.
Wilson Baptista é um malandreco. Mas só por enquanto. De todos esses que estão
por aí - para citar apenas os que fazem da malandragem profissão de fé - é o
mais
talentoso em matéria de samba. Nem Zé Pretinho, nem Baiaco ou Brancura, nem
Germano ou Kid Pepe, nenhum desses, enfim, tem o seu dom de brincar com o ritmo
e a melodia
como fez com Lenço no Pescoço. Todos aqueles, de uma forma ou de outra,
comerciam samba. E geralmente compram. Wilson os vende. E às dezenas. Tem apenas
vinte anos,
veio de Campos aos dezesseis e desde então arrasta seus tamancos pelo submundo
carioca. Mas costuma dizer, peito estufado: "Ainda vou ser algum troço na vida."
Teve
muitas ocupações, de acendedor de lampião a ajudante de contra-regra no Teatro
Recreio, função que pelo menos o aproximou do meio artístico. Porque Wilson quer
ser
é artista, fazer e cantar samba, trabalhar no rádio e no teatro. Enquanto
batalha por isso, é um pouco de tudo, jogador, esparro, descuidista,
atravessador, garoto
de recado em rendevous. Sua instabilidade profissional, somada a uma
indissimulável vocação para a marginalidade, levou-o a ser, entre outras coisas,
uma espécie
de office boy dos afamados irmãos Meira, expulsos de São Paulo depois de
repetidas trapalhadas, hoje radicados no Rio, onde seus negócios se ampliam da
exploração
do lenocínio ao tráfico de drogas. Importantes nomes da música popular serão
seus clientes, entre eles o próprio Wilson, sempre com uma soruma no bolso.
Ter orgulho de ser vadio, no seu caso, não é apenas maneira de dizer
transformada em letra de samba: é orgulho mesmo. Várias entradas na polícia -
das quais fala
como um piloto das suas horas de vôo - é evitado pelo pessoal do Nice. Nem todos
o tratam de igual para igual, há até os que temem se comprometer em sua
companhia.
Mas ele não se importa. Pisando macio, cheio de gingas e gestos, o cigarro no
canto da boca, o olhar de esguelha, e gíria sussurrada em forma de música:
- Tem um forra-tripa aí, amizade?
291
Vive pedindo, não só um forra-tripa, isto é, que alguém lhe pague uma refeição,
mas também dinheiro para isso ou aquilo, sempre pouco, dez, vinte mil réis.
Depois,
diz baixinho:
- Te juro que um dia Deus ajusta conta por mim, amizade.
Se o outro é de samba, Wilson não pede, oferece:
- Quer me comprar um samba, ilustríssimo? Pode escolher: primeira ou segunda
parte. Se precisar, as duas.
Até Lenço no Pescoço ser gravado por Sílvio Caldas, Wilson Baptista não fez
muito sucesso. Mas teve seus sambas incluídos nos repertórios de Patrício
Teixeira, Almirante,
João Petra de Barros, Murilo Caldas e Francisco Alves. Noel Rosa conhece-o
dessas noites vagabundas da Lapa, passadas entre copos de cerveja e mulheres
cansadas.
E é para ele , Wilson, ou melhor, para rebater verso por verso o que está dito
em Lenço no Pescoço, que Noel escreve Rapaz Folgado.
Quem pode compreendê-lo? Como explicar que o moço permanentemente seduzido pelos
encantos da malandragem tenha se tornado, de uma hora para a outra, um
antimalandro,
um crítico do tipo de vida que levam seus amigos Saturnino, Baiaco, Zé Pretinho,
Germano? Interpretações futuras - e simplistas - nos darão conta de um Noel Rosa
repentinamente preocupado em mudar a imagem do sambista, tornar bem-comportados
os temas da música popular, desempenhar papel moralizador. Nada mais apressado.
Uma
leitura atenta da letra de Rapaz Folgado deixa claro que a estocada de Noel tem
um alvo pessoal e não geral, é de um malandro específico que ele fala e não da
malandragem.
Isto é, do malandro Wilson Baptista, que os verdadeiros bambas preferem chamar
de malandreco. Mas um malandreco que tempos atrás levou a melhor sobre Noel na
disputa
por uma morena
da Lapa. Noel com todos os seus sambas e sua fama perdendo uma batalha amorosa
para o mulato cheio de manha que é Wilson. Não se esqueceu disso. E agora, na
primeira
oportunidade, no primeiro sucesso do outro, tenta ir à forra(3). Uma forra que
Wilson Baptista não poderá deixar sem resposta. Porque os versos foram muito
claramente
dirigidos ao seu samba, à sua pessoa. E porque uma briguinha musical com Noel
Rosa é uma forma de ganhar evidência:
compositores que anônimos continuarão. Bem pode ser este o caso de Se a Sorte Me
Ajudar, que Noel praticamente refaz para ele.
Se a sorte me ajudar
Eu vou te abandonar
Vou mudar de profissão
Porque a palavra malandragem
Só nos trouxe desvantagem
E você não vai dizer que não.
Quem faz seus versos
E no morro faz visagem
Leva sempre desvantagem
Dorme sempre no distrito
Entretanto quem é rico
E faz samba na Avenida
Quando abusa da bebida
Todo mundo acha bonito.
Antigamente, o folgado era cotado
E era bem considerado
Ia ao baile de casaca
Hoje em dia por despeito
Ele é sempre perseguido
E é mal compreendido
Pela própria parte fraca.
Aqui, em vez de combater a malandragem (e por que o faria ?), Noel registra uma
nova realidade. A decadência do mito do malandro, injustiçado, incompreendido,
malvisto
pela própria "parte fraca", isto é, a população pobre que tantas vezes ele
protegeu e que agora o rejeita.
A Zé Pretinho Noel é ainda mais grato, Um amigo que o defendeu em muitas
oportunidades, não só de Kid Pepe, mas de muito malandro forte que ele, atiçado
pelo álcool,
andou provocando. Além do mais, foi quem conseguiu um quarto barato para
Lindaura ficar. Noel na certa se lembra disso quando o amigo lhe aparece com um
pedaço de
samba que diz chamar-se Tenho Raiva de Quem Sabe:
De quebra - e para ser grato a dois de uma só vez - Noel vai presentear Germano
Augusto e Zé Pretinho com um terceiro samba, Não Foi Por Amor. Um primor. Sem
repetições
melódicas, a primeira e a segunda quase que fundidas como se fossem uma só. Uma
espécie de cavatina em forma de samba.
Em nenhuma das três composições Noel aparecerá como autor. Diz a Zé Pretinho e
Germano que é presente, nada mais. Por isso, não quer participação alguma, nem
pagamento
de direitos autorais, nem crédito em disco ou partitura. E ainda fará mais:
sempre que puder, cantará os sambas no rádio para divulgá-los.
É pela voz de Noel, num programa de rádio em princípios de março, que Kid Pepe
toma conhecimento de Tenho Raiva de Quem Sabe. Ao ouvir o locutor anunciá-lo
como
de Zé Pretinho, Kid o procura. Diz que Mário Reis está atrás de alguma coisa
para gravar no outro lado de Não Sei Que Mal Eu Fiz, de Heitor dos Prazeres, e
que o
encarregou de procurar por ele. Será que Pretinho deixa mostrar o samba ao
Mário? E se o Mário gostar, poderia gravar no mesmo disco do samba do Heitor?
- É claro - responde Zé Pretinho todo animado.
Kid Pepe apresenta a música a Mário Reis, este gosta e grava-a na Victor a 25 de
abril. Noel não está no Rio por esta época, mas viajando
294
com Benedicto Lacerda e sua turma numa série de espetáculos em cinemas e teatros
do norte fluminense e Espírito Santo (ver capítulo 30). Vai demorar mais do que
se esperava, quase dois meses. De volta, quando o disco lhe cai nas mãos,
constata perplexo que a autoria do samba é atribuída a Zé Pretinho e Kid Pepe.
Fica sem
entender. Como terá o Kid entrado nessa história? Logo o Kid Pepe! Não sabe que
este, sem pedir permissão a Zé Pretinho, mas cobrando em termos de autoria o
favor
de ter servido de intermediário junto a Mário Reis, colocou por conta própria
seu nome no disco e na partitura. Noel fica indignado. Não com
Kid Pepe, mas com Zé Pretinho. Pela suposta traição.
O próximo encontro dos dois vai acontecer na Rádio Cruzeiro do Sul, na Rua
Mariz de Barros. Zé Pretinho já está lá. Ele e Manuel Ferreira no meio de outros
compositores, cantores, locutores, pessoal técnico. Sem saber da zanga de Noel,
Zé Pretinho o cumprimenta:
- Que bom que você esta aqui, Noel! Queria que conhecesse um samba que ojayme
Vogeler vai cantar daqui a pouco, Amar é Muito Bom. Meu e do compadre Manuel
Ferreira.
- Não vou corrigir mais nada pra você, Pretinho.
Noel segue em frente e Zé Pretinho fica sem entender coisa alguma. Corrigir o
quê? O samba está pronto, entregue a Jayme Vogeler para cantar no programa desta
noite.
Que história é essa de corrigir?
- Poxa, Pretinho, o Noel não foi nada delicado com a gente - comenta Manuel
Ferreira.
Zé Pretinho sai de onde está e vai ao encontro de Noel.
- Olha, Noel...
- Não quero conversa contigo, Pretinho! - diz virando-lhe as costas mais uma
vez, agora entrando no estúdio para cantar o seu número.
Zé Pretinho está espantado. Espera que Noel cante, põe-se de pé à porta do
estúdio. Estranho, Noel nao é de falar assim com ninguém, muito menos com ele. E
logo
na frente dos outros, todo o mundo testemunhando. Zé Pretinho interpela Noel
assim que o número acaba.
- Eu já te disse que não quero conversa! Zé Pretinho fica furioso, levanta o
braço,
desfere um tapa que vai atirar Noel longe, quase no colo de Odette Amaral. Uns
vão segurar Zé Pretinho, temendo que ele não pare por aqui. Outros acodem Noel.
Só
depois o agressor saberá o motivo da zanga do agredido, a intromissão indevida
de Kid Pepe num samba que ele lhe dera de presente. Logo Kid Pepe! Mas será
tarde.
Noel nunca mais vai querer falar com ele. A não ser através de um samba, soberba
crônica da vida carioca, do mundo dos malandros,
do sinal dos tempos, o conselho de Zé Pretinho lembrado ao próprio Zé Pretinho,
o revólver como forma de impor respeito. O velho malandro - o da rasteira, o da
habilidade
com o aço, o da ginga de corpo e da camisa de seda - começa a sair de cena. Um
revólver pode muito mais. A morte do imortal Saturnino, pelas mãos de um fraco,
será
prova disso. É do que fala Século do Progresso, o recado de Noel a Zé
Pretinho(7):
NOTAS
1. Costumava-se chamar de Serrador ao "bairro" que hoje conhecemos como
Cinelândia.
2. Todas as passagens deste capítulo relacionadas a Zé Pretinho foram por ele
mesmo contadas aos autores em dois longos depoimentos em sua casa nos dias 29 de
janeiro
e 3 de fevereiro de 1981.
3. A interpretação simplista é a mais difundida, tendo como defensores, entre
outros, Jacy Pacheco e Almirante. Diz este em No Tempo de Noel Rosa, segunda
edição
(página 146), que Noel teria sido "movido por louvável interesse pela
regeneração dos temas poéticos da música popular". Algo que não combina muito
com o boêmio
que vivia intensamente, naquele 1934, o seu lado "marginal" entre malandros e
outros tipos de personagens que, antes de regenerar, preferia freqüentar. Rapaz
Folgado
é único na obra de Noel. Nunca havia estocado alguém antes e nunca o faria
depois. Não era de provocar. A versão da batalha amorosa - que o próprio Wilson
contou
a alguns amigos (entre eles Bruno Ferreira Gomes, que a incluiu em seu livro
Wilson Baptista e Sua Época, página 54) - faz mais sentido. E, como veremos, é
apenas
a primeira das disputas que os dois travarão por uma mesma mulher.
4. O samba sequer seria lançado no rádio, Wilson Baptista limitando-se a cantá-
lo aqui e ali, apenas para o pessoal do meio artístico. Só em 1956, interpretado
por Roberto Paiva, teria sua primeira gravação, na Odeon.
5. Almirante conta este episódio na primeira edição de No Tempo de Noel Rosa
(página 118), mas omite-o na segunda: Kid Pepe, bêbado, golpeou o no estômago
com um
canivete, cuja ponta, por sorte, foi obstada por um grande botão de osso de seu
paletó.
6. Roberto Martins, em depoimento aos autores, recorda-se perfeitamente deste
fato, contado também por Zé Pretinho: "Kid Pepe tinha respeito a gente, só
ameaçava
os mais fracos..."
7. Almirante nos dá três diferentes versões do episódio que teria levado Noel a
fazer Século do Progresso. Na primeira, na Revista da Semana de 20 de dezembro
de
1952 (página 72), não cita o nome do compositor que agrediu Noel na Rádio
Cruzeiro do Sul e que "dele se afastara, covardemente, daí em diante, ao sabê-lo
munido
de uma arma, na justa precaução contra possíveis traições do desafeto que nem no
próprio físico avantajado confiava". Almirante supunha então tratar-se de Kid
Pepe,
Na segunda, na primeira edição de No Tempo de Noel Rosa (páginas 116-118),
atribui a indignação de Noel ao fato de ter o nome de Zé Pretinho surgido como
parceiro
do samba cuja letra Kid Pepe lhe arrancara "praticamente à força". Ao interpelar
Zé Pretinho, este o agredira. Para se defender,
Noel teria recorrido não a uma arma, mas à presença no estúdio da Rádio Cruzeiro
do Sul de um investigador "amigo dos diretores da emissora". Na terceira versão,
na segunda edição do mesmo livro (página 142), desaparecem a arma e o
investigador. E Noel teria se zangado porque, depois de ter feito o samba com
Kid Pepe e Zé
Pretinho, estes o lançaram sem lhe citar o nome. Três histórias diferentes,
nenhuma delas correta. Por que iria Noel Rosa se irritar tanto com a omissão de
seu nome
num samba menor como Tenho Raiva de Quem Sabe, ele que nunca se importou em ser
escondido por parceiros bem mais importantes e em obras bem melhores e de maior
sucesso?
Os autores ficam com esta quarta versão, que lhes foi contada por Manuel
Ferreira e o próprio Zé Pretinho. A mesma, por sinal, que o último relatou a
Almirante,
mas só depois que este já havia divulgado as outras três.
RUMO AO NORTE
Capítulo 30
e pede que o cômico Coringa, além das pia das e emboladas, ajude com seu violão
no acompanhamento. Na parte humorística, aproveitando que Coringa e seu
companheiro
de dupla, Grijó Sobrinho, vão levar as mulheres, as duas serão utilizadas em
sketches. Por fim, os cantores. Foi de Cantuária a sugestão de convidarem Itamar
de
Souza, morena bonita, voz afinada, mas quase desconhecida, que por estar atrás
de uma chance não fará exigências maiores. A indicação do cantor é de Benedicto:
-
Que tal o Noel Rosa?
Noel e Benedicto Lacerda conhecem-se há tempos. Antes de tornarem-se
profissionais, fizeram serenatas juntos em Vila Isabel. A amizade cresceu quando
Noel começou
a freqüentar o Estácio e mais ainda quando, ambos decididos a viver de música,
passaram a se encontrar em programas de rádio, gravações, espetáculos em cinema
e
teatro. No dia 17 de janeiro, os dois participaram de um recital beneficente do
Sindicato Brasileiro de Artistas de Rádio, no mesmo programa da revista Eva
Querida,
no Recreio. Eles, Almirante, Sílvio Caldas, Manezinho Araújo, Ary Barroso,
Custódio Mesquita, Jorge Murad, Nono, Renato Murce, João Petra de Barros, Sylvio
Vieira,
Sylvia de Toledo e o conjunto do Sindicato dirigido por Pereira Filho. Nestas
ocasiões, Noel canta não só sucessos como trabalhos que pretende tornar
conhecidos.
É o caso de Para Atender a Pedido:
Por quê? Não há a menor garantia de que ganhará dinheiro lá fora. Nem de que a
jornada o fará mais conhecido em outros pontos do país. Na verdade, sequer sabe
ao
certo aonde vão, Cantuária seguindo na frente para fazer contatos na próxima
cidade incluída no roteiro. E mesmo este roteiro é uma abstração. Está decidido
que
principiarão por Campos, mas por onde acabarão? E por quais lugares passarão?
Noel, contudo, não parece dar importância a essas questões. Quem sabe não vê na
viagem
boa oportunidade para afastar-se do Rio por longo tempo, de estar tanto quanto
possível livre dos problemas com Lindaura? A ausência do Rio poderá trazer-lhe
apoquentações,
pois é justamente durante a viagem que se dará aquela transação entre Zé
Pretinho, Kid Pepe e Mário Reis em torno de Tenho Raiva de Quem Sabe. Mas como
adivinharia?
No dia 15 de março, quinta-feira, embarcam todos no trem noturno para Campos.
Pouco antes Noel limitou-se a dizer para Lindaura: - Vou ali na esquina comprar
cigarro. E partiu rumo ao norte. Ele e uma troupe de dez que se vão juntar ao
empresário
Cantuária (por enquanto ele prefere ser chamado de "secretário", pois suas
tarefas são arranjar hotel, acertar detalhes com os cinemas e teatros locais,
cuidar da
bilheteria, proceder à partilha dos eventuais ganhos, coisas mais burocráticas
do que empresariais). Os dez são aqueles que Cantuária e Benedicto haviam
combinado:
os quatro do Gente do Morro (Benedicto, Canhoto, Russo e Macrino), mais Coringa
e senhora, Grijó Sobrinho e senhora, Itamar de Souza e Noel.
Em Campos, Cantuária informa-lhes de saída que não foi possível programar
espetáculos nas principais casas da cidade: estavam todas sem data. O remédio
foi procurar
o Antônio de Mattos, gerente do Coliseu dos Recreios, e acertar com ele uma
série de funções de sábado, 17, a sexta-feira, 24, incluindo três ou quatro
matinês.
299
Noel, com aquele jeito todo seu de não dizer claramente quando não gosta de
alguma coisa (nem precisava), perguntou a Vadico se podia fazer uma letra
inteiramente
nova. O parceiro concordou, nascendo assim o novo samba que só terá sua primeira
gravação daqui a muito tempo(3).
Gastão Meirelles de Freitas Pacheco trabalha muito e ganha pouco. Mal tem tempo
para sorrir. Noel esbarra com seu ar fechado e o desmorona numa frase:
- Primo, enquanto a gente estiver aqui você vai ter que deixar sua caturrice de
lado. Nós vamos invadir sua casa. Por nossa conta.
E Gente do Morro de fato invade o lar dos Pachecos. Com música e alegria, no
tempo em que estiverem em Campos, promovendo ali alguns saraus.
Todas as madrugadas são madrugadas para Noel. No Rio de Janeiro ou em Campos.
Aqui, de noite, pouco importa a que horas tenha começado o espetáculo, quanto
tenha
durado, se está ou não cansado, seu rumo nunca é o do Hotel Gaspar, na Praça São
Salvador, onde estão hospedados. Não antes das cinco, seis da manhã. Até Russo,
boêmio incorrigível, desses que vivem batendo recordes de noites em claro na
Lapa e outras plagas, tem dificuldades em acompanhar o ritmo do amigo.
Sarau campista
"Nossa casa se enche de moças e rapazes, de intelectuais, músicos, boêmios,
gente do povo. Caras conhecidas. Caras estranhas. Os penetras. Eram todos de
casa, naquela
noite. lá para as 20 horas chegam dois barris de chope. Na sala de visitas Célia
toca piano e a dança tem início. Noel chega com Benedicto Lacerda e os demais
elementos
do Gente do Morro. Entra em ação a flauta mágica, o pandeiro do Russo. O baile
se anima. Pouco depois, a sala vai se esvaziando, enquanto a copa está
intransitável.
Por que motivo o pessoal se desloca da sala para o interior da casa? Ah! O Noel
está junto ao barril de chope, pegado num tremendo desafio com o poeta
Claudinier
Martins. Entáo podemos apreciar versos saborosíssimos, que são improvisados
pelos dois artistas. Forma-se a roda. Em seguida, as moças puxam Noel para a
sala de
visitas e Obrigam-no a empunhar o violão. Pedem que ele faça uma quadrinha para
cada uma delas. Noel forma um perfumado círculo feminino. Entra na roda. Canta.
Aponta
para os brincos de uma e improvisa versos de bela feitura. Sobre os cabelos
louros de outra, os olhos negros daquela outra, faz uma segura demonstração de
seu talento
poético, monopolizando atenções e aplausos. Sua agilidade mental é espantosa. As
moças pedem bis, querem copiar os versos que ele improvisa, guardar de lembrança
os galanteios.
De madrugada, quando a festa terminou, a rapaziada acompanhou Noel na serenata
que se seguiu, até o sol iluminar a planície..."
Jacy Pacheco
Noel Rosa e Sua Época
Quando não está no Félix, pode ser encontrado na Pensão do Badu, lugar que não
deve sequer ser mencionado por gente de família, quanto mais freqüentado. É ali
que
conhece Alagoano. É ali também que vai conhecer Isaura, uma das melhores coisas
que lhe acontecem nesta viagem. Alagoano é um moreno alto, magro, cara de mau,
amigo
de gente influente do lugar. Mais que isso, é um desses muitos capangas que os
coronéis do interior têm a seu serviço. Só anda armado e um de seus prazeres é
provocar
gente da polícia, espécie de prova de fogo em que ele, costas largas, acaba
sempre levando a melhor. Alagoano fica amigo de Noel. E vai esperá-lo todas as
noites
à saída do Politeama. Benedicto, Russo, Canhoto, ninguém mais do grupo participa
desses programas que se prolongam até de manhã. Russo só vai uma vez, dança na
Pensão
do Badu, canta, bebe e com o sol surgindo acompanha Noel em seu passeio diário
até o Mercado Municipal, onde ostras frescas com limão são o café da manhã do
amigo.
- Tomo isso todos os dias. É o que me dá forças - explica Noel.
Canhoto também só vai uma vez. Para nunca mais. Passam pelo cabaré, bebem, saem
para tomar ar na Praça Independência,
304
Pensão São Luís. Mas cadê dinheiro? A notícia espalha-se pela cidade: os
simpáticos músicos do Gente do Morro precisam de ajuda. Onde está a tão
decantada hospitalidade
capixaba? Um grupo de pessoas interessadas em música popular inicia um movimento
destinado a reabilitar Benedicto Lacerda e seus companheiros. À frente deste
movimento,
descendente do barão, de família ilustre, está Alcebíades Monjardim(11), que se
dispõe a organizar uma festa no Hotel Imperial, a preços salgados, naturalmente
mais
voltados para a sociedade local. Todo o dinheiro arrecadado será para os
músicos. A imprensa também ajuda. E na noite de 18 de abril, apesar do temporal,
faz-se
o espetáculo, Benedicto executando suas valsas e choros, Noel cantando seus
sambas, Coringa mostrando suas emboladas, Grijó as suas anedotas. Sucesso.
No dia seguinte, a caravana se divide em duas. Benedicto Lacerda (que esquecerá
o nome Gente do Morro para sempre, passando a dar o seu próprio ao regional que
lidera),
Canhoto, João Cantuária, Macrino e Itamar voltam para o Rio. Noel, Russo, Grijó,
Coringa e respectivas mulheres tentam ganhar mais algum trocado em cidades
próximas.
Fazem um espetáculo em Cachoeiro de Itapemirim, outro em Colatina. Ganham apenas
para as despesas e voltam a Vitória. Em pouco tempo, o único vestígio que
restará
da passagem por aqui de um certo conjunto Gente do Morro serão Noel Rosa e
Doidinho, cada qual com sua mulher na Pensão do Badu. Casa, comida e amor de
graça.
Tudo como no seu samba Eu Não Preciso Mais do Seu Amor:
Noel e Doidinho acham melhor continuar por aqui, cada qual com seu par.
Isaura. Pouco se saberá dela daqui a
alguns anos. De Alagoano ainda se falará muito, sobretudo quando, poucos meses
depois daquela prosaica cena na Praça Independência, ele morrer anavalhado numa
feia
briga de botequim. Mas de Isaura, nada. Paixão que Noel alimentou por pouco
tempo, pois Martha, ao saber no Rio que o filho não quer mais voltar - e que
deixou desamparada
a pobre Lindaura - não pensa duas vezes: toma um trem para Vitória, entra
decidida na Pensão do Badu, fecha os olhos para o que não quer ver e manda Noel
fazer as
malas.
A falta de juízo, deve ter pensado, tem limites. E por mais liberdade que
arranque da vida, Noel sabe que a mãe está certa.
306
NOTAS
1. Folha do Comércio, Campos, 17 de março de 1934.
2. Monitor Campista, 20 de março de 1934.
3. O samba, escrito em fins de 1933, começo de 1934, só seria gravado em 1954
por Ana Cristina com o conjunto de Luís Bittencourt, no antigo selo Sinter. De
volta
de uma longa permanência nos Estados Unidos, só então Vadico o desarquivou.
4. Folha do Comércio, 25 de março de 1934.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Diz Canhoto em depoimento aos autores, a 13 de março de 1981: "As pessoas
nos perguntavam nas ruas se a gente tocava tamanco, como os sambistas de morro."
9. Cantada pelo saxofonista José Miranda Pinto, o Coruja, ajacy Pacheco, e
transcrita por este em seu livro O Cantor da Vila (página 113).
10. Atual Praça Costa Pereira.
11. Pai de Maysa Figueira Monjardim, mais tarde a cantora e compositora
Maysa Matarazzo.
307
Capítulo 31
Vejo amanhecer,
Vejo anoitecer
E não me sais do pensamento, ó mulher!
Vou para o trabalho,
Passo em tua porta,
Me metes o malho
Mas que bem me importa!
De esperar a minha amada
A minh'alma não se cansa
Pois até quem não tem nada
311
Ou não tão modestas como Contraste, de melodia ágil e letra carregada de jogos
de palavras e contraposições típicos de Noel:
É cruel,
é cruel este contraste
Que me faz ficar tão triste:
Vais sair por onde entraste,
Descendo por onde subiste!
Foi com muito sacrifício
Que eu te dei um barracão:
O dia do benefício
É véspera da ingratidão.
Tu tens tanta falsidade,
Já vendeste tanta gente,
Que eu creio ser verdade
Que Judas foi teu parente!
Abusaste do meu nome,
Deste sempre cola errada,
Mas tu vais morrer de fome
Com tua conversa fiada.
Vou fazer tua desgraça,
Hei de ser teu ininigo:
Acabando com a cachaça,
Também eu acabo contigo!
Quando eu mandar no jogo,
Hás de ter entrada franca,
Jogo fora o pau-de-fogo
E tu não abafas a banca.
Começaste me humilhando,
Me fizeste de capacho,
Mas agora estou mandando
E tu já ficaste por baixo!
Ceei sabe quem é Noel, de sua fama, do quanto essas pessoas que lotam o Apollo o
admiram. Mas nunca ouvira outro samba dele que não fosse Com Que Roupa? e O
Orvalho
Vem Caindo. A mãe queria que se tornasse pianista clássica; de modo que entre
ela e a música popular sempre houve certa distância. Noel termina seus números e
começa
a circular por entre as mesas. Ceei não o conhece. Muito menos ele a ela. Até
que seus olhares se encontram.
Ele não pode deixar de notar que a moça de verde-claro sentada mais adiante é
muito diferente das outras mulheres daqui. Não só pela idade. Ou pelo fato de
trajar
um costume em vez de soirée. São suas maneiras - a delicadeza, o recato, a
curiosa mistura de timidez e embevecimento impossível de encontrar em qualquer
outra das
meninas do Cunha - que parecem atraí-lo. Há muito tempo freqüenta cabarés. São
todos iguais. Como pouca diferença existe entre uma mulher e outra, a mesma
aparência,
os mesmos gestos, o mesmo modo de falar, os mesmos truques. O cabaré é um teatro
em permanente função. Dramas e comédias são encenados aqui todas as noites. É
como
se estivessem num palco, representando, que homens e mulheres se relacionam
neste lugar. Mas a moça de verde-claro não parece fazer parte do cenário.
- Trabalha aqui?
- Posso dizer que sim.
Os dois conversam, falam sobre trivialidades, comentam a decoração do Apollo, a
animação da festa, a qualidade da bebida. Ao contrário do que irão sugerir os
versos
que daqui a algum tempo Noel escreverá inspirado neste primeiro encontro, Ceei
não fuma. Não ainda. Nem entorna champanhe no seu soirée (na verdade, sequer
veste
um). Mas realmente os dois dançam um samba e trocam um tango por uma palestra.
Samba que Noel explica gostar de fazer e cantar, mas não de dançar. Este nunca
foi
o seu forte, preferindo os passos óbvios à ousadia de improvisar uma volta, um
enfeite, uma queda de corpo. Como ele mesmo diz, dança samba à moda paulista, na
base
do "vai no liso". Quanto ao tango, Ceei já havia avisado ao Cunha que não sabia
dançar. Se ela não sabe, o que dirá ele?
Dançam, palestram, fazem-se perguntas. Noel está deslumbrado com Ceei, ela está
deslumbrada com o cabaré. Já passa das quatro da manhã de domingo quando a festa
termina. Ele se oferece para levá-la em casa.
- Obrigada, mas estou com amigos.
- Quer dizer que você trabalha no Apollo?
- Sim.
- Então eu te vejo por aqui amanhã ou depois.
A vida de Ceei vai mesmo mudar - e muito - a partir desta noite de 23 de junho
de 1934. Para começar, a tímida caixa de um restaurante da Rua do Rosário dará
lugar
a uma fulgurante danseuse do Cabaré Apollo. O costume verde-claro será guardado
para sempre, o chapeuzinho preto também. As roupas baratas que trouxe de
Frigurgo
e as poucas que comprou no Rio com suas minguadas economias serão substituídas
por elegantes soirées que em pouco tempo ocuparão duas divisões inteiras de seu
guarda-roupa.
O Cunha é muito exigente
312
Além do trabalho, o amor. Está apaixonado por Ceei, vive atrás dela, vai
esperá-la todas as noites à saída do Apollo. Se uma gripe ou
315
Uma madrugada, passando de carro pela esquina de Boulevard com Jorge Rudge,
Paulo Netto de Freitas e seu amigo Renato de Freitas divisam Noel ali parado,
sozinho,
indiferente à chuva e ao frio. O que estará fazendo nesta esquina, imóvel,
distante dos pontos de bonde e ônibus? Paulo pede que Renato freie o carro e dê
uma ré
até a esquina.
- Que é que você está fazendo, Noel? - - pergunta intrigado.
- Esperando que passe por aqui um botequim.
É assim, meio diferente e sempre imprevisível, o Noel Rosa que Ceei conhece e
começa a amar neste 1934. Dado a tiradas engraçadas, mas volta e meia
mergulhando naquelas
fugas a que os amigos de Vila Isabel estão acostumados. Continua tendo pavor de
pessoas desagradáveis, de gente que fala muito e o aborda quando não está
disposto
a conversar. Numa tarde, caminhando com Ceei pela Praça Tiradentes, ouve
gritarem seu nome-.
- Noel! Ô Noel!
Com o canto do olho, identifica do outro lado da rua o Tatuzinho, multifalante
artista de circo e teatro de revistas(2). Finge que não o vê.
- Noel! Noel! - os gritos se fazem ainda mais altos.
Noel olha de um lado para o outro como se a tentar descobrir de onde vem a voz.
Ceei faz menção de mostrar-lhe, mas ele a segura pelo braço.
- Pelo amor de Deus, Ceei. Tatuzinho é boa alma, mas muito chato.
E segue em frente, sempre virando a cabeça para onde o dono da voz não está.
316
Mas, das muitas coisas que vai aprendendo dele, nesses primeiros tempos, uma das
que mais chamam a atenção de Ceei é a sua paixão pelas madrugadas. Às vezes
ficam
acordados até de manhã, caminhando em silêncio pela calçada da Avenida Beira-
Mar. Um dia ele desperta como num susto de uma de suas impenetráveis divagações.
- Ali! Olha ali!
- O quê?-pergunta ela realmente assustada.
- O Sol!
De fato, os primeiros clarões da manhã começam a iluminar a baía, os dois lado a
lado junto à amurada.
- E o que é que tem, Noel?
- Não gosto. Detesto o Sol. Só deveria existir a noite.
NOTAS
1. Durante o tempo de vida de Noel, as atividades profissionais de Ceei se
limitarão ao cabaré, a um breve período como modelo dos alunos da Escola
Nacional de
Belas-Artes e a trabalhos esporádicos como girl em espetáculos de circo e
companhias itinerantes. O teatro, mesmo, virá mais tarde, sua estréia se dando
dois meses
depois da morte de Noel, como uma das dançarinas de Rumo ao Catete, revista
estrelada no Recreio por Aracy Cortes.
2. Tatuzinho, Ary Valdez, se casaria anos depois com a cantora Rlizeth Cardoso.
317
Capítulo 32
A MÃE DA CANTORA DE RÁDIO
É com devoção (...)
Vai cantar meu samba prosa
Numa primeira audição.
De Qualquer Maneira
À muito tempo Nássara não aparecia no Ponto de 100 Réis. Anda ocupado demais,
produzindo caricaturas para jornal, redigindo anúncios para programas de rádio,
fazendo
cursos de desenho na Escola Nacional de Belas-Artes. Neste fim de tarde, indo
pelo Boulevard na direção da casa do amigo Luís de Moura, ouve gritarem seu nome
de
uma das mesas do Café Ponto Chie. Sentado sozinho diante de uma garrafa de
cerveja, cotoco de lápis quase sumindo por entre os dedos, Noel Rosa rabiscava
alguma
coisa quando o viu passar (Nássara não pode deixar de pensar que este cotoco é
no mínimo uma superstiçãozinha, Noel não o trocando por nada, nem mesmo um lápis
novinho,
de desenho, importado, como os que ele usa).
- Está sumido, Nássara - diz Noel apontando-lhe a cadeira.
Nássara se senta. Conta como anda ocupado, o tempo não dando para tudo que tem
de fazer, ele quase não parando em Vila Isabel. Noel mostra-lhe o estribilho de
uma
música em que está trabalhando:
Foi há dois anos, em 1932, que Marília e Noel se conheceram. Desde então, não
mais se viram. Jamais esquecerá a primeira impressão que ele lhe causou,
acompanhando-se
ao violão num de seus sucessos de então: Gago Apaixonado. Em São José dos
Campos, no Sul, em Campos, Muqui, Vitória ou qualquer outro lugar em que se
apresente Noel
Rosa, este samba é e será por muito tempo ainda um número obrigatório.
320
Não só por ser uma de suas melhores produções, das mais identificadas com seu
estilo, mas também porque ninguém a interpreta com tanto sabor, sua figura magra
entrando
no palco, apoiando o pé na cadeira, começando a emitir com a boca defeituosa os
sons prolongados e aflitos do pobre gago:
Mu... mu... mulher
Tu me... me... fi.fi.zeste um estrago
Os apresentadores sempre procuram tirar partido do encanto que Gago Apaixonado,
na interpretação de Noel, desperta nas mais diversas platéias. Entre outras
coisas,
costumam criar um clima de expectativa que tem muito dos velhos truques do
vaudeville. Foi justamente assim no dia em que Noel e Marília Baptista se
conheceram.
Lamartine Babo era o apresentador de uma hora de arte no Grêmio Esportivo 11 de
Junho, no Riachuelo. Coube a ele anunciar as atrações, Gastão Formenti, Pereira
Filho,
Noel Rosa. Na vez deste, apelou para o velho truque:
- Senhoras e senhores! Tenho agora a honra de vos apresentar um excelente
cantor, jovem de muita bossa...
Fez uma pausa, olhou para os lados e baixou o tom de voz:
- ... mas eu pediria a simpatia e a compreensão da seleta platéia para um
detalhe: nosso cantor... nosso cantor cheio de bossa... é um pouco gago. Estou
certo de
que todos saberão relevar qualquer dificuldade.
E aumentando novamente o tom de voz:
- E agora, com os senhores, Noel Rosa!
É evidente que nem todos da platéia engoliram a história de Lamartine. A maioria
conhecia Noel, já tinha ouvido inúmeras vezes Gago Apaixonado. Mesmo assim,
criou-se
o clima dentro do qual Noel brilhou mais uma vez, entre aplausos, gritos,
assobios, gargalhadas, pedidos de bis.
Terminado o número, Noel saiu para uma cerveja. O Grêmio Esportivo 11 de Junho
jactava-se de sua condição de "entidade cultural e recreativa". Costumava
organizar
espetáculos de música e poesia, receber artistas e escritores que se exibiam num
amplo salão ao fundo do qual improvisava-se, sobre um estrado de madeira, o
palco.
Mas nem todos os artistas que se apresentavam ali eram famosos como Lamartine,
Formenti e Noel. Havia, também, cantores e músicos amadores sonhando ainda em
serem
descobertos. Alguns já adultos, outros pouco mais do que crianças, como Marília
Baptista, com apenas quatorze anos naquele 1932.
Era uma mocinha miúda, magra, de cabelos
321
no estilo de Carmem Miranda (que por sinal, na mesma entrevista, é citada por
Noel como "a rainha da marcha", com um reforço exclamativo não desprovido de
ironia:
"longe!"). Em outra entrevista, será mais claro:
"- Que tal essa Aracy?
- Um valor. É nova, mas das melhores"(5) Em outra, mais claro ainda:
- Qual a melhor intérprete de sua música?
- Aracy de Almeida é, na minha opinião, a pessoa que intepreta com exatidão o
que produza."(6)
Seja como for, serão estas as únicas referências que fará abertamente a uma das
duas cantoras. Na intimidade, nem isso. Marília ou Aracy?
Uma coisa é certa: do ponto de vista pessoal, como companhia para o que der e
vier, suas afinidades serão sempre maiores com Aracy. Poderá perder a paciência
quando
chegar a hora de ensinar-lhe suas músicas, ela custando a familiarizar-se com a
melodia, claudicando em certas passagens, tropeçando na letra. Mas tão logo
aprenda
a lição e o trabalho dê lugar ao lazer, Noel se transforma, a impaciência cede
vez
323
a um sorriso, os dois saem para uma boêmia que a bem-comportada Marília - o pai
vigilante acompanhando-a a toda parte, festas, programas de rádio, recitais -
nem
imagina existir.
Noel e Aracy conhecem-se no estúdio da PRB-7, Sociedade Rádio Educadora do
Brasil, na Rua Senador Dantas, 82. A moça pobre, artista intuitiva, teve de
esperar muito
até lhe darem a chance de cantar naquele microfone. Passara a adolescência entre
o coro da igreja e os blocos de rua do Encantado ao Engenho de Dentro. Queria
mesmo
cantar no rádio, tentou várias vezes - sem sucesso - um teste na Rádio
Suburbana. Dizia para si mesma, com aquele seu jeito crítico que nunca perderá:
- Se a Carmem Barbosa pode, por que não eu?
Manuel, um violonista do bairro, gostava da voz dela. Era amigo de
Custódio Mesquita, na época pianista de orquestra, já com conhecimento em várias
estações de rádio. Foi graças a ele que ganhou um contrato na Educadora. A
família,
naturalmente, resistiu. A irmã do pastor Alcides cantando no rádio? Mas Renato
Murce, sempre querendo dar oportunidade aos novos, foi até o Encantado e
convenceu
os Almeidas:
- Eu me responsabilizo por ela.
Na primeira vez que Noel a vê, ela canta um dos últimos sucessos de
Carmem Miranda. Não espera para serem apresentados.
- Você tem jeito. Canta bem. Mas que tal aprender uns sambas novos e deixar pra
lá o repertório de Carmem Miranda?
Na mesma noite, vão à Taberna da Glória, cantam e bebem juntos. Noel apresenta-a
aos malandros seus amigos, ensina-lhe sambas seus, entre os quais Riso de
Criança,
o primeiro que gravará dele. Depois leva-a até a Central para que tome o trem de
volta ao Encantado.
Ficam amigos. Muitas vezes voltarão a beber juntos, na Lapa, no Estácio, nos
botequins da Barão de São Félix. A pedido dele, Aracy vai cantar para suas
meninas no
Mangue ou nas casas ainda mais baratas das imediações da Central. Ela não se
importa. Conhece a vida, não tem os chiquês de Marília, faz o que quer, desde
beber
e fumar até jogar sinuca e cantar para as mulheres do Noel num prostíbulo de
terceira categoria. Ficam realmente amigos, para todas as horas. Inclusive para
que
ela freqüente o chalé, tome com ele uma sopa requentada de feijão no quartinho
dos fundos, aprenda novos sambas. Dona Martha, de início, estranha a
espontaneidade,
o jeito de ser de Aracy.
- Nunca vi uma mulher dizer tanto nome feio.
Muito diferente de Marília.
A sirene soa longa e estridente como se para despertar algum ouvinte
eventualmente sonolento. Em seguida, os acordes vibrantes de Gallito, pasodoble
de Santiago
Lope, completam o sinal de alerta: está no ar o Programa Casé. Todos os
domingos, de meio-dia às seis da tarde, os radiomaníacos do Rio de Janeiro se
grudam aos
seus receptores para acompanharem uma a uma as atrações desse longo e variado
caleidoscópio radiofônico. Um líder absoluto de audiência, desde o primeiro
domingo
em que foi ao ar, a 14 de fevereiro de 1932, até sua última transmissão, dezoito
anos depois, passando por este 1934 em que Noel e Marília se reencontram.
Ademar Casé é um pernambucano empreendedor. É cheio de idéias. De vendedor de
aparelhos de rádio a prazo (um pioneiro neste tipo de negócio), transformou-se
no dono
de um programa que será sempre muito imitado (nas sua pegadas seguirão Renato
Murce, Christovam de Alencar, Eratósthenes Frazão, Waldo Abreu, Paulo Netto de
Freitas,
Gastão Lamounier e tantos outros). Casé teve a coragem - e também nisso é
pioneiro - de comprar um horário da Rádio Philips, cujos estúdios funcionam na
Rua Sacadura
Cabral, 43, perto do Cais do Porto. No começo, um horário de oito à meia-noite
cabendo ao próprio Casé acumular as funções de produtor, agenciador,
selecionador
de artistas, corretor de anúncios e tudo mais que não o obrigasse a ir ao
microfone (sempre teve medo deste milagroso engenho que leva a voz das pessoas a
distâncias
incalculáveis). Mas o programa, depois de dificuldades iniciais superadas pela
ajuda de patrocinadores importantes (entre eles F.M. Moreira, o Laboratório
Queirós
e, mais tarde, o Dragão), cresceu. Casé contratou Sílvio Salema para contactar
os artistas, chamou Noel Rosa para ser, ao mesmo tempo, cantor e contra-regra,
mudou
o horário para toda a tarde de domingo.
Não há grande cartaz da música popular que não tenha passado ou ainda não vá
passar pelo Programa Casé. Atraído por algo que é praticamente outra invenção do
pernambucano
empreendedor: o cachê. Antes dele, os artista se apresentavam em emissoras de
rádio quase de favor. Casé, porém, achou melhor profissionalizar seu espetáculo,
pagando
a todos - na hora - cachês que variam de acordo com o cartaz de cada um.
Francisco Alves, por exemplo, é o mais bem pago: 35 mil réis. Carmem Miranda vem
em seguida:
30. Os outros variam de 10 a 20.
Um programa em grande estilo, que nos primeiros tempos tentou ser até ambicioso
demais, dividindo-se em duas partes, a primeira dedicada à música popular, a
segunda
à erudita,
324
Nássara ouve Noel cantar, programa após programa, Retiro da Saudade, a marcha
que parecia sob medida para uma dupla mista. Ouve com atenção. lá está o coro
que o
amigo lhe mostrou no Ponto Chie:
Quando por amor suspiro A saudade vem então...
