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Título: Agente em campo

Autor: John le Carré


Digitalização: Gaia Inclusiva – Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Pública Municipal de
Vila Nova de Gaia
Correção: Gilberto Buchmann

Capa

John le Carré

Agente em campo

D. Quixote

Badana da capa

John Le Carré nasceu em 1931 e estudou nas universidades de Berna e Oxford. Foi professor
em Eton e trabalhou episodicamente nos Serviços Secretos Britânicos durante a Guerra Fria.
Nos últimos cinquenta anos tem vivido da sua escrita.
Divide o seu tempo entre Londres e a Cornualha.
www.johnlecarre.com

Badana da contracapa

Obras de John le Carré nas Publicações Dom Quixote

O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO


O AMANTE INGÉNUO E SENTIMENTAL
A TOUPEIRA
O ILUSTRE COLEGIAL
A GENTE DE SMILEY
A RAPARIGA DO TAMBOR
UM ESPIÃO PERFEITO
A CASA DA RÚSSIA
O PEREGRINO SECRETO
A PAZ INSUPORTÁVEL
O GERENTE DA NOITE
O NOSSO JOGO
O ALFAIATE DO PANAMÁ
SINGLE & SINGLE
O FIEL JARDINEIRO
AMIGOS ATÉ AO FIM
O CANTO DA MISSÃO
UM HOMEM MUITO PROCURADO
UM TRAIDOR DOS NOSSOS
UMA VERDADE INCÓMODA
O TÚNEL DE POMBOS - Histórias da Minha Vida
UM LEGADO DE ESPIÕES
AGENTE EM CAMPO

Contracapa

"Nenhum outro escritor até hoje cartografou - impiedosamente para os políticos, mas
deliciosamente para os leitores - as histórias pública e secreta dos tempos que viveu."
GUARDIAN

Nat, 47 anos, veterano dos Serviços Secretos Britânicos, pensa que o seu tempo como
controlador de agentes chegou ao fim. Está de regresso a Londres com a mulher, a paciente e
dedicada Prue. Mas, face à crescente ameaça do Centro de Moscovo, a repartição tem mais uma
missão para ele. Nat é nomeado chefe do Porto de Abrigo, um inoperante subposto da Geral de
Londres com um bando de espiões incompetentes. A única estrela da equipa é a jovem
Florence, que tem aspirações ao departamento da Rússia e está de olho num oligarca ucraniano
com fortes ligações ao regime russo.

Nat não é apenas um espião, é um apaixonado jogador de badmínton.


O seu adversário habitual das segundas-feiras tem metade da sua idade: o introspectivo e
solitário Ed. Ed odeia o Brexit, odeia Trump e odeia o emprego que tem numa impiedosa
agência de comunicação.
E é precisamente Ed, de todas as pessoas a mais improvável, quem vai levar Prue, Florence e o
próprio Nat pelo caminho de raiva política que acabará por os enredar a todos.

Agente em Campo é um retrato arrepiante do nosso tempo, ora doloroso, ora com laivos de
humor negro, traçado com uma tensão infatigável pelo maior cronista da actualidade.

John le Carré é o grande mestre de histórias de espiões... o fluir constante da emoção eleva-o
não só acima de todos os modernos escritores de romances e suspense, mas também acima da
maioria dos romancistas em actividade."
FINANCIAL TIMES

Página de rosto

John le Carré
AGENTE EM CAMPO
Romance

Tradução de Francisco Agarez

D. QUIXOTE

Ficha técnica

Título: Agente em Campo


Título original: Agent Running in the Field
C 2019, David Cornwell
© 2019, Publicações Dom Quixote
Edição: Cecília Andrade
Tradução: Francisco Agarez
Revisão: Clara Joana Vitorino
Este livro foi composto em Rongel.
fonte tipográfica desenhada por Mário Feliciano
Capa: Rui Garrido
Fotografia do autor: © White Hare Productions Limited
Paginação: Leya, S.A.
Impressão e acabamento: Guíde
1ª Edição: outubro de 2019
Depósito legal nº 460 267/19
ISBN: 978-972-20-6904-5
Publicações Dom Quixote
Uma editora do Grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, nº 2
2610-038 Alfragide - Portugal
www.leya.com
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor. Este livro segue o Novo
Acordo Ortográfico de 1990.

Para Jane

O nosso encontro não foi planeado. Nem por mim, nem por Ed, nem por nenhuma das supostas
mãos invisíveis que lhe puxam os cordelinhos. Eu não fui definido como alvo. Ed não foi
obrigado a nada. Não fomos discreta nem agressivamente observados. Ele lançou-me um repto
desportivo. Eu aceitei-o. Jogámos. Não houve maquinação, conspiração, conivência com
ninguém. Há acontecimentos na minha vida - poucos nos tempos que correm, é certo - que só
admitem uma versão. O nosso encontro é um desses acontecimentos. O relato que faço dele
nunca variou em todas as vezes que me obrigaram a repeti-lo.
É sábado, ao fim do dia. Estou sentado no Athleticus Club de Battersea, de que sou secretário
honorário, título essencialmente insignificante, numa espreguiçadeira almofadada, à beira da
piscina interior. O salão é cavernoso e tem um teto de madeira alto, parte de uma antiga fábrica
de cerveja transformada, com uma piscina de um dos lados e um bar do outro, e um corredor no
meio que conduz aos vestiários e balneários segregados por sexo.
De frente para a piscina, estou num ângulo oblíquo para o bar. Por trás do bar fica a entrada
para o salão, depois o átrio e a seguir a porta para a rua. Por isso não estou em posição de ver
quem entra
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no salão ou quem anda pelo átrio a ler as informações afixadas, a reservar campos ou a
inscrever o seu nome no torneio escada do clube. O bar está muito movimentado. Raparigas e
acompanhantes chapinham na água e tagarelam.
Estou vestido com o meu traje de badmínton; calções, camisola e sapatilhas novas com apoio de
tornozelos. Comprei-as por causa de uma persistente dor no tornozelo esquerdo contraída há um
mês durante uma caminhada pelas florestas da Estónia. Depois de uma série de missões
consecutivas no estrangeiro, estou a saborear uma bem merecida licença em casa. Paira sobre a
minha vida profissional uma nuvem que tento ignorar a todo o custo. A minha expectativa é ser
considerado supérfluo na próxima segunda-feira. Pois bem, que assim seja, digo
constantemente a mim próprio. Estou a entrar no meu quadragésimo sétimo ano de vida, fiz
uma boa carreira, o acordo era este desde o princípio, por isso não posso queixar-me.
Daí que seja ainda maior a consolação de saber que, apesar do avançar da idade e do tornozelo
problemático, continuo a ser o incontestado campeão do clube e ainda no sábado passado
garanti o título de singulares contra um talentoso adversário mais novo do que eu. Os singulares
são geralmente considerados coutada exclusiva de jogadores rápidos na casa dos vinte, mas até
agora consegui aguentar-me. Hoje, seguindo a tradição do clube, na minha qualidade de
campeão recém-coroado saí vitorioso de um jogo amigável contra o campeão do nosso clube
rival de Chelsea, no outro lado do rio. E agora aqui está ele sentado ao meu lado no rescaldo do
nosso combate, copo de cerveja na mão, um jovem indiano, advogado promissor e bom
desportista. Deu-me luta acesa até aos últimos pontos, altura em que a experiência e uma pitada
de sorte viraram o jogo a meu favor. Talvez estes simples factos contribuam de algum modo
para explicar a minha disposição generosa no momento em que Ed me lançou o desafio, e o
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meu sentimento, ainda que temporário, de que havia vida para além do desemprego.
O meu adversário vencido e eu estamos a conversar cordialmente. O tema, lembro-me como se
fosse ontem, era os nossos pais. Ambos, como viemos a verificar, tinham sido entusiásticos
praticantes de badmínton. O dele tinha chegado à final do All-India. O meu, durante uma
gloriosa temporada, tinha sido campeão do Exército Britânico em Singapura. Estamos nesta
divertida troca de informações quando vejo Alice, a caribenha que é nossa rececionista e
guarda-livros, avançar para mim na companhia de um jovem muito alto, mas de traços ainda
difusos. Alice tem sessenta anos, é de humores, corpulenta e sempre vagamente ofegante.
Somos dos membros mais antigos do clube, eu como jogador, ela como pilar fundamental.
Onde quer que eu estivesse destacado no mundo, nunca deixámos de trocar cartões de boas-
festas. Os meus eram atrevidos, os dela eram piedosos. Quando digo avançar para mim, é isso
mesmo que quero dizer, porque os dois estavam a atacar-me pela retaguarda com Alice a
comandar a marcha, tiveram de avançar primeiro, depois dar meia volta para ficar de frente
para mim, coisa que, comicamente, fizeram em uníssono.
"Mister Sir Nat", anuncia Alice num tom de alta cerimónia. Normalmente trata-me por Lorde
Nat, mas hoje não passo de um simples cavaleiro. "Este jovem muito elegante e delicado
precisa de falar consigo em total privacidade. Mas não quer perturbar o seu momento de glória.
Chama-se Ed. Ed, cumprimente o Nat."
Durante aquilo que recordo como um longo momento, Ed fica perfilado dois ou três passos
atrás dela, este jovem de um metro e noventa e tal, desengonçado, de óculos, que irradia uma
sensação de solidão e esboça um tímido meio-sorriso. Lembro-me de que duas fontes de luz
contrastantes convergiam sobre ele: a faixa alaranjada vinda do bar, que lhe conferia uma aura
celestial,
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e por trás dele os focos de teto da piscina, que dele projectavam uma silhueta aumentada.
Ele avança e torna-se real. Duas passadas largas, gingonas, pé esquerdo, pé direito, alto. Alice
retira-se. Eu espero que ele fale. Ajusto as minhas feições a um sorriso paciente. Um metro e
noventa e dois, pelo menos, cabelo negro e desgrenhado, olhos castanhos grandes e atentos a
que os óculos dão uma expressão etérea, e calções até ao joelho mais próprios dos velejadores
ou dos filhos de bostonianos ricos. à volta dos vinte e cinco anos de idade, mas com aquele ar
de eterno estudante podiam facilmente ser menos ou mais.
"Sir?", diz finalmente, mas não de forma totalmente respeitosa.
"Nat, se não se importa", corrijo-o com mais um sorriso.
Ele regista. Nat. Pensa no assunto. Franze o nariz afilado.
"Bem, eu sou o Ed", diz, repetindo a informação de Alice para me ajudar. Na Inglaterra a que
regressei recentemente, ninguém tem apelido.
"Muito prazer, Ed", respondo eu jovialmente. "Em que posso ajudá-lo?"
Mais um hiato enquanto ele pensa na pergunta. Depois diz de chofre:
"Quero jogar consigo, está bem? O senhor é o campeão. O problema é que acabei de me fazer
sócio do clube. Na semana passada. Yeah. Inscrevi o meu nome na escada e tudo isso, mas a
escada demora uma quantidade de meses" - enquanto as palavras se libertam do espaço a que
estavam confinadas. Mais uma pausa enquanto olha alternadamente para nós os dois, primeiro
para o meu simpático adversário, depois para mim.
"Ouça", continua, argumentando comigo apesar de eu não ter levantado nenhuma objecção. "Eu
não conheço o protocolo do clube, está bem?" - o tom é de crescente indignação. "O que não é
culpa minha. Só que perguntei à Alice. E ela disse-me, pergunte-lhe
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você, que ele não morde. Por isso estou a perguntar-lhe." E, para o caso de serem necessárias
mais explicações: "Acontece que eu vi-o jogar, está bem? E já derrotei algumas pessoas que o
senhor derrotou. E uma ou duas que o derrotaram a si. Tenho a certeza de que lhe ia dar luta.
Boa luta. Yeah. Muito boa mesmo."
E quanto à voz propriamente dita, da qual já tenho uma boa amostra? No venerável jogo de
salão britânico que consiste em situar os nossos compatriotas na escala social com base na sua
dicção, eu sou, na melhor das hipóteses, um mau jogador, pois passei demasiado tempo da
minha vida em terras estrangeiras. Mas ao ouvido da minha filha Stephanie, uma radical
confessa, a dicção de Ed passaria à justa, o que significa que não há qualquer sinal claro de
educação em escola privada.
"Posso saber onde joga, Ed?", pergunto-lhe eu, como é normal acontecer entre nós.
"Onde calha. Onde quer que encontre um adversário à altura. Yeah" E, numa espécie de
associação de ideias: "Então soube que era sócio deste clube. Há clubes onde se pode jogar e
pagar. Aqui não. Aqui temos primeiro de nos fazer sócios. É uma vigarice, na minha opinião.
Mas inscrevi-me. Custa um colhão de massa, mas paciência."
"Pois, lamento que tenha tido de abrir os cordões à bolsa, Ed", respondo eu o mais
amavelmente possível, atribuindo o "colhão" excessivo ao nervosismo. "Mas se quer jogar
comigo, tudo bem", acrescento, reparando que a conversa à volta do balcão do bar está a
esmorecer e as cabeças começam a virar-se para nós. "Um dia destes combinamos. Estou
ansioso por jogar consigo."
Mas não é isto que Ed quer.
"Então quando é que acha que estaria bem para si? Concretamente. Não um dia destes",
desabafa, e com isso recebe uma série de gargalhadas vindas do bar, o que, a avaliar pelo esgar
que faz, o irrita.
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"Bom, Ed, na próxima semana ou duas não pode ser", respondo eu com sinceridade. "Tenho um
assunto bastante importante a tratar. Umas férias de família há muito prometidas, para ser mais
concreto", acrescento, à espera de um sorriso e recebendo um olhar carrancudo.
"E quando volta?"
"De sábado a uma semana, se não fracturarmos nada. Vamos fazer esqui."
"Onde?"
"Em França. Perto de Megève. Você faz esqui?"
"Já fiz. Na Baviera. Que me diz ao domingo seguinte?"
"Acho que vai ter de ser num dia de semana, Ed", respondo eu com firmeza, porque os fins-de-
semana em família, agora que eu e Prue podemos tê-los, são sacrossantos e este em que estamos
é uma excepção rara.
"Portanto, um dia de semana de segunda-feira a oito em diante, não é verdade? Qual? Escolha
um. O senhor decide. Eu adapto-me."
"Provavelmente uma segunda-feira era o que mais me convinha", sugiro eu, porque é às
segundas-feiras à noite que Prue dá as suas consultas jurídicas gratuitas.
"Então de segunda-feira a quinze dias. Às seis? Sete? Quando?"
"Bom, diga-me você o que lhe convém mais", sugiro eu. "Os meus planos são um bocado
indefinidos" - como quem diz: provavelmente a essa hora já me terá posto na rua.
"Às vezes retêm-me até mais tarde à segunda-feira", diz ele, em tom de queixa. "E se fosse às
oito? Às oito está bem para si?"
"Às oito está ótimo."
"Acha bem o campo principal, se eu conseguir marcá-lo? A Alice diz que aqui não gostam de
reservar campos para jogos de singulares, mas como vou jogar consigo é diferente."
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"Para mim qualquer campo está bem, Ed", tranquilizo-o eu, debaixo de mais gargalhadas e
alguns aplausos vindos do bar, presumivelmente premiando a persistência.
Trocamos números de telemóvel, o que é sempre um pequeno dilema. Eu dou-lhe o meu
particular e sugiro que me mande mensagem se houver algum problema. Ele pede-me a mesma
coisa.
"E ouça, Nat" - com um súbito amaciar da voz possante.
"Diga."
"Desejo-lhe umas óptimas férias em família, Okay?" E, não fosse eu ter-me esquecido: "Então
daqui a duas semanas. Segunda-feira. Às oito da noite. Aqui."
Nesta altura já toda a gente ri ou bate palmas enquanto Ed, com um descontraído aceno de
despedida feito com todo o braço direito, avança apressadamente para o vestiário dos homens.
"Alguém o conhece?", pergunto eu, quando reparo que, inconscientemente, me virei para o ver
partir.
Abanares de cabeça. Desculpa, amigo.
"Alguém o viu jogar?"
Desculpa, outra vez.
Eu acompanho o meu adversário ao átrio e, no regresso ao vestiário, meto a cabeça na porta do
escritório. Alice está curvada sobre o computador.
"Ed quê?", pergunto.
"Shannon", entoa ela, sem levantar a cabeça. "Edward Stanley. Sócio individual. Pagamento por
autorização permanente, só local."
"Profissão?"
"Mr. Shannon é investigador de profissão. Quem investiga, não diz. O que investiga, não diz."
"Morada?"
"Hoxton, no município de Hackney. O mesmo em que vivem as minhas duas irmãs e a minha
prima Amy."
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"Idade?"
"Mr. Shannon não tem idade para ser sócio júnior. Por quantos anos, não diz. Só sei que o rapaz
tem uma fixação em si, para atravessar Londres inteira de bicicleta só para desafiar o Campeão
do Sul. Ouviu falar de si e veio para o vencer, tão certo como David fez a Golias."
"Ele disse isso?"
"O que ele não disse adivinhei-o eu na minha cabeça. Você já é campeão de singulares há
demasiado tempo para a idade que tem, Nat, tal como Golias. Quer saber quem é a mamã e o
papá do rapaz? Qual é o montante da hipoteca dele? Quantos anos de prisão cumpriu?"
"Boa noite, Alice. E obrigado."
"Boa noite também para si, Nat. E não se esqueça de dar saudades minhas à Prue. E não comece
a sentir-se inseguro por causa desse jovem. Você vai arrumá-lo, como arruma todos os
fanfarrões."
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Se isto fosse uma ficha oficial, começaria pelo nome completo de Ed, filiação, data e local de
nascimento, profissão, religião, origem racial, orientação sexual e as outras estatísticas vitais
que estão em falta no computador de Alice. Como não é, começarei pelos meus dados.
Fui baptizado como Anatoly, mais tarde anglicizado para Nathaniel, Nat em abreviatura. Tenho
um metro e setenta e oito de altura, barba feita, tufo de cabelo a fugir para o grisalho, casado
com Prudence, sócia num conceituado escritório de advogados da City de Londres, onde tem a
seu cargo processos legais gerais, mas principalmente casos de cariz humanitário.
Fisicamente sou magro, Prue prefere dizer esguio. Além do badmínton faço jogging, corro e
exercito-me uma vez por semana num ginásio que não está aberto ao público. Possuo um
charme vigoroso e a personalidade acessível de um homem do mundo. Sou, de aparência e
modos, um arquétipo britânico, capaz de argumentar de modo fluente e persuasivo no curto
prazo. Adapto-me às circunstâncias e não tenho escrúpulos morais intransponíveis. Posso ser
irascível e não sou de maneira nenhuma imune aos encantos femininos. Não sou naturalmente
calhado para o trabalho burocrático ou para a vida sedentária, o que é o maior eufemismo de
todos os tempos. Posso ser
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teimoso e não reajo naturalmente à disciplina. Isto pode ser um defeito e também uma virtude.
Estou a citar dos relatórios confidenciais da minha antiga entidade empregadora sobre o meu
desempenho e carisma geral ao longo dos últimos vinte e cinco anos. As pessoas quererão
também saber que podem contar comigo para exibir a indiferença exigida, embora exigida por
quem, e em que grau, sejam aspectos por esclarecer. Em contrapartida, tenho uma subtileza e
uma afabilidade que suscitam confiança.
A um nível mais mundano, sou um súbdito britânico de ascendência mista, filho único nascido
em Paris, sendo o meu falecido pai, na altura da minha concepção, um pobre major da Guarda
Escocesa destacado no quartel-general da NATO em Fontainebleau e a minha mãe filha de uns
insignificantes membros da nobreza russa branca a residir em Paris. Por russa branca entenda-se
uma boa colherada de sangue alemão da parte do pai, que ela alternadamente invocava ou
negava a seu bel-prazer. Diz a história que o casal se conheceu numa recepção oferecida pelos
últimos resquícios do autodenominado Governo Russo no Exílio, numa altura em que a minha
mãe ainda se dizia estudante de arte e o meu pai tinha quase quarenta anos. Na manhã seguinte
já estavam noivos: ou pelo menos era o que a minha mãe dizia, e, atendendo a outras passagens
do seu curso de vida, tenho poucas razões para duvidar da sua palavra. Na sequência da
cessação da carreira militar do marido - rapidamente imposta porque, na altura em que se
apaixonou, o meu pai já era casado e tinha outros encargos - os recém-casados fixaram
residência no subúrbio parisiense de Neuilly, numa linda casa branca disponibilizada pelos
meus avós maternos, onde eu nasci pouco depois, deixando a minha mãe livre para procurar
outras diversões.
Deixei para o fim a pessoa imponente e sábia da minha querida professora de línguas, mentora
e preceptora de facto, Madame
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Galina, supostamente uma condessa espoliada da região russa do Volga com pretensões a
sangue Romanov. Como veio parar à nossa turbulenta família é coisa que não entendo muito
bem, sendo a explicação mais plausível que se tratava da amante rejeitada de um tio-avô do
lado da minha mãe que, depois de fugir de Leninegrado e fazer uma segunda fortuna como
negociante de arte, dedicou a sua vida à conquista de mulheres belas.
Madame Galina tinha cinquenta anos, mais coisa menos coisa, quando apareceu pela primeira
vez em nossa casa, muito rechonchuda, mas com um sorriso fagueiro. Usava vestidos
compridos de seda preta roçagante, fazia os seus próprios chapéus e vivia nos dois quartos do
sótão da nossa casa com tudo o que possuía no mundo: o seu gramofone, os seus ícones, um
quadro muito escuro da Virgem que insistia em atribuir a Leonardo, caixas em cima de caixas
de cartas e fotografias de avoengos príncipes e princesas rodeados de cães e criados na neve.
A seguir ao meu bem-estar pessoal, a grande paixão de Madame Galina eram as línguas, várias
das quais falava. Eu ainda mal tinha dominado os fundamentos da ortografia inglesa quando ela
começou a querer ensinar-me a caligrafia cirílica. As nossas leituras à hora de deitar eram uma
rotação da mesma história infantil, cada noite numa língua diferente. Em encontros da cada vez
mais minguada comunidade de descendentes de russos brancos e exilados da União Soviética,
exibia-me como seu protótipo de criança poliglota. Dizem que falo russo com sotaque francês,
francês com sotaque russo e o pouco alemão que sei com uma mistura dos dois. Já o meu
inglês, para o bem e para o mal, continua a ser o do meu pai. Dizem-me que até tem as
cadências escocesas dele, se não mesmo o rugido alcoólico que as acompanhava.
Quando eu tinha doze anos, o meu pai sucumbiu ao cancro e à melancolia e eu, com a ajuda de
Madame Galina, acudi às suas necessidades de moribundo, já que a minha mãe estava ocupada
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com o mais rico dos seus admiradores, um belga traficante de armas pelo qual eu não tinha a
menor consideração. No triângulo desconfortável que resultou do passamento do meu pai, fui
considerado excedentário e despachado para as Scottish Borders, onde durante as férias ficaria
instalado em casa de uma sorumbática tia paterna e durante as aulas num espartano colégio
interno das Highlands. Apesar dos melhores esforços do colégio para não me ensinar nada que
não tivesse que ver com a vida ao ar livre, consegui entrar numa universidade das Midlands
industriais, onde dei os meus desajeitados primeiros passos com o sexo feminino e concluí um
mestrado em estudos eslavos.
Nos últimos vinte e cinco anos fui membro activo dos Serviços Secretos Britânicos - para os
respectivos iniciados, a Repartição.
Ainda hoje o meu recrutamento para os serviços secretos parece predestinado, porque não me
lembro de ter pensado em nenhuma outra carreira ou desejado tê-la, a não ser talvez o
badmínton ou a escalada nos Cairngorms. A partir do momento em que o meu tutor na
universidade me perguntou a medo, enquanto bebíamos um copo de vinho branco quente, se
alguma vez tinha admitido fazer uma coisa "ligeiramente sigilosa pelo seu país", o meu coração
saltou de reconhecimento e a minha mente recuou a um apartamento escuro em Saint-Germain
que eu e Madame Galina tínhamos frequentado todos os domingos até à morte do meu pai. Foi
aí que senti pela primeira vez o frémito da conspiração anti bolchevique ouvindo os meus
meios-primos, tios por afinidade e tias-avós de olhos ferozes trocando mensagens sussurradas
vindas da pátria em que poucos tinham alguma vez posto os pés - até que, apercebendo-se da
minha presença, me obrigavam a jurar segredo, independentemente de ter ou não compreendido
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o segredo que não devia ter ouvido. Foi também aí que adquiri o meu fascínio pelo Urso cujo
sangue partilhava, pela sua diversidade, imensidade e métodos insondáveis.
Uma carta anódina esvoaça para dentro da minha caixa do correio notificando-me para me
apresentar num edifício de colunas perto do Palácio de Buckingham. De trás de uma secretária
tão grande como uma torre de artilharia, um almirante aposentado da Royal Navy pergunta-me
que desportos pratico. Eu respondo badmínton e ele fica visivelmente comovido.
"Sabe que eu joguei badmínton com o seu querido pai em Singapura e ele derrotou-me sem
apelo nem agravo?"
Não, senhor, digo eu, não sabia, e pergunto-me se devo pedir-lhe desculpa em nome do meu
pai. Devemos ter falado de mais coisas, mas não tenho memória de mais nada.
"E onde está sepultado o seu pobre pai?", quer ele saber enquanto eu me levanto para me
retirar."
"Em Paris, senhor."
"Ah, bom. Boa sorte para si."
Recebo ordens para me apresentar na estação ferroviária de Bodmin Parkway com um exemplar
da revista Spectator da semana passada. Depois de me certificar de que todos os exemplares por
vender tinham sido devolvidos ao distribuidor, roubo um de uma biblioteca próxima. Um
homem de chapéu de feltro verde pergunta-me a que horas parte o próximo comboio para
Camborne. Eu respondo que não sei dizer-lhe porque vou para Didcot. Sigo-o a uma certa
distância até ao parque de estacionamento onde uma carrinha branca está à espera. Ao fim de
três dias de perguntas inescrutáveis e jantares formais em que os meus atributos sociais e a
minha resistência ao álcool são postos à prova, sou chamado à presença da comissão reunida.
"E então, Nat", diz uma senhora de cabelo branco sentada ao centro da mesa. "Agora que lhe
fizemos todas as perguntas acerca
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da sua pessoa, há alguma pergunta que gostasse de fazer sobre nós, para variar?"
"Bem, de facto há", respondo eu, depois de encenar uma séria reflexão. "Perguntaram-me se
podiam contar com a minha lealdade, mas eu posso contar com a vossa?"
Ela sorri, e depressa todas as pessoas sentadas à mesa estão a sorrir com ela: o mesmo sorriso
triste, inteligente, introvertido que é o mais parecido que o Serviço tem com uma divisa.
À vontade sob pressão. Boa agressividade latente. Recomendado.

No mês em que concluí o meu curso de instrução básica nas artes obscuras, tive a felicidade de
conhecer Prudence, a minha futura mulher. O nosso primeiro encontro não foi auspicioso. Com
a morte do meu pai tinha-se evadido um regimento de esqueletos do armário da família. Meios-
irmãos e meias-irmãs de quem eu nunca tinha ouvido falar reivindicavam o direito a um
património que nos últimos catorze anos tinha sido disputado, litigado e delapidado pelos seus
gestores escoceses. Um amigo recomendou um escritório de advogados da City. Ao fim de
cinco minutos a ouvir as minhas desgraças, o advogado sénior tocou uma campainha.
"Um dos nossos melhores advogados jovens", garantiu-me.
A porta abriu-se e entrou uma advogada da minha idade. Vestia um intimidante fato de calça e
casaco preto do tipo preferido pelos membros da profissão, óculos professorais e pesadas botas
militares pretas nuns pés muito pequenos. Cumprimentámo-nos com um aperto de mão. Ela não
voltou a olhar para mim. Ao som cavo das botas conduziu-me a um cubículo com Ms. P.
Stoneway LLB pintado no vidro fosco.
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Sentamo-nos frente a frente, ela entala vigorosamente o cabelo castanho atrás das orelhas e tira
de uma gaveta um bloco pautado de cor amarela.
"A sua profissão?", pergunta.
"Membro do Serviço Estrangeiro de Sua Majestade", respondo eu, e por qualquer razão
desconhecida ruborizo.
A partir daí, o que recordo melhor é a sua postura hirta e queixo decidido e um raio de sol
perdido a brincar-lhe na penugem rasa das maçãs do rosto enquanto eu debito consecutivos
pormenores sórdidos da nossa saga familiar.
"Posso tratá-lo por Nat?", pergunta ela ao fim da nossa primeira sessão.
Pode.
"A mim tratam-me por Prue", diz ela, e combinamos uma reunião para daí a duas semanas, na
qual, no mesmo tom de voz impassível, ela me põe ao corrente do resultado das suas pesquisas:
"Devo informá-lo, Nat, de que, se todos os activos em disputa que fazem parte do património
do seu pai lhe fossem entregues amanhã, não teria fundos suficientes para pagar sequer os
honorários do meu escritório, muito menos para pagar os pedidos de indemnização que pendem
contra si. No entanto", continua sem me dar tempo para protestar que não quero fazê-la perder
mais tempo, "a nossa sociedade tem previsto o tratamento dos casos de necessidade e mérito
numa base de gratuitidade. E tenho o prazer de o informar de que o seu caso foi considerado
como tendo cabimento nesta categoria."
Precisa de uma nova reunião dentro de uma semana, mas eu vejo-me obrigado a adiá-la. É
preciso infiltrar um agente letão na base de transmissões do Exército Vermelho na Bielorrússia.
De regresso às costas britânicas telefono a Prue e convido-a para jantar, mas sou rispidamente
avisado de que é política da firma que as relações com clientes se mantenham numa base
impessoal.
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Todavia, tem o prazer de me informar de que, em resultado das diligências da sua firma, todas
as ações contra mim foram abandonadas. Eu agradeço-lhe efusivamente e pergunto-lhe se,
nesse caso, tem o caminho livre para jantar comigo. Tem.
Vamos ao Bianchi's. Ela leva um vestido de verão decotado, o seu cabelo libertou-se das orelhas
e todos os homens e mulheres presentes na sala ficam a olhar para ela. Percebo rapidamente que
a minha conversa habitual não funciona. Ainda mal chegámos ao prato principal e já ela me está
a dar uma lição sobre o fosso que separa a lei da justiça. Quando vem a conta ela agarra-a,
calcula a sua metade até ao último penny, acrescenta dez por cento para o serviço e paga-me em
dinheiro que tira da carteira. Eu digo-lhe com fingida indignação que nunca vi tão descarada
integridade e ela por pouco não cai da cadeira a rir-se.
Seis meses depois, com o prévio consentimento da minha entidade patronal, pergunto-lhe se
admite casar-se com um espião. Admite. Agora é a vez de o Serviço a levar a jantar. Duas
semanas depois, informa-me de que decidiu suspender a sua carreira na advocacia e frequentar
o curso de formação da Repartição para cônjuges em vias de colocação em ambientes hostis.
Faz questão de dizer que tomou a decisão de sua livre e espontânea vontade, e não por minha
causa. Estava dividida, mas o seu sentido de dever nacional convenceu-a.
Conclui o curso com altas classificações. Uma semana depois eu sou colocado na Embaixada
Britânica em Moscovo como segundo-secretário (Comercial), acompanhado da minha mulher,
Prudence. Afinal, Moscovo seria a única colocação no estrangeiro que os dois partilhámos. As
razões não são desonra para Prue. Voltarei a elas um pouco mais adiante.
Durante mais de duas décadas, primeiro com Prue e depois sem ela, servi a minha Rainha sob
cobertura diplomática ou consular em Moscovo, Praga, Bucareste, Budapeste, Tbilisi, Trieste,
Helsínquia
24
e mais recentemente Talin, recrutando e gerindo agentes de toda a estirpe. Nunca fui convidado
para as altas mesas da decisão política, e ainda bem. O controlador de agentes é independente.
Pode receber as ordens de Londres, mas no terreno é senhor do seu destino e do destino dos
seus agentes. E, quando os seus anos de serviço activo chegarem ao fim, não vai haver muitos
poisos à espera de um espião experimentado, com quarenta e muitos anos de idade, que detesta
o trabalho burocrático e tem o curriculum vitae de um diplomata do meio da tabela que nunca
chegou aonde queria.
Aproxima-se o Natal. Chegou o meu dia de acerto de contas. No fundo das catacumbas da sede
do meu Serviço, à beira do Tamisa, sou conduzido a uma sala de interrogatórios pequena e
abafada e recebido por uma mulher sorridente e inteligente, de idade indefinida. É Moira, dos
Recursos Humanos. Sempre houve qualquer coisa de estranho à volta das Moiras do Serviço.
Sabem mais sobre nós do que nós próprios sabemos, mas não nos dizem o que é, ou se gostam.
"Então a Prue", pergunta Moira com ar interessado. "Sobreviveu à recente fusão da sociedade
de advogados? Deve ter sido chato para ela."
Obrigado, Moira, não foi chato coisa nenhuma, e parabéns por teres feito o trabalho de casa.
Não esperava outra coisa de ti.
"E ela está bem, não? Estão os dois bem?" - com uma nota de ansiedade que eu prefiro ignorar.
"Agora que estão em segurança em casa."
"Absolutamente bem, Moira. Muito felizes por estarmos de novo juntos, obrigado."
E agora, por favor, lê-me a minha sentença de morte e vamos lá acabar com isto. Mas Moira
tem os seus métodos. A seguir, na sua lista, vem a minha filha Stephanie.
25

"E acabaram aquelas dores galopantes, espero eu, agora que está em segurança na
universidade?"
"Acabaram completamente, Moira, obrigado. Os tutores dela estão encantados", respondo eu.
Mas a única coisa em que estou verdadeiramente a pensar é: agora diz-me que escolheram uma
noite de quinta-feira para a minha festa de despedida porque ninguém gosta das sextas-feiras, e
convida-me a beber a minha chávena de café frio três portas mais adiante, na secção de
Recolocação, que vai oferecer-me oportunidades irresistíveis na indústria de armamento, na
segurança privada ou noutros lugares que aceitam antigos espiões como o National Trust, a
Automobile Association e escolas privadas à procura de assistentes de tesoureiro. Por isso sou
apanhado de surpresa quando ela anuncia com entusiasmo:
"Bem, de facto temos uma vaga para si, Nat, supondo que está disposto a aceitá-la."
Disposto a aceitá-la?
Moira, estou mais disposto a aceitá-la do que ninguém neste mundo. Mas só cautelosamente
disposto a aceitá-la, porque acho que sei o que tens para me oferecer: uma suspeita que se
transforma em certeza quando ela embala num guia infantil sobre a actual ameaça russa.
"Não preciso de lhe dizer que o Centro de Moscovo está a deixar-nos absolutamente de rastos
em Londres, como aliás em toda a parte, Nat."
Não, Moira, não precisas de me dizer. Há anos que ando a dizer a mesma coisa à Sede.
"Estão mais perigosos que nunca, mais descarados, mais intrometidos e mais numerosos. Acha
justa esta descrição?"
Acho, sim, Moira, acho mesmo. Lê o relatório final da minha missão na soalheira Estónia.
"E desde que corremos com os espiões legais deles em magote" - referindo-se a espiões com
cobertura diplomática, como eu,
26
portanto - "têm vindo a inundar as nossas costas com ilegais", continua ela, indignada, "que,
penso que concordará, são os mais problemáticos da espécie e os mais difíceis de descobrir.
Você tinha uma pergunta para me fazer."
Experimenta. Vale a pena arriscar. Não tens nada a perder.
"Bem, antes que diga mais alguma coisa, Moira."
"Sim?"
"Lembrei-me agora mesmo de que talvez haja uma vaga para mim no departamento da Rússia.
Têm lá uma equipa completa de jovens e elegantes burocratas, isso todos sabemos. Mas terão
um enviado especial com experiência, um homem maduro, que fale russo ao nível de língua
mãe, como é o meu caso, que de um momento para o outro possa voar para qualquer destino e
avaliar preliminarmente qualquer desertor ou agente russo que apareça numa delegação onde
ninguém fala uma palavra da língua?"
"Receio bem que isso não seja possível, Nat. Falei em si ao Bryn. Ele está irredutível."
Só há um Bryn na Repartição. Bryn Sykes-Jordan, de seu nome completo, abreviado para Bryn
Jordan para uso corrente, director vitalício do departamento da Rússia e em tempos meu chefe
na delegação de Moscovo.
"Mas não é possível porquê?", insisto eu.
"Você sabe muito bem porquê. Porque a média de idades no departamento da Rússia é de trinta
e três anos, mesmo incluindo o Bryn. Na sua maioria são doutorados por Oxford, todos têm
mentalidades abertas, todos têm competências informáticas de nível avançado. Por muito
perfeito que você seja em todos os aspectos, não cumpre propriamente estes critérios. Ou
cumpre, Nat?"
"E por acaso o Bryn não está por aí?", pergunto eu, em último recurso.
"O Bryn Jordan, no momento em que falamos, está enterrado até ao pescoço em Washington
DC, fazendo aquilo que só o Bryn
27

pode fazer para salvar o nosso ameaçado relacionamento especial com a comunidade de
serviços secretos do Presidente Trump no pós-Brexit, e não pode ser incomodado em
circunstância nenhuma, muito obrigada, nem mesmo por si, a quem envia os seus afectuosos
cumprimentos e condolências. Fui clara?"
"Foi clara."
"Todavia", continua ela, em tom mais animado, "há uma vaga para a qual você é muito
qualificado. Até demasiado qualificado."
Cá vamos nós. O pesadelo sob a forma de oferta que eu adivinhava desde o princípio.
"Desculpe, Moira", interrompo eu. "Se é na secção de formação, penduro já as botas. Foi muito
amável da sua parte, muito atencioso, tudo o que acaba de dizer."
Aparentemente ofendi-a, por isso volto a pedir desculpa e digo que não queria desrespeitar os
competentes e honestos homens e mulheres da secção de formação, mas continua a ser muito
obrigado mas não, ao que o rosto dela se abre num sorriso inesperadamente caloroso, ainda que
um tanto ou quanto compassivo.
"Por acaso não é na secção de formação, Nat, embora eu pense que você faria um bom trabalho
lá. O Dom quer muito falar consigo. Ou prefere que eu lhe diga que vai pendurar as botas?"
"O Dom?"
"Dominic Trench, o recém-nomeado chefe da Geral de Londres. Seu antigo chefe de delegação
em Budapeste. Diz que os dois se deram às mil maravilhas. Tenho a certeza de que isso vai
voltar a acontecer. Porque é que está a olhar para mim dessa maneira?"
"De certeza que me está a dizer que o Dom Trench é chefe da Geral de Londres?"
"Acha que eu ia mentir-lhe, Nat?"
"Quando é que isso aconteceu?"
28

"Há um mês. Quando você estava a dormir em Talin e não lia os nossos boletins internos. O
Dom recebe-o amanhã de manhã, às dez em ponto. Confirme primeiro com a Viv."
"Viv?"
"A assistente dele."
"Claro."
29

"Nat! Está com excelente aspeto! O perfeito marinheiro que regressa do mar. São como um
pêro e com metade da idade!", exclama Dominic Trench, soerguendo-se da sua secretária
directoral e apertando-me a mão direita entre as suas duas. "Trabalho duro no ginásio, de
certeza. A Prue está bem?"
"Ótima, Dom, obrigado. E a Rachel?"
"Maravilhosa. Sou o homem mais afortunado do mundo. Vocês têm de a conhecer, Nat. Você e
a Prue. Vamos jantar os quatro. Vão adorá-la."
Rachel. Par do reino, membro influente do Partido Tory, segunda mulher, união recente.
"E os filhos?", pergunto eu a medo. Tinha dois da simpática primeira mulher.
"Fantásticos. A Sarah está a portar-se maravilhosamente na South Hampstead. Claramente com
Oxford no horizonte."
"E o Sammy?"
"Na mudança de idade. Vai sair dela em breve e seguir as pisadas da irmã."
"E a Tabby, posso perguntar?" Tabitha, a primeira mulher e, na altura do rompimento, um
farrapo neurótico.
31

"A aguentar-se galhardamente. Ainda não há homem à vista, mas a esperança é a última a
morrer."
Estou convencido de que há um Dom algures na vida de toda a gente: o homem - parece que é
sempre um homem - que nos chama à parte, nomeia-nos o seu único amigo no mundo,
banqueteia-nos com pormenores da sua vida pessoal que preferíamos não conhecer, pede-nos
conselho, não lho damos, jura que vai segui-lo e na manhã seguinte ignora-nos por completo.
Há cinco anos, em Budapeste, aproximava-se dos trinta anos e agora aproxima-se dos trinta
anos: o mesmo bom aspeto de croupier, camisa às riscas, suspensórios amarelos mais próprios
de um homem de vinte e cinco anos, punhos de camisa brancos, botões de punho de ouro e
sorriso para todas as ocasiões; o mesmo hábito enfurecedor de juntar as pontas dos dedos em
arco de casamento, recostar-se na cadeira e sorrir-nos judiciosamente por cima deles.

"Então parabéns, Dom", digo eu, apontando para os cadeirões de executivo e a mesa de apoio
em cerâmica que a Repartição atribui a funcionários de grau três para cima.
"Obrigado, Nat. É muito amável. Fui apanhado de surpresa, mas quando nos chamam
respondemos presente. Café? Chá?"
"Café, por favor."
"Leite? Açúcar? O leite é de soy, devo informá-lo."
"Simples, obrigado. Sem soy (1)."
Será que ele quer dizer soja (2). A outra será a forma elegante que se usa agora? Enfia a cabeça
pela porta de vidro martelado, diz uma graça a Viv, volta a sentar-se.
(1) Substantivo que designa o molho de soja usado na culinária chinesa e japonesa. (n. do T.)
(2) Substantivo que designa a soja em grão com que se fabricam produtos alimentares como o
substituto do leite. (N. do T.)
32

"E a Geral de Londres mantém as mesmas competências?", pergunto eu em tom casual,


lembrando-me de que uma vez tinha ouvido Bryn Jordan descrevê-la como o abrigo da
Repartição para cães perdidos.
"É verdade, Nat, é verdade. As mesmas."
"Então todos os subpostos baseados em Londres estão nominalmente sob o seu comando."
"Todo o Reino Unido. Não só Londres. Toda a Grã-Bretanha. Excluindo a Irlanda do Norte. E
continua totalmente autónomo, o que muito me apraz."
"Administrativamente autónomo? Ou também operacionalmente?"
"Em que sentido, Nat?" - franzindo-me o cenho como se não me percebesse.
"Como chefe da Geral de Londres pode autorizar operações?"
"A situação não é clara, Nat. Para já, qualquer operação proposta por um subposto tem de ser
aprovada pelo departamento regional competente. Estou a lutar contra isso, neste preciso
momento."
Ele sorri. Eu sorrio. Sintonia. Em movimentos sincronizados provamos os nossos cafés sem
molho de soja e repomos as chávenas nos respectivos pires. Será que ele vai confidenciar-me
alguma intimidade indesejada com a sua nova mulher. Ou explicar-me por que razão estou
aqui? Ainda não, pelos vistos. Primeiro temos de passar em revista os velhos tempos: agentes
que partilhámos, eu como controlador deles, Dom como meu inútil supervisor. à cabeça da lista
dele está Polonius, membro recente da rede Shakespeare. Há alguns meses, tendo assuntos da
Repartição a tratar em Lisboa, eu tinha ido visitar o velho Polonius ao Algarve, num
apartamento ecoante ao lado de um campo de golfe deserto que lhe tínhamos comprado no
âmbito da negociação do seu pacote de realojamento.
33

"Está ótimo, Dom, obrigado", digo eu convictamente. "Não tem problemas com a nova
identidade. Ultrapassou o desgosto da morte da mulher. Está de facto ótimo. Sim."
"Detecto um mas na sua voz, Nat", diz ele em tom de censura.
"Bem, nós prometemos-lhe um passaporte britânico, Dom, não sei se se lembra. Parece que a
coisa caiu no esquecimento desde que você regressou a Londres."
"Vou imediatamente ver o que se passa" - e toma uma nota com a esferográfica para prová-lo.
"Além disso, está um bocado chateado por não termos conseguido que a filha entrasse em
Oxbridge. Considera que bastava um empurrãozinho nosso e nós não o demos. Ou você não o
deu. E o que ele acha."
Dom não se dá por culpado. Ou se dá por injustiçado ou por indiferente. Opta por injustiçado.
"São os colégios, Nat", queixa-se desanimadamente. "Toda a gente pensa que as velhas
universidades são uma entidade. Não é verdade. Temos de ir de colégio em colégio, de chapéu
na mão. Vou ver o que posso fazer" - mais uma nota a esferográfica.
Em segundo lugar na sua lista de assuntos vem Delilah, uma colorida deputada húngara de
setenta e poucos anos que recebia rublos russos e depois decidiu que preferia a libra britânica
antes que ela colapsasse.
"A Delilah está em grande forma, Dom, obrigado, em excelente forma. Um bocado chateada
quando descobriu que o meu sucessor era uma mulher. Disse que enquanto me tinha como
controlador podia sonhar que o amor estava ao virar da esquina."
Ele sorri e sacode os ombros ao pensar em Delilah e nos seus muitos amantes, mas não se ri.
Um gole de café. A chávena regressa ao pires.
"Nat" - desalentado.
"Dom."
34

"Estava à espera de que isto fosse um momento de grande satisfação para si."
"E porque é que havia de ser, Dom?"
"Ora, por amor de Deus! Estou a oferecer-lhe uma oportunidade de ouro para remodelar,
sozinho, um posto avançado russo em território britânico que está há demasiado tempo na
sombra. Com a experiência que tem endireita aquilo em - quanto tempo? -seis meses, no
máximo. É criativo, é operacional, é a sua cara. Que mais pode querer nesta altura da sua vida?"
"Acho que não estou a percebê-lo, Dom."
"Não está?"
"Não, não estou."
"Quer dizer que ninguém lhe disse nada?"
"Disseram-me para falar consigo. Eu estou a falar consigo. Só isso."
"Veio para aqui às cegas? Santo Deus. às vezes pergunto-me se essa merda dessa gente dos
Recursos Humanos sabe o que anda a fazer. Foi com a Moira que falou?"
"Talvez ela tenha pensado que era melhor eu saber por si, Dom, seja lá o que for. Penso que
você falou num posto avançado russo em território britânico que está há demasiado tempo na
sombra. Só conheço um, e é o Porto de Abrigo. Não é um posto avançado, é um subposto
defunto sob a alçada da Geral de Londres, e é um depósito de lixo para desertores recolocados
de nulo valor e informadores de quinta categoria caídos em desgraça. Da última vez que ouvi
falar dele, os tipos das Finanças estavam a preparar-se para fechá-lo. Devem ter-se esquecido. é
isso que está a oferecer-me, a sério?"
"O Porto de Abrigo não é um depósito de lixo, Nat - muito longe disso. Pelo menos enquanto eu
aqui estiver. Tem dois ou três elementos que já deram o que tinham a dar, reconheço. E fontes
ainda à espera de poderem concretizar o seu potencial.
35

Mas há lá matéria-prima de primeira qualidade para o homem ou mulher que souber procurar.
E, claro" - acrescentou como quem completa um raciocínio - "alguém que ganha as suas
esporas no Porto de Abrigo fica com as portas abertas para ser considerado na promoção ao
departamento da Rússia."
"Isso quer dizer, por acaso, que está a considerar a hipótese para si, Dom?", pergunto eu.
"O quê, meu velho?"
"Uma mudança de carreira para o departamento da Rússia, às cavalitas do Porto de Abrigo."
Ele franze o sobrolho e espreme os lábios em sinal de reprovação. Dom é a transparência em
pessoa. O departamento da Rússia, de preferência o lugar de chefe, é o sonho da sua vida. Não
porque conheça o terreno, tenha experiência ou fale russo. Nada disto se lhe aplica. É um rapaz
da City que entrou tarde para o Serviço, recrutado por razões que desconfio que nem ele próprio
conhece minimamente, sem qualificações linguísticas que valham um caracol.
"Porque, se é isso que está a pensar, Dom, gostava de fazer essa viagem consigo, se não se
importa", prossigo eu irónico, brincalhão ou zangado, não sei bem qual. "Ou será que está a
pensar arrancar as vinhetas dos meus relatórios e colá-las nos seus, como fez em Budapeste?
Estou só a perguntar, Dom."
Dom pensa nisto, o que significa que primeiro olha para mim por cima dos dedos em arco de
casamento, depois para a meia distância, depois outra vez para mim, para se certificar de que
ainda ali estou.
"Esta é a minha oferta, Nat. É pegar ou largar. Na minha qualidade de chefe da Geral de
Londres. Estou formalmente a oferecer-lhe a oportunidade de suceder ao Giles Wackford como
chefe do subposto Porto de Abrigo. Dado que sou eu que o admito numa base temporária,
reporta diretamente a mim. Recebe imediatamente
36

os agentes do Giles e o fundo de caixa do posto. E também as despesas de representação dele,


se ainda restar alguma coisa. A minha sugestão é que meta rapidamente mãos à obra e deixe o
resto das férias para gozar mais tarde. Qual é o seu problema?"
"Não pode ser assim, Dom."
"E porque não, posso saber?"
"Tenho de discutir isto tudo com a Prue."
"E desde quando é que discute tudo com a Prue?"
"A nossa filha Stephanie vai fazer dezanove anos. Eu prometi levá-las, a ela e à Prue, a fazer
uma semana de esqui antes de a Stephanie regressar a Bristol."
Ele inclina-se para a frente, fixando teatralmente os olhos franzidos num calendário de parede.
"E isso é quando?"
"Está no segundo semestre."
"Estou a perguntar quando partem para as vossas férias."
"No sábado, às cinco da tarde, de Stansted, se está a pensar em ir connosco."
"Supondo que nessa altura já você e a Prue terão discutido o assunto e chegado a uma
conclusão satisfatória, acho que consigo convencer o Giles a segurar as pontas no Porto de
Abrigo até de segunda-feira a uma semana, se até lá não bater a bota. Ficaria contente com isso,
ou infeliz?"
Boa pergunta. Ficaria contente? Estarei na Repartição, estarei a trabalhar no alvo russo, mesmo
que esteja a viver das migalhas caídas da mesa de Dom.
Mas Prue, ficará contente?
A Prue de agora não é a dedicada esposa da Repartição que era há mais de vinte anos. Tão
altruísta como então, sim, e tão vertical.
37

E tão divertida quando solta o cabelo. E tão decidida como sempre a ser útil ao mundo em
geral, só que nunca mais em funções secretas. A admirável jurista em início de carreira que
tirou cursos de contra vigilância, sinais de segurança e abastecimento e esvaziamento de caixas
de correio secretas tinha de facto ido comigo para Moscovo. Durante catorze penosos meses
tínhamos vivido juntos a tensão permanente de saber que as nossas interacções mais íntimas
eram escutadas, observadas e analisadas em busca de qualquer sinal de fraqueza humana ou
falha de segurança. Sob a impressionante orientação do nosso chefe de posto - o mesmo Bryn
Jordan que hoje estava reunido em ansioso conclave com os nossos parceiros de serviços
secretos em Washington - tinha desempenhado o papel principal em charadas de marido e
mulher concebidas e encenadas para enganar os bisbilhoteiros do outro lado.
Mas foi no decurso da nossa segunda estada prolongada em Moscovo que Prue descobriu que
estava grávida, e com a gravidez veio um desencanto abrupto com a Repartição e as suas ações.
Deixou de a seduzir a perspectiva de uma vida inteira de fingimento, se é que alguma vez a
havia seduzido. Tal como a perspectiva de o nosso filho nascer num país estrangeiro.
Regressámos a Inglaterra. Talvez quando o bebé nascer ela pense de maneira diferente, dizia eu
com os meus botões. Mas isso era não conhecer Prue. No dia em que Stephanie nasceu, o pai de
Prue morreu subitamente de ataque cardíaco. Com a herança que ele lhe deixou, ela pagou a
pronto uma casa vitoriana em Battersea com um grande jardim e uma macieira. Se tivesse
espetado uma bandeira no chão e dito "Fico aqui" não teria deixado as suas intenções mais
claras. A nossa filha Steff, como depressa começámos a chamar-lhe, nunca havia de ser o tipo
de filhinha embirrenta de pais diplomatas como tínhamos visto muitas, superprotegidas e
transferidas de escola em escola atrás das mães e dos pais. Ocuparia o seu lugar natural
38

na sociedade, frequentaria escolas públicas, nunca escolas privadas ou colégios internos.


E Prue, que faria com o resto da sua vida? Retomá-la-ia no ponto em que a havia deixado. Far-
se-ia advogada de direitos humanos, defensora legal dos oprimidos. Mas a sua decisão não
implicava uma separação súbita. Ela compreendia o meu amor à Rainha, ao país e ao Serviço.
Eu compreendia o seu amor à lei e à justiça humana. Tinha dado tudo ao Serviço, não podia dar
mais. Nunca, desde os primeiros dias do nosso casamento, havia sido o tipo de esposa ansiosa
por que chegasse a Festa de Natal do Chefe, ou os funerais de membros venerados, ou as boas-
vindas aos funcionários mais novos e respectivos dependentes. E eu, por meu lado, nunca tivera
vocação para os convívios com os colegas de Prue, juristas de espírito radical.
Mas nenhum de nós podia ter previsto que, com a Rússia pós-comunista a revelar-se, contra
todas as expectativas, uma ameaça clara e concreta à democracia liberal por esse mundo fora,
os destacamentos no estrangeiro passariam a ser consecutivos e eu transformar-me-ia
inevitavelmente num pai e marido ausente.
Bem, agora estava em casa, regressado do mar, como Dom havia dito amavelmente. Não fora
fácil para nenhum de nós, em especial para Prue, que tinha todas as razões para esperar que eu
estivesse definitivamente de regresso a terra firme e ansioso por uma vida nova naquilo a que
ela se referia, com uma frequência um tanto ou quanto exagerada, como o mundo real. Um
antigo colega meu tinha aberto em Birmingham um clube de actividades ao ar livre para
crianças desfavorecidas e garantia que nunca tinha sido tão feliz na vida. Eu não tinha falado
uma vez em fazer exatamente o mesmo?
39

Durante o resto da semana que antecedeu a nossa partida madrugadora de Stansted fingi, por
razões de harmonia familiar, que estava a meditar sobre se havia de aceitar o lugar muito
desinteressante que a Repartição me havia oferecido ou fazer o corte radical que Prue há muito
preconizava. Ela não se importava de esperar. Steff, por sua vez, declarava-se indiferente a
qualquer das hipóteses. Pela parte que lhe tocava, eu era apenas um burocrata de nível médio
que nunca ia chegar ao topo, fizesse o que fizesse. Amava-me, mas olhava-me de cima.
"Sejamos realistas, amigo, não vão nomear-nos embaixador em Pequim nem vão dar-nos o
título de cavaleiro, pois não?", lembrou-me, bem-humorada, quando o assunto veio à baila ao
jantar. Como de costume, engoli em seco. Porque, enquanto fui diplomata no estrangeiro, ao
menos tinha estatuto. Mas no meu país fazia parte da massa anónima.
Só na segunda noite que passámos nas montanhas, enquanto Steff corria as capelinhas com um
grupo de miúdos italianos que estavam no mesmo hotel que nós e Prue e eu saboreávamos
calmamente um fondue de queijo acompanhado de dois ou três copos de kirsch no Marcefs, fui
acometido da urgência de me abrir com Prue sobre a minha oferta de emprego na Repartição –
mas
41

abrir-me mesmo: não avançar às apalpadelas como tinha pensado fazer, não inventar mais uma
história, mas falar-lhe com toda a franqueza, que era o mínimo que ela merecia depois de tudo o
que a tinha feito passar ao longo dos anos. O seu ar de calma resignação disse-me que já tinha
intuído que eu estava longe de ir fundar o tal clube de actividades de ar livre para crianças
desfavorecidas.
"É um daqueles subpostos decadentes de Londres, que vive à sombra dos louros conquistados
durante os dias gloriosos da Guerra Fria e não produz nada que valha um caracol", digo sem
entusiasmo. "É uma operação de vão de escada, a quilómetros-luz da corrente dominante, e a
minha função é pô-la de pé ou apressar-lhe o enterro", digo sem entusiasmo.
Com Prue, nas poucas oportunidades que temos de falar descontraidamente sobre a Repartição,
nunca sei se estou a nadar contra a maré ou a seu favor, pelo que tendo a fazer um pouco de
cada coisa.
"Pensava que sempre tinhas dito que não querias um cargo de chefia", objecta ela ao de leve.
"Preferias ser segundo, não ter de contar os tostões e andar sempre em cima dos outros."
"Bem, não se trata propriamente de um cargo de chefia, Prue", garanto-lhe cautelosamente.
"Continuarei a ser o número dois."
"Bom, nesse caso está bem, não está?", diz ela, animando-se. "Terás o Bryn para te manter na
linha. Sempre admiraste o Bryn. E eu também" - pondo generosamente de lado os seus
escrúpulos pessoais.
Trocamos sorrisos nostálgicos quando recordamos a nossa breve lua-de-mel como espiões em
Moscovo, tendo o chefe de posto, Bryn, como guia e mentor sempre atento.
"Bem, não fico diretamente dependente do Bryn, Prue. Agora o Bryn é o Czar de Todas as
Rússias. Um posto secundário como o Porto de Abrigo fica um bom bocado abaixo do nível
dele."
42

"Então quem é o felizardo que vai tomar conta de ti?", pergunta ela.
A conversa deixa de ser a revelação completa que eu tinha em mente. Dom é um anátema para
Prue. Conheceu-o quando foi com Steff visitar-me a Budapeste, presenciou uma vez a angústia
da mulher e dos filhos dele e interpretou os sinais.
"Bem, oficialmente fico a reportar à chamada Geral de Londres", explico eu. "Mas é evidente
que na prática, se o assunto for realmente importante, sobe a pirâmide até ao Bryn. É só
enquanto eles precisarem de mim, Prue. Nem mais um dia", acrescento em jeito de consolação,
embora não seja claro para nenhum de nós qual de nós estou a consolar. Ela mete à boca uma
garfada de fondue, uma golada de vinho, um gole de kirsch e, com a força que isso lhe dá,
estende as mãos sobre a mesa e agarra as minhas. Será que adivinha Dom? Será que o intui?"
As percepções quase paranormais de Prue chegam a ser assustadoras.
"Bem, vou dizer-te uma coisa, Nat", diz ela, depois de reflectir. "Acho que estás no pleno
direito de fazer exatamente aquilo que quiseres, pelo tempo que quiseres, e o resto que se lixe.
E eu vou fazer o mesmo. E é a minha vez de pagar a conta, por isso toma. A conta toda, desta
vez. Devo isso à minha descarada integridade", diz, numa piada que nunca perde a graça.
E é neste registo de felicidade, enquanto estamos deitados na cama e eu lhe agradeço a
generosidade e abertura de espírito demonstradas ao longo dos anos e ela responde com coisas
amáveis a meu respeito, e Steff está a dançar pela noite fora, ou pelo menos assim esperamos,
que me ocorre a ideia de que esta é a oportunidade ideal para dizer a verdade à nossa filha sobre
a verdadeira natureza do trabalho do pai, ou a verdade na medida em que a Sede o permite.
Estava na altura de ela saber, pensei, e antes sabê-lo por mim do que por outra pessoa. Podia ter
acrescentado, mas não acrescentei, que desde o meu regresso ao doce
43

lar estava a ficar cada vez mais irritado com o sobranceiro desprezo dela por mim, e com a sua
prática, que já vinha da adolescência, de ora me tolerar como um estorvo doméstico necessário
ora se atirar para o meu colo como se eu fosse um jarreta no ocaso da vida, normalmente para
impressionar com isso o seu mais recente admirador. Outra coisa que me irritava, para ser
cruelmente sincero, era a forma como o merecidíssimo destaque de Prue como advogada de
direitos humanos reforçava em Steff a convicção de que eu tinha ficado para trás.
A mãe-advogada que há em Prue começa por ficar de pé atrás. Exatamente quanto estava eu a
pensar dizer-lhe? Provavelmente havia limites. Quais eram eles, precisamente? Quem os
definia? A Repartição ou eu? E como tencionava responder aos pedidos de esclarecimento, se
os houvesse? Já tinha pensado nisso'? E como podia ter a certeza de que não ia perder a calma?
Ambos sabíamos que as reacções de Steff nunca eram previsíveis, e Steff e eu irritávamo-nos
mutuamente com muita facilidade. Éramos useiros e vezeiros nisso. E por aí adiante.
E as palavras de aviso de Prue eram, como sempre, eminentemente sensatas e bem
fundamentadas. A primeira adolescência de Steff tinha sido uma espécie de pesadelo vivo,
como Prue não precisava de me lembrar. Rapazes, drogas, gritos ao desafio - todos os
problemas normais dos tempos modernos, poder-se-ia dizer, só que Steff tinha-os transformado
numa forma de arte. Enquanto eu gravitava entre postos no estrangeiro, Prue tinha passado
todas as suas horas livres a argumentar com directores de escola e de turma, a participar em
reuniões de pais, a mergulhar em livros e artigos de jornal e a procurar na internet serviços de
aconselhamento sobre a melhor forma de lidar com uma filha irremediavelmente teimosa, e a
culpar-se por ela ser assim.
E eu, pelo meu lado, tinha feito os modestos possíveis por assumir a minha quota-parte, voando
para casa aos fins-de-semana,
44

reunindo-me com psiquiatras e psicólogos e todos os outros psi. O único ponto em que
pareciam estar de acordo era que Steff era superiormente inteligente - o que para nós não era
grande surpresa -, aborrecia-se de morte com os colegas, rejeitava a disciplina como uma
ameaça existencial, achava os professores uns chatos insuportáveis, e aquilo que
verdadeiramente lhe faltava era um ambiente intelectual desafiante que estivesse à altura da sua
estaleca: uma afirmação, no que me dizia respeito, da mais flagrante evidência, mas não para
Prue, que tem bastante mais fé do que eu nas opiniões especializadas.
Pois bem, agora Steff tinha o seu ambiente intelectualmente desafiante. Na Universidade de
Bristol. Matemática e Filosofia. E estava a iniciar o segundo semestre.
Portanto, conta-lhe.
"Não achas que seria melhor seres tu a contar-lhe, querida?", sugiro a Prue, guardiã da
sabedoria familiar, num momento de fraqueza.
"Não, querido. Já que estás decidido a fazê-lo, será muito melhor seres tu. Só tens de te lembrar
de que tu e ela fervem em pouca água e não deves em circunstância alguma rebaixar-te. Se te
rebaixas, ela perde imediatamente as estribeiras."

