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Lídia Pereira de Sousa, rosto e corpo bonitos e bem delineados, dentes bem
cuidados e lábios carnudos, morena cor de canela de tão bronzeada pelo Sol da
caatinga, cabelos lisos e olhos castanhos claros1, nasceu numa casa humilde no lugar
chamado Salgadinho, ao lado da serra do Padre, hoje em Paulo Afonso, estado da
Bahia, filha de Luís Pereira de Sousa, coiteiro de Lampião e seu bando, a mãe Maria
Rosa Figueiredo, ou dona Baló, costureira, fazia roupas para os cangaceiros.
Casa deteriorada dos parentes de Lídia (10/2020) Salgadinho, Paulo Afonso/BA – Irmã de Lídia
O pai de Lídia, como todo sertanejo daquele começo do século 20, conhecia bem
algumas plantas para tratar os males comuns, e por isso Lampião, de passagem por
ali, levou o cangaceiro Zé Baiano para ser curado de um furúnculo no pescoço que,
de tão inflamado, lhe causava fortes dores e febre.
Zé Baiano era alto, forte, negro, de sorriso fácil, foi tratado com um emplasto de
manteiga aquecida e folhas picadas de pimenteira, fechada com outra folha maior e
amarrada com tecido de algodão. Logo o abcesso estava drenado, mas ele ficou ali
quinze dias aos cuidados de Lídia, que recebeu um bom dinheiro pelo serviço.
1 Segundo pude observar pelas características físicas de sua sobrinha Maria Nilda Pereira e outros parentes, no
dia 4 de outubro de 2020, em visita ao povoado Salgadinho do município de Paulo Afonso/BA
Zé Baiano
Mas a história não terminaria aí, Zé a convidou para ir com ele, na verdade uma
forma sutil de dizer que a levou à força, sem chance de recusa. Assim mesmo Lídia
viu ali a chance de sair de casa e conhecer o mundo, adolescente de 15 anos que era,
fez pouca resistência. Final de 1931. A moça logo se arrependeria, magoada por ter
sido arrancado do seio da família, revoltada até, tomada de ódio por tudo que passaria
com as durezas da vida fugitiva. Tarde demais: uma vez no bando não tinha a opção
de retornar ao lar.
No bando era invejada por algumas companheiras, servida que era com a melhor
burra, os melhores pedaços de carne, colocados na sua boca, tudo caprichado por Zé
Baiano, que era um dos mais ricos cangaceiros, tinha muito ouro, dinheiro a emprestar
com juros altos, bastante respeitado, ninguém ousava tirar brincadeira com a sua
prenda, pois era muito violento.
Naquele mês de julho de 1934, o grupo se arranchara nas bordas da pia das
Panelas, próximo ao riacho do Quatarvo, terras da fazenda Paus Pretos de
propriedade do coronel Antonio Caixeiro, nas imediações de Poço Redondo, estado
de Sergipe.
Lídia pensava em fugir daquela vida, fazia planos de futuro, casarem, serem felizes,
que a sua infidelidade era bem merecida, justificaria, de certa forma, o que os homens
faziam sem punição, desde que tomassem os cuidados, aliviaria os seus sofrimentos,
a perda de sua liberdade. Mas com o tempo relaxou as precauções, baixou a guarda,
os seus encontros logo seriam descobertos.
Fizeram amor pela última vez, eles nem imaginavam do seu trágico fim, na ardência
da pressa, e quando se despediam perceberam que não haviam estado a sós, o
cangaceiro Coqueiro, ávido de desejos por ela, vivia no seu encalço, se apresentou
dizendo que tinha visto tudo, ameaçando Lídia que a entregaria ao Zé se ela não se
deitasse com ele ali mesmo, mas a resposta foi: “Eu morro, mas não lhe dou”. Bem-
te-vi acompanhava essa conversa, quis tomar satisfação com o atrevido, de arma em
punho, mas ela o impediu, inclusive poderiam chamar a atenção dos outros
companheiros, disse.
Zé Baiano perguntou à Lídia porque ela tinha feito aquilo, uma vez que a tratava
tão bem, com tantos mimos. A coitada sequer respirar direito conseguia, muda ficou.
Todos a olhavam como se trair fosse pior do que tirar a vida de uma família, por
exemplo, a morte tendo um papel mais importante do que o amor, nesse teatro do
absurdo! Que inversão de valores, pensava.
Juntando as poucas forças que lhe sobravam, tentou olhar para o seu carrasco,
mas não teve coragem, nada lhe respondeu. Muda e chorosa só aumentou a fúria
dele, quando sentiu a primeira pancada entre as costelas e o ombro direito, uma dor
lancinante, aguda, e um choque, como se tivesse deslocado o seu pescoço. Nesse
momento abriu os olhos e viu um cacete da dura baraúna, já conhecida, se
aproximando na direção de sua cabeça, e outros golpes, e depois pedradas...
Escorreu-lhe uma quentura pelos seios, e o espancamento, e as pedradas
continuaram até as dores e os barulhos se distanciarem, e outras batidas, agora
menos doídas e mais distantes. Fim da agonia.
Essa é a história oficial, mas quem disse que não existem outras versões?! Por isso
busquei outras verdades, nas minhas andanças. Quem sabe Zé Baiano libertou a sua
bela Lídia, ou ela conseguiu desamarrar as cordas que lhe prendiam à imburana e
fugir, ou ainda teve a ajuda do seu amado Bem-te-vi, que não se afastou muito
daquele lugar!? Deixo o caminho para os pesquisadores, os livros e jornais sérios.
O certo é que ela pode ter escapado e ter se escondido em Monte Alegre, por um
tempo, na fazenda de algum coronel, depois foi para bem longe, são os ventos que
me trouxeram essas suspeitas, pois quem viu o seu corpo morto? Ou ser enterrado,
ou pelo menos o porrete ensanguentado? Nem eu, Zah disse e concluiu.
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