E lá estão, também, duas ou três segundas partes que o próprio Noel escreveu,
música e letra. Mas aonde foram parar os versos que ele mesmo, Nássara, fez a
pedido
de Noel? Cadê aquele "trocadilho urbanístico" que era, afinal, a sua melhor
participação na parceria? Noel simplesmente se esqueceu dele e completou a
marcha sozinho.
No primeiro encontro dos dois, Nássara, mais na brincadeira, para provocá-lo,
diz-.
- Então, Noel, me passando pra trás, não é?
- Passando pra trás?
- Sim, no Retiro da Saudade? O que fez você dos meus versos?
Noel fica sem jeito. Só então se lembra de que ele mesmo propôs parceria ao
amigo para depois - por um escorregão de memória - esquecê-lo. Tão sem jeito que
nem
sequer encontra meio de se desculpar.
Uma semana depois, Nássara é procurado por Noel.
- É para você ir assinar contrato na Victor.
- Que contrato?
- Da gravação de Retiro da Saudade. A nossa marcha.
Nássara é apanhado de surpresa. Já se esquecera do assunto. E mais surpreso
ainda fica ao saber que a dupla mista que vai gravar a marcha é nada menos do
que Carmem
Miranda e Francisco Alves. E que seus versos, com o tal "trocadilho
urbanístico", estarão no disco. Noel, para redimir-se do esquecimento, passou
por cima de seu
rompimento com Francisco Alves e do seu distanciamento em relação a Carmem
Miranda para dar a Nássara a mais cara - e difícil de unir - dupla da música
popular brasileira.
Mista ou não. Como terá conseguido isso, de que argumentos se valeu para
convencer Chico e Carmem (não propriamente inimigos, mas de forma alguma amigos
do peito),
Nássara nunca descobrirá(10). Mas Retiro da Saudade é gravada pelos dois, faz
sucesso e sai no disco assim:
NOTAS
1. Na época e até 1951, o curso de arquitetura do Rio de Janeiro era feito na
Escola Nacional de Belas-Artes, no prédio que ainda existe na Avenida Rio
Branco,
esquina de Rua Araújo Porto Alegre. A partir de 1952, mudou-se para o antigo
hospício da Praia Vermelha.
2. "Noel não precisava de parceiros", disse Nássara aos autores ao contar esta
história de Retiro da saudade. Segundo ele, o amigo só lhe teria proposto
parceria
para ajudá-lo a firmar-se no meio musical. Uma ajuda de fato valiosa, Nássara
tornando-se logo em seguida o autor ou co-autor de excelentes sambas e marchas
como
Florisbela, História Antiga, Maria Rosa, Me Queimei, Na Casa do Seu Tomás,
Periquitinho Verde, Tipo Sete, ou bem depois, Balzaqueana, Mundo de Zinco, Chico
Viola.
3. Pseudônimo de Lauro Sarno Nunes, pai do humorista Max Nunes.
4. A Hora, 19 de julho de 1933.
5. Folha de Minas, 16 de fevereiro de 1935.
6. A Pátria, 4 de janeiro de 1936.
7. A Hora, 19 de outubro de 1933.
8. Nome pelo qual eram conhecidos os "partideiros" da época.
9. Conta Jota Efegê em "O parceiro esquecido de Noel", Jornal do Brasil, 22 de
maio de 1970: "... pois João Mina, desinteressando-se de formalidades
contratuais,
queria tão somente 'alguma grana' que a música rendesse. Isso, confirma João da
Bahiana, foi cumprido, já que, várias vezes, viu Noel dar dinheiro a João Mina.
Informe
verídico, como atesta a ficha da gravadora Odeon, onde apenas está registrado
Noel Rosa como recebendo direitos autorais do disco..."
10. Realmente uma façanha de Noel, pois este será o único disco que Francisco
Alves e Carmem Miranda gravarão juntos.
327
HUMOR DE PRIMAVERA
Capítulo 33
Da mesma forma que tem mais de um modo de cantar o amor, a malandragem, a cidade
e seus tipos, Noel também tem mais de um modo de festejar esta tão festejada
primavera.
Lírico, orgulhoso de seu bairro em Feitiço da Vila, ele pode
tornar-se ferinamente bem-humorado em Marcha da Prima... Vera, em que verseja e
trocadilha muito à vontade para fustigar uma antipática e imaginária Vera. O
trocadilho,
como se recorda, já foi usado por vovô Eduardo, mas o restante da letra é muito
original. Caberá a Almirante lançar a nova composição numa das seqüências do
Programa
Casé.
Chama-se Vera
A minha prima.
Não é Severa,
Pois é Vera só.
Não é a prima do violão,
É a sobrinha da minha avó!
E receando que a Vera vire fera
Fiz esta marcha para a prima Vera.
A Vera prima,
Por ser primeira,
Achando rima
Para o verbo amar,
Não vai ao rádio,
mas irradia
Antipatia
por seu olhar!
A prima Vera,
Dizendo a idade
Não é sincera:
Diminui demais.
Se nos contasse as primaveras,
Era mais velha do que seus pais!
A estrela d'alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as moreninhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor.
Linda pequena
Pequena que tens a cor morena
Tu não tens pena
De mim
Que vivo tonto com o teu olhar
Linda criança
Tu não me sais da lembrança
Meu coração não se cansa
De sempre e sempre te amar.
Seja como for, carnaval, São João, primavera, Penha, Reis, neste Rio de Janeiro
festeiro e musical de 1934, é aparentemente feliz seu cantor Noel Rosa.
Manuel Garcia de Medeiros Rosa já não dorme direito. Acorda com freqüência, anda
pela casa, vai até o portão, volta, deita-se outra vez, desassossegado. A
insônia
mina-lhe a saúde, mas ele finge resistir. Chega a dizer que essas horas em claro
no meio da madrugada trazem-lhe grandes idéias, inspiração para novos inventos.
O primeiro, uma pílula para uniformizar o canto dos galos. Está convencido de
que uma das coisas que o fazem acordar muito antes de o sol nascer são
justamente as
diferenças de timbres e tons que seus ouvidos captam no coro dos galos da
vizinhança. Daí a necessidade de uniformizá-los, de criar uma espécie de
diapasão pelo
qual os galos de Vila Isabel devem entoar sua cantoria. E enquanto não chega à
fórmula da pílula milagrosa, trata do outro invento, uma idéia já antiga que ele
desarquiva
precisamente para as noites em claro: os tamancos luminosos. Não acha justo
acender a luz quando se levanta de noite. Se fizer isso, acaba acordando os
outros.
330
Mudei também o título, que passou a ser Pastorinhas. Inscrevi-a no novo concurso
e tirei outra vez o primeiro lugar. Gravada pelo Sílvio Caldas, foi um sucesso.
Pena que Noel já não estivesse aqui para ver."(3)
João de Barro
Os tamancos - que anos atrás seu Medeiros e o português Aníbal andaram estudando
com o pensamento voltado para os maridos que chegavam em casa de madrugada - têm
agora função bem mais nobre. Servem não só para os insones como ele andarem
dentro de casa a horas tardias, mas também para as pessoas que, tendo banheiro
fora,
no quintal, como é comum nestas casas de centro de terreno, são obrigadas a
caminhar bom pedaço no escuro ao se levantarem de noite movidas por uma
necessidade qualquer.
A idéia é adaptar ao bico de cada tamanco uma pequena lanterna cujo facho de luz
vai iluminando o trajeto dos noctâmbulos.
Tanto os tamancos luminosos como a pílula para uniformizar o canto dos galos
roubam muito do tempo do inventor Manuel Garcia de Medeiros Rosa. São projetos
que jamais
se consumarão, mas que constituem hoje a sua única motivação de vida. A família
se preocupa. Neca é cada vez menos o homem de antigamente. As mudanças não são
notadas
apenas por Martha. Hélio, os outros parentes, os amigos que freqüentam o chalé,
todos já perceberam que ele não está bem. Tirando os instantes em que fala de
pílulas
e tamancos imaginários, quase não se ouve sua voz. Passa horas e horas perdido
num silêncio indevassável, os olhos distantes. Sequer responde às perguntas com
que
Martha tenta trazê-lo de volta ao mundo nesses momentos de alheamento. Quando
sai de casa - o que faz cada vez menos - é com destino incerto. Anda de bonde em
viagens
que incluem complicadas baldeações. Tanto pode puxar conversa com o desconhecido
passageiro ao lado, como encontrar um velho amigo e nem ao menos o cumprimentar.
Numa dessas viagens, acontece de sentar-se no mesmo banco Almirante, que o saúda
tirando o chapéu.
- Como vai, seu Medeiros?
Desta vez reconhece o amigo do filho, cumprimenta-o, pergunta-lhe pelo rádio, a
música, as novidades. A conversa vai indo muito bem até que a voz de seu
Medeiros
começa a diminuir, a tornar-se pouco a pouco mais fraca, imperceptível quase,
obrigando Almirante a chegar mais perto num esforço para ouvi-lo. Os lábios de
seu
Medeiros se movem mas já não emitem nenhum som. Almirante não sabe o que fazer,
limita-se a mover a cabeça num sinal de que está compreendendo, mas com a leve
desconfiança
de que o pai de Noel na verdade fala apenas para si mesmo(4).
Nas raras visitas que faz ao chalé, Noel vai sendo informado do estado de saúde
do pai e das preocupações da mãe. As coisas estão cada vez piores, até mesmo
pelos
inventos começa a
331
No baile da Flor-de-Lis
Quem dançou pediu bis
Mas acabou-se o que era doce
Quem comeu, regalou-se
Quem não comeu, suicidou-se.
Quando a música parou
O mestre-sala gritou:
"Cavalheiros ao buffet!"
E o tal doce de coco
Que era bom mas era pouco
Não chegou para você.
Acabando o que era doce
Uma voz manisfestou-se
E a sala fez tremer:
"Esperamos por dinheiro
E que cada brasileiro
Cumpra com seu dever!"
Encontrei muito funil
A chorar junto ao barril
Quando o chope se esgotou
Houve a tal pancadaria
Com a qual se anuncia
Que o baile terminou.
É ainda a bordo do humor que Noel viaja por um samba em que protesta contra
alguém abusado o bastante para filar-lhe o almoço, fumar-lhe o cigarro, usar-lhe
as roupas,
falar mal do samba. Um samba com dois títulos: Você é um Colosso e Pisou no Meu
Calo:
333
Em parceria com Hervê Cordovil, mais uma vez o tema é a Festa da Penha. Tendo
trabalhado todos os domingos de outubro, infelizmente não pôde comparecer aos
folguedos,
a morena reclama a ausência e ele se explica: Fiquei Rachando Lenha.
Noel diz a Ismael Silva que há alguma coisa errada na sua parceria com o Chico.
Ismael ouve com atenção. Tem mais ou menos idéia do que o parceiro e amigo vai
ponderar,
mas prefere certificar-se.
- Você continua dando parceria a ele em todas as músicas?
- Sim, todas.
Talvez Ismael conte mentalmente quantas foram ao todo desde aquele encontro com
Francisco Alves sob o lampião defronte ao Café do Compadre. De 1930 até agora,
quatro
anos de muito samba bom de parceria com Nilton Bastos, Noel Rosa e outros,
quando não sozinho. E em quase todos eles, mais de trinta, o nome de Francisco
Alves ao
lado do seu. Ou no selo do disco ou na partitura impressa. E o próprio Chico se
encarregando de dizer quem vai ou não gravar, se ele mesmo, Mário Reis, João
Petra,
Castro Barbosa, Jonjoca ou quem seja. Como se a obra de Ismael, toda ela, fosse
propriedade sua. A pergunta de Noel, irônica, maldosa, vai dar o que pensar ao
bom
Ismael:
-Me diz uma coisa: e o Chico, só grava o que você faz?
Por muito tempo Ismael Silva se lembrará da conversa em que Noel começa a
convencê-lo de que já é hora de também ele desalgemar-se de Francisco Alves7.
Não apenas por essa conversa - mas principalmente por ela - o grande sambista do
Estácio passa a pensar com seriedade em ir em frente sozinho, seguindo o exemplo
de Noel, que afinal continua por aí, fazendo sucesso, gravando, sendo solicitado
pelos cantores, sem precisar de Chico para nada. Se Noel pode, por que não ele?
De fato foram reduzidos praticamente a zero os vínculos de Noel Rosa com
Francisco Alves. Ainda restam pequenos acertos de dinheiro entre eles, o cantor
sempre relutando
em meter a mão no bolso. Ismael mesmo lembra de umas contas que ele e Chico
andaram fazendo outro dia na mesa de um botequim. O cantor ia dividindo, mil
réis por
mil réis, o que lhes cabia de direito autoral de determinada gravação. Dez mil
réis para Ismael, dez para Chico; cinco mil para um, cinco para outro. Até que
chegaram
à casa dos tostões. Sobrou uma moeda de duzentos réis e era a vez de Ismael.
Chico, no lugar de deixá-la para o parceiro, não abriu mão do seu direito.-
pediu que
o português do botequim trocasse por duas pratinhas de cem réis, uma para cada
um.
Noel também continua não deixando passar nenhuma oportunidade de bulir com Chico
em suas letras. Por exemplo, aproveitando o sucesso no Rio do filme alemão A Voz
do
334
Meu Coração(6), Francisco Alves gravou uma versão de Orestes Barbosa para o
fox-trotde Mischa Spoliansky, Tell Me Tonight. Partindo dos primeiros versos
("Nesta noite tão linda venho cantando..."), Noel transforma Diga-me Esta Noite
em Paga-me
Esta Noite para falar de um ouvinte risonho, irmão do tal Pão-Duro, que é o
próprio Francisco Alves:
Neste tempo medonho
Canto, tristonho
Ao microfone este prelúdio
O ouvinte risonho
Nem por um sonho
Sabe o que me traz ao estúdio.
A ti que és o irmão
Do tal Pão-Duro
Meu recibo vai assombrar
De revólver na mão
Eu vim aqui... cobrar.
Ainda há muito de humor em Noel neste mês de outubro. O que talvez não haja é
saúde. Esperando Ceei todas as madrugadas no Apollo, ficando com ela até de
manhã,
trocando mais do que nunca a noite pelo dia, alimentando-se pouco, não tendo ao
lado de Lindaura os mesmos cuidados que recebia em casa nos bons tempos em que
Martha
lhe servia refeições que não exigiam esforço na mastigação, Noel emagrece.
Aparecem-lhe olheiras que se acentuam e que só dona Martha, quando ele vai ao
chalé, parece
notar.
Além disso, bebe muito. Não é um alcoólatra, não se inclui entre aqueles
freqüentadores da Lapa que mal sabem como é o bairro, porque só vão lá bêbados
de cair.
Mas gosta de uma cerveja além da conta. E chega a tomar uma ou outra bebida
quente quando o tempo pede. Ismael Silva acompanha-o. Diz ter tomado coragem
para informar
ao Chico que, daqui por diante, é cada qual por si. Será que o homem vai achar
ruim? Pouco importa. Sente-se mais seguro ao lado de Noel. E é uma vez mais de
parceria
com Noel que compõe novo samba, por muitos motivos, especial. Primeiro porque,
depois de cinco anos, Francisco Alves não entrará como co-autor. Segundo, porque
a
própria letra contém sutis alfinetadas, Chico servindo mais uma vez de alvo.
Terceiro, porque, sem que eles saibam, será este samba, sugestivamente
intitulado Boa
Viagem, a última obra que farão juntos.
NOTAS
1. Do ponto de vista de Vila Isabel, Benedicto Lacerda, na época morando no
Estácio, e Jayme Florence, o Meira, em São Francisco Xavier, eram mesmo
"forasteiros".
Os dois fizeram música para Leia Casatle, Benedicto a valsa Leia, Meira o choro
Primavera, gravados em solo de flauta pelo primeiro em disco Odeon (11.167).
Meses
depois, Leia ganharia letra de Jorge Faraj, sendo regravada por Jayme Vogeler
também na Odeon (11.223).
2. A tradição das pastorinhas - cultivada em Vila Isabel e outros bairros do
Rio daqueles tempos - praticamente desapareceu. Moças e rapazes formavam um
cortejo
que procurava reproduzir a jornada dos pastores a Belém, quando do nascimento de
Jesus. Dias antes do Natal, o grupo saía às ruas entoando música cadenciada e
quase
sempre dolente:
Caminhemos, caminhemos, À lapinha de Belém, Visitar o Deus-menino Que salvar o
mundo vem.
Os integrantes do cortejo, cada qual representando uma figura (os Reis Magos, a
Estrela, a Borboleta, o Caçador, a Samaritana, o anjo Gabriel) iam às casas onde
se armavam presépio e ali "tiravam a lapinha", cerimônia de canto, dança e
representação com que se adorava o menino Jesus. Jota Efegê, em Figuras e Coisas
da Música
Popular Brasileira (volume I, página 16), nos dá detalhada descrição dessa
cerimônia que se repetia das vésperas do Natal até Dia de Reis. Os raros grupos
de pastorinhas
ainda existentes estão hoje em cidades do interior e em alguns poucos subúrbios
do Rio.
3. João de Barro já dera este depoimento aos autores - e o repetido em várias
oportunidades, inclusive gravando-o para Noel Rosa, álbum de dois discos lançado
em
1982 pela Federação Nacional das Associações Atléticas Banco do Brasil - quando
chegou às livrarias, já em 1987, Yes, Nós Temos Braguinha, biografia do mesmo
João
de Barro escrita pelo pesquisador Jairo Severiano. Nela, nas páginas 49-52, o
autor nos dá, fartamente documentada, outra versão. Pastorinhas já estava
inscrita
no concurso antes da eliminação de Touradas em Madrid. Na verdade, obteve o
segundo lugar entre as marchas. Anulado o resultado - porque realmente se
considerou
a vencedora um pasodoble - fez-se novo julgamento, desta feita cabendo a
Pastorinhas o primeiro lugar. Jairo Severiano conta ainda a briga que houve
durante o concurso
entre João de Barro e Nássara. Inconformado com a não classificação da marcha
Periquitinho Verde, sua e de Sá Roris, Nássara esbravejou para João de Barro:
"Foi
a alma de Noel que ganhou o concurso!"
4. Depoimento de Almirante aos autores.
5. Syntonia, 27 de setembro de 1934.
6. Chamava-se "clube de liga barbante" a toda agremiação, em geral de futebol,
que sobrevivia modestamente nos subúrbios ou em cidades do interior, não
pertencendo
portanto à liga oficial que congregava os grandes clubes cariocas. O barbante é
usado no sentido de pobre, vagabundo. A origem do termo está nas cervejas de
fabricação
Caseira, vendidas em certa época no Rio, que em vez de chapinha tinham como
tampa uma rolha amarrada com barbante. O Palestra citado logo em seguida é o
Palestra.
Itália, de São Paulo, que a guerra transformaria no atual Palmeiras.
7. A influência de Noel Rosa no seu rompimento com Francisco Alves foi contada
por Ismael Silva a um dos autores, à mesa de um bar da Rua Riachuelo com
Lavradio,
em 1962, na presença dos jornalistas Mauro Affonso e Ito Coelho.
8. A Voz do Meu Coração, filme alemão de 1932, chegou ao Brasil via
Estados Unidos, dai ter sido exibido aqui com seu título americano, Be Mine
Tonight, e não com o original, Das Lied Einer Nacht. Dirigido por Anatole
Litvak, tinha
no elenco Jan Kiepura, Magda Schneider, Edmund Gwen, Fritz Schudz, Sonnie Hale e
Ida Wuest. A canção que Orestes Barbosa converteu em Diga-me Esta Noite - e Noel
em Paga-me Esta Noite - também veio da versào americana, pois em alemão
intitula-se Heute Nacht Oder Nie (Esta noite ou nunca).
336
Capítulo 34
perguntar sobre a vida dela do que expor a sua própria. Como explicar-lhe a
existência de Lindaura? Ou dizer que o pai não pensa em outra coisa senão na
morte?
O grande sucesso musical deste mês de novembro é mesmo Feitiço da Vila. Noel
vê-se constantemente solicitado a cantar o samba em todo espetáculo em que se
apresente. Continua trabalhando muito. Pensando bem, nunca teve vida tão
intensa, cada
minuto do dia tomado, a música, os programas de rádio, o disco, Ceei, Lindaura,
o chalé. Compõe menos, sua produção musical caindo à metade em relação ao ano
passado.
A correria em que se transformou sua vida, somada ao fato de não mais necessitar
compor para quitar o Pavão, pode explicar a queda de produtividade.
Uma noite, canta no Cine Grajaú, na Rua José Vicente, que liga a Barão de
Mesquita à Theodoro da Silva. Excepcionalmente, Lindaura veio com ele, está na
platéia,
sentada, orgulhosa do "noivo" que é uma das atrações da noite. Com que música
abrirá o espetáculo? Talvez Feitiço da Vila, talvez Suspiro, samba-canção seu e
de
Orestes Barbosa:
Suspiro,
anseio secreto
Revelação de um afeto
Gemer que ninguém traduz.
Suspiro,
triste recado
De um coração ansiado
Na desventura da cruz.
Suspiro,
voz da desgraça
Voz da alegria que passa
Dando lugar ao sofrer.
Suspiro,
o peito se cala
Na dor que tanto apunhala
E não se pode dizer.
Suspiro,
que crueldade!
Tem que nascer da saudade
Enquanto o amor quiser.
Eu já dei mais de mil giros
E a fonte dos meus suspiros
É sempre a mesma mulher.
Noel canta um número, dois, acompanha ao violão outros cantores, entre os quais
338
lhe fala da doença. Fora a magreza, parece bem. Nada mudou realmente.
Mais rápida do que a notícia do casamento, corre pela cidade a informação de que
Noel não anda bem, desmaiou durante um espetáculo, está sob severa vigilância
médica.
Amigos o visitam no chalé. Sabem dos planos de viagem, da recomendação de Edgar
para que passe algum tempo em Belo Horizonte. Dona Martha fala com os mais
chegados
das dificuldades cada vez maiores que enfrenta. O marido internado, 800 mil réis
por mês arrancados da pedra com as próprias unhas. E agora Noel, casado, sem
poder
trabalhar, tendo de passar tempos fora do Rio. Os amigos compreendem. Recorrem
ao Casé. Afinal, Noel é uma das estrelas de seu programa. Casé promete ajudar.
Além
disso, há a simpática turma de Syntonia, o semanário especializado em rádio e
música popular. Na redação do jornal
decide-se fazer um apelo ao meio artístico: que todos ajudem como puderem o
amigo Noel Rosa. O apelo será atendido. Em poucos dias, dona Martha recebe no
chalé o
dinheiro arrecadado por Syntonia.
Noel é tratado como grande nome da música popular que de repente necessita do
amparo e da atenção de todos. Suas músicas são tocadas no rádio, jornais
publicam matérias
a seu respeito. Uma dessas matérias será a principal do primeiro número de um
novo jornal e uma espécie de balanço de sua carreira(3).
O ano chega ao fim. Noel e Lindaura têm viagem marcada para os primeiros dias de
janeiro. O Natal é passado em casa, em torno da árvore e do presépio que
todos os anos dona Martha arma segundo tradição que vem de longe, dos Corrêas de
Azevedo. Noel - que ironia com seu próprio nome! - jamais gostou do Natal:
- Para que esperar um ano para se dar presente a quem se gosta?
Não dá presentes a ninguém. Este é um Natal triste, especialmente porque o pai
está longe, sozinho. De Ceei despede-se laconicamente. Diz que a polícia
obrigou-o
a casar-se. Anda adoentado. Vai sair do Rio por algum tempo, atrás de bom clima.
Ou de um milagre.
NOTAS
1. Herivelto Martins, em entrevista aos autores, 29 de março de 1982, já não se
lembrava de ter participado daquele espetáculo no Cine Grajaú. Lindaura, porém,
garante que ele estava lá.
2. Cândido das Neves, o índio, morreria a 14 de novembro de 1934.
Portanto.poucos dias depois de constatada a doença de Noel.
3. Jornal de Rádio, Rio de janeiro de 1935.
Apelo pelo poeta. (Reprodução de Syntonia.)
SYNTONIA"
Atenção, amigos de Noel Rosa!
PARTE IV
ENTREATO MINEIRO
Capítulo 35
São dezesseis horas do Rio a Belo Horizonte com paradas em várias cidades,
Barra do Piraí, Juiz de Fora, Barbacena, Palmira!A viagem mais barata é pelo
rápido,
trem que sai da Central do Brasil às cinco da manhã e só chega ao destino pouco
depois das nove da noite. Mais barata porque, ao contrário do noturno, que
oferece
aos passageiros leitos relativamente confortáveis, tudo que estes vagões de
madeira e bitola larga têm são bancos duros e apertados e um carro-restaurante
onde as
pessoas brigam por uma mesa e pela vez de comerem pratos nada apetitosos: arroz
empaçocado, feijão ralo, bife raquítico. Mas é o que Noel e Lindaura puderam
comprar
com o dinheiro levantado por Syntonia. Tia Carmem, o marido Mário Brown e os
filhos aguardam o casal. Carmem não mudou nem um pouco, ainda é a mesma mulher
austera,
autoritária, muito diferente da irmã. Bondosa também, mas firmemente decidida a
impor ao sobrinho uma severa disciplina de tratamento:
- Boa comida, sempre em horas certas. E nada de noitadas!
A tia não pode evitar uma ou outra reprimenda:
- Eu sempre soube que essa história de rádio não ia acabar bem.
Noel nem tenta explicar que o rádio nada tem a ver com a doença. Fizesse ele as
vontades de tia Carmem, ficando com a medicina em vez do samba, ainda assim
teria
se entregado à vida boêmia.
-Aqui você não terá muita coisa para fazer de noite - diz Mário Brown tentando
deixar claro que, querendo ou não, Noel será forçado a dormir cedo numa cidade
tão
pouco boêmia como Belo Horizonte.
Ingênuo Mário Brown. Nem Belo Horizonte é uma cidade pouco boêmia, nem é
intenção de Noel renunciar às madrugadas. Na verdade, para um notívago incurável
como ele,
não existe cidade pouco boêmia.
- Vou dar uma volta - diz depois do primeiro jantar, saindo com destino
ignorado.
Carmem e Mário Brown moram com Dulce, Sylvia e Mariozinho numa casa de sala e
três quartos da Rua São Manuel, 124. O local é um dos mais tranqüilos e
agradáveis
do bairro da Floresta. A casa, um andar só, tem quintal, varanda do lado, as
janelas dos quartos dando para um terreno baldio. Lugar acolhedor, mas quieto
demais.
- Você precisa de repouso, Noel- lembra a tia.
É ela quem cuida pessoalmente da alimentação do sobrinho, leite fresco,
verduras,
347
legumes, tudo à hora certa. Nos primeiros dias, os passeios noturnos de Noel
duram pouco, uma caminhada depois do jantar, um giro pelo Centro, saídas rápidas
que
o trazem de volta sempre antes das dez. Às vezes Lindaura o acompanha, mas em
geral ele prefere ir só. A mulher pouco interfere em sua vida, deixa que tia
Carmem
cuide da alimentação e Mário Brown se incumba de controlar os horários.
-De nada adianta voltar para casa cedo, Noel. Já notei que você fica até tarde
com a luz do quarto acesa. Por quê?
Lindaura explica que o marido, sempre que volta da rua, nove, dez da noite,
põe-se a escrever. Num caderno de capa dura, com seu inseparável cotoco de
lápis, deixa esboçados pensamentos, versos, letras de música, coisas que nunca
chegará
a mostrar a ninguém. Mário Brown sugere que passe a escrever de dia.
Por que não na parte da manhã, quando um sol gostoso cobre de luz e calor toda a
varanda? Mas Noel prefere a noite, o começo da madrugada. Já que não pode sair,
escreve.
Tia Carmem recorre a alguns artifícios para evitar que o sobrinho doente perca
horas de sono debruçado sobre seus versos. Um deles, o de tirar a lâmpada do
quarto.
Mas Noel também tem seus truques: surripia a lâmpada do quarto de um dos primos
e a coloca no seu. Carmem insiste. Com a cumplicidade de Lindaura, faz sumir a
outra
lâmpada. Noel vai ao armazém da esquina e compra uma caixa de velas. E continua
acordado, madrugada adentro, agora movendo seu cotoco de lápis à luz de uma
chama
trepidante.
Ao contrário do que Mário Brown pensa, há muito o que fazer nas ruas de
Belo Horizonte, mesmo altas horas da noite. É só procurar. O boêmio daqui, Noel
constata, é antes de tudo um tipo solitário. Vaga pelas madrugadas de ruas
vazias,
perdido no imenso e silencioso deserto que é a cidade depois das onze. Raramente
encontra quem o acompanhe em suas caminhadas, mas quando isso acontece sempre
descobre
um programa.
Belo Horizonte é mesmo um lugar deserto nessas horas tardias. A última sessão de
cinema acaba às dez, nas esquinas resta apenas um ou outro cidadão comum à
espera
da condução que o levará para casa. Mas o boêmio não é um cidadão comum. Sua
casa é a rua, o botequim, os poucos cantos que nunca dormem. Solitário, vive
permanentemente
à procura de uma alma gêmea, um parceiro de noitada,
como Noel Rosa.
Noel de fato será parceiro de muitos boêmios da terra, descobrindo com eles o
que fazer depois das onze. Vai peregrinar ao seu lado, beber em sua companhia,
cantar-lhes
novidades como Amor de Parceria, composição que revela seu interesse, nestes
dias, por um gênero relativamente novo: o samba-choro. Isto é, um samba que
utiliza
certo fraseado do choro. Ou um choro que, cantado, pede emprestado ao
samba a sua pulsação rítmica. Sem que deixe de estar presente o humor de Noel:
Saiba primeiro
Que fulano é meu amigo
E com ele eu não brigo
Com ciúmes de você.
Você provoca
briga entre rivais
Para depois ver nos jornais
Seu nome, seu clichê.
Há muito tempo
Meu amigo já sabia
Que você me oferecia
Chocolate no jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ele e ele foi por mim.
Você pensou que fomos enganados,
Marcando encontro em dias alternados
E nós fizemos a sua vontade.
Dentro daquele enredo
Eu e ele não tivemos
prejuízo na sociedade.
Quando meu sócio
Namorava em seu portão
Eu ficava na esquina
Distraindo seu irmão
E quantas vezes eu perdi a fala
Quando estava sem tostão
E ele pedia bala!
Nós aturamos
Sua tia implicante
Mas filamos seu jantar,
Não pagamos restaurante.
Você não sai do nosso pensamento.
Você foi negócio, foi divertimento.
A versão feminina da letra tem várias modificações. E é a que será gravada por
Aracy de Almeida:
Saiba primeiro
Que fulana é minha amiga
E comigo ela não briga
Com ciúme de você.
Você provoca briga entre rivais
Para depois ver nos jornais
Seu nome e seu clichê.
Há muito tempo
Minha amiga me avisava
Que ela sempre conversava
Com você no seu jardim
E começou a nossa parceria,
Eu fui por ela e ela foi por mim.
348
São várias as rodas boêmias da Belo Horizonte destes tempos. A dos jovens
estudantes e a dos velhos paus-d'água, a dos intelectuais que se reúnem no Cate
Estrela,
como Elpídio Canabfava, Pedro Nava, Affonso Dutra, Stênio Caldeira, Carlos
Drummont de Andrade, e a do pessoal da música com o qual Noel vai travando
contato. Um
dia ele descobre a existência de uma PRC-7, Rádio Mineira, em pleno coração da
cidade. Fica sabendo que a emissora funciona precariamente, quase em caráter
experimental,
no porão do edifício do Conselho Deliberativo, esquina das Ruas da Bahia e
Augusto de Lima, com um modesto transmissor no bairro de Carlos Prates. Noel
toma um ônibus
na Floresta e vai conhecer a Rádio Mineira.
O jeito tímido, a fala mansa, entra, se apresenta aos locutores, operadores e
poucos artistas do cast. Fará novos amigos de alguns deles, Lourival Serra, os
irmãos
Paulo e Chico Lessa, José Vaz, Milton Dias, Zetio Santa Rosa, Nelson Orsini,
jovens de vinte, vinte e poucos anos, loucos por rádio.
- Estou aqui de férias - explica. - Andava meio cansado, precisando de um pouco
de sossego.
Vê que seu nome é conhecido, todos sabendo cantar suas músicas, Nelson Orsini
tirando do violão exatamente os mesmos acordes que Noel utiliza, por exemplo, ao
se
acompanhar em Até Amanhã. Os novos amigos o convidam para comer, por apenas dois
mil réis, o famoso prato feito do Colosso, restaurante que fica a uns cinqüenta
metros da Rádio Mineira. Lá, todos juntos, improvisam em plena tarde uma roda de
samba.
Noel se integra. Entusiasma-se com os novos amigos. Entre eles há até uma
réplica da dupla Francisco Alves e Mário Reis, Zeno tentando imitar Chico, José
Vaz nas
águas de Mário. Fica conhecendo também Roberto Ceschiatti, muito jovem e já
sabendo tudo de eletrônica. É ele quem cuida da parte técnica da emissora.
Embora goste
de samba - e vá acompanhar Noel e os outros nas cantorias pelos botequins da
cidade - seu negócio, mesmo, são válvulas e antenas, chaves e botões, toda
aquela complicada
maquinaria que põe e mantém no ar a Rádio Mineira.
O primeiro encontro dos dois ocorre em Circunstâncias curiosas. Noel entra no
porão onde funciona a emissora e vê Ceschiatti não mexendo nos botões da mesa de
controle,
mas com o telefone no ouvido.
-Alô, - diz engrossando a voz para que não o identifiquem do outro lado. -
Aquifala o embaixador Bill!
E desliga, deixando Noel intrigado. Passam-se alguns segundos e Roberto
Ceschiatti disca de novo, repetindo, com a mesma Vôz grave:
- Aqui fala o embaixador Bill!
Noel, curioso, pergunta-lhe que diabo está fazendo com essa história de
embaixador Bill. Ceschiatti reconhece Noel. Meio sem jeito, conta que está
apaixonado pela
secretária de um homem importante em Minas, um desembargador.
- Quem é o homem?
-Antônio RibeiroJúnior- responde Ceschiatti depois de olhar para os lados para
se certificar de que ninguém o ouve.
- E a moça?
Ceschiatti explica que já se dá por satisfeito ao ouvir apenas a voz dela.
Quanto ao embaixador Bill, é personagem de um filme que acaba de passar em Belo
Horizonte.
O problema maior é quando o próprio Antônio Ribeiro Araújo atende ao telefone,
pois fica simplesmente furioso quando o ouve dizer:
- Aqui é o embaixador Bill!
Essa informação é o bastante para aguçar o lado moleque e menino de Noel. Pensa
no quanto seria divertido enfurecer um homem importante, um desembargador, e
pede
O número do telefone a Ceschiatti.
- Pode deixar que eu não incomodo a moça.
Procura saber, também, de todos os outros números de Antônio Ribeiro de Araújo,
o do escritório, o de casa, o do tribunal, onde quer que possa ser encontrado.
Desse
dia em diante, sempre que lhe sobra tempo - e não há nada melhor para fazer -
disca para o homem e diz, engrossando a voz como Ceschiatti:
- Alô, desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Dezenas de vezes repetirá a brincadeira, mesmo depois de Ceschiatti perder o
interesse pela secretária. Enfurecer um desembargador é mesmo divertido, mas
Antônio
Ribeiro Araújo não pensa assim. Certa tarde, no tribunal, após ouvir mais uma
vez a voz cavernosa do embaixador Bill a perturbar-lhe o trabalho, dirá a um de
seus
colegas:
- No dia em que descobrir quem é este canalha, juro que o mato!
Paulo, Chico, Lourival, Zeno, Ceschiatti são companheiros de Noel em sua
temporada mineira. Mas nenhum está tão próximo dele - ou tem tantas afinidades
com ele -
como Nelson Orsini. Juntos cantam pelo microfone da Rádio Mineira, freqüentam as
biroscas dos bairros mais afastados, vão à zona boêmia animar com seus violões
as
tristes noites das mulheres da vida. Nelson é bom violonista. Dedica-se tanto
aos fox-trots como a Albéniz,
350
Granados, Tãrrega. Noel ouve-o com atenção, o jeito de quem não quer perder uma
nota, mas é franco em suas opiniões:
- Não sei o que é mais chato, Nelson, se estes teus fox-trots ou se os clássicos
espanhóis.
Em outras ocasiões, elogia:
- Este teu violão tem uma bela sonoridade. É muito melhor que o meu.
Nelson, com humildade, replica:
- Em compensação, você toca melhor do que eu.
- Não, não é verdade.
A zona boêmia se estende ao longo de três ruas paralelas, a Avenida do Comércio,
a Oiapoque e a Guaicurus. A turma de rádio percebe que Noel é bandeira valiosa,
sujeito cujo violão e cujas músicas encantam de tal maneira as mulheres que
eles, como amigos de tão talentoso e ilustre visitante, acabam tirando suas
vantagens.
- Sou amigo de Noel - diz Paulo Lessa. E a mulher, no mínimo, se mostra mais
acessível.
Nelson Orsini leva Noel para toda parte. Por exemplo, uma festa familiar na casa
de Manuel Maurício da Rocha, professor da Faculdade de Engenharia. Doces,
salgados,
ponche, cerveja. Os amigos mineiros já sabem da predileção de Noel pela
Cascatinha e se lembrarão disso para sempre. Zeno adverte Manuel Maurício da
Rocha que, para
animar o sambista Noel, a Cascatinha é fundamental. O dono da casa providencia a
cerveja para que a garganta do cantor não fique seca. Em retribuição, Noel canta
para os convidados, com acompanhamento seu e de Nelson Orsini. Seu grande
sucesso atual continua sendo Feitiço da Vila, que todo o mundo conhece. Mas
também está
na boca do povo mineiro Seja Breve, criação magistral de Luís Barbosa e João
Petra, que a gravaram acompanhados pelo piano de Custódio Mesquita.
Seja breve...
(Seja breve!)
Não percebi por que você se atreve
A prolongar sua conversa mole
(Que não adianta!)
Seja breve...
(Conversa de teso!)
Não amole!
Senão acabo perdendo o controle
E vou cobrar o tempo que você me deve.
Eu me ajoelho e fico de mãos postas
Só para ver você virar as costas
E quando vejo que você vai longe
Eu comemoro a sua ausência com champanhe (
Deus lhe acompanhe!)
A sua vida nem você escreve
E além disso você tem mão leve.
Eu só desejo é ver você nas grades
Para dizer baixinho sem fazer alarde:
"Que Deus lhe guarde!"
Vou conservar a porta bem fechada,
Com o cartaz: "É proibida a entrada."
É você passa a ser pessoa estranha.
Meu bolso fica livio dos uluquca
seus: (Graças a Deus!)
A festa está em plena animação quando Miguel Maurício da Rocha, já mais íntimo
de Noel, arrisca:
- Você já fez alguma música para Belo Horizonte?
- Não.
- Por quê?
- Ainda vou fazer.
- Por que não improvisa alguma coisa agora?
Noel pega o violão, ensaia alguns acordes e, para delícia dos presentes,
improvisando aqui mesmo sobre a música de I'm Looking Over A Four Leaf Clover2,
canta:
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
O que há de melhor pra mim
Não é o bordão deste meu violão
Nem é a prima que eu firo assim
Não é a cachaça
Nem a fumaça
Que no meu cigarro vi
Belo Horizonte
Deixa que eu conte
Bom mesmo é estar aqui...
Uma homenagem à terra, em tom bem-comportado, apesar da menção à cachaça e ao
cigarro. Mais tarde, na zona boêmia, acompanhado de Nelson Orsini, Noel
aproveitará
a mesma melodia para criar uma letra que decerto não ousaria cantar na festinha
de Miguel Maurício da Rocha:
Belo Horizonte
Atrás do monte
Rosinha deu pro Leitão
Arrependida, se pôs a chorar
Jurando que nunca mais ia dar
Porém, no outro dia,
Leitão comia
Na cama outro jantar
E a Rosinha,
Tão pobrezinha,
De inveja quis se matar.,.
351
Naturalmente, são muitas as reprimendas que Noel sofre em casa, tia Carmem
inconformada por vê-lo abandonar a vida mais regrada dos primeiros dias. Mário
Brown procura
falar-lhe como amigo:
- Você tem de se cuidar, Noel.
O tio ouve, impressionado, sua resposta:
- Quem muito se cuida, pouco vive. Refere-se, é claro, à qualidade e não à
quantidade de vida. Mário Brown não o compreende, chama sua atenção para o
clima, a boa comida, o ritmo tranqüilo de Belo Horizonte. Esta cidade tem
operado verdadeiros
milagres em pessoas doentes do pulmão. Não gosta de
Belo Horizonte?
- Sim, mas prefiro viver um ano no Rio do que dez aqui.
No começo Lindaura não participa desta justificada vigilância ao doente. Como se
seu papel de esposa fosse o de compreender e aprovar todos os gestos do marido.
Mas um dia atende o telefone. É voz feminina procurando por Noel.
- Não está - informa.
- Quem está falando? É a irmãzinha dele?
O episódio é o bastante para despertá-la. Quantas mentiras não pregará ele pelas
ruas? Lindaura, transformada em irmã por força de uma arte de Noel, passa a
vigiá-lo.
Telefona para a Rádio Mineira, vai aos botequins onde supõe que ele esteja,
tenta abrir os olhos. Mas raramente o vê.
Seu paradeiro não é mesmo fácil de saber. Tanto pode estar na leiteria do João
da Abissínia, um amigo negro que vende a melhor coalhada e a mais fresca broa de
milho
da cidade, como em botequins tão escondidos que o pessoal da terra os chama de
tocas.
Às vezes, surpreende os de casa com noites de comportamento exemplar. Deixa
crescer a barba, aprende a fazer crochê e tenta tirar músicas no piano da tia.
O carnaval está próximo. Belo Horizonte, 950 metros acima do mar, 250 mil
habitantes, é toda animação. Mas nem as noites de sábado e domingo, dedicadas às
batalhas
de confete que o pessoal da terra prefere chamar de "cariocadas", fazem Noel
sentir menos falta do Rio. Em praticamente todos os bairros os blocos se
preparam para
sair com suas fantasias de sujo, seus estandartes de papelão, seus ritmistas
improvisando instrumentos, batucando em latas de banha, em caixas de sapato ou,
quando
muito, em tamborins baratos. Não muito longe de onde Noel está hospedado, um
desses blocos, os Foliões da Floresta, promete sair este ano mais animado do que
nunca.
É organizado pelo
"turco" Nagib e congrega, na maioria, moradores da Rua Itajubá. Noel é convidado
para tomar parte do bloco, mas atende aos apelos de tia Carmem:
- Não, este ano vou só espiar.
No dia 27 de janeiro, visita a tia no Conservatório de Música, onde ela leciona
violino, e lá mesmo, em papel timbrado, escreve aquela que será a sua carta mais
original e conhecida. O destinatário é Edgar Graça Mello. O assunto, a doença e
o tratamento. A forma, poesia. Mas, a exemplo de muito do que Noel disse em seus
sambas, uma poesia feita de ironias e simulações, o paciente chamando o médico
de paciente e dizendo-lhe que está seguindo à risca as instruções, que se deita
às
nove horas, que abandonou o cigarro, que já apresenta melhoras. E não faltam os
duplos sentidos, como no verso "trepei de várias maneiras..."
A não ser pelo círculo reduzido de amigos da Rádio Mineira e por um ou outro
boêmio como Rômulo Paes, jovem da terra que ousa seus sambinhas e sonha em
vê-los um dia gravados por Francisco Alves ou Carmem Miranda, pouca gente em
Belo Horizonte sabe que Noel está aqui. Neste fim de janeiro, em que os jornais
da cidade
começam a dar destaque ao carnaval que se aproxima, não é o compositor de Com
Que Roupa? quem merece as atenções dos foliões, mas outro visitante, o cronista
carnavalesco
Fra Diavolo, que os Diários Associados, atendendo aos apelos da Prefeitura,
mandaram buscar no Rio para animar, com seus artigos e idéias, a grande festa de
Momo.