Olhando em volta à procura de locais possíveis, um pouco como calcularia uma abordagem
arriscada a uma possível fonte, concluí que o sítio melhor e mais natural era seguramente o
pouco utilizado telesqui para a pista de slalom que sobe a vertente norte do Grand Terrain.
Tinha uma barra em T do tipo antigo: duas pessoas subiam lado a lado, sem necessidade de
contacto ocular nem ninguém próximo a ouvir, pinhal à esquerda, declive íngreme até ao vale
do lado direito, uma descida curta e acentuada até ao
45

fundo do telesqui único, portanto não havia receio de perder o contacto, interrupção obrigatória
da conversa ao chegar lá ao alto, quaisquer pedidos de esclarecimento tinham de esperar pela
subida seguinte.
Está uma luminosa manhã de inverno, a neve está perfeita. Prue invocou uma fictícia dor de
barriga e foi às compras. Steff tinha andado nos copos com os seus jovens italianos sabe Deus
até que horas, mas nem por isso parecia pior, e estava contente por ter algum tempo a sós com o
pai. Como é óbvio, estava fora de questão entrar em pormenores sobre o meu passado que
fossem além de explicar que nunca tinha sido um verdadeiro diplomata, só a fingir, e era por
isso que nunca tinha recebido o título de cavaleiro nem um lugar de embaixador em Pequim,
portanto talvez ela pudesse esquecer isso agora que eu tinha voltado, porque estava a afectar-me
gravemente os nervos.
Gostava de lhe ter dito por que razão não lhe havia telefonado no dia em que fez catorze anos,
porque sabia que era uma coisa que ainda a magoava. Gostava de lhe ter explicado que nesse
dia estava sentado no lado estónio da fronteira russa debaixo de neve intensa pedindo a Deus
que o meu agente conseguisse atravessar as linhas por baixo de uma pilha de troncos serrados.
Gostava de lhe ter dado uma ideia da sensação que havia sido para a mãe e para mim vivermos
juntos debaixo de vigilância permanente como membros do posto da Repartição em Moscovo
onde chegavam a ser precisos dez dias para encher ou esvaziar uma caixa de correio secreta,
sabendo que, se pusermos um pé em falso, é provável que o nosso agente morra no inferno.
Mas Prue tinha insistido em que a nossa estada em Moscovo era a parte da sua vida que não
queria revisitar, acrescentando no seu habitual estilo directo:
"E também não me parece que ela precise de saber que fodemos para as câmaras dos russos,
querido" - saboreando a redescoberta da nossa vida sexual.
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Steff e eu agarramo-nos a um telesqui e partimos. Na primeira subida, conversamos sobre o


meu regresso e o pouco que sei sobre o velho país que servi durante metade da minha vida,
portanto tenho muito que aprender, Steff, muita coisa a que me habituar, certamente
compreendes.
"Tipo acabaram-se as queridas bebidas alcoólicas livres de impostos quando vamos visitar-te!",
lamenta-se ela, e partilhamos uma calorosa gargalhada entre pai e filha.
É altura de largar o telesqui e lá vamos nós pela montanha abaixo. Steff à frente. Portanto, um
bom início do nosso tête-à-tête.
"E não é desonra nenhuma servires o teu país seja em que função for, querido" - o conselho de
Prue ressoando no ouvido da minha memória -, "tu e eu podemos ter perspectivas diferentes
sobre patriotismo, mas a Steff acha-o uma maldição para a humanidade, só ultrapassada pela
religião. E controla o humor. Com a Steff, usar o humor em momentos sérios é dar-lhe uma
escapatória."
Olhamos uma segunda vez lá para cima e subimos a encosta. Agora. Nada de piadas, nada de
rebaixamentos, nada de pedidos de desculpa. E nada de sair do guião que escrevi com a Prue.
Olhando firmemente em frente, selecciono um tom de voz sério, mas não solene.
"Steff, há uma coisa a meu respeito que a tua mãe e eu achamos que está na altura de saberes."
"Sou filha ilegítima", diz ela com ar sério.
"Não, mas eu sou espião."
Também ela está a olhar em frente. Não era assim que eu queria começar. Não interessa. Digo o
que tenho a dizer conforme previsto, ela ouve. Sem contacto de olhos, portanto sem stress. Sou
breve e sereno. Portanto é isto, Steff, agora já sabes. Tenho vivido
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uma mentira necessária, e é só isso que estou autorizado a dizer-te. Posso parecer um falhado,
mas a verdade é que tenho um certo estatuto dentro do meu Serviço. Ela não diz nada.
Chegamos ao cimo, desprendemo-nos e encetamos a descida, sempre sem dizer nada. Ela é
mais rápida que eu, ou gosta de pensar que é, por isso deixo-a ir à frente. Voltamos a encontrar-
nos na base do telesqui.
Enquanto esperamos na fila não falamos um com o outro e ela não olha na minha direção. Mas
isso não me desconcerta. Steff vive no seu mundo, e agora sabe que eu também vivo no meu, e
não é nenhum depósito para falhados dos Negócios Estrangeiros. Ela vai à frente e é a primeira
a agarrar o telesqui. Ainda mal iniciámos a subida quando me pergunta, num tom de voz casual,
se alguma vez matei alguém. Eu esboço um sorriso, digo: não, Steff, de maneira nenhuma,
graças a Deus, o que é verdade. Outros o fizeram, ainda que só indirectamente, mas eu não.
Nem sequer por interposta pessoa - ou, como lhe chama a Repartição, autoria negável.
"Então, se não mataste ninguém, qual foi a segunda coisa pior que já fizeste como espião?" - no
mesmo tom de voz casual.
"Bem, Steff, acho que a segunda coisa pior que fiz foi convencer tipos a fazerem coisas que
talvez não tivessem feito se eu não os tivesse persuadido, digamos assim."
"Coisas más?"
"Talvez. Depende do lado da barreira em que se está."
"Dá-me um exemplo."
"Bem, traírem o seu país, para começar."
"E convenceste-os a fazerem isso?"
"Se eles já não se tinham convencido sozinhos, sim."
"Só tipos, ou também convenceste tipas?" - pergunta que, para quem já tenha ouvido Steff falar
de feminismo, não é tão casual como em circunstâncias diferentes poderia parecer.
"Principalmente tipos, Steff. Sim, homens, quase todos homens", garanto-lhe eu.
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Chegámos ao topo. Mais uma vez desprendemo-nos e descemos, Steff disparada à minha frente.
Voltamos a encontrar-nos na base do telesqui. Não há fila. Até agora ela empurrou sempre os
óculos de esqui para a testa enquanto subíamos. Desta vez deixa-os no sítio. São espelhados e
não se vê nada lá para dentro.
"Convencer como, exatamente?", recomeça, mal iniciamos a subida.
"Bem, não estamos a falar de esmaga-dedos, Steff", respondo eu, o que é um erro crasso da
minha parte: Com a Steff, usar o humor em momentos sérios é dar-lhe uma escapatória.
"Então como?", insiste ela, não largando o tema da persuasão.
"Bem, Steff, há muita gente que está disposta a fazer muitas coisas por dinheiro, e muita gente
disposta a fazer coisas por despeito ou egoísmo. Também há quem faça coisas por um ideal e
não aceitaria o nosso dinheiro nem que lho enfiássemos pela goela abaixo."
"E que ideal seria esse exatamente, papá?" - pergunta ela sem tirar os óculos espelhados. É a
primeira vez em semanas que me trata por papá. Noto também que não está a praguejar, o que
em Steff pode ser uma espécie de sinal de alerta vermelho.
"Bem, digamos, apenas a título de exemplo, que a pessoa tem uma visão idealista da Inglaterra
como a mãe de todas as democracias. Ou ama a nossa Rainha com um fervor inexplicável. Pode
não ser uma Inglaterra que para nós continue a existir, se é que alguma vez existiu, mas essas
pessoas acham que sim, e agem em conformidade."
"Tu achas que existe?"
"Com reservas."
"Sérias reservas?"
"Bom, quem é que não as tem, pelo amor de Deus?", respondo eu, espicaçado pela sugestão de
que de algum modo não reparei que o país está em queda livre. "Um governo conservador de
gente
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de décima categoria. Um ministro dos Negócios Estrangeiros ignorante como um porco, de
quem supostamente dependo. Os trabalhistas não são melhores. A maldita loucura do Brexit" -
calo-me. Eu também tenho sentimentos. O meu silêncio indignado que diga o resto.
"Então tens sérias reservas?", insiste ela no seu tom mais cândido. "Muito sérias mesmo. É
isso?"
Apercebi-me demasiado tarde de que me tinha exposto totalmente, mas talvez isso fosse o que
queria desde o princípio: dar-lhe a vitória, reconhecer que não estou à altura dos seus brilhantes
professores, e então podemos voltar a ser quem éramos.
"Portanto, se bem percebi", recomeça ela, quando iniciamos a subida seguinte, "em nome de um
país sobre o qual tens sérias reservas, mesmo muito sérias, convences pessoas de outras
nacionalidades a traírem os seus países." E, como quem completa o raciocínio: "E a razão é que
eles não têm as mesmas reservas que tu acerca do teu país, mas têm reservas acerca do seu
próprio país. É isso?"
Nesta altura eu solto uma exclamação jovial que aceita a derrota honrosa, ao mesmo tempo que
invoca atenuantes:
"Mas não se trata de cordeiros inocentes, Steff! São voluntários. Pelo menos a maior parte. E
nós tomamos conta deles. Tratamos do seu bem-estar. Se é dinheiro que procuram, damos-lhes
uma pazada dele. Se é Deus que os move, fazemos de Deus para eles. É o que for preciso, Steff.
Nós somos amigos deles. Eles confiam em nós. Nós satisfazemos as necessidades deles. Eles
satisfazem as nossas. É assim que o mundo funciona."
Mas ela não está interessada no funcionamento do mundo. Está interessada no meu
funcionamento, como a subida seguinte deixa bem claro.
"Quando estavas a dizer a outras pessoas quem elas deviam ser, alguma vez pensaste em quem
tu eras?"
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"Eu só sabia que estava do lado certo, Steff", respondo eu, enquanto a minha bílis começa a
subir, apesar das melhores injunções de Prue.
"E que lado é esse?"
"O meu Serviço. O meu país. E teu também, aliás."
E na última subida de todas, depois de eu me ter acalmado:
"Pai?"
"Diz."
"Tiveste casos enquanto estavas no estrangeiro?"
"Casos?"
"Casos amorosos."
"A tua mãe disse que tive?"
"Não."
"Então por que raio metes o nariz onde não és chamada?", disparo eu antes de conseguir conter-
me.
"Porque não sou a porra da minha mãe", berra ela com igual força.
É neste registo triste que nos desprendemos do telesqui pela última vez e fazemos separados a
descida até à aldeia. Quando chega a noite, ela recusa todas as propostas de ir pintar a manta
com os compinchas italianos, insistindo em que precisa de se ir deitar. Coisa que realmente faz,
depois de beber uma garrafa de borgonha tinto.
E eu, depois de um intervalo razoável, relato a nossa conversa a Prue em traços gerais, omitindo
para bem de nós dois a descabida pergunta final de Steff. Vou mesmo ao ponto de tentar
convencer-me, e convencer Prue, de que a minha conversinha com Steff foi missão cumprida,
mas Prue conhece-me bem de mais. Na manhã seguinte, no avião de regresso a Londres, Steff
senta-se do outro lado da coxia. No dia seguinte, véspera do seu regresso a Bristol, ela e Prue
têm uma discussão horrível. Conclui-se que a fúria de Steff não era dirigida ao pai por ser
espião, ou mesmo por convencer
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outros tipos a serem espiões, homens ou mulheres, mas sim à mãe paciente por guardar da
própria filha um segredo tão monumental, violando assim a mais secreta confiança entre
mulheres. E quando Prue lembra, delicadamente, que não era a ela que competia divulgar o
segredo, mas sim a mim, e provavelmente não a mim, mas à Repartição, Steff sai disparada de
casa, vai para casa do namorado e viaja sozinha para Bristol, chegando com dois dias de atraso
para o início do segundo semestre depois de ter mandado o namorado buscar a sua bagagem.

Ed desempenha algum papel de artista convidado nesta telenovela familiar? Claro que não.
Nem podia. Nunca saiu da ilha. Houve, porém, um momento - equivocado, mas ainda assim
memorável - em que um jovem caminhou em direção a nós, Prue e eu, enquanto nos
deliciávamos com um prato de croútes au fromage e um jarro de vinho branco da casa na
cabana de esqui Trois Sommets, de onde se dominava a estância inteira, e podia ser um sósia de
Ed. Em carne e osso. Não uma efígie, mas o próprio. Steff estava a dormir. Eu e Prue tínhamos
ido esquiar cedo e estávamos a planear descer calmamente a encosta e cama. E eis que chega o
sósia de Ed com um chapéu de pano na cabeça - a mesma altura, o mesmo ar de quem está só,
aflito e vagamente perdido, sacudindo energicamente a neve das botas na soleira da porta
enquanto barrava a entrada a toda a gente, depois tirando os óculos de esqui e olhando em volta
com os olhos franzidos, como quem não sabe onde tem os óculos de ver. Eu cheguei mesmo a
esboçar um aceno de braço que logo interrompi.
Mas Prue, rápida como sempre, apercebeu-se do gesto. E quando, por razões que ainda me
escapam, eu hesitei, exigiu uma explicação completa e franca. Por isso dei-lhe uma versão
resumida: havia um
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rapaz no Athleticus que não me largou enquanto eu não aceitei jogar com ele. Mas Prue queria
saber mais. O que é que me tinha impressionado tão profundamente nele, um conhecimento tão
recente? Por que razão tinha reagido tão espontaneamente ao sósia dele, coisa que não fazia
nada o meu estilo?
Ao que eu terei desbobinado uma série de respostas que, tratando-se de Prue, ela recorda
melhor do que eu: um excêntrico, ter-lhe ei dito, um tipo de certa coragem; e como, quando um
grupo de arruaceiros que estavam no bar tinha tentado meter-se com ele, ele se havia limitado a
insistir comigo até obter o que queria e, dizendo-lhes implicitamente que se fossem foder, havia
saído porta fora.

Quem gosta de montanhas como eu, deixá-las para trás será sempre deprimente, mas ver um
degradado mamarracho de três andares em tijolo numa ruela de Camden às nove da manhã de
uma segunda-feira empapada em chuva, quando nem sequer fazemos a mínima ideia daquilo
que nos espera lá dentro, ainda é pior.
Como foi que um subposto veio parar a este sítio era por si só um mistério. Outro era como
tinha adquirido a alcunha irónica de Porto de Abrigo. Havia uma teoria segundo a qual o
edifício tinha sido utilizado como casa segura para espiões alemães capturados na guerra de
1939-1945; outra dizia que um antigo chefe tinha mantido aqui a amante; e outra ainda que a
Sede, numa das suas infinitas guinadas políticas, tinha decidido que a melhor forma de garantir
a segurança era espalhar os seus subpostos por toda a cidade de Londres, e o Porto de Abrigo,
pela sua total insignificância, tinha ficado esquecido quando a dita política foi deitada para o
lixo.
53

Subo os três degraus escalavrados. A porta da rua com a tinta a descascar abriu-se antes que eu
tivesse oportunidade de inserir a minha decrépita chave Yale. Na minha frente tenho o outrora
imponente Giles Wackford, gordo e de olhos lacrimejantes, mas nos seus tempos áureos um dos
mais elegantes controladores de agentes dos quadros da Repartição, e apenas três anos mais
velho que eu.
"Meu querido colega", declara ele sussurradamente por entre os vapores de uísque da noite
passada. "Meticuloso ao minuto, como sempre! Os meus mais calorosos salaams, senhor. Que
honra! Não consigo imaginar um sucessor melhor."
Depois apresenta-me à sua equipa, que está dispersa em postos de trabalho de dois homens
cada, para cima e para baixo de umas estreitas escadas de madeira.
Igor, lituano deprimido de sessenta e cinco anos de idade, antigo controlador da melhor rede de
agentes nos Balcãs do tempo da Guerra Fria que a Repartição alguma vez teve, agora reduzido
a controlar uma equipa de inofensivos funcionários de limpeza, guardas e dactilógrafos ao
serviço de embaixadas estrangeiras pouco cuidadosas.
Segue-se Marika, alegada amante estoniana de Igor, viúva de um agente da Repartição
aposentado que morreu em Sampetersburgo quando ainda era Leninegrado.
Depois Denise, escocesa gorda e enérgica, falante de russo, filha de pais de ascendência
parcialmente norueguesa.
E por fim o pequeno Ilya, um rapaz anglo-finlandês de olhar inteligente, que falava russo e
cinco anos antes tinha sido recrutado por mim em Helsínquia como agente duplo. Tinha
continuado a trabalhar para o meu sucessor com a promessa de recolocação no Reino Unido. A
princípio, a Sede nem se aproximava dele. Só depois dos meus repetidos requerimentos a Bryn
Jordan acederam a aceitá-lo como membro da camada mais rasteira da vida secreta: assistente
administrativo júnior com acesso a informação
54

de Grau C. Com gritos de alegria finlandesa, aperta-me num abraço à maneira russa.
E num último andar condenado à escuridão eterna, o meu heterogéneo pessoal de apoio
administrativo com experiência bicultural e formação operacional básica.
Só depois de termos aparentemente concluído a visita guiada, e quando eu começo a perguntar-
me se a minha preciosa número dois existe mesmo, é que Giles tamborila cerimoniosamente
numa porta de vidro martelado que existe no seu gabinete bafiento e, naquilo que suspeito tenha
sido em tempos um quarto de criada, tenho a minha primeira visão da figura jovem,
desassombrada e imponente de Florence, falante fluente de russo, aprendiz de segundo ano, o
mais recente recrutamento do subposto Porto de Abrigo e, segundo Dom, a sua grande
esperança.
"Então porque é que não foi diretamente para o departamento da Rússia?", tinha-lhe eu
perguntado.
"Porque achámos que estava um bocadinho crua, Nat", respondera Dom sobranceiramente na
sua linguagem emprestada, dando a entender que tinha estado no centro da decisão. "Talentosa,
sim, mas achámos melhor dar-lhe mais um ano para assentar."
Talentosa, sim, mas precisa de assentar. Eu tinha pedido a Moira que me deixasse dar uma vista
de olhos ao ficheiro pessoal de Florence. Como seria de esperar, Dom tinha roubado dali a
melhor frase.

De repente, tudo o que o Porto de Abrigo decide fazer é iniciativa de Florence. Ou pelo menos é
o que a memória me diz. Pode ter havido outros projetos meritórios, mas, desde o momento em
que me caíram os olhos no projecto da Operação Botão de Rosa, este passou a ser o único
espetáculo em cena na nossa pequena cidade, e Florence a sua única estrela.
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Por iniciativa própria, tinha recrutado a amante desiludida de um oligarca ucraniano baseado
em Londres, nome de código Orson, que tinha ligações amplamente documentadas ao Centro
de Moscovo e a elementos pró-Putin no governo ucraniano.
O seu ambicioso plano, exuberantemente promovido, previa que uma equipa de intrusão furtiva
da Sede entrasse no duplex de 75 milhões de libras que Orson possuía em Park Lane, o
enchesse de microfones até às vigas e fizesse ajustamentos estruturais na bateria de
computadores instalada atrás de uma porta de aço a meio da escadaria de mármore que
conduzia ao salão panorâmico.
No seu desenho atual, as hipóteses de a Botão de Rosa obter luz verde da Direção de Operações
eram, do meu ponto de vista, iguais a zero. As invasões ilegais de propriedade eram um campo
altamente competitivo. As equipas de intrusão furtiva eram muito solicitadas. A Botão de Rosa,
no seu estado atual, seria apenas mais uma voz que ninguém ouvia num mercado ruidoso. No
entanto, quanto mais me embrenhava na apresentação de Florence, mais convencido ficava de
que, com uma revisão impiedosa e uma boa escolha da oportunidade, a Botão de Rosa podia
fornecer informações de alta qualidade e utilidade. E em Florence, como Giles fez questão de
me informar enquanto bebíamos uma nocturna garrafa de uísque Talisker na cozinha das
traseiras do Porto de Abrigo, a Botão de Rosa tinha encontrado uma defensora implacável e
obsessiva:
"A rapariga fez todo o trabalho de sapa sozinha, todo o trabalho burocrático. Desde que
desenterrou os ficheiros de Orson, vive e sonha com o sacana. Eu perguntava-lhe: tem alguma
coisa pessoal contra o homem? Nem sequer se ria. Dizia que ele era uma praga para a
humanidade e tinha de ser erradicado."
Longa golada de uísque.
"A rapariga não se limita a aproximar-se de Astra e fazer dela uma amiga para a vida" - sendo
Astra o nome de código da amante
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desencantada de Orson -, "consegue a colaboração do porteiro da noite do edifício em causa.


Conta-lhe a história de que está a trabalhar em segredo para o Dailly Mail numa peça sobre o
estilo de vida dos oligarcas de Londres. O porteiro da noite apaixona-se por ela, acredita em
tudo o que ela diz. Sempre que quer ir dar uma vista de olhos pela jaula do leão, cinco mil libras
do saco azul do Dailly Mail e é só pedir por boca. Imatura, uma ova. Tem tomates de elefante."

Organizo um almoço tranquilo com Percy Price, todo-poderoso chefe da Vigilância, um império
em si mesmo. Manda o protocolo que convide também Dom. Rapidamente se torna evidente
que Percy e Dom não são feitos um para o outro, enquanto Percy e eu temos um longo passado
em conjunto. É um antigo polícia macilento e taciturno na casa dos cinquenta anos. Há dez
anos, com a ajuda de uma das suas equipas de intrusão furtiva e de um agente que eu
controlava, roubámos o protótipo de um míssil do stand russo numa feira internacional de
armamento.
"Os meus rapazes e raparigas estão sempre a esbarrar neste Orson", lamenta-se ele
pensativamente. "Sempre que apanhamos um multimilionário escorregadio com um dedo na
tarte russa, salta o Orson. Não somos operacionais, somos vigias. Vigiamos aquilo que nos
mandam vigiar. Mas fiquei muito contente por alguém ter finalmente decidido ir atrás dele,
porque ele e os da laia dele já me andam a chatear há muito tempo."
Percy vai ver se pode dar-nos uma ajuda. Mas será uma situação delicada, Nat. Se a Direção de
Operações decidir à última hora que há outra coisa mais promissora, nem Percy nem ninguém
podem fazer mais nada.
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"E é claro que passa tudo por mim, Percy", diz Dom, e nós os dois dizemos sim, Dom, é claro.
Passados três dias, Percy liga-me pelo telemóvel de serviço. Parece que se aproxima uma certa
acalmia, Nat. Talvez dê para arriscar. Obrigado, Percy, digo eu, vou passar a informação ao
Dom da melhor maneira, ou seja, o mais tarde possível, ou nunca.
O cubículo de Florence é mesmo ao lado do meu gabinete. Daqui em diante, informo-a, vai
passar o tempo que for preciso com a amante desencantada de Orson, nome de código Astra.
Vai levá-la a dar passeios de carro pelo campo, acompanhá-la às compras e fazer almoços de
raparigas no Fortnum, o restaurante preferido de Astra. Além disso, vai intensificar o cerco ao
porteiro da noite do edifício em causa. Passando por cima de Dom, autorizo um rebuçado de
quinhentas libras para esse efeito. Sob a minha orientação, Florence vai também redigir um
pedido formal para um primeiro reconhecimento secreto do interior do duplex de Orson, a ser
levado a cabo por uma equipa de intrusão furtiva da Direção de Operações. Ao envolver a
Direção nesta fase inicial, estamos a sinalizar a seriedade do nosso propósito.

O meu instinto inicial foi usar Florence com cautela: uma daquelas raparigas de classe alta que
foram criadas com póneis e nunca se sabe o que lhes vai na cabeça. Steff odiá-la-ia à primeira
vista e Prue ficaria preocupada. Tem uns olhos grandes, castanhos e sérios. Para disfarçar as
formas no local de trabalho prefere saias largueironas de lã, sapatos rasos, maquilhagem
nenhuma. Segundo a sua ficha, vive com os pais em Pimlico e não tem companhia oficial. A sua
orientação sexual é, por sua vontade, não declarada. Naquilo que eu interpreto como um sinal
de aversão a aproximações, exibe um masculino anel de brasão em ouro no
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dedo anelar. Tem uma passada larga e ligeiramente saltitante. O mesmo salto é replicado na voz,
que é puro Colégio Feminino de Cheltenham intercalado com expletivos de trolha. A minha
primeira experiência desta associação improvável acontece durante uma discussão da Operação
Botão de Rosa. Somos cinco: Dom, Percy Price e eu, um pretensioso assaltante da Repartição
chamado Eric e Florence, estagiária. A questão do momento é se um corte de corrente pode ser
útil como manobra de diversão enquanto os rapazes e raparigas de Eric levam a cabo o seu
reconhecimento no interior do duplex de Orson. Florence, que até ao momento se manteve
quieta e calada, ganha vida:
"Mas, Eric", objecta. "A que é que pensamos que os computadores do Orson trabalham? A
putas de pilhas de lanterna?"
Um problema urgente que me espera é extirpar o tom de indignação moral que permeia o
rascunho que ela fez para o pedido à Direção de Operações. Posso não ser o rei sem coroa da
expressão escrita da Repartição - os meus relatórios sugerem o contrário - mas sei o que põe os
cabelos em pé aos nossos queridos planeadores. Quando lhe digo isto em inglês corrente,
Florence enxofra-se. Estou a falar com Steff ou com a minha número dois?
"Oh, Cristo", suspira ela. "Está aqui a dizer-me que tem um problema com os advérbios."
"Não estou a dizer-lhe nada disso. Estou a dizer-lhe que a Direção de Operações e o
departamento da Rússia estão-se nas tintas, como você diria, para saber se Orson é o homem
mais desclassificado do planeta ou um modelo de virtudes. Por isso apagamos todas as
referências a causas justas e quantias obscenas de dinheiro roubadas aos oprimidos deste
mundo. Concentramo-nos no propósito, no dividendo, no nível de risco e na negabilidade e
certificamo-nos de que o símbolo do Porto de Abrigo vai como marca de água em todas as
páginas e não é misteriosamente substituído por ninguém."
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"Como o Dom, por exemplo?"


"Como qualquer pessoa."
Ela esgueira-se para o seu cubículo e bate com a porta. Não admira que Giles se tenha
apaixonado por ela. Não tem nenhuma filha. Eu telefono a Percy, digo-lhe que o esboço de
proposta para a Operação Botão de Rosa vai a caminho. Quando se esgotam todas as desculpas
para o atraso, faço a Dom um relato completo e franco dos avanços que demos até ao momento
- isto é, o suficiente para o manter calmo. Ao fim do dia de segunda-feira, com um perdoável
sentimento de satisfação pessoal, desejo boa noite ao Porto de Abrigo e ponho-me a caminho do
Athleticus e do tão adiado encontro de badmínton com Edward Stanley Shannon, investigador.
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De acordo com a minha agenda de compromissos, que nunca na vida conteve informação que
eu não estivesse preparado para deixar num autocarro ou em casa, Ed e eu jogámos ao todo
quinze partidas de badmínton no Athleticus, muitas delas, mas não todas, à segunda-feira, e
nalguns casos duas vezes por semana, catorze antes da Queda (1), uma depois dela. Uso a
palavra Queda arbitrariamente. Não tem nada que ver com o outono, nem com Adão e Eva. Não
sei bem se a palavra se aplica ao caso, mas procurei em vão outra melhor.
Se me aproximo do Athleticus pelo lado norte, é com prazer que percorro a última etapa com
uma caminhada enérgica pelo Parque Battersea. Se venho diretamente de casa, só tenho de
percorrer menos de quinhentos metros a pé. O Athleticus tem sido o meu improvável clube e
local de refúgio ao longo de uma grande fatia da minha vida adulta. Prue diz que é o meu
parque de bebé. Quando estava no estrangeiro mantinha as quotas em dia e usava os períodos
de licença para continuar no torneio escada. Sempre que a Repartição me chamava para uma
reunião operacional, arranjava tempo para jogar uma partida. No Athleticus

(1) No original, "Fall", que tem duas acepções principais: "Outono" e "Queda". (N. do T.)
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toda a gente me conhece por Nat, ninguém quer saber o que eu ou qualquer outra pessoa
fazemos na vida e ninguém pergunta. Os chineses e outros asiáticos são em maior número do
que os caucasianos, numa proporção de três para um. Steff recusa-se a jogar desde que
aprendeu a dizer "não", mas houve uma época em que eu a levava comigo para comer um
gelado e tomar um banho na piscina. Prue tem bom feitio e acompanha-me, mas contrariada, e
ultimamente, com o seu trabalho pro bono e os processos colectivos em que o seu escritório se
envolve, nem contrariada o faz.
Temos um barman sem idade e sem sono que é de Shantou e se chama Fred. Temos uma
modalidade de sócio jovem que é irremediavelmente antieconómica, mas só até aos vinte e dois
anos. A partir daí são duzentas e cinquenta mocas por ano e uma jóia muito substancial. E já nos
teríamos visto obrigados a fechar o estamine ou subir os preços se um sócio chinês chamado
Arthur não tivesse feito um inesperado donativo anónimo de cem mil euros, o que tem muito
que se lhe diga. Como secretário honorário do clube, eu era uma das poucas pessoas autorizadas
a agradecer a Arthur pela sua generosidade. Um dia disseram-me que ele estava no bar. Era da
minha idade, mas já tinha o cabelo branco, vestia-se elegantemente de fato e gravata e olhava
para longe. Não estava a beber nada.
"Arthur", digo eu, sentando-me ao seu lado, "não sabemos como agradecer-lhe."
Fico à espera de que ele rode a cabeça, mas o seu olhar continua fixado na meia distância.
"É pelo meu filho", responde ele ao fim de um grande bocado.
"Então o seu filho está cá hoje?", pergunto eu, observando um grupo de crianças chinesas em
volta da piscina.
"Já não", responde ele, sempre sem rodar a cabeça.
Já não? O que é que aquilo queria dizer?
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Monto uma pesquisa discreta. Os nomes chineses são complicados. Havia um sócio jovem que
parecia ter o mesmo apelido que o nosso benfeitor, mas devia seis meses de quotas e tinha
ignorado a habitual rajada de lembretes. Foi Alice quem fez a ligação. Kim, lembrou-se. Aquele
miúdo enfezado e ansioso. Amoroso, dizia que tinha dezasseis anos, mas parecia ter sessenta.
Acompanhava-o uma senhora chinesa, muito delicada, podia ser a mãe, ou talvez enfermeira.
Comprou um curso de iniciação de seis lições pago à cabeça, mas aquele rapaz não conseguia
acertar no volante, mesmo que este viesse muito devagar. O treinador sugeriu-lhe então que
experimentasse em casa, só a coordenação entre a mão e os olhos, volante em cima da raquete,
e voltasse daí a umas semanas. Aquele rapaz não voltou. A enfermeira também não. Pensámos
que tinha desistido ou voltado para a China. Oh, meu Deus, não me digam uma coisa dessas.
Bem, Deus abençoe o pobre Kim.
Não sei bem por que razão conto este episódio em tão grande pormenor, mas talvez seja porque
adoro aquele sítio e o que ele tem representado para mim ao longo dos anos, e é o sítio onde
joguei as minhas quinze partidas com Ed e gostei delas todas, menos da última.

O nosso primeiro encontro de segunda-feira não começou propriamente da maneira feliz que o
relato sugere. Eu sou um homem pontual - patologicamente pontual, na opinião de Steff. Para a
nossa primeira partida, marcada com três semanas completas de antecedência, ele chegou
esbaforido, menos de três minutos antes da hora, de fato amarrotado e molas de bicicleta nos
tornozelos. Trazia uma pasta em imitação de pele e vinha de péssimo humor.
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Convém lembrar que eu só o tinha visto uma vez em traje de badmínton. Convém lembrar
também que ele era uns bons vinte anos mais novo que eu, que me tinha desafiado sob o olhar
dos outros sócios, e que eu tinha aceitado o desafio principalmente para lhe salvar a face.
Convém lembrar ainda que eu não só era o campeão do clube como tinha passado a manhã em
reuniões consecutivas de passagem de testemunho com dois dos menos promissores e
produtivos agentes de Giles, por acaso duas mulheres, e ambas contrariadas com a mudança de
controlador por razões óbvias, a hora de almoço a acalmar os sentimentos de Prue, que tinha
recebido um desagradável email de Steff a exigir que o seu telemóvel, que havia deixado na
mesa da entrada, fosse enviado por correio registado para um endereço desconhecido ao
cuidado de Juno - quem diabo é Juno? - e a tarde a eliminar mais informações inúteis sobre o
deplorável estilo de vida de Orson, depois de já ter dado instruções por duas vezes a Florence
para que as retirasse.
Convém lembrar, finalmente, que quando Ed irrompe pelo vestiário, numa boa imitação de um
homem em fuga, já eu estou há dez minutos equipado e preocupado, a olhar para o relógio.
Enquanto começa a despir-se resmunga de forma pouco perceptível contra um "cabrão de um
motorista de pesados que odeia ciclistas" que lhe fez coisas hostis nos semáforos, e contra os
patrões que "me obrigam a ficar até tarde sem razão nenhuma", ao que eu não posso fazer mais
do que responder "tenho pena de si" e sentar-me no banco a observar o resto dos progressos
caóticos dele em frente ao espelho.
Se eu sou um homem menos descontraído que aquele que Ed conheceu há duas semanas,
também ele tem poucas parecenças com o rapaz tímido que precisou da ajuda de Alice para me
abordar. Liberto do casaco, dobra-se pela cintura sem flectir os joelhos, abre violentamente o
cacifo, tira de lá um tubo de volantes e duas
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raquetes e a seguir uma trouxa em que tinha a camisa, os calções, as meias e as sapatilhas, tudo
num rolo.
Pés grandes, reparo. Talvez seja lento, e enquanto tenho este pensamento ele atira a pasta
castanha para dentro do cacifo e fecha-o a chave. Porquê? O homem está a meio de vestir o
equipamento de badmínton. Daqui a trinta segundos estará a guardar a roupa que trazia vestida
no mesmíssimo cacifo ao mesmo ritmo frenético a que está agora a despi-la. Então para quê
trancá-lo agora para o destrancar daqui a meio minuto? Tem medo de que lhe roubem a pasta
enquanto está de costas?
Não faço um esforço consciente para pensar desta forma. É a minha déformation
professionnelle. é o que me ensinaram a fazer e tenho feito durante toda a minha vida activa,
quer o objecto do meu interesse seja Prue a maquilhar-se diante do toucador em Battersea ou o
casal de meia-idade no canto de um café que está ali sentado há demasiado tempo, que conversa
com demasiada compenetração e nunca olha na minha direção.
Ele despiu a camisa pela cabeça e está a exibir o torso nu. Bom físico, um pouco ossudo, sem
tatuagens, nem cicatrizes, nem qualquer outro sinal distintivo e, visto do sítio onde estou
sentado, muito, muito alto. Tira os óculos, abre o cacifo, atira-os lá para dentro e volta a fechá-
lo à chave. Veste uma T-shirt, depois os calções compridos que trazia no dia em que me
abordou, e umas meias curtas, que já foram brancas.
Os joelhos dele estão agora à altura da minha cara. Sem óculos, o rosto é incaracterístico e
parece ainda mais novo do que quando se me dirigiu pela primeira vez. Vinte e cinco anos no
máximo. Inclina-se sobre mim, olha fixamente para o espelho. Está a pôr as lentes de contacto.
Pestaneja para focar os olhos. Reparo também que, em todas estas contorções, ainda não dobrou
os joelhos uma única vez. Tudo parte da cintura, quer esteja a apertar os atacadores das
sapatilhas ou a esticar-se para pôr as lentes de
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contacto. Daí, apesar da altura, possíveis problemas com jogadas muito baixas e largas. Abre
mais uma vez o cacifo, enfia lá o fato, a camisa e os sapatos, bate a porta com força, roda a
chave, tira-a da fechadura, olha para ela na palma da mão, encolhe os ombros, tira a fita que a
chave tem agarrada, pisa energicamente o pedal do caixote do lixo que tem aos pés, deita fora a
fita e mete a chave no bolso direito dos calções compridos.
"Estamos prontos?", pergunta, como se fosse eu, e não ele, quem nos estava a empatar.
Dirigimo-nos ao campo, Ed à minha frente fazendo girar a raquete e ainda a resmungar para
dentro, por causa do camionista que odeia ciclistas, dos patrões estúpidos ou de qualquer outra
irritação ainda por revelar. Conhece o caminho. Tem treinado aqui às escondidas,
provavelmente desde que me desafiou. O meu trabalho obriga-me a relacionar-me com pessoas
com quem normalmente não faria amizade, mas este rapaz está a abusar da minha tolerância e o
campo de badmínton é o lugar certo para o meter na ordem.

Disputámos sete jogos renhidos nessa primeira noite. Campeonatos incluídos, não me lembro
de me ter sentido mais pressionado ou mais determinado a pôr um jovem adversário no seu
lugar. Ganhei quatro, mas foi por uma unha negra. Ele era bom mas, para minha felicidade, era
inconsistente, o que me deu a vantagem. Apesar da sua juventude, calculei que já fosse tão bom
como alguma vez seria, considerando que tinha mais quinze ou vinte centímetros de alcance de
braço do que eu. E uma concentração variável, graças a Deus. Ao longo de uma dúzia de pontos
atacava, subia à rede, cruzava, bombeava, recuava e forçava o corpo nos ângulos mais
improváveis, e eu fazia os possíveis por responder.
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Seguiam-se três ou quatro jogadas em que ele desligava e era como se nem sequer lhe
interessasse ganhar. Depois voltava à luta, mas nessa altura já era tarde.
E da primeira à última jogada não trocávamos uma única palavra, exceptuando a contagem
rigorosa dos pontos que ele fazia em voz alta, uma responsabilidade que se arrogou desde o
primeiro, e um ou outro merda, quando fazia asneira. Devíamos ter uma dúzia de espectadores
quando chegámos ao jogo decisivo e no fim ouviu-se mesmo um curto aplauso. E sim, ele era
pesado de pés. E sim, as suas jogadas de ângulos baixos eram frenéticas, um pouco no limite,
apesar de ser mais alto.
Mas, depois de tudo isso, tive de reconhecer que ele jogou e perdeu com inesperada elegância,
sem contestar uma única decisão de linha nem exigir repetição, o que estava longe de acontecer
sempre no Athleticus ou em qualquer outro clube. E mal a partida acabou fez um sorriso largo,
o primeiro que eu lhe via desde o dia em que me abordou - triste, mas com autêntico
desportivismo, melhor ainda por ser inesperado.
"Foi um jogo excelente, Nat, excelente, o melhor de sempre, Yeah", garante-me com
sinceridade, agarrando-me a mão e sacudindo-a para cima e para baixo. "Tem tempo para uma
snoot (1) rápida? Pago eu."
Snoot? Estive demasiado tempo fora da Inglaterra. Ou será snorfí Passa-me pela cabeça o
pensamento absurdo de que ele está a oferecer-me cocaína da sua pasta castanha. Depois
percebo que está simplesmente a sugerir-me que bebamos civilizadamente um copo no bar e
digo que lamento, mas hoje não posso. Tenho um compromisso, o que era verdade: tinha outra
passagem de testemunho a horas tardias, desta vez com a única agente de Giles que restava,
nome de código Luz das Estrelas, uma mulher sem graça

(1) "Snoot" pode significar, entre outras coisas, "tomar uma bebida" ou "inalar cocaína". (N. do
T.)
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nenhuma e a meu ver claramente indigna de confiança, mas Giles está convencido de que sabe
lidar com ela.
"E que me diz a uma partida de desforra para a semana?", propõe Ed com a perseverança que
começo a aprender a esperar dele. "Se um de nós tiver de cancelar, não há problema. Ainda
assim vou marcar campo. Está de acordo?"
Ao que eu respondo, e mais uma vez é verdade, que estou um pouco apertado de tempo, por
isso terei de confirmar mais tarde. De qualquer maneira marco eu o campo, é a minha vez.
Segue-se outro daqueles seus apertos de mão sacudidos. A última vez que o vejo depois de nos
separarmos está ele dobrado, com as molas postas, a abrir o cadeado da bicicleta antediluviana.
Alguém está a dizer-lhe que está a bloquear o passeio e ele está a mandá-lo para o caralho.
Aconteceu que tive de lhe enviar uma mensagem a cancelar a segunda-feira seguinte por causa
da Botão de Rosa que, graças à relutante aquiescência de Florence em moderar a indignação
moral e a uma discreta acção de lóbi da minha parte, começava a ter pernas para andar. Ele
propôs quarta-feira como alternativa, mas eu tive de lhe dizer que estava ocupado toda a
semana. E quando chegou a segunda-feira seguinte continuávamos em dúvida e eu, com as
devidas desculpas, tive de cancelar mais uma vez, e o resto da semana não oferecia perspectivas
melhores. Sentia-me mal por andar a empatá-lo, e ficava aliviado quando ele respondia com um
delicado "não há problema". Na terceira noite de sexta-feira eu ainda não tinha a certeza de
poder ir jogar na segunda ou noutro dia qualquer, o que teria significado três cancelamentos
consecutivos.
Já passa da hora de fechar. O turno de serviço do Porto de Abrigo já está a chegar para o fim-
de-semana. O pequeno Ilya ofereceu-se mais uma vez como voluntário. Precisa do dinheiro. O
meu telefone da Repartição toca. É Dom. Estou meio inclinado a deixá-lo tocar, mas atendo.
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"Tenho notícias muito boas para si, Nat", anuncia ele, no seu tom de voz de intervenção
pública. "Uma certa dama chamada Botão de Rosa caiu nas boas graças dos nossos senhores do
departamento da Rússia, que fizeram seguir a nossa proposta para a Direção de Operações para
decisão final e acção. Desejo-lhe um bom fim-de-semana. Bem o merece, se me permite que lhe
diga."
"A nossa proposta, Dom? Ou apenas a proposta da Geral de Londres?"
"A nossa proposta conjunta, Nat, conforme acordado entre nós. O Porto de Abrigo e a Geral de
Londres avançando lado a lado."
"E quem é exatamente o autor acreditado?"
"A sua intrépida número dois é designada autora da operação apesar de ter o seu estatuto de
estagiária, e nessa qualidade fará a sua apresentação formal de acordo com a prática tradicional
na sala de Operações na próxima sexta-feira às dez e meia da manhã em ponto. Está bem assim
para si?"
Só quando receber isso por escrito, Dom. Telefono a Viv, que está a revelar-se uma aliada.
Envia-me por email a confirmação formal. Dom e eu estamos em pé de igualdade. Florence é a
autora reconhecida. Só então me sinto livre de enviar mensagem a Ed. Peço desculpa por
confirmar tão tarde, etc, mas por acaso ainda está disponível para segunda-feira?
Ed está.

Desta vez não vem de fato cinzento transpirado nem com molas de bicicleta, nem a refilar
contra motoristas de pesados nem contra patrões estúpidos, nem traz a pasta em imitação de
pele. Apenas jeans, sapatos de vela, camisa de colarinho aberto e um sorriso largo e feliz
debaixo do capacete de ciclismo que está a desapertar. E devo confessar que, depois de três
semanas compactas
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de trabalho duro, noite e dia, aquele sorriso e o aperto de mão sacudido são um tónico.
"Primeiro acobardou-se, depois ganhou coragem, não?"
"Até tremi de medo", concordo eu animadamente, enquanto avançamos para o vestiário em
passo de infantaria ligeira.
Foi mais uma partida tensa. Mas desta vez sem espectadores, portanto só tensão boa. Como na
anterior fomos taco a taco até às últimas jogadas, e para minha vergonha - mas também para
meu alívio, porque ninguém quer um adversário a quem ganhe sempre - ele derrotou-me sem
apelo nem agravo, e desta vez até fui mais rápido que ele a sugerir que fôssemos até ao bar
beber o tal copo. à segunda-feira os sócios são poucos, mas, fosse por impulso ou por hábito,
dirigi-me para o tradicional canto de observação, uma mesa para dois, com tampo de folha,
afastada da piscina e encostada à parede com ângulo de visão para a porta.
E a partir daí, sem uma palavra da parte de qualquer de nós, aquela mesa isolada passou a ser
aquilo a que a minha mãe, nos seus momentos alemães, teria chamado a nossa Stammtisch - ou,
como diriam os meus chers collègues, local do crime - tanto das nossas habituais noites de
segunda-feira como das furtivas noites intercalares.
Não estava à espera de que aquela primeira cerveja depois do badmínton fosse mais do que a
formalidade habitual: o vencido paga a primeira cerveja, o vencedor a segunda, se alguém
quiser uma segunda, troca de amabilidades, escolha da próxima data, duche e cada um à sua
vida. E como Ed tinha uma idade em que a vida começa às nove da noite, parti do princípio de
que nos ficaríamos pela primeira cerveja e eu estrelaria um ovo porque Prue estaria enfiada em
Southwark com os seus queridos clientes pro bono.
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"Então você é um homem de Londres, Nat?", pergunta Ed, enquanto nos sentamos com a nossa
cerveja.
Eu reconheço que de facto sou.
"De que tipo?"
Isto já é ir mais longe do que o habitual no clube, mas não importa.
"Nenhum em especial", respondo eu. "Durante algum tempo ganhei a vida no estrangeiro.
Agora estou de volta e procuro alguma coisa em que possa ferrar o dente." E acrescento, numa
rotina bem ensaiada: "Entretanto ajudo um velho amigo a endireitar o seu negócio. E você, Ed?
A Alice deixou escapar que era investigador. É verdade?"
Ele sopesa a minha pergunta como se fosse a primeira vez que alguém lha fazia. Parece
ligeiramente irritado com ela.
"Investigador, Yeah. é isso mesmo." E após um período de reflexão. "Investigação. Recebo o
material. Selecciono-o. Faço-o seguir para os interessados. Yeah."
"Portanto, basicamente as notícias do dia?"
"Yeah. Tudo. Nacionais, internacionais, falsas."
"E empresariais, presumo", sugiro eu, recordando-me da sua invectiva contra os patrões.
"Yeah. Uma orientação muito empresarial. Se não andamos na linha, estamos fodidos."
Parto do princípio de que já disse o que queria dizer, porque voltou a mergulhar nos seus
pensamentos. Mas continua:
"Bem, mas passei uns anos na Alemanha livre disto, não passei?", diz, consolando-se. "Adorei o
país, não gostei muito do emprego. Por isso voltei para cá."
"Para o mesmo tipo de emprego?"
"Yeah, pois, a mesma merda, num ramo diferente. Pensava que talvez melhorasse."
"Mas não melhorou."
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"Pois não. Mas acho que o melhor é aguentar. Tirar o melhor partido possível. Yeah."
E a isto se resumiu a nossa troca de palavras sobre as nossas respetivas profissões, o que para
mim foi ótimo e presumo que para ambos, porque não me lembro de algum de nós ter voltado
ao assunto, por muito que os meus chers collègues pensassem o contrário. Mas lembro-me
como se fosse hoje de como o rumo da nossa conversa mudou abruptamente uma vez encerrada
a questão das nossas profissões.
Durante algum tempo, Ed tinha-se mantido na meia distância, de expressão fechada, e, a avaliar
pelos esgares que fazia, debatendo consigo próprio alguma questão ponderosa.
"Importa-se que eu lhe faça uma pergunta, Nat?", pergunta num súbito assomo de decisão.
"Claro que não me importo", digo eu cordialmente.
"É que eu respeito-o muito. Apesar de o conhecer há pouco tempo. Não demoramos muito a
conhecer uma pessoa quando jogamos com ela."
"Continue."
"Obrigado. Vou continuar. É minha opinião reflectida que para a Grã-Bretanha e a Europa, e
para a democracia liberal no mundo em geral, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia no
tempo de Donald Trump, e a consequente dependência incondicional da Grã-Bretanha face aos
Estados Unidos numa época em que eles estão lançados no caminho do racismo institucional e
do neofascismo, é uma salgalhada total e completa. E o que eu lhe pergunto é isto: no plano dos
princípios concorda comigo, ou ofendi-o e o melhor que tenho a fazer é levantar-me e ir-me
embora? Sim ou não?"
Surpreendido por este espontâneo apelo às minhas simpatias políticas, vindo de um jovem que
ainda estou a começar a conhecer, mantenho aquilo a que Prue chama o meu silêncio decente.
72

Por momentos ele olha absorto na direção das pessoas que chapinham na piscina, e volta a mim.
"O que eu quero dizer é que não quereria estar aqui sentado consigo com base em falsidades,
porque admirei o seu jogo, e a si pessoalmente. O Brexit é a decisão mais importante que a Grã-
Bretanha enfrenta desde 1939, em minha opinião. Há quem diga 1945, mas eu não percebo
porquê, sinceramente. Portanto, a única coisa que pergunto é se concorda comigo. Eu sei que
sou excessivamente sério. Já me disseram. E há muita gente que não gosta de mim por eu ser
frontal, o que é verdade."
"No local de trabalho?", pergunto eu, ainda a ganhar tempo.
"O local de trabalho é um desastre total no que toca àquilo que eu designaria por liberdade de
expressão. No local de trabalho é obrigatório não ter opiniões fortes a propósito de nada. Caso
contrário, somos leprosos. Por isso é minha política ter sempre a boca bem fechada no local de
trabalho, e em resultado disso acham que sou trombudo. No entanto, podia nomear-lhe muitos
outros locais onde as pessoas não gostam de ouvir a verdade nua e crua, pelo menos da minha
boca. Mesmo que essas pessoas professem admiração pela democracia ocidental, continuam a
preferir a vida fácil em vez de reconhecerem o seu dever como opositores responsáveis do
inimigo fascista que nos invade. Mas reparo que ainda não respondeu à minha pergunta."
Devo dizer aqui e agora, precisamente como repeti a mesma mensagem ad nauseam aos meus
chers collègues, que, apesar de a palavra salgalhada ainda não ter entrado no meu vocabulário,
há muito tempo que o Brexit é uma coisa que me deixa fora de mim. Sou europeu de
nascimento e educação, corre-me nas veias sangue francês, alemão, britânico e russo antigo e
tanto me sinto em casa no Continente Europeu como em Battersea. Quanto à questão mais vasta
levantada por ele a propósito do ascendente dos supremacistas brancos na América de Trump -
bem, também
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nisso estávamos de acordo, como de acordo estavam muitos dos meus chers collègues, por
muito que viessem mais tarde a assumir uma atitude mais neutral.
Ainda assim, hesitei em dar-lhe a resposta que ele me pedia. Primeira pergunta, como sempre:
está a tramar-me, está a tentar sacar coisas de mim ou a comprometer-me? Ao que, com
absoluta confiança, podia responder não: este jovem não, de maneira nenhuma. Portanto,
próxima pergunta: ignoro a mensagem escrita à mão pelo velho Fred, barman de Shantou,
colada no espelho atrás do balcão: "PROIBIDO FALAR DO BREXIT EM VOZ ALTA"?
E, por último, esqueço que sou funcionário público, ainda que secreto, que jurei defender a
política do meu governo, supondo que tem alguma? Ou em vez disso digo para comigo: aqui
está um jovem corajoso e sincero - excêntrico, sim, não do agrado de toda a gente e antes assim,
na minha opinião - que tem o coração no lugar certo, precisa de alguém que o ouça, só tem mais
sete ou oito anos que a minha filha - cujas opiniões radicais sobre todos os assuntos fazem parte
da vida da família - e joga um badmínton muito razoável?
Acrescente-se mais um ingrediente à mistura, um ingrediente que só agora estou disposto a
admitir, embora pense que está presente em mim desde a nossa primeira e improvável troca de
palavras. Falo da minha consciência de que estava na presença de algo raro na vida que até
então levara, e para mais num homem tão jovem: a convicção autêntica, não aquela que é
impulsionada por motivações de ganho, ou inveja, ou vingança, ou autopromoção, mas a
verdadeira, de pegar ou largar.
O barman Fred verte as suas cervejas geladas lentamente e com atenção para copos altos com
emblemas, e foi neste vidro que Ed manteve os olhos fixos enquanto passava as pontas dos
dedos compridos pela superfície cristalizada pelo gelo, de cabeça baixa, à espera da minha
resposta.
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"Bom, Ed", respondo eu, depois de ter deixado passar o tempo suficiente para sugerir que tinha
estado a pensar. "Deixe-me responder-lhe assim: sim, o Brexit é uma salgalhada sem limites, se
bem que eu duvide que possamos fazer muito para pôr o relógio a andar para trás. Isto satisfá-
lo?"
Não, como ambos sabíamos. O meu alegado silêncio decente não é nada ao pé dos silêncios
prolongados de Ed que, com o tempo, acabei por aceitar como um ingrediente natural das
nossas conversas.
"Então e quanto ao Presidente Donald Trump (2).", pergunta ele, pronunciando o nome como se
do diabo se tratasse. "Considera ou não, como eu considero, que Trump é uma ameaça e uma
provocação a todo o mundo civilizado, e está a encabeçar a nazificação sistemática e sem
restrições dos Estados Unidos?"
Penso que por esta altura devia estar a sorrir, mas não vejo nenhuma luz de resposta no rosto
lúgubre de Ed que está virado de lado para mim, como se quisesse a minha resposta apenas em
som, sem qualquer expressão facial moderadora.
"Bom, ainda que de um modo menos fundamental, sim, nisso também concordo consigo",
concedo delicadamente. "Mas ele não é presidente vitalício, pois não? E a Constituição lá está
para o inibir, não apenas para lhe dar rédea solta."
Mas isto não é suficiente para ele:
"Então e todos os fanáticos de visão em túnel que o rodeiam? Os cristãos fundamentalistas que
pensam que Jesus inventou a ganância? Esses não se vão embora, pois não?"
"Ed", digo eu, agora em tom de brincadeira. "Quando o Trump se for embora, essa gente
dispersa-se como cinza ao vento. Agora, pelo amor de Deus, vamos lá beber a outra cerveja."
Nesta altura, estou mesmo à espera do sorriso largo que tudo limpa. Não vem. Em vez disso,
recebo a mão ossuda que ele me estende por cima da mesa.
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"Então estamos bem, não estamos?", diz ele. E eu aperto-lhe a mão e digo sim, estamos, e só
então ele vai buscar outra cerveja para nós.

Nas cerca de doze partidas de segunda-feira à noite que se seguiram não fiz o menor esforço
para negar ou suavizar nada daquilo que ele me dizia, o que significa que a partir do nosso
segundo encontro - a Partida n.º 2 na minha agenda - nenhuma sessão pós-badmínton na nossa
Stammtisch ficou completa sem que Ed se lançasse num solilóquio político acerca de algum
assunto candente da altura.
E foi melhorando com a passagem do tempo. Esqueçamos a sua agreste tirada inicial. Ed não
era agreste. Era apenas profundamente empenhado. E - agora é fácil de dizer - por ser tão
empenhado, era obsessivo. Além disso, por altura da Partida n.º 4, no mínimo, revelou-se um
bem-informado consumidor de notícias sobre todas as curvas e contracurvas da cena política
mundial - quer fosse o Brexit, Trump, a Síria ou qualquer outro desastre de longa duração -,
uma questão de tão grande preocupação pessoal para ele que teria sido totalmente irreflectido
da minha parte não o deixar continuar na sua. O melhor presente que podemos dar aos jovens é
tempo, e eu tinha sempre presente que não havia dado tempo suficiente a Steff, e talvez os pais
de Ed também não tivessem sido muito generosos com ele a esse respeito.
Os meus chers collègues queriam a toda a força acreditar que, ao conceder-lhe tempo e atenção,
eu o estimulava. Sublinhavam a nossa diferença de idades e aquilo a que de bom grado
chamavam o meu "charme profissional". Puro disparate. A partir do momento em que Ed tinha
concluído que no seu bestiário simples eu era genericamente um ouvido simpático, até podia
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ser um desconhecido que se sentava ao seu lado no autocarro. Ainda hoje não recordo uma
única ocasião em que as minhas opiniões pessoais, mesmo as mais simpáticas, lhe tenham
causado a mais leve impressão. Mostrava-se simplesmente agradecido por ter encontrado um
ouvinte que não entrava em choque com ele, não se lhe opunha e não se afastava pura e
simplesmente dele para conversar com outra pessoa, porque não sei por quanto tempo ele teria
aguentado uma discussão ideológica ou política sem perder as estribeiras. O facto de as suas
opiniões sobre qualquer assunto serem previsíveis antes de ele abrir a boca não me incomodava.
Tudo bem, era um homem de causas simples. Conhecia o género. Tinha recrutado alguns. Este
era geopoliticamente atento. Era jovem, altamente inteligente dentro dos limites das suas
opiniões fixas e - embora eu nunca tivesse podido comprová-lo - facilmente irascível quando
alguém as contraditava.
Que retirei eu, pessoalmente, da relação, além dos nossos duelos renhidos no campo de
badmínton? - outra pergunta a que os meus chers collègues voltavam persistentemente. Na
altura em que me inquiriam eu não tinha nenhuma resposta na ponta da língua. Só ao fim de
algum tempo recordava o sentido de empenhamento moral que Ed transmitia, como isso
funcionava como um apelo à minha consciência, seguido do sorriso largo e ligeiramente
desalentado que varria tudo isso. Tudo somado, davam-me uma sensação de que estava a
proporcionar algum tipo de refúgio a uma espécie em perigo. E devo ter dito alguma coisa deste
tipo a Prue quando sugeri levá-lo a tomar uma bebida em nossa casa, ou convidá-lo para um
almoço de domingo. Mas Prue, na sua sabedoria, não se deixou convencer:
"Tenho a impressão de que vocês estão a fazer bem um ao outro, querido. Guarda-o para ti e
não deixes que eu me atravesse no caminho."
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De bom grado aceitei o conselho e fiquei com ele só para mim. A nossa rotina nunca se alterou,
nem mesmo no fim. Dávamos o máximo no campo, pegávamos no casaco, talvez puséssemos
um lenço à volta do pescoço, avançávamos para a Stammtisch e o vencido ia diretamente para o
balcão. Trocávamos umas palavras de circunstância - talvez revivêssemos um ponto ou outro do
jogo. Ele perguntava-me vagamente pela família, eu perguntava-lhe se havia tido um bom fim-
de-semana, e um e outro dávamos respostas triviais. Seguia-se uma espécie de silêncio
expectante da parte dele que eu depressa aprendi a não preencher, e ele lançava-se na sua
dissertação do dia. E eu concordava com ele, concordava com ele em parte ou simplesmente
dizia calma, Ed, não é bem assim, e dava-lhe a risadinha do homem mais velho e mais sábio. Só
raramente, e no tom mais cordato, lhe questionava as afirmações mais fortes - mas sempre com
circunspecção, porque o meu conhecimento instintivo de Ed dizia-me desde o princípio que ele
era frágil.
às vezes era como se uma terceira pessoa estivesse a falar pela boca dele. A sua voz, que era
uma boa voz quando era apenas igual a si própria, subia uma oitava, atingia outro nível e aí se
mantinha numa única nota didáctica, não por muito tempo, mas o suficiente para me fazer
pensar: olá, eu conheço este registo, e a Steff também tem um assim. É aquele registo com o
qual não se pode discutir porque vai andando sempre como se eu lá não estivesse, pelo que o
melhor é ir acenando com a cabeça até aquilo acabar naturalmente.
A substância? De certo modo é a mistura de sempre. O Brexit é auto-imolação. Os britânicos
estão a ser empurrados para o precipício por um bando de aventureiros que se fazem passar por
homens do povo. Trump é um Anticristo. Putin é outro. Para Trump, o menino rico que fugiu ao
serviço militar e foi criado numa grande democracia, ainda que imperfeita, não existe redenção
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neste mundo nem no próximo. Para Putin, que nunca conheceu a democracia, há uma vaga
esperança. Daí Ed, cuja formação inconformista se transformou aos poucos numa característica
saliente destas tiradas inflamadas.
Houve progressos, Nat? Perguntavam-me os meus chers collègues. - Tiveste a sensação de que
ele se encaminhava para algum tipo de resolução absoluta? Mas eu continuava a não poder
confortá-los. Talvez estivesse a tornar-se mais livre e desassombrado à medida que se sentia
mais seguro do seu público: eu. Talvez com o tempo eu estivesse a tornar-me um público mais
receptivo, se bem que não me lembre de alguma vez ter sido particularmente não receptivo.
Mas reconheço que tive com Ed algumas sessões na Stammtisch em que não estava demasiado
preocupado com Steff, ou com Prue, ou com algum agente recentemente recrutado que estava a
dar problemas, ou com a epidemia de gripe que durante duas ou três semanas tirou do terreno
metade dos nossos controladores, e lhe dedicava a minha atenção quase total. Nessas alturas
chegava a sentir-me impelido a discordar de uma ou outra das suas afirmações mais radicais,
não tanto para contestar a argumentação usada como para moderar a assertividade com que ele
as proferia. Portanto, nesse sentido, bem, se não havia progressos havia uma cada vez maior
familiaridade do meu lado, e do lado de Ed uma receptividade, ainda que apenas relutante, a rir
para dentro de vez em quando.
Mas convém ter presente uma explicação simples, que não dou para me desculpar, mas sim
como matéria de facto: nem sempre o ouvia com muita atenção, e havia alturas em que pura e
simplesmente desligava. Se estava sob pressão no Porto de Abrigo - o que acontecia cada vez
mais - tinha o cuidado de meter o telemóvel de serviço no bolso traseiro antes de irmos para a
Stammtisch, e consultava-o furtivamente enquanto ele perorava.
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E às vezes, quando os seus monólogos cheios de juvenil inocência e assertividade me mexiam


com os nervos, em vez de ir diretamente para casa e para Prue depois do nosso sacudido aperto
de mão final, tomava o caminho mais longo pelo parque para dar aos meus pensamentos a
possibilidade de se acalmarem.

Uma última palavra acerca do que o jogo de badmínton significava para Ed e, já agora, significa
para mim. Para os não-crentes, o badmínton é uma versão frouxa do squash para homens
pesados com medo de ataques cardíacos. Para os verdadeiros crentes não existe outro desporto.
O squash é força bruta, o badmínton é subtileza, paciência, velocidade e recuperação
improvável. E ficarmos à espera de desencadear a nossa emboscada enquanto o volante
descreve o seu arco vagaroso. Ao contrário do squash, o badmínton não conhece distinções
sociais. Não é colégio de elite. Não tem a sedução de ar livre do ténis ou do futebol de cinco.
Não recompensa um belo swing. Não perdoa falhas, poupa os joelhos e dizem que é terrível
para as ancas. Mas está provado que exige reações mais rápidas que o squash. Existe pouca
convivência natural entre os praticantes, que em geral tendem a fechar-se. Para os outros
atletas, somos um pouco bichos do mato, um pouco solitários.
O meu pai jogou badmínton em Singapura quando esteve lá colocado. Só singulares. Jogou-o
pelo exército antes de entrar em declínio. Jogou-o comigo. Nas férias de verão em praias da
Normandia. No jardim de Neuilly com uma corda da roupa a servir de rede, um copo castanho
de scotch na mão livre. O badmínton era aquilo que ele fazia melhor. Quando eu fui despachado
para a Escócia, para o mesmo colégio tenebroso onde ele tinha estudado, joguei lá badmínton,
como ele tinha jogado, e depois na
80

universidade, nas Midlands. Quando andava pela Repartição à espera da primeira colocação no
estrangeiro, juntei um grupo de colegas nas mesmas condições e, sob o nome de fachada de Os
Irregulares, defrontávamos quem aparecesse.
E Ed? Como foi que ele se converteu ao desporto dos desportos? Estamos sentados à
Stammtisch. Ele está a olhar absorto para a sua cerveja, como fazia quando estava a resolver os
problemas do mundo ou a tentar descobrir o que estava errado na sua batida de esquerda, ou
simplesmente a matutar em vez de falar. Nenhuma pergunta que lhe fizessem era simples. Tudo
tinha de ser pesquisado até à origem.
"Havia uma professora de ginástica no meu liceu", diz por fim. Sorriso largo. "Um dia pegou
em dois ou três de nós e levou-nos ao seu clube. Foi assim que aconteceu. Ela com a sua saia
curta e as suas luzidias coxas brancas. Yeah."
81

Aqui deixo, para edificação dos meus chers collègues, tudo quanto tinha conseguido apurar
sobre a vida de Ed fora do campo de badmínton até à altura da Queda. Agora que o passo a
escrito, a sua extensão surpreender-me-ia se não se desse o caso de ser um ouvinte e um
recordador por formação e hábito.
Era um de dois filhos nascidos com um intervalo de dez anos numa velha família de mineiros
metodistas de North Country. O avô tinha vindo da Irlanda com vinte e tal anos. Quando as
minas fecharam, o pai foi para a marinha mercante:
Não o vi muitas vezes desde então, devo dizer. Voltou para casa e teve cancro, como se o cancro
estivesse à espera dele - Ed.
O pai era também um comunista à moda antiga que tinha rasgado o cartão do partido na
sequência da invasão soviética do Afeganistão em 1979. Desconfio que Ed o acompanhou na
hora da morte.
Depois da morte do pai, a família mudou-se para uma localidade perto de Doncaster. Ed
conseguiu um lugar numa escola secundária, não me perguntem qual. A mãe passava o tempo
que o trabalho lhe deixava livre em aulas de instrução para adultos até que acabaram com elas:
83

A minha mãe tem mais cérebro do que alguma vez teve oportunidade de usar, e ainda tem de
cuidar da Laura - Ed.
Laura é a irmã mais nova de Ed que tem dificuldades de aprendizagem e é parcialmente
deficiente.
Com dezoito anos de idade, Ed renunciou à sua fé cristã em favor daquilo que designava por
"humanismo abrangente", que para mim era Inconformismo sem Deus, mas por delicadeza me
abstinha de lho sugerir.
Da escola secundária foi para uma universidade nova, não sei bem qual. Ciências da
Computação, Alemão como opção extra. Grau académico não especificado, pelo que o meu
palpite vai para um patamar intermédio.
Quanto a raparigas - uma área delicada no que dizia respeito a Ed, na qual eu não entraria sem
ser convidado - ou eram elas que não gostavam dele ou ele que não gostava delas. A minha
suposição é que a preocupação ansiosa que tinha com os problemas do mundo e outras
pequenas excentricidades faziam dele um companheiro de vida exigente. Outra suspeita minha
é que não tinha noção do seu poder de atração.
E quanto a amizades do mesmo sexo, pessoas com quem devia conviver no ginásio, ou
endireitar o mundo, ou fazer jogging, ciclismo, ir apubs? Ed nunca me falou num único desses
amigos, e duvido que tivessem existido na sua vida. O meu palpite é que, lá bem no fundo,
usava a sua solidão como medalha de honra.
Tinha ouvido falar de mim nos bastidores do badmínton e tinha-me escolhido para seu
adversário regular. Eu era o seu troféu. Ele não tinha intenção de me partilhar com ninguém.
Quando tive um motivo para lhe perguntar o que o havia levado a aceitar um lugar na
comunicação social se a odiava tanto, a princípio foi evasivo:
Vi um anúncio algures, fui a uma entrevista. Fizeram-me uma espécie de exame escrito,
disseram muito bem, está admitido. Só isto. Yeah - Ed.
84

Mas quando lhe perguntei se tinha colegas de trabalho com as mesmas ideias que ele, limitou-se
a abanar a cabeça como se a pergunta fosse irrelevante.
E qual era a boa notícia no universo predominantemente solitário de Ed, tanto quanto me era
possível perceber? A Alemanha. E a Alemanha.
Ed tinha o vírus alemão em dose elevada. Penso que eu também o tenho, quando mais não seja
da alemã relutante que se acoita dentro da minha mãe. Ed tinha passado um ano a estudar em
Tubinga, e dois em Berlim a trabalhar para a sua empresa de média. A Alemanha era o
suprassumo. Os seus cidadãos eram simplesmente os melhores europeus de sempre. Nenhum
outro país chega aos calcanhares da Alemanha, principalmente quando se trata de compreender
o que é de facto a União Europeia - Ed, do alto da sua sobranceria. Tinha admitido deixar tudo
para trás e iniciar lá uma vida nova, mas as coisas não haviam corrido bem com a rapariga,
estudante de investigação na Universidade de Berlim. Era graças a ela, pelo que me foi dado
perceber, que ele tinha aprendido alguma coisa sobre a ascensão do nacionalismo alemão na
década de mil novecentos e vinte, que terá sido o tema da investigação dela. O que é certo é
que, graças a tais estudos aleatórios, se sentia capacitado para traçar paralelos preocupantes
entre a ascensão dos ditadores europeus e a ascensão de Donald Trump. Basta abordar este tema
com Ed para se ficar a conhecer a sua faceta mais autoritária.
No mundo de Ed não existia nenhuma linha divisória entre os fanáticos do Brexit e os fanáticos
de Trump. Ambos eram racistas e xenófobos. Ambos rezavam no mesmo altar do imperialismo
nostálgico. Uma vez lançado neste tema, perdia toda a objetividade. Os trumpistas e os
brexiteiros estavam a conspirar para o privar do seu direito à cidadania europeia. Por muito
solitário que fosse noutros aspetos, quanto à Europa não tinha o menor
85

rebuço em declarar que falava pela sua geração, ou em apontar o dedo à minha.
Houve um dia em que estávamos sentados, temporariamente exaustos, no vestiário do
Athleticus depois do nosso habitual jogo bem disputado. Metendo a mão no seu cacifo para tirar
de lá o telemóvel, Ed fez questão de me mostrar imagens de vídeo dos colaboradores diretos de
Trump reunidos à volta de uma mesa, declarando, um de cada vez, a sua lealdade imorredoura
ao seu querido líder.
"Estão a fazer o maldito juramento do Fúhrer", confidencia-me numa voz sussurrada. "Vai
passar outra vez, Nat. Veja."
Eu vi, obedientemente. E sim, era vomitivo.
Nunca lhe perguntei, mas penso que era a expiação, pela Alemanha, dos seus pecados passados
que falava mais veementemente à sua alma metodista secularizada: a ideia de que uma grande
nação que tinha perdido o norte devia arrepender-se dos crimes infligidos ao mundo. Que outro
país havia alguma vez feito tal coisa? - perguntava Ed. A Turquia tinha pedido desculpa pela
chacina dos arménios e dos curdos? A América tinha pedido desculpa ao povo vietnamita? Os
britânicos tinham expiado a colonização de três quartas partes do mundo e a escravização de
um grande número dos seus cidadãos?
O aperto de mão sacudido? Nunca me disse, mas imagino que o tinha aprendido enquanto vivia
em Berlim em casa da família prussiana da rapariga, e por qualquer estranho sentimento de
lealdade tinha conservado o hábito.
86

São dez horas de uma primaveril e soalheira manhã de sexta-feira e todas as aves o sabem,
quando Florence e eu, que nos encontrámos para um primeiro café, eu vindo de Battersea e ela,
suponho, de Pimlico, caminhamos pelo Thames Embankment em direção à Sede. No passado,
regressado de longínquos postos avançados para reuniões na Repartição ou em gozo de licença,
senti-me algumas vezes atemorizado pela imponência do nosso Camelot de múltiplas torres
com os seus elevadores sibilantes, os seus corredores de brancura hospitalar e os turistas que da
ponte olham para ele embasbacados.
Hoje não.
Dentro de meia hora, Florence estará a apresentar a primeira operação especial totalmente
montada pela Geral de Londres em três anos, e que terá o beneplácito do Porto de Abrigo. Veste
um elegante fato de calça e casaco e está muito ligeiramente maquilhada. Se sente o medo de
palco, não o deixa transparecer. Nas últimas três semanas fizemos longos serões juntos,
sentados lado a lado, até de madrugada, à balouçante mesa de cavalete da sala de Operações
sem janelas do Porto de Abrigo, debruçados sobre mapas de ruas, relatórios de vigilância,
escutas telefónicas
87

e de emails, e as últimas informações da amante desencantada de Orson, Astra.


Foi Astra quem primeiro informou que Orson estava em vias de usar o seu duplex em Park
Lane para impressionar um duo de lavadores de dinheiro de ascendência eslovaca, baseados em
Chipre e próximos de Moscovo, com um banco privado em Nicósia e uma sucursal na City de
Londres. São dois membros completamente identificados de um sindicato do crime aprovado
pelo Kremlin que opera a partir de Odessa. Ao saber da sua chegada, Orson mandou fazer um
varrimento eletrónico do seu duplex. Não foram descobertos nenhuns dispositivos. Cabia agora
à equipa de intrusão furtiva de Percy Price remediar essa omissão.
Com o consentimento do seu diretor ausente, Bryn Jordan, o departamento da Rússia tomou
também algumas medidas. Um dos seus agentes fez-se passar por editor de notícias do Daily
Mail a pedido de Florence e fechou o acordo com o porteiro da noite. A companhia de gás que
fornecia energia ao duplex de Orson foi convencida a reportar uma fuga. Uma equipa de três
assaltantes chefiada pelo pomposo Eric fez o reconhecimento do duplex sob o disfarce de
técnicos da companhia e fotografou as fechaduras da porta de aço reforçado que dava acesso à
sala dos computadores. Os fabricantes britânicos da fechadura forneceram duplicados das
chaves e instruções para a decifração da combinação.
Agora só falta a Botão de Rosa receber luz verde oficial de um conclave de manda-chuvas da
Sede, conhecidos coletivamente pelo nome de Direção de Operações.

Se é certo que o meu relacionamento com Florence é enfaticamente não-táctil, com cada um de
nós a fazer os mais complicados esforços para evitar roçares de mãos ou qualquer outro
contacto
88

físico, nem por isso deixa de ser próximo. Acontece que as nossas vidas se sobrepõem de mais
formas do que esperaríamos, atendendo à diferença de idades. O pai dela, antigo diplomata,
tinha feito duas comissões seguidas na Embaixada Britânica em Moscovo, levando consigo a
mulher e três filhos, dos quais Florence era a mais velha. Prue e eu tínhamo-nos desencontrado
deles por seis meses.
Enquanto frequentava a Escola Internacional de Moscovo, Florence tinha abraçado a musa
russa com todo o zelo da juventude. Teve mesmo uma Madame Galina na sua vida: a viúva de
um poeta "aprovado" dos tempos soviéticos, com uma dacha degradada na antiga colónia de
artistas de Peredelkino. Quando chegou a altura de Florence frequentar o colégio inglês, já os
caçadores de talentos do Serviço andavam de olho nela. Quando fez os exames finais do
secundário, enviaram o seu linguista de russo para lhe avaliar as aptidões linguísticas. Teve a
mais alta classificação atribuível a não-russos e foi abordada quando ainda só tinha dezanove
anos.
Na universidade continuou os seus estudos sob a supervisão da Repartição, e passou parte de
cada período de férias em ações de treino básico: em Belgrado, Sampetersburgo e por último
em Talin, onde mais uma vez podíamos ter-nos conhecido se ela não estivesse a viver sob a
capa de estudante de silvicultura e eu sob a de diplomata. Adorava correr, tal como eu: eu no
Parque Battersea, ela, para minha surpresa, em Hampstead Heath. Quando lhe fiz ver que
Hampstead era muito longe de Pimlico, respondeu sem hesitar que havia um autocarro que a
levava de porta a porta. Num momento de lazer verifiquei, e era verdade: o 24 ia mesmo até lá.
Que mais sabia sobre ela? Que tinha um fortíssimo sentido de justiça natural que me fazia
lembrar Prue. Que adorava a adrenalina do trabalho operacional, e tinha um talento invulgar
para ele. Que muitas vezes a Repartição a exasperava. Que era reticente, para não dizer
reservada, quanto à sua vida privada.
89

E houve uma noite, depois de um dia de trabalho intenso, em que a vi acocorada no seu
cubículo com os punhos cerrados e as lágrimas a correr-lhe pelas faces. Há uma coisa que
aprendi penosamente com Steff: nunca perguntar o que se passa, apenas dar-lhe espaço. Dava-
lhe espaço, não perguntava, e a causa das lágrimas ficava só com ela.
Mas hoje não tem outra preocupação no mundo além da Operação Botão de Rosa.

Há uma qualidade onírica na memória que guardo daquela reunião matinal da fina-flor da
Repartição, uma noção daquilo que podia ter sido uma recordação de coisas últimas: a sala de
reuniões do último andar com as suas clarabóias de luz natural e os seus painéis de madeira cor
de mel, os rostos inteligentes e atentos virados para Florence e para mim, sentados ombro a
ombro no extremo da mesa destinado aos peticionários. Todos os membros do nosso público
eram meus conhecidos de vidas pretéritas, e cada um à sua maneira era merecedor do meu
respeito: Ghita Marsden, minha antiga chefe de posto em Trieste e a primeira mulher de cor a
chegar ao topo; Percy Price, chefe do cada vez maior braço de vigilância do Serviço. A lista
continua. Guy Brammel, de cinquenta e cinco anos, o corpulento e matreiro chefe dos
Requisitos Russos, na altura em substituição de Bryn Jordan, retido em Washington. Marion,
funcionária superior do nosso Serviço irmão, em funções de ligação. Depois duas das mais
apreciadas colegas de Guy Brammel, Beth (Cáucaso do Norte) e Lizzie (Ucrânia russa). E em
último lugar, com toda a justificação, Dom Trench, como chefe da Geral de Londres, que faz
questão de só entrar quando toda a gente estiver sentada, com medo de ser conduzido a um
lugar secundário.
90
"Florence", diz Guy Brammel em tom indulgente para o fundo da mesa. "Quer fazer-nos a sua
apresentação?"
E de repente ali está ela, já não ao meu lado, mas de pé a dois metros de mim, no seu fato de
calça e casaco: Florence, a minha talentosa, ainda que temperamental, estagiária de segundo
ano, falando com sabedoria aos seus superiores enquanto o nosso pequeno Ilya, do Porto de
Abrigo, acocorado na cabine de projeção com um guião na mão, a ajuda na apresentação de
slides.
Hoje não há na voz de Florence nenhum frémito de paixão, nenhum indício dos fogos interiores
que nos últimos meses a consumiram, nem do lugar especial que guarda para Orson no seu
inferno pessoal. Eu aconselhei-a a manter as emoções controladas e a voz clara. Percy Price, o
nosso vigia-mor, é um clérigo atento e não aprecia os floreados anglo-saxónicos. Nem Ghita,
penso eu, apesar de ser tolerante aos nossos hábitos infiéis.
E, até agora, Florence tem cumprido o guião. Na leitura da relação de despesas de Orson não é
indignada nem declamatória - duas coisas que sabe ser com a maior facilidade - mas antes
serena como Prue quando eu entro por dez minutos na sala de audiências pelo simples prazer de
a ouvir rasgar a parte contrária em frangalhos de delicadeza.
Começa por nos expor a riqueza injustificada de Orson - imensa, offshore, administrada em
Guernsey e na City de Londres, onde havia de ser? - passando depois aos bens de Orson no
estrangeiro, na Madeira, Miami, Zermatt e mar Negro, e à sua presença inexplicada numa
receção realizada na Embaixada Russa em Londres para destacados defensores do Brexit, e a
sua contribuição de um milhão de libras para um fundo independente de apoio à Saída.
Descreve um encontro secreto em que Orson participou em Bruxelas com seis especialistas
russos em cibernética, suspeitos de intrusão em larga escala em fóruns democráticos ocidentais.
Tudo isto, e não só, sem o mínimo frémito de emoção.
91

Só quando chega à proposta de colocação de microfones no duplex em causa é que a serenidade


a abandona. A apresentação de slides de Ilya mostra-nos doze posições, cada uma assinalada
com uma marca vermelha. Marion permite-se interromper:
"Florence", diz severamente, "não compreendo porque é que está a propor instalar dispositivos
especiais para vigiar adolescentes."
Julgo que nunca tinha visto Florence reduzida ao silêncio até àquele momento. Como chefe do
seu subposto, apresso-me a ir em seu auxílio.
"Penso que a Marion está a referir-se à nossa recomendação de que todos os compartimentos do
duplex de Orson sejam cobertos, independentemente de quem os ocupa", murmuro-lhe num
aparte de teatro.
Mas Marion não se comove.
"Estou a questionar a ética de instalar dispositivos de áudio e vídeo no berçário de uma criança.
E também no quarto da ama, coisa que considero igualmente questionável, se não ainda mais.
Ou devemos supor que os filhos de Orson e a ama são de interesse para a investigação?"
Enquanto isto, Florence recompôs-se. Ou, para quem a conhece tão bem como eu, preparou-se
para o combate. Respira fundo e adota a sua mais doce voz de Colégio Feminino de
Cheltenham.
"O berçário, Marion, é para onde Orson leva os seus parceiros de negócios quando tem alguma
coisa especialmente secreta para lhes dizer. O quarto da ama é onde ele fode as putas que mete
em casa quando as crianças estão a fazer férias de praia com a ama em Sochi e a esposa saiu
para comprar jóias na Cartier. A fonte Astra diz-nos que Orson se gaba dos seus negócios
inteligentes às mulheres enquanto as fode. Achámos que também devíamos ouvi-lo fazer isso."
Mas está tudo bem. Toda a gente se ri, Guy Brammel mais alto do que os outros; até Marion
está a rir-se. Dom está a rir-se, o que
92

significa que está a sacudir-se e a sorrir, mesmo que não deite cá para fora nenhuma gargalhada.
Levantamo-nos e formamos pequenos grupos em volta da mesa do café. Ghita felicita Florence
de modo fraterno. Uma mão que eu não vejo aperta-me o braço, coisa a que não reajo bem em
nenhuma circunstância.
"Nat. Excelente reunião. Está de parabéns a Geral de Londres, está de parabéns o Porto de
Abrigo, está de parabéns você, pessoalmente."
"Ainda bem que gostou, Dom. A Florence é uma agente promissora. Foi simpático ela ter visto
a sua autoria reconhecida. São coisas que as pessoas esquecem com muita facilidade."
"E sempre aquela sua voz moderadora em segundo plano", recomeça Dom, fingindo não ter
ouvido o meu pequeno remoque. "Quase consegui ouvi-lo: aquele seu toque paternal."
"Bem, obrigado, Dom. Obrigado", repito eu amavelmente, e pergunto-me o que terá ele na
manga.

Envoltos no fulgor que fica depois de um trabalho bem feito, Florence e eu regressamos
calmamente, ao sol, pelo caminho à beira do rio, comentando um com o outro - mas sendo
principalmente Florence a fazer os comentários - que, mesmo que a Botão de Rosa só renda um
quarto dos dividendos que estamos a prever, uma coisa de que podemos estar razoavelmente
certos é que será o fim do papel de Orson como fantoche dos russos em Londres e o fim - o
desejo mais ardente de Florence - das suas montanhas de dinheiro sujo armazenado um pouco
por todo o hemisfério sul pela máquina de lavar automática, em perpétua rotação, da City de
Londres.
Então, como estamos sem comer e de qualquer forma o tempo é um pouco irreal depois de
todas as horas noturnas que investimos
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neste momento, deixamos para mais tarde apanhar o metro, paramos numpub, descobrimos um
canto vago e, enquanto comemos empadas de peixe e batatas fritas e bebemos uma garrafa de
borgonha tinto - também a bebida preferida de Steff, como não resisto a dizer a Florence, e
ambas fanáticas de peixe - passamos em revista numa linguagem adequadamente oblíqua os
acontecimentos da manhã, que por acaso foram muito mais prolongados e mais técnicos do que
eu reconheci perante ela, com contributos de Percy Price e Eric, o assaltante pomposo, sobre
questões como a marcação e monitorização dos alvos de vigilância, a impregnação dos sapatos
e roupas dos alvos, o uso de um helicóptero ou de um drone, e o que acontecerá no caso de um
regresso inesperado de Orson e seus acompanhantes ao duplex em causa enquanto a equipa de
intrusão furtiva ainda estiver lá dentro. Resposta, serão educadamente informados por um
polícia fardado de que foram detetados intrusos no edifício, pelo que as gentis senhoras e os
cavalheiros querem ter a bondade de entrar para a carrinha da polícia e tomar uma boa chávena
de chá quente enquanto prosseguem as investigações?
"Quer dizer que é só isso, não é?", reflete Florence enquanto bebe o seu segundo ou talvez
terceiro copo de vinho tinto. "Conseguimos o que queríamos. Cidadão Kane, o teu dia chegou
finalmente."
"Só quando a senhora gorda cantar", aviso-a eu.
"Quem diabo é essa?"
"Uma subcomissão das Finanças tem de dar a sua bênção."
"Formada por quem?"
"Um mandarim das Finanças, outro dos Negócios Estrangeiros, outro da Administração Interna
e outro da Defesa. Mais dois ou três parlamentares cooptados em quem possam confiar para
fazerem o que lhes mandam."
"Que é o quê?"
94

"Carimbar a operação e mandá-la de volta à Administração Interna para ação."


"Maldita perda de tempo, se quer saber a minha opinião."
Regressamos de metro ao Porto de Abrigo para descobrir que Ilya tinha corrido à nossa frente
para anunciar uma grande vitória, com Florence como heroína do momento. Até o resmungão
Igor, lituano de sessenta e cinco anos, emerge da sua toca para lhe apertar a mão e - embora
secretamente desconfie de que qualquer substituto de Giles tem de ser um complô dos russos - a
minha também. Eu esgueiro-me para o meu gabinete, atiro a gravata e o casaco para as costas
de uma cadeira e estou a fechar o computador quando o telemóvel particular me coaxa aos
ouvidos. Pensando que era Prue e esperando que fossem finalmente notícias de Steff, procuro-o
no bolso do casaco. é Ed, em tom de urgência.
"É você, Nat?"
"Por estranho que pareça, sou. E você deve ser o Ed", respondo eu frivolamente.
"Yeah, pois sou." Pausa prolongada. "É por causa da Laura, sabe. Na segunda-feira."
Laura é a irmã que tem dificuldades de aprendizagem.
"Não há problema, Ed. Se não pode ir por causa da Laura, esqueça. Jogamos noutro dia. É só
dizer-me, que eu vejo quando estou livre."
Mas não é por isso que ele está a telefonar. Com Ed há sempre mais alguma coisa. é só esperar
o tempo suficiente e ele dirá o quê.
"O problema é que ela quer jogar a pares."
"A Laura?"
"Jogar badmínton. Yeah."
"Ah. Jogar badmínton."
"Adora jogar, quando está para aí virada. Não joga bem, devo avisar. Quer dizer, mesmo nada
bem. Mas, sabe como é. Adora."
"Claro. Parece-me bem. Que tipo de pares?"
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"Bem, mistos, sabe como é. Com uma mulher. Talvez a sua esposa." Sabe o nome de Prue, mas
parece incapaz de o pronunciar. Eu digo Prue por ele e ele diz: "Yeah, Prue."
"Lamento, mas a Prue não pode. Nem vale a pena perguntar-lhe. A segunda-feira à noite tem o
consultório jurídico para clientes em dificuldades, lembra-se? Não há ninguém no seu
emprego?", pergunto eu, exasperado.
"Não, ninguém a quem possa pedir. A Laura joga mesmo mal. Yeah."
Nesta altura, o meu olhar viajou até à porta de vidro martelado que me separa do cubículo de
Florence, que está sentada à secretária de costas para mim, também ela a fechar o computador.
Mas apercebe-se de qualquer coisa. Eu parei de falar, mas não desliguei. Ela vira-se, olha para
mim, depois levanta-se, abre a porta de vidro e enfia a cabeça.
"Precisa de alguma coisa?", pergunta.
"Preciso. Você joga muito mal badmínton?"
96

8
É a noite de domingo antes do planeado jogo de pares com Ed, Laura e Florence. Prue e eu
estamos a gozar um dos nossos melhores fins de semana desde o meu regresso de Talin. A
realidade de eu estar em casa com carácter de permanência ainda é nova para nós, e ambos
estamos cientes de que precisa de ser cuidadosamente trabalhada. Prue adora o seu jardim. Eu
trato da relva e das tarefas pesadas, mas afora isso o meu melhor momento é quando, às seis em
ponto, lhe levo o gim tónico. O envolvimento do escritório de advogados dela numa ação
coletiva contra as Grandes Farmacêuticas está com boas perspetivas e ambos estamos felizes
por isso. Eu estou ligeiramente menos feliz por ver as nossas manhãs de domingo entregues a
"brunches de trabalho" da dedicada equipa jurídica de Prue que, ao que ouço das suas
discussões, parece mais constituída por conspiradores anarquistas do que por advogados
experientes. Quando digo isto a Prue, ela solta uma gargalhada e diz: "Mas é exatamente isso
que nós somos, querido!"
à tarde fomos ao cinema - esqueci-me de qual era o filme, mas sei que gostámos. Quando
chegámos a casa, Prue decretou que devíamos fazer juntos um soufflé de queijo, o que Steff nos
garante ser o equivalente gastronómico de dançar à moda antiga, mas nós
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adoramos. Portanto eu ralo o queijo e ela bate os ovos enquanto ouvimos Fischer-Dieskau com
o volume no máximo, razão pela qual só ouvimos o pi-pi do meu telemóvel de serviço quando
Prue tira o dedo da batedeira.
"É o Dom", digo-lhe eu, e ela faz um esgar de desagrado.
Retiro-me para a sala de estar e fecho a porta, porque temos um entendimento de que, se é
assunto da Repartição, Prue prefere não saber.
"Nat. Desculpe a minha horrível intrusão ao domingo."
Eu desculpo, ainda que secamente. Calculo pelo seu tom benigno que venha dizer-me que
temos luz verde das Finanças para a Botão de Rosa, informação que podia perfeitamente ter
esperado até segunda-feira. Mas não temos:
"Não, lamento, mas estritamente ainda não temos, Nat. Deve chegar a qualquer momento, tenho
a certeza."
Estritamente ainda não temos? Que quer isso dizer? É como não estritamente grávida? Mas não
era por isso que estava a telefonar.
"Nat" - este hábito recente de dizer Nat no início de frases alternadas, pondo-me de pé atrás -,
"será que posso pedir-lhe um enorme favor? Estará por acaso livre amanhã? Eu sei que as
segundas-feiras são sempre complicadas, mas só por esta vez?"
"Para fazer o quê?"
"Para dar uma saltada a Northwood por mim. A sede multinacional. Já lá esteve alguma vez?"
"Não."
"Bem, é a oportunidade da sua vida. Os nossos amigos alemães conseguiram uma nova fonte
viva e palpitante sobre o programa de guerra híbrida de Moscovo. Organizaram uma reunião de
profissionais da NATO. Achei que estava mesmo a calhar para si."
"Quer que eu intervenha ou quê?"
"Não, não, não. é muito melhor não. É o ambiente completamente errado. é estritamente pan-
europeu, e por isso a voz
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britânica não será bem-recebida. A boa notícia é que autorizei um carro para si. Grau 1, com
motorista. Ele leva-o, espera por si até aquilo acabar e trá-lo de volta a Battersea."
"Mas isso é assunto do departamento da Rússia, Dom", protesto eu com irritação, "não é da
Geral de Londres. E muito menos do Porto de Abrigo, valha-me Deus. Isso é o mesmo que
mandar as reservas."
"Nat. O Guy Brammel viu o material e garantiu-me pessoalmente que o departamento da Rússia
não vê razão nenhuma para ir à reunião. O que significa que na prática você estará a representar
não só a Geral de Londres, mas também o departamento da Rússia, tudo de uma assentada.
Achei que ia gostar. É uma dupla honra."
Não é honra absolutamente nenhuma; é uma seca dos diabos. No entanto, goste ou não goste,
dependo de Dom, e não há nada a fazer.
"Está bem, Dom. Não se preocupe com o carro. Vou no meu. Presumo que haja estacionamento
para mim em Northwood, não?"
"Disparate total, Nat! Faço questão. Trata-se de uma reunião de categoria europeia. A
Repartição tem de estar à altura. Frisei bem esse ponto junto do serviço de transportes."
Volto para a cozinha. Prue está sentada à mesa com os óculos postos, lendo o Guardian
enquanto espera que o nosso soufflé cresça.

Finalmente é segunda-feira, é noite de badmínton com Ed, é o nosso jogo de pares a pedido da
sua irmã Laura, e confesso que, à minha maneira, estou ansioso por que comece. Passei um dia
deprimente encarcerado numa fortaleza subterrânea em Northwood,
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a fingir que ouvia uma carrada de estatísticas alemãs. Passei os intervalos de pé como um lacaio
junto à mesa do buffet a pedir desculpa pelo Brexit a uma série variada de profissionais
europeus de espionagem. Como à chegada me ficaram com o telemóvel, só no regresso a casa,
na limusina com motorista debaixo de chuva intensa, consigo telefonar a Viv - Dom estava
"indisponível", uma nova moda -, que me diz que a decisão da subcomissão das Finanças sobre
a Botão de Rosa está "temporariamente suspensa". Em circunstâncias normais, não teria ficado
desnecessariamente preocupado, mas o "estritamente ainda não temos" de Dom não me sai da
cabeça.
É hora de ponta e chove, e há um engarrafamento na Ponte de Battersea. Peço ao motorista que
me leve diretamente ao Athleticus. Chegamos no momento em que Florence, embrulhada numa
capa de plástico, sobe os degraus do alpendre.
Preciso de registar cuidadosamente o que aconteceu daqui para a frente.

Salto da limusina da Repartição e preparo-me para berrar por Florence quando me lembro de
que, na precipitação de combinar a nossa partida de pares, não combinámos a história de
fachada que íamos contar. Quem éramos, como nos conhecêramos e como se tinha dado a
coincidência de estarmos os dois na mesma sala quando Ed telefonou? Tudo por resolver,
portanto temos de aproveitar o primeiro momento que surja.
Ed e Laura estão à nossa espera no átrio, Ed com um sorriso largo, vestindo um antiquado
impermeável e um boné que atribuo ao seu pai marinheiro. Laura está escondida atrás das abas
do impermeável dele e agarrada a uma das suas pernas, recusando-se a sair dali. é baixa e forte,
tem uma cabeleira castanha frisada, um
100

sorriso radioso e um vestido tirolês azul. Eu ainda estou a decidir como hei de cumprimentá-la -
dar um passo atrás e fazer uma vénia floreada ou contornar o corpo de Ed para lhe apertar a
mão -quando Florence avança para ela com um "Uau, Laura, adoro o teu vestido! é novo?", ao
que Laura abre um grande sorriso e diz: "Foi o Ed que o comprou. Na Alemanha", numa voz
profunda e rouca, e levantando os olhos enternecidos para o irmão.
"É o único sítio do mundo onde se pode comprar um vestido assim", diz Florence e, pegando na
mão de Laura, leva-a para o vestiário das senhoras com um "até já, rapazes" dito por cima do
ombro enquanto Ed e eu ficamos a olhar pasmados.
"Onde é que você a descobriu?", rosna Ed, disfarçando aquilo que é evidentemente um forte
interesse, e eu não tenho outra hipótese senão contar a minha metade de uma história inventada
que ainda não acertei com Florence.
"Só sei que é uma competentíssima assistente de alguém", respondo vagamente, e avanço para
o vestiário dos homens antes que ele possa bombardear-me com mais perguntas.
Mas no vestiário, para meu alívio, ele prefere abrir fogo sobre a decisão de Trump de abandonar
o acordo nuclear de Obama com o Irão.
"De ora em diante, a palavra da América é oficialmente declarada nula e de nenhum efeito",
anuncia. "Concorda?"
"Concordo", respondo eu - e por favor continua até eu ter oportunidade de industriar Florence,
coisa que estou decidido a fazer logo que possível, porque a ideia de Ed poder meter na sua
cabeça que eu sou outra coisa que não um homem de negócios por conta própria começa a
mexer-me com os nervos.
"E aquilo que ele fez ainda agora em Otava" - ainda sobre o tema de Trump, enquanto puxa os
calções compridos para cima -, "sabe o que lhe digo?"
"O quê?"
101

"A única coisa que conseguiu foi valorizar os russos aos olhos do Irão, o que deve ser o pior
resultado que se poderia desejar", diz ele com amarga satisfação.
"Revoltante", concordo eu, pensando que quanto mais depressa Florence e eu formos para o
campo mais satisfeito ficarei - e talvez ela saiba alguma coisa sobre a Botão de Rosa que eu não
sei, e pergunto-lhe também isso.
"E nós, britânicos, tão desejosos de comércio livre com a América que vamos dizer sim,
Donald, não, Donald, tudo o que quiseres, Donald, até ao desastre final" - levantando a cabeça e
olhando para mim fixamente, sem pestanejar. "Não vamos, Nat? Diga lá."
E eu concordo pela segunda vez, ou talvez seja a terceira, notando apenas que ele só costuma
começar a endireitar o mundo quando estamos sentados à Stammtisch diante das nossas
cervejas. Mas ainda não acabou, o que me dá muito jeito:
"O homem é puro ódio. Odeia a Europa, e já o disse. Odeia o Irão, odeia o Canadá, odeia
tratados. O que é que ele ama?"
"Talvez o golfe", sugiro eu.
O campo número três tem correntes de ar e está degradado. Ocupa sozinho um anexo nas
traseiras do clube, pelo que não há espectadores, nem passantes, razão pela qual pensei que Ed
o tinha reservado. Estamos à espera de que cheguem as raparigas. Era mais uma oportunidade
de Ed levantar a questão bicuda de como Florence e eu nos tínhamos conhecido, mas eu animo-
o a continuar a falar do Irão.
A porta do vestiário das senhoras abre-se. Sozinha e equipada a preceito, Laura avança pela
passarela em passo inseguro: calções novos em folha, sapatilhas aos quadrados impecáveis, T-
shirt de Che Guevara, raquete de nível profissional ainda no invólucro.
Entra agora Florence, não em traje de trabalho, não em fato de apresentação nem em botas
encharcadas: simplesmente uma mulher jovem, libertada, esguia, segura de si, de saia curta e
luzidias
102

coxas brancas da adolescência de Ed. Eu olho disfarçadamente para ele. Mais do que parecer
impressionado, afivelava a expressão mais desinteressada. A minha reação, por sua vez, é de
indignação bem-humorada: não é justo que tenhas esse aspeto, Florence. Depois controlo-me e
transformo-me de novo num responsável e recatado marido e pai.
Emparelhamo-nos da única forma que faz sentido. Laura e Ed contra Florence e Nat. Na
prática, isto significa que Laura fica de nariz colado à rede e tenta bater em tudo o que vai na
sua direção, e Ed devolve tudo aquilo que ela não estraga. Significa também que entre jogadas
Florence e eu temos muitas oportunidades de trocar disfarçadamente umas palavras.
"Você é a competentíssima assistente de alguém", digo-lhe eu enquanto ela apanha um volante
do fundo do campo. "É tudo o que sei a seu respeito. Eu sou amigo do seu patrão. O resto,
invente."
Não tive resposta, nem esperava. Linda menina. Ed está a resolver um problema com uma das
sapatilhas de Laura que se desapertou, ou é isso que ela diz, porque a atenção de Ed significa
tudo para ela.
"Encontrámo-nos por acaso no escritório de um amigo meu", continuo. "Você estava sentada ao
seu computador quando eu entrei. Tirando isso, não nos conhecemos de lado nenhum." E em
voz muito baixa, como se tivesse acabado de me ocorrer perguntar-lhe: "Soube alguma coisa da
Botão de Rosa enquanto eu estava em Northwood?"
A nada disto recebo o mínimo sinal de resposta.
Fazemos o aquecimento a três, ignorando Laura junto à rede. Florence é uma atleta fantástica:
tempos e reações sem esforço, ágil como uma gazela e graciosa para além da conta. Ed faz os
seus saltos e investidas habituais, mas mantém os olhos no chão entre jogadas. O que me parece
é que o seu estudado desinteresse por
103

Florence tem Laura no pensamento: não quer que a irmãzinha fique aborrecida.
Mais uma jogada entre nós os três, até que Laura berra que estamos a deixá-la de fora e assim
não tem graça nenhuma. Paramos todos enquanto Ed se põe de joelhos a consolá-la. É o
momento ideal para Florence e eu ficarmos calmamente frente a frente com as mãos nas ancas e
completarmos o nosso disfarce.
"O meu amigo e seu patrão negoceia em bens de grande consumo e você é uma colaboradora
temporária de alto nível."
Mas, em vez de dar ouvidos à minha história, ela decide prestar atenção ao desconforto de
Laura e às tentativas de Ed para animá-la. Com um grito de "Ei, vocês dois, parem com isso
imediatamente!", salta para junto da rede e decreta que mudemos de parceiros e passemos a
jogar homens contra mulheres num combate mortal, à melhor de três jogos, sendo ela a
primeira a servir. Vai a caminho da outra metade do campo quando eu lhe toco no braço nu.
"Está de acordo? Ouviu o que eu lhe disse. Acha bem?"
Ela roda sobre si e olha-me fixamente.
"Não estou para dizer mais mentiras, porra", responde com veemência na voz e fogo no olhar.
"Nem a ele nem a ninguém. Ouviu?"
Eu ouvi, mas Ed também terá ouvido? Felizmente não dá qualquer sinal disso. Passando para o
outro lado da rede, Florence arranca Laura da mão do irmão e manda-o para junto de mim.
Jogamos a nossa partida épica, os homens do mundo contra as mulheres do mundo. Florence
ataca ferozmente todos os volantes que vão na sua direção. Com uma grande ajuda dos homens,
nós, as mulheres concretizam a sua supremacia e, de raquete bem levantada, seguem para o
vestiário delas e Ed e eu seguimos para o nosso.
Será a vida amorosa dela? - pergunto-me eu. Aquelas lágrimas solitárias que vi, mas não
questionei? Ou estaremos perante um
104

caso daquilo a que os psicoterapeutas da Repartição gostam de chamar síndrome das bossas de
camelo, quando as coisas sobre as quais não podemos falar ultrapassam aquelas sobre as quais
podemos, e temporariamente cedemos à pressão?
Tiro do cacifo o telemóvel de serviço, saio para o corredor, marco o número de Florence e ouço
uma voz eletrónica que me diz que a linha está desligada. Tento mais duas ou três vezes, sem
resultado. Volto para o vestiário. Ed já tomou duche e está sentado no banco de ripas com uma
toalha à volta do pescoço.
"Estava aqui a pensar", diz, relutante, sem reparar que eu tinha saído do vestiário e estava agora
a voltar. "Bem, você sabe. Só se você estivesse de acordo, digamos assim. Talvez pudéssemos ir
jantar a qualquer sítio. Não no bar, que a Laura não gosta. Algum sítio fora daqui. Nós os
quatro. Pago eu."
"Quer dizer agora?"
"Yeah. Se estiver de acordo. Porque não?"
"Com a Florence?"
"Foi o que eu disse. Os quatro."
"Como é que sabe se ela está livre?"
"Está. Eu perguntei-lhe. Disse que sim."
Penso rapidamente e sim, estou de acordo. E no momento em que tiver oportunidade, de
preferência antes da refeição, e não depois - vou descobrir que diabo se passa na cabeça dela.
"Há o Golden Moon aqui perto", sugiro. "Chinês. Está aberto até tarde. Podíamos
experimentar."
Tinha acabado de dizer isto quando o meu telemóvel de serviço encriptado toca. Florence,
finalmente, penso. Graças a Deus. Num minuto declara que deixou de cumprir as regras da
Repartição e no minuto seguinte vamos todos jantar.
Resmoneando qualquer coisa sobre Prue que está a precisar de mim, saio para o corredor. Mas
não é Prue e também não é Florence. É Ilya, o agente de serviço no Porto de Abrigo esta noite,
105

e eu penso que ele me vai dar a notícia há muito esperada de que temos o sim da subcomissão
para a Botão de Rosa, e já não era sem tempo.
Só que não era por isso que Ilya estava a ligar.
"Chegou mensagem, Nat. Do seu amigo agricultor. Para o Peter."
Por "amigo agricultor" entenda-se Forquilha, estudante de investigação russo na Universidade
de York, herdado de Giles. Por Peter entenda-se Nat.
"A dizer o quê?", quero eu saber.
"A pedir que o visite o mais depressa possível. Você pessoalmente, mais ninguém. E que é de
extrema urgência."
"Diz assim mesmo?"
"Posso reenviar-lha, se quiser."
Volto para o vestiário. Não tem nada que saber, como diria Steff. Umas vezes somos sacanas,
outras vezes somos samaritanos e outras ainda erramos redondamente. Mas faltar a um agente
na sua hora de necessidade é faltar-lhe para sempre, como o meu mentor Bryn Jordan
costumava dizer. Ed continua sentado no banco de ripas, de cabeça pendente para a frente. Tem
os joelhos afastados e está a olhar para o chão por entre eles enquanto eu consulto horários de
comboios no telemóvel. O último para York parte de King's Cross dentro de cinquenta e oito
minutos.
"Lamento, Ed, mas vou ter de vos deixar", digo eu. "Afinal não vou jantar ao chinês. Tenho de
resolver um problema antes que ele se complique."
"Tenho pena", comenta Ed, sem levantar a cabeça.
Eu dirijo-me à porta.
"Ouça, Nat."
"O quê?"
"Obrigado, está bem? Foi muito simpático. A Florence também. Já lhe disse. Fizeram a Laura
muito feliz. Só tenho pena de que não possa vir connosco ao chinês."
106

"Eu também tenho. Escolham o pato à Pequim. Vem com panquecas e compota. Que raio se
passa consigo?"
Ed abriu as mãos num gesto teatral, e está a abanar a cabeça como se estivesse desesperado.
"Quer saber uma coisa?"
"Se for rápida."
"Ou a Europa está fodida ou alguém com tomates tem de descobrir um antídoto para o Trump."
"E quem poderá ser?", pergunto eu.
Não obtenho resposta. Ele voltou a mergulhar nos seus pensamentos, e eu vou a caminho de
York.
107

Estou a fazer o que é decente. Estou a responder ao grito que qualquer controlador de agentes
do mundo leva consigo para a cova. A música varia, a letra varia, mas no fim a canção é sempre
a mesma: não consigo viver comigo próprio, Peter, o stress está a dar cabo de mim, Peter, o
fardo da minha traição é demasiado pesado para mim, a minha amante deixou-me, a minha
mulher engana-me, os meus vizinhos desconfiam de mim, o meu cão foi atropelado e você, meu
leal controlador, é a única pessoa no mundo que pode convencer-me a não cortar os pulsos.
Porque é que nós, controladores de agentes, vamos sempre a correr? Porque lhes devemos isso.
Mas não sinto que deva muito ao claramente inativo agente Forquilha, nem é ele a minha
principal preocupação quando me sento num comboio atrasado para York, numa carruagem
cheia de crianças guinchantes que regressam de uma excursão a Londres. Estou a pensar na
recusa de Florence em alinhar comigo numa história de fachada que é tão natural nas nossas
vidas secretas como lavar os dentes. Estou a pensar na luz verde para a Operação Botão de Rosa
que ainda se recusa a concretizar-se. Estou a pensar na resposta de Prue quando lhe telefonei a
dizer que hoje não vou dormir a casa e lhe perguntei se tinha notícias de Steff:
109

"Só sei que se mudou para um sítio chique em Clifton e não diz com quem."
"Clifton? Quem é que paga a renda?"
"Isso não vamos poder perguntar. Um email. Só funciona num sentido" - por uma vez incapaz
de esconder o tom de desespero na voz.
E quando a voz triste de Prue não está a ressoar-me no ouvido, tenho a de Florence para me
entreter: Não estou para dizer mais mentiras, porra. Nem a ele nem a ninguém. Ouviu? O que
por sua vez me faz voltar a uma questão que não me sai da cabeça desde o meloso telefonema
de Dom com a sua oferta do carro com motorista, porque Dom nunca faz nada sem uma razão,
por muito tortuosa que seja. Tento mais duas ou três vezes ligar para o telemóvel de serviço de
Florence, ouço o mesmo uivo eletrónico. Mas continuo a pensar em Dom: porque é que
quiseste hoje afastar-me do teu caminho? E por acaso és tu a razão de Florence ter decidido
deixar de mentir pelo seu país, decisão ponderosa para alguém que escolheu a profissão de
mentir pelo seu país?
Por isso é só em Peterborough que, protegido por um exemplar gratuito do Evening Standard,
digito uma fiada interminável de algarismos e entrego-me ao insatisfatório caso de estudo do
agente Forquilha.
Chama-se Sergei Borisovich Kusnetsev e, contra todas as regras conhecidas da minha profissão,
a partir daqui passo a chamar-lhe simplesmente Sergei. Nascido em Sampetersburgo, é filho e
neto de chekistas(1), sendo o seu avô um respeitado general da NKVD sepultado na muralha do
Kremlin e o pai um antigo coronel do

(1) Membros da Cheka, polícia secreta russa criada pelo governo bolchevique em 1917. (N. do
T.)
110

KGB que morreu de múltiplos ferimentos sofridos na Chechénia. Até aqui, tudo bem. Mas
ainda não é certo que Sergei seja verdadeiramente herdeiro desta nobre linhagem.
Os factos conhecidos abonam em seu favor. Mas são muitos, dir-se-ia que demasiados. Com
dezasseis anos foi enviado para uma escola especial perto de Perm, que além de física ensinava
"estratégia política", um eufemismo para conspiração e espionagem.
Com dezanove anos entrou para a Universidade Estatal de Moscovo. Tendo-se diplomado com
distinção e louvor em Física e Inglês, foi selecionado para frequentar uma escola especial para
agentes adormecidos. Desde o primeiro dia do curso de dois anos, de acordo com o seu
testemunho, tomou a decisão de desertar no país europeu onde fosse colocado, fosse ele qual
fosse, o que explica que, ao aterrar no aeroporto de Edimburgo às dez horas da noite, tenha
pedido delicadamente para falar com um "funcionário superior dos Serviços Secretos
Britânicos".
As razões alegadas para isto eram inatacáveis. Desde tenra idade, afirmava, venerava
secretamente luminárias da física e do humanismo como Sakharov, Niels Bohr, Richard
Feynman e até o nosso Stephen Hawking. Sempre sonhara com liberdade para todos, física para
todos, humanismo para todos. Assim sendo, como podia não odiar o bárbaro autocrata Vladimir
Putin e os seus malignos atos?
Sergei era também reconhecidamente homossexual. Este facto, por si só, ditaria a sua imediata
expulsão do curso se chegasse ao conhecimento dos seus colegas ou professores. Mas, segundo
Sergei, isso nunca aconteceu. Conseguiu manter uma fachada heterossexual, namoriscando as
raparigas do curso e chegando a ir para a cama com duas ou três - segundo ele, apenas para
disfarçar.
E para confirmar tudo o que acima se diz basta olhar para a inesperada arca do tesouro pousada
em frente dos seus perplexos interrogadores: duas malas e uma mochila contendo um
equipamento
111

completo de verdadeiro espião: papel químico para escrita secreta impregnado com compostos
muito avançados; uma namorada a quem escrever na Dinamarca, sendo a mensagem escrita
entre linhas em tinta invisível; uma máquina fotográfica muito pequena encastrada numa
corrente de porta-chaves; três mil libras para as primeiras despesas, em notas de dez e de vinte,
escondidas no fundo de uma das malas; um maço de cifras de uso único e, como bonne bouche,
o telefone de Paris para onde pode ligar apenas numa emergência.
E tudo registado, até aos retratos à pena que fazia dos seus pseudoanónimos formadores e
colegas formandos, os truques da profissão que lhe ensinaram, os trabalhos práticos que fez e a
sua missão sagrada de leal agente adormecido russo, que recitava como um mantra: estuda
muito, conquista o respeito dos teus colegas cientistas, adota os valores e filosofia deles,
escreve artigos para as suas eruditas publicações. Em caso de emergência, nunca, sob pretexto
algum, tentes contactar a desfalcada rezidentura da Embaixada Russa em Londres porque nunca
ninguém terá ouvido falar de ti e, de qualquer forma, as rezidenturas não prestam serviços a
agentes adormecidos, que constituem uma elite, são apaparicados praticamente desde que
nascem e controlados por uma equipa exclusiva própria no Centro de Moscovo. Não faças
ondas, contacta-nos uma vez por mês e sonha todas as noites com a Mãe Rússia.
O único motivo de curiosidade - e, para os seus interrogadores, de algo mais que curiosidade -
era que não havia em nada disto o mínimo de informação nova ou utilizável. Todas as migalhas
que revelou já tinham sido reveladas por desertores precedentes: as personalidades, os métodos
de ensino, as práticas profissionais, até mesmo os brinquedos dos espiões, dois dos quais
figuravam em cópias no museu preto existente nas instalações para visitantes ilustres, no rés do
chão da Sede.
112

Apesar das reservas dos interrogadores, o departamento da Rússia, chefiado pelo agora ausente
Bryn Jordan, recebeu Forquilha com todas as honras reservadas aos desertores, levando-o a
jantares e a jogos de futebol, colaborando na redação dos relatórios mensais para a sua fictícia
namorada na Dinamarca sobre os atos dos seus colegas cientistas, pondo-lhe escutas nos
aposentos, intercetando-lhe as comunicações e colocando-o intermitentemente sob vigilância
discreta. E esperando.
Mas esperando o quê? Durante seis, oito, doze dispendiosos meses não chegou um único sinal
de vida dos seus controladores no Centro de Moscovo: nenhuma carta com ou sem o seu
subtexto secreto, nenhum email, telefonema ou frase mágica pronunciada num programa de
rádio comercial predeterminado e difundido a uma hora predeterminada. Terão desistido dele?
Tê-lo-ão denunciado? Terão acordado para a sua homossexualidade escondida e tirado as
devidas conclusões?
Com cada mês improdutivo a suceder-se ao anterior, a paciência do departamento da Rússia
evaporou-se até ao dia em que Forquilha foi entregue ao Porto de Abrigo para "manutenção e
desenvolvimento não-ativo" - ou, como dizia Giles - "para ser manuseado com luvas de
borracha grossa e pinças de amianto muito compridas, porque, se alguma vez me cheirou a
agente triplo, este rapaz tem todos os sinais e mais algum".
Os sinais talvez, mas nesse caso eram de ontem. Hoje, se a experiência me ensinava alguma
coisa, Sergei Borisovich era apenas mais um pobre peão no ciclo interminável de jogos
duplamente duplos dos russos que teve a sua hora e foi descartado. E agora decidiu que estava
na altura de premir o seu botão de socorro.
113

Os miúdos barulhentos mudaram-se para a carruagem-restaurante. Sozinho no meu lugar de


canto, ligo para Sergei pelo telemóvel que lhe demos e ouço a mesma voz submissa e
inexpressiva que recordo da cerimónia de passagem de testemunho com Giles, em fevereiro.
Digo-lhe que estou a responder ao telefonema dele. Ele agradece-me. Pergunto-lhe como está.
Está bem, Peter. Digo-lhe que só chego a York às onze e meia e pergunto-lhe se precisa de se
encontrar comigo hoje à noite ou pode esperar até amanhã de manhã. Está cansado, Peter,
portanto talvez seja melhor ficar para amanhã, obrigado. Afinal, não havia "extrema urgência"
nenhuma. Digo-lhe que vamos seguir o nosso "procedimento tradicional" e pergunto se por ele
está bem, porque o agente no terreno, por muito dúbio que seja, tem sempre de ter a última
palavra em matérias operacionais. Obrigado, Peter, por ele está bem seguir o procedimento
tradicional.
Do meu malcheiroso quarto de hotel volto a tentar ligar para o telemóvel de serviço de
Florence. Já passa da meia-noite. Mais uivos eletrónicos. Como não tenho mais nenhum
número dela, ligo para o Porto de Abrigo e falo com Ilya. Sabe alguma coisa sobre a Botão de
Rosa?
"Lamento, Nat, nem um pio."
"Bem, também não é preciso ser tão atrevido, gaita", digo-lhe com rispidez e desligo, irritado.
Podia ter-lhe perguntado se por acaso soube alguma coisa de Florence, ou se sabe porque é que
ela tem o telefone de serviço desligado, mas Ilya é jovem e volátil e eu não quero toda a família
do Porto de Abrigo preocupada. Todos os funcionários são obrigados a fornecer um número
fixo para onde possam ser contactados fora de horas, no caso de não terem rede de telemóvel. O
último número fixo que Florence indicou era de Hampstead, onde me
114

lembro de que também gosta de correr. Aparentemente, ninguém reparou que Hampstead não
corresponde exatamente à sua afirmação de que vive com os pais em Pimlico, mas, como
Florence me garantiu, há sempre o autocarro 24.
Marco o número de Hampstead, vou parar ao atendedor e digo que sou Peter da Segurança de
Clientes e que temos razões para crer que a conta dela foi pirateada, pelo que lhe pedimos que,
para sua segurança, ligue o mais depressa possível para este número. Bebo uma grande
quantidade de uísque e procuro dormir.

O "procedimento tradicional" que estou a impor a Sergei data do tempo em que ele era tratado
como um agente duplo vivo com sérias perspetivas de evolução. O ponto de encontro era o átrio
do hipódromo municipal de York. Ele devia chegar de autocarro, munido de um exemplar da
véspera do Yorkshire Post enquanto o seu controlador esperava perto da paragem dentro de um
carro da Repartição. Sergei acompanharia a multidão durante o tempo suficiente para a equipa
de vigilância de Percy Price decidir se o encontro estava a ser coberto pela concorrência,
possibilidade que talvez não fosse tão remota como pode parecer. Quando a equipa da casa
desse luz verde, Sergei iria calmamente até à paragem dos autocarros e consultaria os horários.
Jornal na mão esquerda significava abortar. Jornal na mão direita significava avançar.
Já o procedimento para a nossa cerimónia de passagem de testemunho concebido por Giles
tinha sido bastante menos tradicional. Giles havia insistido em que tivesse lugar nos aposentos
de Sergei no campus da universidade, com sanduíches de salmão fumado e uma garrafa de
vodca para empurrar. O nosso diáfano disfarce para o caso de termos de nos explicar? Giles era
um professor convidado de Oxford e eu o seu escravo núbio.
115

Bem, agora estamos de volta ao procedimento tradicional, sem salmão rumado. Eu aluguei um
Vauxhall muito usado, o melhor que a empresa de aluguer tem para me oferecer na altura.
Conduzo com um olho no retrovisor e sem a menor ideia do que procuro, mas ainda assim
olhando. O dia está cinzento, cai uma chuva miúda, a previsão é de mais chuva. A estrada para
o hipódromo é reta e plana. Talvez os romanos também fizessem aqui corridas. Grades brancas
tremeluzem à minha esquerda. Surge na minha frente um pórtico ornado de bandeiras. Abro
caminho a baixa velocidade entre pessoas que andam às compras e apreciadores de dias
molhados.
E lá está de facto Sergei na paragem de autocarros entre um magote de passageiros à espera,
consultando um horário amarelo. Segura um exemplar do Yorkshire Post na mão direita e na
esquerda uma pasta de música que não faz parte do guião, com um guarda-chuva enrolado
enfiado debaixo da aba. Encosto uns metros à frente da paragem de autocarros, baixo o vidro e
grito: "Ei, Jack! Lembra-se de mim? Sou o Peter!"
A princípio ele finge que não me ouve. É dos livros e assim tem de ser, depois de dois anos na
escola de agentes adormecidos. Roda a cabeça com ar intrigado, descobre-me, simula surpresa e
prazer.
"Peter! Meu amigo! É você. Não acredito no que os meus olhos vêem."
Okay, basta, entra no carro. Ele entra. Esboçamos um abraço para espectador ver. Ele traz uma
gabardine Burberry nova, bege. Despe-a, dobra-a e pousa-a cuidadosamente no banco traseiro,
mas mantém a pasta de música entre os joelhos. Quando arrancamos, um homem que está na
paragem de autocarros faz uma cara feia para a mulher que está ao seu lado. Sabes o que eu vi
agora mesmo? Maricas de meia-idade engata prostituto novinho e bonito em plena luz do dia.
116

Verifico se alguém arranca atrás de nós, carro, carrinha ou moto. Nada chama a minha atenção.
Segundo o procedimento tradicional, Sergei não sabe de antemão para onde vai ser levado, e
por isso não lhe digo. Está mais magro e apreensivo do que me lembro de o ver na passagem de
testemunho. Tem um tufo de cabelo negro desgrenhado e uns olhos lânguidos e tristes. Os seus
dedos compridos tamborilam no painel de instrumentos. Nos seus aposentos da faculdade
tamborilavam o mesmo ritmo no braço de madeira da cadeira. O seu casaco novo Harris Tweed
fica-lhe largo nos ombros.
"Que traz na pasta de música", quero eu saber.
"É papel, Peter. Para si."
"Só papel?"
"Por favor. é papel muito importante."
"Folgo em saber."
O meu laconismo não o perturba. Talvez já estivesse à espera dele. Talvez esteja sempre à
espera dele. Talvez me despreze, como suponho que despreza Giles.
"Tem alguma coisa no corpo, na roupa, ou qualquer outra coisa além do papel na pasta de
música de que eu deva ter conhecimento? Nada que filme, grave, faça coisas desse género?"
"Por favor, Peter, é claro que não. Tenho excelentes notícias. Você vai ficar contente."
É quanto me basta até chegarmos ao destino. Com o barulho do motor a diesel e o chiar da
carroçaria receio que ele conte coisas que eu não consiga ouvir e o meu smartphone de serviço
não consiga gravar nem transmitir para o Porto de Abrigo. Vamos a falar inglês e assim
continuaremos até eu decidir outra coisa. Giles não falava russo de jeito. Não vejo interesse em
que Sergei saiba que eu sou diferente. Escolhi o alto de uma encosta a vinte milhas da
localidade que se dizia ter uma bela vista sobre a charneca, mas tudo o que vemos quando paro
o Vauxhall e desligo o motor é uma
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nuvem cinzenta aos nossos pés e chuva tocada a vento contra o para-brisas. Pelas leis da
espionagem, por esta altura já devíamos ter chegado a acordo quanto a quem somos, se fomos
incomodados, quando e onde voltaremos a encontrar-nos e se ele tem alguma angústia
premente. Mas ele pousou a pasta de música no colo e já está a abrir os atilhos e a tirar um
envelope almofadado A4 castanho, aberto.
"O Centro de Moscovo comunicou finalmente comigo, Peter. Ao fim de um ano inteiro",
declara num tom entre a sobranceria académica e o entusiasmo refreado. "É evidentemente
importante. A minha Anette de Copenhaga escreveu-me uma carta bela e erótica e por baixo,
com a nossa tinta secreta, uma carta do meu controlador no Centro de Moscovo que eu traduzi
para inglês" - e faz-me a entrega solene do envelope.
"Espere um momento, Sergei." Tomei posse do envelope almofadado, mas não olhei lá para
dentro. "Deixe-me ver se percebi bem. Você recebeu uma carta de amor da sua amiga na
Dinamarca. Depois aplicou o produto necessário, revelou o subtexto secreto, descodificou-o e
traduziu o conteúdo para inglês em meu benefício. Tudo isso sozinho. Sem ajuda de ninguém.
Certo?"
"Correto, Peter. A nossa paciência conjugada é recompensada." "Então quando, exatamente,
recebeu esta carta da Dinamarca?" "Na sexta-feira. Ao meio-dia. Nem queria acreditar no que
vi." "E hoje é terça-feira. Esperou até ontem à tarde para contactar o meu escritório."
"Passei o fim de semana a trabalhar e sempre a pensar em si. Dia e noite senti-me tão feliz por
estar a revelar e a traduzir ao mesmo tempo na minha cabeça, só tendo pena que o nosso bom
amigo Norman não estivesse connosco para gozar o nosso sucesso." Norman queria dizer Giles.
"Portanto, a carta dos seus controladores em Moscovo está nas suas mãos desde sexta-feira.
Entretanto mostrou-a a mais alguém?"
118

"Não, Peter, não mostrei. Veja por favor dentro do envelope."


Eu ignoro o pedido. Já nada o perturba? O seu estatuto académico coloca-o acima da multidão
dos vulgares espiões?
"E enquanto revelava e traduzia não lhe ocorreu que tem ordens permanentes para dar
conhecimento imediato de qualquer carta ou outra comunicação que receba dos seus
controladores russos ao seu contacto..."
"Mas é claro que sim. Foi exatamente o que fiz, logo que acabei de descodificar..."
"... antes que seja tomada qualquer outra medida por si, por nós ou por qualquer outra pessoa?
Razão pela qual os seus entrevistadores lhe tiraram o composto de revelação logo que chegou a
Edimburgo, faz agora um ano? Para você não poder fazê-lo pessoalmente?"
E quando tinha esperado tempo suficiente para permitir que a minha irritação não inteiramente
fingida se acalmasse e continuava a não receber outra resposta que não fosse um suspiro de
tolerância face à minha ingratidão:
"Que fez você para conseguir o composto? Entrou na primeira farmácia e leu em voz alta uma
lista dos ingredientes para que qualquer pessoa que estivesse a ouvir pensasse ah, bom, aquele
tem uma carta secreta para revelar? Talvez haja uma farmácia na universidade. Há?"
Estamos sentados lado a lado, a ouvir a chuva.
"Por favor, Peter. Eu não sou estúpido. Fui à cidade de autocarro. Fiz compras em muitas
farmácias diferentes. Paguei em dinheiro, não meti conversa com ninguém, fui discreto."
A mesma compostura. A mesma superioridade inata. E sim, este homem pode muito bem ser
filho e neto de destacados chekistas.
119

Só agora consinto em ver o que está dentro do envelope.


Saem em primeiro lugar duas longas cartas, a de cobertura e o subtexto em carbono. Ele tinha
copiado ou fotografado todas as fases da revelação e as provas ali estavam para eu ver,
cuidadosamente ordenadas e numeradas.
Em segundo lugar, o envelope com selos dinamarqueses e o nome e endereço dele na
universidade escritos numa juvenil caligrafia continental na frente, e no verso o nome e morada
da remetente: Anette Pedersen, que mora no número cinco do rés do chão de um edifício de
apartamentos num subúrbio de Copenhaga.
Em terceiro lugar, o texto de cobertura em inglês, ocupando seis páginas densamente escritas na
mesma caligrafia juvenil do envelope, louvando-lhe a destreza sexual em termos pueris e
garantindo que bastava à autora da carta pensar nele para ter um orgasmo.
A seguir o subtexto ampliado com colunas consecutivas de grupos de quatro algarismos. Depois
a versão em russo, descodificada com as suas cifras de uso único.
E finalmente a tradução, feita por ele, do texto russo en clair para inglês, para meu benefício
pessoal de não-falante de russo. Franzo o nariz à versão russa, ponho-a de parte com um gesto
de incompreensão, pego na tradução para inglês e leio-a duas ou três vezes enquanto Sergei
finge satisfação e espalma as mãos no painel de instrumentos para aliviar a tensão.
"Moscovo quer que você vá viver para Londres logo que comecem as férias grandes", comento
em tom casual. "Porque é que acha que eles querem isso?"
"Quem diz é ela", corrige-me ele numa voz rouca.
"Quem?"
"A Anette."
"Está a dizer então que a Anette é uma mulher real. Não é um homem do Centro que assina
como uma mulher?"
120

"Eu conheço essa mulher."


"A mulher verdadeira'? A Anette? Está a dizer que a conhece?"
"Correto, Peter. A mesma que se faz passar por Anette para fins conspirativos."
"E como é que chega a essa extraordinária conclusão, posso saber?"
Ele contém um suspiro indicativo de que está prestes a entrar em território no qual eu não estou
preparado para o seguir.
"Todas as semanas, durante uma hora, esta mulher dava-nos aulas de inglês na escola para
agentes adormecidos. Preparava-nos para a atividade conspirativa na Inglaterra. Relatava
muitos casos de estudo interessantes e dava-nos muitos conselhos e ânimo para o nosso trabalho
secreto."
"E diz-me que o nome dela era Anette?"
"Como todos os professores e todos os alunos, só tinha um nome de trabalho."
"Qual?
"Anastasia."
"Então não era Anette?"
"é irrelevante."
Eu cerro os dentes e não digo nada. Passado pouco tempo ele recomeça no mesmo tom
condescendente.
"A Anastasia é uma mulher de considerável inteligência que também é capaz de discutir física
complexa. Descrevi-a em pormenor aos seus interrogadores. Você parece desconhecer esta
informação."
Era verdade. Ele tinha descrito Anastasia. Só que não em termos tão precisos e exuberantes
nem, de certeza, como uma futura correspondente chamada Anette. Para os interrogadores era
apenas mais uma apparatchik do Centro de Moscovo com passagem pela escola de agentes
adormecidos para brunir a imagem.
121

"E pensa que a mulher que se chamava Anastasia na escola de agentes adormecidos escreveu
pessoalmente esta carta?"
"Estou convencido disso."
"Só o subtexto, ou também a carta de cobertura?"
"As duas. A Anastasia passou a ser Anette. Isto é um sinal de reconhecimento para mim. A
Anastasia, a nossa sábia professora do Centro de Moscovo, transformou-se em Anette, a minha
amante apaixonada de Copenhaga que não existe. Além disso, conheço bem a caligrafia dela.
Quando nos dava aulas na escola de agentes adormecidos, a Anastasia aconselhava-nos sobre os
tipos de caligrafia europeia sem influência do cirílico. Tudo o que nos ensinava tinha um único
propósito: a nossa assimilação com o inimigo ocidental: "Com o tempo, vocês vão transformar-
se neles. Vão pensar como eles. Vão falar como eles. Vão sentir como eles e escrever como
eles. Só no mais íntimo dos vossos corações vão continuar a ser um de nós." Tal como eu, ela
pertencia a uma velha família chekista. O pai, e o avô também. Tinha muito orgulho nisso. No
fim da última aula que nos deu chamou-me à parte e disse-me: nunca saberás o meu nome, mas
tu e eu somos do mesmo sangue, somos puros, somos a velha Cheka, somos a Rússia, felicito-te
de todo o coração pela tua grande vocação. Abraçou-me."
Foi aqui que os primeiros ecos ténues do meu passado operacional começaram a soar aos
ouvidos da minha memória? Provavelmente foi, porque o meu instinto imediato foi desviar a
conversa.
"Que máquina de escrever usou?"
"Só manual, Peter. Não uso nada que seja eletrónico. Foi assim que nos ensinaram. A eletrónica
é muito perigosa. A Anastasia, a Anette, não é eletrónica. É tradicional e deseja que os seus
alunos também sejam tradicionais."
Fazendo uso de bem treinadas capacidades de autocontrolo, eu finjo ignorar a obsessão de
Sergei com a mulher Anette ou
122

Anastasia e retomo a leitura do subtexto por ele descodificado e traduzido.


"Querem que arrende um quarto ou apartamento para os meses de julho e agosto num de três
bairros selecionados na zona norte de Londres - certo? - com características que o seu
controlador - você diz que é esta antiga professora - especifica. Essas instruções sugerem-lhe
alguma coisa?"
"É como ela nos ensinou. Para preparar um encontro conspirativo é essencial ter alternativas de
local. Só assim é possível prever as alterações logísticas e observar a segurança. é também esta
a máxima operacional por que ela se rege."
"Alguma vez esteve nalgum desses bairros do Norte de Londres?"
"Não, Peter, nunca estive."
"Quando foi a última vez que esteve em Londres?"
"Em maio, só por um fim de semana."
"Com quem?"
"é irrelevante, Peter."
"Não é, não."
"Uma pessoa amiga."
"Homem ou mulher?"
"é irrelevante."
"Portanto, homem. O amigo tem nome?"
Não obtenho resposta. Continuo a minha leitura:
"Enquanto em Londres, nos meses de julho e agosto, adotará o nome de Markus Schweizer,
jornalista freelancer suíço de língua alemã, para o que lhe será fornecida documentação
adicional. Conhece algum Markus Schweizer?"
"Não conheço semelhante pessoa, Peter."
"Já alguma vez usou este nome suposto?"
"Não, Peter."
"Nunca ouviu falar dele?"
123

"Não, Peter."
"Markus Schweizer era o nome do amigo que levou consigo a Londres?"
"Não, Peter. E não o levei comigo. Ele acompanhou-me."
"Mas você fala alemão."
"Razoavelmente."
"Segundo os seus entrevistadores, mais do que razoavelmente. Dizem que fluentemente. Estou
mais interessado em saber se tem alguma explicação para as instruções de Moscovo."
Voltei a perdê-lo. Resvalou para uma contemplação como a de Ed, de olhos pregados no para-
brisas coberto de chuva. De repente tem um anúncio a fazer:
"Peter, lamento muito, mas não sou capaz de ser esse suíço. Não vou para Londres. É uma
provocação. Demito-me."
"O que eu lhe pergunto é por que razão Moscovo queria que você fosse o jornalista freelancer
suiço de língua alemã Markus Schweizer durante dois meses de verão num de três bairros
selecionados do Nordeste de Londres", persisto eu, ignorando esta reação inesperada.
"é para me matarem com mais facilidade. É uma dedução clara para qualquer mente
familiarizada com a forma de atuar do Centro de Moscovo. Para si talvez não seja. Ao fornecer
ao Centro uma morada em Londres estarei a enviar-lhes instruções sobre a forma de me
liquidarem. é prática normal em caso de suspeitos de traição. Moscovo terá o maior prazer em
escolher uma morte de grande sofrimento para mim. Não vou."
"é uma forma um bocado retorcida de fazer a coisa, não acha?", sugiro eu, impassível. "Arrastá-
lo para Londres só para o matar. Porque não trazê-lo para um lugar deserto como este, cavar um
buraco, dar-lhe um tiro e atirá-lo lá para dentro? Depois fazer constar junto dos seus amigos em
York que está de volta a Moscovo em segurança e assunto encerrado? Porque é que não me
124

responde? A sua mudança de ideias tem alguma relação com o amigo sobre o qual não quer
falar-me? Aquele que levou consigo a Londres? Tenho a sensação de que até o conheço. É
possível?"
Estou a dar um salto de intuição. Estou a somar dois mais dois e fazer cinco. Estou a recordar
um episódio que ocorreu durante a cordial passagem de testemunho com Giles nos aposentos de
Sergei na universidade. A porta abre-se sem ninguém ter batido, um jovem expansivo, de brinco
e rabo de cavalo, mete a cabeça e começa a dizer "Ei, Sergei, tens uma..." quando nos vê e com
um "ups" suprimido fecha a porta devagar atrás de si como quem diz que não esteve ali.
Noutra parte da minha cabeça, sou atingido em cheio pela força da memória. Anastasia, aliás
Anette, e quaisquer outros nomes que use, deixou de ser uma sombra fugidia que recordo
vagamente do meu passado. é uma figura sólida de estatura e capacidade operacional, em linha
com a descrição que Sergei acaba de fazer dela.
"Sergei", digo num tom mais suave do que aquele que usei até agora, "por que outra razão não
havia de querer ser Markus Schweizer em Londres durante o verão? Planeou umas férias com o
seu amigo? Esta vida é muito estressante. Nós compreendemos essas coisas."
"Eles só querem matar-me."
"E se de facto fez planos para as férias, e puder dizer-me quem é o seu amigo, talvez possamos
chegar a um acordo mutuamente aceitável."
"Não tenho nenhuns planos, Peter. Penso até que você está a conjeturar. Talvez você tenha esses
planos. Não sei nada a seu respeito. O Norman era simpático comigo. Você é uma parede. Você
é o Peter. Não é o meu amigo."
"Então quem é o seu amigo?", insisto eu. "Vá lá, Sergei. Nós somos humanos. Ao fim de um
ano sozinho aqui em Inglaterra,
125

não me diga que não fez amizade com ninguém. Pronto, talvez devesse ter-nos notificado.
Vamos esquecer isso. Vamos supor que não é nada de sério. Apenas alguém com quem possa ir
para férias. Um parceiro de verão. Porque não?"
Ele vira-se para mim numa fúria russa e vocifera:
"Ele não é o meu parceiro de verão! é o amigo do meu coração!"
"Bom, nesse caso", digo eu, "diria que é exatamente o tipo de amigo de que você precisa e
temos de encontrar uma forma de o manter feliz. Não em Londres, mas pensaremos nalguma
coisa. Ele é estudante?"
"É pós-graduado. é kulturny...", e, para eu compreender melhor: "é culto em todos os assuntos
artísticos."
"E físico como você, talvez?"
"Não. Literatura Inglesa. Os vossos grandes poetas. Todos os poetas."
"Ele sabe que você foi um agente russo?"
"Se soubesse, desprezava-me."
"Mesmo estando você a trabalhar para os britânicos?"
"Despreza toda a mentira."
"Nesse caso não temos de nos preocupar, pois não? Basta que escreva o nome dele nesta folha
de papel."
Ele pega no meu bloco e caneta, vira-se de costas para mim e escreve.
"E a data de nascimento, que certamente sabe", acrescento eu.
Ele volta a escrever, arranca a folha, dobra-a e, com um gesto imperioso, entrega-ma. Eu
desdobro-a, leio o nome rapidamente, meto-a no envelope almofadado com as outras coisas que
ele me trouxe e recebo o bloco de volta.
"Portanto, Sergei", digo, num tom muito mais caloroso. "Vamos resolver a questão do seu Barry
nos próximos dias. De forma positiva. Criativamente, tenho a certeza. Depois já não terei de
comunicar ao Ministério do Interior de Sua Majestade que você deixou
126

de colaborar connosco, pois não? E que com isso violou os termos da sua residência."
Uma nova torrente de chuva varre o para-brisas.
"O Sergei aceita", anuncia ele.