Fra Diavolo chega a Belo Horizonte a 12 de janeiro. Ao contrário de Noel, que
desembarcou despercebido, aguardado apenas pelos tios, o cronista tem uma
apoteótica
recepção na gare da Central. O pessoal da Folha de Minas, jornal que já no outro
dia estará publicando suas crônicas, cuidou para que uma pequena multidão fosse
esperá-lo na estação, saudando-o com vivas e faixas como se ele fosse o próprio
Rei Momo desembarcando, com todas as pompas, em Belo Horizonte.
As crônicas de Fra Diavolo podem ser frívolas e um pouco elitistas, destinadas a
falar de bailes da alta classe média, de "cariocadas", às quais o povo não tem
acesso,
de músicas que jamais serão cantadas nas ruas, escritas por compositores
diletantes, entre os quais gente da sociedade. Podem ser realmente frívolas,
como toda crônica
mundana que se preza. Mas não resta dúvida quanto ao fato de ser ele homem de
idéias. O que os redatores da Folha de Minas logo verão.
O jornal, dirigido por Affonso Arinos de Mello Franco, é muito bem-feito para a
época. Segue uma linha liberal, tenta ser tão popular quanto possível,
promovendo
concursos do tipo "Quais os melhores jogadores de futebol do Brasil, os brancos
ou os pretos ?" Uns votam em Dominguos da Guia, Leônidas da Silva, Fausto dos
Santos,
este o craque favorito de Noel(3). Outros em Romeu Pelliciari, Tim e o
conterrâneo Nariz.
É Fra Diavolo quem sugere um concurso mais ou menos nos mesmos moldes, só que
voltado para o carnaval: "Loura ou morena?" Ele recorda que Lamartine Babo fez
da morena
rainha do carnaval de 1933:
Propõe o concurso que não só cada clube e sociedade carnavalesca eleja, entre
suas sócias, uma loura ou morena para concorrer com as outras ao título de
Rainha do
Carnaval Mineiro de 1935, segundo votação popular, mas também que os
compositores da terra mandem seus sambas ou marchas que sirvam de réplica a
Linda Lourinha,
do ano passado.
Noel se interessa por essa parte do concurso e, na tarde de sexta-feira, 15 de
fevereiro, levado por Chico Lessa e Lourival Serra, entra na redação da Folha de
Minas
para dizer a Fra Dia-volo que também participará da disputa musical em torno de
louras e morenas. Aproveita para dar uma entrevista que o jornal publica em alto
de página no dia seguinte sob o título "Seja Breve". Entrevista? Não exatamente.
- Você acha que é preciso? - pergunta Noel ao repórter. - Para mim esse negócio
de entrevista é muito solene. Vamos conversar.
Uma breve conversa, como sugere o título da matéria. A uma pergunta sobre o que
veio fazer em Belo Horizonte, é laconicamente sincero:
- Engordar.
Faz comentários vários, elogia Aracy de Almeida ("É nova, mas das melhores"),
fala de samba. Quando lhe indagam há quanto tempo está na cidade, diz:
- Um mês. A Já um mês?
- É como se não estivesse. Não saio, não ando, nem nada. Como e durmo. Barba,
assim... Como Deus dá, olha só...
- Papai Noel...
- Pra você ver.
Refere-se duas vezes, durante a conversa da qual participam Francisco Lessa,
Lourival Serra, Gennaro Maltez, Miranda e Castro e Fra Dia-volo, a um samba
ainda inédito,
Pela Décima Vez, que no momento ele considera o seu melhor(4). A melodia é de
fato bonita e a letra fala de um de seus traços mais característicos: a
contradição.
E por falar em contradição, Noel começa dizendo ao pessoal da Folha de Minas que
não gosta de competições musicais:
- Conheço esses concursos. Os júris são formados por cronistas esportivos e,
daí, aquilo acabar sempre em boxe... Demais, eu não sou o tipo carnavalesco.
Mais adiante, faz um pequeno discurso para antecipar que concorrerá com um
samba:
- Para mim, prefiro o samba, que é malandragem. Marcha, não. Isso é mais sério.
Impõe respeito.
Pois bem, o Noel que não gosta de concursos e prefere o samba, no dia seguinte
se inscreverá neste, da Folha de Minas, e com uma marcha.
Embora em todos os embates - enquêtes entre os leitores, eleição da Rainha do
Carnaval pelo voto popular, escolha da musica por um júri onde houve de tudo,
até músicos
- a morena tenha sido vencedora do concurso da Folha de Minas, a marcha de Noel
-onomatopaicamente intitulada
Uatchf - não consegue mais do que um quinto lugar.
Essa morena
Cheia de beleza e graça
É o símbolo da raça
Cor de leite com café
E essa loura
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
(Uatch!)
De tão fria que ela é
Essa morena
Tem que ter um bom destino
Fez do samba o seu hino
Pra cantar cheia de fé
Pela morena
Que há de ser a padroeira
Da folia brasileira
Tenho que bater o pé
354
Loura ou morena?
A marcha com que Noel Rosa obteve o quinto lugar no concurso da Folha de Minas
acabaria esquecida. Ou quase. Uns poucos mineiros que a ouviram naquele verão de
1935
guardaram apenas alguns fragmentos da melodia que um deles, Rômulo Paes,
lembraria para os autores quase meio século depois. Quanto à letra - publicada
pelo jornal
em sua edição de 17 de fevereiro - Noel não a abandonou de todo. Retocou-lhe a
primeira parte e escreveu uma outra segunda inteiramente nova, dando ao
resultado
título também novo: Morena e Loura.
Essa morena
Que meu coração devassa
Simboliza a nossa raça
Cor de leite com café...
Essa lourinha
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela me constipo
De tão fria que ela é!
Esta morena
Que eu amo imensamente
Ficará indiferente
Se souber que eu ando assim.
Na minha sorte
Há um golpe que eu receio:
A lourinha que eu odeio
É quem gosta mais de mim!
Partindo da mesma idéia, Noel ainda escreveria, desta feita com a colaboração de
Hervê Cordovil, um samba a que dariam o título de Leite Com Café:
A morena lá do morro
Cheia de beleza e graça
Simboliza a nossa grande raça
É cor de leite com café.
E a loura da cidade
Nunca foi nem é meu tipo
Perto dela sempre me constipo
De tão gelada que ela é.
A lourinha sobe o morro e desce
Implorando sempre o meu amor
E, pensando em mim, se esquece
Que a mulher que se oferece
Perde todo o seu valor.
Foi no samba que encontrei socorro
Para a minha sorte tão mesquinha
Eu prefiro ser cachorro
Da morena lá do morro
Do que dono da lourinha.
Em 1969, quase trinta e cinco anos depois do concurso da Folha de Minas, a letra
de Uatch! seria remusicada pelo compositor Hamilton Sbarra. Com novo título,
Atchim!,
e um subtítulo, Cor de Leite Com Café, foi gravada por Aldacir Louro para o
carnaval de 1970, sendo pouco notada. Curiosamente, a nova melodia lembra muito
os fragmentos
guardados pelos mineiros de 1935, um dos quais, entrevistado por Cidinha Campos
num programa de televisão, garantiu que Sbarra nada mais fizera do que
aproveitar
tudo, música e letra, da versão original. A falta de memória - das pessoas, dos
registros sonoros, das partituras impressas - fez com que nessa história toda se
tenham dissipado, por entre as nuvens do tempo, tanto as duas marchas de Noel
como seu samba com Hervê, sobrevivendo apenas sua discutida e anacrônica
parceria carnavalesca
com Hamilton Sbarra. Além, é claro, da certeza de que era mesmo pelas morenas
que seu coração batia mais forte.
O vencedor do concurso é um samba intitulado simplesmente Morena, letra de um
certo Minho, música de uma jovem estreante, por ironia loura e ainda por cima
chamada
Branca, Branca Tolentino.
Os quatro dias de carnaval - de 2 a 5 de março - agitam a pacata Belo Horizonte.
Pouco se ouve de Noel nos bailes e nas ruas. Canta-se Feitiço da Vila. E também
sambas como Implorar (novamente Kid Pepe e Germano Augusto tendo sua condição de
co-autores contestada, desta vez pelos que juram ter o crioulo Seda feito tudo
sozinho)
e Foi Ela. Ou marchas como Grau Dez, Eva Querida e Cidade Maravilhosa'.
Passado o carnaval, a cidade volta a mergulhar na tranqüilidade, na morna rotina
que Noel estranha desde o primeiro dia. Uma rotina que só é quebrada pelo fato
de
que todos já sabem que ele está ali. A entrevista publicada pela Folha de Minas
tratou de espalhar por toda parte que o grande Noel Rosa encontra-se na terra.
Na
quarta-feira de cinzas é a vez de O Debate procurar o visitante para uma
entrevista, publicada no sábado, 9 de março, e contendo importantes declarações
(ver boxe
A Alma do Samba).
O repórter conta que foi encontrar Noel Rosa tomando chope no Palladio, vestindo
355
terno cinza, camisa branca áejersey, gola aberta. E observa que, logo ao
primeiro contato, Noel revela-se um sujeito tímido, retraído, modesto. A
entrevista começa
com comentários sobre o carnaval, que Noel, mentindo, diz ter achado bom:
-... não pode deixar de ser bom o carnaval numa cidade tão linda.
O repórter pergunta-lhe, ingenuamente, como se faz um samba. E a resposta de
Noel bem pode ser resumida numa palavra: bossa.
Não saiu mesmo nos Foliões da Floresta. Não foi a bailes, não participou de
"cariocadas". Limitou-se a reunir-se com a turma do rádio para tomar
intermináveis copos
de Cascatinha, entre um samba e outro, enquanto os blocos desfilavam pela
Affonso Penna. Tia Carmem guarda a esperança de que, passado o carnaval, o
sobrinho volte
a obedecer à rotina tranqüila dos primeiros dias.
Desta vez a ingênua é ela. Na verdade, parecem feitas de ingenuidade todas as
pessoas que vivem ou freqüentam a casa da Rua São Manuel, incluindo o primo
Gilberto,
médico dedicado mas nem de longe familiarizado com as manhas e rebeldias de
Noel. Passado o carnaval. Gilberto e Mário Brown voltam a falar sério com o
doente. Tão
sério que Noel promete, de agora em diante, recolher-se às dez da noite,
renunciar às madrugadas, deixar a música para os encontros vespertinos com a
turma da rádio.
É quase forçado a prometer tanto, pois Mário Brown diz que esta é a condição
para que continue em sua casa.
Dois, três dias, uma semana, Noel cumpre religiosamente o prometido. Nelson
Orsini estranha que ele não apareça pelo centro, chega a dar um pulo com Roberto
Ceschiatti
até o bairro da Floresta. Noel está na varanda. É ali, longe de todas as
tentações da boêmia, que eles terão de cantar seus sambas. O máximo de arte que
Noel se
permite é ir ao telefone e repetir, diante de um Roberto Ceschiatti assustado, a
brincadeira:
- Desembargador? Aqui é o embaixador Bill!
Às vezes, tão bem-comportado está que a tia o deixa ir até o centro na parte da
tarde. Numa dessas saídas, reencontra Hervê Cordovil, de breve visita à família.
O pai, Cordovil Pinto Coelho, é político. Os irmãos, futuros doutores:
- Você está fazendo falta no Casé - diz Hervê.
Os olhos de Noel brilham. Zeno Santa Rosa, Nelson Orsini e Roberto Ceschiatti
são testemunhas desse brilho estranho que, no fundo, significa enorme vontade de
estar
longe dali, em Vila Isabel, na Lapa, no Rio distante que as novidades trazidas
por Hervê tornam um pouco
mais perto. Estão todos à mesa do bar do Grande Hotel.
Hervê Cordovil caminha para fazer-se um dos mais prolíficos compositores
populares brasileiros. Sambas, marchas, coisas do Nordeste, canções e até os
ritmos americanos
da moda farão parte de sua obra(7). Um homem extremamente generoso, e desde
jovem muito espiritualizado. Cada vez mais para o fim da vida se dedicará ao
kardecismo
e a movimentos de caridade. Isso o absorverá inteiramente. Os centros espíritas
poderão ganhar valioso colaborador, mas a música popular perderá enorme talento.
Noel gosta muito de Hervê. Quando este se levanta, deixando-o e aos outros
sentados na mesa do bar, Zeno, Nelson e Ceschiatti vêem o pensamento de Noel
fugir mais
uma vez, aquele mesmo jeito assustadoramente vago de estar ali e ao mesmo tempo
longe. Noel deixa a cabeça cair meio de lado, mantém-se calado por algum tempo,
triste,
contagiando os amigos. Em seguida, desperta:
- Vocês sabem que o Hervê é um músico extraordinário ?
Puxa o último cigarro do maço de Liberty Ovais, abre o papelão em dois e escreve
nele a letra de Triste Cuíca, samba dos dois que Hervê diz estar pronto para
Aracy
de Almeida gravar na Victor.
- Fizemos este samba no ano passado - conta Noel. Escrevia letra primeiro. Um
soneto.
Chama a atenção para a bela e difícil melodia do parceiro e canta:
A alma do samba
"- Ninguém sabe como o samba nasceu. Ele foi um dia descoberto na rua e
aperfeiçoado. Hoje, tem escola. Criadores de estilo. J.B. Silva, o célebre
Sinhô, foi um
deles. Sinhô foi ao morro, captou vários estribilhos de samba e os estilizou com
grande sucesso. Jura, por exemplo, e também Gosto Que Me Enrosco. A princípio o
samba foi combatido. Era considerado distração de vagabundo. Mas o samba estava
bem fadado. Desceu do morro, de tamancos, com o lenço ao pescoço, 'vagou pelas
ruas
com um toco de cigarro apagado no canto da boca e as mãos enfiadas nas
algibeiras vazias e, de repente, ei-lo de fraque e luva branca nos salões de
Copacabana. Mas
o companheiro do samba será sempre o violão, que já obteve também a sua vitória
definitiva. O samba é a voz do povo. Sem gramática, sem artifício, sem
preconceito,
sem mentira. É malicioso e... ingênuo. O povo carioca sente a alma do samba. Mas
o morro do Castelo foi abaixo e a polícia 'espantou' os malandros inveterados e
'escrachou' as cabrochas. Mas o malandro não desapareceu. Transformou-se,
simplesmente, com a sua cabrocha, pra tapear a polícia. Eleja está de gravata e
chapéu
de palha e ela usa meias de seda. Quando se fala em ser doutor em samba, não se
diz uma frase vã. Não faltam médicos e advogados para elevar o samba. Aí estão
os
doutores Joubert de Carvalho, Ary Barroso, Olegário Mariano e muitos outros.
Futuramente, teremos coisa mais sólida, mais estilizada. Por enquanto, o samba
está
evoluindo e o faz rapidamente. O fox-trot e o tango já se transformaram e hoje
representam duas raças distintas. Têm orquestras típicas. O samba ainda não a
possui.
Quando houver aqui uma orquestra típica de samba, o brasileiro poderá dizer que
o seu país tem a sua música original.
- Mas, Noel, já existem alguns instrumentos próprios para o samba, não?
- Alguns, mas não todos. E apareceram agora, não se achando ainda popularizados.
A cuíca que ronca. O tamborim repicando em torno do 'centro' que faz a barrica.
O omelê que floreia dentro de mil variedades de ritmo. O afochê. São todos
instrumentos destinados a embelezar o ritmo. Não há samba sem ritmo (uns dizem
'cadência',
outros 'batida'). O certo, porém, é que o samba foi inspirado no pisar da morena
carioca."
entrevista a O Debate, Belo Horizonte, 9 de março de 1935.
em Belo Horizonte. Para conversar, intensificar a amizade, compor juntos. Nem
sempre no tom de Triste Cuíca. Às vezes acontece de o humor substituir a
tragédia.
Como em O Que é Que Você Fazia?
Dois, três dias, uma semana, não mais. Não demora muito as noites voltam a
atrair Noel, a acenar para ele com sua lua e suas estrelas. Na praça da
Liberdade, passa
a encontrar-se com Nelson Orsini, sempre por volta das onze. Seus programas
variam de incursões às casas da Rua Guaicurus a serenatas românticas por onde
quer que
haja quem os ouça. Sabendo que os tios não o perdoarão por essas madrugadas, tem
de contar com a ajuda de Lindaura, que parece ter esquecido a história da
"irmãzinha".
Os dois arquitetam um insólito expediente de fuga para ele.
- Boa-noite, tia Carmem. Boa-noite, tio Mário - despede-se ele, ar inocente, ao
se recolher com a mulher às dez da noite.
Depois, sem trocar de roupa, apaga a luz e recomenda a Lindaura o mais absoluto
silêncio. É preciso convencer os tios de que já estão dormindo. Encosta o ouvido
na porta e se certifica de que Mário e Carmem Brown ainda estão na sala. Então,
vira-se para a mulher:
- Preciso dar uma saída.
E tira do bolso uma cenoura crua. A janela do quarto dá para o terreno baldio.
Embora seja casa de um andar só, mais de dois metros separam a janela do Chão do
terreno.
Mas Noel já descobriu que ali pasta, em sossego, o burro de um vizinho. Amigo e
conhecedor de burros, ele acena com a cenoura para o animal. Este se aproxima da
janela, Noel estica-lhe a cenoura, o burro chega mais perto, Noel pula em cima
dele e finalmente sai pela noite. Lindaura, a segunda, terceira vez em que isso
acontece,
sabe que o marido
357
não diz a verdade ao prometer que não demora. Só voltará com o sol.
Com Nelson Orsini, longas prosas, muitas canções. É justamente na Praça da
Liberdade que Noel conclui, na frente de Nelson, a melodia para uma letra em que
deixa
toda a sua filosofia de vida, o homem do povo, as criaturas sem eira nem beira
(e muitas vezes sem nome), mas valendo mais que os figurões, os graúdos
importantes.
E a felicidade estando muito mais nas coisas simples do que na luta que, por
exemplo, tia Carmem garante ser necessário travar para se vencer na vida. Noel
como
João Ninguém, personagem-título do seu novo samba, não acredita nesta luta. Nem
mesmo em ideais abstratos. Não acredita em nada além de um canto para dormir, de
um prato de comida, um cigarro. Nem sequer no trabalho é possível acreditar.
Lembra-se do pai, matando-se de trabalhar a vida inteira, para parar entre as
paredes
de um quarto de hospício. Acredita, sim, em não fazer inimigos. E em ter muitos
amores. Por isso canta:
João Ninguém
Que não é velho nem moço,
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar.
Num vão de escada
Fez a sua moradia,
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar.
João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais
Esse João
nunca se expôs ao perigo,
Nunca teve um inimigo,
Nunca teve opinião.
João Ninguém
Não tem ideal na vida.
Além de casa e comida
Tem seus amores também.
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém.
Noel e Nelson ficam conversando até tarde. Todo fim de noite tiram a sorte para
ver quem vai levar o outro em casa. Muitas vezes é o Nelson, estudante de
odontologia,
que tem de atravessar o viaduto de Santa Teresa para acompanhar o amigo à
Floresta. Numa dessas madrugadas, um guarda os surpreende no meio de uma canção.
- Vão pra casa os dois! Isso não é lugar de desocupado.
Nelson e Noel protestam. O guarda pede-lhes os documentos. Ao ver que está
diante de Noel Rosa, muda o tom de voz. Tira do bolso do dólmã uma flauta e diz:
- Então, dá aí um si bemol.
E vão os três cantando e tocando até a São Manuel
Às vezes há programas menos estimulantes, Noel pouco à vontade, indo mais por
força da insistência dos amigos:
- Vamos à festa na casa do tabelião Bolívar?
Família tradicional, gente meio grã-fina, Noel tenta escapar ao convite de Chico
Lessa. Mas acaba indo com toda a turma. Lá, como não pode deixar de ser, os
amigos
pedem que cante alguma coisa.
- Outro dia - retruca ele, esquivo.
Os amigos insistem, Noel chama Nelson, Roberto, Zeno, todos a um canto. Numa
inesperada crise de modéstia, diz, cochichando:
- Vocês me trouxeram aqui para passar vergonha? Acha que eu vou cantar minhas
musiquinhas para esses grã-finos?
Os amigos insistem. Vendo que nada mais pode fazer, canta. E é aplaudido de pé.
De tudo que compõe aqui, nada terá seu valor tão pouco reconhecido como Cansei
de Pedir. Neste samba o poeta fala de alguém - seria Clara? - que o fez sofrer
por
amá-lo tanto sem que ele pudesse retribuir. A originalidade está justamente na
forma e na causa deste sofrimento. Ao contrário de todos os outros letristas da
música
popular, sua queixa não está em ter sido traído, abandonado ou não-
correspondido. Mas no oposto. Sofre com o próprio desamor, peso afinal de uma
consciência que
gostaria de ter leve. Um samba cheio de bossa, com uma letra singular.
Já cansei de pedir
Pra você me deixar,
Dizendo que não posso mais
Continuar Amando sem querer amar.
Meu Deus, estou pecando,
Amando sem querer
Me sacrificando
Sem você merecer.
Amar sem ter amor é um suplício.
Você não compreende a minha dor.
Nem pode avaliar
o sacrifício Que eu fiz
Para ver você feliz.
Com a ingratidão eu não contava.
Você não compreende a minha dor.
Você se compreendesse
me deixava Sem chorar
Para não me ver penar.
358
Mas, para tristeza desses boêmios mineiros, a estada de Noel em Belo Horizonte
não vai durar muito mais. Os tios não se conformam com suas noitadas, não querem
ser
responsáveis por uma recaída. É verdade que ele ganhou preciosos quilos aqui.
Mas como estarão os pulmões? Carmem escreve à irmã dizendo que não pode mais
cuidar
dele. O próprio Noel não pode cuidar de si mesmo. Além disso, há as saudades. O
Rio, Vila Isabel, Ceei, os amigos, o pai internado. É hora de voltar.
Nos primeiros dias de abril, começa a fazer as malas. Despede-se dos amigos, faz
com eles a última farra, tomam juntos as últimas cervejas. Dá adeus a Belo
Horizonte,
não sem antes pegar de novo no telefone.
- Alô, desembargador? Aqui fala o embaixador Bill.
NOTAS
1. Atual Santos Dumont.
2. Canção americana escrita em 1927 por Mort Dixon e Harry Woods. Na versão
brasileira de Nilo Sérgio, Trevo de Quatro Folhas.
3. Diz uma nota de Carioca de 11 de abril de 1936: "Noel Rosa gosta de passear
na chuva, sem qualquer agasalho e chapéu. É torcedor de futebol, assistindo aos
jogos
noturnos e preferindo, como jogador, Fausto." O comentário é clara brincadeira
sobre o temperamento boêmio de Noel, sempre "na chuva", homem da noite,
admirador
do rebelde e também boêmio Fausto dos Santos, "a maravilha negra", na epoca as
voltas com uma complicada questão de transferência que o levaria do Vasco da
Gama
ao Flamengo, via Nacional de Montevidéu. Fausto morreria tuberculoso em 1939.
4. Pouco antes, ao Jornal de Rádio de 1? de janeiro de 1935, Noel tinha sido
claro ao apontar Pela Décima Vez como seu samba favorito: "É a melodia que fala
mais
à minha alma, que me sugestiona mais poderosamente a imaginação, que acorda em
mim o desejo do sonho. Fiz Pela Décima Vez com verdadeiro carinho artístico,
procurando
fixar, malgrado a aparente leveza do tema, um verdadeiro drama do coração."
5. Uma piada que Noel Rosa repetirá pelo menos mais uma vez. Em entrevista a A
Pátria de 4 de janeiro de 193É>, a uma pergunta do repórter sobre o que pensa
dos
concursos de música de carnaval, responderá: "Até hoje as músicas não foram
julgadas por técnicos e sim por cronistas esportivos, que comparecem ao júri por
esporte,
razão pela qual o concurso termina em lutas de boxe e capoeiragem." E quando o
repórter lhe indagar se seria este o motivo de não participar de tais concursos,
dirá:
"Sim, eu sou muito franzino e me admiro como é que meu amigo Lamartine Babo tem
saído ileso."
6. Com base em informação por escrito de Hélio Rosa, Jacy Pacheco sugere em
Noel Rosa e Sua Época (página 97) e em O Cantor da Vila (página 31) que Noel
teve alguma
coisa a ver com a autoria de Cidade Maravilhosa (naverdade, a informação de
Hélio era de que o irmão vendera a marcha a André Filho por 800 mil réis). Mas,
a não
ser por este "documento", hoje pertencente aos arquivos dos autores, não há
nenhum outro indício de que isso realmente tenha acontecido.
7. Hervê Cordovil Pinto Coelho, nascido em Viçosa, Minas Gerais, em 1914,
morreu em São Paulo em 1979- Entre tantas outras produções - os sambas Força do
Malandro,
Prelúdio, Jangada, Mágoa, Uma Loura, as marchas Carolina e
Inconstitucionalissimamente, os baiões Cabeça Inchada, Pé de Manacá e toda uma
série gravada por Carmélia
Alves - comporia também valsas, choros, toadas, boleros, fox-trots e até um
twist, Rua Augusta, sucesso nos anos 60 na voz de seu filho Ronaldo, mais
conhecido como
Ronnie Cord.
359
PARTE V
Capítulo 36
E pelas informações que recebi
Já vi
Que essa ilustre visita era você
Só Pode Ser Você
Noel Rosa não hesita em recorrer a Cícero para dizer o quanto é bom estar de
volta. O Rio é seu mundo. E Vila Isabel, sua pátria. Faz questão
de
deixar isso bem claro numa entrevista a a Voz do Rádio, a primeira desde que
chegou de Belo Horizonte:
"Mineiras gentis, de tez amorenada, com esplêndidas vozes, e verdadeiros tipos
de beleza física também, interpretaram, com grande desvanecimento para mim, as
composições
em que mais externei o meu sentimentalismo, envolto na dolência excitante do
samba-canção."
Mais adiante:
"Enterneci-me vivamente quando pressenti que o meu samba Feitiço da Vila batera
fundo no espírito daquela gente boa. Difundiram-no, popularizaram-no, e numa
mostra
de curiosidade bem feminina as moças perqueriram as razões que lhe inspiraram o
título. Traduzi-o por Feitiço de Minha Pátria, pois, como já disse Cícero, 'a
pátria
é onde se está bem', e nunca me senti melhor do que no recanto calmo e bonançoso
de Vila Isabel."(1)
É sincero. Nunca se sentiu - nem se sentirá jamais - tão bem quanto na Vila
Isabel destes dias de abril, quando começam a cair as folhas dos oitis do
Boulevard e
a se cobrir de um sol meio esmaecido as montanhas que se divisam das janelas do
chalé, lá longe, na Tijuca. O verão passou. E embora possa parecer ainda mais
triste
o sol da Vila durante os meses de outono, esta é a época em que o bairro se
torna mais agradável e acolhedor. Ou mais calmo e bonançoso.
Noel Rosa está bem. Mais gordo e corado, as pessoas notam o quanto lucrou
em Belo Horizonte. É na mesma A Voz do Rádio que se lê:
"A novidade do dia é o retorno de Noel Rosa ao broadcasting. Fervilham os
comentários. No studio, Isis Silva relembra o tempo da célebre dupla Aracy-Noel.
- A última novidade - intervém Solange Mar a - vocês ainda não sabem. O Noel
veio de Minas tão forte que agora já não fará mais dupla.
- Como assim?
- Agora vai haver mesmo um trio. Odette Amaral, a um canto, resmungou:
- Vou me candidatará tríade. Ele é tão interessante..."2
A viagem de volta foi feita no mesmo trem de madeira, duro, desconfortável e
preguiçoso. Desta vez, porém, valeu a pena, o destino era outro. Mal desfez as
malas,
Martha veio contar-lhe as novas, falar de seus sambas que as estações de rádio
nunca deixam de tocar, os amigos que vieram perguntar por ele, os vizinhos que
se
interessavam por sua saúde, as visitas
363
João Ninguém
Não trabalha um só minuto
Mas joga sem ter vintém
E vive a fumar charuto...
Quanto aos sambas recém-concluídos, um deles é Só Pode Ser Você. O outro,
Silêncio de Um Minuto, beira a perfeição, um amor acabado parecendo-lhe tão
irremediável quanto a morte:
Um parceiro no presídio
Onde quer que a noticia chegasse causava espanto nos que conheciam de perto o
sereno Ismael Silva, misto de malandro e sambista, mais sambista que malandro.
Como
era possível ter ele sacado o revólver, à porta do Café Paulicéia, esquina de
Gomes Freyre com Visconde do Rio Branco, e disparado meia dúzia de vezes contra
o desavisado
Edu? Segundo algumas versões, nenhum dos tiros pegou. Segundo outras, pelo menos
um carimbou feio o pobre motorneiro, deixando-o por longo tempo sem poder se
sentar.
As versões também diferiam quanto à causa. Para uns, tudo se devia ao fato de
ter o Edu abusado de Orestina, irmã de Ismael. Para outros, foi briga de ciúmes,
os
dois homens enrabichados pela mesma mulher. Possibilidade esta que os mais
íntimos de Ismael nem consideraram. Por causa de mulher? Impossível. Como
observou, muito
à sua maneira, outro negro bom de música, Getúlio Marinho, o Amor:
- Logo o Ismael, que nem sabe onde a burra mija...
Seja lá como tenha sido, Ismael Silva foi preso em flagrante e processado por
tentativa de homicídio. Naturalmente, não era seu primeiro problema com a Lei.
As delegacias
de então - em especial a quinta e a nona - já haviam registrado várias passagens
dele por suas dependências, antes do tiroteio no Café Paulicéia. Malandro,
inveterado
jogador de chapinha, tentando viver de samba numa época em que sambista era
quase sinônimo de vagabundo, tinha sido preso inúmeras vezes. Numa delas em
Paquetá,
onde morava o policial, também compositor, Roberto Martins, para quem o
comissário local, Policarpo, telefonou:
- Dá um pulo até aqui, Roberto. Prendi por trapaça no jogo um crioulinho muito
magro que se diz compositor. Ele jura que te conhece.
- Como se chama?
- Ismael Silva.
- Ismael? Não pode ser, Poli. Mas, se for, é o autor de...
E Roberto Martins se pôs a cantar ao telefone alguns sambas de Ismael, Se Você
Jurar, Para Me Livrar do Mal, Não Há, Nem É Bom Falar, Novo Amor, Adeus. Quando
acabou,
o comissário estava perplexo:
- Mas tudo isso é dele? É melhor mesmo você vir, Roberto.
Roberto Martins foi. Da porta gradeada
do xadrez, viu Ismael lá dentro, sentado no Chão, ar abatido. O comissário
concordou em soltá-lo. Já na rua, muito sem jeito, Ismael tentou se explicar:
- Foi uma besteira minha, Roberto. Eu estava arrestado, sem um tostão. Fui dar
uma bolinha, tive azar, a polícia me pegou.
- Mas você não tem necessidade disso, Ismael. É grande compositor! Em todo caso,
vamos fazer uma coisa: você toma a primeira barca efica tudo entre nós.
- Se eu soubesse que você morava na ilha, Roberto, isso não tinha acontecido. Eu
te pedia o dinheiro para a passagem de volta.
Tentativa de homicídio. Com todo o empenho do advogado Prudente de Moraes Neto,
Ismael Silva não pôde livrar-se de uma pena de cinco anos de detenção, dos
quais,
por bom comportamento, só cumpriria dois. Mas dois anos que valeram por quinze.
Ao entrar no presídio - o frio e feio prédio da Frei Caneca - Ismael começava a
viver
um desterro bem mais longo do que sua pena. Um desterro em parte forçado, em
parte voluntário. Forçado porque os dois parceiros que o haviam ajudado a subir
tão
alto como compositor popular, Noel Rosa e Francisco Alves, saíam de sua vida
para sempre, deixando-o repentinamente só. Quando Ismael atirou no Edu, Noel
estava
em Belo Horizonte cuidando dos pulmões. Durante o processo, a conselho de
Prudente de Moraes Neto, que preferia vê-lo fora de circulação até o dia do
julgamento,
refugiou-se em Teresópolis. Condenado, ao sair da prisão, Noel já estaria morto.
Quanto ao outro parceiro, Chico, nunca mais quis saber do "preto de alma branca"
que, nas águas de Noel, se atrevera a abandoná-lo.
Desterro voluntário porque - no fundo um homem de brio, sensível e orgulhoso -
Ismael se deixaria dobrar ao peso da vergonha de ser um ex-convicto. Passou a
evitar
os amigos, o meio artístico, os lugares de sempre. Tinha medo que lhe fizessem
perguntas sobre o que tanto queria esquecer. Enfim, desapareceu. Houve até quem
o
julgasse morto. Sozinho, triste, sem dinheiro, perambulou por aí. Mas houve
também quem tentasse ajudá-lo. O próprio Prudente, por exemplo. E Pixinguinha,
que em
carta datada de 10 de maio de 1939 pediria ao musicólogo Mozart Araújo um
emprego para o amigo em dificuldade: "... espero que o que puder fazer pelo
Ismael seja
como se fosse por mim."
Teriam sido essas palavras de Pixinguinha a semente de um antológico samba
autobiográfico com o qual, já em 1950, Ismael se reencontraria com o sucesso e
com a vida:
368
Ô Antonico,
vou-lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim...
Pode-se imaginar o que terá sentido Noel ao saber de Ismael Silva encarcerado -
ele que tinha pavor de cárceres e carcereiros. No seu caderno de letras, deixou
esboçada
uma, Saí do Presídio, que bem pode ter sido sugerida pelos sofrimentos do
parceiro:
Saí agora mesmo do presídio
E já cumpri a pena de homicídio
Do qual não fui autor
(Meu Deus do céu, que horror!
Lá dentro faz calor)
Nas grades da prisão eu já sabia
Que o nosso grande amor você traía
Eu aturei suas afrontas
Mas vou acertar nossas contas.
Você foi má
Nunca mais conseguirá
Calcular a imensa dor
Mas vai ter sempre na lembrança
Que o prazer de uma vingança
É maior do que qualquer amor
Não esqueci a ingratidão
E resolvi acabar com o meu grande mal
Se o meu plano não falhar
A "assistência" vai levar Seu esqueleto ao hospital
Só daqui a algum tempo será possível ava liar o quanto a morte do pai afetou
Noel. Em Martha a tragédia deixa marcas visíveis, no rosto sofrido, nos olhos
cansados,
nos cabelos que a partir de agora vão embranquecer rapidamente. Parte do seu
mundo acaba de desmoronar. Tem 45 anos e ares de muito mais. Sente-se abatida,
sem forças.
E cada vez mais só.
Em Hélio as marcas da tragédia têm a forma de resignação. Surpreende a todos com
sua firmeza. Ou com a sua cada vez mais forte espiritualidade: "Meu pai não
morreu.
Está mais vivo que nunca!"
Noel não fala do suicídio com ninguém, nem mesmo com Ceei. Trabalha normalmente,
vai aos programas de rádio, às editoras, aos lugares de sempre. Como se nada
tivesse
acontecido.
369
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê.
Nasci no Estácio
O samba é a corda, eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você.
Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
E felicidade maior neste mundo não há.
Já fui convidada
Para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é
O X do problema.
Você tem vontade
Que eu abandone o Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana.
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia de Copacabana.
370
Imprevisível e cheio de talento. Confuso, também. Não é que, dias depois de Emma
lançar o samba, coberta de aplausos, no Rio Follies, ele encontra Aracy de
Almeida
jogando sinuca num café da Rio Branco? Pois assim que ela lhe pergunta se tem
algo de novo, um samba, uma marcha, que possa gravar ou cantar no rádio, Noel
simplesmente
diz:
- Tenho, tenho sim.
E escreve num maço de Odalisca a letra de O X do Problema. É claro que sem saber
que para o resto da vida Aracy e Emma disputarão a nonra de ter sido para elas
que
ele fez um de seus maiores sambas.(5)
Não é menos intensa sua atividade no rádio. Sem ter contrato de exclusividade
com ninguém, vive saltando de um lado para outro. Continua no Programa
Suburbano, de
Luís Vassalo, mas também se apresenta no Casé, agora na PRA-2, Rádio Sociedade
do Rio de Janeiro, instalada no terceiro andar da Rua da Carioca, 45. Com
Patrício
Teixeira, pode ser ouvido ainda em sensacionais "desafios em série" na Mayrink
Veiga, nos mesmos três quartos de hora em que atuam Luís Barbosa, Aurora
Miranda,
Ismênia dos Santos e a cantora lírica Maria Amorim.
Esforça-se muito para apresentar sempre números novos em seus programas. Se não
inteiramente inéditos, ao menos versos recém-inventados, para sambas de sucesso
como
Feitiço da Vila. É assim que acrescenta, à letra gravada no ano passado por João
Petra de Barros, mais duas estrofes exaltando o seu bairro, por ele cantadas no
rádio:
Quem nasce pra sambar
Chora pra mamar
Em ritmo de samba.
Eu já saí de casa olhando a lua
E até hoje estou na rua.
A zona mais tranqüila
É a nossa Vila,
O berço dos folgados.
Não há um cadeado no portão
Pois lá na Vila não há ladrão!
Uma breve volta à infância, não só pela referência ao choro pra mamar em ritmo
de samba, mas sobretudo àqueles tempos em que Vila Isabel gozava a má fama de
atrair
ladrões, seus moradores sempre sobressaltados com assaltos que ocorriam até nos
bondes. Mas esse tempo, garante Noel nos novos versos de Feitiço da Vila, já
passou,
todo o bairro podendo se orgulhar de dormir sem cadeado no portão.
Era a oportunidade que Wilson Baptista esperava para entrar novamente em ação.
Depois que Noel nem ligou para o seu Mocinho da Vila, dando praticamente por
encerrada
uma polêmica musical que não lhe convinha, Wilson saiu de cena. Ainda é um
malandreco, ainda anda de chapéu de lado e tamanco arrastando, num permanente
dividir-se
entre subempregos e a desesperada busca de uma chance de se firmar no meio
artístico. Acaba de formar com o pianista Lauro Paiva, o baterista Roberto
Moreno e o
cantor e compositor Erasmo Silva um pequeno conjunto que se tem apresentado em
cidades do interior fluminense. Mas quem sabe disso? Quem toma conhecimento de
suas
músicas? Wilson continua fiel ao seu sonho: "Ainda vou ser algum troço na
vida..." Mas há sonhos difíceis de realizar. Por isso é preciso aproveitar as
oportunidades.
Todas elas. Sabe que nenhum compositor popular brasileiro está tão em evidência
quanto Noel nesses dias em que o Brasil inteiro canta Feitiço da Vila. E não
perde
tempo. Certo de que, reabrindo a polêmica, provocando Noel, obrigando-o a tomar
conhecimento do que diz e faz, chamará a atenção do meio musical e mesmo do
grande
público para o seu nome, compõe um samba, Conversa Fiada, que responde
literalmente a Feitiço da Vila.
É conversa fiada
Dizerem que o samba
Na Vila tem feitiço,
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso.
A Vila é tranqüila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir,
Dêem duas voltas no cadeado.
Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer
E conhecer o berço dos folgados
A lua nessa noite demorou tanto
Me assassinaram um samba
Veio daí o meu pranto.
Depois, por ver o seu Feitiço da Vila tão literalmente respondido e seu bairro
tão debochada-mente atacado. Desde logo sabe que, se se der ao trabalho de um
contra-ataque,
este tem de ser definitivo, mortal.
-Noel, tem gente aí falando mal da Vila- contam-lhe moradores do bairro como se
a exigir providências.
-Já sei, já sei... - responde já pensando no contra-ataque, que vem mesmo em
termos definitivos, mortais, na forma de um samba intitulado Palpite Infeliz,
dos mais
bem elaborados de toda a obra de Noel Rosa. Dos mais populares e perenes também.
Alvejado por ele, Wilson ainda vai se debater, tentar reagir, apelar para
estocadas
pessoais e insultuosas. Mas com o tempo compreenderá que o duelo chegou ao fim.
Sua admiração por Noel, já grande, crescerá ainda mais. Palpite Infeliz, mortal,
definitivo, é um golpe de mestre:
NOTAS
1. A Voz do Radio, 11 de abril de 1935. Noel cita Cícero corretamente: Pátria
est, ubicumque est bene, diz o orador latino em suas Tusculanae Disputationes,
citando
por sua vez frase atribuída pelo poeta Marcus Pacuvius a Teucro, primeiro rei de
Tróia.
2. A Voz do Rádio, 11 de abril de 1935.
3. No mesmo prédio em que anos mais tarde, ao lado do Museu da Imagem e do Som,
funcionaria o Arquivo Almirante.
372.
Capítulo 37
anotando. Como se vê, piadas menos engraçadas do que as que ele próprio poderia
contar se recorresse mais à irreverência carioca das ruas e dos botequins do que
à ingenuidade dos almanaques. De qualquer modo, é delas que sairão as falas de
Bonifácio e Albuquerque nas "Conversas de Esquina".
O segundo projeto de Almirante é muito mais ambicioso e interessante: um
programa semanal de meia hora sob o título "Como se as óperas célebres do mundo
houvessem
nascido aqui, no Rio..." Na verdade, seriam pequenas óperas bufas cariocas, com
muito humor e deboche, os textos inspirados nos enredos e personagens das óperas
clássicas, mas os números musicais não passando de paródias de canções populares
brasileiras.
As paródias - todos sabem - são uma velha mania de Noel. Basta que nos lembremos
das que ele andou fazendo em cima do Hino Nacional. E também as que foram
escritas
sobre as melodias de Gigolette, Casinha da Colina, Suçuarana, Diga-me Esta
Noite, Cheek To Cheek. Paródias como esta, do tango El Penado 14", transformado
em Pesado
13 e gravado por
Paulo Netto de Freitas em 1931, contando a tragicômica história de um
prestamista:
Num quarto solitário
Na Rua do Rosário
Com um 13 bem na porta
Um turco lá morou
Disse o seu patrício
Que ele morreu no hospício
E cheio de aflição
Porque engoliu um tostão.
O seu nome era Rachid,
Abdula ou Farid,
Nascido na Turquia
Criado na Bahia
Ele era prestamista e vigarista
Nunca perdeu de vista
O bolso de ninguém
Por causa de um vintém.
Seu quarto todo escrito
Com contas de somar
E de multiplicar
Não tinha dividir
E por economia
Pra não gastar seu sangue
Com as pulgas já famintas
Ficava sem dormir.
Em uma carta escrita
Deixava como herança
Ao filho inda criança
As contas por cobrar
Ele era precavido
Pro caixão ser pequeno
Morreu bem decidido
De cócoras, encolhido.
E o pesado 13
Em uma sexta-feira
Também num dia 13
Faz hoje quase um ano
Que teve o intestino
Por choque fraturado
Pois foi atropelado
Por um aeroplano.
Num dia em que um amigo
Ao lhe pedir abrigo
Ao ver aberta a porta
Quase morreu de horror
Pois viu por sobre a cama
O terno de Farid
E viu dependurado
Abdula num cabide.
Ou como esta, da belíssima valsa-canção Dona da Minha Vontade(5), em que o tom
lírico, apaixonado, da letra original, é substituído por versos inspirados na
penúria
do carioca (o prestamista mais uma vez revisitado), que Noel prefere chamar de
Dono do Meu Nariz:
375
Conversas de Esquina
- Olá, Bonifácio! É verdade que estás casado?
- Por enquanto, não! Mas ando procurando uma esposa ideal para um doutor como
eu.
- Qual é a esposa ideal para um doutor?
- Ora, essa! Uma pequena imbecil!
- Por que imbecil?
- Para que não se meta em meus negócios e faça todas as minhas vontades!
- Ora, Bonifácio! Escolhe qualquer uma e fica descansado! A mulher que casar
contigo há de ser forçosamente uma imbecil!
- Por falar em imbecil, eu me lembrei agora do teu alfaiate!