Percorri uma certa distância com o carro e estacionei debaixo de um maciço de castanheiros
onde o vento e a chuva não são tão ferozes. Sentado ao meu lado, Sergei adotou uma pose de
distanciamento superior e finge observar o panorama.
"Falemos então um pouco mais sobre a sua Anette", sugiro eu, escolhendo o meu tom de voz
mais descontraído. "Ou será melhor voltar a chamar-lhe Anastasia, que foi como a conheceu
quando ela foi sua professora? Fale-me mais dos talentos que ela tem."
"É uma linguista e uma mulher de grande qualidade e educação e perita em conspiração."
"Idade?"
"Diria que cinquenta anos. Talvez cinquenta e três. Não é bonita, mas tem muita dignidade e
carisma. De cara também. Uma mulher como ela até podia acreditar em Deus."
Sergei também acredita em Deus, disse-o aos interrogadores. Mas a sua fé não aceita
mediadores. Como intelectual, não gosta de padres.
"Altura?", inquiro eu.
"Diria que um metro e sessenta e cinco."
"Voz?"
"A Anastasia só falava inglês connosco, e nisso era excelente."
"Nunca a ouviu falar russo?"
"Não, Peter, Nunca."
"Nem uma palavra?"
"Não."
127

"Alemão?"
"Só falou alemão uma vez. Para recitar Heine. É um poeta alemão do período romântico,
também judeu."
"Na sua ideia. Agora, ou quando estava a ouvi-la falar. Como a situaria geograficamente? É de
que região?"
Estava à espera de que ele ficasse a pensar ostensivamente, mas reagiu de imediato:
"Fiquei com a impressão de que esta mulher, pelo seu porte, olhos e tez escuros, e também pela
cadência do seu discurso, era da Geórgia."
Vai devagar, digo para mim mesmo. Comporta-te como o profissional medíocre que és.
"Sergei?"
"Sim, Peter?"
"Qual é a data das férias que planeou com o Barry?"
"Vai ser todo o mês de agosto. A ideia é visitar a pé como peregrinos os vossos lugares
históricos britânicos de cultura e liberdade espiritual."
"E quando começa o semestre na sua universidade?"
"Em 24 de setembro."
"Então porque não adia as férias para setembro? Diga-lhe que tem um projeto de investigação
importante em Londres."
"Não posso fazer isso. O Barry vai querer estar sempre comigo."
Mas a minha cabeça já está a fervilhar de alternativas.
"Então e se for assim: nós enviamos-lhe - é apenas um exemplo - uma carta oficial em papel
timbrado da Faculdade de Física da Universidade de Harvard a felicitá-lo pelo seu excelente
trabalho em York. Oferecemos-lhe uma bolsa de investigação em Harvard nos meses de julho e
agosto, com todas as despesas pagas e uma quantia extra. Você pode mostrar isso ao Barry e,
logo que tiver acabado o seu período em Londres como Markus Schweizer, os dois podem
recomeçar no ponto em que ficaram e ir gozar o
128

melhor tempo das vossas vidas com os lindos dólares que Harvard lhe terá dado para o seu
projeto de investigação. Acha que funcionava? Então, funcionava ou não?"
"Desde que a carta fosse plausível e a quantia extra fosse realista, estou convencido de que o
Barry ia orgulhar-se de mim", declara ele.
Há espiões que são pesos-leves a armar em pesos-pesados. Há outros que são pesos-pesados
sem querer. A menos que a minha memória inflamada esteja a enganar-me, Sergei acaba de se
promover à categoria dos pesos-pesados.

Sentados nos bancos da frente do carro, discutimos como dois profissionais as respostas que
vamos enviar a Anette, em Copenhaga: um primeiro rascunho do subtexto em que se garante ao
Centro que Sergei irá cumprir as suas instruções, e a carta de cobertura que eu proponho deixar
à erótica imaginação dele, com a única condição de que, juntamente com o subtexto, eu a
aprove antes de ser enviada.
Tendo concluído - em grande parte para minha conveniência pessoal - que Sergei estará
provavelmente mais à vontade com um contacto do sexo feminino, informo-o de que vai passar
a trabalhar com Jennifer, aliás Florence, em todos os assuntos de rotina. Trato de trazer Jennifer
a York com o objetivo de os dois se conhecerem e discuto com ela qual a fachada que melhor se
ajusta ao seu futuro relacionamento; namorada talvez não, porque Jennifer é alta e bonita e
Barry pode levar a mal. Eu continuarei a ser o controlador de Sergei, Jennifer reportará a mim
em todas as fases. E lembro-me de pensar para comigo que, independentemente do que tivesse
passado pela cabeça de Florence no campo de badmínton, esta era uma operação
129

desafiadora com um agente que ia recuperar-lhe o moral e pôr à prova as suas capacidades.
Numa bomba de gasolina dos arredores de York invisto em duas sanduíches de ovo e agrião e
duas garrafas de limonada com gás. Giles teria certamente aparecido com um cesto da Fortnum.
Depois de acabarmos o piquenique e limparmos as migalhas do carro, deixo Sergei na paragem
de autocarros. Ele faz menção de me abraçar. Eu prefiro apertar-lhe a mão. Para minha
surpresa, a tarde ainda está no início. Devolvo o carro de aluguer e tenho a sorte de apanhar um
comboio rápido que me põe em Londres a tempo de levar Prue ao restaurante indiano do nosso
bairro. Como os assuntos da Repartição estão excluídos, a nossa conversa ao jantar gira em
torno das práticas vergonhosas das Grandes Farmacêuticas. De regresso a casa, vemos o
noticiário do Channel 4 e é neste registo inconclusivo que nos deitamos, mas eu demoro a
adormecer.
Florence ainda não respondeu à minha mensagem telefónica. O veredicto da subcomissão das
Finanças sobre a Botão de Rosa, de acordo com um email tardio que recebi de Viv, é "esperado
a qualquer momento, mas continua pendente". Só não acho estes prenúncios de tão mau agoiro
como podia ter achado porque a minha cabeça ainda rejubila com o improvável elo de ligação
que Sergei e a sua Anette me revelaram. Vem-me à memória um aforismo do meu mentor Bryn
Jordan: se espiarmos o tempo suficiente, o espetáculo volta ao princípio.
130

10

No metro a caminho de Camden Town, naquela quarta-feira de manhã cedo, passei


mentalmente em revista as alternativas que me esperavam. Até onde levar a questão da
insubordinação de Florence? Participar dela aos Recursos Humanos e instigar um tribunal
disciplinar completo com Moira a presidir? Deus me livre. é melhor resolver o assunto cara a
cara com ela, à porta fechada. E, no lado positivo, confiar-lhe o caso do agente Forquilha, que
está a evoluir rapidamente.
Quando entro no átrio lúgubre do Porto de Abrigo, sou surpreendido pelo silêncio invulgar. Está
lá a bicicleta de Ilya, mas onde está Ilya? Onde está toda a gente? Subo as escadas até ao
primeiro andar: silêncio absoluto. As portas todas fechadas. Subo ao segundo. A porta do
cubículo de Florence está selada com fita crepe. Um aviso a vermelho - "Entrada proibida" -
atravessa a porta a toda a largura, e a maçaneta está pulverizada com cera. As duas portas de
acesso ao meu gabinete estão escancaradas. Em cima da minha secretária estão dois
documentos.
O primeiro é um memorando interno de Viv a informar os destinatários de que, depois de
devidamente analisada pela subcomissão das Finanças competente, a Operação Botão de Rosa
foi cancelada por razões de riscos desproporcionados.
131

O segundo é um memorando interno de Moira, a informar todos os departamentos relevantes de


que Florence se demitiu do Serviço na segunda-feira e foi desencadeado o processo de rescisão
completo de acordo com as regras de desvinculação da Sede.

Pensa primeiro, enfrenta a crise depois.


Segundo Moira, a demissão de Florence aconteceu escassas quatro horas antes de ela aparecer
para o jogo de pares com Ed e Laura no Athleticus, o que ajuda muito a explicar o seu
comportamento aberrante. O que é que a tinha levado a demitir-se? Aparentemente o
cancelamento da Operação Botão de Rosa, mas não nos precipitemos. Depois de ler lentamente,
pela terceira vez, os dois documentos, recuei para o patamar, pus as mãos em concha na boca e
gritei:
"Toda a gente cá para fora, por favor. Já."
à medida que a minha equipa emerge cautelosamente das respetivas portas fechadas eu
reconstituo a história, ou melhor, a parte que as pessoas sabem ou estão dispostas a contar. Por
volta das onze horas da manhã de segunda-feira, enquanto eu estava encarnado em segurança
nas catacumbas escuras de Northwood, Florence havia informado Ilya de que tinha um encontro
com Dom Trench no gabinete dele. Segundo Ilya, normalmente uma fonte segura, Florence
parecia mais preocupada que entusiasmada com a perspetiva.
Por volta da uma e um quarto, enquanto Ilya estava no andar de cima a assegurar as
comunicações e o resto da equipa estava cá em baixo a comer as suas sanduíches e a ler os seus
telemóveis, Florence apareceu à porta da cozinha, vinda do seu encontro com Dom. A escocesa
Denise sempre havia sido a mais próxima de Florence na hierarquia, e por norma era ela quem
recebia os seus agentes quando ela estava muito ocupada ou de férias.
132

"Ficou ali especada, Nat, imenso tempo, a olhar para nós como se fôssemos todos malucos" -
Denise, estupefacta.
Florence tinha dito alguma coisa?
"Nem uma palavra, Nat. Limitou-se a olhar para nós."
Da cozinha, Florence tinha subido as escadas para o seu gabinete, fechado a porta à chave e -
voltamos a Ilya - "cinco minutos depois saiu com um saco de compras do Tesco em que levava
os chinelos, uma fotografia com a sua falecida mãe que tinha em cima da secretária, o casaco de
malha para quando o aquecimento está desligado, e coisas de mulher que guardava numa gaveta
da secretária". Como Ilya tinha conseguido ver tudo isto num simples relance é coisa que me
escapa, pelo que é melhor contar com alguma liberdade poética.
Então Florence "beija-me três vezes à maneira russa" - ainda Ilya, entusiasmado - "dá-me mais
um abraço e diz-me que é para nós todos. O abraço. Então eu pergunto, que vem a ser isto,
Florence?, porque sabemos que não devemos tratá-la por Flo. E a Florence responde, não é
nada, Ilya, acontece só que o navio foi invadido pelas ratazanas e eu saltei fora."
Na falta de outro testemunho, estas foram, portanto, as palavras com que Florence se despediu
do Porto de Abrigo. Tivera a sua conversa com Dom, entregara o seu pedido de demissão,
regressara da Sede ao Porto de Abrigo, reunira os seus pertences e às três e cinco da tarde,
aproximadamente, estava de novo na rua e desempregada. Minutos depois da sua saída, dois
sisudos representantes da Segurança Interna - não as ratazanas que tinham invadido o navio,
mas sim Furões, como eram geralmente conhecidos - chegaram numa carrinha verde da
Repartição, levaram o computador e o arquivador metálico de Florence e exigiram saber da
boca de todos os meus colaboradores, um por um, se ela lhes tinha confiado alguma coisa para
guardarem em segurança ou tinha falado com eles sobre as razões da sua decisão. Recebidas
133

as garantias que exigiam quanto às duas questões, selaram o gabinete.

Dando instruções a toda a gente para que continuasse o seu trabalho como era norma, uma
esperança vã, volto à rua, desço uma rua secundária e caminho esforçadamente durante dez
minutos até me sentar num café e pedir um expresso duplo. Respira devagar. Organiza as tuas
prioridades. Tento mais uma vez o telemóvel de Florence. Mudo e quedo. O número de telefone
de Hampstead tem uma mensagem nova. E dita por um homem de classe alta, jovem e
sobranceiro: "Se está a telefonar à procura de Florence, já não está neste número, por isso
desapareça." Ligo para Dom e atende-me Viv:
"Infelizmente, o Dom tem reuniões seguidas o dia inteiro, Nat. Posso ajudá-lo em alguma
coisa?"
Agradeço, mas acho que não pode, Viv. Sabe se as reuniões seguidas que ele tem são no
escritório ou espalhadas pela cidade?
Está a hesitar? Sim, está:
"O Dom não atende chamadas, Nat", diz. E desliga.

"Nat, meu caro", diz Dom num tom de grande surpresa, cedendo ao seu novo hábito de usar o
meu nome como arma. "É sempre bem-vindo. Temos encontro marcado? Podemos deixar para
amanhã? Para ser franco, estou um bocado assoberbado."
E tem os papéis espalhados pela secretária a prová-lo, o que apenas me diz que esteve toda a
manhã à minha espera. Dom não é homem de confrontos, como ambos sabemos. A sua vida é
um
134

avanço de viés entre coisas que não é capaz de enfrentar. Eu fecho a porta do seu gabinete e
sento-me numa cadeira de estilo. Dom continua à secretária, afogado em papéis.
"Então prefere ficar, não é verdade?", pergunta, ao fim de algum tempo.
"Se não se importa, Dom."
Ele pega noutra pasta do tabuleiro de entrada, abre-a, absorve-se intensamente no seu conteúdo.
"Lamento o que se passou com a Botão de Rosa", sugiro eu depois de um silêncio conveniente.
Ele não me ouve. Está demasiado absorto.
"E lamento o que se passou com a Florence", penso em voz alta. "Um dos melhores agentes
russos que a Repartição alguma vez perdeu. Posso ver o relatório? Talvez o tenha aí."
A cabeça continua baixa. "Relatório? Está a falar de quê?"
"O relatório da subcomissão das Finanças. Aquele que fala dos riscos desproporcionados. Posso
vê-lo, por favor?"
A cabeça levanta-se, mas pouco. A pasta aberta que tem diante dos olhos continua a ser mais
importante.
"Nat, devo informá-lo de que, como empregado provisório da Geral de Londres, você não tem
acesso a nada que se pareça com documentos desse nível. Temos mais alguma pergunta?"
"Sim, Dom, temos. Porque foi que a Florence se demitiu? Porque foi que me despachou para
Northwood sob um falso pretexto? Estava a planear atirar-se a ela?"
Com esta última, a cabeça levantou-se com um esticão.
"Eu diria que essa possibilidade fazia mais o seu estilo do que o meu."
"Então porquê?"
Recosta-se na cadeira. Deixa que as pontas dos dedos se encontrem e formem o seu arco de
casamento. Encontram-se. O discurso ensaiado pode começar.
135

"Nat, como pode imaginar, tive efetivamente, a título estritamente pessoal e confidencial,
conhecimento prévio da decisão da subcomissão."
"Quando?"
"Isso não lhe diz minimamente respeito. Posso continuar?"
"Faça favor."
"A Florence, como ambos sabemos, não é aquilo a que você e eu podemos chamar uma pessoa
madura. Essa é a razão principal pela qual foi refreada. Talentosa, ninguém contesta, muito
menos eu. Todavia, tornou-se evidente para mim, na apresentação que fez da Operação Botão
de Rosa, que estava emocionalmente - atrevo-me a dizer demasiado emocionalmente -
empenhada no resultado da operação, para o bem dela e nosso. A minha esperança era que um
alerta informal antes do anúncio oficial da decisão da subcomissão lhe atenuasse a desilusão."
"E então mandou-me para Northwood enquanto a preparava. Muito atencioso da sua parte."
Mas Dom não é dado a ironias, muito menos quando o têm como alvo.
"No entanto, relativamente à questão mais vasta de se ter demitido abruptamente da Repartição,
devemos congratular-nos", continua ele. "Teve uma reação desproporcionada e histérica à
decisão da subcomissão de reprovar a Botão de Rosa por razões de interesse nacional. O
Serviço pode dar-se por feliz por se ver livre dela. Agora fale-me do que se passou ontem com o
Forquilha. Um desempenho brilhante do Nat dos velhos tempos, se assim posso dizer. Como
interpreta as instruções que ele recebeu de Moscovo?"
O hábito que Dom tem de saltar de um assunto para outro como forma de evitar fogo hostil
também me é familiar. No entanto, desta vez fez-me um favor. De um modo geral não me
considero capcioso, mas Dom espicaça-me. A única pessoa que
136

alguma vez irá dizer-me o que se passou entre ele e Florence é Florence, mas não está
contactável. Por isso entro no jogo.
"Como é que eu interpreto as instruções que ele recebeu? Será melhor perguntar como o
departamento da Rússia as interpretaria", respondo com uma sobranceria igual à dele.
"Que é como?"
Sobranceiro, mas também firme. Sou um velho membro da equipa da Rússia a deitar água fria
sobre o entusiasmo de um colega inexperiente.
"O Forquilha é um agente adormecido, Dom. Parece que está a esquecer-se disso. Está aqui
para o longo prazo. Está adormecido há exatamente um ano. É altura de o Centro de Moscovo o
acordar, sacudir-lhe o pó, dar-lhe uma missão falsa e ver se continua a poder contar com ele.
Quando ele provar que sim, volta ao sono em York."
Ele dá a impressão de que se prepara para contestar, mas muda de ideias.
"Portanto a nossa tática, supondo que a sua premissa está correta, o que eu não aceito sem
reservas, é qual, exatamente?", questiona-me com truculência.
"Vigiar e esperar."
"E enquanto vigiamos e esperamos avisamos o departamento da Rússia de que estamos a fazê-
lo?"
"Se quiser que eles se apoderem do caso e apaguem a Geral de Londres da fotografia, é uma
altura tão boa como outra qualquer", riposto eu.
Ele franze os lábios, afasta os olhos de mim como quem consulta uma autoridade superior.
"Muito bem, Nat", diz ele, condescendente, "vigiamos e esperamos, tal como você sugere.
Espero que me mantenha completamente a par de todos os desenvolvimentos futuros, mesmo
que sejam triviais, no momento em que ocorrerem. E obrigado
137

por ter vindo", acrescenta, regressando à papelada em cima da secretária.


"Mas", digo eu, sem me levantar da cadeira.
"Mas o quê?"
"Há um subtexto nas instruções do Forquilha que me sugere que talvez estejamos na presença
de mais que uma simples missão falsa desencadeada para manter o adormecido atento."
"Você acabou de dizer exatamente o contrário."
"Isso é porque há um elemento na história do Forquilha ao qual você não tem autorização de
acesso."
"Disparate. Qual elemento?"
"E não é altura de tentar acrescentar o seu nome à lista das pessoas autorizadas, caso contrário o
departamento da Rússia vai precisar de saber a razão. Coisa que suponho que você não
quereria, como eu não quero."
"E porque é que eu não havia de querer?"
"Porque, se o meu palpite está certo, aquilo que podemos ter aqui - sujeito a confirmação - é
uma oportunidade de ouro para o Porto de Abrigo e a Geral de Londres montarem uma
operação com os nossos dois nomes associados a ela e sem nenhuma subcomissão das Finanças
a impedi-la. Pode dar-me atenção, ou prefere que volte quando for mais conveniente?"
Ele suspira e põe os papéis de lado.
"Talvez esteja genericamente familiarizado com o caso do meu antigo agente Pica-Pau, não? Ou
é muito novo para isso?", pergunto eu.
"Claro que estou familiarizado com o caso Pica-Pau. Li-o com atenção. Quem não o leu?
Trieste. O rezident deles, antigo KGB, homem experiente, cobertura consular. Você recrutou-o
no badmínton, se bem me lembro. Mais tarde ele arrependeu-se e voltou para a oposição, se é
que alguma vez a deixou. Não é propriamente um caso de que possa orgulhar-se, diria eu.
Porque é que de repente estamos a falar do Pica-Pau?"
138

Para quem chegou há pouco tempo, Dom fez bastante bem o trabalho de casa.
"O Pica-Pau foi uma fonte fiável e valiosa até ao último ano em que trabalhou para nós",
informo-o eu.
"Se você o diz. Outros veriam a coisa de maneira diferente. Vamos ao que interessa, por favor?"
"Gostava de falar com ele sobre as instruções do Centro de Moscovo ao Forquilha."
"Com quem"
"Com o Pica-Pau. Ouvir a opinião dele. A perspetiva de alguém de dentro."
"Está louco."
"Talvez."
"Completamente louco. O Pica-Pau está oficialmente classificado como tóxico. Isso significa
que ninguém do Serviço fala com ele sem o consentimento pessoal e escrito do chefe do
departamento da Rússia, que por acaso está em reclusão em Washington. O Pica-Pau é indigno
de confiança, totalmente dúplice e um criminoso russo infiltrado."
"Isso é um não?"
"É um nem-por-cima-do-meu-cadáver. Com efeito imediato. Vou já pôr isso por escrito, com
cópia para o comité disciplinar."
"Entretanto, com sua autorização, gostava de tirar uma semana de licença de golfe."
"Você não joga golfe porra nenhuma."
"E se o Pica-Pau aceder a encontrar-se comigo, e se se der o caso de ele ter uma opinião
interessante sobre as instruções do Centro de Moscovo ao Forquilha, talvez afinal você decida
que me deu ordens para ir visitá-lo. E enquanto isso sugiro-lhe que pense duas vezes antes de
escrever essa carta antipática ao comité disciplinar."
Estou à porta quando ele me chama. Rodo a cabeça, mas mantenho-me à porta.
139

"Nat?"
"Sim?"
"De qualquer maneira, que pensa que vai arrancar dele?"
"Com sorte, nada que já não saiba."
"Então porque é que vai?"
"Porque ninguém consegue a atenção da Direção de Operações com base num palpite, Dom. A
Direção de Operações gosta de informações concretas, cozinhadas de duas maneiras diferentes,
e de preferência três. Chamam-se com base em evidências, no caso de o termo ser novo para si.
O que significa que não são demasiado influenciadas pelas divagações egoístas de um
operacional posto de quarentena nos confins de Camden, nem pelo seu algo inexperiente chefe
da Geral de Londres."
"Você está louco", repete Dom, e volta a refugiar-se atrás dos seus papéis.

Volto ao Porto de Abrigo. Fecho a porta na cara triste dos meus colaboradores e meto mãos à
obra de escrever uma carta ao meu antigo agente Pica-Pau, aliás Arkady. Escrevo na minha
qualidade imaginária de secretário de um clube de badmínton em Brighton. Convido-o a vir
com uma equipa mista de-jogadores à nossa bela cidade costeira. Proponho datas e horas dos
jogos e ofereço alojamento gratuito. A utilização de códigos verbais abertos é mais antiga do
que a Bíblia e assenta em entendimentos mútuos entre remetente e destinatário. O entendimento
entre Arkady e eu não devia nada a nenhum livro de códigos e devia tudo à noção de que todas
as premissas contêm o seu contrário. Assim, eu não estava a convidá-lo, mas a suscitar um
convite da parte dele. As datas em que o suposto clube estava pronto para receber os seus
convidados eram as datas em que eu esperava ser recebido por
140

Arkady. As minhas ofertas de hospitalidade eram uma pergunta deferente sobre se estava
disposto a receber-me, e onde podíamos encontrar-nos. As horas dos jogos indicavam que
qualquer hora estava bem para mim.
Num parágrafo tão próximo da realidade quanto o disfarce permitia, lembrava-lhe as relações
de amizade que há muito existiam entre os nossos dois clubes, ao arrepio das tensões em
constante mudança no mundo em geral, e subscrevia-me como Nicola Halliday (Mrs.), porque
durante os cinco anos da nossa colaboração Arkady havia-me conhecido por Nick, apesar de o
meu nome verdadeiro figurar na lista oficial de representantes consulares de Trieste. Mrs.
Halliday não indicava o seu endereço pessoal. Arkady sabia de muitos lugares para onde podia
escrever, se decidisse fazê-lo.
Depois recostei-me na cadeira e resignei-me à longa espera, porque Arkady nunca tomava as
suas grandes decisões à pressa.

Se estava apreensivo com aquilo em que estava a meter-me com Arkady, as minhas batalhas de
badmínton com Ed e os nossos tours d'horizon políticos à Stammtisch estavam a tornar-se cada
vez mais preciosos para mim - e isto apesar de Ed, para minha renitente admiração, estar a
derrotar-me com facilidade.
Era como se tivesse acontecido de um dia para o outro. De repente ele estava a praticar um jogo
mais rápido, mais solto, mais feliz, e a diferença de idades entre nós era cada vez mais evidente.
Precisei de uma sessão ou duas para conseguir apreciar objetivamente os seus progressos e, na
medida do possível, felicitar-me pela participação que tive neles. Noutras circunstâncias talvez
tivesse procurado um jogador mais jovem para o defrontar, mas quando lhe propus isso ele
ficou tão ofendido que recuei.
141

As questões mais sérias da minha vida eram mais difíceis de resolver. Todas as manhãs
procurava uma resposta de Arkady na lista de endereços simulados da Repartição. Nada. E, se
Arkady não era problema meu, Florence era. Tinha sido amiga de Ilya e Denise mas, por muito
que eu apertasse com eles, não sabiam mais sobre o seu paradeiro ou o que andava a fazer do
que qualquer outro membro da equipa. Se Moira soubesse onde encontrá-la, eu era a última
pessoa a quem ela diria. Sempre que tentava imaginar como Florence, e logo ela, podia ter
abandonado assim os seus queridos agentes, falhava. Sempre que tentava reconstituir o seu
encontro seminal com Dom Trench, voltava a falhar.
Depois de muito refletir, tentei a minha sorte com Ed. Era um risco, e eu sabia. A minha
improvisada história de fachada não permitia que Florence e eu soubéssemos nada um do outro
além de um hipotético encontro no gabinete do meu hipotético amigo e de uma sessão de
badmínton com Laura. Tirando isso, tudo o que eu tinha a meu favor era uma suspeita crescente
de que os dois se haviam sentido mutuamente atraídos à primeira vista, mas, como agora sabia
qual era o estado de espírito de Florence na altura em que se apresentou no Athleticus, era
difícil imaginá-la com disposição para se sentir atraída por quem quer que fosse.
Estamos sentados à Stammtisch. Acabámos as nossas primeiras cervejas e Ed foi buscar mais
duas. Tinha acabado de me derrotar por quatro a um para sua compreensível satisfação, que não
minha.
"Então como foi o chinês?", pergunto-lhe, escolhendo o momento adequado.
"Qual chinês?" - Ed, como de costume, com a cabeça longe dali.
"O restaurante Golden Moon ao cimo da rua, pelo amor de Deus. Onde estávamos para ir todos
jantar até eu ter de sair à pressa para ir resolver um problema profissional, lembra-se?"
142

"Ah, sim, claro. Foi ótimo. Ela adorou o pato. Refiro-me à Laura. A melhor coisa que lhe
aconteceu na vida. Os empregados estragaram-na com mimos."
"E a rapariga? Como é que se chamava? Florence? Valeu a pena?"
"Oh yeah, pois. A Florence. Também foi fantástica."
Está a fechar-se em copas ou apenas a ser rude como é seu hábito? Seja como for, continuo a
tentar:
"Não tem por acaso nenhum número de telefone dela? O meu amigo ligou-me, aquele para
quem ela faz trabalho temporário. Disse que ela tinha feito um trabalho excelente e estava a
pensar oferecer-lhe um emprego a tempo inteiro, mas a agência não estava a colaborar."
Ed pensa um pouco nisto. Franze o cenho. Tenta lembrar-se ou finge que tenta.
"Bem, não era natural que colaborassem, pois não? Esses sacanas da agência mantê-la-iam
presa a eles para o resto da vida, se pudessem. Yeah. Lamento, mas não posso ajudá-lo. Não" - e
seguiu-se uma diatribe sobre o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros reinante, "esse cabrão
etoniano narcisista e elitista que não tem no corpo uma única convicção decente, só a sua
promoção pessoal", etc.

Se há alguma consolação a retirar deste interminável período de espera, além das nossas
partidas de badmínton das segundas-feiras, ela é Sergei, também conhecido como Forquilha. Da
noite para o dia tornou-se o mais valioso agente do Porto de Abrigo. No dia em que terminou o
semestre na sua universidade, Markus Schweizer, jornalista freelancer suíço, fixou residência
no primeiro dos seus três bairros do Norte de Londres. O seu propósito, prontamente aprovado
por Moscovo, é experimentar consecutivamente
143

os três e fazer relatórios sobre eles. Sem Florence para lhe oferecer, nomeei para sua
controladora Denise, educada em escolas oficiais e obcecada desde a infância com tudo o que
dissesse respeito à Rússia. Sergei afeiçoou-se a ela como se fosse a sua irmã perdida. Para lhe
aliviar a carga, aprovo o apoio de outros membros da equipa do Porto de Abrigo. A fachada
deles não é problema. Podem dizer que são aspirantes a jornalistas, atores sem trabalho, ou
coisa nenhuma. Se a rezidentura de Moscovo em Londres mandasse a cavalaria de
contravigilância inteira, retiraria de mãos a abanar. As constantes exigências de pormenores
locais feitas por Moscovo assoberbariam o mais diligente dos agentes adormecidos, mas Sergei
está à altura da missão e Denise e Ilya estão prontos a ajudar. As fotografias pedidas são feitas
apenas com o telemóvel de Sergei. Nenhum pormenor topográfico é demasiado insignificante
para Anette, também conhecida como Anastasia. Sempre que recebe um novo conjunto de
exigências do Centro de Moscovo, Sergei redige as suas respostas e eu aprovo-as. Ele tradu-las
para russo, e secretamente eu aprovo o russo antes de ser codificado por Sergei com uma cifra
de uso único da sua coleção. Desta forma é teoricamente responsabilizado pelos seus erros, e a
tensa correspondência com o Centro que se segue tem um toque de autenticidade. O
departamento de falsificação fez um excelente trabalho com o convite da Faculdade de Física
da Universidade de Harvard. Barry, o amigo de Sergei, fica convenientemente impressionado.
Graças às diligências de Bryn Jordan em Washington, um professor de física de Harvard
responderá a quaisquer perguntas vindas de Barry ou de qualquer outro lado. Eu envio um
cartão pessoal a Bryn agradecendo os seus esforços e não tenho resposta.
E de novo a espera.
A espera de que o Centro de Moscovo acabe com as hesitações e se decida por um único local
no Norte de Londres. A espera de
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que Florence resolva dar a cara e me diga o que a levou a virar as costas aos seus agentes e à
sua carreira. A espera de que Arkady dê sinais de vida. Ou não.
Até que, como é hábito, tudo começou a acontecer ao mesmo tempo. Arkady respondeu; não
aquilo a que se chamaria uma resposta entusiástica, mas sempre era uma resposta. E não para
Londres, mas para o seu endereço secreto preferido em Berna. Um envelope simples dirigido a
N. Halliday, com selo checo, impressão eletrónica, e lá dentro um postal ilustrado da cidade
termal checa de Karlovy Vary e uma brochura em russo de um hotel a dez quilómetros da
mesma cidade. E dentro da brochura do hotel um formulário de reserva com quadrados para
preencher: datas desejadas, tipo de quarto, dia de chegada previsto, alergias. Cruzes
datilografadas nos quadrados informam-me de que se espera que eu me registe às dez horas da
noite da próxima segunda-feira. Atendendo à cordialidade do nosso antigo relacionamento,
seria difícil imaginar uma resposta mais renitente, mas ao menos diz "venha".
Usando o meu passaporte válido em nome de Nicholas George Halliday - teoricamente devia
tê-lo entregado quando regressei a Inglaterra, mas ninguém mo pediu - reservo um voo com
destino a Praga para segunda-feira de manhã e pago-o com o meu cartão de crédito pessoal.
Envio um email a Ed a cancelar com muita pena a nossa partida de badmínton. Ele responde
com "Medricas".
Na sexta-feira à tarde recebo uma mensagem de texto de Florence no meu telemóvel particular.
Diz-me que podemos "conversar se quiser" e dá-me um número que não é aquele de onde está a
enviar a mensagem. Ligo-lhe por um telefone pré-pago, vou parar ao atendedor e descubro que
fico aliviado por não falar diretamente com ela. Deixo uma mensagem a dizer que voltarei a
tentar dentro de alguns dias, e desligo a pensar que soo como alguém que não conheço.
145

Às seis horas da mesma tarde envio uma mensagem para toda a minha equipa no Porto de
Abrigo, com cópia para os Recursos Humanos, informando-os de que vou tirar uma semana de
licença por motivos familiares, de 25 de junho a 2 de julho. Se perguntar a mim próprio que
motivos familiares me levam a tirar licença, só tenho de pensar em Steff que, ao cabo de
semanas de silêncio absoluto, anunciou que vai almoçar a nossa casa no domingo e leva
consigo "uma pessoa amiga vegetariana". Há momentos que são feitos para uma cautelosa
reconciliação. Pela parte que me toca, este não é um deles, mas reconheço o meu dever quando
o vejo.

Estou no meu quarto, a fazer a mala para Karlovy Vary, vasculhando a roupa à procura de
marcas da lavandaria e tudo o mais que não deva pertencer a Nick Halliday. Prue, que acabou
de ter uma longa conversa telefónica com Steff, subiu para me ajudar a fazer a mala e relatar o
telefonema. Começa por uma pergunta que não é prenúncio de harmonia.
"Precisas realmente de levar equipamento de badmínton para Praga?"
"Os espiões checos estão sempre a jogar badmínton", respondo eu. Vegetariano ou
vegetariana?"
"Vegetariano."
"Alguém que conhecemos ou que ainda temos de conhecer?"
Houve precisamente dois dos muitos amigos de Steff com quem consegui relacionar-me. Vim a
verificar que eram ambos gays.
"Este é o Juno, não sei se te lembras do nome, e estão os dois a caminho do Panamá. Segundo
ela me disse, Juno é abreviatura de Junaid, que aparentemente quer dizer combatente. Não sei
se isso o torna mais simpático aos teus olhos."
146

"Talvez."
"Partem de Luton. Às três da manhã. Portanto não passam cá a noite, o que talvez te deixe
aliviado."
Ela tem razão. Um novo namorado no quarto de Steff e fumo de erva a sair por baixo da porta
não são propriamente a minha visão de felicidade familiar, menos ainda quando estou a fazer a
mala para Karlovy Vary.
"Quem é que se lembra de ir para o Panamá?", exclamo eu, irritado.
"Bem, penso que a Steff se lembra. Em grande estilo."
Interpretando mal o tom, eu viro-me de repente e olho-a nos olhos.
"Que queres tu dizer? Que vai para lá e não volta?" - mas descubro que está a sorrir.
"Sabes o que ela me disse?"
"Ainda não."
"Que podíamos fazer uma quiche. Ela e eu. A meias. Fazer uma quiche para o almoço. O Juno
adora espargos e não se deve falar sobre o Islão porque é muçulmano e não bebe."
"Parece-me perfeito."
"Já devem ter passado cinco anos desde a última vez que a Steff e eu cozinhámos alguma coisa
juntas. Ela achava que vocês, os homens, é que deviam estar na cozinha, lembras-te? E não
nós."
Entrando o melhor que posso no espírito da ocasião, vou ao supermercado, compro manteiga
sem sal e pão de soda, os dois produtos básicos do regime gastronómico de Steff, e, para expiar
a minha grosseria, uma garrafa de champanhe gelado, mesmo sabendo que Juno não bebe. E, se
Juno não bebe, palpita-me que Steff também não, porque nesta altura já deve estar perto de se
converter ao Islão.
Regresso das compras e encontro os dois de pé no átrio. Duas coisas acontecem então ao
mesmo tempo. Um indiano delicado
147

e bem-vestido avança e tira-me das mãos os sacos das compras. Steff envolve-me nos braços,
aninha a cara na curva do meu ombro e deixa-a aí, depois recua e diz: "Papá! Repara, Juno, não
é fantástico?" O indiano delicado avança de novo, desta vez para ser formalmente apresentado.
Entretanto eu reparei num anel com aspeto verdadeiro no dedo anelar de Steff, mas já aprendi
que, com Steff, o melhor é esperar para ver.
As mulheres vão para a cozinha fazer quiche. Eu abro o champanhe e ofereço um copo a cada
uma, volto para a sala de estar e ofereço também um a Juno, porque nem sempre levo à letra as
indicações de Steff sobre os seus homens. Ele aceita sem objeções e espera que eu o convide a
sentar-se. Para mim, isto é território novo. Ele diz que receia que toda a situação seja uma
surpresa para nós. Eu garanto-lhe que com Steff nada nos surpreende, e ele parece aliviado. Eu
pergunto-lhe porquê o Panamá. Ele explica que é diplomado em zoologia e o Smithsonian
convidou-o para dirigir um estudo de campo sobre grandes morcegos-voadores na ilha de Barro
Colorado, no canal do Panamá, e Steff aproveita e vai com ele.
"Mas só se não apanhar vírus, papá", interrompe Steff enfiando a cabeça pela porta entreaberta,
de avental posto. "Vou ter de ser fumigada, não vou poder respirar para cima de nada e nem
sequer vou poder usar os meus sapatos altos de engate, pois não, Juno?"
"Pode usar os sapatos, mas com capas por cima", explica-me Juno, "e ninguém é fumigado. Isso
é pura fantasia, Steff."
"E temos de ter atenção aos crocodilos quando desembarcarmos, mas o Juno vai levar-me ao
colo, não vais, Juno?"
"E privar os crocodilos de uma refeição como deve ser? Claro que não. Estamos lá para
preservar a vida selvagem."
Steff solta uma gargalhada e fecha-nos a porta na cara. Durante o almoço, exibe o anel de
noivado à volta da mesa, mas é principalmente para eu ver, porque já contou tudo a Prue na
cozinha.
148

Juno diz que vão esperar até Steff acabar o curso, o que vai demorar mais tempo porque,
entretanto, mudou para medicina. Steff ainda não tinha arranjado tempo para nos dizer, mas
outra coisa que Prue e eu aprendemos foi a não reagir excessivamente a revelações tão
importantes.
Juno tinha querido pedir-me formalmente a mão de Steff, mas ela insistiu em que a sua mão não
era propriedade de ninguém, a não ser dela própria. Ainda assim pergunta-me, de um lado para
o outro da mesa, e eu digo-lhe que a decisão só a eles pertence, e que devem esperar o tempo
que acharem necessário. Ele promete-me que assim farão. Querem ter filhos - "Seis",
interrompe Steff- mas só mais tarde, e, entretanto, Juno gostaria de nos apresentar aos pais, que
são ambos professores em Bombaim e tencionam visitar a Inglaterra por altura do Natal. E Juno
pode saber qual é a minha profissão? É que Steff tem sido vaga e de certeza que os pais vão
querer saber. Era serviço civil ou serviço social? Steff parecia não ter a certeza.
Inclinada sobre a mesa, uma mão no queixo e a outra na de Juno, Steff espera pela minha
resposta. Eu não esperava que ela tivesse guardado para si a nossa conversa no telesqui e por
isso não tinha achado necessário pedir-lho. Mas é evidente que guardou.
"Oh, completamente civil", protesto eu com uma gargalhada. "Mais exatamente civil
estrangeiro. Caixeiro-viajante da Rainha com um toque de estatuto diplomático resume
basicamente a minha profissão."
"Portanto, conselheiro comercial?", pergunta Juno. "Posso dizer-lhes que é conselheiro
comercial britânico?"
"Perfeitamente", tranquilizo-o eu. "Conselheiro comercial regressado e posto na prateleira."
Ao que Prue diz: "Que disparate, querido. O Nat está sempre a desvalorizar-se."
149

E Steff diz: "É um leal servidor da Coroa, Juno, e muito bom no que faz, não é verdade, papá?"
Quando eles se vão embora, Prue e eu dizemos um para o outro que talvez tenha sido tudo uma
espécie de conto de fadas, mas, mesmo que se separem amanhã, Steff terá virado uma página
para se tornar a rapariga que nós sempre soubemos que era. Arrumamos a cozinha e vamos para
a cama cedo porque precisamos de fazer amor e eu tenho de apanhar um avião de madrugada.
"Então quem é que tens escondido à tua espera em Praga?", pergunta-me Prue maliciosamente à
despedida.
Eu tinha-lhe dito que era Praga e uma conferência. Não lhe tinha dito que era Karlovy Vary e
um passeio pela floresta com Arkady.
Se há um pormenor deste período de espera aparentemente interminável que deixei para o fim,
é porque na altura em que aconteceu não lhe dei importância nenhuma. Na sexta-feira à tarde,
quando o Porto de Abrigo ia fechar para o fim de semana, a secção de Investigação Interna, um
organismo famoso pela sua letargia, entregou as suas conclusões sobre os três bairros de
Londres que faziam parte da lista de Sergei. Depois de uma série de observações inúteis sobre
vulgares cursos de água, igrejas, linhas de eletricidade, locais de interesse histórico e destaque
arquitetónico, referiam numa nota de rodapé que os três "bairros em consideração" eram
servidos pela mesma ciclovia, que ia de Hoxton ao Centro de Londres. Para facilitar, anexavam
um mapa grande com a ciclovia pintada a cor-de-rosa. Tenho-o diante de mim no momento em
que escrevo.
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11

Não se tem escrito muito, e espero que nunca se escreva, sobre agentes que dedicam os
melhores anos das suas vidas a espiar para nós, pegam nos seus salários e bónus e nas suas boas
indemnizações por rescisão e sem fazer ondas, sem ser denunciados ou desertar, se retiram para
uma vida pacífica no país que traíram com lealdade, ou para outra geografia igualmente
benigna.
É o caso de Pica-Pau, aliás Arkady, antigo chefe da rezidentura do Centro de Moscovo em
Trieste e posteriormente meu adversário de badmínton e agente britânico. Descrever o seu
autorrecrutamento para a causa da democracia liberal é traçar o itinerário turbulento de um
homem essencialmente decente - na minha opinião, não na de toda agente, longe disso -
amarrado à nascença ao turbilhão da história da Rússia contemporânea.
O filho ilegítimo de uma prostituta de Tbilisi de origem judia e de um padre ortodoxo georgiano
é secretamente educado na fé cristã e depois descoberto pelos seus professores marxistas como
um aluno excecional. Muda de ideias e converte-se instantaneamente ao marxismo-leninismo.
Com dezasseis anos é de novo descoberto, desta vez pelo KGB, treinado como agente secreto e
encarregado de se infiltrar entre elementos contrarrevolucionários cristãos na Ossétia do Norte.
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Como antigo e talvez atual cristão, está bem qualificado para a tarefa. Muitos daqueles que
denuncia são abatidos.
Em reconhecimento do seu bom trabalho é nomeado para o escalão de base do KGB, onde
ganha fama pela sua obediência e "justiça sumária". Isto não o impede de frequentar aulas
notur-nas de dialética marxista de nível superior ou aprender línguas e qualificar-se assim para
trabalho de espionagem fora do país.
É enviado em missões ao estrangeiro, dá uma ajuda em "medidas extralegais", eufemismo de
assassínio. Antes que fique demasiadamente marcado é chamado de volta a Moscovo para
receber formação nas artes mais delicadas da falsa diplomacia. Como soldado raso de
espionagem com cobertura diplomática presta serviço nas rezidenturas de Bruxelas, Berlim e
Chicago, participa em ações de reconhecimento de campo e contravigilância, presta serviço a
agentes que nunca chega a conhecer, abastece e esvazia inúmeras caixas de correio secretas e
continua a participar na "neutralização" de inimigos reais e imaginários do estado soviético.
No entanto, à medida que vai amadurecendo, não há zelo patriótico que possa impedi-lo de
encetar uma reavaliação interior do seu trajeto de vida, desde a mãe judia, passando pela
renúncia incompleta ao cristianismo, até à adesão precipitada ao marxismo-leninismo. Porém,
no momento em que o Muro de Berlim vem abaixo, ergue-se dos escombros a sua visão de uma
era de ouro de democracia liberal, capitalismo popular e prosperidade ao estilo russo.
Mas que papel desempenhará Arkady nesta longamente adiada regeneração da mãe-pátria? Será
aquilo que sempre foi: o seu esteio e protetor. Defendê-la-á dos sabotadores e oportunistas,
sejam eles estrangeiros ou nacionais. Compreende a inconstância da história. Aquilo por que
não nos batemos não perdura. O KGB morreu: muito bem. Um novo serviço de espionagem,
idealista, protegerá todo o povo da Rússia, não apenas os seus líderes.
152

Cabe ao seu antigo camarada de armas Vladimir Putin produzir o desencanto final, primeiro
com a supressão das aspirações de independência da Chechénia, a seguir das da sua amada
Geórgia. Putin sempre havia sido um espião de quinta categoria. Agora era um espião
transformado em autocrata que interpretava toda a vida em termos de konspiratsia. Graças a
Putin e ao seu bando de estalinistas impenitentes, a Rússia não avançava em direção a um
futuro radioso, antes retrocedia em direção ao seu passado negro e quimérico.
"Você é o homem de Londres?", berra-me ao ouvido em inglês.
Somos dois diplomatas - tecnicamente cônsules - um russo, o outro inglês, sentados à margem
de um baile na festa anual de Fim de Ano do principal clube desportivo de Trieste, onde em três
meses jogámos quatro partidas de badmínton. Estamos no inverno de 2008. Desde os
acontecimentos de agosto, a Geórgia tem o cano da arma russa encostado à cabeça. A orquestra
toca sucessos dos anos sessenta com brio. Nenhum ouvido à escuta ou microfone oculto teria
sorte nenhuma. O motorista e guarda-costas de Arkady, que no passado observava as nossas
partidas da galeria e até nos acompanhava ao vestiário, está hoje a divertir-se no outro lado da
pista de dança com uma amiga que acabou de arranjar.
Eu devo ter dito "sim, sou o homem de Londres", mas não ouvi a minha voz sobrepor-se ao
barulho. Desde a nossa terceira sessão de badmínton, quando lhe fiz a minha abordagem
inesperada, espero por este momento. Para mim é claro que Arkady também está à espera dele.
"Então diga a Londres que ele aceita", ordena-me ele.
Ele? Refere-se ao homem que está em vias de se tornar.
"Ele só trabalha para si", continua, sempre em inglês. "Voltará a jogar contra si aqui dentro de
quatro semanas com grande agressividade, mesma hora, só os dois. Desafiá-lo-á oficialmente
por
153

telefone. Diga a Londres que ele vai precisar de raquetes iguais com os cabos ocos. Essas
raquetes serão trocadas no momento apropriado, no vestiário. Você tratará disso."
E que quer ele em troca?, pergunto eu.
"Liberdade para o seu povo. Todo o povo. Ele não é materialista. é idealista."
Não conheço ninguém que se tenha recrutado a si mesmo de modo tão tranquilo. Ao fim de dois
anos em Trieste perdemo-lo para o Centro de Moscovo quando era o número dois do seu
departamento do Norte da Europa. Enquanto esteve em Moscovo recusou qualquer contacto.
Quando foi colocado em Belgrado sob cobertura cultural, os meus patrões no departamento da
Rússia não quiseram que eu fosse visto a andar atrás dele e deram-me o lugar de cônsul
comercial em Budapeste, e eu controlei-o a partir dela.
Só nos últimos anos da carreira dele é que os nossos analistas começaram a detetar sinais,
primeiro de exagero e a seguir de completa falsificação, nos seus relatórios. Atribuíram a isso
mais importância do que eu. Para mim era apenas mais um caso de um agente que estava a ficar
velho e cansado, a perder alguma coragem, mas não queria cortar o cordão. Só depois de os
dois amos de Arkady - o Centro de Moscovo faustosamente e nós mais discretamente - o terem
homenageado e coberto de medalhas em reconhecimento pela sua dedicação desinteressada às
nossas respetivas causas soubemos por outras fontes que, na iminência do fim das suas duas
carreiras, ele tinha diligentemente construído os alicerces de uma terceira: chamar a si uma fatia
da riqueza de origem criminosa do seu país que nem os seus pagadores russos nem britânicos,
no máximo da sua generosidade, podiam ter imaginado.
154

O autocarro de Praga mergulha mais fundo na escuridão. As encostas negras de um lado e do


outro erguem-se cada vez mais altas contra o céu da noite. Eu não tenho medo das alturas, mas
desagradam-me as funduras, e pergunto a mim mesmo o que estou a fazer aqui, e como me
convenci a fazer uma viagem arriscada que há dez anos não teria feito de livre vontade, nem
desejado a um colega com metade da minha idade. Em cursos de formação de agentes
operacionais, bebendo um uísque ao fim de um dia comprido, costumávamos falar do fator
medo: como calcular as probabilidades e medir o nosso medo face a elas, só que não dizíamos
medo, dizíamos coragem.
O autocarro enche-se de luz. Entramos na rua principal de Karlovy Vary, antiga Carlsbad,
adorada estância termal da nomenklatura russa desde Pedro, o Grande e hoje propriedade
integral dessa nomenklatura. Hotéis deslumbrantes, casinos e joalharias com montras
resplandecentes passam tranquilamente por nós, à direita e à esquerda. Entre elas corre um rio
atravessado por uma nobre ponte pedonal. Há vinte anos, quando cá vim para me encontrar com
um agente checheno que aqui gozava umas merecidas férias com a amante, a cidade ainda
estava a ver-se livre da monótona cor cinzenta do comunismo soviético. O hotel mais
imponente era o Moskva e o único luxo que existia estava guardado em recatadas vivendas
onde alguns anos antes os escolhidos do Partido e suas ninfas se haviam divertido longe dos
olhares proletários.
São nove horas e dez. O autocarro parou no terminal. Eu desço e começo a caminhar. Nunca
dês a impressão de que não sabes para onde vais. Nunca pares de propósito. Sou um turista
acabado de chegar. Sou um pedestre, o mais rasteiro dos rasteiros. Registo aquilo que me rodeia
como qualquer turista fará. Tenho um saco de viagem ao ombro com o cabo da raquete de
badmínton a espreitar. Sou um daqueles passeantes ingleses de classe média e cara de parvo, só
que não tenho um guia dentro de um invólucro
155

de plástico amarrado ao pescoço. Estou a admirar um cartaz do Festival de Cinema de Karlovy


Vary. E se comprasse um bilhete? O cartaz seguinte anuncia as características curativas dos
famosos banhos. Não há nenhum cartaz a anunciar que a cidade também é célebre como o local
de encontro preferido da fina-flor do crime organizado russo.
O casal à minha frente não consegue avançar a um passo razoável. A mulher atrás de mim
transporta um volumoso saco de viagem. Eu cheguei ao fim de um dos lados da rua principal. é
altura de atravessar a nobre ponte pedonal e percorrer o outro lado. Sou um inglês no
estrangeiro que finge não ser capaz de se decidir entre comprar para a mulher um relógio de
ouro Cartier, ou um vestido Dior, ou um colar de diamantes, ou uma mobília em estilo russo
imperial de cinquenta mil dólares.
Cheguei ao átrio cheio de luz do Grande Hotel e Casino Pupp, antigo Moskva. As bandeiras
iluminadas de todas as nações adejam à brisa do anoitecer. Fico a admirar as placas de latão do
pavimento gravadas com os nomes de hóspedes ilustres do passado e do presente. Goethe
esteve aqui! Sting também! Estou a pensar que é altura de apanhar um táxi quando há um que
para a menos de cinco metros de mim.
Sai dele uma família de escaladores alemães. Malas de tartã a condizer. Duas bicicletas de
criança, novas em folha. O taxista faz-me sinal. Entro para o lado dele e atiro o saco de viagem
para o banco traseiro. Fala russo? Esgar. Niet. Inglês? Alemão? Sorriso. Menear de cabeça. Eu
não falo checo. Por sinuosas estradas às escuras subimos as encostas arborizadas, a que se
segue uma descida vertiginosa. Surge um lago à nossa direita. Um carro com os faróis nos
máximos vem na nossa direção em alta velocidade e em contramão. O meu taxista mantém-se
firme. O carro desvia-se.
"Russos ricos", diz o taxista numa voz sibilante. "Checos não ricos. Yes!" - e ao dizer a palavra
yes trava a fundo e guina para aquilo
156

que eu julgo ser um desvio na estrada, até que um fogo cruzado de luzes de segurança nos
imobiliza.
O taxista baixa o vidro e berra qualquer coisa. Um rapaz louro de vinte e tal anos, com uma
cicatriz em forma de estrela-do-mar no queixo, enfia a cabeça pela janela, olha para o meu saco
de viagem com a etiqueta da British Airways e depois para mim.
"O seu nome, por favor, senhor?", inquire em inglês.
"Halliday. Nick Halliday."
"A sua empresa, por favor?"
"Halliday & Companhia."
"Por que razão vem a Karlovy Vary, por favor?"
"Jogar badmínton com um amigo."
Ele dá uma ordem ao taxista em checo. Percorremos menos de vinte metros, ultrapassamos uma
mulher muito velha de lenço na cabeça que empurra um carro de mão. Paramos diante de um
edifício tipo rancho com um alpendre de colunas jónicas de mármore, alcatifa dourada e
cordões de apoio em seda vermelha. Dois homens de fato completo perfilam-se no primeiro
degrau. Eu pago ao taxista, recolho o meu saco do banco traseiro e, sob o olhar inerte dos dois
homens, subo a escadaria dourada até ao átrio inalando o cheiro a suor humano, gasóleo, tabaco
negro e perfume feminino que diz a qualquer russo que está em casa.
Paro debaixo de um candelabro enquanto uma rapariga impávida, de fato preto, examina o meu
passaporte fora da minha vista. Do outro lado de uma divisória de vidro, num bar cheio de fumo
com uma placa a dizer "Esgotado", um velho de chapéu cazaque fala para um público de
discípulos orientais, todos homens, suspensos das suas palavras. A rapariga ao balcão está a
olhar por cima do meu ombro. O rapaz louro com a cicatriz está parado atrás de mim. Deve ter-
me seguido ao longo da carpete dourada. Ela entrega-lhe o meu passaporte, ele abre-o, compara
a fotografia com a minha cara, diz "Siga-me, por favor, Mr. Halliday"
157

e conduz-me a um escritório desarrumado com um fresco de raparigas nuas e portas de vidro


com vista para o lago. Eu conto três cadeiras diante de três computadores, dois espelhos de
toucador, uma pilha de caixas de cartão atadas com fio cor-de-rosa e dois jovens bem
constituídos, de jeans, sapatos de vela e cordão de ouro ao pescoço.
"É uma formalidade, Mr. Halliday", diz o rapaz enquanto os dois homens se aproximam de
mim. "Tivemos certas más experiências. Lamentamos muito."
Nós, Arkady? Ou nós, máfia azerbaijanesa que, segundo um dossiê da Sede que consultei,
construiu este lugar com os lucros do tráfico humano? Há trinta e tal anos, de acordo com o
mesmo dossiê, os mafiosos russos acordaram entre si que Karlovy Vary era um sítio demasiado
bonito para nele se matarem uns aos outros. Era melhor manterem-no como porto seguro para o
seu dinheiro, famílias e amantes.
Os homens querem o meu saco de viagem. O primeiro estende as mãos para ele, o segundo está
preparado para a ação. Diz-me o instinto que não são checos, mas sim russos, provavelmente
antigos membros das forças especiais. Se sorrirem, cuidado. Entrego-lhes o saco. Ao espelho, o
rapaz da cicatriz parece mais novo do que eu pensava e palpita-me que está só a fazer-se forte.
Mas os dois homens que estão a inspecionar o meu saco de viagem não precisam de representar.
Apalparam o forro, abriram as entranhas da minha escova de dentes elétrica, cheiraram as
minhas camisas, torceram as solas dos meus sapatos de corrida. Pegaram na minha raquete de
badmínton pelo cabo, desenrolaram uma parte da fita de pano, bateram-lhe com os dedos,
abanaram-na e fizeram dois ou três movimentos com ela. Foram ensinados a fazer isto, ou é o
instinto que lhes diz: se está nalgum lugar, está aqui, seja lá o que for?
Agora estão a voltar a enfiar tudo no meu saco de viagem e o rapaz da cicatriz está a ajudá-los,
tentando fazer um trabalho
158

mais asseado. Querem revistar-me. Eu ponho os braços no ar, não totalmente, apenas um sinal
de que estou pronto, podem vir. Há qualquer coisa neste meu gesto que leva o primeiro homem
a reconsiderar-me, e depois a avançar para mim mais cautelosamente enquanto o amigo fica em
posição de prontidão, um passo atrás de mim. Braços, sovacos, cinto, zona do tronco, roda-me,
tateia-me as costas. Depois põe-se de joelhos enquanto me inspeciona os genitais e entrepernas
e fala com o rapaz em russo, o que, sendo eu um simples jogador de badmínton britânico, finjo
não perceber. O rapaz da cicatriz em forma de estrela-do-mar traduz.
"Eles querem que descalce os sapatos, por favor."
Eu desaperto os sapatos, entrego-lhos. Eles pegam cada um no seu, dobram-nos, apalpam-nos,
devolvem-mos. Eu volto a apertá-los.
"Eles perguntam por favor: porque é que não tem telemóvel?"
"Deixei-o em casa."
"Porquê, por favor?"
"Gosto de viajar sozinho", respondo eu ironicamente. O rapaz traduz. Ninguém sorri.
"Eles também querem que eu fique com o seu relógio e caneta e carteira e lhos devolva à
saída", diz o rapaz.
Eu entrego-lhe a caneta e a carteira e desaperto o relógio. Os homens sorriem com desdém. é
um japonês baratucho, vale cinco libras. Os homens olham para mim especulativamente, como
se sentissem que ainda não me fizeram o suficiente.
O rapaz, com surpreendente autoridade, repreende-os em russo.
"Pronto. Basta. Acabou."
Eles encolhem os ombros, fazem um sorriso de dúvida e desaparecem pelas portas de vidro,
deixando-me sozinho com ele.
"Vai jogar badmínton com o meu pai, Mr. Halliday?", pergunta o rapaz.
159

"Quem é o seu pai?"


"Arkady. Eu sou o Dimitri."
"Então muito prazer em conhecer-te, Dimitri."
Trocamos um aperto de mão. A de Dimitri está húmida e a minha devia estar. Estou a falar com
o filho vivo do mesmo Arkady que no preciso dia em que eu o recrutei formalmente me jurou a
pés juntos que nunca traria um filho a este mundo nojento e decadente. Será Dimitri adotado?
Ou Arkady sempre teve um filho escondido e tinha vergonha de pôr a vida do rapaz em perigo
por espiar para nós? No balcão da receção a rapariga do fato preto entrega-me a chave de um
quarto com um rinoceronte de latão agarrado, mas Dimitri diz-lhe num inglês ostensivo "O meu
convidado volta mais tarde", vai à minha frente pela alcatifa dourada até a um Mercedes todo-
o-terreno e indica-me o assento ao lado do condutor.
"O meu pai pede-lhe o favor de ser discreto", diz.
Segue-nos um segundo carro. Nunca lhe vi mais do que os faróis. Prometo ser discreto.
Subimos a encosta durante trinta e seis minutos contados pelo relógio do Mercedes todo-o-
terreno. A estrada era outra vez íngreme e sinuosa. Passa algum tempo até Dimitri começar a
fazer-me perguntas.
"O senhor conhece o meu pai há muitos anos."
"Sim, há bastantes."
"Nessa altura ele pertencia aos Órgãos?" - em russo Organy, serviços secretos.
Eu rio-me. "A única coisa que eu sabia era que ele era diplomata e adorava uma partida de
badmínton."
"E o senhor? Na mesma altura?"
160

"Também era diplomata. Do lado comercial."


"Foi em Trieste?"
"E noutros lugares. Onde pudéssemos encontrar-nos e descobrir um campo."
"Mas há muitos anos que não joga badmínton com ele?"
"Pois não, não jogo."
"E agora fazem negócios juntos. São ambos homens de negócios."
"Mas isso é informação bastante confidencial, Dimitri", previno-o eu, percebendo a história de
fachada que Arkady contou ao filho. Pergunto-lhe o que faz na vida.
"Vou entrar em breve para a Universidade Stanford, na Califórnia."
"Para estudar o quê?"
"Vou ser biólogo marinho. Já estudei esta matéria na Universidade do Estado de Moscovo e
também em Besançon."
"E antes disso?"
"O meu pai queria que eu fosse para o Eton College, mas não lhe agradaram as condições de
segurança. Por isso frequentei um liceu na Suíça, onde a segurança era mais adequada. O
senhor é um homem invulgar, Mr. Halliday."
"Então porquê?"
"O meu pai respeita-o muito. Isso não é normal. E diz que o senhor fala perfeitamente russo,
mas comigo não fala."
"Mas isso é porque tu queres praticar o teu inglês, Dimitri!", insisto eu em tom de brincadeira, e
tenho uma visão de Steff de óculos de neve subindo ao meu lado no telesqui.