- Por que eu lhe passei o calote?
- Não! Porque ele te fez estas calças muito curtas!
- Não concordo contigo, Bonifácio! As minhas calças estão muito bem-feitas! As
minhas pernas é que estão muito compridas!
- Por falar em compridas, eu me lembrei agora das línguas das minhas vizinhas!
-Já sei que vais mudar de casa!
- Adivinhaste, Albuquerque!Mas... não é só por causa das más línguas que vou me
mudar. É porque minha casa, cujo aluguel é de 800 mil-réis, é tão pequena... tão
pequena que eu nem tenho lugar para ler os jornais aos domingos!
- Mas... por falar em domingo, tu vais assistir às corridas nojockey Club?
- Não! Deus me livre!Eu ando muito pesado.
- E eu também, Bonifácio! O meu azar é tão grande... que qualquer dia me enfio
nessas caixas de papéis da Avenida.
- Não faça isso, Albuquerque! Isso é um "papel sujo"! (Risadas)
- Olá, Albuquerque! Você anda sumido! Por onde tem andado?
- Estive na Europa e agora sou colecionador de moedas! A propósito: quais são as
moedas mais raras daqui do Brasil?
- São todas.
- Todas?!
- Sim, senhor. Aqui no Brasil as moedas são raras! Há três meses que não vejo
uma!
- Esta é boa, Bonifácio. E você? Tem clinicado muito?
- Não. Deixei a clínica e agora faço versos.
- Mudou de profissão?
- Não! Faço versos para matar o tempo!
- Não tem mais cliente para matar?
- Que matar!... Eu ando pedindo a Deus que não me matem! Ultimamente vivo
isolado de tudo e de todos.
- Esse seu isolamento é receita médica?
- Não. É outra receita. Estou fugindo daqueles que me mordem.
- Daqueles que pensam que você é banco?
- É. Mas não "banco"! Por falar em bobo... Você está noivo?
- Estou.
- E sua noiva tem juízo?
- Se tem! Nunca ninguém teve cara de pedir um beijo à minha noiva!
- Ela é que não tem cara para que
AlGuém lhe peça um beijo.. (Vaia)
- Olá, Bonifácio! Então tu não me viste ontem na Praia do Flamengo?
- Não!Havia lá tanta gente... que eu não vi ninguém!
- Pensei que estivesses com a "abóbada" da vista estragada!
- Não! Mas meu médico falou que eu perdi o "paladar" do ouvido!
- Por falar em ouvido, quase dei um tiro no ouvido, ontem.
- Por que, Albuquerque?
- Porque a Genoveva desmanchou o nosso noivado!
- Então, tu compreendes o suicídio por amor?
- Compreendo e admito!
- Eu não admito! Se eu me matasse por uma mulher... ficaria arrependido o resto
de minha vida!
- Mas, por falar em arrependido, tu deves estar arrependido de fumar.
- Não compreendo. Arrependido de fumar? Por quê?
- Porque Furaste tuas calças novas com o cigarro!
- Estás enganado! Estes dois buracos que tenho nas calças fazem o papel de
ventiladores!
- Mas... podes apanhar um resfriado!
- Qual o quê, Bonifácio! O vento entra por um buraco e sai pelo outro!
todo carinho
Já desfalcou o caixa do armarinho
Pra reerguer o Sírio Libanês.
O seu "Maneli"
chamou o Jorge de João Banana
E já marcou um dia na semana
Pra resolver aquele caso a cachações
O Jorge disse
que a banana às vezes tem sementes
E pra vender entrada aos assistentes
Só aceita a luta em doze prestações.
Paródias como Que a Terra Se Abra, feita a partir da marchinha Idenf, do último
carnaval:
O Barbeiro de Niterói
1o ato
Overture
Rosina: Dom Bartolo! Já estou cansada de aturar o senhor e a sua casa de secos e
molhados!
Dom Bartolo: Calma, Rosina! Estás nervosa hoje, meu benzinho?
Rosina: Sim, senhor! Estou nervosa e o senhor sabe por quê.
Dom Bartolo: Por quê?
Rosina-. Então o senhor não sabe que minha neurastenia é causada pelo excesso de
trabalho e pela falta de distração? Eu trabalho mais que uma escrava e me
divirto
menos que uma freira. O senhor nunca me deu mil e cem réis para um cinema!
Dom Bartolo: (canta Condeno o Teu Nervoso)li
Condeno o teu nervoso
Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter
No meu torrão natal
Me chamam de herói
Já tenho capital
E brevemente compro Niterói...
Condeno o teu nervoso
Que não tem razão de ser
Sou bom e generoso
E a prova disso hás de ter
Condeno o cinema
Que é mau conselheiro
E não é o meu sistema
Esbanjar dinheiro.
(Batem à porta)
Polícia: Abra em nome da Lei!
Dom Bartolo: Ah! É a polícia! Pode entrar! Eu sou negociante nonesto.
Polícia: Nós estamos procurando o bicheiro Alma Viva e... parece que ele entrou
aqui!
Dom Bartolo: Viste o Alma Viva, Rosina?
Rosina: Se o senhor não viu, muito menos eu! A última vez que o vi foi
anteontem, quando entreguei a lista que o senhor mandou.
Polícia: Até logo! Se o senhor encontrar esse bicheiro telefone para o distrito.
Dom Bartolo: Está bem!
(Barulho de porta que se fecha)
Rosina: Boa-noite, Dom Bartolo! Já são horas de dormir!
Dom Bartolo: Boa noite, Rosina, e... não se esqueça de levantar mais cedo para
conferir a caixa antes do armazém abrir.
(Na rua)
Alma Viva: Õ, Fígaro! Como vais? mmm Fígaro: Alma Viva!? A polícia
anda à tua
procura. Tem cuidado! Todos os meus fregueses da barbearia já sabem que estás em
Niterói!
Alma Viva: Agora, eu mudei de nome e me chamo Lindoro, o empresário. Vou pôr um
bigode postiço e raspar o cabelo. Ficarei horrível e irreconhecível!
Fígaro: Soube que estas apaixonado pela Rosina. É verdade?
Alma Viva: É. E quero que me auxilies.
Fígaro: Por que não cantas agora debaixo de sua janela? Aqui está o meu violão!
Rosina é louca por uma serenata.
Alma Viva: É esta a janela?
Fígaro: É! Pode começar!
Alma Viva: (dá uns acordes no violão e canta)
Ordena, fala, insinua, Dize o que queres de mim, Jardineiro...
Dom Bartolo: Ó, seu jardineiro! Vá cantar no jardim zoológico! Eu trabalhei o
dia inteiro e... você não me deixa dormir.
Alma Viva: A serenata não é para o senhor!
Dom Bartolo: Que não é para mim, eu bem sei! Você pensa que Rosina se deixa
iludir com cantigas?
Alma Viva: O senhor está fazendo mais barulho do que eu e... daqui a pouco o
guarda municipal nos vem meter o pau!
Dom Bartolo: Eu faço barulho porque estou na minha casa e... ninguém me prende.
Você é que vai preso!
(Apitos, gritaria)
Fim do 1? ato.
2? ato
Rosina: Fígaro! Eu preciso que você me faça um favor!
Fígaro: Com muito prazer, dona Rosina! O que manda?
Rosina: Queria que você entregasse este bilhete ao Alma Viva. Mas... não deixe
dom Bartolo perceber!
Fígaro .Já adivinhei o que a senhora escreveu no bilhete! Naturalmente, não
gostou da serenata e pede para que ele não a procure mais! Não é isso?
Rosina: Nada disso! Eu vou ler para você ouvir... (canta Envio Estas Mal
Traçadas Linhas)
Envio estas mal traçadas linhas
Que escrevi a lápis
Por não ter caneta
Andas perseguido
Para que escapes
Corta teu cabelo e põe barba preta.
379
Em vão te procurei
Noticias tuas não encontrei
Mas, ontem, te escutei
E este bilhete ao Fígaro entreguei.
Sem mais, para acabar
Recebe o beijo
que vou mandar
Eu amo...
com o amor não brinco.
Niterói, 30 de outubro de 35.
Fígaro: Muito bem, dona Rosina! Aí vem dom Bartolo! Até logo!
Rosina: Até logo, Fígaro, e... obrigada!
Dom Bartolo: O que é isso, Rosina?
Rosina: Nada!
Dom Bartolo: Não mintas! Entregaste um bilhete ao barbeiro! Para quem? Responde,
Rosina!
Rosina: (gaguejando) O... o... bilhete que eu mandei foi... foi para o
sapateiro.
Dom Bartolo: Sapateiro!
Rosina: Sim, senhor! O sapateiro está demorando a mandar os meus sapatos!
Dom Bartolo: Não mintas, Rosina. Já me disseram que tu gostas de um tal Lindoro,
empresário!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Quá! Que gente mentirosa...
Dom Bartolo.- Rosina! Tu és muito mais moça do que eu. Mas...
Rosina: Mas... o quê?
Dom Bartolo: Eu sou o único homem que te pode fazer feliz. Tenho prédios...
dinheiro no banco...
Rosina: Seu dinheiro não me interessa.
Dom Bartolo: Se o meu dinheiro não te interessa... a mim, então, muito menos.
Bem que aquele Chico Viola tinha razão quando cantava:
Amor! Amor!
Não é para quem quer
De que vale a nota, meu bem,
Sem o puro carinho da mulher?
Rosina: (também cantando)
Quando ela quer!
Os dois: (ainda cantando)
chamo Lindoro e vim dar uma aula de canto a dona Rosina.
Dom Bartolo: Mas o professor de canto de Rosina é dom Basílio.
Alma Viva: Foi dom Basílio que me mandou substitui-lo hoje, porque ele está com
coqueluche.
Dom Bartolo: Sim! Agora estou compreendendo. Tenha a bondade de sentar! Ó
Rosina! Rosina!
Rosina: Pronto, dom Bartolo! O que deseja?
Dom Bartolo: Dom Basílio não pôde vir hoje e mandou um substituto para te
ensinar a lição.
Rosina: Creio que conheço este meu novo professor. Acho que já o vi no Cinema
Poeira!
Alma Viva: Ou então n'alguma gafieira... da Praça da Bandeira.
Rosina: Acho que não! Foi no jardim zoológico...
Alma Viva: É quase isso! Não é bem jardim zoológico, mas é negócio de bicho!
Rosina: (rindo) Quá! Quá! Agora sei de onde o conheço!
Alma Viva: Qual foi a sua última lição?
Rosina: Eu estava aprendendo a ária Precaução Inútil.
Alma Viva: Precaução Inútil? O título é muito bonito! Tenha a bondade de cantar
essa ária.
Rosina: Eu hoje estou um pouquinho rouca. Por isso, espero que o senhor não
repare... (canta Precaução Inútil)(15)
(Palmas)
Alma Viva e Dom Bartolo: Muito bem! Muito bem!
Alma Viva: A música é boa e a letra é melhor ainda!
Dom Bartolo: Os senhores fiquem à vontade! Tenho que ir atender os meus
fregueses no armazém! Com licença!
Alma Viva: Pois não, dom Bartolo. Não se preocupe conosco!
(Barulho de porta que se fecha)
Alma Viva: Até que fim, minha querida Rosina!
Rosina: É verdade, finalmente estamos sós!
Alma Viva: Fígaro já te avisou que nós vamos fugir hoje à meia-noite?
Rosina: Já! E eu estou preparada para fugir contigo! Tu já sabes que dom Bartolo
incumbiu dom Basílio de trazer aqui um padre?
Alma Viva: Um padre? Para quê?
Rosina: Então não sabes que o bobo desse velho quer se casar comigo hoje?
Alma Viva: Isso é mais outra precaução inútil... (canta novos versos para
Precaução Inútil)
Seu cabelo tinha a cor
De burro quando foge
Do amansador
Seus olhos eram circunflexos,
Perplexos e desconexos,
Um bigodão
Na cara indiscreta
Feito bicicleta
com o guidon de fora
Enfim, esse velho nunca mais
Se casa com a senhora!
Fim do 3? ato.
4o ato
(Tempestade)
Dom Bartolo: Rosina, tu não deves dar muita importância a esse tal Lindoro, que
se intitula empresário e professor de canto!
Rosina: Por que, dom Bartolo? Ele não é um rapaz distinto?
Dom Bartolo: Que distinto, qual nada! Ele é um malandro que pensa que tu és
muito rica e, por isso, quer casar com o teu dinheiro!
Rosina: O senhor está enganado!
Dom Bartolo: Tu é que estás enganada, Rosina!
(Batem à porta)
Dom Bartolo: Tenha a bondade de entrar.
Dom Basílio: Boa-noite! Aqui estou eu com o senhor reverendo.
Dom Bartolo: Sejam bem-vindos! Como estão molhados! Pensei que não viessem por
causa da chuva! Querem tomar um gole de vinho?
Dom Basílio: Em nome do senhor reverendo... aceitamos a oportuníssima oferta!
Dom Bartolo: Não é bem uma oferta! Vou debitar esses dois cálices na sua conta!
(Gargalhadas)
Rosina: Dom Bartolo, eu ouvi um barulho no armazém e... creio que são ladrões!
Dom Bartolo: Senhores, com licença! Eu vou até o armazém e volto já!
(Batem à porta)
Rosina: Quem é?
Alma Viva: É Fígaro e seu companheiro!
Rosina: Façam o favor de entrar!
Alma Viva: Onde está dom Bartolo, o velho que não tem miolo?
Rosina: Está no armazém, procurando gatunos imaginários!
Fígaro: Por que vocês dois não aproveitam a ocasião?
Alma Viva: Não é propriamente aproveitar a ocasião: é aproveitar o padre, para
me casar com Rosina dentro da casa de dom Bartolo! Tu queres casar comigo agora,
Rosina?
Rosina: Não quero! Faço questão de me casar contigo agora mesmo!
(Dom Basílio forçado por Alma Viva a escolher entre uma bala de pistola e um
anel de brilhantes, opta pelo segundo presente e, ao lado de Figaro, torna-se
padrinho
do casamento. Para a imensa infelicidade de dom Bartolo, este ao regressar do
armazém encontra consumada a união entre o rival e sua pupila. O enredo chega ao
fim
quando Fígaro, observando o desânimo de dom Bartolo, filosofa...)
Fígaro: Quando a juventude e o amor estão de acordo para enganar um velho, tudo
que este fizer para impedir deve-se chamar "precaução inútil"!
Fim de "O Barbeiro de Niterói"
381
A Noiva do Condutor
1? ato Prelúdio
Helena: Meu querido! Já faz um mês que nos amamos e tu ainda não me disseste o
teu nome, nem a tua profissão!
Joaquim: Não te disse porque isso para mim não tem importância! Mas se queres
saber... eu me chamo Joaquim.
Helena-. Joaquim?! Joaquim de quê?
Joaquim: Joaquim Barbosa, brasileiro, solteiro, com 22 anos, vacinado,
reservista e advogado, com escritório à Avenida Rio Branco, número 1.960, 29?
andar... Estás
satisfeita agora, queridinha?
Helena-. Então tu és advogado e tens escritório na Avenida, hein? Eu bem que
desconfiava, mas o que eu mais desconfio é da sinceridade do teu amor...
Joaquim: Tu não tens razão para duvidar de mim... Fica sabendo que eu dou a vida
pelo teu amor! (canta o samba-canção Tudo Pelo Teu Amor)
(Barulho de trem)
Dr. Henrique: (zangado) Minha filha! O que você faz aqui no portão com este
desmiolado? Você bem sabe que eu não quero você fora de casa depois das dez
horas da
noite!
Helena: Calma, papai! Não há motivo para você ficar tão zangado! Eu fui ao
cinema e este rapaz veio me acompanhar até aqui...
Dr. Henrique: Qual cinema, qual nada, minha filha! Já estou cansado de ouvir
mentiras. Este rapaz é seu namorado! Toda vizinhança já sabe disso...
Joaquim: Doutor Henrique, permita que eu me apresente...
Dr. Henrique: Eu dispenso a sua apresentação. Vá-se embora! Suma-se daqui!
Joaquim: Mas... doutor Henrique! Eu me chamo Joaquim e sou advogado...
Dr. Henrique: Já cansei de pedir para você sumir daqui... (canta o samba Cansei
de Implorar)
Já cansei de implorar
Pra você desguiar
Dizendo que a minha filha
Ainda é muito moça para namorar
Meu Deus, que teimosia!
Desista de insistir
Na delegacia
Você vai residir.
Casar sem exibir credenciais
E sem dizer o nome dos seus pais
Não pode ser conversa para mim, Que sou doutor,
Vá-se embora, por favor
Quem casa sem ter casa não se cria
Amor sem nota não tem mais valia
Você me diz que é advogado De valor
Mas eu também sou doutor.
Dr. Henrique: Como é para o bem de todos nós e... felicidade completa de minha
filha Helena... eu consinto que ela seja sua noiva! Mas olhe lá... (canta a
marcha
Para Bem de Todos Nós)
Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim é condutor
Quase que a cara me cai
Estou mudando de cor.
Veja, papai!
Veja, papai!
O Joaquim não é doutor
No bonde agora ele vai
Sempre a dizer "faz favor!"
Ele se dizia advogado
Mas não passa de um descarado
Vamos chamar o investigador
Para agarrar esse falso doutor.
Ele se dizia advogado
Dr. Henrique: (também cantando)
Ele se dizia advogado
Helena: Mas não passa de um descarado.
Dr. Henrique: Mas não passa de um descarado.
Helena: Vamos chamar um investigador.
Dr. Henrique: Vamos chamar um investigador.
Os dois: Para agarrar esse falso doutor!
Joaquim: Quero te dizer ao menos três palavras...
Helena: Não quero mais nem te ver... Quanto mais te ouvir!
Joaquim: Helena, por favor! Deixa que te fale... nem que seja pela última vez
(canta o fox-blue Perdoa Este Pecador)
de uma palestra.
Dr. Henrique: Isso de palestra é jogo para São Paulo...! Você é um tipo que está
em toda parte sem ser nada em parte alguma! Você é capaz de trair um amigo por
causa
de 200 réis e de matar uma família inteira por causa de uma média com pão e
manteiga. Você é um tipo que não existe nem nas tipografias. Você é um tipo que
não tem
tipo. É um tipo desclassificado. O seu nome devia ser "Tipo Zero" (canta o samba
Tipo Zero)
Você é um tipo
que não tem tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo
que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece.
Quando você penetra num salão
E se mistura com a multidão
Você se torna um tipo destacado
Desconfiado todo mundo fica
Que o seu tipo não se classifica
E você passa a ser um tipo desclassificado.
Eu até hoje nunca vi nenhum
Tipo vulgar tão fora do comum
Que fosse tipo tão observado
Você ficou agora convencido
Que o seu tipo já está batido
Mas o seu tipo é o tipo
do tipo esgotado.
Jota Barbosa: Ó Joaquim, meu rico filho! Ando à tua procura há três dias. Soube
que eras condutor! Estás maluco?
Dr. Henrique: Quem é o senhor?
Jota Barbosa: Eu sou banqueiro e me chamo Jota Barbosa! E sou pai do Joaquim!
Helena: Jota Barbosa...? Ah! Conheço de nome! O senhor é dono de vários cinemas
na Europa, não é?
Jota Barbosa: Perfeitamente, senhorita. E agora estou para comprar uma mina de
bronze na China!
Dr. Henrique: É melhor o senhor comprar o bonde do seu filho.
Helena: Então o Joaquim quis ser condutor de bonde para contrariar o senhor?
Jota Barbosa: Justamente, senhorita. Nós discutimos e ele resolveu sair de casa
dizendo que não precisava nem de mim e nem do meu dinheiro.
Dr. Henrique: Por que brigaram?
Jota Barbosa: Porque o Joaquim queria se casar com uma tal de Helena!-
Helena: Tudo por minha causa, Joaquim...? Desta vez quem te pede perdão sou eu.
Joaquim: Tu não tens culpa, queridinha.
Dr. Henrique: Os senhores não desejam entrar para tomarmos chá?
Jota Barbosa: É muito incômodo! Já é muito tarde!
Helena: Aceite, senhor Barbosa! O prazer é todo nosso!
Jota Barbosa: Nunca pensei que a senhorita fosse tão gentil e... tão bonita!
Dr. Henrique: E eu nunca pensei que minha filha tivesse um sogro tão amável e...
tão rico!
Helena: Tenham a bondade de entrar. Não façam cerimônia. Façam de conta que
estão em casa! (os quatro cantam a marcha Tudo Nos Une)
Notas:
1. A Voz do Rádio, 25 de julho de 1935.
2. Carioca, 1? de fevereiro de 1936.
3. Ver Capítulo 40.
4. Tango de Agustín Magaldi, Pedro Noda e Carlos Pesce, lançado pelos dois
primeiros em 1930.
5. Valsa-canção de Francisco Alves e Orestes Barbosa, gravada pelo primeiro em
1933, do outro lado de Você Só... Mente.
6. Trocadilho com L'Origan de Coty, colônia muito usada na época.
7. A informação de que se trata de um tango é de Almirante em No Tempo de
Noel Rosa, segunda edição (pagina 128).
8. Letra e música de Hervê Cordovil, gravada por Almirante em 1934.
9. Já estudada no Capítulo 18.
10. Le Barbíer de Séville ou La Précaution Inutile, comédia em quatro atos de
Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. Datada de 1775, nela se baseou Cesare
Sterbini
para escrever o libretto da ópera.
11. Paródia de Teus Ciúmes, valsa de Lacy Martins e Aldo Cabral, gravada por
Sílvio Caldas em 1935.
12. Primeiros versos de Por Teu Amor, valsa de Francisco Alves e Orestes
Barbosa, gravada pelo primeiro em 1934.
13. Paródia de Cordiais Saudações, do próprio Noel, já estudada no Capítulo 17.
14. Primeiros versos de Que Vale a Nota Sem o Carinho da Mulher?, samba de
Sinhô, que nada menos de três cantores registraram em disco em 1928: Mário Reis,
Vicente
Celestino e Francisco Alves. Embora a gravação de Mário tenha sido lançada um
mês antes das dos outros dois (e obtido mais popularidade), dom Bartolo prefere
citar
a de Chico Viola.
15. Paródia de Boneca, valsa de Benedicto Lacerda e Aldo Cabral, gravada por
Sílvio Caldas em 1935. O próprio Noel escreveu uma variante para esta paródia,
dando-lhe
o título de Seu Zé. Começa assim:
Eu vi num armazém de Cascadura
Seu Zé vendendo a mil e cem
Trezentos réis de rapadura
Lá no Banco do Brasil
Seu Zé depositou três mil
Botando água no vinho do barril...
Os versos seguintes são os mesmos de Precaução Inútil, até os dois finais, que
ficam assim:
Enfim, eu vi neste seu Zé Um imortal Pão-Duro!
16. Paródia de Marchinha do Grande Galo, de Lamartine Babo e Paulo Barbosa,
gravada por Almirante em 1935.
17. Paródia de Ganhou, Mas Não Leva, marcha de Benedicto Lacerda e Milton
Amaral, gravada por Almirante em 1935.
18. Paródia de Foi Ela, samba de Ary Barroso, gravado por Francisco Alves em
1934.
19- Paródia de Palpite Infeliz, samba do próprio Noel, já estudado no Capítulo
anterior.
20. Dos três, na verdade, apenas Luís Peixoto chegou a escrever com certa
assiduidade para o teatro, embora quase sempre de encomenda. Em entrevista a um
dos autores,
em novembro de 1972, ele falou longamente - e com entusiasmo - da necessidade de
se criar um tipo de revista brasileiro, na forma e no conteúdo. Aos 83 anos,
lamentava
já não ter forças para dar sua contribuição. Morreria um ano depois.
21. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
22. Arnold Glückmann morreu em São Paulo, aos 54 anos, a 13 de maio de 1951.
Por muito tempo, tanto no rádio carioca como no paulista, tentou tirar a
"opereta"
do ineditismo. Numa dessas tentativas, chegou a pensar em Isaura Garcia para o
papel de Helena. Almirante, herdeiro dos manuscritos, foi outro
que sempre achou que valia a pena radiofonizá-la ou mesmo montá-la. No entanto,
A Noiva do Condutor só viria a público em abril de 1986, gravada em disco
(Estúdio
Eldorado 106.86.0447) com Marília Pera, Grande Othelo e Caola nos
principais papéis.
23. Marca de charutos preferida dos malandros da época.
389
COMEÇO E RECOMEÇO
Capítulo 38
saberem o que fazer. Caminham pela rua deserta e escura, passam por casas de
portas e janelas fechadas, luzes apagadas, todos dormindo. Ouvem, porém, um
barulho
mais adiante. À medida que se aproximam, podem identificar o som de música,
gente cantando e tocando. Vêem finalmente um bar de esquina.
Aproximam-se mais, entram. Alguns dos artistas que atuaram no Cinema Vitória
aqui estão. Encontraram-se com Sílvio Caldas, que apareceu não se sabe de onde,
e agora
improvisam uma seresta.
- Sílvio... - chama Lindaura ainda aflita. - Você viu o Noel?
-Já foi há muito tempo.
Lindaura conta-lhe que Noel simplesmente os esqueceu em Bangu, sumiu na noite,
evaporou-se. Ela e o irmão estão sem dinheiro para a passagem, precisam de ajuda
para
voltarem a Vila Isabel. Sílvio não se surpreende. Sabe que Noel é mesmo desses
extravios repentinos.
- Deixa que eu levo vocês pra casa - Sílvio a tranqüiliza.
Tem motivos de sobra para sentir ciúmes. E nem sempre é tão calma e aceitativa
como em Bangu, ou como nas horas em que ele tenta comprá-la com falsos carinhos-
.
"Vem cá, Lindinha..." Também sabe se zangar, fazer alarde, brigar pelo que é
seu. Certa manhã de sábado, encontra Noel na feira da Praça 7, todo cheio de
dengos
para os lados de uma bela morena. Enfurece-se, segura a bolsa pela alça e tenta
golpeá-lo. Noel corre. Uma cena meio dramática, meio cômica, é presenciada pelos
feirantes, Noel correndo, Lindaura atrás gritando, rodopiando a bolsa:
- Eu te pego, Noel. Eu te pego!
Um domingo, muito cedo, ela sai para a missa na Matriz de Nossa Senhora de
Lourdes. Estacionado na Visconde de Abaeté, reconhece o carro de Valuche. Chega
perto.
É sacudida pela cólera ao ver lá dentro, além do próprio motorista, Ceei e Noel.
Os três dormem depois de mais uma noitada. O marido tem a cabeça repousada no
colo
da outra. Lindaura começa a gritar, a bater no vidro do carro, a fazer um
escândalo de despertar quarteirão. Até Noel, de sono invencível, acorda. E a
primeira coisa
que faz é dizer para Valuche:
- Arranca depressa!
O amigo obedece. O carro sai em disparada, quase mandando ao Chão a enfurecida
Lindaura.
Ela passa a aparecer de surpresa nos lugares onde sabe que o marido está. Vai em
outro domingo ao Programa Casé. Um dos funcionários da Rádio Sociedade do Rio de
Janeiro a vê chegar e se lembra de que Noel está de amores com uma das pequenas
do coro. Sai correndo,
passa a frente dela e alcança o corredor onde Noel e a outra namoram.
- É tua mulher, Noel! Está subindo as escadas!
Noel se assusta. Aproveita que Marília Baptista passa pelo local, puxa-a pelo
braço, toma a pequena pela mão.
- Por favor, Marília, some com ela! Linda está vindo aí.
Marília e a moça entram no banheiro. Quando Linda chega, sente algo no ar. Noel
e o funcionário da emissora se entreolham. Na certa, pensa ela, andou fazendo
das
suas. Os olhos dele saltam do rosto desconfiado da mulher para a porta fechada
do banheiro. Lindaura tenta abri-la: trancada. Quem está lá dentro?
- Como é que eu vou saber? - diz ele, ar inocente.
Lindaura força a porta.
- Quem está aí? - grita.
- Sou eu, Marília Baptista.
- Ah, mil desculpas, Marília... Pensei que era outra pessoa - diz Lindaura sem
jeito.
Mas a sorte de Noel não dura para sempre. Uma noite, Lindaura chega novamente de
surpresa ao estúdio da Rádio Mayrink Veiga. E encontra Noel com uma moça sentada
no colo. A emissora no ar, artistas se movimentando de um lado para o outro,
gente entrando e saindo, a maior agitação, e Noel ali, alheio a tudo, com a moça
sentada
no colo. Lindaura grita:
- Sem-vergonha!
O violão de Lentine está encostado num canto, bem à mão. Lindaura não perde
tempo: segura o instrumento pelo braço e tenta golpear Noel. É segura pelo
próprio Lentine.
A moça, assustada, foge. Mais tarde, a caminho de casa, Noel faz cara de vítima:
- Você não entendeu coisa alguma, Linda. A moça é órfã, perdeu o pai há pouco.
Eu só estava tentando consolá-la.
Uma vizinha vem contar que viu Noel conversando com uma ex-namorada, perto do
Jardim Zoológico. Então Lindaura não conhece a Fina? Pois é, namoro de muito
tempo,
grande paixão de Noel, dizem que a inspiradora de vários de seus sambas: "Você é
mesmo artigo que não se imita, quando a fábrica apita faz reclame de você..."
Será
que ainda existe alguma coisa entre eles? É bom que Lindaura abra os olhos.
Vizinhas alcoviteiras e intrigantes sempre existiram. Noel conhece-as bem e
chegou a fazer delas motivo de samba. Como em Disse-me-Disse. E também como em
Mulher
indigesta.-
Mas que mulher indigesta!
(Indigesta!)
Merece um tijolo na testa.
392
Esta vizinha que alerta Lindaura pode adorar uma intriga, mas não se pode dizer
que tenha mentido: Noel e Fina realmente conversavam perto do Jardim Zoológico.
E
têm conversado muito por aí, quase que como nos velhos tempos. Pode parecer
incrível, mas a ex-namorada ainda não sabe que ele se casou. Que esteve meio
doente,
passando uma temporada em Belo Horizonte, isso o próprio Noel lhe contou. Mas
só. Para ela, está tudo como antes. A única diferença é que Noel anda ocupado
demais,
programas de rádio, espetáculos em teatros e cinemas, gravações.
- Onde é que mora essa tal de Fina?
A vizinha dá o endereço: Rua Moju, 5. Na noite seguinte, Noel tem um espetáculo
para fazer no Cine Meyer, com outros artistas de rádio. Desta vez Lindaura deixa
que ele vá só. Pouco depois do jantar, sai de casa, toma o bonde no Ponto de
100 Réis, dirige-se para a Barão de Bom Retiro. Em quinze minutos está batendo
no número 5 da Rua Moju. Dona Luísa chega à janela.
- Boa-noite.
- Boa-noite.
- Por favor, não mora aí uma moça... - e Lindaura começa a descrever Fina
segundo as informações da vizinha.
- Sim, é a Fina, minha neta - diz dona Luísa.
-Pois é, eu a vi entrar aqui outro dia. Sou uma vizinha nova, estou atrás de uma
moça de minha idade para me acompanhar ao cinema. Um festival de artistas de
rádio
no Cine Meyer. Será que ela gostaria de ir comigo?
Dona Luísa grita lá para dentro.
- Fina! Ó Fina, minha filha. Está aqui uma moça te procurando!
Fina estava no banho, vem enrolada na toalha. A avó explica-lhe que a nova
vizinha gostaria de ter companhia para o cinema.
- Muito prazer - balbucia.
- Prazer.
São muito comuns, nestes tempos e neste lugar, amizades que se fazem assim, sem
cerimônia, uma moça convidando para um cinema, um passeio, uma festa de família,
a nova vizinha que acaba de conhecer de vista. Um espírito de vizinhança
aproxima rapidamente as pessoas nos bairros como Vila Isabel e Engenho Novo, a
pouca intimidade
ou mesmo o desconhecimento sendo quebrado pela mais absoluta falta de
protocolos. Por isso, ninguém estranha, nem dona Luísa, nem Fina, que Lindaura
apareça assim,
querendo fazer amizade, apresentando-se por conta própria.
- Artistas de rádio?
- É. Alguns dos melhores. Luís Barbosa, Noel Rosa, muitos...
- Está bem. Vou me arrumar. Amizades que se fazem sem cerimônia e
com muita rapidez. Menos de uma hora depois, Lindaura e Fina estão entrando de
braços dados no Cine Meyer, como velhas e íntimas amigas. Há muitos motoristas
de
táxi na platéia, vários deles conhecidos de Noel, de modo que, ao verem entrar e
sentar-se juntas as duas mulheres, a primeira reação é de surpresa. Depois,
porém,
vem o pânico. Um deles levanta-se, vai até a porta por onde devem ingressar os
artistas e fica ali parado, esperando Noel. É preciso avisá-lo. Lá
393
É o que deixa claro também em outro samba, menos conhecido, de musa vaga,
contendo uma rara exaltação à figura feminina, gravado por João Petra e
intitulado Nem
Com Uma Flor:
De alegria ou de tristeza.
Quem bate na mulher ofende a natureza.
Noel tem um modo muito particular de agir, difícil de entender para uma Ceei de
raciocínios diretos e lógicas elementares. Quando se zanga, quando se mostra
ciumento,
ofensivo ou até mesmo insuportável, é quando sabe que Ceei nada fez de errado,
como se a cena fosse uma espécie de advertência, ela que não se atreva a passá-
lo
para trás. Mas quando sente que algo realmente aconteceu, um senhor distinto
impressionando Ceei, ela passando a noite fora, saindo, divertindo-se, não arma
cenas,
nem reclama. Sequer faz perguntas. O silêncio fala por ele.
Ceei também é ciumenta. Mas não sofre tanto. Se fosse se atormentar com os seus
desvios, os desaparecimentos ocasionais geralmente ligados à existência de outra
mulher, não faria mais nada.
Os dois têm um grande amigo, aliado para todas as horas: o motorista de praça
Álvaro Rodrigues Gouvêa, português de nariz adunco a quem chamam de Papagaio.
Noel
conhece-o já há um ou dois anos, de suas andanças pela Lapa. Seria dele o "bom
carro" de que o poeta fala em Dama do Cabaré? Provavelmente. Não há qualquer
exagero
em dizer-se que Papagaio tem verdadeira veneração por Noel. Como amigo e
compositor. Sabe todas as suas letras de cor, sempre que pode vai aos programas
de rádio
e aos espetáculos teatrais de que ele toma parte,
sente-se honrado em servi-lo como chauffeur. Não lhe cobra nada, fica até meio
ofendido se Noel faz menção de pôr a mão no bolso. Costuma sentar-se com ele a
uma
das mesas do Indígena ou do Café Club, calado, ouvindo, bebendo-lhe deliciado as
palavras: "Como é inteligente este Noel!" Troca o trabalho, os fregueses, as
corridas
mais vantajosas pelo prazer de ouvir o amigo cantar e tocar.
Muita gente diz ter presenciado Noel compor à mesa deste ou daquele café um de
seus sambas imortais: Conversa de Botequim. Papagaio inclusive. Noel, com essa
história
de dizer "vou cantar um samba que acabo de fazer", vive dando às pessoas a falsa
impressão de que o "acabo de fazer" significa, literalmente, que o samba foi
feito
há instantes. Mas é de fato possível que o amigo motorista o tenha visto ao
menos trabalhar a letra de Conversa de Botequim, uma prodigiosa crônica dos
cafés cariocas
e seus folgados freqüentadores. Um irretocável retrato da cidade e de alguns de
seus tipos, o garçom que passa o pano na mesa como se a dizer ao freguês que
este
já lhe roubou tempo demais, o sujeito que gasta seu último níquel apostando no
jogo
do bicho, o interesse um tanto vago pelo futebol (como o de Noel). Quem se
lembrar bem dos tempos do Carvalho, em Vila Isabel, e do papel comunitário que o
botequim
então - como ainda hoje - prestava, poderá concluir que tudo aquilo, o espírito
de se tirar do botequim tudo que ele tem para dar (o cigarro filado, o cartão, a
revista, o cinzeiro, o tinteiro, o dinheiro emprestado, o telefone, o recado, a
despesa pendurada) ficou guardado no coração do poeta.
Mas não é apenas por isso que Conversa de Botequim pode se incluir entre as mais
notáveis peças de toda a história da música popular brasileira. Em nenhuma outra
é tão harmonioso o casamento da melodia com a letra, pontuação perfeita,
acentuação irrepreensível (nem todos têm muito cuidado para com esse detalhe
técnico de
uma letra, a acentuação da palavra tendo de coincidir com a acentuação musical,
isto é, a sílaba mais forte correspondendo à nota sobre a qual recai o acento
melódico,
do que Conversa de Botequim é exemplo definitivo). Um samba que acaba se
convertendo num desafio aos estudiosos. Sendo feito de parceria com Vadico, a
questão se
põe em dois pontos: ou Vadico fez toda a melodia e Noel criou para ela os mais
exatos versos de toda a canção brasileira, ou o próprio Noel teve alguma
participação
na construção da música - escorregadia como a de um choro. O que é mais
provável(2).
Seu garçom,
faça o favor De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo E um copo d'água bem gelada.
Fecha a porta da direita Com muito cuidado
Que não estou disposto A ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa,
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro, Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro.
Telefone ao menos uma vez
Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empreste algum dinheiro
398
Papagaio bem pode ter acompanhado a lenta elaboração deste primor de samba.
Lenta, sim, porque são francamente inconcebíveis as versões que correm por aí
nos dando
conta de um Noel que chega ao botequim, sente baixar-lhe uma súbita inspiração,
pede lápis e papel ao garçom e, em questão de minutos, escreve de ponta a ponta
os
versos para a música de Vadico.
Noel, Ceei, Papagaio. Os três fazem inúmeros programas juntos. Vão a uma festa
no grã-fino Fluminense, onde o motorista, animado com as moças da sociedade que
lá
se apresentam, cantando e recitando, quer lançar sua filha como cantora, e a
moça simplesmente perde a voz, nervosa, fica muda em pleno palco, envergonhando
o pobre
Papagaio (para o resto da vida, Noel gozará o amigo por sua pretensão: "Como é,
Papagaio, quando vamos lançar a tua filha como cantora de rádio?")- Ou vão
jantar
em qualquer restaurante que não feche antes das cinco da manhã. É num desses
restaurantes que Ceei ouve Noel pedir ao garçom:
- Traga-nos uns camarões.
- E como o senhor quer os camarões?
- Fritos em azeite. Muito azeite.
- No azeite?
- Sim. Na superfície.
Outra noite, Noel com um pouco mais de dinheiro no bolso, vão a um restaurante
novo, metido a elegante, no Leblon. Ceei capricha na roupa, Noel e Papagaio de
terno
e gravata. No caminho, ela diz:
- Hoje eu gostaria de fazer o pedido.
-Mas é um restaurante grã-fino, Ceei. Deve ter pratos de nomes complicados,
aquela bobagem toda que você conhece.
- Não se preocupe. Deixe o pedido comigo - insiste ela, orgulhosa de si mesma.
Lá chegando, o garçom se aproxima cheio de reverências, os três à mesa, Noel e
Papagaio calados esperando pela solicitação de Ceei.
- Queremos camarões.
- E como a senhora deseja os camarões? -À superfície. Sim, camarões à
superfície. Um difícil recomeço com Ceei. Ciúmes,
romances paralelos, brigas, cenas, as regras do jogo de Noel sendo diferentes
das dela, mentiras, um iludindo o outro. Mas nem por isso um recomeço sem bons
momentos,
festas, a filha de Papagaio perdendo a voz, os camarões à superfície, as
reuniões nos botequins, a música. E, afinal, as noites de amor.
NOTAS
1. Por que clube torcia Noel Rosa? Provavelmente por nenhum. Jacy Pacheco nos
informa em Noel Rosa e Sua Época (página 50) que o primo "era mengo". Lindaura
de
Medeiros Rosa já diz ter "a impressão" de que o marido torcia pelo América.
Assim como Lamartine Babo, Sílvio Caldas, Francisco Alves e Mário Reis. Este,
porém,
autoridade tanto em Noel como em futebol, garantiu aos autores: "Ele não ligava
pra isso. No máximo, torcia pelo Andaraí ou um daqueles clubezinhos decadentes
de
Vila Isabel." Velhos amigos de bairro, entre eles Arnaldo Araújo e Affonso
Guimarães, o Affonsinho da Copa do Mundo de 1938, concordam com Mário. Noel
vivia o futebol
meio à distância. Interessava-se, apenas, pelo destino dos modestos clubes do
lugar, o Vila, o Confiança, o Andaraí, condenados a desaparecer. O Andaraí
disputava
o Campeonato Carioca de Futebol desde 1916 (ausentando-se apenas nos anos de
1925 e 1926). E quase sempre andara rondando os últimos lugares. Foi menos mal
nas disputas
de 1933 a 1936, quando a cisão causada pela implantação do profissionalismo
enfraqueceu a entidade a que pertencia (Associação Metropolitana de Esportes
Atléticos,
depois Federação Metropolitana de Futebol). Com a pacificação em 1937, levaria o
tiro de misericórdia. Voltando a enfrentar os chamados "grandes" do futebol da
cidade,
perderia 41 pontos em 44 possíveis no Campeonato Carioca daquele ano e ainda por
cima sofreria para o Vasco da Gama, no segundo turno, uma impiedosa e humilhante
goleada de doze a zero. Nunca mais participou da divisão principal. Conta-se que
o negro Arubinha, famoso macumbeiro de Vila Isabel, fiel torcedor do Andaraí,
tomou-se
de tal ódio que enterrou um sapo no campo de São Januário como parte de um
"trabalho" para que o Vasco da Gama completasse dez anos sem ser campeão. Em
1945, ao
iniciar-se o oitavo ano da "escrita" e o nono sem seu time conquistar um título,
os dirigentes vascaínos mandaram revolver todo o gramado na esperança de
neutralizarem
os maus fluidos do tal sapo. Deu certo: meses depois o Vasco da Gama se sagraria
campeão invicto. De qualquer forma, naquele 1935 em que Fina e Linda foram
juntas
ao baile na sede da Praça 7, o Andaraí ainda fazia força para sobreviver. E
Noel, como tantos moradores do bairro, ajudava como podia.
2. Almirante, em mais de uma oportunidade, inclusive em conversa com os
autores, falou de sua convicção de que Noel Rosa sempre participava da feitura
da melodia
de suas obras em parceria. Mesmo as que escreveu com Vadico. Salvo por poucas
exceções (aquelas em que a música comprovadamente já existia, o que aconteceu,
por
exemplo, com Queixumes, de Henrique Britto, os três sambas de parceria com Ary
Barroso e Feitio de Oração), os autores compartilham da convicção de Almirante.
Sobretudo
no caso de Conversa de Botequim.
399
FITA DE CINEMA
Capítulo 39
401
Quem devia gravar a marcha era a dupla Joel & Gaúcho. Acontece que na noite
anterior Joel de Almeida saiu com Russo do Pandeiro para uns goles pelos
botequins da
Central. Goles de boêmios sedentos, destes que quanto mais se sorvem, mais
aumentam a sede. Quando Joel chegou em casa na Praça Saenz Pena, já de manhã,
avisou à
mãe:
- Tenho uma gravação à uma da tarde. Vou tirar um cochilo, mas a senhora não
esquece de me chamar antes do meio-dia.
Mas a mãe de Joel, vendo-o dormir tão profundamente, depois de uma noite em
claro, ficou com pena de acordá-lo. E ele perdeu a hora. No estúdio da Victor,
pouco
antes da uma, mister Evans, sempre impaciente, procurava pelo parceiro de
Gaúcho. Os minutos foram passando, os músicos de Pixinguinha entraram no
estúdio, Gaúcho
e o pessoal do coro também. E Joel? Nada. Mister Evans, uma hora em ponto,
sentenciou:
- Vamos gravar sem ele.
-Mas ensaiamos para uma dupla, mister Evans - protestou Gaúcho.
- Não interessa. Vamos gravar já! Se quiser, arranja alguém para cantar com
você. Por que não aquele moço afinadinho do coro? - e apontou para um mulato
magro, de
olhos rasgados, tímido, encolhido a um canto.
- Está bem - concordou Gaúcho.
O moço afinadinho chamava-se Orlando Silva. Graças à farra do Joel, ele acabou
fazendo dupla com Gaúcho em Menina dos Meus Olhos, depois de ensaiar às pressas,
ali
mesmo, no estúdio, acompanhado pelo piano de José Maria de Abreu.
Além de cinema, Lamartine Babo gosta de cassino. Por esta época, vai a um deles
- Beira-Mar, Atlântico, Urca - todas as noites. Mas não joga. Pelo simples fato
de
não ter dinheiro. Essa é uma época de dificuldades para ele. Às vezes mal tem
para comer. Nessa história de sentar-se à mesa de um café, comer e não botar a
mão
no bolso, ou de ir ao cassino, acompanhar todas as rodadas da roleta, ou todas
as mãos do carteado, sem comprar uma ficha, Lamartine goza no Nice a fama de
"vagolino"3.
No dia em que o filme Picolino (Top Hat) estréia no Rio, com Fred Astaire e
Ginger Rogers formando um par inesquecível, as canções de Irving Berlin
conquistando
todas as platéias, Noel vai-se inspirar numa delas, Cheek To Cheek, para criar
uma paródia em homenagem ao amigo Lamartine:
402
Esse Vagolino
Que atrapalha o movimento do cassino,
Com seu jogo complicado e pequenino,
Na roleta ele é um pente-fino.
Mexe nas paradas,
Tosse alto,
pula e dá cotoveladas.
Quando ganha ninguém vê a sua imagem.
Quando perde morde a gente na passagem.
Grita pra qualquer freguês:
"Dá vermelho vinte e três!"
Pede pra jogar no dez Fichinha de mil réis.
Perguntou ao pagador
Por que é que o diretor
Não põe em circulação
Fichinhas de tostão.
Ele vai às vezes ao Paraguai
Morder o pai
E o velho cai... Ai!
Vagolino, filho ingrato,
Diz que o cobre é pra comprar chapéu E sapato.
Mas acaba sem sapato e sem chapéu,
Na esperança de comprar um arranha-céu.
Uma paródia que é tão bem recebida que chega a ser publicada num jornal de
modinhas(4), só que com o título de Virgulino do Cassino, o Vagolino da letra
cedendo
lugar a um intrometido Virgulino. Engano ou o próprio Noel fez a mudança?
O primeiro filme a utilizar composições de Noel Rosa é Alô, Alô, Carnaval, que
vai estrear no Alhambra a 20 de janeiro de 1936. É uma revista carnavalesca nos
moldes
de Alô, Alô, Brasil, realizada no ano passado pelo mesmo Wallace Downey,
produtor americano que não podendo fazer musicais em seu país veio fazê-los no
nosso. O
pioneiro Coisas Nossas, aliás, já era obra sua, levada a efeito muito
precariamente em 1931.
O novo filme tem direção de Ademar Gonzaga. Para ele Noel não chega a fazer
propriamente música. Limita-se a escrever letra para uma marcha de Hervê, Não
Resta a
Menor Dúvida, e a sugerir que sejam aproveitados, com os mesmos intérpretes que
os levaram ao disco, seus dois maiores trunfos para o próximo carnaval: Pierrot
Apaixonado
e Palpite Infeliz. João de Barro e Alberto Ribeiro, roteiristas aos quais coube
também a seleção dos números musicais, concordam.
A marcha de Noel e Hervê é cantada pelos rapazes do Bando da Lua com aquela sua
dureza habitual (a mesma dureza com que eles, daqui a alguns anos, como
acompanhantes
de Carmem Miranda, levarão o nosso samba para os Estados Unidos, tirando-lhe o
melhor condimento e tornando-o assimilável ao paladar americano). Melhor
interpretada,
é possível que Não Resta a Menor Dúvida tivesse mais sorte, no filme e no
carnaval:
Você é uma pequena que não resta a menor dúvida
Oh dúvida!
E eu por sua causa já não pago a minha divida
Oh dívida!
Estou só esperando
que você me leve o último Tostão
Pra me dar seu coração.
Para possuir seu coração
Darei até meu último tostão.
Pelo seu amor
Serei aviador,
Irei até lamber sabão.
403
Um pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma colombina
Acabou chorando,
Acabou chorando.
A colombina entrou no botequim,
Bebeu... bebeu... saiu assim... assim...
Dizendo: "Pierrô cacete
Vai tomar sorvete Com o Arlequim!"
Um grande amor tem sempre um triste fim,
Com o Pierrô aconteceu assim:
Levando esse grande chute
Foi tomar vermute Com amendoim!
Irmãs Pagas, Rosina, muito bonita mas desconfortável numa letra que parece sob
medida para Aracy:
Eu já chamei você pra ver Você não viu porque não quis...
A conclusão é que Palpite Infeliz fica fora do filme. Para desagrado do
produtor, atento ao sucesso que o samba vem fazendo desde o ano passado, e para
irritação
de Noel, que vai declarar ao Correio da Noite que não mais dará músicas para
Aracy de Almeida gravar. E pensar que ele tinha deixado de entregar Palpite
Infeliz
a Almirante(7). Mas, felizmente, a zanga de Noel não vai durar. E Aracy
continuará cantando seus sambas.
Ceei talvez seja a primeira a perceber. Não que Noel tenha sido algum dia um
homem elegante, aprumado, zeloso da aparência pessoal. Mas nunca foi tão
descuidado
como agora. De certo modo, quem o conhece de perto, tão intimamente quanto ele o
permite, nota que o descuido não é apenas com a aparência. A não ser pelo
trabalho,
compondo muito, jamais recusando propostas para cantar nesta ou naquela emissora
de rádio, há em tudo o mais um começo de esmorecimento, de entrega, que vai
ganhar
corpo ao longo de todo o 1936 até transformá-lo num homem desinteressado de tudo
ou quase tudo. Este processo de desintegração - lento, imperceptível à maioria
das
pessoas, muitas vezes porque o próprio Noel, inteligente, vivo, espirituoso,
saberá dissimular - só no final estará claramente posto em sua poesia. Em suas
conversas,
nunca.
O que Ceei nota primeiro é o relaxamento com a roupa, golas e punhos das
camisas poídos,
o terno amarrotado, sapatos por engraxar. É verdade que o fato de ter duas casas
acaba fazendo com que não tenha nenhuma, passando dias sem ir ao chalé, dias sem
vir ao quarto de sobrado que montou com Ceei. Quem cuida de suas roupas? E de
sua alimentação? O que importa nisso tudo é que Noel não cuida de si mesmo.
Quando a perspectiva do tempo permitir aos que o conhecem agora compreendê-lo
melhor neste ano-chave de sua vida, ainda pairarão dúvidas sobre a que atribuir
esse
processo de dissolvência, se à morte do pai, incutindo-lhe no espírito a
desconfiança, depois certeza, de que a vida é algo estúpido e vão, ou se à
doença, que muito
em breve vai minar-lhe o fôlego, a tuberculose apenas contida mas não curada
naqueles meses em Belo Horizonte. Como o amigo Edgar o alertara:
- O seu melhor médico é você mesmo. Se não se cuidar...
Jocelyn, o da Encarnação, é outro que o alerta. Mais que isso, repreende-o com a
severidade daquele irmão mais velho dos tempos de criança:
- Você precisa levar a vida mais a sério, Noel.
Um conselho inútil.
- Olha, Jocelyn, pode ser que eu não consiga, mas vou tentar.
- O quê?
- Nunca levar a vida a sério.
- Mas por quê?
- Primeiro, porque ela não é séria. Depois, porque é curta demais.
Jocelyn fica meio preocupado com as palavras de Noel. Ralha com ele, despeja-lhe
em cima longa ladainha, indigesto sermão. Mas Noel inventa uma desculpa, vai em
frente, deixa-o falando sozinho. Nos dias que se seguem Jocelyn pensa muito no
amigo. Será que se zangou? Não terá exagerado o carão? De noite, ao chegar em
casa,
alguém lhe diz:
- O Noel esteve aqui. Deixou um bilhete. No papel dobrado em quatro não está
propriamente um bilhete, mas versos escritos com aquela caligrafia
inconfundível:
Jocelyn, Jocelyn,
Jocelyn da Encarnação,
Severo amigo,
Mais que amigo, irmão.
De qualquer modo, para Noel a vida não é mesmo séria. Ou é tão séria quanto uma
fita de cinema, divertida mas quimérica. Ou como o dinheiro e a mulher, dois dos
principais motes de sua poesia, valores pelos quais tanto se briga e que mais
cedo ou mais tarde acabam parando em mãos alheias.
Difícil precisar a causa maior desse pessimismo, se tantas batalhas travadas e
perdidas pelo pai, para acabar daquela forma, atado aos pés de um leito de
hospício,
ou se aos pulmões escangalhados. Mas por que não a soma de tudo isso ajudando a
emergir o temperamento, senão autodestrutivo, ao menos de desapego à vida de um
Noel
que ninguém conhecerá jamais?
Nem mesmo Ceei. Ele, sim, é que a conhece como ninguém.
- Sabe como é que eu sei que você está mentindo?
- Não.
- Pelos olhos.
O princípio de esmorecimento não chega para arrefecer-lhe os ciúmes. Ceei tem
mudado de emprego com freqüência, Apollo, Roxy,
405
Pode também pagar despesas altas numa mesa composta de prontos, desempregados,
vadios, boêmios, como costuma acontecer nas noites da Lapa, e não dar um tostão
a
Lindaura, tão precisada. Inventa desculpas, faz promessas, desconversa, mas
raramente ajuda a mulher. Se ela lhe tira dinheiro da carteira, aproveitando-lhe
o sono
pesado, não se perturba: passa a escondê-lo na meia. Um dia, ao visitar
Mangione, editor de suas músicas, recebe uma bolada de atrasados, o segundo
semestre de 1935
tendo sido muito proveitoso. Manda fazer, de uma só vez, quatro ternos. Ceei não
vive reclamando? Pois então. Martha vê os Araújos chegarem com as roupas
prontas,
vai falar com o filho. Encontra-o bem-humorado, aparentemente acessível:
- Quatro ternos, Noel! Quatro ternos e nada para Lindaura... ?
- Ora, mamãe, a Linda nunca usou terno.
Muitas vezes a mulher vai esperá-lo à saída de um programa de rádio para
pedir-lhe dinheiro. Martha, sozinha, não suporta as despesas, viúva, Hélio
estudando, a escolinha rendendo pouco. Noel sempre dá um jeito de mudar de
assunto. A
própria Martha recorre aos amigos, aos diretores de broadeast. Não podiam falar
com o Noel? O máximo que Casé faz, depois de insistentes apelos, é pagar-lhe
diretamente
do cachê de Noel. Isto é, tirar um pouco por conta.
- Mas será que ele não vai se zangar?
Ele nem liga, Casé e outros programadores, sensíveis às dificuldades da família,
desviando por conta própria, mas para o devido lugar, parte dos ganhos de Noel.
Lindaura reclama muito. Um dia, diz:
- Vou trabalhar. Não posso viver com o que você me dá.
Noel nunca quis que a mulher trabalhasse. Por que, jamais se saberá. Pouco
ligando para ela, passando a maior parte do tempo fora,
407
NOTAS
1. A Voz do Rádio, 19 de dezembro de 1935. Foi mesmo em 1926 que o inglês J.L.
Baird realizou as primeiras experiências bem-sucedidas com imagens em movimento,
consideradas precursoras da moderna televisão. Na primeira metade dos anos 30,
cientistas também ingleses intensificaram suas pesquisas em busca do "assombroso
aparelho".
O assunto era comentado por aqui, daí a enquête.
2. Consta que Lamartine Babo escreveu - ou pelo menos começou a escrever -
algumas operetas nos moldes das de Lehár, que no entanto jamais seriam
encenadas. Uma
delas, Viva o Amor, completada em 1940 ou 1941, era Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão
Linda, valsa de parceria com Francisco de Queirós Mattoso.
3. O termo tanto podia significar "vagabundo", "folgado", como também algo
parecido com o atual "bicão", como era mais o caso de Lamartine.
4. Jornal de Modinhas, 24 de outubro de 1936.
5. "Foi em 1937 que começou a fazer uns quadrinhos para enfeitar a parede" -
diz Rubem Braga em seu perfil de Heitor dos Prazeres, um dos capítulos de Três
Primitivos,
segunda edição (página 103). Mas muitos dos que conheceram o sambista-pintor,
entre os quais Cartola, informam que bem antes ele já fazia os seus quadrinhos.
6. Esta passagem foi contada por Heitor dos Prazeres a Jacy Pacheco, que a
incluiu em O Cantor da Vila (páginas 136-138).
7. De um recorte do Correio da Noite, sem data, colado por Noel em seu álbum.
408
Capítulo 40
A cantora embirra. Não cantará a marcha. Ou Noel põe a pulga de lado, ou ela
procura outra música para completar o disco.
-Nesse caso - ameaça ele - você também não grava Palpite Infeliz.
E Aracy, que já não se perdoa por ter deixado escapar a oportunidade de cantar o
samba em Alô, Alô, Carnaval, nem quer correr o risco de perder a segunda chance.
Volta atrás, com pulga e tudo(2).
Menos simples - condenada mesmo a ficar como uma das mais controvertidas
questões de autoria da música popular brasileira - é a história de ÉBom Parar, o
maior sucesso
deste carnaval de 1936, fadado inclusive a ganhar o primeiro prêmio para sambas
do concurso oficial da Prefeitura do Distrito Federal. Tudo começou há poucas
semanas,
quando Francisco Alves, Nono, o lutador de boxe Rubens Soares e alguns amigos
deste conversavam a uma das mesas do Café Trianon. A certa altura, os amigos de
Rubens
começaram a cantar um estribilho:
Por que bebes tanto assim, rapaz? Chega, já é demais!
Se é por causa de mulher, é bom parar Porque nenhuma delas sabe amar.
Francisco Alves, com toda a razão, exultou. Com sua invejável experiência - e
mais ainda com aquele infalível faro para o sucesso - viu logo que aqueles
rapazes
tinham nas mãos um bilhete premiado.
- Qual de vocês fez este samba? Rubens, um tanto timidamente, respondeu:
- Eu. Mas por enquanto é só um estribilho.
- Você também compõe?- surpreendeu-se o cantor.
- De vez em quando faço umas bobagens que ponho logo de lado.
Francisco Alves, que sempre gostou de boxe, conhecia Rubens do ring do Estádio
Brasil, na Feira de Amostras, onde costumava vê-lo lutar. Por sinal, muito bem,
vencedor
de vários títulos cariocas e brasileiros dos pesos médios. Fizeram camaradagem.
Passaram a se encontrar no Trianon, onde as meninas dos dancings próximos
costumam
aparecer para uma conversa fiada antes do trabalho. Ali, com vários amigos
comuns, falam um pouco de tudo, boxe, corridas de cavalos, mulheres, sambas. Mas
Rubens,
muito modesto, nunca se atreveu a dizer a Chico que tinha pretensões a
compositor. Que não o confundissem com Kid Pepe, boxeur que usa os punhos para
arrancar parceria
de gente mais fraca que ele. Rubens também é boxeur, mas jamais
faria uma coisa dessas. Nem precisa. Tem jeito para o samba, o que não é o caso
de Kid Pepe. Francisco Alves estava de fato empolgado.
-Me repete esse estribilho, Rubens. Ecom essa mesma bossa que os rapazes botaram
nele. Quero aprender do jeito que você fez.
Rubens repetiu-o. Uma, duas, várias vezes, até Francisco Alves decorar a letra e
assimilar a tal bossa que o estribilho tem. O cantor decidiu gravá-lo para o
carnaval.
Embora sabendo que o tempo é pouco, a primeira semana de janeiro já vencida, o
carnaval marcado para 23, 24 e 25 de fevereiro. No dia seguinte, entra meio
afobado
no Nice. Vê Jorge Faraj e Noel juntos, aproxima-se da mesa, senta-se sem pedir
licença.
-Noel, Noel, era você mesmo que eu estava procurando. Tenho aqui uma primeira
parte que vai desbancar todo o mundo nesse carnaval. Mas preciso da segunda com
urgência.
Me ajuda?
O caradurismo de Francisco Alves já não surpreende ninguém, especialmente Noel
Rosa. Estão há mais de um ano de relações pode-se dizer estremecidas. Depois de
Retiro
da Saudade - um apelo de Noel a Chico em nome do amigo comum Antônio Nássara -
nunca mais o cantor gravou nada do antigo "parceiro". Mais de um ano, Francisco
Alves
de um lado, Noel do outro, os dois se encontrando aqui e ali, trocando
cumprimentos frios, a sociedade aparentemente desfeita para sempre. E então
Francisco Alves
entra pela porta do Nice, faz como se nada tivesse acontecido, age exatamente
como nos velhos tempos. Noel, porém, recebe-o com indiferença:
- Não estou interessado.
- Que é isso, menino? É um estribilho de arromba.
- Desculpe, Chico, mas já disse que não me interessa.
- Mas eu te pago, Noel. Te pago bem. Noel parece irredutível:
- Que é que há, menino? Recusando dinheiro? Desde quando?
Jorge Faraj, calado, acompanha o diálogo até certo ponto constrangedor, o grande
Francisco Alves quase súplice, Noel seco, distante. Até que o compositor resolve
encerrar o assunto tocando no ponto fraco do cantor: o dinheiro. E faz-lhe uma
proposta mais alta do que o que o Chico está acostumado a pagar:
- Está bem. Eu te vendo a segunda parte: duzentos mil réis!
Francisco Alves leva um susto. Mas não diz nada, olha Noel bem nos olhos, baixa
o tom de voz e concorda:
- Está certo, menino. Vou-lhe cantar a
primeira parte.
Em vez de uma, Noel entrega duas segundas partes a Chico:
Se tu hoje estás sofrendo
É porque Deus assim quer
E quanto mais vais bebendo
Mais lembras desta mulher.
Não crês, conforme suponho,
Nestes versos de canção:
"Mais cresce a mulher no sonho,
Na taça e no coração."
Sei que tens em tua vida
Um enorme sofrimento
Mas não penses que a bebida
Seja um medicamento.
De ti não terei mais pena
É bom parar por aí
Quem não bebe te condena
Quem bebe zomba de ti.
Noel cortou as flechas que guiam os foguetes. Sem direção, um deles entrou,
assobiando, dentro de uma delegacia próxima. Mais adiante, Noel decidiu-se
vingar de
um homem que não apreciava suas cantorias de madrugada, reclamava que lhe
tiravam o sossego.
- Conheço um careca que não gosta de serenatas. Vamos fazer uma serenata de
bombas para ele.
Noite alta, juntaram os fogos que lhes sobravam e os colocaram estrategicamente
dentro do porão do homem. Fizeram o rastilho de pólvora. Noel acendeu. A casa
quase
veio abaixo.
Em outra carona com Casé, o sermão é estritamente profissional. Por que ele não
se fixa num só programa em vez de cantar aqui e ali como judeu errante? Os
ouvintes
nunca sabem onde encontrá-lo. E é preciso respeitar os compromissos, não faltar,
não chegar atrasado. Hoje em dia, até o Sílvio Caldas, outro nômade do
microfone,
já sentou pé, cantor exclusivo do próprio Casé, obedecendo direitinho aos tratos
e horários. Noel interrompe-o mais uma vez.
- Dá pra aumentar um pouquinho esse teu rádio?
Casé é uma das poucas pessoas do Rio que tem rádio no carro. Não por luxo, mas
por necessidade. Precisa estar informado sobre tudo que acontece na sua e
em outras emissoras, os novos programas, os artistas que começam a se revelar,
os anunciantes em potencial. Não pode perder tempo. Mesmo nas viagens de carro
tem
de estar ouvindo rádio.
- Bonita a voz deste cantor - diz Noel.
- É novo. Um tal de Mário Vieira.
- Quem disse?
- O locutor das Horas do Outro Mundo acaba de anunciar.
O cantor tem mesmo linda voz. E é com muito sentimento que interpreta os versos
de Orestes Barbosa para a melodia de Francisco Alves:
Meu companheiro dileto, Violão és meu afeto És minha consolação...
Noel, o ar de quem sabe e não quer dizer, observa:
- Engraçado, Casé. Nem o Sílvio Caldas tem a voz tão parecida com a do Sílvio
Caldas como este cantor.
Casé aumenta ainda mais o volume do rádio.
- Espere aí, Noel!Mas este cara... este cara é o Sílvio Caldas!
Mário Vieira é um dos muitos nomes atrás dos quais se esconde o caboclinho para
não ser exclusivo de nenhum programa. Ele, como Noel, conserva o espírito
nômade, definitivamente avesso a tratos e contratos.
Marília Baptista gosta de tricotar. E nos intervalos entre um número e outro,
seja no Casé, seja no programa Samba e Outras Coisas que apresenta com o irmão
Henrique
pelas ondas da PRB-7, Rádio Educadora, vai fazendo casacos e
sapatos de lã que uma vez prontos são dados a Noel.
- São para o bebê.
Neste 1936 intensifica-se a amizade entre os dois, Marília freqüenta o chalé,
é amiga de Lindaura, dona Martha a adora. Intensificam-se também suas relações
no campo profissional. Não chegarão a compor juntos, embora a produção musical
de
Marília já seja bastante expressiva por esta época. Produção que ela não perde
tempo em mostrar toda vez que lhe cabe como intérprete, "a menina da voz
grossa",
ir ao microfone. Há quem a critique por estes impulsos autopromocionais, achando
que tanto a
414
O Programa Casé tem muito de um céu constelado. Não há grande estrela do rádio
que não passe ou não tenha passado por ele. De sambistas de bossa como
Luís Barbosa e Antônio Moreira da Silva a cantoras líricas como
Violeta Coelho Netto de Freitas. Por sinal, estas cantoras nunca se sentiram
muito à vontade no meio do pessoal da música popular. Um dia, o contra-regra
Noel se
aproxima de uma delas com a papeleta da programação:
- Qual o número que você vai cantar?
A mulher quase perde a respiração. Levanta-se, lança-lhe um olhar cortante e
explode:
- Você?! Quem deu ao senhor permissão para me tratar por você? Mais respeito,
ouviu? Mais respeito!
Repreendido por Casé, Noel se encolhe, humilhado. Muitos anos depois, Marília se
lembraria do episódio: "De Noel todos se lembram, se lembrarão sempre. Mas quem
sabe hoje quem era aquela senhora?"
De sambistas a sopranos. De desconhecidos cantores - desses que estão no
anonimato e no anonimato continuarão - a polpudos cachês como Carmem Miranda e
Francisco
Alves. De quem Noel, é claro, não esquece. Inspirado nele, passado tanto tempo,
escreve novos versos para a melodia de Vitória:
E no fim da irradiação Vem a voz do violão Que é mais antiga que o Casé.
Dona da minha vontade Saiba vossa majestade Que cantarei o que quiser.
Mas Noel não se limita ao De Babado. Nem ao microfone do Casé. Como cantor -
apenas como cantor - é um dos astros do programa Carnaval Apaixonado que a Rádio
Club
do Brasil apresenta às sextas-feiras. Com textos de Bastos Tigre, durante meia
hora o programa relembra velhas canções e compositores do carnaval. O Diário da
Noite
aplaude a iniciativa que traz de volta aos ouvintes a música do maxixe e dos
sambas "desinfluenciados do foxe do Jazz". Mas
415
diz o jornal num artigo assinado por um certo X: "Há uma nota destoante, a
interpretação de Noel Rosa, sobretudo nojura. O senhor Noel Rosa já poderia ter
encontrado
um bom amigo que lhe advertisse não possuir nenhuma qualidade vocal para o
microfone. Compositor popular de sucesso, com certa feição própria nas suas
músicas, arranhando
bem o violão, o senhor Rosa poderia renunciar ao canto. Ganharia muito porque no
microfone é (...) detestável.
Mas, ao que parece, o senhor Rosa, o gostoso senhor Rosa do Com Que Roupa? e
outros sucessos, está convencido de que vale por um grande intérprete e, ao ler
isto,
naturalmente, espontaneamente, exclamará:
Meu Deus do céu, que palpite infeliz Quem é você que não sabe o que diz?"(8)
Mentiras radiofônicas, primas donnas sensíveis, críticas esparsas. Mesmo em fase
de lento e imperceptível esmorecimento, de sensabor e desencanto, Noel Rosa
ainda
brilha neste alvorecer de 1936.
NOTAS
1. A expressão "que baixo!", empregada interjetivamente no sentido de "que
rata!", "que mancada!", estava em moda na época.
2. A história da gravação de Que Baixo! foi contada pelo próprio Noel Rosa em
entrevista ao Diário Carioca de 4 de janeiro de 1936.
3. Este episódio à mesa do Nice era conhecido de grande parte do meio musical,
daquela época e mesmo de depois. Presenciado por Jorge Faraj, foi por este
contado
a Bruno Ferreira Gomes, que o incluiu em seu livro Wilson Baptista e Sua Época
(paginas 90-92).
4. Rubens Soares não mentia ao dizer que não era parceiro de Noel. Em
entrevista aos autores, voltou a repetir a afirmativa. O provável é que
Francisco Alves tenha
gravado as duas segundas partes sem nada dizer a Rubens, dando a impressão de
que eram dele, Chico. "Eu realmente não gostava de Noel", diz Rubens. O motivo
eram
as suas más companhias, Baiaco e outros homens maus, aquela história de
incendiar mendigos e anavalhar cães, contada a ele por Geraldo Pereira.
5. A Voz do Rádio, 30 de abril de 1936.
6. Idem, 14 de maio de 1936.
7. Mossoró, cavalo ganhador do primeiro Grande Prêmio Brasil em 1933-
8. Diário da Noite, 3 de fevereiro de 1936.
416
NO PICADEIRO DA VIDA
Capítulo 41
Noel Rosa faz parte da troupe. Ele, Sílvio Caldas, Cyro Monteiro, Luís Barbosa,
Odette Amaral, Newton Teixeira, Célia Mendes, Heitor Catumby. Só que, na hora
marcada,
Sílvio Caldas não aparece. Christovam de Alencar, conhecendo o amigo e parceiro,
sabendo que só por milagre ele cumpre seus compromissos, decide não esperar. E
ordena
que todos entrem na primeira barca, deixando Sílvio para lá. Dar bolo em
programadores de festivais é mais do que um hábito para este formidável cantor.
Quase sempre
ele aceita o convite, combina o cachê, marca hora e lugar, deixa que seu nome
saia nos folhetos e cartazes de propaganda e, sem maiores explicações, não
aparece.
Esquece tudo em troca de uma serenata numa praça de subúrbio, de uma conversa
fiada com um amigo, de uma boa sopa de entulho num botequim que acaba de
descobrir
ou de uma nova companhia feminina. Não faz muito tempo, Sílvio acertou com Jorge
Murad aparecer num espetáculo dirigido pelo humorista no Cine Ramos, na Rua
Uranos.
Seria o principal nome do elenco. Seria, mas não foi. Já no final da noite,
Murad não viu outro jeito senão informar à platéia que, infelizmente, não
haveria Sílvio
Caldas. O cinema lotado, imaginou-se sendo linchado por toda aquela gente.
Começou a suar frio. Até que divisou na quarta fila, encolhidinho numa das
cadeiras de
pau, um tipo familiar, seu velho amigo desde os tempos dos espetáculos
beneficentes do Teatro Club Andaraí, do Colégio Nossa Senhora da Misericórdia,
na Rua Barão
de Mesquita, quando Murad iniciava carreira em atos variados de sapateado e
humorismo. Respirou aliviado:
- Distinto público!'- disse recuperando a coragem. - Lamentamos informar que
Sílvio Caldas não está entre nós esta noite.
E antes que a vaia começasse, completou:
-Mas eu tenho uma grande surpresa que vai fazer o distinto público esquecer o
grande seresteiro. Ali, na quarta fila, Noel Rosa!
Aplausos, de início tímidos, aos poucos mais e mais efusivos, mostraram a Murad
que ao menos por momentos Sílvio Caldas seria de fato esquecido. Noel subiu ao
palco,
cantou dois, três números, salvou a noite.
São sempre muito divertidos esses festivais, principalmente os que se realizam
em circos. Os artistas que deles tomam parte hão de guardar para sempre as
melhores
lembranças de recitais meio improvisados, vividos em pequenos palcos construídos
ao lado quando não no próprio picadeiro. Mais do que recitais, são aventuras
repletas
de peripécias e cenas curiosas, já que o público, sobretudo o das torrinhas,
costuma participar vivamente, fazendo coro com o artista ou mesmo se dirigindo a
ele
aos gritos:
- Vai cantar bem assim no inferno, ô Sílvio Caldas!
É rico o anedotário desses espetáculos. Quem não se lembra da noite em que
Mário Moraes atreveu-se a substituir Sílvio, que mais uma vez deixara na mão o
organizador da caravana? Mário, com aquela ginga mole, o jeito de cantar
dolente,
arrastado, sempre querendo tornar ainda mais lentas as canções já lentas, entrou
em cena e anunciou ao público o seu número: Inquietação, samba de Ary Barroso.
Naturalmente,
do repertório do grande ausente Sílvio Caldas.
Quem se deixou escravizar E no abismo despencar Por um amor qualquer...
Tão devagar Mário ia cantando o samba, tão prolongadas tornava as notas, que a
interpretação soava interminável aos ouvidos do público. Uns bocejavam, outros
resmungavam
baixinho, Mário cantando, o samba parecendo não acabar nunca. Até que chegou ao
final:
Nas asas brancas da ilusão
Nossa imaginação
Pelo espaço vai... vai... vai...
Um sujeito completou lá das torrinhas:
- Vai... pra puta que o pariu, seu Mário! Os artistas sempre se divertem com
essas passagens. Mesmo quando são eles próprios as vítimas. E neste espetáculo
organizado
por Christovam de Alencar em Niterói, o circo superlotado, não hão de faltar
acréscimos ao anedotário. Mais uma vez o ponto de partida é a ausência de Sílvio
Caldas.
Christovam de Alencar tenta convencer Heitor Catumby a ser o substituto.
- Mas, Reis... eu sou cantor de samba-choro.
- Você tem boa voz, Heitor. Pode cantar serestas também.
- Não sei, não...
Tanto Christovam de Alencar insiste que Heitor concorda em entrar em cena com a
aba do chapéu caída sobre os olhos, o rosto meio oculto, quse impossível de
identificar.
Quem sabe o público não o engole como se sendo o próprio Sílvio? Vai até o
microfone, o regional se aproxima. Christovam o apresenta, sem citar nome:
- E agora, o grande seresteiro vai cantar para vocês!
Meio hesitante, Heitor começa:
Dorme, fecha este olhar entardecente, Não me escutes nostálgico a cantar...
418
Antes que chegue ao fim da canção - sua voz de sambista de bossa nada tendo a
ver com a de um grande seresteiro - ouvem-se as primeiras vaias, assobios
esparsos,
um ou outro grito de "Fora! Fora!", até que começam a voar objetos, ovos,
tomates sobre o picadeiro. Heitor pára, tira o chapéu, mostra o rosto e diz, bem
alto:
- Calma, pessoal!Eu não sou o Sílvio Caldas, não!
Ao que um cidadão, lá do último degrau da arquibancada, responde atirando-lhe
mais coisas:
- Por isso mesmo, seu filho da puta!
Por pouco o público indignado não destrói todo o circo. Parte das torrinhas
chega mesmo a ser quebrada, um sujeito ameaça rasgar a lona, outro pensa em
incendiá-la.
Só meia hora depois, com a intervenção da polícia, a calma se restabelece.
Heitor Catumby sai de cena, entram outros artistas, estes sim, agradando em
cheio, ganhando aplausos, deixando Christovam de Alencar feliz . Um dos últimos
números
da noite é o de Noel Rosa.
- E agora, senhoras e senhores, o Amigo Velho tem o orgulho de lhes
apresentar... meu
parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Christovam de Alencar e Noel Rosa não são apenas antigos companheiros de
Vila Isabel, mas parceiros em Pela Primeira Vez, samba que fizeram uma noite
dessas no Café da Uma Hora. A música lembra muito as frases finais de Sorrindo
Sempre,
de Noel, Gradim e Ismael Silva. E a letra Ceei jura ter sido feita para ela logo
após os dois se separarem na Estação de Pedro II, no dia em que viajou para
curta
temporada em Belo Horizonte como girl de uma companhia de teatro de revistas
organizada às pressas para levantar um dinheirinho.
Pela primeira vez na vida
Sou obrigado a confessar que amo alguém.
Chorei quando ela deu a despedida,
Ela me vendo a chorar chorou também.
Meu Deus, faça de mim o que quiser,
Mas não me faça perder
O amor desta mulher.
Na estação, na hora de partir o trem, Ela me vendo a chorar chorou também.
Depois fiquei olhando uma janela, Até sumir numa curva o lenço dela.
Se meu amor não regressar, irei também À estação na hora de partir o trem. E
nunca mais assisto uma partida Pra não lembrar mais daquela despedida.
Mal Christovam e Noel haviam concluído o samba, Orlando Silva entrou no
botequim.
Ia a caminho do Engenho de Dentro quando resolveu saltar no Maracanã para um
papo e um café. Ainda atrás de uma música que o projetasse, pediu-lhes para
gravá-lo.
Pedido aceito, no dia 5 de maio de 1936 ele entrou no estúdio da Victor com um
grupo de músicos onde se destacavam Luís Americano e Benedicto Lacerda. Noel
também
estava presente. Orlando, voz preciosa, mas ainda um cantor inexperiente,
cometeu um engano. Cantou:
Depois fiquei olhando uma janela Até sumir na esquina o lenço dela.
Durante a passagem de orquestra, Noel, dentro do estúdio, chamou-lhe a atenção,
baixinho:
- Orlando, quem vira a esquina é bonde. Na repetição, Orlando se corrigiu, dando
ênfase à palavra curva:
Até sumir numa curva o lenço dela(2).
Hoje, Christovam apresenta orgulhoso:
- ... meu parceiro e amigo Noel Rosa, o cantor da Vila!
Noel entra em cena, miúdo, magro, a aparência insignificante de sempre. Põe o pé
na cadeira, pega o violão e começa a cantar. Lá das torrinhas, novo grito:
- Cuidado para não cair do queixo! Gargalhadas. Noel pára. Espera que o silêncio
se restabeleça e só então continua.
É animada a viagem de volta ao Rio, a bordo de uma bordejante barca da
Cantareira. Uns cantam, outros conversam, todos riem. Newton Teixeira nota que
Noel se afastou,
foi lá para a popa, sozinho, olhar o mar que a embarcação deixa para trás num
rastro de espuma. Pensa em se aproximar, mas desiste. Noel está triste, não é o
mesmo
da viagem de ida. Se foi o grito da arquibancada que o perturbou ("Cuidado para
não cair do queixo!"), Newton não tem coragem de perguntar. O fato é que, depois
desta noite, nunca mais um circo - cujo público dá tanta alegria a tanto artista
- terá de novo o privilégio de contar com o canto de Noel.
As vezes se importa, às vezes não. Suas reações às referências e eventuais
brincadeiras que se fazem ao queixo defeituoso também são imprevisíveis. Pode
ser que
não ligue ou até participe delas, usando a boca torta para bancar o ventríloquo
como nos tempos de ginásio e assim mexer com os amigos, os músicos, os garçons:
- Ô inseto! Ô otário!- e quando o outro se aproxima, intrigado, pergunta: - Você
é o
419
Aniceto ou o Otávio?
Gosta de autocaricaturar-se. E sempre de perfil, exagerando o traço ao chegar no
queixo, fazendo graça com a própria deformidade. Há quem garanta que o samba
Mentir(5)
foi feito depois de ser apresentado a uma admiradora, numa festinha em casa de
família. Conhecendo-o apenas de nome, a moça teria ficado desapontada. Esperava
um
compositor bonito como suas músicas. Deixou escapar um "oh!", ao que Noel, sem
perder o controle, indagou:
- Sente alguma coisa?
- Sim - respondeu a moça, um tanto embaraçada. - Umapontada aqui, mas já passou.
Pode fazer, também, como na dedicatória à cantora Yolanda Rhodes, uma linda
mulher que conheceu na Rádio Guanabara e que ficou impressionada com um novo
samba dele.
Foi há três anos, Noel cantando os versos tristes e algo nebulosos da belíssima
composição a que deu o nome de Cor de Cinza. Yola pediu-lhe a letra, Noel
escreveu-a
numa folha de papel e, no final, anotou: "Para que você não se esqueça da feiúra
do amigo Noel." A linda Yolanda Rhodes não o esquecerá.
Em toda a obra de Noel não há composição de versos tão obscuros, tão
indecifráveis. Aparentemente ele conta uma história de amor. Baseado em
informações de Pará,
Almirante vai concluir que a inspiradora foi Julinha. Pouco provável. Há certa
finura na mulher de luvas de pelica cinza que não combina bem com a extravagante
Júlia
Bernardes. É uma história fora de dúvida enigmática, enevoada, cuja origem há de
morrer com Noel.
Com seu aparecimento Todo o céu ficou cinzento E São Pedro zangado. Depois, um
carro de praça Partiu e fez fumaça Com destino ignorado.
Não durou muito a chuva
E eu achei uma luva
Depois que ela desceu.
A luva é um documento
Com que provo o esquecimento
Daquela que me esqueceu
Ao ver um carro cinzento
Com a cruz do sofrimento
420
Cor de Cinza
"Gosto em geral dos versos que convivem com a cidade. Nisso Noel foi o craque
absoluto, e não apareceu no Brasil mais expressivo poeta popular do que ele. O X
do
Problema, Último Desejo, Três Apitos, Dama do Cabaré, Feitio de Oração, São
Coisas Nossas, Só Pode Ser Você incluem-se todas no gênero de poesia brasileira
popular
que me fala. Noel tinha vocação para a coisa, e ele próprio sabia que a 'vocação
é necessária até para dar-se laço na gravata'. Há uma letra de Noel maravilhosa
servindo a uma música também muito bonita, raramente tocada.
Chama-se Cor de Cinza: 'A poeira cinzenta da dúvida me atormenta... A luva é um
documento de pelica e bem cinzento...' A história narrada pelos versos não é
nada
clara, mesmo depois de termos lido a interpretação que o esclarecido Almirante
faz para os mesmos. Mas não importa; trata-se do mais belo e hermético poema
impressionista
do nosso cancioneiro popular."
Paulo Mendes Campos Manchete, 20 de abril de 1974.
Mas pode ser também que sofra. E sofra muito. Como acontece no dia em que Wilson
Baptista, ainda lutando para se tornar mais conhecido, reabre uma polêmica que
se
supunha encerrada com Palpite Infeliz. Compõe novo samba, desta vez focalizando
a feiúra de Noel. Dá-lhe o título de Frankenstein da Vila, publica-o no Jornal
de
Modinhas, canta para os amigos no Nice. O samba, muito bem-feito, apesar da
pronúncia incorreta para Frankenstein, rimando com alguém, acaba chegando ao
rádio.
As testemunhas se dividem. Uns afirmam que Noel não deu maior importância,
chegando mesmo a achar engraçada a provocação de Wilson. Outros asseguram que
foi muito
diferente. Nássara conta que viu o amigo furioso, correndo de banca em banca
para comprar todos os exemplares do Jornal de Modinhas em que estivesse a letra.
Cícero
Nunes, companheiro de muitas cervejadas (numa das quais Noel pagou a conta
deixando o violão com o dono do botequim), jura que o viu chorar - um momento
raro - quando
lhe falou da crueldade de Wilson.
Mas, eterno simulador, é outra a impressão que dá ao rival em seu primeiro
encontro após Frankenstein da Vila. Wilson está no Café Leitão, nos Arcos, com
Erasmo
Silva, seu parceiro na Dupla Verde e Amarelo, quando Noel passa.
- Noel! - grita com o sorriso matreiro. Os dois se cumprimentam. Noel brinca,
diz ter ouvido o samba em que ele o coloca na primeira fila dos feios, gostou
muito, coisa e tal. Wilson fica satisfeito. E aproveita para emendar:
- Pois saiba que eu já fiz mais um.
- Mais um o quê?
- Mais um samba. Para a nossa briga. E canta Terra de Cego:
421
Noel acha a melodia interessante. Mas pede para colocar-lhe outra letra. Elogia
Wilson, diz que ele é mesmo terrível, tirou-lhe aquela morena há dois anos e
também
andou de namorico com Ceei. De fato terrível. Aqui mesmo no botequim, faz a nova
letra. Sempre se dirá que o alvo de Noel nestes versos para a melodia de Terra
de
Cego é o próprio Wilson: "Deixa de ser convencido...", diz logo de saída. Mas
não. Uma análise menos apressada mostrará que é para uma mulher que ele canta. A
começar
pela rima, "convencida" com "vida". Uma mulher que tem um "velho modo de vida".
Uma perfeita artista por quem é obrigado a viver um "amor de parceria". A mulher
é Ceei. O parceiro, Wilson.
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu bem sei,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal No arame eu já dei.
(Muita medalha eu ganhei!)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida.
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé Em amor de parceria.
É o fim da polêmica. Uma briga musical da qual muito pouca gente - o pessoal do
meio e um ou outro de fora - tomou conhecimento. Até que ponto Noel guardará
alguma
zanga lá no íntimo, mágoa, rancor, ressentimento ou algo assim, motivada pelo
Frankenstein da Vila, é impossível saber. No que diz respeito a Wilson, não há
de ser
por essa rixa sonora que se tornará alguém na vida. Seu tempo há de chegar. Por
força do próprio talento e não às custas do nome de Noel, por quem, afinal,
guardará
até morrer um grande respeito e confessada admiração(5).
Frankenstein da Vila
"Foi o seguinte: o povo não sabia que o negócio do Palpite Infeliz era comigo.
Na verdade, o povo pouco ligava àquelas questões. Se alguém tivesse de pensar
alguma
coisa, havia de ser que o samba era uma resposta ao Mangueira, de Zequinha Reis
e Assis Valente ('Não há, nem pode haver, como Mangueira não há...')- Mas o
pessoal
do rádio todo sabia que era comigo. E eu comecei a ouvir indiretas de todo lado.
Vinha um e me dizia uma coisa, vinha outro e me dizia outra coisa. Diziam que o
Noel estava preparando uma porção de sambas que mexiam comigo, sambas que ele
cantava pelos cafés. Então, pra não ficar atrás, eu também fiz um samba pra
mexer com
Noel. O samba não foi publicado nem gravado(4), mas foi tão cantado também pelos
botequins que um dia, pra minha surpresa, eu o ouvi no rádio por um conjunto
chamado
Os Quatro Diabos. Meu samba era uma pilhéria com o Noel e se chamava
Frankenstein da Vila. Noel era homem e não há mal nenhum em se chamar um homem
de feio. Por
isso eu fiz o samba, que ficou assim:
Com toda essa agitação, é um ano em que Noel compõe pouco. Desde que se tornou
profissional, nunca foi tão preguiçoso. Preguiçoso ou desmotivado. Aquela
entrega,
presente em tudo o mais, começa a se fazer sentir também no trabalho. Pouco a
pouco. Durante todo o 1936, não chegará a vinte o total de suas composições,
apenas
onze delas gravadas.
422
Assim mesmo, se fará tanto é porque Carmem Santos o convida a escrever músicas
originais para seu filme Cidade Mulher. Convite aceito, ele trabalha, sozinho ou
a
quatro mãos com José Maria de Abreu ou Vadico, nas canções que sustentarão a
qualidade musical do filme (o programa inclui também composições de
Assis Valente, Waldemar Henrique, Heriberto Muraro e Raul Roulien, um brasileiro
que começou interpretando tango e acabou cantando fox em filme americano).