Parámos num posto de controlo na estrada. Dois homens fazem-nos sinal, examinam-nos e
depois mandam-nos seguir.
161

Não têm armas à vista. Os russos de Karlovy Vary são cidadãos cumpridores da lei. Não andam
com as armas à vista. Seguimos viagem até a um par de colunas Jugendstil do tempo do
Império dos Habsburgos. Acendem-se holofotes de segurança, há câmaras apontadas para nós e
dois outros homens emergem de uma guarita, apontam-nos lanternas desnecessárias e mais uma
vez mandam-nos avançar.
"Vocês estão bem protegidos", observo eu a Dimitri.
"Infelizmente, isto também é necessário", responde ele. "O meu pai ama a paz, mas esse amor
nem sempre é correspondido."
à esquerda e à direita, altas vedações de arame presas às árvores. Um veado encandeado barra-
nos o caminho. Dimitri apita e o animal salta para dentro da escuridão. Ergue-se diante de nós
uma vivenda com torreões, misto de pavilhão de caça e estação ferroviária bávara. Nas janelas
sem cortinas do rés do chão, pessoas imponentes passam de um lado para o outro. Mas Dimitri
não se dirige à vivenda. Virou para um caminho florestal. Passamos por cabanas de
trabalhadores e entramos num pátio de quinta empedrado, com estábulos de um lado e um
celeiro sem janelas, feito de tábuas enegrecidas, do outro. Para o carro, debruça-se sobre mim e
abre-me a porta.
"Bom jogo, Mr. Halliday."
Arranca. Eu fico sozinho no meio do pátio. Uma meia-lua assoma por cima das copas das
árvores. à luz que ela irradia vejo dois homens postados à porta fechada do celeiro. A porta
abre-se de dentro. Um potente feixe de lanterna deixa-me momentaneamente cego enquanto a
suave voz russa com a sua entoação georgiana me chama da escuridão:
"Vai entrar e jogar, ou vou ter de lhe dar uma tareia aí fora?"
Eu avanço. Os dois homens sorriem delicadamente e afastam-se para me dar passagem. A porta
fecha-se nas minhas costas. Estou sozinho num corredor. Na minha frente uma segunda porta,
162

aberta, dá acesso a um campo de badmínton com piso de relva artificial. Diante de mim está a
figura compacta e elegante do meu antigo agente, agora com sessenta anos, Arkady, nome de
código PICA-PAU, em fato de treino. Pés pequenos cuidadosamente afastados, braços
semierguidos em posição de combate. A ligeira inclinação para a frente do pescador ou do
lutador. Cabelo grisalho curto, só que em menor quantidade. O mesmo olhar descrente e a
mesma queixada cerrada, as rugas de sofrimento mais fundas. O mesmo sorriso tenso, não mais
legível do que na noite de há anos em que me dirigi a ele numa receção consular em Trieste e o
desafiei para uma partida de badmínton.
Faz-me um aceno de cabeça, vira-me costas e avança em passo marcial. Eu atravesso o campo
atrás dele e subo uma escada aberta de madeira até a um varandim para espectadores. Quando
chegamos ao varandim ele abre uma porta, manda-me entrar e volta a fechá-la. Subimos uma
segunda escada que dá acesso a uma comprida sala de sótão ao fundo da qual há uma porta de
vidro aberta na cumeeira. Ele abre-a e saímos para uma varanda coberta por uma latada de
videira. Ele volta a fechar a porta e diz secamente uma palavra russa para um telemóvel:
"destroçar".
Duas cadeiras de madeira, uma mesa, uma garrafa de vodca, copos, um prato de pão escuro,
uma meia-lua como iluminação. A vivenda com torreões erguendo-se acima das árvores. Nos
seus relvados bem iluminados, homens de fato caminham isoladamente. Jorros de água brincam
sobre um tanque presidido por ninfas de pedra. Em movimentos precisos, Arkady serve duas
doses de vodca, estende-me bruscamente um copo, aponta para o pão. Sentamo-nos.
"Foi a Interpol que o mandou?", interpela-me no seu rápido russo georgiano.
"Não."
163

"Veio cá para fazer chantagem comigo? Para me dizer que me entrega ao Putin se eu não reatar
a colaboração com Londres?"
"Não."
"Porque não? A situação é-lhe favorável. Metade das pessoas que tenho ao meu serviço faz
relatórios sobre mim para a corte do Putin."
"Lamento dizer-lhe, mas Londres já não confiaria nas suas informações."
Só então ele ergue o seu copo num brinde silencioso. Eu faço o mesmo, refletindo que no meio
de todos os nossos altos e baixos nunca o vi tão zangado.
"Quer dizer então que já não é a sua amada Rússia", sugiro eu ao de leve. "Pensava que sempre
tinha sonhado com aquela singela datcha no meio das bétulas russas. Ou com o regresso à
Geórgia, porque não? O que foi que correu mal?"
"Nada correu mal. Tenho casas em Sampetersburgo e em Tbilisi. Todavia, como
internacionalista, é da minha Karlovy Vary que mais gosto. Temos uma catedral ortodoxa. Os
bandidos russos devotos vão lá rezar uma vez por semana. Quando eu morrer vou juntar-me a
eles. Tenho uma esposa-troféu, muito nova. Todos os meus amigos querem pôr-se nela.
Normalmente, ela não deixa. Que mais hei de querer da vida?", pergunta ele em entoações
baixas e rápidas.
"Como está a Ludmilla?
"Morreu."
"Lamento. Morreu de quê?"
"De um agente nervoso de grau militar chamado cancro. Há quatro anos. Faço luto por ela
durante dois anos. Depois, que adianta?"
Nunca nenhum de nós conheceu Ludmilla. Segundo Arkady, era advogada como Prue, com
escritório em Moscovo.
"E o seu jovem Dimitri - é filho de Ludmilla?", pergunto eu.
164

"Gosta dele?"
"É um excelente rapaz. Parece ter um grande futuro."
"Ninguém tem."
Passa rapidamente o punho fechado pelos lábios num gesto que sempre foi sinal de tensão e
olha fixamente por cima das árvores para a vivenda com os seus relvados cheios de luz.
"Londres sabe que você está aqui?"
"Achei melhor só lhes dizer mais tarde. Falar consigo primeiro."
"É freelancer?"
"Não."
"Nacionalista?"
"Não."
"Então o quê?"
"Patriota, acho eu."
"De quê? Facebook? Dot-coms? Aquecimento global? Empresas tão grandes que podem
devorar o seu país falido com uma dentada só? Quem é que lhe paga?"
"A minha Repartição. Espero eu. Quando voltar."
"O que quer?"
"Algumas respostas. Dos velhos tempos. Se conseguir arrancarias. Confirmação, se estiver para
aí virado."
"Nunca me mentiu?" - parece uma acusação.
"Uma vez ou duas. Quando foi preciso."
"Agora está a mentir?"
"Não. E você também não me minta, Arkady. A última vez que me mentiu, por pouco não
acabou com a minha bela carreira."
"Foi chato", diz ele, e ficamos os dois a apreciar a vista noturna.
"Então diga-me uma coisa." Bebe mais um gole de vodca. "Que espécie de balela é que vocês,
britânicos, vendem hoje aos traidores como eu? A democracia liberal como salvação da
humanidade? Porque é que eu engoli essa merda?"
"Talvez porque quis."
165

"Vocês saem da Europa com o vosso nariz britânico empinado: "Somos especiais. Somos
britânicos. Não precisamos da Europa. Ganhámos sozinhos todas as nossas guerras. Nem
americanos, nem russos, ninguém. Somos super-homens." Ouvi dizer que o presidente Donald
Trump, grande amante da liberdade, vos vai resolver os problemas económicos. Sabe o que o
Trump é?"
"Diga-me você."
"É o encarregado da limpeza da latrina do Putin. Faz pelo pequeno Vladi tudo aquilo que o
pequeno Vladi não pode fazer sozinho: mija na unidade europeia, mija nos direitos humanos,
mija na NATO. Garante-nos que a Crimeia e a Ucrânia pertencem ao Santo Império Russo, que
o Médio Oriente pertence aos judeus e aos sauditas, e que se lixe a ordem mundial. E vocês,
britânicos, que fazem? Põem-se de cócoras e convidam-no para tomar chá com a rainha. Pegam
no nosso dinheiro sujo e lavam-no por nós. Recebem-nos de braços abertos se formos uns
grandes bandidos. Vendem-nos metade de Londres. Torcem as mãos quando envenenamos os
nossos traidores e dizem, por favor, por favor, caros amigos russos, façam negócios connosco.
Foi para isso que eu arrisquei a vida? Não me parece. Parece-me que vocês, britânicos, me
venderam uma carrada de merdas hipócritas. Portanto não me diga que veio cá para me recordar
a minha consciência liberal e os meus valores cristãos e o meu amor ao vosso grande Império
Britânico. Seria um erro. Está a compreender?"
"Já acabou?"
"Não."
"Eu não penso que você alguma vez tenha trabalhado para o meu país, Arkady. Penso que
estava a trabalhar para o seu país e não resultou."
"Estou-me cagando para aquilo que você pensa. Perguntei-lhe que porra quer de mim."
166

"Aquilo que sempre quis. Participa em encontros dos seus antigos camaradas? Convívios,
cerimónias de imposição de medalhas? Celebrações dos velhos tempos? Funerais dos notáveis?
Sendo você mesmo um veterano de prestígio, é praticamente obrigatório."
"E se participar?"
"Nesse caso felicitá-lo-ia por viver sob o disfarce de um chekista de corpo e alma, daqueles da
velha escola."
"Eu não tenho problemas de disfarces. Sou um respeitado herói russo. Não tenho inseguranças."
"E é por isso que vive numa fortaleza checa e mantém um exército de guarda-costas."
"Tenho concorrentes. Isso não é insegurança. É prática normal nos negócios."
"De acordo com os nossos registos, participou em quatro encontros de veteranos nos últimos
dezoito meses."
"E daí?"
"Costuma discutir casos com os seus antigos colegas? Ou mesmo casos novos, já agora?"
"Se o assunto vier à baila, talvez. Eu nunca levanto um assunto, nunca o provoco, como você
bem sabe. Mas se pensa que me vai enviar numa expedição de pesca a Moscovo, só pode estar
pirado da cabeça. Vá direto ao assunto, por favor."
"Com todo o gosto. Vim cá para lhe perguntar se continua em contacto com a Valentina, a
menina bonita do Centro de Moscovo."
Ele está a olhar em frente, de queixo imperiosamente empinado. Tem as costas direitas como
um militar.
"Nunca ouvi falar nessa mulher."
"Bem, isso é uma surpresa para mim, Arkady, porque você disse-me uma vez que era a única
mulher que tinha amado na sua vida."
167

Nada se alterou nas suas feições rígidas. Nunca se alterava nada. Só o estado de alerta do seu
corpo me diz que está a ouvir-me.
"Que ia divorciar-se da Ludmilla e casar-se com a Valentina. Mas, pelo que acaba de me dizer,
não é ela a mulher com quem não está casado. A Valentina era poucos anos mais nova do que
você. Não me parece que seja ela a sua esposa-troféu."
Continua a nada se alterar.
"Nós podíamos ter-lhe dado a volta, se bem se lembra. Tínhamos os meios. Você próprio no-los
forneceu. Tinham-na enviado a Trieste numa missão importante para o Centro. Um experiente
diplomata austríaco queria vender os segredos do seu país, mas recusava-se a negociar com
qualquer funcionário russo. Ninguém de uma comunidade consular ou diplomática. Moscovo
enviou-lhe a Valentina. Naquele tempo o Centro não tinha muitas agentes, mas a Valentina era
excecional: brilhante, muito bonita e o sonho da sua vida, segundo você me disse. Logo que ela
resolveu o assunto com o homem, vocês dois combinaram não dizer nada ao Centro durante
uma semana e ofereceram-se umas férias românticas no Adriático. Se bem me lembro, nós
ajudámo-los a encontrar um sítio convenientemente discreto. Podíamos ter feito chantagem com
ela, mas não vimos como podíamos fazê-lo sem o comprometer a si."
"Eu disse-vos que a deixassem em paz, caso contrário matava-vos."
"é verdade, e ficámos devidamente impressionados. Ela era georgiana como você, de uma velha
família chekista, se não me falha a memória. Tinha todas as qualidades e você estava louco por
ela. Uma perfeccionista, segundo me disse. Perfeita no trabalho, perfeita no amor."
Quanto tempo ficamos sentados a contemplar a noite?
"Demasiado perfeita, talvez", resmunga ele por fim, em tom mordaz.
168

"O que é que correu mal? Ela era casada? Tinha outro homem? Isso não o teria demovido,
certamente."
Novo silêncio prolongado, no caso de Arkady um sinal seguro de que está a reunir pensamentos
sediciosos,
"Talvez estivesse demasiado casada com o pequeno Vladi Putin", diz ele desabridamente.
"Talvez não de corpo, mas de alma. Putin é a Rússia, diz-me ela. Putin é Pedro, o Grande, Putin
épureza, é inteligente. É mais inteligente do que o Ocidente decadente. Devolve-nos o nosso
orgulho russo. Quem rouba o Estado é um ladrão malvado porque rouba pessoalmente Putin."
"E você era um desses ladrões malvados?"
"Os chekistas não roubam, diz-me ela. Os georgianos não roubam. Se ela soubesse que eu tinha
trabalhado para vocês tinha-me estrangulado com uma corda de piano. Portanto, talvez no fim
não tivesse sido um casamento completamente compatível" - seguido de uma gargalhada
amarga.
"Como é que acabou, se é que acabou?"
"Um pouco era demasiado, mais era demasiado pouco. Ofereci-lhe tudo isto" - apontando com
a cabeça para a floresta, a vivenda, os relvados iluminados, o arame farpado e as sentinelas de
fato escuro nas suas rondas. "Ela diz-me: Arkady, tu és o Satanás. Não me ofereças o teu reino
roubado. Eu digo-lhe: Valentina, diz-me uma coisa, por favor. Quem, neste universo fodido, é
hoje rico sem ser ladrão? Digo-lhe que o sucesso não é uma vergonha, é uma absolvição, é a
prova do amor de Deus. Mas ela não tem Deus. E eu também não."
"Continua a vê-la?"
Ele encolhe os ombros. "Eu sou viciado em heroína? Sou viciado em Valentina."
"E ela em si?"
Era assim que costumávamos ser, caminhando em bicos de pés pelo limite das suas lealdades
divididas, ele como o meu agente
169

valioso e imprevisível, eu como a única pessoa no mundo com quem ele podia abrir-se em
segurança. "Mas vê-a de vez em quando?" Ele fica tenso, ou é só imaginação minha? "Às vezes
em Sampetersburgo, quando ela está disposta", responde secamente.
"Que profissão tem ela agora?"
"A mesma de sempre. Nunca foi consular, nem diplomática, nem cultural, nem de imprensa. É
Valentina, a grande veterana de cadastro limpo." "E faz o quê?"
"O mesmo de sempre. Controla ilegais a partir do Centro de Moscovo. Só Europa Ocidental. A
minha antiga função."
"Será que o trabalho dela inclui agentes adormecidos?"
"Agentes adormecidos do tipo enterra-te na merda durante dez anos e depois desenterra-te
durante vinte anos? Claro. A Valentina controla agentes adormecidos. Quem dorme com ela não
volta a acordar."
"Poria em risco os agentes adormecidos que controla colocando-os ao serviço de uma fonte
importante exterior à rede?"
"Se a parada for suficientemente alta, é claro que sim. Se o Centro pensar que a rezidentura
local é um ninho de idiotas, o que normalmente é verdade, pode autorizar a utilização dos
ilegais dela."
"Mesmo dos agentes adormecidos dela?"
"Se não foi ela que os pôs a dormir, porque não?"
"E ainda hoje, ao fim de tantos anos, tem o cadastro limpo", sugiro eu.
"Sem dúvida. É a melhor."
"Tão limpo que pode ir para o terreno sem disfarce?"
"O que ela quiser. Em qualquer lado. Sem problema. É um génio. Peça-lhe."
170

"Então podia, a título de exemplo, ir a um país ocidental falar com uma fonte importante ou
recrutá-la, digamos assim?" "Se for peixe graúdo, com certeza." "Que tipo de peixe?"
"Graúdo. Já lhe disse. Tem de ser graúdo." "Tão graúdo como você?" "Talvez mais. Que
importa isso?"
Hoje, o que se segue parece presciência. Não foi nada disso. Foi uma questão de eu ser o
homem que costumava ser. Foi uma questão de conhecer o meu agente melhor do que me
conhecia a mim próprio; de detetar os sinais de mudança do tempo à medida que se reuniam
nele antes que ele próprio os reconhecesse. Foi o fruto de noites em claro sentado num carro
alugado, numa viela de uma qualquer cidade comunista esquecida, a ouvi-lo despejar a história
de uma vida demasiado carregada de história para um homem poder suportá-la sozinho. Mas a
história mais triste de todas é aquela que agora estou a contar a mim mesmo: a tragédia
recorrente da sua solitária vida amorosa, de como este homem de virilidade supostamente
inatacável se transforma no momento decisivo na criança perdida que outrora havia sido,
impotente, rejeitada e humilhada, de como o desejo se torna vergonha e a raiva se acumula
dentro dele. Das suas muitas parceiras mal escolhidas, Valentina era o arquétipo, fingindo
desprendidamente retribuir-lhe a paixão, aperaltando-se para ele; e, depois de o dominar,
atirando-o novamente para a rua de onde ele viera.
E ela está connosco agora, estou a senti-lo: na voz excessivamente descuidada que ele usa para
a menosprezar, na exagerada linguagem corporal que não é natural nele. "Peixe macho ou peixe
fêmea?" "Como é que você quer que eu saiba?"
"Sabe porque a Valentina lhe contou. Não é verdade?", sugiro eu. "Não tudo. Só umas dicas
sussurradas ao ouvido, como costumava
171

fazer. Para o excitar. Para o impressionar. Para o espicaçar. Este grande peixe graúdo que lhe
caiu na rede. Ela disse peixe britânico, por acaso? é isso que não está a dizer-me?"
O suor escorre-lhe pelo rosto encovado e trágico iluminado pela lua. Está a falar como
costumava falar, rapidamente, do mais íntimo de si, a trair como costumava trair, odiando-se,
odiando o objeto da sua traição, saboreando o seu amor por ela, desprezando-se, castigando-a
por falhas que são suas. Sim, um peixe graúdo. Sim, britânico. Sim, um homem. Um voluntário.
Ideológico como os tempos do comunismo. Classe média. Valentina prepará-lo-á pessoalmente.
Ele será sua possessão, seu discípulo. Talvez seu amante, ela decidirá.
"Já tem o que queria?", berra ele de repente, rodando o seu corpo pequeno para me confrontar.
"Foi para isso que cá veio, seu pedaço de merda imperialista inglesa? Para eu trair a minha
Valentina consigo pela segunda vez?"
Põe-se de pé de um salto.
"Você dormiu com ela, seu fodilhão!", berra desenfreadamente. "Pensa que eu não sei que
comeu todas as mulheres de Trieste? Diga-me que dormiu com ela!"
"Lamento, mas não tive esse prazer, Arkady", respondo eu.
Ele caminha energicamente à minha frente, de cotovelos afastados, pernas curtas bem
estendidas. Eu atravesso atrás dele o chão despido do sótão e desço os dois lanços de escadas.
Quando chegamos ao campo de badmínton ele agarra-me pelo braço.
"Lembra-se do que me disse naquela primeira vez?"
"Claro que me lembro."
"Diga-o agora."
"Desculpe, cônsul Arkady. Disseram-me que joga bem badmínton. Que me diz a uma partida
amigável entre dois grandes aliados de guerra?"
"Abrace-me."
172

Eu abraço-o. Ele aperta-me avidamente contra si e depois empurra-me.


"O preço é um milhão de dólares pagável em barras de ouro através da minha conta numerada
na Suíça", anuncia ele. "A libra é merda, ouviu? Se não me pagarem, vou contar ao Putin!"
"Lamento, Arkady, mas estamos completamente falidos", digo eu e, não sei bem porquê,
estamos os dois a sorrir.
"Não volte cá, Nick. Já ninguém sonha, está a ouvir? Gosto muito de si. Na próxima vez que cá
vier, mato-o. É uma promessa."
Empurra-me outra vez. A porta fecha-se nas minhas costas. Estou de novo no pátio iluminado.
Sopra uma brisa. Sinto as lágrimas dele nas minhas faces. Dimitri, no seu Mercedes todo-o-
terreno, faz-me sinais de luzes.
"Ganhou ao meu pai?", pergunta nervosamente enquanto nos afastamos.
"Empatámos", digo-lhe eu.
Ele devolve-me o relógio, a carteira, o passaporte e a esferográfica.
Os dois homens das forças especiais que me revistaram estão sentados no átrio com as pernas
estendidas. Não levantam os olhos quando eu passo, mas, quando chego ao último degrau e
olho para trás, estão a olhar para mim. Por cima da cabeceira da minha cama de dossel, uma
benevolente Virgem Maria preside a uma cena de anjos a copular. Estará Arkady arrependido de
me ter permitido entrar de novo na sua vida atormentada durante trinta minutos? Estará a
decidir que afinal é melhor que eu esteja morto? Já viveu mais vidas do que eu alguma vez
viverei. Não pôs termo a nenhuma. Passos abafados de um lado para o outro do corredor. Tenho
um quarto extra para o meu guarda-costas, mas
173

não tenho guarda-costas para lá pôr. Não tenho nenhuma arma além da chave do quarto, uns
trocos de dinheiro inglês e um corpo de meia-idade que não se compara com os deles.
Tão graúdo como você? Talvez mais. Que é que isso importa?... Quem dorme com ela não volta
a acordar... Já ninguém sonha, está a ouvir?
174
12

Moscovo falou. Arkady falou. Eu falei e fui ouvido. Dom Trench rasgou a carta para o comité
disciplinar. A Geral de Londres reembolsou-me das despesas de viagem, mas questionou o facto
de ter ido de táxi para o hotel à beira do lago, em Karlovy Vary. Parece que havia um autocarro
que eu podia ter apanhado. O departamento da Rússia sob a chefia temporária de Guy Bram-
mel declarou o caso Forquilha ativo e imediato. O seu chefe, Bryn Jordan, deu o seu
consentimento de Washington e guardou para si eventuais pensamentos que tenha sobre a visita
irregular de um funcionário a um antigo agente que é tóxico. A ideia de um traidor do calibre de
Arkady no meio de nós causou uma natural agitação nos pombais de Whitehall. O agente
Forquilha, instalado num apartamento de duas assoalhadas num rés do chão da zona norte de
Londres, recebeu nada menos de três subtextos codificados da sua hipotética inamorata
dinamarquesa Anette, e o seu conteúdo provoca uma excitação no Porto de Abrigo que
imediatamente se transmite a Dom Trench, ao departamento da Rússia e à Direção de
Operações, por ordem ascendente:
"É a prova da existência de Deus", sussurra-me Sergei numa voz reverente. "Talvez esteja na
Sua vontade que eu seja apenas um interveniente muito pequeno numa grande operação que de
175

resto é meu dever ignorar. Não me importo. Só quero provar a minha boa-fé."
Contudo, relutantes em abandonar suspeitas antigas, os vigilantes de Percy Price mantêm-no
sob contravigilância de baixa intensidade às terças e quintas feiras à tarde, das 14h00 às 18h00,
que é o máximo que Percy pode fazer atualmente. Sergei também perguntou à sua mentora
Denise se, no caso de lhe concederem a cidadania britânica, ela aceita a sua mão em casamento.
Denise desconfia de que Barry arranjou outro e Sergei, em vez de aceitar isso, decidiu que é
hétero. Mas as perspetivas de uma união são escassas. Denise é lésbica e tem mulher.
Os subtextos em carbono do Centro de Moscovo aprovam a escolha de alojamento de Sergei e
exigem mais informações detalhadas sobre os outros dois bairros selecionados do Norte de
Londres, confirmando com isso o gosto da perfeccionista Anette pelo exagero de organização.
Merecem referência particular os parques públicos, os acessos pedonais e viários, os horários de
abertura e encerramento, a presença ou não de guardas, patrulhas e "elementos vigilantes". A
localização dos bancos de jardim, as tendas, coretos e zonas de estacionamento são também
pontos de grande interesse. A interceção de sinais confirmou um aumento anormal de tráfego de
entrada e saída do departamento norte do Centro de Moscovo.
Desde o meu regresso de Karlovy Vary, as minhas relações com Dom Trench estão a viver uma
previsível lua de mel, apesar de o departamento da Rússia lhe ter retirado discretamente a
autoridade em todos os assuntos relativos à Poeira de Estrelas, o nome de código aleatório que
o computador da Sede deitou cá para fora para designar a exploração dos dados trocados entre o
Centro da Rússia e a Fonte Forquilha. Mas Dom, convencido, como sempre, de que a rejeição
está mesmo ao virar da esquina, continua obstinadamente entusiasmado com a ideia de os meus
relatórios
176

levarem os nossos dois símbolos. Tem consciência de que depende de mim e isso perturba-o, o
que eu acho discretamente agradável.

Tinha prometido responder à mensagem de Florence, mas na euforia do momento tinha deixado
para mais tarde. O intervalo forçado enquanto esperamos por instruções decisivas do Centro de
Moscovo proporciona-me um momento tão oportuno como outro qualquer para reparar a minha
indelicadeza. Prue foi visitar uma irmã que vive no campo e está doente. Espera passar lá o fim
de semana. Telefono-lhe a confirmar. Os seus planos não se alteraram. Não ligo a Florence do
Porto de Abrigo nem do meu telemóvel de serviço. Vou para casa, como uma empada fria de
carne de vaca e rim, bebo dois ou três scotches e então, munido de moedas, subo a rua até a
uma das últimas cabines telefónicas que restam em Battersea e marco o número mais recente
que ela me deu. Estou à espera de ouvir outro atendedor de chamadas, mas quem me atende é
Florence, ofegante.
"Espere um momento", diz, cobrindo o bucal do telefone com a mão, e grita para alguém
naquilo que parece uma casa vazia. Não ouço palavras, mas ouço-lhes o eco como se fossem
vozes difusas no mar, primeiro a de Florence, depois a de um homem. Volta então a falar
comigo, en clair e em tom profissional.
"Sim, Nat?"
"Olá, outra vez", digo eu.
"Olá."
Se estou à espera de algum sinal de contrição, não ouço nenhum na voz nem no eco.
"Estou a telefonar porque prometi que telefonava e parece-me que temos um assunto em
suspenso", digo eu, surpreendido por ter de estar a explicar-me quando a explicação devia partir
dela.
177

"Assunto profissional ou assunto pessoal?", pergunta ela, perentória, e eu começo a ficar


irritado.
"Você dizia na sua mensagem que podíamos conversar, se eu quisesse", lembro-lhe eu. "Dada a
forma como saiu de cena, achei que era boa ideia."
"De que forma é que eu saí de cena?"
"De forma súbita, no mínimo. E particularmente deselegante para com certas pessoas a seu
cargo, já que pergunta", reajo eu, e, no longo silêncio que se seguiu, arrependi-me da minha
rispidez.
"Como estão elas?", pergunta ela, numa voz contida.
"As pessoas a seu cargo?"
"Quem havia de ser?"
"Sentem muito a sua falta", respondo eu em tom mais amável.
"A Brenda também?" - depois de mais um longo silêncio.
Brenda, nome que demos a Astra, a amante desencantada de Orson, fonte principal para a
Operação Botão de Rosa. Estou quase a dizer-lhe que Brenda, quando soube que ela se tinha
ido embora, se recusou a continuar a colaborar, mas o soluço na voz de Florence é demasiado
percetível e opto por adoçar a resposta.
"Está a aguentar-se bastante bem, dadas as circunstâncias. Pergunta por si, mas compreende
perfeitamente que a vida tem de continuar. Ainda aí está?"
"Nat?"
"Diga."
"Acho que é melhor irmos jantar."
"Quando?"
"Em breve."
"Amanhã?"
"Está bem."
"E peixe, presumo", digo eu, lembrando-me da empada de peixe que comemos no pub depois
da sua apresentação da Botão de Rosa.
178

"Estou-me nas tintas para o que vamos comer ou não", responde ela, e desliga.
Os únicos restaurantes de peixe que eu conhecia eram os que constavam da lista acessível da
secção de Finanças, o que significava que estávamos sujeitos a encontrar colegas do Serviço
jantando com os seus contactos, a última coisa de que qualquer de nós precisava. Decido-me
por um restaurante fino no West End e levanto uma boa quantidade de notas numa máquina
automática, porque não quero que a fatura apareça na minha conta conjunta com Prue no
Barclays. Há alturas na vida em que somos apanhados por pecados que não cometemos. Peço
uma mesa de canto, mas não precisava de me ter preocupado. Londres está a sufocar debaixo da
interminável vaga de calor. Como é meu hábito, chego antes da hora e peço um scotch. O
restaurante está quase deserto e os empregados são vespas sonolentas. Passados dez minutos
aparece Florence, vestindo uma versão estival do uniforme que usava na Repartição: austera
blusa militar com mangas compridas e colarinho alto, nada de maquilhagem. No Porto de
Abrigo tínhamos começado por acenos de cabeça e evoluído para beijos no ar. Agora voltamos
ao "olá" e ela trata-me como o ex-namorado que não sou.
A coberto de uma ementa enorme ofereço-lhe um copo de champanhe da casa. Ela lembra-me
secamente que só bebe borgonha tinto. Solha grelhada está bem para ela, concede, mas
pequena. E cocktail de camarão com abacate para entrada, se eu também comer. Eu também
como. Estou interessado nas mãos dela. O pesado anel de brasão masculino que usava no dedo
anelar deu lugar a um vulgar anel de prata polvilhado de pedrinhas vermelhas. Fica-lhe grande e
não cobre a marca branca deixada pelo antecessor.
Desembaraçamo-nos da tarefa de escolher e devolvemos as enormes ementas ao empregado.
Até aqui ela evitou eficazmente
179

o contacto ocular. Agora está a fitar-me e não há o mínimo sinal de contrição nos seus olhos.
"O que foi que o Trench lhe disse", pergunta.
"Sobre si?"
"Sim. Sobre mim."
Eu tinha pensado que seria eu a fazer as perguntas difíceis, mas ela tem outras ideias.
"Que você era excessivamente emocional e um erro, basicamente", respondo eu. "Eu disse-lhe
que não era essa a ideia que tinha de si. Nessa altura já você tinha abandonado a Repartição,
portanto foi tudo bastante académico. Podia ter-me contado durante o nosso jogo de badmínton.
Podia ter-me telefonado. Não fez uma coisa nem outra."
"Você também achou que eu fui excessivamente emocional e um erro?"
"Ainda agora lhe disse. Como disse ao Trench, não era essa a ideia que tinha de si."
"Pergunto o que pensou, não o que disse."
"Que havia de pensar? A Botão de Rosa foi uma desilusão para todos nós. Mas não há nada de
anormal no cancelamento de uma operação especial à última hora. Por isso pensei naturalmente
que você tinha reagido a quente. E também que devia ter problemas pessoais com o Dom.
Talvez não me digam respeito", acrescento com sinceridade.
"Que mais lhe contou o Dom sobre a nossa conversa?"
"Nada de especial."
"Por acaso não falou na lindíssima esposa, a Baronesa Rachel, conservadora, par do reino e
gestora de fortunas?"
"Não, porque é que havia de falar?"
"Por acaso não é amigo dela, não?"
"Nunca a vi."
180

Ela bebe um gole de borgonha tinto, seguido de um gole de água, mede-me com os olhos,
respira fundo.
"A Baronesa Rachel é administradora-delegada e cofundadora, com o irmão, de uma chique
empresa de gestão de fortunas com escritórios de prestígio na City. Só aceitam clientes
particulares. Quem não estiver a falar de cinquenta milhões de dólares para cima nem vale a
pena contactá-los. Pensei que sabia."
"Não sabia."
"A empresa é especializada em offshores: Jersey, Gibraltar e a ilha de Nevis. Já ouviu falar de
Nevis?"
"Ainda não."
"Nevis é o suprassumo do anonimato. Nevis ultrapassa tudo. Ninguém em Nevis sabe quem são
os donos das suas incontáveis empresas que a ilha tem. Foda-se."
A sua irritação é dirigida à faca e ao garfo, que tremem descontroladamente. Pousa-os com
violência, bebe mais um gole de borgonha.
"Quer que continue?"
"Sim, por favor."
"A Baronesa Rachel e seu irmão fazem uma gestão isenta de responsabilidades e inverificável
de quatrocentas e cinquenta e três empresas offshore sem relação entre si, sem nome,
desconhecidas umas das outras, registadas principalmente em Nevis. Está a ouvir, não está?
Pela sua cara, não parece."
"Vou tentar pôr outra."
"Além de discrição absoluta, os clientes exigem altos retornos sobre os seus investimentos.
Quinze, vinte por cento, caso contrário não vale a pena. A especialidade da Baronesa e do irmão
é o Estado soberano da Ucrânia. Alguns dos seus maiores clientes são oligarcas ucranianos.
Cento e setenta e seis das ditas empresas anónimas são donas de propriedades de luxo em
Londres, principalmente em Knightsbridge e Kensington. Mas uma dessas
181

propriedades de luxo é um duplex em Park Lane detido por uma empresa que é detida por uma
empresa que é detida por um fundo fiduciário que é detido pelo Orson. Factos. Incontestáveis.
Os valores também estão disponíveis."
Eu não tenho reações dramáticas, nem a Repartição as considera desejáveis. Por isso não tenho
dúvida de que a enfureci quando, em vez de emitir um grito de alarmada indignação, reparei
que os nossos copos de vinho estavam a precisar de reabastecimento e interrompi uma
prolongada discussão entre três empregados para que ele acontecesse
"Quer ouvir o resto, ou não?"
"Absolutamente."
"Quando não está a tratar dos seus pobres e necessitados oligarcas, a Baronesa tem assento em
duas ou três subcomissões das Finanças como membro da Câmara Alta cooptado. Estava
presente quando foi discutida a Botão de Rosa. Não sobrevive nenhuma ata da reunião."
É a minha vez de beber um longo trago de vinho.
"Estou certo em pensar que você anda há algum tempo a seguir essas supostas ligações?",
pergunto.
"Talvez."
"Pondo momentaneamente de lado a questão de saber como pensa que sabe isso e se é verdade:
que parte disso contou ao Dom no encontro que teve cara a cara com ele?"
"O suficiente."
"O que é o suficiente?"
"Para começar, o facto de a linda esposa dele gerir empresas do Orson e fingir que não."
"Se de facto gere."
"Tenho amigos a trabalhar no assunto."
"Assim já começo a perceber. Há quanto tempo conhece esses amigos?"
182

"Que porra é que isso interessa para o caso?"


"E isso de a Rachel pertencer à subcomissão das Finanças? Também lhe chegou através dos
seus amigos?"
"Talvez."
"Também falou nisso ao Dom?"
"Para quê? Ele sabia."
"Como sabe que ele sabia?"
"São casados, foda-se!"
Isto é uma piada a mim? Provavelmente é, ainda que a fantasia do nosso inexistente caso
amoroso esteja mais profundamente enraizada na imaginação dela do que na minha.
"A Rachel é uma grande senhora", continua ela sarcasticamente. "As revistas femininas
adoram-na. Tem medalhas por boas ações. Jantares de angariação de fundos no Savoy. Caridade
no Claridge's. O cardápio completo."
"Mas as revistas da sociedade não dizem que faz parte de super-secretas subcomissões das
Finanças, imagino. Ou talvez a internet negra diga."
"Como é que eu hei de saber? - exagerada indignação.
"é isso que estou a perguntar-lhe. Como é que sabe?"
"Não me faça um interrogatório, Nat. Já não sou propriedade sua!"
"Surpreende-me que alguma vez tenha pensado que era."
A nossa primeira desavença de amantes sem nunca termos feito amor.
"E como respondeu o Dom àquilo que você lhe disse sobre a mulher", depois de uma pausa
para esfriamento da paixão, principalmente dela, e pela primeira vez, vejo-a vacilar na
determinação de me tratar como um inimigo. Debruça-se sobre a mesa e baixa a voz:
"Primeiro. As mais altas autoridades deste país estão a par de todas essas ligações. Analisaram-
nas e aprovaram-nas."
183

"Ele disse quais altas autoridades?"


"Segundo. Não há qualquer conflito de interesses. Total e absoluto conhecimento de todas as
partes. Terceiro. A decisão de não avançar com a Botão de Rosa foi tomada no interesse
nacional, depois de devidamente ponderados todos os aspetos da questão. E quarto, parece que
estou na posse de informação classificada a que não tenho direito, portanto tenho de manter a
porra da boca fechada. Que é o que você está prestes a dizer-me."
Tinha razão, ainda que por motivos diferentes.
"Então a quem mais contou? Tirando o Dom e eu?", pergunto eu.
"A ninguém. Porque é que havia de contar?" - num regresso à hostilidade anterior.
"Bem, é melhor continuar assim. Não quero ir abonar o seu bom carácter no Old Bailey. Volto a
perguntar-lhe: há quanto tempo é que se dá com esses seus amigos?"
Sem resposta.
"Desde antes de entrar para a Repartição?"
"É possível."
"Quem é o Hampstead?"
"Um estupor."
"De que género?"
"Um tipo de quarenta anos, gestor de fundos de cobertura reformado."
"Casado, calculo."
"Como você."
"É a mesma pessoa que lhe disse que a Baronesa gere as contas bancárias offshore do Orson?"
"Disse que ela era a investidora da City a que os ucranianos podres de ricos recorriam. Disse
que dedilha as autoridades financeiras como se fossem uma harpa. Disse que já a tinha usado
algumas vezes e ela tinha correspondido."
184

"Usado para quê?"


"Para fazer avançar as coisas. Para contornar regras que não regulam. Para que havia de ser?"
"E você passou esses rumores - esse diz-que-diz - aos seus amigos e eles fizeram o resto. é isso
que me está a dizer?"
"Talvez."
"Que quer que eu faça com a história que acabou de me contar? Supondo que é verdadeira?"
"Porra nenhuma. É o que toda a gente faz, não é?"
Levanta-se da mesa. Eu levanto-me também. Um empregado traz a conta exorbitante. Olhamos
todos enquanto eu conto notas de vinte libras para cima da bandeja. Ela sai atrás de mim para a
rua e agarra-me. Damos o abraço que nunca tínhamos dado, mas nada de beijos.
"E não se esqueça daqueles documentos draconianos que os Recursos Humanos a obrigaram a
assinar quando se demitiu", avisei-a eu à despedida. "Lamento que tenha acabado mal."
"Bom, talvez não tenha acabado", replica ela. E apressa-se a corrigir, como se se tivesse
expressado mal: "Só queria dizer que nunca me esquecerei, mais nada. De todos vocês, gente
fantástica. Dos meus agentes. Do Porto de Abrigo. Vocês são todos bestiais", prossegue com
excessivo entusiasmo.
Desce para a rua, manda parar um táxi que vai a passar e fecha a porta atrás de si antes que eu
consiga perceber para onde vai.

Estou sozinho no passeio escaldante. São dez da noite, mas o calor do dia sobe-me à cara. A
nossa desavença terminou tão rapidamente que, com o vinho e o calor, estou tentado a duvidar
que ela tenha de facto acontecido. Qual é o meu próximo passo? Pedir satisfações a Dom? Ela
já o fez. Chamar a guarda pretoriana
185

da Repartição e fazer cair a ira de Deus sobre os amigos dela, que imagino serem um bando de
miúdos, idealistas furiosos, da idade de Steff, que passam todo o seu tempo vígil a tentar zurzir
O Sistema? Ou ter calma, ir para casa, dormir, ver o que penso de manhã? Estou prestes a fazer
tudo isso quando o meu smartphone de serviço debita uma mensagem urgente. Afasto-me do
candeeiro e digito os números necessários.
Fonte FORQUILHA recebeu material decisivo. Reunião de toda agente da Poeira de Estrelas no
meu gabinete amanhã às 07h00.
Assinado com o símbolo de Guy Brammel, chefe interino do departamento da Rússia.
186

13

Qualquer tentativa minha de dar uma ordenação clara aos acontecimentos operacionais,
domésticos e históricos que se acumularam nos onze dias que se seguiram está condenada ao
fracasso. Episódios triviais misturam-se com outros de grande importância. As ruas de Londres
podem languescer debaixo da onda de calor recorde, mas fervilham de indignados
manifestantes com cartazes, entre eles Prue e os seus amigos advogados com tendências de
esquerda. Bandas improvisadas matraqueiam protestos. Efígies cheias de gás ondulam por cima
das multidões. Sirenes da polícia e das ambulâncias soam estridentes. A City de Westminster
está inacessível, não se pode atravessar Trafalgar Square. E a razão desta desordem? Londres
estende a passadeira vermelha a um presidente americano que veio troçar dos nossos laços com
a Europa que tanto custaram a tecer, e humilhar a primeira-ministra que o convidou.

A reunião das 07h00 no gabinete de Brammel é a primeira de uma fiada interminável de jogos
de guerra da Poeira de Estrelas. Nela participam o essencial Percy Price e a elite do
departamento
187

da Rússia e da Direção de Operações. Mas Dom não está presente, e significativamente


ninguém pergunta onde ele está, portanto eu também não pergunto. A temível Marion do nosso
Serviço irmão é acompanhada por dois garbosos juristas de fato escuro, apesar do calor
abrasador. Brammel em pessoa lê em voz alta as últimas instruções que Sergei recebeu do
Centro. Devem prestar apoio no terreno a um encontro secreto entre um importante emissário
de Moscovo, de género não especificado, e um colaboracionista britânico de alto valor, sem
mais pormenores. O meu papel na Poeira de Estrelas é aprovado, e simultaneamente
restringido. Deteto a mão de Bryn Jordan, ou estou a ser mais paranóico do que é meu costume?
Como chefe do subposto Porto de Abrigo, "serei responsável pelo bem-estar e pela gestão de
FORQUILHA e seus controladores"; todas as comunicações para o e do Centro de Moscovo
passarão por mim. Mas Guy Brammel, como chefe interino do departamento da Rússia,
autorizará todas as comunicações do Porto de Abrigo antes de serem postas em circulação.
E assim terminam oficialmente, de repente, as minhas funções: só que não terminam porque eu
não sou assim, e o distante Bryn, mais que ninguém, tinha obrigação de saber. Sim, serei
encafuado em entediantes sessões com Sergei e a sua mentora Denise na decrépita sala segura
do Porto de Abrigo, ao lado da estação de metro de Camden Town. Sim, escreverei os subtextos
de Sergei e jogarei xadrez com ele pela noite fora enquanto esperamos que uma obscura estação
de rádio comercial da Europa de Leste confirme por um código de palavras previamente
combinado que a nossa mais recente carta de amor para Copenhaga está a ser processada.
Mas eu sou um homem do terreno, não um manga de alpaca, não um assistente social. Posso ser
um excomungado do Porto de Abrigo, mas também sou o autor natural da Operação Poeira de
Estrelas. Quem fez a entrevista crucial a Sergei e detetou o
188

cheiro a sangue? Quem o trouxe para Londres, fez a peregrinação proibida a Arkady e assim
forneceu a prova conclusiva de que não estávamos na presença de um vulgar jogo de cadeiras
musicais dos russos, mas sim de uma importante operação de espionagem montada em torno de
uma fonte britânica de alto valor, em potência ou ativa, e dirigida pessoalmente pela rainha dos
ilegais do Centro de Moscovo?
No nosso tempo, Percy Price e eu roubámos juntos uns quantos cavalos, como diz o ditado, e
não apenas aquele protótipo de míssil terra-ar russo em Poznan. Por isso não deve ter sido
grande surpresa para ninguém do último andar que, dias depois do primeiro jogo de guerra da
Poeira de Estrelas, Percy e eu estejamos acocorados na caixa de uma carrinha de distribuição de
roupa equipada com as últimas maravilhas da vigilância moderna, percorrendo o primeiro,
depois o segundo e agora o último dos três bairros do Norte de Londres de que Sergei recebeu
instruções para fazer o reconhecimento. Percy deu-lhe o nome de Área Beta e eu não questiono
a sua escolha. Nos trajetos que fazemos juntos, rememoramos velhos casos em que
colaborámos, velhos agentes, velhos colegas, e conversamos como velhos. Graças a Percy sou
também discretamente apresentado à sua Grande Armée de vigilantes, privilégio que
decididamente a Sede não encoraja; afinal de contas, um dia podem estar a vigiar-nos. O local
deste encontro é um tabernáculo de tijolo desconsagrado a aguardar demolição nos arredores da
Área Beta. A nossa fachada é um encontro de almas com propósitos evocativos. Percy reuniu
uma boa centena delas.
"Qualquer pequeno estímulo que possas dar aos meus rapazes e raparigas será muito bem-vindo
e apreciado, Nat", diz-me ele no seu despretensioso cockney. "Eles estão empenhados, mas o
trabalho deles pode ser um bocado enfadonho, principalmente com o calor que tem estado.
Pareces um bocadinho preocupado, se me permites que te diga. Lembra-te, por favor, de que os
meus
189

rapazes e raparigas gostam de ver uma boa cara. Mas são vigias, compreendes, portanto é
natural."
Em atenção a Percy distribuo apertos de mão e palmadas no ombro e, quando ele me convida a
proferir umas palavras de mobilização e encorajamento aos seus fiéis, não desiludo.
"Portanto, aquilo que todos esperamos vigiar na próxima sexta-feira à noite", digo enquanto
ouço a minha voz ressoar agradavelmente entre as traves de pinho nórdico, "no dia 6 de julho,
para ser exato, é um encontro secreto minuciosamente preparado, entre duas pessoas que nunca
se viram. Uma, nome de código Gama, será um operacional experimentado, homem ou mulher,
com provas dadas e todos os truques da profissão na manga. O outro, nome de código Delta,
será uma pessoa de idade, profissão e género desconhecidos", previno-os, protegendo como
sempre a minha fonte. Os motivos dele ou dela são tão misteriosos para nós como estou certo
de que serão para vós. Mas há uma coisa que vos posso dizer: se a quantidade de informações
sólidas que estamos a receber no momento em que vos falo significa alguma coisa, o grande
povo britânico está prestes a ficar com uma considerável dívida de gratidão para convosco,
mesmo que nunca venha a sabê-lo."
O aplauso estrondoso, totalmente inesperado, comoveu-me.
Se Percy estava preocupado com o efeito da minha expressão facial sobre o seu rebanho, Prue
não tem esse tipo de ansiedade. É cedo e estamos a tomar o pequeno-almoço.
"É ótimo ver-te ansioso por começar o dia", diz-me, pousando o seu jornal Guardian. "Seja lá o
que te preparas para fazer. Fico muito satisfeita por ti, depois de todos os pensamentos terríveis
que tiveste sobre o regresso a Inglaterra e sobre o que fazer
190

quando cá chegasses. Só espero que não seja desesperadamente ilegal, aquilo que andas a fazer.
é?"
A pergunta, se a interpreto corretamente, assinala um progresso substancial no nosso cauteloso
regresso à vida em comum. Desde o tempo que passámos em Moscovo está entendido entre nós
que, mesmo que eu infringisse as regras da Repartição e lhe contasse tudo, as suas objeções de
princípio ao Estado Profundo não lhe permitiriam apreciar as minhas confidências. Em
compensação, eu tinha feito uma espécie de ponto de honra - porventura excessivo - de não me
imiscuir nos seus segredos jurídicos, mesmo quando se tratava de batalhas titânicas como
aquela que o seu escritório está atualmente a travar contra as Grandes Farmacêuticas.
"Pois bem, ironicamente, Prue, desta vez não é nada de horrível", respondo eu. "Aliás, penso
que até tu podias estar de acordo. Todos os sinais apontam para que estejamos em vias de
desmascarar um espião russo de alto nível" - o que não é meramente infringir as regras da
Repartição, é espezinhá-las.
"E vão levá-lo ou levá-la a julgamento depois de os terem desmascarados, sejam eles quem
forem. Claro que vão. Julgamento público, espero."
"Isso será com os poderes superiores", respondo eu cautelosamente, porque a última coisa que a
Repartição quer fazer quando apanha um agente inimigo é certamente entregá-lo às forças da
justiça."
"E tu desempenhaste um papel absolutamente fundamental no desmascaramento dele ou dela?"
"Já que perguntas, Prue, para ser sincero, a resposta é sim", concedo eu.
"Como por exemplo ir a Praga e discutir o assunto com a ligação checa?"
"Há de facto um elemento checo. Digamos assim."
191

"Pois bem, acho que isso é absolutamente brilhante da tua parte, Nat, e estou muito orgulhosa
de ti", diz ela, apagando anos de dolorosa paciência.
Ah, e a sociedade de advogados de que faz parte acha que tem as Grandes Farmacêuticas
encostadas à parede. E Steff foi muito querida ao telefone ontem à noite.

É, pois, uma luminosa manhã de sol em que tudo se conjuga de uma forma que eu não ousara
esperar, e a Operação Poeira de Estrelas está a ganhar um ímpeto imparável. As últimas
instruções que Sergei recebeu do Centro de Moscovo mandam-no apresentar-se numa cervejaria
perto de Leicester Square às onze da manhã. Escolherá um lugar para se sentar na "zona
noroeste" e pedirá um copo de leite com chocolate, um hambúrguer e uma salada de tomate.
Entre as onze e quinze e as onze e trinta, com estes sinais de reconhecimento à sua frente, será
abordado por uma pessoa que dirá ser sua velha conhecida, o abraçará e se irá embora dizendo
que está atrasada para um compromisso. Durante este abraço, Sergei será enriquecido com um
telemóvel "incontaminado" - descrição de Moscovo - contendo, além de um novo cartão SIM,
uma fita de microfilme com novas instruções.
Suportando as mesmas multidões fervilhantes e o mesmo calor que estão a dificultar a Percy
Price a cobertura do encontro, Sergei toma posição na cervejaria de acordo com as instruções,
manda vir a sua refeição e fica encantado quando vê aproximar-se, de braços estendidos para
ele, nada mais nada menos do que o efusivo e sempre jovial Félix Ivanov - pelo menos era esse
o seu nome suposto na escola de agentes adormecidos -, seu colega de ano e de turma.
A entrega dissimulada do telemóvel decorre impecavelmente, mas assume inesperadas
dimensões sociais. Ivanov fica igualmente
192

surpreendido e encantado por ver o seu velho amigo Sergei em tão boa forma. Em vez de alegar
um compromisso urgente, senta-se ao lado dele e os dois agentes adormecidos gozam a
oportunidade de um encontro que teria causado o desespero dos seus instrutores. Apesar da
vozearia, a equipa de Percy não tem dificuldade em ouvi-los, ou mesmo em registar o encontro
em imagens. Logo que Ivanov - entretanto aleatoriamente batizado Tadzio pelo computador do
departamento da Rússia - se vai embora, Percy manda uma equipa acompanhá-lo, no caso de
Tadzio a uma residência de estudantes em Golders Green. Ao invés do seu homónimo literário,
Tadzio é forte, encorpado e alegre, um ursinho russo muito apreciado pelos seus colegas,
nomeadamente pelo elemento feminino.
Verifica-se também, à medida que os analistas da Sede processam a avalanche de dados que vão
chegando, que Ivanov já não é Ivanov, nem é russo. Concluído o curso na escola de agentes
adormecidos, foi reinventado como um polaco chamado Strelsky, licenciado em tecnologia pela
London School of Economics, onde foi admitido com um visto de estudante. De acordo com o
seu processo de candidatura fala russo, inglês e alemão fluente, pois estudou nas universidades
de Bona e Zurique, e o seu primeiro nome não é Félix mas sim Mikhail, defensor da
humanidade. Por isso é uma criatura de grande interesse para o departamento da Rússia, dado
que pertence a uma nova vaga de espiões que, muito distantes dos métodos atamancados do
velho KGB, falam as nossas línguas ocidentais como se fossem a sua língua-mãe e imitam na
perfeição os nossos trejeitos.
Na decrépita casa segura do Porto de Abrigo em Camden Town, Sergei e Denise estão
acocorados lado a lado num sofá desconfortável. Sentado no único cadeirão, eu abro o
telemóvel de Tadzio, que, entretanto, o departamento técnico desativou temporariamente, e tiro
cá para fora a fita de microfilme, que ponho debaixo
193

do ampliador. Com o bloco de cifras de uso único para nos orientar, descodificamos as últimas
instruções de Moscovo. Estão em russo. Como de costume, socorro-me de Sergei para mas
traduzir para inglês. Nesta altura já é tarde para ele descobrir que ando a enganá-lo desde o dia
em que nos conhecemos.
Como sempre, as instruções são impecáveis, ou, como diria Arkady, demasiado perfeitas. Sergei
deve colar um panfleto "Nuclear Não" no canto superior esquerdo da janela de guilhotina do
seu apartamento de rés do chão. Deve confirmar na volta do correio que o panfleto é visível
para os passantes em ambas as direções, e a que distância. Dado que já não se encontram esses
panfletos nos locais de protesto conhecidos, indo hoje a preferência para o "Não ao
Combustível de Xisto", o departamento de falsificações faz-nos um. Sergei deve também
comprar um cão decorativo vitoriano de louça de Staffordshire com vinte e oito a quarenta e
seis centímetros de altura. Há-os aos montes no eBay.

E durante estes dias felizes, agitados e soalheiros Prue e eu não demos duas ou três saltadas ao
Panamá? Claro que demos, numa sucessão de hilariantes Skypes noturnos, ora só com Steff,
enquanto Juno anda lá fora atrás dos morcegos, ora com os dois, porque mesmo enquanto
estamos mergulhados em Poeira de Estrelas, o mundo real, como Prue insiste em chamar-lhe,
tem de continuar.
Os macacos guinchantes começam a bater no peito às duas da manhã e acordam o
acampamento inteiro, conta-nos Steff. E os morcegos gigantes desligam o radar quando
conhecem as suas rotas de voo, e é por isso que é canja apanhá-los em redes esticadas entre
palmeiras. Mas quando os desembaraçamos da rede e os etiquetamos temos de ter muito, muito
cuidado, mamã,
194

porque eles mordem e são portadores de raiva e temos de usar luvas compridas e grossas como
as do homem dos esgotos, e os filhotes não são melhores. A Steff voltou à infância, dizemos um
ao outro com gratidão. E o Juno, tanto quanto nos atrevemos a acreditar, é um jovem decente e
sincero que dá provas de amar a nossa filha, portanto não te mexas, mundo.
Mas nada na vida é isento de consequências. Chega uma noite - pelas minhas contas incertas
faltam oito para a noite da Poeira de Estrelas - em que toca o telefone da nossa casa. Prue
atende a chamada. Os pais de Juno vieram a Londres porque lhes apeteceu. Estão instalados
num hotel em Bloomsbury que pertence a um amigo da mãe de Juno e têm bilhetes para
Wimbledon e para a partida internacional de críquete de um dia entre Inglaterra e índia, no
Lord's. E teriam muita honra em conhecer os pais da sua futura nora "quando for conveniente
para o conselheiro comercial e para a estimada senhora". Prue desmancha-se a rir quando tenta
transmitir-me esta notícia. E bem pode tentar, porque eu estou sentado na parte de trás da
carrinha de vigilância de Percy Price na Área Beta e Percy está a explicar-me onde se propõe
posicionar os seus postos estáticos.
Apesar de tudo, dois dias depois - noite P menos seis - consigo milagrosamente apresentar-me
num fato elegante diante da lareira a gás da nossa sala de estar com Prue a meu lado, e no meu
papel de conselheiro comercial britânico discutir com os futuros sogros da nossa filha questões
como as relações comerciais com o subcontinente no pós-Brexit e o efeito sinuoso que o
lançador indiano Kuldeep Yadav imprime à bola de críquete nos seus lançamentos, enquanto
Prue, que é tão boa como qualquer advogado quando precisa de afivelar uma expressão
impenetrável, está quase a explodir em risadinhas tapando a boca com a mão.
195

Quanto às essenciais sessões noturnas de badmínton com Ed durante estes dias de grande
tensão, a única coisa que posso dizer é que nunca tinham sido mais essenciais e nunca os dois
tínhamos estado em melhor forma. Para as três últimas sessões eu tinha aumentado o nível do
meu exercício no ginásio e no parque, num esforço desesperado para conter o recém-descoberto
domínio do campo que Ed revela, até que chega um dia em que, pela primeira vez, o confronto
não importa nada.
A data, que nunca nenhum de nós esquecerá, é 16 de julho. Disputámos a nossa habitual partida
vigorosa. Eu voltei a perder, mas deixa lá, habitua-te. Descontraidamente, de toalha à volta do
pescoço, encaminhamo-nos para a nossa Stammtisch, a contar com o habitual entrechoque de
vozes e copos das noites de segunda-feira numa sala em grande parte vazia. Em vez disso
deparamos com um silêncio anormal e tenso. Ao balcão, meia dúzia de sócios chineses estão de
olhos postos num ecrã de televisão que por rotina transmite desporto de qualquer tipo e de
qualquer lugar. Mas hoje, excecionalmente, não estão a ver futebol americano nem hóquei no
gelo da Islândia, mas sim Donald Trump e Vladimir Putin.
Os dois líderes estão em Helsínquia a dar uma conferência de imprensa conjunta. Estão de pé,
lado a lado, à frente das bandeiras dos respetivos países. Trump, falando em tom perentório,
está a desmentir as conclusões dos seus próprios serviços secretos, que descobriram a verdade
inconveniente de que a Rússia interferiu nas eleições presidenciais americanas de 2016. Putin
faz o seu sorriso de carcereiro orgulhoso. A custo, Ed e eu abrimos caminho até à nossa
Stammtisch e sentamo-nos. Um comentador lembra-nos, não fôssemos nós ter-nos esquecido,
de que ainda ontem Trump declarou a Europa sua inimiga e, como se isso não lhe bastasse,
arrasou a NATO.
Onde é que eu tenho a cabeça, como diria Prue? Uma parte de mim está com o meu antigo
agente Arkady. Estou a repetir mentalmente
196

a descrição que ele fez de Trump como encarregado da limpeza da latrina de Putin. Estou a
lembrar-me de que Trump "faz pelo pequeno Vladi tudo aquilo que o pequeno Vladi não pode
fazer sozinho". Outra parte de mim está com Bryn Jordan em Washington, enclausurado com os
nossos colegas americanos, olhando incrédulos para o mesmo ato de traição presidencial.
E Ed, onde é que ele tem a cabeça? Está completamente imóvel. Recolheu-se em si mesmo: só
que, desta vez, indo mais fundo e mais longe do que alguma vez o vi ir. A princípio a boca
mantém-se aberta de incredulidade. Os lábios fecham-se-lhe lentamente e ele humedece-os com
a língua, e depois, distraidamente, limpa-os às costas da mão. Mas nem mesmo quando Fred, o
velho barman, que tem um sentido pessoal do decoro, nos muda para um pelotão de ciclistas
frenéticas que correm à volta de uma pista, os olhos de Ed se descolam do ecrã.
"é uma reedição", proclama por fim numa voz que vibra com a descoberta. "É outra vez 1939.
Molotov e Ribbentrop, repartindo o mundo."
Para mim, era ir longe de mais, e disse-lho. Trump podia ser o pior presidente americano de
todos os tempos, disse, mas não era nenhum Hitler, por muito que quisesse ser, e havia muitos
bons americanos que não iam aceitar aquilo sem protestar.
A princípio ele pareceu não me ouvir.
"Yeah, pois", concordou na voz distante de alguém que acorda de uma anestesia. "Também
havia muitos bons alemães. E olhe que fizeram um bem do caraças."
197
14

Aproxima-se a noite P. Na sala de Operações do último andar da Sede está tudo calmo. São
19h20 no relógio LED por cima da dupla porta em imitação de carvalho. Para quem tem acesso
autorizado à Poeira de Estrelas, o espetáculo começa dentro de cinquenta e cinco minutos. Para
quem não está, há dois funcionários com olhos de águia à porta que terão todo o gosto em
fazer-lhe ver o engano.
O ambiente é descontraído e, à medida que se aproxima a hora limite, mais descontraído vai
ficando. Já ninguém está em pânico, toda a gente tem tempo para tudo. Entram e saem
assistentes com computadores portáteis abertos, garrafas térmicas, água engarrafada e
sanduíches para a mesa de bufete. Um espirituoso pergunta se há pipocas. Um homem gordo
com um cordão de credencial fluorescente entretém-se com dois ecrãs planos numa parede.
Ambos exibem a mesma imagem luxuriante do lago Windermere no outono. As vozes que
estamos a ouvir nos auriculares são da equipa de vigilância de Percy Price. Nesta altura já os
seus cem homens e mulheres estarão espalhados como pessoas que regressam a casa com as
compras, vendedores ambulantes, empregadas domésticas, ciclistas, motoristas de Uber e
inocentes mirones que não têm nada melhor para fazer do que cobiçar com os olhos
199

as raparigas que passam e murmurar para dentro de telemóveis. Só eles sabem que os
telemóveis para dentro dos quais estão a murmurar são encriptados; que estão a falar, não para
os amigos, famílias, amantes e traficantes de droga, mas sim para o centro de controlo de Percy
Price, que esta noite é um ninho de vidro duplo a meia altura da parede do meu lado esquerdo.
E é aí que Percy está agora sentado, em camisa de críquete de marca com as mangas
arregaçadas e os auriculares postos enquanto emite ordens silenciosas para a sua equipa
disseminada.
Somos dezasseis e vamos ser mais. Somos a mesma equipa impressionante que se reuniu para
ouvir a oratória falhada de Florence em defesa da Operação Botão de Rosa, com oportunos
acrescentos. Marion, do nosso Serviço irmão, é mais uma vez acompanhada pelos seus dois
lacaios de fato escuro, também conhecidos como juristas. Marion não brinca em serviço,
segundo nos dizem. Está magoada por o último andar se recusar a entregar ao seu Serviço a
Operação Poeira de Estrelas numa bandeja, com o argumento de que a alegada presença de um
traidor de alto gabarito na aldeia de Whitehall coloca o caso claramente sob a sua jurisdição.
Não é assim, Marion, dizem os mandarins do último andar. As fontes são nossas, logo as
informações são nossas, logo o caso é nosso, e boa noite. Em Moscovo, nas catacumbas da
Praça Lubyanka, antiga Dzerzhinsky, imagino a irrupção de atritos nervosos enquanto o pessoal
da secção de ilegais do departamento norte se prepara para uma noite igualmente longa.
Fui promovido. Em vez de Florence no lugar do peticionário ao fundo da mesa, tenho Dom
Trench sentado na minha frente ao meio da mesma mesa. Não voltámos a falar sobre a
Operação Botão de Rosa. Por isso fico intrigado quando ele se debruça sobre a mesa e diz em
voz baixa:
"Não há nenhum mal-entendido em relação à viagem com motorista que há tempos fez a
Northwood, pois não, Nat?"
200

"Porque é que havia de haver?"


"Espero que me apoie se for chamado a fazê-lo."
"Sobre quê? Não me diga que os tipos dos transportes estão a levantar problemas."
"Refiro-me a outras questões", responde ele sombriamente, e fecha-se na sua concha. De facto,
foi só há dez minutos que eu lhe perguntei com o ar mais natural do mundo quais são as
funções oficiais informais que a esposa baronesa adorna atualmente com a sua presença.
"Ela saltita, Nat", tinha ele respondido, e perfilou-se como se estivesse na presença da realeza.
A minha adorada Rachel é uma saltitona inveterada. Se não é um organismo qualquer de
Westminster de que nenhum de nós jamais ouviu falar, vai a Cambridge discutir com as
sumidades a forma de salvar o Serviço de Saúde. A sua Prue é na mesma, tenho a certeza."
Bem, Dom, graças a Deus a Prue é diferente, e é por isso que temos no átrio um maldito placar
enorme com a pouco original sigla "TRUMP MENTIROSO" em que tropeço sempre que entro
em casa.
O lago Windermere esbranquiça, hesita e volta. As luzes na sala de Operações reduzem-se.
Silhuetas de participantes atrasados entram apressadamente e tomam lugar à mesa comprida. O
lago Windermere despede-se lentamente. Em sua substituição, as câmaras de Percy Price dão-
nos imagens de vigilância de cidadãos satisfeitos que gozam o sol num parque público do Norte
de Londres às sete e meia de uma abrasadora tarde de verão.
Não é de esperar que, minutos antes da consumação de uma operação de espionagem daquelas
de roer as unhas, sintamos um assomo de admiração pelos nossos compatriotas. Mas nos nossos
ecrãs está Londres como gostamos dela: crianças multiétnicas jogando um basquetebol
improvisado, raparigas em vestido de verão apanhando deliciadas os raios do sol interminável,
velhos
201

passeando de braço dado, mães empurrando carrinhos de bebé, piquenicantes debaixo de


árvores frondosas, xadrez ao ar livre, petanca. Um polícia simpático deambula tranquilamente
pelo meio deles. Há quanto tempo não víamos um polícia sozinho? Há alguém que toca viola.
Um momento basta para me lembrar que muitos dos que fazem parte desta multidão feliz eram,
ainda há trinta e seis horas, membros da minha congregação no mesmo tabernáculo
desconsagrado cujo pináculo pesado domina agora o horizonte.
A equipa Poeira de Estrelas aprendeu a Área Beta de cor e eu, graças a Percy, também. O
parque público ostenta seis campos de ténis de macadame esboroado e sem redes, um parque
infantil com torre, baloiços e um túnel. Há um lago malcheiroso onde se pode andar de barco.
Uma faixa para autocarros, uma faixa para bicicletas e uma rua movimentada sem lugares de
estacionamento do lado oeste; o lado leste é dominado por um complexo de habitação social em
altura, o norte por uma fiada de casas georgianas aburguesadas. Numa delas, num rés do chão
alto, vive Sergei no seu apartamento aprovado por Moscovo. Tem dois quartos. Num deles
dorme Denise com a porta fechada à chave. No outro, Sergei. Acede-se ao apartamento por uma
escada de ferro. Da parte superior da sua janela de guilhotina vê-se o parque infantil e um
caminho pedonal em betão com seis bancos fixos colocados a intervalos de seis metros, três de
cada lado. Sergei enviou fotos deles para Moscovo, numerados de um a seis.
O parque ostenta também um apreciado café self-service com acesso da rua por uma porta de
homem em ferro, ou do próprio parque. Hoje o café tem uma nova gerência temporária e os
empregados habituais receberam um dia de folga paga, o que, como Percy diz pesarosamente,
faz subir os custos. Há dezasseis mesas no interior e vinte e quatro no exterior. As mesas
exteriores têm chapéus permanentes contra a chuva ou o sol. Para comidas e
202

bebidas há o balcão de self-service no interior. Nos dias de calor, um balcão de gelados no


exterior é assinalado pelo cartaz de uma vaca feliz que lambe um cone duplo de baunilha.
Anexos às traseiras há os sanitários públicos, com instalações para mudança de fraldas dos
bebés e para deficientes. Para quem passeia cães estão disponíveis sacos de plástico e
recipientes de lixo verdes. Tudo isto foi escrupulosamente descrito por Sergei em copiosos
subtextos à sua insaciável namorada dinamarquesa, a perfeccionista Anette.
A pedido de Moscovo nós também fornecemos fotografias do café, por dentro e por fora, e dos
seus acessos. Depois de lá ter comido por duas vezes a pedido do seu controlador, uma vez no
interior e outra no exterior, em ambas as ocasiões entre as sete e as oito da noite, e informado
Moscovo sobre a densidade de comensais, Sergei tem ordens para não aparecer lá até nova
ordem. Deve permanecer no seu rés do chão alto e aguardar por uma ocorrência da qual será
notificado oportunamente.
"Vou ser tudo, Peter. Vou ser metade guarda de casa segura e metade contravigilância."
Diz metade porque, segundo consta, ele e o seu velho amigo de escola Tadzio vão partilhar
tarefas operacionais. Se por acaso se encontrarem, ignorar-se-ão mutuamente.
Esquadrinho a multidão na esperança improvável de encontrar uma cara conhecida. Durante a
sua estada em Trieste, e de novo na costa adriática, a Valentina de Arkady tinha sido
profusamente filmada e fotografada como emissária do Centro de Moscovo e potencial agente
dupla. Mas uma mulher de feições comuns pode fazer praticamente o que quiser com o seu
aspeto ao longo de vinte anos. A secção de tratamento de imagens produziu uma série de
aparências possíveis. Qualquer delas podia ser Valentina, aliás Anette, aliás o que se quiser. Eu
mantenho abertura de espírito enquanto um punhado de mulheres de várias idades se apeiam
dos autocarros na paragem, mas nenhuma delas avança para a porta
203

de homem de acesso ao café e aos espaços abertos do parque. As câmaras de Percy fixam-se
num idoso padre de barbas, sobrepeliz cor de malva e cabeção.
"Alguém relacionado contigo, Nat?", grita-me ele pelo auricular.
"Não, Percy, ninguém relacionado comigo, obrigado."
Ondas de riso. Voltamos a concentrar-nos. Uma câmara diferente, trémula, varre os bancos que
bordejam o caminho de betão. Calculo que esteja instalada no nosso polícia simpático que
responde aos sorrisos que lhe fazem à direita e à esquerda. Detemo-nos numa mulher de meia-
idade com uma saia aos quadrados e práticos sapatos escoceses castanhos que lê o seu exemplar
gratuito do Evening Standard. Usa um chapéu de palha de aba larga e tem um saco de compras
ao seu lado no banco. Talvez seja sócia de um clube feminino de bowling. Talvez seja Valentina
à espera de ser reconhecida. Talvez seja apenas mais uma solteirona madura inglesa que não se
importa com o calor.
"Pode ser ela, Nat?", pergunta Percy.
"Pode ser ela, Percy."
Estamos na parte exterior do café. A câmara fixa-se sobre dois seios generosos e uma oscilante
bandeja de chá. Na bandeja, um bule pequeno, uma chávena com pires, uma colher de chá de
plástico e uma saqueta de leite. E uma fatia de bolo genovês embrulhado em celofane e pousado
num prato de papel. Pernas, pés, sombrinhas e pedaços de cara empurram-se enquanto
passamos com a nossa carga. Paramos. Uma voz feminina, despretensiosa e amável, treinada
por Percy, diz para um microfone de garganta:
"Desculpe, querido. Está alguém sentado nessa cadeira?"
A cara ossuda e sardenta de Tadzio olha na nossa direção. Fala diretamente para a câmara. O
seu inglês perfeito é exatamente isso. Se há nele alguma cadência, é alemã, ou - tendo em conta
a Universidade de Zurique - suíça:
204

"Lamento, mas esta está ocupada. A senhora foi só buscar um chá. Eu prometi guardar-lhe o
lugar."
A câmara muda para o lugar vazio ao lado dele. Tem um blusão de ganga pendurado, o mesmo
blusão que Tadzio usou para o seu encontro com Sergei na cervejaria de Leicester Square.
Entra em ação uma câmara mais sofisticada: uma câmara tipo atirador furtivo apontada, ao que
me parece, da janela superior de um autocarro de dois andares avariado e com triângulos de
sinalização que Percy instalou hoje mesmo como um dos seus postos estáticos. Esta câmara não
oscila. Fazemos zoom in. Fixamo-nos em Tadzio sozinho à sua mesa sorvendo Coca-Cola por
uma palhinha enquanto mexe no ecrã do telemóvel.
Entram no enquadramento umas costas de mulher. Não são umas costas vulgares. Não são umas
costas largas. São umas costas de mulher elegante e afunilam na cintura. Transmitem uma
sugestão de ginásio. Vestem uma blusa de manga comprida e um casaco leve de modelo bávaro.
Um chapéu de palha de homem encima um pescoço esguio. A voz - que nos chega de duas
fontes não sincronizadas, uma que eu suspeito ser o galheteiro pousado na mesa, a outra mais
distante e direcional - é vigorosa, estrangeira e divertida.
"Desculpe, amável senhor. Esta cadeira está realmente ocupada, ou é 50 para o seu blusão?"
Ao que Tadzio, como quem obedece a uma ordem, se levanta de um salto e exclama
alegremente: "É toda sua, minha senhora, está absolutamente livre!"
Levantando o blusão de ganga com exagerado cavalheirismo, Tadzio pousa-o nas costas da sua
cadeira e volta a sentar-se.
ângulo diferente, câmara diferente. Com uma pancada ensurdecedora, a senhora das costas
elegantes pousa a bandeja, transfere uma caneca de papel, chá ou café presumivelmente, dois
pacotes de açúcar, um garfo de plástico e uma fatia de pão de ló para a mesa e deposita a
bandeja num carrinho ali perto antes de
205

se sentar ao lado de Tadzio sem se virar para a câmara. Sem trocar uma palavra com ele pega no
garfo, corta um pedaço de bolo e bebe um gole de chá. A aba do chapéu de palha projeta-lhe
uma sombra escura sobre a cara, que está voltada para baixo. A cabeça levanta-se em resposta a
uma pergunta que nós ainda não ouvimos. No mesmo momento, Tadzio olha de relance para o
relógio, murmura uma exclamação inaudível, levanta-se rapidamente, pega no blusão de ganga
e, como se acabasse de se lembrar de um compromisso importante, parte apressadamente. Com
isso, ganhamos um plano completo da mulher que ele abandonou. É elegante, bonita, de cabelo
escuro, feições fortes e, nos seus cinquenta e cinco a sessenta anos, bem conservada. Veste uma
saia de algodão comprida, verde-escura. Tem mais presença do que se sente confortável no
papel de agente itinerante de serviços secretos que opera sem disfarce. Sempre teve: se assim
não fosse, porque se teria Arkady apaixonado por ela? Era a sua Valentina então, é a nossa
Valentina agora. Algures no mais recôndito do edifício em que estamos sentados, a equipa de
reconhecimento facial deve ter chegado à mesma conclusão, porque o nome de código
predeterminado, Gama, está a piscar em letras vermelhas fosforescentes no nosso ecrã duplo.
"Que deseja, senhor?", pergunta ela olhando para a câmara com forçada jocosidade.
"Yeah, bom. Estava a pensar se posso sentar-me aqui", explica Ed, largando a sua bandeja em
cima da mesa com um estrondo monumental, e senta-se naquela que, segundos antes, era a
cadeira de Tadzio.