Em termos de roteiro, Cidade Mulher é um pouco mais ambicioso que Alô, Alô,
Carnaval. Não é uma revista carnavalesca em que os quadros musicais se sucedem
meio sem
pé nem cabeça, mas uma comédia com ligeiro fio de história ligando os diferentes
números, boa parte deles focalizando o Rio, seus bairros e tipos. A direção é de
Humberto Mauro e o elenco, atores e cantores, bem inferior ao de Alô, Alô,
Carnaval.
Mas o filme, estreando no Alhambra a 27 de julho de 1936, é muito bem recebido
pelo público. E os poucos que tiverem oportunidade de vê-lo daqui a muito
tempo(5)
talvez possam sentir nas entrelinhas de cada cena o clima alegre em que foi
produzido, contagiando todos que dele participaram, Noel Rosa inclusive. As
filmagens
foram feitas no Cassino Beira-Mar, aonde Noel ia todas as noites para acompanhar
de perto os ensaios e tomadas de cena, não só de suas músicas mas de toda a
produção.
Fazia-o com interesse e entusiasmo. Um entusiasmo que não deixou de transmitir a
Ceei.
Muitas noites ela o acompanhou nas idas aos sets de filmagem. Antes ou depois de
pegar no trabalho. Também ficou encantada com todos aqueles artistas, uma
movimentação
incessante, técnicos, iluminadores, câmeras, Humberto Mauro a dar ordens, que se
fizesse isso ou aquilo desse ou daquele modo, as cenas muitas vezes se repetindo
até que saíssem boas. Então é assim que se faz um filme? Uma noite, sentada num
canto enquanto Noel participava dos trabalhos, Ceei sentiu alguém dar-lhe um
tapinha
no ombro. Era um sujeito maltrapilho, barba crescida, olheiras, as mãos muito
sujas, aspecto assustador. Apavorada, pôs-se a gritar. Interrompeu-se o
trabalho, artistas,
todo o mundo correndo para ver o que havia. Noel, ao reconhecer a voz de Ceei,
ficou pálido. O que aconteceu?
- Um homem! - tentou explicar ela. - Barbado, feio...
Alguém soltou uma gargalhada ao descobrir que quem assustara Ceei era um extra,
vestido de mendigo para uma das cenas. Riram todos, o clima alegre voltou, Ceei
encabulada,
Noel achando graça. É mesmo possível que todo esse ambiente venha a ser sentido
nas entrelinhas de Cidade Mulher. Alegria, entusiasmo, talvez o último trabalho
em
que Noel conseguirá pôr interesse acima do trivial.
De suas canções para o filme, todas inéditas, uma ele vai tirar de seus
guardados, relatando o começo de seu romance com Ceei: Dama do Cabaré1. Orlando
Silva vai
gravá-la em disco três dias depois da estréia do filme, no qual ele divide a
cena com Carmem Santos, ela declamando os versos de Noel:
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma palestra...
É ainda Orlando Silva quem interpreta a canção-título, de Noel sem parceiro, o
único canto de amor do poeta de Vila Isabel à sua cidade:
Cidade de amor e ventura
Que tem mais doçura
Que uma ilusão.
Cidade mais bela que o sorriso,
Maior que o paraíso,
Melhor que a tentação.
Cidade que ninguém resiste
Na beleza triste
De um samba-canção.
Cidade de flores sem abrolhos
Que encantando nossos olhos
Prende o nosso coração.
Cidade notável,
Inimitável,
Maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher!
Cidade de sonho e grandeza
Que guarda riqueza
Na terra e no mar.
Cidade do céu sempre azulado,
Teu sol é namorado
Das noites de luar.
Cidade padrão de beleza,
Foi a natureza
Quem te protegeu.
Cidade de amores sem pecado,
Foi juntinho ao Corcovado
Que Jesus Cristo nasceu.
José Maria de Abreu é um melodista fértil. Em matéria de canção romântica, de
rico fraseado e suave harmonia, só perde para Custódio Mesquita. Paulista de
Jacareí,
está no Rio há apenas três anos. Veio com todo o seu talento, conhecimento de
música e experiência adquirida no íntimo contato com o piano, o violino, o
violão e
o pistom, desde os tempos da banda escolar em sua cidade natal. É jovem - dois
meses mais novo que Noel - e ambicioso. Este 1936 será o seu
424
ano, não só pela oportunidade que tem de trabalhar com Noel Rosa num filme, mas
também porque é o do lançamento de seu primeiro grande êxito, a valsa Boa-Noite,
Amor, letra de Francisco Mattoso:
Boa-noite, amor, Meu grande amor, Contigo sonharei...
Também é Orlando Silva - desta vez acompanhado das irmãs Rosina e Elvira Paga -
quem canta no filme uma marcha da dupla José Maria de Abreu-Noel Rosa: Morena
Sereia.
Só que não a gravará em disco, permanecendo a marcha, de sabor muito carioca,
inédita nos próximos 26 anos.
Morena sereia,
Que à beira-mar não passeia,
Que senta na praia e deixa a praia cheia
De lindos castelos de areia.
Cuidado criança,
Que qualquer dia um tufão
Derruba os teus castelos de esperança
E enche de areia o teu coração.
Tenho um bangalô cinzento
Que nos defende do tufão.
Entre quatro paredes de cimento,
Não há quem possa desmanchar nossa ilusão.
Se na praia tu souberes Que o teu nome
eu escrevi Entre mais de dez nomes de mulheres,
Terás certeza que te amei mas te esqueci.
A segunda das composições da dupla é Na Bahia, escrita nos moldes dos sambas-de-
roda de Salvador. Junto com Dona do Lugar, às únicas que Noel dedicou àquele
Estado.
Também vai permanecer inédita - mais tempo ainda que Morena Sereia. É lançada no
filme por Bibi Ferreira, filha de Procópio, começando praticamente aqui, aos 15
anos, sua carreira artística.
Aonde é que o nosso grande Brasil principia?
Na Bahia! Na Bahia!
Aonde foi que Jesus pregou sua filosofia?
Na Bahia! Na Bahia!
Todo santo dia,
Nasce um samba na Bahia.
Samba tem feitiço,
Todo mundo sabe disso.
A minha Bahia Forneceu
a fantasia Mais original
Que se vê no carnaval.
Em São Salvador,
Terra de luz e de amor,
Só o samba cabe,
Disso todo mundo sabe.
De Noel sozinho é uma valsa, Numa Noite à Beira-Mar, interpretada pelos irmãos
Amaro, Maria e José. Uma canção romântica, rara na obra do poeta. E outra que
acabará
injustamente esquecida:
Ele - Juro pela lua cheia,
Que ilumina a branca areia, Que jamais posso olvidar As palavras que disseste,
Quando teu amor me deste Numa noite à beira-mar...
Os dois - Numa noite à beira-mar.
Ele - Quando a lua foi-se embora Fiquei sozinho a meditar.
Ela - Não quero recordar agora
Aquela noite à beira-mar.
Ele - O nosso amor foi infeliz,
Ela - Nosso destino assim o quis.
Os dois - Infelizes nós seremos,
Nunca mais esqueceremos
Que sofremos por lembrar
As palavras que dissemos
Quando nós dois nos conhecemos
Numa noite à beira-mar.
Sendo um filme basicammente centrado no Rio, seus encantos, sua gente, o
cronista que sempre existiu em Noel não podia ficar de fora. Para completar a
série de músicas
encomendadas por Carmem Santos, ele compôs dois sambas em que procurou retratar
tipos da cidade, como já fizera tantas vezes antes com
João-Ninguém, Malandro Medroso, Mulato Bamba, Rapaz Folgado, Mulata Fuzarqueira,
Voltaste. Um deles é o Tarzan. Numa época em que o cinema americano projeta nas
telas de todo o mundo heróis de físico atlético, ombros largos, bíceps
avantajados, músculos imensos por todo corpo, rapazes de bairros grã-finos do
Rio, antes tentando
seguir as pegadas de galãs do tipo Rodolfo Valentino ou no máximo John
Barrymore, agora trocam a figura do "almofadinha" pela do "tarzan". Em grande
parte porque
faz muito sucesso a série de filmes iniciada em 1932 com Tarzan, o Filho das
Selvas (Tarzan, The Ape Man), em que o campeão olímpico de natação, Johnny
Weissmuller,
vive o papel do famoso personagem criado por Edgar Rice Burroughs. Mas muitos
dos rapazes candidatos a galã-atleta são destituídos de predicados físicos, e
nem com
ginástica de Charles Atlas conseguiriam passar de tímidos, minguados tarzans das
praias cariocas. Daí recorrerem aos alfaiates. Ou seja, torna-se moda
425
no Rio o paletó com ombreiras, os providenciais recheios de algodão que
aproximam os esquálidos rapazes de Johnny Weissmuller. Noel registra o fato num
notável samba,
parceria com Vadico, que já no título é puro deboche: Tarzan, o Filho do
Alfaiate. A primeira parte parece ser toda de Noel e a segunda contém modulações
em que
se percebe a mão do pianista Vadico. O comediante José Vieira é quem o lança no
filme:
Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte
Nem conheço futebol.
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo um ano Inteiro
Sem ver um raio de sol.
A minha força bruta reside
Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer,
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer.
Eu poso prós fotógrafos
E distribuo autógrafos
A todas as pequenas lá da praia de manhã.
Um argentino disse Me vendo em Copacabana:
No hay fuerza sobre-humana Que detenga este Tarzan!
De lutas não entendo abacate
Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar.
Sou incapaz de machucar uma formiga,
Não há homem que consiga
Nos meus músculos pegar.
Cheguei até a ser contratado
Pra subir em um tablado
Pra vencer um campeão,
Mas a empresa, pra evitar assassinato,
Rasgou logo o meu contrato
Quando me viu sem roupão.
O outro tipo é também curioso: Maria Fumaça. A letra não tem a qualidade da
anterior, Noel recorrendo demais ao seu dicionário de rimas. Mas a melodia, dele
próprio,
é muito engenhosa.
Maria Fumaça
Fumava cachimbo,
Bebia cachaça.
Maria Fumaça
Fazia arruaça,
Quebrava vidraça
E só de pirraça
Matava as galinhas
De suas vizinhas.
Maria Fumaça
só achava graça
Na própria desgraça.
Dez vezes por dia
A delegacia
Mandava um soldado
Prender a Maria.
Mas quando se via
Na frente do praça,
Maria sumia
Tal qual a fumaça,
Maria Fumaça
Não diz mais chalaça,
Não faz mais trapaça,
Somente ameaça
Que acaba com a raça
Bebendo potassa.
Perdeu o rompante,
Foi presa em flagrante
Roubando um baralho,
Não faz mais conflito,
Está no distrito
Lavando o assoalho.
Seja como for, o samba acabou ficando fora do filme, para tristeza de Noel que
parecia apostar no seu sucesso.
Compõe pouco neste 1936. E começa a sentir que a saúde lhe falta. Gripes
freqüentes, sempre acompanhadas de febre, o levam a recorrer ao amigo Edgar mais
vezes do
que desejava, os sermões sempre o aborrecendo:
- Cuidado, Noel. Você está perto de uma recaída.
Preguiça, desmotivação, entrega, saúde fraquejando. Se tinha algum motivo para
pensar no futuro, no dia de amanhã, nas coisas que ainda pode ter ou fazer,
talvez
esse motivo tenha chegado ao fim de forma tão triste quanto prosaica: Lindaura,
de gestos e impulsos infantis, sobe na goiabeira, estica a mão para um galho
distante,
desequilibra-se e cai. Perde os sentidos. A mesma goiabeira sob a qual Noel
costumava tocar ("Coitado, tão moço...")- E que um dia, para fazer surpresa ao
filho,
Martha resolveu iluminar, mandando instalar nela um jogo de lâmpadas. De noite,
diante da surpresa, Noel exclamou:
- Prostituíram minha goiabeira! Ela só pode ser iluminada pela lua...
Foi de um de seus galhos que Lindaura caiu. Martha manda que chamem o médico,
Heleno Brandão, o velho Graça Mello, Renato Bap-tista, o primeiro que estiver
disponível.
O médico chega. Lindaura está bem, mas perdeu o filho.
Nunca se saberá o que Noel sente em relação a isso.
426
NOTAS
1. Este episódio, um dos mais difundidos do anedotário do circo carioca daquele
tempo, tem sido contado de várias maneiras, cada versão sempre mais enriquecida
que a outra. Os autores optaram por esta (muito diferente, por exemplo, da
contada por Nestor de Hollanda em Memórias do Café Nice, páginas 185 e 186).
Basearam-se
nos depoimentos de Christovam de Alencar e Newton Teixeira, que afinal estavam
lá.
2. A cena ocorrida dentro dos estúdios da Victor é contada por Rui Ribeiro em
Orlando Silva, Cantor Número Um das Multidões (página 38).
3. Já focalizado no Capítulo 23.
4. Não ainda, à época deste depoimento. A primeira gravação de Frankenstein da
Vila seria a de Roberto Paiva, em 1956, na Odeon.
5. Como se verá no Capítulo 46, Wilson Baptista falará com carinho e saudade de
Noel em nada menos de três de seus sambas, o primeiro de 1942. É verdade que em
um deles, Chico Viola, de parceria com Nássara, há este primor de sutileza
(intencional ou não?): "(Chico Viola) partiu, partiu, foi pro céu, foi fazer
companhia
a Noel." Os gozadores do Nice andaram perguntando a Nássara e a Wilson se era
para roubar o sossego de Noel que eles mandaram Francisco Alves fazer-lhe
companhia
lá em cima. Em seu livro de memórias intitulado justamente Café Nice, cujos
originais ainda inéditos pertencem ao arquivo de Hermínio Bello de Carvalho,
Wilson também
deixa registrada sua admiração pelo ex-rival: " Noel Rosa - O imortal poeta
nasceu aqui mesmo, em Vila Isabel, trocou a medicina pelo samba, trocou o
bisturi pelo
violão quando já era quase doutor. Quem ganhou com isto foi a música popular
brasileira, pois Noel Rosa marcou todos os tipos e acontecimentos, nos versos de
seus
inesquecíveis sambas. Noel imitou a cigarra: cantou, cantou, até morrer."
6. Até onde os autores conseguiram saber, perderam-se todas as cópias de
Cidade Mulher.
7. Já focalizado no Capítulo 31-
427
fizeram para o carnaval passado, gravada sem sucesso por Mário Reis. Parceiro,
também, em peças de teatro que os dois ainda vão escrever a quatro mãos,
Custódio
referindo-se a elas como "minhas peças" e deixando para Mário e todos os outros
eventuais colaboradores os papéis secundários dos espetáculos onde o astro terá
de
ser sempre ele, Custódio.
- Não sabia que você também fazia música - diz Ceei surpreendendo-se mais uma
vez com os talentos de Mário.
Fazer, propriamente, não faz. Não ainda. Um dia Mário Lago ainda porá sua veia
poética a serviço da música popular, criando algumas letras excelentes para
sambas,
valsas, foxs, canções, com melodias inspiradas de Custódio, Benedicto Lacerda,
Roberto Martins, Ataulpho Alves e suas próprias(1). Mas, por ora, seu negócio é
mesmo
o teatro, aquela marchinha não passando de uma tentativa, quase brincadeira, a
que foi induzido por Custódio.
Ceei passa a viver, nos últimos meses de 1936, seus melhores tempos desde que
chegou ao Rio. E não apenas por encontrar em Mário Lago o amante gentil e
atencioso
que a leva a teatros e ceias, passeios e reuniões agradáveis, jamais limitando
seus encontros às mesas do cabaré ou às quatro paredes de um quarto de sobrado.
Isso
também conta. E muito. Mas o que de fato a sensibiliza é a forma pela qual ele
sempre lhe abre espaços em sua vida, fazendo-a participar de tudo, atribuindo-
lhe
uma importância que já supunha não ter, dividindo com ela amigos, hábitos,
idéias, coisas ligadas ao trabalho. O que faz Noel Rosa quando não está aqui?
Por onde
andará durante seus costumeiros sumiços? Ceei não sabe. Mário é homem
aparentemente sem mistérios. Nem mesmo de suas posições políticas
faz segredo.
- Você não tem medo?
- De quê?
- Ouvi dizer que muita gente foi morta ou presa no ano passado.
Mário não tem medo. Ele mesmo foi preso durante as perseguições ao pessoal da
esquerda. E já havia sido preso antes, em 1932, quando andou metido em greve de
operários,
sendo obrigado a fugir para o Uruguai. É um dos poucos, nesse meio de teatro e
música, que parecem se importar com política. Os amigos às vezes se preocupam ao
ouvi-lo
chamar Getúlio Vargas de caudilho. E mais ainda ao vê-lo erguer-se inflamado, à
mesa de um restaurante, e discursar, para quem quiser ouvir, sobre aexploração
do
homem pelo homem, a luta do proletariado, as injustiças sociais. Tirando ele e
Alberto Ribeiro, praticamente ninguém por aqui se interessa por política. Podem
contar
à meia-voz uma anedota
sobre Getúlio. Podem fazer músicas de carnaval gozando veladamente os homens da
política. Podem até, os mais sérios, comentar a Guerra Civil que acaba de
eclodir
na Espanha. Mas a revolta dos comunistas, aqui mesmo, no ano passado, é assunto
proibido. Só Mário Lago parece lembrar-se dela:
- Os inocentes estão presos. Os criminosos, no poder!
Ceei fica impressionadíssima com tal arrebatamento. E se sente ainda mais
importante ao saber-se incluída entre as pessoas nas quais Mário confia o
bastante para
dizer-lhes o que pensa. Na verdade, ele a inclui em quase tudo, nos debates
políticos, sérios, ruidosos, e nas pequenas molecagens que seu humor
eventualmente concebe
para gozar um amigo, um companheiro de teatro. Ceei será sua cúmplice numa
dessas brincadeiras. E a vítima, Oswaldo Sampaio, cenógrafo da companhia de
Procópio.
A idéia tem um pouco de Mário, um pouco de
Modesto de Souza. Sendo Oswaldo um homem solitário, fechadão, sempre trancado no
seu quarto de hotel na Avenida Gomes Freyre, Modesto e Mário inventam uma
admiradora
para preencher, senão a vida, ao menos a imaginação do amigo. Uma admiradora que
teria se apaixonado pelos cenários de Oswaldo e graças a isso passado a
escrever-lhe
cartas de amor. Cartas de uma mulher sensível para um grande artista. Mário
capricha nos textos e pede a Ceei que, com sua caligrafia bonita, passe-os a
limpo. Tem
início então uma correspondência que mudará por algum tempo a vida de Oswaldo
Sampaio, ele escrevendo cartas ainda mais apaixonadas à admiradora. O endereço?
Também
isso terá a cumplicidade de Ceei, que concorda em emprestar o seu próprio. Mário
e Modesto, a cada nova carta de Oswaldo, dobram-se de rir. Até que exageram na
brincadeira
fazendo com que a admiradora desconhecida proponha ao cenógrafo um encontro em
frente ao relógio da Glória, a uma da manhã. Um encontro ao qual, evidentemente,
só
Oswaldo irá, tendo quase um acesso de loucura quando, de um carro estacionado
mais adiante, Mário, Modesto e Restier Júnior aplicam-lhe impiedosa vaia.
- Foram vocês, seus filhos da puta! Seus malditos filhos da puta!
Sim, de todas as formas Ceei participa da vida de Mário. Não há entre eles - ao
contrário do que é comum nos casos de amor nascidos na Lapa - qualquer
relacionamento
que envolva dinheiro. Fazendo questão de representar, impecavelmente, seu papel
de amantde coeur, Mário não presta nem recebe favores materiais. No máximo,
ajudará
Ceei a restabelecer-se de assustadora gripe.
431
para que Ceei saiba que ele não acredita. Sempre foi assim, as queixas, as
zangas fingidas, nas horas em que Noel não vê em seus erros mais do que
travessuras de
criança, perfeitamente perdoáveis, e o silêncio, um silêncio frio, cortante, se
algo que ela faça o machuque de verdade.
É durante esse período difícil para todos - ele, Ceei, Mário - que Noel rabisca
os primeiros versos de um novo samba. Nada mais do que rabiscos sobre os quais
ajusta
um começo de melodia, sementes que guardará até que tenha forças para fazê-las
brotar:
Vadico está todas as noites no Lido com seu piano, o sax-tenor de Quincas, o
sax-alto de Lupercílio Lyra, o pistom de Gumercindo Mello, o contrabaixo de
Lilico e
a bateria de Busquet. Um conjunto de formação jazzística que toca choros e
sambas porque os dançarinos assim o exigem, mas que se sente bem mais à vontade
numfox
dolente, melodioso, sobre cujas frases Vadico improvisa harmonias, enquanto
Quincas e Lupercílio perdem-se em complicados solos. Terminado o trabalho, o
pianista
costuma passar pela Lapa para um trago com algum amigo que esteja vagando por
ali. Amigos como Noel Rosa. Eles tanto podem se encontrar no Indígena como no
Leitão,
no 1900 como no Siri, mas é geralmente no Café Club que se reúnem para falar de
samba. Porque Vadico,
se é jazzístico no Lido, nem se atreve a pensar em música americana quando está
com o parceiro. Nesses momentos, o assunto é mesmo samba. E samba triste, pois
nada
além de tristeza sabe cantar Noel neste crepúsculo de 1936.
É com Vadico que ele escreve mais um inspirado em Ceei, a mentira, a traição
colorindo tudo, os carinhos, as frases sem sentido ditas por ela ao seu ouvido.
Quantos beijos quando eu saía!
Meu Deus, quanta hipocrisia!
Meu amor fiel você traía
Só eu é que não sabia.
Não andava com dinheiro todo dia
Para sempre dar o que você queria,
Mas quando eu satisfazia os seus desejos...
Quantas juras! Quantos beijos!
Não esqueço aquelas frases sem sentido
Que você dizia sempre ao meu ouvido.
Você, porém, mentia em todos os ensejos...
Quantas juras! Quantos beijos!
É pequena, magra, o rosto mal se podendo ver por trás do imenso microfone RCA
colocado a meio palmo de distância. Jovem, dezessete anos no máximo, alguém diz
que
foi trazida por Jacob Bittencourt, o do bandolim. Noel fica ouvindo a moça em
silêncio, atrás do vidro do aquário. O número termina, ela sai do estúdio.
- Você tem uma bonita voz.
A cantora pára, meio assustada, paralisada quase pelas palavras com que o
compositor famoso a surpreende no corredor. É a sua primeira noite aqui. E
ninguém menos
que Noel Rosa lhe vem elogiar a voz fina, suave, mas ainda insegura de cantora
principiante.
- Mas me diz uma coisa: por que diabos você canta música do repertório de Carmem
Miranda?
- Ainda não tenho meu próprio repertório.
- Vem cá.
A história se repete como há três anos, Aracy de Almeida cantando música do
repertório de Carmem, ele chegando, elogiando-lhe a voz, chamando-a para
ensinar-lhe
novos sambas. Quem sabe não dê a mesma sorte? Leva a moça pela mão até um canto
do corredor, vê um violão encostado, tira-o da capa, afina-o, tudo muito rápido.
437
Noel escreve a letra de Quem Ri Melhor numa folha de papel e a entrega à moça.
Repete que ela pode lançá-lo no próximo programa, Se quiser, é claro.
- Mas eu quero!
A moça mal pode acreditar no que está acontecendo. Um samba inédito para ela
cantar em primeira audição! E não um samba qualquer, mas um samba lindíssimo.
Bons ventos
sopram também para ela. Noel talvez não lhe note o contentamento. Deseja-lhe
sorte e pergunta:
- Como é que você se chama? A moça, tímida, responde:
- Elizeth... Elizeth Cardoso.
NOTAS
1. A obra de Mário Lago no campo da música popular seria mais do que
expressiva, incluindo composições com Custódio Mesquita (Nada Além, Enquanto
Houver Saudade),
Benedicto Lacerda (Número Um), Roberto Martins (Dá-me Tuas Mãos), Roberto
Roberti (Aurora), Ataulpho Alves (Ai, Que Saudades da Amélia, Atire a Primeira
Pedra) e
sozinho (Será?, Fracasso, Devolve),
2. Por longas horas Ceei conversou com os autores sobre aqueles dias em que se
dividia entre Noel Rosa e Mário Lago. Quarenta e cinco anos depois ainda passava
de frases como "Eu já estava apaixonada pelo Mário..." para outras como "Eu
amava muito Noel..." Tudo naqueles últimos meses de 1936.
3- Mário Lago, em entrevista aos autores, a 5 de janeiro de 1983, confirmou que
Ceei jamais lhe deixou perceber seu secreto projeto de casamento. Tinha, porém,
consciência
de que ela era uma mulher literalmente dividida. Como deixa muito claro, também,
em seu livro Na Rolança do Tempo, quarta edição (página 104): "... o Royal
Pigalle,
onde trabalhava Ceci-pingo-d'água, que às vezes me acarinhava as noites com o
pensamento em Noel Rosa..."
4. Ao estabelecer para Clemente Neto (pseudônimo de Herberto Salles) a
cronologia de sua obra em parceria com Noel - Revista da Música Pupular, número
7, maio-junho
de 1955 (página 2) - Vadico comete enganos. Segundo diz, as músicas teriam sido
escritas nesta ordem: Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim,
Cem
Mil Réis, Provei, Marcha do Dragão, Quantos Beijos!, Tarzan, o Filho do
Alfaiate, Mais um Samba Popular, Só Pode Ser Você e Pra Que Mentir? Pesquisa
realizada pelos
autores, com base em elementos apresentados ao longo deste texto ou então na
musicografria do final do volume, permite concluir que a ordem correta é a
seguinte:
Feitio de Oração (1932), Mais Um Samba Popular e Feitiço da Vila (1934), Só Pode
Ser Você e Conversa de Botequim (1935), Tarzan, o Filho do Alfaiate, Cem Mil
Réis,
Marcha do dragão, Quantos Beijos! e Provei (1936) e Pra Que Mentir? 1937).
438
piada sem graça. Mas Floriano nota que Noel está para brincadeiras. Já contou
uma ou duas anedotas, volta a mexer com o garçom, nem parece ligar muito para a
dificuldade
com que mastiga o pão amaciado na frigideira. Floriano sente-se à vontade para
brincar também. Lembra-se de um amigo de repartição que anda metido com essa
história
de ocultismo, tirando cartas, lendo mãos, antevendo futuros. O próprio Floriano
anda interessado no assunto, tendo comprado alguns livros sobre telepatia,
espiritismo,
magias, vidências, quiromancia.
- Quer dizer que você sabe ler a mão?- pergunta Noel curioso.
- Claro que sei - mente Floriano.
- Então leia a minha - Noel estica-lhe a direita.
Floriano faz pose de quem realmente entende, leva a mão à testa num gesto
meditativo, fica sério, fecha os olhos. Segura a mão de Noel e começa a
lucubrar: "Esta
é a linha da vida, longa, e esta outra é a do destino, cheia de surpresas." Noel
ouve com atenção. Parece acreditar mesmo que os olhos do amigo sejam capazes de
descobrir-lhe na palma da mão todos os segredos do passado e todos os mistérios
do futuro.
-E o futuro é uma continuação do passado...- diz Floriano tornando a voz mais
grave, imprimindo ênfase às palavras.
Notando que Noel está levando a brincadeira a sério, Floriano não resiste à
tentação de pregar-lhe um susto:
- A loucura... Sim, a loucura! Noel estremece:
- Que história é essa, Floriano?
- Estou vendo uma coisa aqui na sua mão. Diga-me uma coisa, Noel. Você já teve
algum caso de loucura na família?
Floriano não sabe de seu Medeiros, ouvira falar por alto de sua morte numa casa
de saúde, mas não dos detalhes. Diante da pergunta, Noel empalidece. A mão
treme,
os braços tremem, todo o corpo treme. Começa a suar frio, perde a voz, dá a
Floriano a impressão de que vai desmaiar. O amigo se assusta, pega um
guarda-napo, põe-se a abaná-lo.
- O que aconteceu com ele?- pergunta o garçom.
- Não sei.
- Não terá bebido demais?
- Não, nada disso. Está passando mal.
- Não é melhor chamar uma ambulância?
Floriano tenta, sem êxito, reanimar Noel, que continua tremendo, suando frio.
Ele e o garçom fazem força para levantá-lo da cadeira.
- Vou ver se consigo levá-lo para casa.
Do Ponto Chie ao chalé são dois quarteirões pelo Boulevard, mais um pela Souza
Franco, uma caminhada normalmente tranqüila, mas Floriano teme que, nesse
estado,
meio fora de si, Noel nem chegue à metade.
- Pode deixar, Floriano... Eu vou sozinho - diz como se recuperando a fala,
embora ainda pálido, trêmulo, transpirante.
- Vou com você.
Os dois andam lado a lado, Floriano amparando-o. O que terá dado em Noel? Por
que terá ficado tão impressionado? No chalé, Floriano sente-se na obrigação de
chamar
dona Martha e Hélio. Já passa das seis, estão todos de pé. Lindaura também se
aproxima.
- Não sei o que aconteceu com ele - diz Floriano. -De repente, começou a sair de
si, a esmaecer. Parece que entrou em transe.
Vão todos acordar o seu Bruno ali em frente. O consultório ainda não abriu, mas
não tem importância. O dentista, mais amigo que dentista, está sempre pronto a
receber
Noel. Manda que o tragam, que o façam sentar-se. Noel continua tremendo, suando.
O dentista abaixa o encosto da cadeira até transformá-la
441
numa cama improvisada. Pede que Noel feche os olhos, que todos façam silêncio,
diz coisas aparentemente sem sentido e agita as mãos em gestos mais sem sentido
ainda.
- Com estes passes ele ficará bom - explica.
De fato, ele se recupera, a cor lhe volta ao rosto, os braços e as mãos ficam
firmes, o suor frio se vai. Os "passes" de seu Bruno fizeram efeito. Noel se
sente
como se despertado de um longo sono, sem lembrar o que se passou depois que
Floriano lhe perguntou se havia caso-de loucura na família. Do consultório Noel
vai direto
para a cama, dormir de verdade. Só no dia seguinte, ao narrar o episódio para
amigos do Ponto de 100 Réis, Floriano fica sabendo o quanto foi inoportuna sua
quiromancia:
- Mas como é que eu podia saber que o pai dele morreu louco!
Despedidas, desgarramentos, Noel deixa isso mais ou menos claro em cada gesto ou
palavra. As pessoas podem não notar, mas a fraqueza geral (ou o que quer que se
vá por dentro de seu indevassável mundo interior) faz com que não lute muito
pela vida, que abdique de tantas coisas. E por falar em abdicar, é este o tom da
resposta
que dá ao repórter de Carioca que o procura para incluí-lo entre as
personalidades do rádio convidadas a participar da enquête "Se você acordasse
Presidente da República,
o que faria?"
"- Creio que abdicaria imediatamente - respondeu ele.
- Em favor de quem?
- Em favor de João-Ninguém, que não tem ideal na vida... "(3)
Retirando-se do campo de luta, cansado, mas ainda assim pensando em seus sambas,
no carnaval que se aproxima.
Noel e Cartola continuam grandes amigos, afinidades e afeição que só aumentaram
com o tempo. O compositor de Vila Isabel ainda se sente muito à vontade no
humilde
barraco do sambista da Mangueira. Tem trânsito livre no morro, conhece seus
caminhos de terra batida, sabe contornar seus buracos e suas pedras, equilibra-
se por
ali com a mesma destreza daqueles que estão habituados a subir, subir muito, até
seus Casébres de madeira e zinco pendurados na encosta acidentada. É num desses
Casébres que mora Cartola, uma das poucas pessoas que Noel visita neste novembro
de 1936. Ainda tem disposição o bastante para deixar com o amigo um começo de
samba,
Nos Três Dias de Folia, para que ele o complete. O tempo não pôs fim à parceria.
Nos três dias de folia
O que eu fiz fingindo alegria
Pra esquecer meu grande amor!
Ai, ai, meu Deus
Pra esconder meu desgosto
Fantasiei-me a meu gosto
E fantasiei a dor.
Este fragmento de samba não é a única idéia que leva a Cartola. Explica-lhe que
terá de gravar até o fim do mês um disco para o suplemento carnavalesco da
Victor
e outro para o da Odeon. São quatro sambas que pretende cantar em dupla com
Marília Baptista. Três serão composições recentes: Provei, Quantos Beijos! e
Quem Ri
Melhor. O quarto foi feito no começo do ano, aquele único inspirado em Lindaura:
Você Vai Se Quiser. Um dos discos, o da Odeon, terá acompanhamento do regional
de
Benedicto Lacerda. O segundo - e esta é a outra idéia que leva a Cartola -
poderia aproveitar o molho do pessoal da Mangueira, a bossa dos ritmistas de
verdade,
a perícia dos melhores tocadores de surdo, cuíca e tamborim que há por aí. Noel
recorda que no início de sua carreira em disco o Bando de Tangarás fez
precisamente
isso, Canuto, Puruca, a turma do morro invadindo os estúdios de gravação. Por
que não fazer o mesmo agora? Cartola aprova a sugestão e se incumbe de
arregimentar
entre os bambas do lugar alguns ritmistas para acompanhar Noel e Marília.
No dia 12 de novembro, quinta-feira, é um pouco apreensiva que Marília espera
pelo companheiro de dupla em sua casa na Rua General Rocca, perto da Praça
Saenz Pena. A essa altura Benedicto Lacerda Já deve estar a postos no estúdio da
Odeon. E Noel, como sempre, atrasadíssimo. E o pior é que ela nem aprendeu as
músicas
direito. Um dos lados do disco, Você Vai Se Quiser, não chega a ser problema
maior. É samba que ela já cantou muitas vezes no Programa Casé. Mas e o outro?
Noel
já cantarolou o refrão para Marília, diz que ele e Vadico ficaram de terminá-lo,
mas que até agora nada. Isso a poucos minutos do início da gravação.
Noel chega, Marília está nervosa. Ele a tranqüiliza. Enquanto ela vai lá dentro
apanhar a bolsa e ajeitar o cabelo, ele se senta no sofá da sala, tira papel e
lápis
do bolso, pega o violão. Quando Marília volta, diz estar fazendo umas alterações
na melodia, retocando a segunda parte da letra, acabando enfim o outro samba.
- Mas já está na hora da gravação!
No táxi que os leva para o estúdio da Odeon, na Almirante Barroso, um tanto sem
jeito para tocar o violão no banco de trás, o carro em disparada na tentativa de
descontar o atraso, Noel vai ensinando a Marília o samba intitulado
442
Provei. Ela o canta em tom bem mais baixo que o dele, os dois buscam um ponto em
comum. As modificações que Noel faz na melodia são muito em função disso, um
esplêndido
trabalho de recriação.
"Sempre demos grandes festas de São João em nossa casa. Era assim que a gente
comemorava os aniversários de Heloísa, minha irmã. Noel não perdia uma. Naquele
ano, estava um pouco triste, jururu. Ofereci-lhe um prato de canjica. Ele
aceitou,
mas pediu-me que levasse para o quarto dos fundos, onde ninguém pudesse vê-lo.
Noel era muito feio comendo, raramente fazia uma refeição na frente de
estranhos.
Mas nós éramos como gente de casa, da família. Terminada a canjica, pegou o
violão e começou a tirar alguma coisa. Me pediu que lhe trouxesse lápis e papel
para
anotar a letra de um samba que acabava de lhe vir à cabeça. Era o Ultimo Desejo"
Theodorica dos Santos Lima, Dorica
"Em fins de 1936, encontrei o Noel no Programa Casé. Já estava muito magro,
doente. Ficamos conversando sobre música. Ele me disse:
- Engraçado, Floriano, a gente se conhece há tanto tempo, já fez tanta serenata,
nos encontramos em tantos lugares, e no entanto você nunca gravou nada meu. Sabe
de uma coisa? Acho que tenho aqui um samba que casa muito bem com teu jeito de
cantar.
Sempre cantei no estilo do Sílvio Caldas, um repertório mais romântico, de
valsas-canções, serestas, sambas dolentes. Noel me mostrou então o tal samba que
casava
com meu jeito de cantar. Era simplesmente o Ultimo Desejo. Sabe o que eu disse a
ele?
- Muito bonito, Noel, mas não é bem o meu gênero.
Até hoje não me perdôo."
Floriano da Costa Belham
445
NOTAS
1. O precioso Este Álbum de Noel Rosa, que durante muito tempo foi dado como
desaparecido ("No próprio dia triste de sua morte - diz Almirante em No Tempo de
Noel
Rosa, primeira edição, página 209 - inúmeros repórteres presentes, na busca de
dados, arrancavam as páginas do caderno que lhes pareciam indispensáveis. Assim
foi
sumindo Este Álbum, restando somente a capa..."), esteve guardado com amigos da
família que o passaram às mãos de Jacy Pacheco, infelizmente depois de já ter
ele
escrito seus dois livros sobre o primo. Hoje pertence aos arquivos dos autores.
2. Esta passagem, já focalizada por Jacy Pacheco em O Cantor da Vila (páginas
134-135), foi recontada aos autores, com novos detalhes, pelo próprio Floriano
Belham.
3. Carioca, 29 de agosto de 1936 (página 48).
446
Os últimos dias de 1936 são passados em casa. Janeiro chega e, com ele, os dias
mais quentes do verão. Alguém sugere que Noel e Lindaura saiam do Rio por
algumas
semanas. Não precisam ir muito longe, como a Belo Horizonte de tia Carmem. Basta
que seja um lugar tranqüilo, fresco, de ar puro. Por que não Friburgo? Bom
clima,
a montanha, o verde. E é perto, apenas algumas horas de trem e já se está numa
terra abençoada, milagrosa.
Mas os pulmões não são o único problema de saúde que Noel enfrenta neste começo
de janeiro. Um molar inferior esquerdo causa-lhe grandes padecimentos. É uma dor
que se reflete por todo o rosto, impiedosa. Nunca teve muito cuidado com os
dentes. Um pouco por relaxamento, mas principalmente porque o defeito jamais lhe
permitiu
abrir a boca o suficiente para que o dentista trabalhasse sem lhe causar dor na
articulação. O tal molar já não passa de um caco. Infeccionado, deu origem a um
abcesso
que faz inchar o lado esquerdo do rosto. O processo avança, uma fístula vai
deixar-lhe mais uma marca. Noel, sofrendo muito, atravessa a rua e recorre outra
vez
ao seu Bruno. A intervenção é difícil, demorada, dolorosa. Antes de extrair o
molar, o dentista lanceta o abcesso a sangue-frio. Tenta encarar tudo com
resignação.
E até com uma dose de humor. Pega lápis e nanquim, desenha-se de perfil, o lábio
inferior pendurado como se fosse uma gota prestes a cair-lhe do resto da cabeça.
Seu nome faz as vezes da bandagem que seu Bruno recomendou, compressa quente
para ajudar a vencer o abcesso. A caricatura é colada na segunda capa de Este
Álbum.
O dentista será pago com a maior riqueza que Noel tem para dar: gratidão em
forma de samba. A ele, "distinto amigo e ilustre dentista Bruno de Moraes", será
dedicada
a partitura impressa de Quantos Beijos!
Alguns dias em casa, repousando, levam a febre embora. Mas não devolvem a Noel
as forças que aparenta vir perdendo desde o último encontro com Ceei. Está meio
prostrado,
sem ânimo, muito diferente do clima que se respira lá fora, nas ruas, neste
começo de ano. O carnaval está perto. Integrantes dos pequenos blocos de sujo
batem de
casa em casa, pires na mão, arrecadando os mil réis que talvez lhes permitam
fazer melhor figura do que no ano passado. De quando em vez, mesmo lá dos fundos
do
chalé, ouvem-se os sons que vêm de pontos distantes, um surdo que pulsa lá pela
Maxwell, tamborins que repenicam na Souza Franco, ecos de batalha no Boulevard.
A
animação é grande. O Cara de Vaca e o Faz Vergonha, como de hábito separados
pela principal avenida do bairro (e, mais que isso, por uma rivalidade que a
cada ano
aumenta), tratam de se articular. No Ponto de 100 Réis, o pessoal do lado de cá
passa a cumprimentar ressabiado o pessoal do lado de lá: em fevereiro, com a
proximidade
do carnaval, Cara de Vaca e Faz Vergonha vão esquecer que são partes de uma
mesma família e se transformar, quase, em duas comunidades distintas. Vizinhas
mas de
forma alguma aliadas. Enquanto isso, alheio a essa emulação, o Meninas Loucas da
Vila faz força para tornar-se um bloco, tanto quanto possível, da estatura dos
outros
dois. Já conta com verba extra do bicheiro Lourenço, um dos seus fundadores, e
também com a promessa de Affonsinho de trazer para o desfile um punhado de
craques
do São Cristóvão, o Carreiro, o Roberto, o Dodô, sem falar no Quintanilha, que
já é daqui mesmo, de Vila Isabel. O clima lá fora, nestes dias, é mesmo de
carnaval.
E pela primeira vez na vida - desde que se fez crescido o bastante para batucar
um tamborim - Noel não participa de tudo isso, dos blocos, das batalhas, das
músicas
que o povo canta.
Em casa, ouve o rádio. Interessa-se por programas que transmitem, desde manhã,
os sambas e marchas que disputam a preferência popular neste começo de 1937.
Musicalmente,
não é um bom carnaval. Basta que se observe que a marcha de maior sucesso é
Mamãe Eu Quero, o maestro Vicente Paiva lançando mão de antiga canção de ninar
para musicar,
sem muita inventiva, os versos maliciosos, mas pobres, de Jararaca. Lig-Lig-Lig-
Lé e Como "Vais" Você? (Ary Barroso aproveitando-se de expressão coloquial da
moda
para se permitir intencional ofensa à gramática) também não são lá grande coisa,
embora muito cantadas. Nem mesmo sambas como Falso Amor e Acorda, Escola de
Samba
conseguem elevar o nível do que se ouve no rádio.
Será exagero afirmar que as melhores músicas deste carnaval são mesmo as de Noel
Rosa? É inegável que nenhuma delas tem espírito muito carnavalesco. Tarzan,
Cidade
Mulher, Dama do Cabaré, Na Bahia e Pela Primeira Vez são todas músicas de meio
de ano, ouvidas já no filme Cidade Mulher. Só foram incluídas nos catálogos de
carnaval
porque levam a assinatura de Noel Rosa. O X do Problema, que o público também já
conhece de teatro e de rádio (afinal, foi lançado há quase dois anos), é gravado
por Aracy de Almeida com vistas ao carnaval, mas, positivamente, de carnaval
pouco tem. O mesmo pode-se dizer dos quatro sambas que o próprio Noel levou ao
disco
em dupla com
MaríliaBaptista. Nota-se que foi feito esforço no sentido de tornar esses sambas
"carnavalescos", seus andamentos mais acelerados, gente de escola de samba
atuando
no ritmo. Mas nem assim foi possível ocultar-lhes a nostalgia. Não tanto no caso
de Você Vai Se Quiser, mas no dos outros três, Quantos Beijos!, 'Provei e Quem
Ri
Melhor. Por mais que o ritmo tenha sido adaptado a esta festa de alegria, o que
fica mesmo é o desconsolo de certos versos e a melancolia de cada frase musical.
Dois deles eram feitos de parceria com Vadico, mas todos são obras bem de acordo
com o Noel desses dias. Tristes, mas certamente o que de melhor se ouve neste
carnaval.
Não é por acaso que Quem Ri Melhor ganhará o primeiro prêmio da Prefeitura.
No domingo de carnaval, 7 de fevereiro, Noel sente-se bem o bastante para fugir,
ainda que por poucas horas, da clausura do chalé.
- Quero ver o movimento na cidade-diz ele convidando Lindaura.
Hélio chama um dos motoristas de táxi, amigo do Ponto de 100 Réis, e o contrata
para, capota arriada, levar Noel, Linda, toda a família até a Avenida Central.
Blocos
passam, blocos cantam:
Pobre de quem já sofreu neste mundo
Noel, no banco de trás do táxi, ouve:
Quem ri melhor é quem ri no fim!
Mas não ri. Assiste, em silêncio, ao seu último carnaval.
Fica sem sair do chalé por algum tempo. Febre alta, tosse, falta de ar. Edgar
Graça Mello já não perde tempo em se dirigir ao doente. É inútil. Prefere fazer
as
recomendações a dona Martha:
- Repouso absoluto. E estes remédios nas horas certas.
O repouso e os remédios - alguns contendo bálsamos para aliviar a tosse - o
deixam fora de combate. Dorme a maior parte do tempo, não sente vontade de fazer
nada.
Se melhora, sai. Vai a uma estação de rádio, eventualmente canta um número ou
dois, só para matar a saudade. Cansado, volta para casa, mergulha de novo na
cama.
Ainda pensa em Ceei. E como! Pensamentos que podem se tornar mais fortes, a
ponto de perturbá-lo, de levá-lo a impulsos inesperados. Como sair de casa, ir
ao Ponto
de 100 Réis e entrar no primeiro táxi.
- Vamos ao Café Nice - diz ao motorista. Encontra Vadico bebericando com
Floriano Machado, capitão do Exército, amigo comum. Vadico era exatamente quem
procurava.
448
Noel está visivelmente abatido, os olhos mais tristes do que nunca. Floriano
nota isso assim que o parceiro se aproxima da mesa(1).
- Vadico, precisamos conversar.
- O que houve, Noel?
- Tem um piano por aí?
- Só o meu, lá em casa.
O apartamento de Vadico fica na Rua das Marrecas, bem perto da Lapa.
Umagarçonnièrea que os amigos recorrem sempre que fazem uma conquista pelas
redondezas. É ali
também que ele e Noel, em torno do piano, escreveram a maior parte de seus
sambas juntos. Mas desta vez Noel prefere outro lugar, outro piano. Mais próximo
do Nice,
como se tivesse pressa. Vadico nota-lhe a ansiedade, o ar angustiado. Floriano
sugere que usem o piano de um clube da esquina, a poucos passos do Nice. Os três
se
dirigem para lá.
No caminho, Noel explica que tem um começo de samba que quer que Vadico o ajude
a concluir. é algo que eles têm que fazer logo, o samba está preso dentro dele,
como
um nó na garganta.
- Está bem, Noel- diz Vadico.
Noel começa a desabafar, a falar de Ceei, de suas queixas de amor. Nesses dias -
talvez pela doença - são também confusos os seus sentimentos. De ironia, como
naquela
noite na Taberna da Glória, ou lamurientos, como agora. Pode ser até cruel, como
nestes versos de Só Você:
em seu caderno de folhas soltas. Anotará o gênero e a autoria (samba de Vadico e
Noel Rosa), o titulo (Pra Que mentir?) e a data (8 de março de 1937). É apenas
um
esboço. Conseguirá vê-lo concluído?2
adiantados. Este e outros detalhes estão numa carta enviada a dona Olindina. Uma
carta peculiar, cheia de simulações bem ao gosto de Noel. A começar pelo fato de
ele próprio tê-la escrito e assinado como se fosse Linda. Algumas informações
têm a ingenuidade da mulher, no fundo quase uma menina: falam do levantar cedo,
da
fome na hora das refeições, dos passeios de automóvel e bicicleta, do preço do
mamão, das frutas e das verduras. Outras informações, contudo, resvalam no
caminho
das mentiras: "Noel tem passado bem: não tem tosse nem falta de ar." Quando na
verdade, em momento algum de sua última e breve estada em Friburgo, chegará a
passar
realmente bem. Toma duas injeções por dia, orion e gluconato de cálcio,
aplicadas pelo Nelson Ruy da Farmácia Vieira, que vai ao hotel pela manhã e à
tarde. Noel
quase não sai, prefere ficar sentado na espreguiçadeira do hall, conversando com
os outros hóspedes, lendo jornais e revistas do Rio. É ali que os amigos, da
terra
ou de passagem, vão encontrá-lo.
- Como éque está, Noel?- pergunta Marino Pinto.
- Cada vez melhor- responde com nova mentira.
A Maríno, Pandiá Pires, Lucas de White, Geraldo Penna, amigos ou meros curiosos
que querem conhecê-lo ("Vocês sabiam que o Noel Rosa está aqui em Friburgo ?"),
não
se nega a cantar um ou outro samba. O violão, naturalmente, veio com ele
do Rio. Os amigos o ouvem com a voz muito fraca, sem sair da espreguiçadeira,
num samba triste, banhado em dor, que só completará no Rio e a que dará o título
de
Eu Sei Sofrer(3):
referindo-se tão masoquistamente ao terrível prazer que Deus lhe deu, não é o
mesmo da outra vez. ' Já não faz serenatas. O sereno, o frio das noites de
Friburgo,
onde mesmo no mês de março se dorme de cobertor, não é bom. Certa manhã,
sentindo-se melhor, abusa: toma um copo de leite gelado. Esqueceu-se das
recomendações de
Edgar a respeito do gelo. A febre volta, a tosse também. Agrava-se o problema da
falta de ar. Pior, não sabe se pelo leite gelado ou lá o que seja, começa a
sentir
dores pelo corpo. Lindaura chama um médico, este diz que é nevralgia. Receita
analgésicos, manda que Noel se agasalhe bem, evite o sereno. Penosa imposição a
este
cantor das madrugadas, poeta noturno, amigo de todos os serenos. Embora se diga
no seu samba um conhecedor da arte de saber sofrer, a resignação tem limites.
Ele
próprio se impacienta, a nevralgia se somando aos pulmões estragados. É o que
deixa transparecer numa carta escrita a Almirante:
"Tenho pena daqueles que estou incomodando com a minha merecida moléstia.
Confesso que não sei agradecer a tanta bondade. Era mais negócio vocês me
deixarem morrer,
como eu mereço. Não quero mais amolar.
P.S. Há muito tempo não escrevo. Isto basta para perdoar os meus garranchos.
Qualquer dia não saberei mais falar..."
Estranha carta esta(4). Contraditória, também. Não é de um poeta que sabe
sofrer. Nem de alguém que escreveu há poucos dias outra carta ("Há muito tempo
não escrevo...")
tão otimista para a sogra. Por que tanta amargura? Por que encarar a morte tão
aceitativamente, como merecida fatalidade?
Passam três semanas em Friburgo. A idéia era ficarem um, dois ou mais meses. Ou
mesmo aproveitarem o inverno de frio seco e bom da cidade. Mas a nevralgia -
somada
à vontade grande de voltar - acaba mudando os planos. Alguns amigos tentam
demovê-lo:
- Fique mais algumas semanas. O clima daqui tem feito milagres.
Não acredita. O frio seco, o céu muito azul, as estrelas que brilham nas noites
de Friburgo não fizeram a ele o bem que se esperava. Nem ao corpo, nem ao
espírito.
Parece que mais uma vez lhe ocorrem as palavras de Cícero: "A pátria é onde se
está bem." Por isso decide mesmo voltar para Vila Isabel. Lindaura, como sempre,
não
se opõe. De que adiantaria?
No chalé, o reencontro com a mãe e irmão. A volta repentina cria certo
transtorno. Supondo que Noel e a mulher fossem ficar meses em Friburgo, Martha
convidou Arlinda
para passar férias no Rio. Assegurou que haveria lugar de sobra, apenas ela e
Hélio em casa. Detalhe importante: o filho doente fora, Arlinda não precisava
temer
o risco de contágio. Podia até trazer Nair, sua filha de seis anos. Convite
aceito, um dia depois da volta de Noel, Arlinda e a menina aparecem no chalé. O
que fazer?
A velha casa que a madrinha de Noel reencontra é uma melancólica sombra do que
foi outrora. Na verdade, é quase uma ruína. Estes anos de sofrimento e
decadência,
sobretudo os dois que se seguiram ao suicídio de Neca, bastaram para dobrar
Martha, transformando-a de mulher forte, granítica, como Arlinda conheceu anos
atrás,
numa criatura já sem ânimo. Alentos? Poucos. Bons momentos? Raríssimos. Desde
algum tempo Álvaro de Castro, um cinqüentão que mora na casa 3 da vila 399, em
frente
ao chalé, faz parte de sua vida. Primeiro foram os olhares, depois os
cumprimentos gentis, as atenções. Álvaro, boa alma, prestativo, dado a
delicadezas, foi aparecendo
no chalé. Para uma ajuda, a troca de uma lâmpada queimada, o conserto de um
encanamento, o reparo de um reboco castigado pelos anos. Aparecia, ia ficando.
Para uma
sopa quente, uma prosa mais demorada. Passou a sair tarde do chalé - quando
saía. Arlinda fica sabendo que os vizinhos ainda olham para tais pernoites com
olhos
de reprovação. ("Quando alguém pretende praticar qualquer má ação - já dizia
Noel em suas divagações de juventude - só pensa numa palavra: vizinho.") Mas
Martha
não pratica nenhuma ação má, ao contrário do que muitos - inclusive alguns
parentes - preferem pensar de sua ligação com Álvaro. É livre para amar quem
quiser. Já
os filhos não pensam nem dizem nada. Compreendem. E fazem como se nada houvesse.
Arlinda continua a grande amiga de Martha. Amiga e confidente. Impressiona-se
muito menos com a presença de Álvaro do que com o desmoronamento da casa, a
derrocada
da família. Chegando de tardinha com Nair, as duas têm de passar a noite ali.
Apesar do afilhado doente, espalhando bacilos pelo ar. Aos olhos dela e da
menina,
a casa é mesmo uma ruína(5). Procura ajudar Martha na rotina doméstica. Por
exemplo, pondo a mesa para Hélio e o amigo que ele trouxe para jantar.
- Até que enfim! - exclama o sobrinho deixando claro que o hábito de caprichar
na mesa, toalha, pratos, talheres, foi há muito abandonado.
Arlinda e Nair jamais esquecerão esta noite. A menina não gosta de Noel, ou
melhor, da caricatura que ele lhe faz acentuando o nariz de turca herdado do
avô. Simpatiza-se
mais com Hélio, que no entanto, passados todos esses anos, ainda tem ciúmes do
irmão.
- Viu a mesa que Arlinda pôs só para
451
Vai ver é alguém que sabe que aqui no chalé mora o grande Noel Rosa. Estas
piruetas são uma homenagem ao maior compositor popular do Brasil.
Noel sorri como se para agradecer a carinhosa brincadeira - elogio raro. Verdade
é que Hélio sabe que a profecia de vó Rita falhou. Não estará ali a placa com o
seu nome. A glória do chalé vai dever-se ao irmão.
Nestes últimos dias de abril há vestígios, ainda que poucos, de melhora. Noel
continua muito magro, pálido, a aparência ainda mais afetada pelo desânimo que o
impede
de fazer a barba, pentear-se, vestir melhor roupa. Está quase sempre metido no
pijama de flanela, a gola cossaca circundando o pescoço afilado, protegendo-o de
um
frio que só ele sente. A febre causa-lhe arrepios, derruba-o. Mas, quando a
temperatura desce ao normal, há vestígios de melhora.
Os que vêm ao chalé, amigos, vizinhos, gente da música, o encontram ora caído,
sem disposição, ora ativo, desenhando ou tocando violão. Desenhar, porém, é o
que
mais faz nestes dias. Dedica-se menos aos sambas do que aos rabiscos. Nássara
encontra-se com dona Martha no Boulevard, pergunta-lhe por Noel. Ouviu dizer que
anda
adoentado. Não deixa transparecer a falta de coragem para visitar o amigo.
-Ah, seu Nássara... Ele está muito fraquinho. Não tem forças nem para tocar o
violão. Vive desenhando, fazendo caricaturas.
Dona Martha conta que ia precisamente comprar mais lápis, guache, papel canson.
São interessantes os desenhos que ele faz. Por que não aparece para ver? Nássara
promete ir.
O desenhista Noel Rosa é persistente. Apesar de tudo, continua confiante no seu
traço. Foi na presença do mesmo Nássara que um dia, à porta de um café, mostrou
seus
desenhos a Emiliano Di Cavalcanti. Um encontro constrangedor,
Noel orgulhoso de seus rabiscos, o artista indiferente, mudando de assunto:
- Me canta aquele samba, Noel...
- Samba não dá dinheiro a ninguém - retrucou - Eu quero é emprego. Estive agora
mesmo em O Globo...
E Di Cavalcanti, interrompendo-o:
- Canta aquele samba outra vez?. Hoje Noel pensa mais em seus desenhos
que em música. Um deles, a que se vai referir em sua última carta, é feito com o
pensamento na capa da partitura de Eu Sei Sofrer. Mostra-se mais uma vez de
perfil,
segurando o violão pelo braço com a mão esquerda, uma garrafa de Cascatinha pelo
gargalo com a direita. O outro desenho tem especial significação. Noel e o
violão
estão mergulhados numa pilha de partituras de músicas suas. Tem a cara
assustada, as mãos
Desenhos de pouco valor
"Vila Isabel é hoje o bairro de Noel Rosa, homem estranho que morreu moço e que
foi um gênio carioca. Noel um dia cantou-me um samba, creio que no Café Nice,
batendo
numa caixa de fósforos, como acompanhamento. Era admirável, sua voz rouca de
rapaz doente, cheia de um sentimento profundo, acentuando nas palavras a força
melancólica
de um segredo à bem-amada. Exultei, mas o rapaz, dias depois, procurava-me
noutra mesa do café para mostrar uns desenhos seus, de pouco valor. Disse-lhe
que não
desenhasse e fizesse sambas, muitos sambas! Desde então passou a me tratar mal e
por minha culpa não mais tive o seu convívio. Só sabia dele através de Antônio
Nássara,
outro homem maravilhosamente carioca e de São Cristóvão. Nascido na Rua Abílio,
esquina da Rua Vileta. Nássara é tão carioca como é carioca o Largo da Lapa.
Poderia
ser considerado monumento desta cidade: com Orestes Barbosa e Sílvio Caldas faz
um trio que encontra no meu coração um aconchegado recanto de carinhos."
Di Cavalcanti
Diário de Notícias, 11 de março de 1962
imobilizadas, sem poder tocar a vistosa morena de cabelo curto que se aproxima.
Não é Ceei, nem Lindaura, nem Fina. Quem será? A significação especial do
desenho,
porém, está em outros detalhes: os títulos das músicas. É neles que Noel se
revela autor de algumas obras que nunca fez questão de reivindicar e cujos
registros
oficiais (selos de discos, partituras, fichários de editoras e arrecadadoras)
sempre omitiram seu nome: Fui Louco, Não Faz, Amor, Tenho Um Novo Amor. Até onde
se
sabe, será seu último desenho.
Se já não faz novas músicas, ainda tem muitas guardadas, inéditas, prontas para
serem lançadas no rádio ou gravadas em disco. Aracy de Almeida sabe disso. Ela
também
aparece no chalé, acompanhada de Benedicto Lacerda, querendo saber se ele não
teria umas coisinhas para mostrar. Claro que tem. A zanga? Noel nem se lembra
mais
da troca do mas pelo pois e do o pelo um. Recebe-a bem, pega o violão, mostra
lhe o que tem: quatro grandes sambas. Dois deles Aracy decide gravar logo. Um é
O Maior
Castigo Que Eu Te Dou, que ela promete cantar com
454
a letra certa (a promessa não será cumprida). O outro é Eu Sei Sofrer, iniciado
em Friburgo, terminado aqui. A cantora gosta não apenas do samba, mas também do
desenho
que Noel fez para a partitura.
- Me dá esse desenho, Noel?
- Quando estiver pronto.
Os dois outros sambas Aracy deixa para gravá-los depois. É pena. Um deles,
Século do Progresso, de três anos atrás, conta a história daquela briga já
superada com
Zé Pretinho. Tudo são reminiscências nestas "coisinhas" que Noel vai mostrando a
Aracy. Inclusive - e principalmente - no mais bonito de tudo que ele tem
guardado:
Último Desejo. Sim, é pena que a cantora deixe para gravá-lo só daqui a dois
meses. O tempo já não é muito. Ela e Benedicto Lacerda talvez não percebam que
Noel
tem pressa, mais pressa do que muitos imaginam.
Nova visita de Vadico ao chalé, Noel cantarola para ele, nota por nota, o mesmo
Último Desejo. O parceiro vai passando a melodia para a pauta, prometendo
escrever
a parte de piano e entregá-la a Mangione.
- Quero mais um favor seu, Vadico. Gostaria que você desse uma cópia da letra a
Ceei.
Vadico promete que o fará. O mais rápido possível. Sai dali, vai para casa,
senta-se ao piano, passa as notas para o pentagrama. A melodia da segunda parte
que Noel
lhe cantou é um pouco diferente da aprendida por Aracy de Almeida, mas
exatamente igual à que o mesmo Noel ensinou a Marília Baptista. Uma diferença
que um dia dividirá
as duas grandes intérpretes em torno da verdade que cada qual, com razão, diz
conhecer(9). Vadico passa a pauta a limpo, tira uma cópia da letra e leva-a para
Ceei.
Exatamente como Noel pediu. O pianista encontra-a no Caverna, de noitinha, põe
os versos sobre a mesa.
- O que é?
- Um, samba de Noel. Acabei de escrevê-lo(10).
- Para mim?
- Sim, ele me pediu que eu te desse. Vadico não consegue evitar o comentário:
- Acho que ele te castiga um pouco neste samba, Ceei.
NOTAS
1. Todo esse episódio faz parte do depoimento de Floriano Machado a Almirante,
contado por este na Rádio Tupi a 14 de agosto de 1951, mas não utilizado por ele
em nenhum de seus escritos sobre Noel.
2. Está mais ou menos difundida a versão de que Noel Rosa não chegou a conhecer
a melodia de Pra Que Mentir?, o que não é exato. Em entrevista ao jornalista e
escritor
Herberto Salles (O Cruzeiro, 4 de setembro de 1954), Vadico esclarece que apenas
a segunda parte foi escrita depois da morte de Noel. Ao fazê-lo, o pianista
naturalmente
alterou um pouco a letra original, suprimindo uma das repetições da expressão-
título e substituindo "... embora seja traído por teu desprezo sincero" por "...
apesar
de ser traído por teu ódio sincero." Não bastasse este depoimento, conclusivo,
há também outra evidência: a estrutura da letra, de versos livres, típicos de
quem
os escreveu para determinada melodia. Quando fazia letras para serem musicadas
depois - do que Balão Apagado ejoão Teimoso são exemplos - Noel sempre evitava
os
versos livres, preferindo formas mais tradicionais, metrificadas, como o
terceto, a trova, etc. O samba só seria gravado um ano e quatro meses após a
morte de Noel,
na Victor, por Sílvio Caldas e os Diabos do Céu.
3. Geraldo Penna, em depoimento aos autores, fala daquela visita a Noel no
pequeno hotel ao lado da estação. Ele, Pandiã Pires e Marino Pinto ouvindo
praticamente
em primeira audição o começo de Eu Sei Sofrer, samba que bem traduz o estado de
espírito de Noel naquele mês de março.
4. Citada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa, primeira edição (página 201)
e segunda edição (página 211).
5. "Eu achei o chalé horroroso, sujo, abagunçado, mas mamãe me explicou que
antes não era assim, não...", diz Nair Goyano Mathias em depoimento aos autores.
Segundo
ela, a impressão que Martha lhe dava era a de uma mulher cansada, devendo-se a
isso a decadência da casa.
6. Jacy Pacheco, em depoimento aos autores, nega ter havido tal incidente. Seus
contatos com Ceei, afirma, foram poucos, breves e superficiais. Ceei, ao relatar
o episódio aos autores, garante não haver a menor possibilidade de estar
confundindo Jacy Pacheco com outra pessoa: "Primo de Noel, tinha o nome parecido
com o meu
e era de Campos como eu."
7. Major do Exército naquela ocasião, Francisco de Assis Corrêa de Mello, o
Mello Maluco, como era conhecido por suas arriscadas acrobacias aéreas, pilotou
em 1931
o primeiro vôo transcontinental militar brasileiro. Em 1941, passaria aos
quadros da Aeronáutica, que então ganhava ministério próprio. Chegaria a
marechal-do-ar
e a ministro da Aeronáutica no governo Juscelino Kubitschek e mais tarde no de
Ranieri Mazili, no curto período em que este presidiu o Brasil logo após o golpe
militar
de 1964. Era muito popular no Rio de Janeiro dos anos 30.
8. Pedro Bloch em "O Rio de Noel", Manchete, 10 de abril de 1965 (página 115).
9- A versão que se tornou clássica de Último Desejo é a que Aracy realmente
gravou dois meses depois da morte de Noel. A que Marília aprendeu do próprio
compositor
- a mesma que está na partitura escrita por Vadico - tem melodia diferente no
terceiro, quarto, quinto e sexto versos da segunda parte. Quanto à letra, na
partitura
está a forma errada "um botequim" em lugar de "o botequim", como Noel escreveu.
10. Em entrevista a Ary Vasconcelos (Fairplay, 1967), Ceei diz que Vadico lhe
entregou o samba no exato momento em que lhe comunicava a morte de Noel. Aos
autores
ela dá esta outra versão. Nos dois depoimentos, porém, afirma que Último Desejo
tinha música de Vadico. Uma confusão a que deve ter sido induzida pela frase
"Acabei
de escrevê-lo..." Vadico jamais reivindicou a autoria deste samba. Na certa
queria dizer que acabara de passá-lo para a pauta, como fez com tantas outras
composições
de Noel.
457
O FIM
Capítulo 45
Foi estrela que brilhou E pra sempre se apagou
Nuvem Que Passou
notícia soa, em tom grave, na voz de um dos locutores da Rádio Cruzeiro do Sul:
Noel Rosa morreu! Como, quando ou através de quem chegou à emissora, ninguém
sabe.
Na pressa de divulgá-la em primeira mão, não se teve o cuidado de confirmá-la. E
no entanto, Noel Rosa está vivo.
Vivo mas muito doente. A reportagem da revista Carioca desloca-se até o chalé
para saber como está ele. Repórter e fotógrafo vão encontrá-lo na desordem do
pequeno
quarto, entre papéis velhos, começos de samba, esboços de desenho. Está muito
agasalhado, o pijama de flanela abotoado até o pescoço. Nega a gravidade da
doença,
fala com naturalidade da notícia de sua morte, finge-se confiante:
- Como vai essa força?- indaga o repórter.
- Não sei. Eu não posso adivinhar o que ela esta pensando em me fazer. Mas acho
que dessa vez endireito.
Admite ter estado muito doente, mas melhorou. Sente-se pronto para voltar às
suas atividades de compositor. O tom é sempre de confiança:
- Logo que possa, estarei de novo ganhando a vida como cantor também.
Perguntas e respostas desviam-se em seguida para a música. Noel recorda seus
tempos de Tangará, diz já ter mais de duzentas composições gravadas (cálculo
exagerado),
conta que fez Eu Sei Sofrer metade em Friburgo, metade no Rio, e que Aracy de
Almeida vai gravá-lo no mesmo disco de O Maior Castigo Que Eu Te Dou. Chega até
a cantá-lo
para o repórter. Com a alma nos lábios, dirá este. É a última entrevista de Noel
Rosa.
A fotografia no pijama de flanela ilustrará a matéria de Carioca. Mas não será a
última. Dois dias depois também vai ao chalé o pessoal de A Noite, talvez por
sugestão
de Orestes Barbosa. Noel posa para o fotógrafo em outro pijama, muito magro,
abraçado ao violão. Curiosamente, ao lado de antiga foto em moldura oval, ele
bem mais
jovem, gordo, pensativo, o queixo apoiado nas costas da mão.
Todos se preocupam, os jornais, os parentes, os amigos, o médico, os vizinhos.
Alonso Guimarães, pai de Walter e Affonsinho, dois jogadores de futebol, um do
América
e o outro do São Cristóvão e da Seleção Brasileira, aparece depois do jantar
para visitar o doente e fazer uma sugestão à família:
- Por que não o levam para fora do Rio? -Já fizemos isso. Esteve em Friburgo,
mas não se deu bem.
459
ajudado pelo motorista. Antes que o carro parta, ele deixa escapar um sorriso
triste para os que ficam. Talvez sua forma de dizer que jamais voltará a vê-los.
A viagem para o Rio, apesar de tudo, é boa. O motorista sabe exatamente quem é o
passageiro do banco de trás.
- Fique tranqüilo, seu Noel. O senhor vai ficar bom. Ainda tem muito samba pra
fazer.
Noel finge concordar. Conversam sobre sambas e automóveis. O motorista procura
não correr, evita os buracos, toma cuidado para que os solavancos não incomodem
Noel
Rosa.
é quase noite. As pessoas que entram e saem do chalé o fazem na ponta dos pés,
comunicam-se por sussurros. Em frente, no 385, acertam-se os últimos detalhes da
festa
que Vicente Gagliano - o Vicente Sabonete das serenatas de antigamente - faz
questão de dar pelo aniversário da mulher, Emília. Enfeita-se a mesa de doces,
fura-se
o bolo com as quarenta velinhas, manda-se entrar o chope. Heitor Bateria - um
negro alto e magro, tocador de pandeiro, surdo e tamborim, cuja jazz band
costuma alegrar
as festas do bairro em troca apenas de comida e bebida - chega com seus músicos.
Os convidados também. Pouco depois de oito da noite, a casa de Vicente Sabonete
está cheia e animada.
O silêncio e a penumbra do chalé contrastam com a barulhenta e iluminada
residência em frente. Alguns amigos vêm ver Noel, entram devagar, olham da porta
do quarto
para o corpo consumido, cansado, a palidez disfarçada pela pouca luz. Depois se
afastam em silêncio, trocam palavras com dona Martha e Hélio, saem como
entraram,
mansamente. Orestes Barbosa e o Dr. Renato Baptista, bons amigos, estão entre as
visitas cautelosas. A dança na casa de Vicente Sabonete fica mais animada, a
música
se espalha, todos homenageando Emília. Dorica, que não perde uma festa nas
vizinhanças, desta vez faz diferente: vem ver Noel. Martha pede-lhe o favor de
ferver
a seringa. O filho está prostrado, talvez uma injeção o reanime. A música
atravessa a rua, chega até o chalé.
- Seu Vicente, ouvi dizer que o Noel está muito mal aí defronte-alguém avisa,
voz baixa, ao dono da casa.
Vicente Sabonete manda um de seus filhos saber se é verdade. Talvez a música
esteja incomodando o doente. Dona Martha diz que não, a música nunca incomodou
Noel,
seu Vicente que se tranqüilize, que prossiga com a festa. Heitor Bateria comanda
compenetrado a sua jazz band. É ele quem sugere, como próximo número, um samba
de
Noel Rosa:
De babado, sim Meu amor ideal Sem babado, não
Noel, provavelmente, já não ouve. Tem a cabeça pousada no colo de Lindaura, os
olhos semicerrados. Dorica ferveu a seringa, Hélio vai até a sala buscar a caixa
de
Canphydral. No por tão, Martha despede-se de Orestes e do Dr. Renato. Do outro
lado, a música continua:
Passeando a meu lado Você sobe de valor Seu vestido sem babado
É você sem meu amor
(É assistência sem doutor...)
Hélio prepara a injeção, Dorica vem da cozinha com uma xícara de café bem
quente. Noel, a cabeça no colo de Lindaura, parece dormir um sono calmo,
profundo. Um fio
de respiração é todo o vestígio de vida que há nele. Por pouco tempo, porém. A
mãe já se despediu das visitas e está agora de pé à porta do quarto. Chega a
tempo
de ver aquele fio de respiração se extinguir. Pouco antes das onze da noite, no
mesmo quarto em que veio ao mundo há exatamente vinte e seis anos, quatro meses
e
vinte e três dias, morre Noel Rosa.
Cometas e outros corpos celestes passam ligeiros deixando em seu rastro um mundo
de superstições. Foi assim com o Halley naquele 1910 e volta a ser assim com o
Hermes
neste 1937. Vinte e seis anos e alguns meses separam os rumores apocalíticos
inspirados na passagem de um e de outro. Tempo de uma vida, ainda que curta como
a de
Noel Rosa. Quando ele nasceu, falava-se no fim do mundo. A mesma coisa agora, os
jornais abrindo espaço para que cientistas, profetas e loucos digam o que
pensam.
Assis Valente - com quem Noel conviveu em muitas noites da Lapa - chegará a
converter tais rumores num samba que será sucesso no próximo carnaval. O
primeiro carnaval
sem Noel Rosa:
Será que alguém associa a morte de Noel Rosa, esta pequena tragédia carioca, aos
maus presságios que cercam a vinda do Hermes? É mais certo que não. Mas é em
clima
de grande confusão que são vividas, no chalé, as horas entre a morte do
compositor e seu sepultamento. A casa é literalmente invadida por amigos,
vizinhos, curiosos,
gente de rádio, estranhos. A imprensa se mobiliza. Um jovem repórter, David
Nasser, avisado por Marino Pinto, acorda fotógrafo e motorista do plantão
noturno de
O Globo e vão todos correndo para a Theodoro da Silva no Ford 37 que Roberto
Marinho acaba de comprar para dar velocidade e aparência à reportagem do jornal.
Ao
voltar, David terá dificuldade para convencer o secretário de redação, José
Maria Pereira, de que o assunto merece a primeira
465
página. Sua matéria de dez laudas será reduzida a dez linhas(2). Já outros
repórteres não precisam convencer ninguém de que a morte de Noel Rosa é um
acontecimento
na vida da cidade. Nestor Moreira, por exemplo. Sem pedir autorização a nenhum
chefe, corre para o chalé. É furão, ousado, daquele atrevimento que tanto pode
levar
um cavador de notícias a conseguir grandes manchetes como a ter penosos
dissabores (daqui a alguns anos, ele próprio, furão, ousado, atrevido demais,
acabará morrendo
nas mãos de um investigador violento, o Coice de Mula, a quem desacatará numa de
suas reportagens policiais). Nestor talvez seja o que mais acintosamente
"invade"
o chalé. Tira de gavetas e armários tudo que pode encontrar para uma boa
reportagem sobre o compositor morto: manuscritos, letras de música, partituras,
fotos, desenhos.
A família, atordoada, só se vai dar conta na semana que vem, quando ler as duas
páginas dedicadas a Noel Rosa por A Noite Ilustrada. Ainda bem que alguém se
lembrou
de guardar Este Álbum, tirando-o das mãos ávidas do Nestor.
Aracy de Almeida e Benedicto Lacerda, sem saberem de nada, chegam com a prova do
disco que gravaram há duas semanas na Victor: Eu Sei sofrer e O Maior Castigo
Que
Eu Te Dou. Ficam perplexos. Ouvem, como todos, relatos imprecisos sobre os
últimos momentos de Noel:
"Estava nos braços da mulher", "Não, nada disso, parece que cantava um samba",
"Morreu batucando na mesinha de cabeceira", "Ouvi dizer que estava na festa da
casa
em frente". Até o atestado de óbito, assinado pelo amigo Edgar, tropeça numa
imprecisão. Hora da morte: dezesseis e trinta. O declarante, o sempre próximo
Álvaro
de Castro, dirá isso para que não se tenha problemas com a Santa Casa da
Misericórdia, muito exigente nestes dias quanto a só se fazer o sepultamento 24
horas após
o falecimento. Uma grande confusão. O noticiário dos jornais e tudo que se
escrever depois sobre o assunto refletirão essa mistura de lenda e realidade,
destino
afinal de todo grande personagem, seja ele um vulto
da História, seja um poeta do povo. A todos, Martha repete a sua versão, singela
e sucinta:
- Morreu como um passarinho.
As carteiras da sala de aula são afastadas. Sobre quatro delas improvisa-se uma
mesa. Em cima, coloca-se o caixão de pinho barato, o único que a família pôde
comprar
(um dinheiro recolhido durante o velório por gente do rádio, com o intuito de
ajudar nos funerais, desapareceu das gavetas da cômoda de Martha, impossível
saber,
neste entra-e-sai, nos bolsos de quem). O corpo será velado durante toda a
madrugada e parte da tarde de quarta-feira, 5 de maio. Martha tem esperanças de
que Carmem,
o marido e os filhos cheguem a tempo de
467
Belo Horizonte. Não quer que o enterro seja antes das cinco.
Os que passam pelo caixão nunca esquecerão este último olhar. Noel, o corpo
mirrado, exaurido pela doença, quarenta quilos no máximo, tem a aparência de um
menino.
Apesar dos olhos encovados, dos ossos salientes, dos fios de barba ruiva no
queixo torto. É um rosto sem vida, mas sereno. Vestiram-no com um terno branco,
a gravata
borboleta de que tanto gostava, os sapatos fantasia. Pela manhã, esta roupa
desaparecerá sob as flores com que Martha, Lindaura, Arlinda, Nilda, Heloísa,
Dorica,
Emília enfeitarão o caixão. Um quadro que se repete nos velórios do bairro:
enquanto bocas masculinas falam do morto, sempre bem, mãos femininas o cobrem de
rosas,
cravos, palmas e saudades.
É um estranho velório. Exatamente como a integradora democracia dos botequins de
Vila Isabel, que Noel freqüentou desde garoto, reúnem-se aqui pessoas das mais
importantes
famílias do bairro, os artistas mais conhecidos do rádio, as figuras mais
representativas da vida mundana da cidade. E ao lado delas, chorando mais que
todos, compositores
de pés descalços, bêbados em raro instante de sobriedade, mendigos como o Bela
Idéia, sambistas humildes como o Osso, que não tardará a fazer aquele que talvez
seja
o primeiro samba em memória de Noel Rosa:
POSTERIDADE
Capítulo 46
. Mas o ponto alto foi quando, voz embargada, Sebastião Fonseca, outro poeta de
Vila Isabel e redator do Lux Jornal, leu seu recém-concluído poema Violões em
funeral,
informando aos ouvintes que Donga prometera musicá-lo. Promessa que afinal não
se cumpriria, os versos só ganhando melodia, de Sílvio Caldas, quatorze anos
depois2:
No mesmo programa anunciou-se que Casé daria total apoio à campanha que A Noite
acabara de lançar para que se erguesse um busto de Noel em seu bairro. A idéia
era
de Orestes Barbosa e Nássara, que a tinham levado ao português Vasco Lima,
diretor do jornal.
- Um busto?
- Isso mesmo.
- Mas diga-me lá, seu Orestes, este Noel Rosa foi mesmo tão importante que
esteja a merecer busto em praça pública?
- Importante, não. O mais importante!- sentenciou Orestes.
- Muito que bem. Ponham-me isto no papel.
Nássara e Orestes Barbosa escreveram então uma carta que, publicada no jornal,
deu início à campanha. Em menos de uma semana, eram muitas as adesões, amigos,
casas
comerciais, gente do rádio, ex-companheiros de São Bento, admiradores anônimos,
todos mandando dinheiro a A Noite. O escultor Alfredo Herculano, amigo de
Nássara,
aceitou o convite para cuidar do projeto. Não quis nada em troca. Só vira Noel
uma vez e nunca mais esqueceu seu jeito meio aéreo no dia em que fora procurar
Nássara
no jornal em que este e Herculano trabalhavam:
- Não está? -Não.
- A que horas volta?
- Não tenho a menor idéia.
- Então me faz um favor: diga a ele que o compositor do Com Que Roupa? esteve
aqui.
Mas nem todos acharam feliz a idéia do monumento. Álvaro Armando, por exemplo,
protestou em versos em sua coluna Pingos & Respingos3:
A idéia é boa, não nego
Mas - só não vê quem for cego -
Teu busto nada nos diz
Busto ganha toda a gente;
Para Noel, francamente,
Isto é "palpite infeliz"!
E, quatro estrofes adiante:
Que os teus amigos de samba,
Gente boa, gente bamba,
Façam-te um samba, Noel,
Que se espalhe na cidade
Cantando a imensa saudade
Da tua Vila Isabel!
Sugestão que, independente do monumento, muitos compositores e letristas
aceitariam. Como veremos, dezenas de músicas ainda seriam feitas inspiradas em
Noel, lembrando
Noel ou pelo menos citando Noel.
Outro que tentou minar o projeto foi Raymundo Magalháes Júnior, escritor e
jornalista, redator de A Noite, de confessado ódio por Orestes desde o dia em
que este
o apelidou de Caspa Ambulante. Passados cinco meses do lançamento da campanha e
vendo que não se falava mais nela, Raymundo pôs-se a inserir em suas matérias
insinuações
maldosas em torno do dinheiro arrecadado, que supunha estar com o poeta de Chão
de Estrelas. Um tiro pela culatra. Orestes
477
escreveu em resposta: "Não pergunte a mim pelo dinheiro, porque nada sei.
Pergunte aí mesmo, em A Noite, a Vasco Lima." Resultado: o português passou uma
descompostura
em Raymundo pelo atrevimento de pôr em dúvida a honestidade do seu próprio
jornal.
Fato é que bom tempo transcorreria até
que o monumento se fizesse realidade. Só em 18 de agosto de 1938, numa cerimônia
simples prestigiada por alguns cartazes do rádio e da música popular, foi
inaugurado
no centro da Praça Tobias Barreto, no lado mais novo de Vila Isabel. Não era,
como se pretendia de início, um busto. Depois de vários esboços um tanto
ambiciosos,
Herculano acabou optando por algo mais simples: uma pequena coluna de pedra na
qual o escultor talhou o perfil do poeta, um violão e a inscrição "A Noel Rosa -
1910-1937".
Foi ainda sob o impacto da morte - na verdade, dois dias depois-que o
interventor do Distrito Federal, cônego Olympio de Mello, prometeu dar a duas
ruazinhas do
Morro do Livramento os nomes de Sinhô e Noel Rosa. Outra promessa não cumprida,
mais uma homenagem que não se faria sem longa espera: a Rua Sinhô só foi
inaugurada
em 1948, na Consolação, e a Noel Rosa, dois anos depois, quando seu nome foi
dado à antiga Sarií, descampada, sem saída, paralela à Gonzaga Bastos. Portanto,
numa
Aldeia Campista muito mais de Quidinho e Orestes Barbosa que de Noel.
Homenagens. Foram mesmo muitas e sempre tocantes. Modos de a cidade chorar o seu
cantor.
Depois das lágrimas, o esquecimento. Como de fato costuma acontecer aos artistas
populares de um país de frágil memória e permanente sede de novidades, o nome e
a obra de Noel Rosa, nos doze, treze anos que se seguiram à sua morte, foram
sendo pouco a pouco esquecidos. Quem se lembrava deles, por exemplo, nos
primeiros meses
de 1950, quando as vozes de Dick Farney e Lúcio Alves acariciavam jovens ouvidos
fazendo de Ponto Final, de José Maria de Abreu e Jair Amorim, e Amargura, de
Radamés
Gnattali e Alberto Ribeiro, modelos definitivos daquilo que então se chamou de
"moderna música romântica brasileira"? Poucos. O pessoal do meio, velhos autores
e
intérpretes, os saudosistas, mas não o grande público. Deste estavam esquecidos
o poeta e suas canções.
Mesmo naquele maio de 1937 - com todas as homenagens - raros se deram conta do
que a perda de Noel Rosa realmente representava para a
música popular brasileira.
- Sabíamos que era grande, muito grande - lembra Nássara. -
Mas consciência exata de
sua genialidade, na época, só o Orestes tinha.
"Uma perda trágica", dissera Orestes ainda no enterro. Por privar nosso
cancioneiro de seu maior poeta, sua figura mais original, inquieta e influente,
quem sabe
a única capaz de resolver certos impasses estéticos que estavam a caminho. Uma
perda trágica, mas que já no dia seguinte os jornais estariam minimizando para
que
se abrisse espaço à tragédia de proporções maiores, embora mais distante: o
incêndio do Hindenburg, sem dúvida a principal manchete da semana .
Poucos se davam conta, também, de que o próprio mundo em que Noel Rosa vivera
começava a desmoronar sem ele. Como o dirigível em chamas, rápida,
inexoravelmente.
A família, o chalé, o Rio boêmio, a música popular, por motivos vários, nunca
mais seriam os mesmos.
No dia mesmo da missa, Martha reuniu os poucos pertences do filho e desfez-se
deles como se assim pudesse afugentar as lembranças dos últimos anos de
sofrimento.
As roupas para os pobres, o violão para Hélio, o álbum de retratos da família
para o sobrinho Eduardo Nelson, um ou outro objeto para este ou aquele amigo. Os
manuscritos
(cartas, letras de samba, rascunhos das Conversas de Esquina e das operetas
radiofônicas) foram postos num saco de pano e dados a Marília Baptista, junto
com um
dicionário de rimas em cujas margens Noel anotara um punhado de versos. Sábia
decisão a de Martha: Marília passaria os manuscritos às mãos do zeloso Almirante
e
guardaria o dicionário. Anos depois, musicaria alguns versos transformando-os em
dois sambas no mais puro estilo de Noel, tão bem assimilado pela amiga e
discípula.
Um deles é Balão Apagado, o diabo tirando o chapéu para os pecados do boêmio:
Alguém me mandou
Este triste recado:
"Eu espero ver a tua descida,
No céu da minha vida,
És balão apagado!"
escolheu. E ele próprio, como costumava dizer, seu primeiro paciente, a luta
contra a epilepsia não lhe dando descanso. Casou-se em 1938, fez-se pai de duas
filhas,
descasou-se, voltou a casar-se(5).. Jamais deixaria de surpreender e
impressionar as pessoas por suas excentricidades. Durante o velório da mãe, ao
ver grande esperança
pousar no ombro de Marília Baptista, assustando-a, soltou ruidosa gargalhada.
Não parou de rir o resto da noite, feliz da vida. Marília, achando a atitude no
mínimo
estranha, interpelou-o.
- Tenho motivos para estar contente, Marília. Mamãe me disse que, chegando lá
em cima, encontrando-se com Noel e estando tudo bem, me mandaria um aviso. A
esperança
foi o aviso de mamãe.
Até o fim de seus dias não perderia oportunidade de se comparar ao irmão. Mesmo
no consultório, podia pôr Freud momentaneamente de lado para puxar o violão
debaixo
do divã e mostrar ao cliente um velho samba de Noel.
- Veja, era assim que ele se acompanhava.
Em seguida, exibindo suas próprias harmonias para o mesmo samba:
- Me diga agora: qual dos dois é melhor?
Hélio de Medeiros Rosa morreu (ou, como preferiria, "desencarnou") a 15 de abril
de 1974, em Niterói, de um ataque cardíaco.
Lindaura sobreviveu a todos. Casou-se de novo, teve com o segundo marido o filho
que não pudera ter com o primeiro, trocou Vila Isabel por Copacabana. Mas nunca
renunciou à condição de "viúva de Noel", papel que representaria, orgulhosa e
compenetrada, pela vida afora.
As outras musas do poeta também seguiram por caminhos diversos. Julinha,
imitando a Maria Fumaça do samba, sumiu. Fina, como vimos, já estava casada e
longe quando
Noel morreu. Clara também se casou. Suave, discretamente, como era de seu
feitio, tratou de sair de cena: fez tudo para que os curiosos pensassem que seu
namoro
com Noel tinha sido "coisa de criança", há muito esquecida. Nas malhas desta
mentira feita de prudências, constrangimentos e saudades, até o atento Almirante
deixou-se
enredar. Ceei, a inesquecível dama do cabaré, não ficou muito tempo mais com
Mário Lago. Os amores da boêmia, afinal, não foram feitos para durar. Mas não se
esqueceriam
um do outro. Embora ele o negasse, ela seguiria convencida de ter sido a
inspiradora dos versos que, com música de Benedicto Lacerda, correram o Brasil
na voz de
Orlando Silva:
Passaste hoje ao meu lado
Vaidosa, de braço dado,
Com outro que te encontrou
Este "outro" seria José Antônio de Araújo, que tirou Ceei da noite, casou-se com
ela, ajudou-a a reencontrar o caminho de casa, onde um pai arrependido recebeu-a
de braços abertos. Mas não é este o final feliz de sua história. Um ano e cinco
meses depois do casamento - exatamente no dia em que Noel estaria fazendo 35
anos
-José Antônio morreria intoxicado por uma injeção deteriorada de Necroton na
veia. Ceei voltou a ganhar a vida como antes, cabarés, dancings, casas noturnas
baratas,
no Rio e no interior. Mas conseguiu juntar o dinheiro que lhe permitiu comprar
seu próprio chalé modesto na Vila Kennedy, subúrbio carioca, onde envelheceria
como
professora particular de crianças pobres.