Se hoje escrevo ousadamente Ed como uma identificação positiva e instantânea, isso não reflete
fielmente a minha reação.
206

Aquele não é Ed. Não pode ser. É Delta. O tipo de corpo de Ed, sim, de acordo. Um quase-Ed,
semelhante à versão dele que apareceu à porta da cabana Trois Sommets, coberto de neve,
enquanto Prue e eu nos atirávamos às nossas croûtes au fromage e a um jarro de vinho branco.
Alto, desengonçado e com a mesma inclinação do ombro para a esquerda, a mesma recusa em
endireitar o corpo: é verdade. A voz? Sim, bem, uma voz tipo Ed, sem dúvida: empastada,
nortenha, desinteressante até ficarmos a conhecê-la, a voz universal dos nossos jovens
britânicos quando querem que saibamos que não estão para ouvir as nossas baboseiras.
Portanto, uma voz como a de Ed, sim. é um sósia de Ed. Mas não o verdadeiro Ed, de maneira
nenhuma. Nem mesmo em dois ecrãs ao mesmo tempo.
E foi enquanto ainda estava neste breve estado de irredutível negação que não fui capaz,
durante dez, doze segundos pelo meu cálculo aproximado, de captar as demais amabilidades
trocadas entre Ed e Gama depois de ele se ter deixado cair na cadeira ao lado dela, ou me
recusei a fazê-lo. Garantem-me - porque nunca voltei a ver as imagens gravadas - que não perdi
nada de substancial, e o diálogo foi tão trivial como se pretendia que fosse. A minha
reconstituição mental é ainda mais complicada pelo facto de, quando voltei à realidade, o
relógio digital no rodapé dos nossos ecrãs ter de facto recuado vinte e nove segundos, porque
Percy Price tinha decidido que aquele era o momento oportuno para nos mimosear com
imagens retrospetivas da nossa mina recém-descoberta. Ed está na fila no interior do café, pasta
castanha numa das mãos, bandeja de folha na outra. Passa adiante o balcão das sanduíches,
bolos e pastéis. Escolhe uma baguete de queijo e picles. Está no balcão das bebidas, a pedir um
chá de pequeno-almoço inglês. Os microfones reproduzem a sua voz num rugido metálico:
"Yeah, um dos grandes seria ótimo. Obrigado." Está diante da caixa numa confusão desajeitada,
tentando não deixar cair o chá e a baguete, tateando os bolsos à procura da carteira,
207

pasta entalada entre os pés grandes. É Ed, nome de código Delta, e vai a sair apressadamente
para o exterior, bandeja numa das mãos, pasta na outra, olhando em volta com os olhos
franzidos como se tivesse posto os óculos errados. Vem-me à memória uma coisa que li há cem
anos num manual chekista: um encontro clandestino parece mais autêntico se envolver
consumo de comida.
208

15

Lembro-me de que, por esta altura, observei os meus chers collègues e não detetei neles
nenhuma reação comum além da fixação de todos nos dois ecrãs planos. Lembro-me de que
descobri que a minha cabeça era a única que estava virada para o lado errado, e reajustei-a
apressadamente. Não me lembro nada de Dom. Recordo um ou dois sinais de agitação em toda
a sala, como sintomas de impaciência numa peça de teatro enfadonha, e alguns cruzares de
perna e um pigarrear aqui e ali, principalmente da parte dos nossos mandarins do último andar,
a começar por Guy Brammel. E a sempre indignada Marion do nosso Serviço irmão: vi-a
esgueirar-se da sala em bicos de pés, o que é uma espécie de anomalia, porque não se percebe
como é possível dar passadas grandes em bicos de pés. Mas ela conseguia-o, apesar da saia
comprida, e atrás dela saíram os seus dois lacaios juristas de fato preto. Segue-se uma breve
explosão de luz quando as suas três silhuetas deslizam pela porta e os seguranças a fecham atrás
deles. E lembro-me de ter vontade de engolir e não ser capaz, e de sentir um espasmo na barriga
como se fosse um soco baixo quando não retesamos os músculos para nos defendermos dele. E
de a seguir me bombardear com uma rajada de perguntas irrespondíveis que, em retrospetiva,
fazem parte do processo pelo qual
209
qualquer profissional dos serviços secretos passa quando acorda para a realidade de que anda a
ser enganado pelo seu agente de toda a maneira e feitio e procura justificações para isso, mas
não encontra nenhuma.
A vigilância não desliga pelo facto de uma pessoa desligar. O espetáculo continua. Os meus
chers collègues continuaram. Eu continuei. Vi o resto do filme em tempo real, ao vivo no ecrã,
sem dizer uma palavra ou esboçar o mínimo gesto que de algum modo pudesse inibir a fruição
das outras pessoas presentes - ainda que trinta horas depois, quando eu estava debaixo do
chuveiro, Prue tenha feito um comentário sobre a marca ensanguentada que as minhas unhas
deixaram no meu pulso esquerdo. E recusou-se a aceitar a minha história de uma lesão no
badmínton, indo ao ponto de sugerir, num raro momento acusador, que as unhas não eram as
minhas.
E eu não estava só a observar Ed enquanto se desenrolava o resto do espetáculo. Estava a
partilhar todos os seus movimentos com uma familiaridade que mais ninguém na sala tinha. Só
eu lhe conhecia a linguagem corporal, do campo de badmínton à Stammtisch. Sabia como ela
podia ser alterada por algum assomo de raiva interior de que precisava de se libertar, como as
palavras se lhe atropelavam à saída da boca quando tentava dizê-las todas ao mesmo tempo. E
talvez fosse por isso que, quando Percy voltou a passar as imagens de arquivo com ele a sair
atabalhoadamente do restaurante, tive a certeza de que a sua inclinação de cabeça em sinal de
reconhecimento era dirigida a Tadzio, e não a Valentina.
Foi só depois de ter visto Tadzio que Ed se dirigiu a Valentina. E o facto de nessa altura Tadzio
já estar a sair de cena só prova que, como sempre acontece numa situação de crise, eu continuo
a fazer juízos operacionais racionais. Ed e Tadzio tinham um passado comum. Ao apresentar Ed
a Valentina, Tadzio tinha cumprido a sua missão, e daí a sua abrupta saída de cena, deixando Ed
e
210

Valentina a sós, conversando tranquilamente como dois estranhos que se encontram


inesperadamente lado a lado, bebendo chá e comendo baguete de cheddar e pão de ló,
respetivamente. Portanto, em suma, um clássico encontro secreto, orquestrado com perfeição,
ou, como diria Arkady, com demasiada perfeição, e fazendo excelente uso de um blusão de
ganga.
Com a banda sonora as coisas não foram diferentes. Também aqui eu tinha vantagem sobre
todos os espectadores presentes na sala. Ed e Valentina falam inglês o tempo todo. O inglês de
Valentina é bom, mas ainda não livre da melíflua entoação georgiana que, dez anos antes, tanto
tinha encantado Arkady. Havia mais qualquer coisa na sua voz - o timbre, o sotaque - que, como
a música de uma canção há muito esquecida, continuava a atenazar-me, mas quanto mais eu
tentava localizá-la mais esquiva ela se tornava.
Mas a voz de Ed?. Essa não tem mistério nenhum. É a mesma voz sem maneiras com que me
falou na nossa primeira partida de badmínton: agreste, rouca, distraída, e a espaços
simplesmente rude. Ficará na minha memória até ao fim dos meus dias.

Gama e Ed estão inclinados para a frente, conversando cara a cara. Gama, a profissional, chega
a ser quase inaudível, mesmo para os microfones que estão em cima da mesa. Ed, pelo
contrário, parece incapaz de manter a voz abaixo de um determinado nível.

Gama: Está confortável, Ed? Não teve nenhuma dificuldade ou problema para chegar aqui?
Ed: Estou bem. Afora não ter onde prender a maldita bicicleta. Nem pensar em trazer uma nova
para este sítio. Roubavam as rodas antes de eu ter tempo de lhe pôr o cadeado.
211
Gama: Não viu ninguém que reconhecesse? Ninguém que o deixasse desconfortável?
Ed: Acho que não. A verdade é que nem olhei. E agora já é tarde. E você?
Gama: Ficou surpreendido quando o Willi lhe fez sinal na rua? [Willi pronunciado com V, como
no alemão.] Ele diz que você quase caiu da bicicleta.
Ed: E tem toda a razão. Ali especado no passeio, a acenar-me com a mão. Pensei que estava a
mandar parar um táxi. Nunca pensei que fosse um dos seus. Nem quando a Maria me mandou
dar o fora.
Gama: Ainda assim, eu diria que a Maria agiu com grande discrição. Temos razões para estar
um pouco orgulhosos dela, não concorda?
Ed: Yeah, yeah, ótimo. Estratégia inteligente do princípio ao fim. Num momento não querem
saber de mim para nada. No momento seguinte o Willi está a chamar-me em alemão e a dizer
que é amigo da Maria e que está tudo preparado e vamos a isto. Um bocado perturbador, para
falar com franqueza.
Gama: Perturbador, com certeza, mas absolutamente necessário. O Willi precisava de captar a
sua atenção. Se o chamasse em inglês talvez você não lhe ligasse, pensando que se tratava de
um bêbedo rocal, e passasse adiante. Mas espero que ainda esteja disposto a ajudar-nos. Está?
Ed: Bom, alguém tem de o fazer, não é verdade? Uma pessoa não pode ficar de braços cruzados
a dizer que uma determinada coisa está mal, mas que não é nada connosco porque essa coisa é
secreta, pois não? Se for um ser humano razoavelmente decente não pode fazer isso, pois não?
Gama: E você é uma pessoa muito decente, Ed. Nós admiramos a sua coragem, mas também a
sua discrição.
212

(Pausa prolongada. Gama espera que Ed fale. Ed não tem pressa.)

Ed: Yeah, bom, para ser sincero, fiquei bastante aliviado quando a Maria me mandou dar o fora.
Tirou-me um peso considerável de cima. Mas não durou muito. Não dura quando sabemos que
temos de agir ou somos iguais aos outros.
Gama: [Num tom de voz novo e animado.] Tenho uma sugestão para nós dois, Ed.
[Consultando o telemóvel.] Uma boa sugestão, espero. Até agora somos dois estranhos que se
encontram por acaso e trocam amabilidades enquanto bebem uma agradável chávena de chá.
Dentro de um minuto eu vou levantar-me e desejar-lhe uma boa noite e agradecer-lhe a nossa
pequena conversa. Dois minutos depois você vai fazer o favor de acabar a sua baguete,
levantar-se lentamente, não esquecendo a sua pasta, e dirigir-se à sua bicicleta. O Willi irá ter
consigo e acompanhá-lo até a um lugar agradável onde possamos conversar livremente e em
privado. De acordo? A minha sugestão causa-lhe algum incómodo?
Ed: Nenhum. Desde que a minha bicicleta esteja bem.
Gama: O Willi esteve de olho nela. Não foi atacada por nenhum vândalo. Então adeus, caro
senhor. [Aperto de mão, a fazer lembrar o de Ed.] é sempre agradável conversar com estranhos
no seu país. Em especial quando são jovens e bonitos como o senhor. Por favor não se levante.
Adeus.

Ela acena e segue pelo carreiro até à rua principal. Ed faz menção de responder ao aceno, dá
uma boa dentada na baguete, deixa ficar o resto. Acaba de beber o chá, torce o nariz ao olhar
para o relógio de pulso. Durante um minuto e cinquenta segundos observamo-lo, de cabeça
baixa, entretendo-se com o bule do chá exatamente como gosta de se entreter com o copo de
cerveja coberto de condensação no Athleticus. Se o conheço minimamente,
213
está a tentar decidir se faz o que ela sugere ou esquece tudo e corre para casa. Ao minuto e
cinquenta e um segundos agarra na pasta, levanta-se, pensa e acaba por pegar na bandeja e
dirigir-se a um recipiente de lixo. Deposita o seu lixo como um bom cidadão, põe o seu
tabuleiro em cima dos outros e, depois de franzir o cenho em expressão de quem pensa melhor,
decide seguir Valentina pelo caminho de betão.

A segunda bobina, como lhe chamarei por facilidade, passa-se no rés do chão alto de Sergei,
mas Sergei não desempenha nenhum papel nela. As ordens que tem, recebidas pelo seu
telemóvel novo "incontaminado" e secretamente copiadas para o Porto de Abrigo e a Sede, são
para voltar a inspecionar o parque em busca de "indícios de vigilância hostil" e depois
esconder-se. Por isso é seguro da parte da equipa de vigilância presumir que Sergei foi posto de
parte e não será autorizado a contactar diretamente com Ed. Por sua vez Tadzio, que já sabe da
existência de Ed e vice-versa, proverá às necessidades operacionais dele. Mas Tadzio, tal como
Sergei, não estará presente na conversa íntima que em breve terá lugar entre a distinta emissária
do Centro de Moscovo e o meu parceiro de badmínton e de conversas das segundas-feiras,
Edward Shannon, no apartamento de rés do chão alto de Sergei.
Gama: Então, Ed, olá outra vez. Estamos sozinhos, estamos em segurança e temos privacidade,
portanto podemos conversar. Antes de mais, tenho de lhe agradecer em nome de todos a sua
oferta de ajuda numa altura de necessidade para nós.
Ed: Não tem que agradecer. Espero poder ajudar.
214

Gama: Tenho umas perguntas obrigatórias para lhe fazer. Permite-me? Tem alguns colegas no
seu departamento que comungam das suas ideias e o ajudam? Almas gémeas a quem também
devamos estar gratos?
Ed: Sou só eu. E não tenciono incomodar mais ninguém para conseguir material. Não tenho
cúmplices, está bem?
Gama: Nesse caso, podemos falar um pouco mais sobre o seu modus operandi? Você contou
muitas coisas à Maria e é claro que tomámos devida nota delas. Talvez possa falar-me um
pouco mais sobre o seu trabalho especial com a copiadora. Disse à Maria que por vezes a opera
sozinho.
Ed: Yeah, pois, a questão é essa, não é? Se a sensibilidade do material o justificar, tenho de ser
eu sozinho a tratá-lo. Eu entro e o pessoal normal tem de sair e esperar cá fora. Eles não
passaram pela desparasitação.
Gama: Desparasitação?
Ed: O exame prévio. Só há uma funcionária com acesso autorizado além de mim, por isso
revezamo-nos. Ela e eu. Já ninguém confia na eletrónica, não é verdade? Muito menos para o
material realmente delicado. É tudo papel e entrega em mão, uma espécie de regresso ao
passado. Se é preciso fazer cópias, volta-se ao velho duplicador a vapor.
Gama: A vapor?
Ed: Antiquado. Básico. É uma piada.
Gama: E foi enquanto trabalhava com o duplicador a vapor que vislumbrou pela primeira vez
os documentos chamados Jericó. é isso?
Ed: Mais do que vislumbrar. Cerca de um minuto. A máquina encravou. Fiquei ali a olhar para
aquilo.
Gama: Então podemos dizer que esse foi o seu momento de epifania?
Ed: De quê?
215
Gama: De revelação. De iluminação. O momento em que decidiu que tinha de dar o passo
heróico e contactar a Maria.
Ed: Bem, eu não sabia que ia ser a Maria, pois não? Eles é que me deram a Maria.
Gama: Você diria que a sua decisão foi vir ter imediatamente connosco, ou cresceu dentro de si
durante horas ou dias?
Ed: Vi o material e pensei, meu Deus, acabou-se.
Gama: E a passagem essencial que viu estava marcada Ultrassecreto Jericó. Certo?
Ed: Contei isso tudo à Maria.
Gama: Mas eu não sou a Maria. Diz você que a passagem que viu não tinha destinatário.
Ed: Nem podia ter, pois não? Eu só vi um pedaço do meio. Nem destinatário nem assinatura. Só
o cabeçalho, Ultrassecreto Jericó, e a referência.
Gama: No entanto, disse à Maria que o documento era dirigido às Finanças.
Ed: Considerando que estava um gorila das Finanças a trinta centímetros de mim à espera de
que eu copiasse o material, pareceu-me óbvio que era dirigido às Finanças. Está a pôr-me à
prova?
Gama: Estou a confirmar que, como a Maria nos disse, tem uma excelente memória e não
adorna as suas informações para lhes realçar o efeito. E a referência era...
Ed: KIM barra um.
Gama: Sendo KIM a sigla de que entidade?
Ed: Da missão conjunta dos Serviços Secretos Britânicos em Washington.
Gama: E o número 1?
Ed: O ou a chefe da equipa britânica.
Gama: Sabe o nome dessa pessoa?
Ed: Não.
216

Gama: Você é absolutamente brilhante, Ed. A Maria não estava a exagerar. Agradeço a sua
paciência. Somos pessoas cautelosas. É por acaso o orgulhoso possuidor de um smartphone.
Ed: Dei o número à Maria, não dei?
Gama: Talvez por segurança seja melhor dar-mo outra vez.

(Ed entoa um número em tom cansado. Gama finge que o escreve na sua agenda.)

Gama: Autorizam-no a levar o smartphone para o seu local de trabalho? Ed: Nem pensar. Tenho
de o entregar à entrada. Todos os objetos metálicos. Chaves, canetas, trocos. Há dias obrigaram-
me a descalçar os malditos sapatos.
Gama: Porque desconfiaram de si?
Ed: Porque foi a semana do pessoal administrativo. Na semana anterior foram os chefes de
secção.
Gama: Talvez nós possamos fornecer-lhe um aparelho discreto que tira fotografias mas não é
metálico e não parece um smartphone.
Gostava de ter um?
Ed: Não.
Gama: Não?
Ed: Isso é material de espiões. Não me interessa. Ajudo a causa quando me apetece. Só isso.
Gama: Também deu à Maria outros materiais recebidos das vossas embaixadas na Europa que
não vinham protegidos por nomes de código.
Ed: Yeah, pois, isso foi só para ela saber que não sou nenhum aldrabão.
Gama: Mas, ainda assim, classificados como "secretos".
Ed: Yeah, pois, mas tinha de ser assim, não tinha? Caso contrário qualquer um podia trazê-los.
Gama: E hoje trouxe-nos material do mesmo género? é isso que transporta nessa pasta
desgraçada?
217

Ed: O Willi disse-me para trazer tudo o que conseguisse apanhar, e eu trouxe.

(Longo silêncio antes de Ed, com visível relutância, desapertar as fivelas da pasta, tirar de lá um
dossiê liso de cartolina parda, o abrir sobre as pernas e lho entregar.)
Ed: [Enquanto Gama lê.] Se não for útil não tento trazer mais. Pode dizer-lhes também isso.
Gama: É óbvio que a prioridade de todos nós é o material cifrado Jericó. Quanto a estas
possibilidades adicionais, terei de consultar os meus colegas.
Ed: Está bem, mas não diga de onde isso veio. é a única coisa que lhe peço.
Gama: E de material com esta classificação - simplesmente secreto, sem palavra-passe - pode
trazer-nos cópias sem grandes problemas?
Ed: Yeah. Bem. O melhor é no intervalo do almoço.

(Ela tira um telemóvel da carteira, fotografa doze páginas.)

Gama: O Willi disse-lhe quem eu sou?


Ed: Disse que tinha um poleiro alto. Uma espécie de manda-chuva.
Gama: O Willi tem razão. Sou uma manda-chuva. Mas para si sou a Anette, sou dinamarquesa e
professora de inglês do ensino secundário, residente em Copenhaga. Conhecemo-nos quando
você estava a estudar em Tubinga. Frequentámos os dois o mesmo curso de férias básico de
cultura alemã. Eu sou a sua mulher mais velha, sou casada, você é o meu amante secreto. De
tempos a tempos venho a Londres e é cá que fazemos amor. Num apartamento emprestado por
um jornalista meu amigo, Markus. Está a prestar atenção?
218

Ed: Claro que estou, bolas.


Gama: Não precisa de conhecer o Markus pessoalmente. Basta saber que ele é o inquilino deste
apartamento. No entanto, quando não pudermos encontrar-nos, é aqui que esperamos que deixe
os seus documentos ou cartas para mim ao passar na sua bicicleta, e o Markus tratará de
garantir que a nossa correspondência se mantenha completamente privada. É a isto que
chamamos uma lenda. Satisfá-lo esta lenda, ou quer discutir comigo outra diferente?
Ed: Parece-me bem. Yeah. Vamos a isto.
Gama: Gostaríamos de o recompensar, Ed. Gostaríamos de lhe demonstrar a nossa gratidão.
Financeiramente ou de qualquer outra forma que você queira. Talvez possamos fazer um
mealheiro para si noutro país e um dia você levanta-o. Sim?
Ed: Não é preciso, obrigado. Yeah. Eles pagam-me muito decentemente. E tenho algumas
economias. [Sorriso desconfortável.] As cortinas são caras. Quarto de banho novo. Agradeço-
lhe na mesma por ter perguntado, mas não, obrigado. Está bem? Então está decidido. Peço que
não volte a perguntar.
Gama: Tem uma namorada simpática?
Ed: A que propósito é que vem isso?
Gama: Ela tem as mesmas simpatias que você?
Ed: Quase todas. Às vezes.
Gama: Ela sabe que você está em contacto connosco?
Ed: Não creio.
Gama: Talvez ela pudesse ajudá-lo. Ser sua intermediária. Onde é que ela pensa que você está
agora?
Ed: A caminho de casa, suponho. Ela tem a sua própria vida. Tal como eu.
Gama: Trabalha na mesma área que você?
Ed: Não, não. De maneira nenhuma. Nunca isso lhe passaria pela cabeça.
219

Gama: A que tipo de trabalho se dedica?


Ed: Prefiro não falar dela, está bem?
Gama: Com certeza. E você não atraiu as atenções de ninguém sobre si?
Ed: Como é que eu ia fazer uma coisa dessas?
Gama: Não roubou dinheiro ao patrão; não está envolvido num caso de amor proibido como o
nosso? [Espera que Ed perceba a piada. Ele acaba por esboçar um sorriso tenso.] Não discutiu
com os seus superiores, eles não o consideram subversivo ou indisciplinado, não é alvo de
nenhuma investigação interna em resultado de algum ato que tenha cometido ou deixado de
cometer? Os seus patrões não sabem que você se opõe às políticas deles? Não? Sim?

(Ed voltou a fechar-se dentro da sua concha. O seu rosto é um cenho sombrio. Se Gama o
conhecesse melhor teria esperado pacientemente que ele voltasse à superfície.)

Gama: [Prazenteira.] Está a esconder de mim algum segredo embaraçoso? Nós somos pessoas
tolerantes, Ed. Temos uma longa tradição de humanismo.

Ed: [Depois de pensar mais.] Eu sou apenas comum, percebe? Não há por aí muitos como eu, se
quer a minha opinião pessoal. Os outros todos fecham-se em copas e esperam que alguém faça
alguma coisa. Eu faço alguma coisa. Mais nada.

O cão de louça de Staffordshire é o sinal de segurança, está ela a dizer-lhe - ou penso que está,
porque os meus ouvidos não estão a ouvir claro. Se não estiver nenhum cachorro na janela, isso
significa abortar, está ela a dizer-lhe. Ou talvez esteja a dizer
220

que significa avançar. Este cartaz "Nuclear Não" significa temos uma mensagem
importantíssima para si. Ou talvez signifique que a teremos na próxima vez que passar por aqui,
ou, em alternativa: nunca mais volte a passar por aqui. As boas práticas de espionagem mandam
que o agente seja o primeiro a sair. Ed e Valentina estão de pé, de frente um para o outro. Ed
está com um ar atordoado, muito cansado e abatido, o mesmo ar que costumava ter quando eu
ainda conseguia derrotá-lo num tira-teimas à melhor de sete jogos antes de irmos sentar-nos a
beber as nossas cervejas. Valentina segura-lhe a mão entre as suas, puxa-o para si e presenteia-o
com um sonoro beijo em cada face, mas abstém-se do terceiro beijo à russa. Ed submete-se de
má vontade. Uma câmara exterior apanha-o a subir as escadas de ferro, de pasta na mão. Uma
câmara aérea observa-o a tirar o cadeado da bicicleta, encaixar a pasta no cesto da frente e partir
na direção de Hoxton.

As portas duplas da sala de Operações abrem-se. Marion e os seus lacaios regressam. Portas
fechadas, luzes, por favor. Atrás das paredes de vidro à prova de som do seu ninho de águia,
Percy Price dispõe as suas tropas de formas que não são difíceis de adivinhar: uma equipa fica
atenta a Gama, outra fica com Ed e acompanha-o até casa, só com vigilância remota. Uma voz
feminina vinda do espaço informa-nos de que Gama foi "marcada com sucesso", só nos
restando adivinhar com quê. O mesmo se passou, aparentemente, com Ed e a sua bicicleta.
Percy fica muito satisfeito.
Os ecrãs tremeluzem e apagam-se. Acabou-se o lago Windermere no outono. Marion está de pé
ao fundo da mesa comprida, hirta como um guarda real. Tem os óculos postos. Os seus dois
lacaios de fato escuro perfilam-se aos seus lados. Ela respira fundo,
221

pega num documento que tem à sua direita e lê alto para nós, numa voz lenta e firme.
"Lamentamos informar-vos de que o homem identificado como Ed nas imagens de vigilância
que acabam de ver é membro a tempo inteiro do meu Serviço. Chama-se Edward Stanley
Shannon e é um qualificado funcionário administrativo de Categoria A com autorização de
acesso a material ultrassecreto e superior. Tem um bacharelato de segunda classe em Ciências
da Computação. É especialista digital de Grau 1 e aufere atualmente um vencimento base de
32.000 libras, acrescido de bónus de incentivo por horas extraordinárias, fins de semana e
aptidões linguísticas. é um linguista alemão de Classe 3 adstrito ao elemento europeu de um
departamento interserviços altamente confidencial, sob a égide de Whitehall. De 2015 a 2017
prestou serviço em Berlim no escritório de ligação do seu departamento. Não é considerado,
nem nunca foi, apto para funções operacionais. As suas funções atuais incluem a revisão e
expurgo de documentos a enviar aos nossos parceiros europeus. Na prática, isto implica
extirpar, devidamente aconselhado, material de informação destinado exclusivamente aos
Estados Unidos. Algum deste material pode inclusivamente ser considerado contrário aos
interesses europeus. Como Shannon corretamente afirmou na gravação que acabam de ver, é
um de apenas dois especialistas de Grau 1 a quem é confiada a tarefa de copiar documentos de
excecional sensibilidade. Shannon foi submetido com sucesso ao exame prévio e
posteriormente a uma atualização."
Os seus lábios colaram-se. Ela estica-os, humedece-os discretamente e continua:
"Em Berlim, Shannon esteve envolvido num episódio atribuído ao álcool e ao rompimento
indesejado, por iniciativa própria, de um caso amoroso com uma alemã. Recebeu
aconselhamento e foi considerado que tinha feito uma recuperação completa da sua
222

saúde mental e física. Não se registou mais nenhum episódio de indisciplina, inconformidade
ou comportamento suspeito contra ele. No local de trabalho é visto como um solitário. O seu
chefe de secção descreve-o como "sem amigos". é solteiro e está registado como heterossexual,
sem nenhuma ligação atual conhecida. Não tem ligações políticas conhecidas."
Novo humedecimento dos lábios.
"Está em curso uma análise de danos imediatos, bem como um inquérito aos contactos passados
e presentes de Shannon. Enquanto não se conhecem os resultados desses inquéritos, Shannon
não, repito não, será informado de que está sob observação. Dados os antecedentes e o carácter
evolutivo do caso, estou autorizada a dizer que o meu Serviço está recetivo à formação de um
grupo de trabalho conjunto. Obrigada."
"Posso acrescentar só uma palavra ao que foi dito?"
Para minha surpresa estou de pé, e Dom está a olhar fixamente para mim como se eu tivesse
enlouquecido. Além disso, estou a falar num tom que creio firmemente ser confiante e
descontraído:
"Acontece que conheço pessoalmente este homem. Ed. Jogamos badmínton juntos quase todas
as segundas-feiras à noite. Em Battersea, mais concretamente. Perto da minha casa. No nosso
clube. O Athleticus. E no fim do jogo costumamos beber umas cervejas juntos. Como é
evidente, terei todo o gosto em ajudar no que puder."
Depois devo ter-me sentado de forma demasiado abrupta e de caminho perdido as coordenadas,
porque a única coisa de que me lembro a seguir é de Guy Brammel a sugerir que façamos todos
uma curta pausa natural.
223

16

Nunca saberei quanto tempo me obrigaram a esperar naquela salinha, mas não deve ter sido
menos de uma hora sem nada para ler e só com uma parede lisa, de cor amarelo-pastel, para
olhar, porque me tinham tirado o telemóvel de serviço. E ainda hoje não consigo perceber se
estava sentado ou em pé na sala de Operações ou simplesmente a deambular por ali quando um
guarda me tocou no braço e disse "Se quiser ter a bondade de me acompanhar, senhor" sem
completar a frase.
Mas lembro-me, isso sim, de que havia um segundo guarda à espera junto da porta, e que foram
precisos os dois para me acompanhar ao elevador enquanto conversávamos sobre o calor
horrível que estávamos a ter de suportar e se iria ser assim todos os verões, daqui para a frente.
E sei que a expressão sem amigos continuava às voltas na minha cabeça como uma acusação:
não porque me considerasse culpado de ser amigo de Ed, mas porque aparentemente era o único
amigo que ele tinha, o que colocava uma grande responsabilidade sobre os meus ombros - mas
responsabilidade por quê? E é claro que naqueles elevadores sem números nem setas o nosso
estômago nunca sabe se vamos a subir ou a descer, principalmente quando mesmo sem isso já
anda às voltas, como era o caso do meu, agora que tinha sido
225

tirado sob escolta da clausura da sala de Operações e entregue no cativeiro.


Mas havia passado uma hora quando o guarda que estivera todo este tempo do lado de fora da
porta de vidro - Andy, assim se chamava, e era amante do críquete - meteu a cabeça e disse "É a
sua vez, Nat", e então, no mesmo espírito alegre, conduziu-me até a outra sala, muito maior,
também esta sem janelas, nem mesmo fingidas, e um círculo de bonitas cadeiras almofadadas
sem qualquer distinção entre si, porque éramos um Serviço igualitário, e disse-me que me
sentasse onde quisesse porque os outros chegariam em menos de um fósforo.
Por isso escolhi uma cadeira, sentei-me nela com as mãos nos cotovelos e pus-me a pensar
quem seriam os outros. E acho que tenho memória de, algures no início da minha passagem sob
escolta pelo corredor da sala de Operações, um grupinho de gente importante do último andar
murmurando a um canto e Dom Trench tentando meter o nariz como era seu costume e ouvindo
de Guy Brammel um "Não, você não, Dom" bastante firme.
E de facto, quando os meus chers collègues entraram em fila, Dom não estava entre eles, o que
por momentos me levou a especular de novo sobre a sua preocupação de que eu depusesse a seu
favor relativamente ao carro com motorista que tinha requisitado para mim. A primeira pessoa a
entrar na sala foi Ghita Marsden, que me fez um sorriso amável e disse "olá outra vez, Nat"
com a intenção de me pôr à vontade, mas o que queria ela dizer com outra vez, como se
tivéssemos renascido? Entrou a seguir a façanhuda Marion do nosso Serviço irmão e só um dos
seus lacaios, o mais alto e mais sisudo, que disse que ainda não nos conhecíamos e o seu nome
era Anthony, ao que estendeu a mão e quase partiu a minha.
"Eu também gosto de um jogo de badmínton", disse-me, como se isso resolvesse tudo. Por isso
respondi "Ótimo, Anthony, onde é que joga?" - mas penso que ele não me ouviu.
226

Seguiu-se Percy Price, clérigo convicto, de rosto severo e fechado. E isso abalou-me, não tanto
por Percy me ter ignorado por completo, mas porque deve ter entregado o comando temporário
da Poeira de Estrelas aos seus muitos lugares-tenentes para poder estar presente na reunião.
Atrás de Percy, a curta distância dele, com um copo plástico de chá que fazia lembrar o do café
self-service na bandeja de Ed, Guy Brammel, visivelmente à vontade na companhia do
diminuto Joe Lavender, eminência parda da hermética secção de segurança interna da
Repartição. Joe transportava uma caixa de arquivo e eu lembro-me de lhe ter perguntado
jocosamente se os guardas tinham verificado o conteúdo da caixa à entrada e ter recebido como
resposta um olhar furioso.
Enquanto entravam ordenadamente, eu tentava descobrir o que todos eles tinham em comum
além das expressões sorumbáticas, porque grupos como aquele não se formam ao acaso. Ed,
como todos sabemos agora, é membro do nosso Serviço irmão, o que significa que em qualquer
disputa renhida entre os dois serviços é uma descoberta nossa e um erro deles, portanto é
preciso viver com isso. Daí que seja de prever muita discussão entre serviços quanto a quem
fica com que parte do bolo. E quando tudo estiver resolvido terá havido um daqueles
afogadilhos de última hora para garantir que o sistema audiovisual da sala em que estamos
sentados está ligado e a funcionar, porque não precisamos de mais uma borrada como a última,
fosse isso quando fosse.
Então, quando toda a gente está finalmente sentada e confortável, entram os meus mesmos dois
guardas transportando a mesma máquina de café, jarros de água e sanduíches que ninguém
tinha comido na sessão de cinema, e Andy, o amante de críquete, pisca-me o olho. E quando
eles se retiram entra a figura espectral de Gloria Foxton, a unter-psicoterapeuta da Repartição,
com ar de quem acabou de ser arrancado da cama, como pode muito bem ter acontecido com
ela, e três passos atrás dela a minha Moira
227

dos Recursos Humanos com um volumoso processo verde que eu suspeito seja sobre mim,
porque faz questão de o transportar com a capa virada para dentro.
"Por acaso não ouviu nada da Florence, pois não, Nat?", pergunta-me num tom de preocupação,
parando ao pé de mim.
"Não ouvi nem vi, infelizmente, Moira", respondo eu sem hesitação.
Porque é que menti? Ainda hoje não sei dizer. Não estava a treinar. Não tinha decidido mentir.
Não tinha nada sobre que mentir. Então um segundo olhar diz-me que ela já sabia a resposta
antes de fazer a pergunta e estava a pôr à prova a minha veracidade, o que fez com que me
sentisse um tolo ainda maior.
"Nat", diz Gloria Foxton, com uma flagrante simpatia psicoterapêutica, "como estamos?"
"Péssimo, obrigado, Gloria. E você?", respondo alegremente, e recebo um sorriso gélido que
me lembra que as pessoas na minha posição, seja ela qual for, não perguntam aos
psicoterapeutas como estão.
"E a querida Prue?", pergunta ela, reforçando o tom simpático.
"Maravilhosa. Em grande forma. Com as Grandes Farmacêuticas na mira."
Mas aquilo que estou de facto a sentir é um assomo de irritação injustificada por causa de certas
opiniões ofensivas proferidas há cinco anos por Gloria, quando insensatamente procurei o seu
aconselhamento gratuito a propósito de Steff, tais como "Será simplesmente possível, Nat, que
ao atirar-se para os braços de todos os colegas de turma a Stephanie esteja a dizer o que pensa
sobre o pai ausente?" - sendo que a sua maior ofensa era que provavelmente tinha razão.
Estamos finalmente instalados, e já não era sem tempo. Entretanto, juntaram-se a Gloria Foxton
dois Unter-psicoterapeutas, Leo e Franzeska, ambos com ar de quem tem cerca de dezasseis
228

anos. Ao todo, portanto, tenho uma bela dúzia de chers collègues sentados em semicírculo,
todos com vista desimpedida para mim, porque, sem que eu saiba como, a disposição das
cadeiras alterou-se e eu fico isolado como o rapaz do quadro a quem perguntam quando foi a
última vez que viu o pai, só que não é sobre o meu querido pai que estão aqui para fazer
perguntas, mas sim sobre Ed.
Guy Brammel decidiu abrir os lançamentos, como costuma dizer e faz um certo sentido, porque
é por formação advogado de barra e tem uma equipa de críquete na sua casa de campo em St.
Albans. Ao longo dos anos convenceu-me várias vezes a ir lá jogar.
"Portanto, Nat", começa, na sua voz agradável de faisão em vinho do Porto, "acho que o que
você nos está a dizer é que foi tudo um azar do caraças. Você joga uma respeitável partida de
badmínton com um tipo e, quando se vai a ver, ele é um membro do nosso Serviço irmão e um
maldito espião russo. E se começássemos pelo princípio? Como foi que os dois se conheceram,
até onde foram e quando, sem omitir nenhum detalhe, por mais insignificante que seja."
Começamos pelo princípio. Ou melhor, eu começo. Sábado à noite no Athleticus. Estou a
saborear uma cerveja de fim de jogo com o meu adversário indiano que vive na outra margem
do rio, em Chelsea. Entra Alice com Ed. Ed desafia-me para uma partida. A combinação da
primeira data. As referências hostis da parte dele aos seus patrões, atentamente observadas por
Marion e seus lacaios. A nossa primeira cerveja de fim de jogo sentados à Stammtisch. Ed
despeja desprezo sobre o Brexit e Donald Trump como componentes do mesmo mal.
"E você alinhou nessa conversa, Nat?", pergunta Brammel bastante amigavelmente.
229

"Com moderação, sim, alinhei. Ele era contra o Brexit. Eu também. Ainda sou. Como a maioria
das pessoas presentes nesta sala, suponho", retruco eu resolutamente.
"E o Trump?", quer saber Brammel. Também alinhou com ele sobre o Trump?"
"Ora, francamente, Guy. O Trump não é propriamente popular por aqui, pois não? O homem é
uma perfeita calamidade."
Olho em volta em busca de apoio. Não recebo nenhum, mas mantenho a calma. Não me deixo
perturbar pelo passo em falso que há pouco dei com Moira. Tenho muita experiência. Fui
treinado nisto. Ensinei-o aos meus agentes.
"Quando o Trump e o Putin se aliam, para o Shannon é um pacto com o demónio", prossigo
ousadamente. "Anda toda a gente a aliar-se por causa da Europa, e ele não gosta disso. é
obcecado pela Alemanha."
"Portanto ele desafia-o para uma partida", insiste Guy Brammel, ignorando a minha tagarelice.
"A vista de toda a gente. Fez um grande esforço para o encontrar, e agora aqui está."
"Por acaso sou o campeão de singulares do clube. Ele ouviu falar de mim e achou que tinha
hipóteses", disse eu, defendendo a minha dignidade.
"Procurou-o, atravessou Londres de bicicleta a pedal, estudou o seu jogo?"
"É muito provável."
"E desafiou-o. Não desafiou mais ninguém. Nem o seu adversário de Chelsea com quem você
tinha acabado de jogar, como podia ter feito. Tinha de ser você."
"Se o meu adversário de Chelsea, como você lhe chama, me tivesse derrotado, é possível que o
Shannon o tivesse desafiado a ele e não a mim", declaro eu, com alguma falta de sinceridade,
mas havia qualquer coisa no tom de Guy que começava a desagradar-me.
230

Marion entrega-lhe um papel. Ele põe os óculos e lê-o com toda a calma.
"Segundo a rececionista do Athleticus, desde o dia em que o Shannon o desafiou você não
jogou com mais ninguém. Tornaram-se uma parelha. Concorda com a descrição?
"Um par, se não se importa."
"Está bem. Um par."
"Estávamos bem um para o outro. Ele jogava limpo e ganhava ou perdia com elegância.
Jogadores decentes que sabem comportar-se são difíceis de encontrar."
"Não duvido. Mas também fez amizade com ele. Eram parceiros de bebida."
"Está a exagerar, Guy. Jogávamos regularmente e no fim bebíamos uma cerveja."
"Todas as semanas, às vezes até duas vezes por semana, o que é dose, mesmo para um fanático
do exercício como você. E conversavam, segundo diz."
"Pois digo."
"Quanto tempo conversavam? Enquanto bebiam as cervejas?"
"Meia hora. Talvez uma. Depende de como nos sentíamos."
"Dezasseis, dezoito horas, ao todo? Vinte? Ou vinte são muitas?"
"Podem ter sido vinte. Que diferença faz?"
"Diria que ele é um autodidata?"
"De maneira nenhuma. Ensino secundário."
"Você contou-lhe o que faz na vida?"
"Não seja idiota, porra."
"O que é que lhe contou?"
"Enganei-o. Homem de negócios regressado do estrangeiro, à procura de uma oportunidade."
"E acha que ele engoliu essa?"
231

"Não foi curioso, e foi igualmente vago quanto ao que ele próprio fazia na vida. Qualquer coisa
relacionada com comunicação social, não desenvolveu o tema. Nenhum de nós desenvolveu."
"Acha normal passar vinte horas a falar de política com parceiros de badmínton que têm metade
da sua idade?"
"Se forem bons jogadores e tiverem opiniões próprias, porque não?"
"Eu perguntei se achava normal, não perguntei porquê. Estou a tentar perceber - a pergunta é
fácil - se no passado falou longamente de política com algum outro adversário de idade
semelhante à deste."
"Joguei com eles. E no fim bebi um copo com eles."
"Mas não com a regularidade com que jogou, bebeu e conversou com Edward Shannon?"
"Provavelmente não."
"E não tem nenhum filho rapaz. Pelo menos que nós saibamos, dados os longos períodos de
exílio no estrangeiro."
"Não."
"Nem que nós não saibamos."
"Não."
"Joe", diz Brammel, virando-se para Joe Lavender, estrela da segurança interna, "você tinha
algumas perguntas para fazer."

Joe Lavender tem de esperar pela sua vez. Apareceu de repente um mensageiro shakespeariano
na pessoa do segundo lacaio de Marion. Com licença de Guy, gostava de me fazer uma
pergunta que acabou de receber da equipa de investigação do seu Serviço. Está escrita numa
estreita tira de papel que segura entre os dedos das duas mãos enormes.
232

"Nat. Estava pessoalmente ciente, ou em algum momento teve conhecimento", pergunta com
uma clareza agressiva, "no decurso das suas muitas conversas com Edward Stanley Shannon, de
que a mãe dele, Eliza, está referenciada como uma sistemática marchadora, participante em
manifestações de protesto e activista pelos direitos de uma vasta gama de questões de paz e
similares?"
"Não, não tinha conhecimento", retruco eu, sentindo a bílis vir-me à boca apesar das minhas
melhores intenções.
"E a senhora sua esposa, segundo nos informam, também é uma robusta defensora dos nossos
direitos humanos essenciais, sem desrespeito. É verdade?"
"Sim. Muito robusta."
"O que, estou certo de que todos concordamos, só merece aplausos. Posso então perguntar se
alguma vez, tanto quanto lhe é dado saber, existiu alguma interação ou comunicação entre Eliza
Mary Shannon e a senhora sua esposa?"
"Tanto quanto me é dado saber, nunca existiu tal interação ou comunicação."
"Obrigado."
"Não tem de quê."
Mensageiro sai pela esquerda.

Segue-se um período de perguntas e respostas aleatórias, uma espécie de barafunda que


permanece difusa na minha memória, enquanto os meus chers collègues se revezam a "apertar
as porcas e parafusos" da história de Nat, como diz amavelmente Brammel. Faz-se silêncio e
finalmente Joe Lavender toma a palavra. A sua voz não deixa marcas. Não tem origem social ou
regional. é uma lengalenga triste, lamentosa, nasalada.
233

"Quero que se concentre naquele primeiro momento em que o Shannon o escolheu no


Athleticus", diz.
"Podemos dizer desafiou, se não se importa?"
"E você, para lhe salvar a face, como disse, perante isso aceitou o desafio. Observou, como
membro experiente deste Serviço, ou recorda agora, a presença de alguns estranhos ocasionais
no bar - novos sócios, homens ou mulheres, convidados de sócios do clube - que tenham
manifestado um interesse anormal no desenrolar da cena?"
"Não."
"Dizem-me que o clube está aberto ao público. Os sócios podem levar convidados. Os
convidados podem comprar bebidas no bar, desde que estejam acompanhados por um sócio.
Está-me a dizer com toda a certeza que a abordagem que o Shannon lhe fez..."
"Desafio."
"... que o desafio que o Shannon lhe fez não foi acompanhado ou observado de uma certa
maneira por partes interessadas? Como é evidente, iremos ao clube sob um pretexto qualquer e
descobriremos todas as imagens de vídeo que eles tiverem."
"Na altura não observei e agora não recordo ninguém que mostrasse um interesse anormal."
"Não iam mostrá-lo, pois não? Não de forma que você notasse. Não se fossem profissionais."
"Havia um grupo no bar a fazer uma certa galhofa. Mas eram caras conhecidas. E não perca
tempo a procurar gravações. Não instalámos lá nenhum sistema de vídeo."
Joe arregala os olhos numa surpresa teatral.
"O quê? Nenhum sistema de vídeo? Não me diga! é um bocado estranho, não é, nos dias que
correm? Um espaço grande, muita gente a entrar e a sair, dinheiro a mudar de mãos, mas
nenhum sistema de vídeo."
234

"Foi uma decisão da direção."


"Da qual você faz parte, ao que sabemos. Apoiou a decisão de não instalar o vídeo?"
"Sim, apoiei."
"Será porque, tal como a sua mulher, não é a favor do estado de vigilância?"
"Importa-se de deixar a minha mulher de fora disto?"
Ouviu-me? Provavelmente não. Está ocupado.
"Então porque é que não o registou?", questiona ele sem se dar ao trabalho de levantar a cabeça
da caixa de arquivo que tem sobre os joelhos.
"Não registei quem?"
"O Edward Shannon. O seu parceiro de badmínton semanal, às vezes bissemanal. As normas do
serviço determinam que se informem os Recursos Humanos de todos os contactos regulares de
ambos os sexos, independentemente da sua natureza ou atividade. Os registos do seu Athleticus
Club dizem-nos que se encontrou com o Shannon em nada menos de catorze ocasiões ao longo
de um período de tempo altamente concentrado. Pergunto-me por que razão nunca o registou."
Eu consigo esboçar um sorriso descontraído. Não mais do que isso. "Bem, Joe, eu diria que ao
longo dos anos joguei contra alguns duzentos adversários. Alguns deles - quantas vezes? - vinte,
trinta? Não imaginava que quisessem que os registasse a todos na minha ficha pessoal."
"Tomou a decisão de não registar o Shannon?"
"Não foi uma questão de decisão. A ideia nem sequer me passou pela cabeça."
"Vou reformular ligeiramente a pergunta, se me permite. Talvez então receba de si uma resposta
sensata. Foi ou não foi, sim ou não, uma decisão consciente da sua parte não registar o Edward
Shannon como companhia e parceiro de desporto habitual?"
235

"Adversário, se não se importa. Não, não foi uma decisão consciente."


"O problema é que conviveu durante vários meses com um espião russo identificado que não
registou. Nem-sequer-me-passou-pela-cabeça não resolve esse problema."
"Eu não sabia que ele era um maldito espião russo, Joe. Está bem? E provavelmente você
também não. E o Serviço que lhe dava emprego também não. Ou estou enganado quanto a isso,
Marion? Talvez o seu Serviço soubesse desde sempre que ele era um espião russo e não
pensasse em dizer-nos", sugiro eu.
Ninguém ouve o meu remoque. Sentados no seu semicírculo à minha volta, os meus chers
collègues olham para os seus computadores portáteis ou para o espaço.
"Alguma vez levou o Shannon a sua casa, Nat?", pergunta Joe com aparente desinteresse.
"Por que raio havia de o levar?"
"E porque não? Não quis apresentá-lo à sua mulher? Uma simpática senhora radical como ela,
seria de esperar que se dessem muito bem."
"A minha mulher é uma advogada de certo renome muito ocupada e não tem tempo nem
interesse em conhecer todas as pessoas com quem eu jogo badmínton", reajo eu
acaloradamente. "Não é radical nos termos em que você usa a palavra e não tem nada que ver
com esta história, por isso volto a pedir: por favor deixe-a em paz."
"Alguma vez o Shannon o levou a casa dele?"
Não aguentei mais.
"Aqui para nós, Joe, contentámo-nos com broches no parque. É isso que quer ouvir?" Virei-me
para Brammel. "Pelo amor de Deus, Guy."
"Sim, meu velho?"
"Se o Shannon é um espião russo - o que, pelos vistos, parece que é mesmo -, pode dizer-me
porque é que estamos todos sentados
236

nesta sala a falar de mim? Vamos partir do princípio de que ele me enganou. Enganou-me
mesmo, não é verdade? Sem dó nem piedade. Da mesma forma que enganou o seu próprio
Serviço e toda a gente além de mim. Porque não estamos a fazer a nós próprios perguntas como
quem lhe descobriu o talento, quem o recrutou, aqui ou na Alemanha, ou lá onde foi? E quem é
a Maria que estava sempre a aparecer? A Maria que só fingia que corria com ele?"
Com um simples e superficial aceno de cabeça, Guy Brammel retoma o seu interrogatório.
"Um sacana trombudo, não, o seu parceiro?"
"O meu parceiro?"
"O Shannon."
"De vez em quando é trombudo, como quase toda a gente. Mas anima-se depressa."
"Mas porquê tão trombudo logo com essa mulher, Gama?", lamenta-se ele. "Não se poupou a
esforços para estabelecer contacto com os russos. A primeira ideia do Centro de Moscovo - é só
um palpite meu - foi que ele era um engodo. Ninguém pode censurá-los por isso. Depois
pensaram melhor nele e decidiram que era uma mina de ouro. Tadzio faz-lhe sinal na rua, dá-
lhe a notícia e em menos de nada entra em cena Gama, que lhe pede desculpa pelo
comportamento da Maria e desata a tratar de negócios com ele. Então porquê as trombas? Devia
era estar eufórico. Fingir que não sabia o que queria dizer epifania. Para quê? Hoje em dia toda
a gente tem uma epifania. Não se consegue atravessar a maldita rua sem se ouvir falar na
epifania de alguém."
"Talvez não goste do que está a fazer", sugeri eu. "A avaliar por tudo o que me disse, talvez
continue a ter expectativas éticas em relação ao Ocidente."
"A que propósito vem isso?"
"é que me passou pela cabeça que talvez o lado puritano dele pense que o Ocidente precisa de
ser castigado. Só isso."
237

"Não sei se entendo. Está-me a dizer que o Ocidente enfurece o Ed porque não corresponde às
suas expectativas éticas?"
"Eu disse talvez."
"E então salta para os braços do Putin, que não era capaz de reconhecer uma ética nem que ela
o picasse no cu? Percebi bem? Estranha forma de puritanismo, se quer que lhe diga. Não é que
eu seja perito na matéria."
"Foi uma ideia passageira. Não acredito que seja isso que ele está a fazer."
"Então em que porra é que acredita?"
"A única coisa que lhe posso dizer é que este não é o homem que eu conheço. Conhecia."
"Nunca é o homem que nós conhecemos, gaita!", diz Brammel numa explosão de raiva. "Se um
traidor não nos surpreende como o caralho é porque não presta no que faz. E ele, presta? Se
alguém tem obrigação de saber é você. Você controlou uns quantos traidores no seu tempo. Eles
não andavam por aí a anunciar as suas opiniões subversivas ao primeiro bicho-careta. Ou, se o
faziam, não duravam muito. Ou será que duravam?"
Foi nesta altura - chamem-lhe frustração, ou desorientação, ou o despertar involuntário de um
instinto protetor - que me senti impelido a fazer um apelo a favor de Ed sobre o qual talvez
tivesse pensado duas vezes se estivesse com a cabeça muito mais fria.
Seleciono Marion.
"Estava cá a pensar, Marion", digo, adotando o tom especulativo de um dos colegas advogados
da minha mulher com pendor mais académico, "se o Shannon cometeu um crime em algum
sentido legal. Toda esta conversa sobre material ultrassecreto e cifrado que ele afirma ter visto
de relance. Isso será a realidade a falar pela boca dele, ou será apenas fantasia? O outro material
que ele anda a oferecer parece ter como único objetivo permitir-lhe consolidar as suas
credenciais. Pode nem sequer ser classificado,
238

pelo menos em nenhum sentido relevante. Se assim é, não seria melhor apanharem-no,
pregarem-lhe uma boa descompostura, entregarem-no aos psiquiatras e livrarem-se de uma data
de chatices?"
Marion vira-se para o lacaio que me tinha apertado a mão e quase a tinha partido. Ele olha para
mim com um ar de quase espanto.
"Está a falar a sério?", pergunta.
Eu respondo categoricamente que nunca na minha vida falei mais a sério.
"Então permita-me que lhe cite, se não se importa, a Secção 3 da Lei dos Segredos Oficiais de
1989, que estipula o seguinte: Alguém que está ou esteve ao serviço da Coroa ou é fornecedor
do governo é culpado de um crime se sem legítima autorização fizer uma revelação danosa de
qualquer informação, documento ou outro artigo relativo a relações internacionais. Por outro
lado, temos o juramento solene de Shannon, por escrito, de que não divulgará segredos de
Estado, além de que está ciente daquilo que lhe acontecerá se o fizer. Em suma, eu diria que
estamos perante um julgamento muito rápido num tribunal secreto, de que resultará uma pena
de prisão de dez a doze anos, com seis de redução se confessar, mais assistência psiquiátrica
gratuita se a requerer, o que, para falar com franqueza, me pareceria a decisão mais acertada."

Tinha prometido a mim mesmo, sentado sozinho na sala de espera vazia durante mais de uma
hora, que iria manter-me calmo e impassível. Aceita a premissa, dizia constantemente para
comigo. Aprende a viver com ela. Ela não se vai embora quando acordas. Ed Shannon, o
ruborizado novo membro do Athleticus que é tão tímido que precisa de que seja Alice a
apresentá-lo, é
239

um elemento conceituado do nosso Serviço irmão e espião russo por iniciativa própria.
Entretanto, por razões ainda por explicar, escolheu-te. Excelente. Clássico. Parabéns. Um
trabalho perfeito. Fez-se teu amigo, envolveu-te, levou-te à certa. E é claro que sabia. Sabia que
eu era um oficial veterano, possivelmente ressentido, e por isso maduro para a abordagem.
Então bajula-me, gaita! Cultiva-me como futura fonte! E quando me tiveres cultivado, atira-te
de cabeça e faz-me uma proposta ou entrega-me aos teus controladores russos para que eles me
desenvolvam. E porque não o fizeste? Que efeito dos rituais básicos de acasalamento para
recrutamento de agentes? Onde estavam? Como vai o teu sólido casamento, Nat? Nunca me
perguntaste. Tens dívidas, Nat? Sentes-te injustiçado, Nat? Ultrapassado nas promoções?
Aldrabaram-te nos benefícios, na pensão, noutra coisa qualquer? Tu sabes o que os instrutores
pregam. Toda agente tem alguma coisa. O papel do recrutador é descobrir o quê! Mas tu nem
sequer tentaste, bolas! Nunca sondaste, nunca te aproximaste da borda. Nunca arriscaste nada.
E como podias arriscar o que quer que fosse se a partir do momento em que nos sentávamos a
conversar a única coisa que fazias era pontificar sobre as tuas indignações políticas, e eu mal
conseguia abrir a boca, mesmo que quisesse?

O meu apelo de clemência para Ed não caiu bem entre os meus chers collègues. Não tem
importância. Já me recompus. Estou calmo. Guy Brammel faz um ligeiro aceno de cabeça a
Marion, que deu a entender que tinha perguntas para o acusado.
"Nat."
"Sim, Marion."
240

"Disse há pouco que nem você nem o Shannon faziam a mínima ideia do que o outro fazia.
Estou certa?"
"Completamente errada, Marion, lamento dizer-lhe", respondi eu energicamente. Ed trabalhava
num império de comunicação social que detestava, e eu estava atento a oportunidades de
negócio enquanto ajudava um amigo de longa data."
"O Shannon disse-lhe especificamente que era num império de comunicação que trabalhava?"
"Não exatamente por essas palavras. Deu a entender que filtrava peças noticiosas e enviava-as
aos clientes. E que os patrões eram - bem - eram insensíveis às suas necessidades", acrescento
eu com um sorriso, consciente da importância de manter relações cordiais entre os nossos dois
Serviços.
"Portanto é justo dizer, com base na história que nos conta, que a ligação entre vocês dois
assentava em pressupostos mutuamente falsos sobre a identidade de cada um?", continua ela.
"Se quiser pôr a questão nesses termos, Marion. No fundo, era uma não-questão."
"Porque cada um aceitava cegamente a história de fachada do outro, é isso que quer dizer?"
"Cegamente é uma palavra demasiado forte. Ambos tínhamos boas razões para não mostrar
curiosidade."
"Sabemos pelos nossos investigadores internos que você e o Edward Shannon alugam cacifos
separados no vestuário masculino do Athleticus. é correto?", pergunta ela, sem pausa nem
desculpa.
"Bom, não está à espera de que partilhemos o mesmo, pois não? Não obtive resposta nem a
reação de riso que esperava ouvir. "O Ed tem um cacifo, eu tenho um cacifo. Correto", continuo
eu, enquanto imagino a pobre Alice a ser arrancada da cama e obrigada a abrir os seus livros a
esta hora imprópria.
"Com chave?", quer saber Marion. "A pergunta é se os cacifos tinham chave em vez de
cadeado."
241

"Chave, Marion. Todos têm chave", confirmo eu - recuperando de um curto interregno de


concentração. "Pequena, chata - mais ou menos do tamanho de um selo de correio."
"Chaves que guardam no bolso enquanto jogam?"
"Vêm com uma fita", respondo eu, enquanto me vem à memória a imagem de Ed no vestiário a
armar-se para o nosso primeiro confronto. "Ou se tira a fita e se mete a chave ao bolso, ou se
deixa ficar a fita e se põe a chave ao pescoço. É uma questão de gosto. O Ed e eu tirámos as
fitas."
"E guardavam as chaves nos bolsos dos calções?"
"No meu caso, no bolso lateral. O bolso de trás era reservado para o cartão de crédito quando
chegávamos ao bar, e uma nota de vinte libras para o caso de preferir pagar com dinheiro para
ficar com moedas para o parquímetro. Isto responde à sua pergunta?"
Era evidente que não. "Segundo a sua ficha operacional, no passado usou a sua habilidade para
o badmínton como meio de recrutar pelo menos um agente russo e comunicar secretamente com
ele trocando raquetes iguais. E recebeu louvores por isso. Estou certa?"
"Está muito certa, Marion."
"Nesse caso, não seria uma hipótese despropositada", continua ela, "que, se fosse essa a sua
intenção, estaria na posição ideal para fornecer a Shannon informações secretas do seu Serviço
sob o mesmo disfarce."
Eu passo lentamente o olhar pelo semicírculo. A expressão normalmente afável de Percy Price
continua fechada. O mesmo se passa com Brammel, Lavender e os dois lacaios de Marion.
Gloria com a cabeça tombada para o lado como se tivesse desistido de prestar atenção. Os seus
dois Unter-psicoterapeutas inclinados para a frente na cadeira, tensos, de mãos entrelaçadas no
colo, numa espécie de interação biológica. Ghita muito direita, como
242

uma menina bem-comportada à mesa de jantar. Moira a olhar pela janela, só que não existe
nenhuma janela.
"Alguém secunda essa feliz sugestão?", pergunto eu, enquanto o suor da indignação me escorre
pelas costelas. "Eu sou subagente do Ed, segundo a Marion. Passo-lhe segredos para ele
transmitir a Moscovo. Estamos todos malucos da porra da cabeça, ou sou só eu?"
Ninguém reage. Como seria de esperar. Somos pagos para pensar fora da caixa, e é isso que
estamos a fazer. Bem vistas as coisas, talvez a teoria de Marion não seja assim tão disparatada.
Deus sabe que o Serviço sempre teve o seu quinhão de maçãs podres. Talvez o Nat seja mais
uma.
Mas o Nat não é mais uma. E o Nat tem de lhes dizer isso mesmo em inglês escorreito.
"Muito bem, pessoal. Digam-me uma coisa, se fazem favor. Porque é que um funcionário
público que é um pró-europeu inveterado oferece gratuitamente segredos britânicos à Rússia, e
logo à Rússia, país que, na sua opinião, é chefiado por um déspota antieuropeu dos pés à cabeça
chamado Vladimir Putin? E, se não são capazes de responder sozinhos a essa pergunta, por que
raio é que fazem de mim saco de pancada só porque o Shannon e eu jogamos um badmínton
razoável e falamos de banalidades políticas enquanto bebemos uma cerveja ou duas?"
E acrescento, embora não venha nada a propósito:
"Ah, já agora, alguém me pode dizer o que é a Jericó? Sei que é protegida por palavra-chave e
nunca se discute, e eu não estou autorizado a aceder a ela. Mas a Maria também não está, nem a
Gama, nem presumivelmente o Centro de Moscovo. E o Shannon também não, com certeza.
Portanto talvez possamos abrir uma exceção neste caso particular, porque tudo o que sabemos é
que foi a Jericó que pôs o Shannon em movimento, e a Jericó que o atirou para os braços da
Maria, e depois para os da Gama.
243

No entanto estamos todos aqui sentados, neste momento, fingindo que ninguém pronunciou a
maldita palavra!"
Eles sabem, estou eu a pensar. Todos os presentes na sala estão informados acerca da Jericó,
exceto eu. Esquece. Eles são tão ignorantes como eu e estão em choque porque eu pronunciei a
palavra impronunciável.
Brammel é o primeiro a recuperar a fala.
"Precisamos de o ouvir mais uma vez da sua boca, Nat", anuncia.
"Ouvir o quê?", questiono-o eu.
"A forma como o Shannon vê o mundo. Um resumo da motivação dele. Todas as merdas que
ele descarregou para cima de si sobre o Trump, a Europa e o universo, e que parece que você
engoliu integralmente."