Ceei, como as demais mulheres da vida de Noel, se lembraria dele sempre com
ternura. Musas e exceções num tempo de esquecimento.
Tempo de esquecimento porque tempo de mudanças. Depois da morte de Noel Rosa -
embora não necessariamente por causa dela - o mundo em que ele vivera realmente
desmoronava.
Ou melhor, mudava. A música popular, o Rio boêmio, o Brasil, nada seria como
antes.
A 10 de novembro daquele mesmo 1937, a decretação do Estado Novo aplicava duro
golpe nas esperanças brasileiras de democracia. Uma ditadura populista nos
moldes
do fascismo era importada da Europa por Getúlio Vargas para substituir o regime
de trajes imprecisos
- com que roupa? - que aqui se implantara sete anos antes. Como toda ditadura,
dada a arroubos ufanistas. De repente, segundo a propaganda oficial, além de
gigante
pela própria natureza, o Brasil tornava-se o país do futuro.
Dentro desse espírito (ainda que ingenuamente, sem perceber que servia aos
propósitos da nova ordem que dizia combater), Ary Barroso criaria com a sua
Aquarela do
Brasil uma grandiloqüente novidade: o samba-exaltação:
Brasil, meu Brasil brasileiro,
Meu mulato inzoneiro,
Vou cantar-te nos meus versos...
Pela mesma trilha logo estariam seguindo outros compositores e letristas
preocupados em exaltar as belezas e riquezas de uma terra abençoada por Deus, um
país muito
diferente do Brasil de tanga de Noel Rosa.
Mas o samba-exaltação, que substituía a sátira e a crítica tão caras ao
poeta de Vila Isabel, foi apenas a primeira - e não a mais importante
- das três determinantes das mudanças que se processariam na música popular
brasileira
481
um lado, casas novas do outro, o Boulevard no meio, correndo como um rio por
entre margens contrastantes. Mas já não era o grande "celeiro", deixara de ser o
bairro
musical dos tempos dos Tangarás.
É verdade, também, que ali, mesmo nos anos de esquecimento, todos se lembravam
de Noel. Mas um Noel mais personagem, mais mito que compositor. Os velhos
moradores,
em especial os boêmios, quando se reuniam nos botequins para conversas e
cervejas, falavam de Noel sempre com carinho, mas pareciam mais interessados em
contar-lhe
as histórias do que em cantar-lhe os sambas. Os sambas saíam de moda; as
histórias, não. E os mais jovens, os que vinham chegando, aprendiam a admirar o
poeta sem
lhe conhecer a poesia.
Noel Rosa tornou-se realmente uma espécie de mito no bairro. Quase tudo que se
ligava ao seu nome tinha sabor de anedota. Ou de lenda. Como naquela manhã de
1946
em que os moradores da Tobias Barreto se depararam com a praça vazia, apenas um
buraco onde até a véspera estava o monumento a Noel. Uns telefonaram para os
jornais,
outros chamaram a polícia. Quem o teria roubado? Quando os repórteres de A Noite
chegaram, representantes que eram do órgão que encampara a idéia de Nássara e
Orestes,
havia uma multidão no centro da praça. Um dos moradores apontava para os lados
da Mangueira:
- Na certa foi o pessoal do morro.
E explicava que os negros lá de cima viviam dizendo que Noel era mais da
Mangueira do que daquele lado meio grã-fino da Vila. Talvez, naquelas horas, o
monumento
já estivesse em frente a uma birosca do Buraco Quente. Outros acreditavam que
algum vizinho, apaixonado pelas músicas de Noel, tivesse carregado o bloco de
pedra
para o próprio quintal. Afinal, o bairro estava
cheio de doidos. Mas não. Antes do fim da tarde o mistério se desfez: a
Prefeitura do Distrito Federal, sem avisar a ninguém, decidira levar o monumento
para a Praça
7, que agora se chamava Barão de Drummond. Vila Isabel não mudara tanto, mas
mudara.
Aos poucos, arrefecera-se a rivalidade en tre o Cara de Vaca e o Faz Vergonha,
este, nos dias de carnaval, desfilando com um estandarte oval onde se via o
retrato
de Noel pintado por humilde artista do bairro. As batalhas de confete já não
eram as mesmas. Nem as do Boulevard, nem as do Maracanã, todas em extinção. Só
os blocos
resistiam, embora menos animados, sem rixas e principalmente sem os
improvisadores de antigamente. Foi em homenagem a Noel Rosa que surgiu, na
década de 40, novo
bloco que nada tinha a ver com as emulações entre o Faz
Vergonha e o Cara de Vaca. Era o Unidos de Theodoro, que em seu primeiro desfile
cantou:
O orgulho que eu tenho na vida
Fica na vila querida
Onde morava Noel
Salve Unidos de Theodoro,
Orgulho de onde eu moro!
Salve Vila Isabel!
O mesmo bloco, a cada ano, lembrava seu patrono. Afinal, poeta que nasceu, viveu
e morreu na rua que lhe emprestava o nome:
Vila, terra querida,
Foi lá onde eu nasci
De lá vem o samba
Terra de gente bamba
Berço do grande Noel...
A vila toda emudeceu
No dia em que Noel Rosa morreu.
Emudecer, propriamente, não. Mas quase. Do velho "celeiro" pouco restava agora,
a Vila se fazendo menos e menos musical. Assim como a boêmia se deslocara da
Lapa
e dos subúrbios para Copacabana, a música popular se fora para o outro lado do
túnel.
Neste tempo de mudanças - e de peculiar "intercâmbio" cultural - parecia mesmo
não haver lugar para Noel Rosa. De 1937 a 1949, os anos críticos de
esquecimento,
apenas dezenove gravações foram feitas de composições suas. E cinco delas -
Último Desejo, Século do Progresso e Rapaz Folgado, todas com Aracy de Almeida,
e Pastorinhas,
com Sílvio Caldas e logo depois com a Orquestra Odeon - aconteceram praticamente
em meio ao impacto de sua morte. Além das três primeiras citadas, das dezenove
só
mais quatro tiravam do ineditismo obras que Noel deixara engavetadas: Pra Que
Mentir?, novamente com Sílvio, De Qualquer Maneira, com Deo, Silêncio de um
Minuto,
com Marília Baptista, e Pela Décima Vez, de novo com Aracy. O restante foram
regravações, menos ou mais representativas, de Feitiço da Vila (Namorados da Lua
e Orquestra
Tabajara), Palpite Infeliz (Carolina Cardoso de Menezes), Queixumes (Luís
Gonzaga e Carlos Galhardo), Pastorinhas (Aurora Miranda) , Pierrot Apaixonado
(Fernando
Alvarez), João Ninguém (Aracy de Almeida), Último Desejo e Século do Progresso
(ambas com Isaurinha Garcia).
Enfim, tratando-se de discos, dezenove gravações em doze anos, Noel Rosa era
quase um desconhecido, com pelo menos três dezenas de composições inéditas à
espera
de quem as lançasse. Em 1950, só com muita sorte encontrava-se um disco seu nas
lojas. Desconhecido e raro. Em uma palavra: esquecido.
484
de seu roteiro para o filme O Dia É Nosso, que acabaria não saindo do papel,
revelava:
*- Mas eu ainda não escrevi o argumento que sempre imaginei escrever: aquele que
contasse a vida deNoelRosa. A vida de Noel Rosa dá um filme formidável, cheio de
pitoresco e poesia. Ainda faço isso. Aliás, o que tinha vontade era de escrever
apropria biografia de Noel. Infelizmente não sou a pessoa indicada para isso.
- Quem é o indicado?
-Marques Rebelo ou Prudente de Moraes Neto. Ambos são cariocas, conhecem
perfeitamente o espírito da cidade e já conviveram com elementos ligados a Noel
Rosa. Se
não me engano, Prudente de Moraes Neto foi mesmo um dos amigos de Noel. Marques
ou Prudente podem escrever um belo livro sobre a vida do nosso maior sambista."
E, finalizando, diz José Lins:
"- Para mim, Noel Rosa foi verdadeiramente genial!"12
Nem José Lins, nem Marques Rebelo, nem Prudente de Moraes Neto. Quem realizou a
empreitada, quatorze anos depois, foi Jacy Pacheco, o primo Jacy. O mesmo que
Noel e o Gente do Morro haviam conhecido em Campos em 1932 (o mesmo também que,
segundo
Ceei, a culpara pelos pulmões doentes do amante). Em 1955 vinha à luz Noel Rosa
e Sua Época, escrito com carinho, de poeta para poeta:
"Cheio de ternura, de saudade dele, vou contar o que sei. As palavras serão
simples e claras. Uma história para se guardar no coração.
Era uma vez uma cigarra boêmia, cantora das madrugadas..."
Um livro sincero e enternecido, mas polêmico. Por algumas imprecisões (Hélio
Rosa fora praticamente a única fonte do autor) e por revelar um Noel
politicamente mais
engajado do que se sabia:
"Aproveitando aquele instante em que não havia ninguém próximo de nós, Noel se
referiu aos meus versos, lembrando que eu era filho de um ferroviário escravo do
capitalismo
inglês (Leopoldina Railway), que eu ganhava no banco o mesmo salário que meu pai
ganhava
487
No lugar do chalé está hoje o Edifício Noel Rosa. (Arquivo dos autores.)
A lista dos que homenagearam Noel em canções é longa - e sempre se corre o risco
de não estar completa. Além dos já citados, fazem parte dela Ademir Jacaré,
Adilson
Bispo, Alcebíades Nogueira, Alcebíades Barcellos (Bidê), Alcides Gonçalves,
Arlindo Marques Jr., Armando Cavalcanti, Armando Fernandes, Armando Marcai, Arnô
Provenzano,
Augusto Flávio Bru-netti, Baden Powell, Caetano Velloso, Carolina Cardoso de
Menezes, Chico Buarque de Hollanda, Cipó, David Nasser, Dida, Diógenes, Dora
Lopes,
Dunga, Evaldo Ruy, Fábio de Luca, Fernando Lobo, Fernando Pimenta, Flavinho
Machado, Flávio Soares, Gemeu, Grande Othelo, Heraldo Farias, Herivelto Martins,
Hervê
Cordovil, Jayme Bochner, joão Nogueira, Jorge Canuto, Jorge de Castro, José
Ribeiro, Jota Albertino,
Klécius Caldas, Lamartine Babo, Lino do Vai-Vai, Martinho da Vila, Maysa, Moacyr
Mangueira, Monarco, Moreira da Silva, Nássara, Nelson Cavaquinho, Ney Silva,
Oswaldinho
da Cuíca, Otolino Lopes, Paulinho Corrêa,
Paulo Soledade, Portinho, Roberto Roberti, Rodolpho, Rubens Silva, Tião Pelado,
Tolito, Trambique, Vadico, Vinicius de Moraes, Waldemar Ressurreição, Walli
Salomão,
Wilson Falcão e Zé Roberto.
Cantado por milhares de vozes nos dias de carnaval. Vozes da escola do seu
bairro no desfile de 1975:
Noel, és amor, és poesia, Tua Vila, carnaval Cantando nostalgia...
Ou no de 1982:
De azul e branco, Por este mundo sem fim, Lembrando Noel Rosa Eu vou cantando
assim
Ou vozes da vizinha - e tão cara a Noel - Estação Primeira:
E nas noites suburbanas A luz colorindo o céu... E na Vila eu ouvi Melodias de
Noel
Nome sempre lembrado, também, nos concursos de trovas promovidos pelo Grêmio
Artístico e Literário Vila Isabel. Nesta:
Ao coração tu nos fala,
Bairro de Vila Isabel,
Não pelas glórias e galas,
Mas pela voz de Noel
Ou nesta:
Vila Isabel, doce e terna,
O teu samba tem mais brilho:
Ganhaste a glória materna
Por ser Noel o teu filho
Cantado em prosa por Álvaro Moreyra: "Poeta do povo. Não existirá glória mais
pura. O povo ouvia Noel, e o que Noel lhe dava, em palavras e sons, parecia
subir de
todos os corações e se debruçar em todas as bocas. As caras riam se Noel falava
e entoava alegre, choravam se Noel ficava e entoava triste. Depois, no silêncio,
a melancolia, que é o ar do povo, levava Noel para a pequena casa de Vila
Isabel, a mesma melancolia que acompanhava os destinos das mulheres e dos homens
recordando
- Assim... assim... Ele adivinhava as coisas... Nosso Noel..." Ou em versos por
Drummond:
Vem Sinhô, vem Caninha, vem Pixinga e vem João da Baiana e tantos mais, depois
vem Noel Rosa, o samba-jovem,
489
com tristezas urbanas e malícias, tão de mim, de você, de todos nós, a biritar
no botequim da vida quando o amor nos surpreende e nos
derruba.
Ou ainda elevado à condição de símbolo pela fala macia de um de seus sucessores,
Martinho da Vila, que em janeiro de 1987, um ano antes de a Unidos de Vila
Isabel
viver na passarela do samba o seu mais glorioso momento, disse, cheio de
orgulho:
- A Vila sonha com um supercampeonato, mas nunca fez força para ganhar "de
qualquer maneira". O importante pra gente é "fazer bonito". Herança de Noel
Rosa.
A Vila fez bonito. E o sonho se realizou.
O Noel Rosa polêmico são dois, o primeiro deste e o segundo do outro mundo. Em
1954, após viver por quinze anos o seu sonho americano, Vadico voltava ao
Brasil.
Voltava para ficar, mas voltava indignado. E com razão. Desde o ano anterior
seus advogados vinham processando a Continental pela omissão de seu nome como
parceiro
de Noel em Feitiço da Vila e Conversa de Botequim, no histórico primeiro álbum
gravado por Aracy de Almeida. O caso seria resolvido fora dos tribunais, com a
Continental
assegurando a Vadico seus direitos sobre a venda dos discos e comprometendo-se a
corrigir os erros em futuras reedições. Mas teria dois desdobramentos: um,
chamava
a atenção do público para o talentoso Vadico, cujo nome também submergira nos
anos críticos de esquecimento; outro, dava início a uma discussão que punha em
dúvida
a importância de Noel Rosa como compositor. Seria ele tão bom quanto se dizia?
Ou não passava de um grande letrista a depender, sempre, das melodias de seus
parceiros?
Um dos maiores responsáveis pela lenha nesta fogueira seria o produtor e
apresentador de rádio e televisão Flávio Cavalcanti, cujos programas, de gosto
indisfarçadamente
sensacionalista, perseguiam índices de audiência transformando heróis em vilões
e vilões em heróis(13). Contra as acusações de Flávio - de que Noel fora um
esperto
sambista a surrupiar idéias e a ocultar parceiros - ergueram-se, entre outras,
as vozes de Lúcio Rangel e Almirante. A discussão, que ocupou parte do tempo de
rádio
e televisão em meados de 1956, deu em nada. Em pouco Flávio Cavalcanti tentava
outro alvo: mostrar que mau letrista era o grande compositor Ary Barroso.
O Noel Rosa do outro mundo aconteceu pela mesma época. Em São Paulo,
Hervê Cordovil - seu parceiro em Triste Cuíca - via o amigo Batista Lima, da
Editora Allan Kardec, cometer uma inconfidência e publicar no jornal espírita O
Porvir-A
letra de Noel que ele, Hervê, psicografara numa sessão em casa do próprio
Batista. A intenção de Hervê era não dar publicidade ao assunto :
"Estou lhe dando um pouco do que eu fui para que você possa interpretar o que eu
sou", teria dito Noel antes de ditar-lhe os versos de Vila Isabel do Espaço:
Minha Vila agora é outra
Muito longe da Isabel
Meu papel agora é doutra
Qualidade de papel
Que representei na terra
Andando de déu em déu
Alma voltada pro samba
Nada voltado pro céu
Se eu fizesse agora um samba
Ia ter mais harmonia
Não teria gente bamba
Não teria valentia,
Pois valente nesta Vila
490
formais, e mesmo que um historiador como José Ramos Tinhorão também percebesse o
paralelo, um compositor de classe média bebendo nas fontes do povo. Ou, como os
rapazes da Bossa Nova fariam mais tarde em relação ao samba-canção, rompendo com
o "mau gosto" das letras parnasianas dos antigos modinheiros para adotar
linguagem
simples, coloquial. Mas nada evidente, pelo menos aos olhos dos autores, é a
aproximação de Noel Rosa com o rock, sugerida por estudiosos
recém-chegados como Jorge Caldeira e Mauro Dias. Mesmo quando seus sambas são
adornados pelo som de guitarras amplificadas. Ou quando Evandro Mesquita,
ex-Blitz, faz uma releitura do Gago Apaixonado.
Mas à frente - ou por trás - de todos esses estudos, interpretações, análises,
teses, debates e polêmicas está um Noel Rosa carismático. De um carisma que os
autores
não ousam explicar. Impressionados, limitaram-se a testemunhar o que aconteceu
na noite de 4 de maio de 1987 - o cinqüentenário de morte - quando Vila Isabel
em
peso saiu às ruas para homenageá-lo. Moradores de outros bairros também vieram
para ver e participar. Bares e calçadas do Boulevard, no trecho que vai da
Pereira
Nunes ao Ponto de 100 Réis, cobriram-se de gente. Nas mesas, nas esquinas, no
caminhão estacionado em frente ao Boteco teco, cantaram-se seus versos:
A estrela d'alva no céu desponta
E a Lua anda tonta com tamanho esplendor...
Quantos artistas populares, de ontem ou de hoje, deste país de frágil memória e
permanente sede de novidades, serão lembrados com tal carinho cinqüenta anos
depois
de se terem ido?
Sinal de que a estrela de Noel Rosa - que despontou um dia no céu da música
popular brasileira - continua brilhando. Seu esplendor ainda é capaz de deixar
tontas
as luas de nossa sensibilidade. É possível que não seja tão nítida aos olhos dos
que se deixam iluminar pelas luzes ligeiras da última moda. Mas brilha. Talvez
para
sempre.
Vila Isabel, agosto de 1980-abril de 1988.
NOTAS
1. Carioca, 15 de maio de 1937.
2. Sílvio Caldas só musicou as duas primeiras e as duas últimas estrofes,
gravando-as ele mesmo, como samba-cançâo, em 1951.
3. Correio da Manhã, 16 de maio de 1936. Álvaro Armando era o pseudônimo da
cronista e poetisa Helena Ferraz de Abreu, filha de Bastos Tigre.
4. O dirigível alemão Hindenburg incendiou-se na noite de 6 de maio de 1937,
quando se preparava para pousar no campo de aviação naval de Lakehurst, Nova
Jersey,
Estados Unidos. Trinta e seis de seus 97 passageiros morreram. Os jornais
brasileiros, como os de todo o mundo, deram grande destaque à tragédia, muitos
em matérias
de página inteira. A morte e o enterro de Noel Rosa, salvo as exceções de
algumas poucas revistas mensais, já estavam reduzidos a breves notas de coluna.
5. A primeira mulher separou-se dele para viver com Annibal Augusto Sardinha, o
Garoto. A segunda seria a prima Lourdes, irmã de Jacy Pacheco.
6. Foi em 1982 que Clara concordou - muito por sugestão da filha Lucy - em
falar com os autores sobre seus sete anos de namoro com Noel Rosa. Fazia-o pela
primeira
vez, quase quatro décadas depois de ficar viúva. Na ocasião, admitiu que ao ser
procurada por Almirante, quando este levantava dados para uma série de programas
de rádio sobre Noel, contou-lhe versão diferente, tentando assim diminuir a
importância de seu papel na história: "Afinal, a mulher dele era a outra..."
Isto é,
a Lindaura que os separara para sempre.
7. O Samba Agora Vai... - a Farsa da Música Popular no Exterior, publicado em
1969, não se limita à fase Carmem Miranda. Na verdade, cobre um período que vai
de
Caldas Barbosa a Antônio Carlos Jobim - duzentos anos de esforços da música
brasileira em se fazer conhecida lá fora.
8. Este detalhe, que escapou a Tinhorão em seu estudo, é importante por mostrar
as diferenças de postura nos dois países. South America Take it Away, a começar
pelo título, era uma verdadeira canção de protesto. Harold Rome escreveu-a em
1944 e Betty Garrett lançou-a dois anos depois no musical da Broadway Call Me
Mister,
mas se popularizaria no Brasil através da gravação best-seller de Bing Crosby
com as Andrews Sisters.
9. O maestro Napoleâo Tavares não fazia segredo de que os arranjos tocados por
seus "soldados musicais", nos bailes da época, eram por ele mesmo copiados,
instrumento
por instrumento, nota por nota, de discos das mais famosas big bands americanas.
10. Depoimentos de Dick Farney aos autores em 25 de junho de 1981.
11. Ambos, por sinal, gravariam os mais conhecidos hinos da música popular ao
bairro: Dick, Copacabana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, e Lúcio, Sábado em
Copacabana,
de Dorival Caymmi e Carlos Guinle.
12. Diretrizes, 24 de abril de 1941.
13. Flávio Cavalcanti não mudaria de estilo. Anos mais tarde, no mesmo programa
em que apresentava, todos os domingos, o detetive Nelson Duarte como policial
exemplar
(o Nelson Duarte que acabaria respondendo a vários processos por suborno,
fraude, desvio de dinheiro e ligações com ladrões de carro e traficantes),
Flávio voltou
a atacar Noel. Em entrevista ao Pasquim de 6 de outubro de 1970, justificava-se:
"... me contaram que Noel Rosa era vigarista, botou a mulher na zona, e eu
gravei
e botei na televisão para salvar a imagem de Vadico..."
14. Martha Gallego Thomaz calculava em mais de duzentas as composições de Noel
psicografadas por ela, algumas já devidamente editadas por Mangione. Os direitos
seriam divididos, meio a meio, entre Lindaura e a Federação Espírita de São
Paulo.
15. In Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (páginas 183 187).
492
segundo ele de Noel, com uma melodia que antecipa em quase vinte anos o
Cais do Porto, de Capiba:
Francamente, é pra gente enlouquecer Por mais que eu queira, eu não posso
acreditar Que tu não tenhas tempo de escrever Para ao menos duas linhas mandar
Como é que se pode querer bem E viver tanto tempo sem saber Se está vivo ou
morto
esse alguém A quem tanto nós juramos querer bem?
Se há partes deste livro que os autores sabem sujeitas a reparos e acréscimos,
uma é esta. Os critérios para se dar aqui como de Noel Rosa obras que em
levantamentos
anteriores não são atribuídas a ele vão explicados após título, gênero, ano de
feitura, co-autores (quando houver) e editoras (quando se souber) de cada uma.
Segue-se
uma discografia na qual procurou-se arrolar:
1. Todas as gravações de obras de Noel Rosa que aparecem em discos de 78
rotações por minuto (representados pelo número 78 na antepenúltima coluna à
direita);
2. Todas em compactos (representados pelas iniciais Cp);
3- Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 10 polegadas/25 centímetros
de diâmetro (representados pelas iniciais minúsculas Ip);
4. Todas em discos de 33 1/3 rotações por minuto e 12 polegadas/30 centímetros
de diâmetro (representados pelas iniciais maiúsculas LP). Neste caso, só se
citam
selo e número de catálogo do primeiro lançamento. Um asterisco (*) indicará
quando houve uma ou mais reedições da mesma gravação em LP.
Observação importante: ao contrário do que já foi dito em outros levantamentos,
Noel Rosa não gravou nada que não fosse, pelo menos em parte, seu - exceção
apenas
de sua participação no coro dos Tangarás. Portanto, esta discografia cobre
também toda a sua carreira como cantor.
Completam o trabalho registros da presença de Noel no teatro, cinema e
televisão. O teatro em que poderia ter brilhado tão mais, o cinema que chegou a
fustigar,
a televisão que sabia não viver o bastante para conhecer.
496
MUSICOGRAFiA DISCOGRAFIA
1 - A.B. SURDO
Marcha. 1930. Com Lamartine Babo Ed. Mangione
O nome de Noel está na partitura, mas não no selo da primeira gravação
Olga Jacobino e Vozes do Outro Mundo Parlophon 13.273 - 78 1930 1931 Conjunto
Coisas Nossas Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983 Orquestra dirigida por Romeu
Fossati
Mocambo 40.191 - LP
2 - ADEUS
Samba. 1931. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Jonjoca e Castro Barbosa com
Grupo da Velha Guarda
Victor 33.548 - 78 1932 1932
Abril Cultural MPB 12 • - Ip 1932 1970
Ismael Silva com orquestra e coro Sinter SLP 1055 - Ip 1955 1955 Sinter SLP 10'-
LP 1955 1956
Aracy de Almeida e Turma da Vila Polydor LPNG 4014 " - LP 1958 1958
Guerra Peixe e seus músicos Chantecler CMG 2153 - LP 1962 1962
Ismael Silva com Conjunto Samba Autêntico e Carlos Poyares (flauta) Polydor LPNG
4.121 - LP 1966 1966
Ismael Silva com orquestra e coro RCA Victor 103.0071 • - LP 1973 1973
Grupo 10.001 e Vocal Documenta RCACamdem 107.0211 - LP 1975 1975
Toquinho e Vinícius com conjunto e coro Philips 6349.134 * - LP 1975 1975
3 - A.E.I.O.U.
Marcha colegial. 1931. Com Lamartine Babo. Ed. Mangione
Lamartine Babo com Grupo de
Canhoto e coro
RCA Victor 33.503 - 78 1932 1 932
RCA Camdem CALB 5122 * - LP 1932
1967
Arrelia e Lamartine Babo com Altamiro Carrilho e sua bandinha Copacabana 5863 -
78 1957 1958 Copacabana 11.017 - LP 1957 1957
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1.011 /1.012 • - LP 1963 1963
Banda do Canecão e coro
Philips 2.939.101/2/3 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com Regional de Canhoto e
coro da platéia
CBS 104.265/6 - LP 1973 1973
Sílvio Caldas com orquestra ao vivo no
Teatro Fênix
Sigla 4.036.074 * - LP 1975 1975
Grande Orquestra Chantecler Chantecler 2.26.407045 - LP 1976 1976
Marlene com orquestra
Philips 6349.330 - LP 1977 1977
A Patotinha
RCA Victor 107.0296 - LP 1978 1978
As Melindrosas
Copacabana COMLP 25.040 - LP 1978
1978
Sargentelli, coro e ritmo, ao vivo Continental 1.01.404.222 - LP 1980 1980
Grande Orquestra Continental Continental 1.04.405.326- 1982
4 - AGORA
Samba. 1931. Ed. Mangione
Lucilla e Bando de Tangarás Parlophon 13.312 - 78 1931 1931
5 - ALÔ BELEZA
Relacionada por Almirante em No Tempo de Noel Rosa e por Jacob do Bandolim em
seu arquivo. Melodia perdida
6 - AMAR COM SINCERIDADE
Samba. Com Sylvio Pinto
Ensinado por Sylvio Pinto ao Conjunto
Coisas Nossas em 1976
7 - AMOR DE PARCERIA
Samba-choro. 1933. Ed. Mangione
Aracy de Almeida com Regional RCA Victor RCA Victor 33.973 - 78 1935 1935
Marília Baptista com orquestra
Nilser NS 1011/1012 *- LP 1963 1963
8 - ANDO CISMADO
Samba. 1933. Com Ismael Silva
Francisco Alves com Gente Boa Odeon 10.936 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.640 - LP
1933 1970
Ismael Silva, Hermínio B. de Carvalho e Antônio C. Brandão (violão) Tycoon
992.06112 - LP 1962 1985
Isaurinha Garcia e Noite Ilustrada com
orquestra
Continental PPL 12.463 • - LP 1970 1970
9 - AO MEU AMIGO EDGAR
Samba. 1935-1978
Carta musicada por João Nogueira
João Nogueira com acompanhamento
instrumental
Odeon 062.421088 • - LP 1978 1978
Odeon 016.420873 - Cp 1978 1978
10 - ARARUTA
Samba. C. 1932. Com Orestes Barbosa
Conjunto Coisas Nossas
Eldorado 79.83.0408 - LP 1983 1983
11 - ARRANJEI UM FRASEADO
Samba. 1933. Ed. Mangione
Noel Rosa com Turma da Vila Odeon 10.989 - 78 1933 1933 Odeon MOFB 3.041 * - LP
1933 1958
12-ASSIM, SIM!
Marcha. 1932. Com Ismael Silva e Francisco Alves. Ed. Mangione
Carmem Miranda com Harry Kosarin e
seus Almirantes
RCA Victor 33.581 - 78 1932 1932
13- ATCHIM!
Marcha. 1935-1969. Letra musicada postumamente por Hamilton Sbarra. Ver boxe
Loura ou Morena < no Capítulo 35
Aldacir Louro com orquestra e coro Caravelle CD-CAR 3.009 - Cp 1969 1969
14-ATÉ AMANHÃ
Samba. 1932. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Gente Boa Odeon 10.950 - 78 1933 1933 Radíobrás/Odeon
RA 001/2/3/4 * - LP 1933 1967
Gilberto Alves com conjunto e coro RCA Victor 80.0993 - 78 1952 1952
Orquestra Rádio
Rádio LP 1 - Ip 1953 1953
Leal Brito, seu piano e orquestra Sinter SLP 1.093 - Ip 1956 1956
Dilermando Pinheiro com conjunto Musidisc M 50.008 - 78 1957 Musidisc M 044 - Ip
1957 1957 RCA Camdem 107.9056 * - LP 1957 1973
Leal Brito, seu piano e seu conjunto Sinter SLP 1.716-LP 1957 1957
497
73 - FAZ TRÊS_SEMANA
Canção. 193... Paródia de Suçuarana, de
Hekel Tavares e Lu/s Peixoto Ensinada aos autores por Armênio Mesquita Veiga
74 - FEITIÇO DA VILA
Samba. 1934. Com Vadico. Ed. Mangione
João Petra de Barros com Orquestra Odeon Odeon 11.175- 78 1934 1934 Odeon MOFB
3.041 * - LP 1934 1958
Os Namorados da Lua Continental 15.613 - 78 1946 1946 Continental 1.19.405.028-
LP 1946 1976
Severino Araújo e sua Orquestra Tabajara Continental 16.129-78 1949 1949
Aracy de Almeida com Francisco Sergi e sua orquestra
Continental 16.318 - 78 1950 1950 Continental 6 - Ip 1950 1954 Continental LPK
20.018 * - LP 1950 1967 Continental DEZLP1.001/2/3 - Ip 1950 1973
Silvio Caldas com Orquestra da Radio
Nacional, ao vivo
Collector's 992.330 - LP 1951 1986
Benê Nunes (piano)
Continental 16.772 - 78 1953 1953
José Luciano, seu piano e ritmo Mocambo 15.065 - 78 1954 Mocambo LP 10.004 - Ip
1954 1954
Garotos da Lua Sinter347-78 1954
Philips 6328.387 - LP 1982
Conjunto Melódico de Norberto Baldauf Odeon MODB 3.016 - Ip 1955 1955
Nelson Gonçalves com orquestra RCA Victor BPL 3.010 - Ip 1955 1955 RCA Camdem
CALB 5.095 * - LP 1955
Enrique Simonetti e sua orquestra Polydor LPN 2.001 - Ip 1956 1956
Fafá Lemos e seu conjunto RCA Victor 83.0043 - Cp 1956 RCA Victor 80.1624 - 78
1956 RCA Victor BPL 3.023 - Ip 1956 1956
Francisco Egldio com orquestra Odeon MODB 3.033 - Ip 1956 1956
Gentil Guedes e sua orquestra Continental LPP 18 - Ip 1956 1956
Sílvio Caldas com orquestra Columbia LPCB 35.027 - Ip 1956 1956 Columbia 37.068
- LP 1956 1958
Ornar Izar e seus harmonicistas Odeon 14.318 - 78 1957 1957
Luiz Bonfá
Odeon MOFB 3.014 - LP 1958 1958
Zaccarias e sua orquestra
RCA Victor BBL 1.040 - LP 1959 1959
Casé (sax e clarineta) e seu conjunto HiFi Variety HiFi 1.003 - LP 1960 1960
Coro Odeon
Odeon MOFB 3.140 * - LP 1960 1960
Luiz Bandeira com conjunto RGE XRLP 5.291 - LP 1960 1960
Lord Astor e seu conjunto
Imperial IMP 30.025 - LP 1961
TEATRO
(PEÇAS COM MÚSICAS DE NOEL ROSA)
DEIXA ESTA MULHER CHORAR (1931).
Revista dos Irmãos Quintiliano para o Teatro Nacional de Revistas. Elenco: Aracy
Cortes, Mesquitinha, Leli Morei, Èdith Falcão, Arthur Costa, Escola de Samba do
Salgueiro. Teatro Recreio, Rio de Janeiro, (estréia a 9 de janeiro de 1931).
Músicas de vários autores. A de Noel: Com Que Roupa?
COM QUE ROUPA? (1931).
Revista de Luis Peixoto para a Companhia Mulata Brasileira. Elenco: Rosa Negra,
índia do Brasil, João Felipe e mais quinze atores, cantores, dançarinos. Teatro
República,
Rio de Janeiro (estréia a 23 de janeiro de 1931). Músicas de vários autores. A
de Noel: Com Que Roupa?
CAFÉ COM MÚSICA (1931).
Revista de Maciel Pereira, Leo Grim e Eratósthenes Frazão para a Companhia
Nacional de Revistas. Coreografia do professor Nemannoff. Direção musical de J.
Cristobal.
Elenco: Aracy Cortes, ítala Ferreira, Mesquitinha, Luíza Fonseca, Affonso
Stuart, Henriqueta Brieba, Oscar Cardona. Teatro Recreio, Rio de Janeiro
(estréia a 24
de abril de 1931). Músicas de vários autores. As de Noel: Gago Apaixonado, Com
Que Roupa?, Eu Vou Pra Vila, Malandro Medroso, Por Esta Vez Passa, Dona Aracy,
Quem
Dá Mais? e Vaidosa.
MAR DE ROSAS (1931).
Revista de Velho Sobrinho e Gastão Penalva. Elenco: Margarida Max, Olga Bastos,
Mesquitinha, Affonso Stuart, Augusto Annibal, Theda Diamant, Silvio Caldas.
Teatro
Recreio, Rio de Janeiro (estréia a 24 de julho de 1931). Músicas de vários
autores. As de Noel: Mão no Remo (com Ary Barroso), Mulata Fuzarqueira e
Cordiais Saudações.
COM A LETRA A (1932).
Revista dos Irmãos Quintiliano para a Companhia Neves e Paschoal Segreto.
Elenco: Aracy Cortes, Olga Navarro, Grijó Sobrinho, Arthur Oliveira, Manoelino
Teixeira,
Pedro Dias, Oswaldo de Almeida, Balbina Milano. Teatro João Caetano, Rio de
Janeiro, (estréia a 15 de janeiro de 1932). Músicas de vários autores. A de
Noel: Gosto
Mas Não É Muito (com Ismael Silva).
RIO FOLLIES (1936).
Revista de Jardel Jércolis, Geysa Bóscoli e J. Otaviano. Elenco: Oscarito, Nair
Faria, Grande Othelo, Manuel Vieira, Margot Louro, Juan Daniel, Mesquitinha,
Emma
D'Ávila, Maria Costa. Teatro João Caetano, Rio de Janeiro (estréia a 2 de agosto
de 1935). Músicas de vários autores. A de Noel: O X do Problema, Emma D'Ávila,
encerrando
com Oscarito o quadro de abertura.
NOEL SÓ NOEL (1976).
Espetáculo com textos, arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas.
Teatro de Artes Israelita Brasileiro, São Paulo (de 1 a 4 de abril de 1976).
Músicas:
cerca de 25 composições de Noel Rosa.
SAMBA, PRONTIDÃO E OUTRAS BOSSAS (1976).
Série de cinco espetáculos distintos narrando a vida de Noel Rosa. Textos,
arranjos e interpretações do conjunto Coisas Nossas. Teatro Cacilda Becker, Rio
de Janeiro
(de 6 de agosto a 4 de setembro de 1976). Músicas: 77 composições de Noel Rosa.
HOJE NÃO É DIA DE ROCK (1976).
Condensação da série anterior. Textos, arranjos e interpretações do conjunto
Coisas Nossas. Iluminação de Ziembinsky. Teatro Ipanema, Rio de Janeiro (de 21
de setembro
a 3 de outubro de 1976). Músicas: cerca de 30 composições de Noel Rosa.
O BARBEIRO DE NITERÓI (1977).
Comédia musical baseada na opereta radiofônica. Texto e montagem de Antônio
Pedro e Flávio Santiago. Cenografia de Gianni Ratto. Direção musical de Roberto
Nascimento.
Elenco: André Villon, Jece Valadão, Jacyra Silva, Mário Ernesto, Flávio São
Thiago, Lafayette Galvão. Teatro Mesbla, Rio de Janeiro (estréia a 2 de março de
1977).
Músicas de Noel Rosa: Cordiais Saudações, O Orvalho Vem Caindo (com Kid Pepe),
Filosofia (com André Filho), Rapaz Folgado, Dama do Cabaré, Silêncio de um
Minuto,
João-Ninguém, Pierrot Apaixonado (com Heitor dos Prazeres) e Onde Está a
Honestidade?
O POETA DA VILA E SEUS AMORES (1977).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto
de Plinio Marcos. Direção de Osmar Rodrigues. Cenários e figurinos de Flávio
Império. Iluminação de Domingos. Coreografia de Carlinhos Machado e Marilene
Silva.
Cenotécnica de Arquimedes. Elenco: Ewerton de Castro e mais 35 atores. Teatro
Popular do SESI, São Paulo (estréia a 4 de maio de 1977).
NOEL ASSIM... (1983).
Espetáculo de música e mímica em torno de climas e personagens do universo de
Noel Rosa. Pesquisa de Ana Maria. Coreografia de Luisa Monteiro. Direção musical
do
violonista Paulo Vasconcelos. Elenco: Luisa Monteiro e Ana Maria. Gente da
Noite, casa noturna de Botafogo, Rio de Janeiro (maio de 1983). Músicas, temas
vários
de Noel Rosa.
ROSA (1988).
Dramatização da vida de Noel Rosa. Texto de Domingos de Oliveira a partir de
pesquisa de Joaquim de Assis. Direção de Domingos de Oliveira. Cenários de
Danilo Gomes
e Domingos de Oliveira. Iluminação de Luis Paulo Neném. Figurinos de Rita
Murtinho. Direção musical de Tim Rescala. Elenco: Pedro Cardoso (Noel), Lucinha
Lins, Nelson
Dantas, Cláudio Tovar, Zezé Polessa, Luisa Tome. Teatro Villa-Lobos, Rio de
Janeiro (estréia a 4 de maio de 1988). Músicas: composições de Noel Rosa
intercaladas
com citações a temas de outros autores, entre os quais Villa-Lobos e Henrique
Vogeler.
517
CINEMA/TELEVISÃO
FILMES COM MUSICAS DE NOEL ROSA
FILMES SOBRE NOEL ROSA
TELEVISÃO
ALÔ, ALÔ, CARNAVAL (1936).
Produção de Wallace Downey. Direção de Ademar Gonzaga. Argumento e roteiro de
João de Barro e Alberto Ribeiro. Fotografia de Afrodislaco de Castro, Antônio
Medeiros,
Edgar Brasil e Victor Chiacchi. Som de Moacyr Fenelon. Cenografia de Emílio
Casalegno, Ruy Costa e Jota Carlos. Figurinos de Gustavo Dória. Elenco: Barbosa
Júnior,
Jayme Costa, Cordélia Ferreira, Oscarito, Jorge Murad, Pinto Filho. Números
musicais de Francisco Alves, Mário Reis, Carmem e Aurora Miranda, Almirante,
Lamartine
Babo, Luís Barbosa, Joel & Gaúcho, Linda e Dircinha Baptista, Irmãs Pagas,
Alzirinha Camargo, regional de Benedicto Lacerda, orquestras de Simon Bountmann
e Hervê
Cordovil, Bando da Lua, Quatro Diabos. Músicas de vários autores. As de Noel:
Não Resta a Menor Dúvida (com Hervê Cordovil) e Pierrot Apaixonado (com Heitor
dos
Prazeres).
CIDADE MULHER (1936).
Produção de Carmem Santos. Direção de Humberto Mauro. Argumento de Henrique
Pongetti. Fotografia de Manuel Ribeiro. Elenco: Jayme Costa, Mário e Zilka
Salaberry,
Sara Nobre, Aída Isquierdo, Lourdinha Bittencourt, Aída Conceição, Aída
Pongetti, Loia Silva, Mary Kler. Números musicais de Orlando Silva, Joel de
Almeida, Assis
Valente e seu Bando Carioca, Bibi Ferreira, José Vieira, Irmãs Pagas. Irmãos
Abissínias, Irmãos Amaro Músicas de vários autores. As de Noel: Morena Sereia e
Na Bahia
(ambas com José Maria de Abreu), Tarzan, o Filho do Alfaiate (com Vadico),
Cidade Mulher, Dama do Cabaré e Numa Noite à Beira-Mar. Filmes mais recentes têm
utilizado
músicas de Noel. Entre eles, Edu Coração de Ouro (1968), de Domingos de
Oliveira: São Coisas Nossas, na gravação original de Noel; Cabaré Mineiro
(1981), de Carlos
Alberto Prattes Corrêa: Nunca Jamais e Pra Esquecer; e Memórias do Cárceres
(1984), de Nelson Pereira dos Santos: O Orvalho Vem Caindo.
CORDIAIS SAUDAÇÕES (1968).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Gilberto Santeiro. Preto &
branco. 11 minutos.
NOEL POR NOEL (1981).
Curta-metragem com produção, roteiro e direção de Rogério Sganzerla. Fotografia
de Renato Laclete. Narração de Grande Othelo. Colorido. 21 minutos e 21
segundos.
Muitos quadros e colagens têm. sido dedicados a Noel Rosa pela televisão.
Incluindo uma homenagem da TV Educativa por ocasião dos setenta anos de
nascimento, o "apadrinhamento"
a Chico Buarque de Hollanda no Bar Academia da Rede Manchete e a dramatização de
Pra Esquecer, Cansei de Pedir, De Babado e Eu Sei Sofrer que Domingos de
Oliveira
dirigiu para a Rede Globo, com interpretações de Deborah Duarte e Carlos Vereza,
levada ao ar no Fantástico de 4 de janeiro de 1981. Mas, em termos de
superprodução,
com textos e números musicais próprios, em vez de mera colcha de retalhos, a
presença de Noel na televisão se limita a uma:
NOEL ESPECIAL (1975).
Produção de Ruy Mattos e Pituca para a Rede Globo de Televisão. Direção de
Augusto César Vanucci. Textos de Mieli & Bôscoli. Sonoplastia de Milton Porto.
Edição
de Ricardo Leitão. Cenários de Frederico Padilha. Colaboração de Almirante,
Silvio Caldas, Haroldo Barbosa e Paulo Tapajós. Direção musical^Jle Nalygia
Santos. Números
musicais: Maria Alcina, Carlos Galhardo, Pedrinho Rodrigues, Ernani Filho, Rildo
Hora, Arthun Costa Filho, Sônia Lemos, Paulo Marques, Rita de Cássia, Marilia
Baptista,
Djavan, Djalma Dias, João Nogueira, César Costa Filho, Aracy de Almeida, Emílio
Santiago, Peri Ribeiro, Nelson Gonçalves, Elza Soares, Jair Rodrigues, Miltinho,
Elizeth Cardoso, Maysa, Antônio Marcos, Vanusa e Silvio Caldas. Transmitido na
noite de 17 de dezembro de 1975. Músicas de Noel: 35, incluindo a inédita
Mardade
de Cabocla.
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