Estou a ouvir-me ao longe, como parece que estou a ouvir tudo. Estou a ter o cuidado de dizer
Shannon, não Ed, embora de vez em quando me engane. Estou a falar como Ed sobre o Brexit,
estou a falar como Ed sobre Trump, e já não sei como passei de ser eu para ser ele. Por
prudência, carrego tudo nos ombros de Ed. Afinal de contas, é a mundivisão de Ed que eles
querem ouvir, não a minha.
"Na perspetiva do Shannon, o Trump é o advogado do diabo para todos os demagogos e
cleptocratas de meia-tigela do mundo inteiro", declaro na minha melhor voz improvisada. "O
Trump homem é um zero absoluto na opinião do Shannon. Um agitador. Mas como sintoma
daquilo que está adormecido por esse mundo fora, à espera de ser acordado, é o diabo em
pessoa. Uma visão simplista, dirão vocês, que nem toda a gente subscreve, evidentemente. Mas
nem por isso deixa de ser profundamente sentida. Em particular por quem está no processo de
se tornar um pró-europeu
244

obsessivo. Como acontece com o Shannon", acrescento com firmeza, não vá dar-se o caso de
não ter deixado suficientemente clara a distinção entre nós.
Dou uma pequena gargalhada que repica estranhamente no silêncio da sala. Escolho Ghita. é a
mais segura.
"Você não vai acreditar, Ghita, mas a verdade é que o Shannon me disse uma vez que era
profundamente lamentável que parecesse que todos os assassinos americanos são oriundos da
extrema-direita. Que era a altura de a esquerda contratar um atirador!"
Pode o silêncio tornar-se mais profundo? Este pode.
"E você concordou com isso?", pergunta Ghita em nome de toda a sala.
"Num contexto humorístico, descontraído, com uma cerveja à frente, no sentido em que não o
contradisse, por inferência, digamos assim, concordei que o mundo estaria bem melhor se o
Trump não fizesse parte dele. Nem sequer tenho a certeza de que ele tivesse dito assassinado.
Talvez liquidado ou limpo."
Não tinha reparado na garrafa de água ao meu lado. Reparo agora. Por princípio, a Repartição
usa água da torneira. Se é engarrafada é porque veio do último andar. Encho um copo, bebo um
bom gole e viro-me para Guy Brammel como o último homem razoável que restava.
"Guy, pelo amor de Deus."
Ele não me ouve. Está enfronhado no iPad. Até que levanta a cabeça:
"Muito bem, ouçam todos. Ordens de cima. Nat, você vai imediatamente para a sua casa de
Battersea e não sai de lá. Conte com um telefonema às seis da tarde, a hora de sempre. Até lá,
está de castigo. Ghita, você assume a chefia do Porto de Abrigo com efeito imediato: os
agentes, as operações, a equipa, a tralha toda. A partir de agora o Porto de Abrigo deixa de estar
debaixo da alçada da Geral de Londres para ficar temporariamente integrado no
245

departamento da Rússia. Assinado Bryn Jordan, cheio de trabalho em Washington, o pobre


sacana. Alguém quer dizer mais alguma coisa - ninguém? Então vamos voltar ao trabalho."
Saem todos em fila. O último a sair é Percy Price, que não disse uma palavra em quatro horas.
"Que amigos engraçados tu tens", comenta sem olhar para mim.

Há um cafezinho modesto logo acima da nossa casa. Serve pequenos-almoços a partir das cinco
da manhã. E não sei dizer hoje, como não teria sabido dizer na altura, que pensamentos se
atropelavam na minha cabeça enquanto bebia cafés atrás de cafés e ouvia distraidamente a
conversa dos operários que, sendo em húngaro, me era tão incompreensível como os meus
sentimentos. Já passava das seis quando paguei a conta e entrei em casa pela porta das traseiras
sem fazer barulho, subi as escadas e meti-me na cama ao lado de Prue, que dormia.
246

17

De vez em quando pergunto-me como teria decorrido aquele domingo se Prue e eu não
tivéssemos um almoço combinado há muito tempo com Larry e Amy em Great Missenden.
Prue e Amy tinham sido colegas de liceu e ficado amigas. Larry era um conceituado advogado
de família um pouco mais velho do que eu, adorava golfe e o cão. O casal não tinha filhos, com
muita pena sua, e estava a comemorar vinte e cinco anos de casamento. Era para ser só um
almoço a quatro, seguido de um passeio pelos Chilterns. Prue tinha-lhes comprado uma colcha
vitoriana, que estava embrulhada e pronta, e um brinquedo de roer para o boxer do casal. Por
causa da vaga de calor que parecia não ter fim, e do trânsito de sábado, contámos com duas
horas de viagem e resolvemos que sairíamos às onze, o mais tardar.
Às dez eu ainda estava a dormir, pelo que Prue foi amorosa e levou-me uma chávena de chá à
cama. Não fazia ideia da hora a que ela se tinha levantado e começado a cirandar, já que se
tinha vestido sem me acordar. Mas, conhecendo-a como a conheço, já tinha passado duas ou
três horas à secretária às voltas com as Grandes Farmacêuticas. Por isso foi ainda mais
gratificante saber que tinha interrompido o seu trabalho. Estou a ser pomposo e com razão. A
conversa que se segue entre nós começa, como seria
247

de prever, com um "A que horas voltaste para casa ontem, Nat?", ao que eu respondo Sabe
Deus, Prue, só sei que era muito tarde, ou uma coisa assim. Mas há qualquer coisa na minha
voz ou na minha cara que não lhe escapa. Além disso, como agora sei, a divergência das nossas
vidas supostamente paralelas desde o meu regresso do estrangeiro começava a afetá-la. Tem o
receio, que só mais tarde me confidenciaria, de que a sua guerra com as Grandes Farmacêuticas
e a minha com a missão que a Repartição, na sua sabedoria, me atribuiu, longe de se
complementarem, estejam a empurrar-nos para campos opostos. E é essa ansiedade, somada ao
meu aspeto físico, que desencadeia a nossa conversa aparentemente trivial, mas muito
importante.
"Nós vamos, não vamos, Nat?", pergunta-me ela, com aquilo que eu continuo a considerar uma
intuição desconcertante.
"Vamos aonde?", respondo eu evasivamente, apesar de saber perfeitamente.
"Almoçar com o Larry e a Amy, que fazem vinte e cinco anos de casados. Aonde havia de ser?"
"Bem, os dois acho que não, Prue. Eu não posso. Vais ter de ir sozinha. Ou então, porque é que
não levas a Phoebe? Ela ia contigo sem hesitar."
Phoebe, a nossa vizinha do lado, não necessariamente a companhia mais interessante, mas
talvez melhor do que um lugar vazio.
"Estás doente, Nat?", pergunta Prue.
"Que eu saiba, não. Estou de prevenção", respondo com a segurança possível.
"De quê?"
"Da Repartição."
"Não podes estar de prevenção e vir na mesma?"
"Não, tenho de estar aqui. Fisicamente. Em casa."
"Porquê? O que é que vai acontecer em casa?"
248

"Nada."
"Não podes estar à espera de nada. Corres alguma espécie de perigo?"
"Não é isso. O Larry e a Amy sabem que eu sou espião. Olha, vou telefonar ao Larry", sugiro
eu corajosamente. "O Larry não faz perguntas" - com o subtexto implícito: ao contrário de ti.
"E à noite, ao teatro? Temos dois bilhetes para o Simon Russell Beale, não sei se te lembras.
Plateias."
"Também não posso ir."
"Porque vais estar de prevenção."
"Tenho um telefonema às seis. Não sei o quê acontece depois disso."
"Então estamos o dia inteiro à espera de um telefonema às seis horas."
"Acho que sim. Bem, eu, pelo menos, estou", respondo eu.
"E até lá?"
"Não posso sair de casa. Ordens do Bryn. Estou de castigo."
"Do Bryn?"
"Em pessoa. Diretamente de Washington."
"Então acho que é melhor eu telefonar à Amy", disse ela, depois de pensar um pouco. "Talvez
eles também queiram os bilhetes. Vou telefonar-lhe da cozinha."
Altura para Prue fazer o que Prue faz sempre, quando eu penso que esgotou a paciência
comigo: retira-se, faz uma releitura da situação e trata de a resolver. Quando regressa, traz um
par de jeans velhos e o anoraque ridículo que comprámos nas férias de esqui e vem sorridente.
"Dormiste?", pergunta, obrigando-me a mudar de posição para poder sentar-se na cama.
"Não muito."
Ela apalpa-me a testa, a ver se está quente.
"De facto não estou doente, Prue", repito eu.
249

"Não. Mas eu estou a pensar se a Repartição não te terá despedido", diz ela, conseguindo tornar
a questão mais uma confissão das suas preocupações do que das minhas.
"Bem, talvez sim. Acho que provavelmente foi isso que aconteceu", reconheço eu.
"Injustamente?"
"Não, na verdade não."
"Foste tu que fizeste merda, ou foram eles?"
"De certo modo fomos ambos, para dizer a verdade. Eu só me envolvi com as pessoas erradas."
"Alguém que conheçamos?"
"Não."
"Não vão arranjar maneira de te cair em cima?"
"Não. Nada disso", tranquilizo-a eu, apercebendo-me quando digo isto de que não estou a
controlar a situação tanto quanto pensava.
"Que aconteceu ao teu telemóvel de serviço? Costumas tê-lo sempre ao lado da cama."
"Deve estar no bolso do casaco", digo eu, ainda numa espécie de postura enganadora.
"Não está. Eu procurei. A Repartição confiscou-to?"
"Sim."
"Desde quando?"
"Ontem à noite. Esta manhã. Foi uma sessão de noite inteira."
"Estás zangado com eles?"
"Não sei. Estou a tentar descobrir."
"Então fica na cama e descobre. O telefonema que esperas às seis da tarde deve ser pelo
telefone fixo."
"Vai ter de ser, sim."
"Vou mandar um email à Steff a pedir-lhe que não nos ligue por Skype à mesma hora. Tu vais
precisar de toda a tua concentração." Quando chega à porta muda de ideias, dá meia-volta e
retoma o
250

seu lugar na cama. "Posso dizer uma coisa, Nat? Não-invasiva? Só uma pequena declaração de
missão?"
"É claro que podes."
Pegou-me na mão, desta vez não para me medir o pulso.
"Se a Repartição anda a fazer-te a vida negra", diz com grande firmeza, "e se tu decidires
aguentar-te lá apesar disso, tens o meu apoio incondicional até que a morte nos separe, e que se
fodam os clubes de rapazes. Faço-me entender?"
"Fazes, sim. Obrigado."
"Do mesmo modo, se a Repartição anda a fazer-te a vida negra e tu resolveres de repente
mandá-los levar no cu e borrifar-te para a pensão, temos meios suficientes para nos
aguentarmos."
"Vou ter isso presente."
"E podes dizer isso também ao Bryn, se achares que adianta alguma coisa", acrescenta com
igual firmeza. "Ou então digo-lho eu."
"É melhor não", digo eu - ao que se seguiu uma espontânea gargalhada de alívio de ambas as
partes.
As declarações mútuas de amor raramente impressionam quem não participa nelas, mas as
coisas que dissemos um ao outro naquele dia - em especial Prue a mim - ressoam-me na
memória como um toque a rebate. Foi como se, de repente, ela tivesse aberto uma porta
invisível entre nós. E agrada-me pensar que foi através dessa mesma porta que comecei a
descortinar uma lógica difusa nas teorias desconexas e nos fogachos de intuição sem
fundamento a propósito do comportamento incompreensível de Ed que constantemente
explodiam diante de mim como fogo de artifício para logo de seguida se desvanecerem.
251

"É o meu pedacinho de alma alemã", gostava Ed de me dizer com um sorriso penitente quando
soava demasiado enfático para o seu próprio gosto, ou demasiado didático.
Sempre o seu pedacinho de alma alemã.
Para o fazer parar a bicicleta, Tadzio tinha falado alemão com Ed.
Porquê? Se não fosse assim Ed tê-lo-ia de facto confundido com um ébrio de rua?
E por que razão estou eu a pensar alemão, alemão, quando devia estar sempre a pensar russo,
russo?
E digam-me, por favor, porque eu sou duro de ouvido, porque é que sempre que a minha
memória repete o diálogo entre Ed e Gama tenho a sensação de estar a ouvir a música errada?
Se não tiver respostas claras para estas perguntas disparatadas, se o único efeito que elas têm é
intensificar a minha mistificação, uma coisa é certa: chegadas as seis horas dessa tarde, graças à
ajuda de Prue, sentia-me mais combativo, mais capaz e muito mais pronto do que às cinco dessa
manhã para lidar com o que a Repartição ainda tivesse para me atirar.
Seis horas pelo relógio da igreja, seis horas pelo meu relógio de pulso, seis horas pelo relógio
de caixa alta da família de Prue que tínhamos no corredor. Mais um fim de tarde abrasador da
grande seca de Londres. Prue está no jardim, a regar as suas pobres rosas sedentas. Toca uma
campainha, mas não é o telefone fixo. É a porta da rua.
Eu levanto-me de um salto, mas Prue chega primeiro. Encontramo-nos a meio das escadas.
"Acho que é melhor vestires alguma coisa mais respeitável", diz ela. "Está lá fora um homem
grande com um carro que diz que vem buscar-te."
252

Eu vou à janela do patamar e espreito. Um Ford Mondeo preto, com duas antenas. é Arthur, há
muitos anos motorista de Bryn Jordan, encostado a ele a fumar calmamente um cigarro.

A igreja ergue-se no alto da encosta de Hampstead e é aí que Arthur me deixa. Bryn nunca
gostou de chegadas e partidas à porta da sua casa.
"Portanto sabe o caminho", diz Arthur, como afirmação, não como pergunta. é a primeira vez
que fala desde o "Olá, Nat". Sim, Arthur, sei bem o caminho, obrigado.
Desde o tempo em que eu era o novato no Posto de Moscovo e Prue a minha consorte de
trabalho, Bryn, a sua bela mulher chinesa Ah Chan, as suas três filhas musicais e o seu filho
difícil sempre tinham vivido no imponente casarão do século dezoito no alto da encosta
sobranceira a Hampstead Heath. Se éramos chamados de Moscovo para uma sessão de
brainstorm, ou quando estávamos de licença, era nesta pilha de tijolos amaciados pelo tempo,
resguardada por portões altos com uma campainha, que nos juntávamos todos em alegres ceias
de família com as filhas a tocar Lieder de Schubert e os mais corajosos de nós a cantar com
elas; ou, quando chegava o Natal, madrigais, porque os Bryns, como nós lhe chamávamos,
eram velhos católicos e pairava nas sombras do átrio um Cristo na cruz a lembrá-lo. Como é
que um galês, e logo um galês, havia de se tornar um católico romano devoto é coisa que me
ultrapassa, mas estava-lhe na massa do sangue ser inexplicável.
Bryn e Ah Chan eram dez anos mais velhos que nós. As talentosas filhas do casal tinham há
muito iniciado as suas carreiras fulgurantes. Ah Chan, explicou-me Bryn enquanto me recebia
com a sua afabilidade habitual no degrau da entrada, estava em São Francisco, de visita à mãe
idosa:
253

"A velha moça completou um século na semana passada, mas continua à espera do bendito
telegrama da rainha, ou lá do que ela manda atualmente", queixa-se ruidosamente, enquanto me
conduz por um corredor comprido como uma carruagem de comboio. "Candidatámo-nos como
bons cidadãos, mas Sua Majestade não tem a certeza absoluta se ela tem direito, por ter nascido
na China e viver em São Francisco. Como se isso não bastasse, os nossos queridos Negócios
Estrangeiros perderam o processo dela. É a ponta do icebergue, se quer a minha opinião. O país
inteiro está espasmódico. A primeira coisa que notamos sempre que cá vimos é que nada
funciona, é tudo um improviso. A mesma sensação que tínhamos em Moscovo naquele tempo,
se bem se lembra."
Naquele tempo da Guerra Fria, aquela que os seus detratores dizem que ele continua a travar.
Aproximamo-nos do grande salão.
"E somos motivo de galhofa para os nossos queridos aliados e vizinhos, não sei se já reparou",
prossegue ele alegremente. "Um bando de nostálgicos pós-coloniais que não são capazes de
gerir uma banca de fruta. Também é essa a impressão que você tem?"
Eu digo: de certo modo.
"E o seu amigo Shannon acha o mesmo, evidentemente. Talvez seja isso que o move: a
vergonha. Já pensou nisso? A humilhação nacional que se instila, que é assumida como pessoal.
Faz sentido."
Eu digo: é uma ideia, se bem que nunca me tenha parecido que Ed fosse um grande
nacionalista.
Um teto alto de vigas de madeira, cadeirões de cabedal gretado, ícones escurecidos, primitivos
dos velhos tempos do comércio com a China, pilhas desarrumadas de livros com tiras de papel
entaladas, um esqui de madeira partido na chaminé da lareira e uma enorme bandeja de prata
para o nosso uísque, soda e cajus.
"Até a maldita máquina de gelo deu o berro", garante-me Bryn com orgulho. "Tinha de ser. Na
América, onde quer que se vá, o gelo é oferecido. E nós, britânicos, nem sequer podemos fazê-
lo.
254

É tudo a condizer. De qualquer maneira, você não põe gelo, pois não?"
Lembrava-se corretamente. Como sempre. Serve dois scotches triplos sem me perguntar
quando deve parar, estende-me um dos copos e com um sorriso bem-disposto manda-me sentar.
Senta-se também e olha-me com um sorriso enigmaticamente franco. Em Moscovo parecia
mais velho do que era. Agora a juventude acertou o passo com ele, e de que maneira. Os olhos
azul-água irradiam a sua luz semidivina, mas esta é agora mais intensa e direcional. Em
Moscovo tinha explorado a sua fachada de Adido Cultural com tanto brilhantismo, fazendo
palestras aos seus maravilhados ouvintes russos sobre tantos temas eruditos, que eles quase
acreditavam estar na presença de um diplomata a sério. Fachada, meu rapaz. Quase divindade.
Bryn faz homilias como as outras pessoas fazem conversa de ocasião.
Eu pergunto pela família. As raparigas estão a portar-se maravilhosamente, confirma ele, Annie
no Courtauld, Eliza na Filarmónica de Londres - sim, violoncelo, isso mesmo, que simpático eu
lembrar-me -, ranchos de netos nascidos ou esperados. Tudo absolutamente maravilhoso, franzir
de olhos.
"E o Toby?", pergunto eu a medo.
"Oh, um desastre completo", responde ele com o desprezo vigoroso que aplica a todas as más
notícias. "Completamente irrecuperável. Comprámos-lhe um barco de vinte e dois pés com todo
o equipamento necessário, conseguimos-lhe uma licença para pescar caranguejos ao largo de
Falmouth, a última vez que soubemos dele estava na Nova Zelândia a meter-se numa imensa
carga de sarilhos."
Curto silêncio para comiseração.
"E Washington?", pergunto eu.
"Oh meu Deus, um horror, Nat" - com um sorriso ainda mais largo -, "guerras civis a rebentar
como a rubéola por toda a delegação
255

e nunca sabemos quem está inclinado para que lado por quanto tempo e quem vai para a rua
amanhã. E não há nenhum Tomás Wolsey para meter aquilo nos eixos. Há poucos anos éramos
o homem da América na Europa. Com altos e baixos, é certo, nem sempre era fácil. Mas
estávamos lá dentro, fora do euro, graças a Deus, sem sonhos molhados com políticas
unificadas, internacionais, de defesa ou outras quaisquer" - franzir de olhos, risadinha. "E era
assim que víamos o nosso relacionamento especial com os Estados Unidos. Mamando
alegremente na última teta do poder americano. Gozando à grande. E onde estamos agora? No
fim da fila, atrás dos Hunos e das Rãs. Com menos uma maldita perspetiva para oferecer.
Desastre total."
Risadinha benigna e avanço quase sem pausa para o seu próximo tema divertido:
"A propósito: achei graça ao que o seu amigo Shannon disse sobre o Donald; a ideia de que teve
todas as hipóteses democráticas e desperdiçou-as. Não tenho nada a certeza de que isso seja
assim. O que é importante perceber em relação ao Trump é que é um chefe de quadrilha, nado e
criado. Educado para foder a sociedade civil de toda a maneira e feitio, não para fazer parte
dela. O seu parceiro Shannon não percebeu isso. Ou estarei a ser injusto?"
Injusto com Trump ou injusto com Ed?
"E o pobre do pequeno Vladi Putin nunca na vida teve a mínima formação democrática",
continua, condescendente. "Nisso estou de acordo com ele. Nasceu espião, continua espião,
ainda por cima com a paranóia do Estaline. Acorda todas as manhãs espantado por o Ocidente
não o ter arrasado com um ataque preventivo." Mastiga cajus. Empurra-os com um pensativo
gole de scotch. "é um sonhador, não é?"
"Quem?"
"O Shannon."
"De que tipo?"
256

"Não sei."
"Não sabe mesmo?"
"Não sei mesmo."
"O Guy Brammel apareceu com uma teoria da foda de raiva", continua ele, saboreando a
expressão como um menino malcriado. "Já tinha ouvido esta? Foda de raiva?"
"Acho que não. Sexo só há pouco tempo, e nunca de raiva. Estive muito tempo fora."
"Eu também não. E pensava que já tinha ouvido tudo. Mas o Guy acha-lhe muita graça. Um
homem numa missão de foda de raiva diz à pessoa com quem foi para a cama - neste caso a
Mãe Rússia: a única razão por que estou aqui a foder-te é que ainda odeio mais a minha mulher
do que te odeio a ti. Portanto é uma foda de raiva. Será que se aplica ao seu rapaz? Qual é a sua
opinião pessoal?"
"Bryn, a minha opinião pessoal é esta: a noite passada apanhei uma tareia valente, primeiro do
Shannon e depois dos meus queridos amigos e colegas, e por isso não sei bem por que razão
estou aqui."
"Sim, bem, é certo que exageraram um bocadinho", concorda ele, aberto como sempre a todos
os pontos de vista. "Mas o problema é que ninguém sabe quem eles são neste momento, pois
não? A porra do país inteiro está de pantanas. Talvez seja essa a pista para o perceber. A Grã-
Bretanha caída aos bocados, o monge secreto em busca de um absoluto, mesmo que para isso
tenha de trair absolutamente. Mas em vez de fazer ir pelos ares as Casas do Parlamento, passa-
se para o lado dos russos. É possível?"
Eu digo que tudo é possível. Um prolongado franzir de olhos e um sorriso sedutor avisam-me
de que ele está prestes a aventurar-se por território mais perigoso.
"Então diga-me, Nat. Aqui só entre nós. Como é que você pessoalmente reagiu, na sua
qualidade de mentor, confessor, pai adotivo, o que quiser, quando viu o seu jovem protegido,
sem
257

uma palavra de aviso, abrir-se com a presunçosa Gama?" - isto enquanto me reabastece de
uísque. "O que passou pelas suas cabeças pessoal e profissional enquanto estava ali sentado,
sozinho, a ver e ouvir com franca perplexidade? Não pense muito. Desembuche."
Noutros tempos, sentado a sós com Bryn, talvez de facto lhe tivesse revelado os meus
sentimentos mais íntimos. Talvez até lhe tivesse contado que, enquanto ouvia siderado a voz de
Valentina, imaginei ter detetado entre as suas cadências georgiana e russa a presença de uma
intrusa que não era uma coisa nem outra: uma cópia, sim, mas não o original. E que, a
determinada altura durante um dia de espera, me havia ocorrido uma espécie de resposta. Não
uma revelação ofuscante, mas sim sub-reptícia, como um retardatário que entra no teatro e abre
caminho pela sua fila na obscuridade. Algures nos compartimentos mais distantes da minha
memória, estava a ouvir a voz enfurecida da minha mãe a repreender-me por qualquer mau
comportamento numa língua desconhecida do seu amante da altura, língua que de imediato
repudiava. Mas Valentina-Gama não tinha repudiado o alemão da sua voz. Pelo menos que eu
ouvisse. Estava a simulá-lo. Estava a impor cadências alemãs ao seu inglês falado para o limpar
da marca russo-georgiana que tinha.
Mas, no mesmo instante em que esta ideia estranha me vem à cabeça, mais fantasia do que
facto, alguma coisa dentro de mim me diz que não posso, em circunstância alguma, partilhá-la
com Bryn. Será então este o momento de germinação de um esquema que se vem formando na
minha cabeça, mas ao qual ainda não tenho acesso autorizado? Tenho pensado muitas vezes
nisso.
"O que eu suponho que senti, Bryn", respondo eu à sua pergunta sobre as minhas duas cabeças,
"foi que o Shannon devia estar a sofrer ali mesmo algum tipo de colapso mental. Esquizofrenia,
bipolaridade grave, só os psicoterapeutas saberão. é um caso em
258

que nós, amadores, estamos a perder o nosso tempo tentando atribuir-lhe motivações racionais.
E depois houve, evidentemente, o detonador, a gota de água" - porque é que estou a exagerar? -,
"a epifania dele, caramba. Aquilo que verdadeiramente fez correr Sammy, como se costuma
dizer."
Bryn continua a sorrir, mas é um sorriso duro, desafiando-me a continuar.
"Vamos ao que interessa?", pergunta tranquilamente, como se eu não tivesse falado. "Hoje, ao
princípio da manhã, o Centro de Moscovo pediu um segundo encontro com o Shannon para
daqui a uma semana, e ele concordou. A pressa do Centro pode parecer indecorosa, mas para
mim significa solidez de raciocínio profissional. Receiam pela fonte deles a longo prazo - quem
não recearia? - o que significa evidentemente que nós temos de andar igualmente depressa."
Uma vaga de ressentimento espontâneo vem em meu auxílio.
"Você continua a dizer nós como se isso fosse um facto consumado, Bryn", queixo-me com a
nossa habitual jovialidade inveterada. "O que eu acho um bocado difícil de engolir é que tudo
está a acontecer por cima da minha cabeça. Eu sou o autor da Poeira de Estrelas, não sei se já se
esqueceu, portanto porque é que não sou posto ao corrente do desenrolar da minha operação?"
"Você está a ser posto ao corrente, meu caro. Por mim. Para o resto do Serviço você é passado,
e muito bem. Por mim, você nunca teria chefiado o Porto de Abrigo. Os tempos estão a mudar.
Você está na idade perigosa. Sempre esteve, mas agora nota-se. A Prue está bem?"
Manda cumprimentos, obrigado, Bryn.
"Ela está consciente? Do assunto do Shannon?"
Não, Bryn.
"é melhor continuar assim."
Sim, Bryn.
259

Continuar assim? Ou seja, manter Prue na ignorância acerca de Ed? Prue, que ainda esta manhã
me jurou lealdade incondicional, mesmo que eu decidisse mandar a Repartição levar no cu?
Prue, a melhor cônjuge-soldado que a Repartição podia desejar, que nunca, mas nunca, por
palavras ou murmúrios, traiu a confiança que a Repartição havia depositado nela? E agora vem
Bryn, e logo ele, dizer-me que ela não é de confiança? Que se foda.
"É claro que o nosso Serviço irmão está a reclamar ruidosamente o sangue do Shannon, o que
certamente não o surpreende minimamente", diz Bryn. "Prendê-lo, apertar com ele, usá-lo como
exemplo, toda a gente ganha uma medalha. Resultado: um escândalo nacional que não leva a
lado absolutamente nenhum e nos põe a fazer figura de parvos em pleno Brexit. Portanto, pela
parte que me toca, tiramos imediatamente essa opção de cima da mesa."
Outra vez o "nós". Bryn estende-me o prato dos cajus. Eu tiro um punhado para o satisfazer.
"Azeitonas?"
Não, obrigado, Bryn.
"Antigamente gostava muito delas. São Kalamata."
Mas não, Bryn, obrigado.
"Outra opção. Metemo-lo na Sede e fazemos-lhe a conversa clássica. Okay, Shannon, você está
inequivocamente identificado como agente do Centro de Moscovo e daqui em diante fica
debaixo do nosso controlo ou prepara-se para ser severamente castigado. Acha que resulta?
Você conhece-o. Nós não. Nem o departamento dele o conhece. Pensam que ele tem uma
namorada, mas nem disso têm a certeza. Pode ser um namorado. Pode ser o decorador de
interiores. Dizem que está a remodelar o apartamento. Contraiu uma hipoteca garantida pelo
salário e comprou o apartamento do andar de cima. Ele disse-lhe?"
Não, Bryn, não me disse.
260

"Disse-lhe que tinha uma namorada?"


Não, Bryn.
"Então talvez não tenha. Há quem consiga passar sem elas. Não me pergunte como. Talvez ele
seja um desses."
Talvez, Bryn.
"Então que acha que vai acontecer se lhe fizermos a conversa clássica?"
Eu dou à pergunta a ponderação que ela merece.
"O que eu acho que vai acontecer, Bryn, é que o Shannon lhes diria que se fossem foder."
"Porquê?"
"Experimente jogar badmínton com ele. Prefere resistir até ao último fôlego."
"Mas isto não é badmínton."
"O Ed não verga, Bryn. Não é pessoa para ceder à lisonja ou ao compromisso, nem para salvar
a própria pele se pensar que a causa é maior do que ele."
"Então tem vocação de mártir", observa Bryn com satisfação, como quem reconhece um
caminho muitas vezes percorrido. "Entretanto, estamos evidentemente envolvidos na habitual
disputa para saber quem é o dono do corpo dele. Nós descobrimo-lo, logo, desde que o
utilizemos, é nosso. Quando deixar de nos ser útil, acaba-se o jogo e o nosso Serviço irmão que
faça dele o que quiser. Agora deixe-me fazer-lhe uma pergunta: Ainda o ama? Não no sentido
carnal. Ama-o de verdade?"
E Bryn Jordan é isto mesmo. O rio que só se atravessa uma vez. Encanta-nos, escuta os nossos
queixumes e sugestões, nunca levanta a voz, nunca nos julga, não entra em discussões, leva-nos
a passear pelo jardim até se apoderar do ar que respiramos e depois dá-nos a estocada.
261

"Gosto dele, Bryn. Ou melhor, gostava, antes de isto rebentar", digo eu desprendidamente,
depois de um longo sorvo de uísque.
"E ele gosta de si, meu caro. Imagina-o a conversar com mais alguém como conversa consigo?
Isso pode ser-nos útil."
"Mas como, Bryn?", insisto eu, com um sorriso sincero, no papel do bom discípulo apesar do
coro de vozes contraditórias que ressoam naquilo a que Bryn gostava de chamar a minha cabeça
pessoal. "Já lhe perguntei várias vezes, mas você não me responde. Quem é nós nesta
equação?"
As sobrancelhas de Pai Natal levantam-se até ao seu ponto mais alto quando ele me presenteia
com o mais largo dos sorrisos.
"Ora, meu caro. Você e eu, quem havia de ser?"
"A fazer o quê, se posso perguntar?"
"Aquilo que você sempre fez melhor. Faça amizade sem reservas com o seu homem. Já
percorreu metade do caminho. Escolha o momento e percorra a outra metade. Diga-lhe quem é,
mostre-lhe o erro que está a cometer, calmamente, sem dramas, e dê-lhe a volta. No momento
em que ele disser "sim, Nat, eu faço isso", ponha-lhe um cabresto à volta do pescoço e conduza-
o delicadamente ao redil."
"E depois de eu lá o meter delicadamente?"
"Recuperamo-lo. Mantemo-lo atarefado no seu trabalho diário, damos-lhe desinformação
cuidadosamente preparada para ele fazer chegar a Moscovo pelo pipeline. Usamo-lo enquanto
durar, e quando tivermos aproveitado tudo o que nos pode dar deixamos que o nosso Serviço
irmão acabe com a rede da Gama ao som das trombetas. Você recebe um louvor do Chefe, nós
aplaudimo-lo à passagem e terá feito o melhor que podia pelo seu jovem parceiro. Bravo.
Menos seria desleal, mais seria condenável. E agora ouça isto", prossegue ele vigorosamente,
sem me dar hipótese de objetar.
262

Bryn não precisa de tomar notas. Nunca precisou. Não está a recitar-me factos e números lidos
no seu telemóvel de serviço. Não está a parar, a franzir o sobrolho, a tentar lembrar-se daquele
pormenor irritante que está a escapar-lhe. Este homem aprendeu russo em exatamente um ano
numa escola de estudos soviéticos em Roma, e nas horas vagas acrescentou o mandarim ao seu
currículo.
"Nos últimos nove meses, o seu amigo Shannon declarou formalmente à entidade patronal um
total de cinco visitas a missões diplomáticas europeias baseadas aqui em Londres. Duas à
Embaixada Francesa, exclusivamente para eventos culturais. Três à Embaixada Alemã, uma
delas no Dia da Unidade Alemã. E outra para fins sociais indeterminados. Disse alguma coisa?"
- pergunta abruptamente.
"Estava só a ouvir, Bryn. Só a ouvir." Se tinha dito alguma coisa, era só na minha cabeça.
"Todas essas visitas foram aprovadas pelo departamento em que ele trabalhava, se previamente
ou retrospetivamente não temos forma de saber, mas as datas estão registadas e tem-nas aqui" -
pegando numa pasta com fecho de correr que tinha ao seu lado. "E um telefonema inexplicado
de uma cabine pública em Hoxton para a Embaixada Alemã. Pergunta por uma Frau Brandt do
departamento de viagens e respondem-lhe com correção que não têm lá nenhuma Frau Brandt."
Faz uma pausa, mas apenas para se certificar de que eu estou a dar-lhe atenção. Não precisava
de se preocupar. Estou hipnotizado.
"Sabemos também, porque as câmaras de rua nos abrem os seus corações, que no percurso de
bicicleta até à Área Beta, ontem ao fim da tarde, Shannon estacionou a bicicleta e sentou-se
numa igreja durante vinte minutos" - um sorriso indulgente.
"Que tipo de igreja?"
263

"Pobre. As únicas que nos tempos que correm deixam as portas abertas. Sem pratas, sem
pintura sacra, sem paramentos que valham alguma coisa."
"Com quem falou?"
"Com ninguém. Só lá estavam dois sem-abrigo, ambos autênticos, e um maricas de preto do
outro lado da coxia. é um sacristão. O Shannon não se ajoelhou, segundo o sacristão. Sentou-se.
Depois saiu e continuou a viagem de bicicleta. Portanto" - com renovada satisfação - "qual era a
ideia dele? Estava a entregar a alma ao Criador? Um raio de um momento estranho para isso, na
minha opinião, mas cada um sabe de si. Ou estaria a certificar-se de que não tinha ninguém a
segui-lo? Eu inclino-me para a segunda hipótese. Que acha que ele foi fazer às embaixadas
francesa e alemã?"
Volta a encher os copos, senta-se impacientemente e espera pela minha resposta - tanto quanto
eu, mas não me ocorre nenhuma de repente.
"Bem, Bryn. Talvez possa responder você primeiro, para variar", sugiro eu, entrando no jogo,
coisa que ele aprecia.
"Cá para mim, foi à pesca de embaixada", responde ele com satisfação. "Foi farejar mais uns
nacos de espionagem para alimentar o seu vício russo. Pode ter-se armado em ingénuo com a
Gama, mas a minha opinião é que tem aspirações a ir mais longe, se não fizer nenhuma burrice
pelo caminho. Devolvo-lhe a palavra. Faça todas as perguntas que quiser."
Só há uma pergunta que eu quero fazer-lhe, mas o instinto diz-me que devo começar com uma
fácil. Escolho Dom Trench.
"Dom!", exclama ele. "Oh, meu Deus! O Dom! Para as trevas exteriores (1). Licença ilimitada,
sem opção."
"Porquê? Qual é o pecado dele?"

(1) Mateus, 8:12. (N. do T.)


264

"Em primeiro lugar, ter sido recrutado por nós. Esse pecado é nosso. Há alturas em que a nossa
querida Repartição é demasiado tolerante com a usurpação. O pecado dele é visar demasiado
alto. E ser apanhado com as calças na mão por um grupo de caçadores de escândalos na internet
negra. Erraram em dois ou três pormenores, mas acertaram em muitos mais. A propósito, você
anda a comer aquela rapariga que nos bateu com a porta? A Florence?" - isto com um sorriso
que não podia ser mais tímido.
"Não ando a comer a Florence, Bryn."
"Nunca andou?"
"Nunca andei."
"Então porque é que lhe telefonou de uma cabine pública e a convidou para jantar?"
"Ela bateu com a porta do Porto de Abrigo e deixou os agentes que trabalhavam com ela
pendurados. é uma rapariga perturbada e eu achei que devia manter o contacto com ela."
Desculpas a mais, mas não faz mal.
"Bom, daqui em diante tenha muito cuidado. Ela é assunto proibido e você também. Mais
alguma pergunta? Demore o tempo que for preciso."
Eu demoro o tempo que é preciso. E mais algum.
"Bryn?"
"Sim, meu caro?"
"Que raio é a Operação Jericó?", pergunto eu.

Para os infiéis, a inviolabilidade do material protegido por senha é difícil de perceber. As


próprias senhas, regularmente alteradas a meio do processo, são tratadas com o mesmo
secretismo que o material que protegem. Para um membro do grupo restrito de pessoas
autorizadas, pronunciar uma senha ao alcance
265

do ouvido de quem está de fora é considerado, no léxico de Bryn, pecado mortal. E, no entanto,
aqui estou eu, imagine-se, a questionar o icónico chefe do departamento da Rússia: que raio é a
Jericó?
"Francamente, Bryn", insisto, sem me deixar intimidar pelo seu sorriso hirto. "O Shannon viu o
material de relance enquanto o passava pelo duplicador, só isso. O que quer que tenha visto, ou
pense que viu, foi o suficiente. O que é que eu digo se ele me telefonar a falar do assunto?
Digo-lhe que não faço a mínima ideia do que ele está a dizer? Isso não é mostrar-lhe o erro
daquilo que fez. Isso não é pôr-lhe um cabresto à volta do pescoço e trazê-lo gentilmente de
volta." E com maior ênfase: "O Shannon sabe o que é a Jericó..."
"Pensa que sabe."
"... e Moscovo sabe. Pelos vistos, a Gama está tão entusiasmada com a Jericó que assume
pessoalmente a missão, com um naipe completo de atores secundários fornecidos por
Moscovo."
O sorriso alarga-se em aparente concordância, mas os lábios continuam cerrados como se
estivessem decididos a não deixar passar uma única palavra.
"Um diálogo", diz ele por fim. "Um diálogo entre adultos."
"Quais adultos?"
Ele ignora a pergunta.
"Somos uma nação dividida, Nat, como certamente já reparou. As divisões entre nós por esse
país fora refletem-se com nitidez nas divisões entre os nossos chefes. Não há dois ministros que
pensem da mesma forma no mesmo dia. Por isso não é de admirar que as necessidades de
informação secreta que nos fazem chegar flutuem com o momento, chegando ao ponto de se
contradizerem. Afinal de contas, parte da nossa função é pensar o impensável. Quantas vezes é
que nós, velhos membros do departamento da Rússia, já fizemos exatamente isso, sentados
nesta mesma sala, pensar o impensável?"
266

Procura um aforismo. Como sempre, encontra-o: "Os sinais de trânsito não caminham na
direção para que apontam. Somos nós, humildes mortais, que temos de decidir qual o caminho a
seguir. O sinal de trânsito não é responsável pela nossa decisão. Ou será?"
Não, Bryn, não é. Ou é. Seja como for, estás a atirar-me um monte de areia para os olhos.
"Mas posso supor que você é o KIM barra um? Como chefe da nossa missão em Washington?
Ou é uma suposição demasiado ousada?"
"Meu caro, suponha o que quiser."
"Mas não me vai dizer mais nada?"
"Que mais pode você precisar de saber? Vou dar-lhe uma amostra, mas só isso. O diálogo
ultrassecreto em questão está a decorrer entre os nossos primos americanos e nós. Tem
propósitos exploratórios, é um apalpar de terreno. Está a ser conduzido ao mais alto nível. O
Serviço é o intermediário, tudo o que está em discussão é teórico, nada é definitivo. O Shannon,
segundo testemunhou, viu uma parte ínfima de um documento de cinquenta e quatro páginas,
memorizou-o, provavelmente de forma inexata, e retirou as suas próprias conclusões erradas,
que depois transmitiu a Moscovo. Não fazemos a mínima ideia de qual foi essa parte ínfima.
Foi apanhado in flagrante - podemos acrescentar que graças aos seus esforços, Nat, ainda que
não fosse esse o seu objetivo. Não precisa de recorrer a nenhuma espécie de dialética com ele.
Mostre-lhe o chicote. Diga-lhe que só o usará se for necessário."
"E não posso saber mais nada?"
"Já é mais do que precisa de saber. Por um momento deixei-me levar pelo sentimento. Tome
isto. Só dá para usar entre nós os dois. Eu ando constantemente entre cá e DC, por isso não vai
conseguir apanhar-me enquanto estou no ar."
O abrupto "tome isto" é acompanhado pelo retinir de um objeto metálico contra a bandeja das
bebidas que temos entre nós. é um smartphone prateado, exatamente o modelo que eu
267

costumava dar aos meus agentes. Olho para ele, depois para Bryn, depois outra vez para o
smartphone. Com um ar de relutância pego nele e, sempre com os olhos de Bryn em cima de
mim, meto-o no bolso do casaco. A expressão do rosto dele suaviza-se e a voz retoma o seu tom
agradável.
"Você vai ser o salvador do Shannon, Nat", diz-me para me consolar. "Ninguém será tão
delicado com ele como você. Nem pouco mais ou menos. Se se sentir fraquejar, pense nas
alternativas. Quer que eu entregue o rapaz ao Guy Brammel?"
Eu penso nas alternativas, mas não necessariamente nas mesmas que ele. Ele levanta-se, eu
levanto-me também. Ele pega-me pelo braço. Fazia isso muitas vezes. Orgulha-se de ser uma
pessoa afetuosa. Empreendemos a longa marcha de regresso pela carruagem de comboio,
passando por retratos de Jordans ancestrais ornados com rendas.
"A família toda bem?"
Eu conto-lhe que Steff está noiva.
"Meu Deus, Nat, ela só tem alguns nove anos!"
Troca de risadas.
"E a Ah Chan começou a pintar em grande", informa-me ele. "Megaexposição brevemente em
Cork Street, imagine. Acabou-se o maldito pastel. Acabou-se a maldita aguarela. Acabou-se o
maldito guache. é óleo ou nada. Se bem me lembro, a sua Prue gostava muito do trabalho dela."
"E continua a gostar", respondo eu por lealdade, embora seja novidade para mim.
Paramos à porta, frente a frente. Talvez ambos tenhamos a premonição de que não voltaremos a
ver-nos. Eu dou voltas à cabeça em busca de um assunto irrelevante. Como sempre, Bryn é
mais rápido:
"E não se preocupe com o Dom", sugere-me com uma risadinha. "O homem deu cabo de tudo
aquilo em que tocou na vida,
268

por isso vai ter muita procura. Provavelmente já tem um lugar seguro à espera no Parlamento."
Rimo-nos sabiamente das perversidades do mundo. Enquanto trocamos um aperto de mão, ele
dá-me uma palmada no ombro ao jeito americano e desce atrás de mim até meio das escadas,
como manda a etiqueta. O Mondeo para diante de mim. Arthur leva-me a casa.

Prue está sentada diante do portátil. Olha de relance para a minha cara, levanta-se e, sem dizer
uma palavra, abre a porta da estufa para o jardim.
"O Bryn quer que eu recrute o Ed", digo-lhe eu debaixo da macieira. "O rapaz de que te falei. O
meu parceiro habitual de badmínton. O grande falador."
"Recrutá-lo para quê, posso saber?"
"Como agente duplo."
"Dirigido contra quem ou contra quê?"
"Contra a Rússia."
"Bem, antes disso não tem de ser agente simples'?"
"Tecnicamente, isso já ele é. é assistente administrativo superior no nosso Serviço irmão. Foi
apanhado em flagrante a passar segredos para os russos, mas ainda não sabe."
Longo silêncio antes de ela se refugiar no seu profissionalismo. "Nesse caso, a Repartição deve
recolher todas as provas, a favor e contra, entregá-las ao Ministério Público da Coroa e
proporcionar-lhe um julgamento justo pelos seus pares em audiências públicas. E não ir atrás
dos amigos dele para o assediarem e chantagearem. Espero que tenhas dito que não ao Bryn."
"Disse-lhe que sim."
"Porque?"
"Acho que o Ed fez mal."
269

18

Renate sempre foi madrugadora.


São sete da manhã de domingo, o Sol já nasceu e a onda de calor não dá sinais de abrandar
enquanto eu caminho para norte atravessando a tundra queimada de Regent’s Park, a caminho
da aldeia de Primrose. De acordo com as minhas pesquisas - feitas no portátil de Prue, não no
meu, com Prue a assistir num estado de compreensão parcial, porque uma lealdade residual ao
meu Serviço, aliada a uma perdoável reticência em relação às minhas transgressões passadas,
me proíbe de a esclarecer totalmente -procuro um complexo de apartamentos soberbamente
restaurados em mansões vitorianas com portaria, o que devia ter-me surpreendido porque o
pessoal diplomático gosta de se concentrar em torno da respetiva nave-mãe, o que no caso de
Renate teria significado a Embaixada Alemã em Belgrave Square. Mas mesmo em Helsínquia,
onde fora a número dois no seu posto enquanto eu era o número dois no nosso, fizera questão
de viver tão longe - e ela diria tão livre - da canalha diplomática - Diplomatengesindel -quanto
lhe fosse possível.
Entro na aldeia de Primrose. Paira uma santa quietude sobre as vivendas eduardianas pintadas
de cor pastel. Soa algures um sino de igreja, mas só timidamente. Um bravo italiano dono de
271

um café desenrola com a manivela o seu toldo às riscas e o ranger do mecanismo rima com o
eco dos meus passos. Viro à direita, depois à esquerda. Belisha Court é um bloco de seis
andares em tijolo cinzento e ocupa o lado escuro de uma rua sem saída. Uns degraus de pedra
dão acesso a um pórtico wagneriano com arcos. As suas duplas portas pretas fechadas impedem
a entrada a quem chega. Os apartamentos soberbamente restaurados têm números, mas não
nomes. O único botão de campainha diz "Porteiro", mas uma impertinente nota manuscrita
entalada por trás acrescenta "Nunca aos domingos". Só entra quem tiver chave e,
surpreendentemente, a fechadura é de canhão. Qualquer assaltante da Repartição a abriria em
segundos. Eu levaria mais algum tempo, mas não tenho gazua. O espelho da fechadura está
riscado, por causa do uso constante.
Atravesso para a parte ensolarada da rua e finjo interesse numa montra de roupas para criança
enquanto observo o reflexo das portas duplas. Mesmo em Belisha Court há certamente um
morador a necessitar de uma corrida matinal. Abre-se metade das portas duplas. Não sai um
jogger, mas sim um casal vestido de preto. Deduzo que vão à igreja. Solto um grito de alívio e
atravesso rapidamente a rua em direção a eles: os meus salvadores. Como um idiota chapado
esqueci-me das chaves, explico. Eles riem-se. Bem, aconteceu-lhes o mesmo ainda há - quando
foi, querido? Quando nos separamos, eles apressam-se a descer as escadas ainda a trocar
risadinhas e eu avanço por um corredor sem janelas até à última porta à esquerda antes daquela
que dá para o jardim porque, tal como em Helsínquia e em Londres, Renate gosta de um rés do
chão amplo com uma boa saída para as traseiras.
A porta do número oito tem uma entrada de latão polido para as cartas. O envelope que tenho
na mão está endereçado Só para Reni e assinalado como particular. Ela conhece a minha letra.
Reni era como gostava que eu a tratasse. Enfio o envelope pela abertura,
272

levanto e baixo a pala várias vezes, toco à campainha e volto a correr pelo corredor para a rua
sem saída, à esquerda e depois à direita para a rua principal, passo em frente do café com um
aceno e um "Olá" ao proprietário italiano, atravesso a rua, entro por um portão de ferro e subo
para Primrose Hill, que se ergue na minha frente como uma cúpula ressequida cor de tabaco. Lá
no alto, uma família indiana vestida de cores vivas tenta lançar um enorme papagaio
quadrangular, mas o vento mal chega para levantar as folhas secas que se acumulam à volta do
banco solitário em que eu me sento.

Durante quinze minutos completos espero, e ao décimo sexto estou quase a desistir. Ela não
está ali. Não anda a correr, está com um agente, um amante, foi numa das suas excursões
culturais a Edimburgo ou Glyndebourne, ou aonde quer que a sua fachada lhe exige que mostre
a cara e se misture com as pessoas. Está a divertir-se numa das suas queridas praias de Sylt.
Depois uma segunda vaga de possibilidade, potencialmente muito mais embaraçosa. Está em
casa com o marido ou um amante, ele arrancou-lhe a carta da mão e vem atrás de mim pela
encosta acima: só que nesta altura não é o marido e amante vingativo, é Renate em pessoa que
sobe a encosta em passo decidido, punhos aos murros no ar em frente do seu corpo pequeno e
forte, cabelo loiro curto a adejar ao ritmo da sua passada, olhos azuis a faiscar, uma Valquíria
em miniatura que vem dizer-me que estou prestes a morrer em combate.
Vê-me, muda de rumo, levantando pequenas nuvens de poeira atrás de si. Quando se aproxima,
eu levanto-me por delicadeza, mas ela passa por mim, esparrama-se no banco e espera,
reluzente de suor, que eu me sente a seu lado. Em Helsínquia falava um inglês razoável e um
russo melhor, mas quando a paixão tomava conta
273

dela punha os dois de lado e entregava-se ao conforto do seu alemão do Norte. Da sua rajada
inicial depreende-se claramente que o seu inglês melhorou muito desde a última vez que lho
ouvi durante os nossos fins de semana secretos numa casinha rangente da costa do Báltico que
tinha uma cama de casal e um fogão a lenha.
"Estás completamente passado dessa cabeça minúscula, Nat?", pergunta ela idiomaticamente,
arregalando-me os olhos. "Que raio queres tu dizer: particular - só para os ouvidos de -
conversa confidencial? A tua ideia é recrutar-me ou comer-me? Como não estou interessada em
nenhuma das propostas, podes dizer isso a quem te mandou cá, porque estás totalmente
desfasado e maluco e és um embaraço a todos os títulos. Estou certa?"
"Estás", concordo eu, e fico à espera de que ela se acalme, porque a mulher que há em Renate é
mais impulsiva do que a espia.
"A Stephanie está bem?", pergunta ela, momentaneamente mais tranquila.
"Mais do que bem, obrigado. Finalmente assentou, está noiva, nem dá para acreditar. E o Paul?"
Paul não é filho dela. Para seu desgosto, Renate não tem filhos. Paul é marido, ou foi; um misto
de playboy de meia-idade e editor em Berlim.
"Obrigada. O Paul também está excelente. Tem mulheres cada vez mais jovens e mais estúpidas
e um catálogo de livros cada vez pior. Portanto, uma vida normal. Tiveste outras paixonetas
depois de mim?"
"Estou bem. Acalmei."
"E continuas com a Prue, espero?"
"Claro que sim."
"E então? Vais dizer-me porque é que me chamaste aqui, ou tenho de telefonar ao meu
embaixador a dizer-lhe que os nossos amigos britânicos estão a fazer propostas impróprias à sua
chefe de posto num parque de Londres?"
274

"Talvez devesses dizer-lhe que fui corrido do meu Serviço e estou aqui numa missão de
salvamento", sugiro eu, e fico à espera de que ela se refaça da surpresa. Cotovelos e joelhos
muito juntos, mãos entrelaçadas sobre o colo.
"Isso é verdade? Despediram-te?", pergunta ela. "Não é nenhuma armadilha estúpida?
Quando?"
"Ontem, se bem me lembro."
"Por causa de algum amour imprudente?"
"Não."
"E quem vieste salvar, se é que posso perguntar?"
"Tu. Ou melhor, vós. Tu, a tua equipa, o teu posto, o teu embaixador e uma data de gente em
Berlim."
Quando Renate escuta com aqueles grandes olhos azuis, não se imagina que eles possam piscar.
"Estás a falar a sério, Nat?"
"Mais a sério do que nunca."
Ela fica a pensar nisto.
"E estás a gravar a nossa conversa para a posteridade, aposto."
"Por acaso não estou. E tu?"
"Por acaso também não", responde ela. "Agora faz o favor de nos salvar depressa, se foi isso
que vieste fazer."
"Se eu te dissesse que o meu ex-Serviço teve conhecimento de que um membro da comunidade
de serviços secretos aqui de Londres tem andado a oferecer-te informações sobre um diálogo
ultrassecreto que estamos a ter com os nossos parceiros americanos, como responderias a isso?"
A resposta dela ainda é mais rápida do que eu esperava. Viria a prepará-la enquanto subia a
encosta? Ou aconselhou-se com os seus superiores antes de sair de casa?
"Responderia que talvez vocês, britânicos, estejam metidos numa ridícula caçada aos
gambozinos."
"Que queres dizer com isso?"
275

"Talvez estejam a tentar pôr à prova a nossa lealdade profissional à luz do Brexit iminente. Na
absurda crise atual, vale tudo para o vosso suposto governo."
"Mas não estás a dizer que essa proposta não te foi feita, pois não?"
"Tu fizeste-me uma pergunta hipotética. Eu dei-te uma resposta hipotética."
Dito isto, fecha a boca para indicar que o encontro acabou, só que, em vez de se levantar e
abalar dali, fica sentada, muito quieta, à espera de mais sem querer mostrá-lo. A família indiana,
cansada de tentar pôr o papagaio a voar, desce a encosta. Lá em baixo, pelotões de joggers
passam a correr para um lado e para o outro.
"Vamos imaginar que o nome dele é Edward Shannon", sugiro eu.
Encolher de ombros de indiferença.
"E, sempre hipoteticamente, que o Shannon é um antigo membro da nossa equipa de ligação
entre serviços em Berlim. E que é um apaixonado pela Alemanha e tem o vírus alemão. A
motivação dele é complexa e, para os nossos mútuos interesses, irrelevante. Mas não é
maliciosa. Pelo contrário, é bem-intencionada."
"Naturalmente, nunca ouvi falar em tal homem."
"Naturalmente, não ouviste. No entanto, ele fez várias visitas à vossa embaixada nos últimos
meses." Digo-lhe as datas, cortesia de Bryn. "Como o trabalho dele em Londres não lhe
proporcionava uma ligação com o vosso posto aqui, não sabia a quem se dirigir com a sua
oferta de segredos. Por isso atrelou-se ao primeiro elemento da vossa embaixada que encontrou
até este o passar a um membro do vosso posto. O Shannon é um homem inteligente, mas em
matéria de conspiração é aquilo a que tu chamarias um Vollidiot. É um cenário plausível,
hipoteticamente falando?"
"É claro que é plausível. Como conto de fadas, tudo é plausível."
276

"Talvez ajudasse se eu te dissesse que o Shannon foi recebido por um membro da tua equipa
que se chamava Maria Brandt."
"Nós não temos nenhuma Maria Brandt."
"De certeza que não têm. Mas o teu posto precisou de dez dias para decidir que não tinham.
Dez dias de reflexão frenética antes de lhe dizerem que não estavam interessados na oferta
dele."
"Se nós lhe dissemos que não estávamos interessados - coisa que eu obviamente nego - porque
é que estamos aqui sentados? Vocês sabem o nome dele. Sabem que anda a tentar vender
segredos. Sabem que é um Vollidiot. Só têm de arranjar um falso comprador e prendê-lo. Nessa
eventualidade hipotética, a minha embaixada agiu corretamente em todos os aspetos."
"Falso comprador, Reni?", exclamo eu, incrédulo. Estás a dizer-me que o Ed disse o preço?
Acho difícil acreditar nisso."
Outra vez o olhar fixo, mas mais suave, mais próximo.
"Ed?", repete ela. "É assim que lhe chamas? Ao teu hipotético traidor? Ed?"
"é o que outras pessoas lhe chamam."
"Mas tu também?"
"Fica no ouvido. Não significa nada", retruco eu, momentaneamente à defesa. "Acabaste de me
dizer que o Shannon andava a tentar vender os seus segredos."
Agora é ela que recua.
"Eu não disse isso. Estamos a discutir as tuas hipóteses absurdas. Os vendedores inteligentes
não dizem automaticamente qual é o seu preço. Primeiro demonstram os seus produtos para
conquistar a confiança do comprador. Só depois é que se discutem as condições. Como tu e eu
sabemos muito bem, não sabemos?"
Sabemos, de facto. Foi um vendedor inteligente de origem alemã, em Helsínquia, que nos
juntou. Bryn Jordan desconfiou de uma tramóia e deu-me instruções para cruzar informações
com os nossos amigos alemães. Eles deram-me Reni.
277
"Com que então, dez longos dias e noites até Berlim mandar recusar a oferta", resmoneio eu.
"Estás só a dizer disparates."
"Não, Reni. Estou a partilhar a tua dor. Dez dias e dez noites à espera de que Berlim pusesse o
ovo. Ali estás tu, chefe do vosso posto em Londres, com uma presa invejável ao alcance da
mão. O Shannon oferece-te informações em bruto que são o sonho de qualquer pessoa. Mas,
merda, o que acontece se ele é descoberto? Pensa nas consequências diplomáticas, na nossa
querida imprensa britânica: um escândalo de espionagem alemã de cinco estrelas em pleno
Brexit!"
Ela faz menção de protestar, mas eu não lhe dou espaço, porque não estou a dá-lo a mim
próprio.
"Dormiram? Não digo tu, pessoalmente. O teu posto dormiu? O teu embaixador? Berlim? Dez
dias e dez noites até vos informarem de que devem dizer ao Shannon que a oferta dele é
inaceitável. Se ele insistir, participem dele às autoridades britânicas competentes. E é isso que a
Maria lhe diz antes de ela própria desaparecer numa nuvem de fumo verde."
"Não há dez dias nenhuns", replica ela. "Estás a fantasiar, como de costume. Se tal oferta nos
foi feita, e não foi, foi imediata e irrevogavelmente rejeitada, e sem hesitação, pela minha
embaixada. Se o teu Serviço, ou antigo Serviço, pensa o contrário, está completamente
enganado. De repente eu sou uma mentirosa?"
"Não, Reni. Estás a fazer o teu papel."
Ela zanga-se. Comigo e consigo mesma.
"Estás outra vez a tentar submeter-me pela sedução?"
"Foi isso que fiz em Helsínquia?"
"Claro que foi. Seduzes toda a gente. És conhecido por isso. Foi para isso que te contrataram.
Como um Romeu. Pelo teu encanto homoerótico universal. Tu foste insistente, eu era jovem.
Voilà."
278

"Ambos éramos jovens. E ambos éramos insistentes, se bem te lembras."


"Não me lembro de nada disso. Temos recordações totalmente diferentes do mesmo
acontecimento infeliz. Vamos assentar nisso de uma vez por todas."
Ela é mulher. Eu estou a ser arrogante e a forçar-lhe o braço. Ela é uma profissional de
espionagem de alto nível. Está encostada à parede e não gosta. Eu sou um antigo amante e o
meu lugar é no chão da sala de montagem ao pé dos outros. Sou uma parte, pequena mas
preciosa, da vida dela. Nunca me abandonará.
"A única coisa que estou a tentar, Reni", insisto eu, sem me preocupar mais com a urgência que
tomou conta da minha voz, "é reconstituir tão objetivamente quanto possível o método seguido,
dentro e fora do teu Serviço, ao longo de um período de dez dias e noites, para lidar com a
oferta espontânea de material de espionagem de primeira qualidade sobre o alvo britânico que o
Edward Shannon vos fez. Quantas reuniões foram convocadas à pressa? Quantas pessoas
manusearam os papéis, telefonaram umas às outras, enviaram emails umas às outras, mandaram
sinais umas às outras, talvez nem sempre pelas linhas mais seguras? Quantas conversas
sussurradas em corredores entre políticos em pânico e funcionários públicos desesperados para
cobrir as respetivas retaguardas? Francamente, Reni. Um jovem que viveu e trabalhou entre vós
em Berlim, ama a vossa língua e o vosso povo e considera que tem coração alemão. Não um
qualquer mercenário sem categoria, mas um verdadeiro ser pensante, com uma missão louca de
salvar a Europa sozinho. Não sentiste isso quando fizeste o papel de Maria Brandt com ele?"
"Então agora eu fiz o papel de Maria Brandt? Onde é que foste buscar essa ideia tão estúpida?"
"Não me digas que o entregaste à tua número dois. Tu não farias isso, Reni. Um informador
espontâneo dos Serviços
279

Secretos Britânicos com uma lista de compras de segredos de primeira qualidade?"


Fico à espera de que ela volte a protestar, negue, negue, como ambos fomos ensinados a fazer.
Em vez disso, há uma espécie de amolecimento ou resignação que a domina, levando-a a virar-
me as costas e consultar o céu da manhã.
"Foi por isso que te despediram, Nat?", pergunta. "Por causa do rapaz?"
"Em parte."
"E agora vieste salvar-nos dele."
"Não do Ed. De vocês próprios. O que estou a tentar dizer-te é que algures no caminho entre
Londres, Berlim, Frankfurt e Munique, onde quer que os teus patrões conferenciem, a oferta do
Shannon não foi simplesmente recusada. Foi intercetada e aproveitada por uma firma rival."
Um bando de gaivotas pousou de repente aos nossos pés.
"Uma firma americana?"
"Russa", digo eu, e espero enquanto ela continua a observar as gaivotas com grande
concentração.
"Fazendo-se passar pelo nosso Serviço? Debaixo da nossa falsa bandeira? Moscovo recrutou o
Shannon?", pergunta ela para confirmação.
Só os seus pequenos punhos, fincados nos joelhos em atitude de combate, lhe denunciam a
raiva.
"Disseram-lhe que a recusa da Maria em aceitar a oferta dele era uma manobra dilatória
enquanto se entendiam todos."
"E ele acreditou nessa merda? Meu Deus do céu."
Voltamos a ficar sentados em silêncio. Mas a hostilidade que a protegia esvaiu-se. Tal como em
Helsínquia, estamos unidos pela mesma causa, mesmo que não o admitamos.
"O que é a Jericó?", pergunto eu. "O material codificado megassecreto que lhe deu a volta à
cabeça. O Shannon só leu uma
280

pequena parte, mas parece que foi o suficiente para vir a correr para ti."
Ela mantém os grandes olhos pregados em mim, como acontecia quando fazíamos amor. A voz
perdeu a dureza oficial.
"Não sabes o que é a. Jericó?"
"Não tenho autorização de acesso. Nunca tive e, pelo andar da carruagem, nunca terei."
Ela adormeceu. Está a meditar. Entrou em transe. Eu continuo aqui.
"Juras-me, Nat - como homem, como a pessoa que és - que estás a dizer-me a verdade? Toda a
verdade?"
"Se eu soubesse toda a verdade, contava-ta. Contei-te tudo o que sei."
"E os russos convenceram-no?"
"E convenceram o meu Serviço. Fizeram um belo trabalho. O que é a Jericó?", volto eu a
perguntar-lhe.
"Segundo o que o Shannon me contou? Queres que te conte os segredos sujos do teu próprio
país?"
"Se é isso que são. Eu ouvi falar em diálogo. Foi o mais perto que consegui chegar. Um diálogo
anglo-americano de alto nível, supersensível, conduzido através de canais de espionagem."
Ela respira fundo, volta a fechar os olhos, abre-os e fita-me.
"De acordo com o Shannon, aquilo que leu era prova clara de uma operação secreta anglo-
americana já em fase de planeamento com o duplo objetivo de enfraquecer as instituições
democráticas da União Europeia e desmantelar as nossas tarifas comerciais internacionais."
Volta a respirar fundo e continua. "Na era pós-Brexit, a Grã-Bretanha estará desesperada por
aumentar o comércio com a América. A América satisfará as necessidades da Grã-Bretanha,
mas impõe condições. Uma dessas condições será uma operação secreta conjunta para
conquistar pela persuasão - sem excluir o suborno nem a chantagem - altos funcionários,
281

parlamentares e formadores de opinião do establishment europeu. E também espalhar notícias


falsas em grande escala com vista a agravar os diferendos existentes entre estados-membros da
União."
"Estás, por acaso, a citar o Shannon?"
"Estou a citar de forma bastante aproximada aquilo que ele afirmava ser a introdução ao
documento Jericó. Garantia que tinha decorado trezentas palavras dessa introdução. Eu registei-
as. A princípio não acreditei nele."
"Agora acreditas?"
"Acredito, sim. E o meu Serviço também acreditou. E o meu governo. Parece que estamos de
posse de informação colateral que corrobora a história. Nem todos os americanos são
eurófobos. Nem todos os britânicos morrem de amores por uma aliança comercial com a
América de Trump a qualquer preço."
"Mas mesmo assim recusaram a oferta dele."
"O meu governo prefere acreditar que o Reino Unido retomará um dia o seu lugar na família
europeia, e por essa razão não quer envolver-se em atividades de espionagem contra uma nação
amiga. Agradecemos a oferta, Mr. Shannon, mas lamentamos dizer-lhe que, pelas razões
apontadas, ela é inaceitável."
"E foi isso que lhe disseste."
"Foi isso que me mandaram dizer-lhe, portanto foi isso que lhe disse."
"Em alemão?"
"De facto foi em inglês. O alemão dele não é tão bom como ele desejaria."
É por isso que Valentina falava inglês e não alemão com ele, reflito eu, resolvendo assim, sem
querer, um problema que me tinha apoquentado a noite inteira.
"Perguntaste-lhe quais eram as suas motivações?", quero eu saber.
282

"Claro que perguntei. Citou-me o Fausto de Goethe. No princípio era o ato. Perguntei-lhe se
tinha cúmplices, citou-me Rilke: Ich bin der Eine."
"Que quer isso dizer?"
"Que ele é o tal. Talvez o solitário. Ou o único. Talvez ambos. Pergunta ao Rilke. Eu fui à
procura da citação e não a encontrei."
"Isso foi no vosso primeiro encontro ou no segundo?"
"No nosso segundo encontro ele estava zangado comigo. Na nossa profissão não se chora, mas
eu estive tentada. Vocês vão prendê-lo?"
Vem-me à cabeça um aforismo de Bryn:
"Como se diz na gíria, é demasiado bom para o prendermos."
O olhar dela vira-se para a encosta ressequida.
"Obrigada por teres vindo salvar-nos, Nat", diz por fim, como se tivesse acordado para a minha
presença. "Lamento que não possamos retribuir o favor. Acho que agora devias voltar para a
companhia da Prue."
283

19
Só Deus sabe que tipo de reação eu esperava de Ed quando entrou calmamente no vestiário para
a nossa décima quinta sessão de badmínton no Athleticus, mas não era de certeza o sorriso
alegre e o "Olá, Nat, como foi o fim de semana?" que recebi. Diz-me a experiência que um
traidor que há horas atravessou o seu Rubicão pessoal e sabe que não há regresso possível não
irradia doce contentamento. O mais normal é que ao júbilo que advém de estar convencido de
que é o centro do mundo se siga um mergulho em sentimentos de medo, de autorrecriminação e
da mais profunda solidão: pois em quem mais pode confiar a partir de agora senão no inimigo?
E até Ed podia ter acordado entretanto para a constatação de que a perfeccionista Anette não era
necessariamente a mais fiável das amigas para todas as ocasiões, apesar de ter uma admiração
sem limites pela Jericó. Terá acordado para mais alguma coisa acerca dela, como por exemplo a
ocasional insegurança da sua pronúncia germano-inglesa quando involuntariamente escorregava
para o russo de sabor georgiano e apressadamente regressava a ela? Os seus modos
exageradamente alemães, um pouco estereotipados em demasia, demasiado de ontem?
Enquanto o observo a desembaraçar-se das roupas do dia, procuro em vão um
285

indício qualquer que possa desmentir a minha primeira impressão: nenhum esgar facial quando
pensa que eu não estou a olhar, nenhuma incerteza nos gestos nem na voz.
"O meu fim de semana foi muito bom, obrigado", digo-lhe eu. "E o seu?"
"ótimo, Nat, yeah, ótimo mesmo", assegura-me ele.
E como desde o primeiro dia, que eu soubesse, ele nunca dissimulou minimamente as suas
emoções, só posso supor que a euforia inicial da sua traição ainda não se dissipou - já que está
convencido de que está a promover a superior causa da Grã-Bretanha na Europa, e não a traí-la
-, que está tão satisfeito consigo mesmo quanto aparenta.
Avançamos para o campo número um. Ed vai à frente, balançando a raquete e rindo-se sozinho.
Atiramos um volante ao ar para ver quem serve. O volante aponta para o campo de Ed. Talvez
um dia o meu Criador me explique como foi possível que, desde aquela negra noite de segunda-
feira em que iniciou a sua série ininterrupta de vitórias, Ed ganhou sempre o maldito direito a
servir primeiro.
Mas não me deixo atemorizar. Posso não estar na melhor forma. Por motivos de force majeure,
não tenho feito as minhas corridas matinais nem ido ao ginásio. Mas hoje, por razões
demasiado complexas para destrinçar aqui, decidi que vou derrotá-lo, mesmo que isso me custe
a vida.
Chegamos ao fim dos dois primeiros jogos empatados. Ed dá todos os sinais de estar a entrar
numa das suas fases crepusculares em que durante duas ou três jogadas não lhe importa ganhar
ou perder. Se eu conseguir atirar-lhe constantemente lobs altos para a linha de fundo, vai
começar a responder indiscriminadamente com smashes. Mando-lhe um lobs alto. Mas em vez
de o esmagar contra a rede, como eu tinha todo o direito de esperar, ele atira a raquete ao ar,
apanha-a e anuncia com graciosa confiança:
286

"Chega, Nat, obrigado. Hoje somos os dois vencedores. E obrigado por outra coisa, já que
estamos nos agradecimentos."
Por outra coisa? Como, por exemplo, eu o expor acidentalmente como um maldito espião
russo? Passa por baixo da rede e dá-me uma palmada no ombro - uma estreia - e obriga-me a
atravessar o bar à sua frente até à Stammtisch, onde me manda sentar. Regressa com dois copos
grandes e gelados de Carlsberg lager, azeitonas, cajus e batatas fritas. Senta-se na minha frente,
passa-me o meu copo, levanta o seu e faz um discurso preparado, numa voz com laivos das suas
raízes nortenhas:
"Nat, tenho uma coisa para lhe dizer que é da maior importância para mim e espero que para si
também. Vou-me casar com uma mulher maravilhosa e se não fosse você nunca a teria
conhecido. Por isso lhe estou verdadeira e sinceramente grato, não só pelo badmínton divertido
dos últimos meses, mas por me ter apresentado à mulher dos meus sonhos. Portanto estou-lhe
muito muito grato. Yeah."
Muito antes do "yeah" já eu tinha percebido tudo. Só havia uma mulher maravilhosa a quem o
tinha apresentado, e de acordo com a atamancada história de fachada que Florence, na sua fúria,
havia resistido a adotar, tinha-a visto exatamente em duas ocasiões- a primeira quando entrei no
escritório do meu amigo inventado negociante de bens de grande consumo, e ela era a sua
secretária de alto nível, e a segunda quando me informou de que estava farta de mentiras. Entre
uma e outra, terá contado ao noivo que o seu estimado parceiro de badmínton é um veterano
espião profissional? Se a afabilidade pura do sorriso dele enquanto levantamos os copos e
brindamos é sinal de alguma coisa, não contou.
"é de facto uma notícia fantástica, Ed", protesto eu, "mas quem é essa mulher maravilhosa?"
Será que ele vai dizer-me que sou um mentiroso e uma fraude porque está farto de saber que
Florence e eu trabalhámos juntos
287

durante quase seis meses? Ou vai fazer o que faz agora, que é lançar-me um sorriso matreiro de
conspirador, tirar da cartola o nome dela e impressionar-me com ele?
"Lembra-se, por acaso, da Florence?"
Eu tento. Florence? Florence? Dê-me um momento. Deve ser da idade. Abano a cabeça.
Lamento, mas não me lembro.
"A rapariga com quem jogámos badmínton, francamente, Nat", explode ele. "Aqui mesmo, com
a Laura. Campo número três. Você lembra-se! Fazia trabalho temporário para o seu parceiro de
negócios e você trouxe-a para formarmos pares."
Deixa acordar a memória.
"É claro! Essa Florence. Uma rapariga fantástica. Os meus sinceros parabéns. Como é que eu
pude ser tão estúpido? Meu caro..."
Enquanto apertamos as mãos debato-me com dois pedaços de informação mais difíceis de
conciliar. Florence manteve-se fiel aos seus votos para com a Repartição, pelo menos no que
me diz respeito. E Ed, um comprovado espião russo, propõe casamento a uma recente
funcionária do meu Serviço, multiplicando assim até ao infinito a oportunidade de um
escândalo nacional. Mas são apenas pensamentos dispersos que me pairam na cabeça enquanto
ele expõe os seus planos de "uma coisa rápida no registo civil, nada de floreados".
"Telefonei à mamã, que ficou maravilhada", confidencia-me, inclinando-se sobre a sua cerveja
e agarrando-me o antebraço no seu entusiasmo. "É uma grande devota de Jesus, tal como a
Laura. Sempre foi. E eu pensei que ia dizer, sabe como é, se Jesus não vai estar no casamento é
um desastre."
Estou a ouvir Bryn Jordan: sentou-se numa igreja durante vinte minutos... pobre... sem pratas.
"O problema é que a minha mãe não pode viajar, pelo menos com facilidade." Ainda para mais
avisada com pouca antecedência. Com a perna dela e a Laura. Por isso disse: façam como vocês
os
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dois gostarem. Depois, quando estiverem preparados, e só nessa altura, fazemos as coisas como
deve ser na igreja e organizamos uma grande boda e toda a gente pode assistir. Acha a Florence
uma maravilha - quem não acha? - e a Laura também. Portanto estamos marcados para esta
sexta-feira, como é costume, ao meio-dia em ponto no registo civil de Holborn porque há fila,
em especial com o fim de semana à porta. Calculam quinze minutos, no máximo, para cada um,
depois entram os noivos seguintes e nós seguimos para o pub, se estiver bem para si e para a
Prue com esta antecedência, sendo ela uma advogada de sucesso e muito ocupada."
Eu tenho nos lábios o bondoso sorriso paternal que leva Steff aos arames. Não retirei o meu
antebraço de debaixo da mão dele. Dou-me tempo para me refazer da notícia retumbante.
"Então estão a convidar-nos, à Prue e a mim, para o vosso casamento, Ed", confirmo com a
devida solenidade. "Você e a Florence. Ficamos extremamente honrados, é tudo o que posso
dizer. Sei que a Prue vai sentir o mesmo. Ouviu falar muito de si."
Ainda estou a tentar digerir esta extraordinária notícia quando ele desfere o coup de grâce:
"Yeah, pois, eu pensei que, já que aceitam o convite, você também podia - bem, como hei de
dizer? - ser o meu padrinho. Se estiver de acordo", acrescenta, abrindo o seu enorme sorriso,
que, à semelhança da sua recém-descoberta necessidade de me agarrar sempre que pode, se
tornou uma espécie de constante durante esta conversa.
Desvia os olhos. Baixa os olhos. Desanuvia. Levanta a cabeça. Faz um sorriso de espontânea
incredulidade:
"é claro que estou mais que de acordo, Ed. Mas certamente tem alguém com uma idade mais
próxima da sua, não? Um antigo colega de escola? Alguém da sua universidade?"
Ele pensa nisto, encolhe os ombros, diz que não com a cabeça, sorri contristado. "A verdade é
que não tenho", diz, o que me
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deixa incapaz de distinguir entre o que penso e o que finjo que estou a pensar. Retiro o
antebraço e damos mais um viril aperto de mão, à inglesa.
"E se a Prue concordasse, pensámos que podia ser a testemunha, porque alguém tem de ser",
prossegue ele, implacável, como se o meu copo ainda não estivesse a transbordar. "No registo
civil podemos contratar uma testemunha, se tiver de ser, mas achámos que seria melhor a Prue.
Ainda por cima é advogada, não é? Assim fica tudo legal e em ordem."
"Claro que sim, Ed. Desde que consiga afastar-se do trabalho", acrescento eu à cautela.
"Além disso, se achar bem, tenho uma mesa marcada para nós os três no chinês, às oito e meia",
continua ele, quando eu pensava que já tinha ouvido tudo.
"De hoje?", pergunto eu.
"Se achar bem", diz ele, e fita com olhos míopes o relógio de parede do bar, que está adiantado
e diz que são oito e um quarto. "Só tenho pena de que a Prue não possa vir também", acrescenta
simpaticamente. "A Florence estava ansiosa por conhecê-la. Ainda está. Yeah."
Por acaso, uma vez sem exemplo, Prue cancelou as suas entrevistas com clientes pro bono e
está em casa, sentada à espera do resultado do encontro desta noite. Mas por enquanto eu
prefiro guardar esse conhecimento para mim, porque, entretanto, o Homem Operacional está a
retomar as rédeas dos acontecimentos.
"A Florence também está ansiosa por o conhecer a si, Nat", acrescenta, não vá eu ficar
ofendido. "Como deve ser. Sendo você o meu padrinho e tudo isso. Mais todas as partidas que
jogámos."
"E eu também estou ansioso por conhecê-la como deve ser", digo eu, e desculpo-me com uma
ida ao quarto de banho.
De caminho reparo numa mesa de duas mulheres e dois homens que conversam energicamente
quando eu passo. Se não
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me engano, a última vez que vi a mais alta das duas mulheres foi a empurrar um carrinho de
bebé na Área Beta. No meio de um alarido de vozes masculinas vindo da zona de chuveiros do
vestiário, transmito a boa notícia a Prue em tons devidamente amenizados e dou-lhe conta do
meu plano de ação imediata: levá-los lá a casa logo que terminarmos a nossa refeição chinesa.
A voz de Prue não se altera. Quer saber se há alguma coisa em especial que eu queira que faça.
Eu respondo que preciso de um quarto de hora no meu escritório para fazer o telefonema que
prometi a Steff. Ela diz sim, com certeza, querido, ela segura as pontas, e há mais alguma
coisa? Nada que me ocorra neste momento, digo eu. Acabo de dar o meu primeiro passo
irrevogável num plano que, se não estou enganado, teve a sua génese obscura naquilo a que
Bryn chamaria a minha outra cabeça no momento em que me sentei com ele, e provavelmente
antes; isto porque, segundo os nossos psicoterapeutas internos, as sementes de sedição são
semeadas muito antes do ato exterior que delas resulta.
Dito isto, na memória que guardo da curta conversa com Prue que acabei de descrever, eu sou a
personificação da objetividade. Na memória de Prue, estou prestes a perdê-la. O que não
oferece dúvida é que, logo que ouviu a minha voz, ela reconheceu que estávamos em modo
operacional e que, embora nunca me seja permitido dizê-lo, continua a ser uma grande perda
para a Repartição.

O Golden Moon tem muito gosto em receber-nos. O dono e gerente chinês é membro vitalício
do Athleticus. Fica impressionado ao saber que Ed é meu adversário habitual. Florence chega a
tempo num desalinho encantador e imediatamente faz sucesso junto dos empregados, que se
lembram dela da sua última visita.
291

Vem diretamente de lidar com construtores e tem as manchas de tinta nos jeans a prová-lo.
Por qualquer critério racional, eu devia agora estar com os nervos em franja, mas antes mesmo
de nos sentarmos apaziguam-se duas das minhas preocupações mais prementes. Florence
decidiu manter-se fiel à nossa inverosímil história de fachada: prova disso são os nossos olá
outra vez, cordiais, mas distantes. O meu convite para um café pós-prandial com Prue, em que
todo o meu plano assenta, é recebido com calorosas exclamações de concordância pelo casal de
noivos. Resta-me abrir uma garrafa de espumante em honra deles - o melhor que o restaurante
tem para oferecer em matéria de champanhe - e trocar piadas com eles até conseguir levá-los
até casa e esgueirar-me sozinho para o meu escritório.
Pergunto-lhes, como seria natural, atendendo a que parece que ainda foi ontem que apresentei
os pombinhos um ao outro, se tinha sido amor à primeira vista. Ambos ficaram perplexos com a
minha pergunta, não porque não soubessem a resposta, mas porque a acharam descabida. Bem,
tinha havido o jogo de pares de badmínton, não tinha? - como se isso bastasse para explicar
tudo, o que não era bem o caso, porque a única recordação persistente que eu guardava desse
acontecimento era a de Florence com um ataque de fúria contra mim depois de se ter demitido
da Repartição. Houve depois o jantar no chinês a que eu faltei - "nesta mesma mesa a que agora
estamos sentados, não foi, Flo?", diz Ed com orgulho - e de facto assim é, pauzinhos numa das
mãos e carícias com a outra. "E a partir daí, bem, tudo aconteceu naturalmente, não é verdade,
Flo?"
é mesmo Flo que eu estou a ouvir? Nunca lhe chames Flo - a não ser que sejas o homem da
vida dela? A tagarelice dos dois sobre o casamento, e a incapacidade de se largarem, despertam
ecos de Steff e Juno ao almoço de domingo. Digo-lhes que Steff está noiva e eles derretem-se
em simbiótica hilaridade. Tenho com
292

eles aquela que é atualmente a minha conversa de salão preferida, sobre os morcegos gigantes
de Barro Colorado. O meu único problema é que sempre que Ed entra na conversa dou comigo
a comparar a voz alegre e apaixonada que estou a ouvir com a sua versão relutante que
Valentina, aliás Anette, aliás Gama teve de suportar três noites antes.
Fingindo estar com falta de rede no telemóvel, saio para a rua e faço uma chamada para Prue,
adotando o mesmo tom suavizado. Está uma carrinha branca estacionada do outro lado da rua.
"Qual é o problema desta vez?", pergunta ela.
"Nenhum. é só para saber se está tudo bem", respondo eu, e sinto-me estúpido.
Regresso à nossa mesa e confirmo que Prue já voltou do escritório e está ansiosa pela nossa
chegada. O meu anúncio é ouvido por um casal masculino que está na mesa ao lado, ambos
comendo lentamente. Compenetrados do seu papel, continuam a mastigar enquanto nós saímos.
Está escrito sem rodeios na minha ficha pessoal na Sede que, embora tenha uma excelente
capacidade e rapidez de raciocínio operacional, o mesmo não se pode dizer sempre do meu
trabalho burocrático. Enquanto percorremos os três de braço dado as poucas centenas de metros
até minha casa - com Ed, animado por meia garrafa de espumante, a fazer questão de que eu,
como seu padrinho, sofra o aperto da sua ossuda mão esquerda - apercebo-me de que, por muito
bom que seja o meu raciocínio operacional, tudo dependerá agora da qualidade do meu trabalho
burocrático.

Até aqui tenho sido comedido no retrato que faço de Prue, mas só porque estava à espera de que
as nuvens do nosso afastamento forçado se dissipassem e o nosso respeito mútuo emergisse nas
293

suas verdadeiras cores, o que, graças à declaração política salvadora feita por Prue na manhã
seguinte ao interrogatório a que os meus chers collègues me submeteram, aconteceu agora.
Se o nosso casamento não é compreendido por toda a gente, Prue também não é.
Desassombrada, advogada de esquerda defensora dos pobres e oprimidos, promotora intrépida
de ações populares; bolchevique de Battersea; nenhum dos epítetos fáceis que a seguem para
onde quer que vá faz justiça à Prue que eu conheço. Apesar dos seus excelentes antecedentes
familiares, fez-se sozinha. O seu pai, juiz, era um sacana que odiava que os filhos fossem
competitivos, fazia-lhes a vida negra e recusou-se a ajudar Prue nos preparatórios ou na
faculdade de direito. A mãe morreu vítima do álcool. O irmão transviou-se. Para mim, a sua
humanidade e bom senso não carecem de sublinhado, mas para outros, em particular para os
meus chers collègues, às vezes carecem.

Acabaram os cumprimentos efusivos. Estamos os quatro instalados no alpendre envidraçado da


nossa casa de Battersea, conversando sobre banalidades felizes. Prue e Ed ocupam o sofá. Prue
abriu as portas que dão para o jardim para deixar entrar alguma brisa que possa correr. Espalhou
velas e desenterrou da sua gaveta dos presentes uma caixa de chocolates finos para os noivos.
Desencantou uma garrafa de Armagnac velho que eu não sabia que tínhamos, e fez café no
Thermos grande dos piqueniques. Mas há uma coisa que, no meio de toda a animação, precisa
de varrer da cabeça:
"Nat, querido, desculpa, mas por favor não te esqueças daquele assunto urgente que tens de
tratar com a Steff. Acho que disseste nove horas" - o que é a minha deixa para consultar o
relógio, levantar-me de um salto e, com um apressado "ainda bem que
294

me lembraste, volto num instante", correr pelas escadas acima e enfiar-me no escritório.
Retirando da parede uma fotografia emoldurada do meu falecido pai em uniforme de gala,
pouso-a em cima da secretária com o vidro virado para cima, tiro de uma gaveta um maço de
folhas de papel e coloco-as, uma a uma, sobre o vidro para não deixar marcas. Só mais tarde
reparo que estou a seguir práticas antigas da Repartição, ao mesmo tempo que infrinjo todas as
regras do livro da mesma Repartição.
Começo por escrever um resumo das informações disponíveis até ao momento sobre Ed.
Enuncio em seguida dez instruções práticas, um parágrafo claro de cada vez, nada de malditos
advérbios, como diria Florence. Encabeço o documento com o símbolo que Florence tinha na
Repartição e encerro-o com o meu. Releio o que escrevi, não encontro erros, dobro as páginas
duas vezes, introduzo-as num envelope castanho liso e escrevo por fora Fatura para Mrs.
Florence Shannon numa caligrafia tosca.
Regresso ao alpendre e descubro que estou a mais. Prue já identificou Florence como alguém
que, tal como ela, é uma fugitiva das garras da Repartição, ainda que informal, e como tal uma
mulher com a qual tem uma relação imediata, ainda que não especificada. O assunto do
momento é construtores. Florence, embalando na mão um copo de forte Armagnac velho,
apesar da sua confessada fidelidade ao borgonha tinto, faz as despesas da conversa enquanto Ed
dormita ao seu lado no sofá e de vez em quando abre os olhos em adoração.
"Digo com franqueza, Prue, lidar com pedreiros polacos, carpinteiros búlgaros e um
encarregado escocês, acho que só lá vou com legendas]", declara Florence entre gritos de riso.
Precisa de fazer chichi. Prue vai indicar-lhe o caminho. Ed vê-as sair da sala, deixa cair a
cabeça para os joelhos, põe as mãos entre eles e mergulha num dos seus devaneios. O casaco de
cabedal
295

de Florence está pendurado nas costas de uma cadeira. Sem que Ed veja eu pego nele, levo-o
para o corredor, enfio o meu envelope no bolso da direita e penduro-o ao lado da porta da rua.
Florence e Prue regressam. Florence dá por falta do casaco e lança-me um breve olhar
interrogativo. Ed continua com a cabeça pendente.
"Ah, o seu casaco", disse eu. "De repente tive receio de que pudesse esquecer-se dele. Tinha
qualquer coisa a espreitar de um bolso. Parecia-se horrivelmente com uma fatura."
"Merda", responde ela quase sem pestanejar. "Deve ser do eletricista polaco."
Mensagem recebida.
Prue faz um pequeno resumo da batalha que trava atualmente com os barões das Grandes
Farmacêuticas. Florence reage com um vigoroso "São os piores de todos. Que se fodam". Ed
está meio a dormir. Eu sugiro que está na hora de todos os meninos irem para a cama. Florence
concorda. Vivem do outro lado de Londres, diz-nos, como se eu não soubesse: a uma milha de
bicicleta da Área Beta, para ser exato, mas Florence não diz essa parte. Talvez não saiba. Pelo
meu telemóvel particular, chamo um Uber, que chega com uma rapidez preocupante. Ajudo
Florence a vestir o casaco de cabedal. A partida deles, depois dos muitos agradecimentos, é
misericordiosamente rápida.
"Foi mesmo, mesmo bom, Prue", diz Florence.
"Ótimo", concorda Ed por entre uma bruma de sono, espumante e Armagnac velho.
Ficamos na soleira da porta a acenar ao carro deles que parte. Continuamos a acenar até ele
desaparecer da nossa vista. Prue pega-me pelo braço. Que tal um passeio pelo parque nesta
perfeita noite de verão?
296

Há um banco no extremo norte do parque que fica recuado em relação ao caminho, num
pequeno espaço isolado entre o rio e um aglomerado de salgueiros. Prue e eu chamamos-lhe o
nosso banco e é onde gostamos de nos sentar e descansar depois de um jantar em nossa casa, se
o tempo estiver bom e nos tivermos visto livres dos convidados a uma hora razoável. Diz-me a
memória que, por algum instinto que nos ficara dos tempos de Moscovo, não trocávamos uma
única palavra comprometedora enquanto não estávamos sentados nele, com as nossas vozes
abafadas pelo marulhar do rio e o rumor da noite na cidade.
"Achas que é a sério?", pergunto-lhe eu, depois de um prolongado silêncio entre nós que sou o
primeiro a romper.
"Referes-te a estes dois juntos?"
Prue, por norma tão cautelosa nas suas opiniões, não tem nenhuma dúvida sobre isso.
"Eram duas rolhas à deriva e agora encontraram-se um ao outro", declara ela no seu estilo
direto. "É o que a Florence pensa e eu não tenho dúvida em concordar. Foram talhados da
mesma cortiça à nascença e assim continuarão enquanto ela acreditar que estão bem assim,
porque ele acreditará em tudo o que ela acreditar. Ela tem esperança de estar grávida, mas não
tem a certeza. Portanto, tudo o que tens andado a cozinhar para o Ed, não te esqueças de que vai
afetar os três." Prue e eu podemos divergir quanto a qual de nós pensou o quê ou disse o quê na
conversa murmurada que se seguiu, mas eu lembro-me muito nitidamente de como as nossas
duas vozes desceram para o nível de Moscovo como se estivéssemos sentados num banco no
Parque Central Gorky de Cultura e Recreio e não em Battersea. Eu contei-lhe tudo o que Bryn
me havia contado, tudo o que Reni me havia contado, e ela ouviu sem comentários. Passei
praticamente por cima de Valentina e da saga do desmascaramento de Ed, porque isso já
pertencia ao passado longínquo. A questão,
297

como tantas vezes acontece com o planeamento operacional, está em saber usar os recursos do
inimigo contra ele, se bem que eu não fosse tão taxativo como Prue quanto a definir a
Repartição como inimigo.
E lembro-me de que me senti invadido por uma gratidão simples quando começámos a afinar
aquilo que gradualmente se tornou o nosso plano-mestre, pela forma como os nossos
pensamentos e palavras se fundiam numa só corrente em que se tornava irrelevante saber o que
era de quem. Mas Prue, por todas as boas razões, não quer ouvir isso. Chama a atenção para os
passos preparatórios que eu já tinha dado, citando a minha determinante carta manuscrita de
instruções para Florence. Na opinião de Prue, eu sou a força propulsora e ela segue na minha
esteira: tudo, no que lhe diz respeito, menos reconhecer que a consorte de trabalho que foi na
juventude e a advogada que é na maturidade estão relacionadas, ainda que remotamente.
O que é certo é que, quando me levantei do nosso banco, caminhei uns metros ao longo do rio
tendo o cuidado de não me afastar do alcance do ouvido de Prue e premi a tecla de chamada
abreviada de Bryn no telemóvel modificado que ele me tinha dado, Prue e eu estávamos, como
ela gostava, de total e franco acordo sobre tudo quanto era importante.

Bryn tinha-me avisado de que podia estar em viagem entre Londres e Washington, mas o rumor
de fundo que estou a ouvir no auricular diz-me que está em terra firme, tem gente à volta,
principalmente homens, e são americanos. Por isso presumo que esteja em Washington DC e eu
esteja a interromper uma reunião, o que significa que, com sorte, talvez não tenha a sua plena
atenção.
298

"Olá, Nat, como estamos?" - o habitual tom amável, matizado de impaciência.


"O Ed vai casar-se, Bryn", informo-o em tom neutro. "Na sexta-feira. Com a minha antiga
número dois no Porto de Abrigo. A mulher de quem falámos. Florence. Numa conservatória do
registo civil em Holborn. Saíram aqui de casa há momentos."
Ele não mostra qualquer surpresa. Já sabe. Sabe mais do que eu. Sempre assim foi. Mas já não
estou sob as ordens dele. Agora sou senhor do meu nariz. Ele precisa de mim, mais do que eu
preciso dele. Portanto, é melhor que se lembre disso.
"Quer que eu seja o padrinho, imagine", acrescento eu.
"E você aceitou."
"Que quer que eu faça?"
Murmúrios de bastidores enquanto Bryn despacha algum assunto urgente. "Teve uma hora
inteira a sós com ele no clube", recorda-me Bryn com impaciência. "Por que raio é que não o
abordou?"
"Como é que eu ia fazer isso?"
"Diga-lhe que, antes de aceitar o papel de padrinho, há duas ou três coisas que ele precisa de
saber sobre si próprio, e pegue no assunto por aí. Estou muito tentado a encarregar o Guy de
tratar desse assunto. Ele não vai engonhar."
"Quer fazer o favor de me ouvir, Bryn? O casamento é daqui a quatro dias. O Shannon está
noutro planeta. A questão não é saber quem o aborda. A questão é saber se o abordamos agora
ou esperamos que ele se case primeiro."
Estou a ser demasiado impaciente. Sou um homem livre. Do nosso banco, a cinco metros de
distância, Prue faz-me um aceno silencioso de concordância.
"O Shannon está com a cabeça nas nuvens. Se o aperto agora, manda-me passear e que se lixem
as consequências. Bryn?"
"Espere."
Sim, Bryn.
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"Não autorizo que o Shannon tenha mais nenhum treff com a Gama ou com qualquer outra
pessoa enquanto não for nosso. Entendido?"
Treffé um encontro clandestino. Jargão da espionagem alemã. E de Bryn.
"E tem a certeza de que quer que eu lhe diga isso?", reajo eu com indignação.
"O que eu quero é que avance com a merda da missão que lhe deram e não perca mais tempo,
porra", responde ele, enquanto sobe a temperatura entre nós.
"Ouça o que lhe digo, Bryn. No estado de espírito em que se encontra, ele é totalmente
incontrolável. Não vou falar com ele enquanto não regressar à Terra."
"Então que diabo é que vai fazer?"
"Deixe-me falar com a noiva, a Florence. É o único caminho viável para chegar a ele."
"E ela avisa-o."
"Foi formada na Repartição e trabalhou comigo. É inteligente e sabe o que está em jogo. Se eu
lhe explicar a situação, ela explica-a ao Shannon."
Rumores de fundo antes de ele voltar em força.
"Ela está consciente? A rapariga. Daquilo que o noivo se prepara para fazer."
"Não me parece que seja importante saber se está ou não, Bryn. Eu nunca lhe expliquei a
situação. Se é cúmplice, ficará a saber que também há consequências para ela."
A voz dele acalma-se ligeiramente.
"Como é que se propõe abordá-la?"
"Convido-a para almoçar."
Novos murmúrios de bastidores, seguido de uma reação veemente:
"Você o quê?"
300

"É uma pessoa adulta, Bryn. Não faz cenas histéricas e gosta de peixe."
Vozes em fundo, mas nenhuma delas a de Bryn.
Por fim:
"Já agora, onde é que estava a pensar levá-la, posso saber?"
"A um sítio aonde já fui com ela." É altura de forçar um pouco a nota. "Ouça, Bryn, se não
gosta do que eu estou a sugerir, não há problema. Dê a porcaria da missão ao Guy. Ou então
venha e trate do assunto pessoalmente."
Do nosso banco, Prue está a passar um dedo pela garganta como sugestão de desligar o
telefone, mas Bryn, com um seco "Dê-me conhecimento logo que tenha falado com ela",
antecipou-se.
Cabeça baixa, de braço dado, fazemos o percurso de regresso a casa.
"Apesar de tudo, acho que ela tem uma ideia", reflete Prue. "Pode não saber muito, mas sabe o
suficiente para a deixar preocupada."
"Bem, agora vai ficar com mais do que uma ideia", respondo eu brutalmente, imaginando
Florence acocorada sozinha no meio do entulho deixado pelos operários no andar do casal em
Hoxton, lendo a minha carta em dez pontos enquanto Ed dorme o sono dos justos.
301

20

Não me surpreendeu - teria ficado muito mais surpreendido se não tivesse sido esse o caso - que
nunca antes tivesse visto a cara de Florence tão tensa ou tão vazia de expressão: nem mesmo
quando estava sentada à mesa de frente para mim neste mesmo restaurante, recitando a lista de
acusações contra Dom Trench e sua caridosa baronesa.
Quanto à minha cara, refletida nos muitos espelhos, bem: inexpressividade operacional é o que
melhor a descreve.
O restaurante tem a forma de um L. Na parte mais estreita tem um bar com bancos almofadados
para os clientes a quem foi dito que as suas mesas ainda não estão completamente postas,
portanto porque não se sentam a beber champanhe a doze libras a flute. E é isso que estou a
fazer agora, enquanto espero que Florence chegue. Mas não sou o único que está à espera dela.
Desapareceram os empregados que são vespas sonolentas. O pessoal de hoje é servil até mais
não, a começar pelo chefe de mesa que se apressa a indicar-me a mesa que reservei, ou a
perguntar-me se eu ou Madame vamos ter algumas restrições alimentares ou necessidades
especiais. A nossa mesa não é à janela como eu tinha pedido - infelizmente as nossas mesas à
janela estavam reservadas há muito tempo, senhor - mas permite-se esperar que este canto
303

sossegado me seja aceitável. Podia ter acrescentado "é aceitável para os microfones de Percy
Price" porque, segundo Price, as janelas, quando há muito ruído de fundo na sala, podem ser
um inferno para a captação do som.
Mas nem mesmo os magos de Percy conseguem cobrir todos os cantos e recantos de um bar
cheio de gente, daí a próxima pergunta que o chefe me faz, formulada no tempo verbal
profético que faz os encantos da sua profissão:
"E estaremos a pensar vir diretamente para a nossa mesa e saborear o nosso aperitivo em paz e
sossego, ou arriscaremos o bar, que pode tornar-se um pouco animado em demasia para
algumas pessoas?"
Sendo exatamente de animação que eu preciso e os microfones de Percy não, opto por arriscar o
bar. Escolho um sofá de peluche para dois e mando vir um grande copo de borgonha tinto, além
da flute de champanhe de doze libras. Entra um grupo de clientes, provavelmente fornecidos
por Percy. Florence deve ter entrado atrás deles, porque quando dou por mim vejo-a sentada ao
meu lado quase sem um cumprimento. Aponto-lhe o seu copo de borgonha tinto. Ela diz que
não com a cabeça. Eu peço água com gelo e limão. Em vez do uniforme da Repartição, ela
veste o seu elegante fato de calça e casaco. No lugar do reles anel de prata no dedo anelar nada.
Eu, pelo meu lado, visto um blazer azul-marinho e calças de flanela cinzenta. No bolso direito
do blazer trago um batom num invólucro cilíndrico de latão. É de fabrico japonês e a única
extravagância de Prue. Cortando a metade inferior do batom tem-se uma cavidade com fundura
e largura suficientes para alojar uma generosa fita de microfilme ou, no meu caso, uma
mensagem manuscrita em papel de máquina aparado.
O comportamento de Florence é falsamente descontraído, exatamente como seria de esperar
que fosse. Eu convidei-a para
304

almoçar, mas o meu tom foi críptico e ela ainda tem de tentar perceber nas entrelinhas o porquê:
estou a convidá-la na minha qualidade de padrinho do seu futuro marido, ou na minha
qualidade de seu antigo superior hierárquico? Trocamos banalidades. Ela é delicada, mas
defensiva. Mantendo a voz abaixo do ruído ambiente da sala, eu avanço para o assunto:
"Primeira pergunta", digo eu.
Ela respira fundo e deixa cair tanto a cabeça para o meu lado que eu lhe sinto o roçagar do
cabelo.
"Sim, ainda quero casar-me com ele."
Próxima pergunta?
"Sim fui eu que lhe disse que fosse em frente, mas não sabia de que se tratava."
"Mas encorajou-o", sugiro eu.
"Ele disse-me que havia uma coisa que tinha de fazer para travar uma conspiração antieuropeia,
mas que era contra os regulamentos."
"E você?"
"Se era isso que achava, que a fizesse e mandasse foder os regulamentos."
Ignorando as minhas perguntas, ela vai por aí fora.
"Depois de o ter feito - foi na sexta-feira - chegou a casa e chorou e não quis dizer porquê. Eu
disse-lhe que o que quer que ele tivesse feito estava bem se acreditava que estava. Ele disse que
acreditava que estava. Eu disse, então tu também estás bem, não estás?"
Esquecendo a sua determinação anterior, bebe uma golada do seu borgonha.
"E se ele descobrisse com quem está a lidar?", instigo-a eu.
"Entregava-se ou matava-se. é isso que quer ouvir?"
"E informação."
O seu tom de voz começa a subir. Ela modera-o.
305

"Ele não sabe mentir, Nat. Só conhece a verdade. Seria inútil como agente duplo, mesmo que
aceitasse sê-lo, coisa que nunca faria."
"E os vossos planos de casamento", volto eu a instigá-la.
"Convidei este mundo e o outro para se juntar a nós no pub depois, seguindo as suas instruções.
O Ed acha que eu estou doida."
"Onde vão passar a lua de mel?"
"Não vamos."
"Logo que chegue a casa reserve um hotel em Torquay. O Imperial ou equivalente. A suite
nupcial. Duas noites. Se eles exigirem um depósito, pague. Agora arranje maneira de abrir a sua
carteira e pouse-a entre nós."
Ela abre a carteira, tira um lenço de papel, limpa um olho, despreocupadamente pousa a carteira
aberta entre nós. Eu bebo um gole de champanhe e, com o braço esquerdo pela frente do corpo,
deixo cair o batom de Prue para dentro da carteira.
"No momento em que nos sentarmos na sala de jantar entramos no ar", digo-lhe eu. "A mesa
tem microfones e o restaurante está apinhado de gente do Percy. Seja estuporadamente difícil
como sempre foi, ou mais ainda, entendido?"
Assentimento distante.
"Diga."
"Entendido, porra", sussurra-me ela de volta.
O chefe de mesa está à nossa espera. Instalamo-nos no nosso simpático canto, de frente um para
o outro. O chefe de mesa garante-me que tenho a melhor vista da sala. Percy deve tê-lo
mandado frequentar a escola de charme. As mesmas ementas enormes. Eu insisto em que
comamos acepipes. Florence opõe-se. Sugiro-lhe salmão fumado e ela aceita. Escolhemos
rodovalho como prato principal.
"Então hoje vamos ambos comer a mesma coisa, senhor", exclama o chefe de mesa, como se
isso diferisse de todos os outros dias.
306

Até agora, ela conseguiu não olhar para mim. Agora olha.
"Importa-se de me dizer por que raio me arrastou para aqui?", questiona-me.
"Com todo o gosto", respondo eu em tom igualmente tenso. "O homem com quem você vive e
com quem aparentemente quer casar foi identificado pelo Serviço a que você pertenceu como
um ativo voluntário da espionagem russa. Mas talvez não seja novidade para si. Ou é?"
Sobe o pano. Estamos no ar. Reminiscências de Prue e eu a representar para os microfones em
Moscovo.

Haviam-me dito no Porto de Abrigo que Florence tinha um feitio especial, mas até agora só o
vira em ação no campo de badmínton. Se me perguntarem se era real ou simulado, só posso
responder que lhe era inato. Era improviso em grande escala: a naturalidade como arte,
inspirada, espontânea, impiedosa.
Começa por me ouvir até ao fim num silêncio sepulcral, impassível. Eu digo-lhe que temos
provas irrefutáveis, visuais e auditivas, da traição de Ed. Digo que posso proporcionar-lhe um
visionamento em privado das gravações, uma perfeita mentira. Digo que temos todas as razões
para acreditar que ela, quando abandonou a Repartição de rompante, estava consumida pelo
ódio à elite política britânica e por isso não me surpreende minimamente saber que se associou
a um solitário amargo com sede de vingança que oferece os nossos segredos mais escaldantes
aos russos. Digo-lhe que apesar deste ato de suprema loucura, ou pior, estou autorizado a
oferecer-lhe uma corda de salvação:
"Primeiro, tem de explicar ao Ed em inglês simples que fez merda da grossa. Diz-lhe que temos
provas irrefutáveis, de todos os tipos. Informa-o de que o Serviço a que pertence está sedento
307

do sangue dele, mas que tem um caminho aberto para a salvação se aceitar colaborar sem
reservas. E, se ele duvidar, a alternativa à colaboração é a prisão por um período muito longo."
Tudo isto em voz baixa, como se compreende, sem dramatismos, interrompido apenas uma vez
pela chegada do salmão fumado. Percebo pelo seu silêncio persistente que ela própria está a
fervilhar de raiva justiceira, mas nada do que vi ou ouvi até agora me prepara para a dimensão
da explosão. Ignorando por completo a mensagem inequívoca que acabei de lhe transmitir,
lança um ataque frontal contra o mensageiro: eu.
Penso que lá por ser espião sou um dos ungidos por Deus, o umbigo do cabrão do universo,
quando não passo de um super-controlado punheteiro de colégio interno. Sou um conquistador
do badminton. É no badmínton que engato rapazes bonitos. Tenho uma paixão pelo Ed e agora
acuso-o de ser espião russo porque ele rechaçou as minhas investidas.
Atacando-me cegamente desta maneira, é um animal ferido, a protetora feroz do seu homem e
do seu filho por nascer. Se tivesse passado a noite a desenterrar todos os pensamentos sinistros
que alguma vez teve a meu respeito, não podia ter feito um trabalho melhor.
Depois de uma intervenção desnecessária do chefe de mesa, que insiste em perguntar se está
tudo a nosso contento, volta à carga. Indo buscar uma pista diretamente ao manual do instrutor,
dá-me o seu primeiro recuo tático:
Muito bem, vamos só supor- como mera hipótese - que o Ed está confuso quanto às suas
lealdades. Vamos supor que teve uma noite de bebedeira e os russos fizeram um trabalho de
kompromat sobre ele. E que o Ed alinhou nisso, coisa que nunca na vida aconteceria, mas ainda
assim vamos supor. E você imagina realmente que, a troco de nada, ele vai aceitar ser um
cabrão de um agente duplo sabendo perfeitamente que nós o atiramos aos bichos quando nos
apetecer?
308

Portanto, e em resumo, quero eu ter a bondade de lhe dizer, se souber, que tipo de garantias está
a minha Repartição disposta a oferecer a um agente duplo sem a mínima hipótese de sucesso
que está prestes a enfiar a cabeça na boca do filho da puta do leão?
E quando eu respondo que Ed não está em posição de discutir e tem de confiar em nós ou
aceitar as consequências, só a chegada do rodovalho, que ela ataca com facadas curtas e
indignadas enquanto calcula o seu segundo recuo tático, me livra de mais um massacre:
"Vamos supor que ele trabalha de facto para vocês", concede num tom só ligeiramente mais
macio. "Vamos só supor. Digamos que eu falo com ele e convenço-o, coisa que teria de fazer. E
que ele faz merda, ou os russos descobrem, aquilo que acontecer primeiro. Então o quê? é
denunciado, fica queimado, está fodido, vai para o lixo. Para que é que havia de se sujeitar a
essa merda toda? Para quê chatear-se? Porque não mandar-vos a todos dar uma curva e ir
simplesmente para a cadeia? O que é pior, afinal? Ser manipulado por ambas as partes como a
porra de uma marioneta e acabar morto numa viela, ou pagar a sua dívida para com a sociedade
e sair de lá intacto?"
O que eu interpreto como a minha deixa para avançar.
"Está a ignorar deliberadamente a gravidade do crime que ele cometeu e a montanha de provas
irrefutáveis que se acumulam contra ele", digo eu no meu tom mais persuasivo e contido. "O
resto é pura especulação. O seu futuro marido está enterrado em problemas até ao pescoço, e
nós estamos a oferecer-lhe a si uma possibilidade de o desenterrar. Lamento, mas é pegar ou
largar."
Mas com isto só consigo provocar mais uma reação violenta.
"Quer dizer que agora é juiz e júri, não? Que se fodam os tribunais! Que se fodam os
julgamentos imparciais! Que se fodam os direitos humanos e tudo aquilo que a sua mulher da
sociedade civil pensa que representa!"
309

Só ao cabo de uma longa reflexão da parte dela conquisto a vantagem relutante pela qual me
obrigou a lutar muito. Mas mesmo então consegue manter uma aparência de dignidade:
"Não estou a concordar com nada, ouviu? Absolutamente nada."
Continue.
"Se, e apenas se, o Ed disser: está bem, eu errei, amo o meu país, vou colaborar, serei agente
duplo, correrei o risco. Eu disse se. Dão-lhe a amnistia ou não dão?"
"Se a merecer, e se nós decidirmos que ele a merece, e se o ministro do Interior aprovar: sim,
com toda a probabilidade ele recebe a amnistia."
"E depois? Arrisca a vida de borla? E eu também? E que tal um subsídio de risco?"
Fizemos o que podíamos. Ela está exausta, eu estou exausto. Está na hora de mandar baixar a
cortina.
"Florence, fizemos um grande esforço para chegar a acordo convosco. Queremos concordância
incondicional. Sua e do Ed. Em troca oferecemos controlo especializado e apoio total. O Bryn
precisa de uma resposta clara. Já. Não amanhã. É um sim, Bryn, eu faço isso. Ou é um não,
Bryn, e sujeita-se às consequências. Qual vai ser?"
"Primeiro preciso de me casar com o Ed", diz ela, sem levantar a cabeça. "Antes disso, nada."
"Antes de lhe dizer o que acabámos de acordar?"
"Sim."
"Quando é que lhe vai dizer?"
"Depois de Torquay."
"Torquay?"
"Onde vamos passar a porra da lua de mel de quarenta e oito horas", dispara ela num inspirado
retorno da fúria.
Um silêncio partilhado, mutuamente orquestrado.
310

"Somos amigos, Florence?", pergunto eu. "Penso que somos." Estendo-lhe a mão. Sempre sem
levantar a cabeça ela segura-a, a princípio hesitante, e depois aperta-a convictamente enquanto
eu a felicito secretamente pela representação de uma vida.
311

21

Os dois dias e meio de espera até podiam ter sido cem e eu lembro-me de cada uma das suas
horas. As provocações de Florence, embora pouco certeiras, tinham bases reais e, nas raras
ocasiões em que não pensava nas contingências operacionais que tínhamos pela frente, a sua
atuação demolidora voltava para me acusar de pecados que eu não tinha cometido e de outros
que tinha cometido.
Nem uma só vez, desde a sua declaração de solidariedade, Prue tinha dado o mais pequeno sinal
de afrouxamento do seu compromisso. Não mostrou nenhum desconforto pelo meu encontro
com Reni. Há muito tinha relegado esses assuntos para o passado irrecuperável. Quando eu
ousei lembrar-lhe os perigos da sua carreira de advogada, respondeu-me, com um ligeiro
sarcasmo, que estava plenamente consciente deles, obrigada. Quando lhe perguntei se um juiz
britânico faria alguma distinção entre passar segredos aos alemães e passá-los aos russos,
respondeu com uma gargalhada lúgubre que aos olhos de muitos dos nossos queridos juízes os
alemães eram piores. Entretanto, a treinada consorte de trabalho que havia nela e ela continuava
a negar exercia os seus deveres de fachada com uma eficiência que eu, taticamente, tinha como
certa.
313

Para a sua vida profissional havia mantido o apelido de solteira, Stoneway, e foi neste nome que
pediu à secretária que lhe alugasse um carro. Se a empresa precisasse dos dados da carta de
condução, fornecê-los-ia quando fosse levantar o carro.
A meu pedido telefonou duas vezes a Florence, a primeira para lhe perguntar em confidência
feminina em que hotel o casal em lua de mel ia ficar em Torquay, porque fazia questão de
mandar flores e Nat estava igualmente determinado a mandar uma garrafa de champanhe a Ed.
Florence disse o Imperial, como Mr. e Mrs. Shannon, e Prue reportou que ela lhe tinha parecido
concentrada, e que estava a desempenhar bem o papel de noiva nervosa para os ouvidos dos
homens de Percy. Prue mandou as suas flores, eu mandei a minha garrafa, cada um de nós
fazendo a encomenda online, a contar com a vigilância da equipa de Percy.
A segunda vez que Prue telefonou a Florence foi para lhe perguntar se precisava de ajuda na
organização da festa no pub depois da cerimónia, porque o seu escritório era ali a dois passos.
Florence disse que tinha reservado uma grande sala privativa, era boa, mas cheirava a urina.
Prue prometeu ir lá ver, embora as duas concordassem que era tarde para mudar. Percy, estás a
ouvir aí em baixo?
Usando o portátil e o cartão de crédito de Prue de preferência ao meu, estudámos voos para
vários destinos europeus e reparámos que em plena época alta de férias ainda havia muitos
lugares em classe executiva nas companhias regulares. à sombra da macieira, passámos mais
uma vez em revista todos os pormenores do nosso plano operacional. Tinha-me escapado algum
passo importante? Seria concebível que ao fim de uma vida inteira dedicada aos movimentos
furtivos fosse cair no último obstáculo? Prue disse que não. Tinha revisto os nossos
preparativos e não tinha encontrado nenhuma falha. Portanto, porque é que eu, em vez de me
preocupar sem razão, não telefono a Ed a perguntar se tem
314

tempo para almoçar? E, sem precisar de mais incentivos, é isso que eu faço no meu papel de
padrinho, escassas vinte e quatro horas antes de Ed trocar votos com Florence.
Telefono a Ed.
Ele fica encantado. Que boa ideia, Nat! Brilhante! Só tem uma hora, mas talvez consiga esticá-
la. Que tal o restaurante-bar Dog & Goat, à uma em ponto?
Pois seja o Dog & Goat. Lá nos encontramos. Às treze horas em ponto.

Um denso cacho de fatos de funcionário público apinha-se naquele dia no bar do Dog & Goat, o
que não admira, porque fica a menos de quinhentos metros de Downing Street, dos Negócios
Estrangeiros e das Finanças. E uma boa parte dos fatos são de gente com idades próximas da de
Ed, pelo que me parece um pouco estranho que, quando ele vem ao meu encontro abrindo
caminho por entre a multidão, na véspera do seu casamento, praticamente não haja ninguém
que vire a cabeça para o saudar.
Não há nenhuma Stammtisch livre, mas Ed tira partido da altura e dos cotovelos e depressa
liberta dois bancos de bar do meio da mêlée. E eu consigo furar até ao balcão e pedir duas
cervejas de pressão, não geladas, mas quase, e dois "almoços de lavrador" (1) com cheddar e
cebolas em vinagre e pão crocante, passados de mão em mão ao longo do balcão.
Com estes elementos essenciais conseguimos improvisar uma espécie de canto de observação, e
berrar um ao outro por cima da algazarra. Só espero que o pessoal de Percy esteja a conseguir

(1) Ploughtnan's lunch, refeição fria de pão, queijo e cebola, a que podem acrescentar-se outros
ingredientes. (N. do T.)
315

ouvir alguma coisa, porque tudo o que Ed diz é bálsamo para os meus nervos em franja.
"Perdeu completamente as estribeiras, Nat! A Flo! Convidou todas as amigas e amigos finos
para o pub depois do casamento! Crianças e tudo. E reservou um quarto para nós num hotel
fantástico de Torquay com piscina e salão de massagens! Sabe uma coisa?"
"O quê?"
"Estamos lisos, Nat. Completamente tesos! Foi todo para as obras! Yeah! Vamos ter de ir lavar
pratos na manhã seguinte à noite de núpcias!"
De repente são horas de voltar para o buraco escuro onde o meteram em Whitehall. O bar
esvazia-se como se obedecesse a uma ordem e nós ficamos parados na calma relativa da
calçada, só com o trânsito de Whitehall a passar.
"Eu ia fazer uma despedida de solteiro", diz Edward com embaraço. "Tipo você e eu. A Flo
obrigou-me a desistir. Diz que é tudo treta machista."
"A Florence tem razão."
"Tirei-lhe a aliança", diz ele. "Disse-lhe que lha devolvo quando for minha mulher."
"Boa ideia."
"Trago-a comigo para não me esquecer."
"Não quer que eu a guarde até amanhã?"
"Não é preciso. Grande partida de badmínton. Nat. A melhor de sempre."
"E vai haver muitas mais quando voltarem de Torquay."
"Vai ser ótimo. Yeah. Então até amanhã."
As pessoas não se abraçam nos passeios de Whitehall, mas palpita-me que é nisso que ele está a
pensar. Em vez disso, fica-se por um duplo aperto de mão, pegando-me na mão direita com
ambas as suas e sacudindo-a para cima e para baixo.
316

Sem darmos por isso, as horas escoaram-se. é quase noite. Prue e eu estamos outra vez debaixo
da macieira, ela com o seu iPad, eu com um livro de ecologia que Steff quer que eu leia sobre o
apocalipse que está próximo. Pousei o casaco nas costas da cadeira e devo ter entrado numa
espécie de devaneio, porque levo algum tempo a perceber que o grasnido que estou a ouvir vem
do smartphone modificado de Bryn Jordan. Mas desta vez sou demasiado lento. Prue tirou-o do
meu casaco e levou-o ao ouvido.
"Não, Bryn. é a mulher", diz rapidamente. "Uma voz do passado. Como está? Ótimo. E a
família? Ótimo. Desculpe, ele foi-se deitar, não estava a sentir-se muito bem. Está toda a gente
assim cá em Battersea. Posso ajudar? Bom, isso vai fazê-lo sentir-se muito melhor, tenho a
certeza. Eu digo-lhe quando ele acordar. Para si também, Bryn. Não, ainda não, mas o correio
por aqui funciona muito mal. Com certeza que iremos, se pudermos. Ela tem muito talento. Eu
experimentei os óleos uma vez, mas não correu bem. E boa noite para si, Bryn, onde quer que
esteja."
Desliga.
"Manda-te os parabéns", diz. "E um convite para a exposição de pintura da Ah Chan em Cork
Street. Palpita-me que não vamos poder ir."

é de manhã. Já é de manhã há muito tempo: manhã nas encostas florestadas de Karlovy Vary,
manhã numa crista encharcada de chuva em Yorkshire, na Área Beta e no duplo ecrã da sala de
Operações; manhã em Primrose Hill, no Porto de Abrigo, no campo número um do Athleticus.
Eu fiz o chá e o sumo de laranja e voltei para a cama: é a melhor altura para tomar as decisões
que
317

não tomámos ontem, ou descobrir o que vamos fazer no fim de semana, ou para onde vamos de
férias.
Mas hoje só estamos a conversar sobre o que vamos vestir para o grande acontecimento, e
como vai ser divertido, e como foi um golpe de génio da minha parte sugerir Torquay porque as
crianças parecem perfeitamente incapazes de tomar qualquer decisão prática sozinhos - sendo
as crianças a nossa forma estenográfica de dizer Ed e Florence e a nossa conversa um regresso
preventivo aos nossos tempos de Moscovo, porque a única coisa que se sabe sobre Percy Price
é que a amizade passa para segundo plano quando se tem uma extensão telefónica mesmo ao
lado da cama.
Até ontem à tarde, eu tinha partido do princípio de que todos os casamentos se realizavam ao
nível da rua, mas fui abruptamente corrigido neste ponto quando, no meu regresso do Dog &
Goat, fiz um discreto reconhecimento fotográfico da nossa área de intervenção e confirmei que
a conservatória do registo civil escolhida por Ed e Florence ficava no quinto andar, e a única
razão para ter uma vaga pedida com tão pouca antecedência estava em oito lanços íngremes de
fria escada de pedra até se chegar ao balcão da receção, e mais meio lanço antes de se entrar
numa cavernosa sala de espera com arcos, decorada como um teatro sem palco, com música
suave em fundo e assentos de tecido e um mar de pessoas inseguras em grupos, e uma reluzente
porta lacada de preto no outro extremo, com uma placa a dizer "Só Casamentos". Havia um
único elevador minúsculo, com prioridade para deficientes.
Verifiquei durante o mesmo reconhecimento que o terceiro andar, que estava todo arrendado a
uma firma de contabilistas certificados, dava para uma ponte pedonal de estilo veneziano com
acesso a um edifício semelhante no outro lado da rua; e, melhor ainda, a uma escada de caracol
que descia diretamente para um parque automóvel subterrâneo.
318

Das profundezas insalubres do parque de estacionamento, a escada estava acessível a quem


tivesse a loucura suficiente para trepar por ela acima. Mas para quem quisesse descê-la vindo da
ponte pedonal do terceiro andar o acesso era reservado a residentes credenciados do prédio,
veja-se o desbotado aviso "ENTRADA PROIBIDA AO PÚBLICO" colado a toda a largura de
uma sólida porta dupla de comando eletrónico. A placa de latão dos contabilistas certificados
mencionava seis sócios. O primeiro era um tal Mr. M. Bailey.
Na manhã seguinte, em silêncio quase completo, Prue e eu vestimo-nos.
Registarei os acontecimentos como registaria qualquer operação especial. Chegamos
deliberadamente cedo, às 11h15. Na subida das escadas de pedra fazemos uma pausa no
terceiro andar, onde Prue sorri no seu chapéu florido e eu meto conversa de ocasião com a
rececionista da firma de contabilistas certificados. Não, diz ela em resposta à minha pergunta,
os patrões não fecham as portas cedo à sexta-feira. Eu informo-a de que sou um cliente antigo
de Mr. Bailey. Ela diz mecanicamente que ele está em reuniões toda a manhã. Eu digo que
somos velhos companheiros de escola, mas que não quero incomodá-lo e marcarei uma
entrevista formal com ele para um dia da próxima semana. Entrego-lhe um cartão de visita que
sobrou do meu último cargo: conselheiro comercial, Embaixada de S.M., Talin, e espero
enquanto ela se digna lê-lo.
"Onde fica Talin?", pergunta ela espevitadamente.
"Na Estónia."
"Onde fica a Estónia?" - risadinha.
"No Báltico", digo-lhe eu. "A norte da Letónia."
319

Não me pergunta onde fica o Báltico, mas a risadinha diz-me que a impressionei. E dei cabo do
meu disfarce, mas que importa isso? Subimos mais dois andares até à sala de espera cavernosa
e tomamos posição perto da entrada. Uma mulher grande, em uniforme verde com dragonas de
major-general, está a organizar grupos de casamentos em filas. Ouvem-se sininhos pelos
altifalantes sempre que termina um casamento, altura em que mandam avançar o grupo mais
próximo da porta preta lacada. A porta fecha-se e os sininhos recomeçam quinze minutos
depois.
Às 11h51, Florence e Ed surgem de braço dado vindos da escada, parecendo um anúncio de
publicidade a uma empresa de construção: Ed de fato novo cinzento que lhe cai tão mal como o
velho, e Florence com o mesmo fato de calça e casaco que tinha usado num soalheiro dia de
primavera há mil anos, quando, jovem e promissora funcionária dos serviços secretos,
apresentou a Operação Botão de Rosa aos sábios anciãos da Direção de Operações. Tem na mão
um ramo de rosas vermelhas. Deve ter sido Ed que lhas comprou.
Beijamo-nos: Prue e Florence, Prue e Ed; após o que eu, na minha qualidade de padrinho,
pespego um beijo na face de Florence, o primeiro que lhe dou.
"Agora não há recuo", sussurro-lhe sonoramente ao ouvido, no meu tom mais jocoso.
Ainda mal nos separámos quando os compridos braços de Ed me envolvem num desajeitado
abraço viril - duvido que alguma vez o tenha tentado antes - e quando dou por mim já ele me
içou à sua altura e aperta-me contra o peito, por pouco não me sufocando.
"Prue", anuncia ele. "Este homem é um péssimo jogador de badmínton, mas fora isso é ótimo."
Pousa-me no chão, a arfar e a rir de entusiasmo, enquanto eu perscruto os retardatários em
busca de um rosto, gesto ou silhueta
320

que me confirme aquilo que já sei: Prue não será de maneira nenhuma a única testemunha deste
casamento.
"Grupo de Edward e Florence, por favor! Grupo de Edward e Florence, obrigada. Por aqui, por
favor. Muito bem."
A major-general no seu uniforme verde organiza-nos, mas a porta preta lacada ainda está
fechada. Os sininhos tocam em crescendo e depois desvanecem-se.
"Ei, Nat, esqueci-me mesmo da aliança", murmura-me Ed com um sorriso matreiro.
"Então é um palerma", respondo eu, e ele dá-me um toque no ombro a dizer que estava a
brincar.
Terá Florence olhado para dentro do batom caro japonês de Prue? Terá visto o endereço que
tem dentro? Terá procurado o endereço no Google Earth e identificado a casa de hóspedes
escondida no alto dos Alpes da Transilvânia, propriedade de um casal de catalães idosos que em
tempos foram meus agentes? Não, certamente não, é demasiado inteligente para isso, sabe bem
o que é a contravigilância. Mas terá ao menos lido a carta de apresentação que escrevi para eles,
em letra pequena e em papel de máquina enrolado segundo a nossa melhor tradição? Caros
Pauli e Francesc, por favor tratem o melhor que puderem estas boas pessoas, Adam.
A escrivã é uma senhora bondosa, firme numa boa causa. Tem uma pilha de cabelo loiro e
ganha a vida a casar, ano após ano, percebe-se pelo ritmo paciente da voz. Quando chega a casa
ao fim do dia, o marido pergunta-lhe "Quantos foram hoje, querida?" e ela responde "Foi o dia
inteiro sem parar, Ted", ou George, ou como quer que ele se chame, e sentam-se em frente da
televisão.
Chegámos ao ponto alto da cerimónia de casamento. Segundo a minha experiência, há duas
espécies de noivas: as que murmuram as suas falas de modo inaudível e as que as dizem bem
alto
321

para todo o mundo ouvir. Florence pertence à segunda escola. Ed segue-lhe o exemplo e
também declama, agarrando-lhe a mão e olhando-a diretamente nos olhos.
Hiato.
A escrivã torce o nariz. Tem os olhos postos no relógio por cima da porta. Ed está às
apalpadelas. Não se lembra em que bolso do fato novo meteu a aliança e está a resmungar
"porra". O desagrado da escrivã evolui para um sorriso de compreensão. Encontrou-a! - bolso
direito das calças novas, o mesmo onde guarda a chave do cacifo enquanto me derrota no
badmínton, yeah. Trocam alianças. Prue vai pôr-se ao lado esquerdo de Florence. A escrivã está
a acrescentar os seus votos muito pessoais de felicidades. Acrescenta-os vinte vezes por dia.
Sininhos espalham a boa nova daquela união. Abre-se uma segunda porta diante de nós.
Estamos despachados.
Um corredor à nossa esquerda, outro à nossa direita. Descemos pelas escadas até ao terceiro
andar, toda a gente a galope menos Florence, que fica para trás. Terá mudado de ideias? A
rececionista dos contabilistas certificados sorri quando nos aproximamos.
"Fui procurar", diz, orgulhosa. "Tem telhados vermelhos. Talin."
"Pois tem, e Mr. Bailey disse-me que podíamos usar a ponte pedonal quando quiséssemos",
digo-lhe eu.
"À vontade", canta ela, e carrega num botão amarelo que tem ao seu lado. As portas elétricas
têm um estertor e afastam-se lentamente, e também lentamente fecham-se nas nossas costas.
"Aonde vamos?", pergunta Ed.
"Um atalho, meu caro", diz Prue enquanto avançamos pela ponte pedonal veneziana com Prue à
frente e carros passando-nos por baixo. Eu desço à frente pela escada de caracol, Ed e Florence
seguem a par atrás de mim, Prue fecha o cortejo. Mas o que eu ainda não sei quando entramos
no parque subterrâneo é
322

se o pessoal de Percy vem atrás de nós, ou se é apenas o eco dos nossos passos que nos segue
pelas escadas abaixo. O carro é um VW Golf híbrido preto. Prue estacionou-o aqui há uma
hora. Abriu-o e está sentada no lugar do condutor. Eu seguro a porta de trás para os noivos
entrarem.
"Vamos, querido Ed. Surpresa", diz Prue energicamente.
Ed hesita, olha para Florence. Florence passa por mim, instala-se no banco traseiro e dá uma
palmada no lugar vazio ao seu lado.
"Vem, marido, não estragues a surpresa. Vamos partir."
Ed entra para o lado dela, eu para o lugar do passageiro, à frente. Ed vai sentado de lado por
causa das pernas compridas. Prue aciona o comando central de portas, avança para a saída e
introduz o talão de estacionamento na máquina. A cancela sobe aos repelões. Até ver, os
espelhos retrovisores estão limpos; nem carro nem moto à vista. Mas nada disso significa muito
se o pessoal de Percy tiver marcado os sapatos de Ed, ou o seu fato novo, seja lá o que for que
eles marcam.
Prue introduziu previamente o Aeroporto da Cidade de Londres no sistema de navegação por
satélite e ele aparece como sendo o nosso destino. Bolas. Devia ter pensado nisso. Não pensou.
Florence e Ed estão ocupados com as carícias, mas não tarda que Ed se incline para a frente e
olhe fixamente para o ecrã, e depois para Florence.
"Que se passa aqui?", pergunta. E, não obtendo resposta de ninguém: "O que está a acontecer,
Flo? Diz-me. Não me enroles, que eu não quero."
"Vamos para o estrangeiro", diz ela.
"Não podemos. Não temos bagagem. E a gente toda que convidámos para o pub? Não temos
connosco a porcaria dos passaportes. É uma loucura."
"Eu trouxe os nossos passaportes. Tratamos da bagagem depois. Compramos algumas coisas."
323

"Com quê?"
"O Nat e a Prue deram-nos algum dinheiro."
"Porquê?"
"Porque sabem, Ed", acaba Florence por responder.
"Sabem o quê?", pergunta Ed.
E voltamos a concentrar-nos na viagem.
"Sabem que tu fizeste o que a tua consciência te ditou", diz ela. "Eles apanharam-te em
flagrante e estão furiosos."
"Eles, quem'?", quer saber Ed.
"O teu Serviço. E o do Nat."
"O Serviço do Nat?. O Nat não tem Serviço. O Nat é o Nat."
"O teu Serviço irmão. O Nat é um deles. Não tem culpa. Por isso tu e eu vamos para o
estrangeiro por um tempo, com a ajuda do Nat e da Prue. Caso contrário vamos os dois para a
cadeia."
"O que ela diz sobre si é verdade, Nat?", pergunta Ed.
"Receio bem que sim, Ed", respondo eu.

Daí para a frente, tudo correu como um sonho. Operacionalmente, uma exfiltração tão fácil
como se poderia desejar. No meu tempo tinha feito algumas, mas nunca do meu próprio país.
Nenhuma complicação quando Prue comprou à última hora bilhetes em classe executiva para
Viena com o seu cartão de crédito. Nenhuma chamada pelos altifalantes no check-in. Nenhum
acompanhem-me por aqui, por favor, enquanto Prue e eu acenávamos ao feliz casal que
atravessava a porta de saída a caminho da Segurança. É certo que eles não responderam aos
nossos acenos, mas também só estavam casados há duas horas.
É certo que, a partir do momento em que Florence me desmascarou, Ed não voltou a dirigir-me
a palavra, nem sequer para se despedir. Com Prue estava tudo bem, sussurrou-lhe um "Adeus,
324

Prue", e até lhe pregou um beijo na face. Mas quando chegou a minha vez limitou-se a olhar
para mim pelos grandes óculos, depois desviou o olhar como se tivesse visto mais do que podia
aguentar. Eu queria ter-lhe dito que me considerava um homem decente, mas já era tarde.
325

AGRADECIMENTOS

Os meus sinceros agradecimentos ao pequeno grupo de fiéis amigos e primeiros leitores, alguns
dos quais preferem não ser identificados, que se debateram com esboços iniciais deste livro e
foram generosos comigo em matéria de tempo, conselhos e estímulo. Posso referir Hamish
MacGibbon, John Goldsmith, Nicho-las Shakespeare, Carrie e Anthony Rowell e Bernhard
Docke. Há seguramente meio século que Marie Ingram, decana literária da família, nunca nos
falta com a sua erudição ou entusiasmo. O escritor e jornalista Misha Glenny foi incansável na
partilha dos seus conhecimentos em matérias russas e checas. Às vezes dou comigo a pensar se
os meus romances não se perdem deliberadamente no labirinto da jurisprudência inglesa só pelo
prazer de me ver resgatado por Philippe Sands, escritor e conselheiro da rainha. Voltou a fazê-lo
desta vez, enquanto assestava o seu olho exímio sobre as minhas infelicidades textuais. Em
matéria de poesia do badmínton devo muito ao meu filho, Timothy. À minha assistente de longa
data, Vicki Phillips, a minha profunda gratidão pela sua diligência, competências múltiplas e
sorriso permanente.
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FIM

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